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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTOS COMPLETOS
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Biblio VT

 

 

 

 

VOLUME 3

Kholstomier

Os três filhos

A cafeteria de Surat

O diabo

Variante do fim do conto “O diabo”

Françoise

Custa caro

O karma

Três parábolas

O patrão e o trabalhador

A destruição do inferno e sua reconstrução

Depois do baile

O rei assírio Assarhaddon

O cupom falsificado

Aliocha Gorchok

Kornei Vassíliev

Morangos

Memórias póstuma do stárets Fiódor Kuzmitch

Padre Vassíli

Para quê?

O divino e o humano

O que vi num sonho

Gente pobre

A força da infância

O lobo

Conversa com um passante

Krekchino

Iásnaia Poliana

Khodinka

Sem querer

 

 

KHOLSTOMIER

[História de um cavalo]

Em memória de M. A. Stakhóvitch1
I

 

 

 

O céu se erguia cada vez mais, a aurora se alastrava, a prata opaca do orvalho se tornava mais branca, a foice da luz se desbotava, a floresta se tornava mais barulhenta, as pessoas acordavam e na cocheira dos cavalos do senhor de terras ouviam-se mais e mais os bufos, o rebuliço na palha e até os relinchos irritados e estridentes dos cavalos aglomerados, que brigavam por algum motivo.

–Ô, ô! Devagar! Estão morrendo de fome? – disse um velho cavalariço, enquanto abria a porteira rangente. – Aonde você vai? – gritou, brandindo o braço na direção de uma égua que tentava se enfiar pela fresta da porteira.

O cavalariço Niéster vestia um casaco cingido por um cinturão, trazia um açoite pendurado no ombro e uma trouxinha com pão presa à cintura. Nos braços, levava uma sela e um bridão.

Os cavalos não se assustaram nem um pouco e não se aborreceram com o tom zombeteiro do cavalariço, fingiram não dar importância e se afastaram da porteira sem a menor pressa; só uma égua velha, alazã, de crina grande, levantou as orelhas e, bruscamente, deu as costas para ele. Uma égua jovem que estava atrás e que não tinha nada a ver com o assunto guinchou e aproveitou a chance para dar um coice no primeiro cavalo que apareceu.

–Ô, ô! – gritou o cavalariço ainda mais alto e ameaçador e seguiu para o canto do estábulo.

Entre todos os cavalos que estavam ali (eram cerca de cem), o que mostrava menos impaciência era um castrado malhado que estava sozinho num canto embaixo do alpendre e, estreitando as pálpebras, lambia um pilar de carvalho do telheiro. Não se sabia que gosto aquele castrado malhado encontrava naquilo, mas sua expressão era séria e pensativa enquanto lambia.

–Seu molengão! – disse a ele o cavalariço, de novo no mesmo tom, aproximando-se e colocando a seu lado, sobre o esterco, a sela e uma manta surrada.

O castrado parou de lamber e, sem se mover, observou Niéster demoradamente. Não riu, não se zangou, não fez cara feia, apenas encheu bastante a barriga de ar, deu um suspiro muito profundo e virou-se. O cavalariço abraçou o pescoço do cavalo e pôs o freio.

–Por que está suspirando? – perguntou Niéster.

O castrado abanou a cauda como se dissesse: “Não é nada, Niéster”. O cavalariço pôs sobre o cavalo a manta e depois a sela, o que fez o malhado baixar as orelhas, exprimindo talvez sua insatisfação, mas só serviu para que ele fosse xingado, e logo começaram a apertar a barrigueira. O castrado respirou fundo, mas meteram um dedo em sua boca e bateram com o joelho em sua barriga para que ele soltasse o ar. Apesar disso, quando os dentes apertaram o bridão, mais uma vez ele baixou as orelhas e até olhou para trás. Embora soubesse que aquilo não ia ajudar em nada, mesmo assim achou necessário deixar claro que não estava gostando e que sempre iria demonstrar isso. Depois que prenderam a sela, o malhado afastou a perna direita inchada e começou a mastigar o bridão, também por algum motivo particular, porque àquela altura ele já devia saber que um bridão não pode ter nenhum gosto.

Niéster montou no castrado apoiando-se no estribo curto, desenrolou o chicote, soltou o casaco que estava preso embaixo do joelho, ajeitou-se sobre a sela da maneira peculiar dos cocheiros, caçadores e cavalariços e deu um puxão nas rédeas. O castrado levantou a cabeça, exprimindo que estava pronto para ir aonde mandassem, mas não saiu do lugar. Sabia que, antes de partir, a pessoa que estava sentada em cima dele ia gritar muito, dando ordens para Vaska, o outro cavalariço, e para os cavalos. De fato, Niéster começou a gritar: “Vaska! Ei, Vaska! Você deixou as éguas soltas? Onde se meteu, esse diabo! Ô! Na certa está dormindo. Abra, deixe as éguas prenhas saírem na frente”. Etc.

A porteira rangeu, Vaska, irritado e sonolento, segurando um cavalo pela rédea, ficou parado junto ao mourão da porteira e deixou os cavalos passarem. Um atrás do outro, os cavalos começaram a passar, pisando com cuidado na palha e farejando: éguas jovens, potros, filhotinhos e pesadas éguas prenhes, com cuidado, uma de cada vez, passaram carregando suas barrigas. As éguas jovens às vezes se espremiam em pares, em trios, encostando a cabeça na anca da égua da frente, em passos afoitos rumo à porteira, pelo que sempre recebiam palavras injuriosas dos cavalariços. Os filhotinhos às vezes se apertavam junto às pernas de éguas que não eram suas mães e relinchavam, em resposta ao curto grunhido das éguas prenhes.

Uma égua jovem e travessa, mal atravessou a porteira, baixou a cabeça, inclinou-a de lado, empinou a garupa e grunhiu; mesmo assim não se atreveu a correr na frente da velha égua grega cinzenta e premiada, Juldiba, que a passos lentos, pesados, balançava a barriga para um lado e para o outro, andando com ar grave, como sempre, à frente de todos os cavalos.

Em poucos minutos, o estábulo, tão animado e cheio, se esvaziou e ficou triste; sobressaíam melancolicamente as colunas sob os alpendres vazios e via-se apenas a palha amassada e suja de esterco. Por mais que o castrado malhado estivesse acostumado àquele quadro de abandono, a imagem produzia nele um efeito de tristeza. Devagar, como se fizesse uma reverência, ele baixou e ergueu a cabeça, suspirou o mais alto que lhe permitia a cilha apertada e, mancando com as pernas arqueadas e duras, se arrastou atrás da manada, carregando o velho Niéster nas costas ossudas.

“Já sei: agora, assim que a gente partir pela estrada, ele vai acender e fumar seu cachimbo de madeira, com aro de cobre e com uma correntinha”, pensou o castrado. “Fico feliz com isso, porque de manhã cedo, com o orvalho, gosto desse cheiro e me faz lembrar muita coisa boa; o ruim é que, com o cachimbo entre os dentes, o velho sempre fica muito cheio de si, imagina que é grande coisa e toda vez senta de lado na sela; e justamente do lado que me dói. Bem, é melhor deixar para lá, para mim não é novidade sofrer para o prazer dos outros. Até passei a achar nisso certo prazer de cavalo. Deixe que ele se faça de importante, coitado. Afinal ele só faz pose de importante quando está sozinho, quando não vê ninguém, então deixe que sente de lado”, refletia o castrado, pisando cautelosamente com as patas tortas e andando pelo meio da estrada.
II

 

 

 

Depois de levar a manada para o rio, perto do qual os cavalos deviam pastar, Niéster desmontou e tirou a sela. A manada, enquanto isso, já começava a se dispersar lentamente pelo prado ainda intocado, coberto apenas pelo orvalho e pelo vapor que subia do prado e do rio que o contornava.

Niéster tirou o bridão do castrado malhado, coçou embaixo do pescoço do cavalo e, em resposta, o castrado fechou os olhos, num sinal de gratidão e contentamento. “Gosta, não é, cachorro velho!”, exclamou Niéster. O castrado não gostava nem um pouco daquela coçadinha, só por delicadeza fingia que lhe agradava, e balançou a cabeça como quem concorda. Mas de repente, de modo totalmente inesperado e sem nenhum motivo, talvez achando que uma familiaridade grande demais pudesse dar ao castrado malhado ideias erradas de sua importância, Niéster, sem nenhum aviso, empurrou para trás a cabeça do castrado, agarrou o arreio, bateu com a fivela na perna seca do castrado, para machucar, e sem dizer nada andou para um morrinho, até o cepo junto ao qual costumava descansar.

Embora magoado com aquele gesto, o castrado não deu nenhum sinal disso e, abanando devagar a cauda abaixada, farejando alguma coisa e mordiscando o capim só para se distrair, foi para o rio. Sem prestar a menor atenção nas travessuras das éguas jovens, dos potros e dos filhotinhos à sua volta, animados com a manhã, e sabendo que o mais saudável, sobretudo na sua idade, era beber bastante em jejum e só depois comer, ele escolheu um lugar um pouco mais afastado e mais amplo, na margem, e, molhando os cascos e as quartelas, afundou o focinho no rio e começou a chupar a água entre os beiços rasgados, remexeu os flancos fartos e, de puro contentamento, abanou a cauda malhada e rala, no sabugo sem pelos.

Uma eguinha baia, implicante, sempre disposta a provocar o velho e lhe fazer coisas desagradáveis, também foi para perto dele, junto da água, como se fosse por alguma necessidade, mas no fundo era só para turvar a água na frente do focinho do castrado. Mas o malhado já havia matado a sede e, como se não percebesse a intenção da égua parda, retirou tranquilamente as patas atoladas, uma a uma, sacudiu a cabeça e, afastando-se dos jovens, começou a comer. Separando as pernas de diversas maneiras e sem pisar o capim de modo desnecessário, comeu durante três horas a fio, quase sem levantar a cabeça. Depois de se fartar de comer a tal ponto que a barriga pendia como um saco nas costelas magras e salientes, o malhado apoiou-se por igual sobre as quatro patas doloridas para que a dor fosse menor, sobretudo na pata direita da frente, a mais fraca de todas, e pegou no sono.

Existe a velhice majestosa, a velhice repugnante, a deplorável. Existe também uma velhice ao mesmo tempo majestosa e repugnante. A velhice do castrado era justamente desse tipo.

O castrado era de grande estatura – não menos de dois archin e três verchok. Tinha o pelo murzelo malhado. Assim era antigamente, mas agora as manchas cor de amora tinham ficado de uma cor cinzenta e suja. Seu malhado era constituído por três manchas: uma na cabeça, que contornava o focinho e ia até a metade do pescoço, numa curva pelada. A crina comprida e coalhada de pintas era branca e pardacenta. A outra mancha ficava no flanco direito e ia até a metade da barriga; a terceira ficava na garupa, tomava a parte superior da cauda e ia até a metade da coxa. O resto da cauda era esbranquiçado, com pintas. A cabeça grande e ossuda, com profundas cavidades sob os olhos e o lábio preto caído e rasgado havia muito tempo, pendia pesada e baixa no pescoço curvado pela magreza, como se fosse de madeira. Por trás do beiço caído, via-se a língua enegrecida e mordida no canto e o que havia sobrado dos dentes inferiores, amarelos e carcomidos. As orelhas, uma delas cortada, ficavam muito abaixadas dos dois lados e só de vez em quando se mexiam com preguiça para espantar moscas pegajosas. Uma mecha mais comprida da franja caía por trás da orelha, a testa descoberta era afundada e rugosa, a pele pendia formando bolsas dos lados do rosto. No pescoço e na cabeça, as veias se tornaram nodosas, saltadas, e estremeciam a qualquer contato das moscas. A expressão do rosto era séria e paciente, pensativa e sofrida. As patas dianteiras eram arqueadas na altura do joelho, as canelas estavam inchadas logo acima dos dois cascos e numa delas, em que a mancha ia até a metade da perna, havia na altura do joelho um calombo do tamanho de um punho cerrado. As patas traseiras eram mais saudáveis; mas tinham pisaduras nas coxas, pelo visto antigas, e o pelo já não cobria aquelas áreas. Todas as pernas pareciam desproporcionalmente compridas por causa da magreza do corpo. As costelas, embora fortes, estavam tão protuberantes e esticavam tanto o couro que a pele parecia ter colado nos intervalos entre as costelas. A cernelha e o dorso tinham marcas de surras antigas e na garupa havia uma ferida ainda fresca, inchada e purulenta; o sabugo preto da cauda, que deixava as vértebras à mostra, pendia comprido e quase pelado. Na garupa de cor parda, perto da cauda, havia uma chaga na forma de uma palma da mão, com pelos brancos em volta, como se fosse de uma mordida, e outra ferida cicatrizada na escápula dianteira. Os joelhos de trás e a cauda viviam sujos por causa do desarranjo intestinal constante. O pelo do corpo todo, embora curto, era eriçado. Mas, apesar da velhice repugnante do cavalo, ao olhar para ele, não se podia deixar de pensar, e um especialista teria reconhecido de cara, que tinha sido, em seu tempo, um cavalo extraordinário.

O especialista diria até que na Rússia só existia uma espécie capaz de ter ossos tão largos, fêmures tão imensos, tamanhos cascos, tamanha finura nos ossos das pernas, tal postura do pescoço e acima de tudo tal ossatura da cabeça, tais olhos – grandes, negros, brilhantes –, uma rede tão nobre de veias nodosas em torno da cabeça e do pescoço e o pelo e o couro tão finos. De fato, havia algo majestoso na figura daquele cavalo, na terrível combinação dos traços repulsivos de decrepitude com a intensa variedade de cores do pelo, as maneiras e expressões de confiança e a serena consciência da beleza e da força.

Semelhante a uma ruína viva, ele se erguia sozinho no meio do prado orvalhado enquanto perto se ouviam o tropel, os bufos, os relinchos joviais, os guinchos da manada dispersa.
III

 

 

 

O sol já se destacara acima da floresta e ardia reluzente no capim e nas ondulações do rio. O orvalho havia secado e se concentrara em gotas, o último vapor da manhã se dissolvia como fumaça, aqui e ali, em torno do charco e ao pé da mata. Nuvenzinhas se encrespavam, mas ainda não havia vento. Do outro lado do rio, o centeio se erguia em cerdas, verde, enrolado em canudos, e exalava um cheiro de verdura fresca e de flor. O cuco cantava rouco na mata e Niéster, estirado de costas no chão, contava nos pios do cuco quantos anos ainda iria viver. As cotovias esvoaçavam acima do centeio e do prado. Uma lebre retardatária foi parar no meio da manada e, depois de pular para longe, sentou-se junto a um arbusto e ficou atenta. Vaska cochilava com a cabeça no capim, as éguas à sua volta se afastaram, dispersando-se para baixo. Resfolegando, as éguas velhas deixavam pegadas reluzentes no orvalho claro e todas escolhiam um lugar onde ninguém as incomodasse, mas já não comiam, apenas mordiscavam o capim saboroso. De modo imperceptível, a manada inteira se movia na mesma direção. E de novo a velha Juldiba, adiantando-se com ar grave à frente dos outros, mostrava que era possível ir mais longe. A jovem murzela Muchka, que tivera cria pela primeira vez, relinchava e, de cauda erguida, bufava sobre seu filhotinho de cor lilás, que, com os joelhos trêmulos, cambaleava a seu lado. A alazã solteira Andorinha, de pelo liso, reluzente e acetinado, com a cabeça tão abaixada que a franja negra e sedosa cobria a testa e os olhos, brincava com o capim – beliscava, largava ou pisava o capim com a pata de quartela peluda, molhada de orvalho. Um dos potrinhos mais crescidos, talvez inventando uma brincadeira para si, depois de levantar vinte e seis vezes o rabinho curto e crespo como um penacho, galopava em volta da mãe, que, já acostumada à personalidade do filho, mordiscava tranquilamente o capim e só de vez em quando, com o rabo dos olhos grandes e negros, dava uma espiada no filhote. Um dos potros menores, preto, cabeçudo, com uma franja admirável que ressaltava entre as orelhas e com o rabo ainda torcido para o mesmo lado em que ele ficara virado dentro da barriga da mãe, não saía do lugar, com as orelhas e os olhos obtusos alertas, enquanto fitava atentamente o potro que pulava e recuava, não se sabia se invejando ou censurando o que ele fazia. Alguns mamavam, empurrando com o focinho, outros, sem que se soubesse o motivo, e apesar dos apelos das mães, corriam num trote miúdo, desajeitado, direto para o lado oposto, como se procurassem alguma coisa, e depois, também sem que se soubesse o motivo, paravam e davam relinchos com voz estridente e desesperada; outros ficavam deitados de lado, juntos uns dos outros; alguns aprendiam a comer o capim; outros coçavam atrás das orelhas com as patas traseiras. Duas éguas paridas andavam afastadas dos outros e, movendo as patas lentamente, continuavam a comer. Era óbvio que o estado delas era respeitado pelos demais e nenhum dos jovens se atrevia a se aproximar e perturbar. Se algum dos filhotes travessos inventasse de chegar perto, bastava um único movimento da cauda das éguas para mostrar toda a inconveniência de seu comportamento.

Os potrinhos e as éguas de um ano fingiam já ser grandes e maduros e raramente saltavam e se juntavam aos grupos alegres. Comiam capim com ar compenetrado, arqueando seus tosquiados pescocinhos de cisne e, como se também tivessem caudas de verdade, abanavam suas vassourinhas. Como os já crescidos, alguns deles se deitavam, rolavam ou coçavam uns aos outros. O grupo mais animado era formado por éguas solteiras de dois ou três anos. Andavam quase todas juntas num grupo à parte, de jovens alegres. Entre elas, ouviam-se o tropel, os guinchos, os relinchos, os coices. Juntavam-se, apoiavam a cabeça no ombro umas das outras, cheiravam-se, pulavam e às vezes, depois de bufar e erguer a cauda em forma de tubo, corriam orgulhosas e cheias de si num semitrote quase saltitante à frente de suas camaradas. A beldade principal, na liderança de toda aquela juventude, era a égua baia travessa. Aquilo que inventava, as outras também faziam; aonde ela ia, todo o bando ia atrás. Naquela manhã, seu estado de espírito era especialmente travesso e brincalhão. O ataque de bom humor a dominava como domina as pessoas. Ainda no bebedouro, depois de zombar do cavalo velho, ela saiu correndo pela água, fingiu que alguma coisa a havia assustado, bufou e saiu em disparada pelo campo, a tal ponto que Vaska teve de galopar atrás dela e das outras que a seguiam. Mais tarde, tendo comido um pouco, ela se espojou sobre o capim, depois escarneceu das éguas velhas, pondo-se na frente delas, depois apartou um potro do bando e começou a correr atrás dele, como se quisesse mordê-lo. A mãe do potro se assustou e parou de comer, o potrinho gritou com uma voz de dar pena, mas a égua travessa nem tocou nele, apenas lhe deu um susto e ofereceu um espetáculo para suas camaradas, que observavam suas brincadeiras com simpatia. Depois ela inventou de virar a cabeça para um cavalo ruão que, ao longe, do outro lado do rio, puxava um arado conduzido por um mujiquezinho. Ela parou, com ar orgulhoso, um pouco de lado, ergueu a cabeça, animou-se e relinchou com voz doce, meiga e prolongada. O espírito travesso, a afeição e certa tristeza se exprimiam naquele relincho. Nele havia também desejo, promessa e tristeza de amor.

Lá estava a codorniz que, no juncal espesso, correndo de um canto para outro, chamava com paixão seu companheiro, lá estavam o cuco e a codorna que cantavam o amor, e as flores que lançavam no vento sua poeira perfumada, umas para as outras.

“Eu também sou jovem, bonita, forte”, dizia o relincho da travessa, “mas ainda não pude provar a doçura desse sentimento, não só não pude provar como ainda nenhum amante, nenhum, reparou em mim.”

E aquele relincho tão cheio de significado, tão jovem e triste, ressoou pela baixada e pelo campo e, ao longe, alcançou o cavalinho ruão. Ele ergueu as orelhas e ficou parado. O mujique bateu no cavalo com a sandália de palha, mas o cavalinho ruão estava fascinado pelo som de prata do relincho distante e também relinchou. O mujique se irritou, puxou as rédeas e bateu com a sandália na barriga do cavalo com tanta força que o ruão nem teve tempo de terminar seu relincho e andou para a frente. O cavalinho ruão teve uma sensação triste e doce e, ainda por muito tempo, os sons do relincho ardente e inacabado e da voz zangada do mujique foram levados do distante campo de centeio até a manada.

Se apenas o som daquela voz foi capaz de deixar o cavalinho ruão tão aturdido que esqueceu sua obrigação, o que seria dele caso visse toda a beleza da travessa, quando ela, com as orelhas em guarda e as narinas abertas, inspirou fundo e, com o corpo jovem e bonito tomado por tremores e por um ímpeto de ir não sabia para onde, chamou por ele?

Mas a travessa não ficou muito tempo pensando em suas tristezas. Quando a voz do ruão silenciou, ela deu mais um relincho zombeteiro e, de cabeça baixa, pôs-se a escavar a terra com a pata e depois foi mexer e provocar o malhado castrado. Era ele o eterno mártir e alvo das brincadeiras daquela juventude feliz. Sofria com aquela juventude mais do que com as pessoas. Não fazia mal nem a uns nem a outros. As pessoas precisavam dele, de fato, mas por que os cavalos jovens o atormentavam?
IV

 

 

 

Ele era velho, eles eram jovens; ele era magro, eles eram bem nutridos; ele era desanimado, eles eram alegres. Portanto era totalmente alheio, afastado, uma criatura em tudo diferente, e era impossível ter pena dele. Os cavalos só têm pena de si mesmos e, às vezes, daqueles em cuja pele podem facilmente se pôr. Mas afinal o malhado tinha culpa de ser velho, descarnado e feioso? Parecia que não. Mas, do ponto de vista dos cavalos, o malhado tinha culpa, e a razão estava com os que eram fortes, jovens e felizes, os que sempre estavam na frente, os que faziam vibrar todos os músculos e erguiam a cauda a prumo, como uma estaca, num esforço supérfluo. Talvez o próprio castrado malhado compreendesse aquilo e, nos momentos de tranquilidade, concordasse que tinha culpa de fato por já ter vivido sua vida e que precisava pagar por aquela vida; mesmo assim era um cavalo e muitas vezes não conseguia conter os sentimentos de humilhação, de tristeza e de indignação, ao olhar para toda aquela juventude que o condenava por algo que eles mesmos, todos eles, iriam padecer no fim da vida. Outro motivo para a crueldade dos cavalos era um sentimento aristocrático. Todos eles, em sua genealogia, por parte de pai ou de mãe, provinham do famoso Smietanka, mas o castrado era de proveniência ignorada; tinha outra origem, havia sido comprado três anos antes, numa feira, por oitenta rublos à vista.

A eguinha baia, fazendo de conta que passeava sem rumo, chegou até o focinho do castrado malhado e deu um empurrão. Ele já sabia o que aquilo queria dizer e, sem abrir os olhos, deitou as orelhas e arreganhou os dentes. A égua virou de costas e fingiu que queria dar um coice. O castrado abriu os olhos e se afastou para o outro lado. Já não tinha vontade de dormir e começou a comer. De novo, acompanhada de suas amigas, a travessa chegou perto do castrado. Uma égua de dois anos, de crina raspada, muito boba, que sempre imitava e seguia a égua baia, aproximou-se junto com ela e, como sempre agem os imitadores, começou a exagerar o que a mestra fazia. A égua baia em geral se aproximava como quem não quer nada e assim chegava bem perto do focinho do castrado, sem olhar para ele, de modo que ele não sabia ao certo se devia se zangar ou não, e aquilo era de fato engraçado. Agora ela estava fazendo a mesma coisa, mas a imitadora, que a seguia especialmente animada, esbarrou com o peito em cheio no castrado. Ele mostrou os dentes de novo, guinchou e, com uma agilidade que não se poderia esperar dele, pulou atrás da égua e mordeu-a na coxa. A égua deu um coice com as duas patas traseiras e acertou com força as costelas magras e nuas do velho. Ele chegou a urrar, quis partir atrás dela, mas pensou melhor e, depois de um suspiro profundo, se afastou para o lado. Talvez todos os jovens da manada tenham tomado como ofensa pessoal a audácia que o castrado malhado se permitiu em relação à égua de crina raspada e, durante todo o resto do dia, não o deixaram realmente comer em paz, não lhe deram nem um minuto de sossego, a tal ponto que o cavalariço teve de acalmar os cavalos várias vezes, e não conseguia entender o que estava acontecendo. O castrado foi tão acossado que andou por conta própria para perto de Niéster, quando o velho começou a juntar a manada para voltarem e sentiu-se mais feliz e mais calmo quando o homem pôs a sela e montou.

Só Deus sabe o que o castrado pensava enquanto carregava o velho Niéster nas costas. Talvez pensasse com amargura na juventude cruel e impertinente ou, com o orgulho mudo e desdenhoso próprio dos velhos, talvez desculpasse aqueles que o ofendiam, só que não deixou transparecer nenhum de seus pensamentos, até chegar em casa.

Naquela noite, Niéster recebeu a visita de compadres e, quando passou com a manada diante das isbás dos servos, notou a charrete com um cavalo amarrado no alpendre de sua casa. Depois de tocar a manada, ele estava tão afobado que soltou o castrado no pátio sem tirar a sela, gritou para Vaska se incumbir daquilo, trancou a porteira e foi ao encontro dos compadres. Por causa da ofensa cometida contra a eguinha de crina raspada, bisneta de Smietanka, pelo pangaré “pé-rapado”, comprado numa estrebaria, sem pai nem mãe, que só por isso já era um insulto ao sentimento aristocrático de toda a manada, ou então porque a figura do castrado de sela alta e sem nenhum cavaleiro oferecia aos demais cavalos um espetáculo estranho e fantástico, naquela noite algo fora do comum aconteceu no estábulo. Todos os cavalos, jovens e velhos, com os dentes arreganhados, correram atrás do castrado, o enxotaram para fora, ouviram-se os sons dos cascos que batiam nos flancos magros e gemidos profundos. O castrado não podia mais suportar aquilo, não conseguia mais se esquivar dos golpes. Parou no meio do pátio, no seu rosto exprimiu-se a exasperação repulsiva e fraca da velhice impotente e depois o desespero; ele ergueu as orelhas e, de repente, fez algo que deixou todos os cavalos calados. A égua mais velha de todas, Viazopúrikha, aproximou-se do castrado, cheirou-o e suspirou. O castrado também suspirou.
V

 

 

 

A figura alta e magra do castrado, com a sela alta, da qual o arção sobressaía, estava parada no meio do pátio iluminado pela lua. Imóveis e num profundo silêncio, os cavalos se puseram à sua volta, como se tivessem sabido por meio dele algo novo e inesperado. E de fato souberam algo novo e inesperado. Aqui está o que souberam por meio dele.

PRIMEIRA NOITE

–Sim, sou filho de Liubiézni I e de Baba. Meu nome pela linhagem é Mujique I. Sou Mujique I pela linhagem, sou Kholstomier por apelido, chamado assim pelo povo por causa do meu passo comprido e largo, que não tinha igual na Rússia.2 Pelo nascimento, pelo sangue, não existe no mundo cavalo superior a mim. Eu nunca diria isso para vocês. Para quê? Vocês jamais me reconheceriam. Como não me reconheceu Viazopúrikha, que esteve junto comigo em Khrenov e só agora me reconheceu. Nem agora acreditariam em mim, se não houvesse o testemunho de Viazopúrikha. Eu jamais contaria isso a vocês. Não preciso da piedade dos cavalos. Mas vocês queriam isso. Sim, sou o Kholstomier que os caçadores procuram e não encontram, o Kholstomier que o próprio conde conheceu e mandou que fosse expulso da cavalariça e fosse vendido, porque venci na corrida seu cavalo predileto, o Cisne.

“Quando nasci, não sabia o que significava a palavra malhado, achava que eu era só um cavalo. O primeiro comentário sobre meu pelo, me lembro, me impressionou muito, e à minha mãe também. Acho que nasci à noite, de manhã minha mãe já estava me lambendo e eu estava de pé. Lembro que eu vivia querendo muito alguma coisa e que tudo me parecia extremamente admirável e, ao mesmo tempo, extremamente simples. Nossas baias ficavam num corredor comprido e aquecido, com portas de treliça, através das quais se podia ver tudo. Minha mãe me ofereceu suas tetas, mas eu era tão inocente que metia o focinho ora embaixo de suas pernas dianteiras, ora embaixo da gamela. De repente minha mãe olhou para a porta de treliça e, passando as pernas por cima de mim, se afastou. O cavalariço de plantão olhava através da treliça para nós, dentro da baia.

“ ‘Ora vejam, a Baba deu cria’, disse e tratou de abrir a tranca; entrou pisando na palha fresca e me segurou nos braços. ‘Olhe só, Tarás’, gritou. ‘Como é malhado, parece uma pega.’

“Eu me desvencilhei dele e tropecei nos próprios joelhos.

“ ‘Olhe só que diabinho’, exclamou.

“Minha mãe se inquietou, mas não veio em minha defesa, apenas deu um suspiro profundo e se afastou um pouco para o canto. Vieram os cavalariços e ficaram olhando para mim. Um correu para avisar ao chefe dos estábulos. Todos riam, olhando para meu pelo malhado, e me davam diversos nomes estranhos. Nem eu nem minha mãe entendíamos o sentido daquelas palavras. Até então, entre nós e entre todos os meus parentes, nunca tinha existido nenhum malhado. Não achávamos que houvesse nisso algo de ruim. Todos elogiavam minha constituição física e minha força.

“ ‘Olhe só, que esperto’, disse o cavalariço. ‘Ninguém segura.’

“Depois de um tempo, veio o chefe dos estábulos e ficou admirado com minha cor, pareceu até aborrecido.

“ ‘A quem puxou essa aberração?’, disse. ‘Agora o general não vai deixar que fique no haras. Ah, Baba, você me tapeou’, falou para minha mãe. ‘Antes tivesse parido um potro pelado do que esse daí, todo malhado!’

“Minha mãe não respondeu e, como sempre em situações desse tipo, suspirou outra vez.

“ ‘A que diabo ele puxou? Parece um mujique’, prosseguiu, ‘não vai poder ficar no haras, é uma vergonha, mas é bonitinho, muito bonitinho’, disse, e o mesmo disseram todos, olhando para mim. Alguns dias depois, o próprio general veio me ver e, mais uma vez, por algum motivo, todos se horrorizaram e praguejaram contra mim e minha mãe, por causa da cor de meu pelo. ‘Mas é bonitinho, muito bonitinho’, repetiam todos que me viam.

“Até a primavera, vivemos separados em nossas baias, cada um com sua mãe, só de vez em quando, na época em que a neve no telhado começava a derreter com o sol, nos soltavam junto com as mães no curral amplo, coberto pela palha fresca. Ali pela primeira vez vi todos os meus parentes, próximos e distantes. Ali, de diversas portas, vi saírem com seus potros as éguas mais famosas daquele tempo. Ali estava a velha Golanka, Muchka – filha de Smietanka –, Krasnukha, a égua de montaria Dobrokhotikha, todas as éguas famosas da época se juntaram ali com suas crias, vagavam debaixo do sol manso, rolavam na palha fresca e farejavam umas às outras, como cavalos comuns. A imagem daquele curral repleto das beldades da época é algo que até hoje não consigo esquecer. Vocês devem achar difícil imaginar e acreditar que eu também fui jovem e ágil, mas é verdade. Essa mesma Viazopúrikha estava lá, na época ainda uma potrancazinha de um ano – uma eguinha meiga, alegre e brincalhona; no entanto, e não é para ofendê-la que o digo, apesar de ser considerada entre vocês uma raridade pelo sangue puro, na época era uma das crias de categoria mais baixa no estábulo. Ela mesma pode confirmar isso para vocês.

“Meu pelo malhado, que tanto desagradava às pessoas, agradava muito a todos os cavalos; todos me rodeavam, me admiravam e brincavam comigo. Eu já começava a esquecer as palavras dos homens sobre meu pelo malhado e me sentia feliz. Mas logo conheci o primeiro desgosto de minha vida e a causa disso foi minha mãe. Quando já começava o degelo, os pardais cantavam embaixo dos beirais e, no ar, se começava a sentir a primavera com mais força, a maneira como minha mãe me tratava começou a mudar. Seu modo de ser se transformou completamente; ora se punha a brincar, de repente, sem nenhum motivo, correndo pelo curral, algo que não combinava em nada com sua idade respeitável; ora se punha pensativa e relinchava; ora mordia e escoiceava suas irmãs éguas; ora começava a me cheirar e bufava descontente; ora saía para o sol, apoiava a cabeça no ombro de sua prima Kuptchikha e ficava muito tempo pensativa, coçando as costas da prima, e me rechaçava de suas tetas com empurrões. Um dia, chegou o chefe dos estábulos, mandou pôr o cabresto em minha mãe e a levaram de minha baia. Ela relinchou, eu atendi seu apelo e corri em sua direção; mas minha mãe nem se virou para mim. O cavalariço Tarás me agarrou com os dois braços, ao mesmo tempo que trancavam a porta atrás de minha mãe, levada para longe. Derrubei o cavalariço na palha, corri em disparada, mas a porta estava trancada e eu só pude ouvir os relinchos de minha mãe, cada vez mais distantes. E naqueles relinchos eu já não percebia um apelo, e sim outra expressão. À voz dela, respondia de longe, como eu soube depois, a voz possante de Dóbri I, que, escoltado por dois cavalariços, ia ao encontro de minha mãe. Não lembro como Tarás saiu de minha baia: eu estava triste demais. Sentia que tinha perdido para sempre o amor de minha mãe. E tudo porque eu era malhado, eu pensava, lembrando as palavras das pessoas a respeito de meu pelo, e me deu tanta raiva que comecei a bater com a cabeça e com os joelhos na parede da baia – fiquei batendo até o suor me encharcar e só parei quando caí exausto.

“Depois de um tempo, mamãe voltou para mim. Ouvi que ela vinha correndo pelo corredor para nossa baia, a trote curto e num passo diferente. Abriram a porta para ela e eu nem a reconheci, de tão bonita e remoçada. Cheirou-me, bufou e começou a relinchar. Em toda a sua expressão, eu via que não me amava. Falou-me da beleza de Dóbri I e de seu amor por ele. Aqueles encontros prosseguiram e as relações entre mim e minha mãe se tornaram cada vez mais frias.

“Pouco tempo depois nos soltaram no pasto. A partir daí conheci alegrias novas que substituíram a perda do amor de minha mãe. Fiz amigas e amigos, aprendemos juntos a comer capim, a relinchar como os adultos e a galopar em círculos, de cauda levantada, em redor de nossas mães. Foi um tempo feliz. Tudo me perdoavam, todos me amavam, todos me admiravam e encaravam com indulgência tudo o que eu fizesse. Isso não durou muito. Pouco tempo depois, me aconteceu uma coisa horrível.”

Dito isso, o castrado deu um suspiro profundo, profundo, e se afastou dos cavalos.

A aurora já ardia havia muito tempo. O portão rangeu, Niéster entrou. Os cavalos se dispersaram. O cavalariço ajeitou a sela nas costas do castrado e tocou a manada para fora.
VI

 

 

 

SEGUNDA NOITE

Assim que os cavalos foram trazidos de volta, reuniram-se de novo numa roda em torno do malhado.

–No mês de agosto nos separaram de nossas mães – prosseguiu o malhado – e não senti um desgosto tão grande. Percebi que minha mãe estava grávida de meu irmão menor, o famoso Ussan, e eu já não era como antes. Não tinha ciúme, mas sentia que estava ficando mais frio em relação a ela. Além disso, sabia que, separado de minha mãe, eu seria levado para o setor comum dos potros, onde ficávamos em dois ou em três em cada baia, e todo dia os jovens saíam em bando ao ar livre. Eu ficava na mesma baia de Míli. Era um cavalo de montaria e tempos depois o imperador montou nele; Míli foi retratado em pinturas e em estátuas. Na época, Míli ainda era um simples potro, de pelo lustroso e delicado, pescoço de cisne e pernas finas e retas como cordões. Estava sempre alegre, bem-humorado e afetuoso; sempre disposto a brincar, lamber-se e fazer troça de um cavalo ou de um homem. Como vivíamos juntos, não pude deixar de fazer amizade com ele, e essa amizade prosseguiu durante toda a nossa juventude. Ele era alegre e leviano. Já estava começando a amar, brincava com as éguas e ria de minha inocência. Para minha infelicidade, passei a imitá-lo, movido pela vaidade; em pouco tempo, fui arrebatado pelo amor. E essa minha afeição prematura foi causa de uma grande guinada no meu destino. Aconteceu que me apaixonei.

“Viazopúrikha era mais velha que eu um ano, nós dois éramos muito amigos; mas no fim do outono, notei que ela começou a se esquivar de mim... Mas não vou contar toda a história infeliz de meu primeiro amor, ela mesma lembra minha paixão insensata, que terminou para mim com a mudança mais importante de minha vida. Os cavalariços correram para afastá-la e bateram em mim. À noite, me levaram para uma baia especial; relinchei a noite inteira, como se pressentisse os acontecimentos do dia seguinte.

“De manhã, o general, o chefe dos estábulos, os cavalariços e os ajudantes chegaram ao corredor de minha baia e começou uma gritaria terrível. O general gritava com o chefe dos estábulos, o chefe dos estábulos se justificava dizendo que não tinha mandado me soltar, que os cavalariços tinham feito aquilo por conta própria. O general disse que ia açoitar todo mundo e que era impossível ficar com todos os potros. O chefe dos estábulos prometeu cumprir suas ordens. Calaram-se e foram embora. Não entendi nada, mas vi que algo estava sendo tramado contra mim.”

–No dia seguinte, nunca mais voltei a relinchar e me transformei no que sou agora. O mundo inteiro se modificou aos meus olhos. Nada tinha encanto para mim, eu me fechei em mim mesmo e comecei a refletir. No início, tudo era detestável para mim, até parei de beber, comer e andar, já nem pensava mais em brincar. Às vezes me vinha à cabeça corcovear, galopar, relinchar; mas logo surgia a pergunta terrível: para quê? Por quê? E as últimas forças se esvaíam.

“Certa vez me levaram para fora ao entardecer, na hora em que traziam a manada de volta do pasto. Ainda de longe, avistei a nuvem de poeira com as formas vagas, mas conhecidas, de todas as nossas fêmeas. Ouvi o tropel e o resfolegar alegre. Apesar de a corda do cabresto, pela qual o cavalariço me puxava, cortar minha nuca, parei e me pus a olhar para a manada que se aproximava, como olhamos para uma felicidade irrecuperável, perdida para sempre. Elas se aproximaram e eu distinguia uma a uma – todas eram figuras conhecidas, belas, imponentes, saudáveis e bem nutridas. Algumas também olharam para mim. Eu não sentia a dor dos puxões que o cavalariço dava no cabresto. Estava maravilhado e, sem querer, por um costume antigo, relinchei e corri a trote; mas meu relincho soou triste, ridículo e absurdo. Na manada, não riram, mas percebi que muitas delas, por vergonha, me davam as costas. Era evidente que, para elas, eu era repulsivo, deplorável, vergonhoso e, sobretudo, ridículo. Achavam ridículo meu pescoço fino e sem expressão, minha cabeça grande (eu tinha engordado naquele tempo), minhas pernas compridas e desajeitadas e o porte tolo de meu trote, que por um costume antigo comecei a executar, ao redor do cavalariço. Ninguém respondeu ao meu relincho, todas me deram as costas. De repente compreendi tudo, compreendi a que ponto eu havia me afastado de todas elas, e para sempre, e nem lembro como cheguei em casa com o cavalariço.

“Desde antes eu já mostrava certa tendência para a seriedade e a meditação, mas então ocorreu em mim uma reviravolta decisiva. Meu pelo malhado, que despertava nas pessoas um desprezo tão estranho, meu infortúnio estranho e inesperado, e também minha posição de certo modo especial no haras, que eu sentia, mas ainda não conseguia explicar para mim mesmo, me obrigaram a me isolar em meus próprios pensamentos. Refletia sobre a injustiça das pessoas, que me condenavam por ser malhado, refletia sobre a inconstância do amor materno e do amor feminino em geral e sobre sua dependência das condições físicas, e acima de tudo refletia sobre as características dessa estranha espécie de animais a que estamos tão estreitamente ligados e que chamamos de gente – características que eram a causa da peculiaridade de minha situação no haras, que eu sentia, mas não conseguia entender. O significado dessa peculiaridade e das características das pessoas, que eram seu fundamento, foi revelado para mim no seguinte incidente.

“Era inverno, na época das festas de fim de ano. Fiquei um dia inteiro sem que me dessem de comer e de beber. Como soube depois, isso aconteceu porque o cavalariço estava embriagado. No mesmo dia, o chefe dos estábulos veio me ver, reparou que eu não tinha comida e, com as palavras mais feias, começou a xingar o cavalariço, que não estava ali na hora, e depois saiu. No dia seguinte, o cavalariço entrou com um amigo em nossa baia para nos dar feno e notei que ele estava especialmente pálido e abatido; no aspecto de suas costas compridas, em especial, havia algo expressivo e que despertava pena. Com irritação, jogou o feno por trás da grade; fiz menção de avançar a cabeça por cima de seu ombro, mas ele deu um murro tão doloroso em meu focinho que pulei para trás. E ainda deu um chute com a bota na minha barriga.

“ ‘Não fosse esse pé-rapado, nada teria acontecido’, exclamou.

“ ‘Mas o que foi?’, perguntou o outro cavalariço.

“ ‘Sabe, ele não vai ver os potros do conde, mas o potro dele, esse daí, ele visita duas vezes por dia.’

“ ‘Será que deram para ele o malhado?’, perguntou o outro.

“ ‘Se deram ou venderam, só o diabo é que sabe. Mas os potros do conde podem até morrer de fome, tudo bem, azar, mas ai de quem se atrever a não dar comida para o potro dele. Deite aí!, diz ele. E tome chicotada. Ele não é cristão. Tem mais pena dos bichos do que de um homem, não anda com uma cruz, se considera um bárbaro. O general não chicoteia a gente desse jeito, já ele deixa marcas nas costas todas, parece que não tem alma de cristão.’

“O que diziam sobre as feridas de chicote e sobre o cristianismo, isso eu entendi muito bem, mas para mim era completamente obscuro naquela época o significado das palavras ‘meu potro’ e ‘potro dele’, nas quais eu via que as pessoas supunham haver uma espécie de ligação entre mim e o chefe dos estábulos. Em que consistia tal ligação era algo que eu não conseguia entender de maneira nenhuma. Só muito tempo depois, quando me separaram dos outros cavalos, entendi o que aquilo significava. Na época, eu não conseguia entender o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras ‘meu cavalo’ aplicadas a mim, um cavalo vivo, me pareciam tão estranhas quanto as palavras ‘minha terra’, ‘meu ar’, ‘minha água’.

“Mas aquelas palavras tiveram enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar no assunto e só muito depois de ter as mais variadas relações com pessoas entendi, afinal, o significado que as pessoas atribuem a essas palavras estranhas. O significado delas é o seguinte: as pessoas não se orientam na vida pelas ações, mas pelas palavras. Amam não tanto a possibilidade de fazer ou de não fazer algo, quanto de fato a possibilidade de falar de diversos assuntos usando palavras convencionadas entre elas. Palavras consideradas muito importantes pelas pessoas são ‘meu’, ‘minha’, que aplicam a diversas coisas, criaturas e assuntos, até a terras, a pessoas e a cavalos. Combinaram que, para cada coisa, só uma pessoa pode dizer ‘meu’. E, nesse jogo combinado entre elas, quem diz ‘meu’ sobre o maior número de coisas é considerado a pessoa mais feliz. Por que é assim eu não sei; mas é assim. Passei muito tempo tentando explicar isso por alguma vantagem direta que tivessem; mas esse esforço não deu em nada.

“Muitas pessoas que, por exemplo, me chamavam de ‘meu cavalo’ não montavam em mim, quem montava em mim eram outras, bem diferentes. Quem me dava comida também não eram elas, mas outras pessoas. Quem me tratava bem também não eram elas, as que me chamavam de ‘meu cavalo’, mas os cocheiros, os ferradores e pessoas estranhas em geral. Mais tarde, depois que ampliei o círculo de minhas observações, me convenci de que não só em relação a nós, cavalos, o conceito de ‘meu’ não tem outro fundamento que não um instinto baixo e bestial das pessoas, chamado por elas de sentimento ou direito de propriedade. Um homem diz ‘minha casa’ e nunca mora nela, só cuida de sua construção e manutenção. Um comerciante diz ‘minha loja’, ‘minha loja de lã’, por exemplo, mas não usa roupas da melhor lã que tem em sua loja. Existem pessoas que chamam a terra de ‘minha’ e nunca viram essa terra, nunca foram lá. Existem pessoas que outras pessoas chamam de ‘minhas’, mas nunca viram essas pessoas; e toda a sua relação com aquelas pessoas consiste em lhes fazer mal. Existem pessoas que chamam as mulheres de ‘minha mulher’ ou ‘minha esposa’, mas essas mulheres vivem com outros homens. E, na vida, as pessoas aspiram não a fazer o que consideram bom, mas sim a chamar de ‘meu’ o maior número possível de coisas. Agora estou convencido de que nisso consiste a diferença essencial entre as pessoas e nós. Portanto, sem falar de outras vantagens nossas em relação às pessoas, só por isso já podemos afirmar sem hesitação que, na escala dos seres vivos, estamos acima das pessoas: a existência das pessoas, pelo menos daquelas com que travei contato, é guiada pelas palavras, já a nossa é guiada pela ação. E então foi o chefe dos estábulos que ganhou o direito de me chamar de ‘meu cavalo’ e foi por isso que chicoteou o cavalariço. Essa descoberta me impressionou muito e, junto com os pensamentos e opiniões que meu pelo malhado despertava nas pessoas, junto com a introversão provocada pela traição de minha mãe, fez de mim o castrado sério e pensativo que sou.

“Eu era triplamente infeliz: era malhado, era castrado e as pessoas imaginavam que eu não pertencia a Deus e a mim mesmo, como é próprio de todos os seres vivos, mas que eu pertencia ao chefe dos estábulos.

“Imaginarem isso a meu respeito teve muitas consequências. A primeira foi que me mantinham isolado, me alimentavam melhor, me faziam exercitar-me mais vezes correndo em círculos preso numa corda e me puseram arreios mais cedo. Com três anos, me puseram arreios pela primeira vez. Lembro que o mesmo chefe dos estábulos que imaginava que eu pertencia a ele me pôs os arreios pela primeira vez, ajudado por um bando de cavalariços, que esperavam resistência e violência de minha parte. Arreganharam meus beiços. Amarraram-me com cordas, me levaram para os varais de uma carroça; puseram em minhas costas uma larga cruz de madeira e me prenderam aos varais para que eu não desse coices; mas eu só estava esperando a chance de mostrar minha disposição para o amor e o trabalho.

“Ficaram surpresos por eu me comportar como um cavalo velho. Começaram a me montar e comecei a treinar o trote. Cada dia eu fazia mais progressos, tanto que dali a três meses o próprio general e muitos outros elogiavam minha andadura. No entanto, coisa estranha: justamente porque imaginavam que eu não pertencia a mim mesmo, mas sim ao chefe dos estábulos, minha andadura ganhava para eles um sentido muito diferente.

“Punham os potros, meus irmãos, para disputar corridas, calculavam sua velocidade, saíam para vê-los, eram atrelados a carruagens douradas, enfeitados com mantas caras. Eu era atrelado à carroça comum do chefe dos estábulos quando ia cuidar de seus negócios em Tchesmenk e outras fazendas. Tudo isso porque eu era malhado e sobretudo porque, na opinião deles, eu não era uma propriedade do conde, mas sim do chefe dos estábulos.

“Amanhã, se estivermos vivos, vou contar para vocês a consequência principal que teve para mim o direito de propriedade que o chefe dos estábulos imaginava ter.”

Durante todo aquele dia, os cavalos trataram Kholstomier com respeito. Mas o tratamento de Niéster continuou bruto como sempre. O potrinho ruão do mujique, já se aproximando da manada, começou a relinchar e a eguinha baia ficou se exibindo de novo para ele.
VII

 

 

 

TERCEIRA NOITE

A lua surgiu e sua foice estreita iluminava a figura de Kholstomier, no meio do pátio. Os cavalos se reuniram à sua volta.

–A consequência principal e surpreendente para mim de eu não pertencer ao conde nem a Deus, mas sim ao chefe dos estábulos – continuou o malhado –, foi que aquilo que constitui nosso maior mérito, o passo veloz, tornou-se a causa de meu banimento. Tinham posto o Cisne para correr na pista redonda, o chefe dos estábulos estava chegando de Tchesmenk montado em mim e parou junto à pista. Cisne passou por nós. Corria bem, mesmo assim fazia muita pose, não tinha a rapidez que eu havia cultivado, graças à qual, no instante em que uma pata tocava o chão, a outra se levantava e assim eu não desperdiçava nenhuma energia e todo esforço me impelia para a frente. Cisne passou por nós. Pulei para a pista, o chefe dos estábulos não me conteve.

“ ‘E aí, quer experimentar o meu Malhadinho?’, gritou ele e, quando Cisne nos alcançou outra vez, ele me soltou.

“Como ele já havia ganhado velocidade antes, fiquei para trás na primeira volta, mas na segunda comecei a ganhar terreno, comecei a me aproximar dele, emparelhei, comecei a ultrapassar e ultrapassei. Tentaram outra vez – deu no mesmo. Eu era mais rápido e isso deixou todos horrorizados. Resolveram me vender o mais rápido possível, e para o lugar mais distante possível, a fim de que ninguém soubesse de nada. ‘Se o conde souber, vai ser uma desgraça!’ Assim eles falavam. E me venderam para um mercador de cavalos como animal de tração. Não fiquei muito tempo com o mercador de cavalos. Um hussardo me comprou para servir de cavalo substituto na cavalaria. Tudo aquilo era tão injusto, tão cruel, que fiquei contente quando me levaram embora de Khrenov e me afastaram para sempre de tudo que me era familiar e querido. Ali entre eles, eu sofria demais. À espera dos outros cavalos, havia amor, honrarias, liberdade; à minha espera, trabalho e humilhação, humilhação e trabalho, até o fim da vida! Por quê? Porque eu era malhado e por isso eu tinha de me tornar o cavalo de alguém.”

Naquela noite, Kholstomier não pôde contar mais nada. Aconteceu algo no haras que deixou todos os cavalos alarmados. Kuptchikha, uma égua prenhe que estava demorando a parir e que estava escutando o relato, de repente deu meia-volta e se afastou devagar para baixo do estábulo e ali começou a gemer tão alto que todos voltaram a atenção para ela; então Kuptchikha deitou, depois levantou outra vez, e deitou de novo. As éguas velhas entenderam o que se passava com ela, mas as jovens ficaram agitadas, se afastaram do castrado e rodearam a doente. De manhã, havia um potrinho novo, que cambaleava sobre as pernas. Niéster gritou chamando o chefe dos estábulos, levaram a égua e o potro para uma baia e tocaram os cavalos para o pasto sem ela.
VIII

 

 

 

QUARTA NOITE

À noite, quando fecharam o portão e tudo ficou em silêncio, o malhado continuou assim:

–Durante o tempo em que passava de mão em mão, pude fazer muitas observações das pessoas e dos cavalos. Fiquei mais tempo com dois donos: com um príncipe, oficial dos hussardos, depois com uma velhinha que morava em Nikola Iavliéni.

“Com o oficial hussardo, passei a melhor época de minha vida.

“Embora ele tenha sido a causa de minha perdição, embora ele nunca tenha amado ninguém e nada, justamente por isso, eu gostava e gosto dele. No hussardo me agradava o fato de ser bonito, feliz, rico e não amar ninguém. Vocês compreendem esse nosso elevado sentimento de cavalo. Sua frieza, sua crueldade, minha dependência dele davam uma força especial ao meu amor por ele. Me mate, me deixe esgotado, que assim vou ficar mais feliz, eu pensava antigamente, em nossos bons tempos.

“Ele me comprou do mercador de cavalos para quem o chefe dos estábulos me havia vendido por oitocentos rublos. Comprou-me porque não tinha nenhum cavalo malhado. Foi, para mim, o melhor tempo. Ele tinha uma amante. Eu sabia disso porque todo dia o levava à casa dela, ao encontro dela, e às vezes levava os dois juntos. Sua amante era bonita, ele era bonito, até o cocheiro dele era bonito. Eu amava todos eles por isso. Era bom viver. Minha vida transcorria assim: de manhã, o cavalariço vinha me lavar, não o próprio cocheiro, mas o cavalariço. Era um rapazinho jovem, apanhado entre os mujiques. Ele abria a porta, deixava sair o vapor dos cavalos, levava o esterco para fora, retirava as mantas e começava a esfregar nosso corpo com uma escova de cerdas e com uma escova metálica que deixava faixas esbranquiçadas de caspa nas saliências fundas do chão, batido pelas ferraduras. De brincadeira, eu mordia de leve a manga de seu casaco e batia os cascos no chão. Depois, éramos levados uns atrás dos outros para a tina de água fria e o rapaz ficava admirado com a lisura do meu pelo malhado depois do seu trabalho, ficava admirado com minhas pernas retas como flechas e de cascos largos e com as ancas e o dorso lustrosos, onde dava até para uma pessoa deitar e dormir. Jogavam feno por cima das grades altas, despejavam aveia nas manjedouras de carvalho. Chegava Feofan, o cocheiro velho.

“Meu dono e o cocheiro eram parecidos. Nem um nem outro tinham medo de nada, não gostavam de ninguém senão de si mesmos, e por isso todos gostavam deles. Feofan andava de camisa vermelha, calça de veludo e casaco pregueado na cintura. Eu gostava quando, num feriado, ele entrava no estábulo com o cabelo empomadado, de casaco comprido, e gritava:

“ ‘Ora, sua besta, esqueceu, é?’ E me empurrava, batendo com o cabo do forcado na minha anca, mas nunca para doer, só de brincadeira. Eu logo entendia a brincadeira, baixava a orelha e estalava os dentes.

“Vivia conosco um garanhão azeviche que formava parelha. À noite, me atrelavam junto com ele. Chamava-se Polkan, não entendia brincadeiras e era mau como o diabo. Eu e ele ficávamos em baias vizinhas na cocheira e às vezes dávamos mordidas de verdade um no outro. Feofan não tinha medo dele. Polkan partia para cima, gritava, parecia que ia matar, mas não: passava pelo lado e Feofan punha o cabresto nele. Certa vez, eu e Polkan em parelha descemos em disparada pela rua Kuzniétski. Nem o dono nem o cocheiro ficaram assustados, os dois riam, gritavam para as pessoas, puxavam as rédeas e desviavam para não atropelar ninguém.

“A serviço deles, perdi minhas melhores qualidades e metade da vida. Ali me fizeram beber água demais e acabaram com minhas pernas. Mas apesar disso foi a melhor época de minha vida. Vinham ao meio-dia, me atrelavam, untavam meus cascos, umedeciam minha franja e minha crina e me prendiam nos varais do trenó.

“O trenó era de palhinha trançada, forrada de veludo, os arreios tinham pequenas fivelas prateadas, as rédeas eram de seda e certa vez o trenó foi coberto por um filó. Os arreios eram feitos de tal modo que, quando todas as rédeas e as correias estavam ajustadas e presas, era impossível distinguir onde acabavam os arreios e começava o cavalo. Terminavam de me atrelar no galpão. Vinha o Feofan, o quadril mais largo que os ombros, o cinturão vermelho embaixo do braço, dava uma olhada nos arreios, sentava, ajeitava o caftã, colocava o pé no estribo, sempre dizia algum gracejo, levantava o chicote no ar, com o qual quase nunca me batia, só pelo costume, e dizia: ‘Anda!’. E, brincando a cada passo, eu tocava para fora do portão e a cozinheira, que tinha saído para despejar um balde de água suja, parava na soleira e os mujiques que tinham trazido lenha arregalavam os olhos. Eu saía, passava e parava. Vinham os lacaios, se aproximavam do cocheiro e começavam a conversar. E esperávamos muito tempo, às vezes ficávamos três horas esperando na frente da entrada, de vez em quando dávamos uma volta, retornávamos e ficávamos parados de novo.

“Por fim, se ouvia um barulho na porta, Tikhon, grisalho e barrigudo, saía às pressas, de fraque: ‘Vamos!’. Naquele tempo, não existia esse jeito idiota de falar de hoje em dia: ‘Em frente’, como se eu não soubesse que não se anda para trás e sim para a frente. Feofan estalava a língua. Como se não enxergasse nada de extraordinário nem no trenó nem nos cavalos nem em Feofan, que curvava as costas e estendia os braços de um jeito que dava a impressão de que ele não ia conseguir aguentar muito tempo naquela posição, o príncipe saía e se aproximava afoito e estabanado, de barretina e num capote de pele de castor grisalha que ocultava o rosto vermelho, bonito, de sobrancelhas pretas, que nunca deveria ficar coberto, ele saía tilintando o sabre, as esporas, pisando forte no tapete com os saltos de cobre das galochas, como se tivesse pressa, e sem prestar atenção em mim nem em Feofan, que todos olhavam e adoravam, menos ele. Feofan estalava a língua, eu puxava as rédeas e, com ar digno, a passo lento, chegávamos e parávamos; eu olhava para o príncipe com o canto dos olhos, sacudia a cabeça de puro-sangue de crina fina. Quando estava de bom humor, o príncipe gracejava com Feofan, que respondia virando de leve a bela cabeça e, sem baixar os braços, fazia um movimento quase imperceptível com as rédeas, mas compreensível para mim, e upa-upa-upa, eu partia num passo cada vez mais largo, tensionando todos os músculos e espirrando lama e neve por baixo do trenó. Naquele tempo também não havia esse jeito idiota de gritar de hoje em dia: ‘Ô!’ – como se o cocheiro estivesse sentindo alguma dor –, mas sim um incompreensível ‘Cai fora, te cuida! Cai fora, te cuida!’, como gritava Feofan, e o povo abria caminho, as pessoas viravam o pescoço para olhar o malhado bonito, o cocheiro bonito e o patrão bonito.

“Eu adorava ultrapassar um cavalo trotador. Quando acontecia de eu e Feofan avistarmos de longe uma parelha digna de nosso esforço, voávamos como um tufão e aos poucos íamos chegando cada vez mais perto, logo eu espirrava lama nas costas do trenó, emparelhava com o passageiro e bufava em cima da cabeça dele, emparelhava com o cilhão, com o arco, já não via mais o passageiro e só ouvia atrás de mim o barulho do trenó, que se afastava cada vez mais. O príncipe, Feofan e eu, todos calados, fazíamos de conta que estávamos simplesmente cuidando de nossa vida, que nem tínhamos notado quem tinha ficado para trás na estrada, puxado por cavalos ruins. Eu adorava ultrapassar, mas também gostava de encontrar um bom trotador; um instante, um som, um olhar, e logo disparávamos e de novo estávamos voando sozinhos, cada um para seu lado.”

O portão rangeu e se ouviu a voz de Niéster e Vaska.

QUINTA NOITE

O tempo começava a mudar. O dia amanheceu nublado, não havia orvalho, mas fazia calor e os mosquitos não largavam. Assim que trouxeram a manada de volta, os cavalos se reuniram em torno do malhado e ele terminou sua história:

–Minha vida feliz acabou logo. Vivi assim só por dois anos. No fim do segundo inverno, aconteceu a coisa mais feliz de minha vida e, depois disso, minha maior desgraça. Era carnaval, levei o príncipe às corridas. Na pista, corriam os cavalos Cetim e Garrote. Não sei o que ele estava fazendo lá no caramanchão, só sei que o príncipe veio e mandou Feofan ir para a pista. Lembro que me levaram para a pista circular, me puseram na posição e fizeram o mesmo com Cetim. Cetim puxava um trenozinho de corrida, eu levava o mesmo trenó de cidade de antes. Na curva, deixei-o para trás; risos e gritos de entusiasmo me saudaram.

“Quando desfilaram comigo, a multidão veio atrás de mim. E uns cinco homens ofereceram mil rublos ao príncipe. Ele só fazia rir, deixando à mostra os dentes brancos.

“ ‘Não’, respondia. ‘Ele não é um cavalo, é um amigo, não vendo nem por uma montanha de ouro. Adeus, senhores.’ Abriu a portinhola, sentou-se. ‘Para a rua Stojinka!’ Era onde ficava a casa de sua amante. E fomos voando. Foi nosso último dia feliz.

“Chegamos à casa dela. O príncipe a chamava de sua. Mas a mulher amava outro e tinha fugido com ele. O príncipe descobriu isso na casa dela. Eram cinco horas e, sem me desatrelar, o príncipe partiu atrás dela. Aquilo nunca tinha acontecido: me bateram com o chicote e me obrigaram a galopar. Pela primeira vez, troquei o passo, senti vergonha e quis me corrigir; mas de repente ouvi o príncipe gritar com uma voz que não era a sua: ‘Anda!’. O chicote zuniu, me cortou e eu galopei, batendo com as patas no ferro da parte dianteira do trenó. Nós a alcançamos depois de vinte e cinco verstas. Eu o levei, mas passei a noite toda tremendo e não consegui comer nada. De manhã, me deram água. Bebi muito e deixei para sempre de ser o cavalo que era. Fiquei doente, me torturaram e mutilaram – estavam me curando, como dizem os homens. Os cascos soltaram, formaram caroços, as pernas curvaram, o peito afundou, a fraqueza e o abatimento tomaram conta de mim. Venderam-me para um mercador de cavalos. Ele me alimentava com cenouras e outras coisas e fez de mim um cavalo muito diferente do que eu era, mas que podia enganar quem não conhece o assunto. Eu não tinha mais força nem andadura. Além disso, o mercador me atormentava porque, assim que chegavam compradores, ele entrava em minha baia e começava a me bater com o chicote, batia para machucar, e me assustava a ponto de me deixar enlouquecido. Depois disfarçava as feridas do chicote e me levava para fora. Uma velha me comprou do mercador de cavalos. Ela sempre ia à igreja em Nikola Iavliéni e chicoteava o cocheiro. O cocheiro chorava na minha baia. E ali eu soube que as lágrimas têm um sabor salgado agradável. Depois a velha morreu. O capataz dela me levou para a aldeia e me vendeu para um caixeiro-viajante, depois comi trigo demais e fiquei ainda mais doente. Deram-me para um mujique. Lá, eu puxava o arado, quase não comia e cortavam minha perna com as relhas. Adoeci outra vez. Um cigano me levou em troca de alguma coisa. Ele me atormentava horrivelmente e, no fim, me vendeu para um capataz daqui. E aqui estou.”

Todos ficaram calados. Começou a chuviscar.
IX

 

 

 

Ao voltar do pasto para casa na noite seguinte, a manada encontrou o dono com uma visita. Juldiba aproximou-se da casa e olhou de esguelha para as duas figuras masculinas: um era o jovem dono, de chapéu de palha, o outro era um militar alto, corpulento, obeso. A égua velha olhou de esguelha para o homem e, encolhendo-se, passou por ele; os outros cavalos – a juventude – ficaram alvoroçados, hesitantes, sobretudo quando o anfitrião e a visita se meteram de propósito no meio dos cavalos e ficaram apontando coisas um para o outro e conversando.

–Olhe, aquele ali comprei de Voieikov, o cinzento com manchas redondas – disse o anfitrião.

–E aquela jovem preta azeviche de patas brancas, de onde veio? É bonita – disse o visitante. Examinaram muitos cavalos, enquanto andavam depressa e paravam. Repararam na eguinha baia.

–Essa foi a que me ficou da linhagem dos cavalos de sela de Khrenov – disse o anfitrião.

Enquanto andavam, não podiam observar todos os cavalos. O anfitrião chamou Niéster, e o velho, batendo apressado com os saltos das botas no malhado, o fez andar para a frente a trote curto. O malhado capengava, mancava duma perna, mas correu de modo a deixar claro que, enquanto tivesse forças, não ia se queixar em nenhuma hipótese, ainda que o mandassem correr até o fim do mundo. Estava disposto até a galopar e chegou mesmo a tentar fazer isso com a perna direita.

–Atrevo-me a afirmar que não existe em toda a Rússia um cavalo melhor do que essa égua – disse o anfitrião, apontando para a égua. O visitante fez um elogio. O anfitrião andava e corria alvoroçado, enquanto mostrava os cavalos, contava a história e explicava a origem de cada animal. Era evidente que a visita estava achando maçante ouvir as explanações do anfitrião e inventava perguntas para dar a impressão de que estava interessada.

–Sim, sim – dizia o homem, distraído.

–Olhe só – disse o anfitrião, sem perceber. – Olhe só as pernas... Custou caro, mas já me deu três filhotes e ainda serve para cavalgar.

–E é boa de cavalgar? – perguntou o visitante.

Assim examinaram quase todos os cavalos, até não haver mais nada para mostrar. E se calaram.

–Bem, vamos embora?

–Vamos. – Foram até o portão. O visitante estava contente porque a exibição tinha acabado e agora eles iam para casa, onde podiam comer, beber, fumar e, pelo visto, divertir-se. Quando passaram por Niéster, que, montado no malhado, ainda esperava alguma ordem, o visitante, com a mão grande e gorda, deu uma palmada na garupa do malhado.

–Que pelo malhado! – exclamou. – Eu tive um malhado assim, lembra? Já contei para você.

O anfitrião percebeu que não estavam falando de um de seus cavalos e não deu atenção, mas, virando-se para trás, continuou a olhar para a manada.

De repente, bem junto de seus ouvidos, ressoou um relincho tolo, fraco e envelhecido. Foi o malhado que relinchou, mas, como se estivesse embaraçado, parou no meio, sem terminar. Nem o visitante nem o anfitrião deram atenção ao relincho e foram embora. Kholstomier reconheceu no velho obeso seu querido dono, o outrora brilhante, rico e belo Serpukhóvskoi.
X

 

 

 

Continuou a chuviscar. Na cocheira, estava escuro, mas na casa senhorial era muito diferente. Lá, serviram um chá noturno suntuoso num salão suntuoso. Em torno do chá, estavam o anfitrião, a anfitriã e o visitante.

A anfitriã, sentada diante do samovar, estava grávida, algo bastante visível por causa da barriga empinada, da postura curvada e tensa e da forma rotunda, e sobretudo por causa dos olhos grandes, meigos e altivos, voltados para dentro dela mesma.

O anfitrião segurava na mão uma caixa de charutos especiais, de dez anos. Começou a elogiar os charutos diante do visitante e disse que ninguém tinha nada igual. Era um homem bonito de vinte e cinco anos, fresco, bem-vestido, bem penteado. Em casa, vestia um traje largo, grosso, feito em Londres. Na correntinha do relógio, tinha berloques grandes e caros. As abotoaduras na camisa eram grandes, também maciças, de ouro, com uma turquesa. Usava barba à Napoleão III e as pontas finas do bigode eram besuntadas e sobressaíam eriçadas de um jeito que só se podia ver em Paris. A anfitriã usava um vestido de musselina de seda, estampado com grandes ramalhetes coloridos, na cabeça tinha grandes grampos de ouro presos nos lindos e densos cabelos castanho-claros, embora não fossem todos naturais. Nas mãos e nos braços, tinha muitos braceletes e anéis, todos caros. O samovar era de prata, o serviço de chá era fino. O lacaio, imponente em seu fraque, de colete branco e gravata, se mantinha parado como uma estátua junto à porta, à espera das ordens. A mobília era torneada, com desenhos em curva, e de cor clara; o papel de parede era escuro, com flores grandes. Junto à mesa, tilintando a coleira de prata, estava uma cadelinha extraordinariamente delgada, que chamavam por um nome inglês incomum e difícil, que ambos pronunciavam mal, pois não sabiam inglês. Num canto, entre flores, havia um piano incrusté.3 Tudo exalava novidade, luxo e raridade. Tudo era muito bonito, mas em tudo havia o traço peculiar do excesso, da riqueza e da ausência de interesses intelectuais.

O anfitrião era aficionado de corridas de cavalos trotadores, homem forte e de temperamento sanguíneo, desses que nunca sossegam, andam em casacos de pele de zibelina, jogam caros buquês de flores para as atrizes, bebem o vinho mais caro, da marca mais nova, no hotel mais caro, dão prêmios com seu nome e sustentam a amante mais cara.

O visitante, Nikita Serpukhóvskoi, era um homem de uns quarenta e poucos anos, alto, gordo, calvo, de bigode e suíças grandes. Devia ter sido muito bonito. Agora, obviamente, tinha decaído no aspecto físico, moral e financeiro.

Tinha tantas dívidas que foi obrigado a trabalhar no serviço público para que não o mandassem para a cadeia. Agora estava a caminho de uma cidade provincial para ser chefe de um haras. Parentes importantes arranjaram aquele emprego para ele. Vestia uma túnica militar e calça azul. A túnica e a calça eram do tipo que ninguém, senão um ricaço, mandaria fazer, assim como as roupas de baixo; o relógio também era inglês. As botas tinham solas prodigiosas, da espessura de um dedo.

Ao longo da vida, Nikita Serpukhóvskoi esbanjara uma fortuna de dois milhões e ainda ficara devendo cento e vinte mil. Desse tipo de quinhão, sempre sobra um ímpeto de vida capaz de obter crédito e de permitir que se viva quase luxuosamente por mais uns dez anos. Os dez anos já haviam passado, o ímpeto se esgotara e Nikita vivia deprimido. Já estava dando para beber, ou seja, se embriagava com vinho, algo que antes não lhe acontecia. Beber propriamente, no rigor da palavra, ele jamais começava nem terminava. Sua decadência era visível, acima de tudo, na inquietação de seus olhares (seus olhos estavam se tornando esquivos) e na falta de firmeza da entonação e dos movimentos. Essa inquietação impressionava porque parecia ser algo novo, pois era evidente que ele se habituara por toda a vida a não temer nada nem ninguém e que agora, havia pouco tempo, graças a duros sofrimentos, Nikita tinha chegado àquele pavor, tão alheio à sua natureza. O anfitrião e a anfitriã notaram aquilo, trocavam olhares em que, obviamente compreendendo um ao outro, reservavam apenas para a cama uma discussão mais minuciosa sobre o assunto, e suportavam o pobre Nikita e até o cobriam de gentilezas. O aspecto de felicidade do jovem anfitrião humilhava Nikita e o obrigava a sentir uma inveja dolorosa, lembrando seu passado irrecuperável.

–Então, o charuto não a incomoda, Marie? – disse ele, dirigindo-se à dama, com aquele tom de voz especial, esquivo, que só se adquire com a experiência, o tom cortês, amigável, mas não totalmente respeitoso, em que os homens que conhecem as coisas mundanas falam com uma concubina, em contraste com a maneira como falam com uma esposa legítima. Não que quisesse humilhá-la, ao contrário, agora desejava quanto antes ganhar a confiança dela e do jovem anfitrião, embora não o admitisse para si mesmo de forma nenhuma. Mas Nikita já estava habituado a falar assim com tais mulheres. Sabia que ela ficaria surpresa, e até ofendida, se ele a tratasse como uma dama. Além disso, era preciso reservar o conhecido matiz do tom respeitoso para a esposa verdadeira daquele homem que era seu igual na sociedade. Nikita sempre se dirigia a tais damas de maneira respeitosa, mas não porque partilhasse as assim chamadas crenças propagadas nas revistas (ele nunca lia aquelas porcarias), sobre o respeito à personalidade de cada pessoa, sobre a irrelevância do casamento etc., mas porque assim se comportavam todas as pessoas corretas, e ele era um homem correto, apesar de decadente.

Ele pegou um charuto. Mas o anfitrião, desajeitado, apanhou um punhado de charutos e ofereceu ao visitante.

–Não, você vai ver como são bons. Pegue.

Nikita afastou os charutos com a mão e, nos olhos, surgiu um toque quase imperceptível de ofensa e vergonha.

–Obrigado. – Pegou a charuteira. – Experimente os meus.

A anfitriã era sensível. Percebeu aquilo e apressou-se a falar com ele:

–Gosto muito de charutos. Eu mesma fumaria, se todos já não fumassem à minha volta.

E ela sorriu, com seu sorriso bonito e bondoso. Em resposta, ele sorriu de modo hesitante. Faltavam-lhe dois dentes.

–Não, pegue este aqui – insistiu o anfitrião, insensível. – Os outros são mais fracos. Fritz, bringen Sie noch “eine” Kasten – disse – dort zwei.4

O lacaio alemão trouxe outra caixa.

–De quais você gosta mais? Dos fortes? Estes são muito bons. Pegue todos – continuou a insistir. – Era óbvio que estava contente por ter diante de quem se gabar de sua sofisticação e por isso não notava mais nada.

Serpukhóvskoi começou a fumar e se apressou em prosseguir a conversa já iniciada.

–Mas então quanto lhe custou o Cetim? – perguntou.

–Saiu caro, não menos de cinco mil, mas pelo menos já fui compensado. Que crias, nem lhe conto!

–Trotam?

–Trotam bem. Seu filho acabou de ganhar três prêmios: em Tula, em Moscou e em Petersburgo, correu com o Corvo, de Voieikov. O canalha do cavaleiro errou quatro passos, senão o teria deixado para trás da bandeira.

–Ainda está um pouco verde. Tem muito de holandês, ouça o que lhe digo – afirmou Serpukhóvskoi.

–E que tal as fêmeas? Amanhã vou lhe mostrar. A Boazinha me custou três mil. A Carinhosa, dois mil.

E o anfitrião começou outra vez a se gabar de sua riqueza. A anfitriã viu que Serpukhóvskoi achava aquilo penoso e que apenas fingia escutar.

–O senhor quer mais chá? – perguntou ela.

–Não, obrigado – respondeu o anfitrião e continuou a falar. Ela se levantou, o anfitrião a deteve, abraçou-a e beijou-a.

Olhando para os dois, Serpukhóvskoi fez menção de sorrir para eles, com um sorriso forçado, mas quando o anfitrião se levantou, abraçou a mulher e saiu com ela até o reposteiro, o rosto de Nikita de repente se modificou, ele suspirou profundamente e, no rosto obeso, se exprimiu de repente o desespero. Nele, via-se até raiva.
XI

 

 

 

O anfitrião voltou e, sorrindo, sentou-se de frente para Nikita. Ficaram em silêncio.

