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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTOS ALBANESES / Ali Abdihoxha e outros autores
CONTOS ALBANESES / Ali Abdihoxha e outros autores

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTOS ALBANESES 

Ali Abdihoxha e outros Autores

 

                 A Viragem - Ali Abdihoxha

Estavam à beira da estrada que segue ao longo do Tepe, esse protector da ponte do Zaranike e da cidade de Elbasan. O comandante deu ordem de assalto e o acaso quis que fosse Zeqo o primeiro a lançar-se ao ataque. Descarregou a arma automática e gritou a plenos pulmões:

- Para a frente, rapazes, é dar-lhes! Virou as costas à cidade e a cara para o olival e, como se nada fosse, saiu mesmo para o meio da estrada, por entre os alemães. A montanha rugia, os tiros zumbiam, as metralhadoras crepitavam por todos os lados, os carros incendiavam-se, as pessoas gritavam, a batalha estava no auge, as coronhas das espingardas partiam-se. O fumo e o cheiro da pólvora, como em todos os combates encarniçados, cobriam a estrada de um lado ao outro, até que o vento os empurrou para o olival. As detonações abalaram a cidade inteira.

- Zeqo! gritou-lhe o comandante ao ouvido, leva os teus homens e vai cercar a casa do bei (1).

- Não sei onde é! respondeu Zeqo e uma veia grossa, como uma mecha arroxeada, desenhou-se-lhe na fronte.

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Nota (1) Bei: senhor de terras e autoridade local.

 

- Grita mais alto, não te oiço! volveu o comandante.

- Onde é que fica?

- Olha, aquela com muitas chaminés. Prende toda a gente que encontrares.

- Às suas ordens!

Zeqo pôs-se de pé e, enquanto as balas lhe assobiavam aos ouvidos, ergueu o punho e gritou:

- Que os meus homens me sigam!

Como um falcão que bate as asas levantando voo com a presa, o grupo destacou-se do campo de batalha e enfileirou atrás do seu comandante. Zeqo corria na praia pedregosa do Zaramike, rodeado dos camaradas. Estava louco de alegria, como ultimamente quando combatia com eles nos flancos ou nas gargantas das montanhas, nos vales e nos bosques. Deteve-se por um instante e, antes de subir para a margem, ergueu o punho e gritou:

- Para a frente, camaradas, é dar-lhes! Mas esse grito de nada serviu. Diante dele estendiam-se jardins e pátios onde reinava um silêncio total, como se troçassem da batalha que se travava furiosamente na estrada ao longo do Tepe.

Sem interromper a corrida, o grupo cercou a casa do bei. Zeqo lançou a primeira bomba para dentro do pátio.

 

Nessa manhã, antes de explodir a primeira granada de Zeqo, a jovem hanem (1) afastou o

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Nota (1) Hanem: mulher ou filha do bei.

 

"edredon" de tafetá, abriu os pesados reposteiros e, valsando graciosamente, dirigiu-se para o espelho do toucador. Ergueu a cabeça observando o pescoço alto, branco como a neve. Depois pôs-se de perfil, uma vez à esquerda, outra vez à direita e por fim olhou-se de frente, franzindo as sobrancelhas. Era a sua pose preferida da artista que vira ultimamente no cinema. Tinha a impressão de que nada lhe faltava para ser como Greta Garbo. Que teria a outra mais do que ela? "Oh, meu grande amor!

Vem, espero por ti!" exclamou a jovem esboçando um ligeiro sorriso, tão ligeiro que mal se distinguia a bela fila de dentes brancos.

A filha do bei de Elbasan ainda não tinha vinte anos, como testemunhava a sua pele aveludada. Bela, assemelhava-se ao pai como duas gotas de água, com os cabelos negros, a pele branca, a estatura alta, as pernas delgadas.

"Oh, meu grande amor", repetiu ela indo-se estender em cima do divã.

O silêncio dessa manhã de Novembro foi interrompido pelo crepitar de uma metralhadora na orla do olival. "Ah! exclamou Elsa, lembrando-se que se travavam combates

entre guerrilheiros e os alemães nos arredores da cidade. Ah, os malditos!"

A menina Elsa, como filha mimada de um bei, nunca sentira o cheiro da pólvora. Quando a Albânia fora ocupada, estava ela a passar férias no Piemonte. "Eis que nos tornámos um grande reino", disse ela repetindo o que o pai lhe havia escrito. Tinha então catorze anos e frequentava o quinto ano num liceu clássico de Roma. Um ano mais tarde, veio passar as férias grandes na Albânia. O pai, que tinha conhecimentos entre os grandes no poder, disse-lhe que o povo albanês se sentia muito feliz por a coroa de Scanderbeg ser ostentada por Vítor Emanuel III. Vivia cercada de luxo, ia muitas vezes a Tirana, divertia-se com os galgos do pai e, em Setembro, regressou a Roma para continuar os estudos.

Quando a Itália capitulou, o pai enviou um homem de confiança para a levar para a Suíça mas, precisamente um ano mais tarde, o intendente e Elsa regressaram à Albânia sem que ninguém os esperasse.

- Que se passou? perguntou o bei.

- A vossa filha, meu beu tinha vontade de vos ver e não quis ir para a Suíça. Sofri um martírio durante a viagem.

- Mas, minha filha, aqui estamos em guerra! ameaçou o bei.

- O quê, aqui também? admirou-se Elsa, lançando-se ao pescoço do pai.

O bei quis deixar a Albânia imediatamente com a filha, mas o comando alemão não lho permitiu, visto que a situação nos Balcãs era perigosa. O exército vermelho tinha entrado em território jugoslavo e as viagens das famílias haviam-se tornado impossíveis. Numa palavra, o bei de Elbasan, na sua qualidade de perfeito e colaborador dos nazis, decidira partir com as forças alemãs. O comandante da guarnição encarregou-se de o fazer chegar são e salvo, com a filha, à "inconquistável" cidade de Berlim.

Elsa hanem só nos últimos dois meses conhecera os aborrecimentos da guerra. Compreendeu que o povo se erguera contra os alemães. Três dias antes, o comandante do exército prevenira-o para se preparar para uma longa viagem. ...Tamborilou com os dedos em cima da mesinha de cabeceira, "gemeu" contente por ter dormido bem e correu à casa de banho.

- Depressa! Depressa! - ouviu o pai gritar no pátio. Os celerados vão-se embora! Querem deixar-nos aqui.

Elsa não teve tempo de fazer a "toilette". Limpou a espuma de sabão que lhe cobria a cara e debruçou-se à janela. Todas as portas das casas baixas estavam fechadas.

Intermináveis filas de carros estavam estacionadas nas ruas estreitas. De vez em quando ouviam-se crepitar metralhadoras, ora de Krasta, ora do Shkumbin, ora do olival.

- Ah, os celerados! murmurou Elsa imitando o pai. Para dizer a verdade, não compreendera ainda por que razão era preciso ir para a "incon-quistável Berlim", quando toda a fortuna do pai se encontrava na bela cidade de Roma, junto dos muros do Coliseu e na "Piazza Venezia". Que significa tudo isto? Os guerrilheiros? Oh, como podem ser perigosos!

Contudo. Elsa hanem repetiu:

- Os celerados, não querem levar-nos para Berlim. Esperem por nós, ouviram! ameaçou ela dirigindo-se aos alemães que se mantinham silenciosos na rua e correu a buscar o fato de desporto ao guarda-vestidos.

No harém (1) havia uma confusão incrível. Uns subiam, outros desciam, atrapalhando-se mutuamente. Algumas malas estavam atiradas no pátio, umas por cima das outras.

Um criado metia

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Nota (1) Harém: parte da casa habitada pelas mulheres.

 

na mala do carro os poucos objectos de valor que o bei não tinha enviado para Itália juntamente com a maior parte da fortuna. Os intendentes andavam de um lado para o outro, com a espingarda ao ombro, sem tocarem em nada.

- Depressa! Depressa! gritava o bei que queria descarregar a bílis sobre os criados.

De repente, quando Elsa hanem perguntava a si própria o que havia de levar ou de deixar, uma detonação formidável abalou os alicerces do harém. Teve a impressão de que toda a cidade fora destruída. Soltou um grito e atirou-se de bruços para cima da cama. Tremendo dos pés à cabeça, rompeu em soluços...

 

A bomba que Zeqo atirou para o pátio semeou o pânico entre aquela honorável assembleia. Renderam-se todos, o bei e a sua hanem, a ama, os intendentes e todos os que se afadigavam em volta dos carros, incluindo os galgos.

Zeqo agiu como achou conveniente. Fechou o bei num quarto e foi buscar a menina "coquette" para a deitar em cima da cama. A explosão da bomba e a vista dos guerrilheiros tinham-na feito desmaiar. Estava lívida. Em seguida isolou uns dos outros. Os intendentes, os criados e a ama fechou-os em duas grandes salas. Instalou os guerrilheiros no andar de baixo em pequenas divisões húmidas que na maior parte não tinham janelas. Por fim mandou montar a guarda e respirou fundo, apurando o ouvido para distinguir os tiros que se afastavam para Shen Gjon e para Krraba. Disse para consigo:

- A guerra está a terminar, em breve toda a brigada estará de volta.

O soalho rangia por cima da sua cabeça. O bei marchava de um lado para o outro; Zeqo acariciou a coronha da espingarda.

- Ainda não acabámos com aqueles! e ergueu os olhos como para mostrar a arma ao bei que passeava de uma ponta a outra do quarto, lá em cima. Depois, direi ao comunismo:

"Anda cá, meu amigo, agora somos nós..." Zeqo interrompeu os pensamentos. O bei tinha-lhe passado mesmo por cima da cabeça e alguns grãos de poeira cairam-lhe para a cara. Espirrou, coçou o pescoço e disse:

- Não, não, assim não pode ser! Estes tipos estiveram sempre por cima das nossas cabeças, agora acabou-se!

Era preciso reparar aquele erro. Saiu para o pátio, abriu os braços e gritou com a sua voz de tenor:

- Basta, venham cá para baixo!

Os guerrilheiros não se mexeram, não percebendo logo do que se tratava.

Zeqo:

- Que as classes dominantes desçam para a cave!

Silêncio:

- Os guerrilheiros lá para cima! Alguém disse:

- Camarada Zeqo, a casa não tem cave. Zeqo ficou aborrecido por os guerrilheiros o não terem compreendido.

- Pouco importa, é preciso que eles desçam e que nós subamos.

Pouco depois, o bei e toda a família desceram para o rés-do-chão e os guerrilheiros com as respectivas armas, sacolas e cobertores, subiram para o primeiro andar.

Tinha a impressão de que as pessoas andavam muito devagar. Gritou:

- Vá, mais depressa, é dar-lhes!

E cada um foi colocar-se no lugar indicado. Disseram-lhe:

- A filha do bei não deseja sair do quarto. Zeqo levantou a mão, como para enxotar uma mosca da cara.

- É a razia geral, a partir de agora os desejos dos beis e dos agás (1) deixam de ser tomados em consideração.

Deram-lhe uma carta.

- O que é isto? perguntou.

- A reclamação da hanem.

- Sobre que assunto?

- Protesta.

- O quê?

- Recusa-se a descer.

Zeqo amarrotou a carta na mão:

- Os pedidos dos proprietários de terras e dos burgueses de aqui em diante deixam de se atender, compreendido?

Ao longe, os tiros diminuiam. Quando deixaram de se ouvir, toda a brigada, assim como o batalhão e o grupo de Zeqo se precipitaram para as ruas da cidade. Ocuparam a prefeitura, os correios e todos os outros locais administrativos.

Assim foi libertada a cidade. Zeqo recebeu ordem para guardar as pessoas à vista até se

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Nota (1) Agá: rico proprietário.

 

arranjar prisão, ou até as outras brigadas libertarem Tirana. Uma questão de dias ou de horas, foi o que lhe disseram.

 

Os cotovelos fincados no parapeito da janela, Elsa observava os guerrilheiros, com a cabeça entre as mãos. Circulavam pelo páteo gracejando uns com os outros em voz alta. Pareciam felizes. Depois lançou um olhar ao céu cinzento de Novembro, caía uma chuva miudinha. Foi percorrida por arrepios da cabeça aos pés. Na rua, as pessoas passeavam, também elas felizes. O séter, fechado no galinheiro, uivava de tal maneira que partia o coração. Teve pena dele.

- Eh, vocês! Não se esqueçam de dar pão ao séter!

Nenhuma resposta.

- Tem dono! Não é um cão vadio!

Três guerrilheiros tinham arregaçado as mangas da camisa e brincavam com um pato branco que nadava no lago de repuxo. O pato grasnava e lançava-se para eles. Os guerrilheiros mergulhavam-no na água e, assim que voltava à superfície, voltava ao ataque gritando cada vez mais.

Zeqo, barbeado de fresco, vestido de novo com o uniforme de um coronel alemão, com a cartucheira a tiracolo e a espingarda automática ao ombro, montava a guarda diante da porta grande. Olhava com inveja as pessoas que passavam, não tinha o direito de ir para a cidade com que sempre tinha sonhado. Durante toda a sua vida, tinha apascentado os carneiros e as vacas do agá, no alto do Poroçani Negro que, durante todo o ano, a neve cobria com um toucado branco. Mas um belo dia, os guerrilheiros passaram por ali. Abraçou a mãe e o cão e disse:

- Parto com os guerrilheiros! e partiu.

No mato, aprendeu o objectivo daquela guerra, o que eram "as classes dominantes" e "os oprimidos", afiou o lápis e iniciou-se nas letras do alfabeto albanês. Quando lhe pareceu que já sabia bastante, segredou um dia ao ouvido do comandante:

- Assim já chega. Daqui a pouco podem dizer que Zeqo passa a vida instalado no sofá!

Não era muito falador com os camaradas, era preciso arrancarem-lhe as palavras. Por causa da sua expressão "é dar-lhes!", diziam-lhe:

- Essas palavras estão a mais. Parece que estás a brincar.

- Mas que hei-de fazer? Aquilo sai-me da boca naturalmente, respondia.

E continuava a dizer o mesmo.

- Ouçam lá! não se esqueçam de dar pão ao meu séter, gritou outra vez a rapariga com a a sua voz doce.

- Não, não tenhas medo! responderam em ar de troça os três guerrilheiros. Cansados de brincar com o pato, divertiam-se agora com os pombos do bei que lhes vinham pousar nos ombros assim que os chamavam.

Logo que ouviu aquela voz doce, Zeqo voltou-se para ela. Ficou pregado ao chão: "Oh, meu deus! exclamou e bateu com o pé na soleira da porta, irritado por ter invocado deus. Oh, meu deus, que linda rapariga!" Desta vez ficou furioso consigo próprio por exaltar a beleza da filha do bei de Elbasan.

- Que queres tu? perguntou-lhe desviando os olhos para outro lado.

O tom desabrido do guerrilheio assustou a bela cativa. Bateu as pálpebras, arqueou as finas sobrancelhas e balbuciou timidamente:

- Se-se-senhor oficial! Não se esqueça de que estou em minha casa!

Zeqo mudou de tom e respondeu com mais amabilidade:

- Hanem, aqui é a prisão do poder popular!

- Oh, gritou ela assustada e deixou a janela. Mas pouco depois regressava.

- Senhor oficial! Silêncio.

- Senhor coronel! Zeqo aborreceu-se.

- Que mais queres? Disse o jovem guerrilheiro de mau modo, sem se voltar para ela.

- Quero ver o meu pai, quero que mo traga aqui. Além disso preciso de lenha para o fogão.

Zeqo pôs-se em frente da janela e virou a cabeça para a jovem.

- E pão, queres?

A rapariga julgou que o "jovem coronel" estava pronto a satisfazer-lhe os desejos e dirigiu-lhe um tal sorriso que Zeqo se esqueceu por momentos onde se encontrava.

- Que raio de história! murmurou ele entre dentes e virou-lhe as costas.

Chegado ao meio do pátio, deu uma ordem:

- Dêem-lhe pão...

- A quem?

- Àquela ali, vá! e indicou a janela com a mão.

 

Uma hora mais tarde, a jovem hanem voltou à janela vestida com um fato de veludo cor de rosa. Tinha posto nos cabelos um pente transparente de madrepérola De vez em quando, os fracos raios de sol que atravessavam as nuvens, faziam-no cintilar com mil reflexos. Sobre a fronte aveludada dançavam algumas madeixas negras que pareciam zombar das sobrancelhas franzidas. O ar preocupado, os lábios apertados e os olhos semicerrados provavam a sua tristeza. Elsa hanem^ que até aquele dia não conhecera a infelicidade, que nunca soubera o que era a política ou a guerra, começava finalmente a comprender que qualquer coisa de importante se tinha passado naquela mesma manhã, qualquer coisa de que ela não podia ter uma ideia precisa. Tinha medo por si própria, pelo pai, pelos estudos interrompidos, por tudo o que a esperava na sua bela Roma que tanto amava. Contra sua vontade, toda a sua vida lhe desfilava diante dos olhos e teve a impressão de que vivia agora um sonho interminável.

De vez em quando recompunha-se. Fixou os olhos sobre os guerrilheiros que poliam as armas, sentados na beira do lago. Através das barras da janela, via os largos ombros de Zeqo e uma ideia começou a germinar-lhe na cabeça. Com os olhos a brilhar, pensava: "É ele que os comanda... A ele, sim a ele!... e passeava os olhos em todas as direcções.

O instinto de menina rica criada na opulência, esse instinto enraizado no coração desde a infância, dizia-lhe que só havia uma maneira de sair daquela situação, de salvar o pai, o seu património... mas, ai!

 

Enquanto montava a guarda em frente da porta, o pastor do Poroçani Negro deixara divagar o espírito: "Pensar que vou reencontrar a minha mãezinha na aldeia?... quem sabe quantas vezes por dia ela vai espreitar à janela?... Estou vivo, mamã, bem vivo. Já não sou o pastor de antigamente. Quando for de licença, hei-de parar na Pedra Branca e gritar tão alto que as florestas e os desfiladeiros hão-de estremecer: Aqui estou, mamã! Mas a minha mãe é um bocado dura de ouvido. O Balo (1) é que me ouve logo.

"Meu filho! gritará ela, bravo, meu rapaz, combateste e venceste. Agora nunca mais nos separaremos."

"Não, querida mamã! Sou um soldado ao serviço do partido! quando o partido me disser: Volta à aldeia e ajusta as contas com o Selim bei e o Kaplan bei, então, num abrir e fechar de olhos, lá estarei. E se Naze me não esqueceu, caso com ela agora mesmo e levo-a para a nossa cabana. Se soubesses como vamos agora viver! Já apanhámos as classes dominantes. Agora estão ao fresco, nas caves, enquanto que nós fomos lá para cima, para os belos quartos dos seus castelos. Dissemo-lhes: "Venham cá, temos uma palavrinha

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Nota (1) Balo: o cão.

 

a dizer-vos!" E elas baixaram a cabeça e desceram para a cave. Assim, mãezinha querida, em breve teremos a nossa terra. Pensa lá, quando eu trabalhar com a charrua, quando picar os bois, Hé, Kazil! Hé, Murro!... e a Naze, que..."

- Zeqo! Chamou um guerrilheiro arrancando-o aos seus sonhos.

- Que queres?

- Uma carta do comandante da companhia. "Salvo contra-ordem, liberta ao amanhecer todas as mulheres, incluindo a jovem hanem. Cuidado com o bei."

- Não é possível! exclamou Zeqo encolhendo os ombros, descontente. A filha do bei também?

E voltou a ler a carta.

 

Zeqo observava a esquina da rua. Desejava tanto misturar-se à euforia da multidão e dos guerrilheiros que festejavam o primeiro dia da libertação. Tinha descido à cidade havia doze anos, com a mãe, para ir ao médico. Depois disso nunca mais lá voltara e agora estava impaciente por ter licença de sair para rever as ruas e as casas da cidade que lhe vinham à ideia como num lindo sonho.

"Olha, lá está ela outra vez à janela... Que tens tu que me chamar, parvinha? Que significam esses sinais, queres que eu vá aí? Já chega! Dei-te pão, mais ao teu cão, que queres ainda? Estás mas é a exagerar, espera por amanhã de manhã e já te liberto mais à tua ama e às criadas.

Poderás ir então para onde quiseres, mas fica a saber que já não és classe dominante!...

- Que queres afinal? perguntou-lhe Zeqo e ele próprio se admirou do seu tom afectuoso.

- Chegue aqui, senhor oficial.

"Pff! Chama-me oficial como se nos tivéssemos batido pelas divisas!"

- Vou quando eu quiser! interrompeu desabridamente o jovem guerrilheiro, mas os seus passos dirigiram-se maquinalmente para ela.

Andava lentamente, pensativo. Chegado em frente da porta, deu volta à chave na fechadura e deteve-se no limiar, com a cabeça a tocar a trave da porta.

- Que queres? e mordeu a língua, irritado consigo próprio pelo seu tom, novamente cordial. Os olhos velavam-se-lhe sempre que entrava no pequeno quarto em desordem da hanem. Via tudo enevoado. "Por que será isto?" perguntava a si próprio.

- Vá, diz lá depressa, não tenho tempo a perder contigo.

Elsa ficou perturbada. Ele olhou-a, admirado. As faces frescas da rapariga tingiram-se de vermelho e a pele era tão delgada e transparente que o sangue lhe ia escorrer das faces. Entrou no quarto e, sem querer, parou junto dela. "Que coisa esquisita!" disse para consigo, assentando os pés no chão. Perguntou-lhe:

- Estás doente?

Ela balbuciou algumas palavras incompreensíveis. De repente, tirou do peito um saquinho de veludo cujo cordão abriu e meteu lá dentro os longos dedos delgados. Um tilintar estranho soou no quarto e a jovem tirou uma moeda de cinco luíses que entregou ao guerrilheiro. Zeqo recuou. A rapariga empalideceu, enquanto algumas gotas de suor lhe perlaram a testa e a covinha do queixo.

- O que é isso? perguntou Zeqo sem perceber nada.

- Ouro, uma moeda de cinco luíses, respondeu Elsa.

Julgando que o guerrilheiro não estava satisfeito, a hanem deu-lhe o saquinho todo para as mãos. Pensativo, Zeco apoiou-se ao peitoril da janela e tirou da boca estreita do saco outra moeda de ouro. Como brilhava! Olhou-a de mais perto, cheirou-a e teria mesmo gostado de a trincar, mas teve vergonha da rapariga que se mantinha de pé na sua frente, orgulhosa e sorridente.

- E esta, o que é? perguntou outra vez.

- É um napoleão.

- Ah sim?

- Um napoleão de ouro!

- Vejam lá! exclamou Zeco, lembrando-se de qualquer coisa. Era então aquilo um napoleão! Foi por este pequeno galo que os agás e os beis da nossa aldeia se mataram uns aos outros? Primeiro foi Selim agá que mandou para o outro mundo o filho de Kaplan bei e depois este, para não lhe ficar a dever, abateu como um cão o rebento de Selim. E tudo isso por causa deste galo minúsculo!

- Liberta-nos, a mim e ao meu pai! murmurou a rapariga entre dentes.

Zeqo, de cara inexpressiva, olhava-a espantado. Os olhos injectaram-se-lhe de sangue, as compridas pernas pareciam enterradas no soalho, os lábios grossos tremiam-lhe como se tivesse febre.

- O quê? gritou, e apertou o saquinho na mão como se estivesse a espremer um limão.

Saiu em silêncio, sem esperar resposta, com um ar pensativo, ausente. No pátio, pôs-se a andar às voltas, com o punho fechado onde apertava o saquinho cheio de moedas de ouro.

 

À tarde, Zeqo instalou os guardas nos seus lugares, franqueou o limiar da porta grande do bei e correu ao mercado. Já não podia esperar mais, queria ver a cidade com que sonhava havia anos. Mas a maior parte das lojas estava fechada, só os cafés estavam abertos e através dos vidros sujos viam-se de vez em quando algumas caras fatigadas, mal barbeadas, que olhavam ansiosamente para a rua. "Podem ser inimigos!" pensava Zeqo e retardava o passo. À porta, via-se o dono do café com uma bandeja cheia de chávenas fumegantes a bater com as unhas em cima do mármore e a gritar:

- Moído no almofariz, senhores! Bom e quentinho!

"Que parvo! pensava Zeqo. Quem tem agora tempo de beber café?" e continuava a andar.

Lá estavam os caldeireiros, curvados sobre as bigornas. O ritmo das marteladas acariciou os ouvidos do guerrilheiro, eram sem dúvida mais suaves do que os tiros e depois não matavam ninguém. Na sua frente estava exposto um enorme caldeirão para ferver a água. O que a mãe havia de gostar de ter um assim!

- Quanto custa? perguntou inconscientemente.

- Trezentos leks.

- Onde é que os vou buscar?

- Então para que queres saber o preço? E o patrão sorriu.

Entretanto, a mão de Zeqo remexia o fundo do bolso das calças e os dedos encontraram o saquinho. "Oh!" exclamou assustado, tinha trazido o pecúlio da jovem hanem.

O saquinho tinha cem napoleões.

- Quantos napoleões de ouro custa este caldeirão? perguntou, só para dizer alguma coisa.

O patrão sorriu outra vez.

- Com uma moeda podem-se comprar quatro como este!

Zeqo curvou-se, derreado com o peso do que trazia no bolso. Podiam-se então comprar quatrocentos caldeirões com aquele saquinho. Oh meu deus! Um caldeirão para cada família do Poroçani Negro! Sorriu amargamente e afastou-se, dobrado em dois, sob o peso dos quatrocentos caldeirões que tinha no bolso.

No Bezistan, Zeqo ficou de boca aberta diante da montra da loja de Bim Hirre. Lenços para a cabeça, bordados com palhetas douradas e enfeitados com pompons; caixas que brilhavam como o ouro (e pensou mais uma vez no saquinho da hanem); pentes, brincos, alfinetes, casaqui-nhos, tecidos de algodão, edredão de seda. Tudo o que via lhe parecia feito por medida para Naze, a noiva querida. Por onde começar? Era tudo tão bonito! Irritado, foi-se embora batendo com o pé no passeio. Deambulou muito tempo pelas ruas, admirado com todo aquele movimento.

Gente, gente e mais gente... filas intermináveis de carroças, umas cheias até cima, outras vazias. E cavalos também e mesmo burros, carregados de cobertores. "Eia, tantos cobertores!". Lenha para os fogões, couves, alhos porros, pão, pães enormes como bandejas, pão de trigo! Zeqo espantava-se a cada passo.

Mais adiante, alguém gritou:

- Não se aproximem, o entreposto está minado!

E Zeqo não se aproximou. Pelo contrário, afastou-se mais depressa do que os outros. Não tinha vontade nenhuma de se deixar matar no primeiro dia da libertação.

No caminho de regresso, viu um objecto que o deixou estupefacto, uma charrua de ferro. A relha era tão aguçada que os reflexos quase o cegavam, E aquela roda pequenina!

E aquela rabiça polida, onde se teria tanto prazer em asentar a mão! Que diferença da charrua de madeira! O comissário tinha-lhe dito: "Há-de vir um dia em que faremos sair da circulação as charruas de madeira. Lavraremos a planície com máquinas e a montanha com charruas de ferro". Zeqo fechou os olhos, sonhando. Viu-se a lavrar a terra com dois dos possantes bois de Kaplan bei, com os focinhos cobertos de espuma, numa mão o aguilhão, na outra a rabiça polida e na cabeça um guardanapo para o proteger do sol. E aquela roda pequenina que rodava, rodava, sem parar... Enquanto picava o Kazil, ouviu a dois passos uma voz longínqua, que parecia vir das profundezas da terra e contudo soava com clareza:

- Compra-a, camarada guerrilheiro! Abriu os olhos. Na sua frente estava o comerciante - um magrizela com uma cabecita calva e os olhos a brilhar de malícia.

- Esta mercadoria é rara, não há mais de cinco em toda a Albânia. Foi o Pachá que a mandou vir de Itália há três anos. Se tens dinheiro para a comprar, não hesites, havias de te arrepender... de onde és? Óptimo, hi, hi, hi...

- Queres vendê-la?

- Claro!

- Quanto? perguntou por curiosidade.

- Quanto? o homenzinho deu um passo em frente e pôs-se na ponta dos pés para lhe falar ao ouvido. - Só a vendo por ouro. Quatro napoleões, tens?

Silêncio.

- Nos nossos dias o comércio faz-se em metal sonante e à vista. Não sabemos a volta que isto ainda vai dar! Porque estás a pensar? Por quatro napoleões, é dada!

É boa mercadoria!

Zeqo resfolegou, como para se recompor. Quatro napoleões de ouro! Havia portanto vinte e cinco charruas de ferro dentro do saquinho da hanem! Parecia-lhe que toda a Albânia podia ser lavrada com vinte e cinco charruas como aquela.

- Quatro napoleões de ouro! murmurou a voz cavernosa.

Zeqo recuou e perguntou-lhe:

- Não tens voz, para falares assim tão baixo? O comerciante levou um dedo aos lábios.

Porquê esse gesto? Zeqo não compreendeu.

- Vamos, fala!

O homenzinho gargalhou:

- O ouro é proibido, meu rapaz!

- Proibido? Admirou-se. Riu, irritado e foi-se embora.

Chegado em frente da porta grande do bei, Zeqo deteve-se. De repente, deu meia volta e voltou para trás. Sem se dar conta, os passos levaram-no à loja onde estava exposta a charrua de ferro e pôs-se a andar à volta dela, observando-a de todos os cantos; tocou o gume da relha, acariciou a rabiça e ficou pregado ao chão, com os olhos sonhadores... Teria ali ficado muito tempo se não tivesse visto por trás da montra a cara ossuda do comerciante que lhe sorria maliciosamente.

"Tu já não és classe dominante!" disse Zeqo com os seus botões, e virou-lhe as costas.

 

Ao fim da tarde, os guerrilheiros reuniram-se no pátio do bei.

- Querem ver napoleões? exclamou um deles.

- Já vi montes deles! disse um, afastando-se sem prestar atenção.

Mas os dois que ficaram arrancaram o saquinho das mãos do primeiro e viraram-no de boca para baixo. As moedas de ouro tilintaram-lhes na palma das mãos, brilhando com mil reflexos sob o céu cinzento de Outono.

- Os que eu vi eram mais pequenos! disse um dos guerrilheiros.

- Não pode ser! São todos iguais, foi a mesma fábrica que os fez, a fábrica dos burgueses!

- Não, não, há também mais pequenos!

- Que cabeça de burro!

 

Os pombos levantaram voo do alpendre e passaram por cima dos guerrilheiros batendo as asas. Os patos grasnaram ruidosamente, agitando as águas do lago. O séter gania tristemente. Outros guerrilheiros vieram juntar-se ao grupo.

Lá em cima, Elsa, de olhos esbugalhados, observava os guerrilheiros e os seus napoleões que dançavam naquelas mãos rudes e mal cuidadas.

- Devemos entregá-los ao poder popular! exclamou um deles.

- É justo! Não os devolvam à hanemf

- Tens cada uma! Não precisamos do ouro dos beis! O nosso poder vai pôr moedas em circulação com a sua própria efígie, hão-de ver!

Um guerrilheiro, com o bivaque enterrado na cabeça e um enorme canivete pendurado de uma corrente presa ao cinturão, pôs fim à discussão, reclamando:

- Ouçam lá, vocês! Que estão para aí a fazer? Ainda agora acabei de varrer o pátio e já me trouxeram cá para dentro todas as porcarias da rua!

Competia a Zeqo, como chefe do grupo, responsabilizar-se pelo erro cometido. Coçou o pescoço e disse:

- Tens razão!

E, virando-se para os guerrilheiros, deu ordem para meterem no saquinho todos os napoleões.

Pouco depois, sacudiu o saquinho e dirigiu-se pensativo para junto da rapariga que estava mais morta que viva.

- Toma os teus napoleões, camarada. Guarda-os durante algum tempo ainda no peito, mas não os troques! Neste saquinho há vinte e cinco charruas de ferro. Vinte e cinco! Quando tivermos feito as nossas leis e os nossos cunhos, irás entregá-los nos nossos escritórios e receberás um recibo.

Elsa, sentindo-se de novo abandonada, chorou copiosas lágrimas durante muito tempo. Não compreendeu bem o que lhe disse o guerrilheiro Zeqo, mas em contrapartida compreendeu que um grande acontecimento se tinha dado naquela mesma manhã na Albânia, uma reviravolta total, que ainda não era capaz de perceber completamente.

 

                   Lição Sangrenta - Faik Ballanca

                   À memória da heroína Shoíe Galica

O sol declinava num céu esbraseado. Marchavam a passo certo na rua estreita da aldeia. Apenas cinco pés assentavam no chão. A mulher que tinha posto a espingarda a tiracolo, com o cano virado para baixo, trazia calças de montanhês e apoiava-se sobre os ombros sólidos de dois homens de alta estatura.

- Por aqui, disse Sadri atravessando um campo.

- Mais um pouco de paciência, disse um deles com simpatia, estamos quase a chegar.

Retomaram a marcha sustendo a mulher que sofria sem se queixar.

A bala penetrara na barriga da perna e não tinham conseguido extraí-la. Levavam-na agora para um local seguro onde a poderiam tratar sossegadamente.

Na casa que se encontrava na extremidade da aldeia, estenderam suavemente a mulher em cima de um cobertor que a mãe de Sadri tinha trazido. Todos a observaram durante bastante tempo.

- Estás melhor? perguntou um deles.

A mulher baixou a cabeça dando a entender que o ferimento continuava a fazê-la sofrer, mas não disse uma palavra.

- Vou chamar o curandeiro Ahmet, disse Sadri. Havemos de conseguir extrair o projéctil.

Enquanto saía, o outro homem, que se chamava Neki, pegou na espingarda e começou a montar a guarda.

- Dá-me de beber, disse a ferida em voz alta. Sentou-se e tirou o grande revólver que trazia no bolso. Era um revólver de calibre grosso, que parecia pesar nas mãos de uma mulher, uma relíquia de ferro, do marido que tinha sido morto.

Pegou no copo de água e entornou uma parte em cima da ferida, com o resto refrescou a cara e escondeu o revólver debaixo da almofada, Aquela arma recordava-lhe o marido, por isso a tinha sempre ao alcance da mão.

Quando o curandeiro entrou no quarto, quis -se levantar, mas Sadri impediu-a de o fazer.

- Não irrites a ferida, disse ele. Ainda temos uma boa porção de caminho a percorrer e não há cavalos. Os camponeses não podem ajudar-nos. Na aldeia não há homens nem cavalos. O inimigo levou tudo.

A mulher deitou-se outra vez de costas e pôs-se a observar um berço pendurado no tecto por uma corda. Nunca embalara um berço e, contudo, tinha nove filhos. Eram nove órfãos cujos pais haviam sido mortos em combate. Era a eles que dava a sua ternura maternal.

Queria curar-se e voltar a combater. Não chorava de dor, não sabia chorar porque tinha o peito grande e tranquilo como o peito de uma mãe que dá vida.

A paciência desta mulher espantava o curandeiro.

Neki balançava nervosamente o berço. Sadri percorria o quarto em todos os sentidos, a velha tinha os olhos cheios de lágrimas.

- Xherah (1), disse a mulher, acaba depressa o teu trabalho.

Este curvou-se sobre ela e, com uma pinça de ferro aquecida ao rubro, tentou retirar o projéctil. O cheiro sufocante da carne queimada invadiu o quarto. A mulher pensava nos pequenos órfãos.

Neki continuava a balançar o berço. Era um berço vazio, como dezenas e centenas de outros berços de Kossovo. Porque as crianças já não ficavam nos berços e as mães já não tinham tempo de as criar.

O curandeiro esforçava-se o mais possível mas não conseguia esconder o seu espanto.

"Esta mulher, pensava ele, não pode ser uma mulher. É mais corajosa a suportar a dor do que um homem. Deve haver qualquer coisa escondida por trás daqueles compridos cabelos negros."

Teria dado tudo para tirar aquilo a limpo. Aquele mau pensamento torturava-o tanto como a pinça torturava a mulher.

"Ela vestiu-se assim para não ser reconhecida", pensava ele.

Todos conheciam aquela mulher. Todos sabiam que era ela o chefe daquele destacamento,

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Nota (1) É assim que chamam aos curandeiros no Kossovo.

 

mas muitos pensavam que o espírito do marido revivia nela. Era essa de resto a opinião do curandeiro.

Durante anos, guiara valentemente aqueles homens e ninguém sabia então que o marido tinha morrido. Os homens partiam ao assalto gritando o nome do marido e aquela mulher não disse uma só vez que estava cansada de combater.

O nome do marido semeava o pânico por entre o inimigo, mas era a mulher que lutava, que guiava os homens no combate e que criava os filhos dos que tombavam na luta.

- Puxa a trança, disse o curandeiro. Puxa com força para não sentires a dor. Tem paciência.

Ela, entretanto, recordava-se de como tinha sepultado o cadáver do marido dentro de um poço natural, enterrando-o profundamente para que o inimigo nunca pudesse encontrá-lo. Para que o inimigo vivesse sempre no temor do seu nome.

- Se tens força, dissera-lhe ele, combate.

E ela combatia ainda e talvez melhor do que o seu homem.

- Tira essa bala maldita, gemeu a ferida.

- Puxa a trança, disse o curandeiro banhado em suor, puxa com força.

E admirava-se ao ver que aqueles cabelos não ficavam nas mãos da mulher.

"Será realmente uma mulher?", pensava ele. "Neste caso, todos os qualificativos já nada representariam visto que a mulher seria mais forte que o homem."

Neki continuava a balançar o berço, com os

olhos fixos na ferida. Ninguém sabia atirar com a precisão desta mulher. O marido, cuja pontaria era famosa em toda a região, nunca se media com ela.

"Livra-te de me desafiar, dizia ele à mulher, serias capaz de me ridicularizar. Mas ela media-se com todos e ganhava.

Neki vira-a uma vez acender com uma bala um cigarro que alguém tinha posto em cima de um rochedo.

Há anos que ela comandava um destacamento de homens aguerridos e corajosos.

Neki continuava a balançar o berço vazio pendurado do tecto.

Aqueles homens reuniam-se à noite e partiam ao ataque. Lutavam contra os estrangeiros pelos seus lares e pela sua honra e era aquela mulher que os guiava no combate.

Eram guiados por aquela mulher alta que mordia e puxava as tranças para não gritar de dor. Tinha a pele branca e o coração generoso. Mas era um homem ou uma mulher?

O curandeiro, que se esforçava por extrair a bala, tinha 50 anos e há quarenta que tratava dos combatentes. Fabricava medicamentos e sabia curar as feridas. Toda a espécie de feridas.

Seria ele ou esse desejo ardente de viver que curava as feridas? Seria a mão do curandeiro ou o desejo de vingança e a sede de liberdade que restabelecia os homens?

Ele pensava as feridas, rasgava camisas velhas e com elas fazia ligaduras para estancar as hemorragias. Sabia extrair as balas embebidas na carne por meio de uma pinça aquecida ao rubro. Contudo, nunca pegara numa espingarda e isso pela boa razão de que era o curandeiro. Toda a gente o conhecia como tal.

Tinha cinquenta anos e nenhum estrangeiro lhe chamara ainda "bace" (nome que se dá aos que têm um mérito especial, unanimemente reconhecido), enquanto que todos os combatentes do destacamento chamavam por esse nome a doente que mordia as tranças, que era ainda jovem e que além disso era uma mulher. Estas ideias atravessavam o espírito do curandeiro enquanto suava suor e sangue.

A mulher tinha a carne rija e aquela carne disputava a bala à pinça do curandeiro. Dir-se-ia que era gulosa por chumbo e pólvora, como se ela própria se tivesse tornado chumbo e pólvora.

Enquanto Sadri pensava nos sofrimentos daquela mulher, o curandeiro continuava torturado pela dúvida.

"Não é uma mulher", dizia para si próprio. "Tem tranças compridas como usavam antigamente os nossos avós. Não pode ser uma mulher."

Tinha iniciado o seu ofício de curandeiro com a idade de dez anos mas nunca vira uma mulher assim. Nenhuma poderia suportar tais dores. Como poderia aquela ser uma mulher? Lembrou-se então da história que o pai lhe havia contado a respeito de um combatente que tinha sete ferimentos. Não gemia, não se debatia na cama, apertava os punhos ao ponto de fazer esta- Jar os ossos enquanto as lágrimas lhe corriam silenciosamente pela cara.

- Era um verdadeiro homem, dissera-lhe o pai. Era inútil amarrá-lo, estava ali, quieto e não gritava. Pensa neste exemplo, meu filho, dele poderás tirar ensinamentos.

O pai era médico e fixara-se ainda jovem naquela região. Quanto a ele, não pudera estudar porque não havia escolas para isso. Tornou-se portanto curandeiro. Até aquele momento nunca ouvira falar de ninguém mais forte a suportar a dor do que o homem evocado pelo pai, mas agora era obrigado a admitir que aquela mulher suportava muito mais que ele.

A mulher abriu os olhos e viu o rosto do curandeiro debruçado sobre a ferida.

- Deves tirar a bala, disse ela outra vez. É difícil combater a arrastar a perna. As crianças esperam-me e, além disso, a guerra não espera.

Mas ele não conseguia extraí-la. Esforçava-se o mais que podia mas nada conseguia. A bala parecia enterrar-se na carne aínda mais profundamente.

"Uma mulher", disse o curandeiro para consigo, "ouvi dizer que uma mulher em qualquer sítio da França se pôs à frente do seu povo e combateu como um homem, mas os feudais mandaram-na queimar. Diziam que era uma feiticeira e morreu como o meu pai me contou".

A ferida agitou-se um pouco e abafou com dificuldade um gemido.

Sadri tocou no ombro do curandeiro com a espingarda.

- Não temos tempo a perder, disse. Os estrangeiros vêm cá amanhã. Temos de partir ao amanhecer.

- Faz o teu trabalho, curandeiro, gritou Neki. Faz o teu trabalho e tira a bala. Já a torturaste bastante.

O curandeiro de novo se debruçou sobre a chaga, com a pinça na mão.

"Pelo menos não vai morrer?" perguntava o curandeiro a si próprio.

"Vai morrer", pensou ele. "A bala não quer sair porque é uma mulher que se atreveu a tornar-se homem. O tempo está contra ela."

O curandeiro atirou com a pinça e pousou no punho o queixo inundado de suor. Olhou para o berço que baloiçava ainda, rolando os olhos como um pássaro assustado, branco como um lençol.

"No fundo, pensava ele com compaixão e com medo, bastava-lhe ter ficado em casa a embalar o berço."

- Não consigo tirá-la, disse em voz alta.

Os homens olharam-no enraivecidos. A ferida voltou a sentar-se e tirou o revólver de calibre grosso de baixo da almofada. A arma parecia pesar-lhe na mão.

Os homens calaram-se, preocupados.

"Ela tem razão", pensou Sadri, "ele torturou-a durante horas para nada conseguir".

Os olhos de Neki brilhavam de ódio.

- Este maldito homem não tem piedade, parecia dizer o seu rosto magro. Carrega no gatilho e acaba com este canalha!

O curandeiro, com a cara banhada em suor, não pensava no seu fim. Durante quarenta anos tratara das pessoas com as mesmas pomadas e unguentos por ele fabricados e curara-as todas. Por que razão o haviam de matar agora? Tratava de toda a gente, albaneses ou não, e encontrava-se entre as duas partes, vivendo ora das chagas de uns, ora das chagas dos outros.

Era um emigrado, foi talvez a primeira vez que se arrependeu disso e que maldisse os pais por se terem ido fixar naquela terra.

A mulher segurava a arma na mão e o curandeiro sabia que ela nunca falhava o alvo.

- Tens cinquenta anos, se não me engano, disse a doente ao curandeiro.

- Cinquenta anos, "bace", disse o curandeiro estremecendo e pronunciando a palavra "bace" contra sua vontade.

- Cinquenta anos é muito e é pouco, disse a mulher, para ti é muito pouco.

- É pouco, disse ele a medo. Quero viver.

- E não aprendeste nada, acrescentou a mulher.

Os homens calavam-se, apenas a mulher falava com voz calma e tranquila e aquela calma parecia abafar o curandeiro.

- Quanto a nós, muito cedo aprendemos uma coisa, continuou a ferida. Aprendemo-la quando ainda estávamos no berço: a bala chama a bala, curandeiro.

"Que me vai ela fazer?" perguntava ele a si próprio. "Matar-me-á como a um simples coelho? Serei morto por uma mulher?"

Todos estavam mudos. A mulher fez um gesto como se quisesse coçar a perna com o revólver.

- Olha, disse ela dirigindo-se ao curandeiro.

Este virou a cabeça, a medo, e viu com espanto que ela tinha colocado o cano da arma sobre a ferida.

- Olha, disse ela mais uma vez. A bala chama a bala!

Carregou no gatilho, ouviu-se uma detonação abafada e o curandeiro julgou que estava morto.

As balas deslizaram sobre a barriga da perna. Dir-se-ia que se tinham reconhecido e cairam ambas no mesmo buraco do soalho.

O curandeiro piscou os olhos, os dois homens armados pareciam pregados ao chão.

- Acabou-se, disse ela. Pensa-me a ferida, temos um longo caminho a percorrer.

 

Nessa manhã, cinco pés caminhavam sobre o empedrado da ruela estreita da aldeia. Uma mulher apoiava-se sobre os ombros sólidos de dois homens de porte imponente e andava sem se queixar. Tinha passado os braços sobre os ombros de dois dos seus camaradas, dois irmãos de cabelos loiros como o trigo do campo que atravessavam.

E não se queixava.

 

                   O Erro do Artilheiro

Qualquer pessoa se pode enganar, e o nosso artilheiro cometeu também uma vez um erro. Mas foi um erro grave que lhe custou caro.

Parece-me rever a cena e quando penso nisso, dá-me a impressão de que tudo à minha volta é branco e preto como se não houvesse outras cores na natureza -de um lado ele, o artilheiro, do outro o nazi Messersharf.

O nosso artilheiro era fiel até à morte e, quando dava a sua palavra, era capaz de agarrar qualquer pessoa pela gola do casaco em pleno bazar e de lhe dizer:

- Chegou o momento de pagares a tua dívida para com o povo pelos crimes que cometeste. O partido condenou-te à morte!...

Nada o fazia recuar, montava na bicicleta e regressava ao mato.

Era de alta estatura, desembaraçado e cheio de vida. Tinha um rosto franco e sobrancelhas delgadas. Com a abundante cabeleira dividida em dois por um risco, marchava sempre à frente da coluna transportando ao ombro a metralhadora da companhia.

Por cima das calças usava meias grossas de cor escura e vestia um "pullover" de lã com desenhos vermelhos e negros.

Nunca se separava da metralhadora, mesmo quando se tornou comandante da companhia com cinquenta homens sob as suas ordens. Dava-lhe lustro e cuidava dela como se fosse uma criança. Chamávamos-lhe artilheiro. Para ele era esse o nome mais belo que lhe podiam dar.

Só quando tinha de descer à cidade, o que era de resto bastante raro, no-la confiava. Montava na bicicleta que escondia sempre numa base situada ao longo da estrada e metia o revólver debaixo da camisa.

Quando voltava, com um sorriso nos lábios, compreendiamos que tudo correra bem.

Era calmo e todos os guerrilheiros se deixariam matar por ele.

Só uma vez trocou palavras azedas com Xhemal e foi precisamente nesse dia. Ambos tinham armado uma emboscada em que tinham caído uma dezena de alemães. Estes regressavam das aldeias, haviam reunido galináceos e gado e levavam-nos para a caserna.

O artilheiro abateu nove, enquanto as vacas, as galinhas e os carneiros se espalhavam assustados pelos campos.

O décimo levantara as mãos. Era um rapazinho de dezasseis anos, de cabelos loiros. Chorava de medo e dizia com voz angustiada:

- Ich bin Oesterreicher, Messerscharf. Tote mich nicht. Ich komme mit euch will Partisan

sein (1).

___

Nota (1) Sou austríaco, Messersharf. Não me mates. Vou convosco, quero ser guerrilheiro.

 

Ao que parece, foi a primeira vez que o artilheiro se apiedou. Os alemães não se rendiam facilmente, enquanto que aquele chorava e suplicava.

Xhemal discutiu durante muito tempo, mas Messerscharf salvou a pele.

Ninguém se podia opor ao que dizia o comandante da companhia e Xhemal, que era seu amigo íntimo, teve de se render.

De dentes cerrados, caminhava ao lado dele resmungando. Parecia dizer:

- Artilheiro, mais valia abatê-lo.

Mas o artilheiro desarmou o alemão e deu-lhe ordem de marchar à sua frente.

Todos nós sabíamos que o artilheiro não era homem para se comover facilmente, mas aquele alemão ou austríaco que suplicava chorando que lhe perdoasse e o admitisse nas suas fileiras, tinha conseguido comovê-lo. No fim de contas o homem até tem às vezes pena de um frango, com mais razão de um ser humano. Deve ter sido isso que pensou o artilheiro e poupou-lhe a vida.

Meteram pelo carreiro e o nazi deixou de chorar, ladeado por Xhemal e pelo artilheiro.

- Xhemal, disse a certa altura o artilheiro como para se desculpar. Demos-lhe uma oportunidade. Quem sabe se mais tarde não nos poderá ser útil. Ensinar-nos-á a língua dele, o que nos facilitará os golpes na cidade. Ainda é novo.

Xhemal não respondeu e o artilheiro continuou a falar, pousando a mão sobre o ombro do camarada:

- Xhemal, meu velho, nada nos custa matar o rapaz se for preciso.

Mas Xhemal calava-se como todos nós assim que vimos o alemão. Xhemal era bastante mais baixo que o artilheiro e estava furioso.

Messerharf tornou-se dos nossos e adaptou-se muito rapidamente à nossa vida. Começou a ir de uma aldeia a outra, de uma base a outra. Comia, bebia e dormia como nós. Até sabia cantar muito bem certos cantos dos guerrilheiros e tinha cosido uma estrela de cinco pontas no bivaque.

Messersharf começou a ensinar alemão ao artilheiro que passava a maior parte do tempo na sua companhia.

- Ich bin Partisan, du bist Partisan, er ist Partisan (1).

O artilheiro pensava seriamente que um dia, com a ajuda daquele rapaz, se poderia infiltrar nas fileiras do inimigo sem ser notado. Nos golpes que levava a cabo havia sempre muita fantasia. Desta vez esperava empreender qualquer coisa de maior envergadura mas não dizia nada a ninguém.

O nazi continuava connosco e nada o distinguia dos outros guerrilheiros. Contudo não lhe tínhamos ainda dado uma espingarda.

O nosso intendente, um estudante do liceu de Korça, não podia suportar aquele rapaz de dezasseis anos de cabelos loiros.

- Hitler também era austríaco, dizia ele.

Mas Messersharf mantinha-se calado. Todo o santo dia estava junto do artilheiro a quem ensinava alemão. Era bem educado com os camponeses que nos albergavam de vez em quando e

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Nota (1) Eu sou guerrilheiro, tu és guerrilheiro, ele é guerrilheiro.

