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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTAGEM REGRESSIVA / Robert Ludlum
CONTAGEM REGRESSIVA / Robert Ludlum

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A organização terrorista criada por Guillaume Matarese, e responsável pelo caos na Europa vinte anos atrás, está de volta. O neto de Guillaume retoma os passos do avô e promove mais assassinatos em série e especulações no mercado financeiro. Um desafio para o agente Cameron Pryce, da CIA e para Scofield, o único sobrevivente do embate de O círculo Matarese, que volta à cena em A contagem regressiva Matarese.

O grupo terrorista combatido pelos agentes Scofield (CIA) e Taleniekov (KGB) em O círculo Matarese ressurge em A contagem regressiva Matarese. Vinte anos depois de espalhar o caos na Europa, uma nova onda de assassinatos e tráfico de influência é patrocinada pelo neto do bilionário Guillaume.
Cabe ao agente da CIA, Cameron Pryce, a missão de interromper a sucessão de mortes e manipulações. Poliglota e especialista em ciência política, ele tem pouco tempo para derrubar definitivamente a conspiração que não hesita em matar quem se coloca em seu caminho.
As últimas palavras de duas vítimas são pistas que revelam a Pryce que os Matarese estão de volta, e que a ajuda do agente Scofield, o único que conseguiu se infiltrar entre eles e sobreviver, é indispensável.
Ele precisa, então, escoltar o já lendário detetive ao último lugar para onde gostaria de voltar: o círculo de morte da temível organização.
Monte Carlo, Londres, Washington, Moscou. Nestes cenários, Ludlum conduz uma impecável trama de espionagem e traição num crescendo de apreensão e mistério.

 


 


Nas florestas de Chelyabinsk, a cerca de novecentas milhas aéreas de Moscou, há um pavilhão de caça outrora considerado um retiro favorito da elite dirigente da União Soviética. Era uma dacha para todas
as estações: na primavera e no verão, um festival de jardins e flores silvestres; no outono e no inverno, um paraíso para os caçadores. Nos anos que se seguiram ao colapso do velho Presidium, foi mantida
inviolável pelos novos donos do poder, uma espécie de jazigo apolítico para o mais venerado cientista da Rússia, um físico nuclear chamado Dimitri Yuri Yurievich, um homem para todas as estações. Pois
ele fora assassinado, brutalmente conduzido a uma monstruosa cilada por assassinos sem nenhum respeito, somente ódio, pelo seu gênio, que ele queria compartilhar com todas as nações. De onde quer que os
assassinos tenham vindo, e ninguém realmente sabia, eles eram os celerados, certamente não o seu alvo, em que pesem as implicações letais do seu saber.
A velha senhora de cabelos brancos rarefeitos estava deitada na cama, a grande janela à sua frente revelava a neve prematura do norte. Como seu cabelo e sua pele enrugada, tudo do outro lado da vidraça
era branco, uma nova pureza congelada dos céus, vergando os galhos das árvores com seu peso, um paraíso de luz ofuscante. Com esforço, ela alcançou a sineta de latão na sua mesinha-de-cabeceira e sacudiu-a.
Prontamente, uma mulher saudável de trinta e poucos anos, cabelos castanhos e olhos vivazes irrompeu pela porta resolutamente. - Sim, vovó, o que posso fazer pela senhora?
- Você já fez mais do que devia, minha menina.
- Estou longe de ser uma menina, e não há nada que não faça pela senhora, a senhora sabe muito bem disso. Quer que lhe sirva um chá?
- Não, o que você podia era me arranjar um padre - não importa de que religião. Eles nos foram negados por tanto tempo.
- A senhora não precisa de um padre, o que está precisando é de algum alimento sólido, vovó.
- Meu Deus, você é igualzinha ao seu avô. Sempre contestando, sempre analisando...
- Não estava analisando coisa alguma - atalhou Anastasia Yuriskaya Solatov. - A verdade é que a senhora come como um pardal!
- Provavelmente eles comem o equivalente ao peso deles todos os dias... não que isso tenha importância. Mas onde está seu marido?
- Está caçando. Ele diz que é mais fácil seguir a trilha dos animais na neve fresca.
- Ele é bem capaz de acabar dando um tiro no pé. Além do mais, não precisamos de provisões. Moscou é muito generosa - disse a velha senhora.
- Como não podia deixar de ser! - replicou Anastasia Solatov.
- Não, minha querida. É porque eles têm medo de proceder de outra maneira.
- O que é que está querendo dizer com isso, Maria Yuriskaya?
- Vá buscar o padre, minha filha. Estou com oitenta e cinco anos e alguém precisa saber a verdade. Agora!
O velho prelado vestido de preto da Igreja Russa Ortodoxa colocou-se ao lado da cama. Ele conhecia os sintomas, os tinha visto muitas vezes. A velha senhora estava morrendo, sua respiração diminuía gradativamente,
tornando-se cada vez mais difícil. Sua confissão, minha cara senhora - ele ensaiou.
- Não a minha, seu asno! - respondeu Maria Yuriskaya. - Era um dia não muito diferente de hoje, a neve cobrindo o chão, os caçadores prontos, com suas armas a tiracolo. Ele foi morto num dia como hoje,
seu corpo foi espancado, estraçalhado por um urso ferido enfurecido, atraído criminosamente para seu caminho por psicopatas.
- Sim, sim, nós todos ouvimos a história de sua trágica perda, Maria.
- A princípio disseram que tinham sido os americanos, depois que tinham sido os críticos de meu marido em Moscou até mesmo possíveis colegas e concorrentes enciumados foram acusados - mas não foi nada
disso.
- Foi há muito tempo, madame. Fique calma, o Senhor a está esperando. Ele a receberá no seu regaço e a confortará...
- Guvno, seu imbecil! A verdade precisa ser revelada. Fiquei sabendo mais tarde - telefonemas do mundo inteiro, nada por escrito, apenas palavras faladas no ar - que eu e meus filhos, e os filhos deles,
jamais viveríamos para ver outro dia nascer se eu falasse o que meu marido me contou.
- O que foi que ele lhe disse, Maria?
- Meu fôlego está me abandonando, padre, a janela está escurecendo.
- O que foi que ele contou, filha de Deus?
- Uma força muito mais perigosa do que a existente entre todas as facções beligerantes nesta terra.
- Que força?
- Os Matarese... a consumação do mal. - A cabeça da anciã caiu para trás. Ela estava morta.
O grande e reluzente iate branco, medindo mais de cinquenta pés da proa à popa, manobrou suavemente e atracou na marina de Estepona, ao norte da opulenta Costa do Sol, refúgio privilegiado dos ricos e
poderosos do mundo.
O homem de idade avançada, macilento, na luxuosa dependência do iate, estava sentado numa cadeira estofada de veludo, sendo atendido pelo seu camareiro pessoal de quase três décadas. O idoso proprietário
da suntuosa embarcação estava se aprontando, com a ajuda de seu criado e amigo, para a conferência mais importante de sua longa vida, uma vida que se estendia por mais de noventa anos, a idade exata mantida
em segredo, pois grande parte dessa vida fora passada nas arenas implacáveis de homens muito mais jovens. Para que dar a esses ávidos jovens turcos a vantagem de sua propalada senilidade, que na verdade
representava muitas gerações de uma experiência superior? Três operações plásticas podiam ter deixado seu rosto parcialmente com a aparência de uma máscara, mas isso era meramente superficial, uma imagem
enganadora para confundir os oportunistas que usurpariam seu império financeiro se tivessem a mínima chance.
Um império que não significava mais nada. Era um colapso de papel valendo mais de sete bilhões de dólares americanos, sete mil vezes um milhão, erguido à custa de manipulações de uma entidade há muito
esquecida. Começara com uma visão de vingança e tornara-se cada vez mais violentamente satânico, mais corrompido por subalternos que não enxergavam nada além de si mesmos.
- Como estou, Antoine?
- Esplêndido, monsieur - respondeu o serviçal, aplicando-lhe no rosto uma suave loção pós-barba e retirando uma toalha que lhe protegia o peito, revelando seus trajes formais completados por uma gravata
de listras.
- Não é demais? - perguntou o refinado patrão, fazendo um gesto para possíveis excessos de sua elegância.
- De modo algum. O senhor é o chairman, eles têm que compreender isso. O senhor não pode tolerar qualquer oposição.
- Oh, meu velho amigo, não haverá oposição. Planejo instruir meus vários conselhos administrativos no sentido de prepararem a desestruturação. Pretendo recompensar generosamente todos os que dedicaram
seu tempo e sua energia a empresas sobre as quais não sabiam essencialmente nada.
- Haverá quem ache suas instruções difíceis de serem aceitas, mon ami René.
- Excelente! Você está deixando de lado as convenções e falsas aparências, está querendo me dizer alguma coisa. - Os dois homens riram discretamente, e o velho senhor continuou. - Para dizer a verdade,
Antoine, eu devia tê-lo nomeado para algum comitê executivo. Não me lembro de nenhum julgamento seu equivocado.
- Só os emiti quando o senhor pediu minha opinião e julguei compreender as circunstâncias. Nunca nas áreas de negociações e transações, de que não entendo nada.
- Somente sobre pessoas, correto?
- Digamos que tenho um espírito protetor, René... Vamos, deixe-me ajudá-lo a se acomodar na cadeira de rodas...
- Não, Antoine, dispenso a cadeira de rodas. Segure meu braço e entremos juntos na sala onde se realizará a reunião... A propósito, o que tinha em mente quando disse que haveria quem não gostasse de minhas
instruções? Eles serão devidamente indenizados. Todos ficarão numa situação mais do que confortável.
- Segurança não é a mesma coisa que participação direta, ativa, mon ami. Os funcionários sem dúvida ficarão muito satisfeitos, mas os executivos poderão não ter a mesma reação. O senhor os está destituindo
de seus feudos de poder, de influência. Tenha cuidado, René, diversos dos que comparecerão a essa conferência fazem parte desse grupo.
A grande sala de jantar do iate era uma réplica de pé-direito baixo de um restaurante da moda de Paris, os murais impressionistas à sua volta reproduziam vistas do Sena, do Arco do Triunfo, da Torre Eiffel,
e diversas outras paisagens de Paris. A mesa circular de mogno acomodava cinco cadeiras, quatro estavam ocupadas e uma vaga. Quatro homens envergando ternos austeros estavam sentados, tendo à sua frente
garrafas de água mineral Evian, e cinzeiros e maços de cigarros Gauloises ao lado. Apenas dois cinzeiros estavam em uso, os outros firmemente descartados.
O frágil ancião entrou na sala, acompanhado de seu camareiro há vinte e oito anos, conhecido de todos os presentes de reuniões anteriores. Cumprimentos foram trocados; o velho chairman foi instalado numa
cadeira do meio, enquanto seu fiel "escudeiro" sentou-se atrás dele encostado à parede. O procedimento foi aceito, ninguém fez qualquer objeção, nem poderiam, pois se tratava de uma tradição.
- Então, aqui estão todos os advogados. Mon avocat em Paris, mein Rechtsanwalt em Berlim, mio avvocato em Roma e, naturalmente, nosso advogado corporativo em Washington, D.C. É um prazer revê-los. - Houve
mudos assentimentos à saudação e o velho senhor prosseguiu: - Vejo pela ansiosa recepção dos senhores que não estão muito empolgados com o objetivo de nossa reunião. É uma pena, porque minhas instruções
serão levadas a cabo, quer os senhores gostem, quer não.
- Por favor, Herr Mouchistine - disse o advogado da Alemanha. - Todos nós recebemos suas instruções em código, agora trancafiadas em nossos cofres, e, francamente, estamos perplexos! Sua intenção não é
simplesmente vender suas empresas e seus ativos...
- Excluindo, naturalmente, quantias consideráveis destinadas ao ressarcimento de seus serviços profissionais - René Mouchistine atalhou abrupta e firmemente.
- Somos muito reconhecidos por sua generosidade, René, mas não é isso o que nos preocupa - disse o advogado de Washington. - É o que se seguirá. Alguns mercados quebrarão, as ações despencarão... perguntas
serão feitas! Investigações poderão ser instauradas... todos nós poderemos ficar comprometidos.
- Absurdo. Cada um de vocês limitou-se a cumprir ordens do ardiloso René Pierre Mouchistine, único proprietário de minhas empresas. Contrariar suas ordens implicaria a demissão de vocês. Pelo menos uma
vez, digam a verdade, cavalheiros. Respaldados pela verdade, ninguém poderá tocá-los.
- Mas, monsignore - exclamou o avvocato da Itália - o senhor está vendendo ativos muito abaixo do seu valor de mercado! Com que objetivo? O senhor está doando milhões e milhões a obras de caridade em toda
parte a pobres-diabos que não sabem distinguir uma lira de um marco alemão! O que é que o senhor é, um socialista que pretende reformar o mundo, destruindo os milhares que acreditaram no senhor, em nós?
- De modo algum. Vocês todos fazem parte de algo que começou muitos anos antes de terem nascido - a visão do grande padrone, o barão de Matarese.
- Quem? - perguntou o advogado francês.
- Lembro-me vagamente de ter ouvido esse nome, mein Herr - disse o alemão. - Mas não tem a menor relevância para mim.
- Por que deveria ter? - René Mouchistine lançou um rápido olhar sobre o ombro para seu camareiro, Antoine. - Vocês não passam de teias de aranha tecidas a partir da fonte, foram contratados pela fonte,
legitimizando suas operações, porque vocês eram legítimos. Vocês dizem que estou devolvendo milhões aos que perderam os jogos - de onde é que vocês supõem que veio toda a riqueza? Tornamo-nos freneticamente
gananciosos.
- Você não pode fazer isso, Mouchistine! - gritou o americano, levantando-se. - Serei intimado a depor perante uma comissão parlamentar de inquérito!
- E eu! O Bundestag insistirá em abrir uma investigação berrou o Rechtsanwalt de Berlim.
- Eu não me submeterei à Câmara dos Deputados - vociferou o parisiense.
- Farei com que nossos associados em Palermo o convençam do contrário - disse o advogado de Roma ominosamente. - Você verá a lógica.
- Por que você mesmo não tenta demonstrá-la agora? Tem medo de um velho?
O italiano levantou-se, furioso, e enfiou a mão por dentro do seu paletó feito sob medida. Não fez mais do que isso. Um único tiro abafado, disparado por Antoine, o camareiro, dilacerou-lhe o rosto. O
advogado romano tombou, sujando o soalho de parquê.
- Você é um louco! - bradou o alemão. - Ele ia simplesmente mostrar o recorte de um artigo no qual diversas de suas empresas são diretamente vinculadas à Máfia, o que é a expressão da verdade. Você é um
monstro!
- Suprema ironia partindo de você, considerando-se Auschwitz e Dachau.
- Eu ainda nem tinha nascido!
- Leia a história... O que é que você diz, Antoine?
- Legítima defesa, monsieur. Como informante sênior da Sureté, vou declarar no meu relatório que ele fez menção de sacar uma arma.
- Merda! - gritou o advogado de Washington. - Você nos encurralou aqui, seu filho-da-puta!
- Não é verdade. Queria simplesmente me certificar de que vocês cumpririam minhas ordens.
- Não podemos! Pelo amor de Deus, será que você não compreende? Seria o fim de nós todos...
- De um certamente, mas vamos nos livrar do corpo... peixe para os peixes no fundo do mar.
- Você é louco!
- Ficamos loucos. Não éramos no começo... Pare! Antoine!... As escotilhas!
As pequenas janelas circulares do iate foram subitamente tomadas por rostos cobertos com máscaras de borracha. Um a um, os invasores quebraram os vidros com suas armas e começaram a atirar indiscriminadamente
para todos os cantos e sombras da sala. Antoine puxou Mouchistine para debaixo de um armário bojudo, seu próprio ombro tinha sido dilacerado pela saraivada de balas, e seu amo apresentava diversas perfurações
no peito. Seu amigo de trinta anos não sobreviveria.
- René, René! - gritou Antoine. - Respire fundo, continue respirando! Eles foram embora! Vou levá-lo para o hospital!
- Não, Antoine, é tarde demais! - Mouchistine engasgou-se ao falar. - Os advogados partiram desta para melhor e não lamento o meu fim. Convivi com o mal e morro renegando-o. Talvez isso signifique alguma
coisa em algum lugar.
- Do que está falando, mon ami, o mais caro amigo de minha vida?
- Procure Beowulf Agate.
- Quem?
- Pergunte a Washington. Eles têm que saber onde ele se encontra! Vasili Taleniekov foi morto, mas Beowulf Agate, não. Ele está em algum lugar e conhece a verdade.
- Que verdade, meu melhor amigo?
- Os Matarese! Eles estão de volta. Eles sabiam dessa conferência, estavam a par das instruções em código, que não fazem sentido sem as respectivas cifras. Quem quer que tenham sido os atacantes, o seu
objetivo era me imobilizar, portanto você tem que se lançar no seu encalço, detê-los.
- Como?
- Empenhe-se com todo o seu coração e a sua alma! Não perca tempo! Dentro em pouco ele terá se propagado por toda parte.É o mal que o arcanjo do inferno profetizou, o bem que se transformou em servo de
Satã.
- O que diz não faz sentido. Não sou um profundo conhecedor da Bíblia!
- Você não precisa ser - sussurrou o moribundo Mouchistine. - As ideias são monumentos mais grandiosos do que as catedrais. Sobrevivem milênios além da duração das pedras.
- Que diabo você está dizendo?
- Ache o Beowulf Agat. Ele é a chave.
René Mouchistine oscilou espasmodicamente para a frente, e em seguida pendeu a cabeça para trás, repousando-a na quina do armário. Suas últimas palavras foram tão nítidas que davam a impressão de terem
sido sussurradas guturalmente através de uma câmara de ressonância.
- Os Matarese... a encarnação do mal. - O ancião depositário dos segredos estava morto.
UM
Seis meses antes
Nas escarpadas colinas da Córsega, precipitando-se sobre as águas de Porto Vecchio no mar Tirreno, viam-se as ruínas de uma outrora suntuosa propriedade. A fachada de cantaria, construída para durar séculos,
estava em grande parte intacta, diversas estruturas internas, entretanto, estavam destruídas, tendo sido consumidas por um incêndio décadas atrás. A tarde ia pela metade, o céu estava escuro, nuvens carregadas
prenunciavam chuva iminente com o temporal de fim de inverno que se armava na costa, para os lados de Bonifácio. Não demoraria muito e o ar e a terra estariam encharcados, lama por toda parte, o mato crescido
cobrindo as alamedas invisíveis em torno da mansão.
- Sugiro que a gente se apresse, padrone - disse o corso corpulento num casaco com capuz. - As estradas para o aeroporto de Senetosa já são normalmente difíceis, imagine com uma tempestade! - ele acrescentou
num inglês carregado, o idioma mutuamente acordado.
- Senetosa pode esperar - respondeu o homem magro de capa de chuva, sua fala denunciando uma origem holandesa. - Tudo pode esperar até que eu tenha terminado de fazer o que me trouxe aqui!... Deixe-me
ver o levantamento topográfico do lado norte da propriedade, por favor. - O corso enfiou a mão no bolso e retirou um papel grosso dobrado muitas vezes. Entregou-o ao homem de Amsterdã, que o desdobrou
rapidamente, apoiou-o contra uma parede de pedra e estudou-o ansiosamente. Ele desviava a todo instante os olhos do mapa, observando a área que momentaneamente prendia sua atenção. Começou a chover, uma
garoa que logo se transformou num aguaceiro.
- Por aqui, padrone - gritou o guia de Bonifácio, apontando para um arco na parede de pedra. Era a entrada para um pequeno jardim, uma espécie de caramanchão algo estranho, uma vez que o arco tinha pouco
mais de um metro de largura ao passo que sua espessura era de quase dois metros, parecendo um túne! - realmente estranho. O mato tinha tomado conta do espaço, galhos de trepadeiras subiam pelos lados,
obstruindo a entrada, praticamente impedindo o acesso ao local. Contudo, era um abrigo para a súbita chuvarada.
O padrone, um homem de pouco mais de quarenta anos, entrou no acanhado santuário, afastando a folhagem com a planta do terreno desdobrada. Tirou do bolso da capa um marcador hidrográfico vermelho e fez
um círculo em torno de uma grande área. - Esta área - ele gritou para se fazer ouvir devido ao barulho da chuva batendo na pedra - deve ser rigorosamente isolada, interditada, para que ninguém possa entrar
ou perturbá-la de qualquer maneira! Ficou bem claro?
- Se é uma ordem sua, será cumprida à risca. Mas, padrone, o senhor está se referindo a uma área de cerca de quatrocentos mil metros quadrados.
- É uma ordem. Meus representantes vão ficar permanentemente de olho para que ela seja obedecida ao pé da letra.
- Não será necessário, senhor, eu me responsabilizo.
- Ótimo, faça isso.
- E o resto, grande signore?
- Tal como discutimos em Senetosa. Tudo deverá ser precisamente reproduzido, fielmente de acordo com os planos originais registrados em Bastia há duzentos anos, beneficiando-se, naturalmente, das modernas
conveniências. Tudo o que você precisar será fornecido pelos meus navios e aviões de carga de Marselha. Você tem os números e os códigos dos meus telefones, que não constam da lista, e dos meus faxes.
Faça o que estou lhe pedindo - o que estou lhe mandando - e se aposentará rico, com seu futuro garantido.
- É um privilégio ter sido escolhido, padrone.
- E você compreende a necessidade de que tudo seja mantido no mais absoluto sigilo?
- Naturalmente, padrone. O senhor é um cavalheiro excêntrico da Baviera imensamente rico que resolveu desfrutar as delícias da vida nas magníficas colinas de Porto Vecchio. E estamos conversados - isso
é tudo o que as pessoas saberão!
- Muito bem, excelente.
- Mas se me permite, grande signore, paramos na aldeia e a velha que explora aquela estalagem decrépita viu o senhor. Pra dizer a verdade, ela se pôs de joelhos na cozinha e agradeceu ao Salvador pela
sua volta.
- O quê?
- Se o senhor se recorda, quando nossas bebidas estavam demorando muito a chegar, fui até a cucina e a encontrei rezando em voz alta. Ela chorava e falava ao mesmo tempo, dizendo que sabia pelo seu rosto,
pelos seus olhos. "O Barone di Matarese voltou", ela repetia sem parar. - O corso pronunciou o nome como se diz em italiano - Mataresa. - Ela agradeceu a Nosso Senhor o fato de o senhor ter voltado, trazendo
novamente o esplendor e a felicidade para as montanhas.
- Esse incidente deve ser apagado de sua memória para sempre, está me entendendo?
- Naturalmente, senhor. Não ouvi nada.
- Quanto à reconstrução, deve ficar pronta em seis meses. Não faça economias, faça o que lhe estou dizendo.
- Darei o melhor de mim.
- Se o melhor de você não for suficiente, adeus à aposentadoria, à fortuna, capisce?
- Perfeitamente, padrone - disse o corso, engolindo em seco.
- Quanto à velha da estalagem...
- Sim, senhor?
- Mate-a.
Passaram-se seis meses e doze dias de grande histeria e a grande propriedade da dinastia Matarese foi completamente restaurada. Os resultados foram surpreendentes, somente possíveis graças a alguns milhões
de dólares. A imponente mansão com seu imenso salão de banquetes ficou exatamente como seu arquiteto original a projetara no início do século dezoito: seus enormes candelabros foram substituídos por lustres
de menores proporções, tendo sido introduzidas diversas conveniências modernas, tais como água corrente, banheiros, ar-condicionado e, naturalmente, eletricidade em todas as dependências.
O terreno foi limpo, e o solo úmido em torno da casa deu lugar a um grande gramado para a prática de croqué e pequenas tacadas de golfe. A longa entrada a partir da estrada para Senetosa foi calçada, refletores
distribuídos pela grama iluminavam o caminho à noite, e criados impecavelmente vestidos aguardavam os veículos que se aproximavam dos degraus de mármore da escadaria. O que os visitantes não sabiam é que
os elegantes criados eram guardas profissionais, a maioria ex-soldados de diversos países. Cada um dispunha de um aparelho eletrônico que detectava armas, câmeras ou gravadores num raio de três metros;
essencialmente, podiam acusar a presença desses objetos a uma distância de dois pés.
As ordens eram claras. Se alguém chegasse com alguns desses itens, seria detido à força e conduzido a uma sala de interrogatórios onde seriam feitas perguntas ríspidas. Se as respostas não fossem consideradas
satisfatórias, havia aparelhos, tanto manuais quanto elétricos, destinados a extrair respostas mais favoráveis. Os Matarese estavam de volta em todo seu poder e sua glória questionáveis.
Caía a noite e as colinas de Porto Vecchio faiscavam à luz do pôr-do-sol, quando as limusines começaram a chegar. Os guardas em seus ternos Armani recebiam os visitantes solicitamente, ajudando-os a descer
de seus veículos ao mesmo tempo que, discretamente, apalpavam seus trajes. Eram sete os carros luxuosos, e sete eram os convidados, não haveria mais do que isso. Seis homens e uma mulher cujas idades variavam
de trinta e poucos a mais de cinquenta anos, uma mistura de nacionalidades com uma coisa em comum - eram todos imensamente ricos. Cada um deles galgou os degraus de mármore da Villa Matarese, sendo conduzidos
pelos guardas individuais ao salão de banquetes. Uma mesa comprida estendia-se no centro do salão com cartões em frente às sete cadeiras, quatro à direita, três à esquerda, nenhuma a menos de um metro
e meio de distância da outra. Na cabeceira da mesa havia uma cadeira vazia; uma pequena estante erguia-se à sua frente. Dois garçons uniformizados movimentavam-se pelo salão tomando pedido de coquetéis;
em cima de cada jogo de pratos, uma delicada taça de cristal com caviar beluga. Acordes suaves de uma fuga de Bach pairavam sutilmente pelo salão.
Comentários em voz baixa começaram a aumentar de tom, denotando uma certa perplexidade, como se nenhum dos convidados entendesse o motivo da reunião. Novamente, entretanto, havia um denominador comum:
todos falavam inglês e francês, optando finalmente pelo primeiro idioma, uma vez que os dois americanos presentes não se sentiam à vontade com o segundo. A conversa era inconsequente, limitando-se a saber
quem conhecia quem e a elogiar o tempo glorioso nas Bahamas, Havaí ou Hong Kong. Ninguém ousava formular a pergunta essencial: Por que estamos aqui? Seis homens e uma mulher não conseguiam ocultar seu
temor. E tinham boas razões para isso. Havia mais nos seus passados individuais do que o presente faria supor.
De repente, a música parou. As luzes dos lustres foram diminuídas enquanto um pequeno spotlight emergia da grade do balcão, o seu foco tornando-se mais luminoso à medida que se concentrava na estante na
cabeceira da mesa. O homem esguio de Amsterdã saiu de uma alcova e encaminhou-se lentamente para o foco de luz e a estante. Suas feições agradáveis conquanto sem nada de mais especial pareciam pálidas
sob a luz intensa, mas o mesmo não se podia dizer de seus olhos. Eram vivos e penetrantes, focalizando brevemente cada pessoa ao cumprimentá-la comum discreto gesto de cabeça.
- Agradeço a todos por terem aceito o meu convite - ele começou, sua voz transmitindo uma estranha mistura de gelo e calor reprimido. - Espero que suas acomodações de viagem tenham estado à altura do estilo
a que estão acostumados. Houve um murmúrio de afirmações, embora pouco entusiásticas. - Tenho consciência - prosseguiu o homem de Amsterdã - de que causei embaraços às suas vidas sociais e profissionais,
mas não tive escolha.
- Agora tem - atalhou a mulher friamente. Estava na casa dos trinta e ostentava um vestido preto de alta-costura e um colar de pérolas que valeria no mínimo cinquenta mil dólares. - Estamos aqui, agora
diga-nos por quê.
- Peço desculpas, madame. Sei muito bem que estava a caminho do Rancho Mirage, em Palm Springs, para um compromisso com o sócio do seu atual marido na sua firma de corretagem extorsiva. Estou certo de
que saberão perdoar sua ausência, uma vez que a corretora não existiria se a senhora não a tivesse financiado.
- Como se atreve...
- Por favor, madame, não me obrigue a detalhes constrangedores.
- Quanto a mim - disse um português calvo de meia-idade - estou aqui porque o senhor deu a entender que eu teria sérias dificuldades caso não comparecesse. Percebi perfeitamente o sentido de sua referência
em código.
- Meu telegrama simplesmente mencionou o nome "Açores". Ao que tudo indica, foi o suficiente. O consórcio que dirige é pródigo em esquemas de corrupção, o suborno pago a Lisboa é escandalosamente criminoso.
Se conseguir controlar os Açores, controlará não somente as tarifas aéreas que sobem incessantemente como as taxas cobradas a milhões de turistas que visitam o arquipélago anualmente. Bem bolado, tenho
de admitir.
Protestos indignados irromperam de ambos os lados da mesa, alguns mais exaltados aludiam veladamente a atividades questionáveis como o pretexto para a convocação dos sete convivas à segregada propriedade
em Porto Vecchio.
- Basta - disse o homem de Amsterdã, levantando a voz. Vocês se enganam sobre o motivo de estarem aqui. Sei mais da vida de cada um de vocês do que vocês próprios sabem. É meu legado, minha herança...
e vocês todos são herdeiros. Somos descendentes dos Matarese, a fonte de onde deriva toda a riqueza de vocês.
Os sete visitantes ficaram estupefatos, entreolhando-se, incrédulos, como se de repente algo insuspeitado os unisse.
- Não creio que esse seja um nome que usemos ou ao qual tenhamos o hábito de nos referir - disse um inglês envergando um terno com o corte impecável dos alfaiates de Savile Row. - Nem minha mulher nem
meus filhos jamais o ouviram - ele acrescentou polidamente.
- Para que trazê-lo à baila? - perguntou um francês. - Os Matarese desapareceram há muito tempo - estão todos mortos e esquecidos, uma lembrança remota a ser definitivamente sepultada.
- Você está morto? - perguntou o holandês. - Você está enterrado? Não me parece. Sua fortuna permitiu-lhe ascender ao pináculo da influência financeira. Todos vocês dirigem, em seus próprios nomes ou por
delegação a terceiros, grandes corporações e conglomerados, a essência da filosofia Matarese. E cada um de vocês foi escolhido por mim para cumprir o destino dos Matarese.
- Que diabo de destino é esse? - perguntou um dos americanos com um carregado sotaque sulista. - Por acaso você é algum Huey Long?
- Dificilmente, mas os seus interesses em cassinos instalados às margens do rio Mississippi podem fazer crer que você seja.
- Meus negócios são tão limpos quanto precisam ser, meu chapa!
- Aprecio sua desenvoltura...
- Que destino? - interpelou o outro americano. - O nome Matarese nunca apareceu em qualquer documentação legal relativa a bens imobiliários legados à minha família.
- Ficaria muito admirado se tivesse. Você é o advogado-chefe de um grande banco de Boston. Formado pela Escola de Direito de Harvard, magna cum laude... e parte integrante de uma instituição tida como
a maior fonte de suborno de funcionários estaduais e federais, tanto eleitos quanto nomeados. Felicito-o pelo seu talento.
- Você não pode provar nada disso.
- Não me provoque, doutor... sairia perdendo. Mas o fato é que não os convoquei aqui a Porto Vecchio para me jactar da exatidão de minhas investigações, embora admita que isso faça parte do todo. É a velha
história da cenoura e da vara... Primeiro permitam que me apresente. Sou Jan van der Meer Matareisen, e tenho certeza de que meu sobrenome lhes diz alguma coisa. Sou descendente direto do barão de Matarese,
ele foi na verdade meu avô. Como é possível que saibam ou não, as ligações amorosas do barão foram mantidas em sigilo, o mesmo acontecendo com qualquer fruto resultante dessas ligações. Entretanto, o grande
homem jamais fugiu às suas responsabilidades. Sua progênie foi confiada às melhores famílias da Itália, França, Inglaterra, de Portugal, da América e, como posso atestar, da Holanda.
Os convidados ficaram novamente atônitos. Lenta e gradativamente, seus olhos vagueavam em torno da mesa. Todos se entreolhavam brevemente, penetrantemente, como se algum segredo extraordinário estivesse
prestes a ser revelado.
- Afinal, aonde está querendo chegar? - disse o americano grandalhão e grosso da Louisiana. - Desembuche de uma vez, garoto!
- Concordo plenamente - disse o elegante cavalheiro de Londres. - Qual é seu objetivo, meu velho?
- Tenho a impressão de que muitos de vocês já passaram à minha frente - disse Jan van der Meer Matareisen, permitindo-se esboçar um pálido sorriso.
- Então diga logo, holandês! - exigiu o empresário inescrupuloso de Lisboa.
- Muito bem, é o que vou fazer. Como eu, todos vocês são filhos desses filhos. Somos produtos dos mesmos quartos, como o bardo inglês talvez dissesse. Cada um de vocês é descendente do barão de Matarese.
O auditório explodiu a uma só voz com frases como "Ouvimos falar dos Matarese, mas nada como isso"! e "Isso tudo é ridículo! Minha família já era rica há muito mais tempo"! E "Olhe só pra mim! Sou uma
loura natural, não tenho nenhum traço mediterrâneo"! Os protestos aumentaram de volume até que os contestadores foram perdendo o fôlego, e finalmente calaram-se quando Jan Matareisen levantou as mãos sob
o foco de luz.
- Posso responder aos seus impropérios especificamente ele disse com calma - se me quiserem ouvir... Os apetites do barão eram vorazes e variados. Suas avós foram levadas a ele como que para satisfazer
os caprichos de um xeque árabe; nenhuma, entretanto, foi desonrada, pois todas o aceitaram pelo homem extraordinário que ele era. Mas eu, somente eu, fui o filho legítimo perante os olhos da Igreja. Ele
casou com minha avó.
- Que pobres-diabos então somos nós? - esbravejou o americano de Nova Orleans. - Bastardos há duas gerações?
- Alguma vez lhe faltaram recursos? Para estudar, investir?
- Não... não posso dizer que tenha faltado.
- E sua avó foi, e ainda é, uma mulher de extraordinária beleza, um modelo cujo rosto e cujo corpo enfeitaram publicações como Vogue e Vanity Fair, não é verdade?
- Creio que sim, embora ela não fale muito sobre o assunto,
- Nem tinha que falar. Ela se casou pouco depois com um executivo de seguros cuja empresa expandiu-se a tal ponto que ele foi conduzido à sua presidência.
- Você não está apenas sugerindo, você está afirmando que somos todos parentes! - gritou o advogado de Boston. - Qual é a prova que possui?
- Enterrado há quase dois metros de profundidade na parte nordeste desta propriedade havia um pequeno cofre e, dentro dele, um pacote embrulhado num oleado. Levei cinco meses para encontrá-lo. No pacote
estavam os nomes dos filhos do barão e dos seus países de adoção. Entre outras coisas, ele era extremamente meticuloso em tudo o que fazia... Sim, meu caro convidado de Boston, somos todos aparentados.
Somos primos, queiramos ou não. Coletivamente, somos os herdeiros dos Matarese.
- Inacreditáve! - disse o inglês, com a respiração suspensa.
- Meu Deus! - disse o americano do sul.
- É ridículo! - bradou a loura de Los Angeles.
- Na verdade, chega a ser cômico - disse um prelado de Roma num garboso hábito do Vaticano. Um cardeal.
- Sim, concordo - disse Matareisen - pensei que pudesse apreciar o humor sublime. O senhor é um sacerdote renegado. Embora goze dos favores de Sua Santidade, é odiado pelo Colegiado.
- Precisamos levar a Igreja Católica para a realidade do século vinte e um. Não faço concessões.
- Mas ganha muito dinheiro de bancos controlados pela Santa Sé, não é verdade?
- Sou um conselheiro, não lucro pessoalmente.
- Segundo minhas fontes, isso é discutível. Refiro-me, naturalmente, a uma magnífica mansão às margens do lago Como.
- Pertence ao meu sobrinho.
- Que a obteve através do seu segundo casamento, o primeiro tendo sido ilegalmente anulado pelo senhor, mas passemos adiante. Realmente minha intenção não é causar embaraços a quem quer que seja. Afinal
de contas, somos todos da mesma família... Vocês estão aqui porque são vulneráveis, como certamente também o sou. Se sou capaz de esmiuçar os podres de suas várias empresas, outros também poderão fazê-lo.
É só uma questão de provocação, tempo e curiosidade, não é mesmo?
- Você fala muito sem dizer nada - disse o agitado americano sulista. - Qual é a sua agenda, meu chapa?
- "Agenda", gosto disso. Encaixa-se perfeitamente no seu perfi! - um PhD em administração de empresas, se não estou enganado.
- Não está. Pode me chamar de reacionário e não estaria muito equivocado, mas não sou um conservador burro. Continue.
- Muito bem. A agenda - nossa agenda - é a fruição da causa dos Matarese, a visão de nosso avô, Guillaume de Matarese.
Todos os olhos ficaram grudados no holandês. Não havia como negar que, a despeito de suas reservas, os sete herdeiros estavam intrigados - cautelosamente. - Já que está muito mais familiarizado com essa
"visão" do que nós, poderia ser mais claro? - perguntou a contida e elegantemente vestida mulher.
- Como todos sabem, as finanças internacionais estão agora globalmente integradas. O que acontece com o dólar americano afeta o marco alemão, a libra inglesa, o iene japonês, e todas as moedas mundiais,
assim como cada uma, por sua vez, afeta as outras.
- Sabemos disso muito bem - disse o português. - Desconfio que muitos de nós lucram com a flutuação das cotações de câmbio.
- Você também teve prejuízos, não teve?
- Pequenos, comparados com nossos lucros, como meu "primo" americano poderá dizer dos lucros dos seus cassinos em contraposição às perdas de seus jogadores.
- É isso aí, primo. Falou e disse...
- Receio que estejamos nos desviando do assunto principal interrompeu o inglês. - A agenda, por favor.
- Controlar os mercados globais, infundir disciplina nas finanças internacionais - essa era a causa do visionário conhecido como barão de Matarese. Canalizar o dinheiro para mãos que sabem usá-lo, não
para os governos, que só sabem gastá-lo, jogando as nações umas contra as outras. O mundo já está em guerra, uma contínua guerra econômica, mas quem são os vitoriosos? Lembrem-se, quem controla a economia
de uma nação controla seu governo.
- E está querendo dizer... - O português sentou-se mais para a frente.
- Sim, estou - o holandês atalhou. - Nós podemos fazê-lo. Nossos bens coletivos excedem a trilhões de dólares, capital de investimento mais do que suficiente para se espalhar geograficamente e influenciar
os centros de poder que representamos. Influência que se propagará pelo mundo afora tão rapidamente quanto as transferências horárias de milhões de um mercado financeiro para outro. Agindo de comum acordo,
temos o poder de criar o caos econômico em nosso benefício individual e coletivo.
- Isso é sensacional - gritou o empresário de Nova Orleans. Não podemos perder porque teremos os trunfos nas mãos!
- Com algumas exceções - disse o neto legítimo dos Matarese. - Como tive ocasião de mencionar, vocês todos foram escolhidos porque encontrei vulnerabilidades que serviam aos meus propósitos, as cenouras
e as varas, creio que disse. Houve outras pessoas a quem procurei, talvez revelando mais do que deveria. Elas se opuseram violentamente às minhas ideias, chegando a declarar que denunciariam imediatamente
qualquer iniciativa que os Matarese pudessem tomar... São três indivíduos, dois homens e uma mulher, pois o barão teve dez netos fora da Igreja. Portanto, nossa abordagem tem que ser feita do abstrato,
do global para o pessoal. Para esses três indivíduos extremamente influentes que nos destruiriam. Temos, por conseguinte, que destruí-los primeiro. É aqui que vocês podem se revelar de grande valia...
Cavalheiros e minha cara senhora, eles têm que ser eliminados antes que comecemos a nos mexer. Mas eles têm que ser executados engenhosamente, sem deixar rastros que possam acabar levando a qualquer um
de vocês. Havia mais um indivíduo, sem vínculos de sangue conosco, um velho tão poderoso que poderia nos pôr fora de combate assim que começássemos a nos expandir. Deixou de ser um obstáculo, os outros
continuam sendo. São os únicos restantes que podem se insurgir contra nós. Vamos discutir os detalhes básicos? Ou há alguém que preferiria se retirar agora?
- Não sei por que, mas tenho a impressão que se o fizéssemos, não chegaríamos à estrada para Senetosa - pensou em voz alta a mulher.
- A senhora me atribui uma capacidade maior do que eu mesmo julgo possuir, madame.
- Vá em frente, Jan van der Meer Matareisen, visões são comigo mesmo - disse o cardeal.
- Então vislumbre o seguinte, padre - disse Matareisen. Temos um cronograma, uma contagem regressiva, se preferir. Faltam apenas alguns meses, o início do Ano-novo. Esse é o nosso alvo para o controle
global, o controle Matarese.
DOIS
The Hamptons, Nova York, 28 de agosto
O East End de Long Island fica a menos de uma hora de Manhattan, dependendo do tipo de avião. O "Hamps" permanecerá para sempre a província imaginária do romancista F. Scott Fitzgerald, pelo menos certos
setores em que aviões particulares estejam envolvidos. É rica e paparicada, repleta de grandes mansões, gramados bem-cuidados, piscinas azuis cintilantes, quadras de tênis e viçosos jardins ingleses sob
o sol do verão. A exclusividade de décadas anteriores fora substituída pela afluência da meritocracia. Judeus, italianos, ídolos negros e hispânicos - todos outrora excluídos - eram agora os maiorais do
East End, coexistindo pacificamente, até mesmo entusiasticamente, com os ainda chocados herdeiros WASP da ancestral prosperidade.
Dinheiro é um nivelador extraordinário. As mensalidades dos diversos clubes foram reduzidas pelo afluxo de pretendentes, e suas generosas contribuições para melhorias nas numerosas dependências são jubilosamente
aceitas com imensa gratidão.
Jay Gatsby continua vivo, com ou sem Daisy - e Nick, a consciência de uma era.
A partida de polo no Green Meadow Hunt Club estava em pleno fragor, pôneis e cavaleiros suarentos e esbaforidos giravam impetuosamente seus bastões, perseguindo a ardilosa bola branca que se desviava perigosamente
por entre os cascos dos cavalos galopantes. De repente, ouviu-se um grito angustiado de um dos cavaleiros. Ele perdera seu capacete no calor da disputa. Sua cabeça era uma massa sangrenta, parecendo ter
havido fratura de crânio.
O jogo foi instantaneamente interrompido quando os competidores apearam de suas montarias e correram ao encontro do cavaleiro caído. Entre eles havia um médico, um cirurgião argentino, que afastou os corpos
à sua frente e ajoelhou-se ao lado da figura inconsciente. Ele olhou para cima, para os rostos ansiosos. - Ele está morto - disse o médico.
- Como foi que isso pôde acontecer! - exclamou o capitão do Time Vermelho, o time do homem morto. - Ele deve ter sido atingido por um dos bastões de madeira - isso já aconteceu com todos nós - mas com
tanta violência a ponto de lhe fraturar o crânio, pelo amor de Deus!
- O que o derrubou não foi madeira - disse o argentino. - Pra mim foi coisa muito mais pesada - ferro, ou chumbo, talvez. Dois patrulheiros uniformizados estavam numa das baias da enorme cavalariça, e
o serviço médico de emergência local tinha sido chamado. - Deve ser feita uma autópsia, especificamente direcionada para o impacto craniano - continuou o médico. - Anote isso no seu relatório, por favor.
- Sim, senhor - respondeu um dos patrulheiros.
- O que é que você está sugerindo, Luís? - perguntou outro cavaleiro.
- É muito claro - respondeu o patrulheiro, escrevendo no seu caderno de anotações. - Ele está sugerindo que isso pode não ter sido um acidente, estou certo, doutor?
- Não cabe a mim dizer. Sou um médico, não um policial. Estou apenas fazendo uma observação.
- Qual é o nome do morto, e ele tem mulher ou parentes nas imediações? - interrompeu o segundo patrulheiro, olhando para seu companheiro e acenando com a cabeça para o caderno de anotações.
- Giancarlo Tremonte - respondeu um cavaleiro louro, que obviamente fazia parte do seu grupo de camaradas.
- Já ouvi esse nome - disse o primeiro policial.
- Muito possivelmente - continuou o jogador louro. - A família Tremonte, do lago de Como e de Milão, é muito conhecida. Ela tem consideráveis interesses na Itália e na França, bem como aqui, naturalmente.
- Não, estou me referindo a esse nome Giancarlo - atalhou o patrulheiro com o caderno de notas.
- Ele aparece frequentemente nos jornais - disse o capitão do Time Vermelho. - Nem sempre nos mais respeitáveis, embora sua reputação seja esplêndida - ou melhor, fosse esplêndida.
- Então por que ele aparecia nos jornais com tanta frequência? - perguntou o segundo policial.
- Creio que era porque ele era muito rico, comparecia a muitos acontecimentos sociais e beneficentes. E gostava de mulheres. - O líder do Time Vermelho olhou significativamente para o patrulheiro. - Isso
é um prato cheio para a imprensa marrom, mas não chega a ser um pecado. Afinal, ele não escolheu seus antepassados.
- Creio que não, mas acho que o senhor respondeu a uma de minhas perguntas. Não há esposa por perto, e se havia namoradas, elas trataram de sumir. Justamente para evitar esses jornalistas fofoqueiros.
- Não tenho nada a dizer quanto a isso.
- Não quero ser indiscreto, estou apenas cumprindo minha obrigação. Sr.... Sr.?...
- Albion, Geoffrey Albion. Minha casa de verão fica em Gulf Bay, na praia. Tanto quanto eu saiba, Giancarlo não tem parentes nesta área. Ao que estou informado, Giancarlo estava nos Estados Unidos para
cuidar dos interesses americanos da família Tremonte. Quando ele alugou a propriedade Wellstone, naturalmente ficamos encantados em admiti-lo ao Green Meadow. - Ele é - era - um jogador de polo muito talentoso...
Podemos, por favor, remover os seus restos mortais?
- Nós vamos cobrir o corpo, senhor, mas ele terá que ficar aqui até que nossos superiores e o médico-legista cheguem. Quanto menos se mexer nele, melhor.
- Está querendo dizer que deveríamos tê-lo deixado no campo na frente de todo mundo? - disse Albion rispidamente. - Se está, vamos ter um desentendimento. Já foi de muito mau gosto ter isolado a área onde
ele caiu.
- Estamos somente fazendo o nosso trabalho, senhor. - O primeiro policial recolocou o caderno de anotações no bolso. - As empresas de seguros são muito exigentes nesses casos, especialmente quando resultam
em ferimentos ou mortes. Eles querem examinar tudo.
- A propósito - acrescentou o segundo patrulheiro - vamos precisar dos bastões dos dois times, de todos que participaram do jogo.
- Estão todos naquela parede ali adiante - disse o jogador louro com uma voz firme porém ligeiramente anasalada. A parede a que ele se referia dispunha de dúzias de suportes coloridos dotados de prendedores
dos quais pendiam os bastões de polo como utensílios de madeira. - Os bastões dos jogadores de hoje estão no setor vermelho, na extremidade esquerda - ele prosseguiu. - Os cavalariços costumam lavá-los
com a mangueira mas eles estão todos lá.
- Eles são lavados?... - O primeiro policial apanhou novamente o seu caderno de anotações.
- Para tirar a terra e a lama, meu caro. Eles podem ficar muito sujos durante o jogo. Veja só, alguns ainda estão pingando.
- Sim, estou vendo - disse o segundo patrulheiro. - Somente água da mangueira? Não são imersos em soluções com produtos de limpeza, detergentes ou coisa parecida?
- Não, mas parece uma boa ideia - disse outro cavaleiro, balançando a cabeça em sinal de aprovação.
- Um momento - interrompeu o patrulheiro, encaminhando-se para a parede e examinando os bastões. - Quantos bastões devem ficar guardados no setor vermelho?
- Varia - respondeu Albion condescendentemente. - Há oito jogadores, quatro para cada time, com substituições e bastões de reserva. Há uma cavilha amarela móvel que separa o jogo programado dos jogadores
que não atuam naquele dia. Os cavalariços se ocupam de todos esses detalhes.
- Isto aqui é que é a cavilha amarela? - perguntou o patrulheiro, apontando para uma peça de madeira clara circular, protuberante.
- Roxa é que ela não é, não acha?
- Não, não é, Sr. Albion. E não foi mexida desde que o jogo começou esta tarde?
- E por que haveria de ser?
- Talvez o senhor devesse perguntar: por que não foi? Estão faltando dois bastões.
O torneio de tênis de celebridades em Monte Carlo atraiu dezenas de competidores conhecidos do cinema e da televisão. Quase todos eram americanos e ingleses que jogavam com e contra socialites da Europa
- realeza decadente e abastados gregos, alemães, alguns escritores franceses em declínio e diversos espanhóis que se proclamavam detentores de títulos há muito esquecidos mas faziam questão de que seus
nomes fossem precedidos do tratamento Don. Ninguém levava nada muito a sério, pois as festividades noturnas eram extravagantes, os participantes viviam seus minutos de glória à luz dos refletores - eram
televisados, naturalmente - e uma vez que tudo era patrocinado pela casa real de Mônaco, muita pândega - e publicidade - rolava a pretexto de obras de benemerência.
Um enorme bufê era servido à luz das estrelas no grande terraço do palácio fronteiro à baía. Uma talentosa orquestra tocava os mais variados estilos musicais, de óperas a canções populares nostálgicas
enquanto cantores internacionalmente conhecidos se revezavam entretendo o auditório, cada um deles recebendo uma ovação quando os convidados levantavam-se de suas elegantes mesas sob o foco de refletores
errantes.
- Manny, manda ver Sixty Minutes!
- Tá legal, boneca, tem tudo a ver.
- Cyril, por que estou aqui? Não jogo tênis!
- Porque aqui estão alguns chefões de estúdios. Vá até o palco e recite alguma coisa nos seus mais melodiosos tons, e vire-se o tempo todo para a direita e para a esquerda, exibindo o seu glorioso perfil.
- Aquela vagabunda roubou minha canção!
- Você não a patenteou, querida. Cante "Smoke Gets in Your Eyes" ou qualquer outra coisa.
- Não sei a letra toda!
- Então cantarole e jogue seus peitos na cara deles. Os caras das gravadoras estão aqui! - Esse era o diapasão das conversas muito altruísticas!
No meio da congregação de grandes, quase-grandes, não grandes e os que jamais o seriam estava um homem calado, abastado porém modesto, sem nenhuma pretensão. Era um homem dedicado à pesquisa, um cientista
voltado para o estudo do câncer, e se encontrava em Monte Carlo como um dos patrocinadores contribuintes. Tinha pedido para se manter no anonimato, mas, aos olhos do Grande Comitê, sua generosidade proibia-o.
Finalmente concordara, em nome de sua família espanhola, fazer um pequeno discurso de saudação aos convidados.
Ele estava atrás de um biombo, no pátio, pronto para se dirigir ao palco quando seu nome fosse chamado. - Estou muito nervoso - ele disse a um auxiliar de cena que estava ao seu lado, com a incumbência
de lhe dar um tapinha nas costas quando chegasse a hora de se apresentar. - Não sou muito bom para falar em público.
- Seja breve e agradeça a todos, isso é tudo o que tem a fazer… Tome aqui um copo d’água, lhe ajudará a limpar a garganta.
- Gracias - disse o portador de um título nobiliárquico genuíno Juan Garcia Guaiardo. Ele bebeu a água e a caminho do palco teve um colapso. Quando sua morte sobreveio, o prestimoso auxiliar já tinha desaparecido.
Alicia Brewster, Dama do Reino por decreto da rainha, emergiu do seu Bentley em frente à residência da família em Belgravia, Londres. Era uma mulher compacta, de estatura mediana, mas seus passos largos
e a energia que eles implicavam faziam com que parecesse muito mais imponente, uma força a ser considerada, talvez, dependendo de quem a estivesse observando. Ela transpôs a entrada de colunas da casa
eduardiana para ser saudada pelos seus dois filhos, que tinham sido especialmente convocados de seus respectivos internatos e a aguardavam no grande e reluzente vestíbulo. Eles eram um rapaz alto, bem
proporcionado, musculoso, e uma mocinha mais baixa, igualmente atraente, ambos nos últimos anos da adolescência, ambos ansiosos, preocupados, até mesmo assustados.
- Me desculpem por tê-los chamado - disse a mãe depois de beijar cada filho rapidamente. - Achei que seria melhor dessa maneira.
- É tão grave assim? - perguntou o irmão mais velho.
- É grave, sim, Roger.
- Eu diria que é uma decisão que deveria ter sido tomada há mais tempo - disse a jovem. - Jamais gostei dele, você sabe.
- Oh, mas eu gostei muito, Angela. - Alicia Brewster sorriu tristemente, acenando com a cabeça. - Achei, também, que vocês precisavam de um homem em casa...
- Ele estava longe de brilhar nesse departamento, mamãe interrompeu o rapaz.
- Convenhamos, ele tinha um exemplo difícil de ser igualado. O pai de vocês foi uma figura irresistível. Bem-sucedido, famoso, e certamente dinâmico.
- Você teve muito a ver com isso, mamãe - disse a filha.
- Muito menos do que você pensa, minha querida. Daniel era um homem de personalidade forte. Eu dependia muito mais dele do que ele de mim. O que mais me entristece é que a sua morte foi tão prosaica, tão
banal na realidade. Morrer de um derrame cerebral enquanto dormia! Só de pensar nessa hipótese absurda ele teria ido correndo para o ginásio, praguejando.
- O que é que quer que façamos, mamãe? - perguntou Roger rapidamente, como se quisesse afastar lembranças penosas.
- Não tenho certeza. Apoio moral, acho eu. Como a maioria dos homens fracos, o padrasto de vocês tem um temperamento malévolo...
- É bom que ele não o demonstre - atalhou o atlético rapaz. Se se atrever sequer a levantar a voz, quebro-lhe o pescoço.
- E Roger pode muito bem fazê-lo, mãe. Ele não lhe dirá, mas é campeão intercolegial de luta livre de Midlands.
- Cale essa boca, Angie, não foi nenhuma competição pra valer.
- Não falei no sentido físico - interrompeu Alicia. - Gerald não é desse tipo. Com ele a coisa não passa de gritaria e ataques histéricos. Será apenas desagradável.
- Então por que não entrega o caso ao seu advogado, mãe?
- Porque preciso saber por quê.
- O quê? - perguntou Angela.
- Para mantê-lo mais ocupado e, creio, estimular sua autoestima, coloquei-o no comitê financeiro da nossa Wildlife Association; na verdade, nomeei-o presidente do conselho. Começaram a surgir irregularidades,
verbas alocadas para entidades inexistentes, esse tipo de coisas... Encurtando a história, o fato é que Gerald roubou mais de um milhão de dólares da associação.
- Santo Deus! - exclamou o filho.
- Mas por quê? Nunca lhe faltou dinheiro depois que se casou com você! Por que você se casou com ele?
- Ele era tão charmoso, tão vivo - à primeira vista tão parecido com seu pai, mas só superficialmente. E, a verdade seja dita, eu estava tão terrivelmente deprimida. Julguei que ele fosse um homem forte,
mas logo me dei conta de que tudo não passava de falsas aparências... Onde é que ele está?
- Na biblioteca lá de cima. Tenho a impressão de que está bêbado.
- Foi o que eu pensei. Na verdade, procurei o meu advogado. Vou cobrir o desfalque, mas não posso apresentar queixa, acusá-lo - a publicidade seria prejudicial à associação. Ele recebeu instruções para
fazer as malas e partir imediatamente depois de se avistar comigo. Exigi essa condição. Agora vou lá em cima.
- Vou com você.
- Não, querido, não é necessário. Quando ele descer, ponha o no carro dele. Se estiver muito bêbado para dirigir, chame o Coleman e diga-lhe para levar Gerald para onde ele quiser ir. Desconfio que para
a casa de sua nova namorada em High Holborn. Os dois se merecem.
Alicia subiu a escada circular rápida e decididamente, uma Valquíria vingativa querendo respostas. Aproximou-se da porta da biblioteca do primeiro andar, o estúdio particular de Daniel Brewster, e escancarou-a.
- Ora... ora! - exclamou o aparentemente embriagado Gerald, afundado numa poltrona de couro escuro, uma garrafa de uísque na mesa ao lado e um copo pela metade oscilando embaixo dos lábios. - A rica megera
dando uma de detetive finalmente resolveu aparecer. Sinto muito, minha cara, mas você está ficando velha e, cá pra nós, não oferece mais nenhum atrativo aqui pro bacana.
- Por que, Gerry, por quê? Nunca lhe neguei um shilling quando você me pediu! Por que fez isso?
- Você sabe o que é viver como um apêndice inútil de uma cadela rica que nem se dignou a adotar meu nome? Não, é claro que não, porque você é essa puta rica!
- Eu lhe expliquei por que tinha que manter meu sobrenome Brewster e você concordou - disse Lady Alicia, encaminhando-se para a poltrona. Não apenas por causa das crianças, mas eu fui sagrada lady com
esse nome. Você sabe, também, que nunca o tratei com mesquinharia. Você é um homem doente, Gerald, mas estou disposta a ajudá-lo, se você quiser ajuda. Talvez a culpa seja minha, e não posso me esquecer
de como, no princípio, você foi tão atencioso, mostrou-se tão preocupado com a minha dor. Você me ajudou quando precisei de ajuda, Gerry, e o ajudarei agora, se você me permitir.
- Pelo amor de Deus, não aguento santas. O que é que você pode fazer por mim agora? Vou penar vinte anos na prisão e depois o quê?
- Não, você não vai. Vou repor o dinheiro e você deixará a Inglaterra. O Canadá ou a América, talvez, onde poderá constituir um advogado, mas não poderá mais permanecer nesta casa. Aceite minha proposta,
Gerald, é a última que lhe farei.
Alicia estava de pé ao lado do marido, olhando-o com olhos súplices, quando inopinadamente ele deu um salto da poltrona, agarrou-lhe a saia e levantou-a acima dos quadris. Tirou uma seringa do bolso da
calça, tapou a boca da mulher com a mão e espetou-lhe a seringa na coxa por cima da meia. Manteve a mão brutalmente no lugar até ela desfalecer. Quando a retirou, ela estava morta.
Um assassino frio, completamente sóbrio, dirigiu-se ao telefone na mesa da biblioteca. Discou um número em código na França, que foi retransmitido para Istambul, depois para a Suíça, e finalmente - perdido
nos computadores - para a Holanda.
- Está feito.
- Ótimo. Agora banque o marido perturbado, o homem culpado angustiado e dê o fora daí. Lembre-se, não use o seu Jaguar. Um táxi londrino perfeitamente normal está esperando por você. Você o identificará
pelo motorista que estará segurando um lenço amarelo com a mão fora da janela.
- Você me protegerá? Você me prometeu isso!
- Você vai viver uma vida de luxo e opulência para o resto de seus dias. Fora do alcance de quaisquer leis.
- Deus sabe que mereço, depois de viver tanto tempo com aquela vaca.
- Você certamente merece. Agora não perca mais um minuto.
O segundo marido de Lady Alicia saiu às pressas da biblioteca, chorando copiosamente. Mergulhou na escada circular, quase caindo, suas lágrimas aparentemente toldando-lhe a visão, enquanto continuava a
gemer. - Sinto muito, sinto muito! Estou arrependido. Nunca deveria ter feito aquilo! - Ele chegou ao grande hall polido, passando apressadamente pelos jovens Brewster, e alcançou a porta da frente. Abriu-a
impetuosamente e correu para a rua.
- Mamãe deve lhe ter dito poucas e boas - disse Roger Brewster.
- Ela disse para você checar se ele estava em condições de dirigir o Jaguar.
- Quero que ele se foda, irmãzinha, as chaves estão comigo. O filho-da-puta finalmente saiu desta casa.
O táxi estava esperando por Gerald encostado no meio-fio da rua de Belgravia, com o lenço amarelo balançando na janela do motorista. Ele se jogou no banco traseiro, respirando furiosamente. - Depressa
- ele gritou. - Não posso ser visto por aqui! Subitamente, Gerald percebeu que havia um homem sentado ao seu lado.
Não chegaram a ser trocadas palavras, ouviu-se tão-somente o estampido abafado por um silenciador de dois disparos. - Leve-nos para a fundição ao norte de Heathrow - disse o homem na penumbra. - As fornalhas
queimam a noite inteira.
TRÊS
Numa sala de estratégia fora dos limites da Agência Central de Inteligência em Langley, na Virgínia, dois homens estavam sentados frente a frente em torno de uma mesa de conferências. O mais velho era
o vice-diretor da CIA, e o mais moço, um tarimbado agente chamado Cameron Pryce, um veterano da nova Paz Fria, com relevantes serviços prestados em Moscou, Roma e Londres, citados em sua folha funcional.
Pryce era poliglota, fluente em russo, francês e italiano e, naturalmente, inglês. Era um produto de trinta e seis anos da Universidade de Georgetown, da Maxwell School of Foreign Service, de Syracuse
e da Universidade de Princeton, onde fazia o doutorado - este último interrompido no segundo ano. O doutorado foi abortado quando a CIA o recrutou antes que pudesse concluir o curso.
Por quê? Porque Cameron Pryce, na tese de doutorado que preparava, audaciosa mas convicta e fundamentadamente, previu a queda da União Soviética quatro meses antes do seu colapso. Cabeças como essa eram
preciosas.
- Leu o arquivo ultrassecreto? Perguntou o vice-diretor Frank Shields, um homem baixote, gordo, ex-analista, com uma testa alta e olhos que pareciam perpetuamente semicerrados.
- Li, sim, Frank, e, honestamente, não fiz qualquer anotação - respondeu Pryce, um homem espadaúdo, esguio, cujos traços bem definidos podiam ser melhor descritos como marginalmente atraentes. Ele continuou,
sorrindo gentilmente. - Mas, naturalmente, você sabe disso. Os gnomos dessas reproduções horrendas penduradas nas paredes ficaram me vigiando o tempo todo. Você pensou que eu ia escrever um livro?
- Houve quem fizesse isso, Cam.
- Snepp, Agee, Borstein e mais umas tantas almas gentis que acharam nossos procedimentos menos do que admiráveis... Essa não é a minha praia, Frank. Fiz um pacto com o diabo quando você pagou meus empréstimos
de estudante.
- Contávamos com isso.
- Não seja excessivamente confiante, não conte demais. Eu mesmo podia ter pago os empréstimos no seu vencimento.
- Com o salário de professor-assistente? Sem maiores perspectivas, sem lugar para uma mulher e filhos e uma cerca de madeira branca no campus.
- Caramba, até disso você se encarregou! Meus relacionamentos amorosos foram breves e erráticos, nenhum filho que eu saiba.
- Deixando de lado esse papo biográfico, o que é que você acha desse dossiê?
- Ou são eventos não relacionados ou é muito mais do que parece ser. Uma coisa ou outra, nada intermediário.
- Dê um palpite padrão.
- Não posso. Quatro milionários internacionalmente conhecidos são assassinados juntamente com mortais menos importantes. As pistas levam a parte alguma e os criminosos simplesmente desapareceram. Não consigo
ver uma interligação, interesses ou investimentos mútuos ou mesmo qualquer contato social aparente - seria estranho se houvesse. Temos uma inglesa aristocrática uma lady - que se dedicava à filantropia,
um cientista espanhol de uma família rica de Madri, um playboy italiano de Milão e um financista francês idoso com múltiplas residências e um palácio flutuante a que chamava habitualmente de sua casa,
o único traço comum é a singularidade das mortes, a ausência de pistas ou desdobramentos, e o fato de todos terem ocorrido no espaço de vinte e quatro horas. De 28 a 29 de agosto para ser exato.
- Se há alguma ligação, é aí que ela reside, não é?
- Foi o que acabei de dizer, mas é tudo de que dispomos.
- Não, há mais do que isso - atalhou o vice-diretor.
- O quê?
- Informações que suprimimos do dossiê.
- Mas, que diabo, por quê? Trata-se de um arquivo ultrassecreto, você mesmo disse.
- Às vezes, esses arquivos caem em mãos erradas, não é mesmo?
- Não se forem manuseados adequadamente... Puxa vida, como você está sério! A coisa parece realmente grave.
- Extremamente.
- Então você não está jogando limpo, Frank. Você me pediu para avaliar dados que sabia estarem incompletos.
- Você bateu nas respostas certas. A falta de pistas, o espaço de tempo.
- Qualquer um poderia levantar as mesmas premissas.
- Duvido que com a mesma presteza, mas o fato é que não estamos procurando mais ninguém, Cam. É você que nós queremos.
- Com massagens no meu ego, uma boa gratificação e uma verba reforçada para despesas eventuais, você terá minha total e irrestrita atenção. Quais são os detalhes escabrosos que foram omitidos?
- Tudo de boca, nada por escrito.
- Muito, muito sérios...
- Receio que sim... Primeiro, temos que nos reportar à morte natural de uma anciã a milhares de quilômetros de Moscou há muitos meses. O padre que estava à sua cabeceira nos seus últimos momentos finalmente
enviou uma carta às autoridades russas depois de se questionar intimamente durante semanas. Na carta, ele dizia que a mulher, viúva de um eminente físico nuclear da União Soviética, dado como morto por
um urso enfurecido durante uma caçada, declarara que seu marido na verdade tinha sido morto por homens desconhecidos que atiraram no animal, forçando-o a se desviar para o caminho do cientista. Subsequentemente
eles desapareceram.
- Espere aí! - Pryce interrompeu. - Eu ainda era garoto na ocasião, mas me lembro perfeitamente de ter lido ou ouvido qualquer coisa na televisão sobre o incidente. "Yuri" não sei das quantas. Foi uma
dessas notícias que mexem com a imaginação infanti! - uma pessoa famosa estraçalhada por um animal gigantesco. Sim, me lembro muito bem.
- Pessoas da minha idade também se lembram do ocorrido disse Shields. - Eu tinha acabado de entrar para a Agência, e era voz geral aqui em Langley que Yurievich queria acabar com a proliferação de armas
nucleares. Lamentamos muito a sua morte; alguns de nós chegaram a pôr em dúvida a veracidade das notícias. Dizia-se insistentemente que Yurievich na verdade teria sido fuzilado e não morto pelo urso, mas
a pergunta que ficou sem resposta foi por que Moscou teria ordenado a execução do seu físico mais brilhante?
- A resposta? - perguntou o agente.
- Não tínhamos uma. Não podíamos entender, e acabamos aceitando a versão da agência noticiosa Tass.
- E agora?
- Uma equação diferente. Aparentemente, nos seus últimos estertores, a velha responsabilizou uma organização chamada Matarese pelo trágico fim do marido, referindo-se a ela como a "consumação do mal",
segundo suas próprias palavras. Isso lhe diz alguma coisa, Cam?
- Nada. Somente uma característica comum a esses recentes assassinatos: a falta de pistas.
- Perfeito. Era isso o que eu queria ouvir. Agora, dando um salto para a frente, examinemos o caso do financista francês, René Pierre Mouchistine, executado no seu iate.
- Juntamente com quatro advogados de diferentes países acrescentou Pryce. - Ausência de impressões digitais, o que leva a crer que os assassinos usaram luvas cirúrgicas, de cápsulas de balas, porque são
todas tão comuns, e testemunhas, porque a tripulação recebeu ordens para desembarcar enquanto a conferência tinha lugar.
- Ausência de testemunhas, de pistas. Impasse total.
- Exatamente.
- Perdão, não é bem assim.
- Outra surpresa, Frank?
- Um fato extraordinário - respondeu o vice-diretor. - Um amigo íntimo, que mais tarde soube-se que era o camareiro pessoal de Mouchistine há quase trinta anos, entrou em contato com nosso embaixador em
Madri. Foi promovida uma reunião, e esse homem, um certo Antoine Lavalle, prestou um depoimento confidencial a ser encaminhado ao principal órgão de inteligência em Washington. Felizmente, a despeito do
Senado, ele veio ter às nossas mãos.
- Eu diria que era previsíve! - observou Cameron.
- Nunca se pode prever o que acontecerá na capital do país disse Shields. - Mas graças a referências cruzadas dos computadores, tivemos sorte. O nome Matarese surgiu novamente. Antes de morrer dos ferimentos
recebidos, Mouchistine disse a Lavalle que os "Matarese estão de volta". O camareiro disse que seu patrão tinha certeza disso porque eles tinham tido conhecimento da conferência e resolveram impedi-la.
- Por quê?
- Aparentemente, Mouchistine estava abrindo mão do seu império financeiro, legando tudo a suas obras de caridade no mundo inteiro. Com essa doação, ele estava renunciando ao poder econômico manipulado
por seus conglomerados globais, dirigidos essencialmente, consoante suas ordens estritas, por seus conselhos administrativos e seus advogados. De acordo com Lavalle, a organização Matarese não podia acatar
essa decisão, tinha que vetá-la, e por isso decretou sua morte.
- Com a morte de Mouchistine, quem dirige suas empresas internacionais?
- É tão enrolado que seriam precisos meses, se não anos, para desenrolar o novelo.
- Mas de algum modo, nos subterrâneos financeiros, podem ser os Matarese, estou lendo seus pensamentos?
- Não sabemos ao certo mas achamos que sim. É tudo tão amorfo que simplesmente não sabemos.
- O que é que vocês querem de mim?
- O que Mouchistine disse em suas últimas palavras: "Procure Beowulf Agate".
- Quem?
- Beowulf Agate foi o codinome que a KGB e a Stassi da Alemanha Oriental criaram para Brandon Scofield, nosso mais bem-sucedido agente infiltrado durante a Guerra Fria. A suprema ironia é que ele acabou
fazendo dupla com um homem que ele odiava e que, por sua vez, o odiava, quando os dois descobriram os Matarese na Córsega.
- Na Córsega? Isso é excitante.
- Vasili Taleniekov era o seu nome verdadeiro, codinome Serpente, um infame agente da KGB. Ele tinha arquitetado a morte da esposa de Scofield, e Scofield tinha matado o irmão mais moço de Taleniekov.
Eram inimigos mortais até se confrontarem com um inimigo muito maior do que qualquer um dos dois.
- Os Matarese?
- Os Matarese. Ao fim e ao cabo, Taleniekov sacrificou-se para salvar a vida de Beowulf Agate bem como a da mulher de Scofield, atualmente sua esposa.
- Jesus Cristo, parece uma tragédia grega.
- De muitas maneiras não deixou de ser.
- E daí?
- Ache Beowulf Agate. Conheça toda a história. É um ponto de partida, e ninguém a conhece melhor do que Scofield.
- Não houve interrogatórios?
- Scofield não se mostrou muito cooperativo. Disse que dava a missão por encerrada e que não tinha nada de importante a revelar sobre uma história velha, superada. Todos os que podiam ter algum interesse
estavam mortos. Ele só queria se desligar do caso o mais rapidamente possível.
- É um comportamento um tanto esquisito, convenhamos.
- Ele achou que se justificava. Dá até para entender, pois a verdade é que a certa altura dos acontecimentos ele foi considerado "irrecuperável", um caso perdido.
- Você está querendo dizer que cogitaram a sua execução? perguntou o abismado Pryce. - Por sua própria gente?
- Em toda parte ele foi considerado perigoso para nosso pessoal. Conhecia todos os segredos. Foi preciso que o presidente interferisse pessoalmente para abortar a execução.
- Antes de mais nada, por que ela chegou a ser decretada?
- Como acabei de lhe dizer, ele era visto como uma bomba relógio ambulante. Aliara-se ao inimigo. Ele e Taleniekov estavam trabalhando juntos.
- Mas ele estava atrás desses Matarese - protestou Cameron.
- Só soubemos disso depois, quase tarde demais.
- Talvez eu devesse conhecer melhor o nosso presidente… Tudo bem, vou tentar achá-lo. Por onde começo?
- Ele vive exilado numa ilha do Caribe. Nossos batedores já estão em ação, mas até agora não há informações concretas. Passaremos a você todos os dados de que dispusermos.
- Ótimo. É uma área muito grande, com um monte de ilhas.
- Lembre-se, se ele estiver vivo, deverá andar pela casa dos sessenta, provavelmente muito diferente de suas fotos de identificação.
- Beowulf Agate, que nome mais cretino.
- Não sei, não. Não é pior do que o de Taleniekov, o "Serpente". Por falar nisso, meu caro, seu codinome era "Camshaft Pussycat".
- Oh, vira essa boca pra lá, Frank.
O hidravião amerissou nas águas tranquilas da enseada Charlotte Amalie em St. Thomas, Ilhas Virgens, EUA. Taxiou para o posto da patrulha da Guarda Costeira na margem esquerda do cais, onde Cameron Pryce
desceu os degraus oscilantes e pôs os pés no ancoradouro. Foi recebido pelo jovem comandante de uniforme branco do posto.
- Bem-vindo a Charlotte Ah-ma-lee - disse o oficial naval, apertando-lhe a mão. - E se quiser se entrosar sem problemas, é assim que deve pronunciar.
- Certo, tenente. Por onde é que devo começar?
- Em primeiro lugar, foi feita uma reserva em seu nome na 1869, uma casa lá em cima na colina. Tem um restaurante excelente e o proprietário já fez parte do seu tipo de operações. Portanto, saberá manter
a boca fechada.
- O "já fez parte" não me inspira muita confiança...
- Pode ficar descansado. Ele era agente em Vientiane mas teve que dar baixa devido a um acidente. A CIA, naturalmente, indenizou-o e ele se aposentou. Como acha que pôde comprar o hotel?
- Entendido. Tem alguma informação pra mim?
- Scofield fechou o serviço de fretamento que tinha aqui há muitos anos e transferiu-o para Tortola Britânica. Também já acabou com ele, mas ainda mantém uma caixa postal por lá.
- O que significa que costuma voltar para apanhar a correspondência.
- Ou manda alguém com uma chave. Ele apanha o cheque de sua aposentadoria todos os meses e, presumivelmente, quaisquer pedidos de informações sobre seus cruzeiros fretados.
- Ele continua organizando excursões de barco?
- Com um novo nome. "Tortola Caribbean", uma maneira de ludibriar o fisco. Um tanto estúpida, se quer saber a minha opinião, uma vez que ele não paga impostos há mais de vinte e cinco anos.
- Alguns rapazes do serviço secreto nunca se modificam. Onde é que ele está agora?
- Sabe-se lá!
- Ninguém o viu ultimamente?
- Oficialmente, não, e temos perguntado por aí. Discretamente, é claro.
- Alguém deve apanhar a correspondência dele...
- Fizemos uma sondagem há oito dias, e temos amigos em Tortola - disse o tenente da Guarda Costeira. - Ninguém faz a menor ideia. Tortola é uma ilhota de aproximadamente trinta quilômetros quadrados com
cerca de dez mil residentes, a maioria nativos e cidadãos britânicos. A principal agência do correio fica em Road Town, onde a correspondência chega erraticamente e os funcionários dormem a maior parte
do tempo. Não posso mudar os hábitos de um meio ambiente subtropical.
- Não se irrite, estou apenas fazendo perguntas.
- Não estou irritado, estou frustrado. Se pudesse realmente ajudá-lo seria muito bom para o meu currículo e talvez eu pudesse deixar este lugar infernal. Lamentavelmente não posso. Para todos os efeitos,
esse filho-da-puta do Scofield desapareceu.
- Não se ele tem uma caixa postal, tenente. É só uma questão de vigiá-la.
- O senhor vai me desculpar, Sr. Pryce, mas não posso abandonar meu posto e ficar coçando o saco em Tortola.
- Como era de se esperar, falou como um oficial e um cavalheiro, meu jovem. Mas podia mandar alguém no seu lugar.
- Com o quê? Meu orçamento é tão apertado que tenho que apelar para a boa vontade de voluntários quando esses catamarãs de merda não conseguem chegar à praia.
- Desculpe, esqueci-me. São burocratas alienados que tomam essas decisões. Provavelmente pensam que St. Thomas seja algum território católico no Pacífico... Acalme-se, tenente, tenho boas ligações. Ajude-me
e eu o ajudarei.
- Como?
- Consiga-me um voo interinsular para Tortola sem identificação.
- Isso é muito fácil.
- Não terminei. Mande uma de suas lanchas à enseada em Road Town sob meu comando.
- Isso é muito difícil.
- Obterei autorização. Vai ser bom para o seu currículo.
- Macacos me mordam...
- É o que acabará lhe acontecendo se recusar. Vamos lá, tenente, mãos à obra. Providencie comunicações instantâneas e toda a presepada habitual.
- Pelo visto, o senhor está mesmo a fim de botar pra quebrar. É mesmo pra valer, não é?
- Não se esqueça disso, especialmente agora.
- Está atrás de quê?
- De alguém que saiba a verdade sobre uma velha história com numerosas dimensões, e isso é tudo o que você precisa saber.
- Não esclarece muita coisa.
- Eu também não sei muito mais do que isso, tenente. Não saberei enquanto não encontrar Scofield. Ajude-me.
- Claro, certamente. Posso transportá-lo para Tortola na nossa segunda lancha, se quiser.
- Não, obrigado. As marinas são muito controladas, os procedimentos da imigração são rigorosos por causa dessas sonegações de impostos que você mencionou. Tenho certeza de que poderá me arranjar uma pista
de pouso ou lugar para amerissar fora das áreas convencionais.
- Para ser franco, posso. São alternativas que usamos para interditar contrabandistas de drogas.
- Use-as agora, por favor.
Caía a tarde no terceiro dia de vigília e Pryce estava deitado numa rede presa nos troncos de duas palmeiras reforçadas na praia da ilha. Vestindo trajes tropicais - docksiders, shorts e uma guayabera
leve - ele era basicamente indistinguível de pelo menos uma dúzia de outros turistas refestelados na areia ao pôr-do-sol. A diferença era o conteúdo de sua "bolsa de praia". Enquanto as outras continham
loções para proteger a pele do sol, revistas amarrotadas e exemplares de romances esquecíveis, a sua bolsa acomodava, primeiro, um telefone portátil, calibrado para pô-lo em contato imediato com St. Thomas
e a lancha da Guarda Costeira ancorada na enseada de Tortola e capaz de enviar e receber comunicações menos esotéricas via satélite. Além dessa conexão vital, havia uma arma encaixada no seu coldre - uma
pistola automática Star PD calibre 45 com cinco pentes de balas -, um facão de caça enfiado na respectiva bainha presa a um cinturão, uma lanterna de mão, um par de binóculos para visão noturna, mapas
de Tortola e das ilhas vizinhas, um kit de primeiros socorros, um vidro de antisséptico e dois cantis - um cheio de água da fonte, e outro de bourbon McKenna. A experiência tinha lhe ensinado que cada
item tinha seu lugar no esquema de coisas imprevisíveis.
Estava quase cochilando no calor debilitante quando o zunido do telefone atravessou a lona da sua bolsa de viagem à prova d’água. Abaixou-se, abriu o zíper e retirou o mais avançado aparelho do gênero.
- Sim? - ele disse em voz baixa.
- Finalmente apareceu alguém, mon! - respondeu um dos negros nativos recrutados pelo tenente em St. Thomas para montar guarda; ele estava chamando da agência do correio de Road Town.
- Na caixa postal?
- Não tinha grande coisa, mas a dona levou tudo.
- Uma mulher?
- Uma mulher branca, mon. De meia-idade, talvez uns quarenta ou cinquenta anos, difícil de dizer porque ela é quase tão escura quanto nós de tanto apanhar sol.
- Cor do cabelo? Altura?
- Metade grisalhos, metade castanhos. Bem alta, uns dois palmos acima de um metro e cinquenta.
- É a mulher dele. Para onde é que ela foi?
- Ela entrou num jipe, sem placa, mon. Acho que rumou para o Point.
- Que Point?
- Tem muitos nomes. Só uma estrada. Vou atrás dela. Preciso correr, mon.
- Pelo amor de Deus, mantenha contato!
- Volte pra lancha. Diga a eles pra seguirem pra Heavy Rock, eles conhecem.
Cameron Pryce mudou de canal e falou com o comandante da lancha da Guarda Costeira. - Encoste no cais para me pegar. Conhece um lugar chamado Heavy Rock ou Point?
- Ou "Lotsa Rock", ou "Big Stone Point", ou "Black Rock Angel"?... Claro, depende de onde você more em Tortola. À noite é um lugar favorito de "desova" para os contrabandistas. Os nativos mais velhos dizem
que o lugar é mal-assombrado.
- É para onde vamos.
As sombras extensas, criadas pelo sol alaranjado que se punha no horizonte, projetavam-se sobre as águas caribenhas enquanto a lancha avançava devagar e preguiçosamente ao longo da costa. - Lá está ela,
senhor - disse o oficial naval mais jovem ainda do que o comandante do posto em St. Thomas. - Aquela lá é a "Big Stone Mother" - ele acrescentou, apontando para um penhasco que parecia ter emergido do
fundo do mar.
- Outro nome, tenente? "Big Stone Mother"?
- Acho que fomos nós que inventamos esse. Não gostamos devir aqui, muitos recifes.
- Então mantenha-se longe da costa. Se algum barco se fizer ao mar, nós o avistaremos.
- Uma cigarette a estibordo, posição noroeste - disse intempestivamente uma voz pelo interfone.
- Merda! - exclamou o jovem comandante.
- Que diabo de negócio é esse? - perguntou Pryce. - Uma cigarette?
- É um tipo de embarcação, senhor. Nós somos velozes, mas não somos páreo para uma delas.
- Então vamos a toda velocidade, tenente.
- É sobre isso que estamos falando. Velocidade. A cigarette é a preferida pelos traficantes. Corre mais do que qualquer outra coisa sobre a água. É por isso que, quando sabemos que estão sendo usadas,
convocamos um avião. Mas com todo nosso equipamento, aqui e no ar, não valemos nada depois que cai a noite. As cigarettes são muito pequenas e muito rápidas.
- E eu que pensei que fosse tão simples quanto nossos pulmões.
- Muito espirituoso... senhor. Se nosso alvo estiver desenvolvendo sua velocidade máxima, fatalmente não o alcançaremos. Não será possível interceptá-lo ou abordá-lo.
- Não pretendo interceptar e muito menos abordar qualquer embarcação, tenente.
- Então, se me permite, senhor, que diabo estamos fazendo aqui?
- Quero verificar para onde o alvo está se dirigindo. Você pode fazer isso, não pode?
- Provavelmente. Pelo menos se ele estiver indo para uma massa de terra, uma ilha talvez. O problema é que existe uma porção de ilhas, e se ele descer numa e conseguirmos localizá-lo pelo radar, ele se
manda para outra, isso já aconteceu.
- Ela, tenente, ela.
- Oh? Uau, nunca pensei.
- Ligue o radar, vou arriscar.
A pequena ilha em questão chamava-se simplesmente Outer Brass 26 nos mapas. Inabitada, vegetação duvidosa, sobrevivência humana a longo prazo improvável. Não passava de uma rocha vulcânica de quatro milhas
quadradas expelida das profundezas do oceano, cercada de colinas recobertas de profusa vegetação graças à generosidade do sol tropical, aos aguaceiros de fim de tarde, vegetação que se espalhava pelas
terras ao nível do mar. Embora considerada em outra época como parte integrante da cadeia caribenha espanhola, na verdade sua posse nunca tinha sido disputada na história recente. Era uma órfã num mar
de filhos ilegítimos, ninguém ligava para sua existência.
A figura de Cameron Pryce destacava-se no meio da embarcação numa roupa de mergulhador fornecida pela Guarda Costeira. Abaixo dele, uma escada levava a um barco de borracha provido de um pequeno motor
silencioso de três cavalos que o conduziria à terra. Segurava na mão esquerda a bolsa à prova d’água contendo os itens da sua escolha e necessidade.
- Fico muito contrafeito em deixá-lo aqui sozinho, senhor disse o jovem comandante da corveta.
- Não fique, tenente. Foi para isso que vim aqui. E, de qualquer maneira, posso chamá-lo quando quiser, não posso?
- Naturalmente. De acordo com suas instruções, ficaremos aqui por perto, a umas cinco milhas da terra, fora do alcance visual se a luz for adequada.
- A luz do dia, siga a rota do sol. Os velhos filmes de caubóis e peles-vermelhas estavam certos a esse respeito.
- Não há dúvida, senhor, faz parte dos nossos cursos de estratégia de combate.
- Boa sorte, Sr. Pryce. Boa caçada, seja lá o que for que esteja caçando.
- Vou precisar de um pouco de ambas. - O agente desceu a escada e embarcou no oscilante bote de borracha.
O motor gorgolejou, não arrancou impetuosamente quando Pryce aproou o barco para a terra. Escolheu o que lhe pareceu à luz da lua ser uma pequena enseada. Era densamente arborizada, com folhas de palmeiras
cobrindo o perímetro. Ele saltou do barco e o empurrou por entre as pedras para a areia, amarrando-o num tronco de uma palmeira. Ergueu a bolsa à prova d’água e colocou-a à tiracolo. A caçada ia começar
e esperava que a sorte o ajudasse.
Sabia o que teria que procurar em primeiro lugar: luz. A iluminação proporcionada por uma fogueira ou uma bateria, tinha que ser uma coisa ou outra pois para duas pessoas viverem numa ilha deserta sem
luz era não só desconfortável como perigoso. Começou pela direita, andando cautelosamente pela praia pedregosa, espreitando constantemente a mata fechada à sua esquerda. Não havia sinais de luz ou vida.
Caminhou durante quase vinte minutos na mais completa escuridão até que viu. Mas não era luz nem vida, somente pequenos reflexos metálicos da luz da lua; numerosos postes fincados na terra, com espelhos
no topo, estavam voltados para o céu. Aproximou-se deles, tirou a lanterna da bolsa e viu a fiação, estendendo-se para a direita e a esquerda, interligando os postes. Havia dúzias, uma infinidade deles,
formando um semicírculo na praia rochosa. Células foto elétricas! Captando os raios solares da aurora ao crepúsculo. Continuando a explorar o terreno, descobriu um cabo central que entrava pela floresta
tropical adentro. Começou a segui-lo quando ouviu as palavras pronunciadas claramente, rispidamente, em inglês atrás dele.
- Está procurando alguém? - perguntou a voz cavernosa. - Se está, está agindo um tanto amadoristicamente.
- Sr. Scofield, eu presumo.
- Como não estamos na África e o senhor não é Henry Stanley, é possível que esteja presumindo corretamente.
- Mantenha as mãos acima da cabeça e siga em frente. E a trilha do nosso cabo, use, portanto, sua lanterna, porque se rompê-lo, estouro seus miolos. Levei muito tempo para instalá-lo.
- Vim em paz, Sr. Scofield, sem nenhuma intenção de divulgar seu paradeiro - disse Pryce, caminhando cuidadosamente na frente. - Queremos informações que acreditamos que só o senhor pode fornecer.
- Espere até chegarmos em casa. Sr. Cameron Pryce.
- Sabe quem eu sou?
- Certamente. Dizem que é o melhor, provavelmente melhor do que posso ter sido um dia... Abaixe as mãos. As folhas das palmeiras estão batendo no seu rosto.
- Obrigado.
- Não há de quê. - De repente Scofield gritou: - Está tudo bem. Acenda as luzes, Antonia. Ele foi suficientemente esperto para nos achar. Abra, portanto, uma garrafa de vinho.
A clareira na floresta foi subitamente iluminada por dois holofotes, revelando uma grande construção de madeira erguida ao lado de uma lagoa.
- Meu Deus, que beleza - exclamou o agente da CIA.
- Levamos muito tempo para descobrir este lugar e mais tempo ainda para levantar a casa.
- O senhor mesmo a construiu?
- É claro que não. Minha mulher bolou o projeto, e eu trouxe trabalhadores de St. Kitts e outras ilhas para tocar a obra. Como paguei a metade adiantada, ninguém se opôs a vender os olhos ao deixar Tortola.
Apenas uma medida de precaução, meu jovem.
- Não tão jovem assim - aparteou Cameron, admirado.
- Depende de onde você venha, parceiro - disse Scofield, encaminhando-se para a luz. Seu rosto magro e fino era emoldurado por uma barba branca aparada e longos cabelos grisalhos, mas seus olhos eram vivos,
jovens por trás de óculos de aros metálicos. - Gostamos do lugar.
- Mas não se sente um pouco solitário?
- Francamente não. Toni e eu volta e meia vamos a Tortola, pegamos um interinsular para Porto Rico e um voo para Miami e até mesmo Nova York. Como você, se você tem um cérebro na sua cabeça, eu tenho meia
dúzia de passaportes que me abrem as portas.
- Não tenho um cérebro na minha cabeça.
- Pois trate de arranjar um. Algum dia talvez descubra que é tudo o que possui. Depois de ter se apropriado de algumas centenas de milhares de dólares de fundos para contingências. Aplicados em investimentos
no exterior, naturalmente.
- Por acaso fez isso?
- Tem ideia do que nossas ridículas aposentadorias nos permitem? Talvez um apartamento num condomínio em Newarknuma vizinhança mais modesta da cidade. Eu não me contentaria com isso. Merecia mais.
- Os Mataresé! - disse Cameron com naturalidade. - Estão de volta.
- Isso está fora de questão, Pryce. Um camarada meu de Washington me telefonou, dizendo que tinha ouvido falar que você estava à minha procura. Tenho, sim, os mesmos tipos de telefones, de geradores e
segurança que você tem, mas não há condição de você me arrastar de volta àquele inferno.
- Não queremos arrastá-lo de volta, queremos apenas a verdade tal como a conhece.
Scofield não respondeu. Em vez disso, ao chegarem aos degraus da entrada da cabana, ele disse: - Entre e tire esse equipamento. Está parecendo o Homem Aranha.
- Tenho roupas na minha bolsa.
- Eu também costumava andar com uma dessas. Uma muda de shorts e um garrote, um paletó leve e umas duas armas de mão, talvez algumas peças de roupas de baixo e uma faca de caça. E uísque, não se pode esquecer
do uísque em hipótese alguma.
- Tenho bourbon...
- Então os caras de Washington estão certos. Você tem chances.
O interior da cabana - mais do que uma cabana, na realidade uma casa de tamanho médio - era quase todo branco, acentuado por diversos abajures de mesa. Paredes brancas, móveis brancos, arcos brancos conduzindo
a outras dependências, tudo para repelir o calor do sol. De pé, ao lado de uma poltrona de vime branca, estava a mulher de Scofield. Tal como reportara o tortolano da agência do correio em Road Town, ela
era alta, corpulenta mas não obesa, e a mistura de cabelos grisalhos e castanhos evidenciava sua idade um tanto avançada. Seu rosto era delicado porém forte; um cérebro obviamente funcionava dentro daquela
cabeça atraente.
- Parabéns, Sr. Pryce - ela disse num inglês com ligeiro sotaque. - Estávamos em estado de alerta, à sua espera, embora achasse que dificilmente conseguiria nos encontrar. Devo-lhe um dólar, Bray.
- Aposto outro como nunca o verei.
- Achá-los não foi tão difícil, Sra. Scofield.
- A caixa postal, naturalmente - atalhou o ex-agente do serviço secreto. - É uma falha aparentemente imperdoável, mas necessária. Ainda gostamos de velejar, ainda gostamos do negócio de excursões fretadas,
e não deixa de ser uma maneira de ganhar uns dólares extras e confraternizar um pouco com a espécie humana... Não somos antissociais, acredite. Na verdade, apreciamos o convívio com quase todas as pessoas.
- Esta casa, o isolamento, me desculpe, mas não parecem confirmar suas palavras, senhor.
- Superficialmente, suponho que não, mas o óbvio muitas vezes pode enganar, não é mesmo? Não somos ermitãos. Vivemos aqui por uma razão muito prática. Somos um exemplo.
- Como disse?
- O senhor tem alguma ideia, Sr. Pryce - interrompeu Antonia Scofield - de quantas pessoas tentaram reconduzir meu marido à sua antiga profissão? Além de Washington, há o MI-5 e o MI-6 britânicos, a Deuxième
francesa, o Servizio Segreto italiano e quase todo mundo da comunidade da inteligência da OTAN. Ele se recusa veementemente, mas eles não desistem.
- Ele é considerado um homem brilhante...
- Era, era... talvez! - exclamou Scofield. - Mas não tenho nada a oferecer. Santo Deus, foi há quase vinte e cinco anos! O mundo mudou e não tenho o menor interesse nele. É claro, você poderia me encontrar
mais cedo ou mais tarde; se nossos papéis fossem invertidos, eu não levaria mais tempo do que você levou para me achar. Mas ficaria pasmo como um pequeno obstáculo, como uma ilha que não consta da maioria
dos mapas e uma caixa postal em nome de um calhorda qualquer são capazes de manter os curiosos à distância. Quer saber por quê?
- Sim, gostaria.
- Porque eles têm centenas de outros problemas e simplesmente não estão a fim de se chatear. É muito mais fácil dizer a um superior que, aparentemente, é impossível me localizar. Pense nas verbas necessárias
para adquirir passagens aéreas e mobilizar pessoal capacitado; a rede vai ficando tão complicada que acabam desistindo. É mais fácil.
- O senhor acabou de dizer que foi informado de que eu estava à sua procura. Poderia ter criado obstáculos, ter deixado de usar a caixa postal temporariamente, mas não fez nada disso. Não se protegeu.
- Você é muito observador, meu jovem.
- E quase cômico ouvi-lo pronunciar essa frase. Foi exatamente o que eu disse ao tenente em St. Thomas.
- Ele provavelmente deve ter a metade da sua idade, assim como você tem a metade da minha. E daí?
- Nada realmente, mas por que não o fez? Por que não protegeu seu isolamento?
- Foi uma decisão conjunta - respondeu Scofield, olhando para sua mulher. - Mais dela do que minha, para dizer a verdade. Queríamos ver se você teria paciência, essa virtude pouco cultivada, antes de poder
avançar. Uma hora torna-se um dia, um dia um mês. Todos nós já passamos por isso. Você foi aprovado com distinção, praticamente dormiu na praia. Treinamento de primeira!
- O senhor não respondeu à minha pergunta.
- Não, de fato não respondi porque sabia o motivo que o trouxe aqui. Um único motivo, e você pronunciou o nome. Os Matarese.
- Conte a ele, Bray, conte-lhe tudo o que você sabe - disse Antonia Scofield. - Você deve isso a Taleniekov, nós dois devemos isso a Vasili.
- Eu sei, querida, mas podemos primeiro tomar um drinque? Preferia um vinho, mas talvez seja melhor tomar um conhaque.
- Você pode tomar os dois, se quiser, meu querido.
- Está vendo por que estamos juntos há tantos anos? Uma mulher que te chama de "meu querido" há um quarto de século é uma preciosidade que você tem que preservar com muito carinho.
QUATRO
- Temos que remontar à virada do século, na verdade antes disso para ser preciso - começou Scofield, balançando sua cadeira na varanda telada, à luz de velas, no isolado chalé na ilha presumivelmente deserta
chamada Outer Brass 26. - As datas são imprecisas, uma vez que os registros foram perdidos, ou destruídos, mas pode-se estimar que Guillaume, barão de Matarese, nasceu por volta de 1830. A família era
considerada rica pelos padrões corsos, grande parte da riqueza sendo constituída por terras e propriedades rurais. O baronato e as terras tinham sido um presente de Napoleão, embora a autenticidade da
lenda seja questionável.
- Por quê? - perguntou Pryce, de short e camiseta, fascinado pelo relato do ex-agente grisalho, de barba branca, cujos olhos pareciam dançar impudentemente por trás dos óculos de aros metálicos. - Era
preciso que houvesse documentos comprobatórios de posse, de herança.
- Como mencionei, os registros originais se perderam, outros tiveram que ser lavrados em cartório. Havia quem dissesse que eram falsos, que tinham sido forjados a mando de um Guillaume muito jovem, que
os Matarese nem chegaram a conhecer um Bonaparte, Terceiro ou Segundo, e muito menos o Primeiro. Não obstante, quando essas dúvidas começaram a ser levantadas, a família já era muito poderosa para ser
contestada.
- Como assim?
- Guillaume era um gênio financeiro, nada mais nada menos, e como a maioria dos expoentes dessa estirpe, sabia quando e como aparar arestas sem transgredir a lei. Antes dos trinta anos, já era o latifundiário
mais rico e poderoso da Córsega. A família literalmente governava a ilha, e não havia nada que o governo francês pudesse fazer a respeito. Os Matarese eram a própria lei, auferindo receitas dos principais
portos, tributos e subornos das empresas agrícolas em franca expansão e dos empresários de turismo, que tinham que utilizar suas instalações portuárias e suas estradas. Dizia-se que Guillaume foi o primeiro
corso, membro de uma organização equivalente à Máfia. Perto dele os chefões de épocas mais recentes parecem inofensivas criaturas, Al Capones jovens e rebeldes. Embora houvesse violência, violência brutal,
ela era mantida numa escala mínima e usada com muita eficácia. O barão governava na base do medo, da intimidação, não do castigo indiscriminado.
- Paris não podia simplesmente neutralizá-lo ou expulsá-lo da ilha? - interrompeu Pryce.
- O que as autoridades francesas fizeram foi pior do que isso. Elas arruinaram dois dos filhos do barão, os destruíram impiedosamente. Os dois tiveram morte violenta, e depois disso o barão não foi mais
o mesmo. Foi pouco depois disso que Guillaume concebeu a sua chamada visão. Um cartel internacional em moldes com os quais os Rothschild nunca sonharam. Enquanto os Rothschild eram uma família de banqueiros
estabelecidos por toda a Europa, Guillaume enveredou pela direção oposta. Ele recrutava homens e mulheres poderosos para serem seus satélites. Eram pessoas que já tinham possuído enormes fortunas - herdadas
ou acumuladas - e, como ele, ansiavam por vingança. Os primeiros membros da confraria mantinham-se fora da luz dos refletores, evitando todas as formas de exposição perante o público, preferindo administrar
ou manipular suas fortunas à distância. Usavam testas-de-ferro como advogados e, falando dos Bonaparte, empregavam uma tática proclamada por Napoleão Primeiro. Este disse: "Deem-me medalhas suficientes
e eu lhes ganharei quaisquer guerras." Os Matarese originais outorgavam títulos, distribuíam grandes escritórios e salários extravagantes como se fossem moedas de dez centavos. Tudo isso com um único objetivo:
queriam se manter o mais anonimamente possível. Guillaume compreendeu que seu desígnio de construir uma rede financeira global só teria êxito se seus articuladores parecessem idôneos, acima de qualquer
suspeita de práticas corruptas.
- Receio que isso não esteja batendo com o relato que recebi disse o agente de campo da CIA. - Francamente, é contraditório.
- Oh, é mesmo?
- Sim, senhor. As duas fontes que reavivaram nosso interesse pelos Matarese - a razão de eu estar aqui - os descreveram como maléficos. A primeira chamou-os de a consumação do mal, e a segunda, de encarnação
do mal. Uma vez que essas declarações foram feitas por duas pessoas idosas, instruídas, nos seus leitos de morte, até mesmo os tribunais considerariam válidas suas palavras... O senhor descreveu outra
coisa muito diferente.
- Você tem e não tem razão - disse Scofield. - Descrevi a visão de Guillaume como ele a concebeu, e não se iluda, ele não foi nenhum santo. Em termos de controle, ele queria tudo em suas mãos, mas parte
do seu gênio se devia ao fato de reconhecer imperativos práticos e filosóficos...
- Linguagem empolada - interrompeu Pryce.
- Mas muito rea! - acrescentou o ex-agente secreto. - Muito pertinente. Pensando bem, Matarese estava quase um século à frente do seu tempo. Ele queria formar o que mais tarde seria chamado de Banco Mundial
ou Fundo Monetário Internacional, ou mesmo uma Comissão Trilateral. Para conseguir isso, seus discípulos tinham que parecer absolutamente confiáveis, genuinamente honestos.
- Então alguma coisa deve ter acontecido com eles, alguma coisa deve ter mudado, admitindo que o relatório que recebi estava correto.
- De fato alguma coisa aconteceu, pois você está certo nesse particular. Os Matarese tornaram-se monstros.
- O que aconteceu?
- Guillaume morreu. Alguns dizem que ele apagou quando mantinha relações sexuais com uma mulher cinquenta anos mais moça do que ele, que já tinha muito mais de oitenta. Outros têm uma versão diferente.
Seja como for, seus herdeiros - era assim que ele os chamava - avançaram como um enxame de abelhas no pote de mel. A máquina estava montada, ramificações dos Matarese espalhadas pela Europa e pela América,
muito dinheiro e, ainda mais importante, informações confidenciais circulando semanalmente, quando não diariamente. Era um polvo nunca visto, monitorando silenciosamente, ameaçando eficientemente expor
as manobras fraudulentas e os lucros excessivos não justificados de inúmeras empresas, nacionais e internacionais.
- Inicialmente, uma espécie de mecanismo de autopoliciamento em termos de negócios, tanto nacionais quanto internacionais.
- Essa é uma das melhores descrições que já ouvi. Afinal, quem melhor do que uma polícia corrupta para saber como violar as leis que ela supostamente deve fazer cumprir? Os herdeiros aproveitaram o momento
propício. As informações confidenciais trocadas entre os diversos ramos da família deixaram de ser usadas como uma ameaça, passando a ser vendidas. Os lucros dispararam e os sucessores de Guillaume exigiram
uma participação ativa na geração dos lucros excedentes. Estabeleceram-se em vastos territórios e tornaram-se um culto do submundo, um culto de verdade. Como na Cosa Nostra, novos membros eram admitidos
sob juramento em cerimônias solenes, os mais graduados hierarquicamente exibindo pequenas tatuagens azuis proclamando seu status.
- Que loucura!
- Era realmente uma loucura, mas funcionava. Uma vez admitido, o novo membro da família Matarese tinha o seu futuro garantido para o resto da vida - financeiramente seguro, protegido da ação das leis,
livre das pressões da vida norma! - enquanto ele ou ela obedecesse cegamente seus superiores, sem questionar qualquer ordem por mais absurda que fosse.
- Insurgir-se contra qualquer determinação superior significava tempo finito, fim de papo - observou Pryce, afirmando categoricamente.
- É evidente, estava implícito.
- Pelo que estou percebendo, o senhor está descrevendo essencialmente um esquema semelhante ao da Máfia, ao dos corsos.
- Receio que esteja essencialmente enganado, Sr. Pryce.
- Uma vez que estou bebendo o seu conhaque na sua casa, hospitalidade com a qual, confesso, não contava, por que não me chama de Cameron, ou Cam, como a maioria das pessoas?
- Como já deve ter notado pela maneira como minha mulher se dirige a mim, sou o "Bray". Até os quatro anos minha irmã mais nova não conseguia dizer Brandon. Por isso me chamava de Bray, e o apelido pegou.
- Meu irmão caçula, por sua vez, não conseguia pronunciar meu nome corretamente, saía sempre qualquer coisa parecida com "Camroom". Daí ter optado por "Cam", que também pegou.
- Bray e Cam - disse Scofield. - Soa como se fosse uma firma de advocacia da roça.
- Ficaria muito feliz, ou melhor, honrado, com qualquer tipo de associação. Li sua folha de serviços prestados.
- Em grande parte exagerada para que meus superiores e meus analistas pudessem fazer bonito. Você não beneficiaria sua carreira de modo algum associando-se a mim. Muitos na profissão me consideram um sujeito
excêntrico, um cara imprevisível, ou coisa pior. Muito pior.
- Sem comentários. Mas por que estou essencialmente enganado?
- Porque na realidade os Matarese nunca recrutaram assassinos profissionais. Ninguém jamais ascendeu por causa de seu currículo de matador. É claro que matavam quando recebiam ordens, mas nada de ganchos
de açougueiro, carabinas, correntes prendendo as vítimas jogadas no rio, e geralmente nada de cadáveres, tampouco. Se o conselho dos Matarese - e era exatamente isso - decretava consumada brutalidade que
poderia ser denunciada pela imprensa, pagava secretamente a terroristas sem o mais remoto vínculo com eles. Jamais empregava seus membros para esse tipo de tarefa. Eles eram executivos.
- Eles eram um bando de patifes gananciosos, mamando nas tetas de uma porca-do-mato.
- Bota patifes gananciosos nisso. - Scofield esboçou um discreto sorriso enquanto tomava um gole do seu conhaque. - Eles eram elitistas, Cameron, muito acima das pessoas comuns. De um modo geral, possuíam
diplomas summa cum laude e magna cum laude das melhores universidades deste lado do Atlântico e da Europa, o chamado primeiro time da indústria e do governo. Nas suas cabeças, eles achavam que no devido
tempo seriam tremendamente bem-sucedidos, a Matarese era um mero atalho. Uma vez admitidos no esquema, estavam ferrados, e o atalho tornava-se um mundo do qual não conseguiam escapar.
- E a responsabilidade? Os valores de certo e errado? Está me dizendo que essa plêiade de privilegiados não tinha nenhum senso de moralidade?
- Estou certo de que alguns tinham, Sr. Pryce... Cameron - disse Antonia Scofield, acercando-se da varanda à luz de velas. - E estou igualmente segura de que se verbalizassem essas restrições, eles e suas
famílias sofreriam terríveis represálias... acidentes fatais, a maioria das vezes.
- Isso é selvagem.
- Era assim que agia a reinventada organização Matarese acrescentou Brandon. - A moralidade foi substituída pela total falta de opções. Procure entender, tudo se apresentava em doses lentas e, antes que
pudessem se dar conta, não havia mais saída. Estavam levando vidas anormalmente extravagantes e no entanto estranhamente normais, com mulheres e filhos e gostos dispendiosos. Consegue ver o quadro, Cam?
- Com assustadora clareza... Sei um pouco, não muito, de como você e Vasili Taleniekov se juntaram para caçar os Matarese, mas o interrogatório a que foi submetido quando concluiu a missão não foi muito
completo. Importa-se de me prestar alguns esclarecimentos?
- Certamente que não - disse a mulher. - Não é verdade, querido?
- Aí vem ela novamente - Scofield retomou o diálogo, olhando carinhosamente para Antonia. - O interrogatório foi um não evento porque a Guerra Fria ainda estava muito quente e havia uns palhaços que queriam
pintar Vasili, nosso inimigo soviético, como um dos celerados. É claro que não compartilhei dessa visão estúpida.
- Ele foi ao encontro da morte para que nós pudéssemos sobreviver, Cameron - disse Antonia, encaminhando-se para uma cadeira de vime branca ao lado do marido. - Sofrendo dores atrozes, ele se jogou contra
nossos inimigos, permitindo-nos fugir. Sem o seu sacrifício nós dois teríamos sido alvejados, teríamos morrido.
- De arqui-inimigos a aliados, chegando a ser amigos por quem se é capaz de dar a vida?
- Não iria tão longe, e durante anos pensei sobre o assunto.
Nunca esquecemos o que fizemos um ao outro, mas creio que ele concluiu que o seu crime era maior. Ele matou minha mulher, eu matei o irmão dele... Pertence ao passado, nada modifica o que aconteceu.
- Me falaram sobre isso - disse Pryce. - Também disseram que você foi considerado um "caso perdido". Quer falar sobre isso?
- Não há nada a falar - respondeu Scofield tranquilamente. Simplesmente aconteceu.
- O que há então a falar? - repetiu o chocado agente da CIA. - Tenha santa paciência, sua própria agência, seus superiores, ordenaram sua execução!
- É engraçado, nunca os considerei meus "superiores". Muito ao contrário a maior parte do tempo.
- Sabe a que estou me referindo...
- Sei, naturalmente - interrompeu Bray. - Alguém somou os números mas obteve um total errado, e como sabia quem era, decidi matá-lo. Depois raciocinei melhor e cheguei à conclusão de que seria fatalmente
capturado e que ele não merecia o preço que teria que pagar. Superei a raiva e fui à forra. Joguei minhas cartas, que provaram ser razoavelmente lucrativas.
- Voltando a Taleniekov - disse Cameron. - Como foi que vocês dois começaram?
- Você é vivo, Cam. As chaves estão sempre no começo, a primeira porta que tem que ser aberta. Sem essa porta você não pode chegar às outras.
- Um labirinto com portas?
- Mais do que você seria capaz de contar. O começo... Foi uma loucura, mas lá estava ele e Taleniekov e eu fomos envolvidos. Havia duas mortes extraordinárias, dois assassinatos. Do nosso lado, a do general
Anthony Blackburn, chefe do Estado Maior, e do lado soviético, Dimitri Yurievich, o principal físico nuclear deles.
- O vice-diretor Shields mencionou essa morte, me lembro bem - Um russo famoso estraçalhado por um urso enfurecido.
- Essa foi a versão propalada. Um urso ferido alvejado por homens que o atraíram para o caminho de Yurievich. Não há nada na terra mais feroz do que um urso gigantesco mutilado, com as narinas impregnadas
do cheiro do seu próprio sangue. Ele farejará um grupo de caçadores e os despedaçará até ser abatido… Espere aí. Frank Shields? Aquele sujeito com cara de buldogue com os olhos sempre apertados? Ele ainda
anda por aí?
- Ele o tem em grande conta...
- Talvez ao olhar para trás, não quando convivíamos no dia-a-dia. Frank é um purista, ele nunca tolerou homens como eu. É curioso, os analistas tendem a se encobrir com alternativas contraditórias.
- Você estava falando - interrompeu Pryce - de dois assassinatos.
- Aqui preciso fazer uma digressão, Cameron. Você já ouviu falar na "banalidade do mal"?
- Naturalmente.
- O que é que ela significa para você?
- Creio que atos horríveis repetidos com tal frequência que se tornam lugares-comuns, banais.
- É isso aí. Foi o que aconteceu com Taleniekov e comigo. A considerada sabedoria da época no que dizia respeito a operações tenebrosas sustentava que Vasili e eu éramos os principais intérpretes nesses
tipos de execuções. Era mais lenda do que realidade. Na verdade, com exceção do que fizemos um ao outro, éramos responsáveis por apenas catorze homicídios que tiveram razoável repercussão em mais de vinte
anos, ele com oito mortes a seu crédito, e eu com seis. Como se vê, longe da marca de um Chacal, mas os mitos adquirem vida própria, crescem rapidamente, muito persuasivamente. Os mitos, as lendas, são
coisas terríveis.
- Creio que sei aonde quer chegar - disse Pryce. - Cada facção acusava o suposto exterminador-mor da outra, você e Taleniekov.
- Precisamente, mas nem eu nem ele tivemos qualquer coisa a ver com esses assassinatos. Contudo, eles foram arquitetados de tal forma que só faltou termos deixado nossos cartões de visita.
- Mas como foi que vocês estabeleceram contato? Certamente não pegaram o telefone e ligaram um para o outro.
- Teria sido cômico. "Alô, é da mesa telefônica da KGB? Aqui é Beowulf Agate, e se tiver a gentileza de ligar para o ilustre camarada coronel Taleniekov, codinome Serpente, e lhe disser que estou na linha,
tenho certeza de que ele concordará que estamos precisando ter uma conversa. É que estamos ameaçados de sermos eliminados por razões erradas. Um absurdo, não é mesmo?"
- O codinome "Beowulf Agate" é... inspirado - observou o agente da CIA.
- Tem razão, sempre o achei bastante imaginoso - disse Scofield. - Até mesmo um pouco russo à sua maneira. Como você sabe, não raro eles usam os dois primeiros nomes de uma pessoa e omitem o último.
- Brandon Alan... Beowulf Agate. Você tem razão. Mas como não telefonou para a KGB, diga-me como foi que se encontraram.
- Com extrema cautela, cada um pensando que o outro atiraria para matar, falando de expressões banais. Vasili moveu a primeira pedra no nosso jogo de xadrez letal. Para começar, ele tinha que sair da União
Soviética porque estava marcado para comparecer perante um pelotão de fuzilamento - as razões são muito intrincadas para tentar explicar; em segundo lugar, um ex-diretor Todo-Poderoso da KGB lhe falara
da organização Matarese no seu leito de morte.
- Não compreendo a conexão - atalhou Pryce.
- Raciocine. Tem cinco segundos.
- Santo Deus - disse Cameron em voz baixa, apertando os olhos. - Os Matarese? Eles assassinaram os dois homens? Yurievich e Blackburn.
- Na mosca, agente de campo Pryce.
- Por quê?
- Porque eles vinham fazendo isso há muitos anos. Alimentando ambas as superpotências com informações sobre as mais recentes armas de destruição de seus inimigos, forçando cada uma a produzir cada vez
mais, até que a corrida armamentista assumisse proporções gigantescas. Enquanto isso os Matarese faturavam bilhões, seus clientes dos setores de defesa pagando a conta sorridentes.
- Os fatos estão se sucedendo muito rapidamente... Quer dizer então que foi Taleniekov quem deu o primeiro lance?
- Ele me mandou um recado de Bruxelas. "Ou nos matamos um ao outro ou vamos conversar". Não sei como, mas ele conseguiu vir até aqui, e depois de uma série de encontros, durante os quais quase nos explodimos
reciprocamente, finalmente conversamos. Admitimos que nossos nomes, nossas personas, se quiser, tinham levado nossos países à beira do precipício, e somente a intervenção do primeiro-ministro soviético
e do presidente americano poderia acalmar os ânimos mais exaltados. Acabaram se convencendo de que nenhuma das nações era responsável pelas mortes, que Taleniekov e eu estávamos longe dos cenários das
ocorrências.
- Se me permite - interrompeu Cameron, colocando a palma da mão direita contra a luz da vela. - Como já disse, lembrava-me da morte de Yurievich porque ela foi tão macabra, mas não me recordo do assassinato
de um general Blackburn; talvez fosse muito jovem. O chefe do Estado-Maior não significa muita coisa para um garoto de dez ou onze anos.
- Você não se lembraria mesmo que tivesse o dobro dessa idade - respondeu Scofield. - Anthony Blackburn, conforme foi revelado na ocasião, morreu de uma parada cardíaca enquanto lia as Sagradas Escrituras
na biblioteca de sua casa. Bem bolado, se considerarmos a verdade. Ele foi morto num bordel de elite de Nova York, praticando um sexo extremamente bizarro.
- Por que ele era visado? Só pelo fato de ser chefe do Estado Maior?
- Blackburn não era apenas uma figura decorativa, era um estrategista brilhante. Os soviéticos, de certo modo, o conheciam melhor do que nós. Eles analisaram sua atuação na Coreia e no Vietnã. Sabiam que
seu objetivo primordial era a estabilidade.
- Sim, compreendo. Então você e Taleniekov acabaram conversando. Como foi que isso o levou aos Matarese?
- O antigo diretor da KGB, Krupskova, ou algum nome parecido com esse, tinha sido ferido, o ferimento era grave, e ele mandou chamar Vasili. Disse a Taleniekov que tinha analisado os relatórios sobre as
mortes de Yurievich e Blackburn e concluira que os assassinatos tinham sido obra de uma organização secreta chamada Matarese, originária da Córsega. Explicou a Vasili que ela estava se expandindo por toda
parte, chantageando altos funcionários do governo, assumindo um poder extraordinário em todo o Mundo Livre e nos países do bloco Leste.
- Esse tal de Krupskova tinha trabalhado para eles... para ela? - perguntou Pryce.
- Ele disse que todos nós trabalhávamos há muitos anos. Sinais eram enviados, reuniões no campo ou em florestas eram organizadas, longe de olhares curiosos, homens de atitudes suspeitas encontravam-se
com outros homens nas sombras. Acordos sinistros eram feitos na mais negra das artes: "Mate-o ou mate-a, nós pagaremos".
- Eles conseguiam livrar a cara?
- Nos dois lados - respondeu Scofield. - Seus tentáculos eram poderosos. Eles sabiam o que os extremistas queriam e forneciam os resultados aos seus clientes sem deixar vestígios.
- Devia haver registros de gastos. Como é que eles eram pagos?
- Por fora, operações clandestinas, sem prestações de contas, sob a alegação de segurança nacional. Um eufemismo necessário para comprar o que se quiser quando não se pode fazê-lo legal ou moralmente.
Os soviéticos, naturalmente, tinham menos problemas nessas áreas, mas nós não ficávamos muito atrás. Sem muitos rodeios, nossos governos não estavam oficialmente em guerra, mas nós estávamos. Era uma tremenda
e por vezes sangrenta balbúrdia e nós éramos os agentes da maldita desordem que imperava de ambos os lados.
- Sua visão é bastante cínica, não acha?
- Naturalmente que é - disse Antonia Scofield, chegando para a frente na sua cadeira de vime. - Homens como meu marido e Vasili Taleniekov eram matadores à solta, exterminadores que se viam obrigados a
tirar a vida de homens e mulheres, pois se não o fizessem sabiam que seriam mortos! Com que propósito? Enquanto as superpotências faziam de conta que se entendiam com paradas e bandas militares proclamando
détentes, ou como quer que as chamassem, enquanto agentes como Brandon Scofield e Vasili Taleniekov recebiam ordens para continuar matando? Onde estava a lógica, Cameron Pryce?
- Não tenho uma resposta, Sra. Scofield... Antonia. Eram outros tempos.
- Qual é o seu tempo, Cam? - perguntou Beowulf Agate. Quais são suas instruções? Quem está procurando?
- Terroristas, acho eu. Entre as mais temíveis, talvez, está essa organização Matarese porque, na minha opinião, trata-se de um novo tipo de terror.
- Absolutamente certo, meu caro - concordou Scofield. Eles podem não massacrar pessoas ou explodir edifícios a essa altura - pagam para que essas coisas sejam feitas ou as engendram com psicopatas programados
que desconhecem seus verdadeiros propósitos - mas podem e farão tudo sem intermediários se for parte de sua estratégia.
- Estratégia para quê?
- Para a criação de um cartel internacional criminoso, dedicado a acumular poder financeiro em benefício próprio.
- Para atingir esse objetivo teriam que eliminar a concorrência, neutralizar adversários pelo mundo afora.
- Agora você matou a charada. O capitalismo fora dos trilhos. Um monolítico Big Brother apertando todos os botões, decretando os preços do dia, uma falsa competição forjada por parceiros competitivos.
E o que se seguirá, agente Cameron Pryce?
- Não sei o que está querendo dizer...
- Quero dizer o que virá depois? Os principais centros financeiros do mundo sob a tutela de uma autoridade única. E o que resultará de tudo isso?
- Os governos... - disse Cam com tranquilidade, apertando os olhos novamente. - Os que detêm as maiores fontes supridoras de dinheiro dão as cartas politicamente falando.
- Bravo, assuma a liderança da classe, meu jovem! - exclamou Scofield, erguendo o cálice de conhaque vazio e olhando matreiramente para a mulher. - Pode ser, meu amor?
- Vou apanhar a garrafa lá dentro - disse Antonia, levantando-se. - Você tem sido um bom menino ultimamente.
- Não por vontade própria, diga-se de passagem. São esses malditos médicos de Miami.
- Mas será que poderia de fato acontecer? - continuou o agente da CIA pensativamente enquanto Antonia ausentava-se da varanda. - Poderia mesmo acontecer?
- Há mais precedentes históricos do que você e eu poderíamos enumerar, Cameron. Fusões se sucedendo a fusões, absorção de corporações em aquisições hostis ou não. O processo remonta aos faraós do Egito
que derrubaram seus herdeiros presuntivos, e aos romanos que fecharam os senados para que os Césares no poder pudessem mandar em tudo. Não há nenhuma novidade, apenas os métodos foram modernizados, computadorizados.
Os velhacos que tudo querem acabam conseguindo tudo a menos que sejam impedidos a tempo.
- Quem os impedirá?
- Eu é que não serei, Deus me perdoe, não ligo mais. Talvez o povo - a maioria silenciosa aparentemente despreocupada - talvez desperte e veja que no fim da linha suas liberdades foram surrupiadas por
um mecanismo malsão de supremacia financeira. É isso o que os Matarese almejam. O resultado será a imposição de estados policiais por toda parte. É a única forma de conseguirem sobreviver.
- Você acha realmente que possa acontecer?
- Depende da vantagem inicial que tenham obtido e de quem faz parte do seu conselho administrativo. Francamente, sim, acho que poderia acontecer. Quando se analisa a situação, verifica-se que estamos falando
de terrorismo administrativo, conluio internacional, desrespeitando as leis antitruste de toda parte. É como se a General Motors, a Ford, a BMW, a Toyota, a Porsche e dois ou três outros fabricantes decidissem
se juntar e passassem a dirigir a indústria automobilística mundial. A comparação não é tão absurda como pode parecer à primeira vista.
- E uma vez alcançado seu objetivo, eles apontarão suas baterias contra os governos - disse Pryce.
- Desconfio que alguns já tenham se entrincheirado, como o fizeram há trinta anos. Um deles quase chegou a ser presidente dos Estados Unidos. Por pouco deixaram de dirigir nosso Departamento de Estado
e o Pentágono, assim como tiveram indevida influência na Câmara e no Senado. Já que se tomaram tão obviamente internacionais, imagine se chegassem a controlar o Ministério das Relações Exteriores da Grã-Bretanha,
o Quai d’Orsay da França, Roma, Ottawa, e Bonn, seria um quadro aterrador, não é mesmo? Deus nos livre, em poucos anos, com políticos corruptos no bolso, duas ou três reuniões de cúpula dominadas pelos
Matarese e estaríamos todos marchando ao rufar de seus tambores, felizes como moluscos inconscientes - até compreendermos que nossas alternativas cessariam quando os tambores parassem de tocar. Compraríamos
o que eles quisessem nos vender, aceitaríamos o que se dignassem a nos dar... acreditaríamos no que quisessem que acreditássemos... ou então.
- "Terrorismo administrativo"... uma expressão de grande impacto.
- E tão letal quanto qualquer outro, Cam. Porque uma vez que eles estabeleçam suas bases, um monopólio aqui, uma megafusão ali, conglomerados interligados aqui e ali, eles não tolerarão qualquer tipo de
oposição.
- Ao que tudo indica já não a estão tolerando agora - disse Pryce. Ele relatou a Scofield os quatro assassinatos: do financista francês, do médico espanhol, da lady inglesa e do jogador de polo italiano
em Long Island.
- Sabemos que o francês era vinculado aos Matarese - Pryce prosseguiu, - Está tudo registrado, com suas próprias palavras, presumivelmente. Segundo as últimas informações de Frank Shields, o histórico
financeiro dos outros também revela lacunas suspeitas quanto à procedência do seu dinheiro.
- O "Olhos-Apertados" é muito competente nesse departamento - admitiu Beowulf Agate. - Pelo menos era sempre muito sagaz quando se tratava de investigar lacunas, não deixava escapar nada.
- O algo mais aqui é a sombra da organização Matarese. Os homicídios ocorreram no espaço de quarenta e oito horas, os assassinos desapareceram, não deixando pistas ou qualquer indício...
- Isso é típico - interrompeu Scofield.
- E por que a trilha da riqueza deles é tão complexa? - continuou Cameron. - Amorfa foi a palavra que Frank usou. Indefinida, creio que foi isso o que ele quis dizer.
- Estou convencido que sim. - O ex-agente secreto aposentado riu novamente com discrição, mais para si mesmo. - Quantos milionários você conhece que compartilham suas carteiras de investimentos, especialmente
se a fonte de suas rendas tiver aspectos duvidosos, não importa há quanto tempo.
- Não conheço muitos milionários, não pessoalmente.
- Você agora me conhece.
- Você é...
- Basta sobre este assunto, nem mais uma palavra. Entendeu?
- Preferia não ter entendido, mas à luz da sua folha de serviços, suponho que tenha recebido uma polpuda bonificação, à guisa de indenização, ao se desligar da CIA... Onde é que começamos? Onde é que eu
começo?
- Você mesmo disse, a trilha do dinheiro - respondeu Scofield. - Frank Shields é bom, mas é um analista. Ele mastiga números, trabalha com papéis, registros computadorizados de mapas e gráficos e dossiês
escritos por responsáveis e irresponsáveis, e geralmente seus autores somem sem deixar vestígios. Você tem que lidar com gente, não com reproduções eletrônicas.
- Fiz isso antes - disse Pryce - e acredito firmemente que é preciso fazê-lo. A nova tecnologia permite encurtar distâncias, ver e ouvir, mas não consegue falar com os homens e as mulheres com quem temos
de nos confrontar. Não há nada que substitua esse contato direto, pessoal. Mas a propósito dessa trilha de dinheiro, por onde é que começo?
- Eu diria - respondeu Beowulf Agate, meditativo - que, já que não consegue achar os assassinos, comece com as próprias vítimas. Suas famílias, seus advogados, os gerentes de seus bancos, talvez até seus
amigos íntimos e vizinhos. Alguém que possa saber alguma coisa sobre suas atitudes, algo que possam ter mencionado a respeito de si mesmos. Sei que é chato pra caramba, mas faz parte do seu trabalho, e
quem sabe você encontrará outra porta para abrir no labirinto.
- Por que cargas-d’água qualquer uma dessas pessoas se daria ao trabalho de falar comigo?
- Que diabo, é muito fácil. A CIA tem conexões, Frank tem conexões. Eles lhe darão credenciais. A sua imagem é de um cara legal, animado, dos melhores propósitos, querendo descobrir quem matou seus entes
queridos, e as comunidades de inteligência lhe deram uma estrada aberta.
- Uma "estrada aberta"? O que é que isso quer dizer?
- Nós criamos nosso próprio jargão. Quer simplesmente dizer que você está autorizado a fazer perguntas.
- Autorizado por quem?
- Pouco importa. Você tem as credenciais.
- Não pode ser tão simples assim...
- Simplicidade, jovem Cameron, é o leite materno do agente infiltrado. Me desculpe por ter que lembrá-lo disso.
- Compreendo, e não compreendo.
- Então pense mais um pouco no assunto.
Subitamente, Antonia Scofield chegou à varanda, esbaforida.
- Bray - ela gritou, nervosa. - Fui lá fora para apagar as luzes e o horizonte estava em chamas, creio que de explosões.
- Apague as velas! - ordenou Scofield. - Você, Pryce, venha comigo. - Como soldados de infantaria avançando com dificuldade na selva, Beowulf Agate à frente, os dois homens foram abrindo caminho pela folhagem
cerrada, seguindo a trilha quase imperceptível. Cameron teve a presença de espírito de pegar sua bolsa de viagem quando viu Scofield apanhar um estojo de couro quadrado em cima de uma mesa, ao deixarem
a casa. Varando as sucessivas muralhas de vegetação, chegaram à praia rochosa onde as células fotoelétricas captavam os raios do sol do Caribe.
- Abaixe-se - disse Scofield, abrindo o estojo de couro e retirando um grande binóculo de visão noturna. Pryce abriu o zíper de sua bolsa de viagem e fez a mesma coisa. Juntos, apontaram os binóculos e
perscrutaram o horizonte. Ao longe, via-se um clarão tremeluzente acima da linha d’água, acompanhado de erráticos lampejos.
- O que acha que seja? - perguntou Scofield.
- Digo já - respondeu Cameron, enfiando a mão na bolsa para apanhar o telefone. - Mas neste momento estou sentindo uma dor aguda na boca do estômago.
- Uma sensação de vazio, não é?
- Vazio total, Sr. Scofield.
- Já passei por isso. Não muda nunca.
- Oh, meu Deus! - exclamou Pryce. - O telefone está mudo. Ninguém responde.
- Está ligando para sua embarcação?
- Para a lancha da Guarda Costeira. Foi pelos ares. Aqueles garotos... eram umas crianças! Estão todos mortos.
- E possível que eles venham para cá...
- Eles? Quem?
- Quem quer que tenha posto a pique a lancha. Fazemos parte de um pequeno arquipélago, seis ou sete ilhotas, mas eles poderão se concentrar nesta aqui.
- Quem são eles? Talvez traficantes de drogas ajustando contas com seus perseguidores?
- Tivemos muita sorte, meu jovem, e digo isso profundamente consternado com a sorte desses jovens.
- O que está querendo dizer? Está sugerindo que estão atrás de mim? Se está, a hipótese é completamente absurda! Saltei do barco a bombordo quando ele rumava para o oeste, e esperei que uma grande nuvem
encobrisse o mar. Só depois nadei para a praia. Ninguém pode me ter visto exceto quem estivesse aqui que era você.
- Não, Cameron Pryce, eles não estão atrás de você. Eles o seguiram, mas não estão no seu encalço. Você conseguiu fazer o que honestamente acreditei que nunca fosse possível, você me trouxe de volta ao
inferno. Eles têm mapas, uma localização. Senão fosse esta noite... mais cedo ou mais tarde.
- Sinto muito! Planejei os menores detalhes com o máximo cuidado, pensando sempre em protegê-lo!
- Não se recrimine. Por mais experiente que seja, você não está preparado para eles, muito poucos estão. Mas se tiver que ser hoje, alguém que está preparado reserva uma bela surpresa para eles.
- O quê?
- Explicarei depois. Fique aqui, estarei de volta em cinco minutos ou menos. - O ex-agente secreto pôs-se de pé.
- Quem são "eles"? - perguntou Pryce.
- É preciso dizer? - retrucou Scofield. - Os Matarese, rapaz.
CINCO
Procurando controlar o misto de angústia e fúria que o dominava, Cameron segurou com mãos firmes o binóculo de visão noturna e olhou para as labaredas que começavam a diminuir de intensidade e finalmente
cessaram. O fogo foi engolido pelo mar, levando com ele a embarcação destroçada. A cada brecha nas nuvens que interceptavam o luar, Pryce girava lentamente o binóculo para a direita e para a esquerda,
focalizando o ponto em que o barco afundara consumido pelo fogo, e depois assestou-o para frente caso alguma nave tivesse avançado na escuridão.
Lá estava ela, uma pequena silhueta preta, iluminada pelos raios agora pálidos da lua. Parecia rumar diretamente para Outer Brass 26. Onde estava Scofield?
Como que numa deixa perfeita, ele ouviu o farfalhar de folhagem e logo em seguida surgiu a figura de Beowulf Agate por entre folhas de palmeira, sua mulher, Antonia, atrás dele. Cada um carregava o que
parecia ser um objeto pesado, o de Scofield definiu-se primeiro. Era um lança-foguetes de três pés, boca de três polegadas, carregado no ombro. O grande saco de lona, meio carregado, meio arrastado, por
sua mulher, obviamente continha a munição.
- Alguma novidade? - perguntou Bray, apanhando o saco de lona que estava com Antonia e assentando o lança-foguetes nas pedras que saíam da areia.
- Outro barco, muito distante para que se possa ter uma ideia de suas especificações, parece estar rumando para cá.
- Há diversas pequenas faixas de terra, que não chegam a ser ilhas, nos seus dois flancos. Quem estiver pilotando o barco poderá aproar na direção da primeira mais próxima - situamo-nos em terceiro lugar.
- O que não chega a ser um consolo...
- Mas já é alguma coisa - atalhou Scofield. - Quero ver o tipo de equipamento que ele tem a bordo.
- Que diferença faz?
- Bastante para me dizer se devo mandá-lo pelos ares ou não. Antenas parabólicas, de satélite, grades de radar - fique certo de que fazem um bocado de diferença.
- Você terá que destruí-lo se ele ancorar em frente à praia.
- Meu Bom Jesus, você acaba de me dar outra ideia! - exclamou o homem mais velho, virando-se para sua mulher.
- Se é o que estou pensando, você está maluco - disse Antonia Scofield, agachada atrás do marido, suas palavras pronunciadas com frieza glacial.
- Não necessariamente - respondeu Beowulf Agate. - Temos a vantagem, todas as vantagens! Mesmo agora podemos determinar que se trata de uma embarcação de porte relativamente pequeno. Quantos tripulantes?
Quatro, cinco, seis?
- Concedo-lhe a lógica, meu querido - respondeu Antonia relutantemente. - Vou buscar mais umas armas adicionais. - Dizendo isso, ela se levantou e correu na direção da folhagem cerrada.
- Tenho de admitir que não sei do que vocês estão falando. Nenhum dos dois.
- Às vezes penso que você é um pouco lento, Cam.
- Deixe isso pra lá. Do que é que vocês estão falando?
- Falando como um ex-profissional, não seria o máximo se puséssemos os pés a bordo daquela embarcação? Tomássemos o seu comando, na realidade? Poderíamos aprender muita coisa, não acha? Podemos atraí-la
para cá e assumir o controle, inverter as circunstâncias. Eles passariam a ser os alvos.
- Meu Deus, entendo o que você quer dizer! - exclamou Pryce. - Tem que haver comunicação do barco para terra. Capturamos quem vier para cá, mostramos nosso lança-foguetes apontado para o barco deles e
deixamos claro que ao menor movimento hostil abriremos fogo.
- Esse é o resumo da Ópera.
- O que será que a Sra. Scofield está nos trazendo?
- Três MAC-10 é o meu palpite. Eles têm um alcance maior e mais preciso. Também são muito especiais, têm silenciadores, você ouve estampidos pontuados mas não fogo aberto. Minha teoria é que se tivermos
que atirar, poderemos correr e não revelar nossas posições.
- Ela entende mesmo dessas coisas?
- Tanto quanto qualquer um de nós. Ela se mantém em contato com o mundo que deixei mais do que eu. Ela não consegue esquecer dos longos anos em que fomos fugitivos - na verdade, ainda acredita que somos
fugitivos. Acho que ela seria capaz de enfiar um equipamento de mergulho e explodir um destróier se qualquer um de nós - ou Taleniekov - estivesse ameaçado.
- Uma mulher e tanto.
- Sem a menor dúvida - concordou Beowulf Agate em voz baixa. - Sem ela, nem o Vasili nem eu teríamos sobrevivido... Aí vem ela.
- Resolvi ficar com a Uzi para mim - disse uma ofegante Antonia, afastando as últimas folhas de palmeira e jogando as armas no chão. - É mais leve e certeira a curta distância. Abaixou então o saco de
lona que trazia no ombro. - Trouxe sessenta pentes para cada um dos MAC-10, estão nas bolsas de plástico com listras vermelhas. Os meus estão na azul... E agora, meu querido?
- Ah, ela está amolecendo! - exclamou Scofield. - Parece até que estamos de volta a Ajaccio ou Bonifácio, não é mesmo, Toni?
- Você sabe muito bem que tudo isso me enoja.
- Mas você está vendo, Cam, ela está sempre à altura das circunstâncias. Não é, minha velha?
- Velha pode ser, mas não morta.
- Você teria uma lanterna nessa sua bolsa cheia de truques, Cam?
- Naturalmente.
- Então, pegue-a, ligue-a e agite o feixe de luz de um lado para outro. Mas não focalize o barco, limite-se a contorná-lo. Não queremos que nossas vítimas percam o espetáculo.
- Espero que saiba o que está fazendo - disse Cameron.
- Parafraseando-o, meu rapaz, sei e não sei. Só sei que pode ser um atalho, e isso é o que estamos sempre procurando, não é mesmo?
- Quanto a isso não há o que discutir - concordou Pryce, acendendo a poderosa lanterna e fazendo círculos concêntricos no céu escuro até rodear a silhueta que se aproximava ao longe.
- Ele mudou a rota! - disse Scofield. - Estava rumando para a Brass 24 e deu a volta. Bom trabalho, meu caro.
- E agora? - perguntou Cameron.
- Eles vão mandar um escaler - disse Antonia. - Vou me posicionar na ponta direita da praia, e você vá para a esquerda, Cam.
- E depois? - perguntou o homem mais moço.
- Vamos ver o que acontece - respondeu Scofield, com o seu lança-foguetes colocado entre as pedras da praia. - Também estou de olho no barco. Quem tiver ficado a bordo estará no tombadilho... Saberemos
então quais são as nossas verdadeiras chances.
- Suponha que eles tenham o mesmo equipamento que você tem - disse Cameron. - Armas de 75 mm ou coisa parecida. Eles poderão explodir a sua ilha.
- Se tiverem, e eu pegar alguém correndo para posição de combate, mando tudo pros ares no ato.
A pequena embarcação, uma traineira, continuou avançando em direção à Outer Brass 26 e, ao chegar a umas duzentas jardas da praia, deu para distinguir um canhão de grosso calibre na sua proa, suficientemente
grande e poderoso para explodir uma corveta da Guarda Costeira. Mas os tripulantes no tombadilho - três para ser preciso - estavam mais preocupados em baixar à água um bote de borracha com motor de popa.
O comandante apareceu na ponte, aparentemente dando ordens para deitar âncoras, lá permanecendo de binóculos em punho e uma grande arma no coldre preso à cintura.
- Conheço aquele cara - exclamou Pryce. - É um sueco que consta da lista de terroristas de Estocolmo. Um dos suspeitos de envolvimento no assassinato de Palme.
- Ele encontrou um lar - disse Scofield. - Agora faço questão de subir a bordo.
- Tenha cuidado, meu querido.
- Ela ainda está chateada comigo... Terei, meu amor, e agora cubra o flanco direito. Mas, pelo amor de Deus, mantenha-se abaixada e use nossa pequena selva para se proteger. Lembre-se de que ele possui
os mesmos binóculos de visão noturna que nós.
- A caminho.
- Você também, Pryce, assuma o seu posto à esquerda. Manteremos os sacanas sob o fogo cruzado. Mas lembrem-se, se tiverem que atirar, evitem atingi-los. Queremos prisioneiros, não cadáveres.
- Entendido, senhor.
- Corte essa palhaçada de "senhor". Não sou seu mentor. Sou um acidente.
O bote de borracha embicou para a praia a uns sessenta metros de onde Scofield se encontrava com o seu lança-foguetes. Do lado direito da configuração de ferradura da enseada, Antonia estava a postos escondida
na mata fechada, segurando a Uzi com suas mãos poderosas. No flanco esquerdo, Pryce estava ajoelhado ao lado de uma grande pedra de formação vulcânica, o MAC-10 pronto para disparar. O primeiro dos três
homens no bote de borracha saltou da proa, com uma arma na mão esquerda e uma corda na direita. O homem do meio foi o seguinte, segurando um grande rifle de repetição automática com ambas as mãos. O capitão,
na popa, desligou o motor e seguiu os outros; estava igualmente armado. O poder de fogo combinado dos três era considerável.
A luz dos breves clarões da lua, pareciam ser pescadores comuns. Dois estavam com a barba por fazer, atestando a aversão dos homens do mar ao uso de aparelho de barbear; o terceiro tinha o rosto escanhoado.
O último tripulante era o capitão do barco e parecia mais jovem do que os outros, teria talvez trinta e poucos anos, enquanto seus companheiros - rudes, corpulentos - aparentavam quarenta e tantos ou até
um pouco mais. Além disso, o terceiro homem vestia-se com o que poderia ser descrito como casual chique. Jeans brancos justos, um paletó de algodão folgado e um quepe de oficial, contrastando com as camisas
e as calças esfarrapadas de seus companheiros cuja única lavagem era provavelmente uma esporádica imersão na água salgada. Do pescoço de cada um pendia uma lanterna presa a um cordão de couro cru.
- Você aí, Jack - gritou o homem mais moço, dirigindo-se ao invasor que caminhava à frente -, puxe o barco para a praia e dê uma olhada em volta! - Ele apontou na direção onde Antonia se encontrava. -
E você, Harry, cheque o outro lado da praia. - Era o território de Pryce. - Não pode deixar de ter alguém aqui, aqueles feixes de luz não vieram do nada! - O idioma em que o chefe da expedição se expressava
era o inglês, mas essa não era sua língua nativa. O sotaque era centro-europeu, eslovaco, báltico.
- Sei não, companheiro - disse Harry, com sotaque australiano. - Essas ilhas do Caribe são muito esquisitas. Reflexos por toda parte.
- Nós vimos com nossos próprios olhos. Siga em frente!
- Se vimos o que pensamos que vimos - disse o homem chamado Jack, evidentemente um cockney de Londres - eles não fizeram nenhuma questão de ser discretos.
- Olhe só, olhe só pra essa selva!
- Não sou pago para que um bando de selvagens pirados me cortem a cabeça.
- Você é pago muito acima do que faz jus, Harry, e agora mexa-se! - Foi nesse momento que Scofield, do seu esconderijo, viu o que esperava ver. O oficial superior da expedição exploratória retirou um pequeno
walkie-talkie do bolso do paletó e falou. Nenhum sinal de gente na praia e nenhuma luz visível além das árvores, no interior da mata. Vamos fazer um reconhecimento do terreno; conserve seu aparelho com
você.