–Sim, você disse que comprou com Voieikov – disse Serpukhóvskoi, com ar displicente.

–Sim, eu estava falando de Cetim. Sempre quis comprar éguas de Dubovítski. Só restou porcaria.

–Ele faliu – disse Serpukhóvskoi e de repente parou e olhou em redor. Lembrou que devia vinte mil àquele mesmo homem falido. E que, se estava chamando alguém de “falido”, sem dúvida diziam o mesmo sobre ele. Calou-se.

Os dois ficaram muito tempo em silêncio outra vez. O anfitrião revirava a cabeça em busca de mais coisas de que pudesse se gabar diante da visita. Serpukhóvskoi tentava inventar alguma forma de mostrar que não se considerava um falido. Porém o pensamento dos dois se movia com dificuldade, apesar de tentarem se animar com charutos. “Afinal, quando vamos beber?”, pensava Serpukhóvskoi. “É preciso beber a todo custo, senão vou morrer de tédio com ele”, pensava o anfitrião.

–Então, você vai ficar muito tempo aqui? – perguntou Serpukhóvskoi.

–Sim, mais um mês. E se jantássemos agora, que tal? Fritz, está pronto?

Foram para a sala de jantar. Lá, embaixo de um lampião, havia uma mesa com velas, coberta das coisas mais incomuns: sifões, bonequinhas presas em rolhas de cortiça, vinho raro em jarras, petiscos especiais, vodca. Beberam muito, comeram muito, beberam mais ainda, comeram mais ainda, e a conversa engrenou. Serpukhóvskoi ficou vermelho e passou a falar sem timidez.

Falaram sobre mulheres. Quem mantinha qual: uma cigana, uma dançarina, uma francesinha.

–Quer dizer que você deixou Mathieu? – perguntou o anfitrião. Era a amante que levara Serpukhóvskoi à ruína.

–Eu, não: foi ela. Ah, meu caro, nem é bom lembrar o que dissipei na vida! Agora fico feliz quando tenho mil rublos, sério, e fico feliz quando fujo de todo mundo. Em Moscou, não consigo ficar. Ah, o que adianta falar?

O anfitrião achava maçante ouvir Serpukhóvskoi. Queria falar de si, vangloriar-se. Já Serpukhóvskoi queria falar de si, de seu passado brilhante. O anfitrião servia vinho para ele e esperava a hora em que ia terminar, para então poder falar de si, contar que agora tinha montado um haras como nunca se vira outro igual. E que sua Marie o amava não só pelo dinheiro, mas com o coração.

–Eu queria lhe contar que no meu haras... – tentou começar.

Mas Serpukhóvskoi o interrompeu:

–Houve um tempo, posso lhe dizer, que eu amava viver e sabia viver. Veja, você fala de corridas de cavalos trotadores, mas me diga: qual é seu cavalo mais ligeiro?

O anfitrião alegrou-se com a chance de falar do haras e começou a responder; mas Serpukhóvskoi interrompeu outra vez.

–Sim, sim – disse ele. – Afinal, vocês, donos de haras, só fazem isso por vaidade, não pelo prazer e pela vida. Mas comigo não foi assim. Como eu estava lhe contando, tive um cavalo trotador malhado, o pelo igual ao do cavalo de seu cavalariço. Ah, aquilo é que era um cavalo! Você não pode imaginar; foi no ano de 42, eu tinha acabado de chegar a Moscou; fui à casa de um mercador de cavalos e vi o castrado malhado. Tinha bom gênio. Gostei dele. Preço? Mil rublos. Gostei dele, comprei, levei e comecei a montar. Eu nunca tive, você nunca teve e nunca ninguém terá um cavalo igual. Não conheci cavalo melhor no trote, na força nem na beleza. Na época, você era criança, não podia saber, mas ouviu falar, eu creio. Toda Moscou conhecia o cavalo.

–Sim, ouvi falar – disse o anfitrião de má vontade. – Mas eu queria lhe contar sobre os meus...

–Então você ouviu falar. Eu o comprei assim, sem pedigree, sem certificado; depois soube. Eu e Voieikov conseguimos descobrir. Era filho de Liubiézni I, chamava-se Kholstomier. Por causa das passadas largas. Por ser malhado, deram-no para o cavalariço do haras de Khrenov, ele castrou e vendeu para um mercador de cavalos. Não existem cavalos assim, meu caro! Ah, bons tempos! Ah, mocidade! – Cantarolou uma canção cigana. Começou a ficar embriagado. – Eh, tempo bom aquele. Eu tinha vinte e cinco anos, tinha uma renda de oitenta e cinco mil rublos de prata, nem sombra de cabelo grisalho, todos os dentes como pérolas. Tudo o que eu fazia dava certo; mas tudo acabou.

–Bem, na época não havia a mesma rapidez – disse o anfitrião, aproveitando a pausa. – Eu lhe digo que meus primeiros cavalos começaram a trotar sem...

–Os seus cavalos! Naquela época eram mais rápidos.

–Mais rápidos?

–Mais rápidos. Lembro como se fosse hoje: um dia, em Moscou, fui a uma corrida com ele. Não havia cavalos meus na corrida. Eu não gostava de trotadores, eu tinha puros-sangues, General, Cholet, Maomé. Fui na charrete com o malhado. Meu cocheiro era um bom rapaz, eu gostava dele. Também se acabou na bebida. Quando cheguei, me disseram: “Serpukhóvskoi, quando vai criar cavalos trotadores?”. Respondi: “Pois os seus cavalos de mujique, que o diabo os carregue, vão todos comer poeira atrás do meu malhado”. “Pois ele não ganha de jeito nenhum”. “Aposto mil rublos”. Fechamos a aposta. Largaram. Ele chegou cinco segundos na frente, ganhei mil rublos na aposta. Pois é. E eu fiz cem verstas em três horas numa troica de puros-sangues. Toda Moscou sabe disso.

E Serpukhóvskoi começou a mentir tão bem e de modo tão contínuo que o anfitrião não conseguia entremear nenhuma palavra e, com o rosto cansado, ficou sentado na sua frente e, só para se distrair, servia copos de vinho para si e para ele.

O dia começou a clarear. Mas os dois continuavam sentados. O anfitrião sentia um tédio mortal. Levantou-se.

–Se é preciso dormir, vamos dormir – disse Serpukhóvskoi, levantou-se trôpego e, resfolegando, foi para o quarto reservado para ele.

O anfitrião deitou-se com a amante.

–Não, ele é insuportável. Embriagou-se e mentiu sem parar.

–E ficou me cortejando.

–Receio que vá me pedir dinheiro.

Serpukhóvskoi deitou-se sem trocar de roupa e resfolegava.

“Parece que menti muito”, pensou. “Mas tanto faz. O vinho é bom, só que ele é um grande porco. Um comerciantezinho qualquer. Eu também sou um grande porco”, pensou e deu uma risada. “Antes, eu sustentava, agora me sustentam. Sim, Winkler sustenta a mulher e eu pego dinheiro com ela. E ele bem que merece, bem que merece! Mas tenho de trocar de roupa, não consigo tirar as botas.”

–Ei! Ei! – gritou, mas o criado incumbido de servi-lo tinha ido dormir fazia muito tempo.

Sentou-se, tirou a túnica, o colete e arrancou a calça de qualquer jeito, mas ficou muito tempo sem conseguir tirar as botas, a barriga mole atrapalhava. Deu um jeito de tirar uma bota, brigou e brigou com a outra, ficou sem fôlego, cansou-se. E assim, com um pé no cano da bota, desabou e começou a roncar, enchendo todo o quarto com o cheiro do tabaco, do vinho e da velhice imunda.
XII

 

 

 

Se Kholstomier ainda se lembrou de mais alguma coisa naquela noite, Vaska o distraiu. Jogou uma manta sobre ele e saiu a galope, deixou-o até de manhã na porta de uma taverna junto com um cavalo de mujique. Eles se lamberam. De manhã, foi para junto da manada e não parou de se coçar.

“Tem uma coisa coçando e doendo”, pensava.

Passaram cinco dias. Chamaram um veterinário. Ele disse com alegria:

–É sarna. Deixe que eu venda para os ciganos.

–Para quê? Degole, mas acabe com isso hoje mesmo.

A manhã estava serena, clara. A manada foi para o campo. Kholstomier ficou. Veio um homem terrível, magro, escuro, sujo, com um caftã respingado de alguma coisa preta. Era o esfolador de cavalos. Sem olhar para ele, o homem pegou o cabresto que tinham posto em Kholstomier e levou-o embora. Kholstomier seguiu tranquilo, não olhava para trás, arrastando as patas como sempre e prendendo as patas traseiras na palha. Ao sair pelo portão, ele quis ir na direção do poço, mas o esfolador segurou-o e disse:

–Não precisa.

O esfolador e Vaska, que vinha atrás, chegaram a uma clareira atrás de um galpão de tijolos e, como se houvesse algo de extraordinário naquele lugar absolutamente banal, pararam, e o esfolador, depois de entregar as rédeas para Vaska, despiu o caftã, arregaçou as mangas, tirou uma faca e uma pedra de amolar do cano da bota, começou a amolar a faca. O castrado esticou-se na direção da rédea, queria mascar a rédea para distrair o tédio, mas ela estava longe, ele suspirou e fechou os olhos. O beiço pendeu para baixo, deixou à mostra os dentes amarelos e roídos e ele começou a cochilar ao som da faca sendo amolada. Só a perna dura, doente com o tumor, tremia. De repente, sentiu que o seguravam pela mandíbula e levantavam sua cabeça. Abriu os olhos. Dois cachorros estavam à sua frente. Um farejava na direção do esfolador, o outro estava sentado, olhava para o castrado como se esperasse algo exatamente dele. O castrado olhou para os cachorros de relance e começou a esfregar o queixo na mão que o segurava.

“Querem me curar, na certa”, pensou. “Deixe!” E de fato sentiu que faziam alguma coisa na sua garganta. Sentiu dor, estremeceu, sacudiu a pata, mas aguentou e ficou à espera do que viria depois. E depois aconteceu que algo líquido se derramou num grande jato no pescoço e no peito. Ele suspirou bem fundo. E sentiu-se muito mais leve. Aliviado de todo o peso de sua vida. Fechou os olhos e começou a inclinar a cabeça – ninguém o segurava. Depois inclinou o pescoço, depois as pernas começaram a tremer, o corpo inteiro começou a oscilar. Ele ficou menos assustado do que surpreso. Tudo lhe parecia novidade. Surpreendeu-se, arremeteu para a frente, para cima. Mas em lugar disso, ao saírem do lugar, as pernas se enroscaram, ele começou a tombar de lado e, querendo dar um passo, começou a cair para a frente e para o lado. O esfolador esperou que as convulsões cessassem, enxotou os cachorros, que tinham se aproximado, e depois de pegar o castrado por uma perna, virá-lo de costas e mandar Vaska segurar a outra perna, começou a esfolar.

–Isso é que era cavalo – disse Vaska.

–Se fosse mais bem alimentado, o couro seria melhor – disse o esfolador.

À noite, a manada voltou pelo morro e os que andavam do lado esquerdo puderam ver algo vermelho lá embaixo, onde cachorros rondavam agitados e corvos e abutres voavam em círculos. Um cachorro, segurando a carcaça com as patas, sacudiu a cabeça e, com um estalo, arrancou o que havia mordido. A égua baia parou, esticou a cabeça e o pescoço e ficou muito tempo inalando o ar. Só à força conseguiram retirá-la dali.

Ao raiar do dia, num barranco da velha floresta, na parte de baixo de uma clareira de mato alto, lobinhos de cabeça grande uivavam com alegria. Eram cinco: quatro quase iguais e um menor, com a cabeça maior que o torso. Uma loba magra, velha, de pelo desbotado, arrastando a barriga inchada, com tetas caídas até o chão, saiu de trás dos arbustos e sentou na frente dos lobinhos. Os filhotes formaram um semicírculo à sua volta. Ela chegou perto do menor, baixou o rabo, inclinou o focinho para baixo, fez alguns movimentos convulsivos, abriu a goela de dentes pontudos, fez um esforço e vomitou um grande pedaço de carne de cavalo. Os lobinhos maiores avançaram, mas ela os afastou de modo ameaçador e deixou tudo para o menor. O menor, rosnando como se estivesse com raiva, agarrou o pedaço de carne de cavalo embaixo de si e começou a devorar. Da mesma forma, a loba regurgitou para outro, e para o terceiro, e para todos os cinco, e então deitou na frente deles, descansando.

Uma semana depois, junto ao galpão de tijolos, só havia um grande crânio e duas tíbias, todo o resto tinha sido levado. No verão, um mujique que catava ossos levou também as tíbias e o crânio e fez deles algum uso.

Muito tempo mais tarde, depois de andar pelo mundo, comer e beber, o corpo morto de Serpukhóvskoi foi enterrado. Nem o couro nem a carne nem os ossos serviram para nada. E como já havia vinte anos que seu corpo morto, andando pelo mundo, era um grande peso para todos, foi só um transtorno a mais para as pessoas varrer aquele corpo para debaixo da terra. Fazia tempo que ninguém mais tinha necessidade dele, fazia tempo que era um peso para todos, mas mesmo assim os mortos que enterravam os mortos acharam necessário pegar aquele corpo, que apodreceu e inchou imediatamente, e vesti-lo num uniforme bonito, calçá-lo com botas bonitas, colocá-lo num caixão novo e bonito, com borlas novas nas quatro pontas, depois colocar o caixão novo dentro de outro, feito de chumbo, e transportá-lo para Moscou, e lá desenterrar ossos humanos antigos e justamente ali esconder aquele corpo apodrecido, fervilhante de vermes, num uniforme novo, de botas engraxadas, e cobrir tudo de terra.

1885

OS TRÊS FILHOS

[Parábola]

O pai deu a um filho terras, trigo, gado e disse:

–Viva como eu e sempre viverá bem.

O filho pegou tudo do pai, deixou o pai e foi viver ao seu gosto. “Papai disse para eu viver como ele. Pois ele vive e se diverte e eu vou viver assim também.”

Viveu assim um ano, dois anos, dez anos, vinte anos, consumiu todos os bens paternos e não sobrou nada. Começou a pedir para o pai lhe dar mais; porém o pai não o atendeu. Então o filho começou a bajular o pai, o tratava da melhor maneira possível e lhe pedia. Mas o pai não respondia. Então o filho começou a pedir perdão ao pai, pensando que o havia ofendido de alguma forma, e de novo pediu que ele lhe desse mais; porém o pai não disse nada.

E então o filho começou a amaldiçoar o pai. Disse:

–Se não dá agora, para que deu antes, me fez viver separado e prometeu que eu ia viver sempre bem? Todas as minhas alegrias de antes, quando eu consumia a fortuna, não valem uma hora do tormento que sofro agora. Vejo que estou me acabando e não há salvação. E de quem é a culpa? É sua. Pois você sabia que a fortuna não ia ser o suficiente para mim e não me deu mais. Você só disse o seguinte: viva como eu e vai viver bem. Eu vivi como você. Você vivia para sua satisfação e eu vivi para minha satisfação. Você abriu mão da maior parte. E agora você tem e eu não tenho. Você não é um pai, mas sim um trapaceiro cruel. Minha vida é maldita, você também é maldito, bandido, torturador, não quero saber, tenho ódio de você.

O pai deu uma fortuna ao segundo filho e só lhe disse:

–Viva como eu e você viverá sempre bem.

O segundo filho já não se alegrou com a fortuna tanto quanto o primeiro. Pensou que tinha de obedecer. Mas sabia o que havia acontecido com o irmão mais velho e por isso começou a pensar em não viver toda a vida como o primeiro. Achou que o irmão mais velho apenas não tinha compreendido direito as palavras “viva como eu” e concluiu que não era necessário viver só para a própria satisfação. Começou a pensar no que significava “viva como eu”. E deduziu que, como o pai, ele precisava ganhar toda a fortuna que o pai tinha lhe dado. E foi ganhar de novo uma fortuna igual àquela que o pai lhe dera.

E começou a pensar em como fazer de novo toda a fortuna que o pai lhe dera. Foi perguntar ao pai como fazer aquilo; mas o pai não lhe respondeu. O filho achou que o pai tinha medo de lhe contar e começou a desmontar todos os bens que o pai lhe dera a fim de entender por si mesmo como tudo tinha sido ganhado, e assim destruiu e arruinou tudo o que tinha ganhado do pai, e tudo o que ele refez de novo não servia para nada; mas ele não queria admitir que havia destruído tudo, e vivia e se atormentava, e a todos dizia que o pai não lhe dava nada e que ele havia ganhado tudo sozinho.

–Todos nós podemos fazer muito melhor sozinhos, bem depressa vamos chegar a um ponto em que tudo será maravilhoso.

Assim falava o segundo filho, enquanto ainda lhe restava alguma coisa da fortuna do pai, mas quando ele destroçou as últimas coisas e não lhe restou mais nada para viver, ele se matou.

O pai deu ao terceiro filho uma fortuna igual e também falou:

–Viva como eu e você viverá sempre bem.

E o terceiro filho, como o primeiro e o segundo, também se alegrou com a fortuna e se afastou do pai; mas sabia o que havia acontecido com os irmãos mais velhos e começou a pensar no que significava “viva como eu, e você viverá sempre bem”.

O irmão mais velho achou que viver como o pai significava viver para a própria satisfação e assim consumiu e destruiu tudo. O segundo irmão achou que viver como o pai significava fazer tudo igual ao pai e também perdeu a esperança. O que significava: viva como o pai?

E ele começou a lembrar tudo o que sabia sobre o pai. E por mais que pensasse, ele nada mais conseguiu saber sobre o pai senão que antes não havia nada e ele mesmo não existia; e que o pai o gerou, criou, alimentou, ensinou, lhe deu tudo de bom e disse: viva como eu vivo e você viverá sempre bem. A mesma coisa o pai fez com os irmãos. E por mais que pensasse, não conseguia saber mais nada sobre o pai. Tudo que ele sabia sobre o pai era só que o pai havia feito o bem para ele e para seus irmãos.

E aí entendeu o que significam as palavras “viva como eu”. Entendeu que viver como o pai significa fazer o mesmo que ele faz: fazer o bem às pessoas.

E quando pensou nisso, o pai já estava a seu lado e disse:

–Agora estamos juntos de novo e tudo vai ficar bem com você. Vá falar com seus irmãos, com todos os meus filhos, e diga o que significa “vivam como eu” e que é verdade que quem viver como eu viverá sempre bem.

O terceiro filho foi e contou tudo a seus irmãos e desde então todos os filhos, quando ganhavam uma fortuna do pai, se alegravam não porque tinham uma grande fortuna, mas porque podiam viver como o pai e assim iam viver sempre bem.

Esse pai é Deus; os filhos são as pessoas; a fortuna é a vida. As pessoas pensam que podem viver sozinhas, sem Deus. Algumas pessoas acham que a vida lhes é dada para gozarem a vida. Elas se divertem e dissipam a vida, mas quando chega a hora de morrer, não entendem para que lhes foi dada uma vida assim, em que a alegria termina em sofrimento e em morte. E essas pessoas morrem amaldiçoando Deus, chamando-o de cruel, e se afastam de Deus. Esse é o primeiro filho.

Outros acham que a vida lhes foi dada para entenderem como ela é feita e para fazer uma vida melhor do que a que lhes foi dada por Deus. E assim brigam para fazer outra vida, melhor. Mas, ao melhorarem essa vida, eles a destroem e assim roubam a vida de si mesmos.

Os terceiros dizem:

–Tudo o que sabemos sobre Deus é que Ele faz o bem às pessoas, manda que elas façam o mesmo que Ele e por isso vamos fazer o mesmo que Ele: o bem às pessoas.

E assim que começam a fazer isso, Deus se aproxima delas e diz:

–É isso mesmo que eu queria. Façam junto comigo aquilo que eu faço e assim vocês também vão viver como eu vivo.

1885

A CAFETERIA DE SURAT

[Segundo Bernardin de Saint-Pierre]

Na cidade indiana de Surat, havia uma cafeteria. Para lá iam viajantes de várias partes do mundo e os estrangeiros muitas vezes conversavam.

Certa vez, foi lá um culto teólogo persa. Passara a vida toda estudando a essência da divindade e sobre isso lia e escrevia livros. Pensou, leu e escreveu muito sobre Deus, acabou perdendo a razão, tudo se embaralhou dentro de sua cabeça e por fim ele chegou ao ponto de parar de crer em Deus.

O rei soube disso e o expulsou do reino persa.

Depois de ter discutido a vida inteira sobre a causa primeira, o infeliz teólogo se confundiu todo e, em vez de entender que já havia perdido o juízo, passou a pensar que não existia mais uma razão superior que governava o mundo.

Esse teólogo tinha um escravo africano que o acompanhava por toda parte. Quando o teólogo entrou na cafeteria, o africano ficou do lado de fora, atrás da porta, e sentou-se numa pedra debaixo do sol; ficou ali sentado, enxotando as moscas. Já o teólogo deitou-se num sofá dentro da cafeteria e mandou que servissem uma xícara de ópio. Quando bebeu a xícara e o ópio começou a afetar seu cérebro, ele se voltou para seu escravo.

–Ei, escravo desprezível – chamou o teólogo –, diga-me o que acha: Deus existe ou não?

–Claro que existe! – respondeu o escravo e na mesma hora tirou de trás do cinto um pequeno ídolo de madeira. – Olhe – disse o escravo. – Olhe este Deus. Eu o trago comigo desde que vim ao mundo. Este Deus é feito de um galho da árvore sagrada adorada por todo mundo em nossa terra.

As pessoas que estavam na cafeteria ouviram a conversa entre o teólogo e o escravo e ficaram surpresas.

Pareceu-lhes surpreendente a pergunta do senhor e mais surpreendente ainda a resposta do escravo.

Um brâmane que ouvira as palavras do escravo se voltou para ele e disse:

–Louco infeliz! Será possível que alguém pense que Deus pode estar preso atrás do cinto de um homem? Deus é um só: brama. E esse brama é maior que o mundo inteiro, porque ele criou o mundo todo. Brama é o Deus único e supremo; o Deus para o qual construíram templos nas margens do rio Ganges, o Deus a quem servem seus únicos sacerdotes, os brâmanes. Só esses sacerdotes conhecem o Deus verdadeiro. Já passaram vinte mil anos e, por mais voltas que o mundo tenha dado, esses sacerdotes permanecem tais como sempre foram, porque brama, o Deus único e verdadeiro, os protege.

Assim falou o brâmane, achando que ia convencer todos, porém um cambista judeu que estava ali retrucou:

–Não – disse. – O templo do Deus verdadeiro não está na Índia!... E Deus não protege a casta dos brâmanes! O Deus verdadeiro não é o Deus dos brâmanes, mas o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. E o Deus verdadeiro só protege seu único povo de Israel. Desde o início do mundo, sem cessar, Deus amou e ama só nosso povo. E se agora nosso povo está disperso pelo mundo, isso é apenas uma provação e Deus, como prometeu, vai reunir de novo seu povo em Jerusalém para reconstruir a grande maravilha da Antiguidade, o Templo de Jerusalém, e estabelecer Israel como senhor supremo de todo o mundo.

Assim falou o judeu e começou a chorar. Queria continuar seu discurso, mas um italiano que estava ali interrompeu:

–O senhor não está dizendo a verdade – disse o italiano para o judeu. – O senhor atribui a Deus uma injustiça. Deus não pode amar a um povo mais do que aos outros. Ao contrário, se antes ele protegia o povo de Israel, já passaram mil e oitocentos anos desde que Deus se irritou e, em sinal de sua ira, pôs fim à existência desse povo e o dispersou pelo mundo, de modo que essa fé não só não se propaga como dela só restam vestígios, aqui e ali. Deus não mostra preferência por nenhum povo e convida todos que desejam se salvar para o seio da única Igreja Católica Romana, fora da qual não há salvação.

Assim falou o italiano. Mas ali estava um pastor protestante, que empalideceu e respondeu ao missionário católico:

–Como pode o senhor dizer que a salvação só é possível na sua religião? Saiba que só serão salvos aqueles que, segundo o Evangelho, servirem a Deus no espírito e na verdade, segundo o mandamento de Jesus.

Então um turco, que trabalhava na alfândega de Surat e que estava ali fumando um cachimbo, se virou com ar superior para os dois cristãos:

–De nada adianta os senhores estarem tão convictos da verdade de sua fé romana – disse. – Há mais ou menos seiscentos anos, sua fé foi substituída pela fé de Maomé. E, como os senhores mesmos podem ver, a fé verdadeira de Maomé se propaga cada vez mais pela Europa, pela Ásia e até na esclarecida China. Os senhores mesmos reconhecem que os judeus foram proscritos por Deus e, como prova, citam que os judeus foram humilhados e que sua fé não se propaga mais. Reconheçam então a verdade da fé de Maomé, porque ela se encontra em seu esplendor e se propaga sem cessar. Só vão se salvar os que acreditam no último profeta de Deus, Maomé. Mas isso é só para os seguidores de Omar, e não os de Ali, pois os adeptos de Ali são infiéis.

Diante de tais palavras, o teólogo persa, que pertencia à seita de Ali, quis retrucar. Mas nessa altura se formou uma enorme discussão dentro da cafeteria, entre todos os estrangeiros ali presentes, das mais diversas crenças e confissões. Havia ali cristãos abissínios, lamas indianos, ismaelitas e adoradores do fogo.

Todos discutiam sobre a essência de Deus e sobre como era preciso adorá-lo. Cada um acreditava que só em sua terra conheciam o Deus verdadeiro e sabiam como era preciso adorá-Lo.

Todos discutiam, gritavam. Só um chinês ali presente, um discípulo de Confúcio, continuou sossegado num canto da cafeteria e não entrou na discussão. Bebia seu chá, escutava o que diziam, mas ficava calado.

O turco, ao notar o chinês no meio da discussão, se voltou para ele e disse:

–Bom chinês, me dê seu apoio. Você se cala, mas podia falar alguma coisa em meu favor. Sei que na China vocês agora introduziram várias religiões. Seus mercadores me disseram muitas vezes que, entre todas as outras, os chineses consideram a fé maometana a melhor e a adotam de bom grado. Apoie minhas palavras e diga o que pensa sobre o Deus verdadeiro e seu profeta.

–Sim, sim, diga o que pensa – voltaram-se os outros para ele.

O chinês, discípulo de Confúcio, fechou os olhos, pensou um pouco e depois abriu os olhos, retirou as mãos de dentro das mangas largas de sua roupa, cruzou-as no peito e começou a falar em voz baixa e calma.

–Senhores – disse ele. – Parece-me que é o orgulho, acima de tudo, que impede as pessoas de entrarem em acordo na questão da fé. Se os senhores se derem ao trabalho de me escutar, vou explicar isso por meio de um exemplo.

“Vim da China para Surat num navio inglês que tinha dado a volta ao mundo. No caminho, fomos à margem oriental da ilha de Sumatra para nos abastecer de água. Ao meio-dia, descemos à terra e sentamos à beira do mar, na sombra de coqueiros, perto de uma aldeia dos habitantes da ilha. Éramos de várias terras diferentes.

“Quando estávamos ali, se aproximou um cego.

“Como soubemos depois, o homem tinha ficado cego porque havia olhado para o Sol por muito tempo e fixamente. Ele olhou para o Sol por tanto tempo e tão fixamente porque queria entender o que é o Sol. E queria saber isso para se apoderar da luz do Sol.

“Ele se empenhou muito tempo, olhava sempre para o Sol e não conseguia fazer nada, a única coisa que conseguiu foi deixar os olhos doentes e ficar cego. Então disse para si:

“ ‘A luz do Sol não é um líquido, porque, se fosse um líquido, seria possível derramá-la e ela balançaria ao vento, como a água. A luz do Sol também não é fogo, porque, se fosse fogo, apagaria na água. A luz do Sol também não é um espírito, porque é visível, e não é um corpo, porque não se pode transportá-la. E assim, já que a luz do Sol não é um líquido nem um sólido nem um espírito nem um corpo, então a luz do Sol não é nada.’

“Dessa forma ele raciocinava e a certa altura, por ter olhado sempre para o Sol e pensado sempre nele, perdeu a visão e também a razão.

“Quando ficou totalmente cego, já estava completamente convencido de que o Sol não existia.

“Com o cego, andava sempre seu escravo. Ele acomodou seu senhor na sombra do coqueiro, levantou um coco do chão e, com ele, começou a fazer um lampião noturno. Fez um pavio com a fibra do coco, retirou óleo do coco, pôs na casca e encharcou nele o pavio.

“Enquanto o escravo fazia seu lampião, o cego suspirou e lhe disse:

“ ‘E então, escravo, não é verdade o que eu lhe disse, que o Sol não existe? Está vendo como está escuro? E ainda dizem que o Sol existe... Então o que é o Sol?’

“ ‘Não sei o que é o Sol’ – respondeu o escravo. – ‘Não tenho nada a ver com isso. Mas da luz eu sei. Olhe, fiz um lampião, agora não vou ficar no escuro e posso prestar serviço a você e achar tudo dentro da minha barraca.’

“E o escravo pegou na mão sua casca de coco.

“ ‘Olhe’ – disse. – ‘Isto é o meu Sol.’

“Ali também estava sentado um aleijado com sua muleta. Ele ouviu aquilo e riu.

“ ‘Pelo visto, você é cego de nascença’ – disse para o cego, já que não sabe o que é o Sol. ‘Vou lhe dizer o que é: o Sol é uma bola de fogo e todo dia essa bola sai do mar e toda noite se deita nas montanhas de nossa ilha; todos nós vemos isso e você também veria, se tivesse visão.’

“Um pescador que também estava ali ouviu aquelas palavras e disse ao aleijado:

“ ‘Pelo visto, você nunca esteve em outro lugar que não na sua ilha. Se não fosse aleijado e viajasse pelo mar, saberia que o Sol não se deita nas montanhas de nossa ilha e que, assim como se levanta do mar de manhã, de noite ele se deita de novo no mar. O que digo é o certo, porque todo dia vejo isso com meus olhos.’

“Um indiano ouviu aquilo.

“ ‘Admira ver como um homem inteligente pode falar tanta bobagem’ – disse ele. – ‘Será possível que uma bola de fogo afunde na água e não apague? O Sol não é absolutamente uma bola de fogo: o Sol é uma divindade. Essa divindade se chama Deva. Essa divindade viaja pelo céu numa carruagem, em redor da montanha dourada Sumeru. Às vezes, as serpentes malignas Pagu e Ketu atacam Deva e o engolem e aí fica escuro. Mas nossos sacerdotes rezam para que a divindade se liberte e então ela se liberta. Só pessoas ignorantes como o senhor, que nunca viajou para além de sua ilha, podem imaginar que o Sol só brilha em sua ilha.’

“Então o dono de um navio egípcio que estava ali começou a falar:

“ ‘Não’ – disse ele –, ‘isso também não é verdade, o Sol não é uma divindade e não anda só em volta da Índia e de sua montanha dourada. Naveguei muito pelo mar Negro, pelas margens da Arábia, estive em Madagascar, nas ilhas das Filipinas, e o Sol ilumina todas as terras, não só a Índia, e ele não anda em redor de uma montanha, mas se levanta nas ilhas do Japão e por isso aquelas ilhas são chamadas de Iapen, ou seja, na língua deles, o nascimento do Sol, e depois se põe longe, longe, no oeste, além das ilhas da Inglaterra. Sei disso muito bem, porque eu mesmo vi bastante e ouvi meu avô falar muito sobre isso. E meu avô navegou até o fim dos mares.’

“Queria continuar falando, mas um marinheiro inglês de nosso navio o interrompeu.

“ ‘Não existe país onde se saiba mais sobre o movimento do Sol do que na Inglaterra’ – disse ele. – ‘Todos nós na Inglaterra sabemos que o Sol não se levanta nem se deita em lugar nenhum. Ele anda sem parar em torno da Terra. Sabemos disso muito bem, porque nós mesmos demos a volta em redor da Terra e não esbarramos com o Sol. Em toda parte, como aqui, o Sol aparece de manhã e se esconde à noite.’

“E o inglês pegou uma bengala, riscou um círculo na areia e começou a explicar como o Sol anda pelo céu em redor da Terra. Mas não conseguiu explicar direito e, depois de apontar para o timoneiro de seu navio, disse:

“ ‘Na verdade, ele é mais instruído do que eu e pode explicar melhor tudo isso para vocês.’

“O timoneiro era um homem sensato e escutava toda a conversa em silêncio, enquanto ninguém lhe perguntava nada. Mas agora que todos estavam voltados para ele, começou a falar e disse:

“ ‘Todos vocês enganam uns aos outros e se enganam a si mesmos. O Sol não gira em redor da Terra, é a Terra que gira em torno do Sol e gira em torno de si mesma, rodando na direção do Sol ao longo de vinte e quatro horas, e assim também o Japão, as Filipinas e Sumatra, onde estamos agora, e a África, a Europa, a Ásia e ainda muitas outras terras. O Sol não brilha para uma montanha nem para uma ilha nem para um mar nem para uma terra, mas para muitos planetas iguais à Terra. Cada um de vocês poderia entender tudo isso se olhasse para o céu e não para debaixo do próprio nariz e assim não pensaria que o Sol brilha só para si e para sua terra.’

“Assim falou o sábio timoneiro, que tinha viajado muito pelo mundo e tinha olhado muito para o céu.”

–Sim, o erro e a discórdia das pessoas em questões de fé decorrem do orgulho – prosseguiu o chinês, discípulo de Confúcio. – O que acontece com o Sol também se passa com Deus. Todo homem quer ter um Deus próprio, especial, ou pelo menos um Deus de sua terra natal. Cada povo quer encerrar em seu próprio templo aquilo que o mundo inteiro não consegue abarcar. Todos os templos humanos são feitos à imagem de outro templo: o mundo de Deus. Em todos os templos existe uma pia batismal, arcos, velas, imagens, inscrições, livros de mandamentos, sacrifícios, altares e sacerdotes. Mas em que templo existe uma pia batismal como o oceano, um arco como a abóbada celeste, velas como o Sol, a Lua e as estrelas, imagens como as pessoas vivas que se amam e se ajudam umas às outras? Onde há inscrições sobre a bondade de Deus tão compreensíveis quanto as bênçãos que Deus espalhou por toda parte para a felicidade das pessoas? Onde há um livro de mandamentos tão claro para todos como aquele que está escrito no coração de cada pessoa? Onde há sacrifícios comparáveis aos sacrifícios de renúncia que as pessoas gostam de oferecer a seus próximos? E onde há um altar comparável ao coração de um homem bom, no qual o próprio Deus aceita o sacrifício?

Quanto mais elevada for a compreensão que o homem tem de Deus, melhor ele irá conhecê-lo. E quanto melhor ele conhecer Deus, mais irá se aproximar Dele, imitar Sua bondade, misericórdia e amor pelas pessoas.

Portanto aquele que vê toda a luz do Sol que enche o mundo não deve condenar nem desprezar o homem supersticioso que vê em seu ídolo só um raio da mesma luz, e também não deve desprezar o descrente que é cego e não vê luz nenhuma.

Assim falou o chinês, discípulo de Confúcio, e todos que estavam na cafeteria se calaram e não discutiram mais sobre qual fé era a melhor.

1892

O DIABO
Eu, porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério com ela em seu coração.

 

 

 

 


Caso o teu olho direito te leve a pecar, arranca-o e lança-o para longe de ti, pois é melhor para ti que se perca um de teus membros do que teu corpo inteiro ser atirado à geena.

 

 

 

 


E caso a tua mão direita te leve a pecar, corta-a e lança-a para longe de ti, pois é melhor para ti que se perca um de teus membros do que teu corpo inteiro ser atirado à geena.

 

 

 

 


Matheus, v, 28-30
I

 

 

 

Uma carreira brilhante aguardava Ievguiéni Irtiéniev. Tudo o levava a isso. A educação excelente em casa, a conclusão de curso brilhante na faculdade de direito da Universidade de Petersburgo, as relações com a mais alta sociedade herdadas do pai, que falecera pouco tempo antes, e até um cargo inicial num ministério sob a proteção do próprio ministro. Havia também uma fortuna, e até uma fortuna grande, se bem que duvidosa. O pai vivera no exterior e em Petersburgo, mandava seis mil rublos para os filhos – Ievguiéni e um mais velho, Andrei, que servia na Cavalaria da Guarda Imperial – e ele e a esposa gastavam muito dinheiro. Só no verão vinha passar dois meses em sua propriedade rural, mas não se ocupava com os negócios, deixando tudo aos cuidados do administrador, que também não cuidava da propriedade, mas no qual ele tinha plena confiança.

Depois da morte do pai, quando os irmãos começaram a partilha, viram que as dívidas eram tantas que o advogado do inventário até recomendou que, já que tinham ficado com a propriedade da avó, que valia cem mil rublos, renunciassem à herança. Mas o vizinho da propriedade rural, um senhor de terras que tinha negócios com o velho Irtiéniev, ou seja, tinha notas promissórias contra ele e fora a Petersburgo fazer a cobrança, disse que, apesar das dívidas, era possível resolver a situação e ainda salvar uma fortuna considerável. Bastava vender a floresta, parcelas isoladas de terra improdutiva e ficar com a verdadeira mina de ouro – a aldeia Semiónovskoie, com suas quatro mil dessiatinas de terras negras, a usina de açúcar e as duzentas dessiatinas de pastos alagados, contanto que se dedicassem ao negócio, se mudassem para o campo e administrassem com inteligência e economia.

E então Ievguiéni, depois de ir à propriedade na primavera (o pai morrera na Quaresma) e examinar tudo, decidiu demitir-se de seu cargo no ministério, instalar-se com a mãe no campo e cuidar dos negócios, no intuito de conservar a parte principal da propriedade. Com o irmão, de quem não era especialmente amigo, combinou o seguinte: comprometeu-se a lhe pagar quatro mil rublos por ano, ou oitenta mil de uma só vez, e em troca o irmão abriria mão de sua parte da herança.

Assim foi feito e, depois de se estabelecer com a mãe na grande casa senhorial, tratou dos negócios da propriedade com entusiasmo e prudência.

É costume pensar que os velhos em geral são mais conservadores e os jovens, inovadores. Isso não é verdadeiro, de maneira nenhuma. Os mais conservadores em geral são os jovens. Os jovens querem viver, mas não pensam e não têm tempo de pensar em como é preciso viver e por isso elegem como modelo a vida que já existia.

Assim foi também com Ievguiéni. Instalado agora no campo, seu ideal e seus sonhos eram ressuscitar a forma de vida que havia não no tempo do pai – o pai era um administrador ruim –, mas no tempo do avô. E agora, em casa, no pomar, na propriedade, naturalmente com as mudanças apropriadas à época, ele tentava ressuscitar o espírito geral da vida no tempo do avô – fartura em tudo, satisfação de todos em volta, ordem e conforto, e a fim de construir aquela vida havia muita coisa a ser feita: era preciso satisfazer às exigências dos credores e dos bancos e, para isso, vender terras e adiar pagamentos, e também era preciso arranjar dinheiro para continuar tocando os negócios: a enorme propriedade de Semiónovskoie, com empregados temporários aqui, permanentes ali, suas quatro mil dessiatinas de terra cultivada e sua usina de açúcar; na casa e no pomar, era preciso cuidar para que não houvesse o aspecto de abandono e decadência.

Os trabalhos eram muitos, mas Ievguiéni também tinha muita força – força física e mental. Tinha vinte e seis anos, estatura mediana, constituição robusta, músculos desenvolvidos com ginástica, sanguíneo, com todo o rosto rosa-claro, dentes e lábios brilhantes, cabelos ralos, macios, ondulados. Seu único defeito físico era a miopia, que ele mesmo causara usando óculos, e agora já não podia andar sem o pincenê, que já havia deixado sulcos no alto do nariz um pouco aquilino. Se assim era na aparência física, seu aspecto moral era tal que, quanto mais o conheciam, mas gostavam dele. A mãe sempre o amara mais que a todos e agora, após a morte do pai, concentrava nele não só toda a sua ternura como toda a sua vida. No entanto não era só a mãe que o amava assim. Os colegas do ginásio e da universidade sempre, e de modo especial, não só o amaram como também o respeitaram. Em todas as pessoas estranhas, ele sempre produzia o mesmo efeito. Era impossível não acreditar no que dizia, era impossível supor um engano, uma mentira, num rosto tão franco e honesto, e sobretudo nos olhos.

No geral, toda a sua personalidade o ajudava muito nos negócios. Um credor, que recusaria o pedido de outro devedor, acreditava nele. O administrador, o estaroste, o mujique que fariam trapaças e enganariam outra pessoa, desistiam de enganar sob a impressão agradável da relação com um homem bondoso, simples e, acima de tudo, franco.

Era o fim de maio. De algum jeito, Ievguiéni tinha conseguido na cidade liberar as terras improdutivas de uma hipoteca para vendê-las a um comerciante e assim havia recebido dinheiro emprestado daquele mesmo comerciante para renovar seu acervo de cavalos, bois e carroças. E, acima de tudo, para começar a indispensável construção de uma eira coberta. Os negócios estavam dando certo. Trouxeram madeira, os carpinteiros já trabalhavam e oitenta carroças transportavam esterco, porém até aí tudo continuava por um fio.
II

 

 

 

No meio dessas preocupações, ocorreu uma circunstância que, embora sem importância, deixou Ievguiéni atormentado naquela ocasião. Ele vivia sua juventude como vivem todos os jovens saudáveis e solteiros, ou seja, tinha relações com vários tipos de mulheres. Não era um libertino, mas também não era um monge, como ele mesmo dizia para si. Entregava-se àquilo apenas quanto fosse necessário para a saúde física e a liberdade intelectual, como ele dizia. Aquilo tinha começado aos dezesseis anos. E até então, corria muito bem. Muito bem no sentido de que ele não se entregara à depravação, nenhuma vez se apegara e nenhuma vez ficara doente. Em Petersburgo, tivera primeiro uma costureira, depois ela se perdeu na vida e Ievguiéni deu outro jeito. Aquele lado estava tão bem resolvido que não o perturbava.

Mas agora já havia dois meses que ele morava no campo e não sabia absolutamente como proceder. A abstinência involuntária começava a ter efeitos ruins sobre ele. Será que devia ir à cidade para resolver aquilo? Mas aonde? E como? Só isso perturbava Ievguiéni Ivánovitch, e estava tão convencido de que era algo necessário e de que ele tinha tal carência que acabou se tornando de fato algo necessário e ele sentia que não era livre e que, contra a própria vontade, seguia com os olhos qualquer mulher jovem que passava.

Achava que não era correto encontrar-se com uma mulher ou moça em sua aldeia. Pelo que contavam, sabia que o pai e o avô, naquele aspecto, se comportavam de modo muito diferente do dos outros senhores de terras de seu tempo e nunca permitiram em sua casa nenhum namorico com as servas, e decidiu que não ia fazer aquilo; mas depois, sentindo-se cada vez mais tolhido e imaginando com horror o que poderia acontecer com ele na cidadezinha próxima, e também considerando que não existia mais o regime de servidão, resolveu que podia ser ali mesmo. Apenas tinha de agir de maneira que ninguém soubesse, e não por depravação, mas só para a saúde, como dizia para si. E quando decidiu isso, ficou ainda mais inquieto; ao falar com o estaroste, com os mujiques, com o marceneiro, involuntariamente ele conduzia a conversa para mulheres e, se a conversa já era sobre mulheres, esticava o assunto. E quando olhava para as mulheres, se demorava cada vez mais.
III

 

 

 

Só que tomar uma decisão para si é uma coisa, mas pôr isso em prática é muito diferente. Aproximar-se de uma mulher por iniciativa própria era impossível. E qual? E onde? Era preciso que alguém ajudasse, mas a quem pedir ajuda?

Certa vez, aconteceu de entrar na cabana do guarda-florestal para beber água. O guarda tinha sido caçador de seu pai. Ievguiéni Ivánovitch conversou com ele e o guarda-florestal começou a contar histórias antigas de farras em caçadas. E veio à cabeça de Ievguiéni Ivánovitch a ideia de que ali, na cabana do guarda-florestal ou na floresta, seria um bom lugar para resolver o assunto. Só que ele não sabia como nem se o velho Danila cuidaria do caso. “Talvez ele se horrorize diante de uma proposta como essa e vou morrer de vergonha, ou talvez concorde, muito simplesmente”. Assim pensava, enquanto ouvia as histórias de Danila. O velho estava contando que, certa vez, se encontravam num campo distante, na casa da esposa do diácono, e que ele levou uma mulher para Priánitchnikov.

“Pode ser”, pensou Ievguiéni.

–O pai do senhor, que Deus o tenha no reino dos céus, não participava dessas besteiras.

“Não pode ser”, pensou Ievguiéni, mas por via das dúvidas perguntou:

–Então você se metia nessas coisas ruins?

–Mas o que há de mau nisso? Ela ficou contente e meu Fiódor Zakháritch ficou satisfeito, mais do que satisfeito. Me deu um rublo. Senão, como ele ia fazer? Também era de carne e osso. Tinha de viver.

“Sim, posso falar”, pensou Ievguiéni e na mesma hora entrou no assunto:

–Sabe – e logo teve a sensação de que ficava muito vermelho –, sabe, Danila, eu ando atormentado. – Danila sorriu. – Afinal, não sou um monge... estava acostumado.

Sentiu que tudo o que dizia era tolice, mas se animou, porque Danila aprovou.

–Puxa, podia ter dito há muito tempo, pode-se dar um jeito – disse ele. – É só o senhor dizer qual.

–Ah, sério, para mim tanto faz. Bem, é claro, contanto que não seja horrorosa e tenha saúde.

–Entendi! – cortou Danila. Pensou um pouco. – Ah, tenho uma coisinha bonita – começou. Ievguiéni enrubesceu de novo. – Uma coisinha bonita. O senhor precisa ver, casaram a moça no outono. – Danila começou a sussurrar. – Ah, ele não consegue fazer nada. Está solta para o caçador que passar.

Ievguiéni chegou a franzir o rosto de vergonha.

–Não, não – começou a dizer. – Não é de nada assim que eu preciso. Ao contrário (o que poderia ser o contrário?), eu, ao contrário, só preciso que seja saudável, que não traga confusão... a mulher de um soldado ou algo assim...

–Sei. Então vou apresentar a Stiepanida ao senhor. O marido mora na cidade, é igual à mulher de um soldado. E é uma mulherzinha bonita, limpa. O senhor vai ficar satisfeito. Faz pouco tempo falei com ela sobre isso... É só eu dizer vá, que ela...

–Mas quando, então?

–Bom, pode ser amanhã. Vou buscar tabaco e passo lá, e aí no almoço o senhor vem para cá ou vai para trás da horta, na casa de banho. Não tem ninguém. E na hora do almoço todo mundo está dormindo.

–Certo, está bem.

Uma agitação terrível tomou conta de Ievguiéni, quando andava de volta para casa. “O que vai acontecer? Como será essa camponesa? De repente, é uma coisa medonha, horrorosa. Não, elas são bonitas”, disse consigo mesmo, lembrando aquelas que tanto observava. “Mas o que vou falar, o que vou fazer?”

Passou o dia todo fora de si. No dia seguinte, ao meio-dia, foi para a cabana do guarda-florestal. Danila estava na porta e, em silêncio, de modo expressivo, acenou com a cabeça na direção da floresta. O sangue afluiu com força ao coração de Ievguiéni, ele sentiu as batidas do coração e seguiu para a horta. Ninguém. Foi à casa de banho. Ninguém. Deu uma olhada ali, saiu e de repente ouviu o estalo de um galho quebrado. Olhou e ela estava de pé, no mato, atrás de um pequeno barranco. Ele se precipitou para lá através do barranco. No fundo, havia urtigas, que ele nem percebeu. Queimou-se nas urtigas, deixou o pincenê cair do nariz no caminho e subiu por um aclive no lado oposto. Com um avental branco bordado, saia rústica castanho-avermelhada, xale vermelho-claro, pés descalços, fresca, forte, bonita, ela estava de pé e sorria com timidez.

–Ali em volta tem uma trilha, podia ter contornado – disse ela. – Já estou aqui faz um tempão. Séculos.

Ele se aproximou e, olhando ao redor, tocou-a.

Quinze minutos depois, separaram-se, ele achou o pincenê, foi ao encontro de Danila e, em resposta à sua pergunta – “Está satisfeito, patrão?”–, lhe deu um rublo e foi para casa.

Ele estava satisfeito. A vergonha foi só no início. Mas depois passou. E tudo estava bem. Estava bem, sobretudo, porque agora ele se sentia leve, calmo, animado. Quanto a ela, Ievguiéni nem observou direito. Lembrava que era limpa, fresca, simples, não era feia e não tinha afetação. “Qual será seu sobrenome?”, perguntava para si mesmo. “Pétchnikova, não foi o que ele disse? Mas que Pétchnikova1 é essa? Há duas famílias com esse nome. Deve ser nora do velho Mikhail. Sim, deve ser isso. Pois ele tem um filho que mora em Moscou; vou perguntar ao Danila, um dia desses.”

A partir de então, estava afastado aquele incômodo, antes tão importante, da vida no campo – a abstinência involuntária. A liberdade de pensamento de Ievguiéni já não era mais perturbada e ele podia se ocupar livremente de seus afazeres.

E a tarefa de que Ievguiéni se incumbira não era nada fácil: às vezes lhe parecia que não ia conseguir e que, apesar de tudo, acabaria tendo de vender a propriedade, todos os seus esforços seriam desperdiçados e, sobretudo, ficaria provado que ele não era capaz, não conseguia levar até o fim o que havia começado. Era isso que o incomodava acima de tudo. Mal fechava um buraco, logo se abria outro, inesperado. Durante todo esse tempo, não paravam de aparecer mais e mais dívidas novas do pai, antes ignoradas. Era evidente que, nos últimos tempos, o pai tinha feito empréstimos a torto e a direito. Em maio, na época da partilha, Ievguiéni achava que, afinal, estava a par de tudo. Mas de repente, no meio do verão, recebeu uma carta que revelava haver ainda uma dívida de doze mil com a viúva Iéssipova. Não existia nenhuma nota promissória, mas um simples bilhete que, segundo o advogado, podia ser contestado. Mas nem passava pela cabeça de Ievguiéni negar-se a pagar uma dívida real do pai só porque o documento podia ser contestado na Justiça. Ele tinha apenas de saber se a dívida era verdadeira, real.

–Mamãe! Quem é essa Iéssipova Kaléria Vladímirovna? – perguntou para a mãe quando, como de costume, se reuniram para jantar.

–Iéssipova? É uma protegida de seu avô. Por quê?

Ievguiéni mostrou a carta para a mãe.

–Eu me admiro que ela não tenha vergonha. Seu pai deu tanto para ela.

–Mas devemos a ela?

–Bem, como vou explicar? Dívida, não temos. Papai, em sua infinita bondade...

–Sim, mas papai considerava isso uma dívida?

–Não posso lhe responder. Não sei. Só sei é que você está carregando um fardo muito pesado.

Ievguiéni viu que a própria Mária Pávlovna não sabia como explicar e parecia querer extrair alguma coisa dele.

–Pelo que vejo, temos de pagar – disse o filho. – Amanhã irei à casa dela para conversar e ver se não é possível um adiamento.

–Ah, que pena tenho de você. Mas, sabe, é melhor. Diga a ela que deve esperar um pouco – disse Mária Pávlovna, obviamente mais calma e orgulhosa da decisão do filho.

A posição de Ievguiéni era especialmente difícil porque a mãe, que morava com ele, ainda não havia compreendido muito bem sua situação. Ela se habituara a viver sempre com tanta fartura que não conseguia nem se imaginar na situação em que o filho se encontrava, ou seja, que de uma hora para outra os negócios podiam dar uma guinada, não lhes restaria mais nada, o filho teria de vender tudo, teria de se sustentar e sustentar a mãe só com o salário de um emprego, que na situação em que se encontrava poderia lhe render no máximo dois mil rublos. A mãe não entendia que só era possível salvar-se daquela situação com um corte em todas as despesas e por isso não conseguia entender para que Ievguiéni economizava em ninharias, despesas com os jardineiros, com os cocheiros, com os criados e até com a comida. Além disso, como a maioria das viúvas, alimentava um sentimento de veneração pela memória do falecido, muito diferente do que sentia pelo marido quando vivo, e não admitia a ideia de que algo que o falecido tinha feito ou iniciado fosse ruim e falho.

Com grande esforço, Ievguiéni mantinha o jardim e a estufa de plantas com dois jardineiros e a estrebaria com dois cocheiros. Já Mária Pávlovna pensava, ingenuamente, que por não reclamar da comida feita pelo velho cozinheiro, de os caminhos do parque nem sempre estarem limpos, de ter apenas um menino em vez de lacaios, ela já fazia tudo o que uma mãe podia, sacrificando-se por seu filho. Assim também no caso daquela nova dívida, na qual Ievguiéni, no íntimo, via quase um golpe mortal em todos os seus esforços, Mária Pávlovna via apenas uma oportunidade para se manifestar a nobreza de Ievguiéni. Mária Pávlovna não se preocupava muito com a situação material de Ievguiéni também porque estava convencida de que ele acharia um ótimo partido para casar, que resolveria tudo. E de fato ele podia achar um magnífico partido. A mãe conhecia dezenas de famílias que ficariam felizes de casar suas filhas com Ievguiéni. E ela desejava arranjar aquilo o mais depressa possível.
IV

 

 

 

O próprio Ievguiéni sonhava com um casamento, mas não como a mãe: a ideia de fazer do casamento um meio de resolver seus negócios era repugnante para ele. Queria casar-se de modo honesto, por amor. Até observava com atenção as moças que encontrava e conhecia, avaliava como seria viver com elas, mas seu destino não se resolvia. Enquanto isso, ao contrário do que esperava, suas relações com Stiepanida continuaram e ganharam até o caráter de algo estável. Ievguiéni era tão alheio à libertinagem, era tão penoso para ele fazer algo errado, às escondidas – assim ele sentia –, que não conseguia se sentir à vontade e, já após o primeiro encontro, pretendia nunca mais ver Stiepanida; mas aconteceu que, passado algum tempo, lhe veio a mesma inquietação, que ele atribuía àquilo. E dessa vez a inquietação já não foi impessoal; ele imaginou os mesmos olhos negros e brilhantes, a mesma voz profunda que dissera “séculos”, o mesmo odor de algo fresco e forte e o mesmo peito erguido, que empinava o avental, e tudo isso no mesmo bosque de nogueiras e bordos, inundado por uma luz brilhante. Por mais vergonha que sentisse, procurou Danila outra vez. E de novo foi marcado um encontro ao meio-dia, na floresta. Dessa vez, Ievguiéni a observou melhor e tudo nela lhe pareceu encantador. Experimentou conversar com ela, perguntou sobre o marido. De fato, era o filho de Mikhail e morava em Moscou, onde trabalhava como cocheiro.

–Mas então como é que você... – Ievguiéni queria perguntar como ela o traía.

–Como o quê? – perguntou ela. Claro, era inteligente e tinha adivinhado.

–Bom, como é que você vem se encontrar comigo?

–Ora essa – exclamou ela com alegria. – Aposto que ele se diverte por lá. Eu não posso?

Era evidente que ela se fazia de desembaraçada, de atrevida. E Ievguiéni achou aquilo atraente. Mesmo assim, não marcou outro encontro diretamente com ela. Mesmo quando Stiepanida propôs um encontro sem a intermediação de Danila, a quem se referiu com certo desprezo, Ievguiéni não concordou. Queria que aquele fosse o último encontro. Gostava dela. Achava que precisava daquela relação e que não havia nada de mau; mas, no fundo da alma, ele tinha um juiz mais severo que não aprovava aquilo e que esperava que fosse a última vez, e, se não esperava, pelo menos não queria participar daquele negócio nem dos preparativos para que se repetisse.

Assim passou o verão inteiro, durante o qual ele a encontrou umas dez vezes e sempre por intermédio de Danila. Houve uma vez em que ela não pôde ir, porque o marido havia chegado, e Danila sugeriu outra moça. Ievguiéni recusou com repulsa. Depois o marido partiu e os encontros continuaram como antes, de início por intermédio de Danila e depois ele já marcava o horário diretamente com Stiepanida e ela ia acompanhada por uma camponesa chamada Prókhorova, pois uma mulher não podia andar sozinha. Certa vez, justamente na hora marcada para o encontro, chegou à casa de Mária Pávlovna a família da jovem com quem ela pretendia casar o filho e Ievguiéni não conseguiu escapar de jeito nenhum. Mas assim que conseguiu sair, fingiu que ia à eira coberta e seguiu pela trilha em torno da floresta, rumo ao local do encontro. Ela não estava. Mas, no lugar de costume, tudo o que as mãos podiam alcançar estava partido, tudo, a cerejeira, a nogueira, até o bordo jovem da grossura de uma estaca. Ela havia esperado, se irritara e, de brincadeira, lhe deixara um recado. Ele esperou, esperou, e foi falar com Danila para pedir que a chamasse no dia seguinte. Stiepanida foi e se comportou como sempre.

Assim passou o verão. Os encontros eram sempre marcados na floresta e só uma vez, já quase no outono, no galpão da eira coberta, nos fundos da casa deles. Nem passava pela cabeça de Ievguiéni que aquelas relações tivessem alguma importância para ele. Ievguiéni nem pensava nela. Dava-lhe dinheiro e mais nada. Não sabia e não pensava que toda a aldeia já tinha conhecimento, que tinham inveja dela, que seus parentes tomavam o dinheiro de Stiepanida e a incentivavam a continuar, e que a noção que a jovem tinha de pecado fora totalmente aniquilada sob a influência do dinheiro e da pressão dos parentes. Ela achava que, se as pessoas tinham inveja, o que fazia era bom.

“Só preciso disso para minha saúde”, pensava Ievguiéni. “Vamos supor que não seja bom e que, embora ninguém diga, muitos ou todos já saibam. A mulher com quem ela vem já sabe. Como sabe, certamente já contou para outros. Mas o que vou fazer? Estou me comportando mal”, pensou Ievguiéni, “mas o que vou fazer? Além do mais, é por pouco tempo.”

O que mais incomodava Ievguiéni era o marido. De início, por algum motivo, achava que o marido dela devia ser alguém muito feio e aquilo como que o justificava, em parte. Mas viu o marido e teve um choque. Era um rapagão elegante, em nada pior do que ele; na verdade, melhor do que ele. No primeiro encontro depois disso, contou para Stiepanida que tinha visto seu marido e tinha gostado muito dele, um belo rapagão.

–Não tem outro igual na aldeia – disse ela com orgulho.

Aquilo surpreendeu Ievguiéni. A partir daí, a ideia do marido o atormentou mais ainda. Aconteceu, certa vez, de estar na casa de Danila e, conversando, Danila lhe disse sem rodeios:

–Faz uns dias, o Mikhail me perguntou se o patrão vive com a mulher do filho dele. Respondi que não sabia. Mas e daí, falei, é melhor com o patrão do que com um mujique.

–E ele?

–Nada, só falou assim: pois ela que se cuide, se eu souber, dou uma surra.

“Bem, se o marido voltar, eu largo”, pensou Ievguiéni. Mas o marido morava na cidade e as relações por enquanto continuaram. “Quando for necessário, eu rompo, e não vai ficar nada para trás”, pensou.

E aquilo lhe parecia incontestável, porque durante o verão muitas outras coisas o preocuparam intensamente: a construção da nova eira coberta, a colheita, as edificações e acima de tudo o pagamento das dívidas e a venda das terras improdutivas. Tudo isso eram assuntos que o consumiam por inteiro, nos quais ele pensava da hora em que acordava até a hora em que ia dormir. Tudo aquilo era a vida real. Já as relações – ele nem chamava aquilo de relacionamento – com Stiepanida eram algo sem nenhuma importância. É verdade que, quando começava o desejo de vê-la, vinha com tanta força que ele não conseguia pensar em mais nada, porém aquilo não demorava muito tempo, combinavam um encontro e ele a abandonava de novo por uma semana, às vezes por um mês.

No outono, Ievguiéni foi muitas vezes à cidade e lá fez amizade com a família Ánnenski. Os Ánnenski tinham uma filha que acabara de se formar no instituto.2 E ali, para grande pesar de Mária Pávlovna, aconteceu que Ievguiéni se vendeu barato, como ela dizia, e se apaixonou por Liza Ánnenskaia e a pediu em casamento.

A partir daí, as relações com Stiepanida cessaram.
V

 

 

 

Por que Ievguiéni foi escolher logo Liza Ánnenskaia é impossível explicar, como sempre é impossível explicar por que um homem escolhe uma mulher e não outra. Havia uma porção de causas, positivas e negativas. Uma das causas era não ser uma noiva muito rica, como as que a mãe arranjava, e ser ingênua e infeliz nas relações com a própria mãe, e não ser bonita, não atrair as atenções para si, embora não fosse feia. O principal foi o fato de ter se aproximado dela na ocasião em que Ievguiéni estava maduro para o casamento. Ele se apaixonou porque sabia que ia casar.

De início, Ievguiéni apenas gostou de Liza Ánnenskaia, mas quando resolveu que ela seria sua esposa, experimentou por ela um sentimento imensamente mais forte, sentiu que estava apaixonado.

Liza era alta, magra, alongada. Tudo nela era alongado: o rosto, o nariz, que não era para a frente, mas sim na linha do comprimento do rosto, os dedos, os pés. A cor do rosto era muito delicada, branca e amarelada, com um rubor meigo, cabelos compridos, louros, macios e ondulados, e lindos olhos claros, dóceis, crédulos.

Assim era ela fisicamente; quanto ao espírito, ele nada sabia, só enxergava aqueles olhos. E os olhos pareciam dizer tudo que ele precisava saber. Mas o sentido daqueles olhos era o seguinte:

Ainda no instituto, desde os quinze anos, Liza se apaixonava por todos os homens atraentes e só ficava animada e feliz quando estava apaixonada. Depois que saiu do instituto, continuou a se apaixonar por todos os homens jovens que encontrava e, é claro, se apaixonou por Ievguiéni assim que o conheceu. Era essa paixão que dava a seus olhos a expressão especial que tanto cativava Ievguiéni.

Naquele mesmo inverno, ela já estivera apaixonada por dois jovens ao mesmo tempo e se ruborizava e se perturbava não só quando eles entravam num recinto onde ela estivesse, mas também quando alguém pronunciava o nome deles. Porém, depois, quando sua mãe sugeriu que Irtiéniev parecia ter intenções sérias, a paixão de Liza por Irtiéniev ganhou tanta força que ela se tornou quase indiferente aos dois anteriores, mas quando Irtiéniev começou a frequentar a casa deles, os bailes, as reuniões, dançava com ela mais do que com as outras e deixava claro que queria apenas saber se ela o amava, então a paixão por Irtiéniev se tornou algo doentio, Liza o via em sonhos e acordada, no quarto escuro, e todos os outros homens desapareceram para ela. Quando ele fez o pedido de casamento e deram a bênção aos dois, quando ela o beijou e se tornaram noivo e noiva, Liza não tinha outros pensamentos senão ele, outros desejos senão estar com ele, para amar e ser amada por ele. Tinha orgulho dele, se comovia com ele, consigo e com seu amor, ficava lânguida, se derretia de amor por ele. Quanto mais a conhecia, mais Ievguiéni a amava. Nem de longe esperava encontrar um dia um amor assim e aquele amor reforçava ainda mais seu sentimento.
VI

 

 

 

Antes da primavera, ele foi a Semiónovskoie para dar ordens a respeito da propriedade e principalmente da casa senhorial, onde faziam os preparativos para o casamento.

Mária Pávlovna estava insatisfeita com a escolha do filho, mas só porque a noiva não era um partido tão brilhante como poderia ter sido e porque não gostara de Varvara Alekséievna, a futura sogra dele. Se era boa ou má, ela não sabia dizer, mas que não era uma mulher de classe, que não era comme il faut,3 que não era uma lady, como dizia Mária Pávlovna consigo, isso ela havia percebido desde o primeiro instante e lhe trazia amargura. E lhe trazia amargura porque estava acostumada a dar valor às pessoas de classe, sabia que Ievguiéni era muito sensível a isso e previa, para ele, muitas amarguras por tal motivo. Já da moça ela gostava. Gostava sobretudo porque Ievguiéni gostava dela. Era preciso amá-la. E Mária Pávlovna estava pronta a fazer isso, e com total sinceridade.

Ievguiéni encontrou a mãe alegre, satisfeita. Estava arrumando tudo em casa e tinha intenção de ir embora assim que ele trouxesse a jovem esposa. Ievguiéni tentava convencê-la a ficar. E a questão estava em aberto. À noite, como de costume, após o chá, Mária Pávlovna jogou paciência. Ievguiéni sentou-se a seu lado e ajudou a mãe. Era o momento das conversas mais francas. Após terminar uma partida de paciência e antes de começar a seguinte, Mária Pávlovna olhou para Ievguiéni e, um pouco em dúvida, começou assim:

–Queria lhe dizer uma coisa, Génia.4 Claro que não sei de nada, mas de qualquer forma queria advertir que, antes do casamento, é preciso sem falta encerrar todos os casos de solteiro, para que nada mais possa perturbar você e, Deus me perdoe, sua esposa. Entende?

E, de fato, Ievguiéni entendeu na mesma hora que Mária Pávlovna se referia a suas relações com Stiepanida, que haviam cessado desde o outono, e, como sempre fazem as mulheres solitárias, ela atribuía a tais relações uma importância muito maior do que tinham na realidade. Ievguiéni ficou ruborizado, menos de vergonha do que de irritação, pois a bondosa Mária Pávlovna estava se metendo – por amor, é verdade –, mas estava se metendo onde não devia, num assunto que não entendia e não podia entender. Ele disse que não tinha nada que precisasse esconder e que, na verdade, sempre se portara de maneira que nada pudesse perturbar seu casamento.

–Muito bem, que ótimo, meu querido. Guénia, não fique ofendido comigo – disse Mária Pávlovna, embaraçada.

Mas Ievguiéni percebeu que ela não terminara de dizer o que pretendia. E era isso mesmo. Pouco depois, ela se pôs a contar como, certa vez, na ausência dele, lhe pediram que fosse madrinha num batizado na casa dos... Ptchélnikov.

Dessa vez Ievguiéni ficou vermelho não de aborrecimento e nem mesmo de vergonha, mas sim por um estranho sentimento de consciência da importância do que iam lhe contar em seguida, uma consciência involuntária, em total desacordo com seu raciocínio. Aconteceu o que ele esperava. Como se não tivesse nenhum outro objetivo senão conversar, Mária Pávlovna contou que naquele ano só estavam nascendo meninos, um claro sinal de guerra. Na casa dos Vássin e dos Ptchélnikov, as jovens mães deram à luz meninos, em seu primeiro parto. Mária Pávlovna queria contar aquilo como se não fosse nada demais, só que ela mesma sentiu vergonha ao ver o rubor no rosto do filho, a maneira nervosa como tirou, mexeu e colocou o pincenê e como começou a fumar o cigarro de modo afobado. Ela ficou em silêncio. Ele também, e não conseguiu inventar um jeito de romper o silêncio. Assim os dois compreenderam que se compreendiam um ao outro.

–Sim, o principal é que haja justiça na aldeia, para que não existam favoritos, como no tempo do seu avô.

–Mãezinha – disse Ievguiéni, de repente. – Sei para que a senhora está me dizendo isso. A senhora está se preocupando à toa. Para mim, minha futura vida conjugal é tão sagrada que não vou perturbá-la em nenhuma hipótese. Quanto ao que aconteceu na minha vida de solteiro, tudo está completamente encerrado. Nunca tive nenhuma relação desse tipo e ninguém tem nenhum direito sobre mim.

–Bem, fico feliz com isso – disse a mãe. – Conheço seus pensamentos nobres.

Ievguiéni tomou aquelas palavras da mãe como o tributo devido a ele e não falou mais nada.

Na manhã seguinte, foi à cidade, pensando na noiva, em tudo no mundo, menos em Stiepanida. Mas, como se fosse de propósito para obrigá-lo a lembrar, no caminho para a igreja, ele começou a encontrar pessoas que vinham de lá, a pé e de carroça. Encontrou o velho Matviêi, ao lado de Semion, crianças, mocinhas, e vinham também duas mulheres, uma mais velha e a outra mais arrumada, com um xale vermelho-claro e com algo que lhe pareceu familiar. A mulher andava ligeira, animada, e levava um bebê nos braços. Ao passarem por ele, a mais velha parou e cumprimentou-o com uma reverência à maneira antiga, e a jovem com o bebê apenas inclinou a cabeça e, por baixo do xale, brilharam os olhos risonhos, alegres e conhecidos.

“Sim, é ela, mas tudo está encerrado e não quero saber de ficar olhando para ela. Quanto ao bebê, talvez seja meu”, passou pela sua cabeça num lampejo. “Não, que absurdo. Foi o marido, ela ficava com ele.” Nem se deu ao trabalho de fazer as contas. Pois para ele estava decidido que aquilo era uma coisa necessária para sua saúde, tinha pagado em dinheiro e pronto; não havia entre os dois nenhuma ligação, não tinha havido, não podia e não devia haver. Não se tratava de calar a voz da consciência, não, a consciência propriamente não lhe dizia nada. E ele não se lembrou de Stiepanida nem uma vez depois da conversa com a mãe e depois daquele encontro. E também não a encontrou nem uma vez depois disso.

No primeiro domingo depois da Páscoa, Ievguiéni se casou na cidade e logo partiu com a jovem esposa para o campo. A casa estava decorada como em geral se faz para os recém-casados. Mária Pávlovna queria ir embora, mas Ievguiéni e, sobretudo, Liza a convenceram a ficar. Ela apenas se mudou para a ala dos fundos.

E assim começou uma vida nova para Ievguiéni.
VII

 

 

 

O primeiro ano da vida conjugal foi um ano difícil para Ievguiéni. E foi difícil porque os negócios, que deixara um pouco de lado durante o noivado e os preparativos, agora, após o casamento, de repente desabaram sobre ele.

Desvencilhar-se das dívidas parecia impossível. A casa de veraneio foi vendida, as dívidas mais prementes foram saldadas, mas ainda restavam muitas dívidas e não havia dinheiro. A propriedade tinha dado um bom lucro, mas era preciso pagar a parte do irmão e cobrir as despesas do casamento, portanto não havia dinheiro, a usina de açúcar não podia produzir, era preciso desativá-la. O único meio de desembaraçar-se consistia em usar o dinheiro da esposa. Liza havia compreendido a situação do marido e ela mesma exigiu que fizesse aquilo. Ievguiéni concordou, contanto que fizessem uma escritura de compra da metade da propriedade em nome da mulher. E assim foi feito.

Naturalmente, não por causa de Liza, que se sentia ofendida com aquilo, mas por causa da sogra.

Aqueles negócios com tantas reviravoltas, ora sucesso, ora fracasso, foram uma das coisas que envenenaram a vida de Ievguiéni no primeiro ano. Outra coisa foi a saúde fraca da esposa. Naquele mesmo primeiro ano, sete meses após o casamento, no outono, aconteceu uma desgraça a Liza. Ela saiu numa charaban5 para encontrar-se com o marido, que voltava da cidade, o cavalo manso empinou, ela se assustou, pulou para fora do veículo. O pulo foi relativamente bem-sucedido – ela poderia ter ficado agarrada na roda –, mas Liza estava grávida e naquela mesma noite começou a sentir dores, abortou e levou muito tempo para se recuperar depois do aborto. A perda do esperado bebê, a doença da esposa, as confusões da vida associadas àquilo e, acima de tudo, a presença da sogra, que chegou assim que Liza ficara doente – tudo isso tornou o ano ainda mais penoso para Ievguiéni.

No entanto, apesar das circunstâncias difíceis, no fim do primeiro ano, Ievguiéni se sentia muito bem. Em primeiro lugar, sua ideia sincera de recuperar a propriedade decadente, restabelecer a vida tal como era no tempo do avô, num formato novo, estava se cumprindo, ainda que lentamente e com dificuldade. Agora já não era preciso falar da venda de toda a propriedade para saldar as dívidas. A parte principal da propriedade, embora transferida para o nome da esposa, estava salva e, se a beterraba desse uma boa safra e o preço fosse bom, no ano seguinte a situação de carência e de tensão poderia se tornar plenamente satisfatória. Esse era um ponto.

O outro era que, embora esperasse muito da esposa, Ievguiéni não esperava de forma nenhuma encontrar nela o que encontrou: não era o que esperava, mas era imensamente melhor. Acessos de ternura, arroubos de paixão, embora ele mesmo tentasse promovê-los, não ocorriam, ou ocorriam de maneira muito fraca; no entanto havia algo bem diferente, algo que tornava a vida não só mais alegre e agradável como também mais fácil. Ele não sabia por que aquilo acontecia, mas era assim.

E aquilo acontecia porque, logo depois do casamento, Liza havia decidido que entre todas as pessoas no mundo só existia Ievguiéni Irtiéniev, o mais elevado, o mais inteligente, o mais puro, o mais nobre de todos, e por isso era dever de todos servir e ser agradável a Irtiéniev. Mas como era impossível obrigar todo mundo a fazer isso, era preciso que ela mesma o fizesse, na medida do possível.

E ela fazia e por isso toda a sua força de espírito estava sempre direcionada para saber e adivinhar o que ele amava, a fim de, em seguida, executar aquilo mesmo, fosse o que fosse, por mais difícil que se revelasse.

E em Liza havia aquilo que constitui o principal encanto do convívio com uma mulher que ama, pois, graças ao amor que sentia, Liza tinha o dom de enxergar com clareza a alma do marido. Ela pressentia – e melhor que o próprio Ievguiéni, era a impressão dele – todos os estados de sua alma, todos os matizes de seu sentimento, e sempre moderava sentimentos penosos e reforçava os alegres. Além dos sentimentos, ela também entendia seus pensamentos. Os assuntos mais alheios a Liza, relativos à agricultura, à usina de açúcar, à avaliação do pessoal, ela compreendia prontamente e não só podia ser uma interlocutora para o marido como também, muitas vezes, uma conselheira útil, insubstituível, como o próprio Irtiéniev lhe dizia. Coisas, pessoas, tudo no mundo, ela só enxergava através dos olhos do marido. Liza amava a mãe, porém ao ver que a interferência da sogra na vida deles desagradava a Ievguiéni, na mesma hora passou para o lado do marido e com tanta determinação que ele teve de contê-la.

