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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTINENTAL OP / Dashiell Hammett
CONTINENTAL OP / Dashiell Hammett

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTINENTAL OP

 

Os contos de Continental Op, publicados originalmente na revista Black Mask, na década de 20, representam o fim do romantismo na literatura policial, numa época em que ela corria o risco de se transformar numa salada amorfa de enigmas e códigos cruzados.

O estilo ríspido de Dashiell Hammett — o criador do moderno detetive americano —, de diálogos contundentes e ritmo acelerado, fascinou grandes escritores contemporâneos, como Gide, Burgess e Hemingway.

Ninguém melhor do que Hammett para nos trazer o submundo da violência nos Estados Unidos nos anos da Lei Seca, dos crimes e das quadrilhas organizadas. É nesse mundo brutal, fraudulento e ganancioso, cujas personagens são dominadas pelo principio básico da desconfiança mútua, que Hammett lança seu detetive anônimo.

 

 

                    A décima pista

— O sr. Leopold Gantvoort não está — disse o empregado que abriu a porta —, mas está o filho, sr. Charles... Se o senhor quiser falar com ele...

— Não. Tenho um encontro marcado com o sr. Leopold Gantvoort para as nove horas ou pouco mais tarde. São nove agora. Certamente ele voltará logo. Eu espero.

— Muito bem, senhor.

Afastou-se para eu entrar, tirou meu sobretudo e meu chapéu e conduziu-me a uma sala no segundo andar, a biblioteca de Gantvoort, onde me deixou. Apanhei uma revista de uma pilha na mesa, puxei um cinzeiro para perto e me instalei confortavelmente.

Passou uma hora. Interrompi a leitura e comecei a ficar impaciente. Outra hora... e comecei a ficar inquieto.

Um relógio em algum lugar no térreo começava a bater onze horas, quando entrou na sala um rapaz de uns vinte e cinco ou vinte e seis anos, alto e magro, de pele incrivelmente branca e cabelos e olhos muito escuros.

— Meu pai não voltou ainda — disse ele. — É uma pena o senhor ter esperado todo esse tempo. Posso ajudá-lo em alguma coisa? Meu nome é Charles Gantvoort.

— Não, obrigado. — Levantei-me da cadeira, aceitando a cordial despedida. — Entrarei em contato com ele amanhã.

— Sinto muito — murmurou ele, enquanto nos dirigíamos para a porta.

A caminho do vestíbulo, uma extensão telefônica num canto da sala que acabávamos de deixar começou a tocar baixinho. Parei à porta, enquanto Charles Gantvoort foi atender.

Conservou as costas voltadas para mim enquanto falava.

— Sim. Sim, sim! — Vivamente: — O quê? Sim. — E em tom muito débil: — Sim.

Virou-se devagar e fitou-me com o rosto lívido e descomposto, olhos esbugalhados de espanto e boca aberta, com o telefone ainda na mão.

— Papai — disse com voz embargada. — Morreu... Foi morto!

— Onde? Como?

— Não sei. Era da polícia. Querem que eu vá à delegacia imediatamente. — Endireitou os ombros com um esforço, procurando controlar-se, pôs o telefone no gancho, e sua face descontraiu-se um pouco. — O senhor perdoará...

— Sr. Gantvoort — disse eu, interrompendo-lhe o pedido de desculpas —, sou da Agência Continental de Detetives. Seu pai telefonou-nos esta tarde e pediu que lhe mandássemos um detetive hoje à noite. Disse que sua vida fora ameaçada. Ele não nos havia contratado oficialmente, contudo, de modo que, a menos que o senhor...

— Certamente! O senhor está contratado! Se a polícia não prendeu ainda o assassino, quero que o senhor faça todo o possível para agarrá-lo.

— Muito bem! Vamos, então, à delegacia.

Nenhum de nós falou durante a viagem até o Palácio da Justiça. Gantvoort, curvado sobre o volante, guiava em velocidade alucinante. Diversas perguntas requeriam respostas, mas sua atenção era necessária à direção, para que ele pudesse continuar a guiar daquela maneira sem nos lançar contra algum obstáculo. Não o perturbei, portanto; agüentei e fiquei calado.

Uma meia dúzia de detetives estava à nossa espera quando chegamos à delegacia. O'Gar — um investigador de cabeça redonda, que se veste como um policial de cidadezinha que se vê nos filmes, chapéu preto de aba larga e tudo o mais, mas que nem por isso deve ser menosprezado — era o encarregado da investigação. Havíamos trabalhado juntos em uns dois casos e nos dávamos muito bem.

Ele nos levou a uma pequena sala embaixo da sala de reunião. Vimos, espalhados sobre o tampo liso de uma mesa, uma dúzia ou mais de objetos.

— Quero que o senhor examine essas coisas com todo o cuidado — disse a Gantvoort o investigador-chefe — e separe as que pertenceram a seu pai.

— Mas onde está ele?

— Faça isso primeiro — insistiu O'Gar —, e depois poderá vê-lo.

Olhei para os objetos enquanto Charles Gantvoort fazia a separação: um estojo de jóias vazio; um bloco de memorandos; três cartas em envelopes abertos, endereçadas ao morto; outros papéis; um molhe de chaves; uma caneta-tinteiro; dois lenços brancos de linho; dois cartuchos de pistola; um relógio de ouro, ao qual, presos por uma corrente de ouro e platina, estavam ligados uma faca e um lápis de ouro; duas carteiras de couro, pretas, uma muito nova e a outra usada; um pouco de dinheiro, em cédulas e moedas; e uma pequena máquina de escrever portátil, vergada, torta e coberta de cabelos e sangue Alguns dos objetos também estavam manchados de sangue; outros, não.

Gantvoort separou o relógio e seus apêndices, as chaves, a caneta, o bloco de memorandos, os lenços, as cartas e outros papéis, e a carteira usada.

— Estes eram de papai — disse. — Nunca vi os outros antes. Não sei, naturalmente, quanto ele levava de dinheiro hoje à noite, de modo que não posso dizer quanto do que aqui está pertencia a ele.

— Tem certeza de que nenhum outro objeto lhe pertencia? — perguntou O'Gar.

— Acho que não, mas não tenho certeza. Whipple poderá dizê-lo ao senhor. — Voltou-se para mim. — Whipple é o homem que o recebeu à porta hoje à noite. Cuidava de papai e saberá com certeza se algum desses objetos pertencia ou não a ele.

Um dos detetives foi ao telefone e disse a Whipple para ir imediatamente à delegacia. Reiniciei o interrogatório.

— Está faltando alguma coisa que seu pai habitualmente levava? Alguma coisa de valor?

— Não, que eu saiba. Todas as coisas que se esperaria que ele levasse estão aqui.

— A que horas ele saiu de casa hoje à noite?

— Antes de sete e meia. Possivelmente às sete.

— Sabe para onde ia?

— Não me disse, mas acho que ia fazer uma visita à srta. Dexter.

Os rostos dos detetives presentes mostraram sinais de animação, e seus olhos tornaram-se atentos. Acho que os meus também. Muitos, muitos assassinatos ocorrem sem que uma mulher tenha algum envolvimento neles; mas raramente isso acontece num assassinato muito evidente.

— Quem é essa srta. Dexter? — perguntou O'Gar, retomando o interrogatório.

— Ela é... bem... — Charles Gantvoort hesitou. — Bem, meu pai dava-se muito bem com ela e o irmão. Geralmente visitava-os... visitava-a várias vezes por semana. Para dizer a verdade, acho que ele estava pensando em casar-se com ela.

— Quem é ela? O que faz?

— Papai conheceu-os há seis ou sete meses. Encontrei-me com eles várias vezes, mas não os conheço muito bem. A srta. Dexter... Creda é o primeiro nome dela... tem uns vinte e três anos de idade, acho, e o irmão, Madden, é quatro ou cinco anos mais velho. Está em Nova York agora, ou indo para lá, tratar de uns negócios de meu pai.

— Seu pai lhe disse que ia casar-se com ela? — prosseguiu O'Gar, martelando o ângulo feminino.

— Não, mas era óbvio que ele estava...hã... muito apaixonado. Discutimos o caso há alguns dias... na semana passada. Não foi uma briga, compreendam, apenas uma discussão. Pelo modo como ele falou, receei que quisesse casar-se com ela.

— O que o senhor quer dizer com esse "receei"? — retrucou O'Gar, ao ouvir a palavra.

O pálido rosto de Charles Gantvoort enrubesceu um pouco, e ele pigarreou, embaraçado.

— Não quero que, pelas minhas palavras, os senhores pensem mal dos Dexter. Acho que eles... Tenho certeza de que eles nada tiveram com o que aconteceu com papai... com isto. Mas eu não simpatizava muito com eles... Não gostava deles. Achava que eles eram... bom.... caçadores de fortuna, talvez. Papai não era fabulosamente rico, mas possuía meios consideráveis. E, embora não fosse senil, já passara dos cinqüenta e sete anos; era bastante velho para me fazer crer que Creda Dexter estivesse mais interessada no dinheiro dele do que nele.

— O que me diz do testamento de seu pai?

— O último do qual tenho conhecimento... redigido há três ou quatro anos... deixava tudo para minha esposa e para mim, conjuntamente. O advogado de papai, dr. Murray Abernathy, pode dizer se houve testamento posterior, mas duvido muito.

— Seu pai estava aposentado, não?

— Sim. Transferiu para mim seu negócio de importações e exportações há um ano, mais ou menos. Tinha muitos outros investimentos, mas não estava ativamente empenhado ha administração de qualquer empresa.

O'Gar empurrou para trás o chapéu de policial de cidadezinha, cocou a cabeça redonda e ficou pensativo durante um momento. Depois, voltou-se para mim.

— Há mais alguma coisa que você queira perguntar?

— Há. Sr. Gantvoort, conhece ou ouviu alguma vez seu pai ou alguém falar em Emil Bonfils?

— Não.

— Seu pai lhe contou por acaso que havia recebido uma carta com ameaças? Ou que fora baleado na rua?

— Não.

— Seu pai esteve em Paris em 1902?

— É muito provável. Antes de se aposentar ele viajava ao exterior todos os anos.

 

O'Gar e eu levamos Gantvoort até o necrotério para ver o pai. O morto não era espetáculo agradável de se ver, mesmo para O'Gar e eu, que não o conhecíamos senão de vista. Lembrei-me de que era um homem baixo e ativo, sempre muito bem-vestido e com uma agilidade muito grande para sua idade.

Naquele momento, deitado na lousa, tinha a cabeça transformada numa massa vermelha e mole.

Deixamos Gantvoort no necrotério e voltamos a pé ao Palácio da Justiça.

— Que negócio era aquele sobre Emil Bonfils e Paris, em 1902? — perguntou o investigador-chefe logo que chegamos à rua.

— O seguinte: o morto telefonou à agência esta tarde e disse que recebera uma carta ameaçadora de um certo Emil Bonfils, com quem tivera problemas em Paris no ano de 1902. Disse também que Bonfils o havia alvejado na noite anterior, na rua. Queria que mandássemos alguém para conversar sobre o caso hoje à noite. E disse que em nenhuma circunstância a polícia devia ser chamada... Preferia que Bonfils o matasse a que o problema fosse tornado público. Isso foi tudo o que disse ao telefone. E foi por isso que eu estava por perto quando Charles Gantvoort foi informado da morte do pai.

O'Gar parou no meio da calçada e assobiou baixinho.

— Isso é ótimo! — exclamou. — Espere até voltarmos à delegacia... Vou mostrar-lhe uma coisa.

Whipple esperava na sala de reuniões quando chegamos à delegacia. A primeira vista, exibia um rosto tão liso e impassível como quando me recebera na casa em Russian Hill, cedo, naquela noite. Mas, sob as maneiras do empregado perfeito, ele se contorcia e tremia.

Levamo-lo para a pequena sala onde havíamos interrogado Charles Gantvoort.

Whipple confirmou tudo o que nos dissera o filho do morto. Tinha certeza de que nem a máquina de escrever, nem o estojo de jóias, nem os dois cartuchos ou a carteira nova pertenciam a Gantvoort.

Não conseguimos que nos desse, em palavras, sua opinião sobre os Dexter, mas que não os aprovava era evidente. A srta. Dexter, disse, telefonara três vezes naquela noite, mais ou menos às oito, nove, e nove e trinta. Perguntara todas as vezes pelo sr. Leopold Gantvoort, mas não deixara recado. Pensava Whipple que ela estava à espera de Gantvoort, que não aparecera.

Nada sabia, afirmou, de Emil Bonfils ou de cartas contendo ameaças. Gantvoort estivera fora na noite anterior, de oito até meia-noite. Whipple não o vira de perto o suficiente, quando chegou, para dizer se parecia nervoso ou não. Geralmente, Gantvoort levava uns cem dólares no bolso.

— Há alguma coisa que saiba que Gantvoort levava essa noite que não se encontra entre os objetos em cima da mesa? — perguntou O'Gar.

— Não, senhor. Parece que está tudo aqui... relógio e corrente, dinheiro, bloco de memorandos, carteira, chaves, lenços, caneta-tinteiro... tudo o que eu conheço.

— Charles Gantvoort saiu hoje à noite?

— Não, senhor. Ele e a sra. Gantvoort passaram a noite inteira em casa.

— Tem certeza?

Whipple pensou durante um momento.

— Sim, senhor, tenho quase certeza. Sei que a sra. Gantvoort não saiu de casa. Para dizer a verdade, não vi o sr. Charles das oito horas mais ou menos até ele descer em companhia deste cavalheiro — apontou para mim —, às onze. Mas tenho quase certeza de que ele ficou em casa a noite toda. Acho que a sra. Gantvoort disse que ele ficou.

Então O'Gar fez mais uma pergunta... uma pergunta que me deixou perplexo na ocasião.

— Que tipo de botões de colarinho usava o sr. Gantvoort?

— Quer dizer, o sr. Leopold?

— Sim.

— Todos de ouro, feitos de uma única peça. Tinham a marca de um joalheiro londrino.

— Você os reconheceria se os visse?

— Sim, senhor.

Mandamos Whipple embora para casa.

— Você não acha — sugeri, quando O'Gar e eu ficamos sozinhos junto à escrivaninha cheia de provas que nada me diziam ainda — que é tempo de se abrir e me contar o que há?

— Acho que sim... Escute! Um homem chamado Lagerquist, dono de um armazém de secos e molhados, passava pelo Golden Gate Park, esta noite, de carro, quando cruzou com outro carro em uma alameda escura, com as luzes apagadas. Acho que havia alguma coisa esquisita na maneira como o homem sentava-se ao volante, e, assim, informou ao primeiro patrulheiro que encontrou. O patrulheiro foi investigar e descobriu Gantvoort sentado ao volante... morto... com a cabeça esmagada e esse troço — pôs uma das mãos sobre a máquina de escrever manchada de sangue — no assento ao lado dele. Isso aconteceu às dez e quinze. O médico disse que Gantvoort foi morto... teve a cabeça esmagada, com essa máquina de escrever. Descobrimos — continuou — que os bolsos do morto haviam sido revirados pelo avesso, e todos esses troços aí na mesa, com exceção da carteira nova, estavam espalhados pelo carro... parte no piso e parte nos assentos. Esse dinheiro estava lá também... quase cem dólares. E, entre os papéis, encontramos isto.

Entregou-me uma folha de papel branco, onde havia sido escrito a máquina:

 

           L.F.G.,

Quero o que é meu. Nove mil e seiscentos quilômetros e vinte e um anos não são suficientes para escondê-lo da vítima de sua traição. Quero o que você roubou.

                   E.B.

 

— L. F. G. devem ser as iniciais de Leopoldo F. Gantvoort — falei. — E E. B. poderia ser Emil Bonfils. Vinte e um anos é o tempo transcorrido entre 1902 e 1923, e nove mil e seiscentos quilômetros, aproximadamente, a distância entre Paris e San Francisco.

Coloquei a carta de lado e apanhei o estojo de jóias. Era preto, numa imitação de couro, forrado de cetim branco e sem marca alguma.

Examinei em seguida os cartuchos. Eram dois, S. W. calibre 45, com profundas cruzes na ponta mole dos projéteis — um velho truque que faz a bala abrir-se como um pires quando atinge o alvo.

— Também estavam no carro?'

— Exato... e isto.

Do bolso do colete O'Gar tirou uma curta mecha de cabelo louro — fios de dois.e meio a cinco centímetros de comprimento. Haviam sido cortados, e não arrancados pelas raízes.

— Mais alguma coisa?

Parecia haver uma fieira interminável de coisas.

Ele apanhou na mesa a carteira nova — a que Whipple e Charles Gantvoort diziam que não pertencia ao morto — e passou-a para mim.

— Ela foi encontrada na rua, a cerca de um metro do carro.

Era uma carteira barata, sem nome do fabricante ou as iniciais do dono. Havia nela duas notas de dez dólares, três pequenos recortes de jornal e uma lista datilografada de seis nomes e endereços, encabeçados pelo de Gantvoort.

Os recortes haviam sido aparentemente tirados das colunas de anúncios pessoais de três jornais diferentes — os tipos não eram os mesmos —, e diziam:

 

George... Está tudo resolvido... Não espere demais. D. D. D.

  1. H. T. Não responde. FLO.

Cappy... Às doze em ponto, e ande depressa. BINGO.

 

Os nomes e endereços na lista datilografada encabeçada por Gantvoort eram os seguintes:

 

Quincy Heathcote, 1223 S. Jason Street, Denver; B. D. Thornton, 96 Hughes Circle, Dallas; Luther G. Randall, 615 Columbia Street, Portsmouth; J. H. Boyd Willis, 5444 Harvard Street, Boston; Hannah Hindmarsh, 218 E. 79th Street, Cleveland.

 

— O que mais? — perguntei, depois de ter examinado esses dados.

O estoque do investigador-chefe não se esgotara ainda.

— Os botões de colarinho do morto — o da frente e o de trás — foram levados, embora o colarinho e a gravata ainda estivessem nó lugar. E o sapato esquerdo desapareceu. Procuramos por toda parte, mas não encontramos nem o sapato nem os botões.

— Isso é tudo?

Naquele momento, eu estava preparado para qualquer coisa.

— Mas o que você quer, afinal? — rosnou ele. — Isso não basta?

— O que me diz de impressões digitais?

— Nada de sensacional! Encontramos apenas as do morto.

— E o carro, onde foi encontrado?

— Um cupê pertencente ao dr. Wallace Girargo. Ele telefonou às seis desta noite dizendo que o carro fora roubado de um local perto da esquina de McAllister com Polk Street. Estamos investigando-o... mas acho que está tudo certo com ele.

Os objetos identificados por Whipple e Charles Gantvoort como pertencentes ao morto nada nos disseram. Fizemos um exame cuidadoso neles, mas sem proveito. O bloco de memorandos continha numerosas anotações, mas pareciam estranhas ao assassinato. As cartas tampouco tinham importância.

O número de série da máquina com a qual fora cometido o crime havia sido removido, descobrimos... aparentemente limado.

— Bom, o que acha? — perguntou O'Gar quando desistimos de examinar nossas pista e recostamo-nos para fumar.

— Acho que queremos encontrar monsieur Emil Bonfils.

— Isso não faria mal algum — grunhiu ele. — Acho que a melhor coisa a fazer é entrar em contato com essas cinco pessoas da lista que têm o nome de Gantvoort. Acha que é uma lista de assassinatos? Que esse Bonfils está pensando em matar todos eles?

— Talvez. De qualquer maneira, precisamos falar com eles. Talvez descubramos que alguns deles já foram mortos. Mas, tenham sido mortos ou não, devam ser mortos ou não, é claro que eles têm alguma ligação com o caso. Vou enviar alguns telegramas para as filiais da agência, pedindo que investiguem os nomes da lista. Vou ver se descubro também a origem desses recortes.

O'Gar lançou um olhar ao relógio e bocejou.

— Já passa das quatro. Que tal pararmos por aqui e dormirmos um pouco? Vou deixar instruções para que o perito do departamento compare os tipos da máquina com os da carta assinada E. B. e com os da lista para ver se foram escritas nela. Acho que foram, mas quero ter certeza. Logo que clarear, vou ordenar uma busca no parque, em volta do local onde encontramos Gantvoort, e talvez apareçam os botões de colarinho e o sapato. E mandarei dois rapazes visitarem as lojas que vendem máquinas de escrever aqui na cidade para ver se descobrem alguma coisa a respeito desta aqui.

Parei na agência de telégrafo mais próxima e expedi uma pilha de mensagens. Depois, fui para casa para sonhar com coisas que nem remotamente tinham ligação com crimes ou com o trabalho de investigação.

 

Às onze horas da mesma manhã, disposto e recuperado após cinco horas de sono, cheguei à delegacia, onde encontrei O'Gar derreado na escrivaninha, olhando, atordoado, para um sapato preto, meia dúzia de botões de colarinho, uma chave plana e enferrujada, e um jornal amassado — tudo arrumado à sua frente.

— O que significa tudo isso aí? Lembranças de seu casamento?

— Bem que poderiam ser. — Havia profundo desgosto em sua voz. — Escute só esta: um dos faxineiros do Seamen's National Bank encontrou um pacote no vestíbulo quando começou a limpeza esta manhã. Continha este sapato... o sapato desaparecido de Gantvoort... embrulhado nesta folha do Philadelphia Record, um número de cinco dias atrás, com esses botões do colarinho e esta velha chave. O salto do sapato, como pode ver, foi arrancado e está ainda desaparecido. Whipple identificou-o positivamente, bem como dois dos botões de colarinho, mas nunca viu essa chave antes. Os outros quatro botões são novos e do tipo comum, folheado a ouro. Ao que parece, a chave não foi usada durante muito tempo. O que você pensa de tudo isso?

Não consegui pensar coisa alguma.

— Por que foi que o faxineiro mandou essas coisas para cá?

— Oh, a notícia está em todos os jornais... tudo a respeito do sapato desaparecido, dos botões de colarinho e de tudo o mais.

— O que você descobriu sobre a máquina de escrever? — perguntei.

— A carta e a lista foram escritas nela, quanto a isso não há dúvida. Mas não conseguimos descobrir ainda onde foi comprada. Conferimos a história do médico dono do cupê, e ele está inocente. Verificamos a maneira como ele passou todas as horas da noite. Lagerquist, o dono de armazém que encontrou Gantvoort, parece inocente também. O que foi que você fez?

— Não recebi ainda resposta dos telegramas que enviei ontem à noite. Passei pela agência a caminho daqui esta manhã e despachei quatro detetives para cobrir os hotéis e procurar os nomes de todos os Bonfils que possam encontrar... há duas ou três famílias com esse nome no catálogo telefônico. Enviei também um telegrama à filial de Nova York, para que verifiquem nas listas de passageiros das companhias de navegação se um tal Emil Bonfils chegou recentemente. E mandei um cabograma ao nosso correspondente em Paris, para ver se ele pode descobrir alguma coisa.

— Acho que precisamos conversar com o advogado de Gantvoort... Abernathy... e aquela Dexter, antes de qualquer outra coisa — disse o investigador-chefe.

— Concordo — falei. — Vamos procurar primeiro o advogado. Ele é o mais importante, do jeito como as coisas estão agora.

Murray Abernathy, o advogado, era um senhor alto e magro, de fala pausada, e que ainda usava camisa de peitilho engomado. Estava imbuído demais do que julgava ser ética profissional para nos dar toda a ajuda que esperávamos. Mas, deixando-o falar, isto é, deixando-o divagar livremente, conseguimos umas poucas informações, que foram as seguintes:

O morto e Creda Dexter haviam planejado casar-se na quarta-feira seguinte. Ao que parecia, o filho dele e o irmão dela se opunham ao casamento, de modo que Gantvoort e Creda haviam resolvido casar-se secretamente em Oakland e tomar. um navio para o Oriente na mesma tarde, achando que, quando a longa lua-de-mel terminasse, poderiam voltar para um filho e um irmão que já se houvessem resignado com o casamento.

Um novo testamento fora preparado, deixando metade do espólio de Gantvoort para a nova esposa e metade para o filho e a nora. O novo testamento, porém, não fora ainda assinado, e Creda Dexter sabia desse fato. Ela sabia — e este foi um dos poucos pontos sobre os quais Abernathy fez uma declaração categórica — que, de acordo com o antigo testamento, ainda em vigor, Charles Gantvoort e a esposa herdariam tudo.

Calculamos, à vista das declarações indiretas e alusões, que o espólio de Gantvoort montava a cerca de um milhão e meio de dólares em dinheiro. O advogado nunca ouvira falar em Emil Bonfils e tampouco em ameaças ou tentativas de morte contra o falecido. Nada sabia — ou não nos queria dizer — que pudesse lançar um pouco de luz sobre a natureza daquilo que a carta de ameaça acusava o morto de ter roubado.

Do escritório de Abernathy fomos até o apartamento de Creda, situado em um novo e caro edifício de apartamentos, a alguns minutos a pé da residência de Gantvoort.

Creda Dexter era uma mulher baixinha, no início da casa dos vinte. A primeira coisa que nela chamava a atenção eram os olhos, grandes, profundos, cor de âmbar, cujas pupilas jamais paravam, nem por um único momento. Mudavam sem parar de tamanho, expandiam-se e contraíam-se — devagar às vezes, subitamente em outras —, variando sem cessar de um tamanho de cabeça de alfinete a uma extensão que quase ocupava toda a íris cor de âmbar.

Por seus olhos, era fácil ver que se tratava de uma mulher profundamente felina. Seus movimentos eram lentos, suaves, seguros como os de um gato; e os contornos da face muito bonita, a forma da boca, o pequeno nariz, o conjunto dos olhos e o arqueado das sobrancelhas eram todos felinos. O efeito era ainda intensificado pela maneira como ela usava o cabelo espesso e fulvo.

— O Sr. Gantvoort e eu — disse ela, depois de dadas as explicações preliminares — íamos nos casar depois de amanhã. O filho dele e a nora eram contra o casamento, assim como meu irmão, Madden. Acho que pensavam que era grande demais nossa diferença de idade. Assim, para evitar qualquer caso desagradável, pensamos em nos casar secretamente e viajar durante um ano ou mais, na certeza de que eles teriam esquecido todas as queixas quando voltássemos.

— Foi por isso — continuou — que o sr. Gantvoort convenceu Madden a ir a Nova York. Ele tinha alguns negócios nessa cidade... alguma coisa relativa à liquidação de seus interesses numa aciaria... que usou como pretexto para tirar Madden do caminho até que iniciássemos a viagem de lua-de-mel. Madden mora aqui comigo, e teria sido impossível, de minha parte, fazer qualquer preparativo para a viagem sem que ele notasse.

— O sr. Gantvoort esteve aqui na noite passada? — perguntei.

— Não, mas eu estava à espera dele... íamos sair. Ele geralmente vinha a pé... são apenas uns poucos quarteirões. Às oito horas, como ele não havia chegado, telefonei para a casa dele. Whipple informou que ele havia saído quase uma hora antes. Tornei a ligar mais duas vezes. Esta manhã, telefonei novamente, antes de ler os jornais, e soube que ele...

Parou, com a voz embargada — o único sinal de mágoa exibido durante toda a entrevista. A impressão que dela nos haviam dado Charles Gantvoort e Whipple preparara-nos para uma exibição mais ou menos refinada de sofrimento. Mas ela nos desapontou. Nada havia de grosseiro em sua atuação... e ela nem mesmo verteu lágrimas para nós.

— O sr. Gantvoort esteve aqui anteontem à noite?

— Sim. Chegou um pouco depois das oito e ficou até quase meia-noite. Nós não saímos.

— Ele veio e voltou a pé?

— Sim, tanto quanto sei.

— Ele falou alguma coisa a respeito de uma ameaça a sua vida?

— Não. — Sacudiu, resoluta, a cabeça.

— A senhora sabe alguma coisa a respeito de um certo Emil Bonfils?

— Não.

— Ouviu alguma vez o sr. Gantvoort mencionar esse nome?

— Não.

— Em que hotel está hospedado seu irmão em Nova York?

As inquietas pupilas pretas da moça alargaram-se abruptamente, como se fossem derramar-se por todas as áreas brancas dos olhos. Foi a primeira indicação de medo que notei. Mas, à parte essas pupilas reveladoras, a compostura dela permaneceu inalterada.

— Não sei.

— Quando ele partiu de San Francisco?

— Quinta-feira... há quatro dias.

Depois que deixamos o apartamento de Creda Dexter, O'Gar e eu caminhamos seis ou sete quarteirões em pensativo silêncio. Ele falou, então:

— Uma gatinha insinuante, aquela mulher! Coce-a do lado certo, e ela ronrona bonitinho. Coce-a do lado errado... e cuidado com as garras!

— O que foi que você achou daquele relâmpago nos olhos dela quando lhe perguntei sobre o irmão? — indaguei.

— Há alguma coisa... mas não sei o quê! Não faria mal mandar investigá-lo e verificar se ele está realmente em Nova York. Se estiver lá hoje, é claro que não estava aqui ontem à noite... Até mesmo os aviões postais levam vinte e seis ou vinte e oito horas de viagem.

— Faremos isso — concordei. — Parece que Creda Dexter não tem muita certeza se o irmão está ou não implicado no assassinato. E nada há para demonstrar que Bonfils não ajudou. Ainda assim, não posso imaginar Creda tomando parte no crime. Ela sabia que o testamento não havia sido assinado. Não haveria sentido em fazer alguma coisa para perder aqueles três quartos de milhão.

Enviamos um longo telegrama à filial da Continental em Nova York, e em seguida passamos pela agência para ver se havia chegado alguma resposta às mensagens que eu mandara na noite anterior.

Havia.

Não fora encontrada pessoa alguma cujos nomes apareciam na lista datilografada de Gantvoort, nenhum traço de nenhum deles. Dois dos endereços estavam inteiramente errados. Não havia casas com esses números nas ruas mencionadas... e nunca houvera.

 

O'Gar e eu passamos o resto da tarde vasculhando a rua entre a casa de Gantvoort, em Russian Hill, e os prédios onde residiam os Dexter. Interrogamos todas as pessoas que encontramos — homem, mulher, criança —, que viviam, trabalhavam ou brincavam ao longo de qualquer um dos três caminhos que o morto poderia ter tomado.

Não descobrimos pessoa alguma que houvesse ouvido o tiro disparado por Bonfils na noite anterior ao assassinato. Tampouco alguém que tivesse notado algo de suspeito na noite do crime. Nem pessoa alguma que se lembrasse de tê-lo visto tomar o cupê.

Em seguida, visitamos a casa de Gantvoort e interrogamos Charles Gantvoort uma segunda vez, a esposa e todos os empregados — sem nada descobrir. Tanto quanto eles sabiam, coisa alguma pertencente ao morto desaparecera — ou coisa alguma pequena o suficiente para ser escondida num salto de sapato.

Os sapatos usados na noite do crime faziam parte de um conjunto de três pares que ele mandara fazer em Nova York dois meses antes. Ele poderia ter tirado o salto do pé esquerdo e aberto nele um espaço suficiente para ocultar um pequeno objeto, pregando-o novamente à sola, embora Whipple insistisse em que teria notado os vestígios de alguma manipulação no sapato, a menos que tivesse sido obra de um sapateiro habilidoso.

Esgotado esse campo de pesquisas, voltamos à agência. Um telegrama acabara de chegar da filial de Nova York, dizendo que nenhuma das companhias de navegação tinha registro da chegada de qualquer Emil Bonfils, viesse ele da Inglaterra, da França ou da Alemanha, nos últimos seis meses.

Os detetives que haviam dado busca na cidade à procura dos Bonfils voltaram também de mãos vazias. Haviam descoberto e investigado onze pessoas de nome Bonfils em San Francisco, Oakland, Berkeley e Alameda. As investigações haviam definitivamente provado a inocência de todas elas. Nenhum desses Bonfils conhecia Emil Bonfils. Uma inspeção nos hotéis nada revelou.

O'Gar e eu fomos jantar, uma calada e mal-humorada refeição durante a qual nenhum de nós chegou a pronunciar seis palavras, e voltamos em seguida para a agência, onde encontramos outro telegrama de Nova York.

 

Madden Dexter chegou ao McAlpin Hotel esta manhã com uma procuração para vender os interesses de Gantvoort na B. F. and F. Iron Corporation. Nega saber alguma coisa sobre Emil Bonfils e o assassinato. Espera concluir negócios e partir para San Francisco amanhã.

 

Deixei cair a folha de papel onde havia decodificado o telegrama e sentamo-nos, apáticos, um de frente para o outro, à minha escrivaninha, entreolhando-nos com uma expressão vaga e ouvindo o ruído dos baldes da faxineira no corredor.

— Este caso é engraçado — disse, finalmente, O'Gar, em voz baixa, como se falando consigo mesmo.

Inclinei a cabeça, assentindo. Era.

— Temos nove pistas — disse ele, logo depois — e nenhuma delas nos levou a coisa alguma. Número 1: o morto telefonou para vocês e disse que fora ameaçado e alvejado por Emil Bonfils, com quem tivera uma encrenca em Paris há muito tempo. Número 2: a máquina de escrever com que foi assassinado e a carta e a lista que nela foram escritas. Estamos tentando ainda descobrir a origem da máquina, mas sem sucesso até agora. Que diabo de arma foi aquela, por falar nisso? Parece que esse cara, Bonfils, ficou furioso e atacou Gantvoort com a primeira coisa que lhe caiu nas mãos. Mas o que fazia a máquina de escrever num carro roubado? E por que foram limados os números de série?

Sacudi a cabeça para dizer que não tinha o menor palpite sobre o assunto. O'Gar continuou a enumerar nossas pistas:

— Número 3: a carta contendo a ameaça, que confirma o que Gantvoort disse ao telefone naquela tarde. Número 4: aquelas duas balas com cruzes talhadas na ponta. Número 5: o estojo de jóias. Número 6: aquela mecha de cabelo louro. Número 7: o fato de que o sapato e os botões de colarinho do morto foram levados. Número 8: a carteira encontrada na estrada com duas notas de dez dólares, três recortes de jornal, e a lista. Número 9: a descoberta do sapato no dia seguinte, embrulhado num jornal velho de cinco dias, da Filadélfia, com os botões de colarinho desaparecidos, e mais quatro outros, e uma chave enferrujada. Essa é a lista. Se significa alguma coisa, é que Emil Bonfils, quem quer que ele seja, foi roubado em alguma coisa por Gantvoort, em Paris, em 1902, e que veio recuperá-la. Apanhou Gantvoort na noite passada com um carro roubado, e trazendo consigo a máquina de escrever... mas só Deus sabe por que motivo! Gantvoort discutiu com ele, e Bonfils esmagou-lhe a cabeça com a máquina, revistando em seguida seus bolsos, mas aparentemente sem levar coisa alguma. Chegou à conclusão de que aquilo que procurava se encontrava no sapato esquerdo de Gantvoort e, assim, levou-o consigo. Em seguida... mas não há sentido no truque dos botões de colarinho, na lista falsa, ou no...

— Sim, há! — interrompi-o, sentando-me inteiramente alerta na cadeira. — Essa é a nossa décima pista... a que vamos seguir a partir de agora. Aquela lista era, exceto pelo nome e endereço de Gantvoort, falsa. Nossa gente teria descoberto pelo menos um dos cinco nomes da lista, se eles fossem de pessoas reais. Mas não encontraram o menor traço de nenhum deles. E dois dos endereços eram de números de rua que nem existem! A lista foi forjada, colocada na carteira com os recortes de jornal e os vinte dólares, para tornar a coisa mais convincente, e jogada na rua perto do carro para nos desnortear. E se é assim, aposto cem contra um que o resto das coisas foi forjado também. A partir de agora, vou considerar essas nove lindas pistas sem valor algum. E vou agir em sentido exatamente contrário ao delas. Vou procurar um homem cujo nome não é Emil Bonfils, cujas iniciais não são nem E nem B, que não é francês, não esteve em Paris em 1902, não tem cabelo louro, não anda com uma pistola calibre 45 e nem tem interesse pelas colunas de anúncios pessoais dos jornais. Um homem que não matou Gantvoort para recuperar qualquer coisa que pudesse estar escondida num sapato ou num botão de colarinho. É esse o tipo de cara que vou caçar a partir de agora!

O investigador-chefe apertou, pensativo, os pequenos olhos azuis e cocou a cabeça.

— Talvez isso não seja tão tolo como parece! — comentou. — Você pode ter razão. Suponhamos que tenha. E então? Aquela gatinha Dexter não o matou... Isso lhe custaria três quartos de milhão de dólares. O irmão não o fez... Está em Nova York. Além disso, não matamos um cara simplesmente porque pensamos que ele é velho demais para se casar com nossa irmã. Charles Gantvoort. Ele e a esposa são os únicos que teriam algum dinheiro a ganhar se o velho morresse antes de assinar o novo testamento. Temos apenas a palavra deles de que Charles ficou em casa naquela noite. Os empregados não o viram entre oito e onze. Você estava lá e só o viu às onze. Mas você e eu acreditamos quando ele diz que esteve em casa durante toda aquela noite. E nenhum de nós pensa que ele liquidou o velho... embora, naturalmente, pudesse ter feito isso. Quem, então?

— Aquela Creda Dexter — sugeri — ia casar-se com Gantvoort por causa do dinheiro dele, não? Você não pensa que ela estava apaixonada por ele, pensa?

— Não. Acho, pelo que vi dela, que estava apaixonada pelo milhão e meio.

— Muito bem — continuei. — Ela não é exatamente feia... não em absoluto. Você acha que Gantvoort foi o único homem a se apaixonar por ela?

— Compreendo o que você quer dizer! — exclamou O'Gar. — Você quer dizer que pode ter havido algum jovem no páreo, mas que não possuía um milhão e meio, e não gostou de ser trocado pelo homem que o possuía. Talvez, talvez.

— Bem, que tal esquecermos todas essas pistas em que estávamos trabalhando e tentar esse novo ângulo?

— De acordo — disse ele. — A partir de amanhã de manhã passaremos nosso tempo caçando o rival de Gantvoort à pata daquela gatinha.

 

Certo ou errado, foi isso o que fizemos. Guardamos todas aquelas lindas pistas numa gaveta, fechamos a gaveta e as esquecemos lá. Em seguida, lançamo-nos ao trabalho para descobrir e investigar as relações masculinas de Creda Dexter à procura do assassino.

Mas não foi tão simples como parecia.

Nenhuma das investigações do passado da moça conseguiu trazer à luz um único homem que se pudesse considerar como seu pretendente. Ela e o irmão encontravam-se havia três anos em San Francisco. Seguimos a pista deles durante todo esse período, de apartamento em apartamento. Interrogamos todos os que a conheciam, mesmo de vista. Ninguém sabia de um único homem que se houvesse interessado por ela, com exceção de Gantvoort. Ninguém, aparentemente, a vira em companhia de outro homem que não fosse Gantvoort ou o irmão.

Tudo isso, conquanto não nos levasse a parte alguma, pelo menos convenceu-nos de que estávamos na pista certa. Deveria ter havido, argumentamos, pelo menos um único homem em sua vida nesses três anos, além de Gantvoort. Ela não era, a menos que estivéssemos muito enganados, o tipo de mulher que desencorajaria atenções masculinas, e era decerto bem dotada pela natureza para atraí-las. E, se havia outro homem, o próprio fato de se ter mantido tão escondido aumentava a probabilidade de que estivesse envolvido na morte de Gantvoort.

Não conseguimos descobrir onde haviam residido os Dexter antes da chegada a San Francisco, mas não estávamos muito interessados na vida anterior de ambos. Naturalmente, era possível que algum velho amante houvesse ressurgido em cena recentemente; mas, nesse caso, teria sido mais fácil identificar a ligação recente do que a antiga.

Não havia dúvida, como demonstraram nossas investigações, de que o filho de Gantvoort estivera certo ao pensar que os Dexter eram caçadores de fortuna. Todas as suas atividades indicavam isso, embora não parecesse haver alguma coisa inequivocamente criminosa no passado de ambos.

Fui outra vez procurar Creda Dexter e passei uma tarde inteira em seu apartamento, submetendo-a a uma enxurrada de perguntas, todas elas a respeito de seus antigos casos amorosos. Quem havia ela abandonado para ficar com Gantvoort e seu milhão e meio de dólares? A resposta era sempre ninguém — uma resposta que resolvi não aceitar.

Mandamos segui-la dia e noite... e isso não nos levou um único centímetro à frente. Talvez ela desconfiasse de que estava sendo vigiada. De qualquer maneira, só em casos raros deixava o apartamento, e mesmo assim por motivos os mais inocentes. Colocamos o apartamento sob vigilância, estivesse ela em casa ou não. Ninguém a visitou. Grampeamos seu telefone... e a escuta resultou em nada. Fiscalizamos sua correspondência, e ela não recebeu uma única carta, nem mesmo folhetos de propaganda.

Nesse ínterim, descobrimos de onde haviam sido tirados os três recortes de jornais encontrados na carteira: das colunas de anúncios pessoais de jornais de Nova York, Chicago e Portland. O do jornal de Portland fora publicado dois dias antes do assassinato; o de Chicago, quatro dias; e o de Nova York, cinco. Todos eles estavam à venda nas bancas de San Francisco no dia do crime — prontos para serem comprados e cortados por uma pessoa interessada em reunir material para confundir detetives.

O correspondente parisiense da agência descobrira nada menos do que seis Emil Bonfils — todos eles fora da jogada no que nos dizia respeito —, e investigava três outros.

O'Gar e eu, porém, não nos preocupávamos mais com Emil Bonfils — pista essa morta e enterrada. Continuávamos a trabalhar em nossa nova tarefa: a identificação do rival de Gantvoort.

Assim passaram-se os dias e assim estava o caso no dia em que Madden Dexter retornou de Nova York.

Nossa filial conservara-o sob vigilância até o rapaz deixar a cidade, e avisou-nos de sua partida. Eu sabia, assim, em que trem ele chegaria, e queria fazer-lhe umas perguntas antes que a irmã falasse com ele. Madden poderia dizer-me o que eu queria saber, e talvez estivesse disposto a fazê-lo, se conseguisse falar com ele antes que a irmã tivesse oportunidade de calá-lo.

Se o houvesse conhecido de vista, poderia tê-lo identificado quando saltou do trem em Oakland, mas isso não acontecera. E não queria levar Charles Gantvoort ou outra pessoa para indicá-lo a mim.

Assim, fui até Sacramento naquela manhã e lá tomei o trem. Coloquei meu cartão num envelope e entreguei-o ao moço de recados da estação. Segui-o então pelo trem enquanto chamava em voz alta:

— Sr. Dexter! Sr. Dexter!

No último vagão, o vagão panorâmico, um homem magro, de cabelos escuros, vestindo um terno bem-feito, desviou os olhos da janela, de onde observava a plataforma da estação, e estendeu a mão para o rapaz.

Estudei-o com cuidado enquanto ele, nervoso, rasgava o envelope e lia o cartão. O queixo lhe tremeu um pouco, acentuando a fraqueza de uma face que, na melhor das hipóteses, não tinha nada de forte. Achei que ele contava entre vinte e cinco e trinta anos. Usava cabelos repartidos ao meio e colados ao crânio à custa de brilhantina, e tinha grandes olhos castanhos, expressivos demais, um nariz pequeno e bem-modelado, bigode castanho bem-aparado e lábios vermelhos e macios — enfim, aquele tipo.

Quando ele levantou os olhos do cartão, sentei-me na poltrona vazia ao seu lado.

— Sr. Dexter?

— Sim — respondeu ele. — Acho que é sobre a morte do sr. Gantvoort que o senhor quer falar-me, não?

— Hum, hum. Eu gostaria de lhe fazer umas perguntas, e, já que estava em Sacramento, pensei que, vindo no trem com o senhor, poderia fazê-las sem lhe tomar muito tempo.

— Se houver alguma informação que lhe possa dar — garantiu-me ele —, terei muito prazer em fazê-lo. Mas contei aos detetives de Nova York tudo o que sabia e, aparentemente, eles não deram muita importância.

— Bom, a situação mudou desde que o senhor saiu de Nova York. — Atento, observei-lhe a face enquanto falava. — O que julgamos então sem valor talvez seja justamente o que queremos agora.

Interrompi-me. Ele umedeceu os lábios e evitou-me os olhos. Talvez não soubesse coisa alguma, pensei, mas estava certamente nervoso. Deixei-o à espera durante alguns minutos, enquanto fingia estar imerso em profundos pensamentos. Se eu o trabalhasse bem, tinha confiança em que poderia virá-lo pelo avesso. Ele não parecia ser feito de material muito resistente.

Estávamos sentados com as cabeças muito próximas uma da outra, de modo que os quatro ou cinco outros passageiros que se encontravam no vagão não podiam ouvir nossa conversa. E essa posição me favorecia. Uma coisa que todos os detetives sabem é que é muito fácil obter informações — mesmo uma confissão — de um indivíduo fraco simplesmente aproximando o rosto do dele e falando em voz alta. Eu não podia falar alto ali, mas a proximidade de nossos rostos constituía em si uma vantagem.

— Entre os homens com quem sua irmã se dava — disse eu finalmente —, quem, fora o sr. Gantvoort, era o mais interessado nela?

Ele engoliu audivelmente em seco, olhou pela janela, relanceou os olhos para mim e, novamente, voltou-se para a janela.

— Para dizer a verdade, não sei.

— Muito bem. Vamos pôr a coisa nos seguintes termos: suponhamos que estejamos dispostos a investigar todos os homens interessados nela e por quem ela se interessava.

Ele continuou a olhar fixamente pela janela.

— Quem seria o primeiro? — insisti.

Ele voltou os olhos para me fitar durante um segundo, e havia uma espécie de tímido desespero neles.

— Sei que isso parece tolice, mas eu, o irmão dela, não lhe poderia dar o nome de um único homem sequer em quem Creda estivesse interessada antes de conhecer Gantvoort. Tanto quanto sei, ela jamais sentiu a menor coisa por homem algum antes de conhecê-lo. Naturalmente, é possível que tenha havido alguma pessoa que eu desconheça, mas...

Parecia mesmo uma rematada tolice, certo! Achava pouco provável que a Creda Dexter com quem eu conversara, a gatinha insinuante, como a chamara O'Gar, pudesse viver por muito tempo sem ter um homem a reboque. Aquele cara bonitinho a minha frente estava mentindo. Não poderia haver outra explicação.

Pressionei-o. Mas, quando chegamos a Oakland no princípio daquela noite, ele continuava a repetir a declaração inicial — que Gantvoort era o único pretendente que conhecia. E eu sabia que havia cometido um erro crasso, havia subestimado Madden Dexter, jogara mal minhas cartas ao tentar desarmá-lo logo, indo diretamente demais ao ponto que me interessava. Ou ele era muito mais forte do que eu pensara, ou seu interesse em esconder o assassino de Gantvoort era muito maior do que eu imaginava.

Mas uma coisa eu sabia: se Dexter mentia, e não poderia haver dúvida a esse respeito, então Gantvoort tinha tido um rival e Madden Dexter julgava, ou sabia, que ele matara Gantvoort.

Ao deixarmos o trem em Oakland, sabia que fora derrotado, que ele não ia me contar o que eu queria saber... não naquela noite, de qualquer maneira. Mas fiquei ao seu lado, grudei-me a ele quando tomamos a barca para San Francisco, a despeito de seu óbvio desejo de livrar-se de mim. Há sempre a possibilidade de que algo de inesperado aconteça. Assim, continuei a bombardeá-lo com perguntas enquanto nossa barca deixava o ancoradouro.

Logo depois, um homem aproximou-se de nós — um homem alto e troncudo, usando um sobretudo fino e carregando uma mala preta.

— Olá, Madden! — disse ele ao meu companheiro, caminhando em sua direção com a mão estendida. — Acabei de chegar e estava tentando lembrar seu número de telefone — disse, pondo a mala no chão e apertando calorosamente a mão do amigo.

Madden Dexter voltou-se para mim.

— Quero apresentar-lhe o sr. Smith — disse, e, em seguida, deu meu nome ao cavalheiro alto e acrescentou: — Ele trabalha aqui para a Agência Continental de Detetives.

Esse rótulo, evidentemente um aviso a Smith, fez com que eu me pusesse de pé, atento. Mas a barca estava apinhada de gente. Havia umas cem pessoas em torno de nós. Relaxei, sorri cordialmente e apertei a mão de Smith. Quem quer que fosse Smith, e qualquer ligação que pudesse ter com o assassinato — e se não tinha, qual o motivo da pressa de Dexter em informá-lo de minha identidade? —, ele não poderia fazer coisa alguma ali. A multidão em volta era uma vantagem para mim.

Esse foi meu segundo erro naquele dia.

A mão esquerda de Smith mergulhara no bolso do sobretudo, ou melhor, através de uma daquelas aberturas verticais de certos tipos de sobretudo que permitem que se alcance o bolso do paletó sem ser preciso desabotoar o casaco. A mão penetrara naquela fresta, e o sobretudo abriu-se o suficiente para que eu visse na sua mão uma automática de cano curto — oculta de todos os presentes, menos de mim — apontando para minha cintura.

— Vamos até o tombadilho? — perguntou Smith... e aquilo era uma ordem.

Hesitei. Não queria deixar a companhia de todas aquelas pessoas tão inocentemente sentadas ou de pé a nossa volta. Mas Smith não tinha a cara de um homem cauteloso. Parecia o tipo de indivíduo que podia, com a maior facilidade, ignorar a presença de cem testemunhas.

Virei-me e atravessei a multidão. Ele colocou cordialmente a mão direita em meu ombro enquanto me seguia, continuando, sob o sobretudo, a segurar com a esquerda a arma de encontro a minha espinha.

O tombadilho estava deserto. Um nevoeiro pesado, úmido como chuva — o nevoeiro de San Francisco em noites de inverno —, cobrira o barco e a água e expulsara todos os passageiros para o interior. Envolvia-nos, espesso e impenetrável. Eu não conseguia distinguir o outro lado do barco, a despeito das luzes acesas em cima.

Parei.

Smith cutucou-me as costas.

— Mais para longe, onde possamos conversar — rouquejou em meu ouvido.

Continuei a andar até chegar à balaustrada.

A parte posterior de minha cabeça queimou com um fogo súbito... pequeninos pontos de luz brilharam na escuridão à frente... aumentaram... vieram correndo em minha direção...

 

Semiconsciência! Descobri que me conservava mecanicamente à tona d'água e que tentava tirar o sobretudo. A parte traseira de minha cabeça latejava horrivelmente.

Meus olhos queimavam. Senti-me pesado e morto, como se tivesse bebido galões de água.

O nevoeiro baixo e espesso cobria a água, e nada podia ser visto em parte alguma. Quando consegui livrar-me do incômodo sobretudo, a cabeça já havia clareado um pouco, mas, com a volta da consciência, aumentou a dor.

Uma luz nevoenta brilhou à frente e desapareceu em seguida. De dentro do cobertor do nevoeiro, de todas as direções, numa dúzia de timbres diferentes, de perto e de longe, soavam buzinas de aviso. Parei de nadar e boiei de costas, tentando descobrir onde me encontrava.

Após um momento, ouvi os lamentos, a intervalos regulares, da sirena de Alcatraz. Mas ela nada me dizia. Chegava-me pelo nevoeiro, sem direção alguma, e parecia atingir-me vinda de cima.

Eu me encontrava nalgum lugar na baía de San Francisco, isso era tudo o que sabia, embora desconfiasse de que a corrente estava me levando para o mar aberto, na direção do Golden Gate.

Passou-se algum tempo e tive certeza de que deixara a rota das barcas de Oakland, pois nenhuma delas passara por perto já há algum tempo. Naquele nevoeiro, era muito mais provável que um barco me atropelasse do que me salvasse.

A água estava me congelando, e, assim, virei-me e comecei a nadar, com vigor suficiente apenas para conservar o sangue em circulação, enquanto economizava forças até que tivesse um objetivo definido a alcançar.

Uma buzina começou a repetir sua urrada nota cada vez mais perto, e logo depois as luzes do barco a que pertencia apareceram. Era uma das barcas de Sausalito, pensei.

A sua aproximação, gritei até ficar sem fôlego e com a garganta seca. A buzina da barca, porém, apitando seu aviso, abafou-me os gritos.

O barco continuou em sua rota, e o nevoeiro fechou-se por trás dele.

A corrente estava mais forte nesse momento, e o esforço para atrair a atenção da barca de Sausalito me deixara mais fraco. Boiei, descansando, e deixei que a água me levasse para onde quisesse.

Outra luz apareceu inesperadamente à frente, permaneceu no lugar onde se encontrava por alguns instantes e desapareceu em seguida.

Comecei a berrar, agitei feito louco braços e pernas, tentando nadar até o local onde a vira.

Nunca mais a vi.

Fui tomado pelo cansaço e por uma sensação de inutilidade. A água não estava mais fria. Achei-a quente, confortável, de uma dormência tranqüilizadora. A cabeça deixou de latejar e não me incomodou mais. Não havia mais luzes, apenas o som das buzinas de nevoeiro... buzinas de nevoeiro... buzinas de nevoeiro à frente, atrás, de cada lado, aborrecendo-me, irritando-me.

Não fossem as sirenas lamentosas eu teria deixado de resistir. Elas se haviam transformado no único detalhe desagradável na situação em que me encontrava: a água era agradável, o cansaço era agradável. As buzinas, porém, atormentavam-me. Amaldiçoei-as impacientemente e resolvi nadar até onde não pudesse ouvi-las mais, para depois, no sossego do nevoeiro amigo, dormir...

Vez por outra, eu cochilava, mas era despertado pelo triste som das sirenas.

— Essas malditas buzinas! Essas malditas buzinas! — queixei-me, repetidamente, em voz alta.

Uma delas, descobri logo depois, aproximava-se de mim pela retaguarda, tornando-se mais alta e mais forte. Virei-me e esperei. Luzes, fracas e esfumaçadas, apareceram.

Com uma exagerada cautela, evitando todo o espadanar, nadei para um lado. Quando esse incômodo houvesse passado, eu poderia dormir. Soltei um risinho quando as luzes seguiram em frente, sentindo-me totalmente triunfante e devido à astúcia com que evitei a barca. Aquelas malditas buzinas...

A vida, a vontade de viver, inesperadamente tomou conta de todo o meu ser.

Gritei para a barca que passava, e cada fibra de meu ser lutou para alcançá-la. Entre as braçadas, eu levantava a cabeça e gritava...

 

Ao recuperar a consciência pela segunda vez naquela noite, descobri que estava deitado de costas sobre um carrinho de bagagem em movimento. Homens e mulheres apinhavam-se a minha Volta, caminhando ao lado do carrinho e olhando-me, curiosos. Sentei-me.

— Onde estamos? — perguntei.

Um homenzinho de rosto vermelho, uniformizado, respondeu:

— Acabamos de desembarcar em Sausalito. Fique quieto. Vamos levá-lo para o hospital.

Olhei em volta.

— Quanto tempo demora até que essa barca volte a San Francisco?

— Vai voltar imediatamente.

Deslizei para fora do carrinho e voltei em direção à barca.

— Vou nela — anunciei.

Meia hora depois, arrepiado e tremendo dentro das roupas molhadas, conservando a boca cerrada para que meus dentes não dessem a impressão de um jogo de dados, tomei um táxi na estação das barcas e dirigi-me para meu apartamento.

Tomei uma grande dose de uísque, esfreguei-me com uma toalha áspera até a pele arder e, exceto por um imenso cansaço e uma dor de cabeça ainda maior, senti-me quase humano novamente.

Telefonei para O'Gar, pedi-lhe que viesse imediatamente ao apartamento e chamei em seguida Charles Gantvoort.

— Já esteve com Madden Dexter? — perguntei.

— Não, mas falei com ele pelo telefone. Ele me chamou logo que chegou. Pedi-lhe que me encontrasse no escritório do dr. Abernathy pela manhã, para examinarmos aquele negócio que ele fez para papai.

— Poderia telefonar a ele agora e dizer que recebeu um chamado e tem que sair da cidade... tem que partir amanhã cedo, e que gostaria de ir até o apartamento dele esta noite para conversar?

— Ora, sim, se o senhor desejar.

— Ótimo! Faça isso. Eu lhe telefonarei daqui a pouco e irei em sua companhia visitar Madden.

— O que está...

— Eu lhe contarei assim que nos encontrarmos — e desliguei o telefone.

Quando O'Gar chegou, eu acabava de me vestir.

— Então, ele lhe contou alguma coisa? — perguntou, sabendo de meu plano de ir ao encontro de Dexter no trem e fazer-lhe umas perguntas.

— Contou — respondi com azedo sarcasmo —, mas quase me esqueci do que ele disse. Interroguei-o durante todo o caminho de Sacramento até Oakland, e não consegui tirar dele sequer um murmúrio. Na barca para cá, ele me apresentou a um homem que chamou de sr. Smith, a quem disse que eu era tira. Isso tudo, veja bem, aconteceu dentro de uma barca cheia de gente! O sr. Smith apontou uma arma para minha barriga, levou-me para o tombadilho, deu-me uma pancada na cabeça e lançou-me na baía.

— Você se diverte um bocado, não? — sorriu alegre O'Gar. Mas, depois, franziu a testa. — Parece que esse Smith é o homem que queremos... o cara que liquidou Gantvoort. Mas por que desejaria ele trair-se, lançando-o pela amurada da barca?

— Complicado demais para mim — confessei, enquanto procurava descobrir qual dos meus chapéus ou bonés pesaria menos sobre a cabeça machucada. — Dexter sabia que eu andava à procura de um dos antigos amantes da irmã, naturalmente. E deve ter pensado que eu sabia muito mais do que sei, ou não se teria arriscado tanto... fornecendo minha identidade a Smith ali na minha frente. Pode ser que, depois que Dexter perdeu a cabeça, e cometeu aquela gafe na barca, Smith pensou que eu logo estaria também atrás dele, se não imediatamente, e, assim, correu o risco desesperado de me tirar do caminho. Mas saberemos de tudo dentro de pouco tempo.

Descemos, tomamos o táxi que nos aguardava e partirmos para a casa de Gantvoort.

— Você não está contando com a possibilidade de Smith estar presente, está? — perguntou o investigador-chefe.

— Não. Ele vai se esconder em algum lugar até ver em que vão dar as coisas. Mas Madden Dexter deve continuar bem visível para proteger-se. Ele tem um álibi, e, assim, está inocente no que diz respeito ao assassinato em si. Em, comigo supostamente morto, quanto mais ele permanecer visível, mais seguro estará. Mas é claro que ele sabe o que significa tudo isso, embora talvez não esteja necessariamente envolvido no caso. Tanto quanto pude ver, ele não saiu para o tombadilho comigo e com Smith hoje à noite. De qualquer maneira, estará em casa. E, desta vez, vai falar, vai contar toda a sua pequenina história!

Charles Gantvoort esperava-nos nos degraus da casa, quando chegamos. Subiu no táxi e tomamos a direção do apartamento dos Dexter. Não tivemos tempo de responder às perguntas com que ele nos metralhava sem cessar.

— Ele está em casa a sua espera? — perguntei.

— Está.

Saltamos e entramos juntos no prédio.

— O sr. Gantvoort deseja falar com o sr. Dexter — disse ele ao rapaz filipino de serviço na mesa telefônica.

O rapaz falou ao interfone.

— Podem subir — disse-nos.

A porta dos Dexter, tomei a frente de Gantvoort e apertei a campainha.

Creda Dexter abriu a porta. Seus olhos cor de âmbar esbugalharam-se e o sorriso desapareceu enquanto eu passava por ela e entrava no apartamento.

Atravessei com passos rápidos o pequeno corredor e entrei no primeiro cômodo, de cuja porta aberta vinha um raio de luz.

E dei de cara com Smith!

Ficamos ambos surpresos, mas seu espanto foi muito maior do que o meu. Nenhum de nós dois esperava ver o outro, mas eu sabia que ele estava vivo, enquanto ele tinha todos os motivos para me julgar no fundo da baía.

Aproveitei-me de seu maior grau de perplexidade e dei dois passos em sua direção antes que ele pudesse agir.

Uma de suas mãos desceu num movimento rápido.

Lancei-lhe a direita no rosto — lancei-a com todos os gramas dos meus noventa quilos, reforçados pela recordação de cada segundo que passara na água e cada latejamento na cabeça machucada.

A mão dele, descendo para a pistola, subiu tarde demais para evitar o golpe.

Alguma coisa estalou em minha mão quando ela se chocou com o rosto dele. A mão ficou dormente.

Mas ele caiu... e continuou caído.

Saltei sobre ele em direção a uma porta do outro lado da sala, soltando minha arma com a mão esquerda.

— Dexter está em alguma parte por aqui! — gritei sobre o ombro para O'Gar, que, em companhia de Gantvoort e Creda, passava nesse momento pela porta por onde eu entrara. — Fiquem de olhos abertos!

Corri pelos outros quatro cômodos do apartamento, abrindo portas de armários embutidos, olhando em toda parte... e não encontrei ninguém.

Voltei então para a sala onde Creda Dexter tentava acordar Smith com a ajuda de O'Gar e Gantvoort.

O investigador-chefe olhou-me por cima do ombro.

— Quem você acha que é esse cara? — perguntou.

— Meu amigo, o sr. Smith.

— Gantvoort diz que é Madden Dexter.

Olhei para Charles Gantvoort, que acenou afirmativamente com a cabeça.

— É Madden Dexter — repetiu ele.

 

Tivemos de reanimar Dexter durante quase dez minutos antes que ele abrisse os olhos.

Logo que se sentou, começamos a disparar perguntas e acusações sobre ele, esperando conseguir uma confissão antes que se recuperasse do abalo... embora ele não estivesse tão abalado assim.

Tudo o que conseguimos obter foi:

— Levem-me, se quiserem. Se eu tiver alguma coisa a dizer, direi a meu advogado, e a ninguém mais.

Creda Dexter, que recuara um pouco depois de o irmão ter recuperado os sentidos e se encontrava a alguma distância, observando-nos, subitamente deu um passo à frente e agarrou-me pelo braço.

— O que vocês têm contra ele? — perguntou, imperativamente.

— Eu não gostaria de dizer — respondi —, mas não me importo de lhe contar o seguinte: vamos dar-lhe uma chance num bom e moderno tribunal para que ele prove que não matou Leopold Gantvoort.

— Ele estava em Nova York.

— Não estava, não! Mandou um amigo a Nova York como Madden Dexter para cuidar daquele negócio para Gantvoort. Se este é o verdadeiro Madden Dexter, o mais perto que ele chegou de Nova York foi quando encontrou o amigo na barca para receber os documentos da transação com a B. F. and F. Iron Corporation e soube que eu, por acaso, descobrira a verdade sobre seu álibi... mesmo que eu não soubesse disso na ocasião.

Ela virou-se subitamente para fitar o irmão.

— Ele está dizendo a verdade? — perguntou-lhe.

Ele sorriu, zombeteiro, e continuou a massagear com os dedos o ponto do queixo onde meu punho o atingira.

— Só vou dizer o que tenho a dizer a meu advogado — repetiu.