O líder comparativamente bem-vestido da unidade levantou o cordão de couro cru por cima da cabeça e, segurando a lanterna com a mão esquerda, acendeu-a e oscilou-a, varrendo a área. Scofield abaixou-se
quando o foco de luz passou por cima de sua cabeça, atrás das rochas e do lança-foguetes oculto. Novamente a escuridão, rompida eventualmente pelo luar errático. Beowulf Agate espiou por cima da pedra
áspera. Ficou alarmado.
O líder da unidade avançada descobrira alguma coisa e Bray sabia exatamente o que era: as fileiras de pequenas placas que absorviam os raios solares que alimentavam as células fotoelétricas que constituíam
uma fonte alternativa de energia para a Outer Brass 26. O homem avançou lentamente.
Na extremidade direita da praia, o desleixado subordinado chamado Jack andava cautelosamente pela areia, direcionando a luz de sua lanterna para todos os lados. Chegou a meio metro de Antonia e, no momento
em que o fez, ela saiu de trás da folhagem, golpeou-lhe nas costas com o cano curto da Uzi e sussurrou-lhe ao pé do ouvido: - Se der um pio vai dormir com os peixes, credito que seja essa a expressão.
Largue sua arma!
No lado esquerdo, Pryce esperava atrás da pedra enquanto o australiano se aproximava lentamente com sua lanterna. Quando o homem chegou bem perto, quase roçando o ombro no pedregulho, Cameron deu a volta
e colocou-se a menos de um metro atrás do invasor.
- Se levantar a voz, você vai direto pro inferno dos cangurus, companheiro - ele disse baixinho mas asperamente.
- Que diabo...
- Já disse uma vez! - interrompeu Pryce com voz macia porém enérgica. - Não vou repetir. Se não quiser acabar com o corpo ensanguentado na areia...
- Não se preocupe comigo, companheiro! Não embarquei nessa pra ter um final de merda como esse.
- Por que embarcou... companheiro?
- Pela grana. Os putos me pagam por semana o que eu não ganharia em dois meses!
- Por que está tão longe de sua terra?
- Trabalho pra eles nos territórios do Oriente, muito acima de Perth, servindo a área do oceano Índico. Sou competente e meus princípios morais não constituem exatamente uma prioridade, se é que me entende.
Nós todos vamos acabar indo pro inferno mesmo, de um jeito ou de outro.
- Sabe pra quem está trabalhando?
- Não faço a menor ideia. Nunca perguntei. Não quero nem saber. Contrabando, suponho, drogas, suspeito. Interceptar navios tanques e cargueiros a caminho de Durban e Port Elizabeth.
- Você é um cara bem-apessoado.
- Meus filhos acham que sou bonito. Trago bacon pra casa, como vocês ianques costumam dizer.
- Mantenha a cabeça levantada, assim vai doer menos.
- O quê?...
Cameron largou seu MAC-10, acercou-se do homem com os braços erguidos acima dele e desferiu com suas retesadas, duras e experientes mãos um golpe nos dois lados do pescoço do australiano. Os vasos da carótida
foram afetados, mas não seccionados; ele ficaria inconsciente pelo menos por umas duas horas.
Subitamente, da escuridão da pequena praia, ecoaram as palavras pronunciadas num inglês impecável. - Jack, Harry, eu achei! Há mais do que sou capaz de contar. Dezenas de pequenas placas que vão dar num
cabo central! Eles estão aqui, nós os encontramos. Essa é a eletricidade deles.
- E eu achei você - disse Scofield, saindo da escuridão das pedras da praia, com o rifle automático dotado de silenciador na mão. - Sugiro que se desfaça da sua AK-47 antes que eu me aborreça e lhe dê
um tiro na testa. Não aprovo esse tipo de armas, elas matam gente.
- Meu Deus, é você!
- O que foi que disse?
- Beowulf Agate, esse é o seu codinome.
- Você é capaz de distinguir nessa escuridão?
- Ouvi sua voz numa fita.
- Por que estava tão ansioso para me encontrar, não que fosse tão difícil me encontrar.
- Não tínhamos nenhum motivo até recentemente. Beowulf Agate era uma relíquia esquecida, um homem que desaparecera.
- E agora eu reapareci?
- Você sabe tão bem qual é o motivo quanto eu. A velha em Chelyabinsk, René Mouchistine naquele iate.
- Ouvi falar nessa gente.
- Por que outro motivo o novo Beowulf Agate da CIA, o louvado Cameron Pryce, viria atrás de você?
- Não tenho a menor ideia. Me diga.
- Ele é um especialista e você possui nomes que remontam há anos.
- Se possuo, já os esqueci. Esse mundo não me interessa mais. E, a propósito, como pôde saber a respeito de Pryce? Tratava-se de uma busca Quatro-Zero, ultrassecreta.
- Nossos métodos também são ultrassecretos, mas muito eficazes. Muito mais eficazes do que os da CIA.
- "Nossos" querendo dizer dos Matarese, naturalmente.
- É de presumir que o agente Pryce lhe tenha revelado isso.
- Na verdade, ele não precisou, se isso lhe interessa.
- Mesmo?
- O que significa que suas fontes e minhas fontes são provenientes da mesma fonte. Muito interessante, não é mesmo?
- Também é irrelevante, Sr. Scofield. Esses nomes que o senhor diz que esqueceu, e as empresas que eles representam certamente compreende que agora são totalmente inúteis. A maior parte das pessoas, se
não todas, estão mortas, e as corporações foram absorvidas por outras. Totalmente inexpressivas.
- Ah, contudo, alguns nomes voltam à minha memória, acredito sinceramente, mas também estiveram enterrados durante todos esses anos, não é verdade? Deixe-me ver se consigo me lembrar... Havia a Voroshin
na cidade soviética de Leningrado, que deu origem, naturalmente, à Verachten de Essen, correto? Ambas pertenciam aos seus governos mas também eram vinculadas a alguém - alguma coisa. Na cidade americana
de Boston, Massachusetts, confere?
- Basta, Sr. Scofield.
- Não seja um desmancha-prazeres. Minha memória está ativada, o que não acontecia há muitos anos. Havia também a Waverly Industries inglesa, igual e irrevogavelmente ligada a Boston. E a Scozzi-Paravacini,
ou seria Paravacini-Scozzi? Em Milão, não era? Entretanto, também recebia ordens de Boston...
- Já demonstrou o que queria...
- De modo algum. Não enquanto não considerarmos as mortes trágicas de líderes como o brilhante Guillaumo Scozzi, a sedutora Odile Verachten e o teimoso David Waverly. Sempre achei que de alguma forma eles
desagradaram - ouso declinar o nome - o Shepherd Boy?
- Cinzas, Scofield. Repito, irrelevantes! E isso não passa de um sobriquet de alguém que está morto e esquecido há muito tempo.
- Sobriquet? Isso significa apelido, não é?
- É uma pessoa instruída.
- O Shepherd Boy... Em algumas partes deste nosso mundo secreto, deste mundo constantemente imerso nas trevas, ele é uma lenda que remonta há décadas. Uma lenda sobre que palavras foram escritas por aqueles
que ele destruiu. Se encontrados e reunidos, esses escritos modificariam a história das finanças internacionais... Ou talvez descrevessem uma planta para o futuro.
- Digo pela última vez! - O líder do comando de busca desembuchou as palavras. - Divagações sem o menor sentido!
- Então por que está aqui? - perguntou Bray. - Por que estava tão ansioso para me encontrar?
- Cumprimos ordens.
- Oh, adoro essa frase! Certamente justifica muita coisa, não é? Não acha?
- Você conclui suas afirmações com muitas perguntas.
- É a única maneira de se ficar sabendo alguma coisa, não é mesmo?
- Deixe-me ser franco, Sr. Scofield.
- Quer dizer que não estava sendo? - interrompeu Beowulf Agate.
- Por favor, sem essa.
- Desculpe, prossiga.
- Vivemos numa época diferente dos tempos em que deixou o serviço...
- Está querendo dizer que sou antediluviano, fora da realidade? - Bray atalhou novamente.
- Somente em termos de relatividade tecnológica - respondeu o centro-europeu com acentuada irritação. - Os bancos de dados foram incrivelmente aperfeiçoados, instrumentos esquadrinham eletronicamente milhares
de documentos por hora e os armazenam, a profundidade da pesquisa tornou-se extraordinária.
- O que quer dizer que se eu por acaso mencionasse alguns desses nomes a pessoas interessadas, poder-se-ia chegar agora a novos nomes, novas empresas, é isso o que está querendo dizer? Acredite, toda a
história corporativa de Boston teria que ser reescrita.
- O que estou dizendo, Sr. Scofield - disse o invasor com os dentes cerrados, como se estivesse falando com um idiota senil é que estamos preparados para lhe pagar alguns milhões de dólares para que desapareça
novamente. América do Sul, ilhas do Pacífico Sul, onde quer que deseje. Uma mansão, uma fazenda, o melhor que possa ser adquirido para si e sua esposa.
- Para seu conhecimento, nunca fomos realmente casados, assumimos um compromisso à nossa maneira...
- Na verdade, isso não importa. Estou simplesmente lhe oferecendo uma esplêndida alternativa para o que tem.
- Então por que simplesmente não veio até aqui e nos explodiu com o seu canhão? Você poderia ter nos reduzido a cinzas e me matado - com o que seu problema estaria automaticamente resolvido.
- Lembro a você que o agente Pryce foi enviado para cá. Levaria a complicações inaceitáveis. E a propósito, onde é que ele está?
- A Sra. Scofield está lhe mostrando nossa lagoa, é muito bonita ao luar, o que resta dele... Então você não rejeita a solução, somente as consequências.
- Da mesma forma que teria feito quando mais jovem. Beowulf Agate era o mais pragmático dos agentes secretos encarregado de operações de alto risco. Ele matava quando acreditava que tinha que fazê-lo.
- Isso não é verdade. Ele matava quando era necessário, há uma diferença. Crença, ou conjectura, não tinham nada a ver com sua decisão.
- Basta. Qual é a sua resposta? Passar o resto dos seus dias em esplendoroso conforto ou permanecer nesta choupana? E morrer nesta ilhota segregada.
- Santo Deus, uma decisão e tanto! - disse Scofield, apoiando seu rifle automático MAC-10 nas pedras, protegendo os olhos com a mão esquerda mas sem tirá-los do invasor. - Seria maravilhoso para minha
mulher, minha companheira na realidade e perfeitamente legal, mas eu ficaria sempre pensando... - Beowulf Agate entreviu por entre os dedos ligeiramente separados os movimentos do invasor. A mão direita
do homem abaixou sorrateiramente colada ao seu paletó folgado... De repente, ele levantou a aba e enfiou a mão para sacar uma arma do seu cinto. Antes que pudesse abrir fogo, Bray ergueu seu rifle e fez
um único disparo. O preposto dos Matarese tombou na areia, o sangue gotejando do seu peito.
- O que foi isso? - veio a voz do rádio do homem morto. Ouvi alguma coisa. O que foi?
Scofield correu para o corpo estendido na praia e puxou-o para a mata, retirando o pequeno walkie-talkie do bolso do paletó, e o desligou. Depois, escondendo-se nas sombras, ele chamou a sotto voce: -
Pelo silêncio de vocês, meus pombos escondidos, presumo que tenham cumprido suas tarefas. Com muita cautela, por favor retornem para o Papai Noel.
- Meu homem está dormindo - disse Pryce, emergindo da moita de palmeiras. - Vai continuar dormindo umas duas horas.
- Aqui está outro de quatro - acrescentou Antonia, arrastando da mata seu prisioneiro. - Onde está o outro homem?
- Ele foi muito indelicado comigo, tentou me matar. E agora está penando os seus pecados na nossa selva.
- E o que fazemos agora, meu querido?
- A coisa mais simples do mundo, minha querida - respondeu Scofield, olhando atentamente com os binóculos de visão noturna. - Ativamos as entranhas do comandante daquela suposta traineira... Cam, você
teria uma corda na sua fabulosa bolsa?
- Não, não tenho.
- Ninguém é perfeito. Tire sua camiseta, rasgue-a em tiras e amarre as mãos e os pés do prisioneiro de Toni. Coloque o que sobrar na boca do miserável e, se não se importar, um pouco de anestesia física
pode ser útil.
- Será um prazer. - Pryce não perdeu tempo, sua incumbência levou menos de noventa segundos.
- E eu, Bray?
- Um minutinho, amor - respondeu Scofield, continuando a olhar com os binóculos. - Lá está ele. Está descendo do tombadilho, provavelmente para usar o rádio. Não está olhando para a praia e obviamente
não há mais ninguém a bordo.
- Então?
- Então dê um pulo lá em casa e apanhe uns foguetes de sinalização, quatro ou cinco são suficientes. Em seguida, desça a trilha leste, digamos uns sessenta a noventa metros, e solte um.
- Santo Deus, pra quê? Ele vai ficar sabendo que estamos aqui!
- Ele já sabe, querida. Agora precisamos confundi-lo.
- Como?
- Corra de volta à casa e tome a trilha oeste, ultrapasse a lagoa, e solte outro foguete. Dispare o primeiro daqui a uns oito minutos, o segundo a onze, mais ou menos. Você não se lembra?
- Estou começando a perceber aonde você quer chegar… Livorno, Itália, para ser precisa.
- Lá deu certo, não foi?
- Só deu, meu querido. Estou indo. - Antonia desapareceu no mato.
- Como nunca estive em Livorno... na verdade, estive, mas não na mesma época em que vocês estiveram - protestou Cameron - incomodava-se de me dizer o que andaram aprontando por lá? E, já que estamos falando
em aprontar, o que é que devo fazer?
- Sabe nadar?
- Claro. Certificado profissional em mergulho até trezentos metros de profundidade e todos os certificados em modalidades scuba.
- Muito louvável, mas não dispomos de tanques aqui nem de tempo para você enfiar seu equipamento de Homem Aranha. Quero simplesmente saber se você sabe nadar.
- Naturalmente.
- Qual a distância que consegue percorrer debaixo d’água sem pés de pato?
- Uns vinte metros, pelo menos.
- Isso deverá ser suficiente. Chegue até lá, passe por baixo do casco da traineira, venha à tona do outro lado, suba no tombadilho e surpreenda aquele filho-da-puta. Você tem uma faca?
- É preciso perguntar?
- Vá logo enquanto nosso comandante não volta para o tombadilho!
Pryce abriu sua bolsa de viagem, tirou sua faca de caça engastada num cinto, passou-o em volta do tronco e correu para as marolas da beira da praia. Mergulhou e com vigorosas braçadas começou a nadar em
direção à traineira a uns duzentos metros de distância, com os olhos constantemente voltados para o tombadilho da embarcação. O capitão emergiu da cabine e por isso Cameron mergulhou. Vinte, trinta, quarenta
pés, voltando à superfície para recuperar o fôlego na escuridão, e mergulhando novamente até chegar ao casco da traineira. Ultrapassou-a, emergindo para respirar a estibordo da embarcação.
Ergueu a mão e consultou seu relógio à prova d’água. O mostrador revelou-lhe que levara cerca de seis minutos para atingir a traineira, o primeiro foguete de sinalização seria disparado em menos de dois.
Lentamente, aproximou-se da proa. Quando o foguete inicial iluminasse o céu no lado leste, o capitão indubitavelmente correria para a popa, voltada na direção leste. Era sua melhor e possivelmente única
chance de subir ao tombadilho sem ser visto. Cameron sabia que sua faca era sua única arma e uma lâmina estava longe de ser um páreo para as balas do capitão.
Súbito, o céu noturno do lado esquerdo da traineira explodiu num clarão, reverberando de luz enquanto o foguete subia, atingia seu ápice, explodia mais uma vez, permanecendo estático, ofuscante, por breves
instantes, até começar sua queda lenta, oscilando para a esquerda e a direita, e finalmente precipitando-se na floresta tropical.
- Mikhail, Mikhail! - gritou o capitão, aparentemente chamando pelo rádio enquanto corria pelo tombadilho. - O que foi isso?... Mikhail, me responda! Onde é que você está? - Pryce surgiu debaixo d’água,
estendeu os braços e alcançou uma saliência pequena, mas suficiente para se apoiar. Com dedos segurando a madeira firmemente, ele flexionou o corpo e jogou o braço direito para cima segurando a amurada;
o resto foi uma questão de força física. Ele insinuou-se pela grade e caiu prostrado no tombadilho, deitado de costas, respirando ofegantemente. Enquanto isso, o capitão-terrorista sueco continuava gritando
no rádio que não respondia. - Mikhail, se é capaz de me ouvir, vou começar a atirar! É o sinal para você voltar para bordo imediatamente! Com você ou sem você, estou zarpando daqui.
Esse era o alto conceito de fraternidade dos Matarese, isso para não mencionar o seu senso de lealdade, pensou Cameron. Para salvar a própria pele o oficial superior abandonaria seus subordinados a uma
sorte desconhecida, mortal. Pryce se perguntou por que estava surpreso. Scofield previra exatamente isso.
Houve a segunda explosão! Na extrema direita, o céu do lado oeste ficou em fogo, a luz mais intensa, mais ofuscante do que o primeiro clarão - ou seria uma súbita nuvem que afastara a luz concorrente do
luar? Cam levantou-se agilmente quando o trovejante canhão troou tão alto que só poderia ter aberto um buraco na vegetação predominantemente de palmeiras de Outer Brass 26. Ele avançou colado à parede
da cabine do convés; o luar reapareceu. O agora histérico capitão correu para a popa da traineira, com os binóculos de visão noturna assestados para a ilha.
Obrigado, pensou Pryce enquanto caminhava lenta e silenciosamente em direção às costas do homem. É tão mais fácil quando é fácil. Com o punho esquerdo cerrado, ele deu uma cutilada na parte baixa da espinha
do sueco enquanto, com a mão direita, abria o coldre e sacava uma grande automática 357. O capitão caiu no deque, gemendo de dor.
- Deixe de fita, seu viking, não está tão ferido assim, apenas uma pequena contusão numa vértebra. De acordo com o seu recruta australiano, Harry, sua sorte será melhor do que a deles. Ele está convencido
de que ele, Jack e Mikhail vão servir de ceia de sacrifício para selvagens famintos... Levante-se, seu filho-da-puta. Você explodiu a corveta da Guarda Costeira e matou todos aqueles jovens! Se não achasse
que pode ser útil, meteria uma bala na sua garganta com muito prazer. De pé, seu ordinário!
- Quem é você? - perguntou o capitão, levantando-se cautelosa e penosamente. - Como conseguiu subir a bordo?
- Isso é pra você dar tratos à bola. Talvez eu seja o anjo vingador que desceu dos céus para fazer você pagar pelas mortes daqueles meninos. Uma coisa é certa, você está de volta a Estocolmo.
- Não!
- Oh, sim, senhor. Tenho muitos amigos lá afora qualquer outra consideração... O seu rádio, por favor?
- Nunca! - O capitão deu um pulo para a frente, suas mãos parecendo duas tenazes. Cameron recuou, dando um chute com o pé direito na virilha do terrorista. O sueco caiu novamente no deque, gemendo e segurando
os testículos.
- Vocês se comprazem em infligir dor, mas não se portam com dignidade quando chega sua vez de recebê-la. Por que isso não me surpreende? - Pryce ajoelhou-se e arrancou o walkie-talkie do bolso do paletó
do capitão. Levantou-se, estudou os vários botões à luz da lua e falou: - Scofield, você está aí, ou terei que gritar?
- Estou aqui sim, meu rapaz, e estava ouvindo uma cena danada de boa. O seu prisioneiro nojento deixou o rádio ligado. Acho que ele devia estar muito nervoso, ou confuso.
- O senhor provou o seu ponto. Sugiro que venha até aqui e examinaremos a situação.
- É capaz de acreditar que era exatamente isso o que eu estava pensando?
- Posso imaginar que seja possível.
Com seus dois prisioneiros, seguramente manietados a reboque, Antonia e Scofield encostaram na traineira. - O que foi que você fez com o elegante Mikhail? - gritou Pryce.
- Ele desapareceu completamente, meu jovem - respondeu Beowulf Agate. - É por isso que nos atrasamos um pouco.
- O que é que está me dizendo? Se houver um rádio aqui, eles obterão nossas coordenadas. Encontrarão o cadáver dele!
- Não há condição, Cam - disse Scofield. - Nós estofamos bem os seus bolsos e o jogamos na baía de Breeding Sharks, onde guardamos nosso barco. Como disse, foi por isso que nos atrasamos um pouco.
- O quê?
- Ninguém em juízo perfeito se atreve a nadar naquelas águas. Acredite-me, o caso dele é absolutamente histórico, louvado seja Nosso Senhor Todo-Poderoso por esses peixes vorazes.
A cabine abaixo do convés era uma panóplia de equipamentos computadorizados, enchendo as paredes de estibordo e bombordo. - Quero ser enforcado se entender alguma coisa dessa parafernália - disse Scofield.
- Para mim, é um mistério tota! - acrescentou Antonia. - Sem dúvida é preciso ser um cientista para fazer essa geringonça funcionar.
- Não necessariamente - disse Pryce, sentando-se em frente a um aparelho. - Há inserções básicas que levam você passo a passo às funções que deseja.
- Quer ter a bondade de traduzir isso em miúdos? - disse o homem mais velho.
- Levaria muito tempo e o mataria de tédio - respondeu o agente de campo da CIA. - Este equipamento em particular ainda está em linha aberta, o que significa que foi usado recentemente e iria ser usado
novamente a curto prazo.
- Isso é bom?
- Mais do que bom, é uma bênção. Podemos acionar um recall e verificar o que estava sendo enviado. - Pryce começou a pressionar letras e números; palavras verdes brilhantes apareceram instantaneamente
na tela escura.
- Introduza o código apropriado para recall.
- Merda! - disse Cameron em voz baixa, levantando-se da cadeira e dirigindo-se rapidamente para os degraus da entrada da cabine. - Volto já - ele acrescentou. - Vou buscar o nosso comandante, que vai desbloquear
essa máquina se não quiser ir fazer companhia a Mikhail no céu dos tubarões!
Pryce galgou os pequenos degraus e rolou em volta no convés à luz cada vez mais enganosa da lua. O que viu o deixou paralisado - era impossível. O capitão da pretensa traineira não estava lá; ele tinha
sido amarrado numa trava da amurada mas não estava lá! Seus dois companheiros, entretanto, eram uma massa disforme ensanguentada, o londrino obviamente morto, e o australiano mal conseguindo sobreviver
com o crânio fraturado, os olhos perdendo o foco.
- O que foi que aconteceu? - rugiu Pryce para o australiano, segurando-o pelos ombros encharcados de sangue.
- Ele era um grandíssimo filho-da-puta! - sussurrou o homem mortalmente ferido - isso é o que ele era. Ele conseguiu se desvencilhar da corda e disse que ia nos soltar. Em vez disso, pegou o cabo de uma
manivela e nos golpeou, um depois do outro, tão rapidamente que nem percebemos o que... estava acontecendo. Vejo ele no inferno! - O australiano exalou seu último suspiro; estava morto.
Cameron olhou por cima da amurada; o bote salva-vidas motorizado tinha desaparecido. Seu novo timoneiro poderia estar rumando para qualquer uma de cinco ou seis pequenas ilhas. A trilha imediata estava
encerrada. Cam correu de volta à cabine abaixo do convés. - O filho-da-puta se soltou, matou os outros dois e pegou o bote! - ele gritou. - Não posso entrar no computador.
- Ainda há um telefone aqui, rapaz - disse Scofield. Reconheço que não é alta tecnologia, mas liguei pra nossa casa e a secretária eletrônica atendeu.
- Você é um gênio simplista num mundo desvairado de alta tecnologia - disse um Pryce aliviado, correndo para o telefone ao lado do computador. Apertou os números codificados que sabia furariam o tráfego
de satélites e o ligariam com Langley, Virgínia, com o Diretório de Operações, o mais sacrossanto dos projetos secretos da CIA.
- Sim? - disse a voz neutra na linha.
- Aqui é Camshaft, do Caribe, e preciso falar com o vice-diretor Frank Shields. Trata-se de uma prioridade Quatro-Zero.
- O vice-diretor Shields deixou a sede há horas, senhor.
- Então me transfira para a casa dele.
- Para fazer isso preciso de uma informação adicional...
- Tente o nome Beowulf Agate! - Cam interrompeu asperamente.
- Quem, senhor?
- Pensei que esse fosse eu - atalhou Scofield.
- Estou pegando emprestado, você se importa?
- Creio que não.
- Beowulf Agate - repetiu Pryce ansiosamente no telefone. Doze minutos depois, a voz de Frank Shields fez-se ouvir na linha.
- Faz um bocado de tempo, Brandon, mais de vinte anos, eu diria.
- Não é o Brandon, sou eu. Camshaft e Caribe não me levaram a parte alguma com o seu robô, por isso peguei o nome emprestado. O dono não se opôs.
- Você o achou!
- Muito mais do que isso, Frank, mas agora não é o momento de lhe dar detalhes. Preciso de uma informação urgente. O seu Big Guy Eye ainda está funcionando?
- O pessoal de rastreamento nunca para de trabalhar, dia e noite. A maior parte do que recolheu é lixo. Do que é que você precisa?
- Houve uma transmissão ou transmissões daqui só Deus sabe para onde, por telefone ou computador via satélite no espaço aproximado da última hora. Será que poderia levantar o tráfego que interceptou nesse
período?
- Claro, de quanto material você precisa, dez ou vinte mil páginas?
- Muito espirituoso. Estudei os mapas. As transmissões foram feitas das seguintes coordenadas aproximadas: longitude sessenta e cinco graus oeste; latitude dezoito graus, vinte minutos norte; na faixa
da meia-noite às duas da manhã.
- Admito que isso delimita consideravelmente a busca. Deve ser a nossa estação Mayaguez em Porto Rico. O que é que estamos procurando?
- Imagino que Beowulf Agate para início de conversa. Scofield soube que estão atrás dele.
- Os Matarese!
- Exatamente, segundo um desgraçado que não polui mais este planeta.
- Estou vendo que você andou ocupado.
- Eles também. Seguiram as minhas pegadas...
- Como conseguiram? Tudo foi cercado do maior sigilo!
- Porque um ou mais de um deles fazem parte da nossa folha de pagamento.
- Oh, meu Deus!
- Não perca tempo lamentando-se. Mãos à obra.
- Qual é o seu número?
- Estamos numa traineira e o número foi removido. Mas há um computador aqui, com monitor e tudo o mais.
- Ligue a linha do seu equipamento no modo confidencial. Direi à Mayaguez para entrar em contato direto com você caso achem alguma coisa. E mesmo que não achem. Também darei a eles mais algumas dicas para
checarem.
- Ache alguma coisa, Frank - disse Pryce, virando-se para o computador, pressionando as teclas e fornecendo a informação de que Shields precisava. - Uma tripulação completa de jovens foi covardemente assassinada
por esses celerados. - Cameron desligou, ofegante, e recostou-se na cadeira.
- O que fazemos agora? - perguntou Antonia.
- Temos que esperar, minha garota - respondeu Bray. Esperaremos até o sol nascer se for preciso. Mayaguez tem que filtrar muito tráfego de ozônio, para poder achar alguma coisa.
- Uma faixa de duas horas com coordenadas bastante precisas deve reduzir a dificuldade - disse Pryce. - O próprio Shields admitiu isso.
- Frank pode ter um novo cargo com um título imponente Scofield murmurou, interrompendo - mas ele continua sendo um analista. Ele fica confortavelmente no seu gabinete em Washington, ao passo que você
vai à luta no campo. Em situações como essa, ele é o "boa praça" que procura manter felizes os talentos que estão dando duro no teatro de operações.
- Você é realmente um observador cínico.
- Já vivi o bastante, e sobrevivi a muita gente, para ter uma visão que não fosse cética.
- Esperemos então. - Dez minutos se passaram, todos os olhos grudados na tela do computador. Decorreu quase uma hora até as letras brilhantes aparecerem.
No modo scramblet de computador. Intercepção impossível. Com base no "Beowulf Agate" e em informações adicionais de Washington, verificamos e enviamos o seguinte. Duas transmissões das coordenadas estimadas
podem se encaixar. Ambas ligações telefônicas textuais em francês: "Falcão dispendioso chegando a Buenos Aires". Dois: "Observadores navais cooperativos, zona neutra. Ilhas sudoeste Tortola Britânica".
Fim da mensagem. Rastreamento do receptor ainda em sinal de relé. Estações euromediterrâneas delimitando o destino.
- Nossa! - exclamou o aposentado Brandon Scofield - eles não são umas gracinhas?
- O que é que você quer dizer? - perguntou sua mulher.
- Eles aprenderam a codificar em embalagens de cereais disse Bray.
- É bastante óbvio, tenho de admitir - disse Cameron.
- O quê? - perguntou Antonia.
- "Falcão dispendioso chegando a Buenos Aires" - respondeu Scofield. - Traduzindo: o falcão dispendioso - o caçador - é o nosso novo amigo Pryce, soletrado com i. Buenos Aires é B. A., indubitavelmente
Beowulf Agate, que sou eu.
- Oh, percebo o que você está dizendo - falou a alta, atraente e formidável Antonia, olhando para as letras verdes na tela escura. - E o resto?
- Respondo a essa pergunta - disse Cameron irritadamente. - "Observadores navais cooperativos"... e neutralizados. Eles explodiram a corveta da Guarda Costeira. Que Deus os amaldiçoe!
- A segunda mensagem dizia "Ilhas sudoeste Tortola Britânica" - interrompeu rapidamente Scofield -, não uma ilha específica, e além das Brasses há pelo menos outras vinte ao sul e a sudoeste de nós. Vamos
para a nossa 26, usarei meu equipamento... e também poderemos tomar um drinque, providência profundamente necessária.
- Você não tem um computador - objetou Pryce.
- Não preciso de um, meu jovem, tenho um telefone, um desses links móveis Comsat. Me custou uma nota preta, mas se você tem um amigo em Hong Kong, você pode pô-lo na linha.
Subitamente, do céu noturno, ao longe, chegou um estrondo, mas não uma tempestade, não da atmosfera. Era outra coisa.
- Que diabo é isso? - interrogou Cam.
- Todos no convés! - gritou Scofield, pegando a mão da mulher e empurrando-a para a escada da cabine ao mesmo tempo que cutucava o ombro de Pryce. - Dê o fora daqui!
- O quê... por quê?
- Porque essa é provavelmente a décima saída, seu idiota gritou o agente aposentado. - Eles estão nos procurando. Eles viram este barco, estamos liquidados! Mexam-se, vocês dois. E joguem-se na água!
Os três fizeram isso e puseram-se a nadar furiosamente, afastando-se do casco da embarcação enquanto um jato de caça mergulhava, lançando duas bombas na traineira, explodindo-a contra o céu escuro de onde
emergira o mortal saqueador. O barco afundou em instantes.
- Toni, Toni, onde é que você está? - gritou Scofield nas águas turbulentas.
- Aqui, meu querido! - respondeu de volta Antonia, mais adiante.
- Pryce?... Você está aqui? Está vivo, Pryce?
- Não tenha a menor dúvida de que estou! - respondeu Cameron. - E fique certo de que pretendo continuar assim!
- Nade para nossa ilha - ordenou Scofield. - Precisamos conversar.
- O que é que há pra conversar? - perguntou Pryce, enxugando-se com uma toalha do lado de fora da varanda da casa às escuras.
- Eles arruinaram o estilo de vida a que me acostumara e aprendera a gostar. Eles nos privaram de nossa liberdade, de nossa felicidade.
- Lamento, mas não posso fazer nada a esse respeito - disse Cam enquanto os dois homens nus se enxugavam. - Eu lhe disse, fiz tudo o que estava ao meu alcance para ocultar o seu paradeiro.
- Mas não foi o bastante, não é verdade?
- Sem essa. Como você mesmo admitiu, não era tão difícil assim encontrá-lo.
- Para você, não, mas para eles eu era difícil de ser localizado. Com uma exceção que nunca me ocorreu, mas que deveria. Depois de todos esses anos, eles ainda mantêm um espião dentro da Agência. Um filho-da-puta
muito bem situado. Você tem alguma ideia de quem possa ser?
- Não, não tenho. Você ouviu o que eu disse ao Frank, que alguém está na nossa folha de pagamento. Ele ficou uma onça.
- Acredito que você e eu confiamos nele. É por isso que você precisa espalhar a notícia de que Beowulf Agate está de volta. Deixe que eles fiquem sabendo que Beowulf Agate e Vasili Taleniekov, o Serpente,
estão de volta, e não deixarão de procurar enquanto os Matarese não forem uma página virada da história.
- E quanto a mim, Scofield?
- Você é o nosso executor, o nosso ponto de apoio.
- Nosso... Taleniekov está morto. Ele se foi.
- Não na minha cabeça, Cameron Pryce. Ele nunca partiu.
SEIS
Estavam sentados na varanda em penumbra, a única luz vindo do lampião, cuja mecha mal despontava, apenas o suficiente para iluminar os números do telefone portátil de Scofield. Ele apertara os dígitos
esotéricos que constituíam seu elo direto com o setor de operações clandestinas em Langley. - Pegue o outro telefone ordenou Bray enquanto Pryce tateava a mesa ao seu lado à procura do aparelho.
- Sim? - Novamente a voz de robô atendeu quase num sussurro. - Beowulf Agate outra vez - disse Scofield. - Ligue-me com Shields.
- Um momento, por favor. - A linha aparentemente emudeceu, mas em seguida palavras soltas voltaram. - Receio que não seja Beowulf Agate. O registro de sua voz não confere.
- Registro de voz?... Pelo amor de Deus, Cam, entre na linha e diga a esse pretoriano guardador das chaves que eu sou Beowulf Agate e você não é!
- Já o achei... estava no chão - disse Pryce, apanhando o telefone e entrando na linha. - Escute aqui, registro de voz não quer dizer absolutamente nada, o código é que é importante e mais de uma pessoa
pode usá-lo. Agora, mexa-se!
- Cameron? - disse um Frank Shields completamente acordado.
- Oi, Olhos-Apertados - Scofield retrucou.
- É você, Brandon!
- Como é que adivinhou?
- Por uma série de razões, começando com seus inevitáveis insultos. Como vai, Bray?
- Ia muito melhor antes das suas gárgulas infernais voltarem à minha vida.
- Não houve outro jeito, amigo velho. Tenho certeza de que Pryce deixou isso claro. A propósito, o que é que você acha dele?
- Não posso realmente lhe dizer o pé no saco que ele é porque ele está na extensão.
- Estou no outro telefone - confirmou Cameron em voz baixa, com evidente cansaço. - Deixe-me pô-lo a par rapidamente dos acontecimentos, Frank. - Pryce descreveu sucintamente os fatos que tinham levado
ao comando que invadira a ilha e à traineira, ao assassinato da tripulação e ao desaparecimento do comandante da traineira. - Ele deve ter entrado em contato com alguém nas redondezas porque um jato de
caça bombardeou o barco. Felizmente, e dou todo o crédito a ele, seu ex-colega ouviu o barulho. Não estaria falando com você agora se ele não tivesse ouvido, e até agora não sei como conseguiu.
- Ele conhece os Matarese, Cam.
- Sem dúvida conheço, Frank - interrompeu Scofield e o nosso comandante assassino não precisou entrar em contato com ninguém. A falsa traineira estava plotada e mapeada desde sua primeira transmissão.
As engrenagens já estavam articuladas, e o primeiro item a ser sacrificado era a própria traineira, juntamente com sua tripulação. Os Matarese nunca deixam as coisas pela metade.
- Aí está a sua resposta, Pryce - disse Shields, a duas milhas ao norte das Ilhas Virgens Britânicas.
- De onde é que o raio do avião veio? - explodiu Cameron. Era um avião de combate, armado, militar, o que significa que tinha que vir de uma base aérea! Santo Deus, será que eles também se infiltraram
na Força Aérea? Obviamente não tiveram muitos problemas com a CIA.
- Estamos trabalhando nisso - disse Shields serena e altivamente.
- Você pode estar enganado, Cam - observou Scofield do outro lado da varanda. - As explosões nos cegaram. Estava escuro e estávamos nadando para salvar nossas vidas. Não temos certeza do que vimos.
- Graças ao cavalheirismo - interrompeu Antonia ao lado do marido - eu estava bem à frente de vocês. Procurei ver quando o piloto sobrevoou a área para checar o seu trabalho...
- Eu mergulhei, pensando que ele fosse atacar novamente interrompeu Pryce.
- Eu fiz a mesma coisa - acrescentou Scofield.
- Receio que essa ideia nunca tenha me ocorrido...
- O que foi que você viu, meu amor?... Você consegue ouvi-la, Frank?
- Muito claramente - respondeu o homem em Langley.
- Era um jato, certamente, mas com uma configuração que não me era familiar e parecia não ostentar marcas ou emblemas. Contudo, havia algo estranho sobre as asas, e grandes protuberâncias no bojo.
- Um Harrier - disse Cameron Pryce, com um tom de voz contrariado. - Capaz de levantar voo de uma pequena faixa de cimento ou de um fundo de quintal.
- Uma aquisição fácil pra eles - acrescentou Beowulf Agate. - Garanto que eles têm dúzias espalhados por toda parte, estrategicamente localizados.
- Portanto, voltando ao seu relato de alguns minutos atrás interrompeu Shields quando você disse que a traineira estava "plotada e mapeada", o que queria dizer na realidade era que o Harrier já estava
a postos.
- Não duvido nem por um minuto. Quando foi que os chefões do último andar resolveram mandar o Pryce atrás de mim?
- Há seis ou sete dias, quando a estação da Guarda Costeira em St. Thomas não informava nada sobre uma caixa postal que ninguém parecia se dar ao trabalho de checar.
- Tenho mais do que suficiente para transferir um 747 para uma ilha, quanto mais um pequeno Harrier. Afinal, Frank, digo-o sem falsa modéstia, aparentemente sou considerado um troféu e tanto, você não
acha?
- Você é um... deixa pra lá. - Shields fez uma pausa, sua respiração ofegante era perfeitamente audível. - Tenho uma informação recente sobre o sinal de relé das estações euromediterrâneas.
- Que diabo é isso? - perguntou Scofield. - Alguma coisa nova?
- Na verdade, não chega a ser, Brandon. Você mesmo o utilizou diversas vezes - apenas o nome é que mudou uma vez que as comunicações via satélite passaram a abranger os computadores assim como o tráfego
de rádio e por telefone. Lembra-se de quando você chamava um número, digamos de Praga ou de Londres, mas discava para um número de Paris?
- Claro. Nós bagunçamos tanto o esquema de contraespionagem da KGB e da Stasi que os caras muitas vezes quase enlouqueciam. Uma vez estiveram a ponto de metralhar um estúdio de balé que pensavam que fosse
a célula do nosso MI-6 mas não tiveram coragem de atirar no meio dos tutus esvoaçantes das bailarinas! Tivemos que mudar de esquema porque o professor de balé, que todos achávamos que fosse uma bicha magricela,
deixou o nosso agente mais durão fora de combate.
- É a mesma coisa, apenas tecnologicamente mais sofisticado.
- Na verdade não... Espere aí, parece que estou entendendo o que você quer dizer! Chamávamos de viagens diretas por telefone, e vocês chamam de sinais de relé.
- Porque trabalhamos para todos os lados. Não enviamos meramente, agora podemos rastrear os receptores através de relés múltiplos.
- Isso é fantástico, Olhos-Apertados.
- Acabou a lição, Frank - disse Pryce no telefone. - Eu esclarecerei o que quer que seus amigos curiosos queiram ouvir. Qual é sua última informação sobre a transmissão?
- Coisa de louco, Cam. A primeira chamada foi feita via Paris, depois retransmitida para Roma, em seguida para o Cairo, de volta a Atenas, depois Istambul, e finalmente para a província italiana da Lombardia,
especificamente lago Como. Dessa estação foi bifurcada...
- Destinos divididos! - exclamou Pryce, irritado. - Eles dividem as linhas!
- Em três partes, mas o sinal mais forte foi para Groningen na Holanda, onde ele cessou. Nossos técnicos acreditam que o trecho final, na linha privada, foi para Utrecht, Amsterdã, ou Eindhoven.
- Três cidades bastante grandes, Frank.
- Sim, nós sabemos. Por onde quer começar? Alertarei nossos agentes para que lhe prestem toda cooperação.
- Ele não começará! - gritou Scofield no telefone. - Ele começará quando eu disser a ele pra começar!
- Qual é, Bray? - disse Frank Shields calmamente - eu não colocaria você em campo se a minha vida dependesse disso. Entre outras coisas, minha mulher de quarenta anos me abandonaria se o fizesse. Ela te
adora, você sabe disso.
- Dê lembranças à Janie, ela sempre foi mais esperta e muito mais interessante do que você. Mas se você me quiser de volta, seu filho-da-puta, terá que ser nos meus termos.
- Não no campo!
- Aceite isso, Frank. Minha pontaria é um bocado certeira, mas não consigo mais pular cercas como costumava fazer.
- Então o que é que você quer?
- Quero dirigir a operação.
- O quê?
- Sou o único sujeito que se infiltrou no círculo Matarese, estava lá quando todos eles foram para o espaço. Mas antes desse Armagedon, somente Taleniekov e eu desentocamos seus discípulos, descobrimos
como eles raciocinavam, até que ponto eram pervertidos, o quanto seus motivos eram fanáticos, tudo disfarçado em propósitos idealistas de modo a induzir o mundo inteiro a marchar ao rufar de seus tambores...
Você não pode se livrar de mim, Frank, não permitirei! Você precisa de mim!
- Repito, não no campo - disse o calmo vice-diretor da CIA.
- Preferia não ter que atuar no campo, conheço as limitações da minha idade. Mas não vou deixar uma estrada aberta pra você.
- O que é uma "estrada aberta"?
- Que diabo, acabei de explicar isso ao seu agente júnior aqui. Nós elaboramos nosso próprio jargão, Frank, você sabe disso.
- Receio que não saiba, Bray. O que é que você quer dizer?
- Se o rapaz estiver em apuros, terei o direito de interceder.
- Inaceitável. "Apuros" pra você é uma coisa, pode ser algo completamente diferente pra qualquer outra pessoa.
- Suponhamos que ele morra?
- Oh? - Shields hesitou novamente. - Não tinha considerado isso.
- Mas é uma hipótese que tem que ser levada em conta, não é mesmo?
- Calem a boca! - Cameron Pryce gritou no telefone. Saberei tomar conta de mim, Frank.
- Não queira bancar o herói, meu jovem - disse Scofield no telefone próximo. - Eles sempre acabam com muitas medalhas, geralmente dentro de seus caixões.
- Tudo bem, Brandon, como é que você quer proceder? - disse Shields de Langley.
- Antonia e eu queremos voltar para a ilha, se é que ela não foi pelos ares, mas suponho que tenhamos que ir ao seu território.
- Como quiser. Nossos orçamentos são folgados neste departamento.
- Nossa, você está parecendo os Matarese! Eles nos ofereceram alguns milhões e uma propriedade suntuosa no Pacífico Sul.
- Não podemos ir tão longe, mas lhe ofereceremos algumas opções atraentes. E todas as casas de segurança, naturalmente.
- Então vamos botar pra quebrar, Frank. O tempo é fator essencial.
- O que é que vocês pensam que estão tramando? - gritou Cameron Pryce, com o bocal do telefone tão próximo que agrediu os ouvidos dos outros dois que estavam na linha. - Posso não ser seu velho parceiro,
Olhos-Apertados, mas esta continua sendo minha operação! Achei o filho-da-puta, e não vou ser excluído!
- Claro que você não será, meu jovem - disse Brandon Alan Scofield. - Você fará todas as coisas que eu nunca mais devo tentar, e terão que ser feitas indubitavelmente. Vejam bem, há um fator nesta equação
que nenhum de vocês nem ninguém em Washington compreende. O Shepherd Boy foi removido desta terra, mas a coroa foi passada adiante. Ele é a chave.
- O Shepherd Boy novamente? De que diabo você está falando?
- Eu lhe direi quando e se achar que o momento é adequado.
A casa de pedra de quatro andares acima das águas do Keizersgracht em Amsterdã era um monumento ao esplendor, se não uma lembrança, dos anos mais faustosos da cidade portuária na virada do século. O mobiliário
vitoriano era sólido porém de delicado desenho, heranças transmitidas através de gerações de uma família opulenta. As paredes dos aposentos de pé-direito alto eram ornadas com tapeçarias flamengas e francesas
de valor inestimável, as janelas eram emolduradas por cortinas de veludo, o sol era filtrado por rendas de fino lavor. Um pequeno elevador de mogno e grades de latão, automático, ficava centrado na parede
dos fundos do edifício; podia transportar até cinco passageiros. Entretanto, para se chegar ao quarto e último andar era necessária a inserção de uma senha específica no painel, uma senha que era alterada
diariamente, e programar uma senha incorreta resultaria na imediata paralisação do elevador e no fechamento da grade de latão. Quem quer que tentasse chegar ao quarto andar sem estar devidamente sacramentado
pela senha ficaria preso e seria tratado de acordo com as circunstâncias.
Além disso, a área principal de cada andar sucessivo tinha uma função geral. O primeiro andar era essencialmente um grande salão de recepções, dispondo inclusive de um grande piano de cauda Steinway; era
apropriado para chás à tarde, coquetéis, pequenos recitais e ocasionais conferências. O segundo andar, de fácil acesso pela escada, abrigava uma grandiosa sala de jantar, acomodando confortavelmente dezesseis
comensais, contando ainda com uma biblioteca-estúdio separada e, nos fundos, uma imensa cozinha. O terceiro piso era basicamente destinado aos quartos de dormir. Havia uma suíte e três quartos de hóspedes
adicionais, todos espaçosos e dispondo de todas as conveniências. O quarto pavimento era reservado. A escada era interrompida no terceiro; o corrimão descrevia uma curva no corredor sem denotar a existência
de outro andar, apenas uma parede forrada comum primoroso papel.
Entretanto, se um hóspede ou convidado possuísse a senha do elevador, ficaria abismado pelo que observaria ao descer no quarto andar. Era uma autêntica sala de planejamento militar de guerra. Toda a parede
frontal era tomada por um mapa detalhado do mundo, suavemente iluminado por trás, com pequenas luzes de várias cores pulsando em ritmos erráticos. Em frente a esse display global havia seis estações de
computadores brancos, três de cada lado de um corredor que conduzia a uma mesa elevada, o trono da estação, como efetivamente era, do monarca do equipamento.
Além dessa parafernália de alta tecnologia, tão anacronicamente contrastante com os andares abaixo, talvez o detalhe observável mais estranho fosse a ausência de janelas. Do lado de fora, elas estavam
no lugar. Do lado de dentro, não existiam. Como a escada que acabava abruptamente no terceiro andar, as janelas no aposento tinham sido lacradas, a única luz emanando do mapa múndi gigantesco e das lâmpadas
halógenas em cada estação de computador. Finalmente, como que compondo a macabra atmosfera, os seis operadores dos computadores estavam longe da imagem de jovens dinâmicos com rostos ansiosos geralmente
associada a esse tipo de equipamento. Ao contrário, eram todos homens de meia-idade, nem magros nem corpulentos, com fisionomias austeras que denotavam executivos bem-sucedidos e prósperos mas não dados
a frivolidades.
Era o fim da tarde em Amsterdã, confirmado por um dos relógios azuis no mapa acima da zona do meridiano de Greenwich contendo a Holanda. Os seis computadores brancos ao nível do chão zumbiam suavemente
enquanto os dedos ágeis dos operadores percorriam seus teclados, e eles alternavam os olhos no mapa múndi e nas pequenas luzes pulsantes, determinando geograficamente a informação que estava sendo enviada
e recebida.
De uma espessa porta lateral, emergiu a figura de Jan van der Meer Matareisen. Ele se dirigiu rápida e decididamente para a mesa elevada e sentou-se, voltando instantaneamente para o seu computador. Apertou
uma série de teclas e estudou a tela. Perguntou abruptamente, em holandês, com uma voz metálica, ansiosa: - Número cinco, quais são as últimas informações provenientes do Caribe? Não consigo captar absolutamente
nada!
- Eu ia transferi-las, meneer - respondeu o homem calvo, nervoso, da Estação Cinco. - Houve muita confusão e a de codificação foi laboriosa pelo fato de a mensagem ter sido enviada apressadamente e incompleta.
- O que foi? Rápido!
- Nosso piloto está convencido de que foi captado pelo radar AWACS ao largo de Guantánamo. Ele empreendeu uma ação evasiva, cortou todas as comunicações e rumou para o sul.
- Destino?
- Desconhecido, senhor. - Ele deu a entender - pois não foi muito claro - que faria um contato "inortodoxo" quando estivesse em segurança.
- Inortodoxo - interrompeu o operador da Estação Seis, à direita, abaixo de Matareisen - significa que ele provavelmente alcançará uma de nossas instalações e fará com que ela entre em contato conosco.
- Quais são as alternativas dele?
- A mais próxima é Barranquila, na Colômbia - respondeu o da Estação Dois, pressionando suas teclas. - Ou a Nicarágua, ou possivelmente as Bahamas, embora isso seja perigoso. Nassau vem cooperando muito
abertamente com Washington.
- Um momento, meneer! - gritou o Cinco. - Uma transmissão. De Caracas!
- Bom voo, bom raciocínio - disse o líder dos Matarese. Estamos entrincheirados na Venezuela. - Entrincheirados de verdade, pensou o Matareisen, fazemos parte dos conselhos das maiores empresas de petróleo.
- A mensagem, por favor.
- Estou decodificando, senhor.
- Rápido!
- Aqui está ela. "Argonauta com Netuno, não há herdeiros. Segue relatório".
- Excelente, excelente! - exclamou Matareisen, levantando-se de sua cadeira. - Tome nota para recompensarmos nosso piloto. Ele afundou a traineira, não deixando sobreviventes... E eu preciso fazer o meu
relatório. - Com esse último comentário, van der Meer voltou para a porta lateral pesada na parede à direita. Ele pressionou a palma da mão contra a almofada de segurança rebaixada; ouviu-se um clique;
ele segurou a maçaneta e abriu a porta secreta, fechando-a rapidamente.
A um só tempo, os seis operadores pareceram suspirar aliviados. - Você acha que um dia ainda vamos descobrir o que há lá dentro? - sussurrou o operador da Estação Três, sorrindo.
- Somos extremamente bem-pagos para aceitar a explicação dele - respondeu o operador da Um, também sussurrando. - Ele diz que são suas dependências particulares com equipamento superior até ao nosso, que
já é o melhor possível.
- Entretanto, ele não presta contas a ninguém, ele também deixou isso muito claro - disse o Dois. - A quem ele seria subordinado?
- Quem sabe? - continuou o Três. - Mas se isso é um anexo de comunicações, deve acomodar de vinte a trinta máquinas.
Pode ser um pouco mais estreito do que esta sala, mas tem que ter pelo menos o mesmo comprimento.
- Não se percam em conjecturas, meus amigos - disse o submisso operador da Estação Um. - Nunca fomos tão bem-pagos, e temos que aceitar as regras. De minha parte, jamais quereria voltar para o meu cargo
corporativo, pois o salário, por maior que fosse, estava longe de chegar perto da generosidade de Herr van der Meer.
- Nem eu - disse o Quatro. - Tive sociedades no comércio de diamantes, mas os custos eram excessivos porque não sou judeu. Completamente fora de minhas possibilidades antes de vir trabalhar nesta firma.
- Por isso é que repito - disse o operador da Um. - Não especulem. Aceitemos o que temos e aproveitemos. Nenhum de nós é mais jovem, e dentro de poucos anos poderemos nos aposentar muitas vezes milionários.
- Estou plenamente de acordo - endossou o da Estação Cinco. - Um momento! Outra transmissão. Esta está na minha rota de Istambul. - Todos os olhos se concentraram na tela do computador.
- Leia-a - disse o Quatro. - Talvez tenhamos que interromper van der Meer.
- É do Águia...
- Isso é Washington - o operador da Seis interrompeu. Nosso contato em Langley.
- Leia a mensagem.
- Preciso de alguns minutos para decodificá-la, não é longa. - Passaram-se noventa e sete segundos, os olhos de todos voltados para a Estação Cinco. Por fim ele falou. - Decodifiquei, eliminando os nomes
falsos. Portanto, eis o que ela diz: "Beowulf Agate sobrevive. Ele e o Falcão - leia-se Cameron Pryce - em contato com o vice-diretor Shields. Beowulf e a mulher estão voando para os Estados Unidos sob
a proteção da Agência. O lobo vai assumir o comando operacional".
- Avise o van der Meer - ordenou o operador da Estação Quatro.
- Não devemos fazer isso quando ele está lá dentro...
- Faça-o!
- Por que você não faz?
- É o que farei... Vou esperar alguns minutos caso ele volte.
Jan van der Meer fechou a porta grossa do seu santuário particular e adentrou o recinto sob os últimos raios de luz do dia, passando em frente às janelas não-lacradas. O enorme aposento destinava-se ao
conforto. Nenhum sinal do maquinário sofisticado do outro lado da parede de concreto. Em vez disso, todas as peças de uma luxuosa sala de estar; poltronas revestidas de brocado, um sofá curvo coberto com
uma pele de vicunha amarelada e, novamente, tapeçarias raras. Havia um amplo complexo de entretenimento consistindo de um grande aparelho de televisão com todos os acessórios de som e um bar espelhado
com os uísques e conhaques mais caros. Era o refúgio de alguém que exigia tudo o que havia de melhor.
Van der Meer estava imóvel diante de um largo espelho com uma moldura dourada. - Sou eu novamente, Sr. Guiderone. Trago-lhe grandes notícias. - O idioma que ele falava era o inglês.
- Notícias que não tinha há quinze minutos? - chegaram as palavras amplificadas nitidamente pronunciadas, também em inglês, com sotaque americano - americano culto, não atribuível a qualquer região, a
fala dos refinados, dos abastados.
- Acabou de chegar.
- Muito importante?
- Beowulf Agate.
- Aquele porco do mundo astuto - disse a voz do homem invisível chamado Guiderone, rindo discretamente. - Vou sair daqui a pouco. Estou no telefone... Ligue o satélite de Belmont Park em Nova York. Também
espero ouvir grandes notícias de lá. Tenho cavalos correndo no primeiro e segundo páreos.
Matareisen fez o que lhe foi dito. A tela imensa encheu-se de garbosos puros-sangues indóceis na reta de largada, os jóqueis encarapitados em suas montarias, procurando contê-los. E Julian Guiderone surgiu
numa porta. Era um homem de estatura acima da média, bem-arrumado, pouco menos de um metro e oitenta, envergando uma camisa estampada de seda italiana, calças de flanela cinza e mocassins Gucci. Sua idade
era difícil de estimar à primeira vista - embora certamente não fosse jovem. Seu cabelo grisalho era sutilmente entremeado de mechas de um louro pálido, denotando a cor original de suas madeixas. Mas eram
os traços marcantes do seu rosto que confundiam as tentativas de determinar sua idade. Era um rosto atraente, talvez proporcionado com excessiva perfeição, muito simétrico, e a pele queimada parecia sempre
ligeiramente descolorida, o que acontece com frequência com turistas do norte ansiosos por confrontar o sol tropical. Essa peculiaridade provavelmente não seria notada em encontros casuais; a pele queimada
tomava a precedência. Mas evidenciava-se se uma pessoa estudasse o rosto agradável de traços definidos, assim como a perna esquerda ligeiramente manca.
- A propósito, meu caro - ele disse. - Vou ficar aqui mais três dias, saindo como cheguei - às quatro horas da manhã. Desative os alarmes para a minha saída.
- Mais alguém chegará a curto prazo?
- Somente com sua aprovação. Você tem seus compromissos, naturalmente, e as coisas estão se precipitando, não estão?
- Nada que eu permita que interfira com suas conveniências, Sr. Guiderone.
- Não pense dessa maneira, van der Meer. Você está no comando, o show é seu. Dentro de dois anos estarei com setenta; sangue novo terá que assumir. Sou meramente um conselheiro.
- Cujos conselhos e orientação são reverenciados. - Matareisen apressou-se em interromper. - O senhor estava aqui em outros tempos quando eu ainda era um jovem inexperiente. O senhor sabe coisas que eu
jamais saberei.
- Mas, por outro lado, van der Meer, você pode fazer coisas que eu não posso mais. Estou sabendo que a despeito do seu comportamento profissional e do seu porte que não chega a impressionar, suas mãos
e seus pés são armas letais. Na verdade, que você é capaz de despachar homens muito maiores e mais pesados do que você numa questão de segundos... Antigamente eu escalava o Matterhorn e o Eiger, mas duvido
que seja capaz de vencer uma encosta para amadores hoje em dia.
- Quaisquer que sejam os dons físicos e intelectuais que eu possa ter não se comparam à sua sabedoria e à sua experiência.
- Duvido muito, mas aceito o elogio...
- Fale-me desse Scofield, esse tal de "Beowulf Agate" - Matareisen interrompeu polidamente mas com firmeza. - Segui suas instruções ao pé da letra, mas, se me é permitido dizer, com um certo grau de risco.
Naturalmente, é grande a minha curiosidade. O senhor o chamou de "porco do mundo astuto". Por quê?
- Porque ele viveu com porcos, lidou com porcos, seus próprios porcos americanos que tentaram matá-lo. "Executar por traição" era o modus operandi deles.
- Minha curiosidade agora não tem limites! Os americanos quiseram matá-lo?
- Ele descobriu e, em vez de se vingar dos que deram a ordem, reverteu as circunstâncias e tornou-se verdadeiramente intocável.
- Perdão, mas não estou entendendo.
- Ele chantageou os outros porcos nos últimos vinte e cinco anos.
- Como?
- Ele disse a eles que possuía provas documentais de que corrompemos completamente todos os principais departamentos do seu governo e estávamos às vésperas de instalar nosso próprio homem como presidente
dos Estados Unidos. Era tudo verdade. Se não fossem o Beowulf Agate e o Serpente, teríamos arquitetado o maior golpe da história do mundo civilizado.
- O Serpente?
- Um oficial da inteligência soviética chamado Taleniekov… Isso é tudo o que você precisa saber, van der Meer. O Serpente teve uma morte indecorosa, e agora precisamos levar a cabo a ordem de execução
de Beowulf Agate prescrita por sua própria gente.
- Nós a executamos. Esta é a minha notícia. A traineira Alpha foi posta a pique. A presença de Scofield a bordo foi confirmada. Ele está morto, Sr. Guiderone.
- Parabéns, van der Meer! - exclamou o conselheiro do presidente do conselho dos Matarese. - Você realmente honra a sua ascendência! Eu falarei isso diante do Conselho em Bahrain. Se Scofield deixou documentos,
estamos preparados para eles. As fanfarronices de um louco morto em desgraça não têm o menor significado, podemos destruí-las facilmente. Novamente, belo trabalho, Matareisen! Agora você pode passar para
o próximo nível. Como vão as coisas? Onde é que você está realmente?
- Estamos prontos para avançar pela Europa, o Mediterrâneo e os Estados Unidos. Estivemos em negociações secretas com os conselhos de corporações que infiltramos com gente nossa - basicamente não temos
oposição; temos os números.
- Estratégia sólida - disse Guiderone. - Você precisa dos votos.
- Nós contamos com eles. Absorveremos empresas com transferências de ações que já possuímos, também através de aquisições de falências que provocaremos com a falta de pagamentos de créditos de bancos que
controlamos e, naturalmente, numerosas fusões em toda parte. Simultaneamente, inflacionaremos e em seguida deflacionaremos drasticamente, alternando mercados monetários, enquanto enxugamos nossas novas
corporações visando a maior lucratividade e eficiência produtiva.
- Bravo - murmurou o conselheiro, olhando com admiração o homem mais moço. - Caos - ele acrescentou suavemente.
- Dentro de pouco tempo, tota! - concordou Matareisen. Inicialmente, milhares e milhares de empregos serão perdidos, depois milhões...
- Em toda parte - interrompeu Guiderone. - Recessões regionais precederão grandes depressões, atingindo os estratos econômico e social. E depois?
- O que mais? Os bancos. Controlamos ou temos quase a maioria acionária em mais de trezentos na Europa e dezesseis no Reino Unido, excluindo a Inglaterra. Fizemos algum progresso em instituições israelenses
e árabes, hipotecando apoio às suas posições antagônicas, mas temos que nos contentar com influência, não controle, certamente não com os sauditas ou os emirados. São todos controlados por famílias.
- E na América?
- Uma extraordinária ruptura. Um dos nossos elementos, um renomado advogado de Boston - sua cidade natal, creio eu - está articulando a fusão de quatro dos maiores bancos de Nova York e Los Angeles com
um conglomerado europeu. Através de suas filiais individuais, controlaremos mais de oito mil instituições de crédito nos Estados Unidos e na Europa.
- "Crédito" sendo a função operacional, correto?
- Naturalmente.
- E depois?
- A pedra angular, Sr. Guiderone. Oito mil filiais emitindo rotineiramente linhas de crédito para mais de dez mil grandes corporações nas principais cidades e estados, só isso já é alavancagem máxima.
- A ameaça de cortar essas linhas de crédito, estou certo novamente, Matereisen?
- Não, não está.
- Não estou?
- Não haverá ameaças, simplesmente uma decisão de conselho. Todas as linhas de crédito serão suspensas. Em Los Angeles, estúdios fecharão as portas, produções da indústria cinematográfica e da televisão
serão suspensas. Em Chicago, frigoríficos, empresas esportivas e imobiliárias ficarão no limbo, não haverá dinheiro em espécie disponível. Nova York será mais duramente atingida, Toda a indústria de confecções
que existe na base de crédito será demolida, assim como os agressivos novos proprietários de hotéis com seus interesses nos cassinos da vizinha Nova Jersey. Suas empresas baseiam-se em linhas de crédito.
Não contando com elas, não são ninguém.
- A loucura será total! Manifestações de protesto se sucederão em todas as cidades... total e rematada loucura!
- Calculo que, em seis meses, governos enfrentarão crises, desemprego fora de controle. Parlamentos, congressos, juntas governamentais e federações, todos enfrentarão a catástrofe. Mercados globais entrarão
em colapso, o povo por toda parte protestará, exigindo melhores condições de vida.
- E mudança, van der Meer, essa elusiva abstração. E o nosso pessoal está preparado em toda parte?
- Naturalmente. É no seu próprio interesse e dos seus governos, sem os quais ele não pode existir e continuar a prosperar.
- Você é realmente um gênio, van der Meer! Conseguir fazer tudo isso tão rapidamente, tão eficientemente!
- Na verdade não é tão difícil, meneer. Os abastados do mundo querem mais riquezas enquanto as classes inferiores queremos benefícios dessas riquezas para proporcionar mais empregos.
É historicamente coerente, Tudo o que se tem a fazer é nos infiltrarmos numa ou na outra, ou de preferência em ambas as classes, e convencer cada uma de que estão sendo sacaneadas. A velha União Soviética
valia-se dos trabalhadores, que não tinham capacidade. Os conservadores da economia valem-se dos empresários, que em geral não têm noção de um contrato social. Nós temos ambas as coisas.
- Portanto, temos o controle - concordou Guiderone. - Esse era o sonho, a visão do Barone di Matarese. É a única maneira. O barão não se dedicaria à questão dos governos, somente às finanças internacionais.
- Ele era de uma outra época, os tempos mudaram. Precisamos controlar os governos. Os Matarese que o sucederam compreenderam isso, naturalmente... Meu Deus, o presidente dos Estados Unidos? O senhor podia
ter feito isso?
- Ele teria sido conduzido ao seu mandato - afirmou Guiderone serenamente, quase em transe. - Era inevitável e ele era nosso. Por Cristo, ele era nosso! - O homem mais velho voltou-se para os últimos raios
de sol que entravam pelas janelas, e continuou, agora com a voz fria, enojada. - Até ele ser cortado pelo porco do mundo.
- Algum dia, quando for viável para o senhor, gostaria de ouvir a história do que aconteceu.
- Ela jamais poderá ser contada, meu jovem amigo, mesmo para você, por quem tenho a maior consideração. Porque se essa história, como você a chama, visse à luz do dia, nenhum governo em parte alguma mereceria
a confiança daqueles que ele tem que governar. Tudo o que lhe direi, van der Meer, é que mantenha o seu curso. É o certo.
- Prezo suas palavras, Sr. Guiderone.
- Pois deve - disse o elegante homem de idade, voltando-se para Matareisen. - Porque se você é neto do Barone di Matarese, eu sou o filho do Shepherd Boy.
Foi como se van der Meer Matareisen tivesse sido atingido por um raio, cujo trovão explodira no seu crânio. - Estou perplexo! - ele balbuciou, com os olhos arregalados do choque: - Ouvi dizer que ele foi
morto...
- Ele foi "morto", mas ele não morreu - murmurou Guiderone, com os olhos dançando, divertidos. - Mas é um segredo que você levará para o seu túmulo.
- Naturalmente, naturalmente! Contudo, o Conselho, em Bahrain, com certeza deve saber.
- Oh, isso! Francamente, exagerei. Costumo ir a Bahrain com frequência, mas, na verdade, eu sou o Conselho, os outros são manequins gananciosos. Guarde esse segredo, van der Meer, é o meu conselho. - Houve
um zumbido fraco de um interfone instalado na parede. Guiderone mostrou-se admirado; olhou incisivamente para Matareisen. - Julguei que você não deveria nunca ser perturbado quando se encontrasse aqui!
- ele disse com voz gutural.
- Deve ser uma emergência. Ninguém sabe que o senhor está aqui. Meu Deus, estes são meus aposentos particulares, completamente à prova de som. As paredes e o piso têm oito polegadas de espessura. Simplesmente
não sei...
- Responda, seu idiota!
- Naturalmente. - Van der Meer, como um homem despertando de um pesadelo, correu para o interfone e tirou o fone do gancho, - Pronto. Já disse que não devo nunca... - Obviamente cortado pela voz do outro
lado da linha, ele ouviu, empalidecendo. Desligou e olhou para Julian Guiderone. - Informação que acaba de chegar do Águia em Washington - ele começou, mal se fazendo ouvir.
- Sim, é da CIA. O que é?
- Scofield sobreviveu ao bombardeio. Ele está a caminho dos Estados Unidos com a mulher e Cameron Pryce.
- Mate-o. Mate todos eles - ordenou o filho de Shepherd Boy com os dentes trincados. - Se Scofield sobreviveu ao ataque à traineira, ele virá atrás de nós como um urso enfurecido, que foi como tudo começou.
Ele tem que ser silenciado. Convoque todo mundo da nossa folha de pagamento americana! Liquide-o antes que ele interfira com os meus planos novamente!
Ao espanto de Matareisen juntava-se agora um medo terrível. Estava nos seus olhos enquanto continuava a olhar fixamente para Julian Guiderone. - Então era o senhor, nossa arma suprema. O senhor ia se tornar
o presidente dos Estados Unidos!
- Era uma conclusão previamente determinada, nada podia me impedir - exceto o porco do mundo.
- É por isso que o senhor viaja tão sigilosamente, com tantos passaportes. Para toda parte.
- Vou ser direto com você, van der Meer. Temos maneiras diferentes de abordar nossas responsabilidades. Ninguém procura um homem declarado morto há quase trinta anos, mas esse homem, esse mito, permanece
vivo para incentivar suas legiões por toda parte. Ele se ergue do túmulo para impulsioná-las para a frente, um ser humano vivo, um deus na terra que elas podem sentir, tocar e ouvir.
- Sem medo de exposição - disse o holandês, interrompendo, examinando o americano Guiderone sob uma luz subitamente crítica.
- Você, por outro lado - continuou o filho do Shepherd Boy - trabalha nas sombras, nunca é visto, nunca é tocado, nunca é ouvido. Onde estão seus soldados? Você não os conhece, você apenas lhes dá ordens.
- Eu trabalho internamente, não externamente - protestou Matareisen.
- Que diabo isso quer dizer?
- Eu formulo, não me exibo. Não sou uma estrela do cinema, sou o cérebro por trás do estrelismo. Todos sabem disso.
- Por quê? Por causa do dinheiro que você distribui?
- É suficiente. Sem mim eles não são nada.
- Peço-lhe, meu brilhante jovem amigo, que reconsidere. Quando você alimenta um animal excessivamente, ele se torna hostil, é a lei da natureza. Acaricie o animal, ele precisa ser tocado, sentido e ouvir
uma voz.
- Faça as coisas da sua maneira, Sr. Guiderone, eu farei da minha.
- Rezo para que não entremos em rota de colisão, van der Meer.
SETE
A mansão às margens da baía de Chesapeake era uma ex-propriedade de uma das famílias mais ricas da Costa Leste de Maryland. Tinha sido arrendada ao serviço secreto por um dólar anual em troca do arquivamento
pela Receita Federal de um processo de sonegação do imposto de renda. O governo ganhou a batalha e a guerra. Teria ficado muito mais caro se tivesse comprado, alugado, ou mesmo reconstruído uma residência
tão aprazível num cenário privilegiado.
Para além das cavalariças e dos campos cultivados ficavam terras alagadiças inibidoras, mais brejo do que pântano, inerentes aos cursos d’água característicos da região. Em frente à mansão construída antes
da Guerra Civil estendia-se em suave declive um gramado bem cuidado que ia até uma garagem de barcos e um longo cais com um quebra-mar avançando sobre as águas mansas da baía, mansas quando o Atlântico
estava em paz consigo mesmo, perigosas quando ele se enfurecia. Amarrados aos mourões da beira do cais, dois barcos, um a remo e outro a motor, eram usados para alcançar uma embarcação à vela de trinta
e seis pés ancorada a trezentos metros na baía. Na garagem de barcos, fora da vista, havia ainda uma lancha Chris-Craft capaz de desenvolver quarenta nós por hora.
- O barco à vela está ali, caso lhe dê vontade de velejar - dissera o vice-diretor Shields quando fora ao encontro do jato da Marinha que descera no campo de pouso de Glen Bumie, trazendo Pryce, Scofield
e Antonia.
- É uma beleza! - Bray exclamara ao atravessar mais tarde o gramado. - Mas será que seria uma boa ideia sairmos por aí velejando?
- É claro que não, mas todas as propriedades das redondezas têm um ou dois barcos. Pareceria esquisito se não tivéssemos.
- Também pareceria muito estranho se ele nunca levantasse âncora - disse Cameron Pryce.
- Tem razão, nos demos conta disso - concordou seu superior. - Por isso, ele pode ser usado para pequenas saídas em determinadas circunstâncias.
- Quais são elas, Sr. Shields? - perguntou Antonia.
- As patrulhas têm que ser alertadas com uma hora de antecedência e informadas de sua rota com precisão, elas o precederão ao longo da costa. Dois guardas também estarão com vocês, todos usando equipamento
de proteção.
- Você pensa em tudo, Olhos-Apertados.
- Queremos que se sintam confortáveis, seguros, Brandon - disse Shields, franzindo abruptamente o cenho diante do apelido pejorativo usado por Scofield.
- Considerando essa faixa do Okefenokee que cobre o norte quarenta, e o pelotão de gorilas da Agência, incluindo uma unidade de comando do Exército, sem mencionar um sistema de segurança digno do Forte
Knox, quem poderia chegar perto de nós?
- Não confiamos em ninguém.
- E falando de segurança - continuou Scofield - algum progresso em relação ao agente ou agentes traidores a serviço dos Matarese?
- Nenhum. É por isso que a nossa confiança é limitada.
Acomodações, instruções de patrulhamento e comunicações com Langley, tudo foi providenciado por Shields pessoalmente. O que quer que fosse necessário bater à máquina era numerado por cópia e destinatário,
e o papel tratado com mercúrio era incompatível com qualquer sistema de reprodução. As cópias saíam com as linhas retas borradas, e se porventura a lente eletrificada de uma câmera fosse usada, essas mesmas
linhas ficavam amarelas, prova de que uma fotografia tinha sido tirada.
Ademais, todo aquele que recebesse instruções por escrito tinha que trazê-las consigo o tempo todo e estar preparado para apresentá-las instantaneamente. Por outro lado, ninguém podia deixar o complexo
por qualquer motivo, o que explicava em parte por que todos - com exceção do comando - eram solteiros ou sem ligações sentimentais. Finalmente, ficava claro que todas as comunicações telefônicas seriam
monitoradas em fita.
Frank Shields não estava deixando nada ao acaso. No mais alto escalão de segurança da Agência, não tinha sido registrado nenhum progresso quanto ao desmascaramento do agente ou agentes a serviço dos Matarese.
Da mais alta hierarquia aos auxiliares mais subalternos e pessoal de manutenção, todos, indistintamente, eram escrutinizados. Verificações de antecedentes, contas bancárias, estilos de vida, até mesmo
os mais insignificantes hábitos eram estudados. Não haveria êmulos de Aldrich Ames (N. da revisão: segundo a Wikipedia inglesa, agente da CIA que foi condenado por espionar para a Rússia) entre os móveis
e utensílios.
O aspecto frustrante do exercício como um todo era que os poucos selecionados para o trabalho de varredura não tinham ideia do motivo de o estarem fazendo. Não havia Guerra Fria, russos como inimigo central,
organizações terroristas especificamente visadas, pistas concludentes - apenas a ordem de vasculharem tudo. Para quê, pelo amor de Deus? Deem-nos uma pista!
Aberrações! Comportamento estranho, especialmente de parte do pessoal mais qualificado. Passatempos ou hobbies que pareciam estar acima de suas rendas; clubes e associações que não tinham recursos para
frequentar; os carros que possuíam; as joias que suas mulheres ou amantes ostentavam; e como tudo isso era pago? E se havia filhos em colégios particulares caros, quem arcaria com as mensalidades?
- Tenha paciência! - exclamou um pesquisador. - Você está falando da metade dos palhaços dos andares de cima. Alguns enganam suas mulheres, qual é a novidade? Outros acertam discretamente suas posições
com colégios, imóveis e carros, exibindo suas identidades fornecidas por Langley - esses cartões plásticos são persuasores secretos. Há os que bebem muito e, francamente, eu provavelmente também faço o
mesmo, mas não a ponto de nos comprometer. Qual é o produto final, ou o que é ele? Dê-nos um nome, um objetivo, qualquer coisa.
- Não posso fazer isso - o vice-diretor Shields dissera ao chefe da unidade de pesquisa.
- Só lhe digo uma coisa, Frank. Se não fosse você, iria ao DCI e diria que você está maluco.
- Ele provavelmente concordaria com você, mas também lhe diria para obedecer às minhas ordens.
- Espero que você se dê conta de que está tripudiando pelo menos quatrocentas pessoas decentes que não são mais capazes de amarrar os sapatos direito.
- Sinto muito, mas não posso fazer nada.
- É sujeira, Frank.
- Eles também jogam sujo - ele está aqui ou ela está aqui. Alguém tecnologicamente sofisticado com conhecimento direto ou indireto dos materiais mais secretos que possuímos...
- Na verdade, ficamos restritos a talvez cento e cinquenta pessoas - atalhou secamente o pesquisador - se não levar muito a sério a palavra "indireto"... Pelo amor de Deus, foi por aí que começamos! Não
há uma alma num raio de trinta metros do Diretório que não tenhamos radiografado até a medula dos ossos.
- Então, dê um passo mais à frente, tente o MRI, porque eles estão aqui.
A unidade de pesquisa de três homens estava bloqueada; os três discutiram seriamente a sanidade mental do vice-diretor. Tinham visto paranoia antes e as lembranças eram muito vívidas. Havia o caso clássico
e documentado de J. Edgar Hoover no FBI, e mais tarde um diretor da Agência chamado Casey, que estava montando sua própria supra-organização de inteligência não subordinada a quem quer que fosse, muito
menos a Langley, ao presidente ou ao Congresso. Os arquivos oficiais tinham sua cota de paranoia, mas Frank Shields não era paranoico. A primeira noite que passaram na propriedade de Maryland deixou isso
muito claro.
Cameron Pryce virou a cabeça de um lado para outro no travesseiro. Seus olhos se abriram de repente; não tinha certeza do que o despertara. Lembrou-se vagamente de que tinha havido um arranhão, o ruído
de um raspão e depois um breve feixe de luz. O que teria sido, onde teria sido?
As portas envidraçadas que davam para um balcão? Seu quarto ficava no segundo pavimento da mansão de três andares, Scofield e Antonia diretamente acima dele. E ele tinha ouvido alguma coisa; apesar dos
olhos fechados, suas retinas tinham sido feridas pelo clarão de uma luz, o reflexo, talvez, de um holofote de um barco na baía... talvez. E talvez não, mas provavelmente. Esticou os braços acima da cabeça
e bocejou. A grande massa d’água para além das janelas, a luz difusa da lua, encoberta por uma nuvem; tudo lembrava muito as condições em Outer Brass 26 pouco mais de vinte horas antes.
Era engraçado de certa forma, pensou, ajeitando-se no conforto dos travesseiros. Para o homem comum, a vida de um agente secreto era um constante desafio de atos de bravura, de acontecimentos nos quais
ele exibia habilidades que lhe permitiam sobreviver. Era aceito como um fato, mostrado incorretamente nos filmes, na televisão e nos romances. Uma pequena parte era obviamente verdadeira: o indivíduo tinha
que ser treinado para poder dar conta do recado, especialmente os aspectos desagradáveis, mas esses incidentes eram poucos e muito espaçados, e, por conseguinte, quando ocorriam, eram momentos de extrema
tensão e ansiedade. De medo.
Alguém disse certa vez que o objetivo da pesca de mergulho era permanecer vivo. Cam, um mergulhador experiente, riu da observação até o dia em que ele e sua namorada de então viram-se cercados por um cardume
de tubarões cabeça-de-martelo ao largo da Costa Brava.
Não, a vida de um agente secreto era evitar incidentes desse tipo tão frequentemente quanto fosse humanamente possível quando no cumprimento de ordens. E se essas ordens emanassem da imaginação de um controlador
de fonte que tivesse visto muitos filmes ou lido muitos romances, deviam ser desconsideradas. Se os resultados redundassem em alguma coisa vital e os riscos fossem factíveis, tudo bem. Uma tarefa era uma
tarefa como outra qualquer. Mas, como em qualquer outra atividade, o medo do superdesempenho era um fator, neste caso, o medo por sua vida. Cam Payne não estava disposto a morrer para promover a carreira
de algum analista.
Outro arranhão! Mais um raspão... do lado de fora da porta envidraçada. Não estava dormindo, o ruído era real. Mas como era possível? Guardas patrulhavam o terreno, o gramado e o terraço lá embaixo; nada,
ninguém podia se aproximar deles. Pegando sua lanterna e sua automática, ambas ao seu lado em cima da colcha, Pryce levantou-se lentamente e se encaminhou para a porta dupla envidraçada que dava para o
pequeno balcão. Silenciosamente, abriu o lado esquerdo e olhou para baixo.
Jesus Cristo! Não precisou da lanterna para distinguir os dois corpos de bruços, imóveis, no solo, o sangue escuro ainda escorrendo de seus pescoços quase seccionados de seus corpos. Tinham sido brutalmente
decapitados. Pryce ligou sua lanterna e direcionou o feixe de luz para cima.
Uma figura numa roupa preta de látex, molhada, tinha escalado a parede de pedra da mansão, utilizando ventosas de borrachas nas mãos e nos joelhos. O indivíduo alcançara o balcão de Scofield e, ao ver
o feixe de luz da lanterna de Pryce, desfez-se da ventosa da mão direita, enfiou-a no cinto, sacou uma pistola automática e começou a disparar. Cameron recuou, protegendo-se na parede do quarto de dormir
enquanto uma saraivada de balas passou zunindo de raspão, algumas ricocheteando na grade de ferro, desviando-se para dentro do quarto e encravando-se no papel de parede. Pryce esperou; houve uma breve
calmaria. O assassino estava recarregando a arma. Agora. Cam avançou alguns passos no balcão e atirou repetidamente contra o corpo da figura de preto no andar de cima. Em milésimos de segundos ele era
um cadáver, obscenamente grudado na parede pelas ventosas colocadas nos seus joelhos e na sua mão esquerda.
O cadáver foi abaixado, os despojos dos dois guardas foram removidos para um local remoto. Não havia qualquer identidade com o assassino.
- Vamos tirar as impressões digitais dele - disse um patrulheiro num uniforme de combate do Exército. - Descobriremos quem era o filho-da-puta.
- Não se dê ao trabalho, meu jovem - disse Brandon Scofield. - Se examinar os dedos dele, verificará que a pele está lisa. A carne foi queimada, provavelmente com ácido.
- Está brincando!
- De maneira alguma. É como eles operam. Você paga pelo melhor e obtém o melhor, inclusive absoluta falta de provas.
- Mas ainda há o recurso dos dentes...
- Suspeito que haja muitas alterações, como implantes e próteses provisórias, também sem possibilidade de identificação. Tenho certeza de que o legista concordará comigo.
- Concordará com o senhor! Afinal, quem é o senhor? - perguntou o oficial do Exército.
- Alguém que o senhor deveria proteger, coronel. O senhor não fez um trabalho muito bom, não é mesmo?
- Não compreendo, não faz sentido! Como é que esse miserável conseguiu passar por nós?
- Suspeito que teve um treinamento excepcional. A sorte nossa é que o agente de campo Pryce, que também é excepcionalmente treinado, tem o sono leve. Mas, pensando bem, isso faz parte do seu treinamento,
não é verdade?
- Abaixe a bola, Bray - disse Cameron, atravessando o clarão dos refletores e aproximando-se da roda de guardas em torno do cadáver. - Tivemos sorte e esse sujeito afinal de contas não era tão bem treinado
como você pensa. Fez barulho suficiente para acordar um marinheiro bêbado.
- Obrigado, companheiro - disse discretamente um coronel agradecido.
- Esqueça - retribuiu Pryce com igual discrição. - E sua pergunta é muito pertinente. Como foi que ele conseguiu passar por todos vocês, especialmente pelas áreas pantanosas, que eram a única via de penetração?
- Temos patrulhas a cada seis metros - disse um guarda da Agência - com holofotes superpostos, de trinta lúmenes cada um, além de arame farpado em volta de toda a barragem. Na minha opinião, não havia
jeito.
- O único outro método de entrada é pela estrada - disse um oficial do Exército, na verdade uma mulher de trinta e poucos anos, com jeans escuros e uma jaqueta de couro preta. Como os outros usava um boné
de campanha do Exército com uma insígnia bordada na pala; tufos de cabelo claro eram evidentes, puxados para trás sobre as têmporas. - Além do portão principal eletrificado, construímos uma guarita quarenta
e cinco metros à frente do portão, com dois guardas armados e uma barreira de aço.
- O que é que fica do outro lado? - perguntou Cameron.
- O trecho mais intransponível do pântano - ela respondeu. A estrada foi inicialmente construída sobre terra comprimida reforçada por stratums de concreto e vigas de ferro com mais de dois metros de profundidade.
Muito parecido com a pista de um aeroporto.
- Stratums?
- Strata, se preferir. Blocos de cimento de alta densidade assentados de maneira a acompanhar a configuração da estrada.
- Eu sei o que stratums, ou strata, significa, Srta....
- Tenente-coronel Montrose, Sr. Pryce.
- Oh, sabe o meu nome?
- Temos que saber, senhor. Nossa missão é dar segurança ao complexo e proteger... - A mulher parou abruptamente.
- Compreendo - disse Cameron rapidamente, desfazendo o constrangimento.
- A tenente-coronel Montrose detém o segundo posto no comando - atalhou o coronel, um tanto altivamente.
- De uma unidade de comando? - perguntou Pryce ceticamente.
- Táticas de comando fazem parte do nosso treinamento, mas não somos da unidade de comando - disse a tenente-coronel, tirando o boné e sacudindo os cabelos louros. - Somos da FDR.
- O quê?
- Força de Deslocamento Rápido - respondeu Scofield. - Até eu conheço ela, meu rapaz.
- Fico contente com o fato de você ser tão erudito, meu velho. Onde está a Antonia?
- Ela convocou um dos rapazes da Agência e foi caçar.
- O quê! - perguntou Montrose, alarmada.
- Não sei. Minha mulher é uma pessoa muito independente.
- Eu também, Sr. Scofield! São proibidas as buscas individuais a não ser acompanhadas por um de nossos homens!
- Obviamente há exceções, coronel. Minha mulher estudou o terreno minuciosamente. Ela teve de fazer esse tipo de coisa em outras oportunidades.
- Estou a par e admiro os seus antecedentes, senhor, mas sou responsável por todas as escoltas de pessoal.
- Cá pra nós, coronel - interrompeu Cam -, nossos rapazes da Agência podem não usar uniforme mas são muito capazes. Sei porque sou um deles.
- O seu machismo não me interessa, Sr. Pryce. As escoltas militares são prioridade nossa.
- Mocinha determinada, não é mesmo? - murmurou Bray.
- Uma chata, se quiser saber, Sr. Scofield. Também aceito isso.
- Foi você quem disse, minha cara.
- Basta! - exclamou Cameron. - Devemos cooperar e não competir, pelo amor de Deus.
- Estava meramente tentando esclarecer nosso treinamento específico e, não por acaso, nosso poder de fogo.
- Eu não me entenderia a esse respeito, coronel Montrose disse Pryce, fazendo um gesto suave com a cabeça na direção do corpo ensanguentado no chão.
- Continuo não entendendo - exclamou o coronel da FDR. Como foi que ele fez isso?
- Bem, meu filho - disse Scofield - sabemos que ele não tinha medo de alturas, o que geralmente significa que a pessoa tampouco receia as profundidades.
- Que diabo isso quer dizer?
- Não tenho certeza, mas é o que muitos psicólogos afirmam. Pessoas que dão saltos livres nos céus geralmente sentem-se à vontade debaixo d’água. Tem algo a ver com o efeito inverso da força de gravidade.
Li isso em algum lugar.
- Obrigado pela informação, Bray, mas o que é que você está sugerindo?
- Verifiquem o cais. Quem sabe?
- Foi verificado e reverificado constantemente - disse Montrose firmemente. - Foi a nossa primeira consideração. Não só temos patrulhas guardando a área numa faixa de mil metros de ambos os lados do cais,
como temos canhões de laser na parte mais afastada da costa. Ninguém poderia penetrar nesses setores.
- E um assassino presumiria isso? - perguntou Scofield. - Quero dizer, com naturalidade.
- Provavelmente - disse a tenente-coronel.
- Houve qualquer vestígio de invasão nas últimas horas? pressionou Brandon.
- Na verdade, houve, todos negativos - ela respondeu. - Crianças das propriedades vizinhas acampando nos gramados, diversos bêbados saindo de festas, dois pescadores invadindo propriedade privada, todos
interceptados.
- Informou as outras patrulhas sobre a atividade?
- Certamente. Podíamos ter precisado de reforços.
- Então concentrações podem ter sido interrompidas, não é verdade? Sem segundas intenções, ou, talvez, intencionalmente.
- É uma hipótese muito genérica e, francamente, praticamente impossível.
- Praticamente, coronel Montrose? - disse Brandon Scofield. - Não totalmente.
- O que é que está querendo dizer?
- Não estou querendo. Estou apenas procurando raciocinar.
Subitamente, por trás da luz ofuscante dos refletores, veio a voz de Antonia. - Encontramos eles, meu querido, encontramos eles! - As figuras da mulher de Scofield e do seu companheiro da CIA correram
através da luz difusa, impregnada de neblina, em direção ao círculo de guardas. Jogaram no chão os objetos que traziam nas mãos: um pesado cilindro de mergulho, uma máscara de mergulho, uma lanterna de
mergulho, um walkie-talkie à prova d’água e um par de pés de pato. - Estavam jogados na lama às margens do pântano abaixo do portão principal - disse Antonia. Foi a única maneira que ele conseguiu de entrar
aqui.
- Como é que sabe disso? - perguntou Montrose. - Como foi que descobriu isso?
- O cais estava coberto, impenetrável. O pântano estava patrulhado mas havia brechas. Era uma questão apenas de desviar a atenção.
- O quê?
- Exatamente como na ocasião que Taleniekov nos contou, quando ele estava saindo de Sebastopol, não é, amor? - Scofield interrompeu jovialmente.
- Sua memória parece bastante acurada, querido.
- Você não pensou nisso. O que foi que Vasili fez para passar pelos Dardanelos?
- Desviou a atenção do inimigo, naturalmente. Uma embarcação com um casco falso projetada para ser apreendida. As patrulhas soviéticas a encontraram e não entenderam nada porque ela estava vazia!
- Exatamente, Bray. Agora, transfira a operação para terra.
- É claro! Desvie o óbvio para o remoto, depois ative o óbvio numa questão de segundos!
- É o rádio, meu querido.
- Bravo, amor!
- Do que é que estão falando? - inquiriu a tenente-coronel Montrose.
- Sugiro que procure saber quem eram os bêbados que atravessaram a propriedade - disse Cameron Pryce - e provavelmente os dois pescadores também.
- Por quê?
- Porque um deles ou todos eles tinham rádios portáteis sintonizados com aquele que está jogado lá no chão. Ao lado do cadáver do nosso invasor.
O nome dela era Leslie Montrose, tenente-coronel do Exército dos Estados Unidos, filha de um general, diplomada por West Point e, por baixo de uma aparência militar áspera, uma mulher atraente. Ou pelo
menos assim pensou Cameron, enquanto ele, Montrose e seu oficial superior, o coronel Everett Bracket, estavam sentados em volta da mesa da cozinha tomando café e analisando os acontecimentos da noite.
O histórico da tenente-coronel tinha sido fornecido por Bracket, que relutantemente a aceitara como seu segundo oficial na hierarquia do comando.
- Não me julgue mal, Pryce, não é pelo fato de ela ser mulher - Bracket dissera enquanto Montrose estava dando ordens do lado de fora à unidade do Exército. - Gosto dela, que diabo, minha mulher gosta
dela, mas simplesmente acho que mulheres não deviam fazer parte da FDR.
- O que é que sua mulher acha?
- Digamos que ela não concorda inteiramente. E minha filha de dezessete anos é pior. Mas elas não estiveram em combate quando as coisas ficaram pretas. Eu estive e não é lugar para uma mulher! São feitos
prisioneiros, é um aspecto realista da guerra, e não posso deixar de pensar na minha mulher e na minha filha nessas circunstâncias.
- Muitos homens concordam com o senhor, coronel.
- Você não?
- É claro que sim, mas nunca fomos atacados no nosso próprio território, no nosso solo pátrio. Os israelenses foram e há muitas mulheres nas suas tropas - os árabes também foram, e as mulheres fazem parte
de suas forças de combate ativas e da reserva, ainda mais expressivamente nos seus quadros terroristas. Nós dois talvez pensássemos diferente se nossas praias da Califórnia ou de Long Island fossem invadidas.
- Não acredito que eu mudasse de opinião - disse Bracket firmemente.
- Talvez as mulheres mudassem o seu modo de pensar. Afinal, foram as mulheres, as mães, que nos permitiram atravessar a Era Glacial. No reino animal, a fêmea é sempre a mais feroz ao proteger sua cria.
- Você é um cara estranho! Como foi que imaginou tudo isso?
- Antropologia rudimentar, coronel... Me diga uma coisa, a sua tenente-coronel usa o mesmo tipo de boné que o senhor, mas a insígnia é diferente. Por quê?
- Porque permitimos.
- Não compreendo. Um jogador de beisebol Yankee não usa um boné do Red Sox de Boston.
- É do esquadrão do marido dela. Era do esquadrão do marido dela.
- Como é que é?
- O marido dela era piloto de combate da Força Aérea. Foi abatido na batalha Tempestade no Deserto em Basra, durante a guerra do Golfo. Dizem que ele se ejetou, mas nunca mais se ouviu falar nele depois
da cessação das hostilidades - que nunca deveriam ter acontecido.
- Isso foi há muitos anos - disse Pryce meditativamente. - E ela continuou no Exército?
- E ela certamente continuou, e muito agressivamente, devo acrescentar. Minha mulher e eu tentamos persuadi-la a dar baixa, começar uma vida nova, dissemos a ela. Com a formação que tem, há dezenas de
empresas que disputariam os seus serviços. Ela tem formação administrativa, é especialista em informática, todas essas coisas que os comerciais de televisão dizem a propósito do Exército, mais o fato de
ser uma oficial de carreira vertiginosa - era major na ocasião. Mas nada feito, ela nem quis saber.
- Isso me parece estranho - disse Cameron. - Ela poderia provavelmente ganhar muito mais na iniciativa privada.
- Dez, vinte vezes mais. Além disso, estaria trabalhando em ambientes com muitos civis, e provavelmente ricos. Ela poderia se enturmar com eles, entende o que quero dizer?
- Não é difícil de seguir o seu raciocínio. Ela rejeitou a sugestão?
- Sem pestanejar. Talvez por causa do garoto.
- O garoto?
- Ela e Jim tiveram um filho, exatamente oito meses e vinte dias depois de ambos terem se formado em West Point, um fato a que ela sempre se referia às gargalhadas. Ele deve estar com catorze ou quinze
anos agora, e adorava o pai. Nosso palpite é que se ela deixasse o Exército, acharia que o filho poderia ficar ressentido com ela.
- Uma vez que ela está aqui - em regime de quartel -, onde está o garoto?
- Numa dessas escolas preparatórias da Nova Inglaterra. Jim não era pobre e a filha do general tampouco é. E o garoto compreende o sentido da frase, "Sua mãe está numa missão".
- O típico fedelho militar.
- Creio que sim. Meus filhos não suportariam isso, mas suponho que ele aceite a situação.
- O senhor não é um herói morto - disse Pryce. - Portanto, eles não precisam idolatrá-lo.
- Provavelmente você está certo.
- Contudo, ela nunca encontrou alguém nos círculos militares que pudesse achar pelo menos remotamente aceitável? Afinal, ela é uma mulher ainda jovem.
- Pensa que minha mulher e eu não tentamos? Se você visse o número de possíveis candidatos que a fizemos passar em revista... Sempre dava boa-noite, em nossa casa, com um firme e polido aperto de mão,
sem chance de ação para quem quer que fosse... E se por acaso está pensando em tentar, Sr. Agente Secreto, desista. Ela é vacinada contra homens.
- Não me anima nenhum propósito escuso, coronel. Simplesmente quero conhecer as pessoas com quem estou envolvido. Faz parte de minhas atribuições.
- Já lhe foram entregues os dossiês de todas as pessoas deste destacamento, vinte e sete para ser exato.
- Perdoe-me, mas acabo de passar cinco dias no Caribe sem muito sono, e os últimos dois sem nenhum. Ainda não peguei nos seus dossiês.
- Vai achá-los bastante aceitáveis.
- Tenho certeza.
A porta da cozinha foi aberta, interrompendo a conversa de Pryce com o coronel Bracket, e a tenente-coronel Montrose entrou. - Está tudo sob controle e acabei de transferir mais patrulhas para o cais -
ela declarou.
- Por quê? - perguntou Cameron.
- Porque é a sua saída lógica, para o assassino, quero dizer.
- Por que presume isso? - continuou Cameron amável mas firmemente.
- Porque é o seu meio mais lógico de egressão da propriedade.
- Egressão? Quero crer que se refira a fuga.
- Certamente. O pântano estará sob total vigilância.
- Discordo. Você disse que a praia estava guarnecida com holofotes numa extensão de quase mil metros, lateralmente e para dentro dos terrenos da propriedade, cercando-a eletronicamente. Acredita honestamente
que um assassino não saberia disso?
- Aonde quer chegar, Sr. Pryce? - perguntou uma Leslie Montrose zangada. - Que outra saída ele poderia ter?
- O mesmo caminho por onde entrou, coronel. A mulher de Scofield achou o equipamento de mergulho. Sugiro que envie uma patrulha para o lado oeste, para a estrada mais próxima que vá para o norte e para
o sul. Mantenha o veículo o mais silencioso possível e veja quem está esperando lá. Naturalmente, não haverá faróis acesos, portanto mantenha os nossos também apagados.
- Isso me parece ridículo! O assassino não pode fugir. Ele está morto.
- É claro que ele está, coronel Montrose - concordou Cameron. - Mas a menos que tenhamos um traidor aqui com um rádio que não conhecemos...
- Impossível - vociferou Bracket.
- Espero que não tenhamos - continuou Pryce. - E se não tivermos, quem quer que esteja aguardando o nosso assassino não sabe que ele está morto... Vá em frente, coronel Montrose, isto é uma ordem.
Passou-se quase uma hora. Bracket, com a cabeça apoiada nos braços cruzados, dormia na mesa. Mal conseguindo manter-se acordado, Cameron volta e meia ia até a pia da cozinha para molhar o rosto e o pescoço
até ficar com a camisa encharcada. A porta abriu-se devagar e a tenente-coronel Leslie Montrose entrou, tão exausta quanto o homem com quem se defrontou.
- O carro estava lá - ela disse em voz baixa - e, com a graça de Deus, antes não estivesse.
- Por quê? - perguntou um Pryce de pálpebras pesadas, levantando-se.
- Eles mataram um dos meus homens...
- Oh, meu Deus, não! - A voz de Cam despertou Bracket.
- É verdade. Teriam me matado, mas meu cabo me jogou na estrada, expondo-se, e ao fazê-lo foi atingido pelas balas. Era apenas um menino, o soldado mais jovem do destacamento. Ele deu sua vida por mim.
- Sinto muito, sinceramente.
- Quem é essa gente - Sr. Pryce! - Leslie Montrose perguntou, com um laivo de desespero na voz.
- Alguém a chamou de flagelo do mundo - respondeu Cam serenamente, acercando-se dela e passando a mão nos seus ombros com sua vida de enquanto ela chorava.
- Eles têm que ser detidos! - gritou Montrose, com a cabeça abruptamente erguida, ereta, com os olhos furiosos enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.
- Eu sei - disse Pryce, retirando a mão dos ombros da jovem oficial enquanto um coronel Bracket abismado afundava vagarosamente na sua cadeira.
THE INTERNATIONAL HERALD TRIBUNE
(Primeira página)
SURPREENDENTE DECISÃO DE GIGANTES DA AERONÁUTICA
PARIS, 30 SET. - O comunicado conjunto de Londres e de Paris de que a British Aeronauticals e a Compagnie du Ciel, francesa, tinham se fundido numa só corporação emitiu ondas de choque através das indústrias
aeronáuticas da Europa e dos Estados Unidos. A fusão desses dois gigantes com seus recursos aparentemente ilimitados, seus sólidos contratos com empresas privadas e governos, suas subsidiárias de fabricação,
bem como seu acesso a mercados de trabalho economicamente favoráveis, torna essa nova organização a maior e mais poderosa indústria aeronáutica do mundo. Analistas financeiros de ambos os lados do Atlântico
concluíram que a Sky Waverly, o novo nome, será a coluna mestra da indústria aeronáutica. Nas palavras do colunista de negócios do London Times, Clive Lawes, "Serão os tambores ao rufar dos quais as outras
terão que marchar".
O uso do nome Waverly é uma homenagem a Sir David Waverly, fundador da empresa original, a Waverly Industries, absorvida por interesses da Anglo-American há um quarto de século.
Detalhes não confirmados da fusão, incluindo transferências de ações e medidas que o conselho conjunto de diretores possa vir a tomar, estão na página 8. Amalgamações de vastos recursos de mão-de-obra
e a eliminação de duplicidade de pessoal administrativo estão sendo examinadas. Poder-se-ia parafrasear uma citação frequentemente repetida de um filme americano dos anos 50: "Apertem os cintos, vamos
ter muita turbulência pela frente".
OITO
A manhã ia pela metade na Costa Leste de Maryland, o sol abrasador estava na metade do seu ápice do meio-dia, seus raios refulgindo nas águas da baía de Chesapeake. Pryce juntou-se a Scofield e Antonia
na ampla varanda dando para a praia; um farto bufê acompanhava o café da manhã servido aos que estavam instalados na mansão, o resto do pessoal ficara acomodado nas três espaçosas casas de hóspedes.
- Sente-se, Cameron - disse a mulher de Scofield. - Posso servir-lhe um pouco de café?
- Não, obrigado - respondeu Pryce cortesmente, desviando-se para o bufê com as cafeteiras. - Eu mesmo me sirvo.
- Jogada marota - resmungou Bray. - Não a deixe induzir a maus hábitos.
- Você não é real, sabia? - disse Cameron, sua voz denunciando sono ou falta de. - É muito cedo para você ser real.
- Não é cedo coisa nenhuma - protestou Scofield. - São quase dez horas da manhã. Onde estão os outros?
- Sei lá. Pra dizer a verdade, nem sei quem eles são.
- Os dois coronéis, o major e a tenente, o cara da CIA que acompanhou Toni ontem à noite, ou melhor, esta madrugada, e o elemento de ligação de Frank Shields, que olha pra mim como se eu estivesse doente.
- Frank sem dúvida contou-lhe tudo a seu respeito. - Pryce encheu sua xícara de café, voltou para a mesa e sentou-se. Antonia falou.
- O coronel Bracket e a tenente-coronel Montrose estão em aposentos na ala oeste juntamente com Eugene Denny, o homem do vice-diretor Shields. E o meu "cara", como você o chama, querido, está no fim do
nosso corredor... Ele e eu não precisamos andar muito para nos encontrarmos enquanto você puxa um ronco por aí.
- Ah! - atalhou Bray, sorrindo. - Os berços são feitos pra pegarmos o que estiver dentro deles, Cam, quanto mais jovens melhor!
- Por essa você pode ir buscar os seus ovos, meu caro.
- Não quero ovos. Você vive dizendo que eles não me fazem bem.
- Quem foi que preparou tudo isso? - interrompeu Pryce.
- Por quê? Você acha que possa estar envenenado?
- Não especificamente, mas geometricamente com outras linhas de possibilidades.
- Você fala de uma maneira engraçada, meu rapaz.
- Pois eu lhes digo - disse Antonia, novamente com a informação na ponta da língua. - Toda a comida é preparada nas cozinhas de Langley, é hermeticamente fechada e rotulada, e enviada de helicóptero para
cá todas as manhãs e todas as tardes às seis horas.
- Tenho ouvido o barulho - interrompeu Cam - mas pensei que fossem pelotões de vigilância aérea ou superiores em visita de inspeção... Como foi que você descobriu, Toni? Sobre a comida, onde o pessoal
está alojado...
- Faço perguntas.
- Você é muito boa nessa área.
- Foi Bray quem me ensinou. Quando estiver numa situação aparentemente passiva, um refúgio ou um santuário, você deve sempre fazer perguntas - polida e inocentemente, como se estivesse realmente curioso.
Ele diz que as mulheres são melhores do que os homens nesse particular, por isso vou perguntando.
- Ele é um amor. Isso também quer dizer que você se expõe mais a levar um tiro.
Scofield deu uma risadinha. - Você tem que pensar antes de abrir a matraca - ele disse, ficando sério abruptamente. Ouvimos falar do cabo da FDR que levou a pior ontem à noite. Miseráveis!
- De quem você ouviu?
- Do coronel Bracket. Ele veio dar a notícia ao Denny e houve uma certa confusão... acusações, se você quer saber. Toni e eu nos levantamos e participamos do bate-boca.
- Que acusações?
- Disparates.
- Não, não foi bem assim.
- Deixa pra lá, Cam - disse Antonia. - O Sr. Denny "saiu da linha", como vocês americanos dizem.
- O que foi que ele disse?
- Ele queria saber com autorização de quem Montrose tinha se afastado do complexo com um veículo - respondeu Scofield. Bracket disse a ele que, como segundo oficial em comando da unidade da FDR, ela não
precisava da autorização de ninguém.
- Essencialmente, ele estava dizendo que ela estava autorizada por ele - acrescentou a mulher de Bray.
- Isso não é verdade - disse Pryce. - Eu dei ordens a ela coma minha autoridade de um agente de campo experiente que tinha feito uma análise lógica do terreno. Lamentavelmente, eu estava certo... O que
é que Denny estava fazendo! Quem ele pensa que é?
- Sou o oficial de ligação do vice-diretor Shields neste complexo, e na sua ausência tenho completa responsabilidade sobre tudo o que aconteça aqui. - As palavras vieram de uma figura na soleira da porta,
um homem magro de estatura média, em avançado processo de calvície, um rosto agradável, jovial, que parecia contradizer sua perda de cabelo, e uma voz que podia ser descrita como suavemente monocórdia.
- Dessa responsabilidade decorre a autoridade.
- Você não saiu apenas da linha, Denny - disse Cameron, levantando-se e confrontando-se com o oficial de ligação. - Você perdeu completamente a linha. Ouça o que vou lhe dizer, seu pavio curto. Não o ouvi
fazer qualquer pronunciamento como autoridade ontem à noite quando um assassino morto despencou da parede ao lado de dois guardas cujos pescoços ele cortara de orelha a orelha. Nem me lembro de tê-lo visto
por lá!
- Estive lá, Sr. Pryce, embora de passagem; não havia nada que eu pudesse fazer em face das circunstâncias. Julguei que era necessário entrar em contato com o vice-diretor Shields imediatamente. Ficamos
muito tempo no telefone, examinando todas as possíveis falhas de segurança, inclusive as tripulações dos helicópteros... Ele estará aqui por volta de meio-dia.
- Checando os tripulantes dos helicópteros? - perguntou Brandon.
- Sim, senhor.
- Com que autoridade, ou baseado em que experiência, questiona uma decisão da FDR ou minha decisão?
- Acho que isso é óbvio. Um homem tinha sido morto.
- Acontece, Sr. Denny. Eu detesto, o senhor detesta, todos nós detestamos. Mas acontece.
- Escute aqui, Pryce, talvez eu tenha passado da conta...
- Não tenha a menor dúvida! - atalhou Cameron.
- Mas estou aqui para supervisionar as coisas, fazer com que tudo corra sem problemas, e ontem foi a primeira noite. Pareço um idiota, um incompetente.
- Você não podia impedir o que aconteceu, e creio que sabe disso - disse Pryce, acalmando-se e fazendo um gesto para que Denny se juntasse a eles na mesa.
- Talvez não os dois guardas e a tentativa de assassinato, mas provavelmente teria advertido a todos para não se afastarem do complexo com o objetivo explicado. Se tivesse sabido a respeito...
- Teria prevenido? - A hostilidade de Cam voltou. - Por quê?
- Porque havia uma maneira melhor, admitindo-se que alguém estava efetivamente esperando pelo assassino na estrada velha de Chesapeake.
- Se, pelo amor de Deus! Você quer avisar a família do rapaz morto?
- Eu estava usando uma pré-hipotética...
- Ele fala ainda mais engraçado do que você - interrompeu Scofield.
- O Shields também fala gozado, mas eu convivo com esses palhaços há bastante tempo para compreender - respondeu Cam. - O que é que teria feito, Sr. Analista... você é um analista, certo?
- Sou, e teria entrado em contato com nosso pessoal armado num veículo camuflado num campo ao norte da alameda de entrada. Eles podiam ter desfechado um assalto externo.
- Que pessoal? - Pryce, ainda de pé, agora gritava. - Que veículo?
- Eles estão lá. Em turnos de oito horas.
- Por que diabo não tínhamos conhecimento da existência deles? E por que não fomos informados?
- Pelo amor de Deus, não tive oportunidade de tocar no assunto! Era a primeira noite, o que poderia acontecer na primeira noite?...
- É aí que a atenção tem que ser redobrada - respondeu Scofield, sua voz subitamente assumindo um tom de comando. Mas a culpa não é sua, é do Shields, e não é a primeira vez que ele pisa na bola. As instruções
iniciais para o campo têm que informar todas as opções de que dispomos, isso é primário. Nada de surpresas, de alternativas que desconhecemos, de omissões inconcebíveis, percebeu, rapaz?
- Pode haver variações nesse cenário, senhor.
- Me dê uma, seu filho-da-puta!
- Por favor, Bray - interrompeu sua mulher, com a mão no braço do marido.
- Não, quero ouvir a resposta dele! Vamos, analista!
- Acho que o senhor sabe, Sr. Scofield - disse Denny, com sua voz suave, monocórdia. - O senhor conhece o vice-diretor Shields há muito tempo.
- O Fator-L, estou certo?
- Está - respondeu o oficial de ligação, quase inaudível.
- O que é isso, em nome de Deus? - perguntou Pryce, estupefato.
- Você acaba de usar apropriadamente o nome do Senhor disse Bray. - O Fator-L é a Sagrada Escritura, segundo o São Shields, o imaculado sábio da Bíblia. O L significa Levítico, como está no Pentateuco,
o terceiro livro do Antigo Testamento. Até aí pelo menos eu me lembro.
- Do que é que você está falando, meu querido?
- Shields sempre achou que as respostas para a maioria dos problemas ou enigmas humanos encontram-se na Bíblia. Não necessariamente os aspectos religiosos, mas as interpretações dos relatos, tanto mito
quanto história.
- Frank é um fanático religioso? - Cameron estava abismado.
- Não sei, terá que perguntar a ele. Só sei lhe dizer que ele conhece a Bíblia pra valer.
- Esse Fator-L, esse Levítico, o que é isso? - insistiu Pryce.
- Em poucas palavras, não confie no sumo sacerdote. Ele pode ser um traidor.
- Como é que é? - Cameron sentou-se devagar, olhando fixamente para Scofield como se o agente secreto aposentado fosse um lunático.
- Não tenho certeza se compreendi tudo direito, mas no Levítico o sumo sacerdócio era restrito aos filhos de Levi e Aarão, creio eu. Eles eram os dirigentes do templo e davam ordens para todo mundo. Então,
alguns irmãos ambiciosos que não pertenciam a essa fraternidade exclusiva forjaram documentos genealógicos e se infiltraram no clube. Como resultado, tinham uma voz política real sobre a vox populi.
- Você está maluco? - Pryce, com os olhos fora das órbitas, não continha sua frustração. - Isso é uma baboseira bíblica!
- Não necessariamente - interrompeu Eugene Denny. - O Sr. Scofield citou essencialmente os fatos básicos, embora fora do contexto.
- Esqueça a redundância - disse Pryce. - Do que é que ele está falando?
- No Levítico, alguns varões levitas, os filhos de Levi, mais tarde, ao se expandirem, os herdeiros de Aarão, tornaram-se sumos sacerdotes do Templo de Jerusalém, a sede do poder. Como em todos os centros
de poder semelhantes, havia corrupção - mínima a julgar pelos padrões posteriores, devo acrescentar mas o fato é que havia corrupção praticada por aqueles que queriam modificar o sistema rígido - frequentemente
justificado, também devo acrescentar. Por fim, de acordo com a lenda aludida no Deuteronômio, um fanático tornou-se líder do Templo de Jerusalém até ser denunciado como traidor e falso filho de Aarão.
- Obrigado pela lição, pastor - disse Cameron, suas palavras candentes - mas que diabo isso tudo quer dizer?
- Quer dizer - respondeu Scofield, mal contendo sua fúria que o vice-diretor Shields não tem certeza se pode confiar em mim.
- O quê? - Pryce voltou-se ameaçador para o oficial de ligação de Shields.
- Quer saber, meu jovem? - continuou Bray - Na imaginação bíblica de Olhos-Apertados este complexo é o Templo de Chesapeake e, ao contrário do que os babacas de vocês dois possam pensar, nem ele nem você
têm a autoridade de uma mosca morta sobre esta operação. Somente eu tenho. Este foi o meu acordo com Shields. Verifique, Sr. Denny.
- Estou a par do seu acordo, Sr. Scofield, e não me cabe de modo algum interferir.
- É claro que não. Você é o moço de recados de Frankie, seu lacaio e aposto meu colhão esquerdo como você está em contato permanente com seu "pessoal armado camuflado", admitindo a hipótese de que eu possa
resolver dar o fora e explodir esta merda com minha mulher.
- O que é que você está dizendo, Bray? - pressionou Antonia.
- E aposto meu colhão direito - continuou Scofield sem parar - que o portão principal tem instruções para entrar imediatamente em contato com você caso eu passe por ele, o que tenho todo o direito de fazer
porque sou a autoridade absoluta aqui.
- Você não está falando coisa com coisa, meu querido....
- Como é que não estou! Essa conversa fiada de Fator-L, Levítico, e não sei mais o quê. Eu sou o sumo sacerdote do templo que pode ser um traidor. Não é assim, analista?
- Havia outras considerações - respondeu Denny tranquilamente.
- Se havia, por que nós, por que eu, não fui informado sobre a sua unidade lá fora? É prioritário que eu seja informado desde o início caso seja preciso tomar decisões que eu não permitirei que você tome!...
Oh, não, esse é um dos truques do Olhos-Apertados, maldição!
- Havia a possibilidade de um súbito assalto maciço ao complexo...
- E dois ou três "guardas armados" iam impedir isso? - interrompeu um Beowulf Agate furioso. - Pelo amor de Deus, quem é que você pensa que eu sou?
- Não posso responder isso, senhor. Cumpro ordens simplesmente.
- Quer saber de uma coisa, filho, esta é a segunda vez que ouço isso nas últimas trinta horas, e vou-lhe dizer o que disse ao filho-da-puta que virou antepasto para os tubarões. Não engulo essa!
- Devagar, Bray - disse Pryce. - Talvez Frank tenha razão, sobre a segunda parte. Sobre o assalto, quero dizer.
- Não cola, garoto. Se ele realmente pensasse assim, haveria uma pequena brigada lá fora e eu seria o primeiro a saber. Não, Frank estava esperando que eu desse um passo imprevisível. Ele é de fato um
gênio fodido!
- Quem é o quê? - perguntou Cameron em voz alta.
- Realmente não compreendo, meu querido...
- Nesta era de alta tecnologia não há como a gente se comunicar com alguém aqui por telégrafo ou rádio, muito menos por telefone, porque todo mundo tem que passar por um detector. A única maneira é o contato
pessoal, o contato secreto. Depois desse tumulto com o sacana que matou os guardas e tentou me apagar - obrigado por tê-lo partido em dois, Cam - cheguei à mesma conclusão que você. Estava esperando que
Toni caísse no sono e ia sair à minha maneira, que não seria pelo portão ou num veículo fodido. Seria muito mais bem-sucedido.
- Ele fez isso antes, cavalheiros - disse Antonia, agora apertando o braço do marido. - Na Europa, quando estávamos correndo para salvar nossas vidas, muitas vezes acordava de manhã e encontrava Brandon
e Taleniekov tomando café. O problema que nos tinha deixado aterrorizados - o homem ou os homens que nos tinham tido sob a mira de suas armas - não era mais uma ameaça. Isso era tudo o que eles diziam,
nada mais.
- Você equaciona esse tipo de coisa com o que aconteceu ontem à noite? - Pryce perguntou a Scofield.
- Naturalmente, de certo modo - concordou o agente aposentado. - Só que Frank interpretou meus objetivos às avessas. Eu não ia fazer nenhum acordo secreto com os Matarese, que, como tinha dito a ele, tinham
me oferecido milhões para eu desaparecer, eu ia matar os filhos-da-puta. Ou, se tivesse paciência, capturá-los vivos.
- Então por que você acabou de chamá-lo de gênio? - perguntou um Cameron perplexo.
- Porque, em circunstâncias semelhantes, eu faria uma coisa ou outra. Frank sempre cobre suas bases.
- Mas considerá-lo um vira-casaca, um traidor - exclamou Pryce. - Isso é o bastante para você querer colocá-lo num caixão!
- Não, nunca - disse Scofield. - Quando ele chegar aqui ao meio-dia, certamente o repreenderei, nada mais do que isso.
- Por que não?
- Deixe-me levá-lo a trinta anos atrás. Eu era um agente secreto em Praga e o meu controlador era um homem que eu considerava realmente brilhante, o melhor, o mais ardiloso contato com Moscou que já tínhamos
tido do nosso lado. Fui designado para encontrá-lo às margens do rio Moldau uma certa noite. Minutos antes de deixar meu apartamento, chegou uma mensagem urgente de Washington, de Frank Shields. Decifrei-a,
e ela dizia: "Mande alguém no seu lugar, não um dos nossos, algum traficante de drogas. Mantenha-se afastado, na periferia"... O traficante de cocaína foi varado de balas que se destinavam a mim. Frank
Shields tinha preparado uma armadilha para o meu controlador que o desmascarou. Meu brilhante contato era um açougueiro da KGB.
- E agora ele está armando a mesma armadilha para você disse Pryce. - Você pode aceitar uma coisa dessas?
- Por que não? Todas as bases dele estão cobertas, e ele podia ter razão. Tudo o que recebi em troca dos meus anos de serviço ao meu governo foi uma gratificação que me permitiu comprar um barco e uma
pensão. A oferta dos Matarese podia ter me tentado.
- Mas ele conhece você!
- Ninguém conhece ninguém a não ser a si mesmo, Cam. Podemos penetrar debaixo da pele, talvez, mas não podemos penetrar na mente, ou nas múltiplas alternativas que ela possa escolher. Como é que você sabe
quem eu sou realmente, ou quem é a Toni?
- Pelo amor de Deus, conversamos durante horas a fio, sobre tantas coisas. Eu confio em você!
- Você é jovem, meu novo amigo. Mas tenha cuidado, a confiança é construída sobre o otimismo, oferece uma série de nuanças. Você não pode conferir-lhe três dimensões, por mais que se empenhe.
- Você tem que começar em algum lugar - disse Pryce, com os olhos grudados nos de Scofield. - Esse disparate de Levítico, esse tal de sumo sacerdote que pode ser um traidor, o que é que essa maluquice
quer provar?
- Bem-vindo ao nosso mundo, Cameron. Você podia pensar que estava lá, mas acaba de iniciar sua descida ao nosso inferno. Não é um inferno que o nosso prístino Sr. Denny conheça, porque ele, como Frank,
ficam sentados atrás de suas mesas com todos esses computadores e tomam decisões abstratas. As vezes estão certos, quase sempre estão errados, mas o que os seus computadores não conseguem mostrar são confrontações
humanas. No fim das contas, máquinas não são capazes de falar com máquinas.
- Acredito que já tenhamos falado sobre isso - disse Pryce. Estou me referindo a ontem à noite, uma noite que nunca esquecerei. Onde é que estamos?
- Bem, acho que a primeira lição é que não é algo linear, nada é uma linha reta. A segunda é que tem que ser geométrica, as linhas explodem em todas as direções e você tem que reduzir as possibilidades.
- Estou falando sobre ontem à noite, esta madrugada!
- Oh, sobre isso. Não posso lhe dizer nada. Frank estará aqui dentro de uma hora mais ou menos e então perguntaremos a ele.
- Posso lhes adiantar - disse Denny. - O vice-diretor Shields está transferindo secretamente todo o complexo para uma propriedade na Carolina do Norte.
- Isso é uma coisa que ele não fará! - exclamou Scofield.
- Mas, senhor, fomos descobertos aqui...
- Você está absolutamente certo, e gostaria que pudéssemos anunciar isso em todos os jornais... não, provavelmente seria besteira, deixe que permaneça um assunto sigiloso. Todos os que não precisavam saber
acabarão descobrindo.
- É verdade, senhor, o diretor insiste para que comecemos a providenciar a mudança...
- Então mande o diretor falar comigo e eu desautorizarei suas ordens! O que os idiotas de vocês não sabem é que as abelhas voam para o pote de mel. É uma velha expressão corsa.
THE WALL STREET JOURNAL
(Primeira página)
TRÊS MAIORES BANCOS MUNDIAIS
FORMAM UMA ALIANÇA
NOVA YORK, 1º OUT. - Como prova adicional da transnacionalização das instituições financeiras, três dos maiores bancos mundiais fundiram-se para todos os efeitos. Trata-se dos igualmente conhecidos Universal
Merchants, de Nova York; Bank of the Pacific, de Los Angeles; e Banco Ibérico, de Madri, a mais poderosa instituição da Espanha e Portugal com vastos interesses no Mediterrâneo.
Usando uma complexa agenda de leis internacionais, eles estruturaram uma ordem lateral de responsabilidades para maximizar a produtividade nos seus respectivos centros de influência. As mais recentes tecnologias
que permitem comunicações globais instantâneas, destacando-se entre elas as transações financeiras, criarão um sistema bancário completamente novo, "factualmente quase uma Renascença", de acordo com Benjamin
Wahlburg, conhecido banqueiro, respeitado estadista do mundo financeiro e porta-voz do novo conglomerado que passará a se chamar Universal Pacific Ibéria. "Estamos nos aproximando de uma era de uma sociedade
sem dinheiro em espécie, economizando bilhões e bilhões no mundo inteiro", continuou o Sr. Wahlburg, "quando bens corporativos e individuais serão confirmados por cartões magnéticos, com seus números alterados
através de milhões de ondas aéreas, e compras e débitos pagos eletronicamente. Nós do Universal Pacific Ibéria pretendemos estar na vanguarda dessa empolgante Renascença econômica e estamos investindo
recursos consideráveis com esse propósito".
Estima-se que com as milhares de filiais pertencentes ao UPI, o novo conglomerado será uma das maiores instituições de crédito nos Estados Unidos, Orla do Pacífico, Europa Meridional e o Mediterrâneo,
de Gibraltar a Istambul.
O que preocupa alguns observadores do mercado internacional é a questão do controle. Ao ser procurado pelo telefone, o Sr. Wahlburg declarou: "O controle será intrínseco à evolução. Nenhum economista ou
banqueiro responsável poderia pensar de outra forma".
O helicóptero sobrevoando o complexo de Chesapeake manobrou para pousar. O vice-diretor Frank Shields, com o cenho fechado para repelir a luz do sol, emergiu da porta metálica reluzente para ser verbalmente
agredido por Brandon Scofield, tendo Cameron Pryce ao seu lado. Felizmente, grande parte da gritaria do ex-agente secreto foi abafada pelo barulho das hélices, e quando os dois homens se afastaram da zoeira
para se juntarem a Pryce, Scofield estava parcialmente sem fôlego.
- Uma vez que você desconfiou do que eu estava fazendo, por que se surpreendeu e ainda mais se irritou? - perguntou o vice-diretor recebido agressivamente.
- Essa é a pergunta mais imbecil que você já fez, Frank! rugiu Scofield.
- Por quê?
- Pare de se repetir!
- Calma lá, é você quem tem esse hábito, Brandon, eu não. E veja as coisas dessa maneira. Como você obviamente compreendeu que eu poderia empregar o Fator-L e você foi aprovado - você está limpo e eu não
tenho que imaginar se perdi alguma coisa.
- Foi a oferta que os Matarese me fizeram, não foi? Os milhões e a fazenda em algum lugar...
- Foi uma hipótese que me ocorreu - interrompeu Shields - que chegou a colar momentaneamente. Você mesmo não arrancou dinheiro de um presidente dos Estados Unidos há vinte e cinco anos? A resposta é sim.
- Como é que você sabe que eu não aceitei?
- Porque você nunca teria tocado no assunto com Denny, principalmente com tanta especificidade.
- Você é impossível!
- Talvez, mas lembre-se de Praga. A propósito, onde está o Denny?
- Dei ordens para que ele se mantivesse afastado até que eu tivesse acabado com você, uma vez que, conforme combinamos, estou dirigindo esta operação. Tenho essa autoridade, ou não tenho?
- Acabou o que queria comigo, Brandon? - perguntou o vice-diretor sem responder-lhe a pergunta.
- Com os diabos, é claro que não. Essa sua ideia de fechar este lugar e nos mudarmos para a Carolina do Norte está totalmente fora de cogitação! Vamos ficar aqui mesmo.
- Você foi localizado. Os Matarese sabem onde estamos, onde você está. Sabem que você sobreviveu à explosão da traineira, e, ao voar para cá para se juntar a nós, você lançou o desafio. Eles não se deterão
enquanto não o matarem.
- Me diga uma coisa, Olhos-Apertados, por que é que eles querem me matar?
- Pela mesma razão pela qual nós queríamos encontrá-lo, pelo que possa haver ou não nessa sua cabeça de concreto. Anos atrás, ao se desligar, o seu interrogatório não foi muito esclarecedor, mas repetindo
suas próprias palavras, você sabe mais sobre os Matarese do que qualquer um de nós.
- O que é que me impede de lhe dar tudo o que sei por escrito?
- Nada, mas há leis e estamos lidando com interesses poderosos, gente presumivelmente muito rica e influente dentro e fora do governo.
- E daí?
- Daí que declarações datilografadas - depoimentos - de um agente secreto morto, desacreditado, com uma ficha de flagrante abuso de conduta, incluindo informação falsa, desinformação e mentiras consistentes
aos seus superiores, não é o tipo de dossiê que se apresenta aos tribunais, muito menos a uma comissão parlamentar de inquérito.
- Rasgue o dossiê, queime-o. Isso é história antiga e não tem nada a ver com as circunstâncias atuais.
- Você esteve afastado durante muito tempo, Beowulf Agate. Estamos na década de 1990. Os arquivos não são mais guardados em pastas de papelão, são computadorizados, e qualquer chefe de departamento com
as senhas apropriadas em toda a comunidade de inteligência pode acessá-los. E esteja certo de que alguns já o fizeram.
- Você está dizendo que o meu cadáver regelado não pode ser interrogado, e tudo o que resta é um registro de ações necessárias que empreendi e que me rotulam como um porra-louca mentiroso.
- É precisamente isso o que estou dizendo. Você seria carne podre póstuma para os carniceiros dos Matarese. - Shields fez uma pausa, e depois fez um gesto para que Scofield e Pryce se afastassem com ele
do agora silencioso helicóptero e de sua ruidosa tripulação. - Me ouça, Brandon - ele continuou longe do alcance dos ouvidos da tripulação - sei que Cameron o submeteu a um interrogatório puxado, e eu
farei a mesma coisa. Mas antes de irmos mais adiante, preciso abrir o jogo com você. Não pode haver segredos entre nós.
- Olhos-Apertados tem uma confissão a fazer ao coitadinho de mim! - disse Bray zombeteiramente. - Não pensei que nós, dinossauros pré-históricos, tivéssemos segredos que valessem a pena discutir.
- Estou falando sério, Brandon. Explicarei até onde cheguei, acho que cheguei, e isso poderá até aliviá-lo de certo modo, caso você tenha qualquer escrúpulo a respeito.
- Mal posso esperar!
- Quando você nos deixou há tantos anos, muitas perguntas ficaram sem resposta, coisas que você simplesmente se recusou a esclarecer...
- Tinha uma razão muito boa para isso - atalhou Scofield tranquilamente mas com aspereza. - Aqueles palhaços da comissão de desligamento queriam a todo custo atribuir toda a culpa a Taleniekov. Repetiam
o tempo todo as palavras "inimigo" e "comunista miserável" a ponto de ter tido vontade de acabar coma raça deles. Queriam pintar Vasili como o próprio demônio, a imagem do império do mal, quando nada podia
estar mais longe da verdade.
- Só os cabeças-quentes, Brandon, só os irascíveis. O resto de nós não disse essas coisas nem acreditou neles.
- Então os mais ponderados de vocês deviam ter apagado o incêndio! No entanto, quando disse que Taleniekov tivera que fugir de Moscou porque pesava sobre ele uma sentença de morte, continuaram falando
em "armação" e "agente duplo" e outros clichês imbecis sobre os quais nada sabiam.
- Mas você sabia que se dissesse toda a verdade, Taleniekov entraria para a história como o louco que levou as superpotências à beira da guerra nuclear.
- Não tenho certeza do que você está querendo dizer, Frank Scofield disse cautelosamente.
- É claro que tem. Você não podia fazer nenhuma declaração oficial de que os Estados Unidos da América estavam prestes a eleger um presidente que era o herdeiro da mais nefanda organização que o mundo
já conhecera afora os nazistas. Só que não se tratava de um Hitler comunista, mas sim de um homem elusivo de quem só se ouvia sussurrar nos círculos geopolíticos. O filho de Shepherd Boy.
- Com mil demônios - exclamou Brandon, voltando-se para um Pryce atônito, que sacudiu a cabeça. - Como é que você soube? - ele disse, dirigindo-se a Schields. - Nunca mencionei o filho de Shepherd Boy.
Ele estava morto, todo o bando desgraçado está morto! E tem razão, um dos motivos por que me mantive calado foi Taleniekov, mas havia outro, quer você acredite, quer não. Nosso país, todo nosso sistema
de governo, seria alvo do escárnio de todo o mundo civilizado. Como foi que você descobriu?
- O Fator Levítico, meu velho amigo. Lembra-se do que lhe disse uma vez sobre o Fator-L?
- Lembro-me. Você disse: "Procure o sumo sacerdote e verifique se por baixo de seus paramentos ele não é um traidor". Contudo, como foi que você imaginou?
- Continuaremos essa discussão dentro d’água. Alguém aqui também está dando uma de traidor e não quero correr riscos com esses dispositivos de escuta eletrônica... Aquela unidade que você viu no helicóptero
é uma equipe de especialistas antiterroristas treinados com instrumentos capazes de detectar qualquer esquema de escuta por mais bem disfarçado que esteja.
- Tenho que reconhecer, Olhos-Apertados. Depois de todos esses anos, você aprendeu uns truques e tanto.
- Seu reconhecimento me deixa profundamente sensibilizado.
THE ALBANY TIMES-UNION
(Seção de Negócios, pág. 2)
IMINENTE A CONSOLIDAÇÃO DE
SERVIÇOS PÚBLICOS
ALBANY, 2 OUT. - Devido à crescente demanda de energia e os custos envolvidos concomitantemente acelerados, empresas de prestação de serviços públicos de Toronto e Miami estão engajadas em sérias discussões
sobre a consolidação de suas operações. Comentários sobre essas primeiras conferências começaram a circular quando a Standard Light and Power de Boston foi objeto do que se poderia chamar de uma revolta
dos consumidores contra os custos explosivos da eletricidade passados às municipalidades, corporações e famílias individuais. Polos industriais, assim como numerosos centros de pesquisas, ameaçaram deixar
o estado em um mercado imobiliário já em recessão. Prevê-se que as universidades possam seguir a tendência, o conjunto deixando Massachusets um estado empobrecido e Boston, um gueto deserto.
Quando interrogado, Jamieson Fowler, diretor-executivo da Standard Light and Power, foi sucinto: "Energia custa dinheiro e a situação está piorando em vez de melhorar. Haverá uma solução? Certamente, e
é óbvia: nuclear. Mas ninguém quer a instalação de usinas por perto, portanto onde é que ficamos? Não acredito que haja estados com desertos suficientemente grandes para acomodá-las. Agora, se pudéssemos
reunir a vasta rede de grades numa só autoridade, num consórcio, os custos despencariam como resultado somente da eliminação da duplicação".
Bruce Ebersole, presidente da Southern Utilities, ratificou as declarações do Sr. Fowler. "Nossos acionistas ficariam felizes, e na maioria são pessoas idosas - nossas queridas vovós e os não menos queridos
vovôs o público seria melhor servido porque atualizaríamos o equipamento em toda parte, e poderíamos ter dias mais luminosos - gerados por essas máquinas enormes combinadas até a lâmpada elétrica.
Sobre as dezenas de milhares de empregos que seriam perdidos, o Sr. Ebersole declarou: "Reciclaremos os recicláveis".
A figura de pé no canto escuro da garagem de barcos deu uma olhada para dentro através da porta aberta; embaixo a água do mar batia contra as paredes do berço da Chris-Craft. A lancha avançava lentamente
em direção ao centro da baía, seus três ocupantes conversando animadamente, Scofield no leme, voltando-se constantemente para os outros e falando.
A tenente-coronel Leslie Montrose retirou um pequeno telefone portátil do bolso, teclou uma série de treze algarismos e encostou o aparelho no seu ouvido direito.
- Círculo Vecchio - disse a voz masculina do outro lado da linha. - Prossiga.
- Três figuras importantes em conferência fora do alcance da vigilância. Não faça nada enquanto a situação não ficar esclarecida.
- Obrigado. A informação será encaminhada ao nosso pessoal em Londres. A propósito, seu novo equipamento será despachado pelo voo das seis da tarde. Sua transferência está autorizada. Um pacote do seu
filho.
NOVE
O motor da Chris-Craft foi desligado e a lancha ficou balouçando embalada pelas águas tranquilas da baía de Chesapeake.
- Continuo não entendendo, Frank - disse Scofield no timão, virando-se para Shields. - Nunca mencionei o Shepherd Boy ou o filho do Shepherd Boy no interrogatório de desligamento. Eles estavam mortos,
todo o maldito bando está morto!
- Consta das anotações que encontramos depois do massacre na propriedade conhecida como Appleton Hall nas imediações de Boston. Os fragmentos estavam muito queimados, mas foram examinados no microscópio
em nossos laboratórios e o nome, ou o nome parcial, de "Shepherd Boy" volta e meia aparecia. Então o pessoal da Interpol na Córsega revelou o nome de Guiderone. Presumiu-se que ele fosse o Shepherd Boy.
- E aonde isso o levou?
- Me levou a uma busca lógica. Num dos fragmentos, quase ilegível, estava a frase, "ele é o filho", repetida duas vezes em dois memos separados. E no segundo, "temos que obedecer"… Você está me acompanhando,
Brandon?
- Estou - respondeu Scofield calmamente. - Foi a pista que Taleniekov e eu seguimos. Mas como você?
- Durante meses, anos, ninguém conseguiu matar a charada. Finalmente eu consegui.
- Mas como? Pelo amor de Deus!
- O Fator Levítico novamente, o sumo sacerdote era um traidor.
- Como é que é?
- Entre os mortos naquela tarde encontrava-se o convidado de honra da reunião em Appleton Hall. Ele era um legítimo descendente da dinastia Appleton, trazido de volta para ser aplaudido pelos novos proprietários
da mansão.
- Então você sabia quem eles eram - disse Scofield fazendo uma afirmação.
- Estava chegando perto. O convidado de honra era o senador Joshua Appleton o Quarto, que se previa seria o próximo presidente dos Estados Unidos. Ninguém tinha dúvida, eram favas contadas. Ele era a figura
mais popular no cenário político. Estava prestes a se tornar o líder mais poderoso do mundo livre.
- E aí?
- Na realidade, o ilustre senador não era Appleton; há anos que era outra pessoa. Era Julian Guiderone, filho do Shepherd Boy, ungido por Guillaume, o barão de Matarese.
- Eu sabia, mas como foi que você descobriu?
- Graças a você, Brandon. Recapitulemos passo a passo, os mesmos que acredito que você tenha dado.
- Estou fascinado - interrompeu Scofield. - Gostaria que Toni estivesse aqui.
- Onde é que ela está? - perguntou Pryce, debruçando-se sobre a amurada oscilante.
- Fazendo perguntas - respondeu Bray, sem maiores rodeios. - Continue, Frank, que tipo de pista você seguiu?
- Primeiro, conhecendo você, imaginei que tivesse forjado alguma identidade que pudesse levá-lo aonde queria ir, isso era básico. Como vim a saber, estava à altura de seus padrões criativos: sua identidade
proclamava oficialmente que você era um "assessor" do senador Appleton. Depois, como você estava no escuro a respeito de muitas coisas, foi procurar a velha mãe de Appleton, perturbada mentalmente, em
Louisburg Square.
- Ela era alcoólatra há mais de uma década - acrescentou Scofield.
- É, eu sei - disse Shields. - Continuava nas mesmas condições quando fui vê-la vinte e um meses depois.
- Levou tanto tempo?
- Você não ajudou em nada... Pra começar, ela não se lembrava de você, mas quando eu já ia embora, dei sorte. Inesperadamente, no meio do seu torpor etílico, ela disse com uma vozinha sinistra: "Pelo menos
o senhor não insistiu para ver o antigo quarto de Josh". Meu primeiro bingo, porque sabia que o outro visitante só podia ser você.
- Então você fez a mesma coisa.
- Certamente, o que me levou ao meu segundo bingo. Especialmente quando ela disse que não tinha estado lá desde que Joshua tinha permitido há muito tempo que meu predecessor visitasse seus aposentos.
- Pensei que Appleton tinha morrido - atalhou Pryce.
- Na verdade, o verdadeiro Appleton estava morto. Os espíritos do uísque o tinham substituído.
- Qual foi o segundo bingo? - pressionou Scofield. - O quarto não passava de um falso santuário entulhado de recordações inúteis. Fotografias, flâmulas de colégio e troféus de competições de barcos à vela.
Falso porque Appleton nunca morou em Louisburg Square. Ele voltou da guerra da Coreia com alguns ferimentos, e depois do hospital retornou para a propriedade da família.
- Não passe a minha frente, Brandon, tudo isso faz parte da trilha. Entretanto, você mencionou a palavra mágica, "fotografias". Assim que entramos no quarto a velha partiu direto para uma das paredes e
gritou que uma das fotos estava faltando. Começou a fazer um escândalo, dizendo que a fotografia predileta de Josh tinha sumido.
- Muito bem, Frank, você tinha descoberto outro rastro, não é mesmo? Você interrogou a pobre velhinha e ficou sabendo que se tratava de uma foto de Appleton com seu melhor amigo. Dois rapazes robustos
na frente de um barco à vela, mais ou menos da mesma altura, ambos com físicos imponentes, ambos bem apessoados, podendo, talvez, passar por primos.
- Parentes mais íntimos até, de acordo com a Srta. Appleton. Irmãos. Até que um foi para a guerra e o outro se recusou, voando para a Suíça. - Shields enfiou a mão no bolso e retirou um pequeno bloco de
anotações; estava amassado, suas páginas amareladas pelo tempo. - Arranquei isso de um arquivo. Queria ter certeza de contar com os fatos e os nomes corretos quando falássemos. Onde é que nós estávamos?
- Uma fotografia... - Cameron, encostado na amurada, estava profundamente interessado. - A fotografia.
- Ah, é verdade - disse o vice-diretor, folheando as páginas do seu bloco. - Foi depois da guerra da Coreia. Appleton estava frequentando a escola de direito quando sofreu uma terrível colisão no pedágio
de Massachusetts. Ele quase morreu no hospital, com múltiplas fraturas, hemorragia interna e horríveis deformações faciais. A família mobilizou especialistas de toda parte, que trabalhavam dia e noite;
parecia um caso perdido, mas obviamente não foi. Seu próximo passo, Brandon, foi bastante óbvio. Você se mandou para o Hospital Geral de Massachusetts, diretamente para o Departamento de Registro e Faturamento.
Embora já esteja aposentada, a mulher encarregada do setor lembra-se de você nitidamente.
- Eu arranjei alguma confusão pra ela?
- Não, mas como assessor-chefe do senador Appleton, você prometeu a ela um bilhete pessoal de agradecimento do homem que um dia seria presidente. Ela nunca o recebeu, e era por isso que se lembrava.
- Azar, não tive tempo de escrever. Continue, você está se saindo muito bem.
O Departamento de Registro e Faturamento do hospital não lhe adiantou grande coisa - a maior parte era terminologia médica compreendendo oitenta páginas de procedimentos, serviços etc., mas você queria
mais. Queria nomes. Ela então o encaminhou ao Departamento de Pessoal, já então completamente informatizado, com registros datando de muitos anos.
- Havia um rapaz de cor operando o equipamento e sem ele eu não teria conseguido bulhufas - interrompeu Scofield. - Ele era aluno do MIT e fazia um bico para custear os estudos. É estranho, mas não consigo
me lembrar do nome dele.
- Pois devia. Ele é agora o Dr. Amos Lafollet, uma respeitada autoridade em medicina nuclear. Quando finalmente consegui localizá-lo, ele me disse que, se um dia me encontrasse com você, lhe perguntasse
se tinha gostado da dedicatória no seu primeiro livro.
- Não sabia que ele havia escrito um.
- Pois bem, acabei comprando o livro; é um compêndio padrão sobre medicina nuclear. Quer ouvir a dedicatória? Tenho ela aqui comigo.
- Claro.
- "A um generoso estranho que pediu tão pouco e deu muito em troca, tornando possível a carreira de um jovem estudante, inclusive este livro".... Nada mal para um estranho que não conseguiu arrancar essas
palavras de sua própria mãe.
- Minha mãe achava que eu era um gângster ou um jogador profissional. Voltemos para Boston.
- Certamente - disse Shields, voltando a consultar seu bloco. - O Dr. Lafollet, então um jovem estudante operando os computadores do hospital, descobriu que os dois cirurgiões que tinham atuado no caso
de Appleton tinham sido substituídos e, para seu espanto, um dos substitutos tinha morrido e o nome do outro tinha sido apagado dos arquivos.
- Não se esqueça das enfermeiras, Frank - disse Scofield calmamente, olhando fixamente para Shields. - Para mim elas foram um bingo e tanto.
- De fato foram - concordou o vice-diretor.
- O que foi que houve com as enfermeiras? - perguntou Pryce.
- Presumivelmente obedecendo a ordens da família Appleton, o pessoal do hospital foi substituído por enfermeiras particulares, todas elas tendo morrido num acidente de barco simulado quatro dias antes
de Joshua ter recebido alta e sido removido para a propriedade da família, que, casualmente, estava sendo vendida. Para um banqueiro muito velho e muito rico chamado Guiderone, um amigo dos Appleton que
sabia que o dinheiro deles estava minguando.