Acima de tudo isso, havia nela uma fartura de bom gosto, de tato e principalmente de discrição. Tudo o que fazia era sem chamar a menor atenção, só os resultados chamavam atenção, ou seja, sempre e em toda parte reinavam a limpeza, a ordem e a elegância. Liza entendeu imediatamente qual era o ideal de vida do marido e tentava alcançá-lo e, na organização e na ordem da casa, conseguiu exatamente o que ele desejava. Faltavam os filhos, mas quanto a isso também havia esperança. No inverno, foram a Petersburgo consultar um obstetra e ele os convenceu de que Liza estava absolutamente saudável e podia ter filhos.

E esse desejo se realizou. No fim do ano, Liza engravidou novamente.

A única coisa que ameaçava a felicidade deles, mas não chegava a envenenar, era o ciúme da esposa – ciúme que ela reprimia, não demonstrava, mas que muitas vezes a fazia sofrer. Não só Ievguiéni não podia amar ninguém, porque não existia no mundo mulheres dignas dele (se a própria Liza era digna ou não do marido, ela jamais se perguntava), como também mulher nenhuma poderia se atrever a amá-lo.
VIII

 

 

 

Assim iam vivendo: ele acordava cedo, como sempre, e saía para a propriedade, para a usina, onde os trabalhos estavam em andamento, e às vezes para o campo. Às dez horas, chegava para tomar café. Tomava café na varanda com Mária Pávlovna, um tio que estava morando com eles e Liza. Depois das conversas, em geral muito animadas, durante o café, separavam-se até o almoço. Almoçavam às duas horas. Depois passeavam a pé ou davam uma volta de carruagem. À noite, quando ele chegava do escritório, tomavam chá mais tarde e às vezes ele lia em voz alta, ela trabalhava, ou tocavam música, ou conversavam, quando tinham visitas. Nas ocasiões em que viajava a negócios, ele escrevia e recebia cartas dela todos os dias. Às vezes ela o acompanhava e isso era muito divertido. Nos aniversários dele e dela, recebiam visitas e ele tinha grande satisfação ao ver como ela sabia organizar tudo de modo que todos se sentissem bem. Ele via e percebia que todos amavam a anfitriã jovem e gentil e por isso ele a amava ainda mais. Tudo corria às mil maravilhas. A gravidez prosseguia com facilidade e os dois, embora hesitantes, começaram a imaginar como educariam a criança. A forma de educação, os métodos, tudo isso era Ievguiéni quem resolvia, e Liza apenas desejava cumprir com obediência a vontade dele. O próprio Ievguiéni lia muitos livros de medicina e tinha a intenção de educar a criança segundo todos os princípios da ciência. Liza, naturalmente, concordava com tudo e se preparava, costurava mantinhas para o frio e para o calor e decorava o bercinho. Assim começou o segundo ano do casamento e a segunda primavera.
IX

 

 

 

Era véspera do dia da Santíssima Trindade. Liza estava no quinto mês e, embora tomasse cuidado, andava alegre e ativa. As duas mães, a dela e a dele, moravam na casa sob o pretexto dos cuidados e da proteção que Liza requeria e só a incomodavam quando trocavam farpas. Ievguiéni, com entusiasmo especial, se ocupava da propriedade e do novo modo de cultivo de beterraba em grande escala.

Na véspera do dia da Santíssima Trindade, Liza resolveu que era preciso fazer uma boa faxina na casa, o que já não faziam desde a Páscoa, e para ajudar os criados, chamou duas diaristas a fim de lavar o chão, as janelas, bater o pó dos móveis e dos tapetes e pôr capas protetoras nos sofás e nas poltronas. As diaristas chegaram cedo, puseram caçarolas de água no fogo e começaram a trabalhar. Uma delas era Stiepanida, que tinha acabado de desmamar seu menino e pedira um trabalho de lavadora de chão para um empregado do escritório, com quem agora andava saindo. Ela queria observar de perto a nova patroa. Stiepanida vivia como antes, sozinha, sem o marido, e, como antes, fazia das suas, com o velho Danila, que a pegara em flagrante roubando lenha, depois com o proprietário e agora com o rapaz do escritório. No patrão, ela nem pensava mais. “Agora, tem esposa”, pensava. “Mas eu bem que gostaria de dar uma olhada na patroa, ver como cuida da casa, dizem que é muito enfeitada.”

Ievguiéni não a viu mais, desde o dia em que a encontrou com o bebê. Ela não trabalhava de diarista porque tinha de cuidar do bebê e ele raramente passava pela aldeia. Naquela manhã, véspera do dia da Santíssima Trindade, Ievguiéni levantou bem cedo, às cinco horas, e foi para o campo de pousio, onde deviam pulverizar fosforita, e saiu de casa enquanto as criadas estavam ocupadas em pôr as panelas no fogo da estufa e ainda não tinham entrado na outra parte da casa.

Alegre, satisfeito e faminto, Ievguiéni voltou para o café da manhã. Desmontou do cavalo junto à porteira e, depois de entregá-lo a um jardineiro que passava, caminhou na direção da casa, batendo com o chicote no capim alto e repetindo, como acontecia muitas vezes, uma frase que havia pronunciado antes. A frase que repetia era: “A fosforita vai justificar” – o quê e a quem, isso ele não sabia nem imaginava.

Estavam batendo a poeira de um tapete sobre o gramado. A mobília tinha sido trazida para fora.

“Nossa! Que faxina a Liza está fazendo! A fosforita vai justificar. Isso é que é dona de casa. Minha patroazinha! Pois é, minha patroazinha”, disse consigo, vendo em pensamento a imagem bem viva de Liza, com guarda-pó branco e o rosto radiante de alegria que ela quase sempre tinha quando ele a olhava. “Sim, tenho de trocar as botas, senão a fosforita vai justificar, quer dizer, vai começar a soltar um cheiro de esterco, e minha patroazinha nesse estado. Por que nesse estado? Pois é, ali dentro dela está crescendo um novo e pequeno Irtiéniev”, pensou. “Sim, a fosforita vai justificar.” E, sorrindo com seus pensamentos, estendeu a mão para a porta do seu quarto.

Mas não teve tempo de empurrar a porta, pois ela abriu sozinha e ele deu de cara com uma mulher que vinha em sua direção, descalça, com um balde, as mangas arregaçadas até os cotovelos. Ele abriu caminho para deixar a mulher passar, ela também chegou para o lado para ele entrar, empurrando para cima, com a mão molhada, o xale que havia baixado na cabeça.

–Passe, passe, eu não vou passar enquanto a senhora... – começou Ievguiéni, mas de repente a reconheceu e parou.

Sorrindo com os olhos, ela lançou um olhar divertido para ele. Arrumou a paniova6 e saiu pela porta.

“Mas que absurdo é esse?... O que houve?... Não pode ser”, disse consigo Ievguiéni, franzindo as sobrancelhas e sacudindo a cabeça, como se quisesse espantar moscas, incomodado por ter percebido que era ela. Estava incomodado por ter percebido que era ela e ao mesmo tempo não conseguia desgrudar os olhos do seu corpo, que balançava com os passos ágeis e firmes dos pés descalços, nem das mãos, dos ombros e das pregas bonitas da blusa e da paniova vermelha, arregaçada acima das panturrilhas brancas.

“Mas por que estou olhando?”, disse consigo, baixando os olhos para não ver mais. “Sim, afinal, tenho de entrar para pegar outras botas.” E deu meia-volta para entrar no seu quarto; mas nem teve tempo de dar cinco passos quando, sem saber como nem por ordem de quem, olhou para trás outra vez a fim de vê-la de novo. Ela estava fazendo a curva por trás do canto da parede e, no mesmo instante, se virou e olhou para ele.

“Ah, o que estou fazendo”, gritou ele, dentro da alma. “Ela pode pensar. Aliás, já deve até ter pensado.”

Ele entrou no quarto molhado. Outra mulher, velha, magra, estava lá e ainda lavava o chão. Ievguiéni passou na ponta dos pés entre as poças sujas na direção do armário em que estavam as botas e quis sair, quando a mulher também saiu.

“Essa saiu e a outra, Stiepanida, vai vir... sozinha”, de repente alguém começou a raciocinar dentro dele.

“Meu Deus! O que estou pensando, o que estou fazendo!” Agarrou as botas e correu com elas para a antessala, calçou-as ali, limpou-se e saiu para a varanda, onde as duas mães já estavam sentadas tomando o café. Liza obviamente estava à espera do marido e entrou na varanda por outra porta, ao mesmo tempo que ele.

“Meu Deus, se ela, que me considera tão honesto, puro, inocente, se ela soubesse!”, pensou ele.

Liza, como sempre, encontrou-o com o rosto radiante. Mas, naquele dia, ela lhe pareceu especialmente pálida, amarela, magra e fraca.
X

 

 

 

Durante o café, como acontecia muitas vezes, houve a conversa típica das damas, na qual não existia nenhum nexo, mas que obviamente se concatenava de alguma forma, pois transcorria sem interrupção.

As duas senhoras trocavam farpas e Liza manobrava entre elas com maestria.

–Fiquei tão aborrecida por não termos conseguido terminar de lavar seu quarto antes de você chegar – disse para o marido. – Eu queria tanto que tudo ficasse arrumado.

–Mas e você, dormiu depois que saí?

–Sim, dormi, estou bem.

–Como pode estar bem uma mulher na condição dela, neste calor insuportável, quando as janelas estão voltadas para o sol? – disse Varvara Alekséievna, mãe de Liza. – E sem persianas nem toldos. Na minha casa, sempre tivemos toldos.

–Mas aqui faz sombra desde as dez horas – disse Mária Pávlovna.

–Pois é daí que vem a febre. Da umidade – disse Varvara Alekséievna, sem notar que dizia exatamente o contrário do que tinha acabado de dizer. – Meu médico sempre diz que nunca é possível determinar qual é a doença sem conhecer o caráter do doente. E ele sabe do que está falando, porque é um médico de primeira classe, e nos cobra cem rublos. Meu falecido marido não acreditava em médicos, mas para mim ele não media despesas.

–Como pode um homem medir despesas para uma mulher, quando a vida dela e do bebê talvez dependa...

–Sim, quando existem recursos, a esposa pode não depender do marido. Uma boa esposa obedece ao marido – disse Varvara Alekséievna –, só que Liza ainda está muito enfraquecida depois de sua enfermidade.

–Que nada, mamãe, eu me sinto ótima. Mas não serviram à senhora o creme de leite fervido?

–Não preciso disso. Posso comer cru mesmo.

–Eu perguntei a Varvara Alekséievna se queria. Ela recusou – disse Mária Pávlovna, como que para se justificar.

–Não, não, agora eu não quero. – E, como se fosse para pôr fim a uma conversa desagradável e fazer generosamente uma concessão, Varvara Alekséievna se voltou para Ievguiéni: – Mas então, pulverizaram a fosforita?

Liza foi correndo buscar o creme de leite.

–Mas eu não quero, não quero.

–Liza! Liza! Calma – disse Mária Pávlovna. – Esses movimentos ligeiros fazem mal a ela.

–Nada faz mal, se existe paz de espírito – disse Varvara Alekséievna, como se quisesse insinuar alguma coisa, embora ela mesma soubesse que suas palavras não podiam insinuar coisa nenhuma.

Liza voltou com o creme de leite. Ievguiéni tomou seu café e escutava com ar soturno. Estava habituado àquelas conversas, mas naquele dia sua estupidez deixou-o especialmente irritado. Queria refletir sobre o que havia acontecido e aquela tagarelice o incomodava. Depois de tomar o café, Varvara Alekséievna se retirou de mau humor. Liza, Ievguiéni e Mária Pávlovna ficaram sozinhos. E a conversa correu natural e agradável. No entanto, aguçada pelo amor, Liza logo notou que algo atormentava Ievguiéni e lhe perguntou se tinha ocorrido algo desagradável. Ele não estava preparado para a pergunta e gaguejou um pouco ao responder que não era nada. E a resposta obrigou Liza a pensar mais ainda. Que algo o atormentava, e o atormentava muito, era tão evidente para Liza como se uma mosca tivesse caído no leite, mas ele não disse o que tinha acontecido.
XI

 

 

 

Depois do café da manhã, todos se dispersaram. Ievguiéni, segundo um costume já estabelecido, foi para seu escritório. Não leu nem escreveu nenhuma carta, apenas se sentou e começou a fumar um cigarro depois do outro, enquanto pensava. Estava tremendamente surpreso e amargurado com o sentimento sórdido que se manifestara nele de modo inesperado e do qual ele se julgava livre desde o momento em que se casara. Desde então, não experimentara nenhuma vez aquele sentimento, nem por ela, a mulher que conhecia, nem por nenhuma outra, a não ser a esposa. No fundo da alma, alegrava-se muitas vezes com aquela libertação e agora, de repente, um acaso que parecia insignificante revelara que ele não estava livre. O que o atormentava não era o fato de se sujeitar de novo àquele sentimento, de que ele a desejava – nisso Ievguiéni não queria nem pensar –, mas sim o fato de o sentimento estar vivo dentro dele e de ser necessário ficar alerta contra isso. Em sua alma, não havia a menor dúvida de que sufocaria aquele sentimento.

Tinha uma carta para responder e um documento que precisava preencher. Sentou-se à escrivaninha e começou a trabalhar. Terminado o trabalho e totalmente esquecido do que o perturbava, saiu e foi à estrebaria. De novo, como que por uma fatalidade, por uma coincidência infeliz, ou quem sabe de propósito, assim que ele saiu para o alpendre, por trás do canto da parede, surgiu uma paniova vermelha, um xale vermelho, e ela passou por Ievguiéni abanando os braços, se requebrando. Como se não bastasse passar, ela deu uma corridinha, esquivando-se dele como que de brincadeira, e alcançou sua companheira de serviço.

De novo, o meio-dia radiante, a urtiga, os fundos da cabana de Danila e o rosto dela sorridente, mordiscando folhas à sombra dos bordos, se rebelaram na imaginação de Ievguiéni.

“Não, isso não pode ficar assim”, disse consigo e, depois de aguardar um pouco até que as criadas sumissem de vista, foi ao escritório. Estava bem na hora do almoço e ele esperava ainda encontrar o administrador. Foi o que aconteceu. O administrador tinha acabado de acordar. Estava no escritório, de pé, se espreguiçava e bocejava, enquanto olhava para um vaqueiro que lhe falava alguma coisa.

–Vassíli Nikoláievitch!

–Às suas ordens.

–Preciso falar com o senhor.

–Às suas ordens.

–Termine primeiro.

–Será que não dá para trazer? – disse Vassíli Nikoláievitch para o vaqueiro.

–É pesado, Vassíli Nikoláievitch.

–O que é? – perguntou Ievguiéni.

–Uma vaca pariu no campo. Mas tudo bem, vou mandar atrelar um cavalo agora mesmo. Mande o Nikolai Lizukh atrelar, ainda que seja numa carroça.

O vaqueiro foi embora.

–Pois é – começou Ievguiéni, se ruborizando e percebendo isso. – Pois é, Vassíli Nikoláievitch. Sabe, quando era solteiro, tive lá meus pecados... O senhor talvez tenha ouvido falar...

Vassíli Nikoláievitch sorriu com os olhos e, pelo visto, com pena do patrão, disse:

–Está falando da Stiepanichka?

–Pois é. Isso mesmo. Por favor, por favor, não mande mais que ela trabalhe na minha casa como diarista... O senhor entende, é muito desagradável para mim...

–Na certa foi o Vánia, o empregado do escritório, que arranjou para ela.

–Então, por favor... Mas e então, já pulverizaram o que sobrou? – perguntou Ievguiéni a fim de esconder seu embaraço.

–Vou cuidar disso agora mesmo.


E assim o caso foi encerrado. E Ievguiéni se acalmou, esperando que, como havia passado um ano sem vê-la, também seria assim, dali em diante.

“Além do mais, Vassíli vai falar com Ivan, do escritório, Ivan vai falar com ela e ela vai entender que não quero isso”, disse Ievguiéni consigo e se alegrou por ter tomado a decisão e ter falado com Vassíli, por mais difícil que tenha sido para ele. “Qualquer coisa é melhor, qualquer coisa é melhor do que essa dúvida, essa vergonha.” E estremeceu por causa da mera lembrança do pensamento criminoso.
XII

 

 

 

O esforço moral que fez para vencer a vergonha e falar com Vassíli Nikoláievitch tranquilizou Ievguiéni. Teve a impressão de que agora tudo estava terminado. E Liza logo notou que ele estava plenamente tranquilizado e até mais alegre do que de costume. “Na certa, ficou amargurado com a troca de farpas entre as mamães. De fato, é penoso, ainda mais para ele, com sua sensibilidade e nobreza, ouvir o tempo todo essas insinuações hostis e de tom maldoso”, pensou Liza.

O dia seguinte era o dia da Santíssima Trindade. O tempo estava excelente e as criadas, como de hábito, foram à floresta colher ramos para trançar grinaldas, vieram para a frente da casa senhorial e começaram a cantar e dançar. Mária Pávlovna e Varvara Alekséievna saíram para o alpendre em roupas de festa e com sombrinhas e se aproximaram da roda de dança. Junto com elas, numa sobrecasaca chinesa, veio também o tio obeso, libertino e beberrão que estava passando o verão na casa de Ievguiéni.

Como sempre, havia um círculo de cores variadas e radiantes formado por moças e meninas camponesas no centro de tudo e, em volta, de várias direções, como planetas e satélites que se tivessem desgarrado e girassem atrás delas, meninas de mãos dadas farfalhavam seus vestidos novos de chita enfeitados, mais adiante uma meninada corria para lá e para cá, uns atrás dos outros, bufando por algum motivo, ou rapazinhos maiores, de camisas vermelhas, bonés, e casacos pretos e azuis, não paravam de cuspir cascas de sementes de girassol, ou criados da casa ou de fora olhavam de longe para a roda de dança. As duas senhoras foram até a roda e atrás delas veio Liza, de vestido azul-claro, com fitas da mesma cor na cabeça, e pelas mangas folgadas se viam seus braços compridos e brancos, de cotovelos angulosos.

Ievguiéni não tinha vontade de sair, mas seria ridículo esconder-se. Com um cigarro, saiu também para o alpendre, cumprimentou a meninada e os mujiques e começou a conversar com um deles. Enquanto isso, as camponesas gritavam com toda a força a canção da dança, estalavam os dedos, batiam palmas e dançavam.

–A patroa está chamando – disse um rapaz, se aproximando de Ievguiéni, que não tinha ouvido o chamado da esposa. Liza o chamou para ver a dança e observar uma das camponesas que dançavam e que lhe agradara em especial. Era Stiepacha. Estava de vestido amarelo, colete de veludo e xale de seda, quadris largos, vigorosa, rosada, alegre. Devia estar dançando bem. Ele mesmo não via nada.

–Sim, sim – disse Ievguiéni, enquanto tirava e colocava o pincenê. – Sim, sim – disse. “Parece que é mesmo impossível livrar-me dela”, pensou.

Ievguiéni nem olhou para ela, porque temia sua atração e, justamente por isso, o que viu de relance já lhe pareceu muito atraente. Além do mais, pelo brilho do olhar de Stiepanida, via que ela o via, e que ela via que ele a admirava. Ievguiéni ficou ali o tempo necessário para manter as aparências e deu meia-volta e se afastou, ao ver que Varvara Alekséievna acenou para ela e, de modo desajeitado e falso, chamando-a de queridinha, pôs-se a conversar com Stiepanida. Ele se afastou e voltou para casa. Foi embora para não vê-la, mas ao entrar no andar de cima de casa, sem saber como nem para quê, Ievguiéni se aproximou da janela e ficou ali durante todo o tempo que as camponesas estiveram na frente do alpendre e olhava, olhava para ela, inebriava-se com ela.

Ele desceu correndo antes que alguém pudesse vê-lo, seguiu para a sacada em passos silenciosos e lá, depois de fumar um cigarro, como se desse um passeio, foi para o jardim e seguiu a direção que ela havia tomado. Não chegou a dar dois passos pela alameda quando, atrás das árvores, viu de relance um colete de veludo, o vestido cor-de-rosa7 e o xale vermelho. Ela ia para algum lugar com outra camponesa. “Aonde estão indo?”

E de repente um desejo terrível tomou conta dele, como se agarrasse seu coração na mão. Ievguiéni, como que por força de uma vontade alheia, virou-se e andou na direção dela.

–Ievguiéni Ivánitch, Ievguiéni Ivánitch! Eu queria pedir um favor ao senhor – disse uma voz atrás dele e Ievguiéni, ao ver o velho Samókhin, que estava abrindo um poço para ele, recuperou o controle de si mesmo, deu meia-volta depressa e andou na direção de Samókhin. Enquanto conversava com ele, se virou de lado e viu que as duas camponesas estavam descendo, obviamente rumo ao poço, ou tomavam o poço como pretexto, e, depois de ficarem ali um tempo, correram para a roda de dança.
XIII

 

 

 

Terminada a conversa com Samókhin, Ievguiéni voltou para casa arrasado, como se tivesse cometido um crime. Em primeiro lugar, ela o compreendeu, ela pensou que ele queria vê-la, e ela também desejava aquilo. Em segundo lugar, a outra mulher – a tal Anna Prókhorova – certamente sabia de tudo.

O principal era que ele sentia que estava derrotado, que não agia por vontade própria, que existia outra força que o movia; que daquela vez ele se salvara só por um acaso, mas que, se não tinha sido agora, amanhã ou depois de amanhã, de um jeito ou de outro, ele estaria perdido.

“Sim, perdido”, era só assim que via a situação, “trair minha esposa jovem e amorosa, no campo, com uma camponesa, à vista de todo mundo, por acaso isso não é a perdição, uma perdição terrível, depois da qual é impossível continuar vivendo? Não, é preciso tomar uma providência.”

“Meu Deus, meu Deus! O que vou fazer? Será que vou me perder assim?”, disse consigo. “Será que não é possível tomar alguma providência? Sim, é preciso fazer alguma coisa. Não pensar nela”, ordenou a si mesmo. “Não pensar!” E imediatamente começou a pensar e viu-a na sua frente, viu a sombra dos bordos.

Lembrou-se de ter lido a história de um velho monge que, para evitar a sedução de uma mulher na qual tinha de pôr a mão para curá-la, pôs a outra mão num braseiro e queimou os dedos. Lembrou-se disso. “Sim, estou mais disposto a queimar os dedos do que a me perder.” E então, depois de olhar em volta para ver se não havia ninguém ali, acendeu um palito de fósforo e pôs o dedo no fogo. “Pronto, pense nela agora”, disse para si mesmo em tom irônico. “Que absurdo. Não é isso que é preciso fazer. É preciso tomar providências para não vê-la mais: fugir eu mesmo ou afastá-la. Sim, afastar! Oferecer dinheiro ao marido para ele ir embora para a cidade ou para outra aldeia. Vão ficar sabendo, vão falar disso. Mas e daí? Qualquer coisa é melhor do que esse perigo. Sim, é preciso fazer isso”, disse consigo, sem baixar os olhos que a miravam. “Para onde será que ela foi?”, perguntou-se de repente. Ela, assim lhe parecia, o tinha visto na janela e agora, depois de lançar um olhar para ele, segurou a mão de outra camponesa e foi para o jardim, sacudindo o braço com desenvoltura. Sem que ele mesmo soubesse para que e por que, lá foi ele para o escritório, envolvido nos próprios pensamentos.

Numa elegante sobrecasaca, com o cabelo coberto de pomada, Vassíli Nikoláievitch estava tomando chá com a esposa e uma visita com um xale adamascado.

–Queria trocar uma palavrinha com você, Vassíli Nikoláievitch.

–Claro. Por favor. Já terminamos.

–Não, é melhor o senhor vir comigo.

–Num instante, deixe-me só pegar o quepe. Tânia, tampe o samovar – disse Vassíli Nikoláievitch, enquanto saía alegremente.

Ievguiéni teve a impressão de que ele havia bebido muito, mas o que fazer? Talvez fosse até melhor assim, Vassíli se colocaria na posição dele com mais simpatia.

–Vassíli Nikoláievitch, quero lhe falar de novo sobre aquela mulher – disse Ievguiéni.

–Mas o que foi? Já dei ordem para não a chamarem de jeito nenhum.

–Não é isso, vou explicar o que estou pensando, em linhas gerais, e também gostaria de ouvir seu conselho. Não seria possível afastá-los daqui, mandar toda a família para longe?

–Mandar para onde? – perguntou Vassíli, com ar descontente e irônico, pareceu a Ievguiéni.

–Pois é, eu estava pensando em dar dinheiro para eles ou até dar umas terras em Koltovsk, contanto que ela não ficasse aqui.

–Mas como mandar embora? Como ele poderia ir para longe de suas raízes? E para que o senhor quer isso? Que mal ela faz ao senhor?

–Ah, Vassíli Nikoláievitch, o senhor entende que seria horrível se minha esposa soubesse.

–Mas quem é que vai contar para ela?

–E como se pode viver com esse medo? Além do mais, é penoso.

–Mas, francamente, o que é que preocupa o senhor? São águas passadas. E, afinal, quem não pecou aos olhos de Deus e não é culpado perante o tsar?

–Mesmo assim, era melhor mandar para longe. O senhor não pode falar com o marido?

–Mas o que vou dizer para ele? Ora, Ievguiéni Ivánovitch, o que deu no senhor? Tudo isso é coisa do passado e está esquecido. Acontece, não é? E quem é que agora vai falar mal do senhor? Afinal, o senhor é importante.

–Mesmo assim, fale com ele.

–Está bem, vou falar.

Embora soubesse de antemão que não ia dar em nada, aquela conversa já tranquilizou um pouco Ievguiéni. O principal é que percebeu que havia exagerado o perigo por causa da emoção.

Mas será que tinha tentado se encontrar com ela? Impossível. Ele simplesmente passou pelo jardim e, por acaso, ela também havia corrido para lá.
XIV

 

 

 

Naquele mesmo dia da Santíssima Trindade, depois do almoço, quando Liza deu um passeio pelo jardim e seguiu para o prado, aonde o marido a estava levando para mostrar a plantação de trevos, ao atravessar uma pequena vala, ela tropeçou e caiu. Caiu de leve e de lado, mas deu um gemido e, no rosto, o marido viu não só susto, mas também dor. Quis levantá-la, mas Liza afastou sua mão.

–Não, espere um pouco, Ievguiéni – disse ela, com um sorriso frouxo e olhando para ele de baixo para cima, com um ar de culpa, assim pareceu a Ievguiéni. – Só torci o pé.

–É o que sempre digo – começou Varvara Alekséievna. – Será possível alguém nesse estado pular uma vala?

–Mas não foi nada, mamãe. Vou levantar num instante.

Levantou com a ajuda do marido, mas na mesma hora empalideceu e no rosto surgiu uma expressão de medo.

–É, não estou bem – e sussurrou algo para o marido.

–Ah, meu Deus, o que foi que vocês fizeram? Eu bem que disse para não ir – gritou Varvara Alekséievna. – Esperem, vou chamar os criados. Ela não pode andar. Tem de ser carregada.

–Você não tem medo, não é, Liza? Eu carrego você – disse Ievguiéni e a envolveu com o braço esquerdo. – Abrace meu pescoço. Isso, assim.

Então ele se inclinou, segurou-a com o braço por baixo da perna esquerda e levantou-a. Depois disso, jamais ele conseguiu se esquecer da expressão de dor e beatitude que viu no rosto da esposa.

–É muito pesado para você, querido – disse ela, sorrindo. – Olhe lá a mamãe correndo, chame por ela!

E Liza se inclinou para ele e o beijou. Certamente queria que a mãe também visse que o marido a carregava.

Ievguiéni gritou para Varvara Alekséievna que não precisava correr, que ele estava levando Liza nos braços. Varvara Alekséievna parou e começou a gritar com mais força ainda.

–Você vai deixar Liza cair, com toda a certeza vai deixar cair. Quer matá-la. Não tem consciência.

–Mas estou carregando muito bem.

–Eu não quero, não posso nem ver como você massacra minha filha. – E correu para além da curva da alameda.

–Isso não é nada, vai passar – disse Liza, sorrindo.

–Mas tomara que não haja consequências, como da outra vez.

–Não, eu não estava falando disso. O tombo não foi nada, a questão é a mamãe. Você está cansado, descanse um pouco.

No entanto, embora estivesse mesmo pesada para ele, Ievguiéni, com alegria e orgulho, levou sua carga até a casa e não a entregou à arrumadeira nem ao cozinheiro, que Varvara Alekséievna mandara ir ao encontro deles. Ievguiéni carregou-a até o quarto e colocou-a na cama.

–Pronto, pode ir – disse Liza, puxou a mão dele para si e a beijou. – Eu e a Ánnuchka nos arranjamos agora.

Mária Pávlovna também veio correndo da ala dos fundos. Trocaram a roupa de Liza e a ajeitaram na cama. Ievguiéni sentou-se na sala com um livro nas mãos e ficou esperando. Varvara Alekséievna passou por ele com um aspecto tão sombrio e carregado de censura que até lhe deu medo.

–E então? – perguntou ele.

–E então? Precisa perguntar? Aconteceu o que o senhor queria, certamente, quando obrigou a esposa a pular um fosso.

–Varvara Alekséievna! – exclamou ele. – Isso é insuportável. Se a senhora quer torturar as pessoas e envenenar suas vidas... – ele queria dizer: vá embora para qualquer lugar longe daqui, mas se conteve. – Como é que a senhora não percebe?

–Agora é tarde.

E atravessou a porta, abanando a touca com ar triunfante.

Na verdade, o tombo foi feio. O pé se torceu de mau jeito e havia o risco de outro aborto. Todos sabiam que era impossível fazer alguma coisa, que só era preciso que ela ficasse deitada, quieta; mesmo assim resolveram chamar o médico.

“Prezado Nikolai Semiónovitch”, escreveu Ievguiéni para o médico. “O senhor sempre foi tão gentil conosco que, espero, não deixará de vir prestar socorro à minha esposa. Ela...” etc. Depois de escrever a carta, foi à cocheira mandar que preparassem os cavalos e a carruagem. Era preciso ter cavalos prontos para trazer o médico e também outros cavalos para levá-lo de volta. Quando uma propriedade não anda de vento em popa, é impossível providenciar essas coisas de uma hora para outra, é preciso planejar bem. Depois de organizar tudo e despachar o cocheiro, Ievguiéni voltou para casa às dez horas. A esposa estava deitada e disse que se sentia ótima e que nada estava doendo. Mas Varvara Alekséievna estava sentada junto ao lampião encoberto por partituras de Liza e tricotava uma grande manta vermelha com uma expressão que dizia claramente que, depois do que havia ocorrido, não poderia mais haver paz. “Façam o que quiserem, pelo menos eu cumpri meu dever.”

Ievguiéni percebia isso, mas, para fazer de conta que não notava, fez força para mostrar-se alegre e despreocupado, contou como havia preparado os cavalos e que a égua Kavuchka se comportara muito bem do lado esquerdo da troica.

–Sim, é claro, este é o melhor momento para adestrar os cavalos, logo na hora em que precisamos da ajuda do médico. Na certa, também vão jogar o médico numa vala – disse Varvara Alekséievna, dando uma olhada para o tricô por baixo do pincenê e chegando a costura bem perto do lampião.

–Mas era preciso mandar alguém. Fiz o melhor que pude.

–Lembro muito bem como seus cavalos me jogaram debaixo do trem.

Era uma antiga invencionice dela e dessa vez Ievguiéni cometeu a imprudência de dizer que não tinha sido assim.

–Não é à toa que sempre digo, e já disse muitas vezes ao príncipe, que a coisa mais penosa do mundo é viver com gente insincera; eu suporto tudo, menos isso.

–Mas se há alguém que sofre mais do que todos, sem dúvida sou eu – disse Ievguiéni.

–Sim, dá para ver.

–O quê?

–Nada, estou contando os pontos do tricô.

Dessa vez Ievguiéni estava de pé junto à cama, Liza olhava para ele e, com uma das mãos molhadas que jazia por cima da coberta, pegou a mão do marido e apertou: “Suporte-a por mim. Afinal, ela não impede que nos amemos”, dizia seu olhar.

–Não falo mais. Pronto – sussurrou ele e beijou sua mão comprida e molhada e, depois, os olhos meigos, que se fecharam enquanto ele os beijava.

–Será que vai acontecer a mesma coisa da outra vez? – perguntou ele. – Como está se sentindo?

–Tenho medo de dizer, para não me enganar, mas sinto dentro de mim que ele está vivo e vai viver – respondeu Liza, olhando para a barriga.

–Ah, dá medo, dá medo só de pensar.

Apesar de Liza insistir para que ele saísse, Ievguiéni passou a noite com ela, cochilando com um olho aberto e pronto para lhe prestar toda a ajuda. Mas Liza passou bem a noite e, se não tivessem chamado o médico, teria até levantado.

O médico chegou na hora do almoço e, é claro, disse que, embora casos reincidentes pudessem inspirar preocupação, propriamente falando não havia uma indicação positiva, mas também não havia o contrário, portanto era possível, de um lado, supor uma coisa e, de outro lado, também era possível supor o contrário. E por isso era preciso ficar deitada e, embora ele não gostasse de prescrever remédios, mesmo assim ela devia tomar o remédio e ficar deitada. Além disso, o médico deu uma aula de anatomia feminina para Varvara Alekséievna, que balançava a cabeça com ar muito sério enquanto o ouvia. Depois de receber os honorários na parte mais posterior da palma da mão, como era costume, o médico foi embora e a enferma ficou na cama durante uma semana.
XV

 

 

 

Ievguiéni passou a maior parte do tempo junto à cama da esposa, ajudava-a, conversava com ela, lia para ela e, o que era o mais difícil, sem nenhuma queixa, suportava os ataques de Varvara Alekséievna e até conseguia fazer piadas com aqueles ataques.

Mas Ievguiéni não podia ficar em casa. Em primeiro lugar, a esposa o mandava sair, dizendo que ele ia acabar adoecendo se permanecesse o tempo todo ao lado dela; em segundo lugar, a propriedade continuava a exigir sua presença para tudo. Ele não podia ficar em casa, mas, estivesse no campo, na floresta, no jardim, na eira coberta, em toda parte, não só o pensamento, mas a imagem viva de Stiepanida o perseguia de tal modo que raramente conseguia esquecê-la. Porém isso não tinha importância: talvez conseguisse vencer aquele sentimento. O pior de tudo era que antes ele vivia meses sem vê-la e agora a via e a encontrava toda hora. Claro que Stiepanida havia entendido que Ievguiéni queria retomar as relações com ela e fazia de tudo para ficar no caminho dele. Nem ele nem ela diziam nada e, por isso, não iam direto para um encontro, mas apenas procuravam cruzar seus caminhos.

O lugar onde podiam encontrar-se era a floresta, aonde as camponesas iam com sacos pegar trevo para as vacas comerem. Ievguiéni sabia e por isso, todo dia, passava pela floresta. Todo dia dizia a si mesmo que não iria e todo dia acabava se dirigindo para a floresta e, ao ouvir o som de vozes, parava atrás de um arbusto e, com o coração palpitante, espiava para ver se não era ela.

Para que precisava saber se era ela? Nem ele mesmo sabia. Se fosse ela e estivesse sozinha, ele não iria a seu encontro – assim pensava –, fugiria dali; mas precisava vê-la. Certa vez a encontrou: na hora em que entrou na floresta, ela estava saindo com duas camponesas e um saco pesado nas costas, cheio de trevo. Um pouco mais cedo, e talvez ele esbarrasse com ela na floresta. Agora, à vista de outras camponesas, era impossível para ela voltar para a floresta, ao encontro dele. No entanto, apesar de estar ciente daquela impossibilidade, ele ainda ficou muito tempo atrás do arbusto de avelã, se arriscando a chamar para si a atenção das outras camponesas. Naturalmente, ela não voltou, mas ele permaneceu ali muito tempo. E, meu Deus, com que fascínio sua imaginação pintava a imagem dela. E não foi a primeira vez, mas a quinta, a sexta vez. E a cada vez era mais forte. Nunca ela lhe parecera tão atraente; nunca ela o havia dominado de modo tão completo.

Sentia que estava perdendo o controle de si mesmo, estava quase enlouquecendo. O rigor consigo mesmo não tinha diminuído nem um fio de cabelo; ao contrário, ele via toda a sordidez de seus desejos, e até das ações, pois suas incursões na floresta eram ações. Sabia que bastava deparar com ela em qualquer lugar, no escuro, passar perto, tocá-la se possível, para ele se render a seu sentimento. Sabia que só a vergonha diante dos outros, diante dela e de si mesmo o continha. E sabia que procurava as condições em que a vergonha não se fizesse notar – o escuro ou um toque, no qual a vergonha seria sufocada pela paixão animal. E por isso sabia que era um criminoso sórdido e, com todas as forças da alma, sentia desprezo e ódio de si mesmo. Tinha ódio de si mesmo porque ainda não havia capitulado de uma vez. Todo dia, inventava meios de livrar-se daquela alucinação e empregava esses meios.

Mas era tudo em vão.

Um dos meios era se manter sempre ocupado; outro era o trabalho braçal exaustivo e o jejum; outro era imaginar com toda a clareza a vergonha que desabaria sobre sua cabeça quando todos soubessem – a esposa, a sogra, os criados. Fazia tudo isso e lhe parecia que ia vencer, mas chegava a hora, o meio-dia, a hora dos antigos encontros e a hora em que ele a encontrou apanhando o trevo, e Ievguiéni ia para a floresta.

Assim passaram cinco dias torturantes. Ele só a via de longe, nem uma vez se encontrou com ela.
XVI

 

 

 

Liza se restabeleceu aos poucos, caminhava e se inquietava com a mudança que ocorrera no marido e que ela não entendia.

Varvara Alekséievna tinha viajado por um tempo, dos hóspedes só sobrara o tio. Mária Pávlovna, como sempre, estava em casa.

Ievguiéni se encontrava nesse estado de semiloucura quando, como acontece muitas vezes depois das tempestades juninas, vieram as chuvas torrenciais de junho, que se estenderam por dois dias. As chuvas afastaram todos do trabalho. Até pararam de carregar o esterco, por causa da lama e do aguaceiro. As pessoas ficavam em casa. Os pastores penaram para recolher o gado e, afinal, tocaram os animais de volta para o curral. As vacas e as ovelhas andavam pelo pasto e se espalhavam pelos terreiros. As camponesas, descalças e cobertas por lenços, saíam afobadas, espirrando lama, à procura das vacas desgarradas. Regatos de água de chuva corriam por todos os lados nas estradas, todas as folhas, todos os trevos estavam encharcados e, o tempo todo, torrentes de água jorravam das calhas para dentro de poças borbulhantes. Ievguiéni ficava em casa com a esposa, que naquele dia estava especialmente maçante. Várias vezes perguntara a Ievguiéni a causa de sua insatisfação e ele respondia, irritado, que não era nada. Ela parou de perguntar, mas ficou amargurada.

Depois do café da manhã, foram sentar-se na sala de visitas. O tio contava pela centésima vez suas histórias fantasiosas sobre conhecidos da alta sociedade. Liza tricotava um casaquinho e suspirava, queixando-se do mau tempo e das dores nos rins. O tio recomendou que deitasse e pediu vinho para si. Em casa, Ievguiéni se sentia terrivelmente entediado. Tudo era sem graça, maçante. Lia um livro e fumava, mas não entendia nada.

–Pois é, tenho de examinar os trituradores que trouxeram ontem – disse ele. Levantou-se e foi.

–Leve um guarda-chuva.

–Não precisa, vou de casaco de couro. Além do mais, só vou até as caldeiras.

Calçou as botas, vestiu o casaco de couro e foi na direção da usina; mas nem deu vinte passos quando deparou com ela, vindo em sua direção, com a paniova arregaçada bem alta, acima das panturrilhas brancas. Ela andava segurando o xale, que cobria a cabeça e os ombros.

–O que está fazendo? – perguntou ele, sem reconhecê-la no primeiro instante. Quando reconheceu, já era tarde. Ela parou e, sorrindo, ficou muito tempo olhando para ele.

–Estou procurando um bezerro. Mas para onde o senhor vai com esse tempo tão feio? – perguntou ela, como se o visse todo dia.

–Vá para a cabana – disse ele de repente, sem saber como. Foi como se outra pessoa tivesse falado as palavras de dentro dele.

Ela mordiscou o xale, acenou com os olhos e correu para o lugar de onde tinha vindo, o jardim, na direção da cabana, e ele continuou no seu caminho com a intenção de dar a volta por trás de um arbusto de lilases e tomar a mesma direção que ela.

–Patrão – ouviu uma voz atrás de si. – A patroa está chamando, pediu que o senhor fosse lá um instante.

Era Micha, criado deles.

“Meu Deus, pela segunda vez você me salvou”, pensou Ievguiéni, e voltou na mesma hora. A esposa lembrou a Ievguiéni que ele havia prometido levar um remédio para uma mulher doente na hora do almoço e por isso ela pediu que o levasse agora.

Enquanto preparavam o remédio, passaram cinco minutos. Depois, ao sair com o remédio, ele não se arriscou a ir à cabana, com medo de que o vissem de casa. No entanto, assim que não pôde mais ser visto, logo deu a volta e tomou a direção da cabana. Na imaginação, já a estava vendo no meio da cabana, sorrindo com alegria; mas ela não estava, e não havia nada na cabana que indicasse que ela estivera lá. Ievguiéni já achava que ela não tinha ido, não ouvira e não entendera suas palavras. Tinha murmurado as palavras baixinho, como se temesse que ela ouvisse. “Ou, quem sabe, não quis vir? De onde tirei a ideia de que ela está assim com tanta vontade de me ver? Já tem seu marido; eu é que sou o único depravado, já tenho esposa, e bonita, e ainda corro por aí atrás da esposa dos outros.” Assim pensava, sentado dentro da cabana, onde uma goteira no telhado de palha pingava num só lugar. “Mas que felicidade se ela tivesse vindo. Sozinhos aqui, nessa chuva. Quem dera abraçá-la de novo só uma vez mais, e depois, que aconteça o que tiver que acontecer. Ah, sim”, lembrou-se, “posso descobrir se ela veio pelas pegadas.” Observou a terra batida no caminho para a cabana e o capim baixo da trilha, e achou a pegada fresca de um pé descalço. “Sim, ela veio. Mas agora acabou. Não tem jeito, irei atrás dela onde eu a vir, em qualquer lugar. De noite, vou à sua casa.” Ficou muito tempo na cabana e saiu de lá exausto e abatido. Levou o remédio, voltou para casa e deitou no quarto, à espera do almoço.
XVII

 

 

 

Antes do almoço, Liza veio vê-lo e, sempre imaginando qual seria a causa de sua insatisfação, começou dizendo que tinha receio de que ele não gostasse da ideia de levá-la para Moscou para dar à luz e que ela havia resolvido ficar ali mesmo. E que não iria para Moscou de jeito nenhum. Ele sabia como a esposa tinha medo do parto em si e também de dar à luz um bebê com problemas e por isso não pôde deixar de se sentir comovido ao ver a facilidade com que a esposa sacrificava tudo por amor a ele. Tudo em casa era tão bom, alegre, puro; mas em sua alma havia sujeira, sordidez e horror. Ievguiéni passou a noite inteira atormentado por saber que, apesar de sua sincera aversão por sua fraqueza, apesar da firme intenção de parar, no dia seguinte aconteceria a mesma coisa.

“Não, não pode ser”, disse ele consigo, enquanto andava para um lado e para outro em seu quarto. “Afinal, tem de haver um meio para evitar isso. Meu Deus! O que fazer?”

Alguém bateu na porta à maneira dos estrangeiros. Ele sabia que era o tio.

–Entre – disse.

O tio veio na condição de embaixador espontâneo de Liza.

–Sabe que, de fato, tenho notado uma mudança em você – disse ele. – E percebo como isso atormenta Liza. Entendo que seja penoso para você deixar todas as coisas ótimas que começou aqui, mas o que você quer, que veux-tu? Eu recomendaria que vocês fizessem uma viagem. Será tranquilizador, para você e para ela. Meu conselho é viajar para a Crimeia. O clima lá é um obstetra maravilhoso e vocês chegariam no auge da temporada das uvas.

–Tio – disse Ievguiéni de repente. – O senhor pode guardar meu segredo, um segredo horrível para mim, um segredo vergonhoso?

–Desculpe, mas será possível que você não confia em mim?

–Titio! O senhor pode me ajudar. Não, ajudar, não: me salvar – disse Ievguiéni. E a ideia de que ia revelar seu segredo ao tio, a quem sequer respeitava, a ideia de que ia se mostrar a ele sob a luz mais desfavorável, rebaixar-se diante dele, lhe agradou. Sentia-se detestável, culpado, e queria se castigar.

–Fale, meu amigo, você sabe que me afeiçoei a você – começou a dizer o tio, visivelmente muito satisfeito, porque havia um segredo, porque era um segredo vergonhoso, porque seria revelado a ele e porque ele podia ser útil.

–Antes de tudo devo dizer que sou detestável, indigno, um canalha, um perfeito canalha.

–Mas, ora, o que está dizendo? – começou o tio, estufando o pescoço.

–Como não me considerar um canalha quando eu, marido de Liza, de Liza!... é preciso conhecer sua pureza, seu amor... quando eu, seu marido, quero trair minha esposa com uma camponesa?

–Então quer dizer que você quer? Ainda não traiu?

–Sim, mas é o mesmo que já tivesse traído, porque não dependeu de mim. Eu já estava pronto. Vieram me impedir, do contrário eu agora... eu agora... Nem sei o que eu faria.

–Por favor, me explique...

–Certo, então escute. Quando era solteiro, fiz a bobagem de ter relações com uma mulher daqui, da nossa aldeia. Quer dizer, eu me encontrava com ela na floresta, no campo...

–E é bonitinha? – perguntou o tio.

Ievguiéni franziu as sobrancelhas diante da pergunta, mas precisava tanto da ajuda de alguém que fingiu não ouvir, e continuou:

–Bem, achei que era assim, que eu ia romper e tudo estaria terminado. E rompi ainda antes do casamento e fiquei quase um ano sem vê-la e sem pensar nela. – O próprio Ievguiéni estava achando estranho ouvir sua voz, ouvir a descrição de sua situação. – Depois, de repente, já nem eu sei por quê... na verdade, às vezes a gente até acredita em feitiçaria... eu a vi e um verme penetrou no meu coração... e está me devorando. Eu me recrimino, compreendendo todo o horror de meus atos, ou seja, o que sou capaz de fazer a qualquer minuto, e mesmo assim vou em frente, e se não fiz nada, foi só porque Deus me salvou. Ontem eu estava indo ao encontro dela, quando Liza mandou me chamar.

–Mas como, na chuva?

–Sim, estou arrasado, tio, e resolvi me abrir com o senhor e pedir sua ajuda.

–Sim, é claro, dentro de sua propriedade não fica bem. Vão descobrir. Eu entendo que Liza está fraca, é preciso poupá-la, mas por que na sua propriedade?

De novo, Ievguiéni fez força para não ouvir o que o tio dizia e tratou de entrar logo na essência da questão.

–Salve-me de mim mesmo. É o que estou pedindo ao senhor. Hoje me impediram por acaso, mas amanhã, de outra vez, não vão me impedir. E agora ela está sabendo. O senhor, por favor, não me deixe sozinho.

–Sim, é claro – disse o tio. – Mas será possível que o senhor esteja tão apaixonado assim?

–Ah, não é nada disso. Não é isso, é uma espécie de força que me agarrou e me prende. Não sei o que fazer. Talvez eu fique mais forte, quando...

–Pronto, aí está, faça como eu disse – respondeu o tio. – Vamos para a Crimeia.

–Sim, sim, vamos, por enquanto ficarei ao seu lado, vamos conversando.
XVIII

 

 

 

O fato de ter confiado ao tio seu segredo e, acima de tudo, os tormentos da consciência e a vergonha que sofreu depois daquele dia de chuva levaram Ievguiéni a ver as coisas com mais clareza. Ficou decidido que dali a uma semana iam viajar para Ialta. Durante aquela semana, Ievguiéni foi à cidade arranjar dinheiro para a viagem, deixou instruções a respeito da propriedade para o pessoal da casa e do escritório, sentiu-se alegre outra vez, aproximou-se da esposa e começou a renascer espiritualmente.

Assim, sem ver Stiepanida nem uma vez depois daquele dia de chuva, ele partiu com a esposa para a Crimeia. Passaram dois meses maravilhosos na Crimeia. Eram tantas as impressões novas para Ievguiéni que tudo o que havia ocorrido pareceu se apagar de suas memórias. Na Crimeia, encontraram conhecidos antigos e estreitaram suas amizades; além disso, fizeram novos conhecidos. Para Ievguiéni, a vida na Crimeia era uma festa constante, além de ser instrutiva e útil. Lá, eles se aproximaram de um antigo dirigente da província deles, homem liberal e inteligente, que se afeiçoou de Ievguiéni, ensinou-lhe seu modo de pensar e o atraiu para suas posições. No fim de agosto, Liza deu à luz uma menina linda e saudável e, surpreendentemente, seu parto foi muito fácil.

Em setembro, os Irtiéniev voltaram para casa e agora eram quatro, contando com o bebê e a ama de leite, pois Liza não podia amamentar. Totalmente livre dos antigos horrores, Ievguiéni voltou para casa como um homem completamente novo e feliz. Tendo experimentado tudo que os maridos experimentam na hora do parto, ele amou a esposa com mais força ainda. O sentimento pelo bebê quando o segurou nos braços foi engraçado, novo, muito agradável, como uma sensação de cócegas. Outra novidade em sua vida, agora, era que, além dos afazeres da propriedade, graças à proximidade com Dúmtchin (o ex-dirigente de província), surgiu um interesse novo pelo ziémstvo, em parte por ambição, em parte por consciência do dever. Em outubro, haveria uma assembleia extraordinária na qual ele deveria ser eleito. Depois que voltou para casa, Ievguiéni saiu uma vez para ir à cidade e outra vez para visitar Dúmtchin.

Os tormentos da tentação e da luta estavam esquecidos, ele nem pensava no assunto e só a muito custo conseguia reconstituir aquilo na imaginação. Parecia ter sido uma espécie de acesso de loucura que o acometera.

Agora se sentia livre daquilo a tal ponto que nem teve medo de perguntar ao administrador, na primeira oportunidade em que os dois ficaram sozinhos. Como já havia falado com ele sobre o assunto, não teve vergonha de perguntar.

–Então, o Sídor Ptchélnikov continua morando fora? – perguntou.

–Fica o tempo todo na cidade.

–E a mulher dele?

–Ah, aquilo não vale nada! Agora anda com Zinóvi. É um caso perdido.

“Ora, que ótimo”, pensou Ievguiéni. “É surpreendente como nem ligo mais para isso e como eu mudei.”
XIX

 

 

 

Tudo que Ievguiéni desejava se realizou. Manteve a posse da propriedade, a usina estava em funcionamento, a colheita de beterraba foi excelente e era esperado um grande lucro; a esposa teve um parto seguro, a sogra foi embora e ele foi eleito por unanimidade.

Depois da eleição, Ievguiéni estava voltando da cidade para casa. Davam-lhe os parabéns e ele tinha de agradecer. Foi a um almoço e tomou cinco taças de champanhe. Agora, traçava planos de vida inteiramente novos. Viajava para casa e pensava neles. Era um pequeno verão fora de época. A estrada estava excelente, o sol muito claro. Enquanto viajava para casa, Ievguiéni pensava que, com a eleição, ele ocuparia entre o povo exatamente a posição que sempre havia sonhado, ou seja, estaria em condições de servir ao povo não só por meio da produção, que proporcionava trabalho, mas também por meio de uma influência direta. Imaginava como seus camponeses e os de outras propriedades iriam julgá-lo dali a três anos. “Esse aí, por exemplo”, pensou enquanto passava pela aldeia e olhava para um mujique que cruzou seu caminho com uma camponesa, carregando um barril cheio. Os dois pararam, deixando o caminho livre para a carruagem. O mujique era o velho Ptchélnikov, a mulher era Stiepanida. Ievguiéni deu uma olhada para ela, reconheceu-a e sentiu com alegria que permenecera perfeitamente calmo. Estava bonita como sempre, mas aquilo não o afetou em nada. Chegou em casa. A esposa foi a seu encontro no alpendre. Fazia uma tarde maravilhosa.

–E então, posso lhe dar os parabéns? – perguntou o tio.

–Sim, fui eleito.

–Que maravilha. Temos de comemorar.

Na manhã seguinte, Ievguiéni saiu a cavalo pela propriedade, que ele deixara de lado. Na eira coberta, a debulhadora nova estava funcionando. Enquanto observava seu funcionamento, Ievguiéni caminhava no meio das camponesas tentando não olhar para elas, no entanto, apesar de todo o seu esforço, notou duas vezes os olhos pretos e o xale vermelho de Stiepanida, que carregava palha. Duas ou três vezes, espiou a mulher com o canto dos olhos e sentiu alguma coisa outra vez, mas não conseguiu definir o que era. Só no dia seguinte, quando foi de novo à eira coberta e passou duas horas ali, sem a menor necessidade, e não parou de acariciar com os olhos a imagem bela e conhecida da jovem, sentiu que estava perdido, completamente perdido, de modo irremediável. De novo os tormentos, de novo o horror e o medo. Não havia salvação.

O que ele esperava aconteceu. No dia seguinte, à tarde, sem que ele mesmo soubesse como, Ievguiéni foi parar no quintal da casa dela, em frente ao celeiro de feno, onde certa vez, no outono, os dois se encontraram. Como se estivesse passeando, parou ali, fumando um cigarro. A vizinha o viu e ele, já voltando, ouviu como ela dizia para alguém:

–Vai lá, está esperando, mais morto que vivo, ali parado. Vai lá, sua burra!

Ele viu que uma camponesa – ela – correu para o celeiro, mas Ievguiéni já não podia mais voltar, porque um mujique se encontrou com ele, e então foi para casa.
XX

 

 

 

Quando entrou na sala de visitas, tudo lhe pareceu absurdo e artificial. De manhã, ele levantou cheio de disposição, decidido a largar, esquecer, não se permitir pensamento algum. Porém, sem entender como, passou a manhã inteira não só sem se interessar pelos negócios como tentando até livrar-se deles. Aquilo que antes despertava seu interesse e lhe dava alegria agora era insignificante. De modo inconsciente, tentava livrar-se do trabalho. Parecia que era necessário livrar-se disso, para poder analisar, refletir. E livrou-se e ficou sozinho. Porém, assim que se viu sozinho, saiu vagando pelo jardim, pela floresta. Todos aqueles lugares estavam sujos de recordações, recordações que o dominavam. E percebeu que estava andando pelo jardim e disse a si mesmo que ia pensar em alguma coisa, mas não pensava em nada e, enlouquecido, inconsciente, a esperava, esperava que ela, por algum milagre, entendesse que ele a desejava, e que ela tomasse a iniciativa e fosse até lá, ou a qualquer lugar onde ninguém visse, ou à noite, quando não houvesse luar e ninguém, nem ela mesma, pudesse ver, numa noite assim, ela ia chegar e ele ia tocar seu corpo...

“Sim, pronto, eu rompi quando quis”, disse consigo. “Aí está no que dá ter relações com uma mulher limpa e saudável, para manter a boa saúde! Não, pelo visto é impossível brincar com ela. Pensei que eu a possuía, mas foi ela que me possuiu, possuiu e não largou mais. Pois achei que estava livre e não estava. Cometi um erro quando casei. Tudo foi um absurdo, um erro. Desde que me juntei com ela, experimentei um sentimento novo, o verdadeiro sentimento de um marido. Sim, eu devia ter morado com ela.”

“Sim, há duas vidas possíveis para mim; uma é a que comecei com Liza: o trabalho, a propriedade, o bebê, o respeito das pessoas. Se for essa a vida, então é preciso que ela, Stiepanida, não exista. É preciso mandá-la para longe, como eu disse, ou destruí-la, para que não exista mais. A outra vida seria aqui mesmo. Eu a tomaria do marido, daria dinheiro para ele, esqueceria a vergonha e o escândalo e viveria com ela. Mas então seria necessário que não existissem Liza nem Mimi (o bebê). Não, ora essa, o bebê não atrapalha, mas Liza não pode, é preciso que vá embora. Que ela fique sabendo, rogue pragas e vá embora. Que fique sabendo que eu a troquei por uma camponesa, que sou um impostor, um canalha. Não, é horrível demais! Não é possível. Sim, mas também pode acontecer”, continuou a pensar, “pode acontecer desse jeito. Liza fica doente e morre. Morre e então tudo será maravilhoso. Maravilhoso! Ah, canalha! Não, se alguém tem de morrer que seja ela. Se ela morresse, a Stiepanida, que bom seria.”

“É assim que envenenam ou assassinam esposas e amantes. Pegar um revólver, chamar e, em vez de abraço, um tiro no peito. E acabou-se.”

“Aí está, ela é o Diabo. O Diabo em pessoa. Pois, contra minha vontade, ela tomou posse de mim. Matar? Sim. Só há duas saídas: matar a esposa ou a ela. Porque deste jeito não se pode viver.8 É impossível. É preciso raciocinar e prever. Se ficar assim, o que vai acontecer?”

“Vai acontecer que vou de novo dizer que não quero, que parei, mas logo depois de dizer isso, irei à noite ao quintal da casa dela, e ela sabe, e ela irá também. Ou as pessoas vão descobrir e contar para a esposa, ou eu mesmo contarei para ela, porque não posso mentir, não posso viver assim. Não posso. Ela vai saber. Todos vão saber. Até Paracha e o ferreiro. Mas e então, por acaso é possível viver assim?”

“Impossível. Só há duas saídas: matar a esposa ou matar a ela. E ainda...”

“Ah, sim, há uma terceira: matar-me a mim mesmo”, disse em voz baixa e, de repente, um calafrio percorreu sua pele. “Sim, matar-me, então não seria preciso matá-las.” Sentiu um medo terrível justamente porque se deu conta de que só essa saída era possível. “Há um revólver. Será possível que vou me matar? Aí está uma coisa em que nunca pensei. Como vai ser estranho.”

Voltou para seu quarto e imediatamente abriu o armário em que ficava o revólver. Porém mal teve tempo de abrir a arma quando sua esposa entrou.
XXI

 

 

 

Ele jogou um jornal em cima do revólver.

–A mesma coisa de novo – disse ela, assustada, olhando para ele.

–Que coisa?

–A mesma expressão horrível no rosto que havia antes, quando você não queria me contar. Guénia, querido, me conte. Vejo que está sofrendo. Conte para mim, vai ficar aliviado. Seja o que for, qualquer coisa é melhor do que esse seu sofrimento. Pois sei que não é nada de ruim.

–Sabe? Por enquanto.

–Conte, conte, conte. Não vou deixar que saia.

Ele deu um sorriso de causar pena.

“Contar? Não, é impossível. E nem há o que dizer.”

Talvez fosse contar para ela, mas naquele instante chegou a ama de leite e perguntou se podia dar um passeio. Liza saiu para vestir o bebê.

–Você vai contar. Volto logo.

–Sim, pode ser...

Ela nunca pôde esquecer o sorriso angustiado com que ele falou aquilo. Liza saiu.

Afobado, sorrateiro como um criminoso, ele apanhou o revólver, tirou do coldre. “Está carregado, sim, mas faz muito tempo, e está faltando um cartucho. Muito bem, que seja.”

Encostou o cano na têmpora, hesitou um momento, mas assim que lembrou Stiepanida, a decisão de não vê-la, a luta, a sedução, a queda, de novo a luta, estremeceu de horror. “Não, é melhor assim.” E apertou o gatilho.

Quando Liza entrou correndo no quarto – ela mal teve tempo de descer da varanda –, ele estava estirado de bruços no chão, o sangue negro e quente jorrava da ferida e o cadáver ainda tinha tremores.

Houve um inquérito. Ninguém conseguia entender e explicar as causas do suicídio. Em nenhum momento passou pela cabeça do tio que a causa pudesse ter alguma relação com a confissão que Ievguiéni lhe fizera dois meses antes.

Varvara Alekséievna garantia que sempre havia previsto aquilo. Era visível quando ele discutia. Liza e Mária Pávlovna não conseguiam entender por que aquilo havia acontecido e, no entanto, não acreditavam no que os médicos diziam, que ele tinha uma doença mental. Não podiam concordar com aquilo de maneira nenhuma porque sabiam que ele era mentalmente mais saudável do que centenas de pessoas que elas conheciam.

E, de fato, se Ievguiéni Irtiéniev era doente mental, todas as pessoas também são doentes mentais, e as mais doentes são sem dúvida aquelas que veem nas outras sinais de loucura que não enxergam em si mesmas.

Iásnaia Poliana, 19 de novembro de 1889

VARIANTE DO FIM DO CONTO “O DIABO”

... disse consigo e, chegando perto da mesa, apanhou o revólver, examinou-o – faltava um cartucho – e pôs no bolso da calça.

–Meu Deus! O que estou fazendo? – exclamou de repente e, cruzando as mãos, começou a rezar. – Senhor, me ajude, me salve. Você sabe que não quero fazer o mal, mas sozinho eu não consigo. Ajude – disse, fazendo o sinal da cruz diante de uma imagem.

“Sim, eu consigo me controlar. Vou andar um pouco e refletir.”

Foi para o vestíbulo, vestiu um casaco curto de pele, calçou galochas e saiu para o alpendre. Sem perceber, seus passos o levaram para fora do jardim, pela trilha do campo, rumo à eira coberta. Lá, a debulhadora continuava a roncar e se ouviam gritos dos meninos que tangiam os animais. Ele entrou na eira coberta. Ela estava lá. Ele a viu na mesma hora. Ela empilhava espigas e, ao vê-lo, rindo com os olhos, cheia de vida, alegre, correu entre as espigas espalhadas, desviando-se dele com agilidade. Ievguiéni não queria, mas não conseguia deixar de olhar para ela. Só se controlou quando ela sumiu de vista. O administrador informou que agora estavam terminando de debulhar as espigas amassadas e que por isso demorava mais e rendia menos. Ievguiéni se aproximou do tambor, que de vez em quando sacudia, quando passavam os feixes mal amarrados.

–Vai dar uns cinco carroções.

–Então é o seguinte... – começou Ievguiéni e não terminou. Ela andava em volta do tambor, retirando as espigas que tinham caído embaixo, e incendiou Ievguiéni com seu olhar risonho.

Aquele olhar falava do amor alegre e despreocupado entre os dois, falava que ela sabia que ele a desejava, que ele tinha ido atrás dela no celeiro e que ela, como sempre, estava pronta para viver e divertir-se com ele, sem jamais pensar em condições ou consequências. Ievguiéni sentiu-se sob seu poder, mas não queria se render.

Lembrou sua prece e experimentou repeti-la. Começou a dizer as palavras para si, mas logo sentiu que era inútil.

Agora, só uma ideia o consumia por inteiro: como marcar um encontro com ela, sem ninguém notar?

–Se a gente terminar hoje, o senhor quer que a gente comece uma nova meda ou deixe para amanhã? – perguntou o administrador.

–Sim, sim – respondeu Ievguiéni, virando-se para ela, na direção da pilha, para onde ela e outra camponesa levavam as espigas.

“Será que não consigo me controlar?”, disse consigo. “Será que estou perdido? Meu Deus! Mas não existe Deus. Existe o Diabo. E ela é o Diabo. Ele tomou conta de mim. E eu não quero, não quero. O Diabo, sim, o Diabo.”

Chegou perto dela, tirou o revólver do bolso e disparou nas suas costas uma, duas, três vezes. Ela correu e caiu sobre a pilha.

–Minha nossa! Gente! O que é isso? – gritaram as camponesas.

–Não, não foi por acidente. Eu a matei de propósito – gritou Ievguiéni. – Mandem chamar o comissário de polícia.

Chegou em casa e, sem contar nada para a esposa, entrou no escritório e trancou-se.

–Não se aproxime – gritou para a esposa através da porta fechada. – Você vai saber de tudo.

Uma hora depois, tocou a campainha e perguntou ao lacaio que o atendeu:

–Vá saber se Stiepanida está viva.

O lacaio já sabia de tudo e respondeu que tinha morrido uma hora antes.

–Certo, muito bem. Agora, me deixe. Quando o comissário ou o juiz de instrução chegar, me avise.

O comissário e o juiz de instrução chegaram na manhã seguinte e Ievguiéni, depois de se despedir da esposa e da filha, foi levado para a prisão.

Foi julgado. Era o tempo em que os tribunais com jurados estavam começando a funcionar. Ele foi considerado temporariamente insano e condenado apenas à penitência eclesiástica.

Ficou dez meses na prisão e um mês num mosteiro.

Começou a beber já na prisão, continuou no mosteiro e voltou para casa alcoólatra, debilitado, irresponsável.

Varvara Alekséievna garantia que ela sempre havia previsto aquilo. Era evidente quando ele discutia. Liza e Mária Pávlovna não conseguiam de maneira nenhuma entender por que aquilo havia acontecido e mesmo assim não acreditavam no que os médicos diziam, que ele era doente mental, psicopata. Não conseguiam de maneira nenhuma concordar com isso, porque sabiam que ele era mentalmente mais saudável do que centenas de pessoas que elas conheciam.

E, de fato, se Ievguiéni Irtiéniev era doente mental quando cometeu seu crime, todas as pessoas também são doentes mentais, e as mais doentes são sem dúvida aquelas que veem nas outras sinais de loucura que não enxergam em si mesmas.

FRANÇOISE

[Conto à maneira de Maupassant]1
I

 

 

 

No dia 3 de maio de 1882, um navio de três mastros chamado Nossa Senhora dos Ventos partiu do Havre rumo ao mar da China. Deixou sua carga na China, recebeu uma carga nova, levou-a para Buenos Aires e, de lá, transportou mercadorias para o Brasil.

Travessias de canais, avarias, reparos, calmarias que duravam meses, ventos que desviavam o navio para longe da rota, aventuras e incidentes marítimos retardaram o navio de tal modo que ele navegou quatro anos por mares estrangeiros e só no dia 8 de maio de 1886 aportou em Marselha com uma carga de caixas de latas de doces em conserva americanos.

Quando o navio partiu do Havre, a bordo estavam o capitão, seu ajudante e catorze marinheiros. Durante a viagem, um marinheiro morreu, quatro se extraviaram por causa de várias aventuras e apenas nove voltaram para a França. No lugar dos marinheiros que se afastaram, foram contratados dois americanos, um negro e um sueco, encontrados numa taberna em Cingapura.

No navio, enrolaram as velas e amarraram os cordames nos mastros cruzados. Um rebocador a vapor se aproximou e, soltando baforadas, arrastou-o até a fila de navios. O mar estava calmo. Ondas muito fracas batiam na margem. O navio entrou na fila do porto, onde, lado a lado, junto ao cais, estavam navios de todos os países do mundo, grandes, pequenos, de vários tamanhos, formatos e equipagens. O Nossa Senhora dos Ventos ficou entre um brigue italiano e uma escuna inglesa, que se apertaram bastante a fim de abrir espaço para o novo companheiro.

Assim que o capitão acertou tudo com os funcionários da alfândega e do porto, liberou metade dos marinheiros para passarem a noite em terra.

Era uma noite quente de verão. Marselha estava muito iluminada, as ruas cheiravam a comida de fogão, ouviam-se vozes de todos os lados, rumor de rodas e gritos alegres.

Fazia cinco meses que os marinheiros do navio Nossa Senhora dos Ventos não desciam à terra e agora, ao desembarcar no porto, tímidos, caminhavam em duplas pelas ruas, como estranhos, desacostumados da gente das cidades. Eles se entreolhavam, farejavam as ruas próximas do cais como se procurassem algo. Fazia quatro meses que não viam mulheres e o desejo os atormentava. Na frente, caminhava Celestin Duclos, rapagão saudável e ágil. Sempre conduzia os outros, quando desciam à terra. Sabia encontrar lugares bons, sabia também se safar quando necessário, e não se metia nas brigas que tantas vezes ocorrem entre marinheiros quando descem à terra; mas se a briga crescesse, ele não se afastava de seus camaradas e sabia se defender.

Os marinheiros vagaram muito tempo pelas ruas escuras, que, como calhas de drenagem, desciam todas na direção do mar e exalavam um cheiro pesado de porões e despensas. Por fim, Celestin escolheu um beco estreito onde lampiões proeminentes ardiam acima das portas e entrou por ali. Cantarolando e dizendo gracejos, os marinheiros foram atrás. Números enormes estavam escritos nos vidros coloridos e turvos dos lampiões. Sob os portais baixos, mulheres de roupão estavam sentadas em cadeiras de palha; ao verem os marinheiros, saltavam para fora e, correndo para o meio da rua, barravam o caminho dos homens e os atraíam cada uma para sua toca.

Às vezes, no fundo de um corredor, uma porta se escancarava. Nela aparecia uma jovem seminua, de ceroulas grosseiras de algodão, saia curta e peitilho de veludo preto com galões dourados.

–Ei, bonitões, venham cá, entrem! – chamava mesmo de longe e às vezes corria para fora, agarrava um dos marinheiros e o arrastava com toda a força na direção da porta. Ela se segurava ao marinheiro como uma aranha quando apanha uma mosca mais forte do que ela.

O rapaz, debilitado pelo desejo, resistia frouxamente, enquanto os outros paravam e observavam o que ia acontecer; mas Celestin Duclos gritava:

–Aqui não, não entre, só mais adiante!

O rapaz obedecia e se desvencilhava da jovem à força. Os marinheiros seguiam em frente, acompanhados pelos xingamentos da moça revoltada. Com o barulho, ao longo de todo o beco, outras mulheres gritavam, corriam para os marinheiros e, com vozes roucas, exaltavam sua mercadoria. Assim os marinheiros seguiam adiante, cada vez mais longe. De vez em quando, em seu caminho, topavam com soldados de esporas tilintantes, ou com um solitário balconista ou escrevente que entrava num local que ele já conhecia muito bem. Em outros becos, ardiam lampiões iguais àqueles, mas os marinheiros iam sempre adiante, pisando no líquido fedorento que gotejava por baixo das casas, cheias de corpos de mulheres. Mas então Duclos parou perto de uma casa um pouco melhor do que as outras e entrou ali com seus rapazes.
II

 

 

 

Os marinheiros sentaram-se no salão de uma taberna. Cada um escolheu uma amiga e, pelo resto da noite, não se separou mais dela: era o costume na taberna. Três mesas estavam unidas e os marinheiros, antes de tudo, beberam junto com as moças, depois se levantaram e subiram com elas para o primeiro andar. Por muito tempo, ressoaram bem alto as batidas de vinte sapatos pesados nos degraus de madeira, enquanto todos entravam aos tropeções pelas portas estreitas e se espalhavam pelos quartos de dormir. Dos quartos, eles desciam de novo para beber e em seguida subiam outra vez.

A farra não terminava. Todo o salário de meio ano desapareceu em quatro horas de orgia. Às onze horas, todos já estavam bêbados, berravam disparates com os olhos injetados de sangue e nem eles mesmos sabiam o que estavam dizendo. Sobre os joelhos de cada um deles, estava sentada uma jovem. Um cantava, outro berrava, outro batia com o punho na mesa, outro entornava vinho goela abaixo. Celestin Duclos estava sentado no meio dos camaradas. Sentada a cavalo sobre seus joelhos, estava uma jovem volumosa, gorda, bonitinha, de faces rosadas. Ele não bebia menos do que os outros, mas ainda não estava totalmente embriagado; alguns pensamentos soltos rodavam dentro de sua cabeça. Ficou mais afetuoso e procurou alguma coisa para dizer à sua amiga. Mas os pensamentos vinham e logo depois iam embora e ele não conseguia retê-los, lembrar-se e falar.

Riu e disse:

–Ora, ora, pois é, pois então... Faz muito tempo que você está aqui?

–Seis meses – respondeu a moça.

Ele fez que sim com a cabeça, como que para exprimir sua aprovação.

–Pois é, e você está bem?

Ela pensou um pouco.

–Acostumei – respondeu. – De algum jeito, a gente tem de viver. É melhor do que ser criada ou lavadeira.

Ele fez que sim com a cabeça em sinal de aprovação, como se a aprovasse também por aquilo.

–E você não é daqui?

Ela balançou a cabeça para dizer que não.

–É de longe?

Fez que sim.

–De onde?

Ela pensou um pouco, como se tentasse lembrar.

–De Perpignan – disse.

–Sei, sei – disse ele e calou-se.

–E você, o que é, marinheiro? – perguntou ela, agora.

–Sim, somos marinheiros.

–E foram muito longe?

–Sim, bem longe. A gente viu de tudo.

–Será que deram a volta ao mundo?

–E não só uma vez, mas umas duas vezes.

Ela pareceu refletir um pouco, lembrar-se de alguma coisa.

–Então já devem ter encontrado muitos navios, não é? – disse ela.

–Ah, sim, claro.

–Por acaso não toparam com o Nossa Senhora dos Ventos? Existe um navio com esse nome.

Ele ficou surpreso por ela dizer o nome de seu navio e inventou uma brincadeira.

–Como não? Encontramos na semana passada.

–É mesmo? É verdade?

–É verdade.

–Não está mentindo?

–Juro por Deus – disse ele.

–E não viu lá um homem chamado Celestin Duclos? – perguntou ela.

–Celestin Duclos? – repetiu, admirado e até assustado. De onde ela podia conhecer seu nome? – Por acaso você o conhece?

Era evidente que ela também estava assustada com alguma coisa.

–Não, eu não, mas tem uma mulher aqui que conhece.

–Que mulher? Aqui desta casa?

–Não, aqui perto.

–Mas perto onde?

–Não fica longe daqui.

–Quem é ela?

–Uma mulher comum, feito eu.

–E o que ela tem a ver com ele?

–Como é que vou saber? Na certa é sua conterrânea.

Fitaram-se nos olhos um do outro com ar interrogativo.

–Bem que eu gostaria de encontrar essa mulher – disse ele.

–Para quê? Quer contar alguma coisa?

–Contar...

–Contar o quê?