 

estes começaram a estimá-lo, como estimavam Dino e Alberto, dois italianos que combatiam nas fileiras da nossa companhia.

E quem havia de dizer que aquele sonso nos havia de enrolar. Vendo-o sempre ao lado do artilheiro, os camponeses julgavam que era um soldado italiano que se passara para o nosso lado.

Levava-o sempre com ele e aquela noite era muito escura. Tinhamos aberto fogo contra os camiões inimigos. O combate durou duas horas.

Ninguém percebeu como Messersharf nos deixou. Quando se fez a chamada, demo-nos conta de que ele faltava. Pareceu-me então que o intendente respirava enfim livremente.

O artilheiro e Xhemal foram à sua procura, ao menos para o enterrarem, mas nada encontraram. Voltaram com ar preocupado e nunca mais falaram dele.

De resto mais ninguém se lembrou do nome dele. Só os aldeãos murmuravam por aqui e por ali que em pleno mercado um jovem alemão loiro tinha prendido alguns camponeses.

Não queríamos acreditar nesses boatos, sem imaginarmos que a verdade era ainda mais amarga.

De facto, Messersharf tinha fugido e conhecia todas as nossas bases. Também não se fazia rogado em prender os camponeses e incendiar-lhes as casas. Mandava incendiar as casas onde fora acolhido e onde lhe haviam dado de comer.

O artilheiro ficou tão mortificado com aquilo, que começou a definhar e já não se atrevia a encarar os camaradas.

Outro teria certamente feito um disparate.

Ele nada dizia mas sentíamos que a raiva o devorava.

Foi então que o artilheiro começou a descer à cidade mais frequentemente. Montava na bicicleta, metia o revólver debaixo do "pull-over" de desenhos vermelhos e negros e partia à procura do nazi. Mas nunca conseguia apanhá-lo.

Um dia regressou com um ombro deslocado e os camaradas do batalhão proibiram-no de voltar à cidade.

Trazia agora a metralhadora ao ombro esquerdo e continuava a não se separar dela. Nunca foi à cama, apesar das dores que não lhe davam quartel. O que mais o magoava era a traição de Messersharf, as casas incendiadas dos camponeses que nos tinham dado pão.

- Não te rales, dizia-lhe Xhemal. É inútil procurá-lo na cidade. Ele há-de vir aqui e é aqui que ajustaremos contas com ele.

Passaram semanas, mas nem por isso o artilheiro recuperava a paz de espírito. O ombro curou-se, mas não a ferida que trazia no coração.

Quando menos se esperava, Messersharf e os outros alemães faziam uma incursão e matavam os camponeses. Nós estávamos alerta, mas às vezes chegávamos tarde porque eles conheciam os caminhos e sabiam agir com manha.

Estavam armados até aos dentes e punham os campos a ferro e fogo.

Uma manhã em que nos tínhamos levantado cedo, Mustafa veio dizer-nos que os alemães se haviam escondido no leito seco de um ribeiro que passava muito perto da aldeia.

O artilheiro apressou-se a ir verificar se tudo isso era verdade. Realmente não concebia como é que eles haviam conseguido chegar até ali sem ninguém os ter visto. Os guerrilheiros colocados na outra vertente da montanha deviam tê-los detectado. Só um camponês poderia ter passado assim sem se fazer notar.

Uma ideia ocorreu ao espírito do artilheiro: "Messersharf".

Chegámos à margem do ribeiro sem fôlego. Os alemães, que de nada suspeitavam, encontravam-se por cima de nós.

Então, sem nada dizer, arrancou a alguém o saco das granadas e começou a atirá-las umas atrás das outras para o meio do grande grupo formado pelos alemães.

Foi o pânico. Lançaram-se em todas as direcções sob o efeito da surpresa. Nós não parávamos de disparar. O artilheiro disparou até não poder segurar a arma por mais tempo.

Os alemães foram dizimados. Alguns tentaram fugir enquanto lhes disparávamos para as costas. Quanto a Messersharf, sabia defender-se. Colocara-se entre dois rochedos e não deixava aproximar ninguém.

Era uma posição ideal de onde se podia defender sem arriscar quase nada, desde que tivesse munições. Conhecia aquele canto e ali se mantinha, sabendo-se fora do alcance das balas. Disparava rapidamente, via-se que estava disposto a fazer tudo para salvar a pele.

Matou um guerrilheiro e feriu outro. As nossas balas e granadas não o atingiam. Aproveitava a posição ao máximo, conhecendo bem a guerrilha.

Aquela situação tornava-se um verdadeiro suplício, outros camaradas podiam morrer. Messersharf mantinha-se firme.

O artilheiro disparava e de vez em quando gritava. (O alemão que aprendera servia-lhe enfim para alguma coisa).

- Gub dich! Du bist allein! (1) E voltava a disparar.

Mas Messersharf sabia o que o esperava. Favorecido pela sua posição, disparava sempre que um de nós esboçava o menor movimento.

Como sempre, foi o artilheiro que pôs fim à questão. Todas as nossas armas foram apontadas para o rochedo onde se defendia o nazi, entretanto o artilheiro começou a trepar. Debaixo do "pull-over" de desenhos vermelhos e negros, tinha escondido o revólver. O nosso fogo impedia Messersharf de tirar a cabeça do buraco e não viu o artilheiro que avançava rapidamente para ele.

Era ágil como um gato, mas aquela escalada debaixo das balas do nazi e das nossas não era fácil. Ao meu lado, Xhemal gemia. Estava ferido e não tirava os olhos do camarada.

De vez em quando, tinha a impressão de que o artilheiro escorregava e, instintivamente, estendia a mão para o amparar. Mas não era nada. Bem colado aos rochedos, prosseguia a escalada servindo-se das unhas e das pernas. As meias estavam todas esfarrapadas.

Nós continuávamos a disparar.

Seria possível que o nosso artilheiro caísse? Debaixo do "pull-over" aos desenhos vermelhos e negros, tinha o revólver e debaixo do revólver, o coração.

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Nota (1) Entrega-te! Estás sozinho!

 

Chegou ao cimo e o fogo cessou imediatamente. Um profundo silêncio se abateu sobre o vale. Do alto do rochedo, lançou-se sobre o nazi.

Ouviu-se um grito dilacerante, era o nazi e depois o descarregar de uma arma.

Encontrámo-los um em cima do outro, estavam mortos. O artilheiro não se servira do revólver, apanhara-o pela garganta. Com aquelas mãos fortes de camponês tinha estrangulado Messersharf e não o largara. O nazi descarregara a metralhadora na barriga do artilheiro.

"Messersharf", parecia dizer o olhar estranhamente tranquilo do artilheiro: "Eu sabia que serias castigado aqui, nesta terra, junto das casas que incendiaste, junto dos homens que mataste e que nunca esquecerão".

 

                   A Sanguessuga

Ele era um pequeno bei que morava numa casa velha, vizinha do nosso orfanato. Chamávamos-lhe o pequeno bei e, apesar de ter dezoito anos, não trabalhava e não ia às aulas. Passava o dia inteiro connosco. O pai dele ainda vivia e ia gastando o pouco dinheiro que lhe restava.

Antigamente moravam numa casa bonita e alta e Zenel tinha então outros companheiros. Agora partilhava das nossas brincadeiras.

Mas nós não gostávamos dele.

Na maior parte tínhamos perdido os pais durante a guerra. Muitos de nós não sabiam o que lhes acontecera e isso dilacerava-nos o coração. Quando a Zenel, tinha pai e mãe.

Não gostávamos dele porque era grande, forte e mau. Usava um casaco de cabedal apertado na cintura com um cinto de fivela brilhante. Tinha testa alta e regular e uns olhos azuis e frios.

Zenel trazia sempre a fisga consigo. Orgulhava-se disso.

Era preciso reconhecer que era um excelente atirador e era capaz de nos partir um dedo a trinta passos, por pouco que o mostrássemos à esquina do muro. Tínhamo-lo aprendido à nossa custa.

Zenel gostava de fazer mal aos animais e quando os não encontrava a jeito, vinha meter-se connosco. Mas o bode expiatório de Zenel era Vuvi. Fazia-lhe toda a espécie de judiarias, dava-lhe pancadas nas costas, puxava-lhe os cabelos disfarçadamente. Mas Vuvi nunca se zangava.

Vuvi era surdo mudo e mantinha-se muitas vezes à parte. Fazíamo-nos compreender por meio de sinais que ele compreendia imediatamente. Era inteligente.

Vuvi só tinha um amigo, um rapazinho baixo e sorridente, com longas pestanas e nariz direito que desenhava muito bem.Chamávamos-lhe Minela e era uma das raras crianças que se lembrava ainda dos pais. Tinha mesmo uma fotografia deles.

Na fotografia via-se um destacamento de guerrilheiros e, no primeiro plano, o pai de Minela com outro guerrilheiro. Este último era de grande corpulência e usava bigode. Vuvi estava convencido que este último guerrilheiro era o pai dele. Não o podia dizer, mas nós compreendíamo-lo. Acariciava muitas vezes essa fotografia.

Esforçávamo-nos por dar forma ao nevoeiro que envolvia o nosso passado. Inventávamos toda a espécie de histórias cujos heróis eram os nossos pais. Contávamo-las uns aos outros e aceitávamo-las com uma coisa muito natural. Creio que sem isso não teríamos conseguido viver. O nosso maior orgulho era que os nossos pais haviam morrido pela pátria.

Pobre Vuvi! Para ele era muito mais difícil, faltava-lhe a fantasia. Foi por isso que escolheu a fotografia.

Estava ligado por laços indissolúveis àquele valente guerrilheiro que aparecia na fotografia com uma expressão alegre.

Tenho a certeza de que Vuvi teria morrido se lhe dissessem que aquele guerrilheiro não era o pai. Era por isso que lhe prestávamos sempre muita atenção e assim que Vuvi começava a emitir uns sons roucos mostrando a fotografia, sacudíamos a cabeça em sinal de aprovação.

Só Zenel se punha a rir. Ria com desprezo e aquilo ofendia-nos.

Entrava no nosso dormitório saltando pela janela. O vigilante expulsava-o, mas ele voltava. Voltava constantemente e ficava até a velha Anifé, a única mulher que tinha ficado a servir o grande bei, sair à sua procura.

- Zenel! punha-se ela a gritar.

O pequeno bei fazia de conta que não ouvia e Anifé continuava a gritar até ficar rouca. Só muito tarde voltava para casa.

- Cala o bico, dizia. O que é que te deu para gritares dessa maneira?

Antigamente, Anifé chamava "Zenel bei", mas o grande bei fora categórico:

- Nunca mais o chames assim, ainda fazes com que nos aconteça alguma desgraça.

Muitas vezes organizávamos jogos no dormitório. Jogávamos o xadrês e às vezes o professor de música vinha-nos ensinar cantos patrióticos, cantos que os nossos pais também tinham cantado. Tremíamos de emoção e cantávamos de todo o coração.

Zenel observava-nos com os seus olhos frios.

Um dia, Vuvi pediu a Minela que lhe fizesse o retrato daquele guerrilheiro simpático, pois só tinham uma fotografia para os dois. Vuvi queria colocar o retrato à cabeceira da cama.

Minela aceitou e pôs-se ao trabalho. Pouco a pouco, aquele retrato começou a interessar-nos a todos. Minela fez o desenho e nós arranjámos as tintas que eram precisas para realizar o retrato.

Minela trabalhava bem e fazia-o com prazer. Assim que as aulas terminavam, corríamos para o dormitório, almoçávamos rapidamente e reu-níamo-nos em volta do pequeno pintor. Todos os presentes nada percebiam de pintura, o que os não impedia de o bombardear de conselhos.

Vuvi estava louco de alegria.

Assim que o retrato ficou pronto, todos felicitámos Minela. Só Zenel, que entrara mais uma vez pela janela, se pôs a dizer:

- Esse retrato é inútil, meu pobre Vuvi. Esse tipo não é o teu pai.

Vuvi sorriu, não compreendia.

- Pode ser o diabo, acrescentou Zenel, mas não é de certeza teu pai.

E pôs-se a rir, com um riso maldoso.

Fez-se silêncio. Sentíamo-nos todos ofendidos e aviltados.

Quando Vuvi saiu do quarto, tudo estava ainda mergulhado num silêncio de gelo.

De repente, Minela gritou:

- Zenel, és um tipo nojento, uma sanguessuga, um malandro!

E continuou a insultá-lo sem parar até que Zenel lhe saltou para as costas, o agarrou pelos cabelos e lhe arrancou o retrato das mãos.

Separámo-los com grande dificuldade.

- Malvado, malvado, continuava a gritar Minela.

Quiseram lutar outra vez, mas fizémo-los parar. Ficou decidido que o assunto seria resolvido no dia seguinte no prado.

O nosso director era muito severo e nunca lutávamos dentro do dormitório.

Naquela noite ninguém pregou olho. Zenel atingira aquilo que tínhamos de mais sagrado, a memória dos nossos pais que haviam tombado de armas na mão. Roía-nos uma cólera surda.

Na manhã seguinte, sem mesmo nos vestirmos, fomos para o prado em calções e camisola interior.

Zenel também não tinha dormido bem. Era muito rancoroso. Tinha os olhos inchados e as mãos a tremer. Estava habituado a dar ordens e a nossa desobediência fazia-o espumar de cólera. Saímos do dormitório com mil precauções para não nos deixarmos apanhar. A erva chegava-nos ao tornozelo, caminhávamos sobre o orvalho.

O sol começava a surgir no horizonte. Uma alvéola elevou-se para o céu e, esvoaçando, desapareceu ao longe. Outro pássaro levantou voo, assustado, e voou rapidamente rente à erva.

À beira do prado havia uma ameixoeira brava cheia de rebentos. Foi aí que parámos.

Formamos um círculo. Os dois adversários encontraram-se face a face naquele ringue vivo. Zenel sorria com ar de desprezo. Minela escutava distraídamente os conselhos que lhe dávamos sobre a maneira como devia defender-se e atacar. Todos nós estávamos com ele.

"Ah, se ele pudesse dar-lhe uma sova", pensávamos nós.

À frescura da manhã juntara-se a ansiedade. Batíamos os dentes e tínhamos arrepios.

Alguém disse:

- Um, dois, três...

Os dois adversários lançaram-se um contra o outro com uma raiva espantosa. Nunca tínhamos visto uma troca de socos tão rápida.

Zenel quis dar-lhe um directo, mas Minela evitou o golpe abaixando-se e deu-lhe uma cabeçada tão violenta no peito, que o outro cambaleou.

Os ataques tornaram-se cada vez mais rápidos e mais enraivecidos. Nós gritávamos e nos nossos gritos vibrava todo o ódio que tínhamos contra Zenel. Minela, a quem a cólera e o nosso encorajamento dava forças, defendia-se bastante bem. Deu mesmo a Zenel alguns murros bem aplicados que nos fizeram gritar de alegria. Mas quando começaram a lutar corpo a corpo, não teve forças para resistir. Zenel atirou-o ao chão e bateu-lhe sem piedade.

Quando Zenel se levantou, Minela afastou-se lentamente sem se atrever a levantar os olhos para nós.

- É maior do que eu, disse ele com a voz entrecortada. Mas não perde pela demora. Hei-de esmagá-lo como a uma simples sanguessuga.

Deitava sangue pelo nariz. As gotas de sangue caíam sobre a erva espezinhada.

Estava terrivelmente desiludido. Queria recomeçar a luta, mas não o deixámos.

Estávamos pregados ao chão. Era verdade que ele era maior do que nós, mas não o queríamos atacar todos juntos. Zenel respirava com dificuldade e os olhos azuis lançavam chispas de cólera.

- Então, disse ele, quem se segue? Nós calávamo-nos.

- Nenhum, disse com ar fanfarrão. Nenhum, porque vocês, seus miseráveis, não se podem comparar comigo.

Houve um murmúrio de cólera. O círculo tornou-se ainda mais apertado. Todos começaram a dirigir-lhe insultos e ameaças.

- Vocês são uns bastardos, é isso que vocês são, disse ainda ele. Vejam o que faço do vosso retrato. E rasgou-o.

Pergunto ainda a mim mesmo como tínhamos conseguido dominar-nos.

De repente, Vuvi agarrou Zenel pela garganta-Este tentou enfrentá-lo, mas Vuvi deitou-o ao chão.

Era inconcebível. Vuvi nunca lutava.

Um grito saiu do nosso peito.

Vuvi apertava a cabeça de Zenel entre os joelhos e começou a bater-lhe furiosamente, com os cabelos caídos para a cara, parecia louco, furioso.

Nós berrávamos, dando cotoveladas uns aos outros e não perdendo um pormenor daquela Cena extraordinária. Estávamos debruçados sobre Os combatentes e gritávamos com todas as nossas forças. Sentíamo-nos invadidos por uma alegria indescritível.

Zenel mal se mexia e chorava. Vuvi chorava também, mas era por causa do retrato. Nós estavamos muito contentes, parecia-nos que nos tínhamos libertado de um mal.

Quanto ao retrato, Minela faria outro mais bonito ainda. O que era importante era que Zenel nunca mais se atreveria a importunar-nos. O pequeno bei nunca mais nos torturaria. Éramos fortes, muito mais fortes do que ele.

 

                   O meu mais novo irmão - Elena Kadare

As raparigas desciam ruidosamente os degraus do Palácio da Cultura. Um grupo tomou o caminho que ia dar à rua Dibra. O outro avançou para a rua Kongres i Pèrmetit.

- Boa noite meninas.

- Boa noite.

- Boa noite.

Mira e as colegas do bairro atravessaram a praça Scanderbeg e meteram pela grande avenida que ladeia o parque Rinia.

Era já escuro, o encontro com os actores e os realizadores do último filme dos estúdios cinematográficos "Albânia Nova" havia começado às quatro horas e tinha-se prolongado por muito mais tempo do que o previsto. Quando Mira chegou ao pé de casa, viu que a maior parte dos quartos estava iluminada. Apressou o passo e, chegando à porta da rua, separou-se das amigas.

- Mira, preparaste o trabalho que temos de apresentar amanhã de manhã? perguntou uma das colegas afastando-se. Não te esqueças que és tu a falar.

- Tenho de rever algumas passagens, mas de qualquer forma ficará pronto esta noite. Ainda nem sequer fiz os problemas de geometria. Tenho de ir depressa porque nos atrasámos muito.

Mira começou a subir os degraus a dois e dois enquanto cantava a meia voz a música de fundo do filme.

- Diz à tua mãe que amanhã à tarde há reunião de locatários, disse uma mulher gorda que vinha a descer as escadas do segundo andar. Não te esqueças.

- Esteja descansada.

O irmão veio abrir-lhe a porta.

- Não sei porque hás-de tocar como uma doida, disse ele.

Ela deu-lhe um piparote e entrou em casa com um ar desenvolto. A mãe, junto do fogão, preparava como de costume o almoço do dia seguinte enquanto a irmã mais nova fazia os trabalhos da escola.

- Até que enfim, disse a mãe. Dá-me aí a pimenta para a carne assada, tenho as mãos molhadas. Então o encontro correu bem?

- Muito bem, estava lá a jovem actriz que desempenha o papel principal.

- Tem o mesmo aspecto que no écran? perguntou a irmã mais nova.

- Sim, e de resto estava penteada da mesma maneira, e Mira aproximou-se do pequeno espelho na parede. Observou-se por um momento e pôs no lugar uma madeixa rebelde.

O irmão tinha pousado o livro que estava a ler e, com um ar carrancudo, seguia os movimentos da irmã mais velha.

- Não terás por acaso a intenção de seres também actriz? perguntou ironicamente. Mira deitou-lhe a língua de fora através do espelho e, sem voltar a cabeça, deu a pimenta à mãe.

Irritado ao ver que a ironia não produzia efeito, gritou-lhe com voz revoltada:

- E em primeiro lugar nunca mais te voltas a pentear assim, estás a ouvir? Não te penteias mais assim. Eu encarrego-me de te cortar o cabelo!

Mira virou-se para o irmão. Ia para dizer uma piada, mas foi surpreendida pela expressão feroz dos olhos dele. Virou a cabeça ligeiramente e fez uma careta.

- Penteio-me como todas as minhas colegas, respondeu com voz tranquila.

A mãe pôs-se a rir.

- Fazes-me lembrar o teu avô.

- Olhem para isto, ainda não está no segundo ano e já se permite censurar, a Mira, acrescentou a irmã mais nova.

- Tu mete-te na tua vida! disse o irmão em tom ameaçador.

A mãe e a irmã mais nova não puderam conter o riso. Mira olhou mais uma vez para o irmão e franziu o sobrolho. Onde tinha já visto aqueles olhos faiscantes? Lembrava-se agora que alguns dias antes, quando regressava do liceu com três rapazes colegas de turma, ele a tinha olhado com aquele mesmo olhar e não lhe falara, como se fosse uma estranha. Também naquele dia tinha amuado, mas ela acabara por esquecer. Só agora, aquele olhar lhe fizera vir tudo aquilo à memória.

Bateram à porta. Era o pai que chegava. Beijou a pequenita que lhe tinha ido abrir a porta e lhe pendurou o sobretudo.

- Já fizeram os trabalhos da escola?

- Ainda me falta uma parte da exposição que tenho de apresentar amanhã.

O rapaz não respondeu. Roía as unhas, um hábito que mantinha desde pequeno.

- Não roas as unhas, disse o pai. A mãe deitou a sopa e começaram todos a comer. Só o rapaz não comia. Com a mão nervosa, amassava bolinhas de miolo de pão.

- Por que não comes? disse a mãe. Queres que te faça outra coisa?

- Não come por despeito, por causa da Mira, interveio a irmã mais nova piscando o olho com malícia.

- Mete-te na tua vida, se não... respondeu o rapaz em voz baixa dando-lhe um pontapé por baixo da mesa.

- Não tenho medo de ti! ripostou a pequenita furiosa.

- É o que vamos a ver.

- Hás-de pagar-mas.

O rapazito levantou a mão para lhe bater, mas reconsiderou.

- Que história é esta? disse o pai abrangendo os filhos com um olhar severo. O rapazito não se conseguiu dominar por mais tempo. Pôs os dois punhos em cima da mesa e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Estava furioso consigo próprio por não poder reter as lágrimas que caíam umas atrás das outras em cima da toalha muito limpa.

- Mas afinal que têm vocês? perguntou o pai visivelmente preocupado. Olhou para a mulher que, também com ar consternado, não parecia compreender o que se passava.

A irmãzita assustou-se com as lágrimas do irmão e parou de comer. Que tinha ela dito assim tão mau, para ele se pôr a chorar?

- Quero que ela corte o cabelo, pôs-se ele a gritar escondendo a cara nas mãos. Tem de o cortar, tem de o cortar? os rapazes olham para ela... por que hão-de eles olhar para ela?...

Um soluço sacudíu-lhe o peito e pôs-se a chorar copiosamente. A mãe e o pai trocaram olhares inquietos.

Mira, sentada na outra ponta da mesa, estava ligeiramente pálida. Não conseguia compreender que mal oculto e assustador havia penetrado no espírito do irmão para o virar contra ela. Apesar da sua perturbação, sentia contudo aquela qualquer coisa repulsiva e imprecisa de que falavam os livros e as aulas. E esse terrível mal manifestava-se agora no irmão sob uma forma que ignorava mas que a fazia estremecer. Lançou-lhe um olhar de desprezo e continuou a comer com dignidade. Ele sentiu esse olhar e descontrolou-se completamente. Continuando a chorar, começou a bater com os pés no chão.

- Tu..., disse Mira, pareces mesmo um peru que se farta de gritar e a quem ninguém liga importância. Pareces mesmo aquele que a Tia Ana comprou no Ano Novo e trazia seguro pelas patas, com a cabeça para baixo, quando vinha do mercado.

- Mira, já chega, disse o pai.

- Quando é que comemos peru outra vez? perguntou a irmã mais nova. O irmão ficou ainda mais furioso.

- Tu... tu és... tu és... mas não se atreveu a dizer a palavra que tinha na ponta da língua, o que o enfureceu ainda mais.

Os pais trocaram olhares interrogativos.

O rapazito sentia-se incapaz de ganhar à irmã e cada vez se enfurecia mais. Continuou a chorar ainda um certo tempo e depois levantou-se de um salto, como se se tivesse lembrado de repente de alguma coisa.

- Ouve bem, disse à irmã, esta noite, enquanto estiveres a dormir, corto-te o cabelo, vais ver.

- Basta de disparates, disse a mãe. Mira é a tua irmã mais velha e não é a ti que compete censurá-la. Mira penteia-se como todas as raparigas da idade dela.

- Estás a ver que ainda estás a dar-lhe razão! gritou o rapaz. Não a deixarei sair de casa com aqueles cabelos, não quero que saia assim penteada. Pai, diz-lhe que ela tem de cortar o cabelo.

Mira continuou a comer tranquilamente sem se voltar para o irmão. Pelos vistos os conflitos daquele género não se davam apenas nas regiões montanhosas e nas peças de teatro, aquele conflito estalara subitamente dentro da sua própria casa.

- Éo que ela merece, não é, pai? continuava a balbuciar o rapazito através dos soluços.

Chama o pai em seu auxílio, pensou Mira. O pai tinha-lhe feito há tempos uma observação sobre o penteado e o irmão parecia que o não havia esquecido.

- Por que não dizes nada, pai? insistiu o rapaz.

O pai ainda não tinha esvaziado o prato e olhava para o filho com um ar espantado. Como é que aquilo tinha podido acontecer? Interrogou a mulher com os olhos, mas esta parecia ainda mais espantada que ele.

- Pai, vamos cortar-lhe o cabelo, não é verdade? Diz que o vamos cortar!

O pai viu que o pequeno estava sobreexcitado e não quis agravar mais a situação. O filho tinha uma saúde delicada e faziam sempre o possível por não o contrariar.

- De acordo, disse o pai. Mas agora são horas de ires para a cama. O rapaz teimou.

- Não vou sem me dizeres pelo menos uma vez que lhe cortaremos o cabelo.

- Bom, já está dito, acrescentou o pai com ar visivelmente contrariado.

Mira lançou ao irmão um olhar de desprezo e levantou-se para ir para o quarto acabar os trabalhos para o dia seguinte.

Pela porta entreaberta da cozinha, ouvia as frases que o irmão, sacudido pela cólera e pela emoção, mal conseguia pronunciar.

- Então é esta noite, está bem? Não te esqueças de me acordar!

- Está bem, esta noite faremos alguma coisa...- Não te esqueças de me acordar...

- Imbecil! disse a irmã mais nova. Depois um pequeno grito e passos precipitados pelo corredor para escapar, segundo parecia, a alguma bofetada do irmão. A pequenita abriu a porta do quarto precipitadamente e aproximou-se rapidamente da irmã.

- Resolveram cortar-te o cabelo, disse, com os olhos muito abertos a brilhar de forma estranha. É melhor fecharmos a porta à chave.

- Não, disse Mira. Ninguém virá.

A irmãzita pareceu tranquilizar-se, enfiou a camisa de dormir que lhe chegava até aos pés e aproximou-se mais uma vez da irmã, sentada à secretária com os livros abertos à sua frente.

- Não tenhas medo, disse-lhe fixando-a nos olhos. Eu estou aqui. Se eles vieram mordo-lhes as mãos. E mostrou uma bela fila de dentes brancos.

Mira riu-se e olhou-a com ar pensativo.

- Dorme, dorme, nada acontecerá.

Pegou num livro e durante um momento dete-ve-se a pensar como era possível que aquele mal obscuro que para ela não podia existir fora das paredes guarnecidas de seteiras das casas dos montanheses, se tivesse infiltrado até àquela casa, no centro de Tirana. Lamentava que o pai tivesse enganado o irmão para o tranquilizar.

Mas para quê fazer tais concessões? Amanhã tenho de o dizer francamente ao papá...

Deitou-se tarde, tudo estava mergulhado no silêncio. Só os grandes olhos abertos da irmã mais nova pareciam esquadrinhar as trevas.

 

                     O Inverno no Café Riviera - Ismaíl Kadare

Como de costume, saltei do autocarro em andamento e atravessei quase a correr a rua cheia de gente. Gosto muito de fazer isto quando o motorista abre a porta e o autocarro ainda está a andar. Podemos assim saltar rapidamente para o passeio e continuar a andar com o balanço. Eram sete menos quatro no relógio grande, as pessoas apressavam-se. Levantei a gola do sobretudo, o ar estava carregado de humidade e uma cortina de nevoeiro pairava sobre os terraços das casas. Ao passar no cruzamento, cumprimentei com a mão, como de costume, o agente de serviço, em dez passos deixei para trás a oficina de reparação de frigoríficos; mais quatro passos à esquerda, uma curva um tanto íngreme e alto: estava em frente do café "Riviera" onde trabalho. Estava satisfeito. Não por qualquer razão especial, era a simples alegria da manhã, um sentimento provocado por um nada e que um nada pode estragar. Talvez que a razão da minha alegria fosse o motorista do autocarro ter aberto a porta três segundos antes de parar. Fosse o que fosse, estava alegre e longe de pensar que aquele dia de Dezembro, que começava de uma maneira tão normal, ia ser para mim um dia extraordinário, cheio de tensão e em que eu ia acabar desempregado, a caminho do Comité do Partido para pedir explicações sobre o motivo do meu despedimento.

Empurrei a porta de vidro do café e entrei. Duas criadas punham as cadeiras em ordem e arrumavam os cinzeiros em cima das mesas. A rádio dava informações. No bar, a máquina de café ronronava, envolta num suave vapor. A empregada do bar contava os maços de cigarros. Assim que entrei, dei os bons dias aos meus companheiros de trabalho.

A cozinha estava iluminada e, do forno, saía um agradável cheiro a biscoitos. Pus a mão em cima do niquelado da máquina de café e comecei a assobiar.

- Parece que estás em forma, disse a empregada do bar que se apressou a acrecentar, não sem uma ponta de inveja: - a juventude é bela!

A porta voltou a abrir-se para dar passagem à outra empregada envolta num impermeável.

- O que eu já passei hoje! O miúdo não queria ir para a creche, deu-me que fazer!

Dirigiu-se para a cozinha para vestir o fato de trabalho. Cortei-lhe o passo.

- Bom dia, tiazinha, disse dirigindo-me a Naja. Bom dia Diri.

- Bom dia, meu filho!

- Bom dia, disse Diri.

Diri é a rapariga mais nova e mais simpática do nosso pessoal. Ainda há pouco fez dezasseis anos e já faz um café formidável.

- Que tal era o filme que viste ontem à noite? perguntou ela.

- Fantástico.

Diri tem uns olhos muito bonitos.

- Esta noite vamos lá os dois.

Ela pôs-se a rir, ri sempre assim quando lhe faço uma proposta deste género.

- Não a arrelies, disse a tiazinha.

Quando trabalhamos de noite, Diri vai para casa acompanhada pelo irmão mais velho ou pela mãe que a vem esperar depois do serviço.

Enfiei o meu casaco branco e saí do bar. íamos abrir daí a dez minutos. As criadas punham os últimos cinzeiros em cima das mesas, a máquina de café estava bem aquecida, a rádio dava música ligeira.

Àquela hora gosto de apoiar o queixo sobre a palma da mão e contemplar as cadeiras vazias. A sua nudez não me provoca vazio no espírito, antes pelo contrário, talvez porque saiba que dentro de instantes serão ocupadas. Todos os géneros de pessoas se sentarão nelas.

Há três meses, quando vim para aqui pela primeira vez, não como frequentador mas como um rapaz que procura emprego munido de um certificado do serviço de emprego do Comité Executivo, lembro-me que fiquei impressionado com as cadeiras. Mas eram então diferentes das que eu tinha agora em frente dos olhos, porque estávamos no Verão. Assim que a chuva começara, os empregados tinham reunido rapidamente as cadeiras e as mesas instaladas no passeio em frente da entrada do café. Era o último dia em que se serviam clientes lá fora. Observei a forma como reuniam as cadeiras leves de alumínio e plástico, como as arrumavam umas em cima das outras, amarelas, vermelhas, azuis e cremes.

E todo aquele monte de cadeiras desaparecia por detrás de uma cortina ao fundo do bar.

- Já aí vem o Inverno, disse o empregado assim que me viu. Eu tinha-me abrigado debaixo do toldo para evitar a chuva e encolhi os ombros, sem saber que responder.

Um homem meteu-se rapidamente debaixo do toldo.

- A chuva surpreendeu-te, disse o rapaz que parecia conhecê-lo.

- Maldita chuva!

- Estragou-te o quadro?

- Não, consegui protegê-lo a tempo.

Foi então que reparei que o recém-chegado tinha um cavalete numa mão e na outra uma caixa, com certeza uma caixa de tintas.

- Podias-me guardar isto aí num canto? perguntou o pintor.

- Com certeza, respondeu o rapaz.

- Talvez amanhã o tempo melhore e eu possa acabar o meu trabalho.

- O que é que estás a pintar? perguntou o rapaz.

- A rua, respondeu o pintor. Há em perspectiva prédios novos que estão em construção. Se o tempo ficar melhor, acho que numa semana acabarei o trabalho.

O pintor entrou no café.

- Há dez dias que está a pintar a nossa rua, disse o rapaz enquanto recolhia as duas últimas cadeiras. Fica ali a trabalhar a manhã inteira e fica completamente alheio ao que se passa em volta dele. Absorvido pelo trabalho, nem dá pelos basbaques. É um homem estranho.

- O responsável está cá? perguntei.

- O responsável? Sim, está cá. Por que queres falar com ele?

- Gostava de trabalhar aqui.

- Ah, és tu o novo empregado de quem estamos à espera?

Esbugalhou os olhos, como se não conseguisse compreender que era eu o novo empregado "por quem esperavam" e não pôde evitar uma careta.

Já estava habituado a este género de acolhimento. Desde o dia em que, depois de ter terminado a escola secundária, tinha exprimido o desejo de trabalhar como empregado de café até ter autorização para continuar os estudos na Universidade, aquela careta perseguia-me por todo o lado. Reparei que todos faziam uma careta da mesma maneira, como se um ensaiador lhes tivesse ensinado a fazer esse gesto. O primeiro foi o meu pai.

- Empregado de café! Cada pessoa pronunciava aquelas palavras de maneira diferente. Empregado de café? Espantoso! Empregado de café, a sério? Curioso! Empregado de café? Mas podiam dizer o que muito bem lhes apetecesse, eu tinha decidido e ninguém me poderia obrigar a mudar de opinião. Para dizer a verdade, talvez tivesse renunciado se as pessoas se não tivessem apostado tanto a levar-me a desistir da minha decisão.

- Empregado de café? continuava a gritar o meu pai com ar furibundo. Foi então para isso que lutámos, para os nossos filhos serem empregados de café, enquanto os burgueses manhosos conseguem formar-se médicos e engenheiros. (Quando o meu pai se encoleriza, afasta-se do bom senso). Quer dizer que o meu filho irá servir os tipos que se sentam às mesas, trazer-lhes conhaque, café e bolos, o café com muito ou com pouco açúcar, expresso ou à oriental; não te importes, serve os burgueses.

- Vou servir o povo e não os burgueses, respondi com ênfase. Nada é mais honrado que o trabalho.

- Ah, o senhor também nos serve citações, bravo!

Desde esse dia, o meu pai nunca mais pôs os pés no café "Riviera". Quando esse nome surge por acaso no meio de uma conversa, sobe-lhe o sangue à cabeça. Se o quiserem ver perder as estribeiras, digam-lhe que no café "Riviera" fazem um café muito bom, ou então que compraram um maço de tabaco no café "Riviera". E se quiserem fazer dele um inimigo, digam-lhe simplesmente que ontem à tarde encontraram um camarada e que se demoraram com ele no café "Riviera".

Por mim, gostei deste trabalho desde o princípio. O café "Riviera" está por assim dizer no centro da cidade e entra aqui toda a espécie de clientes. Não é como no "Pássaro negro" onde a clientela é formada por motoristas que deixam os carros lá fora com o motor ligado, ou o "Café familiar", onde se encontram sempre algumas mulheres nervosas a ralhar aos filhos que esmagam impiedosamente os bolos em cima da toalha e uns homens muito sérios que estão sempre a dizer "meu queridinho", ou o "Bar Crimeia" que à noite, é o ponto de encontro dos bêbedos e dos jornalistas de serviço, ou ainda o "Bar do Relógio", onde se reúnem os reformados. Toda a gente tem acesso ao nosso café, a começar pelos varredores que vêm beber um copo de aguardente antes de começarem o trabalho e a acabar nas meninas da moda que arranjam o cabelo inspirando-se no que vêem na televisão. A este café vêm operários de todas as categorias, estudantes com os livros na mão, casais velhos e novos, entusiastas do desporto, jovens escritores, membros do Comité Central, camponeses com os seus "qelesh" e "brekushe" característicos, médicos, agentes da polícia, actores de teatro; às vezes vem cá também o Ministro do Comércio. Neste caso, o responsável torna-se silencioso e pensativo. Para dizer a verdade, não é servil mas não gosta nada que o critiquem. Tenho a certeza de que o tempo que o ministro leva a saborear o café lhe parece um século.

O café é como o mar, com a maré cheia e a maré baixa. Gosto muito do café quando está cheio. Nessas alturas encosto-me ao balcão e ouço o murmúrio quente da sala, onde se confundem as vozes, a música da rádio, o ruído seco dos copos que se chocam, os risos abafados e o assobio da máquina de café. Os vidros da montra estão cobertos de vapor. Por trás dos vidros, a rua que parece deformada, as luzes vivas do hotel em frente, verdes e encarnadas a acender e a apagar continuamente, o anúncio da oficina de reparação de frigoríficos e o reclame gigantesco do MAPO (armazém popular) industrial. Os automóveis, os táxis e os autocarros deixam atrás de si um ruído amortecido. Por vezes o vapor é tão denso que o armazém popular, a rua e os automóveis se fundem num único quadro fantástico.

Também as manhãs têm o seu encanto. Os namorados vêm geralmente ao nosso café de manhã. Sentam-se sempre às mesas mais afastadas e menos à vista e passam aí horas esquecidas.

Gosto das manhãs de inverno quando não chove e um nevoeiro branco percorre a cidade inteira. Nessas manhãs não tenho vontade de falar muito e ainda menos de discutir.

Naquela manhã, não tinha a mínima intenção de me meter em discussões. O café abrira as portas como de costume, a máquina de café estava quente, a sala estava em ordem. Às nove e meia chegou o responsável. Cumprimentámo-nos friamente, como todos os dias. Deambulou um momento pela sala, passou pela cozinha e durante um bom bocado esteve ocupado com uns impressos. Depois foi-se embora sem dizer nada.

As minhas relações com o responsável tinham azedado um mês antes, quando pedi para se convocar uma reunião do pessoal para examinar o assunto da celebração de noivados no nosso café.

Tinha começado a trabalhar há três dias apenas, quando fui chamado para servir a uma mesa onde se celebrava um noivado.

Às onze horas, um telefonema de um cliente anónimo que marcou algumas mesas para "um acontecimento feliz". Não percebendo o que poderia ser esse "acontecimento feliz", pedi alguns esclarecimentos ao meu interlocutor. Este, surpreendido pela minha resposta ingénua, pôs-se a gaguejar. Se a empregada do bar, que tinha compreendido imediatamente do que se tratava, não estivesse ao meu lado, julgo que ainda a esta hora estaríamos a explicar-nos. Quando desliguei, ela disse:

- Então não percebes que se trata de um noivado? É esse o acontecimento feliz, acrescentou.

- Pode estar-se feliz por todo o género de razões, disse eu.

Ela sorriu. Mas aquela mulher não me agradava. Não podia suportar o tom da sua voz e em tudo o que dizia havia um certo azedume que não me escapava. Parecia cheia de fel.

- Por acaso vieste para cá mesmo na época dos noivados, disse ela. Agora todos os dias vão haver mesas reservadas para as celebrações de noivados.

- Mas diz lá, como é que fazem esses noivados?

- Logo vês, disse ela sorrindo e o sorriso parecia dirigido mais ao balcão do que ao seu interlocutor.

Uma hora mais tarde lá estavam eles. O primeiro a entrar foi um rapaz baixo, de bom aspecto, com o cabelo encaracolado e com um sobretudo de fazenda, que se dirigiu rapidamente ao balcão.

- Camarada, marcámos algumas mesas há questão de uma hora para um... acontecimento.

- Está tudo pronto, respondi.

Ele fez sinal aos outros que tinham ficado lá fora à espera. Os assuntos de casamento despertam sempre a curiosidade, e eu não escapava a essa regra. Vejamos como será a noiva, como é que eles se vão sentar à mesa. Como entraram todos juntos e começaram a fazer barulho enquanto se sentavam, não cheguei a perceber qual era a noiva. Havia duas mulheres fardadas que não tinham nada o aspecto de noivas e mais duas mulheres de idade.

- Onde está a noiva? perguntei à empregada das mesas.

Ela pôs-se a rir.

- Geralmente nem o noivo nem a noiva participam nestas reuniões, explicou ela. Acontece às vezes que o noivo vem, e até há casos em que vêm os dois, mas habitualmente não estão presentes.

Não pude esconder a minha surpresa.

- Isso depende da família, disse ela. Aqueles por exemplo...

O rapaz baixo de cabelo encaracolado que eu a princípio tomara pelo noivo, fez-me sinal. Fui tomar nota da encomenda.

- Quatro licores, seis conhaques, bolos para todos, limonadas e no fim café para todos.

Fiz um sinal com a cabeça e afastei-me.

Do balcão, comecei a observar atentamente aquele grupo de pessoas que tinham realizado um casamento nesse dia por meio de terceiras pessoas e que agora festejavam o desfecho feliz do empreendimento. Era difícil distinguir quais eram os pais do noivo ou da noiva.

Aquele que presidia à mesa era um velhote magro, com um boné branco, que não falava e parecia sonolento. As duas mulheres fardadas não deixavam esmorecer a conversa, tinham vozes agudas e barulhentas. O de cabelo encaracolado, que parecia mais desembaraçado, oferecia de vez em quando cigarros aos dois homens pensativos, de fato completo, casaco assertoado como não se usava há muitos anos. Um rapaz novo de cabelo liso devia trabalhar provavelmente numa quinta. A tez bronzeada e o casaco de veludo desbotado pelo sol pareciam prová-lo.

As duas mulheres de idade, bastante corpulentas, tinham os cabelos presos por um lenço branco, como costumam usar as mulheres em Tirana. Pareciam entorpecidas, a cara com uma expressão enigmática, como as mulheres índias nas últimas sequências do filme "Viva Zapata", quando estão a preparar a armadilha em que Zapata cairá.

Não sei porquê, mas todo o dia se passou para mim sob a triste impressão daquele pequeno acontecimento que, para todo o pessoal do café, era absolutamente normal.

Mas aquilo era só o princípio. A empregada tinha razão, a partir daí todos os dias se festejavam noivados no nosso café. A cena era por assim dizer sempre a mesma.

Aquelas pessoas tinham alguma coisa em comum na maneira como entravam no café, como se sentavam e encomendavam as coisas. Havia sempre entre eles um velhote sonolento, algumas mulheres com um rosto indecifrável, um desembaraçado que marcava as mesas pelo telefone e oferecia cigarros aos convivas. Tinha-se a impressão de que todos aqueles grupos de indivíduos não passavam do elenco de um pequeno teatro que apresentava sempre a mesma peça lamentável, com a única diferença que os actores mudavam de vez em quando de roupa. O aspecto deste grupo de pessoas reunidas para casar dois desconhecidos tinha algo de infinitamente triste. Poder-se-ia pensar que aquelas pessoas se tinham reunido por uma coisa qualquer, menos por alegria. Aquilo dava mais a impressão de um tribunal. Dei comigo a perguntar a mim próprio se não os considerava sob esse ângulo apenas porque tinha embirrado com eles logo à primeira. Mas não, os outros deixavam-me também a mesma impressão. Os outros clientes viravam-se constantemente para a mesa deles, como se o espectáculo valesse a pena. Outros observavam o grupo com ironia, outros com tristeza, outros ainda como simples espectadores à procura de inédito.

Dois electricistas que tinham parado um dia no café para beberem uma aguardente ao balcão, começaram a rir quando os viram.

- Também aqui há disto, disse um deles. Pensava que estas coisas já só podiam acontecer nas regiões retardatárias, mas não aqui.

- Temos de nos resignar, disse eu.

Pegaram nos fios e nos isoladores brancos que tinham posto em cima do balcão e, quando se afastavam, um deles disse:

- Estamos a instalar a electricidade em certas aldeias afastadas. Aí ainda se pode compreender que haja ainda casos destes, mas aqui... é vergonhoso.

- Que se há-de fazer?

- Que se há-de fazer, dizes tu? É simples, manda chamar aqui o controle operário. Adeus.

Alguns dias mais tarde, para meu grande espanto, o espectáculo começou a mudar. Era uma mudança total. Não só os convivas eram todos diferentes, homens e mulheres vestidos à moda, camisas engomadas e cabelos pintados, que falavam animadamente e gracejavam com alegria, não só o velhote sonolento de boné branco já não presidia à mesa, e as mulheres parecidas com as do filme sobre Zapata já não faziam parte do grupo, como até, para minha grande surpresa, a noiva e o noivo vinham também.

Só uma coisa não mudava, o consumo. Eram sempre os licores, bolos, conhaque, limonada e no fim café.

Era realmente um prazer servir em festas daquelas, mas infelizmente a minha alegria foi de curta duração. Ao servi-los compreendi que não era só o consumo que era o mesmo, mas que tudo o resto era também igual. Apenas as roupas e a maneira de falar eram diferentes. A primeira dúvida assaltou-me quando servi os bolos. Quando levei o café, já não tinha qualquer dúvida: a rapariga e o rapaz não se conheciam. Tinham-nos casado portanto por meio de terceiras pessoas, como nas regiões montanhosas atrasadas, como as pessoas antigas de Tirana. Eram as mesmas pessoas que estavam na minha frente, com a única diferença de que os homens tinham substituído o "qelesh" e os casacos de veludo por chapéus de feltro e fatos de tergal e as mulheres em vez de lenços brancos, tinham descolorido o cabelo com água oxigenada. Aquelas pessoas faziam-me realmente náuseas. Quando no fim me quiseram gratificar com uma gorjeta, recusei com arrogância. Devem ter ficado muito admirados. Nos dias seguintes repetiu-se a mesma história. Era a primeira vez que me encontrava cara a cara com estes costumes retrógrados. Tinha lido bastantes coisas sobre este assunto, em livros, jornais e revistas, tinha mesmo assistido a conferência sobre isso, especialmente depois do discurso de 6 de Fevereiro do camarada Enver Hodja, mas nunca pensara que iria

dar assim de caras com ele. Imaginava que os usos retrógrados, especialmente aquele costume, estavam sempre ligados às regiões montanhosas e às seteiras que guarnecem as casas dos montanheses ou, quando muito, a uma mão cheia de velhos tiranetes retardatários, mas nunca pensara que tal costume se viesse sentar tranquilamente a uma mesa do café "Riviera", no centro da capital.

Aquele género de noivados envenenava-me os dias. Pouco me importava que se tratasse de famílias burguesas ou de classes decadentes (percebia-se facilmente quando assim era). Nessas ocasiões estava muito calmo, no fundo, esses tinham sempre agido assim, não havia razão para mudarem. Mas quando se tratava dos nossos já não me conseguia dominar.

Um dia vi chegar um grupo especialmente animado. Dois dos homens tinham o casaco coberto de condecorações, as mulheres pareciam meridionais, com caras expressivas e tristes escondidas por trás de écharpes pretas.

Um dos homens levantou-se e fez uma saúde ao partido.

Eu estava no balcão. Quando ele disse "Viva o partido", sacudi a cabeça.

- Até custa a acreditar, disse à empregada.

Ela fixou-me nos olhos.

Pensava para comigo que aqueles homens fiéis ao partido e prontos a fazer por ele quaisquer sacrifícios, não pensavam com certeza que ao agirem assim, iam contra a linha do partido.

Por mais que passassem os dias, não me conseguia habituar àquele género de noivados. Nunca teria acreditado que em Tirana houvesse tantas raparigas e rapazes que se casavam assim. Dizia para mim próprio que um dia destes ainda via aparecer uma colega do liceu.

Um mês antes, tinha reconhecido, num grupo que festejava um noivado, um homem que morava no nosso bairro. Ainda hoje não sei onde ele trabalha, mas sei em contrapartida que é um activista do nosso bairro. Talvez seja empregado nalgum ministério, ou ocupe qualquer outro lugar de responsabilidade, porque está presente em todas as reuniões e dá conferências. Tinha feito há pouco tempo uma conferência sobre a emancipação da mulher e era ouvi-lo censurar os costumes retrógrados, recordar muito a propósito diversas citações e evocar dezenas de vezes o 5.° congresso do partido, a Carta aberta, o discurso do 6 de Fevereiro, a revolucionarização da escola. E contudo aquele homem vinha aqui beber café com pessoas que tinham concluído aquele género de casamento. Talvez o noivo ou a noiva fossem seu filho ou sua filha, ou talvez fosse um parente próximo, ou ainda um amigo de uma das duas famílias, não sei. O que sabia no entanto é que estava ali a beberricar o seu cafézinho e não pensava de forma alguma em protestar ou em perguntar simplesmente por que razão os dois noivos, objecto daquela alegre reunião, não estavam presentes.

Nesse dia pedi uma reunião do pessoal do café.. Estava nervoso e foi por isso que exprimi as minhas ideias de forma desordenada. Consegui contudo explicar claramente o que queria. Pedi aos meus colegas de trabalho que me dissessem como se podia explicar o facto de, no próprio momento em que em todo o país os costumes retrógrados eram criticados, esses costumes se encontrarem tão à vontade no café "Riviera", no centro de Tirana?

O responsável ouvia-me com um sorriso irónico.

- Segundo a sua opinião, disse ele cortando-me a palavra, que devemos fazer?

- Não sei exactamente o que se deve fazer, mas devemos fazer qualquer coisa sem falta.

- Como por exemplo? O tom glacial do responsável implicava-me decididamente com os nervos.

- Proibir essas coisas, disse eu de uma golfada. Não os servir. Basta-nos afixar um letreiro dizendo que no nosso estabelecimento não aceitamos pessoas que vêm festejar casamentos realizados através de terceiras pessoas, ou então...

- Hum, disse o responsável, e como havemos de saber quem são os que fazem casamentos desse género? Não há nenhum ponto de referência.

Fazia troça de mim, era evidente. Estava furioso por ver que ele conseguira atrapalhar-me e por verificar que eu não dominava suficientemente os nervos para lhe responder como era preciso.

- Não é difícil distingui-los, disse eu, salta aos olhos.

- Criancices, replicou o responsável em tom ainda mais glacial. Pedem-nos que façamos tudo para servirmos os clientes de forma irrepreensível e você vem propor métodos que só servirão para irritar a clientela. Se seguirmos a sua ideia, numa semana teremos espantado metade dos clientes. E como realizaríamos então o plano?

- Considerar as coisas sob esse prisma é cair no economismo, respondi eu. Para dizer a verdade, tinha aprendido há dois dias o sentido dessa palavra com dois camaradas meus que trabalhavam na fábrica "Tirana" e me tinham contado por acaso o que havia sido discutido numa das suas reuniões.