- Dê nome aos bois, Frank. Para Nicholas Guiderone, o Shepherd Boy.
- Você não obteve nenhuma resposta conclusiva na ocasião, Brandon, mas percebeu os sintomas de uma monstruosa conspiração. Tudo o que você realmente tinha era os nomes dos dois cirurgiões, um morto, e
o outro forçado a se aposentar. Seu nome era Dr. Nathaniel Crawford. Ele morreu há uns quinze anos, mas entrei em contato com ele muito antes disso. Ele também se lembrava de você, lembrava-se do seu telefonema
muito perturbador. Ele me disse que lhe trouxe de volta seus pesadelos.
- Ele nunca devia tê-los tido. Seu diagnóstico estava correto, mas ele foi cerceado. Seu paciente, Joshua Appleton o Quarto, morreu no hospital como ele previra.
- Na companhia dos dois cirurgiões substitutos e talvez de uma ou duas das enfermeiras particulares - acrescentou Shields. - Não sei qual foi a sequência ou o que você estava começando a perceber, mas
suponho que foi aí que persuadiu o jovem Amos Lafollet a ir a Washington e apanhar um jogo de velhas radiografias.
- Tudo estava acontecendo tão rapidamente que não posso me lembrar da sequência - disse Bray, virando a Chris-Craft na direção do vento brando. - Taleniekov e Toni estavam detidos como reféns; não havia
tempo para muito planejamento. Estava voando meio às cegas mas não podia parar.
- Entretanto, você sabia que as radiografias poderiam provar o que você começava a suspeitar, por mais exorbitante que pudesse parecer.
- É verdade - concordou Scofield, pensativo, com os olhos fixos na água, vendo e sentindo coisas que ninguém mais podia. Eram chapas de raios X de dentes tiradas há tanto tempo, nos mais diferentes lugares,
que não podiam ter sido adulteradas, e muito menos removidas.
- Mas você só tinha um jogo e precisava compará-lo com outro, certo, Brandon?
- Obviamente - disse Bray, virando-se novamente para Shields. - E uma vez que você chegou tão longe, tinha uma boa ideia de quem era, naturalmente.
- Naturalmente, mas não tinha como provar coisa alguma porque você tinha o outro jogo. Você viu, como eu também, naquele quarto em Louisburg Square, que Appleton e seu amigo mais íntimo tinham cursado
a Academia Andover. Você foi de carro até lá, localizou o dentista - amigos do peito, especialmente adolescentes longe de casa, certamente eram clientes do mesmo dentista - e o persuadiu a lhe fornecer
as radiografias dos dois rapazes.
- E aí você ficou sabendo a verdade - disse Scofield, acenando com a cabeça. - Bom trabalho, Frank, estou falando sério.
- Era o seu trunfo, se é que realmente tinha um, para negociar a libertação de Antonia e Taleniekov.
- Que papo é esse de trunfo? - perguntou Cameron Pryce, perplexo.
- A radiografia provava que o convidado de honra naquele dia em Appleton Hall não era o senador Joshua Appleton mas um colega e amigo íntimo de nome Julian Guiderone, filho de Shepherd Boy, que deveria
em breve ocupar a Casa Branca com tudo o que isso implica.
- Jesus Cristo - exclamou Cameron - você não estava mesmo chutando, Bray!
- Quer dizer que você aceita a versão do Olhos-Apertados, mas não a minha?
- Você tem que admitir que Frank preencheu uma porção de lacunas que você não se deu ao trabalho de explicar.
- Não todas elas - Scofield olhou para Shields. - O Dr. Crawford explicou-lhe quem era um dos dois médicos substitutos?
- Não só explicou como me deu o nome dele. Ele era o mais famoso cirurgião plástico da Suíça. Somente os milionários frequentavam sua clínica. Você acreditaria se eu lhe dissesse que ele morreu quando
seu carro perdeu o controle e despencou de um precipício em Villefranche? Três dias depois de ter deixado Boston e voltado para a Europa?
- Não posso compreender por que os Matarese esperaram esses três dias.
- É que Julian Guiderone, que deixara o país e fora para a Suíça para não ter que lutar na guerra da Coreia, supostamente morrera num acidente de esqui perto da aldeia Col du Pillon, onde fora sepultado
devido ao seu grande amor pelos Alpes.
- Sim, li sobre isso há vinte e cinco anos em microfilmes de jornais. Fico pensando sobre quem poderia estar no caixão, ou será que estaria simplesmente vazio?
- Não tem sentido remexer a sua sepultura, se é que existe uma.
- Não adianta querer exumar nada dessas coisas, Frank. Os Guiderone se foram. O Shepherd Boy e seu filho estão mortos. Temos que investigar a hierarquia dos Matarese de outra maneira.
- Talvez isso não seja rigorosamente acurado, Brandon Shields disse calmamente enquanto Scofield virava rapidamente a cabeça da roda do leme. - No seu depoimento, no pouco que você se dispôs a relatar,
você disse que o senador Appleton - nascido Guiderone - tinha sido morto no fogo cruzado naquele dia em Appleton Hall...
- Com os diabos, foi exatamente isso o que disse - urrou Bray. - Eu mesmo derrubei o filho-da-puta! Através da vidraça estilhaçada, com a minha arma!
- Suas palavras não foram bem essas.
- Talvez eu tenha enrolado um pouco, sei lá! Vocês sacanas me consideravam irrecuperável e eu não estava a fim de dar colher de chá a ninguém.
- Contudo, você disse que ele caiu na imensa lareira, no meio das labaredas...
- Foi isso mesmo o que aconteceu com ele!
- A polícia compareceu ao local do crime em poucos minutos, Brandon. Não havia nenhum cadáver dentro da lareira. Havia, isto sim, arranhões na ardósia, como se um corpo tivesse sido arrastado. Fios de
tecido queimado em torno da área, cujo achatamento denotava que tinham sido submetidos a pressão; o fogo tinha sido extinto. É minha opinião, bem como dos nossos técnicos de laboratório, que Julian Guiderone
sobreviveu.
- Ele não pode ter sobrevivido... Mesmo que tivesse podido, o que é totalmente impossível, como poderia ter se evadido?
- Como foi que você e Antonia fugiram? Havia tanta confusão - o tiroteio, as explosões nos esgotos externos, que acredito tenha sido obra sua - um quadro verdadeiramente caótico. Interroguei cada um dos
policiais, cada um dos seguranças particulares, e um integrante do esquadrão da SWAT lembrou-se que um casal em pânico, o Sr. e a Sra. Vickery, tinham chegado ao portão principal num carro em disparada,
declarando que eram convidados, apenas convidados. Tinham se escondido num closet e, num intervalo da fuzilaria, fugiram por uma porta dos fundos e alcançaram o carro.
- E daí?
- O nome de casada de sua irmã é Vickery, Brandon.
- Não lhe escapa nada, Frank, é forçoso reconhecer.
- Aceito o elogio, mas é irrelevante. Havia outro veículo, uma história semelhante. Um convidado ferido numa ambulância que nunca chegou ao hospital... Resumindo e concluindo: Julian Guiderone, filho do
Shepherd Boy, está indubitavelmente vivo e, se há alguém que ele quer ver no inferno, é você, Beowulf Agate.
- Muito interessante, Frank. Ele e eu temos mais ou menos a mesma idade, dois velhos de uma outra época, ambos ansiando pelo que lhes é negado. Ele ambiciona o poder corrupto, que não permitirei que alcance,
e eu almejo tão-somente minha paz pessoal, que ele não permite que eu conquiste. - Scofield fez uma pausa e olhou para Cameron Pryce. - Suponho que a longo ou curto prazo dependeremos de nossos comandantes,
e tenho total confiança no meu.
- Espero que saiba o que está fazendo - disse Cameron. Tudo o que direi é que farei o melhor que puder.
- Oh, você fará melhor do que isso, filho.
LOS ANGELES TIMES
(Primeira página)
EMPRESAS DE ENTRETENIMENTO EUROPEIAS E
AMERICANAS EM SURPREENDENTE ASSOCIAÇÃO
LOS ANGELES, 9 OUT. - É um mundo menor, comprimido pela alta tecnologia que permite a transmissão instantânea de produtos via satélite e cabo. Onde irá terminar ninguém sabe, mas os quatro maiores estúdios
cinematográficos remanescentes, juntamente com suas redes e outlets subsidiários de cabo, anunciaram hoje que se associaram à Continent-Celestial para proporcionar uma fonte consolidada de informação e
programas de entretenimento. Os sindicatos de atores, escritores, produtores e diretores aplaudem a iniciativa tendo em vista que ela assegurará múltiplas oportunidades de emprego para seus associados.
Os sindicatos de atores sugeriram que seus membros tornem-se multilíngues. As vantagens resultantes dessa mega fusão são evidentes, mas o que não ficou claro foram os rumos que semelhante associação podem
tomar.
Continua na pág. 2
Eram dez para as quatro da manhã quando Julian Guiderone completou sua última ligação telefônica para Langley, na Virgínia, de Amsterdã. - Estamos em total segurança? - ele perguntou.
- Total - respondeu a voz na CIA. - Meu misturador de vozes é de uso exclusivo meu, cortesia do Diretório.
- Muito bem. Estarei saindo daqui em alguns minutos, próximo contato no Cairo.
- Não em Bahrain?
- Não pelo menos nas próximas três semanas. Temos trabalhos a desenvolver com os nossos árabes - não os deles, os nossos.
- Boa sorte - vieram as palavras de Langley, na Virgínia. Nós todos acreditamos em você.
- Devem mesmo. E também devem acreditar em Amsterdã. Ele está no curso certo.
- Então acreditaremos - respondeu o agente duplo.
Quatro dias e três noites tinham-se passado quando Cameron Pryce se defrontou com Scofield no bufê do café da manhã. - Isso não está nos levando a parte alguma! - Cam exclamou concisamente em voz baixa
enquanto tomava seu café puro.
- Você é que parece que está fazendo progressos - disse Bray, acendendo uma cigarrilha. - Estou me referindo à nossa bela oficial.
- Para lhe dizer a verdade, não estou nem aí.
- Você tem se avistado muito com ela.
- Negativo - retrucou Pryce. - Ela é que anda me cercando. Se vou até o portão principal, ela logo aparece. Se dou uma caminhada na praia, ela surge como que por encanto. Se dou uma chegada ao heliporto
para ver quem pode estar chegando no próximo voo, lá está ela plantada atrás de mim.
- Talvez ela tenha alguma coisa pra você, meu rapaz. A Toni diz que você é de primeira.
- Como se diz da carne? Não parece coisa da Antonia.
- Não, não é nesse sentido. É mais no de coisa fina, horário nobre. Onde supostamente são concentrados os melhores programas. Talvez a coronel esteja interessada em você de outras maneiras que não sejam
estritamente profissionais.
- Sinto muito desapontá-lo - disse Cam - mas não há nenhum sinal, linguagem corporal, apenas uma hostilidade quase imperceptível intercalada com amenidades inconsequentes. É como se ela estivesse me observando,
sem ter certeza de quem eu sou ou o que eu sou. Não faz sentido.
- É claro que faz - disse Scofield, sorrindo enquanto expelia a fumaça aromática. - Tem tudo a ver com seu último pedido, muito profissional, transmitido pelo coronel Bracket ao Shields. Ela quer dar uma
olhada no seu dossiê completo. Naturalmente, você não deve ser informado.
- Não estou entendendo.
- Das duas uma: ou ela quer se casar com você, meu jovem, ou pensa que você é uma fonte de informação privilegiada.
- Prefiro a segunda hipótese. A testosterona militar dessa senhora é capaz de acabar com a saúde de um general.
De repente, um grito estridente cortou o murmúrio dos outros poucos comensais na espaçosa varanda protegida por uma tela metálica. O oficial de ligação de Frank Shields, Eugene Denny, caíra abruptamente
de sua cadeira, apertando a garganta com as mãos, contorcendo o corpo ao se chocar contra o chão e esperneando convulsivamente. Segundos após, seu companheiro de refeição, o coronel Bracket, repetiu praticamente
a mesma cena, com a mão direita em torno do pescoço, e a esquerda segurando a mesa enquanto tremia violentamente, caindo finalmente no chão, derrubando a louça no piso de cerâmica.
Pryce e Scofield se esgueiraram por entre as mesas e cadeiras, correndo em direção aos homens prostrados no chão, acompanhados por um patrulheiro do Exército de serviço na cozinha. Cameron abaixou-se,
tocando alternadamente os pescoços de Bracket e Denny.
- Meu Deus, eles estão mortos! - Pryce gritou, levantando-se. - Só pode ter sido veneno.
Um jovem e perplexo soldado da FDR ajoelhou-se para examinar os pratos. - Não toque em nada, filho! - Scofield disse rapidamente.
Cam e Bray olharam para os pratos quebrados, a comida espalhada no chão. Os dois homens tinham comido ovos, escaldados ou levemente fritos, como demonstravam pedaços de gema amarela, mole.
- Quem sabe que você gosta de ovos? - perguntou Pryce.
- Provavelmente todos os que trabalham aqui. Toni vive me dando bronca para que eu não coma ovos, e a maior parte das vezes eu acabo obedecendo a ela. Há dois meses uns médicos idiotas de Miami disseram
que o meu colesterol estava acima de trezentos.
- Você pediu ovos esta manhã?
- Será que você ainda não percebeu que isso aqui é um bufê? As pessoas vão lá e se servem. Uma daquelas travessas de metal ali em cima da mesa contém ovos mexidos com salsichas, e a outra, ao lado, ovos
escaldados boiando em banho-maria.
- Mas você não comeu ovos hoje?
- Comi ontem na moita... com receio de ser flagrado pela Toni.
- Lacre a cozinha - ordenou Pryce ao soldado da FDR.
- Lacrar? - Eu sou a cozinha, senhor. Tudo já vem lacrado, inclusive os ovos, e quem estiver de serviço segue as regras sobre a maneira de prepará-los.
- Como assim?
- Instruções, senhor. E só seguir os números, embora nós certamente não precisemos deles. Afinal, o que é que se pode fazer com ovos?
- Matar pessoas, meu amigo - disse Scofield. - Interdite a cozinha. Agora!
Uma das caixas do abastecimento normal ainda estava no frigorífico da mansão, que, além disso, só guardava algumas garrafas de leite, embalagens de diversos tipos de queijo e latas de refrigerantes.
- O que é que você acha que possa ter sido? - perguntou Cam. - Talvez não tenham sido os ovos.
- Talvez não - respondeu Bray, voltando-se para o patrulheiro da FDR, - Me diga uma coisa, soldado, onde estão as instruções para os ovos?
- Elas são afixadas na parede à esquerda do primeiro fogão, senhor, mas posso detalhá-las com precisão... Misture seis numa tigela com um pouco de leite e bata-os numa frigideira com um pouco de manteiga
- para fazer ovos mexidos. Depois jogue os outros seis numa terrina grande de metal com água quente colocada em cima de um fogareiro na mesa do bufê e fique de olho.
- Fique de olho?
- Dê uma olhada neles de vez em quando dependendo do número de pessoas que compareçam para o café da manhã. Se ficarem muito duros, o que ocorre quando ficam ligeiramente amarelos, é preciso retirá-los
com a concha e substituí-los.
- Costuma fazer isso com frequência, soldado?
- Na verdade não, senhor. As pessoas que gostam deles dessa maneira geralmente chegam aqui cedo. Meu Deus, não compreendo!
- Mas compreende que deve ficar de bico calado, não é verdade? - Scofield disse incisivamente.
- Certamente, mas isso tudo é uma loucura, me desculpe mas é impraticável! Logo todos no complexo vão ficar sabendo, não é possível impedir que a notícia se espalhe!
- Eu sei, meu filho. O que eu quero saber é quem vai tomar conhecimento do ocorrido fora do complexo. Portanto, um pouco de contenção.
- Continuo não compreendendo, senhor.
- Não precisa compreender. Agora pegue aquela caixa de ovos, leve para a pia e misture um pouco de sabão líquido com água morna.
Usando a solução espumosa, Bray sacudiu cada ovo, mergulhou-o na água e ergueu-o contra a luz. Cada um acusava pequenas bolhas na base da casca, o orifício sendo muito diminuto para poder ser visto a olho
nu.
- Puta que o pariu - disse Pryce, examinando um dos ovos.
- Você estaria morto se tivesse comido um desses - acrescentou Scofield. - Esse método de matar foi aperfeiçoado pelos Borgia na metade do século quinze, só que era muito menos sofisticado. Eles usavam
os alfinetes de chapéu de suas damas e meticulosamente inoculavam o veneno. Também injetavam em tomates, abóboras, ameixas e recorriam ao seu método favorito: uvas perfuradas deixadas de molho alguns dias.
- Muito civilizado - disse Cameron sardonicamente.
- Esses ovos foram perfurados pelas mais modernas e finas seringas disponíveis. Mágicos menos talentosos apelam para o mesmo truque ao injetarem em ovos supostamente frescos uma substância que os torna
instantaneamente sólidos, permitindo que sejam golpeados sem quebrar. Divertido, de uma forma macabra, não é mesmo?
- Não, não remotamente - disse Pryce. - O que é que você pretende fazer agora, já que é o responsável por esta operação?
- O óbvio. Decretar quarentena para as cozinhas da Agência e botar todo mundo que trabalha lá sob a mais rigorosa vigilância.
O computador no complexo de Chesapeake transmitiu a informação:
Os produtos em questão foram adquiridos das Fazendas Rockland de Rockport, Maryland, fornecedores sob contrato firmado com a Agência Central de Inteligência depois de rigorosa investigação da idoneidade
da empresa. O pessoal da CIA que trabalha nas cozinhas em Langley é constituído na sua maioria por antigos funcionários cujos antecedentes foram devidamente checados. Uma reavaliação não acrescentaria
nada. Intenso escrutínio prosseguirá.
THE BALTIMORE SUN
(Seção de Negócios, pág. 3)
FAZENDAS ROCKLAND VENDIDAS
ROCKPORT, 10 OUT. - As fazendas Rockland, um dos principais fabricantes de produtos avícolas do país e o maior da Costa Oeste dos Estados Unidos, foram adquiridas pela Atlantic Crown, Limited, distribuidores
mundiais de produtos alimentícios com filiais espalhadas por todo o globo. Jeremy Carlton, porta-voz da ACL, distribuiu o seguinte comunicado à imprensa.
"Com a aquisição das Fazendas Rockland, a Atlantic Crown expande seus mercados para poder melhor servir seus clientes em muitos países. O acréscimo de produtos avícolas a sua variada linha de produtos
de exportação era um velho sonho da Atlantic Crown. Só a expansão global de franquias de fast-food já justifica o investimento. Com nossa rede de outlets internacionais, podemos agilizar a remessa de nossos
produtos para o mundo inteiro no benefício de todos.
"Este comunicado não seria completo se não expressássemos nossos agradecimentos à família Bledso, proprietários anteriores da Fazendas Rockland, por seu espírito de cooperação durante as negociações e
a visão que demonstrou ao selecionar a Atlantic Crown. Procuraremos de todas as maneiras fazer jus à grande tradição da família."
O comunicado não revelou os termos da venda e, uma vez que ambas as empresas são propriedades privadas, nenhuma das duas é obrigada a fazê-lo. Entretanto, devem ter sido extraordinárias tendo em vista
que a "absorção" das Fazendas Rockland torna a Atlantic Crown o mais lucrativo conglomerado da indústria de processamento de alimentos para exportação, possivelmente do mundo.
O estúdio discretamente iluminado da grande casa na periferia de Rockport, Maryland, não era diferente das outras casas de três milhões de dólares construídas nos domínios de "fazendas" megamilionárias.
Embora os ventos frios do outono mal tivessem chegado, a lareira crepitava, as chamas projetando sombras que dançavam nas paredes. Um homem zangado aparentando quarenta e poucos anos aproximou-se de uma
figura idosa numa cadeira de rodas.
- Como é que você pôde fazer uma coisa dessas, vovô? Recusei-me a fazer negócio com a Atlantic Crown durante anos! Eles são aves de rapina. Compram todas as fábricas de processamento à vista até poderem
impor suas regras aos mercados.
- Acontece que sou o dono desta empresa, e você não é chiou o ancião, levando uma máscara de oxigênio à boca. Quando eu morrer, você poderá fazer o que quiser, mas até lá ela é minha.
- Mas por quê?
- Vocês todos receberam uma boa nota, não receberam?
- Isso é irrelevante e você sabe muito bem. Eles não são do nosso nível. São sanguessugas!
- Tudo isso é verdade, meu neto. Mas houve uma época, há mais de cinquenta anos, em que o dinheiro por trás do que é hoje conhecido como Atlantic Crown apoiou um jovem visionário. Com recursos financeiros
que podiam ter vindo de agiotas expulsos do inferno. Como é que você pensa que um agrônomo neófito podia ter comprado mais de cinco mil hectares de terra fértil sem eles? Por Deus, foram eles os visionários,
não eu.
- Está querendo dizer que não pôde recusá-los?
- Ninguém pode.
A sala revestida de veludo da diretoria da Atlantic Crown na cobertura do prédio da ACL em Wichita, Kansas, estava deserta, exceto pela presença de dois homens. O homem na cabeceira da mesa, usando apropriadamente
um terno escuro listrado, falou:
- A próxima jogada será a indústria da carne - ele disse. Ordens de Amsterdã.
- Vamos precisar de uma grande infusão de capital - disse o executivo subordinado num blazer azul-marinho e punhos da camisa à francesa. - Espero que isso tenha ficado claro.
- Nós o teremos - respondeu o diretor-executivo da Atlantic Crown. - A propósito, aquele pequeno problema com os ovos no complexo de Chesapeake foi satisfatoriamente resolvido?
- Nossos negociadores finais encarregados das investigações garantem que sim. Dizem que ficou tudo esclarecido nos menores detalhes, até os engradados lacrados despachados por helicóptero.
- Ótimo. Temos que ser precisos em todas as coisas.
DEZ
As ruas fervilhantes do Cairo pareciam impregnadas com o odor de suor enquanto milhares de pedestres iam e vinham apressadamente sob o sol do meio-dia. O tráfego era intenso e buzinas estridentes e impacientes
cortavam os ares enquanto vozes irrompiam em constante conflito, numa babel de línguas e dialetos. A massa humana era tão diversificada quanto o tumulto vocal; albornozes árabes confundiam-se com trajes
ocidentais, jaquetas, e blue jeans, ao mesmo tempo que barretes muçulmanos contrastavam com chapéus-coco, chapéus de caubói e bonés de beisebol. De certo modo, era um macrocosmo do Oriente e do Ocidente,
os árabes numericamente favorecidos, já que estávamos no seu país, na sua cidade. Cairo, a fonte de lendas, onde os mitos e a realidade são inseparáveis, e entretanto muito separados numa terra de contradições.
Julian Guiderone, envergando um conjunto aba, thobe e ghotra, e usando grandes óculos escuros, desceu o congestionado bulevar Al Barram à procura de uma tabuleta ou qualquer sinal que lhe diria ter chegado
ao seu destino. Lá estava ele. Uma flor-de-lis azul estampada num pequeno galhardete branco pendurado na vitrine de uma joalheria. O filho do Shepherd Boy deu uma parada para acender um cigarro em frente
à vitrine; uma parada estratégica para lhe permitir observar com calma a rua, seus olhos procurando o incomum. Um homem ou uma mulher cujos olhos estivessem fixados nele. Esse era o perigo do encontro
que estava prestes a se realizar no segundo andar da loja. Ninguém, ninguém, além dos participantes da reunião poderia saber qual era o seu objetivo. Uma simples indiscrição poderia acarretar um desastre.
Dando-se por satisfeito, Guiderone amassou a ponta do cigarro com o pé e entrou, erguendo automaticamente três dedos à altura da cintura. O balconista acenou duas vezes com a cabeça na direção de uma cortina
de veludo vermelho-escuro à sua direita. Julian respondeu com uma ligeira curvatura e transpôs a cortina que ocultava uma escada. Galgou os degraus estreitos, como sempre constrangido com a perna manca,
que lhe tirava a agilidade. No topo da escada olhou em volta para as três portas do segundo andar; viu o ponto azul na maçaneta de latão e circundou desajeitadamente o balaústre curvo, encaminhando-se
para ela. Ficou imóvel por alguns segundos, exceto suas mãos, que vagaram por baixo de sua túnica verificando suas armas: uma pequena automática calibre 25 à sua direita e, à esquerda, uma espécie de granada
que, ao ser lançada contra uma parede, explodia, expelindo uma substância letal para quem a inalasse.
Guiderone empunhou a maçaneta de latão, girou-a, abriu aporta e permaneceu parado na sua soleira, estudando o ambiente. Havia quatro homens, todos vestindo trajes beduínos em torno de uma mesa, cada um
deles com uma venda de pano cobrindo parcialmente o rosto, uma proteção usada no deserto contra as tempestades de areia, só que no caso serviam para esconder a identidade dos presentes. Julian abria mão
desse artifício. Queria que todos ficassem conhecendo o rosto do filho do Shepherd Boy, pois se desobedecessem, aquele rosto os perseguiria até seu último alento, o que poderia acontecer a qualquer minuto
a partir do momento em que a desobediência fosse cometida.
- Bom dia, cavalheiros, ou será que deveria dizer boa tarde? - ele cumprimentou, entrando e sentando-se na cadeira mais perto da porta. - Confio que os senhores, todos os senhores, tenham verificado exaustivamente
as condições de segurança deste nosso local de encontro.
- À exceção de nossas cadeiras e esta mesa, não há mais nada nesta sala - respondeu o árabe na extremidade oposta a Guiderone, o brocado de ouro no seu ghotra conferindo-lhe status de chefe. - As paredes
foram examinadas por nossos subordinados e declaradas totalmente isentas de dispositivos de escuta.
- E quanto aos senhores? Quanto a nós? Albornozes podem ocultar muita coisa, não é verdade?
- Apesar de os tempos serem outros - disse outro árabe à esquerda de Julian - as velhas leis do deserto prevalecem. A punição de um traidor ainda é a decapitação com adaga, um método excruciantemente lento
e cruel. Nenhum de nós se esquivaria ao dever de executar um companheiro que cometesse a infâmia da traição, e cada um de nós sabe disso.
- Essa é uma maneira sucinta de colocar as coisas, para dizer o mínimo. Portanto, prossigamos. Uma vez que nada pode ser por escrito, acredito que cada um dos senhores, como líder de sua facção, me deve
uma exposição oral, certo?
- Perfeitamente - respondeu um terceiro participante da reunião, no outro extremo da mesa. - Poderá parecer repetitivo, uma vez que todas fornecem essencialmente a mesma informação...
- Por conseguinte, no interesse da brevidade - interrompeu o último homem, sentado diagonalmente à direita de Julian - considerando que cada um de nós tem a cabeça a prêmio e não faz a menor questão de
permanecer aqui além do estritamente necessário, por que não transmitimos a informação geral, cada um de nós acrescentando as especificações geográficas?
- Excelente ideia - concordou o filho do Shepherd Boy - mas permitam-me cumprimentá-los pelo óbvio. Todos os senhores falam minha língua melhor do que muitos de meus compatriotas.
- Vocês são uma sociedade poliglota constituída de gente em grande parte semi-instruída - disse o chefe árabe no fim da mesa. - Nós somos diferentes, muito diferentes. Eu, por exemplo, estudei direito
e jurisprudência em Cambridge... juntamente com muitos outros de meus irmãos islâmicos.
- Eu sou médico formado pela Escola de Medicina da Universidade de Chicago, com residência e clínica em Stanford... como centenas de outros muçulmanos ao longo dos anos - acrescentou o homem à direita.
- Eu regi a cátedra de estudos medievais numa universidade da Alemanha muitos anos antes de me doutorar em Heidelberg declarou o mais impaciente dos participantes.
- Minhas credenciais são mais modestas - disse o quarto delegado - mas talvez mais pragmáticas. Sou engenheiro-eletricista e trabalhei em grandes projetos para empresas que mantinham negócios com governos
e empresas privadas. Rezo para que chegue o dia em que possa voltar e ajudar a construir nossa própria pátria.
- Fascinante - murmurou Guiderone, perscrutando os olhos escuros dos quatro árabes. - Os senhores constituem a elite do Oriente Médio, e no entanto são chamados de terroristas.
- Outros preferem a expressão combatentes da liberdade, que é muito mais adequada - corrigiu o chefe. - A Hagganah e o Grupo Stern têm mais simpatizantes no Ocidente do que nós, e continuamos a fazer o
que fazemos porque aqueles que deveriam ser nossos aliados constantemente fazem acordos com nossos inimigos mútuos. É revoltante.
- Eles pensarão duas vezes antes de darem início a essas negociações depois que tivermos desferido nosso golpe - disse o homem indócil. - Portanto, por que não vamos logo ao que interessa?
- Esplêndido - concordou o filho do Shepherd Boy - e já que está tão ansioso por fazê-lo por que não começa pela informação geral que se aplica a todos?
- Com prazer, senhor - disse o impaciente ex-catedrático principalmente tendo em vista que o senhor é um de nossos mais generosos benfeitores... Nossas unidades estão em treinamento em vinte e quatro localidades
que se estendem do Iêmen ao vale Baaka, todas situadas em desertos e portos fora do alcance da vigilância de inimigos e infiltradores. Também aprendemos uma lição com os judeus em Entebe: precisão é a
chave para nossas operações. Graças em parte ao nosso financiamento, simulacros de instalações foram construídos nas areias do deserto e na água. As unidades estão sob a liderança de nossos mais capacitados
militares e especialistas em inteligência, infiltração e sabotagem. Quando chegar a hora de atacar, operaremos em uníssono, será uma conflagração que o mundo nunca esquecerá, jamais poderá apagar da história.
- Palavras confiantes, meu amigo - disse Guiderone, acenando com a cabeça lentamente. - E agora vamos às especificações. Comecemos pela sua parte?
- Com prazer redobrado - respondeu o médico formado em Chicago e com invejáveis residência e clínica na Califórnia. - Os objetivos de minha força-tarefa estão no Kuwait, no Iraque, e no Irã, a ausência
de preconceito sendo uma característica de nossa universalidade. Dez mil poços de petróleo serão incendiados, fazendo do desastre de Kuwait uma insignificante fogueira.
- Meus efetivos estão se concentrando nos principais campos sauditas de Ad-Dawadimi a Ash Shad’ra até os poços ao norte de "Unayzah" - disse o engenheiro-eletricista. - Depois atacaremos os petroleiros
nos golfos Pérsico e de Omã fundeados ao largo de portos de reabastecimento de Al Khiran a Matrah e Muscat...
- Incluindo, portanto, os Emirados, não é mesmo?
- Naturalmente, todos eles. Os sultões não desconfiam de nada.
- E eu supervisionarei os portos em águas orientais - acrescentou o estudioso de assuntos medievais que lecionara na Alemanha, com os olhos brilhando acima da venda que lhe cobria o rosto. - Descendo de
Bandar-e Deylam para o sul, para Bandare Abbas no estreito de Hormuz. À medida que os poços forem destruídos, milhões e milhões de toneladas estocadas nos portos também o serão.
- Reservo para mim - disse o xeque beduíno no extremo oposto da mesa em frente ao filho do Shepherd Boy - todas as exportações armazenadas nas costas de Israel, centenas de navios nas baías de Tuilkarm,
Tel Aviv e Rafah, suas mercadorias, produtos alimentícios, maquinário e armamentos ilegais, tudo irá pelos ares a um toque da minha batuta. Os sionistas endinheirados romperão qualquer contrato para encherem
suas burras. Vamos acabar com isso, e veremos os bancos argentários de Jerusalém e Tel Aviv afundarem no caos!
- Pode nos garantir isso? - perguntou Guiderone.
- Como me chamo Al Khabor Hassin, que o senhor conhece bem, e por conseguinte também sabe que sou o protetor dos hassinitas, de onde vocês ocidentais derivam a palavra assassino. Nunca subestimem nosso
poder mortal.
- Isso é muito esclarecedor, e ao mesmo tempo um tanto melodramático - disse Julian com serenidade, enfiando a mão discretamente por baixo de sua túnica. - E o senhor acha, como protetor da tribo dos assassinos,
que terá vivido à altura das responsabilidades de sua posição?
- Naturalmente! É a minha vitória sobre a desprezível Israel!
- E ninguém mais pode alcançá-la a não ser o senhor?
- Minhas tropas estão a postos. Os mares não terão noite, durante semanas, talvez meses! As chamas que arderão em toda parte, dos golfos ao Cairo, iluminarão a terra como se fosse o sol da manhã. Em todos
os quadrantes do Oriente Médio. É a nossa vitória!
- Vitória de quem, Al Khabor Hassin? - perguntou Guiderone calmamente.
- Nossa. Toda nossa. E minha, sobretudo minha! Pois eu sou o líder!
- Foi isso o que eu pensei - disse o filho do Shepherd Boy ao mesmo tempo que erguia sua automática acima da mesa e disparava duas vezes, os tiros abafados pelo calibre, mas certeiros. Al Khabor Hassin,
morto instantaneamente, caiu no chão, o sangue escorrendo de dois orifícios na testa. Os restantes três em torno da mesa recuaram em suas cadeiras, perplexos, rígidos, fitando Guiderone fixamente com seus
olhos escuros.
- Ele teria destruído a todos nós - disse Julian - pois a sua causa era ele próprio. Jamais confiem num líder que se autoproclama como tal antes que qualquer outra pessoa o faça. Seu ego descomunal o compromete.
Ele não consegue controlá-lo.
- O que devemos fazer com ele? - perguntou o engenheiro de espírito prático.
- Leve-o para o seu deserto e deixe que apodreça.
- E depois? - indagou o médico da Califórnia.
- Entre em contato com seu segundo homem na linha de comando e mande-o procurar-me. Eu o avaliarei e se for aceitável explicarei que o superestressado Al Khabor Hassin teve uma parada cardíaca. Não é difícil
acontecer.
- Espero que nada mais tenha mudado - disse o estudioso de assuntos medievais.
- Nada, absolutamente nada - respondeu Guiderone. - Al Khabor estava certo. Áreas inteiras do Mediterrâneo não verão as sombras da noite semanas a fio, enquanto os incêndios arderem. Será uma simetria
de horror, todos os instrumentos atingindo um crescendo de terror. Será a mesma coisa no mar do Norte, estruturas de poços petrolíferos às dúzias dinamitadas por nosso pessoal na Escócia, na Noruega e
Dinamarca. Quando as chamas cederem, o chamado mundo civilizado será o caos. Será nosso para o controlarmos... em bases racionais e terapêuticas. Pois, acima de tudo, somos benevolentes.
- Para quando planeja que isso aconteça? - perguntou o terrorista estudioso da Idade Média.
- Para o primeiro dia do ano-novo - respondeu Guiderone. Começamos a contagem regressiva esta noite.
Cameron Pryce bateu na porta da suíte de Scofield na casa principal. Eram cinco e meia da manhã e Antonia, contendo um bocejo, admitiu-o. Desculpou-se por estar de pijama de flanela. - Vou vestir um roupão
e avisar ao resmungão que você está aqui. Também acho bom fazer um café, sem ele vira um monstro.
- Não é necessário, Tony...
- É claro que é - ela interrompeu. - Talvez não para você mas para ele. Você não viria aqui a essa hora se não fosse absolutamente necessário.
- É.
- Então entre, mas tape os ouvidos enquanto faço o café e acordo a fera. - Pryce a acompanhou até a acanhada cozinha.
- Ele é assim tão brabo?
- Imagine uma gárgula urrando. Ele está acostumado a horários tropicais, Cam. Dez, dez e meia é sinônimo de alvorada.
- É incrível como você fala inglês tão bem.
- A culpa é do Bray. Quando decidimos que devíamos ficar juntos, ele comprou um monte daqueles cursos de idiomas em fitas. Ele estudou em Harvard mas agora diz que minha gramática é melhor do que a dele.
Aqui pra nós, ele está certo. Não consegue distinguir um particípio de um advérbio.
- Nem eu - disse Cameron, sentando-se a uma pequena mesa enquanto Antonia manipulava a máquina de fazer café. - Mas se me permitir um momento de curiosidade - que tem todo o direito de me negar - quando
foi que vocês dois resolveram "ficar juntos", para usar sua própria expressão?
- Creio que o óbvio seria dizer que o amor foi o responsável - respondeu Antonia, deixando a máquina de café e voltando-se para Pryce. - E certamente ele não faltou, tanto física quanto emocionalmente,
mas houve mais, muito mais. Brandon Scofield era um homem atormentado, perseguido tanto por seus superiores quanto por seus inimigos, cada um querendo sua execução. Ele poderia ter feito - ele e Taleniekov
poderiam ter feito - numerosas concessões que teriam eliminado a exigência de suas mortes. Nenhum dos dois cedeu porque tinham descoberto a verdade sobre os Matarese. A verdade, Cameron. Muita gente ligada
aos governos não tinha medo de apoiá-los porque haviam sido cooptados... Bray e Vasili os mandaram às favas e nunca pararam. Taleniekov morreu para que fôssemos poupados do massacre, e eu fui deixada com
um gigante, um homem despretensioso, ponderado, um homem gentil sob muitos aspectos até que a violência se faça indispensável, e que estava perfeitamente disposto a dar sua vida por mim. Como podia deixar
de amar esse homem, como poderia deixar de venerá-lo para sempre?
- Ele não me parece um homem que queira ser venerado. Me dá a impressão de rejeitar esse tipo de sentimento.
- Naturalmente que rejeita. Porque lembra-o dos dias ruins, como eles os chamam. Os dias em que a arma era o equalizador você matava, porque se não o fizesse, um dos seus seria morto.
- Esses dias pertencem ao passado, Toni. A Guerra Fria acabou. Não se fazem mais essas coisas.
- Nos pesadelos ele ainda se lembra. Ele tirou a vida de jovens e velhos com uma bala. Isso nunca o deixa.
- Se não o tivesse feito, os nossos teriam sido mortos. Ele também sabe disso.
- Creio que sim. Acho que foram os jovens fanáticos que sempre o incomodaram. Eles eram muito jovens, muito vulneráveis para serem responsabilizados pelos atos insanos.
- Eles eram assassinos, Antonia.
- Eram crianças, Cameron.
- Não estou capacitado para solucionar os problemas de Bray, e, diga-se de passagem, não é por isso que estou aqui.
- É claro que não. Por que está aqui a essa hora?
- Por que você não acorda o monstro? Poupará tempo e eu não terei que me repetir. Francamente, não quero ficar aqui muito tempo caso esteja na mira de alguém.
- Mesmo? - disse Toni com os olhos presos nos de Cam.
- Mesmo - respondeu Pryce tranquilamente.
Cinco minutos depois um Scofield descabelado entrou na cozinha seguido por Antonia. Os dois estavam de roupão - o de Toni branco, felpudo; o de Brandon, uma verdadeira relíquia, limpo mas rasgado em diversos
lugares. - Se tivéssemos ido para um hotel decente - ele disse, conciso - eu poderia ter roubado um roupão... Que diabo você está fazendo aqui a essa hora? Espero que tenha um bom motivo ou coloco seu
nome num relatório ou sei lá como é que esses militares idiotas fazem... onde é que está o café?
- Sente-se, querido, já vou trazê-lo.
- Desembuche, Cam. Não me levanto espontaneamente a esta hora desde uma noite azarada em Estocolmo quando uma jovem entrou no quarto errado mas tinha a chave certa.
- Fanfarrão - disse Antonia, trazendo duas xícaras de café para a mesa e sentando-se.
- Não vai tomar? - perguntou Pryce, apontando sua xícara com um ligeiro meneio de cabeça.
- Prefiro chá e estou em falta...
- E eu estou pra lá de curioso - interrompeu Scofield. - Fale logo, rapaz.
- Lembra-se de eu ter lhe contado que a nossa tenente coronel Montrose parecia estar seguindo as minhas pegadas?
- Claro, e eu me lembro de ter insinuado que a jovem parecia estar interessada em você.
- Hipótese que descartei de cara, ela não estava. Acredite ou não, conheço os sinais e não estamos em Estocolmo. Por isso quando Bracket foi morto a semana passada e ela assumiu o comando da segurança,
achei que era a hora de inverter o procedimento. Ela passou a ter muito mais responsabilidades e sua concentração tinha que ser dividida dez vezes, além do fato de ela ser uma fanática por trabalho, querendo
mostrar serviço para o Pentágono.
- Então você começou a segui-la, certo? - Brandon inclinou-se para frente, seus olhos enrugados por cima da xícara de café de repente acesos.
- Sim, muito cautelosamente e em geral tarde da noite. Duas vezes, a primeira às três horas da manhã, a segunda às quatro e quinze da noite seguinte, ela deixou seu alojamento e encaminhou-se para a garagem
de barcos. Há uma única lâmpada pendurada no teto em cima da Chris-Craft; nas duas vezes ela acendeu a lâmpada. Esgueirei-me até a pequena janela à direita e olhei para dentro. Nas duas ocasiões ela pegou
seu telefone celular e fez uma chamada.
- Isso é uma tremenda estupidez - disse Scofield. - Essas frequências podem ser captadas por qualquer um com um rádio potente! Só devem ser usadas como meio de comunicação em último caso.
- Foi o que pensei - concordou Pryce. - Também foi dado a entender que somente ela e Bracket, você e eu tínhamos esses telefones.
- Exatamente - confirmou Bray. - Todos os outros telefones são monitorados, cortesia de Frank Shields. Fiquei imaginando para quem ela estaria ligando.
- Foi por isso que, usando minha autoridade de membro da CIA, fui até Easton esta tarde, ostensivamente, para comprar jornais e revistas.
- Por que diabo você me trouxe o US News e o World Reporte esses pasquins financeiros? Você sabe que não dou bola pra esses troços.
- Eles não tinham a Penthouse, a National Enquirer, ou qualquer revistinha de histórias em quadrinhos. Mas, deixando de lado o gênero de leitura, não foi por esse motivo que fui à cidade. Usei um telefone
público, liguei para Langley e perguntei ao Frank se ele podia rastrear os números chamados do celular de Montrose. Ele disse que sim, uma vez que todas as ligações são cobradas. Pediu-me para esperar
e um ou dois minutos depois estava de volta.
- O que foi que ele descobriu? - perguntou o impaciente Scofield. - Pra quem foi que ela ligou?
- Isso é que é gozado. Pra ninguém.
- Mas você a viu - insistiu Toni.
- É claro que vi e fui enfático quanto a isso. Shields me pediu novamente para esperar e quando voltou ao telefone tinha uma informação surpreendente. Não havia ligações registradas no telefone de Montrose,
mas havia no do coronel Bracket.
- Esses telefones todos se parecem - disse Bray. - Ela os trocou.
- Mas por quê! - pressionou Antonia.
- Obviamente para cobrir a retaguarda dela, meu amor. Mas não contava que Bracket fosse morto. O celular dele, pelo menos o que ele tinha com ele, foi pra Langley com o corpo dele, não foi?
- Outra surpresa - disse Cameron. - Não foi. Frank supôs que como você e eu fomos os primeiros a chegar perto dos corpos de Bracket e Denny, um de nós o teria tirado.
- Mas nem você nem eu fizemos isso. Nem pensei na hipótese.
- Eu tampouco.
- Então há um telefone sobrando por aí. Digamos assim.
- Frank concorda. As conversas estão sendo agora monitorizadas.
- Mas para quem eram as ligações? As ligações de Montrose.
- Surpresa número três.
- O quê?
- Para a Casa Branca. Ela estava chamando a Casa Branca.
Um a um, a intervalos de sete minutos, sete aviões particulares aterrissaram no Aeroporto Schiphol de Amsterdã. Os proprietários desembarcaram um após o outro e foram conduzidos a limusines que os aguardavam
por musculosos seguranças vistos a última vez nas colinas de Porto Vecchio, no mar Tirreno. Foram levados para a elegante casa de quatro andares no Keizersgracht, o canal que corta as partes mais abastadas
da cidade. Finalmente, um por um, os sete descendentes do barão de Matarese tiveram acesso à grande sala de jantar no segundo piso.
O cenário era muito parecido com o grande salão da propriedade em Porto Vecchio. A mesa era comprida, sua extravagante madeira caprichosamente polida, e as cadeiras eram bastante separadas umas das outras,
como se a intenção fosse proporcionar a cada convidado espaço para pensar, considerar, avaliar. As delicadas tigelas de cristal para caviar estavam ausentes; no seu lugar viam-se pequenos blocos de anotações
e esferográficas prateadas ao seu lado. Todas as anotações deviam permanecer na mesa; depois da reunião seriam incineradas.
Assim que os descendentes do barão de Matarese tomaram seus lugares, Jan van der Meer adentrou o salão e sentou-se à cabeceira da mesa.
- Fico satisfeito por verificar que um certo grau de camaradagem está presente nesta nossa segunda reunião. Ele fez uma pausa. - É natural que haja. Todos fizeram um trabalho excelente.
- Santo Deus, meu velho, atrevo-me a dizer que todos nós lucramos enormemente - disse o inglês. - Nossos investimentos dispararam!
- Com nossas recentes alianças pelo país afora - disse a loura da Califórnia - nossa corretora financeira não tinha uma expansão semelhante desde os anos 80. É fantástico.
- Também dispararam as ações - advertiu Matareisen. - Nós lhes diremos quando devem vender. Façam isso imediatamente, pois vai haver um colapso.
- É difícil de imaginar, meu chapa - interrompeu o americano de Nova Orleans. - Meus imóveis e meus cassinos estão com todo gás. Todo mundo quer participar.
- E depois de todas as fusões e downsizings, nosso banco está mais enxuto... e rentável - acrescentou o advogado do banco de Boston. - Estamos nos tornando uma força econômica nacional, e até mesmo internacional.
Ninguém nos segura.
- Mas é preciso - atalhou Jan van der Meer. - Faz parte do plano maior e não pode haver desvios. Nós lhe diremos para quem vocês devem vender seus principais ativos; de um modo geral, não deverá ser para
os que fizerem as maiores ofertas.
- O senhor pretende impor condições ao Tesouro do Vaticano? - perguntou o cardeal.
- Certamente, Eminência. Lembre-se de que é primeiro um Matarese e depois um padre.
- Blasfêmia - disse o cardeal em voz baixa, com os olhos pregados no Matareisen.
- É a realidade, padre, meramente a realidade. Ou preferia que o Tesouro do Vaticano fosse informado de seus pecadilhos financeiros, de que a bela propriedade no lago Como é apenas uma gota d’água no oceano,
como se costuma dizer.
- Que absurdo é esse... "não para os que fizerem as maiores ofertas"? Quem pensa que somos, um bando de idiotas? - perguntou o homem de Portugal.
- Todos terão lucros consideráveis, talvez não tanto quanto previram, mas é necessário.
- Fala em círculos, señor!
- Mas somos um círculo, ou não se dão conta disso? O círculo Matarese.
- Por favor, seja mais claro! O que está dizendo?
- Em termos específicos, serão instruídos para vender seus interesses aos compradores menos experientes, menos qualificados para administrá-los.
- Sacrebleu! - exclamou o herdeiro de Paris. - Está dizendo um disparate! Por que essa gente se interessaria?
- Aí é que está, mon ami - respondeu o líder de Amsterdã. Essas pessoas constantemente extrapolam, pagando por um prêmio que cobiçam mas não podem controlar. O mundo das finanças internacionais está cheio
de exemplos, os gigantes de Tóquio são os que primeiro acodem à nossa mente. Eles queriam entrar na indústria cinematográfica de Los Angeles, e por isso pagaram preços astronômicos até serem devorados
pelos estúdios porque não estavam capacitados para dirigi-los.
- Pra mim, isso é papo furado - bradou o empresário de Nova Orleans.
- Não, ele tem razão - disse o cardeal, com os olhos ainda fixos no holandês. - Empresta credibilidade ao colapso. Invalida o sistema, enfurece as massas, que imediatamente começam a procurar soluções,
mudanças.
- Muito bem, padre. O senhor percebe as coisas estrategicamente.
- Realidade, holandês, simplesmente realidade. Ou deveria dizer credibilidade?
- Elas se tornam interdependentes, não é verdade?
- Em última análise, naturalmente. Os filósofos escolásticos tinham sua razão. Então, agora que as sementes foram plantadas, quando será a colheita?
- Tudo terá que ser rigorosamente coordenado em toda parte. Um evento precedendo o outro, cada ação conduzindo a outra, na superfície aparentemente não relacionadas - exceto uma. As economias americana
e europeia são uma catástrofe, e nenhuma injeção de alta tecnologia pode curá-las, pois os avanços reduzem drasticamente a força de trabalho. A tecnologia não gera empregos, elimina-os.
- Teoricamente - perguntou o inglês de cenho cerrado - qual é a sua, a nossa, solução, se é que temos uma, quando mais não seja para efeito de relações públicas?
- Consolidação benevolente, a autoridade suprema sendo conferida aos que podem incrementar as empresas depois de substituir os que não podem. Uma meritocracia que atrairá os ricos, os instruídos e os ambiciosos,
assim como um sistema controlado de benefícios para os menos qualificados desde que estejam dispostos, até mesmo entusiasticamente, a se incorporar à subestrutura de apoio.
- E o que virá depois? - disse o bostoniano. - Semanas de quatro dias de trabalho, uma televisão em cada lar acoplada a um sistema de monitoramento?
- A tecnologia sofisticada tem suas vantagens, não é mesmo? Mas esses conceitos estão em um futuro ainda remoto. Primeiro, temos que emergir do caos financeiro com uma agenda própria.
- O que me traz de volta à minha pergunta - atalhou o cardeal. - Quando colhemos?
- Em menos de três meses, dependendo dos relatórios atualizados de progresso. E a colheita ocorrerá antes que todos os seus desdobramentos restritivos sejam abruptamente compreendidos. Eu diria dentro
de oitenta dias. "A volta ao mundo em oitenta dias". Tem uma conotação simpática.
- Pryce! - berrou Scofield, correndo pelo gramado acima da garagem de barcos o mais depressa que suas pernas idosas permitiam. Cameron voltou-se; ele estava andando ostensivamente à toa pelo complexo,
mas na verdade sua caminhada não tinha nada de casual. Estava de olho, à procura de alguém que pudesse emergir de algum lugar escondido, alguém que pudesse carregar consigo um telefone celular desaparecido.
- Ei, relaxe - disse Pryce quando um Scofield esbaforido se aproximou. - Você não está mais exatamente em forma para uma prova de fundo.
- Estou tão em forma quanto você, garoto.
- Então o que é que eu estou fazendo aqui?
- Oh, cala essa boca - ordenou Bray, respirando fundo e limpando o suor do rosto. - Sabe de uma coisa? Aquelas revistas que você trouxe de Easton, comecei a passar os olhos nelas.
- Peço desculpas por não ter trazido quadrinhos...
- Fecha essa matraca! Há quanto tempo isso vem acontecendo?
- Há quanto tempo o que vem acontecendo?
- Essas fusões, aquisições, empresas engolindo umas às outras, fábricas e serviços públicos se associando?
- Diria que há uns vinte ou trinta anos, talvez mais.
- Não, seu idiota, estou me referindo aos dias de hoje! Às últimas semanas ou talvez meses?
- Não tenho a menor ideia - respondeu Cam. - Essas coisas não constituem uma prioridade para mim.
- Pois deviam ter! É puro Matarese!
- Como é que é?
- O estilo, a estratégia! É a Córsega, Roma, Paris, Londres, Amsterdã... e por Deus, Moscou, tudo se repetindo outra vez! É a trilha, as trilhas, que Taleniekov e eu perseguimos de volta a Boston, Massachusetts,
às ilhas. Sugiro que você procure as vítimas, suas famílias, amigos, advogados e trate de saber tudo o que puder...
- Estou trabalhando nisso. Frank Shields está designando uma dupla de pesquisadores para me obterem informações sobre o passado do jogador de polo italiano que foi apagado em Long Island; o cientista espanhol
que foi envenenado em Mônaco; a filantropa que foi assassinada pelo segundo marido em Londres. Se não acontecer nada por aqui nos próximos dias, Frank vai me arranjar um transporte militar para o Reino
Unido.
- Então vou fazer outra sugestão - disse Scofield. - Ponha todos eles num incinerador e vá atrás do que está na sua cara aqui mesmo.
- Como é que é?
- Essas revistas, todo esse papo financeiro, os magos da administração, o dinheiro enlameado e seus lucros mirabolantes. E já que estará com a mão na massa, ponha os pesquisadores para investigar as empresas,
tanto nacionais quanto internacionais, os nomes estão todos lá, e aposto que há muita coisa enfurnada que ignoramos... com mais nomes, mais pistas.
- Você está falando sério, não está?
- É claro que estou. Quando vi o nome Waverly, me deu um estalo! Sinto o cheiro, sinto o cheiro deles, e a fedentina é insuportável, pode crer.
- Se você estiver certo, e não estou dizendo que esteja, mas se estiver, poderá economizar muito tempo.
- Estamos sempre à procura de atalhos, não é mesmo?
- Isso é axiomático, se eles forem genuínos.
- É tudo genuíno, Cam. Não posso estar enganado, não sobre isso. Eu estava lá antes que você aprendesse a escrever o seu nome na neve, se percebe o que quero dizer.
- Entrarei em contato com Frank em Langley, para sentir a reação dele.
- Nada disso! - objetou Brandon. - Eu mesmo ligarei para ele numa linha segura. Falta-lhe uma certa convicção, e ainda estou à frente desta operação.
- Julguei que fosse minha função implementá-la - protestou Pryce. - Todas essas coisas que você não se deu o trabalho de fazer - ou não pôde fazer, como correr cinquenta metros no gramado.
- Não enche. Na verdade, uma coisa boa está decorrendo de tudo isso - disse Scofield, segurando o braço de Cameron e empurrando-o de volta à casa e a um telefone seguro. - Em vez de ficar perambulando
pela Europa sem rumo, poderei ficar de olho em você, orientá-lo.
O que nenhum dos dois homens sabia era que, enquanto caminhavam pelo gramado ao pôr-do-sol na baía de Chesapeake, em uma pista não mapeada nas imediações de Havre de Grace, Maryland, um helicóptero Black
Hawk SOA com as mesmas insígnias dos que voavam ao norte vindo de Langley, Virgínia, estava se preparando para decolar rumo ao sul. Entretanto, em vez da carga de suprimentos normais para uma unidade isolada
na costa de Chesapeake, no seu interior havia seis bombas de quinhentos quilos. Ele tinha uma missão a cumprir, ordenada por um homem em Amsterdã.
ONZE
- Então, pegou tudo, Olhos-Apertados... perdão, esqueci que estávamos gravando, vice-diretor Shields, o melhor analista desde que Gaio Otávio enviou Crasso no encalço de Espártaco?
- Peguei tudo - disse Frank Shields, falando de Langley em voz baixa, tensa. - Suas tiradas estapafúrdias sempre conseguem aliviar um pouco a tensão. Posso falar com o agente Pryce, por favor?
- Ele não pode lhe adiantar grande coisa, Frank. Está começando a juntar as peças do quebra-cabeça. - Scofield sentou na cama da suíte que compartilhava com Antonia, olhando para Cameron, que estava à
janela. - Pra lhe dizer a verdade - continuou Bray - ele parece ter dúvidas, mas eu não.
- Quero dizer uma coisa a ele, Brandon. Todo o material que ele solicitou sobre aquelas três pessoas que foram assassinadas está seguindo pelo helicóptero das seis horas.
- Está completo?
- O mais possível. Tudo o que conseguimos desencavar no prazo que nos foi concedido. Familiares, amigos, vizinhos, sócios, ativos e dívidas, reviramos tudo, graças principalmente à Interpol e aos nossos
amigos de Londres.
- Tenho certeza de que ele lhe ficará muito agradecido, mas isso tudo permanece no limbo. Diga aos seus pesquisadores para se concentrarem nos dados que acabei de lhe dar.
- O agente de campo Pryce, por favor? - repetiu Shields. Scofield fez um gesto com o fone para Cameron, que atravessou o quarto e pegou-o, ficando de pé ao lado da cama.
- Sim, Frank.
- Acabei de dizer ao Brandon que você vai receber as informações que pediu sobre os antecedentes daquelas pessoas. Foram despachadas pelo voo das seis, endereçadas pessoalmente a você.
- Imaginei que fosse isso quando ele falou em limbo. Obrigado, vou passar os olhos à noite. Alguma notícia sobre as conexões do nosso coronel Montrose com a Casa Branca?
- Eles dizem que ela não tem nenhuma. Dizem que nem sabem quem ela é.
- Estão mentindo.
- Aquela mesa telefônica não tem secretária, apenas números que conectam você com as pessoas. Estamos trabalhando no assunto... O que é que você acha da teoria do Bray sobre todas essas fusões?
- Veja bem, Frank, não posso negar que haja alguma substância nas especulações de Bray, mas levando em conta as leis antitruste e comissões como a Federal de Comércio e a de Valores e Bolsas, se houvesse
fusões suspeitas, ou mesmo negociações, você não acha que seriam detectadas?
- Não necessariamente - respondeu Shields. - Os grandes financistas dispõem de equipes de advogados corporativos, cada um deles ganhando mais em uma hora do que nós em um mês. Eles sabem quais os botões
devem apertar, quem deve ser comprado, onde alocar um jato da empresa. Estou exagerando, naturalmente. Sem dúvida há menos do que estou insinuando, e provavelmente mais do que gostaria de acreditar.
- Puxa, isso é o que se chama ficar em cima do muro - disse Pryce.
- Há quem diga que é tentar ser justo. Será que devemos conceder ao nosso companheiro mais velho o benefício da dúvida?
- Mais velho? Vocês não são mais ou menos da mesma idade?
- Na verdade, sou um ano e meio mais velho, mas não diga isso a ele. Antigamente, quando não me chamava de Olhos-Apertados, eu era o Júnior. Fazia-o sentir-se mais sabido - e o pior é que é forçoso reconhecer
que geralmente ele é.
- Então embarquemos na canoa dele. Ainda temos os dossiês europeus e provavelmente os usaremos. Falo com você depois sobre isso, vice-diretor Augusto Espártaco, ou seja lá como for que ele o chamou. -
Cameron devolveu o fone a Scofield. Vamos apostar em você, Bray, pelo menos por algum tempo.
- Se estiver enganado, pedirei desculpas, o que sempre faço quando quebro a cara. Mas pensando bem, não me lembro quando foi a última vez que tive que pedir desculpas, o que me leva a acreditar que não
devo ter me enganado muitas vezes.
O helicóptero Black Hawk da CIA estava no meio do voo na rota norte-nordeste a caminho do complexo de Chesapeake quando o oficial de voo virou-se para o piloto. - Ei, Jimbo, o uso deste espaço aéreo não
é restrito?
- Certamente. A interdição a outras aeronaves vigora às seis da manhã e às seis da tarde. Todos os campos de aviação, públicos e particulares, receberam rigorosas instruções nesse sentido. Nossa missão
é ultrassecreta, tenente. Isso não o faz sentir-se realmente importante?
- Neste preciso momento tenho a impressão de que alguém não recebeu as instruções.
- O que está querendo dizer?
- Olhe a tela do radar. Há um avião aproximando-se de nós. Deve estar no máximo a novecentos ou mil pés a oeste.
- Não preciso olhar o radar. Posso vê-lo! Onde é que estamos? Vou entrar em contato com Langley.
- Coordenadas doze e dezoito, sobrevoando o mar, a oeste de Taylors Island. Hora de rumar para o norte para aterrissar.
- É uma loucura! - exclamou o piloto, olhando para fora pelo painel lateral da janela. É um dos nossos, um SOA... Ele está vindo diretamente pra cima de nós! Agora ele está glissando... os prefixos...
meu Deus, eles são dos nossos. Dê o alerta, vou tentar uma manobra de evasão!
Essas foram as últimas palavras pronunciadas. Seguiu-se uma estrondosa explosão, fazendo o aparelho em pedaços. O que restou do helicóptero descreveu uma espiral no espaço e caiu na água, um bólido em
fogo que afundou rapidamente.
O operador do radar em Langley olhou com o cenho cerrado para sua tela superior à direita. Apertou diversos botões, ampliando as imagens, e chamou seu supervisor. - Bruce, o que é que está acontecendo?
- Com o quê? - perguntou o homem de meia-idade, de óculos, na mesa no centro da grande e asséptica sala.
- Perdi o Silent Horse.
- O quê? A rota de Chesapeake! - O supervisor pôs-se de pé de um salto quando o operador continuou.
- Agora está OK - ele emendou rapidamente. - Voltou. Deve ter sido uma queda de voltagem. Desculpe.
- Se acontecer novamente, eu solto os cachorros. O Silent Horse, pelo amor de Deus! Do jeito como aqueles sacanas no Congresso berram, parece que não pagamos nossa conta de eletricidade.
Em poucos minutos, quando os excitados interlocutores conseguiam completar suas ligações, as autoridades policiais de Prince Frederick, Tilghman, Taylors Island e Choptank River receberam um total de setenta
e oito chamadas relatando uma bola de fogo no céu do início da noite, uma retumbante explosão, talvez um avião. Averiguações imediatas com aeroportos de maior e menor porte e campos de pouso não produziram
qualquer informação, muito menos a confirmação da ocorrência. A polícia de Prince Frederick entrou em contato com a Base Aérea de Andrews, um complexo militar/governamental, cujo circunspecto oficial de
relações públicas foi devidamente atencioso e simpático mas não ofereceu nenhuma resposta concreta a qualquer pergunta direta. Simplesmente não estava a par de experiências atmosféricas recentes ou em
curso mas, naturalmente, não estava em condição de negar a possibilidade. O contribuinte americano era bem servido pela constante busca das Forças Armadas no sentido de aperfeiçoar procedimentos de segurança
e de previsão do tempo.
- O idiota do relações-públicas na base de Andrews não disse coisa com coisa - observou o chefe de polícia de Prince Frederick para o sargento de plantão. - Foi provavelmente um desses balões de sondagem
meteorológicas que voam baixo e refletem muita luz. Pelo menos é assim que vejo a coisa. Passe a informação para os outros e voltemos ao trabalho, se é que temos algum.
O vagaroso esquife, com seu pequeno motor pipocando baixinho, abriu caminho pelas águas do rio Choptank e adentrou a baía de Chesapeake. Os dois pescadores em macacões sujos e surrados, um na popa e o
outro no meio do barco a remo motorizado, empunhavam seus caniços em lados opostos da embarcação, à espera dos peixes famintos do cair da noite. Regressariam ao local destinado a piqueniques na margem
do rio onde suas mulheres mantinham aceso o fogo da grelha, confiando que seus maridos voltariam com o jantar assegurado. Tinham o hábito de fazer isso duas vezes por semana há alguns anos; eram mecânicos
que trabalhavam na mesma oficina de automóveis, e suas mulheres eram irmãs. Era uma vida boa. Trabalhavam duro e os ricos de Chesapeake com seus carros sofisticados garantiam emprego permanente. Mas o
melhor de tudo eram aqueles piqueniques, quando as irmãs punham a conversa em dia e eles diminuíam os cardumes de peixes da baía com a sua perícia e muita cerveja.
- Al - disse o homem no leme. - Dê uma olhada aqui!
- Onde?
- Aqui do meu lado.
- Em quê, Sam? - perguntou Al, virando-se.
- Aquela coisa redonda flutuando ali adiante.
- Sim, estou vendo. E há outra à esquerda.
- Falou, também tô vendo. Vamos até lá. - O barco desviou para a direita, aproximando-se dos dois objetos. - Nossa! - exclamou Sam. - São salva-vidas.
- Você pega o seu, depois dê uma guinada e eu pego o outro. - Cada um deles fez isso e recolheu os objetos.
- Oba! - gritou Sam. - Esses troços pertencem à Força Aérea dos Estados Unidos. Devem custar talvez cem ou até mesmo duzentos dólares cada um!
- Provavelmente trezentos, Sam. O seu custo de produção deve ser uns dez dólares e os milicos compram eles por trezentos ou quatrocentos. Com certeza você ouviu falar nos tampos de vasos sanitários e nas
chaves de porca.
- Claro que ouvi.
- É por isso que os impostos sobem cada vez mais, né mesmo?
- E como! Chegou nossa vez de irmos à forra. Vamos ficar com eles, certo?
- Por que não? Durante todos esses anos nunca tivemos um salva-vidas. - Al ergueu seu pesado anel prateado contra a luz mortiça.
- Nunca precisamos de um - disse Sam. - Esta banheira aqui é mais segura do que uma baleia de cimento.
- Uma baleia de cimento afundaria, cara.
- Então não se discute, vamos ficar com eles. Sabe de uma coisa, quando estávamos saindo de Choptank, ouvi um desses helicópteros rumando rio acima. Você acha que ele perdeu os salva-vidas?
- Negativo - objetou Al. - Os milicos são instruídos para se livrar de coisas como essas. Aí têm que comprar mais, como os tampos de privada rachados e as malditas chaves de porca. Li em algum lugar que
isso faz parte do sistema.
- Que diabo, sou patriota. Estive em Anzio e você naquele lugar no Pacífico cujo nome ninguém consegue pronunciar.
- Eniwetok, meu chapa. Uma merda.
- Então vamos mesmo ficar com esses troços, certo?
- Por que não?
- Tá legal. Agora vamos pegar mais alguns peixes antes que a cerveja acabe - disse Sam.
Ninguém sabia o que tinha acontecido; ninguém compreendia; era completa loucura. O helicóptero de Langley aproximou-se para pousar, a guarnição de terra a postos, quando de repente o aparelho deu uma guinada
para a esquerda e armas automáticas começaram a disparar da porta de suprimento aberta, matando ou ferindo gravemente os soldados reunidos abaixo. Então, com a mesma subitaneidade, o helicóptero girou
para a direita, sobrevoando o complexo como se estivesse à procura de outro alvo. Obviamente evidente: a grande casa da propriedade, a mansão que se defrontava com o amplo gramado e a garagem de barcos.
O helicóptero voou em círculo, ganhando altura para fazer a sua devastadora investida final.
Aturdidos com as explosões ensurdecedoras dos disparos sucessivos, Scofield e Pryce correram para as janelas do lado sul, a direção de onde vinham os estampidos em staccato e gritos humanos.
- Deus de misericórdia! - gritou Brandon. - Eles estão vindo atrás de nós!
- O fogo está muito concentrado - discordou Cam. - A fonte é uma só... veja! Meu deus, é o Silent Horse! Que diabo?...
- Quer apostar, garoto? - retrucou Scofield. - É uma simulação para parecer com o Silent Horse! Está avançando na nossa direção. Vamos cair fora daqui! - disse Bray, encaminhando-se para a porta.
- Não! - bradou Pryce. - Os balões do lado norte!
- O quê?
- Há dois canos de esgoto. Não sabemos como ele está equipado. Acha que poderá dar conta do recado?
- É só me experimentar, meu filho. Tenho que encontrar a Toni! - Os dois homens correram como se fossem um só, atravessando o quarto em direção às portas envidraçadas, escancarando-as e ganhando o pequeno
balcão com uma grade de ferro forjado. O helicóptero mergulhou num voo rasante, fazendo um barulho ensurdecedor e tomando o rumo norte, a fim de descrever uma curva.
- Bombas! - berrou Pryce. - Ele está carregado com bombas!
- Ele vai voltar e mandar tudo pelos ares!
- Terá que ganhar mais altitude se não quiser explodir também. Vamos nessa! - Cada homem transpôs a grade de ferro em lados opostos do balcão, agarrando-se ao seu respectivo cano de esgoto. Como duas aranhas
em pânico, dependurados no espaço, mão ante mão, resvalando aqui e ali, desceram verticalmente até o solo enquanto o helicóptero fazia uma curva para ganhar altitude e despejar suas bombas. - Mantenha-se
deitado, o mais perto dos alicerces que puder - ordenou Cameron. - Ele terá que fazer pelo menos duas ou três incursões para lançar toda a sua carga explosiva.
- Apesar da minha senilidade avançada, deu pra perceber disse Scofield. - Depois que ele passar a primeira vez e soltar sua carga, poderemos sair daqui... tenho que achar a Toni!
- Sabe pra onde ela foi?
- Ela falou qualquer coisa sobre a garagem de barcos.
- Por que não? - Pryce atalhou. - Se o pior ficar pior, poderemos ziguezaguear pelos céus da baía.
- Sua gramática é impecável - murmurou Bray. - Aí vem o filho-da-puta!
O que se seguiu não deixou nada a dever ao mais completo terror. Os andares superiores da mansão foram totalmente destruídos, só restando pequenos focos de fogo e fumaça e escombros por toda parte onde
antes luzia o esplendor arquitetônico.
- Vamos nessa! - repetiu Cameron. - Para a garagem de barcos! Temos pelo menos quarenta segundos porque a segunda incursão virá do sul.
As duas figuras atravessaram em desabalada corrida o gramado em declive enquanto o falso Silent Horse continuava espalhando a morte e o terror. Espirais de fumaça encobriam o céu e explosões letais sacudiam
a terra. Ofegantes, Scofield e Pryce encostaram-sena parede da garagem de barcos, observando a devastação.
- Você ouviu isso? - perguntou um Brandon esbaforido.
- Claro que sim e continuo ouvindo! - respondeu Cam. - E quero esse filho-da-puta na frente da minha arma, de preferência encostada na cara dele.
- Não, filho, lembre-se do outro arsenal!
- Do que é que você está falando?
- Das armas automáticas. Nossos rapazes estão se reagrupando e vão atrás daquele helicóptero dos infernos!
- Diga isso aos que não sobreviveram.
- Bem que gostaria - disse Scofield, com suas feições enrugadas abatidas pela tristeza. - Toni - ele gritou abruptamente. Vamos entrar e ver se ela está aí dentro.
Ela estava, e a cena sob o teto inclinado da garagem de barcos deixou os dois homens boquiabertos. Pois do outro lado do ancoradouro em que a Chris-Craft balouçava na água, Antonia empunhava uma automática,
apontada para a tenente-coronel Leslie Montrose, que tinha na mão um telefone portátil, mas não do tipo fornecido pela CIA.
- Lembrando-me do que o senhor disse sobre o nosso coronel aqui presente e dos seus telefonemas desta garagem em duas ocasiões distintas, Sr. Pryce, resolvi passar a vigiá-la pessoalmente.
A explicação foi interrompida por uma série de explosões ensurdecedoras do lado de fora.
- Lá se vai pelos ares o resto da casa, coronel - disse Cameron, contendo a custo sua fúria. - Estava orientando o ataque daqui? E quantos outros foram mortos, sua filha da mãe?
- Tudo será explicado, se necessário - disse Montrose, calma e friamente.
- É melhor explicar agora mesmo! - explodiu Scofield, enfiando a mão no cinto e sacando uma arma. - Do contrário, arrebento seu lindo rostinho. Você está trabalhando para o inimigo!
- Se assim parece, que seja - disse Montrose.
- Você vem ligando para a Casa Branca - esbravejou Pryce. Quem é o seu contato, o traidor infiltrado na CIA?
- Ninguém que conheça.
- Acho bom ficar sabendo agora, ou direi ao meu amigo para lhe enfiar uma bala nos miolos.
- Não duvido nada...
- Pois fique certa disso. Você não vale nada, é um lixo. Fale, miserável!
- Aparentemente, não tenho escolha.
- E não tem mesmo.
- Meu contato, como o chama, é diretamente subordinado ao presidente, uma autoridade em atividades clandestinas. Estava, estou, numa posição única para prestar um serviço.
- Que posição? Que serviço!
- O inimigo, como os chamou, sequestrou meu filho. Ele foi levado do seu colégio em Connecticut. A menos que eu supostamente faça o que mandam, eles o matarão.
Uma explosão final mais parecendo um terremoto estremeceu a garagem de barcos. Três janelas voaram longe, os estilhaços de vidro caindo sobre a Chris-Craft. Nitidamente visível entre os destroços, um balão
de borracha vermelho estava amarrado num caixilho superior de uma das janelas destruídas. Sobrevivera milagrosamente à devastação, flutuando na extremidade de um longo cordão.
- Era o sinal que indicara o alvo ao helicóptero assassino. Alguém no complexo vinha seguindo de perto os passos de Beowulf Agate, e minutos antes do ataque sabia exatamente onde ele se encontrava.
DOZE
Os sacos com os cadáveres e os feridos foram prontamente removidos por via aérea, os poucos e perplexos policiais locais sendo mantidos à distância pelas autoridades federais. Os vizinhos relativamente
distantes, horrorizados com o barulho, mas não podendo observar o local interditado, exigiram explicações. Elas foram dadas; de um modo geral, versões apressadamente alinhavadas de repressão ao tráfico
de drogas. Quatro propriedades foram imediatamente passadas adiante, a despeito de garantias expressas de que a bem-sucedida operação tinha sido completamente encerrada.
Com base em fitas de rastreamento de radar, supunha-se que o falso Silent Horse manobrara no sentido oeste sobre a praia de Bethany, em Delaware, rumando para o Atlântico, onde desaparecera da tela. A
confirmação veio da Estação Naval Aérea no rio Patuxent, em Nanticoke, a sudeste de Taylors Island. As telas do interceptor da estação mostraram uma aeronave não-identificada avançando rapidamente para
o mar aberto quando seu rastro foi abruptamente apagado.
Os profissionais estavam de acordo, pois era uma estratégia conhecida em se tratando de atos terroristas. O helicóptero agressor rumara para um local de encontro no Atlântico onde sua tripulação lançara-se
ao mar para ser resgatada por uma embarcação. Também era de se supor que, antes de o helicóptero ser abandonado, um explosivo previamente regulado fora ativado, explodindo o aparelho pouco depois e enviando
seus destroços para o fundo do oceano. Os Matarese eram extremamente meticulosos em tudo o que faziam.
Frank Shields caminhava com Scofield pelo outrora tranquilo e aprazível complexo. Por toda parte viam-se dolorosos vestígios do massacre, principalmente destroços fumegantes da mansão arrasada. Portas,
janelas, paredes e colunas despedaçadas estavam reduzidas a ruínas em brasa, algumas a uma distância de cento e oitenta metros, o comprimento de dois campos de futebol.
- É como se fosse um campo de batalha depois do confronto de dois exércitos - disse Bray solenemente. - Só que neste caso nem sabíamos que estávamos em combate. Miseráveis!... E a culpa é toda minha! Eu
poderia ter evitado essa desgraça. Nunca me perdoarei. - As palavras de Scofield eram pronunciadas em voz baixa, penosamente.
- Não creio que você pudesse ter impedido o que aconteceu, Brandon...
- Sem essa, Frank! Você disse que queria que nós saíssemos daqui e eu me opus, disse não. Sou um velho teimoso, cabeça dura, que não se toca que tem que deixar de dar ordens! Fiquei afastado durante muito
tempo para pretender agora ter autoridade.
- Não estou querendo fazer com que você se sinta melhor, tampouco quero eximi-lo de qualquer responsabilidade. - Shields atalhou. - Estou simplesmente dizendo que você não podia ter evitado o ataque.
- Como é que você pode afirmar isso?
- Porque teria acontecido onde quer que você estivesse… Estamos sitiados, Bray. Até mesmo nossos memorandos internos, incluindo códigos e instruções confidenciais a departamentos, são vulneráveis.
- Como é que você sabe?
- Quando o sinal de emergência soou e ficamos sabendo o que estava acontecendo aqui, liguei para a segurança externa e dei a maior bronca. Onde é que estava nossa cobertura aérea, que fim tinham levado
nossas patrulhas aéreas localizadas. Elas sempre ficavam nos parâmetros do corredor, às seis da manhã e às seis da tarde.
- E onde é que eles estavam? - perguntou Scofield, indignado. - Que diabo, nós ouvíamos toda vez que os pilotos chegavam! Eles acordavam Toni de manhã. Onde é que os sacanas estavam?
- A segurança me informou que eles tinham recebido uma ordem interna no código padrão de emergência para manter os caças de escolta do Silent Horse em terra porque ele estava sendo submetido a uma rigorosa
revisão.
- Como é que é? Quem foi que autorizou?
- Certamente não fui eu, Brandon.
- Seu escritório? Quem no seu escritório?
- Você não compreende. Pode ter sido qualquer um, mas quem ousaria?
- Esfole o seu pessoal - gritou Bray, furioso. - Torture os filhos-da-puta até sangrar. É o mínimo que você pode fazer, não duvido nada que eles próprios tenham disparado as metralhadoras e soltado as
bombas. Oito mortos e mais quatro feridos que provavelmente não sobreviverão. Faça alguma coisa, Frank! Eu não posso, mas você pode... que diabo, é o seu território!
- Estou sabendo e farei as coisas à minha maneira porque tenho a autoridade e a responsabilidade, e meu julgamento não se baseia em obstinação ou desejo de estampar o meu impramatur no que quer que seja.
- Oh?... - Scofield parou; esticou a mão e segurou o braço de Shields. - Tudo bem, Olhos-Apertados, eu merecia ouvir isso.
- E, acho que sim.
- Estou puto da vida!
- Eu também, Brandon - disse o vice-diretor, com os olhos apertados parados. - Mas instaurar um golpe na Agência, nos moldes que você sugere, só contribuiria para levar nossos inimigos a agir cada vez
mais sub-repticiamente, criando uma atmosfera propícia a sua proliferação. A dissensão pode ser uma manobra diversionista muito eficaz.
- Oh, Deus - disse Bray, soltando o braço de Shields enquanto continuavam andando. - Desconfio que é por isso que você é um analista e eu não sou... Mas o que não consigo compreender é por que, se é a
mim que querem ver morto e enterrado, não se limitam a contratar um pistoleiro para me enfiar uma bala na cabeça? É um serviço simples, limpo e rápido, envolvendo um risco mínimo e garantindo uma porcentagem
máxima de resultado satisfatório. Deus sabe que temos nosso próprio Judas aqui dentro. Aquele balão vermelho não foi colocado lá por um dos duendes do Papai Noel.
- Não, mas responde a sua pergunta. Quem quer que possa ter sido tinha que saber que você, Antonia e Pryce raramente saíam das vistas do pessoal da vigilância do complexo.
- Isso é verdade?
- Certamente. Procuramos considerar todas as contingências possíveis e imagináveis. Não investimos tanto esforço e materiais, sem falar em dinheiro, para que você pudesse ser levado daqui sem mais nem
menos.
- Como foi que não percebi? Ou Toni ou Cameron? Afinal, nenhum de nós é um amador.
- A vigilância era feita sobretudo remotamente, de acordo com setores. Um sargento, por exemplo, podia falar com um cabo pelo seu walkie-talkie e dizer "Bomba" - que era você - "está saindo do Setor Seis,
pegue-o no Sete". Dividimos o complexo em grades, o resto você conhece.
- Veículos alternados - concordou Scofield. - "Sedã marrom virando na Oitava Avenida, siga-o rua Quarenta e Seis".
- Precisamente. Essa tática nunca perde sua eficiência.
- As antigas geralmente são as melhores, Frank... De que diabo estamos falando? Estamos falando abobrinhas como se fôssemos dois estagiários!
- Estamos falando desse jeito para podermos pensar. É tudo o que nos resta.
- Acho bom pararmos de pensar e começarmos a agir, Júnior.
- Francamente, Bray, "Olhos Apertados" vá lá, mas "Júnior", tenha santa paciência. E, como disse ao Pryce, sou mais velho do que você.
- Não me diga!
- Dezoito meses e onze dias, garoto... Já que não está a fim de pensar, o que é que você tem a dizer do departamento de realizações?
- Primeiro - respondeu Scofield - estou juntando os elementos de que dispomos. O jovem cabo abatido na estrada em frente ao complexo; o agente infiltrado que escalou a parede para dar cabo de Toni e de
mim; o envenenamento de Bracket e Denny numa refeição da manhã que se destinava a mim; o bombardeio cuja origem não conseguimos identificar, com o detalhe do sinalizador do alvo colocado por um traidor
ou traidores daqui de dentro que tampouco conseguimos encontrar. Finalmente, há o contato da Montrose com a Casa Branca. Que conclusão tirar disso tudo?
- Agora você está voltando a raciocinar - disse um Shields grave e confuso. - Uma coisa ficou esclarecida em relação ao incidente com a coronel Montrose: ela está limpa, embora tenha entrado em pânico.
Pra dizer a verdade, nem sei como consegue trabalhar. Deve estar desesperada com o que possa acontecer ao filho.
- Como foi que ela se envolveu com a CIA?
- Através do coronel Bracket. Ele e sua mulher são - eram, melhor dizendo - amigos íntimos da Montrose. Quando ocorreu o sequestro e ela foi contatada pelo que supomos tenha sido um representante dos Matarese,
ela quase teve um esgotamento nervoso. Ela não tinha para quem apelar, certamente não para a burocracia falastrona. Segundo a Sra. Bracket, que, por sua vez, também está atravessando momentos de grande
estresse, a Montrose confiava no seu marido, Everett, um colega de farda e de certa forma seu mentor.
- Parece razoáve! - disse Bray, acenando com a cabeça enquanto circundavam a área de pouso do helicóptero Black Hawk. - Ela confiou nele porque ele era um amigo, ex-cadete de West Point, seu confidente.
Mas e o lance da Casa Branca?
- Bracket fez pós-graduação em Yale e um de seus colegas de turma era Thomas Cranston...
- Conheço esse nome - interrompeu Scofield. - Ele foi um dos nossos, não é mesmo?
- Até chegar aos primeiros escalões, e foi dos melhores. Além de seus dons naturais, era um tremendo vendedor. Se tivesse permanecido em Langley, poderia ter sido diretor geral, e eu certamente o teria
apoiado.
- Frank, esse cargo poderia ter sido seu! Nem um pingo de inveja ou ódio normal corre nas veias desse seu corpo frágil?
- Não por reconhecer que me faltam qualificações e gostar do que faço - que sei que faço bem. Cranston deixou a Agência para dirigir um desses órgãos de consultoria financiados por entidades acadêmicas
internacionais. De lá foi um pulo para a política. Ele é agora assessor-chefe do presidente para assuntos de segurança nacional.
- Então o Bracket encaminhou a Montrose para ele.
- Sim, pareceu lógico, e diante do que aconteceu, foi uma medida certa. Temos know-how e tarimba, mas somos obviamente um órgão canceroso. O filho dela teria sido morto se ela tivesse vindo a nós.
- Mas o que é que esse Thomas Cranston pode fazer?
- Não faço ideia, mas o que quer que seja, será muito bem respaldado.
- Por quem?
- Não sei.
- Então precisamos descobrir.
- Solicitei um encontro com ele em território neutro. Talvez fiquemos sabendo de alguma coisa que a Casa Branca não queira que a gente saiba - nessa conjuntura.
- Afinal não estamos do mesmo lado! - perguntou Bray, levantando a voz.
- Às vezes trabalhamos com objetivos opostos.
- Isso é uma merda!
- Sem a menor dúvida, mas é assim que são as coisas.
- Tá certo, tá certo. Naturalmente, faço questão de participar desse encontro. Pryce e Antonia também. Lembre-se de que nós somos os especialistas.
- Vocês serão incluídos - concordou Shields. - Mas a coronel Montrose não. Cranston está preocupado com o grau de ansiedade dela.
- Compreensível... Quanto a essas proezas financeiras, as fusões, as corporações se associando e, a meu ver, encurralando os mercados, posso ser útil nesse setor. Não sou nenhum computador mas me lembro
de nomes, conexões, amigos dos Matarese e os inimigos que eles engoliram ou destruíram. Só preciso de métodos de operação, dados sobre a linhagem das empresas... isso é importante, é vital. Em última análise,
a fraqueza dos Matarese reside no fato de serem incestuosos; eles sempre arregimentam gente do seu próprio sangue, indo buscá-la no passado, chantageando-a e apelando para a sua cobiça. É um padrão completamente
secreto, mas os contornos estão lá e eu os reconhecerei.
- Nossos pesquisadores estão trabalhando em cima de tudo o que você quer. Você receberá as informações dentro de poucos dias. Será tudo remetido para você na Carolina do Norte.
- Outro complexo?
- Não, um retiro nas montanhas consistindo de uma dúzia de condomínios terrivelmente caros nas Great Smoky. Você ficará confortavelmente instalado à custa dos contribuintes.
- Pare aí! - gritou Scofield, com os olhos fixos num pedaço de metal prateado na plataforma de pouso do helicóptero. Abaixou-se e apanhou-o. - É do Black Hawk que nos bombardeou - ele disse, cuspindo e
esfregando a superfície com o dedo polegar.
- O que é que você imagina que possa ser? - perguntou o vice-diretor da CIA.
- Nossas patrulhas responderam ao fogo de artilharia na segunda ou terceira passagem e arrancaram um pequeno pedaço da fuselagem. Não pode ser outra coisa.
- E daí?
- A pintura é relativamente nova. Mande isso para Sikorsky. Talvez eles consigam identificá-la com o aparelho original.
- Não tenho certeza se estou entendendo, Brandon.
- É parte de uma possível resposta... quem sabe?
- Como assim?
- O Black Hawk que nos bombardeou e metralhou era falso, disfarçado pelos Matarese. Verifique com a Sikorsky quem alugou ou comprou um MH-60 K adaptado para operações especiais nas últimas semanas.
- Pensei que você tinha deixado esse mundo pra trás.
- Antonia andou fazendo perguntas. Um dos artilheiros da FDR identificou o helicóptero.
Cameron Pryce e Antonia Scofield reuniram os objetos pessoais dos mortos e feridos - tarefa que o Scofield cheio de culpa não pôde aceitar. Terminada a desagradável incumbência, eles se juntaram a Brandon
e Frank Shields na plataforma de pouso e decolagem, juntamente com a tenente-coronel Leslie Montrose.
- Seremos escoltados para a Carolina do Norte por quatro F-16L, dois na frente e dois atrás - disse o vice-diretor enquanto os quatro passageiros colocavam suas bagagens a bordo.
O Black Hawk ergueu-se do solo, Shields ao lado do piloto e do oficial de voo, Scofield sentado ao lado da mulher, e Pryce, ao lado de Montrose. Para os dois últimos, os primeiros momentos de voo foram
constrangedores, nenhum dos dois sabendo o que dizer ao outro. Finalmente, Cameron falou.
- Sinto muito, sinceramente, sobre tudo o que aconteceu.
- Eu também - respondeu a oficial do Exército friamente. Teria consentido que o Sr. Scofield me matasse?
- É uma pergunta difícil de responder. Julguei que fosse responsável pelo ataque aéreo... na ocasião provavelmente teria consentido. Homens tinham sido mortos, muitos outros tinham sido feridos. Minha
reação foi muito violenta.
- A minha também teria sido. Sou capaz de compreender.
- Então por que diabo não nos explicou sua situação?
- Recebi ordens para não fazê-lo.
- De quem? De um cara chamado Thomas Cranston?
- Eu sabia que descobriria. Sim, Tom Cranston, e com a autoridade do seu chefe, o presidente.
- Por quê?
- Porque Cranston não confiava na capacidade da CIA de proteger eficientemente a integridade do complexo. E, pelo que se viu, ele tinha razão, não é verdade?
- Um bom amigo, que neste momento está na cabine do piloto, está muito acabrunhado com isso. Está mesmo sofrendo.
- Eles estão em toda parte, Sr. Pryce, sejam lá quem forem estão em toda parte! E não conseguimos vê-los, não conseguimos encontrá-los.
- Não sabe quem eles são?
- Só sei dos angustiantes telefonemas de lugares como o Cairo e Paris e Istambul, dizendo-me o que acontecerá com meu filho. O que é que faria na minha posição?
- Exatamente o que fez. Teria me dirigido ao topo da pirâmide, se tivesse condições para isso, e não à burocracia intermediária amorfa, vazadora de informações.
- Cranston me disse que havia canais acima da comunidade de inteligência, ou abaixo, se preferir, que podiam fazer ameaças que ninguém podia igualar. Sou uma mãe, quero meu filho de volta! Seu pai morreu
a serviço do seu país, e eu sou tudo o que lhe resta. Se não puder tê-lo comigo, morrerei tentando, o que estou absolutamente disposta a fazer. Sou um soldado, conheço os riscos e irei às últimas consequências
para conseguir o que me é devido. Razão pela qual, graças a Deus, consegui chegar ao topo. O senhor pertence a uma organização com graves falhas, Sr. Pryce, e eu passarei por sua autoridade para ter o
meu filho de volta. Meu marido e eu demos o bastante!
- Posso fazer uma sugestão? - perguntou Pryce, deixando passar a emoção do momento.
- Ouvirei qualquer sugestão desde que acredite que a pessoa que a fizer está do meu lado.
- Estou do seu lado, coronel. Assim como Frank Shields e os Scofield também estão.
- Estou certa de que está, até onde pode estar.
- Não sei o que isso quer dizer.
- Os senhores têm seus compromissos a cumprir e têm que proteger seus traseiros... reputações é uma maneira mais gentil de dizer. Eu só tenho um compromisso básico, a volta em segurança de meu filho.
- Não querendo contradizê-la - disse Cameron serenamente e de fato não quero, pareceu-me, entretanto, que soube conduzir suas responsabilidades no complexo com extrema eficiência. Era um compromisso básico
também.
- Tom Cranston disse a Bracket que poderia haver uma conexão e eles me designaram para a missão.
- Poderia haver uma conexão? Isso é tudo o que sabe?
- Além da existência de uma organização terrorista cujos alvos são o senhor e os Scofield, principalmente o Sr. Scofield, não temos necessidade de conhecer detalhes específicos.
- E acreditou nessa merda? - Pryce perguntou, exaltado. Perdoe-me a linguagem, mas é merda pura, sofisma seria uma maneira mais gentil de dizer.
- Eu acredito nessa merda, ou sofisma, porque acredito na hierarquia de comando. Concordo que ela também tem suas falhas, mas acerta muito mais do que erra. A informação na mão de leigos ou inexperientes
pode ser extremamente perigosa.
- Me dê um exemplo específico.
- Acho que a ideia está naquele velho cartaz da Segunda Guerra Mundial. "Línguas soltas afundam navios."
- Mesmo entre os que tripulam esses navios?
- Se precisarem saber, saberão.
- Já lhe ocorreu que se o capitão de um navio não estiver informado, ele poderá se chocar com outro navio?
- Estou certa de que essas possibilidades sempre são levadas em conta... Aonde quer chegar, Sr. Pryce?
- A senhora é uma peça importante, coronel, e no entanto não tem o quadro completo da situação que deveria ter. Eu diria que deveria exigi-lo tendo em vista a morte de Everett Bracket, seu assassinato,
para ser preciso. Ele era seu amigo, um amigo íntimo. No seu lugar, eu estaria muito triste e revoltado.
- Eu lamento meus mortos à minha maneira, Sr. Pryce. Perdi um marido, lembra-se? Quanto à revolta, acredite que ela está aqui no meu peito... Qual era a sua sugestão? Lembro-me de ter dito que tinha uma.
- E a senhora acabou de reforçar meu argumento para que a aceite.
- Como assim?
- A hierarquia de comando que tanto aprecia está sendo mal usada e abusada. Está sendo programada uma reunião entre mim, os Scofield e Cranston. Shields insiste para que ela se realize. Mas a senhora não
vai estar presente.
- Oh? - Os olhos de Leslie refletiram sua suspeita instintiva e relutante aceitação.
- Acho que deveria estar - Cameron acrescentou rapidamente. - Repito, considero-a uma peça importante com muita coisa em jogo. Devia conhecer o quadro completo e não apenas fragmentos. Às vezes levamos
a máxima da necessidade de saber longe demais, a ponto de a mão esquerda não ter certeza de onde está a direita. Aceite a palavra de quem já viu muita coisa. Deveria participar dessa reunião.
- Não há muita coisa que eu possa fazer a respeito - disse Montrose num tom cáustico monocórdio. - O subsecretário Cranston tomou uma decisão. Tenho certeza de que tinha suas razões.
- Ilusão sua. Ele está preocupado com o seu envolvimento muito pessoal. Ele acha que a senhora pode fraquejar.
- Isso me magoa.
- A mim também. E o que mais me incomoda é que ele está eliminando, de fato, qualquer contribuição que a senhora poderia fazer.
- Como eu poderia fazer isso?
- Dependeria do que lhe foi dito nos telefonemas que recebeu. Conseguiu gravar alguma das conversas?
- Não. Os homens que falaram comigo, homens diferentes, disseram que tinham equipamento capaz de detectar esses dispositivos, e se eles fossem ativados, as consequências seriam graves. Contudo, cada conversa
ficou indelevelmente gravada na minha mente e num caderno de anotações guardado num cofre na minha casa.
- O Cranston tem cópias das páginas desse caderno de anotações?
- Não, dei-lhe apenas sumários.
- Ele se satisfez com isso?
- Foi o que ele pediu.
- Ele é um idiota - disse Pryce.
- Considero-o um homem brilhante e muito atencioso.
- Ele pode ser ambas as coisas, mas também é um idiota. E como é que pode dizer uma coisa dessas? Ele a excluiu de uma conferência importante que afeta diretamente seu filho.
- Digo novamente - repetiu a tenente-coronel - ele tinha suas razões. Ele talvez esteja certo, até onde posso ser objetiva?
- Diria que seu controle é excepcional. Não posso saber o que seja ser um pai ou uma mãe nas suas circunstâncias, mas sei porque nunca disse à minha mãe, meu pai, meu irmão ou minha irmã aonde vou ou o
que estou fazendo... Não quer participar da reunião?
- Com todo o meu coração...
- Então vai participar - interrompeu Cameron firmemente. E só precisarei fazer uma pequena chantagem para garantir a sua presença.
- Me deixou confusa. Chantagem?
- E isso aí. Posso ameaçar o Shields com a notícia de que os Scofield e eu nos recusamos a comparecer sem a senhora. Ele que se vire com o Cranston.
- Por que ele aceitaria isso?
- Em primeiro lugar, os dois precisam de nós, e o que é muito mais importante, o Cranston nunca pediu o seu caderno de anotações, contentou-se com sumários. Só isso bastaria para pôr o Frank, o analista,
e Brandon, o ex-superagente secreto, em órbita.
- Os sumários não eram suficientes?
- De jeito nenhum.
- Por quê? Eles transmitiram a informação essencial. O que mais poderiam conter?
- Uso de certas palavras, referências, idiomas estranhos, os menores detalhes podem levar a muita coisa - respondeu Pryce, o profissional completo. - Pelo que estou percebendo - ele prosseguiu tranquilamente,
ao lado de Montrose -, Cranston é um tremendo estrategista geopolítico, uma espécie de Kissinger, mas ele nunca pôs os pés no campo. Há florestas e há árvores. Cranston pode ser imbatível ao projetar a
vegetação, mas não é capaz de distinguir uma árvore de verdade de uma de plástico ocultando uma tonelada de explosivos... Vai estar presente nessa reunião, sim, senhora... perdão, coronel.
Ela esteve.
O turbo-hélice decolou da Base Aérea de Andrews às cinco horas da manhã transportando dois passageiros, o subsecretário Thomas Cranston e o vice-diretor Frank Shields, da CIA. Seu destino era um campo
de pouso particular em Cherokee, na Carolina do Norte, sete milhas ao sul de um resort chamado Peregrine View, nas montanhas Great Smoky. Tendo em vista que cada homem respeitava a confidencialidade do
outro antes da reunião que se realizaria dali a duas horas, a conversa foi inócua, mas não completamente destituída de informação.
- Como é que vocês descobriram este lugar? - perguntou o subsecretário.
- Os idealizadores do empreendimento fizeram um gigantesco santuário devotado ao golfe que somente os muito ricos poderiam se dar o luxo de frequentar, mas infelizmente os miliardários eram, na sua grande
maioria, muito velhos para suportarem a altitude, bem como o acesso difícil - respondeu Shields, dando uma risada discreta. - Os promotores se deram mal e compramos o condomínio pela metade do preço.
- Acho que o Congresso devia reavaliar suas preocupações com respeito ao orçamento de vocês. Na minha opinião, vocês são homens de negócios espertíssimos.
- Somos capazes de perceber quando se trata de uma pechincha, Sr. Subsecretário.
- Como é que ele é?
- Muito elegante e muito isolado. Temos uma equipe mínima de manutenção, e o usamos como uma área de segurança máxima. Em outros tempos, muitos dissidentes soviéticos aprenderam a jogar golfe lá.
- Um jogo eminentemente capitalista...
- A maioria aderiu a ele, da mesma forma que ao hábito de debitar às verbas de representação da KGB suas despesas nos melhores restaurantes de Washington.
- É verdade, lembro-me de ter visto cópias desses relatórios de despesas. Nos velhos tempos... Onde é que vamos nos reunir?
- O local chama-se Estate Four, um carrinho de golfe nos levará até lá. Fica a cerca de quatrocentos metros acima na trilha da montanha.
- Precisarei usar uma máscara de oxigênio?
- Não na sua idade. Provavelmente quando chegar à minha.
Sentaram-se em cadeiras confortáveis na sala de estar de um condomínio bem mobiliado perto do sopé das montanhas Great Smoky na Cordilheira dos Apalaches. Scofield estava ao lado de sua mulher, Pryce e
a tenente-coronel Montrose à esquerda do casal, ela em roupas civis, uma saia escura plissada e uma blusa branca de seda. Do outro lado da sala estavam o vice-diretor e o subsecretário Cranston.
Thomas Cranston era um homem de estatura média, ligeiramente corpulento, com um rosto que poderia ter sido esculpido por um Bernini afável. De carne flácida, mas traços aquilinos, tinha ares de um fidalgo
acadêmico que já vira e ouvira de tudo mas permanecera intelectualmente cético. Seus grandes olhos, ampliados pelos óculos de armação de tartaruga, transmitiam um desejo de compreender, não de confrontar,
contestar - a menos que fosse necessário. Ele falou.
- Depois que seus amigos do complexo pararam de gritar comigo, eles deixaram claro o erro de meus métodos. Novamente, sinto muito.
- Tom, não esperava que nada parecido com isso acontecesse...
- Se não esperava, eu esperava, minha jovem - aparteou Brandon Scofield irritadamente.
- Meu nome é Montrose, Leslie, e sou tenente-coronel do Exército dos Estados Unidos, e não "sua jovem"!
- Você também não é lá essas coisas como oficial da inteligência, e tampouco seu amigo almofadinha. Pelo amor de Deus, você tinha registros textuais de ligações telefônicas, ou pelo menos bastante acuradas,
e o bacana aqui se contentou com sumários?
- Permita-me lembrá-lo, Sr. Scofield - disse Montrose com autoridade militar - o subsecretário Cranston é assessor do presidente dos Estados Unidos.
- Você certamente se vangloria um bocado do seu prestígio com o governo dos Estados Unidos da América, não é mesmo? Aposto que ele não passa, de fato, de um subsecretário. Não permitiria que ele fosse
secretário nem do meu gato.
- Basta, Brandon. - Shields levantou-se de sua cadeira.
- Pare com isso, Bray - disse Pryce, inclinando-se para a frente.
- Você já disse o que queria, querido - acrescentou Antonia.
- Um momento - interrompeu Cranston, esboçando um discreto sorriso. - O agente Scofield tem todo o direito de estar contrariado comigo. Não sou insensível aos comentários, e como já foi salientado, nunca
estive num campo hostil e tampouco possuo conhecimentos para aconselhar aqueles que já estiveram. Meu trabalho é diferente, e é de pouca utilidade para os senhores a curto prazo.
- Tente um passe longo - disse Bray entre os dentes.
- Farei melhor do que isso, agente Scofield, tentarei um drible.
- Como assim? - perguntou Cameron.
- Estudei o caderno de anotações de Leslie, do coronel, quero dizer, bem como coloquei suas páginas num processador de textos de um computador com suas infinitas funções. Meu ex e muito mais competente
colega Frank, aqui ao meu lado, me disse o que eu deveria examinar, e como era mais fácil, com o consentimento de Leslie, que eu obtivesse o caderno primeiro, posso ter descoberto alguma coisa.
- Conte-nos - disse Scofield sarcasticamente. - Até agora o seu drible parece estar levando a um gol contra.
- Pare com isso, Brandon - Shields interrompeu impacientemente, sentando-se.
- Não consigo me segurar, Olhos-Apertados. Esses caras me consideram sem salvação.
- Eu era um pré-adolescente quando essa egrégia decisão foi tomada, Sr. Scofield, e tendo lido os autos, teria discordado firmemente. Aceite o que estou lhe dizendo se quiser.
- Reconheço que suas palavras são convincentes - respondeu Bray. - Também acredito em você, embora não saiba exatamente por quê. O que foi que descobriu?
- Duas expressões que aparecem em cada um dos comunicados que o coronel Montrose recebeu dos sequestradores do seu filho. Há pequenas variações mas a redundância está lá, essa é a melhor maneira de definir.
- Então diga-a mais claramente - disse Scofield.
- O coronel...
- Pode me chamar de Leslie, Tom - interrompeu Montrose. Eles sabem que somos amigos, e neste momento patentes militares soam um tanto irritantemente. Elas são bastante frias, não é mesmo?
- Nós todos vamos jurar que nunca ouvimos isso - disse Pryce, sorrindo gentilmente para a tenente-coronel, que não conteve uma risada suave, embaraçada. - Por favor prossiga, Sr. Subsecretário - emendou
Cameron.
- Muito bem, Leslie foi contatada sobre seu filho um total de sete vezes, duas vezes da Holanda, de Wormerveer e Hilversum. Acreditamos que seja em Amsterdã. As outras vezes de Paris, Cairo, Istambul,
e aqui, de Chicago e Sedgwick, Kansas. A abrangência geográfica - global - era básica para a estratégia de intimidação. Quem eram eles? De onde vinham? A intenção era aterrorizar. Em cada caso, os homens
que telefonaram para ela transmitiram instruções que deveriam ser cumpridas assim que ela se encontrasse no interior do complexo; teriam que ser levadas a cabo rigorosamente ou seu filho seria morto...
lentamente.
- Santo Deus - suspirou Antonia, olhando para Montrose.
- Quais eram as expressões? - perguntou Shields. - As duas expressões que captou?
- A primeira aparecia em todas as suas instruções. Elas deveriam ser executadas "com grande precisão". A segunda era uma admoestação intrínseca à sua ameaça de represália.
- "Represália" não diz tudo, Tom - Leslie atalhou. - Trata-se da tortura e morte de meu filho.
- Tem razão. - Cranston fez uma pausa, evitando olhar para ela. - As palavras eram as seguintes, começando com a primeira chamada de Wormerveer, na Holanda.
- Que o senhor supõe ficar em Amsterdã - interrompeu Scofield. - Por quê?
- Chegarei lá mais adiante - respondeu o assessor presidencial.
- As palavras, por favor, pronunciadas de Wormerveer - disse Frank Shields, com os olhos cerrados de concentração.
- "Stay cool", uma expressão peculiarmente americana que significa "Fique fria", falada por um homem na Holanda.
- Afro-americana, para ser mais exato - acrescentou Pryce. Embora tenha sido incorporada muito tempo depois. Perdão, prossiga.
- De Hilversum, também na Holanda, "Lembre-se, fique fria". Nas chamadas de Paris e do Cairo, as palavras "fique fria" reaparecem. Depois de Istambul, "é imperativo permanecer fria", através de um intermediário
turco. Uma notável transliteração linguística, não acham?
- Depende de quem a disser - respondeu o atual e ex-Beowulf Agate. - O que mais?
- Aqui nos Estados Unidos, de Chicago e Sedgwick, Kansas: "Não perca a frieza" e "Fique fria, coronel, ou o berço cai".
Montrose fechou os olhos, deixando escapar uma lágrima. Ela respirou fundo e reassumiu sua postura militar na cadeira.
- Resuma o que temos - disse Scofield asperamente, olhando penosamente para Leslie, voltando-se depois para o homem da Casa Branca. - Já que aprecia os sumários, sumarize.
- As instruções foram escritas para que os mensageiros as transmitissem independentemente de onde estivessem chamando. Leslie descreveu as vozes como sendo diferentes, os sotaques variados, o que é perfeitamente
natural. O que não é natural é ouso consistente dos termos "com precisão" e as variações de "frio".
- Creio que todos concordamos com isso, Tom - disse Shields. - Aonde você quer chegar?
- Também concordariam que a palavra "cool" provém do Inglês americano?
- Naturalmente - interrompeu um Brandon impaciente. - E daí?
- Destinada a um ouvido americano, para maior ênfase vernacular...
- Parece que sim - concordou Pryce. - O que mais está insinuando?
- O óbvio - respondeu Cranston. - As instruções foram escritas por um americano, alguém do primeiro escalão dos Matarese.
A tenente-coronel Montrose inclinou-se para a frente na sua cadeira. - Quem? - ela perguntou.
- Esse é o nome deles, Leslie - disse o subsecretário de Estado. - Os sequestradores do seu filho chamam-se Matarese. Preparei um dossiê para você, tudo o que temos arquivado, fornecido em grande parte
pelo Sr. Scofield aqui presente, conhecido como Beowulf Agate.
Montrose virou a cabeça para Bray e começou a falar quando foi interrompida por Frank Shields. - Estou percebendo aonde você quer chegar, Tom - ele disse, ignorando a consternação de Leslie. - O primeiro
escalão, a hierarquia.
- Ninguém abaixo desse nível teria acesso à informação, nem mesmo saberia quem é o nosso coronel.
- E se Brandon estiver certo, em algum lugar no grupo Matarese, provavelmente uma corporação ou um conglomerado marchando ao som de seus tambores, encontra-se um alto executivo que escreveu essas instruções...
Além de Chicago, de onde foi a outra chamada?
- Sedgwick, Kansas.
- Vou mandar a unidade de pesquisa que está compilando todo o material para Bray para se concentrar em Illinois e Kansas. - O vice-diretor da CIA levantou-se de sua cadeira, atravessando a sala em direção
a um telefone.
- Pode não levar a coisa alguma mas é um começo, Frank - disse Cranston, acenando com a cabeça.
- Alguém poderia me dizer o que está acontecendo? - interpelou Montrose, levantando-se desafiadoramente. - Que material? E quem são esses Matarese!
- Leia o dossiê, coronel - respondeu Scofield, enfatizando ligeira e deliberadamente a sua patente em contraposição ao debochado minha jovem. - Quando tiver terminado, Toni e eu acrescentaremos o que se
fizer necessário, que estamos certos será considerável.
- Obrigada, mas o que é que isso tudo tem a ver com meu filho?
- Tudo - disse Beowulf Agate.
TREZE
O resort falido e reaproveitado conhecido como Peregrine View no sopé das montanhas Great Smoky era visualmente tão diferente do complexo de Chesapeake quanto o seu pessoal de segurança; em vez de patrulhas
da FDR e da CIA, havia uma unidade Gama de Forças Especiais do Forte Benning, recentemente retornada da Bósnia. Aos soldados tinha sido dito apenas que os hóspedes do governo ali alojados eram funcionários
da embaixada recambiados para serem interrogados, e, uma vez que seus postos tinham sido delicados - leia-se francamente perigosos eles deviam ser protegidos de quaisquer interferências externas - leia-se
ameaças físicas. Era suficiente; tratava-se de militares profissionais acostumados a compreender o que não era dito explicitamente. Era da natureza das operações Gama: infiltração e ação fulminante, as
ordens muitas vezes sendo indiretas e obscuras.
Uma vez que tudo era drasticamente alterado nessa área, e embora o pessoal de Chesapeake não estivesse presente mas ainda continuassem sob vigilância, as provisões eram trazidas da cidade de Cherokee,
um alívio bem-vindo da zoeira dos helicópteros duas vezes por dia. Contudo, pequenos aviões pousavam regularmente na pista de Cherokee, trazendo o material requisitado por Scofield, que era encaminhado
ao confinado complexo montanhoso. Esse material variava de relatórios financeiros a todo tipo de correspondência, desde discursos de executivos a memorandos internos onde podiam ser secretamente garimpados
por ladrões especializados ou através de suborno. Em poucos dias as caixas de papelão entulharam a sala de estar do apartamento dúplex de Brandon e Antonia, conhecido como Unidade 6. Flanqueando essa unidade,
ficavam as de números 5 e 7, ocupadas respectivamente por Pryce e a tenente-coronel Montrose.
Frank Shields e Thomas Cranston tinham retornado aos seus postos em Langley e na Casa Branca, mantendo-se em contato permanente através de telefones à prova de escuta e aparelhos de fax seguros. O trabalho
era árduo, os quatro examinando o material coletado durante horas a fio até ficarem com a coluna doendo e os olhos ardendo. Os relatórios financeiros eram o pior: miríades de colunas de números seguidas
de projeções de análises de ativos. Por exemplo, o "Projeto M-113" era brevemente descrito como "subvalorizado. Ver Seção 17 deste relatório e depois confronte com as Seções 26 e 27 para esclarecimentos".
Para complicar ainda mais as coisas, a linguagem utilizada era a de um tratado de economia - técnica e prática, definitivamente para doutores, significando "grego" para os leigos. Mas uma coisa estava
clara para Brandon Scofield. Essas incursões abstrusas destinavam-se a mistificar, a tornar as coisas ininteligíveis, beirando o precipício da ilegalidade, mas não despencando.
- O M-113 nunca é citado - esbravejou um Bray frustrado. E o diabo é que não precisa ser.
- Eu nunca vou entender um troço como esse - disse Cameron. - Do que se trata?
- Os preceitos do princípio do laissez-faire, que dão de dez a zero nas leis econômicas de Malthus.
- Como é que é mesmo? - perguntou Leslie.
- Concorrência - respondeu Scofield. - Até que uma oferta seja efetivamente feita, os interesses opostos não têm o direito de saber que um lance está sendo projetado ou sequer cogitado.
- O que é que isso tem a ver com esse negócio malthusiano?
- Ferro, bronze e ouro, meu rapaz. O ferro quer se tornar bronze, o bronze preferia ser ouro e o ouro quer ser tudo. Adivinhe quem é o ouro.
- Os Matarese - disse Pryce.
- Meu bom Jesus, você está enchendo o buraco que tem na sua cabeça... Anote essa. É uma possível Matarese.
- Qual é a empresa? - perguntou Antonia, lápis e papel na mão.
- Um conglomerado global pra valer. Atlantic Crown, sediada em Wichita, Kansas.
- Precisamos de mais do que um simples relatório de uma corporação - disse Cameron.
- Isso é só o começo, filho. Assim que encontrarmos um padrão, se é que encontraremos um, saberemos o que procurar. Me surpreende ter que lhe dizer isso.
- Me desculpe, querido - disse Antonia, chegando-se para a ponta de sua cadeira - mas acho que precisamos fazer uma pausa. Estamos nisso há horas. Eu, pelo menos, estou perdendo minha concentração.
- Não gostaria de parar - disse Leslie, com um maço de papéis na mão. - Mas concordo. Constantemente, preciso reler para que as palavras façam sentido.
- Gente frouxa - murmurou Scofield, bocejando. - Embora você possa ter razão, um drinque me cairía bem.
- Uma cochilada é que lhe faria bem, meu querido. Deixe-me levá-lo lá pra cima.
- Um animal - disse Bray, piscando o olho para Pryce e Montrose. - Pura energia animal. Não pode esperar pra me levar pra cama.
- Muito animador - observou Leslie. - Geralmente é o contrário, não é mesmo?
- Isso é um mito, minha cara - respondeu Antonia. - Os cachorros correm atrás dos carros mas não são capazes de dirigir.
- Estou cercado de fariseus - Scofield levantou-se da cadeira, bocejando novamente enquanto ele e Toni se encaminhavam para a escada.
- Talvez eu o deixe apavorado - disse Antonia, rebolando as cadeiras.
- Você pode se arrepender, amor... acho eu. - O casal galgou os primeiros degraus, desaparecendo por trás da parede da escada.
- Eles são realmente adoráveis - disse Montrose.
- Só ela - disse Cameron calmamente.
- Você não está falando sério nem por um minuto.
- Não, não estou - admitiu Pryce. - Ele tem mais em duas células cerebrais do que eu tenho em toda a minha cabeça. Ele esteve onde poucos de nós jamais irão.
- Ele também é um homem muito angustiado.
- Por acontecimentos fora do seu controle - acrescentou Cam. - Ele vê culpa onde não deveria haver nenhuma.
- Isso cabe a cada um de nós descobrir, não é verdade? A culpa é inerente a todos nós, segundo certas crenças.
- Nenhuma que eu possua, coronel. Dúvidas, sim, culpa não, a menos que sejamos culpados de algo de podre que se pode controlar.
- Isso é muito filosófico, Sr. Pryce...
- Cam, ou Cameron, lembra-se? - ele interrompeu. Combinamos... Leslie.
- Às vezes eu prefiro esquecer.
- Por quê?
- Francamente, não me sinto à vontade. Você é um bom sujeito, Cam, e eu tenho outras coisas na cabeça, uma outra coisa para ser exata.
- Seu filho, naturalmente.
- Naturalmente.
- Ele também está na minha cabeça, acredite nisso.
Montrose olhou para ele da cadeira ao lado. - Acredito - ela disse finalmente, com os olhos presos nos dele. - Entretanto, não pode ser da mesma maneira, não é mesmo?
- É claro que não - concordou Pryce mas isso não diminuía minha preocupação. Então, onde é que estamos?
- Gostaria de dar uma volta, apanhar um pouco de ar. As cigarrilhas de Brandon são agradavelmente aromáticas, mas em quantidade...
- Direi a ele, ele parará ou diminuirá a cota.
- Pelo amor de Deus, não faça isso. À sua maneira, ele é tão obcecado quanto eu, e se dar umas baforadas o ajuda, tudo bem.
- Contudo, suponho que não fume - disse Pryce vagamente enquanto se levantavam de suas cadeiras.
- Engana-se. Jim e eu paramos de fumar. Na verdade, controlávamos um ao outro, mas quando ele foi dado como desaparecido receio que tenha retomado o vício. Não desbragadamente, nunca diante das tropas
- isso é muito mal visto - mas não se pode negar o seu efeito relaxante sobre os nervos, por mais idiota que isso possa parecer.
- Vamos dar a volta que você queria. - Os dois se encaminharam para a porta.
- Esqueci novamente - disse Leslie enquanto Cameron abria a porta revestida de aço. - Nós delicadas mulheres não devemos andar por aí sozinhas. Devemos ser acompanhadas por um de vocês, homens grandes
e fortes, ou de preferência por uma patrulha Gama.
- Tenho a impressão de que vocês, delicadas mulheres, são capazes de pregar nossos rabos com uma martelada.
- Que maneira delicada de dizer.
- Cala a boca, burro.
Montrose riu, breve e discretamente, mas foi sem dúvida uma boa risada, autêntica.
Chegaram a uma encruzilhada no caminho da montanha, contrariamente pavimentado de concreto branco, mais fácil para pés idosos e carrinhos de golfe. O lado esquerdo descia gradativamente na direção de um
açude com um repuxo no centro, um desafio no percurso em frente ao décimo sexto buraco. O lado direito subia mais abruptamente no sentido de um bosque que separava os primeiros nove buracos do segundo.
- A fonte da juventude ou a floresta primitiva? - disse Pryce.
- Oh, a floresta, sem dúvida. Não há nada que fuligem reciclada possa fazer por nossa juventude, do que ainda nos lembramos dela.
- Ei, nenhuma das duas foi há tanto tempo assim. Abri mão da minha cadeira de rodas, e não vejo nenhum fio grisalho no seu cabelo.
- Tenho pelo menos uns dez, acredite. É que você não olhou de perto.
- Nem pretendo...
- Obrigada - interrompeu Leslie, emendando em seguida. Mudou sua opinião a respeito de Tom Cranston?
- Não de todo - respondeu Cameron. - Ele se mostra muito maneiroso, muito humilde de repente. Isso não é normal num cara tão inteligente. Francamente, não tenho certeza se confio nele.
- Bobagem! - disse Montrose. - Ele é bastante inteligente para perceber quando está enganado e admiti-lo. Como fez a propósito do telefone celular no complexo.
- Que telefone?
- O que ele me mandou pelo Black Hawk, ostensivamente uma encomenda do meu filho. O bilhete manuscrito dentro do pacote, que recebi ordens para queimar, dizia - e reproduzo textualmente - "Meu Deus, esqueci
que a Agência pode rastrear esses seus telefones. Use este e me desculpe".
- Entretanto, você trocou de telefone com o Bracket.
- É claro que troquei!
- Frank rastreou as chamadas da Casa Branca para o telefone dele, não havia nenhum no seu.
- Então deve ter acontecido no começo de nossa transferência para Chesapeake. Everett abriu a caixa de papelão com nossos dois telefones, checou as baterias e os sobressalentes, e simplesmente me deu um.
- Ele não sabia que cada um deles estava registrado?
- Não creio que ele desse a mínima. Ev às vezes era muito impaciente com detalhes secundários. De qualquer forma, qual era a diferença que fazia?
- Becos sem saída.
- O quê?
- Já temos becos sem saída demais nesta operação - disse Pryce. - Não precisamos de falsos. Mas temos um verdadeiro remanescente do complexo. Quem ficou com o telefone do Bracket? Ele desapareceu.
- Tenho certeza de que está no fundo da baía de Chesapeake - respondeu Leslie. - Quem quer que o tenha roubado tratou de se livrar dele o mais depressa possível. Ele podia ser rastreado, até mesmo monitorado,
lembra-se?
- Por que ele foi roubado em primeiro lugar?
- Talvez para ser desprogramado e vendido, se pudesse ser contrabandeado. Ou pelo traidor que recebeu instruções para roubá-lo para interceptações. Se foi este o caso, provavelmente ele amarelou e se desfez
dele porque estavam todos sujeitos a buscas minuciosas mesmo depois de ter deixado o complexo.
- Se isso, se aquilo, talvez... becos sem saída - ele disse novamente.
- Mudando de assunto, mas não muito, acha que o Sr. Scofield está na pista de alguma coisa?
- Desse conglomerado, Atlantic não sei o quê?
- Atlantic Crown - disse Montrose. - A gente vê os comerciais deles a toda hora na televisão. Costumam ser sofisticados e colocados no horário dos melhores programas.
- Nunca parecem estar vendendo um produto - concordou Pryce. - Ao que me lembro, só mostram processos científicos de uma maneira muito discreta. Mas, respondendo à sua pergunta, quando Bray sente o cheiro
de alguma coisa, geralmente é um odor fétido.
Subitamente, um homem gritou atrás deles; era um patrulheiro Gama correndo pela alameda de concreto. - Hóspedes Três e Quatro! O Hóspede Número Um vem tentando contatá-los pelo telefone!
- Santo Deus, deixei minha bolsa no condomínio.
- E eu deixei meu telefone na mesa.
- Ele está um bocado brabo - disse o soldado ofegante em uniforme camuflado ao se aproximar. - Ele disse que os quer de volta no... campo da base, foi assim que ele chamou.
- Um termo ultrapassado - esclareceu Cameron.
- Sei o que ele significa, senhor, mas isso aqui não é uma área de incursão de combate.
- Pra ele é.
- Vamos! - disse Leslie.
Scofield andava de um lado para outro em frente à lareira escura. Antonia, numa poltrona, lia pacientemente uma folha de fax.
- O motivo por que temos telefones - disse Brandon, parando abruptamente quando Pryce e Montrose cruzaram a porta - é para podermos nos comunicar imediatamente, ou estou enganado?
- Você não está enganado e nós somos culpados de todas as acusações - respondeu Cameron. - Agora esqueça essa babaquice de querer dar uma de Savonarola e diga-nos por que interrompeu um passeio muito agradável.
- Desculpe, Brandon, apenas nos descuidamos um pouco disse Montrose.
- Espero que não com todas as coisas...
- Isso já soa como agressão! - protestou Leslie.
- Cale a boca, meu querido - disse Antonia, encarando Scofield - e vamos ao que interessa.
- Deixa pra lá... A semana passada, no complexo, eu lhe disse para esquecer as conexões no exterior e se concentrar no que temos aqui, correto?
- Foi isso o que você disse, mas eu nunca disse que estava de acordo. Só temporariamente, assim como Frank Shields.
- Pois bem, retiro o que disse, ou, como o coronel aqui diria, suspendo a ordem.
- Por quê?
- O MI-5 de Londres descobriu diversas anotações numa gaveta trancada do marido da lady inglesa, morta por ele. Recusaram-se a enviar um fax textual por razões de segurança, mas o que remeteram já é bastante
interessante, abre o apetite… Dê a ele, Toni.
O fax que Cameron leu dizia o seguinte:
Papéis encontrados numa gaveta fechada à chave indicam que Gerald Henshaw, marido desaparecido da assassinada Lady Alicia Brewster, mantinha registros obscuros sobre seus associados. De acordo com os filhos
de Lady Alicia, um menino e uma menina, ambos adolescentes, agora órfãos e muito perturbados, Henshaw vivia frequentemente embriagado e, quando nesse estado, dizia coisas confusas, contraditórias. Sugiro
que envie um agente de campo experiente bem como um psicólogo americano, um especialista em comportamento juvenil, talvez, para nos assistir. E mantenha as investigações fora dos círculos londrinos.
Pryce passou o fax para Leslie. Ela leu e declarou simplesmente: - Eles não precisam de um psicólogo, o que eles precisam é de uma mãe. E essa mãe sou eu.
CATORZE
O jato diplomático dos Estados Unidos desceu no Aeroporto de Heathrow e taxiou para o anexo isolado, onde Pryce e Montrose foram recebidos por Sir Geoffrey Waters, chefe do Serviço de Segurança Interna,
o MI-5. O funcionário da inteligência britânica era troncudo, espadaúdo, de estatura média, de cinquenta e poucos anos e cabelos castanhos grisalhos nas têmporas. Ele irradiava um ar de humor tranquilo,
seus olhos azul-claros tinham algo de travesso, como se transmitissem uma mensagem silenciosa: Estive lá, vi muita coisa, e daí? Tripulantes da Força Aérea descarregaram a bagagem dos passageiros, que
era mínima, uma maleta de mão cada um, e o chefe do MI-5 instruiu o pessoal de terra para levá-la para a mala aberta do seu carro, um Austin grande.
- Sir Geoffrey Waters, eu presumo - disse Leslie, a primeira a sair do avião.
- Sra. Montrose, seja bem-vinda ao Reino Unido! Sua bagagem está sendo levada para o carro.
- Obrigada.
- Sir Geoffrey? - Cameron encaminhou-se para o lado de Leslie com o braço estendido. - Meu nome é Pryce, Cameron Pryce. - Os dois apertaram-se as mãos.
- Não me diga! - exclamou Waters, fingindo-se surpreso. Nunca poderia imaginar! Naturalmente, temos uma ficha sua de no mínimo dois palmos de espessura, mas quem é que conta polegadas, não é mesmo?
- Não perdoam nada... Naturalmente, a sua ficha terá provavelmente quatro palmos de comprimento, mas também não sabemos contar até muito alto.
- Ah, os exageros da colônia, é por isso que adoro os americanos. Mas uma coisa é imperdoável. Deixe o "Sir" de lado, por favor. É um título totalmente imerecido, que só é concedido para fazer as pessoas
se sentirem importantes.
- Fala como uma pessoa que conheço... que ambos conhecemos.
- Meu Deus, como vai o Beowulf Agate?
- Mais lobo do que nunca.
- Ótimo, é disso que precisamos... Vamos andando, temos uma tonelada de trabalho à nossa espera, mas vai precisar de uma noite de descanso depois do seu voo. São quase seis horas, praticamente meio-dia
pelo seu horário; vai ter que se ajustar um pouco. Irão apanhá-lo às oito da manhã.
- Onde? - perguntou Montrose amavelmente.
- O imerecido "Sir" tem suas vantagens. Consegui uma suíte no Connaught, em Grosvenor Square. Coisa fina, na minha opinião.
- Verba secreta para contingências especiais - acrescentou Pryce.
- Uma suíte?… - Leslie olhou incisivamente para Waters.
- Oh, não se preocupe, minha cara. Quartos separados, naturalmente. As reservas foram feitas em nome do Sr. John Brooks e da Srta. Joan Brooks, irmão e irmã. Se alguém perguntar, o que é muito pouco provável,
estão aqui para tratar de uma herança deixada por um tio inglês.
- Quem é o advogado? - perguntou Cameron.
- Braintree e Ridge, Oxford Street. Já recorremos aos seus serviços em outras ocasiões.
- Você pensa em tudo, Geof, tenho que reconhecer.
- Depois de todos esses anos, as arestas já foram devidamente aparadas para que tudo transcorra suavemente... Agora, vamos para o carro.
- Posso dizer uma coisa? - A súbita imobilidade de Montrose fez com que os dois parassem.
- Naturalmente. O que é?
- A suíte é uma boa ideia, Geoffrey, mas nosso voo foi do Oeste para o Leste, não o contrário. Como você mencionou, ainda é meio-dia para nós. Não estou nem um pouco cansada...
- O cansaço acabará lhe pegando, minha cara - interrompeu o chefe do MI-5.
- Provavelmente, mas estou extremamente ansiosa para começar a trabalhar. Creio que sabe por quê.
- Certamente que sim. Seu filho.
- Não podemos tirar uma hora para nos trocarmos e começarem seguida?
- Por mim tudo bem - disse Pryce.
- Sua sugestão soa como música aos meus ouvidos subitamente desobstruídos! Façamos o seguinte, amigos: uma vez que não podemos retirar nenhum documento do escritório, um carro os apanhará, digamos, por
volta das sete e meia. Se estiverem com fome, peçam alguma coisa ao serviço de copa, mas não ao restaurante.
- Grandes verbas secretas - resmungou Cameron. - Gostaria que você levasse um papo com um cara chamado Shields em Washington.
- Frank Shields? O velho Olhos-Apertados! Ele ainda está em circulação?
- Acho que estou ouvindo um disco quebrado - disse Pryce.
Roma, cinco horas da tarde.
Julian Guiderone, num terno de seda escuro da Via Condotti, desceu a Due Macelli calçada com paralelepípedos, encaminhando-se para a escadaria da Praça de Espanha, a fim de chegar à entrada protegida por
um toldo de lona do famoso hotel Hassler Villa Medici. Como havia feito no bulevar Al Barrani, no Cairo, parou no estreito beco sem saída e acendeu um cigarro com seu isqueiro de ouro Dunhill, olhando
para os degraus de pedra celebrados por Byron. Ficou momentaneamente parado, à espreita de algum homem ou mulher que pudesse surgir de repente também observando à volta. Não apareceu ninguém. Podia prosseguir.
Guiderone passou por baixo do toldo vermelho; as portas de vidro automáticas abriram-se e ele entrou no opulento saguão de mármore, dirigindo-se imediatamente para a esquerda e a fileira de elevadores
de metal polido. Tinha consciência de que diversos hóspedes do hotel, à espera de alguém, olhavam para ele. Isso não o preocupava; estava acostumado a ser alvo de atenção. Sabia que, quando queria, irradiava
uma autoridade natural, uma superioridade decorrente de seus traços finos, de suas maneiras educadas, sua altura e o corte impecável de seus ternos; era sempre assim, e ele sabia e se regozijava com isso.
As portas do elevador se abriram; ele entrou por último e apertou o botão do quinto andar. Depois de duas paradas ele chegava lá, emergindo no corredor acarpetado, estudando a placa de metal que o encaminhou
à suíte que procurava. Ficava no fim do corredor, à direita, com um pequeno círculo azul afixado na maçaneta da porta. Bateu no centro de painel quatro vezes, fazendo uma pausa de um segundo entre cada
batida; ouviu um clique e entrou.
A sala era grande e ornamentada, as paredes cobertas com quadros em tonalidades pastel da Roma antiga, as cores do veludo macio variavam mas eram predominantemente douradas, brancas, vermelhas e azuis.
As cenas ilustradas mostravam desde corridas de bigas no Coliseu, fontes cascateantes às mais famosas obras de estatuária esculpidas pelos cinzéis de Michelangelo e seus contemporâneos. A área central
da sala estava ocupada por quatro filas de quatro cadeiras voltadas para uma pequena estante. Nas cadeiras viam-se exclusivamente homens. Suas idades eram tão variadas quanto suas nacionalidades, dos trinta
e quarenta aos cinquenta e sessenta. Suas origens abrangiam toda a Europa, os Estados Unidos e o Canadá.
Todos os presentes, de uma forma ou de outra, exerciam a profissão de jornalista. Alguns eram repórteres conhecidos, outros editores de reputação firmada; alguns eram controllers ou consultores financeiros,
e os restantes faziam parte da diretoria de diversos jornais importantes.
E cada um deles - de uma forma ou de outra - tinha sido envolvido pelo filho do Shepherd Boy, o líder supremo dos Matarese.
Julian Guiderone caminhou devagar em direção à estante enquanto se fazia silêncio na sala. Ele sorriu com benevolência e depois começou.
- Compreendo perfeitamente que entre os aqui presentes há os que compareceram contra sua vontade, não espontaneamente, mas sob constrangimento. Espero sinceramente mudar suas visões para que venham a compreender
o progressivo esclarecimento de nossos objetivos. Não sou nenhum monstro, cavalheiros. Sou antes um homem extraordinariamente abençoado com uma vasta fortuna, e posso lhes assegurar de que preferiria cuidar
de meus outros interesses - meus investimentos, meus cavalos, minhas equipes esportivas, meus hotéis - a liderar o que vem a ser uma revolução econômica para o bem de todos nós. Mas não posso... Permitam-me
que lhes faça uma pergunta retórica. Quem senão um homem com recursos ilimitados, um homem que não depende de ninguém para sua sobrevivência ou manutenção do seu estilo de vida, sem responsabilidade para
com interesses especiais de qualquer natureza, pode discernir o mal financeiro que corrói nossas nações civilizadas? Afirmo que somente um homem com esses atributos pode, pois ele não tem nada a ganhar.
Ao contrário, poderia perder muito, mas mesmo isso seria insignificante a longo prazo... O que sou, senhores, é na verdade um juiz descompromissado, completamente neutro, um árbitro, se quiserem. Mas para
realizar essa visão e cumprir o meu destino, preciso do seu apoio. Creio que conto com ele, portanto deixem me ouvir seus relatórios. Nomes não são necessários, somente os de suas publicações. Começaremos
com a primeira fila à minha esquerda.
- Sou o principal consultor de investimentos do Guardian em Manchester - disse o inglês, sua relutância evidente no tom baixo e hesitante de sua voz. - Conforme programado, entreguei as projeções econômicas
de longo prazo relativas às previstas perdas aceleradas do jornal na próxima década. Elas exigem capital suplementar muito além do que os diretores do Guardian possam imaginar. Não há outra alternativa
senão procurar uma infusão maciça de recursos externos... ou uma afiliação com outras publicações jornalísticas. - O homem do Guardian fez uma pausa, acrescentando calmamente: - Tive reuniões altamente
confidenciais com meus colegas do Independent, do Daily Express, do Irish Times e do Evening News de Edimburgo. - Ele calou abruptamente. Estava acabado, seu rosto denotando o mais profundo desgosto e
sentimento de derrota.
- Le Monde, Paris, Marselha, Lyon, et toute de France - falou o francês sentado ao lado do inglês. - Como o meu setor, esta primeira fila, preocupa-se essencialmente com finanças estruturadas, endosso
os cálculos do meu colega inglês e agi de acordo. As projeções são evidentes. Paralelamente a uma inflação normal, as decrescentes reservas de papel acompanhadas por preços em ascensão exigem uma reavaliação
econômica, basicamente uma consolidação. Com esse objetivo, também mantive discretas conversações com um grupo selecionado de executivos do France Soir, Le Figaro e do Herald de Paris. Elas frutificarão.
- Não há dúvida quanto a isso - disse um americano calvo na metade dos seus cinquenta anos. - Os avanços tecnológicos nas operações computadorizadas de impressão tornam a opção irresistível. Uma instalação
apenas pode servir um mínimo de seis jornais, amanhã uma dúzia, com textos completamente diversificados. Meus contatos no New York Times, Washington Post, Los Angeles Times e Wall Street Journal só estão
esperando a primeira adesão. Chamam a isso de sobrevivência.
- Podem acrescentar o Globe and Mail e o Edmonton Journal à lista - completou o quarto membro da fila, um jovem canadense, com os olhos brilhando por se dar conta de que estava entre a elite de sua profissão.
- Quando regressar, iniciarei negociações preliminares com o Winnipeg Free Press e o Vancouver Sun.
- Seu entusiasmo deve ser aplaudido - disse o filho do Shepherd Boy -, mas tenha em mente o mais absoluto sigilo com que deve operar.
- Naturalmente! É claro!
- Passemos agora à segunda fila - prosseguiu Guiderone. Nosso setor dedicado às diretorias de nossas principais publicações internacionais, a saber, novamente: New York Times e o Guardian, bem como o Il
Giornale de Roma e o Die Welt da Alemanha. Entendo, cavalheiros, que os senhores são todos atualmente subordinados - ousaria dizer? -, membros secundários de suas respectivas diretorias, mas aceitem minha
palavra - seus status mudarão, por motivo de morte ou força maior. Cada um dos senhores será em breve um fator de primeira grandeza, uma voz com autoridade.
Não houve sequer um murmúrio de discordância. Quando assumissem suas posições, agiriam de comum acordo. Por uma questão de sobrevivência prática.
- Nossa terceira fila, os motores básicos que impulsionam seus esforços, as entranhas de nossos jornais - os jornalistas. Eles são os homens que, nas ruas, nos estados, nas províncias e nas capitais, nas
linhas de frente, relatam diariamente os acontecimentos, esclarecendo os leitores pelo mundo afora.
- Pode baixar a bola - disse um americano mais velho de voz grossa, suas feições enrugadas denunciando anos de noites intermináveis e muito uísque. - Recebemos a mensagem. O senhor dita os "acontecimentos"
e nós escrevemos sobre eles. Não temos muita escolha, não é verdade, uma vez que preferimos manter nosso status quo em detrimento das alternativas?
- Concordo, meneer - acrescentou um repórter holandês. Você enxerga longe.
- C’est vrai - disse um jornalista de Paris.
- Nada mais verdadeiro, das stimmt! - fez coro um repórter alemão.
- Ora, cavalheiros, que enfoque tão negativo - disse Guiderone, sacudindo a cabeça vagarosamente. Só conheço dois dos senhores pessoalmente, mas todos os quatro de reputação. Os senhores são os líderes
nos seus setores, suas palavras atravessam oceanos e continentes com velocidade eletrônica, e quando aparecem na televisão são autoridades incontestáveis, homens honrados do quarto poder.
- Só espero que possamos mantê-lo - interrompeu o americano cínico.
- É claro que o manterá, porque noticiará acuradamente os acontecimentos à medida que se verificarem... enfatizando naturalmente os aspectos positivos e minimizando quaisquer reações negativas que possam
obscurecer o novo século. Afinal de contas, precisamos ser realistas, precisamos fazer com que nossos países civilizados progridam, e não deixá-los à míngua.
- O senhor diz muita coisa com um ou outro lugar-comum disse o holandês, sorrindo discretamente. - É muito político, meneer.
- Uma vocação que outros tentaram me impor, todos de grande inteligência, sem dúvida, mas um caminho que não era de minha própria escolha.
- Melhor ainda, monsieur - observou o parisiense. - O senhor é o homem de fora que sabe tudo o que se passa do lado de dentro. Très bien.
- E os senhores são, cada um dos senhores, jornalistas extraordinariamente talentosos e de grande credibilidade. Quaisquer que tenham sido suas indiscrições no passado - e que nunca serão exploradas por
mim elas empalidecem diante de seus predicados... E agora nossa quarta e última fila, talvez a mais peculiar aos nossos propósitos. Os corpos editoriais das quatro principais publicações do mundo que,
através de suas cadeias, lideram mais de duzentos importantes jornais internacionais na Europa e nas Américas. Sua influência é vasta, cavalheiros. Os senhores formam opiniões em todas as nações industriais.
Suas declarações, ou a falta delas, podem fazer ou destruir candidatos.
- O senhor é muito lisonjeiro - atalhou um alemão corpulento de cabelos brancos, suas pernas pesadas tornando as cadeiras acanhadas, seu rosto vincado e manchado denunciando uma vida sedentária. - Isso
foi antes da televisão - ele continuou. - Hoje os concorrentes compram a televisão! É nela que as opiniões são formadas.
- Somente até certo ponto, mein Herr - objetou o filho do Shepherd Boy. - O senhor coloca uma carroça leve na frente de um cavalo vigoroso. Quando os senhores declaram algo, a televisão reflete sobre suas
palavras e sempre fez assim. Ela precisa disso, pois os senhores têm tempo para refletir, ela não. Tudo nele é imediato, instantaneamente processado. A maioria dos executivos da televisão, procurando evitar
embaraços, toma cuidados especiais com suas opiniões, exercendo uma autocensura, chegando a manter distância da propaganda política.
- Ele tem razão, Gunther - disse outro americano, contrastando com o repórter seu compatriota que envergava um terno sóbrio. - Cada vez mais ouvimos as palavras "Este foi um informe político pago pelo
comitê desse ou daquele senador ou candidato".
- Ach, então o que isso significa? É tudo tão rápido.
- Significa que ainda temos e sempre teremos peso - respondeu um terceiro editor, inglês, a julgar pelo sotaque.
- Espero que continue sempre assim - acrescentou o último homem na quarta fila, um italiano num terno listrado.
- Reitero o que mencionei ao nosso segundo setor, os membros das quatro diretorias - disse Guiderone, focalizando os olhos rapidamente em cada um dos homens da última fila. - Eu, nós, nos damos conta de
que os senhores estão atualmente nos extremos inferiores dos seus corpos editoriais, mas isso vai mudar. Através de procedimentos de que não precisam tomar conhecimento, os senhores serão guindados a posições
de liderança, suas opiniões e julgamentos serão aceitos como uma ordem.
- O que significa - disse o fastidioso americano no terno e gravata escuros - que nós endossaremos nos editoriais o que o senhor sugerir que endossemos através de nossas cadeias de jornais.
- Sugerir é um verbo tão flexível, não acham? - perguntou o filho do Shepherd Boy. - É tão sujeito a interpretações. Prefiro apalavra "aconselhar", pois limita as alternativas, não é verdade?
Houve um silêncio momentâneo, mais do que uma simples pausa, até o italiano falar. - Feito - ele disse, quase se engasgando com a afirmativa. - Ou nós todos perderemos tudo.
- Não faço ameaças. Meramente abro as janelas da possibilidade... Creio que nossa reunião tenha terminado.
E tinha.
Simultaneamente, como se quisesse se livrar do mau cheiro de uma doença contagiosa, a congregação convocada pelo Matarese deixou a sala. Um dos últimos a se retirar foi o entusiástico canadense.
- Oh, MacAndrew - disse Guiderone, tocando no cotovelo do jovem. - Terminada a parte maçante dos negócios, por que não vamos tomar um drinque no saguão lá embaixo? Creio que temos conhecidos comuns em
Toronto. Gostaria de colocar em dia as novidades. - Ele mencionou diversos nomes.
- Certamente, senhor! Será um prazer.
- Ótimo. Me encontro com você dentro de cinco minutos. Tenho que dar um telefonema. Veja se consegue uma mesa nos fundos.
- Estarei à sua espera... senhor.
Os "conhecidos", com uma única exceção, eram nomes apenas vagamente lembrados pelo jovem MacAndrew, mas o fato de Guiderone se recordar deles o deixou desvanecido, especialmente o que guardava vivamente
na sua memória. O de sua ex-mulher.
- Lamento muito saber disso - disse Julian.
- A culpa foi provavelmente minha, senhor. Reconheço que era extremamente ambicioso e me deixei absorver pelos negócios além da conta, negligenciando-a imperdoavelmente. Logo que obtive meu doutorado em
administração financeira pela Universidade McGill, só tinha olhos para mim mesmo. As ofertas de trabalho se sucediam, nenhuma excepcionalmente bem-paga mas todas prestigiosas, até que caiu do céu um emprego
numa empresa de investimento de Montreal com um salário que eu não acreditava que fosse conseguir antes de uma década!
- Compreendo. E aí uma coisa levou a outra.
- Exatamente. Aí eu...
- Perdoe-me, meu jovem - interrompeu Guiderone. - Estou sem charutos cubanos. Me faria a gentileza de comprar alguns no balcão do lobby? Tome aqui uma nota de dez mil liras.
- Naturalmente, senhor. É um prazer.