–Contar que vi Celestin Duclos.

–E você viu o Celestin Duclos? Está vivo, bem de saúde?

–Está bem de saúde, sim. Por quê?

Ela ficou calada, de novo reunindo seus pensamentos, depois disse em voz baixa:

–E para onde vai o Nossa Senhora dos Ventos?

–Para onde? Para Marselha.

–É verdade? – exclamou ela.

–É verdade.

–E você também conhece Duclos?

–Mas já disse que conheço.

Ela pensou um pouco.

–Pois é. Está certo, está certo – disse ela baixinho.

–O que você quer com ele?

–Olhe, se você o encontrar, diga que... Não, não precisa.

–O que é?

–Não, não é nada.

Ele olhou para ela e ficou cada vez mais alarmado.

–Então você o conhece? – perguntou ele.

–Não, eu não conheço.

–Mas então o que tem a ver com ele?

Sem responder, de repente ela se levantou com um pulo e correu para o balcão, atrás do qual ficava a proprietária, pegou um limão, cortou, espremeu o suco num copo, depois encheu de água e levou para Celestin.

–Tome, beba isto – disse ela e sentou, como antes, sobre os joelhos dele.

–Para que é isto? – perguntou ele, pegando o copo da mão dela.

–Para passar a bebedeira. Depois vou falar. Beba.

Ele bebeu tudo e enxugou os lábios com a manga.

–Pronto, conte, estou ouvindo.

–Mas você não vai contar para ele que me viu, não vai contar quem contou o que vou contar, está bem?

–Claro, não vou contar.

–Jure por Deus!

Ele jurou.

–Por Deus?

–Por Deus.

–Então você conte para ele que o pai dele morreu, a mãe morreu e o irmão também morreu. Foi uma febre que deu de repente. Num mês, os três morreram.

Duclos sentiu todo o sangue voltar para o coração. Ficou parado e mudo por alguns instantes, sem saber o que dizer, depois falou:

–Você tem certeza disso?

–Tenho.

–Quem contou para você?

Ela pôs as mãos nos ombros dele e fitou-o bem nos olhos.

–Jure por Deus que não vai sair falando por aí.

–Pronto, já jurei. Juro por Deus.

–Sou irmã dele.

–Françoise! – exclamou ele.

Ela olhou fixamente para ele e, mal movendo os lábios, quase sem pronunciar as palavras, disse:

–Então é você, Celestin!!

Não se mexeram, ficaram paralisados, fitando-se nos olhos um do outro.

Em volta, os outros rugiam com vozes embriagadas. Barulho de copos, som de palmas, saltos de botas batendo no chão, gritos estridentes de mulher se misturavam com o rumor de música.

–Como pode ser? – disse ele muito baixo, tão baixo que ela quase não conseguiu distinguir suas palavras.

Os olhos dela, de repente, se encheram de lágrimas.

–Sim, morreram. Os três, no mesmo mês – continuou ela. – O que eu ia fazer? Fiquei sozinha. A farmácia, o médico, o enterro dos três... vendi todas as coisas que tinha, paguei e sobrou só a roupa do corpo. Fui trabalhar na casa do senhor Cacheaux... Lembra, um manco? Eu tinha acabado de fazer quinze anos, nem tinha catorze quando você foi embora. Aí, pequei com ele... Sua irmã é uma boba. Depois fui trabalhar de babá na casa de um notário e foi a mesma coisa. No início, ele fez de mim sua amante, eu tinha um quarto só para mim. Mas durou pouco. Ele me largou, fiquei três dias sem ter o que comer, ninguém me deu emprego e acabei aqui, como as outras.

Falava e as lágrimas escorriam dos olhos, do nariz, molhavam as faces e se derramavam na boca.

–O que nós fizemos! – exclamou ele.

–Pensei que você estivesse morto também – disse ela, entre lágrimas. – O que eu podia fazer? – balbuciou.

–Mas como não me reconheceu? – disse ele num sussurro.

–Não sei, não tenho culpa – disse ela e chorou mais ainda.

–Como eu podia reconhecer você? Você está muito diferente de quando fui embora. Como você não me reconheceu?

Ela abanou a mão com desespero.

–Ah! Eu vejo tantos homens assim que, para mim, todos têm a mesma cara.

Ele sentiu um aperto no coração, tão forte e tão doloroso que teve vontade de gritar e urrar como um menino que levou uma surra.

Levantou-se, tirou-a do colo, segurou a cabeça da jovem com as mãos grandes de marinheiro e olhou fixamente seu rosto.

Pouco a pouco, enfim, reconheceu a pequena menina alegre e magricela que deixara em casa com os outros, aqueles cujos olhos ela teve de fechar.

–Sim, é você, Françoise, minha irmã! – exclamou. E de repente, soluços, pesados soluços de homem, semelhantes aos soluços de um bêbado, subiram em sua garganta. Largou a cabeça dela, bateu com o punho na mesa de tal modo que os copos tombaram, voaram e se fizeram em pedaços, e ele começou a gritar com voz desvairada.

Seus camaradas se viraram e olharam para ele, espantados.

–Puxa, ficou doido – disse um.

–Como berra – disse outro.

–Ei! Duclos! Que gritaria é essa? Vamos de novo lá para cima – disse um terceiro, e segurou Celestin com uma mão, enquanto com a outra abraçava sua amiga risonha, de cara vermelha e olhos pretos e brilhantes, vestida num corpete aberto, de seda cor-de-rosa.

Duclos se calou de repente e, controlando a respiração, olhou fixamente para os camaradas. Depois, com a expressão estranha e decidida com que, às vezes, entrava numa briga, avançou em passos largos na direção do marinheiro que abraçava a jovem e enfiou a mão com força entre ele e a jovem, separando os dois.

–Afaste-se! Não está vendo que ela é sua irmã? Todas elas são irmãs de alguém. Olhe esta aqui, é minha irmã Françoise. Ha-ha-ha-ha-ha!... – irrompeu em soluços parecidos com risadas, começou a cambalear, ergueu os braços, desabou de cara no chão e começou a rolar pelo chão, batendo com as mãos e os pés e berrando como se estivesse morrendo.

–Temos de pôr o Celestin para dormir – disse um dos camaradas. – A gente não tem como sair para a rua com ele desse jeito.

Levantaram Celestin e o arrastaram para o quarto de Françoise, no primeiro andar, e o deitaram em sua cama.

1890

CUSTA CARO

[História real. Conto à maneira de Maupassant]1

Entre a França e a Itália, na beira do mar Mediterrâneo, existe um reino pequeno, diminuto. Esse reino se chama Mônaco. Nesse reino, há menos habitantes do que numa aldeia grande, ao todo são sete mil e, se toda a terra fosse dividida, daria uma dessiatina por habitante. Mas nesse reino há um reizinho de verdade. Nesse reino, há até palácio, cortesãos, ministros, bispos, generais e Exército.

Um Exército pequeno, ao todo sessenta homens, mas mesmo assim é um Exército. As receitas do rei são pequenas. Há impostos, como em toda parte, sobre o tabaco, o vinho, a vodca, e há o imposto individual; e por mais que bebam e fumem, o povo é pouco e o rei não teria com que alimentar seus cortesãos, seus funcionários e até a si mesmo, se não tivesse uma fonte especial de receita. O reino obtém essa receita especial graças a uma casa de jogo de roleta. As pessoas jogam, ganham, perdem e a banca sempre lucra. Da receita, a banca paga grande parte para o rei. E paga tanto dinheiro para o rei porque agora só resta uma casa de jogo assim em toda a Europa. Antes, havia casas de jogo nos pequenos principados alemães, mas faz dez anos que foram fechadas. E fecharam porque nas casas de jogo acontecem muitas desgraças. Chega alguém, começa a jogar, se descontrola, perde tudo o que tem e até o dinheiro que não lhe pertence e depois, de desgosto, se afoga ou se mata com um tiro. Os alemães mandaram seus principados fecharem as casas de jogo, mas o reizinho de Mônaco não tem quem o mande fechar: a dele foi a única que sobrou.

Desde então, todos os apreciadores de jogo vão ao seu reino, perdem para a banca e a banca paga para o rei. Não se constroem palácios de pedras com trabalho honesto. O rei de Mônaco também sabe que esse é um negócio sórdido, mas o que fazer? É preciso viver. Sustentar-se com o tabaco e a bebida não é melhor que isso. Então, assim vive esse rei, reina, arrecada o dinheiro e mantém a si e seu palácio com toda a pompa, como fazem os grandes reis de verdade. Tem suas coroações, suas aparições em público, distribui títulos honoríficos, castiga, concede sua misericórdia, promove paradas, reuniões de conselhos, leis, julgamentos. Tudo como os reis de verdade. Só que tudo é pequeno.

Então aconteceu que há uns cinco anos houve um assassinato no reino desse reizinho. O povo do reino é pacífico e, antes, essas coisas não aconteciam. Os juízes se reuniram com toda a pompa e cerimônia, começaram a julgar, tudo como deve ser. Juízes, procuradores, jurados e advogados. Julgaram, julgaram e deram a sentença de cortar a cabeça do criminoso, conforme a lei. Muito bem. Apresentaram a sentença ao rei. O rei leu a condenação e sancionou. Se é para executar, executem. Só tinha um problema: no reino não havia carrasco nem guilhotina para cortar a cabeça. Os ministros pensaram, pensaram e resolveram mandar um pedido para o governo francês: que os franceses deixassem a máquina com eles por um tempo, junto com seu operador, para cortar a cabeça do criminoso e, caso isso fosse possível, que informassem qual seria o custo de tal serviço. Mandaram o documento. Uma semana depois, receberam a resposta: era possível mandar a máquina e o carrasco e o custo de tudo era dezesseis mil francos. Informaram ao reizinho. Ele pensou, pensou... dezesseis mil francos! “O patife não vale esse dinheiro todo. Será que não existe um meio mais barato? Dezesseis mil francos... Isso é mais do que cobrar dois francos de imposto de cada habitante do reino. É muito pesado. Pode haver até uma revolta.” Reuniram o conselho: como solucionar a questão? Resolveram mandar o mesmo pedido ao rei italiano. O governo francês é uma república, não respeita os reis, mas o rei italiano era um rei também. Quem sabe não conseguia um preço mais baixo? Escreveram; logo receberam a resposta. O governo italiano respondeu que enviaria, com todo o prazer, a máquina e uma pessoa para operar o equipamento. E que o custo de tudo, incluindo a viagem, seria doze mil francos. Mais barato, porém ainda era caro. De novo, o canalha não valia tanto dinheiro. De novo, seria preciso cobrar um pouco menos de dois francos por habitante. O conselho se reuniu outra vez. Pensaram, pensaram... Não haveria algum jeito mais barato? Não poderiam achar um soldado disposto a cortar aquela cabeça de modo mais simples, trivial? Chamaram o general.

–Não é possível achar um soldado para cortar essa cabeça? Na guerra também matam e ninguém liga. Afinal, os soldados são preparados para isso.

O general foi falar com os soldados e perguntou se alguém podia fazer o serviço. Os soldados não quiseram.

–Não, nós não somos capazes e não aprendemos a fazer isso.

O que fazer? De novo, pensaram, pensaram, reuniram um comitê, uma comissão, uma subcomissão. Pensaram melhor. É preciso, disseram, trocar a pena de morte por prisão perpétua. O rei demonstra misericórdia e os custos são menores. O reizinho concordou e assim ficou decidido. O único problema era que não existia uma prisão daquele tipo, para um preso cumprir uma pena de prisão perpétua. Havia calabouços e celas, onde podiam deixar alguém por um tempo, mas uma prisão sólida para encarcerar uma pessoa para sempre, isso não havia. Pois bem, mesmo assim conseguiram encontrar um local. Deixaram lá o rapaz. Puseram um guarda de sentinela.

O guarda tinha de vigiar e levar a comida da cozinha do palácio para o criminoso. Assim o rapaz ficou preso seis meses, um ano. No fim do ano, o reizinho fez o balanço das receitas e despesas e viu uma despesa nova: sustentar o criminoso. E não era pequena. O vigia especial e também a comida. O custo chegava a seiscentos francos por ano. E o rapaz era jovem, saudável, talvez vivesse mais cinquenta anos. Fez as contas de quanto ia custar. Uma grande despesa. Daquele jeito era impossível. O reizinho chamou os ministros:

–Inventem um modo mais barato de lidar com esse patife. Ele está nos custando muito caro.

Os ministros se reuniram, pensaram, pensaram. Um deles disse:

–Senhores, a meu ver a solução é dispensar o guarda.

Outro disse:

–Mas aí ele vai fugir.

–Que fuja, e que vá para o diabo que o carregue.

Informaram ao reizinho. O rei concordou. Dispensaram o guarda. Observaram o que ia acontecer. Apenas olharam: chegou a hora do almoço, o criminoso saiu, procurou o guarda, não achou e então foi ele mesmo à cozinha do rei atrás do seu almoço. Pegou o que deram, voltou para a prisão, fechou a porta ele mesmo e ficou ali. No dia seguinte, a mesma coisa. Ia pegar sua comida, mas fugir, não fugia. O que fazer? Pensaram. Disseram:

–É preciso lhe dizer, com todas as letras, que não queremos mais saber dele. Que vá embora de uma vez.

Muito bem. O ministro da Justiça o chamou e disse:

–Por que não fugiu? Não há nenhum guarda vigiando o senhor. Pode ir embora livremente, o rei não vai ficar ofendido.

Ele respondeu:

–O rei não vai ficar ofendido, só que eu não tenho para onde ir. Para onde vou? Com a condenação, vocês me cobriram de vergonha, agora ninguém quer me receber, e eu não sei mais fazer nenhum trabalho. Vocês agiram comigo de forma injusta. Não se deve fazer isso. Vocês me condenaram à pena de morte, muito bem. Tinham de me executar e não executaram. Foi a primeira coisa. Não discuti. Depois me condenaram à prisão perpétua, puseram um guarda para me levar comida e depois me deixaram sem o guarda. Foi a segunda coisa. De novo, não discuti. Fui eu mesmo buscar a comida. Agora, vocês me dizem: vá embora. Não, vocês podem fazer o que quiserem, mas eu não vou a lugar nenhum.

E agora? Reuniram de novo o conselho. O que fazer? Ele não vai fugir. Pensaram, pensaram. Era preciso conceder uma pensão para ele. Sem isso, não havia como se desvencilhar do homem. Informaram ao reizinho.

–Não há o que fazer, temos de nos livrar dele de algum modo.

Estabeleceram a quantia de seiscentos francos, comunicaram a ele.

–Bem, pode ser, se vocês pagarem direito, até posso ir embora.

Assim ficou resolvido. Recebeu um terço adiantado, despediu-se de todos e deixou os domínios do reizinho. Ao todo, foi um quarto de hora de viagem pela ferrovia. Foi embora do país, se estabeleceu nas proximidades, comprou umas terrazinhas, plantou uma horta, um jardim e leva uma vida confortável. Na data marcada, vai receber sua pensão. Recebe, vai à casa de jogo, aposta dois ou três francos, às vezes ganha, às vezes perde, e volta para casa. Vive bem e sossegado.

Ainda bem que seu crime não aconteceu num lugar onde não se importam com as despesas de cortar a cabeça de alguém ou da pena de prisão perpétua.

1890

O KARMA
Apresento a vocês minha versão de um continho budista intitulado “Karma”,1 publicado na revista americana Open Court. Gostei muito do conto, de sua ingenuidade e profundidade. É bom nele, em especial, o esclarecimento de uma verdade ultimamente obscurecida, não raro por vários lados, segundo a qual a redenção do mal e a aquisição do bem são obtidas apenas com o esforço próprio, que não há e não pode haver um mecanismo mediante o qual, fora do esforço pessoal, se possa alcançar o bem próprio ou comum. Tal esclarecimento é especialmente bom, porquanto aqui se demonstra que o bem de um indivíduo só é um bem verdadeiro quando é um bem comum. Assim que o bandoleiro que saiu do inferno desejou o bem só para si, seu bem deixou de ser um bem e ele se perdeu. Esse conto ilumina de um ângulo novo duas verdades fundamentais reveladas pelo cristianismo: que só há vida na renúncia da individualidade – quem perde a alma a encontrará – e que o bem das pessoas só existe em sua união com Deus e por meio da presença de Deus entre elas: “Como tu estás em mim e eu em ti, também eles estarão em nós como um só...” (João, XVII, 21).

 

 

 

Li esse conto para as crianças e elas gostaram. Entre adultos, depois da leitura, sempre se levantam discussões sobre as questões mais importantes da vida. E parece-me que isso é uma recomendação muito boa.

 

 

 

P. S. Esta carta é para ser publicada.

 

 

 

L. Tolstói

Pandu, um joalheiro rico da casta dos brâmanes, viajou para Benares com seu criado. Encontrando no caminho um monge de aspecto honrado que seguia na mesma direção, ele pensou consigo: “Esse monge tem um aspecto santo e nobre. O convívio com pessoas boas traz sorte; se ele também vai para Benares, vou convidá-lo para ir comigo em minha carruagem”. E, depois de cumprimentar o monge com uma reverência, perguntou para onde ia e, ao saber que o monge, cujo nome era Narada, também ia para Benares, convidou-o para viajar em sua carruagem.

–Agradeço sua bondade – disse o monge ao brâmane. – De fato, a viagem sem pausas me deixou exausto. Como não tenho bens, não posso retribuir com dinheiro, mas pode acontecer de eu ter oportunidade de recompensar o senhor com algum tesouro espiritual do saber divino que adquiri, segundo o ensinamento de Sákia Múni, o grande abençoado Buda, mestre da humanidade.

Seguiram juntos na carruagem e Pandu escutou com atenção e prazer as palavras instrutivas de Narada. Após uma hora, chegaram a um local onde a estrada estava muito esburacada de ambos os lados e a carroça de um lavrador, com as rodas quebradas, obstruía o caminho.

Devala, dono da carroça, ia para Benares a fim de vender seu arroz e se apressava para estar pronto antes da aurora do dia seguinte. Se atrasasse um dia, os compradores do arroz poderiam ir embora da cidade, depois de comprar a quantidade de arroz de que precisavam.

Quando o joalheiro viu que não podia seguir viagem se a carroça do lavrador não fosse removida, irritou-se e chamou Magaduta, seu escravo, para virar a carroça de lado, para que sua carruagem pudesse passar. O lavrador se opôs, porque sua carroça estava tão perto do precipício que a carga podia desabar se a virassem, mas o brâmane não quis dar ouvidos ao lavrador e mandou seu criado virar a carroça com arroz. Magaduta, homem de força extraordinária que tinha prazer em fazer mal às pessoas, obedeceu, antes que o monge pudesse interferir, e virou a carroça. Quando Pandu passou e quis seguir viagem, o monge desceu de sua carragem e disse:

–Perdoe-me, senhor, por deixá-lo. Agradeço sua bondade por ter permitido que eu viajasse uma hora em sua carruagem. Eu estava muito cansado quando o senhor me acolheu, mas agora, graças a sua bondade, já descansei. Como reconheci naquele lavrador a encarnação de um dos ancestrais do senhor, o melhor que posso fazer para recompensar o senhor por sua bondade é ajudá-lo em seu infortúnio.

O brâmane olhou para o monge com surpresa.

–O senhor está dizendo que esse lavrador é a encarnação de um de meus antepassados; isso não é possível.

–Sei – respondeu o monge – que o senhor ignora as complexas e importantes relações que unem o senhor ao destino desse lavrador. Mas não se pode esperar que um cego enxergue e por isso receio que o senhor faça mal a si mesmo e vou tentar protegê-lo dos males que o senhor está prestes a atrair contra si.

O comerciante rico não estava acostumado a que lhe dessem lições; sentindo que as palavras do monge, embora ditas com grande bondade, continham uma incisiva repreensão, ordenou ao criado que seguisse viagem imediatamente.

O monge cumprimentou o lavrador Devala e começou a ajudá-lo a consertar a carroça e a juntar o arroz derramado. O trabalho correu depressa e Devala pensou: “Esse monge deve ser um homem santo... parece que os espíritos invisíveis o ajudam. Vou perguntar a ele por que mereci um tratamento cruel do brâmane orgulhoso”.

E disse:

–Honrado senhor! Poderia me explicar por que sofri uma injustiça de um homem a quem nunca fiz nada de mau?

O monge disse:

–Amável amigo, o senhor sofreu uma injustiça, apenas sofreu na existência atual aquilo que praticou contra aquele brâmane numa vida anterior. E não me engano quando digo que, mesmo agora, o senhor faria com o brâmane o mesmo que ele fez ao senhor, se estivesse em seu lugar e também tivesse um criado forte.

O lavrador reconheceu que, se tivesse poder, não se arrependeria de agir como o brâmane ao topar com pessoas que barrassem seu caminho.

O arroz foi arrumado na carroça e o monge e o lavrador já se aproximavam de Benares, quando o cavalo de repente deu um salto para o lado.

–Uma cobra, uma cobra! – gritou o lavrador.

Mas o monge, depois de olhar fixamente para o que havia assustado o cavalo, desceu da carroça e viu que era uma carteira cheia de ouro.

“Ninguém pode ter perdido essa carteira senão o joalheiro rico”, pensou, e depois de pegar a carteira, entregou-a ao lavrador, dizendo:

–Leve esta carteira e, quando chegar a Benares, vá ao hotel que vou lhe indicar, pergunte pelo brâmane Pandu e devolva a carteira. Ele vai se desculpar ao senhor pela brutalidade de seu gesto, mas o senhor lhe dirá que o perdoou e que lhe deseja sucesso em todos os seus negócios, porque, acredite, quanto maior for o sucesso dele, melhor será para o senhor. O seu destino depende muito do destino dele. Se Pandu pedir uma explicação ao senhor, leve-o ao monastério, onde ele sempre me encontrará pronto para ajudá-lo com um conselho, caso ele precise de conselhos.

Enquanto isso, Pandu havia chegado a Benares e encontrado Malmeka, seu parceiro comercial, um banqueiro rico.

–Estou perdido – disse Malmeka – e não poderei fazer nenhum negócio, se hoje mesmo não comprar uma carroça do melhor arroz para a cozinha do rei. Há em Benares um banqueiro meu inimigo, que, ao saber que fiz um acordo com o mordomo real para entregar hoje de manhã uma carroça de arroz, comprou todo o arroz que havia em Benares, no intuito de me arruinar. O mordomo real não me liberou das condições do acordo e amanhã eu estarei perdido, caso Krishna não me mande um anjo do céu.

Na hora em que Malmeka se lamentava de seu infortúnio, Pandu se lembrou de sua carteira. Depois de revirar sua carroça e não achar a carteira, desconfiou de seu escravo, Magaduta, chamou a polícia, acusou-o, mandou amarrá-lo, torturou-o cruelmente para arrancar dele uma confissão. O escravo gritava, sofrendo:

–Sou inocente, me soltem! Não consigo suportar essas torturas! Sou totalmente inocente desse crime e sofro pelo pecado de outras pessoas! Ah, se eu pudesse pedir perdão àquele lavrador a quem fiz mal por causa de meu patrão! Essas torturas sem dúvida servem de castigo por minha crueldade.

Enquanto a polícia ainda batia no escravo, o lavrador chegou ao hotel e, para grande surpresa de todos, devolveu a carteira. Imediatamente, libertaram o escravo das mãos de seu torturador, mas, descontente com o patrão, ele fugiu e foi se unir a um bando de salteadores de estrada que vivia nas montanhas. Quando Malmeka soube que o lavrador podia vender arroz da melhor qualidade, digno da mesa do rei, na mesma hora comprou a carroça toda pelo triplo do preço e Pandu, alegrando-se no coração pela devolução de seu dinheiro, prontamente se dirigiu ao monastério para receber do monge as explicações que ele lhe havia prometido.

Narada disse:

–Eu poderia lhe dar a explicação, mas, sabendo que o senhor não é capaz de compreender uma verdade espiritual, prefiro o silêncio. No entanto lhe darei um conselho de caráter geral: trate toda pessoa que encontrar assim como trata a si mesmo, sirva essa pessoa assim como gostaria de ser servido. Dessa forma, o senhor vai semear boas ações e não lhe faltará uma colheita farta.

–Ó, monge! Dê-me uma explicação – disse Pandu. – Então será mais fácil seguir seu conselho.

E o monge disse:

–Então escute, vou lhe dar a chave do mistério: se não compreender, acredite no que vou lhe dizer. Considerar-se uma criatura separada das outras é um erro e quem dirige a mente para cumprir a vontade dessa criatura separada segue uma luz falsa que o levará para o abismo do pecado. O fato de nos considerarmos criaturas separadas das outras decorre do véu de Maia, que cega nossos olhos e nos impede de ver o laço indissolúvel que nos une a nossos próximos, nos impede de reconstituir nossa unidade com a alma das outras criaturas. Poucos conhecem essa verdade. Que as palavras seguintes sejam seu talismã: “Aquele que prejudica os outros faz o mal a si mesmo. Aquele que ajuda os outros faz o bem a si mesmo. Pare de considerar-se uma criatura separada das outras e assim tomará o caminho da verdade. Para aquele que tem a visão toldada pelo véu de Maia, todo o mundo parece retalhado em infinitas individualidades. E essa pessoa não pode compreender o significado do amor universal por todos os seres vivos”.

Pandu respondeu:

–Suas palavras, respeitável senhor, têm um sentido profundo e vou me lembrar delas. Fiz um pequeno bem, que não me custou nada, a um pobre monge durante minha viagem a Benares e aqui estão suas consequências benéficas. Devo muito ao senhor, pois sem o senhor eu não só perderia minha carteira como não poderia fazer, em Benares, os negócios comerciais que aumentaram consideravelmente minha fortuna. Além disso, sua solicitude e a chegada da carroça propiciaram a prosperidade de meu amigo Malmeka. Se todos conhecessem a verdade que o senhor me disse, nosso mundo seria muito melhor, o mal diminuiria e o bem-estar geral reinaria! Eu gostaria que a verdade de Buda fosse conhecida por todos e por isso quero fundar um monastério em minha terra, Kolchambi, e convido o senhor para se hospedar comigo para que eu possa consagrar esse lugar à irmandade dos discípulos de Buda.

Passaram os anos e o monastério de Kolchambi, fundado por Pandu, tornou-se um local de reunião de monges sábios, reconhecido como um centro de educação para o povo.

Naquele tempo, um rei vizinho, tendo ouvido falar da beleza das joias feitas por Pandu, mandou seu tesoureiro encomendar a ele uma coroa de ouro puro, enfeitada com as pedras mais preciosas da Índia.

Quando Pandu terminou o trabalho, foi à capital do rei e, na esperança de fazer lá uma boa transação comercial, levou consigo um grande suprimento de ouro. A caravana que levava suas joias preciosas era protegida por homens armados, mas quando chegaram à montanha, os salteadores, comandados por Magaduta, que se tornara seu atamã, atacaram a caravana, mataram os guardas e se apoderaram de todas as pedras preciosas e de todo o ouro. O próprio Pandu se salvou por pouco. Essa infelicidade foi um grande golpe na fortuna de Pandu: sua riqueza se reduziu consideravelmente.

Pandu ficou muito abatido, mas suportou seu infortúnio sem queixas; pensava: “Eu mereci esse prejuízo por causa dos pecados que cometi em minha vida anterior. Na mocidade, fui cruel com o povo; se agora colho os frutos dos males que pratiquei, não posso me queixar”.

Assim, ele se tornou muito melhor para todas as criaturas e seus infortúnios só serviram para purificar seu coração.

Passaram os anos de novo e aconteceu que Pantaka, o jovem monge e aprendiz de Narada, em viagem pelas montanhas de Kolchambi, caiu na mão dos salteadores. Como não tinha consigo nenhum bem de valor, o atamã dos salteadores lhe deu uma grande surra e o soltou.

Na manhã seguinte, andando pela floresta, Pantaka ouviu o barulho de uma luta, foi naquela direção e viu muitos salteadores que atacavam com fúria seu próprio atamã, Magaduta.

Como um leão cercado por cães, Magaduta os enfrentava e matou muitos agressores. Mas o inimigo era muito mais numeroso e no fim ele foi derrotado e tombou por terra, quase morto, coberto de ferimentos.

Assim que os salteadores foram embora, o jovem monge se aproximou dos homens estirados, a fim de prestar socorro aos feridos. Mas todos os salteadores já estavam mortos, só no chefe deles ainda restava um pouco de vida. O monge imediatamente se dirigiu a um riacho que corria ali perto, trouxe água fresca em seu jarro e deu ao moribundo.

Magaduta abriu os olhos e, rangendo os dentes, disse:

–Onde estão esses cães ingratos que tantas vezes eu conduzi à vitória e ao triunfo? Sem mim, logo teriam sido destruídos, como chacais acuados por caçadores.

–Não pense em seus camaradas e parceiros de sua vida de pecados – disse Pantaka. – Pense em sua alma e aproveite, na última hora, a possibilidade de salvação que se apresenta ao senhor. Trouxe água potável para o senhor, deixe-me lavar suas feridas. Talvez eu consiga salvar sua vida.

–É inútil – respondeu Magaduta. – Estou condenado. Os canalhas me feriram mortalmente. Miseráveis ingratos! Bateram em mim com os golpes que eu mesmo lhes ensinei.

–O senhor colhe o que plantou – prosseguiu o monge. – Se o senhor ensinasse seus camaradas a fazer boas ações, receberia deles boas ações. Mas o senhor lhes ensinou o assassinato e por isso, por força de suas próprias ações, foi morto pelas mãos deles.

–É verdade – disse o atamã dos salteadores. – Mereci meu destino, mas meu fardo é tão pesado que, nas existências futuras, vou ter de colher os frutos de todos os males que cometi. Ensine-me, pai santo, o que posso fazer para aliviar minha vida dos pecados que me oprimem como uma rocha sobre o peito.

E Pantaka disse:

–Elimine seus desejos pecaminosos, destrua as paixões malignas e encha a alma de bondade para todas as criaturas.

O atamã respondeu:

–Fiz muito mal e nenhum bem. Como posso me desvencilhar dessa teia de sofrimento que teci com os desejos malignos de meu coração? Meu karma me arrasta para o inferno, nunca estarei em condições de trilhar o caminho da salvação.

O monge disse:

–Sim, nas futuras encarnações, seu karma colherá os frutos das sementes que o senhor semeou. Para aquele que pratica más ações não há como escapar das consequências das próprias más ações. Mas não se desespere: todo homem pode se salvar, na condição de que erradique de si mesmo a ilusão da individualidade. Como exemplo disso, vou contar a história do grande bandoleiro Kandata, que morreu impenitente e nasceu de novo como um diabo no inferno, onde se atormenta com os mais terríveis sofrimentos por causa das próprias más ações. Ele já estava no inferno havia muitos anos e não conseguia escapar de sua situação aterradora, quando Buda apareceu na terra e alcançou a bem-aventurada condição da iluminação. Naquele tempo memorável, um raio de luz caiu no inferno, inspirou vida e esperança em todos os demônios e o bandoleiro Kandata gritou bem alto: “Ah, Buda bendito, tenha piedade de mim! Sofro horrivelmente; apesar de ter feito o mal, agora desejo seguir o caminho da virtude. Mas não consigo me desvencilhar da rede de sofrimento; ajude-me, senhor, tenha piedade de mim!”. A lei do karma determina que as más ações levem à destruição.

“Quando Buda ouviu o apelo do demônio sofredor no inferno, mandou para ele uma aranha numa teia e a aranha disse: ‘Agarre-se à minha teia, suba por ela e saia do inferno’. Quando a aranha desapareceu, Kandata se agarrou à teia e começou a escalar. A teia era tão forte que não se rompeu e Kandata subia cada vez mais, agarrado a ela. De repente sentiu que o fio começou a tremer e oscilar, porque atrás dele outros sofredores também começavam a subir pela teia. Kandata se assustou; viu a finura da teia e viu que ela se esticava por causa do peso que aumentava. Mas ainda assim a teia o sustentou. Até então, Kandata tinha olhado só para cima, mas agora olhava para baixo e via que, atrás dele, subia pela teia a incontável multidão dos habitantes do inferno. Como pode esse fio fino sustentar o peso de toda essa gente?, pensou, assustado, e gritou bem alto: ‘Larguem a teia, ela é minha!’. E de repente a teia se rompeu e Kandata caiu de volta no inferno. A ilusão da individualidade ainda estava viva em Kandata. Ele não conhecia a força milagrosa da aspiração sincera de elevar-se, com o propósito de tomar o caminho da virtude. Essa aspiração é fina como uma teia, mas pode sustentar milhões de pessoas e, quanto mais pessoas subirem pela teia, mais fácil será para cada uma delas. Porém, assim que surgir no coração do homem a ideia de que a teia é minha, de que a bênção da virtude pertence a mim somente e de que ninguém pode dividi-la comigo, o fio vai se romper e a pessoa vai tombar de volta para a situação anterior, de uma individualidade separada dos outros; a separação e a individualidade são uma maldição e a união é uma bênção. O que é o inferno? O inferno não é nada mais do que o egoísmo, e o nirvana é a vida compartilhada...”

–Deixe-me agarrar essa teia – disse Magaduta, o moribundo atamã dos salteadores, quando o monge terminou sua história – para que eu saia das profundezas do inferno.

Magaduta ficou alguns minutos em silêncio, reunindo os próprios pensamentos, depois prosseguiu:

–Escute, estou reconhecendo você. Eu era criado de Pandu, o joalheiro de Kolchambi. Mas depois, quando ele me torturou injustamente, fugi e me tornei atamã dos salteadores. Algum tempo atrás, soube por meus batedores que ele ia atravessar as montanhas e então o ataquei e tomei a maior parte de seu tesouro. Agora vá falar com ele e diga que eu o perdoo de todo o coração pela afronta que fez cair sobre mim injustamente e que peço perdão a ele por ter roubado sua fortuna. Quando eu vivia com ele, seu coração era cruel, duro como pedra, e aprendi o egoísmo com ele. Ouvi dizer que agora ele se tornou bondoso e que o apontam como modelo de bondade e de virtude. Não quero ficar em dívida com ele; por isso lhe diga que guardei a coroa de ouro que ele fez para o rei, bem como todos os seus tesouros, e escondi numa catacumba. Só dois salteadores sabiam o lugar e agora ambos estão mortos; que Pandu traga homens armados, vá a esse lugar e pegue de volta os bens que tomei dele.

Depois disso, Magaduta contou onde ficava a catacumba e morreu nos braços de Pantaka.

Assim que o jovem monge Pantaka voltou para Kolchambi, foi falar com o joalheiro e contou tudo que havia acontecido na floresta.

Acompanhado de homens armados, Pandu foi à catacumba e retirou de lá todos os tesouros que o atamã havia escondido. Enterraram com honra o atamã e seus camaradas mortos, e Pantaka, junto ao túmulo, discursando sobre as palavras de Buda, disse o seguinte:

–A pessoa faz o mal, a própria pessoa sofre por ele. A pessoa se abstém do mal, a pessoa se purifica. A pureza e a impureza pertencem à pessoa: ninguém pode purificar o outro. O próprio homem deve fazer o esforço; os Budas são apenas os pregadores. Nosso karma – disse ainda o monge Pantaka –, não é uma criação de Ishvara nem de Brama nem de Indra nem de qualquer um dos deuses. Nosso karma é consequência de nossas ações. Minha ação é o útero que me gesta, é a herança que me cabe, é a maldição de minhas más ações e a bênção de minha virtude. Minha ação é o único meio de minha salvação.

Pandu levou todo o seu tesouro de volta para Kolchambi e, aproveitando com moderação sua riqueza, devolvida de modo tão inesperado, viveu em paz e feliz o resto de sua existência e, à beira da morte, já em idade muito avançada, todos os filhos, filhas e netos estavam reunidos à sua volta e ele lhes disse:

–Filhos queridos, não censurem os outros por seus próprios insucessos. Procurem em si mesmos a causa de seu próprio infortúnio. E, se não estiverem cegos pela vaidade, vão descobrir a causa e assim poderão se desvencilhar do mal. O remédio para seus infortúnios está em vocês mesmos. Que sua visão mental nunca seja encoberta pelo véu de Maia... Lembrem-se destas palavras, que foram o talismã de minha vida: “Aquele que prejudica os outros faz o mal a si mesmo. Aquele que ajuda os outros faz o bem a si mesmo”. Que desapareça o erro da individualidade, e então vocês tomarão o caminho da virtude.

1894

TRÊS PARÁBOLAS

PRIMEIRA PARÁBOLA

Ervas daninhas cresceram num pasto bom. Para se livrarem delas, os proprietários do pasto cortaram as ervas, mas isso serviu apenas para que se multiplicassem. Então um senhor bondoso e sensato visitou os proprietários do pasto e, entre outros ensinamentos que lhes transmitiu, disse que não era preciso cortar a erva daninha, pois isso só servia para que ela se espalhasse mais ainda, e que o necessário era arrancá-la pela raiz.

Porém, ou porque os proprietários do pasto, entre as diversas instruções do senhor sensato, não tivessem dado atenção àquela que dizia que não se devia cortar a erva daninha, mas arrancá-la pela raiz, ou porque não o compreendessem, ou porque não quisessem de fato agir assim, aconteceu que a instrução de não cortar a erva daninha, mas sim arrancá-la pela raiz, não foi cumprida, como se nunca tivesse existido, e as pessoas continuaram a cortar a erva daninha, que assim se propagava ainda mais. Embora nos anos seguintes houvesse pessoas que lembrassem aos proprietários do pasto a orientação do senhor sensato e bondoso, eles não deram ouvidos e continuaram a agir como antes, de tal modo que cortar a erva daninha na hora em que ela surgia se tornou não só um costume como até uma tradição sagrada, e o pasto ficou cada vez mais cheio de ervas daninhas. E chegou o momento em que só havia ervas daninhas no pasto, as pessoas se queixavam, todos inventavam os mais variados meios de remediar a questão, mas só não empregavam justamente aquele proposto havia muito tempo pelo senhor bondoso e sensato. E então aconteceu que um homem, vendo o estado lamentável do pasto e tendo encontrado entre as instruções esquecidas do senhor bondoso e sensato a regra de não cortar a erva daninha, mas sim arrancá-la pela raiz, aconteceu que esse homem lembrou aos proprietários do pasto que eles agiram de maneira insensata e que aquela insensatez já havia sido apontada pelo senhor bondoso e sensato.

E então? Em lugar de verificar a validade da advertência daquele homem e, em caso de ele ter razão, parar de cortar a erva daninha, ou em caso de ele estar errado, mostrar o equívoco de sua advertência ou reconhecer que as instruções do senhor bondoso e sensato não tinham fundamento e não eram obrigatórias, os proprietários do pasto não fizeram nem uma coisa nem outra e tampouco uma terceira, mas ficaram ofendidos com a advertência do homem e o insultaram. Chamaram-no de louco orgulhoso, que imaginava ser o único capaz de entender as instruções do senhor, outros o chamaram de deturpador malévolo e caluniador, outros ainda, esquecidos de que ele não estava falando por si, mas apenas recordava as instruções deixadas para todos pelo senhor sensato, o chamaram de homem maligno, que desejava reproduzir a erva daninha e tomar o pasto que era deles.

–Ah, está dizendo que não precisa cortar, mas se não aniquilarmos a erva – disseram, silenciando deliberadamente o fato de que o homem não dizia que não era necessário aniquilar a erva daninha e sim que não era preciso cortar, mas sim arrancá-la pela raiz –, então a erva daninha vai se espalhar e acabar matando nosso pasto. Mas então para que nos foi dado o pasto, se temos de cultivar nele ervas daninhas?

E a opinião de que aquele homem era louco ou caluniador, ou tinha o intuito de causar dano às pessoas, ganhou tanto apoio que todos o acusavam e todos zombavam dele. Por mais que o homem explicasse que não só não desejava propagar a erva daninha como, ao contrário, considerava a aniquilação da erva daninha uma das tarefas mais importantes de um proprietário de terras, como entendia também o senhor bondoso e sensato cujas palavras ele apenas havia recordado – por mais que explicasse tudo isso, não lhe davam ouvidos, porque a decisão definitiva era de que aquele homem era ou um orgulhoso louco, que deturpava as palavras do senhor bondoso e sensato, ou um canalha que convocava as pessoas não para a destruição da erva daninha, e sim para sua proteção e propagação.

O mesmo aconteceu comigo, quando mostrei o preceito evangélico da não resistência ao mal pela força. Essa regra foi pregada por Cristo e, depois dele, em todos os tempos e por todos os seus discípulos verdadeiros. Porém, ou porque não o compreenderam, ou porque o cumprimento de tal regra se revelou difícil demais – quanto mais tempo passava, mais a regra era esquecida, mais a forma de vida das pessoas se afastava dessa regra, e por fim chegou-se ao ponto em que estamos agora, em que essa regra já parece às pessoas algo novo, nunca visto, estranho e até louco. E comigo aconteceu o mesmo que com o homem que lembrou às pessoas a instrução antiga do senhor bondoso e sensato, segundo a qual não se deve cortar a erva daninha, mas arrancá-la pela raiz.

Assim como os proprietários do pasto silenciaram deliberadamente o fato de que o conselho não consistia em não aniquilar a erva daninha, mas sim em aniquilá-la de forma sensata, e disseram: não vamos dar ouvidos a esse homem, ele é louco, manda não cortar a erva daninha, mas reproduzi-la, assim também foram tratadas minhas palavras que afirmavam que, segundo o ensinamento de Cristo, para destruir o mal não devemos nos opor a ele por meio da força, mas sim destruí-lo pela raiz por meio do amor, e disseram: não vamos dar ouvidos a ele, é louco; aconselha não se opor ao mal para que o mal nos vença.

O que eu disse foi que, segundo o ensinamento de Cristo, o mal não pode ser erradicado por meio do mal, que toda resistência ao mal por meio da força só serve para aumentar o mal, que segundo o ensinamento de Cristo o mal é erradicado pelo bem: “Abençoa quem te amaldiçoa, reza por quem te ofende, faz o bem a quem te odeia, ama teus inimigos, e não terás inimigos”.1 Eu disse que, segundo o ensinamento de Cristo, toda a vida do homem é uma luta contra o mal, uma resistência ao mal por meio da razão e do amor, mas que, entre todos os meios de se opor ao mal, Cristo exclui o meio insensato de se opor ao mal por meio da força, que consiste em lutar contra o mal com o próprio mal.

E essas minhas palavras foram entendidas como se eu tivesse dito que Cristo ensina que não é preciso se opor ao mal. E todos aqueles cuja vida se baseia na violência, pessoas a quem por isso mesmo a violência é algo caro, receberam muito bem tal interpretação de minhas palavras e, ao mesmo tempo, das palavras de Cristo, e ficou estabelecido que o ensinamento da não resistência ao mal é um ensinamento falso, absurdo, ímpio e nocivo. E as pessoas continuam tranquilamente a disseminar e aumentar o mal, sob o pretexto de aniquilá-lo.

SEGUNDA PARÁBOLA

Pessoas faziam negócios com farinha, manteiga, leite e todo tipo de comestíveis. E, disputando umas com as outras, no intuito de ganharem o máximo possível e ficarem ricas rapidamente, passaram a misturar cada vez mais substâncias nocivas e baratas em suas mercadorias: na farinha misturavam farelo e cal, na manteiga punham margarina, no leite, água e giz. Mas enquanto as mercadorias não chegavam aos consumidores, tudo corria bem: os atacadistas vendiam aos varejistas e os varejistas vendiam aos mascates.

Havia muitos armazéns e lojas e o comércio parecia correr de vento em popa. E os negociantes estavam satisfeitos. Mas para os consumidores da cidade, aqueles que não produziam o próprio alimento e por isso tinham de comprá-lo, era muito desagradável e nocivo.

A farinha era ruim, a manteiga e o leite eram ruins, mas como nos mercados das cidades não havia outras mercadorias senão as adulteradas, os consumidores da cidade continuavam a comprar aquelas mercadorias e atribuíam a si mesmos, e à maneira errada de preparar a comida, o paladar ruim que sentiam nos alimentos e os danos à saúde que causavam. E os comerciantes misturavam aos produtos quantidades cada vez maiores de substâncias baratas e estranhas aos alimentos.

Isso durou muito tempo; os habitantes da cidade não paravam de sofrer e ninguém se decidia a manifestar seu descontentamento.

E aconteceu de aparecer na cidade uma proprietária de terras que sempre havia alimentado a família com o que fazia na própria casa. Ela se havia ocupado a vida inteira com o preparo dos alimentos e, embora não fosse uma cozinheira extraordinária, sabia fazer um pão gostoso e preparar almoços saborosos.

Essa proprietária fez compras nos armazéns da cidade e começou a cozinhar e assar. Os pães não assavam direito, se desmanchavam. As panquecas não ficavam gostosas por causa da manteiga com margarina. A proprietária deixava o leite descansar, mas ele não formava nata. Ela logo entendeu que as mercadorias não eram boas. Examinou os alimentos e sua suspeita se confirmou: na farinha achou farelo, na manteiga, margarina, no leite, giz. Tendo comprovado que todos os produtos estavam adulterados, a proprietária foi ao mercado e reclamou com os comerciantes em voz bem alta e exigiu deles que oferecessem em suas barracas mercadorias boas, próprias para o consumo e que não estivessem estragadas, ou então que parassem seu comércio e fechassem suas lojas. Mas os comerciantes não deram nenhuma atenção à proprietária e lhe disseram que suas mercadorias eram de primeira qualidade, que havia muitos anos que a cidade inteira comprava deles e que tinham até ganhado medalhas, e lhe mostraram as medalhas nas molduras. Mas a proprietária não se acalmou.

–Não preciso de medalhas – disse ela –, mas de comida saudável, que não faça doer minha barriga e a dos meus filhos.

–Sem dúvida a senhora nunca soube o que são a farinha e a manteiga verdadeiras – responderam os comerciantes, apontando para a farinha de aspecto branco e puro que enchia caixas muito bem envernizadas, para a manteiga de aparência amarela, exposta em tigelas bonitas, e para um líquido branco, em jarros transparentes e brilhantes.

–É impossível que eu não saiba – respondeu a proprietária –, pois a vida inteira não fiz outra coisa senão preparar eu mesma a comida e comer junto com meus filhos. Suas mercadorias estão estragadas. Aqui está a prova – disse, mostrando o pão estragado, a margarina nas panquecas e a borra no leite. – É preciso jogar todas as suas mercadorias no rio ou então queimar, e oferecer em seu lugar mercadorias boas! – E a proprietária não parava, ficou na frente das barracas, gritava sempre a mesma coisa para os compradores que chegavam e os compradores começaram a hesitar.

Então, vendo que a atrevida proprietária podia prejudicar seu comércio, os comerciantes disseram aos compradores:

–Vejam só, senhores, como essa mulher está louca. Quer matar todo mundo de fome. Está mandando queimar ou jogar no rio todos os alimentos. O que vocês vão comer, se obedecermos e não vendermos comida para vocês? Não deem ouvidos a ela: é uma roceira ignorante, não sabe usar os alimentos e põe a culpa em nós só por inveja. É pobre e quer que todo mundo fique pobre como ela.

Assim falavam os comerciantes para a multidão que se havia reunido, calando de propósito o fato de que a mulher não queria destruir os alimentos, mas substituir os ruins por bons.


E então a multidão se voltou contra a mulher e passou a xingá-la. E por mais que garantisse a todos que não queria destruir os alimentos e que, ao contrário, tinha se ocupado a vida toda com comida, que havia alimentado os outros e a si mesma, e que queria apenas que as pessoas que forneciam produtos comestíveis não envenenassem seus fregueses com substâncias adulteradas, sob a aparência de comida, quanto mais ela falava e a despeito do que ela dizia, não lhe davam ouvidos, porque ficou decidido que ela queria privar as pessoas dos alimentos indispensáveis a elas.

O mesmo aconteceu comigo com relação à ciência e à arte de nosso tempo. A vida toda, eu me nutri desse alimento e – bom ou ruim – tentei alimentar com ele outras pessoas a meu alcance. E como, para mim, isso é um alimento e não um objeto de comércio ou de luxo, sem dúvida sei quando um alimento é alimento e quando apenas parece ser. Então, quando provei o alimento que começou a ser vendido, em nosso tempo, na feira intelectual sob o aspecto de ciência e de arte, e experimentei alimentar com ele as pessoas queridas, vi que a maior parte dessa comida não era verdadeira. E quando eu disse que essa ciência e essa arte que comercializam na feira intelectual têm margarina ou, pelo menos, vêm com uma mistura de muitas substâncias estranhas à ciência e à arte verdadeiras, e que sei disso porque os produtos comprados por mim na feira intelectual se mostraram incomestíveis para mim e para pessoas próximas a mim, e não só incomestíveis como francamente nocivos, então começaram a gritar contra mim, passaram a me vaiar e me advertir de que aquilo acontecia porque eu não era instruído, não sabia como lidar com coisas tão elevadas. Quando comecei a mostrar que os próprios comerciantes de tais mercadorias intelectuais se acusavam uns aos outros, o tempo todo, de engano; quando fiz ver que em todo o tempo, sob o nome de ciência e de arte, oferecem às pessoas muita coisa nociva e ruim, e que por isso também nosso tempo tem esse mesmo perigo pela frente, que esse assunto não é uma brincadeira, que o veneno espiritual é muitas vezes mais perigoso do que o veneno corporal e que por isso é preciso, com a máxima atenção, acompanhar os produtos espirituais que nos são fornecidos sob o aspecto de alimento e pôr de lado decididamente tudo o que houver de falso e nocivo – quando comecei a dizer isso, ninguém, ninguém, nenhuma pessoa, em nenhum artigo ou livro, respondeu a meus argumentos, mas de todas as barracas da feira começaram a gritar, como fizeram àquela mulher: “Ele é louco! Ele quer aniquilar a ciência e a arte, aquilo de que vivemos. Cuidado com ele, não lhe deem ouvidos! Venham, sejam bem-vindos à nossa feira! Temos as últimas mercadorias vindas do exterior”.

TERCEIRA PARÁBOLA

Viajantes caminhavam. E aconteceu de saírem da estrada e assim tiveram de andar não numa trilha plana, mas num pântano, com mato fechado, espinhos, galhos pontudos que barravam a passagem, e ficou cada vez mais difícil deslocar-se.

Então os viajantes se dividiram em dois grupos: um resolveu seguir direto, sem parar, na direção em que estavam indo, garantindo a si mesmos e aos demais que não tinham se extraviado da direção correta e que, no final, chegariam ao destino da viagem; o outro grupo decidiu que a direção em que estavam andando agora obviamente estava errada – do contrário, já teriam chegado ao destino da viagem –, portanto era preciso procurar o caminho e, para procurá-lo, era necessário se deslocar o mais depressa possível, e sem parar, em todas as direções. Todos os viajantes se dividiram entre as duas opiniões: uns resolveram seguir sempre em linha reta e os outros resolveram andar em todas as direções, mas havia um homem que não concordava com nenhuma das duas opiniões e disse que, antes de seguir na direção em que já estavam indo ou de começar a andar depressa em todas as direções, na esperança de assim conseguir encontrar o rumo correto, era preciso antes de tudo parar e refletir sobre a situação em que estavam e, depois de refletir bastante, optar por uma coisa ou outra. Mas os viajantes estavam tão estimulados pelo movimento, tão assustados com sua situação, queriam tanto alimentar sua esperança de que não tinham se perdido, mas que apenas tinham se desviado da estrada por um breve tempo e que logo encontrariam outra vez o caminho e era tão grande, sobretudo, a vontade de abafar seu medo com o movimento que aquela opinião foi recebida com descontentamento geral, acusações e zombarias, tanto de um grupo quanto do outro.

–Esse é o conselho da fraqueza, da covardia, da preguiça – disseram uns.

–Que boa maneira de chegar ao destino da viagem, ficar parado no mesmo lugar, não se mover! – disseram outros.

E por mais que o homem que se afastou da maioria explicasse que, andando para uma direção falsa, sem mudar de rumo, seguramente não nos aproximaríamos de nosso destino e sim nos afastaríamos dele, e também que não chegaríamos ao destino se nos deslocássemos de um lado para outro e que a única maneira de chegar ao destino consistia em avaliar a posição do Sol e das estrelas e assim descobrir qual direção nos levaria a nosso destino, e uma vez definida a direção, segui-la, mas que para fazer isso era necessário em primeiro lugar deter-se um pouco, não para ficar parado no mesmo lugar, mas para poder descobrir o caminho verdadeiro e depois, já com segurança, segui-lo, e que para uma coisa e para outra era preciso primeiro parar um tempo e refletir – por mais que ele explicasse tudo isso, não lhe davam ouvidos.

E o primeiro grupo dos viajantes seguiu em frente na direção que já vinha seguindo, o segundo grupo começou a se movimentar de um lado para outro, mas nem um nem outro se aproximou do destino, sequer conseguiram sair da mata fechada e dos espinhos e até agora estão vagando sem rumo.

Exatamente a mesma coisa aconteceu comigo, quando tentei exprimir a dúvida de que o caminho pelo qual vagávamos na floresta escura da questão do trabalho e no pântano sem fim do armamento dos povos em que nos afundamos não pode ser absolutamente o caminho que precisamos trilhar, que é muito provável que tenhamos nos perdido da estrada e, por isso, perguntei se não era melhor deter por um tempo esse processo obviamente vão e analisar, antes de tudo, segundo os princípios gerais e eternos da verdade que nos foi revelada, que direção é essa em que estamos avançando e qual será aquela que temos de fato a intenção de seguir. Ninguém respondeu a essa pergunta, ninguém disse: não nos enganamos de direção e não estamos vagando sem rumo, temos certeza disso por tal e tal razão. Também ninguém disse: talvez tenhamos cometido um erro, mas temos um modo incontestável de remediar esse erro, sem deter nosso movimento. Ninguém disse nem uma coisa nem outra. Todos se irritaram, ficaram ofendidos e trataram logo de falar alto e em uníssono para abafar minha voz solitária.

–Do jeito que estão as coisas, já somos preguiçosos e atrasados. E agora ainda vem ele pregar a preguiça, a perda de tempo, a indolência!

Alguns até acrescentaram: a vadiagem.

–Não deem ouvidos a ele, vamos em frente, sigam-nos! – gritaram aqueles que acham que a salvação consiste em não mudar a direção e seguir de uma vez o rumo já escolhido, seja ele qual for, e também aqueles que acham que a salvação consiste em se deslocar em todas as direções.

–Parar para quê? Pensar em quê? Vamos em frente e depressa! Tudo vai se arranjar!

As pessoas perderam o caminho e sofrem por isso. Era de imaginar que o primeiro e principal empenho das energias devia ser direcionado não para o reforço do movimento que nos levou a esta situação falsa em que nos encontramos, mas sim para deter esse movimento. Era de imaginar que estivesse claro que só parando conseguiríamos entender, por pouco que fosse, nossa situação e descobrir a direção que temos de seguir, a fim de chegar ao bem verdadeiro, não de um só homem, não de uma classe de pessoas, mas o bem verdadeiro e geral da humanidade, a que aspiram todas as pessoas e cada coração humano em separado. Mas o que acontece? As pessoas inventam todos os meios possíveis, menos o único capaz de salvá-las, ou se não de salvá-las pelo menos de aliviar sua situação, justamente aquele que consiste em se deter, ainda que só por um minuto, em vez de continuar a reforçar suas desgraças com a mesma atividade falsa. As pessoas sentem o desastre de sua situação e fazem todo o possível para se esquivar, porém justamente o que, com certeza, aliviaria sua situação, isso elas não querem fazer de jeito nenhum, e qualquer conselho para agir assim as deixa mais irritadas do que qualquer outra coisa.

Se ainda é possível haver alguma dúvida de que perdemos o rumo, essa reação ao conselho para refletir demonstra, com toda a evidência, como nos perdemos de forma inapelável e como é grande nosso desespero.

1895

O PATRÃO E O TRABALHADOR
I

 

 

 

Aconteceu nos anos 70, no inverno, um dia depois do dia de São Nicolau.1 Havia festa na paróquia e Vassíli Andreitch Brekhúnov, dono de uma estalagem e comerciante da segunda guilda,2 não podia se ausentar: tinha de ir à igreja – era um decano da igreja – e, em casa, tinha de receber e servir parentes e conhecidos. Porém, assim que os últimos convidados se foram, Vassíli Andreitch logo tratou dos preparativos para ir a uma propriedade vizinha a fim de concretizar a aquisição de um bosque, que ele vinha negociando havia muito tempo. Vassíli Andreitch tinha pressa de partir para que comerciantes da cidade não tomassem sua frente naquela compra vantajosa. O jovem proprietário pediu dez mil rublos pelo bosque, só porque Vassíli Andreitch lhe ofereceu sete mil. E sete mil equivaliam apenas a um terço do valor real do bosque. Talvez Vassíli Andreitch ainda barganhasse um pouco mais, o bosque se encontrava na sua área e, entre ele e os comerciantes de aldeia da região, havia um acordo antigo segundo o qual um comerciante não devia aumentar o preço das terras na área do outro, no entanto Vassíli Andreitch soubera que negociantes de madeira da província planejavam fazer negócio com o bosque de Goriátchkin e decidiu ir logo fechar negócio com o proprietário. Por isso, assim que a festa acabou, tirou do cofre seus setecentos rublos, acrescentou dois mil e trezentos da igreja, que ele guardava consigo, para completar três mil rublos e, depois de contar as notas exaustivamente e enfiá-las na carteira, se arrumou para partir.

Nikita, o único dos trabalhadores de Vassíli Andreitch que não estava bêbado naquele dia, correu para atrelar os cavalos. Nikita não estava embriagado naquele dia justamente porque era um beberrão, mas agora, desde o último dia antes do grande jejum, quando bebeu até o casaco e as botas de couro que estava usando, tinha jurado não beber, e já fazia dois meses que de fato não bebia; mesmo agora não bebia, apesar da atração da bebida, servida e tomada em toda parte, nos dois primeiros dias da festa.

Nikita era um mujique de cinquenta anos, de uma aldeia próxima, sem-casa, como o chamavam, pois passava a maior parte do tempo fora de casa, trabalhando para os outros. Era estimado em toda parte por sua dedicação, habilidade, força no trabalho e sobretudo pelo caráter bom e simpático; mas não se fixava em lugar nenhum, porque duas vezes por ano, ou mais, começava a beber e então, além de gastar tudo que possuía com bebida, ainda por cima se tornava brigão e implicante. Vassíli Andreitch também o demitiu algumas vezes, mas depois contratou de novo, pois o apreciava pela honestidade, pelo amor aos animais e, sobretudo, por cobrar barato. Vassíli Andreitch não pagava a Nikita os oitenta rublos que custava um trabalhador do seu tipo, mas sim quarenta rublos, que lhe dava sem regularidade, em parcelas pequenas, e em geral não em dinheiro, mas em mercadorias de sua venda, com preços majorados.

A esposa de Nikita, Marfa, no passado uma camponesa bonita e ativa, cuidava da casa junto com um menino adolescente e duas meninas e não chamava Nikita para morar em sua casa, em primeiro lugar, porque já fazia vinte anos que ela vivia com um tanoeiro, um mujique de outra aldeia, que morava na casa deles; em segundo lugar, porque, embora maltratasse o marido à vontade quando estava sóbrio, o temia como fogo quando ele bebia muito. Certa vez, chegando em casa bêbado, certamente para se vingar da esposa por sua submissão em estado de sobriedade, Nikita arrebentou o cofre dela, pegou suas roupas prediletas, apanhou o machado e, sobre um cepo, picou em pedacinhos todos os seus vestidos e saias coloridas. Todo o salário recebido por Nikita ia para a esposa e Nikita não reclamava. Ainda agora, uns dois dias antes do feriado, Marfa foi à venda de Vassíli Andreitch e pegou farinha branca, chá, açúcar e um oitavo de vodca, no total de três rublos, e ainda pegou mais cinco rublos em dinheiro e agradeceu por isso, como se fosse um gesto de grande misericórdia, quando na verdade Vassíli Andreitch devia a Nikita vinte rublos, calculando muito por baixo.

–Alguma vez já deixei de cumprir um acordo com você? – dizia Vassíli Andreitch para Nikita. – Pegue o que precisar, depois você paga com seu trabalho. Comigo não é como com os outros: mandam esperar, fazem contas, cobram multas. Com a gente é na base da honestidade. Você me obedece e eu não deixo você abandonado.

Ao dizer isso, Vassíli Andreitch estava sinceramente convencido de que cobria Nikita de benefícios: sabia falar de modo tão convincente que todos que dependiam de seu dinheiro, a começar por Nikita, o apoiavam na convicção de que ele não trapaceava e ainda cobria todos de benefícios.

–Sei, eu entendo, sim, Vassíli Andreitch; olhe, eu trabalho e dou um duro danado para o senhor, como faria para meu pai. Entendo muito bem – respondeu Nikita, entendendo muito bem que Vassíli Andreitch o enganava, mas sentindo, ao mesmo tempo, que não adiantava nada tentar esclarecer suas contas com ele e que, enquanto não aparecesse outro lugar para ficar, era preciso viver e aceitar o que dessem.

Agora, tendo recebido a ordem do patrão de atrelar os cavalos, Nikita, como sempre alegre e bem-disposto, com os passos ágeis e vigorosos de seus pés que marchavam um atrás do outro no estábulo, retirou de um gancho uma correia pesada com freio e cabresto e, tilintando as argolas do arreio, foi para a baia fechada onde o cavalo que Vassíli Andreitch mandara atrelar estava sozinho.

–E aí, está chateado, está chateado, é, seu cabeça-dura? – disse Nikita, respondendo ao fraco relincho de saudação com que o recebeu o belo garanhão baio escuro, de estatura mediana e garupa um pouco arriada, que estava sozinho na baia. – Eh, eh! Vamos logo, primeiro vamos tomar água – disse para o cavalo exatamente como se fala para criaturas que compreendem as palavras e, depois de bater com a aba do casaco nas costas do cavalo, empoeiradas, gordas, roídas, com uma risca pelada no meio, pôs o cabresto na cabeça jovem e bonita do garanhão, soltou as orelhas e a franja, retirou o bridão e levou-o para beber água.

Depois de sair com cuidado do estábulo coalhado de esterco, Mukhórti3 começou a brincar de levantar as patas traseiras, fingindo que queria dar coices em Nikita, que o levava para o poço, correndo a trote.

–Pode fazer suas gracinhas, seu malandro! – exclamou Nikita, que sabia do cuidado com que Mukhórti erguia as patas traseiras e fingia dar coices, de modo que apenas resvalassem em seu casaco ensebado, sem bater nele de verdade, e gostava muito daquele seu jeito.

Depois de beber a água quase congelada, o cavalo bufou, sacudindo os beiços molhados e fortes, dos quais gotas transparentes pingavam do bigode para o cocho, e se aquietou, como se parasse um pouco para pensar; em seguida, de repente, relinchou bem alto.

–Se não quer, não precisa, mas fique sabendo: depois não peça mais – disse Nikita, explicando para Mukhórti, com toda a seriedade e clareza, seu modo de proceder; e depois correu para o estábulo, puxando pela rédea o jovem e belo cavalo, que resfolegava e estalava os cascos por todo o caminho.

Nenhum trabalhador estava ali; só um homem de fora, o marido da cozinheira, que tinha vindo para passar os feriados.

–Vá lá perguntar, minha alma querida – disse-lhe Nikita –, qual é o trenó que tenho de atrelar: o mais largo ou o menor?

O marido da cozinheira foi à casa, que tinha alicerces de ferro e telhado de ferro, e logo voltou com a notícia de que a ordem era atrelar o trenó menor. Nessa altura, Nikita já tinha posto a canga, prendido a cilha ornada com tachas e, levando na mão um leve arco de trenó pintado enquanto puxava o cavalo com a outra mão, se aproximava de dois trenós estacionados junto ao estábulo.

–Se é no menor, vamos no menor – disse ele, e conduziu o cavalo inteligente, que não parava de fingir que queria mordê-lo, para o intervalo entre os varais do trenó e, com ajuda do marido da cozinheira, Nikita começou a atrelar.

Quando estava quase tudo pronto e só faltava ajustar os arreios, Nikita mandou o marido da cozinheira ir ao estábulo pegar palha e ao celeiro pegar uma manta de estopa.

–Pronto, pronto, tudo bem. Eh, eh, não fique zangado! – disse Nikita, enquanto estofava o trenó com a palha de aveia recém-debulhada, trazida pelo marido da cozinheira. – Agora vamos pôr a aniagem, assim, que nem uma cama, e por cima a manta de estopa. Pronto, olhe só, assim vai ficar bom de sentar – ia falando enquanto fazia o que estava dizendo, ajeitando a manta de estopa por cima da palha, em todos os lados, ao redor do assento. – Pronto, obrigado, alma querida – disse Nikita ao marido da cozinheira. – Com dois, tudo anda mais rápido. – E, segurando as rédeas de couro, unidas por uma argola na ponta, Nikita sentou no trenó e tocou o bom cavalo, ansioso para andar, na direção do portão, por cima do esterco congelado.

–Tio Mikit, titio, ei, titio! – começou a gritar atrás dele a vozinha fina de um menino de sete anos que saiu afobado pela porta e veio correndo pelo pátio, num casaco preto, botas de feltro brancas e novas e gorro quente. – Me leve também – pediu, enquanto abotoava o casaco na corrida.

–Está bem, está bem, corre, pombinho – disse Nikita e, depois de parar, sentou no trenó o menino magrinho, pálido e radiante de alegria, o filho do patrão, e saiu para a rua.

Passava das duas horas. Fazia muito frio – uns dez graus abaixo de zero, estava escuro e ventava. Metade do céu estava coberta por uma nuvem baixa e escura. Mas no pátio o tempo estava ameno. Já na rua, dava para sentir mais o vento: a neve era varrida do telhado do celeiro do vizinho e rodopiava na esquina, perto da casa de banho. Assim que Nikita atravessou o portão e conduziu o cavalo na direção da varanda, Vassíli Andreitch, com um cigarro na boca, vestindo um casaco forrado de pele de ovelha e com o cinto bem apertado, saiu pela porta na varanda alta e coalhada de neve, que rangia sob suas botas de feltro com solas de couro, e parou. Deu uma tragada no que restava do cigarro, jogou-o junto aos pés, pisou e, soltando a fumaça entre os fios do bigode, olhando de lado para o cavalo que se aproximava, começou a levantar a gola do casaco de ambos os lados do rosto rosado, barbeado, exceto pelo bigode, mas com cuidado, para evitar que a respiração umedecesse a pele do forro da gola.

–Já está aí, é, seu brincalhão? Vamos, caia fora, já! – disse, ao ver o filho no trenó. Vassíli Andreitch estava excitado pela bebida que tomara com os convidados e por isso, ainda mais do que o costume, se mostrava satisfeito com tudo que lhe pertencia e tudo que fazia. A visão do filho, que em pensamento sempre chamava de herdeiro, agora despertou nele uma grande satisfação; estreitando os olhos e deixando à mostra os dentes compridos, olhou para o menino.

Grávida, magra e pálida, com a cabeça e os ombros embrulhados num xale de lã, de modo que só os olhos ficavam visíveis, a esposa de Vassíli Andreitch o acompanhou até a varanda e ficou atrás dele.

–Na verdade, era melhor levar o Nikita com você – disse ela, ao aparecer timidamente por trás da porta.

Vassíli Andreitch nada respondeu às palavras dela, que obviamente não lhe agradaram. Fechou a cara, zangado, e cuspiu.

–Está levando dinheiro – insistiu a esposa com a mesma voz queixosa. – E se o tempo não melhorar? É sério, pelo amor de Deus.

–Como se eu não conhecesse o caminho e precisasse necessariamente de um guia! – exclamou Vassíli Andreitch, com a estranha tensão dos lábios com que costumava falar com vendedores e compradores, pronunciando cada sílaba com uma clareza especial.

–Não, é verdade, leve o Nikita. Peço pelo amor de Deus! – repetiu a esposa, puxando o xale para o outro lado.

–Agora ela cismou e não vai mais parar... Mas como é que vou levar o Nikita?

–Puxa, Vassíli Andreitch, estou prontinho – disse Nikita, contente. – É só darem comida para os cavalos, enquanto eu não estiver aqui – acrescentou, se dirigindo à patroa.

–Vou cuidar disso, Nikituchka, vou mandar o Semion – disse a patroa.

–Pronto. E então, vamos lá, Vassíli Andreitch? – disse Nikita, esperando.

–Sim, parece que tenho de fazer a vontade de minha velha. Só que, se vamos mesmo, é melhor você pôr um agasalho mais quente – disse Vassíli Andreitch, sorrindo de novo e piscando o olho para o casaco curto de pele de Nikita, rasgado nos sovacos e nas costas, com uma franja de farrapos na borda, ensebado, desengonçado e que já tinha visto de tudo neste mundo.

–Ei, alma querida, vem cá, segure o cavalo! – gritou Nikita para o marido da cozinheira, do outro lado do pátio.

–Eu seguro, eu seguro! – guinchou o menino, tirando dos bolsos as mãozinhas vermelhas e enregeladas e segurando com elas as rédeas frias de couro.

–Só não fique muito tempo se enfeitando com esse casaco, vamos logo! – gritou Vassíli Andreitch, zombando de Nikita.

–Um momentinho só, caro Vassíli Andreitch – respondeu Nikita e, movendo depressa as botas de feltro velhas, com as pontas viradas para dentro e com solas de feltro costuradas, correu pelo pátio e entrou na isbá dos trabalhadores.

–Ei, Arinuchka, pegue meu capote perto da estufa... Vou viajar com o patrão! – exclamou Nikita, entrando correndo pela isbá e tirando um cinto do gancho.

A trabalhadora, que havia cochilado após o almoço e agora preparava o samovar para o marido, recebeu Nikita com alegria e, contagiada por sua afobação, começou a se movimentar tão depressa quanto ele e pegou na estufa um casaco péssimo, esburacado, de feltro, que deixaram ali para secar, e começou a sacudir e bater o agasalho às pressas.

–Quer dizer que você vai ter a chance de ficar sossegada com seu parceiro, hein? – disse Nikita, que por bondade sempre dizia algo gentil quando ficava sozinho com alguém.

E, puxando o cinto esticado na cintura, respirou fundo, encolheu bem a barriga e apertou o cinto com toda a força, em redor do casaco de pele de carneiro.

–Pronto, agora, sim – disse em seguida, dirigindo-se já não à cozinheira, mas ao cinto mesmo, enquanto enfiava a ponta solta na cintura da calça. – Agora não vai se soltar. – Ergueu e baixou os ombros para ganhar desenvoltura nos braços, vestiu o capote por cima, também esticou as costas para os braços ficarem mais livres, bateu com as mãos nos sovacos e pegou as luvas na estante. – Pronto, agora está certo.

–Ei, Stepánitch, era melhor enrolar os pés – disse a cozinheira –, suas botas estão um horror.

Nikita parou, como se só então lembrasse.

–É mesmo... Mas vão aguentar, não é tão longe! – E correu para fora.

–Não vai sentir frio, Nikituchka? – perguntou a patroa, quando ele se aproximou do trenó.

–Que frio, nada, estou bem quentinho – respondeu Nikita, ajeitando a palha na parte dianteira do trenó, a fim de cobrir seus pés com ela, e dobrando embaixo da palha seu chicote, desnecessário para o bom cavalo.

Vassíli Andreitch já estava sentado no trenó, coberto por dois casacos de pele e enchendo com suas costas quase todo o vão da parte traseira do trenó, e sem demora segurou as rédeas e tocou o cavalo. Nikita embarcou de um salto, pelo lado esquerdo, com o trenó já em movimento, e um pé ficou pendurado para fora.
II

 

 

 

Com um leve rangido dos esquis, o bom garanhão moveu o trenó e, em passadas ligeiras, avançou através da aldeia, pela estrada nivelada pelo gelo.

–Mas aonde você pensa que vai? Me dê o chicote, Nikita! – gritou Vassíli Andreitch, obviamente divertido com o herdeiro, que havia subido na parte traseira dos esquis. – Vou acertar em você! Corra para a mamãe, filho de uma cadela!

O menino pulou. Mukhórti acelerou o passo e, depois de dar um gemido, começou a trotar.

Krésti, a aldeia onde ficava a casa de Vassíli Andreitch, era formada por seis casas. Assim que passaram pela última, a isbá de Kuznétsov, logo notaram que o vento estava soprando muito mais forte do que imaginavam. Quase não dava mais para enxergar os caminhos. A trilha dos esquis logo se apagava e só se conseguia distinguir a estrada porque ela estava mais alta do que o terreno em volta. A neve rodopiava por todo o campo e não se via a linha que separa a terra do céu. A floresta de Tieliátin, sempre bastante visível, só de vez quando surgia, de modo vago, em meio à poeira da neve. O vento soprava do lado esquerdo, virando a crina de Mukhórti com insistência para o lado, sobre o pescoço vigoroso e bem nutrido, e empurrando na diagonal a cauda peluda, amarrada com um laço simples. A gola comprida do casaco de Nikita, sentado de lado para o vento, batia no rosto e no nariz.

–É neve demais, não dá para ele correr o que sabe – disse Vassíli Andreitch, orgulhoso de seu bom cavalo. – Uma vez, fui com ele a Pachútino e chegou lá em meia hora.

–O quê? – perguntou Nikita, que não tinha ouvido por trás da gola.

–Pachútino, cheguei lá em meia hora – gritou Vassíli Andreitch.

–É o que eu digo, esse cavalo é muito bom! – disse Nikita.

Ficaram calados. Mas Vassíli Andreitch estava com vontade de conversar.

–E então, você mandou sua mulher não dar bebida para o tanoeiro? – disse Vassíli Andreitch com a mesma voz alta, tão convencido de que Nikita devia se sentir lisonjeado de conversar com um homem tão inteligente e culto como ele, e também tão satisfeito com seu gracejo, que nem passou pela sua cabeça a ideia de que Nikita poderia não gostar daquela conversa.

De novo, Nikita não ouviu o som das palavras do patrão, levadas pelo vento.

Vassíli Andreitch repetiu o gracejo sobre o tanoeiro, com sua voz alta e clara.

–Que eles fiquem com Deus, Vassíli Andreitch, eu não me meto nesses assuntos. Contanto que ela não maltrate o menino, está tudo certo.