O responsável espetou as orelhas.

- Basta, disse ele. Não tentes enganar-me. Não percebo nada do teu economismo.Seguiu-se uma breve discussão.

- De qualquer forma, acabou por dizer o responsável, o pessoal está aqui. Os camaradas devem dizer o que pensam.

Estes estavam sentados em círculo e calavam-se. A tiazinha Naja, com os seus olhos bondosos, parecia dizer: "mas para quê estas discussões, meu filho?". De cada vez que alguém tomava a palavra numa reunião, ela olhava-o com benevolência e mesmo quando os dois interlocutores não eram da mesma opinião, ela tinha tanto para um como para o outro o mesmo olhar benevolente. A empregada do bar tinha os olhos baixos, a outra empregada das mesas, a quem o assunto não interessava absolutamente nada, esperava com impaciência o fim da reunião para ir buscar o míúdo à creche. As duas criadas pareciam petrificadas em cima das cadeiras, só Díri me olhava com simpatia. Parecia que me dava razão, mas não se atrevia a falar. Como me confessou mais tarde, não tinha medo do responsável, mas tinha quase a certeza de que lhe chamariam descarada se se voltasse contra esse género de casamentos.

- O responsável tem razão, declarou a empregada do bar. Devemos servir os clientes o melhor que pudermos e não irritá-los. Se puséssemos os letreiros que propõe o nosso camarada, lançaríamos o descrédito sobre o nosso estabelecimento e sobre nós próprios.

- Quem mais quer falar? perguntou o responsável.

Ninguém pronunciou uma palavra.

- Todos podem dizer o que pensam, acrescentou o responsável. É uma reunião do colectivo e, como sabem, é o colectivo que decide de tudo. E se um camarada se engana, o colectivo corrige esse erro, não é verdade? Que dizes, tiazinha Naja?

Naja tinha levado ao peito as mãos brancas e moles.

- Que se faça pelo melhor, disse na sua voz doce. Todos nós que aqui estamos procuramos fazer sempre pelo melhor, e olhou-nos aos dois com benevolência.

- E vocês? perguntou o responsável dirigindo-se às criadas. Estas moveram os lábios, mas ninguém conseguiu ouvir o que disseram.

- Falem mais alto, disse o responsável.

- Queremos que a clientela esteja satisfeita. Esforçamo-nos, como criadas, por satisfazermos as suas exigências, foi o que prometemos fazer.

E com isto terminou a reunião. Nunca na minha vida tinha visto uma reunião mais estranha. Tirei o casaco de serviço, contei a receita, enfiei o impermeável e saí.Depois da chuva, o sol brilhava de novo. Os passeios formigavam de gente, havia uma multidão nas paragens de autocarro. Andar depressa fez-me bem, acalmei.

- Parece que vais apressado, disse alguém. Virei a cabeça, era o agente da polícia que dirige o trânsito no cruzamento. Encontramo-nos muitas vezes. Onde vais com tanta pressa?

- Para casa.

- Então seguimos o mesmo caminho.

Ao fim de um momento, o meu amigo disse sorrindo:

- Hoje estás com um ar muito absorto.

A princípio não queria falar-lhe da reunião, mas por fim acabei por despejar o saco e contei-lhe tudo o que se tinha passado. Ele ouvia-me com toda a atenção, os olhos muito sérios. Mas a expressão dele não me dizia nada.

- Que pensas tu disto? Pela minha parte não suporto estas coisas. Se dependesse de mim, proibia-as por meio da lei, da polícia, ou como se diz no marxismo, por meio da violência.

O polícia parou.

- Quanto a isso, enganas-te, disse em tom seco. O Estado, meu filho, tem as suas regras. A polícia serve para fazer respeitar leis do Estado e não para intervir nos assuntos íntimos dos cidadãos, como é o caso dos noivados.

- Não disse isso no sentido próprio da palavra. O que eu quero dizer é que, perante manifestações deste género, não devemos ficar de braços cruzados. É preciso fazer alguma coisa, não é verdade?

- Mas que pretendes fazer, quando dizes "que é preciso fazer alguma coisa", perguntou ele num tom ainda mais seco. Escândalo?

- Que pretendo fazer? Mas segundo a tua opinião, é normal que no café "Riviera", no centro da capital da República Popular da Albânia, se assistam a cenas destas, como no tempo de Noé?

- Não disse que era normal, disse o polícia, mas o Estado tem as suas regras. Há, entre essas noivas, raparigas que não tenham atingido a idade legal prevista para o casamento? Está-se em presença de rapto, de casamento forçado sob ameaças, conforme previsto no Código Penal? Há casos desses no vosso café? Caso afirmativo, vem a correr ter comigo e verás o que faço. Quanto ao resto, reflecte bem antes de fazeres alguma coisa, não é com escândalos que se podem resolver esses assuntos.

Não consegui portanto entender-me com o polícia. Seria por ele não ter compreendido bem o que eu queria dizer e pensar que ia fazer escândalo, ou seria porque, ao enervar-me de novo com a lembrança do que se tinha passado, não tinha conseguido explicar-me claramente? Depois, quando ele repetiu duas vezes a palavra "escândalo", calei-me.

Nos dias que se seguiram não abordei o assunto com ninguém. Pensei que no fim das contas o assunto não me dizia respeito e que talvez tivesse exagerado.

Assim que o tempo melhorou, o pintor que havia deixado o cavalete no café recomeçou a vir regularmente. Bebia o seu café, instalava o cavalete em cima do passeio e punha-se a trabalhar. Um dia recomeçou a chover e ele trouxe o cavalete outra vez para o café. Tinha o quadro quase pronto.

- Depois deste quadro, tens a intenção de fazer outro?

O pintor encolheu os ombros.

- Sabes, disse eu, se tens a intenção de fazer outro, tenho um tema muito interessante a propor-te.

- Calha bem, disse ele saboreando o café. Preciso mesmo de um tema para a exposição da primavera.

- É o seguinte, reúnem-se aqui muitas vezes, para beber o que chamam "o café de noivado", os casamenteiros, aquelas pessoas que fazem os casamentos de rapazes e raparigas para os quais estes não são consultados. À medida que ia falando, sentia que a cólera ia aumentando. Disse-lhe que poderia pintar as caras embrutecidas pelo fanatismo, como poderia colocá-los uns atrás dos outros, como uma fila negra de inquisidores ou de corvos vindos de outro mundo, ou ainda de esfinges. Disse-lhe que poderia pintar um quadro que El Greco não desdenharia, se fosse vivo.

- Não é assim tão simples, disse ele assim que acabei de falar.

- Porquê? - perguntei eu. A sua indiferença arrefeceu-me imediatamente o entusiasmo.

- Dá-me um maço de "Lluks" azul, disse ele e por várias vezes tentou em vão acender o isqueiro. - Perguntas-me porquê, continuou, fazendo rolar o cigarro entre os lábios.

Eu esperava a resposta. Por fim, acendeu o cigarro e aspirou profundamente uma lufada de fumo.

- Antes de responder, vou fazer-te uma pergunta. Admitamos que pinto um quadro segundo a tua ideia, representando essas pessoas como disseste, com os traços de corvos, de esfinges ou de faraós, como quiseres. Admitamos portanto que reproduzo todas essas sobrevivências do mundo caduco como sugeriste e que apresento o quadro na exposição.

Os visitantes poderiam perguntar com razão: mas onde está afinal o lado positivo, o aspecto novo que nasce, em oposição ao caduco que está a morrer? Em que proporções estão representados no quadro que me sugeriste?

- O aspecto novo? O positivo? Para dizer a verdade, a pergunta atrapalhou-me e repeti as mesmas palavras por duas ou três vezes.

- Estás a ver que é bastante complicado, disse ele sorrindo. Não se trata de uma questão de o café ser expresso ou à oriental, com muito ou com pouco açúcar, aqui trata-se de arte. Maldito isqueiro, parece-me que se avariou. Tens gasolina?

- Não.

Fazia esforços para me lembrar do que aprendera sobre o realismo socialista na escola, mas não conseguia lembrar-me como se tratava do assunto do lado positivo e negativo das obras.

- Sou um simples empregado de café e não conheço as vossas regras, no entanto estou convencido de que, se pendurássemos aqui um quadro assim, neste café, ninguém se atreveria a vir aqui festejar noivados desse género.

- É muito possível.

- Então, se admitirmos que é assim, significaria que o quadro serve o povo e, se o teu quadro servir o povo e o partido, não sei para que servem as regras que aprendeste na escola.

O pintor sorriu e meneou a cabeça.

- Enganas-te. Se pendurarmos um quadro desse género aqui no café, não voltaremos a ver aqui essas odiosas celebrações de noivados, mas não é aí que está o essencial.

Isso representa apenas o lado utilitário da questão. Não podemos espezinhar os princípios em nome do lado prático.

- Não percebo como é que se espezinham os princípios, teimei eu.

- Espezinham-se e muito. Diz-me lá o que representa no fundo esse grupo de pessoas que vêm festejar casamentos no vosso café? Nada de importante em comparação com a vida tão activa de milhares de trabalhadores do nosso país. E tu pensas que as devo colocar no centro da minha obra. E para quê? para que no vosso café não haja mais noivados desses. Deves saber que a arte é o reflexo multilateral da vida e que nada tem a ver com os cartazes no género de "Não cuspam para o chão" que se afixam nalguns estabelecimentos.

Na verdade, sentia que ele tinha razão, mas não completamente. Estava furioso por não poder responder a certas afirmações suas, porque me parecia que ele não explicava tudo de forma correcta.

A nossa conversa foi interrompida por um grupo de clientes que entraram ruidosamente no café. Pareciam motoristas.

- Rapaz, seis aguardentes!

Servi as aguardentes e voltei para o bar, mas o pintor tinha-se ido embora. Disse para comigo que ele no fundo talvez tivesse razão, que eu exagerava porque estava irritado. Pareceu-me por momentos que atribuíra uma importância excessiva a este assunto dos noivados. Não seria mais razoável considerar tudo aquilo com sangue frio? Para dizer a verdade, as coisas corriam bem, milhares de rapazes e raparigas amavam-se sem se importarem com o "parece mal".. Que importa que haja ainda alguns imbecis que se fiam nos casamenteiros! Não será isso que vai entravar o socialismo. Dentro de instantes chegará uma nova vaga de clientes, virão os jornalistas tomar café e também eles contam coisas divertidas. Depois vêm os operários do segundo turno e os estudantes que não têm aulas durante duas horas. Em relação a essa massa de gente, os dos noivados eram insignificantes. Por outro lado, viam-se agora menos vezes e talvez no fim do Inverno já se não vissem mais. E depois, no final das contas, que é que isso me importava? As conferências, a imprensa e os livros não bastariam para reeducar as pessoas? No fundo o assunto não era comigo. Alguns dias mais tarde, parecia que me tinha esquecido de toda esta questão dos noivados e sentia-me bem disposto. Durante a última reunião do pessoal, fui mesmo felicitado pelo responsável. "Houve também algum camarada que a princípio tinha ideias erradas a respeito do serviço que se deve prestar à clientela, mas o colectivo ajudou-o com as suas observações e agora esse camarada está em vias de se corrigir". Era evidente que o camarada em questão era eu.

Agora que a minha revolta contra os costumes antigos se apaziguava definitivamente e que me sentia de excelente disposição naquele dia de Dezembro, estava longe de pensar que me ia envolver numa discussão.

O telefonema que recebi pelas onze horas, anunciando que se devia reservar uma mesa para um noivado, não prejudicou o meu bom humor. Arrumei tranquilamente as mesas e as cadeiras, sem prestar grande atenção ao que estava a fazer, obcecado como estava pelo resultado do desafio que ia ser disputado entre o "17 Nendori" e a equipa de Shkodra. Ainda não tinha acabado de arranjar as mesas, quando o responsável entrou como um pé de vento.

- Telefonaram por causa de um noivado? perguntou ele à empregada do bar.

- Sim, estamos a arranjar as mesas. Deitou um rápido olhar às mesas, fez-me uma observação sobre a posição de duas cadeiras e meteu-se para a cozinha. Estava preocupado.

Fiz um sinal à empregada como para perguntar "que tem ele?", mas ela fez de conta que não percebeu.

De costume, o responsável dava uma vista de olhos sobre a situação e ia-se embora. Mas nesse dia ficou no bar, com os olhos fixos no manómetro da máquina de café, como se tivesse medo de ver a pressão baixar de repente.

Ao meio dia, através dos vidros cobertos de vapor, vi um grupo de pessoas que se preparavam para entrar. O responsável foi imediatamente ao seu encontro abrir-lhes a porta.

- Entre, entre, camarada Jani.

Os convivas entraram sorrindo uns atrás dos outros. Compreendi finalmente a ansiedade do responsável. O camarada Jani trabalhava no Ministério do Comércio, onde ocupava segundo parece um lugar importante. Tinha-o conhecido um mês antes, quando tinha vindo beber um café com um amigo. Tinha-me perguntado então qualquer coisa sobre o peso em gramas do café para uma chávena e, quando muito admirado, comentei o caso com a empregada, esta dissera-me que ele sabia isso tudo na ponta da língua visto que dirigia uma secção do Ministério.

Sentaram-se em volta das mesas. O noivo e a noiva também vinham. A rapariga tinha a cabeça baixa, mas via-se que era uma rapariga da capital, como muitas outras.

O camarada Jani ficou à cabeceira da mesa. Eu tentava adivinhar quais eram os pais da rapariga e do rapaz e que laços os ligavam ao camarada Jani.

O responsável, que os tinha conduzido até à mesa, fez-me sinal para me aproximar. Eu agora distinguia-os bem, o camarada Jani tinha um ar muito indiferente, não devia ter laços de parentesco com os noivos. Ao seu lado sentara-se um homem magro, com óculos de lentes grossas que falava e gesticulava sem parar, em sinal de alegria. O resto do grupo era formado por algumas mulheres gordas, alguns homens novos vestidos elegantemente e dois rapazes da minha idade. E havia ainda a noiva, que tinha um ar simpático, penteada à moda, mas que estava sempre com a cabeça baixa de modo que não lhe podia distinguir as feições. Quando perguntei como de costume "Que desejam?", ela levantou a cabeça por um instante. Fiquei espantado e preparava-me para a cumprimentar, quando ela voltou a baixar a cabeça.

- Que desejam tomar? voltei a perguntar. Conhecia aquela rapariga. No momento em que ela baixou a cabeça, deitei um olhar ao rapaz sentado ao seu lado. Era mais velho que ela, com os cabelos pretos, ralos, divididos em dois por um risco ao lado, como se penteavam os homens da geração precedente.

- Toma nota: sete conhaques, quatro licores ou então vermute. Espera.

Era a primeira vez que via aquele homem. Quanto à rapariga, conhecia-a. Continuava com a cabeça baixa. Eu tinha os olhos fixos naqueles cabelos castanhos claros com reflexos de bronze, onde incidia a luz.

- Então são dois licores e dois vermutes. Gostaria que ela levantasse a cabeça, não para a cumprimentar, porque esse desejo se me dissipara completamente, mas para tentar compreender por que razão fazia aquele género de casamento.

- Onze bolos, quatro, cinco, seis limonadas e cinco sumos de laranja.

A rapariga continuava de cabeça baixa, o homem magro de óculos grossos oferecia um cigarro ao camarada Jani. A rapariga apagava com o dedo qualquer coisa inexistente em cima do revestimento plástico da mesa. Senti que um dos homens novos elegantemente vestidos me observava com atenção e desviei a vista.

- Café para todos? perguntei automaticamente.

- Sim, quatro com pouco açúcar e os outros como de costume. Não, desculpe, dois com muito açúcar para os rapazes. Tu também queres com muito açúcar? Está bem, são portanto três com muito açúcar.

Chegado ao balcão, ouvi o responsável que, com um sorriso forçado, me dizia: "Calma" e, pousando a mão no meu braço, acrescentou "Não lhes faças má cara".

Sem lhe responder, passei a encomenda à empregada.

A última vez que vira a noiva no nosso café fora há já duas semanas aproximadamente. Vinha sempre em companhia de um rapaz, um estudante. Também da última vez tinha vindo com ele.

Eram os meus clientes preferidos. Costumavam vir de manhã, sentavam-se ao fundo da sala, do lado direito, de costas para as outras mesas para que ninguém os visse. Era sempre um encontro encantador. Quando me aproximava para perguntar o que queriam tomar, cumprimentavam-me sorrindo, como a um amigo.

Aquele sorriso dava a entender que me aceitavam como uma das pessoas ao corrente do seu segredo. Ela mandava sempre vir uma cassata e ele um aperitivo amargo. Ele estava sempre a fumar; uma vez surpreendi-a por acaso a puxar uma fumaça do cigarro que ele tinha na mão. Era evidente que se amavam.

Assim que entraram, há duas semanas, compreendi imediatamente que alguma coisa se tinha passado. A chuva tinha-os surpreendido, estavam encharcados. Ele cumprímentou-me friamente e foram-se sentar no lugar habitual sem tirarem os impermeáveis. Quando me aproximei para saber o que queriam, ela tinha a cabeça baixa e ele fumava um cigarro com os olhos fixos num canto da mesa. Não falavam.

- O costume, disse ele sem levantar os olhos. Via-se bem que sucedera alguma coisa. Quando os servi, reparei que ela estava pálida e parecia cansada. Ele tinha as feições tensas.

Uma hora mais tarde, o rapaz aproximou-se do balcão para pagar enquanto a rapariga saía. Ele seguiu-a. Fui tirar as coisas da mesa. O cinzeiro estava cheío de beatas.

Nunca imaginei que se pudesse fumar tantos cigarros numa hora. A mesa tinha restos de cinza e pingos de chuva, pelo que parecia, devia ter apagado os cigarros mesmo em cima da mesa. Ela não tocara na cassata que tinha começado a fundir e formava uma poça esbranquiçada no fundo do prato.

Limpei o tampo da mesa com um esfregão. A mesa voltou a brilhar, mas eu tive a estranha impressão de que qualquer coisa se apagara para sempre.

E de facto desde aquele dia nunca mais voltaram. Era agora a primeira vez que voltava a ver a rapariga.

- Um pouco mais sorridente? disse mais uma vez o responsável enquanto eu ajudava a empregada a arrumar em cima da bandeja os copos pequenos para o conhaque, o licor e o vermute. Tu és jovem e, como disse Çalupi, "Sorri, sorri juventude, o mundo é teu".

- Que descaramento, pensava eu no meu íntimo.

Com a bandeja na mão, aproximei-me da mesa. Uma das mulheres falava com a noiva, que sorria tristemente. Assim que me viu aproximar, baixou de novo a cabeça. Os outros falavam entre si. Senti que um dos convivas não tirava os olhos de cima de mim. Desviei os olhos da rapariga e esforcei-me por recuperar a calma.

- Tem "Arberia"? perguntou o homem magro de óculos grossos.

Fiz um sinal afirmativo com a cabeça. Alguém acendeu um cigarro ao noivo. Pela maneira como puxava as fumaças, via-se que não era fumador.

Ao olhá-lo, não me podia impedir de pensar: este tipo deve ter uma rica vida, um bom emprego em Tirana, um apartamento bem mobilado com televisão "Orion", uma máquina de lavar super-automática "Candy" e um ordenado de novecentos Ieks. Enquanto que o outro só tem os cigarros que fuma uns a seguir aos outros, trezentos Ieks da bolsa de estudo... A família da rapariga fez bem as contas. Quem sabe a pressão a que a devem ter submetido para a obrigarem a renunciar ao amor.

Quando trouxe os bolos, a conversa ia animada. As mulheres tinham-se posto também a fumar. Tive a impressão de que a noiva se tinha recomposto. Alguém gracejava com os dois noivos, que sorriam com ar feliz. O rapaz olhava ternamente para a noiva que continuava a esfregar o tampo da mesa com o dedo. Quando lhe pus o bolo à frente, levantou por um momento o olhar para mim e baixou imediatamente os olhos. O sorriso apagou-se-lhe dos lábios. O homem novo que não tirava os olhos de cima de mim segredou algumas palavras ao ouvido do vizinho. Os olhos deles, que me pareciam extremamente manhosos, pousaram-se em mim por um instante e depois na rapariga e vice-versa.

Não sei o que dizia o homem magro, que gesticulava, mas todos os vizinhos riam às gargalhadas. O camarada Jani também ria, mas o seu riso tinha qualquer coisa de forçado.

- Camarada Jani, sabe o que nos fez Xhafer na reunião do Conselho técnico?

Tinha acabado de colocar o último bolo em cima da mesa e afastei-me.

No balcão estavam o responsável e a empregada. Tinham-me espiado sem dúvida alguma e agora olhavam-me com insistência. Detesto as pessoas que, depois de nos meterem no coração, se põem a olhar para nós com um ar agressivo, especialmente se têm uns olhos que não me agradam. Eu tinha os nervos em franja. O responsável quis dizer-me qualquer coisa, mas depois reconsiderou. A empregada começou a preparar as limonadas e os sumos. Eu não queria pensar mais no que se passava debaixo dos meus olhos.

A rádio dava notícias que me esforcei por seguir atentamente.

Falava da electrificação duma região afastada do país. Uma cooperativa de criação de gado tinha construído um novo modelo de estábulos. O número de casas culturais tinha aumentado no distrito de Fieri. Parecia que havia agora alguma coisa sobre os costumes retrógrados para os lados de Dukagjini ou de Kelmendi. Belo negócio, não há dúvida. Os jornalistas e os repórteres percorrem centenas de quilómetros para descobrirem os maus costumes e não vêem o que se passa aqui mesmo, onde bebem o café todas as manhãs.

- As limonadas estão prontas, disse a empregada.

Arrumei os copos de limonada e os sumos em cima da bandeja e levei-os aos convivas. Parecia-me que aquele serviço nunca mais acabava. Esperava com impaciência o momento de os ver sair. Depois das limonadas seriam os cafés e depois a conta. Já passava da uma hora, o café estava quase vazio. A outra empregada das mesas estava por trás do balcão, absorta nos seus pensamentos. De vez em quando trocava uma palavra com a empregada do bar. Diri também saiu duas ou três vezes da cozinha para ver a noiva. A rádio transmitia música ligeira. Um homem corpulento entrou no café e pediu ao balcão um copo de água gasosa. O vapor que cobria os vidros já não era tão denso, podia-se distinguir a rua, os transeuntes segurando os guarda-chuvas, os autocarros vermelhos que faziam a curva lentamente e os táxis que passavam rapidamente para a estação. Eu seguia atentamente todo aquele movimento, procurando esquecer o que se passava no interior do café. Mas não pude olhar por mais tempo.

- Faz favor! chamaram duas ou três vozes.

- Chamam-te, disse a empregada do bar.

- Vai ver o que querem, disse o responsável. Aproximei-me das mesas contra vontade.

- Que desejam?

- Em lugar de duas limonadas queríamos dois sumos de laranja, disse um dos homens.

Não respondi logo.

- Nao vale a pena, disseram duas mulheres cujos copos se pretendiam trocar, bebemos a limonada.

- Mas porquê? insistiu o homem que tinha falado primeiro. Tomem um sumo de laranja, uma vez que gostam.

- O sumo de laranja é delicioso, acrescentou outro.

- Então em vez destas duas limonadas, traz-nos dois sumos de laranja.

- Trouxe aquilo que pediram, disse eu friamente. Posso trazer-vos dois sumos de laranja, mas não posso trocar.

- Que queres dizer com isso?

- Quero dizer que têm de os pagar.

Compreendi imediatamente que tinha exagerado, mas era demasiado tarde para recuar. Estava terrivelmente enervado e numa posição que nada tinha de agradável. A noiva levantou os olhos para mim e baixou-os imediatamente. Nesse olhar havia alguma coisa entre o medo e a súplica. Pareceu-me também que esse olhar não tinha escapado não só aos dois homens novos, como também a uma mulher e a outro conviva. Todos tinham agora os olhos fixos em mim. O camarada Jani também.

- Está bem, está bem, disse um deles, pagamo-los.

- Dois sumos de laranja, disse eu à empregada do bar. O responsável quiz mais uma vez dizer-me qualquer coisa e depois reconsiderou de novo. Os olhos dele exprimiam inquietação.

O olhar da noiva perseguia-me. Tinha de reconhecer que aquela rapariga me agradava. Acho que me agradou assim que começou a vir aqui com o outro, mas este sentimento era então de tal modo imperceptível, que não o tinha confessado a mim próprio. Não o tinha confessado porque havia um rapaz que a amava e o meu sentimento era nebuloso e porque nem sequer sentia ciúmes desse estudante. Antes pelo contrário, sentia-me feliz ao ver que se amavam. Mas agora, que ela tinha abandonado o outro com tanta facilidade, agora que pertencia a outro, um outro que eu não conhecia, o meu sentimento tornou-se de repente tão claro como os vidros livres do vapor de água.

A empregada pôs os copos de sumo de laranja em cima do balcão. Coloquei-os na bandeja. Quando levei as bebidas, a conversa começava a esmorecer. Pus os copos em cima da mesa e, talvez por ter pressa de acabar com aquilo, um copo bateu no outro e o sumo de laranja caiu-me em cima da mão.

- Que está a fazer? disse uma mulher em tom de censura.

Murmurei algumas palavras entre dentes enquanto todos os olhares se pousavam sobre mim. A noiva empalideceu. Naqueles olhares havia protesto, descontentamento e desconfiança.

Enquanto me afastava, ouvi as vozes deles por trás de mim. Diziam qualquer coisa sobre o serviço lamentável, o meu comportamento para com eles como se me tivessem morto o pai e a mãe.

- Que se passou? perguntou o responsável que espiava por trás do balcão.

- Nada, disse eu.

- Pareces perturbado. Encolhi os ombros.

Neste momento, um dos homens novos que me olhara com ar desconfiado, aproximou-se do balcão.

- O senhor é o gerente do café? perguntou em voz baixa ao responsável.

- Sim.

- Queria dizer-lhe duas palavras.

Afastaram-se um pouco e durante alguns minutos falaram sem parar. Por fim o homem foi-se embora sem mesmo se virar para o meu lado. Segui-o pelo canto do olho. Voltou a sentar-se à mesa e começou a contar qualquer coisa ao vizinho. Vi então que também o noivo me olhava com insistência, a expressão sombria.

- Anda cá, quero-te perguntar uma coisa, disse o gerente em voz baixa.

- Conheces a noiva? perguntou fixando-me nos olhos.

Não respondi.

- Pergunto-te se conheces aquela rapariga? insistiu.

- Os pais do noivo parece que começam a ter suspeitas, disse eu com ironia. Esta ideia acabava de me surgir. É claro que deviam suspeitar de mim. Provavelmente tinham ouvido dizer que a rapariga tinha tido namoro com um jovem mas como é costume nestes casos não tinham ligado muito ao caso. Ora, face ao meu comportamento pelo menos estranho e à atitude da rapariga, pensaram que era eu o antigo apaixonado, ou pelo menos um amigo deste. Que comédia!

O gerente não insistiu. Entretanto a empregada preparava os cafés. Por meu lado, considerava tristemente a desagradável tarefa que me esperava, servir os cafés a pessoas com quem me zangara quase abertamente. O gerente poupou-me essa contrariedade.

- Eu próprio levo os cafés, disse ele assim que a empregada pôs as chávenas em cima da bandeja.

Segui-o com os olhos enquanto ele colocava sorrindo as chávenas em cima da mesa. Um dos convivas disse alguma coisa e todos começaram a falar ao mesmo tempo. Não consegui perceber o que diziam mas era evidente que me atacavam porque de vez em quando o noivo lançava um olhar furibundo na minha direcção. Só ouvi a palavra "vadio", mas essa por várias vezes. No momento em que o gerente se afastava da mesa, o camarada Jani disse-lhe algumas palavras e, para meu grande espanto, ele fez um gesto de oposição.

Assim que chegou perto do balcão, percebi que estava furioso. Nem olhou para mim.

- Informa o pessoal que no fim do serviço vai haver reunião, disse à empregada do bar.

- Que maçada, outra vez reunião! disse a outra empregada das mesas. E eu com o miúdo doente.

Ninguém lhe respondeu.

O grupo dos convivas bebeu o café quase em silêncio e pediram a conta quase imediatamente. Foi o gerente que foi receber o dinheiro. Saíram depois em grupo, de caras sombrias, lançando-me olhares carregados de ódio. O gerente acompanhou-os até à porta repetindo constantemente "queiram desculpar-nos, queiram desculpar-nos".. Ao sair, o camarada Jani disse de novo algumas palavras ao gerente. Apanhei no ar dois bocados de frases "não faça disso uma tragédia" e "são coisas que acontecem". Sairam. O café mergulhou no silêncio. Imediatamente se ouviu a voz do gerente:

- Reunião.

A outra empregada das mesas suspirou. Diri e a tiazinha Naja sairam da cozinha. As duas criadas deixaram o trabalho que mal tinham começado a fazer e juntaram-se a nós. O gerente estava mais sombrio que nunca, tal como a empregada do bar. Só Diri tinha a expressão sorridente, mas quando se apercebeu de que todos tinham um ar preocupado, a sua cara exprimiu espanto. Nos olhos da tiazinha Naja que se pousavam ora sobre mim, ora sobre o gerente, encontrei os primeiros sinais de benevolência por nós os dois.

O gerente tomou a palavra e atacou-me sem papas na língua. Eu ouvia aquela avalanche de censuras com uma calma que me surpreendeu. Chamou-me arrogante, mal criado e acusou-me de não ter respeito algum pela clientela. Expôs as queixas que os clientes haviam apresentado contra mim e, irritado com a minha calma, redobrou as acusações fazendo alusão a questões de moral, ao abuso da posição do Estado (quer dizer da minha posição de empregado de café), pondo-a ao serviço de interesses pessoais.

Declarou que eu estava cheio de sobrevivências do passado e de influências extrínsecas, que desprezava o povo e o trabalho manual. Em resumo, pouco faltou para me chamar agente da burguesia infiltrado nas fileiras da classe operária.

Eu ouvia tranquilamente o que ele dizia.

- Além disso, prosseguiu ele, o comportamento destes indivíduos não é uma coisa fortuita. Resulta das ideias que lhe enchem a cabeça. Foi-me relatado -e aqui achou conveniente dar à voz um tom especial -que este indivíduo ao ouvir um dia um cliente fazer uma saúde ao partido, declarou que isso não lhe agradava.

- É uma calúnia pura e simples, gritei lançando um olhar à empregada do bar que preferiu evitá-lo. Aquela empregada nunca me agradara mas naquele instante pareceu-me a mulher mais detestável do mundo.

- É a verdade, respondeu o gerente virando-se para a empregada do bar.

- É uma calúnia vergonhosa, repeti. Se alguém pensa que pode reforçar a sua posição recorrendo a tais processos, engana-se redondamente.

Houve um momento de silêncio. A empregada do bar abriu duas ou três vezes os lábios finos, num gesto nervoso, mas não falou. O silêncio prolongou-se. Um transeunte virou a cabeça, do outro lado do vidro, tentando ver o que se passava no interior. A máquina de café, que começava arrefecer, deixou escapar um assobio que se assemelhava a um profundo suspiro.

- Faz-se tarde para mim, repetiu em voz baixa a outra empregada.

- Quem quer tomar a palavra? perguntou o gerente.

Ninguém pediu para falar.

- Cada um deve dizer a sua opinião sem receio, acrescentou ele. Tu, tiazinha Naja, que pensas de tudo isto?

A tiazinha Naja levantou-se, com os olhos a brilhar de benevolência.

- Os jovens entusiasmam-se, já se sabe, disse ela. Não devemos zangar-nos tanto com ele, quem sabe por que razão agiu assim. Ele tem um coração de ouro e tenta também fazer o seu trabalho o melhor possível.

- Tiazinha Naja? interveio o gerente, diz-nos francamente o que pensas da maneira como ele se comportou hoje para com os clientes. Como julgas um indivíduo que põe brutalmente os copos em cima da mesa e fala aos clientes com arrogância?

- Tu também, meu filho, fazes isto por bem, disse a tiazinha Naja dirigindo-se ao gerente. Às vezes tens razão em te zangar, estás sempre tão ocupado com todas as encomendas e as contas. Mas tudo se resolverá pelo melhor.

- Isso é oportunismo, disse o gerente encolerizado.

Não sei que sentido a tiazinha Naja atribuiu àquela palavra, mas ficou terrivelmente ofendida. Olhou todos bem de frente sem nada dizer e depois voltou a sentar-se.

- Ninguém até hoje me tinha tratado assim, disse com voz chorosa e os olhos velados de lágrimas.

A seguir falou a empregada do bar que repetiu por assim dizer o que o gerente tinha declarado, evitando porém o caso da saúde ao partido. Por fim exprimiu a opinião de que um pessoal tão são como o do café "Riviera" não podia manter no seu seio um indivíduo tarado como eu.

- Dão-me licença? perguntou Diri logo que a empregada do bar acabou de falar.

- Faz favor, respondeu o gerente. Diri corou.

- Não concordo que se tomem medidas. Para dizer a verdade, ainda ninguém nos disse por que razão ele cometeu esse erro. Além disso devemos ter em conta que as pessoas que se queixaram são gente que vem aqui festejar casamentos realizados segundo os velhos costumes e portanto elementos retrógrados da sociedade. Por que razão havemos de dar tanta importância aos comentários desses elementos retrógrados?

- Sou de opinião de que aqueles clientes não são elementos retrógrados, disse o gerente com ironia. Antes pelo contrário, permito-me recordar-te, camarada Diri, que havia entre eles uma pessoa que exerce funções importantes no aparelho de Estado.

- Pode muito bem exercer-se funções importantes e ser-se apesar disso um elemento retrógrado, respondeu Diri com determinação.

- É então isso que pensas?

- Evidentemente.

- Espantoso, disse o gerente. Gostaria que o camarada Jani aqui estivesse para ver como se exprimem aqueles que ele defendia há cinco minutos.

- Tenho ainda uma coisa a dizer, acrescentou Diri levantando-se mais uma vez. Não percebi bem a questão da saúde.

O responsável olhou para a empregada do bar.

- Eu explico, disse ela, e começou a contar os factos deformando o sentido do que eu tinha dito. Perdi o sangue frio completamente.

- É uma calúnia infame, pus-me a gritar.

Ela quis continuar, mas eu interrompi-a de novo. O gerente tentou restabelecer a ordem e eu comecei então a injuriá-los aos dois. Eles por seu lado insultavam-me também.

Levado pela cólera, declarei que não queria trabalhar mais num estabelecimento que "fez um compromisso com o feudalismo". O gerente disse que não se esqueceria desta nova acusação e acrescentou que ninguém me retinha ali.

Todos os outros tomaram a palavra, à excepção da tiazinha Naja que estava seriamente ofendida. Não queriam que eu fosse despedido, mas eu estava de tal modo furioso, que repetia sem parar "vou-me embora". Depois de um "vou-me embora", o gerente tirou de uma gaveta o meu livrete de trabalho e começou a agitar-mo em frente do nariz.

Imediatamente estendi a mão e apoderei-me dele e assim tudo se tornou um facto consumado.

Às quatro e meia da tarde saí do café depois de ter entregue a receita do dia. A noite começava a cair, as montras das lojas estavam iluminadas, as ruas cheias de gente. Começava a sentir-se a atmosfera do Ano Novo. As vendedoras tinham colado nos vidros das montras bocadinhos de algodão. Nas prateleiras das lojas de produtos alimentares viam-se muitas laranjas.

Desempregado. De repente aquilo pareceu-me tão espantoso que por pouco não comecei a rir às gargalhadas. Era algo de artificial e de insólito. Tinha a sensação de ser um personagem de um filme ou qualquer coisa que podia vir entre as notícias da quarta página do Zêri i Popullit. Não conhecia mais nenhum desempregado e? enquanto caminhava pela rua por entre as outras pessoas, tinha a impressão de que adquirira uma qualidade rara e original que merecia a atenção dos outros. Pensava já nos comentários de troça dos meus companheiros, quando soubessem o que se tinha passado. Coisa estranha, sentia-me em forma, sorri de passagem a uma estudante do liceu que me devolveu delicadamente o cumprimento. No cruzamento saudei com a mão o meu amigo agente da polícia que me retribuiu levantando a mão à altura da pala do boné.

De repente senti vontade de comer, como um verdadeiro desempregado. Desde manhã que não mastigava nada. Entrei no bar "Peza" que estava cheio de clientes e fiquei à espera que houvesse lugar no bar. Depois encomendei duas sanduíches e uma caneca de cerveja.

A rádio dava as notícias do estrangeiro, mas estava tanto barulho no bar que mal se distinguia a voz do locutor. De vez em quando conseguia perceber a palavra "Checoslováquia" e "tropas soviéticas".

Saí do bar e comecei a andar sem objectivo definido. O entusiasmo do desemprego não me abandonava mas pensava que era preciso no entanto fazer alguma coisa. A ideia de ir ao Comité do Partido, muito mais para esclarecer a questão do que para me queixar do gerente, passara-me várias vezes pela cabeça durante o dia. Agora que o edifício do Comité do Partido surgia um pouco mais à frente com as grandes janelas todas iluminadas, reparei que, sem o saber, era para lá que me dirigia.

 

                   O Militante

- Foi portanto em X que vocês foram irremediavelmente batidos.

- Sim, foi em X que pagámos o nosso erro, disse ele.

Estávamos sentados no café a uma mesa junto da montra, por onde se via a multidão apressada e a onda multicolor dos automóveis e eléctricos que se espalhava pelo centro. Escolhíamos sempre aquela mesa de onde podíamos ver o que se passava lá fora sempre que a conversa esmorecia e nos calávamos. Quando ele olhava lá para fora, esforçava-me por descobrir onde se pousava o seu olhar: na entrada do metro, nos grandes reclames do cinema da frente ou numa das quatro ruas que desembocavam no largo. Contudo não conseguia compreender o que os seus olhos procuravam quando nos calávamos. Parecia-me que se pousavam nalguma coisa que estava para além do metro, dos anúncios do cinema e da rua.

- Não quero ouvir mais falar do que se passou em X, disse ele levantando o copo. Não me fales mais disso.

- Está bem, disse eu, não falaremos mais disso.

Olhávamos a noite que caía e não falávamos.

As pessoas entravam e saíam do café sem parar. Uma hospedeira, uma linda rapariga, veio sentar-se à nossa mesa. Não nos interessava nada que alguém se viesse sentar à nossa mesa, mas as iniciais SAS que ostentava no chapéu tranquilizaram-nos. Era sem dúvida uma escandinava e não devia perceber nada da língua que falávamos. A este café vinham muitas vezes hospedeiras de sociedades estrangeiras.

- Nesse tempo, o meu pseudónimo era "Spar-tacus", disse ele com voz tranquila. Foi o meu pseudónimo mais infeliz.

- Fala-me antes do teu pseudónimo mais feliz, disse eu.

- Nunca fui completamente feliz, nem esperava sê-lo enquanto usava pseudónimos.

- Porquê?

- Porque era preciso primeiro vencer para ter depois o direito de ser completamente feliz.

- De qualquer modo deves ter tido alguns momentos de felicidade.

- Pode ser que sim? com certeza. Pensava que me sentiria feliz quando toda a gente me chamasse pelo meu verdadeiro nome, como tu o fazes aqui neste café, num país estrangeiro.

- Não falemos mais nisso.

Calámo-nos e olhámos para a hospedeira que comia delicadamente. Estava muito arranjada, cuidada e fria no seu fato azul.

Eu pensava "é com certeza uma norueguesa" e comparava-lhe o rosto com os traços duros do meu interlocutor. "Dir-se-ia que pertencem a raças diferentes, completamente diferentes, apesar de serem ambos brancos".

- Apesar de tudo tive momentos de felicidade.

Não te falei dela, não te disse que a perdi para nunca mais a ver?

- Não, não me disseste nada. -'Bebe, disse ele. Bebemos um trago.

- O pseudónimo que tinha nessa altura era Anteu. Todo o nosso amor se passou sob esse pseudónimo. Um belo pseudónimo, não era? Escolhi-o como se pressentisse que me ia apaixonar.

- É realmente um belo pseudónimo. Seguiu-me por toda a parte, embora fosse de uma família burguesa. Passámos a nossa lua de mel num celeiro. Através das fendas, víamos os fascistas. Depois parti em missão para o estrangeiro, encarregado pelo partido de passar por muitas capitais e ela foi comigo. Mas foi de curta duração. Talvez eu tenha feito mal em levá-la comigo quando tivemos que ir para o mato pela primeira vez. Ela amava o comunismo talvez tanto como eu, mas não devia tê-la levado. Era no inverno e havia uma semana que os inimigos andavam no nosso encalço.

Estávamos cheios de fome e tínhamos de atravessar altas montanhas. Caminhávamos durante a noite em fila indiana, tínhamos as forças esgotadas. Muitos de nós caminhavam como sonâmbulos. Na última noite eu também andava como através de um sonho frio e solitário. Ouvíamos os lobos a uivar em qualquer lado. Às vezes aqueles uivos pareciam vir de um dos flancos da coluna, noutros momentos tínhamos a impressão de que nos seguiam ou nos precediam. Alguns de nós puseram-se também a uivar como os lobos.

Nunca compreendi o sentido daquele terrível diálogo. Estás a ouvir-me?

- Estou, respondi.

- Os que nos perseguiam acabaram por nos perder a pista e parámos numa aldeia. Quando acordámos, constatámos que faltavam muitos. Ela também não estava. Onde teriam ficado? Ninguém podia saber. Então pedi pela primeira vez ao partido uma coisa pessoal, pedi para mudar de pseudónimo por causa dela.

Bebemos e durante um grande bocado não falámos. No grande cinema da frente terminava uma sessão; na entrada do metro havia uma multidão e na rua os semáforos estavam há muito acessos. A hospedeira observava-nos. Tinha os olhos claros como dois pedacinhos de gelo e bebia tranquilamente vinho branco.

- Quantos pseudónimos tiveste? perguntei-lhe.

Ele pôs-se a reflectir, mas parecia que estava a pensar noutra coisa.

- Muitos, acabou por dizer em voz surda. Era obrigado a mudar muitas vezes de pseudónimo porque me localizavam. Com a excepção do caso de que te falei, mudei sempre de nome porque estava a ser seguido de perto.

- Sim, já percebi.

- Depois de cada pseudónimo, tinha a sensação de que morria uma parte da minha vida, que me operavam, que me queimavam, e durante uns instantes sentia-me feliz ao pensar que tinha sorte. Cada pseudónimo era um barco que me levava algumas milhas mais para a frente em direcção ao objectivo da minha vida e separava-me dele contente por não ter ido ao fundo e por ter outro para ir um pouco mais longe. Foi só o último que me fez afundar...

- É inútil continuar, disse-lhe eu começando a encher os copos.

- Sabes que também tive como pseudónimo o nome do vosso herói nacional Scanderbeg?

- Tiveste? Não sabia. Durante quanto tempo?- Por pouco tempo, quando estive preso. Dirigia uma organização do partido numa grande prisão. Foi um pseudónimo que me deu sorte

- Scanderbeg teve muita sorte.

- Acredito, disse ele. Em geral, vocês tiveram mais sorte que nós.

- Também tivemos grandes infelicidades, mesmo muitas, respondi.

- Imagino, mas de qualquer forma nós no fim fomos derrotados, enquanto que vocês não.

Olhávamos lá fora os pares estreitamente enlaçados que passavam diante do vidro ligeiramente coberto de vapor. Iam em todos os sentidos, entravam e saíam dos autocarros, desciam para a estação do metro.

- Vida estrangeira, disse o meu interlocutor com voz lenta.

Ficámos longos minutos sem falar.

- Em todo o caso nunca perdi a confiança, disse ele. Tenho fé na força interior do comunismo. Se me dissessem: pensa na tua vida, nos capítulos da tua vida passada, com pseudónimo à maneira de título e escolhe uma parte para ti e outra parte para a causa da classe; não escolheria nada para mim ou, para ser mais preciso, talvez ficasse com alguns dias, muito poucos, isso seria suficiente.

- Reservaste para ti alguns dias da tua vida? perguntei.

- Não, disse ele, com a rara excepção de um domingo.

A hospedeira norueguesa tinha acabado os biscoitos e fumava um cigarro sem olhar para ninguém. Os olhos pareciam ligeiramente admirados e tranquilos, como os de uma criança. Com certeza nada percebia do que dizíamos, talvez com excepção da palavra "comunismo" e mesmo que compreendesse a língua que falávamos, não devia ter percebido o sentido do que dizíamos. Admirava-se provavelmente que duas pessoas sentadas ao canto de um café, estivessem a falar à noite do comunismo.

- Leste o livro "Por quem os sinos dobram"? perguntou ele.

- Não, respondi. Sei apenas que é um livro que trata da derrota.

- Sim, da derrota.

- Por que hás-de voltar a falar nisso? disse eu.

- Não, é preciso falar de tudo. Não há coisas no mundo de que se não deva falar.

Calou-se por um momento.

- Talvez tenhas razão.

- Encontrei esse livro em Londres em 1940 quando o partido me tinha enviado para lá em missão. Li-o de um fôlego e em cada página tinha vontade de gritar de dor.

Foi a primeira vez que um livro me fez chorar e, em cada página, gritava no meu foro íntimo "nós nunca seremos derrotados".

- Vocês não foram vencidos, digo-lhe eu.

- Sim, não fomos vencidos, mas de qualquer forma fomos batidos.

- Por causa dos vossos erros.

- Deixa lá isso, é melhor.

- Tu próprio me contaste já tudo.

- Bem sei, bem sei. Quando li aquele livro, estava longe de pensar que seria assim. E contudo não consinto que ninguém tenha pena da nossa sorte.

- Ninguém tem a intenção de ter pena de vocês, disse eu. Nem de resto isso faria sentido, visto que não foram abatidos.

- Apenas nos enganámos.

- É exacto.

Pegámos nos copos e olhámo-nos nos olhos

- O comunismo é milhões de vezes mais forte que qualquer baioneta, disse ele.

- Lembras-te do livro dos sinos, lembras-te como os revolucionários passavam a fronteira? Ah, já me esquecia que não o leste.

- Só sei que é um livro sobre a derrota.

- Sim, e o que nos aconteceu foi precisamente uma coisa semelhante, talvez mais dura e mais triste.

Geralmente, depois de ter bebido, a voz enrou-quecia-lhe e a fronte avermelhava-se-lhe. Eu próprio sentia-me ligeiramente tonto. O vidro da montra estava agora completamente coberto de vapor. A norueguesa continuava tranquilamente sentada à mesa e, com os belos olhos indiferentes, observava o que se passava lá fora.

- Duro e triste é dizer pouco. Não há nada mais terrível que sabermo-nos batidos. Vocês ganharam e não podem saber o que isto significa. Tu não sabes o que significa o teu companheiro de armas escarrar-te na cara e não teres possibilidade de apagar as marcas desta afronta.

- Estás a exagerar, disse eu.

- Foi o meu último pseudónimo, o meu pseudónimo infeliz que me fez ir ao fundo.

- Mas vocês não estão ainda derrotados, vocês continuam a lutar.

- Claro, mas isso custa-nos muito, mesmo muito. Passámos a fronteira, batendo em retirada, através de uma garganta escarpada. A chuva misturava-se com a neve e os bonés dos guardas fronteiriços brilhavam sob o efeito da água. Estávamos extenuados, a cair de sono e a maior parte feridos. E como se tudo isso não bastasse, como se a terrível amargura da derrota não fosse suficiente, ele estava ali, apoiado às muletas de madeira, a insultar-nos porque tínhamos sido batidos.

- Quem era que estava lá? perguntei eu.

- O nosso companheiro de armas, um velho militante ferido e operado no estrangeiro. Estava à nossa espera na fronteira, ao lado de um rochedo a alguns metros do local para onde atirávamos as armas. Insultava-nos. A maneira como ele nos insultava! A água escorria-lhe pelas faces, o vento desgrenhava-lhe o cabelo encharcado e só pela voz se percebia que chorava de raiva, porque as lágrimas misturavam-se-lhe com a neve e com a chuva que caíam juntas. Nós caminhávamos de cabeça baixa e aquelas injúrias eram para nós outros tantos golpes no coração. Ninguém lhe respondeu, de resto era inútil. Os combatentes passavam sem voltar a cabeça. Ele reconheceu-me. Atirei a espingarda e pus-me em marcha, como os outros, em direcção a ele. Por um momento pareceu-me que ele tinha surgido da terra pregado àquelas terríveis muletas.

Olhei para ele com ar cansado e ele escarrou-me em plena cara. Continuei o meu caminho sem me limpar, deixando atrás de mim a sua respiração angustiada que parecia pregada às muletas. E foi o fim.

Calou-se e mergulhou nos meus os seus olhos ardentes. O suor perlava-lhe a testa.

Eu tinha acendido um cigarro e fumava absorto nos meus pensamentos. A norueguesa tirara da carteira um pequeno espelho e pintava os lábios com todo o cuidado.

- Foi o fim, repetiu ele. Desde então nunca mais voltei ao meu país.

Um longo silêncio cortou-nos o diálogo.

- Foste condenado à morte à revelia? perguntei-lhe.

- Sim, mas isso não tem importância. E depois, mesmo que me agraciassem, nunca voltaria com o meu nome verdadeiro. Enquanto a minha pátria estiver subjugada e no caso de lá regressar, só viveria lá sob um pseudónimo.

- Pensas então em novos pseudónimos?

- E porque não? Vou-te dizer uma coisa que te vai talvez parecer estranha: não gosto do meu verdadeiro nome. Não o quero, lembra-me a cada instante que estou fora da circulação. Habituei-me aos pseudónimos, o seu tempo há-de voltar. Espero por ele. Se tu soubesses os pseudónimos bonitos que há! Às vezes lembro-me de dúzias deles.

- Quando penso que ainda podes voltar para lá! disse eu.

- Nunca se sabe, isso não depende de mim.

- É com um pseudónimo que recomeçarás, no caso de recomeçares? perguntei. Mas se calhar nem sequer pensaste nisso.

- Não, disse ele, já pensei. E, depois de um momento de hesitação, acrescentou: Chamar-me-ei Prometeu.

Tínhamos esvaziado os copos e estávamos à espera do empregado para pagar a conta. A norueguesa fazia o mesmo.