O ambicioso canadense levantou-se prontamente da mesa e saiu rapidamente do bar. O filho do Shepherd Boy retirou um pequeno pacote do bolso e esvaziou o seu conteúdo no copo do rapaz; ergueu o braço, chamando
um garçom.
- Diga ao meu amigo que tive que dar um telefonema. Voltarei logo.
- Si, signore.
Julian Guiderone não voltou, apenas o jovem canadense. Virando a cabeça para a direita e para a esquerda, antecipando a figura do homem mais importante da sua vida, MacAndrew tomou um gole do seu copo.
Trinta e quatro segundos depois caiu sobre a mesa, com os olhos esgazeados. Estava morto.
O filho do Shepherd Boy desceu a escadaria da Praça de Espanha indo ter na Via Due Macelli, onde dobrou à direita em direção ao escritório da American Express. Seu comunicado em código para Amsterdã seria
decifrado rapidamente. Dizia:
Nosso canadense era uma ameaça. No seu entusiasmo, falava demais. Problema resolvido. Procure outro.
Guiderone voltou para o cruzamento da Via Condotti, uma das mecas do consumismo mundial. Não ia comprar nada; passaria simplesmente num café e tomaria um ou dois cappuccinos calmamente, sintetizando seus
pensamentos.
Ele ou eles, os Matarese, tinham realizado mais do que qualquer outra organização de elite da terra conseguira. Controlavam indústrias, serviços públicos, fornecedores globais, cinema, televisão e finalmente
jornais no mundo inteiro. Nada poderia detê-los. Breve controlariam o planeta, e era tudo tão simples.
Cobiça.
Infiltre-se e faça promessas, ou chantagens, quem pode resistir? Os lucros são extraordinários, as classes inferiores fazem fila para receber seu quinhão - é melhor o diabo com quem você é capaz de conviver
do que aquele que você não conhece. E os deserdados da sorte, os indigentes e os parasitas analfabetos da sociedade? Faça o que fizeram nos séculos dezoito e dezenove! Force-os a melhorar de vida. Pode
ser feito. Foi o que fez a América!
As persianas estavam abaixadas na sala iluminada com luz fluorescente da inteligência britânica, o MI-5. Não havia necessidade de bloquear a luz brilhante do dia londrino, pois eram mais de dez horas da
noite. Era meramente uma precaução observada desde os dias da Guerra Fria quando câmeras telescópicas foram encontradas num prédio do outro lado da rua.
Pryce e Montrose tinham sido apanhados no Connaught às 7:30; chegaram à sede do MI-5 muito antes das oito horas. Canecas de café na mão, fornecidas por Geoffrey Waters, os três tinham examinado atentamente
as anotações encontradas na gaveta trancada de Gerald Henshaw na residência da família Brewster em Belgrave Square. Grosso modo eram pedaços de papel arrancados de blocos de folhas soltas rabiscados às
pressas com uma caligrafia praticamente ilegível. Contraditoriamente, a maior parte tinha sido cuidadosamente dobrada duas e três vezes, como se fossem pistas secretas de uma caça ao tesouro, a serem escondidas
debaixo de pedras ou em cascas de árvores.
- O que está achando? - perguntou Waters, voltando para a máquina de café depois de ter reabastecido a caneca de Cameron.
- Para começar - disse Pryce o óbvio. Tudo escrito em códigos aleatórios, o que é o mesmo que dizer que não há código nenhum. Não há coerência, não têm significado, a não ser para ele, cada um diferente
do outro, e cada um provavelmente decifrável de uma maneira também diferente.
- Não sou nenhuma especialista no assunto - disse Leslie mas vocês empregaram todos os métodos habituais de decodificação?
- A ponto de fazer nossos inanimados computadores subirem pelas paredes - respondeu Geoffrey, caminhando de volta para a mesa redonda de carvalho e sentando-se. - Números em sequência aritmética e geométrica.
Superposições léxicas e alfabéticas, sinônimos e antônimos, ambos em inglês comum e gírias, assim como as aplicações mais vulgares. Henshaw não falava nenhum idioma estrangeiro.
- Como é que você sabe? - perguntou Cameron.
- As crianças. Foi uma das poucas vezes em que elas demonstraram uma ponta de humor durante nossos extensos interrogatórios. Como muitos jovens de famílias sofisticadas, eles viajaram muito e falam um
francês passável. Por isso, quando queriam trocar confidências na frente de Henshaw, eles o faziam em francês. Quase sempre ele ficava furioso, o que obviamente muito os divertia.
- Alguns desses contrassensos são tão simplistas que chegam a ser ridículos - observou Pryce, segurando um pedaço de papel na mão. - Vejam só - ele acrescentou, colocando-o virado para cima no tampo da
mesa. - MAST/V/APR/TL/BF. Tudo em maiúsculas.
- Não compreendo - disse Montrose.
- Uma simples reordenação do anagrama abreviado torna-o muito claro. Amsterdã via Paris telefone na carteira de notas. Isso faz sentido tendo em vista a maneira como esses pedaços de papel estão vincados
duas e três vezes, dobrados metodicamente para caber em lugares pequenos.
- Isso não pode ser uma pista? - perguntou Leslie.
- Achamos que não, minha cara - respondeu Waters. - De início, também pensamos a mesma coisa... O que me dizem desta pérola? - O veterano do MI-5 apanhou outro pedaço de papel na pilha em cima da mesa.
- Vou ler para vocês. Nada em maiúsculas, casualmente tudo em minúsculas: ng - traço - st - traço - oh, ponto. Não faz o menor sentido. Por outro lado, aqui há uma quefaz: cy - traço - bk - traço - nu
- traço - bf novamente, ponto.
- Uma conta bancária - disse Cameron - provavelmente nas ilhas Caymãs, o número do telefone, assim como o de Amsterdã, escondido na carteira de notas.
- Perfeito, meu velho, é exatamente o que nós também pensamos.
- E tão claro que ele podia ter escrito por extenso.
- É precisamente isso - exclamou o frustrado Waters. - Ele pula do simplisticamente ridículo para o impenetravelmente sublime. Juro que se os caras que criaram o Enigma tivessem cifrado dessa maneira,
nossos rapazes em Chequers ainda estariam trabalhando nele.
- Cam não disse que era um código que ele inventou só para ele? - indagou Montrose.
- De fato - concordou o inglês. - É por isso que é impenetrável. Só existe na cabeça dele.
- Todo cuidado é pouco com os amadores - disse Pryce. Volta e meia eles estão nos surpreendendo... Ainda não há nenhum indício sobre o seu paradeiro?
- Nenhum. É como se ele tivesse sumido da face da terra.
- Esse é um pensamento assustador. - Cameron levantou-se de sua cadeira, espichou o corpo e foi até uma janela, separando uma das lâminas da persiana para dar uma olhada no lado de fora. - E que não chega
a ser particularmente surpreendente.
- Como assim? - perguntou Leslie.
- Não há cadáver, coronel. Scofield me disse que sempre que os Matarese matavam sem recorrer a assassinos de aluguel, sua lei era não deixar cadáveres.
- Está querendo dizer que Henshaw colaborava com os Matarese?
- Um colaborador menor, Geof. Por tudo o que sabemos, ele era muito estúpido para ser mais do que isso. Mas seu assassino, se é que ele foi assassinado, não era. Quem quer que tenha sido é figura importante.
"Certifique-se de que seja perfeito, você é responsável, não pode haver vestígios". É assim que vejo a coisa.
- Faz sentido - disse Waters. - O que sugere que façamos agora?
- Presumo que tenha checado parentes, amigos, vizinhos, advogados, bancos, médicos, tudo isso.
- Sem a menor dúvida. Lady Alicia e seu primeiro marido, Daniel, eram modelos de civilidade, usavam sua fortuna e prestígio social em benefício de causas nobres. As opiniões são unânimes, era um casal
muito distinto e generoso.
- E depois da morte do marido? - perguntou Montrose. Quando foi que Henshaw surgiu em cena?
- Isso é uma outra história. A princípio ele foi bem aceito, mas foi perdendo essa aceitação progressivamente. Havia rumores de infidelidade e abuso de álcool. Além dos boatos, houve registros fidedignos
de acidentes de automóvel sob o efeito da bebida. As contas são substanciais, como são as queixas confirmadas de numerosos bares e clubes que proibiram sua entrada. Finalmente, e bem mais grave, a firma
de contabilidade que administra as finanças da Wildlife Association de Lady Alicia declarou que Henshaw era suspeito de desviar fundos da entidade. Ela não adianta mais nada com receio de secar outras
fontes de receita, mas aposto que as suspeitas procedem e envolvem dinheiro grosso.
- O banco nas ilhas Caymãs - disse Pryce.
- Esse seria o meu palpite, companheiro.
- É mais do que um palpite, Geof. Mas mesmo que tivéssemos o número da conta, seria difícil quebrar sua inviolabilidade.
- Temos nossos próprios métodos, meu velho. Entretanto, talvez não precisemos recorrer a eles. Pouco antes de morrer, Lady Alicia emitiu um cheque de mais de dois milhões de libras em favor da Wildlife.
Seus filhos fizeram menção a isso mas não desceram a detalhes. Novamente, para proteger sua obra benemerente.
- Você perguntou o que deveríamos fazer agora - disse Leslie. - Creio que acaba de responder à sua pergunta. As crianças. Podemos vê-las?
- Naturalmente. Elas estão na cidade, confinadas naquele casarão em Belgrave Square. Mas devo preveni-los, elas ainda estão muito abaladas; eram muito chegadas à mãe, e o rapaz é um verdadeiro tigre. Estão
sendo assediadas por abutres de todos os matizes, parentes que mal conhecem, advogados fazendo exorbitantes cobranças de Henshaw, mil repórteres de jornalecos tabloides, como os chamam -, esses asquerosos
pasquins e revistas obcecados por glândulas mamárias femininas, vocês conhecem a escória.
- Por que o garoto é um tigre? - perguntou Leslie. - Ele deve ter uns dezessete anos, não é?
- Aparenta mais de vinte, com um físico de fazer inveja a um jogador de rúgbi parrudo. É extremamente protetor da irmã mais nova e, sozinho, expulsou na marra três - não um ou dois, mas três repórteres
dessa imprensa marrom que a estavam importunando. Nossos rapazes ficaram impressionados; aparentemente ele pegou os três de uma vez e depois de imobilizá-los deu um pontapé na bunda de um por um. Dois
fraturaram os braços e o terceiro - como direi? - teve um problema na virilha.
- Vou ser muito gentil - disse Cameron - e por via das dúvidas usarei uma cueca de aço.
- Afora isso, ele é muito agradável, se bem que ligeiramente tenso. Na verdade, são dois adolescentes ótimos, apenas um pouco perturbados.
- Pela descrição, ele parece uma bomba-relógio, Geof.
- Longe disso. O que acontece é que ele pratica luta livre, e me disseram que já ganhou algumas medalhas.
- Já estou começando a gostar dele - disse Leslie. - Meu filho também é lutador. Tem só quinze anos mas já ganhou o campeonato juvenil intercolegial por dois anos consecutivos...
- Eu caço borboletas - atalhou Pryce. - As redes são um pouco pesadas mas eu me viro... Quando é que poderemos vê-los, Geof?
- Amanhã. Diga a hora, eles estarão à espera de vocês.
QUINZE
Roger e Angela Brewster levantaram-se de suas poltronas a um só tempo no salão de visitas no andar térreo da mansão de Belgrave Square. O sol da manhã penetrava pela grande janela de sacada, realçando
a mobília antiga e os belos quadros nas paredes. O tamanho da sala não diminuía sua aura de conforto; ao contrário, parecia proclamar: - Relaxe, esfrie, este é um lugar acolhedor, uma poltrona não passa
de uma poltrona, um sofá é um sofá.
Geoffrey Waters procedeu Leslie e Cameron, transpondo as portas duplas abertas da sala. Sua aparição teve um efeito imediato sobre os dois adolescentes.
- Sir Geoffrey - exclamou a menina entusiasticamente, aproximando-se dele.
- Bom dia, Sir Geoffrey - acrescentou o rapaz ao lado de sua irmã, estendendo a mão.
- Nada disso, será que esqueceram o que eu lhes ensinei? Não Roger, não apertarei sua mão enquanto você não mudar o seu cumprimento!
- Desculpe, Geoffrey - disse o campeão de luta livre Brewster, apertando-lhe a mão.
- E você, minha querida? - Waters olhou para a menina. Uma beijoca no meu rosto, se me faz o favor.
- Tá legal... Geoffrey. - Ela beijou Waters, dirigindo-se aos dois estranhos. - Ele não é encantador?
- A gente não pode evitar de envelhecer, meu anjo, mas não precisamos ser velhos. Deixem-me apresentar-lhes meus dois novos parceiros: tenente-coronel Montrose, do Exército dos Estados Unidos, e o agente
especial Pryce, da Agência Central de Inteligência.
Apertaram-se as mãos breve e solenemente. - Não estou entendendo - disse Roger Brewster. - O que é que a morte de nossa mãe, o seu assassinato, tem a ver com o Exército dos Estados Unidos?
- Especificamente, não tem nada a ver - respondeu Leslie. Mas vou grudar em vocês dois de agora em diante nem que meus superiores me rebaixem a soldado raso ou me expulsem do Exército. As pessoas responsáveis
pela morte da mãe de vocês raptaram meu filho. Ameaçam matá-lo se eu não fizer o que elas mandam.
- Santo Deus! - exclamou Angela Brewster.
- Isso é horrível - ecoou seu irmão. - Como é que essa gente entra em contato com a senhora?
- Há quase duas semanas que não entram. Recebi instruções através de uma terceira pessoa, instruções que cumpri ao pé da letra no nosso último posto. No fundo, estavam me testando, querendo saber onde
estávamos, de que tipo de segurança dispúnhamos, qual era nosso poder de fogo... Esse tipo de coisas. Como sabíamos que havia um traidor, ou traidores, infiltrados na CIA, a informação que forneci foi
precisa mas supérflua.
- Quando espera ter notícias dessas pessoas novamente? perguntou a menina.
- A qualquer momento... a qualquer hora - respondeu Leslie, com os olhos brevemente distantes, voltados para dentro. - Uma mensagem chegará dentro em breve a algum lugar - um número de telefone a ser discado
de aparelho público - me dizendo para onde e quando ligar, e uma voz gravada dando minhas ordens. Elas não tinham como me contatar nos últimos cinco dias. Toda nossa segurança foi alterada, à prova de
infiltrações, acreditamos, mas esta manhã avisamos Langley. Sabem que estou em Londres.
- Isso não a deixa assustada? - exclamou Angela Brewster.
- Ficaria muito mais assustada se não entrassem em contato comigo.
- O que é que podemos fazer? - perguntou o jovem Brewster.
- Diga-nos tudo o que sabem a respeito de Gerald Henshaw respondeu Pryce. - E respondam às perguntas que lhes fizermos.
- Dissemos tudo o que sabemos à polícia e ao MI-5.
- Diga a nós, Angela querida - disse Montrose.
- Faça isso, minha filha, acrescentou Waters. - Somos todos humanos, portanto imperfeitos. Talvez nossos novos amigos possam detectar alguma coisa que tenhamos deixado escapar.
A litania começou com as fraquezas de Henshaw: suas frequentes bebedeiras, suas infidelidades conjugais, o flagrante esbanjamento de dinheiro que lhe era dado ou roubado, suas arrogâncias com os criados
quando Lady Alicia estava fora do alcance de sua voz, as constantes mentiras sobre seu paradeiro nas ocasiões em que não era encontrado - a lista parecia interminável.
- Fico surpreso como sua mãe pôde suportá-lo - disse Cameron.
- Era preciso conhecer Gerald Henshaw para compreender - respondeu Angela, com a voz sussurrante, como se estivesse procurando as palavras. - Minha mãe não era tola, apenas não via as coisas que as outras
pessoas viam. Ele escondia dela esse seu lado.
- Ele tinha um talento todo especial para isso - interrompeu Roger. - Na presença dela ele era só charme e fingimento. Durante alguns anos cheguei a gostar do pilantra. A Angela não, mas eu sim.
- Nós mulheres somos mais espertas nessa área, você não acha?
- Isso é um mito, irmãzinha, e no começo ele foi bom para ela.
- Ele apenas conseguiu iludi-la.
- Mas vocês dois não estavam no colégio a maior parte do tempo? - perguntou Pryce.
- Sim - respondeu o irmão -, pelo menos nos últimos seis anos, mas passávamos os verões, os feriados e ocasionais fins de semana em casa. Não necessariamente juntos, mas estávamos aqui o suficiente para
ver o que estava acontecendo.
- O bastante para mudar sua opinião, Roger? - pressionou Cameron.
- Sem dúvida nenhuma, senhor.
- O que foi que provocou sua conversão? - perguntou Leslie. - Passando a ver as coisas como sua irmã.
- Tudo o que lhes disse.
- Coisas de que foi tomando conhecimento aos poucos, suponho. O que quero dizer é que elas não se tornaram evidentes de uma hora para outra, não é verdade? Alguma coisa deve ter feito com que você começasse
a se questionar.
Os irmãos se entreolharam. Angela falou. - Foi a oficina mecânica em St. Albans, não foi, Rog? Telefonaram para dizer que o Jaguar estava pronto, lembra-se?
- É verdade - concordou o irmão. - O proprietário pensou que estava falando com o Gerry. Ele disse que só entregaria o carro se recebesse dinheiro vivo, nada de cheques, ou contas a serem enviadas a contadores,
só metal sonante.
- Por quê? - Pryce olhou para Geoffrey Waters, que sacudiu a cabeça, mostrando-se surpreso.
- Como vim a saber mais tarde, era a décima primeira vez em um ano e meio que Gerry levava o carro à oficina para consertos. Ele e mamãe estavam em Bruxelas para um evento da Wildlife, por isso peguei
o Bentley dela e fui a St. Albans falar com o sujeito. Ele me disse que Henshaw o tinha mandado enviar as contas para os contadores de mamãe, que não são famosos pelo pronto pagamento das faturas apresentadas.
Aparentemente, eles também têm o hábito de regatear um pouco.
- Mas isso está longe de ser uma razão para exigir o pagamento em espécie - disse Montrose, - As seguradoras geralmente questionam as contas de consertos de automóveis.
- A coisa começava por aí. Gerry nunca usou nosso seguro, ele não comunicava os acidentes.
- Algumas pessoas não comunicam porque o prêmio de suas apólices aumenta - explicou Cameron.
- Já ouvi dizerem isso, mas havia outra coisa. Por que ele mandava consertar o carro em St. Albans para início de conversa? Por que não o fez na concessionária da Jaguar Motors aqui mesmo em Londres? Somos
clientes há muitos anos.
- Provavelmente para evitar que sua mãe soubesse dos acidentes.
- Foi o que eu pensei, Sr. Pryce. Mas mamãe não era cega, e a ausência de um carro é muito óbvia. Especialmente um reluzente Jaguar vermelho estacionado em frente à calçada; Gerald não se dava o trabalho
de guardá-lo na garagem.
- Percebo o que você quer dizer. E acabou descobrindo o "algo mais"?
- Acredito que sim. A conta dos consertos daquele dia montava a duas mil seiscentas e setenta libras...
- Duas mil e seiscentas... quase três mil libras? - explodiu Waters, do MI-5. - Ele deve ter praticamente desmontado o raio do carro!
- Longe disso, pelo menos na conta nada indicava. Estavam sendo cobrados apenas a lanternagem e pintura de um para-lama amassado, e pequenos "detalhes" de limpeza e lavagem.
- O que mais! - perguntou o chefe do MI-5. - Como foi que o malandro chegou a mais de duas mil e seiscentas libras?
- O resto dos serviços prestados era mencionado sob a rubrica "diversos".
- O quê? - perguntou um Pryce abismado. - Ele achava que podia sair dessa impunemente?
- Não acredito que tenha pensado nisso - respondeu Roger Brewster. - Devo explicar que, quando cheguei, ele ficou admirado que eu não fosse Gerry. Não acho que ele teria me dito o montante da fatura pelo
telefone se soubesse que era eu.
- Ele justificou o "diversos"? - pressionou Cameron.
- Ele me disse para perguntar ao meu "velho".
- Você pagou em dinheiro? - perguntou Leslie.
- Sim, eu queria trazer o carro de volta. Como mamãe viajava muito em função da Wildlife, ela abriu contas de emergência para a Angela e para mim. Passei no banco, saquei o dinheiro e toquei para St. Albans,
esperando contratar alguém para trazer o Bentley de volta aqui para casa.
- Você ia contar à sua mãe? - continuou Montrose.
- Bem, pensei em falar com o Gerry primeiro, para ver se ele tinha alguma explicação razoável.
- Falou? - perguntou Pryce.
- Naturalmente, e ele me deixou de boca aberta. Para começar, tirou três mil libras da carteira - e ele nunca tinha tanta grana - e me deu, dizendo que a diferença era pelo trabalho que eu tinha tido.
Depois me pediu para não dizer nada à mamãe porque ela era responsável pelos consertos do Jaguar e ele não queria preocupá-la.
- Como sua mãe poderia ser supostamente responsável? perguntou Geoffrey Waters.
- Ele dizia que ela dirigia o carro até nossa casa de campo sem óleo no cárter e com a gasolina errada. Que tinha tido que mandar fazer uma retífica geral no motor.
- Você aceitou isso?
- É claro que não! Mamãe odiava aquele carro; tinha sido um presente para o Gerry, que o adorava. Não era pelo fato de ser um Jaguar, era a cor berrante. Ela dizia que ele era ostentoso, chamava tanta
atenção quanto um polegar sangrando. Simplesmente não era o seu estilo.
- Por que nunca mencionou isso durante os interrogatórios?
- O assunto nunca veio à baila, Geoffrey. Ninguém perguntou como descobrimos o verdadeiro Gerald Henshaw.
- Como foi que você descobriu? - perguntou Cameron. Uma conta de uma oficina mecânica, por mais absurda que fosse, não poderia ter lhe revelado tanta coisa, não é mesmo?
- Rog ficou indignado - respondeu Angela, interrompendo. Ele conversou comigo, o que nem sempre fazia, e disse que alguma coisa estava errada, muito errada. Eu concordei inteiramente, sempre soube que
havia! Então nos lembramos que tínhamos um primo, um advogado com escritório na Regent Street. Fomos procurá-lo e pedimos para que investigasse Gerry, descobrisse tudo o que pudesse.
- Foi aí que toda a repugnante história veio à luz - acrescentou o irmão. - As namoradas, nomes e endereços incluídos, os pileques, os acidentes indenizados, o banimento de restaurantes e clubes - toda
a sujeira, tudo confirmado.
- Vocês procuraram sua mãe e contaram tudo a ela? - Pryce alternou seu olhar entre os dois adolescentes.
- A princípio não - respondeu Roger mas procure entender por quê. Gerry era um velhaco, um charlatão, mas ele fazia nossa mãe feliz. Quando nosso pai morreu, ela entrou em profunda depressão, Angela e
eu chegamos a temer que ela pudesse atentar contra a própria vida.
- E então esse maravilhoso ator apareceu - disse Angela. Alto, educado, com extraordinárias credenciais, nenhuma delas comprovável, mas lá estava ele para fazê-la sorrir novamente. Como poderíamos destruir
isso?
- Se me permitem, amigos? - perguntou Sir Geoffrey Waters, sem responder à pergunta. - Creio que já exploramos suficientemente esse aspecto do caso. Para onde vamos agora?
- Ainda não digeri aquele "diversos" - respondeu Cameron. Duas mil e seiscentas libras para desamassar um para-lama? Acho que devemos dar um pulo em St. Albans.
- Dois pontos para os colonos - disse o homem do MI-5.
A pequena oficina mecânica de St. Albans ficava na parte industrial da cidade. O martelar e o barulho de múltiplas perfuradoras juntamente com os incessantes estampidos de ar comprimido de dois elevadores
de carros denunciavam sua atividade ocupacional. O dono era um indivíduo corpulento enfiado num macacão sujo de graxa, com o rosto de um homem que dava duro fisicamente para ganhar a vida, as rugas em
torno dos olhos e na testa resultando do seu labor, não de indulgência. Deveria ter quarenta e poucos anos e chamava-se Alfred - Alfie Noyes.
- Lembro-me perfeitamente do rapazola como se fosse ontem. Fiquei um pouco surpreso quando ele apareceu em vez do pai.
- Quer dizer então que aguardava o Sr. Henshaw, padrasto do rapaz? - perguntou Waters, que já tinha exibido suas intimidantes credenciais do MI-5.
- De fato, estava. Nosso acordo era reservado, se entendeu o que quero dizer.
- Não, não entendo - disse Pryce, apresentado obscuramente como um consultor americano da inteligência britânica. Explique-nos, Sr. Noyes.
- Não quero me meter em nenhuma encrenca, de jeito nenhum. Não fiz nada de errado.
- Então me diga. Como é que era o acordo?
- Bem, terá sido há uns dois ou três anos, por aí. Um cara me procura e diz que tem um novo freguês pra mim, um camarada rico com alguns problemas domésticos. Muita gente importante tem, os senhores sabem...
- O acordo, por favor.
- Não tinha nada de ilegal, eu jamais me envolveria com uma coisa dessas. Era apenas uma cortesia profissional para um cidadão eminente, de uma família ilustre. Era só isso. Juro pela minha mãe que não
havia mais nada além disso.
- A cortesia profissional, Sr. Noyes?
- Bem, era simples. Toda vez que ele tivesse um problema com o Jaguar vermelho, ele nos telefonaria e nós enviaríamos nosso caminhão onde quer que ele estivesse pra rebocá-lo.
- Tratava-se de acidentes, correto?
- Alguns eram. Nem todos.
- Oh? - Geoffrey Waters ergueu as sobrancelhas. - Alguns?
- Certamente, senhor. Ele é um motorista nervoso, é como um hipocondríaco, tem suas frescuras, deve ser o temperamento, sabe?
- Não tenho certeza se sei - disse o homem do MI-5. Explique-se melhor, por gentileza.
- Bem, diz que o motor está batendo pino quando não há nada, ou então houve um chiado numa janela que não existe provavelmente um pouco de água da chuva nas borrachas. Aqui pra nós, senhores, às vezes
ele é um pé no saco, mas nós mandamos o reboque e ele paga as contas.
- Falando de contas - disse Leslie Montrose, diferencialmente à esquerda de Cameron. - Parece que teve problemas com a firma de contabilidade de Henshaw - da família Henshaw.
- Refere-se à Westminster House, mas não diria que foram propriamente problemas, madame. Eles têm que fazer o trabalho deles e nós o nosso. Eles não eram muito rápidos pra pagar, mas pude conviver com
isso, tenho uma boa freguesia. Eventualmente eles compareciam, e a gente não chiava muito, afinal não é todo dia que se tem um cliente como o Sr. Henshaw.
- Como se chamava o homem que o procurou há dois ou três anos? - perguntou Waters.
- Se ele chegou a dizê-lo, falou tão baixo que não ouvi. Disse que representava um banco mercantil privado que cuidava dos interesses do Sr. Henshaw.
- Que banco?
- Ele nunca disse.
- Não lhe ocorreu perguntar-lhe por que não podia enviar as contas para ele, já que era o banqueiro de Henshaw?
- Oh, ele foi muito claro a esse respeito. Não deveria haver nenhuma ligação pública entre ele ou o banco e o Sr. Henshaw.
- Não lhe pareceu estranho?
- Pra dizer a verdade, achei esquisito. Mas como ele explicou, muito claramente, as famílias abastadas têm maneiras estranhas de agir em assuntos que envolvem maridos, esposas e filhos… Os senhores sabem,
com tantas regras de herança e fundos de investimento, das quais pessoas como nós não têm a menor noção.
- Então o que é que lhe cabia fazer?
- O que quer que Henshaw me dissesse. Ele agia por conta própria nesse departamento... É claro, eu cobrei algumas contas pra cobrir suas reclamações, mas isso foi apenas pra pagar os reboques e os motoristas,
juro! A situação toda era meio maluca, mas não temos habitualmente clientes do tope de Henshaw ou dos Brewster, gente sobre quem você lê a toda hora nos jornais - os respeitáveis luminares da sociedade.
- Vamos ao que interessa, Sr. Noyes - disse Leslie firmemente. - A razão por que estamos aqui. Qual é a explicação para o "diversos" na conta que Roger Brewster lhe pagou em espécie? Algo acima de mil
e quatrocentas libras, creio eu.
- Cristo onipotente, eu sabia que isso acabaria vindo à tona mais cedo ou mais tarde! E lhe digo com toda sinceridade, fiquei realmente puto da vida! Desculpe a minha linguagem, senhorita. Mantive essa
fatura pendente nos meus livros durante quase dezoito meses! Henshaw disse que pagaria a conta, mas se eu a mandasse pro pessoal da Westminster, eu nunca mais o veria nem a seus pedidos. Finalmente, fiquei
tão emputecido... perdoe-me...
- Está perdoado, prossiga.
- Estava tão chateado que disse ao Henshaw pelo telefone pensei que fosse ele - que ou ele pagava ou adeus ao Jaguar vermelho!
- A conta cobria o quê?
- Compreenda, jurei que nunca diria nada a ninguém.
Geoffrey Waters enfiou a mão no bolso e retirou sua identidade do MI-5 pela segunda vez; ele abriu a carteira e falou: - Acho que devia falar agora, meu velho, ou será acusado de crimes contra a Coroa.
- Crimes, eu não! Sou membro da Guarda Civil!
- Ela foi desativada há dez anos.
- Fale - acrescentou Pryce.
- Tá certo, não quero confusão com vocês... Há cerca de dois anos Henshaw me disse que queria um cofre de primeira classe, uma pequena caixa-forte, na verdade, escondida sob o piso de aço da mala do Jaguar,
que parecesse parte integrante do chassi do carro. Levou uma semana inteira em ritmo acelerado pra ficar pronto, embora ele tivesse dito que queria o serviço concluído em dois dias. Tivemos que parar todos
os outros trabalhos - cobrei o certo, não se discute! Principalmente tendo em vista que ele mandou outra oficina instalar a chave da placa da mala. Sem ela não se sabe onde fica o raio do cofre!
- Viu o homem do banco mercantil novamente? - perguntou Cameron.
- Não ele, mas muitos de seus subordinados.
- Como assim?
- Toda vez que o Jaguar era rebocado e consertado, um dos caras aparecia para checar os reparos. Confesso que ficava ofendido com isso, da mesma forma que ficara em relação à chapa de aço. Tenho excelente
reputação profissional de que muito me orgulho.
- Esses homens ficaram alguma vez sozinhos com o carro?
- Não faço ideia, estava geralmente ocupado.
- Obrigado, Sr. Noyes - disse Geoffrey Waters, do MI-5. Foi muito cooperativo. A Coroa agradece.
- Graças a Deus!
O Jaguar vermelho estava na garagem para três carros nos fundos da casa de Belgrave Square. Roger Brewster tinha arrastado a pesada caixa de ferramentas de seu falecido pai, tendo encontrado um maçarico
de acetileno num canto da oficina. Pryce segurava o croqui que trouxera dos arquivos de Noyes enquanto o filho de Brewster abria a mala do Jaguar vermelho.
- Costumava ficar sentado no banco durante horas observando meu pai mexer nos seus carros - disse Roger. - Não sei se ele era um bom mecânico ou não, mas ele geralmente era bom em tudo o que fazia porque
se concentrava intensamente... E lá vamos nós - ele anunciou, arrancando o carpete da mala e deixando à vista o fundo de metal. Em seguida pegou o maçarico e os óculos de proteção. - Risque com o giz o
contorno do cofre por baixo da chapa, Sr. Pryce, por favor.
- Tem certeza de que não quer que eu faça isso? - perguntou Cameron. - Se aquele filho-da-puta escondeu alguma coisa aqui embaixo, eu mesmo quero achá-la, e que melhor maneira de fazê-lo senão com as ferramentas
de meu pai?
Roger Brewster pôs-se a trabalhar com afinco, a chama azulada derretendo progressivamente o aço da mala, num retângulo perfeito. Concluído o processo, o rapaz jogou água fria em cima da chapa, a fervura
levantando pequenas nuvens de vapor contra o capô da mala. Com um martelo ele deu umas pancadas na risca de giz até o pedaço delineado da chapa se desprender e cair. Com uma tenaz que apanhou na caixa
de ferramentas, Roger retirou a chapa de metal do seu recesso, depositando-a no chão. Revelou-se então um pequeno e robusto cofre com um disco preto e branco no centro. Pryce consultou novamente o croqui
da oficina de St. Albans, lendo o que Gerald Henshaw jamais poderia remotamente considerar: a sequência dos números da combinação da fechadura tal como fora impressa pela Manchester Vault and Safe Company.
Removeram o conteúdo do cofre e colocaram-no enfileirado no banco da oficina. Havia uma pequena pilha de títulos ao portador, resgatáveis em datas progressivas, os primeiros negociáveis há sete semanas,
na manhã do assassinato de Lady Alicia; quatro chaves de quatro portas diferentes, provavelmente de apartamentos das várias amantes de Henshaw; alguns cheques de viagem pré-datados; anotações em código
amarrotadas que não revelavam nada, que só poderiam ser decifradas por um homem desaparecido que presumivelmente estaria morto.
- É uma barafunda dos diabos! - exclamou Waters. - Aonde essas coisas poderão realmente nos levar?
- Para começar - respondeu Pryce - era assim que o pagavam, os celerados responsáveis pelo sequestro do filho de Leslie e pelo assassinato de Lady Alicia. Uma obscura oficina mecânica nos subúrbios de
Londres, de propriedade de um sujeito trabalhador mas meio bronco, obviamente deslumbrado com o brilho da chamada alta sociedade.
- Isso ficou mais do que evidente, meu velho, mas Noyes mostrou-se bastante aberto conosco, cooperativo, na verdade. Não acredito que estivesse escondendo alguma coisa.
- Você não lhe deu muita chance, Geoffrey - disse Montrose.
- Então descobriremos um método extremamente engenhoso de comunicação, mas que não podemos rastrear. Não há identidades, descrições, pistas de qualquer natureza. Todas parecem ter se evaporado!
- Concordo plenamente com você - interrompeu Leslie - que o Sr. Noyes não tenha ocultado nada conscientemente, mas fiquei intrigada com uma coisa.
- O que foi? - perguntou Cameron.
- Ele repetiu diversas vezes que tinha um bom negócio, que gozava de excelente reputação, em suma, que não era pressionado por problemas de dinheiro...
- Não foi isso o que ouvi dizer - atalhou Roger Brewster. Ele vivia chorando sua dureza, a dificuldade para fazer frente a suas contas e à sua folha de pagamentos. Quase se jogou de joelhos aos meus pés
quando lhe mostrei as duas mil e seiscentas libras.
- Isso me parece mais próximo da verdade - continuou Montrose. - Se ele era tão bem-sucedido como quis nos fazer acreditar, por que sua oficina não era mais espaçosa, para poder abrigar mais carros? E
só vi mais dois mecânicos, o que está longe de representar uma folha de pagamento assustadora.
- Talvez ele quisesse nos impressionar - aventou Pryce. Com as credenciais de Sir Geoffrey, é bem possível.
- Concordo, mas há uma contradição em tudo isso. Ele se referiu aos contadores da Westminster, que trabalham para os Brewster, em termos quase elogiosos. Eles faziam o trabalho que lhes competia e ele
dava conta do seu. Portanto, pra que criar um caso?
- Para não perder Henshaw como cliente - respondeu Waters retoricamente. - Onde é que está a contradição?
- Porque as coisas não são bem assim, Geoffrey. Desde que meu marido morreu, tive muitas dores de cabeça com consertos de carro. Essa turma é um bocado agressiva, e não acredito que aqui seja muito diferente.
- Não veja nisso nenhuma atitude machista - disse Pryce mas essa "turma", como você disse, costuma menosprezar as mulheres, achando que seu conhecimento do trabalho deles é limitado.
- Essa é a minha opinião, pelos menos em parte. Quando Jim morreu, um contador público, com sua própria firma de contabilidade, passou a administrar todas as nossas finanças até que eu pudesse me organizar.
Como fui transferida diversas vezes, esse acordo durou quase um ano...
- Aonde você está querendo chegar, Leslie? - perguntou um Cameron impaciente.
- Estive envolvida em alguns acidentes, um por minha culpa, por falta de concentração, e em outros dois que não passaram debatidas sem maiores consequências em locais de estacionamento. Joe Gamble, o tal
contador, me disse que a parte mais ingrata do seu trabalho eram as contas de consertos de carros. Não só os acordos com as seguradoras são uma via-crúcis, como os donos de oficinas, cujas contas são absurdas,
cobram seu dinheiro de uma maneira grosseira, constantemente praguejando como vikings.
- Minha querida - interpôs Geoffrey Waters por acaso você está inferindo um paralelo aqui, a partir de uma tênue coincidência?
- Não um paralelo, mas uma contradição, uma incoerência.
- Qual é?
- A opinião favorável de Alfred Noyes sobre os contadores dos Brewster. Eles atrasavam sistematicamente os pagamentos dele, frequentemente discutiam as importâncias cobradas, e tudo o que ele se limitou
a dizer foi "Eles tinham que fazer o trabalho deles".
- Reafirmo minha opinião de que o rude Alfie não queria se arriscar a perder Henshaw como cliente.
- Alfie pode ser rude, Geof, mas não é uma besta quadrada disse Pryce. - Ele estava prestando um valioso serviço confidencial que lhe tinha sido arranjado por um estranho. Enquanto ele seguisse as regras,
não perderia Henshaw. Acho que lhe tinham assegurado isso.
- Do que é que estão falando? - interrompeu Angela Brewster. - Não estou entendendo nada.
- Nem eu - disse o irmão.
- Até que ponto vocês conhecem o pessoal da contabilidade da Westminster House? Quem é que vocês contatam lá?
Novamente os rebentos da família Brewster se entreolharam, franzindo as sobrancelhas. - Fomos lá com a mamãe há uns dois anos para assinar uns papéis - disse a irmã. - Conhecemos o chefe da firma, um senhor
chamado Pettifrogge; lembro-me do nome porque o achei engraçado, e todos foram muito simpáticos e amáveis, mas todos sempre ficavam em volta de nossa mãe.
- Henshaw foi com vocês? - perguntou Waters.
- Não - respondeu o irmão - e me recordo disso claramente. Você se lembra, Angela? Mamãe nos disse que não havia motivo para contar ao Gerry que tínhamos estado lá.
- É claro que me lembro. Os documentos eram muito confidenciais.
- Do que é que se tratava? - perguntou Cameron. - Se o assunto não for demasiado confidencial.
- Era alguma coisa dispondo sobre propriedades e bens selecionados, na eventualidade de... et cetera, et cetera - respondeu Roger. - Não li muito atentamente.
- Mas eu li mais cuidadosamente do que os et cetera, et cetera - disse Angela com firmeza. - Havia diversas páginas de inventário - quadros, tapetes, móveis - que deveriam permanecer com a família Brewster
e não serem removidos de onde se encontrassem sem o consentimento de Rog e meu, sob a supervisão dos advogados de mamãe.
Pryce assobiou baixinho. - Nossa, nessa o Gerald Henshaw dançou.
- Os bens inventariados eram inalienáveis - acrescentou a irmã mais nova. - Havia uma cláusula - uma ordem na verdade - estabelecendo que no caso de o paradeiro de nossa mãe não ser confirmado dentro de
quarenta e oito horas de tentativas para localizá-la, a casa deveria ser guardada, nada podendo ser removido.
- Cuidados maternais - disse Cam.
- Certamente ela começou, pelo menos, a suspeitar do Sr. Charme - disse Angela.
- Contudo - atalhou Geoffrey Waters - não havia uma pessoa específica na firma a quem vocês pudessem recorrer caso se fizesse necessário?
- Mas pintaram algumas desde a morte de mamãe - respondeu Roger. - O velho Pettifrogge veio aqui uma vez, mais para apresentar seus pêsames do que qualquer outra coisa. O homem que parecia responsável
pelo escritório, que estava sempre checando a lista do inventário, era um cidadão chamado Chadwick. Ele se apresentou como diretor administrativo cujo principal encargo era cuidar das contas de mamãe e
da Wildlife.
- Eu diria que a Westminster House of Finance deveria ser nossa próxima parada, vocês não acham? - disse o homem do MI-5.
A Westminster House era exatamente o que proclamava ser. Um venerando prédio estreito de seis andares, construído de arenito avermelhado no século dezoito, cuidadosamente preservado, em Carlisle Place.
A distinta placa de metal dourado à direita da porta de vidro blindado da entrada esclarecia sua identidade.
WESTMINSTER HOUSE
FUNDADA EM 1902
SERVIÇOS FINANCEIROS PARTICULARES
O prédio em si transmitia uma imagem de discreta solidez, e evocava gerações, até mesmo dinastias de clientes abastados e poderosos. A Westminster House gozava de quase um século de tranquila influência
nos círculos financeiros de Londres, justificada por sua exatidão e inquestionável integridade. Construíra um muro quase impenetrável de total respeitabilidade à sua volta.
Enquanto a viatura do MI-5, com Waters, Pryce e Montrose, seguia velozmente para Carlisle Place, a muralha daquela fortaleza sofreria uma rachadura, uma fissura nas suas pedras tão profunda que a Westminster
House passaria a ser alvo de insidiosa especulação.
Geoffrey Waters dobrou à direita na Victoria Street em direção a Carlisle Place. Ele e seus colegas ficaram espantados com o que viram. Em frente à Westminster House estavam estacionados dois carros da
polícia e uma ambulância, piscando suas luzes vermelhas. Juntos, os dois funcionários da inteligência e o coronel do Exército dos Estados Unidos desceram do veículo e correram para a pequena multidão em
frente ao prédio. O chefe do MI-5, exibindo suas credenciais, abriu caminho entre os curiosos, Leslie e Cameron logo atrás dele.
- MI-5! - gritou Waters. - Estamos a serviço da Coroa, deixem-nos entrar, eu e meus colegas!
Lá dentro o pandemônio era total, estavam todos em estado de choque. Executivos, secretárias, auxiliares de arquivo e pessoal de manutenção - estavam todos histéricos. Finalmente, depois de muito empurrão
e cotoveladas, Geoffrey Waters defrontou-se com um homem de terno escuro cuja posição superior era evidente. - Meu nome é Waters, sou do MI-5 e estou a serviço da Coroa! O que foi que aconteceu?
- Oh, o quê? Está tudo tão confuso...
- O que aconteceu! - berrou Cameron.
- Uma coisa horrível, absolutamente horrível!
- O que foi? - gritou Montrose.
- Brian Chadwick, nosso vice-presidente, o companheiro que nós todos sabíamos que um dia assumiria a direção da firma, suicidou-se!
- Atenção - todos os policiais presentes! - gritou Sir Geoffrey Waters. - Lacrem o escritório do falecido!
DEZESSEIS
Bahrain, duas horas da tarde.
Numa mansão de alabastro às margens do Golfo Pérsico, um rapazola de quinze anos estava sentado a uma escrivaninha numa sala de paredes brancas com grades protegendo as janelas. Era uma cela e ao mesmo
tempo não era, uma vez que ele dispunha de banheiro, uma cama confortável, um aparelho de televisão e contava com todos os livros e material para escrever que solicitasse. Seu nome era James Montrose Jr.,
seu apelido, Jamie.
Sua rotina, tal como transcorria, era imposta dentro de certos limites. Era-lhe permitido caminhar pelos jardins da propriedade murada desde que acompanhado por um guarda, e podia usar à sua vontade a
piscina, bem como bater bola contra o paredão - já que as duas quadras de tênis eram inúteis por não haver outros "hóspedes" com quem jogar. Também podia pedir seus pratos favoritos. Era um cativeiro ameno,
mas não deixava de ser um cativeiro. Não podia ser levado à capital de Manama nem a qualquer outra área do arquipélago independente. Ficava confinado à mansão sem poder se comunicar com o mundo exterior.
Jamie Montrose era um adolescente bem-apessoado, desenvolvido para sua idade, uma mistura de seus atraentes pais. Tinha a tranquila determinação frequentemente encontrada em filhos de militares. Aparentemente
ela decorre das constantes transferências de uma base para outra, no país e em terras estrangeiras, e da necessidade de se adaptarem a novas circunstâncias. No caso do filho de Leslie Montrose, entretanto,
havia um lado de sua personalidade geralmente ausente na prole de militares. Embora as estatísticas indiquem que os rebentos de militares não raro alimentem um grande ressentimento em relação à vida de
seus pais, especialmente com respeito ao pai, que, via de regra, é quem enverga o uniforme, James Montrose Jr. adorava seu pai, ou mais precisamente a memória dele.
Sua devoção não se manifestava numa postura agressivamente militar, nem ele fazia proselitismo dos aspectos positivos, que são muitos, da vida nas Forças Armadas. Achava que era uma decisão a ser tomada
por um indivíduo depois de cuidadosa reflexão e avaliação dos pontos fracos e fortes de cada um. Se uma só descrição pudesse sintetizar externamente o posicionamento de Jamie, provavelmente seria a de
um tranquilo observador que estuda as circunstâncias antes de se tornar um participante. Os últimos anos de súbitos ajustes tinham-no ensinado a ser afável e cauteloso mas não indeciso. Por baixo de sua
aparência tranquila, até mesmo lacônica, havia a força e a determinação de uma mente muito ágil.
- James - soou a voz alta do outro lado da porta trancada -, é conveniente para mim entrar, ou não?
- Entre, Amet - respondeu o jovem Montrose. - Ainda estou aqui porque não consegui vergar as grades de ferro das janelas algumas polegadas. Ainda não dá para me espremer entre elas.
A porta foi aberta e um homem esguio num terno ocidental mas com um turbante árabe na cabeça entrou. - Você é sempre muito engraçado, James - disse o recém-chegado, com a dicção pausada à maneira dos nativos
do Oriente Médio que aprendem inglês em colégios britânicos. - Você sabe ser um hóspede encantador quando não está mal-humorado... creio que a palavra é essa.
- Experimente zangado. Você não me deixou telefonar para minha mãe. Não sei o que ela sabe ou deixa de saber, o que lhe disseram ou deixaram de dizer. Não estou mal-humorado, Amet, estou é muito zangado.
- Ninguém o trata mal, não é verdade?
- O que é que você acha? - perguntou um revoltado Jamie, levantando-se da escrivaninha. - Estou preso na terra de Ali Babá, numa gaiola de ouro, mas que não deixa de ser uma cela, uma cela infame! Quando
é que vão me dizer o que está acontecendo?
- Mas você sabe, James, sua mãe está participando com seus superiores de uma missão altamente secreta e extremamente perigosa. Ao ficar recolhido aqui, você está a salvo de qualquer mal, não havendo a
menor chance de o seu paradeiro ser rastreado por qualquer meio de comunicação. Acredite no que lhe digo, rapaz, sua mãe está imensamente grata. Ela compreende que poderia comprometer sua tarefa caso acontecesse
alguma coisa a você.
- Então deixem que ela me diga isso! Um telefonema, uma carta... pelo amor de Deus, qualquer coisa!
- Não se pode correr riscos. Ela também entende isso.
- Quer saber de uma coisa, Amet? - disse Montrose filho, circundando a escrivaninha e postando-se em frente ao bahraini. Você me diz essas coisas e espera que acredite nelas. Por que deveria? Quando o
diretor do colégio mandou me chamar na minha sala de aula e me disse que seria levado ao Aeroporto Kennedy onde funcionários do governo estariam à minha espera - todos em missão de segurança nacional prioritária
- topei numa boa porque imaginei que tivesse alguma coisa a ver com minha mãe. Afora checar as identidades dos caras de Washington, que me pareceram autênticas, não fiz nenhuma pergunta.
- Por que deveria fazer? Você é filho de militares, deve compreender a cadeia de comando quando se trata de total segurança.
- Posso aceitar quando compreendo. Essa lance todo é muito doido! Conheço minha mãe e ela nunca agiria da maneira como você diz. Ela teria pelo menos me telefonado, me colocado por dentro.
- Não houve tempo, James. Ela foi convocada para a operação em cima da hora e já estava a caminho fora de comunicação antes até de poder fazer a mala. Você sabe o que quer dizer "fora de comunicação",
não sabe?
- Sei, porque é como me encontro. Incomunicável. Agora me diga uma coisa. Por que é que quando liguei para o coronel Bracket do aeroporto, a gravação disse que o número não era mais aquele? Depois, quando
consegui falar com uma telefonista, ela me disse que o número atual não consta da lista e que não podia me ajudar. Repito, o que é que está acontecendo?
- Substitua "governo" por "Deus" e você encontrará a resposta na sua Bíblia. Ele age de maneiras misteriosas.
- Mas não de uma maneira totalmente maluca!
- Isso é um julgamento pessoal. Não posso lhe responder.
- Pois alguém devia - disse James Montrose Jr. com firmeza, com os olhos presos nos do árabe, um elemento graduado dos Matarese.
- Ou então o quê, meu jovem?
Jamie Montrose não disse nada.
O cadáver de Brian Chadwick foi removido da Westminster House, em Londres, para o médico-legista. As instruções foram para fazer uma autópsia completa, embora o orifício da bala na sua têmpora direita
e a pistola automática na sua mão parecessem confirmar que a morte tinha sido por suicídio. A pergunta era, porquê? Um homem de quarenta e poucos anos, com uma excelente reputação, às vésperas de atingir
o topo de sua carreira profissional - o que o teria levado a cometer o ato de desespero?
O médico-legista tinha a resposta.
Tinha sido assassinato.
- Não havia vestígios de clorato de potássio na pele de sua mão direita, não havia queimaduras de pólvora como a televisão constantemente, embora quase erroneamente, nos diz - disse o legista chefe. -
Ademais, há uma contusão maciça na base do seu crânio, uma equimose que deve ter sido provocada por um assassino experiente. Deixaram-no inconsciente, o alvejaram, e a arma foi colocada na sua mão.
- Um tanto estúpido para um criminoso experiente, não lhe parece? - perguntou Pryce sentado à mesa na sede do MI-5, à qual o médico tinha comparecido para uma reunião confidencial.
- Se quiser um palpite, eu lhe dou - disse o patologista. Para mim, o homem que o matou estava com muita pressa e não teve tempo para sutilezas. Lembre-se, é apenas um palpite.
- Está querendo dizer que ele foi contatado e lhe disseram para executar o serviço imediatamente? - perguntou Leslie.
- Sem perda de tempo - acrescentou o legista.
- Em outras palavras - disse Cameron -, está dando a entender que quem quer que tenha sido sabia que estávamos a caminho para nos avistarmos com Chadwick, certo?
- Mas as duas únicas pessoas que sabiam eram Roger e Angela Brewster. - Pryce balançou a cabeça. - Isso não faz sentido!
- Não posso ajudá-lo nisso. Sinto muito, meu velho.
- Talvez eu possa - atalhou Waters, - É algo que não consideramos e devíamos ter.
- O que é, Geof?
- Com toda a sofisticação e alta tecnologia, esquecemos um procedimento primitivo: o grampeamento de uma casa.
Angela Brewster olhou pelo vidro de correr do visor de segurança e abriu a porta da frente para Waters, Montrose e Pryce. - Onde está seu irmão, minha querida?
- Ele foi com Coleman à empresa de sistemas de alarme...
- O que foi que aconteceu? - perguntou Leslie, interrompendo abruptamente.
- Nada. Foi ideia do Coleman. Ele disse que devíamos trocar o sistema, pelo menos parcialmente.
- Quem é Coleman? - insistiu Cameron.
- Esqueci de mencioná-lo, meu caro...
- Coley é uma espécie de faz-tudo da casa, pode-se dizer assim - respondeu Angela. - Está conosco há muitos anos, nem me lembro mais há quanto tempo. Era amigo do meu pai, um sargento que serviu sob as
ordens dele durante as escaramuças dos Emirados nos anos 50. Ele e papai receberam a Cruz Militar.
- O que é que ele faz? - pressionou Montrose.
- Como disse, um pouco de tudo. Se precisamos ir de carro a algum lugar, ele assume o volante; se mamãe precisasse de alguma coisa das lojas, era ele quem ia. Ele também supervisiona as faxineiras que
vêm duas vezes por semana, assim como todas as entregas e o pessoal de manutenção e consertos. Muitas vezes o ouvi dizendo a um bombeiro ou a um eletricista que o sujeito não tinha a menor noção do que
estava fazendo.
- Parece com um dos seus primeiros-sargentos britânicos, Geoffrey.
- Eles são uma raça à parte, Cameron. Acredito sinceramente que eles foram responsáveis pela maioria de nossas vitórias desde o século dezoito, a única exceção tendo sido a revolução colonial, onde estiveram
obviamente ausentes... Coleman é um sujeito agradável, franco, que se recusa a admitir que está ficando velho. Um camarada vigoroso para a idade dele.
- Ele mora aqui, Angela? - perguntou Pryce.
- Só quando não tem ninguém em casa. Quando estamos fora, ele fica num dos quartos de hóspedes. Ele mora num pequeno apartamento aqui perto de casa. Há telefones especiais em cada quarto. Quando precisamos
dele, ligamos e ele está aqui em poucos minutos.
- Um camarada independente, não é mesmo?
- É verdade, e nosso pai sempre disse que devíamos respeitar essa sua faceta.
- Ele tinha razão - concordou Cameron. - Ele tem sua vida… Depois que seu pai morreu, como é que ele se dava com Henshaw?
- Acho que ele o odiava, mas por uma questão de lealdade aos meus pais, não demonstrava muito. Ficava na dele, afastando-se discretamente a maior parte do tempo que Gerry estava em casa... Deixe-me explicar
por que tenho certeza de que Coley não via com bons olhos o Sr. Charme. Num domingo de manhã, há uns seis meses, eu tinha vindo passar o fim de semana em casa; Roger estava no colégio e mamãe tinha ido
à igreja quando aconteceu. - A mocinha fez uma pausa, como se estivesse pouco à vontade para prosseguir.
- O que foi que aconteceu, Angela? - perguntou Leslie gentilmente.
- Gerry desceu a escada de cuecas. Estava numa ressaca monumental, e o bar do andar de cima não tinha o uísque que ele queria. Andava agitado de um lado para o outro e é possível que eu tenha exagerado
minha reação, mas o fato é que ele parecia tão furioso, tão fora de si... tão... nu. Toquei a campainha para chamar Coley, apertando o botão diversas vezes, que é o sinal convencionado para ele vir imediatamente.
- E ele veio? - perguntou Geoffrey Waters.
- Em menos de dois minutos. Àquela altura Gerry estava realmente alucinado, gritava comigo, me chamava de tudo quanto é nome feio porque não conseguia encontrar o desgraçado do seu uísque no bar de cobre.
Naturalmente, com a súbita aparição de Coley, o Sr. Charme ficou surpreso, atordoado. Tentou salvar as aparências e nos levar na conversa. Mas o nosso bom e velho Coleman não estava a fim de brincadeira.
Colocou-se entre nós dois e nunca hei de esquecer o que ele disse. - Nesse ponto Angela parou momentaneamente, o que muitas adolescentes fazem com frequência, para imitar a voz de quem estão descrevendo.
No caso, foi um dialeto de Yorkshire áspero, num tom debaixo profundo. - "O senhor não está convenientemente vestido para a sala de visitas, e aconselho a não dar outro passo à frente. Asseguro-lhe de
que não necessito de uma arma, mas o resultado poderá ser o mesmo, e seria um dos maiores prazeres da minha aposentadoria..." Não foi bárbaro? Não queiram saber, Henshaw saiu correndo da sala, tropeçando
nos degraus da escada como um espantalho bêbado!
- Você ou o Sr. Coleman disseram alguma coisa à sua mãe? perguntou o chefe do MI-5.
- Discutimos o assunto e resolvemos não contar nada. Mas Coley me fez prometer que se eu visse Gerry naquele estado novamente, ligasse imediatamente para ele.
- E se por acaso ele não estivesse em casa? - indagou Montrose.
- Ele disse que tem um dispositivo no telefone dele que transmite a mensagem num raio de cinquenta quilômetros. E se ele tivesse que viajar além dessa distância, tomaria outras providências.
- Por exemplo?
- Deixaria dois amigos dele de sobreaviso aqui em Londres que também serviram na brigada Omã sob o comando de meu pai. Ambos estão aposentados mas Coley disse que são realmente qualificados. Um foi guarda
de segunda classe e o outro trabalhou na Scotland Yard.
- Esplêndidas credenciais.
- Foi o que eu também pensei.
- Quais eram as modificações que Coleman queria fazer no sistema de alarme? - continuou Pryce.
- Algo sobre câmeras de televisão que possam ser vistas do seu apartamento. Ele queria estudar os esquemas e ver o que era possível, me parece.
- Ele disse por quê? - perguntou Waters.
- Para mim, a maior parte foi grego, mas Rog pareceu compreender, a menos que estivesse fingindo, o que ele às vezes faz.
- A campainha da porta da frente tocou; o homem da MI-5 falou rapidamente. - Provavelmente é a equipe do nosso escritório - ele disse. - Chamei-a do carro e pedi para que desse um pulo aqui o mais rapidamente
possível.
- Equipe de quê? - Angela estava surpresa, ansiosa. - Por que toda essa pressa?
- Não queremos alarmá-la, querida - respondeu Leslie, olhando para ambos, que compreenderam -; pode não ser nada, mas há uma possibilidade de que tenham colocado um grampo na sua casa.
- Oh, meu Deus!
- Vou mandá-los entrar.
- Desative o alarme - advertiu a jovem rapidamente enquanto Waters se encaminhava para a porta. - O pequeno painel à direita, aperte dois, um, três, e espere alguns segundos.
- Certo. - O inglês digitou os números e admitiu o acesso de três homens carregando equipamento eletrônico não muito diferente do usado por eletricistas e técnicos de televisão; um deles segurava uma grande
bolsa preta. - Começaremos pela garagem - continuou Waters, conduzindo a unidade para uma porta no fundo do amplo vestíbulo. - Foi onde uma certa conversa teve lugar. Há uma entrada aqui nos fundos...
Vamos nessa?... Vocês três aí.
- Nos seus calcanhares, Geof - respondeu Cameron, escoltando Angela Brewster e Montrose.
- Como é que alguém pôde fazer uma coisa dessas? - perguntou Angela. - Entrar aqui em casa e instalar um desses dispositivos - um grampo, quero dizer?
- Se houver um, provavelmente haverá outros - disse Pryce.
- Que coisa mais desrespeitosa! É pior do que ler o diário de alguém. Mantenho o meu trancado à chave. Quando fiz dez anos, papai mandou instalar um pequeno cofre na parede do meu quarto, e posso trocar
a combinação quando quiser.
- Quando eu tinha a sua idade, também mantinha um diário disse Leslie. - Meu irmão estava sempre à procura dele, querendo lê-lo.
- Você tinha um irmão mais velho?
- Mais moço, minha cara, e é muito pior. A gente tem que tomar conta dos fedelhos e eles estão sempre nos sabotando.
Todos riram enquanto desciam a escada para a espaçosa garagem. - Não sabia que você tinha um irmão - murmurou Cam nos degraus da escada.
- Pensei que tivesse lido o meu dossiê.
- Examinei suas qualificações, não a história da sua vida.
- Obrigada por isso.
- Seu irmão sabe o que aconteceu?
- Emery é um amor, um sujeito realmente fora de série, mas não é o tipo de pessoa que se deva procurar numa crise.
- Mesmo?
- Meu irmão tem uma barba curta e mais diplomas do que seria razoável supor na sua idade. É o mais jovem catedrático de Berkeley, e volta e meia ele e a mulher botam as mochilas nas costas e se embrenham
pelas montanhas levando suas fitas de Mozart, Brahms e velhos madrigais ingleses. Deu pra ter uma ideia da figura?
- Parece uma pessoa interessante. Filhos?
- Ainda não decidiram. As decisões são sempre um grande problema para eles, geralmente resolvidos com adiamentos.
Os três especialistas em interceptação do MI-5 foram trabalhar na garagem. Dois ficaram andando devagar em torno do espaço ao lado das paredes sob a orientação do terceiro homem, brandindo o que pareciam
miniaturas de telefones com antenas duplas saindo dos lados. Os instrumentos eram dotados de mostradores, e o supervisor verificava a todo instante as leituras e tomava notas numa pequena prancheta.
- Há muito metal tratado com iodo aqui, Sir Geoffrey - disse o chefe da unidade enquanto ocorriam pequenos estalos intermitentes no aparelho. Finalmente, depois de oito minutos, houve uma sequência rápida
e constante de bips no instrumento próximo à parede em que ficava encostada a bancada de trabalho. Era um painel com diversas ferramentas penduradas em ganchos.
- Retirem tudo isso do painel, rapazes - ordenou Waters.
Os três homens removeram as ferramentas, colocando-as na bancada. Começaram então a retirar o painel da parede, que estava preso nos cantos e no centro com parafusos reforçados. Uma vez removido, encostaram
o painel no Jaguar vermelho, e examinaram meliculosamente a parede diversas vezes.
- Não tem nada aqui, Sir Geoffrey.
- Não pode deixar de ter - respondeu o chefe do MI-5. Tanto quanto sei, seus instrumentos não mentem, ou será que falham?
- Não, senhor.
- As ferramentas - disse Pryce. - Verifiquem todas elas, uma por uma.
Numa questão de segundos o grampo foi finalmente descoberto. Estava embutido no cabo de um grande martelo de borracha, ferramenta raramente usada, uma vez que os reparos que exigiam seu emprego eram feitos
numa oficina mecânica.
- Ian - disse Waters, dirigindo-se ao supervisor - você trouxe sua máquina mágica?
- Certamente, Sir Geoffrey.
O diretor da equipe ajoelhou-se, abriu a grande bolsa preta e retirou um instrumento eletrônico do tamanho de um livro grosso. Colocou-o no piso da garagem, voltou à bolsa e dessa vez retirou uma grade
com uma moldura metálica dividida em quadrados, com pequenas lâmpadas no meio de cada quadrado. Um fio fino com um pequeno pino de tomada na extremidade saía do alto da moldura.
- O que é isso? - perguntou Leslie.
- Um instrumento de rastreamento - respondeu o supervisor. - Ainda não está totalmente aperfeiçoado como gostaríamos, mas pode ser útil. Veja bem, esta grade representa aproximadamente mil e duzentos metros
quadrados, digamos três quarteirões de circunferência, que é o raio usual. Ligo a moldura no rastreador, introduzo o interceptor no receptáculo e as luzes percorrem as áreas e se detêm onde os receptores
estão colocados. Não especificamente, é claro, mas numa distância razoável.
- É extraordinário - disse Leslie.
- Surpreende-me que não o conheça - disse Ian. - Compartilhamos essa tecnologia com o seu serviço de inteligência.
- Pilotamos um navio com compartimentos estanques - disse Cameron em voz baixa. - Às vezes estanques demais.
- Prossiga, por favor, meu velho. - O supervisor ergueu a máquina e a moldura e apoiou-as na banca, inserindo o pequeno interceptor circular no orifício e ligando o equipamento. As pequenas lâmpadas piscaram
duas vezes seguidas, no sentido dos ponteiros do relógio, em torno da grade, fixando-se finalmente num quadrado no canto superior esquerdo.
- O que é que ele está nos mostrando? - perguntou Montrose, com Angela ao seu lado.
- Está direcionado para os quatro ponto cardeais - respondeu Ian, o chefe da equipe. - Na realidade, trata-se de uma bússola que repele metais embutida no centro inferior - ele acrescentou, apontando para
uma agulha flutuante engastada num mostrador de vidro na marca das seis horas. - Imagine o que está lá fora como se isto fosse um mapa.
- Está se referindo às ruas, aos quarteirões em volta de Belgrave Square? - disse Angela Brewster.
- Exatamente - continuou Ian, indicando diversos quadrados adjacentes ao que estava aceso. - Isto poderia ser Grosvenor Crescent, isto Chesham Place, e aquilo ali com as luzes acesas é presumivelmente
o posto de escuta, provavelmente será Lowndes Street.
- Lowndes? - exclamou Angela. - É lá que Coley mora - ela acrescentou em voz baixa.
O céu da noite de Bahrain estava escuro, as últimas orações tinham sido entoadas pelos mulás nos minaretes, a hora de dormir e dos folguedos noturnos dos privilegiados prestes a começar. Jamie Montrose
levantou-se da cama vagarosamente e vestiu suas roupas em silêncio. Completamente vestido, apagou a luz do abajur da escrivaninha, encaminhou-se para a porta branca trancada, respirou fundo, e de repente
começou a bater com força no painel de aço.
- Socorro! - ele gritou. - Alguém me ajude!
- O que é, Sr. James? - indagou em voz alta alguém do outro lado da porta.
- Quem é você?
- Kalil, Sr. James. O que está acontecendo?
- Não sei, mas meu estômago está em fogo! Acho que deveria chamar um médico. Estou me contorcendo na cama há quase uma hora mas a dor não passa! - James Montrose Jr. pegou um haltere que lhe tinha sido
dado para sua rotina de exercícios e postou-se na parede ao lado da porta. - Pelo amor de Deus, não demore! Estou me sentindo como se fosse morrer!
A porta se escancarou para dar passagem ao bahraini assustado; não vendo ninguém, ele ficou momentaneamente desnorteado. Ao se virar, o adolescente desferiu um golpe violento com o haltere em sua testa.
O guarda caiu no chão inconsciente.
- Desculpe, Kalil - sussurrou o jovem, ofegante. - Meu pai teria chamado meu estratagema de operação diversiva. - Jamie revistou a figura imóvel, removendo uma Colt 45 do seu coldre, diversos papéis escritos
em árabe e uma carteira contendo o que parecia ser uma grande importância em papel-moeda. Lembrou-se do que Amet, o chefe da mansão-cárcere, lhe havia dito. Não tente subornar nossos guardas com promessas,
James. Pelos nossos padrões, eles são muito bem pagos, bastante ricos, na verdade. O jovem Montrose pôs o dinheiro no bolso. Em seguida, arrastou o corpo inconsciente para a cama e rasgou em tiras o lençol
de cima; amordaçou o guarda com as tiras, e depois amarrou-lhe as mãos e os pés, apertando o pano, e correu de volta à escrivaninha, apagando a luz.
Transpôs cautelosamente a porta aberta e fechou-a suavemente, dando a volta na pesada chave de latão. Atravessou o corredor que havia percorrido durante semanas a fio, encaminhando-se para o arco que conduzia
à área aberta da propriedade. Fruto de suas longas noites de observação através das grades de suas janelas do lado oposto, Jamie sabia que o terreno era patrulhado por dois guardas armados com rifles automáticos
que portavam a tiracolo e pistolas em coldres nas suas cinturas. Trajando albornozes e turbantes brancos à moda árabe, eles montavam guarda de maneira casual, numa cadência que não chegava a ser militar,
encontrando-se nos muros leste e oeste, e refazendo seus passos.
O arco caiado de branco de que Montrose se aproximara levava ao pátio e ao muro leste, visto à luz pálida que vinha da mansão. Ele se agachou no corredor de pedra e esperou que os guardas despontassem
à sua vista, encontrando-se no meio do muro branco, que era equidistante dos portões norte e sul, trancados, intransponíveis. Os guardas fizeram uma pausa para acender sofregamente seus cigarros e bater
um rápido papo. Subitamente, Jamie ficou alarmado. O golpe que desferira no guarda Kalil tinha sido suficientemente forte para deixá-lo inconsciente, mas não dava para ameaçar-lhe a vida; não fora necessário
chegar a esse extremo. Kalil podia muito bem recuperar os sentidos a qualquer momento, e havia muitas maneiras de fazer barulho para atrair a atenção dos guardas - chutando cadeiras, jogando no chão pratos
que estivessem em cima de mesas, espatifando a televisão, tantas maneiras.
O jovem Montrose permaneceu imóvel, observando os dois bahrainis, rezando para que eles retomassem sua patrulha. Mas eles não se mexiam, rindo provavelmente de alguma piada. Jamie começou a transpirar
profusamente, uma transpiração provocada pela ansiedade e pelo medo. Era sabido que as leis dos Emirados árabes eram tão severas quanto as de qualquer outro lugar do mundo. O que as distinguiam era o fato
de que, dependendo de quem fosse ofendido, a vítima é que determinava a punição... Mas o que é que o preocupava? Afinal, seu sequestro tinha sido um exercício conjunto do governo de Bahrain com o dos Estados
Unidos.
Ou não teria sido assim? Essa era a questão, pois Jamie não conseguia, em sã consciência, se convencer de que o que lhe tinham dito era a verdade. Simplesmente havia muita coisa sem pé nem cabeça! Sua
mãe teria entrado em contato com ele de algum modo para alertá-lo - nem que fosse através de uma insinuação, uma pista - do que estava acontecendo. Pensar de outra maneira seria loucura, uma loucura tão
grande quanto tudo mais que tinha ocorrido!
Chegou! Um rumor vindo da sua cela, seguido de gemidos e gritos abafados na janela. Depois o barulho de vidros e louças quebrados, finalmente o estrondo de mesas e da escrivaninha de madeira arrebentadas.
Os dois guardas correram para a janela e Jamie prendeu a respiração, apavorado com a hipótese de acontecer o pior. Não aconteceu! Eles não tinham lanternas de mão.
Os guardas gritaram em árabe, cada um apontando em direções opostas. Um para o norte, o outro para o arco onde Jamie estava agachado nas sombras. O segundo guarda passou por ele correndo, preocupado apenas
em chegar à cela. De repente, feixes de luz de potentes holofotes começaram a varrer o espaço, iluminando toda a mansão e seus domínios.
Ainda não havia ninguém no muro leste. Era sua única chance! Ele cruzou o pátio correndo em direção ao muro de dois metros e meio de altura, pulando como nunca pulara em toda a sua vida, dilacerando e
fazendo sangrar suas unhas ao se agarrar às menores frestas e reentrâncias do muro de pedra. Impulsionado pelo pânico, alcançou a borda do muro e se deu conta de que suas mãos estavam cobertas de sangue.
O muro era coroado não apenas por cacos de vidros, mas igualmente por arame farpado com pontas tão afiadas quanto lâminas de barbear.
Jamie raciocinou um segundo, um milésimo de segundo talvez - circunstâncias. Avalie-as. O que é que papai teria feito? Holofotes errantes pegaram-no com seus raios, convergindo na sua figura congelada.
Com o raciocínio paralisado, comandado unicamente pelo instinto, saltou por cima do muro como só um saltador de vara o faria, encolhendo o corpo num arco e caindo no chão sobre os ombros. Seu braço direito
doía excruciantemente, mas ele superaria a dor já que se libertara de sua prisão, por mais civilizada que fosse.
Correndo desesperadamente, chegou a uma estrada de terra e esperou que passasse um carro ou um caminhão para o qual pudesse acenar. Passaram diversos que não lhe deram atenção. Finalmente, um táxi parou.
O motorista falou em árabe.
- Sinto muito, meu senhor, mas não compreendo a sua língua - disse o jovem Montrose, sem fôlego. - Sou americano...
- Americain? - gritou o motorista. - Americain?
- Sim - respondeu Jamie, sacudindo a cabeça rapidamente, agradecido porque o homem compreendia alguma coisa de inglês. - Há um... consulado ou uma embaixada americana aqui?
- H’ambassie Americain! - respondeu o motorista, gritando e sorrindo, ao mesmo tempo que sacudia a cabeça para cima e para baixo como uma galinha agitada.
- Shalkh ísa... em Manama!
- A embaixada!
- Sim, sim...
- Me leve até lá... me conduza lá! - Montrose enfiou a mão no bolso, tirou uma bolada de dinheiro e atirou-se no banco traseiro.
- Aiyee Americain! - exclamou alegremente o bahraini enquanto seu táxi arrancava, avançando estrada afora.
Dezesseis minutos mais tarde, depois de atravessarem três pontes, Jamie com as mãos ensanguentadas enroladas na fralda da camisa, chegaram à capital de Manama. O cenário, os sons, tudo parecia estranho
a Montrose Júnior, que olhava pela janela do carro. Alguns setores da pequena cidade estavam imersos numa escuridão silenciosa, pouca gente em ruas praticamente desertas. Entretanto, outras áreas estavam
profusamente iluminadas, fachadas de lojas resplandeciam com artigos exóticos, e alto-falantes transmitiam música do Oriente Médio; o movimento era intenso nessas ruas, sem tumulto, apenas cheias de gente.
O que surpreendeu Montrose Júnior foi o grande número de marinheiros e oficiais de marinha americanos.
- Wambassie Americain! - exclamou o motorista do táxi, apontando para a frente, para uma mansão rosa e branca na rua Shalkh Isa. Jamie olhou para a fachada do prédio - alguma coisa estava errada! Havia
quatro homens em trajes árabes, dois de cada lado da entrada trabalhada de madeira escura reluzente. À primeira vista, podia-se presumir que fossem guardas, mas as embaixadas americanas, invariavelmente,
destacavam fuzileiros para montar guarda às suas sedes. E as poucas embaixadas que requeriam patrulhas externas à noite jamais usariam civis nativos da cidade anfitriã para essa tarefa. Era impensável,
potencialmente suicida. Montrose Júnior vivera em muitos países para ter qualquer dúvida a esse respeito.
Só havia uma explicação: os quatro árabes eram da mansão de alabastro às margens do Golfo Pérsico! - Siga em frente! - gritou Jamie, segurando os ombros do taxista com a força de um jovem campeão de luta
livre e movimentando seu dedo indicador para frente e para trás, indicando a próxima rua. - Me leve de volta para onde há luzes, gente,... lojas!
- Aiyee, shoppings! Americain compra!
Com as mãos enfaixadas com gaze, comprada a duras penas numa farmácia, o jovem Montrose enfiou-se no meio da multidão que perambulava pela área comercial do bairro Az Zahran em Manama. Avistou um oficial
da Marinha, um tenente, como pôde constatar pelas insígnias no colarinho aberto da camisa do seu uniforme de verão e as asas prateadas na sua camisa. Alguma coisa no homem fez Jamie lembrar vagamente de
seu pai. O oficial, que por sinal era de cor, era alto, seus traços eram pronunciados, mas não de uma maneira agressiva, e seu jeito informal evidenciou-se no bom humor com que contornou um pequeno incidente
com um grupo de marinheiros que obviamente tinha descoberto lojas onde bebidas ilegais podiam ser adquiridas. Gentilmente, ele arremedou o jeito como batiam continência e conversou com alguns, aparentemente
aconselhando-os a se retirarem da área antes que fossem flagrados pelos policiais locais. O conselho foi aceito.
Montrose Júnior aproximou-se do oficial. - Tenente - disse ele, falando suficientemente alto para se fazer ouvir em meio à algazarra da multidão. - Posso falar com o senhor?
- Você é americano - observou o oficial. - O que foi que aconteceu com suas mãos, meu filho?
- É parte do que quero falar com o senhor. Acho que estou precisando de ajuda.
DEZESSETE
Cameron Pryce andava a esmo, ansioso, por entre os móveis imponentes da sala de visita dos Brewster e Leslie Montrose estava sentada com Angela no sofá de brocado.
- Estamos encurralados, maldição - exclamou o agente de campo da CIA. - Estamos andando em círculos, círculos sem tangentes, como diria Scofield.
- Do que é que você está falando? - perguntou Leslie.
Pryce não teve chance de responder pois um Geoffrey Waters mal-humorado desceu a escada aos pulos. - Maldição, maldição, maldição - ele praguejou.
- Eu já disse isso - observou Cameron. - Por que é que você está repetindo agora?
- O raio da casa está toda grampeada. Podia até passar por um anexo da BBC.
- Esclarecimentos, por favor - disse Pryce.
- Encontramos um grampo na garagem, três nesta sala, dois na sala de jantar e um em cada quarto... ah, sim, e mais outros dois na biblioteca lá de cima.
- Que horror! - exclamou Angela.
- Deve ter sido necessário muito tempo para instalá-los - disse Leslie.
- Sem serem observados - acrescentou Cameron. - Uma ou mais pessoas sozinhas aqui dentro sem receio de serem descobertas. - Voltando-se para Angela Brewster, ele perguntou: - Depois da morte de sua mãe,
você e seu irmão voltaram para seus colégios, não foi?
- Ficamos aqui em Londres uns quinze dias depois do enterro, em constantes reuniões com advogados e testamenteiros e muitos parentes, coisas desse tipo. E, naturalmente, passamos aqui um ou outro fim de
semana. Rog me apanha de carro e nos mandamos para cá como fizemos ontem.
- Aonde o agente especial Pryce está querendo chegar, minha querida - disse Geoffrey Waters - é que, quando vocês não estavam aqui, é de supor que o sargento Coleman estivesse, certo?
- Sim - respondeu Angela quase inaudivelmente, olhando para o chão.
- Então acho que sabemos quem foi que plantou os grampos. Obviamente, ele é um candidato a uma longa temporada em Old Bailey e terei o maior prazer em chamar a Scotland Yard agora mesmo. - O chefe da MI-5
deu um passo em direção a um telefone.
- Não, Geof! - objetou Cameron, erguendo a voz. - Isto é a última coisa que devemos fazer.
- Convenhamos, meu caro. A única pessoa que poderia ter plantado esses interceptores é Coleman, e permita-me lembrá-lo, isso é crime.
- Vamos mantê-lo sob a mais rigorosa vigilância, mas não vamos trancafiá-lo por enquanto.
- Não sei se estou entendendo...
- É como disse antes - interrompeu Pryce. - Nossa atenção tem sido constantemente desviada por tudo o que está acontecendo e não estamos nos concentrando na pergunta fundamental, a razão de Leslie e eu
termos vindo até aqui. Por que é que a mãe de Angela foi morta? Qual é a ligação com os Matarese?
- Com quem?
- Explico-lhe depois, querida - disse Montrose.
- Discordo completamente - interrompeu Waters. - É investigando tudo o que aconteceu que acabaremos descobrindo essa possível conexão. Tenha um pouco de paciência, meu velho. O que mais temos para averiguar?
- Sinto que está faltando alguma coisa - prosseguiu Cameron, sacudindo lentamente a cabeça. - Não sei o que é, mas está faltando alguma coisa... Talvez devêssemos voltar ao que Scofield disse na Brass
26.
- Onde, companheiro?
- Oh, desculpe. Onde encontrei Beowulf Agate pela primeira vez.
- Que elipse interessante - disse Leslie. - O que foi que Scofield disse?
- Basicamente, que precisamos de um perfil minucioso de Lady Alicia. Falar com advogados, banqueiros, médicos, vizinhos, montar um dossiê psicológico, sobretudo levantar a vida financeira.
- Meu caro amigo! - exclamou o homem do MI-5. - Acha por acaso que estivemos de braços cruzados esse tempo todo? Pois fique sabendo que reunimos informações bastante completas sobre Lady Alicia, cobrindo
a maioria dos itens que você mencionou.
- Por que não disse isso há mais tempo?
- Tínhamos outras prioridades, não se lembra? Prioridades que acreditávamos honestamente que poderiam nos levar a atalhos convergindo para essa conexão de que você fala.
- Atalhos? Você deve andar falando com Scofield.
- Não falo com ele há anos, mas nós todos andamos procurando atalhos, não é mesmo?
- E perfis psicológicos são um tiro no escuro - disse Leslie. Tomam muito tempo e não estou certa de que meu filho possa esperar. Pode parecer egoísmo de minha parte... mas é mais forte do que eu.
- Ninguém pode censurá-la por isso - disse Angela Brewster.
- Nem ninguém está - disse Waters. - Você está certo, Cameron, o melhor é mantermos o Coleman sob a mais estrita vigilância, pessoal e eletrônica. Considerando a dinâmica dos recentes acontecimentos, ele
poderá muito bem nos levar a outros.
- E se de repente ele começar a se movimentar muito e seu pessoal não der conta de acompanhar os deslocamentos dele, então pediremos reforço à Scotland Yard.
Três bips rápidos vieram da área além da arcada. Era a porta da frente. - Deve ser Rog e Coley - disse Angela. - Os dois possuem controles remotos que desligam o alarme. Não sei o que dizer, como agir.
O que devo fazer?
Aja com naturalidade - respondeu Leslie Montrose. - Não se sinta obrigada a dizer qualquer coisa a não ser cumprimentá-los normalmente. Desconfio que eles é que terão muito o que falar.
Roger Brewster atravessou a arcada carregando duas caixas grandes de papelão, aparentemente não muito pesadas. - Olá, pessoal - disse ele, depositando as caixas no chão cuidadosamente.
- Como foi, Rog? - perguntou Angela hesitantemente. Onde está o Coley?
- Respondendo à segunda pergunta, ele está guardando o Bentley na garagem. Quanto à primeira, correu tudo bem. Mas fiquem sabendo que o velho Coley tem uma insuspeitada dupla personalidade.
Os presentes se entreolharam. - Como assim, meu jovem? perguntou Waters.
- Imaginem que ele foi entrando de mansinho na empresa de segurança, como um cordeiro, fazendo todas as perguntas que queríamos que fossem respondidas e se certificando de que dispunham de tecnologia para
transmitir o sistema para o seu apartamento em Lowndes Street. Dispunham, naturalmente.
- E onde é que está a duplicidade? - perguntou Pryce.
- De repente ele virou um tigre feroz, uma verdadeira transformação de Dr. Jekyll em Mr. Hyde. Ele havia mencionado por alto algumas irregularidades quando nos dirigíamos de carro para lá, mas, como não
insistiu no assunto, achei que estava reclamando por reclamar pois todos esses sistemas têm mesmo defeitos.
- Mas ele não estava apenas reclamando?
- De jeito nenhum, senhor. Ele pegou a folha impressa do computador e começou a dar a maior bronca no dono da firma, consultando a todo instante seu caderno de anotações.
- Do que é que ele estava reclamando? - indagou o chefe do MI-5, sua calma exterior disfarçando sua ansiedade.
- Ele reclamou que havia erros em grande quantidade nos registros. Pro seu governo, nosso sistema registra eletronicamente a data e a hora em que o alarme é acionado, assim como quaisquer violações enquanto
estiver ativado.
- E aí, Rog?
- Coley disse que houve ocasiões em que saiu de casa, anotando as horas em que tinha ligado o alarme, e que elas não estavam registradas na folha do computador. E se não estavam, como poderia acreditar
que não tinha havido violações.
- O que foi que o proprietário disse?
- Não muita coisa, Sra. Montrose. Coley não lhe deu muita chance. Quando ele disse que Coley provavelmente não inserira as senhas corretas, o velho Coleman simplesmente respondeu que isso não era possível.
- Um dos seus clássicos primeiros-sargentos, não é mesmo, Geof? - disse Pryce gentilmente.
- Indubitavelmente - concordou Waters. - O que é que tem aí dentro dessas caixas, Roger?
- Há mais duas no vestíbulo, vou trazê-las.
- O que é que elas são?
- Vou deixar que Coley explique a vocês. Não tenho certeza se sou capaz. - Roger saiu em disparada, logo esbarrando com uma figura que emergia da arcada, carregando duas caixas de papelão. Oliver Coleman,
ex-primeiro-sargento do Corpo de Fuzileiros Reais, era um homem de estatura média cujo tórax desenvolvido, pescoço grosso, ombros largos e postura empertigada denunciavam sua origem militar, a despeito
de seus trajes civis. Seu rosto enrugado era encimado por cabelos brancos cortados à escovinha com uma ou outra mecha do ruivo primitivo suas feições não eram nem agradáveis nem desagradáveis, não comprometiam.
Roger Brewster, muito mais corpulento, mal teve tempo de pular, desviando-se dele desajeitadamente.
- Desculpe, meu filho - ele disse, olhando para o rapaz totalmente desequilibrado. - Boa tarde, Sir Geoffrey - ele emendou com seu sotaque carregado de Yorkshire. - Notei uma van cinzenta lá fora, e imaginei
que fosse do seu departamento.
- Pois não devia, uma vez que ela não tem marcas ou sinais que a identifiquem.
- Sugiro que mande pintar um letreiro qualquer nas laterais... peixeiro ou verdureiro, algo assim. Essas viaturas cinza chamam muito a atenção. É como se anunciassem sua procedência.
- Vou pensar nisso... Mas agora quero lhe apresentar aos nossos novos colegas de trabalho, primeiro-sargento. Tenente-coronel Montrose, do Exército dos Estados Unidos, e o agente especial Pryce, da CIA.
- As crianças já tinham me falado da senhora e do senhor disse Coleman, aproximando-se primeiramente de Leslie.
- Primeiro-sargento. - Montrose esticou-lhe a mão, inclinando-se para a frente na beirada do sofá.
- Eu deveria lhe bater continência, coronel, mas isso foi há muitos anos. - Apertaram-se as mãos. - É um prazer, as crianças a têm em grande consideração, assim como ao seu colega. Coleman voltou-se para
Cameron; também apertaram a mão um do outro. - É uma honra, agente especial. Não temos oportunidade de vê-los comumente.
- Meu nome é Pryce e não sou "especial". Não temos agentes especiais, sargento, mas não consigo fazer isso entrar na cabeça de Sir Geoffrey.
- E eu sou Coley, Sr. Pryce, todos me chamam de Coley.
- Muito bem, Coley, Roger disse que você explicaria a parafernália contida nessas caixas. Faça-o, por favor.
- Com entusiasmo, senhor! Bem, de um certo tempo para cá, venho anotando minhas saídas e entradas...
- Estamos sabendo, meu velho, o rapaz já nos explicou tudo isso, falou do seu caderno de anotações etc. O que é que anda fazendo?
- Há uma semana e meia comecei a ficar desconfiado. Certa manhã fui a Kent tratar de um assunto pessoal, e quando voltei no fim da tarde notei que os vasos de azaleias nos degraus da entrada da frente
estavam fora de seus lugares, na verdade, diversos botões da flor estavam quebrados, como se tivessem sido imprensados por alguma coisa. Não dei maior importância ao fato, afinal carteiros e entregadores
muitas vezes carregam volumes grandes.
- Mas, apesar de tudo, pensou o suficiente sobre o incidente aparentemente sem importância para iniciar um registro sistemático, correto? - Pryce perguntou, estudando o velho soldado.
- Perfeitamente. Passei a anotar a hora exata toda vez que saía de casa e quando chegava de volta. Às vezes era apenas por alguns minutos, para dar um pulo no mercado, por exemplo, outras vezes ficava
na esquina uma hora ou mais, espreitando para ver se aparecia algum indivíduo suspeito.
- Mas nunca apareceu - disse Cameron.
- Não, senhor, e isso me deu uma ideia; na verdade, ela só me ocorreu no dia seguinte. Na quinta-feira, peguei um telefone aqui dentro, tossi alto enquanto fingia discar, depois falei claramente, dizendo
que ia me encontrar com um sujeito no Regent Park por volta do meio-dia. Acrescentei umas bobagens que poderiam ser confundidas com um código e desliguei.
- O truque mais antigo da infantaria desde que os rádios foram introduzidos em combate - disse Pryce. - A suposição baseada na probabilidade de que o inimigo tenha acessado a sua frequência externa.
- Está certo, senhor. Isso mesmo!
- Deixe-me completar o cenário. Você foi ao Regent Park, percebeu que um carro o seguia, estacionou o seu, deu uma volta pelas alamedas do parque até ver quem o estava seguindo...
- Certíssimo, senhor!
Nesse momento, a unidade de interceptação composta de três homens do MI-5 desceu a escada carregando seu equipamento. Ian, o chefe do grupo, falou ao pisar o soalho do grande vestíbulo, olhando para sua
prancheta. - Encontramos mais dois no sótão, Sir Geoffrey.
- Coley, olhe! - gritou Roger Brewster.
- O que é, Rog?
- O equipamento que eles estão trazendo! É igualzinho ao que apanhamos na loja do seu amigo no Strand.
- É mesmo. O MI-5 não estava muito atrasado em relação a nós. Simplesmente chegaram aqui antes de nós.
- O que está querendo dizer, Coleman?
- Grampos, estou me referindo a grampos, Sir Geoffrey. Tinha que haver dispositivos de escuta espalhados pela casa toda! Provei que tinha razão. Minhas suspeitas procediam.
- Você provou e nós achamos - disse Waters, em voz baixa, desconfiado. - Esplêndida intuição, pena que não tenha funcionado, não acha?
- Não sei se entendi o que o senhor disse.
- Acho que agora devemos ir dar uma olhada no seu apartamento, Coleman.
- Pra quê? O novo equipamento ainda vai demorar alguns dias para ser instalado.
- Estamos interessados no equipamento existente.
- Como assim?
- Vou ser claro, meu velho. Você pode ter tido uma brilhante atuação esta tarde mas receio que não esteja em dia com a tecnologia de rastreamento de interceptação mais recente.
- Não faço a mínima ideia do que o senhor está falando - disse Coleman, com o rosto começando a ficar vermelho de raiva.
- Descobrimos que o posto de escuta dos dispositivos instalados nesta casa seria em Lowndes Street. Seu apartamento fica situado em Lowndes Street. É preciso dizer mais alguma coisa?
- Se está insinuando o que penso que está insinuando, seu título e sua posição que se danem, eu corto o seu pescoço!
- Eu o aconselharia a não fazer isso - disse Waters, enquanto a unidade do MI-5 dava um passo à frente a um só tempo. - Má forma, meu velho.
- Velho é você, seu sujo. Estou em muito melhor forma. O brigadeiro Daniel Brewster foi o melhor comandante a quem tive a honra de servir. Também foi meu melhor amigo, amizade que não teria tido o privilégio
de desfrutar se ele não tivesse salvado minha vida nas montanhas de Muscat, onde os terroristas me abandonaram à beira da morte! Quando ele faleceu, jurei a mim mesmo que serviria à sua família até meu
último dia sobre a face da terra. Como se atreve a vir aqui despejar seu infame veneno?
- Seu histrionismo está começando a me aborrecer, Coleman.
- E suas insinuações imundas estão me deixando irritado!
- Parem com isso, vocês dois! - ordenou Pryce. - A questão pode ser rapidamente esclarecida. Primeiro-sargento, faz alguma objeção a que Sir Geoffrey mande revistar seu apartamento?
- Não, é claro que não! Se tivesse me pedido como um cavalheiro, eu teria consentido há mais tempo.
- Quando foi que esteve em sua casa a última vez - pressionou um Waters mais contido.
- Deixe ver - respondeu Coleman. - As crianças chegaram aqui tarde ontem à noite, e eu estava acomodado lá em cima. Portanto, deve ter sido há três ou quatro dias, quando fui verificar meu correio eletrônico.
Os e-mails recebidos pelo meu computador comprovarão isso.
- Está vendo? Tudo resolvido - disse Cameron, voltando-se para o chefe do MI-5. - Pegue a senha e mande o seu pessoal até lá, Geof.
- Talvez tenha me precipitado, Coley, mas você há de convir que as provas pareciam irrefutáveis.
- É verdade. Afinal, a Lowndes é uma rua bastante grande. Reconheço que também me excedi, procuro ser mais disciplinado com meus superiores. Peço desculpas.
- Deixa pra lá, meu velho. Eu teria feito o mesmo.
- Ei, Coley - interrompeu Roger Brewster. - Gosto de Sir Geoffrey, mas ele não é seu "superior". É um civil como você.
- Concordo! - corroborou Angela.
- Estou devidamente castigado - disse Waters, com um brilho cordial nos olhos. - Não terá sido a primeira vez. Entretanto, a não ser pela descoberta dos grampos, voltamos à estaca zero.
- Eu não diria isso - objetou Coleman. - Não tive chance determinar, mas reconheci um dos sujeitos que estava me seguindo no Regent Park. Ele trabalha na empresa de alarmes, é mecânico, e acho que o nome
dele é Wally, Waldo, ou coisa parecida.
- Corra atrás dele, Geof! - exclamou Pryce. - Acione o seu pessoal. Descubram o camarada, arranquem tudo o que puderem dele.
Como se o instrumento impessoal tivesse ouvido as palavras pronunciadas em Belgrave Square, o telefone celular de Waters de repente tocou no bolso do seu paletó. O chefe do MI-5 tirou-o do bolso, apertou
a tecla que fez parar a campainha e colocou o fone no ouvido. - Waters - ele disse, e pôs-se a ouvir. - Você me ligou no momento certo, Mark, eu ia ligar para você, embora para lhe falar de um assunto
completamente diferente. - Sir Geoffrey pegou seu caderno de anotações e uma esferográfica, começou a escrever, e prosseguiu. - Repita, por favor, e soletre os nomes… Oh, são idôneos, você já os pesquisou.
Ótimo. Estarei aí daqui apouco. Agora, quanto ao outro assunto... - Waters deu suas instruções a respeito de um Wally ou Waldo, funcionário da empresa de segurança que servia aos Brewster. - Vá fundo mas
em silêncio.- Waters guardou seu celular e dirigiu-se a Cameron. - Daqui para a frente, agente Pryce, isso possivelmente entrará para o nosso léxico como "o dia dos atalhos duplos".
- Como assim, Geof?
- Um diplomata graduado do Ministério das Relações Exteriores, um dos poucos que têm um conhecimento limitado de nossas operações, telefonou para o meu assistente e disse que poderia ter alguma coisa para
mim. Lembra-se dos três, além de Lady Alicia, que foram mortos, e como procuramos uma ligação entre eles mas não encontramos?
- Claro - respondeu Coleman. - O milionário francês no seu iate, o médico espanhol em Monte Carlo e o jogador de polo italiano em Long Island. Não havia qualquer ligação entre eles nem mesmo prova de que
se conheciam.
- Agora há. O médico envenenado em Monte Carlo era um pesquisador científico de uma abastada família de Madri. A universidade onde ele tinha seu laboratório estava no processo de recolher dados de seus
computadores quando surgiram inopinadamente diversas transmissões para Alicia Brewster, Belgravia, confidenciais.
- Como era o nome dele?
- Juan Garcia Guaiardo.
- Conheço esse nome - disse Angela.
- Como assim, minha querida? - Waters sentou-se, concentrando toda sua atenção na filha de Lady Alicia.
- Não tenho certeza, mas às vezes, quando Rog e eu estávamos em casa jantando ou tomando chá, mamãe mencionava que tinha recebido notícias de um certo Juan, ou Guaiardo, e ficava tensa, seus olhos ficavam
desfocados, adquirindo um brilho estranho, zangado. Uma vez a ouvi dizendo algo como "Detenha-os, eles precisam ser detidos", ou palavras equivalentes.
- Ela nunca se estendia sobre o assunto? - perguntou Pryce.
- Na verdade, não - disse Roger Brewster, pensativamente. Mamãe trabalhava muito, demais na minha opinião, depois que papai morreu. Às vezes ficava muito estressada e dizia coisas que nem sempre faziam
sentido.
- O que sua irmã acabou de dizer faz muito sentido - interrompeu Cameron. - Onde fica o computador de sua mãe?
- Lá em cima, no escritório dela - respondeu Angela.
- Por acaso você está pensando no que estou pensando, Cam? - disse Leslie Montrose.
- Não me surpreenderia... Onde é o escritório de sua mãe?
- Venha, vamos lhe mostrar - disse a filha, levantando-se e encaminhando-se para a elegante escada circular seguida pelos outros.
O escritório de Alicia Brewster era uma combinação de conforto à antiga com eficiência moderna. Flanqueando cada lado da ampla janela de sacada situavam-se as duas áreas do aposento acentuadamente diferentes.
À esquerda, ficavam estantes que iam do chão ao teto, um confortável conjunto de sofá e poltronas de couro, e mesas diversas com abajures de franjas. Se uma palavra apenas pudesse definir essa área, essa
palavra seria sem dúvida aconchegante.
Inversamente, o lado oposto era um reluzente pesadelo branco da mais cara e avançada tecnologia. Havia um grande computador com uma tela apropriada, uma impressora de grande porte, dois aparelhos de fax
e um console com telefone e secretária eletrônica com pelo menos quatro linhas. A expressão frieza glacial seria demasiado amena para definir o lado direito da sala.
- Geof - disse Pryce, quando todos se encontravam na sala ligue para o seu amigo no Ministério das Relações Exteriores e obtenha as datas das transmissões de Guaiardo para Lady Alicia.
- É pra já... Você sabe mexer nessas coisas, meu caro?
- Razoavelmente.
- Ainda bem, porque não entendo nada.
- Eu sei - disse a tenente-coronel Montrose, num tom de voz monocórdio. - O Exército me mandou para a Universidade de Chicago, Departamento de Informática. Acredito que seja um pouco mais do que razoavelmente
eficiente.
- Então mãos à obra, Exército, não pertenço à sua categoria.
- Poucos pertencem, agente especial Pryce. Deixe-me estudar o equipamento e qualquer manual disponível. - Oito minutos depois, com um manual e as datas das transmissões de Madri na mão, Leslie debruçou-se
sobre o computador e suas mãos literalmente voaram sobre o teclado. - Estamos com sorte - ela disse o search e o recall não estão bloqueados. Vamos buscar as transmissões de Madri e checar se há respostas
na faixa de tempo que nos foi fornecida.
Uma a uma, cada página emergiu da impressora acompanhada de um zumbido quase imperceptível. Foram sete páginas de tamanhos variáveis, quatro de Madri para Londres, três de Londres para Madri. Vistas em
conjunto, constituíam um mapa rodoviário pouco compreensível, um mapa onde as estradas não tinham números, as cidades e aldeias não tinham nomes, mas que oferecia tantas alternativas que formava um mosaico
de possibilidades. Em sequência eram como se segue:
Madri, 12 de agosto. Minha querida prima. Ao pesquisar todos os arquivos médicos que consegui encontrar dos membros originais remontando ao ano de 1911, descobri numerosos sobreviventes. Isso foi facilitado
pelo fato de os membros pertencerem exclusivamente a famílias estabelecidas cujas genealogias eram disponíveis.
Londres, 13 de agosto. Caro Juan. Graças a Deus que você está pesquisando. Trabalhe o mais rapidamente que puder. Segundo notícias do lago Como, dos sobreviventes Scozzi, como no antigo ramo Scozzi-Paravacini,
pressão está sendo exercida.
Madri, 20 de agosto. Querida prima Alicia. Usando meus recursos certamente discretos porém muito reais, contratei conceituados investigadores particulares, dando-lhes informações mínimas. Como resultado,
eliminei 43 por cento de minha lista original. Talvez ocorram mais cortes. E muito simples, eles não se conhecem e não têm qualquer tipo de relacionamento. Análises de fitas gravadas confirmam sua completa
ignorância.
Londres, 22 de agosto. Continue investigando, meu querido. As pressões de Amsterdã têm aumentado insuportavelmente, mas tenho resistido com firmeza.
Londres, 23 de agosto. Querido Juan. Amsterdã passou a fazer ameaças. As crianças não sabem mas contratei guarda-costas para protegê-las. Espero que não desconfiem.
Madri, 29 de agosto. Querida prima. O massacre em Estepona, matando Mouchistine e quatro de seus advogados internacionais foi um desastre. Não consigo descobrir de onde partiu a ordem, mas uma coisa é
certa, veio dos M, pois Antoine Lavalle, confidente de Mouchistine, revelou as intenções do velho. Os advogados de Paris, Roma, Berlim e Washington eram meramente fachadas. Mas como executavam as ordens
de Mouchistine e como poderemos saber? Confesso que estou perdido.
- Era isso! - exclamou Roger, depois de ler a penúltima transmissão.
- Eu sabia! Havia três ou quatro sujeitos. Eles surgiam em horas diferentes, desencontradas, num pub ou num campo de futebol. Encostei dois deles contra a parede e perguntei-lhes que diabo estavam fazendo.
Reagiram como dois cordeirinhos, dizendo que eram rapazes da vizinhança que gostavam de uma cervejinha de vez em quando e torciam pelos nossos times.
- Também identifiquei os meus, meu irmão - disse Angela. Acho que arranjei uma baita confusão para um deles. Denunciei-o aos inspetores do colégio como um possível tarado sexual. Ele sumiu, mas surgiram
outros. Foi quando me toquei que mamãe estava preocupada com a gente.
- Por que você não me contou?
- Porque você tem pavio curto, Rog, e imaginei que mamãe devia saber o que estava fazendo.
Monte Carlo, 29 de agosto. O assassinato de Giancarlo Tremonte, o último descendente homem e herdeiro dos interesses originais dos Scozzi, é uma prova de que os M não se deterão diante de nada. E uma advertência
para que todos nós fiquemos calados. Tome cuidado, querida prima. Não confie em ninguém.
- Falando de ligações - disse Waters - meu Deus, eles eram primos, primos muito íntimos! Como é que deixamos escapar isso?
O telefone celular de Waters tocou novamente seu bipe abafado de dentro do seu paletó. Ele o apanhou, apertou a tecla e falou. - Sim? - O que se seguiu dificilmente poderiam ser boas notícias pela cara
que o chefe do MI-5 fez, trocando sua costumeira neutralidade por uma expressão preocupada a princípio e depois uma careta. Por fim, fechou os olhos e suspirou. - Estou de acordo, não deve adiantar grande
coisa, mas continue cavando. Descubra quem era o companheiro dele no Regent Park. - Sir Geoffrey voltou-se para os outros, guardando seu telefone. - O corpo de Wallace Esterbrook, também conhecido como
Wally Esterbrook, funcionário da Trafalgar Guardian Company, foi resgatado do Tâmisa esta tarde com dois tiros na nuca. A morte foi provisoriamente divulgada como tendo ocorrido nas últimas quarenta e
oito horas.
- Quinta-feira à noite ou sexta de manhã - disse Coleman. Meu Deus, se encaixa!
- O que é que se encaixa? - perguntou Pryce.
- Houve um momento, apenas alguns segundos, quando nossos olhos se encontraram. Ele percebeu que eu o tinha reconhecido.
- E o indivíduo que estava com ele? - pressionou Cameron.
- Não sei, realmente não posso dizer, mas tenho uma vaga lembrança de que ele olhou para nós dois.
- Vá em frente, Geof.
DEZOITO
Brandon Alan Scofield, também conhecido como Beowulf Agate, estava no elemento que melhor conhecia, de que se lembrava de um quarto de século atrás. Era novamente o farejador, o felino primitivo que caçava
sua presa na calada da noite, ou o agente secreto que perseguia o inimigo implacavelmente nas sombras, matando somente em última instância, já que a captura era eminentemente mais desejável.
Para manter intactas as comunicações e secreto o paradeiro de Scofield, Antonia permaneceu em Peregrine View, nas montanhas Great Smoky. Quaisquer comunicações que chegassem de Cameron Pryce ou de Leslie
Montrose da Europa podiam ser imediatamente retransmitidas a eles graças à mágica da tecnologia celular. Ela só fez questão de que Bray, uma vez em Wichita, entrasse em contato com ela a cada oito horas,
informando-a dos seus progressos. Se ele se atrasasse mais de duas horas, ela ligaria para Frank Shields na CIA e lhe diria a verdade. Scofield se opôs mas Antonia foi taxativa. - Quero você de volta inteiro,
seu velho idiota! Que diabo poderia fazer da Brass 26 sem você?
Beowulf Agate estava em Wichita, Kansas, sede da empresa Atlantic Crown, Limited, abastecedora do mundo. Alguém dos seus altos escalões dera as instruções à tenente-coronel Leslie Montrose e as reproduzira
em Amsterdã, Paris, Cairo, Istambul e só Deus sabe onde mais. Esse alguém pertencia à hierarquia Matarese e Brandon estava a fim de saber quem era.
O relógio do carro alugado marcava 2:27 da manhã. O enorme pátio de estacionamento da Atlantic Crown estava quase deserto, somente os carros cheios de luzes da segurança eram vistos sob a luz dos holofotes.
Bray sorriu. Nos velhos tempos, os soviéticos eram muito mais espertos. A última coisa que fariam era alardear sua presença. Tirando uma faca de caça de sua bainha, Scofield abriu a porta do carro, botou
o pé no chão, fechando-a silenciosamente. Esgueirou-se agilmente, evitando os feixes de luz dos holofotes, e começou a retalhar os pneus dos carros patrulha. Depois avançou cautelosamente para uma porta
lateral e estudou a caixa de alarme, existente em todo complexo bem equipado, mas também seu ponto mais vulnerável. Era quase primitiva, pensou Bray. A Atlantic Crown, como tantas outras empresas superprotegidas
e excessivamente indulgentes, negligenciava os princípios básicos da eletrônica, acreditando que nunca poderia acontecer uma falha no seu sistema de segurança. Pessoal de segurança assalariado era uma
necessidade, uma despesa indispensável; sistemas de alarme complicados geralmente davam mais problemas do que sua instalação justificava, eram considerados uma duplicação de despesas.
Scofield abriu a caixa com um pequeno pé-de-cabra que tirou do cinto, pegou uma caneta-lanterna e examinou os fios.
Não eram nem primitivos, eram antediluvianos. Mais uns poucos milhares de dólares gastos em cada circuito não teriam permitido que ele atravessasse todo o complexo. Abençoados sejam os contadores de migalhas,
ele disse com seus botões enquanto focalizava o feixe de luz nos diversos fios. Vermelhos, brancos, azuis, laranja, brancos, azuis. Esperou a reação. Não houve. Tinha desarmado o quadrante leste do sistema.
- O velho agora pode começar a trabalhar - Beowulf Agate sussurrou para si mesmo. - Mexa-se, rapaz!
Com minúsculos pinos e pinças na mão, Bray manipulou a fechadura da porta lateral e entrou. Os corredores estavam escuros, as lâmpadas fluorescentes no seu grau mínimo de luminosidade, cinza sobre cinza,
tudo silencioso, estático, sem sombras. Bray sabia que não podia utilizar os elevadores; por isso procurou uma escada, encontrou-a e começou a subi-la. O prédio da Atlantic Crown era de dezessete andares;
ele tinha que chegar ao décimo sexto.
Scofield sentia-se estranhamente empolgado. O medo estava presente, o que era uma coisa boa; estivera inativo durante muito tempo e precisava dos freios da cautela. Mas reencontrara-se com os instrumentos
de sua antiga profissão, a começar pelos sapatos de sola grossa de borracha que amorteciam o ruído dos passos; os pinos e pinças para abrir fechaduras; uma caneta-lanterna de luz azul; uma lata de gás
paralisante; uma câmera fotográfica miniaturizada; uma pistola automática Heckler & Koch calibre 25, dotada de silenciador, naturalmente, e uma jaqueta de combate do Exército com múltiplos bolsos. Regozijava-se
com o fato de Frank Shields ter requisitado todo o seu equipamento sem saber da verdade.
- Você não entrará em ação! - explodiu o analista da CIA. Ficou combinado que você se manteria afastado do campo de operações.
- É claro que não farei isso, Olhos-Apertados - respondeu Beowulf Agate. - Acha que sou tão pirado quanto você? Sei o que posso e o que não posso fazer embora seja muito mais jovem do que você.
- Não chega nem a um ano e meio, Brandon. Mas pra que então toda essa despesa?
- Porque armei uma jogada que pode ser a brecha que estamos procurando.
- Isso não responde à minha pergunta.
- Tudo bem. Vou abrir o jogo, mas só até certo ponto, e é melhor você topar. Contratei o melhor agente que a Stassi já teve, um filho-da-puta frio procurado por alguns governos assim como pela Interpol.
Ele não consta dos livros, de nenhum registro, não tem nome nem história. Já fizemos isso em outras ocasiões, Frank. Temos que fazer novamente.
- Quanto ele cobra?
- Dois mil por dia mais despesas e uma bonificação de cem mil se entregar a mercadoria.
- É um absurdo, na verdade, mas se o que você está dizendo é verdade e se o vagabundo for capaz de ser bem-sucedido, creio que podemos dar um jeito. Pagamos mais do que isso no passado. Recorra ao fundo
de suprimentos do Commercial Bank de Nova Scotia, só há um e está no catálogo. Peça para falar com o vice-presidente chamado Wester, ele é o contato financeiro. Autorizarei inicialmente dez mil.
- Também há um lado financeiro bom, Frank. Nosso homem diz que se ele comprar uma sepultura, ficaremos desobrigados do compromisso. Repetindo suas próprias palavras, ele não tem nenhum parente a quem deixaria
sequer um marco alemão. Portanto, é pegar ou largar.
- Ele é um sacana confiante, não é?
- É ambas as coisas. Por isso que é bom.
Merda, pensou Scofield ao se aproximar do patamar da escada no décimo quinto andar, ofegante. Devia ter pedido ao Shields cinco - dez vezes mais do que tinha pedido! Seu agente da Stassi fictício tinha
sido uma inspiração tão genial que ele mesmo acreditava na existência do homem. Não restava a menor dúvida, matutou Beowulf Agate, descansando brevemente suas pernas e seus pulmões, o acordo não sancionado
com sua brilhante criação alemã tinha que ser revisto numa base consideravelmente mais alta. Isto é, se alguma coisa resultasse da operação Wichita, o que, Scofield ponderou, era bom começar a pensar.
Verificando os dados que tinha obtido sobre o conglomerado Atlantic Crown, legal e ilegalmente, dois nomes vinham sempre à tona. O de Alistair McDowell, diretor-executivo, e o de Spiro Karastos, tesoureiro
e diretor financeiro. Os memorandos trocados entre eles, bem como os enviados aos departamentos a eles subordinados, eram quase roboticamente semelhantes, misturando o jargão corporativo com o vernáculo
contemporâneo. A julgar pela análise de palavras e frases isoladas, podiam muito bem ser a origem das instruções transmitidas à tenente-coronel Leslie Montrose, mãe do sequestrado James Montrose Jr.
Era uma questão simplesmente de saber onde ficavam os escritórios de cada um dos dois executivos e os horários do pessoal da limpeza. Os escritórios ficavam no décimo sexto andar, tão próximos um do outro
que havia uma porta de comunicação, e as turmas da limpeza, que dividiam entre si suas tarefas de manutenção, geralmente chegavam ao décimo sexto andar entre uma e uma e quinze da manhã; seu trabalho não
levaria mais do que quarenta e cinco minutos.
Tendo em vista que as escadas por trás das portas de saída tinham que ser lavadas e esfregadas, as portas para os corredores dos andares eram abertas em sequência. Uma faxineira que tinha sido bem gratificada,
convencida de que não estava pondo em risco o seu emprego - muito pelo contrário concordou em colocar um calço de borracha na porta do décimo sexto andar que dava para a escada. Estava colaborando, depois
de embolsar cem dólares, para o êxito de uma inofensiva brincadeira de escritório articulada por executivos do primeiro time. Além disso, imbuída do espírito do bom convívio corporativo, ela também concordara
em manter a porta do escritório de Alistair McDowell destrancada. Qual o propósito de tudo isso? Para que seus colegas pudessem pendurar sub-repticiamente duas dúzias de balões de Feliz Aniversário e montar
um bufê de caviar e champanha no escritório do seu colega. Por que não? O idoso diretor da empresa, que tinha feito o pedido no pátio de estacionamento, era uma figura tão doce e simpática, sempre trajando
ternos caríssimos. Tão caros que um só deles daria para alimentar a família dela durante seis meses.
Beowulf Agate conservara alguns de seus dons mais persuasivos. Em outros tempos, talvez tivesse optado por preparativos mais rápidos embora mais arriscados. A idade avançada, entretanto, levou-o a adotar
uma abordagem mais cuidadosamente elaborada. Vendo as coisas em retrospectiva, ele gostaria de ter tido a sabedoria de adotar essas práticas mais cautelosas antes. Talvez tivesse evitado dois ferimentos
no ombro, três balas nas pernas e uma perfuração no estômago que levou semanas para cicatrizar. E daí? Agora, tampouco era capaz de pular uma cerca de metro e meio de altura. Metro e meio coisa nenhuma.
Menos de um metro e olhe lá, sem falar numa dor nas costas de contrapeso.
Com os músculos das panturrilhas ainda latejando da subida, ele flexionou enérgica e rapidamente cada uma das pernas e começou a subir o último lance da escada. Como combinado, o pequeno calço de borracha
mantinha a porta aberta uma polegada, o suficiente para não dar na vista. Novamente, na arrogante suposição de contar com uma segurança satisfatória, não havia câmeras nos corredores, apenas uma equipe
de vigias noturnos patrulhava os corredores, verificava as portas dos escritórios e marcava as horas dos seus turnos nos seus relógios de ponto no fim de cada andar. Scofield atingiu o último degrau, aproximou-se
da porta e puxou-a o suficiente para poder dar uma olhada no corredor. Imediatamente empurrou-a de volta contra o calço de borracha; um guarda caminhava na sua direção, balançando um grande molho de chaves
e aproximando-se do relógio de ponto, a alguns passos apenas da escada de saída.
De repente preocupado, Bray se abaixou e retirou o calço da porta e segurou penosamente o pesado painel de aço com as pontas dos dedos de modo que só aparecesse uma pequena fresta de luz. Com a mão direita
em agonia, os dedos em fogo, prendeu a respiração numa tentativa de reprimir a dor. Finalmente, ouviu o clique do relógio de ponto do vigia e o ruído de passos do guarda recuando na direção dos elevadores.
Abriu ligeiramente a porta outra vez, introduziu a mão esquerda na pequena abertura e retirou a direita, levando-a à boca para soprá-la. O guarda uniformizado parou ao lado de um dos elevadores; apertou
o botão e a porta imediatamente se abriu. O homem desapareceu e Scofield, com a testa transpirando, penetrou rapidamente no corredor mergulhado na penumbra.
A turma da limpeza tinha desaparecido, o silêncio era confortador. Bray percorreu apressadamente o corredor, examinando as placas com os nomes e títulos nas portas.
ALISTAIR MCDOWELL
DIRETOR-EXECUTIVO
Era a porta do meio diretamente em frente no fundo do corredor. Não havia portas semelhantes dos lados, o que significava tratar-se de uma suíte, não de uma sala apenas como as demais. Scofield empunhou
a reluzente maçaneta de metal, esperando que a faxineira generosamente recompensada tivesse cumprido seu serviço. E cumpriu. Bray girou a maçaneta devagar e abriu a porta cautelosamente, pronto para correr
se algum alarme que não tivesse notado disparasse, o que não aconteceu. Entrou agilmente, virando-se, fechando a porta e acendendo sua pequena mas possante lanterna de luz azul. Vasculhou a sala com a
lanterna, direcionou a luz para o chão, e em seguida encaminhou-se para as quatro grandes janelas, achou os cordões e puxou as pesadas cortinas, cobrindo as vidraças. Estava preparado para começar sua
busca.
Alistair McDowell era um homem apegado à família e aparentemente queria que todos soubessem disso. Havia pelo menos duas dúzias de fotografias em molduras de prata em cima de sua grande e envernizada mesa
de trabalho e nas prateleiras das estantes entre as janelas. Mostravam três crianças em diferentes fases de crescimento, da mais tenra infância no colo de sua mãe à adolescência. Apareciam nas fotos com
seus pais e os complementos dos anos que iam passando: berços, roupas de batismo, cercados, balanços, velocípedes, bicicletas, raquetes de tênis, cavalos e barcos à vela. O que se via era uma sinopse da
vida boa, merecidamente proporcionada a um homem temente a Deus, que se orgulhava de sua família, sua comunidade, sua igreja e seu país. Os frutos de sua operosidade eram riqueza, felicidade, estabilidade.
Scofield se deleitava com aquele "American way of life".
E se as suspeitas de Beowulf Agate estivessem próximas da realidade, o próprio Alistair McDowell estaria entre os primeiros a comprometer esse estilo de vida, restringindo-o a uma elite seleta, com legiões
de puxa-sacos - leia-se escravos.
As gavetas da escrivaninha, duas das quais estavam trancadas, não constituíam problema para seus eficazes instrumentos de trabalho, mas nenhuma delas revelou qualquer coisa de maior utilidade, a não ser
uma agenda de compromissos. Scofield pegou sua câmera miniaturizada com filme de 1.000 ASA e fotografou página por página, operação que levou quase quinze minutos. Depois passou a examinar toda a suíte,
começando pelo inesperado quarto de dormir por trás da parede à direita, o interior do escritório propriamente dito, e terminando com uma sala de reuniões à esquerda, austera mas elegante na sua pesada
simplicidade. A busca revelou diversos itens que requeriam um exame minucioso. O primeiro era um cofre de parede escondido atrás de uma fileira de livros de direito com lombadas de couro. Eles chamaram
a atenção de Bray porque, a despeito da inconteste competência administrativa de McDowell, ele não era advogado.
Os grossos volumes lá estavam para impressionar os visitantes, não para consultas de caráter prático. Também serviam como um excelente disfarce para ocultar um cofre de parede. Outra descoberta importante
foi um closet trancado à chave que, ao ser aberto, revelou a última palavra em matéria de computador e uma cadeira de plástico branco. O recinto era tão acanhado que somente uma pessoa podia se acomodar
nele. Um terceiro objeto era um arquivo de mogno com três gavetas que se destacava embaixo de uma gravura inglesa antiga reproduzindo uma cena de caça, como se o decorador tivesse esquecido de embutir
o móvel na parede. A última revelação era a mais curiosa: uma grande e antiga caixa de música em cima de um gabinete de cerejeira cujo preço, sem a menor dúvida, deveria beirar a casa dos cinquenta mil
dólares, se não fosse muito mais.
O que acirrou sua curiosidade, entretanto, foi o raro conteúdo de um armário trancado, igualmente submetido à perícia de Bray. Tratava-se de uma unidade eletrônica independente, não um computador, pois
se destinava a um único e exclusivo propósito. Beowulf Agate o identificou prontamente, reconheceu o teclado de digitação e os quatro cilindros em sucessão que giravam para a frente e para trás, lentamente,
até ficarem todos sincronizados e pararem, seu enigmático problema tendo sido resolvido, um código desvendado. Era uma unidade decodificadora projetada segundo os princípios do conversor que tinha estourado
o famoso Enigma, aparelho de codificação usado pelo alto comando alemão na Segunda Guerra Mundial.
O moderno acréscimo a essa máquina era obviamente usurpado do computador. Em vez de uma página impressa que emergia do cilindro mais baixo, havia uma pequena tela de televisão montada em cima do equipamento.
Scofield lembrou-se do início de sua carreira em Londres quando trabalhara para a inteligência britânica e como ficara fascinado com as histórias sobre a "quebra" do Enigma. Um colega inglês o levara a
uma filial do MI-5 em Oxford, onde uma versão avançada de um aparelho decodificador estava em funcionamento. A proximidade com a universidade visava a facilitar o ensino e a pesquisa imediatos.
- Bata a palavra a ardvark - disse o jovem funcionário do serviço secreto chamado Waters. - Bray fez o que ele disse e as palavras NÃO ENCHE, SEU CHATO apareceram instantaneamente na tela. - Receio que
alguns dos alunos do nosso curso de treinamento tenham um senso de humor um tanto insolente - prosseguiu Geoffrey Waters com um ligeiro sorriso. - Agora, escreva a frase: A maçã rola para longe da árvore.
- Novamente, Scofield fez o que lhe foi mandado, mas dessa vez a tela funcionou civilizadamente. ENCONTRO EM STUTTGART CONFIRMADO CONFORME PROGRAMADO. - Essa foi uma transmissão autêntica que interceptamos
de um espião que descobrimos a semana passada no Ministério das Relações Exteriores enviada para a Stassi na Berlim Oriental.
- O que aconteceu?
- Oh, ele foi pra Stuttgart, quanto a isso não há a menor dúvida, mas receio que nunca mais tenha voltado. Um de nossos rapazes do outro lado do Muro informou à Stassi que ele era um agente duplo.
Brandon achou o interruptor e ligou o decodificador pessoal de Alistair McDowell. Para testar, ele digitou a ardvark. A tela mostrou a palavra INSUFICIENTE. O produto americano, pelo menos, era mais bem-educado.
Ele digitou então a frase A maçã rola para longe da árvore. A tela dissolveu-se enquanto os cilindros giravam, finalmente parando. As letras apareceram: DADOS ADICIONAIS NECESSÁRIOS - BUSCA ZERO. Árvores
e maçãs rolando não se enquadravam no esquema codificado. Scofield pegou a câmera e tirou diversas fotos da máquina na esperança de que o fabricante pudesse ser encontrado. Quem quer que fosse teria que
estar entre os fornecedores das Forças Armadas e/ou da comunidade de inteligência envolvidas com materiais ultrassecretos. No linguajar da profissão, era uma possibilidade.
Bray voltou ao armário, ligando uma luz de chão próxima. Eram quatro gavetas, por isso ele puxou uma cadeira e começou de baixo para cima, principiando pelas letras de T a Z, sete divisores de índice,
nos quais havia diversos folhetos.
A leitura não era só trabalhosa, era paralisantemente monótona. A grande maioria da correspondência e dos memorandos de Alistair McDowell consistia de aquisições, aquisições potenciais, estratégias de
marketing, orçamentos, margens de lucros e como melhorá-las. A minoria dizia respeito a assuntos menos importantes, como cópias de discursos amenos proferidos em rotary clubs, câmaras de comércio e convenções
corporativas e da indústria, bem como cartas dirigidas a políticos, igualmente amenas, e algumas endereçadas a diretores de colégios particulares (aparentemente, os rebentos de McDowell não eram tão exemplares
afinal de contas). Mais uma infinidade de memorandos do diretor-executivo referentes a negociações anteriores e atuais, em que seus pontos mais enfáticos eram assinalados em negrito. Os olhos de Scofield
estavam vitrificados, sua mente entorpecida com abanalidade dos arquivos. Até a letra Q sob o título inexplicável de "Equações de Quociente de Grupo".
O que queria dizer? O que eram "equações de quociente de grupo"? Havia cinco folhetos intercalados com páginas escritas à mão cheias de números e símbolos, e fórmulas de um tipo ou de outro, mas Bray não
fazia a menor ideia do que poderiam significar. Contudo, instintos nascidos e cultivados no passado foram subitamente reativados. Significavam alguma coisa que Alistair McDowell não queria que ninguém
compreendesse. Do contrário, haveria cabeçalhos nas páginas, descrições - sucintas quefossem - do seu conteúdo, mas não havia alusões de qualquerespécie.
Scofield sabia que quociente era um termo matemático, damesma forma que equação, mas onde é que grupo se encaixava? Olhou em volta do escritório, à procura de um dicionário. Encontrou-o na prateleira inferior
de uma estante. Levando-o para a escrivaninha, olhou para as janelas a fim de se certificar deque as cortinas estavam completamente fechadas e acendeu a lâmpada da mesa de McDowell. Abriu o dicionário,
folheando até encontrar:
Quociente - Resultado de uma divisão; o número de
vezes que uma quantidade é contida dentro de outra.
E logo abaixo:
Quociente de grupo - Um grupo cujos elementos são
intrínsecos a um subgrupo de um dado grupo.
Beowulf Agate sabia quando descobria um veio de ouro de inteligência. Fotografou página por página escrita à mão inserida nos cinco folhetos, começando a deslindar os obscuros contornos do enigmático material,
que poderia perfeitamente apontar pistas para os grupos e subgrupos dos Matarese.
Scofield continuou a esquadrinhar o arquivo, não encontrando nada de maior interesse, mas deparando com alguns itens que o intrigaram ao mesmo tempo que o divertiram. O executivo McDowell mantinha rigoroso
controle mensal das despesas domésticas e de vestuário de sua mulher, todas consideradas excessivas, inclusive contas de bebidas assinaladas com enfáticos pontos de exclamação. Essas páginas encartadas
nos folhetos não refletiam exatamente a família amorosa, afável, retratada nas fotografias com molduras de prata. Não era tranquila a vida no lar dos McDowell.
Brandon fechou a gaveta de cima do arquivo e voltou para o closet do computador. Ligou a luz e estudou o equipamento como qual não tinha a menor familiaridade. Nada feito. Pegou então seu telefone celular
e ligou para Peregrine View nas montanhas Great Smoky.
- Você está uma hora atrasado! - disse Antonia, irritada. Onde é que você está, seu velho maluco?
- Estou onde nenhum desses amadores ousaria pensar que eu poderia estar.
- Volte imediatamente...
- Não posso. Ainda não terminei - interrompeu Scofield. Há um computador e um cofre de parede.
- Você terminou, sim senhor! - exclamou Toni. - Aconteceu uma coisa.
- O que foi?
- Frank Shields ligou há algumas horas. Ele não sabe ao certo o que fazer.
- É esquisito em se tratando de Olhos-Apertados. Ele sempre soube o que tem a fazer.
- Não dessa vez. Ele quer a sua opinião.
- Ora, vejam só! Fui promovido da escola primária! Mas afinal, o que foi que aconteceu?
- A Inteligência Naval entrou em contato com ele. Se a informação for procedente, o filho de Leslie fugiu e está a bordo de um navio de guerra na base americana de Bahrain.
- Meu Deus, isso é fantástico! Ótimo pro garoto!
- É justamente isso, Bray, ele é um garoto, uma criança. Shields acha que pode ser uma armadilha.
- Por quê, pelo amor de Deus?
- Porque, segundo o oficial da Marinha que está com ele, o garoto se recusa taxativamente a falar com quem quer que seja a não ser sua mãe. Com nenhum funcionário do governo americano, ninguém da inteligência
ou da Casa Branca, nem mesmo com o próprio presidente. Só com sua mãe, para se certificar de que é ela efetivamente.
- Com os diabos! - exclamou Scofield, frustrado, esmurrando distraidamente o objeto mais próximo. No caso, o teclado do computador. No mesmo instante em que deu um soco no teclado, campainhas de alarme
ensurdecedoras ressoaram por todo o edifício. A máquina escondida em território interditado não era apenas sagrada, também era dada a ataques histéricos. Bray berrou no seu telefone celular. - Estou dando
o fora daqui! Diga ao Frank que ligarei a cobrar de um telefone público, é mais seguro do que o celular. Diga para ele usar o misturador de vozes. Me deseje boa sorte, minha querida!
Scofield deixou apressadamente o escritório, fechando a porta atrás dele, e atravessou correndo o corredor em direção à saída da escada. Pressionou a barra de metal, abrindo o espesso painel à prova de
fogo, e fechou-o rapidamente, ao mesmo tempo que se abaixava e retirava o pequeno calço de borracha da porta. Súbito, ouviu os gritos dos guardas no lado de dentro do andar. Aparentemente, estavam discutindo
exacerbadamente alguma coisa, que Bray logo compreendeu. Ninguém tinha uma chave mestra que pudesse abrir a porta do escritório do diretor executivo. Qualquer outra provavelmente poderia ser aberta, mas
não a de McDowell, tampouco a de Karastos, o diretor financeiro, cuja sala tinha uma porta de comunicação direta com a suíte do seu superior. - Merda! - praguejou Brandon intimamente, ele não tinha tempo
para inspecionar a sala ou salas deste último, e muito menos o cofre na estante. Não adiantava ficar lamentando as oportunidades perdidas, tinha era que tratar de cair fora o quanto antes e entrar em contato
com Shields. O filho de Montrose! Jesus Cristo!
Ouviu então as ordens berradas por alguém que tinha autoridade ou a assumira. - Verifiquem as escadas! Vou ligar pro Big Mac e dizer ao filho-da-puta pra nos dar a combinação pra conseguirmos a porra da
chave! Imaginem só se houvesse um incêndio? Será que o sacana preferiria que sua toca pegasse fogo a nos deixar entrar?
- Ponha abaixo a merda da porta!
- Ela é de aço reforçado, não dá pé. Além disso, o miserável seria muito capaz de descontar o prejuízo do meu ordenado!
Não havia discórdia apenas na casa de McDowell, ela também imperava nos seus domínios empresariais. As escadas. Havia outras duas naquele setor do prédio em formato de T. Quantos guardas haveria, e qual
das escadas seria verificada primeiro? Santo Deus, provavelmente todas ao mesmo tempo! Brandon lançou-se pelos degraus de concreto abaixo, rodopiando literalmente a cada curva da escada, apoiando as mãos
no corrimão. Sem fôlego, com o rosto banhado de suor, as pernas latejando, ele chegou ao andar térreo por onde tinha entrado. Fez uma pausa, ofegante, tentando desenrugar seu uniforme de combate do Exército.
Passos! Na escada, diversos andares acima, talvez quatro ou cinco, descendo rapidamente. Não tinha escolha; tinha simplesmente que romper o cerco, sabendo que, indubitavelmente, os guardas estavam revistando
todo o edifício. Não havia tempo para pensar!
Efetivamente, os guardas estavam, pelo menos um deles estava. O patrulheiro de uniforme azul o viu quando ele emergiu da escada e correu para a frente. - Ei, você! - gritou o guarda corpulento, de meia-idade,
sacando sua pistola do coldre.
- Ei você coisa nenhuma, meu chapa! - bradou Beowulf Agate com uma voz que ricocheteou pelas paredes como uma cadência de marcha. - Ei, senhor!... Sou o coronel Saucer, da Guarda Nacional, Forças Especiais
de Segurança, e esta empresa fornece produtos estratégicos para o governo. Estamos ligados ao seu sistema de alarme.
- Você é o que... quem? - perguntou o guarda, perplexo, desnorteado.
- Você ouviu o que eu disse, companheiro. Estamos ligados no circuito porque a Atlantic Crown está desenvolvendo alguns produtos químicos supersecretos.
- O alarme parou há menos de cinco minutos...
- Nossos veículos patrulham incessantemente. Estamos sempre por perto.
- Oh, meu Deus...
- Meus homens estão espalhados por todo o complexo. Vamos, rápido! Verifique a escada nordeste, esta aqui está limpa. Vou me reunir aos meus homens. - Dizendo isso, Scofield avançou impetuosamente para
a porta de saída, virando-se no último segundo. - Diga a todos para permanecerem dentro do edifício. O meu pessoal pode atirar.
- Oh, meu Deus!
Brandon partiu a toda velocidade de Wichita por estradas secundárias até alcançar a rodovia 96, a autoestrada, onde esperava encontrar um telefone público na extensa, escura e quase deserta planície. Finalmente,
encontrou um, uma concha plástica escassamente iluminada coberta de palavrões e desenhos obscenos. Inseriu uma moeda e discou, pedindo auxílio à telefonista, o que pareceu a Bray levar tempo suficiente
para voar até Washington e fazer uma ligação a cobrar para o telefone seguro da casa de Frank Shields.
- Onde é que você está, Brandon?
- Onde não cresce trigo não pastam búfalos, Frank. São quatro e pouco da manhã e tudo o que tenho pela frente é uma planície a perder de vista na vastidão do Kansas.
- Tudo bem, estou usando o misturador de vozes e dificilmente você poderia ser interceptado.
- Eu diria que é impossível.
- Contudo, não mencione nomes. Somente eu o farei.
- Entendido.
- Em primeiro lugar, você conseguiu alguma coisa?
- Do que é que você está falando?
- Antonia me disse que você estava "caçando", e não precisei perguntar mais nada, seu cara-de-pau mentiroso!
- Respondendo à sua pergunta, senhor, acho que descobri alguma coisa. Agora me fale do item desaparecido.
- É uma loucura, Bray. O garoto está com um oficial, um piloto servindo na nossa base naval em Bahrain.
- E ele não falará com ninguém a não ser com a nossa representante do Exército, Toni me explicou isso. Qual é o seu problema?
- Se eu puser os dois em contato, poderei estar assinando a sentença de morte de ambos. Bahrain é um dos lugares do mundo mais evoluídos em termos de alta tecnologia. Seus técnicos são capazes de captar
coisas do éter tão rapidamente quanto nós. Como posso correr o risco de revelar onde os dois se encontram?
- Não faça nada até eu chegar, Frank, tenho algumas ideias. Mande um jato militar me apanhar.
- Onde, pelo amor de Deus?
- Como é que eu vou saber? Estou numa rodovia a cerca de dezesseis quilômetros de Wichita.
- Volte para o aeroporto de Wichita e me telefone. Eu lhe direi quem você deve contatar.
Julian Guiderone, o filho do Shepherd Boy, estava sentado a uma mesa na Via Veneto em Roma, saboreando seu café da manhã quando seu telefone celular bipou no bolso interno do seu paletó. Ele o retirou
do bolso e falou. - Shepherd - ele disse.
- Wichita foi comprometida - informou a voz reconhecível de Amsterdã. - Até que ponto não sabemos.
- Sobreviventes?
- Nossos dois conhecidos. Não estavam no local.
- McDowell e Karastos?
- Ambos estavam em casa. Não foram envolvidos.
- Foram, sim. Mate-os e faça uma limpeza nos seus escritórios.
DEZENOVE
O porta-aviões U.S.S. Ticonderoga era imenso, uma verdadeira cidade flutuante, com equivalentes militares a várias lojas, farmácias, restaurantes, ginásios, escritórios e aposentos - de solteiro, de casal
e no estilo dormitório. E havia mais corredores, passagens e curvas abruptas do que poderiam ser encontrados numa versão Star Trek do Chinatown de San Francisco. Quanto mais se descia no seu interior,
menos povoados se tornavam seus monótonos corredores de aço, embora tivessem mais voltas, escotilhas e compartimentos de carga do que acima da linha d’água. No momento, duas figuras corriam por um corredor
de teto baixo, ambas um tanto conspícuas. Uma delas era um oficial negro, alto, que era obrigado a se curvar constantemente para não esbarrar em uma tubulação lateral, e a outra era um musculoso adolescente
branco, com as mãos enfaixadas com gaze.
- Depressa! - disse o tenente Luther Considine, com seu uniforme de verão amarrotado e precisando de lavagem.
- Pra onde estamos indo? - perguntou o agitado Jamie Montrose.
- Onde espero que o oficial de guarda e seus cães de caça não o encontrem!
Chegaram a uma pesada porta de metal com uma placa que dizia Somente Pessoal Autorizado. Considine apanhou uma chave no bolso, abriu a porta e escancarou-a. Entraram numa pequena cabine de paredes brancas
com uma comprida mesa de fórmica em torno da qual havia cadeiras giratórias com estofo marrom, uma grande tela à direita e um projetor de slides à esquerda.
- O que é isso? - perguntou Montrose Júnior.
- É uma sala onde pilotos designados para missões ultrassecretas são interrogados.
- Como conseguiu a chave, tenente?
- O oficial de segurança era o comandante do meu esquadrão até que o alto comando achou que ele era ou muito sabido ou muito cego pra continuar voando. Ele ainda é meu colega de alojamento e imagina que
estou tendo um tête-à-tête com algum anjo negro misericordioso.
- Foi muito bacana da parte dele.
- Eu livrei a cara dele uma vez no cassino de Rhodes. Sente-se e relaxe. Aperto este interruptor e as letras vermelhas do lado de fora avisam Não Entre.
- Não sei como lhe agradecer, senhor.
- Não é preciso, Jamie. Ponha-me mais por dentro da situação, e lembre-se de que poderei entrar na maior gelada se você estiver me levando na conversa.
- Tudo o que lhe disse é a expressão da verdade...
- Acredito em você! - interrompeu Luther Considine, com os olhos pretos brilhando. - Acredito porque é uma história tão maluca e você é tão jovem, e ainda por cima é filho de um piloto de combate que considerávamos
um ás, que não poderia estar mentindo. Mas o capitão, o quatro-galões que comanda esta metrópole flutuante, acha que você fugiu do meu alojamento e que não consigo encontrá-lo porque nosso oficial de inteligência
lhe deu ordens para falar com Washington.
- Não há condição! - insistiu Montrose Júnior. - O senhor falou em levar na conversa, enrolação. Já me enrolaram demais!
- Tudo bem. Recapitulemos. O que foi que os agentes do governo lhe disseram no Aeroporto Internacional Kennedy?
- Não muita coisa... Basicamente que minha mãe tinha sido designada para uma operação secreta e, caso houvesse algum vazamento, queriam que eu ficasse "fora do circuito".
- E quanto à identidade deles?... Deixa pra lá, eles poderiam facilmente obter credenciais falsas. E você acreditou no que ele lhe disseram?
- Bem, eles pareciam ser uns caras legais, sabe como é? Quero dizer, mostraram-se preocupados, lamentando sinceramente o transtorno, e até chegaram a me embarcar no avião me poupando da chateação de ter
que apresentar a passagem, o passaporte, esse tipo de coisa.
- Você não fez nenhuma pergunta?
- Fiz um monte de perguntas, mas eles não sabiam muito mais do que eu.
- O que foi que eles lhe disseram? - perguntou Considine, estudando a fisionomia do jovem.
- Eles me disseram que o avião estava indo para Paris, o que eu, naturalmente, podia ver pelos letreiros, mas que eu prosseguiria viagem, só que não sabiam para onde. Somente que seria recebido no Aeroporto
de Orly por outros dois agentes que os substituiriam.
- Não disseram mais nada sobre sua mãe ou a operação?
- Eles não sabiam de nada. Pareciam realmente sinceros ao dizerem isso. Então disse a eles que precisava dar uns telefonemas e eles não fizeram qualquer objeção. Telefonei pra casa e ninguém respondeu,
nem mesmo a secretária eletrônica. Depois liguei para um amigo íntimo da família, um oficial que frequentemente trabalhava com mamãe; a telefonista entrou na linha e me informou que o número tinha sido
mudado e que o novo não constava da lista. Foi aí que me toquei que o que quer que estivessem fazendo devia ser realmente secreto. Mas já lhe contei tudo isso, tenente.
- Nem tudo, você não mencionou os telefonemas antes. De qualquer forma, não me cansarei de ouvi-lo. Pode repetir à vontade, quem sabe não tenha me escapado alguma coisa?
- Não há nada que possa ter lhe escapado, tenente.
- Pare com esse negócio de "tenente", Jamie. Me chame de Luther. Na próxima vez que me encontrar poderei ter sido rebaixado a marinheiro. De crioulo importante a faxineiro... Colin Powell me dará umas
boas palmadas. Sou um cara grandalhão, mas ele é bem capaz de fazer isso.
- Não creio que raça ou cor tenha alguma coisa a ver com isso... Luther.
- Oh, vocês liberais brancos são uns amores. Por que não escolheu um bom oficial da Marinha branco para contar sua história? Tem um filho-da-puta no meu esquadrão que odeia tudo o que não estiver tinindo
de limpo. Seria capaz de dedurar um cozinheiro por estar com o avental manchado de gordura.
- Então também seria capaz de me entregar.
- Pode crer. Portanto, me fale dos telefonemas. Especificamente do que a telefonista lhe disse que o número tinha sido mudado.
- Era para o coronel Everett Bracket. Ele esteve com mamãe na Academia de West Point, e ele e a mulher eram amigos de meus pais. Frequentemente, convocava mamãe para certas missões.
- Qual era a natureza dessas missões?
- Ele pertence à elite da inteligência do Exército. Minha mãe fez curso de especialização em alta tecnologia, computadores e coisas desse gênero. É uma subdivisão do G-2, e o tio Ev muitas vezes requisitava
os seus serviços.
- Por que ele a escolhia para operações secretas supostamente perigosas?
- Não tenho a menor ideia. Depois que papai morreu ele se tornou uma espécie de tutor para mim, e a última coisa que acho que ele pediria a ela para fazer seria envolver-se numa situação perigosa. Não
faz sentido!
- Agora, me ouça com atenção, Jamie, e procure se lembrar. Quando foi, exatamente, que você recebeu o recado de Washington - através do diretor do seu colégio - que deveria deixar a escola e ir para o
Aeroporto Kennedy em Nova York?
- Era uma sexta-feira, não me lembro da data exata, mas foi antes de um fim de semana.
- Agora, tão precisamente quanto se recorde, antes de sexta-feira, quando foi que falou com sua mãe pela última vez?
- Alguns dias antes, talvez três ou quatro. Uma ligação normal, pra saber como eu ia indo nos estudos, coisas assim.
- E depois disso você não falou mais com ela?
- Não, não havia nenhuma razão pra isso.
- Podemos então pressupor que ela não tentou entrar em contato com você nesses três ou quatro dias?
- Sei que ela não tentou.
- Como assim?
- Em Paris, no aeroporto, disse aos dois homens que foram me receber que tinha que ligar para um primo que mora lá porque mamãe me tinha dito pra não deixar de fazê-lo. Eles ficaram meio desconcertados,
mas tive a impressão de que não quiseram criar confusão pro lado deles e por isso ficaram praticamente colados no meu cangote enquanto eu falava no telefone.
- E aí?
- Tenho um desses cartões telefônicos do tipo que se usa pra falar pra qualquer lugar e sei muito bem quais são os números para se completar uma ligação pros Estados Unidos e pro meu colégio...
- Você sabe? - interrompeu Considine.
- Ora, tenente... Luther, passei parte de minha vida viajando como filho de militar, lembra-se? Mas a maioria dos meus amigos, mesmo quando era garoto, mora na Virgínia, que é o nosso verdadeiro lar.
- Então você estava no telefone e suponho que tenha telefonado para o seu colégio, não para um primo inexistente.