–É isso mesmo – disse Vassíli Andreitch. – Mas e então, vai mesmo comprar um cavalo na primavera? – perguntou, mudando de assunto.

–Não tem outro jeito – respondeu Nikita, baixando a gola do casaco e virando para o patrão.

Agora a conversa já era do interesse de Nikita e ele queria escutar tudo.

–O pequeno já cresceu, tem de arar a terra, e até agora a gente alugou um cavalo – disse ele.

–Por que não fica com aquele magro e alto? Não vou cobrar caro! – gritou Vassíli Andreitch, sentindo-se estimulado e, por isso, dando início à sua atividade predileta, aquela que absorvia todas as suas energias mentais: trapacear nos negócios.

–Ou então o senhor me dá quinze rublinhos e eu compro um na feira de cavalos – disse Nikita, sabendo que o valor do cavalo de garupa arriada que Vassíli Andreitch queria lhe empurrar era de sete rublos, mas que Vassíli Andreitch, ao lhe passar o cavalo, ia cobrar uns vinte e cinco rublos e depois Nikita ia ficar meio ano sem ver dinheiro nenhum.

–É um cavalo bom. Desejo para você o mesmo que desejo para mim. De coração. Brekhúnov não é de enganar ninguém. Deixe que eu fique com o prejuízo, não sou como os outros. Palavra de honra – gritou com a mesma voz com que tapeava seus compradores e vendedores. – É um senhor cavalo!

–Se é – disse Nikita, depois de um suspiro, e, convencido de que não tinha mais nada que ouvir, soltou a gola, que imediatamente cobriu a orelha e o rosto.

Viajaram calados por meia hora. O vento soprava forte no lado e no braço de Nikita, onde o casaco estava rasgado.

Ele se encolhia, respirava por trás da gola que cobria a boca e, no todo, não sentia frio.

–Então, o que você acha? Vamos por Karamíchevo ou vamos reto mesmo? – perguntou Vassíli Andreitch.

Por Karamíchevo, a estrada era mais movimentada e bem marcada por duas fileiras de estacas, porém o trajeto era mais longo. Seguindo reto, o caminho era mais curto, mas a estrada era pouco usada, não havia estacas marcando a estrada, ou estavam tombadas, cobertas de neve.

Nikita pensou um pouco.

–Por Karamíchevo fica mais longe, mas a estrada é melhor – disse.

–Sim, mas seguindo reto, é só passar pelo valezinho, não dá para se perder, e depois vem a floresta e aí o caminho fica mais fácil – disse Vassíli Andreitch, que preferia ir reto.

–O senhor manda – disse Nikita, e soltou de novo a gola.

Assim fez Vassíli Andreitch e, depois de percorrer meia versta, dobrou à esquerda, junto a um carvalho alto que balançava com o vento e, aqui e ali, ainda tinha algumas folhas secas presas aos galhos.

Depois da curva, o vento passou a bater quase de frente. E caía uma neve fina. Vassíli Andreitch conduzia o trenó, inflava as bochechas e soprava para baixo, através do bigode. Nikita cochilava. Seguiram calados por uns dez minutos. De repente, Vassíli Andreitch falou alguma coisa.

–O que foi? – perguntou Nikita, abrindo os olhos. Vassíli Andreitch não respondeu: estava andando com o corpo inclinado, olhando para trás e para a frente, adiante do cavalo. Com o pelo encrespado pelo suor, que encharcava a virilha e o pescoço, o cavalo avançava devagar.

–O que foi? – repetiu Nikita.

–O que foi, o que foi! – arremedou Vassíli Andreitch, zangado. – Não dá para ver as marcas da estrada! Acho que nos perdemos!

–Pare aqui um pouquinho, vou procurar a estrada – disse Nikita e, pulando ligeiro para fora do trenó, pegou o chicote embaixo da palha e foi para a esquerda do lado em que estava sentado.

Naquele ano, a neve não estava tão funda e era possível andar para todo lado, no entanto aqui e ali a neve batia no joelho e entrava nas botas de Nikita. Ele andou, tateou com os pés e com o chicote, mas não achou a estrada em lugar nenhum.

–E aí? – perguntou Vassíli Andreitch, quando Nikita voltou para perto do trenó.

–Desse lado, não tem estrada. Temos de ir para o outro lado.

–Tem alguma coisa escura lá na frente, vá dar uma olhada – disse Vassíli Andreitch.

Nikita foi até lá, se aproximou do que parecia escuro – era a terra dos campos nus de inverno que o vento havia espalhado sobre a neve, deixando manchas pretas sobre ela. Depois de ir também para a direita, voltou para o trenó, sacudiu a neve do corpo, tirou-a de dentro das botas e sentou no trenó.

–Temos de ir para a direita – disse ele, em tom decidido. – O vento estava batendo no meu lado esquerdo e agora bate bem de frente no focinho. Vá para a direita! – disse, em tom decidido.

Vassíli Andreitch obedeceu e tomou a direita. Mas a estrada não aparecia. Avançaram assim por um tempo. O vento não diminuía e caía uma neve fina.

–Pois é, Vassíli Andreitch, pelo visto a gente se perdeu mesmo – disse Nikita de repente, como que com satisfação. – O que é aquilo? – perguntou, apontando para umas ramas de batata que sobressaíam na neve.

Vassíli Andreitch deteve o cavalo, já suado, cujas ancas salientes se moviam com dificuldade.

–O que é? – perguntou.

–Acontece que a gente está no meio da plantação de Zakhárov. Olhe só onde a gente veio parar!

–Está mentindo – exclamou Vassíli Andreitch.

–Não estou mentindo, Vassíli Andreitch, estou dizendo a verdade – respondeu Nikita. – E pelo barulho dos esquis dá para ver que estamos andando numa plantação de batata; olhe lá os montes de ramas cortadas. É o campo da usina de Zakhárov.

–Olhe só onde viemos parar! – exclamou Vassíli Andreitch. – O que vamos fazer?

–Tem de seguir reto, em frente, só isso, e a gente vai dar em algum lugar – disse Nikita. – Se não é na casa de Zakhárov, a gente vai dar no sítio do senhor de terras.

Vassíli Andreitch obedeceu e conduziu o cavalo na direção indicada por Nikita. Avançaram por muito tempo. Às vezes saíam em campos nus e os esquis roncavam ao passar sobre torrões de terra congelada. Às vezes saíam sobre o restolho, ora de inverno, ora de primavera, onde se viam hastes de absinto e de palha que sobressaíam na neve e que o vento sacudia; às vezes saíam numa neve profunda, toda branca e nivelada, sobre a qual já não se via coisa alguma.

A neve caía do alto e às vezes também vinha por baixo. Era visível que o cavalo estava exausto, todo encrespado e espumoso de suor, e andava devagar. De repente, escorregou e tombou sentado numa vala ou canal. Vassíli Andreitch quis parar, mas Nikita gritou para ele:

–Que parar, nada! A gente veio, então a gente tem de voltar. Vamos, meu cavalinho! Ô, ô, meu filho! – começou a gritar para o cavalo com voz alegre, descendo do trenó e se atolando também no canal.

O cavalo deu um puxão e logo subiu no aterro congelado. Pelo visto, era um canal escavado.

–Onde é que nós estamos? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Daqui a pouco a gente vai saber! – respondeu Nikita. – Vamos em frente que logo vamos dar em algum lugar.

–Será que é a floresta de Goriátchkin? – perguntou Vassíli Andreitch, apontando para algo escuro que surgia através da neve, na frente deles.

–Vamos até lá e aí vamos ver que floresta é essa – disse Nikita.

No lado onde havia algo escuro, Nikita percebeu que folhas secas e compridas de salgueiros se mexiam depressa e por isso soube que não era uma floresta, mas um restolho, só que não queria dizer. E, de fato, mal andaram dez sájeni após o canal, apareceu algo escuro à sua frente, obviamente árvores, e ouviram um som novo e melancólico. Nikita tinha razão: não era uma floresta, mas uma fileira de salgueiros altos, com folhas que, aqui e ali, ainda sacudiam. Pelo visto, os salgueiros tinham sido plantados ao longo do canal junto a uma eira coberta. O cavalo avançou na direção do som melancólico do vento que batia nos salgueiros e, de repente, ergueu as patas dianteiras mais alto do que o trenó, desvencilhou as patas traseiras na subida da rampa, virou para a esquerda e já não estava mais atolado na neve até o joelho. Era a estrada.

–Pronto, chegamos – disse Nikita. – Só não sei onde.

O cavalo, sem se desviar do caminho, avançou pela estrada coberta de neve e não tinha ainda percorrido quarenta sájeni quando surgiu a faixa escura e reta de uma cerca de varas amarradas de uma eira coberta, sob um telhado coberto por uma grossa camada de neve, que não parava de escorrer para o chão. Depois que passaram pela eira coberta, a estrada virava a favor do vento e eles toparam com um monte de neve. Porém, mais à frente, via-se um caminho entre duas casas, de modo que o monte de neve, obviamente, tinha sido formado pelo vento bem no meio da estrada e era preciso passar por ele. De fato, depois de passarem pelo monte de neve, saíram numa rua. Na última casa, roupas penduradas num cordão sacudiam-se desesperadamente por causa do vento: camisas, uma vermelha e uma branca, calças, perneiras e uma saia. A camisa branca, agitando as mangas, se sacudia com especial desespero.

–Olhe só que mulher preguiçosa, ou então morreu e não tirou as roupas antes do feriado – disse Nikita, olhando para as camisas tremulantes.
III

 

 

 

No início da rua, o vento batia com força e o caminho estava coberto de neve, mas no meio da aldeia era mais calmo, mais quente e alegre. No terreiro de uma casa, um cachorro latia; em outro, uma mulher com a cabeça coberta por um casaco veio correndo de algum lugar e entrou pela porta da isbá, depois de parar um instante na soleira, a fim de dar uma olhadinha nos viajantes. Do meio da aldeia, vinha o som de meninas que cantavam.

Na aldeia, parecia que o vento, a neve e a friagem eram menores.

–Puxa, isto aqui é Gríchkino – disse Vassíli Andreitch.

–É mesmo – disse Nikita.

E, de fato, era Gríchkino. Aconteceu que eles se desviaram para a esquerda e percorreram umas oito verstas numa direção muito diferente daquela que tinham de tomar, no entanto mesmo assim acabaram avançando no rumo do seu destino. De Gríchkino até Goriátchkin eram umas cinco verstas.

No meio da aldeia, quase atropelaram um homem alto que vinha andando pelo meio da rua.

–Quem vem lá? – perguntou o homem, segurando o cavalo e, logo que reconheceu Vassíli Andreitch, agarrou o varal e, tateando com as mãos, avançou até o trenó e sentou-se na boleia.

Era um conhecido de Vassíli Andreitch, o mujique Issai, famoso na região como o maior ladrão de cavalos.

–Ah! Vassíli Andreitch! Para onde Deus está levando você? – disse Issai, envolvendo Nikita no cheiro da vodca que tinha bebido.

–Estamos indo para Goriátchkin.

–E olhem só onde vieram parar! Tinham de ir por Malákhovo.

–Pois é, mas a gente não conseguiu – disse Vassíli Andreitch, freando o cavalo.

–Esse cavalinho é bom – disse Issai, dando uma olhada no cavalo e, com um movimento hábil, apertou o laço muito frouxo que prendia o rabo peludo.

–Então, vão passar a noite aqui, não é?

–Não, irmão, precisamos ir em frente, a todo custo.

–É, pelo visto precisam mesmo. E esse aí, quem é? Ah! Nikita Stepánitch!

–Quem mais podia ser? – respondeu Nikita. – Agora, alma querida, diga aí como fazer para a gente não se perder outra vez.

–Mas como é que alguém pode se perder aqui? Dê a volta para trás, siga direto pela rua, vá reto toda a vida. Não pegue a esquerda. Chegue à estrada principal e então, à direita.

–Mas onde a gente sai da estrada principal? Pelo caminho do verão ou do inverno? – perguntou Nikita.

–Do inverno. E assim que você fizer a curva, tem uns arbustos e em frente aos arbustos tem um marco do caminho, um carvalho grande, ainda frondoso, então é por ali.

Vassíli Andreitch fez o cavalo dar meia-volta e seguiu pela periferia da aldeia.

–Era melhor passar a noite aqui! – gritou Issai, atrás deles.

Vassíli Andreitch não respondeu e tocou o cavalo: as cinco verstas de estrada nivelada, das quais duas eram de floresta, pareciam fáceis de percorrer, ainda mais porque o vento parecia ter amainado e a neve cessara.

Depois de percorrer de novo a rua batida e escurecida, aqui e ali, pelo estrume fresco e depois de passar pela casa com roupas penduradas, onde a camisa branca já se soltara e pendia presa apenas por uma manga congelada, eles foram de novo na direção dos salgueiros, que uivavam de dar medo, e de novo se viram em campo aberto. A nevasca não só não amainara como parecia ter ficado mais forte ainda. Toda a estrada se encontrava coberta de neve e só pelas marcas na beira do caminho era possível saber que não tinham se perdido. Porém, mais à frente, ficou difícil até distinguir as marcas, porque o vento era contrário.

Vassíli Andreitch estreitava as pálpebras, inclinava a cabeça e se esforçava para enxergar as marcas, mas em geral deixava por conta do cavalo, confiando nele. E o cavalo de fato não se perdia e avançava, virando ora para a esquerda, ora para a direita, conforme as curvas da estrada, que ele percebia com as patas, e assim, apesar de a neve cair mais forte e o vento bater com mais força, as marcas continuaram visíveis, ora à direita, ora à esquerda.

Assim passaram uns dez minutos, quando de repente, bem na frente do cavalo, surgiu algo escuro que se movia na rede oblíqua da neve varrida pelo vento. Eram viajantes, como eles. Mukhórti logo os alcançou e bateu com as patas no trenó que ia à frente.

–Passe pelo lado... ado-ado-ado... vai na frente! – gritaram do trenó.

Vassíli Andreitch começou a ultrapassar. No trenó, iam três mujiques e uma mulher. Na certa eram convidados que voltavam da festa. Um mujique deu uma lambada com uma vara na garupa coberta de neve do cavalinho. Os outros dois, abanando as mãos, gritaram algo para o que estava na frente. A mulher agasalhada, toda coberta de neve, estava sentada, quieta, taciturna, na traseira do trenó.

–De onde são vocês? – gritou Vassíli Andreitch.

–A-a-a... ski! – Ouviu-se apenas.

–De onde?

–A-a-a... ski! – gritou com toda a força um dos mujiques, mas mesmo assim era impossível entender.

–Passe! Não demore! – gritou o outro, que não parava de bater com a vara no cavalinho.

–Estão vindo da festa, não é?

–Isso, isso mesmo! Vai, Siomka! Passe! Vai!

Os trenós bateram de lado um no outro, quase se engancharam, separaram-se, e o trenó dos mujiques começou a ficar para trás.

Seu cavalinho peludo e barrigudo, todo coberto de neve, ofegava cansado sob o arco estreito e era evidente que, com suas últimas forças, tentava em vão fugir da vara que o golpeava, claudicando com suas pernas curtas na neve funda, que ele fazia espirrar embaixo de si. Com o focinho jovem, lábio inferior pendente como o de um peixe, narinas muito abertas e orelhas encolhidas de medo, ele se manteve alguns segundos ao lado do ombro de Nikita e depois começou a ficar para trás.

–Aí está o que faz a bebida – disse Nikita. – Torturam o cavalinho até acabar com ele. São uns asiáticos!

Durante alguns minutos, ouviram o bufo das narinas do cavalinho torturado e os gritos bêbados dos mujiques, depois o bufo silenciou, depois os gritos também. E de novo não se ouvia mais nada ao redor senão o assovio do vento nos ouvidos e, de vez em quando, o débil guincho dos esquis nos trechos da estrada mais varridos pelo vento.

Aquele encontro animou e alegrou Vassíli Andreitch, que, com mais audácia e sem dar atenção às marcas da estrada, tocava o cavalo para a frente, confiando nele.

Nikita não podia fazer nada e, como sempre acontecia quando se encontrava numa situação assim, cochilava para compensar todo o tempo que ficava sem dormir. De repente, o cavalo parou e Nikita por pouco não caiu para a frente.

–Olhe só, perdemos o caminho outra vez! – disse Vassíli Andreitch.

–O quê?

–Não se veem mais as marcas. Na certa, nos perdemos de novo.

–Se perdemos o caminho, temos de procurar – disse Nikita e, sem mais conversa, desceu e, pisando devagar com os pés virados para dentro, começou de novo a andar pela neve.

Andou muito tempo, sumia e reaparecia, para de novo sumir, até que afinal voltou.

–Aqui não tem estrada, talvez mais para a frente – disse e sentou no trenó.

Já começava a escurecer, dava para notar. A nevasca não aumentava, mas também não diminuía.

–Quem dera ainda pudéssemos ouvir aqueles mujiques – disse Vassíli Andreitch.

–É, mas eles não passaram, a gente deve ter se desviado para longe. Vai ver que eles também se perderam – disse Nikita.

–Para onde vamos agora? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Tem de deixar o cavalo andar sozinho – disse Nikita. – Ele vai achar o caminho. Me dê as rédeas.

Vassíli Andreitch entregou as rédeas de muito bom grado, porque suas mãos começavam a gelar dentro das luvas grossas.

Nikita pegou as rédeas e se limitou a segurar, tentando não mexer com elas, satisfeito com a inteligência de seu cavalo predileto. De fato, o cavalo inteligente, virando ora uma orelha, ora outra, ora para um lado, ora para outro, começou a dar a volta.

–Só falta falar – exclamou Nikita. – Olhe só o que está fazendo! Vai, vai, você sabe! Assim, assim.

O vento passou a soprar de trás, ficou mais quente.

–Como é sabido – Nikita continuou a exprimir seu contentamento com o cavalo. – Um cavalo quirguiz é forte, mas é bobo. Agora, este aqui, olhe só o que faz com as orelhas. Ele não precisa de telégrafo nem nada, sente o cheiro a uma versta.

E passou menos de meia hora quando, de fato, à frente deles surgiu algo escuro: uma floresta, árvores, e do lado direito surgiram de novo as marcas da estrada. Era evidente que tinham encontrado de novo a estrada.

–Olhe, é Gríchkino outra vez – exclamou Nikita, de repente.

De fato, à esquerda deles estava de novo a mesma eira coberta da qual a neve escorria e, mais adiante, a mesma corda com roupas penduradas e congeladas, as camisas e a calça que continuavam a sacudir desesperadamente com o vento.

Seguiram outra vez pela rua, ficou mais quente outra vez, mais ameno, mais alegre, via-se outra vez a estrada cheia de estrume, ouviram-se outra vez as vozes, as canções, outra vez o cachorro latiu. Já tinha escurecido tanto que em algumas janelas havia luzes acesas.

Na metade da rua, Vassíli Andreitch virou o cavalo para uma casa grande, com duas camadas de tijolos, e parou na frente da varanda.

Nikita se aproximou da janela iluminada e coberta de neve, à luz da qual cintilavam pequenos flocos de neve rodopiantes, e bateu no vidro com o cabo do chicote.

–Quem é? – gritou uma voz ao chamado de Nikita.

–De Krésti, Brekhúnov, bom homem – respondeu Nikita. – Venha cá um instante!

Afastaram-se da janela e, uns dois minutos depois, ouviu-se a tranca da porta do vestíbulo abrir, depois a batida do ferrolho da porta da rua e, segurando a porta por causa do vento, um velho mujique alto pôs a cabeça para fora, de barba branca, o casaco curto de pele aberto por cima da camisa branca de festa e, atrás dele, um rapaz de camisa vermelha e botas de couro.

–É você, Andreitch? – perguntou o velho.

–A gente se perdeu, irmão – disse Vassíli Andreitch. – Queríamos ir para Goriátchkin, mas viemos parar aqui. Partimos de novo e nos perdemos outra vez.

–É, se perderam mesmo – disse o velho. – Petrukha, vá abrir o portão! – disse para o rapaz de camisa vermelha.

–Já vou – respondeu o rapaz com voz alegre e correu para dentro.

–Nós não vamos passar a noite aqui, irmão – disse Vassíli Andreitch.

–E para onde vão assim, no meio da noite? Passem a noite aqui!

–Bem que eu gostaria, mas tenho de viajar. Negócios, irmão, não tem jeito.

–Bem, pelo menos se esquente um pouco, o samovar está pronto – disse o velho.

–Esquentar, pode ser – respondeu Vassíli Andreitch. – Não vai ficar mais escuro do que já está, a lua vai subir e a noite vai clarear. E então, que tal se esquentar um pouco, Mikit?

–É bom, sim, dar uma esquentadinha – respondeu Nikita, que sentia muito frio e queria aquecer os membros enregelados.

Vassíli Andreitch entrou com o velho na isbá, enquanto Nikita entrou pelo portão aberto por Petrukha e, por recomendação dele, levou o cavalo para baixo do telheiro do galpão. O chão estava coberto de estrume e o arco alto sobre a cabeça do cavalo agarrou na viga. O galo e as galinhas pousados na viga se agitaram descontentes com o baque e se agarraram à viga com as patas. Ovelhas se assustaram e pularam para o lado, batendo com os cascos no estrume congelado. O cachorro que latia desesperado, com medo e maldade, latiu manso como um filhotinho para o estranho.

Nikita falou um pouquinho com todos: desculpou-se com as galinhas, tranquilizou-as, dizendo que não ia mais perturbar, censurou as ovelhas por terem se assustado sem saber por quê, e não parou de dar explicações ao cachorrinho, enquanto amarrava o cavalo.

–Pronto, assim vai ficar bom – disse, enquanto tirava a neve da roupa. – Olhe como late! – acrescentou para o cachorro. – Chega, é pior para você! Chega, seu bobo. Só serve para se irritar à toa – disse. – Não somos ladrões, somos amigos...

–Esses são os três conselheiros de casa, como dizem – falou o rapaz, enquanto, com o braço forte, puxava para baixo do telheiro o trenó que continuava do lado de fora.

–Que conselheiros? – perguntou Nikita.

–É assim que está escrito em Paulson:4 o ladrão entra na casa, o cachorro late e isso quer dizer: não bobeie, atenção. O galo canta e isso quer dizer: acorde. O gato se lambe e isso quer dizer: vai chegar uma visita boa, se prepare para receber – disse o rapaz, sorrindo.

Petrukha era alfabetizado e sabia quase de cor o único livro que tinha, o de Paulson, e sobretudo quando estava um pouco embriagado, como naquele dia, gostava de extrair do livro ideias que lhe pareciam adequadas à situação.

–É isso mesmo – disse Nikita.

–Aposto que está morrendo de frio, não é, tio? – acrescentou Petrukha.

–Pois é, isso mesmo – respondeu Nikita e passaram pelo pátio, pelo vestíbulo e entraram na casa.
IV

 

 

 

A casa a que Vassíli tinha ido era uma das mais ricas da aldeia. A família tinha cinco lotes e ainda alugava uma terra vizinha. Tinham seis cavalos, três vacas, dois bezerros de um ano e umas vinte ovelhas. Ao todo, moravam na casa vinte e duas almas: quatro filhos casados, seis netos, dos quais só Petrukha era casado, dois bisnetos e três órfãos, além de quatro noras e seus filhos. Era uma das raras casas que não tinham sido divididas; mas também nela já estava em curso o surdo trabalho da disputa interna, que sempre começava entre as mulheres e que, inevitavelmente, devia em breve acarretar a separação. Dois filhos moravam em Moscou e eram aguadeiros, um estava no Exército. Agora, em casa, estavam o velho, a velha, o segundo filho, que cuidava da casa, e o filho mais velho, que viera de Moscou para passar os feriados, bem como todas as mulheres e crianças; além do pessoal da família, havia também uma visita, o vizinho, padrinho de uma das crianças.

Acima da mesa, na isbá, pendia um lampião com um grande quebra-luz, que iluminava com clareza as louças do chá, a garrafa de água, as comidas leves e as paredes de tijolos, decoradas com ícones no canto do oratório e com quadros dos dois lados. Vassíli Andreitch estava sentado à cabeceira da mesa, com um casaco de pele preto, chupando seu bigode congelado e, com os olhos proeminentes de águia, observava as pessoas e a isbá em redor. Além de Vassíli Andreitch, estava também à mesa o velho e careca dono da casa, de camisa branca, feita em casa; a seu lado, de camisa de chita, costas e ombros vigorosos, estava o filho que viera de Moscou para passar os feriados, e também outro filho de ombros largos, que tomava conta da casa, e um mujique ruivo e magricela: o vizinho.

Tendo comido e bebido, os mujiques se preparavam para tomar o chá, e o samovar já estava chiando, no chão, junto à estufa. No jirau e acima da estufa, viam-se as crianças. Uma mulher estava sentada num estrado por cima de um berço. A velha dona da casa, com o rosto coberto de rugas pequenas por todos os lados, com ruguinhas até nos lábios, fazia as honras a Vassíli Andreitch.

Na hora em que Nikita entrou na isbá, ela havia enchido de vodca um copinho de vidro grosso e oferecia a seu hóspede.

–Não rejeite, Vassíli Andreitch, não pode, tem de brindar – disse ela. – Prove, meu querido.

O aspecto e o cheiro da vodca, sobretudo agora, quando estava gelado e exausto, impressionou muito Nikita. Ele franziu as sobrancelhas, sacudiu a neve do gorro e do casaco, se postou na frente dos ícones e, como se não estivesse vendo ninguém, fez o sinal da cruz três vezes, curvou-se diante dos ícones, depois se voltou para o velho dono da casa, saudou-o com uma reverência primeiro, depois saudou da mesma forma todos que estavam à mesa, depois as mulheres que estavam perto da estufa, e disse:

–Bom feriado – e começou a tirar os agasalhos, sem olhar para a mesa.

–Puxa, está todo coberto de geada, titio – disse o irmão mais velho, olhando para o rosto, os olhos e a barba de Nikita, cobertos de neve.

Nikita tirou o casaco, sacudiu-o outra vez, pendurou junto à estufa e foi para a mesa. Também lhe ofereceram vodca. Houve um combate torturante que durou um minuto: por pouco ele não pegou o copinho e levou à boca o líquido luminoso e aromático; mas olhou de relance para Vassíli Andreitch, lembrou-se do juramento, lembrou-se das botas que havia bebido, lembrou-se do tanoeiro, lembrou-se do filho pequeno, para quem tinha prometido comprar um cavalo na primavera, deu um suspiro e recusou.

–Não bebo, muito agradecido – disse, de rosto fechado, e foi sentar-se num banco junto à segunda janela.

–Como assim? – perguntou o irmão mais velho.

–Não bebo, só isso, não bebo – disse Nikita, sem erguer os olhos, voltados para o próprio bigode e barba úmidos, enquanto retirava pedacinhos de gelo entranhados nos pelos.

–Ele não se dá bem com bebida – disse Vassíli Andreitch, enquanto mordia uma rosca, depois de beber do copinho.

–Bem, então tome um chazinho – disse a velha, carinhosa. – Deve estar todo gelado, meu querido. O que estão esperando, mulheres? Não vão aquecer o samovar?

–Está pronto – respondeu uma mocinha e, depois de abanar com o avental a tampa do samovar que fervia, levou-o com dificuldade e colocou-o com um baque sobre a mesa.

Enquanto isso, Vassíli Andreitch contava como tinham se perdido, como voltaram duas vezes àquela mesma aldeia, como se enganaram, como fora o encontro com os bêbados do outro trenó. Os anfitriões se admiraram, explicaram onde e por que eles tinham se perdido, quem eram os bêbados que encontraram na estrada e ensinaram como tinham de fazer para seguir viagem.

–Daqui a Moltchanovka, até uma criança consegue chegar, é só virar na curva da estrada, onde tem uns arbustos, dá para ver daqui. E vocês nem chegaram lá! – exclamou o vizinho.

–Ou então passam a noite aqui, é o melhor. As mulheres arrumam as camas – a velha tentou convencê-los.

–Aí partem logo de manhãzinha, é preferível – reforçou o velho.

–Impossível, irmão. Negócios! – respondeu Vassíli Andreitch. – Uma hora perdida não se recupera nem em um ano – acrescentou, lembrando-se do bosque e dos compradores que podiam se antecipar a ele naquela transação. – Vamos chegar, não é? – virou-se para Nikita.

Nikita demorou muito para responder, parecia ainda atarefado em retirar o gelo da barba e do bigode.

–Se a gente não se perder de novo – disse ele, em tom sombrio. Nikita estava sombrio porque morria de vontade de tomar vodca e a única coisa capaz de sufocar aquele desejo era o chá, mas ainda não tinham lhe servido o chá.

–Afinal, é só chegar à curva, de lá para a frente já não tem como se perder; é só ir pela floresta até o fim – disse Vassíli Andreitch.

–O senhor é que manda, Vassíli Andreitch; se tem de ir, vamos – disse Nikita, enquanto segurava o copo de chá que lhe ofereceram.

–Vamos tomar um chazinho e depois, pé na estrada.

Nikita não disse nada, apenas balançou a cabeça e, depois de derramar o chá com cuidado no pires, começou a aquecer no vapor as mãos e os dedos sempre inchados por causa do trabalho. Em seguida mordeu um minúsculo torrãozinho de açúcar, fez uma reverência para os anfitriões e disse:

–Saúde – e virou para dentro o líquido quente.

–Será que alguém pode nos guiar até a curva? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Claro, pode ser – respondeu o filho mais velho. – Petrukha vai atrelar um cavalo e levar vocês até a curva.

–Então atrele o cavalo, irmão. Agradeço muito, desde já.

–Não tem de quê, meu caro! – disse a velha carinhosa. – O prazer é nosso.

–Petrukha, atrele a égua – disse o irmão mais velho.

–É para já – respondeu Petrukha sorrindo, pegou o gorro num prego da parede e correu para atrelar o animal.

Enquanto atrelava a égua, a conversa recomeçou no ponto em que havia parado na hora em que Vassíli Andreitch bateu na janela. O velho se queixava com o vizinho de seu terceiro filho, que não lhe mandara nada para os feriados, apesar de ter mandado um xale francês para sua esposa.

–O povo jovem está ficando fora de controle – disse o velho.

–E como – disse o vizinho e padrinho. – Ninguém pode com eles! Ficaram inteligentes de doer. Olhe só o Demótchkin, quebrou o braço do pai. Tudo por causa da inteligência grande, pelo visto.

Nikita escutava, olhava para os rostos e, era evidente, também queria participar da conversa, mas estava muito ocupado tomando chá e apenas fazia que sim com a cabeça. Bebia um copo depois do outro e sentia-se cada vez mais aquecido, cada vez mais confortável. A conversa prosseguiu muito tempo, sempre sobre a mesma coisa, o prejuízo das partilhas; e a conversa, estava claro, não era em termos gerais, mas sobre a partilha naquela casa – a partilha que o filho exigia, aquele que estava ali sentado e calado. Obviamente era um assunto penoso e a questão preocupava todos da casa, mas, por decoro, não discutiam assuntos particulares na presença de estranhos. Porém, enfim, o velho não se conteve e, com lágrimas na voz, disse que não admitia a partilha enquanto estivesse vivo, que a casa estava bem, graças a Deus, e que, se dividisse, tudo iria por água abaixo.

–Olhe só o caso dos Matviéiev – disse o vizinho. – Era uma senhora propriedade, aí dividiram e agora ninguém tem nada.

–E é isso que você quer – disse o velho para o filho.

O filho não respondeu e sobreveio um silêncio incômodo. O silêncio foi interrompido por Petrukha, que, tendo atrelado o cavalo ao trenó, fazia alguns minutos que estava de volta à isbá e sorria o tempo todo.

–No livro de Paulson tem uma fábula sobre isso – disse ele. – O pai deu uma vassoura para os filhos quebrarem. De uma vez só, não conseguiram quebrar, mas um ramo de cada vez, foi fácil. É a mesma coisa – disse ele, sorrindo com a boca toda. – Está tudo pronto! – acrescentou.

–Se está pronto, vamos embora – disse Vassíli Andreitch. – E quanto à partilha, não permita, vovô. Você juntou, você é o dono. Vá falar com o juiz de paz. Ele vai mostrar o que você deve fazer.

–Ele fica martelando o tempo todo, o tempo todo – não parava de dizer o velho, com voz chorosa. – Já não sei mais o que fazer com ele. Parece possuído por Satanás!

Enquanto isso, Nikita tinha bebido o quinto copo de chá, mas em vez de colocá-lo de borco sobre o pires, deixou-o de lado, à espera de que lhe dessem o sexto copo. Porém não havia mais água no samovar e a anfitriã não lhe serviu mais, e além disso Vassíli Andreitch começou a vestir-se. Não havia o que fazer. Nikita também se levantou, devolveu ao açucareiro seu torrãozinho de açúcar roído de todos os lados, enxugou com a aba da camisa o rosto molhado de suor e foi vestir o casaco.

Depois de se agasalhar, suspirou fundo, agradeceu aos donos da casa, se despediu e saiu da sala quente e iluminada para o vestíbulo escuro, frio, coberto pela neve, onde um vento cortante penetrava pela fresta da porta frouxa, e de lá saíram para o pátio escuro.

Petrukha, de casaco de pele, estava no meio do pátio com seu cavalo e disse, sorrindo, uns versos de Paulson:

–“A tempestade esconde o céu com o nevoeiro, faz a neve subir rodopiante, ora uiva como fera, ora chora como criança.”

Nikita balançou a cabeça em sinal de aprovação e ajeitou as rédeas.

O velho, acompanhando Vassíli Andreitch, trouxe um lampião ao vestíbulo e quis pendurá-lo ali, mas o vento logo apagou o lampião. E no pátio já se notava que a nevasca caía com mais força.

“Puxa, que tempinho”, pensou Vassíli Andreitch. “Talvez fosse melhor esperar, mas não é possível, os negócios! E eu já estou pronto, o cavalo dos anfitriões já está atrelado. Vamos, e que Deus nos ajude!”

O velho também pensou que não convinha partir, mas já havia tentado convencer os viajantes a ficar e não lhe deram ouvidos. Não ia pedir mais. “Talvez seja a velhice que me faça ter medo, eles vão chegar lá”, pensou. “Pelo menos, vamos poder dormir na hora. Sem confusão.”

Petrukha já não pensava no perigo: conhecia o caminho e toda a redondeza, além disso o versinho “faz a neve subir rodopiante” lhe dava coragem, pois exprimia perfeitamente o que estava acontecendo ali fora. Nikita não tinha a menor vontade de partir, porém fazia muito tempo que estava habituado a não ter vontade própria e apenas servir aos outros, portanto ninguém impediu que os viajantes partissem.
V

 

 

 

Vassíli Andreitch, tateando no escuro com dificuldade, se aproximou do trenó, subiu nele e segurou as rédeas.

–Vá na frente! – gritou.

Petrukha, de joelhos num trenozinho baixo e sem assento, tocou seu cavalo. Mukhórti, que havia muito relinchava, sentindo à sua frente o cheiro da égua, partiu atrás dela e eles seguiram pela rua. De novo passaram pelo vilarejo, pelo mesmo caminho, pela mesma casa com as roupas penduradas e congeladas, que agora já não dava para ver; passaram pelo mesmo celeiro que já estava coberto de neve quase até o telhado, do qual a neve escorria sem parar; pelos mesmos salgueiros que farfalhavam, assoviavam e gemiam e saíram de novo no mesmo mar de neve, que se agitava com fúria, para cima e para baixo. O vento estava tão forte que, quando soprava de lado, os viajantes inflavam como velas, inclinados contra ele, ameaçava tombar os trenós e arrastava os cavalos para o lado. Petrukha seguia na frente a trote desenvolto, gritava com coragem e tocava adiante sua boa égua. Mukhórti ia atrás com esforço.

Depois que passaram assim uns dez minutos, Petrukha virou-se e gritou algo. Nem Vassíli Andreitch nem Nikita escutaram, por causa do vento, mas adivinharam que tinham chegado à tal curva. De fato, Petrukha virou à direita e o vento, que batia de lado, começou de novo a soprar contra eles e, à direita, através da neve, se avistou algo escuro. Era o bosque que ficava na curva.

–Pronto, que Deus os acompanhe!

–Obrigado, Petrukha!

–A tempestade esconde o céu com o nevoeiro – gritou Petrukha e desapareceu.

–Puxa, que poeta – exclamou Vassíli Andreitch e sacudiu as rédeas.

–É mesmo, um bom rapaz, um verdadeiro mujique – disse Nikita.

Foram em frente.

Todo encolhido nos agasalhos e com a cabeça tão enfiada entre os ombros que a barba curta espetava o pescoço, Nikita se mantinha calado, tentava não desperdiçar o calor acumulado na isbá, tomando chá. À frente, via as linhas retas dos varais do trenó, que o iludiam o tempo todo e pareciam sulcos de esquis na estrada, via a garupa ondulante do cavalo, com a cauda presa por um nó que o vento empurrava para o lado, e via mais adiante o arco alto, a cabeça oscilante e o pescoço do cavalo com a crina esvoaçante. De vez em quando, os marcos da estrada se mostravam a seus olhos, como que para lhe dizer que estava no caminho certo e que não precisava fazer nada.

Vassíli Andreitch segurava as rédeas, deixando por conta do cavalo a tarefa de seguir a estrada. Mas Mukhórti, apesar de ter descansado na aldeia, trotava de má vontade e parecia desviar-se da estrada, de modo que Vassíli Andreitch corrigia seu rumo várias vezes.

“Lá está um marco do lado direito, ali está outro, e um terceiro”, contava Vassíli Andreitch, “e lá na frente está a floresta”, pensou, olhando algo escuro mais adiante. No entanto o que lhe parecia uma floresta era apenas um pequeno bosque. Passaram pelo bosque, percorreram mais umas vinte sájeni – o quarto marco da estrada não apareceu, a floresta não apareceu. “A floresta deve estar logo adiante”, pensou Vassíli Andreitch e, animado pela vodca e pelo chá, sem parar o trenó, batia com as rédeas, e o animal, dócil e bom, obedecia e, ora a trote, ora marchando, avançava para onde o guiavam, embora soubesse que não o guiavam para onde era preciso ir. Passaram dez minutos e a floresta não aparecia.

–Parece que a gente se perdeu outra vez! – disse Vassíli Andreitch, detendo o cavalo.

Calado, Nikita desceu do trenó e, segurando o casaco, que o vento ora colava a seu corpo, ora virava para o lado e abria, caminhou com as pernas enfiadas na neve; foi para um lado, foi para o outro. Três ou quatro vezes, sumiu de vista completamente. Por fim voltou, tomou as rédeas das mãos de Vassíli Andreitch.

–Tem de ir para a direita – disse com ar severo e decidido, virando o cavalo.

–Certo, se é para a direita, vamos à direita – disse Vassíli Andreitch, entregando as rédeas e enfiando as mãos enregeladas nas mangas.

Nikita não respondeu.

–Vamos lá, amiguinho, mais depressa – gritou para o cavalo, mas o animal, apesar das rédeas sacudidas, seguia a passo lento.

A neve, em alguns pontos, batia no joelho e o trenó sacolejava aos trancos a cada movimento do cavalo.

Nikita pegou o chicote, pendurado na parte dianteira do trenó, e bateu. O bom cavalo, que não estava acostumado ao chicote, deu um arranco, trotou, mas logo passou de novo a marchar e a andar a passo lento. Passaram uns cinco minutos. Estava tão escuro e vinha tanta neblina de cima e de baixo que às vezes nem dava para ver o arco dos arreios sobre a cabeça do cavalo. Às vezes, parecia que o trenó estava parado e o campo corria para trás. De repente, o cavalo parou de supetão, sem dúvida farejou algo errado à sua frente. Nikita desceu do trenó outra vez, com agilidade, soltou as rédeas e avançou um pouco à frente do cavalo para observar por que ele havia parado; no entanto, mal deu um passo adiante do cavalo, seus pés escorregaram e ele rolou por uma escarpa.

–Opa, opa, opa – dizia para si, enquanto caía e tentava se segurar, mas não conseguia agarrar-se em nada, e só parou quando os pés se fincaram na grossa camada de neve acumulada embaixo do barranco.

Um monte de neve pendurado na beira do barranco, abalado pela queda de Nikita, desabou sobre ele e a neve entrou pelo seu colarinho...

–Ei, está pensando o quê? – exclamou Nikita para o monte de neve e para o barranco, em tom de repreensão, enquanto retirava a neve de dentro do colarinho.

–Nikita, ei, Nikita! – gritou Vassíli Andreitch, lá em cima.

Mas Nikita não respondeu.

Não tinha tempo para isso: sacudiu a neve, depois procurou o chicote, que havia largado quando rolou pelo barranco. Depois de encontrar o chicote, começou a galgar de volta por onde havia rolado, mas a subida era impossível; sempre escorregava de novo, portanto era preciso descer e procurar outro caminho de volta para cima. A três ou quatro sájeni do local onde havia despencado, Nikita subiu com dificuldade, de gatinhas, até chegar à beirada do barranco, ao lugar onde deveria estar o cavalo. Mas não viu nem o cavalo nem o trenó; porém, como andava contra o vento, antes de vê-los, ouviu os gritos de Vassíli Andreitch e o relincho de Mukhórti, chamando por ele.

–Já vou, já vou, não precisa se esgoelar! – exclamou.

Assim que chegou ao trenó, viu o cavalo e, de pé a seu lado, Vassíli Andreitch, que parecia enorme.

–Que diabo, onde você se meteu? Temos de ir para trás. Vamos voltar para Gríchkino – irritado, o patrão começou a esbravejar para Nikita.

–Eu bem que gostaria de voltar, Vassíli Andreitch, mas por onde? Por aqui tem um barranco que não tem mais tamanho. Se entrar, não sai mais. Despenquei lá para baixo e quase morri para voltar.

–Mas então vamos ficar aqui? Temos de ir para algum lugar – disse Vassíli Andreitch.

Nikita nada respondeu. Sentou-se no trenó de costas para o vento, descalçou os pés, bateu para fora a neve que enchia as botas, apanhou um punhado de palha e, com cuidado, por dentro, encheu um buraco que havia na bota esquerda.

Vassíli Andreitch ficou calado, como se agora tivesse deixado tudo por conta de Nikita. Depois de se calçar, Nikita ajeitou as pernas no trenó, calçou de novo as luvas, segurou as rédeas e fez o cavalo dar meia-volta na beira do barranco. Porém, mal deram cem passos, o cavalo empacou de novo. À sua frente, havia outro barranco.

Nikita desceu outra vez e começou a andar com esforço pela neve funda. Caminhou muito tempo. Por fim ressurgiu do lado oposto àquele por onde tinha ido.

–Andreitch, está vivo? – gritou.

–Aqui! – respondeu Vassíli Andreitch. – O que foi?

–Não dá para enxergar nada. Está escuro. É cheio de barrancos por todo lado. Temos de ir de novo na direção do vento.

Avançaram outra vez, Nikita caminhou outra vez, andando com esforço na neve funda. Subiu no trenó outra vez, caminhou outra vez e, por fim, sem fôlego, parou junto ao trenó.

–Então, o que foi? – perguntou Vassíli Andreitch.

–O que foi é que eu não estou mais me aguentando em pé! E o cavalo também não.

–E o que vamos fazer?

–Pois é, espere um pouco.

Outra vez Nikita se afastou e logo voltou.

–Venha atrás de mim – disse, caminhando na frente do cavalo.

Vassíli Andreitch já não dava ordem nenhuma e, obediente, fez o que Nikita lhe dizia.

–Aqui, atrás de mim! – gritou Nikita, afastando-se depressa para a direita, puxando Mukhórti pela rédea e conduzindo-o para um monte de neve, mais abaixo.

De início, o cavalo relutou, mas depois avançou, esperando galgar o monte de neve, mas não conseguiu e afundou-se na neve até o pescoço.

–Desce! – gritou Nikita para Vassíli Andreitch, que continuava sentado no trenó e, depois de segurar com força um varal, começou a puxar o trenó na direção do cavalo. – Está meio difícil, irmão – disse para Mukhórti. – Mas qual é o jeito? Faz uma forcinha, vai! Ô, ô, mais um pouquinho! – gritou.

O cavalo deu uma arrancada, e outra, mas não se livrou da neve e parou de novo, como se estivesse pensando em alguma coisa.

–O que foi, irmão? Desse jeito não pode ficar – Nikita exortou Mukhórti. – Vamos, mais um pouco!

De novo, Nikita puxou o varal do seu lado; Vassíli Andreitch fez o mesmo com o outro varal. O cavalo sacudiu a cabeça e depois deu um tranco repentino.

–Isso! Vamos! Não vai ficar aí soterrado! – gritou Nikita.

Um solavanco, outro, um terceiro e por fim o cavalo se desvencilhou do monte de neve e parou, sacudindo-se, ofegante. Nikita queria ir em frente, mas Vassíli Andreitch arquejava tanto embaixo de seus dois casacos de pele que não conseguia andar e desabou dentro do trenó.

–Deixe-me tomar fôlego – disse, soltando o lenço que, na aldeia, tinha amarrado em torno da gola do casaco de pele.

–Tudo bem, você fica deitado – disse Nikita. – Eu guio. – E, com Vassíli Andreitch no trenó, foi a pé e conduziu o cavalo, puxando pelo bridão, avançou uns dez passos, depois subiu um pouco e parou.

O lugar onde Nikita havia parado não ficava propriamente no fundo de uma depressão, onde a neve varrida dos montes de neve poderia soterrá-los por completo, acumulando-se ali embaixo, mas era um lugar parcialmente protegido do vento pela beira do barranco. Havia momentos em que o vento parecia amainar um pouco, mas isso não durava muito e em seguida, como se quisesse compensar o descanso, a tempestade arremetia com força decuplicada e rugia e fazia rodopiar a neve com mais fúria ainda. Uma rajada de vento desse tipo os atingiu no minuto em que Vassíli Andreitch, tendo recobrado o fôlego, tinha descido do trenó e se aproximava de Nikita a fim de conversar sobre o que podiam fazer. Num movimento involuntário, os dois se agacharam e esperaram que a fúria da rajada de vento cessasse para poderem conversar. Nikita tirou as luvas, enfiou-as no cinturão, bafejou nas mãos e começou a soltar os arreios presos ao arco por cima da cabeça do cavalo.

–Para que está fazendo isso? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Vou desatrelar o cavalo. O que mais se pode fazer? Não tenho mais forças – respondeu Nikita, como que se desculpando.

–Mas, então, não vamos mais continuar?

–A gente não está indo para lugar nenhum, está só martirizando o cavalo. E ele, falando sério, já não aguenta mais, olhe só – disse Nikita, apontando para o cavalo parado, obediente, pronto para tudo, enquanto os flancos molhados e vigorosos subiam e baixavam no ritmo da respiração. – Temos de passar a noite aqui – repetiu, como se fosse pernoitar numa estalagem, e começou a desafivelar as correias do pescoço.

As fivelas se abriram.

–Mas não vamos congelar? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Que jeito? Se for para congelar, congela, azar – disse Nikita.
VI

 

 

 

Em seus dois casacos de pele, Vassíli Andreitch estava perfeitamente aquecido, ainda mais depois de ter empurrado o trenó no monte de neve; mas um calafrio percorreu sua espinha, quando entendeu que, de fato, teria de passar a noite ali. A fim de se acalmar, sentou-se no trenó e pegou cigarros e fósforos.

Enquanto isso, Nikita desatrelava o cavalo. Soltou a barrigueira, os arreios das costas, as rédeas, desprendeu os tirantes, desamarrou o arco e, falando o tempo todo com o cavalo, o incentivava.

–Vai, sai, sai daí – dizia, enquanto retirava o cavalo do meio dos varais. – Olhe, vou deixar você bem amarradinho aqui. Vou pôr um punhadinho de palha para você e vou tirar o bridão – disse, enquanto fazia o que estava dizendo. – Come um pouquinho, vai ficar mais alegre.

Mas Mukhórti, pelo visto, não se acalmava com as palavras de Nikita e estava alarmado; batia com as patas na neve, se encostava muito ao trenó, ficava com a garupa virada para o vento e esfregava a cabeça na manga de Nikita.

Como se fosse apenas para não fazer uma desfeita a Nikita, recusando a palha que lhe havia oferecido e pusera na sua frente, Mukhórti, de um só golpe, apanhou afoito entre os dentes um feixe de palha do trenó, mas logo resolveu que não estava na hora de comer, largou o feixe e assim, no mesmo instante, o vento desfez o feixe, carregou a palha para longe e a cobriu de neve.

–Agora vamos fazer um sinal – Nikita virou o trenó de frente para o vento, amarrou os varais com a correia dos arreios, levantou-os e puxou-os na direção da parte dianteira do trenó. – Pronto, assim, se a gente ficar soterrado, o povo bom vai ver a ponta dos varais e aí eles vão cavar – disse Nikita, enquanto batia as luvas e calçava-as. – Foi assim que os velhos me ensinaram.

Enquanto isso, Vassíli Andreitch tinha aberto o casaco de pele e, protegendo-se com as abas, riscava um fósforo sulfúrico depois do outro numa caixinha de aço; mas as mãos tremiam e os fósforos ou não acendiam ou eram apagados pelo vento, no instante em que ele os aproximava do cigarro. Por fim um fósforo acendeu e o fogo pegou com mais força, iluminou por um momento o pelo do casaco, a mão com um anel de ouro no indicador curvado para dentro e a palha de aveia atulhada de neve que se via por baixo da manta, e o cigarro acendeu. Por duas ou três vezes, ele inspirou sofregamente, tragou, soprou fumaça através do bigode, quis tragar mais uma vez, porém o tabaco aceso foi arrancado e carregado pelo vento para o mesmo lugar onde estava a palha.

No entanto aquelas poucas tragadas de fumaça de tabaco já animaram Vassíli Andreitch.

–Se temos de pernoitar, vamos pernoitar! – disse, em tom resoluto. – Espere um pouco, vou fazer também uma bandeira – e pegou o lenço que havia soltado da gola do casaco e tinha jogado no trenó, tirou as luvas, ficou de pé na parte dianteira do trenó e, esticando-se para alcançar as correias que prendiam os varais, amarrou o lenço ali, com um nó bem apertado.

Na mesma hora, o lenço se debateu desesperadamente no vento, ora aderindo ao varal, ora enfunando de repente, alargando e estalando.

–Puxa, ficou ótimo – disse Vassíli Andreitch, admirando o próprio trabalho, enquanto descia para dentro do trenó. – Ficaria mais quente com nós dois juntos, mas não tem lugar para dois – disse.

–Eu me viro – respondeu Nikita. – Só que temos de cobrir o cavalo, está encharcado de suor, coitado. Me dê isso aqui – acrescentou e, aproximando-se do trenó, puxou a manta de debaixo de Vassíli Andreitch.

Tendo pegado a manta, Nikita dobrou-a ao meio e, depois de tirar a canga e a coelheira das costas do cavalo, cobriu Mukhórti com ela.

–Você vai ficar bem quentinho, seu bobo – disse, enquanto colocava de novo a coelheira e a canga sobre o cavalo, por cima da manta.

Tendo terminado essa tarefa, aproximou-se outra vez do trenó.

–Não vai precisar desse saquinho de aniagem, vai? Deixe a palha para mim – disse Nikita, e puxou as duas coisas de debaixo de Vassíli Andreitch, foi para a traseira do trenó, cavou um buraco na neve, colocou ali dentro a palha, enterrou o gorro na cabeça, enrolou-se todo no caftã, cobriu-se com o saco de aniagem, sentou-se sobre a palha estirada e apoiou-se na traseira arredondada do trenó, que o protegia do vento e da neve.

Vassíli Andreitch balançava a cabeça de modo depreciativo diante do que Nikita estava fazendo, como se não aprovasse em geral a ignorância e a tolice dos mujiques, e começou a se ajeitar para a noite.

Alisou a palha restante no trenó, acumulou um montinho mais fofo embaixo do flanco, enfiou as mãos nas mangas e acomodou a cabeça num canto, na parte dianteira do trenó, que o protegia do vento.

Não tinha vontade de dormir. Ficava deitado e pensava: pensava sempre a mesma coisa, aquilo que constituía o único fim, sentido, alegria e orgulho de sua vida – quanto dinheiro tinha ganhado e quanto ainda podia ganhar; quanto dinheiro seus conhecidos tinham ganhado e possuíam, como aquelas pessoas tinham ganhado e ganhavam dinheiro e como ele, e elas também, poderiam ganhar ainda muito mais dinheiro. A compra da floresta de Goriátchkin representava para ele um negócio imensamente vantajoso. Com a floresta, esperava ter um lucro imediato de talvez dez mil rublos. E, em pensamento, começou a avaliar o bosque que vira no outono, onde contara todas as árvores numa área de duas dessiatinas.

“O carvalho vai servir para fazer esquis de trenó. Vigas, nem se fala. E ainda vão sobrar umas trinta sájeni de lenha por dessiatina”, pensou. “No mínimo, vai render duzentos e vinte e cinco rublos por dessiatina. Cinquenta e seis dessiatinas são cinquenta e seis centenas, e cinquenta e seis centenas mais cinquenta e seis dezenas, e mais cinquenta e seis dezenas e mais cinquenta e seis quintos...” Viu que dava mais de doze mil rublos, mas sem o ábaco não tinha como determinar exatamente quanto era. “Mesmo assim, não vou dar dez mil, mas oito mil, com a dedução das clareiras. Dou uma propina para o agrimensor, uns cem ou cento e cinquenta, e ele calcula que há umas cinco dessiatinas de clareiras. Aí fica por oito mil. Dou três mil no ato. Na certa, vai amolecer o dono”, pensou, apalpando com o antebraço a carteira no bolso. “E como foi que a gente se perdeu na curva, só Deus sabe! Aqui deveria ter a floresta e o guarda-florestal. Era para a gente estar ouvindo os cachorros. Os desgraçados não latem, quando a gente precisa deles.” Afastou a gola do casaco da orelha e escutou com atenção; o tempo todo se ouvia o mesmo assovio do vento, as batidas e os estalos do lenço amarrado nos varais e o rumor da neve que caía no casco do trenó. Ele se cobriu outra vez.

“Se soubesse, teria ficado para pernoitar. Bem, dá na mesma, iremos amanhã. Só um dia a mais. Com um tempo assim, não dá mesmo para ir.” E lembrou que no dia 9 tinha de receber do açougueiro o pagamento pelo carneiro castrado. “Gosta de vir em pessoa; não vai me encontrar, minha esposa não sabe tratar de dinheiro. É muito ignorante. Não sabe tratar direito as pessoas”, continuou a pensar, lembrando que ela não soube como receber o comissário de polícia, que tinha ido à sua casa na véspera, no feriado. “Claro, é mulher! Como é que ia aprender? No tempo de meus pais, que tipo de casa era a nossa? Uma coisa à toa, uma casa de mujique rico da roça: um moinho, uma estalagem, e isso era toda a propriedade. E eu, em quinze anos, o que fiz? Uma venda, duas tavernas, um moinho, um armazém, duas propriedades arrendadas, uma casa com celeiro, de telhado de ferro”, lembrou-se com orgulho. “Muito diferente do tempo de meus pais! Hoje, quem fala grosso na região? Brekhúnov. E por quê? Porque cuido dos negócios, me esforço, não faço como os outros, uns preguiçosos, ou então só se ocupam com bobagens. Passo a noite sem dormir. Com nevasca ou sem nevasca, eu viajo. Para fazer negócio, tem de se mexer. Eles acham que podem ganhar dinheiro na moleza. Não, você tem de quebrar a cabeça e suar muito. Olhe só agora, estou no campo, mas não durmo de noite. São tantos pensamentos na cabeça que o travesseiro parece girar”, refletia com orgulho. “Acham que as pessoas melhoram de vida por pura sorte. Olhem só, os Mirónov agora têm milhões. Por quê? Deram duro. Deus recompensa. Só peço que Deus me dê saúde.”

E o pensamento de que ele também podia ser milionário como Mirónov, que antes não tinha nada, agitou Vassíli Andreitch a tal ponto que ele sentiu necessidade de falar com alguém. Mas não tinha com quem falar... Se tivesse chegado a Goriátchkin, falaria com o proprietário, mostraria com quantos paus se faz uma canoa.

“Puxa, como venta! Vamos ficar debaixo de tanta neve que de manhã não vai dar para sair!”, pensou, escutando o vento que soprava na parte dianteira, sacudia o trenó, açoitava seu casco com a neve. Ele se ergueu um pouco e espiou: na escuridão esbranquiçada e oscilante, só se via a cabeça escura de Mukhórti, seu dorso coberto pela manta esvoaçante e a cauda espessa e amarrada por um nó; ao redor, de todos os lados, na frente, atrás, em toda parte, era a mesma escuridão esbranquiçada, monótona e oscilante, às vezes parecia querer clarear um pouquinho, às vezes se adensava mais ainda.

“Foi bobagem dar ouvidos a Nikita”, pensou. “Era preciso seguir viagem, acabaríamos chegando a algum lugar. Pelo menos podíamos voltar para Gríchkino e pernoitar na casa de Tarás. Agora temos de ficar plantados aqui a noite inteira. Mas como era mesmo aquela coisa boa que eu estava pensando? Sim, que Deus recompensa o trabalho duro, mas não a preguiça, a vadiagem e a burrice. E também é preciso fumar um pouquinho!” Acomodou-se, pegou a cigarreira, deitou de barriga para baixo, protegendo o fogo com a aba do casaco, mas o vento sempre encontrava um caminho e apagava um fósforo depois do outro. Por fim, deu um jeito de acender um cigarro e começou a fumar. O fato de ter conseguido o que queria alegrou-o muito. Embora o vento fumasse o cigarro mais do que ele, ainda assim Vassíli Andreitch deu umas três tragadas e ficou muito contente. De novo se aconchegou na parte dianteira do trenó, encolheu-se e recomeçou a lembrar, devanear e, de modo totalmente inesperado, de repente perdeu a consciência e adormeceu.

No entanto teve a impressão de que alguém o sacudia e o acordava. Ou Mukhórti estava puxando a palha debaixo de seu corpo ou alguma coisa dentro dele tinha se mexido. Assim que acordou, o coração começou a bater tão depressa e tão forte que lhe pareceu que o próprio trenó sacudia embaixo dele. Abriu os olhos. Em volta, estava igual, só que parecia mais claro. “Está clareando”, pensou, “na certa vai amanhecer daqui a pouco.” Mas no mesmo instante lembrou que estava mais claro porque a lua havia surgido. Ele se levantou, primeiro lançou um olhar para o cavalo. Mukhórti continuava de costas para o vento, tremendo todo. A manta coberta de neve estava virada para o lado, a coelheira estava inclinada e agora se via melhor a cabeça coberta de neve, com a franja e a crina esvoaçantes. Vassíli Andreitch inclinou-se para o lado e espiou Nikita. Ele continuava na mesma posição em que havia sentado. O saco de aniagem com que se cobrira e as pernas estavam densamente cobertos de neve. “Tomara que o mujique não congele; sua roupa é ruim. Vou acabar sendo responsabilizado. Que povo mole. Na verdade, é a ignorância”, pensou Vassíli Andreitch e quis tirar a manta do cavalo e cobrir Nikita, mas se levantasse e virasse ia sentir muito frio, e também teve medo de que o cavalo congelasse. “Para que fui trazê-lo comigo? Tudo por bobagem dela!”, pensou Vassíli Andreitch, lembrando-se da esposa desagradável, e de novo se acomodou no lugar de antes, junto à dianteira do trenó. “Uma vez, o titio passou a noite inteira assim, no meio da neve”, lembrou, “e não aconteceu nada. É, mas quando desenterraram o Sevastian”, lembrou-se de outro caso, “já estava morto, todo duro, que nem carne congelada. Se eu tivesse ficado em Gríchkino para pernoitar, não teria acontecido nada.” E, agasalhando-se com afinco para não desperdiçar o calor do casaco de pele por nenhuma fresta, aquecido em toda parte – no pescoço, nos joelhos, nos pés –, fechou os olhos e tentou dormir outra vez. Porém, por mais que tentasse, agora já não conseguia perder a consciência e, ao contrário, sentia-se muito animado e alegre. De novo, começou a contar seus lucros, as dívidas das pessoas, de novo começou a se vangloriar para si mesmo e a se alegrar com sua situação – mas a todo instante era interrompido por um medo que se aproximava sorrateiro e pelo pensamento irritado de não ter ficado em Gríchkino para pernoitar. “Quem dera eu estivesse deitado dentro de uma casa, aquecido.” Virava-se e se ajeitava muitas vezes, tentando encontrar uma posição mais confortável e mais protegida do vento, mas tudo lhe parecia incômodo: erguia-se um pouco, outra vez, mudava de posição, agasalhava as pernas, fechava os olhos e sossegava. Porém ou os pés encolhidos dentro das grossas botas de feltro começavam a se queixar, ou o vento entrava por alguma brecha e ele, depois de ficar um tempo deitado, de novo e com irritação lembrava como poderia estar confortavelmente deitado àquela hora, numa isbá aquecida, em Gríchkino, e de novo se levantava um pouco, se virava, se agasalhava e de novo se ajeitava.

A certa altura, Vassíli Andreitch pensou ter ouvido o canto distante de galos. Alegrou-se, abriu um pouco o casaco de pele e escutou com atenção, porém, por mais que forçasse os ouvidos, nada escutava, senão o som do vento, que assoviava entre os varais do trenó e estalava o lenço, e o barulho da neve que açoitava o casco do trenó.

O tempo todo, Nikita continuava do mesmo jeito que sentara ao anoitecer, não se mexia e sequer respondia aos chamados de Vassíli Andreitch, que duas vezes gritou para ele. “Esse daí não sabe o que é preocupação, na certa está dormindo”, pensou Vassíli Andreitch, irritado, espiando pela traseira do trenó e vendo Nikita coberto por uma espessa camada de neve.

Vassíli Andreitch levantou e deitou umas vinte vezes. Tinha a impressão de que a noite não ia acabar nunca. “Agora já deve estar perto de amanhecer”, pensou a certa altura e levantou para espiar. “Bem que eu gostaria de olhar um relógio. Mas, se eu me descobrir, congelo. Bom, quando eu souber que está amanhecendo, vou ficar mais alegre. Era melhor atrelar logo o cavalo.”

No fundo, Vassíli Andreitch sabia que ainda não podia ser a manhã, começou a sentir um medo cada vez mais forte e queria, ao mesmo tempo, corrigir e iludir a si mesmo. Com cuidado, abriu as presilhas do casaco de pele, enfiou a mão por baixo da roupa e apalpou o peito por muito tempo, até alcançar o colete. A muito custo, pegou o relógio de prata com flores esmaltadas e olhou. Sem lampião, não se enxergava nada. Deitou-se de barriga para baixo outra vez, apoiado nos cotovelos e nos joelhos, do modo como ficara para fumar, pegou os fósforos e tentou acender. Dessa vez, se dedicou à tarefa com mais cuidado e, tendo escolhido o palito com mais fósforo na ponta, acendeu-o logo na primeira tentativa. Colocou o mostrador do relógio sob a chama, viu e seus olhos não acreditaram... Meia-noite e dez. Ainda tinha a noite inteira pela frente.

“Ah, que noite comprida!”, pensou Vassíli Andreitch, sentindo um calafrio percorrer sua espinha, e se abotoou de novo, cobriu-se e apertou-se ao cantinho do trenó, preparando-se para esperar com paciência. De repente, por trás do barulho monótono do vento, escutou nitidamente um som novo e vivo. O som aumentou de maneira contínua e, ao alcançar a nitidez perfeita, começou a diminuir, também de maneira contínua. Não havia a menor dúvida de que era um lobo. E o lobo estava tão perto que, pelo vento, dava para ouvir claramente como ele mudava o timbre da própria voz, movendo a mandíbula. Vassíli Andreitch baixou a gola do casaco e escutou com atenção. Tenso, Mukhórti também escutava, girando as orelhas e, quando o lobo terminou sua toada, o cavalo mudou a posição das patas e deu um relincho de advertência. Depois disso, Vassíli Andreitch não conseguiu, de jeito nenhum, nem dormir nem se acalmar. Por mais que tentasse pensar em suas contas, em seus negócios, em sua glória, dignidade e riqueza, o medo se apoderava dele cada vez mais, prevalecia sobre todos os pensamentos e, em todos os pensamentos, se misturava outro pensamento, o motivo de não ter ficado em Gríchkino para pernoitar.

“Dane-se a floresta, sem ela os negócios vão muito bem, graças a Deus. Ah, quem dera eu tivesse pernoitado lá!”, disse consigo. “Ouvi dizer que as pessoas embriagadas morrem congeladas”, pensou. “E eu bebi bastante.” Atento a suas sensações, notou que começava a tremer, sem que ele mesmo soubesse se tremia de frio ou de medo. Experimentou cobrir-se e ficar deitado como antes, mas já não conseguia fazer isso. Não conseguia ficar quieto na mesma posição, tinha vontade de levantar, fazer qualquer coisa capaz de abafar o medo que crescia dentro dele e contra o qual se sentia impotente. De novo, pegou cigarros e fósforos, mas agora só restavam três fósforos, todos ruins. Todos falharam, não acenderam.

“Que o diabo te carregue, desgraçado, vai para o inferno!”, praguejou sem saber nem para quem estava falando e jogou longe o cigarro amassado. Queria jogar longe também a caixa de fósforos, mas deteve o movimento da mão e enfiou os fósforos no bolso. Sentia tamanha inquietação que não conseguia mais ficar parado. Desceu do trenó e, colocando-se de costas para o vento, começou outra vez a fechar o cinto com força, abaixo da cintura.

“Que adianta ficar deitado esperando a morte? Vou montar o cavalo e ir em frente”, lhe veio de repente à cabeça. “Com alguém montado, o cavalo vai avançar. E para ele”, pensou em Nikita, “morrer não faz diferença. Que vida, a sua! Não vai sentir falta desta vida; já eu, graças a Deus, tenho motivos para viver...”

E, depois de desamarrar o cavalo, jogou as rédeas por cima do pescoço do animal e quis montar, mas o casaco de pele e as botas eram tão pesados que ele escorregou. Então subiu no trenó e, ali de cima, quis montar no cavalo. Mas o trenó balançou sob seu peso e ele desabou novamente. Afinal, na terceira tentativa, puxou o cavalo para bem junto do trenó, ficou de pé na beirada com cuidado e deu um jeito de se deitar de barriga para baixo, atravessado sobre as costas do cavalo. Depois de permanecer um tempo assim deitado, deu um, dois, três impulsos e afinal conseguiu passar a perna por cima das costas do cavalo e montou, apoiando a sola dos pés nas correias frouxas dos arreios. Os trancos e estalos no trenó acordaram Nikita, que se levantou um pouco, e Vassíli Andreitch teve a impressão de que ele disse alguma coisa.

–Só um burro como você para ter uma ideia feito essa! Acha que vou morrer assim à toa? – gritou Vassíli Andreitch e, ajeitando por baixo do joelho a aba do casaco de pele, virou o cavalo e o fez andar para longe do trenó, na direção que ele supunha levar à floresta e ao guarda-florestal.
VII

 

 

 

Desde o instante em que havia sentado, Nikita permanecera imóvel, coberto com o saco de aniagem, atrás da parte traseira do trenó. Como todos que vivem na natureza e sabem o que é passar necessidade, ele era paciente e sabia esperar com calma durante horas, até dias, sem experimentar inquietação ou irritação. Ouviu como o patrão o havia chamado, mas não retrucou, porque não queria se mexer nem falar. Embora ainda estivesse quente por causa do chá que havia bebido e por ter se movimentado bastante andando pela neve funda, sabia que esse calor não ia durar muito e que já não tinha forças para se aquecer com movimentos do corpo, pois se sentia tão cansado quanto um cavalo quando para e não consegue ir adiante, mesmo debaixo de chicotadas, e o dono entende que é preciso alimentá-lo para que ele consiga trabalhar outra vez. Na bota esburacada, o pé tinha gelado e Nikita já não sentia o dedão. Além disso, todo o seu corpo ficava cada vez mais frio. Ocorreu-lhe a ideia de que era muito provável que morresse naquela noite, mas tal ideia não lhe pareceu especialmente desagradável ou estranha. Tal ideia não lhe pareceu desagradável também porque toda a sua vida não tinha sido um feriado constante, mas, ao contrário, tinha sido de trabalho ininterrupto, do que ele começava a se sentir cansado. Tal ideia não lhe pareceu especialmente assustadora porque, além dos patrões a quem servira aqui, como Vassíli Andreitch, Nikita sempre se sentira, nesta vida, na dependência do um patrão principal, aquele que o mandara para esta vida, e sabia que, ao morrer, ficaria sob o poder daquele patrão e que tal patrão não lhe faria mal. “Dá pena deixar para trás as coisas de minha vida, as coisas com que me acostumei, não é? Bem, o que se vai fazer? É preciso se acostumar também com as coisas novas.”

“Os pecados?”, pensou e lembrou seu fraco pela bebida, o dinheiro gasto com bebida, as ofensas à esposa, as blasfêmias, as missas a que não assistia, os jejuns que não fazia e tudo aquilo que dizia ao pope na hora da confissão. “É mesmo, tenho pecados. Mas, afinal, será que fui eu mesmo que pratiquei os pecados? Não, é claro que foi Deus quem me fez assim. Certo, tudo bem, tenho pecados! Mas onde é que eu ia me enfiar para fugir deles?”

Assim, de início, pensava no que podia lhe acontecer naquela noite, mas depois já não voltou a tais pensamentos e entregou-se a recordações que lhe vinham espontaneamente. Lembrava ora a chegada de Marfa, as bebedeiras dos trabalhadores, sua recusa em beber, ora a viagem que estava fazendo, a isbá de Tarás, as conversas sobre a divisão dos bens, ora seu pequeno e Mukhórti, agora abrigado sob a manta, ora o patrão, que agora fazia o trenó guinchar, remexendo-se dentro dele. “Na certa, o coitado não está nada contente de ter partido”, pensou. “Com a vida que leva, ninguém quer morrer. Já com a gente, a história é outra, irmão.” E todas essas recordações começaram a se entrelaçar, se misturar em sua cabeça, e Nikita adormeceu.

Quando Vassíli Andreitch, ao montar no cavalo, fez o trenó sacudir, a traseira, na qual Nikita se recostava, saiu do lugar e um dos esquis bateu em suas costas. Com isso, Nikita acordou e, gostando ou não, foi obrigado a mudar de posição. Esticando as pernas com dificuldade e sacudindo delas a neve, levantou-se um pouco e, na mesma hora, o frio torturante atravessou todo o seu corpo. Entendendo o que se passava, quis que Vassíli Andreitch deixasse com ele a manta, que agora de nada servia para o cavalo, a fim de poder cobrir-se com ela, e foi isso que gritou para o patrão.

Mas Vassíli Andreitch não parou e sumiu na poeira da neve.

Vendo-se sozinho, Nikita refletiu um minuto no que ia fazer. Para andar à procura de abrigo, não tinha forças. Sentar-se no lugar de antes já era impossível – o buraco estava todo atulhado de neve. E dentro do trenó, sentia que não ia se aquecer, porque não tinha nada com que se cobrir, seu caftã e seu casaco de pele já não o aqueciam nem um pouco. Sentia tanto frio que parecia estar só de camisa. Começou a ficar assustado. “Meu Paizinho do Céu!”, exclamou, e a consciência de que não estava sozinho, de que alguém o ouvia e não o abandonava acalmou Nikita. Suspirou fundo e, sem tirar da cabeça o saco de aniagem, entrou no trenó e deitou-se no lugar do patrão.

Mas no trenó também não conseguiu se aquecer. De início, o corpo todo tremia, depois o tremor passou e aos poucos ele começou a perder a consciência. Se estava morrendo ou adormecendo, não sabia, mas sentia-se pronto tanto para uma coisa quanto para outra.
VIII

 

 

 

Enquanto isso, Vassíli Andreitch, com os calcanhares e com a ponta das rédeas, atiçava e tocava o cavalo na direção em que, por algum motivo, supunha estar a floresta e o abrigo do guarda-florestal. A neve cegava seus olhos, o vento parecia querer detê-lo, mas ele não parava de atiçar o cavalo, curvando-se para a frente, toda hora fechando com força o casaco de pele e enfiando as abas do casaco entre si e o cilhão gelado, que o impedia de sentar direito. O animal, embora com dificuldade, avançava obediente na direção em que o mandavam seguir.

Vassíli Andreitch andou uns cinco minutos sempre reto, assim lhe pareceu, sem enxergar nada senão a cabeça do cavalo e o vazio branco, e também sem ouvir nada senão o assovio do vento roçando nas orelhas do cavalo e resvalando na gola de seu casaco de pele.

De súbito, à sua frente, surgiu algo escuro. O coração começou a bater forte e com alegria e ele avançou na direção daquela coisa preta, já vendo ali as paredes das casas de uma aldeia. Mas a coisa preta não estava parada, mexia-se toda, não era uma aldeia e sim as hastes altas de um absinto que atravessavam a camada de neve sobre a terra na divisa entre dois campos e se sacudiam desesperadamente sob a pressão do vento que as empurravam todas para um lado e assoviava entre elas. Por algum motivo, a visão do absinto atormentado pelo vento implacável forçou Vassíli Andreitch a tremer e logo ele tratou de tocar o cavalo mais depressa, sem notar que, ao se aproximar do absinto, mudara totalmente de direção e agora conduzia o cavalo para outro lado, mas mesmo assim imaginava que ia para o lado onde devia estar o abrigo do guarda-florestal. Só que o cavalo insistia em virar para a direita e por isso ele o puxava toda hora para a esquerda.

De novo, à sua frente, surgiu algo escuro. Ele se alegrou, convencido de que agora tinha de ser uma aldeia. Mas, novamente, era a divisa entre dois terrenos, com o absinto muito alto. Novamente, a erva seca sacudia em desespero e, por algum motivo, despertou pavor em Vassíli Andreitch. No entanto, além da erva silvestre, havia perto dela pegadas de cavalo, encobertas pelo vento. Vassíli Andreitch parou, abaixou-se, observou: eram pegadas ligeiramente apagadas e não podiam ser de outro cavalo senão o seu. Estava claro que ele tinha andado em círculo e por uma área pequena. “Deste jeito, estou perdido!”, pensou, mas para não se render ao medo, passou a atiçar o cavalo com mais força ainda, observando atentamente a branca neblina de neve, na qual tinha a impressão de avistar pontos brilhantes, que logo desapareciam, assim que fixava o olhar sobre eles. Em certo momento lhe pareceu ouvir latidos de cachorros ou uivos de lobos, mas eram sons tão fracos e vagos que não sabia se tinha de fato ouvido ou se fora só uma impressão e, parando, pôs-se a escutar com atenção.