— Vai? — replicou ela. — Pois vou contar agora mesmo o que tenho para contar. — Voltou-se, rápida, e fitou-me outra vez. — Madden não é absolutamente meu irmão! Meu nome é Ives. Madden e eu conhecemo-nos em St. Louis hã uns quatro anos, andamos juntos por aí durante um ano mais ou menos e viemos depois para San Francisco. Ele era um trapaceiro... e ainda é? Conheceu o sr. Gantvoort há seis ou sete meses e o estava preparando para comprar uma falsa invenção. Trouxe-o aqui umas duas vezes e apresentou-me como sua irmã. Geralmente, passávamos por irmão e irmã. Em seguida, depois de o sr. Gantvoort ter estado aqui umas duas vezes — continuou ela —, Madden resolveu mudar o jogo. Achou que o sr. Gantvoort gostava de mim e que poderíamos extrair dinheiro dele aplicando chantagem sexual. Eu deveria cultivar o velho até que o tivesse sob controle... até que o houvéssemos envolvido de tal maneira que ele não pudesse escapar... até que tivéssemos alguma coisa contra ele, algo bom e forte. Em seguida, nós o pressionaríamos para arrancar-lhe um bocado de dinheiro. As coisas — prosseguiu ela — andaram muito bem durante algum tempo. Mas ele se apaixonou por mim, ficou doido por mim. Finalmente, pediu-me em casamento. Jamais havíamos pensado nisso. A chantagem era o nosso jogo. Mas quando o velho pediu que eu me casasse com ele, tentei tirar Madden da jogada. Admito que seu dinheiro teve alguma coisa que ver com isso... influenciou-me. Mas comecei a gostar um pouco dele, por ele mesmo. Era um homem muito fino, mais fino do que todos os que eu havia conhecido antes. Assim, contei tudo a Madden e sugeri que abandonássemos o outro plano, e que, em vez disso, eu me casasse com Gantvoort. Prometi providenciar para que Madden continuasse bem provido de dinheiro. Eu sabia que podia conseguir o que quisesse do sr. Gantvoort. E fui honesta com Madden. Eu gostava do sr. Gantvoort, mas fora Madden quem o conhecera e o apresentara a mim. Assim, não ia abandoná-lo. Estava disposta a fazer tudo o que fosse possível por ele. Madden, porém, não quis coisa alguma com isso. Ele teria conseguido mais dinheiro a longo prazo fazendo o que eu sugeri, mas queria imediatamente seu bolo. E, tornando-se ainda menos razoável, teve uma crise de ciúmes. Certa noite, ele me bateu! Isso decidiu o caso para mim. Resolvi desfazer-me dele. Disse ao sr. Gantvoort que meu irmão se opunha inteiramente ao nosso casamento e que ele bem que podia ver que Madden estava mal-humorado. Assim, dei um jeito para que o sr. Gantvoort o mandasse concluir aquele negócio de aço, tentando dessa forma tirá-lo do caminho até que houvéssemos partido em nossa lua-de-mel. Pensamos que Madden fora inteiramente enganado, mas eu devia ter sabido que ele desconfiaria do nosso plano. Pensamos em ficar fora durante um ano. Achava que, ao fim desse período, Madden teria me esquecido... ou eu estaria em condições de enfrentá-lo, se ele criasse algum caso. Logo que soube que o sr. Gantvoort fora assassinado, desconfiei de que Madden era o criminoso. Mas, nessa ocasião, parecia quase certo que ele estava em Nova York. Pensei, por isso, que lhe havia feito uma injustiça. E fiquei satisfeita por ele não ter nada com o caso. Mas agora... — voltou-se para seu antigo cúmplice —... agora espero que você seja enforcado, seu grande imbecil!

Voltou-se novamente para mim, não como uma gatinha insinuante desta vez, mas como uma gata furiosa, cuspindo, as garras e os dentes à mostra.

— Como era o cara que foi a Nova York no lugar dele? Descrevi o homem com quem conversara no trem.

— Evan Felter — disse ela, após pensar durante um minuto. — Ele trabalhava para Madden. Vocês provavelmente o encontrarão escondido em Los Angeles. Apertem-no e ele contará tudo o que sabe. É um fracote! As possibilidades são de que ele não soubesse qual era o jogo de Madden, até que estivesse tudo terminado. O que você acha disso? — perguntou ela, com desprezo, a Madden. — O que você acha disso, para começar? Você arruinou minha festinha, não? Bem, vou passar todos os minutos a partir de agora ajudando até que eles consigam fazê-lo falar!

E ela o fez. Com sua ajuda, não foi problema reunir o resto das provas de que precisávamos para enforcá-lo. E não acredito que o gozo de três quartos de milhão de dólares tenha sido prejudicado por quaisquer escrúpulos pelo que ela fez a Madden. Agora, ela é uma mulher muito respeitável, e feliz por ter-se livrado de um trapaceiro.

 

                   Ferradura dourada

— Não tenho nada de muito interessante para lhe oferecer desta vez — disse Vance Richmond, enquanto trocávamos um aperto de mão. — Quero que encontre um homem para mim... um homem que não é um criminoso.

Havia um pedido de desculpa em seu tom de voz. Os últimos dois casos que esse advogado magro e pálido me arranjara tinham acabado em tiroteio e outras formas de violência, e acho que ele pensava que algo menos excitante que isso me faria dormir. Houve tempo em que ele poderia ter tido razão, como, por exemplo, quando eu era um rapaz de uns vinte anos, recém-admitido na Agência Continental. Mas os quinze anos transcorridos desde então haviam embotado meu apetite para essas durezas.

— O homem que quero que encontre — continuou o advogado, enquanto nos sentávamos — é um arquiteto inglês, chamado Norman Ashcraft. É um homem de uns trinta e sete anos, um metro e setenta e cinco de altura, boa constituição física, pele clara, cabelos louros e olhos azuis. Há quatro anos, ele era um espécime típico do britânico louro, bem-apessoado. Talvez não o seja mais agora. Acho que estes últimos quatro anos foram muito duros para ele. A história é a seguinte. Há quatro anos os Ashcraft moravam na Inglaterra, em Bristol. Parece que a sra. Ashcraft é muito ciumenta, e ele, muito excitável. Além disso, ele tinha apenas o dinheiro que lhe rendia a profissão, ao passo que ela herdara um bocado dos pais. Ashcraft sentia-se um tanto ou quanto tolamente incomodado por ser marido de uma mulher rica e fazia questão de demonstrar que não dependia do dinheiro dela, que não era influenciado por ele. Tolice, claro, mas exatamente o tipo de atitude que um homem de seu temperamento assumiria. Certa noite, ela o acusou de dedicar atenção demais a outra mulher. Brigaram, ele fez as malas e foi embora. Ela arrependeu-se depois de uma semana, e ficou ainda mais arrependida quando descobriu que nenhum fundamento havia para a suspeita, salvo seu próprio ciúme... e tentou descobrir-lhe o paradeiro. Mas ele havia desaparecido. Ela conseguiu acompanhar-lhe os passos de Bristol a Nova York, e daí até Detroit, onde ele fora preso e multado por perturbar a ordem pública nalguma briga de bar. Depois disso, ele sumiu de vista até surgir inesperadamente em Seattle dez meses depois.

O advogado procurou alguma coisa entre os papéis na mesa, apanhou um memorando e continuou:

— No dia 23 de maio de 1923, ele atirou num ladrão e matou-o em seu quarto num hotel dessa cidade. Aparentemente, a polícia de Seattle achou que havia alguma coisa esquisita no assassinato, mas não tinha prova alguma contra Ashcraft. O homem que ele matou era sem dúvida um ladrão. Logo depois, Ashcraft desapareceu mais uma vez, e nunca mais se ouviu falar nele até cerca de um ano atrás. A sra. Ashcraft pôs anúncios nas colunas de avisos pessoais dos jornais das principais cidades americanas. Certo dia, recebeu uma carta dele, de San Francisco. Era uma carta muito formal, e ele simplesmente pedia que ela deixasse de colocar aqueles anúncios. Embora tivesse deixado de usar o nome Norman Ashcraft, escreveu, aborrecia-o vê-lo publicado em todos os jornais. A mulher enviou-lhe uma carta pela posta-restante e utilizou outro anúncio para lhe comunicar esse fato. Ele respondeu de maneira um tanto quanto cáustica. Ela lhe escreveu mais uma vez, pedindo-lhe que voltasse para casa. Ele recusou-se, embora parecesse menos áspero com ela. Trocaram diversas cartas, e a mulher soube que ele se viciara em tóxicos e que o que restava de seu orgulho não lhe permitia voltar para ela até que se parecesse com o antigo homem, ou pelo menos desse a impressão de ser o mesmo. A mulher convenceu-o a aceitar algum dinheiro para se tratar. Faz as remessas uma vez por mês por intermédio da posta-restante aqui na cidade. Enquanto isso, ela liquidou todos os seus negócios na Inglaterra... não tinha parentes próximos que a prendessem lá... e veio para San Francisco, para estar perto quando o marido estivesse pronto para voltar. Um ano se passou desde então. Ela lhe envia dinheiro todos os meses. Espera ainda que ele volte. Ele se recusa sempre a vê-la, e suas cartas são evasivas... cheias de histórias sobre a luta que está travando, fazendo progressos contra os tóxicos num mês e recaindo no outro. A mulher desconfia agora que o marido não tenha intenção alguma de voltar, que não tencione abandonar o vício e que simplesmente a esteja usando como fonte de renda. Aconselhei-a a suspender a mesada durante algum tempo. Mas não quer fazer isso. Compreenda, culpa-se pela atual situação. Acha que sua tola explosão de ciúmes foi responsável pela provação dele e tem receio de fazer alguma coisa que possa magoá-lo ou induzi-lo a prejudicar-se ainda mais. A mente dela está inabalavelmente resolvida a esse respeito. Quer que ele volte, quer vê-lo endireitar-se. Mas, se ele não voltar, está disposta a continuar a dar-lhe uma mesada pelo resto da vida. Mas quer saber o que deve esperar. Quer acabar com a diabólica incerteza em que vive. O que queremos, então, é que você encontre Ashcraft. Queremos saber se há a menor possibilidade de que ele volte a ser o mesmo homem, ou se é um caso irrecuperável. Esse é o seu trabalho. Encontre-o, descubra tudo a respeito dele e depois, quando soubermos alguma coisa, resolveremos se será mais prudente promover uma entrevista entre os dois, na esperança de que ela possa influenciá-lo, ou não.

— Tentarei — respondi. — Em que época a sra. Ashcraft lhe envia a mesada?

— No primeiro dia de cada mês.

— Hoje é dia 28. Isso me dá três dias para concluir um caso em que estou trabalhando. Tem uma foto dele?

— Infelizmente, não. Na raiva, imediatamente depois da briga, a sra. Ashcraft destruiu tudo o que a fizesse lembrar-se dele.

Levantei-me e estendi a mão para o chapéu.

— Eu o verei no dia 2 do próximo mês — disse eu, deixando o escritório.

 

Na tarde do dia 1º fui até a agência do correio e procurei Lusk, nessa época o inspetor encarregado da divisão.

— Estou atrás de informações sobre um cara do norte — disse a Lusk — que deve estar apanhando sua correspondência na posta-restante. Você pode dar um jeito para que eu o veja?

Os inspetores do correio estão sujeitos a todo tipo de normas e regulamentos que lhes proíbem ajudar detetives particulares, exceto em certos assuntos criminais. Mas um inspetor amigo não precisa seguir à risca a regra. A gente lhe conta uma mentira — para que tenha um álibi no caso de haver uma confusão —, e, se ele pensa que a gente mente ou não, isso não importa.

Logo depois, desci e fiquei flanando por ali com um olho nos guichês de A a D. O funcionário havia sido instruído a me ceder o lugar quando fosse pedida a correspondência de Ashcraft. Mas não havia ainda correspondência para ele naquela ocasião. A carta da sra. Ashcraft dificilmente chegaria às mãos dos funcionários naquela tarde, mas eu não ia me arriscar. Fiquei de vigia até fechar o expediente.

Minutos após as dez, na manhã seguinte, entrei em ação. Um dos funcionários fez-me um sinal. Um homem pequenino, vestido de terno azul e chapéu mole de feltro, afastava-se do guichê levando um envelope na mão. Tinha talvez quarenta anos, mas parecia mais velho. Sua face era lívida, arrastava os pés e suas roupas precisavam de uma escovadela e de uma passada a ferro.

Ele veio direto à escrivaninha em frente da qual eu me encontrava, mexendo em alguns papéis. Tirou um grande envelope do bolso, e bastou-me um rápido olhar para ver que já estava endereçado e selado. Conservou o lado que continha o endereço contra o corpo, pôs no envelope a carta que recebera no guichê e passou a língua na aba do envelope de tal forma que não havia meio de pessoa alguma ver a frente do mesmo. Em seguida, alisou com todo o cuidado a aba e dirigiu-se para a caixa coletora. Fui atrás dele. Nada havia a fazer senão tentar aquele golpe sempre seguro.

Ultrapassei-o, aproximei-me, fingi uma queda no chão de mármore, choquei-me com ele e agarrei-o como se quisesse recuperar o equilíbrio. A coisa fracassou. No meio do número, meu pé realmente escorregou e caímos no chão como se fôssemos dois lutadores de luta romana.

Levantei-me atabalhoadamente, ajudei-o a levantar-se, murmurei um pedido de desculpa e tive quase que empurrá-lo do caminho para chegar primeiro que ele ao envelope, virado com o endereço para o chão. Fui obrigado a desvirá-lo, quando o entreguei, a fim de ler o endereço:

 

       Sr. Edward Bohannon

       Café Ferradura Dourada

       Tijuana, Baixa Califórnia

       México

 

Havia obtido o endereço, mas entornado o caldo. Sob hipótese alguma neste mundo de Deus aquele homenzinho deixaria de desconfiar que eu estivera tentando obter o endereço.

Bati a poeira do terno enquanto ele punha o envelope na caixa coletora. Ele não passou novamente por mim, e sim continuou a andar na direção da saída de Mission Street. Eu não podia deixar que ele fosse embora com o que sabia. Não queria que Ashcraft fosse avisado antes que eu chegasse a ele. Teria que tentar outro truque, tão antigo como aquele que o assoalho escorregadio me estragara. Fui outra vez atrás do homenzinho.

Exatamente ao chegar a seu lado, ele virou a cabeça para ver se estava sendo seguido.

— Olá, Micky! — cumprimentei-o. — Como é que vão as coisas em Chi?

— Você me confundiu com alguma outra pessoa — falou ele pelo canto da boca lívida, sem interromper a caminhada. — Não sei de coisa alguma a respeito de Chi.

Os olhos dele eram azul-claros, com pupilas do tamanho de uma cabeça de alfinete, os olhos de um viciado em heroína ou morfina.

— Deixe de embromar — disse eu. — Você saltou de um trem de carga ainda esta manhã.

Ele parou e fitou-me.

— Eu? Quem é que você pensa que eu sou?

— Você é Micky Parker. O Holandês avisou-nos de que você estava vindo para cá.

— Você está pirado — zombou ele. — Não sei do que está falando!

Isso não tinha importância. Eu tampouco sabia. Levantei a mão direita dentro do bolso do sobretudo.

— Bem, tenho uma coisa para lhe dizer — rosnei. Ele afastou-se de meu volumoso bolso.

— Ei, escute aqui, irmão! — implorou. — Você me confundiu com outra pessoa. Honestamente. Meu nome não é Micky Parker, e estou aqui em San Francisco há um ano.

— Precisa provar isso.

— Posso provar — exclamou ele, muito nervoso. — Desça comigo a rua, e eu lhe mostrarei. Meu nome é Ryan, e moro na próxima esquina, em Sixth Street.

— Ryan? — perguntei.

— Sim... John Ryan.

Marquei aquilo contra ele. Acho que não há nem três velhos ladrões neste país que não tenham usado esse nome pelo menos uma vez: é o John Smith do mundo do crime.

Esse John Ryan aqui levou-me até uma casa de pensão em Sixth Street, onde a dona, uma mulher rudemente talhada de uns cinqüenta anos e braços cabeludos e musculosos como os de um ferreiro de aldeia, garantiu-me que seu hóspede, disso sabia com certeza, estava em San Francisco havia meses e que se lembrava de tê-lo visto pelo menos uma vez por dia durante as duas últimas semanas. Se eu desconfiasse realmente de que esse Ryan era meu mítico Micky Parker de Chicago, não teria aceitado a palavra daquela mulher, mas, do jeito que eram as coisas, fingi que me convencia.

Tudo parecia ter se resolvido. O sr. Ryan fora desviado da pista e convencido de que eu o confundira com outro ladrão e não estava interessado na carta dirigida a Ashcraft. Eu estaria seguro — razoavelmente seguro —, se deixasse a situação como estava. Mas fios soltos me aborrecem. Aquele cara era um viciado, dera um nome falso, e assim...

— O que faz para viver? — perguntei.

— Não tenho feito coisa alguma nestes dois últimos meses — respondeu ele, rápida e mecanicamente. — Mas espero abrir um restaurante em sociedade com um cara na próxima semana.

— Vamos até seu quarto — sugeri. — Quero conversar com você.

Ele não se mostrou muito entusiasmado, mas me levou até lá. Ocupava dois cômodos e uma cozinha no terceiro andar. Eram cômodos sujos, malcheirosos.

— Onde está Ashcraft? — perguntei-lhe, inesperadamente.

— Não sei do que o senhor está falando — resmungou.

— Pois é melhor saber — aconselhei —, ou haverá uma bela e fria cela para você lá no xadrez.

— Você nada tem contra mim.

— E daí? O que acha de pegar trinta ou sessenta dias sob acusação de vadiagem?

— Vadiagem, uma ova! — rosnou ele. — Tenho quinhentos mangos no bolso.

Sorri para ele.

— Você devia saber que isso não se faz, Ryan. Um bolso cheio de dinheiro não lhe conseguirá coisa alguma na Califórnia. Você não tem emprego. Não pode provar de onde vem seu dinheiro. Você foi feito de encomenda para a aplicação da lei sobre vadiagem.

Eu achava que aquele cara era traficante de drogas. Se era, ou se era qualquer outra coisa suja que viesse à tona quando fosse acusado de vadiagem, as chances eram de que estivesse disposto a vender Ashcraft para salvar o couro, especialmente porque, tanto quanto eu sabia, Ashcraft não estava do lado errado da lei.

— Se fosse você — continuei, enquanto ele olhava fixamente para o chão e pensava no caso —, eu seria bonzinho, um cara bacana, e começaria a falar agora. Você está...

Ele virou-se para um lado na cadeira, levando uma das mãos para trás do corpo.

Derrubei-o com um pontapé.

A mesa escorregou sob mim ou eu o teria arriado. Mas aconteceu que o murro que mandei no queixo dele acertou-o no peito e lançou-o para trás, com a cadeira de balanço por cima. Levantei a cadeira e tomei-lhe a arma, um 32 barato, niquelado. Depois, voltei para meu canto ao lado da mesa.

Aquilo era o máximo de exibição de coragem de que ele era capaz. Levantou-se, lamuriando.

— Vou contar-lhe. Não quero encrenca. Esse Ashcraft disse-me que estava apenas tirando dinheiro da mulher. Ele me dá dez mangos de cada vez para apanhar a carta todos os meses e enviá-la a ele em Tijuana. Conheci-o aqui, e, quando foi para o sul, há seis meses... ele tem uma pequena lá... prometi que faria isso. Eu sabia que era dinheiro... ele dizia que era a "pensão" dele... mas não sabia que havia alguma coisa de errado nisso.

— Que tipo de hombre é esse Ashcraft? Qual é o negócio dele?

— Não sei. Pode ser um trapaceiro. Tem boa pinta. É inglês e quase sempre usa o nome de Ed Bohannon. Usa tóxicos. Eu não uso (essa era boa!), mas, sabe como é, numa cidade como esta a gente conhece todo tipo de gente. Não sei de nada do que ele anda fazendo.

Isso foi tudo o que consegui extrair. Ele não podia, ou não queria, dizer-me onde Ashcraft residira em San Francisco ou com quem havia andado.

Ryan reclamou como o diabo quando descobriu que eu ia prendê-lo.

— Você disse que me deixaria ir se eu falasse — lamentou-se.

— Eu não disse. Mas mesmo que tivesse dito, quando um cara me aponta uma arma, acho que isso acaba com qualquer acordo. Vamos.

Não podia deixar que ele andasse flanando por aí, solto, até que eu entrasse em contato com Ashcraft.

Ele lhe enviaria um telegrama antes que eu me afastasse três quarteirões, e minha presa cairia fora, quem sabe para o norte, leste, sul ou oeste.

Foi bom palpite prender Ryan. Ao lhe serem conferidas as impressões digitais no Palácio da Justiça, verificou-se que ele era um certo Fred Rooney, conhecido pela alcunha de Jamocha, traficante e contrabandista de tóxico que fugira da Prisão Federal de Leavenworth quando tinha ainda oito anos a cumprir de uma pena de dez.

— Pode conservá-lo aqui por uns dois dias? — perguntei ao capitão encarregado do xadrez municipal. — Tenho um trabalho a fazer que ficará muito mais fácil se ele não puder se comunicar com pessoa alguma durante certo tempo.

— Claro — prometeu o capitão. — Os federais não o tirarão de nossas mãos nos próximos dois ou três dias. Até então, vou conservá-lo hermeticamente fechado.

Do xadrez, fui até o escritório de Vance Richmond, onde lhe contei o que havia.

— Ashcraft está recebendo a correspondência em Tijuana. Está morando lá sob o nome de Ed Bohannon e talvez tenha uma mulher em sua companhia. Acabei de botar um dos amigos dele no xadrez, um cara que cuidava da sua correspondência e é um trapaceiro que fugiu da prisão.

O advogado levantou o fone. Discou.

— A sra. Ashcraft está? Aqui fala o dr. Richmond. Não, não o encontramos exatamente,, mas acho que sei onde ele está... Sim. Dentro de quinze minutos.

Pôs o fone no gancho e levantou-se.

— Vamos até a casa da sra. Ashcraft.

Quinze minutos depois saltávamos do carro de Richmond em Jackson Street, perto de Gough. Era um prédio branco, de pedra, de três andares, por trás de um pequeno gramado bem regado, com uma grade de ferro.

A sra. Ashcraft recebeu-nos na sala de visitas do segundo andar. Era uma mulher alta, de menos de trinta anos, elegantemente bela num vestido de cores alegres; Clara era a palavra que melhor se ajustava a ela. Descrevia-lhe os olhos azuis, o branco-rosado da pele e o cabelo castanho.

Richmond apresentou-me, e eu lhe contei o que descobrira, omitindo, porém, a parte sobre a mulher em Tijuana. Tampouco lhe disse que as chances eram de que o marido se houvesse transformado num escroque.

— Fui informado de que o sr. Ashcraft está em Tijuana. Deixou San Francisco há seis meses. A correspondência lhe está sendo reenviada aos cuidados de um café naquela cidade, sob o nome de Edward Bohannon.

Os olhos dela iluminaram-se de felicidade, mas ela não teve um ataque. Não era esse tipo de mulher. Dirigiu-se ao advogado.

— Devo ir até lá? Ou será melhor que o senhor vá? Richmond sacudiu negativamente a cabeça.

— Nenhuma das duas coisas. A senhora, certamente, não deve ir. Eu não posso, não no momento. — Virou-se para mim. — Você terá de ir. Sem dúvida, poderá lidar melhor com a situação do que eu. Sabe o que e como fazer. A sra. Ashcraft não quer impor sua presença a ele, mas também não quer deixar de fazer alguma coisa que possa ajudá-lo.

A sra. Ashcraft estendeu-me uma forte mão esguia.

— O senhor fará o que achar melhor.

Era em parte uma pergunta e em parte uma manifestação de confiança.

— Eu o farei — prometi. Gostei da sra. Ashcraft.

Tijuana não mudara muito nos dois anos em que estive fora. Era ainda aqueles duzentos ou trezentos metros de rua poeirenta e esquálida, margeada quase ininterruptamente dos dois lados por cabarés. Nas ruas laterais, ainda mais sujas, ficavam uns botecos que não encontravam lugar na rua principal.

O carro que me trouxera de San Diego deixou-me no centro da cidade no princípio da tarde. As atividades diárias estavam justamente começando. Isto é, havia apenas dois ou três bêbados vagueando pelas ruas entre cães e mexicanos indolentes, embora já houvesse um grupo de bêbados potenciais andando de bar em bar.

No centro do quarteirão seguinte, vi uma grande ferradura dourada. Desci a rua e entrei no estabelecimento. Era um bom exemplo de espelunca local: um bar à esquerda da entrada, ocupando metade do prédio, com três ou quatro máquinas caça-níqueis no fundo. Em frente ao bar, colada à parede da direita, uma pista de dança que se estendia da parede fronteira até uma plataforma elevada, onde uma orquestra sebenta preparava-se para tocar. Por trás da orquestra, uma fileira de compartimentos, ou cabinas baixas, abertas, com uma mesa e dois bancos cada.

Era cedo ainda, e havia apenas poucos fregueses. Atraí a atenção de um garçom do bar, um irlandês parrudo, de rosto vermelho e cabelos cor de canela, colados ao crânio em dois cachos que ocultavam a pouca testa que possuía.

— Eu gostaria de falar com Ed Bohannon — disse, confidencialmente.

Ele voltou olhos vazios para mim.

— Não conheço nenhum Ed Bohannon.

Tirando um pedaço de papel do bolso, rabisquei: "Jamocha está em cana", e empurrei o papel em sua direção.

— Se um homem que disser que é Ed Bohannon perguntar alguma coisa, você lhe mostrará isto?

— Acho que sim.

— Ótimo — repliquei. — Vou ficar por aí um pouco.

Atravessei a sala e sentei-me a uma mesa num dos reservados. Uma pequena magra, que fizera no cabelo alguma coisa que lhe dava uma cor púrpura, acampou a meu lado antes mesmo que eu pudesse me acomodar.

— Paga um drinque para mim? — perguntou.

A cara que fez tinha provavelmente a intenção de ser um sorriso. O que quer que fosse, entreguei os pontos. Tive medo de que ela fizesse aquilo outra vez, por isso me rendi.

— Claro — respondi, e pedi para mim uma garrafa de cerveja ao garçom que já estava pairando por ali.

A mulher de cabelo púrpura emborcou sua dose de uísque, e estava abrindo a boca para sugerir que podíamos tomar outra — as prostitutas por ali não dormem em serviço —, quando ouvi uma voz as minhas costas.

— Cora, Frank quer falar com você.

Cora fez cara feia, olhando sobre meu ombro. Depois, fez novamente aquela cara para mim e disse:

— Muito bem, Kewpie. Quer tomar conta de meu amigo aqui? — E deixou-me.

Kewpie deslizou para o assento a meu lado. Era uma pequena baixinha e gordalhufa de talvez dezoito anos, e certamente nem um único dia a mais. Apenas uma criança. Cabelos castanhos e cacheados emolduravam uma face juvenil e olhos sorridentes e afoitos.

Paguei-lhe um drinque e pedi outra garrafa de cerveja.

— O que você quer? — perguntei.

— Ora! — Sorriu largamente para mim; um sorriso tão infantil como a expressão franca de seus olhos. — Litros disso.

— E além disso? — Eu sabia que essa troca de mulher não fora um acaso.

— Ouvi dizer que você anda procurando um amigo meu — disse Kewpie.

— Pode ser. Que amigos tem você?

— Bem, Ed Bohannon é um deles. Conhece Ed?

— Ainda não.

— Mas está à procura dele?

— Hum, hum.

— O que está havendo? Eu talvez possa avisar a ele.

— Deixe para lá — blefei. — Esse seu Ed parece tão difícil de encontrar como o inferno. Enfim, o problema não é meu. Eu lhe pago outro drinque e você cai fora.

Ela levantou-se de um salto.

— Espere um minuto. Vou ver se consigo encontrá-lo. Como é seu nome?

— Parker servirá tão bem como qualquer outro — respondi, ocorrendo-me logo o nome que eu havia usado com Ryan.

— Espere aqui — disse ela por sobre o ombro, enquanto se dirigia para a porta dos fundos. — Acho que poderei encontrá-lo.

— Eu também acho — concordei.

Dez minutos depois, um homem entrou pela porta da frente e veio até a minha mesa. Era um inglês louro, de menos de quarenta anos, com todos os sinais de um cavalheiro decadente. Não inteiramente nas últimas, ainda, mas se podia ver a evidência da queda com toda a clareza no embotamento dos olhos azuis, nas bolsas sob os olhos, nas linhas indistintas em torno da boca frouxa, e na tonalidade acinzentada da pele. Tinha ainda um ar bastante atraente — um resto de sua antiga aparência. Sentou-se de frente para mim.

— Está a minha procura?

— Você é Ed Bohannon? Ele inclinou a cabeça.

— Jamocha foi preso há uns dois dias — disse-lhe — e deve estar agora viajando de volta ao casarão de Kansas. Conseguiu que me avisassem, pedindo que eu lhe contasse isso. Ele sabia que eu vinha para estas bandas.

Ele olhou carrancudo para a mesa e, em seguida, voltou a fitar-me vivamente.

— Ele lhe disse mais alguma coisa?

— Não me disse coisa alguma. Mandou um aviso por outra pessoa. Não estive com ele.

— Vai passar algum tempo por aqui?

— Vou, dois ou três dias — respondi. — Tenho por aqui umas castanhas no fogo.

Ele sorriu e estendeu a mão.

— Obrigado pelo aviso, Parker — disse. — Se quiser dar um passeio comigo, lhe darei alguma coisa de verdade para beber.

Eu não tinha nada contra isso. Ele saiu a minha frente do Ferradura Dourada, e, juntos, descemos uma rua transversal até uma casa de adobe, localizada na franja em que a cidade começava a transformar-se em deserto. Na sala da frente, ele me indicou uma cadeira e passou à sala contígua.

— O que você prefere? — perguntou, pela porta aberta. — Uísque americano, gim, uísque escocês...

— O último ganha — disse eu, interrompendo o catálogo.

Ele trouxe uma garrafa de Black & White, um sifão e alguns copos. Acomodamo-nos para beber. Bebemos e conversamos, conversamos e bebemos, e cada um de nós fingiu estar mais bêbado do que estava... embora, não muito tempo depois, estivéssemos ambos tão altos como um par de bodes.

Foi um concurso de bebida, puro e simples. Ele estava tentando me deixar de porre — um porre em que eu acabaria revelando todos os meus segredos —, enquanto eu tentava fazer o mesmo jogo com ele. Nenhum de nós dois avançou muito.

— Sabe de uma coisa? — dizia ele, já quase à noitinha. — Tenho sido uma grandessíssima besta. Tenho uma esposa... a melhor mulher deste mundo. Quer que eu volte para ela, e tudo o mais. Ainda assim, fico por aqui, bebendo este troço, me drogando, quando poderia ser alguém. Um arquiteto, entende?, um bom arquiteto, também. Mas caí na rotina... misturei-me com essa gente. Parece que não consigo livrar-me. Mas vou, apesar disso... Não estou brincando. Vou voltar para a mulherzinha, a melhor mulher do mundo. Romper com o cachimbo e com tudo o mais. Olhe para mim. Pareço um viciado? Claro que não! Estou me curando, é esse o motivo. Vou lhe mostrar... vou dar uma cachimbada agora e lhe mostrar que posso fumar ou deixar o vício.

Levantou-se, tonto, da cadeira, foi até o quarto contíguo e voltou cambaleante, trazendo uma refinada aparelhagem para fumar ópio, toda de prata e ébano, numa bandeja de prata. Colocou-a sobre a mesa e brandiu o cachimbo para mim.

— Fume um pouco por minha conta, Parker. Respondi que ia ficar no uísque.

— Posso dar-lhe um pico de coca, se preferir — convidou ele.

Recusei a cocaína. Ele, em vista disso, refestelou-se com todo o conforto no chão ao lado da mesa, enrolou e cozinhou uma pílula, e nossa festinha continuou. Enquanto ele fumava sua droga, eu castigava o uísque, ambos falando para o benefício do outro e tentando que o outro falasse para seu benefício.

Eu já tinha no bucho um bocado de bebida quando Kewpie chegou, lá pela meia-noite.

— Parece que vocês estão se divertindo, caras — riu ela, curvando-se para beijar os cabelos desmanchados do inglês.

Empoleirou-se na mesa e estendeu a mão para o uísque.

— Está tudo azul — garanti-lhe, embora, provavelmente, não tenha falado com essa clareza toda.

— Você devia ficar alto o tempo todo, baixinho. Melhora você.

Não sei se respondi ou não a essas palavras. Sei que, pouco depois, estendi-me ao lado do inglês no chão e dormi.

Os dois dias seguintes foram muito parecidos com o primeiro. Ashcraft e eu permanecemos juntos as vinte e quatro horas, e a garota geralmente nos fazia companhia. A única ocasião em que não bebíamos era quando estávamos curtindo o pileque. Passamos a maior parte desses três dias na casa de adobe ou no Ferradura Dourada, mas achamos tempo para visitar, vez por outra, a maioria das demais espeluncas da cidade. Eu tinha apenas uma vaga idéia do que acontecia a minha volta, embora ache que não tenha perdido nada inteiramente.

Ashcraft e eu tornamo-nos tão íntimos como ladrões, superficialmente, mas nenhum de nós dois jamais perdeu a desconfiança do outro, por mais bêbados que ficássemos... e ficamos um bocado. Ele freqüentava regularmente o cachimbo. Não acho que a pequena usasse a droga, mas que tinha uma grande capacidade para bebida, lá isso tinha.

Três dias disso, e, depois, tornando-me sóbrio, voltei a San Francisco, fazendo uma lista do que sabia e desconfiava de Norman Ashcraft, conhecido também como Ed Bohannon.

A lista era mais ou menos assim:

1) Ele desconfiava, se é que não sabia, que eu fora vê-lo a mando da esposa: foi gentil demais e me recebeu bem demais para que eu duvidasse disso; 2) aparentemente resolvera voltar para a esposa, embora não houvesse garantia de que de fato o fizesse; 3) não estava incuravelmente viciado em tóxicos; 4) poderia recuperar-se sob a influência da esposa, mas isso era duvidoso: fisicamente, não estava acabado, mas havia provado o sabor da sarjeta e parecia ter gostado; 5) a pequena, Kewpie, estava perdidamente apaixonada por ele, ao passo que ele gostava dela, mas não estava apaixonado.

Uma boa noite de sono no trem entre Los Angeles e San Francisco deixou-me na estação da Third e Townsend Street com uma cabeça e estômago quase normais e sem muitos tremores nos nervos. Devorei no desjejum mais comida do que nos últimos três dias e fui ao escritório de Vance Richmond.

— O dr. Richmond está em Eureka — informou-me a secretária.

— Pode chamá-lo ao telefone? Ela podia, e chamou.

Sem mencionar nomes, disse ao advogado o que sabia e do que desconfiava.

— Compreendo — disse ele. — Que tal ir à casa da sra. A. e dizer-lhe que escreverei a ela hoje à noite e que provavelmente voltarei à cidade depois de amanhã? Acho que podemos, sem perigo, retardar a ação até esse momento.

Peguei um bonde, mudei de linha na Van Ness Avenue e dirigi-me à casa da sra. Ashcraft. Coisa alguma aconteceu quando toquei a campainha. Toquei-a várias vezes antes de observar que havia dois jornais matutinos no vestíbulo. Olhei para as datas — daquela manhã e do dia anterior.

Um velho, vestindo um macacão desbotado, regava o jardim na casa ao lado.

— O senhor sabe se o pessoal desta casa foi viajar? — perguntei.

— Acho que não. A porta dos fundos está aberta, conforme reparei esta manhã. — Parou o que estava fazendo e cocou o queixo. — Pode ter ido — disse devagar. — Pensando nisso, acho que não vejo nenhum deles há... Acho que não vi ninguém daí ontem.

Desci os degraus da frente e dei a volta em torno da casa, transpus uma pequena cerca no quintal e subi os degraus da entrada dos fundos. A porta da cozinha estava entreaberta. Não havia ninguém à vista lá dentro, mas ouvi um som de água correndo.

Bati à porta com os nós dos dedos, com força. Nenhum som em resposta. Empurrei a porta e entrei. O som de água vinha da pia. Olhei para dentro dela.

Sob um fino jato de água corrente numa das pias, vi uma faca de trinchar com quase trinta centímetros de lâmina afiada. A faca estava limpa, mas a parte posterior da pia de porcelana, onde a água espadanara em pequenas gotas, estava cheia de baças manchas vermelhas. Raspei uma delas com uma unha: sangue seco.

Exceto pela pia, nada vi fora do lugar na cozinha. Abri a porta da despensa. Tudo ali parecia em ordem. Do outro lado da sala uma outra porta levava à frente da casa. Abri-a e entrei num corredor. Não havia luz suficiente na cozinha para iluminar a passagem. Apalpei no escuro, procurando o interruptor que sabia existir por ali. Pisei em algo mole.

Recuando o pé, tirei um fósforo do bolso e acendi-o. A minha frente, com a cabeça e os ombros no chão, os quadris e as pernas nos degraus inferiores de um lance de escada, vi um rapaz filipino em roupas de baixo.

Estava morto. Tinha um olho afundado e a garganta cortada de ponta a ponta sob o queixo. Eu podia ver o crime sem precisar fechar os olhos. No alto da escada... a mão esquerda do assassino subindo rápida para a face do filipino... a unha do polegar penetrando no olho... empurrando para trás a face morena... apertando a garganta para o gume da faca... o corte... e o empurrão escada abaixo.

A luz do segundo fósforo mostrou-me onde ficava o interruptor. Acendi a luz, abotoei o paletó e subi os degraus, manchados aqui e ali por sangue seco. No patamar do segundo andar, vi uma grande mancha no papel de parede. No alto da escada, encontrei outro interruptor e apertei-o.

Segui pelo corredor, enfiei a cabeça em dois quartos que pareciam em ordem, virei num canto... recuei com um sobressalto, por pouco pisando na mulher que se encontrava ali.

Caída de bruços no chão, tinha os joelhos recolhidos sob o corpo e ambas as mãos no estômago. Vestia camisola, e uma trança de cabelo descia por suas costas.

Coloquei um dedo em sua nuca. Fria como pedra.

Ajoelhando-me no chão, para evitar a necessidade de virá-la, olhei para ela. Era a empregada que nos havia recebido, a mim e a Richmond, à porta quatro dias antes.

Levantei-me e olhei em volta. A cabeça da empregada quase tocava uma porta fechada. Dei a volta em torno do cadáver e empurrei a porta. Era um quarto, mas não o da empregada, um quarto ricamente decorado em creme e cinza com gravuras francesas nas paredes. Não havia desarrumação alguma por ali, salvo na cama. Os lençóis estavam amassados, emaranhados e empilhados no centro da cama — numa pilha grande demais...

Inclinando-me sobre a cama, comecei a puxar as cobertas. A segunda saiu manchada de sangue. Puxei o resto.

A sra. Ashcraft estava ali, morta.

Tinha o corpo encolhido num pequeno monte, do qual caía, torta, a cabeça, pendurada de um pescoço que fora cortado até o osso. Na face, quatro profundos aranhões, da têmpora ao queixo. Uma manga fora arrancada da blusa do pijama de seda azul. As roupas de cama e o pijama estavam empapados de sangue, que os lençóis em cima haviam impedido de secar.

Recoloquei as cobertas sobre o corpo, passei ao lado da morta no corredor, desci os degraus da frente, acendendo mais luzes, procurando um telefone. Encontrei-o ao pé da escada. Chamei em primeiro lugar a divisão de detetives da polícia e, em seguida, o escritório de Vance Richmond.

— Avise o dr. Richmond de que a sra. Ashcraft foi assassinada — disse eu à secretária. — Estou agora na casa dela, e ele pode falar comigo aqui.

Saí pela porta da frente, sentei-me no degrau mais alto e fumei um cigarro, enquanto esperava pela polícia.

Sentia-me arrasado. Eu já vira mais de três cadáveres de uma só vez em minha vida, mas aquela coisa me acontecia enquanto meus nervos estavam ainda em pandarecos, depois de três dias de bebedeira.

Antes de terminar o primeiro cigarro, o carro da polícia fez a volta na esquina e começou a vomitar gente. O'Gar, o investigador-chefe encarregado da equipe de homicídios, foi o primeiro a subir os degraus.

— Olá — cumprimentou-me ele. — O que você descobriu desta vez?

— Descobri três corpos lá em cima, antes de parar de olhar — disse-lhe, conduzindo-o ao interior da casa. — Mas talvez um detetive profissional como você possa encontrar outros.

— Você não se saiu mal... para um garoto. Minha ressaca passara. Estava ansioso por trabalhar. Mostrei em primeiro lugar o rapaz filipino e, depois, as duas mulheres. Não encontramos nenhum outro cadáver. Um trabalho rotineiro ocupou-nos — a O'Gar, aos oito homens sob suas ordens e á mim — nas horas seguintes. A casa precisava ser vasculhada de cima a baixo. Os vizinhos precisavam ser interrogados e havia necessidade de entrar em contato com as agências de emprego através das quais haviam sido contratados os empregados. Parentes e amigos do filipino e da empregada teriam que ser encontrados e submetidos a interrogatório. Jornaleiros, carteiros, entregadores de compras do armazém, empregados de lavanderia deveriam ser localizados, interrogados e investigados.

Ao chegar a maioria dos relatórios, O'Gar e eu afastamo-nos do grupo e trancamo-nos na biblioteca.

— Noite de anteontem, hein? Quarta-feira à noite? — grunhiu O'Gar, depois que nos refestelamos em cadeiras de couro e começamos a fumar.

Acenei positivamente com a cabeça. O laudo do médico que examinara os corpos, a presença dos dois jornais no vestíbulo e o fato de que nenhum vizinho, gente do armazém ou açougue os vira desde quarta-feira combinavam-se para tornar a noite desse dia, ou princípios da manhã de quinta-feira, a data correta.

— Acho que o assassino arrombou a porta dos fundos — continuou O'Gar, olhando para o teto através das nuvens de fumaça —, apanhou a faca de trinchar na cozinha e subiu a escada. Talvez tenha ido diretamente ao quarto da sra. Ashcraft... talvez não. Mas depois de algum tempo foi até lá. A manga arrancada e os arranhões no rosto indicam que houve luta. O filipino e a empregada ouviram o barulho... talvez um grito dela... e correram para o quarto a fim de descobrir o que havia. Provavelmente a empregada chegou lá no momento em que o assassino saía... e recebeu sua parte. Acho que o filipino viu o assassino e correu. O assassino agarrou-o no alto da escada dos fundos... e acabou com ele. Depois, foi até a cozinha, lavou as mãos, lançou a faca na pia e caiu fora.

— Até agora, ótimo — concordei —, mas noto que você omitiu a questão de quem era ele e por que os matou.

— Não se apresse — rosnou ele. — Vou chegar lá. Parece que há apenas três palpites a escolher. O assassino é um maníaco que fez esse trabalho apenas para se divertir, ou um ladrão que foi descoberto e ficou alucinado, ou ainda alguém que tinha motivo para liquidar a sra. Ashcraft e foi forçado a matar os dois empregados, que o haviam visto. Meu palpite pessoal é que o trabalho foi feito por alguém que queria eliminar a sra. Ashcraft.

— Não está nada mau — aplaudi. — Agora, escute isto: a sra. Ashcraft tem um marido em Tijuana, um tipo de viciado manso que anda metido com um punhado de bandidos. Ela estava tentando convencê-lo a voltar para casa, Ele tem lá uma pequena, jovem, apaixonada por ele, e má atriz... uma jovem dura. Ele estava pensando em deixar a garota e voltar para casa.

— E daí? — perguntou, baixinho, O'Gar.

— Mas — continuei — eu estava com ele e a pequena em Tijuana na noite de anteontem... quando foi feita esta matança.

— E daí?

Uma batida à porta interrompeu nossa conversa. Era um policial, dizendo que me chamavam ao telefone. Desci até o primeiro andar e ouvi a voz de Vance Richmond pelo fio.

__ O que foi que houve? A srta. Henry acaba de me dar

seu recado, mas não pôde dar detalhes. Contei a história toda a ele.

— Vou voltar hoje à noite — disse ele, quando terminei. — Continue e faça tudo o que achar necessário. Você tem plena liberdade de ação.

— Certo — repliquei. — Provavelmente não estarei na cidade quando voltar. Pode entrar em contato comigo através da agência. Vou telegrafar a Ashcraft para vir até aqui... em seu nome.

Depois de Richmond ter desligado, chamei a cadeia municipal e perguntei ao capitão se John Ryan, vulgo Fred Rooney, vulgo Jamocha, ainda estava preso.

— Não. Agentes federais levaram-no ontem pela manhã para Leavenworth.

De volta à biblioteca, disse, apressado, a O'Gar:

— Vou pegar o trem para o sul essa noite, e aposto tudo como o trabalho foi planejado em Tijuana. Vou telegrafar a Ashcraft para vir até aqui. Quero-o longe daquela cidade mexicana durante um dia ou dois, e, se ele vier, mantenha-o sob vigilância. Vou lhe dar uma descrição dele. Poderá encontrá-lo no escritório de Vance Richmond.

Passei uma meia hora do pouco tempo que me restava escrevendo e enviando três telegramas. O primeiro foi dirigido a Ashcraft.

 

           Edward Bohannon

           Café Ferradura Dourada

           Tijuana México

       A Sra. Ashcraft Faleceu. Pode Vir Imediatamente?

           Vance Richmond.

 

Os outros dois foram em código. O primeiro para a filial da Agência Continental em Kansas, pedindo que um detetive fosse enviado a Leavenworth para interrogar Jamocha. O segundo pedia à filial de Los Angeles que mandasse um homem me encontrar em San Diego no dia seguinte.

Depois, corri ao apartamento para apanhar uma mala de roupa limpa, e dormi a caminho do sul mais uma vez.

San Diego estava alegre e cheia de gente quando deixei o trem no começo da tarde seguinte — cheia de uma multidão atraída pelo primeiro sábado das corridas do outro lado da fronteira: pessoal do cinema de Los Angeles, fazendeiros do Imperial Valley, marinheiros da Frota do Pacífico, jogadores, turistas, marginais e mesmo pessoas normais de toda parte. Almocei, registrei-me num hotel, deixei nele a mala e dirigi-me ao U. S. Grant Hotel, ao encontro do detetive de Los Angeles que solicitara.

Encontrei-o no vestíbulo: um jovem sardento de uns vinte e dois anos mais ou menos, cujos brilhantes olhos azuis estavam nesse momento ocupados com o programa de corridas que tinha na mão, na qual um dos dedos estava envolvido em esparadrapo. Passei por ele, parei no balcão de cigarros, comprei um maço e endireitei uma imaginária mossa no chapéu. Depois, saí outra vez para a rua. O dedo amarrado com esparadrapo e o toque no chapéu eram as nossas apresentações. Alguém inventou esses truques muito antes da Guerra Civil, mas eles ainda funcionavam perfeitamente, e, assim, sua vetustez não era motivo para abandoná-los.

Subi devagar Fourth Street, afastando-me da Broadway, a principal rua de San Diego, e o detetive emparelhou-se comigo. Chamava-se Gorman, e eu lhe disse o que precisava fazer.

— Vá até Tijuana e plante-se no Café Ferradura Dourada. Há uma pequena por lá, puxando bebida: baixinha, cabelo castanho encaracolado, olhos castanhos, rosto redondo, boca rasgada e vermelha, ombros quadrados. Você não pode deixar de encontrá-la. É uma pequena bonitinha, de uns dezoito anos, chamada Kewpie. É o alvo de seus olhos. Mantenha-se longe dela. Não tente envolvê-la. Eu lhe dou uma hora de vantagem. Depois, vou até lá para conversar com ela. Quero saber o que ela vai fazer imediatamente depois que eu sair, e nos próximos dias. Você pode entrar em contato comigo — dei-lhe o nome do meu hotel e o número do quarto — todas as noites. Não entre em contato comigo em nenhum outro local.

Despedimo-nos, caminhei até a plaza e sentei-me num banco durante uma hora. Em seguida, fui até a esquina e tive um trabalho danado para conseguir um lugar numa lotação para Tijuana.

Depois de vinte e cinco quilômetros ou mais de estrada poeirenta — cinco sentados num assento destinado a três — e de uma parada rápida na Estação de Imigração na fronteira, desci da lotação em frente ao portão da pista de corridas. Os animais já estavam correndo há algum tempo, mas as borboletas continuavam a girar, dando entrada a um número incessante de aficionados. Dei as costas ao portão e fui até a fila de carroças em frente ao Monte Cario, o grande cassino de madeira, tomei uma delas e fui até a Cidade Velha.

A Cidade Velha tinha uma aparência deserta. Quase todo mundo havia saído para assistir às corridas.

Quando entrei no Ferradura Dourada, vi o rosto sardento de Gorman logo acima de um drinque de mescal. Torci para que ele tivesse uma boa constituição física. Precisaria dela, se é que ia fazer seu trabalho de detetive numa dieta de cacto destilado.

As boas-vindas que recebi dos freqüentadores foram como uma volta ao lar. Até mesmo o garçom do bar, o tal de cachos colados na testa, sorriu alegre para mim.

— Onde está Kewpie? — perguntei.

— Traindo Ed? — disse, zombeteira, para mim. uma gorda moça sueca. — Vou ver se consigo encontrá-la para você.

Kewpie entrou pela porta traseira justamente nesse momento e subiu por cima de mim, abraçando-me, esfregando o rosto no meu, e só Deus sabe o que mais.

— Veio fazer outra farra?

— Não — respondi, levando-a para os reservados no fundo. — Negócios, desta vez. Onde está Ed?

— Foi para o norte. A mulher dele morreu e ele precisa receber a grana.

— Você está triste por isso?

— Pode apostar que estou! É duro para mim saber que o papai arranjou um bocado de gaita.

Olheira pelo canto do olho... um olhar supostamente de entendedor.

— E você pensa que Ed vai voltar para você com toda essa nota?

Ela olhou-me, sombria.

— O que o está preocupando? — perguntou. Sorri como quem sabe de algo.

— Vai acontecer uma de duas coisas — prognostiquei. — Ed vai dar o fora em você... ele já estava pensando nisso, de qualquer maneira... ou vai precisar de cada tostão que possa arranjar para não ter o pescoço...

— Seu grandessíssimo mentiroso!

Seu ombro direito estava voltado para mim, tocando no meu esquerdo. Sua mão esquerda desceu com a velocidade de um relâmpago para algum lugar sob a saia curta. Empurrei-lhe o ombro para a frente, torcendo-lhe bruscamente o corpo para longe de mim. A faca que a mão esquerda dela tirara da perna penetrou profundamente na parte inferior da mesa. Era uma faca de lâmina grossa, equilibrada para um lançamento exato a distância.

Ela lançou a perna para trás, enfiando um afiado salto em meu tornozelo. Passei o braço esquerdo em volta dela e prendi-lhe o cotovelo contra o corpo no exato momento em que ela soltava a faca da mesa.

— Que diabo está acontecendo? Ergui os olhos.

Do outro lado da mesa, um homem me fitava, de pernas abertas e punhos nos quadris. Era um indivíduo alto, ossudo, de ombros largos, de onde subia um pescoço longo, magro e amarelo, coroado por uma pequena cabeça redonda. Os olhos eram pequenos botões pretos de sapato bem próximos um do outro, encimando um nariz pequeno e amassado.

— De onde foi que você tirou esse troço? — a encantadora pessoa rugiu em minha direção.

Era um cara duro demais para a gente discutir com ele.

— Se você é um garçom — respondi —, traga-me uma garrafa de cerveja e alguma coisa para a garota. Se não é, caia fora.

— Vou lhe trazer...

A garota soltou-se das minhas mãos e fê-lo calar-se.

— O meu é um quente — disse ela, secamente.

Ele rosnou qualquer coisa, olhou para mim e para ela, mostrou-me novamente os dentes amarelos e afastou-se devagar.

— Quem é esse seu amigo?

— É melhor não se meter com ele — aconselhou-me ela, sem responder a minha pergunta.

Depois disso, colocou a faca na bainha sob a saia e torceu-se no banco para me olhar de frente.

— Agora, que história é essa de que Ed está metido em encrenca?

— Leu no jornal a notícia sobre a matança?

— Li.

— Você não precisa de um mapa, então — respondi. — A única saída de Ed é botar a culpa em você. Mas duvido que ele possa safar-se com isso. Se não puder, está liquidado.

— Você é louco! — exclamou. — Você não estava tão bêbado assim para não saber que nós dois estávamos em sua companhia quando foram cometidos aqueles assassinatos.

— Não sou tão louco que pense que isso prova alguma coisa — corrigi-a. — Mas sou suficientemente louco para esperar voltar a San Francisco levando comigo o assassino.

Ela riu, zombando de mim. Ri também, e me levantei.

— Até a vista — disse, dirigindo-me para a porta.

Voltei a San Diego e enviei outro telegrama a Los Angeles, pedindo mais um detetive. Comi alguma coisa e passei a noite no quarto do hotel, à espera de Gorman.

Ele chegou tarde, o cheiro de mescal que exalava ia de San Diego a St. Louis e voltava, mas parecia bastante sóbrio.

— Durante um momento, pareceu que eu ia ter de livrá-lo à bala daquele lugar — sorriu.

— Deixe-me em paz — ordenei. — Seu trabalho é observar o que acontece, e nada mais. O que descobriu?

— Depois que você saiu, a garota e o cara alto se reuniram. Pareciam um bocado agitados... nervosos, diria eu. Ele saiu, então deixei a pequena e segui-o. Ele foi à cidade e passou um telegrama. Não consegui aproximar-me o bastante para saber quem era o destinatário. Depois, ele voltou para aquela espelunca.

— Quem é o cara?

— Pelo que ouvi dizer, não é flor que se cheire. Flinn Pescoço de Ganso é o nome que ele usa nos cartões de visita. É o leão-de-chácara e o pau-para-toda-obra daquela espelunca.

Então, aquele Pescoço de Ganso era o guardião do Ferradura Dourada e eu não o vira durante meus três dias de farra? Eu não podia, de modo algum, ter estado tão bêbado a ponto de esquecer toda aquela feiúra. E fora num desses três dias que a sra. Ashcraft e seus empregados haviam sido mortos.

— Telegrafei a sua filial pedindo outro detetive — informei a Gorman. — Ele deverá entrar em contato com você. Passe a moça a ele e fique grudado no Pescoço de Ganso. Acho que vamos pendurar três mortes nele, por isso tome cuidado.

— Sim, senhor capitão — disse ele, e saiu para dormir um pouco.

Passei a tarde seguinte na pista de corridas, distraindo-me com os cavalinhos enquanto esperava a noite.

Após o último páreo, comi alguma coisa na Sunset Inn e dirigi-me para o grande cassino, no outro lado do mesmo prédio. Mil pessoas ou mais se acotovelavam ali, lutando para participar do pôquer, dados, bacará, roda-da-fortuna, roleta e vinte-e-um, com o pouco que por acaso as corridas lhes haviam deixado ou premiado. Não joguei. Meu tempo de divertimento havia acabado. Andei pela multidão procurando auxiliares.

Descobri o primeiro: um homem queimado de sol, aparentemente um trabalhador agrícola em traje domingueiro. Ele abria caminho para a porta, e sua face tinha aquela expressão peculiar e vazia do jogador que perdeu antes mesmo de acabar a partida. Não é tanto uma expressão de pena pela perda do dinheiro, mas pela necessidade de abandonar o jogo. Interpus-me entre o matuto e a porta.

— Limparam você? — perguntei, amistosamente, quando ele chegou perto.

O rapaz inclinou, meio acanhado, a cabeça.

— Que tal ganhar cinco dólares por alguns minutos de trabalho? — tentei-o.

Ele gostaria, mas que trabalho?

— Quero que você vá até a Cidade Velha comigo e olhe para um cara. Depois, você recebe seu dinheiro. Não há outras condições.

Isso não lhe agradou muito, mas cinco dólares são cinco dólares, e ele podia cair fora quando quisesse, se não gostasse do jeito que as coisas iam. Resolveu tentar.

Mandei o matuto esperar junto a uma porta e saí à procura de outro: um homem baixote, gordinho, olhos redondos e otimistas, e boquirroto. Estava disposto a ganhar cinco dólares da maneira simples e fácil que descrevi. O cara seguinte que abordei era tímido demais para se arriscar num jogo cego. Arranjei em seguida um filipino, vestido com um berrante terno cor de melaço, e um grego atarracado, que era, provavelmente, garçom ou barbeiro.

Quatro homens eram suficientes. Meu quarteto agradou-me imensamente. Não pareciam caras inteligentes demais para o que eu queria, nem tampouco pareciam bandidos ou escroques. Coloquei-os numa lotação e levei-os à Cidade Velha.

— Bem, o caso é o seguinte — disse-lhes, ao chegarmos.

— Vou entrar no Ferradura Dourada, ali na esquina. Dêem-me dois ou três minutos e, em seguida, entrem e tomem um trago.

— Dei cinco dólares ao matuto. — Pague as bebidas com isso, e não é parte do salário de vocês. Há lá um homem alto de ombros largos, pescoço amarelo e uma pequena cabeça horrorosa. Vocês não podem deixar de vê-lo. Quero que todos vocês o observem bem, sem que ele note. Quando estiverem certos de que o reconhecerão em qualquer lugar, façam-me um sinal com a cabeça, voltem aqui e eu lhes pagarei. Tenham cuidado quando me fizerem o sinal. Não quero que pessoa alguma por lá saiba que vocês me conhecem.

A história pareceu-lhes esquisita, mas havia a promessa de cinco dólares para cada, e também uns jogos no fundo do cassino, onde cinco dólares podiam trazer a um homem uma maré de sorte que... Bem, vocês escrevam o resto. Fizeram perguntas, que me recusei a responder, mas mantiveram a combinação.

Pescoço de Ganso encontrava-se atrás do bar, ajudando os garçons, quando entrei. Eles precisavam de ajuda. A espelunca estava cheia até o teto.

Não descobri na multidão a cara sardenta de Gorman, mas dei com o rosto branco talhado a machadinha de Hooper, outro detetive de Los Angeles que, como eu podia ver, fora enviado ali em resposta ao meu segundo telegrama. Kewpie encontrava-se no fundo do bar, bebendo com um homenzinho cujo rosto meigo tinha a expressão irresponsável de um marido exemplar fazendo uma farra. Ela me acenou com a cabeça, mas continuou ao lado do cliente.

Pescoço de Ganso fez uma cara feia para mim e deu-me a garrafa de cerveja que pedi. Logo depois, entraram meus quatro empregados. Trabalharam que foi uma beleza!

Em primeiro lugar, espiaram através da fumaça, olhando de cara em cara, apressadamente, evitando os olhos que se encontravam com os seus. Pouco depois, um deles, o filipino, viu atrás do bar o homem que eu lhes descrevera. Saltou de excitação com a descoberta, mas, notando que Pescoço de Ganso o fitava, deu-lhe, nervoso, as costas. Os outros três viram Pescoço de Ganso nesse momento e lançaram-lhe olhares furtivos, tão visivelmente sorrateiros como um par de suíças falsas. Pescoço de Ganso olhou-os furioso.

O filipino virou-se, fitou-me, inclinou vivamente a cabeça e correu para a rua. Os três restantes emborcaram o que sobrara de seus drinques e tentaram despertar-me a atenção. Eu lia um cartaz pendurado no alto, atrás do bar:

 

       SERVIMOS APENAS AUTÊNTICOS

       UÍSQUES AMERICANO

       E INGLÊS DE ANTES DA GUERRA

 

Eu estava tentando contar quantas mentiras havia naquelas onze palavras, e chegara a quatro, com promessa de mais, quando um dos meus aliados, o grego, pigarreou como uma descarga fora de tempo de um motor a gasolina. Pescoço de Ganso vinha descendo devagar o bar com um abridor de tonel na mão e uma face afogueada.

Olhei para meus assistentes. Suas inclinações de cabeça não teriam sido tão terríveis se feitas uma de cada vez. Mas não queriam arriscar-se a que eu desviasse novamente os olhos antes de eles apresentarem seus relatórios. As três cabeças baixaram juntas — um sinal que ninguém num raio de sete metros podia ter deixado de ver —, e eles correram para a porta, afastando-se do pescoçudo e de seu furador de tonel.

Esvaziei o copo de cerveja, saí devagar do bar e fui até a esquina. Encontravam-se reunidos no local que eu lhes indicara.

— Nós o reconhecemos! Nós o reconhecemos! — disseram em coro.

— Isso é ótimo — elogiei-os. — Vocês trabalharam muito bem. Acho que são todos detetives natos. Tomem o dinheiro. Agora, se eu fosse vocês, rapazes, acho que evitaria aquele lugar depois disso, porque, a despeito da maneira inteligente como vocês disfarçaram... e fizeram-no maravilhosamente bem!... ele pode desconfiar de alguma coisa. Não vale a pena arriscar-se.

Eles agarraram o dinheiro e desapareceram antes que eu i

terminasse o discurso.

Hooper veio ter ao meu quarto no hotel de San Diego pouco antes das duas da madrugada seguinte.

— Pescoço de Ganso desapareceu imediatamente depois de sua primeira visita, e Gorman foi atrás dele — informou. — Depois disso, a pequena foi até uma casa de adobe nos arredores da cidade e continuava lá quando vim embora. O local estava às escuras.

Gorman não apareceu.

 

Um mensageiro acordou-me com um telegrama às dez da manhã. Fora enviado de Mexicali:

 

       CHEGUEI AQUI NOITE PASSADA

       ESCONDIDO CASA AMIGOS

       ENVIEI DOIS TELEGRAMAS

                 GORMAN

 

Eram boas notícias. O pescoçudo caíra no laço, tomara meus jogadores arruinados por quatro testemunhas e interpretara suas inclinações de cabeça como uma identificação. Pescoço de Ganso cometera os assassinatos e estava em fuga.

Havia tirado o pijama e começava a vestir o terno quando o mensageiro apareceu com outro telegrama, desta vez de O'Gar, enviado através da agência:

 

       ASHCRAFT DESAPARECEU ONTEM

 

Com um telefonema, tirei Hooper da cama.

— Vá até Tijuana — disse-lhe. — Permaneça vigiando a casa onde deixou a moça na noite passada, a menos que a encontre no Ferradura Dourada. Fique por perto até que ela apareça. E continue a segui-la até que ela entre em contato com um inglês alto e louro, e depois passe a segui-lo. Ele é um homem de menos de quarenta anos, alto, olhos azuis, e cabelos louros. Não deixe que ele escape de você... ele é agora a peça importante deste jogo. Vou para lá. Se o inglês e eu ficarmos juntos e a moça deixar-nos, siga-a, mas, caso contrário, mantenha-o sob vigilância.

Vesti-me, comi alguma coisa e tomei uma carruagem para a cidade mexicana. O cocheiro, um rapaz, apressou os cavalos, mas quase pensei que estava parado quando um conversível marrom passou por nós nas proximidades de Palm City. Ashcraft ia ao volante do conversível.

Quando voltei a vê-lo, o conversível estava vazio, parado em frente à casa de adobe. No quarteirão próximo, Hooper fazia uma imitação de bêbado, falando com dois índios vestidos com o uniforme do exército mexicano.

Bati à porta da casa de adobe.

A voz de Kewpie perguntou.

— Quem é?

— Eu... Parker. Ouvi dizer que Ed voltou.

— Oh! — exclamou ela. Uma pausa. — Entre.

Empurrei a porta e entrei. Vi o inglês sentado numa cadeira, inclinado para trás, o cotovelo direito sobre a mesa e a mão direita no bolso do paletó. Se havia uma arma naquele bolso, ela estava apontada para mim.

— Olá — cumprimentou ele. — Ouvi dizer que você anda dando palpites a meu respeito.

— Chame-os como quiser. — Empurrei uma cadeira até um meio metro dele e sentei-me. — Mas vamos deixar de brincar um com o outro. Você mandou Pescoço de Ganso liquidar sua esposa para apanhar o dinheiro dela. O erro que você cometeu foi escolher um imbecil como Pescoço de Ganso para fazer o trabalho... um cara que fez uma chacina e depois perdeu a coragem. Ele vai contar tudo simplesmente porque quatro testemunhas o identificaram! E só foi até Mexicali! Que lugar maravilhoso escolheu! Acho que ele estava com tanto medo que a viagem de cinco ou seis horas pelas colinas pareceu-lhe uma jornada até o fim do mundo!

Continuei a falar:

— Você não é nenhum tolo, Ed, nem eu. Quero levá-lo para o norte com braceletes nos pulsos, mas não estou com pressa. Se não puder levá-lo hoje, estou disposto a esperar até amanhã. Eu o pegarei no fim, a menos que alguém o faça antes... e isso não me cortará o coração. Tenho uma arma entre o colete e a barriga. Se mantiver Kewpie fora disto, estaremos prontos para a conversa que quero ter com você.