- Oh, o Kevin existe, sim. Ele é muito mais velho do que eu e está fazendo um curso de pós-graduação na Sorbonne.
- Uma família da pesada. Mas você conseguiu se comunicar com o colégio.
- Claro. Olívia estava na mesa telefônica; ela é uma bolsista e rola qualquer coisa entre nós dois, se é que me entende.
- Procurarei me lembrar... E daí?
- Bem, ela percebeu que era eu, e perguntei se minha mãe tinha tentado falar comigo - a mesa telefônica anota as chamadas. Ela disse que não, por isso fingi que estava falando com meu primo Kevin e desliguei.
Tenho que me desculpar com Livvie por causa disso.
- Faça isso - disse Considine, massageando a testa com os dedos. - Esse é outro telefonema que você não mencionou.
- Acho que esqueci. Mas lhe contei tudo sobre o casarão além das pontes, e os guardas, como não podia ligar pra ninguém e como era mantido num quarto com grades nas janelas e tudo mais.
- E como fugiu - concordou o piloto. - O que foi uma proeza e tanto. Você deve ser duro na queda; suas mãos estavam em petição de miséria mas você foi em frente.
- Não sei se sou, o que sabia é que tinha que cair fora dali. As coisas que o meu carcereiro Amet - chamava-o de carcereiro vivia repetindo soavam como um disco quebrado e tão convincentes quanto. Depois
de todos aqueles dias ninguém sabia como me pôr em contato com minha mãe pelo telefone. Tudo não passava de papo furado!
- E indubitavelmente era tudo cronometrado hora a hora, senão a cada minuto - disse Considine, levantando-se abruptamente.
- O que quer dizer?
- Se você é um cara que observa fielmente as normas sociais, e estou absolutamente convencido de que é, esses bandidos tinham que tirá-lo do país antes que sua mãe se envolvesse nessa operação secreta,
operação que foi provavelmente o único detalhe verdadeiro que seus sequestradores lhe disseram.
- Não estou entendendo, Luther. - Jamie franziu o cenho, confuso.
- É a única coisa que faz sentido - disse o piloto, consultando o relógio. - Seja o que for em que sua mãe esteja envolvida tem a ver com os vermes que o raptaram, e deve ser coisa pesada.
- Como é que é?
- Sequestro é sempre um delito que exige planejamento, é uma operação complexa, e sequestrar o filho de um oficial do Exército ligado à segurança do governo é o cúmulo da audácia. Eles tiraram você de
uma jogada para colocá-lo noutra. A deles.
- Mas por quê?
- Para terem um gancho junto à mamãe Montrose. Considine encaminhou-se para a porta. - Voltarei dentro de algumas horas. Procure descansar, dormir um pouco, se puder. Manterei as luzes vermelhas acesas,
ninguém virá perturbá-lo.
- Aonde é que você vai?
- Você descreveu o lugar onde foi mantido incomunicável de maneira muito clara, e posso dizer que conheço praticamente palmo a palmo o território bahrainiano. Tenho diversas ideias de onde possa ser; não
há muitas áreas onde possam ser construídas propriedades como essa. Vou levar minha Polaroid com pelo menos uma dúzia de filmes. Talvez tenhamos sorte.
Julian Guiderone estava descansando sozinho no seu jato Lear 26 a caminho de sua casa em Bahrain, de muitas maneiras a sede do seu imenso império financeiro. Sempre gostara de Bahrain, de seus confortos
e do seu estilo de vida. Manama estava longe de ser tão atraente quanto Paris ou tão civilizada quanto Londres, mas se havia um lugar na terra onde a expressão laissez-faire era usada com mais propriedade,
esse lugar era Bahrain. Não-interferência era o seu credo e ultrapassava as fronteiras da economia e, mais ainda, as do mercado da alma do indivíduo se ele estivesse, naturalmente, entre os ricos.
Julian tinha amigos lá, embora não fossem amigos íntimos ele não tinha amigos íntimos: eles eram um impedimento - e ele considerava a possibilidade de oferecer frequentes pequenos jantares, convidando
alguns pretendentes reais, mas principalmente banqueiros e barões do petróleo, a verdadeira realeza.
O seu pager aéreo tocou, interrompendo seu breve devaneio. Tirou-o do bolso, mostrando-se alarmado ao verificar que quem o chamava estava no código de área 31, Holanda. O número em si não queria dizer
nada, uma vez que era falso. Só havia uma pessoa que poderia chamá-lo de Amsterdã. Jan van der Meer Matareisen. Ele estendeu a mão para tirar o fone do gancho do aparelho em cima de sua mesa.
- Receio ter péssimas notícias, senhor.
- Tudo é relativo. O que é terrível num minuto pode ser benéfico no outro. O que é?
- O pacote que transferimos via Paris para o Oriente Médio desapareceu.
- O quê? - Guiderone deu um pinote para frente com tanta força que a fivela de metal do seu cinto de segurança pressionou dolorosamente sua barriga. - Está me dizendo que o volume está perdido! - ele perguntou
com a voz sufocada encolhendo o estômago enquanto soltava a fivela e afrouxava o cinto. - Já o procurou bem, mandou fazer uma busca rigorosa?
- Convocamos nosso melhor pessoal. Não há o menor vestígio.
- Continue procurando, em toda parte! - O filho do Shepherd Boy respirou ofegante, procurando encontrar alguma medida de controle. - Enquanto isso... - ele começou lentamente, ordenando seus pensamentos.
- Arrendei o barco, o barco grande, portanto mande fazer uma limpeza geral. Também dispense a tripulação, toda a tripulação, e mande-a para nossa marina em Omã, para Muscat. O xeque que está assumindo
o barco conta com seu próprio pessoal.
- Entendi, senhor. Tudo será providenciado antes de terminar o dia.
- Mas, pelo amor de Deus, continue procurando o pacote! Guiderone desligou o telefone com violência e gritou: - Piloto?
- Sim, signore? - veio a voz da cabine de voo pouco mais de dois metros adiante.
- Como está a nossa reserva de combustível?
- Temos bastante. Estamos voando apenas há vinte e dois minutos, signore.
- O suficiente para me levar a Marselha?
- Facilmente, signore.
- Altere então o seu plano de voo.
- Imediatamente, Signor Paravacini.
Paravacini. Um nome esquecido dos anais dos Matarese, mas para os poucos que o conheciam o nome provocava, se não terror, certamente grave preocupação. A organização Scozzi-Paravacini, constituída em função
de casamento entre as duas famílias, tinha sido absorvida por outros interesses com o decorrer dos anos, mas o uso que Guiderone fazia do nome lhe era muito conveniente em certas partes do mundo. As lendas
se extinguem lentamente, sobretudo as que nascem e se expandem no medo.
Embora o conde Scozzi estivesse entre os primeiros recrutas do barão Guillaume de Matarese no início do século vinte, ele se tornou uma figura de proa. Com o esvaecimento da fortuna da família, foi arranjado
o casamento de uma filha de Scozzi com um filho dos ricos porém brutais Paravacini.
A medida que os anos passavam, os outrora inseparáveis Scozzi e Paravacini, que tinham propriedades vizinhas no renomado lago Como, o internazionale lago a celebre da Itália, foram se distanciando, se
incompatibilizando, até a antiga amizade se transformar em hostilidade declarada. Diversos executivos importantes, tidos como simpatizantes dos Scozzi, foram assassinados, acreditando-se que os assassinos
estivessem a mando dos Paravacini, embora não houvesse provas. Então, um herdeiro da família Scozzi foi encontrado morto, supostamente afogado, seu corpo tendo ido dar nas margens do Como. A polícia de
Bellagio, com receio da fama de violentos dos Paravacini, deixou de revelar que tinha sido encontrado um pequeno orifício, aparentemente provocado por um furador de gelo, na caixa torácica do cadáver,
atingindo o coração. As autoridades tinham boas razões para se mostrarem circunspectas, pois os Paravacini tinham criado filhos que se tornaram padres, sacerdotes importantes, emissários do Vaticano! A
cautela impunha-se tendo em vista as circunstâncias.
Através de seus avvocatos, os Scozzi venderam sua participação a outro grande consórcio italiano, os Tremonte, uma família enraizada numa imensa fortuna e numa ética judaico-cristã. E quem poderia conhecê-la
melhor? Pois os Tremonte começaram sua ascensão à celebridade internacional com a união de um brilhante judeu italiano e um igualmente astuto católico romano. Tanto a igreja quanto a sinagoga não viram
a união com bons olhos, mas a prosperidade com que foram bafejadas a seguir ambas as religiões calou suas críticas.
Ali, naquele momento, entretanto, considerou Julian Guiderone, a lenda dos Paravacini ainda prevalecia no Mediterrâneo, especialmente na Itália. Ninguém brincava com os Paravacini, ou corria o risco de
morrer em poucas horas. Percepção. Essa era a chave.
Quanto aos Tremonte e sua estoica filosofia, a morte de seu advogado jogador de polo na América poderia reduzir sua antipatia pelos Matarese. Sabiam que outras poderiam se suceder, era a profecia dos Paravacini.
Tinham que ter cuidado, pois toda morte em última análise torna-se intensamente pessoal.
O que incomodava profundamente Guiderone, assumindo proporções de verdadeira paranoia, era a propagação de uma fedentina intolerável. O porco do mundo, Beowulf Agate, estava de volta! Estava novamente
em ação, como estivera um quarto de século antes. Ele era o cérebro por detrás da caçada, um cérebro obsessivo que procurava o impossível. Tinha que ser detido, morto, como deveria ter sido no complexo
de Chesapeake. Julian daria a ordem em Marselha. Matem Brandon Alan Scofield a qualquer preço!
O F-16 da Força Aérea voou diretamente de Wichita para o campo de Cherokee a onze quilômetros de Peregrine View. Um veículo da CIA aguardava um Scofield descabelado, transportando-o velozmente para o ex-resort
enquanto o sol das primeiras horas da manhã banhava as montanhas Great Smoky. Bray ficou apenas um pouco surpreso quando, depois de cumprimentar Antonia, ouviu uma voz familiar que vinha da cozinha.
- Espero que tenha conseguido dormir um pouco no avião - gritou Frank Shields. - Deus é testemunha de que não consegui pregar o olho. O desgraçado do piloto do turbo-jato tinha um talento todo especial
para entrar em tudo quanto era área de turbulência de Andrews até aqui. - O analista da CIA apareceu na porta da cozinha com uma caneca de café na mão. - Acho que também vai querer uma caneca dessas -
ele acrescentou.
- Pode deixar, Frank - interrompeu Toni. - Você acabou de dar uma chamada nele, bem-feito, ele merecia. - Ela passou por Shields e entrou na cozinha. - Vou preparar uns ovos pra ele. Ele está num estado
lastimável e eu sou uma idiota.
- O que eu devia - disse o analista, entrando na sala de estar e olhando para o uniforme de combate de Scofield todo manchado de suor - era lhe dar uma bronca pra valer. Pra que diabo você está vestido,
pra dar uma de extra num filme de Rambo?
- Me foi muito útil, Olhos-Apertados. Se estivesse à paisana, a essa hora estaria mofando numa prisão do Kansas.
- Acredito no que está dizendo, mas não precisa explicar. Gostaria de me reservar uma certa margem de incredulidade… Suponho que já torrou os dez mil autorizados.
- Só comecei a gastar o que resta deles. Quando você vir o que trouxe pra Mamãe Gansa, meu amigo da velha Stassi vai querer receber os seus cem mil.
- Tudo é sujeito a interpretação, Brandon, inclusive materiais de reconhecimento.
- Que linguagem rebuscada...
- Mas vamos ao que interessa - interrompeu Shields com a maior seriedade. - O que tem a me dizer sobre o jovem Montrose? Mencionei-lhe minhas reservas e você me disse que tinha umas ideias. Quais são elas?
- Muito simples - respondeu Scofield. - Você disse que o garoto está com um oficial da Marinha, um piloto, não foi?
- Foi, o filho de Leslie literalmente o escolheu no meio da multidão numa rua de Manama. Ele é um piloto de combate baseado no Ticonderoga, um líder de esquadrilha, de nome Luther Considine, com uma reputação
fora de série. O alto comando acha que ele é um sério candidato à Escola Superior de Guerra com tudo a que tem direito.
- O garoto escolheu um cara brilhante.
- Obviamente.
- Então entenda-se com ele - disse Scofield.
- O quê?
- Aparentemente, o garoto confia nele. Fale, portanto, com esse Considine. Seja franco com ele, é tudo o que lhe resta. Também terá que dizer à Leslie que o filho dela está fora de perigo, em boas mãos.
Será impensável não fazê-lo.
- Concordo plenamente, mas há um problema. James não é encontrado. Desapareceu...
- Ele o quê?
- É a última informação que recebemos. Eles não têm certeza; acham que ele não desembarcou do porta-aviões, mas não conseguem encontrá-lo.
- Você já esteve a bordo de um porta-aviões, Olhos-Apertados?
- Puxa, você enche o saco! Não, na verdade, nunca estive.
- Visualize grande parte de Georgetown flutuando, isso lhe dará uma ideia. O garoto pode estar em qualquer lugar, pode levar dias, talvez semanas para encontrá-lo, se ele se mantiver em movimento, o que
certamente fará.
- Isso é ridículo! Ele tem que comer, dormir, ir ao banheiro. Uma hora alguém acabará dando de cara com ele.
- Não se ele contar com a ajuda de alguém, de um oficial com quem tenha feito amizade, por exemplo.
- Está querendo dizer...
- Vale a pena tentar, Frank. Aprendi há muitos anos que os pilotos são uma raça à parte, provavelmente alguma coisa que tenha a ver com o fato de ficarem encerrados na carlinga de um avião de combate milhas
acima da terra, completamente isolados. E o pai de James foi um piloto de combate altamente condecorado... postumamente. Você não tem nada a perder. Entre em contato com esse Considine. Dê-lhe uma força.
Nada é perfeito no mundo da alta tecnologia, principalmente porque assim que uma tecnologia é aperfeiçoada, um novo contra produto é inventado, tão ou mais perfeito. Entretanto, o MSTS, um scrambler militar
de transmissão via satélite, é o que mais se aproxima da perfeição clandestina que se possa esperar. Até, talvez, a próxima semana. A inovação são os instrumentos de transmissão e recepção. Eles têm calibragens
alternadas que tanto separam quanto combinam os padrões de voz em suas instantâneas jornadas através das ondas do espaço. Havia uma margem minúscula de risco, que tinha que ser cotejada com a sanidade
de uma mãe e o grau de proteção das partes envolvidas.
O tenente Considine foi chamado ao complexo de comunicações do porta-aviões e posto em contato com Peregrine View, para onde o equipamento eletrônico apropriado tinha sido prontamente despachado via aérea
pelo Pentágono. Foi instalado no Clingmans Dome, o pico mais alto das montanhas Great Smoky. Pouco depois, Luther Considine sentou-se em frente a um console, fones de ouvido no lugar, no porta-aviões U.S.S
Ticonderoga em Bahrain.
- Tenente Considine - disse a voz desincorporada a treze mil quilômetros do Golfo Pérsico. - Meu nome é Frank Shields, vice-diretor da Agência Central de Inteligência. Está me ouvindo?
- Perfeitamente, senhor.
- Serei o mais breve possível... Seu jovem amigo se recusa a falar diretamente com qualquer funcionário do governo e não o censuro por isso. Já lhe pregaram muitas mentiras em nome do governo.
- Então ele vem me dizendo a verdade! - interrompeu o piloto, não escondendo seu alívio. - Eu sabia.
- Ele vem lhe dizendo a verdade - concordou Shields - mas por razões de segurança pessoal, não creio que possa pô-lo em contato com a pessoa com que ele insiste em falar. Talvez dentro de alguns dias quando
pudermos dispor de dispositivos de segurança mais confiáveis, mas não neste momento.
- Acho que ele não aceitará isso. Não acredito que eu aceitasse, se fosse ele.
- Então sabe onde ele está?
- Oficialmente, não. Próxima pergunta, por favor?
- Não é uma pergunta, tenente, é um pedido. Peça a ele para lhe dizer alguma coisa, qualquer coisa, que somente a pessoa com quem ele quer falar saberia. Fará isso?
- Quando e se encontrá-lo, darei a ele o seu recado, senhor.
- Ficaremos aguardando, tenente. O seu oficial superior de comunicações tem os códigos para entrar em contato comigo. São apenas números, ninguém mais se inteirou de nossa conversa.
- Passe bem, senhor. Espero poder ajudar. - Considine retirou os fones de ouvido enquanto um técnico desligava a transmissão.
- Me ouça, Jamie - disse o piloto, sentado em frente ao precavido jovem, ambos em cima de caixotes num compartimento de carga do porta-aviões. - O homem me pareceu estar falando sério, na verdade sua voz
soou como a de um sujeito embalsamado, mas o que ele disse fez sentido. Ele é um guru da inteligência e tem que estudar todos os aspectos de um diagrama complicado.
- Não sei o que você está querendo dizer, Luther.
- Ele tem receio de uma armadilha. Ele disse que compreendia sua posição sobre só querer falar com sua mãe porque já lhe mentiram muito em nome do governo. Ele mencionou sua preocupação com "segurança
pessoal" e "dispositivos confiáveis" antes de botar vocês dois em contato. Ele está pensando na segurança de vocês dois.
- Em outras palavras, podia ser um engodo. Simplesmente podia não ser eu.
- Muito bem... Onde foi que você aprendeu isso?
- Ouvi uma conversa do tio Ev com mamãe. Embora os dois pertencessem ao G-2, iam ser designados para outros setores para finalidades de contrainteligência.
- Meu bom Jesus - murmurou Considine, com a voz baixa enfática. - Já tinha dito que sua mãe devia estar envolvida em alguma coisa de peso, mas isso é muito mais pesado e sério do que qualquer outra coisa
que tenha passado pela minha cabeça. Ela está lidando com espionagem internacional. Caramba, Jamie, já lhe ocorreu que o nosso executivo da inteligência esteve falando no aparelho de segurança com a Inteligência
Naval em Washington, foi transferido para o Departamento de Estado, e finalmente para Thomas Cranston, da Casa Branca, que é a sombra do presidente em assuntos de segurança nacional? Se você se recorda,
ele é o camarada que garantiu botar o Grande Homem em contato com você!
- Não conheço o presidente, conheço minha mãe. Ninguém poderia imitar sua voz para mim, ou saber o que ela sabe.
- É isso o que o Shields quer de você, o que você sabe que somente ela poderá saber. Não percebe isso? Uma vez que ele tenha certeza de que você não é um impostor e que ela confirme sua identidade, ele
poderá agir. Acho que isso é uma atitude razoável, como também acho que seja o que for que esteja rolando está mexendo com os altos escalões do governo. Vamos lá, Jamie, me dê alguma coisa.
- Tá legal, deixe-me pensar. - Montrose Júnior levantou-se do caixote e pôs-se a andar de um lado para o outro no piso de aço do compartimento de carga. - Tudo bem - ele prosseguiu - quando era pequeno,
meus pais me deram um bichinho de pelúcia, um carneiro, um desses brinquedos com que uma criança não pode se machucar. Pois bem, anos depois, meses após meu pai ter sido morto, mamãe vendeu a casa e nos
mudamos... muitas recordações tristes, essas coisas. Enquanto a ajudava a limpar o sótão, ela achou o carneirinho de pelúcia e disse, "Olhe só quem está aqui, o Malcomb". Eu não me lembrava dele e muito
menos do nome. Mamãe me contou que ela e papai riram muito quando chamei o bichinho de "Malcomb", que mal conseguia pronunciar direito. Ela disse que eu aproveitara o nome de um personagem de história
em quadrinhos de um programa de televisão. Não me lembrava realmente de nada, mas não tinha por que não acreditar na história que minha mãe me contou.
- Então é isso? - perguntou Luther. - O nome do animal de pelúcia da sua infância?
- Não me ocorre outra coisa. E não consigo pensar em alguém que conheça esse episódio.
- Talvez seja suficiente. A propósito, já teve oportunidade de examinar as fotos que tirei das mansões?
- Assinalei duas como prováveis. Não posso afirmar com certeza, mas acho que é uma dessas duas. - O adolescente enfiou as mãos desajeitadamente nos bolsos, inibido pela gaze que lhe envolvia os dedos,
e entregou a Considine mais de uma dúzia de fotografias.
- Darei uma olhada nelas depois de me apresentar lá em cima. A propósito, vou transferi-lo quando voltar.
- Para onde?
- Um dos pilotos da minha esquadrilha arrumou uma licença de três dias em Paris pra onde a mulher dele está viajando e deverá passar uma semana. Ela é um editora de modas ou coisa parecida, e o companheiro
de alojamento dele baixou na enfermaria com sarampo. Pode acreditar numa coisa dessas? Daqui a pouco, nossas esquadrilhas serão pilotadas por garotos de doze anos.
- Tenho quinze e já tenho onze horas de aulas de voo. Estou pronto para meu voo solo, Luther.
- Isso me conforta enormemente. Te vejo mais tarde.
Leslie Montrose estava dentro de um cubículo envidraçado numa grande sala branca repleta de equipamentos eletrônicos indo do chão ao teto. Havia telas esverdeadas por toda parte, cheias de indicadores
e leituras digitais, e ilhas de operação para dez técnicos, homens e mulheres, especialistas em comunicações secretas. Era o centro internacional de mensagens do MI-6, transmissões enviadas e recebidas
de todo o mundo. Leslie estava sentada na frente de um console telefônico computadorizado, três fones nos respectivos ganchos ao lado da máquina, cada um numa cor diferente - verde, vermelho e amarelo.
Ouviu-se uma voz feminina vinda de um alto-falante oculto no cubículo.
- Pegue, por favor, o fone verde. Sua ligação está sendo completada.
- Obrigada. - Montrose pegou o fone, invadida por uma onda de terrível ansiedade. Temia o pior ao retirar o aparelho do gancho com a mão trêmula. - É a pessoa da ligação de Londres...
- Tudo bem, Leslie - Frank Shields interrompeu - não é necessária nenhuma litania obscura.
- Frank?
- Dizem que essa engenhoca é tão confidencial como se estivéssemos falando num armário de vassouras no Alasca.
- Até pode ser. Só sei que estou numa montanha-russa emocional desde que Geof Waters me disse para vir aqui receber uma ligação de Londres. Ele nem me disse que era você.
- Ele não sabe, e se honra a tradição de Eton, continuará não sabendo mesmo depois de termos terminado, de falar, a menos que você diga a ele.
- Pelo amor de Deus, o que e, Frank? - Montrose baixou subitamente a voz e perguntou praticamente sussurrando. Aconteceu alguma coisa com meu filho?
- Talvez tenha notícias para você, Leslie, mas primeiro preciso lhe fazer uma pergunta.
- Uma pergunta? Não quero saber de perguntas, quero é notícias do meu filho!
- O nome Malcomb significa alguma coisa para você?
- Malcomb... Malcomb? Não conheço ninguém com esse nome. Que pergunta cretina é essa!
- Calma, coronel, relaxe. Pense apenas um minuto...
- Não tenho que pensar coisa nenhuma! - gritou uma quase histérica Montrose. - Que diabo é um Malcomb e o que é que ele tem a ver com meu filho! Não conheço ninguém, jamais conheci alguém... - Leslie parou
abruptamente; respirou fundo, afastando o fone verde do ouvido e olhando inexpressivamente através do vidro para a grande parede branca, arregalando os olhos aos poucos. - Oh, meu Deus! - ela murmurou,
trazendo o fone de volta ao ouvido. - O carneirinho de pelúcia, o brinquedo de uma criança de três anos! Ele o chamava de Malcomb como na história em quadrinhos...
- Está certo, Leslie - confirmou Frank Shields a mais de seis mil quilômetros no sopé das montanhas Great Smoky. - O brinquedo de pelúcia de uma criança pequena, há muito esquecido por vocês dois até que...
- Até que o achamos no sótão! - gritou Montrose, interrompendo. - Eu o encontrei e Jamie não se lembrava. Então contei a ele. - É Jamie! Você teve notícias do meu filho?
- Não diretamente, mas ele está em lugar seguro. Ele fugiu, um feito extraordinário para um jovem da idade dele.
- Ei, ele é um garoto extraordinário! - exclamou a mãe radiante de felicidade. - Talvez não seja um craque em biologia ou latim, mas é campeão de luta livre! Já não disse que ele é um lutador e tanto?
- Estamos sabendo.
- Oh, Senhor, estou jogando conversa fora, não é mesmo? admitiu uma chorosa tenente-coronel Montrose, do Exército dos Estados Unidos. - Peço desculpas, Frank, estou dizendo bobagens e chorando ao mesmo
tempo.
- Tem todo o direito, Leslie.
- Onde é que ele está? Quando poderei falar com ele?
- No momento ele está numa base naval no Oriente Médio...
- No Oriente Médio?
- Não posso me arriscar a pô-lo em contato com você imediatamente. Não temos como instalar o equipamento apropriado que garantiria o completo sigilo da comunicação. Estou certo de que compreenderá que
aqueles de quem ele conseguiu escapar estão à procura dele por toda parte, e eles não são menos capazes do que nós em matéria de interceptação eletrônica.
- Compreendo, Frank. Também trabalho com computadores.
- Foi o que o Pryce me disse.
- Ele é um amor, aqui entre nós. Ele insistiu em vir para cá comigo, e sei que ele e Sir Geoffrey tinham outros planos. Planos que incluíam uma relaxante noite de pôquer no clube de Waters. Mais do que
merecida, diga-se de passagem.
- Você disse a ele quem, ou o quê você realmente é? Uma oficial do G-2 e não um coronel da FDR?
- Não, mas ele provavelmente desconfia, uma vez que operei os computadores em Belgrave Square. Não tenho certeza de que ele tenha notado a diferença ou se dá importância a isso.
- Ele poderia. Gosta de tudo às claras. É tão rigoroso nesse Departamento quanto Beowulf Agate.
- Não vejo problema. Você fará Jamie saber que estou a par da situação, não é verdade?
- Claro. Me diga alguma coisa no gênero do Malcomb para que ele saiba que o recado vem de você.
- Tudo bem... Diga a ele que recebi um bilhete pessoal do professor de biologia dele. Que é bom ele meter a cara na matéria ou poderá ser barrado pela delegação esportiva do colégio.
Leslie saiu do centro internacional de mensagens do MI-6, entrando num corredor comprido, deserto, exceto por duas figuras. Uma era um guarda armado sentado a uma mesa no meio do corredor, a outra era
Cameron Pryce no fundo. Com o coração batendo rápido Leslie acenou com a cabeça para o guarda e apressou o passo em direção a Cameron. Com a alegria estampada no rosto, um sorriso de criança, ela correu
os últimos três metros, atirando-se nos braços de Pryce, apertando-o e sussurrando no ouvido dele.
- É Jamie! Ele fugiu, está seguro!
- Isso é maravilhoso, Leslie! - Cam começou a gritar, logo baixando a voz. - É fantástico, realmente fantástico - ele acrescentou, apertando-a com a mesma força com que ela o apertava. - Quem foi que entrou
em contato com você?
- Frank Shields. Eles receberam a informação há pouco, mas tiveram primeiro que checá-la, e eles o fizeram. É de fato Jamie!
- Você deve estar se sentindo tão aliviada...
- Não tenho palavras! - Abruptamente, como se a tenente coronel Montrose se desse conta de repente de que estavam nos braços um do outro, ela se desvencilhou parcialmente e disse com tranquilidade: - Me
perdoe, Cam, estou me comportando como uma criança...
- Porque sua criança está salva - Pryce retrucou, ainda enlaçando-a gentilmente ao mesmo tempo que passava a mão carinhosamente no seu rosto. - Você está chorando, Leslie.
- Não são lágrimas de tristeza, meu amigo, meu bom amigo.
- Elas lhe farão muito bem.
- Creio que sim. Da mesma forma que elas aliviam uma grande dor. - Seus rostos, seus olhos estavam quase colados. Cameron soltou-a e recuou, colocando as mãos nos seus ombros. Obrigada, meu amigo - ela
disse.
- Do quê? Por eu estar aqui? Não poderia estar em nenhum outro lugar.
- Por isso também, mas não foi o que quis dizer. Há alguns segundos tive vontade de beijá-lo, tive muita vontade mesmo.
- Você está muito vulnerável neste momento, coronel.
- É por isso que lhe estou agradecendo. Por sabê-lo.
Pryce sorriu e retirou as mãos. - Você se livrou do anzol provisoriamente, mas não confie em mim. Não sou um monge de trinta e seis anos.
- Nem eu uma freira de trinta e seis anos... Pensando bem, creio que tenho sido nos últimos anos.
- Ponderemos sobre esse enigma como nós, da inteligência, examinamos um problema.
- Receio que isso me excluiria...
- Essa não, minha amiga, estou sabendo desde o complexo de Chesapeake.
- Sabendo de quê?
- Que você é uma oficial do G-2 do Exército e Ev Bracket também era.
- O quê?
- Vocês são uma unidade de elite, o que os ingleses chamam de Divisão Especial. A especialidade de vocês é não dar trégua aos malfeitores onde quer que se encontrem, com treinamento apropriado, naturalmente.
- Santo Deus do céu, como foi que você soube disso?
- Você mesma se traiu muitas vezes. Você raciocina como um agente secreto, fala como se fosse um deles, e o Exército não mandaria um soldado ou um oficial da FDR fazer um curso de pós-graduação em informática
na Universidade de Chicago para que ele ou ela pudesse levar seu laptop para o campo de batalha.
- Isso é engraçado, realmente engraçado! - exclamou Montrose, com os olhos congestionados francamente sorridentes. - Há cinco minutos, Frank me perguntou se eu tinha revelado isso a você, e eu disse que
não, mas que achava que você devia ter desconfiado porque usei o computador em Belgravia. Mas terá sido mesmo por causa do computador?
- Não, muito mais simples. Sei que algumas pessoas no Pentágono e em Langley acham que não é recomendável, mas tipos como nós da CIA e vocês do G-2 muitas vezes têm boas razões para trabalharem juntos.
O fato é que entrei em contato com um amigo meu em Arlington e ele pesquisou você e Bracket para mim. Um de nós salvou a vida do outro num Prospeck em Moscou, não consigo me lembrar qual dos dois. Ele
não teve escolha.
Leslie deu uma boa risada, suficientemente alta para que o guarda à mesa olhasse para ela. - Agente Pryce, ou melhor, agente especial Pryce, acha que poderíamos rebobinar um pouco a fita e começar de novo?
- Acho que é uma grande ideia, coronel Montrose. Nossa fita está apagada e sugiro que comecemos novamente com um jantar de agradecimento num restaurante muito bom. Uma vez que costumo ser generoso com
minha verba para contingências, o jantar é por minha conta.
- E não devo confiar em você?
- Nem um instante. Isso deve constar da fita.
VINTE
Frank Shields deu instruções a sua secretária há dezenove anos de que estaria "fora de casa" durante dois dias e que ninguém deveria ser informado do seu paradeiro. Isso incluía quem quer que fosse na
Agência, independentemente do posto.
- Usarei a conexão Denver, se surgir alguma crise - disse a mulher de meia-idade acostumada com os "sumiços" do seu chefe. Ela acrescentou que entraria em contato com a Sra. Shields, tranquilizando-a e
ao mesmo tempo preparando seu espírito para a ausência do marido, e emitiria uma ordem para que um avião levasse o vice-diretor a Montreal. A ordem seria classificada como ultrassecreta e seria cancelada
assim que o avião tivesse levantado voo com destino a Cherokee, e o piloto receberia instruções para regressar a Andrews.
- Como sempre, você não se esqueceu de nada, Margaret elogiou Frank Shields. - Contudo, talvez você devesse dar uma verificada na conexão Denver.
- Já dei. Não houve infiltrações. Chamarei Colorado e o seu pager o alertará, a chamada em si terminará em Denver.
- Acho que vou indicar o seu nome para a diretoria.
- Cabe a você propô-lo, Frank.
- Não quero e você é organizacionalmente mais bem qualificada... E, Maggie, diga à Alice que lamento realmente ter que me ausentar hoje. Nossos filhos irão jantar hoje ou amanhã levando as crianças, ela
vai ficar muito chateada.
- O jantar vai ser mais para o fim da semana - corrigiu a secretária. - Até lá, você já poderá estar de volta.
- Como é que você sabe?
- Alice telefonou e me pediu para que eu checasse a sua agenda. Gostaria de não passar por mentirosa, por isso espero que esteja realmente de volta.
- Farei o possível.
- Por favor.
- Está parecendo mais uma ordem.
Shields redobrou então seus esforços para botar os Montrose, mãe e filho, em contato, agindo junto aos mais altos escalões da segurança com Geoffrey Waters, o MI-5 e o MI-6. Ficou decidido que o método
mais simples e mais óbvio de viajar seria também o mais seguro. O Ticonderoga estava programado para patrulhar o Golfo Pérsico entre Bandare Charak e Al-Wakrah; esse era o modus operandi. Quando os jatos
decolassem da pista do porta-aviões para os seus voos de reconhecimento, um avião, com seu tanque cheio, sairia da formação e rumaria para uma base da Royal Air Force no distrito de Loch Torridon, na Escócia.
O piloto seria o tenente Luther Considine; seu passageiro, James Montrose Júnior.
O único comentário de um Jamie exultante foi: - Genial! O babaca do professor de biologia é que não tinha nada que escrever pra mamãe! Que saco!
A reunião teria lugar numa pequena aldeia a vinte quilômetros ao norte de Edimburgo. Geoffrey Waters pessoalmente providenciou o equipamento especial de comunicações e três elementos armados do MI-5 para
irem ao encontro do avião americano e conduzir o piloto e o jovem Montrose a uma hospedaria nos arredores de Edimburgo. A hospedaria tinha sido requisitada pelo governo, não podendo receber hóspedes da
região ou turistas durante quarenta e oito horas a partir da chegada de uma certa Srta. Joan Brooks e do seu irmão John - Leslie Montrose e Cameron Pryce.
Waters ficou em Londres, mantendo-se em contato com Shields e Brandon Scofield a propósito do novo material que Beowulf Agate tinha desencavado.
Havia uma outra razão para Cameron Pryce estar no voo para a Escócia. Luther Considine tinha em seu poder fotografias das duas propriedades no Golfo Pérsico que Jamie Montrose identificara como semelhantes
ao complexo onde estivera aprisionado. O piloto obtivera os antecedentes que conseguira levantar sobre os proprietários das duas mansões. Não tinha sido fácil. Bahrain era extremamente protetora quando
se tratava de abrigar finanças de impostos. Criou-se então um triângulo clandestino entre Londres, o resort nas Great Smoky e uma obscura aldeia na Escócia. Informações podiam ser instantaneamente retransmitidas,
e isso era a única arma de que dispunham para penetrar no círculo fechado dos Matarese e nas estratégias globais que eles tinham acionado.
THE WASHINGTON POST
(Primeira página)
O CONGRESSO INVESTIGA TÁTICAS
TRABALHISTAS ORGANIZADAS
WASHINGTON, 23 OUT. - Em uma operação surpresa, a Comissão Antitruste da Câmara voltou inesperadamente sua artilharia pesada contra a força de trabalho e não os empregadores. A Comissão questionou a influência
que os principais sindicatos têm sobre dezenas de milhares de trabalhadores, inibindo a expansão econômica.
THE BOSTON GLOBE
(Primeira página)
FUSÃO DA ELECTRO-SERVE
COM A MICRO WARE
BOSTON, 23 OUT. - Surpreendendo a indústria de computadores, a fusão de duas líderes, a Electro-Serve e a Micro Ware, resultará imediatamente na perda de trinta mil empregos. Wall Street está entusiasmada,
outros setores mostram-se desanimados.
THE SAN DIEGO UNION - TRIBUNE
(Página 2)
DOWNSIZING NA BASE NAVAL
MILHARES DE FUNCIONÁRIOS SERÃO DISPENSADOS
SAN DIEGO, 24 OUT. - O Departamento da Marinha em Washington anunciou que reduzirá drasticamente as operações e as instalações da base naval de San Diego, transferindo 40 por cento do seu pessoal para
outros setores navais. A maioria dos funcionários civis será dispensada. Quanto a suas extensas propriedades em Coronado, serão leiloadas para indústrias particulares.
As coisas estavam acontecendo, mas ninguém nos setores público ou privado sabia exatamente o quê; ou se sabia, mantinha-se em silêncio.
O encontro de Leslie Montrose com seu filho foi previsível. Os olhos da mãe estavam marejados de lágrimas, a visão das mãos enfaixadas de Jamie foi quase insuportável. James Montrose Júnior demonstrou
um misto de alívio e exuberância com um toque de constrangimento diante do comportamento de sua mãe. Cameron Pryce manteve-se a uma distância discreta, na penumbra do bar deserto da hospedaria. Depois
de soltar o filho enrubescido, assoar o nariz e respirar fundo diversas vezes, Leslie falou:
- Jamie, gostaria que você conhecesse o Sr. Pryce, Cameron Pryce. Ele é um agente de campo da CIA.
- Do mesmo ramo, não é, mamãe? Prazer em conhecê-lo, senhor. - James Júnior afastou-se de sua mãe.
- É um prazer conhecê-lo, Jamie - disse Cam, emergindo da sombra. - Deveria dizer uma honra - ele continuou. - O que você fez foi extraordinário, sinceramente. - Apertaram-se as mãos cautelosa, e gentilmente.
- Não foi tão difícil assim, senhor, principalmente depois de ter transposto o muro. O pior é que havia cacos de vidro e arame farpado no alto do muro.
Leslie Montrose suspirou.
- Foi aí que você feriu as mãos? - perguntou Cameron.
- Foi. Mas elas estão cicatrizando muito bem. Aqueles médicos da Marinha conhecem o seu ofício... Por falar nisso, onde estão Luther?
- Na outra sala, falando no telefone à prova de interceptações com nossos companheiros do MI-5 e do MI-6.
- OK, Sr. Pryce. - O adolescente hesitou, mas logo as palavras saíram em turbilhão com uma raiva crescente. - Alguém poderia me dizer que diabo está acontecendo? Por que todas essas coisas aconteceram?
As mentiras, o meu sequestro, não poder falar com minha mãe, números de telefone subitamente cortados ou mudados e não listados no catálogo, toda essa armação! Mas principalmente as mentiras! Porquê?
- Sua mãe e eu lhe diremos tudo o que pudermos. Deus sabe que você merece.
- A primeira pergunta que gostaria que me fosse respondida, sem desrespeito, senhor, é onde está o tio Ev, o coronel Everett Bracket?
- Querido - interrompeu Leslie, aproximando-se do filho. Venho tentando encontrar uma maneira de lhe dizer isso, mas honestamente não sei como.
- O que quer dizer, mamãe?
- Everett fazia parte desta operação. A inteligência do Exército foi recrutada pela CIA para proteção militar. Ele queria que eu operasse seus computadores de segurança, ele nunca se habituou com eles.
E começaram os telefonemas. Ameaças horríveis de toda parte. Você tinha sido sequestrado, e se eu não obedecesse às ordens, você seria torturado e depois executado. O tio Ev tinha certeza de que estava
tudo relacionado.
- Puta merda! - Jamie exclamou baixinho. - O que foi que você fez, mãe?
- Procurei me controlar como nunca julguei que fosse capaz. Everett foi maravilhoso. Ele procurou Tom Cranston, um velho amigo da Casa Branca. As instruções de Cranston foram explícitas. Não devíamos falar
nada com ninguém, ele cuidaria de tudo no mais alto nível. Então em Chesapeake houve uma série de incidentes horríveis, o local se transformou num verdadeiro campo de batalha. Everett foi morto, não importa
como.
- Deus, não é possível!
- Lamentavelmente é verdade - disse Cameron, com voz suave.
- Merda, merda, merda! Tio Ev!
- Esse foi o meu segundo exercício de controle, Jamie. Nem ao menos podia deixar que o Sr. Pryce percebesse como eu estava desolada. Tive que afogar meus sentimentos e agir somente através de Tom.
- Sua mãe foi muito bem-sucedida - disse Cameron, com uma ligeira entonação na voz. - Se ela tivesse sido mais clara comigo antes, talvez tivéssemos feito mais progresso.
- Em relação a quê! - gritou Montrose Júnior.
- Caberá a mim explicar - respondeu Pryce - e vai levar algum tempo. Por isso sugiro que deixemos para amanhã de manhã. Todos nós, especialmente você, meu jovem, tivemos alguns dias difíceis. Que tal descansarmos
um pouco?
- Estou cansado, mas tenho tantas perguntas a fazer!
- Há quase três semanas que você não tem nenhuma resposta, Jamie, portanto que diferença faz mais algumas horas? Você precisa dormir um pouco.
- O que é que você diz, mãe?
- Acho que o Cam tem razão, filho. Estamos todos tão estressados, tão exaustos, que não tenho certeza se somos capazes de raciocinar direito.
- "Cam", mamãe?
Em Peregrine View, Scofield, Frank Shields e Antonia estavam em volta da mesa de jantar do condomínio, repleta de fotografias. Os rolos dos filmes que Bray tirara em Wichita tinham sido revelados no local
em regime de emergência, com uma patrulha Gama presente durante todo o processo de revelação e ampliação.
- Essas aqui - disse Brandon, apontando para diversas fileiras de fotos mostrando páginas de nomes e datas escritos à mão tirei da agenda de compromissos de Alistair McDowell.
- Vou mandá-las por fax para minha secretária para que ela possa dar uma checada minuciosa em cada uma. Talvez encontremos algum padrão ou algumas surpresas.
- O que é isso aqui, Bray? - perguntou Toni. - Parecem fórmulas... De matemática ou de física, coisas científicas.
- Também gostaria de saber - respondeu Scofield. - Estavam encartadas em folhetos com a anotação "Equações de Quociente de Grupo". Sempre achei que quando alguém se dá ao trabalho de buscar palavras obscuras,
ambíguas, e depois acrescenta letras e números ainda mais impenetráveis, isso significa que está tentando esconder alguma coisa, alguma coisa a que precise ter acesso, mas tem receio de armazená-la num
computador.
- Porque os computadores podem ser permanentes - disse Shields, apanhando diversas fotos de quocientes. - Qualquer deletação pode vir à tona nas mãos de um especialista.
- É exatamente assim que eu penso - concordou Bray. - Você pode queimar papéis mas não uma máquina.
- Essas fórmulas aí não são de matemática nem de física continuou o vice-diretor Shields - elas são fórmulas químicas, o que bate com o dossiê de McDowell.
- Creio que isso pede uma explicação, Frank.
- Alistair McDowell é um engenheiro químico, o melhor aluno da turma durante todo o seu curso no MIT até o doutorado. Quando tinha vinte e poucos anos, seu brilhantismo no laboratório era quase uma lenda
e a Atlantic Crown tratou de fisgá-lo, prometendo financiar todas as pesquisas que ele fosse capaz de empreender.
- É um salto e tanto do laboratório para a chefia de uma empresa de produtos alimentícios, você não acha, Frank? - perguntou Toni.
- Certamente, mas houve uma razão muito boa para essa rápida ascensão. Sua competência científica só era superada por suas habilidades organizacionais. Respaldado por um financiamento praticamente ilimitado,
ele reorganizou todas as divisões de pesquisa - ao que tudo leva a crer, era um autêntico ditador nos laboratórios - até que elas se tornaram mais lucrativas do que nunca. Era um candidato natural à alta
administração.
- Há informações nessas letras, números e frações, Frank. Eu sinto, eu sei.
- Acho que você está certo, Brandon. Vou mandar esse material para nossa unidade de análise química e veremos o que descobrirão.
- Deve haver variações de códigos que levem a nomes, organizações, países...
- Se não levarem - disse Shields - devem ser os mais novos produtos ou os preservativos mais inovadores. Mas por enquanto, acho que você está certo.
- E quanto a essas fotos? - perguntou Antonia, fazendo um gesto para sete chapas de equipamento técnico.
- Quatro são de um aparelho de decodificação que estava escondido numa caixa de música, e as outras três são de um computador. Pensei que pudéssemos descobrir quem são os seus fabricantes e partir daí.
- Posso lhe dizer desde já que o computador é da Electro Serve, que tem um acordo secreto conosco. Se o computador é um similar, a empresa violou o nosso contrato. Isso pode custar à Electro alguns milhões.
- No tribunal, Olhos-Apertados, mas você sabe muito bem que o seu pessoal não pode aparecer num tribunal.
- Há um certo grau de verdade nisso - disse Shields, desconsolado. - Você sabe melhor do que muitos de nós. E agora, para onde vamos?
- Rasgando em frente, Sr. Vice-diretor - respondeu Beowulf Agate. - Nada de inquéritos, tribunais, interferência do Congresso, da Câmara ou do Senado. Simplesmente rasgando em frente, sem contemplação.
Vamos descobrir os nomes, as regiões, as corporações. Saberemos então quem é a Medusa, o templo craniano que produz as serpentes. E aí cortaremos suas cabeças, uma por uma.
- Isso é abstrato, Brandon.
- Não, não é, Frank. Eles não passam de pessoas, da mesma forma que eram pessoas há um quarto de século. Taleniekov e eu as destruímos na época, e Pryce e eu vamos destruí-las agora… Portanto, mãos à obra,
e nos forneça tudo o que puder obter.
- Você não fará nada sem a nossa aprovação, que isso fique bem claro na sua cabeça.
- Não foi esse o nosso acordo, Frank. Lembre-se, você me procurou, eu não bati na sua porta. Você mencionou o direito de veto antes. Eu lhe darei muitas oportunidades para exercê-lo, acredite.
O telefone vermelho tocou; estava numa mesa mais perto de Shields. Ele se encaminhou para ela e atendeu-o. - Sim? - ele disse, e ficou calado, limitando-se a ouvir. Trinta segundos depois, dizendo apenas
"Obrigado", desligou e dirigiu-se a Scofield. - Se é lícito fazer suposições, e acredito que seja, você tem menos duas cabeças de serpentes para cortar. Alistair McDowell e Spiro Karastos morreram num
acidente de automóvel quando iam para casa ontem à noite, Karastos ao volante. Devem ter sido abalroados por um veículo grande e cuspidos para fora da estrada porque foi dada perda total do carro.
- Devem ter sido? - exclamou Brandon. - Não sabem ao certo?
- Foi uma batida relâmpago e o motorista culpado fugiu. A polícia...
- Interditem imediatamente os escritórios deles! - gritou Scofield. - Mande lacrá-los e ponha guardas no corredor. Temos que virar pelo avesso aquele equipamento!
- Tarde demais, Brandon - disse Shields aparentando serenidade. - Uma hora ou pouco mais depois do acidente, já tinham feito uma limpeza em regra nos dois escritórios.
- Com autorização de quem? - trovejou Bray.
- Política da empresa. Aparentemente, toda vez que um executivo importante da Atlantic Crown morre subitamente, todos os seus móveis e utensílios de trabalho são imediatamente removidos.
- Por quê? - Scofield atalhou, ainda aos berros.
- A espionagem industrial é um fato corriqueiro nos dias de hoje... Enfartes fulminantes, derrames cerebrais, tumores inesperados também são comuns. Corporações altamente competitivas procuram proteger-se
nessas circunstâncias.
- Isso é paranoico, Frank! E a polícia?
- Onde está o crime? Foi num cruzamento de uma estrada secundária, não houve testemunhas, restaram apenas destroços indicando uma possível colisão. Até agora, para todos os efeitos, trata-se de um acidente.
- Mas você sabe e eu sei que não foi.
- Concordo plenamente com você, tendo em vista principalmente a rapidez com que limparam os escritórios. Podia-se até dizer que a trágica ocorrência foi prevista.
- Tá na cara que foi, e a própria suspeita de que possa ter sido delituosa dá à polícia o direito de fechar todas as portas potencialmente relevantes para apurar se foi realmente um crime.
- Isso é ao mesmo tempo a ironia e nossa prova de um homicídio premeditado. Porque não há dúvida de que foi premeditado.
- O que é que você está querendo dizer, Frank? - perguntou Toni.
- Quando a polícia e os paramédicos que acorreram ao local do "acidente" terminaram seu trabalho, o conteúdo dos dois escritórios já era.
- "Uma hora ou pouco mais depois" - disse Scofield, repetindo as palavras de Shields. - Você está certo. Era totalmente impossível que os diretores da Atlantic Crown tivessem tomado conhecimento do que
acontecera em tão pouco tempo.
- Receio que a idade esteja atrapalhando suas ideias, Brandon. E evidente que sabemos como eles souberam.
- E mesmo, nós sabemos, não sabemos? Então agora temos que descobrir para onde levaram tudo.
- E quem deu a ordem - sugeriu Antonia - e quem entrou em contato com quem quer que seja que a tenha executado.
- Três excelentes perguntas - concordou Shields. Começaremos a procurar uma resposta para cada uma delas imediatamente.
- Deverá ser interessante - disse um enfezado Scofield.
Sir Geoffrey Waters estudou a informação que o tenente americano Luther Considine lhe tinha passado pelo telefone de segurança, falando da Escócia. Um fax oficial, transmitido por um aparelho seguro, deveria
ter seguido para que o piloto pudesse conferir suas palavras, mas como o aparelho não estava funcionando temporariamente, o funcionário do MI-5 decidiu não esperar pela confirmação.
Dizer que as duas mansões localizadas em Bahrain tinham um histórico de propriedade, tanto no passado quanto no presente, um tanto complicado, seria dizer muito pouco. Os nomes levantados em cartório eram
de advogados, empresas e corporações e conglomerados internacionais; ninguém especificamente era responsável pela propriedade dos imóveis. Era um labirinto de informações obscuras. Mesmo os advogados do
Oriente Médio dispostos a colaborar não podiam fazer nada. Segundo eles, os contratos eram transmitidos eletronicamente, e os fundos para a aquisição eram telegrafados anonimamente de cidades diversas
como Madri, Londres, Lisboa e Bonn. O numerário era normalmente transferido, não havendo nada a questionar.
Havia, entretanto, uma extraordinária exceção, extraordinária na medida em que o advogado bahrainiano intermediador da compra tinha recebido um milhão de dólares americanos a mais, acima do preço da transação.
Um zero adicional tinha sido inocentemente digitado num computador de transferências codificado. O corretor bahrainiano, ciente das rigorosas leis territoriais que penalizavam as fraudes, notificou devidamente
o pagamento em excesso às autoridades, assim como ao remetente. Era uma obscura holding de Amsterdã.
Amsterdã.
O homem magro, calvo, no complexo de processamento de dados da Agência Central de Inteligência levantou-se de sua mesa no seu cubículo e colocou as duas mãos nas têmporas. Saiu de sua área e caminhou cambaleante
para o cubículo ao lado do seu. Oi, Jackson - ele disse ao ocupante. - Estou novamente com uma de minhas enxaquecas. Palavra, não estou conseguindo suportar!
- Vá dar uma descansada, Bobby, eu ligo sua máquina na minha e te dou cobertura. Você precisa consultar um médico sobre isso.
- Já consultei, Jackson. Ele me disse que são provocadas por estresse.
- Então dê o fora daqui, Bobby. Você poderia arranjar um emprego melhor em qualquer outro lugar.
- Gosto daqui.
- Isso é besteira. Vá em frente, fico de olho na sua tela.
Bobby Lindstrom não foi para a sala de estar dos funcionários. Em vez disso, foi até a rua e se encaminhou para um telefone público na calçada. Inseriu quatro moedas de vinte e cinco centavos, uma após
a outra, e discou sete zeros. Ouviu uma série de sinais, cinco para ser exato, e aí discou mais oito zeros e esperou.
- Gravando - disse a voz metálica do outro lado da linha. Prossiga.
- Águia falando. Interceptei duas comunicações diretas. Os alvos estão na Carolina do Norte, no complexo P.V. Proceda de acordo com Marselha. Desligando.
Era noite, uma noite escura, os raios da lua ofuscados pelas brumas da montanha que se espalhavam por toda parte. Pela estrada íngreme que levava aos portões de Peregrine View, o feixe duplo de luz de
faróis de um carro foi entrando aos poucos em foco. Ao se aproximar da barreira de aço que cortava a estrada da floresta, um sedã marrom se revelou, um veículo do governo com duas bandeiras militares flanqueando
o capô. As insígnias proclamavam ser o carro de um general, um oficial general de duas estrelas.
O veículo parou quando um guarda emergiu da guarita. Ele olhou para dentro do carro, para os quatro oficiais uniformizados - o motorista, um major, o general ao lado dele no banco da frente e dois capitães
no de trás.
- General Lawrence Swinborn, meu jovem - anunciou o general, exibindo documentos com o braço estendido na frente do motorista, na direção da janela aberta.
- Aqui estão as minhas credenciais da CIA e do Exército.
- Sinto muito, senhor - disse o sargento da Força Gama credenciais devem ser apresentadas pelo menos doze horas antes da chegada de um convidado. Nada feito, general. O senhor vai ter que manobrar o carro
no barranco à sua retaguarda.
- É uma pena, sargento - respondeu o general, fazendo um gesto com a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda. Ao sinal convencionado, o capitão sentado no banco traseiro à esquerda ergueu uma pistola
dotada de silenciador e atirou, atingindo o soldado na testa. Ao ver seu companheiro alvejado, o segundo sentinela saiu correndo da guarita, sendo recebido com dois tiros disparados pelo mesmo capitão,
novamente disparos certeiros na cabeça, eliminando qualquer som das vítimas.
- Desçam - ordenou o general. - Arrastem os corpos para a mata e ergam a barreira.
- Sim, senhor.
- Major, apague os faróis.
- Imediatamente! "Lawrence" soa bem.
- Espero que vocês nunca precisem se lembrar dele. - Na escuridão, a barreira de aço foi levantada, os, capitães voltaram para seus lugares e o sedã prosseguiu lentamente subindo a estrada. Um terceiro
guarda apareceu no meio da névoa e das trevas; ficou obviamente surpreso e aproximou-se do carro.
- Que diabo é isso? - ele perguntou. - Quem são os senhores?
- Segurança do Pentágono, soldado - respondeu o general. Presumo que possa ver as bandeiras.
- Não estou conseguindo enxergar quase nada, mas isso não está no regulamento.
- Estamos devidamente autorizados, cabo, e eu sou o general Lawrence Swinburn.
- General ou não, senhor, nossas instruções são claras: explodir qualquer veículo de que não tenhamos sido informados.
- Obviamente, você desconhece a ordem do dia, soldado. Onde é que os outros estão concentrados? Não quero ser novamente molestado.
O parrudo cabo da Força Gama examinou o carro e seus ocupantes. Recuou devagar, com a mão direita no coldre de sua arma, desafivelando-o, e a esquerda retirando um rádio de sua jaqueta de campo. Percebeu
uma pistola através da janela traseira aberta. - Não se meta nisso, meu chapa. - O guarda girou o corpo com agilidade e jogou-se para a esquerda, rolando pela encosta enquanto as balas levantavam a terra
à sua volta. Gritou no bocal do seu rádio: - Veículo hostil. Setor Três! Tiroteio.
- Fase B! - comandou o homem que se dizia chamar Swinburn, e os quatro pularam do lado esquerdo do sedã e começaram a tirar seus uniformes enquanto o cabo, com a perna esquerda ferida, levantava-se com
dificuldade, corria para se proteger na mata, passando a responder ao fogo. Os quatro invasores usaram o sedã como anteparo para se desfazerem dos uniformes, revelando fardas de camuflagem idênticas às
usadas pelos patrulheiros da Força Gama. - Espalhem-se - ordenou o falso general. - Ele está na primeira estrutura à direita, a uns duzentos metros mais acima da estrada. Usem a mata, nos encontraremos
lá!
O que se seguiu foi um espetáculo de violência e caos decorrentes da confusão. Feixes de poderosas lanternas cortaram o terreno e a névoa da floresta. Uniformes - jaquetas de campanha camufladas - eram
as primeiras referências de identidade, e as armas eram logo abaixadas à sua vista. Os que as abaixavam eram vítimas de seus enganos fatais.
Com o barulho do tiroteio errático, como nas guerrilhas, Scofield apagou todas as luzes e convenceu Antonia e Frank Shields a se protegerem da melhor maneira na escuridão do aposento onde se encontravam.
Apanhou duas armas automáticas MAC-10 no pequeno arsenal e entregou-as à mulher e a Frank, com a recomendação de abrirem fogo imediatamente se alguém surgisse na porta ou numa janela estilhaçada.
- O que é que você vai fazer, Bray? - perguntou Toni.
- Aquilo em que ainda sou bom pra caramba, minha querida respondeu Scofield, encaminhando-se para a cozinha e a porta dos fundos, no seu uniforme de combate, e pegando um Colt 45 com seis pentes de munição.
Saiu furtivamente e correu para a mata circundante. Rastejou silenciosamente pela floresta adentro, como uma pantera feroz protegendo sua toca, seu instinto lhe dizendo que ele seria muito possivelmente
o objeto da execução. Suas pernas e seus braços doíam de rastejar, seus ossos, músculos e pulmões sem o vigor de outros tempos. Mas sua visão ainda era decente, sua audição aguda, e bons ouvidos eram de
importância capital.
Ele ouviu! O farfalhar de folhas mortas sob o peso de um pé. E em seguida o estalido de gravetos esmagados por pesadas botas. Beowulf Agate recuou para a vegetação rasteira, cobrindo-se com o entulho da
floresta. O que viu por entre as folhas e partículas esparsas de pequenos galhos não só o deixou perplexo como furioso. Três figuras, usando jaquetas de campanha, boinas, calças e botas da Força Gama,
tinham cometido um erro. Seus cabelos, embora curtos, não tinham o corte rente adotado pelos guardas Gama. Mechas saíam por baixo de suas boinas, caindo na nuca, coisa impensável para os patrulheiros de
Peregrine View. O corte escovinha tornava seus cabelos praticamente invisíveis, especialmente na base do crânio, pois é aí que a transpiração é mais abundante nos momentos de calor e estresse. Um detalhe
de somenos, mas ainda assim suficientemente irritante, e as forças de segurança de Peregrine View não podiam tolerá-lo.
Um quarto homem emergiu da floresta, obviamente para um encontro previamente combinado com os outros três. - Gritando que estava "em perseguição" - disse o falso líder Gama, com um leve sorriso vitorioso
desloquei os escoteiros para o Setor Sete, a área mais afastada do complexo. Nossos alvos estão aí nesse lugar enfeitado... Acabem com eles! Avante!
Scofield ergueu seu rifle automático e disparou duas vezes, derrubando dois dos belicosos invasores. Ao fazer isso, deu uma guinada, embarafustando-se pela vegetação rasteira, deslocando-se uns dez metros
de onde tinha apertado o gatilho do seu Colt 45. Uma saraivada de balas encheu o ar da noite, zunindo à direita de Bray, espalhando fragmentos de lixo da floresta e penetrando nos troncos das árvores com
terrível determinação.
- Onde está o filho-da-puta? - gritou o líder histericamente.
- Não sei - retrucou o outro homem. - Só sei que ele acabou de abater Greg e Willie!
- Cale essa boca! Nada de nomes!... Ele está em algum lugar por aqui perto...
- Onde?
- Em volta ou atrás da moita, creio eu.
- Ele não voltou a atirar... talvez tenha fugido.
- Talvez não. Vamos entrar de sola, metralhando pra valer!
- Se ele estiver escondido ali, pegamos o filho da mãe.
Como animais enfurecidos, os dois facínoras avançaram, pipocando suas armas automáticas. Depois de diversas rajadas prolongadas, pararam. Silêncio. E durante esse silêncio, Scofield atirou uma pedra pesada
à esquerda dos invasores. A fuzilaria recomeçou instantaneamente, e Bray esperou o que sabia que iria acontecer.
E aconteceu. Através da névoa rarefeita ele pôde ver que um dos homens virara o cano de sua arma para cima; parara de atirar pelo simples fato de ter esgotado sua munição e precisar remuniciar a arma,
inserindo um segundo pente.
Scofield abateu então o segundo homem, saindo da floresta enquanto ele caía por terra. - Largue o ferro! - ordenou Bray, confrontando-se com o invasor, que segurava sua arma com a mão direita, e tinha
um pente de balas na esquerda.
- Largue a arma! - repetiu Brandon, armando o cão do rifle automático em posição de atirar.
- Jesus Cristo, tu é ele, não é?
- Em que pese a sua gramática, sim, sou ele. É a tal coisa, sou diplomado pela Universidade de Harvard, embora ninguém queira acreditar nisso.
- Filho de uma puta!
- Presumo que esteja se referindo a si mesmo. Ou será que devíamos dizê-lo de outra maneira? Um filho dos Matarese. Lentamente, milímetro a milímetro, o homem envolvido pela névoa da floresta aproximou
o pente de balas da arma automática. Súbito, ele mexeu a perna direita, erguendo-a ligeiramente do chão. - Calma lá - disse Scofield -, você está a um passo de se tornar passado.
- É a merda da minha perna! Estou com cãibras de tanto correr.
- Não vou repetir novamente, seu pulha. Largue a arma.
- Vou largar, vou largar! - O assassino pressionou o rifle automático contra sua coxa direita, recuando ao fazê-lo. - Tenho que separar esses músculos, eles estão trepando um por cima do outro.
- Concordo com você, seu verme. Uma cãibra pode ser... - De repente, o matador dos Matarese virou-se rapidamente, enfiando o pente carregado na câmara de sua arma e literalmente rodopiou no ar, pronto
para acabar com Scofield. Bray disparou. O assassino despencou, seu corpo virando um monte de carne inanimada.
- Merda! - exclamou Agate. - Queria você vivo, seu miserável.
Uma hora depois, Peregrine View voltara à normalidade, os poucos mortos pranteados, seus pais logo seriam notificados; ninguém casado ou com filhos tinha sido convocado. Scofield estava sentado numa cadeira
- exausto.
- Você podia ter sido morto! - gritou Frank Shields,
- São os ossos do ofício, Olhos-Apertados. Estou aqui, não estou?
- Um dia poderá não estar, seu velho maluco - exclamou Antonia, ao lado de Bray, amparando-lhe a cabeça cansada.
- O que há mais de novo, Frank?
- Tivemos notícias de Wichita, Brandon. Tudo o que estavanos escritórios de McDowell e Karastos foi despachado pela KLM Airlines. Destino: Amsterdã.
Amsterdã.
VINTE E UM
A reluzente limusine Citroen rodou devagar pelo cais de Marselha na noite escura açoitada por violento temporal, a bruma esvoaçante e o aguaceiro reduzindo a visibilidade a pouco mais de dez metros. Os
faróis eram praticamente inúteis na medida em que seus feixes eram engolidos pelo forte nevoeiro que soprava do Mediterrâneo, a iluminação sendo rebatida por paredes pintadas de branco. Julian Guiderone
olhou para fora pela janela traseira esquerda.
- É aqui que ficam os armazéns de carga? - ele gritou para o motorista, procurando sobrepor a voz ao barulho da chuva quetamborilava no teto do veículo. - Você tem uma lanterna de mão?
- Oui, Monsieur Paravacini. Sempre trago comigo.
- Ilumine ali à esquerda. Estamos procurando o número quarenta e um.
- Aqui é o trinta e sete. Não deve estar muito longe, monsieur.
Não estava. Uma pequena lâmpada protegida por uma tela de arame estava acesa, mal dando para se percebê-la através do denso nevoeiro. - Pare! - gritou o filho do Shepherd Boy, que agora usava o execrável
nome Paravacini. - Dê duas buzinadas curtas.
O motorista assim fez e imediatamente uma grande porta de carga foi levantada, luzes um pouco mais fortes iluminando o interior. - Devo entrar com o carro?
- Só brevemente - respondeu Guiderone. - O tempo suficiente para que eu desça do carro. Depois dê marcha a ré e espere na rua. Quando a porta for aberta novamente, venha me apanhar.
- Uma honra, monsieur.
Julian Guiderone saltou do Citroen, pisando no chão de concreto do armazém deserto, e fez um aceno com a cabeça para o seu chofer. A limusine deu marcha a ré, voltando para o aguaceiro; a porta de carga
baixou lentamente. Guiderone ficou sozinho, sabendo que não seria por muito tempo. Não foi. Jan van der Meer Matareisen emergiu das sombras, sua figura esguia e rosto pálido parecendo apequenados pelo
cavernoso armazém.
- Bem-vindo, meu supremo líder.
- Santa Mãe de Deus, homem! - exclamou o filho de Shepherd Boy. - Espero que possa justificar me arrastar até aqui a uma hora dessas. São quase quatro horas da manhã, e meus dois últimos dias foram exaustivos!
- Era inevitável, senhor. A informação que tenho é de tal ordem que só pode ser transmitida pessoalmente, pois precisamos discutir estratégias imediatas.
- Aqui, neste frio e úmido mausoléu de cimento?
- Por favor, me acompanhe ao meu escritório. Na verdade, tenho escritórios em cada edifício, pois todos os armazéns nesta rua são de minha propriedade. Assim como cinco cais, que frequentemente alugo.
Eles cobrem todas as minhas despesas.
- Devo ficar impressionado? - perguntou Guiderone, seguindo Matareisen a um escritório envidraçado cerca de trinta metros adiante.
- Perdoe a jactância, Sr. Guiderone. É que procuro constantemente sua aprovação, pois o senhor é a estrela-guia do nosso movimento.
- Eu era, Jan, agora você deve me ver meramente como um consultor. - Entraram no escritório coberto de equipamentos eletrônicos. Guiderone escolheu um sofá de couro preto; Matareisen sentou-se atrás de
sua escrivaninha. - Discutamos a estratégia que você mencionou. Gostaria de voltar para o meu hotel o mais rapidamente possível.
- Creio que o senhor deva saber que há três horas e meia eu estava confortavelmente dormindo em minha casa no Keizersgracht em Amsterdã. Julguei necessário levantar-me, alertar meu piloto e voar para Marselha.
- Agora estou impressionado. Por quê?
- Temos que antecipar nosso cronograma...
- O quê? Não estamos prontos, você não está pronto!
- Ouça-me, por favor. Ocorreram fatos que não podíamos ter previsto. Há sérios problemas.
- Beowulf Agate - sussurrou Guiderone. - Diga-me que ele está morto! - vociferou o filho de Shepherd Boy.
- Ele não morreu. Tanto quanto podemos determinar, a unidade mercenária fracassou, perdendo a vida na tentativa.
- O que é que você está dizendo? - Julian, com a voz gelada, ereto no sofá, olhou fixamente para o homem mais moço.
- Estou lhe dizendo com a calma que me é possível, embora compreenda a raiva que o senhor sente. Aparentemente, a mestria de Scofield no campo de luta não o abandonou. Segundo o Águia, ele liquidou a unidade
inteira sozinha.
- O porco do mundo! - A voz de Guiderone era gutural e quase inaudível.
- Receio que isso não seja tudo, razão por que precisamos discutir táticas - disse Matareisen serenamente, se bem que com um traço de força. - Sabemos que foi Scofield quem invadiu o escritório de McDowell
em Wichita, mas não sabemos o que ele descobriu, se é que descobriu alguma coisa. Entretanto, o fato de ele ter chegado ao McDowell é muito significativo, e combinado com as notícias que vêm de Londres...
- O que foi que aconteceu em Londres? - perguntou o filho de Shepherd Boy friamente.
- Mandei grampear a casa dos Brewster em Belgravia.
- Foi necessário? - Guiderone interrompeu, com a mesma voz fria.
- Foi. Lady Alicia reagiu violentamente às minhas ponderações, protestando que os Matarese não faziam parte de sua vida nem nunca o fariam. Deixou claro que havia outros que compartilhavam dos seus sentimentos,
os que tinham dedicado suas vidas a reparar os pecados cometidos pela fortuna de seus antepassados. Essa declaração nos levou ao herdeiro dos Scozzi-Tremonte, o playboy Giancarlo, que na realidade era
um advogado internacional que se opunha a nós.
- Ele foi morto num campo de polo na América. E daí? Não houve vestígios.
- Então nosso inimigo, Beowulf Agate, foi convocado pela CIA. Ele sabia e sabe mais sobre nós do que qualquer outra pessoa no mundo. Só Deus sabe por que ou como, mas o fato é que ele foi recrutado.
- O porco do mundo! - Guiderone cuspiu novamente.
- Foi por isso que precisávamos saber o que estava acontecendo na casa dos Brewster em Belgravia. Incumbimos o idiota do marido dela de agir como nosso informante, finalmente ordenando-o a matá-la quando
o cretino roubou milhões. Acidentes acontecem e o dele foi um desastre, embora temporário. Cuidamos bem dele. Novamente, nenhum vestígio.
- Você está se desviando do assunto - disse Guiderone bruscamente. - Então você mandou instalar aparelhos de escuta na residência de Belgravia...
- Eles foram descobertos.
- Seguramente havia um dado a ser considerado desde o início. Os criados que servem os Brewster não são idiotas, eles são empregados muito bem-remunerados que não se permitem descuidos. Um deslize e uma
parafernália de detecção de grampos desembarcaria na porta da frente, o que obviamente aconteceu. Em nosso detrimento.
- É mais complicado do que isso, mas lhe asseguro, não houve pistas comprometedoras. O homem que fez a instalação foi eliminado e o seu posto de recepção na Lowndes Street foi completamente revistado,
tendo sido removidas todas as fitas.
- Louvo sua eficiência - disse o filho de Shepherd Boy, que em outros tempos estivera prestes a ocupar a Casa Branca. - Mas estou certo de que há mais do que isso. Você não viajaria no meio da noite de
Amsterdã para me impressionar com sua eficiência. Guiderone fez uma pausa, reassumindo seu olhar hostil. - Você mencionou algo sobre anteciparmos nossa programação, a que me oponho firmemente. Há muito
o que fazer, inúmeras operações precisam ser trabalhadas. Não pode haver interrupções, mudanças.
- Com o devido respeito, discordo. Graças aos nossos extraordinários esforços e minhas modestas contribuições, as principais peças do jogo de xadrez já estão nos seus lugares através da Europa, América
do Norte e do Mediterrâneo. Temos que atacar enquanto nossa máquina vai sendo aperfeiçoada, antes que surjam quaisquer obstáculos repentinamente.
- Que obstáculos? É o garoto, não é? O filho da Montrose!
- Assunto superado - disse o holandês rapidamente. - Isso pertence ao passado e é irrelevante. O que é que perdemos? A obediência de uma mãe que não é mais importante para nós? Ela agora está em Londres
com o parceiro de Scofield, um homem chamado Pryce, tido como perigoso. Para sustar qualquer progresso que pudessem fazer, ambos serão mortos dentro de poucos dias, talvez horas, e isso é importante para
nós.
- Por que é? Não tenho nenhuma objeção, mas deve haver coisas que você não está me contando.
- Perdoe-me, senhor, mas essas "coisas" são evidentes.
- Cuidado, jovem Matareisen. Lembre-se de com quem está falando.
- Minhas desculpas, mas com todo o respeito, tenho que deixar claro o meu caso... Não sabemos como, mas McDowell foi descoberto em Wichita. Como? Como Scofield soube? Tudo o que estava no escritório do
McDowell foi despachado para nós; os arquivos examinados no espectrógrafo revelaram que tinham sido mexidos recentemente; o decodificador igualmente, e sabemos que foi feita uma tentativa para usar o computador
porque foi isso que disparou os alarmes. O que o nosso Beowulf Agate ficou sabendo? Ou será que não desvendou coisa alguma?
- O que poderia ter desvendado? - perguntou Guiderone calma e pensativamente. - McDowell era tão cauteloso quanto brilhante. Ele nunca deixaria o que quer que fosse no seu escritório que nos pertencesse.
É impensável.
- Ele talvez se sentisse mais seguro na sua suíte na Atlantic Crown. O casamento dele não ia bem, sua mulher era uma alcoólatra ciumenta, com boas razões. O senhor não percebe, simplesmente não sabemos!
- Embora admitindo certos lapsos, não há motivo para alterar o que está programado. Para conseguirmos os resultados que temos em vista, tudo vai depender de timing. Ele tem que ser impecável, os sucessivos
choques catastróficos. Nosso progresso tem bases sólidas. Não haverá modificações.
- Vou tentar então ser mais claro - disse o frustrado homem de Amsterdã. - E o senhor tem razão, há coisas que não lhe contei, pois estavam sob controle e não havia necessidade de importuná-lo. Contudo,
quando as baixas infringidas por Scofield chegaram ao meu conhecimento, achei que era chegada a hora de termos um encontro face a face.
- A fim de me convencer?
- A fim de convencê-lo - concordou o neto suavemente.
- Empenhe-se mais, Jan - disse Guiderone, alarmado, agora totalmente concentrado. - Você conseguiu muita coisa, deu saltos extraordinários, sem a menor dúvida. Não posso dispensá-lo. Vamos, diga: o que
foi que não me contou que julga ser tão vital?
- Não é uma coisa simplesmente, é quando se juntam todas elas... Temos que voltar à traineira no Caribe, ao capitão sueco que conseguiu fugir. Ele chegou a Porto Rico via Tortola...
- Sim, sim - interrompeu Guiderone impacientemente. Você mandou dinheiro para ele para que pudesse viajar de volta a Amsterdã, estou a par de tudo isso.
- Ele nunca chegou ao seu destino. Foi reconhecido por um homem de negócios sueco, sendo recebido pela polícia em Heathrow e recambiado para Estocolmo para responder a acusações de envolvimento no assassinato
de Palme.
- Azar dele, mas o que é que isso tem a ver conosco?
- Ele está lutando por sua vida. Poderá fazer um acordo com as autoridades e nos entregar.
- Sabe muito pouco a nosso respeito.
- Sabe o bastante para nos comprometer. Estava cumprindo nossas ordens, por mais obscuras que fossem.
- Compreendo. Continue.
- Antes de fechar o posto de escuta na Lowndes Street, nosso informante transmitiu ao controle de Londres a notícia de que Pryce, a Montrose e um agente do MI-5 estavam a caminho de Westminster House.
- O banco particular dos Brewster para todos os efeitos - interrompeu o filho do Shepherd Boy. - Se você se recorda, para ver se descobria alguma coisa, recorri aos serviços do mesmo contador que servia
Lady Alicia, um sujeito chamado Chadwick. Tive alguns almoços agradáveis com ele, mas não apurei grande coisa.
- Foi por isso que ele teve que ser morto - disse Matareisen casualmente. - Não podíamos fazer ideia do que o senhor e ele haviam conversado, mas entendemos que não poderia haver qualquer ligação possível.
Nosso próprio controle ocupou-se do caso e retirou sua pasta do arquivo do escritório de Chadwick. Foi bom que ele o tivesse feito.
- Por quê?
- Entre outros comentários que o Sr. Chadwick fez, cito textualmente: "O Sr. Guiderone demonstra um interesse fora do comum pelos Brewster de Belgravia. Sem dúvida, trata-se de outro americano rico, um
alpinista social".
- Que filho da mãe - disse Julian, dando uma risadinha; depois ficou subitamente sério. - Louvo novamente sua eficiência, Jan, e lhe agradeço sinceramente. Corri um risco estúpido e desnecessariamente...
Mas você está se referindo a possíveis acontecimentos que não conduzem forçosamente às consequências que tanto o preocupam.
- Substitua "possíveis" por "concebíveis". Uma diferença muito sutil, Sr. Guiderone.
- Nenhuma das duas são hipóteses suficientemente fortes para interromper as operações que estão em fase de desenvolvimento e aperfeiçoamento. Estratégias progressivas no Golfo Pérsico, no Mediterrâneo,
no mar do Norte, que paralisarão o combustível do mundo financeiro, meu jovem amigo. Executadas com o ímpeto de um Gõtterdummerung! Irresistível... Você precisa apresentar um argumento muito mais poderoso
e convincente, Jan.
- Creio que posso, se me conceder mais um minuto.
- É todo seu.
- A progressiva loucura financeira dos mercados euroamericano-mediterrâneos só nos favorece, exatamente como planejamos. As atuais análises econômicas projetam uma perda demais de oitenta milhões de empregos,
novamente em nosso benefício, pois estamos preparados para preencher os vazios e restaurar a estabilidade, nós, naturalmente, como mentores...
- Tudo para o sucesso de nossa causa, Jan! A percepção é tudo, a realidade é apenas secundária. Controlaremos as economias, e consequentemente os governos de sessenta e dois países, inclusive as sete capitais
nacionais mais influentes. Nosso objetivo será alcançado, a agenda Matarese será cumprida! Tudo de acordo com as leis, ou ultrapassando-as e penetrando no continuam espacial da teoria legal. Somos invencíveis!
- O senhor ainda não compreende, Sr. Guiderone - disse Matareisen, elevando ligeiramente o tom de voz. - O senhor não vê!
- Não vejo o quê? A concretização de uma lenda tão vital quanto a busca da Divina Promessa das Escrituras? A resposta para o nosso planeta!
- Eu lhe imploro, senhor, enfrente essa realidade que considera secundária, pois ela se torna percepção tão facilmente!
- Que conversa é essa?
- Através do meu herdeiro em Lisboa, um homem cuja enorme influência só é comparável à sua completa falta de escrúpulos...
- O tal que encaçapou os Açores, com impostos e tudo?
- Esse mesmo, o homem que mandou eliminar nosso inimigo, o Dr. Juan Guaiardo, em Monte Carlo.
- E daí, o que é que há com ele?
- Ele é muito ligado a elementos corruptos das rodas palacianas do governo espanhol, remanescentes em grande parte da camarilha de Franco, inclusive do serviço secreto de Madri. Ele não tinha muita certeza
do que significavam, mas ficou tão impressionado que entrou em contato comigo esta tarde - ontem à tarde - e me remeteu por fax todos os documentos em que conseguiu pôr as mãos. Estavam incompletos, mas
são assustadores.
- Sobre o quê? Desembuche logo, Matareisen!
- Estou tentando escolher as palavras cuidadosamente...
- Tente rapidamente!
- Aparentemente, sem que soubéssemos, o Dr. Guaiardo e Lady Brewster, que se opunham violentamente a nós, eram primos, muito mais chegados do que se poderia supor.
- O Dr. Guaiardo, um pesquisador científico, explorava sua habilidade médica em outras atividades. Estava elaborando nada menos do que um mapa genealógico da organização Matarese desde os seus primórdios,
ao ser fundada pelo barão, registrando os nomes de famílias, empresas, corporações e alianças. É como se fosse uma árvore genealógica, cada nome representando um casamento ou nascimento que evolui para
outra entidade, até desembocar fatalmente nos nossos maiores cartéis.
- Oh, meu Deus! - sussurrou o filho do Shepherd Boy, seus dedos massageando energicamente a testa enrugada. - Você disse desembocar fatalmente - será mesmo? O mapa já está concluído?
- Não podemos ter certeza. Como disse, nosso herdeiro deixou claro...
- Mesmo que esteja - interrompeu Guiderone, respirando fundo, defensivamente - provas dessa natureza levam meses, às vezes anos, tamanhas são suas complexidades, cada conclusão sendo contestada juridicamente.
- O senhor é por demais brilhante para saber que isso não corresponde à realidade. O mero espectro, a percepção de que um empreendimento global como o nosso possa estar vinculado às crises econômicas que
estão se alastrando por toda parte é um indício comprometedor, um roteiro para o desastre. O nosso desastre, Sr. Guiderone.
- O porco do mundo! - disse o filho do Shepherd Boy em voz baixa, recostando-se no sofá de couro preto. - Ele matou os que deveríam matá-lo e descobriu o elo com Wichita. Como, pelo amor de Deus? Ele está
por trás de tudo. Novamente!
O Marblethorpe era um hotel pequeno, elegante no Upper East Side de Nova York, uma residência temporária para personalidades que agitam o cenário internacional. Entre elas, diplomatas, gigantes das finanças
transnacionais, políticos de destaque em ascensão ou declínio, todos geralmente participando de negociações que seria melhor conduzir onde não pudessem ser observados. O Marblethorpe era ideal para essas
ocasiões; tinha sido projetado com esse espírito, construído por um multimilionário que buscava privacidade e conforto acima do tumulto das ruas de Manhattan. Não fazia anúncios além da linha indispensável
nas páginas amarelas do catálogo telefônico, e não tinha quartos de solteiro ou de casal, somente suítes. Oito andares, dezesseis suítes; nenhuma delas jamais estava disponível, todas permanentemente ocupadas.
- Há uma entrada com muito pouca luz e uma porta verde disse Frank Shields, sentado numa poltrona super estofada num tom vermelho pálido, enquanto Scofield andava em volta de uma escrivaninha Queen Anne
com um telefone branco. Antonia emergiu de um dos quartos de dormir.
- É realmente tudo muito bonito, Frank - ela disse, sorrindo.
- Quando o relógio bater meia-noite, será que isso vai virar uma choupana?
- Espero que não. Alguns hóspedes poderiam ter ataques do coração, ou seus convidados teriam.
- Oh, uma casa de encontros?
- Não duvido que eles aconteçam e tenham acontecido no passado, minha querida, mas essa não é sua função primordial. Na verdade, o conselho diretor não vê com bons olhos esse tipo de coisas.
- Então qual é sua principal finalidade?
- Digamos conferências entre pessoas que, por essa ou aquela razão, não deviam estar conferenciando. A segurança aqui é a melhor no setor privado. Não se fazem reservas no balcão da recepção, é preciso
que o candidato a hóspede seja recomendado.
- Como é que você foi admitido num lugar tão requintado e exclusivo, Olhos-Apertados?
- Fazemos parte do conselho diretor.
- Grande pedida. Ocorre-me, porém, que acomodações desse gabarito fogem do seu padrão habitual, a menos que você tenha afrouxado seus critérios em relação ao uso de seus fundos de contingência.
- Temos um acordo. Como membros do conselho diretor, investigamos rigorosamente as pessoas recomendadas.
- E assim não têm que pagar.
- E também ficamos sabendo quem está se encontrando com quem. É um esplêndido arranjo, e como nossos serviços frequentemente são inestimáveis, não podíamos permitir que os contribuintes absorvessem esses
custos.
- Você é fora de série, Frank.
- Mas por que em Nova York? - perguntou Toni, interrompendo. - Se é discrição que as pessoas procuram, diria que há lugares melhores do que uma das mais famosas cidades do mundo. O campo, ilhas como as
nossas, há milhares de lugares.
- Receio que esteja enganada, Toni. É mais fácil não chamar atenção no tumulto de uma grande cidade do que em lugares remotos. Pergunte a qualquer fora-da-lei que tenha estado nos Apalaches, ou a nós que
estivemos em Chesapeake e Peregrine View, ou mesmo a vocês dois em Brass 26. Pryce os encontrou porque havia uma pista a ser seguida. As pistas podem se perder numa cidade agitada, e bota agitação nisso
quando se fala de Nova York.
- Vou ter que refletir sobre isso - disse a imperturbável Sra. Scofield. - Mas por que estamos aqui, Frank?
- Brandon não lhe disse?
- Disse o quê?
- Pareceu-me uma excelente ideia, e sabendo que poderia dar as cartas aqui, topei a sugestão dele.
- Disse o quê? - Toni insistiu.
- Eu ia tocar no assunto ontem à noite em Peregrine, mas se você se lembra, você estava dormindo no outro quarto.
- Porque estava furiosa! Um velho maluco de quase setenta anos resolve se meter numa galeria de tiro ao alvo no meio da noite. Você podia ter sido morto!
- Mas não fui, não é mesmo?
- Por favor, acabem com isso, vocês dois.
- Quero uma explicação! Por que é que estamos aqui, Bray?
- Se você se acalmar, eu explico, minha velha... Nova York é um centro de finanças internacionais, creio que concordará com isso.
- E daí?
- Finanças internacionais são essenciais para os Matarese, é isso que eles estão querendo controlar, se já não conseguiram. Mas há outro detalhe "essencial" nas operações deles, e sei disso porque Taleniekov
e eu descobrimos isso, constatamos isso, e quase morremos por termos descoberto...
- Em nome de Deus o que é, Brandon? - explodiu Shields.
- Que diabo, Frank, eu te disse.
- Oh, sim, é verdade, agora me lembro. É por essa razão que estamos aqui. Desculpe, Toni, mas é que ele é tão melodramático e eu estou tão cansado.
- Me diga o que é - berrou Antonia.
- A hierarquia Matarese nunca revela inteiramente às suas filiais - seus discípulos, se quiserem - as coisas negativas que acontecem. É como se não pudessem admitir que são vulneráveis, pois se o fizerem,
o medo de serem descobertos pode se espalhar.
- E?
- Bem, Wichita já era, pertence ao passado, é um traço na tela do radar. Mas aposto meus depósitos no exterior que os discípulos não estão sabendo.
- Seus o quê?...
- Cala a boca, Frank, você é tão mais velho do que eu que não é capaz de se lembrar do que lhe disse ontem.
- E a primeira vez que ouço a afirmação que você acabou de fazer. No exterior, oh, Jesus!...
- Então, minha querida, vou me fazer passar por um cara importante dos Matarese recém-chegado de Amsterdã, que aparentemente ocupa uma posição estratégica na organização. Vou dizer a todos com quem conferenciar
a portas fechadas que Wichita acabou, é finito.
- Quem são eles? Com quem é que você vai "conferenciar"?
- Algumas dúzias de presidentes, diretores-executivos, tesoureiros e presidentes de conselhos diretores de todas essas famigeradas empresas e corporações que articularam fusões, aquisições hostis e toda
sorte de negócios suspeitos. Temos uma lista de trinta e oito possibilidades aqui e na Europa. Alguém vai piscar o olho.
- Se você estiver certo, Brandon - atalhou Shields - suponhamos que eles entrem em contato com Amsterdã!
- Esse é o xis da questão, Olhos-Apertados. Direi a eles que Amsterdã poderá ser a próxima Wichita e meu conselho, como uma importante figura emergente, é se manterem o mais afastados possível de Amsterdã,
que ultimamente tem aprontado poucas e boas.
- Mas eles acreditarão em você, Bray?
- Meu amor, Taleniekov e eu passamos anos afiando nossos talentos malignos para ocasiões como essa. As palavras virão de nós dois. Por Cristo, elas virão.
Era manhã em Loch Torridon, Escócia. A janela de múltiplos caixilhos da pequena sala de jantar da hospedaria debruçava-se sobre os campos orvalhados que se estendiam até o sopé das Highlands. Os pratos
do café da manhã já tinham sido recolhidos, tendo ficado apenas dois grandes bules de café e de chá para os ocupantes da mesa: Leslie Montrose e seu filho; Cameron Pryce; e o tenente da Marinha dos Estados
Unidos Luther Considine. As explicações mais completas que poderiam ser dadas tinham sido dadas.
- É inacreditável - disse o piloto.
- Mas é o que está acontecendo - replicou Pryce.
- Tem certeza de que devo fazer parte do grupo seleto que vem atuando nesta operação? - perguntou Considine.
- Provavelmente não. Entretanto, sua indicação um tanto inortodoxa vem de alguém com indiscutível autoridade.
- Ah, sim - atalhou o piloto. - Aquele diretor da CIA com quem falei. Um tal de Sr. Shields, se não me engano.
- Não, ele é fichinha.
- Então quem?
- Seu jovem amigo aqui ao nosso lado, Montrose Júnior, que você conheceu em estranhas circunstâncias em Manama.
- Jamie? - Considine encarou o adolescente. - O que foi que você aprontou dessa vez, garotão?
- Sem você, Luther, provavelmente estaria numa cova de areia em Bahrain. Você tem direito a saber por que se arriscou a ser rebaixado a faxineiro, lembra-se?... Por outro lado, quando você for almirante,
talvez me ajude a entrar para a Marinha oupara a Força Aérea como meu pai.
- Não sei se devo lhe agradecer ou sair daqui correndo, apavorado! O que acabei de ouvir está muito acima da minha altitude máxima. Uma conspiração mundial para dominar os interesses financeiros da metade
do globo...
- E o resto em seguida, tenente - interrompeu Leslie Montrose. - Através da corrupção e do medo, essa é a agenda deles. Meu filho e eu fomos meramente um pequeno episódio numa tentativa para matar um homem
que conhece a história dos Matarese e possivelmente pode apontar o caminho para o presente.
- Esse Mata sei lá o quê. O que quer dizer isso, coronel?
- É um nome de família, Luther - respondeu Pryce. - Um corso cujas ideias originais tornaram-se os fundamentos para a criação de um monopólio internacional, muito mais poderoso do que a Máfia.
- Como disse, muito acima de minha altitude máxima.
- Acima da altitude de todos nós, tenente - disse Leslie. Nenhum de nós está preparado para enfrentá-lo, não existe treinamento adequado para contê-lo. Cada um de nós faz o que pode para combatê-lo dentro
de nossas esferas de atuação individual, rogando a Deus para que os que estão acima de nós estejam tomando as decisões certas.
Considine sacudiu a cabeça, consternado. - E agora, o que fazemos?
- Estamos esperando instruções de Frank Shields - respondeu Cameron.
- Em Peregrine? - perguntou Leslie.
- Não, eles estão em Nova York.
- Por que Nova York?
- Scofield criou um cenário que acredita que possa dar certo. Vale a pena tentar. Geoff Waters está montando a mesma estratégia no Reino Unido a partir de Londres.
- Um momento! - exclamou o oficial negro da Marinha, com os olhos escuros esfogueados. - Também devo compreender isso?... Quem é Scofield, qual é o cenário e quem é Waters de Londres?
- Grava as especificações muito bem, tenente - disse Montrose.
- Quando se está a trinta mil pés de altitude e se tem que conferir um monte de instruções impressas, é o jeito, coronel.
- Não lhe disse, mamãe? Ele realmente vai ser almirante um dia.
- Obrigado, Jamie, e você talvez seja encaminhado a um centro de detenção juvenil.
O telefone tocou, o aparelho instalado pelo MI-5. Cameron Pryce atendeu.
- Waters falando de Londres, misturadores de vozes dos dois lados. Como vai?
- Perplexo, e você, como está?
- Igualmente, companheiro. Estamos montando a estratégia de Beowulf Agate mas ainda vai levar um ou dois dias, se não furarem nosso plano, bem entendido.
- O que é que quer que façamos? Para onde quer que a gente vá?
- O seu piloto americano pode ser contatado?
- Ele está sentado ao meu lado.
- Pergunte a ele se sabe pilotar aeronaves de asa fixa em voos de baixa altitude.
Pryce perguntou e Considine respondeu. - Sou capaz de pilotar qualquer coisa que levante do solo, com a possível exceção de naves espaciais, que acredito que seria capaz de manobrar.
- Você ouviu o que ele disse?
- Claramente, e foi muito bom saber. Dentro de duas horas um Bristol de carga antigo mas totalmente restaurado, um senhor cavalo de batalha bimotor, vai aterrissar no campo de pouso de Loch Tomdon. Vocês
todos devem embarcar.
- Para onde vamos?
- Suas instruções lacradas só deverão ser abertas quando já estiverem no ar, no minuto preciso assinalado no envelope.
- Isso está me parecendo papagaiada, Geof!
- Coisas do seu amigo Beowulf Agate. Tem alguma coisa a ver com radar.
Eram 5:30 da manhã em Marselha, os raios da alvorada rompiam o céu sobre a baía que despertava preguiçosamente. Grupos de portuários caminhavam ao longo do cais e começavam a ser ouvidos os múltiplos sons
de máquinas erráticas. Jan van der Meer Matareisen estava sozinho no seu escritório, o alívio que sentira com a partida de Julian Guiderone subitamente abalado com as notícias de Londres. - Você tem uma
explicação para tanta incompetência? - ele perguntou rispidamente no seu telefone seguro.
- Duvido que alguém pudesse fazer melhor - respondeu a voz no Reino Unido, uma voz feminina, de emissão crispada, aristocrática.
- Isso é o que você diz, como podemos saber?
- Eu sei e me ressinto com sua atitude.
- Pode se ressentir à vontade, embora não creia que esteja numa posição para melindres.
- É muito grosseiro de sua parte, Jan. Ou justo.
- Desculpe, Amanda, mas as coisas andam muito difíceis...
- Quer que eu dê um pulo em Amsterdã para tentar aliviar seus problemas?
- Não estou em Amsterdã. Estou em Marselha.
- Você vive de um lado pro outro, não é meu querido? Mas por que Marselha?
- Foi necessário.
- Foi o Julian, não foi? Acho que ele considera Marselha como sua terceira ou quarta residência. Foi a de que menos gostei, as pessoas que o procuravam eram tão grossas.
- Por favor, não me faça lembrar do seu relacionamento com ele...
- Relacionamento num passado muito remoto, morto. E porque não? Nunca escondi nada de você... e afinal foi como nos conhecemos, meu bem.
- Talvez mais cedo ou mais tarde...
- Não deixe que ele o espezinhe, Jan. Ele é um homem perverso, horroroso, preocupado unicamente consigo mesmo.
- Ele não pode ser de outra maneira, compreendo isso. Contudo, devo-lhe uma explicação. Dois fracassos seguidos é simplesmente intolerável.
- Não sei do que você está falando...
- Nem precisa - atalhou Matareisen, com a mão começando a tremer. - Mantenho o que disse antes. O que foi que aconteceu? Como o Pryce e a Montrose desapareceram?
- Eu não disse que eles desapareceram, disse que eles conseguiram escapar.
- Como?
- De avião, obviamente. Quando minha fonte em Tower Street me disse que eles estavam numa hospedaria num lugar chamado Loch Torridon, ao norte de Edimburgo, entrei em contato com o homem que você chama
de Controle de Londres e retransmiti-lhe a informação. Ele me agradeceu e disse que era tudo de que necessitava.
- Ele não tem permissão para se dirigir a mim diretamente, nos contatamos somente através de terceiros. Ele lhe disse?
- Naturalmente...
- Então me diga, pelo amor de Deus!
- Você não me deu uma chance. Só fez gritar comigo, estava muito agressivo.
O holandês em Marselha prendeu brevemente a respiração, procurando acalmar-se. - Está certo, Amanda, o que foi que o Controle de Londres disse?
- Ele é um homem notável, com muito expediente.
- O que foi que ele lhe disse?
- Ele disse que, ao chegar à hospedaria em Loch Torridon, o proprietário informou que as quatro pessoas que ele estava procurando tinham ido embora.
- Quatro pessoas?
- Quatro americanos. Um irmão e uma irmã, ambos registrados com o nome de Brooks, um oficial negro da Marinha americana e um adolescente, nenhum dos quais se registrou, segundo orientação do Sr. Brooks.
- Santa Mãe de Deus, é o jovem Montrose! Eles o levaram para a Escócia!
- Do que é que você está falando?
- Esqueça. E o que mais?
- O seu controle de Londres soube que todos foram levados para o aeroporto. Então ele foi até lá e ficou sabendo que as pessoas que descreveu tinham embarcado num avião bimotor a hélice menos de uma hora
antes de ele ter chegado ao local.
- Oh, meu Deus!
- Foi aí que achei que o seu homem de fala mansa de Londres tinha muita iniciativa. Ele me disse para lhe dizer, caso você e ele não tivessem se falado até agora, que descobriu o plano de voo do avião
em que os quatro americanos embarcaram.
- Qual era o destino? - perguntou prontamente Matareisen, com o suor porejando na sua testa,
- Mannheim, Alemanha.
- Inacreditável! - exclamou o holandês, claramente em pânico. - Eles estão apertando o cerco, estão se concentrando agora nas Indústrias Verachten, do ramo Voroshin! Há anos... há muitas gerações! É isso
o que eles estão fazendo. Estão seguindo a carta genealógica!
- Jan?...
A mulher inglesa estava muito atrasada. Matareisen já tinha batido o fone no gancho.
VINTE E DOIS
O bimotor Bristol de carga do final da década de 1940 estava sobrevoando o mar do Norte, rumando para o sul, quando o piloto, Luther Considine, consultou seu relógio. Virou-se para Pryce, sentado ao seu
lado no banco do primeiro oficial de bordo. - Não estou muito feliz com você aí nesse banco, mas chegou a hora, Cam. - Dizendo isso, entregou a Pryce um envelope pardo fechado, com as tiras de plástico
vermelho intocadas, não tendo sido forçadas.
- Por que é que você não está feliz? - perguntou Cameron, abrindo o envelope e retirando outros dois menores. - Tomei banho hoje de manhã.
- Suponhamos que eu tenha uma dor de barriga ou coisa pior, você vai conseguir pilotar esta lata velha?
- Segurarei sua cabeça enquanto você vomitar, e você poderá explicar ao Jamie como proceder. - Ele entregou um envelope ao piloto. - Este é para você.
Os dois homens abriram os envelopes com suas instruções. Considine falou primeiro porque as suas eram mais curtas. Caramba! - ele murmurou, verificando os instrumentos, particularmente o velocímetro, o
altímetro e o relógio do Meridiano de Greenwich. Em seguida consultou o mapa plastificado em cima do complexo painel. - Vamos fazer uma rápida descida, senhoras e senhores, dentro de dois minutos, trinta
segundos! - ele disse em voz alta, virando a cabeça para que Leslie e seu filho, sentados do outro lado da divisória, pudessem ouvi-lo a despeito do barulho dos motores. - Nada para se preocuparem, mas
talvez seja uma boa ideia fecharem o nariz e forçar o ar pelos ouvidos. Repito, não há nada a temer.
- Por quê? - perguntou Leslie. - Participei de muitas missões, e somente quando havia fogo inimigo, nunca ouvi falar numa coisa dessas. Por que a manobra evasiva?
- Pare com isso, mamãe! O Luther sabe o que está fazendo.
- Ordens, coronel, acabo de lê-las... Apertem seus cintos de segurança... bem apertados, por favor.
- Explicarei depois - gritou Pryce enquanto Considine avançava para o seu arco de descida, com os motores roncando. Cameron leu suas ordens; sem dúvida eram as palavras de Brandon Alan Scofield, também
conhecido como Beowulf Agate.
Meu caro jovem gorila, quem está falando é o seu comandante. Estamos dando início à operação
Alcateia de Lobos.
Seu piloto vai descer a uma altitude que evitará o radar imediato, que está listado no seu escopo como Vetor 22. Seu plano de voo menciona Mannheim, Alemanha, como seu destino, mas ele vai mudar o curso
e seguir para Milão, Itália. Uma vez em terra, você e o seu grupo serão recebidos por diversos amigos meus dos velhos tempos. São todos uns caras geniais, embora não se vistam exatamente como manda o figurino
da moda masculina. Eles sabem das coisas e conhecem os macetes dos Matarese nas áreas de Bellagio e do lago Como. A chave é o nome de Paravacini, das organizações Scozzi-Paravacini há muito esquecidas.
Através de meus velhos amigos e das informações que eles passarem, comecem investigando os Paravacini, os canalhas continuam por aí - as famílias corruptas sempre se mantêm unidas - e poderão descobrir
outros caminhos que levem aos Matarese. Sugiro que façam o que eu e os rapazes de Waters no MI-5 estamos fazendo, que espalhem que Amsterdã está desacreditada.
O avião saiu do seu mergulho, o piloto e os passageiros respirando fundo depois de terem literalmente tirado um fino da água.
- E o que é que acontece agora? - perguntou Pryce.
- Me mantenho a trezentos ou quatrocentos pés do nível do mar até alcançar os Alpes, e aí tomo o rumo da terra do espaguete sempre pelas rotas mais baixas. Quem bolou esse plano de voo sabia o que estava
fazendo. Devia estar a serviço dos cartéis da droga.
- Depois o que é que nós fazemos?
Considine olhou para Cam. - Você não sabe? Não constava de suas ordens?
- Não, de jeito nenhum.
- Estou temporariamente desligado da Marinha e cedido a você.
- Pra quê?
- Acho que é pro que você precisar. Piloto aviões, talvez seja isso que os homens tenham em mente.
- Bem-vindo a bordo, piloto - disse Pryce. - Você vem muito recomendado pela ala jovem.
- Por falar nisso, estou preocupado. - Luther expressava-se com calma enquanto estudava os mostradores dos seus instrumentos. - Tivemos um trabalho dos diabos para tirar o garoto de Bahrain, afastá-lo
do caminho do mal, e agora o estamos levando novamente para uma zona de perigo. Me sinto um pouco responsável. Ele é um bom garoto.
- Não posso responder, tenente. Na verdade, não tinha pensado nisso, o que me torna um idiota, porque você tem razão, é uma estupidez. Entrarei em contato com Shields e Waters assim que aterrissarmos.
Cameron não precisou fazer as ligações para Londres ou Nova York. Novas instruções para o avião os aguardavam em Milão. Eram endereçadas e foram entregues à tenente-coronel Leslie Montrose. Surpresa, ela
agradeceu ao fuzileiro americano uniformizado que fora o portador, e abriu um envelope lacrado com a chancela da Embaixada dos Estados Unidos da América em Roma no canto superior esquerdo.
- Tomei um avião há uma hora com este envelope, coronel explicou o fuzileiro. - Meu nome é Olsen, capitão do destacamento de guarda da Embaixada, e o envelope esteve sempre em meu poder.
- Entendido, capitão, e obrigada mais uma vez.
- Não seja por isso. - O oficial bateu continência e retirou-se.
- É de Tom Cranston - disse Leslie, atravessando o barulhento pátio de manobras com Pryce e seu filho enquanto Considine tomava providências com respeito ao avião.
- Isso explica a Embaixada em Roma - disse Cam. - Segurança máxima, canais diretos com a Casa Branca e o Departamento de Estado. Estou gostando de ver o prestígio, minha senhora.
- Estou impressionado, mamãe.
- É possível que não fique por muito tempo, Jaime. Você vai voltar para o avião. Foram acertadas medidas para que você se reúna com os filhos dos Brewster na França. Tom garante que você ficará completamente
seguro, seu paradeiro mantido no mais absoluto sigilo.
- Ah, mamãe, essa não! - disse o garoto, parando abruptamente. - Não quero ficar enfurnado na França.
- Ei, esfrie a cabeça, Jamie - disse Pryce com tranquila, porém firme autoridade. - É para o seu próprio bem, é claro que você compreende isso. Não acredito que você gostasse de ser levado de volta para
Bahrain, ou outro lugar parecido.
- É evidente que não, mas há cinquenta estados no meu país. Por que não posso voltar para um deles? Por que tenho que engolir essas pessoas que nem conheço?
- Você pode não acreditar - respondeu Cameron -, mas você é mais vulnerável fazendo uma viagem como esta, sozinho ou com sua mãe, do que ficando sob custódia em algum lugar da Europa.
- Esse é o raciocínio em relação aos Brewster - Leslie aparteou. - Aviões particulares velozes, distâncias curtas, controle total. Nada de aeroportos vigiados, informantes no Pentágono ou na CIA ou na
inteligência britânica, revelando voos secretos ou ordens sigilosas de alto nível.
- Quem é essa de que vocês têm tanto medo? - perguntou Montrose Júnior. - Vocês falam como se eles fossem criminosos paranoicos todo-poderosos.
- Você não está longe da verdade - disse Pryce. - Só que eles são loucos muito inteligentes, e muito, muito poderosos. Mas não todo-poderosos. Pelo menos ainda não.
- Tudo bem - resmungou um desconsolado Jamie -, quem são esses Brewster?
- Não são eles, meu filho. São um irmão e uma irmã que podem ser alvos. A inteligência britânica quer evitar quaisquer futuros sequestros. Você vai gostar deles, Jamie. Eu gosto.
- Sei não, às vezes os garotos ingleses gostam de bancar os superiores, você sabe ao que me refiro.
- Não um garoto inglês que foi obviamente o primeiro da turma no curso de soldagem - respondeu Cameron.
- Curso de quê?
- Soldagem. Está dizendo que no seu dispendioso colégio preparatório em Connecticut não ensinam isso?
- Não, por que deveriam?
- Roger Brewster achou que devia aprender uma profissão, como os menos favorecidos do que ele.
- Está brincando!
- No duro, Jamie - confirmou sua mãe. - Ele também pratica luta livre, como você.
- É só o que me faltava, ser imobilizado por um inglês.
Luther Considine foi visto atravessando rapidamente o pátio.
- Dentro de cinco minutos estaremos prontos para irmos lá pra cima, Jamie. Imagino que a esta altura já saiba da novidade.
- Você sabia disso, Luther? - perguntou Jamie.
- Tinha que saber, garoto, sou motorista, lembra-se? Fomos reabastecidos e estou com um estranho plano de voo, mas será interessante. Comprei uma dessas câmeras descartáveis para que você possa tirar algumas
fotos. Você nunca mais verá uma viagem como essa!
- Mas é segura, não é, tenente? - Os olhos de Leslie estavam arregalados, cheios de apreensão.
- Uma tranquilidade, coronel. Mesmo que as duas hélices parassem de girar, estaríamos voando tão baixo que poderíamos planar nossa veneranda aeronave num descampado ou numa estrada.
- Para onde é que você vai? - perguntou Pryce.
- Você acredita, Cam? Não posso dizer nem a você!
- Ordens de quem?
- Da Casa Branca. Quer discutir?
- Acho que sairia perdendo.
- Com certeza, agente. A propósito, suas malas estão na bagagem. Vamos nessa, Jamie, temos que nos dirigir à Pista Sete e não temos direito nem a transporte terrestre. Poderíamos dizer que não existimos.
Mãe e filho abraçaram-se brevemente, emocionados, e James Montrose Jr. correu para alcançar o piloto da Marinha, atravessando o campo apressadamente em direção ao seu avião.
Os "diversos amigos dos velhos tempos" de Brandon Scofield não passavam de um homem idoso de setenta e tantos anos. O caminho para chegar a ele foi tortuoso. Começou quando Pryce e Montrose desembarcaram
no terminal de Milão. De repente uma voz rouquenha chamou.
- Signore, signora! - Das sombras da porta de um compartimento de carga um jovem malvestido, de dezoito ou dezenove anos, avançou na direção deles. Sua conduta transmitia sua ansiedade e uma boa dose de
dissimulação.
- Che cosa? - perguntou Cameron.
- Capisce italiano, signore?
- Não muito bem, faz tempo que não falo.
- Falo um pouco de inglês, abbastanza.
- Suficiente? Isso é bom. O que é?
- Vou levar vocês a Don Silvio. Depressa!
- Quem?
- Signor Togazzi. Rápido! Me sigam!
- Nossa bagagem, Cam.
- Terá que esperar... Assim como você, ragazzo. Attesa!
- Che?
- Quem é esse Togazzi, esse Don Silvio? E por que devemos segui-lo? Perchè?
- Você vai ver ele.
- Perchè di nuovo?
- Devo dizer Bay... hum... lupo?
- Lupo, "Wolf" o lobo. Bay... hum... wolf! Você deve dizer Beowuif?
- Si. Vero!
- Vamos, coronel.
No fundo da área de estacionamento do aeroporto, o jovem manteve aberta a porta de um pequeno Fiat, gesticulando para que Pryce e Montrose se acomodassem rapidamente no assento traseiro, um espaço acanhado
quando se viram lá dentro.
- Você está bem? - perguntou Cameron, com o fôlego curto da caminhada acelerada através do movimentado estacionamento. Foram interrompidos diversas vezes, tendo que se desviar dos carros que explodiam
de suas vagas.
- Como é que os italianos podem fabricar automóveis tão pequenos? Será que não viram todos esses filmes mostrando corpulentas matronas dançando tarantelas? Respondendo à sua pergunta, você está me esmagando.
- Até que é bastante agradável. Acho que vou comprar um enquanto estivermos aqui, e depois contratar um motorista para nos levar por aí.
- Não temos feito outra coisa senão rodar por aí. Subitamente, o andrajoso motorista começou a fazer uma série de curvas alucinantes pelas ruas congestionadas de Milão. - Acho que acabei de quebrar duas
costelas.
- Quer que eu verifique?
- Não, quero que você diga a esse maluco para ir mais devagar.
- Lento, ragazzo, piacere lento!
- Impossibile, signore, Don Silvio impaziente... Daqui a pouco trocará de macchina.
- O que foi que ele disse?
- Ele disse que não pode ir mais devagar porque esse tal de Don Silvio é um sujeito impaciente. Disse também que vamos trocar de carro.
- Será uma bênção - suspirou Leslie.
Foi e não foi. O automóvel era maior, dispondo de muito mais espaço na parte de trás, mas o novo motorista, um homem de meia-idade, de óculos escuros e longos cabelos pretos que lhe batiam nos ombros,
era muito mais desvairado ao volante do que o seu jovem predecessor. Feita a baldeação, não houve cumprimentos, tampouco foram declinados nomes, o motorista simplesmente embarafustou pelas ruas em alta
velocidade, demandando a segunda entrada da principal rodovia da cidade. Tomou o rumo norte, as setas de sinalização apontavam para Legnano, Castellanza e Gallarete. Cameron reconheceu o caminho; conduzia
a Bellagio, às margens do Lacus Larius, internacionalmente conhecido como lago Como.
Trinta e oito minutos mais tarde, alcançaram a antiga aldeia que ao longo dos séculos transformara-se numa cidade, que conservara, entretanto, seu ar medieval. As ruas eram estreitas e dominadas pelo vento,
com abruptas subidas e descidas, fazendo lembrar que num passado distante eram veredas de terra por onde passavam mercadores e camponeses com suas carroças puxadas por mulas, cortando os campos e as colinas
debruçados sobre o majestoso lago. E naquelas ruas estreitas, de ambos os lados, tão juntas que pareciam costuradas umas nas outras, viam-se fileiras de casas, metade pedra, metade madeira, quase todas,
se não todas, de três ou quatro andares. Pareciam miniaturas de fortalezas, uma em cima da outra, lembrando as cavernas de Pueblo ou os primeiros condomínios. Entretanto, o efeito era surpreendentemente
diferente dos dois, pois não havia espaço para luz, apenas estreitas alamedas de sombra, a pedra bloqueando o sol.
- Este, pelo menos, é um pouco mais confortável, embora não menos aterrador - disse Montrose, inclinando a cabeça para o ombro de Pryce enquanto o carro cortava a estrada velozmente. É um automóvel esquisito,
você não acha?
- Põe esquisito nisso - respondeu Cam, olhando em volta. É como se o seu exterior negasse o interior.
A observação de Pryce era uma síntese perfeita. À primeira vista, o carro não passava de um velho sedã cinzento de aspecto indefinível, com a pintura toda arranhada e inúmeros amassados na lataria, do
para-lama à mala. Um observador casual o julgaria uma relíquia muito surrada; isto é, até entrar no carro. Pois no lado de dentro, os assentos eram revestidos de couro vinho da melhor qualidade, e defronte
ao banco traseiro havia um bar de mogno muito bem provido. Havia, também, um telefone montado num painel lateral igualmente de mogno. Tudo isso, e mais as janelas de vidros escuros, tornava evidente que
o proprietário do veículo fazia questão de conforto, mas, por outro lado, não desejava chamar atenção para o carro em si.
O igualmente estranho e silencioso motorista enveredou por uma rua íngreme, emergindo da escuridão, de ruas que mais pareciam túneis, para a claridade da tarde ensolarada. De um lado havia uma sucessão
de campos de pasto, onde vacas e ovelhas compartilhavam o espaço; do outro, casas e celeiros espalhados, estes bastante separados, quase isolados uns dos outros. O carro virou à direita e avançou por uma
estrada paralela ao imenso lago Como, provocando um comentário apropriado de Leslie.
- É tudo absolutamente empolgante, de tirar o fôlego! - ela disse, admirando extasiada o panorama. - É um dos poucos lugares que estão à altura dos cartões-postais.
- Muito bem observado - concordou Cameron.
E então aconteceu. Novamente, o ofuscante sol italiano foi retalhado em erráticos feixes de luz e sombras, transformando a rota panorâmica numa estrada de terra que rasgava a floresta. As árvores enormes
que a flanqueavam obstruíam qualquer vista a não ser de grossos troncos, cipós e densa folhagem, uma vegetação rasteira que parecia impenetrável. Começaram a diminuir a velocidade por um motivo óbvio:
pouco mais adiante erguia-se uma pequena estrutura de concreto; uma pesada barreira de aço vedava o primeiro acesso. Um homem troncudo apareceu, carabina a tiracolo. Estilo siciliano, pensou Pryce.
O guarda fez um aceno com a cabeça para o motorista, a barreira foi levantada e o sedã de aparência indescritível prosseguiu estrada acima. Súbito, avistou-se o contorno de uma grande casa de um só pavimento,
integrada harmoniosamente à floresta circundante. De tal forma parecia se estender pela floresta adentro que não se podia estimar onde a construção terminava, e muito menos vislumbrar o seu final. Mais
uma vez, a madeira pesada e a pedra escura, os materiais tradicionais de Bellagio, repeliam a luz do sol, preferindo as sombras.
Leslie e Cameron saltaram do carro, deparando com outro guarda com uma espingarda pendurada no ombro. - Vir comigo ele disse num inglês macarrônico, que obviamente o tinham feito decorar. - Os dois seguiram
o homem armado por um caminho revestido de cascalho, olhando para o alto, apreciando a frondosa cúpula verde-escura, que não só protegia o covil de Don Silvio Togazzi, como essencialmente o escondia.
O segundo guarda sacudiu a cabeça, instruindo os americanos a galgarem o pequeno lance de escada que levava a um imenso par de portas duplas, enquanto ele retirava um pequeno instrumento do bolso de sua
calça. Ativou o aparelho e o painel à direita abriu-se, revelando um terceiro homem. Esse guarda não tinha uma espingarda a tiracolo, em vez disso ostentava um coldre extremamente avantajado, pendendo
do seu quadril, à direita, e preso a um cinto de couro largo que apertava seus trajes de montanhês. Era um homem corpulento, mais alto do que Pryce, com um tórax volumoso, pescoço grosso e um rosto trigueiro,
impassível, no meio de uma cabeça descomunal. Estudando o homem, Cameron concluiu que ele deveria ser o protetor número um do Don. Mas um protetor contra quê?
E qual a razão da série de procedimentos intricados, ardilosos, aparentemente destinados a ocultar qualquer ligação de Togazzi com os seus hóspedes? Cautela, sem dúvida; uma certa medida de sigilo, naturalmente;
mas chegar àqueles extremos quem era Togazzi? As instruções reservadas de Scofield falavam de "diversos amigos dos velhos tempos", com a observação gratuita de que provavelmente eram um bando de sujeitos
arcaicos e malcheirosos que tinham sobrevivido aos tempos brutais e conheciam os Matarese. Entretanto, ao que tudo fazia crer, só existia um homem, cujas atitudes até então eram mais condizentes com as
de um Matarese do que com as de alguém empenhado em destruí-los.
Cam e Leslie foram conduzidos através de uma enorme sala escura, sem janelas, decoradas com móveis simples, uma grande lareira e paredes revestidas de madeira com dois arcos que levavam a outras áreas.
Era basicamente o interior de uma comprida cabana de madeira nas montanhas, nada de babados, somente o estritamente essencial. O terceiro guarda apontou para uma porta guarnecida com tela de arame no fundo
do salão. - Entrare - ele disse.
Pryce abriu a porta para Montrose e a transpuseram, ambos atordoados. A primeira coisa que os deixou pasmos foi o enorme mirante. Teria pouco mais de dois metros de largura, mas o seu comprimento devia
ser umas vinte vezes isso. O vão aberto, da grade de ferro na altura da cintura até o teto, era emoldurado por painéis de persianas verdes, algumas fechadas, criando mais uma vez sombras cambiantes. Pela
abertura descortinava-se todo o esplendor panorâmico do lago Como, com as montanhas erguendo-se à distância, para além do lago azul, e a copa das árvores da floresta tendo sido podada a fim de permitir
a vista. Contrapondo-se à esmagadora beleza natural, chamava a atenção uma bateria de telescópios vermelhos, instalados a intervalos de seis metros, os mais modernos telescópios de lentes panorâmicas já
concebidos pela alta tecnologia.
Tudo isso foi absorvido num vertiginoso relance, seguindo-se o segundo choque: a figura de um homem idoso sentado na semiescuridão em frente a duas persianas fechadas. Estava acomodado numa poltrona de
vime acolchoada - todos os móveis da varanda-mirante eram de vime branco - e sua indumentária acabou de uma vez por todas com as expectativas de Cameron sobre os amigos desleixados de Scofield.
Don Silvio Togazzi trajava um terno de linho amarelo-claro, sapatos de couro brancos e uma echarpe azul, o conjunto sem dúvida feito sob medida numa das lojas mais caras da Via Condotti. O Don talvez não
correspondesse aos padrões da moda masculina atual, mas certamente ele estaria entre os mais elegantes do final dos anos 20 e início dos 30.
- Desculpem-me, jovens - disse o enrugado mas ainda atraente cavalheiro, seu rosto bronzeado e curtido iluminado por um sorriso emoldurado por esvoaçantes cabelos brancos. - Mas um ferimento na minha coluna
há muitos anos vem importunando esta velha carcaça. Um ferimento, diga-se de passagem, causado por Bayohlupo - era assim que o chamávamos, Bayohlupo porque ele não conseguiu me pegar direito quando fugi,
pulando de um balcão.
- Bayohlupo... Beowulf, estou correto, senhor? - perguntou Pryce.
- Perfeitamente. A palavra Beowulf em inglês não fazia o menor sentido para nós. Sou um homem instruído mas... mas nem chegava a ser inglês.
Leslie deu um passo à frente para apertar a mão do italiano mas este, em vez disso, segurou a dela e beijou-a. - É muita gentileza sua, Sr. Togazzi, receber-nos - ela disse.
- E eu lhe agradeço por não ter dito Don Silvio. Não aguento mais. Os filmes americanos e a televisão denegriram de tal forma o termo "Don" que as pessoas acabam achando que todos eles devem ser forçosamente
mafiosos, com a boca cheia de tanto macarrão que chegam a babar quando dão ordens para executar seus inimigos. Pazzo!
- Creio que vamos nos entender muito bem. - Cameron inclinou-se para a frente e apertou a mão do velho senhor. Podemos nos sentar?
- Não é preciso perguntar. Sentem-se, por favor.
Ajustadas as cadeiras de vime branco, os dois se sentaram de frente para Togazzi na estreita varanda - estreita, íntima e coberta de sombras e feixes de luz. Bellagio. - O que foi que Brandon Scofield
lhe disse, senhor? Para ser objetivo, ele me enviou uma mensagem dizendo que o senhor poderia nos ajudar.
- De fato, posso ajudar, Signor Pryce. Voei de Roma e fui à sua embaixada. Brandon falou comigo demoradamente num desses canais à prova de interceptações...
- Assim espero - interrompeu Cameron.
- Nem o Signor Scofield nem eu somos tolos, meu jovem. Como vocês americanos costumam dizer, já demos a volta no quarteirão. Conversamos por meio de elipses, substituindo códigos e metáforas como costumávamos
fazer antigamente. Mas entendemos um ao outro, perfeita e claramente, como poucos outros poderiam fazê-lo.
- O agente Pryce me disse que haveria muitos outros, senhor - disse Montrose. - O senhor está à espera deles?
- Não faria sentido, Signora Coronel, eles não virão. São dois homens, muito idosos, que me transmitiram tudo o que sabem, mas não se avistarão com vocês.
- Por que não? - perguntou Leslie.
- Como disse, são muito idosos, signora, mais velhos do que eu, e não estão dispostos a se envolver em guerras passadas que lhes causaram tanta dor. Entretanto, prestaram seus depoimentos por escrito.
- Ainda assim o senhor está decidido a nos ajudar - disse Cameron.
- Tenho as lembranças deles, e também tenho outras razões.
- Podemos saber quais são elas? - perguntou Leslie.
- Não é necessário. Bayohlupo sabe.
- Ele não está aqui - disse Cam. - Nós estamos.
- Compreendo. Eu os tratei da maneira mais inusitada e inconveniente. Sem dúvida estão pensando que poderíamos ter nos encontrado em qualquer lugar, digamos num parque ou num quarto de hotel em Milão.
- Sim, acredito que pudéssemos.
- Vocês não me conhecem, e por isso posso dizer o que me aprouver, e como uso o nome de Scofield, vocês acham que acredito que aceitarão minhas palavras.
- Algo assim - concordou Pryce.
- Mas agora vocês se perguntam... quem é este homem?
- Já me perguntei isso.
- Tem todo o direito. É possível que considere que não sou quem aparento ser, e sim um falso mensageiro com acesso a informações específicas, certos nomes.
- Não posso deixar de pensar o que penso, por mais absurdo que seja.
- É claro que não pode. Não pode negar seus anos de treinamento. Como Brandon disse, você é muito bom, talvez o melhor elemento de que a CIA dispõe.
- Tem certeza de que foi o Scofield que conheço que disse isso? - perguntou Cameron, reprimindo uma risada, e depois prosseguindo. - O senhor está sabendo de onde venho. Diga-nos quais são suas razões
para querer nos ajudar. Diga-nos alguma coisa que nos faça acreditar no senhor.
- Só posso lhes dizer a verdade - respondeu o velho italiano, levantando-se com dificuldade de sua cadeira e andando devagar, saindo das sombras para uma espaço aberto, para um dos telescópios vermelhos.
Era diferente dos outros porque tinha um instrumento circular preto em cima do grosso tubo vermelho. Ele parou e bateu de leve no tubo, virando-se para Pryce e Montrose. - Vocês ouviram falar das duas
famílias, os Scozzi e os Paravacini?
- Sim - respondeu Cameron. - Juntas elas possuíam as Indústrias Scozzi-Paravacini até que o ódio as separou.
- Não apenas o ódio, Signor Pryce, como o sangue criminosamente derramado pelos Paravacini para forçar a saída dos Scozzi. Forçá-los a se afastar para que eles pudessem ascender no criminoso clã dos Mataresa.
Irmãos e filhos foram assassinados, executivos comprados e chantageados, diretores manipulados, envolvidos em incidentes que lhes custaram seus cargos. O grupo Scozzi-Paravacini estava doente, envenenado
por dentro, e a doença venceu.
- Creio que sei aonde quer chegar - disse Leslie suavemente.
- O senhor era muito ligado aos Scozzi, à família Scozzi.
O velho Don riu, uma risada contida, triste. - É muito perceptiva, coronel, embora "ligado" não seja a palavra que eu empregaria, eu sou um Scozzi, o último membro vivo da família Scozzi.
- Mas o seu nome é Togazzi - protestou Cameron.
- "O que é um nome?", como disse o poeta. Você pode chamar uma rosa de tulipa mas a rosa continua sendo uma rosa… Temos que retroceder muitas décadas, antes de os assassinatos começarem. Os assassinos
nunca foram encontrados, naturalmente, pois os Paravacini tinham grande influência em Milão e Roma, assim como no Vaticano. Porque minha mãe os desprezava e os temia, fui mandado para a Sicília, para a
casa de um cugino de minha mãe, para minha proteção. Nos primeiros anos fiquei sob a tutela dos parentes de minha mãe, depois fui enviado a Roma para estudar, usando o nome do cugino, Togazzi, como precaução.
- Foi aí que conheceu o Sr. Scofield? - perguntou Montrose.
- Minha cara coronel, você está revelando sua juventude! - Don Silvio sorriu discretamente e deu um tapinha no telescópio.
- Isso foi muito mais tarde, depois de meus anos de università.
- Nessa altura, o senhor fazia parte da inteligência italiana? perguntou Pryce.
- Sim, do Servizio Segreto. Fui admitido assim que concluí meus estudos, graças a alguns amigos bem relacionados de Palermo. Fora de minhas atividades normais, entrei para o Servizio com um único objetivo,
uma obsessão. Investigar implacavelmente os interesses dos Paravacini, toda a sujeira, que conduziría, naturalmente, aos Mataresa. Foi nessa ocasião que conheci Scofield e Taleniekov. Nossos propósitos
eram os mesmos, mas, para ganhar a confiança deles, contei-lhes minha história, como a estou contando para vocês agora. Poderão, é claro, confirmar tudo com Brandon, mas terão que fazê-lo de outro lugar.
Não disponho de equipamento que assegure a confidencialidade.
- Não será necessário - disse Cameron.
- Concordo - disse Montrose.
- E ninguém aqui em Bellagio sabe quem é o senhor?
- Mio Dio, não. Sou um siciliano riquíssimo, cujos cabelos outrora louros e imensa fortuna compram sua respeitabilidade nas províncias do norte. - Novamente, o velho tocou - acariciou - o telescópio vermelho.
- Quero lhes mostrar uma coisa aqui. Venham, venham os dois olhar neste aparelho.
Leslie e Cam o fizeram, ficando maravilhados com a ampliação. O que viram foi uma mansão nas margens do lago Como, com gramados bem cuidados, um cais, um imenso iate atracado e chafarizes por toda parte.
Homens e mulheres andavam pelos terrenos da propriedade, suas figuras tão ampliadas pelas lentes que davam a impressão de estar a menos de trinta metros de distância e não a quilômetros.
- Bela propriedade - disse Pryce, recuando e voltando-se para Togazzi, - De quem é?
- É a herdade dos Paravacini, e nem os ventos mais inclementes das montanhas poderão deslocar este telescópio. Ele está firmemente fixado na sua base. Posso ver, e se necessário for, fotografar, todos
os que entram e saem dos seus domínios.
- O senhor é uma peça rara, Don Silvio - acrescentou Cameron. - A propósito, o seu novo nome pode ser rastreado e descoberto?
- O nome Silvio Togazzi está devidamente registrado - ou deveria dizer inserido - nos livros de nascimentos dos cartórios de Palermo, assim como o seu batismo o foi na Igreja do Santíssimo Salvador, uma
igrejinha rural ao sul de Cafala. Esses documentos foram magnificamente executados, e são tão "autênticos" como qualquer outro.
- Quem foi que lhe conferiu o título de "Don"? - perguntou um curioso Pryce.
- Quando se contrata legiões de lavradores para cuidar da terra e construir, se é extremamente generoso com as famílias locais, se patrocina diversos festivais, e financia a construções de duas ou três
novas igrejas, o "Don" acontece naturalmente. Mas chega de falar de mim. Vamos lá dentro para que eu lhes entregue tudo o que juntamos para vocês, creio que vão ficar satisfeitos.
- Perdoe a minha curiosidade - disse a coronel Montrose mas o senhor mencionou que o ferimento na sua coluna resultou de uma falha do agente Scofield, que não conseguiu aparar seu pulo de um balcão. O
incidente relaciona-se à caçada que ambos faziam aos Matarese?
- Não teve nada a ver, minha cara coronel, embora minha fuga fosse imperativa. A mulher envolvida no episódio era casada com um comunista fanático, tão escravo do trabalho que dedicava muito pouca atenção
à sua esposa. Tentei apenas preencher um vazio... Agora vamos às informações que compilamos para vocês.
VINTE E TRÊS
Chovia a cântaros em Nova York, uma chuva ao mesmo tempo bem-vinda e inconveniente para o trânsito do meio-dia. Numa movimentada rua transversal à Madison Avenue, três policiais retiravam as placas provisórias
de estacionamento proibido. Assim que foram removidas, carros ocuparam imediatamente as vagas; o primeiro a fazê-lo foi uma limusine que encostou próximo a uma porta verde do hotel Marblethorpe. Dois outros
carros estacionaram do lado oposto da rua diretamente defronte ao luxuoso veículo. Dentro dos três automóveis encontravam-se homens armados, concentrados no cidadão que saiu do carro perto da porta verde,
acompanhado por um provável guarda-costas. Num preciso sincronismo, a porta do hotel foi aberta por outro policial; ele fez um aceno com a cabeça e os dois hóspedes do hotel foram admitidos. A polícia
de Nova York, sob as ordens do seu comando, sabia quem eram os VIPs, se não pelos seus nomes, por suas ligações.
O homem aparentemente sob proteção era de estatura mediana, quarenta e tantos anos, e quando tirou o chapéu de lona e a capa de chuva, deu a impressão de ser um importante executivo, trajando roupas caras.
Seu rosto estava pálido, seus olhos inquietos de medo.
- Pra que raio de lugar estamos indo? - ele perguntou asperamente.
- O elevador fica no fim do corredor à esquerda, senhor - respondeu o policial.
- Obrigado, meu jovem, e me recomende ao comissário.
- Farei pessoalmente, senhor. Fazemos parte de um destacamento especial diretamente subordinado a ele.
- Você fará uma longa e bela carreira, meu amigo. Qual é o seu nome?
- O’Shaughnessy, senhor.
- Outro carcamano, certo? - Os três homens riram enquantoo VIP e seu guarda-costas desciam o corredor em direção ao elevador. - Não consigo acreditar que esteja fazendo isso! - continuou o homem de negócios,
ofegante. - Um ilustre desconhecido desce de para-quedas, supostamente de Amsterdã, e eu sou intimado a me encontrar com ele, foi exatamente isso... uma maldita intimação. Quem é que ele está pensando
que é?
- Os outros dizem que ele sabe das coisas, Albert - respondeu o homem que parecia ser guarda-costas, retirando a mão debaixo da capa. - Está por dentro.
- Pode ser uma expedição de pesca - disse o homem mais baixo, o que se chamava Albert.
- Se for, ele sabe onde certos peixes se encontram. O pessoal dos bancos e dos serviços públicos quer falar com você depois que tiver se avistado com esse William Clayton...
- Sem dúvida, um nome falso - interrompeu o executivo. - Não há ninguém com esse nome em nenhuma das listas que possuo.
- Dificilmente você terá uma lista completa, Al, ninguém tem. Limite-se a ouvir o que ele tem a dizer e não adiante coisa alguma. Aja como os outros, mostre-se inocente e chocado.
- Só porque é advogado não precisa ficar me lembrando das coisas óbvias. - A porta do elevador abriu-se, os dois homens entraram e o advogado armado apertou o código de quatro dígitos para o andar que
lhe tinha sido indicado. - Tire o seu chapéu e sua capa - acrescentou Albert Whitehead, diretor-executivo da Swanson & Schwartz, uma grande corretora de Wall Street.
- Agora vou tirar - concordou o advogado Stuart Nichols, removendo a sua Burberry e o seu boné irlandês. - Não fiz antes porque queria me certificar de que esses guardas estavam do nosso lado.
- Isso é paranoia.
- Negativo, apenas lembranças do passado. Fui promotor militar em Saigon, onde muita gente de uniforme queria me ver morto. Dois quase conseguiram e envergavam uniformes da polícia militar... Você ainda
vai me apresentar como seu advogado?
- É claro que vou. Acrescentarei que você sabe tudo a meu respeito, tudo. Sou um livro aberto para você, somente para você.
- Mesmo assim, ele poderá pedir para que eu me retire.
- Dê a ele razões por que não deverá fazê-lo. Você é bom nessas coisas.
- Vou tentar, mas se ele insistir, não vou discutir.
- Prazer em conhecê-lo, Sr. Nichols, e obrigado por ter comparecido - disse "William Clayton", também conhecido como Brandon Scofield, ou Beowulf Agate, dirigindo-se amavelmente ao advogado e apertando-lhe
a mão. Scofield vestia um sóbrio terno azul-marinho que viera dos cabides de uma loja de confecções cara. Ele acompanhou seus convidados às suas elegantes poltronas, cada uma com uma mesa lateral, e tocou
uma sineta de prata. Antonia, com um uniforme de copeira preto e branco, engomado, com seus cabelos grisalhos puxados para trás e presos num coque austero, emergiu de uma porta. Era uma figura imponente.
- Café, chá, uma bebida?... - perguntou Brandon. - A propósito, esta aqui é Constantina, do hotel, e ela não fala uma palavra de inglês. Foi um pedido especial que fiz; ela e eu nos entendemos em italiano.
- E uma pena que não seja francês - disse o advogado Stuart Nichols. - Estudei o idioma no colégio, que me foi muito útil em Saigon.
- Vejamos... Constantina, vous parlez français?
- Che cosa, signore?
- Capisce francese?
- Non, signore. Linguaggio!
- Receio que ela não possa nos acompanhar. Diz que é uma língua vulgar. Quando é que vão proclamar a paz? - Ninguém queria nada, portanto Antonia, baixando a cabeça profissionalmente, retirou-se e Scofield
prosseguiu. - Sei que o tempo dos senhores, como o meu, é limitado. Que tal irmos direto ao assunto?
- Gostaria de saber qual é o nosso assunto, Sr. Clayton insistiu Whitehead.
- O assunto que diz respeito aos nossos negócios mútuos, senhor - respondeu Beowulf Agate. - Ações, bonificações, debêntures, empréstimos - corporativos e transnacionais, de um modo geral - ofertas iniciais
de ações, naturalmente, mas, fundamentalmente a assistência que prestam nas complexas operações de fusões e aquisições. Contribuições inestimáveis.
- O senhor está cobrindo uma enorme gama de atividades disse o diretor-executivo da Swanson & Schwartz. - E a maioria é de natureza altamente confidencial.
- Como são na Exchange de Londres, na Bourse de Paris, na Borsa de Roma e na Börse de Berlim, todas altamente confidenciais. Mas certamente não no que diz respeito a Amsterdã.
- Poderia esclarecer isto, por favor? - interrompeu Nichols.
- Se tiver que fazê-lo, talvez não conheça seu cliente, ou sua firma, tão bem quanto imagina - respondeu Brandon.
- Sou o advogado da firma, Sr. Clayton. É o meu único cliente. Não há nada de que não esteja a par.
- Isso inclui o Sr. Whitehead aqui presente? Porque se não incluir, sugiro que se retire.
- Ele já disse que inclui.
- Então não posso conceber que não saiba a respeito de Amsterdã... Há doze anos, um tal de Randall Swanson, já falecido, e Seymour Schwartz, atualmente aposentado e vivendo na Suíça, decidiram abrir uma
corretora nos poucos quarteirões mais competitivos do mundo capitalista. Maravilha das maravilhas, em poucos anos a empresa floresceu além de todas as expectativas, tornando-se uma importante peça no mercado
de capitais, crescendo tão rapidamente que passou a rivalizar com a Kravis e a Milken. Depois, ainda mais espetacularmente, no ano passado, a Swanson & Schwartz engendrou as mais impressionantes fusões
de que se tem registro na crônica recente - a número um do ranking, meus amigos. Simplesmente notável, mas como isso foi feito?
- Questão de competência, Sr. Clayton - disse o advogado, completamente sob controle. - O Sr. Whitehead é considerado um talentoso, se não o mais talentoso diretor administrativo dos círculos financeiros
atuais.
- Oh, ele é bom, muito, muito bom, mas alguém pode realmente ser assim tão bom? Talento sem recursos para exercitar esse talento é um terrível desperdício, não é verdade? Mas talvez tenha falado demais,
pois se estiver equivocado, terei abusado do seu tempo, assim como do meu, o que é imperdoável. Tempo é dinheiro, não é mesmo, cavalheiros?
- O que é que o senhor quer dizer com recursos? - perguntou nervosamente Whitehead, não conseguindo se conter a despeito de um gesto de cabeça sutil do seu advogado.
- Exatamente o que disse - respondeu Scofield. - Investimentos nos seus talentos, especificamente investimentos estrangeiros, se quiser.
- Não há nada remotamente ilegal nisso, Sr. Clayton - disse Stuart Nichols. - Estou certo de que se dá conta disso.
- Nunca insinuei que houvesse... Vejam, meu tempo é curto e o dos senhores também. Tudo o que quero dizer - e se não se aplicar aos senhores, esqueçam que disse - é o seguinte: Não negociem com Amsterdã.
Amsterdã está liquidada, kaput, banida da liga, porque quer controlar tudo e isso não pode ser permitido. Amsterdã não merece mais confiança. Depois de um curto período de prosperidade, ela acabou se autodestruindo.
Foi por essa razão que me afastei, fugi, para ser mais preciso.
- Poderia ser mais claro, por favor? - perguntou o advogado.
- Não, não posso - respondeu Beowulf Agate - porque os dados estão soterrados num labirinto de complexidade. Não tenho liberdade para discuti-los. Entretanto, se quiserem me contatar, liguem para este
hotel, chamem o gerente e ele lhes dará o número e o código. Contudo, repito, se alguma coisa do que disse fizer sentido para os senhores, aceitem meu conselho, não liguem para Amsterdã. Se o fizerem,
isso poderá significar sua sentença de morte... E com isso creio que é chegado o momento de lhes dizer boa tarde, cavalheiros.
Scofield acompanhou seus atônitos convidados até a porta e fechou-a firme e ostensivamente nas suas costas. Virou-se e dirigiu-se à sala de estar no momento em que Antonia saía da cozinha; ela ainda usava
o uniforme preto e branco, mas soltara os cabelos.
- Eles estão mentindo descaradamente - disse Bray, acendendo uma cigarrilha. - A propósito, amor, você esteve muito convincente.
- Não foi difícil, querido, o papel se encaixava com o meu tipo e não exigia maiores recursos de interpretação. Você, sim, foi quem teve um grande desempenho, extremamente imaginoso.
- Obrigado, meu bem, mas como assim?
- Li suas anotações sobre todas as pessoas com quem você já se avistou. Quanto às outras, pude acompanhar seu raciocínio, pois havia muitas coincidências, muita convergência de interesses semelhantes,
levando a maquinações, fraudes. Você assustou pra valer algumas dessas pessoas, e elas não conseguiram disfarçar seu medo, ocultando-o no silêncio, em negativas abstratas; as demais ficaram completamente
confusas. Mas quando você mencionou investimentos estrangeiros aos dois que acabaram de sair daqui, o silêncio deles foi mais do que eloquente, a menção a Amsterdã deixou-os em pânico, ou pelo menos assim
me pareceu.
- É, eu tirei essa da manga do colete. E parece que colou, não foi? Eles não podiam negá-la com suficiente rapidez, ou tentar justificá-la.
- Como foi que você planejou isso, Bray? Estou simplesmente curiosa.
- Parte da verdade, Toni, parte da verdade essencial. Nós chamávamos de furos nos velhos tempos, espaços não preenchidos… Por que motivo uma corretora em plena ascensão chamada Swanson & Schwartz venderia
seus ativos quando seu futuro era dos mais promissores? Swanson morreu de um problema coronário sem nunca ter tido antecedentes de doença cardíaca, e Schwartz deixou os Estados Unidos e naturalizou-se
suíço, ambos com quarenta e poucos anos. Para mim, foi um exemplo clássico de manipulação dos Matarese. Esses dois rapazes eram Matarese até a sola dos seus sapatos Gucci.
- Às vezes, você realmente reencarna no Beowulf Agate, não é mesmo?
- Se o Serpente ainda estivesse conosco, espero que ele concordasse. Devemos muito a Taleniekov.
- Nossas vidas, Bray, nada mais nada menos do que nossas próprias vidas!
- Então vamos tocar o barco, amor - disse Brandon, encaminhando-se para o telefone em cima da escrivaninha. Apertou uma porção de números e entrou em contato com Frank Shields num veículo federal camuflado
estacionado nas imediações. - Está tudo sob controle, Olhos-Apertados? - ele perguntou.
- Você se importaria de parar de me chamar desse nome ridículo quando estiver falando através do sistema de comunicações do governo?
- Desculpe, Frank, não leve a mal. Só estou querendo elogiá-lo. Você vê o que os outros não conseguem enxergar porque você aperta os olhos e "esmiuça as coisas", não deixa escapar nada.
- Dispenso essa babaquice... Estamos na cola dos dois indivíduos. Eles estão se dirigindo para o lado sul do Central Park.
- O que é que você está achando?
- Bem, o cara não está voltando para o seu escritório, o que nos diz alguma coisa. Este foi o último, não foi?
- Na verdade, foram dois, e foram os últimos, sim. Mantenha-se em contato e, se acontecer alguma coisa, ligue para mim. Tonie eu vamos dar uma relaxada e nos regalar com o menu do hotel aqui nesta modesta
suíte, pelo que, naturalmente, os contribuintes não terão que desembolsar um centavo sequer.
- Por favor, Brandon.
- Ele sabe! - exclamou apavorado Albert Whitehead na limusine.
- Ele está sabendo de tudo!
- Possivelmente - disse o advogado Nichols friamente -, da mesma forma que é possível que não saiba de nada.
- Como é que você pode dizer isso? - perguntou o diretor executivo da Swanson & Schwartz. - Você ouviu o que ele disse: ofertas de ações, empréstimos, fusões e aquisições, pelo amor de Deus! Nosso esquema
todo!
- Tudo muito fácil de ser descoberto e confirmado através de uma pesquisa legal. Qualquer primeiranista de direito poderia fazê-lo.
- Então me responda uma coisa, Clarence Darrow! E a referência a investimentos estrangeiros? Como é que você explica isso?
- Pode ser que tenha sido exatamente aí que ele escorregou. O dinheiro foi todo canalizado por intermédio de um consórcio do Texas de capitalistas dispostos a fazer investimentos de risco. Foi tudo feito
verbalmente via Amsterdã, não havendo nenhum documento por escrito.