De repente, uma espécie de grito terrível e ensurdecedor irrompeu perto de seus ouvidos, tudo embaixo dele começou a tremer e sacolejar. Vassíli Andreitch agarrou-se ao pescoço do cavalo, mas o pescoço do animal também estava tremendo todo e o grito terrível se tornou ainda mais assustador. Por alguns segundos, Vassíli Andreitch não conseguiu se recuperar e entender o que estava acontecendo. E o que estava acontecendo era apenas que Mukhórti, para instigar coragem em si mesmo ou pedir socorro a alguém, começou a relinchar com sua voz alta, ondulante. “Ah, que o diabo te carregue! Me assustou, desgraçado!”, disse consigo Vassíli Andreitch. No entanto, mesmo tendo entendido a causa verdadeira do medo, já não conseguia mais rechaçar o pavor.

“Tenho de usar a cabeça, me acalmar”, disse consigo, mas ao mesmo tempo não conseguia se controlar e continuou a atiçar o cavalo, sem se dar conta de que agora já andava na direção do vento e não contra ele. Seu corpo gelava e doía, sobretudo entre as pernas, onde estava descoberto e roçava no cilhão, braços e pernas tremiam e a respiração estava entrecortada. Ele via que ia sucumbir no meio do apavorante deserto de neve e não enxergava nenhum meio de se salvar.

De repente, o cavalo baqueou embaixo dele e, tendo atolado num monte de neve, começou a se debater enquanto tombava para o lado. Vassíli Andreitch desceu do cavalo de um pulo, mas, com o salto, empurrou para o lado a correia dos arreios em que apoiava os pés e virou também o cilhão, no qual se segurou ao pular. Assim que Vassíli Andreitch desmontou, o cavalo corrigiu sua posição, arrancou para a frente, deu um pinote, e outro, e de novo relinchando e arrastando atrás de si a manta pendurada e os arreios soltos, sumiu de vista, deixando Vassíli Andreitch sozinho no meio do monte de neve. Vassíli Andreitch correu atrás do cavalo, mas a neve estava tão funda e os casacos eram tão pesados que, com as pernas atoladas acima dos joelhos, ficou sem fôlego e parou, depois de não mais de vinte passos. “A floresta, os carneiros castrados, os arrendamentos, a venda, as tavernas, a casa com telhado de ferro e o celeiro, o herdeiro”, pensou, “como deixar tudo isso para trás? O que vai acontecer? Não é possível!”, explodiu em sua cabeça. E por algum motivo lembrou-se do absinto sacudido pelo vento, pelo qual passara duas vezes, e lhe veio um horror tão grande que nem acreditou na realidade do que se passava com ele. Pensou: “Será que não estou sonhando tudo isso?”, e quis acordar, só que não havia do que acordar. Era real a neve que açoitava seu rosto, cobria-o, gelava a mão direita, da qual havia tirado a luva, e era real aquele deserto em que agora se encontrava sozinho, assim como o absinto, à espera da morte inevitável, precoce e sem sentido.

“Rainha Mãe do Céu, pai Santo Nicolau, mestre da abstinência”, lembrou-se da missa da véspera e da imagem de semblante preto na moldura dourada, das velas que ele vendia para acenderem àquela mesma imagem, que logo depois lhe traziam de volta, apenas um pouco queimadas, e que ele escondia numa caixa para revender. E começou a pedir àquele mesmo Nicolau Milagroso que o salvasse, prometeu a ele uma missa solene e velas acesas. Porém na mesma hora entendeu com toda a clareza, sem nenhuma sombra de dúvida, que o semblante, a moldura, as velas, o sacerdote, a missa solene – tudo aquilo era muito importante e necessário lá na igreja, mas ali, para ele, não podiam servir de nada e, entre as velas e as missas solenes, de um lado, e sua situação desamparada, de outro, não havia nem podia haver nenhuma relação. “É preciso não se abater”, pensou. “É preciso seguir as pegadas do cavalo, antes que apaguem”, lhe veio à cabeça. “Ele vai me guiar para fora daqui, ou quem sabe consigo montar no cavalo de novo? É só não me afobar, senão vou perder o fôlego ou até morrer.” Porém, apesar da intenção de andar devagar, precipitou-se para a frente em desabalada carreira, caindo várias vezes, levantando e caindo de novo. As pegadas do cavalo já estavam ficando quase apagadas nos lugares onde a neve era menos profunda. “Estou perdido”, pensou Vassíli Andreitch, “vou perder as pegadas e não vou mais alcançar o cavalo.” Mas no mesmo instante, olhando para a frente, avistou algo preto. Era Mukhórti, e não só Mukhórti, mas também o trenó e os varais com o lenço amarrado na ponta. Mukhórti, com a manta e o cilhão tombados para o lado, agora não estava no mesmo lugar de antes, e sim mais perto dos varais, e sacudia a cabeça, puxada para baixo e embolada nas rédeas, em que ele pisava. Pelo visto, Vassíli Andreitch tinha ido parar no mesmo barranco com que tinha topado, quando ainda viajava ao lado de Nikita, parecia que o cavalo o havia trazido de volta ao trenó e que ele descera do cavalo com um pulo a não mais de cinquenta passos do lugar onde estava o trenó.
IX

 

 

 

Depois de alcançar o trenó a duras penas, Vassíli Andreitch agarrou-se nele e ficou muito tempo parado, tentando se acalmar e recuperar o fôlego. Nikita não estava no mesmo lugar de antes, mas havia algo dentro do trenó, já coberto pela neve, e Vassíli Andreitch adivinhou que era Nikita. Agora, o medo de Vassíli Andreitch tinha passado completamente e, se temia alguma coisa, era apenas o horrível estado de pavor que havia sentido montado no cavalo e, em especial, quando ficou sozinho no monte de neve. Era preciso a todo custo impedir que aquele pavor o alcançasse e para isso era necessário fazer alguma coisa, ocupar-se com alguma coisa. Portanto a primeira coisa que fez foi se colocar de costas para o vento e abrir o casaco de pele. Depois, assim que recuperou um pouco o fôlego, sacudiu a neve das botas e da luva esquerda, pois a direita estava inapelavelmente perdida, na certa caída em algum lugar qualquer debaixo de dois palmos de neve; depois afrouxou e apertou de novo o cinto com força, bem baixo, como fazia quando se preparava para os negócios e saía da venda para comprar trigo nas carroças trazidas pelos mujiques. A primeira questão que se apresentou a ele foi desembaraçar a perna do cavalo. Vassíli Andreitch tratou disso e, tendo soltado as rédeas, amarrou Mukhórti de novo na barra de ferro que ficava na frente do trenó, lugar onde antes Vassíli Andreitch se abrigara, e começou a dar a volta por trás do cavalo a fim de ajeitar o cilhão, os arreios e a manta; mas naquele momento viu que algo se mexeu dentro do trenó e a cabeça de Nikita se levantou, de debaixo da neve que a cobria. Era evidente que Nikita, que já estava congelando, se levantou e sentou com grande esforço e abanou a mão na frente do nariz de um jeito estranho, como se espantasse uma mosca. Abanou a mão e falou alguma coisa, deixando em Vassíli Andreitch a impressão de que o estava chamando. Vassíli Andreitch largou a manta sem ajeitá-la e se aproximou do trenó.

–O que é? – perguntou. – O que está dizendo?

–Estou mo-mo-mo-rrendo, é isso – pronunciou Nikita com dificuldade e voz entrecortada. – Dê o que me deve para o pequeno ou para a mulher, tanto faz.

–O que foi, está congelado? – perguntou Vassíli Andreitch.

–Estou sentindo, é a minha morte... Me perdoe, em nome de Cristo... – disse Nikita com voz chorosa, sempre abanando a mão na frente do rosto, como se espantasse uma mosca.

Vassíli Andreitch ficou meio minuto parado e em silêncio, depois, de repente, com a mesma determinação com que batia as mãos uma na outra para comemorar uma compra vantajosa, deu um passo para trás, arregaçou as mangas do casaco de pele e, com as duas mãos, começou a remover a neve que cobria Nikita e o trenó. Removida a neve, Vassíli Andreitch desafivelou o cinto às pressas, abriu o casaco de pele, empurrou Nikita para trás e deitou-se por cima dele, cobrindo-o não só com o casaco de pele, mas com todo o corpo quente, acalorado. Com as mãos, Vassíli Andreitch enfiou as abas do casaco entre o trenó e Nikita, prendeu a bainha do casaco com os joelhos e ficou assim deitado de bruços, a cabeça apoiada na dianteira do trenó, e agora já não ouvia nem os movimentos do cavalo nem o assovio da tempestade, tinha ouvidos só para a respiração de Nikita. De início, Nikita apenas se deixou ficar deitado, imóvel, depois suspirou alto e se mexeu um pouco.

–Olhe, veja só, e você dizia que estava morrendo. Fique quieto, se aqueça, a gente chega lá... – começou Vassíli Andreitch.

Mas então, para sua enorme surpresa, ele não conseguiu mais falar, porque as lágrimas tomaram seus olhos e a mandíbula começou a tremer depressa. Parou de falar e se limitou a engolir o que lhe vinha à garganta. “Parece que passei um grande apuro e fiquei muito enfraquecido”, pensou. Mas aquela fraqueza não só nada tinha de desagradável como lhe trazia uma alegria diferente, algo que nunca havia experimentado.

“A gente chega lá”, disse consigo, sentindo uma espécie de ternura festiva e fora do comum. Ficou assim deitado e calado por muito tempo, enxugando os olhos com o pelo do casaco e prendendo embaixo do joelho a aba direita do casaco, que o vento tentava virar o tempo todo.

No entanto desejava com muito ardor falar com alguém sobre seu estado de alegria:

–Nikita! – chamou.

–Está bom, quentinho – soou a voz embaixo dele.

–Pois é, irmão, eu também quase morri. Você ia congelar e eu também...

Mas então, outra vez, o queixo começou a tremer, outra vez os olhos se encheram de lágrimas e ele não conseguiu mais falar.

“Não faz mal”, pensou. “Eu sei o que eu sei.”

E calou-se. Assim permaneceu deitado por muito tempo.

Por baixo, estava aquecido por Nikita; por cima, pelo casaco de pele; só as mãos, com que segurava as abas do casaco junto aos flancos de Nikita, e as pernas, que o vento toda hora descobria, começavam a gelar. O que mais gelava era a mão direita, sem luva. Mas ele nem pensava nas pernas, nas mãos, só pensava em manter aquecido o mujique deitado embaixo de si.

Várias vezes, voltava os olhos para o cavalo e via que as costas do animal estavam descobertas e a manta jazia sobre a neve, junto com o cilhão, via que era preciso levantar-se e cobrir o cavalo, mas ele não era capaz de deixar Nikita nem por um minuto e perturbar o estado de alegria em que se encontrava. Medo nenhum experimentava agora.

“Acho que ele escapou”, pensou, dizendo para si mesmo que tinha aquecido o mujique, com o mesmo entusiasmo com que falava de suas compras e vendas.

Vassíli Andreitch ficou assim deitado durante uma hora, duas horas, três horas, mas nem viu o tempo passar. De início, em sua imaginação, repetiam-se as impressões da nevasca, os varais e o cavalo embaixo do arco dos arreios, que sacolejavam diante de seus olhos, e veio a lembrança de Nikita deitado embaixo dele; depois começaram a se misturar recordações da festa na aldeia, da esposa, do comissário de polícia, da caixa de velas e de novo de Nikita, agora deitado embaixo daquela caixa de velas; depois vieram imagens de mujiques vendendo e comprando, paredes brancas, casas com telhado de ferro, sob o qual Nikita estava deitado; depois tudo isso se misturou, uma coisa se fundiu na outra e, como as cores do arco-íris se dissolvem na cor branca, todas aquelas impressões diversas se dissolveram em um mesmo nada, e ele adormeceu. Dormiu muito tempo sem sonhar, mas pouco antes da alvorada lhe vieram sonhos outra vez. Teve a impressão de que estava do lado da caixa de velas e a mulher de Tikhónov lhe exigia uma vela de cinco copeques para a festa do dia santo e ele queria pegar uma vela e lhe dar, mas suas mãos não se mexiam, fechadas dentro dos bolsos. Ele queria dar a volta para o outro lado da caixa, mas os pés não se mexiam e as galochas novas, limpas, estavam coladas no chão de pedra, não se levantavam, e os pés também não saíam de dentro delas. De repente, a caixa de velas não era mais uma caixa de velas e sim uma cama e Vassíli Andreitch se viu deitado de bruços sobre a caixa de velas, ou seja, na sua cama, em sua casa. Está deitado na cama e não consegue levantar, só que precisa levantar, porque agora Ivan Matviéitch, o comissário de polícia, vem buscá-lo para irem juntos ou negociar a floresta, ou ajeitar o cilhão sobre Mukhórti. E ele pergunta para a esposa: “E então, Mikolavna, ele não chegou?” “Não, ele não chegou”, responde a esposa. E ele ouve que alguém se aproxima, vindo do alpendre. Deve ser ele. Não, passou direto. “Mikolavna, ei, Mikolavna, ele ainda não chegou?” “Não.” E Vassíli Andreitch fica deitado na cama, não consegue levantar, continua sempre esperando e essa espera é sinistra e alegre. De repente, a alegria prevalece: chega quem ele espera. Chega e o chama, e esse mesmo que o chama, que gritou chamando por ele, é o mesmo que mandou que ele deitasse em cima de Nikita. E Vassíli Andreitch está feliz por esse alguém ter vindo levá-lo. “Já vou!”, grita, feliz, e esse grito o acorda. Ele desperta, mas desperta muito diferente daquele que havia adormecido. Quer levantar e não consegue, quer mexer a mão e não consegue, quer mexer o pé e também não consegue. E se admira; mas não fica nem um pouco frustrado com isso. Entende que é a morte e não fica nem um pouco frustrado com isso também. Lembra que Nikita está deitado embaixo dele, que se aqueceu e está vivo, e lhe parece que ele é Nikita e Nikita é ele, e que sua própria vida não está nele mesmo, mas em Nikita. Apura os ouvidos e ouve a respiração e até o leve ronco de Nikita. “Nikita está vivo, quer dizer que eu também estou vivo”, diz consigo, em triunfo.

E se lembrou do dinheiro, do armazém, da casa, da compra, da venda e dos milhões de Mirónov; achou difícil entender para que aquele homem a quem chamavam de Vassíli Andreitch se ocupava com todas as coisas com que se ocupava. “Ora, era porque ele não sabia”, pensou, referindo-se a Vassíli Brekhúnov. “Não sabia, como agora eu sei. Agora, já sem a menor possibilidade de erro, agora sei.” E ouve outra vez o chamado daquele que antes já o chamara. “Já vou, já vou!”, responde, alegre, comovido, por inteiro. E sente que está livre e que nada mais o retém.

E Vassíli Andreitch já não viu mais nada, não ouviu nem sentiu mais nada neste mundo.

Em volta, tudo continuava a rodopiar ao vento. Os mesmos rodamoinhos de neve giravam, recobriam o casaco de pele de Vassíli Andreitch e todo o corpo trêmulo de Mukhórti, e quase não dava mais para ver o trenó e, no fundo dele, o aquecido Nikita, deitado embaixo do patrão já morto.
X

 

 

 

Nikita acordou antes do amanhecer. O frio que tinha começado de novo a arrepiar suas costas o acordou. Sonhou que conduzia para o moinho uma carroça com a farinha do patrão e, ao atravessar o riacho, desviou-se da ponte e atolou a carroça. E, no sonho, vê que vai para baixo da carroça e tenta levantá-la nas costas retas. Mas, que surpresa! A carroça não se move e está grudada às suas costas, ele não consegue nem levantar a carroça nem sair de debaixo dela. A região lombar parece ser esmagada. E que frio! Claro, é preciso sair dali. “Agora chega”, diz para quem quer que esteja apertando a carroça sobre suas costas. “Tire os sacos!” Mas a carroça, cada vez mais fria, continua a esmagá-lo; de súbito, ele ouve batidas estranhas e desperta totalmente, compreende tudo. A carroça fria é o patrão morto e congelado, deitado em cima dele. O som das batidas vem de Mukhórti, que por duas vezes bateu com o casco no trenó.

–Andreitch, ah, Andreitch! – chama Nikita pelo patrão, com cuidado, já pressentindo a verdade e fazendo força com as costas.

Mas Andreitch não responde e a barriga e as pernas estão duras, frias e pesadas como halteres.

“Na certa, chegou ao fim. É o Reino dos Céus!”, pensa Nikita.

Vira a cabeça, escava com a mão a neve na sua frente e abre os olhos. Está claro; o vento continua a assoviar nos varais do trenó, a neve continua a cair, a única diferença é que não açoita mais, apenas cai, no trenó e no cavalo, sem fazer barulho, e se acumula cada vez mais alta e já não se vê o movimento nem se ouve a respiração do cavalo. “Também morreu congelado, na certa”, pensa Nikita, a respeito de Mukhórti. E, de fato, as batidas dos cascos no trenó que acordaram Nikita foram o esforço agonizante de Mukhórti para se manter de pé, já completamente congelado.

“O Deus Paizinho, pelo visto, também está me chamando”, diz Nikita consigo. “Seja feita Sua vontade. Dá medo. Bem, ninguém morre duas vezes e, dessa única vez, ninguém escapa. Mas tomara que venha logo...” E de novo esconde as mãos, fecha os olhos e perde a consciência, inteiramente convencido de que agora já está morrendo, sem apelação e por completo.

Foi só na hora do almoço do dia seguinte que os mujiques, empunhando pás, desenterraram Vassíli Andreitch e Nikita, a trinta sájeni da estrada e a meia versta da aldeia.

A neve tinha se acumulado acima do trenó, mas os varais e o lenço amarrado neles ainda estavam visíveis. Com neve até acima da barriga, o cilhão e a manta tombados para o lado, Mukhórti estava de pé, todo branco, e a cabeça morta muito abaixada apertava o pomo de adão congelado; pedaços de gelo pendentes entupiam as narinas, os olhos cobertos pela geada, também congelados, pareciam ter lágrimas. Numa noite, havia emagrecido tanto que só restava pele e osso. Vassíli Andreitch estava duro como uma carcaça congelada quando o retiraram, e as pernas ficaram abertas, do jeito como ele havia montado sobre Nikita. Os olhos protuberantes de águia haviam congelado e a boca aberta abaixo do bigode aparado estava entupida de neve. Já Nikita estava vivo, embora todo enregelado. Quando acordaram Nikita, estava convencido de que já havia morrido e que tudo aquilo que se passava com ele acontecia não aqui, mas no outro mundo. Porém, quando ouviu a gritaria dos mujiques que o desencavaram e que retiraram o congelado Vassíli Andreitch de cima dele, de início se admirou com o fato de, no outro mundo, os mujiques gritarem assim e terem um corpo igual ao de antes, mas quando entendeu que continuava aqui, neste mundo, ele se decepcionou mais do que se alegrou, sobretudo quando sentiu que os dedos dos pés tinham congelado.

Nikita ficou dois meses no hospital. Amputaram três dedos, os outros se recuperaram, ele pôde voltar a trabalhar e ainda viveu mais vinte anos – de início, como trabalhador braçal e depois, quando velho, de vigia. Só morreu este ano, em casa, como queria, junto às imagens dos santos e com uma vela de cera acesa entre as mãos. Antes de morrer, pediu perdão à sua velha e perdoou-a pelo tanoeiro; despediu-se do filho, dos netos e morreu, sinceramente alegre pelo fato de a morte livrar o filho e a nora do peso de ter de alimentá-lo e também por ele mesmo passar desta vida, que já o cansava, para a outra vida, que a cada ano e a cada hora se tornava mais compreensível e mais atraente para ele. Estará melhor ou pior lá, onde acordou depois da morte real? Decepcionou-se ou encontrou lá o que esperava? Em breve, todos saberemos.

1895

A DESTRUIÇÃO DO INFERNO E SUA RECONSTRUÇÃO

[Lenda]
I

 

 

 

Foi no tempo em que Cristo revelou Sua doutrina aos homens.

A doutrina era tão clara, tão fácil de seguir e estava tão evidente que livrava as pessoas do mal que era impossível não adotá-la e nada foi capaz de conter sua propagação por todo o mundo. E Belzebu, pai e soberano de todos os demônios, ficou preocupado. Viu claramente que seu poder sobre as pessoas ia terminar para sempre, a menos que Cristo desmentisse Sua pregação. Estava preocupado, mas não se desesperou e incitou os fariseus e os escribas, obedientes a ele, a insultar e atormentar Cristo o mais possível, e também recomendou aos discípulos de Cristo que fugissem e O deixassem sozinho. Esperava que a condenação a uma pena vergonhosa, a desonra, ser abandonado por todos os Seus discípulos e, por fim, os próprios sofrimentos e a execução levassem Cristo, no último minuto, a desmentir Sua doutrina, e que esse desmentido aniquilasse toda a força da doutrina.

A questão foi resolvida na Cruz. E quando Cristo exclamou: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, Belzebu ficou exultante. Pegou as correntes com cadeados, preparadas para Cristo, e experimentou-as nos próprios pés, ajustou-as melhor, para que não pudessem se abrir, quando presas nos pés de Cristo.

Mas de repente ouviram-se as palavras de Cristo:

–Pai, perdoai-os, pois não sabem o que fazem – e em seguida Cristo proclamou: “Está feito!” – e expirou.

Belzebu entendeu que, para ele, tudo estava perdido. Quis tirar as correntes dos pés e fugir, mas não conseguiu sair do lugar. As correntes tinham grudado nele e seguravam os pés. Quis subir batendo as asas, mas não conseguiu abri-las. E Belzebu viu que Cristo, num halo de luz, estava diante dos portões do inferno, viu que os pecadores, de Adão até Judas, saíam do inferno, viu que todos os demônios fugiam, viu que os próprios muros do inferno queimavam e desmoronavam, sem fazer barulho, em todos os quatro lados. Ele não conseguiu mais suportar aquilo e, com um grito estridente, despencou para as profundezas, através do chão rachado do inferno.
II

 

 

 

Passaram cem, duzentos, trezentos anos.

Belzebu não contava o tempo. Ficava deitado e imóvel nas trevas negras e no silêncio da morte e tentava não pensar no que havia acontecido, mas mesmo assim pensava e, impotente, odiava o culpado de sua ruína.

Porém de repente – ele não lembrava e não sabia quantos séculos tinham passado –, ouviu, vindos de cima, sons parecidos com batidas de pés, gemidos, gritos, rilhar de dentes.

Belzebu ergueu a cabeça e escutou com atenção.

Belzebu não podia acreditar que fosse possível reconstruir o inferno, depois da vitória de Cristo, no entanto as batidas de pés, os gemidos, os gritos e o rilhar de dentes soavam cada vez mais claros.

Belzebu ergueu o torso, dobrou embaixo de si as pernas peludas, com cascos muito crescidos (as correntes, para sua surpresa, se soltaram sozinhas dos pés) e, depois de bater livremente as asas abertas, deu o assovio de alerta com que, antigamente, convocava seus servos e auxiliares.

Mal teve tempo de tomar fôlego quando, acima de sua cabeça, uma fenda se escancarou, reluziu um fogo vermelho e uma multidão de demônios, apertando-se uns aos outros, se derramou daquela fenda para as profundezas e, como corvos ao redor de um cadáver, eles se acomodaram num círculo em volta de Belzebu.

Eram demônios grandes e pequenos, gordos e magros, de rabos compridos e curtos e de chifres retos e curvos.

Um deles, com uma capa cobrindo os ombros e, de resto, nu, negro e reluzente, de cara redonda, sem barba e sem bigode, e com uma barriga enorme, estava de cócoras bem na frente da cara de Belzebu e, girando os olhos de fogo ora para cima, ora para baixo, não parava de sorrir, enquanto abanava o rabo comprido e fino, de um lado para o outro, num ritmo constante.
III

 

 

 

–O que significa esse barulho todo? – perguntou Belzebu, apontando para o alto. – O que tem lá?

–O mesmo de sempre – respondeu o demônio reluzente e de capa.

–Mas então existem pecadores? – perguntou Belzebu.

–Muitos – respondeu o reluzente.

–Mas e aquela doutrina, cujo nome não quero dizer? – perguntou Belzebu.

O demônio de capa abriu um sorriso tão largo que deixou à mostra os dentes pontudos e, entre todos os demônios, ressoou uma risada contida.

–Essa doutrina não nos atrapalha. Eles não acreditam nela – disse o demônio de capa.

–Mas a doutrina obviamente os salva de nós, e Ele deu testemunho da doutrina por meio da própria morte – disse Belzebu.

–Eu mudei tudo isso – disse o demônio de capa, batendo depressa com o rabo no chão.

–Mudou como?

–Mudei de tal jeito que as pessoas acreditam não na doutrina Dele, mas sim na minha, e a chamam com o nome da outra.

–E como você fez isso? – perguntou Belzebu.

–Aconteceu por si mesmo. Eu só dei uma ajuda.

–Conte de forma resumida – pediu Belzebu.

O demônio de capa baixou a cabeça, ficou calado um instante, como se organizasse as ideias, sem pressa, e depois começou a contar:

–Quando aconteceu a terrível destruição do inferno e nosso pai e soberano se afastou de nós – disse –, fui aos lugares onde se pregava a doutrina que por pouco não nos aniquilou. Senti vontade de ver como viviam as pessoas que a praticavam. E vi que as pessoas que viviam segundo a tal doutrina eram totalmente felizes e estavam fora de nosso alcance. Não se zangavam umas com as outras, não cediam aos encantos femininos e ou não casavam ou, se casavam, tinham uma só mulher, não possuíam propriedades, tudo era considerado bem comum, não se defendiam com violência de quem os atacava e pagavam com o bem o mal que recebiam. Sua vida era tão boa que os outros povos se sentiam cada vez mais atraídos por eles. Vendo isso, achei que tudo estava mesmo perdido e quis logo ir embora. Mas então aconteceu algo, em si mesmo, insignificante, mas que me pareceu digno de mais atenção, e então fiquei. Aconteceu que, entre aquelas pessoas, alguns achavam que era preciso circuncidar todos os homens e que não se devia comer carne de animais sacrificados aos ídolos, enquanto outros achavam que isso não era necessário e que era possível não ser circuncidado e comer de tudo. Então comecei a incutir, tanto nos de um lado como nos do outro, a ideia de que aquela discórdia era muito importante, que nem um lado nem o outro deviam transigir, pois a questão tinha a ver com o modo de cultuar Deus. E eles acreditaram em mim e as discussões recrudesceram. E as pessoas de ambos os lados começaram a se irritar umas com as outras e aí passei a incutir em todos a ideia de que podiam demonstrar a veracidade de sua doutrina por meio de milagres. Por mais que seja óbvio que milagres não podem demonstrar a veracidade de uma doutrina, eles sentiam tamanha vontade de ter razão que acreditaram em mim e eu promovi milagres para eles. Não foi difícil fazer isso. Eles acreditavam em tudo que confirmasse seu desejo de ter razão sozinhos.

“Uns diziam que línguas de fogo haviam descido sobre eles, outros diziam que tinham visto o próprio mestre que já havia morrido, e muitas outras coisas. Inventavam coisas que nunca aconteceram e, em nome daquele que nos chamava de mentirosos, mentiam não menos do que nós, sem perceber o que faziam. Uns diziam, sobre os outros: seus milagres não são verdadeiros, os nossos são verdadeiros; e os outros diziam sobre aqueles: não, os seus milagres é que não são verdadeiros, os nossos são verdadeiros.

“As coisas estavam correndo bem, mas tive medo de que notassem a trapaça, demasiado evidente, e então inventei a Igreja. E quando eles acreditaram na Igreja, fiquei tranquilo: entendi que nós estávamos salvos e que o inferno ia ser reconstruído.”
IV

 

 

 

–E o que é a Igreja? – perguntou com ar severo Belzebu, que não queria acreditar que um súdito seu pudesse ser mais inteligente do que ele.

–Igreja é o fato de que, quando as pessoas mentem e sentem que não acreditam, falam, sempre invocando Deus: Juro por Deus que é verdade o que estou dizendo. Isso é a Igreja, propriamente falando, mas apenas com a particularidade de que as pessoas que se reconhecem como Igreja estão convencidas de que não podem errar e, portanto, qualquer que seja a tolice que digam, elas não podem mais voltar atrás. Uma Igreja se forma assim: as pessoas convencem a si e aos outros de que seu mestre é Deus e que, a fim de evitar que a lei por Ele revelada seja mal interpretada, Deus escolheu algumas pessoas especiais e que só elas, ou aqueles a quem elas transmitiram esse poder, têm a capacidade de interpretar corretamente a doutrina. Assim, as pessoas que se chamam de Igreja se consideram detentoras da verdade, não porque o que pregam seja verdade, mas porque se consideram os únicos sucessores oficiais dos discípulos dos discípulos dos discípulos e, por fim, dos discípulos do próprio mestre – Deus. Embora também esse método, a exemplo do método dos milagres, tenha a inconveniência de que todas as pessoas podem, ao mesmo tempo, se convencer de que são membros da única Igreja verdadeira (o que de fato sempre aconteceu), a vantagem desse método reside em que, tão logo as pessoas dizem que elas são a Igreja e, com base nessa convicção, constroem sua doutrina, já não podem mais desmentir o que disseram, por mais absurdo que seja o que foi dito, e a despeito do que digam as outras pessoas.

–Mas por que as Igrejas interpretaram a doutrina a nosso favor? – perguntou Belzebu.

–Fizeram isso – prosseguiu o demônio de capa – porque, tendo se declarado os únicos intérpretes da lei de Deus, e tendo convencido os outros disso, tais pessoas se tornaram os árbitros supremos do destino das demais e por isso receberam um poder absoluto sobre elas. Tendo recebido tal poder, elas naturalmente se encheram de orgulho e, em sua maioria, se corromperam e com isso atraíram contra si a indignação e a inimizade das pessoas. Para lutar contra os inimigos, não tendo outra arma que não a violência, passaram a perseguir, executar e queimar todos que não reconheciam seu poder. Assim, por força da própria posição que ocupavam, elas se viram na necessidade de deturpar a interpretação da doutrina, de modo que ela justificasse sua vida corrupta e também as crueldades que praticavam contra os inimigos. E assim fizeram.
V

 

 

 

–Mas a doutrina era tão simples e clara que era impossível interpretá-la de maneira errada – disse Belzebu, cada vez menos disposto a crer que seus súditos tinham feito o que ele mesmo não pensara em fazer. – “Faz aos outros como queres que façam a ti mesmo.” Como interpretar mal essas palavras?

–Para isso, seguindo meus conselhos, eles usaram vários meios – respondeu o demônio de capa. – Entre as pessoas, conta-se a história de um bruxo bom que, para salvar um homem do bruxo malvado, o transforma num grão de milho e, quando o bruxo malvado, disfarçado de galo, está prestes a bicar aquele grão, o bruxo bom despeja um saco de grãos sobre ele. E o bruxo malvado não consegue comer todos os grãos de milho nem consegue identificar aquele de que precisava. Seguindo meu conselho, fizeram o mesmo com a doutrina Daquele que ensinou que a única lei consiste em fazer aos outros aquilo que queremos que façam conosco, e declararam que quarenta e nove livros contêm a explanação sagrada da lei de Deus e estabeleceram que, nesses livros, todas as palavras vêm de Deus, do Espírito Santo. Em cima de uma verdade simples, compreensível, despejaram um monte tão grande de verdades supostamente sagradas que se tornou impossível aceitar todas elas e até mesmo encontrar no meio delas a única, de fato, necessária às pessoas. Esse foi o primeiro método. O segundo método que empregaram com sucesso por mais de mil anos foi simplesmente assassinar e queimar quem quisesse revelar a verdade. Agora, tal método já saiu de uso, mas não o abandonaram de todo e, embora não queimem mais as pessoas que tentam revelar a verdade, caluniam de tal modo essas pessoas e a tal ponto envenenam sua vida que só muito raramente alguém resolve expor a verdade. Esse é o segundo método. O terceiro consiste em que, reconhecendo a si mesmas como Igreja e, portanto, como infalíveis, elas ensinam explicitamente, quando lhes é necessário, o contrário do que está dito nas Escrituras, deixando por conta de seus discípulos a tarefa de se desembaraçarem de tais contradições, como quiserem e como forem capazes. Assim, por exemplo, está dito nas Escrituras: Teu único mestre é Cristo e não chames ninguém de pai na terra, pois teu único pai está no céu, então não chames ninguém de mestre na terra, pois teu único mestre é Cristo. Mas eles dizem: Só nós somos os pais e só nós somos os mestres dos homens. Ou está dito: Se quiseres rezar, reza sozinho e em segredo, que Deus escutará. Mas eles ensinam que é preciso rezar nos templos, todos juntos, ao som de cantos e música. Ou está dito nas Escrituras: Não jure de maneira nenhuma, mas eles ensinam que todos devem jurar obediência inquestionável às autoridades, a despeito do que possam exigir tais autoridades. Ou está dito: Não mate, mas eles ensinam que se pode e se deve matar na guerra e para cumprir a sentença de um julgamento. Ou então está dito: Minha doutrina é espírito e é vida, te alimenta com ela como se fosse pão. Mas eles ensinam que, pondo um pedacinho de pão no vinho e pronunciando sobre tais pedacinhos determinadas palavras, o pão se torna corpo e o vinho, sangue, e ensinam que comer esse pão e beber esse vinho é muito útil para a salvação da alma.1 As pessoas acreditam nisso e tomam sofregamente esse caldinho e depois, quando caem em nosso poder, ficam muito surpresas, porque o tal caldinho não as ajudou – concluiu o demônio de capa, girou os olhos e abriu um sorriso de orelha a orelha.

–Isso é muito bom – disse Belzebu e sorriu. E todos os demônios deram uma sonora gargalhada.
VI

 

 

 

–Mas será possível que existam libertinos, ladrões e assassinos como antigamente? – perguntou Belzebu, já mais animado.

Os demônios, também muito alegres, começaram de repente a falar todos ao mesmo tempo, cada um querendo ser o primeiro a contar a Belzebu.

–Não como antigamente, e sim muito mais do que antes – gritou um.

–Os libertinos não cabem mais nas antigas seções – guinchou outro.

–Os ladrões atuais são piores do que os antigos – esbravejou um terceiro.

–Não há lenha que chegue para os assassinos – rugiu um quarto.

–Não falem todos ao mesmo tempo. Que responda apenas aquele a quem eu perguntar. Quem cuida da libertinagem dê um passo à frente e conte como faz, agora, com os discípulos daquele que proibiu trocar de esposa e disse que não se devia olhar para uma mulher com desejo. Quem cuida da libertinagem?

–Eu – respondeu um demônio marrom e de aspecto feminino, rosto obeso e molhado, e se aproximou de Belzebu, arrastando o traseiro no chão e mastigando sem parar.

O demônio se arrastou para a frente da fila dos demais, ficou de cócoras, inclinou a cabeça para o lado, enfiou entre as pernas o rabo com franjinha e, enquanto o balançava, começou a falar com voz cantada:

–Nós fazemos isso pelo método antigo, empregado por você, nosso pai e soberano, desde o paraíso, e que deixou sob nosso poder toda a espécie humana, e também pelo método novo da Igreja. Segundo o método novo da Igreja, fazemos assim: convencemos as pessoas de que o verdadeiro casamento consiste não naquilo que ele é de fato, a união de homem e mulher, mas em vestir as melhores roupas, ir a grandes prédios construídos para isso e, lá, pôr na cabeça uns chapéus grandes e especiais, feitos para isso, e depois, ao som de várias canções, andar três vezes em volta de uma mesinha.2 Convencemos as pessoas de que só isso é o verdadeiro casamento. E, convencidas, elas naturalmente consideram que qualquer união entre homem e mulher fora de tais condições é um simples prazer que não as obriga a nada, ou não passa da satisfação de uma necessidade higiênica, e por isso, sem constrangimento, se entregam a tal prazer.

O demônio de aspecto feminino inclinou a cabeça obesa para o outro lado e ficou em silêncio, como que esperando o efeito de suas palavras em Belzebu.

Belzebu balançou a cabeça em sinal de aprovação e o demônio de aspecto feminino prosseguiu:


–Com esse método, sem abandonar também o pecado antigo, o do fruto proibido e da curiosidade, empregado no paraíso – continuou, obviamente querendo bajular Belzebu –, alcançamos os maiores êxitos. Imaginando que podem realizar para si um casamento eclesiástico puro também depois da união com muitas mulheres, os homens trocam centenas de esposas e, de resto, estão a tal ponto habituados com a prostituição que fazem o mesmo também após o casamento eclesiástico. Se por algum motivo lhes parecem constrangedoras certas exigências ligadas ao casamento eclesiástico, eles arranjam um jeito para, pela segunda vez, dar umas voltinhas em redor da mesa, alegando que da primeira não valeu.

O demônio de aspecto feminino calou-se e, enxugando com a pontinha do rabo a saliva que enchia a boca, inclinou a cabeça para o outro lado e, em silêncio, encarou Belzebu.
VII

 

 

 

–Simples e bom – disse Belzebu. – Aprovo. Quem cuida dos ladrões?

–Eu – respondeu e se adiantou um demônio volumoso, de chifres grandes e curvos, bigode retorcido para cima e imensas patas tortas.

O demônio rastejou para a frente, como o anterior, ajeitou o bigode com duas patas e esperou a pergunta.

–Aquele que destruiu o inferno – disse Belzebu – ensinou as pessoas a viver como os pássaros do céu e ordenou que dessem também o casaco a quem pedisse ou quisesse lhes tomar a camisa, e disse que, para se salvarem, era preciso distribuir os bens que possuíam. Como vocês induziram à prática do roubo pessoas que ouviram tais palavras?

–Fizemos isso – respondeu o demônio de bigode, inclinando majestosamente a cabeça para trás – exatamente como fez nosso pai e soberano, quando Saul foi escolhido rei. Da mesma forma como aquilo foi incutido nas pessoas na época, nós as persuadimos de que, em lugar de parar de roubarem uns aos outros, seria mais vantajoso permitir que só uma pessoa roubasse as demais, conferindo a ela o poder máximo sobre todos. A única novidade em nosso método consiste em que, para confirmar o direito de roubar atribuído a essa única pessoa, nós a levamos a um templo, pomos em sua cabeça um chapéu especial, a sentamos numa cadeira bem alta, colocamos em sua mão um pauzinho e uma bola, esfregamos nela o óleo da Quaresma e, em nome de Deus e do Seu filho, proclamamos que esse sujeito lambuzado de óleo é sagrado. Desse modo, o roubo praticado por esse sujeito, considerado sagrado, já não pode ser impedido. E tais pessoas sagradas e seus assistentes, e todos os assistentes dos assistentes, roubam o povo o tempo todo, tranquilamente e sem riscos. Ao mesmo tempo, de forma corriqueira, eles estabelecem leis e preceitos que permitem que uma minoria ociosa, mesmo sem unção, roube impunemente a maioria que trabalha. E na verdade, nos últimos tempos, em certas nações, o roubo tem sido praticado por não ungidos tanto quanto lá onde existem os ungidos. Como pode ver nosso pai e soberano, em essência, o método empregado por nós é o velho método. A novidade consiste apenas em que tornamos o método mais geral, mais encoberto, mais difundido pelo espaço e pelo tempo e mais estável. Nós o tornamos mais geral porque, antes, as pessoas voluntariamente se submetiam a quem elas escolhiam e agora nós fazemos as pessoas, de modo totalmente alheio à sua vontade, se submeterem não a quem elas escolhem, mas a qualquer um. Nós tornamos o método mais encoberto porque agora, graças à instituição dos tributos especiais e indiretos, quem é roubado nem vê seus ladrões. O método está mais difundido no espaço porque os assim chamados povos cristãos não se contentam em roubar seu povo e, sob os pretextos mais variados e estranhos, sobretudo sob o pretexto de propagar o cristianismo, roubam também todos os povos estrangeiros que possuam algo para ser roubado. E o método novo está mais difundido pelo tempo do que o antigo método, graças à instituição dos empréstimos, sociais e estatais: agora, roubam não só as gerações presentes, mas também as futuras. Tornamos o método mais estável porque os principais ladrões são considerados sagrados e as pessoas hesitam em se opor a eles. Basta o ladrão principal se ungir com óleo que poderá roubar tranquilamente, quem e quanto quiser. Então, certa vez, na Rússia, a título de experiência, pus no trono real, uma depois da outra, as mulheres mais malvadas, tolas, ignorantes e depravadas, e que, por suas próprias leis, não tinham nenhum direito a isso. A última era não só depravada como uma verdadeira criminosa, que matou o marido e o herdeiro legal. No entanto, só porque ela havia sido ungida com óleo, as pessoas não cortaram seu nariz nem lhe deram chicotadas, como faziam com todas as mulheres que assassinavam o marido, e durante os trinta anos seguintes se submeteram a ela como escravos, permitindo que ela e seus inúmeros amantes roubassem não só suas propriedades como também a liberdade. Portanto, em nosso tempo, os roubos visíveis, ou seja, tomar à força uma carteira, um cavalo, uma roupa, constituem no máximo a milionésima parte de todos os roubos legais praticados o tempo todo por pessoas que têm a possibilidade de fazê-lo. Em nosso tempo, os roubos impunes, escondidos, e a disposição geral para o roubo se estabeleceram de tal forma entre as pessoas que o objetivo principal da vida de quase todas elas é o roubo, moderado apenas em razão da luta entre os próprios ladrões.
VIII

 

 

 

–Puxa, mas isso é muito bom – disse Belzebu. – E os assassinatos? Quem cuida dos assassinatos?

–Sou eu – respondeu e ergueu-se da multidão um demônio vermelho, de cor sanguínea, dentes caninos salientes na boca, chifres pontudos e com o rabo grosso e imóvel empinado.

–Como é que você consegue levar à prática de assassinatos os discípulos Daquele que disse: não paguem o mal com o mal, amem seus inimigos? Como você transforma essas pessoas em assassinos?

–Fazemos isso pelo método antigo – respondeu o demônio vermelho, com voz ensurdecedora e estrondosa. – Excitando nas pessoas a cobiça, a voracidade, o ódio, a vingança, o orgulho. E também, seguindo o método antigo, insuflamos nos discípulos a convicção de que o melhor meio de afastar as pessoas do assassinato consiste em levar aqueles que cometeram assassinato a serem mortos em público e pelas mãos dos próprios discípulos. Esse método não só nos abastece de assassinos como também nos prepara outros. Uma quantidade ainda maior nos foi fornecida, e continua a ser fornecida, pela nova doutrina da infalibilidade da Igreja, do casamento cristão e da igualdade cristã. A doutrina da infalibilidade da Igreja nos forneceu, em tempos passados, uma enorme quantidade de assassinos. As pessoas que se reconheciam como membros de uma Igreja infalível consideravam que era um crime permitir que intérpretes falsos da doutrina corrompessem as pessoas e, por isso, achavam que o assassinato deles era um ato agradável a Deus. E assim mataram gerações inteiras e executaram e queimaram centenas de milhares de pessoas. No entanto, o engraçado é que aqueles que executaram e queimaram as pessoas que começavam a entender a doutrina verdadeira, justamente as pessoas mais perigosas para nós, achavam que elas eram nossos servos, ou seja, súditos dos demônios. Só que aqueles que executavam e queimavam os outros nas fogueiras, e que eram na realidade nossos servos mais leais, se consideravam santos cumpridores da vontade de Deus. Assim era antigamente. Já no nosso tempo, uma quantidade muito maior de assassinos nos é fornecida pela doutrina do casamento cristão e da igualdade cristã. A doutrina do casamento nos dá, primeiro, os assassinatos dos cônjuges entre si e dos filhos pelas mães. Maridos e esposas se matam mutuamente, quando certas exigências da lei e do costume do casamento eclesiástico lhes parecem constrangedoras. As mães matam os filhos, em geral, quando as uniões das quais redundaram filhos não são aceitas como casamento. Tais assassinatos são cometidos de modo constante e regular. Já os assassinatos causados pela doutrina cristã da igualdade ocorrem de tempos em tempos, mas em compensação, quando ocorrem, são praticados em quantidade muito maior. Segundo essa doutrina, as pessoas são convencidas de que todas são iguais perante a lei. Só que as pessoas roubadas sentem que isso não é verdade. Elas veem que tal igualdade perante a lei consiste apenas em que os ladrões ficam à vontade para continuar roubando, enquanto elas não podem fazer o mesmo, e então se rebelam e atacam seus ladrões. Aí têm início os assassinatos recíprocos, que às vezes nos fornecem, de uma só vez, dezenas de milhares de assassinos.
IX

 

 

 

–Mas assassinatos na guerra? Como vocês conseguem levar a isso os discípulos Daquele que reconheceu que todas as pessoas eram filhos de um mesmo pai e mandou amar os inimigos?

O demônio vermelho sorriu de orelha a orelha, soltou pela boca um jato de fogo e de fumaça e, satisfeito, bateu nas costas com o rabo grosso.

–Fazemos assim: insuflamos em cada povo a ideia de que ele, esse povo, é o melhor do mundo, Deutschland über alles,3 França, Inglaterra, Rússia über alles, e que esse povo, qualquer um, precisa dominar todos os outros povos. E assim insuflamos em todos os povos a mesma convicção, de modo que todos eles, sentindo-se ameaçados por seus vizinhos, sempre se preparam para a defesa e se irritam uns com os outros. E quanto mais um lado se prepara para a defesa e por isso se irrita com os vizinhos, tanto mais todos os outros também se preparam para a defesa e se irritam uns contra os outros. Assim, agora, todos que acataram a doutrina Daquele que nos chamou de assassinos vivem constantemente ocupados, acima de tudo, com os preparativos para os assassinatos ou com os assassinatos propriamente ditos.
X

 

 

 

–Puxa, mas isso é sagaz – disse Belzebu, depois de um breve silêncio. – Porém como é que pessoas instruídas e isentas de ilusões não viram que a Igreja havia adulterado a doutrina e não a restauraram?

–Mas eles não podem fazer isso – respondeu com voz segura de si, rastejando para a frente, um demônio preto fosco, de manto nos ombros, testa lisa e oblíqua, ombros descarnados e orelhas grandes e salientes.

–Por quê? – perguntou Belzebu, com ar severo, descontente com o tom seguro de si do demônio de manto.

Sem se perturbar com o grito de Belzebu, o demônio de manto, em vez de se pôr de cócoras como os demais, sem pressa, tranquilamente, sentou-se à maneira oriental, cruzando as pernas descarnadas, e começou a falar sem hesitação, em voz baixa e medida:

–Não podem fazer isso porque, o tempo todo, eu desvio sua atenção daquilo que podem e precisam saber e a direciono para o que não precisam saber e que jamais saberão.

–E como fez isso?

–Fiz e faço de várias formas, conforme a época – respondeu o demônio de manto. – Na Antiguidade, eu convencia as pessoas de que o mais importante para elas era conhecer detalhes das relações entre as pessoas da Santíssima Trindade, o nascimento de Cristo, Sua natureza, os atributos de Deus etc. E elas raciocinaram muito e demoradamente sobre tais assuntos, demonstraram, discutiram e se zangaram. E tais raciocínios as mantiveram tão ocupadas que não pensavam nem um pouco em como deviam viver e, portanto, não precisavam saber o que lhes disse seu mestre sobre a vida.

“Depois, quando já estavam tão confusas por aqueles raciocínios que nem elas mesmas entendiam mais o que estavam dizendo, incuti em algumas pessoas a ideia de que o mais importante era estudar e explicar tudo que havia escrito um homem chamado Aristóteles, que tinha vivido mil anos antes, na Grécia; em outras pessoas, incuti a ideia de que o mais importante era descobrir uma pedra por meio da qual seria possível fazer ouro e também um elixir que eliminaria todas as doenças e tornaria as pessoas imortais. E as pessoas mais inteligentes e instruídas empregaram todas as suas forças intelectuais com esse fim.

“Naqueles que não se interessaram por isso, incuti a ideia de que o mais importante era saber se a Terra gira em torno do Sol ou se é o Sol que gira em torno da Terra. E quando aprenderam que a Terra gira e o Sol não, e quando determinaram quantos milhões de verstas separam a Terra do Sol, ficaram muito contentes e, desde então e até hoje, investigam com mais afinco ainda as distâncias até as estrelas, embora saibam que o fim de tais distâncias não existe nem pode existir, que o próprio número de estrelas é infinito e que eles não têm a menor necessidade de saber isso. Além do mais, incuti também neles a ideia de que é muito importante e indispensável saber como se originaram todos os animais, todos os vermes, todas as plantas, todos os seres vivos infinitamente pequenos. E embora, para eles, seja também absolutamente desnecessário saber isso e esteja perfeitamente claro que descobrir isso é impossível, porque tais criaturas são tão infinitamente numerosas quanto as estrelas, eles empregam todo o seu poder intelectual nisso e em pesquisas semelhantes, a respeito de fenômenos do mundo material, e ficam muito admirados com o fato de que, quanto mais descobrem daquilo que não têm necessidade de saber, mais permanece desconhecido para eles. E apesar de ser evidente que, à proporção que suas pesquisas avançam, o campo do que permanece por ser conhecido se torna cada vez mais vasto, os objetos da pesquisa se tornam cada vez mais complexos e os próprios conhecimentos alcançados por eles se tornam cada vez menos aplicáveis à vida, nada disso os incomoda e eles, plenamente convencidos da importância de seus conhecimentos, continuam a pesquisar, pregar, escrever, publicar e traduzir de uma língua para outra todas as suas pesquisas e raciocínios, que na maior parte nada têm de útil, e se de vez em quando acontece de serem úteis, é só para o divertimento da minoria de ricos ou para piorar a condição da maioria de pobres.

“A fim de impedir que, algum dia, se deem conta de que a única coisa necessária é a aplicação das leis da vida indicadas na doutrina de Cristo, incuti neles a ideia de que não podem conhecer as leis da vida espiritual e que toda doutrina religiosa, entre as quais a doutrina de Cristo, são ilusões e superstições, e que podem descobrir como precisam viver por meio de uma ciência, que inventei para eles, chamada sociologia, que consiste em estudar como os povos antigos viviam de modo diferente e pior. Assim, em lugar de eles mesmos, segundo a doutrina de Cristo, tentarem viver melhor, pensam que precisam apenas estudar a vida dos povos antigos, que de tais conhecimentos poderão extrair as leis gerais da vida e que, para viver bem, bastará apenas conformar sua vida a essas leis inventadas por eles.

“A fim de reforçar mais ainda seu engano, eu insuflo neles algo semelhante à doutrina da Igreja, a saber, que existe uma transmissão do conhecimento, que se chama ciência, e que as afirmações dessa ciência são tão infalíveis quanto as afirmações da Igreja.

“Tão logo aqueles que se consideram agentes da ciência se convencem de sua infalibilidade, eles naturalmente declaram ser verdades inquestionáveis não só as coisas mais desnecessárias como as tolices mais absurdas, as quais, uma vez proclamadas, eles já não podem mais desmentir.

“Aí está por que digo que, enquanto eu incutir neles o respeito e a subserviência a essa ciência, que inventei para eles, jamais compreenderão a doutrina que por muito pouco não nos aniquilou.”
XI

 

 

 

–Muito bem. Obrigado – disse Belzebu, e seu rosto ficou radiante. – Vocês merecem um prêmio e vou recompensá-los dignamente.

–Mas o senhor está se esquecendo de nós – gritaram em várias vozes os demais demônios, malhados, pequenos, grandes, de pernas tortas, gordos e magros.

–O que vocês fizeram? – perguntou Belzebu.

–Eu sou o demônio do aprimoramento técnico.

–Eu sou o da divisão do trabalho.

–Eu sou o das vias de comunicação.

–Eu sou o da impressão de livros.

–Eu sou o da arte.

–Eu sou o da medicina.

–Eu sou o da cultura.

–Eu sou o da educação.

–Eu sou o da reabilitação das pessoas.

–Eu sou o do entorpecimento.

–Eu sou o da filantropia.

–Eu sou o do socialismo.

–Eu sou o do feminismo – gritaram todos de repente, avançando e se espremendo, bem na frente da cara de Belzebu.

–Fale um de cada vez e de forma sucinta – gritou Belzebu. – Você – virou-se para o demônio do aprimoramento técnico. – O que você faz?

–Convenço as pessoas de que, quanto mais fizerem objetos e quanto mais depressa os fizerem, será melhor para elas. E as pessoas, arruinando a própria vida a fim de produzir objetos, fazem cada vez mais objetos, apesar de tais objetos não serem necessários àqueles que obrigam as pessoas a fazê-los e de serem inacessíveis àqueles que os produzem de fato.

–Muito bem. E você? – perguntou Belzebu ao demônio da divisão do trabalho.

–Eu convenço as pessoas de que, como é possível fazer objetos mais depressa por meio de máquinas do que de gente, é preciso transformar as pessoas em máquinas, e elas fazem isso, e as pessoas, transformadas em máquinas, odeiam aqueles que fizeram isso com elas.

–Puxa, muito bem. E você? – perguntou Belzebu ao demônio das vias de comunicação.

–Eu convenço as pessoas de que, para seu bem, é preciso deslocar-se o mais depressa possível de um lugar para outro. E as pessoas, em lugar de melhorar a própria vida no lugar onde estão, passam a maior parte dela em deslocamentos de um lugar para outro e se orgulham muito de poder percorrer cinquenta verstas ou mais numa hora.

Belzebu também elogiou isso.

O demônio da impressão de livros se adiantou. Sua tarefa, como explicou, consiste em comunicar ao maior número possível de pessoas todas as sujeiras e tolices que se fazem e se escrevem no mundo.

O demônio da arte explicou que, sob o pretexto de consolar e despertar sentimentos elevados, ele estimula os vícios, representando-os com um aspecto atraente.

O demônio da medicina explicou que sua tarefa consiste em convencer as pessoas de que o mais necessário para elas é a preocupação com o próprio corpo. E como a preocupação com o próprio corpo não tem fim, as pessoas, preocupadas com o próprio corpo, graças à ajuda da medicina, não só se esquecem da vida das outras pessoas como também se esquecem de sua própria vida.

O demônio da cultura explicou que convence as pessoas de que o aproveitamento de todas aquelas atividades conduzidas pelos demônios do aprimoramento técnico, da divisão do trabalho, das vias de comunicação, da impressão de livros, da arte, da medicina é algo semelhante à virtude e que o homem que tira proveito de tudo isso pode se sentir plenamente satisfeito consigo e não se empenhar em ser melhor.

O demônio da educação explicou que convence as pessoas de que podem ensinar as crianças a viver bem, mesmo vivendo de modo ruim e até sem saber em que consiste uma vida boa.

O demônio da reabilitação explicou que ensina às pessoas que, mesmo sendo corrompidas, elas podem reabilitar pessoas corrompidas.

O demônio do entorpecimento disse que ensina às pessoas que, em vez de livrar-se dos sofrimentos produzidos pela vida ruim tentando viver melhor, é preferível esquecer, sob o efeito do entorpecimento por bebida, tabaco, ópio e morfina.

O demônio da filantropia disse que torna as pessoas inacessíveis ao bem convencendo-as de que, roubando em pud e devolvendo em zólotnik4 às pessoas que foram roubadas, elas se tornam virtuosas e não precisam se aprimorar.

O demônio do socialismo se gabou de que, em nome da mais elevada organização da vida social, ele provoca a inimizade de classe.

O demônio do feminismo se gabou de que, para um aprimoramento ainda maior da organização da vida, além da inimizade de classe, ele provoca a inimizade entre os sexos.

–Eu sou o conforto! Eu sou a moda! – gritaram e guincharam outros demônios, arrastando-se na direção de Belzebu.

–Por acaso vocês pensam que sou tão velho e tolo que não entenda que, assim que a doutrina da vida é adulterada, logo tudo aquilo que podia ser nocivo para nós se torna útil para nós? – gritou Belzebu, e deu uma gargalhada. – Chega. Agradeço a todos.

Abanou as asas e, com um pulo, ficou de pé. Os demônios formaram um círculo em torno de Belzebu. Na hora de fechar o círculo de demônios, numa ponta estava o demônio de capa, o inventor da Igreja, e na outra ponta o demônio de manto, o inventor da ciência. Os demônios deram as patas uns aos outros e o círculo se fechou.

E todos os demônios, rindo, guinchando, assoviando e urrando, começaram a rodar e dançar em redor de Belzebu, abanando e batendo os rabos. Já Belzebu, abrindo e batendo as asas, dançava no meio da roda, erguendo as patas bem alto. No alto, por cima de tudo, ouviam-se gritos, choro, gemidos e rilhar de dentes.

1902

DEPOIS DO BAILE

–Então os senhores dizem que o homem não é capaz de compreender por si mesmo o que é bom e o que é mau, dizem que todos dependem do ambiente, que todos são vítimas de seu meio. Pois penso que tudo depende do acaso. E falo por experiência própria.

Assim começou Ivan Vassílievitch, a quem todos respeitavam, após uma conversa que tivemos em torno da ideia de que, para o aprimoramento pessoal, é necessário antes de tudo mudar as condições em que as pessoas vivem. Ninguém disse propriamente que era impossível compreender o que é bom e o que é mau, mas Ivan Vassílievitch tinha aquela maneira peculiar de responder aos próprios pensamentos, surgidos no correr de uma conversa e, sob o efeito de tais pensamentos, contar episódios da sua vida. Muitas vezes esquecia completamente o motivo que o levara a contar, deixava-se arrebatar pelo relato, ainda mais porque contava com muita franqueza e veracidade.

Assim fez também naquela ocasião.

–Falo por experiência própria. Toda a minha vida se constituiu dessa forma, e não de outro modo, não em decorrência do meio, mas sim de algo bem diferente.

–E do que foi, então? - perguntamos.

–Bem, essa é uma longa história. Para entender, é preciso contar.

–Pois então conte.

Ivan Vassílievitch pôs-se a refletir, balançou a cabeça.

–Sim - disse. - Toda a minha vida se transformou em uma noite, ou melhor, em uma manhã.

-O que aconteceu?

–Aconteceu que eu estava intensamente apaixonado. Apaixonei-me muitas vezes, mas aquele foi o amor mais forte que senti. Faz tempo; agora ela já tem uma filha casada. Era B., sim, Várienka B. - Ivan Vassílievitch disse o sobrenome da família. - Mesmo aos cinquenta anos, ela era de uma beleza notável. Mas na juventude, aos dezoito anos, era fascinante: alta, esbelta, graciosa e majestosa, majestosa no rigor da palavra. Sempre se portava de modo extraordinariamente ereto, como se não pudesse ser de outra forma, com a cabeça um pouco inclinada para trás e, com a beleza e a estatura elevada, apesar da magreza, que chegava a deixar os ossos à mostra, adquiria certo aspecto imperial, que levaria as pessoas a se afastar, não fossem o sorriso e a boca sempre carinhosa e alegre, os olhos encantadores e brilhantes e todo o seu ser jovem e gentil.

–Como Ivan Vassílievitch retrata bem.

–Sim, mas, por melhor que eu retrate, é impossível retratar de modo que os senhores entendam como ela era. Porém a questão não é essa: o que quero contar se passou nos anos 40. Nessa época, eu era estudante numa universidade de província. Não sei se isso é bom ou ruim, mas na época não havia entre nós, em nossa universidade, nenhum círculo, nenhuma teoria, éramos simplesmente jovens e vivíamos como é próprio da juventude: estudávamos e nos divertíamos. Eu era um rapaz muito alegre, esperto e ainda por cima rico. Tinha um cavalo fogoso que andava a passo esquipado, descia os morros com as senhoritas (ainda não havia chegado a moda dos patins), fazia farras com os camaradas (naquele tempo, não bebíamos senão champanhe; quando não tínhamos dinheiro, não bebíamos nada, nem vodca, como fazemos agora). Os meus principais prazeres eram as festas e os bailes. Eu dançava bem e não era feio.

–Ora, deixe de modéstia - interrompeu-o uma das senhoras que o ouviam. – Afinal, conhecemos o seu retrato em daguerreótipo. O senhor não só não era feio, como era um homem belíssimo.

–Belíssimo ou não belíssimo, não vem ao caso. O caso é que, na época desse que foi o mais forte amor de minha vida, estava eu num baile, no último dia do carnaval, na casa do chefe da província, um velhinho bonachão, ricaço, hospitaleiro e camarista da corte. Sua esposa, tão simpática quanto ele, recebia os convidados num vestido de veludo marrom, com uma tiara de brilhantes na cabeça e o peito e os ombros descobertos, velhos, fartos, brancos, como um retrato de Ielizavieta Petróvna.1 O baile estava maravilhoso. O salão estava lindo, tinha um coro, músicos, os famosos conjuntos de servos formados naquele tempo pelos senhores de terras amantes da música, um bufê magnífico e um mar transbordante de champanhe, mas não bebi porque sem a bebida eu já estava embriagado de amor, em compensação dançava até me esgotar, dançava as quadrilhas, as valsas, as polcas e, é claro, o mais possível, sempre com Várienka. Ela usava um vestido branco com um cinto cor-de-rosa e luvas brancas de pelica, que por pouco não chegavam aos cotovelos magros, pontudos, e sapatinhos brancos de cetim. Tomaram-me a mazurca: o odioso engenheiro Aníssimov, e eu até hoje não consigo perdoá-lo por isso, convidou-a para dançar logo que ela chegou, enquanto eu corria para o barbeiro e andava atrás de umas luvas e me atrasava. Assim, não dancei com ela a mazurca, mas sim com uma alemãzinha que antes eu já havia namorado um pouquinho. Mas receio ter sido muito rude com a alemãzinha nessa noite, não conversei nem olhei para ela, só via o vulto alto, esbelto, de vestido branco e cinto cor-de-rosa, o rosto radiante, ruborizado, as covinhas e os olhos carinhosos, meigos. Eu não era o único, todos olhavam para ela e ficavam encantados, os homens e também as mulheres, apesar de ela ofuscar todas as outras. Era impossível não se encantar.

“Por força de uma lei, por assim dizer, não dancei com ela a mazurca, mas na realidade dançamos quase todo o tempo. Sem se perturbar, ela atravessava o salão inteiro, direto ao meu encontro, eu dava um salto para a frente sem esperar o convite e ela, com um sorriso, agradecia minha perspicácia. Quando havia troca de pares e eu era conduzido de volta na sua direção, às vezes ela não adivinhava o meu passo e segurava outra mão que não a minha, encolhia os ombros magros e, em sinal de pesar e de consolo, sorria para mim. Quando fazíamos as figuras da mazurca em tempo de valsa, valsávamos juntos demoradamente e ela, muitas vezes sem fôlego, sorria e me dizia: ‘Encore’.2 E valsei e valsei e nem sentia o meu corpo.”

–Ora, como não sentia, acho que sentia bastante, quando a apertava pela cintura, sentia não só seu corpo, como também o dela - disse um dos convidados.

De repente Ivan Vassílievitch ficou ruborizado e quase gritou, com irritação:

–Sim, aí está como são os senhores, a juventude de hoje em dia. Os senhores, além do corpo, não enxergam nada. Em nosso tempo não era assim. Quanto mais intensamente eu estava apaixonado, mais incorpórea ela se tornava para mim. Os senhores, hoje, olham os pés, os tornozelos e outras coisas, os senhores despem as mulheres pelas quais estão apaixonados, mas para mim, como dizia Alphonse Karr,3 um bom escritor, o objeto do meu amor veste sempre roupas de bronze. Nós não só não despíamos como nos empenhávamos em cobrir a nudez, como faz um bom filho de Noé. Ora, mas os senhores não vão entender...

–Não lhe dê ouvidos. E depois, o que houve? - perguntou um de nós.

–Pois bem. Assim, dancei mais com ela e não vi o tempo passar. Os músicos, já com certo desespero de cansaço, os senhores sabem como acontece no fim de um baile, repetiam os mesmos temas da mazurca, as mães e os pais já se haviam levantado das mesas de jogar cartas nos salões, aguardavam o jantar, os criados passavam correndo com mais frequência, levando coisas. Ainda não eram três horas. Era preciso aproveitar os últimos minutos. Chamei-a de novo para a mazurca e, pela centésima vez, percorremos o salão.

“ ‘Então, depois do jantar, a quadrilha será minha?’, perguntei, enquanto a levava para seu lugar.

“ ‘Claro, se não me levarem embora’, ela respondeu, sorrindo.

“ ‘Não permitirei’, disse eu.

“ ‘Dê-me o leque’, pediu.

“ ‘Fico triste em devolvê-lo’, respondi, enquanto lhe entregava um leque branco e baratinho.

“ ‘Pois tome isto, para que o senhor não fique triste’, disse ela, e arrancou uma peninha do leque e me deu.

“Segurei a peninha e só com o olhar pude exprimir todo o meu entusiasmo e gratidão. Eu estava não só alegre e satisfeito, eu estava feliz, abençoado, eu me sentia bem, eu não era mais eu, e sim uma criatura extraterrena, que desconhecia o mal e só era capaz de fazer o bem. Escondi a peninha dentro da luva e fiquei parado, sem forças para separar-me dela.

“ ‘Veja, estão convidando o papai para dançar’, disse ela, apontando para o vulto alto e esbelto do pai, um coronel com dragonas prateadas, que estava na porta, junto à anfitriã e outras senhoras.

“ ‘Várienka, venha cá’, ouvimos a voz alta da anfitriã de tiara de brilhantes e ombros ielizavetanos.

“Várienka seguiu na direção da porta e eu fui logo atrás.

“ ‘Ma chère,4 convença seu pai a dar uns passos de dança com você. Vamos, por favor, Piotr Vladislávitch’, voltou-se a anfitriã para o coronel.

“O pai de Várienka era um velho muito bonito, esbelto, alto e viçoso. Tinha o rosto muito corado, com um bigode branco de pontas levantadas à la Nicolas I,5 suíças já brancas que se uniam ao bigode, o cabelo das têmporas penteado para a frente e, nos lábios e nos olhos radiantes, o mesmo sorriso carinhoso e alegre da filha. Tinha um porte magnífico, o peito largo, inflado à maneira militar, ornado de medalhas e sem ostentação, os ombros fortes, as pernas compridas e bem-feitas. Era um chefe militar bem ao tipo dos veteranos do tempo de Nicolau.

“Quando nos aproximamos da porta, o coronel se recusava, dizendo que havia desaprendido a dançar, no entanto, sorrindo, baixou a mão no lado esquerdo, desembainhou a espada, entregou-a a um jovem solícito e, após tirar a luva de camurça da mão direita - ‘tudo tem de ser feito conforme as regras’, disse sorrindo -, tomou a mão da filha e postou-se a um quarto de volta, à espera do compasso.

“No aguardado início do tema da mazurca, ele bateu agilmente um pé no chão, esticou a outra perna, e sua figura alta, corpulenta, deslocou-se em redor do salão, num sapateado ora baixo e suave, ora barulhento e tempestuoso. A figura graciosa de Várienka planava à sua volta, de maneira imperceptível, no tempo certo, encurtando ou esticando os passos de seus pezinhos brancos de cetim. O salão inteiro seguia todos os movimentos do par. Eu não estava apenas encantado, eu os observava com um enternecimento extasiado. Comoviam-me, sobretudo, as botas do pai, com presilhas bem justas - boas botas de couro de bezerro, mas não de bico fino, como ditava a moda, e sim antigas, de bico quadrado e sem salto. Pelo visto, tinham sido feitas pelo sapateiro do batalhão. ‘Para vestir e apresentar bem a filha querida, ele não compra botas da moda, usa botas feitas em casa’, pensei, e aquelas botas de bico quadrado enterneceram-me de modo especial. Via-se que outrora ele dançara muito bem, mas agora estava pesado e as pernas já não eram bastante flexíveis para todos os passos ligeiros e bonitos que tentava executar. Mesmo assim, deu duas voltas no salão com agilidade. Quando abriu e logo depois fechou as pernas e tombou sobre um joelho, ainda que de modo um pouco pesado, enquanto ela, sorrindo e ajeitando a saia em que o pai havia esbarrado, o circundava com suavidade, todos aplaudiram bem alto. Após se levantar com certo esforço, o pai tomou carinhosamente nas mãos a cabeça da filha e, após beijar sua testa, trouxe-a para mim, pensando que eu ia dançar com ela. Respondi que não era eu o seu par.

“ ‘Ora, não importa, dance com ela o senhor, agora’, disse o coronel, sorrindo de modo afetuoso, e recolocou a espada na bainha.

“Tal como acontece com o conteúdo de uma garrafa que, após escorrer a primeira gota, se derrama em grandes jatos, assim também, na minha alma, o amor por Várienka liberou toda a capacidade de amar que estava oculta dentro de mim. Naquela hora, eu abraçaria o mundo inteiro com meu amor. Eu amava também a anfitriã de tiara, com seu busto ielizavetano, e seu marido, e seus convidados, e seus criados, e até o engenheiro Aníssimov, que estava aborrecido comigo. Em relação ao pai dela, com suas botas feitas em casa e seu sorriso carinhoso, tão parecido com o da filha, eu experimentava então uma espécie de sentimento de ternura e enlevo.

“A mazurca terminou, os anfitriões chamaram os convidados para o jantar, mas o coronel B. recusou o convite, dizendo que no dia seguinte precisava acordar cedo, e despediu-se dos anfitriões. Cheguei a temer que ela também fosse embora, porém ficou no baile com a mãe.

“Depois do jantar, dancei com ela a quadrilha prometida e, embora eu parecesse estar infinitamente feliz, minha felicidade crescia mais e mais. Nada falávamos de amor. Eu não perguntava, nem a ela nem mesmo a mim, se ela me amava. Eu a amava e isso era o bastante. Só temia uma coisa, que alguém estragasse a minha felicidade.

“Quando cheguei em casa, tirei a roupa e pensei em dormir, mas vi que era completamente impossível. Tinha na mão a peninha do seu leque e sua luva inteira, que ela me dera ao ir embora, no momento de subir na carruagem, quando ajudei sua mãe e depois a ela. Eu observava esses objetos e, sem fechar os olhos, via seu vulto na minha frente, naquele minuto em que, optando entre dois cavalheiros, ela adivinhou o sentido do meu passo e ouvi sua voz meiga, quando disse: ‘Orgulho, não é?’, e com alegria me deu a mão, ou quando, depois do jantar, tomou um gole de uma taça de champanhe e olhou-me de soslaio com os olhos carinhosos. Porém, mais que tudo, eu a via dançar com o pai, no momento em que se movia suavemente em torno dele e, com orgulho e alegria, por si e por ele também, olhava de relance para os espectadores admirados. E, involuntariamente, uni o pai e a filha num mesmo sentimento terno e comovido.

“Na época, eu morava com o meu falecido irmão. Ele não gostava da vida mundana, em geral, e não ia a bailes; naquela altura meu irmão estava se preparando para o exame de doutoramento e levava uma vida regrada. Estava dormindo. Observei sua cabeça afundada no travesseiro, encoberta até a metade pelo cobertor de flanela, e me veio uma pena afetuosa em relação a ele, tive pena, porque meu irmão não conhecia e não compartilhava aquela felicidade que eu experimentava. Nosso servo e criado Petrucha veio ao meu encontro com uma vela e quis ajudar-me a trocar de roupa, mas dispensei-o. O aspecto de seu rosto sonolento, de cabelos emaranhados, pareceu-me enternecedor e tocante. Tentando não fazer barulho, segui para meu quarto na ponta dos pés e sentei na cama. Não, eu estava feliz demais, não podia dormir. Além disso, fazia calor nos cômodos muito aquecidos e eu, sem tirar o uniforme, saí de mansinho para o vestíbulo, pus a túnica, abri a porta e fui para a rua.

“Eu saíra do baile antes das cinco horas, mais umas duas horas se passaram enquanto fui para casa e fiquei lá algum tempo, portanto, quando saí já estava claro. Fazia um tempo típico da época do carnaval, havia uma neblina, a neve encharcada de água se derretia nas ruas e todos os telhados gotejavam. Na época, B. morava no fim da cidade, junto a um vasto campo, numa extremidade havia uma alameda, na outra, um colégio interno para moças. Cruzei nossa travessa deserta e saí numa rua grande, onde começavam a se encontrar pedestres, carroceiros e trenós cheios de lenha, cujos patins chegavam a raspar na calçada. E os cavalos, que em movimentos regulares, sob os arreios lustrosos, balançavam a cabeça molhada, e os cocheiros que, cobertos por umas esteirazinhas, batiam forte no chão as botas enormes ao lado das carroças, e as casas da rua, que na neblina pareciam muito altas, tudo era para mim singularmente doce e significativo.

“Quando cheguei ao campo onde ficava a casa deles, avistei na extremidade, na alameda da direita, algo grande, negro, e ouvi sons de flauta e tambor que vinham de lá. Minha alma cantava o tempo todo e, de quando em quando, se fazia ouvir o tema da mazurca. Mas aquele era outro tipo de música, rude e má.

“ ‘O que é isso?’, pensei e, por um caminho escorregadio que atravessava o meio do campo, segui na direção dos sons. Depois de percorrer uns cem passos, comecei a distinguir, por trás da neblina, muitas pessoas negras. Pelo visto, soldados. ‘Um treinamento, na certa’, pensei, e me aproximei, junto com um ferreiro de peliça curta e ensebada e de avental, que carregava algo e andava na minha frente. Os soldados, de uniforme preto, estavam postados em duas fileiras, uma de frente para a outra, com os fuzis em posição de descansar armas, e não se moviam. Atrás deles, estavam o flautista e o tocador de tambor, que não paravam de repetir a mesma melodia desagradável e estridente.

“ ‘O que estão fazendo?’, perguntei para o ferreiro, que havia parado ao meu lado.

“ ‘Estão castigando um tártaro por deserção’, respondeu o ferreiro em tom zangado, enquanto tentava enxergar a outra ponta das fileiras.