Ele inclinou devagar a cabeça, sem tirar os olhos de mim. A moça aproximou-se por trás. Uma de suas mãos desceu pelo meu ombro, insinuou-se sob meu colete, e a velha pistola preta deixou-me. Antes de afastar-se, ela, num suave lembrete, tocou com a ponta da faca a minha nuca durante um instante.

— Ótimo — disse eu quando ela deu minha arma ao inglês, que a colocou no bolso com a mão esquerda. — Bem, vejamos agora minha proposta. Você e Kewpie cruzam a fronteira comigo... assim não temos que nos preocupar com um pedido de extradição... e eu os meterei no xadrez. Faremos nossa luta perante o juiz. Não tenho absoluta certeza de que possa atribuir a chacina a vocês dois, e, seu eu falhar, vocês estarão livres. Se eu vencer, como espero, dançarão na ponta de uma corda, naturalmente. Que sentido há em fugir? — continuei. — Passar o resto de sua vida evitando os tiras? Apenas para ser finalmente agarrado... ou morrer tentando fugir? Você talvez possa salvar o pescoço, mas o que me diz do dinheiro que sua mulher deixou? Foi pelo dinheiro que você entrou no jogo, foi por isso que mandou matá-la. Submeta-se a julgamento e terá chance de recebê-lo. Fuja, e despeça-se dele para sempre.

Meu jogo naquele momento era convencer Ed e a moça a fugirem. Se concordassem em que os metesse na cadeia, eu poderia levar à condenação um deles, mas a possibilidades não eram das melhores. Dependia de como as coisas ficariam depois. Dependia de eu poder provar que Pescoço de Ganso estivera em San Francisco na noite da chacina, e imaginei que ele devia estar bem forrado de todos os tipos de prova em contrário. Não conseguíramos encontrar uma única impressão digital do assassino na casa da sra. Ashcraft. E mesmo que eu pudesse convencer um júri de que ele se encontrava em San Francisco na ocasião, teria também de demonstrar que cometera os crimes. E, depois disso, teria pela frente a pior parte do caso... provar que cometera os crimes a mando de um desses dois, e não por sua própria iniciativa.

O que eu estava tentando era fazer com que a dupla fugisse. Não me importava para onde fossem ou o que fizessem, conquanto que fugissem. Confiaria na sorte e em minha cabeça para lucrar com a fuga deles... e eu ainda ia agitar um pouco as coisas. Notei que o inglês estava pensando seriamente no caso. Sabia que ele estava preocupado, em especial pelo que eu dissera a respeito de Flinn Pescoço de Ganso. Nesse momento, soltou uma risadinha.

— Você é maluco, pirado, biruta — disse ele. — Mas... Não sei o que ele ia dizer... se eu ia ganhar ou perder. A porta da frente foi aberta com um estrondo e Flinn Pescoço de Ganso entrou nesse momento.

Tinha as roupas brancas cobertas de poeira e projetava o rosto à frente de todo o longo e amarelo pescoço.

Os olhos de botões de sapatos focalizaram-se em mim. As mãos dele giraram. Isso foi tudo o que se pôde ver. Simplesmente giraram... e havia um revólver de grosso calibre em cada uma delas.

— Ponha as patas na mesa, Ed — rosnou ele.

A arma de Ed, se era aquilo o que ele tinha no bolso, estava bloqueada e impedida de atirar no homem à porta por um canto da mesa. Ele tirou a mão do bolso, vazia, e pôs as duas, com as palmas para baixo, sobre o tampo da mesa.

— Fique onde está! — ladrou Pescoço de Ganso para a moça.

Olhou-me, furioso, durante quase um minuto. Mas, quando falou, dirigiu-se a Ed e Kewpie.

— Então foi por isso que você me telegrafou para voltar, hein? Uma cilada! Eu, bancando o bode expiatório para você! Bode expiatório, uma ova! Vou contar tudo e depois cair fora daqui, mesmo que tenha de abrir caminho a bala através de todo o maldito exército mexicano! Matei sua mulher, sim... e os empregados também. Matei-a pelos mil dólares.

A pequena deu um passo para ele, gritando:

— Cale a boca, diabos o levem!

— Cale a boca, você! — rugiu, em resposta, Pescoço de Ganso, e, com o polegar, levantou o cão da arma com que a ameaçava. — Sou eu que estou falando. Eu a matei por...

Kewpie inclinou-se para a frente, enfiando a mão sob a barra da saia. A mão subiu... vazia. O relâmpago da arma de Pescoço de Ganso iluminou a lâmina que voou pelo ar.

A moça girou para trás pela sala, empurrada pelas balas que lhe rasgavam o peito. Bateu com a cabeça na parede e caiu de bruços no chão.

Pescoço de Ganso parou de atirar e tentou dizer alguma coisa. O cabo marrom da faca da moça projetava-se de sua garganta amarela. Não conseguiu fazer com que as palavras passassem da lâmina. Deixou cair uma arma e tentou agarrar o cabo da faca. A mão subiu até meio caminho e caiu. Caiu devagar... ficou de joelhos... em seguida de quatro... rolou sobre um lado e ficou imóvel.

Saltei para agarrar o inglês. O revólver que Pescoço de Ganso deixara cair girou sob meu pé, lançando-me para um lado. Minha mão roçou o paletó do inglês, mas ele se desviou e puxou sua arma.

Tinha os olhos duros e frios, e a boca tão fechada que mal se via seu desenho. Recuou devagar pela sala, enquanto eu permanecia deitado onde caíra. Ele não falou. Um momento de hesitação no umbral da porta, que foi em seguida aberta e fechada. Ele desapareceu.

Apanhei a arma que me havia derrubado, saltei por cima de Pescoço de Ganso, arranquei a outra armada mão morta e saí para a rua. O conversível marrom mergulhava no deserto, deixando atrás um rastro de poeira. A uns dez metros vi um empoeirado carro preto de turismo. Devia ser o carro em que Pescoço de Ganso viera de Mexicali.

Saltei para ele, liguei o motor e virei-o na direção da nuvem de poeira à frente.

O carro, descobri, possuía um motor surpreendentemente bom para sua aparência arruinada... um motor tão bom que achei logo que era um carro de contrabandista. Tratei o motor com cuidado, sem forçá-lo. Durante meia hora ou mais, a nuvem de poeira à frente e eu mantivemos nossas respectivas posições. Depois, descobri que estava ganhando terreno.

O caminho era acidentado. Qualquer estrada que por acaso estivéssemos percorrendo no início já desaparecera. Acelerei um pouco, embora isso provocasse solavancos violentos.

Evitei um calhau que me teria amassado todo... escapei por um triz... olhei novamente para a frente e vi que o conversível não estava mais levantando poeira. Palavra.

Estava vazio. Continuei.

Por detrás, uma pistola espocou em minha direção, três vezes. Teria sido preciso uma pontaria muito boa para me acertar naquele momento. Eu saltava no assento como uma bolinha de mercúrio na mão de um cara nervoso.

Ele atirou novamente, de trás do carro, e, em seguida, correu para um estreito arroio, uma rachadura na terra de uns três metros de largura e bordas escarpadas à esquerda. A beira da rachadura, virou para atirar mais uma vez... e desapareceu.

Torci o volante, pisei no freio e virei o carro para o local onde o vira pela última vez. A borda do arroio desfez-se sob as rodas dianteiras. Soltei o freio e lancei-me para fora do carro, que mergulhou na ravina atrás dele.

Deitado de bruços, com os revólveres de Pescoço de Ganso um em cada mão, rastejei para a borda. De quatro, o inglês afastava-se apressadamente da trajetória do carro. O automóvel estava estraçalhado, mas ainda funcionava. Uma das mãos do homem estava fechada em torno de uma pistola... a minha.

— Largue a arma e levante-se, Ed! — gritei.

Com a rapidez de uma serpente, ele girou, caiu sentado no fundo do arroio, ergueu a arma... e arrebentei-lhe o antebraço com meu segundo tiro.

Segurava o braço ferido com a mão esquerda quando deslizei para junto dele, apanhei a arma que deixara cair e o revistei para ver se possuía outra. Em seguida, fazendo com um lenço uma espécie de torniquete, tratei-lhe o braço ferido.

— Vamos subir e conversar — sugeri, ajudando-o a galgar a íngreme encosta da ravina.

Entramos no conversível.

— Vá em frente, diga o que quiser — convidou ele —, mas não espere que eu contribua muito para a conversação. Você nada tem contra mim. Viu Kewpie matar Pescoço de Ganso para que ele não a implicasse no crime.

— Então é esse seu jogo? — perguntei. — A pequena contratou Pescoço de Ganso para matar sua mulher... por ciúme... quando soube que você estava pensando em dar-lhe o fora e voltar a seu próprio mundo?

— Exatamente.

— Nada mal, Ed, mas há uma falha nele. Você não é Ashcraft!

Ele sobressaltou-se, e depois riu.

— Agora o entusiasmo está prejudicando seu raciocínio — disse, zombando. — Eu poderia enganar a mulher de outro homem? Você não acha que o advogado dela, Richmond, exigiu que eu provasse minha identidade?

— Bem, eu lhe digo, Ed, penso que sou um cara mais sabido do que vocês dois. Suponhamos que você tivesse consigo um bocado de troços que pertencessem a Ashcraft... documentos, cartas, coisas escritas com a letra dele. Se você fosse hábil com a caneta, poderia ter enganado a mulher dele. Quanto ao advogado, a exigência de que você se identificasse foi meramente uma formalidade. Jamais ocorreu a ele que você não fosse Ashcraft. No início, seu jogo foi arrancar uma mesada da sra. Ashcraft... para fazer o tratamento. Mas depois que ela encerrou seus negócios na Inglaterra e veio para cá, resolveu liquidá-la e ficar com tudo. Você sabia que ela era órfã e que não tinha parentes próximos para se candidatarem à herança. Sabia que não havia muita gente na América que pudesse afirmar que você não era Ashcraft.

— E onde você acha que estava Ashcraft, enquanto eu gastava o dinheiro dele?

— Morto — respondi.

Isso o impressionou, embora não se mostrasse excitado. Mas seus olhos tornaram-se pensativos por trás do sorriso.

— Você pode ter razão, naturalmente — disse, em voz arrastada. — Mas, mesmo assim, não compreendo como é que você tem esperança de me enforcar. Pode provar que Kewpie não pensava que eu fosse Ashcraft? Pode provar que ela sabia por que a sra. Ashcraft me enviava dinheiro? Pode provar que ela sabia alguma coisa a respeito de meu jogo? Acho que não.

— Você pode safar-se com isso — reconheci. — Os júris são engraçados, e não me importo em lhe dizer que me sentiria muito mais feliz se soubesse algumas coisas que desconheço sobre esses assassinatos. Importa-se em me contar seus negócios com Ashcraft?

Ele contraiu os lábios e encolheu os ombros.

— Eu conto. Não vai importar muito. Estou para abandonar esta representação, e, assim, a confissão de mais um roubo não tem importância. O roubo em hotéis era a minha especialidade — disse o inglês, após uma pausa. — Vim para os Estados Unidos depois que a Inglaterra e a Europa tornaram-se incômodas demais. Certa noite, em um hotel de Seattle, consegui entrar num quarto do quarto andar. Mal fechara a porta quando ouvi outra chave na fechadura. O quarto estava em total escuridão. Arrisquei-me a acender por um instante a lanterna, notei a porta de um guarda-roupa e escondi-me nele. O guarda-roupa estava vazio. Foi uma sorte, porque nada havia nele que o ocupante do quarto pudesse vir tirar. Ele... era um homem... acendera as luzes. Começou a andar pelo quarto. Andou durante três horas inteiras... para cima e para baixo, para cima e para baixo... enquanto eu permanecia atrás da porta, com a arma na mão, dada a possibilidade de que ele pudesse abri-la. Durante três horas inteiras, andou de um lado para outro naquele maldito quarto. Depois, sentou-se; e eu ouvi o ruído de uma caneta arranhando papel. Dez minutos depois, ele voltou a andar de um lado para outro. Mas o fez durante apenas alguns minutos dessa vez. Ouvi o estalido da fechadura de uma valise. E, depois, um tiro! Saltei do meu esconderijo. Ele estava estendido no chão, com um buraco num dos lados da cabeça. Um azar para mim, disso não havia dúvida. Ouvi vozes excitadas no corredor. Saltei sobre o cadáver e encontrei a carta que ele estivera escrevendo. Era endereçada à sra. Norman Ashcraft, em um número qualquer de Wine Street, em Bristol, Inglaterra. Abri-a. Ele escrevera dizendo que ia suicidar-se. E assinara Norman. Senti-me melhor. Aquilo podia se transformar em um assassinato. Apesar de tudo, eu estava ali naquele quarto com uma lanterna, chaves falsas e uma arma na mão... para não mencionar um punhado de jóias que apanhara em outro andar. Alguém bateu à porta. "Chamem a polícia!", gritei pela porta, procurando ganhar tempo. Depois, voltei-me para o homem que me metera em tudo aquilo. Eu teria sabido que ele era inglês mesmo que não houvesse lido o endereço na carta. Há milhares de nós, feitos de acordo com a mesma encomenda: louros, altos, bom físico. Aproveitei a única oportunidade que havia. O chapéu e o sobretudo dele encontravam-se na cadeira onde os havia lançado. Vesti-Os e deixei cair meu chapéu ao lado dele. Ajoelhando-me, esvaziei-lhe os bolsos, e os meus, e transferi tudo o que tinha para ele, e as coisas dele para mim. Troquei em seguida de arma com ele e abri a porta. A minha esperança era de que os primeiros que chegassem não o conhecessem de vista, ou não o suficiente para reconhecê-lo logo. Isso me daria vários segundos para cair fora. Mas, quando abri a porta, descobri que a idéia não funcionaria como eu havia planejado. Vi o detetive da casa e um policial. Compreendi que estava liquidado. Mas joguei a partida até o fim. Disse que subira para o quarto e que encontrara aquele cara no chão remexendo na minha bagagem. Eu o agarrara e, na luta, havia atirado nele. Minutos se passaram, como se fossem horas, e ninguém me denunciou. As pessoas me chamavam de sr. Ashcraft. A farsa estava funcionando. Fiquei espantado na ocasião, mas depois que descobri mais sobre Ashcraft, não era tão surpreendente assim. Ele chegara apenas naquela tarde, e ninguém nada vira dele senão o chapéu e o sobretudo... o chapéu e o sobretudo que eu estava usando. Éramos do mesmo tipo e altura, o inglês louro típico. Depois, tive outra surpresa. Quando examinou as roupas do morto, o detetive descobriu que a etiqueta do fabricante fora arrancada. Lendo o diário dele, mais tarde, descobri o motivo. Ele estivera fazendo um cara-ou-coroa mental consigo mesmo, querendo ora matar-se ora mudar de nome e construir uma nova vida. Fora enquanto estivera pensando no segundo plano que ele tirara as marcas da roupa. Mas eu não sabia disso, enquanto me encontrava ali, no meio daquelas pessoas. Sabia apenas que milagres estavam acontecendo. Eu era obrigado a falar pouco naquele momento, mas depois que examinei os papéis dele, passei a conhecê-lo por dentro e por fora, e de cima a baixo. Ele possuía um grande pacote de papéis e um diário onde anotara tudo o que fizera ou pensara. Passei a primeira noite estudando essas coisas... decorando-as... e praticando a assinatura dele. Entre as coisas que lhe tinha tirado dos bolsos havia mil e quinhentos dólares em cheques de viagem, que eu queria descontar na manhã seguinte. Permaneci três dias em Seattle... como Norman Ashcraft. Havia encontrado por acaso uma mina de ouro e não ia jogá-la fora. A carta à esposa evitaria que eu fosse acusado de assassinato, se alguma coisa saísse errada, e eu sabia que ficaria em maior segurança se levasse a coisa até o fim do que se fugisse. Logo que a agitação acabou, arrumei as malas e fui para San Francisco, reassumindo meu verdadeiro nome: Edward Bohannon. Mas conservei todas as coisas de Ashcraft, porque descobrira que a esposa era rica e sabia que podia conseguir parte do dinheiro dela se jogasse bem as cartas. Ela me poupou o trabalho. Encontrei um de seus avisos no Examiner, respondi-o, e é tudo.

— Mas você não precisava ter mandado matar a sra. Ashcraft, precisava? — perguntei.

Ele sacudiu a cabeça negativamente.

Tirei um maço de cigarros do bolso e coloquei dois deles no assento, entre nós dois.

— Vamos fazer um jogo. Isto é apenas para minha própria satisfação. Não obrigará ninguém a coisa alguma... não provará coisa alguma. Se fez certa coisa, apanhe o cigarro mais perto de mim. Se não fez, apanhe o que está mais perto de você. Quer jogar?

— Não, não quero — respondeu ele, enfaticamente. — Não' gosto de seu jogo. Mas quero mesmo um cigarro.

Estendeu o braço bom e apanhou o cigarro mais perto de mim.

— Obrigado, Ed — falei. — Odeio dizer-lhe isso, mas vou levá-lo à força.

— Você é maluco, filho.

— Está pensando naquele trabalho em San Francisco, Ed — expliquei.. — Eu estou pensando em Seattle. Você, um ladrão de hotel, é descoberto em um quarto com um homem que acabara de morrer com uma bala na cabeça. O que você acha que um júri pensará disso, Ed?

Ele riu de mim. Mas algo logo aconteceu ao riso, que se transformou em um doentio sorriso.

— Claro que você o matou — continuei. — Quando você começou a traçar planos para herdar toda a riqueza da sra. Ashcraft mandando assassiná-la, a primeira coisa que fez foi destruir a carta de despedida do marido suicida. Por mais cuidado que você tivesse ao guardá-la, havia sempre a possibilidade de que alguém a encontrasse por acaso, e isso seria uma martelada na cabeça de seu joguinho. A carta serviria a sua finalidade... você não precisaria mais dela. Seria tolo arriscar-se a que ela aparecesse. Não posso acusá-lo dos crimes que engendrou em San Francisco, mas posso atribuir-lhe o que você não cometeu em Seattle... e, assim, a justiça não será driblada. Você vai para Seattle, Ed, para morrer enforcado pelo suicídio de Ashcraft.

E foi.

 

                   A casa de Turk Street

Eu fora informado de que o homem que procurava residia em certo quarteirão de Turk Street. Meu informante, porém, não sabia o número. Assim, aconteceu que, no fim de uma tarde chuvosa, eu andava de casa em casa pelo quarteirão, tocando campainhas e contando uma história mais ou menos assim: "Sou do escritório de advocacia de Wellington e Berkeley. Uma de nossas clientes, uma senhora idosa, caiu da traseira de um bonde na semana passada e ficou muito machucada. Entre os que presenciaram o acidente havia um rapaz, cujo nome desconhecemos. Mas soubemos que ele mora por aqui". Em seguida, descrevia o homem que queria e arrematava: "A senhora conhece alguém assim?"

De um lado inteiro do quarteirão eu só havia recebido uma resposta: "Não", "Não", "Não".

Cruzei a rua e recomecei na outra calçada. A primeira casa: "Não". A segunda: "Não". A terceira. A quarta. A quinta...

Ninguém apareceu à porta quando toquei pela primeira vez. Após algum tempo, voltei a tocar. Havia justamente chegado à conclusão de que não havia ninguém em casa, quando a maçaneta girou devagar e uma velhinha apareceu à porta. Era uma velhinha baixa e muito frágil, de olhos desbotados que brilhavam agradavelmente por trás de óculos de aros de ouro e que trazia numa das mãos um trabalho de tricô. Usava um avental duro de goma sobre o vestido preto.

— Boa noite — disse ela em voz sumida e gentil. — Espero que não se tenha importado em esperar. Tenho sempre que olhar antes de abrir a porta... É a timidez das velhas.

— Sinto muito incomodá-la — desculpei-me. — Mas...

— Entre, por favor.

— Não, obrigado. Eu queria apenas uma pequena informação. Não demorará muito.

— Eu gostaria que o senhor entrasse — disse ela, e acrescentou, com fingida severidade: — Tenho certeza de que meu chá está esfriando.

Tomou-me o chapéu e o sobretudo molhados. Segui-a por um estreito corredor até uma sala mal-iluminada, onde um homem levantou-se quando entramos. Ele também era velho, corpulento, e possuía uma rala barba branca, que lhe caía sobre um colete branco tão duro de goma como o avental da mulher.

— Thomas — disse a pequena e frágil mulher —, este cavalheiro é o senhor...

— Tracy — disse eu, porque era o nome que tinha dado a outros moradores do quarteirão. Mas, pela primeira vez em quinze anos, quase enrubesci ao pronunciar o nome. Aquela gente não era do tipo a quem se podia contar mentiras.

Soube que se chamavam Quarre; constituíam um idoso e afetuoso casal. Ela chamava-o de "Thomas" todas as vezes em que se dirigia a ele, rolando o nome na boca como se gostasse de seu sabor. Ele a chamava de "minha querida" com a mesma freqüência, e duas vezes levantou-se para ajustar com maior conforto uma almofada por trás das frágeis costas da esposa.

Fui obrigado a tomar uma xícara de chá cem eles e comer uns docinhos antes que lhes pudesse fazer a pergunta. A sra. Quarre emitiu pequenos sons estalados de simpatia com a língua e os dentes quando lhes contei sobre a senhora idosa que havia caído do bonde. O velho rosnou dentro da barba que aquilo era "uma grande vergonha", e ofereceu-me um gordo charuto.

Finalmente, acabei de contar o acidente e descrevi o homem que queria.

— Thomas — disse a sra. Quarre —, não é aquele moço que mora na casa com a cerca... aquele que parece sempre tão preocupado?

O velho alisou a barba' branca e pensou durante um momento.

— Mas, minha querida — ribombou finalmente —, ele não tem cabelo escuro?

Ela olhou, radiante, para o marido.

— Thomas é tão observador! — disse, orgulhosa. — Eu havia esquecido. O jovem de quem falei tem cabelos escuros, e, assim, não pode ser o que o senhor quer.

O velho sugeriu então que o rapaz que residia no outro quarteirão podia ser a pessoa procurada. Discutiram o assunto durante algum tempo antes de concluírem que ele era demasiado alto e velho. A sra. Quarre sugeriu outro. Discutiram esse outro, e votaram contra. Thomas ofereceu um candidato, que foi analisado e afastado. Continuaram a conversar.

Caiu a noite. O velho acendeu um alto abajur, que lançava um suave círculo amarelo sobre nós e deixava na penumbra o resto da sala, que era ampla, com cortinas pesadas e avantajada mobília de uma geração anterior. Eu não esperava obter informação alguma ali, mas me sentia confortável, e o charuto era bom. Haveria tempo suficiente para sair na garoa quando tivesse terminado de fumar.

Algo frio tocou-me a nuca.

— Levante-se!

Eu não me levantei; não podia. Estava paralisado. Continuei sentado e olhei, piscando, para os Quarre.

E, olhando para eles, tive certeza de que algo frio não podia estar colado à minha nuca; uma voz áspera não podia ter-me ordenado que me levantasse. Não era possível!

A sra. Quarre continuava ainda espigada, encostada nas almofadas que o marido lhe ajustara es costas; seus olhos ainda brilhavam cordiais por trás dos óculos. O velho ainda alisava a barba branca e soltava sem pressa fumaça pelas narinas. Eles continuariam a falar sobre o jovem morador das vizinhanças, que talvez fosse o homem que eu queria. Coisa alguma havia acontecido. Eu cochilara.

— Levante-se! — a coisa fria penetrou um pouco mais em minha carne.

Levantei-me.

— Reviste-o — disse atrás de mim a áspera voz.

— O velho pôs com todo o cuidado o charuto de lado, aproximou-se de mim e passou as mãos sobre meu corpo. Convencido de que eu estava desarmado, esvaziou meus bolsos, colocando o conteúdo sobre a cadeira que eu acabara de deixar vaga.

— Isso é tudo — disse ele ao homem as minhas costas, e voltou para a sua cadeira.

— Vire-se! — ordenou a voz áspera.

Virei-me e vi um homem alto, magro, ossudo, de mais ou menos a minha idade, uns trinta e cinco. Tinha um rosto feio, encovado, ossudo e coberto por grandes sardas pálidas. Os olhos eram de um azul úmido, e o nariz e o queixo projetavam-se bastante.

— Você me conhece? — perguntou ele.

— Não.

— Você é um mentiroso!

Não discuti. Ele tinha uma arma na grande mão sardenta.

— Você vai me conhecer muito bem antes que eu acabe com você — ameaçou o homem feio. — Você vai...

— Hook! — chamou uma voz por detrás do reposteiro, através do qual o homem feio havia, sem dúvida, se aproximado furtivamente de mim. — Hook, venha até aqui! — A voz era feminina, jovem, clara e musical.

— O que você quer? — perguntou o homem feio por cima do ombro.

— Ele está aqui.

— Muito bem! — Voltou-se para Thomas Quarre. — Mantenha este palhaço sob vigilância.

— De algum lugar por trás das suíças, paletó e colete branco engomado, o velho tirou um grande revólver preto, que empunhou sem nenhum sinal de que fosse coisa estranha para ele.

O homem feio reuniu as coisas retiradas dos meus bolsos e levou-as quando atravessou o reposteiro. A sra. Quarre sorriu para mim.

— Sente-se, sr. Tracy — disse. Sentei-me.

Através do reposteiro, ouvi no outro cômodo uma nova voz, uma voz arrastada de barítono, cujo sotaque era incontestavelmente britânico, britânico culto.

— O que há, Hook? — perguntou a voz. A voz áspera do feioso começou:

— Muita coisa, é isso o que digo! Eles estão atrás de nós! Eu ia sair há pouco e, logo que botei o pé na rua, vi do outro lado um cara que conheço. Ele me foi apontado em Philly há cerca de seis anos. Não sei o nome dele, mas lembro-me das suas fuças... é um detetive da Agência Continental. Voltei imediatamente, e eu e Elvira o ficamos vigiando pela janela. Ele foi de casa em casa do outro lado da rua, fazendo perguntas, ou coisa assim. Atravessou a rua e começou a trabalhar do lado de cá. Depois de algum tempo, tocou a campainha. Eu disse à velha e ao marido que o fizessem entrar, ganhassem tempo e descobrissem o que ele tinha a dizer. Ele contou uma história besta sobre um cara que viu uma velha cair de um bonde... mas isso é lorota! Ele anda atrás de nós. Entrei e agarrei-o. Eu queria esperar sua volta, mas fiquei com medo de que ele ficasse nervoso e fosse embora.

— Você não devia ter-se mostrado. Os outros dois podiam ter cuidado dele — disse a voz britânica.

— Qual é a diferença? — perguntou Hook. — A possibilidade é de que ele conheça todos nós. Mas, supondo que não conheça, que diferença faz?

— Pode fazer uma grande diferença — continuou a arrastada voz britânica. — Foi estúpido.

— Estúpido, hein? — explodiu Hook. — Você está sempre enchendo os outros com essa história de que são estúpidos. O diabo o leve, é isso o que digo! Quem é que faz todo o trabalho? Quem é o cara que dá um jeito em todos os trabalhos? Hum? Onde...

— Agora, Hook, pelo amor de Deus, não comece com esse discurso outra vez — interrompeu-o a jovem voz feminina. — Já o ouvi tantas vezes que o conheço de cor.

Um farfalhar de papéis, e a voz britânica:

— Ei, Hook, você tem razão. Ele é detetive. Aqui está o cartão de identificação.

A voz feminina no outro cômodo:

— Bom, o que vamos fazer? Qual é a jogada?

— Isso é fácil de responder — disse Hook. — Vamos acabar com esse tira.

A voz feminina:

— E enfiar nossos pescoços na corda?

— Como se eles não fossem para lá, se não acabarmos com ele! — respondeu Hook, desdenhoso. — Você não pensa que aquele cara não está atrás de nós por causa daquele trabalho em Los Angeles, pensa?

— Você é um jumento, Hook, e inteiramente sem remédio — disse a voz britânica. — Suponhamos que esse cara esteja interessado no caso de Los Angeles, como é provável. E daí? Ele é um detetive da Continental. Acha provável que a agência não saiba onde ele está? Você não acha que eles sabem que ele vinha para cá? E, com todas as probabilidades, não sabem tanto sobre nós quanto ele? Não adianta matá-lo. Isso somente agravaria a situação. A coisa a fazer é amarrá-lo e deixá-lo aqui. Os colegas dele dificilmente virão buscá-lo antes de amanhã.

Fiquei inteiramente grato àquela voz britânica! Alguém estava do meu lado, pelo menos em relação ao fato de me deixar viver. Eu não estivera me sentindo feliz nos últimos minutos. De alguma maneira, o fato de eu não poder ver aquelas pessoas enquanto decidiam se eu sobreviveria ou não tornara minha situação ainda mais desesperada. Senti-me melhor nesse momento, embora muito longe de estar alegre. Tinha confiança na arrastada voz britânica. Era a voz de um homem que habitualmente faz prevalecer seus argumentos.

— Vou lhe dizer uma coisa, irmão: aquele cara vai morrer! — exclamou Hook, mugindo. — Está decidido! Não vou me arriscar. Pode dizer o que quiser, mas estou pensando em meu pescoço, e ele ficará muito mais seguro se aquele cara não puder falar. Está decidido.

— Ora, Hook, seja razoável! — interrompeu a voz feminina, enojada.

— Não adianta discutir com você, Hook — disse a voz britânica, ainda arrastada, mas mortalmente fria. — Você tem os instintos e a inteligência de um troglodita. Só há uma forma de linguagem que você entende, e vou usá-la com você, filho. Se sentir tentação de fazer alguma besteira entre este momento e a ocasião em que formos embora, simplesmente diga a si mesmo duas ou três vezes: "Se ele morrer, eu morro também". Diga isso como se fosse uma passagem tirada da Bíblia... porque essa é a verdade.

Seguiu-se um longo silêncio, e senti no ar uma tensão que fez meu couro cabeludo, que não é especialmente sensível, arrepiar-se todo.

Quando, finalmente, uma voz cortou o silêncio, saltei como se uma arma houvesse sido disparada, embora a voz falasse baixo e com grande suavidade. Era a voz britânica, confiante, vitoriosa. Respirei de novo.

— Em primeiro lugar, mandaremos embora os velhos — dizia a voz. — Cuide de nosso convidado, Hook. amarre-o enquanto vou apanhar os títulos, e sairemos em menos de uma hora.

O reposteiro abriu-se e Hook voltou à sala... um Hook carrancudo, cujas sardas haviam adquirido uma tonalidade esverdeada na face encovada. Apontou o revólver para mim e disse, áspero e conciso, aos Quarre:

— Ele quer falar com vocês. — O casal ergueu-se e passou à outra sala.

Hook, entrementes, recuara para a porta, ainda ameaçando-me com a arma. Arrancou as cordas das grossas cortinas de veludo. Aproximou-se por trás e amarrou-me fortemente à cadeira de espaldar alto: meus braços aos braços da cadeira, as pernas às pernas, o corpo ao assento e ao encosto, e terminou pondo-me uma mordaça com uma ponta almofada, grossa demais.

Quando terminou de me amarrar e recuou, de cara feia, olhando para mim, ouvi a porta da rua fechar-se de mansinho e passos leves caminhando de um lado para o outro por sobre minha cabeça.

Hook olhou na direção dos passos, e seus pequenos olhos úmidos tornaram-se matreiros.

— Elvira! — chamou baixinho.

O reposteiro enfunou-se como se alguém o houvesse tocado, e a voz feminina respondeu:

— O quê?

— Venha até aqui.

— Acho melhor não ir. Ele não...

— O diabo o leve! — irritou-se Hook. Venha até aqui!

Ela entrou na sala e caiu sob o círculo de luz do alto abajur: era uma moça no começo dos vinte, esguia e flexível, vestida para sair, a não ser pelo chapéu que trazia numa das mãos. Tinha o rosto alvo sob uma massa alta de cabelos ruivos e olhos cor de fumaça cinzenta, separados demais para inspirar confiança (embora isso não lhe prejudicasse a beleza), que zombavam de mim; a boca vermelha zombava também, expondo as bordas de pequenos dentes afiados de animal. Ela era bela como o demônio, e duas vezes mais perigosa.

Ela riu de mim: um homem gordo, parecendo uma trouxa, amarrado com uma corda de veludo vermelho e com a ponta de uma almofada verde na boca. E voltou-se para o homem feio:

— O que você quer?

Ela falou em voz baixa, com um olhar furtivo para o teto de onde vinha o som abafado de passos que iam de um lado para o outro.

— Que tal nos livrarmos dele?

Os olhos cor de fumaça cinzenta da moça perderam o ar de divertimento e tornaram-se calculistas.

— Ele está guardando cem mil... e um terço disso é meu. Você não acha que vou ser passada para trás nisso, acha?

— Claro que não! Que tal ficarmos com os cem mil?

— Como?

— Deixe isso comigo, garota; deixe isso comigo! Se eu conseguir, você fica comigo? Você sabe que eu serei bom para você.

Achei que ela sorriu com desdém, mas ele pareceu gostar.

— Você faz muito bem em querer ser bom para mim — disse ela. — Mas escute aqui, Hook: não nos poderíamos safar... não, a menos que você o matasse. Eu o conheço! Não vou fugir com coisa alguma que lhe pertença, a menos que seja dado um jeito nele, para que não venha depois buscar o que é seu.

Hook umedeceu os lábios e olhou vagamente em volta da sala. Aparentemente, não lhe agradava a idéia de um choque com o dono daquele arrastado sotaque britânico. O desejo de possuir a moça, porém, foi mais forte do que o medo.

— Eu o farei — disse, impulsivo. — Eu o matarei! Você está falando sério, menina? Se eu o matar, você fica comigo?

Ela estendeu a mão.

— Está feito — disse, e ele acreditou.

O rosto feio tornou-se ardente, vermelho e totalmente feliz. Ele respirou profundamente e endireitou os ombros. No lugar dele, eu também teria acreditado nela... todos nós caímos nesse tipo de coisa uma vez ou outra... mas, estando sentado e amarrado nos bastidores, eu sabiá que, para ele, seria melhor brincar com um galão de nitroglicerina do que com aquela pequena. Ela era perigosa! Tempos difíceis aguardavam Hook!

— O plano é este... — começou Hook, mas parou, a língua presa.

Um passo soara na sala ao lado.

Imediatamente, a voz britânica chegou-nos através do reposteiro, e havia exasperação na fala arrastada:

— Isso é realmente demais! Não posso afastar-me por um momento sem que tudo saia errado. Agora o que foi que deu em você, Elvira, para ir até aí e mostrar-se ao nosso detetive?

O medo apareceu e desapareceu dos olhos cor de fumaça cinzenta, e ela falou, descuidada:

— Não fique tão amarelo de medo — disse. — Seu precioso pescoço pode continuar sadio sem toda essa cautela.

O reposteiro abriu-se, e virei a cabeça tanto quanto podia, para minha primeira impressão daquele homem responsável pelo fato de eu estar vivo até aquele momento. Vi um homem baixo e gordo, de chapéu e sobretudo, com uma mala de viagem marrom na mão.

Nesse momento, sua face entrou no círculo amarelo de luz, e vi que era uma face chinesa. Um chinês gorducho e baixo, imaculadamente vestido com roupas tão britânicas como seu sotaque.

— Não é uma questão de cor — disse ele à moça... e compreendi nesse momento a plena força da zombaria. — Mas simplesmente uma questão de prudência costumeira.

A face era uma máscara amarela e redonda, e a voz conservava o mesmo tom arrastado, sem emoção, que eu ouvira antes. Mas eu sabia que ele estava tão apaixonado pela moça como o feioso... ou não teria deixado que a zombaria dela o atraísse para a sala. Contudo, duvidei que ela conseguisse lidar com aquele oriental anglicizado com a mesma facilidade com que o fazia com Hook.

— Não havia nenhuma necessidade especial — continuou o chinês — de que esse indivíduo nos visse. — Olhou para mim, pela primeira vez, com pequenos olhos opacos que pareciam duas pequenas sementes pretas. — É muito possível que ele não nos conhecesse mesmo por descrição. Mostrar-se a ele constituiu uma rematada tolice.

— Ah, diabo, Tai! — explodiu Hook. — Deixe dessa chateação, sim? Qual é a diferença? Eu acabo com ele, e isso resolve a coisa.

O chinês pôs no chão a maleta e sacudiu a cabeça.

— Não haverá morte — disse, com voz arrastada. — Ou haverá um bocado delas. Você não tem dúvidas a respeito do que estou dizendo, tem, Hook?

Hook não tinha. Seu pomo-de-adão subiu e desceu com o esforço que fez para engolir, e, por trás da almofada que me sufocava, agradeci novamente ao amarelo.

Mas nesse momento a diaba ruiva meteu a colher no molho.

— Hook está sempre se oferecendo para fazer coisas que não tem a menor intenção de fazer — disse.

O rosto feio de Hook afogueou-se com esse lembrete de sua promessa de matar o chinês. Ele engoliu em seco outra vez, e seus olhos deram a impressão de que coisa alguma lhe teria agradado mais do que uma oportunidade de rastejar para baixo de alguma coisa. Mas a moça dominava-o; a influência dela era mais forte do que sua covardia.

De repente, aproximou-se do chinês e, de sua altura, uma cabeça acima do outro, olhou carrancudo para a face redonda e amarela.

— Tai — rosnou o homem feio —, você está acabado. Estou farto, cheio desse seu ar de superioridade... de você bancar o rei, ou coisa parecida. Vou...

Hesitou, e suas palavras morreram no silêncio. Tai ergueu para ele olhos duros, escuros, desumanos, que, pareciam dois pedaços de carvão. Os lábios de Hook tremeram, e ele recuou um pouco.

Deixei de suar. O amarelo vencera outra vez. Mas eu esquecera a demônia ruiva. Ela desatou na gargalhada... uma gargalhada zombeteira que deve ter doído como uma punhalada no homem feio.

Um mugido ecoou, profundo, em seu peito, e ele lançou um grande punho contra a face inexpressiva e redonda do amarelo.

A força do golpe lançou Tai até o outro extremo da sala, e atirou-o de lado, a um canto.

Mas o chinês torceu o corpo para voltar-se para o feioso mesmo enquanto voava pela sala... uma arma apareceu em sua mão antes que ele caísse... e ele falou antes que seus pés tocassem o chão. A voz continuava arrastada e britânica.

— Mais tarde — disse — nós dois resolveremos isto. Mas, agora, você simplesmente vai soltar essa arma e ficar absolutamente imóvel enquanto eu me levanto.

O revólver de Hook, apenas pela metade fora do bolso quando o oriental o cobriu, caiu com um baque surdo no chão. Ele permaneceu absolutamente imóvel enquanto Tai se levantava. Hook respirava forte, e cada sarda destacava-se, lívida, contra o branco sujo e apavorado de seu rosto.

Olhei para a moça e vi desprezo nos olhos que fitavam Hook, mas nenhum desapontamento.

Nesse instante, fiz uma descoberta: alguma coisa mudara ali na sala, perto dela.

Fechei os olhos e tentei lembrar-me de como era a sala antes do choque entre os dois homens. Abrindo-os de súbito, soube da resposta.

Na mesa ao lado da moça eu vira antes um livro e algumas revistas, que não estavam mais ali. A não mais de sessenta centímetros dela, notei a valise parda trazida por Tai. Suponhamos que nela estivessem os títulos do mencionado trabalho em Los Angeles. O que houvera, então? Com toda a probabilidade, a valise continha naquele instante o livro e as revistas anteriormente depositados na mesa. A moça provocara o choque entre os dois para distrair a atenção deles enquanto fazia a troca. Onde estaria o produto da pilhagem, então? Eu não sabia, mas desconfiei que seria volumoso demais para que ela pudesse tê-lo escondido no seu corpo esguio.

Bem perto da mesa havia um divã, coberto por uma larga colcha vermelha que roçava o chão. Olhei do divã para a moça. Ela me observava, e seus olhos brilharam de divertimento quando encontraram os meus, que nesse momento voltavam da inspeção do divã. Estava no divã!

Nesse instante, porém, o chinês já colocara no bolso o revólver de Hook e falava com ele:

— Se não antipatizasse com assassinatos e não pensasse que você talvez tenha algum valor para Elvira e para mim em nossa fuga, eu certamente nos aliviaria agora do peso de sua estupidez. Mas vou dar-lhe mais uma chance. Sugiro, no entanto, que pense duas vezes antes de dar vazão a seus impulsos mais violentos. — Voltou-se para a moça. — Você andou, por acaso, pondo idéias malucas na cabeça do nosso Hook?

Ela riu.

— Ninguém poderia pôr coisa alguma na cabeça dele.

— Talvez você tenha razão — concordou o chinês, e aproximou-se para verificar as cordas que me prendiam.

Julgando-as satisfatórias, apanhou a mala marrom e estendeu ao feioso a arma que lhe tomara minutos antes.

— Tome seu revólver, Hook, e procure ser sensato. Podemos ir agora. O velho e a esposa farão o que lhes mandei. Estão a caminho de uma cidade, cujo nome não preciso mencionar na frente de nosso amigo aqui, a nossa espera, e da parte deles nos títulos. Não é preciso dizer que vão esperar durante muito tempo... pois agora estão fora do trato. Mas, aqui entre nós, não deve haver mais traição. Para que possamos safar-nos, precisamos de ajuda mútua.

De acordo com as melhores regras dramáticas, essas pessoas deviam ter-me dirigido sarcásticas palavras antes de saírem, mas não fizeram nada disso. Passaram por mim sem um olhar de despedida sequer e mergulharam na escuridão do corredor.

Inesperadamente, o chinês voltou à sala, correndo na ponta dos pés... com um canivete aberto numa das mãos e uma arma na outra. E aquele era o homem a quem eu agradecera por ter-me salvo a vida! Ele curvou-se sobre mim.

O canivete moveu-se a minha direita, e a corda que me prendia o braço afrouxou. Respirei novamente, e meu coração voltou a bater.

— Hook voltará — murmurou Tai, e desapareceu.

No tapete, a uns noventa centímetros de mim, vi um revólver.

A porta da rua foi fechada, e fiquei sozinho na casa durante algum tempo.

Podem acreditar que passei esse tempo todo lutando com as cordas de veludo vermelho que ainda me prendiam. Tai cortara um pedaço delas, afrouxando de certa forma meu braço direito e dando mais liberdade ao corpo, mas eu estava longe de me sentir livre. E o seu murmurado "Hook voltará" era tudo de que eu precisava para lançar todas as forças contra as cordas.

Compreendi nesse instante por que o chinês insistira tanto em que minha vida fosse poupada. Eu era a arma com que Hook devia ser eliminado! O chinês calculara que Hook daria alguma desculpa logo que chegasse à rua, voltaria furtivamente a casa, liquidar-me-ia e regressaria para junto de seus aliados. Se não o fizesse por iniciativa própria, acho que o chinês lhe sugeriria isso.

Assim, colocara uma arma ao meu alcance e soltara as cordas o suficiente para que eu não me libertasse antes de ele fugir.

Esse raciocínio, porém, era um fato secundário. Não deixei que atrasasse o esforço que fazia para me soltar. O porquê não era importante para mim naquele instante; o importante era ter aquele revólver na mão quando o feioso voltasse.

Exatamente no momento em que a porta se abria, soltei inteiramente o braço direito e tirei da boca a sufocante almofada. O resto de meu corpo continuava preso pelas cordas... frouxamente, mas ainda preso.

Lancei-me para a frente, com cadeira e tudo, amparando a queda com o braço livre. O tapete era grosso. Caí de bruços, com a pesada cadeira por cima, dobrado em dois, mas o braço direito estava livre das laçadas. Agarrei a arma. A luz mortiça iluminou um homem que entrava apressado na sala... e havia um brilho de metal em sua mão.

Atirei.

Ele levou ambas as mãos ao ventre, dobrou-se em dois e tombou no tapete.

Aquilo estava acabado. Mas não era, em absoluto, tudo. Arranquei as cordas vermelhas enquanto tentava mentalmente adivinhar o que estava para acontecer.

A moça trocara os títulos, escondendo-os sob o divã... não havia dúvida a esse respeito. Tencionava voltar para buscá-los depois, antes que eu tivesse tempo de me soltar. Hook, porém, voltara antes, e ela teria que mudar seu plano. O mais provável era que dissesse ao chinês que Hook fizera a troca. O que aconteceria, então? Havia apenas uma resposta: Tai viria buscar os papéis... ambos voltariam. Tai sabia que naquele momento eu me encontrava armado, mas ambos haviam dito que os títulos valiam cem mil dólares. Isso seria suficiente para trazê-los de volta!

Soltei com um pontapé a última laçada e, apressado, cheguei ao divã. Os títulos encontravam-se debaixo dele: quatro grossos maços, amarrados com elásticos. Coloquei-os sob o braço e aproximei-me do homem que agonizava junto à porta. Soltei a arma de baixo de uma de suas pernas, passei por cima dele e entrei no corredor escuro. Parei, porém, para pensar.

A moça e o chinês se dividiriam para atacar. Um deles entraria pela porta da frente, e o outro, pela dos fundos. Seria a maneira mais segura de me atacarem. Minha jogada obviamente consistiria em esperar por eles dentro de casa. Seria tolice sair. Isso seria exatamente o que esperariam, em primeiro lugar... e estariam de emboscada.

Decididamente, o que devia fazer era esconder-me, cobrindo a porta da frente, e esperar até que um deles entrasse, como certamente faria quando se cansasse de me esperar à saída.

Perto da porta, o corredor era iluminado pelo brilho das luzes da rua que entrava pelas vidraças. A escada para o segundo andar lançava uma sombra triangular sobre parte do corredor, uma sombra suficientemente escura para minhas finalidades. Agachei-me nessa fatia triangular de escuridão e esperei.

Possuía duas armas: a que o chinês me dera e a que eu tirara de Hook. Disparara um tiro, e isso me deixava ainda onze, a menos que uma das armas houvesse sido usada depois de carregada. Abri a arma que Tai me dera e, na escuridão, passei os dedos sobre as costas do cilindro. Toquei em um único cartucho... sob o percussor. Tai não se arriscara; dera-me uma única bala... a bala com que eu derrubara Hook.

Coloquei a arma no chão e examinei a que tirara de Hook. Estava vazia. O chinês não se arriscara, em absoluto! Esvaziara a arma antes de devolvê-la após a briga.

Eu estava numa enrascada! Sozinho, desarmado, em uma casa estranha, que em breve seria invadida por duas pessoas a minha procura... e que uma fosse mulher não me tranqüilizava em coisa alguma, pois ela não era menos fatal por esse motivo.

Durante um momento, senti-me tentado a correr para fora; o pensamento de voltar à rua pareceu-me agradável durante um momento, mas afastei a idéia. Isso seria tolice, e das grandes. Lembrei-me, então, dos títulos sob o braço. Eles teriam que ser minha arma, mas, para que me servissem, precisaria escondê-los.

Esgueirei-me para fora da sombra triangular e subi as escadas. Graças às luzes da rua, os cômodos em cima não estavam muito escuros, e eu podia mover-me por eles. Passei de um cômodo a outro, procurando um local onde esconder os papéis. Mas, quando uma janela subitamente chocalhou, como se por efeito de uma corrente de ar causada pela abertura de uma porta externa em algum lugar, eu ainda continuava com o produto do saque nas mãos.

Não havia coisa alguma a fazer naquele momento senão jogar os títulos pela janela e confiar na sorte. Apanhei um travesseiro numa cama, tirei a fronha e enfiei nela os papéis. Inclinei-me sobre uma janela aberta e olhei para a noite, à procura de um bom local onde lançar o pacote. Não queria que caísse sobre alguma coisa que produzisse barulho.

Olhando pela janela, encontrei um esconderijo melhor. A janela abria-se para um pátio estreito, do outro lado do qual havia uma casa do mesmo tipo daquela em que eu me encontrava. Era da mesma altura, e seu telhado de zinco inclinava-se para o outro lado. O telhado não estava longe, não tão longe que me impedisse de lançar nele a fronha com os títulos. Lancei-a. A trouxa desapareceu sobre a borda do telhado, produzindo um pequeno som.

Depois disso, liguei as luzes do quarto, acendi um cigarro (não gostamos todos nós de fazer pose de vez em quando?) e sentei-me na cama, à espera da captura. Poderia ter seguido os inimigos pela casa, e talvez os tivesse agarrado, mas, com toda a probabilidade, teria simplesmente levado um tiro. E não gosto de servir de alvo.

Foi a moça quem me encontrou.

Seguiu furtivamente pelo corredor, com uma automática em cada mão, hesitou por um momento do lado de fora e entrou com um salto. Quando me viu sentado, tranqüilo, num dos lados da cama, seus olhos piscaram, desdenhosos, para mim, como se eu houvesse feito algo feio. Acho que ela pensava que eu lhe daria oportunidade de atirar.

— Peguei-o, Tai — gritou, e o chinês reuniu-se a nós.

— O que foi que Hook fez com os títulos? — perguntou ele, sem perda de tempo.

Sorri para a face amarela e joguei meu ás.

— Por que não pergunta à moça?

A face dele permaneceu impassível, mas acho que aquele corpo gorducho endureceu-se um pouco dentro das elegantes roupas britânicas. Isso me encorajou, e continuei com minha pequena mentira, destinada a agitar um pouco as coisas.

— Você não desconfiou ainda — perguntei — que eles combinaram passar você para trás?

— Seu mentiroso sujo! — gritou a moça, e deu um passo em minha direção.

Tai a deteve com um gesto imperioso. Olhou através dela com seus pretos e opacos olhos, e, enquanto o fazia, todo o sangue deixou-lhe o rosto. Tinha aquele gorducho amarelo sob seu domínio, certo, mas ele não era exatamente um brinquedo inofensivo.

— Então foi assim? — disse ele devagar, sem se dirigir a pessoa alguma em particular. Depois, para mim: — Onde foi que eles esconderam os títulos?

A moça aproximou-se dele, e suas palavras se atropelaram umas às outras, enquanto falava:

— A verdade é a seguinte, Tai, juro por Deus! Eu mesma fiz a troca. Hook não se meteu nisso. Eu ia fugir de vocês dois. Coloquei-os sob o divã lá embaixo, mas não estão mais lá. Juro por Deus que esta é a verdade!

Ele estava ansioso por acreditar, e as palavras dela tinham um som de verdade. E eu sabia que, apaixonado como estava, ele lhe perdoaria com mais facilidade a traição com os títulos do que o plano de fugir com Hook. Assim, apressei-me em agitar um pouco mais as coisas.

— Parte do que ela disse é realmente verdade — confirmei. — Ela escondeu os títulos sob o divã... mas Hook estava na jogada. Resolveram isso enquanto você estava aqui em cima. Ele devia procurar uma briga com você, e, enquanto brigavam, ela faria a troca. E foi exatamente isso o que fizeram.

Consegui convencê-lo! Quando a moça se voltou selvagemente para mim, ele enfiou o cano da automática em seu quadril: uma pancada seca que interrompeu as furiosas palavras que ela me dirigia nesse momento.

— Ficarei com suas armas, Elvira — disse, tomando-as. — Agora, onde estão os títulos? — perguntou-me.

— Não estou de seu lado, Tai. — Sorri. — Estou do outro.

— Não gosto de violência — disse ele, devagar. — E acredito que o senhor seja uma pessoa sensata. Vamos fazer negócio, meu amigo.

— Diga o que quer — sugeri.

— Com prazer! Como base de nossa negociação, estipularemos que o senhor escondeu os títulos onde não podem ser encontrados por nenhuma outra pessoa, e que eu o tenho inteiramente em meu poder, como se costumava dizer nos romances baratos.

— Bastante razoável — concordei. — Continue.

— A situação, então, é aquela que jogadores chamam de um empate. Nenhum de nós dois tem vantagem. Como detetive, o senhor nos quer; mas nós o temos. Como ladrões, queremos os títulos; mas o senhor os tem. Ofereço-lhe a moça em troca dos títulos, e isso me parece uma oferta justa. Ela me dará os títulos e a possibilidade de fugir. £ lhe dará um pequeno grau de sucesso em seu trabalho como detetive. Hook está morto. O senhor terá a moça. Tudo o que lhe restará a fazer será encontrar-me, e aos títulos... o que não é tarefa irrealizável. O senhor transformará uma derrota em meia vitória, com uma excelente chance de torná-la completa.

— Como posso saber que você me entregará mesmo a moça?

— Naturalmente, não pode haver garantia — disse ele, encolhendo os ombros. — Mas, sabendo que ela pensou em me abandonar pelo suíno que está morto lá embaixo, o senhor certamente não imaginará que meus sentimentos por ela sejam muito afetuosos. Além disso, se a levar comigo, ela quererá parte dos títulos.

Pensei seriamente no caso.

— Encaro a coisa desta maneira — falei, finalmente. — Você não é um assassino. Sairei vivo, não importa o que acontecer. Muito bem, por que então fazer a troca? Será mais fácil reencontrá-lo, e à moça, do que os títulos, e eles são, de qualquer maneira, a parte mais importante deste trabalho. Ficarei com eles e arriscarei minha chance de encontrá-los novamente. Isso mesmo. Estou jogando na certa.

— Não, não sou assassino — disse ele, bem baixinho, e sorriu pela primeira vez desde que eu o conhecera. Não foi um sorriso agradável, e havia nele alguma coisa que provocava calafrios. — Mas sou também outras coisas em que o senhor não pensou. Mas isto é falar inutilmente. Elvira!

Obedientemente, ela deu um passo à frente.

— Há lençóis em uma das gavetas da cômoda — disse-lhe. — Rasgue um ou dois deles em tiras suficientemente fortes para amarrar bem o nosso amigo.

A moça dirigiu-se à cômoda. Franzi a testa, procurando evitar uma resposta desagradável demais para a questão que se formava em minha mente. A primeira que me ocorreu não foi boa: tortura.

Nesse momento, ouvimos um som baixo, e todos nós ficamos tensos, imóveis.

O quarto onde nos encontrávamos tinha duas portas: uma que dava para o corredor e outra que conduzia ao cômodo contíguo. E era do corredor que vinha o som baixo... de passos cautelosos.

Rápida e silenciosamente, Tai recuou para uma posição da qual podia vigiar a porta do corredor sem perder de vista a moça e eu; e a arma equilibrada como uma coisa viva na mão gorducha era todo sinal de que precisávamos para não fazer barulho algum.

O som baixo outra vez, do outro lado da porta.

A arma na mão de Tai parecia tremer de ansiedade.

Pela outra porta, a que dava para o quarto contíguo, entrou inesperadamente a sra. Quarre com um enorme revólver engatilhado na mão esquelética.

— Solte a arma, seu pagão nojento — guinchou ela. Tai deixou cair a pistola antes de se virar para ela e ergueu alto as mãos... todos gestos muito prudentes.

Nesse momento, Thomas Quarre entrou pela porta do corredor, também com um revólver engatilhado que era a réplica da arma da esposa, embora, diante de seu corpo volumoso, não parecesse tão enorme assim.

Olhei outra vez para a velhinha e pouco vi da pessoa cordial e frágil que me servira chá e proseara sobre os vizinhos. Aquela mulher era uma bruxa, se é que eu já vira alguma... uma bruxa do tipo mais negro e mais maligno. Os pequenos olhos desbotados brilhavam de ferocidade, os lábios murchos estavam tensos num rosnado vulpino, e o corpo magro tremia de ódio.

— Eu sabia — disse ela em voz aguda. — Eu disse a Tom, logo que nos afastamos o suficiente para poder pensar nas coisas. Sabia que era uma armadilha! Sabia que esse falso detetive era aliado seu! Sabia que era apenas um plano para surrupiar a parte de Thomas e a minha! Eu lhe mostrarei uma coisa, seu macaco amarelo! Onde é que estão os títulos? Onde estão eles?

O chinês recuperara a calma, se é que a havia perdido.

— Nosso entroncado amigo pode dizer-lhe, talvez — respondeu ele. — Eu estava prestes a extrair dele a informação quando a senhora... bem... chegou tão dramaticamente.

— Thomas, pelo amor de Deus, não fique aí sonhando — disse ela, seca, ao marido, que, para todos os fins, continuava a ser o manso velho que me oferecera aquele excelente charuto. — Amarre esse china! Não confio nem um pouco nele e só me sentirei à vontade quando ele estiver amarrado.

Levantei-me de meu lugar na cama e dirigi-me, cauteloso, para o local em que julgava ficaria fora da linha de fogo, se acontecesse o que eu esperava.

Tai deixara cair a arma, mas não fora revistado. Os chineses são um povo meticuloso; se um deles leva uma arma, geralmente pode-se esperar que traga duas, três, ou mais. Uma arma fora tomada de Tai, e, se tentassem amarrá-lo sem o revistar, provavelmente haveria fogos de artifício. Em vista disso, afastei-me para um lado.

O gordo Thomas Quarre dirigiu-se fleumaticamente para o chinês a fim de cumprir as ordens da esposa... e pôs tudo a perder.

Colocou o corpanzil entre Tai e a arma da velha.

As mãos de Tai moveram-se, e uma automática surgiu em cada uma delas.

Mais uma vez, Tai agiu de acordo com o molde racial. Quando um chinês atira, continua até esvaziar a arma.

Quando o puxei pelo pescoço gordo e o lancei ao chão, suas armas vomitavam metal e acabaram acertando no vazio, quando prendi com o joelho um de seus braços. Eu não ia me arriscar. Trabalhei-lhe a garganta até que seus olhos e língua disseram-me que ele estava fora de combate por algum tempo. Em seguida, olhei em volta.

Vi Thomas Quarre encostado na cama, visivelmente morto, com três buracos redondos no colete branco engomado.

Do outro lado do quarto, a sra. Quarre estava caída de costas. O vestido havia, de alguma maneira, assentado em torno do seu corpo magro, e a morte lhe restituíra a aparência frágil e cordial que tinha quando a conheci.

A raiva Elvira desaparecera.

Logo depois, Tai se mexeu. Depois de extrair outra arma de dentro de sua roupa, ajudei-o a sentar-se. Ele alisou a garganta ferida com uma das mãos gordas e olhou, friamente, em volta.

— Onde está Elvira? — perguntou.

— Foi embora... por algum tempo. Ele encolheu os ombros.

— Bem, o senhor pode chamar a isso de uma operação realmente bem-sucedida. Os Quarre e Hook mortos, e os títulos e eu em suas mãos.

— Nada mau — reconheci. — Mas poderia fazer-me um favor?

— Se puder.

— Diga-me o que, afinal, está acontecendo!

— O que está acontecendo? — perguntou ele.

— Exatamente! Pelo que pude ouvir, vocês fizeram algum trabalho em Los Angeles que lhes rendeu cem mil dólares em títulos. Mas não consigo lembrar-me de nenhum trabalho recente desse valor naquela cidade.

— Ora, isso é absurdo! — exclamou, com o que para ele era quase um esbugalhado espanto. — Absurdo! Naturalmente o senhor sabe de tudo a esse respeito!

— Não, não sei! Eu estava tentando encontrar um jovem chamado Fisher, que abandonou furioso a casa paterna em Tacoma há uma ou duas semanas. O pai quer que ele seja localizado sem estardalhaço, para que possa vir aqui convencê-lo a voltar para casa. Fui informado de que poderia encontrar Fisher neste quarteirão de Turk Street, e foi isso o que me trouxe aqui.

Ele não acreditou. Jamais acreditou. Foi para a forca julgando-me mentiroso.

Quando saí novamente para a rua (e Turk Street pareceu-me uma rua encantadora quando pisei nela, livre, após a noite naquela casa), comprei um jornal, que me contou a maior parte do que queria saber.

Um rapaz de vinte anos, um mensageiro de uma corretora de Los Angeles, desaparecera dois dias antes a caminho de um banco onde ia depositar um pacote de títulos. Naquela mesma noite, o rapaz e uma moça esbelta de cabelos ruivos ondulados se haviam registrado em um hotel em Fresno como J. M. Riordan e esposa. Na manhã seguinte, o rapaz fora encontrado no quarto... morto. A moça desaparecera. Os títulos, também.

Isso era o que me contava o jornal. Nos dias seguintes, juntando informações aqui e ali, consegui reconstituir a maior parte da história.

O chinês, cujo nome completo era Tai Chun Tau, fora o cérebro da quadrilha. O jogo fora uma variação do sempre seguro golpe da amofinação. Tai escolhia um jovem mensageiro, despachante de banco ou corretora... indivíduo que transportava grande volume de dinheiro ou de títulos negociáveis.

A moça, Elvira, trabalhava então o rapaz, fazia-o apaixonar-se por ela... o que não devia ser muito difícil... e convencia-o suavemente a fugir com ela e com o que quer que ele conseguisse agarrar em títulos ou dinheiro do empregador.

Em todos os lugares onde passavam a primeira noite da fuga, aparecia Hook, espumando de raiva e disposto a matar. A moça suplicava, arrancava os cabelos, e assim por diante, procurando impedir que Hook, no papel de marido ultrajado e furioso, liquidasse o rapaz. Finalmente, ela conseguia, e, no fim, o jovem acabava sem a mulher e os frutos do roubo.

Algumas vezes o rapaz entregava-se à polícia. Descobrimos que dois deles haviam cometido suicídio. O de Los Angeles fora de um material mais duro do que os demais. Resistira, e Hook fora obrigado a matá-lo. Pode-se avaliar a habilidade da moça em sua parte na tramóia pelo fato de que nem um único da meia dúzia de jovens que ela depenara dissera coisa alguma para implicá-la; e alguns deles haviam-se dado a grande trabalho para evitar que ela fosse envolvida.

A casa de Turk Street fora o esconderijo da quadrilha, e para que continuasse sempre segura não haviam tentado golpe algum em San Francisco. Hook e a moça passavam para os vizinhos como filho e filha dos Quarre... e Tai como o cozinheiro chinês. A aparência benigna e respeitável dos Quarre era útil também quando a quadrilha queria vender títulos.

 

O chinês subiu à forca. Lançamos a mais vasta e a mais fina das redes em busca da moça raiva. Encontramos raivas de cabelo ondulado às dezenas. Mas não Elvira.

Mas prometi a mim mesmo que, algum dia...


 

                   A garota de olhos prateados

A campainha acordou-me, sobressaltado. Rolei para a borda da cama e estendi a mão para o telefone. Chegou-me ao ouvido a voz clara do Velho, o diretor da Agência Continental em San Francisco:

— Sinto muito acordá-lo, mas você precisa ir aos Glenton Apartments, em Leavenworth Street. Um morador, chamado Burke Pangburn, telefonou-me há alguns minutos, pedindo que lhe enviasse alguém imediatamente. Parecia muito nervoso. Quer encarregar-se disso? Veja o que ele quer.

Respondi que sim e, bocejando, espreguiçando-me e amaldiçoando Pangburn — quem quer que fosse —, tirei do pijama o gordo corpo e enfiei-o num traje de passeio.

O indivíduo que me perturbara o sono da manhã de domingo, descobri ao chegar aos Glenton, era um tipo magrelo, pálido, de uns vinte e cinco anos, e de olhos vermelhos naquele momento por falta de sono, por choro, ou por ambas as coisas. Com o longo cabelo castanho desgrenhado, abriu a porta usando um roupão cor de malva, decorado com grandes papagaios verdes, sobre um pijama de seda cor de vinho.

O aposento para onde me levou parecia um salão de leiloeiro pouco antes de um leilão, ou talvez uma dessas salas de chá de becos escusos: gordos vasos azuis, tortos vasos vermelhos, esguios vasos amarelos, vasos de várias formas e cores; estatuetas de mármore, de ébano, de todos os materiais; lanternas, abajures e candelabros; cortinas, reposteiros e tapetes de todos os tipos; peças avulsas de mobílias de estranhos modelos; e quadros esquisitos pendurados nos lugares mais inesperados. Uma sala que dificilmente deixaria uma pessoa à vontade.