 

                   A História

Havia já cinco minutos que ele esperava na paragem de autocarros. A chuva parara há instantes e as pessoas que se tinham abrigado momentaneamente debaixo dos toldos das lojas apressavam-se para evitar nova carga de água que, segundo parecia, não devia tardar. A primeira coisa que o impressionara em Tirana, quando aí chegara vindo da pequena cidade de B., nas montanhas, fora a agitação. As pessoas aqui andavam mais depressa que na sua terra, apressavam-se a ir para o trabalho ou ao saírem do trabalho, tinham pressa de voltar para casa, de ir ao cinema ou a outro lado qualquer. Isto tornava-se mais evidente ainda ao cair da noite. Nessa altura tinha-se a impressão de que provocava um ataque de febre. Nos passeios do centro, as pessoas davam cotoveladas para passar, ou davam mesmo encontrões sem pedirem a mínima desculpa e continuavam o seu caminho. A princípio aquela agitação irritava-o, mas depois começou a agradar-lhe. Gostava de Tirana e da vida que aí se vivia. Tudo lhe agradava, a começar pelo nome de Tirana, que lhe evocava ao espírito qualquer coisa que se desdobrava subitamente e andava em frente até às ruelas vizinhas do centro, estreitas e tranquilas em comparação com as ruas principais. Na primeira noite que passou no lar dos estudantes não conseguiu pregar olho, tantas eram as sensações que lhe desfilavam pela cabeça. Durante cinco anos seria cidadão daquela cidade e isso perturbava-o. Pouco a pouco, aprendeu a conhecer melhor as ruas, a vida dos estudantes e os hábitos da capital. Outra coisa o havia impressionado também. Aqui, quando por acaso se encontra alguém conhecido (o que acontece raramente) as pessoas não param para trocar algumas palavras, apenas se cumprimentam com um ar distante e continuam rapidamente o seu caminho. Foi o que lhe aconteceu três dias depois da sua chegada, quando encontrou na grande avenida três companheiros da faculdade. Aquilo era para ele um grande acontecimento, encontrar pessoas conhecidas no meio da capital, e preparava-se para os deter, quando estes o cumprimentaram de passagem e continuaram o seu caminho. Aquilo a princípio irritou-o, como aliás o irritava a sua solidão, mas começava a habituar-se. Além dos companheiros da faculdade, não conhecia mais ninguém em Tirana e, quando à noite passeava pelas ruas, perguntava a si próprio se algum dia deixaria de se sentir estrangeiro naquela cidade espantosa. À noite, no clube dos estudantes, havia animação. Os estudantes reuniam-se em volta do aparelho de telefonia, ouviam as últimas informações sobre os acontecimentos na Checoslováquia, discutiam demoradamente entre si a respeito desses acontecimentos e ele sentia-se muito à vontade entre eles. Mas quando ia até ao centro, a solidão aborrecia-o. Na sua pequena cidade natal, estava habituado a encontrar em cada esquina pessoas conhecidas e amigos. Aqui era por assim dizer o vazio. As ruas de Tirana estavam cheias de raparigas simpáticas que se penteavam, caminhavam e sorriam de maneira diferente das raparigas da sua terra. A princípio parecera-lhe que lhe era impossível conviver com uma rapariga assim.

Tinha a impressão de que elas pertenciam a um outro mundo que lhe era desconhecido e inacessível. Agora, enquanto esperava na paragem de autocarro, perguntava ainda a si próprio, com espanto, como, duas semanas apenas depois da sua chegada a Tirana, tinha já um encontro com uma jovem de Tirana. Julgava que essas coisas começavam habitualmente por sofrimentos e longas páginas escritas no diário íntimo, cheias de suposições e de dúvidas. Ora aquilo acontecera com toda a simplicidade. Tinha-lhe parecido que, de entre todas as raparigas da faculdade, era ela quem o cumprimentava com mais cordialidade. Algumas vezes tinham assistido a aulas sentados lado a lado. Ele era bastante forte em física e ela pedia-lhe muitas vezes uma explicação. Naquela manhã, entre duas aulas, puseram-se a conversar sobre um filme que estava agora no cartaz. Ele disse que ainda não o tinha visto. Ela também não e perguntara-lhe se queria que lhe comprasse um bilhete para a sessão das cinco e meia, visto que o cinema lhe ficava ao pé de casa. Dissera aquilo sem hesitação, em frente de toda a gente. Ele por pouco não corou.

Aquele era realmente um dia extraordinário. Em todas as emissões, a rádio anunciava que a Albânia se havia retirado do Pacto de Varsóvia. Nos corredores, os estudantes diziam que se ia criar a brigada dos estudantes e discutiam sobre as novas metralhadoras que lhes iam entregar. Depois das aulas houve duas pequenas reuniões onde se explicou o que deviam fazer os estudantes do lar, em caso de alarme aéreo. Bruscamente, a vida adquiriu cores fortes e extraordinárias e deu-lhe a impressão de que a distância que o separava dos outros estudantes, e em especial dos de Tirana, começava a diminuir. De repente, tornaram-se-lhe mais próximos e mais compreensíveis e, como se todas essas emoções não bastassem, Diana convidava-o para ir ao cinema. A vida tornou-se tão densa, que teve a impressão de que não era capaz de a enfrentar.

Diana demorava-se. A ideia de que ela podia não vir, começava a pairar como uma sombra sobre os outros pensamentos. Queria vê-la chegar, isso era muito importante para ele. Àquela hora, quando a noite caía rapidamente, devia vir sem dúvida alguma. Na paragem, os autocarros esvaziavam-se uns atrás dos outros. Não tirava os olhos da porta de trás, por onde os passageiros saíam como se alguém os empurrasse cá para fora. Assim que um autocarro partia, esvaziando por um instante a paragem, as pessoas começavam outra vez a juntar-se. Diana chegou no momento em que ele começava a desesperar.

- Desculpa ter-me atrasado, disse ela sorrindo com desenvoltura. Ele sentiu confusamente que, se quisermos apreciar a alegria do amor, é preciso conhecer primeiro o tormento da espera que parece acompanhar sempre o amor. Teve a sensação de que aquelas palavras se iriam repetir muitas vezes e que diria muitas vezes "Não tem importância", embora não fosse verdade.

- Estamos atrasados, disse ela, vamos mais depressa.

Embora se apresassem, chegaram atrasados. A porta do cinema estava fechada. Dois ou três retardarios furiosos batiam com os punhos nas portas, mas ninguém veio abrir.

Ele amarrotou os bilhetes que ela tirara do bolso enquanto corriam para o cinema, e deitou-os fora. A bolinha de papel caíu no passeio molhado e, pelo riso dela, comprendeu que o filme lhe interessava tão pouco como a ele.

- E agora, que vamos fazer? perguntou ela. Ele encolheu os ombros. Realmente não sabia

o que haviam de fazer. Era a primeira vez que lhe acontecia ir ao cinema com uma rapariga e encontrar a porta fechada. E, ainda por cima, com uma rapariga tão simpática.

- Vamos a outro cinema, disse ela.

- Vamos.

Dirigiram-se mais uma vez para o centro, sabendo muito bem que não iriam a nenhum outro espectáculo. Àquela hora era difícil encontrar bilhetes e, no fundo, nenhum deles sabia muito bem se queria ir ver outro filme.

Enquanto caminhava, admirava-se de poder andar livremente ao lado de uma rapariga sem chamar a atenção de ninguém. Uma ideia atormentava-o. Deveria propôr-lhe irem tomar qualquer coisa numa pastelaria, ou isso seria demasiado ousado? Tinha reparado que as raparigas de Tirana se enchiam de gelados, apesar de o verão já estar longe e de já terem começado as chuvas. Viu de repente na sua frente um grande anúncio luminoso representando um enorme gelado e os seus pensamentos detiveram-se

aí subitamente.

Quando chegaram quase por baixo das luzes do anúncio e ele se preparava para dizer alguma coisa, ela adiantou-se-flie:

- Vamos comer um gelado?

Disse aquilo com toda a simplicidade, virando a cabeça para a montra coberta de vapor por trás da qual havia dezenas de pessoas de pé a comer gelados.

- Ia precisamente dizer...

- Se calhar não gostas de gelados? disse ela sem o deixar acabar.

- Por que dizes isso?

- Para dizer a verdade, não gosto de ver rapazes a comer gelados, disse ela rindo.

Ele não soube que responder.

- Mesmo assim podias comer um só para me fazeres a vontade?

Ele não sabia que dizer e estava furioso consigo próprio. Ela entrou à frente na pastelaria.

- Na tua terra deve haver muita neve, disse ela pegando no gelado entre dois dedos.

- Sim, neva muito. Às vezes chega a ter dois metros de espessura.

- Deve ser tão bonito!

Ele gostaria de continuar a falar sobre a neve, porque sabia que era um assunto em que se poderia exprimir livremente. A neve era um tema repousante que não deixaria morrer a conversa.

- Em Tirana só neva uma vez por ano e mesmo assim... disse a rapariga quase com tristeza.

- Só uma vez?

- Até há anos em que não chega a nevar.

- Espantoso!

- Mas quando neva, continuou a rapariga em tom alegre, é impossível uma pessoa aventurar-se nas ruas, especialmente as raparigas. Chovem bolas de neve de todos os lados. Na tua terra as pessoas também se divertem com bolas de neve?

- Não, só as crianças é que atiram bolas de neve.

- Claro, lá há sempre neve. Mas aqui é uma coisa rara e por isso tanto os novos como os velhos perdem a cabeça. Sabes o que fez o meu irmão mais novo no ano passado?

Estragou o frigorífico.

O rapaz pôs-se a rir.

- No ano passado nevou no dia a seguir à inauguração do monumento de Scanderbeg e o monumento estava todo coberto de neve, era realmente muito bonito. Havia neve em cima da capa, em cima do pescoço do cavalo.

- Continuo a não perceber o que tem isso a ver com o frigorífico!

- Ah, sim, já me esquecia. No fim do dia a neve tinha-se fundido quase toda, e os miúdos do bairro tinham imensa dificuldade em encontrar ainda uns bocados pelas varandas. Quando todos os recantos estavam já bem limpos, o meu irmão e um amigo, vizinho do lado, tiveram a ideia de se abastecerem no frigorífico e começaram a fazer bolas com gelo do aparelho. Quando chegámos a casa encontrámos a cozinha quase inundada, e o frigorífico, aberto, a trabalhar sem parar. Os dois miúdos metiam as mãos lá dentro e tiravam o que restava de gelo.

Contava a história sorrindo, enquanto continuava a comer o gelado. Ele sorria também. A pastelaria estava cheia de gente e ninguém podia ouvir o que diziam porque havia imenso barulho. Ainda não tinham acabado os gelados, quando se ouviu, da telefonia que estava em cima do balcão, a voz do locutor a dar informações. Era a retransmissão da notícia que informava que a Albânia se havia retirado do Pacto de Varsóvia. Pareceu estabelecer-se um certo silêncio dentro da pastelaria. Depois da declaração oficial, transmitiram uma reportagem sobre o eco que esta notícia tivera numa fábrica da capital.

- No nosso bairro, disse ela enquanto saíam da pastelaria, a Frente fez uma reunião para dar instruções de defesa antiaérea, em caso de alame. perguntou ela.

- No lar de estudantes também houve uma reunião semelhante.

Havia imensa gente nas ruas. Iam caminhando sem objectivo definido e nem se lembraram de ir a outro cinema.

- Achas que os estados revisionistas vão tentar atacar-nos, como fizeram na Checoslováquia? perguntou ela.

Ele não respondeu imediatamente.

- Não é de excluir essa hipótese, disse ele. Na hora actual há tudo a esperar da parte deles.

- É por isso que vamos fazer exercícios de defesa passiva?

- Claro.

- Nunca vi um alarme aéreo, disse ela. Sem se darem conta, iam-se afastando do centro, passaram pelo hotel "Dajti" e meteram pela avenida Mareei Cachin. Os passeios estavam juncados de folhas amarelas e, ao pisarem aquelas folhas, sentiram que a conversa esmorecia. Agora que caminhavam entre aquelas grandes árvores, parecia-lhes que não seria natural falarem de gelados ou de qualquer outra brincadeira. Como não encontravam um assunto adequado àquela atmosfera outonal da avenida, sem darem por isso, foram-se reaproximando do centro. Agora, a cada segundo ele esperava que ela dissesse que era tarde e que tinha de voltar para casa. Mas a frase que tanto temia não foi pronunciada nem quando chegaram à praça Scanderbeg, nem sequer quando meteram pela rua Dibra. Ele ia apostar que ela ia dizer aquilo quando chegassem ao fim da Rua das Barricadas ou, se não fosse até aí, seria certamente por alturas da loja do Livro Internacional. E, se por acaso ela o não dissesse na altura do Livro Internacional, uma coisa era certa, ele ia dormir muito mal naquela noite. Chegaram ao fim da Rua das Barricadas e ela não disse nada. Estão agora em frente do Livro Internacional, passam o bar "Crimeia" cujos vidros das montras estão cobertos de um denso vapor e, com um passo cada vez mais lento, avançam pela rua paralela ao Palácio da Cultura. Agora, pensa o rapaz, ela vai dizer de certeza que é tarde. De facto, ela virou a cabeça para o grande relógio e ele preparava-se para ouvir dizer que era tarde, quando de qualquer lado à sua direita, por cima da cidade, se ouviu, a princípio fraco como saído de um sonho e depois cada vez mais forte e precipitado, o uivar de uma sereia. O som aumentava continuamente e, quando chegou ao auge e começou a baixar, ouviu-se outra sereia e depois outra e ainda outra. As ruas mergulharam na escuridão e ouviram-se vozes que diziam "Alarme". A rua, mergulhada subitamente na escuridão, tem como que uma paragem momentânea mas depressa se refaz. Ouvem-se vozes, passos precipitados, um ruído surdo vindo das trevas. As luzes do grande Palácio da Cultura e das lojas apagaram-se umas atrás das outras. Eles não se mexeram. As luzes dos cafés apagaram-se por sua vez. O relógio desapareceu no céu e o centro da cidade ficou mergulhado numa escuridão completa.

Uma luz surgiu algures numa janela e alguém gritou: "Apaguem as luzes!". A luz desapareceu. Alguém falava na rua com uma voz rude: "Cidadãos, corram para os refúgios mais próximos. Evacuem as ruas!" O ruído surdo dos passos esbatia-se cada vez mais. As sereias continuavam a soar umas atrás das outras. Sem saber como, ela pegara-lhe na mão. Sentiam a seu lado pessoas a caminhar e a meter-se num sítio qualquer. "Cidadãos, evacuem as ruas!" dizia a voz rude.

- Abriguemo-nos neste pequeno largo, disse ele.

Chegaram ao pequeno largo em frente do Palácio da Cultura. Ela continuava a segurar-lhe a mão. No largo havia gente. Ele viu a ponta incandescente de um cigarro, depois de outro. A voz dos desconhecidos era coberta pelo uivar das sereias. Estavam muito próximos um do outro. Era a primeira vez na sua vida que uma rapariga lhe pegava na mão. Ele sentia o perfume dos cabelos dela, bem penteados. Era um perfume agradável, desconhecido.

As sereias calaram-se umas depois das outras, como se estivessem sem fôlego. Quando se desvaneceu o uivar da última sereia, houve um silêncio impressionante. Apenas se ouviam uns passos ao longe. Depois, no céu, ouviu-se um outro ruído mais arrastado e mais longínquo. Levantaram a cabeça. Lá no alto voavam dois aviões a jacto, um tinha uma luz vermelha, o outro azul.

Com uma impetuosidade irresistível, pedaços de sentimentos e de pensamentos incoerentes invadiram todo o seu ser. Brilhavam um instante e depois apagavam-se e a seguir resplandeciam outros, como faúlhas saltando de uma grande fogueira quando se mexe nas brasas. E de repente, pareceu-lhe que pela primeira vez na sua vida pudera perceber de forma extremamente concisa e clara o que tinha aprendido, ouvido e lido sobre a história do povo em milhares de cantigas, livros e cartilhadas, desde a infância até àquele dia. Parecia-lhe que pela primeira vez tocava na história com a mão. Tocava no corpo da história, a história estava ali em volta dele, simples e compreensível como nunca.

Um automóvel da polícia passou na rua com os faróis vermelhos. A luz daqueles faróis, deslizando entre as árvores, passou-lhe por um instante pela testa como um rasto de sangue e desapareceu. Ela apertou-lhe a mão ainda com mais força. Por que razão, desde manhã, quando os estudantes souberam que se tinha formado uma brigada e tinham começado a fixar o número dos batalhões, uma ideia ligeira como a névoa lhe passara duas ou três vezes pela cabeça e ela pusera-se então a pensar que em caso de guerra ele podia... antes dela? Sería por ele vir de uma região montanhosa recuada, onde a melodia das cantigas guarda ainda algo de dramático? Ou porque ele tinha as feições daqueles que são sempre os primeiros a atacar? Ou essa ideia viera-lhe muito simplesmente por ele ser rapaz? Ela própria não sabia bem e não tentava compreender.

As pessoas que se haviam abrigado no largo falavam entre si como velhos conhecidos. Eram as mesmas pessoas de Tirana que, um quarto de hora antes, passavam na rua apressadamente e lhe pareciam frias e inacessíveis. Agora falavam de aviões, do ataque lançado à meia-noite contra a Checoslováquia, das manobras do nosso exército.

Alguém dava pormenores sobre a ocupação do aeroporto de Praga, outro indicava ao interlocutor invisível a forma de aniquilar os franco-atiradores.

Parecia-lhe estar na sua terra, na pequena cidade de B, na montanha, com os seus, junto do lume.

Uma única sereia fez sentir por sobre a cidade a sua possante respiração.

- O alarme terminou, disse uma voz. Os tubos de néon dos candeeiros públicos foram os primeiros a acender-se, batendo as pálpebras como alguém arrancado ao sono. Depois foi o relógio grande, as luzes do Palácio da Cultura e das lojas. Em poucos segundos, todas aquelas pessoas se precipitaram de novo para as ruas que retomaram a sua animação habitual. Os carros que tinham parado à beira do passeio no local onde foram surpreendidos pelo alarme, retomaram o seu caminho.

Algumas crianças corriam imitando o barulho da sereia.

Eles caminhavam no meio dos transeuntes e dirigiram-se para a praça Scanderbeg. A praça estava cheia de animação. Os autocarros, mais carregados que de costume, dificilmente abriram caminho no meio da multidão. Ela lançou um olhar ao relógio.

- São horas de ir para casa? perguntou ele.

Ela fez que sim com a cabeça e nesse "sim" havia um pesar sorridente. Quando passaram ao lado do monumento a Scanderbeg, sorriram. Pensavam com certeza na conversa sobre a neve.

Na paragem do autocarro havia muita gente, contavam uns aos outros, rindo, como haviam sido surpreendidos pelo alarme. Algumas pessoas queriam saber se os cinemas tinham interrompido a sessão durante o alarme, mas ninguém sabia com precisão. Três autocarros partiram, completamente cheios, uns atrás dos outros, mas o número dos passageiros que esperavam na paragem aumentava cada vez mais. A sua alma nunca tinha sentido tanto calor.

De todos os lados se viam surgir pessoas armadas, vestidas metade à civil, metade à militar. Ela olhava-as com curiosidade.

- São milícias populares, explicou o rapaz.

- Para a defesa contra os comandos pára-quedistas?

- Sim.

Ela estava encantada por se ter lembrado de uma frase que aprendera durante a preparação militar e por a ter empregado mesmo a propósito.

Entre as pessoas armadas havia raparigas.

- Nunca ninguém nos surpreenderá como aos checoslovacos, disse ele.

As pessoas esperavam pelo autocarro, riam e gracejavam. Em vez de cidadãos que estão à espera do autocarro, pareciam muito mais um grupo de parentes próximos que vão dar os parabéns a alguém ou que vão simplesmente fazer uma visita.

 

                   Prometeu

                   Aos revolucionários autênticos de todo o mundo

Era o terceiro dia que a ave de rapina não lhe vinha devorar o fígado como de costume. Pela primeira vez desde há dez mil anos, não foi ate-nazado pelas dores terríveis e o seu corpo, apoiado ao rochedo, teve um pouco de repouso. Tinha vontade de dormir.

"Alguém deve ter intercedido junto de Júpiter", pensou com indiferença.

No quarto dia sentiu o fígado a crescer e a pesar-lhe no corpo. No sítio onde a ave de rapina mergulhava o bico, sentia uma massa amorfa, indolor, que crescia pouco a pouco e lhe invadia todo o corpo.

Os músculos que todos os dias se retesavam com a dor, tinham amolecido.

No quinto dia, com a ansiedade de alguém ao sair de um pesadelo, perguntou a si próprio: "Que se passa? Onde está o abutre? Porque não vem?"

O fígado estava muito inchado e pendia-lhe do corpo como uma esponja macia.

No sexto dia sentiu o fígado invadir-lhe tranquilamente todo o corpo.

"Se a ave de rapina não vem, vou morrer", pensava cheio de raiva, tinha a impressão de que ia morrer de tranquilidade.

Durante toda a vida nunca aceitara qualquer compromisso. Muitos haviam sido os que o tinham querido reconciliar com Júpiter. Sempre acolhera com desprezo essas intervenções.

"Quem ousou interceder mais uma vez por mim?" gritou.

Ninguém o podia ouvir. A alguns passos um véu de bruma passava lentamente. Mais longe chovia.

No sétimo dia pareceu-lhe ver ao longe as asas da ave de rapina que se aproximava. Mas não era o abutre, era um avião que voava lentamente por sobre as montanhas.

Deixou descair a cabeça sobre o peito e, com desprezo, esperou pela morte. No momento em que a vista se lhe começava a turvar, distinguiu ao longe, muito longe, entre duas nuvens, a pequena mancha que se aproximava e ia aumentando gradualmente.

Levantou a cabeça, retesou os músculos e esperou pelo golpe terrível. Quando o bico mergulhou, como de costume, no fígado inchado, com um ruído surdo, disse para si próprio: "Agora estou salvo".

Por cima dele passavam grandes nuvens negras semelhantes a imensos cestos cheios de vapores, de trovões e de electricidade.

 

                   Kio - Anastas Kondo

- Ainda falta muito? perguntou o mais novo.

- Ainda um bocado, respondeu o mais velho.

- Quanto já andámos? voltou ele a perguntar. Podia ter evitado aquela pergunta.

- Já andámos muito, meu filho, já nos falta pouco.

- Dizes isso para me agradar, Kio?

- Claro que não, que ideia!

E o que se chamava Kio nada mais disse. Mentiu pela primeira vez na sua vida porque a verdade é que não tinham andado nem um quarto do caminho, mas teve pena do camarada que dava sinais de fadiga embora se não queixasse. Se não lhe levantasse o moral, era de temer que o rapaz ficasse ali no meio da neve com um metro de espessura.

Kio abria a marcha, seguido do outro guerrilheiro que estava cansado. Embora fosse difícil abrir passagem naquela neve mole, resistia melhor que o camarada.

Não havia grande diferença de idade entre eles. O jovem guerrilheiro devia ter cerca de dezanove anos e Kio ia festejar os trinta no Verão seguinte. Se se considerasse a fadiga na proporção inversa da idade, como costuma acontecer em geral, o mais novo deveria cansar-se menos que o mais velho, quando ali acontecia o contrário. Kio, quando era lenhador na aldeia, havia percorrido várias vezes aquelas montanhas com o pai, desde criança. Foi desde essa altura que se iniciara na profissão e nos atalhos daquelas paragens. Foi por isso que o estado maior da brigada tinha feito dele o seu correio e o enviava hoje ao batalhão do litoral. Conhecia bem as montanhas de Çike. Por outro lado, também a montanha e todos os camaradas conheciam bem Kio, o guerrilheiro, o correio da brigada, tal como o rapaz cujo nome Kio não sabia. Disseram-lhe que aquele camarada o devia acompanhar e, para ele, a palavra camarada não precisava de explicações suplementares.

Estava-se na altura da operação inimiga do Inverno de 1944. A brigada tinha-se dividido em três, principalmente com o objectivo de deslocar as forças alemãs e os mercenários de Xhafer Deva mas, em primeiro lugar, para evitar que a artilharia alemã concentrasse o tiro sobre o mesmo ponto. E o estado maior da brigada alcançara o seu objectivo. Era verdade que os alemães tinham utilizado os canhões em vários locais, em Ranice, em Vernik, em Suke e em Kundrenice, mas não com a mesma intensidade como o faria se a artilharia tivesse dirigido o tiro sobre um único ponto determinado. Estava dividida e portanto mais fraca.

Os alemães, contrariamente ao mito criado por eles próprios, eram seres perfeitamente vulgares. Deixavam-se matar como moscas sem o seu aparelho de guerra. Sofreram as primeiras perdas e isso abalou-os. Retiraram então, conservando apenas as estradas e as aldeias que as ladeavam enquanto os guerrilheiros se instalavam nas altas montanhas e nos redis abandonados.

O estado maior dos guerrilheiros pensava con-tra-atacar a partir do primeiro domingo de Fevereiro. Os alemães e sobretudo os celerados de Xhafer Deva, tinham espalhado o boato de que os guerrilheiros estavam mortos de fome nas montanhas, contando até que tinham cozido as solas dos sapatos para as comerem. Era inegável que tinham sofrido, sofrido muito de frio e de fome, mas tinham aguentado firme. Os camponeses, e principalmente as mulheres, arranjavam maneira de passar através do cerco do inimigo para abastecerem aquelas águias empoleiradas lá no alto. Mas era preciso um romance completo para contar como os guerrilheiros não tinham sido exterminados de frio e de fome durante aquele mês de Janeiro de 1944. Isso é outra história e por agora limitar-me-ei a contar a história de Kio e do seu camarada.

 

Soprava o vento norte, frio de rachar. O vento quente do mar não se fazia ainda sentir. Os dois homens caminhavam pela vertente oposta ao mar. Ainda estavam longe.

"Não percebo porque mo deram para correio! dizia Kio consigo próprio. Quanto a mim, está bem, que estou no meu elemento nestas montanhas, mas este pobre diabo de Elbasan não percebe nada disto".

O outro, o mais novo, tinha-se oferecido voluntariamente para correio no batalhão do litoral e, depois de muita insistência, o jovem comunista acabara por ganhar a sua causa. Enviaram-no ao estado maior da brigada para se desempenhar daquela missão delicada.

Se calhar, enganaram-se. Teriam feito melhor se tivessem mandado um lab (1) - pelo menos era o que pensava Kio. Via-se pela maneira de falar que não era lab, mas vendo a sua juventude, os do estado maior não se preocuparam com a sua origem, se vinha de Laberi ou de Elbasan. Precisavam de dois correios, tinham-nos, ambos jovens e fortes. O jovem de Elbasan tinha até começado a deixar crescer o bigode, o que lhe dava um ar mais grave e parecia ainda mais forte do que o camarada. Foi precisamente por isso que Kio ficou a princípio muito contente por lhe terem escolhido um companheiro como aquele, mas mudou de opinião depois de duas ou três horas de marcha. Compreendeu, pelo passo inseguro e pela respiração, que o outro não tinha qualquer experiência nem de montanha nem de neve. De resto, todos os principiantes vacilam nas pernas quando abrem passagem na neve.

- De onde vens, camarada? perguntou-lhe Kio.

- Venho da Escola Normal, respondeu o outro.

- Qual Escola Normal? voltou ele a perguntar, sem compreender o que o companheiro queria dizer.

- De Elbasan.

- Ah!

Kio ouvira falar desses jovens de Elbasan. Eram corajosos. Todos eles tinham ido para a

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Nota (1) Lab: habitante da Laberia, região do sul da Albânia.

 

guerrilha. "Deve ser corajoso, disse para si próprio, mas não vale nada como correio".

- 'Passa para trás de mim! gritou-lhe.

O outro não se opôs. Já há quase três horas que ia a abrir caminho. Estava cansado.

Agora era Kio quem se encarregava dessa tarefa. Após oito horas de caminho, disse para consigo: "Não teria chegado longe, se tivesse ficado à frente!" A neve tinha mudado. Em grãos do tamanho de bagos de arroz, comprimia-se facilmente e não se colava aos sapatos. Caso contrário, como acontecera algumas horas atrás, a marcha tornar-se-ia um martírio.

Quando chegaremos ao cimo de Çike? perguntou o jovem guerrilheiro.

- Mais um pouco, meu filho. Quando lá chegarmos, não teremos mais caminho a percorrer.

Kio tinha sempre o "meu filho" na boca e, embora soubesse que a expressão não condizia com a sua pouca idade, não era capaz de impedir que aquilo lhe saísse à mínima ocasião. Seria por isso, ou pela maneira como ele falava, como velho, que os camaradas tomaram logo a princípio o hábito de lhe chamarem "camarada velho". Ele não se aborrecia com isso.

- Como é isso, não teremos mais caminho a percorrer? perguntou o jovem guerrilheiro sem esconder a sua alegria.

- Quase nada. O mar..., e Kio calou-se.

O cume de Çike era tudo para ele. Daí via-se o mar e a sua aldeia natal. O batalhão aonde deviam ir estava instalado nas grutas de Jali, ao longo do litoral. Eram invisíveis de terra e mal se divisavam do mar. Não traziam consigo nem uma carta nem qualquer sinal. Um deles devia chegar vivo, custasse o que custasse, para transmitir verbalmente a ordem do estado maior da brigada: - "Atacar no primeiro domingo de Fevereiro!", era tudo. Deste modo, toda a brigada, incluindo os do litoral, iriam lançar a contra ofensiva no primeiro domingo de Fevereiro, provando aos alemães e aos mercenários que os guerrilheiros ainda ali estavam, que não tinham sido exterminados nas montanhas.

Mas para que esta ordem chegasse ao batalhão, um dos dois (de preferência ambos) tinha absolutamente de chegar vivo.. Tinham-lhes dito no estado maior que evitassem qualquer encontro com o inimigo. Se fossem obrigados a isso, um deles deveria fazer fogo sobre ele e combater para o reter, enquanto o outro continuaria o caminho.

Depois voltariam a encontrar-se, se pudessem. Eram essas as ordens. De qualquer forma, era precio pôr o batalhão ao corrente do ataque geral no primeiro domingo de Fevereiro.

Ao escrever agora este relato, soube depois de passados tantos anos, que o estado maior, para prever todas as eventualidades, havia enviado naquele mesmo dia mais dois correios por caminho diferente, para que a ordem de ataque fosse sem falta transmitida ao batalhão do litoral. Mas nesse dia, nem Kio nem o companheiro sabiam que dois outros camaradas haviam sido encarregados da mesma missão que eles. Tinham portanto de fazer o impossível para chegar a bom porto.

...Tinham transposto a garganta de Shengjergj, as vertentes interiores de Policke e de Boçke.

Diante deles erguia-se a grande Qorre e depois vinha Çike, o cume de Çike.

Kio tinha dito: "Chegámos... o mar..." Com efeito, não lhes faltaria muito quando chegassem ao cimo de Çike. Em baixo das montanhas estendia-se o mar, mas antes de aí chegarem, depois do cume de Çike, era preciso ainda escalarem os desfiladeiros de Polikonje, de Mesimeri, de Bufi, de Vranishte, a Gurra de Vuno, a Xgafa, Mjegllosh e Brinje. Seria fatigante enumerá-los a todos...

Mas assim que Kio via o mar, aquela estrada escarpada parecia-lhe plana. Quando sentia o vento do mar, era como se visse outra vez a mãe, soprar como antigamente nas mãos geladas e julgava estar já junto da lareira. Sentia-se aquecer, mesmo quando o vento lhe fustigava a cara. Tudo à sua volta se vivificava e retomava força.

Para ele, depois de Çíke os outros desfiladeiros já não entravam em linha de conta, mas para o camarada aquele caminho parecia interminável.

- Chegámos! repetia ele, espantado. Não se atrevia a acreditar que aquele caminho estafante acabaria alguma vez, como todas as coisas nas montanhas.

Kio percebeu a alegria do camarada. Continuava a não compreender por que razão aquele rapaz se tinha oferecido para correio. Esta neve mete medo às feras, quanto mais às pessoas! dizia para consigo, esquecendo que ele próprio era um ser humano. Mas não se preocupava consigo. As montanhas eram o seu elemento. Ao outro, deviam parecer-lhe complicadas, pior ainda que para ele as letras do alfabeto.

Recordou o abecedário, pareceu-lhe ver duas manchas pretas a dançar em cima da folha branca do livro, na vertente da montanha coberta de neve.

O vento soprava. A neve que continuava a cair, tornara-se aderente e rangia-lhes debaixo dos pés. Dir-se-ia que caminhavam em cima de uma camada de arroz num casamento (1).

- Porque te ofereceste para correio? perguntou Kio ao mesmo tempo que se sentia aliviado por lhe ter enfim feito aquela pergunta, de tal modo que se pôs a andar

mais depressa. O outro seguia-o como uma criança obediente.

- Fiz mal?

- Não. Mas não havia labs no teu batalhão? Porquê tu, precisamente?

- Havia, mas ofereci-me antes deles. Não estás contente comigo?

- Nada disso! Mas as montanhas precisam de pessoas batidas nestas coisas. Por que razão te ofereceste primeiro, não havia outros?

- Foi porque insisti mais do que eles.

- Mas porquê? - admirou-se Kio - Se me pedissem para me oferecer para ir para a escola, não iria e confesso-te que foi o comissário quem me obrigou a assistir às aulas de leitura. Quero dizer que me deu ordem para o fazer, porque se não fosse isso, nunca teria aprendido aquelas malditas letras. Mas tu, como é possível que tenhas insistido a tal ponto, se não conheces as montanhas?

... Pareceu-lhe que o companheiro disse

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Nota (1) Costume que consiste em lançar punhados de arroz sobre o carro da noiva, quando esta sai da casa paterna.

 

qualquer coisa que ele não percebeu. Depois o outro calou-se.

- Quiseste talvez resgatar-te de algum erro que tenhas cometido?

- Não. Insisti porque era preciso - cortou o outro. Era evidente que não queria falar do assunto.

- Pode ser! E Kio arrependeu-se das suas palavras. No fundo, o camarada não se queixava, apesar de ser a primeira vez que percorria um caminho tão árduo na montanha.

- Não te zangues comigo se te ofendi, mas teria sido preferível que fosses daqui. Para mim é a mesma coisa. És um bom camarada, visto que te juntaste a nós na guerrilha e de resto é melhor sermos dois, porque este caminho é tão comprido no inverno que nos arriscamos a adormecer se vamos sozinhos.

O rapaz não ouviu todas as palavras do seu camarada por causa do vento que soprava com força. Ficou contente por Kio não lhe fazer mais perguntas. Há casos, como aquele para que se oferecera voluntariamente, em que não basta responder com um "sim" ou com um "não". São precisas longas explicações que, à parte o principal interessado, pouco importam aos outros.

...Prosseguiram a marcha em silêncio, de cabeça baixa, para que a neve os não cegasse. O vento era tão violento que nem ouviam já o ranger dos próprios passos.

- Revezamo-nos. Já estás há bastante tempo a abrir caminho.

- Sinto-me bem - respondeu Kio - revezamo-nos quando eu estiver cansado.

As espingardas e as cartucheiras que traziam a tiracolo pesavam-lhes no ombro. Kio trazia também a sua grande faca a que chamava canivete. Realmente era leve como uma pena, comparado com o machado e as serras que estava habituado a manejar. Além disso, trazia duas granadas penduradas no cinturão.

O outro tinha a espingarda, a cartucheira e três granadas. Nem um nem outro tinha pistola.

Enquanto caminhava, Kio sentia-se por vezes incomodo pelos bolsos do dólman. Num deles tinha um bocado de lápis, no outro duas fatias de pão de milho e um pedaço de papel amarrotado coberto de letras do alfabeto. O comissário tinha-lhe dito para continuar as aulas contra o analfabetismo no batalhão do litoral. Enquanto lá estivesse, não devia perder tempo, a fim de não esquecer o que havia aprendido no estado maior da brigada.

"Se for morto pelos alemães, pensava o comissário, encontrarão com certeza o bocado de papel nos bolsos e vão pensar que é código. As letras do nosso alfabeto vão criar bastantes preocupações aos especialistas deles". Esteve para dizer a Kio, mas mudou de ideia no último momento. Kio não sabia o que era código, apesar de ser o melhor correio da brigada. Os guerrilheiros não se serviam de códigos, nem sequer tinham especialistas do assunto. Quando muito, serviam-se de alguns sinais especiais, de truques, como dizia Kio, e da senha. Isso sabia ele.

As duas fatias de pão de milho tinham-lhe sido dadas pelos camaradas, na véspera da partida. Não tinham mais. Agora, depois de uma noite de marcha, deviam ter fome, mas ninguém se atrevia a pronunciar aquela palavra. Nos últimos dias, a fome fora para eles e para os camaradas o pior inimigo, pior ainda que os alemães que afinal se podiam matar visto que no fundo não passavam de seres humanos, enquanto que nem bombas nem balas podiam nada contra a fome.

- Queres trincar uma bucha? - perguntou Kio.

- E tu?

- Senta-te.

Embora não tivesse vontade de comer, percebeu que o outro tinha fome e sentou-se.

Ao meter a mão no bolso para tirar o bocado de pão seco, de milho, os dedos tocaram no papel amarrotado, cujas letras se tinham apagado com o roçar. Pensou que ainda tinha de se haver com elas. Outra guerrilheira se poria ao trabalho com ele. Riu-se ao pensar que ao menos não teria de se oferecer volutariamente para essa tarefa.

Mas aquele, por que razão se tinha oferecido para correio? Porquê?

Dividiu em dois o bocado de pão amarelo e deu o pedaço maior ao camarada.

- Come. Bom apetite!

- Ficaste com muito pouco para ti - exclamou o rapaz estendendo-íhe um bocado da magra ração.

- Vamos, come-o! O que tenho chega-me. Ainda tenho outro bocado que comeremos quando tivermos passado o cume de Çike.

- É assim que tencionas também dividir o outro? perguntou o jovem guerrilheiro.

- Vá lá, come! Não te preocupes com isso. Este chega-me perfeitamente.

- Não! - exclamou o outro, colocando o pedacinho de pão em cima do joelho de Kio. Que contraste entre o grande joelho negro e o bocadinho de pão amarelo! Dir-se-ia que uma flor amarela tinha nascido naquela imensidão branca. Uma trigonela, pensou Kio, e os seus membros distenderam-se como na Primavera, quando aquela planta perfuma o ar com o seu aroma.

Vendo que o camarada não queria aceitar o bocado de pão, pegou-lhe e meteu-o no bolso, junto da folha de papel amarrotado onde as letras se apagavam. O joelho negro ficou sem a flor. Os membros retesaram-se-lhe de novo.

- Comemo-lo mais tarde, disse Kio mastigando com dificuldade o pão gelado.

Estavam sentados na neve. O outro mudou de posição, talvez por causa do frio, ou porque não estivesse habituado a estar de pernas cruzadas. Quando as estendeu para as desentorpecer, Kio viu uma mancha negra no sítio onde haviam estado os pés. Qualquer coisa vermelha marcava um rasto na neve branca. Esfregou os olhos com a mão enorme e viu de novo aquela mancha vermelha. Sangue! pensou.

- Tira o sapato! ordenou. Quis certificar-se de que a mancha era realmente de sangue.

- Para quê? perguntou o rapaz.

- Tira-o!

Ele obedeceu. Kio constatou que as solas estavam esfarrapadas e os dedos a nu. Os sapatos tinham adquirido uma cor castanho avermelhada.

- És completamente louco! gritou Kio. Porque não disseste que andas com os sapatos sem solas?

- Foi agora que se devem ter gasto. Ainda estavam em bom estado quando partimos.

Podia ter-lhe respondido mais rudemente. Ter-lhe dito por exemplo "Que tens tu com isso? Porque estás a gritar comigo? Onde é que eu ia encontrar outros aqui, em plena montanha? E afinal que importância tem que tu saibas que os meus sapatos já não têm solas, visto que nada podes fazer por isso?"

- Porque mentes? Os teus sapatos estavam rasgados há que tempos. É estranho que eu não tenha dado por isso antes da partida. Puseste-te a caminho como quem vai dar um passeio!

- Nessa altura não estavam sujos de sangue, respondeu o outro calmamente.

No fundo isso não alterava a questão mesmo que lhe tivesse dito a verdade, porque o intendente não tinha sapatos de reserva para lhe dar. É verdade que poderia ter pedido uns sapatos a outro camarada mas naquele inverno rigoroso, todos precisavam dos seus.

- Tira também o outro, disse Kio em tom severo.

- O quê?

- Disse-te que tirasses o outro sapato!

- Que queres fazer com ele?

- Vá despacha-te! ordenou de novo Kio.

E o rapaz tirou-os. Kio fez o mesmo. Mediu o comprimento e verificou que os seus eram maiores. Satisfeito, disse-lhe:

- Calça os meus! E entregou-lhe os seus próprios sapatos que ainda estavam bons e não deixavam entrar água.

- E tu, que vai calçar? exclamou o outro, vendo que os seus sapatos eram mais pequenos que os de Kio.

- Posso passar sem eles.

- Não. Recuso.

- Digo-te que os calces!

- Não, nada a fazer. Por que razão hás-de andar tu de pés descalços, não és também um ser humano?

- Sou mas estou habituado. Calça-os! Ordenou ele severamente. Deixa-te de protestar como uma rapariga pequena.

- Já disse que não! respondeu o outro furioso, provavelmente por causa da comparação.

- Vá lá meu filho, faz o que te digo. - insistiu Kio em tom mais suave como se se dirigisse a um irmão mais novo - Posso muito bem passar sem eles - e olhou-o nos olhos. O outro susteve o olhar. Kio sentiu-se aliviado. Havia qualquer coisa de infantil nos olhos do companheiro que lhe indicava que ele acabaria por ceder.

Como comandante da missão, podia ordenar-lho, se quisesse, mas naquele caso as ordens não faziam sentido. O outro era um bom rapaz que além disso, tinha muito amor próprio. Kio perguntava a si próprio como ele tinha podido andar com os pés descalços. Há quantas horas estaria ele naquele estado? Quanto a si, não se preocupava.

Não mentira ao dizer que estava habituado desde a idade de quinze anos a andar descalço percorrendo as montanhas. Mas não sobre a neve que corta a pele e faz correr sangue...

- Vá lá, sê razoável, calça-os, insistiu Kio. Não te preocupes comigo.

O outro, de cabeça baixa, pegou neles. Tinha nos olhos qualquer coisa de estranho. Kio teve a impressão de que eram lágrimas, mas também podia ser um floco de neve fundido correndo-lhe sobre o bigode. Kio virou a cara, o rapaz calçou os sapatos que lhe estavam grandes mas aqueciam os pés. De repente, tirou-os, parecia que se tinha lembrado de qualquer coisa. Tirou também as meias de lã, rotas no calcanhar e nos dedos.

- Que estás tu a fazer? perguntou Kio aborrecido com o que estava a ver.

- Calça-as! - disse o estudante estendendo-lhas. As meias tinham ainda os belos desenhos de antigamente. Deviam ter sido tricotadas pelas mãos de uma mãe carinhosa...

Kio não pegou nas peúgas que antigamente deviam ter sido bonitas. Compreendera a intenção do companheiro no instante em que o viu tirá-las. Não queria aceitar a troca, convencido de que o outro precisava dos sapatos mas também das meias, enquanto que ele podia muito bem passar sem elas.

- Calça-as! Com os teus sapatos posso caminhar até Elbasan se for preciso, enquanto que tu não podes andar só com um par de peúgas.

As meias, suspensas dos dedos do rapaz, cheiravam mal, mas Kio estava habituado ao mesmo cheiro das suas...

- Não, disse Kio secamente. Não há razão nenhuma...

- Calça-as! E Kio viu de novo nos olhos do companheiro qualquer coisa a brilhar, qualquer coisa estranha que não parecia já um floco de neve. Pestanejou nervoso, e virou a cabeça. Sentiu também os olhos a arder com qualquer coisa esquisita que não era certamente um floco de neve...

- Está bem! -balbuciou, e pegou nas meias que o outro segurava. Calçou-as. Estavam-lhe pequenas mas ajustavam-se bem aos pés.

- Vamos embora! disse o outro.

- Vamos!

E retomaram o caminho, Kio fechava a marcha.

 

Tinha parado de nevar, mas de repente recomeçou outra vez, o que é frequente nas montanhas. A subida era cada vez mais difícil à medida que se aproximavam de Çike.

O vento gelado entrava-lhes pela boca, pelo nariz, até aos pulmões, sufocando-os. Kio respirava pelo nariz. O seu companheiro não conseguia encher os pulmões de ar. Caminhava de boca aberta. Arquejava. Tinha desabotoado a camisa e o vento frio fustigava-lhe o tronco desprovido de pelos. Parecia que respirava até com os poros do peito.

Caminhavam em silêncio. Tinham certamente coisas a dizer um ao outro, mas o vento que soprava em rajadas, levava-lhes as palavras para longe e não tinham forças para gritar de modo a fazerem-se ouvir. A subida tinha-os esgotado, mas principalmente ao jovem guerrilheiro de bigode bem cuidado, que parecia falso.

Kio tinha voltado a colocar-se à frente. Pouco antes, o outro distinguia as pegadas do companheiro e tinha a impressão de que não eram pegadas humanas, mas qualquer coisa desconhecida, talvez as pegadas de um urso, que ele nunca vira na vida.

Os pés de Kio ainda não sangravam. O outro baixava a cabeça de vez em quando para ver se a neve estava suja de sangue. Os remorsos perseguiam-no. Porque tinha aceitado (embora quase fosse uma ordem) calçar os sapatos do camarada? Tinha de lhos devolver quando os pés dele sangrassem. Nessa ocasião Kio já não podia recusar, estariam os dois no mesmo estado. Mas os passos daquele guerrilheiro endurecido deixavam sempre pegadas brancas sobre a neve. Não havia cravos vermelhos. Ele próprio tivera a impressão de deixar cravos vermelhos atrás de si, quando os pés lhe tinham começado a sangrar. "Que atirava para o chão a cada passo a rapariga do conto dos irmãos Grimm para não se perder: pedrinhas ou os grãos de trigo? Se fosse trigo, os pássaros tê-lo-iam comido. Deviam ter sido pedrinhas portanto. Enquanto que eu atiro cravos vermelhos. Nada os pode comer. Só a neve os absorve".

Mas Kio não atirava cravos. Há poucos instantes, quando ainda era dia, o estudante nada notara nas pegadas do camarada.

Mas agora tinha caído a noite, a segunda noite daquela longa viagem. Já se não podiam ver, nem cravos vermelhos... nem gotas de sangue.

- Mais um pouco de coragem. Estamos a aproximar-nos dos contrafortes - gritou Kio, interrompendo assim os pensamentos do jovem guerrilheiro. - Encontraremos lá as árvores de fruto abandonadas pelos pastores.

Não disse mais nada e o outro ouviu vagamente as palavras contrafortes, árvores de fruto, pastores. Que queria Kio dizer com isso? As cabanas dos pastores estão desertas, para quê ir lá? Os nossos camaradas estão nas grutas à beira mar, não temos nada que fazer nestes sítios. Aproximou-se do companheiro para o ouvir melhor.

O vento abrandara um pouco, mas soprava ainda com força bastante para que as palavras voassem como pássaros assustados com um tiro de espingarda.

- Esta noite não poderemos continuar o caminho. Não se vêem as estrelas - disse Kio.

- Nem a lua! observou o estudante.

- Nem a lua, repetiu Kio. O que significa que vai nevar e que haverá tempestade.

- Há perigo de nos perdermos? - perguntou o rapaz com simplicidade, como se fosse normal enganar-se no caminho naquele género de viagem.

- Não. Conheço bem o caminho e oriento-me mesmo no escuro. Mas poderíamos ser apanhados pela tempestade e ser devorados pelos lobos.

- Os lobos? - perguntou o outro espantado mas nada assustado. Nunca os tinha visto.

- Os lobos. - gritou Kio para que o camarada o ouvisse bem.

- Claro, os lobos gostam de nevoeiro (1)! repetiu instintivamente o rapaz pensando que desta vez o velho ditado albanês podia ser interpretado de diversas maneiras.

- Sim, nevoeiro, especialmente numa noite como esta. A fome tornou-os ainda mais ferozes. Faz um frio de rachar pedra. O Inverno este ano... - as outras palavras foram levadas pelo vento.

Tinham atingido o planalto que se estendia no alto da montanha. O cume de Çike ficara já para trás mas o mar era invisível naquela noite escura. Para lá do pico eram os contrafortes onde se encontravam os redis abandonados pelos pastores, expulsos pela guerra. Os melhores tinham-se juntado aos guerrilheiros. Os outros, tendo descido

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Nota (1) Significa pescar em águas turvas.

 

para as aldeias, esperavam o fim das hostilidades... O gado fora presa do primeiro que apareceu.

...Estava outra vez a nevar. Kio levava oito horas a percorrer aquele bocado do caminho que costumava percorrer em duas horas com bom tempo. Precisava de quatro dias e quatro noites para realizar a sua tarefa. Nevava, mas sabia que dentro de pouco tempo iam descansar nas cabanas desertas dos pastores, que se poderiam aquecer acendendo o lume com bosta de mula.

Os pastores apanhavam bosta no verão e secavam-na para o inverno porque, naquelas paragens, não havia nem florestas nem bosques. Mais abaixo sim, mas naqueles contrafortes só os rochedos podiam dar alguma sombra. Kio bem o sabia... Evocava as noites de verão, em que ele e o pai abatiam árvores na vertente daquela mesma montanha. Para descansarem subiam lá acima, àqueles contrafortes onde os pastores lhes ofereciam soro de leite que valia todo o ouro do mundo. Contudo, naqueles picos nus, crescia uma erva alta que engordava as ovelhas a ponto de não as poderem levantar do chão. Os séculos que haviam decorrido depois disso...

- Oh! gritou o estudante com voz assustada.

Kio interrompeu as recordações e enterrou-as apressadamente no subconsciente. Por um instante julgou que o camarada tinha escorregado na neve, mas não teve tempo de pensar noutra coisa. Uma massa esfomeada e feroz precipitou-se-lhe para as costas como um relâmpago e agarrou-o pelo pescoço. Sentiu, compreendeu num abrir e fechar de olhos que alguma coisa lhe atingira o instinto de conservação, que a massa era um lobo. Baixou a cabeça e deixou-se cair com a fera.

O animal não pesava muito, como um cãozinho quase.Era provavelmente por isso que fora tão lesto. Estava esfomeado. Kio esforçou-se por tirar a faca compreendendo, ao rolar sobre a neve com o lobo, que o companheiro não devia estar em melhor situação. Tinham sido atacados de surpresa.

- Dispara!-ordenou Kio. Mas logo compreendeu que a ordem não fazia sentido pois que o estudante não tinha pistola. Não se podia disparar com a espingarda, as feras e os homens não se distinguiam uns dos outros. Por outro lado era perigoso utilizar as granadas a deflagração arriscava-se a matá-los também. O rapaz gritava de dor. Esforçava-se por afastar a loba aos socos, enquanto Kio, debatendo-se com o macho não podia socorrer o camarada antes de matar o monstro que o atacara.

- Agarra-a pelas orelhas como aos cães!- ordenou de novo Kio.

Mas o outro já não ouvia as ordens. Kio, Com os dedos enterrados no pescoço do animal, estava prestes a estrangulá-lo. O lobo uivou, aterrorizando as crias e também as montanhas. Depois teve um estertor e não voltou a mexer-se. Ouviam-se apenas os uivos da loba que travava com o jovem guerrilheiro uma luta de morte e os gemidos deste último. Kio sentiu nos braços o peso inerte do lobo, descerrou os dedos e o animal, fechando os olhos vítreos, quase artificiais, caiu a seus pés. Os lobinhos deitaram-se em cima do ventre do pai, sem compreenderem que já não era deste mundo.