“Fiquei olhando para lá também e vi, no meio das duas fileiras, algo terrível, que vinha na minha direção. Vinha na minha direção um homem nu da cintura para cima, preso por cordas aos fuzis de dois soldados, que o conduziam. A seu lado, caminhava um militar alto, de túnica e quepe, cuja figura me pareceu conhecida. Contorcendo o corpo inteiro, tropeçando na neve derretida, o castigado avançava na minha direção sob os golpes que choviam sobre ele de ambos os lados, ora o homem tombava para trás - e então os sargentos que o conduziam preso aos fuzis empurravam-no para a frente -, ora caía para a frente - e então os sargentos, segurando-o para que não caísse, puxavam-no para trás. E, sem se afastar do castigado, o militar alto caminhava a passo firme, ligeiramente trêmulo. Era o pai dela, com seu rosto corado, seu bigode e as suíças brancas.

“A cada golpe, o castigado, como que surpreso, virava o rosto franzido de sofrimento para o lado de onde viera a pancada e, arreganhando os dentes brancos, repetia sempre a mesma frase. Só quando já estavam bem perto, distingui essa frase. Ele não falava, mas soluçava: ‘Irmãozinhos, tenham dó. Irmãozinhos, tenham dó’. Mas os irmãozinhos não tinham dó e, quando o cortejo passou bem junto a mim, vi como o soldado que estava na minha frente deu um passo decidido adiante e, com um zunido, brandiu no ar um porrete, antes de golpear com força as costas do tártaro. O tártaro tombou para a frente, mas os sargentos seguraram-no e uma pancada semelhante atingiu-o do outro lado, e de novo desse lado, e de novo do outro. O coronel acompanhava de perto e, olhando ora os próprios pés, ora o castigado, inspirava e, inflando as bochechas, soltava o ar lentamente entre os lábios contraídos em bico. Quando o cortejo passou pelo lugar onde eu estava, vi de relance, entre as fileiras, as costas do castigado. Era uma coisa colorida, molhada, vermelha, antinatural e nem acreditei que pudesse ser o corpo de um homem.

“ ‘Ah, meu Deus’, exclamou o ferreiro ao meu lado.

“O cortejo começou a afastar-se, golpeavam sem parar, dos dois lados, o homem tropeçava, se contorcia, e continuavam a bater no tambor e a assobiar na flauta, e sempre no seu passo firme avançava a figura alta, esbelta, do coronel, junto ao castigado. De súbito, o coronel parou e aproximou-se rápido de um dos soldados.

“ ‘Vou ajudar você’, ouvi sua voz raivosa. ‘Quer errar o alvo, é? Quer mesmo?’

“E vi como ele, com a mão forte metida numa luva de camurça, bateu no rosto de um soldado baixinho, assustado, fraco, por não ter baixado seu porrete com força bastante nas costas vermelhas do tártaro.

“ ‘Tragam açoites novos!’, gritou, virando-se para trás, e me viu. Fez de conta que não me conhecia, franziu as sobrancelhas com ar ameaçador e raivoso, deu-me as costas depressa. Senti tamanha vergonha que, sem saber para que lado olhar, como se tivesse sido apanhado em flagrante no ato mais vergonhoso do mundo, baixei os olhos e apressei-me em ir para casa. Ao longo de todo o caminho, em meus ouvidos ora batia o rufar do tambor e assobiava a flauta, ora ouviam-se as palavras: ‘Irmãozinhos, tenham dó’, ora eu ouvia a voz arrogante e raivosa do coronel, que gritava: ‘Quer errar o alvo, é? Quer mesmo?’. Enquanto isso, no coração, havia uma tristeza quase física, que beirava o enjoo, a tal ponto que parei várias vezes e pareceu-me que a qualquer momento eu ia vomitar todo o horror que entrara em mim por causa daquele espetáculo. Não lembro como cheguei em casa e deitei. Porém, assim que comecei a dormir, vi e ouvi tudo outra vez, e acordei de um salto.

“ ‘Na certa, ele sabe alguma coisa que desconheço’, pensei a respeito do coronel. ‘Se eu soubesse o que ele sabe, entenderia o que vi e isso não me perturbaria.’ Contudo, por mais que eu refletisse, não conseguia atinar com o que o coronel sabia e só fui dormir ao entardecer, depois de ir à casa de um amigo e beber com ele até ficar totalmente bêbado.

“Pois bem, os senhores pensam que concluí, então, que aquilo que vi era algo ruim? De maneira alguma. ‘Se fazem isso com tamanha convicção e se todos o consideram necessário, quer dizer que sabem alguma coisa que eu desconheço’, pensava, e me esforçava em descobrir o que era. Porém, como não descobri, não fui capaz de ingressar no serviço militar, como antes desejava, e tampouco ingressei no serviço civil e, como veem, não servi para nada, em parte alguma.”

–Bem, nós sabemos muito bem que o senhor não serviu para nada - disse um de nós. - É melhor dizer: quantas pessoas não teriam servido para nada, se não fosse o senhor.

–Ora, isso é uma tolice completa - exclamou Ivan Vassílievitch, com irritação sincera.

–Bem, e o amor? - perguntamos.

–Amor? A partir daquele dia, o amor começou a minguar. Quando ela, como lhe acontecia muitas vezes, com um sorriso no rosto, se punha pensativa, na mesma hora eu me lembrava do coronel na praça e me vinha uma sensação tão incômoda e tão desagradável que passei a encontrá-la cada vez menos. E assim o amor deu em nada. Vejam como são as coisas e o que transforma e governa a vida inteira de um homem. E os senhores dizem... - concluiu ele.

Iásnaia Poliana, 20 de agosto de 1903

O REI ASSÍRIO ASSARHADDON

O rei assírio Assarhaddon conquistou o reino de Lailie, devastou e queimou todas as cidades, capturou e levou todos os habitantes para seu país, matou os guerreiros e aprisionou o próprio rei Lailie numa jaula.

À noite, deitado na cama, o rei Assarhaddon pensava em como castigar Lailie, quando ouviu de repente a seu lado um sussurro e, abrindo os olhos, viu um velho de barba grisalha e olhos dóceis.

–Você quer castigar Lailie? – perguntou o velho.

–Quero – respondeu. – Estava tentando imaginar um castigo para ele.

–Mas, veja, Lailie é você – disse o velho.

–Não é verdade – respondeu o rei. – Eu sou eu e Lailie é Lailie.

–Você e Lailie são um só – disse o velho. – Apenas lhe parece que você não é Lailie e que Lailie não é você.

–Como assim, me parece? – retrucou o rei. – Estou aqui, deitado num leito macio, à minha volta tenho escravos e escravas obedientes e amanhã serei como hoje, vou me banquetear com os amigos, enquanto Lailie, como um pássaro, está preso numa gaiola e amanhã, com a língua para fora, vai ser empalado, vai se contorcer até morrer e seu corpo será despedaçado pelos cães.

–Você não pode aniquilar a vida dele – disse o velho.

–E os catorze mil guerreiros que matei e com cujos corpos fiz um monte? – perguntou o rei. – Estou vivo, e eles, não; portanto eu posso aniquilar a vida.

–Como sabe que eles não existem?

–Porque não os vejo. E acima de tudo porque eles sofreram tormentos e eu, não. Foi ruim para eles, mas para mim foi bom.

–Isso é apenas o que lhe parece. Você atormentou a si mesmo, e não a eles.

–Não entendo – disse o rei.

–Quer entender?

–Quero.

–Venha cá – disse o velho, apontando para uma tina cheia de água.

O rei levantou-se e se aproximou da tina.

–Tire a roupa e entre na tina.

Assarhaddon fez o que o velho mandou.

–Agora, quando eu começar a derramar essa água sobre você, afunde a cabeça – disse o velho, pegando água numa caneca.

O velho inclinou a caneca acima da cabeça do rei, que afundou.

E assim que o rei Assarhaddon afundou, sentiu que não era mais Assarhaddon, mas outra pessoa. Viu-se deitado numa cama de luxo, ao lado de uma bela mulher. Nunca tinha visto aquela mulher, mas sabia que era sua esposa. A mulher se levantou um pouco e disse:

–Meu querido marido Lailie, você está cansado dos trabalhos de ontem e por isso dormiu até mais tarde do que o costume, mas eu vigiei seu repouso e não acordei você. No entanto, agora, os príncipes o esperam no salão principal. Vista-se e vá ao encontro deles.

E Assarhaddon, entendendo pelas palavras da mulher que ele era Lailie, ficou admirado não só com aquilo, como também com o fato de até então não saber disso, e levantou-se, vestiu-se e foi para o salão principal, onde os príncipes o aguardavam.

Inclinando-se até o chão, os príncipes saudaram seu rei Lailie, depois se levantaram e, por uma ordem sua, sentaram-se à sua frente, e o mais velho deles começou a dizer que não era mais possível tolerar todos os insultos do perverso rei Assarhaddon e que era preciso ir à guerra contra ele. Mas Lailie não concordou, mandou enviar embaixadores ao encontro de Assarhaddon a fim de trazê-lo de volta à razão e dispensou os príncipes. Depois disso, escolheu pessoas respeitáveis como embaixadores e explicou-lhes em detalhe o que deviam comunicar ao rei Assarhaddon.

Terminada essa tarefa, Assarhaddon, sentindo-se Lailie, foi à montanha caçar asnos selvagens. A caçada foi bem-sucedida. Ele mesmo matou dois asnos e, ao voltar para casa, banqueteou-se com os amigos, vendo a dança das escravas.

No dia seguinte, como de hábito, saiu para o pátio, onde o aguardavam peticionários, réus e litigantes, e resolveu as questões que lhe foram apresentadas. Terminada essa tarefa, foi de novo para sua atividade predileta: a caça. E naquele dia conseguiu, ele mesmo, matar uma leoa velha e capturar seus dois filhotes. Depois da caçada, de novo banqueteou-se com os amigos, divertindo-se com música e dança, e passou a noite com a querida esposa.

Assim viveu os dias e as semanas, esperando o regresso dos embaixadores que enviara ao rei Assarhaddon, que antes era ele. Os embaixadores só voltaram depois de um mês, e voltaram com as orelhas e o nariz cortados.

O rei Assarhaddon mandou dizer a Lailie que o que tinha feito aos embaixadores seria feito com ele também, a menos que mandasse imediatamente um determinado tributo em prata, ouro e madeira de cipreste, e fosse em pessoa render homenagens a ele.

Lailie, que antes era Assarhaddon, de novo reuniu os príncipes e discutiu com eles o que fazer. Todos a uma só voz disseram que era preciso travar guerra contra Assarhaddon, sem esperar seu ataque. O rei concordou e, pondo-se à frente do exército, partiu em campanha. A campanha durou sete dias. Todo dia, o rei andava em redor das tropas e incentivava a coragem de seus guerreiros. No oitavo dia, suas tropas encontraram as tropas de Assarhaddon num grande vale, à beira de um rio. As tropas de Lailie combateram com coragem, mas Lailie, que antes era Assarhaddon, viu que os inimigos desciam das montanhas como formigas, inundavam o vale e estavam vencendo suas tropas, e ele, em sua carruagem, atirou-se para o centro do combate, furou e cortou os inimigos. Porém os guerreiros de Lailie eram centenas e os de Assarhaddon eram milhares, e Lailie sentiu que estava ferido e que era levado prisioneiro.

Por nove dias, ao lado de outros prisioneiros, ele caminhou amarrado, cercado por guerreiros de Assarhaddon. No décimo dia, foi levado a Nínive e preso numa jaula.

Lailie sofria menos por causa da fome e do ferimento do que da vergonha e da raiva impotente. Sentia-se impotente para fazer o inimigo pagar por todo o mal que ele havia suportado. A única coisa que podia fazer era não dar aos inimigos a alegria de ver seu sofrimento e resolveu, com determinação e coragem, suportar sem nenhum murmúrio tudo o que acontecesse com ele.

Ficou vinte dias na jaula, à espera da execução. Viu como eram executados seus familiares e amigos, ouviu os gemidos dos condenados, alguns tiveram mãos e pés cortados, outros foram esfolados vivos, e não demonstrou nem angústia, nem arrependimento, nem medo. Viu como eunucos levaram sua esposa amarrada. Ele sabia que a levavam para ser uma das escravas de Assarhaddon. E também suportou aquilo sem lamentos.

Então dois carrascos abriram a jaula e, amarrando suas mãos nas costas com uma correia, levaram-no para o local da execução, banhado de sangue. Lailie viu a estaca pontuda e ensanguentada, da qual pouco antes arrancaram o corpo de um amigo seu, morto ali, e entendeu que tinham liberado a estaca para a sua execução.

Tiraram sua roupa. Lailie sentiu-se horrorizado com a magreza do próprio corpo, antes forte e bonito. Dois carrascos suspenderam aquele corpo pelo quadril magro, ergueram-no e iam soltá-lo em cima da estaca.

“Agora é a morte, o aniquilamento”, pensou Lailie. “Sei que estou dormindo. Isto é um sonho.” E fez um esforço para acordar. “Pois eu não sou Lailie, sou Assarhaddon”, pensou.

–Você é Lailie e também é Assarhaddon – ouviu uma voz dizer e sentiu que a execução começava. Gritou e no mesmo instante levantou a cabeça de dentro da tina cheia de água. O velho estava de pé, acima dele, e derramava em sua cabeça o resto de água que havia na caneca.

–Ah, como sofri horrivelmente! E como demorou! – exclamou Assarhaddon.

–Demorou muito? – perguntou o velho. – Mas você acabou de afundar a cabeça e logo depois a levantou; olhe, ainda não terminei de derramar a água da caneca. Agora entendeu?

Assarhaddon nada respondeu e apenas olhou com horror para o velho.

–Agora entendeu que Lailie é você – prosseguiu o velho – e que os guerreiros que você levou à morte também são você? E não só os guerreiros, os animais que você matou nas caçadas e assou em seus banquetes também são você. Veja, você achava que a vida estava só em você, mas eu retirei de você o véu da ilusão e você viu que, fazendo o mal aos outros, fazia o mal a si mesmo. A vida é uma só em todos e você manifesta em si apenas uma parte dessa vida única. E apenas nessa parte da vida você pode melhorar ou piorar, aumentar ou diminuir a vida. Você só pode melhorar a vida em você mesmo quando destruir as barreiras que separam sua vida da dos outros seres, quando considerar os outros seres como sendo você mesmo: quando amá-los. Destruir a vida em outros seres é algo que não está em seu poder. A vida dos seres mortos por você desapareceu de sua vista, mas não foi aniquilada. Você pensava que alongava a própria vida e encurtava a vida dos outros, mas não pode fazer isso. Para a vida, não existe tempo nem lugar. Uma vida de um instante e uma vida de mil anos, a sua vida e a vida de todos os seres visíveis e invisíveis do mundo são iguais. É impossível aniquilar e modificar a vida, porque ela é a única coisa que existe. Todo o resto apenas nos parece existir.

Dito isso, o velho desapareceu.

Na manhã seguinte, o rei Assarhaddon mandou soltar Lailie e todos os prisioneiros e cancelou as execuções.

No terceiro dia, chamou seu filho Assurbanípal e lhe entregou o reino, enquanto ele mesmo, de início, retirou-se para o deserto a fim de meditar sobre o que havia descoberto. Depois começou a caminhar pelas aldeias e cidades, sob o disfarce de um vagabundo, pregando às pessoas que a vida era só uma e que as pessoas só faziam o mal a si mesmas, quando queriam fazer o mal a outras criaturas.

1903

O CUPOM FALSIFICADO

PRIMEIRA PARTE
I

 

 

 

Fiódor Mikháilovitch Smokóvnikov, presidente da Câmara Fiscal, homem de uma honestidade incorruptível, e orgulhoso disso, sobriamente liberal e não apenas livre-pensador como vigorosamente hostil a qualquer manifestação de religiosidade, que considerava resquícios de superstição, voltou da Câmara com o pior humor possível. O governador tinha escrito para ele um documento tolíssimo, que podia ser entendido como uma insinuação de que Fiódor Mikháilovitch tinha agido de forma desonesta. Fiódor Mikháilovitch ficou muito irritado e na mesma hora, curto e grosso, redigiu uma resposta.

Em casa, Fiódor Mikháilovitch teve a impressão de que tudo andava mal. Faltavam cinco minutos para as cinco horas. Ele achou que logo iriam servir o jantar, mas a refeição ainda não estava pronta. Fiódor Mikháilovitch fechou a porta com força e foi para seu quarto. Alguém bateu na porta. “Diabos, que mais está faltando?”, pensou, e gritou:

–Quem é, agora?

Um ginasiano da quinta série entrou no quarto, um menino de quinze anos, filho de Fiódor Mikháilovitch.

–O que você quer?

–Hoje é o primeiro dia do mês.

–O que é? Dinheiro?

Estava combinado que, todo primeiro dia do mês, o pai dava uma mesada de três rublos para o filho se divertir. Fiódor Mikháilovitch fez cara feia, pegou a carteira, procurou e tirou um cupom de dois rublos e meio, depois pegou a bolsa com moedas de prata e contou cinquenta copeques. O filho ficou em silêncio e não pegou o dinheiro.

–Papai, por favor, me dê um adiantamento.

–Como?

–Eu não ia pedir, mas peguei emprestado e dei minha palavra, prometi. Como pessoa honesta que sou, não posso... preciso de mais três rublos, não vou pedir mais, palavra... não vou pedir mais, só agora... por favor, pai.

–Eu já tinha falado para você...

–Sei, papai, mas só uma vez...

–Você recebe uma mesada de três rublos e ainda acha pouco. Com sua idade, eu não ganhava nem cinquenta copeques.

–Hoje, todos os meus amigos recebem mais. Petrov e Ivánitski ganham cinquenta rublos.

–Pois eu lhe digo que, se você se comportar como eles, vai acabar virando um patife. Escute o que estou dizendo.

–Ora, o que o senhor está dizendo. O senhor nunca vai se colocar na minha posição, vou ser visto como canalha. Para o senhor, tanto faz.

–Saia, seu malandro. Fora daqui.

Fiódor Mikháilovitch se levantou de repente e se lançou contra o filho.

–Fora. Vocês precisam é de chicote.

O filho se assustou e se irritou, porém se irritou mais do que se assustou e, de cabeça baixa, seguiu para a porta em passos ligeiros. Fiódor Mikháilovitch não queria bater nele, mas ficou contente com a própria raiva e continuou, por um bom tempo, a gritar palavras ofensivas, atrás do filho.

Quando a empregada veio dizer que o jantar estava pronto, Fiódor Mikháilovitch se levantou.

–Finalmente – disse. – Já nem sinto mais vontade de comer.

E, de sobrancelhas franzidas, foi para a sala de jantar.

À mesa, a esposa começou a falar com ele, mas o marido resmungou uma resposta tão curta e zangada que ela se calou. O filho também não ergueu os olhos do prato e se manteve mudo. Comeram em silêncio e em silêncio levantaram e se separaram.

Depois do jantar, o ginasiano voltou para seu quarto, tirou do bolso o cupom e o dinheiro trocado e jogou sobre a mesa, depois tirou o uniforme e vestiu uma jaqueta. De início, o ginasiano estudou uma surrada gramática do latim, depois fechou a porta com o ferrolho, enfiou o dinheiro na gaveta da mesa, da qual tirou papel de cigarro, enrolou, encheu com algodão e começou a fumar.

Ficou umas duas horas sentado na frente da gramática e do caderno, sem entender nada, depois se levantou e se pôs a andar pelo quarto, batendo os calcanhares no chão, e recordou tudo o que havia se passado na conversa com o pai. Todas as palavras injuriosas do pai, sobretudo seu rosto cruel, vieram à sua memória e era como se o menino o visse e o escutasse naquele momento.

“Malandro. Precisa de chicote.” E quanto mais lembrava, mais se enfurecia contra o pai. Lembrou que o pai lhe dissera: “Vejo que você está se tornando um patife. Eu já sabia”. “Se é desse jeito, a gente acaba mesmo virando um patife. Para ele, tanto faz. Esqueceu como era quando jovem. Ora, qual foi o crime que cometi? Só fui ao teatro, não tinha dinheiro, peguei emprestado com o Piétia Gruchétski. O que há de mau nisso? Outro pai teria pena, perguntaria, mas ele só sabe xingar, só pensa em si mesmo. Mas quando é ele que não tem alguma coisa, é uma gritaria só na casa inteira, e eu é que sou o patife. Não, ele pode ser meu pai, mas não tenho amor por ele. Não sei se é sempre assim que acontece, mas não tenho amor por ele.”

A empregada bateu na porta. Trouxe um bilhete.

–Pediram uma resposta já.

No bilhete, estava escrito:
Já é a terceira vez que peço a você que me pague os seis rublos que emprestei, mas você se esquiva. Não é assim que se comportam as pessoas honestas. Peço que mande sem demora o dinheiro pelo portador. Eu mesmo estou num grande aperto. Será que você não consegue arranjar essa quantia? Do seu camarada, que o despreza ou que o respeita, conforme você mande ou não o dinheiro,

 

 

 

Gruchétski

“Ora vejam só. Mas que porco. Não pode esperar. Vou tentar de novo.”

Mítia foi falar com a mãe. Era a última esperança. Sua mãe era bondosa e não sabia negar, talvez o ajudasse, mas naquele dia estava abalada com a ligeira enfermidade do filho menor, Piétia, de dois anos. Ela se zangou com Mítia por ter entrado fazendo barulho e logo de saída negou seu pedido. Ele resmungou qualquer coisa para si e andou para a porta. A mãe teve pena do filho e o chamou de volta.

–Espere, Mítia – disse. – Não tenho agora, mas amanhã consigo.

Porém a raiva contra o pai continuava a ferver dentro de Mítia.

–De que me adianta amanhã, se preciso agora? Fique sabendo que vou falar com um amigo.

Saiu, batendo a porta.

“Não há mais nada a fazer, ele vai me ensinar onde posso penhorar meu relógio”, pensou, apalpando o relógio no bolso.

Mítia tirou o cupom e os trocados da gaveta da mesa, vestiu o paletó e foi à casa de Mákhin.
II

 

 

 

Mákhin era aluno do ginásio e tinha bigode. Jogava cartas, conhecia mulheres e sempre tinha dinheiro. Morava com a tia. Mítia sabia que Mákhin era um mau garoto, mas quando estava com ele não conseguia deixar de se submeter à sua vontade. Mákhin estava em casa e se preparava para ir ao teatro: seu quarto imundo cheirava a sabonete perfumado e água-de-colônia.

–Meu caro, é o último recurso – disse Mákhin, quando Mítia contou seu apuro, mostrou o cupom e os cinquenta copeques e disse que precisava de nove rublos. – É possível penhorar o relógio, mas é possível fazer coisa melhor – disse Mákhin, piscando o olho.

–Melhor, como?

–Mas é muito simples. – Mákhin pegou o cupom. – É só colocar o número um na frente do dois e meio e teremos doze rublos e meio.

–Mas existem cupons desse valor?

–Claro, há cupons assim presos nas notas de mil rublos. Uma vez, já paguei com um desses.

–Não é possível!

–E então, vamos lá? – disse Mákhin, enquanto pegava uma pena e ajeitava o cupom com um dedo da mão esquerda.

–Mas isso é errado.

–Ora, que absurdo.

“É mesmo um absurdo”, pensou Mítia e lembrou de novo o xingamento do pai: patife. “Pronto, agora vou virar um patife.” Fitou o rosto de Mákhin. Mákhin estava olhando para ele e sorria, tranquilo.

–E então, vamos lá?

–Vamos.

Com cuidado, Mákhin escreveu o número um.

–Muito bem, agora vamos à loja. É logo ali na esquina: equipamento fotográfico. Estou justamente precisando de uma moldura, para esta pessoa.

Pegou uma fotografia de uma jovem de olhos grandes, cabelos colossais e busto majestoso.

–Que gracinha, não é?

–Sim, sim. Mas como...

–Muito simples. Vamos.

Mákhin trocou de roupa e saíram juntos.
III

 

 

 

A campainha tocou na porta da loja de fotografia. Os ginasianos entraram, observando a loja deserta, com prateleiras cheias de equipamentos e vitrines nos balcões. Pela porta de trás, veio uma mulher feia, de rosto simpático, parou atrás de um balcão e perguntou o que desejavam.

–Uma moldurazinha bem bonita, madame.

–De que preço? – perguntou a senhora, enquanto, ágil e ligeira, separava molduras de vários tipos, com as mãos metidas em luvas que deixavam de fora os dedos inchados nas articulações. – Estas custam cinquenta copeques e estas aqui são mais caras. Olhe esta bem pequenininha, é um estilo novo, sai por um rublo e vinte.

–Certo, me dê essa. Mas não pode fazer um abatimento? Faça por um rublo.

–Não fazemos abatimentos – respondeu a mulher, com orgulho.

–Certo, deixe para lá – disse Mákhin, colocando o cupom sobre a vitrine. – Dê a moldurinha e o troco, mas bem rápido. Não podemos chegar tarde ao teatro.

–Ainda tem tempo – disse a senhora, e examinou o cupom com os olhos míopes.

–Vai ficar uma graça nessa moldurazinha, não vai? Hein? – perguntou Mákhin, para Mítia.

–O senhor não tem outro dinheiro? – perguntou a vendedora.

–Pois é, que azar, não tenho. O papai me deu o cupom, tenho de trocar.

–Mas o senhor não teria um rublo e vinte?

–Tenho cinquenta copeques. Mas o que foi? Tem medo de que nós estejamos pagando com dinheiro falso?

–Não, nem de longe.

–Então devolva. Vamos trocar.

–Bem, quanto tenho de dar de troco?

–Ah, pois é, onze e uns quebrados.

A vendedora fez as contas num ábaco, abriu a escrivaninha, pegou uma nota de dez rublos e, depois de remexer uns trocados, separou mais seis moedas de vinte copeques e duas de cinco.

–Faça a gentileza de embrulhar – disse Mákhin e pegou o dinheiro, sem pressa.

–Sim, senhor.

A vendedora fez um embrulho e amarrou com um barbante. Mítia só recobrou o fôlego quando a campainha da porta tilintou atrás deles e os dois seguiram pela rua.

–Muito bem, agora você tem dez rublos, mas o resto deixe comigo. Eu devolvo a você.

Mákhin foi ao teatro, enquanto Mítia foi à casa de Gruchétski para acertar as contas com ele.
IV

 

 

 

Uma hora depois que os ginasianos saíram, o dono da loja chegou em casa e contou a receita do dia.

–Ah, sua burra atrapalhada! Como você é burra – começou a gritar para a esposa, ao ver o cupom e logo notar a falsificação. – Para que aceitar um cupom?

–Mas você mesmo, Génia, aceitou cupons na minha frente, e justamente esses de doze rublos – disse a esposa, confusa, magoada e à beira de chorar. – Nem eu mesma sei como me tapearam, aqueles ginasianos – disse ela. – Um rapazinho bonito, parecia tão comilfô.1

–Sua burra comilfô – continuou a brigar o marido, enquanto contava o dinheiro do caixa. – Quando pego um cupom, bato os olhos e sei logo o que está escrito nele. Mas você, pelo visto, depois de velha, só sabe olhar para a cara bonita dos ginasianos.

A esposa não conseguiu suportar aquilo e também ficou irritada.

–Que grande homem! Só sabe acusar os outros, mas ele mesmo perdeu cinquenta e quatro rublos no jogo de cartas... Isso não é nada.

–Comigo é outra história.

–Não quero mais falar com você – retrucou a esposa, foi para seu quarto e começou a lembrar que sua família não queria que ela casasse, pois achavam o marido de posição muito inferior, e só ela havia insistido no casamento; lembrou-se de seu bebê que havia morrido, da indiferença do marido àquela perda e sentiu tanto ódio do marido que chegou a pensar como seria bom se ele morresse. Porém, ao pensar nisso, se assustou com os próprios sentimentos, trocou de roupa às pressas e saiu. Quando o marido voltou para casa, a esposa já não estava. Sem esperar por ele, a esposa havia trocado de roupa e fora sozinha à casa de um professor de francês, seu conhecido, que estava dando uma festa naquela noite.
V

 

 

 

Na casa do professor de francês, um polonês-russo, foi servido um chá de gala com biscoitos doces e depois os convidados sentaram em torno de algumas mesas para jogar vint.2

A esposa do vendedor de equipamento fotográfico sentou-se junto com o anfitrião, um oficial e uma senhora surda e velha, de peruca, viúva, dona de uma loja de música, grande aficionada e mestre do jogo de cartas. As cartas boas iam para a esposa do vendedor de material fotográfico. Bateu duas vezes. A seu lado, estava um pratinho com uvas e peras e ela se sentia alegre.

–Mas então, o Ievguiéni Mikháilovitch não vem? – perguntou a esposa do anfitrião, de outra mesa. – Reservamos para ele o quinto lugar no jogo.

–Na certa, ficou entretido com a contabilidade – respondeu a esposa de Ievguiéni Mikháilovitch. – Hoje é dia de pagar as contas das provisões e da lenha.

E, ao lembrar a discussão com o marido, ela franziu as sobrancelhas, e suas mãos, metidas em luvas e com os dedos de fora, começaram a tremer de raiva dele.

–Olhem quem chegou, estávamos justamente falando de você – disse o anfitrião, dirigindo-se a Ievguiéni Mikháilovitch, que acabara de entrar. – Por que se atrasou?

–Muito trabalho – respondeu Ievguiéni Mikháilovitch com voz animada, esfregando as mãos. E, para espanto da esposa, se aproximou dela e disse: – Sabe, passei o cupom adiante.

–É mesmo?

–É, dei para um mujique, em troca da lenha.

E Ievguiéni Mikháilovitch contou a todos, com grande indignação – a esposa acrescentava detalhes em seu relato –, como alguns ginasianos sem consciência enganaram sua esposa.

–Muito bem, agora vamos ao trabalho – disse, sentando-se à mesa, quando chegou sua vez, e embaralhou as cartas.
VI

 

 

 

De fato, Ievguiéni Mikháilovitch usou o cupom para comprar a lenha do camponês Ivan Mirónov.

Ivan Mirónov ganhava a vida comprando lenha por sájen em depósitos de madeira, para revender pela cidade, e arrumava a lenha de tal modo que, de uma sájen, ele fazia cinco feixes, os quais revendia pelo preço que havia pagado por um quarto no depósito de madeira. Naquele dia funesto para Ivan Mirónov, bem cedo ele tinha pegado um oitavo de lenha, vendeu logo, pegou mais um oitavo e fez de tudo para vender, andou até o fim da tarde à procura de um comprador, mas ninguém comprava. Topava toda hora com experientes moradores da cidade, que conheciam as trapaças costumeiras dos mujiques vendedores de lenha e não acreditavam que ele havia trazido a lenha do campo, como tentava convencê-los. Ivan Mirónov já estava com muita fome, o frio picava por dentro de seu casaco curto e de seu capote rasgado; ao anoitecer, a friagem chegou aos vinte graus negativos; o cavalinho, do qual ele não tinha pena, porque pensava em vendê-lo para os açougueiros, estava nas últimas. Então, quando já estava disposto a se desfazer da lenha até com prejuízo, Ivan Mirónov encontrou Ievguiéni Mikháilovitch, que tinha saído para comprar tabaco e voltava para casa.

–Aceite, patrão, vendo barato. Meu cavalinho não aguenta mais.

–Você veio de onde?

–Vim do campo. Minha lenha é boa, seca.

–Eu conheço vocês. Bem, e quanto quer?

Ivan Mirónov começou a pedir, foi baixando e acabou cobrando o mesmo preço que tinha pagado.

–Só para o senhor, patrão, que mora perto – disse ele.

Ievguiéni Mikháilovitch não barganhou muito, contente com a ideia de que ia passar o cupom adiante. Aos trancos e barrancos, puxando ele mesmo os varais da carroça, Ivan Mirónov levou a lenha para o pátio e, sozinho, descarregou no celeiro. O zelador não estava. De início, Ivan Mirónov hesitou em aceitar o cupom, mas Ievguiéni Mikháilovitch tanto insistiu, e se deu ares de um senhor tão importante, que ele acabou aceitando.

Entrando na ala dos empregados pela porta dos fundos, Ivan Mirónov fez o sinal da cruz, esfregou os fios de gelo da barba para derretê-los, levantou a aba do casaco, pegou uma bolsa de couro, tirou oito rublos e cinquenta copeques, deu como troco e colocou o cupom dobrado dentro da carteira, que guardou na bolsa.

Depois de agradecer ao senhor, como de hábito, Ivan Mirónov partiu para a taberna e, em vez de usar a tira do chicote, bateu com o cabo para tocar o cavalinho, que, recoberto de gelo, já sem a carga e condenado à morte, mal conseguia mover as patas.

Na taberna, Ivan Mirónov pediu oito copeques de vinho e chá e, depois de aquecido, e até suado, no estado de ânimo mais alegre do mundo, começou a conversar com um zelador, sentado a seu lado. Entabulou conversa com ele, contou toda a sua situação. Contou que era da aldeia de Vassíliev, a doze verstas da cidade, que tinha se separado do pai e dos irmãos e agora morava com a esposa e dois filhos, dos quais o mais velho tinha acabado de entrar na escola e ainda não ajudava nada. Contou que, por ora, ia ficar num albergue e no dia seguinte iria para o mercado de cavalos vender seu pangaré e ver se conseguia comprar outro cavalinho. Contou que tinha juntado quase vinte e cinco rublos, só faltava um, e que metade desse dinheiro era um cupom. Pegou o cupom e mostrou ao zelador. O zelador era analfabeto, mas disse que trocava aquele tipo de dinheiro para os inquilinos, que o dinheiro era bom, mas havia falsificações e por isso recomendou trocar o cupom ali mesmo, por via das dúvidas. Ivan Mirónov deu o cupom para o garçom e pediu o troco, mas o garçom não trouxe troco, quem veio foi o gerente careca, de rosto reluzente, com o cupom na mão gorducha.

–O dinheiro de vocês não serve – disse, mostrando o cupom, mas sem devolvê-lo.

–O dinheiro é bom, foi um nobre que me deu.

–Bom uma conversa, é falsificado.

–Se é falsificado, então me dê aqui.

–Não, meu caro, o amigo tem de aprender. Você e outros vigaristas fizeram isso.

–Devolva o dinheiro. Que direito você acha que tem?

–Sídor! Chame o guarda – disse o gerente para o garçom.

Ivan Mirónov estava embriagado. Embriagado, ficava nervoso. Agarrou o gerente pelo colarinho e desatou a berrar:

–Devolva, vou levar para o nobre. Sei onde ele mora.

O gerente se desvencilhou de Ivan Mirónov e sua camisa rasgou.

–Ah, você é assim. Segure o homem.

Um garçom segurou Ivan Mirónov e foi aí que chegou o guarda. Depois de ouvir a história, com ar superior, logo tomou sua decisão:

–Para a delegacia.

O guarda pôs o cupom no porta-moedas e levou Ivan Mirónov e o cavalo para a delegacia.
VII

 

 

 

Ivan Mirónov passou a noite na delegacia, com bêbados e ladrões. Já quase ao meio-dia, foi chamado à presença do delegado. O delegado o interrogou e mandou que um policial o acompanhasse até a casa do vendedor de material fotográfico. Ivan Mirónov se lembrava da rua e da casa.

Quando o guarda chamou o dono da casa e apresentou o cupom e Ivan Mirónov, que garantiu que aquele mesmo senhor lhe dera o cupom, Ievguiéni Mikháilovitch fez cara de surpresa e depois tomou ares de severidade.

–Parece que ficou louco. É a primeira vez que vejo essa pessoa.

–Patrão, é pecado, todos vamos morrer – disse Ivan Mirónov.

–O que foi que deu nele? Deve estar sonhando. Você vendeu para outra pessoa – disse Ievguiéni Mikháilovitch. – Mas espere um pouco, vou perguntar para minha esposa se ela comprou lenha ontem.

Ievguiéni Mikháilovitch saiu e logo depois chamou o zelador, Vassíli, rapaz elegante, bonito, alegre, extraordinariamente forte e ágil, e disse que, se lhe perguntassem onde tinham comprado o último lote de lenha, respondesse que tinha sido no depósito e que, naquela casa, não compravam lenha com mujiques.

–Apareceu um mujique dizendo que dei um cupom falsificado para ele. É um mujique idiota, Deus sabe o que está falando, mas você é um homem sensato. Então vá lá e diga que só compramos lenha no depósito. E, aliás, já faz tempo que eu queria lhe dar um casaco – acrescentou Ievguiéni Mikháilovitch, e deu cinco rublos para o zelador.

Vassíli pegou o dinheiro, os olhos brilharam diante da cédula, depois ele se voltou para o rosto de Ievguiéni Mikháilovitch, balançou os cabelos e sorriu de leve.

–Todo mundo sabe que o povo é mesmo idiota. É a ignorância. Não se preocupe, senhor. Eu sei como falar.

Por mais que Ivan Mirónov chorasse e suplicasse a Ievguiéni Mikháilovitch que reconhecesse que o cupom era dele e que o zelador confirmasse suas palavras, Ievguiéni Mikháilovitch e o zelador fincaram pé: nunca compravam lenha de carroceiros. E o guarda levou Ivan Mirónov de volta à delegacia, acusado de falsificar um cupom.

Só depois de ouvir o conselho de um escrevente embriagado que estava na mesma cela, Ivan Mirónov deu cinco rublos para o delegado e foi solto da cadeia, sem o cupom e com sete rublos, em lugar dos vinte e cinco que possuía no dia anterior. Ivan Mirónov gastou em bebida três daqueles sete rublos e, com a cara quebrada e caindo de bêbado, foi para casa, ao encontro da esposa.

A esposa estava doente e com uma gravidez avançada. Começou a xingar o marido, ele a empurrou, ela bateu nele. Sem reagir, ele deitou de bruços na cama de palha e começou a chorar.

Só na manhã seguinte, a esposa entendeu o que tinha acontecido, acreditou no marido e ficou muito tempo rogando pragas contra o senhor ladrão que havia enganado seu Ivan. E Ivan, já sóbrio, lembrou-se do que lhe aconselhou um artesão com o qual havia bebido na véspera e resolveu ir dar queixa a um advogado.
VIII

 

 

 

O advogado assumiu o caso não tanto pelo dinheiro que poderia ganhar, mas sim porque acreditou em Ivan e ficou revoltado com a maneira desavergonhada como haviam enganado o mujique.

No tribunal, as duas partes se apresentaram e o zelador Vassíli foi testemunha. Repetiram a mesma coisa, no tribunal. Ivan Mirónov falou em Deus, falou que todos vamos morrer. Ievguiéni Mikháilovitch, embora atormentado pela consciência da sordidez e do risco daquilo que estava fazendo, já não podia mudar o depoimento e continuou a negar tudo, com uma aparência de tranquilidade.

O zelador Vassíli ganhou mais dez rublos e, com um sorriso, confirmou tranquilamente que nunca tinha visto Ivan Mirónov. E quando o levaram a fazer o juramento, embora hesitasse por dentro, repetiu com tranquilidade aparente as palavras do juramento, ditas pelo velho sacerdote, e jurou sobre a cruz e o santo Evangelho que ia dizer toda a verdade.

O julgamento terminou por negar o pedido de Ivan Mirónov, condenando-o a pagar cinco rublos de custas judiciais, que Ievguiéni Mikháilovitch generosamente pagou por ele. Antes de liberar Ivan Mirónov, o juiz o advertiu com severidade de que, no futuro, devia ser mais cuidadoso antes de apresentar acusações contra pessoas respeitáveis e também que devia ser grato por ter sido dispensado de pagar as custas judiciais e por não ser processado por calúnia, crime que o levaria a passar uns três meses na prisão.

–Agradeço humildemente – disse Ivan Mirónov e, balançando a cabeça e suspirando, saiu da sala do tribunal.

Tudo aquilo parecia ter terminado bem para Ievguiéni Mikháilovitch e o zelador Vassíli. Mas só parecia.

Aconteceu algo que ninguém viu, mas que era mais importante do que tudo que estavam vendo.

Fazia já quase três anos que Vassíli deixara o campo e morava na cidade. A cada ano, mandava menos dinheiro para o pai e nunca chamava a esposa para morar com ele, pois ela não lhe fazia falta. Ali, na cidade, Vassíli podia ter esposas bem melhores do que sua mulher ingênua, e quantas quisesse. A cada ano, Vassíli esquecia mais e mais as normas do campo e se familiarizava com os costumes da cidade. Lá, tudo era rude, cinzento, pobre, desmazelado; aqui, tudo era refinado, bonito, limpo, rico, sempre em ordem. E Vassíli se convencia mais e mais de que os habitantes do campo viviam na ignorância, como animais selvagens, enquanto aqui estavam as pessoas de verdade. Ele lia livros de bons autores, romances, ia a espetáculos apresentados na Casa do Povo. No campo, nem em sonho se via tal coisa. No campo, os velhos diziam: viva com a esposa conforme a lei, trabalhe, não coma demais, não ostente; ao passo que ali as pessoas eram inteligentes, instruídas – ou seja, conheciam as leis verdadeiras – e viviam para seu prazer. E tudo andava bem. Até o caso do cupom, Vassíli não acreditava que os patrões não tivessem nenhuma lei sobre como se devia viver. Ele sempre teve a impressão de que não conhecia a lei deles, mas que existia uma lei. No entanto o caso do cupom e, sobretudo, de seu falso juramento, que, apesar do medo que sentiu, não teve nenhuma consequência ruim, ao contrário, lhe trouxe mais dez rublos, deixou Vassíli totalmente convencido de que não existia lei nenhuma e de que era preciso viver para o próprio prazer. Assim ele viveu e continuou vivendo. De início, apenas tirava proveito das compras dos inquilinos, mas aquilo era pouco para todas as suas despesas e Vassíli, quando era possível, passou a furtar dinheiro e objetos de valor dos quartos dos inquilinos e surrupiar da bolsa de Ievguiéni Mikháilovitch. Ievguiéni Mikháilovitch o apanhou em flagrante, mas não o denunciou à Justiça, apenas o demitiu.

Vassíli não queria voltar para o campo e continuou a morar em Moscou, com sua amante, procurando um emprego novo. Apareceu um emprego de porteiro de pátio numa mercearia, que pagava pouco. Vassíli aceitou, mas logo no mês seguinte foi apanhado roubando sacos. O patrão não deu queixa, mas bateu em Vassíli e o pôs para fora. Depois disso, já não conseguiu mais emprego, o dinheiro foi embora, depois vendeu as roupas e acabou ficando só com um paletó rasgado, uma calça e um par de sapatos furados. A amante o deixou. Mas Vassíli não perdeu sua disposição alegre, simpática e, quando chegou a primavera, partiu a pé para casa, no campo.
IX

 

 

 

Piotr Nikoláievitch Sventítski, homem miúdo e atarracado, de óculos pretos (tinha uma doença nos olhos, corria o risco da cegueira completa), levantou-se antes de o sol nascer, como de costume, bebeu um copo de chá, vestiu um casaquinho curto de pele de carneiro forrado e debruado, e saiu para percorrer suas terras.

Piotr Nikoláievitch foi funcionário da alfândega e lá acumulou dezoito mil rublos. Uns doze anos antes, tinha pedido aposentadoria, não exatamente por vontade própria, e comprou as terras de um jovem proprietário que esbanjara seus bens. Piotr Nikoláievitch se casara ainda no serviço público. A esposa era órfã e pobre, de uma velha família da nobreza, mulher robusta, farta, bonita, que não lhe deu filhos. Piotr Nikoláievitch, em todos os assuntos, era homem ponderado e enérgico. Sem nada saber de agricultura (era filho de um pequeno nobre polonês), administrou tão bem suas terras que, após dez anos, as trinta dessiatinas da propriedade devastada se tornaram um modelo. Todas as construções na propriedade, da casa até o celeiro e o galpão para a bomba de combate a incêndios, eram resistentes, sólidas, cobertas de ferro e pintadas no tempo certo. No galpão de ferramentas, estavam em ordem as carroças, as charruas, os arados, os ancinhos. Os arreios estavam lubrificados. Os cavalos não eram grandes, quase todos eram de criação própria – baios, bem nutridos, robustos, e todos iguais. A máquina debulhadora funcionava sob a eira coberta, a forragem era armazenada num celeiro especial, o esterco líquido escorria para um poço pavimentado. As vacas, também de criação própria, não eram volumosas, mas davam muito leite. Os porcos eram ingleses. Tinha um viveiro de aves com uma raça de galinhas que punham muitos ovos. O pomar era pulverizado e estaqueado. Em toda parte, reinavam a boa administração, o zelo, a limpeza, a conservação. Piotr Nikoláitch alegrava-se com sua propriedade rural e tinha orgulho por ter alcançado tudo aquilo sem oprimir os camponeses, mas, ao contrário, sendo rigorosamente justo com eles. Mesmo entre os nobres, ele sustentava posições intermediárias, mais liberais do que conservadoras, e diante dos defensores da servidão sempre tomava o partido do povo. Seja bom para eles que eles também serão bons. Na verdade, Piotr não fazia vista grossa para as falhas e os enganos dos trabalhadores, às vezes ele mesmo os pressionava, exigia trabalho, mas em compensação as acomodações e a alimentação eram ótimas, os salários eram sempre pagos no dia certo e, nos dias de festa, mandava servir vodca.

Pisando com cuidado na neve que já derretia – era fevereiro –, Piotr Nikoláitch passou pela cavalariça dos empregados, a caminho da isbá onde moravam os trabalhadores. Ainda estava escuro; e mais escuro ainda por causa da neblina, porém nas janelas da isbá dos trabalhadores havia uma luz. Os trabalhadores estavam levantando. Piotr Nikoláitch tinha intenção de apressá-los: a obrigação deles era ir pegar o resto da lenha na mata, com uma carroça de seis cavalos.

“O que é isso?”, pensou, ao ver uma porta escancarada na cavalariça.

–Ei, quem está aí?

Ninguém respondeu. Piotr Nikoláitch entrou na cavalariça.

–Ei, quem está aí?

Ninguém respondeu. Estava escuro, embaixo dos pés estava mole, havia um cheiro de esterco. À direita da porta, numa baia, ficava um par de jovens cavalos baios. Piotr Nikoláitch estendeu a mão – estava vazia. Esticou o pé. Será que o cavalo não estava deitado? O pé nada encontrou. “Para onde levaram o cavalo?”, pensou. “Atrelar, não atrelaram, o trenó ainda está lá fora”. Piotr Nikoláitch saiu pela porta e gritou bem alto:

–Ei, Stiepan.

Stiepan era um trabalhador antigo. Na mesma hora, ele saiu da isbá dos trabalhadores.

–Oi! – gritou Stiepan, alegre. – É o senhor, Piotr Nikoláitch? O pessoal já vai.

–O que houve que a cavalariça está aberta?

–A cavalariça? Não sei. Ei, Prochka, traga a lanterna.

Prochka veio com a lanterna. Entraram na cavalariça. Stiepan logo entendeu.

–Foram os ladrões, Piotr Nikoláitch. O ferrolho foi quebrado.

–Não está mentindo?

–Os bandoleiros levaram. O Machka sumiu, o Falcão também. Não, o Falcão está aqui. O Manchado não está, nem a Beldade.

Faltavam três cavalos. Piotr Nikoláitch não disse nada.

Franziu as sobrancelhas e bufava.

–Ah, se eu pegasse. Quem estava de vigia?

–Piotka. Piotka pegou no sono.

Piotr Nikoláitch deu queixa à polícia, falou com o chefe da polícia rural, com o chefe do ziémstvo, mandou seus empregados darem uma busca. Não acharam os cavalos.

–Gente desgraçada! – exclamou Piotr Nikoláitch. – O que foi que fizeram? E eu ainda trato bem essa gente. Mas esperem só para ver. Bandidos, todos bandidos. Agora, não vou mais ser assim com vocês.
X

 

 

 

Os cavalos, os três baios, já tinham sido passados adiante. Um, Machka, foi vendido para os ciganos por dezoito rublos; Malhado foi trocado por outro cavalo com um mujique, a quarenta verstas de distância; Beldade ficou esgotada de tanto correr e foi abatida. Venderam o couro por três rublos. Todas essas transações foram conduzidas por Ivan Mirónov. Ele já havia trabalhado para Piotr Nikoláitch, conhecia o funcionamento da propriedade e resolveu recuperar o dinheiro que tinha perdido. E organizou aquilo tudo.

Depois de seu infortúnio com o cupom falsificado, Ivan Mirónov ficou muito tempo bebendo e teria gastado tudo em bebida se não fosse a esposa, que escondeu e trancou as roupas, os arreios e tudo o que pudesse ser vendido para beber. Enquanto estava embriagado, Ivan Mirónov não parava de pensar não só no homem que o prejudicara, como também em todos os senhores endinheirados que só sabem viver para espoliar seus irmãos. Certa vez, Ivan Mirónov bebeu com mujiques dos arredores de Podolsk. Na estrada, bêbados, os mujiques lhe contaram como tinham tomado os cavalos de um mujique. Ivan Mirónov começou a brigar com os ladrões de cavalo porque tinham prejudicado um mujique.

–Isso é pecado – disse ele. – Para um mujique, um cavalinho é que nem um irmão, aí vocês tiraram o sustento dele. Se é para roubar, roubem dos patrões. Esses cachorros merecem.

Continuaram conversando e os mujiques de Podolsk disseram que era preciso ser esperto para roubar cavalos de um rico. Era preciso conhecer os caminhos e, sem alguém de dentro para ajudar, era impossível. Então Ivan Mirónov lembrou-se de Sventítski, em cuja propriedade havia trabalhado, lembrou-se de que Sventítski, certa vez, deduziu um rublo e meio na hora de lhe pagar o salário, por causa de uma cravija quebrada, e lembrou-se também dos cavalos baios com os quais trabalhava.

Ivan Mirónov foi à casa de Sventítski fingindo que queria um emprego, mas era só para observar e reconhecer o ambiente. Tendo observado tudo e sabendo que não havia vigia, que os cavalos ficavam nas baias, dentro da cavalariça, trouxe os ladrões e fez todo o serviço. Depois de dividir os lucros com os mujiques de Podolsk, Ivan Mirónov voltou para casa com cinco rublos. Em casa, não tinha o que fazer: não havia cavalos. Daí em diante, Ivan Mirónov passou a andar com ladrões de cavalos e ciganos.
XI

 

 

 

Piotr Nikoláitch Sventítski tentou, com todo o empenho, encontrar os ladrões. Sem a ajuda de alguém da propriedade, não poderiam ter feito nada. Por isso começou a desconfiar de seus empregados, interrogou os trabalhadores para saber quem não havia passado aquela noite em casa e descobriu que Prochka Nikolaiev não ficara em casa – era um jovem que acabara de chegar do serviço militar, bonito, pequeno, ágil, que Piotr Nikoláitch contratou para ser cocheiro. O chefe de polícia rural era amigo de Piotr Nikoláitch, que conhecia também o comissário, o chefe da nobreza, o presidente do ziémstvo e o juiz de instrução. Todas essas pessoas iam a sua casa no dia de seu santo xará e conheciam seus licores saborosos e cogumelos salgados – brancos, opiónoki e grúzdi.3 Todos ficaram com pena dele e quiseram ajudar.

–Está vendo, e você ainda defende os mujiques – disse o chefe de polícia. – Eu bem que disse que são piores do que feras. Sem o chicote e o porrete, não se consegue nada. Então o senhor está dizendo que foi esse tal Prochka, que trabalha para o senhor como cocheiro, não é?

–É, ele mesmo.

–Mande chamá-lo.

Trouxeram Prochka e começaram a interrogá-lo:

–Onde você estava?

Prochka puxou o cabelo para trás, os olhos brilhavam.

–Em casa.

–Como em casa? Todos os trabalhadores contaram que você não estava.

–O senhor é que manda.

–Mas não é uma questão de eu mandar. Onde você estava?

–Em casa.

–Certo, muito bem. Guarda, leve para a cadeia.

–O senhor é que manda.

Assim, Prochka não contou onde estava, e não contou porque, à noite, estava na casa de sua namorada, Paracha; tinha prometido não trair a moça, e não traiu. Não havia provas. E Prochka foi solto. Mas Piotr Nikoláitch estava convencido de que tudo tinha sido armado por Prokófi e sentia ódio dele. Certa vez, Piotr Nikoláitch pôs Prokófi de cocheiro e mandou-o à estação de muda de cavalos. Prochka, como sempre fazia, pegou na estalagem duas medidas de aveia. Uma medida e meia, deu para os cavalos, com a outra meia medida de aveia, pagou a bebida. Piotr Nikoláitch soube disso e levou o caso ao juiz de paz. O juiz de paz sentenciou Prochka a três meses de prisão. Prokófi era orgulhoso. Considerava-se superior aos outros e tinha orgulho de si mesmo. A prisão o humilhou. Era impossível se mostrar orgulhoso diante das pessoas e ele logo ficou deprimido.

Prochka voltou magoado da prisão, não apenas com Piotr Nikoláitch, mas com todo mundo.

Depois da prisão, como todos diziam, Prokófi afundou, passou a trabalhar com preguiça, deu de beber, logo foi apanhado roubando roupas na casa de uma senhora de terras e acabou indo de novo para a cadeia.

Já quanto a Piotr Nikoláitch, a única coisa que ele descobriu sobre os cavalos foi que acharam a pele de um baio castrado, que Piotr Nikoláitch reconheceu como sendo de Beldade. E a impunidade dos ladrões deixou Piotr Nikoláitch ainda mais irritado. Agora, não conseguia ver os mujiques ou falar deles sem sentir raiva e, sempre que podia, se esforçava para oprimi-los.
XII

 

 

 

Apesar de Ievguiéni Mikháilovitch ter parado de pensar no assunto, depois que passou o cupom adiante, Mária Vassílievna, sua esposa, não conseguia se perdoar pelo engano que cometera, não conseguia perdoar o marido pelas palavras cruéis que lhe dissera e, acima de tudo, não conseguia perdoar aqueles dois meninos patifes, que a ludibriaram com tanta habilidade.

Desde o dia em que foi enganada, ela observava com atenção todos os ginasianos. Certa vez, encontrou Mákhin, mas não o reconheceu, porque ele, ao vê-la, fez uma careta tão feia que seu rosto ficou completamente modificado. Mas ela logo reconheceu Mítia Smokóvnikov, ao topar com ele cara a cara na calçada, mais ou menos duas semanas depois do episódio. Deixou Mítia passar, fez a volta e foi atrás dele. Chegou à sua casa, descobriu de quem ele era filho e, no dia seguinte, foi ao ginásio e, na entrada, encontrou-se com o professor de catecismo, Mikhail Vviediénski. O professor perguntou o que ela desejava. Respondeu que queria falar com o diretor.

–O diretor não veio, está doente. Será que posso ajudar você, ou transmitir seu recado a ele?

Mária Vassílievna resolveu contar tudo para o professor de catecismo.

O professor de catecismo Vviediénski era viúvo, membro da academia, homem muito orgulhoso. Ainda no ano anterior, havia encontrado o pai de Smokóvnikov numa reunião social, ocasião em que os dois entabularam uma conversa sobre a fé, na qual Smokóvnikov o derrotou em todos os pontos, e ainda por cima o ridicularizou, por isso Vviediénski resolveu prestar uma atenção especial no filho e, encontrando nele a mesma indiferença com relação à lei de Deus que havia no pai descrente, passou a persegui-lo e até o reprovou nos exames.

Quando Mária Vassílievna lhe contou o que o jovem Smokóvnikov tinha feito, Vviediénski não pôde deixar de sentir satisfação por encontrar naquele caso a confirmação de suas hipóteses sobre a imoralidade das pessoas livres da orientação da Igreja e resolveu aproveitar o caso, como ele tentou se convencer, para demonstrar o perigo que ameaçava toda ausência da Igreja – mas, no fundo da alma, era mesmo para vingar-se de um ateu orgulhoso e cheio de si.

–Sim, é muito triste, muito triste – disse o padre Mikhail Vviediénski, enquanto alisava com a mão as bordas lisas do crucifixo sobre o peito. – Estou muito contente por ter me contado isso; como servo da Igreja, vou cuidar para que o jovem não fique sem uma repreensão, mas vou me esforçar também para que o sermão seja o mais brando possível.

“Sim, e farei isso de modo compatível com minha posição”, disse consigo o padre Mikhail, pensando que havia esquecido completamente a hostilidade do pai do menino contra ele e que tinha em vista apenas o bem e a salvação do jovem.

No dia seguinte, na aula de catecismo, o padre Mikhail contou aos alunos todo o episódio do cupom falsificado e disse que um ginasiano tinha feito aquilo.

–Uma conduta má, vergonhosa – disse –, mas negar é pior ainda. Não acredito que seja o caso, mas se algum de vocês fez isso, é melhor acusar-se do que esconder-se.

Ao dizê-lo, o padre Mikhail olhou fixamente para Mítia Smokóvnikov. Os ginasianos, seguindo seu olhar, também olharam para Smokóvnikov. Mítia ficou vermelho, suou, por fim desatou a chorar e saiu correndo da sala.

A mãe de Mítia, ao saber do caso, arrancou toda a verdade do filho e correu à loja de material fotográfico. Pagou doze rublos e cinquenta copeques à esposa do dono da loja e a persuadiu a esconder o nome do ginasiano. Mandou que o filho negasse tudo e não confessasse ao pai, em nenhuma hipótese.

E, de fato, quando Fiódor Mikháilovitch soube o que havia acontecido no ginásio e o filho, questionado por ele, negou tudo, foi falar com o diretor, relatou o caso todo, disse que a conduta do professor de catecismo era extremamente censurável e que ele não ia deixar as coisas assim. O diretor chamou o sacerdote e, entre ele e Fiódor Mikháilovitch, houve uma discussão acalorada.

–Uma imbecil qualquer vem caluniar meu filho, depois ela mesma retira a acusação e o senhor não encontra nada melhor para fazer do que ultrajar um menino honesto e correto.

–Não ultrajei e não permito que o senhor fale assim comigo. O senhor está faltando ao respeito com meu hábito.

–Não dou a mínima para seu hábito.

–As opiniões pervertidas do senhor são conhecidas em toda a cidade – exclamou o professor de catecismo, com o queixo trêmulo, o que fez sua barbicha rala sacudir-se.

–Senhores, padre – o diretor tentou acalmar os ânimos. Mas foi impossível.

–Por obrigação ao hábito que eu visto, tenho de me preocupar com a educação moral e religiosa.

–Chega de fingir. Acha que não sei que o senhor não acredita nem em Deus nem no diabo?

–Considero indigno da minha posição falar com uma pessoa como o senhor – exclamou o padre Mikhail, ofendido pelas últimas palavras de Smokóvnikov, sobretudo porque sabia que eram verdadeiras. Tinha feito o curso completo na academia religiosa e por isso fazia muito tempo que não acreditava no que professava e pregava, e só acreditava que todo mundo devia se obrigar a crer naquilo em que ele mesmo se obrigava a crer.

Smokóvnikov não estava tão chocado com a conduta do professor de catecismo, na verdade achava que aquilo era um bom exemplo da influência clerical que começava a se manifestar em nossa sociedade e contava aquele caso para todo mundo.

Já o padre Vviediénski, vendo as manifestações do niilismo e do ateísmo prosperarem não apenas na nova geração como também entre os mais velhos, se convencia cada vez mais da necessidade de combatê-las. Quanto mais condenava a descrença de Smokóvnikov e de outros como ele, mais se convencia da firmeza e da solidez de sua própria fé, e menos necessidade sentia de pôr sua fé à prova ou de conciliar sua vida com ela. Sua fé, reconhecida por todo mundo em redor, era para ele uma importante arma na luta contra aqueles que a negavam.

Os pensamentos despertados no confronto com Smokóvnikov, somados aos aborrecimentos no ginásio decorrentes daquele confronto – ou seja, a repreensão e a advertência recebidas do diretor –, obrigaram-no a tomar a decisão que havia muito, desde a morte da esposa, o atraía: tornar-se monge e adotar a mesma carreira seguida por vários colegas da academia, um dos quais já era bispo e outro, arquimandrita, na fila para uma vaga no bispado.

No fim do ano escolar, Vviediénski abandonou o ginásio, tomou ordens de monge com o nome de Missail e em pouco tempo recebeu o cargo de diretor de um seminário numa cidade à margem do Volga.
XIII

 

 

 

Enquanto isso, o zelador Vassíli caminhava pela estrada principal rumo ao sul.

Andava de dia e, à noite, algum policial rural o encaminhava para um albergue próximo. Em toda parte lhe davam pão e às vezes o chamavam para sentar à mesa e jantar. Numa aldeia da província de Oriol, onde pernoitou, lhe contaram que um comerciante havia arrendado o pomar de um senhor de terras e procurava jovens para trabalhar como vigias. Vassíli estava farto de mendigar, também não tinha nenhuma vontade de ir para casa, então se apresentou ao comerciante que arrendara o pomar e foi contratado como vigia por cinco rublos ao mês.

Vassíli achou muito agradável a vida na cabana, sobretudo depois que as maçãs começaram a amadurecer e os vigias passaram a trazer do celeiro senhorial grandes feixes de palha fresca, apanhada debaixo da debulhadora. Ele ficava o dia todo deitado sobre a palha fresca, cheirosa, junto a pilhas de maçãs caídas do pé na primavera e no inverno, ainda mais cheirosas do que a palha, e aí era só vigiar, enquanto assoviava e cantarolava, para não deixar que a meninada pegasse as maçãs. Pois, para cantar, Vassíli era um mestre. Tinha voz boa. Mulheres e mocinhas vinham da aldeia atrás de maçãs. Vassíli dizia gracejos para elas e, em troca de ovos ou de copeques, lhes dava mais ou menos maçãs, conforme seu aspecto lhe agradasse – e ia deitar-se outra vez; só saía para comer o desjejum, almoçar e jantar.

Camisa, Vassíli só tinha uma, rosa, estampada e com buracos, não calçava nada nos pés, mas tinha o corpo forte, saudável e, quando tiravam do fogo a caçarola com kacha, Vassíli comia por três, a tal ponto que o velho vigia ficava admirado com ele. À noite, Vassíli não dormia, dava assovios ou gritos e, como um gato, enxergava longe no escuro. Certa vez, uns garotos grandes vieram da aldeia sacudir os pés de maçã. Vassíli se aproximou de mansinho e pulou sobre eles; quiseram fugir, mas Vassíli pôs todos para correr debaixo de pancada, menos um, que levou para a cabana e entregou ao patrão.

A primeira cabana de Vassíli ficava num pomar distante, mas a segunda, quando as maçãs começaram a ser colhidas, ficava a quarenta passos da casa senhorial. Naquela cabana, a vida de Vassíli era mais alegre ainda. O dia todo, Vassíli via como os patrões e as patroas brincavam, andavam a cavalo, passeavam e, ao fim da tarde e à noite, tocavam piano, violino, cantavam, dançavam. Via que as jovens patroas e os estudantes de faculdade ficavam sentados junto às janelas, se acariciavam e depois iam passear sozinhos nas alamedas escuras de tílias, onde só o luar penetrava, em faixas e manchas. Via como os criados corriam levando comidas e bebidas e como as cozinheiras, as lavadeiras, os feitores, os jardineiros, os cocheiros – todos trabalhavam só para dar comida, bebida e alegria aos patrões. Às vezes, jovens senhores iam à sua cabana e Vassíli selecionava e lhes dava as maçãs melhores, mais suculentas e vermelhas, e as jovens patroas, com um estalo entre os dentes, mordiam as maçãs, elogiavam, falavam alguma coisa em francês entre si – Vassíli entendia que era sobre ele – e o obrigavam a cantar.

E Vassíli adorava aquela vida, lembrando-se de sua vida em Moscou, e a ideia de que tudo estava no dinheiro penetrou cada vez mais fundo em sua cabeça.

E Vassíli passou a pensar cada vez mais em como fazer para tomar logo posse de uma grande quantidade de dinheiro. Começou a lembrar como fazia antes para tirar proveito e resolveu que não era necessário agir como antes, agarrar coisas que tivessem deixado fora do lugar, mas sim pensar muito, traçar um plano e executar um serviço limpo, sem deixar pistas. Na época da Natividade de Nossa Senhora,4 colheram as últimas maçãs. O patrão teve muito lucro, pagou o salário e agradeceu a Vassíli e a todos os vigias.

Vassíli trocou de roupa – o jovem senhor lhe dera de presente um casaco curto e um chapéu –, mas não foi para casa, sentia nojo só de pensar na vida grosseira dos mujiques; em vez disso, voltou para a cidade em companhia de soldados beberrões que, com ele, vigiavam o pomar. Na cidade, resolveu arrombar e roubar, à noite, a loja do comerciante em cuja casa ele antes havia morado e que o havia espancado e demitido, sem pagar seu salário. Vassíli conhecia todos os caminhos, sabia onde ficava o dinheiro, pôs os soldados de vigia, enquanto ele mesmo arrombou a janela que dava para o pátio, saltou para dentro da casa e pegou todo o dinheiro. O trabalho foi feito com capricho e, depois, não encontraram nenhuma pista. O dinheiro somava trezentos e setenta rublos. Vassíli deu cem rublos para seus camaradas e, com o resto, foi para outra cidade, onde se divertiu com amigos e amigas.
XIV

 

 

 

Enquanto isso, Ivan Mirónov se transformava num ladrão de cavalos astuto, corajoso e bem-sucedido. Afímia, sua esposa, que antes brigava com ele por suas más ações, como ela dizia, agora estava satisfeita, tinha orgulho do marido, pois andava de casaco forrado, enquanto ela mesma vestia um xale bordado e um casaco de pele novo.

Na aldeia e nos arredores, todos sabiam que nenhum roubo de cavalo ocorria sem sua participação, mas tinham medo de denunciá-lo, e, quando havia alguma suspeita contra Ivan Mirónov, ele conseguia escapar inocente e ileso. Seu último roubo tinha sido em Kolotovka, no pasto noturno. Quando possível, Ivan Mirónov escolhia quem roubar, preferia tomar de senhores de terras e de comerciantes. No entanto era mais difícil roubar de comerciantes e senhores de terras. Por isso, quando não havia comerciantes nem senhores de terras à mão, roubava de camponeses. Foi assim que, em Kolotovka, no pasto noturno, capturou todos os cavalos que encontrou pela frente. Quem fez o serviço não foi ele, mas Guerássim, um rapaz esperto, instigado por Ivan Mirónov. Só ao nascer do dia os mujiques se deram conta do roubo dos cavalos e saíram à procura deles, pelas estradas. Mas os cavalos estavam escondidos numa ravina, numa floresta do Estado. Ivan Mirónov tinha intenção de deixá-los ali até a noite seguinte para então levá-los à casa de um zelador conhecido seu, a quarenta verstas de distância. Ele foi ao encontro de Guerássim, na mata, levou para ele vodca e um empadão e voltou para casa por um atalho na mata, onde não esperava encontrar ninguém. Para seu azar, topou com o soldado que vigiava a floresta.

–Por acaso está procurando cogumelos? – perguntou o soldado.

–Nesta época, não tem nenhum – respondeu Ivan Mirónov, mostrando o cesto de palha que levava, por via das dúvidas.

–É, neste verão deu pouco cogumelo – disse o soldado. – Quem sabe na Quaresma eles aparecem? – E foi em frente.

O soldado entendeu que havia alguma coisa errada. Não havia motivo para Ivan Mirónov ir tão cedo para a floresta do Estado. O soldado voltou e começou a vasculhar na mata. Perto da ravina, ouviu um cavalo resfolegar e foi de mansinho na direção de onde veio o barulho. A terra na ravina estava bastante pisada, havia excremento de cavalo. Mais adiante, Guerássim estava sentado, comendo alguma coisa, e dois cavalos estavam amarrados a uma árvore.

O soldado correu para a aldeia, chamou o estaroste, um guarda e duas testemunhas. Foram com mais três guardas para o lugar onde estava Guerássim e o prenderam. Gueraska nem tentou negar e, como estava embriagado, confessou logo. Contou que Ivan Mirónov tinha lhe dado muita bebida e o convencera, e contou que ele havia prometido buscar os cavalos na floresta naquele mesmo dia. Os mujiques deixaram os cavalos e Guerássim na mata e armaram uma cilada, à espera de Ivan Mirónov. Quando anoiteceu, ouviu-se um assovio. Guerássim respondeu. Assim que Ivan Mirónov começou a descer o barranco, atacaram-no e levaram para a aldeia. De manhã, na frente da isbá do estaroste, reuniu-se uma multidão. Trouxeram Ivan Mirónov para fora e começaram a interrogá-lo. Stiepan Pelaguêiuchkin, mujique alto, curvado, de braços compridos, nariz aquilino e rosto de expressão sombria, foi o primeiro a fazer perguntas. Stiepan era um mujique solitário, que havia terminado o serviço militar pouco tempo antes. Assim que se separou do pai e começou a ganhar a vida por conta própria, roubaram seu cavalo. Então, depois de trabalhar um ano nas minas, Stiepan comprou dois cavalos. Roubaram os dois.

–Diga onde estão meus cavalos – exclamou Stiepan, pálido de raiva, olhando sombrio ora para a terra, ora para o rosto de Ivan.

Ivan Mirónov negou. Então Stiepan bateu na cara dele e quebrou o nariz, do qual saiu sangue.

–Conte, eu mato você!

Ivan Mirónov ficou calado, baixando a cabeça. Stiepan bateu uma vez, e mais outra, com o braço comprido. Ivan continuou calado, apenas inclinava a cabeça ora para um lado, ora para outro.

–Batam, todo mundo! – gritou o estaroste.

E todos começaram a bater. Ivan Mirónov tombou em silêncio e depois começou a gritar:

–Bárbaros, demônios, podem bater até matar. Não tenho medo de vocês.

Então Stiepan apanhou uma pedra de uma pilha, já preparada para isso, e partiu a cabeça de Ivan Mirónov.
XV

 

 

 

Os assassinos de Ivan Mirónov foram acusados e julgados. Entre os assassinos estavam Stiepan Pelaguêiuchkin. Recebeu uma pena mais pesada do que a dos outros, porque todos declararam que foi ele que, com uma pedra, quebrou a cabeça de Ivan Mirónov. No julgamento, Stiepan não escondeu nada, explicou que, quando roubaram sua última parelha de cavalos, deu parte à polícia e ainda seria possível achar os ciganos pelas pegadas, mas o chefe de polícia rural nem quis falar com ele pessoalmente e não fez nenhuma busca.

–O que é que a gente vai fazer com um sujeito feito ele? Arruinou a gente.

–Por que os outros não bateram, mas você, sim? – perguntou o promotor.

–Não é verdade, todo mundo bateu, o mir resolveu matar. Eu só terminei de matar. Para que torturar à toa?

Os juízes ficaram impressionados com a expressão de absoluta tranquilidade com que Stiepan contou como agiu, como espancaram Ivan Mirónov e como ele mesmo terminou de matar.

De fato, Stiepan não via nada de terrível naquele assassinato. No serviço militar, aconteceu de Stiepan ter de fuzilar um soldado e, tanto naquele evento como no assassinato de Ivan Mirónov, não via nada de terrível. Mataram e pronto. Hoje é ele, amanhã sou eu.

Deram uma pena leve para Stiepan, um ano de cadeia. Tiraram suas roupas de mujique, guardaram no depósito da prisão com um número, vestiram-no com um roupão e uma botina de presidiário.

Stiepan nunca tivera respeito pelas autoridades, mas agora ficou totalmente convencido de que todas as autoridades, todos os senhores, todos, exceto o tsar, o único que tinha pena do povo e era justo, todos eram bandidos, que sugavam o sangue do povo. Os relatos dos degredados e condenados a trabalhos forçados com os quais se juntou na prisão confirmaram aquele ponto de vista. Um foi condenado a trabalhos forçados porque denunciou uma autoridade por roubo; outro, porque bateu num superior que quis confiscar injustamente os bens de um camponês; um terceiro, porque falsificava dinheiro. Os patrões, os comerciantes, podiam fazer o que bem entendessem que nada acontecia, mas os mujiques e os pobres por qualquer bobagem eram mandados para a prisão para virar comida de piolhos.

Na prisão, Stiepan recebia visitas da esposa. Sem ele, a esposa já vivia mal e agora, ainda por cima, a casa tinha pegado fogo, ela ficou na miséria e mendigava junto com os filhos. A pobreza da esposa amargurou Stiepan mais ainda. Também na prisão, ele era malvado com todos e, certa vez, por pouco não partiu o cozinheiro ao meio com o machado, o que lhe rendeu mais um ano de pena. Naquele ano, ele soube que a esposa tinha morrido e que seu lar não existia mais...

Quando Stiepan terminou de cumprir a pena, foi chamado ao depósito da prisão, retiraram de uma prateleira as roupas com que havia chegado e lhe entregaram.

–Para onde vou agora? – perguntou ao quarteleiro, enquanto se vestia.

–Para casa, é claro.

–Não tenho casa. Vou ter de andar pela estrada. Roubar as pessoas.

–Se roubar, vai acabar aqui outra vez.

–É, não tem jeito.

E Stiepan foi embora. Apesar de tudo, foi na direção de sua casa. Não tinha mais nenhum lugar para ir.

Antes de chegar, resolveu passar a noite na estalagem de um conhecido, onde havia uma cantina.

O dono da estalagem era um pequeno-burguês gordo, de Vladímir. Ele conhecia Stiepan. Sabia que tinha ido para a prisão por causa de uma infelicidade. E deixou que pernoitasse na estalagem. Era um pequeno-burguês que, depois de enriquecer, havia tomado a esposa de um mujique vizinho e morava com ela, como esposa e empregada.

Stiepan sabia da história toda – como o homem havia humilhado o mujique, como aquela mulher indecente tinha deixado o marido e agora se fartava de comida, bebia chá até suar e servia chá para Stiepan, por caridade. Viajantes, não havia nenhum. Deixaram que Stiepan pernoitasse na cozinha. Matriona arrumou tudo e foi para o quarto. Stiepan deitou em cima da estufa, mas não conseguia dormir, se mexia e toda hora fazia estalar as lascas de lenha colocadas sobre a estufa para secar. Não saía de sua cabeça a barriga gorda do pequeno-burguês, estufada embaixo da cintura da camisa de chita, já descolorida de tanto ser lavada. Toda hora vinha à sua cabeça a ideia de cortar aquela barriga com uma faca e deixar sair a banha. E da mulher também. Então disse consigo: “Bom, que o diabo os carregue, amanhã vou embora”, e ora se lembrava de Ivan Mirónov, ora pensava de novo na barriga do pequeno-burguês e na garganta branca e suada de Matriona. Se é para matar, que sejam os dois. O segundo galo cantou. Se é para fazer, que seja agora, antes de nascer o dia. A faca, ele reparou onde estava na noite anterior, e o machado também. Desceu da estufa, pegou o machado e a faca e saiu da cozinha. Assim que saiu, o ferrolho sacudiu atrás da porta. O pequeno-burguês estava saindo pela porta. Ele não fez como queria. Não precisou da faca, ergueu o machado e partiu a cabeça ao meio. O pequeno-burguês desabou encostado na ombreira da porta e veio até o chão.