— Minha noiva — começou logo com voz aguda, a apenas um passo da histeria — desapareceu! Alguma coisa aconteceu a ela! Um crime, de algum tipo horrendo! Quero que a encontre... que a salve dessa coisa horrível que...

Acompanhei-lhe a falação até essa altura e depois desisti. Um amontoado de palavras continuava a jorrar de sua boca:

—... seqüestrada... algo misterioso... atraída para uma cilada. — Mas as frases eram desconexas demais e não faziam sentido algum para mim. Deixei, em vista disso, de procurar compreendê-lo e esperei que ele esgotasse o estoque verbal.

Já ouvi homens habitualmente sensatos, quando sob tensão nervosa, falarem de maneira ainda mais desconexa do que aquele jovem de olhos-alucinados; mas o traje — o roupão de papagaios e o alegre pijama —, aliado ao ambiente da sala delirantemente decorada, colocavam-no como que em um meio teatral e tornavam-lhe as palavras absolutamente irreais.

Ele,, quando normal, devia ser um rapaz muito bem-apessoado; tinha feições bem marcadas, e, embora a boca e o queixo parecessem pouco firmes, a larga testa era perfeita. Mas eu, ali de pé, escutando uma ocasional e melodramática frase a emergir dos confusos ruídos com que me bombardeava, pensei que, em vez de papagaios, o roupão deveria ter sido decorado com cucos.

Logo depois, ele esgotou o suprimento e estendeu, em um gesto de súplica, as longas e magras mãos para mim, perguntando:

— O senhor a encontrará? — E continuou a repetir: — O senhor a encontrará? O senhor a encontrará?

Inclinei, tranqüilizador, a cabeça e notei que lágrimas lhe escorriam pela face.

— Que tal começarmos do começo? — sugeri, sentando-me com todo o cuidado em um banco entalhado que não me pareceu lá muito resistente.

— Sim! Sim! — De pé, com as pernas abertas à minha frente, passava os dedos pelos cabelos. — O começo. Eu recebia uma carta dela todos os dias até que...

— Isso não é o começo — objetei. — Quem é ela? O que ela faz?

— Ela é Jeanne Delano! — exclamou, surpreso com minha ignorância. — Minha noiva. Agora, ela desapareceu, e sei que...

As palavras "vítima de um crime misterioso", "atraída para uma armadilha" recomeçaram a jorrar histericamente.

Finalmente, consegui acalmá-lo e, entre uma explosão emocional e outra, ouvi dele uma história mais ou menos assim:

Ele, Burke Pangburn, era poeta. Cerca de dois meses antes recebera um bilhete de Jeanne Delano, enviado pelo editor, elogiando-lhe o último livro de poesia. Jeane Delano residia por acaso em San Francisco, embora não soubesse que ele morava ali também. Respondeu ao bilhete e recebeu outro. Pouco tempo depois conheceram-se. Se era realmente tão bela como dizia, ele não devia ser censurado por ter se apaixonado. Mas fosse ou não realmente bela, ele pensava que sim, e apaixonou-se perdidamente.

A moça estava em San Francisco havia pouco tempo, e, quando ele a conheceu, residia sozinha em um apartamento de Ashbury Avenue. Não sabia de onde ela viera ou coisa alguma sobre seu passado. Desconfiava, por certas indicações indefinidas e peculiaridades de conduta que não conseguia traduzir em palavras, que alguma espécie de nuvem pairava sobre ela; que nem seu passado nem seu presente estavam isentos de dificuldades. Mas não tinha a mais vaga idéia do que pudesse ser. Não se importara. Coisa alguma sabia a respeito dela, salvo que era bela, que a amava e que prometera casar-se com ele. Mas, no dia 3 daquele mês, exatamente vinte e um dias antes dessa manhã de domingo, a moça partira repentinamente de San Francisco. Recebera um bilhete dela, enviado por mensageiro.

A nota, que só me mostrou depois que insisti muito em vê-la, dizia:

 

Burkerido:

Acabo de receber um telegrama e preciso seguir para o leste no próximo trem. Tentei falar com você ao telefone mas não consegui. Escreverei logo que souber qual vai ser meu endereço. Se algo. (Estas duas palavras haviam sido apagadas e somente com grande dificuldade podiam ser lidas.) Ame-me até que eu volte para você, para sempre.

Sua Jeanne.

 

Nove dias depois, recebera outra carta, procedente de Baltimore, Maryland. Esta, que me custou ainda mais trabalho para ler, dizia:

 

Amantíssimo poeta:

Parece que já se passaram dois anos desde que o vi pela última vez, e receio que se passem mais um ou dois meses antes que o reveja.

Não lhe posso contar ainda, amado, o que me trouxe aqui. Há coisas que não podem ser escritas. Mas, logo que voltar para você, eu lhe contarei toda a triste história.

Se alguma coisa acontecer — quero dizer, a mim —, você continuará a me amar para sempre, não, meu amado? Mas isso é tolice. Coisa alguma vai me acontecer. Acabei de saltar do trem e estou cansada da viagem.

Amanhã lhe escreverei uma longa carta, para compensar esta.

Meu endereço aqui é 215 North Stricker Street. Por favor, senhor, escreve pelo menos uma carta por dia!

Sua, totalmente sua, Jeanne.

 

Durante nove dias recebera diariamente uma carta, com duas na segunda-feira para compensar a falta no domingo. Mas as cartas haviam cessado. As cartas diárias que ele enviara para o endereço dado, 215 North Stricker Street, começaram a voltar com a anotação "destinatária desconhecida". Passara um telegrama e a companhia informara que a agência de Baltimore não conseguira localizar nenhuma Jeanne Delano no endereço de North Stricker Street.

Durante três dias, esperara a cada hora receber notícias dela, mas nenhuma palavra chegara. Comprara, então, uma passagem para Baltimore.

— Mas — concluiu ele — fiquei com medo de ir. Sei que ela está em alguma dificuldade... posso sentir isso., mas sou um tolo poeta. Não sei lidar com mistérios. Ou não descobriria nada, ou, se por sorte achasse acidentalmente a pista certa, poria tudo a perder, criaria novas complicações e talvez aumentasse o risco para a vida dela. Não posso arriscar-me a errar assim, sem saber se a estou ajudando ou prejudicando. É trabalho para um especialista. Pensei, assim, na agência dos senhores. O senhor tomará todo o cuidado, não? Talvez... eu não sei... ela não queira ajudar. Mas é possível que possa ajudá-la sem que saiba de coisa alguma. O senhor está acostumado a esse tipo de coisas. Pode fazer isso, não?

Pensei um bocado antes de responder. Os dois grandes problemas de uma agência séria de detetives são as pessoas que a procuram com um plano desonesto ou uma questão de divórcio disfarçados sob a forma de uma operação legal, ou a pessoa irresponsável que vive com alucinadas e imaginosas ilusões e que quer levá-las até o fim.

O poeta, sentado a minha frente naquele instante, torcendo os brancos e longos dedos, era, pensei, sincero, mas eu não tinha certeza de sua sanidade mental.

— Sr. Pangburn — disse eu, após um momento —, gostaria de tratar disso para o senhor, mas não tenho certeza de que possa. A Continental é muito rigorosa, e muito embora eu acredite que o que me contou é grave, sou apenas um empregado e tenho que cumprir regulamentos. Bem, se o senhor desse a referência de alguma firma ou pessoa respeitável... um advogado conhecido, por exemplo, ou qualquer pessoa legalmente responsável... teríamos prazer em levar o trabalho adiante. De outra forma, receio que...

— Mas sei que ela está em perigo! — interrompeu-me ele.

— Sei disso... £ não posso anunciar a aflição em que ela se encontra... divulgar seus assuntos particulares... para conhecimento de todo mundo.

— Sinto muito, mas não posso fazer coisa alguma, a menos que o senhor me forneça uma referência. — Levantei-me.

— Mas o senhor pode encontrar numerosas agências de detetives não tão exigentes.

Sua boca mexeu-se como a de um menino, e ele mordeu o lábio inferior. Durante um momento, pensei que ia debulhar-se em lágrimas. Mas, em vez disso, disse vagarosamente:

— Acho que o senhor tem razão. Suponhamos que eu lhe dê como referência meu cunhado, Roy Axford. A palavra dele será suficiente?

— Sim.

Roy Axford — R. F. Axford — era um industrial de minérios que tinha um dedo em pelo menos metade das grandes empresas da costa do Pacífico, e sua palavra sobre qualquer assunto era geralmente considerada boa por todo mundo.

— Se puder entrar em contato com ele agora — disse eu —, e combinar para que eu possa visitá-lo hoje, poderei começar sem muito atraso.

Pangburn atravessou a sala, tirou um telefone de uma pilha de trastes ornamentais, e minutos depois falava com alguém que chamou de "Rita".

— Roy está em casa?... Estará esta tarde?... Não, mas você pode lhe dar um recado meu... Diga-lhe que vou mandar um cavalheiro aí esta tarde para tratar de um assunto pessoal... assunto pessoal meu... e que ficarei muito grato se ele fizer o que quero... Sim... Você saberá depois o que é, Rita... Não é coisa para se conversar ao telefone... Sim, obrigado!

Empurrou o telefone para o esconderijo e voltou-se para mim:

— Ele estará em casa até duas da tarde. Conte-lhe o que lhe disse, e, se ele parecer em dúvida, peça-lhe para me telefonar. O senhor terá que lhe contar tudo. Ele não sabe de coisa alguma a respeito da srta. Delano.

— Muito bem. Antes de ir, gostaria de uma descrição dela.

— Ela é bela! A mulher mais bela do mundo!

Isso seria uma maravilha numa circular prometendo uma recompensa.

— Mas isso não é exatamente o que eu quero — respondi. — Que idade tem ela?

— Vinte e dois.

— Altura?

— Mais ou menos um metro e sessenta e seis ou setenta.

— Esbelta, média ou gorda?

— Ela tende para a esbeltez, mas...

Havia em sua voz uma nota de entusiasmo que me fez temer que ele estivesse prestes a iniciar outro discurso. Assim, interrompi-o com outra pergunta:

— Qual a cor do cabelo dela?

— Castanho... tão escuro que é quase preto., macio, abundante e...

— Sim, sim. Comprido ou cacheado?

— Longo, abundante e...

— Cor dos olhos?

— O senhor já viu sombras em prata polida quando... Escrevi "olhos cinzentos" e apressei o interrogatório.

— Pele?

— Perfeita.

— Hum-hum. Mas clara, morena, rosada, pálida, ou o quê?

— Clara.

— Face oval, quadrada, longa e magra, ou de que formato?

— Oval.

— Formato do nariz? Longo, pequeno, arrebitado...

— Pequeno e regular! — Notei um travo de indignação em sua voz.

— Como é que ela se veste? Na moda? Prefere cores berrantes ou discretas?

— Bel... — Quando abri a boca para interrompê-lo, ele voltou à terra com: — Muito discretas... geralmente azul-escuro e marrom.

— Que jóias usa?

— Nunca a vi usar jóia alguma.

— Alguma cicatriz ou mancha congênita? — A expressão horrorizada de sua face pálida levou-me a aplicar a dose completa: — Ou verrugas ou deformidades que conheça?

Ele perdeu a fala, mas, ainda assim, conseguiu sacudir negativamente a cabeça.

— Tem alguma foto dela?

— Tenho. Vou mostrá-la.

Levantou-se de um salto, serpenteou entre a atravancada mobília da sala e saiu por uma porta fechada por uma cortina. Voltou quase no mesmo instante com uma grande foto emoldurada em marfim. Era uma dessas fotos artísticas, uma peça de sombras e esboços esfumaçados, sem grande valor para fins de identificação. Ela era bela, disso não havia dúvida, mas isso nada significava: é justamente essa a finalidade das fotografias artísticas.

— Esta é a única que o senhor possui?

— Sim.

— Tenho de tomá-la emprestada, mas a devolverei logo que tirar cópias.

— Não! Não! — protestou ele, achando insuportável que a foto de seu amor fosse distribuída por uma porção de tiras. — Isso seria horrível!

Finalmente, consegui levá-la, mas isso me custou mais palavras do que gosto de gastar com coisas triviais.

— Eu quero emprestadas, também, umas duas cartas dela ou alguma coisa escrita com sua letra — falei.

— Para quê?

— Para mandar tirar cópias fotostáticas. Amostras da letra de pessoas são muito úteis... dão pistas para conferir registros de hotéis. Mesmo que assumam nomes fictícios, as pessoas ocasionalmente escrevem bilhetes e memorandos.

Tivemos outra batalha, da qual emergi com três envelopes e duas folhas de papel sem maior significação, cobertas com a letra angular da moça.

— Ela tem dinheiro? — perguntei, quando os disputados espécimes da letra e a foto estavam em segurança dentro de meu bolso.

— Não sei. Isso não é o tipo de coisa que se investigue. Ela não era pobre, isto é, não era obrigada a fazer pequenas economias. Mas não tenho a menor idéia sobre o montante e a fonte de sua renda. Tinha conta corrente na Golden Gate Trust Company, mas, naturalmente, nada sei sobre o saldo.

— Tinha muitos amigos aqui?

— Isso é outra coisa que não sei. Acho que ela conhecia algumas pessoas, mas não sei quem eram. O senhor compreende, quando estávamos juntos só falávamos sobre nós. Coisa alguma interessava, salvo um ou outro. Nós estávamos simplesmente...

— O senhor não pode nem mesmo dar um palpite sobre o lugar de onde ela veio, ou quem era?

— Não. Essas coisas não me importavam. Ela era Jeanne Delano, e isso era suficiente para mim.

— O senhor e ela tiveram, acaso, interesses financeiros em comum? Quero dizer, houve alguma transação de dinheiro ou de outras coisas de valor em que tenham estado ambos interessados?

O que eu queria saber, naturalmente, era se ela lhe havia pedido algum empréstimo, se lhe vendera alguma coisa ou lhe arrancara dinheiro de alguma outra maneira.

Ele ergueu-se de um salto, e sua face adquiriu o cinzento dos nevoeiros. Em seguida, sentou-se... derreou-se na cadeira... e ficou escarlate.

— Desculpe-me — disse ele, com dificuldade. — O senhor não a conhece, e, naturalmente, precisa examinar o caso de todos os ângulos. Não, nunca houve coisa alguma desse tipo. Receio que perca seu tempo se for trabalhar na base da teoria de que ela era uma aventureira. Nunca houve tal coisa! Ela era uma moça sobre a qual pairava algo de terrível; algo que a chamou inesperadamente a Baltimore; algo que a levou para longe de mim. Dinheiro? O que, afinal, o dinheiro poderia ter com isto? Eu a amo!

 

  1. F. Axford recebeu-me em uma sala parecida com um escritório em sua residência na Russian Hill: era um homem alto e louro, cujos quarenta e oito ou quarenta e nove anos não tinham apagado as linhas de um corpo de atleta, avantajado, com as maneiras daqueles que têm completa autoconfiança, e isso não inteiramente sem justificação.

— O que o nosso Burke anda fazendo agora? — perguntou, divertido, quando lhe disse quem era. A voz era de um baixo vibrante e agradável.

Não lhe dei todos os detalhes..

— Ele estava noivo de uma Jeanne Delano, que seguiu para o leste há três semanas e subitamente desapareceu. Ele pouco sabe a respeito dela. Acha que algo lhe aconteceu e quer que ela seja encontrada.

— Outra vez? — Seus matreiros olhos faiscaram. — E com uma Jeanne desta vez! Ela é a quinta em um ano, tanto quanto sei, e decerto perdi uma ou duas enquanto estive no Havaí. Mas onde é que eu entro nessa história?

— Pedi a ele uma boa referência. Acho que ele é sincero, mas não é, no sentido estrito, uma pessoa responsável. Ele me deu o seu nome. como referência.

— O senhor tem razão a respeito de ele não ser, em sentido estrito, uma pessoa responsável. — O corpulento cavalheiro contraiu, pensativo, as sobrancelhas e os lábios durante algum tempo. Disse depois: — O senhor acha que alguma coisa aconteceu, realmente, à moça? Ou estará Burke imaginando coisas?

— Não sei. No princípio, pensei que estava. Mas em umas duas cartas dela há indícios de que alguma coisa anda errada.

— Pode continuar, então, a procurá-la — disse Axford. — Acho que não pode haver mal algum em que ele recupere sua Jeanne. Pelo menos isso lhe dará alguma coisa em que pensar durante algum tempo.

— Tenho a sua palavra, então, sr. Axford, de que não haverá escândalo ou alguma coisa semelhante ligada ao caso?

— Certamente! Burke é um homem decente. Acontece apenas que foi mimado demais. Sempre teve saúde bastante delicada. Possui renda suficiente para viver modestamente, com um pouco de sobra para publicar livros de poesia e comprar enfeites para seu apartamento. Ele se leva muito sério... faz por demais o gênero poeta... mas, no fundo, é normal.

— Darei prosseguimento ao caso, então — repliquei, levantando-me. — Por falar nisso, a pequena tem uma conta na Golden Gate Trust Company, e eu gostaria de descobrir tudo o que fosse possível a esse respeito, especialmente de onde vem o dinheiro dela. Clement, o caixa, é um modelo de cautela quando se trata de fornecer informações sobre depositantes. Se o senhor pudesse dizer uma palavra em meu favor, as coisas seriam muito mais fáceis.

— Será um prazer.

Ele escreveu umas duas linhas nas costas de um cartão e entregou-o a mim. Prometendo telefonar se precisasse de mais ajuda, deixei-o.

Telefonei a Pangburn e disse-lhe que o cunhado dera aprovação ao trabalho. Enviei um telegrama à filial de Baltimore com as informações de que dispunha. Em seguida, dirigi-me a Ashbury Avenue, ao prédio de apartamentos onde a pequena residira.

A proprietária do apartamento, uma senhora imensa, de nome Clute, que usava um farfalhante vestido preto, pouco mais sabia sobre a moça do que Pangburn. A pequena residira ali durante dois meses e meio; recebera visitas ocasionais, mas Pangburn foi o único que conseguiu descrever-me. A moça entregara o apartamento no dia 3 daquele mês, dizendo que fora chamada ao leste. Pedira à proprietária que lhe guardasse a correspondência até enviar o novo endereço. Dez dias depois, a sra. Clute recebera uma carta dela, dando-lhe instruções para remeter a correspondência para o número 215 da North Stricker Street, Baltimore, Maryland. Não houvera correspondência a enviar.

A única coisa importante que eu soube no prédio foi que os dois baús da moça haviam sido levados por um caminhão verde. O verde era a cor usada por uma das maiores companhias de mudanças da cidade.

Fui até o escritório do guarda-móveis e descobri um empregado amistoso. (Um detetive, se for prudente, esforça-se por fazer e conservar tantos amigos quantos puder entre os empregados de guarda-móveis, companhias de remessas expressas e estradas de ferro.) Deixei o escritório com anotações contendo os números de controle e o endereço do armazém da estrada de ferro para onde haviam sido levados os dois baús.

Na estação, de posse dessa informação, não precisei de muito tempo para descobrir que os baús haviam sido despachados para Baltimore. Enviei outro telegrama a Baltimore, dando o número do talão da estrada de ferro.

Como o domingo já se transformara em noite, resolvi parar e ir para casa.

Meia hora antes de a Golden Gate Trust Company iniciar o expediente na manhã seguinte, já me encontrava no edifício, conversando com Clement, o caixa. Toda a tradicional cautela e conservadorismo de todos os banqueiros reunidos nada é em comparação com a desse homem gorducho, de cabelos brancos. Mas um único olhar ao cartão de Axford, com um "Por favor, dê ao portador toda a ajuda possível" escrito a tinta no verso, tornou Clement até ansioso por ajudar.

— Vocês têm, ou tiveram, uma conta aqui em nome de Jeanne Delano — falei. — Eu gostaria de saber tudo o que fosse possível a esse respeito: a quem ela passava cheques, e em que valores, mas, em especial, tudo o que puder sobre a origem do dinheiro.

Com um dedo rosado ele apertou um botão cor de pérola em cima da mesa. Um rapaz de lustroso cabelo amarelo entrou, silencioso. O caixa rabiscou alguma coisa a lápis em um pedaço de papel e entregou-o ao jovem mudo, que desapareceu. Logo depois, ele voltou, colocando um punhado de papéis sobre a mesa do caixa.

Clement examinou-os e ergueu os olhos para mim:

— A srta. Delano foi-nos apresentada pelo sr. Burke Pangburn, no dia 6 do mês passado, e abriu uma conta com oitocentos e cinqüenta dólares em dinheiro. Fez os seguintes depósitos depois disso: quatrocentos dólares no dia 10; duzentos e cinqüenta no dia 21; trezentos no dia 26; duzentos no dia 30, e vinte mil no dia 2 deste mês. Todos esses depósitos, exceto o último, foram feitos em dinheiro. O último foi em cheque.

Entregou-o a mim: um cheque da Golden Gate Trust Company.

 

       Pague-se, à ordem de Jeanne Delano, vinte mil dólares.

       (ass.) Burke Pangburn

 

Estava datado do dia 2 daquele mês.

— Burke Pangburn! — exclamei, algo estupidamente. — Ele costumava preencher cheques nesse valor?

— Acho que não. Mas veremos.

Apertou mais uma vez o botão pérola, rabiscou em outro pedaço de papel, e o jovem de cabelo lustroso entrou mais uma vez sem ruído, saiu, entrou e saiu. O caixa examinou a nova pilha de documentos.

— No dia 1? do mês, o sr. Pangburn depositou vinte mil dólares; um cheque sacado contra a conta do sr. Axford em nosso banco.

— Bem, e o que me diz das retiradas da srta. Delano? — perguntei.

Ele examinou novamente os documentos da moça.

— O extrato de conta e os cheques pagos do mês passado ainda não foram enviados a ela. Está tudo aqui. Há um cheque de oitenta e cinco dólares em nome de H. K. Clute, no dia 15 do mês passado; um "ao portador" de trezentos dólares, no dia 28, e outro do mesmo tipo, de cem dólares, no dia 25. Ambos os cheques foram, aparentemente, descontados por ela mesma. No dia 3 deste mês, ela encerrou a conta com um cheque a ela mesma de vinte e um mil, quinhentos e quinze dólares.

— E esse cheque?

— Foi descontado aqui por ela mesma.

Acendi um cigarro e deixei que essas cifras circulassem por minha mente. Nenhuma delas, exceto as ligadas às assinaturas de Pangburn e Axford, parecia ter valor para mim. O cheque em nome de Clute, o único que a moça preenchera em nome de alguém, fora quase certamente para pagar o aluguel.

— Então a coisa foi assim — resumi em voz alta. — No dia 1? do mês, Pangburn depositou na sua conta o cheque de Axford, no valor de vinte mil dólares. No dia 2, entregou um cheque nesse valor à srta. Delano, que ela depositou. No dia seguinte, ela fechou a conta, levando entre vinte e um mil e vinte e dois mil dólares em dinheiro.

— Exatamente — concordou o caixa.

Antes de seguir até os Glenton Apartments para descobrir por que Pangburn não fora sincero comigo a respeito dos vinte mil dólares, passei pela agência para ver se havia alguma notícia de Baltimore. Um dos empregados acabara de decodificar um telegrama. Dizia:

 

Bagagem chegou à Mt. Royal Station no dia 8. Levada no mesmo dia. Impossível descobrir-lhe o paradeiro. 215 North Stricker Street é o endereço do Baltimore Orphan Asylum. A moça não é conhecida lá. Continuamos trabalho para localizá-la.

 

O Velho chegou do almoço no momento em que eu saía. Voltei com ele ao seu gabinete para dois minutos de conversa.

— Esteve com Pangburn? — perguntou.

— Estive. Estou trabalhando nisso agora... mas acho que é uma fraude.

— Como assim?

— Pangburn é cunhado de R. F. Axford. Conheceu uma moça há uns dois meses e apaixonou-se por ela. Parecia gente fina. Ele não sabe de coisa alguma a respeito dela. No dia 1º, recebeu vinte mil dólares do cunhado e entregou-os à pequena. Ela desapareceu, dizendo-lhe que fora chamada a Baltimore e dando-lhe um endereço falso, que verificamos ser de um asilo. Ela despachou os baús para Baltimore, e de lá escreveu-lhe algumas cartas... mas um amigo poderia ter ido apanhar a bagagem e reendereçado as cartas para ela. Naturalmente, ela precisaria de uma passagem para despachar a bagagem, mas numa jogada de vinte mil dólares isso seria despesa pequena. Pangburn não foi sincero comigo. Não me disse coisa alguma sobre o dinheiro. Está envergonhado de ter bancado o trouxa, acho. Vou ter uma conversa com ele agora.

O Velho abriu aquele suave sorriso que pode significar qualquer coisa, e me despedi.

Dez minutos pendurado à campainha de Pangburn não produziram efeito algum. O ascensorista me disse que ele passara a noite fora. Coloquei um bilhete em sua caixa e fui até o escritório da companhia de estrada de ferro, onde pedi para ser avisado se um bilhete não usado Baltimore—San Francisco fosse apresentado com pedido de devolução do dinheiro.

Feito isso, fui até a redação do Chronicle e dei busca no arquivo sobre as condições atmosféricas no último mês, tomando nota de quatro dias em que chovera sem parar dia e noite. Levei as anotações aos escritórios das três maiores companhias de táxis.

Tratava-sé de um expediente que funcionara bem antes. O apartamento da moça ficava a alguma distância do ponto do bonde, e eu estava contando com que ele houvesse saído, ou recebido uma visita, numa dessas datas chuvosas. Em ambos os casos, era muito provável que ela, ou o visitante, tivesse saído de táxi em vez de ir a pé até o ponto do bonde. Os registros diários das companhias acusariam qualquer chamada do endereço dela e o destino da viagem.

O ideal, naturalmente, teria sido examinar todos os registros durante o tempo em que a moça ocupara o apartamento, mas nenhuma companhia toleraria esse volume de trabalho extra, a menos que fosse uma questão de vida ou morte. E foi mesmo difícil convencê-los a mandar examinar os quatro dias que eu escolhera.

Telefonei a Pangburn mais uma vez depois que saí do escritório da última companhia. Ele continuava ausente. Chamei a residência de Axford, pensando que o poeta poderia ter passado a noite lá, mas fui informado de que não estivera lá.

No fim da tarde, recebi as cópias da foto e da caligrafia da pequena e as enviei pelo correio para Baltimore. Fui até as companhias de táxi e recebi ;is informações. Duas delas nada informavam. Os registros da terceira acusavam duas chamadas do apartamento da moça.

Em certa tarde chuvosa, um táxi fora chamado e levara um passageiro aos Glenton Apartments. O passageiro fora, obviamente, Pangburn ou a moça. A meia-noite e meia de outra noite, houvera uma chamada, e o passageiro fora levado ao Marquis Hotel.

O motorista que atendera ao segundo chamado lembrou-se perfeitamente do Caso quando o interroguei, mas achava que o freguês fora um homem. Deixei o assunto em suspenso. O Marquis não é um grande hotel, segundo os padrões de San Francisco, mas é grande demais para tornar praticável uma investigação dos hóspedes em busca daquele que eu queria.

Passei a noite tentando falar com Pangburn, sem sucesso. Às onze, telefonei para Axford e perguntei-lhe se ele tinha alguma idéia sobre o local onde eu poderia encontrar o cunhado.

— Não o vejo há vários dias — respondeu o milionário. — Ele devia ter vindo jantar aqui ontem, mas não apareceu. Minha mulher tentou umas duas vezes falar com ele ao telefone, mas não conseguiu.

Na manhã seguinte, telefonei para o apartamento de Pangburn antes de saltar, da cama, e tampouco obtive resposta.

Chamei Axford e marquei com ele um encontro às dez horas em seu escritório.

— Não sei o que ele anda pretendendo fazer agora — replicou, bem-humorado, Axford, quando lhe contei que Pangburn estava aparentemente ausente do apartamento desde domingo. — Mas acho que pouco adianta dar um palpite. Nosso Burke é muito irregular nas suas coisas. Como é que vai indo na busca da donzela em apuros?

— Bem o bastante para me convencer de que ela não está tão em apuros assim. Recebeu vinte mil dólares de seu cunhado um dia antes de desaparecer.

— Arrancou vinte mil dólares de Burke? Ela deve ser uma pequena maravilhosa! Mas de onde tirou ele tanto dinheiro?

— Do senhor.

O musculoso corpo de Axford endureceu-se na cadeira.

— De mim?

— Sim... O seu cheque.

— De mim, não.

Nada havia de argumentativo em sua voz; ele simplesmente declarava um fato.

— O senhor não lhe deu um cheque no valor de vinte mil dólares no dia 1º do mês?

— Não.

— Neste caso — sugeri —, acho que seria melhor darmos um pulo à Golden Gate Trust Company.

Dez minutos depois, encontrávamo-nos no gabinete de Clement.

— Gostaria de ver meus últimos cheques — disse Axford ao caixa.

O jovem de cabelos lustrosos trouxe a papelada logo depois, um grosso maço de papéis. Axford folheou-os rapidamente até encontrar o que queria. Examinou o cheque durante muito tempo, e, ao erguer os olhos, sacudiu a cabeça devagar, mas com certeza.

— Nunca vi este cheque antes.

Clement enxugou a testa com um lenço branco e fingiu que não estava ardendo de curiosidade e receio de que seu banco houvesse sido passado para trás.

O milionário virou o cheque e examinou a assinatura do endosso.

— Depositado por Burke — disse, na voz de um homem que fala enquanto pensa em coisa inteiramente diferente — no dia 1º.

— Poderíamos falar com o caixa que recebeu o cheque de vinte mil dólares depositado pela srta. Delano? — perguntei a Clement.

Ele apertou um dos botões pérola com um nervoso dedo rosado, e em poucos segundos entrou um homenzinho pálido e careca.

— O senhor se lembra de ter, há algumas semanas, recebido um cheque de vinte mil dólares da srta. Jeanne Delano? — perguntei-lhe.

— Sim, senhor! Sim, senhor! Lembro-me perfeitamente.

— Do que é que o senhor se lembra a esse respeito?

— Bem, senhor, a srta. Delano veio até meu guichê em companhia do sr. Burke Pangburn. Era um cheque dele. Achei que era uma retirada grande demais, mas o pessoal da seção de conta corrente disse que ele tinha dinheiro suficiente na conta para cobri-lo. Ficaram ali... a srta. Delano e o sr. Pangburn... conversando e rindo enquanto eu registrava o depósito na caderneta dela. Depois, foram embora. Isso é tudo.

— Este cheque — disse devagar Axford, depois de o caixa ter voltado ao seu guichê — é falso. Mas eu o cobrirei, naturalmente. Isso põe um ponto final no assunto, sr. Clement, e não quero mais alvoroço em torno disso.

— Certamente, sr. Axford. Certamente. — Clement sorriu várias vezes, imensamente aliviado, e inclinou a cabeça um sem-número de vezes por essa carga de vinte mil dólares ter sido tirada dos ombros de seu banco.

Axford e eu saímos e tomamos seu cupê, no qual havíamos chegado ao banco. Ele, porém, não deu imediatamente partida ao motor. Durante algum tempo, olhou, sem ver, o tráfego que vinha por Montgomery Street.

— Quero que descubra onde está Burke — disse depois, e não havia emoção alguma em sua voz de baixo. — Quero que o encontre sem que haja a menor possibilidade de um escândalo. Se minha mulher souber disso... Ela não deve saber. Ela acha que o irmão é algo fora de série. Quero que o descubra para mim. A moça não importa mais, mas acho que, onde encontrar um, encontrará o outro. Não estou interessado no dinheiro e não quero que faça uma tentativa especial de reavê-lo. Isso dificilmente poderia ser feito, receio, sem publicidade. Quero que encontre Burke antes que ele faça qualquer outra coisa.

— Se o senhor quer evitar má publicidade — falei —, a melhor coisa a fazer, primeiro, é espalhar boa publicidade. Vamos anunciar que ele está desaparecido, encher o jornal com a fotografia dele, e assim por diante. Os jornais darão total divulgação ao caso. Ele é seu cunhado, e poeta. Podemos dizer que ele esteve doente... o senhor me disse que a saúde dele sempre foi delicada... e que receamos que tenha morrido subitamente ou esteja sofrendo de algum desequilíbrio mental. Não haverá necessidade de mencionar a moça ou o dinheiro, e nossa explicação poderá evitar que pessoas.... e, em especial sua esposa... suspeitem da verdade, quando começar a circular o boato de que ele está desaparecido. Isso vai transpirar de alguma forma.

No início, ele não gostou da idéia, mas consegui convencê-lo, finalmente.

Fomos até o apartamento de Pangburn e entramos sem dificuldade, tendo Axford explicado ao porteiro que tínhamos um encontro com ele e que o esperaríamos dentro de casa. Dei uma busca extremamente detalhada em toda parte, li tudo o que havia escrito por ali, mesmo os manuscritos, e nada encontrei que lançasse a menor luz sobre seu desaparecimento.

Reuni fotografias dele, pondo no bolso umas cinco da dúzia ou mais que havia no apartamento. Segundo Axford, nenhuma das malas ou baús do poeta tinha desaparecido. Não encontrei a caderneta de depósito da Golden Gate Trust Company.

Passei o resto do dia fornecendo aos jornais o material que queríamos que fosse publicado. Deram ao meu ex-cliente uma grande divulgação: matéria de primeira página, com fotos, e todos os dados habituais nesses casos. Quem em San Francisco não soubesse que Burke Pangburn, cunhado de R. F. Axford e autor de Manchas de areia e outros poemas, estava desaparecido, ou não sabia ou não queria ler.

A publicidade trouxe resultado. Na manhã seguinte, informações começaram a chover de todas as direções, de dezenas de pessoas que haviam visto o poeta desaparecido em uma dúzia de lugares diferente. Algumas delas pareciam promissoras, ou pelo menos viáveis, embora a maioria fosse patentemente ridícula.

Voltei à agência depois de ter ido verificar uma informação que, até ser examinada, parecia conter alguma coisa, e encontrei um bilhete pedindo-me que telefonasse para Axford.

— Pode vir ao meu escritório agora? — perguntou ele quando fiz a ligação.

Ao entrar no gabinete, vi um jovem de vinte e um ou vinte e dois anos em companhia de Axford: um tipo de empregado de escritório de peito estreito, metido a esportivo e a elegante.

— Este é o sr. Fali, um dos meus empregados — falou Axford. — Disse-me que viu Burke no domingo à noite.

— Onde? — perguntei a Fali.

— Entrando num restaurante perto de Halfmoon Bay.

— Tem certeza de que era ele?

— Absoluta! Eu o vi muitas vezes aqui, visitando o sr. Axford, e tenho certeza. Era ele mesmo.

— Como foi que lhe aconteceu vê-lo?

— Eu estava vindo da praia em companhia de alguns amigos e paramos no restaurante para comer alguma coisa. Quando íamos saindo, um carro chegou e o sr. Pangburn e uma mulher... não sei se jovem, não lhe prestei muita atenção... desceram e entraram. Não pensei em coisa alguma a esse respeito até que li no jornal ontem à noite que ele estava desaparecido desde domingo. Pensei então que...

— Que restaurante foi esse? — interrompi-o.

— O Barraco Branco.

— A que horas, mais ou menos?

— Entre onze e meia e meia-noite, acho.

— Ele o viu?

— Não. Eu já estava no carro quando ele chegou.

— Como era a mulher?

— Não sei. Não lhe vi o rosto, e não me lembro de como estava vestida, ou se era alta ou baixa.

Isso era tudo o que Fali sabia. Depois que ele saiu, usei o telefone para chamar a espelunca de Carcamano Healey, na North Beach, e dizer que, quando Porquinho Grout chegasse, devia telefonar para Sherlock. Era uma combinação mediante a qual eu podia entrar em contato com Porquinho quando queria vê-lo, sem dar a pessoa alguma oportunidade de descobrir qual era a ligação entre nós.

— Conhece o Barraco Branco? — perguntei a Axford, depois de telefonar.

— Sei onde fica, mas não conheço o lugar.

— Bem, é um lugar perigoso. Pertence a Estrela-de-Lata Joplin, um ex-arrombador que investiu todo o seu dinheiro no local quando a Lei Seca tornou lucrativo o negócio de restaurantes à beira de estradas. Ganha mais dinheiro agora do que no tempo em que vivia arrombando cofres. Mas vender bebida no varejo é um negócio secundário para ele, e seu verdadeiro lucro não é servir como ponto de transbordo para a bebida que chega por Halfmoon Bay. E o que se diz é que metade da bebida contrabandeada pela frota de rum do Pacífico é desembarcada em Halfmoon Bay. O Barraco Branco é um buraco perigoso, e não é lugar para ser freqüentado por seu cunhado. Eu mesmo não posso ir lá sem provocar confusão. Joplin e eu somos velhos conhecidos. Mas tenho um homem que posso colocar lá durante algumas noites. Pangburn pode ser um visitante habitual, ou mesmo estar hospedado lá. Ele não seria o primeiro que Joplin escondeu. De qualquer modo, vou colocar lá esse meu agente e ver o que ele pode descobrir.

— O assunto está em suas mãos — disse Axford.

Do escritório de Axford, fui diretamente para meu apartamento, deixei a porta aberta e sentei-me para esperar por Porquinho Grout. Esperava há uma hora e meia quando ele empurrou a porta e entrou.

— Ei! Como é que vão as coisas? — Foi gingando até uma cadeira, reclinou-se, pôs os pés sobre a mesa e estendeu a mão para o maço de cigarros que ali estava.

Assim era Porquinho Grout, um homem pálido, de uns trinta anos, nem alto nem baixo demais, sempre vestido com cores berrantes, apesar de um pouco sujo, procurando esconder uma enorme covardia por trás de uma postura de valentão, fala grossa e um exagerado fingimento de autoconfiança.

Mas eu o conhecia havia três anos. Assim, atravessei a sala e empurrei com rudeza suas pernas para o chão, quase o derrubando.

— O que está havendo? — Ele levantou-se curvado e rosnando: — Por que fez isso? Quer levar um murro no...

Dei um passo à frente. Ele saltou pra trás.

— Ei, eu não estava falando sério. Estava apenas brincando.

— Cale a boca e sente-se — aconselhei.

Eu conhecera Porquinho Grout três anos antes, usara-o durante quase todo esse tempo e não sabia uma única coisa que se pudesse dizer de bem em seu favor. Era covarde, mentiroso, ladrão e viciado em tóxicos. Traidor de colegas e, se não vigiado, de patrões. Um excelente cara com quem tratar! Mas trabalho de polícia é coisa dura, e usamos tudo o que nos cai nas mãos. Esse Porquinho era instrumento eficiente, se usado de modo correto, o que significava conservar as mãos no pescoço dele durante todo o tempo e conferir todas as informações que ele trazia.

A covardia dele era, para o que me interessava, sua maior qualidade. Era conhecidíssima em todo o mundo do crime na costa; e embora ninguém, ladrão ou não, pensasse sequer em julgá-lo digno de confiança, na verdade não desconfiavam dele. A maioria dos colegas o julgava covarde demais para ser perigoso; pensavam que ele teria medo de traí-los; medo da vingança sumária que o mundo do crime tira do informante. Mas não levavam em conta o talento de Porquinho para convencer-se de que era um bravo, quando não havia perigo por perto. Assim, ia livremente a todos os lugares que desejava e trazia-me informações que não podiam ser obtidas de outra maneira.

Havia quase três anos eu o vinha usando com grande sucesso, pagando-lhe bem, e conservando-o sob meu tacão. "Informante" era a palavra polida com que o designava em meus relatórios; o mundo do crime tem nomes ainda menos bonitos do que o comum "alcagüete" para designar tipos como ele.

— Tenho um trabalho para você — disse quando ele se sentou, com os pés no chão. Sua boca frouxa contorceu-se no canto esquerdo, dando ao olho daquele lado um ar de entendedor.

— Achei que sim. — Ele sempre dizia uma coisa dessas.

— Quero que você vá a Halfmoon Bay e passe algumas noites na espelunca de Estrela-de-Lata Joplin. Tenho aqui duas fotos — disse, passando-lhe uma de Pangburn e outra da moça. — Os nomes e as descrições deles estão nas costas das fotos. Quero saber se algum dos dois aparece por lá, o que fazem e onde se escondem. Talvez Estrela-de-Lata esteja dando cobertura a eles.

Porquinho examinou atentamente uma das duas fotos.

— Acho que conheço este cara — disse, por aquele canto da boca que tremia. Isso era outra coisa que eu sabia a respeito de Porquinho. Não se podia mencionar um nome ou dar uma descrição sem provocar a mesma observação, ainda que fosse tudo inventado.

— Tome aqui algum dinheiro — disse, passando-lhe algumas notas pela mesa. — Se ficar lá por mais de duas noites, eu lhe mandarei mais. Mantenha-se em contato comigo por este telefone ou, sob disfarce, com o escritório. E... lembre-se disto: deixe de lado o tóxico! Se eu for lá e o encontrar drogado, prometo que direi a Joplin quem você é.

Ele terminara de contar o dinheiro, que não era muito, e, nesse momento, lançou-o desdenhosamente sobre a mesa.

— Guarde isso para comprar jornais — zombou. — Como vou conseguir alguma coisa se não posso gastar dinheiro naquela espelunca?

— Isso é suficiente para uns dois dias. Provavelmente vai economizar metade disso. Se ficar lá por mais de dois dias, mando-lhe mais dinheiro. E você recebe seu pagamento quando o trabalho estiver feito, e não antes.

— Estou cheio de trabalhar para você. — Sacudiu a cabeça e levantou-se. — Pode fazer seu próprio trabalho. Acabei!

— Se não for hoje à noite a Halfmoon Bay, você é que estará acabado — garanti-lhe, deixando que ele entendesse a ameaça como quisesse.

Após algum tempo, naturalmente, ele aceitou o dinheiro e saiu. A discussão sobre o dinheiro para as despesas era simplesmente um estágio preliminar em todas as missões que eu lhe dava.

Após a saída de Porquinho reclinei-me na cadeira e fumei uma meia dúzia de cigarros Fátima, pensando no caso. Primeiro, a moça desaparecera levando vinte mil dólares, e, em seguida, sumira também o poeta; e ambos haviam ido, constantemente ou não, até o Barraco Branco. À primeira vista, o caso era evidente. A moça trabalhara Pangburn e conseguira que ele falsificasse um cheque contra a conta corrente do cunhado. Depois de várias manobras, cuja importância eu não podia determinar ainda, haviam-se escondido juntos.

Havia dois fios soltos que precisavam ser amarrados. O primeiro, descobrir o aliado que enviara as cartas a Pangburn e cuidara da bagagem da moça, assunto este nas mãos da filial de Baltimore. O segundo, quem usara aquele táxi que eu sabia ter deixado o apartamento dela em direção ao Marquis Hotel?

Esse fato poderia ter ou não importância para o caso. Suponhamos que eu encontrasse uma ligação entre o Marquis Hotel e o Barraco Branco. Isso completaria uma espécie de cadeia. Procurei o catálogo telefônico e encontrei o número do restaurante à beira da estrada. Fui depois ao Marquis Hotel. A telefonista de serviço, quando cheguei, era uma pequena com quem eu já havia feito negócios.

— Quem é que anda telefonando para os números de Halfmoon Bay? — perguntei-lhe.

— Meu Deus! — Ela reclinou-se na cadeira e passou suavemente uma rosada mão sobre a frente do cabelo vermelho, duro de laquê. — Tenho mais o que fazer do que me lembrar de todas as.chamadas que recebo. Isto aqui não é uma pensão. Nós fazemos mais de uma chamada por semana.

— Mas não muitas chamadas para a Halfmoon Bay — insisti, inclinando-me sobre um cotovelo no balcão e mostrando uma nota dobrada de cinco dólares entre os dedos. — Você deve se lembrar de alguma chamada feita ultimamente.

— Vou ver — suspirou ela, como se disposta a fazer o máximo numa tarefa impossível.

Folheou as fichas.

— Há aqui uma chamada... do quarto 522, há umas duas semanas.

— Qual foi o número chamado?

— Halfmoon Bay, 51.

Era o número do restaurante. Passei-lhe a nota de cinco.

— O 522 é um hóspede permanente?

— Isso mesmo. Sr. Kilcourse. Está aqui há três ou quatro meses.

— Quem é ele?

— Não sei. Um perfeito cavalheiro, se quer saber.

— Isso é ótimo. Como ele é?

— Moço ainda, mas com o cabelo já meio grisalho. Moreno e bonitão. Como um ator de cinema.

— Buli Montana? — perguntei, dirigindo-me para a recepção.

A chave do 522 estava no escaninho. Sentei-me num local de onde podia conservá-la sob vigilância. Talvez uma hora depois, um empregado tirou-a do escaninho e entregou-a a um homem que realmente se parecia com um artista. Tinha uns trinta anos mais ou menos, pele morena e cabelos escuros, embranquecendo nas têmporas. Media cerca de um metro e oitenta e seis de esbeltez elegantemente vestida.

Levando a chave, desapareceu no elevador.

Telefonei à agência e pedi ao Velho que me mandasse Dick Foley. Dez minutos depois, chegava Dick. Ele é um pequenino canadense rosado, não pesa nem cinqüenta quilos, é o maior seguidor que conheço, e eu conheço a maioria deles.

— Há um pássaro aqui que quero que seja seguido — disse-lhe. — O nome dele é Kilcourse, e está hospedado no quarto 522. Fique por aqui e eu lhe mostrarei o cara.

Voltei ao saguão e esperei um pouco mais.

Às oito horas, Kilcourse desceu e deixou o hotel. Fui atrás dele por meio quarteirão, o suficiente para passá-lo a Dick, e depois voltei para casa, onde ficaria ao alcance do telefone para o caso de Porquinho Grout tentar entrar em contato comigo. Não recebi chamada alguma naquela noite.

 

Ao chegar à agência na manhã seguinte, encontrei Dick à espera.

— Teve sorte? — perguntei.

— A pior! — O pequenino canadense fala por telegrama quando perturbado, e naquele momento estava visivelmente nervoso. — Levou-me por dois quarteirões. Livrou-se de mim. Havia um único táxi à vista.

— Acha que ele desconfiou de você?

— Não, sabidinho. Estava sendo apenas cauteloso.

— Tente novamente, então. É melhor ter um carro por perto no caso de ele tentar novamente o mesmo truque.

Meu telefone tocou no momento em que Dick saía. Era Porquinho Grout, falando no número privado da agência.

— Descobriu alguma coisa? — perguntei.

— Muita — bravateou ele.

— Ótimo! Você está na cidade?

— Estou.

— Encontre-me no meu apartamento dentro de vinte minutos — disse.

O lívido informante estava visivelmente inchado de orgulho de si mesmo quando entrou pela porta que eu deixara aberta. Sua ginga era quase uma dança, e o lado de sua boca que tremia havia-se con torcido numa expressão de entendedor que cairia bem num Salomão.

— Resolvi o caso para você, menino — pavoneou-se ele. — Nada difícil... para mim! Fui até lá e conversei com todo mundo que sabia alguma coisa, vi tudo o que havia para ver e passei raios X naquela lixeira toda. Fiz um...

— Hum-hum — interrompi-o. — Parabéns e tudo o mais. Mas o que foi exatamente que você descobriu?

— Deixe que eu lhe conte. — Ergueu a mão suja numa espécie de gesto de guarda de trânsito. — Não me apresse. Vou contar-lhe tudo.

— Certo — concordei. — Eu sei. Você é o maior, e tenho sorte de ter um cara como você para resolver meus casos, e tudo o mais! Mas Pangburn está lá ou não?

— Estou chegando lá. Fui até o local e...

— Você viu Pangburn?

— Como eu estava dizendo, fui até lá e...

— Porquinho — disse eu —, não dou a mínima bola para o que você fez! Você viu Pangburn?

— Sim. Vi.

— Ótimo! O que foi que você viu?

— Ele está acampado lá com Estrela-de-Lata. Ele e a pequena da foto que me deu estão lá. Ela está há um mês. Não a vi, mas um dos garçons falou-me sobre ela. Eu mesmo vi Pangburn. Eles não aparecem muito... ficam na parte ocupada por Estrela-de-Lata no boteco, onde ele mora, durante a maior parte do tempo. Pangburn está lá desde domingo. Fui até lá e...

— Descobriu quem é a moça? Ou qualquer coisa sobre o que pretendem fazer?

— Não. Eu fui até lá e...

— Muito bem! Vá até lá outra vez hoje à noite. Telefone-me logo que tiver certeza de que Pangburn está lá... que não saiu. Não cometa erros. Não quero afugentá-los por causa de um alarme falso. Use o telefone privado da agência e diga simplesmente a quem atender que ficará fora da cidade até tarde. Isso significará que Pangburn está lá, e você poderá telefonar da espelunca do Joplin sem revelar nosso jogo.

— Preciso de mais dinheiro — disse ele, levantando-se. — O trabalho me custou...

— Vou apresentar sua reivindicação — prometi. — Agora caia fora e me avise hoje à noite assim que tiver certeza de que Pangburn está lá.

Dirigi-me, em seguida, ao escritório de Axford.

— Acho que descobri alguma coisa sobre ele — disse ao milionário. — Espero tê-lo num local onde o senhor poderá conversar com ele hoje à noite. Meu informante disse que ele esteve no Barraco Branco à noite passada. Se estiver lá hoje, poderei levá-lo, se quiser.

— Por que não podemos ir agora?

— Não. O lugar fica morto demais durante o dia para que uma pessoa ande por ali sem ser logo notada. Não quero arriscar-me a que o senhor ou eu sejamos vistos até que tenhamos certeza de que vamos encontrar Pangburn.

— O que, então, você quer que eu faça?

— Prepare um carro rápido para hoje à noite e apronte-se para partir logo que eu avisar.

— Certo. Estarei em casa depois das cinco e meia. Telefone logo que estiver pronto, e eu o apanharei no caminho.

Às nove e trinta daquela noite encontrava-me ao lado de Axford no assento dianteiro de um potentíssimo carro importado, em disparada pela estrada que levava a Halfmoon Bay. Recebera o telefonema de Porquinho.

Nenhum de nós dois falou muito durante a viagem, e o monstro importado em que viajávamos logo depois fez com que a corrida fosse breve. Axford estava sentado confortavelmente relaxado, ao volante, e notei, pela primeira vez, que ele tinha um queixo bastante forte.

O Barraco Branco é um prédio grande, quadrado, com a fachada imitando pedra. Fica longe da estrada e é alcançado por duas passagens curvas de automóveis, que formam juntas um semicírculo, cujo diâmetro é a estrada de rodagem. O centro do semicírculo é tomado por telheiros, nos quais os fregueses de Joplin estacionam os carros. Aqui e ali, em volta, há canteiros e grupos de arbustos. Corríamos ainda a uma boa velocidade quando entramos em uma das extremidades da passagem semicircular e...

Axford pisou nos freios e a grande máquina lançou-nos contra o pára-brisa ao parar abruptamente... mal havendo tempo de evitar atropelar um grupo que surgira de súbito.

A luz dos faróis, rostos apareceram nitidamente: rostos brancos, horrorizados, rostos furtivos, rostos grosseiramente curiosos. Abaixo dos rostos, apareciam braços e ombros brancos, vestidos berrantes e jóias contra um fundo mais escuro de roupas masculinas.

Essa foi minha primeira impressão, e, por essa altura, eu já havia retirado a cara do pára-brisa. Notei nesse momento que o grupo possuía um núcleo, algo em torno do qual se concentrava. Fiquei de pé, tentando olhar por sobre a cabeça do grupo, mas não vi coisa alguma.

Saltando na passagem de carros, abri caminho pela multidão.

Estirado sobre o cascalho branco vi um homem... um homem magro, vestido de roupa escura... e, pouco acima do colarinho, onde cabeça e pescoço se encontram, um orifício. Ajoelhei-me para examinar-lhe a face. Abri mais uma vez caminho, às cotoveladas, pelo grupo, de volta até o local onde Axford estava acabando de deixar o carro, cujo motor ainda estava funcionando.

— Pangburn está morto... assassinado!

Metodicamente, Axford tirou as luvas, dobrou-as e guardou num bolso. Acenou afirmativamente com a cabeça, em sinal de compreensão, e dirigiu-se para o local onde o grupo fazia um círculo em volta do poeta morto. Segui-o com os olhos até que desapareceu no meio da turba. Comecei então a andar pela margem do grupo à procura do Porquinho Grout.

Encontrei-o no terraço, recostado numa pilastra. Mostrei-me a ele e dirigi-me para o lado mais escuro do restaurante.

Porquinho veio ao meu encontro na escuridão. A noite não estava fria, mas, ainda assim, os dentes dele chocalhavam.

— Quem foi que o matou? — perguntei.

— Não sei — choramingou ele, e essa foi a primeira vez em que o vi confessar ignorância completa de alguma coisa. — Eu estava lá dentro, vigiando as outras pessoas.

— Que outras?

— Estrela-de-Lata, um cara que nunca vi antes e a mulher. Não pensei que o garoto fosse sair. Ele não estava de chapéu.

— O que você sabe a esse respeito?

— Pouco depois que lhe telefonei, a moça e Pangburn saíram do lado onde mora Joplin e sentaram-se à mesa no outro lado do terraço, onde é muito escuro. Comeram alguma coisa, e, depois, chegou esse outro cara, que se sentou com eles. Não sei o nome dele, mas acho que o vi na cidade. Ele é um cara alto, de roupas vistosas.

Devia ser Kilcourse.

— Conversaram durante algum tempo — continuou —, e depois Joplin reuniu-se a eles. Ficaram à mesa, rindo e conversando, durante uns quinze minutos. Depois Pangburn levantou-se e entrou. Eu tinha arranjado uma mesa de onde podia observá-los, o lugar estava cheio, e Fiquei com medo de perder a mesa se a deixasse, e, assim, não segui o garoto. Ele não estava de chapéu, e achei que não ia a lugar nenhum. Mas ele deve ter atravessado a casa e saído pela frente, porque, logo depois, ouvi um ruído, que pensei que fosse a descarga de um carro, e, em seguida, o som de um carro afastando-se em alta velocidade. Um momento após, alguém gritou que havia um morto do lado de fora. Todo mundo correu, e era Pangburn.

— Você tem absoluta certeza de que Joplin, Kilcourse e a moça estavam à mesa quando Pangburn foi morto?

— Absoluta — respondeu Porquinho —, se o nome daquele cara é Kilcourse.

— Onde estão eles agora?

— De volta ao esconderijo de Joplin. Foram para lá logo que descobriram que Pangburn havia sido liquidado.

Eu não alimentava ilusões sobre Porquinho. Sabia que ele era capaz de me vender e fornecer um álibi ao assassino do poeta. Mas havia no caso o seguinte: se Joplin, Kilcourse e a moça haviam dado um jeito em Pangburn e no meu informante, então seria inútil tentar provar que eles não se encontravam no terraço dos fundos em que fora disparado o tiro. Joplin tinha uma multidão de apaniguados, que, sem a menor hesitação, jurariam qualquer coisa que ele lhes dissesse. Haveria uma dúzia de supostas testemunhas da presença deles no tal terraço.

Assim, a única coisa a fazer era acreditar que Porquinho estava sendo honesto comigo.

— Viu, por acaso, Dick Foley? — perguntei, já que Dick estava seguindo Kilcourse.

— Não.

— Fique por aqui e veja se consegue encontrá-lo. Diga-lhe que fui conversar com Joplin, e para ele ir ao meu encontro. Depois, fique por aí, onde eu possa encontrá-lo, se precisar de você.

Deixei o terraço, atravessei uma pista de dança vazia e subi a escada que levava aos quartos de Estrela-de-Lata Joplin, no segundo andar, nos fundos. Conhecia o caminho, porque havia estado lá antes. Joplin e eu éramos velhos conhecidos.

Ia agora assustá-lo, e a seus amigos, na esperança remota de que alguma coisa resultasse disso, embora eu soubesse que coisa alguma tinha contra eles. Poderia acusar a moça de um crime, naturalmente, mas não sem anunciar o fato de que o poeta morto falsificara a assinatura do cunhado em um cheque. E isso não servia.

— Entre — disse uma voz grossa e conhecida quando bati à porta da sala de estar de Joplin. Empurrei a porta e entrei.

Estrela-de-Lata encontrava-se no meio da sala: era um corpulento ex-arrombador de ombros estranhamente largos e com uma inexpressiva cara de cavalo. Atrás dele, Kilcourse estava sentado a um canto da mesa, balançando a perna bem alerta por trás de um pequeno sorriso divertido na face morena e bonitona. Do outro lado da sala, a moça que eu conhecia como Jeanne Delano sentava-se no braço de uma grande poltrona de couro. O poeta não exagerara quando dissera que ela era bela.

— Você! — grunhiu, desgostoso, Joplin, logo que me reconheceu. — O que, diabo, quer você?

— O que você acha?

Minha atenção não estava nesse tipo de resposta, contudo. Eu estudava a moça. Havia algo vagamente familiar nela, mas não consegui identificá-la.Talvez não a houvesse visto antes; talvez o estudo atento da foto que Pangburn me dera fosse responsável pela impressão de reconhecimento. Fotos fazem isso. Enquanto Joplin dizia:

— Tempo a perder é o que não tenho.

— Se você tivesse economizado todo o tempo das sentenças que diferentes juízes lhe deram, teria tempo bastante — respondi.

Eu vira antes aquela moça em algum lugar. Era esbelta, usando um vestido longo azul-brilhante e exibindo uma generosa porção de busto, costas e braços que mereciam ser vistos. Possuía cabelos castanhos abundantes, coroando um rosto oval da cor que o rosado deve ter. Os olhos eram bastante separados e de uma tonalidade cinzenta, não inteiramente diferente das sombras em prata polida com que o poeta os comparara. Estudei a moça, e ela me fitou com olhos tranqüilos. Mas, ainda assim, não consegui reconhecê-la. Kilcourse continuava a balançar a perna a um canto da mesa. Joplin ficou impaciente.

— Quer parar de grelar a moça e dizer o que quer de mim? — rosnou.

A moça sorriu nessa ocasião, um sorriso zombeteiro que mostrou as bordas de dentes animais, afiados como navalhas. E com esse sorriso, reconheci-a!

O cabelo e a pele haviam-me enganado. Na última vez em que a vira... a única vez em que a vira... o rosto tinha a brancura do marfim, e o cabelo era curto e cor de fogo. Ela, uma velha, três homens e eu havíamos brincado de esconde-esconde certa noite numa casa de Turk Street, discutindo a questão de um mensageiro de banco assassinado e o roubo de cem mil dólares de bônus de guerra. Graças às intrigas dela, três de seus cúmplices haviam morrido naquela noite, e o quarto, o chinês, subira finalmente à forca na Folson Prison. Naquela ocasião, seu nome era Elvira, e, desde sua fuga da casa naquela noite, em vão a havíamos procurado de uma fronteira a outra, e ainda mais longe.

O reconhecimento deve ter transparecido em meus olhos, a despeito do esforço que fiz para conservá-los sem expressão, pois, veloz como uma serpente, ela deixou o braço da cadeira e aproximou-se, com mais aço do que prata nos olhos.

Saquei da arma.

Joplin recuou meio passo.

— Que idéia é essa? — rosnou.

Kilcourse escorregou para fora da mesa, e uma de suas mãos magras e escuras hesitou à frente da gravata.

— A idéia é a seguinte — falei. — Quero essa moça, por assassinato, cometido há uns dois meses e, talvez, não tenho certeza, esta noite. De qualquer maneira, eu...

Ouvi o estalido de um interruptor as minhas costas, e a sala mergulhou na escuridão.

Movi-me, não me importando para onde, conquanto me afastasse do local onde estivera antes que as luzes se apagassem.

Toquei com as costas numa parede e parei, agachando-me o mais que podia.

— Depressa, menina! — Ouvi um murmúrio áspero vindo do lugar onde eu pensava que devia estar a porta.

Mas, pensei, ambas as portas da sala estão fechadas e dificilmente podem ser abertas sem que apareçam retângulos cinzentos. Pessoas moviam-se na escuridão, mas nenhuma delas se interpôs entre o local onde eu me encontrava e o quadrado mais claro das janelas.

Alguma coisa estalou à frente, um estalo fraco demais para ser de uma pistola sendo engatilhada, mas que poderia ser de um canivete de mola. Lembrei-me de que Estrela-de-Lata Joplin tinha uma queda por essa arma.

— Vamos! — Um sussurro áspero cortou a escuridão como uma faca.

Sons de movimento, abafados, indistinguíveis... um som não muito distante.

Inesperadamente, uma mão forte fechou-se em volta de um de meus ombros e um corpo musculoso fez força contra mim. Mandei um golpe à frente com a arma e ouvi um grunhido.

A mão subiu do ombro para a minha garganta.

Dei um pontapé num joelho e ouvi outro grunhido.

Um ponto em brasa correu por um lado de meu corpo.

Lancei novamente a arma à frente, recuei até que a boca do cano ficou livre do mole obstáculo que a havia detido, e puxei o gatilho. Ao som do tiro, ouvi a voz de Joplin ao meu ouvido, curiosamente comum:

— Diabo! Essa me pegou!

Girei para longe dele, na direção onde via o vago amarelo de uma porta aberta. Não ouvira sons de partida de ninguém. Estivera ocupado demais. Mas sabia que Joplin havia me atacado para que os outros fugissem...

Não havia ninguém à vista quando saltei, escorreguei e tropecei escada abaixo... vários degraus de uma vez. Um garçom apareceu quando corri para a pista de dança. Não sei se a interferência dele foi intencional ou não. Não perguntei. Atingi-o no rosto com o lado chato da arma e continuei. Saltei sobre uma perna estirada para me derrubar, e junto à porta externa tive que esmurrar outro rosto.

Saí para a entrada de automóveis, de uma extremidade da qual as luzes vermelhas traseiras de um carro já viravam para leste, na direção da estrada de rodagem.

Enquanto corria para o carro de Axford, notei que o corpo de Pangburn já fora retirado. Havia ainda algumas pessoas reunidas em torno do local onde ele jazera que, naquele momento, fitaram-me, boquiabertas.

O carro encontrava-se no local onde Axford o deixara, com o motor ainda em funcionamento. Virei-o, passei por cima de um canteiro e tomei a direção leste na estrada. Cinco minutos depois, vi outra vez as luzes traseiras vermelhas que procurava.

O carro que eu dirigia tinha mais potência do que eu jamais precisaria, mais do que eu podia controlar. Não sei que velocidade desenvolvia o carro à frente, mas aproximei-me como se ele estivesse parado.

Dois mil e quinhentos metros, ou talvez três mil...

Subitamente, um homem surgiu na estrada à frente... um pouco além do alcance de meus faróis. As luzes iluminaram-no, e reconheci Porquinho Grout!

Porquinho Grout enfrentando-me no meio da estrada, com o metal fosco de uma pistola automática em cada mão.

Pareceu-me que as armas brilharam em vermelho-mortiço e, em seguida, apagaram-se sob a luz dos faróis... brilharam e se apagaram como duas lâmpadas em um sinal elétrico automático.

O pára-brisa estilhaçou-se em volta de mim.

Porquinho Grout, o informante cujo nome era sinônimo de covardia em toda a costa do Pacífico, permanecia no centro da estrada, atirando no cometa de metal que corria para ele...

Não vi o fim.

Confesso, com toda a franqueza, que fechei os olhos quando sua face imóvel e branca apareceu, bem próxima do radia-dor do carro. O monstro de metal que eu cavalgava tremeu... não muito... e a estrada ficou outra vez vazia, salvo pela luz vermelha que fugia. O pára-brisa desaparecera. O vento desmanchou-me os cabelos e provocou-me lágrimas nos olhos apertados. Logo depois, descobri que conversava comigo mesmo, dizendo:

— Aquele era Porquinho, aquele era Porquinho.