Kio correu em socorro do camarada. Tirou a faca da bainha e golpeou várias vezes a nuca da loba. O monstro deixou de uivar e caiu instantaneamente morto. No silêncio da montanha ouviam-se agora apenas os gemidos do jovem guerrilheiro, os gritos dos lobinhos e as pragas de Kio. A neve continuava a cair, indiferente ao que se passava.

Kio ergueu o camarada e viu que a loba lhe havia enterrado as presas profundamente, até ao osso. "Devia estar terrivelmente esfomeada!" Tinha lutado como louca para se alimentar, mas principalmente para dar de comer aos filhos. Era por isso que as feridas do companheiro eram mais profundas que as suas.

Tirou a camisa e cobriu o camarada. Tremeria ele de frio ou de dor? Não podia dizê-lo. O estudante tinha uma cor terrosa, como o bocado de pão de milho que ele tinha no bolso. Sentou-se, pegou na espingarda e colocou-a ao lado da sua. Depois, agarrando o camarada pelos sovacos, pô-lo às costas e pôs-se a caminho. Os lobinhos gritavam. Um deles seguiu-o ainda durante bastante tempo. Deve estar enraivecido, pensava Kio.

- Aguenta-te meu filho! disse Kio dirigindo-se ao companheiro.

O outro balbuciou algumas palavras, gemendo.

Kio avançava dobrado em dois. Só pensava numa coisa: chegar o mais depressa possível às cabanas, acender o lume com bosta de mula, aquecer o ferido e tratar-lhe das feridas de qualquer maneira. De qualquer modo, era preciso que ele se recompusesse o mais depressa possível. Não lhe passava pela cabeça que o companheiro podia morrer durante o caminho, talvez mesmo às suas costas. Não, isso era impossível. Para ele só se podia morrer combatendo com os alemães.

Continuava a caminhar com o fardo às costas. O ferimento começava a doer-lhe. O lobo tinha-lhe mordido no ante-braço esquerdo e agora, ao transportar o camarada, o braço esquerdo entorpecia, como se estivesse gelado.

- Aguenta mais um bocado, meu filho! repetiu Kio. Desta vez teve a impressão de que não se dirigia só ao camarada, mas também a si próprio.

 

Kio estava sentado em frente da bosta que estava quase a apagar-se. A cabana estava deserta. As quatro paredes enegrecidas pela fuligem e os pés brancos do camarada que se destacavam na obscuridade. Os sapatos eram demasiado grandes para aqueles pés sem vida.

"Que disse ele antes de morrer? Diz adeus a... A quem devo eu dizer adeus? À mãe? Aos camaradas? À irmã? Ao irmão? À mulher? A quem?"

Acariciava os cabelos do camarada inanimado, que nada respondia. "A quem devo dizer adeus?"

Durante mais de duas horas Kio enfrentara a tempestade naquela noite sem estrelas nem lua, transportando o seu fardo, até que chegara por fim à cabana deserta. Imediatamente acendera o lume para aquecer o outro que tinha de vez em quando tremores espasmódicos. E foi precisamente quando activava o fogo, que o outro morreu. Tinha perdido muito sangue, as forças abandonaram-no. O caminho fatigante, a fome, o sangue perdido, as dores das feridas, tudo isso o enfraquecera. "Era normal que morresse", disse Kio para consigo.

"Sim, era normal. Qualquer outro teria morrido no seu lugar, mas era tão novo." Agora, o bigode cuidado não lhe escondia já a idade. "Qualquer outro teria morrido, mas ele era demasiado novo!"

A aurora surgia, o vento deixara de soprar. A luz do dia eclipsava a luz das brasas. Kio tinha calor dentro da cabana e o camarada de olhos fechados, dormia o sono eterno. Já não tinha nem calor nem frio, já não via o dia e a noite, para ele tudo era igual, sem fim. Mas Kio tinha de parir. Os camaradas esperavam-no. O outro não podia partir. "Quem o esperava? A quem devo dizer adeus?"

Por momentos pensou deixá-lo ali, junto das brasas que se apagavam. "Ao menos que esteja agora quente!" Mas depois pensou melhor. O corpo decompõe-se rapidamente se não for enterrado. "É melhor enterrá-lo debaixo da neve. Quando os camaradas vierem, encontrarão o seu corpo intacto e enterrá-lo-ão com todas as honras, como os bravos..." Saiu. A luz, ainda fraca, não cegava a vista reflectindo-se na neve. Pegou na faca e começou a escavar a neve gelada. Era difícil. Os pedaços de gelo

saltavam como lascas de pedra. Fechava os olhos instintivamente de cada vez que golpeava, repetindo como em ladainha: "A quem devo dizer adeus? Quantas vezes já golpeei a neve gelada? Quantas vezes lavei a faca suja de sangue dos lobos com esta neve gelada? E depois: "A quem devo dizer adeus?".

A cova estava pronta. Ele estava cansado. Teve vontade de fumar um cigarro, mas não fumava. É verdade que, em criança, o pai lhe dava o cigarro para o acender no lume, mas nada mais. Nunca se habituara a fumar. De onde lhe vinha agora aquele desejo? Não tinha cigarros, nem tão pouco o outro que ia ser enterrado naquela cova, entre o gelo e a neve. Esse também não fumava. Pelo menos não fumara durante o caminho. Talvez fumasse e não tivesse cigarros.

Kio foi buscar o camarada e deítou-o naquela cama branca, sobre o gelo. Cobriu-o de neve e ficou ali um momento, de cabeça baixa, a cara banhada em lágrimas. A neve recomeçou a cair. No inverno a montanha é traidora, o tempo variável. Dentro em pouco a neve nivelaria a cova. Foi por isso que ele a cavou em frente da porta da cabana, a fim de a reencontrar facilmente quando voltasse. Agora a neve caía em grandes flocos, como folhas de plátano, e Kio deixou-se de novo absorver pelos seus pensamentos: "Porque é que este rapaz foi o primeiro a oferecer-se voluntariamente? Não conhecia a montanha, nem os lobos, nem... O quê? Quem? A quem devo dizer

adeus?"

E Kio deixou correr as lágrimas sobre o túmulo do camarada. A neve fundia-se naqueles locais como uma vela acesa. Depois levantou-se e partiu. Partiu à conquista de outras montanhas, ao encontro dos camaradas... Ao longe estendia-se o mar. Mais perto, os cabeços cobertos de neve pareciam cavalos fatigados por terem transportado um cortejo nupcial...

 

Caminhava agora sozinho. Tinha apenas uma preocupação, não cair sobre os alemães. Se se deixasse matar sem encontrar os camaradas, quem os poria ao corrente do ataque geral no primeiro domingo de Fevereiro?

Sentia a cabeça pesada, o espírito estava absorto por pensamentos estranhos. Mesmo fisicamente sentia-se pesado. O braço ferido, ligado com a manga da camisa, pendia como carne morta. Aos ombros carregava as duas espingardas e o cinturão, além das suas granadas, estava ainda carregado com as do camarada que se oferecera voluntariamente como correio...

"Tenho de evitar os alemães a todo o custo", pensava ele. Esforçava-se por conservar os olhos abertos e, com as pupilas dilatadas pela brancura da neve, parecia um cego. Temia a fadiga dos olhos, porque de vez em quando a vista turvava-se-lhe, como a imagem dos homens, das árvores, das ovelhas, dos cavalos, quando as crianças, atiram uma pedra à água. Por isso fechava os olhos de vez em quando. Descia para o mar... para esse belo mar diante do qual ninguém fecha os olhos.

Antes de lá chegar deveria passar pelas aldeias do litoral, pela sua aldeia natal, infestada de alemães. Sabia que estes trepavam por vezes a montanha durante o dia (nunca de noite). Mas não subiam tão alto, para que ele fechasse os olhos com medo de os encontrar. Não, não, na sua frente estendia-se o mar sem fim.

...Ah, como gostaria de deslizar pela neve, de olhos fechados, até aos escolhos da costa onde já não há neve. Ah, se...! Os olhos inchados e avermelhados pareciam as azeitonas que caem no chão no mês de Março. Ao descer a encosta, tomava por homens os raros troncos de larício. As árvores isoladas pareciam-lhe os camaradas, a guarda avançada dos guerrilheiros, pois que só eles poderiam subir tão alto. Geralmente os alemães não chegavam até ali. Isso acontecia raramente, muito raramente... De vez em quando encostava a cabeça ao tronco de uma daquelas árvores, tendo a sensação de pousar a cabeça sobre os joelhos dum camarada e quase adormecia. Debaixo da escassa folhagem não nevava, mas para ele o sono tornara-se um inimigo entre tantos outros.

...Aproximava-se da beira de Xgafa, onde se encontravam as nascentes. Antes da guerra, as pessoas que no Verão subiam a Gurre, aos contrafortes, paravam sempre aí.

Era aí que Kio queria descansar um bocadinho, só um bocadinho... Xgafa está abrigada dos ventos. De um lado eleva-se a pique o flanco da montanha e em baixo a beira da ravina (este flanco detém os ventos da montanha). Do outro lado estão as nascentes e o carreiro da montanha que é exposto aos ventos do mar.

Kio estava prestes a chegar às nascentes, cuja água parece tão quente no inverno. Pelo menos é a impressão que se tem, comparada com a neve. Não tinha sede, mas queria aquecer as mãos na água da nascente. Em toda a volta daquela pequena ilha nada mais se via além de neve e gelo. As grutas junto de Xgafa estavam decoradas com uma quantidade de estalactites. A água, correndo, fundia a neve. Kio pensava no camarada que tinha deixado lá no cimo, nos contrafortes. "A quem devo dizer adeus?

À mãe? À irmã? Aos camaradas? Ao irmão? À mulher? A quem?..."

- Alto! - ouviu ele dizer no silêncio das montanhas.

Quanto tempo teria caminhado de olhos fechados até aquela palavra feroz, estranha para ele, lhe vir soar aos ouvidos?

Kio abriu os olhos e viu a uma centena de metros algumas sombras negras... "Como as árvores se multiplicaram neste inverno! Geralmente há poucas..."

- Alto!

Não eram sombras de árvores. Arregalou os olhos. Desta vez teve a certeza. Aquelas sombras não eram larícios nem freixos, mas homens negros, vestidos de negro. Falavam uma língua completamente diferente das pessoas da região, daquelas montanhas. Não, não eram camaradas, não eram guerrilheiros. A palavra que repetiam em intervalos regulares provava-o bem.

- Alto!

Compreendeu pelas balas que lhe voaram sobre a cabeça que eram alemães. Estavam ali, a duzentos passos dele, aqueles precisamente que hoje não queria encontrar.

Pouco importava se desse com um lobo com um urso, mas não com aqueles, com aqueles homens negros (porque é que eram negros?) que qualquer outro dia de boa vontade lhe serviriam de alvo, mas hoje não. Se morresse, quem informaria o batalhão que o ataque geral começaria no primeiro domingo de Fevereiro? Aquele que jazia lá no cimo, entre o gelo e a neve? Tinha portanto de escapar a todo o custo.

As balas crivaram a neve à sua frente.

Kio não teve tempo de reflectir mais. Correu para os alemães. Estes não contavam com isso. Para onde correria ele assim? - Não disparem! gritou um deles - A fome enlouqueceu-o. E deixaram-no correr, tão depressa como podia correr um ferido, que ainda por cima estava descalço.

O pássaro ia ser apanhado na armadilha, mas Kio não pensava assim. Durante a corrida, despoletou uma granada e lançou-a sobre eles. Os alemães atiraram-se ao chão.

Correndo sempre, chegou à beira do abismo e deixou-se rolar até ao fundo da vertente onde tantas mulheres, carregadas de molhos de lenha, se haviam já perdido de corpo e alma.

Os alemães levantaram-se. Era uma patrulha de reconhecimento. Dois deles ficaram deitados. Não se admiraram ao verem uma avalanche destacar-se da beira do abismo.

Na queda, Kio enrolara-se na massa de neve; agora estava fora de perigo, as balas já o não podiam atingir.

- É completamente louco, observou um deles.

- Nem mesmo os lobos o encontrarão lá em baixo, disse outro.

- Foi para não ser feito prisioneiro! - pensou o primeiro.

- Ai!, gritou um dos que tinham ficado deitados.

Este gemido fez lembrar aos outros que há instantes um ser humano, um guerrilheiro, tinha voado sobre eles, e não uma sombra... Tudo se passara tão depressa que julgavam ter sonhado...

Da beira do precipício erguiam-se agora vapores que vinham do fundo, de onde se devia encontrar o corpo de Kio. Contudo, os alemães não perceberam se era a neve,

a água da nascente ou qualquer outra coisa que os causava. Parecia-lhes que o que tinha voado por cima deles era um fenómeno mágico, fantástico, enorme, transformado em vapores que se elevavam para o céu...

Kio rolara até ao fundo do abismo, a quinhentos ou setecentos metros de profundidade. Se fosse no verão, não teriam efectivamente restado mais que vapores. "Estaria bem arranjado!" - pensava ele vendo que estava são e salvo. Mas estamos no inverno. A neve que o torturara durante três dias e três noites fora a sua tábua de salvação, protegera-o na queda dos rochedos ponteagudos da encosta. Caíra no fundo como sobre um colchão.

Depressa se recompôs das suas emoções, contudo teve a impressão de que se encontrava nas entranhas da terra. Conseguiria sair dali?

Sentia-se leve como uma pena. As espingardas perderam-se na queda. Quanto às granadas, quem sabe onde elas rolavam, no fundo da ravina. Consigo tinha apenas as migalhas do pão de milho, os cartuchos e o papel amarrotado garatujado com as letras do alfabeto albanês, onde se liam estas palavras:

 

         "MORTE AO FASCISMO,

           LIBERDADE PARAO POVO",

 

Aquelas palavras quase ilegíveis, mas que ele pronunciava tão bem. Foram as primeiras palavras que lhe havia ensinado a escrever a jovem professora na escola da montanha.

Sentia-se leve, nunca se sentira tão leve, mas tinha uma dor, como uma ponta metálica espetada no cóccix. "Terei uma fractura?" Tentou levantar-se, não conseguiu.

Tentou uma segunda vez e caiu sobre a neve. Penosamente, arrastou-se de gatas até à extremidade do precipício, onde começava o leito da torrente de Ngjipes, a torrente do diabo, como lhe chamavam.

As pessoas iam ali por vezes no Verão, mas desciam pela parte superior da cascata que desaguava na torrente, nunca pela vertente por onde Kio rolara como uma bola. Duas mulheres haviam morrido ali, uma delas dizia-se que tinha sido empurrada pelo marido que queria casar com outra. A segunda escorregara e perdera o equilíbrio. O fundo daquele abismo era um verdadeiro túmulo. Kio foi provavelmente o primeiro e talvez o último a sair dali vivo.

...Estava no limite das suas forças. Caminhava de gatas, como as crianças com menos de um ano. Quem sabe quando atingiria a parte da torrente cujo leito estava coberto de seixos? Aí já não havia perigo de desmoronamento. As primeiras casas da aldeia começavam mesmo ao lado.

E avançava penosamente, quase de rastos. As pedras e a neve gelada ensaguentavam-lhe os joelhos e a palma das mãos. Pensava: "A quem devo dizer adeus? A todos. Sim, é isso mesmo, direi adeus a todos..."

Arrastou-se assim um grande bocado, ferindo os joelhos e as mãos. A cabeça começou a andar-lhe à roda. "É para me divertir que ando de gatas como as crianças pequenas?"

Estava frio. O suor perlava-lhe as sobrancelhas, mas não o enxugava. Corria sobre a neve, tal como grossas lágrimas quentes. "Tanto uma coisa como a outra são salgadas, dizia consigo. Talvez porque têm a mesma origem no sofrimento, na dor". O vento cegava-lhe os olhos, que lacrimejavam. Torrentes de suor vinham-se misturar às lágrimas.

Os cotovelos flectiam. Já não o aguentavam. As palmas das mãos sangravam abundantemente. Tinha a impressão de que marcava a neve de vermelho, como antigamente marcava as árvores que iriam ser abatidas. Mas aquelas marcas eram rapidamente cobertas por novos flocos. Prosseguiu a marcha. Estava extenuado, tinha sono. Se adormecesse, arriscava-se a ficar coberto de neve, de morte... Mas os camaradas tinham de ser prevenidos que no primeiro domingo de Fevereiro... Ah, se não houvesse camaradas!... Poderia dormir toda a vida ali, em cima daquele tapete branco, tão macio...

Sentiu que as forças o abandonavam. Julgava--se pequenino, muito pequenino, fraco como as crianças. Era por isso que as imitava. Exausto, tirou do bolso o papel amarrotado, que sujou com manchas de sangue, e começou a garatujar com o dedo mínimo ensaguentado, como o pai quando punha a assinatura ao fim de uma carta. «Camaradas! No primeiro domingo de Fevereiro... deve começar...» «Ah, se o meu dedo fosse delgado como os das crianças!» e não chegou a escrever o que devia começar no primeiro domingo de Fevereiro. Os olhos velaram-se-lhe. Deixou-se cair sobre a folha de papel e adormeceu. Pouco depois, a neve começou a cobri-lo.

As mulheres que iam apanhar raminhos à montanha encontraram-no estendido na neve. Tiveram medo, pensando que estava gelado. Mas as mãos continuavam a sangrar e as meias com desenhos brancos e amarelos estavam todas vermelhas.

Uma das mulheres gritou:

- Está vivo!

- Que estás tu a dizer, não vês que está morto?

- Está vivo, o infeliz. As mãos e os pés estão ainda a sangrar.

- Deve estar aqui há pouco tempo!

Estas mulheres, a quem a vida nas montanhas ensinara muitas coisas, sabiam que quando alguém sangra, não está gelado, está ainda vivo. Mas quando o sangue estanca, quando já não circula nas veias, então está tudo acabado.

Não se atreveram a levá-lo para a aldeia que estava infestada de alemães e de traidores de Xhafer Deva e instalaram-no numa das numerosas cavernas tão características que se encontram naquelas paragens.

O papel com as letras do alfabeto albanês e a palavra de ordem "MORTE AO FASCISMO, LIBERDADE PARA O POVO" e com a mensagem escrita em grandes letras vermelhas "Camaradas, no primeiro domingo de Fevereiro... deve começar..." tinha ficado sobre a neve.

Certificando-se de que ele estava vivo, apressaram-se a acender o lume e quiseram dar-lhe um bocado do pão que traziam, mas ele não conseguia nem falar nem descerrar os dentes que pareciam fechados para sempre. Não traziam tigela para lhe fazerem um caldo e, à falta de melhor, fundiram neve junto do lume, e deixaram cair água gota a gota sobre os lábios e os dentes cerrados do moribundo. Era com certeza o que deviam ter feito as mulheres pré-históricas que viveram naquelas grutas, para tratarem dos maridos, dos filhos ou dos irmãos doentes.

- É preciso aquecê-lo, disse a primeira. E atiçaram o lume.

- Deve ter sofrido um martírio, exclamou a segunda. Sem hesitarem, rasgaram os aventais e as camisas para ligar as feridas sangrentas.

- Quando a mãe dele o vir, coitada! - exclamou uma terceira.

E taparam-no com as roupas delas.

- Só tem a pele e o osso, o infeliz! - observou uma quarta.

E amaldiçoaram-se por não terem uma tigela para lhe prepararem qualquer coisa quente.

- Quem sabe aquilo por que passou, para ficar neste estado! - constatou a quinta mulher.

E choraram as infelicidades dele e as suas próprias.

- A guerra, a guerra sem descanso contra aqueles malandros, é a preocupação de todos nós. - disse a primeira.

Faziam o impossível para o ajudar. Não o reconheciam, apesar de ele ser da mesma aldeia. Podiam até ser irmãs dele, mas ele estava com-pletamente irreconhecível!

Depois, quatro delas foram-se embora. Ficou apenas a primeira, a mais forte, a mais corajosa, a que tinha sofrido mais, a que tinha dois filhos guerrilheiros.

- Bebe, meu filho, bebe! - dizia ela dando-lhe a neve fundida que lhe corria entre os dedos cobertos de calos e de rugas.

As outras correram a prevenir os maridos, os homens da aldeia. Era preciso salvar o guerrilheiro das montanhas.

 

O guerrilheiro recordou os sentidos já a noite ia avançada. As mulheres tinham deixado na gruta a lenha, os troncos e os raminhos. A mãe dos dois guerrilheiros tinha portanto com que manter o lume aceso.

A caverna estava agora demasiado aquecida. Kio voltou a si.

- Onde estão os camaradas? - perguntou.

- Já aí vêm, meu filho, respondeu a mulher.

- Se não os vir...

- Vais vê-los, meu filho.

- Diz-lhes que no primeiro domingo de Fevereiro deve começar o assalto geral.

Pronunciou estas palavras destacando as sílabas, como quando lia o alfabeto na escola dos guerrilheiros. Depois respirou profundamente e voltou a adormecer.

- Libertou-se do peso que o oprimia! pensou a mulher.

Cabeceando por sua vez à beira do doente, repetia as suas palavras: "No primeiro domingo de Fevereiro deve começar a guerra... Meu deus, faz com que aquela maldita raça seja exterminada de uma vez para sempre!"

Na manhã seguinte as mulheres regressaram trazendo consigo um grupo de guerrilheiros. Ele estava acordado e, reconhecendo os camaradas, quis-se levantar. Mas, ao pousar as mãos sobre a pedra fria, sentiu uma queimadura, como se as tivesse posto sobre brasas.

Reconheceu os camaradas, mas eles não o reconheceram. Estava de tal modo irreconhecível que até à mãe teria parecido um estranho.

Destacando as palavras, como se estivesse a ler um livro difícil, disse:

- O ataque deve começar no primeiro domingo de Fevereiro.

- Muito bem! respondeu o comissário.- Obrigado, camarada. Agora descansa.

- Quem és tu? perguntou o comandante que julgou reconhecer-lhe a voz.

- Quem sou eu? - Nem mesmo o seu camarada, com quem havia começado aquela justa guerra, o reconhecia. - Quem sou eu? Ninguém reconhecia o correio da brigada, esquecido por todos. Quem sou eu? Compreendeu então que o seu calvário o tinha desfigurado ao ponto de o tornar irreconhecível. Fazia a pergunta sem perceber que falava consigo próprio. Julgava dirigir-se aos camaradas.

Todos esperavam que ele dissesse quem era.

- Sou eu, Kio. o correio da brigada. E voltou a fechar os olhos, deixando de ver os camaradas, as mulheres, os homens da aldeia. A gruta pareceu-lhe enorme, infinita.

Depois pensou no outro, no que tinha deixado nos gelos dos contrafortes e, fazendo um último esforço, disse com voz entrecortada:

- O meu companheiro, o da escola normal, ficou nos redis... os lobos...

- Quem, Sandri? perguntou bruscamente uma guerrilheira. Era uma rapariga muito nova que, sendo instruída, tinha sido incorporada na secção de propaganda do batalhão.

Mas Kio não respondeu, já não ouviu a pergunta. De outro modo, teria finalmente compreendido, naquela caverna, a quem devia dizer adeus pelo camarada.

A jovem guerrilheira esperava, impacientemente.

Kio não respondeu, não ouvira nada.

Dormia.

Os camaradas velaram à sua cabeceira. Depois transportaram-no numa padiola.

 

                   O Guarda do Tesouro

Estava frio. Os filhos mais velhos, as duas meninas e o rapaz, dormiam. Na lareira o fogo estava quase a apagar-se, não havia mais lenha. A mulher soprava de vez em quando o pequeno braseiro para aquecer, pensava ela, o marido e os filhos. Parecia uma daquelas mulheres que noutros tempos se consagravam ao fogo e o mantinham aceso, quando ainda não tinham sido inventados meios mais eficazes para esse fim.

Quando soprava para o braseiro, a cinza subia no ar em nuvens de pó que a faziam espirrar. O marido percebia então o que ela estava a fazer, virava instintivamente a cabeça e, quando as brasas brilhavam, via-lhe por vezes a cabeça, de outras vezes o seio nu.

Dava de mamar ao filho mas não tinha leite. O bebé chorava com a fome. Na esperança de o calar e de lhe enganar a fome, voltava a mãe à sua tarefa e, quando soprava o lume e a escuridão do quarto diminuía, esqueciam-se por momentos de que a cidade estava sem electricidade. Três dias antes, os alemães tinham feito explodir a central eléctrica. Ao partirem, tinham querido deixar uma recordação aos habitantes, como se as outras não chegassem...

A cidade fora libertada há dois dias mas ainda não estava assegurado o abastecimento de água, de luz e de lenha. Tinham aberto cantinas populares e era aí que ia comer toda a família.

"Que magreza!" dizia o marido para si próprio. Pensaria na criança, que nem com o seio seco da mãe nem com a canção de embalar que lhe cantava parava de chorar, ou na mulher que tinha ficado literalmente com pele e osso? A criança chorava, balbuciando qualquer coisa, uma espécie de canção de embalar à sua maneira...

- Deixa lá! Ele adormece quando se cansar, disse o homem.

- Não tenho nem pinga de leite, respondeu ela.

- Bem te disse que comesses também a minha sopa mas não fizeste caso, foste dá-la às meninas. E agora, o que é que lhe vais dar? Ele precisa do peito.

- E tu, não precisas de comer também, como toda a gente?

- Isso é diferente! Eu posso passar sem sopa, mas ele não. Amanhã és tu que a comes, estás a ouvir? - disse ele irritado.

Ela não respondeu. O marido teve medo que ela tivesse adormecido, mas a criança recomeçou a choramingar e ele percebeu que a mulher estava acordada. Não conseguia dormir quando o bebé chorava.

Ela devia estar com certeza encostada à parede. Ele também estava, com os olhos fixos através da escuridão, num determinado ponto por cima do pano da chaminé, ao lado do sítio onde penduravam o candeeiro de que se serviam quando faltava a electricidade na cidade, o que acontecera frequentemente nos últimos anos. Agora o petróleo era raro e o candeeiro ficava apagado, pendurado como uma relíquia sem valor. Mesmo ao lado estava uma caixa de ferro branco, não maior do que uma caixa de sapatos. Queria falar daquilo à mulher, mas ela tinha outras preocupações naquele momento. Tinha de adormecer o filho e a história da caixa não lhe interessava. Mas para ele era aquela a preocupação principal dos últimos dois dias, após a libertação da cidade.

- Mas ouve lá, disse-lhe ela quando o marido se pôs a procurar as pessoas a quem a devia entregar. Porque andas a incomodá-las? A guerra acabou, toda a gente tem os seus assuntos a tratar, estão a adaptar-se à nova vida, enquanto que tu corres por todos os lados com essa caixa cheia de papéis... Quem se importa com ela?

- Quem se importa com ela? - exclamou ele espantado.

- Claro, as pessoas não se interessam. Se precisassem dela, vinham-na buscar.

- Não me disseram que alguém a deve vir buscar. Pode ser que o proprietário tenha morrido na guerra.

- Então quem precisaria dela?

- Sou eu quem a deve entregar. Há a certeza de que ma vêm pedir?

- Faz como quiseres, disse ela.

Havia dois dias que ele corria tudo para encontrar os camaradas ou os amigos a quem devia entregar a caixa.

A criança deixou de chorar. "Deve ter adormecido", pensou ele.

- Hoje também nada consegui, voltou ele à carga.

- Já te tinha dito. Cansas-te para nada. Sabe-se lá onde eles estão? Se calhar morreram.

- Pode ser que estejam a combater no norte, talvez na Jugoslávia.

- Isso não tem importância. Se estiverem vivos, hão-de voltar e nessa altura entregas-lhe.

- Mas não posso ficar com ela mais tempo. Fui encarregado de a guardar sob a minha honra até ao fim da guerra.

- Pois muito bem, já acabou. Que queres mais?

- Para alguns a guerra acabou, mas com certeza que alguém deve estar encarregado de se ocupar deles. Há leis! As coisas devem ser assim. Não sou comissário das finanças para saber mais sobre o assunto, sou mineiro e não posso levá-los comigo para a mina. É absolutamente necessário entregá-los a quem de direito.

Se houvesse luz, a mulher teria visto que ele fixara de novo o olhar no pano da chaminé, onde se encontrava a caixa...

- Basta que a deixes aqui. A quem a vier buscar direi que estás na mina e, se insistir, pode ir procurar-te. - Sugeriu ela sem compreender por que razão o marido se cansava tanto à procura do proprietário da caixa...

- Não, isso não. As pessoas devem precisar dos documentos...

- Se precisassem, vinham-nos buscar, interrompeu ela.

O marido calou-se, não sabia que dizer. A mina devia recomeçar em breve os trabalhos. A cidade estava sem luz, a central ia ser reparada e era preciso hulha. Ele era mineiro e o seu lugar era na mina. Mas o lugar da caixa, onde era? Em cima do cano da chaminé? "Não, nunca", pensava ele. "Se me vou embora sem a entregar, que pensarão de mim os camaradas que ma confiaram? Mas no fundo ela não deixa de ter razão... Onde estão eles? Por que razão não os vejo em parte nenhuma? É impossível que tenham sido todos mortos!". Há dois dias que os procurava por toda a parte. Alguns dos seus colegas de trabalho já tinham partido para a mina, outros deveriam partir na semana próxima. Ele próprio também iria, mas que faria da caixa?

A mina estava fechada há três anos, quando os primeiros guerrilheiros foram para o mato. Grande número de mineiros se tinham então juntado a eles, enquanto os outros foram trabalhar para outros lados ou ficaram sem trabalho, mas a mina ficou fechada porque os guerrilheiros não deixavam os ocupantes servirem-se da hulha à sua vontade. Além disso, estes últimos não arranjavam outros operários para os substituir. A mina ficava na montanha e nas montanhas os guerrilheiros eram donos e senhores.

Este homem, que naquela noite não queria que a mulher adormecesse, era um bom mineiro, extremamente honesto. Tinha trabalhado nas minas de Alsácia-Lorena e de Saint-Etiène, assim como na mina que estava agora fechada, e o responsável do partido encarregara-o durante a guerra que agora acabara de uma missão que nada tinha a ver com a mina, mas sim com a sua honestidade. Era com efeito um homem honesto e o responsável do partido sabia-o bem... Além disso, tinha combatido como guerrilheiro... regressara, mas os camaradas nem todos tinham regressado...

...A caixa era comum. Se houvesse luz, ter-lhe-ia pegado e veria que estava muito leve. Alguns meses antes estava infinitamente mais pesada, não se encontrava em cima do pano da chaminé, mas sim escondida no chão, debaixo das tábuas, no sítio onde dormia agora a filha mais nova. Nesse tempo, as crianças dormiam em cima de ouro, de algumas moedas de ouro, mas de qualquer forma em cima desse metal precioso. Dormiam em cima do tesouro do departamento regional do partido. Aquela caixa, que poderia conter um par de sapatos número quarenta

e dois, antes de ontem estava ainda na guerra, era o tesouro do partido. Mas, para ser mais exacto, as crianças não dormiam bem em cima do ouro, entre elas e o ouro havia terra, as tábuas apodrecidas, a esteira e o colchão de palha.

...Quantas vezes os italianos, os alemães e os colaboracionistas haviam batido a região para encontrar aquele pequeno tesouro, tão útil em múltiplas ocasiões. Procuraram por todo o lado, suspeitando de todos os comunistas, mas não lhes tinha passado pela cabeça que o suor dos operários e dos camponeses da região, oferecido sob a forma de ajuda para a guerra, pudesse estar ali escondido, onde dormia agora a menina. As crianças também não sabiam que dormiam em cima de ouro durante aquelas

noites de guerra, caso contrário teriam tido sonhos extraordinários, especialmente quando a mãe lhes contava, antes de adormecerem, a história do saco cheio de ouro.

Na caixa havia algumas centenas de napoleÕes. Os guerrilheiros combatiam nas montanhas, mas nas cidades ocupadas, todos os que eram pela luta de libertação nacional não ficavam de braços cruzados. Faziam atentados, saqueavam os entrepostos

do inimigo, atacando mesmo os escritórios deles. As pessoas pobres davam as suas magras economias posta de lado para os dias maus (mas haveria dias piores que os da ocupação fascista?) para auxiliarem os guerrilheiros. Cada um contribuía com o seu pequeno pecúlio, uns poucos leks ou alguns francos mas, como eram numerosos, o tesouro pudera ser amealhado.

...Se houvesse luz naquela noite, o mineiro poderia ter lançado um olhar aos papéis que ficaram na caixa. Eram recibos sem selo, apenas com a assinatura (pseudónimos) dos que haviam retirado dinheiro para qualquer necessidade.

Primeiro recibo: dezassete luíses para os medicamentos do destacamento "Dajti".

Segundo recibo: onze luíses e sete francos para as roupas dos camaradas de Peza.

Terceiro recibo: cinco francos para uma garrafa de gasolina, provavelmente para incendiar o fascio (1).

Quarto recibo: um luís para comprar a tinta do roneotipo que imprimia o "Zeri i Popullit".

Quinto recibo: cinquenta francos para arranjar o bilhete de identidade falso do camarada...

Os recibos estavam arrumados por ordem como um ficheiro de uma biblioteca. O mineiro não sabia que tinha um verdadeiro registo. Estivera em Lyon e Bruxelas sem nunca ter posto os pés numa biblioteca... na mina, sim... o que fazia parecia-lhe uma coisa nova. Cada um daqueles recibos tinha a sua história que poderia ser assunto para um bom livro, mas ele não era

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Nota (1) Fascio: sede do partido fascista.

 

bibliotecário e queria entregar aqueles recibos, agora que a guerra acabara...

Se houvesse luz, folhearia cuidadosamente os cento e vinte e três recibos, como um bom bibliófilo, mas não havia e ele não queria pensar nos recibos. Bom número dos que os haviam assinado estavam mortos, bem o sabia. Eram rapazes corajosos, homens de confiança, verdadeiros comunistas. Se um deles tivesse traído, o mineiro teria sido passado pelas armas. De cada vez que abria a caixa, recordava-lhes as feições e quando tocava nos papéis, parecia-lhe que pousava a mão sobre as deles.

Custava-lhe acreditar que muitos deles tivessem sucumbido.

Ah, que ironia da sorte! O homem para quem se tinham comprado os medicamentos restabelecera-se, enquanto que aquele que lhos tinha arranjado e que dera o recibo ao guarda do tesouro tinha sido morto numa escaramuça com os alemães...

Aconteceu-lhe...

"Sim, naquele dia tínhamos de alugar um camião para transportar armas ou farinha, ou talvez as duas coisas, já não me lembro muito bem. Mas o facto é que era preciso o camião. Quanto a motorista não havia problema. Tínhamos o nosso. Mas não tínhamos camião. Podíamos arranjar um, mas como nos havíamos de servir dele? Cada patrulha ou posto de controle o poderia descobrir e confiscar a mercadoria e além disso o motorista arriscava a vida. A melhor maneira era portanto alugar um e a mercadoria passaria assim como uma carta no correio.

"Estávamos nos dias mais sombrios daquele horrível mês de Fevereiro em que muitos dos nossos camaradas encontraram a morte. O inimigo fazia buscas constantes, a cada passo se encontravam patrulhas alemãs ou dos mercenários de Xhafer Deva (1)... Nesse dia fui vender um relógio de ouro. Podíamos muito bem dá-lo ao dono da casa de aluguel de carros, mas desconfiávamos dele. O relógio fora encontrado por um dos nossos camaradas guerrilheiros no bolso de um oficial alemão morto. Era portanto de temer que ele suspeitasse de alguma coisa. Preferimos por isso trocar o relógio por dinheiro em notas. Era mais seguro.

"A cidade estava infestada de ballistas (2) e de mercenários e os camaradas encarregaram-me de realizar a operação, visto que eu não chamava muito as atenções. O usurário tinha a loja de penhores na Rua Real, à esquina da farmácia e ficou espantado com aquele relógio de ouro. Como me conhecia, pois costumava comprar cigarros na minha banca, disse-lhe que o tinha comprado na França. Talvez não me tivesse acreditado, mas a ocasião era demasiado boa para ele e deu-me o preço que ele quis. Peguei no dinheiro sem o contar e fui-me embora. Durante o caminho, tanto à ida como à volta, tinha medo que os ballistas me roubassem, pois costumavam revistar muitas

vezes as pessoas e tiravam-lhes o que traziam. Se me tirassem o dinheiro, não tínhamos maneira de pagar ao dono do camião.

"Ao chegar a casa, encontrei "visitas"

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Nota (1) Xhafer Deva: um dos chefes colaboracionistas sob a ocupação alemã.

Nota (2) Ballista: membro da organização traidora de Balli Kombgtar (Frente Nacional).

 

indesejáveis, os mercenários de Xhafer Deva. Se me revistassem, apenas tinha comigo o recibo que me tinha dado o camarada X. Nada ganhavam com isso. O dinheiro estava seguro, nada havia a temer... Pensei no usurário, ter-me-ia denunciado? Felizmente os mercenários de Xhafer Deva queriam cobertores e, como não os encontraram, levaram dois tapetes de pele de cabra com que se tapavam as crianças. Desde aí, tapo-as com o meu sobretudo... E o camião partiu na manhã seguinte pela estrada do sul...

mas...".

- Que estás a dizer? - perguntou a mulher que adormecera a criança e queria dormir também.

- Não disse nada, respondeu ele sem se dar conta de que falava sozinho.

- Estás a envelhecer, meu amigo, já pensas em voz alta. É mau sinal! Exclamou ela meio adormecida.

- Penso no tesouro. Durante esta guerra, fui o mais rico dos pobres.

- Falas de uma riqueza em que arriscavas a vida a todo o momento. A nossa verdadeira riqueza começará quando voltares ao trabalho. Agora que estamos livres daquela raça maldita já não temos medo de nada.

- Já não sei a quem me hei-de dirigir, se o conselho da cidade a recusar outra vez amanhã.

- Deixa-a ficar em casa, disse ela calmamente.

- Há dois dias que ando a bater a todas as portas e ninguém a quer. "Não estamos autorisa-dos", dizem eles. E o pior é que nada sabem deste assunto, até tenho a impressão de que alguns pensam que sou maluco.

- Consola-te, porque se muita gente soubesse da sua existência durante a guerra, não a terias guardado até agora.

- É também o que penso. Mas o banco do estado devia aceitá-la.

- Tens razão.

- Sabes o que me disseram? "Não conhecemos as assinaturas dos que lhe deram esses recibos. São pessoas não oficiais". "Mas que pessoas oficiais é que vocês querem?

Aqui foi o Marc que assinou, morreu em Peza. Ali foi o camarada Selim que deve estar a combater no norte. Não o conhece? Paciência, há-de conhecê-lo quando ele voltar.

Pode ter a certeza de que é um bravo combatente!" "Mas ouça lá, senhor, perdão, camarada, protestou um deles, isto aqui é um banco e o banco não conhece esses nomes.

Vai legalizar essas assinaturas no centro de trabalho deles e depois trá-las cá." Que tipos mais esquisitos! "Vai legalizar as assinaturas no centro de trabalho deles!", como se eles fossem mineiros! Tirando eu, nenhum deles foi alguma vez mineiro, que certificado poderia ir eu pedir na mina?

- Então tinhas de ir a outro lado, visto que o banco se recusou a aceitá-los, disse a mulher em tom seco. Estava aborrecida com o marido que, por um lado se mostrava incapaz de encontrar o dono do tesouro, e por outro lado não a deixava dormir.

- Até fui ao comando da brigada e receberam-me bem. "Somos militares, responderam-me eles, não tratamos de documentos desse género". "Deste género! Ora essa! Mas isto era o tesouro destinado à guerra, tanto para vocês como para nós. Fiquem com estes documentos, só lá estão cento e vinte e três desgraçados recibos. Não pesam muito, não ocupam muito espaço. Fiquem com eles porque tenho de voltar para a mina e não posso levá-los comigo. Depois quando os quiserem procurar já não os encontram".

"Não precisamos deles, camarada, responderam eles, há outras pessoas que tratam destes assuntos". "Então onde é que hei de ir?", perguntei-lhes. "Ao conselho de libertação nacional".

- E foste?

- Claro! Mas eles também os não quiseram. "Isso não pertence às nossas atribuições, disseram-me delicadamente. Somos o conselho de bairro, devias ir ao conselho da cidade.

- 'Vai lá amanha!

- É fácil de dizer. Quem me diz que vão aceitá-los? O que mais me irrita são aqueles vinte e nove dólares que não foram gastos. Tenho a impressão de que os empregados do banco fizeram pouco de mim. Disseram-me para os guardar até à reconversão da moeda, como se eu fosse o cambista da Rua Real! Infelizmente, nenhum dos três camaradas que me confiaram o dinheiro do partido voltou ainda.

- E se foram todos mortos? observou ela. Tu próprio disseste que isso não era impossível.

- Mesmo que fosse assim, há outros. Alguém tem de vir buscar o tesouro, ou o motorista, ou o cigano que carregou a mercadoria, ou o camponês de Sauk, ou aquela mulher mal vestida. Algum deles está vivo e acabarei por a entregar!

- Porque perdes tu o tempo à procura deles? Se precisarem dela, vêm-na buscar, insistiu a mulher.

- Não, isso não é assim! respondeu ele levantando a voz e logo se lembrou de que podia acordar as crianças. - Não, as coisas passam-se de maneira completamente diferente. Durante a guerra guardei esta caixa para que o tesouro fosse útil à nossa luta, como de resto foi. Agora tenho de entregar estes papéis e também os vinte e nove dólares.

- Uma vez que não os vêm pedir, isso quer dizer que ninguém precisa deles...

- Veremos isso amanhã.

- Amanhã... respondeu ela deixando-se vencer pelo sono.

"Alguém terá certamente de pensar neste tesouro", disse para consigo. Não conseguia compreender que aquele tesouro tinha desempenhado o seu papel e que agora começava outra era, o período do após guerra em que aqueles papéis, aqueles recibos só poderiam ser úteis aos arquivos do Estado. Mas naquela noite, os arquivos ainda não existiam...

 

                  Uma Noite de Verão - Vath Koreshi

Tínhamos já passado a floresta de carvalhos e o rebanho de vacas atravessava agora a pradaria coberta de orvalho. Já não sentíamos nem o medo que se apoderara de nós no meio daquela floresta cerrada, nem a angústia que nos apertava a garganta quando pensávamos que os animais podiam assustar-se e fugir. Aqueles prados eram realmente muito belos, uma ligeira brisa fazia ondular os salgueiros que se erguiam à beira do rio e levava para longe o canto de um rouxinol quase a extinguir-se.

- Hé! Hé! gritou Myska para indicar aos animais que não se deviam espaJhar pelo campo. Não sei porquê, mas aquele grito encheu-me o coração de alegria. Tínhamos os pés e os tornozelos cheios de arranhões. Tínhamos guiado durante horas o nosso rebanho através de florestas, bosques e mato e tremíamos de medo sempre que um boi se punha a mugir sem sabermos porquê e se afastava do rebanho. Mas agora estávamos inclinados a esquecer as nossas dificuldades perante os prados que pareciam

sorrir ao luar enquanto caminhávamos à sombra dos animais, ligeiros e alegres como o perfume das tílias que vinha da floresta. Para dizer tudo, sentia-me contente e pus-me também a gritar: Hé! Hé!

Os rochedos do vale do Mati fizeram eco àquele grito que passou, agudo e tremente pelas gargantas antes de se perder na noite. O rebanho passava em fila indiana por um carreiro ladeado de buxo. Tínhamo-nos descalçado já há um bom bocado, e os pés enterravam-se na poeira macia do caminho.

Myrka e eu éramos voluntários da "Estrada da Luz" e trabalhávamos no sector de Shkopet. Desde que cheguei, travei amizade com Myska, trabalhávamos na mesma equipa e éramos companheiros de dormitório. Naquele dia, o comandante da brigada mandou-nos chamar. Devíamos ir à aldeia de Skuraj para ir buscar cerca de trinta bovinos e levá-los ao sector do comandante. Acrescentou que podíamos desempenhar muito bem aquela tarefa e que esperava que não deixaríamos os animais pelo caminho. "Tenham cuidado, não é fácil levar trinta bovinos de Skuraj até aqui. Têm de atravessar os bosques. Tratem de não deixar fugir um único animal".

Com dezasseis anos, eu e Myska tínhamos a mesma idade, as pessoas não se preocupam com esses pormenores. O comandante tinha confiança em nós e isso bastava-nos.

Além disso íamos percorrer o vale do Matí com as suas águas ora impetuosas, ora tranquilas, com as florestas, e por isso caminhávamos ligeiros para Skuraj, mesmo na hora do calor, acompanhados pelo canto ininterrupto das cigarras. Estávamos contentes, sabe-se lá porquê, ao pensarmos que íamos fazer 3 ou 4 horas de caminho para chegar a Skuraj e outras tantas para reconduzir os animais ao seu destino.

Por isso comamos cheios de alegria pelos caminhos e carreiros. Estávamos alagados em suor e cobertos de poeira, mas isso não nos fazia abrandar o passo rápido ao longo do rio.

Em Skuraj entregaram-nos os animais e às três horas da tarde retomámos o caminho para Shkopet.

Enquanto o rebanho se punha a caminho, Myska olhou para o céu e disse:

- Ao crepúsculo chegaremos ao nosso destino.

- Até talvez antes, disse eu. Mas temos de nos apressar, se não a noite surpreende-nos no caminho.

- Tens razão, aprovou Myska que ergueu um grande pau que trazia na mão e se pôs a gritar na direcção dos animais:

- Hué, Hué, ai, ai, ai...

Os animais começaram logo a acelerar o passo, erguendo uma nuvem de poeira. Satisfeita por ver que o meu amigo Myska sabia guiar tão bem um rebanho, perguntei-lhe:

- Onde aprendeste a conduzir os animais, és mesmo vaqueiro?

- Não é difícil, disse ele. Para uma vaca podes mesmo gritar-lhe apenas vrri, vrri, vrri, desde que ela veja que tens um pau na mão, põe-se logo a trotar.

Mas não era tão fácil como isso. De resto em breve o compreenderíamos. Ao sairmos de Skuraj, as dificuldades começaram logo. Uma vaca picada por uma mosca, ergueu a cauda, bateu ruidosamente nos flancos e correu como uma flecha para o rio.

Já não tínhamos vontade de rir. Pensávamos que ela iria parar nalgum lado; mas ela continuava a correr loucamente, agitando os cornos e as patas. Myska levantou então o pau e pôs-se a correr ao longo de uma sebe de arbustos, gritando:

- Pára, pára!

Ao vê-lo falar assim à vaca, por pouco não rebentei a rir. Mas foi um reflexo que logo reprimi. Não sei se foi por causa da sua voz aflita, a verdade é que pareceu de repente que as vacas se iam lançar todas numa corrida louca e aproveitei uma passagem estreita para as fazer parar. Daquele sítio, via a camisa branca de Myska que tinha atravessado o rio e se encontrava num campo de restolho dourado pelo sol, e a vaca bege. A vaca acabou por parar. Com truques de índio, passando através de ribeiros e de tufos de arbustos, Myska conseguiu chegar ao pé dela, escondendo o pau. Pouco depois, a vaca juntava-se ao rebanho e Myska regressava a nadar em suor e quase sem fôlego, com as faces cheias de arranhões.

- Temos de as impedir de andar espalhadas, disse o meu companheiro.

Nada sabíamos de transumância. Não sabíamos que fazer para reagrupar os animais quando estes tomavam três direcções diferentes, nem chamar à razão um vitelo que sem mais nem menos começava a fugir, dava marradas nas árvores e se escapava pelo meio dos bosques com os olhos fora das órbitas. Tínhamos um medo terrível desse vitelo e, sempre que lhe davam aquelas crises, esperávamos pacientemente que se tornasse mais sociável. Quando se acalmava, aproximá-vamo-nos dele, acariciávamo-lo e falávamos-lhe com meiguice até ele vir juntar-se aos outros.

Sentíamos então uma alegria imensa quando acariciávamos os flancos das vacas mais dóceis e as encorajávamos para retomarem o caminho.

Estabelecera-se um verdadeiro diálogo entre nós e os animais. Fazíamos tudo para os cativar. Custasse o que custasse, queríamos chegar ao sector antes da noite e sem perder um único. Tremíamos ao pensamento de que os animais podiam, sem sabermos porquê, fugir todos para os bosques. Que faríamos nesse caso? Estavam ali trinta grandes animais e nós éramos só dois.

Os arranhões começavam a doer-nos. Na face esquerda de Myska, o sangue tinha coagulado.

Aproximávamo-nos dum vau e agora era preciso que o rebanho atravessasse o rio. A princípio os animais aproximaram-se da água de boa vontade, estenderam o pescoço e cheiraram a superfície da água mas, chegados ao meio do rio, não se sabe porquê, viraram para a direita, andaram ainda uns cem metros dentro de água e depois voltaram simplesmente ao ponto de partida. Não nos serviu de nada gritar até perdermos o fôlego, metermo-nos nós próprios dentro de água para lhes mostrarmos o caminho, nada conseguimos. Os animais não quiseram ouvir-nos. Todos os animais saíram do rio a escorrer água e ficaram uns momentos ao sol antes de se meterem outra vez ao rio.

Foi preciso mais de meia hora para o atravessar.

E, sem nos apercebermos, todas aquelas dificuldades nos levaram a tarde inteira. Todos os animais, mesmo os que pareciam mais mansos, pareciam ter um prazer maldoso em fazer das suas para nos levar ao desespero. Absortos pelas travessuras dos animais, quase nem reparáramos que o sol tinha descido e que a frescura do crepúsculo envolvia lentamente os cumes dos rochedos onde brilhava ainda o vermelho dos últimos raios de sol. A noite surpreendeu-nos em plena floresta. Para a atravessar, o nosso rebanho deu-nos água pela barba. À beira do bosque encontrava-se um prado à vista do qual os animais pareceram tranquilizar-se. Foi por isso que nos pusemos a gritar, cheios de alegria "Ai? ai!" Os gritos iam terminar na face lisa dos rochedos que os enviavam uns aos outros até se perderem na noite.

- Que horas serão? perguntei a Myska.

- Nove horas, respondeu ele observando o céu onde brilhava a lua.

Fiz rapidamente as contas: tínhamos ainda de passar a garganta de Shkopet, o que levava uma hora e daí ao sector era ainda uma meia hora. Pelas dez e meia estaríamos no nosso destino.

O carreiro atravessava o prado no sentido mais curto, virava para a direita e descia para o rio. A garganta de Shkopet apareceu-nos como uma gigantesca boca negra, ouviam-se rugir as águas do rio que passavam rapidamente entre os rochedos sombrios e mudos. A claridade da lua não penetrava na garganta. A escuridão era tão cerrada que tínhamos a impressão de penetrar numa gruta fria. Mas não havia outro caminho. De ambos os lados se erguiam os rochedos abruptos de cem ou duzentos metros de altura e em vários locais íamos atravessar o rio com água até ao pescoço. A garganta, com seiscentos metros de comprimento, era estreita e tinha algumas curvas.