- Você não pode ter certeza disso, Stuart.
- Não, não posso - admitiu Nichols, virando-se e olhando distraidamente para Whitehead. - Para ser honesto com você, é isso que me chateia. Esse Clayton está obviamente sintonizado com Amsterdã, o que
é muito significativo... e ele agora afirma que Amsterdã está fora do circuito.
- Isso é muito perigoso! Ele falou em sentença de morte, o que não chega a ser novidade para nossos sócios não tão passivos. Eles não se detêm diante de coisa alguma. Não podemos nos arriscar a entrar
em contato com Amsterdã.
- Assim não poderemos saber a verdade, se houver outra verdade. E não está previsto nos reportarmos por mais oito dias. Se violarmos as normas estabelecidas, que são condicionadas a transmissões sigilosas
via satélite, Amsterdã saberá que estamos desconfiados de que alguma coisa está errada.
- Você poderia bolar qualquer coisa, costuma ser bom nisso!
- Não consigo pensar em nada. Estamos com tudo rigorosamente em dia, não há nenhum furo na agenda. Talvez os outros possam ter uma ideia, um pretexto para contatar Keizersgracht.
- Um deles tem que ter - insistiu um Whitehead em pânico. Estamos todos juntos nisso e faturamos milhões!
- Você se dá conta, não dá, Albert, de que esse tal de Clayton pode estar nos armando um tremendo blefe?
- É claro que sim, Stuart. Mas quem é que vai dizer isso?
Na mesa do serviço de copa viam-se os sobejos do lauto jantar devorado com gula: um suculento churrasco, picadinho de vitela, legumes sortidos, caviar iraniano (para Antonia) e três éclairs de chocolate
(para Scofield). Estavam agora saboreando um café expresso com pequenos goles de conhaque Courvoisier VSOP. Quer saber, eu seria capaz de me acostumar a essa vida, meu amor - disse Scofield, esfregando
a boca com um enorme guardanapo cor-de-rosa.
- E também podia morrer, meu velho - disse Antonia. - Se escaparmos dessa, quero que você volte ao peixinho que nós mesmos pescamos e às verduras frescas que cultivamos.
- São tão sem graça.
- São eles que têm mantido você vivo, seu bode velho.
O telefone tocou e, como se o som da campainha fosse um alívio, Scofield deu um pulo da cadeira e correu para atendê-lo. - Sim?
- É o Frank, Brandon. Você está provando que sabe jogar direitinho. Os dois manda-chuvas da Swanson & Schwartz foram parar num desses restaurantes grã-finos pouco anunciados do Village, do tipo que exige
pedigree financeiro para se fazer uma reserva.
- Fora do meu quadro de referências, Sr. Diretor.
- Pense naquelas casas de frutos do mar no Brooklyn e em Jersey, onde os clientes são descendentes de velhos pescadores e podem enfiar o furador de gelo em quem quiserem porque são os próprios donos das
casas. Os novos estabelecimentos pertencem a uma categoria superior: os trajes e o papo são diferentes, mas as reuniões não.
- Vamos ao mérito da questão, Frank.
- Os seus dois bacanas deixaram o hotel e se encontraram com o banqueiro Benjamin Wahlburg, daquele novo conglomerado bancário, e com Jamieson Fowler, da Standard Light and Power de Boston, e Bruce Ebersole,
presidente da Southern Utilities. Eles representam a fusão das maiores instituições do serviço público com a rede bancária privada das costas Leste e Oeste, com um braço forte no Mediterrâneo. Temos fotografias.
Parabéns, Beowulf, você está batendo um bolão.
- Obrigado, Olhos-Apertados. O que foi que você ouviu de Londres?
- Achem ele, achem ele! - gritou Julian Guiderone no seu telefone por satélite a bordo do seu jato particular indo de Londres para Marselha. - Pagamos milhões a um bando de panacas que têm um padrão de
vida muito acima do que jamais poderiam sonhar em ganhar, que existem única e exclusivamente para nos servir! Porque estão falhando, por que você está falhando?
- Estamos todos trabalhando dia e noite, eu lhe asseguro respondeu Jan van der Meer Matareisen, do seu santuário no Keizersgracht em Amsterdã. - É como se uma cortina de fumaça tivesse caído inesperadamente
sobre nossas fontes.
- Então remova-a, acabe com ela! Mate alguns palermas das suas folhas de pagamento. Faça saber que foram eliminados por serem considerados suspeitos de traição. Espalhe o terror pelas fileiras, instaure
sua própria inquisição. À medida que os corpos forem tombando, os traidores irão aparecendo, o medo é o catalisador. Aprendeu alguma coisa, "neto"?
- Aprendi a ter paciência, senhor, e não grite comigo. Enquanto o senhor viaja pelo mundo arquitetando crises, eu tento manter toda a operação coesa. E permita-me lembrá-lo de que, se o senhor é o filho
do Shepherd Boy, eu sou o neto legítimo do Barone di Matarese, que criou o Shepherd Boy. O senhor tem muitos, muitos milhões, mas eu tenho bilhões. Eu o respeito, senhor, pelo que esteve a ponto de conseguir
- meu Deus, chegar à Casa Branca - contudo, peço-lhe encarecidamente, não me hostilize.
- Pelo amor de Deus, não estou hostilizando você, estou tentando ensinar-lhe. Seu coração e seu intelecto o convencem de que está certo, mas você precisa ter estômago para pôr em prática essas convicções!
Onde se defrontar com fraqueza, extirpe-a, a erva daninha junto com suas raízes. Destrua tudo no seu caminho, por mais atraentes que sejam as flores silvestres!
- Compreendi isso há muitos anos - disse Matareisen -, e não tente insinuar que não fui capaz de compreender. Não tenho emoções quando se trata de cumprir uma tarefa dos Matarese, nossos discípulos podem
viver ou morrer dependendo de seus atos.
- Então faça como estou lhe dizendo, comece a matança, gere o pânico. Alguém acabará sabendo - se obrigará a saber - onde Scofield se encontra! Principalmente se o fracasso puder lhe custar a vida. Beowulf
Agate! Ele é quem está por trás dessas interrupções, eu lhe disse isso!
- Nossas fontes não podem nos informar o que elas não sabem, Sr. Guiderone.
- Como sabe disso, "neto"? - perguntou o filho do Shepherd Boy causticamente. - Apesar de todo seu brilhantismo, Jan van der Meer, você tem um defeito comum aos gênios. Você acredita que o que criou é
infalível, pois o criador não pode ser penalizado. Que idiotice! Você não tem a mais vaga noção do que Scofield esteja fazendo, que estratégias de ataque possa ter montado, ou com quem. Ele neutralizou
a Atlantic Crown... quantos outros não estarão caminhando - não, provavelmente estarão correndo, maldito seja - para suas redes? Uma vez confirmados, quantos desses poderão sucumbir?
- Ninguém sucumbirá - respondeu o holandês calmamente. Não só compreendem as consequências como há numerosas posições de recuo concebidas por nossos advogados que legitimam completamente tudo o que fizemos.
Somos legalmente imaculados, estamos livres para prosseguir até que tudo esteja nos seus devidos lugares. Eu também criei isso.
- Você pensa que sim...
- Sei que criei, meu velho, velho senhor! - interrompeu Matareisen, subitamente gritando. - Não chegou a ser, mas faltou pouco para que sua desastrosa atuação na Westminster House se transformasse numa
catástrofe. A única, aliás, que nos ameaçou continuou Jan van der Meer, baixando a voz abruptamente mas o senhor já se desculpou. Portanto, não falemos mais nisso.
- Ora, vejam só! - matutou Guiderone em voz alta - o jovem leão querendo realmente dominar o orgulho.
- Na verdade, o domino desde que o senhor me nomeou, se é que se lembra. Está arrependido?
- Por Deus, não. Nunca poderia fazer o que você fez. Entretanto, tenho minhas dúvidas quanto ao fato de ser responsável pela única ameaça de catástrofe. Alguma coisa aconteceu em Wichita, e não acredito
que tenha estado lá uma vez sequer, e tampouco conhecia o cavalheiro envolvido no episódio.
- E eles, por sua vez, não conheciam ninguém em Amsterdã, tudo de que tinham conhecimento era um código e uma secretária eletrônica esquecidos no Departamento de Canais.
- Uma burocracia impenetrável - admitiu o filho do Shepherd Boy. - Você é realmente um gênio, mas alguma coisa está lhe escapando, e essa coisa é alguém. Beowulf Agate. Se você não achá-lo, matá-lo, ele
vai descobrir mais falhas e acabará pondo abaixo sua casa. Ele fez isso antes e pensávamos - sabíamos que éramos invencíveis. Não deixe que aconteça novamente...
Você estava certo, naturalmente, sou um homem velho, e Scofield também é. A diferença entre nós é que ele pode agir com os ágeis e os mortos, e eu só posso lidar com os mortos e os quase mortos. Você,
por outro lado, pode evoluir entre os ágeis e os mortos e, acima de tudo, os dominados pela cobiça. Eles constituem o mais poderoso exército sobre a face da terra, um batalhão invencível. Use-o, use-os!
Não me desaponte.
Guiderone bateu o telefone com força, irritado porque a súbita turbulência fez derramar um pouco do precioso Chateau Beychevalle Médoc de sua taça.
Sir Geoffrey Waters assinou o protocolo do envelope altamente confidencial entregue na sua casa em Kensington por um funcionário do MI-5. Começou a abri-lo enquanto caminhava pelo estreito corredor de
volta à sala de jantar para tomar seu café da manhã. Sua mulher, Gwyneth, uma senhora de cabelos grisalhos e feições delicadas, ergueu os grandes olhos castanhos e inteligentes do Times e falou:
- Comunicados a essa hora, Geoffrey? Não podiam esperar que você chegasse ao escritório?
- Não sei, Gwyn, estou tão surpreso quanto você.
- Abra-o, querido.
- Estou tentando mas essas malditas fitas adesivas requerem o uso de uma tesoura, está me parecendo.
- Use uma faca.
- É verdade. Obrigado por ter mandado a cozinheira fazer um bife para acompanhar os ovos.
- Você tem estado, obviamente, sob grande pressão nestas últimas semanas. Acho melhor despachá-lo para a luta com o estômago satisfeito.
- Devidamente apreciado o seu zelo - disse o chefe do MI-5 ao abrir com a faca o envelope pardo. Olhou de relance seu conteúdo e afundou na cadeira. - Oh, meu Deus - exclamou.
- Trata-se de alguma coisa que possa saber? - perguntou Gwyneth Waters. - Ou é uma dessas coisas que não devo?
- Pode e deve! É sobre seu irmão, Clive...
- Oh, o querido Clivery. Ele está indo muito bem agora, não está?
- Talvez bem demais, minha querida. Ele é um dos diretores do novo consórcio Sky Waverly.
- Estou sabendo, ele me telefonou na semana passada. Um ótimo salário, segundo me disse.
- Ou uma grande dor de cabeça, Gwyn. O grupo Sky Waverly está sob rigorosa investigação a propósito de assuntos que não posso lhe revelar, para sua segurança.
- Sim, Geof, já falamos sobre isso outras vezes, mas, afinal, você está se referindo ao meu irmão.
- Sejamos honestos, querida, gosto da companhia do Clive; ele é encantador, tem um senso de humor maravilhoso, mas creio que nem você nem eu o situa entre os melhores advogados de Londres.
- Ele pode ter suas deficiências, concordo com você.
- Ele passou por uma série de firmas de advocacia e nunca foi promovido à posição de sócio - continuou Waters. - Quase sempre foi contratado devido ao peso do seu sobrenome. Bentley Smythe é um nome honrado
no mundo jurídico britânico.
- Ele é um homem decente - interrompeu a irmã - e não tinha muito mais em que se pegar. Isso é um crime?
- É claro que não, mas por que foi guindado de repente de um cargo obscuro numa firma secundária para a diretoria do consórcio Sky Waverly?
- Não faço ideia, mas vou telefonar para ele agora de manhã e perguntar-lhe.
- Esta é uma coisa que você não deve fazer - disse Waters, delicada mas firmemente. - Deixe isso comigo, Gwyn. Na minha opinião, seu irmão está sendo usado. Deixe-me cuidar do assunto.
- Prometa-me que não vai magoar o Clive.
- Prometo, minha querida, fique tranquila. Mas receio que ele possa ter feito mal a si mesmo. Agradeça à cozinheira por mim, mas não vou ter tempo para o café da manhã. - Dizendo isso, Geoffrey Waters
levantou-se de sua cadeira e dirigiu-se rapidamente para o corredor e a porta da frente.
O trajeto de vinte minutos para seu escritório foi um exercício de penosa reflexão para o funcionário da inteligência britânica. A razão era Clive Bentley-Smythe e o que a mulher de Geoffrey pensava a
respeito do irmão em contraste com a dura realidade dos fatos. Waters gostava realmente do cunhado; ele era um sujeito charmoso, razoavelmente espirituoso e de caráter generoso, talvez excessivamente generoso.
Esse era seu principal defeito. Clive Bentley-Smythe, na verdade, beirava a mediocridade, a imagem personificada da frase: quer dar um passo mais largo do que suas pernas.
Nascera numa família abastada de advogados e procuradores há várias gerações, gozando de uma reputação tão sólida que havia quem dissesse que provavelmente tinham participado da redação da Magna Carta,
enquanto outros afirmavam que a fala de Shakespeare "matemos todos os advogados" na peça Henrique VI tinha sido inspirada nos antepassados dos Bentley-Smythe. Clive flutuava pela vida, o complemento atraente
para todas as funções sociais, acrescentando muito pouco além de sua presença física, e, em aparente contradição, era um marido devotado a uma mulher que não tinha a menor consideração pelas convenções
do casamento. Era sabido, embora reservadamente, que ela dormira em alguns dos leitos mais ricos da Inglaterra, Escócia, Holanda e Paris. A piada em certas rodas era que se Clive descobrisse um dia, provavelmente
a perdoaria e perguntaria se ela havia se divertido.
Geoffrey Waters estava inteirado do material desse dossiê, que, no entanto, nunca revelara à sua mulher, a eterna irmã mais velha, protegendo o irmão caçula por trás das proverbiais barricadas. Não tinha
sentido preocupá-la. Mas agora havia uma outra equação, e o chefe do MI-5 sabia que teria que enfrentá-la, analisá-la e agir de acordo com as circunstâncias. A expressão francesa Cherchez la femme parecia
não lhe sair da cabeça.
- Desculpe, Geoffrey, por ter julgado necessário enviar a informação à sua casa - disse o diretor de operações do MI-5 -, mas pensei que você talvez quisesse discutir o assunto com sua mulher.
- Mencionei-o o mais superficialmente possível. Há muitas coisas que ela não sabe sobre seu irmão, e não quero deixá-la preocupada. Eu mesmo cuidarei do caso. Há outros possíveis vazamentos?
- Diversos, meu caro, mas nada confirmado - respondeu o superior de Waters, um homem corpulento, grisalho, aparentando sessenta e poucos anos. - Primeiro, há boatos provenientes de Fleet Street de que
algum tipo de fusão está sendo tramado.
- Alguma jogada do Murdoch?
- Não, esse não é o estilo dele. Por mais que se possa criticá-lo, ele sempre deixa claras suas intenções. Ele compra e vende, o lucro é sua primeira consideração, suas posições editoriais são secundárias,
embora certamente as respeite.
- Mais alguma coisa?
- Eu falei em diversos boatos, não em apenas um - corrigiu o diretor. - Está havendo uma certa movimentação em algumas instituições bancárias. Estão chamando de centralização, mas não estou convencido
de que essas fusões estejam ocorrendo por motivos financeiros.
- Você está indo contra a corrente econômica. Mas por que não?
- Porque todas as instituições em questão são lucrativas, todas muito independentes. Por que haveriam de abrir mão de seus feudos?
- Alguém está forçando-as a fazê-lo - respondeu Waters calmamente.
- É esta precisamente a minha opinião. Preparei uma lista de todos os conselhos diretores, assim como de todos os principais jornalistas que parecem fazer parte dessa propalada fusão de jornais.
- Posso lhe garantir que vamos investigar um por um.
- A última novidade é que é deveras intrigante. Uma diretiva foi canalizada para nós por um jornal de Toronto, Canadá, e uma duplicata foi enviada para o Servizio Segreto em Roma. Parece que um repórter
deles que viajou para a Itália telefonou de Roma para o jornal, dizendo ao seu editor que ia dar o furo jornalístico do século. Desde então ele desapareceu, e não se teve mais notícia dele.
- Vamos apurar o que aconteceu - disse Geoffrey Waters, anotando no seu caderno de bolso. - É isso, então?
- Uma última coisa, e receio que tenha a ver com a mulher do seu cunhado, Amanda.
- Tinha um palpite de que ainda chegaríamos a isso.
VINTE E QUATRO
Enquanto seus subordinados redobravam esforços para esquadrinhar os meandros do conglomerado Sky Waverly e seus parceiros franceses, assim como apuravam os boatos sobre os jornais e as aparentemente maciças
fusões bancárias, Geoffrey Waters começou a montar um dossiê de Amanda Bentley-Smythe. Não era uma história pessoal baseada em fofocas de alcova, o chefe do MI-5 não estava interessado na promiscuidade
de sua cunhada a não ser onde houvesse um padrão específico. Mas de repente emergiu um que o deixou profundamente interessado.
Amanda Reilly era filha de um respeitável casal irlandês proprietário de um próspero pub em Dublin conhecido por sua atmosfera cordial, fregueses fiéis e, estranhamente, sua limitada cozinha. A atraente
criança desabrochou numa encantadora adolescente ruiva, e depois numa sedutora jovem mulher cuja presença fazia os fregueses interromperem suas libações quando ela vinha atender as mesas. De acordo com
a informação disponível, o fotógrafo de uma revista a serviço em Dublin foi ao pub, viu Amanda, e pediu aos seus pais muito católicos permissão para tirar fotografias de sua filha.
"Não se atreva ou quebro a sua cara"!, teria sido a resposta frequentemente citada do pai. O resto foi um conto de fadas, como diriam os tabloides. Amanda foi levada para Londres, onde lhe ensinaram regras
de etiqueta enquanto subia os degraus da fama como modelo. No processo, perdeu muito do seu sotaque irlandês, exceto sua deliciosa cadência, e ou devido à sua criação ou à austera orientação dos pais,
ela só se exibia em roupas clássicas, geralmente adornadas com joias caríssimas. Tornou-se uma estrela da sua profissão.
De repente algo aconteceu com a adorável garota irlandesa, pensou Geoffrey Waters, enquanto ia acumulando dados e mais dados. Amanda Reilley ingressou no circuito social dos famosos, dos pretensos famosos,
dos realmente abastados e dos aspirantes. Foi fotografada na companhia das celebridades - a realeza menor, estrelas do cinema, financistas divorciados e, finalmente, um certo Clive Bentley-Smythe, com
quem resolveu se casar. Simplesmente não fez sentido para o chefe do MI-5. Com tantos peixes graúdos nas suas águas, ela escolhera um inócuo baiacu para seu príncipe consorte.
Seguiu-se o inevitável: o boato, que provocou uma sindicância do serviço secreto em torno de passagens aéreas e de um avião particular com seus destinos e planos de voo. Os computadores processaram as
frequências comparativas dos efetivos e dos supostos agraciados com seus favores, baseadas em informações previamente confirmadas, documentadas com fotografias. Entre as elites londrina e escocesa contavam-se
jovens e não tão jovens capitães de indústrias, herdeiros de conhecidos castelos e suntuosas propriedades rurais com extensas terras para caçadas frequentadas por membros da realeza e elegantes iatistas
suficientemente ricos para participar de regatas internacionais. Paris incluía diversos estilistas heterossexuais da alta-costura, assim como a fauna gay parisiense, que a adorava. O único lapso era um
de seus mais assíduos destinos durante o último ano: a Holanda, especialmente os voos para Amsterdã. Ninguém aparecia para recebê-la ao chegar no seu avião particular, ninguém jamais foi visto acompanhando-a
a um carro ou a uma limusine. Ninguém. A modelo internacionalmente famosa sempre tomava táxis para o centro da cidade e, para todos os efeitos, desaparecia.
Amsterdã.
E então Sir Geoffrey Waters começou a compreender, e foi como se tivesse levado um soco no estômago. Seria ele a razão para a escolha do baiacu? Embora sua foto nunca aparecesse nos jornais, ele era conhecido
como o poderoso chefe da Segurança Interna do MI-5. Que melhor conexão para os Matarese? E a absurda suposição - ou seria meramente presunção? - respondia a algumas perguntas emboscadas nas sombras da
mente de Sir Geoffrey. Nos últimos meses, Clive e Amanda vinham se mostrando extremamente carinhosos com Gwyneth e ele, convidando-os para jantares e recepções que Waters achava irrelevantes e aborrecidos,
embora não dissesse nada porque sabia que sua mulher adorava o irmão. Entretanto, num rompante, ele fez uma pergunta.
- Minha querida Gwyn, por que esse repentino ímpeto afetuoso? Será que ouviram falar que estamos cogitando do nosso testamento? É claro que herdarão o seu dinheiro - o que você ainda não deu a ele - porque
eu sou fichinha nesse departamento. Eles telefonam ou batem à nossa porta não sei quantas vezes por semana. Tenha dó, eu ainda preciso trabalhar para ganhar a vida.
- Não precisaria se me deixasse pagar as contas, meu bem.
- Nem pensar. Além do mais, sou bastante bom naquilo que faço.
- Por favor, Geof, Clive o adora, você sabe disso, e a Amanda tem uma queda por você. Sempre faz questão de sentar ao seu lado. Não venha me dizer que qualquer homem, mesmo chegando aos sessenta, não ficaria
perturbado ao sentar-se ao lado de uma das mulheres mais bonitas do mundo. Se você me dissesse, eu não acreditaria.
- Ela faz muitas perguntas tolas. Acha que sou um clone do James Bond, o que definitivamente não sou. Nem o Bond original tampouco era. Ele era um diletante, mais interessado nos seus malditos jardins
do que no seu trabalho para nós.
Mas era inegável que Amanda Bentley-Smythe fizera muitas perguntas. Nada que Waters não pudesse driblar com um simples gesto de mão, mas ainda assim... Num daqueles horrorosos jantares, seu copo sempre
diligentemente reabastecido pela glamourosa e sedutora Amanda, teria ele inconscientemente revelado alguma coisa ou mencionado algum nome que não devesse? Achava que não; era muito experiente para isso,
mas tudo era possível, pois sempre tivera na mais alta conta o QI de sua interlocutora. Porventura ela teria ficado sabendo de algo que não deveria, qualquer coisa que ele tivesse mencionado inocentemente,
que, mesmo sendo de domínio público, ela pudesse ter esmiuçado? Seu desconhecido contato em Amsterdã faria realmente parte da gangue dos Matarese? Geoffrey Waters tinha que se confrontar com suas dúvidas
pessoais e elucidá-las.
Seu interfone vermelho soou suavemente, ele nunca tocava estridentemente. Era sua ligação direta e segura com o todo poderoso diretor de operações. - Waters falando.
- Receio que tenha notícias desagradáveis, Geof. Prepare-se.
- Minha mulher!
- Não, o objeto de suas recentes pesquisas, sua cunhada, Amanda Bentley-Smythe.
- Ela desapareceu, não foi?
- Não, muito pior. Ela está morta, foi estrangulada e o seu corpo jogado no Tâmisa. Foi resgatado há uma hora por uma patrulha fluvial.
- Oh, meu Deus!
- E não é só isso, meu velho. Três importantes executivos de bancos na Suíça, Liverpool e Londres foram abatidos com tiros na cabeça. Nenhum sobreviveu. Execuções no estilo do submundo.
- É um expurgo! - exclamou Waters. - Interditem seus escritórios!
- Não há nada a interditar! Já removeram tudo.
- Você precisa pensar, Clive - pressionou Geoffrey Waters, fitando os olhos lacrimosos do seu abalado cunhado. - Deus sabe o quanto sinto por você, mas essa coisa horrível que aconteceu tem implicações
muito além do que você possa imaginar. Nesses últimos dias...
- Não consigo pensar, Geof! Toda vez que tento, ouço sua voz e me dou conta de que ela se foi para sempre. É só nisso que consigo pensar!
- Onde é que você guarda o seu conhaque, meu caro? - perguntou Waters, olhando em volta da biblioteca dos Bentley Smythe que dava para um jardim ensolarado em Surrey. - Oh, sim, naquele armário ali adiante.
Acho que um drinque ajudará.
- Não tenho certeza - disse Clive, enxugando os olhos e as faces. - Não sou muito forte para bebidas e o telefone não para de tocar, até mesmo fora do gancho...
- Já não toca há algum tempo - interrompeu Sir Geoffrey porque de certa forma está fora do gancho.
- Como é que é?
- Mandei transferir todas as suas chamadas para uma secretária eletrônica no meu escritório. Quando quiser, se quiser, poderá ouvir os recados.
- Você pode fazer isso?
- Posso e fiz, meu amigo. - Waters retirou uma garrafa do armário, serviu uma pequena dose de conhaque e levou-a para o desolado cunhado. - Tome isso aqui.
- E os repórteres que estão lá fora na rua? Eles estão cercando a casa e vou acabar tendo que enfrentá-los.
- Eles não estão cercando coisa alguma. A polícia os dispersou.
- Você pode... é claro que pode. Você manda. - Bentley Smythe tomou o conhaque e estremeceu ao fazê-lo, um homem pouco afeito ao álcool. - Você ouviu as coisas nojentas que estão dizendo no rádio e na
televisão? Estão levantando as mais escabrosas suspeitas, dizendo que Amanda tinha amantes e ligações escusas sem conta. Estão pintando a pobre coitada como uma vagabunda da classe alta... Ela não era,
Geof! Ela me amava e eu a amava!
- Sinto muito, Clive, mas a Amanda não era nenhuma santa.
- E você pensa que eu não sabia disso? Não sou cego! Minha mulher era uma criatura muito bonita, vibrante e excitante. Infelizmente era casada com um simplório pouco atraente de uma família ilustre dotado
de muito pouco talento. Também sei disso porque esse é o meu retrato e eu não lhe bastava!
- Então você fazia vista grossa às suas... digamos, indulgências?
- Naturalmente! Eu era a sua âncora, a calmaria em meio às tempestades da publicidade e da fama, seu porto seguro quando se sentia ferida e exausta.
- Você é positivamente um marido excepcional - observou Sir Geoffrey.
- O que mais podia fazer! - alegou o marido fora de série. Eu a amava mais do que a minha própria vida. Não podia permitir que me deixasse por causa de irrelevantes considerações da moralidade social.
Para mim, ela estava acima disso tudo!
- Tudo bem, Clive, tudo bem - disse Waters. - Mas você tem que me deixar fazer o meu trabalho.
- Ela foi assassinada, pelo amor de Deus! Por que a polícia ou a Scotland Yard não estão me interrogando? Por que você!
- Espero poder deixar isso claro para você. O fato de estar lhe interrogando tem uma explicação. O MI-5 é superior a quaisquer investigações da polícia ou da Scotland Yard. Naturalmente, trabalhamos todos
em conjunto, mas, em circunstâncias como esta, temos precedência.
- O que é que você está dizendo? - Bentley-Smythe olhou boquiaberto para o cunhado. - O seu departamento é como o Serviço Secreto, vocês caçam espiões e traidores, esse tipo de coisa. O que é que Amanda
tem a ver com vocês? Ela foi assassinada, que diabo! Pegar o assassino é trabalho da polícia.
- Posso lhe fazer algumas perguntas? - disse Waters, não levando em conta gentilmente o protesto de Clive.
- Por que não? - respondeu um confuso, inconsolável Bentley-Smythe. - Você desviou as chamadas telefônicas, expulsou os repórteres; você não poderia fazer essas coisas se não estivesse agindo seriamente.
Pergunte.
- Nos últimos dias, ou mesmo semanas, Amanda mostrou sinais de tensão, estresse? O que quero saber é se o seu comportamento mudou. Ela estava anormalmente preocupada, irritada?
- Não mais do que de costume. Ela ficou furiosa com suas últimas fotos, queixando-se de que o fotógrafo a vestira com roupas de "matrona". Ela admitiu que não era mais uma modelo de vinte e poucos anos,
mas que também ainda não estava pronta para "vestidos de vovós caducas" - foi a expressão que ela usou. Amanda tinha uma personalidade realmente muito forte.
- Estou me referindo a outras coisas, Clive, além do seu ego. Ela recebeu algum telefonema que a deixou obviamente perturbada, ou foi procurada por pessoas que se recusou a receber?
- Não saberia dizer. Passo o dia no escritório e ela geralmente não ficava em casa. Mantinha um pequeno apartamento na cidade para quando sua agenda estava muito cheia e não dava para ela vir até aqui.
- Eu não sabia disso - disse Sir Geoffrey. - Qual é o endereço?
- Em algum lugar em Bayswater, duzentos e alguma coisa, acho eu.
- Você acha? Nunca esteve lá?
- Francamente, não. Mas tenho um número de telefone. Não consta da lista, naturalmente, muito exclusivo.
- Poderia me dar, por favor? - Clive assim fez e Watersen encaminhou-se rapidamente para um telefone em cima de uma mesa próxima. Discou, ficou ouvindo atentamente com a testa franzida, e depois desligou,
olhando para Bentley-Smythe. - O número foi desligado.
- Como é possível? - estranhou Clive. - Ela não tinha nenhuma viagem marcada, e mesmo quando se ausentava, sempre deixava a secretária eletrônica ligada. Oh, meu Deus, era a linha secreta de sua vida!
- Percebendo que suas palavras podiam ser mal interpretadas, o viúvo calou-se abruptamente.
- Por que era secreta, Clive?
- Provavelmente a palavra adequada não é essa - respondeu o advogado que havia em Bentley-Smythe. - É que quando ela viajava para suas locações no exterior, sempre lhe perguntava se queria que eu lhe transmitisse
os recados, ela me telefonava quase todos os dias, compreende?
- Pensei que tivesse dito que nunca tinha estado no apartamento dela.
- E nunca estive. Ela possuía um desses aparelhos que transmitem seus recados toda vez que você liga. Sugeri que ela me desse o número de sua senha para que eu recolhesse suas chamadas, mas ela se recusou
taxativamente... eu compreendi.
- Impressionante - murmurou o chefe do MI-5, voltando para o telefone. Pegou-o e ligou para o seu escritório, dando a uma assistente o número do telefone em Bayswater Road. - Use canais oficiais, obtenha
o endereço e mande uma equipe de busca, inclusive um perito. Levantem todas as impressões digitais que encontrarem e me telefone de volta para cá.
- Tenha paciência, Geof, o que é que está acontecendo? Você está agindo como se isso não fosse o horrível assassinato de minha mulher, mas sim algum tipo de incidente internacional.
- Você não poderia ter se expressado melhor, Clive, pois é exatamente disso que se trata. Três outras pessoas foram mortas aqui na Inglaterra no espaço de poucas horas do homicídio de Amanda, e cada uma
era suspeita de fazer parte de uma conspiração financeira afetando muitos países e milhões de pessoas.
- Santo Deus, o que é que você está dizendo? Minha mulher tinha suas fraquezas, concordo, mas o que você está insinuando ultrapassa de tal forma minha capacidade de compreensão que chega a ser ridículo.
Cheguei a convencê-la da necessidade de contratar os serviços de uma firma de contabilidade para administrar o dinheiro que ela ganhava. Era incapaz de conferir o saldo no canhoto de um talão de cheques!
Como essa mulher tão desligada de suas próprias finanças poderia fazer parte de um complô financeiro?
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra, meu querido. Amanda adorava a vida vertiginosa, o circo do jet-set internacional com todos os seus adornos superficiais. O dinheiro nunca foi uma consideração
para ela, meramente um inconveniente.
- Ela me amava! - gritou um Bentley-Smythe cada vez mais histérico. - Ela precisava de mim, eu era o seu lar e a sua lareira! Ela me disse isso tantas e tantas vezes.
- Estou certo do que disse e acredito na sua sinceridade, Clive, mas a celebridade pode fazer coisas estranhas a uma pessoa. Quase sempre elas se tornam duas pessoas, a pessoa pública e a pessoa privada,
não raro tão diferentes uma da outra.
- O que mais você quer de mim, Geof? Esgotei minhas explicações.
- Somente o que se lembrar das últimas semanas. Comece talvez de um mês para cá, especialmente a partir do momento em que soube que estava sendo cogitado para a diretoria da Sky Waverly.
- Oh, isso é fácil. Soube primeiro da própria Amanda. Ela acabara de voltar de uma sessão de fotos em Amsterdã - sabe como é, mulheres de grande classe em vestidos deslumbrantes flanando pelos canais -
e me contou que tinha conhecido um homem ligado à Sky Waverly que lhe dissera que estavam procurando um nome de prestígio para integrar a diretoria da empresa. Ela sugeriu o meu nome e eles toparam de
cara. Uma renda extra maravilhosa, devo acrescentar.
Amsterdã.
- Ela lhe disse quem era o homem? - Sir Geoffrey perguntou casualmente.
- Não se lembrava do nome, e eu não insisti. Quando me telefonaram de Paris, fiquei radiante e naturalmente aceitei o convite na hora.
- Quem foi que lhe telefonou?
- Um cidadão chamado Monsieur Lacoste.
- Voltemos às últimas semanas, Clive, seus dias na intimidade com Amanda. Farei as perguntas e você responde o que lhe vier à cabeça.
- Estou acostumado a isso - disse Bentley-Smythe. - Já fiz terapia, sabe? - Falaram durante quase duas horas, Waters tomando notas esporadicamente enquanto estimulava seu cunhado a desenvolver certas lembranças,
certas conversas. À medida que evoluía, o cenário revelava um casamento realmente muito estranho. Havia a mais absoluta confiança de parte do marido, contrastando com a total infidelidade de parte da mulher.
Aparentemente era uma união à La Rochefoucauld, de absoluta conveniência, pendendo extravagantemente para o lado da mulher. Amanda Reilly tinha se casado com Clive Bentley-Smythe pelo que ela e outros
poderiam ganhar com o nome, não com o homem. Ademais, considerando seus atributos de beleza e fama, ela recebera ordens para proceder dessa maneira. De quem tinham sido as ordens?
Amsterdã.
O telefone tocou e Waters atendeu. - O que foi que apurou?
- O que o senhor não vai gostar de ouvir - disse um subordinado do MI-5. - O apartamento foi arrasado, as paredes de todos os cômodos receberam diversas demãos de tinta grossa e a superfície de todos os
móveis foi destruída com ácido. Não restou nada, Sir Geoffrey.
- As ligações telefônicas?
- Todas apagadas.
- Quem poderia ter feito isso?
- Aproximadamente quinhentos técnicos de linhas subterrâneas que sabem mexer nessas coisas.
- Então estamos de volta à estaca zero?...
- Não necessariamente, senhor. Enquanto estávamos lá um de nossos homens, que ficou vigiando a rua, avistou um indivíduo que se aproximou do edifício, obviamente percebeu pela janela o movimento no interior
do apartamento, deu meia-volta e se afastou do local apressadamente.
- Nosso homem o seguiu; se não o fez, qual foi o motivo?
- Não houve tempo, o suspeito desapareceu numa esquina e o tráfego era intenso. Mas, tendo em vista as circunstâncias, ele fez o melhor que poderia ter feito. Pegou sua câmera de alta velocidade e bateu
uma sequência de fotos de rápida exposição. Ele me disse que a maioria foi das costas do sujeito, mas nem todas, porque o homem virou-se diversas vezes, aparentemente para ver se alguém o estava seguindo.
- Bom trabalho. Mande revelar o filme imediatamente no nosso laboratório e mande as fotos para o meu escritório num envelope lacrado. Ninguém deverá vê-las antes que eu chegue aí. Levarei uns quarenta
minutos para voltar a Londres. Espero encontrá-las na minha mesa.
John e Joan Brooks, irmão e irmã, hospedaram-se em suítes contíguas no famoso e caro hotel Villa d’Este no lago Como. A busca normal para concessão de crédito revelou que os irmãos eram abastados americanos
do Meio-Oeste que tinham herdado recentemente mais alguns milhões como únicos herdeiros de um tio sem filhos da Grã-Bretanha. Nenhum dos dois estava casado no momento, ele já tendo se divorciado duas vezes,
e ela uma. Todas as informações foram confirmadas pelo Departamento de Estado americano, as autoridades britânicas e o escritório de advocacia Braintree e Ridge estabelecido na Oxford Street, Londres.
Frank Shields, analista emérito, e Sir Geoffrey Waters, do MI-5, tinham feito bem o seu trabalho. Cameron Pryce e Leslie Montrose poderiam ter iniciado negociações para comprar o Crédit Suisse e teriam
sido levados a sério.
A notícia correu rápido pelas suntuosas residências às margens do lago Como, de que os dois irmãos tinham promovido as carreiras de celebridades internacionais - estrelas do cinema e da televisão, cantores,
artistas em evidência e companhias de ópera em ascensão. Era simplesmente seu hábito fazê-lo. De quanto precisava este ou aquele talento para ser lançado? Estavam sempre dispostos a gastar um pouco.
Don Silvio Togazzi deu a partida na ofensiva de boatos falsos na comunidade de Bellagio, sabendo que eles atingiriam o alvo que realmente interessava. E não deu outra. Ele sorriu quando soube que começavam
a chegar convites no Villa d’Este para os dois americanos com tal rapidez que o concierge exclamou: Pazzo! Essa dupla vai aprontar mais confusão do que os sauditas com seus famigerados tapetes! - Finalmente,
chegou o convite que estavam ansiosamente aguardando. Era para um bufê e jogo de croqué com drinques no iate após os extenuantes exercícios no gramado. O próprio concierge fez questão de entregar o convite,
satisfeito de ver que já que a Srta. Brooks estava visitando seu irmão, podia expressar sua aprovação a ambos de uma só vez.
- Permitam-me recomendar que aceitem, signore e signora. A propriedade dos Paravacini é a mais gloriosa do lago, e a família é tão inventiva, não lhes parece?
- De que forma? - perguntou Cameron.
- Bufê e croqué, signore! Nada de jantares dançantes enfadonhos ou coquetéis intermináveis para os Paravacini. Comida requintada, risos e jovialidade na partida de croqué, drinques ao pôr-do-sol a bordo
do mais luxuoso iate ancorado no lago, tudo isso não é muito imaginoso?
- Parece delicioso! - exclamou a tenente-coronel Montrose.
- Será, sem dúvida, mas os advirto, os Paravacini são invencíveis com o malho e a bola, principalmente o cardeal. Façam apostas razoáveis, pois perderão na certa.
- Eles jogam croqué a dinheiro?
- Si, signore, tudo revertendo para obras de caridade, naturalmente. O cardeal Rudolfo, um padre encantador e erudito, costuma dizer que enche os cofres do Vaticano mais com o seu croqué do que com os
seus sermões. Ele tem um senso de humor maravilhoso, vão gostar dele.
- O traje exigido costuma ser muito formal, monsieur le concierge? A maior parte de nossa bagagem ainda está em Londres.
- Oh, extremamente informal, signora. O padrone, Don Carlo Paravacini, diz que camisas engomadas e roupas apertadas diminuem o divertimento.
- Uma opinião inusitada para um homem de idade - disse Pryce.
- Don Carlo está longe de ser uma pessoa idosa. Creio que ele tem trinta e oito anos.
- É muito jovem para ser um "Don", não é mesmo?
- É a posição, não é a idade, signore. Carlo Paravacini é um importante homem de finanças com bens e propriedades por toda a Europa. Ele é muito... como é que vocês dizem... astuto.
- Em finanças internacionais, imagino.
- Si, mas essas coisas escapam ao meu alcance. Tenho certeza de que vão se divertir, e se não for incômodo, apresente meus cumprimentos a Don Carlo.
- Certamente o faremos - disse Leslie, cutucando Cam. - As lojas ainda estarão abertas?
- Para hóspedes dos Paravacini, mandarei pessoalmente trazer o que desejarem ver.
- Não será necessário, prefiro ir dar uma olhada.
- Como quiserem. Arrivederci, então.
O concierge se retirou e Montrose virou-se para Pryce. Quanto dinheiro temos?
- Ilimitado - respondeu Cam. - Geof Waters me deu seis cartões de crédito, três para você e três para mim. Sem limite de compras.
- Ótimo, mas o que é que temos em dinheiro vivo?
- Não tenho certeza. Acredito que três ou quatro mil libras...
- Menos de seis mil dólares. E se os Paravacini jogarem a dinheiro pra valer, no estilo italiano?
- Não tinha pensado nisso.
- Pense agora, Cam. Os Brooks não podem chegar com cartões de crédito.
- Não sabemos a quanto montam as apostas...
- Eu estava baseada em Abu Dhabu uma vez e fiquei devendo oito mil dólares - interrompeu Montrose. - Tive que acordar o pessoal da embaixada para me tirarem viva de onde eu estava!
- Puxa! - você levou uma vida muito mais excitante do que eu, coronel.
- Duvido muito, agente Pryce, mas telefone para Londres e diga a Geof para telegrafar uma ordem para o Sr. Brooks de pelomenos vinte mil dólares creditados ao hotel pelo Banco da Inglaterra.
- Você é muito viva, coronel. Esse é meu território e você está pensando na minha frente.
- Não, não sou, querido. Sou uma mulher, e as mulheres tentam prever quando será necessário ter dinheiro à mão. É um enigma universal.
Cameron segurou-lhe os ombros, seus rostos muito próximos, os lábios quase colados. - Você sabe qual é o meu enigma, não sabe?
- Estava esperando que você acordasse, seu bobo.
- Tinha receio, seu filho, seu marido, Ev Bracket... Eles faziam parte de você de tal forma que eu não tinha certeza se poderia romper a barreira.
- Você conseguiu, Cam, sem dúvida nenhuma conseguiu, embora nunca pensasse que fosse possível. Sabe por quê?
- Não, não sei.
- Quase tenho medo de lhe dizer porque você pode não gostar.
- Agora você tem que me contar.
- Você leu o meu dossiê, e certamente compreende que eu também li o seu.
- Acho que me sinto envaidecido por você ter querido lê-lo mas ao mesmo tempo fico furioso pelo fato de o terem dado a você.
- Eu também tenho amigos na burocracia.
- Obviamente. Aonde é que você quer chegar?
- Deixando de lado essa conversa, você é basicamente um homem que se fez à sua própria custa, não havia generais nos seus antecedentes como no meu caso, nem muito dinheiro, novamente como no meu.
- Ei, também não vivíamos da caridade da assistência social, minha senhora - disse Pryce, divertido e soltando os ombros dela, sem se afastar porém. - Meu pai e minha mãe eram professores, e os dois eram
excelentes. Fizeram questão de que eu fosse mais longe do que eles tinham conseguido.
- Quando a CIA o escolheu em Princeton - completou Leslie - por que você aceitou?
- Para ser franco, pensei que seria estimulante... e estava contraindo tantos empréstimos para estudar que passaria a metade de minha carreira pagando-os.
- Você também era um atleta - atalhou Leslie, com o rosto ainda quase colado ao dele.
- Fui atleta principalmente nos tempos de colégio - como disse muitas vezes - porque odiava a ideia de ser manipulado.
- Você era de primeira, meu querido...
- Você quer dizer isso novamente, por favor?
- Sim, digo... Meu querido, meu totalmente inesperado querido.
Eles se beijaram demoradamente e com crescente excitação, até que Leslie recuou e olhou nos olhos de Cam. - Ainda não lhe disse por que você rompeu minhas barreiras.
- É importante?
- Para mim, é, querido. Não sou de programas de uma noite e espero que você saiba disso tão bem quanto eu. Não sou uma prostituta.
- O que é que há? Jamais seria capaz de pensar em você dessa forma!
- Veja bem, agente Pryce. Algumas de minhas melhores amigas foram injustamente classificadas dessa forma. Você não faz ideia do que seja o casamento no meio militar. Meses e meses de separação, seus anseios
naturais, os homens atraentes que lhe assediam nos clubes militares, inclusive superiores de seu marido.
- Sim, é revoltante - disse Cameron.
- Sem a menor dúvida - concordou a tenente-coronel - mas acontece.
- Aconteceu com você?
- Não. Felizmente sempre tive Jamie, a reputação de filha de um general e as missões malucas de Bracket. Sem eles, não sei não.
- Eu sei - disse Pryce, tomando-a nos braços e beijando-a novamente, mais demoradamente do que antes, sua intensidade inicial inegável, sentida por ambos.
O telefone do hotel tocou e Leslie se afastou. É melhor você atendê-lo - ela sugeriu.
- Nós não estamos aqui - respondeu Cameron suavemente, ainda segurando-a nos braços.
- Por favor... Não tenho falado com Jamie...
- Claro - disse Pryce, soltando-a - mas sabe que não pode. Waters lhe disse isso.
- Mas poderia ter notícias dele, não poderia?
- Naturalmente. - Cam encaminhou-se para uma mesa e pegou o fone, cortando um terceiro toque da campainha. - Alô?
- Estamos usando o misturador de vozes, mas ele tem limitações do seu lado - disse Geoffrey Waters de Londres. - Fale figuradamente, por favor.
- Compreendo.
- Está fazendo algum progresso?
- Estava até você ligar.
- Não entendi.
- Nada, esqueça. Sim, temos. Algumas joias locais e uma tapeçaria rara serão maravilhosos acréscimos para nossas coleções.
- Excelente. Uma sólida conexão, então?
- Acredito que sim, saberemos melhor hoje à noite. A propósito, minha irmã quer dinheiro.
- Compre tudo a crédito.
- Os nativos não aceitam cartões.
- Compreendo. Acima do que já mandei?
- Mando pra onde?
- O escritório do caixa do Villa d’Este.
- Deixaram um recado mais cedo mas não liguei de volta.
- Mandei dez mil libras - disse Waters.
- O que é isso em dólares americanos?
- Não estou certo, cerca de dezessete ou dezoito mil.
- Acho que basta. Ela falou em vinte.
- Santo Deus, para quê?
- Talvez a tapeçaria.
- Entendo. Enviarei mais dez,
- Alguma coisa aí do seu lado que possa enriquecer nossa coleção?
- Com certeza. Uma grande aquisição aqui mesmo em Londres. Um quadro que estou convencido de que é um Goya da primeira fase, não assinado, dos dias de traição, como ele os chamou. Poderia lhe mandar uma
foto mas não faria justiça à obra. Você o verá quando voltar aqui a caminho dos Estados Unidos.
- É uma notícia maravilhosa. Nos manteremos em contato.
- Não deixe de ligar se a conexão der certo.
- Naturalmente. - Pryce desligou o telefone e virou-se para Leslie. - Podemos pegar uma boa grana lá embaixo e Geof vai mandar mais.
- Adorei quando você disse "minha irmã quer dinheiro".
- Talvez você seja mais gananciosa do que eu. É mais lógico para uma mulher rica.
- Sexista.
- Nada mais verdadeiro. - Cameron aproximou-se dela. Onde é que nós estávamos mesmo?
- Quero que você vá comigo às lojas, me ajude a escolher algumas roupas informais simpáticas. Mas primeiro me diga qual foi a "notícia maravilhosa".
- Do modo como interpretei, eles têm uma fotografia de um espião em Londres. Um quadro de Goya dos dias de traição, foi como ele falou.
- Como é que é?
- A obsessão de Goya com as execuções espanholas.
- Sei quem foi o pintor, mas do que é que você está falando?
- Acho que eles encontraram o espião dos Matarese em Londres.
- Isso, sim, é progresso. Agora vamos ver se fazemos algum.
- Preferia fazer algum em termos pessoais, nossos - você não acha que seria legal?
- Não agora, meu querido, quero tanto quanto você, mas só temos três horas para irmos à casa dos Paravacini.
- Que diferença faz uma hora ou pouco mais?
- Para início de conversa, são pelo menos quarenta e cinco minutos para se dar a volta ao lago, e temos que nos apresentar vestidos apropriadamente.
- Por que tenho que acompanhá-la na sua ida às lojas?
- Porque os homens sabem o que acham atraente numa mulher. Ando de uniforme há tanto tempo que estou desatualizada. Você saberá dizer o que fica bem em mim.
- E eu?
- Eu saberei quando vesti-lo.
- Sexista!
- Aceito isso até certo ponto... E já que esfriamos um pouco, eu lhe direi por que você rompeu minhas barreiras. Você quer ouvir?
- Não tenho certeza, mas acho que quero, sim.
- Você é um homem decente, raro, Cameron Pryce. Você percebeu a atração entre nós, assim como eu também senti, mas soube manter distância. Você me respeitou quando outros talvez não o tivessem feito. Gosto
disso.
- Não creio que houvesse qualquer outra maneira. Claro, a atração era mais do que evidente, mas você tinha seus problemas - seu marido, seu filho, as coisas horríveis por que passou. Como um estranho poderia
pretender ultrapassar tudo isso?
- Pois você conseguiu, delicada e gentilmente. No entanto, no seu trabalho você não tem nada de delicado ou gentil... Sim, Cam, li tudo a seu respeito. Você é realmente um agente de operações secretas,
sem dar nem receber tréguas. Você matou doze líderes terroristas oficialmente, e provavelmente outros doze que não chegaram a ser computados. Você se infiltrou nas hostes inimigas e os eliminou implacavelmente.
- Esse é o meu trabalho, Leslie. Se não o tivesse feito, eles teriam matado mais centenas, talvez milhares de pessoas inocentes com suas sangrentas insurreições.
- Acredito em você, meu querido, só estou tentando dizer que há um outro lado do agente Pryce, que ele me mostrou. Terei direito a isso?
- Certamente, mas vamos limitar a circulação, tá legal?
- Não se preocupe que eu farei isso, ora se farei. Sabe porquê? Mas deixemos isso pra lá por enquanto, ainda responderei... não sei o que acontecerá na próxima semana ou no próximo mês, ou quem sabe até
no próximo ano, mas no momento não quero perdê-lo, Cameron Pryce. Perdi um homem decente, não quero perder outro.
Caíram na cama, abraçando-se apaixonadamente.
Um quarteto de cordas tocava debaixo de um caramanchão na extrema direita do percurso do croqué. Quando John e Joan Brooks chegaram, os agora bem divulgados irmãos filantropos da cultura americana, a maioria
dos convidados já se encontrava na festa desfilando sua elegância casual. Um grande quadro verde tinha sido colocado num poste atrás da meta da área delimitada para o jogo de croqué; os pontos dos jogadores
eram marcados com giz colorido. Diversas mesas com toalhas finíssimas e talheres de prata estavam espalhadas pelo imenso e impecavelmente aparado gramado na beira do lago.
O grande e imponente iate estava atracado no fim de um longo cais; uma varanda protegida por um toldo com capacidade para umas sessenta pessoas debruçada sobre as águas do lado norte do lago Como era uma
visão atemorizante.
A mansão propriamente dita tinha sido apenas vislumbrada através das lentes de aumento do telescópio de Togazzi. Era um "castelo" contemporâneo de pedra e madeira, de quatro andares, com torreões abertos
embandeirados. A única coisa que faltava era um fosso. O concierge do Villa d’Este não exagerara ao dizer que a propriedade dos Paravacini era a mais gloriosa do lago.
- Pagamos quase que um mês de salário por essas roupas disse Montrose ao caminharem pela alameda de tijolos que cercava a grande casa e conduzia à festança às margens do lago. - Mas tenho a ligeira impressão
de que somos os mais modestamente vestidos.
- Você está maluca - protestou Pryce. - Acho que nós dois estamos simplesmente abafando, principalmente você.
- Isso é outra coisa. E pare de me olhar desse jeito. Somos irmão e irmã para todos os efeitos, mas não incestuosos.
- Perdoe-me, acontece naturalmente.
- Não olhe agora, apenas ria e vire disfarçadamente a cabeça para a direita. Há um homem nos observando insistentemente. Ele está de calça azul e camisa amarelo vivo.
- Percebi. Nunca o vi antes.
- Ele está se aproximando... John.
- Eu sei... Joan.
- Vocês devem ser os Brooks! - disse o homem de cabelos pretos, extremamente bem-apessoado, com entusiasmo, seu inglês tisnado por um forte sotaque italiano. - Noto a semelhança de família.
- Ouvimos isso frequentemente - disse Leslie, estendendo a mão. - E quem é o senhor?
- Seu dedicado anfitrião, Carlo Paravacini, honrado por terem aceito meu convite - respondeu o Don, beijando a mão de Montrose. - Ou como meus amigos americanos me chamam, "Charlie" - ele continuou, apertando
a mão de Cameron.
- Então direi presunçosamente que tenho muito prazer em conhecê-lo, Charlie.
- Gosto disso, gosto realmente... Uma bebida, talvez um bom Chablis, ou um raro scotch?
- Alguém deve ter andado fofocando a nosso respeito - interrompeu Leslie, rindo. - Essas são nossas bebidas favoritas.
- Mas sempre moderadamente, também me disseram. E aprecio isso, aprecio de fato.
- Parece-me então que é o momento de dizer-lhe que o concierge do Villa d’Este envia-lhe seus respeitosos cumprimentos acrescentou Cameron.
- Aceito-os, agradecido - disse o charmoso anfitrião -, mas, pelo amor de Deus, não digam a ele que lhe roubei o subchefe de cozinha para cuidar dos comes e bebes desta festinha vespertina. O malandro
surrupia as melhores receitas do seu superior, mas afinal, é seu dia de folga.
- Nossos lábios estão selados, Carlo... Charlie - disse Leslie charmosamente, enquanto Pryce lançava-lhe um olhar não muito entusiástico.
Paravacini, segurando Leslie pelo braço, conduziu-a por entre os grupos esparsos de convidados em direção a uma mesa de bebidas e pediu os drinques. Enquanto fazia isso, uma figura relativamente alta,
elegante, de cabelos grisalhos, vestindo calça bege e camisa preta de mangas curtas encimada por um colarinho clerical aproximou-se deles. Carlo virou-se ao ver o padre e o apresentou.
- Sua Eminência é meu tio, cardeal Rudolfo Paravacini, mas aqui em Como o chamamos de papai Rudy. Não é mesmo, Sr. cardeal?
- Fui criado aqui, por que não? - respondeu o entusiasmado cardeal da Igreja Católica. - Corri por esses campos atrás de cabras e coelhos como todo mundo. Fui escolhido, não procurei. A generosidade de
meu sobrinho me proporciona alguns momentos de luxo que meus votos não me permitem.
- Prazer em conhecê-lo - disse Cameron, apertando-lhe a mão.
- Encantada - disse Leslie, fazendo o mesmo.
- Deus seja louvado pelos protestantes americanos - respondeu o cardeal. - Meus rebanhos italiano, francês e espanhol beijam o meu anel e pensam que posso lhes assegurar um lugar no céu quando não tenho
certeza de garantir um para mim. Sejam bem-vindos ao Lacus Larius.
- Ouvi dizer que o senhor é invencível no croqué, cardeal disse Cameron.
- Não exageremos, mas sou de fato um bom jogador. Gostaria de jogar comigo?
- Preferia jogar do seu lado. Minha irmã é melhor jogadora do que eu.
- Prepare-se, Carlo - disse o cardeal. - Meu parceiro será o Signor Brooks.
- Como quiser - respondeu Don Carlo Paravacini, olhando estranhamente para o cardeal.
O jogo transcorria animado na quadra de croqué, os gritos entusiásticos quando uma das metas era vazada eram acompanhados de gemidos desconsolados dos que erravam o alvo. E durante as sucessivas partidas,
criados iam e vinham com bandejas de chá gelado e limonada para refrescar os jogadores, o álcool deliberadamente abolido. Depois de três horas, os vencedores foram premiados com malhos de croqué de prata,
com os nomes de cada um gravado na hora, e todos começaram a se encaminhar para a varanda coberta do iate.
- Sinto muito, sinceramente - disse Pryce ao seu parceiro, o cardeal Paravacini. - Enterrei o jogo.
- Embora o Senhor pregue o perdão, acho difícil concedê-lo, John Brooks - disse o cardeal, sorrindo. - Você foi um desastre. Em contrapartida, sua irmã jogou muito bem e os dois ganharam o maldito jogo.
Ela e meu sobrinho, Carlo, fazem um belo par, não acha? Tão bonitos ao lado um do outro, tão inteligentes. Quem sabe se as coisas não vão adiante?
- Minha irmã não é católica...
- Uma conversão sempre é possível - interrompeu o príncipe da Igreja. - Anulamos seu primeiro casamento, e sua segunda esposa morreu não faz muito tempo.
- Não sei o que dizer - admitiu um Cameron Pryce totalmente confuso, olhando fixamente para a tenente-coronel Montrose, que estava rindo e afastando-se da quadra de croqué de braço dado com Carlo Paravacini.
Meia hora depois, ainda na presença do cardeal, Cam foi apresentado a dezenas de outros convidados que rodeavam os dois homens como curiosos fariam na chegada de duas celebridades. De certo modo, não deixavam
de ser; o cardeal gozava de reconhecida influência no Vaticano e a enorme fortuna do simpático americano era o bastante para conferir-lhe o status instantâneo de celebridade. Finalmente, pretextando exaustão
social, o cardeal Paravacini insistiu para que se sentassem à uma mesa relativamente isolada na ponte de comando do iate, facilmente visível mas de difícil acesso. Os olhos de Pryce percorreram a multidão
à procura de Leslie.
Ela desaparecera como por encanto.
VINTE E CINCO
- Perdoe-me, cardeal, mas minha irmã parece não estar aqui, não consigo vê-la em parte alguma.
- Sem dúvida, meu sobrinho está lhe mostrando a propriedade - disse o religioso. - Ela é realmente muito bonita e sua coleção de arte está entre as melhores da Itália.
- Coleção de arte? Onde é que fica?
- Na casa principal, naturalmente. - Ao mencionar a mansão, o cardeal Paravacini aparentemente percebeu o súbito alarme nos olhos de Pryce. - Oh, posso lhe assegurar, Sr. Brooks, que o senhor não tem com
que se preocupar. Carlo é um cavalheiro honrado, ele jamais se aproveitaria de uma convidada. Na verdade, ele não precisa fazê-lo, uma vez que as damas sempre disputaram sua atenção e afeto.
- O senhor não compreende - interrompeu Cameron -, minha irmã e eu temos um acordo toda vez que saímos juntos, especialmente quando vamos a lugares com muita gente. Um sempre avisa o outro quando está
indo embora, seja qual for o motivo.
- Isso me parece positivamente sufocante, Sr. Brooks observou o cardeal.
- Francamente, não. É só uma questão de bom senso - respondeu Pryce, pensando rapidamente e fazendo o possível para não demonstrar. - Quando saímos separadamente, o que acontece na maioria das vezes, cada
um de nós tem um guarda-costas.
- Agora o senhor está sendo grosseiro.
- O senhor não pensaria isso, Sua Eminência, se soubesse o número de ameaças de sequestro que recebemos. Só no ano passado, nossa empresa de segurança nos Estados Unidos abortou quatro tentativas contra
mim e cinco contra minha irmã.
- Não fazia ideia...
- Não é coisa que se torne pública - disse Cameron com um sorriso triste. - A ideia poderia ser plantada em muitas mentes perturbadas.
- Naturalmente, esses crimes também são cometidos aqui na Europa, mas a ideia, como diz, ainda é chocante para um velho clérigo como eu.
- Como vê - continuou Cam -, seu sobrinho, Carlo, não me preocupa nem um pouco. Ficarei aliviado se ela estiver com ele. Portanto, se me perdoar, vou ver se posso encontrá-los. Na coleção de arte, certo?
- É, a galeria de arte fica no piso principal, ala oeste. Ouvi dizer que o senhor também possui uma soberba coleção de família, juntamente com tapeçarias preciosas.
- É isso! - pensou Pryce ao se levantar da cadeira. Em todas as informações fantasiosas que tinham circulado sobre os americanos, não tinha havido qualquer menção a uma coleção de arte ou tapeçarias. John
e Joan Brooks tinham sido descritos como socialites diletantes que amavam a luz dos refletores, especialmente o show-business, mas não eram notórios colecionadores de quadros e de tapeçarias... A conversa
telefônica de Cameron com Geoffrey Waters em Londres tinha sido gravada, e esse melífluo príncipe da Igreja despudoradamente fazia parte da conspiração.
- Piso principal, ala oeste - disse Pryce, olhando para o cardeal. - Obrigado. Vejo-o mais tarde. - Ao enveredar pela alameda de tijolos que levava à mansão, Cam ficou contente com o fato de seus falsos
cuidados com sua "irmã" terem sido uma desculpa razoável para ele entrar na casa dos Paravacini. Entretanto, a não ser por uma ponta de ciúme adolescente, não estava preocupado com a integridade de Leslie.
A tenente-coronel Montrose era perfeitamente capaz de tomar conta de si mesma, apelando, se necessário fosse, para uma eficaz joelhada na virilha. Por outro lado, era muito provável que o extrovertido
Don Carlo estivesse simplesmente querendo impressioná-la com a extraordinária beleza da propriedade da família com seus inúmeros chafarizes, sua antiga e moderna estatuária, e os exuberantes jardins, explodindo
de cor. Cameron não fazia ideia do que poderia descobrir no interior da estrutura em forma de castelo, mas um axioma de sua profissão rezava que se infiltrar em qualquer propriedade era fazer progresso.
Mal sabia ele como estava redondamente enganado.
Cameron transpôs diversas portas maciças da mansão até chegar ao corredor de mármore da casa grande. Estava deserto, o silêncio perturbando em contraste com o burburinho abafado do lado de fora. A porta
fechou-se automaticamente, tornando o silêncio completo. Ele avançou com naturalidade na direção de uma sala de teto alto precedida por outro interessante corredor de mármore que se estendia tanto para
o leste quanto para o oeste. Desembocou diretamente na ala oeste onde diversos quadros admiráveis cobriam as paredes, muitos reconhecíveis de ilustrações em livros e revistas dedicados aos grandes mestres
da pintura.
Subitamente, além de seus próprios passos, outros ecoaram pelas paredes, vindo de trás dele. Parou e virou-se bruscamente. Um homem corpulento vestindo uma estranha roupa preta estava imóvel, com um sorriso
no canto dos lábios.
- Buona sera, signore, por favor continue andando - ele disse, as últimas três palavras num inglês relativamente culto.
- Quem é você? - Pryce perguntou asperamente.
- Um assistente de Don Carlo.
- Que bom. Em que o assiste?
- Não tenho que responder perguntas. Agora, piacere, ande até o fim da galeria. Há uma porta à esquerda.
- Por que acha que deveria? Não estou acostumado a receber ordens.
- Tente, signore. - O assistente do Paravacini levou a mão atrás de sua camisa preta de seda e puxou uma automática do cinto. - Obedeça esta ordem, piacere, para a porta, signore.
O corpulento homem armado abriu a pesada porta entalhada. Ela conduzia ao que poderia ser descrito como um aviário de pé direito muito alto: uma quantidade de pássaros em gaiolas pendentes de vigas do
teto, de todos os tamanhos, de papagaios de menor porte a vistosas araras, de grandes falcões a enormes abutres, suas prisões gradeadas de acordo com seus tamanhos. Era a imensa coleção pessoal de um excêntrico.
E por trás de uma comprida mesa polida em frente a um janelão dando para os gramados no crepúsculo estava Carlo Paravacini. À sua esquerda, Leslie Montrose estava sentada empertigada numa cadeira, com
o rosto impassível.
- Bem-vindo, agente Cameron Pryce - entoou o Don do lago Como num tom de voz sem relevo, cortês. - Estava imaginando quanto tempo levaria para vir até aqui.
- Rudy sugeriu que o fizesse, como creio que deve saber.
- Sim, ele é um homem adorável, tão devotado à sua fé.
- Quando foi que descobriu?
- Sobre a fé do cardeal?
- Sabe muito bem ao que estou me referindo...
- Oh, está se referindo ao agente Pryce da CIA americana, e à coronel Montrose, da Inteligência do Exército dos Estados Unidos. - Paravacini inclinou-se sobre a mesa, com os olhos nivelados aos de Cameron.
- Você acreditaria que há menos de uma hora?
- Como?
- Por favor, você há de convir que é necessário manter o sigilo, afinal convive com ele diariamente. Está convivendo com ele agora.
- Por falar em agora... e agora?
- Obviamente, não pode ser muito atraente para você. - Don Carlo levantou-se de sua cadeira e deu a volta na mesa reluzente, encaminhando-se para o amontoado de gaiolas, pendentes de alturas variadas,
nenhuma mais baixa do que dois metros do chão. - O que acham dos meus amigos alados, coronel Montrose e agente Pryce? Eles não são magníficos?
- Pássaros não são meus animais preferidos - respondeu Leslie friamente de sua cadeira. - Eu lhe disse isso quando me trouxe aqui.
- Como consegue mantê-los tão quietos? - perguntou Pryce.
- Porque há paz aqui, nada que os perturbe, nada que os provoque - respondeu Paravacini, apanhando um pequeno instrumento de madeira numa pequena estante de mogno. Levou-o aos lábios e soprou no bocal.
Durante meio segundo houve apenas silêncio; de repente, sem aviso prévio, a sala encheu-se de gritos e guinchos como se um inferno terrível além da compreensão humana tivesse desabado. Asas batiam e penas
voavam; o pânico se estampava nos olhos fixos e arregalados de dezenas de furiosos pássaros engaiolados. Carlo inverteu o instrumento e soprou novamente; em três ou quatro segundos, o clamor infernal cessou.
- Extraordinário, não é? - disse o anfitrião.
- Este foi o som mais horrível que ouvi em toda minha vida! - exclamou Montrose, tirando as mãos dos ouvidos. - Foi uma coisa animalesca.
- Tem razão - disse Don Carlo porque eles são verdadeiras feras. De uma forma ou de outra, são todas aves de ataque, algumas carnívoras, outras tão protetoras de seus ninhos que chegam a sacrificar as
próprias vidas.
- Aonde quer chegar, Charlie? - perguntou Cameron, lançando um olhar para o parrudo guarda armado, que continuava apontando sua arma para os dois prisioneiros.
- Remonta a alguns anos - disse o jovem Don do Lacus Larius quando me tornei obcecado pelo esporte medieval da falcoaria. Um exercício extremamente engenhoso do controle do homem sobre as feras voadoras.
Começou, talvez, treinando simples pombos a voltarem para seus ninhos, depois de terem sido contrabandeados para quilômetros de distância, a fim de trazerem de volta mensagens para os faraós seus proprietários.
Eles foram os espiões originais antes do telégrafo sem fio e do rádio. Mas meus estudos me ensinaram uma coisa: todas as aves podem ser treinadas, desde os papagaios meramente decorativos às aves de rapina
como os falcões e os abutres mortais. A coisa se resume a uma combinação anatômica e química de espantosa visão e acurado olfato natos.
- Não pense que está me impressionando, Charlie - disse Pryce. - Todos nós temos métodos estranhos, alguns anatômicos, outros químicos, e muitos brutais. Por que você é tão diferente?
- Porque sou mais esperto do que você.
- Por quê? Só porque seus espiões Matarese em Washington e Londres lhes permitiram saber quem nós somos?
- Washington não nos deu nenhuma informação simplesmente porque não sabia de nada. Beowulf Agate é realmente um gênio, tenho que admitir. Mas nosso homem em Londres matou a charada, e o alvo imediato dele
é o seu aliado britânico, Sir Geoffrey Waters. Dentro de vinte e quatro horas ele estará morto.
- Você é do ramo italiano dos Matarese, não é?
- Naturalmente que sou! Nós somos a resposta para a economia global, como foram nossos predecessores. Vamos colocar o mundo na estabilidade, ninguém mais pode fazê-lo!
- Desde que todos rezem pela sua cartilha, comprem o que vocês vendem, somente o que vocês vendem. A conspiração é a ordem do dia, as fusões e as aquisições eliminarão a concorrência até vocês controlarem
tudo.
- É muito melhor do que os ciclos econômicos de um sistema capitalista empenado. Eliminaremos as recessões e as depressões.
- Também eliminarão a escolha.
- Já ouvi além da conta suas observações frívolas, Sr. Pryce. Nem o senhor nem a coronel Montrose sobreviverão ao dia de hoje.
- E se eu lhe dissesse que o MI-5 e a nossa divisão italiana da CIA sabem exatamente onde nos encontramos neste preciso momento?
- Teria que dizer que está mentindo. Por pura especulação, todas as suas chamadas do Villa d’Este foram rastreadas.
- Grande novidade! Eu sabia desde que seu nojento príncipe da Igreja me falou sobre as tapeçarias! Acha que conseguirão escapar quando nossos corpos forem encontrados com as cabeças crivadas de balas,
Charlie!
- Isso não acontecerá. Deixem-me mostrar-lhes. - Paravacini voltou para sua mesa e apertou um botão à direita. A grande janela atrás dele retraiu-se, revelando um vão de pelo menos seis metros por doze.
Apertou em seguida um segundo botão e soprou o instrumento; as gaiolas se abriram e pelo menos quarenta aves estridentes de todos os tamanhos e feitios voaram em direção ao pôr-do-sol, circulando no céu
laranja. O Don soprou no lado oposto do apito o sinal para as aves retornarem. - Quando elas voltarem, da próxima vez, vocês estarão mortos - disse Don Carlo enquanto seu assistente começava a borrifar
Pryce e Montrose com uma lata de aerossol.
- Pra quê? - perguntou Cameron.
- Porque vocês são carne podre, creio que possa dizer assim. O cheiro de vocês não deixa dúvidas. Cachorros podem ser imobilizados com dardos e balas, mas meus pássaros devoram os corpos até não sobrar
mais nada.
- Está na hora de um McAuliffe, coronel - gritou Pryce enquanto os pássaros ensandecidos entravam de volta pela janela, crocitando e emitindo toda sorte de guinchos apavorantes. Enquanto o bando mortífero
regressava à base, Montrose, com um grito de "louco", atirou-se em cima de Carlo Paravacini, emaranhando seu vestido nas roupas dele. Simultaneamente, Cameron desferiu um mortal chi sai no assistente aparvalhado,
pegou a lata de aerossol e borrifou-o, apontando-a em seguida contra Paravacini.
- Leslie, vamos dar o fora! - gritou Pryce.
- Quero a arma dele! - respondeu Montrose enquanto os pássaros fechavam o cerco à sua volta.
- Provavelmente ele não tem nenhuma. Vamos embora!
- Ele tem sim. É uma pequena 22. Tire esses malditos bichos de cima de mim!
Pryce disparou dois tiros com a automática do assistente de Paravacini. Os sinistros pássaros se dispersaram, trombando uns nos outros, enquanto ele pegava a mão de Leslie. Fugiram pela porta que dava
para o corredor de mármore.
- Você está bem? - perguntou Cam ao correrem para o estacionamento.
- Levei uma porção de bicadas no pescoço.
- Ligaremos para o Togazzi e ele arranjará um médico para você.
Alcançaram o carro alugado. O motor não queria pegar. Devem ter tirado as velas - disse Leslie, exausta.
- Tem um Rolls ali adiante - disse Pryce. - Você se incomoda de viajar de primeira classe? Eu sei como fazer uma ligação direta num Rolls. Vamos!
- Esta mãe de meia-idade - exclamou Montrose, correndo atrás de Cam na direção do elegante automóvel marrom e bege - não vai discutir com um maníaco que diz que sabe fazer ligação direta num carro enquanto
está tentando salvar sua vida de um bando de pássaros assassinos comedores de carne humana! Meu Deus!
Abriram as portas e jogaram-se dentro do veículo, Pryce assumindo o volante. - Adoro gente rica! - ele exclamou. Deixam as chaves na ignição de seus luxuosos carros. Afinal que diferença faz um Rolls a
mais ou a menos? Já vamos nos mandar daqui! - O possante motor roncou enquanto Cameron engrenava e arrancava pelo gramado rumo à estrada que circundava o lago, com os pneus cantando e a grama voando.
- Para onde? - perguntou Leslie. - Não creio que o hotel seja uma ideia muito boa.
- Não podia ser pior. Vamos para a casa do Togazzi, se conseguirmos encontrá-la.
- Olha aqui um telefone - disse Montrose, apontando para baixo do painel.
- Só se realmente nos perdermos. Essas coisas são umas verdadeiras peneiras.
Depois de muitas voltas erradas pelas ruas estreitas de Bellagio, Pryce descobriu a íngreme ladeira que levava à longa estrada montanhosa paralela ao lago. Passaram pela entrada oculta da casa igualmente
oculta de Silvio Togazzi. Finalmente, terminada a pavana regulamentar em frente à guarita do sentinela, os ainda exaustos e em estado de choque Cameron e Leslie sentaram com o Don na sua varanda descortinando
o lago. Drinques estimulantes foram trazidos para o casal, sendo gratamente recebidos.
- Foi tudo tão horrível! - disse Montrose, tremendo. Aqueles pássaros abomináveis gritando, Deus me livre!
- Muitos acreditavam que a obsessão de Carlo Paravacini por suas bizarras criaturas um dia seria a causa de sua morte - disse o ancião. - E acabou sendo, como se viu hoje.
- O quê? - interrompeu Pryce.
- Quer dizer então que não ouviu? - perguntou Togazzi. Não ligou o rádio daquele maravilhoso automóvel?
- Não, não queria mexer em nada além do estritamente necessário.
- Toda Bellagio sabe, amanhã toda a Itália.
- Sabe o quê? - insistiu Leslie,
- Tentarei transmitir-lhes a notícia o mais delicadamente possíve! - continuou Don Silvio. - A porta do aviário de Carlo tinha ficado aberta e logo os convidados começaram a notar muitos pássaros diferentes
sobrevoando a propriedade a grande altitude. A princípio acharam divertido até pedaços de carne humana começarem a cair nos gramados e no iate. Aparentemente, instaurou-se o pandemônio e os criados correram
para o interior da mansão. O quadro com que depararam levou muitos a vomitar, outros a desmaiar, e todos a gritar de horror.
- Os corpos - disse Cameron, fazendo uma lacônica observação.
- O que sobrou deles - concordou Togazzi. - As roupas esfarrapadas foram o principal meio de identificação imediata. Como fazem as gaivotas com os peixes que vão dar à praia, os olhos foram os primeiros
a ser extirpados.
- Creio que vou passar mal - murmurou Montrose, virando as costas.
- O que é que fazemos agora? - perguntou Pryce.
- Vocês ficam aqui, naturalmente.
- As roupas que temos e uma boa quantia em dinheiro ficaram no hotel.
- Eu me ocupo do Villa d’Este, o concierge está na minha folha de pagamento.
- É mesmo?
- Assim como o ambicioso subchefe de cozinha, um sujeito francamente desagradável, mas inestimável para mim de muitas maneiras.
- Tais como?
- Entorpecentes num copo de vinho, se quero que meu pessoal interrogue determinado indivíduo, ou veneno para um escravo dos Paravacini que tenha matado além da conta. Lembre-se, sou um Scozzi.
- O senhor é realmente uma coisa...
- Fui irmão do melhor de todos. Ele se chama Beowulf Agate, aprendi com ele.
- Foi o que ouvi falar - disse Cameron. - Mas voltando à minha primeira pergunta. O que é que fazemos agora?
- Tenho uma conexão com Scofield, e muito breve devo ter notícias dele, a menos que ele tenha bebido demais. Mas mesmo assim, a adorável Antonia dará um jeito de sacudi-lo.
- Se ele estiver bêbado? - exclamou Pryce. - De que diabo estamos falando?
- Beowulf Agate é muito mais lúcido, bêbado ou sóbrio, do que qualquer agente de inteligência que não tenha posto a mão em bebida em vinte anos.
- Não acredito nisso!
O telefone de Togazzi tocou. Ele pegou o fone do aparelho em cima de sua mesa de vime branco. - É você, seu velho salafrário! Estávamos justamente falando de você.
- Com os demônios, o que é que esse garoto anda fazendo poraí? - gritou a voz de Nova York.
- Me desculpe, Brandon, mas vou ligar o sistema de altofalante para que você possa falar com todos nós ao mesmo tempo. - Togazzi apertou um botão no seu telefone branco.
- Pryce, você está aí? - berrou Scofield através do aparelho com o som amplificado.
- Estou aqui, Bray. O que é que você sabe?
- O Departamento de Estado, caso você tenha esquecido, procura ficar com os ouvidos sujos bem abertos para nossas atividades.
- Lembro-me disso muito bem. E daí?
- O homem deles em Roma telefonou para Washington, e o Departamento ligou para o Shields, perguntando se nós estávamos conduzindo uma operação secreta no norte da Itália. Naturalmente, Frank negou qualquer
envolvimento. É verdade?
- Não, não é. Estamos na estaca zero.
- Que merda! Como assim?
- Porque estivemos a ponto de ser mortos.
- É uma boa resposta. Como vai a Leslie?
- Ainda tremendo, Brandon - disse Montrose. - Sabia que o nosso companheiro, o agente Pryce, é capaz de fazer uma ligação direta num Rolls-Royce?
- Esse ladrão provavelmente faria uma ligação direta num tanque.
- O que é que nós fazemos agora? - Cameron atalhou.
- Saiam da Itália, e rápido!... Silvio, você poderia arranjar isso com Roma?
- Naturalmente, Brandon. E qual será minha recompensa?
- Se e quando isto acabar, Toni e eu pegaremos um avião e te pagaremos um maravilhoso jantar na Via Veneto.
- Provavelmente, sou o proprietário da maioria dos restaurantes, seu bastardo.
- Alegro-me por ver que nós dois não mudamos, seu filho-da-puta!
- Grazie! - trovejou Togazzi, rindo.
- Prego! - berrou Beowulf Agate, fazendo o mesmo.
- Para onde vocês gostariam de ir? - perguntou o Don das colinas de Bellagio, desligando o telefone.
- Voltar para os Estados Unidos - respondeu Pryce. - Já podemos ter o suficiente agora para atacarmos.
- Por favor, Cam, algumas horas com meu filho? Ele é tão jovem e tem passado por tanta coisa - implorou Leslie.
- Vou ligar para Londres - disse Pryce, segurando-lhe a mão. - E tenho que avisar o Geoffrey!
Luther Considine inclinou o bimotor Bristol reformado para a esquerda na sua aproximação final do campo de pouso particular perto do lago Maggiore, a pouco mais de quarenta quilômetros de Bellagio. Esperando
em terra na extremidade esquerda da pista designada estavam Pryce e Montrose; estavam na limusine de aparência miserável de Togazzi. Eram quatro horas da manhã, o céu noturno estava ainda mais escuro devido
ao manto de nuvens densas, as luzes da pista eram a única iluminação. Quando o avião aterrissou e taxiou para cerca de trinta metros do carro, Leslie e Cameron saltaram do banco traseiro, cumprimentaram
o motorista dublê de guarda com um gesto de cabeça e correram para o aparelho. Pryce carregava as duas malas de mão recuperadas do Villa d’Este pelo pessoal de Don Silvio. Luther deu um piparote num interruptor
e a porta lateral de carga ergueu-se. Cameron jogou a bagagem dentro e ajudou Leslie a subir, pulando para dentro depois dela.
- Tenente - gritou Montrose, tentando superar o ronco dos motores - não queira saber como estou feliz por revê-lo!
- Eu também, coronel - respondeu Considine, fechando a porta e taxiando o aparelho para a decolagem. - Como vai o negócio de espionagem, Cam?
- Um pouco cabeludo, ou acho que devia dizer plumoso.
- O que quer dizer isso?
- Digamos, muita titica de pássaros.
- Deve ter sido uma tonelada, do jeito que os britânicos estão querendo vocês de volta. Tenho voado em tudo quanto é tipo de rota, mas esses planos de voo têm sido elaborados por trapezistas que não fazem
questão de redes.
- Para evitar rastreamento? - perguntou Pryce.
- Só pode ser, mas não da variedade comum de segurança nacional. Não de qualquer país que tenha sobrevoado.
- Essa gente não é normal, Luther - aparteou Montrose não é nem um pouco normal.
- Devem ter então um equipamento excepcional.
- Eles podem ter o que quiserem - disse Cameron. - Eles compram ou subornam.
- Sabe o que a estação de radar em Chamonix disse? O chefe do rastreamento disse: "Pra que precisamos dos Stealths quando temos o Black Beauty lá em cima"? Bacana né?
- Black Beauty?
- Que diabo, Cam, eu posso ficar queimado do sol mas nunca aparece... Segure-se, pessoal, vamos subir com a lata velha!
Uma vez no ar e o voo estabilizado, Leslie falou: - Luther, você mencionou que os britânicos estão ansiosos por nos ter de volta, presumo que seja Londres.
- É isso aí.
- Pensei que tinha sido autorizada uma escala na França! Montrose acrescentou, contrariada.
- De fato foi, coronel. Normalmente, levaria cerca de uma hora para chegarmos lá, mas com nosso plano de voo, levaremos quase duas. As luzes estarão apagadas, a aurora a caminho. A propósito, tem café
no que passa por uma cozinha lá atrás.
- Por falar nisso, Luther - disse Pryce -, como é que esta nova missão o vem tratando?
- Cara, é demais! Com exceção de um espertinho que está afim de assumir a minha esquadrilha no porta-aviões, é uma festa. Me hospedo em bons hotéis, basta pegar o telefone para tomar café na cama, participo
de conferências com planejadores de operações secretas, e ainda tenho chance de pilotar alguns dos novos jatos da RAF.
- Não há nenhum aspecto negativo?
- Há um, sim. E da pesada. Há um sujeito que me acompanha como a minha sombra vinte e quatro horas por dia. Eu saio e ele vai atrás, vou jantar e lá está ele numa mesa próxima. Paro num pub e o cara logo
aparece no bar.
- É tudo visando à sua proteção, tenente.
- Isso é outra coisa. O Sir Geoffrey vive me dizendo que está certo de que a Marinha "verá com bons olhos" uma promoção para mim. Já disse a ele para esquecer qualquer interferência, ele não sabe que os
nossos almirantes de um modo geral não morrem de amores pelos deles.
- O Geof poderia fazer isso por você, Luther.
- Então retiro o que disse e peço desculpas. Há uns dois anos, com interrupções, venho saindo com uma médica de Pensacola. Acho que podíamos fazer uma fusão, mas ela é comandante e eu gostaria de ter um
posto mais próximo.
- Ouça o que Sir Geoffrey tem a lhe dizer. Washington deve muito a ele e, com um pouco de sorte, vai ficar devendo muito mais.
- Ouvido e registrado.
- A propósito, aonde vamos na França? - perguntou Leslie.
- Vou levá-la lá, coronel, mas não tenho permissão para lhe dizer onde fica esse "lá". Espero que compreenda.
- Compreendo.
Quando rompeu a aurora no horizonte a leste, Pryce e Montrose ficaram admirados ao constatar a baixa altitude do avião sobre a água e a terra. - Meu Deus! - exclamou Cameron. - Eu podia pular e dar umas
braçadas!
- Não aconselharia - disse o piloto -, especialmente agora que vamos passar por Mont Blanc. Há muita neve submersa e gelo lá embaixo.
Considine pousou o Bristol no aeroporto alternativo de Le Mayet-de-Montagne, reservado para aviões particulares, os passageiros continuando a ignorar o destino final da aeronave. O sol da manhã varria
o fértil Vale do Loire, as primeiras cores realçadas pela umidade do orvalho.
- Lá está o seu carro! - anunciou Luther, taxiando na direção de um sedã sem insígnias estacionado fora da pista. - Vou reabastecer aqui e, dependendo de ordens de Londres, poderei ter que levantar voo,
mas estarei de volta dentro de noventa minutos e esse será nosso horário para decolar novamente. Nem um minuto mais tarde.
- Um carro, tudo bem - disse Leslie mas quanto tempo ele levará para alcançarmos as crianças?
- Talvez dez ou doze minutos.
- Isso não nos deixa muito tempo, pelo amor de Deus!
- É o que é permitido, coronel. A senhora é militar, conhece o regulamento.
As janelas laterais do automóvel eram tão escuras que nem Pryce nem Montrose conseguiam ver o lado de fora. O para-brisa do carro também era revestido de uma película escura nas extremidades, de modo que
a única coisa que se conseguia ver claramente era a estrada.
- Que diabo é isso? - exclamou Leslie. - Não temos ideia de para onde estamos indo.
- É para proteger as crianças - disse Cameron. - O que você não vê, você não pode contar.
- Por favor, trata-se de meu filho. A quem eu iria contar?
- Talvez seja por isso que sejamos um pouco mais experientes do que vocês. Sob a ação de produtos químicos você poderia descrever o que viu ao ir ao encontro dele.
- Admitindo que eu fosse capturada?
- Sempre temos que admitir isso, coronel. Você sabe disso e conhece os procedimentos.
- Embora relutantemente, minhas duas cápsulas de cianureto estão no meu uniforme, na bagagem.
- Não creio que nada parecido com isso faça parte de nosso atual cenário. Nossa segurança é total.
A estrada levou a uma guarita, os guardas civis eram todos recrutados do Deuxième Bureau, a mais secreta das operações da França. O motorista francês, também do Deuxième, falou qualquer coisa e o carro
foi admitido para além de um muro agora visível. Entraram num grande complexo; no centro havia uma casa térrea de fazenda, cercada de pastagens com gado e um curral cercado com meia dúzia de cavalos.
Subitamente, pareceu evidente que havia uma grande confusão no complexo. Por toda parte viam-se veículos do Exército francês assim como carros da polícia local, homens correndo em todas as direções, e
ouvia-se o constante e ensurdecedor silvo das sirenes.
- Que diabo está acontecendo? - gritou Cameron.
- Não sei, monsieur! - disse o motorista. - O sentinela me disse apenas para dirigir devagar porque havia uma crise!
Veículos militares saíram em disparada pelo portão, juntamente com a polícia local e inúmeros homens a pé, correndo em direções diferentes, espalhando-se por todos os cantos.
- O que foi que aconteceu! - gritou Pryce, saltando do carro do Deuxième, agarrando o primeiro homem que conseguiu interceptar.
- O jovem inglês! - respondeu o patrulheiro. - Ele fugiu!
- O quê? - gritou Leslie Montrose. - Sou a coronel Montrose, onde está meu filho?
- Lá dentro, madame, tão espantado quanto todos nós.
Cameron e Leslie entraram correndo na casa de fazenda e encontraram Angela Brewster abraçada a James Montrose Jr., que chorava incontrolavelmente num sofá. - A culpa não foi sua, Jamie! Você não fez nada,
você não fez nada - ela repetia insistentemente.
- Fiz, sim! - afirmou Montrose Júnior, banhado em lágrimas.
- Pare com isso, Jamie - disse energicamente sua mãe, aproximando-se do sofá e segurando os ombros do filho, soltando as mãos de Angela. - O que foi que aconteceu?
- Oh, meu Deus, mamãe! - respondeu Jamie, estendendo os braços para a mãe, segurando-a como se ela fosse um salva-vidas sobre um abismo vertiginoso. - Eu contei a ele!
- O que foi que você contou a ele, Jamie? - perguntou Pryce gentilmente, ajoelhando-se em frente à mãe e ao filho sentados no sofá. - O que foi exatamente que você contou a ele?
- Ele vivia me perguntando como eu tinha fugido de Bahrain, como tinha conseguido pular o muro e chegar à cidade... e como tinha encontrado Luther.
- As circunstâncias aqui são muito diferentes - disse Cam, com a palma da mão no ombro trêmulo de Jamie. - Ele deve lhe ter dito que era capaz de fazer a mesma coisa.
- Ele nunca me disse nada! Limitou-se a fazer. Pulou o muro e sumiu!
- Mas ele não tinha recursos - interrompeu Leslie. - Não tinha dinheiro.
- Roger tem dinheiro, sim - atalhou Angela Brewster. Como provavelmente sabe, nossa correspondência é remetida para nós por via aérea duas vezes por semana, para que possamos responder a quem achamos que
devemos. As respostas são enviadas para Londres e colocadas no correio. Roger tinha solicitado um saque de mil libras. Ele o recebeu há dois dias. Ele riu quando abriu o envelope.
- Tão simples assim? - perguntou a coronel Montrose. - Acho que mamãe era acionista do banco.
- Os ricos são diferentes - disse Pryce. - Mas por que, Angela, por que ele queria sair daqui?
- Você precisava conhecer meu irmão, conhecê-lo de verdade. Ele é um cara sensacional, sensacional mesmo. De certa forma, é muito parecido com nosso pai. Quando ele acha que alguma coisa está errada, realmente
errada, fica fora de si. Creio que ele quer encontrar Gerald Henshaw e mandá-lo pro inferno. Ele acha que tem que matar Gerry por ter assassinado nossa mãe.
- Chame Geof Waters pelo telefone! - ordenou Leslie.
- Imediatamente - disse Cameron, levantando-se e correndo para o telefone mais próximo.
VINTE E SEIS
Sir Geoffrey Waters pulou da cadeira, esticando o fio e puxando o telefone em cima de sua mesa. - Temos recebido informações incompletas e esparsas de Roma e Milão, mas o quadro ainda não está claro. Foram
vocês que o mataram?
- Não, não fomos nós, foi ele, Paravacini! Seus próprios pássaros o comeram vivo. Nós fomos desmascarados e passamos por maus momentos antes de conseguirmos dar o fora de lá. Ouça, Geof, Leslie e eu lhe
contaremos tudo quando chegarmos a Londres dentro de poucas horas, mas neste momento temos dois grandes problemas, e um deles é você.
- A ameaça contra mim? Recebi seu aviso mas...
- Você tem que levar isso a sério. Paravacini disse que você vai ser morto nas próximas vinte e quatro horas. Foram essas suas palavras textuais, "vinte e quatro horas". Proteja seus flancos, Geof, ele
não estava brincando, falou pra valer.
- Não esquecerei. Qual é o segundo problema?
- O garoto Brewster. Ele fugiu da gaiola.
- Santo Deus! Como?... Por quê?
- Pulou o muro quando estava escuro. A irmã dele disse que ele foi atrás de Gerald Henshaw, seu ex-padrasto, o sujeito que matou a mãe deles.
- O que é que esse fedelho abusado pensa que pode fazer que nós já não tenhamos feito? Henshaw desapareceu da face da terra. Ou está foragido em alguma cidade africana ou indiana, numa boa, embora recluso,
ou mais provavelmente, se é que conheço os Matarese, num saco fechado no fundo de algum canal.
- Concordo com você, mas nós não somos ele.
- Aonde teria ido? Por onde começaria? Um adolescente exaltado, fazendo perguntas imprudentes nos bairros mais miseráveis da cidade é um alvo fácil, com ou sem Matareses.
- Não há dúvida de que ele está cheio de ódio, mas não é burro, Geof. É suficientemente esperto para saber que vai precisar de ajuda. Ele não o procurará porque imagina que você mandará trancafiá-lo em
algum lugar...
- E o que devíamos ter feito com todos os três - interrompeu Waters.
- Foi o que você julgou ter feito, só que nenhum de nós levou em conta a indignação de um jovem que perdeu um pai que adorava e assistiu ao assassinato de uma mãe a quem amava profundamente.
- Então? - perguntou o chefe do MI-5 defensivamente.
- Acho que ele irá procurar diretamente um homem em quem confia, um sargento que era tão dedicado ao seu brigadeiro que seria capaz de ir e voltar do inferno com ele, como vocês dizem.
- Coleman! - exclamou Waters. - O primeiro-sargento Coleman!... Só que acredito que a expressão tenha se originado nos Estados Unidos e não no Reino Unido. Não é nosso estilo, meu velho.
- De qualquer maneira, se eu fosse você, daria uma checada. A propósito, o garoto está com dinheiro. Mil libras.
- Certamente é suficiente para fazê-lo chegar aqui anonimamente, se ele é tão esperto quanto você acredita.
- Ele é.
- Estou a caminho, vou ver o nosso primeiro-sargento. Nem me darei o trabalho de ligar antes.
Roger Brewster embarcou no trem para Valência. Ele tinha cuidadosamente planejado tudo nos menores detalhes, exceto um. Ele estudara os mapas com atenção, concentrando-se em localidades a poucas horas
ao norte de onde ele supunha que estivessem, e como falava francês fluentemente, conseguiu reduzir a área razoavelmente através dos guardas do Deuxième. Transpusera o muro de maneira muito semelhante à
fuga que seu novo amigo, Jamie Montrose, lhe descrevera ao se evadir de sua prisão em Bahrain. Os holofotes não cessavam de vasculhar a noite, era preciso esperar a ausência de luz. Também era preciso
enganar os guardas, que estavam posicionados para proteger seus "hóspedes" de ataques externos. Foi fácil convencer um guarda da patrulha do Deuxième que sua irmã, no quarto ao lado do seu, reclamava incessantemente
quando ele fumava um cigarro.
O patrulheiro era fumante, compreendeu a situação. Uma vez transposto o muro em relativa obscuridade, Roger atravessou correndo a pradaria em direção ao que lhe pareceu ser uma estrada principal. Ficou
esperando no acostamento com o convencional polegar erguido pedindo carona, enquanto carros e caminhões passavam em alta velocidade. Finalmente, um caminhão transportando produtos agrícolas parou; ele
explicou em francês que era estudante e tinha que voltar para seu pensionnat antes do dia clarear sob pena de ser expulso. Tinha passado a noite com sua namorada.
Toujours l’amour. O motorista compreendeu, não escondendo uma ponta de inveja, e levou o estudante à estação de trem.
Rogers ficara sabendo pelos mapas e diversos folhetos que consultara que havia uma escola de aviação em Villeurbanne. Assim como Jamie Montrose fizera, tinha que achar um piloto, mas, ao contrário do que
acontecera com Jamie, não podia contar com um encontro casual na rua. Uma vez que havia uma escola de aviação, havendo pilotos, poderia convencer um deles... para isso dispunha de mil libras. Inglaterra.
Londres, Belgravia. E o detalhe que deixara para o fim: o velho Coley. Telefonaria para ele do aeroporto.
O ex-primeiro-sargento Oliver Coleman desarmou o alarme e abriu a pesada porta da residência dos Brewster em Belgravia. Bom dia, Sir Geoffrey - ele disse ao admitir o chefe do MI-5.
- Sabia que era eu?
- Instalei minicâmeras nas duas colunas. Pareceu-me a coisa adequada a fazer para quando as crianças voltassem. Já existe, como sabe, uma câmera montada na parede acima da porta.
- Um sistema de segurança eficiente, mas bastante caro, quer me parecer.
- De modo algum, senhor. Fiz ver à empresa de segurança que sua imperdoável negligência ao permitir que funcionários seus instalassem dispositivos de escuta na casa poderia me fazer levá-la à barra dos
tribunais... e redundaria em publicidade negativa. Ela se sentiu muito feliz em me atender sem cobrar nada.
- Podemos conversar, Sr. Coleman?
- Naturalmente, Sir Geoffrey. Estava tomando um chá. Gostaria de me fazer companhia?
- Não, muito obrigado. Tenho que voltar para o escritório e podemos falar aqui mesmo.
- Muito bem, sobre o que deseja falar?
- Roger Brewster fugiu do esconderijo onde o tínhamos confinado, juntamente com sua irmã, e o jovem Montrose...
- Jogada de mestre - interrompeu Coleman. - Ele é um bom garoto e vocês não podem confiná-lo.
- Pelo amor de Deus, sargento! Nós estamos protegendo o rapaz, será que não compreende isso?
- É claro que sim. Mas ele tem outras coisas na cabeça. Como eu também. Por onde andará aquele espírito maligno do Gerald Henshaw? Não tivemos nenhuma notícia de vocês.
- Não lhe ocorreu que ele foi certamente morto?
- Se isso de fato aconteceu, gostaríamos de ter provas.
- Há tantas maneiras, Coleman. Talvez não saibamos por muitos meses, até mesmo anos.
- Mas o senhor não pode afirmar agora, não é verdade? Roger está tão obcecado quanto eu em achar o miserável. Se pegá-lo primeiro, darei cabo de sua vida infame com requintes que nenhum bárbaro jamais
pensou.
- Escute aqui, Coleman. Sozinho, procurando às cegas, o garoto vai se dar mal. Se ele entrar em contato com você, pelo amor de Deus, me avise!
- Ele não se dará mal se eu estiver por perto - disse o ex-primeiro-sargento. - O pai dele arriscou a vida por mim, eu darei a minha de bom grado para salvar a do seu filho.
- Que diabo, você não tem condições de fazer o que nós podemos! Se ele procurá-lo, me telefone imediatamente. Se não fizer isso, a morte dele pesará na sua consciência.
Roger Brewster desceu do trem em Villeurbanne. O dia começava a raiar; ainda era muito cedo para se dirigir ao aeroporto. Ao deixar a estação, caminhou pelas ruas sem rumo. Dando-se conta de que estava
terrivelmente cansado, o lutador que havia nele disse-lhe que seu corpo precisava de combustível: comida. Achou uma padaria, entrou, e falou com o sonolento proprietário em francês.
- Bonjour. Devo me encontrar com meu pai no aeroporto, mas o único trem de Valência para cá era a esta hora. Seu pão está com um cheirinho delicioso.
- Não podia deixar de estar. É o melhor pão da província. O que é que gostaria de experimentar?
- Qualquer coisa que sugira que esteja saindo do seu forno. E leite, se tiver, e talvez uma caneca de café.
- Tenho tudo isso. Tem como pagar?
- Certamente. Não pediria se não tivesse. - Reabastecido e reanimado pelo café forte, Roger pagou, incluindo uma boa gorjeta, e perguntou: - Onde fica exatamente o aeroporto?
- Mais ou menos a um quilômetro e meio ao norte, mas não há táxis a esta hora.
- Tudo bem. Ao norte, o senhor disse? Alguma estrada em particular?
- Desça quatro ruas - respondeu o padeiro, apontando para a direita - e dobre à esquerda na direção da rodovia. Ela conduz diretamente ao aeroporto e àquela terrível academia de aviação.
- O senhor não gosta dela, da escola de aviação?
- Você também não gostaria se morasse aqui. Alunos irresponsáveis vivem assustando a população com seus voos rasantes sobre a cidade. Um dia desses vai acontecer um desastre pavoroso, seguido de outros
com muitas vítimas! E só aí então a maldita academia irá embora. Já irá tarde!
- Espero que não aconteça nenhum acidente. Bem, vou andando. Muito obrigado.
- Você me parece um bom rapaz. Boa sorte... e o seu francês não é nada mal, talvez um pouco parisiense demais. - Os dois riram e Roger encaminhou-se para a porta.
A distância até o aeroporto foi suavizada pelo ronco dos motores e logo em seguida a visão de pequenos aviões levantando voo no céu da aurora. A cena lembrava ao jovem Brewster os tempos em que, ainda
criança, acompanhava seu pai que, decidido a obter seu brevê de piloto, frequentava o campo de treinamento em Cheltenham. Daniel Brewster costumava dizer que não havia nada mais estimulante do que voar
com as primeiras luzes do dia. Muitas vezes acordava Roger para fazer a pequena viagem, parando para tomar o café da manhã somente depois de quarenta e cinco minutos no ar. Bons tempos aqueles, tempos
que não voltariam mais.
O telefone tocou em Belgravia e Oliver Coleman atendeu-o sentado numa poltrona na grande biblioteca dos Brewster. Alterou dramaticamente a voz, como fizera tantas vezes nos Emirados Árabes, falando no
rádio do quartel-general com um registro alto, fechado, muito pouco parecido com o de um primeiro-sargento. Instruções para a forças britânicas de vários emires e líderes dos Emirados frequentemente perdiam-se
nos canais de comunicação.
- Bom dia, aqui é o mordomo. Com quem deseja falar?
- Oh, talvez tenha ligado para o número errado...
Coleman pigarreou, limpando a garganta. - Perdão, senhor, um pequeno engasgo. Mas estou reconhecendo sua voz, meu jovem. É Aldrich, Nicholas Aldrich, quem está falando, colega de colégio do meu amo Roger.
- Isso mesmo - disse Roger Brewster de um telefone público em Villeurbanne, França, compreendendo instantaneamente. - E você deve ser Coleman, Sr. Coleman, me perdoe.
- Tudo bem. Sinto muito, mas Roger não está. Ele e Angela estão visitando parentes em algum lugar da Escócia, ou será Dublin? Realmente não tenho certeza.
- Sabe dizer quando Rog estará de volta, Sr. Coleman? - perguntou o jovem Brewster, ouvindo cuidadosamente.
- Muito breve, imagino. Ele telefonou uma dessas noites da casa de um primo que ele considera chato, excessivamente jovial, que só fica falando de caça a aves selvagens, e disse que seria capaz de trocar
a lua cheia que fazia do lado de fora de sua janela por um boa caneca de cerveja em Windsor. Esperava estar em casa hoje à tarde lá pelas três horas, mas não pôde prometer. Porque não telefona por volta
dessa hora?
- Está bem, ligarei. E muito obrigado.
Brewster desligou o telefone público em Villeurbanne sabendo que a informação de que necessitava seria encontrada nas palavras e frases do velho Coley. Lua cheia era a primeira; soava familiar mas não
conseguia situá-la. Depois vinha "uma caneca", que não fazia o menor sentido, devendo, portanto, ter algum significado especial. Roger não bebia; não tinha nada contra, simplesmente não apreciava o gosto.
E o que quereria dizer "Windsor" e um "primo excessivamente jovial"? Por fim, onde se encaixa "atirar em aves selvagens"?
Entrou na sala de espera do campo de pouso, onde havia uma máquina automática de café. Serviu-se de uma xícara, sentou-se a uma mesa, arrancou uma folha de um bloco de anotações com o logotipo da escola
de aviação no cabeçalho e escreveu as palavras de Coleman. Levou algum tempo, mas finalmente conseguiu encaixá-las.
"Lua cheia" e "primo excessivamente jovial" combinavam com Windsor. E não era "atirar em aves selvagens", mas sim "caça a aves selvagens". "Uma caneca", por sua vez, referia-se ao local onde podia ser
servida uma caneca de cerveja. O Jolly Hunter’s Moon em Windsor! Era um pub a cerca de meia hora de Belgravia frequentado em grande parte por veteranos das Forças Armadas, principalmente soldados e pessoal
da aviação, daí o nome "hunter’s moon", a "lua dos caçadores". De vez em quando Coley e o pai de Roger iam até lá para se reencontrar com velhos camaradas. Muitas vezes, quando a mãe deles estava viajando
por conta de seus compromissos com a Wildlife, eles levavam Roger e Angela com eles, deixando-os numa sala ao lado entretendo-se com jogos eletrônicos. Sob a condição, naturalmente, de não dizerem nada
a sua mãe. Então era isso! O Jolly Hunter’s Moon’s três horas da tarde!
O recrutamento de um piloto e de um avião para a Inglaterra, negociação para a qual Roger estava totalmente despreparado, tinha sido mais fácil do que decifrar o código de Coley. O piloto, um major da
armée de Vaire da França, que faturava um dinheiro extra ensinando os alunos da academia a voar, aceitou a proposta com a maior satisfação. Quando o filho de Brewster falou em quinhentas libras inglesas,
os olhos do homem se arregalaram acima do seu bigode e do seu nariz ligeiramente avermelhado, e quando Roger consentiu que o revistasse para se certificar de que ele não portava drogas e concordou em pagar
as despesas de combustível e quaisquer taxas de aterrissagem exigidas, o major disse: - Monsieur, o senhor terá um voo muito agradável! E os campos de pouso nas imediações de Windsor me são particularmente
familiares.
Na sala de comunicações da sede do MI-5, a mulher no complexo telefônico cobrindo o aparelho dos Brewster em Belgravia retirou os fones de ouvido e virou-se para o colega no posto adjacente. Esse primeiro-sargento
na residência dos Brewster bem que podia ter sido treinado por nós.
- Como assim? - perguntou o homem ao seu lado.
- A maneira como ele conduz as sindicâncias. Inventa lugares ambíguos, detalha circunstâncias fictícias e induz um retorno rápido sem garantias de espécie alguma.
- Muito profissional - concordou o operador. - Ele atenua eventuais suspeitas com a expectativa de um contato relativamente a curto prazo. Excelente. Então, não há nada?
- Absolutamente nada. Vou mandar a fita lá pra cima, mas numa prioridade secundária.
Oliver Coleman precisava de tempo para se certificar de que Sir Geoffrey não o colocara sob vigilância, o que, naturalmente, tinha feito. O ex-primeiro-sargento percebeu o veículo do MI-5 acerca de um
quilômetro de Belgravia: um velho sedã Austin que fazia curvas muito rapidamente. Ele rodou Londres inteira, atravessando a cidade de Knightsbridge a Kensington Gardens, do Soho ao Regent’s Park e Hampstead,
finalmente livrando-se do carro do MI-5 no tráfego congestionado de Piccadilly Circus.
Coleman deixou o perímetro urbano de Londres pela estrada ao norte para Windsor, esperando que sua correria não fosse em vão. Roger teria entendido seu recado? Apareceria por volta das três horas no Jolly
Hunter’s Moon? Ou tudo teria sido em vão? Contudo, ele estava cautelosamente otimista, uma vez que o jovem Brewster tinha matado tão rapidamente sua charada no telefone, assumindo instantaneamente o papel
de Nicholas Aldrich, na verdade o nome de um colega de colégio que ele levara à casa da família em diversas ocasiões. Roger era um rapaz inteligente, dotado de raciocínio rápido e uma noção de objetividade
muito parecida com a do pai. Uma objetividade mesclada com muita impaciência. Mas qual era o seu objetivo agora? Seria realmente promover uma caçada a Gerald Henshaw? Coleman sabia que Roger tinha insistentemente
pressionado Sir Geoffrey, procurando saber qual o progresso feito em relação ao desaparecimento de Henshaw; a verdade é que não tinha havido nenhum. Teria a lendária impaciência dos Brewster vindo à tona,
suplantando a razão?
Coleman se deu conta de que sua atitude hostil para com Sir Geoffrey fora desarrazoada; mesmo agora faltava lógica às suas ações. O MI-5, juntamente com os demais serviços que estavam cooperando, sem dúvida
dispunham de muito mais recursos para descobrir o paradeiro do assassino de Lady Alicia do que um velho soldado reformado e um adolescente impetuoso. Entretanto, o ex-primeiro-sargento tinha que tornar
claras suas lealdades. O filho do brigadeiro Daniel Brewster - militar, estudioso, desportista e empresário - tinha precedência sobre todas as coisas, inclusive o governo. Se Roger queria estabelecer contato
com o velho camarada de armas de seu pai, o contato seria estabelecido.
Mas a que propósito serviria? Que ajuda ele poderia proporcionar? A menos que Roger Brewster soubesse de alguma coisa, ou se lembrasse de algo que tivesse escapado aos outros. Coleman conheceria as respostas
às suas perguntas dentro em pouco - se o jovem aparecesse.
Ele apareceu, seis minutos após as três horas da tarde.
- Obrigado, Coley, muito obrigado por vir me ver - disse Roger Brewster, tendo localizado Coleman num reservado nos fundos do pub, e sentando-se rapidamente em frente a ele.
- Não admitiria qualquer outra hipótese. Fico contente por você ter compreendido minha mensagem.
- A princípio me pareceu confusa, mas não depois que pensei bem sobre ela.
- Contava com isso, você raciocina com clareza. Estou convencido de que nossos telefones estão grampeados e Sir Geoffrey já foi me procurar, chegando a me ameaçar sobre o que devia fazer caso você entrasse
em contato comigo.
- Por Deus, não quero criar problemas para você!
- Não se preocupe, eu me livrei de sua maldita perseguição em Piccadilly. Contudo, não posso deixar de lhe perguntar. Porquê, Roger, por quê? Sir Geoffrey e seus agentes o estavam protegendo, não há como
negar-lhe isso. Por que você agiu dessa maneira com ele? Foi por causa do Henshaw?
- Foi, sim, Coley.
- Você não compreende que o MI-5 e seus agentes altamente profissionais estão fazendo tudo o que podem para encontrá-lo, se, por acaso, ele ainda estiver vivo?
- Sei disso, mas também estou sabendo que há espiões infiltrados nos serviços. O próprio Sir Geoffrey admitiu isso ao Sr. Pryce e à coronel Montrose, eu ouvi! Não quis que a informação que tenho corresse
o risco de ser interceptada.
- Que informação?
- Acho que sei onde Henshaw poderá estar se escondendo, ou pelo menos localizar a pessoa que poderá nos dizer onde ele se encontra.
- O quê?
- Além das prostitutas declaradas e das garotas de programa, Gerry tinha uma garota especial em High Holborn. Mamãe sabia mas nunca comentou nada fora da família, e pouquíssimo a nós. Mas uma noite, por
volta das onze horas, passei pela porta do quarto deles; Henshaw estava bêbado e eles estavam brigando -o que não chegava a ser uma novidade. Então ele anunciou que ia sair em busca de algum "conforto
e sossego". Fiquei grilado; resolvi segui-lo no Bentley e vi para onde ele foi.
- Pelo amor de Deus, por que você não mencionou isso antes?
- Não tenho certeza. Mamãe tinha horror a qualquer tipo de escândalo, você sabe disso, e acho que simplesmente tirei o incidente da minha cabeça. Até que, há poucos dias, me lembrei das palavras de mamãe
para Angie e para mim ao subir a escada para se confrontar com Gerry, na noite em que ele a matou. "Chamem o Coley, não deixem que ele dirija o Jaguar. Provavelmente irá ver sua namorada em High Holborn"
ou coisa parecida.
- Então precisamos procurar Sir Geoffrey e colocá-lo a par de sua informação...
- Não - interrompeu Roger. - Vou lá primeiro. Se ele estiver lá, quero-o para mim.
- Para quê? Para matá-lo? Você desgraçaria sua vida para matar um salafrário que não vale nada como o Gerald Henshaw?
- Ponha-se no meu lugar, Coley. Você não faria a mesma coisa se fosse eu? O desgraçado matou minha mãe.
- Mas não sou você, filho!
- Isso não responde à minha pergunta.
- De certa forma responde, meu jovem - disse Oliver Coleman com serenidade. - Respondendo diretamente à sua pergunta, sim, eu mataria Gerald Henshaw com minhas próprias mãos, como admiti francamente a
Sir Geoffrey. Seria uma morte lenta, de dor excruciante, mas seria executada por mim, não por você. Sou um velho soldado a quem não resta muito tempo aqui na terra. Você, por outro lado, tem toda a vida
diante de si. É filho do melhor homem que conheci, e eu não poderia permitir que sacrificasse sua vida estupidamente.
- Suponha, caro amigo - disse Roger, olhando matreiramente para cima e encarando o eterno primeiro-sargento - que eu simplesmente dê uma surra no filho-da-puta e depois o entregue a Sir Geof?
- Nesse caso - respondeu Coleman - como eles dizem nesses detestáveis programas de televisão, manda ver, rapaz.
O Bentley diminuiu a marcha na rua em High Holborn, parando num estacionamento perto do prédio de apartamentos. Roger apontou. - Me lembro que ele apertou o botão de cima à esquerda - disse Brewster enquanto
desciam do carro.
Galgaram os degraus da entrada e entraram num vestíbulo envidraçado, detendo-se em frente a um painel com botões. Roger apertou o de cima à esquerda. Não houve resposta. Apertou seguidamente, e nada.
- Olhe aqui - disse Coleman, examinando os nomes ao lado dos números, - Vamos tentar outra coisa - ele disse, apertando o botão do zelador.
- Sim? - disse a voz rude no interfone.
- Aqui é Sir Geoffrey Waters, da Inteligência Militar da Coroa. Estamos com muita pressa, mas se quiser consultar o MI-5 para se certificar, verá que sou quem estou dizendo. - A autoridade de Coleman era
absoluta. - Precisamos falar com você imediatamente.
- Santo Deus, naturalmente! - disse o obviamente assustado zelador do prédio. - Entre - continuou o homem enquanto a cigarra da entrada soava. - Vou encontrá-lo no vestíbulo. Moro neste andar.
O ex-primeiro-sargento exibiu uma velha carteira de identidade dos fuzileiros ao perplexo zelador e falou - novamente com impressionante autoridade: - Ninguém responde no apartamento 8-A. A moradora, Sra.
Symond, não está?
- Está fora há diversos dias, senhor...
- Temos que revistar as dependências, é da maior urgência.
- Pois não, certamente. - O zelador conduziu-os a um elevador no fundo do vestíbulo. - Aqui está uma chave-mestra - disse ele. - Os senhores poderão entrar.
- A Coroa lhe agradece. - Coley aceitou a chave com um frio aceno de cabeça.
O apartamento era bem arrumado, aconchegante, decorado com peças caras, de bom gosto. Roger e Oliver Coleman iniciaram sua busca sem perda de tempo. Havia três cômodos, dois banheiros e uma cozinha: um
quarto de dormir, o living, e o que parecia ser uma biblioteca-estúdio; as prateleiras com pouquíssimos livros, mas, em compensação, a escrivaninha estava abarrotada de papéis. Coleman começou pelos papéis,
uma barafunda de contas, revistas, lembretes de diversos compromissos, numerosas cartas pessoais, muitas remetidas do exterior. Os carimbos dos correios traçavam o itinerário de milionários diletantes
e clientes inveterados de shoppings: Paris, Nice, Cote d’Azur, Roma, Baden-Baden, Lago Como, os balneários elegantes e centros de consumo da Europa.
As cartas eram palavrosas, inócuas, do tipo "que pena você não estar aqui", em suma, banais. Coleman, naturalmente, entregaria tudo a Sir Geoffrey; era seu dever fazê-lo, mas a mulher de nome Symond permaneceria
um enigma a menos que pudesse ser encontrada.
- Coley! - gritou Roger Brewster de outro aposento. - Venha ver isso!
- Onde é que você está?
- Na cozinha!
Coleman saiu às pressas do estúdio, deu uma olhada em volta do living e correu para a cozinha de azulejos brancos. - O que é, Roger?
- Aqui - respondeu o jovem Brewster, de pé ao lado de um telefone de parede com um bloco de anotações afixado e uma caneta esferográfica presa numa corrente metálica à direita. Olhe só, está vendo isso?
Há marcas decalcadas no bloco de anotações e elas foram feitas por uma pessoa irritada, realmente puta da vida, quero dizer. A ponto de quase ter perfurado o papel.
- O quê? Tudo o que consigo distinguir são pedaços de letras e três números. O resto são apenas sulcos ininteligíveis.
- Isso é porque esse tipo de caneta não escreve direito de lado, na vertical, sabe como é. Temos uma no dormitório do colégio... volta e meia estamos trocando por lápis, mas eles não duram.
- Aonde é que você está querendo chegar, meu rapaz?
- Quando estamos com muita pressa, digamos que uma garota está nos dando um número de telefone, simplesmente continuamos a escrever com força e depois deciframos o que anotamos.
- Todos nós já fizemos isso - disse Coleman, arrancando a folha - e você tem razão. A mulher devia estar com uma pressa dos diabos. Do contrário, teria pedido ao seu interlocutor para esperar um instante
e teria ido apanhar um instrumento de escrita decente. - O velho soldado reformado levou a folha para um balcão, pegou uma lapiseira no bolso do seu paletó e começou a contornar de leve os sulcos decalcados
no papel. - O que é que está lhe parecendo, Roger?
- NU Três Cinco Zero. - O jovem Brewster leu as letras que emergiram. - Amst. K-Gr. Conf Ter. Surrey A. P.... Posso decifrar a primeira e a última parte, creio eu. "NU Três Cinco Zero" são os números do
prefixo de um avião particular. Sei disso porque minha mãe frequentemente alugava um para suas viagens pela Wildlife. E "Surrey AP" é obviamente um aeroporto em Surrey.
- Talvez consiga preencher as partes óbvias do restante. "Amst" é Amsterdã, "Conf." e "Ter." referem-se indubitavelmente a uma conferência na terça-feira. "K-Gr." Aparentemente é um local em Amsterdã,
e uma vez que podemos presumir que "Gr."seja "Gracht", "canal" em holandês, trata-se provavelmente do endereço de algum lugar num canal cujo nome incorpore a letra "K". É muito provável que haja dezenas
de escritórios e residências com essas características.
- O que é que você acha que tudo isso significa? - perguntou Roger.
- Acho que devíamos ir diretamente transmitir essa informação a Sir Geoffrey Waters.
- Qual é, Coley? Ele vai me enclausurar novamente na França!
- Isso, meu caro, até que não me deixaria infeliz. Mas, agora, vamos revirar este apartamento de cabeça para baixo à procura de qualquer indício do paradeiro de Henshaw. Porém, mesmo que não encontremos
nenhum, você terá cumprido sua missão, não concorda?
- E se ela voltar?
- Faremos um acordo com Waters e o MI-5. Por escrito se você quiser. Ele manterá esta rua sob a mais rigorosa vigilância. Se a mulher ou Henshaw voltarem, você será imediatamente comunicado e trazido de
volta a Londres.
- Mãos à obra, comecemos a procurar! - exclamou Roger Brewster.
Sir Geoffrey fez o melhor que pôde para controlar seu gênio quase incontrolável. Chamado por Coleman para comparecer à residência dos Brewster em Belgravia, seu rosto apoplético demonstrou toda sua ira
ao deparar com Roger Brewster.
- Espero que tenha consciência, Roger, de que você causou a esta e a outras organizações consideráveis transtornos, para dizer o mínimo, assim como expôs a vida de Angela e James Montrose a extremo perigo.
- Mas o rapaz está lhe trazendo o que reputo uma informação extraordinária - disse Oliver Coleman firmemente, em defesa do jovem Brewster. - Nenhum de nós tinha conhecimento da existência de uma mulher
de sobrenome Symond até que ele se lembrou dela. Não tenho nada a ver com isso. O mérito é todo dele e lhe devia ser creditado. Como o senhor mesmo admitiu, ele não podia confiar no seu...
- Myra Symond? - interrompeu Waters. - Meu Deus, é inacreditável!
- É, acredito que esse era o primeiro nome nas cartas que lhe foram enviadas - disse Coleman. - Por que é inacreditável?
- Ela era um dos nossos, com os diabos! Pertencia à nossa divisão associada, o MI-6! Era uma das agentes mais capazes na área de infiltrações estrangeiras.
- Mas era obviamente uma traidora, uma espiã - continuou Coleman. - Por conseguinte, nosso jovem amigo lhe trouxe uma informação valiosa que o senhor ignorava completamente.
- Como poderíamos saber? - protestou Waters. - Ela se aposentou do serviço há um ano, alegando estar "queimada", o que não raro acontece.
- Ela não devia estar assim tão queimada, a ponto de não poder trabalhar para o outro lado, não é mesmo? - disse Roger. Gerald Henshaw matou minha mãe porque ela se opunha tenazmente aos Matarese, suas
mensagens pelo computador para e de Madri provam isso. De repente, essa mulher torna-se íntima de Gerry e minha mãe é assassinada. Meu Deus, Geof, não é preciso ser um cientista nuclear para perceber a
conexão!
- Sim, sim, é bastante clara - Waters disse com calma, sacudindo a cabeça. - E caso suspeitassem que você sabia disso, estaria marcado para uma bala ou uma facada dos Matarese. Como alguém disse recentemente,
"Eles estão em toda parte, nós é que não os vemos".
- Compreendo, Geof, voltarei para a França, sem criar caso.
- Para a França não, Roger - disse Waters. - Fechamos aquela base de operações minutos depois de terem dado por sua falta. Não estava brincando, jovem, você pôs em sério risco a vida dos outros com o caos
que provocou. As pessoas falam demais; a notícia espalha-se rapidamente quando uma operação secreta do governo é descoberta num país estrangeiro.
- Sinto muito, senhor, sinceramente.
- Não se recrimine. O primeiro-sargento está certo, afinal você trouxe uma informação bastante valiosa. Mais do que possa imaginar, talvez... reconheço isso. Acreditamos ter identificado um agente Matarese
aqui em Londres. Combinado com o que você descobriu, podemos estar um passo mais perto.
- De quê, Geof?
- Da alma da serpente, espero ardentemente. Ainda está fora do nosso alcance, mas um passo é um passo.
- Para onde serei enviado? - perguntou o filho de Daniel Brewster.
- Para o sul, é tudo que posso lhe dizer.
- Como chegarei lá?
- Usamos somente um piloto e um único avião. Pensando bem, deve ter sido um dia muito exaustivo para o pobre tenente. Mas tudo bem, ele é jovem e cheio de energia.
- O Luther é fogo, senhor.
- É, ele já se reabasteceu diversas vezes hoje. De gasolina, quero dizer.
VINTE E SETE
O tenente Luther Considine, da Marinha dos Estados Unidos, mais uma vez deu uma descaída para a esquerda, dessa feita numa aproximação final para uma pista diplomática alternativa no Aeroporto de Heathrow.
- Tá brincando - ele esbravejou no microfone do seu equipamento de rádio. - Estou pilotando esta relíquia desde as quatro horas da manhã e são quase cinco da tarde! Me dê uma chance, pelo menos uma folguinha
para almoçar.
- Sinto muito, tenente, estas são as ordens. Estou apenas transmitindo-as. O plano de voo lhe será entregue por um funcionário do MI-5.
- Tá legal, Brit. Diga aos caras do caminhão-tanque de reabastecimento pra virem logo pra cá e trazerem o passageiro. Gostaria de estar de volta a Londres lá pela meia-noite. Tenho um encontro da pesada
com uma cama de solteiro e uma refeição pra valer.
- O que é que há? - perguntou Cameron Pryce, sentado ao lado de Leslie nos bancos do avião.
- Deixo vocês aqui em Heathrow e apanho um anônimo que requer tanques de combustível cheios. Tenho vinte minutos pra descobrir pra onde.
- Você é o melhor, Luther - disse Montrose, erguendo a voz acima do barulho dos motores. - É por isso que sempre escolhem você.
- Pois sim, já ouvi essa antes. "Muitos são chamados, mas poucos são os escolhidos". Por que diabo tinha que ser logo eu?
- A coronel acabou de lhe dizer - berrou Cameron enquanto o piloto revertia os motores, começando a manobra de aterrissagem. - Você é o melhor!
- Preferia poder almoçar - disse Considine, alinhando o avião com a pista de pouso.
O movimento em terra parecia coreografado. Luther taxiou o aparelho pela pista em direção a uma área isolada predeterminada. Um caminhão de reabastecimento de combustível saiu de um hangar, e enquanto
dois mecânicos uniformizados desenrolavam mangueiras para os tanques duplos nas asas, um terceiro homem em trajes civis aproximou-se do avião. Considine abriu o painel da fuselagem do Bristol e o homem
falou. - Aqui está o seu plano de voo, tenente. Estude-o e se tiver alguma dúvida, sabe a quem deve chamar.
- Muito obrigado - disse Luther, esticando o braço e apanhando o envelope pardo. - Aqui está a sua carga - acrescentou, apontando para Pryce e Montrose.
- Pois não, imaginei isso. Se quiserem me acompanhar, o carro está logo atrás do caminhão.
- Temos bagagem - atalhou Cameron. - Me dê um minuto para apanhá-la.
- Tenente - disse o funcionário do MI-5 -, talvez pudesse nos ajudar.
Luther Considine, da Marinha dos Estados Unidos, olhou altivamente para o estranho. - Não limpo janelas - ele disse com tranquila autoridade - nem lavo roupa, e para sua informação, meu chapa, não carrego
malas.
- Queira me perdoar. Mas o que foi que disse?
- Deixe isso pra lá, companheiro - interrompeu Pryce. Nosso amigo está um pouco estressado. Eu apanho as malas.
- Obrigado, cacique da paz.
- Do que é que vocês dois estão falando?
- É um código da colônia - respondeu Cameron. - Nosso piloto está preparando chá para jogá-lo na baía de Southampton.
- Não entendo uma palavra do que estão dizendo.
- Ambos estão estressados - interferiu Leslie, com a voz seca e incisiva. - Vamos embora, garotos.
Enquanto Pryce, Montrose e o agente da inteligência encaminhavam-se apressadamente para o veículo do MI-5, um segundo carro, com as janelas obscurecidas pelo sol do cair da tarde, cruzou o campo na direção
do Bristol de carga.
- Deve ser o Sr. ou a Sra. Anônimo - disse Leslie.
- A menos que você tenha provocado um curto circuito na minha capacidade de percepção - observou Cameron é um jovem cavalheiro.
- Roger Brewster! - sussurrou Montrose, quando se acomodaram no banco traseiro. - Mas por que e para onde o estão levando?
- Para o sul da Espanha, uma fazenda de criação de touros de um colega nosso das rebeliões bascas, e você estava certo, Cameron - disse Geoffrey Waters, dirigindo-se a Pryce e a Montrose no seu escritório
no MI-5. - Ele procurou o velho Coleman em Belgravia porque, como você corretamente previu, não contava com mais ninguém.
- Deus seja louvado, você é mesmo bom - exclamou Leslie, olhando para Cam.
- Nada disso, só tentei circunscrever as opções dele. O que poderia fazer sozinho, sem ajuda? Mas ele devia ter uma razão muito forte para fugir e voltar para cá.
- E de fato tinha - concordou Waters, elevando o tom de voz.
- Uma mulher em High Holborn de quem não sabíamos nada.
Sir Geoffrey Waters descreveu as revelações como lhe tinham sido contadas por Roger Brewster e Oliver Coleman. Em seguida exibiu as cartas e, o mais importante, o bloco de anotações decifrado do apartamento
de Myra Symond. - Amsterdã, Pryce! A cabeça da serpente tem que estar em Amsterdã!
- Tudo leva a crer, não é? Mas quem quer que esteja em Amsterdã, que esteja dirigindo toda essa coisa imunda, é meramente um gerente, um burocrata, não o poder absoluto. Há outra pessoa atrás dele ou dela.
- Por que você diz isso, Cam? - perguntou Leslie.
- Sei que você vai me achar idiota, ou coisa parecida, mas quando estava na universidade, gostava de ler Shakespeare. Frescura, não é? Mas uma frase ficou gravada para sempre... embora nem consiga me lembrar
do nome da peça.
- Qual foi?
- "Entre a consumação de algo terrível e o primeiro passo, todo o ínterim é como um fantasma ou um pesadelo".
- Parece-me que é de Júlio César - disse Waters - E o que é que ela tem a ver com o nosso caso?
- O "fantasma", creio eu. Tive que esmiuçá-lo para perceber o contexto. O espectro, o fantasma oculto. Há alguém ou alguma coisa por trás de Amsterdã.
- Mas Amsterdã é certamente nossa primeira prioridade, não é?
- Claro, Geof. Definitivamente. Mas você me faria um favor? Mande vir o Scofield de avião para cá. Acho que estamos precisando de Beowulf Agate.
THE NEW YORK TIMES
A COMUNIDADE MÉDICA CHOCADA
Mais de Novecentos Hospitais Sem Fins Lucrativos Vendidos a um Consórcio
NOVA YORK, 26 OUT. - No que pode ser descrito como uma decisão que chocou a comunidade médica, 942 hospitais até então sem fins lucrativos nos Estados Unidos, Canadá, México, França, Holanda e Grã-Bretanha
foram vendidos ao consórcio Carnation Cross International, um grupo médico com sede em Paris. O porta-voz do consórcio, Dr. Pierre Froisard, divulgou o seguinte comunicado:
"Finalmente, o sonho médico do século, o Projeto Universal, como o chamamos, tornou-se uma realidade. Em mãos particulares, e contando com comunicações globais instantâneas rapidamente disponíveis, melhoraremos
a qualidade do atendimento hospitalar onde quer que tenhamos autoridade. Somando nossos recursos, informação e know-how, poderemos oferecer o melhor. O Projeto Universal, repetimos, a que dedicamos muitos
anos de trabalho discreto e no qual fizemos consideráveis investimentos financeiros, é agora uma realidade, e o mundo civilizado será melhor graças a ele."
Em resposta ao comunicado do Dr. Froisard, o Dr. Kenneth Burns, renomado oncologista de New England, declarou: "Depende do rumo que tomarem. Se as palavras fossem ações, todos nós estaríamos vivendo numa
utopia. O que me incomoda é tanta autoridade em tão poucas mãos. Suponhamos que enveredem por outro caminho e digam: "Façam desta maneira ou não compartilharemos. Creio que vimos isso acontecer com frequência
com as empresas de seguros. A escolha é obliterada."
Outra voz de oposição partiu do desabrido senador Thurston Blair, do Wyoming. "Como essa <censurado> pôde acontecer? Temos leis antitruste, leis que regulam a intervenção estrangeira, toda sorte de leis
que proíbem esse tipo de coisa. Teriam os idiotas de plantão dormido no ponto?"
A resposta ao senador Blair é muito simples. Os conglomerados internacionais precisam apenas satisfazer as leis dos países específicos em que operam. As leis variam e nenhuma proíbe subsidiárias. É por
isso que a Ford é Ford U.K. na Inglaterra; a Phillips holandesa é Phillips USA; e a Standard Oil está presente no mundo inteiro como Standard Oil... seja lá onde for. Em grande medida, essas corporações
internacionais beneficiam as economias dos países que as abrigam. Por conseguinte, é de se presumir que a Carnation Cross venha a ser C.C. USA, C.C. U.K., C.C. França e assim por diante.
Continua na pág. D2
Brandon Scofield e Antonia tinham se instalado na sua suíte no Savoy. Bray, exausto da viagem no jato da Força Aérea, Toni, exultante pelo fato de estarem de volta a Londres. - Vou sair e dar uma volta
por aí - disse Antonia, pendurando no cabide sua última roupa.
- Apresente a todos os pubs minhas melhores saudações disse Scofield, sem sapatos e deitado de costas na cama. Tentarei fazer uma visita pelo menos de cortesia aos melhores.
- Eles não constam da agenda de turismo.
- Esqueci-me de que você é sócia dos Alcoólicos Anônimos.
- Um pouco da agenda deles não lhe faria mal. - O telefone tocou. - Eu atendo. - Toni encaminhou-se para o telefone na mesa-de-cabeceira. - Alô?
- Antonia, é o Geoffrey! Há quantos séculos, minha querida.
- Pelo menos vinte anos, Geof. Ouvi dizer que você agora é Sir Geoffrey Waters.
- Pois é, acidentes acontecem, meu amor, mesmo neste nosso negócio ingrato. O réprobo está?
- Está e não está. Bray odeia essa diferença de fusos horários, mas vou passar o telefone pra ele.
- Alô, Sir de araque, será que você me deixaria puxar um ronco em paz?
- Em circunstâncias normais, não ousaria interromper seu mais do que merecido repouso, meu velho, mas o que temos que discutir é extremamente importante. Cameron e Leslie estão comigo.
- É tão importante assim que não possamos falar pelo telefone enquanto dou uma descansada na cama?
- Você sabe qual é a resposta para isso, Bray.
- É claro que sei - disse Scofield, pondo os pés para fora da cama e sentando-se. - Você continua no mesmo lugar?
- Você não reconhecerá o interior, foi aí que se gastou a grana, mas o lado de fora não mudou nada nos últimos cem anos.
- Naquele tempo a arquitetura era muito melhor.
- É verdade, o príncipe vive nos lembrando disso, e tem todo o meu apoio.
- Ele precisa de todo o apoio que conseguir. Estaremos aí em vinte minutos mais ou menos. Me diga uma coisa, tenho que lhe chamar de Sir o tempo todo?
- Somente quando houver pessoas por perto. Se não o fizer, são capazes de degolá-lo.
A reunião foi breve, acalorada e perpassada de um sentimento de urgência. Feitas as saudações iniciais, os cinco sentaram-se em torno de uma mesa numa sala de conferências segura na sede do MI-5. Waters
atualizou-os em relação aos recentes acontecimentos de um modo geral, inclusive às ações do jovem Brewster, deixando as ocorrências especificamente de Londres para depois. Voltou então a cadeira para Pryce
e Montrose, que relataram suas experiências no lago Como, salientando a assistência de Don Silvio Togazzi e as mortes trágicas de Paravacini e de seu assistente.
- Meu Deus - interrompeu Scofield. - Então, Togazzi agora é um "Don" e Geof, um empertigado "Sir"! Pelo andar da carruagem, Silvio provavelmente vai acabar rei da Itália, e o nosso gorducho aqui, sem dúvida,
primeiro-ministro. O mundo pirou!
- Você é muito amável - disse Waters, reprimindo o riso. - … Quer dizer que, a julgar pelos acontecimentos do lago Como, podemos presumir o colapso de uma força de primeira grandeza nas hostes dos Matarese
e de um cardeal Paravacini no Vaticano.
- Colapso talvez seja uma palavra muito forte - ponderou Leslie. - "Charlie" Paravacini sem dúvida construiu uma organização forte e eficiente.
- Não temos dados precisos sobre isso - interrompeu Brandon - e mesmo que admitamos que o tenha feito, ele era indiscutivelmente uma força real, a única força em todo o setor. Segundo Togazzi, ele não
tinha o hábito de delegar poderes.
- Se esse é o caso - disse o chefe do MI-5 a organização pode não ter sofrido um colapso mas certamente sentiu o impacto e deve estar bastante vulnerável.
- Positivo - acrescentou Cameron. - E é exatamente isso o que estamos procurando, vulnerabilidade. Quando dispusermos de dados suficientes, provas de uma conspiração quase global nos países industrializados,
poderemos então contra-atacar.
- Denunciando-a! - indagou Scofield enigmaticamente, com as sobrancelhas erguidas, denotando dúvida.
- É uma das maneiras - respondeu Sir Geoffrey mas talvez não seja a mais produtiva.
- O que está querendo dizer? - perguntou Antonia.
- Queremos eliminar os Matarese das finanças internacionais, não precipitar as indústrias mundiais no caos.
- Como é possível conseguir isso sem denunciar a conspiração?
- Indo fundo e implacavelmente, Toni - disse Pryce. Cortamos as cabeças das múltiplas serpentes, deixando que seus corpos acéfalos se contorçam desesperadamente até se estrangularem uns aos outros.
- Ora, Cam, isso é um bocado poético, garoto - exclamou Scofield. - Você devia ter feito um curso de literatura em Harvard.
- Não sabia que havia um.
- Posso lembrar às crianças que acabou a hora do recreio - Leslie Montrose disse firmemente, voltando-se para o alto funcionário da inteligência britânica. - Geof, acho que Toni levantou um ponto importante.
Como poderemos dar cabo dos Matarese sem expô-los?
- Responderei a isso, Leslie, depois de ouvirmos o que Brandon tem a dizer. Fale, Matusalém. Afora o episódio da Atlantic Crown, de que todos temos conhecimento e louvamos com relutância, quais são os
outros progressos?
- Conte a eles, amor - disse Bray, virando-se para Antonia. Ela toma nota de tudo, e não devo realmente ceder aos rogos dos meus inferiores.
- Eu mesma fiquei impressionada. De todos os materiais que ele encontrou e fotografou nos arquivos da Atlantic Crown, combinados com um resumo computadorizado sucinto das principais fusões e aquisições
hostis, ele fez um pacote e armou o que vocês chamam de uma operação ardilosa no hotel em Nova York, com a ajuda de Frank Shields. - Antonia Scofield explicou que seu marido se confrontara com quatorze
candidatos a Matarese dos mais influentes setores empresariais americanos. - Quatro dos principais protagonistas, que supostamente não se conheciam, reuniram-se depois do encontro com Bray num restaurante
discreto de Nova York. O pessoal de Frank Shields tirou fotografias de longe. Estão todas anexadas ao dossiê.
- Bravo, Brandon, bom trabalho! - exclamou Waters... - Agora é minha vez de pô-los a par dos acontecimentos aqui em Londres. - Dizendo isso, Geoffrey dirigiu-se às janelas e fechou as persianas, embora
a luz do começo da noite não chegasse a perturbar. Aproximou-se do projetor de slides na ponta da mesa e o ligou: um quadrado luminoso apareceu na tela instalada no fundo da sala. Waters apertou um botão
para exibir o primeiro slide. Era a fotografia de um homem correndo por uma rua de Londres, sua cabeça virada olhando para trás. Era relativamente alto, magro, com as pernas excessivamente compridas em
relação ao tronco, e trajava um terno de estilo clássico. A expressão no seu rosto comprido, malares altos, era de surpresa e medo. Slides adicionais mostraram-no obviamente tomando impulso, mais duas
vezes olhando para trás, suas feições contraídas, agora próximas do pânico. Os slides terminaram com o indivíduo dobrando uma esquina; a tela ficou branca e depois a sala escureceu, enquanto Waters acendia
as luzes fluorescentes do teto. Sir Geoffrey, andando de um lado para outro e finalmente detendo-se ao lado de sua cadeira, deu início a sua exposição.
- Esse era o homem flagrado quando fugia do apartamento de Amanda Bentley-Smythe, agora estabelecida como agente dos Matarese, pouco antes de sua morte se tomar pública. Nós o identificamos como Leonard
Fredericks, um attaché de nível superior do Ministério das Relações Exteriores. Seu telefone está grampeado e ele está sob a mais rigorosa vigilância de nossos agentes. Até hoje, desde aquele dia em Bayswater,
ele não entrou em contato formal com ninguém de relevância, não passa de uma peça de mobília no ministério. Contudo, estamos convencidos de que ele é o principal contato com os Matarese.
- Por que não botar a mão no sujeito e obrigá-lo a falar? - disse Pryce, exaltado.
- Porque isso seria o mesmo que mandar um recado que não temos o menor interesse em dar, ora! - exclamou Scofield.
- Por quê, Sua Santidade?
- Ainda não estamos suficientemente perto! - insistiu Brandon. - Se houver uma grande serpente em Amsterdã, precisamos primeiro cercá-la, acuá-la. Destruindo o contato, você inviabiliza o caminho para
fazermos isso.
- Acho que entendi o que ele quer dizer - disse Leslie.
- Eu também, embora me custe admitir - concordou Cameron Pryce. - É como alterar a bússola eletrônica numa operação de resgate de um piloto perdido nas montanhas.
- Você podia ter escolhido uma metáfora mais simples, meu jovem, mas está certo. Deixemos que o misterioso planejador, que pode não ser tão poderoso quanto pensa, continue acreditando que detém o controle
total. Uma vez que seu elo com a realidade tenha sido rompido ou abalado, ele, ou ela, ficará isolado. É aí que implodiremos o círculo dos Matarese. A chave poderá estar no "K-Gracht" encontrado no apartamento
de Myra Symond.
- Parece-me estar ouvindo Beowulf Agate falando - disse Geoffrey Waters calmamente.
- Deixa disso, Geof, não há nada de mítico. O importante é começar trabalhando a partir dos grandes seixos até chegar às rochas, e depois às pedras e pequenos seixos, se for necessário. O comportamento
humano é muito parecido em toda parte. Taleniekov e eu chegamos a essa conclusão.
- Beowulf Agate tem realmente uma visão, uma concepção própria - disse Cameron Pryce serenamente, quase para si mesmo, olhando fixamente para Scofield. - Falando de pedras e seixos, o que vamos fazer agora,
Bray?
- Oh, é muito simples - respondeu Scofield. - Vou me converter num autêntico membro dos Matarese.
- O quê! - Os outros quatro se entreolharam incrédulos, perplexos.
- Calma, minha gente, é realmente muito fácil. Nosso espião Matarese, Leonard Fredericks, vai se avistar com um emissário de Amsterdã. Deus sabe que tenho informação suficiente para me tornar verossímil.
- O cara é apenas um elemento de ligação, muito competente, mas não passa disso - disse Cameron. - O que é que você acha que ele poderá lhe dizer?
- Não faço ideia. Vai depender das cartas que me couberem. Farei afirmações, ele reagirá; farei perguntas, ele responderá. Uma coisa geralmente leva a outra, a outra a uma terceira. É uma espécie de tênis
mental instantâneo.
- O que em nome de Deus o leva a pensar que poderá se safar? - perguntou Sir Geoffrey, assombrado.
- Ele não me conhece, e as únicas fotografias do meu fascinante rosto têm vinte e nove anos e estiveram uma vez nos arquivos da CIA. Não venho a Londres, vejamos, há pelo menos vinte e cinco anos. Portanto,
ele não terá a menor pista.
- Longe de mim querer inflar ainda mais esse seu ego descomunal - disse Cameron mas é forçoso reconhecer que sua reputação o precedeu. Até o Paravacini, em que pesem as pragas que lhe rogou, admitiu seus
múltiplos talentos. Se ele, um italiano, falou tão generosamente de você, é melhor acreditar que todos os Matarese da Europa o conhecem e sabem do que é capaz.
- E certamente não seria difícil para o pessoal dele localizar mercenários que estiveram em Chesapeake ou Peregrine View - acrescentou Leslie. - Eles poderiam fornecer descrições precisas de você.