Era algo de espantoso. Não me surpreendia que ele me houvesse traído. Isso era de esperar. E tampouco deixa-me pasmo que ele houvesse subido, sorrateiramente, a escada atrás de mim e apagado as luzes. Mas ter ficado ali, em pé, e morrido...

Uma chama alaranjada vinda do carro à frente curou-me do espanto. A bala nem chegou perto. Não é fácil atirar de um carro em movimento para outro; mas, na velocidade em que eu ia, não demoraria muito antes que eu ficasse a distância de um bom tiro.

Acendi o farol de mão, sobre o painel. O feixe não alcançou bem o carro que ia à frente, mas foi o suficiente para eu ver que era a moça quem guiava, enquanto Kilcourse se virava todo ao lado dela, de frente para mim. O carro era um conversível amarelo.

Diminuí um pouco a marcha. Num duelo com Kilcourse eu estaria em desvantagem, desde que teria não só de atirar, mas de guiar também. Minha melhor jogada parecia ser manter a distância até chegarmos a uma cidade, o que inevitavelmente aconteceria. Não era meia-noite ainda. Haveria gente na cidade, qualquer cidade, e policiais. Nesse caso, poderia aproximar-me com melhor chance de vencer a parada.

Mais alguns quilômetros disso, e minha presa percebeu o meu plano. O conversível amarelo diminuiu a marcha, balançou-se um pouco e parou atravessado na estrada. Kilcourse e a moça saíram no mesmo instante e agacharam-se do outro lado da improvisada barricada.

Senti a tentação de chocar-me com eles, mas foi uma tentação fraca, e, quando passou, pisei nos freios e parei. Mexi en-! tão o farol até focalizá-lo sobre o conversível.

Um relâmpago apareceu em algum lugar perto das rodas do conversível e o farol sacudiu-se violentamente, mas o vidro não foi tocado. Seria o primeiro alvo deles, naturalmente, e...

Agachado no carro, esperando a bala que despedaçaria o vidro, tirei os sapatos e o sobretudo.

A terceira bala apagou a luz.

Apaguei as outras luzes, saltei para a estrada, e, quando parei de correr, estava agachado perto do lado virado para mim do conversível amarelo. Uma manobra tão fácil e segura quanto se poderia imaginar.

A moça e Kilcourse haviam estado fitando a incandescência de uma poderosa luz. Quando a luz subitamente morreu, e as mais fracas em volta também, foram deixados em uma escuridão de breu, que duraria um minuto ou mais até que seus. olhos se ajustassem ao negror da noite. Meus pés calçados de

meias não haviam feito som algum na estrada asfaltada, e, naquele momento, havia apenas o conversível entre nós. Eu sabia disso, mas eles não.

Perto do radiador, Kilcourse disse baixinho:

— Vou ver se consigo atraí-lo utilizando a valeta. Atire de vez em quando para mantê-lo ocupado.

— Não posso vê-lo — protestou a moça.

— Seus olhos vão se acostumar em um segundo. De qualquer modo, atire no carro.

Aproximei-me do radiador no momento em que a pistola da moça disparou contra o carro vazio.

Kilcourse, de quatro, dirigia-se para a valeta que corria ao longo do lado sul da estrada. Preparei as pernas, resolvido a saltar sobre ele e atingir-lhe a cabeça com a arma. Não queria matá-lo, mas apenas tirá-lo sem demora do caminho. Teria que cuidar da moça, e ela era pelo menos tão perigosa quanto ele.

Enquanto me preparava para saltar, Kilcourse, guiado talvez por algum instinto de animal perseguido, virou a cabeça e me viu... ou pelo menos viu uma sombra ameaçadora.

Em vez de saltar, atirei.

Não olhei para ver se o havia atingido ou não. Aquela distância, era pequena a chance de ter errado. Curvei-me em dois e voltei para a retaguarda do conversível conservando-me do lado em que estava. Esperei.

A moça fez o que talvez eu teria feito no lugar dela. Não atirou nem se moveu para o local de onde viera o tiro. Pensou que eu havia impedido Kilcourse de usar a valeta e que meu gesto seguinte seria dar uma volta para surpreendê-la por trás. A fim de enfrentar essa possibilidade, ela deu a volta por trás do conversível, de modo a emboscar-me do lado mais próximo do carro de Axford.

Assim, veio rastejando pelo canto e enfiou o nariz delicadamente cinzelado na boca da arma que eu tinha apontado para ela.

Soltou um pequeno grito.

As mulheres nem sempre são sensatas: costumam ignorar banalidades, como armas apontadas para elas. Assim, agarrei-lhe a mão armada, o que foi uma sorte para mim. Quando minha mão se fechou em torno da pistola, ela puxou o gatilho, prendendo um pedaço do meu indicador entre o cão e a arma. Torci e arranquei a pistola da mão dela e soltei o dedo.

Mas ela não havia acabado ainda. Embora eu estivesse com uma pistola na mão a menos de quinze centímetros de seu corpo, ela deu a volta e correu para um grupo de árvores, que, ao norte, parecia uma macha negra.

Logo que me recuperei da surpresa ante essa reação amadorística, coloquei sua arma no bolso e corri atrás dela, rasgando as solas dos pés a cada passada. Ela tentava transpor uma cerca de arame quando a agarrei.

— Deixe de brincadeira, sim? — disse eu, zangado, enquanto fechava os dedos da mão esquerda em volta de seu punho e começava a arrastá-la para o conversível. — Isto é negócio sério. Não seja tão infantil!"

— Está machucando meu braço.

Eu sabia que não estava. Sabia também que aquela moça fora a causa direta da morte de quatro ou, talvez, cinco pessoas. Ainda assim, afrouxei os dedos até que eles se transformaram apenas em um cordial aperto. Sem reclamar muito mais, ela voltou para o conversível, onde, ainda segurando-lhe o punho, acendi os faróis. Vi Kilcourse bem embaixo do feixe de luz, enrodilhado, de cara no chão, e com um joelho puxado sob o corpo. Coloquei a moça bem diante da luz.

— Agora — disse eu —, fique aí, e comporte-se. O primeiro movimento que fizer, dou-lhe um tiro na perna. — E estava falando sério.

Encontrei o revólver de Kilcourse, coloquei-o no bolso e ajoelhei-me a seu lado.

Estava morto, e um buraco de bala aparecia um pouco acima do seu esterno.

— Ele...? — perguntou a moça, com voz trêmula.

— Morreu.

Ela olhou para o rapaz e estremeceu um pouco.

— Pobre Fag — murmurou.

Escrevi que aquela moça era bela, mas, de pé, ali, sob o fulgor dos faróis, era mais do que isso. Era capaz de despertar loucos pensamentos mesmo na cabeça de um prosaico caçador de ladrões de meia-idade. Ela era...

De qualquer modo, acho que foi por isso que fechei a cara e disse:

— Sim, pobre Fag, pobre Hook, pobre Tai, pobre mensageiro de um banco de Los Angeles, e pobre Burke — cantando a lista, tanto quanto eu sabia, de homens que haviam morrido por amá-la.

Ela não se zangou. Seus grandes olhos cinzentos ergueram-se, e ela me olhou com uma expressão que não consegui decifrar. O lindo rosto oval, sob os abundantes cabelos castanhos, que eu sabia que eram falsos, ficou triste.

— Acho que você pensa... — começou.

Mas eu já agüentara o bastante disso, e tive uma sensação desagradável na espinha.

— Vamos — disse. — Por ora, deixaremos aqui Kilcourse e o conversível.

Ela nada disse. Acompanhou-me até o grande carro de Axford e ficou em silêncio enquanto eu dava o nó nos cadarços dos sapatos. Encontrei no assento traseiro um roupão, que lhe dei.

— É melhor colocar isso sobre os ombros. O pára-brisa quebrou. Vai fazer frio.

Ela obedeceu sem uma palavra, mas, quando fiz a volta por trás do conversível e tomei novamente a estrada na direção leste, ela pôs uma das mãos em meu braço.

— Não vamos voltar para o Barraco Branco?

— Não. Vamos para Redwood City... para a cadeia municipal.

Um quilômetro e meio adiante, talvez, distância essa em que, sem olhá-la, eu sabia que ela estivera estudando meu desajeitado perfil, senti-lhe a mão outra vez no antebraço, e ela inclinou-se tanto para mim que seu quente hálito aqueceu-me o pescoço.

— Poderia parar durante um minuto? Há uma coisa... algumas coisas que gostaria de lhe dizer.

Parei o carro em um terreno desmatado de terra dura no acostamento da estrada e virei-me um pouco para olhá-la mais de frente.

— Antes que você comece — disse eu —, quero que compreenda que pararemos aqui apenas o tempo suficiente para que você diga o que sabe sobre o caso Pangburn. Se começar a falar sobre qualquer outra coisa... continuaremos nosso caminho até Redwood City.

— Você não está nem um pouco interessado no caso de Los Angeles?

— Não. Aquele caso está encerrado. Você, Hook, Riordan, Tai Chun Tau e os Quarre foram igualmente responsáveis pela morte do mensageiro, mesmo que tenha sido Hook o assassino. Hook e os Quarre morreram na noite em que tivemos nossa festinha em Turk Street, e Tai foi enforcado no mês passado. Agora, prendi-a. Tivemos provas suficientes para enforcar o chinês, e temos ainda mais contra você. Aquilo está encerrado... liquidado, acabado. Se quiser contar-me alguma coisa sobre a morte de Pangburn, eu escutarei. De outra maneira...

Estendi a mão para a chave de ignição.

Uma pressão de seus dedos em meu braço deteve-me.

— Quero falar-lhe sobre o caso dele — disse ela, ansiosa. — Quero que saiba de toda a verdade. Sei que vai me levar para Redwood City. Não pense que espero... que tenho qualquer tola esperança. Mas gostaria que você soubesse da verdade sobre esse caso. Não sei por que devo querer especialmente que você saiba, mas...

A voz dela morreu nesse instante.

Logo depois, começou a falar com grande rapidez, como as pessoas falam quando receiam interrupções antes de contar tudo, e fê-lo inclinada ligeiramente para a frente, com a bela face oval muito perto da minha.

— Quando fugi da casa de Turk Street naquela noite, enquanto você lutava com Tai, minha intenção era desaparecer de San Francisco. Eu tinha uns dois mil dólares, o suficiente para me levar a qualquer lugar. Pensei então que fugir seria a coisa que vocês esperariam de mim, e que mais seguro era ficar aqui mesmo. Não é difícil para uma mulher mudar de aparência. Eu tinha cabeço ruivo ondulado, pele branca, e usava roupas alegres. Simplesmente tingi o cabelo, comprei uma peruca para o cabelo ficar mais comprido, usei maquilagem morena e comprei roupas escuras. Aluguei um apartamento em Ashbury Avenue sob o nome de Jeanne Delano e transformei-me numa pessoa inteiramente diferente. Embora soubesse que não seria reconhecida em parte alguma, senti-me mais à vontade permanecendo em casa durante algum tempo, e, para passar o tempo, li muito. Foi assim que, por acaso, descobri o livro de Burke. Você lê poesia?

Sacudi a cabeça. Um automóvel a caminho de Halfmoon Bay apareceu nesse exato momento... o primeiro que eu via desde minha saída do Barraco Branco. Ela esperou que o carro passasse antes de continuar, falando ainda rapidamente:

— Burke não era um gênio, naturalmente, mas havia alguma coisa em suas poesias que... alguma coisa que me tocou fundo. Escrevi-lhe uma pequena nota, contando-lhe como apreciara seu trabalho, e enviei-a à editora. Dias depois, recebi um bilhete de Burke, e soube que ele residia em San Francisco. Eu não sabia disso. Trocamos vários bilhetes, e ele perguntou se não nos podíamos encontrar. Encontramo-nos. Eu não sabia se estava apaixonada ou não por ele. Gostava realmente dele, e com o ardor de sua paixão por mim e a lisonja de ser cortejada por um poeta conhecido, pensei realmente que o amava. Prometi casar-me com ele. Não contei a ele tudo a meu respeito, embora saiba agora que isso não teria feito a menor diferença. Mas tinha receio de contar-lhe a verdade e não queria mentir-lhe. Assim, nada disse. Certo dia, Fag Kilcourse encontrou-me na rua e reconheceu-me, a despeito do novo cabelo, rosto e roupas. Fag não tinha muita cabeça, mas possuía olhos que viam através de qualquer disfarce. Não o censuro. Ele agia de acordo com seu código. Veio ao meu apartamento, tendo-me seguido até lá. Eu lhe disse que ia casar com Burke e me tornar uma respeitável dona-de-casa. Isso foi estupidez minha. Fag era quadrado. Se eu lhe tivesse dito que estava trabalhando Burke para explorá-lo, ele teria me deixado em paz, teria conservado as mãos fora da coisa. Mas dizer-lhe que estava cheia daquela vida, que era uma pessoa diferente, me pôs em suas mãos. Você sabe como são os escroques: os que vivem em nosso mundo ou são colegas ou possíveis vítimas. Eu não era mais uma escroque, e Fag considerou-me uma boa vítima. Descobriu as relações de família de Burke e fez-me uma proposta... vinte mil dólares, ou ele me denunciaria. Ele sabia a respeito daquele trabalho de Los Angeles, e também que a polícia queria muito me encontrar. Na ocasião, fui contra. Mas sabia que não poderia esconder-me de Fag, ou fugir dele. Disse a Burke que precisava de vinte mil dólares. Não achava que ele possuísse tudo aquilo, mas ele achou que podia obtê-lo. Três dias depois, deu-me um cheque nessa importância. Não soube como ele levantou o dinheiro, mas não teria importado se houvesse sabido. Eu precisava do dinheiro. Naquela noite, porém, ele me contou que havia conseguido o dinheiro falsificando um cheque do cunhado. Contou-me porque, depois de pensar no caso, ficou com medo de que, quando a falsificação viesse a ser descoberta, eu fosse presa com ele e considerada também culpada. Não presto em muitas coisas, mas não era tão ruim a ponto de deixar que ele viesse a ser preso por minha causa sem saber toda a minha história. Assim, contei-lhe tudo. Ele nem pestanejou. Insistiu em que o dinheiro fosse dado a Kilcourse, para que eu ficasse livre, e começou a pensar em minha segurança futura. Burke tinha confiança em que o cunhado não o denunciaria pela falsificação, mas, por cautela, insistiu em que eu me mudasse, trocasse outra vez de nome e ficasse escondida durante algum tempo, até que soubéssemos da reação de Axford. Naquela noite, porém, depois que ele saiu, fiz alguns planos próprios. Eu gostava realmente de Burke... gostava demais para deixar que ele fosse transformado em bode expiatório sem tentar salvá-lo, e não tinha muita fé na bondade de Axford. Estávamos no dia 2 do mês. Se não houvesse incidentes, Axford não descobriria a falsificação até que recebesse os cheques pagos no mês seguinte. Isso me dava praticamente um mês para agir. No dia seguinte, tirei todo o dinheiro do banco e enviei uma carta a Burke dizendo que fora chamada a Baltimore. Deixei uma clara pista até essa cidade, com bagagem, e cartas, que um amigo meu de lá se encarregou de pôr no correio para mim. Procurei então Joplin e consegui que ele me escondesse. Avisei a Fag que estava lá, ele apareceu, e eu lhe disse que esperava entregar-lhe o dinheiro dentro de um Ou dois dias. Ele veio todos os dias depois disso, e passei a embromá-lo diariamente, e a cada vez isso se tornava mais fácil. Mas meu tempo estava ficando curto. Logo depois, as cartas de Burke começariam a ser devolvidas do endereço falso que eu lhe dera, e eu queria estar por perto para evitar que ele fizesse alguma tolice. Não queria entrar em contato com ele até que lhe pudesse devolver os vinte mil dólares, de modo que ele pudesse reparar a falsificação antes que Axford soubesse dela pelos cheques pagos. Tornava-se cada vez mais fácil lidar com Fag, mas eu ainda não o tinha onde queria. Ele não queria renunciar aos vinte mil dólares, que eu, naturalmente, já tinha nessa ocasião, a menos que prometesse ficar com ele para sempre. Eu achava que ainda estava apaixonada por Burke e não queria prender-me a Fag, mesmo por pouco tempo. Burke, porém, viu-me na rua certa noite de domingo. Descuidei-me e fui até a cidade no conversível de Joplin... o que está lá na estrada. E, por azar, Burke viu-me. Contei-lhe a verdade, toda a verdade. Ele me disse que acabara de contratar um detetive, um detetive particular, para me procurar. De muitas maneiras, ele era uma criança: não lhe ocorreu que o detetive descobriria tudo sobre o cheque. Eu sabia que o cheque falso seria descoberto dentro de um ou dois dias. Eu sabia! Quando contei isso a Burke, ele ficou arrasado. Acabou toda a sua fé no perdão do cunhado. Eu não podia deixá-lo, não da maneira como ele se encontrava. Ele teria contado a história toda à primeira pessoa que encontrasse. Em vista disso, levei-o comigo para a casa de Joplin. Minha idéia era conservá-lo ali durante alguns dias até sabermos como iam as coisas. Se nada aparecesse nos jornais sobre o cheque, poderíamos ter como certo que Axford resolvera abafar o caso, e Burke poderia voltar para casa e tentar justificar-se. Por outro lado, se os jornais publicassem toda a história, Burke teria que procurar um refugio permanente, o mesmo acontecendo comigo. Os vespertinos de terça-feira e os matutinos de quarta apareceram cheios de notícias sobre o desaparecimento dele, mas coisa alguma sobre o cheque. Isso pareceu bom sinal, mas esperamos mais um dia para termos certeza. A essa altura Fag Kilcourse fazia parte do jogo, e tive que lhe entregar os vinte mil dólares, embora alimentasse ainda a esperança de recuperá-los... ou a maior parte... de modo que o conservei preso a mim. Tive dificuldade em controlar Burke, porque ele começou a pensar que tinha algum direito sobre mim, e o ciúme tornou-o mau. Mas consegui que Estrela-de-Lata o ameaçasse. Achei que Burke estava em segurança. Naquela noite, um dos homens de Estrela-de-Lata procurou-nos e disse que um tipo chamado Porquinho Grout, que estava por ali havia umas duas noites, dissera alguma coisa que poderia significar que estava interessado em nós. Mostraram-me quem era ele. Arrisquei-me a aparecer na parte pública do restaurante e sentei-me a uma mesa perto da dele. Ele era um rato completo, como acho que sabe, e em menos de cinco minutos estava em minha mesa. Meia hora depois, eu sabia que ele lhe havia avisado que Burke e eu estávamos no Barraco Branco. Não me contou tudo isso na hora, mas contou-me mais do que o suficiente para que eu imaginasse o resto. Subi e contei aos outros. Fag achou que devíamos liquidar imediatamente Grout e Burke. Mas consegui convencê-lo do contrário. Isso não nos ajudaria em coisa alguma, e eu havia envolvido Grout de tal forma que ele saltaria até no oceano por minha causa. Pensei que convencera Fag, mas... Decidimos, finalmente, que Burke e eu tomaríamos o conversível e iríamos embora, e que, quando você chegasse, Porquinho Grout fingiria que estava dopado e apontaria um homem e uma mulher, quem quer que estivesse por perto, como as pessoas que pensara que éramos nós. Fui apanhar um casaco e as luvas, e Burke saiu sozinho para ir buscar o carro... e Fag atirou nele. Eu não sabia que ele ia fazer isso! Não teria deixado que o fizesse! Por favor, acredite em mim! Eu não estava apaixonada por Burke como pensava, más, por favor, acredite que, depois de tudo o que ele havia feito por mim, eu não deixaria que o magoassem! Depois disso, senti-me obrigada a ficar com os outros, gostasse disso ou não, e fiquei. Convencemos Grout a dizer-lhe que nós três estávamos no terraço dos fundos quando Burke foi morto e instruímos outras pessoas para contar a mesma história. Depois, você chegou e me reconheceu. Azar meu que tivesse de ser você... o único detetive de San Francisco que me conhecia! Você sabe do resto: Porquinho Grout subiu a escada no seu encalço, apagou as luzes, e Joplin agarrou-o enquanto corríamos para o carro. Em seguida, quando você se aproximou, Grout ofereceu-se para enfrentá-lo enquanto fugíamos, e agora...

A voz morreu, e ela tremeu um pouco. O roupão que eu lhe tinha dado caíra dos alvos ombros. Fosse ou não porque ela estava tão perto de mim, estremeci também. Procurando um cigarro no bolso, tirei-o amassado e torto.

— Isto é tudo o que há na parte que prometeu escutar — disse ela em voz baixa, com o rosto um pouco virado para o lado. — Eu queria que soubesse. Você é um homem duro, mas, de alguma maneira, eu...

Pigarreei, e a mão que segurava o cigarro amassado ficou subitamente firme.

— Não seja embaraçosa, boneca — falei. — Seu trabalho foi muito limpo até agora para ser estragado por uma grossura.

Ela riu. Um riso curto, amargo, descuidado e apenas um pouco cansado, e ela aproximou ainda mais de mim o rosto. Seus olhos cinzentos estavam doces e plácidos.

— Detetivezinho gordo, cujo nome não sei — a voz dela tinha uma cansada rouquidão e uma cansada zombaria —, pensa que estou representando um papel, não? Que estou fazendo um jogo para ganhar a liberdade, não? Talvez esteja. E certa-, mente a aceitaria se me fosse oferecida. Mas... homens me acharam bela e me aproveitei deles. As mulheres são assim. Homens me amaram e, fazendo com eles o que queria, julguei-os desprezíveis. E então aparece um detetive gordinho, cujo nome não sei, e que age como se eu fosse uma bruxa... uma índia velha. Posso deixar de sentir alguma coisa por ele? As mulheres são assim. Sou tão comum que um homem tenha o direito de olhar para mim sem interesse? Sou feia? Sacudi a cabeça.

— Você é bem bonitinha — disse eu, lutando para tornar a voz tão casual quanto as palavras.

— Seu animal! — disse ela com desprezo, mas, em seguida, seu sorriso tornou-se outra vez doce. — E, ainda assim, é por causa dessa atitude que me confesso inteiramente. Se você me tomasse nos braços e me apertasse nesse peito em que já estou encostada e me dissesse que não haveria prisão para mim agora, eu ficaria satisfeita, naturalmente. Mas, embora pudesse me abraçar durante algum tempo, você seria apenas um dos homens que conheço tão bem: homens que me amam, são usados e substituídos por outros. Mas porque você não fez nada disso, porque é um homem de pedra, descubro que o quero. Eu lhe contaria isso, detetive gordinho, se estivesse fazendo um jogo?

Grunhi evasivamente e fiz força para não umedecer os lábios com a língua.

— Vou para aquela cadeia hoje à noite, se você é mesmo o homem duro que me levou a dizer palavras de amor em um ouvido surdo, mas, antes disso, posso ouvir sua sincera garantia de que me acha um pouco mais do que "bonitinha"? Ou, pelo menos, a sugestão de que, se eu não fosse sua prisioneira, seu coração bateria um pouco mais rápido quando me tocasse? Vou para essa cadeia para passar muito tempo... talvez para a forca. Não posso levar minha vaidade para me fazer companhia sem que ela esteja em farrapos? Não pode fazer uma pequenina coisa para evitar que eu pense depois que me declarei assim a um homem que estava simplesmente entediado?

As pálpebras dela haviam descido e coberto metade dos olhos cinza-prateados; a cabeça inclinara-se para trás, e uma pequena veia trêmula apareceu no seu pescoço branco. Ela conservou os lábios imóveis, levemente entreabertos, depois de ter dito a última palavra. Meus dedos mergulharam fortemente na macia carne branca dos ombros. A cabeça dela inclinou-se ainda mais para trás, e uma das mãos subiu para meu ombro.

— Você é bela como o inferno! — berrei, alucinado, em seu rosto, e empurrei-a contra a porta.

Pareceu que se passara uma hora enquanto eu mexia atabalhoado na chave de ignição e nas marchas antes de lançar o carro pela estrada, em alta velocidade, a caminho da cadeia do condado de San Mateo. A moça se endireitara outra vez no assento e puxara o roupão. Apertei os olhos para defender-me do vento que me açoitava o rosto e os cabelos, e a falta do pára-brisas levou-me a pensar em Porquinho Grout.

Porquinho Grout, cuja covardia era notória de Seattle a San Diego, rigidamente postado no caminho de um monstro de metal em arremetida, tendo em cada mão uma pobre pistola. Ela fizera isso com Porquinho Grout... aquela mulher ao lado! Ela fizera isso com Porquinho Grout e ele não fora sequer humano! Um escorregadio réptil cujo pensamento mais nobre fora entupir-se de tóxicos tinha ido sinistramente ao encontro da morte para que ela pudesse escapar... ela... essa mulher cujos ombros eu agarrara, cuja boca estivera tão perto da minha!

Apertei ainda mais o acelerador, mas consegui, ainda assim, manter o carro na estrada.

Passamos por uma cidade, dispersando pedestres apavorados para a segurança das calçadas, faces surpresas fitando-nos, luzes de rua brilhando na umidade que o vento arrancava de meus olhos. Passei sem ver pela estrada que queria, dei a volta e retornamos a campo aberto.

Ao pé de uma longa e baixa colina, pisei no freio, e paramos subitamente.

Aproximei violentamente meu rosto da moça.

— Além disso, você é uma mentirosa! — Eu sabia que estava berrando como um tolo, mas não consegui baixar a voz. — Pangburn jamais assinou o nome de Axford naquele cheque. Ele nunca soube de coisa alguma a esse respeito. Você o procurou porque sabia que o cunhado dele era milionário. Interrogou-o e descobriu tudo sobre a conta corrente do cunhado na Golden Gate Trust. Roubou o talão de cheques de Pangburn... não estava no quarto dele quando dei uma busca... e depositou o cheque falsificado de Axford a crédito dele, sabendo que, nessas circunstâncias, o cheque não seria recusado. No dia seguinte, levou Pangburn ao banco, dizendo que ia fazer um depósito. Levou-o porque, com ele a seu lado, o cheque no qual a assinatura dele fora forjada não seria posto em dúvida. Você sabia que, sendo um cavalheiro, ele tudo faria para não ver o que você estava depositando. Em seguida, inventou a viagem a Baltimore. Ele me contou a verdade... toda a verdade até onde a conhecia. Em seguida, você o encontrou no domingo à noite... talvez acidentalmente, talvez não. De qualquer maneira, levou-o para a casa de Joplin, contando-lhe alguma história maluca, que ele aceitou e que o convenceu a ficar ali por alguns dias. Isso não foi difícil, já que ele não sabia de coisa alguma a respeito dos cheques de vinte mil dólares. Você e seu amigo Kilcourse sabiam que, se Pangburn desaparecesse, ninguém jamais saberia que ele não havia falsificado o cheque de Axford e que ninguém tampouco suspeitaria de que o segundo cheque era falso. Você o teria matado sem estardalhaço algum, mas, quando Porquinho a avisou de que eu estava indo para lá, você teve de trabalhar depressa... e, assim, matou-o. Essa é que é a verdade — berrei.

Durante toda essa explosão, ela fitou-me com olhos cinzentos, calmos, ternos, mas, naquele momento, eles se anuviaram um pouco, e uma contração de dor aproximou-lhe as sobrancelhas.

Desviei o rosto e pus o carro em movimento.

Pouco antes de entrarmos em Redwood City, uma de suas mãos subiu até meu antebraço, descansou nele por um segundo, deu-lhe duas palmadinhas e retirou-se.

Não a olhei, nem acho que ela me tenha olhado, enquanto as formalidades da prisão eram completadas. Deu o nome de Jeanne Delano e recusou-se a fazer qualquer declaração até que houvesse consultado um advogado. A cena toda demorou apenas alguns minutos.

Quando ia sendo levada, ela parou e perguntou se podia falar em particular comigo.

Dirigimo-nos para um canto distante da sala.

Ela aproximou a boca de meu ouvido, eu senti outra vez o calor de seu hálito no rosto, como daquela vez no carro, e sussurrou o nome mais feio que existe.

Em seguida, dirigiu-se para a cela.


                   Kid de Tal

Tudo começou em Boston, nos idos de 1917. Certa tarde encontrei por acaso Lew Maher na calçada do Touraine Hotel que dava para Tremont Street. Paramos para trocar umas poucas bisbilhotices enquanto a neve continuava a cair.

Eu lhe dizia alguma coisa, quando ele me interrompeu:

— Disfarçadamente, dê uma olhada naquele rapaz que vem subindo a rua. Aquele com o boné escuro.

Olhando, vi um rapaz desengonçado de uns dezoito anos, rosto pálido e perebento, boca mal-humorada, olhos castanho-claros, embotados, nariz grosso e informe. Passou pelo detetive municipal e por mim sem nos prestar atenção. Observei-lhe as orelhas. Não eram as orelhas amassadas de um pugilista, nem visivelmente deformadas, mas suas bordas curvavam-se para dentro e para fora de uma maneira peculiarmente enrugada.

Ele desapareceu na esquina, descendo por Boylston Street em direção a Washington.

— Aquele rapaz vai fazer nome se não for agarrado ou liquidado muito cedo — prognosticou Lew. — É melhor colocá-lo na sua lista. Kid de Tal. Você andará à procura dele um destes dias.

— Qual é o ramo dele?

— Assalto, pistoleiro. Tem todas as características do bom pistoleiro. Sabe atirar, e é inteiramente louco. Não se deixa tolher por coisas como imaginação ou medo das conseqüências. Gostaria que se deixasse. As aves cuidadosas, sensatas, são as mais fáceis de pegar. Eu juraria que Kid participou de uns dois trabalhos feitos em Brookline no mês passado. Mas não posso enquadrá-lo nesses casos. Mesmo assim, vou agarrá-lo um dia destes... É uma promessa.

Lew jamais cumpriu a promessa. Um mês depois, foi morto por um ladrão numa residência da Audubon Road.

Uma semana ou duas depois dessa conversa, deixei a filial de Boston da Agência Continental para alistar-me no Exército. Terminada a guerra, voltei à folha de pagamento da agência em Chicago, fiquei lá uns dois anos e fui transferido para San Francisco.

Assim, feitas as contas, passaram-se quase oito anos até certo dia eu me ver sentado atrás das orelhas pregueadas de Kid de Tal em Dreamland Rink.

As noites de sexta-feira são noites de luta no estádio de Steiner Street. Aquela era a minha primeira noite de folga em muitas semanas. Fui até o estádio, acomodei-me numa dura cadeira de madeira não muito longe do ringue e dispus-me a observar os rapazes trocarem murros. O programa estava no meio da primeira parte quando vi aquele par de orelhas estranhas e algo familiares duas fileiras à frente.

Não as reconheci imediatamente. Não podia ver o rosto de seu dono. Ele observava Kid Cipriani e Bunny Keogh massacrarem-se mutuamente. Perdi a maior parte da luta. Mas no curto intervalo, antes que os dois rapazes seguintes subissem ao tablado, Kid de Tal virou a cabeça para dizer alguma coisa ao homem a seu lado. Vi-lhe a face e o reconheci.

Ele não mudara muito, e tampouco melhorara. Os olhos pareciam mais baços e a boca mais cruelmente inchada do que quando o conhecera. A face continuava lívida como antes, embora sem tantas espinhas.

Ele se sentava diretamente entre mim e o ringue. Agora que o reconhecera, não tinha que perder o resto do programa. Por cima de sua cabeça, podia observar os rapazes lá embaixo sem receio de que ele me escapasse.

Tanto quanto eu sabia, Kid de Tal não era procurado pela polícia de cidade alguma... não pela Continental, de qualquer maneira... e, se ele tivesse sido batedor de carteiras, ladrão, ou membro de qualquer um dos ofícios criminosos pelos quais só ocasionalmente nos interessávamos, eu o teria deixado em paz. Mas há sempre grande procura de assaltantes. Os clientes mais importantes da Continental são companhias de seguro, e apólices contra roubo constituem uma boa percentagem dos negócios dessas companhias atualmente.

Quando Kid de Tal saiu no meio da luta principal, juntamente com metade dos espectadores, não se importando com o que ia acontecer a qualquer um dos pesos pesados que no ringue exibiam uma luta de colegas de quarto, fui atrás dele.

Ele saiu sozinho. Era a forma mais simples de seguir alguém que se pode imaginar. As ruas estavam cheias de aficionados do boxe, que deixavam o estádio nesse momento. Kid desceu Fillmore Street, fez uma refeição de pão, bacon e café numa lanchonete e tomou o bonde número 22.

Em McAllister Street, ele, e eu também, mudamos para o número 5. Descemos Polk Street, andamos na direção norte por um quarteirão, voltamos para oeste por um quarteirão e pouco, e subimos os degraus de uma pobre pensão que ocupava o segundo e terceiro andares de uma oficina de consertos de carros no lado sul de Golden Gate Avenue, entre Van Ness e Franklin.

Fiquei pensativo. Se ele houvesse saltado do bonde em Van Ness ou em Franklin, teria economizado um quarteirão de caminhada. Mas fora até Polk e voltara. Talvez para fazer exercício.

Perambulei pela rua durante algum tempo para ver se alguma coisa aconteceria nas janelas fronteiras. Nenhuma das que estavam na escuridão quando Kid entrou iluminou-se naquele instante. Aparentemente, ele não ocupava um quarto de frente... a menos que fosse um jovem muito cauteloso. Eu sabia que ele não desconfiava de que eu o vinha seguindo. Não havia possibilidade disso. As condições haviam sido favoráveis demais para mim.

Não me dando a fachada a menor informação, desci devagar Van Ness Avenue para examinar os fundos do edifício. O prédio prolongava-se até Redwood Street, uma estreita rua secundária que dividia no meio o quarteirão. Havia nos fundos quatro janelas iluminadas, mas não me disseram nada. Havia também uma porta. Parecia pertencer à oficina de consertos. Duvidei que os ocupantes dos quartos de cima pudessem usá-la.

A caminho de casa e do despertador, passei pelo escritório para deixar um bilhete, dirigido ao Velho:

 

Seguindo Kid de Tal, assaltante, 25-27, 67 kg, 1,80 m, pálido, cabelos castanhos, olhos castanho-claros, nariz grosso, orelhas tortas. Origem: Boston. Alguma coisa contra ele? Está nas vizinhanças de Golden Gate e Van Ness.

 

Às oito horas da manhã seguinte encontrava-me a um quarteirão de distância da casa onde Kid entrara, à espera de que ele aparecesse. Caía uma chuva forte e contínua, mas não me importei. Estava sentado no interior de um cupê preto, o tipo de carro cuja aparência comum e respeitável o torna ideal para trabalho urbano. Essa parte de Golden Gate Avenue é margeada por oficinas de consertos de automóveis, vendedores de carros de segunda mão, e coisas semelhantes. Há sempre dezenas de carros estacionados no quarteirão. Mesmo que eu ficasse ali o dia inteiro, não precisava preocupar-me em chamar muita atenção.

Isso era ótimo. Durante nove horas inteiras fiquei ali, ouvindo a chuva tamborilar na capota, à espera de Kid de Tal, sem conseguir vê-lo, e sem nada para comer, salvo meus cigarros Fátima. Não tinha absoluta certeza de que ele não me havia escapado. Não sabia se ele morava no local que eu vigiava. Poderia ter ido para casa depois de eu ter ido para a minha. Contudo, no trabalho de detetive, esses palpites pessimistas estão sempre nos atazanando, quando deixamos que o façam. Permaneci onde estava, com os olhos pregados na estreita porta por onde entrara a minha presa na noite anterior.

Pouco depois das cinco da tarde, Tommy Howd, o nosso contínuo de nariz arrebitado, descobriu-me e entregou-me um memorando do Velho:

 

Kid de Tal é conhecido da filial de Boston como suspeito de roubo, mas nada há de definitivo contra ele. Acredita-se que seu nome verdadeiro seja Arthur Cory ou Carey. Pode ter estado implicado com o assalto à Joalheria Tunnicliffe em Boston, no mês passado. Morto um empregado e roubados sessenta mil dólares em pedras não lapidadas. Não há descrição dos dois bandidos. A filial de Boston acha que o ângulo merece ser investigado. Eles autorizam vigilância.

 

Depois de ler o memorando, devolvi-o ao rapaz — não é prudente levar um bolso cheio de informações sobre nosso trabalho — e perguntei-lhe:

— Quer telefonar para o Velho e pedir que mande alguém para me substituir, enquanto eu como alguma coisa? Não comi nada desde o café da manhã.

— Nenhuma chance! — respondeu Tommy — Todo mundo está ocupado. Não vi um único detetive durante o dia inteiro. Não sei por que vocês, caras, não levam um pedaço ou dois de chocolate no bolso para...

— Você andou lendo histórias de exploradores do Ártico — acusei-o. — Se está faminto, um homem come qualquer coisa, mas se está apenas com uma fome comum, não quer entupir o estômago com um bocado de bombons. Dê uma volta por aí e veja se me compra uns dois sanduíches e uma garrafa de leite.

Ele ficou carrancudo por um momento e, em seguida, seu rosto de catorze anos assumiu um ar matreiro.

— Eu lhe digo o que podemos fazer — sugeriu. — Você me diz como é esse cara e em que edifício ele está, e eu fico de vigia enquanto você faz uma boa refeição. Certo? Bife, batatas fritas, torta e café.

Tommy sonha em ser deixado à frente de um trabalho em circunstâncias semelhantes em que tudo pode acontecer enquanto ele está de tocaia, e em prender um regimento inteiro de bandidos, tudo isso sozinho. Por falar nisso, acho que ele não poria a perder uma boa chance, e eu gostaria de lhe dar uma oportunidade. O Velho, porém, me tiraria o escalpo vivo se soubesse que eu havia lançado um garoto no meio de bandidos. Em vista disso, sacudi, peremptório, a cabeça.

— Aquele cara usa quatro pistolas e, de quebra, um machado, Tommy. Ele o comeria vivo.

— Conversa! Vocês, detetives, passam o tempo todo querendo que a gente pense que ninguém pode fazer o seu trabalho. Esses caras não podem ser tão perigosos assim... ou não deixariam que vocês os pegassem!

Havia alguma verdade nisso, e, assim, expulsei Tommy do cupê para a chuva.

— Um sanduíche de língua, um de presunto, e uma garrafa de leite. E depressa.

Mas eu não estava mais lá quando ele voltou com o lanche. Mal ele desaparecera, Kid de Tal, com a gola do sobretudo virada para cima para defender-se da chuva, que caía forte nesse instante, apareceu à porta da pensão.

Virou para o sul na direção de Van Ness.

Quando cheguei à esquina, não o vi mais. Ele não poderia ter chegado a McAllister. A menos que houvesse entrado em um edifício, Redwood Street, a rua estreita que dividia o quarteirão, era a melhor possibilidade. Subi Golden Gate Avenue por outro quarteirão, virei para o sul e cheguei à esquina de Franklin com Redwood exatamente em tempo de ver meu homem entrar pela porta traseira de um prédio de apartamentos que dava frente para McAllister Street.

Continuei devagar a marcha, pensando.

O prédio onde Kid passara a noite e o prédio onde ele acabara de entrar davam fundos para a mesma rua secundária, em lados opostos, a pouco mais de meio quarteirão de distância. Se o quarto do Kid se localizasse nos fundos do prédio e ele possuísse um bom binóculo, poderia manter boa vigilância de todas as janelas, e provavelmente de grande parte do interior dos quartos situados naquele lado do prédio de McAllister Street.

Na noite anterior, ele se havia desviado um quarteirão de seu caminho. Tendo-o visto entrar furtivamente pela porta traseira naquele momento, meu palpite foi de que ele não desejara saltar do bonde num local onde pudesse ser visto do prédio. Qualquer um dos pontos mais convenientes para ele saltar do bonde teria ficado à vista desse edifício. Isso tudo significava que Kid estava observando alguém nesse prédio e não queria que o observassem.

Entrara pela porta traseira. Isso não era difícil de explicar. A porta da frente estava fechada, mas a traseira, como na maioria dos prédios, provavelmente permanecia aberta durante todo o dia. A menos que Kid encontrasse o porteiro ou algum empregado, poderia entrar sem problema algum. A visita de Kid era furtiva, estivesse em casa ou não a pessoa que procurava.

Eu não sabia do que se tratava, mas isso não me aborrecia em especial. Meu problema imediato era escolher o melhor lugar de onde pudesse observar Kid quando ele saísse.

Se saísse pela porta dos fundos, o quarteirão seguinte de Redwood Street, entre Franklin e Gough, seria o local ideal para mim e meu carro. Mas ele não me prometera que sairia dessa maneira. Era mais provável que usasse a porta da frente. Atrairia menos atenção se saísse ousadamente pela porta principal do prédio do que se escapulisse sorrateiramente pelos fundos. Meu melhor palpite era a esquina de McAllister com Van Ness. Dali, eu poderia observar a porta da frente e uma das extremidades de Redwood Street.

Voltei com o cupê para a esquina e esperei.

Passou-se meia hora. Três quartos de hora.

Kid de Tal desceu os degraus da frente e veio em minha direção, abotoando o casaco, virando para cima a gola e curvando a cabeça contra a chuva.

Um Cadillac preto, com as cortinas arriadas, saiu de trás de mim. Era um carro que pensei ter visto estacionado nas proximidades da prefeitura, quando parará ali.

Fez a curva em torno de meu cupê, deslizou para o meio-fio, derrapou de novo, e ganhou velocidade no asfalto molhado.

Uma das cortinas tremulou solta na chuva.

Da abertura, saíram línguas de fogo pálido, a voz amarga de uma pistola de pequeno calibre. Sete vezes.

O chapéu molhado de Kid de Tal voou para longe de sua cabeça, como um pequeno balão que sobe.

Mas não houve nada de lento nos movimentos de Kid.

Mergulhando num rodopio de fraldas de sobretudo, lançou-se no vestíbulo de uma loja.

O Cadillac chegou à esquina seguinte, fazendo uma estonteante curva em derrapagem, e entrou na Franklin Street Apontei para ele o cupê.

Passando pelo vestíbulo onde Kid mergulhara, vi-o de relance, de joelhos, procurando soltar uma pistola preta das dobras do sobretudo. Na porta, rostos excitados cercavam-no. Mas não havia agitação na rua. Nos dias atuais as pessoas estão acostumadas demais a descargas de automóveis para prestar muita atenção a um ruído menos estrondoso que o de um canhão de quinze centímetros.

Ao chegar a Franklin Street, o Cadillac ganhara uma dianteira de mais de um quarteirão. Estava virando para a esquerda, subindo Eddy Street.

Alinhei-me com ele em Turk Street e vi-o outra vez quando cheguei aos dois quarteirões que davam para Jefferson Square. Reduzi a velocidade. Cinco ou seis quarteirões mais adiante, passou a minha frente, em Steiner Street, suficientemente perto para que eu lesse o número da placa. Corria moderadamente nessa ocasião. Confiantes de que haviam conseguido escapar sem problema, seus ocupantes não queriam meter-se em confusões por excesso de velocidade. Continuei a segui-los, mantendo-me uns três quarteirões mais atrás.

Não tendo ficado à vista durante os primeiros quarteirões, eu não tinha receio de que suspeitassem de qualquer interesse meu.

Saindo de Haight Street e aproximando-se do pátio de estacionamento, o Cadillac parou para desembarcar um passageiro. Era um homem pequenino, baixo e magro, de face branca como creme de leite, olhos escuros e um minúsculo bigode. Achei que havia algo de estrangeiro no talhe do seu casaco preto e no estilo do chapéu cinzento. Usava bengala.

O Cadillac prosseguiu e saiu de Haight Street sem que eu pudesse olhar para os demais ocupantes. Tirando um cara-ou-coroa mental; resolvi seguir o homem que estava a pé. São sempre remotas as possibilidades de se chegar ao dono de um carro suspeito pelo número de placa, embora haja uma vaga possibilidade.

O homem que eu seguia entrou numa farmácia na esquina e usou o telefone. Não sei o que mais fez ali, se é que fez alguma coisa. Logo depois, chegou um táxi. O homem entrou nele e foi levado ao Marquis Hotel. Um empregado deu-lhe a chave do quarto 761. Deixei-o quando entrou no elevador.

 

No Marquis eu estava entre amigos. Encontrei Duran, o detetive da casa, na sobreloja e perguntei-lhe:

— Quem é o 761?

Duran, um veterano de cabelos brancos, parece, fala e age como o presidente de um banco excepcionalmente forte. Foi chefe de detetives de uma das maiores cidades do centro-oeste. Certa vez, esforçou-se demais para obter uma confissão de um arrombador e acabou matando-o. Os jornais não gostavam de Duran. Aproveitaram o incidente para fazer uma campanha que o acabou lançando no olho da rua.

— O 761? — perguntou, em sua maneira paternal. — É o sr. Maurois, acho. Está especialmente interessado nele?

— Tenho algumas esperanças — admiti. — O que sabe a respeito dele?

— Não muita coisa. Está aqui há, talvez, duas semanas. Vamos descer e ver o que podemos descobrir.

Fomos até a recepção, passamos pela mesa telefônica, conversamos com o chefe dos mensageiros e subimos para interrogar umas duas arrumadeiras. Chegado duas semanas antes, o ocupante do 761 registrara-se como Edouard Maurois, Dijon, França, dava telefonemas freqüentes, não recebia cartas, nem visitantes, não observava horários regulares e era mão-aberta em gorjetas. O que quer que estivesse fazendo, ou houvesse feito como profissão, o pessoal do hotel desconhecia.

— Qual o motivo de seu interesse por ele, se posso perguntar? — indagou Duran, depois de havermos apurado esses fatos. Ele fala assim.

— Não sei ainda, exatamente — respondi, dizendo a verdade. — Ele está simplesmente ligado a um cara errado, mas esse Maurois pode ser decente. Eu lhe darei um telefonema no momento em que souber alguma coisa de sólido sobre ele.

Não podia dizer a Duran que vira seu hóspede passando fogo num pistoleiro a uma curta distância da prefeitura, e isso em pleno dia. O Marquis Hotel aprecia respeitabilidade. Teria expulsado o francês. E de nada me adiantaria que ele ficasse assustado.

— Por favor, faça isso — replicou Duran. — Você nos deve alguma coisa pela ajuda que lhe temos dado. Assim, por favor, não esconda informação alguma que possa evitar-nos uma notoriedade desagravei.

— Não suprimirei — prometi. — Agora, pode fazer-me outro favor? Não pus os dentes em coisa alguma, salvo na minha própria boca, desde sete e meia desta manhã. Pode ficar de olho nos elevadores e me avisar se Maurois sair? Estarei na lanchonete, perto da porta.

— Certamente.

A caminho da lanchonete, parei nas cabinas telefônicas e chamei o escritório. Dei ao detetive de serviço o número da placa do Cadillac.

— Veja na lista a quem pertence. Recebi logo a resposta:

— H. J. Paterson, San Pablo, placa de um Buick conversível.

A informação liquidava esse ângulo. Poderíamos investigar Paterson, mas podia apostar que isso não nos levaria a parte alguma. Placas de carro, logo que começam a circular por maus caminhos, são tão fáceis de localizar quanto bônus de guerra.

Durante todo o dia eu estivera cultivando aquela fome. Levei-a à lanchonete e soltei-a. Entre garfadas, passei em revista os assuntos do dia. Mas não pensei com seriedade capaz de me estragar o apetite. E não havia muita coisa em que pensar.

Kid de Tal residia numa espelunca de onde podiam ser observados os apartamentos de McAllister Street. Visitara o prédio de apartamentos furtivamente. Saindo de lá, recebera tiros partidos de um carro que devia ter estado à espera nas vizinhanças. Seria o companheiro do homem do Cadillac, ou companheiros, se mais de um, o ocupante do apartamento visitado por Kid? Haviam, acaso, esperado que ele o visitasse? Haviam-no atraído para a visita, pensando em matá-lo quando saísse? Ou estariam vigiando a frente enquanto Kid vigiava os fundos? Neste caso, sabia cada uma das partes que a outra estava à espreita? E quem morava lá?

Não consegui solucionar nenhum desses quebra-cabeças. Tudo o que sabia era que o francês e seus companheiros aparentemente não gostavam de Kid de Tal.

Mas mesmo o tipo de refeição que devorei não ocupa esse tempo todo. Ao terminar, voltei ao saguão.

Passando pela mesa telefônica, uma das pequenas, aquela de cachos vermelhos duros de laquê, fez-me um sinal com a cabeça. Parei para ver o que ela queria.

— Seu amigo acaba de receber um telefonema — disse ela.

— Ouviu-o?

— Sim. Um homem está à espera dele na esquina de Kearny com Broadway. Disse-lhe que se apressasse.

— Há quanto tempo?

— Nenhum. Acabaram agora mesmo de falar.

— Nomes?

— Não.

— Obrigado.

Fui até o local onde se encontrava Duran, de olho nos elevadores.

— Já apareceu? — perguntei.

— Não.

— Ótimo. A raiva da mesa telefônica acaba de me dizer que ele recebeu uma chamada e que alguém pediu que fosse encontrá-lo na esquina de Kearny com Broadway. Acho que vou chegar lá antes dele.

Saindo do hotel, peguei meu cupê e dirigi-me para a esquina do francês.

O Cadillac usado naquela tarde já se encontrava no local, com uma nova placa. Passei por ele e lancei um olhar ao seu único ocupante: um homem entroncado, de uns quarenta anos, com um boné puxado sobre os olhos. Tudo o que consegui ver do rosto foi uma boca rasgada, mole, sobre um grande queixo.

Estacionei o cupê a pequena distância, numa vaga. Não tive que esperar muito pelo francês. Ele apareceu na esquina, a pé, entrou no Cadillac. O homem de queixo grande dirigia. Subiram Broadway devagar. Segui-os.

Não fomos longe, e logo que paramos o Cadillac foi estacionado de modo a que seus ocupantes pudessem vigiar o Venetian Café, um dos mais luxuosos dos numerosos restaurantes italianos que congestionam essa parte da cidade.

Passaram-se duas horas.

Achei que Kid de Tal estava fazendo uma refeição no Venetian. Quando ele saísse, começariam os fogos de artifício, reiniciando-se a celebração interrompida naquela tarde em McAllister Street. Tive a esperança de que, dessa vez, a pistola de Kid não ficasse presa no sobretudo. Mas não pensem que eu estava querendo dar-lhe uma ajuda numa briga de dois contra um.

Aquela festa parecia uma guerra entre pistoleiros. Se dependesse de mim, seria uma guerra privada. Minha esperança era de que, circulando em volta até que alguém ganhasse, pudesse arrancar um pequeno lucro para a Continental sob a forma de um ou dois ladrões procurados entre os sobreviventes.

Meu palpite sobre o alvo do francês estava errado. Não era Kid de Tal mas um homem e uma mulher. Não lhes vi as faces. Tinham a luz às costas. Não perderam tempo entre a porta do Venetian e um táxi.

O homem era grandalhão: alto, largo e troncudo. A mulher parecia pequena ao lado dele. Mas isso não servia. Qualquer coisa que pesasse menos de uma tonelada pareceria minúscula ao lado dele.

Logo que o táxi se afastou, o Cadillac seguiu-o. Quanto a mim, corri atrás do Cadillac.

Foi uma espécie de caçada.

O táxi virou e entrou em um quarteirão escuro nos arredores de Chinatown. O Cadillac acelerou e pôs-se a seu lado, empurrando-o para o meio-fio.

Ruído de freios, berros e vidro quebrado. Gritos de mulher. Pessoas movendo-se no espaço apertado entre o Cadillac e o táxi. Ambos os carros oscilando. Grunhidos, pancadas surdas, nomes feios.

Uma voz de homem:

— Ei! Vocês não podem fazer isso! Não! Não! — Era a voz de um cara estúpido.

Eu havia reduzido a marcha até que o cupê mal se movia, na direção da confusão à frente. Espiando pela chuva e pela escuridão, eu procurava captar um detalhe ou outro, à medida que me aproximava, mas com muito pouco proveito.

Encontrava-me a uns sete metros do local quando a porta do táxi virada para o meio-fio foi aberta com violência. Uma mulher pulou para fora. Aterrissou de joelhos na calçada, levantou-se com um salto e correu pela rua.

Aproximando-me do meio-fio, abri a porta do cupê. As janelas do meu lado estavam sendo inteiramente lavadas pela chuva. Eu queria olhar para a mulher, quando ela passasse. Se ela considerasse a porta aberta como um convite, eu não me importaria em conversarmos um pouco.

Ela aceitou o convite, correndo diretamente para o carro como se esperasse que eu estivesse por ali. Vi uma pequena face oval por cima de uma gola de peles.

— Ajude-me! — arquejou ela. — Leve-me para longe daqui... depressa.

Havia em sua voz um vestígio de algo estrangeiro, mas vago demais para ser chamado de sotaque.

— O quê?... — Calei a boca. A coisa com que ela me espetava o corpo era uma automática de cano curto. — Certo! Entre — apressei-a.

Ela curvou a cabeça para entrar. Passei um braço pelo pescoço dela, lançando-a na horizontal sobre meu colo. Ela contorceu-se e virou-se, e notei que aquele corpo de ossos pequenos possuía carnes duras, além de força.

Tomei-lhe a pistola e empurrei-a para o assento ao lado.

Ela cravou os dedos em meus braços.

— Rápido! Depressa! Por favor, depressa! Leve-me...

— E seu amigo? — perguntei.

— Ele não! Ele é um deles! Por favor, depressa!

Um homem encheu a porta do cupê... o queixudo que guiara o Cadillac.

Estendeu a mão e agarrou a mulher pela garganta.

Ela fez um esforço para gritar, e produziu o som arquejante de uma pessoa cuja garganta acaba de ser cortada. Atingi o queixo do homem com a arma que tomara da mulher.

Ele fez um esforço para entrar no cupê. Empurrei-o para fora.

Antes que a cabeça dele atingisse a calçada, fechei a porta e dei a volta na rua.

Afastamo-nos e ouvimos dois tiros no exato momento em que dobrávamos a esquina. Não sei se foram disparados contra nós ou não. Virei outras esquinas. O Cadillac não reapareceu.

Até então, muito bem. Eu começara com Kid de Tal, deixara-o para seguir Maurois, e naquele momento abandonava-o para descobrir quem era aquela mulher. Não sabia o porquê de toda aquela confusão, mas parecia que começava a descobrir o por quem.

— Para onde? — perguntei, logo em seguida.

— Para casa — respondeu, e deu-me um endereço. Sem a menor relutância, tomei o caminho indicado. Era

o prédio de apartamentos visitado cedo, naquela noite, por Kid de Tal.

Não perdemos tempo. Minha companheira talvez não soubesse, mas eu sabia que todos os demais participantes do jogo conheciam aquele endereço. Queria chegar lá antes do francês e do Queixada.

Nenhum de nós pronunciou palavra durante a viagem. Ela fez-se minúscula a meu lado, tremendo. Eu pensava, planejando como faria para que ela me convidasse a entrar no apartamento. Lamentei não ter guardado sua arma., Havia-a deixado cair quando empurrara o Queixada para fora do carro. Seria uma desculpa para uma visita posterior, se ela não me convidasse a entrar.

Mas não precisava ter-me preocupado com isso. Ela não me convidou. Insistiu em que eu entrasse. Estava morta de medo.

— Você ficará comigo? — suplicou, quando subimos McAllister Street. — Estou inteiramente apavorada. Você não pode me deixar! Se não entrar, ficarei com você.

Eu estava desejoso de entrar, mas não queria deixar o cupê num local que me delatasse a presença.

— Daremos a volta pela esquina e estacionaremos o carro — disse-lhe — Depois, irei consigo.

Fiz a volta no quarteirão, olhando para as duas extremidades da rua, à espreita do Cadillac. Não o vi. Deixei o cupê em Franklin Street e voltamos, a pé, ao prédio de McAllister Street.

Ela quase me obrigou a correr pela chuva, que nesse momento se transformara em garoa.

A mão com que tentou enfiar a chave na fechadura da porta da frente tremia e não acertou no orifício. Tomei-lhe a chave e abri a porta. Subimos até o terceiro andar num elevador automático, sem ver ninguém. Abri a porta para onde ela me levou, um apartamento nos fundos do prédio.

Segurando-me o braço com uma das mãos, estendeu a outra para acender a luz do corredor.

Eu não sabia o que ela esperava até que gritou:

— Frana! Frana! Ah, Frana!

Ouvimos, como resposta, o latido abafado de um cachorrinho. Mas o cão não apareceu.

Ela agarrou-me com ambos os braços, tentando escalar meu sobretudo molhado.

— Eles estão aqui! — exclamou, com uma voz fraca e seca, de pavor total. — Eles estão aqui!

 

 

— Alguém deveria estar aqui? — perguntei, empurrando-a para um lado, para que não se interpusesse entre mim e as duas portas em frente ao corredor.

— Não! Apenas minha cachorrinha Frana, mas... Puxei minha arma até a metade do bolso e recoloquei-a no lugar, para me certificar de que não se prenderia se precisasse dela, e usei a outra mão para me livrar dos braços da mulher.

— Espere aqui. Vou ver se você tem companhia. Dirigindo-me à porta mais próxima, ouvi uma voz de sete anos antes, a voz de Lew Maher, dizendo: "Ele sabe atirar e é completamente louco. Não se detém por consideração alguma, tais como imaginação ou medo das conseqüências".

Com a mão esquerda, virei a maçaneta da porta e, com o pé direito, abri-a com um pontapé.

Nada aconteceu.

Estendi a mão pelo lado do umbral, encontrei o interruptor e acendi as luzes.

Uma sala de visitas toda bem-arrumada.

Através de uma porta aberta na extremidade da sala, vinham os latidos abafados de Frana, mais altos nesse momento e mais excitados. Dirigi-me para a entrada. Pelo que consegui ver, à luz do aposento onde me encontrava, o quarto vizinho pareceu-me tranqüilo e desocupado. Entrei e acendi as luzes.

Ouvi a voz da cachorrinha pela porta fechada. Fui até ela e abri-a. Uma cachorrinha escura e peluda saltou e atacou-me as pernas. Agarrei-a pela parte mais fofa da pelagem e erguia-a no ar, contorcendo-se e rosnando. A luz bateu no pequeno animal. Era de cor púrpura... púrpura como uma uva! Tingida de púrpura!

Afastando com a mão esquerda esse furioso e ganidor mastim artificial, fui até o cômodo seguinte, o quarto de dormir. Vazio. O armário não ocultava pessoa alguma. Fui até a cozinha e o banheiro. Vazios. Ninguém no apartamento. A cachorrinha cor de púrpura fora aprisionada por Kid de Tal cedo, naquele dia.

Passando pelo segundo cômodo e voltando para junto da mulher, levando a cachorrinha e meu relatório, vi um envelope aberto, com o endereço para baixo, sobre uma mesa. Virei-o. Fora enviado por uma loja da moda e estava endereçado à sra. Inés Almad, ali em San Francisco.

O grupo parecia estar-se tornando internacional. Maurois era francês; Kid de Tal era americano de Boston; a cachorrinha possuía um nome boêmio (pelo menos lembrei-me de ter, meses antes, agarrado um falsário tcheco cujo primeiro nome era Frana); e Inés, acho, era ou espanhola ou portuguesa. Não sabia o que significava Almad, mas ela era, indubitavelmente, estrangeira, mas não francesa, pensei.

Voltei para o lugar onde ela se encontrava. Não se havia movido um único centímetro.

— Parece que está tudo bem — falei. — A cachorrinha ficou presa num armário.

— Não há ninguém aqui?

— Ninguém.

Ela agarrou o pequeno animal com ambas as mãos, beijando-lhe a fofa cabeça tingida, dizendo-lhe palavras afetuosas em uma língua que não teve o menor sentido para mim.

— Seus amigos... as pessoas com quem teve aquele briga hoje à noite... sabem onde você mora? — perguntei.

Eu sabia que eles sabiam. Queria ver se ela sabia. Ela deixou cair a cachorrinha como se a houvesse esquecido e franziu as sobrancelhas.

— Não sei — disse devagar. — Ainda assim, talvez saibam. Se sabem...

Estremeceu, girou sobre os calcanhares e fechou violentamente a porta.

— Eles podem ter estado aqui esta tarde — continuou. — É verdade que Frana já se prendeu antes em armários, mas estou com medo de tudo. Sou muito medrosa. Mas não há ninguém aqui agora?

— Ninguém — garanti-lhe outra vez.

Passamos à sala de visitas. Pude examiná-la bem pela primeira vez quando tirou o chapéu e o capote preto.

Era um pouco mais baixa do que a estatura mediana, morena, de uns trinta anos, vestida com um longo de forte cor alaranjada. Era morena como uma índia, ombros nus, bronzeados, mãos e pés pequeninos, e dedos repletos de anéis. Possuía nariz fino e curvo, boca cheia e vermelha e olhos... de cílios longos e abundantes... extraordinariamente estreitos. Eram olhos escuros, mas coisa alguma de sua cor podia ser vista pelas frestas que separavam as pálpebras. Duas luzes escuras atrás de pestanas espessas. Seu cabelo negro estava nesse momento despenteado em fofas e sedosas madeixas. Um colar de pérolas descia sobre o peito moreno. Brincos de ferro preto, de um desenho peculiar, balançavam-se nas orelhas.

Em conjunto, era uma mulher estranha. Mas eu não gostaria de ser citado como tendo dito que ela não era bela... de uma maneira selvagem.

Nervosa e tremendo, ela tirou o chapéu e o casaco. Dentes brancos morderam o lábio inferior quando ela atravessou a sala para ligar um aquecedor elétrico. Aproveitei a oportunidade para mudar a pistola do bolso do sobretudo para a calça. Depois, tirei-o.

Deixando a sala por um momento, ela voltou com uma garrafa de um quarto de litro e dois cálices numa bandeja de bronze, que pôs numa mesinha ao lado do aquecedor.

Encheu o primeiro cálice até quase a borda. Detive-a, quando ela chegava quase à metade do outro.

— Isso é suficiente para mim — disse eu.

Era conhaque, e desceu sem maior dificuldade. Ela emborcou seu cálice como se precisasse da bebida, sacudiu os ombros nus e suspirou, satisfeita.

— Você certamente deve pensar que sou louca. — Sorriu para mim. — Lançando-me a seus braços na rua, um estranho, tomando seu tempo e dando-lhe tanto trabalho!

— Não — menti, com toda a seriedade. — Penso que é uma mulher muito calma para uma pessoa que não está, sem dúvida, acostumada a esse tipo de coisa.

Ela puxava nesse momento um pequeno banco acolchoado para junto do aquecedor elétrico e perto da mesa onde estava a garrafa de conhaque. Sentou-se, indicando com uma cordial inclinação de cabeça a metade vazia do banco.

A cachorrinha de cor púrpura saltou-lhe no colo. Ela empurrou-a para o chão. A cachorrinha tentou subir de novo. Ela deu-lhe um pontapé num dos flancos com a ponta afiada do sapato. O animal ganiu e rastejou para baixo de uma cadeira, no outro lado da sala.

Evitei a janela dando uma longa volta pela sala. A janela estava fechada por uma cortina, mas não o suficiente para ocultar a sala da vigilância de Kid de Tal... se ele estivesse sentado nesse momento a sua janela com um binóculo.

— Mas não sou uma mulher equilibrada, realmente — disse ela, no momento em que me sentei a seu lado. — Sou medrosa, horrivelmente medrosa. E mesmo estando acostumada... É coisa do meu marido, ou do homem que foi meu marido. Mas preciso contar-lhe. Sua coragem merece uma explicação, e não quero que o senhor pense de mim o que não é verdade.

Fiz um esforço para parecer confiante e crédulo. Eu achava que não ia acreditar em coisa alguma que ela dissesse.

— Ele é loucamente ciumento — continuou a mulher em voz macia, de baixo timbre, com um modo peculiar de falar que, não fosse a maneira como ela deixava de acentuar as palavras, seria considerado um sotaque estrangeiro. — Ele é velho, e incrivelmente mau. Foi ele quem mandou esses homens atrás de mim! Houve uma vez uma mulher... Os homens de hoje à noite não foram os primeiros. Eu não sei... o que eles querem. Talvez me matar... mutilar, desfigurar... Não sei.