Chegados à beira da água, os animais pararam e nós fizemos o mesmo. De manhã, quando tínhamos passado por ali, os camaradas que estavam a furar o túnel saudaram-nos, mas agora tudo estava mergulhado num profundo silêncio e aquela massa de água negra que se precipitava a toda a velocidade das profundezas da garganta inspirava uma sensação de terror. Algures dos rochedos, um enorme pássaro levantou voo lançando um grito que nos fez estremecer. O primeiro a recompor-se foi Myska.

- Bom, não vamos ficar aqui de plantão no meio da garganta, disse ele assobiando aos animais.

Aquela voz soou com força e parece que expulsou o medo que se apoderara de nós. O animal que estava à frente do rebanho entrou na água, resfolegando, e os outros lançaram-se também à água levantando-se sobre as patas de trás e começando a nadar com o pescoço estendido sobre a superfície da água, os olhos muito abertos com ar atemorizado.

- Então, estás com medo? disse Miska. Vamos embora!

- Não, respondi, não tenho medo nenhum. Mas reparei que Myska, antes de entrar na água se tinha aproximado de mim. Também ele estava com medo, mas fingíamos que não era nada connosco.

A água chegou-nos até às axilas. No meio daqueles rochedos de formas estranhas, que se elevavam por cima das nossas cabeças, o chapinhar da água tinha um som misterioso.

Myska aproximou-se de mim e demos as mãos. Parecia que era cada vez mais fundo e que íamos cair num buraco, por isso pusémo-nos a nadar lado a lado. À nossa frente, os animais avançavam lentamente com o pescoço estendido e o seu sopro parecia a respiração de algum monstro. Pouco a pouco, íamo-nos libertando do medo que nos tomara há instantes.

Não havia buraco nenhum no leito do rio, o pássaro nocturno desaparecera e os nossos olhos, que se iam habituando à escuridão, já distinguiam melhor os rochedos e o caminho que se perdia nas alturas.

Mas, ao chegarmos ao meio da passagem, onde a água nos dava até ao pescoço, todas as vacas deram meia volta. Passaram entre nós a resfolegar e pareciam pouco se importar com os nossos gritos. Nada de mais exasperante que ver o rebanho inteiro a voltar para a margem. Myska debatia-se na água como um demónio, agitava os braços, berrava e chorava de raiva. Mas os animais prosseguiam obstinadamente o seu caminho. Chegaram finalmente à margem do rio e reuniram-se aí uns ao lado dos outros.

A água escorria-lhes dos flancos, mas isso não os impedia de ruminarem tranquilamente.

Encharcados até aos ossos, voltámos também para a margem. Estávamos tão desesperados que já nem falávamos. Que havíamos de fazer? Deixar ali o rebanho e correr ao sector para chamar os camaradas em nosso auxílio? Mas podíamos nós abandonar o rebanho? Seria essa a maneira de realizar a tarefa que nos fora confiada? Os nossos camaradas tinham cumprido as suas tarefas, trabalharam todo o dia, perfuraram os rochedos à martelada, colocaram explosivos e fizeram-nos saltar. Nós também nos esforçáramos bem, estávamos esgotados de fadiga à força de correr para a direita e para a esquerda para fazer avançar o rebanho. No final de contas não era nada fácil. Era o que dizíamos para nós próprios, com o desespero dos que não conseguiram cumprir a sua missão.

- Se fôssemos ao sector chamar dois ou três camaradas? - disse eu.

Ele não respondeu logo. Com a cabeça inclinada, parecia que soluçava em silêncio. Seria verdade? Talvez soluçasse realmente, porque eu próprio sentia um nó na garganta e, se reprimia as lágrimas, era porque tinha vergonha de Myska que estava sentado mesmo ao meu lado.

- Não! - Disse ele num fio de voz. - Eles estão agora a dormir, trabalharam todo o dia e estão cansados...

Levantou-se, agitou os braços que o frio começava a entorpecer e disse:

- Por que esperamos? Estes malvados animais parece que têm manias. Quando tivemos de atravessar o rio, também voltaram para trás a meio caminho, mas no fim conseguimos levá-los. É preciso ir um de nós à frente para lhes mostrar o caminho.

Assim que disse estas palavras, virou-me as costas e foi misturar-se com o animais, incitando-os com a voz.

A voz dele tinha um belo timbre, mas não parecia muito convicta. Eu compreendia bem a luta que se travava no seu íntimo. Para nós não havia maior vergonha que ficar ali, a meio caminho.

Bateu ligeiramente no flanco dos animais, empurrando-os para a água, e estes puseram-se novamente em marcha numa longa fila indiana. A alegria pregou-me ao chão.

Foi então que o ouvi gritar-me:

- Anda, para que é que estás aí parado como um emplastro?

Pus-me a correr.

- Vai à frente do rebanho e fala aos animais, disse ele.

Aquele "fala aos animais" parecia querer dizer: "vai encorajá-los, explica-lhes que afinal de contas passar a garganta não é uma coisa do outro mundo".

Fui para a frente do rebanho. As vacas andavam agora com mais desenvoltura, atrás de mim três grandes cabeças sopravam com toda a força dos pulmões e atrás delas vinha toda a fila indiana...

Quando os animais chegaram ao sítio onde da primeira tentativa, assistíramos a uma meia volta espectacular, começaram outra vez a virar para a direita tentando voltar para trás, mas Myska atirou-se à água e barrou-lhes o caminho, incitando-os com grandes gritos.

Desta vez tinha a voz firme. Os animais marcaram um compasso de espera e depois continuaram a seguir-me. Myska recomeçou então a gritar com uma alegria indescritível.

A sua voz ressoava entre os rochedos sombrios e mudos e o eco desvanecia-se lentamente. Agora as vacas caminhavam.

De repente, vimos desenhar-se à nossa frente a saída da garganta e três ou quatro silhuetas com lanternas. Pouco depois ouvíamos vozes:

- Hé! Myska!

- Hé! respondeu Myska. Cá estamos! Uma dezena de voluntários da brigada tinha vindo à nossa procura. Iam meter-se ao rio quando ouviram as nossas vozes. Deviam ser então quase onze horas da noite. Os camaradas esperaram por nós à saída da garganta:

- O que é que vos aconteceu? Podem-se gabar de nos terem feito passar um mau bocado. Acabámos por temer o pior. Muito bem, parece que vocês vêm num lindo estado...

Os animais tinham metido pela estrada que levava ao sector. Nós seguiamo-los com as lanternas na mão. Um calor particularmente agradável enchia-nos o coração. Era a alegria da vitória. Era a primeira classe da escola da vida, em que aprendêramos a não recuar perante os obstáculos.

Myska tentou calçar os sapatos, mas estes estavam encharcados e as peúgas também. Desistiu e veio juntar-se a nós a correr. Desaparecera o doce aroma das tílias.

Só havia rochedos e estávamos contentes. A lua iluminava fracamente o vale e os rápidos do Mati que corria para oeste levando consigo surdas melodias.

Myska gritou outra vez:

- Brr! Brr!

O eco deste grito alegre perdeu-se nas alturas.

 

                   A Carta do Turco - Naum Prifti

                   A Hanko Labe

O ataque dos resistentes albaneses nas gargantas de Barmash contra a caravana do correio turco foi fulminante. Logo aos primeiros tiros mataram os suvaris (1) que acompanhavam o correio e depois, saindo aos gritos dos esconderijos, conforme é seu hábito, precipitaram-se para a estrada, tiraram o dinheiro, o saco do correio, arrancaram as armas aos suvaris e cinco minutos mais tarde tinham voltado às suas montanhas, onde desapareceram na floresta.

Chegados ao abrigo, o chefe - Zylyftar Mertiri - retirou-se para um canto e, como sabia turco, começou a ler as cartas umas atrás das outras a fim de se informar sobre a situação e o moral das tropas turcas. Apenas uma delas lhe chamou a atenção. Pô-la de lado e atirou as outras para o fogo que ardia perto dele, ficando-se a contemplá-las pensativo, até estarem completamente destruídas. A carta tinha-lhe feito recordar

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Nota (1) Suvari: cavaleiro do império otomano.

 

o camarada, bravo entre os bravos, o capitão Bogdan Muzaka. Eis o que estava escrito:

"Bismilah - Rahman el Rahim! (1)

Querida mamã!

Eis-nos chegados a Arrnautllek (2). Que país estranho, mãezinha, só feito de pedras e rochedos! Só se vêem montanhas lúgubres e deprimentes. Se soubesse como tenho saudades da nossa terra, a minha querida Anatólia! Como desejo voltar a ver a vasta planície que se estende diante do selammllek (3) da nossa casa, com as suas cores amarelo avermelhadas, e sentir o sopro inebriante do deserto da Arábia!

Não têm razão os que dizem que a nossa Anatólia é feia, que não tem água nem árvores. Não, mamã, não, é linda. Dá prazer olhar aquelas extensões, aquele sol tão diferente deste, mais quente e mais vermelho. Não consigo tirar do pensamento a planície em frente da nossa aldeia. Os olhos enchem-se-me de lágrimas ao evocar os carneiros de regresso dos prados e as caravanas de camelos que passam na planície e parecem três vezes maiores ao sol poente. Dir-se-iam suspensos do céu. Mas desde que vim para este país infernal, tenho o pressentimento de que vou deixar aqui a pele. As montanhas aqui sufocam-nos, comprimem-nos o coração. Picos e gargantas, é só o que se vê; nada de planícies no horizonte. Temos a impressão de que estamos no

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Nota (1) Bismilah: Rahman el Rahim - início da oração otomana.

Nota (2) Amauitllek: Albânia.

Nota (3) Selammllek: parte da casa onde os homens recebem as visitas.

 

fundo de um poço. Por cima de nós só vemos um canto do céu, onde pairam em círculos águias sinistras.

E as pessoas como são selvagens! Secos e duros como as montanhas onde vivem, ferozes e magros como perdigueiros. Onde pode abrigar-se-lhes a alma? Só lhes vemos os olhos a brilhar como os dos lobos esfomeados no Inverno e quando olham para nós (que Deus nos guarde!), temos vontade de fugir para cinquenta léguas de distância.

É assim que eles são: magros, secos, mas fortes como o diabo, passam de um pico para o outro a uma velocidade extraordinária, parece que voam com o seus capotes de mangas flutuantes.

Ainda não há oito semanas que pus os pés neste maldito país e, se quiseres amaldiçoar alguém, podes dizer-lhe sem medo: "Que te mandem para o Arnautistão!" Nada nos atrai nesta gente! Até as canções deles são como os rugidos das alcateias de Ibos no inverno. Cantam em coro e gritam cada um mais do que o outro. Também já os vi divertirem-se. Então esquecem tudo, as suas dores, a sua pobreza e Deus também. Comem e bebem à saciedade, sem se importarem que lhes fique ou não qualquer coisa para o dia seguinte. Que gente tão estranha!

Partilham entre si o mais pequeno pedaço de pão, mas por nada deste mundo nos dão um bocadinho. Mas nós já resolvemos esse problema e servimo-nos nós próprios daquilo que precisamos. Agora revoltaram-se uns tantos loucos e pegaram em armas, mas o subprefeito disse-nos que não iriam longe, passá-los-emos a fio de espada, como aos outros. Mesmo assim são incomodativos.

Oh, o que eu vi nestes dias, mãezinha! Nunca o esquecerei! Conseguimos capturar um resistente. Aqueles homens não se preocupam com nada, nem com a mulher nem com os filhos, que abandonam durante meses a fio para irem para o mato. Numa palavra, são autênticos corações de pedra, mas quanto a combater, não há quem se lhes compare, não estão com meias medidas. Nós dizíamos que ninguém se pode medir com os nossos janiçaros, que todos tremem à sua frente, mas não é assim. Estes albaneses não ligam importância nem a janiçaros nem a suvaris.

Emboscam-se nos abismos ou nas gargantas mais estreitas de onde atacam o nosso exército, gritando sabe-se lá o quê na língua deles. Se tu soubesses como é terrível!

Quando descem das montanhas mergulhando sobre nós, as capas brancas abrem-se ao vento. Parecem águias a voar. Gelam-nos de medo. Quando disparamos sobre eles, são capazes, mesmo feridos de morte, de vir exterminar-nos nas trincheiras.

E são maus como nunca vi. Estive na Síria, na Pérsia, na Palestina, mas nunca vi uma coisa assim.

Aquele resistente de que te falei, capturámo-lo por meio de um ardil. Sabes como é que se apanham aqui os canários? Levamos uma fêmea numa gaiola para o campo, penduramo-la no ramo de uma árvore e ela põe-se a pipilar. O macho aproxima-se, olha para ela, espantado, pelo vidro da gaiola, gira à sua volta, encontra a porta e entra, mas a entrada é de sentido único - está preso. O homem sai então do seu esconderijo, estende a mão e agarra muito satisfeito o casal de pássaros.

Foi o que nós fizemos.

Soubemos por um dos nossos espiões que o chefe albanês Bogdan Muzaka se tinha apaixonado pela filha de um padre e que ia vê-la às escondidas de duas ou de três em três semanas.

Tursun Demirogllou, o oficial que fazia morder a poeira a todos os árabes da nossa aldeia, tinha jurado diante do subprefeito vingar o irmão e não deixar a Albânia antes de matar Bogdan. Esperámo-lo na floresta durante dez dias. No décimo primeiro veio ao sítio onde a noiva o esperava. Cercámo-los e capturámos os dois num bosque de carvalhos. Estavam desarmados, nada podiam fazer.

Então Tursun disse-lhe:

- Não te pouparei, Bogdan Arnauti. Mataste o meu irmão e terás a mesma sorte. O sangue só pode ser vingado pelo sangue.

De repente, Bogdan atirou-se a ele como um cão pastor, agarrou-o pela cintura gritando como um louco e atirou-o ao chão. Nada lhe pode fazer, pensámos nós, visto que está desarmado. Contudo, fomos três ou quatro ajudar o nosso oficial, mas o bandido não largava a presa. Depois de muitos esforços, conseguimos por fim arrancá-lo dali. Mas que vimos, mãezinha! Tursun Demirogllou agonizava. O sangue jorrava-lhe em borbotões da garganta. O albanês tinha-lhe enterrado os dentes no pescoço, como o lobo ao atacar as ovelhas. Os olhos estavam injectados de sangue e a boca estava cheia dele. Enraivecido, tinha ainda nos dentes um bocado de cartilagem do pescoço da vítima. Fiquei apavorado. Estive em Alep, em Bagdad, na Galileia, participei em muitas guerras, mas nunca vi uma coisa assim. Nada podemos contra eles, mamã! Despedaçam-nos à dentada, como feras.

E aquela albanesa não verteu uma lágrima ao ver o noivo retalhado aos bocados. Teria uma pedra no lugar do coração? Não, mamã, as nossas mulheres não são assim.

Assim que acabámos com ele, amarrámos solidamente aquela cadela. Era linda, a desavergonhada, com grandes olhos negros, as sobrancelhas em arco e as faces ligeiramente pálidas. O coração apertou-se-me à vista daqueles olhos que se assemelhavam aos da minha Gjylistan. Amarrada como estava, empurrámo-la à nossa frente, enquanto a insultávamos, para a levarmos ao comandante. Este lambeu os beiços, alisou o bigode e tossiu maliciosamente.

- Esta noite, minha pomba, - disse ele - vais dormir comigo. Há já três anos que não tenho relações com uma mulher.

Mas o comandante teve medo, quando lhe contámos o que se tinha passado. Não quis partilhar a cama com aquela víbora a quem acabáramos de matar o noivo. Podia estrangulá-lo em qualquer momento, especialmente naquelas circunstâncias...

- Mata-a! - ordenou ele. - Exterminemos esta raça maldita!

Fiquei de cabeça baixa. Os olhos dela que me faziam lembrar os da minha Gjylistan, feriam-me profundamente. Vendo-me perturbado, o comandante disse:

- Que tens tu, Nuredin? Tens pena destes porcos? É verdade que não estás habituado a eles pois chegaste há pouco tempo, mas sai da forma e começa a matar para ires habituando a mão.

Obedeci e tirei o yatagan da bainha.

A kaurka (1) estava encostada à parede do castelo com as mãos atrás das costas e a cabeça levantada, os olhos negros cintilavam, as narinas estremeciam, o peito palpitava por baixo da camisa branca.

Não tive coragem de me aproximar.

- Meu comandante, disse eu, manda-me antes passar a fio de espada mil albaneses, em vez de me obrigares a sujar as mãos com uma mulher.

- Ordeno-te que a mates. Nesta terra são todos a mesma coisa, tanto homens como mulheres. E instalou-se num canto para assistir ao espectáculo.

A vista velou-se-me. Era terrível!

Avancei titubeante e parei a dois passos dela. Por fim ergui o yatagar e apontei-o ao coração, para não a fazer sofrer muito. Estava no limite das minhas forças.

Não tinha coragem de a olhar nos olhos e virei a cabeça enquanto estendia a arma, como um cego estendendo a bengala.

Senti a ponta do yatagan tocar-lhe no peito. Ela recuou, eu avancei. Estendi o braço um pouco mais para a frente e a camisa branca rasgou-se. A ponta do yatagan enterrou-se-lhe no peito. Ela estremeceu. O braço tremeu-me, o coração também.

Parei e virei a cabeça para a ver. Uma trança negra pendia de um dos lados do seio, no outro, a lâmina tinta de sangue. Ela tremia como uma folha de árvore, os olhos banhados de lágrimas, o lábio inferior pendente. Rangeu os dentes. Chorava de dor mas sem soltar um grito. Que estoicismo!

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Nota (1) Kaurka: cristã.

 

E como se estivesse à espera do momento em que virei a cabeça, escarrou-me na cara. Ouvi o riso do comandante.

- Hi! hi! É bem feito, Nuredin.

Ofendido, enterrei a arma até aos copos. Ela murmurou um "ah!" de dor e deixou-se cair sobre o yatagan. Estava acabado. Antes de limpar a cara, dei-lhe um pontapé enquanto atirava com a arma que não podia ver naquele estado.

Mas desde então não deixo de sonhar com ela. Perturba-me o sono e, de noite, dou gritos terríveis pois tenho a sensação de que alguém me enterra os dentes na garganta, como àquele pobre Tursun. Já não tenho mão em mim.

É um país maldito, mamã, cem vezes maldito, que era preciso riscar do mapa.

E agora os albaneses andam verdadeiramente enraivecidos, desde que souberam desta morte. Já não podemos sair a dois e dois, como anteriormente, agora somos obrigados a sair em grupo para toda a parte.

Não sei explicar-te, querida mamã, mas tenho um mau pressentimento. Nestes últimos tempos tenho uma vontade louca de rever a nossa Anatólia, a areia vermelha e as nossas vastas planícies. Aqui, sinto-me esmagado pelas montanhas. Parece-me que as carrego às costas. Vivemos aqui no meio dos lobos, terei muita sorte se escapar.

Diz a Hoxhe (1) Firus que prepare um amuleto e que Allah (2) queira que eu deixe o mais depressa possível, este maldito país todo feito de gargantas, rochedos e montanhas, onde nos

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Nota (1) Hoxhe: ministro do culto mussulmano.

Nota (2) Allah: Deus.

 

demos como num labirinto. Se eu não voltar no Sulltan Nevruz (1) previna a Gjylistan que é livre de fazer a sua vida. Não está bem deixá-la assim em suspenso. Apresenta os meus respeitos aos tios e ao efendis da aldeia. Teu? do coração.

Beijo-vos a mão direita

Vosso filho

O soldado Nuredin Islam

Que Deus vos dê longa vida.

Albânia, Vilajet (2) de Janina, 8 de Outubro de 1296 (1876).

 

Quando Zylyftar acabou de ler a carta, chamou os camaradas, para que eles soubessem o que o turco dizia da sua própria boca.

Decidiram, de comum acordo, enviar a carta à mãe de Bogdan e ao padre, para que se orgulhassem dos seus filhos e não lamentassem a sua perda, pois que morreram como morrem os albaneses - de pé, inflexíveis, de cabeça levantada.

Tirana, 1959.

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Nota (1) Sulltan Nevruz: festa religiosa mussulmana.

Nota (2) Vilajet: prefeitura.

 

                   Felicidade Simples - Dalan Shapllo

Há muito tempo que não ia a... Nessa noite, depois de ter descido da camioneta, dirigi-me com passo lento para o hotel. A pequena cidade marítima estava tranquila.

As pessoas tinham ido para casa, outras tomavam um copo no clube, de onde se ouvia um murmúrio surdo e confuso de vozes e de tacos de bilhar. Também o mar estava calmo, com pequenas ondas mansas que vinham rebentar ritmicamente no litoral. As luzes do porto reflectiam-se na água, formando fitas polí-cromas, resplandecentes.

Chegado ao hotel, passei a cabeça pela janelinha da administração, onde uma mulher escrevia num grande livro de registo.

- Boa noite, camarada! Tem um quarto livre?

- Seja bem vindo! Temos, sim. Levantou a cabeça. O suave rosto redondo e

os olhos negros não me pareceram desconhecidos. Se a olhássemos de perto, reparávamos que era ligeiramente estrábica, mas isso nada prejudicava a graça daquela mulher que devia rondar pelos quarenta anos. Antes pelo contrário, aquele defeito dava-lhe ao rosto um encanto particular, um pouco triste e sonhador. E foram precisamente aqueles olhos negros, aquele doce olhar meigo, ligeiramente estrábico, que me recordou uma mulher que não via há uma dezena de anos. Seria ela?

- Como vai isto por aqui? - perguntei.

- Obrigada, vai bem. Isto aqui é muito calmo. Não é como em Tirana, disse ela sorrindo. O sorriso confirmou as minhas suposições. Era ela.

Fato! Quantas vezes a vira rir, com aquele riso simpático e tímido, o olhar perdido para lá da janela! Quantas vezes a vira na minha infância a fazer a lida da casa, feliz, mas a maior parte das vezes desesperada! Ficara-me gravada na memória, com o seu avental e o lenço na cabeça atado por cima dos cabelos negros e brilhantes quando, fatigada, punha uma das mãos na anca e suspirava. Não compreendia então os seus suspiros, mas tinha pena dela porque ela gostava de mim e, como eu era criança, dava-me nozes e avelãs. Agora tinha engordado e parecia tranquila. Já não se lhe viam nos olhos as faíscas de cólera e de descontentamento que por vezes se lhe acendiam.

Agora tinha um olhar de mãe, um olhar profundo e seguro.

Estendi-lhe o cartão de identidade sem dizer nada. Desde então tinha crescido muito, tinha mudado e, embora ela se esforçasse por me reconhecer, não conseguia.

- És tu, Selo? E eu que pensava precisamente que me fazias lembrar alguém! Levantou-se, estendeu-me a mão e deu-me uma pancadinha amigável nas costas. Tinha ainda o mesmo sorriso discreto e um fundo de tristeza nos olhos que mal se distinguia.

- Como é que não te reconheci logo? - exclamou e, de repente, baixou os olhos acrescentando- Há já tanto tempo!

Olhei-a enternecido. Acordou em mim uma multidão de recordações, pensei na nossa casa da nossa cidade natal, pois morávamos debaixo do mesmo teto, éramos vizinhos.

Ela casou-se então com um primo nosso que partiu para a América após poucos meses de casamento. Quem sabe quantos anos ela esperou por ele, e só quando recebeu um telegrama anunciando a sua morte, é é que nos deixou, chorosa. Todos nós a acompanhámos à porta principal da nossa casa.

Tinha agora os olhos fixos em mim e crivava-me de perguntas. Queria saber tudo. Enquanto me interrogava acenava com a cabeça, fazendo-me lembrar os tempos antigos e, quando lhe dava uma boa notícia sobre um dos vizinhos, sorria afectuosamente. Pelo que parecia, as recordações não a afectavam muito, como acontece às pessoas que não conheceram a felicidade e vivem sob o efeito de impressões quase apagadas de uma juventude dolorosa. Não, a felicidade dos outros não devia recordar-lhe muito a sua própria infelicidade daqueles tempos. Ela queria que todos fossem felizes.

- É então assim, Selo - dizia ela quando tínhamos de interromper a conversa de vez em quando por causa de algum cliente que vinha pedir a chave ou registar o nome.

- E tu, Fato, como vais? Estás aqui há muito tempo?

- Não estou mal... há quase seis anos que casei. O meu marido é motorista e eu também trabalho, como vês. Temos dois filhos, um rapaz e uma rapariga.

- Que vivam muitos anos... - disse eu, olhando-a afectuosamente e ela compreendeu provavelmente que me dava alegria sabê-lo.

- O meu marido é um anjo... Vai tudo muito bem.

Ela falava com simplicidade. Vi nos seus olhos que devia estar satisfeita, e mesmo feliz. Pouco depois, disse-lhe:

- Tive tanto prazer em ver-te, Fato! A mamã também ficará contente quando lhe falar de ti. Agora vou-me deitar, a viagem cansou-me bastante.

- E por que hás-de ficar no hotel, quando temos a nossa casa? - protestou ela num tom absolutamente natural.

O convite alegrou-me, mas também me espantou. É verdade que crescêramos debaixo do mesmo tecto, ela vivera em casa dos nossos primos, mas agora tudo devia estar esquecido, visto que refizera a sua vida. Como podia ir para a casa dela? Que diria o marido?

- Obrigado, Fato, mas não vou. Não fiques aborrecida.

- Vens sim. Ali ficará satisfeito, tenho-lhe falado de vocês. - E sem mais formalidades, apagou o meu nome meio escrito no registo do hotel.

- Espera só um bocadinho. Daqui a pouco vem uma camarada substituir-me e podemos ir embora.

Fato voltou às suas ocupações, martelando com os saltos os ladrilhos do corredor. Sentei-me numa cadeira, acendi um cigarro, tirei da pasta uma revista que tinha comprado para me entreter e pus-me a folheá-la.

...Saímos do hotel e voltámos a passar pelo caminho por onde eu viera. A noite caíra. Ouvi outra vez o ruído vindo do clube, mas mais ligeiro que há pouco. Ainda lá estavam a jogar o bilhar. Um pouco mais longe, saía gente do cinema. Vi o cartaz à luz pálida do candeeiro. Era um velho filme que tinha visto há muito tempo em Tirana. Pouco depois deixámos a ma principal para metermos por outra rua que seguia ao longo do mar. Aqui ouvia-se distintamente o fluxo e o refluxo rítmico das vagas. Uma ligeira brisa do mar vinha refrescar-nos.

Caminhávamos por vezes em silêncio, outras vezes conversávamos, esforçando-nos por encontrar assuntos comuns que nos pudessem unir sem evocar todo o passado que, sem nós querermos, nos voltava sempre à lembrança. Gostava de admirar o reflexo dos candeeiros eléctricos que se espelhavam na água, aquela luz pálida que despertava sentimentos tão doces. Para lá das cintilações, estendia-se o império azul das ondas e, ao olhar aquela superfície infinita que se perdia na escuridão, pensei em Fato na sua juventude, quando ficava melancólica à janela, o olhar fixo na rua sinuosa de onde as pessoas partiam para não voltar. A alguns passos de distância, a rua virava bruscamente, escondendo-se por trás da montanha. No seu silêncio, a separação naquele tempo era-lhe talvez difícil de suportar.

Mas Fato não evocava esses tempos. Falava da cidade, dos prédios novos construídos na colina, onde ela há pouco arranjara casa.

Ao aproximar-me da casa, senti-me pouco à vontade. Como me receberia o marido dela? Reparei que ela também estava agora menos faladora, mais pensativa. Com efeito, eu não era um hóspede como outro qualquer, era um desconhecido, um parente do primeiro marido. E se Ali não gostasse?

Subimos as escadas escuras e, no segundo andar, Fato tocou à campainha.

- És tu, Fato? - ouvimos lá dentro a voz do marido.

- Abre, abre, trouxe um hóspede! - disse ela um pouco timidamente quando a porta se abriu.

- Que seja bem vindo! - respondeu Ali imediatamente, inclinando ligeiramente o corpo alto e estendendo-me uma grande mão escura. A cara morena e angulosa e o cabelo grisalho nas têmporas davam-lhe um ar de nobreza.

Fato sentia-se embaraçada. Olhava-nos pelo canto do olho, ora para um, ora para outro.

- É Selo, filho do tio Riza. Falei-te deles, lembras-te?

Nos olhos do marido não se via o mínimo sinal de censura ou de espanto,

- Fizeste bem! -disse ele pondo-me a mão sobre o ombro. - Senta-te, Selo...

Ficámos por momentos silenciosos; não sabíamos que dizer. Contudo, sentia-me à vontade, porque Ali olhava-me amigavelmente, fumando um cigarro e, segundo me parecia, com vontade de conversar comigo.

- As crianças estão a dormir? - perguntou Fato.

- Sim, dei-lhes de comer e meti-os na cama... Estás a ver - disse-me sorrindo - como sou bom pai... Fato, traz-nos raki com aquilo que tiveres de meze (1)...

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Nota (1) Meze: acepipes para acompanhar a aguardente.

 

Começámos a beber enquanto conversávamos. A cada ida e vinda, Fato lançava-nos um olhar satisfeito. Duma das vezes que saiu da sala, Ali disse-me:

- Sofreu muito, coitada, à espera uma vida inteira... Mas estava rodeada de pessoas boas... Não se cansa de dizer bem de vocês...

- É verdade, sofreu bastante e todos nós gostávamos muito dela, respondi.

- A vida era assim naquele tempo... - exclamou ele pouco depois.

...Instalaram-me no quarto que dava para o mar. Quando Fato estendia os lençóis de uma brancura irrepreensível, tive a impressão de que éramos de novo vizinhos como dantes, quando a mamã saía para fazer alguma visita e era ela quem me metia na cama. Vi nos seus olhos ligeiramente estrábicos uma alegria silenciosa e, no entanto, pareceu-me ver lá no fundo um toque de nostalgia. Talvez porque a minha presença lhe evocava recordações quase apagadas, aquela velha casa onde crescera.

- O teu marido é muito bom! - disse eu. Ela sorriu e saiu do quarto.

Fiquei sozinho. As recordações e os pensamentos impediam-me de dormir. Acendi um cigarro, apaguei a luz e fiquei a contemplar o mar, na escuridão. Primeiro alonguei os olhos para longe, para a extensão azul ao largo, que parecia engolir todos os bons sentimentos, toda a alegria. Depois, involuntariamente, o olhar fixou-se-me num canto iluminado, onde uma brisa ligeira fazia ondular a superfície dourada. E, embora a luz que se reflectia na água não fosse muito brilhante, era bela, silenciosa e quente.

 

                   O Arco

Debaixo do arco da cidade, havia uma quantidade de lojecas, umas a seguir às outras, latoeiros, sapateiros, etc. Havia também uma loja onde se vendia carne assada e que tinha um bom kukurec (1). O arco era muito antigo. Ninguém sabia em que ano fora construído. Descendo a rua lajeada do mercado, virava-se de repente à esquerda para a penumbra de um longo arco de pedra com velhas paredes enegrecidas pelos tempos. Mesmo com tempo claro, via-se sempre mal ali dentro. Antigamente, quando a cidade não tinha luz eléctrica, os artesãos penduravam nas paredes candeeiros de petróleo ou de azeite, que espalhavam um fumo negro. Mais tarde foram substituídos por candeeiros eléctricos. Sempre que se entrava ali, ouvia-se o barulho do martelo dos sapateiros e dos latoeiros. Para se distraírem, os artesãos arreliavam-se muitas vezes uns aos outros e por vezes divertiam-se a fazer troça de um tal Hazis, um pobre de espírito, vendedor ambulante e para lhe conquistarem as boas graças ofereciam-lhe café. O café de Zeqo ficava em frente do arco e o patrão costumava mandar o filho com uma bandeja às lojas vizinhas.

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Nota (1) Kukurek: miúdos e pedaços de carne assados no espeto.

 

Hazis tomava o café e, se estava de bom humor, contava histórias da sua juventude. Incitavam-no principalmente a falar das suas ligações amorosas e ele, mostrando os raros dentes amarelecidos num riso maldoso, contava pela centésima vez a mesma história. Os artesãos escutavam-no com prazer e riam-se por sua vez. "És um malandro de primeira - diziam-lhe - fizeste-as boas quando eras novo!" e, regressando às suas preocupações, recomeçavam a bater o metal ou as peles. Esforçavam-se por acabar o mais depressa possível o que tinham em mãos, para "ganhar uns tostões", como costumavam dizer.

Debaixo do arco passava todo o género de pessoas; mulheres que iam ao mercado comprar legumes, velhas que se arrastavam com dificuldade, gemendo, jovens que passavam como um relâmpago sem olharem para as lojas, camponeses com os cavalos ou os burros carregados e muitos outros. Quando passava uma rapariga, o artesão ou os aprendizes davam cotoveladas entre si mas ninguém dizia nada enquanto ela não tivesse saído, porque na cidade todos se conheciam uns aos outros. Depois começavam: "Ouve lá, não viste como ela se bamboleia?..."

Debaixo daquele arco viviam, por assim dizer, fechados dentro de um ventre de pedra, na semi-obscuridade. Trabalhavam, contavam anedotas, as suas preocupações de família, iam beber um copo ao café em frente e era tudo.

Mesmo depois da libertação, embora a vida tivesse mudado, o arco e as lojas ficaram tal e qual. Abriram lojas novas no mercado. Alguns grandes negociantes foram presos por especulação, por infracção à lei das contribuições ou por receptação de ouro. Outros ficaram sem trabalho, correndo de um café para o outro. Alguns começaram a vender nas ruas. Nas lojas do centro da cidade instalou-se a cooperativa. Os pequenos e médios comerciantes enterraram-se em barracas minúsculas. O café de Zeqo foi também tomado e deram-lhe um buraco no arco. Os artesãos ficaram temporariamente no mesmo sítio e ficaram contentes por Zeqo ter ido para o pé deles porque fazia bom café, tinha raki e além disso era bom conversador.

Como no resto da cidade, também debaixo do arco passavam soldados, jovens a cantar e pioneiros a correr. Alguns artesãos olhavam-nos com um sorriso nos lábios, mas outros nem sequer levantavam a cabeça do trabalho.

Era numa dessas lojecas do arco que se instalara também o latoeiro Idriz Sinani. Viam-se aí pendurados na parede candeeiros, caixas de ferro branco, redondas, que serviam para fazer candeeiros de petróleo, jarros, almotolias e outros recipientes. No cartaz suspenso por cima da porta lía-se o seu nome escrito com letras mal feitas, com um grande ponto a separar o nome do apelido. Idriz trabalhava cuidadosamente e tinha muitos clientes, quer da cidade quer camponeses. As pessoas disputavam-lhe os candeeiros de azeite, especialmente quando o petróleo faltou durante algum tempo. Eram os camponeses quem lhos comprava, visto que não tinham electricidade. Durante esse período, só se viam candeeiros de azeite na loja, e ele trabalhava de manhã à noite. Comia qualquer coisa em cima do joelho, tomava um café no Zeqo e voltava à pressa a pegar na tesoura e no martelo.

De carácter rabujento, falava pouco e não permitia regateios. Sempre com o boné na cabeça, que levantava por cima da testa, e a beata ao canto da boca, o rosto encarquilhado, saía do arco e ia directamente para casa. O filho, Maio, andava no liceu. Não quis tirá-lo dos estudos porque era bom aluno e só pensava nos livros, mas ajudava-o no trabalho durante as férias grandes. O rapaz esforçava-se por fazer as coisas o melhor possível mas não tinha muito jeito. "Foi feito para os livros", dizia o pai. Idriz tinha também duas filhas, a mais velha das quais andava na escola primária, a mulher e a mãe.

Interessado no lucro, andava sempre pensativo, como se todas as preocupações do mundo lhe tivessem caído em cima. A mãe dizia-lhe muitas vezes: "Não exageres, meu filho! Que ganhou o teu pai em trabalhar como um negro durante toda a vida?" "Achas? respondia ele. Quem sabe o que nos reserva o futuro?" "Que nos pode suceder?"

exclamava a mulher descontente, que não gostava de o ouvir falar assim. "É preciso educar as crianças - replicava ele - o que ganhamos não é suficiente para eles continuarem os estudos". "Faremos como as outras pessoas!..." protestava ela. Idriz tratava de pôr algum dinheiro de parte. Corria o boato de que ia recomeçar a guerra. Alguns comerciantes tinham sido despojados de todos os seus haveres. Quanto aos agás, estavam de rastos. Não se correria o risco de chegar a vez a Idriz e aos outros? Não era de temer que lhe fechassem a loja no arco e o obrigassem a ir trabalhar com uma picareta? É claro que nada tinha de comum com os ricaços! Toda a vida detestara e invejara essa má raça que todas as noites contava e recontava os luíses de ouro. Quando pensava nisso, os olhitos pequenos, mergulhados nas órbitas, brilhavam-lhe fortemente, sobressaindo naquela cara terrosa e desagradável. Idriz não era muito sociável mas gostava da companhia de Zeqo. À noite, depois de fechar a loja, ia ao café do arco, instalava-se num canto e mandava vir raki com mezes.

Uma noite em que estava melancólico bebeu mais do que o costume. Estava sentado com um amigo, mas este saiu pouco depois e ele ficou só. Beberricava o copo de aguardente, com o olhar fixo no arco mal iluminado. Nas outras mesas, os clientes riam entre si - alguns artesãos tinham convidado um jovem oficial e faziam-lhe saúdes. O oficial tinha regressado depois de uma longa ausência.

Chovia. Ouvia-se o ruído monótono dos pingos de chuva que caíam dos beirais sobre as lajes da rua. O arco estava protegido, mas pingava nalguns sítios. Pouco depois, todos saíram do café e só ficou Idriz. Zeqo, alto como um fueiro, estava de pé por trás do balcão e olhava espantado o último cliente que, pelo que parecia, não tinha intenção de partir.

- Traz-me mais um copo, Zeqo.

- Que tens tu esta noite? - perguntou o dono do café, com um sorriso nos lábios.

- Apeteceu-me!

- Não está nos teus hábitos...

- Ora, de vez em quando... Traz um copo para ti e vem para aqui beber.

Zeqo, com a garrafa na mão, foi sentar-se com o amigo. Olharam um para o outro, sem nada dizer. Chovia a cântaros. O arco estava húmido. Estremeceram. Não se via passar ninguém.

- Esta maldita chuva!

- Não há meio de parar.

Idriz não estava sossegado. Alguma coisa o roía, para ficar até tão tarde no café. Calava-se, com os olhos fixos numa fenda do arco. De vez em quando fazia menção de falar, mas Zeco mostrava-se reservado.

- Ouviste dizer que vão criar uma cooperativa de latoeiros? - perguntou por fim.

- Não, não estou ao corrente. Esvaziaram os copos.

- É o fim de tudo! continuou Idriz. Parece que vão fechar todas as lojas. Dizem que não haverá mais lojas no arco.

- Custa-me a acreditar...-exclamou Zeqo pensativo. Quanto à criação da cooperativa, não digo que não... Mas tudo depende de ti. És livre de não entrares, se não quiseres.

- Obrigam-nos a entrar à força...

- Não, isso não é verdade.

- É sim. Dizem que é para o nosso bem mas, acredita-me, não me interessa. Não quero mudar os meus hábitos. Além disso, quando trabalhamos na nossa própria loja, sabemos o que estamos a fazer, temos os nossos clientes. E lá recebe-se o salário e... Não posso trabalhar em comum. Sempre estive sozinho naquela gaiola desde que o meu falecido pai me ensinou o ofício... É verdade que é escura e húmida, mas não peço mais... Foi graças àquela loja que pude dar de comer aos filhos. Não temos

ouro guardado para os maus dias... Não devemos lamentar os comerciantes que esconderam o ouro e o hão-de tirar cá para fora quando se apresentar a ocasião. Somos nós, Zeqo, nós é que somos de lamentar...

- Não te preocupes, deus nos ajudará, disse Zeqo para lhe levantar o moral. Esvazia o copo e vamos para casa. É tarde.

O dono do café fechou a porta. Despediram-se e partiram em direcções opostas. Ao passar em frente da loja, Idriz lançou um olhar triste e amedrontado aos taipais de ferro, detendo-se por um momento. Sentiu de repente a garganta apertar-se-lhe, uma angústia, uma sensação estranha e inexplicável, como uma bola envenenada que se formara no seu íntimo ao longo de todos aqueles anos. Depois levantou a gola do sobretudo, abaixou o boné e foi para casa.

 

Efectivamente não tardou a formar-se a cooperativa dos latoeiros e também outras cooperativas artesanais. A grande maioria dos latoeiros da cidade instalou-se numa casa espaçosa ao fundo da rua, ao lado das grandes lojas da cidade. No arco só ficaram Idriz e mais dois, assim como alguns sapateiros. A vida perdeu a sua animação.

Já não era o mesmo alarido, o martelar contínuo dos martelos. De tempos a tempos ouviam-se umas marteladas surdas, isoladas. Idriz sentia-se muito só, mas pouco se importava, uma vez que o não tinham obrigado a incorporar-se na cooperativa e continuava a trabalhar como dantes. Clientes, tinha em abundância. Verificava mesmo, com uma alegria diabólica, que a princípio as pessoas preferiam comprar aos particulares embora fosse mais caro.

As vezes os latoeiros da cooperativa vinham ter com os antigos companheiros e tomar um copo no Zeqo. Haziz. o vendedor ambulante, passava gritando a sua lenga-lenga...

"Linhas brancas, linhas pretas, botões de cor, boa qualidade... baratos..." Mas agora era mais raro interpelarem-no e mais raro oferecerem-lhe de beber. As suas visitas tornaram-se menos frequentes e Idriz, que o notou, desesperava. Tomara o hábito, durante anos, de ouvir aquela voz arrastada e monocórdica e faltava-lhe qualquer coisa quando a ouvia. Um dia houve alguém que o deteve: "Anda cá contar-nos a história dos teus primeiros amores"; mas Haziz fez de conta que não ouviu e passou de baixo do arco sem virar a cabeça, com o que ia na mão. Desgostoso, Idriz seguiu com os olhos aquele pobre diabo andrajoso, sujo e de longos cabelos hirsutos.

Apesar de tudo, Idriz sentir-se-ia completa-mente bem na atmosfera pesada do arco agonizante, onde os artesãos se olhavam pelo canto do olho para esconderem o desespero e a incerteza que os roíam, se não fossem os numerosos impostos que o "sufocavam", como dizia muitas vezes. Não podia satisfazer o seu pecadilho de por dinheiro de parte. Não queria "reduzir-se" à situação dos empregados ou dos da cooperativa que "estendiam a mão" ao fim de cada quinzena ou de cada mês para receber o salário, pois de outro modo "rebentavam de fome". Por isso vendia mais caro às pessoas que não conhecia, nunca aceitando regatear. Se algum se queixasse do preço demasiado alto, respondia sem mesmo levantar a cabeça: "Não, não, é dado... E os impostos que nos caiem em cima?"

Acontecia-lhe muitas vezes passar pela cooperativa dos latoeiros, onde tinha uma quantidade de antigos companheiros. Trabalhavam uns ao lado dos outros e de longe ouvia-se já o barulho dos martelos. Era um barulho bem vivo, unido, mais forte do que quando estavam no arco. Idriz sentia-se mal disposto, parecia-lhe que os martelos lhe batiam na cabeça. Cumprimentava-os à pressa e ia-se embora. "Anda cá, Idríz, senta-te aqui um bocadinho connosco", diziam eles. "Não tenho tempo, tenho que fazer, respondia ele. Além disso, vocês estão na cooperativa, quem vos deixa conversar?" - acrescentava para os arreliar, mas ninguém se ofendia com aquelas piadas.

Era o que dizia, mas Idriz andava roído pela dúvida, pela incerteza do dia seguinte e isso fortaleceu-lhe a resolução de não entrar para a cooperativa. Via que muita gente, incluindo pessoas suas conhecidas e parentes, tinham aprendido a viver melhor, mandavam os filhos para a escola e não se queixavam. Contudo acontecia por vezes que, no fim da quinzena, um deles lhe vinha pedir algum dinheiro emprestado. Ria-se então à socapa, os olhos brilhavam-lhe e tirava algumas notas de cem leks do fundo de uma mala cuja chave trazia sempre consigo.

Ao contrário dos seus que andavam sempre bem vestidos, Idriz vestia-se com negligência. Saía à rua com umas calças todas remendadas e sempre com o mesmo boné sebento na cabeça. A mulher e a mãe diziam-lhe para entrar para a cooperativa, como os companheiros, mas ele zangava-se e respondia-lhes que o deixassem em paz, pois nada compreendiam dessas coisas. Durante vários dias guardava-lhes rancor e não lhes dirigia a palavra. Ao ouvir aquelas discussões, Maio levantava a cabeça dos livros e lançava ao pai um olhar interrogador e de reprovação. A princípio calava-se, continha-se. Um dia, quando todos estavam à mesa a comer do mesmo prato, segundo o antigo costume, a mulher perguntou:

- Como correram as coisas hoje?

- Assim assim...

- Disseram-me que só ficaram três debaixo do arco, - acrescentou ela pouco depois.

Idriz olhou-a de viés, sem responder e continuou a comer a sopa.

- Isso não pode continuar assim! - disse a mãe -Faz como os teus companheiros. Porque nos hás-de pôr à margem da sociedade?

- Deixem-me comer a sopa sossegado... Não posso fazer como os outros, mesmo que me obriguem ou que me enforquem, se quiserem. O quê, depender dos outros? Não percebem que trabalho como um demónio para vocês? Vejam as minhas calças. Ando a mourejar de manhã à noite e vocês ainda não estão contentes...

Cada pessoa cortava um bocadinho de pão de milho e molhava-o na sopa.

- Que porcaria de guisado que vocês fizeram! - exclamou Tdriz.

Maio parou de comer e fixou o pai nos olhos. Enchendo-se de coragem, disse:

- Não tens razão, papá!

- Também tu, garoto? Cala o bico, que ainda não tens idade para falar!

Maio agarrou-lhe o braço, sem perceber bem como teve a audácia de contradizer o pai e de se defender.

- Papá, nunca me permiti criticar-te, mas por que não entras também para a cooperativa? Estou na escola onde nos ensinam muitas coisas e tenho vergonha perante os meus companheiros de ser filho de um homem que trabalha por conta própria. Quero ser como eles...

- Cala-te, malandro... Tens então vergonha do teu pai, hem?

O rapaz não respondeu. Depois do jantar, o pai e o filho evitaram olhar-se. Apesar de Maio ser seu filho, que ele próprio tinha educado, sentiu nas suas palavras uma força escondida que o espantou. Maio tinha quase todos do seu lado, os cooperativistas, as mulheres da casa, a escola, tudo o que se ligava à nova vida.

 

De natureza pouco sociável, Idriz raramente visitava os amigos ou os primos. "Aquele faz vida à parte - diziam dele alguns velhos parentes. Só se interessa pela sua pessoa". Mais frequentemente ia a casa de uma das tias, a tia Merzo que morava sozinha do lado de lá do rio. Não tinha filhos e o marido, um usuário, morrera há alguns anos. Dizia-se que lhe deixara muito dinheiro, mas a tia não parava de se lamentar, vivia mal e raramente saía. Fechava-se na sua enorme casa de beiral saliente, sob o qual se liam inscrições árabes. Quando o vento soprava com força, todas as portas estremeciam. Antigamente a família tinha muitos criados e ela recebia muito, mas depois de os tempos terem mudado e após a morte do marido, Merzo vivia sozinha em casa, cheia de temores. Contava-se que no Inverno, quando havia temporal, fechava a porta com uma grande arca onde escondia o ouro. Era o que diziam as más línguas; mas Idriz nunca a vira fazer isso e não sabia onde é que ela escondia o seu pecúlio. Devia ter o seu pé de meia, mas não se confessava a ninguém. Que pensaria ela fazer? Para quem guardava o dinheiro? Não percebia que estava já com os pés para a cova?

Nos últimos tempos, a tia Merzo caíra doente e não se sabia quando se poderia levantar da cama. A irmã, mãe de Idriz, e ele próprio convidaram-na diversas vezes para vir para casa deles para a tratarem. A princípio recusou. Não queria deixar a casa, mas depois mudou de opinião. Um dia, a irmã e o sobrinho foram buscá-la.

Vestiram-na de preto, sem esquecerem o grande lenço da cabeça e, segurando-a pelos braços, passaram com ela pelo mercado. Pálida como a morte, arrastava com grande dificuldades as pernas descarnadas. Instalaram-na no quarto de hóspedes que tinha um roupeiro, um armário e um tecto admiravelmente decorado. Na parede em frente da cama, estava pendurada uma grande fotografia do pai de Idriz, com os seus bigodes bem lustrosos e o boné preto na cabeça. A tia não podia suportar a luz crua

e, com excepção de uma janela a um canto, todas as gelosias estavam fechadas de modo que o quarto ficava quase mergulhado na escuridão. A velha não deixava ninguém vesti-la ou despi-la. Era cuidadosa consigo, asseada, mudava de roupa sozinha e não queria que a vissem quando tirava a camisa, nem mesmo a irmã. Aquilo surpreendia-os a todos. Pensavam que se tinha tornado maníaca na velhice, que tinha voltado à infância e que era de temer que perdesse a razão de um dia para o outro. No meio do quarto ardia uma braseira. Muitas vezes, as duas filhas de Idriz vinham tratar da tia e sentavam-se junto do lume. A mais velha, que andava na escola, fazia os deveres e a mais nova brincava, fingindo escrever também num caderno. A princípio a velha suportava-as porque também se aborrecia ali sozinha naquele grande quarto, mas pouco depois os gritos da pequenita faziam-lhe dores de cabeça e dizia:

- Cala-te, vá, fazes-me vertigens!

A pequenita assustava-se com aqueles grandes olhos avermelhados no rosto magro da velha tia e rebentava em soluços.

Idriz continuava com a mesma vida. Umas vezes vinha de mau humor, de outras vezes contente, segundo o volume dos negócios e as conversas que tivera com os companheiros.

Ia agora mais vezes ao café de Zeqo e acontecia-lhe sair agarrado às paredes.

Um dia, entrou bêbado no quarto da tia, sentou-se junto da braseira e pôs-se a enrolar um cigarro. Estavam os dois sós.

- Como vais, tia?

- Mal, meu filho.

- Mas que tens afinal? Nem o médico sabe. Diz que é velhice. Se calhar preocupas-te demasiado e no fundo tens razão. Estavas tão bem e eis ao que ficaste reduzida.

Andas preocupada, pobre tia...

Merzo respondeu, contrariada:

- Não, meu filho, não tenho razão nenhuma para me preocupar. Agora estou convosco.

- Vamos lá, tiazinha, não posso acreditar que não tenhas nada. Mas temos contas à parte...

Há mais de um mês que aqui estás e temos feito despesa contigo. Hás-de desculpar a minha franqueza, mas pensa na nossa situação. De que vivemos nós? Daquela lojeca debaixo do arco. Tira cá para fora o teu dinheiro e vais ver o que faço por ti... Para mim com pouco me contento... Estás no fim dos teus dias, pobre tia, espero que não penses levá-lo contigo... - e Idriz pôs-se a rir.

- Que estás tu a dizer, não tenho um tostão! Se me atiras à cara o pão que me dás, vou-me embora já amanhã. Não quero estar às sopas de ninguém! Vocês é que me foram buscar... - Nesta altura empalideceu ainda mais, olhou encolerizada para Idriz e calou-se.