- Também é preciso não esquecer, Bray - disse Antonia firmemente - que o próprio Frank Shields admitiu que há um agente dos Matarese infiltrado na CIA!
- Respondendo primeiro à tenente-coronel - Brandon fez um gesto com a cabeça, sorrindo para Leslie -, terei apenas que ser um pouco mais inventivo, não é? Quanto a você, meu amor, não se preocupe, a hipótese
de ser reconhecido é facilmente descartável. No preciso momento em que Olhos-Apertados ouviu de Cam que ele tinha me encontrado em Brass 26, todas as referências ao seu querido, incluindo fotografias,
dossiês etc. foram removidas dos arquivos da Agência e apagadas dos computadores.
- Isso não corresponde exatamente à verdade - atalhou Leslie. - Tanto eu quanto Ev Bracket tivemos acesso a informações limitadas a seu respeito.
- A palavra que empregou foi "limitadas", certo?
- Mas foram suficientes. Seria capaz de identificá-lo no meio de uma multidão. A Toni também.
- E o que foi que fez com esse material limitado, coronel?
- O que nos mandaram fazer na presença um do outro. Juntos, Everett e eu queimamos nossas cópias.
- Ninguém mais as viu?
- É claro que não. Tratava-se de dados confidenciais.
- E presumo que não tenha tido contato com nenhum dos diabólicos Matarese.
- Por favor, Brandon. Não sou idiota. Portanto, não queira me tratar como se fosse.
- Concordo enfaticamente - disse Antonia.
- Seria incapaz de tal coisa - disse Scofield - porque você não é uma idiota, considero-a uma oficial excepcional. Meu argumento é que qualquer que seja a informação que os Matarese possam ter a meu respeito
também é limitada, muito limitada e provavelmente exagerada. A despeito do meu charme, beleza e certas habilidades no manuseio de armas, passo perfeitamente por um americano médio de sessenta e poucos
anos. Um sujeito comum, como tantos outros.
- Quando os burros voarem e as vacas derem bourbon - disse Pryce, balançando a cabeça com ceticismo.
O encontro com Leonard Fredericks, do Ministério das Relações Exteriores, subdiretor da divisão de negociações econômicas europeias, foi providenciado com todo o requinte e discrição pelos quais Sir Geoffrey
Waters era conhecido na comunidade de inteligência. Os arranjos começaram com um pedido perfeitamente normal encaminhado ao ministério, requerendo a designação de um funcionário sênior da divisão de negociações
econômicas europeias para receber um conceituado banqueiro americano que protestava veementemente contra a política do órgão de manter taxas de câmbio da Comunidade Europeia em detrimento das taxas do
Banco Mundial. A política era prejudicial aos investimentos americanos e consequentemente à obtenção de lucros.
A acusação era tão estapafúrdia quanto as vacas darem bourbon, mas devidamente escorada num economês pseudo-acadêmico, era aceitável para a burocracia.
- Ajude o seu irmão, meu querido.
- Como posso fazer isso, Geoffrey?
- Detone memorandos para os canais competentes. O nome do banqueiro é Andrew Jordan, e o nosso alvo é um tal de Leonard Fredericks. Convoque-o para entender-se com o Jordan.
- Posso lhe fazer uma ou duas perguntas?
- Sinto muito, mas se trata de uma operação secreta de grande envergadura.
- Um arrastão, pelo que vejo.
- Já lhe disse, nada de perguntas.
- Tenho que encobrir isso, você compreende. Não podemos nos comprometer.
- Encubra como quiser, caro amigo, mas não deixe de atender o meu pedido.
- Você não pediria se não fosse realmente importante. Jogo feito, Geof.
"Andrew Jordan", também conhecido como Beowulf Agate, foi introduzido no gabinete de Leonard Fredericks por uma secretária. O alto e esguio ocupante da sala levantou-se de sua cadeira, deu a volta na escrivaninha
e cumprimentou efusivamente o suposto eminente banqueiro americano.
- Se não me leva a mal, preferia não fazer a reunião aqui disse o homem chamado Jordan. - Estou cansado de escritórios. Tenho vinte e seis em diversas cidades dos Estados Unidos. Há um bar, o que vocês
chamam de pub, a dois quarteirões daqui, o "Lion" não sei de quê.
- O "Lion of St. George" - esclareceu Leonard Fredericks. Preferia que conversássemos lá?
- Sim, de fato, se não se incomodar - disse Jordan-Scofield.
- Se o deixa mais à vontade, não vejo nenhum inconveniente nisso. Tenha a bondade de ir na frente, preciso tomar umas providências, mas logo em seguida irei ao seu encontro, dentro de uma meia hora.
O Lion of St. George era um típico pub londrino: paredes revestidas de madeira, banquinhos pesados, mesas e cadeiras, com um mínimo de luz e um máximo de fumaça.
Scofield sentou-se a uma mesa na frente, próxima da entrada, tomando um chope na pressão, enquanto esperava por Fredericks. O subdiretor chegou com uma maleta de executivo na mão. Olhou em volta impacientemente
até localizar o estranho americano que não queria conversar no escritório. Avançou por entre as mesas e sentou-se em frente a Andrew Jordan. Falou enquanto abria a maleta.
- Analisei sua exposição de motivos, Sr. Jordan, e, embora veja méritos na sua argumentação, não estou seguro do que poderemos fazer.
- Permita que lhe ofereça um drinque. Vai precisar de um.
- Como?
- Conhece a maneira como trabalhamos - disse Beowulf Agate, fazendo um sinal para um garçom. - O que gostaria debeber?
- Uma pequena dose de gim e um chope escuro. - Scofield fez o pedido e Fredericks prosseguiu. - O que quis dizer com "a maneira como trabalhamos"?
- A melhor resposta é por meios indiretos. A reclamação foi mero pretexto. Estou-lhe trazendo ordens de Amsterdã.
- O quê?
- Não precisa disfarçar, Leonard, estamos do mesmo lado. Como acredita que eu poderia estar aqui agora sem a interferência de Amsterdã? - O garçom voltou com o drinque de Fredericks. O timing foi perfeito.
Os olhos do agente dos Matarese estavam arregalados, cheios de dúvida e de medo. O garçom afastou-se e, antes que o espião abrisse a boca, Scofield falou.
- Muito engenhoso, sem a menor dúvida. A reclamação não passa de uma baboseira, mas muitos banqueiros experientes acreditaram nela, e eu sou um banqueiro, pode verificar nos seus computadores. Mas sou
mais do que isso. Recebo instruções diretamente do K-Gracht em Amsterdã.
- O K-Grachf!... - Fredericks estava pasmo, o medo superando a dúvida nos seus olhos.
- De onde mais poderia ser? - disse Beowulf Agate, aparentando naturalidade. - Fui eu quem implodiu os escritórios da Atlantic Crown - nossos escritórios - e despachou todo o material para a Holanda...
O espião Matarese parecia quase em pânico, sem mais nenhuma dúvida, inteiramente dominado pelo medo. - Quais são as ordens que traz de Amsterdã, do K-Gracht?
- Para início de conversa, não faça qualquer contato. Sou o seu único mensageiro, não confie em mais ninguém. Inventamos esse problema com o ministério para durar alguns dias, cada dia nos aproximando
mais do nosso objetivo...
- Que não está muito distante - interrompeu Fredericks, enfatizando sua importância.
- Agora sou eu quem lhe pergunta, Leonard - disse Jordan Scofield, tranquila e ominosamente. - Como sabe a data do nosso objetivo? É um dado completamente sigiloso, muito poucos de nós sabemos.
- Ouvi boatos provenientes de Amsterdã, passados para agentes de sua maior confiança.
- Que boatos?
- Os incêndios, os incêndios no Mediterrâneo.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Guiderone, naturalmente. Eu andei com ele pelos labirintos de Londres, mostrei-lhe tudo!
- Julian Guiderone? - Dessa vez foi Scofield quem ficou assustado. - Ele está mesmo vivo - sussurrou Brandon quase inaudivelmente.
- O que foi que disse?
- Nada... O que lhe deu o direito de procurar Guiderone?
- Eu não o procurei, ele entrou em contato comigo através de Amsterdã! Como podia questioná-lo? Ele é o filho do Shepherd Boy, o líder do nosso movimento!
- Acredita honestamente que ele poderia suplantar Amsterdã com todos os seus recursos?
- Recursos? Dinheiro é um combustível necessário, vital, mas a autoridade vem em primeiro lugar. Guiderone podia destituir Amsterdã de todo o seu poder com apenas algumas palavras, ele deixou isso muito
claro... Meu Deus, pensando bem, é o que está acontecendo agora, não é mesmo? Se não devo estabelecer contato, isso me diz alguma coisa.
- Julian ficará satisfeito com a sua perspicácia - disse Scofield calmamente, fitando Fredericks diretamente nos olhos. - Ele me disse que você era bom, muito bom mesmo, e muito confiável.
- Palavra!? - O espião Matarese tomou um gole de sua bebida e inclinou-se para a frente, falando com voz baixa, intensa, confidencial. - Creio que compreendo - começou. - O Sr. Guiderone mencionou frequentemente
que Amsterdã estava se tornando muito autossuficiente. Ele reconhecia sua incomensurável fortuna, baseada nos bens do barão de Matarese, mas sustentava que ela era irrelevante sem uma sólida estratégia
mundial, táticas exequíveis e, o mais importante, contatos globais.
- Como sempre, Julian estava certo.
- Portanto, Andrew Jordan, você não é um mensageiro de Amsterdã, você é o mensageiro do Sr. Guiderone.
- Como disse antes, você é realmente perspicaz, Leonard. Foi a vez de Scofield aproximar-se do seu interlocutor. - Você conhece a Swanson & Schwartz?
- Em Nova York? Certamente, é a corretora de Albert Whitehead. Viajei até lá diversas vezes, a mando de Amsterdã.
- Então conhece o advogado Stuart Nichols?
- É quem mais fala.
- E o que me diz de Ben Wahlburg e Jamieson Fowler?
- Bancos e empresas de serviço público...
- Ótimo - interrompeu Scofield. - Então pode compreender o escopo dos acontecimentos. Entre em contato com eles, diga-lhes o que lhe contei, mas não mencione meu nome em hipótese alguma. Julian ficaria
irritado, se soubesse que você o fez. Explique que você recebeu instruções, através de uma fonte anônima, para se manter afastado de Amsterdã. Pergunte se eles sabem alguma coisa a esse respeito.
Albert Whitehead, diretor-executivo da Swanson & Schwartz, desligou o telefone e virou-se para Stuart Nichols, o advogado da corretora que, simultaneamente, colocou no gancho um fone de extensão.
- O que é que está acontecendo, Stu? Que diabo está acontecendo?
- Deus sabe que você tentou de todo jeito arrancar mais alguma coisa, Al, eu não teria feito melhor. Mas o Leonard não cedeu um centímetro sequer, limitou-se obstinadamente a relatar os fatos, nada mais
do que isso.
- Mais uma coisa, Stuart. Ele não estava mentindo. - A cigarra do interfone de Whitehead tocou; ele apertou um botão e falou: - Sim, Janet.
- Está na hora da sua conferência, senhor.
- Oh, é verdade, estou me lembrando, ela foi agendada hoje cedo. Com quem devo falar? Acho que você não me disse.
- O senhor estava atrasado para o almoço, não tive chance.
- Tudo bem, Janet, quem é?
- Os Srs. Benjamin Wahlburg e Jamieson Fowler.
- Mesmo! - Whitehead olhou para o advogado, sua expressão era de espanto.
VINTE E OITO
O vice-diretor Frank Shields abriu o envelope com o carimbo endereçado a ele e começou a examinar seu conteúdo. Assinou o protocolo para o guarda, que registrou que o selo metálico estava intacto, e voltou
para sua escrivaninha. Passou a ler desde o início com a mais absoluta concentração.
As seis páginas eram transcrições textuais de conversas nos telefones particulares à prova de escuta pertencentes a Albert Whitehead, Stuart Nichols, Benjamin Wahlburg e Jamieson Fowler. Eram os quatro
Matarese que tinham se reunido no pequeno e isolado restaurante em Nova York depois de suas impactantes entrevistas com William Clayton, também conhecido como Beowulf Agate, Andrew Jordan e Brandon Alan
Scofield. Violar telefones comerciais supostamente impossíveis de serem grampeados não era problema para os dispositivos de interceptação do governo.
A linguagem empregada por todas as partes envolvidas era relativamente clara, embora não completamente. Era como se os interlocutores tivessem considerado o inadmissível: que suas linhas telefônicas, que
lhes tinham custado alguns milhares de dólares, não fossem realmente invioláveis.
De qualquer forma, estavam todos atônitos com as ordens para evitar Amsterdã, a que se referiam amadoristicamente como A.M. Havia expressões de assombro misturadas com uma alarmada curiosidade e considerável
receio com o rumo que o "empreendimento" estava tomando. Em face da situação, todos concordaram em se encontrar dois dias mais tarde num pequeno e exclusivo hotel no próspero município de Bemardsville,
em Nova Jersey. As reservas seriam feitas em nome da Genesis Company, e seus aviões particulares pousariam no aeroporto de Morristown, a cerca de vinte minutos de distância.
O Diretório de Operações, o setor secreto de infiltração da CIA, pôs-se em campo sem saber ao certo quais eram os objetivos, situação que não era de todo inusitada. A Genesis seria instalada em quatro
pequenas suítes e uma sala de reuniões. Uma equipe do Diretório viajou para o local, falou o menos possível e grampeou toda a área.
Frank Shields pegou seu telefone equipado com misturador de vozes e discou para o telefone seguro de Geoffrey Waters na sede do MI-5 em Londres.
- Segurança Interna - disse a voz na Inglaterra.
- Alô, Geof, é o Frank.
- Tem alguma novidade, meu velho?
- Credite mais essa à folha de serviços de Scofield. Os seus quatro, agora cinco, candidatos pagaram dividendos. As quatro possibilidades aqui agora são definitivas. Estão todos à beira do pânico, pode
crer.
- Com os diabos, como foi que o filho da mãe conseguiu? exclamou Sir Geoffrey.
- Sem dúvida, com muita simplicidade - respondeu Shields. A maioria de nós está tão habituada às complexidades do segredo e da manipulação que acaba esquecendo a abordagem direta. Não importa o papel que
esteja representando, Brandon sempre descarta as complexidades do seu esquema de segurança e parte direto para a jugular do seu alvo antes que ele se refaça da surpresa.
- Diria que isso é uma maneira temerária de pôr em risco uma operação secreta - disse Waters.
- Concordo plenamente, mas não somos Beowulf Agate. Manterei contato.
- OK, Frank.
Sir Geoffrey olhou para o seu relógio, mais uma vez estava atrasado para o jantar em casa, por isso telefonou para sua mulher Gwyneth. - Desculpe, querida, mas estou meio enrolado aqui.
- O mesmo problema, Geof, o que você não pode discutir comigo?
- Para dizer a verdade, é.
- Então fique o tempo que for necessário, meu bem. A cozinheira deixará seu jantar no forno. Cuidado quando for retirar a travessa, proteja as mãos com os pegadores de panelas.
- Obrigado, Gwyn, e mais uma vez me desculpe.
- Não se preocupe com isso, Geof. Trate de pegar os miseráveis. O Clive está completamente arrasado, totalmente deprimido. Ele está aqui comigo neste momento.
- Talvez me demore um pouco...
- Fique à vontade, tenho que cuidar do Clive. Vou acomodá-lo no quarto de hóspedes.
Waters desligou o telefone, pensando onde poderia ir jantar, a fim de evitar seu lamuriento cunhado pelo menos até a manhã do dia seguinte. Chamou pelo interfone guardas do Serviço de Segurança Interna,
os patrulheiros mais experientes em táticas de prevenção de tentativas de assassinato. A sentença de morte proferida por Don Carlo Paravacini não seria tolerada.
Os três guardas paramilitares chegaram, com seus uniformes camuflados, boinas vermelhas e armas automáticas a tiracolo.
- Quando o senhor quiser - disse o líder da unidade, um homem imenso cujos ombros largos e musculosos esticavam o tecido do seu uniforme.
- Obrigado. Francamente, acho que grande parte desse aparato é desnecessária, mas outros discordam.
- Nós somos esses outros - disse o líder. - A vida de um homem está ameaçada, não importa por quem, e estamos aqui para impedir que essa ameaça se concretize.
- Agradeço mais uma vez. Por acaso, seria contra o regulamento parar em algum lugar, no Simpson’s, digamos, para jantar? São meus convidados, naturalmente.
- Lamentamos, senhor, mas nossas ordens são para conduzi-lo diretamente à sua casa e esperarmos lá até sermos rendidos por outra unidade.
- Preferia levar logo um tiro - resmungou Sir Geoffrey.
- Perdão, senhor?
- Nada, não disse nada - respondeu Waters, vestindo o paletó. - Muito bem, vamos então.
A unidade abriu a porta direita da entrada do MI-5 no andar térreo. Dois agentes do Serviço de Segurança Interna saíram, tomando instantaneamente suas posições à direita e à esquerda, com as armas engatilhadas.
O líder acenou com a cabeça para Waters; era a deixa para que ele avançasse rapidamente na direção do veículo blindado estacionado no meio-fio da calçada. Ele deu uma corrida.
Subitamente, na semiescuridão, uma limusine preta dobra a esquina em alta velocidade, com as janelas traseiras do lado esquerdo abertas. Canos de armas automáticas apontavam para fora do carro, e uma saraivada
de balas quebrou o silêncio da noite. Os dois primeiros guardas tombaram, o sangue escorrendo do peito. O líder da unidade jogou o corpo contra o de Geoffrey Waters, empurrando-o pela pequena escada abaixo
até ele encontrar proteção atrás do carro blindado. A ação custou ao oficial de segurança um ombro esquerdo esmigalhado quando um semicírculo de balas alojou-se na sua omoplata. Ele levantou o braço direito,
com a automática na mão, e abriu fogo repetidamente contra a limusine em fuga. Inutilmente, seu ombro ferido impediu que seu braço esquerdo se apoiasse. Ele caiu, cobrindo parcialmente Sir Geoffrey com
seu corpo.
Com o barulho do tiroteio, diversos homens acorreram da sede do MI-5 de armas em punho. Fazendo um rápido levantamento do sangrento atentado, um funcionário de meia-idade deu ordens com serenidade e firmeza.
- Chamem a polícia, providenciem urgentemente uma ambulância e alertem a Scotland Yard.
Lentamente, Sir Geoffrey Waters levantou-se, ofegante e trêmulo, mas sem perder o controle. - Quais foram as perdas? - perguntou sem se dirigir a ninguém em particular.
- Dois patrulheiros mortos, o líder da unidade bastante ferido, mas fizemos um torniquete no braço esquerdo dele - respondeu um funcionário mais ou menos da idade de Waters.
- Filhos-da-puta! - disse Sir Geoffrey em voz baixa, contendo a custo seu ódio enquanto tirava do bolso o celular e teclava o número do hotel onde Pryce e Montrose estava hospedados. Quarto seiscentos.
- Alô - atendeu Cameron Pryce.
- Os seus malditos Matarese quiseram executar a sentença de morte de Paravacini, tentando me matar há alguns minutos. O preço foram dois mortos e um ferido gravemente.
- Meu Deus! - bradou Cam. - Você está bem?
- Algumas contusões neste velho corpo e a cara arranhada no asfalto da rua. Afora isso, estou com todos os movimentos perfeitos, e simplesmente furioso.
- Não é pra menos. O que é que podemos fazer? Quer que demos um pulo até aí?
- De jeito nenhum! - exclamou Waters veementemente. - O Matarese com toda certeza tem olheiros na rua para avaliar a extensão do estrago, e ninguém sabe que vocês estão em Londres. Mantenham-se afastados.
- Entendido. O que é que você pretende fazer?
- Primeiro, tentar colocar meus pensamentos em ordem. Depois, uma vez que os assassinos estavam numa limusine, uma limusine preta sem nenhuma placa traseira que eu pudesse ver, vou dar uma batida em todas
as locadoras de limusine em Londres e imediações.
- É um lugar por onde começar, Geof, mas provavelmente o carro foi roubado.
- Vamos checar as ocorrências policiais nas últimas horas, naturalmente. Vocês tratem de se manter incógnitos e incomunicáveis, exceto para mim e Brandon.
- Como é que o Scofield está se saindo?
- Muito bem, depois eu conto. Por enquanto, está batendo todos os recordes de despesas de copa na história do Savoy, com a possível exceção de xeques árabes com suas múltiplas mulheres.
- Podemos sempre contar com o velho Bray. Ele tem múltiplos talentos.
O pequeno hotel na "região de caça" de Nova Jersey era convenientemente situado, se bem que um tanto distante, entre um campo de golfe a menos de um quilômetro da estrada, à direita, e um clube hípico
a uma distância equivalente, à esquerda. O quadro social de cada um remontava a muitas gerações, e as árvores genealógicas das famílias de novos candidatos eram assiduamente estudadas. Poucos eram admitidos,
filhos e filhas de sócios, em rigoroso escrutínio. O hotel, por sua vez, era mais tradicionalmente Nova Inglaterra do que Nova Jersey. A fachada do prédio de três andares era de ripas de madeira pintadas
de branco, a entrada do andar térreo era flanqueada por colunas coloniais debaixo de um teto inclinado, e ostentava a indefectível águia dourada em cima da porta. No interior havia uma profusão de móveis
de pinho escuro, reluzentes abajures de latão e pequenos candelabros. O vestíbulo forrado com um carpete espesso e macio e um balcão de recepção discreto conferiam ao pequeno hotel um ar acolhedor, de
moderado conforto. De um modo geral, os hóspedes confirmavam essa primeira impressão. Eram exclusivamente brancos, da meia-idade para cima, vestidos com roupas caras e acostumados a exercer autoridade,
tanto assumida quanto herdada.
A administração do hotel teve que aceitar a contragosto um acréscimo ao seu pessoal efetivo. Entretanto, como o pedido tinha sido formulado através do FBI, a autoridade competente, mais do que uma solicitação,
tinha sido uma exigência. Na véspera da chegada do quarteto Matarese, apareceu uma telefonista substituta na mesa telefônica. Todas as chamadas dos quatro hóspedes eram encaminhadas para o posto onde um
dispositivo de gravação era mantido permanentemente em funcionamento. A mulher tinha pouco mais de quarenta anos, era bem-falante e atraente, como convinha ao ambiente, e seu nome era Sra. Cordell.
Ela estudou seu equipamento, verificou todos os comutadores ocultos, acertando as posições onde julgou necessário, e foi se deitar cedo. Teria poucas horas de sono nos dois próximos dias, uma vez que a
operação era considerada tão secreta que não haveria revezamento para a Sra. Cordell. Ela era a única agente técnica da CIA com acesso direto ao vice-diretor Frank Shields.
Raiou o dia na região de caça de Nova Jersey, as estradas e os campos brilhavam com o sol e o orvalho das primeiras horas da manhã; o quarteto chegou a um intervalo aproximado de trinta minutos. A Sra.
Cordell não fazia ideia de como eram os homens, uma vez que não havia câmeras de televisão na entrada; entretanto, a aparência deles não a preocupava. Queria simplesmente ouvir suas vozes, que seriam registradas
em gravadores isométricos, com identificação sônica. As ligações começaram, a primeira de Jamieson Fowler para o quarto do advogado Stuart Nichols.
- Stu, é o Fowler. Vamos nos encontrar no meu quarto, digamos em vinte minutos, certo?
Voz gravada e identificada.
- Tudo bem, Jim. Vou chamar os outros.
Voz gravada e identificada.
- Sim?
- Aqui é o Stuart, Ben. No quarto do Jamieson dentro de vinte minutos, OK?
- É possível que eu me atrase um pouco - disse o banqueiro Benjamin Wahlburg. - Está havendo um defeito numa transferência entre Los Angeles, Londres e Bruxelas. Algum idiota digitou um acesso errado.
Mas já vai ser sanado.
- Alô! - disse Albert Whitehead, diretor-executivo da Swanson & Schwartz.
- É o Stu, Al. O Fowler quer que nos encontremos no quarto dele daqui a vinte minutos. Concordei.
- Não concorde tão rapidamente - interrompeu o corretor de Wall Street asperamente. - Diga a ele que quero uma hora!
- Porquê, Al?
- Digamos que não confio em nenhum desses bastardos.
- Você está sendo muito severo, Al...
- Tudo é severo, doutor! Tire a cabeça dos seus malditos livros de direito e olhe para a realidade. Diversos pontos de pressão estão sendo corroídos, e não gosto disso. Como não responde e agora Amsterdã
está interditada. Que diabo está acontecendo?
- Não sabemos, Al, mas isso não é motivo para alienar Fowler e Wahlburg.
- Como é que você sabe disso, Stuart? Temos milhões não, bilhões - enterrados no empreendimento. Um colapso nos deixaria arruinados!
- Fowler e Wahlburg estão do nosso lado, Al. Eles estão tão enterrados quanto nós. Não os antagonize.
- Tudo bem, mas não conceda a eles o direito de decidir as horas. A determinação de um tempo específico implica autoridade, da qual não abdicarei. Diga a eles que estarei lá dentro de quarenta e cinco
minutos aproximadamente.
Fim da ligação.
Cada voz foi gravada nas fitas da Sra. Cordell. Quem quer que falasse nas sucessivas gravações, seria imediatamente identificado. A Sra. Cordell agora estava devidamente preparada para a vigilância eletrônica
do quarteto Matarese.
O preâmbulo começou precisamente às 11:02 da manhã na suíte de Jamieson Fowler. Foi um preâmbulo porque o diálogo inicial foi áspero e contencioso entre três, e não quatro homens. Onde é que se meteu o
Whitehead, Stuart? - perguntou Wahlburg.
- Ele ficou de vir assim que pudesse.
- O que será que o está detendo?
- Um contratempo, não muito diferente do seu, Ben. Falta de comunicação sobre os termos finais de uma fusão. Mas ele já vai chegar.
- O que temos que discutir é muito, muito mais importante do que qualquer fusão de merda.
- Ele sabe disso tão bem quanto você, Jamieson. Perder a cabeça por causa de meia hora é que não vai resolver coisa alguma. Só servirá para perder a concentração quando ela se faz mais necessária.
- A conversa de sempre de um advogado palavroso.
- Ei, Wahlburg, não é hora de acirrar os ânimos.
- Desculpe, Stu, mas você conhece o Whitehead melhor do que qualquer um de nós. O Al gosta de fazer o seu joguinho, é um maníaco por controle.
- Oh, calem a boca vocês dois. O Whitehead é um bom sacana, sempre foi, sempre será.
- Devagar, Fowler - protestou Stuart Nichols. - O Al não é apenas meu cliente, também é meu amigo.
A conversa continuou nesse diapasão durante vinte e dois minutos até Albert Whitehead aparecer. Pelo tom de sua voz, ele era a contrição em pessoa. - Sinto muito, rapazes, sinceramente. Tive que arranjar
um intérprete neutro para conseguir me safar. O alemão da Suíça é uma língua difícil como o diabo.
- Difícil coisa nenhuma - resmungou entre os dentes Fowler, jogando-se numa poltrona, irritado.
- Você devia tentar negociar nesse idioma, Jamieson - disse Whitehead, olhando do alto, ferinamente, para o executivo do serviço público. - É um bom exercício para a mente.
- Não exercito minha mente com coisas que não compreendo, Al. Não é uma boa.
- É, você não deve mesmo, é por isso que precisa de gente como nós. Homens que exercitam suas mentes, para que você possa obter o financiamento de que necessita para suas fusões e aquisições.
- Eu o obteria com ou sem você...
- É o que você pensa, Fowler - interrompeu Whitehead energicamente. - Nossa organização, ou empreendimento, se preferir...
- Chame-nos pelo nosso nome, Al - atalhou Jamieson Fowler - ou será que o nome o assusta?
- De modo algum, faço uso dele orgulhosamente... Os Matarese têm regras específicas sobre o financiamento de capital. Onde e quando o rastreamento é possível, somente certos canais podem ser empregados,
canais em harmonia com as leis do país receptador. No caso de uma transferência muito vultosa, com uma firma como a minha - geralmente, somente com a minha firma, como você sabe muito bem...
- Vocês dois querem parar de bancar os maiorais? - Um agitado Benjamin Wahlburg colocou-se entre Whitehead e Fowler, encarando os dois alternadamente. - Recolham seus egos à estrebaria, temos problemas
muito maiores!
A conversa, embora não menos contenciosa, circunscreveu-se imediatamente aos assuntos que tinham motivado a reunião. Começou com a pergunta anterior de Albert Whitehead ao seu advogado, Stuart Nichols:
- Que diabo está acontecendo?
As respostas sucederam-se rapidamente, quase sempre conflitantes. Variaram de críticas a Amsterdã por falta de força controladora a possíveis deserções de células individuais levadas pela cobiça e relutantes
em abrir mão de seus territórios. Depois consideraram o papel que Julian Guiderone estava desempenhando em relação às informações que Leonard Fredericks fornecera de Londres.
- Onde está Guiderone agora? - perguntou Albert Whitehead.
- Ouvi dizer que ele tem uma propriedade em algum lugar na costa leste do Mediterrâneo - respondeu Wahlburg. - Naturalmente, pode ser apenas um boato. Ninguém parece saber onde fica exatamente.
- Tenho alguns conhecimentos na comunidade de inteligência - acrescentou Nichols. - Verei se poderão adiantar alguma coisa.
- Ajudá-lo a encontrar um homem que supostamente morreu há vinte ou trinta anos? - Fowler deu uma risada sarcástica.
- Jamieson - interrompeu Whitehead - você ficaria estupefato com o número de falsas mortes que ocorrem, seguidas de milagrosas ressurreições anos mais tarde. Na verdade, o boato mais recente que anda correndo
por aí é que você seria o Jimmy Hoffa[N. da revisão: sindicalista e autor norte-americano desaparecido em 30/07/1975, fonte Wikipedia].
- Muito engraçado. - Fowler voltou-se para Wahlburg. Digamos que Stu descubra alguma coisa, o que é pouco provável, o que é que Guiderone pode fazer?
- A resposta para isso é: o que ele bem entender. Pra mim, não é nenhum problema pegar um avião e ir falar com Julian. A despeito da lenda que o cerca, ele é um homem civilizado, desde que você seja honesto
com ele. O holandês é capaz de falar com equilíbrio, mas, por baixo do verniz, ele é um tipo patológico.
- Mas o que é que ele pode fazer! - perguntou Whitehead. O Jamieson levantou uma questão importante.
- Obrigado, Al. Quanta gentileza.
- Nunca disse que você era estúpido, Jamieson, apenas limitado por opção. Desta vez você não está sendo. - Whitehead olhou para o banqueiro. - Repito, Ben, o que Guiderone pode fazer, se por acaso for
encontrado? Ele não controla Amsterdã.
- E é de Amsterdã que vem o dinheiro! - exclamou o advogado, Nichols.
- Naturalmente, o dinheiro - concordou Wahlburg. - E de onde foi que veio o dinheiro?... Não se preocupem, eu mesmo respondo. Do seu avô, das vastas fortunas do barão de Matarese pelo mundo afora. E quem
é Julian Guiderone? De onde é que ele vem? Também responderei a essa pergunta. Ele é o filho do Shepherd Boy, Nicholas Guiderone, nomeado pelo barão para executar a obra de sua vida, seus sonhos e ideais.
- Aonde é que você está querendo chegar, Ben? - atalhou Fowler. - Chegue logo à conclusão!
- A conclusão é sutil, Jim, mas tão poderosa quanto todo o dinheiro em que o neto consegue pôr as mãos.
- Acho melhor você explicar isso - disse Stuart Nichols.
- É tão eterno quanto os profetas do Velho Testamento e seus seguidores, que consideravam as palavras dos profetas sagradas.
- Dispensamos o exercício talmúdico, Ben - protestou Whitehead. - Estamos lidando com a realidade do aqui e agora. Por favor, seja mais claro.
- É por isso que é tão real - respondeu Wahlburg enigmaticamente. - Remonta a tempos imemoriais... O céu é testemunha de que o seu Jesus não tinha dinheiro, riquezas para distribuir a fim de convencer
as pessoas, mas décadas após sua morte na cruz, antes de meio século, o movimento cristão começou a se espalhar pelo então mundo civilizado. E os convertidos herdaram a riqueza daquele mundo.
- E? - pressionou Nichols.
- Suas ideias, suas profecias, seus sonhos foram aceitos pelos que acreditavam nele. Não houve troca de dinheiro.
- É! - esbravejou um frustrado e impaciente Fowler.
- Suponha que um dos discípulos, ou mesmo o próprio Jesus em uma confissão à beira da morte, alegasse que tudo não passara de uma farsa? Que fora uma fantástica viagem egocêntrica para dividir os judeus.
O que teria acontecido?
- Sei lá! - respondeu um enfurecido Whitehead.
- O movimento cristão teria naufragado, as multidões de convertidos ficariam perdidas, seu compromisso coletivo teria sido em vão...
- Pelo amor de Deus, Ben! - interrompeu Fowler, no auge da indignação, paralisado na sua cadeira. - O que é que toda essa merda tem a ver conosco?
- O Al em parte tem razão, Jim, você limita o seu raciocínio.
- Limite-se a esclarecer, não venha com pregação, seu filho-da-puta!
- Exercitem suas imaginações, cavalheiros - disse Wahlburg, levantando-se de sua cadeira, e, como banqueiro que era, fazendo uma preleção a um grupo de jovens empresários. Ele falou devagar, com clareza.
- Trata-se ao mesmo tempo de uma confluência e de um conflito entre recursos financeiros imediatos e os canais de influência através dos quais esses recursos devem fluir. Enquanto o holandês, o neto, opera
num vácuo de escuridão, distante e inacessível, Julian Guiderone, o filho do ungido Shepherd Boy, viaja pelo mundo afora, supervisionando e apoiando as tropas Matarese. Logicamente, um não pode operar
sem o outro, mas na realidade, as tropas, os convertidos, confiam naquele que veem e conhecem. Em última análise, a influência suplanta as finanças imediatas, por nenhuma outra razão do que a familiaridade
com a visão. Os mercados de valores mundiais comprovam meu ponto de vista, tanto positiva quanto negativamente.
- O que você está querendo dizer, então - disse um pensativo Albert Whitehead - é que Guiderone tanto pode manter tudo coeso, salvando nossos rabos, como mandar toda essa tramoia para o espaço, e estaremos
todos fodidos e mal pagos.
- É exatamente isso o que estou dizendo. E não pensem nem por um instante que ele não sabe disso.
- Ache-o - gritou Jamieson Fowler. - Descubra esse maldito filho do Shepherd Boy!
Receando que Bahrain fosse perigosa, Julian Guiderone viajou para Paris, fazendo Amsterdã saber onde estava e quanto tempo pretendia se demorar. Como era previsível, o Matareisen mostrou-se frio, dando
um recado óbvio: o fóssil conhecido como filho do Shepherd Boy não era mais um homem a ser reverenciado. Que tivessem isso em mente. A reverência, o respeito voltariam mais tarde, quando o jovem turco
percebesse que Amsterdã não podia agir isoladamente.
Findava a tarde e o trânsito estava congestionado na sofisticada avenue Montaigne, principalmente de táxis e limusines deixando seus passageiros, a maioria influentes empresários e altos executivos, nas
portas de suas elegantes residências. Guiderone, de pé em frente a uma janela, olhava para a rua. As próximas semanas, meditava, seriam um preâmbulo do caos e um prelúdio do controle quase global. Muitos
dos que desciam de seus automóveis na famosa avenida que ele observava da janela breve estariam se debatendo com a perda chocante de sua segurança financeira. Os altos cargos e posições privilegiadas seriam
extintos, as diretorias de empresas acabariam com as milionárias aposentadorias e pensões, preferindo enfrentar os tribunais a afundar ainda mais suas corporações no desastre econômico.
Para Jan van der Meer Matareisen, não obstante, tudo permanecia conforme fora programado. Van der Meer não compreendia a profundidade da observação de Shakespeare: "Entre a consumação de algo terrível
e o primeiro passo, todo o ínterim é como um fantasma ou um pesadelo". Esse fantasma ou pesadelo tinha que ser fatorado, calculado e em última instância rejeitado. Pois o "algo terrível" tinha que permanecer
constante, não sendo admissíveis a ação prematura e a procrastinação. A coordenação total e instantânea era fundamental; era a onda de choque que paralisaria as nações industriais. Essa paralisia, conquanto
temporária - algumas semanas ou mesmo um mês -, é que era vital. Era suficiente para as legiões Matarese se espalhar e preencher os vazios.
Matareisen tinha que aprender que dúvidas emocionais, por mais instigantes que fossem, eram intoleráveis. Eram meros buracos no grande bulevar que conduzia à esplendorosa vitória dos Matarese. Por que
o insolente bastardo não era capaz de ver isso?
O telefone tocou, surpreendendo Julian. Ninguém a não ser Amsterdã tinha conhecimento do seu número em Paris. Ninguém exceto diversas mulheres extremamente belas que trocavam favores sexuais por dinheiro
ou joias caras, e nenhuma delas sabia que ele se encontrava ali naquele momento. Encaminhou-se para a mesa e pegou o fone.
- Sim?
- É o Águia, Sr. Guiderone.
- Como foi que obteve este número? Você só deve contatar Amsterdã!
- Eu me reportei a Amsterdã, senhor.
- E o que há de tão extraordinário para que Amsterdã lhe fornecesse este número?
- Não expliquei com maiores detalhes, creio que em seu próprio benefício.
- O quê? Não explicou satisfatoriamente ao Keizersgracht?
- Escute-me, por favor. Disse a eles - a ele - que precisava entrar urgentemente em contato com o senhor a respeito de um assunto que nada tinha a ver com o empreendimento. Sou um leal correligionário
e ele aceitou minha palavra.
- Prontamente, suspeito. Ao que parece não estou mais na sua lista da mais absoluta prioridade.
- Isso seria uma estupidez da parte de Amsterdã, Sr. Guiderone. - atalhou o Águia, em Washington. - O senhor é o filho do Shepherd Boy...
- Sim, sim! - interrompeu Julian. - Afinal, por que entrou em contato comigo? O que é que há de tão extraordinário?
- Está havendo uma investigação sigilosa em toda a comunidade de inteligência sobre o seu paradeiro.
- Isso é um absurdo! Washington me declarou oficialmente morto há muitos anos!
- Alguém pensa que o senhor ainda está vivo.
- O porco do mundo! - exclamou Guiderone. - Beowulf Agate!
- Esse personagem seria Brandon Scofield, estou certo?
- Desgraçadamente, está certíssimo. Onde é que ele se encontra?
- Em Londres.
- O que aconteceu com o nosso homem em Londres? Ele tinha ordens para matar o filho-da-puta!
- Não sabemos, Amsterdã tampouco. Não se consegue localizá-lo em parte alguma.
- O que é que está dizendo?
- É como se tivesse desaparecido.
- O quê?
- Todos os acessos a ele foram bloqueados. Usei em vão todos os meios de que dispomos aqui em Langley.
- Que diabo está acontecendo?
- Gostaria de poder lhe dizer, Sr. Guiderone.
- É o porco do mundo, Águia - disse o filho do Shepherd Boy com voz gutural. - Ele está em Londres e eu estou em Paris, a meia hora de avião um do outro. Qual de nós dois fará o primeiro movimento?
- Se for o senhor, seja extremamente cauteloso. Ele está protegido por seguranças dia e noite.
- Isso só prova a sua vulnerabilidade, Águia. Eu não tenho proteção nenhuma.
VINTE E NOVE
Brandon Scofield, com seu roupão do Savoy, andava impacientemente de um lado para o outro em frente às janelas que davam para o rio Tâmisa. Antonia permanecia sentada à mesa do serviço de copa, saboreando
as delícias do farto e variado café da manhã, que ela dizia dar para uma semana inteira. Do lado de fora da pequena suíte, uma unidade armada da MI-5 patrulhava os corredores, com as armas ocultas sob
o uniforme branco dos camareiros do andar. Eram rendidos por unidades adicionais sincronizadas com os horários dos verdadeiros empregados do Savoy, o que os tornava indistinguíveis dos funcionários.
- O Sir maldito nos mantém enjaulados aqui como se fôssemos animais ou leprosos! - vituperou Beowulf Agate. - E nem ao menos numa suíte de dimensões decentes.
- As suítes maiores têm mais entradas, Geof explicou isso. Para que correr o risco de termos mais acessos?
- E eu expliquei que mais entradas significam mais saídas retrucou prontamente Scofield. - Por que eliminá-las?
- O comando da operação é do Geoffrey. Estamos sob a responsabilidade dele.
- E essa palhaçada de somente ele poder ligar pra nós e nós não podermos ligar pra ele!
- As mesas telefônicas dos hotéis anotam os números de todas as ligações para fora para poderem cobrá-las dos hóspedes, e ele não quer se arriscar com telefones celulares por causa dos rastreadores. Pelo
menos quando se tratar de sua segurança pessoal.
- Repito, estamos enjaulados. É como se estivéssemos atrás das grades de uma prisão!
- Duvido que o serviço de copa e restaurante fosse comparável, sem falar das acomodações, Bray.
- Não gosto disso. Eu era melhor do que o Sir há mais de vinte anos, e ainda sou melhor.
- Espero, entretanto, que admita que ele é extremamente competente naquilo que faz...
- Sei proteger o meu rabo melhor do que ele - disse Scofield, parecendo um adolescente mimado. - Há uma tendência para complicar desnecessariamente as operações secretas de segurança. Será que ele acha
que os verdadeiros camareiros do andar são cegos, surdos e retardados mentais?
- Tenho certeza de que ele levou devidamente em conta esse aspecto da questão.
Uma batida na porta fez Bray atravessar a sala apressadamente. - Quem é?
- A Sra. Downey... senhor - foi a resposta hesitante. - A arrumadeira.
- Oh, certamente. - Scofield abriu a porta, mostrando-se surpreso ao deparar com uma mulher de certa idade, cuja silhueta esbelta, postura ereta e feições aristocráticas não pareciam nada compatíveis com
seu uniforme azul-claro do serviço de arrumadeiras do Savoy, e os indefectíveis aspirador de pó e espanador. Entre - Bray acrescentou.
- Por favor, não se levante - disse a Sra. Downey, entrando e dirigindo-se a Antonia, que começara a se levantar da mesa do serviço de copa.
- Não, tudo bem - respondeu Toni. - Não poderia comer nem mais uma migalha. Pode levar tudo.
- Poderia mas não vou fazê-lo. Um camareiro se encarregará disso... Devo, entretanto, me apresentar. Por enquanto, meu nome é Downey, Dorothy Downey - um bom e sólido nome, eu mesma o escolhi - e estou
devidamente registrada no departamento de pessoal do Savoy com esplêndidas credenciais, divisão de arrumadeiras, o que sinceramente é um absurdo. Não seria capaz de fazer uma cama de acordo com os padrões
do hotel mesmo que minha vida dependesse disso. Na realidade, sou uma criptógrafa, e no momento sou seu único contato com Sir Geoffrey Waters.
- Macacos me mordam...
- Por favor, Bray... E como é que nos comunicamos com a senhora, Sra. Downey?
- Aqui está o número - disse a criptógrafa do MI-5, aproximando-se de Antonia e entregando-lhe um pequeno pedaço de papel. - Procure memorizá-lo e queime o papel.
- Faremos isso depois que a senhora nos explicar detalhadamente a segurança desse número - replicou Scofield, testando-a.
- Excelente pedido... Trata-se de uma linha direta segura que não passa pela mesa telefônica e se comunica com o pequeno escritório que o Savoy pôs à minha disposição. Eu, por minha vez, tenho acesso direto
e inviolável a Sir Geoffrey Waters. Isso responde à sua pergunta, senhor?
- Espero que meu nome seja tão inviolável quanto o seu acesso.
- Bray!...
A extraordinariamente eficiente "Sra. Dorothy Downey, da divisão de arrumadeiras", tornou-se um motivo de permanente irritação para Scofield e demonstrou ser excepcional no seu trabalho. As informações
fluíam ininterruptamente entre Waters, Brandon e Antonia, e Pryce e Leslie Montrose, que estavam incógnitos no hotel Blakes em Roland Gardens. Como peças de um quebra-cabeça encaixadas por mãos invisíveis,
os contornos da fase estratégica seguinte começavam a se delinear.
Ela se concentraria em Amsterdã, a partir da escassa informação encontrada no apartamento de Myra Symond, que seria reexaminada e rigorosamente estudada. Havia também o equipamento roubado do escritório
de McDowell em Wichita e despachado de avião para Amsterdã. Graças a um executivo precavido da Atlantic Crown, que achou que poderia ser responsabilizado se permitisse que o dispendioso material fosse
removido sem uma nota fiscal, foi possível saber o número do voo da KLM. Havia funcionários da companhia de aviação, equipes de terra e de carga, a serem interrogados; alguém tinha que saber de alguma
coisa, ter visto algo - o pessoal que desembarcara o equipamento, o veículo ou veículos que o tinham transportado.
Os caçadores estavam à procura de pedras e seixos, pois Amsterdã era a primeira porta do labirinto simbólico de Scofield.
Chegara a hora de abrir essa porta e ver o que havia por trás dela. Os dados foram reunidos e processados num único computador no MI-5. Os resultados não foram espetaculares, mas tampouco foram inúteis.
Correlações levaram a conexões e associações; a análise dos métodos de transporte reduziu o campo dos que os utilizaram; fretar um avião de carga internacional e cumprir todas as exigências, inspeções
e restrições governamentais não era tarefa para qualquer um, mesmo para um multimilionário médio. Verificaram igualmente todos os canais que incorporavam a letra K, independentemente de sua posição; havia
dezenas, o som duro do K enfático em cada um deles.
- Obtenha uma lista de todos os moradores em cada um dos canais - disse Sir Geofffey a um assistente.
- Deve haver milhares, senhor!
- Sem dúvida. A propósito, inclua dados básicos sempre que possível. Renda, ocupação, estado civil, isso será suficiente para começar.
- Santo Deus, Sir Geoffrey, uma lista como essa poderá levar semanas!
- Não creio e, francamente, não estou certo se dispomos de semanas. Quem é o nosso elemento de ligação com a inteligência holandesa?
- Alan Poole, Divisão dos Países Baixos.
- Diga a ele para entrar em contato com o seu agente na Holanda. Explique o que precisamos, usando como simulacro o contrabando de narcóticos ou de diamantes - o que for mais conveniente. As companhias
telefônicas mantêm registros para efeito de faturamento e dividem as cidades em setores. Nossos colegas holandeses terão acesso facilmente a esses dados, e nós enviaremos um mensageiro para apanhá-los.
Como disse, é um ponto de partida.
- Perfeitamente, senhor - disse o assistente, encaminhando-se para a porta de saída. - Falarei com Poole imediatamente.
A informação da inteligência holandesa foi volumosa. Uma equipe de cinco analistas do MI-5 debruçou-se sobre o material durante trinta e oito horas consecutivas, descartando os nomes obviamente inadequados
e retendo até mesmo os vagamente possíveis. Os milhares de nomes foram reduzidos a algumas centenas e o processo começou de novo. Dossiês e registros de ocorrências policiais foram coligidos onde quer
que existissem, práticas bancárias foram esmiuçadas; empresas, corporações e outros locais de trabalho foram analisados em busca de transações dúbias e tripulações de voo e de terra do Aeroporto Schiphol
de Amsterdã foram interrogadas por agentes do MI-5 fluentes em holandês com respeito ao avião de carga procedente de Wichita, Kansas, Estados Unidos da América. Essa última diligência produziu uma curiosa
informação. De acordo com as anotações de um dos agentes, a conversa que se segue ocorreu entre um funcionário do MI-5 e o chefe da equipe de carga:
MI-5: - Lembra-se desse voo?
Chefe da equipe: - Certamente. Estávamos descarregando caixas de equipamento técnico não especificado sem conhecimento de embarque, sem qualquer documentação... e não apareceu ninguém da alfândega. Pelo
amor de Deus, podia haver todo tipo de contrabando, até mesmo materiais nucleares, mas ninguém com autoridade se deu o trabalho de inspecionar o carregamento.
Os computadores do balcão da companhia não acusavam qualquer voo proveniente de Wichita. Era como se o avião e sua chegada não existissem. As anotações do agente do MI-5 continuaram durante o interrogatório
a que foi submetido pelo pessoal da alfândega.
MI-5: - Quem estava de serviço naquela noite?
Mulher no computador: - Deixe-me verificar. Foi uma noite de pouco movimento de carga, por isso a maior parte do pessoal foi embora mais cedo.
- Quem ficou?
- De acordo com o que está aqui, um substituto chamado Arnold Zelft ficou respondendo pelo setor.
- Um substituto?
- Temos um quadro de substitutos, geralmente funcionários aposentados.
- Como posso encontrar esse tal de Zelft?
- Deixe-me ver a relação de substitutos... É estranho, o nome dele não consta da lista.
Não havia nenhum Arnold Zelft em qualquer catálogo telefônico, editado ou a ser editado na Holanda. Ele também não existia.
A triagem de todos os dados coligidos reduziu a lista de algumas centenas para sessenta e três possibilidades. A redução baseou-se em dossiês, ocorrências policiais, sindicâncias realizadas em empresas
e corporações, revelações financeiras adicionais e informações esparsas colhidas entre vizinhos, amigos e inimigos. Os analistas do MI-5 continuaram inquirindo, eliminando essencialmente possibilidades
tendo por base fatores desqualificadores que as eliminavam do cotejo. Os nomes e as residências estavam agora circunscritos a dezesseis, e foram montados esquemas de vigilância individual vinte e quatro
horas por dia.
No espaço de quarenta e oito horas diversos incidentes estranhos foram reportados por agentes das equipes de vigilância. Seis casais residentes em canais com a letra K no nome viajaram para Paris, hospedando-se
em hotéis diferentes, mas, segundo informes das mesas telefônicas, mantiveram-se em contato uns com os outros. Três maridos ausentaram-se em viagem de negócios, dois receberam visitas de mulheres com as
quais passaram a noite, um deles bebendo copiosamente, a ponto de ficar inconsciente depois de seus encontros, sendo recolhido por aparentes estranhos e desaparecendo num carro a alta velocidade que tomou
o rumo do campo. Estaria embriagado ou seria uma farsa?
As outras possibilidades eram quatro casais, uma viúva idosa e dois homens solteiros. Como os demais, eram abastados, influentes a ponto de terem acesso a figuras de maior e menor expressão no governo,
e as fontes de seus vastos proventos eram complexas e difíceis de definir. Isso era especialmente verdadeiro no caso de um dos dois homens solteiros, um Sr. Jan van der Meer, que morava numa antiga e elegante
mansão no Keizersgracht. Os dados disponíveis descreviam-no como um financista internacional cujos bens globais não eram revelados, o equivalente holandês a um capitalista com apreciáveis investimentos
de risco no cenário mundial.
Uma súbita brecha! Logo seguida de outra!
A primeira ocorreu graças a um dos agentes do MI-5, falando holandês fluentemente, que se fez passar por pesquisador de uma empresa de cosméticos. Em conversas informais com os vizinhos mais próximos de
van der Meer, ficou sabendo que limusines de uma certa locadora chegavam frequentemente à residência do cavalheiro em questão. Ao ser interrogada, a locadora de limusines negou ter conhecimento de um Jan
van der Meer e afirmou não haver nos seus arquivos qualquer referência ao aluguel de seus veículos a essa pessoa. Uma pesquisa feita por uma empresa de segurança revelou que a locadora de limusines pertencia
a uma holding chamada Argus Properties. Era um dos inúmeros interesses comerciais de van der Meer, e a decepção, embora talvez explicável, não deixava de ser inquietante. Investigações mais profundas eram
indispensáveis. Aonde poderiam levar?
A segunda brecha repentina foi em parte um golpe de sorte, em parte o resultado da técnica de referências cruzadas, sepultada no passado. E foi tão significativa que eliminou a necessidade de averiguações
posteriores. Encontraram a casa num canal K. Keizersgracht 310, o "canal dos césares".
Um computador da inteligência holandesa detectou uma súbita interrupção na função programada, o que em geral significa que uma entrada foi apagada no passado. No caso, o passado eram vinte e quatro anos.
Foi deslanchada uma busca computadorizada retroativa, abrangendo todos os registros governamentais e judiciais até ser descoberto o tópico apagado. Vinte e quatro anos. Tratava-se de uma decisão do Tribunal
Civil de Amsterdã, Divisão de Títulos e Nomenclatura. Foi realizada uma segunda busca nos arquivos do tribunal, o documento foi desenterrado e submetido ao equipamento de raios X espectográfico. O corte
foi localizado, as palavras restauradas.
Um estudante de direito de dezenove anos da Universidade de Utrecht mudara legalmente seu nome ou, mais precisamente, alterara, eliminando seu verdadeiro sobrenome. Daquela data em diante passou a ser
conhecido como Jan van der Meer, não mais como Jan van der Meer Matareisen.
Matareisen.
Matarese em holandês.
A peça final do enlouquecedor quebra-cabeça tinha sido encaixada.
Julian Guiderone registrou-se com o nome Paravacini no hotel Inn on the Park em Londres. Os estabelecimentos mais requintados sabiam que a Casa dos Paravacini situava-se entre as mais ricas dinastias da
Itália e fazia jus aos seus melhores esforços. Para cumprir o objetivo de sua visita à Inglaterra - em poucas palavras, a morte de Brandon Alan Scofield, também conhecido como Beowulf Agate -, Julian precisava
descobrir o paradeiro do homem dos Matarese em Londres, um certo Leonard Fredericks. Aparentemente, como seu espião em Langley dissera, "era como se ele tivesse desaparecido".
Entretanto, alguém como Fredericks não desaparecia simplesmente. Ele era capaz de criar explicações irrefutáveis para justificar ausências temporárias, mas nunca desapareceria. Não obstante realidades
mais amargas, como sua própria execução, ele era extraordinariamente bem pago pelos seus serviços e, como muitos de seus colegas clandestinos, mantinha um estilo de vida secreto de fazer inveja a um príncipe
saudita. Guiderone, entretanto, não se limitava unicamente aos canais dos Matarese; ele tinha suas próprias fontes e seus próprios recursos. Uma delas era a mulher de Leonard Fredericks, presa a um casamento
execrável, do qual não tinha como escapar. Admitindo a hipótese de a mulher estar sendo vigiada, marcaram um encontro no salão da exposição islâmica do Victoria and Albert Museum, assunto de sua conhecida
predileção.
- O senhor sabe perfeitamente que Leonard raramente me revela detalhes de suas viagens - disse a matronal Mareia Fredericks enquanto conversavam sentados num banco de mármore no museu. O salão da exposição
estava repleto de estudantes e turistas, e os olhos de Julian não desgrudavam da entrada; ele estava preparado para se levantar e deixar a mulher ao primeiro indício de que estavam sendo vigiados. - Presumo
que ele tenha viajado para Paris numa de suas excursões sexuais, camuflada, naturalmente, como um estudo econômico de suma importância.
- Ele disse quando voltaria?
- Sim, foi bastante específico... amanhã, para ser exata. Como de hábito meus préstimos foram requisitados, razão pela qual ele foi específico. Vou preparar um assado para um jantar com um casal da repartição.
- Considerando seus infortúnios conjugais, diria que foi muito condescendente.
- Estou muito curiosa. Ele vem dormindo com a mulher do sujeito há dois anos.
- Não se pode negar que ele tem audácia, não é mesmo?
- Se tem, meu caro. Não pode ver um rabo-de-saia.
- Ouça, Mareia. Preciso ver o Leonard, mas ele não pode saber que nos encontramos, nem mesmo que estou aqui em Londres.
- Não será por meu intermédio que ele vai saber.
- Ótimo. Estou hospedado no Inn on the Park usando o nome Paravacini...
- Sei, já ficou lá outras vezes - disse a Sra. Fredericks.
- É conveniente. A família é proeminente, e eles são amigos. Quando Leonard regressa de suas viagens ele costuma lhe telefonar antes de ir para casa?
- Naturalmente. Para me dar ordens.
- Entre em contato comigo assim que ele telefonar. Ele ainda dirige seu carro do escritório ou do aeroporto?
- É claro. O bastardo sem-vergonha pode achar que precisa dar uma voltinha antes de vir pra casa.
- Eu o interceptarei depois que você ligar para mim. Talvez ele se atrase para o jantar.
Mareia Fredericks virou-se ligeiramente e olhou suplicante para Julian. - Quando conseguirei me libertar, Sr. G.? Minha vida é um verdadeiro inferno!
- Você conhece as regras. Nunca... melhor dizendo, certamente não agora.
- Mas eu não conheço regra nenhuma! Só sei que elas existem porque o Leonard vive falando nelas, mas não sei em que consistem ou qual a sua razão de ser.
- Certamente você compreende que elas se relacionam com a fortuna que seu marido leva para casa...
- Não ganho nada com isso! - interrompeu a mulher. - E não tenho a menor ideia do que ele faz para merecer tanto dinheiro.
Guiderone devolveu o olhar penetrante de Mareia, seus olhos ficaram presos uns nos outros. - Não, estou certo de que você não tem, minha querida - ele disse suavemente. - Aguente um pouco mais. Muitas
vezes as coisas acabam se resolvendo por si mesmas. Você fará o que lhe pedi?
- O Inn on the Park. Paravacini.
A noite mal começara nos arredores de Londres, os postes de iluminação pública naquela zona residencial tinham acabado de acender. A sequência de casas esmeradas, agradáveis da classe média alta tornava-se
cada vez mais nítida pela sucessão das luzes das janelas. A escuridão chega cedo nessas áreas quase suburbanas na medida em que o sol desaparece rapidamente, as casas muito próximas umas das outras impedindo
que os raios esmorecidos penetrem nas ruas.
Naquela rua em particular um sedã cinza estava estacionado junto ao meio-fio em frente à casa de Fredericks. Dentro dele, Julian Guiderone estava sentado ao volante, fumando um cigarro, com o braço esquerdo
apoiado no assento do passageiro, e os olhos no espelho retrovisor. Lá está ele. Os faróis dianteiros de um carro que avançava lentamente, desviando para a direita, encostando no meio-fio fronteiro. Leonard
Fredericks.
Partindo da premissa tantas vezes comprovada de que um homem desprevenido geralmente baixa sua guarda ao ser surpreendido, Guiderone ligou a ignição e, sincronizando sua manobra com precisão, virou o volante,
colocando o sedã diretamente no caminho do veículo que se aproximava. Freando bruscamente a alguns centímetros do capô do carro, com os pneus cantando, Guiderone permaneceu sentado, impassível, esperando
a reação. Ela não se fez esperar, e Fredericks saiu abruptamente do carro, aos berros.
- Que diabo você pensa que está fazendo! - ele protestou, vociferante.
- Acho que a pergunta devia ser invertida, Leonard - respondeu Julian calmamente, descendo do carro cinzento e encarando o homem dos Matarese em Londres. - Que diabo, pergunto eu, você andou fazendo?
- Sr. Guiderone... Julian... O que em nome de Deus está fazendo aqui?
- Repetindo, o que foi que você fez onde quer que tenha estado, Leonard? Ninguém conseguia encontrá-lo, você não respondia às ligações telefônicas indevassáveis ou às mensagens em código. Como disse o
Águia, foi como se você tivesse desaparecido. Tudo isso é muito desconcertante.
- Santo Deus, certamente não é preciso que lhe digam!
- Me digam o quê?
- Foi por isso que tirei uns dias de folga... até que as coisas fossem esclarecidas.
- Me dissessem o quê, Leonard? - perguntou Guiderone incisivamente.
- Amsterdã está interditada, fora do circuito! O Jordan me passou a informação... que recebeu de você.
- De mim?...
- Naturalmente. Ele me disse que você tinha apreciado particularmente minha perspicácia. Ele deu a entender que era seu mensageiro.
- Foi mesmo?
- Certamente. Ele sabia de tudo. De K-Gracht, da Atlantic Crown, da Swanson & Schwartz, até mesmo desse advogado falastrão, Stuart Nichols, inclusive a respeito de Wahlburg e Jamieson Fowler. Ele estava
por dentro de tudo!
- Calma, Leonard... Fale-me sobre esse tal de Jordan...
- O banqueiro americano, Julian - interrompeu Fredericks, quase em pânico. - Andrew Jordan. Naturalmente, chequei sua identidade, era autêntica, embora, como sabe, o protesto que encaminhou à nossa divisão
no ministério fosse um mero pretexto. E agi como você mandou... através do Jordan, expliquei aos americanos que eles deviam se manter afastados de Amsterdã.
- Suas fontes?
- Anônimas, precisamente de acordo com suas instruções.
- Esse Andrew Jordan, Leonard, seria capaz de descrevê-lo para mim?
- Descrevê-lo para você? - Fredericks ficou estupefato.
- Não se preocupe - tranquilizou-o Guiderone. - Só queria saber se ele fez o que lhe pedi, que mudasse sua aparência. Afinal, estava despachando-o para o campo inimigo.
- Bem, ele era mais velho do que eu, mais ou menos da sua idade, eu diria. E sim, havia uma coisa estranha na sua aparência. Suas roupas eram muito informais para um banqueiro eminente, se é que me entende.
Mas, como você diz, ele estava no campo inimigo...
- O porco do mundo! - disse entre os dentes o filho do Shepherd Boy, ao confirmar suas suspeitas, mal contendo sua fúria.
- Como?
- Não se incomode... Agora, quanto à incumbência que Amsterdã lhe confiou - antes de ser "interditada" especificamente, a execução do americano, Brandon Scofield. Algum progresso?
- Muito pouco - respondeu Leonard Fredericks. - Ele está inacessível. O que consegui apurar é que ele e sua mulher estão sob rigorosa guarda num dos melhores hotéis, desses que costumam cooperar com o
MI-5. Receio que seja muito difícil pôr as mãos nele.
- Pôr as mãos nele? - disse Julian com a voz gelada. - Seu idiota, você esteve com ele durante quase uma hora! Quem você acha, com mil demônios, que era Andrew Jordan?
- Isso é impossível, Sr. Guiderone! Ele estava a par do fogo, do incêndio no Mediterrâneo.
- Ele realmente sabia, ou foi você que disse a ele?
- Bem, ficou mutuamente subentendido...
- Entre no carro, Leonard, temos outras coisas para discutir.
- Sinto muito, Julian, mas não posso. Mareia e eu temos visitas. Ela cozinhou um assado...
- O jantar pode esperar. Nossos negócios não.
Leonard Fredericks não voltou para jantar. Quando a Sra. Fredericks decidiu que a refeição não podia mais ser adiada, ela e seus convidados sentaram-se à mesa e deliciaram-se com um excelente assado. E
o que Mareia apreciou ainda mais foi ter recebido um telefonema. Atendendo-o na sala, ouviu as seguintes palavras:
- Receio que seu marido tenha ficado inevitavelmente detido, minha cara. Uma vez que sua missão aparentemente é confidencial, não há como precisar para onde ele foi mandado ou por quanto tempo ficará ausente.
Enquanto isso, você foi autorizada a movimentar as contas bancárias dele. Seguirão instruções... Você está livre, Mareia.
- Nunca o esquecerei.
- Negativo, minha querida. Você deve me esquecer. Completamente.
Cameron Pryce pulou da cama com o som estridente do telefone do hotel Blakes. Ele esticou o braço para a mesinha-de-cabeceira, não antes de Leslie Montrose sentar-se no leito. - São duas horas da manhã
- ela murmurou, bocejando. - Acho bom que seja importante.
- Já vou saber... Alô?
- Desculpe incomodá-lo, Cam, mas queria informá-lo sem perda de tempo - disse Geoffrey Waters.
- Fale logo. O que foi que aconteceu? - perguntou Pryce ansiosamente.
- Você sabe que colocamos o tal de Fredericks sob a mais rigorosa e completa vigilância...
- Leonard Fredericks - interrompeu Cameron -, o contato dos Matarese?
- Exatamente. Nossos rapazes o seguiram a Paris, onde ele se entregou a atividades que caberiam melhor nas páginas do Kamasutra, mas de outra forma improdutivas.
- Você me telefonou a esta hora para dizer isso?
- Nem pense nisso. A unidade de Paris telefonou para o nosso homem em Heathrow advertindo-o da chegada dele num voo no fim da tarde. O agente localizou-o encaminhando-se para o seu carro e logo o perdeu
no trânsito infernal do aeroporto. Depois de verificar todas as estradas de saída, finalmente dirigiu-se para a casa de Fredericks. O carro dele estava lá mas ele não.
- Tem certeza disso?
- Absoluta. Pra começar, a Sra. Fredericks ficou realmente espantada ao ver o carro do marido, depois convidou nosso homem a entrar. Ele encontrou um casal do Ministério das Relações Exteriores que lhe
disse que Fredericks não tinha aparecido para o jantar, e havia um jogo de pratos e talheres num lugar vazio à mesa, confirmando sua ausência.
- O casal do ministério poderia ser uma armação, um engodo?
- Muito pouco provável, checamos os dois. Eles eram jovens e ambiciosos, não do tipo que se presta a essas coisas, especialmente quando estamos em cena. Imaginamos que a mulher pudesse ter algum envolvimento
em ele, mas isso não chega a ser um crime nos dias de hoje.
- Nunca foi... Você pode dizer adeus ao nosso contato, Geof, mais um Gerald Henshaw. Ele tinha passatempos perigosos e os Matarese não brincam em serviço.
- Essa é mais ou menos a conclusão a que cheguei. Estou interditando o escritório dele. Vamos virá-lo de pernas pro ar.
- Divirta-se e mantenha-me sempre informado.
- Como vai a Leslie?
- Ela é uma loba, o que mais posso lhe dizer?
- Oh, cale a boca - disse Leslie, deixando-se cair no travesseiro.
Quando Julian Guiderone adentrou o pátio do Savoy, dirigindo-se para a entrada do hotel, eram oito e vinte da noite. A larga avenida de Londres fervilhava de pedestres e veículos, o próprio pátio estava
congestionado com táxis, limusines, Jaguars e dois Rolls Royces. O Teatro Savoy, sede original da companhia D’Oyly Carte de Gilbert e Sullivan, estava piscando as luzes de sua marquise, o que significava
que estava para subir a cortina da mais recente produção. Frequentadores do teatro batiam seus cachimbos nos calcanhares, esmagavam pontas de cigarros com os pés e se amontoavam em frente às portas de
metal dourado. Era uma noite típica na movimentada cidade de Londres.
Julian havia conferenciado com suas fontes, basicamente um grupo disparatado de homens e mulheres de idade desvalidos da sorte a quem se acostumara a ajudar durante os anos que passara na Inglaterra. Chamava-os
de seu pequeno exército de observadores; nenhum deles sabia ao certo por que olhava para o que quer que fosse que ele mandasse, mas o faziam de bom grado porque ele os gratificava generosamente, e quase
sempre os presenteava com roupas novas para substituírem seus andrajos. Roupas, para eles, eram importantes; eram uma grata recordação de coisas do passado, tais como emprego decente e respeito próprio
- dignidade.
O filho do Shepherd Boy estudara a lista de hotéis de primeira classe que costumavam colaborar com as autoridades britânicas; nenhum deles podia realmente ser excluído. Por isso Julian mobilizou seu pequeno
exército e espalhou seus soldados nas imediações de todos eles, à espreita de indivíduos que os frequentavam regularmente a certas horas, mas não pareciam ser hóspedes, turistas, ou funcionários. Sempre
ansiosos para agradar seu misterioso benfeitor, os observadores transmitiam muitas "observações", mas nenhuma delas despertou a atenção de Guiderone.
Uma mulher de meia-idade, vista no interior do Savoy envergando o uniforme de funcionária, deixava o hotel todas as noites entre quinze para as sete e oito horas, horário muito flexível para uma funcionária.
E havia outro detalhe: toda vez que ela emergia do saguão usava roupas de fino acabamento, obviamente caras, e um táxi invariavelmente estava à sua espera na porta, não um ônibus ou o modesto veículo de
um marido. Certamente esses não eram hábitos de uma mulher que trabalhava para se manter, seriam mais facilmente os de uma agente do MI-5.
O plano de Julian era trabalhoso e exigia tempo; não importava, pois ele estava no encalço do porco imundo. Percorria constantemente andar por andar, procurando o inusitado, alguma coisa que lhe parecesse
fora do contexto; ele acabaria se manifestando de uma forma ou de outra. Tinha que ser assim. O porco do mundo!
Finalmente encontrou a anomalia no terceiro andar, no lado que dava para o Tâmisa. Enquanto os camareiros do andar dirigiam-se às várias portas com bandejas e carrinhos do serviço de copa, outros camareiros
perambulavam de um lado para o outro sem bandejas ou carrinhos, parecendo ter a atenção voltada para uma determinada porta. Guiderone compreendeu.
Com sua leve manqueira intensificada pela ansiedade, o filho do Shepherd Boy ordenou rapidamente seus pensamentos, elaborando uma estratégia. Tinha que isolar aquela porta, isolar os que estavam lá dentro.
Hospedara-se muitas vezes no Savoy e se lembrava da rotina de atendimento dos quartos. Além dos elevadores de serviço que se comunicavam com as imensas cozinhas no subsolo, cada andar dispunha de uma copa
de bom tamanho onde podiam ser preparados chá, café, canapés e sanduíches para pronta entrega. Procurando aparentar naturalidade, embora no íntimo furioso com sua manqueira cada vez mais pronunciada, Julian
seguiu um camareiro carregando uma bandeja e descobriu a localização da copa do terceiro andar do lado que dava para o Tâmisa. Permaneceu, então, no largo corredor atapetado, andando sem rumo, como se
estivesse perdido, e contou os que presumiu serem os verdadeiros camareiros e os que não eram.
Estavam divididos igualmente: três e três, três que realmente serviam os quartos e três que simplesmente andavam - patrulhavam, para ser mais preciso. Sua estratégia estava tomando corpo e começava na
copa. Voltou para ela, esperou surgir um camareiro com uma bandeja e entrou. A copa do terceiro andar estava vazia; não continuaria assim por muito tempo. Verificou as diversas portas que davam para depósitos
de mantimentos, e por fim uma que dava para um banheiro. Trancou-se dentro dele, acendeu a luz e sacou uma pistola calibre 32 do bolso interno do paletó e um silenciador do bolso da calça. Ajustou o cilindro
no cano da arma e esperou até ouvir a porta que dava para o corredor ser aberta e fechada. Saiu do banheiro, confrontando-se com um camareiro perplexo que deixou a bandeja prateada cair no balcão. Guiderone
disparou sua arma, matando o homem com um tiro abafado. Rapidamente, arrastou o corpo para o banheiro e fechou a porta.
Pouco depois chegou um segundo camareiro, um jovem de compleição atlética. Ao avistar a arma de Julian, ele jogou um balde de gelo na cabeça de Guiderone. Tarde demais. Dois disparos silenciosos alojaram
duas balas no peito e na garganta do camareiro, e o filho do Shepherd Boy puxou seu segundo cadáver para o pequeno lavatório.
A terceira vítima misericordiosamente nunca soube o que aconteceu. Um camareiro magro, de mais idade, entrou de costas na copa, puxando um carrinho. Julian atirou; o velho caiu debruçado sobre o carrinho,
morto. Três cadáveres jaziam empilhados no chão do banheiro, seu sangue rubro e luzidio escorrendo nos ladrilhos brancos. Guiderone preparou-se para seus próximos confrontos, três passos finais para chegar
ao porco imundo que tinha transformado seus sonhos no pesadelo de uma vida inteira.
Ele saiu mancando para o corredor, contornou a curva e viu o primeiro dos guardas do MI-5 ao lado do elevador, de olho na porta do porco. Assumindo um ar de espanto, Julian aproximou-se do homem, apertou
o botão e falou: - Creio que estou completamente confuso - ele disse num tom de voz quase suplicante. Não consigo achar a suíte Oito-Zero-Sete.
- Vai ser difícil encontrá-la neste andar. Este é o terceiro andar.
- Não me diga! A idade embota a vista e tudo mais. Seria capaz de jurar que apertei o botão do oitavo andar.
- Não tem problema, meu senhor, podia acontecer com qualquer um. - A porta do elevador abriu-se.
- Poderia apertar o botão do oitavo andar para mim, meu jovem?
- Perfeitamente. - O guarda entrou no elevador e apertou o botão. Ao fazê-lo, Guiderone ergueu sua pistola dotada de silenciador e apertou o gatilho. A porta se fechou e o elevador subiu para o oitavo
andar.
Nesse momento, apareceu um segundo guarda na curva do corredor. Era óbvio que estava procurando alguém, preocupado por não localizar a pessoa. Julian encaminhou-se para ele, mancando. - Queira me desculpar,
mas não tenho certeza do que devo fazer. Houve uma grande confusão aqui há poucos momentos. Estava conversando com um homem postado ao lado do elevador, um jovem mais ou menos da sua idade, quando a porta
do elevador abriu-se repentinamente e dois outros homens o agarraram e puxaram para dentro. Ele gritou e reagiu mas não adiantou - os dois eram verdadeiros selvagens. Eles o levaram para baixo...
- Rafe! - berrou o segundo patrulheiro do MI-5 enquanto surgia outro guarda por trás de portas de vidro que dividiam os corredores intermitentemente. - Comunique-se com Downey, código vermelho. Interdição!
Mantenha a cobertura enquanto vou atrás do Joseph. Vou pela escada! Peça reforços, mande cercar o hotel!
O terceiro guarda do MI-5 enfiou a mão no cinto para retirar seu interfone. Não deu tempo. Guiderone adiantou-se, sacando sua arma oculta no paletó. Jogou-se contra o guarda atônito, atirando simultaneamente,
o disparo sendo ainda mais abafado pela carne do homem. O agente tombou; o filho do Shepherd Boy abaixou-se automaticamente e revistou os bolsos do guarda, sabendo que acharia o que procurava. A chave
da suíte do porco do mundo!
Com a perna dolorida, Guiderone arrastou a quinta vítima para a beira da escada - as escadas eram raramente usadas - e empurrou o corpo pelos degraus abaixo. Voltou para a porta da suíte do porco, com
a cabeça pegando fogo. Vinte e cinco anos, um quarto de século, e finalmente chegara a hora de sua vingança! O fim estava por pouco. Poderia ter sido presidente dos Estados Unidos! E um homem tinha se
interposto no seu caminho. Aquele porco estaria morto antes de o relógio bater dez horas. Silenciosamente, o filho do Shepherd Boy enfiou a chave na fechadura.
O que se seguiu foi uma batalha entre antigos gigantes, nada menos do que isso. Scofield estava sentado numa poltrona voltada para o Tâmisa. Antonia, à sua frente, lia o Times de Londres. Brandon escrevia
num bloco de papel ofício, como era seu costume, analisando suas opções. Um ligeiro ruído metálico na porta! Quase inaudível, a ponto de Antonia não perceber. Mas na sua vida de outros tempos, Beowulf
Agate convivera com toda sorte de sons indefinidos, abafados, insignificantes, quase inaudíveis como aquele. Muitas vezes tinham significado a diferença entre a ocultação e a descoberta - a vida e a morte.
Lançou um olhar de relance, a maçaneta da porta estava girando devagar, silenciosamente.
- Toni! - ele sussurrou -, corra para o quarto de dormir e tranque a porta.
- O quê? Bray?...
- Rápido. - Confusa, Antonia fez o que ele mandou enquanto Scofield pegava um pesado abajur de pé pela haste. Arrancando o pino da tomada na parede, levantou-se da poltrona e segurou a haste pelo meio,
caminhando ligeiro para a porta e colocando-se à sua esquerda. Ao ser aberta, ela o ocultaria.
Ela se abriu e a figura de um homem manco transpôs a soleira com uma arma na mão. Com toda sua considerável força, Bray desferiu um violento golpe com a base do abajur na cabeça do intruso. A pistola dotada
de silenciador disparou duas vezes contra o assoalho enquanto o invasor com intenções homicidas, com o crânio coberto de sangue, rodopiava e caía para trás, cambaleante. Scofield ficou de tal forma estupefato
que chegou a ficar momentaneamente paralisado. Julian Guiderone! Ele estava vivo! Muito mais velho, a pele das faces manchada, e o rosto contorcido, uma fúria alucinada estampada nos olhos. O filho do
Shepherd Boy em carne e osso.
Brandon refez-se da surpresa segundos antes de Guiderone recuperar o equilíbrio e erguer sua arma. Deu uma estocada com a base do abajur no corpo do Matarese, arremessando-o contra a janela. O golpe o
deixou ainda mais enraivecido, suas feições alteradas e congestionadas eram a própria máscara da loucura. Guiderone deu um passo à frente e Bray agarrou o pulso que segurava a pistola, torcendo-o para
obrigá-lo a soltar a arma. Em vão. No seu frenesi, o filho do Shepherd Boy tinha dez vezes mais a força de um homem com a metade da sua idade.
- Porco do mundo! - esbravejou Guiderone, espumando nos cantos da boca. - Porco do mundo!
- Eu lhe agradeço, senador Appleton - respondeu Scofield ofegante, defendendo-se da melhor maneira do ataque de um Matarese possesso. - Você ambicionava chegar à Casa Branca, seu filho-da-puta, e eu o
impedi!
Com um uivo de ódio, Guiderone caiu por cima de Bray, desequilibrando-o por um instante, arranhando-lhe o rosto, enquanto Scofield segurava-lhe firmemente o pulso, impedindo-o de fazer uso da arma. Os
dois rolaram pelo chão, esbarrando nos móveis, levantando-se, duas feras envelhecidas numa luta de vida ou morte. Gravuras emolduradas e protegidas com vidro despencaram das paredes, vasos de cristal caíram
das mesas, espatifando-se. Ataques e contra-ataques - eram os derradeiros momentos de uma batalha épica. Brandon defendeu-se como pôde dos golpes mortais até conseguir segurar Guiderone pelo paletó, mantendo
afastada a mão do adversário que empunhava a arma. Deu-lhe um safanão e, com uma força que não julgava ainda lhe restar, arremessou-o contra a janela do Savoy com tamanha violência que o vidro espesso
se estilhaçou em fragmentos pontiagudos que seccionaram a garganta de Guiderone.
Beowulf Agate caiu de joelhos, seu corpo fremia, seu peito arfava.
TRINTA
- Atacar! - gritou Scofield. - Tem que ser agora, Geof!
- Concordo plenamente - acrescentou Cameron Pryce enquanto os cinco, incluindo Leslie e Antonia, discutiam reunidos na suíte arrasada do Savoy. O corpo ensanguentado de Guiderone tinha sido removido, juntamente
com os vidros quebrados e os móveis destruídos, pelo pessoal da inteligência militar.
- Não estou contra vocês, rapazes - disse Geoffrey Waters, do MI-5. - Apenas quero ter certeza de que não esquecemos de nada.
- Pensei em tudo - insistiu Beowulf Agate. - Conheço os Matarese, sei como eles operam. Cada célula é ao mesmo tempo independente e interdependente. Gozam de umas tantas autonomias, mas todas ficam debaixo
de um guarda-chuva global. A hora de atacar é quando o guarda-chuva está vulnerável, quando o tecido está rasgado e, podem crer, ele agora está em frangalhos!
- Independentes mas ao mesmo tempo interdependentes interrompeu Sir Geoffrey. - Vamos examinar isso.
- Não há nada a examinar - disse Pryce. - Vejam a General Mills com seus produtos Wheaties, Cheerios e... sei lá mais o quê. Marcas diferentes, uma só empresa.
- O que é que as caixas de cereais têm a ver com isso, Cam? - perguntou Leslie, sentada numa mesa não danificada na refrega.
- Esqueça as embalagens de cereais, pense em serpentes, ninhos de serpentes. Já disse isso... temos que cortar as cabeças das serpentes, independentes e interdependentes. Guiderone era uma das duas chaves
Matarese...
- Cila para Caribde - atalhou Scofield.
- Muito bem, Bray - endossou Pryce. - Com ele fora do baralho, a outra chave é van der Meer em Amsterdã. Nós o capturamos, o isolamos e dobramos de um jeito ou de outro. Viramos a casa dele pelo avesso.
Fazemos o que Brandon fez na Atlantic Crown. Talvez descubramos alguma coisa.
- Enquanto isso, os independentes e os interdependentes não receberão instruções de espécie alguma - acrescentou Scofield. Muitos poderão entrar em pânico, a ponto de enviarem emissários ao Keizersgracht.
Se isso acontecer, ficaremos sabendo de mais coisas ainda.
- Vamos à prática - disse Waters. - Qual é o nosso melhor cenário?
- Para começar - respondeu Cameron - não envolvam a inteligência holandesa. É uma grande organização, mas não podemos correr o risco de uma infiltração dos Matarese. Nosso silêncio não pode ser quebrado.
- Uma unidade de soldados à paisana - concluiu Sir Geofffey, - Nosso pessoal, o MI-6, nosso braço estrangeiro.
- Eu assumo o comando - disse Pryce. - Onde anda o Luther Considine? Com um pouco de sorte, nosso ás da aviação somará mais algumas horas de voo ao seu histórico. Outra coisa, Geof, avise a Frank Shields
em Washington. Ele talvez tenha que agir rápido em relação ao seu quarteto de serpentes, colocando-as em celas separadas.
O ataque noturno ao 310 do Keizersgracht foi uma maravilha de operação clandestina. Grampos eletrônicos confirmaram que Jan van der Meer estava residindo na mansão, seus dois únicos hóspedes, um no primeiro
e outro no terceiro andar, eram presumivelmente guardas de segurança. As plantas da casa foram exumadas de arquivos da virada do século sob o pretexto de um comprador potencial, um agente do MI-6 falando
um holandês fluente. O mesmo agente dirigiu-se à porta da frente, que dava para a rua, enquanto dois de seus colegas, juntamente com Pryce, abordaram a entrada do canal, uma porta de aço num arco de tijolos.
O agente na porta da frente tocou a campainha; foi atendido em menos de dez segundos. Um homem corpulento apareceu no vão da porta. - Sim, o que é? - perguntou em holandês.
- Recebi instruções para entrar em contato com Jan van der Meer esta noite, a esta hora.
- Autorizado por quem?
- Quatro homens em Nova York. Os Srs. Whitehead, Wahlburg, Fowler e Nichols. As circunstâncias são urgentes. Por favor, avise o Sr. van der Meer.
- É muito tarde. Ele já se recolheu aos seus aposentos.
- Sugiro que o informe de minha presença, ou você é quem poderá ser recolhido.
- Não gosto de ameaças.
- Não é uma ameaça, meneer. É simplesmente um fato.
- Espere aqui. Vou fechar a porta.
Na escuridão do lado do canal, os agentes do MI-6 tinham colocado dois discos plásticos conectados nas imponentes e grossas janelas flanqueando a porta de aço. Eram dispositivos eletrônicos de escuta.
Entrementes, Pryce removeu um glóbulo de cinco polegadas quadradas de uma substância argilosa, começando a aplicá-la em torno da área da fechadura e da maçaneta da porta. Ao ser inflamada, derreteria mais
de uma polegada de aço.
- O segurança está subindo a escada correndo - disse em voz baixa o agente à direita.
- Confirmado - concordou seu colega à esquerda. - Vamos em frente, companheiro.
- Qual de vocês está com o desativador de alarme? - perguntou Cameron.
- Eu - respondeu o primeiro agente. - De acordo com o pessoal da limpeza, cada saída tem um painel à direita da porta com um intervalo de vinte segundos. Uma barbada, meu chapa. Grampeio o nosso amiguinho
em cima dos dígitos e ele se encarrega do resto.
Pryce introduziu um maçarico eletrônico no glóbulo contendo a substância argilosa. Instantaneamente, ela se tornou vermelha, incandescente, adquirindo logo em seguida uma tonalidade esbranquiçada ofuscante
enquanto ardia, comendo o aço. Quando o chiado parou, Cam tirou uma lata de aerossol do bolso da jaqueta de campanha e borrifou o metal queimado; ele escureceu e esfriou. Utilizando um torquês fino, Pryce
puxou a placa de aço dentada; ela caiu no chão. - Vamos nessa, pessoal - ele disse.
Os três homens empurraram a pesada porta, abrindo-a; o primeiro agente girou o corpo e colocou o desativador no painel de alarme. Desencadeou-se uma série de cliques acelerados e abruptamente apareceu
uma luzinha vermelha no quadro do desativador. - Nosso impertinente amiguinho fez o seu trabalho - sussurrou o comando. - O local está neutralizado. Não há muita luz, não é? Nem uma miserável lâmpada em
todo o salão de baile...
Barulho de passos. Na escada. O segurança que tinha subido a escada correndo desceu às pressas, agora empunhando uma automática na mão direita. Pryce e seus colegas ajoelharam-se no escuro atrás de um
piano de cauda, observando enquanto o troncudo empregado do Matareisen corria em direção à porta, abria-a e mandava o terceiro agente entrar.
- Depressa! - gritou. - E preste muita atenção, tenho uma arma na mão e a usarei se fizer alguma coisa que eu desaprove.
- Meu negócio não é com você, meneer, portanto não faria nada para provocar sua aprovação ou desaprovação.
- Acho que compreendeu o que eu quis dizer. Vamos, o grande van der Meer está muito contrariado. Ele vai querer ver suas credenciais.
- Ele devia saber que minhas credenciais estão na minha cabeça.
- Você é insolente.
- Ele devia saber - repetiu o agente do MI-6, caminhando na frente do segurança em direção à escada.
Cameron bateu de leve nos ombros dos dois agentes que o ladeavam. Era o sinal silencioso. Em um movimento sincronizado, e usando botas de sola de borracha grossa, levantaram-se de trás do piano, avançaram
e, como numa coreografia, Pryce deu uma gravata no segurança e desarmou-o, enquanto ele estrebuchava espasmodicamente. O segundo agente do MI-6 arrastou o homem desacordado pelo amplo salão e tirou dos
bolsos fios e fita gomada.
- Não há ninguém no segundo andar - disse Cam em voz baixa para os outros dois. - E não temos um segundo sequer a perder. O Matareisen está nos esperando, sem dúvida posicionando seu segurança número dois.
Vamos subir ao terceiro andar com muito cuidado. Adaptaram os silenciadores nas suas armas?
- Nunca deixaram de estar ajustados - respondeu o agente que usara a entrada da rua. O terceiro homem da unidade de assalto voltou.
- Ele continua apagado? - perguntou Pryce.
- Esse não acorda mais. Dei-lhe uma picada no pescoço.
- Macabro, você é um sádico...
- Melhor isso do que sanguinário, sinto muito.
- Cale a boca. Vamos embora!
Começando pelo terceiro degrau, a unidade formou um círculo, de costas um para o outro, e esgueirou-se silenciosamente escada acima. De repente, o agente que tinha desativado o alarme disparou sua arma.
Um corpo despencou de um canto escuro no patamar do terceiro andar, a bala abafada pelo silenciador atingira seu alvo, um tiro certeiro no crânio que não dera tempo para qualquer som humano.
- Há uma porta e aposto que é a do nosso anfitrião.
- Por quê? - perguntou o agente que dera a picada no pescoço do segurança.
- Ele estava em frente a ela.
- Faz sentido pra mim - sussurrou Cameron. - Esforço concentrado, rapazes?
- Estamos com o senhor.
- Nada de "senhor", por favor. Esta é uma missão de oportunidades iguais. Vocês estão muito mais por dentro deste tipo de operação do que eu.
- Eu diria que não está se saindo nada mal. Aquela sua gravata foi pra ninguém botar defeito.
Apoiados nos ombros uns dos outros, os quatro arremeteram contra a pesada porta como se fossem um aríete humano. Com um estrondo assustador ela caiu por terra, literalmente explodindo sua fechadura e suas
dobradiças, resultado de quase uma tonelada de força. Um estupefato Jan van der Meer, vestindo um paletó de smoking de veludo azul e calças de um pijama de seda branco, estava paralisado no meio da sala.
- Santo Deus! - ele bradou em holandês.
- Inopinadamente, ele empreendeu a mais improvável ação imaginável em tais circunstâncias. Antes que armas pudessem ser sacadas, ele partiu para o ataque. Embora seu físico não chegasse a impressionar,
ele se transformou instantaneamente num autêntico dervixe possuído pelo demônio, agitando freneticamente pernas e braços como se fossem dezenas de lâminas rotativas. Em poucos segundos imobilizou dois
dos agentes desprevenidos, apanhados de surpresa, que jaziam no chão, tentando minorar a dor e a dormência de suas cabeças e colunas vertebrais. O terceiro estava agachado num canto segurando a garganta.
Van der Meer focalizou os olhos em brasa em Cameron. Você tem sorte, americano, de eu não precisar usar uma arma, do contrário já estaria morto a esta altura.
- Não posso negar que você é bom de briga.
- Mais terrível do que seus piores pesadelos, Sr. Pryce.
- Sabe quem eu sou?
- Estamos na sua cola desde, como é mesmo que se chama, Brass 26?
- A lancha. O jato Harrier. Você matou uma porção de bons rapazes que estavam apenas cumprindo suas obrigações.
- É uma pena que tenha sobrevivido ao Harrier. Mas dessa vez não escapará! - Com essas palavras ecoando pelas paredes, o Matareisen transformou-se novamente num dervixe, as hélices velozes fechando o cerco
em torno de Cameron, que sacou sua arma do cinto. No preciso instante em que a empunhou ela voou longe, fruto de um certeiro e violento pontapé. Pryce refez-se do golpe, deu um passo para trás, plantou
o pé esquerdo no chão e visou a perna direita de van der Meer. O pontapé veio; ele agarrou a calça de seda do pijama, apertando a perna com força e torcendo a violentamente. Momentaneamente desequilibrado,
o corpo de Matareisen rodopiou no espaço, e Cam deu o bote, arremessando o holandês contra a parede. Um som surdo acompanhou o impacto do holandês; sua cabeça gravemente atingida deixou-o inconsciente.
Desfalecido no chão, numa posição fetal, jazia um campeão de artes marciais reduzido a sua insignificância.
Um por um os agentes se recuperaram, trôpegos mas inteiros. - Que diabo foi isso! - perguntou estonteado o agente MI-6 da porta de entrada.
- Um louco varrido com uma roupa esquisita - disse o agente das injeções. - Talvez fosse bom dar uma picada nesse cara.
- Desde que não haja maiores consequências, tudo bem. Uma dose excessiva pode afetar a cabeça dele, e queremos a dele intacta.
- Você causou um estrago maior à cabeça do homem do que os meus tranquilizantes poderiam fazer com dez injeções.
- OK, vá em frente. - Cameron enfiou a mão por baixo da sua jaqueta de campanha e retirou um rolo de plantas. Eram de arquivos do princípio do século e revelavam detalhes arquitetônicos da casa no Keizersgracht.
Enquanto o agente aplicava a injeção no Matareisen, Pryce dirigiu-se ao patamar do corredor, seguido pelos outros dois. - De acordo com essas plantas, há um andar acima deste, mas a escada termina aqui.
- Dá pra perceber isso do lado de fora - disse o desativador do alarme. - Há vidraças de janelas no alto do prédio.
- Como é que se chega lá? - perguntou o segundo agente.
- Provavelmente de elevador, que sem dúvida está programado - disse Cameron, encaminhando-se para a grade do poço do elevador. - Obviamente o andar está isolado. O teto ali em cima é falso. Está vendo
as fendas? Ele é móvel.
- Por que não chamamos o elevador?
- Por que não? - respondeu Pryce. - Poderemos trabalhar pelo lado de dentro, tentar arrombar.
- É mais fácil do que despencar três andares no poço. Temos ferramentas no barco lá no canal, quer que vá buscá-las?
- Por favor.
Depois de uma hora suada, usando brocas acionadas por baterias e serrotes, Pryce e a unidade removeram o teto falso. Pé ante pé, escalaram o poço até a porta de aço no último andar. Empregando novamente
uma substância semelhante à argila introduzida e detonada na área de abertura, empurraram o painel de aço e penetraram no quarto andar interditado. O que viram deixou a todos pasmos.
- É um tremendo centro de comunicação! - exclamou o perito em alarmes.
- Como numa central nuclear! - acrescentou o atônito aplicador de tranquilizantes.
- É assustador - disse o terceiro agente. - A parede toda é um mapa do mundo!
- Sejam bem-vindos ao santuário dos Matarese - disse Cameron em voz baixa, ofegante.
- O que foi que você falou?
- Deixa pra lá. Era isso o que procurávamos. - Pryce pegou seu poderoso walkie-talkie militar sintonizado na frequência de Luther Considine e Montrose no avião de carga Bristol no Aeroporto Schiphol. -
Luther?
- O que é que há, espião?
- Acertamos na mosca.
- Que bom ouvir isso. Posso ir pra casa agora?
- Você está apenas começando, meu chapa. Estamos precisando da Leslie. Diga à patrulha britânica para trazê-la para a área alvo, Keizersgracht 310, entrada da rua. Veículo sem identificação.
- Ela está dormindo.
- Acorde-a.
A tenente-coronel Leslie Montrose ficou possivelmente mais surpresa do que Pryce e os agentes, pois compreendeu o alcance do que estava examinando. Ela se esgueirou por entre os computadores até o console
elevado no centro. - Este equipamento não é meramente de primeira classe, é estado-da-arte. Transmissões diretas via satélite, scramblers de tráfego, rotas alternativas instantâneas... meu Deus, esta estação
tem a mesma configuração do que existe no Comando Aéreo Estratégico ou na CIA. Deve ter custado milhões, e considerando o que foi projetado exclusivamente para ela, provavelmente bilhões.
- Isso significa um monte de complexidades, certo?
- Põe monte nisso, Cam.
- Para poder extrair o que quer que haja neste equipamento, você vai precisar de ajuda, certo novamente?
- Toda que puder obter e o mais rapidamente possível.
- Alguma sugestão?
- Uma ou duas talvez... Aaron Greenwald, do Vale do Silício. Ele é o cérebro criador por trás das maiores empresas, na condição de consultor. Também há Pierre Campion em Paris. Não é muito conhecido mas
é um gênio, está muito à frente do nosso tempo.
- Você os conhece?
- Eles faziam parte das equipes tutoriais recrutadas pelo G-2. É possível que se lembrem de mim, mas não garanto.
- Eles se lembrarão de você agora. Outros?
- Verifique com o Exército, eles trabalham na condição de colaboradores.
- E suponho que todos têm autorização de segurança máxima.
- Sem dúvida.
Frank Shields foi trabalhar em Washington e Geoffrey Waters entrou em contato com o Deuxième Bureau em Paris. Passaram se quarenta e oito horas enquanto a coronel Montrose explorava os vários computadores
no centro de comunicações dos Matarese. Na manhã do terceiro dia, sete dos maiores especialistas em informática foram reunidos em Londres e levados para Amsterdã por Luther Considine. A casa no Keizersgracht
tinha sido interditada e passou a ser patrulhada discretamente por uma nova unidade do MI-6 britânico em trajes civis. Os agentes militares voltaram para o Reino Unido; a residência de van der Meer estava
agora ocupada por Cameron, Leslie, os sete gênios da informática e uma pequena equipe de quatro empregados, todos ingleses e fluentes em holandês.
Quando um dos antigos executivos que operavam os computadores dos Matarese telefonou para falar com o Meneer van der Meer, disseram-lhe que o proprietário se ausentara do país em viagem de negócios. Conhecendo
as circunstâncias predominantes, o homem desconfiou. Foi de carro até a casa do canal e constatou a frenética atividade. Telefonou para os colegas.
Mantenham-se afastados do Keizersgracht. Aconteceu alguma coisa!
Tornou-se mais ou menos evidente desde a primeira reunião que o californiano Aaron Greenwald seria o líder do grupo de especialistas em computadores. Era um homem magro, quase esquelético, com pouco mais
de quarenta anos, de fisionomia agradável e uma voz suave e envolvente. Seu brilhantismo expressava-se apenas através dos seus olhos. Ao mesmo tempo que transmitiam uma certa doçura, eram penetrantes,
sempre nivelados com quem estivesse falando, totalmente atentos, concentrados. Era como se removessem camadas, vendo e compreendendo coisas que talvez passassem despercebidas a outras pessoas. O grupo
era constituído de cinco homens, duas mulheres e, naturalmente, Leslie Montrose. Quartos foram designados, as malas desfeitas, e horários preliminares foram programados. Estavam reunidos no salão do andar
térreo. Greenwald falou em primeiro lugar.
- Vamos examinar cada aparelho em progressões de alfa a ômega, utilizando todas as variações que pudermos criar, registrando cada entrada e invasão. Preparei gráficos idênticos com sugestões, mas são apenas
sugestões. Por favor, não se sintam inibidos por eles - a inventividade de vocês é que é importante, não a minha. A propósito, desprogramamos o elevador e fizemos uma ligação de acesso ao quarto andar.
Lembrem-se, não mais de três pessoas de cada vez no elevador. Finalmente, para a máxima eficiência do trabalho, os turnos do dia e da noite estão afixados no quadro de avisos na sala de jantar do andar
de cima.
Os trabalhos começaram, estafantes, frustrantes, noite e dia ininterruptamente, pois todos estavam imbuídos do mais autêntico espírito de equipe. Os horários eram apenas pro forma; quase não dormiam, comiam
somente quando a fome apertava e interferia com seu raciocínio e capacidade inventiva. Os especialistas deixavam temporariamente suas máquinas e debruçavam-se sobre os companheiros, incentivando-os quando
progressões próximas ao acesso se configuravam. Havia uma crescente noção de urgência à medida que se revelava uma partícula de informação, conduzindo a surpreendentes possibilidades. Mas muita coisa não
era revelada, permanecendo indefinível, fora de alcance.
- Tem que haver um ponto em comum - insistiu Greenwald do console elevado. - Ou pelo menos um pré-acesso parcial e semelhante aplicável a todos os computadores.
- Como um código de área, Aaron? - perguntou Leslie, sentada abaixo e à esquerda do californiano.
- Sim, uma série de símbolos identificadores armazenados em cada aparelho. Não só por uma questão de eficiência como também para servir de estandarte, arauto.
- Isso certamente faz sentido com todo o esquema - disse Pryce de pé ao lado de Greenwald, olhando seus dedos evoluírem sobre o teclado. - Um ego poderoso está por trás disso tudo.
- Seu nome é Matareisen, naturalmente - disse Aaron, com um tom de voz desagradável. - Sir Geoffrey está conseguindo algum progresso com ele em Londres?
- Não, e isso o está fazendo subir pelas paredes. O camarada é tão impenetrável quanto Gibraltar. Tentaram todo tipo de soro, do pentotal à velha escopolamina, e nada funciona. Ele tem a determinação de
um robô. Estava abatido, mas Waters diz que ele age como se fosse sair vencedor. Eles o estão confinando numa cela iluminada para impedi-lo de dormir, e tratando-o a pão e água... nada o intimida. Ele
tem a compleição de um touro.
- Ele acabará sucumbindo ou entregando os pontos - disse Greenwald. - Esperemos que ocorra a segunda hipótese e a tempo.
- Por que diz isso?
- Venho tentando estabelecer a todo custo um quadro cronológico. O que quer que esteja para acontecer está precisamente programado e disseminado.
- E não temos a menor ideia do que seja. O único fragmento que obtivemos - que Scofield obteve - é alguma coisa sobre "fogos no Mediterrâneo".
- O jeito, portanto, é insistir nos temas e múltiplas variações de alfa e ômega - disse Aaron Greenwald, inclinando-se para trás na sua cadeira giratória, esticando as pernas e em seguida retomando a posição
ereta, as mãos e os dedos voando sobre o teclado.
A brecha!
Aconteceu às 3:51 da madrugada do quarto dia. O especialista de Paris, Pierre Campion, entrou intempestivamente no quarto de Greenwald, onde o exausto chefe do grupo tinha ido descansar menos de meia hora
antes.
- Aaron, Aaron, acorde meu amigo! - chamou o francês. Acho que conseguimos!
- O quê... o quê? - Greenwald deu um pinote, colocando as pernas compridas instantaneamente para fora da cama. Ainda estava vestido com suas roupas amarrotadas, seus amáveis olhos estavam arregalados,
vermelhos de cansaço. - Quando? Como?
- Há poucos minutos. Foi uma combinação algébrica de suas projeções iniciais - equações, Aaron! Venha, Cameron e Leslie estão lá com mais dois colegas. Não queremos, não ousamos proceder sem a sua presença.
- Deixe-me passar um pouco de água no rosto, talvez então possa enxergar melhor. Onde é que estão os meus óculos?
- Você está usando eles.
No imenso centro de comunicações do andar superior, os cinco especialistas e o leigo Pryce convergiram para o console elevador onde Campion tinha substituído Greenwald. - Os símbolos M e B estão decompostos
numa progressão que os equaciona por divisão - disse Aaron pensativamente.
- O barão de Matarese - explicou Cameron o gigante e a fonte de tudo o que eles possuem. Ele nunca está longe da mente de Matareisen. É uma obsessão que não o abandona.
- Procedamos... muito cautelosamente - disse Greenwald. Armazenaremos o que temos e desenvolveremos a equação, possivelmente geometricamente, desconfio.
- É? - perguntou Campion. - Por quê?
- Porque cubos e quartas e quintas potências não seriam lógicas. Uma lógica ilógica poderia ser a base dos códigos dos Matarese.
- Isso vai além da minha compreensão, Aaron - disse Pryce.
- Da minha também, Cam. Estou especulando.
Vinte e seis minutos depois, enquanto os dedos de Greenwald percorriam aceleradamente o teclado, de repente o mapa-múndi multicolorido na parede se acendeu. Uma infinidade de lâmpadas vermelhas começaram
a piscar numa explosão de luz que inundou o recinto. Foi como se o gigantesco mapa tivesse adquirido vida própria, capturando todas as atenções, recusando-se a ser negado. Era assustador, sua força era
hipnótica.
- Meu Deus do céu! - sussurrou Leslie, olhando fixamente para o surpreendente espetáculo enquanto Campion e os outros deram alguns passos à frente, incrédulos.
- O que é, Aaron? - perguntou Pryce.
- Meu palpite é que o que quer que aconteça terá como cenário esses centros que estão piscando... Estamos chegando perto. Em algum lugar dessas máquinas estão as respostas.
- Continue especulando, por favor.
- A impressora foi ativada! - exclamou Campion, que voltara para o seu computador. O aviso foi tão eletrizante quanto inesperado. - Mon Dieu, a cópia é autoinduzida. Não fiz nada!
- Um tropeço involuntário, Pierre - disse Greenwald. - Você acionou acidentalmente a impressora. Pelo amor de Deus, quais são os dados?
- "Setor Vinte e Seis" - começou o francês vacilantemente, debruçando-se e lendo a cópia impressa à medida que ela ia sedesenrolando. - "Começa a Fase Um. Execuções, falências, suspensões de atividades
previstas em trinta dias úteis, quarenta e uma mil".
- Algum indício de qual seja o setor vinte e seis?
- Creio que está no mapa - respondeu a tenente-coronel Montrose, apontando para a parede iluminada. - Entre as luzes que estão piscando há uma com um brilho azulado na Costa Oeste dos Estados Unidos.
- Ela tem razão - disse Cameron. - É na área de Los Angeles.
- Alguma pista quanto à data, Pierre?
- Mais do que uma pista. Duas semanas e cinco dias a partir de hoje.
- Acorde o resto do grupo! - ordenou Greenwald, dirigindo-se aos dois outros especialistas. - Leslie, você e Pierre alimentem cada computador com os códigos, tudo que tenha sido armazenado. Quando tiverem
terminado, farei uma alimentação forçada.
- Você vai o quê? - perguntou Pryce.
- Isso significa conectar o equipamento seletivamente. É na verdade bastante simples, embora raramente seja feito. Usando um cabo mestre, você liga os modems a uma base central. Aaron prosseguiu, explicando
que uma vez que tinham os códigos parciais, eles poderiam ganhar tempo interconectando os computadores adicionais.
Um sentido de urgência manifestou-se rapidamente, todo o grupo passando a trabalhar freneticamente. Essa urgência se acentuou quando, inicialmente, duas ou três impressoras começaram a funcionar, em seguida
mais algumas, e finalmente a maioria despejava resmas de papel. As horas passavam e o cansaço se transformava em euforia. Teriam desvendado os segredos dos Matarese?
Ao meio-dia e dez, Aaron Greenwald levantou-se do console e falou. - Ouçam todos... silêncio, por favor, e ouçam com atenção. Nesta altura, temos mais material do que nossa capacidade de absorção, mas
teremos que absorver cada vez mais. Sugiro que juntemos o que temos, verifiquemos por fonte, removamos nossos corpos torturados dessas cadeiras selvagens e... comecemos a ler todo esse calhamaço!
Por volta das três e trinta da tarde, quase doze horas após a abertura inicial, a montanha de cópias impressas tinha sido manuseada, e o grupo de especialistas estava reunido no salão do primeiro andar
para uma apreciação coletiva.
- É ao mesmo tempo aterrador e tragicamente incompleto começou Pierre Campion. - Uma onda financeira catastrófica varrerá as nações industriais. Literalmente milhões e milhões de empregos deixarão de existir
com o colapso de empresas e corporações.
- Fazendo com que a depressão do final da década de 1920 e início da de 1930 pareça uma simples marola - disse um especialista americano.
- O problema é que não temos especificações rigorosas acrescentou outro.
- Mas temos pistas, senhoras e senhores - pressionou Greenwald. Elas estão nas palavras! Tais como "mídia"... jornais, televisão; "grades de consolidação"... serviços públicos, companhias de energia elétrica;
"tabelas at,", facilmente traduzidas como tabelas atuariais; empresas de seguros e suas derivadas de assistência médica. Há outras, destacando-se entre elas "transferências" e "consolidações rolantes".
"Transferências", meus amigos... bancos. Qualquer operação dessa magnitude envolve fatalmente capitais sem precedentes nos anais da economia.
- Conhecemos inúmeros bancos que se fundiram ou se consolidaram - disse Pryce. - São transnacionais.
- E todos nós lemos sobre as organizações de saúde que têm se associado ou fundido - disse Leslie. - Primeiro os lucros, as aúde e o atendimento dos pacientes sempre em segundo plano.
- Certamente - acrescentou o francês - estamos todos a par de situações como essa, mas o nosso problema é que não há identificações específicas no volumoso material que acabamos de ler.
- Precisamos ter em mente - disse outro americano - que os Matarese não são imbecis. Psicopatas cobiçosos numa escala global, sem a menor dúvida, mas não imbecis. Desenvolvem essas atividades há muito
tempo, e na superfície temos que admitir que eles procuram agir dentro da lei.
- Naturalmente - concordou Aaron. - "Na superfície" é a frase operativa. Portanto, não podemos desafiar o óbvio porque, como diz o Pierre, não dispomos de dados específicos...
- De fato não dispomos - interrompeu Cameron, irritado mas temos outra coisa que é suficiente para trabalharmos agora! Sabemos com toda certeza que os quatro cavalheiros que Frank Shields mantém sob sua
guarda são Matareses até a raiz dos cabelos. Começaremos com eles, eu começarei com eles!
- Sozinho? - Leslie Montrose perguntou da sua cadeira, olhando fixamente para Pryce.
- Já fiz isso antes. Infiltrar-me e jogar os indivíduos uns contra os outros. De todos os truques idiotas numa atividade estúpida, esse é o que tem o maior índice de êxito. Além do mais, não temos tempo
para qualquer outra coisa. Pelo amor de Deus, vocês ouviram o que o Campion disse. Duas semanas e cinco dias!
- Mas você sozinho? - protestou Greenwald.
- Um certo exagero da minha parte - disse Cam. - Convencerei o Shields a pôr à minha disposição todos os seus recursos e mais uns dois homens.
- Isso significa que você irá aos Estados Unidos...
- O mais depressa que puder, Aaron. Waters providenciará a minha transferência, e quero contar com Luther caso se faça necessário algum voo rápido e tranquilo - sem precisar apelar para requisições oficiais.
- Vou com você, agente Pryce - disse Leslie.
- Imaginei que fosse ouvir isso.
- E nós continuaremos aqui - disse Greenwald. - Por favor, mande instalar comunicações imediatas entre nós para que possamos transmitir-lhe qualquer informação adicional que obtenhamos.
- Dito e feito. - Pryce pegou seu rádio no bolso da jaqueta de campanha. - Luther, prepare o pássaro para alçar voo. Estaremos aí dentro de vinte minutos.
O jato supersônico da RAF aterrissou no Aeroporto Internacional Dulles às 19:05. Um veículo da CIA sem identificação levou Pryce, Montrose e Considine a Langley, onde Frank Shields os esperava no seu gabinete.
Trocados os cumprimentos e Luther apresentado, Frank esboçou o cenário que propunha.
- Comandante Considine...
- O senhor me promoveu de posto, mas basta me chamar de Luther.
- Obrigado, Luther, nós requisitamos um jato Rockwell; ele está num campo de pouso particular na Virgínia, a menos de quarenta minutos de Washington. Isso conta com a sua aprovação?
- Certamente. É um bom aparelho, dependendo da milhagem aérea requerida.
- No momento, isso não constitui problema. Jamieson Fowler viaja com frequência entre Boston, Maryland e a Flórida. Stuart Nichols e Albert Whitehead estão em Nova York; e Benjamin Wahlburg encontra-se
na Filadélfia. Nenhum voo tem uma duração de mais de três horas e meia, incluindo a Flórida.
- Então não há nenhum problema. Posso inspecionar o avião e suas condições de segurança amanhã de manhã?
- Nós já o inspecionamos, Luther. Quero chegar logo a Nova York - interrompeu Cameron.
- O que é que você sabe, espião?
- O que eu sei é que quero chegar a Nova York.
- Então ouça o que tenho a dizer antes de sair por aí ensandecido - disse Shields com firmeza. - Segundo Geoffrey Waters, você está querendo pegar o Whitehead e os outros, um por um, correto?
- Positivo.
- Apuramos que o Whitehead sai do escritório entre as cinco e quarenta e cinco e seis horas todas as tardes, e utiliza um único serviço de limusines. Ele faz uma parada antes de ir para seu apartamento
na Quinta Avenida. É num bar no Rockefeller Center chamado Templars, O gerente reserva uma mesa especial para ele. Ele toma exatamente duas vodcas e volta para o carro que fica à sua espera.
- Precisão absoluta.
- Isso não é tudo. Recrutamos o serviço de limusines, muito sub-repticiamente, e o motorista no dia que você escolher será um de nossos homens. Estabeleça seu contato no bar, fazendo o que tiver que fazer,
e escolte-o de volta ao carro. Poderá fazer isso?
- Perfeitamente.
- Quero ir com ele - interrompeu Montrose. - Esses sujeitos são assassinos e, como estou certa de que sabe, sou especialista em armas.
- Não é necessário, Leslie...
- É, sim! Você tornou necessário, querido.
- Sem comentários - disse o vice-diretor. - Posicionaremos você numa mesa próxima.
- E eu? - perguntou Considine. - Alguém deve vigiar os flancos dos dois, é isso o que fazemos no ar.
- Sem essa, Luther! Vai parecer que estão me dando cobertura, e afinal o motorista é dos nossos.
- O problema é seu, companheiro, mas lembre-se de que fui criado nas ruas. Substitutos podem ser contratados.
- Você está prevendo o pior, meu caro.
- Concordo com o Cameron - disse Shields. - Mas se isso o faz sentir-se melhor, você ficará num canto do bar, está certo?
- Assim é melhor - respondeu o piloto.
- Portanto, Cam, quando você estiver no carro, poderá falar o quanto quiser, mande o motorista seguir para onde bem entender. Isso enerverá nosso corretor, pois perceberá que você tem o controle da situação.
- Tudo bem quanto ao Whitehead. E o Nichols?
- Na manhã seguinte. Ele para no seu clube para trinta minutos de exercícios. Fica na rua Vinte e Dois, e ele costuma chegar lá por volta das sete e quinze. Já providenciamos para que você esteja na sauna
que o Nichols faz depois dos exercícios.
- Bem bolado. Como poderei ter certeza de que vou estar sozinho com ele?
- Um instrutor físico se encarregará disso. A essa hora não deve haver dificuldade. Você estará do lado de dentro e, depois de deixar Nichols entrar, ele se postará ao lado da porta e dirá a quem aparecer
que a sauna está temporariamente interditada devido a um defeito.
- Qual foi a explicação que deu a ele? - perguntou Leslie, preocupada.
- Nenhuma, coronel. Ele é um dos nossos... Agora, considerando a mudança de fuso horário que experimentaram, o melhor que os três podem fazer é descansar um pouco, de preferência terem uma boa noite de
sono. Achei melhor hospedá-los num hotel não muito longe daqui, fica mais perto do campo de pouso. Nosso carro os levará e os apanhará amanhã de manhã, digamos às oito horas?
- Que tal às sete? - disse Pryce.
- Como preferir.
- Imagino que deva estar no hotel particular de vocês em Nova York. O Bray me disse que era um Marble não sei o quê.
- Sempre que podemos poupar o dinheiro dos contribuintes, não medimos sacrifícios.
- O Scofield me confidenciou que o serviço de copa e o restaurante são o máximo.
- Ele não poderia dizer outra coisa, pois tem se esbaldado.
TRINTA E UM
O voo para Nova York foi sem novidade, o trânsito em Manhattan, pavoroso. Estavam sendo aguardados no Aeroporto La Guardia por um agente da CIA que os levou de carro para o Marblethorpe. Usaram a entrada
lateral e se instalaram na mesma suíte que Scofield e Antonia tinham ocupado quando Brandon realizou suas "entrevistas" com os possíveis elos de ligação dos Matarese. Luther Considine ficou no quarto de
hóspedes, Cameron e Leslie, no quarto de dormir principal; desfizeram as malas rapidamente e surgiram na sala quando chegou o agente da CIA para uma sessão de planejamento. Seu nome era Scott Walker e
parecia mais um militar empertigado do que um integrante da CIA. Ele começou a falar.
- Sei o estritamente necessário e o vice-diretor Shields deixou claro que quanto menos eu souber melhor. Só estou aqui para ajudar, não para participar ativamente, a menos que surja uma emergência.
- Tudo bem - disse Pryce. - Deram-lhe o itinerário?
- Bar Templars no Rockefeller Center esta tarde às seis horas. Cada um de vocês entrará separadamente e se sentará onde foi determinado. Os lugares estarão ocupados, mas quando vocês disserem, "Oh, pensei
que tivesse reservado esta mesa", nosso pessoal se levantará e pedirá desculpas.
- Eu entro por último? - perguntou Cam.
- Não, o senhor será o primeiro a entrar. Quando todos tiverem entrado, ficarei do lado de fora vigiando da porta do corredor próximo. - Ao dizer isso, Walker enfiou a mão no bolso do paletó. - A propósito,
Shields me deu essas duas fotografias. A primeira é do homem com quem vai se avistar hoje à noite; a segunda, do que encontrará amanhã. Não poderei deixá-las com o senhor, elas não podem ser encontradas
em seu poder. Portanto, estude-as e memorize-as.
- Quantas vezes ouvi essas palavras...
- Tenho certeza que sim. O vice-diretor deu a entender que o senhor é um craque.
- Ainda não tinha ouvido essa... aqueles dois... Você estará me seguindo quando me encontrar com o ilustre Sr....
- Nada de nomes, senhor!
- Desculpe. Quando levo o alvo para a limusine?
- Não será necessário. O motorista é nosso colega e ele sabe como agir caso surja algum problema.
- Isso é tranquilizador - disse Montrose. - Acho.
O resto do dia decorreu com Leslie descansando, Cameron escrevendo num bloco, sintetizando seus pensamentos sobre o encontro com Albert Whitehead; e Luther monopolizando o telefone, falando com sua namorada,
a comandante, em Pensacola. Às quatro horas pediram um jantar antecipado; ninguém tinha certeza de quando teria oportunidade de comer novamente. Às cinco e quinze Scott Walker telefonou do veículo da CIA
estacionado na entrada lateral. Chegara a hora de seguir para o Templars no Rockefeller Center.
Sentados nos seus respectivos lugares, Pryce, no concorrido balcão do bar, Luther e Leslie lançaram olhares recíprocos e fizerem ligeiros gestos de cabeça. Às seis e doze Albert Whitehead adentrou o Templars
e encaminhou-se diretamente para a mesa com um cartão de reserva. Luther cruzou um olhar com Cameron, fazendo um aceno com a cabeça enquanto Pryce olhava discretamente para a mesa de Whitehead. Ele registrou
a mensagem de Considine, levantou-se da banqueta do bar e atravessou o recinto em direção à mesa do corretor, surpreendendo Whitehead ao penetrar sorrateiramente no pequeno reservado.
- Queira me perdoar - disse o braço financeiro dos Matarese. - Não percebeu que esta mesa está reservada?
- Não creio que queira que ela continue assim - respondeu Cameron suavemente. - Sou de Amsterdã e recebi instruções do filho do Shepherd Boy para contatá-lo.
- O quê?
- Não tenha uma parada cardíaca, já temos problemas de sobra. Você está nadando entre tubarões.
- Quem é você?
- Já lhe disse, sou de Amsterdã, um mensageiro, se lhe apraz. Termine seu drinque à vontade, vodca, não é? Foi o que o Sr. G. me disse.
- Não tenho a mais vaga ideia do que está falando - resmungou o assustado Whitehead.
- Você não pode ter a mais vaga ideia do que aconteceu. Ou com quem está lidando. Tem um carro lá fora?
- Naturalmente.
- Oferece segurança?
- Absoluta. Fecho a divisória de vidro do chofer e não poderemos ser ouvidos... Mas por que estou falando! Com os diabos, quem é você?
- Não vamos repetir toda essa história novamente - disse Pryce, entediado. - Estou aqui porque precisa de mim, não porque eu queira.
- Por que preciso de você! - disse o corretor com voz engasgada, quase sussurrando. - O que quis dizer quando falou que estou "nadando no meio de tubarões"?
- Alguns adotam posições de recuo para o caso de dificuldades imprevistas, você certamente sabe disso.
- Não, não sei. Não podemos falhar.
- Não esperamos. Não obstante...
- Não obstante uma ova. Dê nome aos bois!
- Se alguma coisa entrar em curto-circuito, o seu advogado, Nichols, já tratou de livrar a cara. O que se diz é que ele prestou um depoimento juramentado afirmando que ignorava os desvios que você fazia
do nosso dinheiro.
- Não acredito no que está me dizendo!
- O Sr. Guiderone dispõe de fontes secretas além das que possuímos. É verdade. Ele quer que você mantenha distância de Nichols e quando receber instruções, o que vai acontecer muito em breve, não as revele
a ele.
- Isso é inacreditável....
- Acredite - disse Cameron. - Vamos embora, não me sinto à vontade falando aqui. Vamos para o seu carro. Devo pedir a conta?
- Não... não. Eles debitam tudo na minha conta corrente. Novamente, o apavorado Whitehead só conseguiu gaguejar.
Assim que se viram na rua, Pryce avançou alguns passos e abriu a porta da limusine para o corretor. - Você conhecia o meu carro - disse Whitehead, olhando para ele.
- Conhecia. - Cam seguiu o corretor, acomodando-se no banco traseiro, e dirigiu-se ao agente da CIA que estava ao volante. Dê umas voltas em torno do Central Park, eu lhe direi quando deverá voltar para
a Quinta Avenida. E levante a divisória, por favor.
- O motorista! - exclamou Albert Whitehead, com os olhos arregalados, vidrados. - Eu não o conheço, ele não é um dos meus motoristas.
- O filho do Shepherd Boy não é apenas preciso, ele planeja com antecedência.
Quando o corretor chegou ao seu apartamento na Quinta Avenida, ele era um mulambo. Sua cabeça rodava; estava nauseado, sua mente analítica - essencialmente preocupada com números e estratagemas financeiros
- tinha sido invadida por uma avalanche de informações que não tinham nada a ver com números e estratégias. Tinham a ver com a tomada do poder em Amsterdã, traições no alto escalão do empreendimento, defecções
concebíveis entre células em guerra - e acima de tudo com medo. Pura e simplesmente medo. Era uma tempestade de abstrações negativas, nenhuma linha clara de precisão matemática. Stuart Nichols, seu advogado
e braço direito durante anos, um traidor? Um traidor dele?
Quantos outros haveria? A quantas células dos Matarese ele teria fornecido dinheiro ilegalmente? Alguma delas se voltaria contra ele? Se por acaso isso acontecesse, quais seriam elas? Tinham insinuado
que ele desviara recursos de algumas... bem, as transações implicavam certas despesas. Aqueles ingratos o acusariam no caso de "dificuldades imprevistas"?
Albert Whitehead sentia-se positivamente mal. Há alguns anos ele marchara fagueiro ao encontro de um mar de grande prosperidade. Imaginava agora se não estaria se afogando nele.
Enrolado numa toalha, Pryce estava sentado a um canto da enfumaçada sauna. Ouviu uma única batida na porta de vidro; era o sinal convencionado. A próxima figura que entrasse seria Stuart Nichols, vice-presidente
da corretora Swanson & Schwartz e, para todos os efeitos, um advogado dos Matarese. O homem entrou, igualmente coberto com uma toalha, e sentou-se no banco fronteiro a Cameron. Nenhum dos dois podia ver
claramente o outro, e isso era bom para Pryce. As palavras seriam mais enfáticas. Depois de passado um minuto, Cam falou:
- Olá, doutor.
- O quê? Quem é?
- Meu nome não interessa, o que tenho a lhe dizer sim. Estamos sozinhos.
- Não costumo falar com estranhos não-identificados na sauna do meu clube.
- Há uma primeira vez para tudo, não é verdade?
- Não será essa. - Nichols levantou-se do banco.
- Sou de Amsterdã - disse Cameron, curto e grosso.
- O quê?
- Sente-se, doutor. Faça-o no seu próprio interesse, e se não confiar na minha palavra, confie na de Julian Guiderone.
- Guiderone?... - O advogado voltou para o seu banco em meio ao denso vapor.
- É uma espécie de senha, não é mesmo? O nome de um homem dado como morto há tantos anos. É realmente extraordinário! O fato de alguém ainda usá-lo, quero dizer.
- Marcou seu ponto, até certo ponto. Quero saber mais. O que foi que aconteceu em Amsterdã? Por que ela está de quarentena, inacessível?
- Você já sabe, mas tentou entrar em contato com o Keizersgracht?
- Keizersgracht?... Você me impressiona. Por que deveria saber?
- Porque Leonard Fredericks, nosso espião no Ministério das Relações Exteriores, lhe disse que van der Meer deu um golpe de força para reduzir a liderança de Julian.
- Isso foi obviamente ridículo. Ele é o filho do...
- Do Shepherd Boy - completou Pryce prontamente. - Se tivesse tentado falar com van der Meer, ter-lhe-iam dito que ele se ausentou em viagem de negócios.
- O que é que isso quer dizer?
- Que ele está se reagrupando. Pode estar em qualquer lugar.
- Santo Deus! Isso é terrível, potencialmente catastrófico.
- Poderia ser. Mas apostei meu dinheiro e minha vida no Guiderone. Ele é o verdadeiro poder. Ele é quem nós todos conhecemos em toda parte. Do Mediterrâneo ao mar do Norte, de Paris e Londres a Nova York
e Los Angeles. Van der Meer pode traçar os planos, tomar as medidas que se fazem necessárias, na sua torre no Keizersgracht, mas é Guiderone quem os executa. Todos confiam nele, van der Meer é um desconhecido,
a fonte de dinheiro invisível, não uma pessoa. Ele não pode agir sem o filho do Shepherd Boy.
- O que está dizendo é o que estou imaginando? Que estamos atravessando uma crise!
- Ainda não. Tudo continua conforme o programado, com Guiderone dando as ordens.
- Nesse caso - disse o advogado, visivelmente aliviado - não vejo por que precisou entrar em contato comigo.
- Guiderone quer ter certeza de sua lealdade.
- Nas atuais circunstâncias é claro que ele tem. Por que duvidaria dela?
- Porque seu patrão e amigo do peito, Albert Whitehead, abandonou o navio. Ele aderiu a van der Meer, preferiu ficar com a fonte do dinheiro.
- O quê?
- Ele não imagina como essa fonte pode secar de uma hora para outra.
- Ele nunca mencionou nada disso para mim - disse o perplexo Nichols, com a voz embargada. - É incrível!
- E você não deve mencionar que nos encontramos. Esta conversa jamais aconteceu.
- Você não pode compreender. Nunca tivemos segredos profissionais entre nós. Certamente não nessa área. É impossível!
- Deixou de ser... O Sr. Guiderone o recompensará generosamente se ficar de olhos e ouvidos abertos. Vou lhe dar um número de telefone, e se souber de alguma coisa, ou se Whitehead demonstrar um comportamento
estranho, ligue e deixe um recado... que o "advogado" estava apenas checando o número, será o suficiente. Entrarei em contato com você e poderemos nos encontrar em algum lugar.
- Usei a palavra "impensável", e é isso realmente o que é. É impensável que eu passe a espionar o Albert.
- Você me agradecerá mais tarde, e o filho do Shepherd Boy não esquecerá. Você é um advogado extremamente competente, quem sabe não acabará chefiando nosso departamento jurídico internacional quando a
situação estiver sob nosso controle. Estou indo embora. Estenda sua mão e lhe darei o número do telefone, que escrevi num pedaço de papel.
Pryce deixou a sauna, lufadas de vapor saindo ao abrir a porta. Stuart Nichols permaneceu sentado do lado de dentro, olhando estarrecido para as paredes, um homem atormentado, em conflito consigo mesmo.
Cameron vestiu-se rapidamente, conduzido pelo "instrutor" da CIA a um quarto vazio onde deixara suas roupas. Uma vez na rua, no trânsito barulhento do início da manhã, ele analisou seu encontro com o advogado
Matarese. Assim como o que tivera com Albert Whitehead, correra bem. As sementes da dissensão tinham sido plantadas, acrescidas de uma exigência de silêncio, uma combinação intolerável. Se a ortodoxia
era conformista, o que geralmente é, os alvos seriam submetidos a tamanha pressão que erros incomensuráveis poderiam resultar, escalando rapidamente a escada dos Matarese. Era por isso que eles, os agentes
do bem, estariam no controle. De certo modo era estranho, porque, de acordo com as transcrições de Frank Shields da conferência nos arredores de Nova Jersey, tudo fazia parte da verdade. Parte da verdade;
isso era essencial.
- Vou deixar vocês - disse o agente do CIA, Scott Walker, na suíte do Marblethorpe mas é possível que nos vejamos novamente na Filadélfia, onde se desenrolará o quarto episódio.
- Espero que sim, Scott - disse Leslie. - Você nos ajudou muito.
- Não fiz nada, coronel, e se cheguei a fazer, honestamente não sei o que foi. Sou um mero facilitador. De qualquer maneira, dei ao tenente Considine as instruções lacradas do voo de vocês para a Flórida,
onde se encontra o seu terceiro alvo. Serão recebidos por um colega, Dale Barclay. Ele está tão por fora quanto eu, mas é um elemento de primeira. Ele vai me substituir, seguindo as instruções do vice-diretor.
- Vocês nunca ficam curiosos? - perguntou Leslie.
- Não, quando nos dizem para não ficarmos, coronel.
- Boa resposta - disse Pryce.
Jamieson Fowler, magnata do setor de serviços públicos e uma das forças mais poderosas dos Matarese nos Estados Unidos, adotara como base de operações o hotel Breakers em Palm Beach. Estava constantemente
em comunicação telefônica com Tallahassee, capital do estado, usando seu misturador de vozes pessoal facilmente decifrável pela CIA - comunicando-se com autoridades estaduais, pressionando-as na defesa
de seus interesses, que se constituíam no momento na consolidação de uma vasta rede elétrica, e insinuando vultosas bonificações, leia-se suborno, caso sua pretensão fosse aprovada. Certamente as autoridades
cederíam ao seu assédio. Do ponto de vista financeiro, o exercício da política estadual é uma atividade desprovida de maiores encantos: um gabinete de trabalho vistoso, modesta notoriedade e, a menos que
o político seja advogado com clientes movendo ações contra o governo estadual ou sendo por ele acionados, não se ganha muito dinheiro. Fowler sabia quais os botões que deviam ser acionados, tanto no seu
telefone quanto pessoalmente com seus hóspedes no Breakers, levados para lá no seu jato particular.
Assim como Stuart Nichols em Nova York, tinha o hábito de se exercitar bem cedo todas as manhãs, depois de ter se submetido a uma operação de ponte de safena há alguns anos. Não se exercitava, entretanto,
no ginásio do hotel, e sim na piscina, às oito horas em ponto, vinte voltas todas as manhãs. Esse horário não era muito disputado pela maioria dos hóspedes do hotel. O "encarregado da piscina" plantado
por Frank Shields deu um jeito para que não fosse. Trancou a porta depois de Pryce chegar às oito e três minutos e colocou um aviso do lado de fora, informando: Manutenção da Piscina. Liberada em Trinta
Minutos.
Jamieson Fowler e Cameron Pryce estavam a sós no luxuoso ambiente. Cada um deu diversas voltas na piscina. Cameron, muito melhor nadador, cronometrou sua quarta volta para coincidir com a chegada de Fowler
à extremidade oposta e fazer uma breve pausa para recobrar o fôlego.
- Boa piscina - disse Cam.
- É, sim - respondeu Fowler.
- Nada todos os dias?
- Infalivelmente. As oito horas em ponto. É bom para manter o físico em forma.
- Tem razão, especialmente depois de uma ponte de safena.
- O que foi que disse? - Fowler colocou um dedo da mão direita no ouvido, como se quisesse se certificar do que tinha ouvido.
- Sou de Amsterdã e precisava avisá-lo. A porta está trancada, não poderá sair daqui antes de ouvir o que tenho a lhe dizer. O filho do Shepherd Boy se hospeda aqui frequentemente e tem muitos amigos.
- Que merda é essa? Quem é você!
- O Sr. Guiderone acha que o uso de palavras obscenas é basicamente falta de vocabulário.
- Eu não! O palavrão exprimiu exatamente o que eu quis dizer… Vou sair daqui!
- Se fosse você. Nem tentaria.
- Como é que é?
- Já lhe disse, a porta está trancada. É melhor ouvir.
- O quê?
- O que tenho a dizer. Digamos que eu esteja falando hipoteticamente.
- Não gosto de hipóteses e subterfúgios. Gosto das coisas claras!
- Está certo, conversa direta, sem rodeios. Amsterdã, especificamente Keizersgracht, soube que é amigo íntimo de Benjamin Wahlburg...
- Conheço-o, simplesmente. De um modo geral, não gosto de judeus, mas ele é melhor do que a maioria.
- É muita generosidade de sua parte, mas devia saber que Keizersgracht acredita, com provas sobejas, que ele foi recrutado pela Comissão Federal de Comércio de Washington. Ele o está usando para tirar
a corda do pescoço caso nosso empreendimento venha a fracassar, o que evidentemente não acontecerá. Está tudo nos devidos lugares, nada poderá nos deter.
- Que Deus não permita que isso aconteça. Tenho bilhões investidos nessa empreitada.
- Afaste-se de Wahlburg, Ele é o inimigo... Estou indo embora. Já lhe dei o recado, o resto é por sua conta. - Com essas palavras, Pryce ergueu o corpo na borda azulejada e saiu da piscina. Encaminhou-se
para a porta, deu duas batidas e ouviu o clique da fechadura. Olhou para trás, para Jamieson Fowler. O poderoso executivo do setor público estava olhando fixamente para ele, com os olhos fora das órbitas,
em estado de choque, com a cabeça mal emergindo da água.
Benjamin Wahlburg era um homem complicado. Quando jovem, tinha sido um socialista convicto, simpatizante do comunismo. Para ele, o capitalismo, com seus aviltantes ciclos econômicos que oprimiam o pobre
e a classe média baixa, era um anátema. Até o dia em que conheceu um homem, um ex-socialista que era professor de sociologia da Universidade de Michigan. O homem dera uma guinada filosófica de 180 graus.
O problema não era o capitalismo, per se, e sim os capitalistas. Eles não tinham noção de responsabilidade social, individual ou corporativa. A solução só poderia ser encontrada mudando-se a perspectiva
das corporações ricas.
Estudioso do Talmude, Wahlburg viu certas semelhanças entre esse conceito e a filosofia hebraica que pregava que os ricos deviam tomar conta dos menos afortunados da tribo. A ideia o empolgou e o socialista
errante e inseguro tomou uma decisão. Tornar-se-ia um poderoso capitalista. Dono de uma brilhante capacidade para as finanças, ingressou em um banco de nível médio na Filadélfia fundamentado na tese dos
caminhos que o banco deveria seguir nos desconcertantes anos 50. Em dois anos tornou-se vice-presidente; em quatro, presidente e sócio administrativo.
Expandindo os ativos do banco, ele adquiriu outros bancos na região da Pensilvânia, e mais tarde estabelecimentos de crédito adicionais em estados vizinhos. Não se passou muito tempo e, graças a operações
na Bolsa bem-sucedidas, outros bancos foram sendo incorporados em áreas mais para o oeste, como Ohio e Utah, no estado de Nevada, e finalmente na Califórnia. Comoprevira, os tempos eram propícios; os bancos
estavam em dificuldade. Era comprar na baixa e vender na alta. Antes de completar trinta e cinco anos, Benjamin Wahlburg era uma força no sistema bancário americano.
Estava maduro para os Matarese. Para as exigências de uma economia global que protegeria os desprivilegiados. Sabia que poderia haver uma certa vigilância, mas o Velho Testamento estava cheio de sangue,
ódio e vingança. Foi assim que o mundo evoluiu. Era um comentário triste, mas realista.
Benjamin Wahlburg era um simplório monumental.
Contudo, vivia dizendo a si mesmo que o objetivo supremo era um mundo muito melhor, mais justo. Por isso fechava os olhos à verdade que lhe confrangia o coração, justificando-a como um mal necessário,
e sonhava com a Terra Prometida.
A Filadélfia trouxe Scott Walker de volta às vidas de Pryce e Leslie. Foi ao encontro deles num campo de pouso particular nos arredores de Chestnut Hill, entregou as instruções lacradas de Shields a Cameron,
e levou-os para um pequeno hotel a vinte e cinco minutos da cidade. Novamente registrados com nomes falsos, Luther Considine juntou-se a Pryce e Montrose para ouvir Cam ler as instruções de Shields.
Wahlburg era um filantropo, especialmente no que dizia respeito às artes em geral. Ele e seus bancos contribuíam generosamente para a manutenção da orquestra sinfônica, da ópera e de teatros não-lucrativos.
Um privilégio especial de que gozavam os contribuintes mais expressivos era assistir ao ensaio final antes da realização de um evento cultural específico. Na noite seguinte ele deveria assistir ao ensaio
da Orquestra de Filadélfia, ocasião em que pronunciaria um discurso de agradecimento e incentivo aos seus colegas contribuintes. Iria só, pois sua mulher morrera há quatro anos e ele não voltara a se casar.
Shields providenciara para que um dos funcionários da sala de concertos - um elemento da CIA - conduzisse Wahlburg a uma poltrona lateral na décima sexta fila, atrás de uma plateia esparsa; o lugar ao
lado seria ocupado por Cameron. Novamente, o alvo e Pryce estariam sozinhos.
Chegou a noite do ensaio, Leslie e Luther acomodaram-se na fila de trás, e depois de seu discurso Wahlburg sentou-se ao lado de Pryce, enquanto a orquestra atacava o quarto movimento da Nona Sinfonia de
Beethoven, numa versão instrumental e coral da "Ode à Alegria" do mestre.
- Seu discurso foi maravilhoso, Sr. Wahlburg - disse Cameron, sussurrando.
- Psiu, psiu, isto é muito mais maravilhoso.
- Receio que tenhamos que falar...
- Não se fala, ouve-se.
- Soube de fonte fidedigna que estava querendo viajar para o leste do Mediterrâneo, a fim de se encontrar com Julian Guiderone, se conseguisse localizá-lo. Por que não ouvir suas palavras? Sou mensageiro
dele.
- O quê? - Benjamin Wahlburg virou a cabeça bruscamente para Pryce, com o rosto vincado pela ansiedade. - Como podia ter conhecimento de tal coisa?
- O Sr. Guiderone dispõe de fontes que não possuímos.
- Meu Deus do céu!
- Talvez devéssemos ir para o fundo da plateia.
- Você é um emissário de Guiderone?
- Vamos? - Cam acenou a cabeça para a ala à esquerda de Wahlburg.
- Sim, sim, naturalmente.
No fundo da sala de concertos, enquanto a sinfônica entoava os acordes do vibrante coro da "Ode à Alegria" de Beethoven, Benjamin Wahlburg ouviu as palavras que mudariam sua vida e seu mundo, levando-o
a se perguntar se tinha valido a pena viver sua vida e tentar salvar seu mundo.
- Está havendo uma grande crise em Amsterdã - Pryce começou.
- Presumimos que alguma coisa havia mudado drasticamente - interrompeu o banqueiro. - Nos disseram para não contatar o Keizersgracht!
- Não adiantaria nada tentar, van der Meer desapareceu. Guiderone está procurando manter as rédeas da situação.
- Isso é uma loucura total! Para onde van der Meer foi? Porquê?
- Tudo o que podemos fazer é especular. Talvez ele tenha sabido que nossas linhas de comunicação foram infiltradas, que uma contraofensiva está sendo rapidamente montada e desfechada contra nós. Quem poderá
saber ao certo? Sabemos apenas que ele desapareceu.
- Meu Deus... - Wahlburg levou as mãos trêmulas às têmporas, seu rosto adquirira uma tonalidade cinza, enquanto no palco o coro crescia, seus múltiplos naipes de vozes enchendo a grande sala de concertos
com a inebriante música da Nona Sinfonia. - O trabalho, todos esses anos... e agora... o que fizemos?
- Se Guiderone tiver a última palavra, nada mudará.
- Tudo mudou! Tudo emanava do Keizersgracht. Estamos à deriva!
- Julian está consciente de suas responsabilidades - disse Cameron com firmeza, com súbita autoridade. - Todas as instruções partirão dele, por meu intermédio. Os planos continuam em vigor.
- Mas não sabemos quais são eles. Amsterdã nunca nos revelou.
- Saberão - continuou Pryce, tentando lembrar-se de fragmentos das cópias impressas pelo computador e da sinopse da conversa de Scofield com Leonard Fredericks em Londres. As alusões ao Mediterrâneo, a
incêndios. - Tudo começará no Oriente Médio e, assim como o sol, o caos irá se deslocando para o Oeste. Lentamente a princípio, ganhando impulso depois, até que em poucas semanas ou meses haverá uma paralisia
econômica. Em toda parte.
- Essa será nossa deixa para começarmos a oferecer soluções. Em toda parte. Whitehead, Fowler, Nichols e eu compreendemos isso, mas não temos especificações! Van der Meer nos disse que nossos movimentos
seriam rigorosamente calculados, na hora certa saberíamos quem deveria ser acionado no Senado e na Câmara, e até mesmo na Casa Branca. Acontece que não temos essas instruções!
- Vocês também não contam com Jamieson Fowler.
- Como?
- Ele recuou, se é esta a palavra certa. Sem dizer nada a vocês, ele alertou seus contatos nas organizações de serviços públicos no sentido de admitirem a hipótese de planos alternativos...
- Não acredito nisso - atalhou Wahlburg.
- Acontece que é verdade.
- Que planos alternativos?
- Tantos quanto podemos supor, uma meia-trava, uma estratégia de esperar para ver como as coisas evoluem.
- Isso é um absurdo inconcebível! Todas as empresas de eletricidade da Costa Leste estão prontas para a fusão provando a viabilidade econômica.
- Juntamente com a perda de milhares e milhares de empregos - observou Cameron. - O que se deve ardentemente desejar.
- Uma situação temporária, a ser posteriormente retificada.
- Nem uma coisa nem outra acontecerá se Fowler retardar a marcha dos acontecimentos. Tudo tem que ser rigorosamente controlado para se obter o efeito máximo.
- Por que ele retardaria?
- Sei lá, mas, ao que tudo indica, é isso que ele pretende fazer. Medo talvez, pânico de última hora, querer ver com os próprios olhos que todos participarão e ele não ficará com o pepino na mão... Lembrar-se
que ainda existem leis; na sua cabeça poderia se tornar um pária, passar anos na prisão.
- Você está enganado, completamente enganado. Ele está tão comprometido com a causa quanto eu. Por razões diferentes, admito, mas nunca desertaria.