— O homem com quem você estava no táxi também era um deles? — perguntei. — Eu ia de carro atrás do táxi quando vocês foram atacados. Notei que havia um homem com você. Era um deles?

— Era! Eu não sabia, mas deve ser. Ele não me defendeu. Fingiu apenas, só isso.

— Já tentou alguma vez pôr a polícia em cima desse seu marido?

— O quê?

— Já deu parte à polícia alguma vez?

— Sim, mas — encolheu os ombros — teria sido melhor se eu tivesse ficado calada. Foi em Bufalo, e a polícia... multou meu marido por perturbar a ordem, acho que é assim que chamam. Mil dólares! Tolice! Com o ciúme dele, o que é isso? Eu... eu não pude suportar as coisas que os jornais disseram... as piadas. Tive que sair de Buffalo. Sim, uma vez tentei pôr a polícia em cima dele. Mas, agora, nunca mais.

— Buffalo? — sondei um pouco. — Morei lá durante algum tempo... em Crescent Avenue.

— Oh, sim. Fica perto de Delaware Park.

Isso era certo. Mas o fato de ela saber algo sobre Buffalo não provava coisa alguma sobre o resto de sua história.

Ela serviu mais conhaque. Interrompendo-a logo, mantive meu drinque numa altura conveniente para um homem que ainda tem trabalho a fazer. O dela foi tão grande como o anterior. Bebemos. Ela me ofereceu cigarros numa caixa esmaltada, cigarros finos, enrolados à mão, em papel preto.

Não fumei o meu durante muito tempo. Tinha um gosto estranho, cheirava e queimava como pólvora.

— Não gosta de meus cigarros?

— Sou um homem antiquado — desculpei-me, apagando-o em um prato de bronze e tirando meu próprio maço do bolso. — Tabaco é o máximo que consigo fumar. O que há nesses fogos de artifício?

Ela riu, um riso agradável, e havia uma espécie de arrulho nele.

— Sinto muito. São tantas as pessoas que não os suportam. Mando misturar incenso indiano com o fumo.

Não comentei a explicação. Isso era de esperar de uma mulher que mandava tingir a cachorrinha de cor púrpura.

Nesse momento, o pequeno animal mexeu-se sob a cadeira, arranhando o chão com as unhas.

A mulher morena saltou contra mim, no meu colo, com os braços em volta de meu pescoço. De bem perto, dilatados pelo pavor, vi que os olhos dela não eram absolutamente escuros. Eram cinza-esverdeados. O escuro estava nas sombras de suas grossas pestanas.

— Foi apenas a cachorrinha — tranqüilizei-a, empurrando-a, devagar, para a sua parte do banco. — Foi apenas ela, mexendo-se debaixo da cadeira.

— Ah! — suspirou ela, com imenso alívio.

Em seguida, tivemos que tomar outra dose de conhaque.

— Como você vê, sou horrivelmente covarde — disse ela, após tomar o terceiro drinque. — Mas, ah, tenho tantos problemas! E um milagre que eu não esteja louca.

Eu poderia ter-lhe dito que ela não estava muito longe disso, mas inclinei a cabeça num gesto cuja intenção era demonstrar simpatia.

Ela acendeu outro cigarro para substituir o que havia deixado cair em sua excitação. Seus olhos voltaram a ser as habituais frestas escuras.

— Acho que não é certo — havia o vestígio de uma covinha no seu rosto moreno quando ela sorria assim — que eu me atire nos braços de um homem cujo nome nem sei, para não dizer que nada sei a respeito dele.

— Isso é fácil de remediar. Meu nome é Young — menti. — E posso vender-lhe uma caixa de uísque a um preço que a deixará de boca aberta. Acho que não me importaria se me chamasse de Jerry. A maioria das mulheres que deixo sentar em meu colo chamam-me assim.

— Jerry Young — repetiu ela, como para si mesma. — É um bonito nome. E você é o contrabandista de bebida?

— Não o — corrigi-a. — Apenas um. San Francisco é assim. As coisas engrossaram depois disso.

Tudo o mais a respeito daquela mulher morena era falso, mas seu pavor era autêntico. Ela estava morta de medo. E não queria ser deixada sozinha naquela noite. Queria conservar-me ali... para massagear mais queixos que se lançassem contra ela. Sua idéia, sendo ela desse tipo, era que eu seria conquistado com maior facilidade mediante demonstrações de afeição. Assim, precisava lançar-se sobre mim. E não padecia de qualquer falso pudor ou puritanismo.

Mas eu também tive uma idéia: quando soasse a última batida do gongo, eu ia levar aquela pequena e alguns de seus companheiros de brincadeira para a prisão municipal. Essa era uma excelente razão, entre outras em que podia pensar, para não me deixar envolver por ela.

Estava inteiramente disposto a armar acampamento ali até que alguma coisa acontecesse. Aquele apartamento parecia o local onde teria lugar a ação seguinte. Mas precisava disfarçar meu próprio jogo. Não podia deixar que soubesse que nele era apenas uma figura secundária. Tinha que fingir que nada mais havia por trás de minha disposição de ficar do que o desejo de protegê-la. Outro homem poderia sair-se bem com uma atitude cavalheiresca, de cavaleiro-andante-protetor-do-belo-sexo-sem-interesses-pessoais. Mas não dou a impressão de ser, nem posso facilmente agir como esse tipo de gente. Precisava mantê-la a distância, sem que a deixasse pensar que meu interesse não era pessoal. Não foi nada fácil. Ela era danada de direta e havia bebido conhaque demais.

Não me iludi pensando que minha beleza e personalidade eram responsáveis pelo seu ardor. Sou um homem de braços grossos e mãos grandes. Ela estava numa enrascada. Soletrava meu nome como se fosse P-r-o-t-e-ç-ã-o. Eu era uma coisa a ser colocada entre ela e a encrenca.

Outra complicação: não sou moço demais nem velho demais para ficar febril com todas as mulheres que me impedem de pensar que ser cego não é tão mau assim. Estou naquele ponto intermediário, em torno dos quarenta, em que um homem coloca em sua lista outras qualidades femininas... a afabilidade, por exemplo... acima da beleza. Aquela morena me incomodava. Tinha confiança demais em si mesma. Seu método era rude. Tentava usar-me como se eu fosse um matuto da roça. Mas, a despeito de tudo isso, sou feito da maioria dos ingredientes humanos. Aquela mulher tinha mais do que a medida quando se tratava de rosto e corpo. Eu não gostava dela. E tinha esperança de metê-la na cadeia antes de acabar o caso. Mas seria um mentiroso se não reconhecesse que ela mexia comigo, contribuindo para isso seu corpo colado ao meu, convidativo, e o conhaque que eu havia bebido.

O caminho era acidentado... quanto a isso não havia dúvida.

Umas duas vezes senti a tentação de cair fora. Uma vez, olhei para meu relógio: duas e seis. Ela colocou a mão pesada de anéis sobre o relógio e empurrou-o para dentro de meu bolso.

— Por favor, Jerry! — A ansiedade em sua voz era autêntica. — Você não pode ir embora. Não pode deixar-me aqui. Não posso admitir isso. Eu sairei também pelas ruas, atrás de você. Você não pode deixar-me aqui para ser assassinada!

Sentei-me outra vez.

Minutos depois, a campainha tocou bruscamente.

No mesmo instante, ela descontrolou-se. Subiu por cima de mim, estrangulando-me com os braços. Soltei-me o suficiente para poder falar.

— Que campainha é essa?

— A da porta da rua. Não ligue para ela. Dei-lhe uma palmadinha no ombro.

— Seja boazinha e atenda. Vamos ver quem é.

Os braços dela apertaram-se em torno de meu pescoço.

— Não! Não! Não! Eles chegaram!

A campainha tocou pela segunda vez.

— Atenda — insisti.

A face dela estava colada ao meu paletó, e o nariz enfiava-se no meu peito.

— Não! Não!

— Muito bem — disse eu. — Eu mesmo vou atender. Desvencilhei-me, levantei-me e entrei no corredor. Ela me

seguiu. Tentei outra vez convencê-la a falar com quem quer que estivesse tocando. Não quis, embora dissesse que não se importaria se eu falasse. Eu teria preferido que quem estivesse lá embaixo não soubesse que a mulher não estava sozinha. Mas ela era teimosa demais.

— Alô? — disse eu no intercomunicador.

— Quem, diabo, é você? — perguntou uma voz áspera e grossa.

— O que você quer?

— Quero falar com Inés.

— Diga o que tem a dizer a mim — sugeri —, e eu contarei a ela.

A mulher, segurando um de meus braços, tinha o ouvido colado ao intercomunicador.

— É Billie — murmurou. — Diga a ele para ir embora.

— É para você ir embora — repeti o recado.

— Ah, é? — A voz tornou-se mais áspera e mais grossa. — Quer abrir a porta ou quer que eu a ponha abaixo?

Não havia jocosidade alguma na pergunta. Sem consultar a mulher, apertei o botão que abre a porta da rua.

— Seja bem-vindo — disse eu pelo intercomunicador. — Ele vai subir — expliquei à mulher. — Quer que eu fique atrás da porta e lhe dê uma cacetada no crânio quando ele entrar? Ou quer falar com ele primeiro?

— Não bata nele! — exclamou ela. — É Billie.

Isso me convinha. Não tinha intenção de atacá-lo... não até que soubesse quem ele era, e o que era, de qualquer maneira. Queria ouvir o que ela diria.

 

Billie não demorou a chegar. Abri a porta quando ele tocou, tendo a mulher ao lado. Ele não esperou convite para entrar. Atravessou o umbral antes que eu abrisse a porta pela metade. Olhou-me zangado.

Era uma montanha de homem, imenso, de face e cabelos vermelhos... grande em todas as direções em que fosse medido, e parte alguma dele era constituída de banha. Pele fora arrancada de seu nariz, uma das bochechas estava arranhada e a outra, inchada. A cabeça descoberta era uma massa emaranhada de cabelo ruivo.

Um dos bolsos fora arrancado do paletó, e um botão pendia da ponta de uma fita de uns doze centímetros de fazenda rasgada.

Era o grandalhão que estivera no táxi com a mulher.

— Quem é esse pateta? — perguntou ele, levantando as grandes patas para mim.

Eu sabia que a mulher era maluca. Não teria ficado surpreso se ela houvesse tentado servir-me ao gigante massacrado. Mas não o fez. Colocou uma das mãos sobre a dele e tranqüilizou-o.

— Não seja mau, Billie. Ele é um amigo. Sem ele, eu talvez não houvesse escapado.

Ele fechou a cara. Em seguida, seu rosto normalizou-se, ele prendeu a mão dela entre as suas.

— Então você escapou sem problemas — disse, com uma voz rouca. — Eu teria feito melhor se estivesse do lado de fora. Não havia espaço dentro daquele táxi para eu me mexer. E um dos caras deu-me uma pancada na cabeça.

Aquilo era engraçado. O palhação estava se desculpando por ter sido massacrado protegendo uma mulher que dera no pé, deixando-o para que se safasse como pudesse.

A mulher levou-o para a sala de estar. Eu segui atrás deles. Sentaram-se no banco. Escolhi uma cadeira que não estava em linha com a janela que Kid de Tal devia estar vigiando.

— O que aconteceu, Billie? — Ela tocou-lhe o rosto arranhado e o nariz despelado com as pontas dos dedos. — Você está ferido.

Ele sorriu com uma espécie de envergonhado deleite. Notei que o que eu considerara uma inchação num dos lados do rosto era apenas um grande bolo de fumo de mascar.

— Não me lembro de tudo o que aconteceu — disse ele. — Um deles acertou-me uma pancada na cabeça e acordei umas duas horas depois. O chofer do táxi não me deu ajuda nenhuma na briga, mas era um cara direito e sabia quem lhe pagaria a corrida. Não berrou nem fez coisa alguma. Levou-me a um médico, que também não daria com a língua nos dentes, e, depois, vim para cá.

— Viu algum daqueles homens? — perguntou ela.

— Claro! Vi-os, senti-os, e talvez os tenha provado também.

— Quantos eram?

— Apenas dois. Um cara baixinho com um bigode engraçado e um forte, com uma grande queixada.

— Não havia outro? Um cara mais jovem, alto e magro? Aquele poderia ser Kid de Tal. Será que ela pensava que

ele e o francês estavam trabalhando juntos?

Billie sacudiu a cabeça cabeluda e machucada.

— Não. Apenas os dois.

Ela franziu as sobrancelhas e mordeu o lábio.

Billie olhou-me de esguelha... um olhar que dizia: "Caia fora".

A mulher percebeu o olhar. Virou-se no banco e colocou a mão sobre a cabeça dele.

— Pobre Billie — arrulou. — Ficou tão ferido na cabeça procurando salvar-me e agora, quando devia estar em casa descansando, eu o conservo aqui, falando. Vá para casa, Billie, e, pela manhã, quando sua pobre cabeça melhorar, telefone-me, sim?

Ele tornou-se sombrio e olhou-me, furioso. Rindo, ela lhe deu uma palmadinha no rosto, que se distendia em torno do naco de fumo.

— Não fique com ciúmes de Jerry. Ele está apaixonado por uma moça alva, de cabelos louros, e é muito fiel a ela. Ele não gosta nem um pouquinho de mulheres morenas. — Sorriu, desafiadora, para mim. — Não é, Jerry?

— Não — neguei. — E, além disso, todas as mulheres são enigmáticas.*

 

(*) Há aqui um trocadilho intraduzível. "Dark", além de "moreno", "escuro", significa também "secreto", "obscuro", e até mesmo "sinistro", "perverso". (N. E.)

 

Billie mudou a posição do naco de fumo para a bochecha ferida e curvou os ombros para a frente.

— Isso é lá gracejo que se diga? — ribombou.

— Isso não significa coisa alguma que não deva significar, Billie — disse ela, rindo dele. — É apenas um trocadilho.

— É mesmo? — Billie estava azedo e truculento. Eu começava a pensar que ele não gostava de mim. — Bem, então diga a seu amigo gordinho para guardar para ele suas graçolas. Não gosto delas.

Aquilo era bastante claro, Billie queria uma discussão. A mulher, que o dominava o suficiente para tê-lo desviado disso, simplesmente riu outra vez. Não havia vantagem em procurar descobrir o motivo por trás de seus atos. Ela era maluca. Talvez pensasse o seguinte: não sendo nós bastante sociáveis para que ela nos conservasse a ambos a sua disposição, deixaria que nos agarrássemos e ficaria com o que tirasse o outro de cena.

De qualquer modo, havia uma briga a caminho. Geralmente, prefiro a paz. Já passara o tempo em que eu brigava pelo prazer de brigar. Mas estive metido em confusões demais para me preocupar muito com elas. Geralmente, nada de mau nos acontece, mesmo quando perdemos. Eu não ia fugir simplesmente porque aquele cara era mais pesado do que eu. Aliás, sempre tive sorte contra caras grandalhões. Ele fora massacrado antes naquela noite. Isso devia ter servido para lhe cortar um pouco o gás. E eu queria ficar ali no apartamento ainda um pouco, se pudesse. Se Billie queria uma briga, e parecia que queria, ia tê-la.

Seria fácil provocá-lo: tudo o que eu dissesse seria usado contra mim.

Ri da sua cara vermelha e sugeri, solene, à mulher:

— Acho que, se você o meter num banho azul, ele sairá da mesma cor que o outro cachorrinho.

Por mais tolo que isso fosse, serviu. Billie levantou-se e cerrou as patas.

— Você e eu vamos dar um passeio — resolveu ele — até um lugar onde haja espaço bastante.

Levantei-me, empurrei para trás a cadeira com um pé e citei-lhe "Red" Burns:

— "Se você está suficientemente perto, há espaço que chegue".

Ele não era homem com quem se precisasse conversar muito. Começamos a andar um em volta do outro.

Foi a socos no início. Ele começou mandando a direita na minha cabeça. Abaixei-me e devolvi-lhe o soco com toda a força que tinha numa direita e numa esquerda. Acertei-o no abdômen. Ele engoliu o naco de fumo. Mas não se dobrou. Poucos homens grandalhões são tão fortes como parecem. Billie era.

Mas ele não sabia nada de coisa alguma. A idéia dele de uma briga era ficar de pé e mandar a mão na cabeça do adversário... direita, esquerda, direita, esquerda. Os punhos dele eram grandes como cestas de papel. Assoviavam pelo ar. Mas sempre visavam a cabeça, á parte mais fácil de desviar.

Para mim, havia espaço suficiente para entrar e sair. Fiz isso. Martelei-lhe a barriga. Bombardeei-lhe o coração. Massacrei novamente a barriga. Todas as vezes em que eu o atingia, ele crescia uns três centímetros, ganhava um meio quilo e desenvolvia mais outro cavalo-vapor. Eu não brinco quando soco alguém, mas coisa alguma que eu fizesse àquela montanha humana, nem mesmo fazê-lo engolir o naco de fumo, produzia qualquer efeito visível.

Sempre sentira um razoável orgulho de minha capacidade de socar. E era desapontador ver aquele homenzarrão agüentar o máximo que eu podia desferir sem soltar um grunhido sequer. Mas eu não estava desanimado. Ele não podia agüentar aquilo para sempre. Resolvi trabalhar metodicamente.

Duas vezes ele me pegou. A primeira, no ombro. O grande punho fez-me dar uma meia-volta. Ele não soube o que fazer em seguida. Aproximou-se pelo lado errado. Fi-lo perder o golpe e escapei. Na segunda vez, ele me atingiu a cabeça. Uma cadeira impediu que eu caísse. O golpe doeu. Mas deve ter doído mais nele. Um crânio é mais duro do que um punho. Afastei-me, quando ele avançou, e deixei-lhe na nuca alguma coisa de que se lembrar.

A face morena da mulher apareceu sobre o ombro de Billie enquanto ele se endireitava. Tinha os olhos brilhantes por trás dos grossos cílios, e a boca aberta, onde faiscavam alvos dentes.

Depois disso, Billie cansou da luta de boxe e passou à luta romana, com adendos. Eu teria preferido continuar com os punhos, mas não pude evitar a escolha. A festa era dele. Agarrou um de meus punhos, puxou-me, e chocamo-nos peito contra peito.

Ele não sabia mais sobre essa variedade de luta do que sobre a outra. Não precisava. Era bastante grande e forte para brincar comigo.

Eu estava por abaixo quando caímos e começamos a rolar pelo chão. Fiz o que podia. Mas não deu. Três vezes apliquei-lhe uma tesoura, mas seu corpo era grosso demais para que eu pudesse apertar as pernas em volta dele. Soltou-se de mim como se estivesse se divertindo com um bebê. Não havia vantagem alguma em tentar fazer qualquer coisa com as pernas dele. Nenhuma chave conhecida poderia tê-las prendido. Os braços dele eram igualmente fortes. Desisti de tentar.

Nada que eu conhecia servia contra aquele monstro. Ele estava além de minha faixa. Achei que era melhor gastar as forças que ainda me restavam para evitar que ele me aleijasse... e esperar uma ocasião de enganá-lo.

Ele me sacolejou um bocado. Surgiu, então, a oportunidade.

Eu estava caído de costas, com tudo espremido, menos os intestinos. Escanchando-se em cima, ele desceu as grandes mãos para minha garganta e deixou-as aí.

Isso mostra o pouco que ele conhecia das coisas!

Não se pode estrangular um homem dessa maneira... não se ele tem as mãos livres e sabe que uma mão é mais forte do que um dedo.

Ri na sua face cor de púrpura e ergui as mãos, agarrando com elas seus dedos mindinhos e puxando-os de minha carne. Não foi fácil, por falar nisso. Eu estava liquidado, e ele não. Mas nenhum dedo mindinho de um homem é mais forte do que a mão do outro. Empurrei-os para trás. Quebraram-se os dois no mesmo instante.

Ele ganiu. Agarrei os dedos mais próximos... os anulares.

Um deles estalou. O outro estava pronto para ser quebrado também quando ele me soltou.

Erguendo-me de um arranco, martelei-lhe o rosto. Com uma torção, escapei de dentro de seus joelhos. Levantamo-nos juntos.

A campainha tocou nesse momento.

 

 

O interesse pela luta desapareceu da face da mulher. Surgiu o medo. Levou os dedos à boca.

— Pergunte quem é — disse-lhe eu.

— Quem... quem está aí? — A voz dela saiu seca e sem expressão.

— A sra. Keil — disse no corredor uma voz aguda de indignação. — A senhora tem que acabar imediatamente com esse barulho! Os moradores estão se queixando... e não é de espantar! Que bela hora de estar recebendo visitas e fazer farra!

— A proprietária — murmurou a mulher. Em voz alta: — Sinto muito, sra. Keil. Não faremos mais barulho.

Ouvimos algo parecido com um resmungo do outro lado da porta e o som de passos que se afastavam.

Inés Almad fitou Billie com um ar de repreensão.

— Você não devia ter feito isso — censurou-o.

Ele pareceu humilde, olhou para o chão e, em seguida, para mim. E, então, a cor púrpura voltou a crestar-lhe o rosto.

— Sinto muito — murmurou. — Eu disse a esse cara que devíamos dar um passeio. Vamos fazer isso agora e não haverá mais barulho aqui.

— Billie! — disse ela com uma voz áspera, e era a lei para ele. — Você vai sair e tratar desses ferimentos. Por que você não ganhou aquela briga? Por causa disso tenho que ficar sozinha aqui e ser assassinada?

O homenzarrão arrastou os pés no mesmo lugar, evitou-lhe o olhar e pareceu profundamente infeliz. Mas sacudiu a cabeça, obstinado.

— Não posso fazer isso, Inés — disse. — eu e esse cara temos que terminar nossa briga. Ele quebrou meus dedos e eu tenho que quebrar o queixo dele.

— Billie!

Ela bateu um pequeno pé no chão e olhou-o, imperiosa. Ele deu a impressão de que gostaria de rolar de costas no chão e levantar as patinhas no ar. Mas, ainda assim, manteve sua atitude.

— Tenho que fazer isso — repetiu. — Não há outra maneira de acabar com isso.

A raiva deixou a face da mulher, e ela sorriu ternamente para ele.

— Meu velho e querido Billie — murmurou, e atravessou a sala em direção a uma secretária a um dos cantos.

Quando se voltou, tinha uma pistola automática na mão. E o único olho da arma fitava Billie.

— Agora, lechón — ronronou —, caia fora!

Aquele homem vermelhão não raciocinava com grande rapidez. Precisou de um minuto inteiro para compreender que a amada o estava expulsando com uma arma. O grande estúpido devia ter compreendido que seus três dedos quebrados o desqualificavam. Precisou de outro minuto para pôr as pernas em movimento. Em lenta confusão, dirigiu-se para a porta, acreditando apenas pela metade que aquilo estava realmente acontecendo.

A mulher seguiu-o passo a passo. Fui na frente e abri a porta.

Virei a maçaneta. A porta se abriu, empurrando-me contra a parede.

À porta, vi Édouard Maurois e o homem que eu havia atingido no queixo. Ambos com pistolas na mão.

Olhei para Inés Almad, perguntando-me que atitude sua loucura assumiria ante a nova situação. Mas ela não era tão louca como eu pensava. O grito dela e o som abafado de sua arma, caindo no chão, soaram ao mesmo tempo.

— Ah! — disse o francês. — Os cavalheiros estavam de saída? Poderemos detê-los por um momento?

O Queixada, cujo queixo estava maior naquele momento com as marcas do golpe que eu lhe aplicara, foi menos polido.

— Para trás, seus cretinos! — ordenou ele, abaixando-se para apanhar a pistola que a mulher deixara cair.

Eu segurava ainda a maçaneta da porta. Sacudi-a um pouco quando afastei a mão, o suficiente para disfarçar o estalido da fechadura quando apertei o botão que a deixava aberta. Se eu precisasse de ajuda, e ela chegasse, queria tão poucas fechaduras quanto possível entre mim e ela.

Em seguida, com Billie, a mulher e eu andando de costas, entramos na sala de estar. Tanto Maurois como o companheiro traziam lembretes da briga no táxi. Um dos olhos do francês estava ferido e fechado... um belíssimo olho preto. Tinha as roupas amarrotadas e sujas. Mas usava-as ainda elegantemente, a despeito de tudo, e conservava a bengala sob o braço que não empunhava a pistola.

Queixada apontava-nos sua própria arma e a da mulher, enquanto Maurois passava as mãos pelas roupas de Billie e as minhas para ver se estávamos armados. Encontrou minha pistola e guardou-a no bolso. Billie não trazia armas.

— Podem fazer o favor de recuar até a parede? — perguntou Maurois ao terminar a busca.

Recuamos como se não fosse nada. Minhas costas tocaram uma das cortinas da janela. Pressionei-as contra a esquadria e virei-me o suficiente para afastar a cortina uns trinta centímetros ou mais da vidraça.

Se Kid de Tal estivesse vigiando, obteria uma visão clara do francês, o homem que atirara nele no começo da noite. Eu estava dando o serviço a Kid. A porta do corredor estava aberta. Se Kid conseguisse entrar no prédio, o que não constituía grande risco, teria caminho livre à frente. Eu não sabia onde ele se enquadrava, mas queria que viesse fazer-nos companhia. E tinha esperança de que não me iria desapontar. Se todos se reunissem ali, talvez aquilo que estava acontecendo subisse à tona, onde eu o poderia ver e compreender.

Enquanto isso, eu me conservava tanto quanto possível longe da janela. Kid talvez resolvesse mandar chumbo do outro lado da viela.

Maurois encontrava-se de frente para Inés, enquanto as armas de Queixada estavam apontadas para Billie e para mim.

— Eu não compreends ze anglais muito bem — disse o francês, zombando da mulher. — Assim, quando você disse para se encontrar comigo, pensei que houvesse dito Nova Orleans. Não sabia que havia dito San Francisco. Sinto muito ter cometido esse erro. Sinto muitíssimo que a tenha obrigado a esperar. Mas agora estou aqui. Tem a minha parte?

— Não tenho. — Ela estendeu as mãos num gesto de quem não tem coisa alguma. — Kid tomou tudo... tomou tudo de mim.

— O quê? — Maurois abandonou o sorriso zombeteiro e o sotaque de teatro burlesco. Seu único olho aberto relampejou, furioso. — De que modo poderia ter ele feito isso, a menos...?

— Ele desconfiava de nós, Édouard. — A moça tremia de ansiedade. Seus olhos suplicavam-lhe que acreditasse nela. Ela estava mentindo. — Mandou seguir-me. Um dia depois de eu chegar lá, ele apareceu. Levou tudo. Tive medo de esperar por você. Tive medo de que você não acreditasse. Você não...

— Cest incroyable! — Maurois ficou muito excitado ao ouvir tais palavras. — Eu tomei o trem para o sul depois... de nosso espetáculo teatral. Poderia Kid ter estado no trem sem que eu soubesse? Non! E de que modo poderia tê-la encontrado antes de mim? Você está brincando comigo, ma petite Inés. Não tenho a menor dúvida de que você se aliou a Kid. Mas não em Nova Orleans. Você não foi até lá. Você veio para cá, para San Francisco.

— Édouard! — protestou ela, segurando a manga do paletó dele com sua mão morena, enquanto a outra subia à garganta como se ela estivesse tendo dificuldade para falar. — Você não pode pensar isso de mim! Aquelas semanas em Boston não negam tudo isso? Eu o trairia por causa de um homem como Kid... ou qualquer outro homem? Você não me conhece o bastante para pensar isso de mim?

Era uma atriz. Mostrou-se encantadora, patética, e tudo o mais que quiserem... inclusive perigosa.

O francês soltou-se dela e deu um passo à frente. Rugas brancas cercaram-lhe os lábios sob o pequeno bigode e intumesceram os músculos de seu queixo. Havia preocupação no seu único olho bom. Ela o havia abalado, embora não inteiramente para perturbá-lo por completo. Mas o jogo estava apenas começando.

— Não sei o que pensar — disse ele, lentamente. — Se eu fui enganado... precisarei primeiro encontrar Kid. Então, saberei a verdade.

— Você não precisa procurar mais longe, irmão. Estou exatamente entre vocês!

Kid de Tal ocupava todo o umbral da porta, com um revólver preto em cada mão, engatilhados.

 

                   Era um belo quadro.

Lá estava Kid de Tal à porta: um rapaz magro, na casa dos vinte, parecendo ainda mais perverso por causa do rosto fraco, da boca mole e dos olhos baços. As armas engatilhadas em suas mãos apontavam para todos e para ninguém em particular, dependendo da maneira como se as encarassem.

Ali estava a mulher morena, com a face contorcida entre as mãos, os olhos esbugalhados, mostrando sua cor cinza-esverdeada. O medo que eu lhe vira no rosto antes nada era em comparação com o que havia neles naquele momento.

Lá estava o francês, que girara ao ouvir a primeira palavra de Kid, com a arma apontada para ele, a bengala ainda sob o braço, a face transformada numa tensa mancha branca.

Estava ali também o Queixada, com o corpo meio virado, o rosto sobre um ombro para olhar a porta, enquanto uma das armas o seguia.

Ali se encontrava Billie, uma grande e machucada estátua de homem que não pronunciara uma única palavra desde que Inés Almad lhe apontara a arma, expulsando-o do apartamento.

E, por último, ali estava eu, não me sentindo tão confortável como na minha cama, mas tampouco realmente histérico. Não estava inteiramente insatisfeito com o rumo que as coisas estavam tomando. Alguma coisa ia acontecer naquele apartamento. Mas eu não era suficientemente amigo de qualquer um dos presentes para me importar muito com o que quer que lhes acontecesse. No que me dizia respeito, confiava em que sairia dali inteiro. Poucos homens são mortos. A maioria dos que têm um fim súbito faz-se matar. E eu tinha vinte anos de experiência em evitar isso. Podia contar em ser um dos sobreviventes de qualquer explosão que ali ocorresse. E tinha esperança de levar a maioria dos outros sobreviventes para um passeio.

Mas naquele momento a situação estava nas mãos dos homens armados: de Kid de Tal, de Maurois e do Queixada.

Kid foi o primeiro a falar. Tinha uma voz chorosa e que saía desagradável pelo grosso nariz:

— Isso não me parece absolutamente com o que aconteceu em Chi, mas, de qualquer maneira, estamos todos aqui.

— Chicago! — exclamou Maurois. — Você não foi a Chicago!

Kid fitou-o, zombeteiro.

— Você foi? Ela foi? Para que eu iria até lá? Você pensa que eu e ela fugimos de você, não? Bem, teríamos feito isso, se ela não me houvesse traído, como fez com você, e como nós três fizemos com aquele paspalho.

— Pode ser — replicou o francês —, mas você não espera que eu pense que você e Inés não são amigos, espera? Não o vi saindo daqui ontem?

— Viu mesmo — concordou Kid. — Mas, se minha arma não tivesse ficado presa no sobretudo, você não teria visto mais coisa alguma. Porém, não tenho nada contra você. Pensei que vocês me haviam enganado e que depois ela havia enganado você. Agora sei que não foi assim, pelo que ouvi quando entrei. Ela nos enganou, a nós dois, francesinho, da mesma maneira que enganamos aquele imbecil. Será que ainda não compreendeu isso?

Maurois sacudiu, devagar, a cabeça. O que tornava o beta-papo perigoso era que ambos conversavam de armas na mão.

— Escute aqui — disse, impaciente, Kid. — Nós devíamos encontrar-nos em Chicago para dividir a coisa pelos três, certo?

O francês assentiu com um movimento de cabeça.

— Mas ela me disse — continuou Kid — que entraria em contato comigo em St. Louis, tirando você da jogada. Depois, ela o enganou, dizendo que a encontrasse em Nova Orleans, evitando-me. E, em seguida, enganou-nos aos dois, fugindo para San Francisco com o material. Nós somos um par de bobalhões, francês. E é besteira ficarmos danados um com o outro. Há suficiente no bolo para uma boa divisão entre nós dois. O que eu digo é: vamos esquecer o que aconteceu e dividir pela metade. Compreenda, não estou implorando. Estou fazendo uma proposta. Se não gostar, dane-se! Você me conhece. Você sabe muito bem que eu toparia uma parada a bala com você ou com qualquer outra pessoa. Escolha!

O francês ficou calado durante algum tempo. Fora convencido, mas não queria dar o braço a torcer aceitando logo. Não sei se acreditou nas palavras de Kid ou não, mas acreditava nas armas dele. Pode-se receber uma bala de um revólver engatilhado muito mais ligeiro do que de uma automática, que não dispõe de cão. Kid tinha vantagem na situação. E o derrotava porque tinha cara de quem não dá a mínima bola para o que vai acontecer depois.

Finalmente, Maurois olhou interrogativo para Queixada, que umedeceu os lábios, mas continuou calado.

Maurois fitou outra vez Kid e balançou afirmativamente a cabeça.

— Você tem razão — disse. — Faremos isso.

— Ótimo! — Kid não se moveu da porta. — Agora, quem são esses caras?

— Esses dois — Maurois indicou a Billie e a mim com um movimento da cabeça — são amigos de nossa Inés. Este — indicou Queixada — é um colega meu.

— Você quer dizer que ele trabalha para você? Para mim, tudo bem. — Kid falava em tom seco. — Mas compreenda que a parte dele sai da sua. Eu levo metade, e sem nenhum corte.

O francês fez uma carranca, mas inclinou a cabeça, concordando.

— A metade será sua, se encontrarmos o material.

— Não esquente a cabeça com isso — aconselhou Kid. — Está aqui e vamos encontrá-lo.

Guardou uma das armas e entrou na sala, levando a outra frouxamente pendente ao lado do corpo. Ao cruzar a sala para colocar-se frente a frente com a mulher, fê-lo de tal maneira que nem por um instante Queixada e Maurois ficaram a suas costas.

— Onde está o material? — perguntou.

Inés Almad umedeceu os lábios vermelhos com a língua, deixou a boca cair um pouco e olhou terna para Kid, fazendo seu jogo.

— Nenhum de nós é melhor que o outro, Kid. Todos nós... cada um de nós tentou ficar com tudo. Você e Édouard esqueceram o passado. Errei mais do que vocês? Eu o tenho, certo, mas não está aqui. Vocês esperam até amanhã? Vou buscá-lo. Nós o dividiremos entre os três, como devia ter sido feito. Vamos fazer isso?

— De modo algum! — Havia decisão na voz de Kid quando ele falou.

— Isso é justo? Implorou ela, fazendo o queixo tremer um pouco. — Sou, por acaso, culpada de uma traição da qual você e Édouard também não sejam? Você...?

— O caso não é esse — respondeu Kid. — Eu e o francês estamos numa enrascada que nos obriga a trabalhar juntos para conseguir alguma coisa. Assim, somos aliados. Com você é diferente. Não precisamos de você. Podemos tomar-lhe o material. Você fica de fora! Onde está?

— Não está aqui. Eu seria idiota de deixá-lo aqui, onde vocês o descobririam com a maior facilidade? Vocês precisam de minha ajuda para encontrá-lo. Sem eu vocês não podem...

— Você é uma tola! Eu poderia cair nessa se não a conhecesse. Mas sei que é gananciosa demais para deixá-lo longe. E é muito mais covarde do que gananciosa. Se receber um par de bofetadas, conta tudo. E não pense que faço alguma objeção a lhe dar uma surra!

Ela recuou ante a mão erguida.

Nesse momento, o francês falou rapidamente:

— Precisamos, primeiro, dar uma busca no apartamento, Kid. Se não o encontrarmos aqui, resolveremos então o que fazer.

Kid de Tal riu, escarninho, para Maurois.

— Muito bem. Mas compreenda isto: eu não vou sair daqui sem o material, mesmo que tenha de estripar essa ratazana. Meu sistema é mais rápido, mas procuraremos primeiro, se você quiser. O seu colega... como quer que você o chame... pode manter esses caras calminhos enquanto você e eu damos a busca.

Começaram a trabalhar. Kid guardou a arma e tirou do bolso um longo canivete de mola. O francês desatarraxou os dois terços inferiores da bengala, expondo uns quarenta e cinco centímetros de lâmina de espada.

Não foi superficial a busca que deram. Começaram pela sala onde nos encontrávamos. Destriparam-na de ponta a ponta, trincharam-na até o osso. Móveis e quadros foram desmontados. Os acolchoados perderam seu recheio. Tapetes viraram tiras. Pedaços suspeitos do papel de parede foram soltos. Trabalhavam devagar. Nenhum dos dois deixava que o outro lhe ficasse às costas. E Kid tampouco dava as costas ao Queixada.

Arrasada a sala de estar, entraram no quarto contíguo, deixando a mulher, Billie e eu entre os destroços. Queixada e suas duas armas mantinham-nos imóveis.

Logo que o francês e Kid desapareceram, a mulher tentou seu jogo com o guardião. Tinha um bocado de confiança em seu poder sobre os homens, isso eu digo por ela.

Durante algum tempo, seus olhos sondaram Queixada e, depois, em voz bem doce:

— Posso...

— Você não pode! — Queixada falou grosso e mal-humorado. — Cale o bico!

Kid de Tal apareceu à porta.

— Se ninguém falar, talvez ninguém fique machucado — rosnou, e voltou ao trabalho.

A mulher tinha uma confiança grande demais em si mesma para ser assim tão facilmente desencorajada. Não pôs as coisas em palavras, mas olhou coisas para o Queixada... coisas que o fizeram suar e enrubescer. Ele era um palerma. Não acho que ela tivesse conseguido alguma coisa. Se não houvesse pessoa alguma presente, mas apenas os dois, poderia tê-lo manobrado; porém, não era provável que ele se deixasse convencer com dois pássaros ali, observando o espetáculo.

Um ganido alto disse-nos em certo momento que a púrpura Frana, que fugira para os fundos do apartamento quando Maurois e Queixada haviam chegado, havia tido problemas com os dois homens. Ouvimos apenas um ganido interrompido, o que sugeria problemas para a cachorrinha.

Os dois homens passaram quase outra hora dando busca nos demais cômodos. Não encontraram coisa alguma. As mãos de ambos, quando vieram ao nosso encontro, nada traziam senão as peças de cutelaria.

— Eu lhe disse que não estava aqui — comentou Inés, triunfante. — Agora, vocês...?

— Você não é capaz de dizer coisa alguma em que eu acredite. — Kid fechou o canivete com um estalo e colocou-o no bolso. — Ainda acho que está aqui.

Agarrou-lhe o punho e ergueu a mão, com a palma para cima, debaixo do nariz dela.

— Pode colocá-lo na minha mão e eu ficarei com ele.

— Não está aqui! Juro!

— O canto da boca do rapaz ergueu-se numa careta selvagem.

— Mentirosa!

Torceu-lhe brutalmente o braço, obrigando-a a pôr-se de joelhos. A mão livre desceu para a alça do vestido cor de laranja.

— Vou encontrá-lo logo — prometeu ele. Billie ressuscitou nesse momento.

— Ei! — protestou, arfando. — Não pode fazer isso!

— Espere, Kid! — Maurois, atarraxando mais uma vez a bengala-espada, gritou para ele: — Vamos ver se não há outra maneira.

Kid de Tal soltou a mulher e recuou três lentos passos. Seus olhos eram círculos letais sem cor alguma que se pudesse identificar... os olhos embotados de um homem cujos nervos deixam de funcionar quando está excitado. As mãos ossudas empurraram um pouco para trás o paletó e descansaram no local onde o colete se projetava sobre os cantos agudos de seus quadris.

— Vamos esclarecer isto de uma vez por todas, francês — disse, com sua voz chorosa. — Você está comigo ou com ela?

— Com você, certamente, mas...

— Muito bem. Então fique comigo! Não tente atrapalhar tudo o que faço. Vou revistar esta boneca, e não pense que não vou. O que você vai fazer a esse respeito?

O francês contraiu os lábios até que o pequeno bigode preto chegou à ponta do nariz. Franziu as sobrancelhas e olhou, pensativo, com o único olho bom. Mas não ia fazer coisa alguma àquele respeito, e sabia disso. Finalmente, encolheu os ombros.

— Você tem razão — rendeu-se. — É preciso revistá-la. Kid grunhiu com desdenhoso nojo para ele e dirigiu-se outra vez à mulher.

Ela afastou-se dele com um salto, aproximando-se de mim. Seus braços fecharam-se em torno de meu pescoço, numa espécie de hábito.

— Jerry! — berrou-me ela na cara. — Não deixe que ele faça isso! Jerry, por favor, não!

Continuei calado.

Não acho que aquilo tenha sido exatamente cavalheiresco da parte de Kid, mas houve vários motivos por que não tentei detê-lo. Em primeiro lugar, não queria que coisa alguma retardasse o aparecimento daquele "material" tão discutido. Em segundo, não sou nenhum Galahad. Aquela mulher escolhera seus companheiros de brincadeira e era em grande parte responsável pelo que eles faziam. Se eles jogassem duro, ela teria que agüentar, da melhor maneira possível. E como uma boa e forte terceira razão, Queixada cutucou-me com o cano da arma para lembrar-me que eu não podia fazer coisa alguma, mesmo que quisesse... exceto ser abatido ali mesmo.

Kid puxou Inés para longe. Deixei-a ir.

Levou-a para o que restara do banco, junto ao aquecedor elétrico, e chamou o francês com um movimento da cabeça.

— Segure-a enquanto revisto — disse ele.

Ela encheu os pulmões de ar. Mas, antes que pudesse soltá-lo num guincho, os longos dedos de Kid fecharam-se em torno de sua garganta.

— Um único grito e eu dou um nó em seu pescoço — ameaçou.

Ela soltou o ar pelo nariz.

Billie mexeu-se, nervoso. Virei a cabeça para olhá-lo. Ele arquejava pela boca, e suor porejava-lhe a testa sob o cabelo ruivo e desgrenhado. Tive esperança de que não soltasse a fera antes que o "material" surgisse à superfície. Se esperasse um pouco mais, eu lhe poderia dar uma mãozinha.

Mas ele não quis esperar. Entrou em ação no momento em que Kid começou a despi-la, enquanto Maurois a segurava.

Deu um passo na direção deles. Queixada tentou detê-lo com um gesto da arma. Billie nem mesmo a viu. Tinha os olhos presos nos três que se encontravam no banco.

— Ei, vocês não podem fazer isso! — rouquejou. — Vocês não podem fazer isso!

— Não? — Kid ergueu os olhos do trabalho. — Olhe só.

— Billie! — com um grito, ela estimulou o estúpido homenzarrão.

Billie atacou.

Queixada deixou-o passar, cauteloso, virando ambas as armas para mim. Kid de Tal evitou com uma finta o mergulho do gigante. Maurois lançou a mulher diretamente no caminho de Billie... e sacou a arma.

Billie e Inés caíram juntos no chão, entrelaçados.

Kid girou por trás do homenzarrão. Uma de suas mãos saiu do bolso, trazendo o canivete de mola. A arma foi aberta com um estalido enquanto Billie recuperava o equilíbrio.

Kid saltou para junto dele.

Ele conhecia armas brancas. Nada daqueles desajeitados golpes para baixo, com a lâmina projetando-se do punho.

O polegar e o indicador curvado guiaram a lâmina. Atacou para cima. Sob o ombro de Billie. Uma única vez. Profundamente.

Billie mergulhou para a frente, caindo sobre a mulher. Rolou para longe dela e morreu de costas sobre o estofamento da mobília. Morto, parecia maior do que nunca, como que enchendo a sala.

Kid de Tal limpou o canivete em um pedaço de tapete, fechou-o com um estalo e recolocou-o no bolso. Fez tudo isso com a mão esquerda, conservando a direita perto do quadril. Não olhou para o canivete. Tinha os olhos em Maurois.

Mas, se esperava que o francês protestasse, ficou decepcionado. O pequeno bigode de Maurois tremeu, sua face ficou branca e tensa, mas ele disse apenas:

— É melhor fazermos logo o que temos que fazer e cair fora daqui — sugeriu.

A mulher, sentada junto ao cadáver, choramingava. Tinha a face lívida sob a pele escura. Estava derrotada. Sua mão trêmula procurou alguma coisa embaixo do vestido e puxou um saquinho chato de seda.

Maurois, mais perto dela do que Kid, tomou-o. Estava costurado demais para que pudesse abri-lo. Estendeu-o, enquanto Kid cortava-o com o canivete. O francês esvaziou parte do conteúdo na mão em forma de concha.

Brilhantes. Pérolas. Algumas pedras coloridas entre elas.

Queixada assoviou baixinho, os olhos brilhantes presos às faiscantes pedras. Refulgiram também os olhos de Maurois, da mulher e de Kid.

O descuido de Queixada era uma tentação. Podia atingir-lhe o queixo. Podia derrubá-lo. As forças que as pancadas de Billie haviam-me roubado tinham quase todas voltado. Podia derrubar Queixada e apanhar pelo menos uma de suas armas antes que Kid e Maurois se recuperassem da surpresa. Era tempo de fazer alguma coisa. Eu deixara que aqueles comediantes dirigissem o espetáculo por um tempo longo demais. O material viera à luz. Se deixasse que o grupo se dissolvesse, eu não sabia quando poderia prendê-los.

Mas afastei a tentação e obriguei-me a esperar um pouco mais. Não adiantava ir a meio vapor. Com uma arma na mão, ao enfrentar Kid e Maurois, eu ainda teria menos do que uma boa possibilidade. Isso não era suficiente. A idéia nessa profissão de detetive é prender ladrões, não bancar o herói.

Maurois repunha as pedras no saquinho quando o fitei novamente. Nesse momento, ia pondo-o no bolso. Kid de Tal, porém, deteve-o, segurando-lhe o braço.

— Eu fico com elas.

Ergueram-se as sobrancelhas de Maurois.

— Vocês são dois e eu sou um — explicou Kid. — Confio em vocês, e tudo o mais, porém, ainda assim, vou levar minha parte.

— Mas...

A campainha da porta interrompeu o protesto de Maurois. Kid virou-se rápido para a mulher.

— Você atende... e nada de bancar a sabidinha! Ela levantou-se do chão e dirigiu-se para o corredor.

— Quem é? — perguntou.

— Mais um único som, sra. Almad — disse a voz severa e irada da proprietária —, e eu chamarei a polícia. Isso é uma vergonha!

Perguntei aos meus botões o que ela teria pensado se houvesse aberto a porta e olhado para dentro do seu apartamento: a mobília quebrada e estripada, e um cadáver, cuja morte provocara o ruído que a levara ali pela segunda vez, estirado no meio do lixo.

Fiz essa pergunta a mim mesmo... e arrisquei-me.

— Ah, vá para o diabo que a carregue! — gritei-lhe.

Um arquejo, e isso foi tudo o que ouvimos dela. Tive esperança de que, nesse momento, ela estivesse levando seus ultrajados sentimentos até um telefone. Eu poderia precisar daquela polícia que ela mencionara.

Kid sacou a arma. Durante um momento, foi um cara-ou-coroa. Ou eu ficaria estirado ali ao lado de Billie, ou não. Se eu pudesse ter sido esfaqueado silenciosamente, teria morrido. Mas não havia pessoa alguma atrás de mim. Kid sabia que eu não ficaria imóvel e sossegado quando ele me espetasse. Não queria mais ruído do que o necessário, agora que tinha as jóias nas mãos.

— Feche o bico ou eu o fecharei para você! — foi o pior que consegui.

Kid voltou-se mais uma vez para o francês, que usara a interrupção para embolsar as gemas.

— Ou dividimos aqui e agora, ou eu levo o material — disse Kid. — Há dois aqui para verem que não vou passar vocês para trás.

— Mas, Kid, nós não podemos ficar aqui! A dona do apartamento não está neste mesmo instante chamando a polícia? Vamos para outro lugar e faremos a divisão. Por que você não pode confiar em mim, se vai comigo?

Dois passos colocaram Kid entre a porta e Maurois e Queixada. Numa das mãos tinha a arma com que me ameaçara. A outra estava convenientemente colocada em volta do segundo revólver.

— Nada feito! — disse, através do nariz. — Minha parte nessas pedras não sai daqui no bolso de ninguém. Se quer dividi-las aqui, muito bem. Se não quer, eu é que as levarei. Está decidido!

— Mas, e a polícia?

— Você que se preocupe com a polícia. Eu resolvo uma coisa de cada vez, e agora é a vez das pedras.

Uma veia azul subiu na testa do francês. Ele endureceu o corpo. Estava procurando reunir coragem suficiente para trocar tiros com Kid. Ele sabia, e Kid também, que um deles ia ficar com todo o material quando a cortina descesse. Haviam começado traindo-se mutuamente. Nada indicava que fossem mudar de hábitos. No fim, um deles ficaria com as pedras. O outro nada teria... ou, talvez, teria apenas um enterro.

Queixada não contava. Era um bandido simplório demais para durar muito naquela companhia. Se fosse sabido, teria usado em ambos suas armas. Em vez disso, continuou apontando-as para mim, tentando observá-los pelo canto dos olhos.

A mulher continuava perto da porta, de onde falara com a proprietária. Olhava fixamente para o francês e para Kid. Gastei preciosos minutos, que me parecem horas, tentando chamar-lhe a atenção. Finalmente consegui.

Lancei um olhar para o interruptor, a apenas uns trinta centímetros dela. Olhei para ela. Olhei outra vez para o interruptor. Para ela. Para o interruptor.

Ela compreendeu. Sua mão deslizou pela parede.

Olhei para os dois principais artistas do jogo.

Os olhos de Kid eram círculos mortos... e mortais. O único olho aberto de Maurois estava úmido. Ele não passou no exame. Pôs a mão no bolso e tirou o saquinho de seda.

O dedo moreno da mulher tocou no interruptor. Deus sabia que ela não merecia confiança, mas eu não tinha alternativa. Precisava entrar em ação logo que as luzes se apagassem. Queixada começaria a atirar. Precisava confiar em que Inés não fraquejasse. Se o fizesse, eu estava liquidado.

Ficou branca como cera.

Mergulhei na direção de Maurois.

Escuridão... cortada de alaranjado e azul... cheia de sons.

Fechei os braços em torno de Maurois. Caímos sobre o corpo de Billie. Torci-me, dando um pontapé no rosto do francês. Soltei um braço. Prendi um dos dele. A outra mão dele arranhou-me o rosto. Isso me disse que o saquinho se encontrava na mão que eu segurava. Dedos em forma de garras atacaram-me a boca. Mordi-os e conservei-os ali. Um de meus joelhos subiu para o rosto dele. Coloquei todo o meu peso no golpe. Com os dentes, continuei a prender-lhe a mão. E eu tinha ambas as mãos livres para arrancar o saquinho.

Não foi bonitinho aquele serviço, mas foi eficiente.

A sala era o interior de um tambor preto sobre o qual um gigante batia em demorada cadência. Quatro armas explodiram juntas em um som prolongado e vibrante.

As unhas de Maurois cravaram-se em meu polegar. Tive que abrir a boca e deixar que sua mão escapasse. Uma de minhas mãos encontrou o saquinho. Ele não quis soltá-lo. Torci-lhe o polegar. Ele gritou. Agarrei o saco.

Tentei deixá-lo ali onde se encontrava. Ele me agarrou as pernas. Dei-lhe um pontapé... e errei. Ele tremeu duas vezes... e deixou de mover-se. Uma bala voadora havia-o pegado. Rolando pelo chão, aproximando-me dele, passei a mão por seu corpo. Uma protuberância dura apareceu sob minha mão. Enfiei a mão em seu bolso e recuperei minha arma.

Sobre as mãos e joelhos, uma das mãos em torno da arma e a outra agarrando o saco de seda com as jóias, virei-me para o local onde estivera a porta da sala contígua. Corrigi um desvio de uns trinta centímetros no meu curso. Ao passar pela porta, cessou todo o ruído na sala.

 

Agachado junto à parede do lado de dentro da porta, guardei o saco de seda e lamentei não ter ficado colado ao chão junto do francês. Aquela sala estava às escuras. Não estava assim quando a mulher desligara as luzes da sala de estar. Naquela ocasião, todos os cômodos do apartamento estavam iluminados. Estavam às escuras agora. Sem saber o que havia provocado a escuridão, não gostei da coisa.

Som algum vinha da sala que eu acabara de deixar.

Ouvi barulho de chuva fraca do lado de fora de uma janela aberta, que eu não podia ver, em um dos lados do cômodo.

Ouvi outro som a minhas costas. O tamborilar abafado de dentes contra dentes. Isso me alegrou. Inés, a medrosa, naturalmente. Na escuridão, ela saíra da sala de estar e apagara as outras luzes. Talvez não houvesse ninguém mais a minhas costas.

Respirando sem ruído pela boca aberta, esperei. Não podia caçar a mulher na escuridão sem fazer algum barulho. Maurois e Kid haviam espalhado mobília e pedaços de mobília por toda parte. Gostaria de saber se ela tinha uma arma. Não queria que ela me cobrisse de balas.

Nada sabendo, permaneci onde me encontrava.

Os dentes dela continuaram a chocalhar durante minutos.

Alguma coisa moveu-se na sala de estar, e uma arma explodiu.

— Inés! — murmurei, na direção dos dentes chocalhantes.

Nenhuma resposta. Ouvi o som de mobília sendo arrastada na sala. Duas armas dispararam no mesmo instante. Um gemido.

— Eu tenho o material comigo — murmurei, aproveitando o gemido para encobrir minha voz.

— Jerry! Ah, venha para cá, para junto de mim!

Os gemidos continuaram, embora mais fracos, na sala ao lado. Rastejei de quatro na direção da voz da mulher, procurando com todo o cuidado evitar ruído quando batesse em alguma coisa. Não consegui ver coisa alguma. A meio caminho, minha mão tocou um feixe de pêlo úmido... a falecida e púrpura Frana. Continuei.

Inés tocou-me o ombro com mão ansiosa.

— Dê-me — foram as primeiras palavras dela.

Sorri para ela no escuro, dei-lhe uma palmadinha na mão, encontrei-lhe a cabeça e colei a boca no seu ouvido.

— Vamos voltar para o quarto — sussurrei, ignorando o pedido para que lhe passasse as jóias roubadas. — Kid virá atrás de nós. — Eu não tinha dúvida de que ele liquidara Queixada. — Podemos cuidar melhor dele no quarto.

Queria recebê-lo num aposento que tivesse uma única porta.

Ela foi na frente, também de quatro, até o quarto. Enquanto rastejávamos, pensei no que precisava ser pensado. Kid não podia saber ainda como nos havíamos saído, o francês e eu. Se pensasse a respeito, desconfiaria de que o francês sobrevivera. Com toda a probabilidade, ele me incluiria na classe dos estúpidos, juntamente com Billie, e acharia que o francês poderia ter dado um jeito em mim. As possibilidades eram de que houvesse matado Queixada e já soubesse disso naquele momento. O quarto estava tão preto como a sala de estar, mas devia saber nesse momento que era a única pessoa viva ali.

Ele bloqueava a única saída do apartamento. Pensaria, então, que Inés e Maurois continuavam ali, vivos, com o produto da pilhagem. O que faria? Não haveria mais fingimento de uma partilha. Aquilo acabara com o apagar das luzes. Kid queria as pedras. E queria-as apenas para si.

Não sou nenhum gênio para adivinhar os atos futuros de uma pessoa. Mas a minha idéia era de que Kid viria atrás de nós, e que não demoraria. Ele sabia, devia ter sabido, que a polícia estava a caminho, mas eu o considerava bastante louco para ignorá-la até que ela aparecesse. Calcularia que chegariam apenas uns dois policiais, à espera de nada mais violento do que uma farra de bêbados. Poderia dar um jeito neles... ou pensava que podia. Enquanto isso, viria atrás das pedras.

A mulher e eu chegamos ao quarto, o mais ao fundo do apartamento, um quarto que tinha uma única porta. Ouvi-a mexendo na porta, tentando fechá-la. Não consegui vê-la, mas coloquei o pé na fresta.

— Deixe-a aberta — murmurei.

Não queria deixar Kid do lado de fora. Queria pegá-lo ali dentro.

Deitado de bruços, rastejei de volta para a porta, tirei o relógio e equilibrei-o na soleira, em um angulo entre a porta e o umbral. Arrastei-me de volta até ficar a uma distância de um metro e oitenta a dois metros, olhando diagonalmente pela porta aberta para o mostrador luminoso do relógio.

Os números fosforescentes não podiam ser visto do outro lado da porta. Estavam voltados para mim. Quem quer que viesse pela porta, a menos que saltasse, teria que, mesmo apenas por uma fração de segundo, colocar parte do corpo entre mim e o relógio.

Deitado de bruços, com a arma engatilhada e a coronha firme no chão, esperei que fosse ocultada aquela fraca luz.

Esperei um bocado de tempo. Pessimismo: talvez ele não viesse; talvez eu tivesse que ir atrás dele; talvez ele fugisse e eu o perdesse depois de todo aquele trabalho.

Inés, a meu lado, respirava entrecortadamente junto a meu ouvido. Tremeu.

— Não me toque — rosnei, quando ela tentou encostar-se em mim.

Ela me sacudiu o braço.

Ouvi som de vidro partido no cômodo contíguo.

Silêncio.

Os números luminosos no relógio queimavam-me os olhos. Não podia arriscar-me a pestanejar. Um pé poderia passar pelo mostrador enquanto eu estivesse pestanejando. Não podia arriscar-me a pestanejar, mas não consegui agüentar. Pestanejei. Tive que pestanejar outra vez. Tentei conservar os olhos rigidamente abertos. Fracassei. Quase atirei à terceira piscadela. Poderia ter jurado que algo passara entre mim e o relógio.

Kid, o que quer que pretendesse, não fazia ruído algum.

A mulher morena começou a soluçar a meu lado. Ruídos guturais poderiam orientar balas.

Com um olhar, mandei que ela se calasse e amaldiçoei todo mundo... não em voz alta, mas no fundo do coração.

Os olhos ardiam-me, e uma película de umidade formou-se sobre eles. Pestanejei, afastando as lágrimas, perdendo de vista o relógio por preciosos segundos. Senti a coronha da pistola úmida na mão. Estava me sentindo horrivelmente mal, por dentro e por fora.

Pólvora queimou-me a face.

Uma mulher histérica e maníaca subiu por cima de mim.

Meu tiro não atingiu mais do que o teto.

Lancei-a para longe, talvez lhe tenha dado um pontapé, e recuei, coleando. Ela gemeu em algum lugar a meu lado. Não conseguia ver Kid... não podia ouvi-lo. O relógio estava outra vez visível, mas longe. Um roçagar.

O relógio desapareceu.

Atirei nele.

Dois pontos de luz próximos ao chão explodiram em fogo e trovão.

Conservando o cano da arma tão perto do assoalho quanto podia, disparei para um lugar entre aqueles pontos. Duas vezes.

Chamas duplas atingiram-me novamente.

Senti a mão direita dormente. Agarrei a arma com a esquerda. Mandei mais duas balas. Com aquelas, somente me restava uma.

Não sei o que fiz com ela. Idéias malucas surgiram-me na mente. Não havia mais lugar algum. Não havia escuridão. Não havia coisa alguma...

Abri os olhos sob uma luz mortiça. Encontrava-me de costas. A meu lado, a mulher morena tremia e fungava de joelhos. Tinha as mãos ocupadas... em minhas roupas.

Uma delas saiu de meu colete com o saquinho de jóias.

Recuperando os sentidos, agarrei-lhe o braço. Ela guinchou como se eu fosse um cadáver a se sacudir. Tomei-lhe o saquinho outra vez.

— Dê-me as pedras, Jerry — choramingou ela, tentando, frenética, soltar-me os dedos. — Elas são minhas. Dê-me as pedras!

Sentando-me, olhei em volta.

Ao lado, vi um abajur em pedaços, cuja queda, causada pelo descuido de meus pés ou por uma das balas de Kid, havia-me posto sem sentidos. No outro lado do quarto, de bruços, braços estendidos numa pose de crucificado, vi Kid. Morto.

Da porta da frente do apartamento, quase indistinguíveis das pulsações de minha cabeça latejante, vieram sons pesados de batidas. A polícia estava derrubando a porta, que não estava trancada.

A mulher calou-se. Sacudi a cabeça. A faca tocou-me o rosto, e abriu um corte na lapela de meu paletó. Tomei-lhe a arma.

Não havia sentido naquilo. A polícia já estava ali. Fiz-lhe a vontade, fingindo uma volta súbita à plena consciência.

— Oh, é você! — disse. — Aqui estão elas. Entreguei-lhe o saquinho de seda com as jóias no momento em que o primeiro policial entrou no quatro.

 

 

Só voltei a ver Inés pouco antes de ela ser levada de volta ao leste, onde cumpriria prisão perpétua na penitenciária de Massachusetts. Nenhum dos policiais que haviam arrombado o apartamento naquela noite me conhecia. A mulher e eu fomos separados antes que eu encontrasse alguém que me conhecesse, que me desse uma oportunidade de dizer que ela não devia ser informada de minha identidade. A parte mais difícil de toda a história foi conservar meu nome fora dos jornais, desde que eu tinha que contar, na instrução do processo, detalhes das mortes de Billie, Queixada, Maurois e Kid de Tal. Mas consegui-o. Tanto quanto sei, a mulher morena pensa ainda que sou Jerry Young, o contrabandista.

O Velho conversou com ela antes de sua partida de San Francisco. Reunindo o que soube e os resultados obtidos pela filial de Boston, a história deve ter sido mais ou menos assim:

Um joalheiro de Boston, um certo Tunnicliffe, tinha um empregado de confiança, chamado Binder, que se apaixonou por uma mulher morena chamada Inés Almad. Ela, por seu turno, tinha uma dupla de amigos criminosos: um francês chamado Maurois, e um natural de Boston, cujo nome era Carey ou Cory, embora fosse mais conhecido como Kid de Tal. Dessa combinação poderia surgir qualquer coisa.

O que surgiu foi um plano. O fiel Binder, a quem cabia o dever de abrir e fechar a loja pela manhã e à noite, apanharia os mais valiosos diamantes brutos, fugiria com eles certa noite e os entregaria a Inés. Ela se encarregaria de transformá-los em dinheiro.

A fim de encobrir o roubo praticado por Binder, Kid de Tal e o francês assaltariam a joalheria logo que a porta fosse aberta na manhã seguinte. Binder e o porteiro, que não notaria a ausência das peças mais valiosas do estoque, seriam as únicas pessoas presentes na loja. Os ladrões levariam tudo o que pudessem. Além do que roubassem, receberiam duzentos e cinqüenta dólares cada; e no caso de qualquer um deles ser preso mais tarde, estava combinado que Binder não os reconheceria.

Tal era o plano conhecido de Binder. Mas havia dois ângulos dos quais ele não suspeitava.

Outro acordo fora feito entre Inés, Maurois e Kid. Ela deveria partir para Chicago logo que recebesse as pedras das mãos de Binder e esperaria lá pelos dois. Ela e o francês teriam ficado satisfeitos em fugir e deixar Binder pagando o pato. Kid de Tal, porém, insistiu em que o plano original fosse levado a cabo e eliminado o tolo Binder, que sabia demais a respeito deles e que poria a boca no mundo logo que descobrisse que fora traído.

Kid conseguiu convencê-los e matou Binder.

Em seguida, houve a doce confusão da quarta ou sexta traição, que resultou em toda aquela balbúrdia: os acordos privados da mulher com Kid e Maurois, para encontrar um deles em St. Louis e o outro em Nova Orleans; e sua fuga, sozinha, com o produto do saque para San Francisco.

Billie fora um espectador inocente... ou quase: era um negociante de madeira que Inés conhecera por acaso e usara como uma espécie de almofada para proteger-se dos solavancos na acidentada estrada que palmilhava.

 

                   Quem matou Main?

O delegado me disse que Hacken e Begg estavam encarregados do caso. Alcancei-os quando deixavam a sala de reunião dos detetives. Begg era um investigador peso pesado, tão amistoso como um filhote de são-bernardo, embora menos inteligente. O investigador-chefe Hacken não era tão brincalhão e conduzia o cérebro do grupo por trás de uma face talhada a machadinha.