Não, não te atiro nada à cara, continuou Idriz. Mas que vais tu fazer a esse dinheiro?... Os tempos mudaram, querida tia, a vida é difícil... Querem calcar-nos aos pés. Os mais fracos sucumbem, os mais fortes resistem, mas como nos havemos de aguentar se não temos nada de lado? Aparentemente dir-se-ia que o dinheiro não tem já o mesmo valor que antigamente, mas isso são histórias... Quantas manobras se podem fazer sem o governo saber... E depois, quem sabe o que nos espera?

- Não acredites nisso, Idriz, entreguei tudo o que tinha. Mas tens razão no que acabas de dizer. Quem iria pensar que houvesse uma tal razia! Enterraram-nos vivos.

Sufocamos.

- Estás a falar de ti, mas comigo é diferente. É preciso ter miolos. Durante algum tempo ganhei bem, mas com estes impostos, devoram-nos a alma. Mas não nos renderemos assim tão facilmente. Tu por exemplo, vê lá, sofres, mas ainda resistes...

- Que estás tu a dizer? Devias ter pena da tua tia.

- Não te zangues, disse isto como exemplo... Mas fica sabendo que isso me preocupa. Não sei como as coisas se passarão, mas Idriz Sinani não dobra facilmente a espinha...

Não peço nada, não aspiro a ter propriedades e riquezas, como vocês, só quero que me deixem trabalhar tranquilamente no meu cantinho...

Depois calaram-se. A velha tia recomeçou a gemer. Idriz remexia as brasas com a tenaz.

 

Idriz levava geralmente o almoço quando ia para o trabalho, mas um dia em que estava com pressa, pediu que lho mandassem por Maio assim que ele viesse da escola.

O rapaz pegou no que lhe deram e começou a descer a encosta. A casa deles ficava no alto de uma calçada de onde se via a cidade, as planícies e o rio. O tempo estava bonito, o dia quente, apesar de se estar já no Inverno. Maio passeava a vista por todo o lado, observava os telhados brancos, as montanhas nuas, as colinas e sentia-se invadido por uma grande alegria. De onde lhe vinha aquela alegria? Não sabia, mas era coisa que lhe acontecia muitas vezes, tanto nas aulas como quando passeava com os companheiros ou quando fazia os trabalhos de casa. Naquele dia sentia-se contente talvez porque o professor de história lhes tinha falado apaixonadamente da época de Scanderbeg, da primeira batalha contra os Turcos. Descrevera-a com todos os pormenores, segundo a obra de Fan Noli e os alunos tinham imaginado claramente a maneira como se desenrolara. Maio esforçava-se, enquanto caminhava, por evocar aquele período, aquelas batalhas, por compreender em que consistia a força desse grande albanês. Além disso, havia ainda outra razão para estar alegre. Nesse dia uma companheira da aula, com o uniforme brilhante de gola branca da escola, tinha-lhe feito olhos ternos. Era a primeira vez que experimentava o encanto de um tal olhar e tremera dos pés à cabeça, como se fosse tomado por uma força mágica. Para Maio, tudo era belo na vida, com excepção de uns raros momentos em família, quando o pai se punha com ares sombrios. Então obscurecia-se um pouco o claro horizonte dos seus pensamentos e caía numa melancolia inexplicável, mas esse estado de coisas não durava muito tempo.

Apressava agora o passo, já não olhava para o céu nem para a cidade banhada pelos doces raios de sol, tão agradáveis no inverno. Tudo o que se estendia ou se ouvia debaixo daquele sol era para ele fonte de felicidade e de alegria. Estudaria, iria para a universidade como muitos outros companheiros e a família viveria melhor.

O pai deixaria de se lamentar, talvez se tornasse menos rabujento.

Perto do arco encontrava-se a mesquita. Maio nunca entrara aí. Considerava o muezzin, que do alto do minarete chamava os fiéis à oração, como uma pessoa totalmente estranha. Aquele pequeno mundo ali fechado dava-lhe vontade de rir. Quando era mais pequeno, ele e os companheiros espreitavam às escondidas, pelas grades das janelas em ogiva, os tapetes, as peles de cordeiro, a grande sala vazia e alguns aros e crentes, ajoelhados, com os olhos fixos no céu.Mas agora perdera a curiosidade e passava-lhe em frente sem prestar atenção.

Nesse lindo dia, o sol lançava os seus raios docemente sobre os telhados, as lajes, as pedras brancas, tudo o que rodeava o arco. O olhar fixou-se-lhe involuntariamente na entrada da velha loja e ficou impressionado pelo contraste entre a goela negra que se abria na sua frente e a luz resplandecente do dia. O coração apertou-se-lhe.

Atrasou o passo e entrou no arco. A escuridão assustou-o. Os seus passos isolados martelavam as lajes. Olhou como se fosse pela primeira vez as paredes esverdeadas que escorriam humidade apesar do dia de sol. As lojas, agora mais raras, deram-lhe uma sensação de desolação. Era aqui que o pai ainda trabalhava? Sentiu um nó formar-se na garganta.

A loja de Idriz estava fechada, estaria ele no café? Maio dirigiu-se para lá, com o embrulho na mão, indo encontrar o pai a beber.

- Trazes-me o almoço? - perguntou.

- Sim, papá.

- Desculpa ter-te dado esse trabalho, mas não tenho fome, podes levá-lo.

Maio ficou preso ao chão.

- Vem para casa, papá. A mamã vai ficar preocupada. Já bebeste bastante.

- Não, meu filho, não bebi nada. Porquê, tenho ar de bêbado? Eu e o Zeqo temos uns assuntos a tratar. Vai tu que eu já lá vou ter.

Maio foi-se embora de cabeça baixa. O pai seguiu-o com os olhos, preocupado, enquanto ouvia os passos lentos sobre as lajes. Sentiu-se subitamente angustiado.

Naquele dia, outro latoeiro tinha fechado a loja no arco e fora para a cooperativa sem dizer nada a ninguém. Idriz que sofria com a solidão e a incerteza do amanhã, sentia-se desesperado. Agora só lhe restavam dois companheiros que trabalhavam silenciosamente sem nunca falarem das suas dificuldades ou das suas preocupações, raramente dirigindo a palavra uns aos outros.

Zeqo foi sentar-se à mesa do amigo e, seguin-do-lhe o fio dos pensamentos, disse em voz baixa:

- Não há dúvida que estamos em apuros, meu caro Idriz, mas não te preocupes tanto. Olha para o meu caso, o negócio está parado. Pensei em continuar como dantes, mas é trabalho perdido; os lucros diminuem a olhos vistos, é o Estado que os leva. Além disso, já ninguém vem aqui para esta escuridão. Penso ir trabalhar para um café do Estado.

Idriz escutava-o de cabeça baixa, sem nada dizer. E ele, que iria fazer? Talvez devesse ter entrado para a cooperativa logo a princípio, para não ter agora tanto que sofrer. Não, não, não o suportaria. Mais valia morrer ali no arco. Trabalharia como um forçado, pagaria todos os impostos, mas não se submeteria como os outros.

E havia de ganhar mais do que eles para lhes fazer raiva, sim, por despeito...

- Tomamos mais um copo, Zeqo! Trabalhou toda a tarde e à noite voltou para casa. Deitou-se cedo mas o sono foi-lhe interrompido por pesadelos. Quando acordava, ouvia os gemidos da tia Merzo no quarto ao lado. Nessa noite a velhota sentia-se muito mal. "Faz-nos a vida impossível, essa tia'", pensou ele. Sonolento, tinha a impressão de quelos martelos de uma multidão de latoeiros batiam o metal em cima da sua cabeça, rindo maldosamente. Esforçou-se por afastar aquele pesadelo, mas em vão. As caras tomavam uma forma estranha, alongada. O ritmo das marteladas ia aumentando. Quis gritar mas subitamente os olhos abriram-se-lhe. Arquejava. A mulher e os filhos dormiam. A tia Merzo continuava

a gemer.

Idriz acordou. Tinha frio e debatia-se na cama absorto nos seus pensamentos. "A quem deixaria a tia Merzo o dinheiro quando morresse? Onde o poderia ter escondido?

Trá-lo-ia consigo, visto não deixar ninguém entrar no quarto quando se despia? Talvez o tivesse dito à irmã que por enquanto se calava, mas mais tarde a sua mãe revelar-lhe-ia o segredo, porque nada escondia ao filho".

Enchia-se de alegria, os olhos a brilhar como num acesso de febre, ao pensar que um dia se havia de apossar do pecúlio da tia. Diria então "adeus" à pobreza de uma vez para sempre. Tê-lo-ia escondido no corpo enrugado? Se o encontrasse não diria a ninguém, escondê-lo-ia em qualquer lado e guardá-lo-ia. Em caso de necessidade, levantaria o que precisasse. Durante toda a vida tivera a sede do ouro. O pai também sonhara ser rico, mas no fim de contas conseguira apenas montar uma lojeca.

Agora é proibido trocar ouro, já não se pode enriquecer como antigamente, "mas este metal precioso continua a ter o seu valor. Além disso, ninguém sabe o que pode acontecer!"

Era nisto que pensava naquela noite o latoeiro Idriz Sinani, às voltas na cama. Estava frio. A casa estava mergulhada num silêncio completo.

A tia Merzo acalmava-se por instantes e depois recomeçava a gemer. Subitamente, já bem depois da meia-noite, a velha começou a gritar de dor. Idriz levantou-se na ponta dos pés para não acordar a mulher e os filhos e foi vê-la. Os olhos encovados da moribunda assustaram-no, a irmã estava à sua cabeceira.

- Que tens, tia?

- Estou muito mal, vou morrer!...

- Nada disso, tia, não tenhas medo, a tua cara respira saúde...

- Qual saúde, filho! Estou a morrer... Ai... Ai!

- Que podemos fazer? - perguntou-lhe a mãe.

- Onde iremos a esta hora da noite?

A tia Merzo metia medo, com os cabelos grisalhos dispersos na almofada, os olhos semicer-rados e aqueles gemidos intermináveis.

- Vou morrer, dizia ela com um fio de voz. Tirando a minha irmã, mais ninguém me lamentará... Depois a voz apagou-se-lhe e daí a pouco expirava. A irmã rebentou

em soluços, mas Idriz ficou impassível.

- Cala-te, mamã! - disse ele abraçando-a. - Farias melhor em sair daqui, ainda te vais sentir mal. Sai!

- Onde me levas assim?

- Sai, digo-te eu! - Idriz empalideceu e obrigou a mãe a sair do quarto quase à força. - Ninguém deve entrar aqui, perceberam? - gritou.

Como um leão,na jahla, andou às voltas no quarto durante alguns iimantes, quando subitamente pensou em fechar a porta por dentro encostando-lhe a arca, como fazia a tia, segundo diziam. "Sim, é isso, com a arca, com a arca!", repetiu ele várias vezes arrastando com grande barulho a pesada arca. No outro quarto, a família chorava. Idriz precipitou-se sobre a morta, apalpou febrilmente o corpo ainda quente e sentiu um objecto duro em volta da cintura. Levantou a camisa, a camisola de lã e viu uma cartucheira.

Desprendeu-a com dificuldade, voltou a cobrir com o edredão a morta que o gelava de medo e levantou bem alto o seu achado, com os olhos a brilhar de alegria. "Encontrei-o!

- exclamou - Há aqui ouro!" e começou a apalpar, com as mãos a tremer, o que estava apertado dentro dos bolsinhos, para evitar que tilintasse.

- Encontrei-o! - gritou em voz alta, mas logo se calou, assustado com a idéia de que estava a enlouquecer.

- Abre a porta! - implorava a mulher. Mas ele não se mexia, preso ao chão, apertando o dinheiro de encontro ao peito.

- Abre a porta!

De repente, Maio empurrou a porta bruscamente e esta cedeu. As duas mulheres entraram assustadas, cheias de espanto. Compreenderam imediatamente o que se passara ao verem a cartucheira que ele tinha na mão. A mãe chorava, a mulher esforçava-se por lha tirar, mas ele não a largava.

- Agora estamos salvos! Temos ouro! -gritou Idriz escapando à mulher, com a cartucheira pendente no braço.

Maio ficou na soleira da porta, mortificado, pálido de cólera. Tinha a impressão de que perdera tudo - os sonhos, a esperança, os sentimentos da juventude, o amor pelas pessoas. Já não conseguia pensar com clareza. Uma angústia até então desconhecida tomou-lhe a garganta. O pai não era um homem, mas um cão que corria atrás do dinheiro. Fechara-se no quarto com a morta, esquecendo tudo. Deve ter enlouquecido, de outra maneira seria impossível... Como se podem fazer tais coisas por dinheiro?!

O rapaz não pode suportar durante mais tempo aquele estado de coisas. Correu apressadamente ao quarto, vestiu-se e saiu.

- Onde foi o Maio? - perguntou a mãe tremendo dos pés à cabeça.

Ao ouvir estas palavras, ldriz voltou a si subitamente. Saiu como um furacão, desceu as escadas e parou em frente da porta. A madrugada nascera, mas ainda se não via bem.

- Maio! Maio! Volta, onde vais a estas horas da noite? - gritou desesperadamente.

Maio descia a encosta caminhando sobre as pedras. Estava já demasiado longe para ouvir a voz do pai.

 

                   O Julgamento de um Guerrilheiro

Durante a operação militar do inverno de 1944, o hospital dos guerrilheiros tinha sido evacuado da região de Kurvelesh e instalado numa aldeia para lá do monte de Lunxheri. Foi aí que se fixou também o conselho de libertação nacional da circunscrição. De passagem, muitos outros guerrilheiros se detinham aí. A aldeia era grande, no sopé da montanha e ficava em frente de uma garganta por onde corria um vento glacial.

O hospital ficara instalado na escola, perto da igreja que dava para um grande largo onde se erguia um velho carvalho. O médico, depois de ter visitado os doentes e os feridos, saiu para a rua principal naquela manhã de Fevereiro. O tempo estava bom, a terra acinzentada, as árvores nuas e as montanhas brilhavam cobertas de brancura. Tudo parecia mergulhado numa calma eterna. Aquele canto estava provisoriamente tranqüilo, após os combates com o inimigo durante a retirada difícil, esgotante e perigosa do hospital nas montanhas de Kurvelesh.

Na rua e no largo em frente da igreja havia um constante vaivém de guerrilheiros. Muito perto, a cozinha rolante preparava o almoço. Da casa onde se instalara o conselho de libertação nacional, ouviam-se de vez em quando vozes e chamadas telefônicas.

Era preciso gritar, porque os aparelhos geralmente funcionavam mal. O médico, com o chapéu branco ornado da estrela vermelha dos guerrilheiros e o capote militar, passava na rua absorto nos seus pensamentos, a fumar um cigarro.

Andava pelos vinte e cinco anos e estudara alguns anos de medicina em Itália, sem ter contudo terminado o curso por causa da guerra. Já então simpatizava com as idéias comunistas e, assim que regressou à Albânia, ligou-se ao movimento de libertação nacional. Fez-se guerrilheiro, incorporou-se no batalhão e foi logo nomeado responsável principal por um hospital, quando da constituição dos hospitais guerrilheiros que estavam instalados nas zonas libertadas. As necessidades da guerra eram grandes e. apesar de não ser diplomado, foi encarregado de uma pesada tarefa. Todos lhe chamavam "doutor". A princípio o título fazia-o sorrir, mas depois habituou-se.

- Bom dia, doutor!

- Como estás?, saudavam-no quando passava com o cigarro ao canto da boca. Reparou na sua frente num grupo de guerrilheiros e de camponeses. Parou e viu então entre eles dois soldados alemães que tinham sido feitos prisioneiros. Um deles era alto e loiro, o outro baixo e magro. Este último tentava desviar a vista, mas o mais alto olhava toda a gente nos olhos, como a suplicar, com um sorriso amarelo.

- Não sou alemão, sou austríaco... -dizia de vez em quando.

- Não matei guerrilheiros, (traduzia um guerrilheiro que sabia algumas palavras de alemão).

O outro calava-se, enfiado no capote com a gola levantada.

- Ora, ora, bem te conhecemos... agora tornaste-te austríaco - exclamou um deles.

- Pode ser que seja, -disse outro.

O doutor olhou fixamente os dois soldados. Quem sabe de onde vinham? Talvez pensassem nos filhos, nos pais, amaldiçoassem a guerra que os havia reduzido àquele estado nessa aldeia perdida do sul da Albânia que só com grande dificuldade descobririam no mapa, se estivessem na terra deles. Mas talvez também, se voltassem para o pé dos companheiros, se tornassem de novo selvagens e pusessem tudo a ferro e fogo.

- Como vai isso, camarada doutor, e a ferida de Sheme cicatriza? - perguntou um guerrilheiro passando-lhe um braço por cima do ombro.

- Não vai mal, Selo... Sheme está melhor, acho que está livre de perigo.

- Camarada doutor, - veio dizer-lhe subitamente um guerrilheiro do comando da praça - chamam-no ao conselho.

- Vou já, camarada.

Olhou mais uma vez para os dois soldados, cumprimentou aquele que lhe tinha passado o braço por cima do ombro e afastou-se. "Porque será que me chamam?", pensou ele. "Com certeza por qualquer assunto referente ao hospital", e apressou o passo.

No gabinete do Conselho estavam dois camaradas do estado maior do batalhão que se instalara na aldeia.

- Bom dia! - disseram eles sem lhe apertar a mão nem o olharem nos olhos. Teve a impressão de que o saudavam friamente.

- Quem me mandou chamar? - perguntou.

- Um momento. Os outros camaradas não se demoram.

O doutor sentou-se num canto e acendeu um cigarro. "Porque me chamaram e que significa esta frieza?" pensava ele, lançando de vez em quando um olhar para os dois camaradas do batalhão que conversavam em voz baixa. A janela dava para os telhados das casas vizinhas. Via-se daí a aldeia iluminada pelo sol e, mais abaixo, a torrente.

"Um lindo dia", disse para consigo "seria bom trazer cá para fora os doentes que possam andar".

Pouco depois, entraram um a um, um camarada do estado maior da zona de operações, um membro do Conselho, uma camarada do sector de propaganda e dois guerrilheiros que fecharam a porta e ficaram de pé, com a arma ao ombro. Os três apertaram a mão do médico mas sem efusões. "Estranho, que posso eu ter feito?", pensou, empalidecendo.

O membro do estado maior da zona tomou lugar entre os dois camaradas do batalhão que se sentaram à velha mesa. Os outros dois sentaram-se ao lado deles.

Após um curto silêncio, o membro do estado maior da zona tirou da sacola, que tinha pousado em cima da mesa vazia, um bloco de notas e uma caneta.

- Mandámos chamá-lo, camarada Andrea por causa de um assunto importante... Reflectiu um instante e olhou para os companheiros. Vai ficar surpreendido mas depressa compreenderá que temos boas razões para chegar a este ponto... Como sabe, um guerrilheiro ferido, Kapllan Muco, suicidou-se nas montanhas de Kurvelesh durante a evacuação do hospital. Não tendo montada e sendo abandonado, ficou para trás e, segundo se conclui, fosse de frio, fosse de dor, ou fosse para não cair nas mãos do inimigo, despoletou a granada que trazia e matou-se... Decidimos abrir um inquérito. Estão aqui dois camaradas do batalhão de que Kapllan Muco fazia parte - e mostrou com a mão os que estavam sentados ao seu lado. É fácil compreender a perturbação e a indignação gerais quando se soube desta infelicidade. - Olhou-o nos olhos e prosseguiu destacando as palavras: - trata-se da vida de um homem, da amizade para com os irmãos de armas... E era você o responsável pelo hospital... A si lhe cabe responder pelo suicídio de Kapllan Muco. Conte-nos como os coisas se passaram e diga se reconhece a sua culpabilidade.

O médico mudara de expressão. Não esperava aquilo. Não havia dúvida de que conhecia bem as circunstâncias da morte de Kapllan, o facto tinha-o até entristecido, mas nunca supusera que toda a responsabilidade lhe cairia em cima. É estranho que nunca tivesse pensado nisso. "Contudo, deves mostrar-te forte perante os teus juizes!", disse para consigo.

Depois tomou a palavra:

- Segundo parece, estou perante a justiça?

- Sim, perante o tribunal dos guerrilheiros - disse o do estado maior a quem chamaremos presidente, embora nesse tempo os tribunais que se formavam para julgar certos casos extraordinários, não tivessem como presentemente um presidente, membros e regras protocolares. Mas o facto é que era ele quem presidia.

- Conte-nos então - pediu o presidente após um longo silêncio.

Era um homem de meia idade, mal barbeado, com bigode, que trazia uma camisola de lã branca que lhe tapava o pescoço. De vez em quando passava a mão pela barba preta

e com a outra batia ao de leve na mesa com a caneta.

- Que hei-de dizer... -exclamou o médico um gesto com a mão. - Isto é para mim completamente inesperado. É verdade que Kapllan se suicidou. Não conseguimos arranjar animais suficientes. O ferimento dele era grave mas conseguia ter-se de pé, enquanto que outros camaradas não podiam andar. Confesso que ele me pediu uma montada porque não se sentia bem, mas foi-me impossível arranjá-la. Tinha de me ocupar de todo o hospital. O inimigo seguia-nos no encalço e era preciso partir. Sabem que o estado maior nos tinha dado ordem para retirar o mais depressa possível. Nevava, não se via um palmo em frente do nariz, a estrada era difícil e os animais escorregavam.

Dois doentes eram transportados em padiolas. Eu estava com os outros e pensava na forma de transpor o mais depressa possível aqueles caminhos abruptos para descer até ao rio e atravessá-lo... Mais abaixo, parámos uns momentos num local protegido pelo vento para descansarmos e demos de comer aos doentes. Ouviam-se os tiros dos combates contra os alemães. Alguém gritou: "Não vejo Kapllan! Onde está ele?" Com efeito não estava connosco. Fiquei inquieto e mandei um enfermeiro e um guerrilheiro procurá-Io. O tempo urgia. Eles voltaram a fazer o mesmo caminho em sentido inverso e nós prosseguimos a marcha. Os tiros ouviam-se mais claramente, era preciso salvar o hospital. Muitos doentes chamavam-me, um deles tinha dores no ferimento, outro não se agüentava já em cima do cavalo, um terceiro desmaiou. Eu estava aflito. Os dois camaradas reuniram-se a nós depois de termos passado o rio e contaram-nos como tinham encontrado Kapllan, morto... Que dizer-vos agora? (e o médico fez de novo um gesto com a mão). É a primeira vez na minha vida que me encontro numa situação tão difícil... Não me quero desculpar. Pensando bem, a minha falta deve ser grave, visto que me mandaram chamar aqui. Talvez tenham razão, talvez que, se eu lhe tivesse arranjado uma montada... Mas não pensei que ele ficasse pelo caminho. Ele tinha o costume de não repetir duas vezes as mesmas palavras... -O médico baixou a cabeça e disse num fio de voz: - Era um bom camarada! -Depois levantou-a, e olhou o presidente de frente como se lhe quizesse dizer que não tinha medo deles e que manteria, acontecesse o que acontecesse, os seus sentimentos e a sua independência. - Não creio que o lamentem mais do que eu - disse, mantendo-se aparentemente calmo, mas com uma voz tremente, que mal se ouvia.

- Isso é o que resta saber! -exclamou, irritado, um dos camaradas do batalhão de Kapllan. Trazia um capote alemão e um lenço vermelho atado em volta do pescoço.

- Agora não se trata disso... Compreendemos as dificuldades que enfrentou para passar o hospital para o lado de lá do rio, mas a sua negligência é imperdoável. Devia ter arranjado um animal! Se insistisse, os camponeses tê-lo-iam dado... Mas dá a impressão de que tinha era pressa de salvar a pele!...

O médico olhou-o com ar de desprezo. Quis responder, mas conteve-se.

O presidente lançou um olhar de reprovação ao que acabara de falar, mas não disse nada.

- Os camaradas do nosso batalhão, acrescentou o outro, um loiro de pele rosada, ficaram indignados ao saberem da morte de Kapllan. Perderam a confiança no hospital dos guerrilheiros. "Entreguem-nos antes ao inimigo, em vez de nos mandarem para o hospital", diziam eles. Nós, camarada Andrea, conhecemos os seus méritos e não creio que tivesse tido medo. Mas a sua negligência é inadmissível. Porque não foi pessoalmente à procura de Kapllan? Não podia calcular que ele estava morto, e talvez ele precisasse dos seus serviços... Sufocou em cima da neve, não podia andar e caiu. Quando recuperou os sentidos, pegou na granada e matou-se... Depois disto, que podem as pessoas dizer de nós? Os guerrilheiros abandonam os companheiros no caminho! Agiu com negligência, camarada Andrea! - exclamou por fim, revoltado, com os olhos a brilhar de cólera.

Pensativo, o médico olhou-o perturbado, mas não irritado como olhara para o outro. Sentia agora melhor a falta que tinha cometido. Era verdade, devia ter observado os acontecimentos mais de perto e ter reflectido durante aquele último mês sobre as conseqüências do que se passara. É claro que as pessoas da região tinham sabido da morte de Kapllan, Ele era de Kurvelesh. Quem sabe como o amaldiçoariam todos os pais da aldeia? Ah, esta guerra! Que infelicidades traz consigo! "Sim, eles têm razão de me encararem assim, mas gostava de os ter visto no meu lugar. Compreenderiam então todas as preocupações que me pesavam em cima. Contudo, Kapllan, morreu. Uma morte triste, à granada, na neve..."

- Sou culpado, - exclamou o médico em voz alta - agora sinto-o mais do que nunca... "Defender-me seria fraqueza, pensou. Aconteça o que acontecer, devo mostrar-me forte. O homem revela-se nas situações difíceis. Não preciso da piedade deles... Mas porquê estes arrepios?"

- A falta é grave, - disse pouco depois o presidente destacando as palavras - é bom que o compreenda. Apesar das condições difíceis, nunca tal deveria ter acontecido.

O hospital passou todo, salvo uma única pessoa que morreu por negligência. Você perdeu o sangue frio. É verdade que a sua tarefa era árdua com todos aqueles doentes, mas não se brinca impunemente com a vida de um homem... Compreende? O inimigo não conseguiu penetrar na zona, foi retido durante alguns dias na aldeia onde estivera o hospital. Depois, o batalhão de Kapllan passou por ali e encontrou-o morto sobre a neve... Compreende bem a impressão que isso produziu?

- O médico é plenamente responsável por esta infelicidade, -acrescentou o membro do Conselho Popular. - Sabemos as dificuldades a que fez face para salvar o hospital e reconheçamos, em seu abono, que arranjou bastantes animais. Mas o conselho da aldeia ter-lhe-ia certamente arranjado mais um, se se lhe tivesse dirigido. Esta aldeia está connosco. Também podia ter procurado nos arredores. É verdade que o tempo urgia, mas mesmo assim... O médico devia ter feito tudo para obter o que precisava. Parece que Kapllan era um homem de carácter e nunca pedira montada antes disso, não é verdade, doutor? Nesse dia disse-lhe que não podia andar, mas você não se importou e partiu. É verdade que tinha de seguir para a frente, mas devia ter olhado também para trás. Eis o resultado.

A rapariga estava profundamente emocionada. Via à sua frente o cadáver de Kapllan, a mãe que, segundo o costume, o chorara recordando os seus méritos. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. A falta era evidente, mas conhecia bem o médico, tinha ouvido falar do seu trabalho no hospital, do amor que os doentes lhe tinham e apreciava a sua conduta perante o tribunal. Não sabia que dizer, os camaradas tinham razão. Não se abandona um ferido em pleno inverno, durante a guerra. Um responsável deve velar pela vida de todos. Mas talvez Andrea não pudesse ter feito nada. Tinha de salvar toda a gente, não apenas um. Além disso, julgara que Kapllan podia andar e o vento, que arrastava a neve em turbilhão, impedira-o de ver aquele que ficara para trás.

O presidente interrogou-a com o olhar para lhe perguntar se queria falar, mas ela abanou a cabeça em sinal negativo. O caso era claro, nada havia a acrescentar.

Tudo dependia da maneira como os camaradas o interpretavam e a que ponto conheciam Andrea. Tentava ganhar tempo e foi por isso que não tomou a palavra.

- Agora vamos deliberar, - disse o presidente

- Informámo-nos também junto de outros camaradas sobre o que se passou. Tudo é claro... Tens alguma coisa a dizer? - perguntou-lhe.

- Não, respondeu o médico. Nada tenho a acrescentar. Considerei justo o veredicto dos camaradas. Pálido e com os maxilares contraídos, olhava sem querer pela janela os telhados da aldeia. O sol parecia-lhe agora mais longínquo e mais frio.

- Desarmem-no e prendam-lhe as mãos - ordenou o presidente em tom seco. Esforçava-se talvez por afastar a sua perturbação.

A expressão da rapariga alterou-se. Não esperava por aquilo. O membro do Conselho Popular também se impressionou, os dois soldados ficaram impassíveis. O do lenço vermelho olhava para o médico com desprezo.

- Não tenham medo, camaradas, não tenciono evadir-me - exclamou Andrea sorrindo amargamente.

Um dos guerrilheiros que estavam de guarda em frente da porta tirou-lhe o revólver do cinturão e o outro amarrou-lhe as mãos.

- Levem-no para o quarto ao lado, - ordenou o presidente. Assim que o médico virou as costas e lhe ouviu os passos lentos e hesitantes no corredor, apoiou a cabeça nas mãos e suspirou profundamente. Os olhos velaram-se-lhe de dor e desespero.

- Não é fácil julgar os camaradas - disse pouco depois, levantando-se.

 

Os juizes assessores deixaram silenciosamente a sala de audiências para irem almoçar. Tinham um ar absorto. Era a primeira vez que julgavam alguém e ainda por cima tratava-se de um camarada que, no fundo, tinha ido para a guerrilha de sua livre vontade e que partilhava as suas idéias. Mas a guerra é a guerra, tem as suas leis por muito severas que sejam e exige decisões rápidas.

Uma hora mais tarde reuniram-se de novo no gabinete do Conselho Popular. Fumaram um cigarro e começaram a deliberar. A discussão foi inflamada, o veredicto que deviam proferir perturbava-os. Estudavam as circunstâncias do delito, voltavam a focar o guerrilheiro morto, a indignação do batalhão, da região onde Kapllan fora encontrado morto, a autoridade do exército de libertação nacional. Mas havia também circunstâncias atenuantes. Contudo era preciso decidir e o corpo de Kapllan morto sobre a neve ficara-lhes gravado no coração. Os dois camaradas do batalhão pediram a pena capital. Principalmente o do capote alemão, que era o mais severo, não admitia discussões sobre esse ponto. Não conhecia o médico, mas conhecera bem Kapllan, com quem combatera, o seu carácter, os seus actos de coragem e sentia um ódio implacável contra aquele que considerava responsável pela sua morte. Quando a rapariga, embora tivesse aceitado a culpabilidade de Andrea, referiu certas restrições, dizendo que o médico era boa pessoa, que todos gostavam dele e que não se deviam precipitar tomando tal decisão, o do batalhão.

franziu o sobrolho, fez-se muito vermelho e virou-se para ela:

- Tenho a impressão, camarada, que te deixaste comover. Falamos aqui em nome de todos os camaradas do batalhão e até em nome da brigada de que faz parte o nosso batalhão. Não é de lágrimas que precisamos, mas de uma decisão clara que sirva de exemplo aos outros... A situação é clara, não há razão para continuarmos com estas discussões.

O presidente levantou-se, deu alguns passos no quarto fumando nervosamente o cigarro. O olhar, habitualmente perturbado e pensativo, endureceu-se-lhe subitamente e dirigiu-se ao camarada do batalhão:

- É justo que se sinta revoltado, mas espanta-me a ligeireza das suas decisões. As coisas passaram-se de maneira a que eu próprio seja da sua opinião pelas razões que aqui foram ditas e repetidas várias vezes. Mas não creia, camarada, que seja assim tão fácil! O médico combateu a nosso lado, vive há anos com as nossas idéias do partido. É uma pessoa instruída que fez tudo pelo bem do povo. Compreende bem a que ponto é delicada a nossa situação? Um homem morreu, mas assim perdemos outro...

Ninguém respondeu, as palavras do presidente tinham produzido uma viva impressão. Mas foi de curta duração. De novo lhes surgiram perante os olhos os momentos mais proeminentes daquele caso infeliz, o abandono de Kapllan, o seu corpo sobre a neve, as conseqüências que tinham mencionado já tantas vezes.

O outro camarada do batalhão, o loiro que se mostrava mais comedido, tomou por fim a palavra:

- Tem razão, camarada presidente. Não se toma alegremente uma tal decisão, mas não temos outra alternativa. Na guerra, ou se é condenado à morte, ou se é solto para voltar junto dos camaradas para o posto que lhe fora atribuído. A camarada aqui presente disse que o médico é muito querido no hospital. Também o creio, mas por outro lado posso afirmar que ele é odiado por todos os guerrilheiros que souberam deste caso. Não podemos confiar os nossos doentes e os nossos feridos a uma pessoa como ele. Isso ainda seria o mal menor, mas deve pagar com a vida a perda de Kapllan. É preciso que isso sirva de exemplo aos outros.. Que todos compreendam como defendemos os nossos companheiros de armas e a que ponto nos é cara a vida dos guerrilheiros!

- Entendido! - disse por fim o presidente, levando a mão à fronte enquanto batia com a caneta em cima da mesa. -- Assim seja. Para nós, os desejos do povo e dos guerrilheiros são ordens. Depois, após ter reflectido um momento, olhou para a janela e acrescentou com voz grave: À morte!

Escreveu esta palavra no bloco de notas e tremeu dos pés à cabeça, ao vê-la escrita debaixo do nome de Andrea.

O membro do Conselho Popular tomou também a palavra. Falou longamente. Reconheceu que a falta era grave e as conseqüências importantes, mas, confessando a sua pouca experiência na luta armada em vista da sua actividade nos conselhos populares, principalmente no setor de propaganda, não julgara que se pudesse ser condenado à morte por uma falta daquelas, tendo em conta as dificuldades que o médico tivera de enfrentar. Apoiou o presidente.

Gostava da maneira como ele se exprimia, tinha confiança nele e, pensando que o caso pertencia mais ao domínio militar, nada mais acrescentou. Concordou com a cabeça quando o presidente perguntou pela última vez se todos estavam de acordo, mas sem convicção. O médico fazia-lhe pena e à rapariga também, mas esta fez também um sinal afirmativo com a cabeça.

Mandaram chamar o médico para lhe comunicarem o veredicto. Entrou no quarto, com as mãos atadas e atrás dele os dois guerrilheiros. A porta voltou a fechar-se. Todos esperavam. O acusado tremia ligeiramente, estava pálido e evitava olhar para os juizes. Lançou um olhar para a janela, mas tudo lhe pareceu incolor, estranho, mais longínquo que nunca. "É preciso morrer dignamente, não me cobrir de vergonha, dar prova de carácter... Quem esperava uma coisa destas?", repetia para si próprio desde que sentira a sua culpa perante a justiça do povo. Os juizes auxiliares, tirando o do batalhão, esforçavam-se também por não o olharem de frente. Criou-se uma atmosfera pesada.

Com os olhos pregados no bloco, o presidente proferiu com voz grave a sentença, destacando as palavras.

- O tribunal deliberou a condenação à morte!

Explicou em algumas palavras as razões que tinham determinado a decisão e depois prosseguiu:

- Note que não nos foi fácil tomar esta decisão. Você é dos nossos e não se mata alegremente um camarada. Mas a guerra tem as suas leis e as faltas graves só se podem lavar com o sangue...

O silêncio reinou de novo no quarto. Alguns olhavam pela janela, os outros mantinham-se de cabeça baixa. Os olhos iluminavam-se-lhes e obscureciam-se-lhes, como sempre acontece quando se experimentam tais sensações. Os mesmos sentimentos se espelhavam também no rosto dos guerrilheiros que estavam de guarda em frente da porta.

Os olhos do médico que, segundo parecia, se recompusera, brilhavam como num acesso de febre. Fixaram-se nos juizes e não se lia nem medo nem ódio naqueles olhos atentos de médico. Uma ligeira perturbação, uma coragem extraordinária de que ele próprio se admirava, uma força a que se não podia resistir. "Cá está ele finalmente,

o veredicto!", pensava com uma lucidez implacável. "A morte afinal não é tão terrível como isso".. Sentia-se orgulhoso da sua força, da sua atitude perante a morte.

- Tem alguma coisa a dizer? - perguntou o presidente.

- Sim! - respondeu.

Todos o encararam. A rapariga admirava-se que ele tivesse o mesmo timbre de voz como antes de ouvir a condenação à morte.

- Não me compete dizer se o vosso veredicto é justo ou não. Sou um guerrilheiro e sempre amei os meus camaradas... Agora condenam-me à morte. Morro à mão dos meus camaradas por uma falta que cometi... é esta idéia que me tortura.

Nada lamentaria se morresse combatendo contra o inimigo... Quando vim para a guerrilha, nunca pensei que cairia um dia sob as balas dos meus próprios camaradas!

Queria ver a Albânia livre... Agora que vos deixo, queria dizer-vos que o que mais amei na vida foi o comunismo, foi em seu nome e em nome da liberdade que pegamos em armas... tanto vocês que me julgaram, como eu que tenho as mãos amarradas... Que estas palavras não alterem nada para vocês. Façam o vosso dever! Podem ter a certeza que vos não envergonharei perante a morte, por mais amarga que ela seja. Estarei sempre e em toda a parte convosco!... Os mais belos dias da minha vida foram os destes anos de guerra...

Enquanto falava, o médico sentia um fogo arder dentro de si que o aquecia e que o levava a levantar a voz. Pronunciou as últimas palavras com tal paixão que todos se emocionaram. A rapariga rebentou em soluços, o presidente tinha lágrimas nos olhos e mesmo o do batalhão que se mostrara tão duro, parecia ter mudado de opinião.

Não se pode fingir em tais momentos Compreendeu que se não tratava de um cobarde, como pensara. Sentiu-se estremecer dos pés à cabeça e a garganta apertou-se-lhe.

- Levem-no para o outro quarto! - ordenou o presidente. Mas os guerrilheiros, perturbados, não ouviram a ordem. Ficaram presos ao chão - Levem-no! - repetiu o presidente.

Embaraçados, os juizes calavam-se sem saberem que dizer. O presidente por fim quebrou o silêncio.

- Conhecia Andrea, mas não o sabia tão corajoso... É um verdadeiro comunista.

- É verdade! - apoiou a rapariga.

- Como se pode matar uma pessoa assim? - exclamou o membro do Conselho Popular, E olharam todos uns para os outros...

 

Pela janela do quarto chegavam os ruídos da rua. A aldeia vivia. No corredor ouviam-se passos e chamadas telefónicas: "Está... está... Aqui o oitavo batalhão...

Esta noite chega aí uma companhia... Como? Não me está a ouvir? Uma companhia... assegurem-lhe bases de apoio".

"No hospital devem ter acendido os candeeiros e as velas que mal iluminam a cara dos doentes. Como estará aquele doente que precisava de tratamento urgente?". A esta hora, os enfermeiros vão de uma cama a outra dar de comer e aconchegar aqueles que não se podem mexer.

Os dois guerrilheiros estavam quase permanentemente dentro do quarto. Um deles saiu para ir buscar comida. Acenderam uma vela e sentaram-se os três para comerem qualquer coisa.

O médico não tinha fome. Engoliu com dificuldade umas garfadas porque sentia um vazio no estômago e tinha de se sustentar. Quem sabe a que horas o passariam pelas armas?

- Come, doutor!

A vela vacilava. Estava frio.

- Agüenta firme, doutor! - disse o mais velho.

Andrea olhou-o de frente.

- Que raio de história! Não percebe nada! - continuou ele - estávamos todos arrepiados quando lhes falaste. Eu conhecia Kapllan, era um bom camarada o infeliz... Mas quantos nós não perdemos na guerra.

- A guerra - repetiu o outro.

O médico, com os cotovelos na janela, fumava um cigarro e olhava através das grades. O guerrilheiro mais velho dormia, ressonando de vez em quando. O outro o mais novo, estava de guarda. Olhavam-se de tempos a tempos mas sem se falarem, sob a luz triste da lua que entrava através dos vidros.

Tudo era frio e pesado dentro daquele quarto. A morte estava longe e também perto. O luar, as casas brancas^ a rua deserta, tudo lhe parecia triste e frio. Aquela dor que sentia não podia ser medo, não percebia de onde ela vinha. Lamentava menos ser fuzilado do que morrer daquela maneira. Adeus, belas ilusões! O principal era não se deixar ir abaixo, fixar os olhos num ponto, num carvalho ou rium cipreste (como eram belos os ciprestes da aldeia!) e esperar a decisão, a descarga dos guerrilheiros. Estremeceu e levantou a gola do capote grosso. A fadiga e as emoções tinham-no esgotado. Dormitava um instante e acordava em sobressalto.

Assim que o sol se levantou iluminando bem toda a aldeias mandaram-no sair do quarto.

Aguente firme, como ontem! - disse-lhe um dos guerrilheiros.

O coração batia-lhe desordenadamente. Custava-lhe ver as pessoas pararem para o verem. Sabia que ia para a morte, mas os juizes haviam decidido fazer comparecer perante os guerrilheiros. A sua atitude da véspera fizera-os vacilar.

Em frente do largo estavam reunidos os guerrilheiros do batalhão de Kapllan (duas companhias tinham vindo naquela mesma manhã das aldeias vizinhas), assim como outros guerrilheiros que já estavam aquartelados na aldeia, camponeses e crianças. Ao fundo elevava-se um montículo. Foi aí que se instalaram o presidente, os acessores, o médico e dois guerrilheiros que o guardavam. O largo estava repleto. Embora as roupas fossem variadas, dominava a cor do caqui dos uniformes militares. Um murmúrio geral espalhou-se na multidão, quando viram o médico com algemas nos pulsos. Produziu-se um remoinho. Alguns punham-se na ponta dos pés para o verem melhor. Um insultou-o.

Outro gritou: "Calem-se!" Por fim restabeleceu-se o silêncio.

O presidente aproximou-se de Andrea e disse-lhe em voz baixa que eram os guerrilheiros quem iria decidir a sua sorte. O médico teve a impressão de que o seu tom era tranquilizador. Até essa altura, não tinha percebido o que se passava.

Com as mãos nos bolsos, o presidente olhava silenciosamente à sua volta. Parecia pensativo e preocupado. Os guerrilheiros conheciam-no bem, alguns tinham ouvido falar dos seus actos de bravura, outros tinham-no visto combater.

Tirou uma das mãos do bolso e disse:

- Camaradas! Ontem julgámos o médico do hospital, o camarada Andrea, por uma falta grave, pela sua negligência que resultou a morte do guerrilheiro Kapllan Muco.

A seguir falou dos factos e da responsabilidade que cabia ao médico, disse a que ponto lhe era cara a vida de todos os guerrilheiros e por fim relatou como se desenrolara todo o processo.

- Nós, camaradas, decidimos, pelas razões indicadas, condená-lo à morte. Foi para nós uma tarefa árdua, dolorosa, mas foi assim que julgámos útil no interresse do povo e do partido. Contudo, durante o processo, o doutor manteve uma atitude das mais corajosas, reconheceu-se culpado e não pediu que lhe perdoássemos. Depois do veredicto, disse algumas palavras que nos comoveram profundamente: "Façam o vosso dever, camaradas", disse ele. "Estarei sempre convosco. Não pensei vir a cair sob as balas dos meus camaradas. O grande objectivo da minha vida era o comunismo..." Tais palavras, a sua firmeza perante a morte, provam que é um verdadeiro comunista.

Por outro lado, a falta é grave. Decidimos submeter-nos à vossa decisão!

Tendo acabado, o presidente recuou alguns passos e voltou a meter a mão no bolso. Na multidão reinava um silêncio total. Nem mesmo as crianças se mexiam.

O médico ouviu como num sonho as palavras do presidente. Falavam dele, de KapUan, do comunismo... Distinguia bem as caras à sua frente, mas não fixou o olhar sobre ninguém. Subitamente reparou nalguns doentes do hospital: um apoiava-se numa bengala, outro estava sentado. Olhavam para ele e baixavam a cabeça.

- Quem quer tomar a palavra, camaradas? - perguntou o presidente.

Os guerrilheiros calavam-se. Passaram-se assim alguns momentos. À sua frente estava um homem que abandonara o seu camarada. Naquelas caras reflectiam-se sentimentos potentes, duros, perturbados, mas também benevolentes. Tinham perdido um dos seus, que morrera sozinho sobre a neve, no gelo. Contudo, aquele que estava à sua frente parecia também cheio de coragem, não se esquivava aos seus ollhares, tinha um ar orgulhoso e não culpado. De onde lhe vinha aquela força?

- Quem toma a palavra? - repetiu o presidente.

- Que seja perdoado, mas que não volte a fazer o mesmo!- exclamou, do meio da multidão, um guerrilheiro com voz grave.

- Perdoemos -lhe, perdoemos-lhe! - repetiram em coro muitos outros. E, de uma ponta à outra do largo, espalharam-se gritos alegres que pediam perdão.

Tiraram-lhe as algemas. Perturbado, não acreditando nos próprios ouvidos, deu alguns passos em frente.

Via agora mais claramente os rostos emocionados dos guerrilheiros. Compreendeu que todos eles eram seus camaradas e que nem mesmo a morte o poderia separar deles.

 

                   O Cavalo de Vaje Celati - Gjergj Vlashi

Subitamente, num dia de Novembro de 1943, Vaje Celati ficou viúva. Nessa manhã tinha ajudado o marido a preparar-se para ir a Shijak e na mesma tarde trouxeram-lho morto, deitado de borco sobre o cavalo e coberto de sangue. Nessa tarde, dois aviões ingleses tinham metralhado uma camioneta de viajantes e uma bala atingira o pobre homem nas costas, quando ele cavalgava junto do carro, de regresso a casa.

O camponês que o trouxe ajudou Vaje a descê-lo do cavalo e a metê-lo em casa e ficou a fazer-lhe companhia. Ela despiu o defunto, lavou-o com água do poço, enfiou-lhe o fato novo e estendeu-o no meio do quarto. O camponês deu de comer ao cavalo e limpou as manchas de sangue que sujavam o pêlo liso. Vaje tirou de uma arca as suas melhores roupas, vestiu-se e foi-se sentar à cabeceira do marido, onde ficou a velar até de manhã, à luz de uma lâmpada de azeite, com os olhos pregados naquele rosto lívido. Lá fora, o vento de Novembro soprava em rajadas. O camponês, por seu lado, instalou-se ao fundo do quarto, sem parar de fumar.

De madrugada, levantou-se, foi buscar uma pá e foi para o pátio para cavar um fosso junto da amoreira cheia de folhagem. Pouco depois chegaram os Dellce: o filho, a nora e a mãe, que assistiram ao funeral. Vaje deu-lhes almoço e o dia correu silenciosamente.

Falavam pouco, bebendo quase continuamente café sem açúcar. À tarde, os Dellce levantaram-se para irem para casa. A mãe disse:

- Queres que fique contigo esta noite?

- Não, não vale a pena, - respondeu Vaje.- Que Deus vos proteja! Espero pagar-vos a visita por ocasião de um acontecimento feliz.

E a velha partiu, de cabeça baixa, murmurando entre dentes. Pouco depois foi-se também o camponês que trouxera os restos mortais.

Mais tarde, Vaje desceu ao estábulo para dar de comer ao cavalo, ficando a vê-lo mastigar ruidosamente. De vez em quando, o animal batia com as patas. Depois voltou para o quarto, fechou a porta à chave e apagou a lâmpada. Não se deitou mas foi para a janela que dava para o pátio, com o olhar fixo na amoreira e no monte de terra fofa debaixo da árvore. Ficou ali horas inteiras a ouvir o ladrar dos cães que o vento de Novembro trazia de longe.

Foi assim que Vaje Celati passou o primeiro dia de viuvez.

 

Vaje era uma mulher de cerca de quarenta anos de idade. Apesar de ser um tanto forte, mantinha-se direita como um fuejro^p rosto redondo, muito branco, era adoçado por pelos olhos em amêndoa. Os lábios pequenos, sempre apertados, davam-lhe um aspecto duro. Tinha casado cedo, antes dos dezassete anos. O marido, Demir Celati, um homem muito trabalhador, tinha arrendado um pequeno pedaço de terra na vertente da colina e vivia numa casinha pequena com os pais. Mas um mês depois do casamento, perdeu o pai.. O velhote adoeceu e morreu na cama? como toda a gente, contudo espalhou-se na aldeia o boato que a culpa fora da nora, que não gostava dos sogros e não cuidava deles. A casa em que viviam ficava situada um pouco longe das outras e Demir não era de natureza muito sociável. Nesse aspecto, Vaje parecia-se com ele como duas gotas de água, não travava amizade com as vizinhas e o casal vivia afastado das outras pessoas.

Os boatos voltaram e cada vez com mais insistência, quando três meses mais tarde morreu por sua vez a sogra. O nome de Vaje Celati correu então de boca em boca.

- Aquela feiticeira deixou os sogros morrer à fome! - diziam alguns.

- Até lhes batia e os atormentava! - acrescentavam outros.

Outros ainda chegavam mesmo a dizer que Vaje era louca, que tinha o diabo no corpo, que todas as pessoas da casa tinham perturbações mentais por causa dela, que iam todos morrer e que o marido também não duraria muito tempo.

Mas Demir vivera e gostava muito da mulher. Como sempre, viviam afastados dos outros, sem relações. Vaje tinha uma irmã casada em Shijak que via raramente, enquanto Demir tinha alguns primos numa aldeia a três horas de caminho da sua. O seu grande desgosto era a falta de filhos. Tinham feito tudo para os ter. Vaje fora a uma velha que lhe dera um remédio amargo, mas em vão. Demir mandou-a depois ao médico da cidade, mas sem resultado. Tinha tomado banho no mar em dois anos seguidos, no dia de São Jorge. Dizia-se que nesse dia as mulheres se tornavam fecundas. Mas sempre sem resultado. Nunca o choro ou o riso de uma criança havia soado naquela casa isolada.

Viveram muitos anos sem filhos, sem alegria, mas rodeados do seu amor recíproco. Ambos se levantavam antes da madrugada e trabalhavam até o sol se pôr por trás das colinas de Durrés e deitavam-se ao escurecer. O pedaço de terra e uma pequena horta davam-lhes um pouco de cereais e alguns legumes, o indispensável para viverem.

Com muitos sacrifícios, puderam comprar um cavalo de que Demir precisava para ir à cidade. Este cavalo era o seu único património. Demir gostava muito dele. Tratava-o com o cuidado com que trataria os filhos.

Numa primavera, quando a amoreira mal estava ainda coberta de nova folhagem, chegaram à aldeia alguns soldados estrangeiros que olhavam os camponeses de través, falavam em altas vozes e gritavam o mais que podiam. Sem sequer lhe pedirem autorização, instalaram as tendas no terreno de Demir, que era seco e protegido dos ventos.