- Fazemos votos, naturalmente, para que você esteja certo. Entretanto, até que o Sr. Guiderone tenha mais informações de suas fontes, procure evitar o Fowler. Se por acaso ele entrar em contato com você,
para todos os efeitos nunca nos falamos; e se ele agir de maneira estranha, disser coisas esquisitas, deixe um recado neste número. - Pryce colocou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel. - Diga apenas
para que eu telefone para meu banco, que minha conta está descoberta.
Cameron virou as costas e dirigiu-se para as portas do foyer enquanto a orquestra sinfônica e o coro atingiam o clímax dramático da Nona de Beethoven. Benjamin Wahlburg permaneceu imóvel, em transe, não
ouvindo nada, não vendo nada, fitando simplesmente uma parede de veludo vermelho-escuro.
Era um homem alquebrado, invadido por uma grande tristeza, e ele sabia por quê. Ouvira o canto da sereia, uma falsa sereia, e racionalizara o imperdoável, o impiedoso. Todavia, em nome de Deus, pelas razões
certas. Elas ainda seriam válidas? Iria ao templo esperando encontrar consolo, talvez orientação.
TRINTA E DOIS
De volta ao pequeno hotel em Bala-Cynwyd, Cam, Leslie e Luther Considine reuniram-se na suíte do casal.
- Cara - disse Luther. - Aquele gato estava num telhado de zinco quente! Ele ficou com os olhos pregados na parede, estático, como se tivessem aspirado o ar de dentro dele.
- Acho que nosso líder fez alguma coisa parecida com isso disse Montrose. - Estou certa, Obi-Wan Kenobi?
- Quem?
- Esqueci que você não costuma ir ao cinema.
- Reconheço que massacrei o sujeito, mas ele era diferente dos outros. Que diabo, ele estava apavorado, mas se percebi direito, havia mais alguma coisa. Havia uns lampejos de remorso, remorso genuíno.
Quando disse a ele que o megaempresário dos serviços públicos, Fowler, talvez estivesse retardando a ação deliberadamente...
- Uma boa tática - aparteou a tenente-coronel. - Divida, depois espere o pânico.
- Creio que disse mais ou menos isso no Keizersgracht. O registro do sucesso é melhor do que a maioria das estratégias.
- E o remorso? - perguntou o piloto. - Como você percebeu?
- O que ele disse, apenas algumas palavras, mas também a maneira como as pronunciou. Sobre o recuo de Fowler, ele disse quase sussurrando, "Todos esses anos, o trabalho, o que foi que fizemos?", como se
o que tivessem feito não fosse limpo. Depois, mais tarde, ainda a respeito de Fowler, ele disse, "Ele está tão comprometido quanto eu, por razões completamente diferentes, admito"... "Razões completamente
diferentes", aonde é que isso nos leva?
- Maneiras diferentes de atingirem seus objetivos - sugeriu Leslie.
- Acho que não. Os próprios objetivos, talvez, simplesmente não sei. Mas sei que ele não me pareceu estar falando em causa própria, tentando se proteger. Os outros o fizeram.
- O que é que você quer fazer?
- Exercer minha autoridade, como você diria, coronel. Uma vez que estou em campo, vou telefonar para o Frank Shields e dar umas ordens a ele. Quero um dossiê completo de Benjamin Wahlburg, e quero para
amanhã de manhã.
Na manhã seguinte o dossiê lacrado foi entregue por Scott Walker às sete e quinze. - Esse envelope foi despachado por avião às cinco da manhã. Posso lhe garantir que o senhor não é a pessoa mais popular
em Langley.
- Isso parte o meu coração, Scotty, mas vou ter que conviver com essa dor.
- Está dando para perceber. Acho que o senhor está salivando.
- Acertou, agente Walker. Estou.
- Devo esperar por uma resposta? O piloto ainda está na cidade.
- Não há necessidade. Isso é tudo de que preciso.
- Sabe onde me encontrar, senhor. Posso chegar aqui em vinte minutos.
Pryce, de cuecas, abriu o envelope lacrado e começou a ler. Leslie ainda estava dormindo; a concentração dele era absoluta. Trinta e seis minutos depois, quando ela acordou, bocejando, ele anunciou: -
Coronel Montrose, podemos ter encontrado o elo da cadeia, que poderá ser rompido.
- O quê?... - Ela se sentou ao lado dele no sofá.
- O dossiê do Wahlburg. É uma beleza. Nosso banqueiro todo-poderoso é um refugiado da esquerda radical. No final da década de 1940, ele fazia parte da lista de Hoover sobre atividades antiamericanas, era
muito falante e flertava com o comunismo. Depois desapareceu por alguns anos e reapareceu como um defensor autêntico do sistema capitalista e de tudo o que denunciara antes.
- Ele viu a luz?
- Talvez, ou quem sabe procurou outro caminho, uma maneira mais realista de introduzir as reformas que preconizava quando era mais jovem.
- Os Matarese! - disse Leslie, assombrada. - Como pôde ser? Eles são monopolistas, fascistas, querem controlar tudo!
- O lado ingênuo do socialismo - interrompeu Cam. - Um cenário com oportunidades iguais para os ricos e para os pobres, o que é uma babaquice total porque simplesmente não existe tal coisa. Kennedy estava
certo quando disse que o mundo é injusto. Ele é mesmo, e os Matarese vão torná-lo ainda pior. Talvez Wahlburg esteja começando a compreender isso.
- O que é que você vai fazer?
- Darei a ele um dia para entrar em contato comigo. Se não o fizer, vou ao encontro dele.
Scofield e Antonia percorriam as ruas de Londres na sua recém descoberta liberdade. Na verdade, uma liberdade vigiada, uma vez que Geoffrey Waters insistiu para que fossem protegidos por uma unidade de
dois homens, que mantinham uma distância de poucos passos da casa! - um na frente e outro atrás. Era de manhã cedo e eles estavam passeando pelo Mall no St. James’s Park quando um carro encostou no meio-fio,
freando estrepitosamente. Os dois agentes do MI-5 correram prontamente, de armas em punho, colocando-se entre o veículo e os Scofield. Com a mesma rapidez, recolheram suas armas, ao reconhecerem o motorista,
um colega.
- Uma emergência, companheiros! Entrem no carro.
Uma vez espremidos dentro do carro, o primeiro agente na parte de trás com Bray e Toni, e o segundo ao lado do motorista, um Scofield indignado perguntou: - Que diabo está acontecendo? De onde foi que
isso surgiu?
- Nunca o perdi de vista, senhor - respondeu o motorista. Ordens de Sir Geoffrey.
- Acho que ele está exagerando. Esses dois caras mais um automóvel!
- Este carro é à prova de balas, senhor.
- Uma bela lembrança. Quem é que vai atirar em mim?
- O chefe Waters é muito metódico. Não deixa escapar nada.
- Para onde é que estamos indo?
- Para a sede do MI-5.
- Por quê?
- Não faço ideia, senhor.
- O Geof está me saindo melhor do que a encomenda.
- Comporte-se, Bray - disse Antonia.
Ninguém se lembrava de ter visto Geoffrey Waters tão contrariado. Apoplético seria uma descrição mais apropriada. Scofield e Antonia foram conduzidos ao seu gabinete, a porta firmemente fechada, enquanto
Waters andava furiosamente de um lado para outro atrás de sua escrivaninha. - Qual foi o bicho que te mordeu? - perguntou Brandon.
- O que tenho a lhe dizer, amigo velho, é a última coisa que você quereria ouvir. Vamos nos sentar, acredito que tomará as coisas mais fáceis. - Todos o fizeram, os Scofield ocupando duas cadeiras em frente
à escrivaninha.
- Do que é que se trata, Geof? - disse Toni.
- O inacreditável e o inaceitável. O Matareisen fugiu.
- O quê? - esbravejou Brandon, dando um pulo da cadeira. Se isso é uma piada, é de muito mau gosto!
- Não é piada. Quem dera que fosse.
- Com mil demônios, como é que isso pôde acontecer? Você o mantinha praticamente numa gaiola de vidro, permanentemente vigiado!
- Ele não estava aqui, Bray.
- Jesus, não vai me dizer que deu uma noite de folga a ele na cidade!
- Deixe o Geof explicar, Brandon.
- Obrigado, minha querida, não vai ser fácil para mim. Às três e quarenta e cinco desta manhã, recebi um telefonema da guarda de Matareisen. Ele estava cuspindo sangue. De acordo com o médico, o sangue
jorrava literalmente de sua boca, e ele estava inconsciente. Temendo pela sua vida, ordenei que o levassem para um hospital, escoltado por uma patrulha. Em algum ponto do trajeto entre esta central e a
entrada de emergência, não mais do que doze minutos, ele recuperou os sentidos e, para meu grande espanto, subjugou dois guardas bem-dotados fisicamente, matando um e removendo as roupas do outro. Depois
fez uma limpa, apropriando-se de tudo que encontrou - dinheiro, carteiras de identidade, cartões de crédito, arrombou a porta traseira e perdeu-se no meio do trânsito.
- Quem eram os seus agentes, Dorothy d’O mágico de Oz e Poliana?
- Francamente, Bray - disse Antonia, zangada. - Um desses rapazes foi morto.
- Desculpe, mas... não dá pra entender!
- Cameron Pryce pode lhe falar da extraordinária técnica de artes marciais de Matareisen, ele a conhece muito bem. Naturalmente, estamos varrendo a cidade no seu encalço, usando igualmente a polícia de
Londres, sem explicações.
- Você não o encontrará - disse Scofield. - Ele deve ter contatos que o esconderão e o ajudarão a sair do país.
- É o que também presumimos, mas essa não é minha principal preocupação. Você e Antonia é que são. Enquanto estamos falando, está sendo providenciada a transferência de vocês do Savoy para o Ritz.
- Por quê? - protestou Bray. - Van der Meer não vai ficar em Londres e Guiderone está morto. Não sou um alvo.
- Não temos tanta certeza - insistiu o chefe do MI-5. - Não sabemos se Guiderone manteve contato com Matareisen e, se o fez, o que poderá ter dito ao holandês. Guiderone ia partir para sua missão mais
importante e arriscada. Talvez tenha feito um seguro com van der Meer, como você o chama.
- Muito pouco provável, se não impossíve! - retorquiu Scofield.
- Se fiz o meu trabalho direito, como geralmente faço, cortei o vínculo de Guiderone com o Keizersgracht.
- Com o devido respeito, meu caro, nenhum de nós sabe o que os outros são capazes de fazer sob extrema pressão. É uma área imprevisível.
- Tudo bem, estamos nos mudando para o Ritz.
- Obrigada, Bray - disse Antonia.
O telefone tocou na escrivaninha de Waters. - Pronto - ele disse, pegando rapidamente o fone. Ouviu durante alguns instantes, desligou e olhou para os Scofield. - Um carro-patrulha acredita ter acabado
de ver Matareisen. Os patrulheiros pararam o carro e ele viu o veículo, correndo para uma entrada do metrô. Estão no encalço dele.
- Por que acham que era ele?
- Primeiro, por causa das roupas que não lhe caíam bem, depois pela descrição geral baseada em fotografias que tiramos quando o trouxemos de Amsterdã. Nós as distribuímos.
- Falando de Amsterdã, aqueles computadores poderiam ter alguma informação sobre Londres? Quaisquer referências a contatos ou vias de acesso?
- Nada - respondeu Sir Geoffrey. - Chequei com o Greenwald no Keizersgracht, - Tudo o que ele encontrou foram referências a ruas e monumentos datando de alguns meses. Locais de encontro com datas antigas.
- O telefone tocou novamente e Sir Geoffrey apressou-se em atendê-lo. - Sim? - Manteve os olhos fixos num peso de papel de vidro enquanto ouvia. Finalmente, depois de o interlocutor ter acabado de falar,
fechou momentaneamente os olhos e sem dizer uma palavra desligou. - Perderam o homem de vista - disse, sentando-se.
- Alertem todos os aeroportos particulares - disse Bray - um deles será sua porta de saída.
- Para onde irá? - perguntou Antonia. - Amsterdã está fora de cogitação. Ele terá outras propriedades, em outros lugares além da Holanda?
- Se tiver, será impossível localizá-las. Ele opera através de holdings e corporações-fantasma, como o serviço de limusines e o grupo Argus. Conhecendo os recursos de que ele dispõe, sem dúvida possui
muitos outros lugares, mas precisaríamos de um roteiro que não temos.
- Ele não terá advogados? - Toni novamente. - Ele deve utilizar os serviços de uma firma de advocacia.
- Provavelmente dezenas em outros tantos países. Rastreamos o grupo Argus e fomos parar em Marselha. Os escritórios consistiam de duas salas, um banheiro e uma secretária cuja única tarefa era remeter
correspondência e telegramas para Barcelona, que, por sua vez, despacha tudo para uma posta-restante em Milão. Estão percebendo o quadro?
- Em três dimensões - acusou Scofield. - Confusão, pistas impossíveis de serem seguidas e evasão. O que me surpreende é a conexão de Milão. Sugere que alguém substituiu a célula Paravacini, um protagonista
de peso.
- Também estive pensando nisso - disse Waters. - Se for verdade, eles certamente se reorganizaram às pressas.
- Depressa demais - interrompeu Brandon. - O que significa que havia alguém preparado para assumir o comando. - Scofield voltou-se para Antonia. - Que tal umas férias no lago Como, meu amor? É melhor aproveitar
porque é o Sir Waters quem vai pagar. Eu não tenho condições para uma extravagância dessas.
- Creio que já pagamos por Como - disse Waters.
- Isso inclui os serviços do incomparável Don Silvio Togazzi, que deve ser dono de quase toda Milão a esta altura, e certamente controla os sindicatos postais. Um mafioso respeitável jamais os esqueceria,
comunicações invisíveis são muito importantes.
- A posta-restante?
- Exatamente. Tenho certeza de que a coisa é feita por etapas, uma pobre alma recebe alguns milhares de liras para fazer a entrega a outra pobre alma, e esta se encarrega de passar adiante a uma terceira,
até a correspondência chegar às mãos do verdadeiro destinatário. Estaremos lá quando ocorrer o evento, e não acredito que esteja interessado em ouvir as táticas que pretendo empregar. Elas poderíam ofender
sua sensibilidade, mas lhe traremos um troféu, pode contar com isso.
- Na situação em que nos encontramos, minha sensibilidade não poderá sentir-se ofendida. Só não me traga um cadáver. Um cadáver não pode falar.
A tarde começava e Jan van der Meer debruçou-se sobre o telefone numa cabine pública na movimentada Piccadilly Circus. Tinha chumaços de algodão na boca, que perfurara com os dentes para dar a impressão
de hemorragia. Removeu o algodão, enquanto do outro lado do canal um telefone tocou em Bruxelas. - Alô - disse a voz na Bélgica.
- Sou eu. Tem a informação e, se a tiver, quando é que poderá ultimar as providências?
- Tenho a informação e estou pronto para tomar as providências assim que autorizar.
- A informação primeiro.
- O campo de golfe particular chama-se Fleetwood e fica a trinta e cinco quilômetros a noroeste de Londres. Chega-se lá facilmente pela estrada de rodagem...
- Conheço a região e um táxi me levará até lá. E as providências?
- Um pequeno avião, um Cessna, pousará no campo entre o décimo primeiro buraco e o décimo segundo tee - é o trecho mais comprido, mais plano e mais distante da sede do clube. Ele chegará por volta das
quatro e quarenta e cinco, quando ainda há um pouco de luz, mas já está escuro para os golfistas, não que haja muitos nesta época do ano. Será levado para um campo na Escócia onde o seu jato estará à sua
espera. Um plano de voo será requisitado em nome de uma de suas empresas, partida em aberto, aprovação garantida. Está tudo acertado, posso dar o sinal verde?
- Imediatamente.
Jan van der Meer passou o resto da tarde no cinema. As três horas, ele acenou para um táxi e deu ao motorista vagas instruções para chegar ao Fleetwood Golf Club. Chegaram às 4:10. O tráfego estava intenso
e van der Meer mandou o homem dar voltas nas imediações do campo. Quatorze minutos mais tarde, o holandês avistou a bandeirola do décimo primeiro buraco; mandou o táxi parar pouco depois, pagou o motorista,
desceu e retornou, enquanto o carro desaparecia na curva.
Por volta das 4:30 van der Meer estava deitado no gramado, num trecho arborizado entre o décimo primeiro buraco e o décimo segundo tee. A tarde caía mas ainda não estava escuro. Às 4:39 ele ouviu o barulho
abafado de um avião distante. Matareisen rastejou até a orla do trecho adiantado e arborizado e levantou-se ao lado do tronco avantajado de uma árvore. Olhou por entre os galhos; o avião apareceu no seu
campo visual e começou a sobrevoar a área em círculos, baixando a altitude à cada volta.
Súbito, o inesperado, o indesejável. O sistema de irrigadores irrompeu, aspergindo água para todos os lados, enquanto um zelador de lanterna em punho, num carrinho elétrico, verificava o funcionamento
dos irrigadores naquele outono singularmente seco. Ele ziguezagueava pelo gramado, aproximando-se lentamente do trecho em declive na sua inspeção final. Inopinadamente, van der Meer surgiu gritando e gesticulando.
- Você aí! Chegue até aqui. Levei um tombo, estou ferido, estive desacordado!
O zelador deu uma guinada no cart e acelerou em direção a Matareisen. Encontraram-se no meio do segmento plano - a pista de pouso e decolagem! Van de Meer agarrou bruscamente os cabelos do homem e golpeou
sua cabeça contra a barra de metal da frente, arrancando-lhe em seguida a lanterna da mão. Começou a brandir freneticamente o feixe de luz. Inesperadamente, nos últimos momentos antes da aterrissagem,
o avião recuperou altura, dando uma queda de asa para a esquerda para tentar outra aproximação. Matareisen empurrou o corpo com a cabeça ensanguentada para fora do cart, subiu no carrinho e conduziu-o
para a orla do campo. Desligando o motor e jogando fora a chave, correu de volta para o meio do gramado, agora agitando a lanterna em rápidos movimentos verticais, sinalizando a faixa de pouso. O piloto
compreendeu; o pequeno aparelho aterrissou e taxiou na direção da luz que Matareisen acenava.
- Você trouxe uma muda de roupas como pedi? - perguntou van der Meer asperamente, pulando no apertado assento traseiro.
- Sim, senhor, mas preferia que não trocasse de roupa agora. Quero sair daqui antes que a grama fique encharcada e percamos a força de tração.
- Então decole!
- O campo também está cheio de carts em movimento. Não gostaria de bater num deles.
- Eu disse, decole!
Durante o voo, a caminho da fronteira escocesa, Matareisen voltou à questão que o afligia desde sua captura. Seu ego o convencera de que conseguiria fugir, era inevitável. O problema era de onde poderia
operar, onde estabeleceria o quartel-general dos Matarese? Possuía muitas residências, todas bem equipadas embora não tão bem tecnologicamente servidas quanto o Keizersgracht, porém certamente preparadas
para comunicações globais, e isso era tudo de que precisava. Contava com tão pouco tempo! Faltavam apenas dias para atear fogo no Mediterrâneo, a primeira das catástrofes, o arauto de múltiplas crises
mundiais que provocariam o caos econômico!
Súbito, uma grande calma tomou conta de van der Meer. Sabia para onde tinha que ir. Eram 3:38 da tarde na Filadélfia e Benjamin Wahlburg não se comunicara com Pryce. Cameron decidiu que a bola estava no
seu campo e por isso telefonou para o escritório do intermediário dos Matarese.
- Sinto muito, cavalheiro, o Sr. Wahlburg não veio ao escritório hoje.
- Tem o número do telefone da residência dele?
- Sinto muito novamente. Não estamos autorizados a fornecer esta informação.
Frank Shields em Washington estava, e forneceu tanto o número do telefone quanto o endereço de Benjamin Wahlburg. Pryce telefonou para Scott Walker quando ninguém respondeu na mansão de Wahlburg, e juntos
foram à elegante propriedade. Tocaram a campainha insistentemente sem obterem resposta. Finalmente, Cameron disse: - Creio que isso se chama arrombamento e invasão de domicílio, mas acho que, dadas as
circunstâncias, não temos outra alternativa, você também não acha?
- Dito e feito - respondeu o agente da CIA. - Tenho comigo um manual de operações em casos de invasão que envolvam a segurança nacional.
- O que é que isso significa em termos práticos?
- Não muita coisa, mas os procedimentos são aceitos de um modo geral. Em condições extremas nos é concedida mais latitude no desempenho de nossas missões, desde que vidas não sejam ameaçadas e aceitemos
a responsabilidade.
- Isso é muito vago.
- Tem suas falhas - admitiu Walker. - Na verdade, não conheço profundamente esse tipo de operação, mas se você me disser que ela tem a ver com a segurança nacional, estamos limpos, ninguém vai querer discutir
com você.
- A segurança nacional está envolvida de maneiras que explodiriam sua cabeça se você soubesse.
- A casa dispõe sem dúvida de um sistema de alarme. Portanto, forcemos a entrada por um pátio ou uma porta de cozinha e eu seguro a barra se aparecer alguém. Sei o que dizer e como dizer.
- Você já fez isso antes?
- Sim, fiz - disse o agente tranquilamente, sem maiores comentários, enquanto os dois se dirigiam para a lateral e os fundos da propriedade. Havia uma varanda envidraçada nos fundos dando para uma quadra
de tênis. - Aqui está ótimo - prosseguiu Walker, checando a porta com um painel de vidro e revestida por uma tela. Pegou sua automática e, segurando-a pelo cano, arrebentou a tela e espatifou o vidro perto
da maçaneta, enfiou a mão e abriu a porta.
Ambos ficaram admirados com o silêncio que se seguiu. - Não há alarme - disse Pryce.
- Para uma casa como esta, é surpreendente.
- Vamos nessa. - Cameron e o homem da CIA atravessaram a varanda e penetraram no interior da mansão, e era, realmente, uma mansão. Os aposentos do andar térreo eram decorados com móveis da melhor qualidade,
quadros a óleo de mestres consagrados expostos em paredes revestidas do mais caro papel, e reluzente prataria em quantidade suficiente para adornar um show room da Tiffany’s.
A casa parecia estar deserta, pois ninguém respondeu quando Pryce anunciou repetidamente em voz alta: - Governo Federal, estamos aqui para falar com Benjamin Wahlburg.
Galgaram a imponente escadaria, Pryce anunciando sua identificação "federal" em vão. Atingiram o segundo andar e verificaram os vários cômodos e banheiros; não havia ninguém. Finalmente, chegaram ao quarto
de dormir principal; a porta estava trancada. Cameron bateu e acabou esmurrando-a. - Sr. Wahlburg - gritou. É imperativo que falemos!
- Já que chegamos até aqui - disse Walker vamos até o fim. - Com essas palavras, ele recuou alguns passos e jogou-se com toda a força do seu corpo contra a porta. Ela lascou mas não abriu. Alguns pontapés
bem aplicados pelo agente e ela veio abaixo. Entraram no quarto de dormir.
No seu interior, esparramado na cama, a colcha de cetim empapada de sangue e tecido humano, jazia o corpo de Benjamin Wahlburg. O banqueiro tinha disparado um tiro na boca com uma pistola calibre 38, que
ainda segurava na mão.
- Você nunca viu isso, Scott - disse Pryce. - Na verdade, você nunca esteve aqui.
TRINTA E TRÊS
O resort Villa d’Este no lago Como enviou uma limusine ao aeroporto de Milão para apanhar os hóspedes americanos do hotel, Sr. e Sra. Paul Lambert, i. e., Brandon Scofield e Antonia. Seus passaportes tinham
sido uma gentileza de Frank Shields em Washington, que os transportara para o outro lado do Atlântico num correio militar. O voo chegara às dez da manhã, hora de Milão, e por volta de meio-dia o casal
exausto estava na sua suíte, o "Sr. Lambert" queixando-se da demorada reunião na noite anterior em Londres.
- Geoffrey não sabe dizer uma coisa uma só vez, tem que repeti-la trinta vezes.
- Bray, você ficou discutindo com ele o tempo todo.
- É claro, porque não preciso dele! Tenho o Togazzi.
- Que não chega a empolgar o Geof, como você sabe.
- Ele não gosta de italianos.
- Não, ele apenas fica um pouco de pé atrás por se tratar de um poderoso mafioso.
- Isso é palhaçada. O Servizio Segreto obtém alguns de seus melhores recrutas na Máfia. Além disso, há muitos anos que o Silvio não tem mais nada a ver com a Máfia. Ele está dignamente aposentado.
- Respeitável da parte dele. - O telefone tocou e Antonia pegou o fone na mesa antiga com o tampo revestido de couro. - Sim?
- Deve ser a gloriosa Antonia, uma signora mediterrânea com quem nunca estive, mas aguardo ansiosamente o momento em que terei a honra e o privilégio de conhecê-la pessoalmente.
- Seu inglês é extraordinário... Signor Togazzi?
- Aprendi grande parte do meu inglês aos pés de um mestre, seu extraordinário companheiro.
- Estou de pleno acordo. Um minuto, vou passar o telefone para o... mestre.
- Ouço a cadência do Mare Nostra na sua fala, bela criatura! - pressionou Togazzi.
- Que bom, há anos que venho tentando perdê-la. - Ela passou o fone para Scofield, que balançava a cabeça e apontava para a cama, implorando por um cochilo. Pegou-o relutantemente.
- Oi, guappo ragazzo!
- O sempre amável Brandon. E como vai o meu grande e safado ianque? Presumo que tenha chegado.
- Não, sou um clone que está precisando de algumas horas de sono.
- Agora não, meu amigo, temos muito o que fazer. Soube pelo correio de Milão que chegou uma outra remessa de Barcelona. Essa é para um Signor Del Monte o Quarto, "Del Monte" é um nome bastante comum na
Itália, a designação "Quarto" é uma aberração, um código de identificação para o destinatário. O próximo caminhão de entrega deve chegar às três horas da tarde de hoje. Meu contato segurará o material,
alegando que ele chegará no último despacho. Precisamos estar lá.
- Acabo de sair de lá! Você não tem alguém nos seus quadros que possa seguir quem quer que apareça para apanhar a encomenda?
- A última comunicação de Barcelona foi há seis dias. Quando é que chegará outra?
- Oh, Jesus, você está certo! O Keizersgracht está fechado pra balanço...
- O quê? Che cosa!
- Foi uma semana agitada, depois eu conto. Mas você tem razão, não teremos outra oportunidade de descobrir a conexão de Milão. Como é que você me apanhará?
- Saia pela entrada oeste como se fosse dar uma volta nos jardins. Depois tome o atalho que passa pela barricada na estrada que leva à casa de campo e comece a subir a rua para Bellagio. Eu me encontro
com você lá.
- Não estou armado, os malditos detectores de metal, e quero me armar. Você tem alguma arma disponível?
- Nosso mar da Ligúria tem água?
- Foi o que imaginei. Vejo você dentro de quinze ou vinte minutos. - Scofield desligou o telefone e voltou-se para Antonia. - Acho que você ouviu.
- Adivinhou, e não gosto nada da necessidade de armas.
- Provavelmente não haverá necessidade nenhuma, mas prefiro ter algum poder de fogo uma vez que estamos atrás das linhas inimigas. Você se lembra dos velhos tempos, não é mesmo, querida?
- Sim, querido. E também me lembro que você era muito mais jovem. E o Togazzi é mais velho do que você. Dois veteranos desempenhando papéis que deixaram para trás há muito tempo.
- Por que você não manda logo nos mumificar. Onde estão os sapatos de sola de borracha?
- No closet.
- Nunca vá à luta sem sapatos de sola de borracha.
- Vocês não estarão sozinhos, pois não? Homens de mais idade precisam de companheiros jovens.
- Estou certo de que Silvio providenciará uns dois ou três.
- Espero que saiba o que está fazendo.
- Nós sabemos.
O trajeto para Milão foi coberto em tempo recorde, Scofield e Togazzi aperfeiçoando suas táticas de rápida vigilância. Dois dos seguranças do Don estavam no banco da frente, um segundo carro com outros
três seguia-os de perto; encontrar-se-iam a um quarteirão do Correio Geral de Milão. O homem de Togazzi tinha fornecido uma planta do andar da seção de entregas; era uma medida que fazia parte da estratégia.
Os seguranças do italiano, todos com walkie-talkies de lapela, se posicionariam perto do balcão e das portas de saída, o motorista permanecendo do lado de fora, próximo do veículo de Togazzi. O homem subornado
pelo Don faria um sinal para o segurança mais próximo quando o receptor pegasse a mercadoria de Barcelona; ele, por sua vez, alertaria os outros, descrevendo o indivíduo.
Togazzi ficou no seu automóvel, com uma câmera telescópica de alta velocidade em punho, enquanto Scofield estava alguns passos atrás, vigiando a porta e ouvindo as transmissões dos seguranças. As palavras
vieram pelo rádio.
- O homem está usando roupas desalinhadas, um paletó rasgado e calças amarrotadas.
- Pegamos ele - disse Bray, olhando para o receptor dos Matarese, um homem baixo, saindo apressadamente pela porta do correio. - Você está vendo ele, Silvio?
- Naturalmente. Ele está se encaminhando para o estacionamento de bicicletas. Rápido, um de vocês pegue a motocicleta na mala do carro. Siga-o!
Um segurança mais ágil retirou a motocicleta, ligou o motor, subiu e saiu em perseguição ao mensageiro na sua bicicleta. Minutos depois, o perseguidor falou pelo rádio. - Ele está na parte mais perigosa
da cidade, signore! A motocicleta é nova e muito cara. Receio pela minha vida.
- Você não terá uma se o perder, meu amigo - disse Don Silvio Togazzi.
- Dio di Dio, ele passou a encomenda para outro mendigo!
- Não o perca de vista - ordenou o Don.
- Ele está correndo pela rua em direção a uma velha igreja, signore. Um padre jovem apareceu na escadaria! Ele está entregando o envelope a ele. É a Igreja do Sagrado Sacramento.
- Esconda sua moto e fique aí. Se o padre sair, siga-o à distância, capisce?
- Com todo meu coração e minha alma, Don Silvio.
- Grazie. Você será recompensado.
- Prego, meu Don... Ele está saindo! Está andando pela calçada; parou em frente a um automóvel, um automóvel muito velho, muito danificado.
- O carro mais seguro para esse tipo de vizinhança - observou Togazzi. - Qual é a marca do automóvel?
- Não sei dizer. Há tantos amassados e arranhões. É pequeno, a grade do radiador está partida ao meio. Talvez seja um Fiat.
- Qual é o número da placa?
- Está muito amassada e também toda arranhada... O padre entrou no carro e está ligando o motor.
- Fique com ele o mais que puder. Os homens estão no outro carro; nós permaneceremos neste. Comunique-nos todos os movimentos dele... Brandon, entre.
A revelação foi uma espantosa surpresa, na medida em que a propriedade dos Paravacini estava praticamente fechada, mantida por uma equipe de empregados mínima e com sua bandeira dinástica a meio-pau, significando
que não havia ninguém importante residindo nas suas dependências. A morte selvagem e macabra de Carlo Paravacini tinha chocado a comunidade do lago. Havia quem rezasse por sua alma e quem o condenasse
às labaredas do inferno, uns poucos situavam-se no meio. Entretanto, o pequeno e castigado automóvel tomou rapidamente a rodovia para Bellagio e dobrou na estrada cerca de cinquenta quilômetros ao norte
que conduzia à herdade dos Paravacini. Alguém a estava ocupando, alguém suficientemente influente para receber o material de Barcelona, um membro da hierarquia Matarese.
- Volte para casa o mais depressa que puder! - ordenou Togazzi, voltando-se para Scofield. - Tenho telescópios no meu terraço, talvez possamos descobrir alguma coisa.
Descobriram. O telescópio focalizado na propriedade dos Paravacini revelou o imponente iate ancorado no cais. Atrás dele, nos amplos e bem-cuidados gramados, nenhuma das inúmeras fontes de água funcionava.
A propriedade parecia sinistramente deserta, como se os elegantes domínios clamassem por gente bem-vestida e sofisticada, não por frias estátuas de mármore. Subitamente, surgiram duas pessoas, dois homens
percorrendo a alameda de piso de tijolos que circundava a mansão. Um era idoso, bem mais velho do que o homem mais moço, ambos de calças pretas e camisas esporte folgadas. - Quem são eles? - perguntou
Bray, recuando do telescópio para que Don Silvio pudesse olhar. - Você os conhece?
- Um deles conheço muito bem e é a resposta à pergunta: quem está dirigindo os Matarese na Itália? O outro não estou reconhecendo, mas posso sugerir uma probabilidade; só o vimos de costas e a uma distância
considerável.
- Quem?
- O motorista do carro caindo aos pedaços que seguimos até aqui.
- O padre?
- Os dois são padres. O homem mais velho é o cardeal Rudolfo Paravacini, um prelado que goza de grande influência no Vaticano.
- Ele é o cabeça dos Matarese italianos?
- Ele é tio do falecido e não pranteado Carlo Paravacini, o dos pássaros.
- Mas e o Vaticano?
- Tenho para mim que o sangue da família é mais forte do que o sangue de Cristo. Certamente neste caso.
- Pryce o mencionou, Leslie também. Mas não havia nada realmente de concreto.
- Agora há, Brandon. Olhe aqui. Eles subiram no iate e foram para a varanda na popa. Diga-me o que conseguir ver.
- OK. - Scofield voltou para o telescópio. - Santo Deus do Céu, o velho está abrindo o envelope que veio de Barcelona. Você está certo!
- A pergunta é: e agora, o que fazemos?
- O lugar não parece estar exatamente fortificado. Por que não agirmos imediatamente, antes que ele possa transmitir o que quer que possa estar no pacote, ou antes que o destrua, o que é muito provável.
- Concordo.
Os seguranças foram chamados ao terraço, cada um dando uma olhada no telescópio. Uma estratégia foi rapidamente concebida e burilada, Scofield e Togazzi voltando ao passado, lembrando-se dos dias em que
tinham invadido juntos áreas hostis. Dois dos seguranças se retiraram, suas instruções bem compreendidas; os outros três ficaram com o Don e Brandon.
- Você fica aqui - disse Togazzi em italiano, acenando com a cabeça para o segurança que tomava conta da guarita na entrada do retiro florestal. - Mantenha-se em contato conosco e, na hipótese pouco provável
de aparecerem intrusos, você sabe o que tem que fazer.
- Si, meu Don. Primeiro, as minas mais afastadas.
- Minas terrestres? - Scofield inclinou-se para frente na sua cadeira de vime pintada de branco. - As colinas em volta de Portofino?
- Você se lembra - confirmou Togazzi. - Ninguém chegava perto dos campos de nossa base. Colocávamos as minas nos perímetros e quem se aproximasse procurando por nós ficava paralisado de medo, sem coragem
de andar.
- Retrocediam e saíam da área enquanto nós procurávamos outro campo - disse Brandon, dando uma risadinha. - Não houve feridos, nem foram criados incidentes internacionais; as explosões eram atribuídas
a minas não localizadas remanescentes de escaramuças dos guerrilheiros.
- Eu acrescentei um toque - explicou Don Silvio modestamente. - Agora há minas internas muito mais próximas do caminho, e algumas debaixo dele, também detonáveis da guarita.
- Va bene - disse Scofield, rindo.
- Vocês aí - continuou Togazzi em italiano, dirigindo-se aos seguranças restantes - nos acompanharão, nos deixando a uns cem metros acima da propriedade. Depois avancem para a área de estacionamento e
tomem suas posições.
- Si.
O primeiro carro parou na estrada a quatrocentos metros da propriedade dos Paravacini. Os dois seguranças haviam trocado de roupa. Em vez dos ternos surrados e comuns que usavam em Milão, vestiam agora
o que se poderia descrever como trajes domingueiros de ir à missa, mal-acabados, velhos, mas limpos, de rudes trabalhadores rurais. Cada um carregava cuidadosamente uma cesta de flores, do tipo das que
eram plantadas em pequenos lotes de terra, modesta homenagem que suas posses permitiam a um grande e poderoso latifundiário. Desceram pela estrada de terra, quente e poeirenta, em direção à mansão dos
Paravacini, o suor escorrendo de suas testas e molhando suas camisas. A uns duzentos metros da propriedade a estrada passou a ser asfaltada. A guarita no portão, com suas janelas de vidro grosso, estava
deserta, a barreira levantada, indícios novamente de que não havia ninguém importante morando na mansão.
Interromperam a caminhada na entrada circular para carros diante da escadaria imponente da fachada. Tocaram a campainha, e no interior cavernoso da casa ressoou o sonoro carrilhão. Um criado abriu a porta;
sua camisa estava aberta e a barba por fazer. A vista dos simplórios visitantes, falou asperamente em italiano.
- O que é que vocês querem? Não há ninguém em casa.
- Piacere, signore, somos pobres camponeses habitantes das colinas que cercam Bellagio - disse o segurança à direita. Viemos render uma homenagem à memória do grande Don Carlo, que sempre foi extremamente
generoso com nossas famílias nas festas de fim de ano.
- Ele morreu há muitas semanas. Vocês estão um pouco atrasados.
- Não ousamos vir quando havia tanta gente importante entrando e saindo - disse o segurança à esquerda. - Podemos levar estas cestas para dentro, signore? Elas são tão pesadas.
- Podem deixá-las aí mesmo. Já há plantas demais lá dentro para me dar trabalho.
- Abra seu coração, signore - acrescentou o segurança à direita, olhando de relance para trás do arrogante empregado.
- Não!
- Então não abra. - Dizendo isso, o mesmo segurança avançou subitamente, agarrando o homem pelos ombros, forçando-o a se abaixar, e deu-lhe uma vigorosa joelhada no rosto. O homem caiu no chão, sangrando
e inconsciente. Juntos, os dois homens de Togazzi arrastaram o corpo para uma sala lateral, fecharam a porta e deram início a sua rápida mas rigorosa busca. Encontraram uma empregada na biblioteca; de
uniforme, ela estava refestelada numa poltrona, folheando as ilustrações de uma enciclopédia.
- Scuzi, signori! - Ela falou rapidamente, pulando da poltrona. - Nos disseram - ela continuou em italiano - que, terminadas nossas obrigações, podíamos relaxar e nos divertir.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Sua Eminência, o cardeal, signore.
- Quem mais está aqui?
- O cardeal Paravacini, o Signor Rossi e...
- O Signor Rossi? - interrompeu o segurança que agredira o criado na porta. - Ele é padre?
- Credo, não, signore! Ele traz uma mulher diferente pra cá diversas vezes por semana. Ele é um bode. Em deferência ao cardeal, ele manda elas embora cedo, antes do dia clarear.
- Quem mais? - perguntou o segundo homem de Togazzi. Você deu a entender que havia mais alguém.
- Sim, Bruno Davino. Ele é encarregado da segurança da propriedade.
- Onde é que ele está?
- Ele passa grande parte do tempo no terraço, senhor. Lá existe um canto com um toldo para proteger do sol. Ele diz que pode ver de lá o lago e todas as estradas. Ele chama o lugar de seu posto de observação.
- Vamos lá em cima - disse o primeiro segurança.
- Che cosa? - Veio a pergunta gritada da porta. Os seguranças viraram-se e viram um homem corpulento, com uma expressão que transmitia todo o seu ódio. - Vi vocês dois, seus vermes, descendo a estrada,
mas não vi vocês saírem. Por que ainda estão aqui?
- A spiacente, signore - respondeu o segundo segurança, com as palmas das mãos viradas para cima, os braços abertos, enquanto se aproximava devagar do brutamontes, implorando. - Viemos prestar uma homenagem
à memória do grande Don Carlo... - Ele cruzou o espaço entre seu colega e o lacaio dos Matarese. Era uma tática que já tinham utilizado em outras ocasiões, bloqueando o campo visual de duas figuras. O
primeiro segurança enfiou a mão no bolso e sacou rapidamente uma pistola com silenciador. No momento em que seu companheiro recomeçou a andar, revelando o homem na soleira da porta, ele disparou duas vezes
com mortal precisão, matando instantaneamente o chefe da segurança.
A mulher começou a gritar; o segundo homem de Togazzi correu, tapando-lhe a boca com uma das mãos, enquanto, com a outra, pressionava-lhe o peito com tanta força que o ar foi imediatamente expelido do
seu peito, impedindo a emissão de qualquer som. Retirando uma corda fina e uma fita adesiva resistente dos bolsos, ele a amarrou numa cadeira de espaldar reto e a amordaçou. - Daqui ela não sai tão cedo.
- Está limpo - disse o primeiro segurança. - A área toda está livre. Vamos ocupar nossas próximas posições.
O segundo automóvel parou para que Scofield e Togazzi descessem, enfurnando-se na mata que flanqueava a estrada com a agilidade que suas pernas idosas lhes permitiam. O carro continuou ladeira abaixo com
o motor desligado, penetrando no gramado à esquerda da grande mansão, sem ser visto por ninguém no iate. O terceiro e o quarto seguranças desceram do carro, fecharam as portas silenciosamente e avançaram
rastejando pela parede externa da casa até atingirem o grande espaço aberto do gramado do lado sul. Qualquer um que tentasse atravessá-lo seria imediatamente visto por quem estivesse no convés do iate.
Isso não podia ser permitido, pois os alvos estavam a bordo do iate e todos os meios de evasão tinham que ser bloqueados. Era por esse motivo que os homens de Togazzi no primeiro automóvel tinham se posicionado
do lado direito da mansão, escondidos a menos de três metros da alameda de tijolos. O ataque seria desfechado num movimento de pinça, cobrindo todos os flancos.
A razão para essa estratégia específica era dupla. A primeira e vital consideração era o número de pessoas na defesa. Era impossível determinar quantas poderiam ser. A segunda era a possibilidade óbvia
de, caso a unidade de Togazzi fosse detectada, o cardeal Paravacini destruir imediatamente o material remetido por Barcelona, certamente queimando-o. Por conseguinte, os componentes-chave eram impedir
a fuga de todos que se encontravam na propriedade e, igualmente importante, assegurar o elemento surpresa.
Para garantir esse último componente, Scofield e Don Silvio trocaram suas roupas perto da margem do lago. Por baixo delas usavam trajes de banho e carregavam pequenas bolsas à prova d’água contendo suas
armas. Levando em consideração a idade de ambos, cada um dispunha de um tubo snorkel, a fim de permitir nadar debaixo d’água sem precisar emergir para respirar. Seu objetivo era o estibordo do iate, onde
havia uma escada de metal cromado para os nadadores que quisessem subir para o convés inferior. Repetindo papéis que tinham desempenhado há muitos anos na Itália, na Sicília e no mar Negro, os dois ex-agentes
secretos entraram nas águas do lago Como.
Irritados com o fôlego curto mas ainda passável, Brandon e Togazzi alcançaram a escada. O Don começou a tossir baixinho e por isso Scofield enfiou-lhe a cabeça debaixo d’água. Togazzi voltou à tona furioso,
mas quando Bray pôs enfaticamente o dedo direito nos lábios, o italiano compreendeu. O momento não permitia ruídos, especialmente ruídos humanos. Scofield abriu sua bolsa impermeável e retirou sua arma.
Togazzi fez o mesmo.
Acenaram com a cabeça um para o outro quando Brandon começou a galgar a escada cromada. A certa altura, o idoso Don não conseguiu segurar a tosse resultante da água que entrara no seu tubo de respiração.
Vozes ansiosas no convés irromperam em italiano. - O que foi isso?
- Tem alguém na escada. Vou dar uma olhada...
- Não perca um minuto. Pegue isso aqui e corra! Vá até a casa e grite pelo Bruno.
Scofield ergueu o corpo da escada, engatinhando pela amurada com sua arma apontada para o cardeal Paravacini. - Eu não me mexeria se fosse o senhor, padre. Posso achar que a sua Igreja ficaria melhor sem
a sua presença. - Bray parou e gritou: Detenham-no, ele está se encaminhando para o atalho! Tirem o pacote das mãos dele!
Togazzi surgiu em cena, transpondo com dificuldade a amurada e blasfemando em italiano contra a devastação do tempo. Traduzindo para o inglês, lamentou-se: - O que aconteceu com nossos corpos? Eles eram
tão mais gentis conosco antigamente.
- Don Silvio - exclamou o cardeal. - O senhor está do lado desse porco americano?
- Estou, sim, Sua Eminência - respondeu Togazzi completamente. Há muitos anos, desde quando o senhor profanava nossa Igreja manipulando o poder no Vaticano.
À distância, no gramado a bombordo do iate, homens corriam no meio de estátuas, no encalço do padre ou falso padre que carregava o pacote de Barcelona. Súbito, ouviram-se disparos de armas de fogo, as
balas ricocheteando na estátua de mármore. Scofield correu para o outro lado do convés. - Pelo amor de Deus, não matem ele - bradou Bray. Houve um grito e o tiroteio cessou abruptamente. Uma voz ao longe
gritou de volta em italiano.
- Agora é tarde, signore. Ele tinha uma arma e estava atirando contra nós, ferindo Paolo gravemente na perna. De repente, ele ficou exposto e atiramos nele.
- Tragam o pacote para cá e levem o Paolo a um médico! Depressa! - Brandon voltou-se para o silencioso cardeal, agora sob a mira de Togazzi. - Nada me daria mais prazer do que entregá-lo ao papa pessoalmente.
Infelizmente, há outros assuntos mais prementes.
- Eu farei as honras, amigo velho - disse Don Silvio. - Uma bênção do Sumo Pontífice também não me faria nada mal!
Um segurança subiu apressado a prancha de embarque e desembarque, com o pacote de Barcelona na mão. Entregou-o a Scofield, explicando brevemente que estava correndo de volta para levar o colega ferido
a um "médico particular" das relações pessoais do seu Don. Brandon rasgou o grosso envelope pardo acolchoado e retirou uma parte das páginas no seu interior. Sentou-se numa cadeira de convés e começou
a ler, cônscio de que o cardeal Paravacini não tirava os olhos de cima dele.
Após vários minutos folheando as páginas, Scofield pôs o material no colo e olhou para o cardeal. - Uma mudança e tanto, não é, padre?
- Não sei do que está falando - respondeu o Paravacini. Nunca leio o que está dentro de envelopes que não me dizem respeito. Como deve ter notado, o envelope é endereçado a um Del Monte, e esse não é o
meu nome. A correspondência, como o confessionário, é confidencial.
- Não me diga! Então por que o envelope estava aberto?
- Uma gentileza do meu jovem auxiliar que você acaba de assassinar. Rezarei pela alma dele, e até mesmo pelas almas do que o mataram, como Jesus orou pelos seus crucificadores romanos.
- Isso é muito nobre, mas por que o jovem auxiliar trouxe esse material para o senhor?
- Teria que perguntar a ele. Infelizmente isso não é mais possível. Presumo que tenha sido erroneamente remetido para minha caixa-postal em Bellagio, que utilizo quando estou ausente de Roma.
- Del Monte não se parece nem remotamente com Paravacini.
- Com a pressa, enganos são cometidos, especialmente quando um jovem tenta zelosamente servir seu superior muito mais velho.
- Então ele era padre?
- Não, não era. Era um jovem promissor que infelizmente desviou-se de sua fé e também da lei...
- Sua Eminência - Togazzi interrompeu bruscamente - está perdendo seu fôlego e suas mentiras só contribuem para aumentar seus pecados. Tirei fotografias em Milão e do seu primeiro mensageiro ao terceiro
portador em Bellagio, onde não houve parada numa caixa-postal. Antes de mudarmos de direção, fotografei seu empregado. Ele estava usando um colarinho de padre e enveredando pela estrada dos Paravacini.
- Isso me deixa chocado, Don Silvio. São coisas que ignoro completamente, e as únicas respostas estão com um homem morto, assassinado por este americano louco.
- Não perca seu tempo, tampouco, amigo velho - disse Togazzi, dirigindo-se a Brandon. - Temos meios de lidar com monumentais ipocriti como este. Qual foi a mudança que você mencionou ainda há pouco?
- As notícias não são boas - respondeu Scofield, apanhando os papéis no seu colo. - Eles alteraram a programação, isto é, ele, Matareisen, mudou a data... Ouça isso aqui: "Anunciarei uma nova data muito
breve, possivelmente de outro local. Não consigo contactar nosso homem em Londres e isso me preocupa. Terá sido capturado pelo MI-5? Se isso aconteceu, terá cedido à pressão? A mulher dele diz que não
sabe de nada, mas também ela nunca soube. É tudo muito preocupante. Nestas páginas vocês encontrarão as transmissões em ondas curtas codificadas para os diferentes setores à medida que eles forem acionados.
São apenas áreas abrangentes, vocês deverão guardar as especificações de memória. Usem o acesso de seus computadores para a decodificação. Se eu resolver me realocar, será numa de muitas possibilidades,
todas convenientemente equipadas e num lugar onde ninguém me encontrará. Mantenham-se nos seus postos. E chegado o grande momento. O mundo vai mudar." Este é o final da mensagem, sem assinatura, naturalmente,
mas é o Matareisen sem a menor dúvida. A grande ironia é que Guiderone, seu próprio homem, se não seu superior, matou o espião deles em Londres, o homem que ele não consegue achar. O único aspecto mais
curioso é o trabalho que fiz com o Leonard Fredericks, separando os dois filhos-da-puta... Sei que o senhor não ficará ofendido com minha linguagem obscena, padre. Simbolicamente, o senhor fez a mesma
coisa com a nossa Igreja.
- Não estou apenas ofendido - disse o bem-apessoado e bem falante cardeal, com a voz gelada - sinto-me ultrajado. Não só sou um príncipe dessa santa Igreja, como dediquei minha vida a ela. Associar-me
a uma insana conspiração econômica global é um disparate total, e o Santo Padre certamente compreenderá. Essa é mais uma diatribe anticatólica das muitas que sofremos constantemente.
- Oh, cardeal, o senhor acabou de pisar na bola. Quem foi que falou em economia global?
A cabeça de Paravacini voltou-se bruscamente para Bray, seus olhos saltavam das órbitas. Estava encurralado e sabia disso.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Então só me resta fazer um estrago na sua cara até que tenha. - Scofield pôs os papéis e o envelope no chão do tombadilho, levantou-se da cadeira e aproximou-se ameaçadoramente do Príncipe da Igreja.
- Não há necessidade de ferir suas frágeis mãos, amigo velho - atalhou Togazzi, afastando-se da amurada do iate. - Dei a câmera a um de meus homens para documentar a ocorrência. Estou certo de que ele
tirará uma foto do corpo no gramado e, juntamente com as outras fotografias, a sequência não deixará dúvidas. Ele vai trazer a câmera para mim e você segurará o envelope de Barcelona na frente do nosso
cardeal errante. A prova será irrefutável.
- Certamente convincente - concordou Brandon.
- Também tenho amigos de amigos da cúria. Esse traidor de sua fé será uma desgraça para a Igreja, um pária no seu próprio mundo.
De repente e inesperadamente, o cardeal Paravacini deu um pulo de sua cadeira, tomando a arma da mão envelhecida de Togazzi. Antes que Scofield pudesse reagir, o padre virou o cano da arma contra sua própria
têmpora. Apertou o gatilho, destroçando seu crânio em mil fragmentos.
- Morte prime di disonore - disse Don Silvio, olhando para o corpo mutilado. - É uma expressão italiana que remonta ao século dezesseis.
- "A morte antes que a desonra" - disse Brandon serenamente. - O comércio de tatuagens tornou a expressão banal, mas é realmente disso que se trata. Ele teve poder, riqueza e enorme influência dentro e
fora da Igreja. Despojado de tudo isso, não restava nada.
- Rispetto - disse Togazzi. - Ele era respeitado e sem respeito ele perdera sua hombridade. Acima de tudo, um macho italiano, especialmente um padre, tem que manter sua hombridade.
- E isso é tudo quanto ao ramo italiano dos Matarese. Entretanto, talvez devêssemos mandar esse material para os magos da informática em Amsterdã. Quem sabe eles não descobrem mais alguma coisa? É tudo
do que dispomos. - O telefone de bordo tocou, surpreendendo os dois homens. Tocou cinco vezes, ecoando por todo o iate antes que Brandon o achasse. Buon giorno - ele disse, pronto a passar o fone a Togazzi
caso o italiano fosse falado muito rapidamente. Em vez disso, as palavras foram pronunciadas num inglês preciso, embora com sotaque. A voz era de mulher.
- Você derramou o sangue de um Paravacini, um homem de grande honra. Você pagará por isso.
No interior da mansão, de pé ao lado de uma janela da biblioteca, a arrumadeira desligou o telefone e colocou o binóculo em cima de uma mesa próxima. Lágrimas corriam-lhe pelas faces. Seu amante se fora
e com ele um estilo de vida que jamais teria novamente.
TRINTA E QUATRO
- Vocês três têm que voltar para Londres - disse Frank Shields no telefone para Pryce na Filadélfia. - Imediatamente.
- E o Wahlburg?
- Estamos cuidando disso. Nosso pessoal já esteve lá, removeu o corpo e todos os indícios de suicídio. Nada chegará ao conhecimento da imprensa, ele simplesmente desapareceu.
- Ninguém mais mofava lá?
- Somente um mordomo, valet de chambre, ou seja lá como vocês o chamam, que tinha um quarto em frente aos aposentos de Wahlburg do outro lado do corredor. Ele era enfermeiro diplomado e Wahlburg era um
tanto hipocondríaco. Sua mulher tinha morrido há muitos anos, e suas duas filhas são casadas e moram em Los Angeles e San Antonio. Temos um campo livre; a secretária eletrônica recebe mensagens interurbanas.
- O que é que você acha que acontecerá?
- Acho, e espero, que seus três amigos Matarese, Fowler, Whitehead e Nichols ficarão enlouquecidos quando não conseguirem entrar em contato com ele. E se você deu conta do recado em Nova York e Palm Beach,
eles vão imaginar o pior e começarão a procurar um santuário. E aí que os erros são cometidos.
- Dei conta do meu recado, Frank. E agora, que história é essa sobre Londres?
- Prepare-se para ouvir o pior. É melhor sentar-se. Matareisen fugiu do MI-5.
- Impossível! - trovejou Pryce.
- Ao contrário, muito possível - respondeu Shields. - Não entrarei em detalhes, o fato é que ele se mandou e presume-se que esteja a caminho de algum lugar na Europa.
- Santo Deus!
- E tem mais. Scofield e seu amigo Togazzi encontraram a conexão Matarese em Milão. Era o cardeal Paravacini de quem você falou no seu relatório.
- Não me surpreende nem um pouco - interrompeu Cameron. - Vocês prenderam o homem?
- Não, ele se matou, deu um tiro na cabeça quando eles denunciaram o seu envolvimento.
- Deram uma arma a ele?
- Ele a arrebatou da mão de Togazzi. Tudo girou em torno de um pacote que o cardeal recebeu através de diversos mensageiros enviado pelo Matareisen antes de vocês o terem pegado. Está em linguagem de computador
e por isso foi remetido para o Keizersgracht. Essencialmente, o esquema dos Matarese foi modificado.
- Modificado - berrou Pryce. - Quando faltam tão poucos dias!
- É por isso que o Scofield quer você de volta. Ele não se digna a dizer a mim ou ao Geoffrey Waters por que motivo. Limita-se a dizer que é um trabalho para vocês dois.
- O filho-da-puta e suas evasivas!
- Vocês estão com passagens reservadas no voo do Concorde das nove e quarenta e cinco da manhã partindo do Aeroporto Kennedy. O piloto, comandante Terence Henderson, é um velho amigo do MI-5. Ele se encontrará
com vocês na sala de espera e os escoltará até o avião.
- Isso não nos dá muito tempo.
- Um helicóptero os apanhará num campo a oeste da área de estacionamento do hotel e os levará para o aeroporto. O helicóptero chegará dentro de cinquenta minutos aproximadamente.
- A diferença de fuso horário vai arrasar com a gente.
- Isso é apenas o começo. Um avião estará à espera de vocês em Heathrow. O tenente Considine os levará diretamente a Milão, ao encontro de Brandon e Togazzi.
- Como acredito já ter dito uma vez, você é um amor, Olhos-Apertados.
- Nunca pretendi ser outra coisa, Cam. Comece a arrumar as malas.
O voo para Londres foi sem novidade, o comandante Henderson um perfeito oficial britânico, tanto militar quanto civilmente, sua fala modulada a essência da autoridade moderada.
- Quando aterrissarmos - disse Henderson - por favor fiquem a bordo até que todos os outros tenham desembarcado. Escoltarei vocês para que não haja problemas de alfândega.
- Puxa, comandante, o senhor entende mesmo desse negócio! - disse Luther, sentado na poltrona do corredor, ao lado de Pryce e Montrose. - Será um James Bond disfarçado, ou coisa parecida?
- Não faço a menor ideia do que está falando, senhor. Henderson sorriu, um sorriso autêntico, com um toque de humor. Ele se inclinou para trás e sussurrou. - Mas não me provoque, ou sou capaz de puxar
uma alavanca e ejetá-lo do seu assento.
- Ei, amigo, também sou da confraria dos aviadores...
- Estou sabendo, comandante...
- Todo mundo faz questão de me promover.
- Por que não vem aqui para a cabine de comando? Talvez aprecie,
- Talvez aceite o seu convite... para admirar sua habilidade.
- Pois então venha, colega. - Luther levantou-se e foi ter com o comandante na cabine.
Leslie virou-se para Pryce. - Quero ir com você a Milão.
- Dessa vez, não - disse Cameron. - Liguei para o Geof Waters da sala de estar do Concorde, e ele me disse que o Scofield está mandando Antonia de volta a Londres.
- Eu não sou a Antonia - interrompeu a tenente-coronel Montrose firmemente.
- Calma, coronel, não terminei. O Geof também disse que Bray requisitou um equipamento esquisito - "positivamente insano" foi a maneira como Waters o descreveu - para ser despachado para um destino que
ele revelaria mais tarde.
- E o Geoffrey concordou?
- Ele disse uma coisa engraçada. Disse que quando Beowulf Agate age desse modo, geralmente está aprontando alguma coisa.
- Então acho que ele tem mais é que compartilhá-la.
- Disse praticamente a mesma coisa; ele deveria pelo menos apresentar uma justificativa. Mas Geof não concordou. Ele quer dar a Scofield um ou dois dias para confirmar o que ele está bolando.
- Não deveria ser ao contrário, confirmar primeiro?
- Talvez não. O esquema dos Matarese foi alterado, portanto é possível que tenhamos uma semana ou menos. Bray deve estar muito seguro de si mesmo, e se estiver certo, temos que agir rápido.
- Não me parece ser uma boa estratégia de campo.
- Você se refere a estratégia militar, acontece que não somos militares e os campos são diferentes.
- Mesmo assim gostaria de ir com você.
- Só depois que eu tiver descoberto o que o Scofield tem em mente. Você tem um filho, eu não.
As oito horas seguintes foram de atividade ininterrupta. O comandante Henderson bateu seu próprio recorde, atravessando o Atlântico em duas horas e cinquenta e um minutos. No aeroporto de Heathrow, depois
de serem escoltados do avião pelo comandante, foram recebidos por Sir Geoffrey Waters, que trazia duas malas de mão, uma para Cam e a outra para Luther.
- Como obtivemos as medidas do uniforme do tenente com a Marinha dos Estados Unidos, e tínhamos o número das roupas de Cameron, que obtivemos no último hotel em que ele esteve hospedado, encomendamos um
novo enxoval para cada um de vocês. Estão nestas malas.
- Por que você fez isso? - perguntou Pryce.
- Somente uma precaução, meu caro. Não há etiquetas, tecidos exclusivos usados por confecções, em outras palavras, não há como rastrear suas identidades através das compras.
- Caramba! - exclamou Luther. - O que será que esse cara está aprontando pra nós?
- Ele não disse, tenente. Mas conheço o homem que chamamos de Beowulf Agate de longa data, em grande parte à distância, admito. Contudo, conheço suas, digamos, maquinações arrojadas. Por conseguinte, temos
que proteger o Serviço.
- E que tal nos proteger? - indagou Considine.
- Se depender de suas roupas, meu jovem, você estará mais do que protegido.
- Muito obrigado! Sou um piloto super qualificado. Será que a NASA não poderia me mandar para a Lua ou Marte?
- Lembre-se de Pensacola, Luther - disse Pryce. - Há uma comandante à sua espera, comandante.
- Não sei não, mas se depender de nossas roupas...
- Você ainda tem umas duas horas de luz, tenente - observou Waters e o seu avião de carga Bristol está numa pista aqui perto. Um copiloto, um de nossos colegas que sabe apenas que o acompanhará a Milão,
tem o plano de voo aprovado. Acho bom que você e Cameron comecem a se mexer.
- Por que não posso voar solo?
- Por duas razões. Primeira, esse não é um pequeno aeroporto rural ou um estrangeiro com quem tenhamos negociado, mas o Heathrow, onde as normas são extraordinariamente rigorosas. Desobedecê-las seria
chamar a atenção para o seu voo, o que não queremos que aconteça. Segunda, você acabou de atravessar cinco fusos horários; isso tem um efeito sobre o seu organismo. A cautela recomenda poupá-lo.
- Diga isso a uns dois mil pilotos de combate da Segunda Guerra Mundial à Guerra do Golfo.
- Bem, isso seria um tanto difícil, não é?
- Yassuh, massa.
Aterrissaram às primeiras horas da noite e Cameron foi levado ao carro de Togazzi, enquanto Luther foi encaminhado a um hotel previamente selecionado, e o copiloto do MI-5 tomou as necessárias providências
no terminal para voar de volta a Londres.
Dentro do veículo conhecido de miserável aparência externa e luxuoso interior, Pryce viu-se tomado por dois sentimentos. O primeiro era a imensa falta que Leslie lhe fazia, lamentava que ela não estivesse
ao seu lado, sua mente ágil e suas conversas estimulantes lhe faziam muita falta... e, naturalmente, seu apetite sexual. Tinha que enfrentar a realidade: ele, Cameron Pryce, celibatário convicto e, à exceção
de seu trabalho, avesso a compromissos longos e às responsabilidades a eles inerentes, estava irremediavelmente apaixonado. Isso quase lhe acontecera duas ou três vezes desde os tempos da universidade,
mas seu envolvimento com a vida acadêmica e mais tarde seu fascínio pelo extenso e intenso treinamento na Agência afastaram a possibilidade de relacionamentos mais íntimos. Esses obstáculos tinham sido
eliminados; o fascínio perdurava e sabia que em cada operação poderia aprender mais alguma coisa, mas agora dispunha de espaço e tempo, tanto quanto jamais poderia haver. E tinha encontrado alguém com
quem desejava compartilhar aqueles momentos para o resto de sua vida. Não era nada mais do que isso, e ele tinha plena consciência. Ligações temporárias eram simples e prazerosas, já o amor era um mundo
mais complicado de ânsia, exuberância e impaciência.
O outro sentimento de Cameron tinha a ver com suas reflexões sobre Scofield. Ele, Beowulf Agate, que sempre fora tão expansivo e espontâneo, por que estaria agindo de maneira tão evasiva e reticente? O
momento não comportava grandiloquências e certamente Brandon logo cairia na real. Mas como explicar seu estranho comportamento? Ele ficaria sabendo em menos de uma hora.
Chegaram ao santuário de madeira de Togazzi escondido na floresta acima de Bellagio, e Pryce foi conduzido ao balcão que lhe era familiar com a fileira de telescópios apontados para o lago Como. Os cumprimentos
foram breves, pois Scofield estava ansioso para contar sua história, ansioso e sob grande tensão. Descreveu o estranho telefonema para o iate e a mulher que dissera que eles iriam pagar caro pela morte
do cardeal Paravacini.
- A ligação só poderia ter vindo da casa. Por isso, enquanto Togazzi tratava de se desfazer do corpo e limpar o local, corri para a mansão e comecei a dar uma busca. Não havia ninguém, pelo menos não encontrei
vivalma, mas achei um binóculo perto de um telefone na biblioteca. O ângulo de visão era perfeito, direto para o iate. Quem quer que tivesse sido tinha telefonado de lá.
- Mas você não conseguiu achá-la?
- Não, mas aquela biblioteca despertou minha curiosidade. Era diferente de qualquer outra que já tinha visto. Havia, naturalmente, os habituais livros com encadernações de couro, o que provavelmente significava
que nunca tinham sido lidos, e centenas de livros comuns, mas havia mais alguma coisa. Todo um setor do que parecia ser um arquivo. Álbuns de recortes enormes, muitos deixando entrever folhas de papel
amareladas, amarrados com grossos cordões. Retirei diversos da estante e comecei a examiná-los. Foi quando chamei um dos seguranças e disse-lhe para ir até o iate e explicar a Don Silvio que iria me demorar
um pouco.
- O que foi que você encontrou?
- Nada mais nada menos do que uma história ilustrada da família Matarese remontando à virada do século. Fotografias, daguerreótipos, velhos recortes de jornais e mapas com anotações específicas. Poucas
palavras, nenhum texto mais longo, somente legendas em italiano, algumas curtas, outras mais extensas.
- Traduzi-as para ele - interrompeu Togazzi. - Ele fala alguma coisa do nosso idioma mas não é capaz de ler patavina.
- Falo francês melhor do que você!
- Uma língua decadente.
- Descobriu alguma novidade? - perguntou Pryce, exasperado.
- Não, algo muito, muito velho, que me fez ficar pensando. Estamos na direção errada, tentando prever as crises, quando e onde elas ocorrerão e como serão.
- Como poderemos abortá-las se não as procurarmos?
- A questão é exatamente esta, nunca as encontraremos. Somente um homem sabe, o que dá as ordens, Matareisen. Ele as enterrou tão fundo que desconfio que seja a única pessoa que possui a informação de
que necessitamos desesperadamente.
- E então?
- Tenho um palpite tão forte que está me roendo por dentro.
- O que quer dizer?
- Veja bem, um dos grandes álbuns de recortes era dedicado inteiramente às ruínas do velho castelo ou fortaleza dos Matarese, dos tempos do barão de Matarese. Havia dezenas de fotografias de todos os ângulos
do interior e do terreno em volta. Pelo menos umas trinta páginas, e as fotos não eram velhas, isto é, não estavam granuladas ou amareladas, podiam perfeitamente ter sido tiradas ontem. Na última página,
havia uma pequena anotação manuscrita: Negatives per J.V.M.
- Negativos para J.V.M. - disse Cameron. - Jan van de Meer Matareisen, o que dá as ordens.
- Exatamente. E por que Matareisen havia de querer um registro fotográfico completo do velho lugar - porque não passavam de ruínas.
- A resposta é óbvia - Togazzi interrompeu novamente. Para reconstruir a propriedade.
- Foi o que imaginei - disse Scofield. - A gênese dos Matarese, a sede original do poder. Esse papo de psicanálise não me convence muito, mas sabemos que Matareisen é um fanático irrecuperável mas não
é um débil mental. Para onde um homem como ele iria se não para suas raízes às vésperas de deflagrar uma catástrofe mundial?
- Mas você não sabe disso, Bray.
- Saberemos amanhã.
- O quê?
- Chamei o Geof em Londres por uma das linhas privativas de Silvio e obtive o nome e o número de código do hotel de Considine. Ele levantará voo de Milão às primeiras horas do dia e voará para a pista
de pouso não-mapeada perto do lago Maggiore, ele disse que a conhece porque pegou você e Leslie lá.
- É verdade.
- Os tanques dele estarão cheios e rumaremos para a costa sudoeste da Córsega. São aproximadamente duzentas e quarenta milhas aéreas, quatrocentos e oitenta contando com a volta, o que não é problema para
o avião dele. Voaremos abaixo de Solenzara para Porto Vecchio, ao norte de Bonifácio. Usando as coordenadas dos mapas dos Paravacini, sobrevoaremos as ruínas da propriedade Matarese.
- Você acha que é uma boa? - perguntou Pryce.
- A doze mil pés é. Junto com o equipamento que solicitei há uma câmera fotográfica com uma objetiva para grandes altitudes que penetra na camada de nuvens. Com algumas tomadas, poderemos determinar se
há alguma atividade em terra. Se houver, deslancharemos a Fase 2.
- O que é isso?
- Existe um campo de pouso em Senetosa, cerca de vinte minutos da velha fortaleza Matarese. Desembarcaremos, nos aproximaremos e veremos o que poderemos apurar.
- Santo Deus, por que não teremos reforços? Por que tanto sigilo, que quase chega a ser um blecaute?
- Porque não confio em ninguém, há muita gente infiltrada em nossas bases. Se estiver certo, Matareisen estará lá em toda sua glória simulada. Mas se ele tiver a menor suspeita de que estamos concentrados
em Porto Vecchio, ou cairá fora de lá rapidamente ou mobilizará poder de fogo suficiente para dizimar um exército inteiro.
- Vejamos outra possibilidade, Bray - disse Cameron incisivamente. - Suponhamos que você esteja errado e ele não esteja lá?
- Admitindo que eu esteja errado, Londres está trabalhando como o diabo, Frank está de olho, o Keizersgracht está se virando, estão todos dando duro. Não estamos nisso sozinhos, pelo amor de Deus. Tudo
o que teremos perdido será o nosso tempo.
- Suponhamos que ele esteja lá e tenha mobilizado seus homens, seu poder de fogo?
- Calma lá, meu jovem, não sou marinheiro de primeira viagem. Já estava nessa quando você ainda engatinhava.
- Isso não é uma resposta, Brandon.
- Tá certo, está no equipamento que Geof providenciou. Temos um link direto com Londres via satélite. Se o que você supõe corresponder à realidade, há uma unidade de militares franceses no aeroporto de
Marselha. Num avião a jato poderão estar em Senestosa em questão de segundos.
- Quer dizer, então, que o seu sigilo não é exatamente total...
- Claro que não é. Esses caras não têm a menor noção do que se trata, somente que talvez haja uma incursão numa ilha do Mediterrâneo. Assim que eu der o sinal ao Geof, ele o retransmitirá ao Deuxième Bureau
e o jato decolará para Senetosa. Irei ao encontro da unidade na estrada e darei as ordens. Se chegar a convocá-los.
- Isso pressupõe que você tenha feito algum reconhecimento do terreno.
- Admito que teremos que fazer. Essa parte também está prevista no equipamento. Conjuntos de camuflagem, binóculos, foices, facões, pistolas com silenciadores, botas, cortadores de arame, latas de gás,
a parafernália de sempre.
- A parafernália de sempre?
TRINTA E CINCO
Sobrevoaram a costa corsa a oito mil pés até atingirem Solenzara, onde Luther subiu para doze mil. A sofisticada câmera fotográfica estava a postos, presa no piso da fuselagem, na parte aberta do Bristol
projetado para múltiplas ações.
- Atingiremos as coordenadas do mapa dentro de pouco mais de dois minutos - disse Considine pelo alto-falante. - Estão prontos?
- Tudo pronto - respondeu Scofield, debruçado sobre a câmera cujo visor de dez polegadas ampliava mil vezes o terreno enquanto eram batidas chapas a cada meio segundo.
Dois minutos depois Luther falou novamente. - Preparem-se e chequem o foco. Caprichem.
- Pelo visto, você já fez isso antes, tenente - disse Pryce pelo seu microfone de garganta.
- Isso mesmo, espião. Participei de missões de reconhecimento no Iraque. Muito relaxantes, exceto quando dava a louca nos caras e eles começavam a disparar mísseis pra tudo quanto era lado.
- Ação - comunicou Brandon, olhando pelo visor. - Veja só isso aqui, Cam! Você diria que aquelas árvores estão apenas a algumas centenas de metros, não a mais de três mil metros.
- Aproximando do alvo - exclamou Considine. - Boa sorte, artilheiro.
- Lá está ela! - gritou Scofield. - Só que não são ruínas. Togazzi e eu estávamos certos, a propriedade foi totalmente reconstruída! Volte e faça outra passagem, Luther.
- Mergulhando - disse o piloto enquanto o avião dava uma queda de asa para a esquerda.
A segunda, terceira e quarta passagens revelaram um total de cinco figuras em diferentes momentos nos terrenos da herdade Matarese. Duas pessoas pareciam ser mulheres; um dos homens aparentemente era um
jardineiro cercado de flores, e dois outros estavam subindo num automóvel.
- Pra mim, isso basta - disse Beowulf Agate. - Vamos passar logo para a Fase 2. Senetosa, Luther! Você é capaz de achá-la?
- Localizei-a antes de levantarmos voo, espião mais velho.
No campo de pouso de Senetosa, Scofield e Pryce abriram o engradado com os suprimentos solicitados, dividindo o equipamento entre eles. Bray jogou para Considine um conjunto completo de camuflagem com
uma cartucheira e pistola munida de silenciador. - Pra que diabo é isso? - perguntou o piloto. - Já tenho roupas novas sem etiquetas.
- É só para o caso de precisarmos de ajuda, em circunstâncias extremas.
- Se não for no ar, não gosto de circunstâncias extremas. Só brigo no céu, cara.
- Duvido que venha a ser necessário. Contudo, há uma possibilidade de recebermos o reforço de um pequeno contingente de militares franceses.
- Militares franceses! - explodiu Luther. - Vocês estão tripudiando com o babaca do crioulo aqui.
- Não, não, tenente, você compreendeu mal. Só há uma estrada daqui para Porto Vecchio e se eles chegarem a ser requisitados, irei ao encontro deles no meio do caminho e lhes darei as ordens. É que eles
se sentiriam mais confiantes se você estivesse usando uniforme de combate.
- Eu não me sinto mais confiante.
- Pensacola, Luther, Pensacola - disse Cam persuasivamente.
- Não sei se isso é uma promessa ou um engodo.
- Ele é um jovem muito esperto - observou Scofield. - Vamos logo, rapazes, tirem a roupa e coloquem os uniformes.
Brandon e Pryce, em uniforme completo de guerrilha, e Considine, pouco à vontade nos seus paramentos camuflados, estavam postados ao lado do avião quando o controlador da pequena torre de tráfego se aproximou
e se dirigiu a eles num inglês estropiado.
- Sejam bem-vindos a Senetosa, signori, embora nunca os tenha visto. Podem proceder com sua operação. Nosso pessoal cobrirá seu avião com redes.
- Isso é necessário? - perguntou Luther.
- Ordens de Londres. Prossigam, piacere, a pista ficará interditada até recebermos novas instruções.
- Tudo bem - disse Scofield. - Não se afaste do seu rádio, tenente. Manteremos contato.
- Faça isso.
Bray e Cameron enveredaram pela estrada do campo de pouso que se estendia no sopé das colinas. A manhã já ia alta e eles se mantiveram na beira do leito tosco da estrada, prontos para correr para o mato
ao primeiro som ou vista de gente ou veículos. Foi preciso fazer isso duas vezes; a primeira por causa de um velho Renault cinzento que surgiu ao longe, avançando em direção a eles. Espiando por trás das
árvores, viram que era ocupado por um casal de seus trinta anos, obviamente no meio de uma acalorada discussão. A segunda foi devido ao som de vozes atrás deles. Assustados, correram para se esconder.
Para alívio geral, as vozes eram de quatro adolescentes barulhentos fazendo uma caminhada.
Uma vez perdidos de vista os adolescentes, Scofield e Pryce retomaram suas posições à margem da estrada, acelerando seus passos. Minutos depois, atingiram um trecho da estrada em acentuado declive; do
outro lado, no alto de uma colina, erguia-se a grande casa restaurada do barão de Matarese.
- Daqui pra frente agiremos separados, de acordo? - disse Beowulf Agate serenamente.
- Me parece melhor assim - disse Cameron. - Vou pelo flanco direito e você investe pelo esquerdo.
- Os dois pelo mato.
- É claro. Não há de ser pela estrada.
- Vamos em frente. Checaremos os rádios dentro de cinco minutos.
Separaram-se. Pryce atravessou a estrada e enfurnou-se na floresta de Porto Vecchio. Scofield, por sua vez, desapareceu na mata à esquerda. Ambos acharam a encosta íngreme, parecendo uma ravina, quase
impenetrável - árvores e cipós emaranhados, e o terreno mole das chuvas da região. A penosa caminhada foi igualada, se não suplantada, pelas dificuldades da subida da colina subsequente, também bastante
íngreme, do pequeno vale. Checaram os rádios, mantendo os dois em frequências abertas.
- Cam - chegou a voz sussurrada de Brandon pelo aparelho de Pryce.
- Sim?
- Esteja preparado. Se for como aqui do meu lado, você vai topar com uma cerca de arame farpado de quase três metros de altura.
- Acho que a estou vendo - disse Pryce. - Lá na frente há um brilho cambiante, como se fosse o reflexo de raios solares numa superfície metálica.
- É isso. A mesma coisa aqui do meu lado.
- Francamente, e eu que cheguei a dar risada quando você falou em cortadores de arame. Por acaso você é vidente?
- É claro que não. Pelos mapas dos Paravacini sabia que o lugar era cercado pela mata. Isso eliminava a hipótese de cercas eletrificadas ou de alarmes paramétricos; pequenos animais e pássaros os disparariam
a cada dois ou três segundos. Ergo, a única alternativa seria o arame farpado.
- Está se vendo que você estudou latim em Harvard.
- Ingrato. Lembre-se, comece por baixo, cortando em círculos até fazer uma abertura que lhe permita passar.
- Certo, mamãe.
Dentro dos limites da propriedade dos Matarese, e mantendo-se em contato pelo rádio, os dois invasores combinaram se encontrar no flanco oeste da floresta, do lado de Cameron. Rastejando no meio da folhagem,
o gramado bem-cuidado da mansão poucos metros adiante, Scofield emergiu. Pryce, também rastejando, foi ao seu encontro.
- Esse sol italiano do meio-dia é quente - sussurrou Brandon.
- Pare - ordenou Cameron em voz baixa. - Olhe!
Um pouco além da profusão de galhos de árvores retorcidos e entrelaçados, na entrada de carros circular que passava pela grande porta de bronze da frente, surgiu um homem vestido com roupas informais.
Imediatamente, ele colocou a mão no bolso e retirou um maço de cigarros. Tirou de outro bolso um isqueiro e, como um fumante inveterado privado momentaneamente de seu hábito, acendeu o cigarro, dando uma
longa tragada. Quinze segundos depois, apareceu uma empregada uniformizada que foi lhe fazer companhia. Ela, também, retirou um maço de cigarros do bolso do seu avental rendado; mais do que depressa ele
o acendeu, enquanto apalpava-lhe os seios com a mão direita. Ela deu uma risadinha e esticou a mão, apertando-lhe genitália.
- Pequenas sacanagens chez Matarese - murmurou Pryce.
- Mais precisamente, eles tiveram que sair para poder fumar.
- Não estou entendendo.
- A pesquisa de Geof sobre o Matareisen revelou que ele é um antitabagista radical, sua intransigência chegando a assumir sintomas patológicos. Você esteve no Keizersgracht e garanto que nunca viu um cinzeiro.
Cachimbos, charutos e cigarros são expressamente proibidos.
- Para mim, ele é pura e simplesmente um caso patológico.
- Nesse particular, pelo menos, ele tem um motivo. Um médico em Amsterdã, um especialista em doenças pulmonares, tratou-o de problemas respiratórios... Ele está lá dentro, Cam. Meu palpite estava certo.
- É melhor confirmarmos isso primeiro antes de telefonarmos para Londres e Geof acionar Marselha.
- Se é que vamos chamar alguém.
- Bray, este não é o momento nem o lugar para atos de bravura pessoal!
- Não sou herói, detesto heróis. Eles são responsáveis pela morte de pessoas.
- Então do que é que você está falando?
- De por que estamos aqui, é disso que estou falando - respondeu Scofield, sem tirar os olhos da entrada de carros. Estamos aqui para apreender o que quer que Matareisen possua que nos dirá o que ele fez
e quem está envolvido, a fim de que possamos detê-los. Se não for muito tarde.
- Como isso exclui a participação de Geof e das unidades do Deuxième Bureau? - pressionou Cameron.
- Tenho que voltar a quase trinta anos - respondeu Brandon sussurrando, pensativo, fazendo um esforço para trazer de volta uma lembrança de um passado distante. - A mansão Appleton nas imediações de Boston.
É verdade, detonei as explosões iniciais fora dos terrenos da propriedade, mas depois de estabelecido o pandemônio e corpos começarem a cair como vaga-lumes numa chuva torrencial, foram deflagradas outras
explosões, que iniciaram o incêndio do lado de dentro. Os chefões Matarese tinham instalado dispositivos incendiários no seu santuário, garantindo a destruição de todos os seus arquivos, contratos e documentos.
A erradicação pelo fogo parece ser uma marca registrada dos Matarese.
- O incêndio no Mediterrâneo - disse Pryce, num sussurro quase imperceptível, enquanto os dois serviçais davam boas baforadas, atravessando a entrada de carros circular na direção de Bray e Cam. - O que
quererá dizer?
- Psiu! - Os dois serviçais chegaram a um pouco mais de dois metros de onde eles se encontravam, agarrando-se sofregamente como se fossem um casal de adolescentes com excesso de hormônios. Continuaram
avançando, agora praticamente tirando as roupas um do outro. - Se fosse de noite - murmurou Scofield - pegaríamos os dois e saberíamos quem está lá dentro.
- Mas como ainda não é noite, o que vamos fazer?
- Voltamos para a pista de pouso e esperamos até anoitecer. Usarei a sua saída.
- Oh, Deus.
- Você preferia ficar amoitado aqui no meio de insetos e cobras até que fique escuro?
- Vamos embora - disse Pryce.
Na pista de Senetosa, encontraram Luther na primeira "torre" de controle ao nível do solo. Ele estava cochilando numa cadeira, com o rádio encostado na sua cabeça, a estática baixa mas constante. Do outro
lado da dependência, o controlador do tráfego lia uma revista em frente ao seu equipamento.
- Luther. - Cameron sacudiu o ombro de Considine.
- Oi! - O piloto abriu os olhos assustados. - Vocês estão de volta. O que foi que aconteceu?
- Nós lhe diremos lá fora - disse Beowulf Agate. - Vamos dar uma volta.
Caminhando pela grama que margeava a pista de Senetosa, Scofield e Pryce deram o serviço a Luther, explicando-lhe o que tinham encontrado em Porto Vecchio e o que ainda não sabiam.
- Parece que vocês vão precisar de ajuda - disse Considine. Está na hora de chamar esses militares franceses...
- Não - interrompeu Brandon. - Porque não sabemos quais são as medidas de segurança de que eles dispõem quando fica escuro. Não vamos atacar à luz do dia e tampouco vamos solicitar reforço. Não por enquanto,
talvez nunca.
- Por que não?
- Porque, tenente, a visão de um jato aterrissando aqui, especialmente um jato desembarcando um esquadrão de soldados uniformizados, se espalharia como fogo na mata por toda a região. Conheço os Matarese;
eles pagam os moradores locais para obter exatamente esse tipo de informação.
- Você nunca pretendeu chamá-los, não é mesmo? - perguntou Pryce, mal conseguindo esconder sua raiva.
- Bem, Waters ficou feliz por saber que eles estavam aqui perto, e se realmente precisarmos deles, sempre posso mandar chamá-los. A noite, depois que estivermos lá dentro novamente.
- Simplesmente genial! - explodiu Cameron. - Depois de terem roubado a merda do cavalo, fechem a porra da porta da estrebaria! O que é isso? Uma operação suicida, uma incursão camicase de dois homens?
- Sem essa, meu jovem, somos melhores do que isso.
- Vocês me deixaram perdido novamente, seus sacanas - disse um Luther perplexo. - Vocês têm um pelotão especializado em operações de guerrilha à sua disposição e não querem usá-lo? Pelo amor de Deus, por
que não?
- Ele tem medo de que percamos o pote de ouro se o fizermos.
- Que pote de ouro?
- A informação de que necessitamos, e ele está provavelmente certo. Um movimento em falso e Matareisen dará ordens para destruírem os dados. Não sabemos o que poderá acontecer em seguida, onde ou quem
deslanchará os acontecimentos.
- Você não poderia ter dito melhor - observou Scofield. - E falando de truísmos, Cam e eu estamos precisando dar uma cochilada. Vamos ficar acordados a noite toda e o ritmo não tem sido fácil nos últimos
dias.
- Tudo bem - disse Pryce. - Mas onde?
- Há uma cabana no lado norte da pista usada por pilotos e tripulantes para darem suas transadinhas. O controlador disse que podemos usá-la.
- Estou tão cansado quanto o Cam, mas não vou perder de vista o avião, com suas redes e tudo mais.
- Mas você o perdeu quando cochilou na "torre" - discordou Pryce.
- É o que você pensa; não perdi, não. Pendurei uma meia dúzia de ferramentas pesadas nas redes. Se alguém tentasse levantá-las, o barulho acordaria uma família inteira de toupeiras a mais de dois metros
abaixo da terra. Sairia correndo daqui como uma bala e, não é preciso dizer, pronto para atirar.
- O garoto tem chances - disse Brandon, conduzindo-os para a cabana.
- Que diabo, onde foi que você se meteu? - berrou Jamieson Fowler no telefone.
- Estive fora da cidade - respondeu um cauteloso Stuart Nichols, advogado da corretora Swanson & Schwartz.
- Não engulo essa. De repente não consigo entrar em contato com o Whitehead ou você, e a secretária eletrônica do Wahlburg informa que ele também está fora da cidade. Que merda de "fora da cidade" é essa?
Algum lugar exclusivamente para vocês?
- Seja razoável, Jamieson. Todos nós temos nossas vidas pessoais.
- Nem parece que é você que está falando. Está acontecendo algo de podre e eu quero saber que merda que é! E não me venha com esse papo furado de que obscenidade é falta de vocabulário.
- No seu caso não adiantaria nada, e eu não diria.
- Pois bem, alguém disse. Onde com os diabos está o Wahlburg? Em Washington, pelo amor de Deus?
- Você sabe que ele mora na Filadélfia. Por que é que está mencionando então Washington?
- Vou explicar - começou Fowler, transpirando apesar do ar condicionado da suíte do seu hotel. - Ouvi um boato e é por isso que preciso, precisamos, achar o judeu!... Você sabe que tenho uma porção de
amigos em Washington, alguns, na verdade, em folhas de pagamento no exterior, e um deles me disse... me disse...
- Disse o que? - interrompeu Nichols.
- Que Ben foi visto entrando no edifício da Comissão Federal de Comércio.
- Não compreendo.
- Suponha que o judeu amarelou e resolveu proteger o rabo? Essa gente é esperta, você sabe. Ele poderia fazê-lo de muitas maneiras que não o comprometessem, insinuando que ouviu boatos, coisas desse gênero.
- Sobre nosso... empreendimento?
- Não seria sobre a Disney World, sua besta!
- Não vejo como ele poderia. Qualquer depoimento que prestasse aos advogados da Comissão, eles investigariam sua procedência, e para torná-lo convincente ele acabaria se comprometendo, mesmo que superficialmente.
- Isso é papo de advogado. Os judeus são mais malandros do que você.
- Santo Deus, você está me ofendendo. Minha filha é casada com um ótimo advogado que por acaso é judeu...
- Pois sim, sei tudo sobre ele. Ele se diz chamar Stone, mas na realidade o nome dele é Stein.
- Fui eu que sugeri isso por razões profissionais. Eles vivem em Boston.
- Agora quem é que está ofendendo?... Deixa isso pra lá. Voltando ao Wahlburg, o que é que você acha?
- Já lhe disse, questiono sua fonte. Temos, isso sim, um problema maior, que diz respeito à cisão em Amsterdã.
- Que porra é essa? Fale claramente, sem "achismos".
- O quê?
- O que você sabe, não o que você acha.
- Receio que minha fonte seja impecável. O racha em Amsterdã é entre o Keizersgracht e Guiderone. O filho do Shepherd Boy levará a melhor, naturalmente, mas me dá pena pensar que Albert possa ter se aliado
a van der Meer.
- Que merda é essa de que você está falando!
- De acordo com minha fonte, aparentemente ele preferiu ficar com o dinheiro de Amsterdã.
- Quem foi que lhe disse isso?
- Um boato, como o seu, é tudo o que direi.
- Isso não é bastante.
- É tudo o que ficará sabendo, Jamieson.
- Está tudo desmoronando, santo Deus! Isso tudo é uma loucura. Você está maluco e eu estou maluco. Que diabo está acontecendo}
- Gostaria de saber - disse Stuart Nichols, desligando o telefone.
Eram cinco e quinze da tarde, e os escritórios da Swanson & Schwartz estavam fechados. Entretanto, Albert Whitehead permanecia em sua sala, tendo desejado um circunspecto se bem que amável boa-noite a
Stuart Nichols. Bateram à porta. - Entre - disse o diretor-executivo.
- Sim, senhor. - Uma atraente secretária entrou na sala. - Fiz como o senhor sugeriu, Sr. Whitehead. Esperei no toalete até o Sr. Nichols se retirar.
- Obrigado, Joanne. Sente-se, por favor. - A secretária assim fez e Whitehead prosseguiu. - Como já tive oportunidade de mencionar, esta reunião é extremamente confidencial no mais alto sentido profissional.
Pode ser que seja totalmente irrelevante, e rogo ao Todo-poderoso para que assim seja, mas certas informações vieram à luz, que podem - enfatizo: apenas podem - dizer respeito ao seu chefe. Estou sendo
claro?
- Perfeitamente.
- Muito bem. Há quanto tempo trabalha para o Sr. Nichols?
- Há quase dois anos, senhor.
- Sei que ele está constantemente arquivando documentos, súmulas, esse tipo de coisa, mas você se lembra de alguma declaração ou depoimento sob sigilo judicial?
- Assim de pronto... Não, espere um minuto. Há cerca de seis ou sete meses houve uma situação de guardian ad litem em que o herdeiro, um menor, buscou a proteção do tribunal para manter confidencial o
montante da herança. Tendo em vista que os impostos já tinham sido pagos, o tribunal concedeu o sigilo judicial.
- Esse foi o único caso?
- Tanto quanto eu saiba, sim, senhor.
Tanto quanto eu saiba. Whitehead detestava essa frase. Era quase sempre usada como uma evasiva, da mesma forma que muitas vezes as secretárias estabeleciam laços de lealdade com seus chefes. Quantas não
os acompanhavam para outros empregos melhores? De se perder a conta!
- Joanne, certamente acredito em você, minha cara, mas os acionistas, os poucos que temos, insistiram para que eu fizesse uma rigorosa investigação. Você tem anotações dos ditados do Sr. Nichols, ou de
documentos preparados por ele?
- De todos os documentos e todas as cartas, incluindo memorandos internos... Não sabia que a Swanson & Schwartz tinha acionistas.
- Não costumamos nos referir a esse assunto; um pequeno grupo de investidores que me ajudaram a adquirir a firma. Onde estão esses registros?
- Em disquetes de computador, catalogados por data e hora de entrada.
- Poderia me mostrar onde se encontram?
- Perfeitamente. - A secretária levantou-se da cadeira, precedendo Whitehead em direção à porta e encaminhando-se a um escritório no fim do corredor. Entraram, e ela conduziu-o a um grande gabinete de
arquivo branco; abriu-o, revelando prateleiras de disquetes, as prateleiras divididas em seções com os respectivos anos e meses devidamente indicados. - Caramba! - disse Albert Whitehead. - É uma coleção
e tanto.
- O Sr. Nichols a começou há cinco anos. Ele chegou à conclusão de que era muito mais fácil e acessível armazenar as coisas aqui do que no depósito.
- Ele estava absolutamente certo. Mostre-me agora como funciona. Todos temos os mesmos computadores, mas receio estar um pouco enferrujado e ter alguma dificuldade em manusear os arquivos. - A secretária
chamada Joanne pegou um disquete, inseriu-o no computador e digitou os códigos apropriados. - Oh, sim - disse o diretor-executivo - agora me lembro. É realmente muito simples, não é mesmo?
- De fato, Sr. Whitehead, mas quer que eu fique para ajudá-lo? Posso ligar para o meu marido...
- Não, não, minha cara, vá para casa. Eu me viro, e lembre-se: essa nossa conversa fica estritamente entre nós, assim como minha visita aqui.
- Compreendo, senhor.
- Em nome dos investidores e no meu próprio, você encontrará um envelope na sua mesa amanhã de manhã.
- Não é necessário, senhor.
- Oh, mas é sim, é sim.
- Já que insiste, muito obrigada, Sr. Whitehead... E espero que não encontre nenhuma irregularidade. Considero o Sr. Nichols um chefe maravilhoso, muito gentil e atencioso.
- Ele é sem dúvida tudo isso e um grande amigo. - E um Judas filho-da-puta!
- Boa noite, senhor.
- Boa noite, Joanne.
Era quase meia-noite quando Albert Whitehead extraiu o último disquete. Estava exausto, com os olhos injetados e ofegante. Tinha retrocedido três anos e examinado quatro mil documentos. Não havia nada!
Teria Nichols contratado uma datilógrafa de fora, em uma dessas agências de prestação de serviços temporários? Ou através de um anúncio classificado num jornal de terceira categoria? Só podia ser isso.
Ele não iria comprometer o diretor da Swanson & Schwartz perante uma funcionária - ou será que o faria? As secretárias são uma espécie imprevisível, são capazes de delitos que vão de furtos da caixinha
para pequenas despesas à destruição de casamentos.
Quer que eu fique para ajudá-lo? Posso ligar para o meu marido.
Claro, minha jovem, telefone para o seu marido e diga-lhe que vai ficar trabalhando com o seu patrão até meia-noite! E depois? Chantagem?
Whitehead arrastou a cadeira e colocou de volta o último disquete no grande arquivo branco. Retornou à escrivaninha, pegou o número do telefone de Nichols e discou para o serviço de limusine.
- Madre di Dio! Il mare Mediterrâneo! Mare nostra! - Os gritos encheram a noite silenciosa na pista de pouso de Senetosa, na Córsega.
- Que diabo é isso? - berrou Scofield, pulando do catre na cabana ao norte da pista.
- Sei lá - disse Pryce, sentando-se no sofá.
A porta da cabana foi escancarada de supetão e Luther Considine entrou, esbaforido. - Alguém me faça a caridade de traduzir. O porra-louca lá em cima endoidou de vez!
- O que está acontecendo? - perguntou Brandon.
- Me diga você - respondeu Luther. - Ele está vindo pra cá.
O controlador de voo entrou intempestivamente porta adentro. - Il stazione radio! Mare nostra. Fuoco, incêndio!
- Lentamente, lentamente - disse Scofield, pedindo ao homem para falar mais devagar.
- Está dando no rádio - respondeu o controlador no seu inglês macarrônico. - Por todo il Mediterrâneo, fogo por toda parte! Da baía de Muscat à África, Israel, incêndios. Inferno, maledetto! Il diavolo
está tomando conta do mundo!
- "Fogo por toda parte" - disse Bray hesitantemente. - "O diabo está se apoderando do mundo. De Omã a Israel à África do Norte". &bdquo;
- O fogo no Mediterrâneo - disse Cameron. - Matareisen ateou-o. É o sinal!
- Vamos, rápido - gritou Scofield.
- Vou com vocês - disse Luther Considine. - Meu povo veio da África e ninguém vai incendiar nosso oceano.
TRINTA E SEIS
Era pouco mais de onze horas, a lua brilhava no céu, enquanto Scofield, Pryce e Considine rastejavam por baixo do arame farpado, penetrando nos domínios dos Matarese.
- Luther, você é a nossa referência na retaguarda - sussurrou Brandon. - Se surgir alguém na estrada, ou mesmo se perceber faróis de um veículo, avise-nos pelo rádio.
- Entendi, espião mais velho. Vocês costumam fazer esse tipo de coisa regularmente?
- Não - respondeu Cameron. - Geralmente somos anunciados.
- Engraçadinho.
- No momento, não - disse Pryce, seguindo Scofield pela encosta íngreme e arborizada. Atingiram a borda da entrada de carros circular; a mansão estava às escuras, exceto uma única janela do último andar.
Subitamente apareceu uma figura por trás da vidraça.
- Você queria confirmação? - perguntou Bray.
- Olha ela aí. É ele.
- Afaste-se. Ele está olhando aqui pra baixo.
- Então fique parado, com a cara pra baixo! - Scofield pressionou a mão no pescoço de Pryce. - Ele está se afastando.
- Vamos dar uma corrida até a parede lateral da casa - sussurrou Cam.
- Não, ele vai voltar! Está falando no telefone.
O rosto zangado de Matareisen reapareceu na janela; ele parecia estar gritando. Recuou e apareceu novamente, segurando o que parecia ser uma mensagem impressa de computador, com o rosto ainda contraído,
alterado. Afastou-se outra vez da janela, aparentemente furioso.
- Agora! - disse Brandon, erguendo-se e correndo para a lateral da casa, Cameron nos seus calcanhares. - Ele está puto da vida com alguma coisa - acrescentou Scofield. - Estamos seguros por alguns momentos.
- E depois?
- Quero dar uma checada, estudar o sistema de alarme, se conseguir localizá-lo.
- Se você mexer nele é capaz de dispará-lo!
- Talvez sim, talvez não. Dedo no gatilho, como diria Geof, e cheque o seu silenciador.
- Checado.
- Cubra a porta da frente. Se eu fizer uma cagada e disparar o alarme, recuarei correndo, mas você esteja atento. Atire no primeiro que puser a cara de fora...
- Ei, espiões! - Era a voz de Luther sussurrando nos rádios dos dois. - Faróis estão se aproximando do portão medieval de ferro.
- Vamos nos esconder lá atrás - disse Scofield.
- Não - opôs-se Pryce com firmeza. - Esta pode ser nossa chance para entrarmos. Sem confusão, sem alarmes.
- Sem corações disparados, tampouco!
- Ora, Bray, somos melhores do que isso, não somos?
- Explique de que maneira.
- Vamos nos esconder, mas não nos fundos. Você viu a porta da frente?
- Três degraus de tijolos, uma porta grossa, pesada, e luminárias à direita e à esquerda - respondeu o observador Scofield.
- E?... E o quê?... Arbustos, arbustos altos flanqueando a varanda! Quando alguém entrar com o alarme desligado, nós...
- Estamos perdendo tempo. Eu fico do outro lado e você fica aqui.
- Espiões! - Considine novamente. - O portão foi aberto e eles estão entrando.
- Eles?
- Dois gorilas, me parece.
- Desligue o rádio - ordenou Cameron, virando-se para Brandon. - Depressa. Corra pra lá e se agache!
- É fácil pra você.
O grande sedã preto, com seus faróis dianteiros ofuscantes, rodeou a entrada de automóveis circular e parou em frente à ampla varanda de tijolos. Dois homens desceram, o motorista, de compleição mediana
e longos cabelos castanhos, o outro muito mais corpulento e com um corte de cabelo rente. Em vez de se dirigirem para os degraus da entrada, abriram as portas traseiras do carro e começaram a descarregar
sacolas de mantimentos e caixas de papelão cujos rótulos e logotipos indicavam que os suprimentos tinham sido comprados na cidade portuária de Bonifácio. Empilharam as mercadorias na varanda, falando o
dialeto da Córsega, uma mistura estranha de francês e italiano.
- Pelo amor de Deus, quantas iguarias! - disse o motorista. O padrone deve estar planejando uma grande comemoração.
- Para quem? Nós e os três empregados? Duvido muito.
- Com certeza para a piranha. Ele se amarra nela, você sabe.
- Não estou certo de que ela seja realmente uma puta. Acho que é mais uma ninfomaníaca. Quanto a gostar dela, espere até que ele saiba que ela dormiu com todos nós. A revelação ofenderia sua dignidade
aristocrática. Ele nos olha com desdém, já reparou?
- Sei disso e estou cagando se ele nos considera vermes desprezíveis. A remuneração é boa, mais do que boa, muito melhor do que pagam os sicilianos.
- As mesmas tarefas sórdidas, meu amigo. Francamente, não posso mais ir ao confessionário.
- Não esquente. Nosso Deus nos enviou aqui para fazermos o que fazemos. Tudo é predeterminado.
- Toque a campainha, diga aos idiotas para desligar o alarme e abrir a porta.
O motorista fez o que o grandalhão mandou. Pouco depois havia luz nas janelas do andar térreo e ouviu-se uma voz feminina no interfone da varanda. - Sim, quem é? - ela perguntou no dialeto corso.
- Dois dos seus mais ardorosos amantes, Rosa.
- Você é certamente o mais pesado!
- Abra - disse o motorista. - Estamos precisando de ajuda. Depressa!
- Só depois que eu desligar o alarme, a menos que vocês queiram voar pelos ares.
Os dois corsos se entreolharam, seus rostos expressando sarcástica irritação. - Campainhas estridentes seriam mais do que suficiente - resmungou o grandalhão. - Para que explosivos? Um babaca lá dentro
pode nos mandar pros quintos do inferno, junto com a varanda.
- O padrone não está a fim de correr riscos. Ele está bem protegido. Nós é que arriscamos nossa pele.
A porta foi aberta e a voluptuosa criada, que já havia dado uma voltinha com um segurança nas imediações da casa, apareceu. Seu négligé revelador realçava seus seios generosos e as curvas dos seus quadris.
- Mãe de Deus! - exclamou a mulher. - Pra que é isso tudo?
- O padrone deve estar pensando em dar uma festa - respondeu o motorista.
- Isso explica muitas coisas - disse a empregada sumariamente vestida.
- Que coisas?
- Estamos ralando o dia inteiro! Os quartos precisam estar impecáveis, os lençóis lavados e amaciados, a prataria polida, o salão de banquetes tinindo, e a cozinheira está ficando maluca. O açougueiro
e o quitandeiro estiveram aqui hoje à tarde e entregaram carne e verduras suficientes para alimentar uma casa cheia de mamas sicilianas!
- O que é que o padrone diz?
- Pessoalmente, nada. Fica trancado no último andar e só manda recados. Além do que já contei a vocês, ele mandou dizer que os hóspedes chegarão pouco depois do dia raiar. Pouco depois da aurora! Vocês
podem imaginar uma coisa dessas?
- Posso imaginar qualquer coisa quando se trata do padrone - disse o parrudo, apanhando uma caixa de vinho. - Vou levar isso pra cozinha.
- Eu te acompanho com essas outras duas caixas. Elas são muito pesadas pra nossa delicada Rosa.
- Delicada é o cacete!
- Até que não, Rosa.
Os dois corsos sumiram dentro da casa enquanto a criada se curvava para apanhar as sacolas de compras. De repente, Pryce irrompeu da moita e pulou para a varanda, agarrando a mulher pelo pescoço, puxando
sua cabeça para trás e tapando sua boca com a mão esquerda. - O seu gás! - ele sussurrou para Scofield, que estava subindo os degraus da frente; a lateral de tijolos da varanda, embora baixa, oferecia
dificuldade para ele galgá-la. Mais do que depressa, enfiou a mão no bolso da jaqueta camuflada e retirou uma lata e aerossol de clorofórmio. Aspergiu rapidamente dois jatos no rosto da mulher, direcionando-os
para suas narinas; ela perdeu os sentidos instantaneamente. Cameron arrastou-a da varanda e escondeu o corpo desfalecido à direita da folhagem. Os dois homens correram de volta para trás dos arbustos.
Os dois corsos voltaram, mostrando-se confusos com a ausência da criada. - Rosa, onde é que você se meteu, mulher? - chamou o motorista, descendo os degraus de tijolos. Foi a vez de Scofield sair de trás
da espessa vegetação, empunhando sua pistola com silenciador à luz da varanda.
- Se der um pio, jovem, perderá as cordas vocais. Eu as extirparei de sua garganta.
- O que é isso? - trovejou o homem corpulento, atravessando a varanda. - Quem é você?
Novamente, Cameron correu com sua pistola em punho. Fare silenzio! - ele disse no seu parco italiano. - Um movimento em falso e você é um homem morto!
- Compreendo inglês, signore, e não quero morrer. - O corso de físico avantajado recuou. - Somos meramente serviçais da casa, nossos haveres são insignificantes.
- Não estamos interessados nas suas posses - disse Pryce. Somente em informação. Sabemos que o dono da casa, como vocês o chamam, está lá em cima. Como se chega ao último andar?
- Pela escada, signore, como havia de ser?
- Pela escada da frente e pela escada dos fundos?
- Pelas duas. Conhece a casa?
- Estou tentando. Onde é que fica a escada dos fundos?
- Na cozinha. A criadagem deve usá-la.
- Quantos andares?
- Quatro, signore.
- Há saídas para fora da casa pela escada dos fundos?
- Não diretamente.
- Escadas de incêndios, onde e quantas?
- Che?
- Essa eu sei - interrompeu Scofield, - Scala di sicurezza.
- Ah, si - assentiu o corso. - Há duas, signore. Dos lados oeste e leste, a primeira para os hóspedes, a segunda para os empregados.
- Como se tem acesso a elas?
- Cada andar tem uma porta de emergência trancada no corredor que dá para a scala. É aberta por um botão escondido na parede ou por uma chave mestra na cozinha.
- Além do proprietário, o seu padrone, quem mais está dentro da casa e onde se encontram?
- O cozinheiro e uma segunda criada... onde é que está a Rosa?
- Ela está descansando.
- O senhor matou ela?
- Eu disse que ela estava descansando, não disse que estava morta. Agora me diga onde estão o cozinheiro e a segunda criada.
- O cozinheiro tem um quarto no segundo andar em cima da cozinha, e a garota no terceiro.
- Acho que está de bom tamanho, você não acha, Bray?
- Perfeito - concordou Scofield.
- Agora! - gritou Pryce. - Agindo simultaneamente, os americanos encostaram suas armas nas barrigas dos dois corsos e sacaram suas latas de aerossol. Prendendo a respiração, borrifaram os dois de perto
e, quando cada um começou a desmaiar, arrastaram os corpos para o gramado no meio da entrada circular de automóveis. Os homens ficariam desacordados pelo menos durante uma hora, e talvez até três horas.
- Use o rádio e diga ao Luther para vir até aqui - continuou Cameron.
- A segunda escada de incêndio, certo, garoto? - Scofield pegou o rádio e chamou Luther.
- Quando Luther chegar aqui, vocês dois cobrirão as escadas de incêndio, e eu irei atrás do cozinheiro e da criada.
- Aqui estou eu, espiões. - Considine emergiu da floresta de Porto Vecchio. - O que é que eu faço?
- Venha até aqui - disse Pryce ao piloto, que correu para o seu lado. - Do lado direito da casa há uma escada de incêndio. Se alguém tentar descer, atire, mas longe do corpo. Não queremos ninguém ferido,
muito menos morto.
- Positivo, brother - cochichou Luther.
- Muito bem - disse Brandon, removendo sua arma. Virou-se, encaminhando-se rapidamente para o lado esquerdo da propriedade.
- A menos que haja interrupções, nos encontraremos novamente aqui dentro de dez minutos - foi a última instrução de Cameron antes de avançar para a casa.
Uma vez lá dentro, tomou a esquerda, a ala leste, para onde os corsos tinham levado as caixas de vinho compradas em Bonifácio. A cozinha era imensa, à altura de qualquer restaurante de categoria, a escada
dos fundos estreita e mal iluminada, aparentemente adequada para os empregados, do ponto de vista do patrão. Pryce dirigiu-se para o segundo andar, com o corpo quase colado aos degraus da escada, seu uniforme
camuflado lembrando a imagem de um enorme lagarto aproximando-se de sua presa. Ergueu-se quando atingiu o corredor, imaginando qual das portas à direita corresponderia ao quarto em cima da cozinha. Era
óbvio, por isso encaminhou-se para ele com a pistola e a lata de aerossol em cada uma das mãos. Colocou desajeitadamente a lata debaixo do braço esquerdo e tentou girar silenciosamente a maçaneta; ela
não se mexeu, estava trancada.
Estudou a porta, recuou alguns passos, passou a lata para a mão direita e arremessou o corpo para a frente com todo seu peso e sua força. A porta abriu-se com grande estrondo, e Cam invadiu o cômodo, prendendo
a respiração e pulverizando a cama com o gás paralisante. O magro e assustado cozinheiro abriu os olhos em pânico, e começou a gritar e despencou nos travesseiros.
Pryce retornou à escada e consultou o relógio; tinha quatro minutos para prosseguir. Subiu ao terceiro andar, fez a curva do hall e avançou pelo estreito e escuro corredor. A primeira coisa que chamou
sua atenção foi a réstia de luz na soleira da segunda porta à direita. Colocando a arma no cinto e segurando a lata na mão esquerda, girou a maçaneta. A porta abriu e Cam entrou rapidamente. O quarto estava
vazio, mas na parede em cima da cama havia um pequeno painel de vidro, uma luz vermelha piscava no centro do painel, acompanhada de um leve zumbido semelhante ao suave e constante tilintar de um despertador.
Aparentemente, o quarto pertencia à provocante Rosa.
Restavam-lhe apenas dois minutos. Não que o tempo estivesse precisamente cronometrado, mas seus espaços eram importantes e ele não queria que Scofield e Considine pensassem que alguma coisa tinha dado
errado e cometessem a imprudência de saírem precipitadamente à sua procura. Retornou ao escuro e estreito corredor, olhando para a direita e para a esquerda. Havia mais três portas, quatro ao todo. Um
critério de adequação sem dúvida ditaria que os andares fossem divididos por gênero, a maneira apropriada de situar as dependências de empregados a despeito de direitos de visita impróprios.
Arriscando, baseado unicamente numa vaga percepção de que Rosa era a mais robusta das mulheres, Pryce dirigiu-se para a porta mais próxima da escada e da saída de emergência. Estranhamente - algo que não
percebera na luz fraca a porta estava aberta, talvez apenas uma polegada, mas indiscutivelmente aberta. Empurrou-a devagar quando ouviu as palavras que vinham da escuridão.
- Padrone? Mi amore?
Não era preciso ser um linguista para entender o significado do que a mulher dissera. - Si - respondeu Cameron, aproximando-se da cama. O resto levou menos de quinze segundos e Pryce estava de volta à
varanda da frente com uma folga de vinte segundos.
- Pelo visto, sua incursão foi não só bem-sucedida como silenciosa - disse Beowulf Agate em voz baixa.
- Foi - respondeu Cam. - Agora é que vem a parte delicada.
- A hora de entrar em ação para as unidades francesas, certo, rapazes? - disse Luther,
- Errado - respondeu Scofield. - O pouso de um jato - muito cautelosamente, devo acrescentar - numa pista que não está exatamente em estado-da-arte no que diz respeito a inovações técnicas seria suficiente
para que a notícia de uma consumada loucura se espalhasse. O mesmo jato desembarcando uma unidade de comando e sirenes de emergência não estariam fora de cogitação.
- Entretanto - interrompeu o piloto - não houve nenhuma chamada telefônica.
- O que é que você quer dizer?
- Antes de deixarmos Senetosa, peguei um alicate, corri até a chamada torre e cortei os fios telefônicos que desciam do telhado.
- Esse rapaz realmente tem chances - disse Bray. - Você deveria recrutá-lo.
- Não, obrigado, espião mais velho. O meu negócio é lá em cima, nos céus.
- Não subestime sua contribuição, Luther - Pryce atalhou firmemente. - Você talvez tenha nos proporcionado os minutos extras de que podemos precisar.
- Por quê? Por causa do telefone?
- Exatamente.
- Mas se aquele controlador estava a fim de ligar para cá, porque não fez isso antes?
- Boa pergunta - disse Scofield -, à qual eu mesmo responderei. Porque as autoridades francesas disseram ao pessoal de Senetosa que estávamos reunindo provas contra traficantes de drogas no porto de Solenzara.
Senetosa é o aeroporto mais próximo e nenhum funcionário do governo francês ousa interferir em operações de combate ao narcotráfico. Poderá pegar uma pena de vinte a trinta anos de prisão se o fizer.
- Então eles não sabem nada a respeito deste lugar?
- Essa é a maneira como foi planejado, tenente.
- O que é que você sugere, Bray? Você já esteve aqui, nós não - disse Cameron.
- Matareisen está isolado, sem seguranças, sem empregados, domésticos, certo?
- Certo.
- Surpresa total, choque. A escada de incêndio no último andar tem um pequeno passadiço lateral, ligando-se à janela da direita. Um de nós investirá pela porta da escada da frente, o outro se posicionará
ao lado da janela e quebrará o vidro. Se as ações forem corretamente sincronizadas, ele ficará encurralado.
- Posso subir nos seus ombros, Cam - disse Luther. - Conseguirei alcançar o degrau da parte inferior da escada.
- Você também poderia estar na primeira linha de fogo.
- Não posso sustentá-lo, seu gorila branco.
- Lembre-me de ligar para uma comandante da Marinha em Pensacola.
- Não com o meu obituário, seu filho-da-mãe.
- Espero que não, mas quero que você saiba o que está fazendo.
- Quero fazer. Fim de papo.
- Fim de papo.
- Ajustemos nossos relógios, como dizem nesses filmes idiotas - disse Scofield. - O que é que você acha, Pryce?
- Me dê três minutos para ajudar Luther a alcançar a escada, mais um para eu voltar e me juntar a você, e trinta segundos para que você corra e vá dar cobertura ao nosso piloto na escada de incêndio. Se
Matareisen se aproximar de uma janela, ele poderá detectá-lo. Então, para me permitir descobrir para onde estou indo e como chegar lá sem fazer barulho, acrescente cinco minutos. Ao todo são nove minutos
e meio. Agora é meia-noite e sete. Cronometre... Vamos, Luther.
O piloto alcançou o degrau mais baixo e ficou sentado, imóvel, com os olhos fixos no seu relógio. Ele subiria para o quarto andar nos últimos trinta segundos do lapso de tempo. Cameron esgueirou-se pela
lateral da casa, calculando a linha de visão mais viável para Scofield proteger Considine. Uma vez estabelecida, ele correu de volta para o lado de Brandon.
- Posicione-se no lado da floresta, Bray.
- Por que tão longe?
- É de onde você terá o melhor ângulo de visão para a janela. Os outros ângulos ou mostrariam você no gramado ou seriam muito difíceis para você atirar.
- Obrigado, garoto, eu é que deveria ter recrutado você.
- Puxa, mamãe, muito grato.
- Você tem cerca de cinco minutos.
Pryce subiu correndo os degraus da varanda e entrou impetuosamente na casa. A escada social ficava no fundo do grande vestíbulo de mármore rosa, o corrimão de metal dourado reluzia à luz suave de um lustre
distante. Aproximou-se dos degraus, procurando fios escondidos. Seus dedos apalparam a parte inferior do corrimão, que descrevia uma curva elegante para o patamar que levava ao segundo andar; não encontrou
nenhum. Testou então a passadeira da escada à procura de alguma saliência suspeita, denunciando um dispositivo de alarme; novamente não encontrou nenhuma. Achou o reostato do lustre e acendeu as luzes.
Silenciosamente, começou a subir, atingindo o segundo andar, seus olhos perscrutando cada polegada do piso, sondando qualquer indício de anormalidade, uma eventual armadilha. Cam consultou seu relógio;
sua cautela estava lhe custando tempo. Restavam-lhe noventa e oito segundos e mais dois andares pela frente; acelerou o ritmo.
Pare! Nos degraus para o quarto andar havia uma ligeira descoloração na passadeira causada por uma minúscula elevação. Pryce pegou sua faca e rapidamente recortou metade da saliência circular. Cuidadosamente,
levantou o pedaço recortado da passadeira. Por baixo havia um disco achatado com dois fios que subiam pela escada. Era um alarme ou uma mina terrestre, e considerando a monstruosa folha corrida dos Matarese,
a mina era uma possibilidade muito real. Afinal, o que significava a vida de um ou dois serviçais?
Sessenta e um segundos!
Cameron galgou os degraus de dois em dois; seus olhos estavam vermelhos de tensão, pois sabia que cada pisada poderia custar-lhe a vida. Trinta e nove segundos! E ele tinha que estar preparado, arma em
punho, absoluta concentração, respiração firme. Tinha estado em muitas situações semelhantes onde uma atitude calma e controlada era tão vital quanto o poder de fogo. Sem ela, uma operação podia facilmente
fracassar ou ser abortada. Tempo esgotado!
Respirando fundo, Pryce posicionou-se a um metro e meio da porta, com os braços estendidos, a arma apontada para a madeira em torno da maçaneta. Quatro segundos, três, dois, um - agora! Disparou três balas,
lascando a madeira, ouvindo simultaneamente o estilhaçar de vidro do lado de dentro. Arremeteu e, com toda sua força, derrubou a porta, caindo no chão, rolando o corpo do seu ponto de impacto.
Jan van der Meer, em estado de choque, recuperou-se o suficiente para correr para um pilha de mensagens impressas de computador. Pegou-a e precipitou-se na direção de uma cortadora de papel fixada em cima
de um grande receptáculo de ferro, cujo brilho indicava a existência de brasas no seu fundo.
- Não faça isso! - bradou Pryce, com sua arma apontada.
- Não há como me impedir! - gritou Matareisen. - Pode me matar, não valho nada para você morto!
- Concordo - disse Pryce, atirando. Mas não em nenhuma parte vital do seu corpo; em vez disso, acertou suas pernas, especificamente seus joelhos. Gritos de dor encheram a sala enquanto o descendente do
barão de Matarese caía no chão, os impressos voando para todos os lados, menos para a máquina de corte. Quebre o resto da janela e entre aqui, Luther! - gritou Pryce, pegando sua lata de aerossol e encaminhando-se
para Matereisen, que se contorcia e gemia. - Vou lhe fazer um favor, seu filho-da-puta - disse Cam, inclinando-se e borrifando o rosto do monstro ferido. - Bons pesadelos - ele acrescentou.
Considine transpôs a janela destroçada e correu ao encontro de Pryce. - Mamão com açúcar, espião - comentou o piloto. Quer saber de uma coisa, estou ficando um bocado bom nesse negócio. Quero dizer, levando
em conta as redes no avião, o telefone de Senetosa, e agora isso, cá entre nós, não estou dando nenhum vexame.
- Você é um maldito herói, Luther.
- Muito obrigado, Cam.
- Não terminei. Concordo com Scofield, detesto heróis. Muitas vezes provocam mortes.
- Ei, que tipo de observação é essa?
- Extremamente verdadeira. Vamos em frente, ainda não acabamos.
- O que é preciso fazer mais?
- Primeiro, vá até a cozinha, fica no andar térreo, à direita. Vire-a pelo avesso e trate de achar um estojo de primeiros socorros. Deve haver um; as pessoas se cortam nas cozinhas. Temos que fazer um
torniquete nas pernas de Matareisen e enfaixá-las.
- Por que tanta gentileza?
- Porque ele está certo. Não nos serve de nada morto. Quando descer a escada, não pise na passadeira, está engatilhada.
- Está o quê?
- Deixa pra lá, pise só no mármore. Rápido, mete a cara! Luther se afastou, pulando por cima da porta derrubada, enquanto Cameron remexia nos impressos, procurando se inteirar do seu conteúdo. Duas folhas
pareciam ser códigos-chave dispostos em colunas, mas escapavam à sua compreensão. O resto, vinte e tantas páginas, também era codificado, possivelmente decifrável com ajuda das duas folhas reproduzindo
as chaves em colunas. Pryce dirigiu-se rapidamente para a janela danificada e gritou: Bray, você está aí embaixo?
Silêncio. Um silêncio inquietante.
Súbito, uma campainha ensurdecedora ecoou por toda a mansão, tão alto e surpreendente que causou uma paralisia instantânea. Largando os impressos, Cameron passou correndo por cima da porta no chão, encaminhando-se
para o corredor. No vão da escada, pouco abaixo, estava um Scofield imóvel, atônito; ele tinha pisado em um dos dispositivos de alarme. Pryce pulou os degraus agilmente, sacando sua faca e empurrando o
jactancioso Beowulf Agate para o lado. Ajoelhou-se, levantou o círculo recortado da passadeira e cortou os fios. O barulho ensurdecedor parou. - Você teve sorte de não ser uma bomba - disse Cam.
- Por que diabo você não me preveniu sobre isso?
- Pensei que você ainda estivesse lá fora. Venha, quero lhe mostrar o que temos lá em cima. - Voltaram para a toca de Matareisen.
- As pernas dele estão sangrando - observou Scofield, ao deparar com a figura do líder dos Matarese.
- Na verdade, são os joelhos dele. Luther está procurando umas ataduras.
- Ataduras, porra nenhuma. Enfie uma bala na cabeça dele.
- Seria contraproducente - disse Pryce, apanhando os impressos. - Ele tentou destruir isso aqui.
- Do que se trata?
- A menos que esteja redondamente enganado, são os sinais que ele estava transmitindo. Estão codificados e não sou nenhum gênio em matéria de computadores.
- Mande essa papelada para Amsterdã. Com todo esse equipamento, não pode deixar de haver um aparelho de fax.
- Tem um ali, mas não sei qual é o número do fax do Keizersgracht.
- Eu tenho ele - disse Beowulf Agate, enfiando a mão num bolso interno. - Você deve aprender a andar prevenido, meu jovem.
Enquanto o fax dava conta do seu recado, Cameron telefonou para Greenwald em Amsterdã, explicando as circunstâncias e o material que estava enviando para o Keizersgracht. O cientista de informática deixou
claro que todos os outros trabalhos seriam interrompidos, que a concentração da unidade seria voltada exclusivamente para as páginas transmitidas da Córsega. - Você tem um número para onde eu possa ligar
de volta?
- O que quer que você consiga decifrar, chame o Waters em Londres e o Frank Shields em Langley. Não posso fazer nada aqui e temos um monte de coisas pra cuidar. Entrarei em contato com você ainda esta
manhã. - Pryce desligou e virou-se para Scofield. Você está com o telefone de acesso direto ao MI-5?
- Naturalmente.
- Chame o Geof. Diga a ele para entrar em contato com o Deuxième Bureau e despachar os soldados pra cá.
- Aqui? Agora? Pra quê, em nome de Deus?
- Vamos a um banquete.
Pouco depois do raiar do dia, uma a uma, as seis limusines chegaram à propriedade nas colinas de Porto Vecchio debruçada sobre as águas do mar da Ligúria. Faltou um sétimo veículo, pois ninguém conseguiu
localizar o último convidado, um certo cardeal Paravacini de Roma. Sob ameaça de serem presos e severamente punidos, os dois corsos devidamente reanimados foram ao encontro de cada carro e escoltaram cada
convidado ao salão de banquete. Ao entrarem, os convidados eram recebidos por Pryce e Considine, armados, que os amarravam às suas cadeiras e os amordaçavam com fita adesiva, as cordas e a fita encontradas
no galpão do jardineiro. Uma vez todos - cinco homens bem vestidos e uma mulher elegantemente produzida - sentados nos seus lugares, Cameron e Luther desapareceram momentaneamente por uma porta na parede
à esquerda, retomando pouco depois. Os dois carregavam uma cadeira da mesa de jantar na qual estava sentado o ferido Jan van der Meer, com as pernas inchadas devido às ataduras por baixo das calças. Como
os convidados, cordas o amarravam à cadeira e duas voltas de fita adesiva bem apertadas elavam sua boca.
O líder dos Matarese foi colocado na cabeceira da mesa, seu olhar enlouquecido dardejava furiosamente de um convidado para outro. Repentinamente, Scofield, em trajes civis, cruzou a porta e postou-se atrás
de Matareisen.
- Cavalheiros - ele começou - e, naturalmente, minha senhora, estou aqui porque provavelmente conheço melhor sua organização do que qualquer outra pessoa viva. Chamá-la de monstruosa conspiração seria
certamente muito pouco. O aspecto positivo, entretanto, é que ela acabou, vocês acabaram. Seu brilhante campeador aqui ao lado implodiu-a. Ele foi apanhado com toda a parafernália computadorizada em suas
gananciosas mãos. Brilhante jogada, não é mesmo? Felizmente para o nosso lado, reunimos um time com os melhores cérebros do mundo e logramos decifrar as mensagens impressas dos seus computadores… Neste
exato momento, agentes do governo, a polícia, contingentes militares em dezenas de cidades nas nações industriais estão filtrando, detendo pessoas, colocando-as sob custódia, inclusive um certo Águia em
Langley, surpreendido quando discava uma porção de números numa ligação feita de um telefone público - o chamado acesso seguro. Também, e não por acaso, tribunais e legislaturas em toda parte estão sendo
convocados para sessões extraordinárias de emergência, a fim de tomarem medidas contra um vírus econômico global potencialmente destrutivo. Quanto aos incêndios no Mediterrâneo, o maestro sentado nesta
cadeira conseguiu o que poucos diplomatas e estadistas foram capazes de fazer. Países hostis e facções beligerantes uniram-se para apagar os incêndios.
- Falando de cadeiras, notarão que suas condições são idênticas às do seu mentor. Isso não é meramente para situá-los em nível de igualdade com o homem que os destruiu, é para sua própria proteção. Alguns
homens chegaram para escoltá-los para fora da Córsega, para longe da terra dos Matarese. Se algum de vocês se sentisse tentado a fazer uso de armas de fogo, seria fatalmente abatido. Quisemos poupá-los
dessa embaraçosa e egrégia possibilidade.
- Egrégia? - Pryce murmurou para Considine. - Um toque harvardiano.
- Conversa pra boi dormir - sussurrou Luther.
- Cavalheiros! - chamou Beowulf Agate em voz alta. Podem entrar agora.
As portas duplas na parede norte abriram-se e o esquadrão uniformizado de militares franceses entrou em fila indiana. Tomaram suas posições rodeando a enorme mesa de banquete enquanto os convidados amarrados
e amordaçados contorciam-se em suas cadeiras, mexendo as cabeças para frente e para trás, com os olhos tomados de pânico.
- Declaro esta conferência encerrada - disse Scofield com exagerada formalidade. - Cavalheiros, desamarrem seus prisioneiros e levem-nos para o seu avião. Se algum deles tentar suborná-los, sugiro que
lhe deem uma cacetada pra valer!
Eram dez horas da manhã, o céu estava escuro, o temporal iminente. Aos dois criados corsos tinha sido prometida indulgência em troca de sua cooperação e eles foram levados pela polícia de Bonifácio. Restou
aos três americanos, às duas empregadas e ao cozinheiro levar a cabo a tarefa insistente e estranhamente imposta por Scofield. Todos os bens móveis da mansão, juntamente com caixas de gêneros alimentícios,
muitos acondicionados em gelo, deviam ser transferidos para o amplo galpão do jardineiro. Foram necessárias quase quatro horas e muito suor para encher um pequeno tanque.
- Podia me dizer - perguntou um Pryce suarento - pra que diabo é tudo isso?
- Fechamento, meu jovem amigo, simplesmente fechamento - respondeu Scofield, apanhando uma lata de cinco galões e correndo para a mansão.
Três minutos depois irromperam as labaredas, alçando-se instantaneamente das cortinas e dos móveis. Em cinco minutos já envolviam completamente a casa, acentuadas pelo céu que escurecia progressivamente.
Cameron alarmou-se - onde estava Scofield? Ele não tinha saído!
- Bray! - ele gritou enquanto corria juntamente com Luther em direção às chamas, que se alastravam. De repente, houve uma enorme explosão. Pryce e Considine jogaram-se no chão ao mesmo tempo em que toda
a varanda da frente ia pelos ares, fazendo voar fragmentos de tijolos, concreto e vidro em todas as direções. A chuva caía torrencialmente, sem parar, mas as labaredas continuavam a crepitar como se desafiassem
a tempestade, natureza contra natureza, fogo e água em violento combate. - Scofield! trovejou Cameron, levantando-se cambaleante, assim como Luther.
- Onde foi que o filho-da-puta se meteu? - gritou Considine. - Se ele estiver querendo dar uma de autossacrifício, quebro-lhe acara!
- O que é que vocês estão fazendo aí? - berrou Beowulf Agate, contornando a ala oeste da mansão, correndo o mais depressa que podia. - Vocês estão muito perto, seus idiotas!
- O que é que você está fazendo? - perguntou Pryce enquanto os três afastavam-se rapidamente do prédio em chamas. - O que foi que você fez?
- O que devia ter feito há trinta anos em Boston. Reduzi a cinzas a sede do poder dos Matarese.
- Qual é a diferença que faz? Isso aqui não é Boston, é Porto Vecchio, Córsega.
- Não tenho certeza. Um símbolo talvez, uma lembrança, uma relíquia de destruição, destruição total. Sei lá, uma merda dessas! Só sei que tinha que fazer isso, em memória de Taleniekov, possivelmente.
Mas primeiro falei com as jovens, as criadas. Preveni-as.
- Sobre o quê, o incêndio?
- Digamos que elas espalharão a notícia. Os primeiros a chegar serão os primeiros a serem contemplados no galpão do jardineiro. Alguns dos objetos e mantimentos que mandei armazenar lá manterão muitas
famílias por muito tempo aos preços de mercado de hoje. Por que deveriam ser arrolados como provas? Seriam roubados de qualquer maneira. - O telefone de acesso direto de Scofield tocou dentro do bolso
de seu paletó. Ele o retirou e falou. - "Sir" Waters, eu presumo.
- Não posso me chatear com suas ironias, Brandon. Excelente trabalho, meu velho amigo, um espetáculo magnífico.
- Me poupe dos seus elogios britânicos, mande-me grana.
- Para dizer a verdade, espero que você apresente certas despesas, mas por favor, não seja criativo demais.
- Eu talvez queira comprar uma nova ilha, ou quem sabe um pequeno país.
- A Antonia quer saber quando você vai voltar para Londres - disse Waters, não fazendo caso da resposta de Scofield.
- Dentro de uma hora mais ou menos. Quero dormir uma semana inteira.
- Vamos contactar Heathrow. Talvez uma pista auxiliar, e iremos ao encontro do avião. Também ligarei para Leslie. A propósito, Frank Shields telefonou. Você deve se apresentar a Washington o mais rapidamente
possível.
- Me apresentar! - esbravejou Agate. - O que é que ele está pensando? Ele não me dá ordens.
- Calma, campeão, também vamos requisitar um relatório de corpo presente. Para constar dos arquivos oficiais, sabe como é.
- Isso é para funcionários. Sou um consultor! Chamem o Pryce para fazê-lo.
- Fazer o quê? - interrompeu Cameron.
- Um relatório, sua anta.
- É um procedimento padrão, Bray. Nada demais.
- Então que você e o seu tenente o façam.
- O seu "tenente" agora é um comandante, Brandon - atalhou Sir Geoffrey de Londres. - A papelada do Departamento da Marinha chegou. E se Frank Shields e eu tivéssemos enaltecido suas qualidades ainda mais,
provavelmente fariam dele um contra almirante.
- Você agora é comandante, Luther - disse Scofield virando-se para o piloto. Ou talvez um contra-almirante.
- Pensacola, aí vou eu!
- Uma última coisa, velho amigo - acrescentou Sir Geoffrey.
- Frank disse que o presidente dos Estados Unidos solicitou um encontro pessoal com você. Ele não está apenas empolgado. Você será altamente condecorado.
- Por quê? Há muitos anos que não voto. Além do mais, o jovem Cameron teve tanto a ver com toda essa barafunda quanto eu. O presidente que fale com ele.
- Isso está fora de cogitação, Brandon. O agente Pryce permanece em missão altamente sigilosa. Ele não pode participar de nenhuma comemoração.
- Que saco, o que quero mesmo é ir pra casa. Nossa ilha provavelmente foi tomada por tudo quanto é erva daninha existente no Caribe.
- Pelo que sei, o corpo de engenheiros do Exército americano está com esse problema sob controle.
- Eu deveria estar lá pra supervisionar.
- Mande o agente Pryce. Ele e a coronel Montrose devem estar com uma licença pendente.
- Estão me encostando contra a parede!
EPÍLOGO
Crepúsculo. Outer Brass 26, vinte e quatro milhas náuticas ao sul de Tortola no mar do Caribe. Cameron e Leslie estão sentados em confortáveis poltronas à beira da lagoa. Leslie fala no telefone portátil
via satélite. - Está bem, querido, já que você pensou seriamente no assunto - disse ela. - Não gostaria que você perdesse sua matrícula em Connecticut.
- Não há problema, mamãe - veio de Londres a voz do rapaz. - O diretor conhece o colégio de Roger e falou com o encarregado das matrículas. Posso ser admitido como aluno de intercâmbio no meio do ano letivo,
que começa o mês que vem. Receberei todos os créditos a que tenho direito, e as pessoas com quem tenho falado aqui e em Connecticut acham que será uma grande experiência para mim.
- Será se você se aplicar, Jamie. Os colégios britânicos podem ser bem mais rigorosos do que os nossos.
- O Roger me advertiu a esse respeito. Mas vou entrar para o ano que ele já fez e, portanto, ele poderá me ajudar se eu tiver alguma dificuldade.
- Essa não é exatamente a solução que eu esperava. A propósito, como vão o Roger e a Angela?
- Muitíssimo bem! Nos entendemos maravilhosamente, embora o Coleman também esteja morando conosco. Ele às vezes é muito durão.
- Esta é a coisa mais confortadora que você disse até agora.
- Tenho que desligar, mãe. O Coley está nos levando para fazer outra excursão. Ele diz que se vou estudar num colégio inglês, e uma vez que realmente não falo o idioma, devo aprender tudo o que puder sobre
o Reino Unido. Dê um abraço no Cam. Gosto muito dele. De verdade.
- Eu mesma não o chamo de Cam. Você se refere ao Sr. Pryce?
- Ora, minha cara lady, não sou mais nenhum garoto.
- Você é um boboca.
- Será que você acreditaria se eu lhe dissesse que tenho hormônios?
- Jamie!
- Um beijo, mãe. Te amo. - A linha de Londres emudeceu.
- Que sem-vergonha ele está me saindo - murmurou Leslie, apertando o botão que desligou o telefone. - Ele lhe mandou um abraço e disse que realmente gosta muito de você.
- Eu também gosto muito dele. Por que você deu uma bronca nele?
- Ele teve a ousadia de me dizer que tem hormônios!
- Ele está com quantos anos, quinze? Posso lhe assegurar, é verdade, e eles devem estar indóceis.
- Sou a mãe dele!
- Isso por acaso a desqualifica para conhecer a verdade?
- Não, mas é melhor tratar certas realidades com finesse.
- Entendi que ele vai ficar em Londres e frequentará um colégio na Inglaterra.
- E, mas enquanto estão em Belgravia, terão a companhia de Coleman.
- Não é uma má ideia.
- É gloriosa.
- E nós agora? - perguntou Pryce, se inclinando para a frente e esticando o braço para apanhar seu drinque na mesa de plástico ao lado da poltrona. - Na realidade, ainda não encaramos a questão de frente,
não é mesmo?
- É preciso mudar alguma coisa? Estou bem assim, você está bem assim.
- Quero mais do que isso, Leslie. Sempre soube que havia um vazio na minha vida. Identifiquei esse vazio e pude conviver com ele, mas acho que não posso mais. Não quero mais viver sozinho, quero viver
com a mulher que amo.
- Não acredito, agente Pryce. Está me pedindo para casar com você?
- Estou, coronel Montrose.
- Fico muito sensibilizada, sinceramente - disse Leslie, segurando-lhe a mão carinhosamente. - Mas creio que você está esquecendo que carrego muita bagagem. Sou uma oficial de carreira do Exército, e ele
pode me transferir para onde e quando quiser. Não estou pronta para desistir da carreira, trabalhei e estudei durante muito tempo e com muito empenho para chegar aonde cheguei. Além disso existe o meu
filho, ele pode significar uma responsabilidade que você não está disposto a assumir.
- Por que não? Acho que ele é um garoto maravilhoso. Que diabo, nem tenho que pensar nisso, ele o provou à exaustão. Você disse que ele gosta de mim e eu gosto dele, isso é um começo mais do que promissor.
- E o Exército?
- Sou um agente de carreira do serviço secreto e Frank Shields pode me mandar para a Mongólia e eu terei que ir sem reclamar. Pense só como nossos reencontros seriam fabulosos… Veja bem, Leslie, considerando
nossos históricos, nem você nem eu se conformaria em ficar estático em empregos sedentários. Os aviões podem transportar pessoas de Tóquio a Nova York, sobrevoando o polo, em nove horas; de Beijing em
treze. Vendedores obviamente têm que viajar, profissionais de negócios, também; atores, atrizes e modelos deslocam-se para toda parte por força da natureza do seu trabalho. Depende simplesmente da atividade
que você exerce. Acho que podemos perfeitamente conciliar nossos compromissos profissionais com nossas vidas pessoais.
- Você é muito persuasivo, meu querido.
- Pontos a favor da dama - disse Pryce entusiasticamente. Scofield costuma dizer que se uma mulher empregar a expressão "meu querido", trate de conservá-la ao seu lado.
- É muita generosidade da parte dele... Mas você está sendo muito convincente e eu estou dando uma de míope.
- Você quer dizer que estou ganhando terreno?
- Acho que sim.
Subitamente, vindo do céu, ouviu-se o ronco de motores aproximando-se. Estava chegando um helicóptero voando contra o vento, o que explicava o barulho ensurdecedor. Os dois olharam por cima da copa das
palmeiras; o aparelho estava sobrevoando a praia em círculos além das células fotoelétricas. Cam e Leslie levantaram-se e correram de mãos dadas pela trilha que desembocava na enseada. O mais suavemente
possível, tendo em vista seu volume e tonelagem, o enorme helicóptero pousou na orla da praia, alvoroçando as folhas das palmeiras com sua repentina intrusão.
A porta da aeronave foi aberta e Scofield foi o primeiro a desembarcar. Virou-se para trás e ajudou Antonia a descer com água pelos joelhos. Dirigiram-se para terra enquanto os motores eram desligados
e, como as mulheres têm o hábito de fazer, Leslie e Toni abraçaram-se.
- Antonia, este lugar é um paraíso! - exclamou Montrose. Não é de admirar que vocês o adorem.
- Tem suas vantagens. Deus seja louvado, o pessoal da engenharia fez um trabalho maravilhoso. As palmeiras estão muito bem podadas.
- Eles também reforçaram o seu sistema de geração de energia - disse Pryce.
- Quem foi que pediu a eles? - questionou o petulante Scofield. - Estava funcionando muito bem.
- Tenho a impressão de que as ordens vieram da Casa Banca - respondeu Cameron. - A capacidade dos geradores foi triplicada, e o major que conduziu as obras me pediu que lhe dissesse que foi um presente
de uma nação agradecida.
- O presidente não me disse nada e eu estive com o garoto durante mais de uma hora.
- O garoto? - disse Antonia em tom de censura. - Francamente, Bray...
- Eu não disse que não gosto dele. Pra dizer a verdade, até que acho que ele é um cara legal, um jovem muito inteligente, muito consciencioso. Bastante generoso, também. Expliquei a ele que minha pensão
mal dava para cobrir minhas necessidades, devido ao fato de minha reputação me obrigar a viver incógnito fora do país. Não é que ele, na mesma hora, na minha cara, ligou para a CIA e mandou dobrá-la!
- Esse é o segundo presidente que você leva na conversa! exclamou Pryce. - Não se esqueça de que eu li seu dossiê inexpurgado.
- Não me lembro de coisa alguma, meu jovem amigo. Essa é uma das bênçãos da idade avançada... Agora deixem-me ser claro, esses dois pilotos do helicóptero têm uma agenda a cumprir e vocês dois fazem parte
dela.
- Gostaríamos imensamente que vocês ficassem mais algum tempo, mas infelizmente isso não é possível. Arrumem suas coisas e embarquem. Vocês têm menos de dez minutos.
Scofield e Antonia sentaram-se em duas espreguiçadeiras na beira de sua lagoa. - Como é que você se sente, meu amor?
- Voltamos pra casa, meu querido. Não posso querer nada melhor na vida.
- Mais alguma novidade por aí?
- Um novo refrigerador, na verdade uma câmara frigorífica em que se pode entrar, com comida pro ano inteiro.
- Eles não precisavam fazer isso.
- Precisavam sim, meu... muito querido. Você é uma criatura fora de série.
- Ei, estou vendo que essa poderá ser uma noite inesquecível, se é que me entende!
- Na sua idade, meu amor?... Estou entendendo, sim.
A bordo do helicóptero da Marinha, rumo a Porto Rico, onde o agente secreto Pryce e a tenente-coronel Montrose tomariam um avião a jato para Washington, Cameron falou: - Fomos interrompidos - disse ele.
- Você pensou na minha proposta?
- Seu pedido de casamento, é isso o que você está querendo dizer?
- Exatamente.
- Pensei, sim. Breve mas profundamente. Na sua idade provecta, você acha que será como Brandon Scofield, também conhecido como Beowulf Agate?
- Acredito que seja possível. Afinal, somos muito parecidos em tantas coisas.
- E haverá uma Antonia?
- Você é minha Antonia... minha Leslie.
- Então, meu querido, a resposta é sim. Não perderia essa missão por nada neste mundo.

 

 

                                                                  Robert Ludlum

 

 

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