— Apressados? — perguntei.

— Sempre apressados quando acabamos o trabalho do dia — respondeu Begg, enquanto suas sardas subiam no rosto para dar lugar ao sorriso.

— O que você quer? — perguntou Hacken.

— O que houver sobre o caso Main... se é que descobriram alguma coisa.

— Vai trabalhar nisso?

— Vou — respondi. — Para o patrão de Main. Gungen.

— Neste caso, você pode nos contar alguma coisa. Por que estaria ele com vinte mil em dinheiro?

— Eu lhes conto amanhã — prometi. — Não estive com Gungen ainda. Marquei um encontro com ele hoje à noite.

Enquanto falávamos, entramos na sala de reunião dos detetives, com sua arrumação de escrivaninhas e bancos de sala de aula. Uma meia dúzia de detetives encontrava-se ali, escrevendo seus relatórios. Sentamo-nos os três em torno da mesa de Hacken, e o comprido detetive começou:

— Main voltou de Los Angeles às oito, domingo à noite, trazendo vinte mil dólares na carteira. Foi lá vender alguma coisa a mando de Gungen. Descubra você, se puder, por que ele levava tanto dinheiro. Disse à esposa que veio de carro de Los Angeles com um amigo... mas não mencionou o nome. Ela foi dormir por volta de dez e meia, e o deixou lendo qualquer coisa. Ele tinha o dinheiro, duzentas notas de cem dólares, em uma carteira marrom. Até agora, muito bem. Ele estava na sala de estar, lendo. Ela estava no quarto, dormindo. Apenas os dois no apartamento. Ela foi acordada por um ruído. Saltou da cama e correu para a sala. Viu Main lutando com dois homens. Um deles alto e forte. O outro, pequeno... assim como uma espécie de corpo de moça. Ambos traziam lenços pretos cobrindo a cara e bonés puxados sobre os olhos. Quando a sra. Main apareceu, o pequenino deixou Main e rendeu-a. Enfiou-lhe uma arma na cara e disse que ficasse quietinha. Main e o outro cara continuaram a brigar. Main conseguira sacar a arma, mas o outro bandido havia-o prendido pelo pulso e estava tentando torcê-lo. Conseguiu, e Main deixou cair a arma. O bandido tirou a sua e manteve Main a distância, enquanto se curvava para apanhar a que caíra. Quando o homem abaixou-se, Main saltou sobre ele. Conseguiu arrancar a arma do cara, mas, a essa altura, eleja apanhara a que estava no chão... a arma que Main fora obrigado a soltar. Ficaram amontoados um sobre o outro durante uns dois segundos. A sra. Main não pôde ver o que estava acontecendo. Em seguida, bang! Main caiu, com o colete queimando no lugar onde a bala o incendiara, um tiro no coração, e sua arma fumaçando na mão do cara mascarado. A sra. Main desmaiou. Quando recuperou os sentidos, não havia mais ninguém no apartamento, apenas ela e o marido, morto. A carteira desaparecera. O mesmo se dera com a arma dele. Ela ficou inconsciente durante uma meia hora. Sabemos disso porque outras pessoas ouviram o tiro e nos deram a hora... apesar de não saberem de onde vinha. O apartamento dos Main fica no sexto andar. Trata-se de um prédio de oito andares. Ao lado na esquina de Eighteenth Avenue, há um prédio de dois andares... um armazém no térreo e o apartamento do dono em cima. Por trás desses edifícios, corre uma estreita rua secundária, uma viela. Muito bem. Kinney, o patrulheiro de ronda, descia, nesse momento, Eighteenth Avenue. Ouviu o tiro. Reconheceu logo o som, uma vez que o apartamento de Main fica daquele lado, o lado que dá para o do armazém, mas não conseguiu localizá-lo imediatamente. Perdeu tempo vasculhando a rua. Ao chegar à viela, os pássaros haviam levantado vôo. Kinney, porém encontrou sinais deles... haviam lançado a arma na viela... a arma que haviam tomado de Main e usado para matá-lo. Kinney, porém, não os viu, não viu pessoa alguma que pudesse ser um deles. Bem, da janela do corredor do terceiro andar do prédio de apartamentos é fácil alcançar o telhado do armazém. Qualquer pessoa que não fosse aleijada poderia passar por ali... entra ou sair... e a janela nunca é deixada fechada. Há, no local, um cano de ferro fundido, uma janela larga, e uma porta com grandes dobradiças salientes... uma verdadeira escada naquela parede dos fundos. Begg e eu subimos por ela sem o menor esforço. A dupla poderia ter subido por ali. Sabemos que saiu por ali. No telhado do prédio do armazém encontramos a carteira de Main... vazia, naturalmente... e um lenço. A carteira tinha cantoneiras de metal. O lenço se prendeu em uma delas quando os ladrões lançaram a carteira fora.

— O lenço de Main? — perguntei.

— Um lenço de mulher, com um E bordado num canto.

— Da sra. Main?

— O nome dela é Agnes — retrucou 'Hacken. — Mostramos-lhe a carteira, a arma e o lenço. Ela identificou as duas primeiras como sendo do marido, mas o lenço era coisa nova para ela. Apesar disso, identificou o perfume que havia nele... Désir du Coeur. Tendo o lenço como pista, ela disse que o mais baixo dos dois mascarados podia ser uma mulher.

Já o havia descrito como tendo uma espécie de corpo feminino.

— Impressões digitais ou coisa parecida? — perguntei.

— Não. Phels examinou o apartamento, a janela, o telhado, a carteira e a arma. Nenhum sinal.

— A sra. Main poderia identificá-los?

— Disse que talvez pudesse identificar o mais baixo.

— Já descobriu alguma coisa?

— Ainda não — respondeu o comprido sargento-detetive enquanto nos dirigíamos para a porta.

Deixei-os na rua e tomei a direção da casa de Bruno Gungen, em Westwood Park.

O negociante de jóias raras e antigas era um homem baixo e de tipo esquisito. Usava um traje a rigor apertadíssimo na cintura, com ombros altos e aumentados por enchimento. Cabelo, bigode e cavanhaque em forma de pá haviam sido tingidos de preto e brilhavam tanto quanto suas pontudas unhas cor-de-rosa. Eu seria capaz de apostar que a cor daquele rosto cinqüentão era ruge. Ele ergueu-se das profundezas de uma cadeira de couro na biblioteca para me estender uma mão macia e quente, não maior do que a de uma criança, curvando-se e sorrindo para mim com a cabeça inclinada para um lado.

Apresentou-me, em seguida, à esposa, que inclinou a cabeça sem se levantar de seu lugar à mesa. Aparentemente, ela tinha pouco mais do que um terço da idade dele. Não podia ter um dia mais que dezenove anos e mais parecia ter dezesseis. Era tão pequenina como ele, com uma face morena com covinhas, olhos castanhos redondos, uma boca de lábios generosos, pintados, e um ar geral de boneca cara em vitrina de loja.

Bruno Gungen explicou-lhe com detalhes que eu trabalhava para a Agência Continental e que fora contratado para ajudar a polícia a descobrir os assassinos de Jeffrey Main e recuperar os vinte mil dólares roubados.

— Oh, sim! — murmurou ela num tom de pessoa absolutamente desinteressada, e levantou-se, dizendo: — Neste caso, deixarei que vocês dois...

— Não, não, minha querida! — O marido acenou para ela os dedos rosados. — Eu não teria segredos com você. — Sua ridícula e pequenina face virou-se, brusca, para mim, inclinou-se para um lado, e ele perguntou com um risinho: — Não é assim? Que entre marido e mulher não deve haver segredos?

Fingi concordar com ele.

— Você, eu sei, minha querida — disse ele, dirigindo-se à esposa, que se sentara novamente —, está tão interessada nisto como eu, porque sentíamos igual afeição pelo querido Jeffrey, não é?

— Oh, sim! — repetiu ela, com a mesma falta de interesse. O marido virou-se para mim.

— E então? — perguntou, encorajando-me a falar.

— Estive com a polícia — respondi. — Há alguma coisa que o senhor possa acrescentar à versão dela? Alguma coisa nova? Alguma coisa que não lhe tenha dito?

Ele voltou o rosto para a esposa.

— Há, Enid querida?

— Não sei de coisa alguma — replicou ela. Ele soltou uma risadinha e fitou-me, contente.

— E isso — falou. — Não sabemos de coisa alguma.

— Ele voltou a San Francisco às oito horas de domingo à noite... três horas antes de ser roubado e assassinado... trazendo vinte mil dólares em notas de cem. O que estava ele fazendo com todo esse dinheiro?

— Era o dinheiro de uma venda a um cliente — explicou Bruno Gungen. — O sr. Nathaniel Ogilvie, de Los Angeles.

— Mas por que em dinheiro? , O pequeno rosto pintado do homenzinho contraiu-se em um astucioso ar de zombaria.

— Uma jogada — confessou, complacente —, um truque do negócio, como se diria. O senhor conhece, por acaso, o gênero "colecionador"? Ah, que estudo isso seria para o senhor! Observe. Consigo uma tiara de ouro, de artesanato grego antigo, ou, para ser correto, que se diz ser artesanato grego antigo, supostamente encontrada no sul da Rússia, nas proximidades de Odessa. Se há ou não verdade em qualquer uma dessas suposições, não sei, mas a tiara é certamente uma beleza. Soltou uma risadinha.

— Bem, tenho um cliente, o sr. Nathaniel Ogilvie, de Los Angeles, que tem grande interesse por curiosidades desse tipo... um interesse diabólico, realmente, uma cacoethes carpendi. O valor dessas peças, compreenda, é exatamente o que podemos obter por elas... nem mais nem menos. Essa tiara... Bem, dez mil dólares era o mínimo que eu poderia esperar por ela, se vendida como se vende um artigo comum desse tipo. Mas poderemos chamar uma tiara de ouro, feita há tanto tempo para algum esquecido rei cita, de artigo ordinário, comum? Não! Não! Assim, envolvida em gaze, em um embrulho refinado, Jeffrey levou-a a Los Angeles para mostrá-la ao sr. Ogilvie. De que maneira a tiara chegou a nossas mãos, Jeffrey não diria. Mas sugeriria tortuosas intrigas, contrabando, um pouco de violência e ilegalidade aqui e ali, a necessidade de segredo. Para o verdadeiro colecionador, isso é a isca! Coisa alguma significa coisa alguma para ele, a menos que seja difícil de obter. Jeffrey não mentiria. Não! Mon Dieu, isso seria desonesto, desprezível! Mas sugeriria muita coisa e recusaria, da maneira a mais categórica, receber um cheque pela tiara. Nada de cheque, meu querido senhor! Coisa alguma cuja origem possa ser descoberta! Dinheiro à vista! Uma jogada, como o senhor vê. Mas onde é que está o mal? O sr. Ogilvie ia comprar certamente a tiara, e a nossa pequena burla simplesmente lhe aumentaria o prazer da compra. Por isso, apreciaria muito mais sua propriedade. Além disso, quem poderá dizer que aquela tiara não é autêntica? Se é, então as coisas que Jeffrey sugeriu são indubitavelmente verdadeiras. O sr. Ogilvie adquiriu-a por vinte mil dólares, e é por isso que o pobre Jeffrey tinha em seu poder tanto dinheiro vivo.

Fez um floreio com a mão rosada em minha direção, inclinou vigorosamente a cabeça pintada e terminou com um:

— Voilà! É isso!

— Teve notícia de Main depois que ele voltou? — perguntei.

O negociante sorriu como se minha pergunta lhe causasse riso e voltou a cabeça, dirigindo o sorriso para a esposa.

— Tivemos, Enid querida? — disse, transferindo-lhe minha pergunta.

Ela fez beicinho e encolheu, indiferente, os ombros.

— Soubemos que ele havia voltado — disse Gungen, interpretando-lhe os gestos para mim — apenas na manhã de segunda-feira, quando ouvimos a notícia de sua morte. Não foi assim, minha pombinha?

A pombinha murmurou:

— Sim. — E levantou-se, dizendo: — Podem me desculpar? Preciso escrever uma carta.

— Certamente, minha querida — replicou Gungen, enquanto ele e eu nos erguíamos.

Ela passou perto dele ao caminhar em direção à porta. Seu pequeno nariz contraiu-se sobre o bigode pintado, e ele rolou os olhos numa caricatura de êxtase.

— Que perfume delicioso, minha preciosa — exclamou ele. — Que aroma celestial! Que canção para as narinas! Esse perfume tem nome, meu amor?

— Sim — respondeu ela, parando à porta, mas não olhando para trás.

— E qual é?

— Désir du Coeur — respondeu ela por sobre o ombro, e deixou-nos.

Bruno Gungen fitou-me e soltou um risinho. Sentei-me outra vez e perguntei-lhe o que sabia sobre Jeffrey Main.

— Tudo, nada menos do que isso — garantiu-me ele. — Há doze anos, desde que ele tinha dezoito, era meu olho direito, minha mão direita.

— Bem, que tipo de homem era ele?

Bruno Gungen estendeu-me as palmas das mãos rosadas uma ao lado da outra.

— Que tipo é qualquer homem? — perguntou.

Isso não me esclarecia coisa alguma, e, assim, permaneci, calado, à espera.

— Eu lhe direi — recomeçou, no mesmo instante, o homenzinho. —Jeffrey possuía olho e gosto para este meu ramo de negócio. Nenhum homem, salvo eu mesmo, tinha uma capacidade de julgamento nesses assuntos que eu preferisse à de Jeffrey. E era honesto, preste atenção! Que coisa alguma que eu disse possa enganá-lo sobre esse ponto. Jamais tive uma fechadura da qual Jeffrey não possuísse também a chave, e poderia tê-la para sempre se tivesse vivido tanto. Mas há um senão. Na sua vida privada, "patife" é a palavra que lhe faria justiça. Ele bebia, jogava, amava, gastava... oh, meu Deus, como gastava! Era na bebida, no jogo, no amor e nos gastos um homem extremamente promíscuo, isso além de qualquer dúvida. Não sabia o que era moderação. Do dinheiro que recebeu de herança, dos cinqüenta mil dólares ou mais que a esposa trouxe quando se casaram, não sobrou coisa alguma. Para sorte dela, ele tinha seguro de vida, pois, de outra maneira, ela estaria na miséria. Oh, ele era um verdadeiro Heliogábalo, aquele rapaz!

Bruno Gungen levou-me até a porta da frente, onde me despedi.

— Boa noite — disse eu, e fui pelo caminho coberto de cascalho até o lugar onde deixara o carro. Era uma noite de bom tempo, escura, sem lua. Altas cercas vivas formavam paredes pretas de ambos os lados da residência de Gungen. A esquerda, vi um buraco indistinto na escuridão... um buraco cinzento-escuro e oval, do tamanho de um rosto.

Entrei no carro, liguei o motor e afastei-me. No primeiro cruzamento, estacionei e comecei a voltar a pé para a casa de Gungen. Eu estava curioso com aquele oval do tamanho de um rosto.

Ao chegar à esquina, vi uma mulher vindo em minha direção, procedente da casa. Eu me encontrava à sombra do muro. Cauteloso, recuei para longe da esquina até que cheguei a um portão, preso a postes de tijolos salientes. Acomodei-me entre eles.

A mulher atravessou a rua e subiu a passagem de automóveis, em direção à fila de carros estacionados. Não podia distinguir coisa alguma, salvo que era uma mulher. Talvez ela tivesse vindo do terreno de Gungen, talvez não. Talvez fosse seu o rosto que eu entrevira contra as cercas vivas, talvez não. Era sim ou não. Achei que era sim, e segui-a pela passagem de automóveis.

Ela dirigiu-se a uma farmácia atrás da fila de carros estacionados. Queria telefonar. Falou durante dez minutos. Não entrei no estabelecimento para tentar ouvir alguma coisa. Permaneci do outro lado da rua, contentando-me em dar-lhe uma boa olhada.

Era uma moça de uns vinte e cinco anos, de estatura mediana, gordinha, com olhos cinza-claros, com pequenas bolsas sob eles, nariz grosso e lábio inferior proeminente. Não usava chapéu sobre o cabelo castanho. Mas estava coberta por uma longa capa azul.

Segui-a da farmácia até a casa de Gungen, onde ela entrou pela porta dos fundos.

Uma empregada, com toda a probabilidade, mas não a que me havia aberto a porta, cedo, naquela noite.

Voltei ao carro, à cidade, e ao escritório.

— Dick Foley está trabalhando em alguma coisa? — perguntei a Fiske, encarregado na Agência Continental à noite.

— Não. Já ouviu a história daquele sujeito que mandou operar o pescoço? — Mesmo com o menor dos encorajamentos, Fiske é homem de contar dez histórias seguidas; assim, respondi:

— Já. Chame Dick e diga-lhe que tenho alguém para ele seguir em Westwood Park, a começar amanhã cedo.

Dei a Fiske, para serem passados a Dick, o endereço de Gungen e a descrição da moça que telefonara da farmácia. Depois, garanti ao detetive de plantão que ouvira também a história sobre um traficante de drogas chamado Ópio, e também aquela sobre o que o velho disse à esposa no dia das bodas de ouro. Antes que ele pudesse submeter-me a prova com outra, escapei para meu escritório, onde redigi e codifiquei um telegrama a nossa filial de Los Angeles, solicitando que fosse investigada a recente visita de Main à cidade.

Na manhã seguinte, Hacken e Begg apareceram, e eu lhes dei a versão de Gungen sobre o motivo por que os vinte mil estavam sob a forma de dinheiro vivo. Os detetives disseram-me que um alcagüete trouxera a notícia de que Bunky Dahal, um bandido local que fazia um moderado movimento de roubos, estivera exibindo um grande maço de notas desde a morte de Main.

— Não o pegamos ainda — disse Hacken. — Não conseguimos localizá-lo, mas temos uma pista para chegar à pequena dele. Naturalmente, ele pode ter obtido o dinheiro em algum outro lugar.

Às dez daquela manhã, tive que ir a Uakland prestar depoimento sobre uma dupla de estelionatários que vendera grande número de ações de uma falsa empresa de borracha. Ao voltar a agência às seis da tarde, encontrei em minha escrivaninha um telegrama de Los Angeles.

Jeffrey Main, dizia o telegrama, concluíra a transação com Ogilvie na tarde de sábado, pagara imediatamente a conta do hotel e partira no trem noturno, que o deixaria em San Francisco no domingo pela manhã. As notas de cem dólares com que Ogilvie pagara a tiara eram novas, numeradas consecutivamente. Um banco de Ogilvie dera os números aos detetives de Los Angeles.

Antes de fechar o expediente naquele dia, telefonei a Hacken, dando-lhe os números e as demais informações contidas no telegrama.

— Não encontramos Dahl ainda — informou-me ele por sua vez.

O relatório de Dick Foley chegou na manhã seguinte. A moça saíra da casa de Gungen às nove e quinze da noite anterior, fora até a esquina de Miramar Avenue com Southwood Drive, onde um homem a esperava num cupê Buick. Descreveu-o Dick assim: idade, mais ou menos trinta anos; altura, um metro e oitenta; magro, pesando uns setenta quilos; semblante comum; cabelos e olhos castanhos; rosto comprido e magro, com queixo pontudo; terno, sapatos e chapéu marrons e sobretudo cinza.

A moça entrou no carro com ele e seguiram para a praia por Great Highway durante algum tempo e depois voltaram à esquina de Miramar com Southwood, onde a moça desceu. Ela parecia estar voltando para casa, e, assim, Dick deixou-a e seguiu o homem do Buick até os Futurity Apartments, em Mason Street.

O homem permaneceu lá durante meia hora e saiu em companhia de outro homem e duas mulheres. O segundo homem era moreno e tinha mais ou menos a mesma idade que o primeiro, cerca de um metro e oitenta de altura, uns oitenta e cinco quilos, cabelos e olhos castanhos, rosto largo e comum, com maças salientes; vestia terno azul, chapéu cinza, sobretudo marrom, sapatos pretos e prendedor de gravata de pérola em forma de pêra.

Uma das mulheres tinha uns vinte e dois anos, era pequenina, magra e loura. A outra teria provavelmente mais três ou quatro anos, era ruiva, de altura e corpo médios, e nariz arrebitado.

O quarteto tomara o carro e fora para o Algerian Café, onde permanecera até pouco depois de uma da manha. Voltaram em seguida para os Futurity Apartments. Às três e meia, os dois homens haviam saído, levando o Buick para uma garagem em Post Street, e, em seguida, indo a pé para o Mars Hotel. Ao terminar a leitura, chamei Mickey Linehan na sala dos detetives e dei-lhe o relatório, acompanhado de instruções.

— Descubra quem são esses caras.

Mickey saiu. Meu telefone tocou. Bruno Gungen:

— Bom dia. Será que tem alguma informação para mim hoje?

— Talvez — respondi. — Está aqui no centro?

— Sim, em minha loja. Estarei aqui até as quatro.

— Certo. Irei aí hoje à tarde.

Mickey Linehan voltou cerca de meio-dia.

— O primeiro cara — comunicou —, o que Dick viu com a moça, chama-se Benjamin Weel. É o dono do Buick e reside no Mars, no quarto 410. É vendedor, embora ninguém saiba de quê. O outro é um amigo que está com ele há uns dois dias. Não consegui apurar coisa alguma a respeito dele. Não está registrado no hotel. As duas mulheres do Futurity são prostitutas. Moram no apartamento 303. A mais alta atende pelo nome de sra. Effie Roberts. A lourinha chama-se Violet Evarts.

— Espere — disse eu a Mickey. Fui até o arquivo e consultei os fichários.

Passei os dedos pela W — Weel, Benjamin, conhecido pela alcunha de Ben Tossinha, 36 312W.

Informou a pasta número 36 312W que Ben Tossinha Weel fora preso em 1916 e que cumprira pena de três anos em San Quentin. Em 1922, fora novamente preso em Los Angeles, acusado de tentar chantagear uma atriz de cinema, mas o caso dera em nada. Sua descrição combinava com a do homem do Buick fornecida por Dick. A fotografia, uma cópia da tirada pela polícia de Los Angeles em 1922, mostrava um jovem de feições bem marcadas, com um queixo que parecia uma cunha.

Levei a foto para o escritório e mostrei-a a Mickey.

— Este é o Weel de cinco anos atrás. Siga-o por algum tempo.

Logo que O detetive saiu, telefonei para a divisão de detetives da polícia. Nem Hacken nem Begg estavam. Pedi para falar com Lewis, do Departamento de Identificação.

— Como é Bunky Dahl? — perguntei-lhe.

— Espere um minuto — disse Lewis e, logo em seguida: — Trinta e dois anos, um metro e oitenta e três, oitenta e cinco quilos, compleição média, olhos castanhos, rosto largo e inexpressivo, com maçãs altas, uma ponte de ouro na arcada inferior esquerda, mancha congênita marrom sob a orelha direita e mindinho deformado no pé direito.

— Tem uma foto dele que me possa ceder?

— Certamente.

— Obrigado. Vou mandar aí um rapaz para apanhá-la.

Disse a Tommy Howd para ir buscá-la e saí para comer alguma coisa. Após o almoço, fui até a loja de Gungen, em Post Street. O pequenino negociante estava mais enfeitado do que nunca naquela tarde, metido em um paletó preto ainda mais recheado nos ombros e apertado na cintura do que seu traje a rigor da noite anterior, calças cinzentas listradas, um colete puxando para a cor magenta, e uma gravata enfunada de cetim, bordada com fio dourado.

Fomos até o fundo da loja e subimos um lance estreito de degraus até o cubículo do escritório, na sobreloja.

— E, agora, o que tem a me contar? — perguntou ele quando nos sentamos, depois de fechada a porta.

— Eu tenho mais a perguntar do que a contar. Em primeiro lugar, quem é a moça de nariz grosso, lábio inferior proeminente e bolsas sob olhos cinzentos que mora em sua casa?

— O nome dela é Rose Rubury. — O pequenino rosto pintado contraiu-se num sorriso satisfeito. — É a empregada pessoal de minha querida esposa.

— Ela sai a passeio com um ex-condenado.

— Sai? — Ele alisou o cavanhaque tingido com a mão rosada, satisfeitíssimo. — Bem, ela é a criada de minha querida esposa, é o que ela é.

— Main não.veio de Los Angeles de automóvel com um amigo, como contou à esposa. Veio de trem no sábado à noite... e assim estava na cidade doze horas antes de aparecer em casa.

Bruno Gungen soltou um risinho, inclinando o deliciado rosto para um lado.

— Ah! — disse, com uma risada. — Estamos fazendo progressos! Estamos fazendo progressos! Não é?

— Talvez. Lembra-se, por acaso, se essa Rose Rubury estava em casa na noite de domingo... digamos, das onze à meia-noite?

— Lembro-me. Estava. Sei com certeza. Minha querida esposa não se sentia bem naquela noite. Minha querida saiu cedo naquela manhã de domingo, dizendo que ia de carro, com amigos, passear no campo... que amigos, não sei. Mas voltou às oito da noite, queixando-se de uma terrível dor de cabeça. Fiquei muito aflito com a aparência dela, de modo que fui, com freqüência, ver como ela estava, e, assim, acontece que sei que a empregada passou toda aquela noite em casa, pelo menos até uma da manhã.

— A polícia mostrou-lhe, por acaso, o lenço que encontrou, juntamente com a carteira de Main?

— Sim. — Ele mexeu-se na cadeira com o rosto de uma criança maravilhada diante de uma árvore de Natal.

— Tem certeza de que era de sua esposa?

O risinho dele interferira na fala, e, assim, ele parou e disse "Sim", inclinando a cabeça para cima e para baixo até que pareceu que o cavanhaque era uma vassourinha varrendo-lhe a gravata.

— Ela pode tê-lo deixado na casa de Main, quando esteve visitando a sra. Main em alguma ocasião — sugeri.

— Isso não é possível — corrigiu-me ele, ansioso. — Minha querida esposa e a sra. Main não se conheciam.

— Mas conheciam-se sua esposa e Main?

Ele soltou uma risadinha e varreu outra vez a gravata.

— Até que ponto?

Gungen ergueu os ombros recheados até as orelhas.

— Não sei — respondeu, alegre. — Contratei um detetive.

— Ah, é? — Fechei a cara para ele. — O senhor empregou este aqui para descobrir quem roubou e matou Main... e para nada mais. Se pensa que está me empregando para desencavar os segredos de sua família, o senhor está tão errado como a Lei Seca.

— Mas por quê? Mas por quê? — perguntou ele, afogueado. — Não tenho o direito de saber? Não haverá problema algum com isso, nenhum escândalo, nenhum processo de divórcio, quanto a isso pode ter certeza. O próprio Jeffrey está morto, e isso é o que chamaríamos de história antiga. Enquanto ele viveu, eu não soube, fui cego. Depois que morreu, notei certas coisas. Para minha própria satisfação... isto é tudo, suplico-lhe que acredite... eu gostaria de saber, com certeza.

— O senhor não saberá por mim — respondi, rudemente. — Não sei de coisa alguma, salvo o que me disse, e o senhor não pode contratar-me para investigar mais do que isso. Ademais, se o senhor não vai fazer coisa alguma a respeito, por que não lava as mãos... deixa a questão morrer?

— Não, não, meu amigo. — Ele recuperara a borbulhante alegria. — Eu não sou velho. Tenho apenas cinqüenta e dois anos. Minha querida esposa tem dezoito, e é uma pessoa realmente encantadora. — Soltou outra risadinha. — Isso aconteceu. Será que não acontecerá outra vez? Não seria prudente para o marido ter... digamos... um poder sobre ela? Uma rédea? Um controle? Ou, se isso nunca mais acontecer, não poderia a querida esposa tornar-se mais dócil devido a certa informação que o marido possui?

— O problema é seu — respondi, erguendo-me. — Não tenho nada com isso.

— Ah, não vamos brigar por isso! — Levantou-se de um salto e tomou-me as mãos nas suas. — Se não quer investigar, então não investigue. Mas resta o aspecto criminal da questão... o aspecto que o ocupou até agora. Não o abandonará, não? Cumprirá seu compromisso assumido, não é mesmo? Com certeza?

— Suponhamos... apenas suponhamos... que se descubra que sua esposa teve algo com a morte de Main. O que haveria?

— Isso — ele encolheu os ombros, estendendo as mãos, com as palmas para cima — seria uma questão para a justiça.

— Muito bem. Continuarei no caso... desde que o senhor compreenda que não tem direito a qualquer informação, salvo as ligadas ao "aspecto criminal".

— Excelente! E se por acaso o senhor não conseguir separar a minha querida esposa do...

Inclinei a cabeça. Ele agarrou-me a mão e deu-lhe uma palmadinha. Puxei-a e voltei para a agência.

Uma nota sobre a escrivaninha pedia-me que telefonasse para o sargento-detetive Hacken, o que fiz.

— Bunky Dahl não tomou parte na morte de Main — disse-me o tira de rosto talhado a machadinha. — Ele e um amigo chamado Ben Tossinha Weel estavam naquela noite dando uma festa num restaurante de beira de estrada, perto de Vallejo. Estiveram lá desde as dez, até que foram postos para fora às duas da manhã por começarem uma briga. Isso é certo. O cara que me deu a informação é bom... e confirmei a história dele com outras pessoas.

Agradeci a Hacken e telefonei para a residência de Gungen, pedindo para falar com a sra. Gungen. Perguntei-lhe se ela me receberia, se eu fosse até lá.

— Oh, sim — disse ela.

Parecia que essa era a expressão favorita dela, embora a maneira como a pronunciava não dissesse coisa alguma.

Colocando as fotos de Dahl e Weel no bolso, tomei um táxi e dirigi-me a Westwood Park. Estimulando o cérebro com a fumaça de uma Fátima, imaginei uma maravilhosa série de mentiras para contar à esposa do cliente... uma série que, pensava, me levaria à informação desejada.

A uns cento e cinqüenta metros de distância da casa vi o carro de Dick Foley, de plantão.

Uma empregada magra e lívida abriu a porta e levou-me à sala de estar no segundo andar, onde a sra. Gungen pôs de lado um exemplar de O sol também se levanta. Com um aceno do cigarro, indicou-me uma cadeira próxima. Naquela tarde, ela parecia uma boneca muito cara. Usava um vestido persa alaranjado e estava sentada sobre uma perna em uma cadeira de brocado.

Fitando-a enquanto acendia um cigarro, lembrando-me de minha primeira entrevista com ela e o marido, e da segunda com ele, resolvi abandonar a história que havia imaginado a caminho.

— A senhora tem uma empregada... Rose Rubury, que eu não gostaria que ouvisse o que vamos conversar.

— Muito bem — disse ela sem demonstrar a mínima surpresa. E acrescentou: — Desculpe-me por um momento. — Levantou-se e saiu da sala.

Voltou logo depois e sentou-se com ambos os pés sob o corpo.

— Ela ficará ausente pelo menos durante meia hora.

— Isso será suficiente. Essa Rose é amiga de um ex-presidiário chamado Weel.

A face de boneca contraiu-se e os lábios vermelhos e cheios apertaram-se. Esperei, dando-lhe tempo para que dissesse alguma coisa. Ela não disse. Tirei as fotos de Weel e Dahl e mostrei-as a ela.

— O de cara magra é o amigo de sua Rose. O segundo é amigo dele... outro ladrão.

Ela recebeu as fotos com uma mão pequenina, tão firme quanto a minha, e examinou-as com todo o cuidado. A boca tornou-se menor e mais apertada, e mais escuros os olhos castanhos. Em seguida, devagar, a fisionomia distendeu-se e ela murmurou:

— Oh, sim. — E devolveu-me as fotos.

— Quando falei sobre isso a seu marido — acrescentei, medindo as palavras —, ele disse: "É a empregada pessoal de minha esposa", e riu.

Enid Gungen conservou-se calada.

— Bem? — perguntei. — O que foi que ele quis dizer com isso?

— Como posso saber? — suspirou ela.

— A senhora sabe que seu lenço foi encontrado junto à carteira vazia de Main? — Disse isso em tom casual, fingindo-me principalmente ocupado em bater a cinza do cigarro em um cinzeiro de jaspe, em forma de caixão de defunto, sem tampa.

— Oh, sim — respondeu ela, cansadamente. — Ouvi dizer.

— Como a senhora acha que aconteceu isso?

— Não posso imaginar.

— Eu posso — retruquei. — Mas gostaria de saber isso com certeza. Sra. Gungen, economizará muito tempo se pudermos falar com franqueza.

— Por que não? — disse ela, apática. — O senhor tem a confiança de meu marido e a permissão dele para me interrogar. Se for humilhante para mim... bem, eu sou apenas esposa dele. E duvido muito que quaisquer novas indignidades que ele e o senhor possam imaginar sejam piores do que aquelas que já sofri.

Grunhi ao ouvir esse teatral discurso e continuei:

— Sra. Gungen, estou interessado apenas em saber quem roubou e matou Main. Tudo o que apontar nessa direção tem valor para mim, mas apenas na medida em que apontar nessa direção. Compreendeu o que quero dizer?

— Certamente — retrucou ela. — Sei que foi contratado por meu marido.

Isso não nos levava a parte alguma. Tentei outra vez.

— Que impressão acha a senhora que formei quando estive aqui naquela noite?

— Não posso imaginar.

— Por favor, tente.

— Indubitavelmente — ela sorriu, de leve —, o senhor ficou com a impressão de que meu marido pensa que fui amante de Jeffrey.

— Bem?

— O senhor está — as covinhas dela surgiram, e ela pareceu divertida — perguntando se fui, realmente, amante dele?

— Não... embora, naturalmente, eu gostasse de saber.

— Naturalmente que o senhor gostaria — comentou ela em voz suave.

— Que impressão formou naquela noite? — perguntei.

— Eu? — Ela enrugou a testa. — Oh, que meu marido o havia contratado para provar que fui amante de Jeffrey. — Repetiu a palavra "amante" como se gostasse do som dela em sua boca.

— A senhora se enganou.

— Conhecendo meu marido, acho difícil acreditar.

— Conhecendo-me a mim mesmo, tenho certeza — insisti. — Não há nenhuma dúvida a esse respeito entre seu marido e mim, sra. Gungen. Ficou entendido que minha função é descobrir quem roubou e matou... nada mais.

— Realmente? — Era um ponto final delicado numa discussão da qual se cansara.

— A senhora está me atando as mãos — queixei-me, levantando-me, e fingindo que não a observava com toda a atenção. — Não posso fazer outra coisa agora, senão prender essa Rose Rubury e os dois homens e ver se posso arrancar alguma coisa deles. A senhora disse que a moça voltaria em meia hora?

Ela fitou-me com firmes e redondos olhos castanhos.

— Ela deve voltar dentro de alguns minutos. Vai interrogá-la?

— Vou, mas não aqui — informei-lhe. — Eu a levarei à delegacia e mandarei prender os dois homens. Posso usar seu telefone?

— Certamente. Fica na sala ao lado. — Atravessou a sala para me abrir a porta.

Chamei Davenport 20 e pedi uma ligação para o departamento de detetives.

A sra. Gungen, na sala de estar, falou tão baixinho que mal consegui ouvi-la:

— Espere.

Segurando o aparelho, voltei-me para olhá-la através da porta. Ela apertava a boca vermelha entre o polegar e o indicador, franzindo o cenho. Só coloquei o fone no gancho depois que ela tirou a mão da boca e estendeu-a para mim. Voltei para a sala de estar.

Eu levava vantagem. Conservei a boca fechada. Cabia a ela dar o primeiro passo. Ela me examinou o rosto durante um minuto mais ou menos, e começou:

— Não vou fingir que confio no senhor — falou em voz hesitante, como se em parte para si mesma. — O senhor está trabalhando para meu marido, e mesmo o dinheiro não interessaria a ele tanto quanto o que quer que eu tenha feito. E uma opção entre coisas ruins... certa de um lado, mais do que provável do outro.

Calou-se e esfregou as mãos uma na outra. Os olhos redondos tornaram-se indecisos. S« não fosse ajudada, ela ia recuar.

— Aqui estamos apenas nós dois — insisti. — A senhora pode negar tudo depois. E minha palavra contra a sua. Se a senhora não me contar... eu sei agora que posso descobrir a verdade por intermédio de outras pessoas. O fato de ter-me impedido de telefonar informou-me disso. A senhora pensa que irei contar tudo a seu marido. Bem, se eu tiver que arrancar a verdade de outras pessoas, ele provavelmente lera tudo nos jornais. Sua única chance é confiar em mim. Não é uma chance tão pequena como a senhora pensa. De qualquer maneira, cabe à senhora decidir.

Meio minuto de silêncio.

— Digamos — murmurou ela — que eu lhe pague...

— Para quê? Se tiver que contar a seu marido, eu poderia aceitar seu dinheiro e ainda contar a ele, não?

A boca vermelha curvou-se, as covinhas reapareceram e seus olhos brilharam.

— Isso é tranqüilizador — disse. — Eu contarei. Jeffrey voltou cedo de Los Angeles para que pudéssemos passar o dia juntos no pequeno apartamento que tínhamos. À tarde, dois homens entraram... usando uma chave. Estavam armados com revólveres. Roubaram o dinheiro de Jeffrey. Fora para isso que haviam vindo. Pareciam saber de tudo a nosso respeito. Chamaram-nos pelos nomes e zombaram de nós, fazendo ameaças sobre o que diriam se os mandássemos prender. Não pudemos fazer coisa alguma depois que foram embora. Eles nos haviam posto numa situação ridiculamente insustentável. Não havia coisa alguma que pudéssemos fazer... desde que não havia possibilidades de repor o dinheiro. Jeffrey não podia fingir que o perdera ou que fora roubado enquanto se achava sozinho. Sua volta sigilosa e antecipada a San Francisco teria certamente levantado suspeitas contra ele. Jeffrey perdeu a cabeça. Queria que eu fugisse com ele. Depois, quis procurar meu marido e contar-lhe a verdade. Não permiti que ele fizesse nada disso, pois eram duas soluções igualmente tolas. Deixamos o apartamento e nos separamos pouco depois das sete. Não estávamos, para dizer a verdade, nos melhores termos nessa ocasião. Ele não se mostrou, naquele momento em que nos encontrávamos enrascados... muito... Não, não direi isso.

Parou e fitou-me com a plácida face de uma boneca que parecia haver se libertado dos problemas simplesmente transferindo-os para mim.

— As fotos que lhe mostrei eram dos dois homens? — perguntei.

— Eram.

— Essa sua empregada conhecia suas relações com Main? Sabia a respeito do apartamento? Sabia a respeito da viagem a Los Angeles e do plano dele de voltar cedo com o dinheiro?

— Não sei se sabia. Mas podia certamente ter descoberto, a maior parte espionando e ouvindo atrás de portas e lendo minha... Recebi um bilhete de Jeffrey falando da viagem a Los Angeles e marcando o encontro para o domingo pela manhã. Talvez ela o tenha visto. Sou descuidada.

— Vou embora agora — falei. — Permaneça calada até receber notícias minhas. E não ameace a empregada.

— Lembre-se de que não lhe contei coisa alguma — recordou-me ela, acompanhando-me até a porta da sala de estar.

Da casa de Gungen fui direto ao Mars Hotel. Encontrei Mickey Linehan sentado num canto do saguão, escondido por trás de um jornal.

— Eles estão? — perguntei.

— Sim.

— Vamos subir e conversar com eles.

Mickey bateu com os nós dos dedos na porta do número 410. Ouvimos uma voz metálica:

— Quem é?

— Encomenda — respondeu Mickey, imitando a voz de um rapaz.

Um homem magro e de queixo pontudo abriu a porta. Entreguei-lhe meu cartão. Ele não nos convidou a entrar, mas não tentou impedir-nos quando entramos.

— Você é Weel? — perguntei, enquanto Mickey fechava a porta a nossas costas, e, sem esperar que ele respondesse, virei-me para o homem de rosto largo sentado na cama: — E você é Dahl?

Weel voltou-se para Dahl e disse em voz descuidada e metálica:

— Uma dupla de tiras.

O homem sentado na cama fitou-nos e sorriu alegre. Eu estava com pressa.

— Quero o dinheiro que vocês tomaram de Main — anunciei.

Os dois soltaram risinhos juntos, como se tivessem ensaiado.

Saquei a arma. Weel riu, áspero.

— Pegue seu chapéu, Bunky — disse ele, com um risinho. — Estamos sendo presos.

— Vocês estão enganados — expliquei. — Isso não é uma prisão. É um assalto. Mãos para o alto.

As mãos de Dahl subiram logo.

Weel hesitou, até que Mickey cutucou-lhe as costelas com o focinho de seu 38 especial.

— Reviste-os — ordenei a Mickey.

Ele passou as mãos pelas roupas de Weel, tirando uma arma, alguns papéis e níqueis, além de um gordo cinturão de carregar dinheiro. Fez o mesmo com Dahl.

— Conte o dinheiro — disse-lhe.

Mickey esvaziou os cintos, cuspiu nos dedos e começou a trabalhar.

— Dezenove mil, cento e vinte e seis dólares e sessenta e dois centavos — comunicou, ao terminar.

Com a mão livre, tirei do bolso o pedaço de papel com os números das notas de cem dólares que Main recebera de Ogilvie. Dei o papel a Mickey.

— Veja se os números das notas conferem com isto. Ele recebeu o papel, conferiu os números e disse:

— Conferem.

— Ótimo... Guarde o dinheiro e as armas e veja se pode encontrar mais alguma coisa no quarto.

Tossindo, Ben Weel recuperou, naquele momento, o fôlego.

— Escute aqui! — protestou ele. — Vocês não podem fazer isso, caras! Quem é que pensam que são? Vocês não podem safar-se com isso!

— Mas posso tentar — garanti-lhe. — Acho que vocês vão gritar: "Polícia!". O diabo que vão! O único lamento que vão soltar é pela própria estupidez, ao pensarem que, por ser o domínio de vocês sobre a mulher bastante forte para evitar que ela os mandasse prender, não precisavam preocupar-se mais com coisa alguma. Estou fazendo o mesmo jogo que vocês fizeram com ela e Main... apenas o meu é melhor, porque vocês não podem reagir sem se meter numa encrenca. Agora, calem a boca!

— Nenhuma outra arma — disse Mickey. — Nada, apenas quatro selos postais.

— Leve-os também — aconselhei. — Isso equivale a praticamente oito centavos. Agora, vamos embora.

— Ei, deixe pelo menos uns dois dólares — suplicou Weel.

— Eu não lhe disse para calar a boca? — rosnei, recuando para a porta, que Mickey abria nesse momento.

O corredor estava vazio. Mickey permaneceu de vigia, cobrindo Weel e Dahl, enquanto eu saía do quarto e passava a chave do lado de dentro para o lado de fora. Girei a chave, descemos e saímos do hotel.

O carro de Mickey encontrava-se estacionado na esquina. Dentro do veículo, transferimos o saque, exceto as armas, dos bolsos dele para os meus. Em seguida, ele desceu e voltou à agência. Virei o carro na direção do edifício onde Jeffrey Main fora assassinado.

 

A sra. Main era uma moça alta, de menos de vinte e cinco anos, cabelos castanhos cacheados, olhos cinza-azulados, ocultos por grossos cílios, e uma face simpática e gorducha. Seu corpo volumoso estava vestido de preto da cabeça aos pés.

Ela leu meu cartão, inclinou a cabeça quando expliquei que Gungen me havia contratado para investigar a morte de seu marido e levou-me para uma sala de estar cinzenta e branca.

— A sala foi esta? — perguntei.

— Esta mesma. — A voz dela era agradável, um pouco rouca.

Dirigi-me à janela e olhei para baixo, para o telhado do armazém, e para a metade visível da viela. Eu ainda estava com pressa.

— Sra. Main — disse eu ao voltar-me, procurando suavizar a brusquidão de minhas palavras e conservando baixa a voz —, depois da morte de seu marido, a senhora lançou a arma pela janela. Em seguida, prendeu o lenço no canto da carteira e lançou-a fora também. Sendo mais leve do que a arma, o lenço não desceu até o beco, caindo no telhado. Por que colocou o lenço...?

Sem pronunciar um único som, ela desmaiou.

Segurei-a antes que tombasse ao solo, levei-a para um sofá, descobri um vidro de água-de-colônia e sais aromáticos e apliquei-os.

— Sabia de quem era o lenço? — perguntei, quando ela despertou e sentou-se.

Ela sacudiu a cabeça da esquerda para a direita.

— Então, por que se deu a todo esse trabalho?

— Estava no bolso dele. Não sabia o que fazer com ele. Pensei que a polícia faria perguntas a esse respeito. Não queria que houvesse coisa alguma que os levasse a fazer perguntas.

— Por que contou aquela história de roubo? Nenhuma resposta.

— O seguro? — sugeri.

Ela ergueu, brusca, a cabeça e exclamou, desafiadora:

— Isso mesmo! Ele gastou todo o dinheiro dele... e o meu. E depois teve que fazer uma coisa daquelas. Ele...

Interrompi-lhe as queixas:

— Ele deixou um bilhete, espero... alguma coisa que sirva de prova. — Prova de que ela não o matara, queria eu dizer.

— Sim. — Procurou alguma coisa no corpinho do vestido preto.

— Ótimo — disse eu, levantando-me. — A primeira coisa que deve fazer pela manhã é levar o bilhete a seu advogado e contar a ele toda a história.

Murmurei algumas palavras de condolências e caí fora.

A noite descia no momento em que toquei a campainha da casa dos Gungen pela segunda vez naquele dia. A lívida empregada que me abriu a porta informou que o patrão estava em casa e levou-me para o segundo andar.

Rose Rubury descia nesse momento a escada. Parou para nos deixar passar. Parei em frente a ela enquanto a outra empregada dirigia-se à biblioteca.

— Você está liquidada, Rose — disse-lhe. — Dou-lhe dez minutos para cair fora. Não fale com ninguém. Se não gostar disso... terá oportunidade de ver se gosta do interior de uma cadeia.

— Bem... o que aconteceu?

— O plano falhou. — Enfiei a mão no bolso e mostrei-lhe um dos maços de notas que tomara no Mars Hotel. — Acabei de vir de um encontro com Ben Tossinha e Bunky.

Isso a impressionou. Ela virou-se e desceu correndo a escada.

Bruno Gungen veio até a porta da biblioteca a minha procura. Olhou, curioso, para a moça, desta vez subindo às pressas a escada para o terceiro andar, e depois para mim. Uma pergunta contorceu-se nos lábios do homenzinho, mas eu a evitei com uma declaração:

— Está acabado!

— Bravo! — exclamou ele ao entrarmos na biblioteca. — Ouviu isso, minha querida? Está tudo acabado!

Sua querida, sentada à mesa, no mesmo lugar que ocupara na outra noite, sorriu sem entusiasmo com seus lábios de boneca e murmurou:

— Oh, sim. — Não havia expressão alguma nessas palavras. Fui até a mesa e esvaziei os bolsos.

— Dezenove mil, cento e vinte e seis dólares e setenta centavos, incluindo os selos — anunciei. — Os outros oitocentos e setenta e três dólares e trinta centavos desapareceram.

— Ah! — Bruno Gungen acariciou a barba preta em forma de pá com uma trêmula mão rosada, e fitou-me com duros e brilhantes olhos. — E onde o encontrou? Mas, por favor, sente-se e conte-nos toda a história. Estamos famintos para ouvi-la, não, meu amor?

Seu amor bocejou e disse:

— Oh, sim.

— Não há muito o que contar — comecei. — A fim de reaver o dinheiro fui obrigado a fazer uma barganha, prometendo silêncio. Main foi roubado na tarde de domingo. Mas acontece que não poderíamos obter a condenação dos ladrões, se os prendêssemos. A única pessoa que poderia identificá-los... não quer fazê-lo.

— Mas quem matou Jeffrey? — O homenzinho cutucava-me o peito com ambas as rosadas mãos. — Quem o matou naquela noite?

— Foi suicídio. Desespero por ter sido roubado em circunstâncias que ele não podia explicar.

— Absurdo! — Meu cliente não gostou da versão de suicídio.

— A sra. Main foi acordada pelo tiro. O suicídio teria cancelado o seguro... tê-la-ia deixado sem um centavo. Assim, lançou a arma e a carteira pela janela, escondeu o bilhete deixado por ele e inventou a história do roubo.

— Mas o lenço! — exclamou Gungen. Estava profundamente excitado.

— Aquilo não significa coisa alguma — garanti-lhe com toda a solenidade —, exceto que Main... o senhor disse que ele era promíscuo... teve provavelmente um caso com a empregada de sua esposa e que ela, como tantas empregadas, usava coisas da patroa.

Ele distendeu as bochechas cobertas de ruge e bateu os pés, praticamente dançando. Sua indignação era tão engraçada como a declaração que a havia provocado.

— Veremos! — Girou sobre os calcanhares e saiu correndo da sala, repetindo sem cessar: — Veremos!

Enid Gungen estendeu-me a mão. Sua face de boneca era, naquele momento, toda curvas e covinhas.

— Obrigada — murmurou.

— Não há de quê — rosnei, sem tomar-lhe a mão. — Misturei tanto as coisas que qualquer prova é impossível. Mas ele não pode deixar de saber... Eu praticamente não lhe disse?

— Oh, isso! — Ignorou o caso com uma sacudidela da pequena cabeça para trás. — Posso cuidar perfeitamente de mim, enquanto ele não tiver prova definitiva.

Acreditei.

— Bruno Gungen voltou, agitado, à biblioteca, espumando pela boca, dando puxões no cavanhaque pintado, berrando que Rose Rubury não fora encontrada em parte alguma da casa.

Na manhã seguinte, Dick Foley disse-me que a empregada, em companhia de Weel e Dahl, havia partido para Portland.


 

                   Assassinato em Farewell

Fui o único a saltar do trem em Farewell.

Um homem deixou o saguão de passageiros e veio ao meu encontro debaixo da chuva que caía. Era um homem baixinho, rosto moreno e sem expressão, boné cinzento à prova d'água e capa cinzenta de tipo militar.

Não me olhou, mas sim para a valise e a outra mala que eu trazia nas mãos. Aproximou-se em passos rápidos, curtos.

Não pronunciou palavra ao me tomar as malas. Perguntei:

— Da parte de Kavalov?

Ele já me dera as costas e levava minha bagagem para um sedã Stutz marrom, estacionado no cascalho, ao lado da plataforma da estação. Como resposta a minha pergunta, inclinou duas vezes a cabeça para o Stutz, sem olhar em volta ou diminuir o meio trote saltado.

Segui-o até o veículo.

Três minutos depois, havíamos atravessado o povoado. Tomamos uma estrada que subia para oeste na direção das colinas. Sob a chuva, a estrada parecia o lombo de uma foca.

O homem de rosto achatado estava com pressa, e percorria a estrada a uma velocidade que logo deixou para trás o último dos bangalôs encarapitados na vertente da colina.

Logo depois, ele abandonou a reluzente estrada preta e trocou-a por outra, mais clara, que fazia uma curva para o sul e costeava o cume arborizado de uma colina. Vez por outra, a estrada, por uns trinta metros ou mais, transformava-se em um túnel de altas árvores, com grossos ramos entrelaçados.

A chuva acumulava-se nos galhos e descia com forte som sobre a capota do Stutz. O cinzento do começo da tarde chuvosa transformava-se em quase noite dentro dos túneis.

O homem ligou os faróis e aumentou a velocidade.

Sentava-se rígido e ereto ao volante. Eu, atrás. Acima da gola militar, entre os cabelos curtos da nuca, glóbulos de umidade formavam pequenos pontos brilhantes. A umidade poderia ser da chuva. Mas poderia ser também suor.

Estávamos a meio caminho de um dos túneis.

A cabeça do homem girou bruscamente para a esquerda e ele gritou:

— A-a-a-a-a-ah!

Foi um balido longo, trêmulo, agudo, esganiçado de pavor.

Levantei-me com um salto, curvado-me para a frente para ver o que havia com ele.

O carro guinou para um lado e mergulhou para a frente, lançando-me de volta ao assento.

Pela janela, entrevi uma coisa escura estirada na estrada.

Virei-me para olhar pela janela traseira, menos toldada pela chuva.

Vi um negro deitado de costas na estrada, perto da margem esquerda. Tinha o corpo arqueado, como se seu peso repousasse sobre os calcanhares e a parte posterior da cabeça. Um cabo de faca que não podia ter menos de dezoito centímetros projetava-se do lado esquerdo de seu peito.

Durante o tempo que levei para ver tudo isso, fizemos uma curva e deixamos o túnel.

— Pare — gritei para o homem de fisionomia vazia. Ele fingiu que não me ouvira. O Stutz era uma risca parda

sob nós. Coloquei uma das mãos no ombro do motorista.

O ombro contorceu-se sob minha mão, e ele gritou novamente "A-a-a-a-a-ah!", como se o negro morto o houvesse pegado.

Estendi a mão e desliguei o motor.

Ele soltou o volante e estendeu as mãos para mim. Sua boca emitia sons, mas não de palavras que eu conhecesse.

Segurei o volante com uma das mãos e coloquei o braço livre sob o queixo do homem. Curvei-me sobre as costas do assento dele, de modo que o peso da parte superior de meu corpo repousasse sobre sua cabeça, imprensando-a contra o volante.

Entre uma coisa e outra, e com a ajuda de Deus, o Stutz conservou-se na estrada até que paramos.

Saí de cima do homem de fisionomia vazia e perguntei:

— Que diabo está acontecendo com você?

Ele me fitou com olhos onde se via apenas o branco, tremeu, mas não disse coisa alguma.

— Vire o carro — ordenei. — Vamos voltar para lá.

Ele sacudiu a cabeça de um lado para outro, em desespero, e emitiu mais daqueles sons que poderiam ter sido palavras, se eu pudesse tê-las compreendido.

— Sabe quem era? — perguntei.

— Ele sacudiu a cabeça.

— Você sabe — rosnei.

Ele sacudiu outra vez a cabeça.

Mas eu começava a desconfiar que, desse cara, por mais que eu falasse, obteria apenas meneios de cabeça.

— Saia de trás do volante, então — disse eu. — Vou guiar até lá.

Ele abriu a porta do carro e correu para fora.

— Volte aqui — chamei.

Ele recuou, sacudindo a cabeça.

Amaldiçoei-o, esgueirei-me para trás do volante e disse:

— Muito bem, espere aqui por mim. — E bati a porta. Ele recuou devagar, observando-me com olhos apavorados e brancos, enquanto eu dava marcha a ré e virava o sedã.

Fui obrigado a guiar mais do que esperava, mais ou menos um quilômetro e meio.

Não encontrei o negro. O túnel estava vazio.

Se eu tivesse sabido o local exato onde ele estivera, poderia ter encontrado alguma coisa que indicasse como o corpo havia sido removido dali. Mas não tivera tempo de marcar um ponto de referência, e, naquele momento, quatro ou cinco lugares pareciam-me possíveis.

Com a ajuda dos faróis do sedã, percorri o lado esquerdo da estrada de uma extremidade a outra do túnel.

Não encontrei sinal algum de sangue. Nem de pegadas. Nem de coisa alguma que indicasse que alguém estivera caído na estrada. Não encontrei coisa alguma.

Mas estava escuro demais para que eu tentasse dar uma busca no bosque.

Voltei ao local onde deixara o cara de fisionomia vazia.

Havia desaparecido.

A coisa, pensei, dava a impressão de que o sr. Kavalov tinha razão em pensar que precisava de um detetive.

 

Uns oitocentos metros à frente do local onde o homem me abandonara, parei o Stutz diante de um portão de aço trabalhado que bloqueava a estrada. Ele cada um dos lados dele, altas cercas vivas estendiam-se para o bosque. A parte superior do telhado marrom de uma pequena casa era visível por sobre as cercas à esquerda.

Apertei a buzina do Stutz.

O ruído trouxe um desajeitado rapaz, de uns quinze ou dezesseis anos, até o outro lado do portão. Usava uma calça de brim desbotado e um suéter de listras berrantes. Ele, porém, não se postou no centro da estrada. Ficou de lado, com um braço oculto, como se segurasse alguma coisa escondida de mim pela cerca.

— Esta é a casa de Kavalov? — perguntei.

— Sim, senhor — respondeu, contrafeito.

Esperei que ele abrisse o portão. Mas não o fez. Permaneceu ali, olhando apreensivo para mim e para o carro.

— Por favor, moço, posso entrar? — indaguei.

— O que... quem é o senhor?

— Eu sou o cara que Kavalov mandou chamar. Se não vou entrar, diga logo para que eu possa pegar o trem de seis e cinqüenta de volta a San Francisco.

O rapaz mastigou o lábio e disse:

— Espere até eu ver se consigo encontrar a chave. — E desapareceu por detrás da cerca.

Passou-se um longo tempo, suficiente para ele ter tido uma conversa com alguém.

Ao voltar, abriu o portão de par em par e disse:

— Muito bem, senhor. Estão a sua espera.

Depois de ter passado pelo portão, vi luzes no alto de uma colina, a uns mil e seiscentos metros para a esquerda.

— É aquela a casa? — perguntei.

— Sim, senhor. Estão a sua espera.

Perto do local onde o rapaz ficara enquanto me falava pelo portão, vi um rifle de cano duplo, encostado na cerca.

Agradeci ao rapaz e continuei meu caminho. A estrada curvava-se suavemente, subindo a colina por terras cultivadas. Árvores altas e esguias haviam sido plantadas de cada lado da estrada.

Cheguei, finalmente, à frente do prédio, que, na escuridão, parecia uma mistura de um forte e uma fábrica. Era construído de concreto. Imagine-se um bocado de cones atarracados de vários tamanhos, aparem-se rudemente as suas pontas, misture-se o conjunto, ficando o maior situado mais ou menos perto do centro e os demais agrupados em torno dele, não rigorosamente de acordo com seus tamanhos, alinhe-se tudo isso com a inclinação do cume da colina, e ter-se-á um modelo da casa de Kavalov. As janelas tinham venezianas de aço. Não eram muitas. Não havia duas sequer que estivessem alinhadas vertical ou horizontalmente. Algumas estavam iluminadas.

Ao descer do carro, abriu-se a estreita porta da frente da casa.

Uma mulher baixa, de rosto vermelho, de uns cinqüenta anos mais ou menos, cabelos louro-desmaiados e enrolados várias vezes em torno da cabeça, apareceu em seguida. Usava um vestido de lã cinzenta, de gola alta e mangas apertadas. Quando sorriu, sua boca pareceu tão larga quanto seus lábios.

— O senhor é o moço da cidade? — perguntou ela.

— Isso mesmo. Perdi seu chofer em algum lugar lá na estrada.

— Deus o abençoe — disse ela. — Não tem importância. Um homem magro, de cabelos pretos colados ao crânio e face magra e preocupada, passou por ela para tomar-me as malas, que eu tirara do carro. Levou-as para dentro da casa.

A mulher afastou-se para um lado enquanto eu entrava e disse:

— Bem, acho que o senhor gostará de se lavar um pouco antes do jantar. Eles não se importarão de esperar alguns minutos, se o senhor se apressar.

— Sim, obrigado — agradeci e esperei que ela tomasse outra vez a frente. Segui-a por uma escada curva que subia pelo lado interno de um dos cones que formavam o prédio.

Ela me levou a um quarto no segundo andar, onde o homem magro desfazia minhas malas.

— Martin lhe trará qualquer coisa que o senhor precisar — disse ela da porta —, e, quando estiver pronto, simplesmente desça.

Respondi que o faria, e ela saiu. O magrela acabou de desfazer as malas enquanto eu me desvencilhava de paletó, colete, colarinho e gravata. Disse-lhe que não precisava mais de coisa alguma, lavei-me no banheiro contíguo, vesti uma camisa limpa e respectivo colarinho, um casaco e um paletó, e desci.

Encontrei vazio o largo saguão, mas ouvi vozes por uma porta aberta à esquerda.

Uma das vozes era um lamento anasalado. Queixava-se:

— Não suportarei isso. Não tolerarei. Não sou criança, e simplesmente não admitirei.

A outra era uma voz animada, embora ligeiramente áspera, de barítono. Disse alegre:

— De que adianta dizer que não toleraremos, quando estamos tolerando?

A terceira voz, feminina, suave, mas inexpressiva e apática, disse:

— Mas talvez ele o tenha assassinado. A voz queixosa respondeu:

— Não me importo. Não tolerarei.

Tão alegre como antes, interveio a voz de barítono:

— Oh, não tolerará?

Uma maçaneta girou no fundo do corredor. Eu não queria ser visto escutando a conversação. Dirigi-me para a porta aberta.

 

Pisei no umbral de uma sala oval, de teto baixo, mobiliada e decorada em cinza, branco e prata. Estavam ali reunidos dois homens e uma mulher.

O homem mais velho, mais ou menos na casa dos cinqüenta, levantou-se de uma funda cadeira cinzenta e fez uma cerimoniosa curvatura em minha direção. Era um indivíduo gordo, de altura mediana, inteiramente calvo, moreno e de olhos claros. Usava bigode de pontas enceradas e uma pêra rala e grisalha.

— Sr. Kavalov? — perguntei.

— Sim, senhor. — Era dele a voz queixosa. Disse-lhe quem eu era. Ele apertou-me a mão e apresentou-me aos demais.

A mulher era sua filha. Provavelmente, trinta anos. Possuía boca pequena, de lábios grossos, como os do pai, embora seus olhos fossem escuros, o nariz, curto e reto, e a pele, quase incolor. Havia algo de asiático em sua face bonitinha, passiva, vazia.

O homem de voz de barítono era seu marido. Chamava-se Ringgo, era seis ou sete anos mais velho do que a esposa, nem alto nem gordo, bom corpo. Tinha o braço esquerdo enfaixado, numa tipóia. Os nós dos dedos de sua mão direita estavam pretos de contusões. Tinha face magra, ossuda, viva, olhos pretos e brilhantes, cercados de rugas, e uma boca dura e bem-humorada.

Estendeu-me a mão contundida, agitou o braço ferido na minha direção, sorriu alegre e disse:

— Lamento que tenha perdido isso, mas os futuros ferimentos serão seus.

— Como foi que isso aconteceu? — perguntei. Kavalov ergueu uma gorda mão.

— Há tempo bastante para discutir isso depois do jantar — falou. — Vamos comer primeiro.

Entramos em uma pequena sala de jantar, verde e marrom, onde estava posta uma mesa quadrada. Sentei-me diante de Ringgo. No centro da mesa, separando-nos, havia uma bandeja de prata com orquídeas, ladeada por altos candelabros. A sra. Ringgo sentou-se a minha direita, e Kavalov à esquerda. No momento em que o último se sentou, notei a protuberância de uma pistola automática no bolso traseiro de sua calça.

Dois empregados serviam-nos. Havia bastante comida, e toda ela bem variada. Comemos caviar, uma espécie de consommé, linguado, batatas, geléia de pepino, novilho assado, milho e feijão verde, aspargos, pato selvagem e salada de alcachofra e tomate. Bebemos vinho branco, clarete, borgonha, café e creme de menthe.

Kavalov comia e bebia vorazmente. Mas nenhum de nós tampouco beliscou.

Kavalov foi o primeiro a ignorar sua própria ordem de nada comentar de seus problemas até que houvéssemos jantado. Ao terminar a sopa, pôs de lado a colher, dizendo:

— Não sou criança. Não me deixarei amedrontar. Desafiador, piscou para mim olhos pálidos e preocupados

e um beicinho apareceu-lhe entre o bigode e a pêra.

Ringgo sorriu gentilmente para ele. A fisionomia da sra. Ringgo permaneceu serena e desatenta, como se coisa alguma houvesse sido dita.

— O que há para causar medo? — perguntei.

— Nada — respondeu Kavalov. — Nada, exceto um bocado de embustes e encenações idiotas e sem sentido algum.

— O senhor pode chamar aquilo do que quiser — ribombou sobre meu ombro uma voz —, mas eu vi mesmo.