Com as grandes botas ferradas, espezinharam os sulcos semeados e quando Demir foi protestar, ninguém lhe prestou atenção. Nesse ano e no seguinte, o casal passou sérias dificuldades.

A amoreira perdeu as folhas e voltou a cobrir-se de folhas novas. Correu então pela aldeia que alguns jovens tinham ido para o mato para combater os invasores e libertar a aldeia e estes boatos encheram Demir de alegria. Começou a ter a esperença de que os ocupantes em breve abandonariam o seu terreno e de que não mais se ouviria aquela língua estrangeira nas ruas silenciosas da aldeia.

Numa noite fria de Fevereiro, chegaram a casa de Demir três jovens armados. Traziam uniformes meio civis meio militares, um lenço encarnado atado em volta do pescoço e uma estrela, igualmente vermelha, no chapéu.

- Somos guerrilheiros? - disseram eles e exclamaram os três: "Morte ao fascismo!"

À primeira impressão, o casal ficou de pé atrás. Observaram estupefactos aquelas pessoas de caras tisnadas pelo sol. de traços duros e que comiam como esfomeados o pouco que lhes serviram. Os problemas discutidos esclareceram os camponeses sobre os objectivos que pretendiam e compreenderam que se tratava da luta de "todos os oprimidos e dos pobres".

O casal convidou-os a passarem a noite em casa deles para descansarem, mas o mais velho respondeu-lhes que "tinham que fazer".

Uma hora mais tarde, ouviram-se tiros na aldeia e Demir compreendeu que eram os guerrilheiros que lutavam contra os estrangeiros. Terminada a batalha, verificou-se que tinham sido mortos muitos inimigos e que as tendas foram queimadas, mas nem por isso Demir retomou posse do campo porque as tendas queimadas foram substituídas por tendas novas e os soldados mortos por outros que falavam a mesma língua e gritavam tanto como os anteriores.

Mas agora Vaje e Demir retomaram coragem e no seu coração começou a florir a esperança de dias melhores.

A amoreira mais uma vez se cobriu de novas folhas e voltou a perdê-las e, logo às primeiras chuvas do outono, os estrangeiros deixaram a aldeia. Demir pôde retomar posse do terreno e as pessoas voltaram a respirar livremente, mas não foi por muito tempo. Outros soldados, ainda mais ferozes, vieram substituir os anteriores e, embora falassem outra língua, pareciam-se com os primeiros como duas gotas de água. O campo de Demir voltou a ser ocupado. Nas ruas tranquilas da aldeia voltaram a soar palavras estrangeiras e os camponeses voltaram a mergulhar no desespero.

Agora a guerra que se travava nas montanhas aproximava-se cada vez mais. A esperança aquecia mais as pessoas do que o fogo que ardia na lareira durante aquelas noites frias e húmidas. Também Demir e Vaje viviam nessa esperança. A vida era difícil e Demir foi obrigado a vender os bois para terem de que viver durante o inverno.

No mês de Novembro, quando ia vender algumas galinhas a Shijak, os estrangeiros mataram-no, atacando-o do céu. A mulher sepultou-o junto da grande amoreira de largas folhas, no páteo. Morreu desesperado, sem ter visto os estrangeiros partir da aldeia.

 

Enquanto o marido era vivo, Vaje era forte e facilmente enfrentava as dificuldades. Mas agora a solidão acabrunhava-a, aborrecia-se sentia-se invadida por uma tristeza profunda. Como sempre, pouco frequentava as pessoas da aldeia. Apenas tinha boas relações com Dellce, a quem pedia às vezes um pequeno favor. Agora que estava sozinha, as pessoas já não falavam dela e tinham pena daquela mulher que vivia solitária na velha casa com o marido enterrado debaixo da amoreira e um cavalo no estábulo.

Alguns meses depois da morte de Demir, a mãe dos Dellce veio vê-la um dia. Vaje admirou-se com a visita e a princípio não percebeu por que razão tinha a outra vindo.

Depois a velha explicou-lhe com muito tacto que era difícil para uma mulher viver sozinha, que isso não causava muito boa impressão às pessoas e, depois deste preâmbulo, aconselhou-a a voltar a casar, citando mesmo o nome de um camponês chegado há pouco à aldeia, um jornaleiro, que estava pronto a desposá-la. Vaje ouvia-a sem a interromper e depois recusou peremptoriamente dizendo que o casamento não fora feito para ela e que decidira morrer sem aceitar um estranho em casa. "Só se nasce, se casa e se morre uma vez na vida", exclamou ela por fim. "Talvez encontre uma criança que possa criar e com ela passarei o resto da minha vida". A velha percebeu, pela maneira como Vaje disse aquelas palavras, que era inútil insistir mais.

Depois de ter acompanhado a visita até à porta do pátio. Vaje voltou para casa em passos lentos. Mas não entrou em casa. Parou junto do monte de terra por baixo da amoreira, onde ficou muito tempo, pensativa. Nessa noite teve um sono agitado e debateu-se na cama até a luz pálida da madrugada penetrar no quarto tranquilo.

Afastou os cobertores e pôs-se de pé num salto. Embora não tivesse muito que fazer, todos os dias se levantava cedo e ia ver o cavalo ao estábulo. Sempre tratara carinhosamente daquele belo animal, mas agora, que Demir já não era deste mundo, ainda gostava mais dele. Limpava-o quase todos os dias, penteava-lhe as longas crinas que lhe tombavam sobre o pescoço como uma cascata brilhante de cor castanha. Escolhia-lhe a melhor ração e o estábulo estava sempre limpo. Quando o ouvia resfolegar de aborrecimento, Vaje soltava-o e passeava-o no pátio para lhe desen-torpecer as pernas e respirar ar puro. Sempre que lhe levava de comer, ficava a vê-lo mastigar ruidosamente e a agitar a longa cauda, como o pêndulo de um grande relógio. Quando se deitava, ouvia-o, satisfeita, a bater com os cascos no chão do estábulo e tinha a sensação de não estar só naquela casa silenciosa. Os cuidados que tinha com o cavalo ocupavam-lhe uma grande parte do dia. Mesmo depois de o ter limpo e de lhe ter dado de comer, voltava muitas vezes ao estábulo para estar ao pé dele e acariciá-lo e quando passava com a mão sobre a pele lisa, o animal olhava-a com os olhos húmidos e tristes.

Foi assim que passou o primeiro Inverno de viuvez. A Primavera aproximava-se. A terra reaquecia. Nas árvores começavam a desabrochar as primeiras folhas. Vaje estava em maus lençóis. O dinheiro dos bois estava a chegar ao fim. Após demorada reflexão, resolveu ir a casa da irmã em Shijak para vender alguma roupa.

Num belo dia de Abril, acordou mais cedo que o costume, abriu a grande arca enfeitada de flores e pintada de vermelho e tirou o ferexhê (1) preto. Sacudiu-o e estendeu-o no divã. Depois, saiu do quarto e foi ao estábulo. D céu estava

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Nota (1) Ferexhê: capa com que as mulheres se envolviam para sair.

 

escuro. As últimas estreias piscavam ainda sobre a sua cabeça e uma brisa ligeira fazia estremecer as folhas da amoreira. Quando entrou no estábulo, um cheiro sufocante chegou-lhe à garganta. O cavalo virou a cabeça assim que ouviu a porta abrir-se. Vaje acariciou-lhe o corpo quente, pegou nos arreios, aproximou-se dele e selou-o.

O animal, que perdera o hábito do peso da sela, a princípio escoicinhou e bateu com as patas no chão, mas rapidamente se tranquilizou. Vaje passou-lhe o freio na boca e levou-o para o pátio, onde o prendeu a uma coluna da varanda. Voltou então para o quarto e aprontou-se para sair. Assim que estava pronta, fechou a porta à chave, demorou-se alguns instantes junto da sepultura do marido e saltou para o dorso do cavalo. Pegou nas rédeas e. com os calcanhares, picou-o ligeiramente no ventre.

O animal pôs-se imediatamente a caminho. Há muito que esperava aquele momento e, enquanto trotava, engolia as planícies e os campos ainda adormecidos. Também Vaje, que não saía de casa havia meses, experimentava agora o prazer da velocidade. Mantinha apertado nos dentes o lenço da cabeça e o ferexhê enfunava com o vento, como a vela de um barco. Escolheu o caminho mais longo para ir a Shijak, a fim de evitar a estrada frequentada pelos carros e passou pelas aldeias ainda adormecidas.

As chaminés das cabanas deitavam fumo e os grandes rolos de fumo azulado subiam para o céu pálido onde as estrelas desapareciam gradualmente. Não encontrou no caminho soldados estrangeiros.

O sol tinha-se levantado quando chegou a Shijak. A pequena cidade, banhada pelo Erzen, estava tranquila como sempre. Poucas casas, poucas lojas e um carro que de vez em quando fazia a sua rara aparição. Nas ruas poeirentas passavam civis e militares e, à beira do rio, os chorões suspendiam a cabeleira sobre as águas turvas que corriam suavemente.

Foi encontrar a irmã à janela, embrulhada dos pés à cabeça num velho cobertor militar. Disse a Vaje que tinha acabado de sair da cama, onde estivera todo o inverno.

O rosto comprido e macilento coberto de rugas, parecia o de uma velha. Vaje contou-lhe a morte do marido mas nada disse sobre as suas dificuldades presentes. O cunhado, talhante de profissão, corria de um lado para o outro à procura de gado que ele próprio matava e vendia numa loja escura situada na extremidade do mercado. Também a irmã não tinha filhos e levava uma vida sem alegria. Quando Vaje lhe falou das razões da sua visita, a doente disse-lhe que era difícil encontrar pessoas que quisessem comprar roupas., mas como o marido conhecia muita gente, talvez conseguisse fazer alguma coisa. Foi também o que lhe disse o cunhado quando veio a casa almoçar.

Apenas boas palavras e nada mais. Vaje não prolongou a visita. Almoçou com eles, comprou um bocado de farinha e alguns quilos de carne e, assim que o sol começou a declinar sobre as colinas de Durres, levantou-se e foi selar o cavalo.

Beijou a irmã que tinha lágrimas nos olhos no momento da separação e, no pátio, virou a cabeça para a ver sentada ao canlo da janela, envolta no velho cobertor militar.

À tardinha chegou perto da aldpla. O sol já se tinha posto. O cavalo trotava levantando atrás de si uma nuvem de poeira. A terra ressoava com os seus passos. Vaje sentia os pulmões encherem-se-lhe de ar fresco e parecia-lhe que, na corrida, se afastava das preocupações da vida, que ia para um país maravilhoso onde não havia soldados estrangeiros, onde as pessoas não ficavam fechadas em casa, sofrendo com a fome. Avançava feliz, sentindo que a melancolia em que caíra nos últimos meses, tinha desaparecido de repente.

Mas cerca de meia hora mais tarde, quase às portas da aldeia, viu sobre uma pequena elevação um grupo de soldados estrangeiros e um civil vestido de preto que se foram pôr à sua frente fazendo-lhe sinal para parar.

- Onde vais?- perguntou o civil olhando-a de través.

- À aldeia - respondeu ela erguendo a mão, sem tirar os olhos dele.

- Não podes lá ir -exclamou ele.

- Mas é lá que eu moro! -protestou Vaje.

- Não podes ir, já te disse, volta para trás! - ordenou ele com voz dura.

Vaje deu meia volta e largou as rédeas. "Vou dar a volta", disse para si própria, "entrarei na aldeia pelo lado de trás. Não nos podemos entender com estes malditos indivíduos!"

Cavalgou durante quase uma hora, dando por vezes ao acaso com o caminho mais curto. A noite caíra e, no céu, haviam-se apagado os últimos vestígios do dia. Raras estrelas brilhavam como pedras preciosas. O cavalo continuava a trotar sem dar sinais de fadiga. Bruscamente, ouviu tiros atrás de si e logo outros responderam no sentido contrário. Depois uma rajada de metralhadora e uma explosão ensurdecedora. "Passa-se qualquer coisa na aldeia", pensou "os guerrilheiros devem ter entrado lá dentro e estão a combater contra os estrangeiros".

Espicaçou a montada com os calcanhares. Outra detonação ainda mais forte que a anterior fez sobressaltar o cavalo que ficou pregado ao chão. Fazendo eco nas colinas, a deflagração foi perder-se ao longe. O cavalo agitou as orelhas, resfolegando ruidosamente, com as narinas dilatadas.

De repente, pareceu-lhe ouvir uma voz. Um arbusto mexeu-se e alguém deitou a cabeça de fora perguntando em voz grave:

- Quem és tu?

- Uma mulher, moro na aldeia - respondeu Vaje calmamente - e vocês, quem são?

- Somos guerrilheiros, tem água para um ferido?

- Não tenho.

- Não faz mal, Ndreko, ainda aguento mais um bocado - exclamou outro que devia estar nos braços do primeiro.

- Viste alemães no caminho?

- Sim, estavam à entrada da aldeia. -¦ Quando os viste?

- Há cerca de uma hora.

- Agarra-te bem, Viron! - disse Nddreko ao ferido - vamos embora.

- Deixa-me ficar aqui! Vou-te atrapalhar.

- Não sejas parvo!

- Já te disse que me deixes, estou quase morto. Já nem sinto as pernas. Assim apanham-nos aos dois.

- Cala-te, podes andar encostado ao meu ombro. Boa noite, camarada. Morte ao fascismo!

Puseram-se a caminho, a coxear. Vaje parou, seguindo-os com os olhos do alto da montada. "Não irão longe", pensou ela. "Estes rapazes são uns heróis!"

Nessa altura alguns tiros romperam a escuridão e o cavalo recuou.

- Esperem! - gritou ela.

Não a ouviram. Fustigou o cavalo e juntou-se a eles.

- Põe o teu camarada em cima do cavalo - disse a Ndreko, saltando em terra.

Sem mais palavras, ajudou Ndresko a montar o ferido e entregou-lhes as rédeas.

- Obrigado, camarada. Até breve, na Albânia livre. Morte ao fascismo!

Nedrek picou o ventre do cavalo, mas o animal não se mexeu. Vaje aproximou-se, acariciou-lhe o dorso e disse-lhe em voz baixa:

- Vá, a caminho!

Não retirou a mão da pele lisa do animal. O cavalo afastou-se e a mão ficou em suspenso no ar. Ficou ali até os passos deles serem engulidos pelas trevas.

Chegada a casa, não entrou logo. Ficou bastante tempo junto do pequeno monte de terra debaixo da amoreira. Os tiros continuavam e tinha a impressão de ouvir o trote do cavalo na noite.

Por fim entrou em casa e abriu a janela do quarto. Cansada, estendeu-se no divã sem se despir, com o ar da noite a acariciar-lhe o rosto em fogo. Lá fora os guerrilheiros continuavam a disparar.

Tinha a impressão de que aquelas detonações matavam também a sua solidão.

 

                   O Homem que nunca tinha visto o sol - Jakov Xoxa

O pai Trifon, aquele velhote de cara rapada, curvado, apoiado à bengala, nunca tinha visto o sol.

Todas as manhãs, antes da madrugada, ia para o campo empurrando os bois à sua frente, com o aguilhão ao ombro como na sua juventude. Deixava sempre atrás de si o sol adormecido ou sonolento. Depois, pouco a pouco, o astro do dia acordava, erguendo a cabeça da almofada de Baba Tomori (1) e bocejando nas vastas planícies de Myzeqe, onde o velho já trabalhava há muito tempo. À volta era a mesma coisa, o sol, sempre atrás dele, com os olhos avermelhados do sono, apoiava a cabeça na almofada cinzenta de Apollo-nia. Quanto à outra parte do dia, o pai Trifon não tinha tempo de levantar a cabeça.

O padre dizia a quem o queria ouvir que todas as infelicidades do pai Trifon provinham da disposição da sua cabana e do seu campo, que ambos estavam mal expostos, a primeira â oeste e o segundo a leste. O velho baixava a cabeça e retorquia:

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Nota (1) Tomor: a mais alta montanha da Albânia do Sul.

 

- Pouco importa! Não se vê deus em toda a parte... - e continuava a trabalhar, sempre confiante, com o sol por trás dele.

Mas visto que nem o sol mudava de trajectória nem o pai Trifon de opinião, a cabana continuava a ficar no sítio onde o avô a tinha construído e o campo onde lho marcara o subash (1). E os anos passavam assim. As eiras mudavam de lugar, os cavalos de dono, os animais selvagens de covil, mas o velho ficava o mesmo.

 

Todos os anos, pelo São Pedro, o pai Trifon nunca se sentava sozinho à mesa. Tinha a honra de receber o padre Stephane que nesse dia abençoava o pão da família.

 

Este padre, se quereis saber mais a seu respeito, era o prior de São Cosme. De resto, todos conheciam este representante de deus que comunicava com o Altíssimo em todos os locais em que se encontrava, na igreja, escarranchado sobre o burrico e a todas as mesas a que se sentava. Mas era principalmente conhecido do lado de cá do rio, de Mbrostar à foz do Seman, onde ia todos os anos na mesma época, de aldeia em aldeia e de uma eira a outra, para abençoar com um ramo de manjerico na mão, as novas colheitas. Esperando a sua visita, as pessoas não tinham pressa em ceifar o trigo. Havia mesmo alguns desgraçados que deixavam o seu na eira até às primeiras chuvas do outono porque, sem a benção do santo homem, não o podiam guardar. E o padre começava as bênçãos, como

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Nota (1) Subash: camponês rico, representante do bei na aldeia.

 

convinha, pela família mais abastada, a kape-dan' e depois, prosseguindo a caminhada de uma eira a outra, ia a casa do subash, enfim, a todas as casas em que o esperava uma mesa bem servida. Às famílias necessitadas enviava o diácono que já era também mestre na arte de abençoar e de retirar a parte dita da igreja.

Quanto à eira do pai Trifon, o padre fazia uma excepção aos seus hábitos. Ia ele próprio, depois de ter acabado as outras. É verdade que a cabana do velhote mal se aguentava em pé, mas o santo homem não prestava atenção a isso. Além disso, o padre Stephane tinha uma predilecção pelo iogurte da tia Frosine. Era tão doce e tão bem coalhado!...

 

Mas um ano, pelo São Pedro, o padre mudou de caminho e de hábitos. Não veio pendurar a mitra na porta da tia Frosine, embora tivesse abençoado todas as outras eiras, com o seu ramo de manjerico na mão.

O pai Trifon ficou descontente. Os cavalos passaram dois dias e duas noites presos na eira e as espigas de trigo em monte na carroça.

- O padre deve ter qualquer coisa contra nós... - disse a mulher antes de se deitar. Depois acrescentou, apagando a luz - Isto não anuncia nada de bom, é muito estranho que ele deixe azedar o meu iogurte...

Três dias mais tarde, o pai Trifon soube o que se passava.

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Nota (1) Kapedan: proprietário de terras ortodoxo.

 

Disseram-lhe que o padre estava zangado com ele por causa daquele maroto do Naum, o filho, que as tinha feito boas. No dia de todos os santos tinha ido a São Cosme, quando os vivos tapam os olhos com uma folha de nogueira e os mortos passeiam na sacristia, fazendo "toc, toc" sobre as lajes, e fizera as maiores tropelias quando o padre Stephane dizia a missa.

O filho mais novo do pai Trifon era um daqueles valdevinos como não havia outro igual. Mas essa raça precisa de companhia e, naquele dia, quando os mortos sentem necessidade de passear, Naum e os companheiros não puderam ficar sossegados. Aquele malandro reuniu mais três como ele e puseram-se os quatro a caminho de São Cosme.

Deixaram as vacas e os bois pastar à sua vontade e seguiram ao longo do rio, a caminho da igreja. No caminho, apanharam folhas de nogueira em que fizeram um orifício, só o suficiente para verem os mortos a passearem na igreja.

Debaixo do pórtico não estava ninguém. Toda a gente estava lá dentro para ver com os olhos tapados pelas folhas de nogueira, como, uma vez por ano, os mortos se levantavam dos túmulos. Apenas três velhotes esfomeados que se viam em todas as feiras e nos dias feriados, devoravam, à porta da igreja, o que lhes restava no fundo do cesto, pois é evidente que ninguém se pode interessar pelos mortos com a barriga vazia.

Os quatro marotos entraram na igreja na ponta dos pés, com o chapéu numa das mãos e as folhas de nogueira na outra. Arrastando suavemente as sandálias sobre as lages, chegaram à primeira fila. Com falta de dinheiro, não puderam acender velas, mas nem por isso se esqueceram de beijar as imagens. Toda a assistência, incluindo o padre e os meninos do coro, se admiraram ao verem aqueles zaragateiros da aldeia entrar no caminho de deus.

Os pastores mantiveram-se sossegados por momentos, aspirando o cheiro do incenso e da cera que lhes chegava às narinas. Escutaram o salmo monocórdico e aborrecido que o padre recitava, mas foi sol de pouca dura. De repente, como se tivesse sido combinado, olharam uns para os outros, molharam a ponta dos dedos na boca e, uma após outra, apagaram o pavio de todas as velas. Depois de vacilarem um pouco, as luminárias deixaram de fazer correr as lágrimas sobre as palmatórias e um jacto de fumo invadiu a igreja. As pessoas começaram a tossir; primeiro as das primeiras filas, o sacristão, o merceeiro da aldeia, o subash e depois todos os que estavam atrás destes, até à tia Frosine, como para imitarem os notáveis. Mas a igreja não é uma escola. O bom deus não pode admitir nem reprimendas nem puxões de orelhas e por isso o empregado da igreja, andando na ponta dos pés, aproximou-se dos pastores e disse-lhes severamente:

- Porque as apagaram, já que não acenderam nenhuma? - e voltou a acender as velas, uma a uma. As pessoas pararam de tossir e a igreja mergulhou de novo no fumo acinzentado do incenso. O padre recomeçou a litania.

Tendo acabado, segundo parecia, de dizer ps salmos, o padre Stephane pegou, com o cerimonial do costume, nas folhas de nogueira e tapou os olhos. Toda a gente fez o mesmo e os pastores também, mas os buracos que tinham feito permitiam aos diabretes ver distintamente tudo o que se passava na sacristia. Esperaram assim bastante tempo, mas os mortos nada de fazerem a sua aparição. Olharam uns para os outros. De repente, um ruído surdo "toe, toe, toe", como se viesse das profundezas da terra, ouviu-se na sacristia. Tal como o fumo do incenso, espalhou-se por toda a igreja onde o salmista continuava a recitar a litania. Os quatro marotos voltaram a olhar uns para os outros e depois para a sacristia e o que aí viram fê-los rebentar em gargalhadas. Para vergonha do pai Trifon, foi Naum o primeiro a rir e os outros três seguiram-lhe o exemplo. Nesse dia de todos os santos, toda a igreja ressoou de ruidosas gargalhadas. Isso ainda vá, mas os gritos do padre, com a barba a tremer e os braços levantados ao céu, criaram o pânico geral. Os quatro pastores fugiram a bom fugir e o povo, aterrorizado com a ressurreição dos mortos e os gritos do padre, precipitou-se para a saída. O padre deixou ali mesmo os socos com que fazia "toe, toe" no dia de todos os santos e pôs-se a correr atrás dos perturbadores da cerimónia. Queria ao menos apanhar um. E mais uma vez, para vergonha do pai Trifon, foi Naum que ele apanhou pelos colarinhos. E o padre, além de barba comprida tinha também os braços compridos e a mão pesada.

Assim que os fiéis, reunidos debaixo do pórtico da igreja, se recompuseram das emoções, compreenderam que os gritos tinham sido soltados pelos vivos. As velhas persignaram-se, contentes por deus as ter salvo dos mortos. A nuses (1) puseram-se

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Nota (1) Nuse: jovem esposa ou nora, segundo o caso.

 

à procura dos socos do padre, enquanto os homens riam às gargalhadas com os quatro malandretes.

Tudo acaba por passar, nesta vida, mas a cólera do padre não se acalmou. Assim como as orelhas de Naum que ficaram vermelhas e esticadas como uma fisga pronta a atirar sobre os pardais.

 

- Vou renegá-lo! - tinha gritado, louco de raiva, o pai Trifon ao saber das tropelias do filho na igreja e da cólera do padre na sacristia.

E renegou-o. Naum não voltou para casa, com medo de apanhar uma sova e a tia Frosine não pregou olho durante toda a noite. Nem mesmo o pai Trifon. Tinha umas palavrinhas a dizer àquele valdevinos que o cobrira de vergonha perante deus e perante os homens, mas Naum não apareceu.

Uma semana mais tarde, toda a aldeia soube, incluindo o pai Trifon que o tinha renegado e o padre Stephane que tinha amaldiçoado o dia do seu baptizado, que Naum se passara para o outro lado da barricada, para os guerrilheiros.

- Que vá para o diabo!... Não quero ouvir mais falar dele! - exclamara o velho, furioso, aos homens da aldeia. Mas a tia Frosine que limpava as lágrimas à ponta do avental, censurara-o com a sua voz doce:

- Já chega, caramba! Ali, ou será alguém, ou deixa lá a pele!

Com efeito, Naum mudou completamente. Os seus feitos de armas tornaram-se lendários. O pai Trifon soube-o, mas não queria considerá-lo seu filho enquanto o padre lhe guardasse rancor.

 

Naquele ano, os cereais estavam uma maravilha. As espigas inchadas curvavam a cabeça umas vezes para a direita, outras vezes para a esquerda, como para cumprimentar as pessoas que passavam. O rio murmurava, fazendo correr as águas sobre os seixos que trouxera das montanhas e, de vez em quando, virava a cabeça para trás, para os meandros onde as margens com mais de três metros de altura o impediam de prosseguir o seu caminho. Era aí que o pai Trifon tinha o campo. E, tal como as margens se obstinavam a impedir a passagem das ondas, também o velho se obstinava na sua cólera contra o filho.

A guerra que passara por ali, como por todos os outros lados, deixara as suas marcas na terra e também nos corações. Mas, assim como na terra, toda coberta pelos ricos produtos da nova estação, também no coração das pessoas haviam crescido outras espigas que saudavam o mundo, curvadas até ao chão.

Os alemães e os ballistas (1) tinham incendiado a cabana do pai Trifon, mas o campo ficou no seu lugar. Fosse para bem ou para mal do velho, o certo é que o padre Stephane lhe segredava ao ouvido de cada vez que o encontrava.

- Ouve lá, tens tudo a ganhar!... Muda de terreno, porque é daí que te vêm todas as infelicidades.

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Nota (1) Ballistas: colaboracionistas sob a ocupação nazi-fascista.

 

O bom deus disse-me: "A cabana dele foi queimada, mas a pouca sorte dele mantém-se..." Constrói a tua cabana do outro lado do campo, a oeste, em frente do sol como em frente de Deus, se queres ter dias felizes...

Mas o pai Trifon não renunciava à sua opinião.

- Não, padre, vou reconstruí-la no sítio onde a tinham instalado os meus antepassados... Depois de mim, os meus filhos que a construam no diabo, se quiserem.

Então o padre ralhara-lhe:

- Mas tu és cego, para não veres como nós, ortodoxos, construímos as igrejas com a sacristia exposta a leste, em frente ao sol como em frente a deus?

O pai Trifon não respondera, mas reconstruiu a cabana sobre as cinzas da primeira.

Não fora em vão que os guerrilheiros tinham descido das montanhas... Precisamente para isto: para que todos os que tinham sempre tido o sol por trás das costas pudessem finalmente vê-lo, e com eles, também o pai Trifon cuja cabana e cujo campo estavam dispostos de través...

 

Tudo tem um limite, mas naquele ano, a alegria do pai Trifon não o teve. Com o aguilhão na mão, media e tornava a medir as belas espigas que faziam a inveja de alguns e a sua felicidade. Todos, quer contrariados, quer de boa vontade, diziam que o trigo do pai Trifon batera todos os recordes. Mas o velho não prestava atenção a essas conversas e continuava lentamente o seu caminho, como o rio no seu leito. De vez em quando, baixava a cabeça, mergulhando em reflexões. Não pensava no seu triste passado, mas no que o padre lhe segredara ao ouvido a respeito das terras do mosteiro que tinham sido distribuídas aos camponeses.

- É de mais!... Dá-me aquilo que não me deves e toma o que não te devo! Para vocês, ainda vá, que não compreendem a importância de uma coisas destas, mas o bom deus não pode suportar uma tal injustiça!...

Não há dúvida de que o pai Trifon estava repleto de todos os bens cá neste mundo. O trigo crescera o melhor possível, a cabana estava reconstruída, tinha um terreno muito bom e mais do que suficiente, nada lhe faltava, mas... As palavras do padre haviam-no afectado tão profundamente que não conseguia afastá-las do espírito.

Nunca, durante a sua longa vida, espetara o aguilhão em terra sua, mas sempre na terra dos outros, do capital ou do mosteiro. Até mesmo agora, na velhice, que tinha o seu próprio campo, não se sentia tranquilo... Dava voltas e reviravoltas no pensamento o que o padre lhe segredara ao ouvido.

- Este ano está bem, tens trigo e milho em abundância, mas que farias tu se, por infelicidade, uma chuva diluviaria viesse varrer-te a colheita na eira, ou se o rio a inundasse e levasse tudo? Quem te ajudaria e à tua numerosa família?

E o pai Trifon, aquela criatura de deus que falava sempre de coração nas mãos, murmurava entre dentes:

- É verdade que nunca vi sol. mas devo reconhecer que nem o capitão nem o prior nunca me abandonaram, estenderam-me a mão na infelicidade. Na vida nunca se sabe...

Era isto que preocupava o coração do velho quando estava de mau humor, quer quando ia ao mercado ou ao moinho, quer montado no burro ou em cima da carroça. Com o espírito ausente, seguia com os olhos os trilhos do carro que se estendiam à sua frente sem nunca se tocarem.

 

- Manda-lhe um bilhete, anda, para ele vir festejar connosco a recolha do trigo...

Mas o pai Trifon não respondia e ficava a olhar pela janela para os campos dourados.

- A cólera tem os seus limites. Já temos dores no pescoço à força de virar a cabeça para a porta... - disse a tia Frosine levantando o colchão.

Mas a cólera do velho era mais persistente que a água benta do padre Stephane.

Uma tarde, a meio da semana, o pai Trifon estava encostado, como era seu hábito, ao parapeito do alpendre, escutando os chocalhos das vacas da aldeia cujo som ia diminuindo à medida que recolhiam nos pátios respectivos. Subitamente, uma andorinha voando rapidamente, veio pousar no ninho que tinha construído debaixo do alpendre e pôs-se a pipilar, melancólica. O pai Trifon pensou no filho, Naum, e o coração começou a bater-lhe descompassadamente, como se quisesse evadir-se do peito. Uma lágrima rolou-lhe pela face e logo a limpou com as costas da mão, para a esconder aos outros e a si próprio, não a deixando cair no chão. Mas o desejo de rever os filhos é mais forte do que nós e, quando surge, não nos podemos defender. E o pai Trifon, esse homem rude que nada fazia chorar, deixara-se vencer.

- Então!... Chorá-lo enquanto está vivo?!...

- e de novo enxugou as faces envelhecidas que já tinham secado as primeiras lágrimas.

Vendo o marido naquele estado, a tia Frosine correu a persignar-se em frente do ícone: "Oh Santa Maria! Tu que enterneceste o coração do velho, faz com que nada impeça o meu filho de voltar!..."

O pai Trifon. ao ouvir passos atrás de si, deixou o parapeito e saiu. O cão veio ter com ele.

- Vai para o diabo e o padre também!... - gritou ele, dando um pontapé no animal, como se este tivesse alguma coisa que ver com o caso.

 

Desta vez, a cólera do velho não durou tanto como a maldição do padre. No dia seguinte decidiu escrever ao filho, especialmente para lhe dizer o que se passava na aldeia. Mas, cheio de alegria por o padre Stephane, que tinha encontrado nesse dia, lhe ter prometido que viria abençoar a colheita, tomou a decisão de lhe desvendar também os segredos do seu coração. Contudo, nessa noite mudou de opinião. Sentia um nó na garganta. A maldição do padre, o silêncio do filho e as lágrimas da mulher oprimiam-lhe o peito. Nem o raki nem o veneno do tabaco forte lhe serviam de remédio.

Não pregou olho toda a noite, matando a cabeça para encontrar uma solução. Mas como a noite é boa conselheira, lembrou-se de madrugada que o trigo não crescera com a benção do padre só para servir de oferenda... Afastou os cobertores e dirigiu-se de gatas para o chão do neto. Com certeza que lhe queria pedir alguma coisa, para o beijar assim. A criança, que dormia o sono dos justos, virou-se para o outro lado. A tia Fro-sine ouviu e abriu os olhos.

- O que queres tu a esta hora da manhã?

O pai Triffon não respondeu, continuou a beijar e a acariciar o neto para o acordar.

- Vá acorda, meu filho!

Lipi, ainda com os olhos meio fechados, bateu as palmas assim que o avô lhe disse ao ouvido para pegar numa folha de papel para escrever ao tio Naum. Mas a tia Frosine, não estando ao corrente de nada, ralhou à criança:

- Vai-te lavar primeiro, antes de abrires os livros...

- Como se Medar se lavasse todas as manhãs...- troçou o pai Trifon fazendo festas ao cão que se lhe esfregava nas pernas.

Quando a velha percebeu de que se tratava, foi-se pôr atrás de Lipi com os olhos fixos no papel. O pai Trifon reflectiu um momento e depois deu uma pequena cotovelada no neto.

- Vá escreve! "Meu querido filho!

Primeiro desejo que estejas de saúde. Peço a deus que estejas bem, assim como todos nós da família e também o gado, estamos todos bem graças a deus.

Quantas coisas tenho para te dizer, a começar pelo boi malhado, até ao teu galo que a guerra levou junto com a cabana. Mas desta vez contenta-te com estas poucas linhas para fazer a vontade à tua mãe que anda sempre contigo na boca. Quanto a mim, meu filho, seria bom que fosses o primeiro a pensar em nós, mas que fazer? O coração de um velho, por forte que seja, não deixa de ser um coração de velho.

A reforma agrária de que os guerrilheiros tantas vezes falavam quando desciam às nossas paragens, fez-se também aqui. Todos os campos foram medidos várias vezes e deram-nos sete hectares por família. A nossa terra é excelente, negra e gorda. Os jovens marcaram primeiro as extremas com os seixos do rio e mais tarde cavaram fossos com dois metros de profundidade. Eu estava ao pé deles, a ouvi-los gracejar. Como eles andavam contentes, nesses dias! "Estamos a cavar a sepultura do capitão..," troçava o teu irmão Mihal, e Vasil dizia: "Mesmo que lhe apeteça, voltar cá como fantasma, não conseguirá passar este fosso..." Faziam troça do capitão, mas para te dizer a verdade, como meu filho que és, nunca gostei muito disso. Não te zangues, filho, os teus companheiros guerrilheiros pediam-nos sempre que lhes falássemos de coração nas mãos, por isso tu também não te vais zangar. É verdade que o capitão era um bocado rude, mas não tinha mau coração. Ás vezes acontecia pedir-nos o dobro do que nos tinha emprestado quando estávamos em dificuldades, mas sem ele o pai Trífon teria de fazer as malas há muito tempo, quando o rio transbordou e arrastou tudo o que havia no campo.

Não sei como te hei-de explicar, mas sinto-me esquisito por ter a minha própria terra. Não há dúvida que lutámos, que muitos de nós morreram, mas que queres... faz-me uma impressão estranha. Sinto os ombros leves, sem apoio. Parece-me que as pernas não são sólidas, que me tremem. Agora que sou velho, sinto-me como os bebés que ainda não se têm de pé se não lhes pegarmos na mão. Nós, os velhos, somos aborrecidos, filho. Mas espero de todo o coração que as contrariedades recaiam sobre nós, que nada vos embarace no caminho que seguistes.

Digo-te isto com tristeza, mas parece-me difícil ter confiança em mim, nas minhas próprias forças, depois de tudo o que sofremos, depois de tudo o que vi.

Olha, Naum, esperamos por ti para a recolha da colheita. O padre Stephane também vem. Não me deixes morrer sem vos ver reconciliados. Conto contigo!

E com isto termino esta carta. Temos razão em dizer que o cavalo dos outros nos deixa em apuros, como o Lipi agora que está cheio de pressa de ir para a escola, sem se preocupar com o peso que me oprime o coração. Vê lá que deixa as vacas correr de um campo para o outro, desde que se pôs a ler e a escrever! Enfim, não há nada a fazer o pai Trifon tem que voltar a guardar as vacas antes de morrer"!.

Zangado, Lipi pousou o lápis e levantou-se.

- Então, estou a brincar contigo, maroto... -- disse o velho acariciando-lhe os cabelos.

- Não conheces o teu avô, filho. Não pode passar sem se meter comigo... - exclamou a tia Frosine, olhando encolerizada o marido que interrompera a carta para o filho.

Depois, virando-se para o neto, cheia de meiguice: - pega no lápis e acrescenta umas linhas da minha parte:

"A tia Frosine beija-te ternamente e espera-te com impaciência. Guardou um bocado de trana (1) com ovos, que não pode comer sem ti..."

- Escreve! - ordenou a tia Frosine pegando no lápis do neto: - "É trana com ovos, porque já não há ballistas nem alemães para esvaziarem as capoeiras..."

E Lipi escrevia tudo, olhando ora para o avô, ora para a avó, até acabar com estas palavras:

"Esperamos por ti para a recolha da colheita. As nuses e os sobrinhos beijam-te a mão. Eu e a tia Frosine beijamos-te afectuosamente. E eu também, Lipi, que escrevo esta carta para o pai Trifon, beijo-te a mão.

Mojalli, 1 de Junho de 1946."

A tia Frosine tinha pressa de mandar o neto pôr a carta no correio. Deu-lhe cinco ovos para comprar rebuçados e prometeu oferecer a galinha pintada a quem lhe trouxesse a resposta do filho.

Os dias passavam. As espigas de trigo inchavam cada vez mais. Os raios de sol, reflectindo-se nas águas pouco profundas do rio, perdiam-se nos taludes que cegavam com aqueles reflexos brancos.

O rio parecia dormir no leito, mas o pai Trifon, que saíra cedo, olhava do alto da margem as águas a correr em direcção à foz... Corriam suavemente, com os seus

velhos dias durante

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Nota (1) Trana: massa fermentada.

 

aquele Verão memorável que ia trazer o filho mais novo de volta ao lar.

Quanto mais passava o tempo sem receber resposta, mais se desvanecia a alegria do velho. A espera do pai Trifon era como a água do rio que não sacia as terras secas mas também as não destrói.

Quando a tia Frosine recebeu a carta, a galinha pintada estava no choco, mas nem por isso hesitou em oferecê-la.

Naum escrevera apenas meia dúzia de linhas que a velha obrigou o neto a reler varias vezes, embora isso lhe custasse todos os ovos chocados numa postura, visto que Lipi de outra maneira recusava obedecer, insistia, beijando-o a todo o momento, para ele lhe reler à parte, só para ela, a passagem em que falava da sua próxima chegada.

 

- Sim, meu filho, o fumo do tabaco também sobe a princípio muito direito e depois vai aos ziguezagues e acaba por se perder no ar. Foi o padre quem me disse, o porta-voz

do bom deus que está sempre em ligação com ele.

- Como a tua carta, papá, que andava aos ziguezagues de um lado para o outro sem chegar a parte nenhuma... - E Naum apertou os lábios, arrependido de se mostrar tão duro, mesmo antes de se sentar.

- E a que tu não respondeste... - disse o pai Trifon, dominando-se.

Naum tinha crescido e mudara completamente. O velho compreendeu que já não era o malandrete de antigamente.

- Tens uma preocupação, papá, que te atormenta. Mostra-la, sem a confessares claramente. Vejo nos teus olhos o que li na tua carta e o meu coração aperta-se ao pensar nos sofrimentos que te fizeram perder a confiança na tua salvação e nas tuas forças. Eu sei, pai, o que te atormenta. Sei porque te sentes sem forças e sem apoio e mesmo que não mo tivesses dito, eu, teu filho, tê-lo-ia compreendido.

O pai Trifon agitou-se na cadeira, mas não respondeu.

- Queres dizer que mesmo que o tempo, seco ou húmido, queimasse ou fizesse apodrecer os cereais do teu campo, mesmo que não colhesses um grão de trigo, o bei te garantiria o teu pão quotidiano, que não te deixaria morrer de fome. Mas fica sabendo, papá, que o capitão só se importa contigo para te sugar o sangue...

Naum inflamara-se, mas o pai Trifon, com a sabedoria da sua idade, respondeu-lhe calmamente:

- Sim, meu filho, mas há mais de vinte bocas que esperam ao pé de mim, ao pé destes velhos ossos... - e bateu no peito. - A terra, dizias tu... A terra, meu filho,

na nossa situação miserável de camponeses só pode servir para nos sepultar.

- Ouve, pai... Nós soubemos fazer a guerra sem a ajuda do bei e do capitão e saberemos também construir sem eles a nossa existência.

- - Tens razão! Nós, os velhos, não temos razão em nos metermos nessas coisas... - e suspirou profundamente.

- Não suspires, papá.,, o desgosto dos pais faz sofrer os filhos. E afinal o que te preocupa?

Sem querer, o pai Trifon esfregou as costas contra a parede.

Naum compreendeu que o pai tinha a mania de repisar continuamente naquilo que o obcecava. Estava sempre a remexer com a faca na mesma ferida.

- Podes estar tranquilo, pai, não te preocupes com nada. Temos o partido que cuida de nós. Podes apoiar-te sem medo nessa forquilha embebida do sangue dos teus filhos, nessa forquilha que nenhum verme pode roer, que nenhum tempo, por mau que seja, poderá alterar.

- Ah, meu filho!,.. - e suspirou mais uma vez.

- Fala, papá, liberta a tua consciência, para te sentires mais leve. Abre o teu coração para que eu saiba com que devo contar. O que te atormenta presentemente?

- Nada, nada, só tenho vantagens, mas que queres, o padre, esse representante do Senhor que comunica em todo o lado com o Altíssimo, tem uma linguagem completamente diferente.

A estas palavras, a porta abriu-se e, à luz pálida do candeeiro, apareceu o padre na soleira.

- O homem justo de Deus vem sempre misturar-se com oS que dizem bem ou mal dele! -e com esta tirada franqueou a soleira e foi pendurar a tiara atrás da porta.

- É verdade, meu padre, é verdade! - respondeu o pai Trifon que se levantou para dar o lugar ao homem do bom deus.

Pouco depois, as pessoas da família foram entrando uma a uma na sala e foram beijar a mão do padre, levando-a à testa. Depois, cada um se foi sentar no seu lugar. Naum também o cumprimentou sem contudo lhe beijar a mão. O padre sentiu-se profundamente ofendido. Não esperava ser ridicularizado em frente de toda a gente.

- Ai, meu rapaz, deixaste a aldeia como guardador de vacas, sem fé e voltaste como oficial, mas sempre sem fé... Oh, nosso Criador, graças te damos por nos teres feito cristãos, porque um cristão será sempre um cristão perante mini e perante Deus!.. - e tratou de continuar o seu colóquio o Altíssimo, em voz cavernosa.

O tom trocista do santo homem pôs Naum fora de si. Respondeu-lhe taco a taco:

- Parece-me, meu padre, que também não mudaste nada durante estes anos, tirando talvez a sotaina que tem aspecto de ser de fresca data.

O padre fez de conta que não ouviu. Com os olhos esbugalhados, estava em comunicação com deus.

O gelo rompeu-se quando puseram a mesa com o raki e as entranhas do peru como meze (1). As pessoas começaram a conversar, com excepção do padre que mantinha os olhos fixos no céu (embora pensasse no que tinha à sua frente). Rezava pela família do pai Trifon, mencionando cada um pelo seu nome.

Enquanto conversavam, tiraram o raki e serviram a sopa. Depois vieram cada um por sua vez os frangos com molho, os perus assados e por fim as tigelas de iogurte que as nuses traziam com as duas mãos.

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Nota (1) Meze: aperitivo que se serve a acompanhar a aguardente.

 

- Gosto muito de iogurte, Euphrosine! - exclamou o padre" passando a mão pela barba.

- Que te faça bom proveito, meu padre... és táo modesto nos teus gostos! - respondeu o pai Trifon rindo e esfregando o nariz, como era seu hábito quando estava contente.

Sentia-se feliz por ver Naum sentado ao lado do padre.

E o prior de São Cosme também se riu. De repente, Naum deu uma cotovelada ao padre.

- Posso migar o meu pão contigo, padre, nesta tigela de iogurte?

- Com certeza, meu filho Os livros sagrados não nos permitem zangar-nos por tão pouco... - e o padre tratou de migar o pão com as duas mãos enquanto ia falando com o bom deus, lá no alto.

- Dá aos maus, meu deus, o que prometeste aos bons e dá aos bons o que prometeste aos maus, porque os bons serão sempre bons!

Todos se persignaram. Os que estavam a comer pousaram as colheres e os outros, que estavam em pé, mudaram de mão os copos e os jarros, excepto Naum que continuava a migar o pão enquanto ria à socapa.

- E o bom deus, que conhece bem as suas criaturas como o pastor os seus cordeiros, ele que nos fez com as suas próprias mãos, com o seu barro e o seu sopro, ouve e julga o pecador deste mundo. Este ano as colheitas são fartas porque o Altíssimo, com a sua santa misericórdia dá também aos maus o que tinha prometido aos bons.

As nuses, quase em sentido, persignavam-se a cada palavra. Já não podiam mais. Mas o padre nunca mais acabava:

- Tudo tem um limite neste mundo. Os campos, os rios, as palavras. Fazei, meu deus, com que o joio não se misture com o trigo, porque sofremos martírios a separá-los...

A tigela ia-se enchendo de pão, as colheres já não tilintavam. Só se ouvia a litania monocórdica do padre.

- E não se iludam se as colheitas forem boas durante dois ou três anos. Tudo tem um limite, os campos, os rios, as palavras. Neste mundo de pecadores, até mesmo a misericórdia do bom deus e o arrependimento das suas criaturas têm um limite.

Tendo dito estas palavras, o representante do Senhor persignou-se pela segunda vez e depois, continuando a murmurar, pegou na colher para fazer as honras ao pershesh (1).

- Um momento meu padre! - exclamou Naum batendo com a colher na do padre.

O padre surpreendido, voltou a fazer o sinal da cruz. Mas o rapaz não o deixou continuar.

- Desculpa, mas nós migámos juntos este pershesh!

- Sim, meu rapaz, e vamos comê-lo juntos. Naum fixou-o nos olhos.

- E o bom deus diz que tudo tem um limite, os campos, os rios... - e quis acrescentar qualquer coisa de que se não lembrou.

- É isso mesmo, os campos, os rios, a cólera de deus... Abençoado seja o que acredita na palavra do nosso Criador, maldito o que destrói as vedações, que põe em comum os bois e o trabalho, que renuncia à fé, porque deus disse: "Que

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Nota (1) Pershesh: iogurte com sopas de pão.

 

cada um fique no seu lar e que vão todos juntos à igreja... - e o padre tratou de pegar outra vez na colher. Naum exclamou:

- Para o Senhor tudo tem um limite. Tu também, que nos trazes a sua palavra, dizes que tudo tem um limite, os campos, as palavras... e a cólera de...

- Sim, e a cólera impiedosa daquele que se compadece das nossas infelicidades... -eo padre acariciou a barba, contente por ter trazido aquele comunista para o seu

caminho.

- Então, tudo... a cólera... e o pershesh também...

- E o pershesh... - repetiu o padre distrai-damente pegando mais uma vez na colher.

- Um momento, meu padre! - e a colher bateu de novo na outra colher. - Deus diz que tudo tem um limite, os campos, os rios, o pershesh. Porque estás com tanta pressa?

Migámos o pão juntos, comê-lo-emos em comum e, é claro, cada um comerá o que ele próprio migou, sem invadir a parte do outro porque... tudo tem um limite, os campos, os rios e também o pershesh...

A estas palavras, o padre não se pôde conter. Naum rebentou a rir.

- Mas como se pode fazer isso neste recipiente tão pequeno?

- Vamos, meu padre, não brinques! Tu que interpretas as palavras de deus lá no alto, deves ser capaz de dividir facilmente os pedaços de pão que migaste cá em baixo!

Tu, o representante y Todo-Poderoso que comunicas com ele em todo A o lado, tanto na bíblia, como montado no teu J burro, como sentado na retrete...

A estas palavras, o padre deu um salto, como se uma víbora lhe tivesse mordido o traseiro. O pai Trifon também se pôs de pé num salto, ao ouvir o filho dizer tais disparates à mesa. Mas Naum bem se importava, Lançou um olhar aos outros e rebentou a rir ao ver o padre pegar na tiara e sair a toda a velocidade.

Pouco depois, ouviu-se no pátio o "toc-toc" do burro que se afastava, os rogos do pai Trifon e as maldições do padre. Naum pegou na mão da mãe.

- Senta-te, mamã, come qualquer coisa. Deves estar a cair de cansaço com todas estas cerimónias e os intermináveis sinais da cruz.

O pai Trifon, que não tinha conseguido nem reter o padre nem conter a cólera, descarregou-a contra o filho.

- Que significam esses modos?!-e, como um pé de vento, precipitou-se para o quarto, onde se fechou com a mulher. Não pregou olho toda a noite.

 

A colheita seguinte foi malhada, recolhida, moída e comida todo o ano sem a benção do padre.

No Verão, o milho semeado com as sementes amaldiçoadas pelo santo homem nasceu e desenvolveu-se maravilhosamente. As espigas encheram-se tanto que pareciam rebentar, apesar dos temores do pai Trifon. Este admirava-se com a sua sorte e com o bem estar da família, agora que estava velho, mas nem por isso se esqueceu do padre Stephane.

Mandou-o procurar enquanto se malhava o trigo, para que ele abençoasse o pão cuja semente tinha amaldiçoado. Mas o filho mais velho do pai Trifon voltou com as mãos a abanar. Que se havia passado? Uma noite, os habitantes da aldeia para lá do rio tinham encontrado o padre na floresta de Drize a conversar, não com o bom deus como era seu costume, mas com um fora-da-lei ballista e trouxeram-no consigo, sob boa guarda.

O pai Triffon baixou a cabeça e, louco de cólera, bateu com os pés no chão e pôs-se a caminho para ir ter com o padre e lhe cuspir na cara. Mas, à saída da aldeia,

os que vinham de Fier disseram-lhe que o tinham metido na prisão para que pudesse falar um bocado consigo próprio, visto já ter falado o suficiente com o bom deus.

O velho reencontrou a serenidade que manteve até ao dia em que, depois de ter festejado com toda a aldeia a nova colheita, faleceu nos braços de Naum, o filho mais novo que tantas vezes amaldiçoara e perdoara, e desta vez abençoara de todo o coração.

O astro do dia não mudou de trajectória, nem os filhos do pai Trifon mudaram de idéias. Os campos ficaram onde estavam e a cabana continuou virada a leste. Tanto de manhã, ao irem para os campos, como à tarde quando voltavam, tinham sempre o sol atrás de si, mas estavam cheios de todos os bens da terra.

Com os guerrilheiros, a "sorte" tinha também descido das montanhas.

 

                                                                              

                      

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