A voz pertencia a um dos homens que serviam à mesa, um jovem de face encovada e boca mole. Falou com uma espécie de controlada obstinação e sem erguer os olhos do prato que punha a minha frente.

Desde que ninguém prestou atenção à observação claramente audível do empregado, voltei-me mais uma vez para Kavalov. Com o garfo, ele aparava os lados de um linguado.

— Que tipo de embuste e encenação? — perguntei.

Kavalov pôs de lado o garfo e descansou os punhos na borda da mesa. Contraiu os lábios e curvou-se para mim sobre o prato.

— Suponha — ele enrugou a testa, e seu calvo couro cabeludo estirou-se para cima — que o senhor tenha prejudicado um homem há dez anos. — Virou rapidamente os punhos, pondo as palmas das mãos para cima na toalha branca. — Esse mal foi praticado à maneira comercial comum... compreende?... com vistas ao lucro. Não há, no caso, coisa alguma de pessoal. O senhor mal o conhece. E suponhamos que ele venha procurá-lo após todos esses dez anos e lhe diga: "Vim vê-lo morrer". — Virou as mãos, deixando-as com as palmas para baixo. — Bem, o que o senhor pensaria?

— Eu acho — respondi — que por esse motivo não apressaria minha morte.

A ansiedade deixou-lhe a face, que ficou vazia. Pestanejou para mim durante um momento, e, em seguida, começou a comer o peixe. Depois de mastigar e engolir o último pedaço do linguado, ergueu novamente os olhos para mim. Sacudiu devagar a cabeça, repuxando os cantos da boca.

— Não foi uma boa resposta — falou. Encolheu os ombros e estirou os dedos. — Contudo, o senhor terá que enfrentar esse capitão Gato-e-Rato. Foi por isso que o contratei.

Assenti com a cabeça.

Ringgo sorriu e deu uma palmadinha no braço enfaixado, dizendo:

— Desejo-lhe mais sorte com ele do que a que eu tive. A sra. Ringgo estendeu uma das mãos e colocou as pontas dos dedos durante um momento sobre o punho do marido.

— Esse mal que eu devia ter supostamente cometido: que gravidade teve? — perguntei a Kavalov.

Ele contraiu os lábios, fez pequenos movimentos ondula-tórios com os dedos da mão direita e disse: l

— Oh... ah... a ruína.

— Podemos então aceitar como fato que esse seu capitão está realmente disposto a fazer alguma coisa?

— Meu Deus! — exclamou Ringgo, deixando cair o garfo. — Eu não gostaria de pensar que ele quebrou meu braço apenas para se divertir.

A minhas costas, o encovado empregado falou com o colega:

— Ele quer saber se nós pensamos que o capitão está realmente disposto a fazer alguma coisa.

— Eu o ouvi — respondeu, sombrio, o outro. — Que ajuda ele vai dar!

Kavalov bateu no prato com o garfo e fechou a cara para os empregados.

— Calem a boca — disse. — Onde está o assado? Apontou o garfo para a sra. Ringgo. — O copo dela está vazio. — Olhou para o garfo. — Veja só o cuidado que eles tomam com a minha prataria — queixou-se, mostrando-a. — Há um mês que não é limpa direito.

Pôs o garfo de lado. Empurrou o prato pela mesa para abrir caminho para os antebraços. Inclinou-se sobre eles, curvando os ombros. Suspirou. Fez carranca. Olhou-me fixamente, com suplicantes olhos claros.

— Escute aqui — disse, com voz chorosa. — Sou algum idiota? Mandaria buscar um detetive em San Francisco se não precisasse dele? Eu lhe pagaria o que o senhor está me cobrando, quando poderia arranjar um bocado de bons detetives por metade disso, se não precisasse do melhor detetive que pudesse obter? Exigiria um detetive tão caro, se não soubesse que esse capitão é extremamente perigoso?

Permaneci calado no meu lugar e pareci atento.

— Escute — choramingou. — Isto não é um 1? de abril. O capitão quer matar-me. Veio aqui para me matar. E o fará com certeza, se alguém não o impedir.

— O que ele fez até agora? — perguntei.

— Esse não é o problema. — Kavalov sacudiu, impaciente, a cabeça. — Não lhe peço que desfaça coisa alguma que ele já fez. Peço que evite que ele me mate. O que ele fez até agora? Bem, ele apavorou inteiramente meu pessoal. Quebrou o braço de Dolph. Até agora fez isso, se o senhor quer saber.

— Há quanto tempo vem acontecendo isso? Há quanto tempo ele está aqui? — perguntei.

— Uma semana e dois dias.

— Seu chofer lhe falou a respeito do negro que vimos na estrada?

Kavalov apertou os lábios e inclinou devagar a cabeça.

— Ele não estava mais lá quando voltei pela estrada — disse eu.

Ele abriu os lábios com um pequeno sopro e disse, excitado:

— Não me importo em absoluto com seus negros e suas estradas. O que me importa é não ser assassinado.

— Apresentou alguma queixa à delegacia? — perguntei, esforçando-me para não demonstrar que estava ficando irritado.

— Fiz isso. Mas de que adiantou? Ele me ameaçou? Bem, ele disse que veio para me ver morrer. Vindo da parte dele, da maneira como ele falou, era uma ameaça. Mas para o delegado não é nada disso. Ele tem apavorado meus empregados. Tenho, por acaso, provas de que ele o fez? O delegado diz que não tenho. Que absurdo! Eu preciso lá de provas? Então não sei? É preciso que ele deixe impressões digitais do medo que provoca? Assim, a situação se resume nisto: o delegado ficará de olho nele. De olho, foi o que ele disse, preste atenção. Tenho vinte pessoas aqui, empregados da casa e da fazenda, com quarenta olhos. E ele vem e vai como quer. De olho!

— Como foi que aconteceu esse caso com o braço de Ringgo? — perguntei.

Kavalov sacudiu, impaciente, a cabeça e começou a cortar a carne de ovelha com curtos e rápidos golpes.

— Não há nada que possamos fazer a esse respeito — disse Ringgo. — Eu o ataquei em primeiro lugar. — Olhou para os contundidos nós dos dedos. — Não pensei que ele fosse tão duro. Talvez eu não seja mais tão bom como era. De qualquer modo, uma dúzia de pessoas viu-me atingir-lhe o queixo antes que ele me tocasse. Fizemos nossa exibição ao meio-dia, em frente à agência do correio.

— Quem é esse capitão?

— Não é ele — disse o encovado empregado. — É aquele demônio negro.

— O nome dele é Sherry — disse Ringgo. — Hugh Sherry. Era capitão do exército britânico quando o conhecemos... trabalhava no Serviço de Intendência, no Cairo. Isso aconteceu em 1917, há doze anos. O comodoro — ele inclinou a cabeça na direção do sogro — especulava nessa ocasião com suprimentos militares. Sherry devia ser oficial combatente. Não tinha cabeça para trabalho burocrático. Não era suficientemente inteligente. Alguém achou que o comodoro não teria ganho tanto dinheiro, se Sherry não houvesse sido tão descuidado. Sabiam que Sherry não havia, pessoalmente, ganho dinheiro algum. Degradaram Sherry, ao mesmo tempo em que solicitaram ao comodoro que, por favor, fosse embora.

Kavalov ergueu os olhos do prato para explicar.

— Os negócios são assim em tempo de guerra. Não me deixariam ir embora se eu houvesse feito alguma coisa pela qual me pudessem responsabilizar.

— E agora, doze anos depois que o senhor conseguiu que ele fosse expulso, desonrado, do exército — disse eu —, ele chega e ameaça matá-lo, ou assim pensa o senhor, e começa a espalhar o pânico entre sua gente. É isso?

— Não, não é isso — queixou-se Kavalov. — Não é tudo. Primeiro, não dei jeito algum para que ele fosse expulso de qualquer exército. Sou um homem de negócios. Pego meu lucro onde o encontro. Se alguém me deixa tirar um lucro que torna furiosos seus patrões, que importância tem para mim a zanga deles? Segundo, não apenas acho que ele quer me matar. Sei disso.

— Estou procurando entender bem o caso — disse eu.

— Não há coisa alguma para ser entendida. Um homem vai me matar. Peço-lhe que o impeça de fazer isso. Não é bastante simples?

— Bastante — concordei, e resolvi evitar mais conversa com ele.

Kavalov e Ringgo fumavam charutos, e a sra. Ringgo e eu tragávamos nossos cigarros com o acompanhamento do creme de menthe, quando entrou a loura de rosto vermelho e vestido de lã cinzenta.

Entrou apressada, com olhos esbugalhados e sombrios.

— Anthony está dizendo que há um incêndio no campo lá de cima.

Kavalov esmagou o charuto entre os dentes e olhou intencionalmente para mim.

Levantei-me, perguntando:

— Como posso chegar lá?

— Eu lhe mostrarei o caminho — ofereceu-se Ringgo, erguendo-se de sua cadeira.

— Dolph — protestou a esposa —, seu braço!

Ele sorriu para ela, carinhoso, e disse:

— Não vou interferir. Vou apenas ver como um especialista trata dessas coisas.

 

Corri para meu quarto em busca de chapéu, casaco, lanterna elétrica e pistola.

Os Ringgo encontravam-se à porta principal quando comecei a descer a escada.

Ele vestira uma capa de chuva escura, abotoada sobre o braço ferido, enquanto a manga vazia pendia ao lado. Tinha o braço direito em volta da esposa, e ela, ambos os braços em torno do pescoço dele. Ela curvava-se bem para trás e ele bem para a frente. Estavam de lábios colados.

Recuando um pouco, fiz barulho com os pés ao voltar a aparecer. Nesse momento, eles encontravam-se já separados, à porta, a minha espera. Ringgo respirava forte, como se houvesse dado uma corrida. Abriu a porta. A sra. Ringgo fez-me um pedido:

— Por favor, não deixe esse meu tolo marido arriscar-se demais.

Respondi que não deixaria e perguntei a ele:

— Vale a pena levar algum empregado ou algum trabalhador do campo?

Ele sacudiu negativamente a cabeça.

— Os que não estão escondidos seriam tão inúteis como os que estão — retrucou. — Todos eles perderam a coragem.

Saímos juntos, deixando a sra. Ringgo a observar-nos da porta. A chuva parará, embora uma nuvem negra prometesse mais para breve.

Ringgo conduziu-me por um caminho que dava a volta na casa, uma trilha estreita que descia a colina, passando por arbustos e um grupo de pequenos prédios em um vale raso, e subia diagonalmente outra colina, mais baixa.

O caminho estava empapado de água. No alto da colina deixamos a trilha, passamos por um portão de arame e cruzamos um campo de restolhos, pegajoso e escorregadio. Andamos rapidamente. A viscosidade do chão, o calor do ar noturno e nossos casacos tornavam difícil a caminhada.

Depois de atravessar esse campo, vimos o incêndio, um trecho de alaranjado tremeluzente entre as árvores que nos separavam do local. Passamos por cima de uma baixa cerca de arame e abrimos caminho, serpenteando, entre as árvores.

Um farfalhar violento irrompeu entre as folhas acima de nós, começando à esquerda e terminando com um som forte e surdo contra um tronco de árvore imediatamente a nossa direita. Em seguida, alguma coisa caiu com um som surdo na terra mole aos pés da árvore.

A esquerda, uma voz riu, uma gargalhada selvagem e esganiçada.

A voz que gargalhava não poderia estar muito longe. Fui atrás dela.

O incêndio era pequeno e estava distante demais para me interessar muito, e a escuridão parecia quase total entre as árvores.

Tropecei em raízes, choquei-me com árvores e nada encontrei. A lanterna teria ajudado mais o gargalhador do que a mim; assim, conservei-a apagada nas mãos.

Quando me cansei de brincar de cabra-cega comigo mesmo, caminhei pelo bosque até o campo do outro lado e desci para o local do incêndio.

O fogo fora ateado numa das extremidades do campo, a uns três ou quatro metros da árvore mais próxima. Queimava galhos mortos e ramos partidos que a chuva não tocara e já quase se apagara quando cheguei lá.

De cada lado da fogueira, vi dois pequenos galhos em forma de forquilha enfiados no chão. Nas forquilhas apoiavam-se as pontas de um pedaço de ramo verde. Enfiada no ramo, sobre o fogo, vi uma carcaça de uns quarenta e cinco centímetros de comprimento, decapitada, com a cauda amputada, sem pés, esfolada e aberta de cima a baixo.

No chão, a alguns centímetros, encontrei a cabeça de um cãozinho airedale, a pelagem, as patas, a cauda, as entranhas, e um bocado de sangue.

Ao lado da fogueira notei alguns gravetos secos, quebrados em tamanhos convenientes. Coloquei-os sobre as brasas no momento em que Ringgo saiu do bosque e veio ao meu encontro. Tinha nas mãos uma pedra do tamanho de uma laranja grande.

— Viu-o? — perguntou ele.

— Não. Ele soltou uma gargalhada e foi embora. Ele estendeu a pedra, dizendo:

— Foi isso o que lançaram contra nós.

Desenhada na pedra cinzenta e lisa, em vermelho, havia redondos olhos vazios, um nariz triangular e uma boca risonha, desdentada: uma grosseira caveira.

Raspei um dos olhos vermelhos com a unha e disse:

— Creio.

Ringgo olhava fixamente para a carcaça que chiava no fogo e para os restos no chão.

— O que acha disso? — perguntei. Ele engoliu em seco e respondeu:

— Mickey era um cachorrinho danado de bom.

— Era seu?

Ele assentiu com a cabeça.

Andei em volta com a lanterna, examinando o chão. Encontrei algumas pegadas, mas borradas.

— Encontrou alguma coisa? — perguntou Ringgo.

— Encontrei. — Mostrei-lhe uma das pegadas. — Feitas com trapos amarrados em volta de sapatos. Não servem para nada.

Voltamo-nos outra vez para o fogo.

— Isso é outra encenação — falei. — Quem quer que tenha matado e esfolado o cachorrinho conhecia o assunto. Conhecia-o bem demais para pensar que poderia assá-lo desta maneira. O lado de fora ficaria queimado antes mesmo que a parte de dentro começasse a esquentar, e, da maneira que ele o colocou no espeto, o animal cairia se alguém tentasse virá-lo. A carranca de Ringgo diminuiu um pouco.

— Isso é um pouco melhor — disse ele. — Matá-lo foi uma maldade, mas odeio pensar em alguém comendo Mickey, ou mesmo pretendendo fazê-lo.

— Não pretendiam — garanti-lhe. — Estavam montando um espetáculo. É este o tipo de coisa que vem acontecendo?

— É.

— Qual o sentido de tudo isso? Sombriamente, ele citou as palavras de Kavalov:

— O capitão Gato-e-Rato.

Dei-lhe um cigarro, puxei um para mim e acendi-os com um graveto tirado do fogo. Ele ergueu o rosto e disse:

— Está chovendo outra vez. Vamos voltar para casa. — Mas permaneceu junto ao fogo, olhando para a carcaça que assava. O mau cheiro de carne chamuscada era forte em volta.

— Você ainda não leva isto muito a sério, leva? — perguntou ele, em voz natural.

— É uma situação engraçada.

— É insana — disse ele na mesma voz baixa. — Procure compreender o seguinte. A honra significava alguma coisa para ele. Foi por isso que tivemos de enganá-lo, em vez de suborná-lo, lá no Cairo. Menos tempo de desonra poderia enlouquecer um homem como ele, imagine dez anos! Ele fugiu, escondeu-se e pensou no caso. Quando o golpe caísse sobre ele, teria de escolher entre o suicídio... ou isto. Pensei como você no princípio. — Deu um pontapé na fogueira. — "Isso é tolice." Mas não posso rir da situação agora, exceto quando estou em companhia de Miriam e do comodoro. Quando ele surgiu pela primeira vez, não tive a menor dúvida de que podia com ele. Eu havia conseguido isso facilmente no Cairo. Quando descobri que não podia, perdi um pouco a cabeça. Fui à cidade e provoquei uma briga com ele. Bem, isso tampouco serviu. E a imbecilidade da situação que a torna tão má. No Cairo, ele era o tipo de homem que penteava o cabelo antes de barbear-se, para que o espelho mostrasse uma imagem bem-arrumada. Pode compreender uma coisa dessas?

— Vou ter que falar com ele primeiro — respondi. — Está hospedado no povoado?

— Ele ocupa um bangalô na colina que fica acima do povoado. É o primeiro à esquerda, depois que se entra na estrada principal. — Ringgo lançou o cigarro ao fogo e fitou-me pensativo, mordendo o lábio inferior. — Não sei como você e o comodoro vão se dar. Não pode fazer piadas com ele. O velho não consegue compreendê-las, e, por esse motivo, não confiará em você.

— Tentarei ter cuidado — prometi. — Adianta oferecer algum dinheiro a esse Sherry?

— Diabo, não — respondeu ele baixinho. — Ele é maluco demais para isso.

Retiramos a carcaça do cachorrinho, desfizemos a fogueira com os pés e a apagamos no barro antes de voltarmos para casa.

 

O campo estava fresco e claro à luz forte do sol na manhã seguinte. Uma brisa quente secava o solo e caçava nuvens de algodão pelos céus.

Às dez horas, saí a pé para a casa do capitão Sherry. Não tive dificuldade alguma em encontrar a casa, um bangalô rosado de estuque com telhado de terracota, à qual se tinha acesso a partir da estrada por um caminho lajeado.

Uma mesa coberta com toalha branca, de dois lugares, era a única mobília numa varanda mosaicada que se estendia de um lado a outro na frente da casa.

Antes que eu pudesse bater, porém, a porta foi aberta por um negro magro, pouco mais do que um menino, usando jaqueta branca. Tinha feições mais delicadas do que as da maioria dos negros americanos, aquilina, agradavelmente inteligente.

— Você vai apanhar um resfriado deitando-se em estradas molhadas — disse eu —, se não for atropelado antes.

Os cantos de sua boca subiram até as orelhas, em um sorriso que me mostrou um bocado de fortes dentes amarelos.

— Sim, senhor — respondeu ele. — O capitaine retardou o café da manhã para que o senhor pudesse fazer-lhe companhia. Quer fazer o favor de se sentar? Vou chamá-lo.

— Nada de carne de cachorro?

Os cantos da boca subiram outra vez, e ele sacudiu vigorosamente a cabeça.

— Não, senhor. — Estendeu as negras mãos e contou os dedos. — Temos laranja, arenque defumado, rins grelhados, ovos, geléia, torradas, e café ou chá. Nada de carne de cachorro.

— Ótimo — respondi, e sentei-me em uma das cadeiras de vime da varanda.

Mal tive tempo de acender um cigarro quando surgiu o capitão Sherry.

Era um homem alto e esguio, de uns quarenta anos, cabelo amarelado, partido no meio e colado à pequena cabeça, e rosto queimado de sol. Tinha olhos cinzentos, com pálpebras inferiores tão retas como a borda de uma régua. Rugas, como talhos, desciam das narinas e passavam pelos cantos da boca. Outras rugas, igualmente profundas, cortavam as bochechas até o queixo bem-pronunciado. Usava um roupão de banho de flanela, de listras alegres, sobre o pijama cor de areia.

— Bom dia — cumprimentou ele em voz agradável, fazendo uma meia continência. Não estendeu a mão. — Não se levante. Teremos que esperar ainda alguns minutos antes que Marcus prepare o café. Dormi tarde e tive um sonho abominável. — A voz era arrastada, deliberadamente lânguida. — Sonhei que a garganta de Theodore Kavalov fora cortada daqui até aqui. — Colocou os dedos ossudos sob as orelhas. — Foi uma coisa atrozmente sanguinolenta. Ele sangrou e guinchou horrivelmente, aquele suíno.

Sorri alegremente para ele, perguntando:

— E não gostou do sonho?

— Oh, cortar a garganta dele foi ótimo, mas ele sangrou e gritou de modo tão vil! — Ergueu o nariz no ar e fungou. —s Há madressilvas por aqui, não?

— O cheiro parece delas. Foi degolamento que o senhor teve em mente quando o ameaçou?

— Quando o ameacei — disse ele, em voz lenta. — Meu caro amigo, jamais fiz coisa alguma parecida. Eu me encontrava em Udja, uma fedorenta cidadezinha marroquina perto da fronteira argelina, quando, certa manhã, uma voz falou-me de uma laranjeira. Disse: "Vá até Farewell, na Califórnia, Estados Unidos, e lá você verá Theodore Kavalov morrer". Achei a idéia maravilhosa. Agradeci à voz, disse a Marcus para fazer as malas, e vim para cá. Logo que cheguei, contei o caso a Kavalov, pensando que ele talvez morresse na ocasião e eu não precisasse ficar à espera. Mas ele não o fez, e lamentei, tarde demais, não ter perguntado à voz qual seria a data certa. Odeio ter que perder meses por aqui.

— Então é por isso que vem tentando apressar as coisas? — perguntei.

— Não entendi.

— Schrecklichkeit* — respondi. — Caveiras de pedra, churrascos de cachorro, cadáveres que desaparecem.

(*) "Terror", "coisas assustadoras". Em alemão no original. (N. E.)

 

— Passei quinze anos na África — disse ele —, e tenho profunda fé em vozes que partem de laranjeiras onde não há ninguém para auxiliá-las. Não pense que tenha algo a ver com o que quer que tenha acontecido.

— Marcus? — perguntei.

Sherry acariciou o rosto recém-barbeado e respondeu:

— Isso é possível. Ele tem uma queda incorrigível por uma espécie de brincadeira africana de mau gosto. Eu darei, com prazer, uma surra nele por qualquer molecagem da qual o senhor tenha prova razoavelmente certa.

— Deixe que o pegue fazendo isso — repliquei —, e eu mesmo lhe darei à surra.

Sherry inclinou-se para a frente e falou em voz cautelosa:

— Tome cuidado para que ele de nada desconfie até que consiga agarrá-lo bem. Ele é notavelmente eficiente com as duas facas que usa.

— Procurarei lembrar-me disso. A voz disse alguma coisa sobre Ringgo?

— Não foi necessário. Quando o corpo morre, a mão morre.

O negro Marcus apareceu, trazendo a comida. Dirigimo-nos à mesa, onde iniciei meu segundo desjejum do dia.

Sherry estava em dúvida se a voz que lhe falara da laranjeira falara também com Kavalov. Perguntara a ele, disse, mas não recebera uma resposta muito satisfatória. Acreditava que vozes que anunciavam a morte de inimigos geralmente avisavam também a vítima.

— Essa é — explicou — a maneira convencional de fazer as coisas, acho.

— Não sei — repliquei. — Vou ver se descubro para o senhor. Talvez eu também deva perguntar a ele, se sonhou na noite passada.

— Pareceu-lhe, esta manhã, que ele havia tido um pesadelo?

— Não sei. Saí antes de ele levantar-se.

Os olhos de Sherry transformaram-se em quentes pontos cinzentos.

— Quer dizer — perguntou — que o senhor não tem idéia de como ele está esta manhã, se está morto ou vivo, se meu sonho foi realidade ou não?

— Isso mesmo.

A dura linha da boca afrouxou-se em um lento e alegre sorriso.

— Por Júpiter — disse —, isso é maravilhoso! Eu pensei... O senhor me deu a impressão de saber com certeza que nada havia em meu sonho, que era apenas um sonho sem significação alguma.

Bateu secamente as mãos.

O negro Marcus apareceu, subitamente, à porta.

— Faça as malas — ordenou Sherry. — O careca está liquidado. Vamos embora.

Marcus inclinou-se e, sorrindo, recuou para o interior da casa.

— Não será melhor esperar para ter certeza? — perguntei.

— Mas tenho certeza — disse ele, com voz arrastada. — Tanta certeza como tive quando a voz me falou da laranjeira. Não há nada a esperar agora. Vi-o morrer.

— Em um sonho.

— Terá sido um sonho? — perguntou, descuidadamente.

Ao me despedir, dez ou quinze minutos depois, Marcus fazia ruídos dentro de casa que pareciam realmente os de alguém arrumando malas.

Sherry apertou-me a mão, dizendo:

— Foi um grande prazer tê-lo no desjejum. Talvez nos encontremos novamente, se seu trabalho o levar algum dia ao norte da África. Recomendações a Miriam e a Dolph. Não posso, com sinceridade, enviar-lhes condolências.

Afastando-me da zona que podia ser vista do bangalô, deixei a estrada, tomei uma trilha pela vertente de uma colina mais alta e explorei o terreno à procura de um local mais elevado de onde pudesse vigiar a casa de Sherry. A nordeste, encontrei um esconderijo, uma casa vazia em ruínas, sobre uma saliente plataforma rochosa. Toda a frente do bangalô, parte de um dos lados e um bom trecho do caminho lajeado, incluindo sua junção com a estrada, podiam ser vistos do terraço da casa abandonada. A distância era muito grande para uma observação a olho nu, mas, com um binóculo, o local seria perfeito, mesmo possuindo uma cerca de grandes arbustos em frente.

Ao voltar à casa de Kavalov, encontrei Ringgo numa cadeira, recostado e em almofadas de cores berrantes, debaixo de uma árvore, com um livro na mão.

— O que achou dele? — perguntou. — É biruta?

— Não muito. Ele enviou recomendações ao senhor e à sra. Ringgo. Como está o braço esta manhã?

— Péssimo. Acho que deixei que ficasse úmido demais na noite passada. Sofri o diabo durante a noite.

— Esteve com o capitão Gato-e-Rato? — Ouvi atrás de mim a voz queixosa de Kavalov. — E achou algum motivo de satisfação nisso?

Virei-me. Ele descia o caminho, vindo da casa. Tinha a face mais cinzenta do que morena naquela manhã, mas, pelo que podia ver de sua garganta pela gola em forma de V, não havia sinal algum de corte.

— Ele estava fazendo as malas quando saí de lá — expliquei. — Vai voltar para a África.

 

Aquele dia era uma quinta-feira. Nada mais aconteceu durante o dia.

Na manhã de sexta-feira, fui acordado pelo ruído da porta do meu quarto sendo violentamente empurrada.

Martin, o empregado de rosto fino, entrou correndo no quarto e começou a sacudir-me o ombro, embora eu já estivesse sentado quando ele chegou ao meu lado. O rosto magro estava lívido e feio de medo.

— Aconteceu — balbuciou ele. — Oh, meu Deus, aconteceu!

— O que foi que aconteceu?

— Aconteceu! Aconteceu!

Empurrei-o para o lado e saltei da cama. Ele voltou-se de súbito e correu para o banheiro. Ouvi-o vomitar no momento em que enfiei os pés nos chinelos.

O quarto de Kavalov ficava três portas depois do meu, no mesmo lado do prédio.

Ouvi por toda parte uma mistura de ruídos, vozes nervosas, portas abrindo-se e fechando-se, embora não conseguisse ver pessoa alguma.

Corri para a porta de Kavalov, que encontrei aberta.

Vi-o estirado em uma baixa cama espanhola, os lençóis re-puxados para o pé do móvel.

Estava de costas, e sua garganta fora seccionada em corte curvo que acompanhava a linha do queixo entre dois pontos, uns dois centímetros abaixo dos lobos das orelhas.

O sangue que empapara a fronha e o lençol azul era de um púrpura de suco de uva, grosso e pegajoso, já coagulando.

Ringgo entrou, usando um roupão de banho como se fosse uma pelerina.

— Aconteceu — rosnou ele, repetindo as mesmas palavras do empregado.

Chocado, pesaroso, olhou para a cama e começou a praguejar com voz sufocada, abafada.

A mulher loura e de rosto vermelho, Louella Qually, a governanta, entrou, gritou, passou por nós e correu para a cama, ainda gritando. Agarrei-lhe o braço quando ela tentou puxar as cobertas.

— Deixe as coisas como estão — disse eu.

— Cubra-o. Cubra-o. O pobre homem! — exclamou ela.

Afastei-a da cama. Quatro ou cinco empregados encontravam-se no quarto naquele momento. Entreguei a governanta aos cuidados de dois deles, dizendo-lhes que a levassem e a acalmassem. Ela saiu, rindo e chorando.

Ringgo olhava ainda fixamente para a cama.

— Onde está a sra. Ringgo? — perguntei.

Ele não me escutou. Dei uma palmadinha em seu braço bom e repeti a pergunta.

— Está no quarto dela. Ela... ela não precisa ver como isso aconteceu.

— Não será melhor você ir cuidar dela?

Ele inclinou a cabeça, voltou-se devagar e saiu. O empregado, ainda lívido, entrou.

— Quero todas as pessoas que se encontram na casa, empregados domésticos, rurais, todo mundo, reunidas lá embaixo na sala da frente — falei. — Reúna-as imediatamente e diga-lhes que devem ficar lá até que chegue o delegado.

— Sim, senhor — disse ele, e desceu, seguido pelos demais empregados.

Fechei a porta do quarto e fui até a biblioteca, de onde telefonei para a delegacia, situada na sede do condado. Conversei com um policial chamado Hilden. Quando lhe contei a história, ele respondeu que o delegado chegaria a casa dentro de meia hora.

Voltei a meu quarto e vesti-me. Quando saía, o empregado apareceu para dizer que todo o pessoal estava reunido na sala da frente... todos, exceto os Ringgo e a empregada da sra. Ringgo.

Encontrava-me examinando o quarto de Kavalov no momento em que chegou o delegado. Era um homem de cabelos brancos, mansos olhos azuis, voz bordada e apagada e bigode branco. Trouxera três ajudantes, um médico e um juiz de instrução.

— Ringgo e o empregado pessoal podem lhe dar mais de-. talhes do que eu — expliquei, depois dos apertos de mão. —

Voltarei logo que possível. Vou à casa de Sherry. Ringgo lhe contará em que ponto ele se enquadra na história.

Escolhi na garagem um enlameado Chevrolet e dirigi-me para o bangalô. Encontrei portas e janelas fechadas, e minhas batidas nenhuma resposta produziram.

Desci o caminho lajeado até o carro e tomei a direção de Farewell. Ao chegar, soube logo que Sherry e Marcus haviam tomado o trem de duas e dez para Los Angeles na tarde do dia anterior, levando três baús e meia dúzia de malas, que o funcionário da estação embarcara para eles.

Depois de ter enviado um telegrama à filial de Los Angeles, procurei o homem de quem Sherry alugara o bangalô.

Ele nada podia dizer sobre os inquilinos, salvo que ficara desapontado porque não haviam ficado ali nem mesmo duas semanas inteiras. Sherry devolvera as chaves com um curto bilhete, dizendo que fora chamado inesperadamente.

Embolsei o bilhete. Amostras de letras são sempre úteis. Pedi emprestadas as chaves do bangalô e voltei a ele.

Nada encontrei de valor, exceto um bocado de impressões digitais, que poderiam ser úteis mais tarde. Coisa alguma havia que me dissesse para onde haviam ido.

Voltei à casa de Kavalov.

O delegado acabava de interrogar o pessoal da casa.

— Não consegui nada — disse. — Ninguém ouviu coisa alguma e ninguém viu nada desde a hora em que foram dormir, ontem à noite, até que o empregado abriu a porta do quarto para chamá-lo às oito desta manhã e encontrou-o morto daquele jeito. Sabe de mais alguma coisa?

— Não. Falaram-lhe a respeito de Sherry?

— Oh, sim. Ele é a nossa presa, acho, não?

— Isso mesmo. Parece que ele seguiu ontem à tarde para Los Angeles em companhia do empregado. Poderemos verificar se isso é verdade ou não. O que diz o médico?

— Disse que ele foi morto entre três e quatro horas da manhã com uma faca bastante pesada... uma única cutilada da esquerda para a direita, como faria um canhoto.

— Talvez um único corte bem dado — concordei —, mas não exatamente uma cutilada. Foi mais lento do que isso. Uma cutilada, se curva, devia virar-se para cima, no meio, para longe de quem aplica o golpe, e para baixo, na direção dele, nas extremidades... exatamente o oposto desta.

— Oh, muito bem. Esse tal Sherry é canhoto?

— Não sei. — Perguntei a mim mesmo se Marcus era. — Encontrou a faca?

— Nenhum sinal dela. E tem mais: não encontramos coisa alguma, em lugar nenhum. É estranho que um cara tão amedrontado como estava Kavalov, tanto quanto se podia ver, não se fechasse bem por dentro. As janelas estavam abertas. Qualquer pessoa podia ter entrado por elas usando uma escada. A porta não estava trancada.

— Poderia haver uma meia dúzia de razões para isso. Ele... Um dos auxiliares do delegado, um louro de ombros largos, veio até a porta, dizendo:

— Encontramos a faca.

O delegado e eu saímos em companhia do policial e fomos até o lado da casa onde se situava o quarto de Kavalov. Notamos que a lâmina da faca estava enterrada no chão, entre os arbustos que ladeavam um caminho que se dirigia para os cômodos do pessoal rural.

O cabo de madeira da faca, pintado de vermelho, inclinava-se um pouco para a casa. Havia ainda pequenas manchas de sangue na lâmina, embora a terra mole houvesse apagado a maior parte delas. Não vimos sangue no cabo, nem coisa alguma que parecesse impressão digital.

Tampouco descobrimos pegadas no terreno mole em volta da faca. Aparentemente, ela fora lançada entre os arbustos.

— Acho que isso é tudo o que há por aqui — disse o delegado. — Não há nada que prove que algum dos moradores teve alguma coisa com o caso. Agora vamos cuidar desse tal capitão Sherry.

Acompanhei-o até o povoado. Na agência do correio, soubemos que Sherry deixara um endereço para a remessa de correspondência: posta-restante, St. Louis, Misso. O agente disse que ele não recebera carta alguma durante sua estada em Farewell.

Na agência do telégrafo, descobrimos que ele nem recebera nem enviara telegramas. Enviei um à filial de St. Louis.

O resto das investigações feitas no povoado nada revelou, exceto sabermos que a maioria dos mandriões de Farewell vira Sherry e Marcus tomarem o trem de duas e dez na direção sul.

Antes de voltarmos à casa de Kavalov, recebi um telegrama da filial de Los Angeles:

Baús e malas de Sherry aqui no depósito de bagagem. Ainda não retirados. Mantendo-os sob vigilância.

Ao voltarmos à casa, encontrei Ringgo no saguão e perguntei-lhe:

— Sherry é canhoto?

Ele pensou durante um momento e sacudiu a cabeça.

— Não consigo lembram-me — disse. — Pode ser. Vou perguntar a Miriam. Talvez ela saiba... Mulheres lembram-se de coisas como essas.

Ao descer outra vez a escada, balançou a cabeça afirmativamente:

— Ele é praticamente ambidestro, mas usa mais a mão esquerda. Por quê?

— O médico acha que o crime foi cometido com a mão esquerda. Como está agora a sra. Ringgo?

— Acho que o pior choque já passou, obrigado.

 

A bagagem de Sherry permaneceu depositada na estação ferroviária de Los Angeles durante todo o sábado. No fim da tarde, o delegado anunciou que Sherry e o negro estavam sendo procurados por assassinato. Na mesma noite, nós dois tomamos o trem na direção sul.

Na manhã de domingo, com a ajuda de dois homens do Departamento de Polícia de Los Angeles, abrimos a bagagem. Nada encontramos, salvo roupas comuns e objetos de uso pessoal, que nada nos informaram.

A viagem não produzira dividendos.

Voltei a San Francisco e mandei preparar e despachar fardos de circulares.

Passaram-se duas semanas, durante as quais as circulares nada trouxeram além do número habitual de alarmas falsos.

Logo depois, a polícia de Spokane localizou Sherry e Marcus numa pensão em Stevens Street.

Um desconhecido telefonara à polícia dizendo que um certo Fred Williams, que ali residia, recebia quase todos os dias a visita de um negro misterioso, e que suas ações eram muito suspeitas. A polícia de Spokane possuía cópias da nossa circular. Mal precisaram do monograma H. S. nas abotoaduras e lenços de Fred Williams para certificar-se de que ele era a pessoa procurada.

Depois de duas horas de interrogatório, Sherry admitiu sua identidade, mas negou ter assassinado Kavalov.

Dois dos auxiliares do delegado foram ao norte e trouxeram os prisioneiros para a sede do condado.

Sherry raspara o bigode, mas nada havia em sua face ou voz que demonstrasse a mais leve preocupação.

— Depois de meu sonho, eu sabia que não havia nada mais a esperar — explicou, em sua voz arrastada —, e, assim, fui embora. Depois, quando soube que o sonho havia se transformado em realidade, tive certeza de que vocês me caçariam por toda parte... como se uma pessoa pudesse evitar ter sonhos... e eu... ah... procurei isolamento.

Solenemente, contou outra vez ao delegado e ao promotor a história da voz vinda de uma laranjeira; os jornais a adoraram.

Ele, porém, recusou-se a mapear para nós seu caminho, a dizer como passara o tempo.

— Não, não — disse. — Sinto muito, mas não devo fazê-lo. Pode ser que eu tenha de fazer a mesma coisa no futuro, e isso implicaria revelar meus métodos.

Não quis dizer-nos onde passara a noite do assassinato. Tínhamos quase certeza de que ele deixara o trem antes de chegar a Los Angeles, embora o pessoal da composição não nos pudesse informar de coisa alguma.

— Sinto muito — disse ele, preguiçosamente. — Mas se vocês, rapazes, não sabem onde eu me encontrava, como é que sabem que estive no local do crime?

Tivemos ainda menos sorte com Marcus, cuja fórmula era:

— Não compreender inglês muito bem. Perguntar capitaine. Eu não saber.

O promotor passou um bocado de tempo andando de um lado para outro no gabinete, roendo as unhas e dizendo-nos, feroz, que o caso daria em nada se não pudéssemos provar que Sherry ou Marcus se encontravam por perto da casa de Kavalov à hora do crime, ou pouco antes ou depois.

O delegado era o único de nós que não tinha a incômoda impressão de que as mangas de Sherry estavam cheias de ases de vários naipes. O delegado considerava-o já enforcado.

Sherry contratou um advogado, um homem pálido, de aspecto untuoso, óculos de aros de tartaruga e pequena boca trêmula. Chamava-se Schaeffer e andava de um lado para outro sorrindo para nós e para si mesmo.

Quando ao promotor só restavam as unhas dos polegares, e ele começava a trabalhar nelas, tomei emprestado um carro a Ringgo e comecei a seguir a estrada de ferro na direção sul, tentando descobrir onde Sherry deixara o trem. Havíamos tirado fotos dos dois, naturalmente, e eu as levava comigo.

Mostrei as malditas fotografias em todas as estações entre Farewell e Los Angeles, em todos os povoados num raio de trinta quilômetros dos trilhos, e na maioria das casas nos intervalos. Nada descobri.

Não havia prova de que Sherry e Marcus não tivessem seguido diretamente até Los Angeles.

O trem os teria deixado nessa cidade às dez e meia daquela noite. Não havia trem saindo de Los Angeles que os trouxesse de volta a Farewell a tempo para que matassem Kavalov. Havia, no entanto, duas possibilidades: um avião podia tê-los trazido também, embora isso não parecesse razoável.

Tentei, em primeiro lugar, a hipótese do avião, e não encontrei piloto algum que houvesse transportado passageiros naquela noite. Com a ajuda da polícia de Los Angeles e alguns detetives da filial da Continental, consegui que fossem entrevistadas todas as pessoas que possuíam aviões, particulares ou de aluguel. Todas as respostas foram negativas.

Examinamos, em seguida, a hipótese menos promissora do automóvel. As maiores companhias de táxi e de carros de aluguel responderam: "Não". Os roubos de quatro carros particulares haviam sido comunicados entre dez e meia-noite daquele dia. Dois deles foram encontrados na cidade na manhã seguinte; não podiam ter feito a viagem de ida e volta a Farewell. Um outro fora localizado em San Diego no dia seguinte. Restava um, que continuava desaparecido. Era um sedã Packard. Mandamos distribuir circulares com a descrição do veículo.

Era imenso o trabalho de interrogar todos os donos das pequenas companhias de táxis e de carros de aluguel, e havia também proprietários privados que poderiam ter alugado um veículo por uma noite. Publicamos avisos nos jornais para cobrir esses campos.

Não recebemos a menor informação sobre automóveis muito embora essa nova linha de investigação... tentar descobrir o paradeiro de nossos suspeitos algumas horas antes do crime... tivesse produzido resultados de outro tipo.

En San Pedro (um porto marítimo a quarenta quilômetros de distância de Los Angeles), um negro fora preso à uma hora da madrugada do crime. Falava mal o inglês, mas possuía documentos provando que se chamava Pierre Tisano, e que era um marinheiro francês. Fora preso sob acusação de bebedeira e arruaça.

A polícia de San Pedro informou que a foto e a descrição do homem que conhecíamos por Marcus combinavam exatamente com a do marinheiro bêbado.

Mas não foi só isso o que a polícia informou.

Tisano fora preso à uma hora da madrugada. Um pouco depois das duas, um homem branco, que dissera chamar-se Henry Somerton, aparecera e tentara soltá-lo, mediante pagamento de fiança. O subdelegado de plantão respondera que coisa alguma poderia ser feita até a manhã seguinte e que, de qualquer maneira, seria melhor deixar Tisano curtir a bebedeira antes de ser solto. Somerton concordara prontamente com isso, ficara mais de meia hora conversando com o subdelegado e saíra às três. As dez da manhã seguinte, reaparecera para pagar a multa do negro. Haviam saído juntos da delegacia.

Dizia a polícia de San Pedro que a foto de Sherry, sem o bigode, e sua descrição correspondiam às de Henry Somerton.

A assinatura de Henry Somerton no registro do hotel onde se hospedara, entre suas duas visitas à polícia, combinava com a caligrafia do bilhete de Sherry ao proprietário do bangalô.

Estava bem claro que Sherry e Marcus haviam estado em San Pedro... uma viagem de trem de nove horas até Farewell... à hora em que Kavalov fora assassinado.

Mas "bem claro" não é "suficientemente claro" em um caso de assassinato: levei comigo o subdelegado que estivera de plantão em San Pedro até o norte, para reconhecer os dois homens.

— São eles, disso não tenho dúvida — disse o subdelegado.

 

O promotor roeu o resto das unhas dos polegares.

O delegado de polícia dava a impressão confusa de uma criança que tivera um balão na mão, ouvira um estouro, e não podia compreender como ele havia furado.

Fingi que estava inteiramente satisfeito.

— Agora, estamos de volta ao ponto de onde começamos — lamentou-se, irritado, o promotor, como se aquilo fosse culpa de todo mundo, menos dele —, e com todas essas semanas perdidas.

O delegado não olhou para o promotor nem pronunciou palavra.

— Eu não diria isso — comentei. — Fizemos algum progresso.

— Qual?

— Sabemos que Sherry e o empregado possuem álibis.

Aparentemente, o promotor pensou que eu estava querendo brincar com ele. Não dei muita importância à cara que me fez e perguntei:

— O que vai fazer com eles?

— O que posso fazer, senão mandar soltá-los? Isso liquida o caso.

— Não custa muito à prefeitura alimentá-los — sugeri. — Por que não os conserva presos durante o tempo que puder, enquanto pensamos no assunto? Pode surgir alguma novidade, e, se não surgir, o senhor poderá arquivar o caso. Não acredita que eles estejam inocentes, acredita?

Ele endereçou-me um sombrio e azedo olhar de pena pela minha estupidez.

— Eles são tão culpados como o Demônio, mas de que me vale isso, se não posso obter uma condenação? E de que adianta dizer que você vai conservá-los presos? Diabos, homem, o senhor sabe tão bem como eu que tudo o que eles têm que fazer agora é pedir que sejam soltos, e que qualquer juiz fará isso.

— Isso mesmo — concordei. — Mas aposto com o senhor o melhor chapéu existente em San Francisco que eles não o pedirão.

— O que quer dizer com isso?

— Eles querem ser julgados — respondi. — Ou teriam apresentado o álibi antes que os descobríssemos. Desconfio que eles mesmos deram aviso à polícia de Spokane. E aposto com o senhor aquele chapéu que Schaeffer não falou ainda em habeas-corpus.

Desconfiado, o promotor olhou dentro de meus olhos.

— O senhor sabe de alguma coisa que não me tenha contado ainda? — perguntou.

— Não, mas o senhor verá que tenho razão.

Tive. Schaeffer continuou a andar por ali, sorrindo para si mesmo, e sem tomar providência alguma para soltar os clientes.

Três dias depois, surgiu um fato novo.

Um homem chamado Archibald Weeks, possuidor de um pequeno aviário uns quinze quilômetros ao sul da casa de Kavalov, procurou o promotor. Disse que vira Sherry em sua propriedade — dele, Weeks — bem cedo na manhã do assassinato.

Weeks ia viajar para Iowa naquela manhã em visita aos pais. Levantara-se cedo para deixar tudo em ordem antes de percorrer os trinta quilômetros até a estação, onde apanharia um trem bem cedo.

Entre cinco e meia e seis horas da manhã, foi ao telheiro onde guardava o carro, a fim de constatar se o veículo estava com gasolina suficiente para a viagem.

Um homem saiu correndo do telheiro, transpôs a cerca e disparou pela estrada. Weeks chegou a uma curta distância, mas o outro era veloz demais para ele. O homem estava muito bem-vestido para ser um vagabundo: Weeks pensou que ele estivera tentando roubar o carro.

Como sua viagem ao leste era necessária, e porque durante sua ausência a esposa ficaria apenas em companhia dos dois filhos — de dezessete e quinze anos —, achou melhor não amedrontá-la contando que surpreendera um homem no telheiro.

Voltara de Iowa no dia anterior a seu aparecimento no gabinete do promotor. Depois de ouvir os detalhes da morte de Kavalov e de ver a foto de Sherry nos jornais, havia-o reconhecido como o homem a que perseguira.

Fizemos uma acareação dele com Sherry. Ele confirmou que Sherry era o tal homem. Sherry permaneceu calado.

Tendo o testemunho de Weeks para refutar o álibi apresentado pela polícia de San Pedro, o promotor levou a julgamento a acusação contra Sherry. Marcus continuou detido como testemunha, mas como nada havia que debilitasse seu álibi de San Pedro, não foi processado.

Weeks prestou um depoimento direto e simples, mas que,. na reinquirição, explodiu com grande estampido. Perdeu inteiramente as estribeiras.

Não estava, reconheceu em resposta às perguntas de Schaeffer, inteiramente convencido de que Sherry era o homem que vira antes. O homem parecera, certamente, pelo pouco que vira, ter alguns traços de Sherry, mas talvez ele houvesse sido precipitado demais em afirmar categoricamente que era ele. Não estava, agora que tivera tempo de pensar no caso, inteiramente certo de que vira bem a face do homem à fraca luz da manhã. No fim, tudo o que Weeks pôde dizer sob juramento foi que vira um homem que se parecia um pouco com Sherry.

Era engraçado como o diabo.

O promotor, acabadas as unhas, roeu os ossos dos dedos.

O júri chegou a uma conclusão: "Inocente".

Sherry foi solto, para sempre inocente no que interessava ao assassinato de Kavalov, não importava o que pudesse surgir depois.

Marcus foi solto.

O promotor não quis despedir-se de mim quando voltei a San Francisco.

 

Quatro dias depois da absolvição de Sherry, a sra. Ringgo foi introduzida em meu escritório.

Vestia luto fechado. Não estava tranqüilo seu rosto bonitinho, comum, oriental.

— Por favor, não diga a Dolph que vim aqui, sim? — foram suas primeiras palavras.

— Naturalmente que não, se é assim que a senhora quer — prometi.

Ela sentou-se e fitou-me com olhos esbugalhados.

— Ele é tão descuidado! — disse.

Inclinei com simpatia a cabeça, perguntando-me o que queria ela.

— Estou com muito medo — acrescentou ela, torcendo as luvas. Tremia-lhe o queixo. Os lábios formaram com dificuldade as palavras: — Eles voltaram ao bangalô.

— Voltaram? — Espiguei-me na cadeira. Eu sabia o que significava "eles".

— Não podem ter voltado — exclamou ela — por outro motivo senão assassinar Dolph, como fizeram com papai. E ele não quer me ouvir. Tem tanta confiança em si! Ri, chama-me de tola e diz que pode cuidar de si mesmo. Mas ele não pode. Não, pelo menos, com um braço quebrado. E eles o matarão como mataram papai. Eu sei. Eu sei.

— Sherry odeia tanto seu marido como odiava seu pai?

— Sim. É isso mesmo. Odeia. Dolph trabalhava para papai, mas sua parte no... no caso que causou aqueles problemas a Hugh... foi mais ativa do que a de papai. O senhor... o senhor não deixará que eles matem Dolph, não é?

— Certamente que não.

. — O senhor não deve deixar que Dolph saiba disto — insistiu. — E se ele souber que o senhor o está vigiando, não deve dizer-lhe que vim aqui. Ele ficaria zangado comigo. Pedi-lhe que mandasse chamá-lo, mas ele... — Ela interrompeu-se, embaraçada. Achei que o marido havia falado em meu fracasso em proteger a vida de Kavalov. — Mas não quis.

— Há quanto tempo eles voltaram?

— Desde anteontem.

— Irei lá amanhã — prometi. — Se quer meu conselho, conte a seu marido que me contratou, mas eu não direi a ele, se a senhora não quiser.

— E não deixará que eles façam mal a Dolph?

Prometi fazer o possível, aceitei algum dinheiro dela, entreguei-lhe um recibo e levei-a até a porta.

Pouco depois do anoitecer daquele dia, cheguei a Farewell.

 

As janelas do bangalô estavam iluminadas quando passei por lá a caminho do alto da colina. Senti tentação de saltar do cupê e espionar um pouco, mas receei não ser capaz de enganar Marcus em seu próprio terreno.

Quando virei para a estrada de terra que levava à casa vazia que descobrira na primeira visita a Farewell, desliguei os faróis e continuei devagar sob a luz de uma lua muito branca.

Perto da casa abandonada, tirei o cupê da estrada.

Subi para o minúsculo terraço, localizei o bangalô embaixo e comecei a ajustar o binóculo.

Ainda não tinha acabado de ajustá-lo quando a porta fronteira do bangalô se abriu, deixando sair um feixe de luz amarela e duas pessoas.

Uma das pessoas era uma mulher.

Outra pequena volta no mecanismo, e o rosto da mulher apareceu bem nítido ante meus olhos... a sra. Ringgo.

Ela ergueu a gola do casaco em torno da face e desceu, apressada, o caminho lajeada Sherry permaneceu na varanda, fitando-a.

Logo que chegou à estrada, ela começou a subir, correndo, a colina em direção a sua casa.

Sherry entrou e fechou a porta.

Duas horas e meia depois, um homem apareceu no caminho lajeado, vindo da estrada. Dirigiu-se em passos rápidos para o bangalô, com uma espécie de cautelosa rapidez, olhando de um lado para o outro enquanto caminhava.

Acho que bateu à porta.

A porta foi aberta lançando um brilho amarelo em seu rosto... o rosto de Dolph Ringgo.

Ele entrou e a porta foi fechada.

Coloquei o binóculo ao lado, deixei o terraço e dirigi-me para o bangalô. Não tinha certeza de encontrar um lugar igualmente bom para o cupê, de modo que o abandonei no local onde se encontrava e prossegui a pé.

Tive receio de arriscar pelo caminho lajeado.

Uns sete metros depois, deixei a estrada e andei, com todo o silêncio de que fui capaz, pelo barro, entre árvores, arbustos e flores. Eu sabia com que tipo de gente estava lidando e empunhava a arma.

Todas as janelas do bangalô a meu lado estavam iluminadas, embora fechadas e com as venezianas descidas. Não gostei da maneira como a luz que se filtrava pelas venezianas ajudava a lua a iluminar ainda mais o terreno em volta. Aquilo me fora útil quando eu me encontrava na crista da colina, espreitando pelo binóculo. Mas era péssimo naquele momento, em que procurava aproximar-me o suficiente para ouvir alguma coisa de útil.

Parei no local mais escuro que pude encontrar, a uns cinco metros do prédio, para pensar no caso.

Agachado ali, ouvi um som.

Não vinha do lugar certo. Não era o que eu queria ouvir. Era o som de alguém subindo o caminho na direção da casa.

Eu não tinha certeza se podia ser visto ou não. Virei a cabeça para me certificar. E, ao fazê-lo, revelei minha presença.

A sra. Ringgo saltou para o lado e permaneceu imóvel no caminho. Depois, exclamou:

— Dolph está lá? Está lá? Está lá?

Tentei dizer-lhe que sim, inclinando a cabeça, mas ela fez tanto barulho com aquele "Está lá" que fui obrigado a responder "Sim" em voz alta para que ela ouvisse.

Não sei se o ruído que fizemos apressou as coisas, mas o fato é que começou o tiroteio dentro do bangalô.

Ninguém pára para contar tiros em circunstâncias como aquela, e, de qualquer maneira, foram disparados rapidamente demais para permitir a contagem, mas minha impressão foi de que pelo menos cinqüenta deles haviam sido disparados quando lancei o ombro contra a porta da frente.

Por sorte, era uma porta californiana, que cedeu à segunda tentativa.

Do lado de dentro, um saguão dava entrada, por um largo portal, para a sala de estar. O ar estava nevoento de fumaça e era forte o cheiro de pólvora queimada.

Vi Sherry no chão encerado junto ao arco, contorcendo-se de lado sobre um cotovelo e um joelho, tentando alcançar uma Luger caída sobre o tapete âmbar, a cerca de um metro de distância.

No outro lado da sala, Ringgo, de joelhos, apertava sem cessar o gatilho de um revólver preto na mão sadia. A arma estava vazia. Ecoava e ecoava no vazio, mas ele continuava a apertar o gatilho. O braço quebrado ainda estava nas talas, mas caíra da tipóia e pendia ao lado do corpo. A face estava inchada e vermelha, os olhos bem abertos e baços. O branco cabo de osso de uma faca projetava-se de suas costas, pouco acima do quadril, com a lâmina mergulhada toda no corpo. Ele acionava a arma vazia na direção de Marcus.

O rapaz negro estava de pé, os pés bem afastados e os joelhos curvados. A mão esquerda aberta colava-se ao peito, e seus dedos escuros estavam lustrosos de sangue. Na mão direita segurava outra faca de cabo de osso, com uma lâmina de uns trinta centímetros, segura à moda de lutadores de arma branca, como se segura uma espada. Dirigia-se para Ringgo, não de frente, mas de lado, obliquamente, aproximando-se devagar, agachado, girando sem cessar a faca na mão, mas apontando-a sempre para ele.

Marcus não nos viu. Não nos ouviu. Seu mundo inteiro naquele momento era o homem de joelhos, um homem em cujas costas uma faca, cópia da que empunhava na mão negra, fora cravada.

Ringgo não nos viu. Acho que nem mesmo via Marcus. Continuou ajoelhado, apertando sem parar o gatilho da arma descarregada.

Saltei por cima de Sherry e desci o cano de minha arma na base do crânio de Marcus. Acertei, e ele caiu.

Ringgo deixou de acionar a arma e olhou, surpreso, para mim.

— O problema é o seguinte: é preciso pôr balas numa arma, ou elas não funcionam — disse-lhe. Arranquei a faca da mão de Marcus e voltei para apanhar a Luger, que Sherry desistira de tentar agarrar.

Sherry encontrava-se de costas nesse momento, de olhos fechados.

Parecia morto, e havia um número suficiente de buracos de bala nele para tornar válido esse palpite.

Mas na esperança de que não estivesse, ajoelhei-me a seu lado, dando a volta em torno dele para que mé pudesse ajoelhar de frente para Ringgo, e levantei-lhe um pouco a cabeça do chão.

— Sherry — disse eu, vivamente. — Sherry.

Ele não se moveu. Suas pálpebras nem mesmo se mexeram. Ergui os dedos da mão que lhe segurava a cabeça, fazendo-a mover-se um pouquinho.

— Ringgo matou Kavalov? — perguntei ao morto, ou moribundo.

Mesmo que eu não soubesse que Ringgo me fitava, podia sentir o peso de seus olhos sobre mim.

— Matou, Sherry? — perguntei, zangado, à face imóvel. O morto, ou moribundo, não se moveu.

Com toda a cautela, movi novamente os dedos de modo que a cabeça do morto, ou do moribundo, balançasse afirmativamente duas vezes.

Em seguida, deixei a cabeça cair para trás e, depois, depositei-a devagar no chão.

— Bom — disse eu, levantando-me e olhando para Ringgo. — Finalmente, peguei-o.

 

Nunca soube se teria realmente coragem de subir ao banco das testemunhas e jurar que Sherry estava vivo quando balançara a cabeça, e que o fizera voluntariamente, se houvesse sido necessário fazer isso para obter a condenação de Ringgo.

Não gosto de falsos testemunhos, mas sabia que Ringgo era culpado, e eu o tinha nas mãos.

Por sorte, não precisei decidir.

Ringgo acreditou que Sherry inclinara afirmativamente a cabeça, e depois, quando Marcus contou tudo, não havia muito que ele pudesse dizer, salvo tentar a sorte, confessando-se culpado.

Não tivemos muitos problemas para obter a confissão de Marcus. Ringgo havia assassinado seu amado capitaine. O rapaz foi facilmente persuadido de que a lei seria a sua melhor vingança.

Depois de Marcus ter falado, Ringgo falou também, e muito.

Permaneceu no hospital até a véspera do julgamento. A faca que Marcus lhe enterrara nas costas paralisara para sempre uma de suas pernas, embora, fora isso, ele estivesse se recuperando dos ferimentos.

Marcus recebera três tiros de Ringgo. Os médicos extraíram duas balas, mas tiveram receio de tocar na terceira. O fato não pareceu preocupá-lo. Ao ser enviado para o norte, a fim de iniciar o cumprimento de uma sentença em San Quentin pela sua parte no assassinato de Kavalov, parecia tão sadio como sempre.

Ringgo nunca se convenceu inteiramente de que eu desconfiara dele muito antes do momento em que arrombara a porta do bangalô.

— Naturalmente que desconfiei o tempo todo — disse eu, defendendo minha habilidade como detetive. Isso aconteceu quando ele se encontrava ainda no hospital. — Não pensei que Sherry fosse louco. Ele era um patife duro e de aparência sã. Eu não acreditava que ele fosse o tipo de homem que se preocupasse muito com qualquer desgraça que lhe acontecesse. Estava disposto a acreditar que ele queria o escalpo de Kavalov, mas apenas se houvesse algum lucro nisso. Foi por isso que fui dormir e, sem querer, deixei que fosse cortada a garganta do velho. Pensei que Sherry o estava amedrontando... nada mais... preparando-o para uma grande extorsão. Quando descobri que me enganara, comecei a procurar. Tanto quanto eu sabia, sua esposa era a herdeira de Kavalov. Pelo que vi, achei que ela estava tão apaixonada por você que se encontrava inteiramente em suas mãos. Muito bem. Você, como marido da herdeira, era aparentemente a pessoa que mais lucraria com a morte de Kavalov. Era a pessoa que controlaria a fortuna, quando ele morresse. Sherry somente lucraria com o assassinato se trabalhasse de comum acordo com você.

— Mas o fato de eu ter quebrado o braço não o deixou confuso?

— Certamente. Cheguei a pensar que o ferimento era falso, mas isso seria levar as coisas longe demais. Mas você cometeu um erro que me ajudou. Teve cuidado demais em imitar um corte de esquerda na garganta de Kavalov. Fez isso ficando junto da cabeça dele, de frente para o corpo quando o cortou, em vez de junto ao corpo, de frente para a cabeça. A curva do golpe traiu-o. Lançar a faca pela janela tampouco foi boa idéia. Como foi que você quebrou o braço? Em um acidente?

— Pode considerá-lo assim. Combinamos aquela suposta briga de modo a ajustar-se ao resto do plano, e eu achei que seria divertido socá-lo de verdade. Foi o que fiz. Mas ele era mais duro do que eu pensava, duro o suficiente para equilibrar as coisas quebrando-me o braço. Acho que foi por isso que ele matou Mickey. Isso não estava combinado. Falando sério, você desconfiou de que estávamos mancomunados?

Fiz que sim com a cabeça.

— Sherry havia preparado o jogo para você, feito todo o possível para atrair as suspeitas para ele, e, em seguida na véspera do assassinato, fugiu para fabricar um álibi. Não podia haver outra explicação: ele tinha que estar trabalhando de comum acordo com você. Estava, mas eu não podia provar isso. Não podia, até que você caísse na armadilha que tornou todo o jogo possível... o amor de sua esposa, que fez com que ela me contratasse para protegê-lo. Não é isso o que se chama uma ironia da vida?

Ringgo sorriu, triste, e disse:

— Deviam chamá-la assim. Você sabe o que Sherry estava tentando fazer comigo, não?

— Posso dar um palpite. Foi por isso que ele insistiu em ser julgado.

— Exato. O plano era que ele caísse fora e continuassem fugindo, com o álibi pronto, no caso de ser preso. Devia ficar em liberdade tanto quanto possível. Quanto mais tempo perdessem procurando-o, menos provável era que procurassem em outra parte, e mais fria ficaria a pista, quando descobrissem que ele não era o culpado. Ele me enganou nesse ponto. Deu um jeito para ser preso. Seu advogado contratou aquele Weeks para convencer o promotor a não mandar arquivar o caso. Sherry queria ser julgado e absolvido, de modo a ficar isento de qualquer culpa. Em vista disso, fiquei preso pelo pescoço. Ele estava legalmente isento para sempre. Eu, não. Eu estava nas mãos dele. Devia receber cem mil dólares por sua parte. Kavalov deixara a Miriam um pouco mais de três milhões de dólares. Sherry exigiu metade dessa importância. De outra maneira, disse, iria procurar o promotor e faria uma confissão completa. A lei não poderia fazer coisa alguma contra ele. Ele fora absolvido. Eu seria enforcado. Que maravilha!

— Por falar nisso, você teria sido sabido se lhe houvesse dado essa importância — disse eu.

— Talvez. De qualquer maneira, acho que lhe teria dado o dinheiro, se Miriam não houvesse posto as coisas a perder. Não havia nada mais a fazer. Mas quando ela voltou, depois de te-lo contratado, foi procurar Sherry, pensando que poderia convencê-lo a ir embora. E ele disse alguma coisa que a fez suspeitar de que eu estava envolvido na morte do pai, embora ela não acredite, nem mesmo agora, que fui eu que lhe cortei a garganta. Ela me contou que você viria no dia seguinte. Não havia para mim outra coisa a fazer senão ir procurar Sherry para um acerto de contas e resolver o caso antes que você começasse a meter o nariz em tudo. Bom, foi isso o que fiz, embora não houvesse dito a Miriam que iria até lá. O acerto de contas não ia lá muito bem, havia tensão demais, e, quando Sherry ouviu sua voz do lado de fora, pensou que eu trouxera amigos... e então começaram os fogos de artifício.

— Para começar, o que o levou a entrar num jogo como esse? — perguntei. — Você ia muito bem como genro de Kavalov, não?

— Ia, mas era cansativo viver confinado com ele naquele buraco. Ele não era muito velho e poderia viver bastante tempo. E nem sempre era um cara fácil de se lidar. Eu não podia garantir que ele, quando se fartasse de mim, não fosse capaz de me pôr para fora, mudar o testamento ou fazer qualquer coisa parecida. Aconteceu, então, que encontrei, por acaso, Sherry em San Francisco. Conversamos, e surgiu o plano. Sherry tinha cabeça. Na negociata no Cairo, que você conhece, ele e eu ganhamos um bocado de dinheiro sem que Kavalov soubesse de coisa alguma. Bem, fui um parvo. Mas não estou arrependido de ter matado Kavalov. Lamento ter sido descoberto. Fiz as sujeiras para ele desde que ele me contratou, ainda rapaz, aos vinte anos, e tudo que consegui foi muito pouco, exceto a esperança de que, tendo casado com a filha, eu provavelmente ficaria com o dinheiro quando ele morresse... se ele não resolvesse fazer outra coisa qualquer com ele.

Ringgo foi enforcado.

                                                                                Dashiell Hammett  

 

                      

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