Stiepan entrou no quarto. Matriona se levantou bruscamente e ficou parada junto à cama, só de camisa. Stiepan a matou com o mesmo machado.

Depois acendeu uma vela, pegou o dinheiro da escrivaninha e foi embora.
XVI

 

 

 

Numa cidade que era sede de distrito, um velho ex-funcionário que bebia muito morava em sua casa, uma construção afastada das outras, vivia com duas filhas e um genro. A filha casada também bebia e levava uma vida desregrada; já a mais velha, Mária Semiónovna, era viúva, enrugada, magra, de cinquenta anos, e sozinha sustentava todos em casa: ganhava uma pensão de duzentos e cinquenta rublos. Com o dinheiro, alimentava toda a família. Na casa, só Mária Semiónovna trabalhava. Cuidava do velho pai, fraco e beberrão, do bebê da irmã, fazia a comida e lavava a roupa. Como sempre acontece, recaía sobre ela tudo o que era preciso fazer e os outros três a xingavam e o genro até batia nela, quando se embriagava. Ela suportava tudo calada e com resignação e, como também sempre acontece, quanto mais trabalho tinha para fazer, mais rápido conseguia dar conta de tudo. Também ajudava os pobres, sacrificava o que tinha, dava suas roupas e ajudava a cuidar dos doentes.

Certa vez, um alfaiate do campo, manco e perneta, ficou trabalhando na casa dela. Consertava o casaco do velho e remendava com pano um casaco de pele para Mária Semiónovna ir à feira no inverno.

O alfaiate manco era um homem inteligente e observador, tinha visto muita gente diferente por causa de sua profissão e, como era aleijado, ficava sempre sentado, o que o estimulava a pensar. Depois de ficar uma semana na casa de Mária Semiónovna, não podia deixar de se admirar com a vida dela. Certa vez, ela entrou na cozinha, onde ele costurava, para lavar umas toalhas e começou a conversar com o alfaiate sobre a vida dele, como o irmão o maltratava e como se separou do irmão.

–Pensei que ia ser melhor, mas é a mesma coisa, a pobreza.

–O melhor é não mudar, a gente deve viver do jeito como vive – disse Mária Semiónovna.

–O que mais me admira em você, Mária Semiónovna, é como faz tudo sozinha, cuida de todo mundo sozinha. E deles recebe pouca coisa boa, eu vejo.

Mária Semiónovna não disse nada.

–Na certa você aprendeu nos livros que a recompensa por isso vai vir no outro mundo.

–Isso a gente não sabe – respondeu Mária Semiónovna. – Só tem de viver do jeito melhor.

–Mas isso tem nos livros?

–Também tem nos livros – respondeu ela e leu para ele o Sermão da Montanha, do Evangelho. O alfaiate ficou pensando. E quando recebeu seu pagamento e foi para casa, não parava de pensar no que tinha visto na casa de Mária Semiónovna, no que ela lhe disse e leu.
XVII

 

 

 

Piotr Nikoláitch mudou de opinião sobre o povo e o povo também mudou de opinião sobre ele. Nem passou um ano e derrubaram vinte e sete carvalhos e incendiaram uma eira coberta e um celeiro que não estava no seguro. Piotr Nikoláitch resolveu que não era possível viver com o povo local.

Nessa época, os Livientsov estavam à procura de um administrador para sua propriedade e o chefe do ziémstvo recomendou Piotr Nikoláitch como o melhor agricultor do distrito. A propriedade dos Livientsov era enorme, mas não dava renda e os camponeses tiravam proveito de tudo. Piotr Nikoláitch tratou de pôr tudo em ordem e, depois de arrendar suas próprias terras, mudou-se com a esposa para uma distante província à margem do Volga.

Piotr Nikoláitch sempre havia adorado a ordem e a lei e agora, mais que nunca, não podia admitir que aquele povo selvagem, brutal, se apoderasse, contra a lei, de uma propriedade que não lhe pertencia. Ficou satisfeito com a oportunidade de lhes dar uma lição e se lançou ao trabalho com rigor. Mandou um camponês para a cadeia por roubar madeira da mata, espancou outro, com as próprias mãos, por não ter lhe dado passagem na estrada nem ter tirado o chapéu. Quanto aos pastos, sobre os quais havia uma disputa e dos quais os camponeses se consideravam donos, Piotr Nikoláitch comunicou aos camponeses que, se levassem seu gado para lá, ele iria confiscá-lo.

Chegou a primavera e os camponeses, como tinham feito no ano anterior, levaram o gado para o pasto senhorial. Piotr Nikoláitch reuniu todos os empregados e mandou levar o gado para o curral senhorial. Os mujiques estavam na lavoura, por isso, apesar dos gritos das camponesas, os empregados levaram o gado. Quando voltaram do trabalho, os mujiques se juntaram e foram à casa senhorial exigir a devolução do gado. Piotr Nikoláitch saiu ao encontro deles com uma espingarda nos ombros (tinha acabado de voltar de uma ronda de inspeção) e comunicou que não ia devolver o gado, a menos que pagassem cinquenta copeques por animal com chifres e dez por ovelha. Os mujiques começaram a gritar que o pasto era deles, que antes deles os pais e os avós tinham sido donos do pasto e que não existia lei que permitisse tomar o gado alheio.

–Devolva o gado, senão vai ser pior – disse um velho, avançando para Piotr Nikoláitch.

–Vai ser pior como? – gritou Piotr Nikoláitch, muito pálido, avançando na direção do velho.

–Devolva, fuja do pecado, parasita.

–O quê? – gritou Piotr Nikoláitch e bateu no rosto do velho.

–Você não tem coragem de brigar. Pessoal, peguem o gado à força.

A multidão se aproximou. Piotr Nikoláitch quis fugir, mas não deixaram. Ele começou a se debater. A espingarda disparou e matou um camponês. Começou uma luta tremenda. Pisotearam Piotr Nikoláitch. Cinco minutos depois, jogaram seu corpo desfigurado num barranco.


Os assassinos foram julgados por uma corte marcial e dois foram condenados a morrer na forca.
XVIII

 

 

 

Na aldeia do alfaiate, cinco camponeses ricos arrendaram de um senhor de terras, por mil e cem rublos, cento e cinco dessiatinas de terra boa para o cultivo, gordurosa, negra como piche, e a distribuíram entre os mujiques, a uns por dezoito rublos, a outros por quinze. Nenhuma terra ficou por menos de doze. Assim, o lucro foi bom. Os próprios arrendatários pegaram cinco dessiatinas para si e essa terra saiu de graça para eles. Um daqueles cinco mujiques morreu e eles ofereceram a vaga na sociedade ao alfaiate manco.

Quando os arrendatários começaram a dividir a terra, o alfaiate parou de beber vodca e, quando se falou de quanta terra caberia a cada um, o alfaiate disse que era preciso repartir igualmente, e que não era preciso cobrar dos arrendatários mais do que já havia sido pago.

–Como assim?

–Afinal, não somos hereges. Isso pode ser bom para os patrões, mas nós somos cristãos. É preciso fazer como Deus quer. E essa é a lei de Cristo.

–Onde está essa lei?

–No livro, no Evangelho. Venham ver no domingo, vou ler e vamos conversar.

No domingo, não foram todos à casa do alfaiate, só três, e ele começou a ler para eles. Leu cinco capítulos de Mateus. Começaram a interpretar. Todos escutaram, mas só um aceitou, o Ivan Tchúiev. E aceitou tanto que passou a viver à risca como Deus quer. Na sua família, também passaram a viver assim. Ele abriu mão da terra excedente e só ficou com sua parte.

E começaram a ir à casa do alfaiate e de Ivan e começaram a entender, e entenderam, e pararam de fumar, de beber, de xingar e praguejar, passaram a ajudar uns aos outros. Pararam de ir à igreja e levaram os ícones para o pope. E assim viviam dezessete famílias. Ao todo, sessenta e cinco almas. O sacerdote se assustou e avisou o bispo. O bispo pensou no que fazer e resolveu mandar à aldeia o arquimandrita Missail, antigo professor de catecismo do ginásio.
XIX

 

 

 

O bispo pediu a Missail para sentar e começou a falar sobre as novidades que estavam acontecendo em sua eparquia.

–Isso tudo vem da fraqueza de espírito e da ignorância. Você é um homem instruído. Confio em você. Vá, reúna o povo e esclareça essa gente.

–Se o senhor me der sua bênção, vou tentar – disse o padre Missail. Ficou contente com aquela missão. Alegrava-se sempre que podia mostrar que acreditava. Com mais força do que qualquer outra coisa, era convertendo os outros que ele se convencia de que acreditava.

–Faça um esforço, estou sofrendo muito com meu rebanho – disse o bispo, enquanto, impaciente, com as mãos brancas e roliças, pegava o copo de chá que a criada lhe serviu. – Mas como? Só uma geleia? Traga outra – disse para a criada. – Estou sofrendo muito, muito – prosseguiu o que estava dizendo para Missail.

Missail estava contente por mostrar seu zelo. Mas, como não era rico, pediu dinheiro para as despesas da viagem e, com medo da hostilidade do povo rude, pediu também uma ordem do governador para que a polícia local lhe desse apoio, em caso de necessidade.

O bispo organizou tudo e Missail, com a ajuda do criado e da cozinheira, arrumou um baú com bebidas e mantimentos, o necessário para se manter numa viagem a uma região erma, e partiu rumo ao local indicado. Ao se dirigir àquela missão, Missail experimentava o sentimento agradável da consciência da importância de seu cargo sacerdotal e também da extinção de qualquer dúvida sobre sua fé – ao contrário, havia a certeza absoluta de sua autenticidade.

Seus pensamentos estavam voltados não para a essência da fé – ela era tida como um axioma –, mas sim para a refutação das objeções às formas exteriores da fé.
XX

 

 

 

O sacerdote da aldeia e sua esposa receberam Missail com grandes honras e, no dia seguinte à sua chegada, reuniram o povo na igreja. Com um manto de seda novo, uma cruz no peito e os cabelos penteados, Missail subiu no púlpito, a seu lado estavam o sacerdote, um pouco mais afastados estavam os sacristãos e os cantores, e nas portas laterais, a polícia. Vieram também os sectários – com casacos de pele ensebados e duros.

Depois do “Te Deum”, Missail fez o sermão, exortou os dissidentes a voltar para o seio da Madre Igreja, ameaçou com os tormentos do inferno e prometeu o perdão completo aos que se arrependessem.

Os sectários ficaram calados. Quando lhes fizeram perguntas, responderam. À pergunta sobre o motivo de se afastarem, responderam que na igreja cultuavam deuses feitos de madeira e que nas Escrituras aquilo não só não existia como nas profecias se declarava o contrário. Quando Missail perguntou a Tchúiev se era verdade que eles chamavam os ícones sagrados de tábuas, Tchúiev respondeu:

–É só você virar qualquer ícone que quiser que vai ver.

Quando lhes perguntaram por que não reconheciam o clero, responderam que nas Escrituras estava dito: “Vocês receberam de graça e de graça darão”, mas os popes só davam suas bênçãos por dinheiro. Toda vez que Missail tentava se respaldar na Sagrada Escritura, o alfaiate e Ivan retrucavam, com calma, mas com firmeza, citando as Escrituras, que conheciam a fundo. Missail se irritou, ameaçou-os com os poderes seculares. A isso, os sectários responderam que estava escrito:

–“Vocês me perseguiram e também serão perseguidos.”

Aquilo não deu em nada e tudo poderia ter ficado por isso mesmo, mas no dia seguinte, na missa, Missail fez um sermão sobre a malignidade dos sedutores, disse que eles mereciam todo tipo de castigo, e as pessoas que estavam na igreja começaram a discutir se valia a pena dar uma lição nos infiéis, para que não confundissem mais o povo. E naquele dia, na hora em que Missail estava comendo salmão e trutas com o pároco e com um inspetor que viera da cidade, houve um tumulto na aldeia. Os ortodoxos se aglomeraram em frente à isbá de Tchúiev e esperavam a saída das pessoas que estavam lá, para lhes dar uma surra. Os sectários eram umas vinte pessoas, entre homens e mulheres. O sermão de Missail e agora a aglomeração dos ortodoxos e suas palavras de ameaça despertaram nos sectários um sentimento ruim, que antes não havia. A tarde havia caído, estava na hora de as mulheres ordenharem as vacas, os ortodoxos continuavam à espera, bateram num menino que tentou sair e o enxotaram de novo para dentro da isbá. Lá, debateram sobre o que fazer e não entraram num acordo.

O alfaiate dizia: é preciso suportar e não atacar. Já Tchúiev dizia que, se fosse para suportar assim, todos seriam massacrados, pegou um atiçador e saiu para a rua. Os ortodoxos se atiraram sobre ele.

–É agora, pela lei de Moisés – gritou e começou a bater nos ortodoxos, furou o olho de um deles, enquanto os outros sectários fugiram da isbá e voltaram para suas casas.

Tchúiev foi preso e julgado por sedição e blasfêmia e condenado ao degredo.

Já o padre Missail ganhou uma condecoração e foi promovido.
XXI

 

 

 

Dois anos antes, vinda da terra do Exército do Don, a jovem Turtchanínova, bela, saudável, de aspecto oriental, chegara a Petersburgo para estudar. Em Petersburgo, a moça conheceu o estudante Tiurin, filho do chefe de um ziémstvo na província de Simbirsk, apaixonou-se por ele, mas não com o amor habitual das mulheres, não com o desejo de ser sua esposa e mãe de seus filhos, e sim com um amor de camaradas, que se nutria principalmente do mesmo ódio e da mesma revolta contra a ordem vigente e contra as pessoas que a representavam, e também da consciência de sua própria superioridade intelectual, educacional e moral sobre aquelas pessoas.

Turtchanínova tinha talento para os estudos, memorizava as lições com facilidade, tirava boas notas nos exames e, além disso, devorava livros novos em enorme quantidade. Estava convencida de que sua vocação não era dar à luz e criar filhos – até já encarava com aversão e desprezo essa vocação –, mas sim destruir a ordem vigente, que acorrentava as melhores forças do povo, e apontar às pessoas os novos caminhos da vida, que os novíssimos escritores europeus revelaram para ela. Carnuda, branca, rosada, bonita, de olhos negros e brilhantes, com uma grande trança negra, Turtchanínova despertava nos homens sentimentos que ela não queria e que também não podia compartilhar, a tal ponto estava imersa em sua atividade de promover agitação e debate. Mesmo assim, dava-lhe prazer despertar tais sentimentos e por isso, embora não se enfeitasse, também não descuidava da aparência. Achava bom que gostassem dela e poder mostrar, na prática, como desprezava aquilo que as outras mulheres valorizavam. Em suas opiniões sobre os meios de luta contra a ordem vigente, ela ia além da maioria de seus camaradas e de seu amigo Tiurin; admitia que, na luta, todos os meios são bons e podem ser usados, até mesmo o assassinato. Ao mesmo tempo, essa mesma revolucionária, Kátia Turtchanínova, era, no fundo, uma mulher muito boa e abnegada, sempre dava preferência imediata ao benefício, à satisfação, ao bem-estar dos outros em detrimento de seu próprio benefício, satisfação e bem-estar, e sempre se alegrava sinceramente com a possibilidade de fazer algo de bom a quem quer que fosse – uma criança, uma velha, um animal.

Turtchanínova estava passando o verão numa cidade pequena à margem do Volga, em casa de uma amiga, professora rural. Na mesma região, Tiurin morava na casa do pai. Os três e o médico da região muitas vezes se encontravam, trocavam livros, discutiam e se enchiam de revolta. A propriedade de Tiurin era vizinha à dos Livientsov, onde Piotr Nikoláitch fora trabalhar como administrador. Assim que Piotr Nikoláitch chegou e cuidou de impor a ordem, o jovem Tiurin, vendo que entre os camponeses dos Livientsov havia um espírito independente e a firme intenção de defender seus direitos, interessou-se por eles, ia muitas vezes à aldeia e conversava com os camponeses, difundia entre eles a teoria do socialismo em geral e, em particular, da nacionalização da terra.

Quando ocorreu o assassinato de Piotr Nikoláitch e houve o julgamento, o círculo dos revolucionários da localidade viu naquilo uma forte motivação para a revolta e, com destemor, conclamou uma rebelião. O fato de Tiurin ir à aldeia e conversar com os camponeses veio à luz durante o julgamento. Deram uma busca na casa de Tiurin, acharam alguns livretos revolucionários, prenderam o estudante e o levaram para Petersburgo.

Turtchanínova partiu atrás dele e foi à prisão para uma visita, mas não a deixaram entrar num dia qualquer, só no dia das visitas, quando ela falou com Tiurin através de duas grades. A visita aumentou mais ainda a revolta de Turtchanínova. Porém o que levou sua revolta ao extremo foi uma conversa com um belo oficial da guarda, que deu a entender que estava disposto a mostrar complacência, caso ela aceitasse sua proposta. Aquilo a levou ao último grau de indignação e ira contra todas as pessoas investidas de poder. Foi queixar-se com o chefe da polícia. O chefe da polícia lhe disse o mesmo que o oficial da guarda, que não podiam fazer nada, que se tratava de uma ordem do ministro. Ela mandou uma petição ao ministro, solicitando uma visita; recusaram. Decidiu-se, então, por um gesto desesperado e comprou um revólver.
XXII

 

 

 

O ministro estava atendendo no horário de costume. Esquivou-se de três peticionários, recebeu um governador e se aproximou de uma jovem bonita de olhos pretos e roupa preta que segurava um papel na mão esquerda. Uma chama de volúpia e carinho ardeu nos olhos do ministro, ao ver a bela peticionária, mas, lembrando sua posição, o ministro fez uma cara séria.

–O que a senhora deseja? – disse ele, aproximando-se.

Sem responder, ela rapidamente tirou a mão com o revólver de debaixo da capa, apontou para o peito do ministro e atirou, mas errou o alvo.

O ministro quis segurar sua mão, ela recuou e atirou outra vez. O ministro fugiu correndo. Ela foi agarrada. Tremia, não conseguia falar. E de repente deu uma gargalhada histérica. O ministro nem ficou ferido.

Era Turtchanínova. Levaram-na para a casa de detenção preliminar. Já o ministro, depois de receber as congratulações e o apoio das personalidades do mais alto escalão e até do soberano, instaurou uma comissão para investigar a conspiração que organizou aquele atentado.

A conspiração, é claro, não existia; mas os funcionários da polícia secreta e da polícia comum se empenharam com afinco na localização de qualquer pista da conspiração inexistente e, de modo consciencioso, fizeram jus a seu salário e a sua remuneração: levantando de manhã bem cedo, no escuro, faziam buscas e mais buscas, copiavam documentos, livros, liam diários, cartas particulares, retiravam extratos de tudo isso em lindas folhas de papel, com linda caligrafia, interrogaram Turtchanínova muitas vezes e fizeram acareações com ela, a fim de arrancar da jovem os nomes de seus cúmplices.

O ministro, no fundo, era um bom homem e tinha muita pena daquela bela e saudável cossaca, mas dizia a si mesmo que sobre ele se impunham os pesados deveres do Estado, os quais havia de cumprir, por mais difíceis que fossem. E quando um antigo colega, um camareiro do imperador, conhecido dos Tiurin, o encontrou num baile da corte e pediu sua ajuda para o caso de Tiurin e Turtchanínova, o ministro encolheu os ombros de tal modo que enrugou a fita vermelha sobre o colete branco, e disse:

–Je ne demanderais pas mieux que de lâcher cette pauvre fillette, mais vou savez... le devoir.5

Enquanto isso, Turtchanínova continuava na casa de detenção preliminar e às vezes, tranquilamente, se comunicava com os camaradas por meio de batidas na parede e lia livros que lhe davam, mas às vezes, de súbito, caía no desespero, tinha ataques de fúria, debatia-se contra as paredes, dava gritos esganiçados e gargalhava.
XXIII

 

 

 

Certo dia, Mária Semiónovna recebeu sua pensão na tesouraria do Estado e, ao voltar, encontrou um professor conhecido seu.

–E então, Mária Semiónovna, recebeu sua pensão? – gritou para ela, do outro lado da rua.

–Recebi – respondeu Mária Semiónovna. – Só dá para tapar os buracos.

–Que nada, é bastante dinheiro, vai tapar os buracos e ainda vai sobrar – disse o professor, despediu-se e foi em frente.

–Até logo – disse Mária Semiónovna e, olhando para o professor, esbarrou em cheio num homem alto, de braços muito compridos e rosto severo.

No entanto, quando já estava perto de casa, ela se admirou ao ver de novo o mesmo homem de braços compridos. Depois de observar a mulher entrando na casa, ele ainda permaneceu ali um tempo, antes de dar meia-volta e ir embora.

Mária Semiónovna, no início, ficou assustada e depois triste. Mas, quando entrou na casa, distribuiu os presentes para o velho pai e o sobrinho Fédia, pequenino e escrofuloso, e fez carinhos no cão Trezorka, que ganiu de alegria, voltou a sentir-se bem e, depois de entregar o dinheiro para o pai, foi cuidar do trabalho, que nunca faltava para ela.

O homem em quem havia esbarrado era Stiepan.

Da estalagem onde matara o estalajadeiro, Stiepan não foi para a cidade. E o estranho era que não apenas não lhe causava desgosto lembrar o assassinato como, de fato, ele o recordava várias vezes por dia. Gostava de pensar que era capaz de fazer aquilo com tanto cuidado e habilidade que ninguém podia descobrir nem impedir que o fizesse, e até mais, com outras pessoas. Sentado na taverna, tomando chá e vodca, observava as pessoas sempre do mesmo ponto de vista: como era possível matá-las. Foi pernoitar na casa de um conterrâneo, um carroceiro. O carroceiro não estava em casa. Stiepan disse que ia esperar, sentou-se e ficou conversando com a mulher. Depois, quando ela se virou para a estufa, veio à cabeça de Stiepan a ideia de matá-la. Espantou-se, balançou a cabeça para si mesmo, depois tirou uma faca do cano da bota, derrubou a mulher e cortou sua garganta. As crianças começaram a gritar, ele matou também as crianças e saiu da cidade, sem pernoitar ali. Numa aldeia, fora da cidade, entrou numa estalagem e dormiu.

No dia seguinte, voltou à cidade e, na rua, ouviu a conversa de Mária Semiónovna com o professor. O olhar dela assustou Stiepan, mas mesmo assim ele resolveu penetrar escondido em sua casa e tomar o dinheiro que a mulher havia ganhado. À noite, arrebentou a fechadura e entrou. A filha mais nova, casada, foi a primeira a ouvir o barulho. Começou a gritar. Stiepan a esfaqueou na mesma hora. O genro acordou e atracou-se com ele. Agarrou-o pelo pescoço, lutou muito tempo, mas Stiepan era mais forte. Depois de matar o genro, Stiepan, perturbado e excitado pela briga, foi para o outro lado da divisória. Lá, Mária Semiónovna estava na cama, levantou-se, olhou para Stiepan com olhos assustados e dóceis e fez o sinal da cruz. O olhar dela assustou Stiepan outra vez. Ele baixou os olhos.

–Onde está o dinheiro? – perguntou, sem erguer os olhos.

Ela ficou calada.

–Onde está o dinheiro? – disse Stiepan, mostrando a faca.

–O que está fazendo? Como pode? – disse ela.

–Vai ver como posso.

Stiepan se aproximou, pronto para segurá-la pelos braços para que ela não o impedisse, mas Mária Semiónovna não ergueu as mãos, não se opôs, limitou-se a apertar as mãos contra o peito, suspirou fundo e repetiu:

–Ah, que grande pecado. O que está fazendo? Tenha piedade de si mesmo. Destrói a alma dos outros e ainda mais a sua... A-ah! – gritou ela.

Stiepan não conseguiu mais suportar a voz e o olhar dela e passou a faca em sua garganta. “Chega de conversa.” Ela afundou no travesseiro e emitiu um gemido rouco, enquanto banhava o travesseiro de sangue. Stiepan lhe deu as costas e andou pela casa, recolhendo coisas. Depois de pegar o necessário, Stiepan fumou um cigarro, sentou-se, limpou a roupa e foi embora. Achou que aquele assassinato teria sobre ele o mesmo efeito que os anteriores, porém, antes mesmo de chegar ao albergue noturno, de repente sentiu tamanho cansaço que não conseguiu mais mover nenhum membro. Deitou-se na sarjeta e ali ficou estirado o resto da noite, o dia todo e a noite seguinte.

SEGUNDA PARTE
I

 

 

 

Deitado na sarjeta, Stiepan não parava de ver à sua frente o rosto dócil, magro, assustado de Mária Semiónovna e ouvia sua voz. “Como pode?”, dizia sua voz diferente, ciciante e cheia de pena. E Stiepan revivia mais uma vez tudo o que fizera com ela. Tinha uma sensação horrível, fechava os olhos e sacudia a cabeça cabeluda para expulsar aqueles pensamentos e recordações. Por um minuto, livrava-se das recordações, mas no lugar delas vinha primeiro um demônio negro, depois outros, de olhos vermelhos, faziam caretas e todos falavam ao mesmo tempo: “Você deu cabo da mulher, então dê cabo de si mesmo também, senão nós não vamos deixar você em paz”. Ele abria os olhos e via de novo a mulher, ouvia sua voz, sentia pena dela e tinha horror e asco de si mesmo. E de novo fechava os olhos e de novo vinham os demônios.

À noite, no dia seguinte, Stiepan se levantou e foi a uma cantina. A muito custo, conseguiu chegar à cantina e começou a beber. No entanto, por mais que bebesse, não ficava embriagado. Mudo, sentado diante da mesa, bebia um copo depois do outro. Um guarda entrou na cantina.

–Quem é você? – perguntou o guarda.

–Sou aquele que ontem degolou todo mundo na casa dos Dobrotvórov.

Foi amarrado, passou um dia na delegacia e depois o levaram para a capital da província. O inspetor da prisão reconheceu nele um de seus antigos prisioneiros, um dos mais rebeldes, agora um grande criminoso, e por isso o recebeu com severidade.

–Preste atenção, não quero saber de baderna aqui – disse o inspetor, com voz ríspida, de sobrancelhas franzidas e queixo empinado. – Se eu notar qualquer coisa, mato você a chicotadas. De mim, você não escapa.

–Não tenho por que escapar – respondeu Stiepan, de olhos baixos. – Eu mesmo me entreguei.

–Certo, mas comigo não tem conversa. E quando um superior está falando, você tem de olhar nos olhos – gritou o inspetor, e bateu com o punho cerrado embaixo do queixo de Stiepan.

Naquele momento, Stiepan estava vendo de novo a mulher e ouvia sua voz. Não escutava o que o inspetor lhe dizia.

–O quê? – perguntou, voltando a si, quando sentiu o murro na cara.

–Vá, vá, marche, e nada de se fazer de bobo.

O inspetor esperava tumultos, intrigas com outros presos, tentativas de fuga. Mas não houve nada disso. Quando o guarda ou o próprio inspetor espiava pela janelinha de sua porta, Stiepan estava sentado em cima de um saco cheio de palha, a cabeça apoiada nas mãos, e sempre sussurrava algo para si. Nos interrogatórios do juiz de instrução, ele também não se parecia com os demais detentos: ficava distraído, não ouvia as perguntas; mas quando as compreendia, era tão sincero que o juiz de instrução, acostumado a lutar contra a astúcia e a habilidade dos acusados, experimentava um sentimento semelhante ao que acontece quando, no escuro, no fim de uma escada, levantamos um pé para um degrau que não existe. De sobrancelhas franzidas, com os olhos fixos num ponto, Stiepan contava todos os seus assassinatos da maneira mais simples e mais prática, tentando recordar todos os detalhes.

–Ele saiu – contou Stiepan o primeiro assassinato –, estava descalço, ficou na porta, bati nele, quer dizer, dei uma pancada, ele deu um grito rouco, e então fui cuidar da mulher... – E assim por diante.

Durante uma visita do promotor às celas da prisão, perguntaram a Stiepan se tinha alguma queixa e se precisava de alguma coisa. Respondeu que não precisava de nada e que não era maltratado. O promotor, depois de dar alguns passos pelo corredor fedorento, parou e perguntou ao inspetor que o acompanhava como aquele preso se comportava.

–Não canso de me admirar dele – respondeu o inspetor, satisfeito por Stiepan ter elogiado o tratamento que recebia. – Faz dois meses que está aqui, seu comportamento é exemplar. Só tenho medo de que esteja tramando alguma coisa. É corajoso e tem uma força fora do comum.
II

 

 

 

No primeiro mês na prisão, Stiepan não parou de sofrer a mesma coisa: via a parede cinzenta da cela, escutava os barulhos da prisão – o rumor surdo na cela coletiva, embaixo da sua, os passos da sentinela no corredor, as batidas do relógio – e, ao mesmo tempo, via a mulher – seu olhar dócil, que o derrotou ainda na rua, quando esbarrou com ela, e seu pescoço magro, enrugado, que ele cortou, e ouvia sua voz meiga, piedosa, ciciante: “A alma dos outros e a sua alma. Como pode fazer isso?”. Depois a voz se calava e apareciam aqueles três demônios negros. E apareciam de qualquer jeito, estivesse ele de olhos fechados ou abertos. De olhos fechados, eles apareciam com mais nitidez. Quando Stiepan abria os olhos, eles se confundiam com as portas, as paredes e aos poucos iam sumindo, mas depois avançavam e vinham de três direções, fazendo caretas e condenando: se mate, se mate. Pode fazer um laço de forca, pode tacar fogo. E então um calafrio penetrava em Stiepan e ele começava a rezar o que sabia: ave-maria, pai-nosso, e no início aquilo pareceu ajudar. Rezando, começou a se lembrar de sua vida: lembrou-se do pai, da mãe, da aldeia, do cachorro Lobinho, do trabalho na estufa, dos bancos em que ele brincava de cavalinho com os meninos, depois se lembrou das meninas e suas canções, depois se lembrou dos cavalos, se lembrou de que os cavalos foram roubados, pegaram o ladrão e ele matou o ladrão com uma pedra. E lembrou-se da primeira prisão, lembrou-se de como fugiu, lembrou-se do estalajadeiro gordo, da esposa do carroceiro, dos filhos e depois se lembrou de novo dela. E sentiu calor, tirou o roupão dos ombros, ergueu-se bruscamente da cama de palha e, como uma fera numa jaula, começou a andar para um lado e para outro em passos ligeiros, na cela pequena, dando meia-volta bruscamente ao chegar às paredes suadas e cinzentas. E rezava de novo, mas as preces já não ajudavam.

Numa das longas noites de outono, quando o vento assoviava e zunia dentro das chaminés, Stiepan, cansado de percorrer a cela, sentou-se na cama e sentiu que não podia mais lutar, que os demônios tinham vencido, e se submeteu a eles. Fazia tempo que observava o cano de ventilação da estufa. Se amarrasse nele uns barbantes finos ou umas tiras finas de pano, não ia soltar. Mas era preciso montar aquilo com astúcia. E se lançou ao trabalho e em dois dias fez tiras de pano arrancadas do saco em que dormia (quando o guarda entrava, Stiepan cobria a cama de palha com o roupão). Amarrou as tiras com nós duplos, para não soltarem e para aguentarem o peso do corpo. Enquanto fazia os preparativos, não sofria. Quando tudo ficou pronto, fez o laço mortal, pôs no pescoço, subiu na cama e se enforcou. Mas bem na hora em que a língua saía da boca, as tiras se romperam e ele caiu. Com o barulho, veio o guarda. Chamaram o enfermeiro e o levaram para o hospital. No dia seguinte, estava plenamente recuperado, foi retirado do hospital e instalado não numa cela isolada, mas numa cela coletiva.

Na cela coletiva, ele vivia com vinte homens como se estivesse sozinho, não olhava para ninguém, não falava com ninguém e continuava atormentado. Sofria mais quando todos estavam dormindo, pois ficava acordado e, como antes, via a mulher, ouvia sua voz, depois apareciam de novo os demônios negros, com seus olhos terríveis, e o atormentavam.

De novo, como antes, ele rezava e, como antes, as preces não ajudavam.

Certa vez, quando, depois de rezar, a mulher apareceu de novo, Stiepan começou a rezar por ela, por sua alma querida, para que ela o libertasse, o perdoasse. E quando, quase de manhã, desabou sobre o saco amarrotado, Stiepan adormeceu profundamente e, no sonho, a mulher, com seu pescoço magro, enrugado e cortado, apareceu diante dele.

–Então, vai perdoar?

Ela o fitou com seu olhar dócil e nada disse.

–Vai perdoar?

E assim ele perguntou três vezes. Mas ela, apesar de tudo, nada disse. E Stiepan acordou. A partir daí, sentiu-se mais leve, pareceu recuperado, observou ao redor e pela primeira vez tomou a iniciativa de se aproximar de seus camaradas de cela e conversar com eles.
III

 

 

 

Na mesma cela de Stiepan, estava Vassíli, preso de novo por roubo e condenado à deportação, bem como Tchúiev, também condenado ao degredo. Vassíli, o tempo todo, ou cantava canções com sua voz bonita ou contava suas aventuras aos camaradas. Por sua vez, Tchúiev trabalhava, costurando roupas ou lençóis, ou lia o Evangelho e os Salmos.

Quando Stiepan perguntou por que tinha sido deportado, Tchúiev explicou que o haviam deportado por causa da verdadeira fé cristã, porque os popes impostores do espírito não suportavam ouvir as pessoas que viviam segundo o Evangelho e que os desmascaravam. E quando Stiepan perguntou qual era a verdadeira lei do Evangelho, Tchúiev explicou que a lei do Evangelho é não rezar para deuses feitos com as mãos, e sim orar no espírito e na verdade. E contou como tinham aprendido aquela fé verdadeira com um alfaiate pobre, na hora em que faziam a divisão da terra.

–Mas e aqueles que fizeram coisas ruins, o que será deles? – perguntou Stiepan.

–Tudo está dito.

E Tchúiev leu:

–“Quando o Filho do Homem vier em Sua glória, e todos os anjos santos com Ele, então se assentará no trono da Sua glória e serão reunidas em Sua presença todas as nações e Ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à Sua direita e os cabritos à Sua esquerda. Então dirá o rei aos que estiverem à Sua direita: ‘Vinde, benditos de Meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a criação do mundo: pois tive fome e me destes de comer; tive sede e Me destes de beber; era forasteiro e Me acolhestes, estive nu e vós Me vestistes, doente e Me visitastes, preso e viestes Me ver’. Então os justos Lhe responderão: ‘Senhor, quando foi que Te vimos com fome e Te alimentamos, com sede e Te demos de beber? Quando foi que Te vimos forasteiro e Te acolhemos ou nu e Te vestimos? Quando foi que Te vimos doente ou preso e fomos Te ver?’. Ao que lhes responderá o rei: ‘Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses Meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes’. Em seguida, dirá aos que estiverem à Sua esquerda: ‘Apartai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos. Porque tive fome e não Me destes de comer. Tive sede e não Me destes de beber. Fui forasteiro e não Me acolhestes. Estive nu e não Me vestistes, doente e preso, e não Me visitastes’. Então, também eles responderão: ‘Senhor, quando foi que Te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não Te servimos?’. E ele responderá com estas palavras: ‘Em verdade vos digo: todas as vezes que o deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a Mim que o deixastes de fazer’. E irão estes para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mateus, XXV, 31-46).

Vassíli, que havia sentado no chão de frente para Tchúiev e escutara a leitura, balançou a bela cabeça em sinal de aprovação.

–Está certo – exclamou, em tom resoluto. – Vão para o castigo eterno, seus malditos, que não deram de comer a ninguém e devoraram tudo sozinhos. Assim que deve ser. Agora, me dê aqui, vou ler um pouco – acrescentou, desejando se gabar de sua leitura.

–Sei, mas será que não vai haver perdão? – perguntou Stiepan, que tinha ouvido a leitura calado, com a cabeça cabeluda voltada para baixo.

–Espere um instante, fique quieto – disse Tchúiev para Vassíli, que já começava a falar dos ricos, que não tinham dado de comer ao forasteiro nem tinham visitado o preso. – Espere aí – repetiu Tchúiev, folheando o Evangelho. Quando achou o que procurava, Tchúiev alisou a folha de papel com a mão grande e forte, que tinha ficado branca na prisão.

–“Eram conduzidos também dois malfeitores para serem executados com ele”, quer dizer, com Cristo – explicou Tchúiev. – “Chegando ao lugar chamado Caveira, lá o crucificaram, bem como aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: ‘Pai, perdoa-os: não sabem o que fazem’. [...] O povo permanecia lá, a olhar. Os chefes, porém, zombavam e diziam: ‘A outros salvou, que salve a si mesmo, se é o Cristo, o escolhido de Deus’. Os soldados também caçoavam dele; aproximando-se, traziam-lhe vinagre, e diziam: ‘Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo’. E havia uma inscrição acima dele: ‘Este é o Rei dos judeus’. Um dos malfeitores suspensos à cruz o insultava, dizendo: ‘Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós’. Mas o outro, ao contrário, o repreendia dizendo: ‘Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós, é de justiça; estamos pagando por nossos atos; mas ele não fez nenhum mal’. E acrescentou: ‘Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino’. E Jesus lhe disse: ‘Em verdade, eu te digo, hoje mesmo estarás comigo no Paraíso’ ” (Lucas, XXIII, 32-43).

Stiepan nada disse e ficou sentado, pensativo, como se escutasse, mas já sem nada ouvir do que Tchúiev lia.

“Então aí está o que é a fé verdadeira”, pensou. “Só vai se salvar quem deu de comer e beber aos pobres, quem visitou os encarcerados, e irá para o inferno quem não fez isso. E mesmo assim o bandido se arrependeu na cruz e foi para o Paraíso.” Ele não via nisso nenhuma contradição, ao contrário, uma coisa confirmava a outra: o fato de os piedosos irem para o paraíso e os impiedosos, para o inferno significava que todos tinham de ser piedosos, e o fato de Cristo ter perdoado o bandido significava que Cristo também era piedoso. Tudo aquilo era absolutamente novo para Stiepan; apenas ficou surpreso por aquilo tudo ter ficado escondido dele, até então. E passava todo o tempo livre em companhia de Tchúiev, perguntando e escutando. E, quando escutava, entendia. Revelou-se para Stiepan que o significado geral de toda a doutrina residia no fato de que todos eram irmãos, era preciso amar uns aos outros, ter piedade uns dos outros, e que então tudo passaria a correr bem. E quando escutava, como se fosse algo conhecido que esquecera, assimilava na mesma hora tudo que confirmava o significado geral dessa doutrina e deixava passar, sem dar atenção, aquilo que não a confirmava, atribuindo tal fato à sua falta de compreensão.

E a partir dessa época, Stiepan se tornou outro homem.
IV

 

 

 

Mesmo antes, Stiepan Pelaguêiuchkin já era um homem humilde, mas ultimamente vinha impressionando o inspetor, os guardas e os camaradas da prisão com a mudança que sofrera. Sem que ordenassem, mesmo fora de seu turno, executava as tarefas mais árduas, entre elas a limpeza das privadas. No entanto, apesar de sua resignação, os companheiros o respeitavam e temiam, cientes de sua firmeza e de sua grande força física, sobretudo após o incidente em que dois vagabundos atacaram Stiepan, que quebrou o braço de um deles e os rechaçou. Os vagabundos tinham inventado de ganhar dinheiro no jogo à custa de um jovem prisioneiro rico e tomaram tudo que ele possuía. Stiepan intercedeu em seu favor e tomou de volta o dinheiro que os dois haviam ganhado no jogo. Os vagabundos xingaram Stiepan, depois o agrediram, mas ele venceu os dois. Quando o inspetor quis saber o motivo da briga, os vagabundos explicaram que Pelaguêiuchkin tinha batido neles. Stiepan não se justificou e aceitou com resignação o castigo, que consistiu em três dias na solitária e depois a transferência para uma cela individual.

A cela individual foi penosa para ele, porque o separava de Tchúiev e do Evangelho e, além disso, ele temia que as visões da mulher e dos demônios voltassem. Mas não teve visões. Toda a sua alma estava repleta de um conteúdo novo, alegre. Ficaria contente com seu isolamento, se pudesse ler e se tivesse um Evangelho. Até podiam lhe dar o Evangelho, só que ele não sabia ler.

Criança, começara a aprender a ler à maneira antiga: ave, bola, casa, mas, por causa da dificuldade de aprender, não passou do beabá, não houve jeito de entender a formação das sílabas e ficou analfabeto. Mas então resolveu aprender e pediu a um guarda o Evangelho. O guarda trouxe e Stiepan se lançou ao trabalho. Identificava as letras, mas não conseguia combiná-las. Por mais que se esforçasse para entender como as letras formavam palavras, não chegava a lugar nenhum. Ficava acordado à noite, pensando o tempo todo, não tinha vontade de comer e, como uma praga, a tristeza tomou conta de Stiepan, a tal ponto que não conseguia se livrar dela.

–Mas como assim, até agora não conseguiu? – perguntou o guarda, um dia.

–Não.

–Você sabe o pai-nosso?

–Sei.

–Então leia. Está aqui – e o guarda mostrou o pai-nosso no Evangelho.

Stiepan começou a ler o pai-nosso, comparando as letras que conhecia com os sons que já sabia. E de repente se revelou para ele o mistério da formação das sílabas e Stiepan começou a ler. Foi uma grande alegria. E desde então passou a ler, e o sentido que aos poucos ressaltava das palavras, soletradas com tanto esforço, ganhava um significado ainda maior.

O isolamento, agora, já não o oprimia e sim o alegrava. Estava sempre tomado por sua tarefa e não ficou contente quando o levaram de novo para a cela coletiva, a fim de abrir vagas para presos políticos recém-chegados.
V

 

 

 

Agora, já não era Tchúiev, mas Stiepan quem lia o Evangelho na cela, e enquanto alguns presos cantavam músicas obscenas, outros escutavam a leitura de Stiepan e seus comentários. Dois homens sempre o escutavam em silêncio e com atenção: Makhórkin, carrasco, homicida, condenado a trabalhos forçados, e Vassíli, preso por roubo e aguardando julgamento, que se encontravam na mesma prisão. Desde o dia em que foi para a prisão, Makhórkin exerceu seu ofício duas vezes, em ambas teve de viajar, pois no local não acharam quem executasse o que os juízes haviam sentenciado. Os camponeses que mataram Piotr Nikoláitch foram julgados por uma corte marcial e dois deles foram condenados à morte por enforcamento.

Makhórkin foi convocado para ir a Pienza a fim de exercer seu ofício. Em ocasiões anteriores, nesses casos, ele imediatamente escrevia – sabia ler e escrever muito bem – um documento para o governador em que explicava que recebera ordens para exercer seu ofício e por isso pedia às autoridades da província que lhe designassem uma verba destinada à alimentação durante a viagem; no entanto, dessa vez, para surpresa do diretor da prisão, Makhórkin comunicou que não ia para Pienza e não ia mais exercer o ofício de carrasco.

–E as chicotadas, esqueceu? – gritou o diretor da prisão.

–Tanto faz, com chicotada ou sem chicotada, não tem lei que mande matar.

–O que é isso, agora está igual ao Pelaguêiuchkin? Achou um profeta na prisão? Tome cuidado.
VI

 

 

 

Enquanto isso, Mákhin, o ginasiano que havia ensinado a falsificar o cupom, tinha terminado o ginásio e se formado em direito na universidade. Graças a seu sucesso com as mulheres e em especial com a ex-amante de um antigo camarada do ministro, foi nomeado juiz de instrução, ainda muito jovem. Não honrava dívidas, seduzia mulheres, jogava de modo contumaz, porém era hábil, sagaz, tinha boa memória e sabia conduzir bem seu trabalho.

Era juiz de instrução na mesma comarca onde Stiepan Pelaguêiuchkin estava sendo julgado. Ainda no primeiro interrogatório, Stiepan o deixou admirado com suas respostas simples, justas e serenas. De modo inconsciente, Mákhin sentiu que aquele homem à sua frente, preso em correntes e de cabeça raspada, que dois soldados trouxeram, vigiavam e iam levar de volta para o cárcere, era um homem totalmente livre e de uma estatura moral inacessivelmente superior à sua. Por isso, ao interrogá-lo, Mákhin não parava de se encorajar e reunir forças a fim de não se confundir nem se desorientar. O que o impressionava era o fato de Stiepan falar de seus atos como de coisas muito antigas, que não diziam respeito a ele de modo nenhum, mas a outra pessoa.

–E você não teve pena deles? – perguntou Mákhin.

–Não tive pena. Na época, eu não entendia.

–Bem, e agora?

Stiepan sorriu com tristeza.

–Agora, nem se tacassem fogo em mim eu faria aquilo.

–Por quê?

–Porque entendi que todos são irmãos.

–Então eu também sou seu irmão?

–Claro.

–Como pode? Sou seu irmão e estou condenando você a trabalhos forçados?

–É porque não entende.

–O que eu não entendo?

–Se está julgando, não entende.

–Bem, vamos prosseguir. Depois você foi para onde?...

O que mais impressionou Mákhin foi saber, por meio do inspetor, da influência de Pelaguêiuchkin sobre o carrasco Makhórkin, que, mesmo sob o risco de ser castigado, se recusou a exercer seu ofício.
VII

 

 

 

Numa festa na casa dos Ierópkin, onde moravam duas moças ricas e em idade de casar – ambas cortejadas por Mákhin –, depois de cantarem romanças, em que Mákhin se destacou por sua musicalidade – acompanhava ao piano e fazia uma segunda voz linda –, ele contou de modo fiel e detalhado – tinha excelente memória –, e com absoluta indiferença, o encontro com o estranho criminoso que havia convertido um carrasco. Mákhin era capaz de lembrar e transmitir tudo muito bem justamente porque era sempre de uma indiferença absoluta a respeito das pessoas com as quais lidava no trabalho. Não penetrava nem sabia penetrar no estado espiritual dos outros e por isso conseguia recordar tão bem tudo que acontecia com as pessoas, o que faziam, o que diziam. Porém Pelaguêiuchkin despertou seu interesse. Mákhin não penetrou em sua alma, no entanto, não podia deixar de se fazer uma pergunta: o que havia na alma dele? Como não achava resposta, mas sentia que era algo interessante, relatou o caso todo naquela festa: a conversão do carrasco, as histórias do inspetor sobre o comportamento estranho de Pelaguêiuchkin, como lia o Evangelho e como era forte sua influência sobre os camaradas de prisão.

Todos se interessaram pelo relato de Mákhin e, mais que todos, a caçula Liza Ierópkin, de dezoito anos, que acabara de concluir o curso do instituto e de se dar conta da obscuridade e do acanhamento das condições ilusórias em que tinha sido criada e, como quem sobe à superfície da água, sorvia sofregamente o ar fresco da vida. Passou a interrogar Mákhin, pediu detalhes sobre como e por que ocorreu tamanha transformação com Pelaguêiuchkin, e Mákhin contou o que ouvira de Stiepan sobre o último assassinato e como a resignação, a humildade e o destemor da mulher bondosa em face da morte, a última pessoa assassinada por ele, venceram Stiepan, abriram seus olhos, e depois a leitura do Evangelho fez o resto.

Naquela noite, Liza demorou muito para dormir. Já havia meses que nela se travava uma luta entre a vida mundana, para a qual a irmã a atraía, e a paixão por Mákhin, misturada com o desejo de corrigi-lo. Agora, esta última prevalecia. Já tinha ouvido falar da mulher assassinada. Mas agora, depois daquela morte horrível e do relato de Mákhin a partir das palavras de Pelaguêiuchkin, Liza passou a conhecer em detalhes a história de Mária Semiónovna e ficou impressionada com tudo que soube a respeito dela.

Liza sentiu uma tremenda vontade de ser como Mária Semiónovna. Era rica e temia que Mákhin a cortejasse por causa do dinheiro. Resolveu distribuir sua propriedade e falou sobre isso com Mákhin.

Mákhin ficou satisfeito com a oportunidade de demonstrar desinteresse e disse a Liza que a amava não pelo dinheiro e que aquela decisão generosa, assim parecia a ele, o comovia. Enquanto isso, teve início uma luta entre Liza e sua mãe (a propriedade pertencera ao pai), a qual não aceitava a partilha da propriedade. E Mákhin ajudou Liza. E quanto mais agia assim, mais ele compreendia aquele mundo de aspirações espirituais que via em Liza, um mundo muito diferente e, até então, totalmente estranho para ele.
VIII

 

 

 

Na cela, tudo ficou em silêncio. Stiepan estava deitado em sua cama de palha e ainda não dormia. Vassíli se aproximou, puxou seu pé e piscou o olho, num sinal para que levantasse e viesse para perto dele. Stiepan desceu da cama e chegou perto de Vassíli.

–Escute, irmão – disse Vassíli. – Faça um trabalhinho para mim, me dê uma ajuda.

–Que ajuda?

–Quero fugir.

E Vassíli revelou para Stiepan que tinha tudo pronto para fugir.

–Amanhã, vou arrumar confusão com eles – e apontou para os que estavam deitados. – Vão me acusar. Vão me transferir para cima e lá eu já sei o que fazer. Só queria que você soltasse a argola do ferrolho da porta do necrotério.

–Dá para fazer. Mas para onde você vai?

–Sei lá, qualquer lugar. Afinal, não tem gente ruim de sobra?

–É, sim, irmão, só que não cabe a nós julgar.

–Sei, mas por acaso eu sou algum assassino? Não tirei a vida de ninguém. Roubar? O que é que tem de ruim? Eles não vivem roubando a gente?

–O problema é deles. Vão ter de responder por isso.

–Mas a gente tem de ficar vendo isso de bico fechado? Olhe, já roubei uma igreja. Prejudicou alguém? Agora o que quero fazer não é roubar uma vendinha qualquer, mas pôr mão no tesouro mesmo e depois distribuir. Para as pessoas boas.

Então um dos presos se levantou um pouco na cama de palha e ficou escutando. Stiepan e Vassíli se separaram.

No dia seguinte, Vassíli fez o que queria. Começou a reclamar do pão, disse que estava mofado, atiçou todos os presos a chamar o inspetor e fazer a reclamação. O inspetor veio, repreendeu todos e, ao saber que o causador de tudo tinha sido Vassíli, mandou levá-lo para o confinamento, numa cela solitária, no andar superior.

Era tudo que Vassíli queria.
IX

 

 

 

Vassíli conhecia a cela do andar superior, para onde foi levado. Conhecia o chão e, assim que chegou lá, tratou logo de rebentar o piso. Quando conseguiu se enfiar por baixo do piso, soltou algumas tábuas do teto do andar de baixo, onde ficava o necrotério, e pulou. Naquele dia, no necrotério, havia um cadáver sobre a mesa. Ali mesmo no necrotério ficavam os sacos de palha para fazer os colchões. Vassíli sabia e aquilo já estava em seus planos. A argola do ferrolho da porta tinha sido solta e estava só encostada. Vassíli saiu pela porta e entrou no banheiro em construção, no final do corredor. Dentro do banheiro, havia um buraco que ligava o terceiro andar à parte de baixo, ao porão. Depois de tatear até achar a porta, Vassíli voltou para o necrotério, tirou o pano que cobria o cadáver, frio como gelo (tocou na mão dele ao tirar o pano), depois pegou sacos, amarrou-os com nós para formar uma corda e levou essa corda de sacos para o banheiro; lá, amarrou a ponta a uma viga e desceu, agarrado à corda improvisada. A corda não alcançava o chão. Se faltava pouco ou muito, ele não sabia, mas não havia o que fazer: Vassíli ficou pendurado e saltou. Machucou o pé, mas conseguiu andar. No porão, havia duas janelas. Daria para pular, mas havia uma grade de ferro. Seria preciso arrancá-la. Com o quê? Vassíli começou a procurar, tateando. No porão, havia pedaços de tábuas. Achou um pedaço com ponta fina e, com ele, começou a arrancar os tijolos que seguravam a grade. Trabalhou muito tempo. Os galos já cantavam pela segunda vez e a grade resistia. Por fim, um lado soltou. Vassíli enfiou o pedaço de tábua por baixo e empurrou com força, a grade se soltou inteira, mas um tijolo caiu e fez barulho. As sentinelas poderiam ouvir. Vassíli ficou imóvel. Tudo era silêncio. Ele subiu na janela. Saiu. Para fugir, tinha de passar para o outro lado do muro. No canto do pátio, havia um anexo. Tinha de subir no anexo e, de lá, pular o muro. Precisava levar o pedaço de tábua. Sem isso, não poderia subir. Vassíli voltou. De novo saiu pela janela com o pedaço de tábua e ficou quieto, atento aos passos da sentinela. Como ele havia calculado, a sentinela estava caminhando pelo outro lado do pátio. Vassíli foi até o anexo, apoiou-se na tábua, subiu. A tábua escorregou, caiu. Vassíli estava de meias. Tirou as meias para firmar melhor os pés, apoiou de novo a tábua, trepou nela e se segurou numa calha com a mão. “Vamos lá, não solte, aguente.” Ele se apoiou firme na calha e o joelho tocou no telhado. Chega a sentinela. Vassíli se deita e fica parado. A sentinela não vê e se afasta de novo. Vassíli dá um pulo. O ferro trepida embaixo de seus pés. Mais um passo, dois, aí está o muro. É fácil alcançar o muro com a mão. Uma mão, a outra, estica-se todo e está em cima do muro. Agora é só não se ferir, ao pular. Vassíli se vira, pendurado nas mãos, se estica, solta uma das mãos, a outra – “Deus me abençoe!”. Está no chão. E a terra é mole. As pernas não quebraram e ele corre.

Num subúrbio, Malánia abre a porta e ele se enfia embaixo de um cobertor quente, feito de retalhos e saturado do cheiro de suor.
X

 

 

 

Grande, bonita, sempre tranquila, sem filhos, carnuda, como uma vaca que não tem filhotes, a esposa de Piotr Nikoláitch viu pela janela como mataram seu marido e o arrastaram para algum lugar no campo. Diante daquele massacre, o sentimento de horror que Natália Ivánovna experimentou (era o nome da viúva de Piotr Nikoláitch), como sempre acontece, foi tão forte que sufocou todos os outros sentimentos. Quando a multidão sumiu por trás da cerca do jardim e o rumor das vozes cessou, e quando Malánia, a criada deles, veio correndo, descalça, de olhos arregalados e, como se fosse algo alegre, deu a notícia de que tinham matado Piotr Nikoláitch e levado o corpo para um barranco, por trás do sentimento de horror outro sentimento começou a se delinear: a alegria da libertação de um déspota de olhos cobertos por óculos escuros que por dezenove anos manteve Natália na escravidão. Ela mesma se horrorizou com aquele sentimento, não o confessava nem a si mesma, muito menos o revelava a quem quer que fosse. Quando lavaram o corpo amarelo, peludo e desfigurado, o vestiram e colocaram no caixão, ela se horrorizou, chorou e soluçou. Quando veio o juiz de instrução encarregado de casos importantes e, como juiz de instrução, interrogou Natália, ela viu ali mesmo, no gabinete do juiz de instrução, dois camponeses acorrentados, acusados de serem os principais culpados. Um, já velho, de barba comprida, branca e encaracolada, tinha o rosto tranquilo, severo e bonito; o outro era de origem cigana, não era velho, tinha olhos negros e brilhantes e cabelos desgrenhados e crespos. Ela declarou o que sabia, reconheceu nos dois as pessoas que primeiro seguraram os braços de Piotr Nikoláitch e, apesar do mujique que parecia cigano, e que a fitava com os olhos radiantes por baixo das sobrancelhas agitadas, dizer em tom de censura: “Isso é pecado, patroa! Ah, vamos morrer”, apesar disso, ela não teve nenhuma pena deles. Ao contrário, no interrogatório, cresceu dentro dela um sentimento de hostilidade e o desejo de vingar-se dos assassinos do marido.

Mas quando, um mês depois, o processo foi transferido para uma corte marcial e decidiram condenar oito homens a trabalhos forçados e outros dois, o velho de barba branca e o cigano moreno, como o chamavam, a morrer na forca, ela teve uma sensação desagradável. No entanto, sob a influência da solenidade do tribunal, aquela dúvida desagradável logo passou. Se a autoridade suprema reconhecia que era necessário, então devia ser bom.

A execução tinha de ocorrer na aldeia. E, no domingo, ao voltar da missa, de vestido novo e sapatos novos, Malánia comunicou à patroa que estavam construindo uma forca, que esperavam a chegada do carrasco de Moscou na quarta-feira e que as famílias dos condenados choravam sem parar e seus gritos eram ouvidos em toda a aldeia.

Natália Ivánovna não saía de casa para não ver a forca nem o povo e só desejava uma coisa: que o que tinha de acontecer terminasse o mais rápido possível. Só pensava em si e não nos condenados nem em suas famílias.
XI

 

 

 

Na terça-feira, o comissário de polícia rural, conhecido de Natália Ivánovna, foi à sua casa. Natália Ivánovna ofereceu vodca e cogumelos em conserva, feitos por ela mesma. Depois de tomar vodca e comer um pouco, o policial avisou que a execução do dia seguinte não ia ocorrer.

–Como? Por quê?

–É uma história surpreendente. Não conseguiram arranjar um carrasco. Havia um em Moscou, só que ele, meu filho me contou, deu para ler muito o Evangelho e disse: “Não posso matar”. O próprio carrasco já está condenado a trabalhos forçados por assassinato, mas agora, de repente, não pode matar, nem de forma legal. Disseram a ele que ia ser chicoteado. “Podem chicotear”, respondeu, “eu não posso fazer isso.”

Natália Ivánovna ficou vermelha de repente, e até suou com o pensamento que lhe veio à cabeça.

–E agora não é possível lhes dar o perdão?

–Perdoar como, se o tribunal condenou? Só o tsar pode perdoar.

–Mas como o tsar vai ficar sabendo?

–Eles têm direito de pedir indulto.

–Mas estão sendo enforcados por minha causa – disse a tola Natália Ivánovna. – E eu perdoo.

O comissário de polícia riu.

–Então peça o indulto.

–Pode?

–Na verdade, pode.

–Mas agora ainda dá tempo?

–Pode mandar um telegrama.

–Para o tsar?

–Claro, pode mandar para o tsar.

A notícia de que o carrasco se recusava a executar a pena e preferia sofrer um castigo a matar causou de repente uma reviravolta na alma de Natália Ivánovna, e o sentimento de angústia e horror que algumas vezes quisera se manisfetar veio à tona e tomou conta dela.

–Meu caro Filip Vassílievitch, escreva o telegrama para mim. Quero pedir o indulto ao tsar.

O comissário balançou a cabeça.

–Será que isso não vai nos trazer problemas?

–Mas eu sou a responsável. Nem vou falar do senhor.

“Que mulher bondosa”, pensou o comissário. “Boa mulher. Quem dera a minha fosse assim, seria um paraíso, e não o que é agora.”

E o comissário escreveu o telegrama para o tsar: “A Vossa Alteza Imperial, o Soberano Imperador. Súdita fiel de Vossa Alteza Imperial, viúva do assessor colegiado Piotr Nikoláitch Sventítski, morto por camponeses, prostrando-se aos sagrados pés” (esse trecho agradou em especial ao comissário, na hora em que redigia) “de Vossa Alteza Imperial, suplico o indulto para os camponeses tal e tal, condenados à morte em tal província, em tal distrito, em tal concelho, em tal aldeia”.

O telegrama foi enviado pelo próprio comissário e a alma de Natália Ivánovna ficou alegre e bem-disposta. Tinha a impressão de que, se ela, viúva do assassinado, perdoava e pedia perdão, o tsar não podia deixar de perdoar também.
XII

 

 

 

Liza Ierópkina vivia num estado de constante exaltação. Quanto mais avançava no caminho da vida cristã que havia se revelado para ela, mais convencida ficava de que aquele era o caminho da verdade e mais alegre ficava sua alma.

Agora tinha dois objetivos imediatos: o primeiro era converter Mákhin, ou melhor, como dizia consigo, devolver Mákhin a si mesmo, à sua natureza bondosa e bela. Liza o amava e, à luz de seu amor, se revelou para ela, na alma de Mákhin, o elemento divino, comum a todas as pessoas; no entanto, naquele fundamento da vida, comum a todas as pessoas, Liza enxergava uma bondade, uma ternura e uma elevação próprias apenas a ele. O outro objetivo de Liza era deixar de ser rica. Queria livrar-se da propriedade para testar Mákhin, mas também pelo bem da própria alma – queria agir assim para seguir as palavras do Evangelho. Começou a distribuir os bens, mas o pai a impediu e, mais do que o pai, uma multidão avassaladora de pessoas que, pessoalmente ou por carta, lhe faziam pedidos. Então ela resolveu se dirigir a um stárets6 famoso por sua vida santa, pedir que ficasse com o dinheiro dela e o usasse como achasse necessário. Ao saber disso, o pai se irritou e, numa conversa ríspida com a filha, chamou-a de louca, psicopata e disse que ia tomar medidas para protegê-la de si mesma, pois estava louca.

A reação irritada e furiosa do pai contagiou Liza e, antes que tivesse tempo de se controlar, ela desatou a chorar com rancor e insultou o pai com rudeza, chamou-o de déspota e até de interesseiro.

Pediu desculpas ao pai, ele disse que não ia se zangar, mas ela viu que, no fundo, o pai estava ofendido e não a perdoava. Liza não quis falar do assunto com Mákhin. A irmã, enciumada de Mákhin, se afastou dela por completo. Liza não tinha com quem dividir seu sentimento, ninguém para se confessar.

“Tenho de me confessar a Deus”, disse consigo e, como estavam na Quaresma, resolveu jejuar e, na confissão, contar tudo ao padre confessor e pedir seu conselho sobre como devia agir.

Perto da cidade, havia um mosteiro onde morava o stárets famoso pelo modo como vivia, pelos ensinamentos, profecias e curas atribuídas a ele.

O stárets recebeu uma carta do velho Ierópkin, que o prevenia da visita da filha e de seu estado anormal, perturbado, e expressava a convicção de que o stárets a levaria para o caminho da verdade – o meio-termo de ouro, a vida da bondade cristã, sem transgressão dos padrões vigentes.

Cansado após atender muita gente, o stárets recebeu Liza e começou a incutir nela a moderação, a obediência aos padrões vigentes e aos pais. Liza ouviu calada, ruborizou-se e suou, mas quando o monge terminou, ela, com lágrimas nos olhos, começou a falar, primeiro com timidez, aquilo que Cristo tinha dito: “Abandona o pai e a mãe e Me segue”. Depois, animando-se cada vez mais, fez uma exposição completa da maneira como entendia o cristianismo. O stárets, de início, chegou a sorrir e respondeu com os ensinamentos habituais, mas depois se calou e começou a suspirar, apenas repetindo: “Ah, meu Deus”.

–Muito bem, venha se confessar amanhã – disse ele e lhe deu a bênção com a mão enrugada.

No dia seguinte, o stárets ouviu sua confissão, prosseguiu a conversa da véspera e lhe deu a absolvição, depois de proibi-la, sem mais explicações, de dispor livremente de seus bens.

A pureza, a plena dedicação à vontade de Deus e o fervor da moça impressionaram o stárets. Fazia tempo que ele desejava renunciar ao mundo, mas o mosteiro exigia que continuasse em atividade. Aquela atividade gerava receitas para o mosteiro. E ele concordava, embora sentisse vagamente toda a falsidade de sua posição. Fizeram dele um santo, um milagreiro, mas era um homem fraco, seduzido pelo sucesso. E a alma daquela moça, ao se revelar para ele, havia também revelado ao stárets sua própria alma. E ele viu como estava longe do que desejava ser e daquilo que seu coração almejava.

Pouco depois da visita de Liza, ele se isolou num retiro e só três semanas depois foi à igreja, celebrou a missa e fez um sermão, em que se confessou arrependido, denunciou que o mundo vivia em pecado e conclamou o mundo ao arrependimento.

De duas em duas semanas, fazia um sermão. E cada vez mais gente vinha ouvir seus sermões. Sua fama de pregador se propagava mais e mais. Havia em seus sermões algo especial, corajoso, sincero. E por isso ele produzia um efeito tão forte nas pessoas.
XIII

 

 

 

Enquanto isso, Vassíli fazia tudo que queria. À noite, com seus camaradas, penetrou na casa de Krasnopúzov,7 um ricaço. Vassíli sabia que o homem era avarento e devasso, subiu ao seu escritório e pegou trinta mil rublos. E Vassíli fez o que queria. Até parou de beber e deu dinheiro para noivas pobres. Arranjou casamentos, saldou as dívidas das pessoas, e tudo sem aparecer. A única preocupação era distribuir bem o dinheiro. Dava até propina para a polícia. E não o procuravam.

Seu coração estava alegre. E quando, apesar de tudo, foi preso, ele riu e se gabou no julgamento, disse que “o dinheiro do barrigudo estava mal empregado, o homem nem sabia quanto tinha, mas eu botei o dinheiro em circulação e, com ele, ajudei pessoas boas”.

Sua defesa foi tão bem-humorada e simpática que os jurados quase o absolveram. Foi condenado à deportação.

Ele agradeceu e, de antemão, avisou que ia fugir.
XIV

 

 

 

O telegrama de Sventítskaia para o tsar não teve nenhum efeito. Na comissão de indulto, de início, resolveram que nem iam apresentar o pedido ao tsar, mas depois, durante um almoço com o soberano, quando começaram a falar sobre o caso de Sventítski, o diretor da comissão, presente ao almoço, informou que havia um telegrama da esposa da vítima.

–C’est très gentil de sa part8 – disse uma das damas da família do tsar.

O soberano suspirou, encolheu os ombros com as dragonas e disse:

–É a lei. – E ofereceu a taça, na qual o lacaio da corte serviu um vinho Mosela espumante.

Todos fingiram ficar admirados com a sabedoria das palavras do soberano. E não se falou mais do telegrama. E os dois mujiques – o velho e o jovem – foram enforcados, com a ajuda de um carrasco tártaro, enviado de Kazan, um assassino cruel, que praticava sexo com animais.

A velha quis vestir o corpo de seu velho com uma camisa branca, perneiras brancas e botas novas, mas não deixaram e os dois foram enterrados na mesma cova, fora do cemitério.

–A princesa Sófia Vladímirovna me contou que ele é um pregador admirável – disse, um dia, a mãe do soberano, antiga imperatriz, para seu filho. – Faites le venir. Il peut prêcher à la cathédrale.9

–Não, é melhor na igreja do palácio – respondeu o soberano, e mandou convidar o stárets Issidor.

Na igreja do palácio, estavam todos os generais. O novo e extraordinário pregador era um acontecimento.

Apareceu um velhinho grisalho, magricela, lançou um olhar para todos: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. E começou.

De início, foi bom, mas depois piorou. “Il devenait de plus en plus agressif”,10 como disse mais tarde a imperatriz. Ele censurou todos com veemência. Falou sobre as execuções. E atribuiu a necessidade de execuções a um mau governo. Será que num país cristão era possível matar pessoas?

Todos se entreolharam e a todos preocupava apenas a inconveniência e o fato de aquilo desagradar ao soberano, porém ninguém disse nada. Quando Issidor falou “Amém”, o metropolita se aproximou dele e o chamou ao seu gabinete.

Depois da conversa com o metropolita e o procurador-geral, mandaram o velhinho imediatamente de volta para um mosteiro, não o seu e sim para o de Suzdal, onde o padre Mikhail era o superior e o diretor-geral.
XV

 

 

 

Todos fingiram que nada de desagradável havia acontecido no sermão de Issidor e ninguém falava do assunto. O tsar tinha a impressão de que as palavras do stárets não haviam deixado nenhum vestígio nele, porém, ao longo do dia, se lembrou duas vezes da execução dos camponeses, cujo indulto Sventítskaia tinha pedido num telegrama. Durante o dia, houve uma parada, depois um passeio, depois a audiência com os ministros, depois o jantar e, à noite, o teatro. Como de costume, o tsar adormeceu assim que baixou a cabeça no travesseiro. Durante a noite, foi perturbado por um sonho terrível: no campo, estavam forcas, delas pendiam cadáveres, os cadáveres estavam com a língua de fora e as línguas se esticavam cada vez mais. E alguém gritou: “É obra tua, é obra tua”. O tsar acordou suado e começou a pensar. Pela primeira vez, começou a pensar na responsabilidade que pesava sobre ele e todas as palavras do velhinho voltaram à sua memória...

No entanto só muito vagamente via em si um homem e não conseguia se dedicar às exigências simples de um homem, por causa das exigências que, de todos os lados, eram feitas ao tsar; e admitir que as exigências de um homem eram mais necessárias do que as exigências de um tsar estava além de suas forças.
XVI

 

 

 

Cumprida a segunda pena na prisão, Prokófi, aquele rapaz atrevido, orgulhoso e vaidoso, saiu de lá como um homem completamente arruinado. Sóbrio, ficava sentado sem fazer nada e, por mais que o pai o repreendesse, Prokófi comia, não queria trabalhar e além disso tentava furtar qualquer coisa na taberna, para poder beber. Ficava sentado, tossia, escarrava e cuspia. O médico que ele foi consultar auscultou seu peito e balançou a cabeça.

–Irmão, você precisa daquilo que não tem.

–É sempre assim, todo mundo sabe.

–Tome leite, não fume.

–Está na época do jejum e lá em casa não tem vaca.

Certa vez, na primavera, não conseguia dormir, estava angustiado, queria beber. Em casa, não tinha nada para tomar. Pôs o chapéu e saiu. Andou pela rua, chegou à casa dos padres. O ancinho do sacristão estava do lado de fora, encostado na cerca. Prokófi foi até lá, apoiou o ancinho nas costas para levá-lo à taverna de Petrovna. “Quem sabe ela me dá uma garrafinha.” Mal havia saído quando o sacristão apareceu no alpendre. Já estava bem claro, ele viu que Prokófi estava levando seu ancinho.

–Ei, o que está fazendo?

Apareceu mais gente, pegaram Prokófi, levaram para a cadeia. O juiz de paz o condenou a onze meses de prisão.

Era outono. Levaram Prokófi para o hospital. Ele tossia e o peito se rasgava todo. Não conseguia se esquentar. Os que eram mais fortes não tremiam, apesar de tudo. Mas Prokófi tremia dia e noite. O inspetor mandara fazer economia de lenha e por isso só iam acender as lareiras do hospital em novembro. O corpo de Prokófi doía muito, porém o que mais doía era sua alma. Tudo lhe dava nojo e ele tinha ódio de todos: do sacristão, do inspetor, porque não acendia a lareira, do guarda, do vizinho de leito, que tinha o beiço inchado e vermelho. Também sentia ódio do novo condenado a trabalhos forçados que tinham levado para lá. O condenado era Stiepan. Estava com erisipela na cabeça, tinha sido transferido para o hospital e colocado no leito vizinho ao de Prokófi. No início, Prokófi teve ódio dele, mas depois passou a gostar muito de Stiepan, a tal ponto que a coisa que esperava com mais ansiedade era a hora de poder conversar com ele. Só depois da conversa a angústia no coração de Prokófi amainava.

Stiepan sempre falava com todos sobre seu último assassinato e como aquilo o havia afetado.

–Não começou a gritar nem nada – dizia Stiepan. – Ela disse: “Pode degolar. Não é de mim, mas de você que tenho pena”.

–Claro, todo mundo sabe, tirar a vida de alguém é horrível, uma vez eu também tive de degolar um carneiro e não gostei nada. Eu não matei ninguém, mas em compensação esses miseráveis acabaram comigo. Não fiz mal a ninguém...

–Isso vai contar a seu favor.

–É? Onde?

–Como onde? E Deus?

–Uma coisa que ninguém vê; irmão, eu não acredito... penso assim, a gente morre... o capim cresce. E mais nada.

–Como pode pensar isso? Quanta gente matei, enquanto ela, afetuosa, só ajudava as pessoas. Como é que você pode achar que eu e ela vamos ficar juntos? Não, espere só...

–Então você acha que a gente morre e a alma fica?

–Claro. É verdade.

A morte de Prokófi foi penosa, ele sufocava. Mas na última hora, de repente, ficou aliviado. Chamou Stiepan.

–Bem, irmão, adeus. Já se vê que chegou minha morte. Eu tinha medo, mas agora, tudo bem. Só quero que não demore.

E Prokófi morreu no hospital.
XVII

 

 

 

Enquanto isso os negócios de Ievguiéni Mikháilovitch estavam cada vez piores. A loja foi hipotecada. As vendas não andavam. Na cidade, tinham aberto outra loja, estavam cobrando dele os juros. Era preciso pegar um empréstimo a juros outra vez. E acabou que a loja e todas as mercadorias foram levadas a leilão. Ievguiéni Mikháilovitch e a esposa correram para todo lado, mas em nenhum lugar conseguiram os quatrocentos rublos necessários para salvar o negócio.

Tinham uma pequena esperança no comerciante Krasnopúzov, cuja amante era conhecida da esposa de Ievguiéni Mikháilovitch. Mas àquela altura todo mundo na cidade sabia que tinham roubado uma grande soma de dinheiro de Krasnopúzov. Diziam que tinham roubado meio milhão.

–E sabe quem foi que roubou? – perguntou a esposa de Ievguiéni Mikháilovitch. – O Vassíli, nosso antigo zelador. Dizem que agora ele anda jogando esse dinheiro fora por aí e comprou até a polícia.

–Era um sem-vergonha – disse Ievguiéni Mikháilovitch. – Lembra como ele cometeu o crime de perjúrio com a maior calma do mundo? Eu nunca ia imaginar.

–Dizem que veio aqui nos fundos de nossa casa. A cozinheira disse que veio. Contou que ele arranjou dinheiro para catorze noivas pobres casarem.

–Sei, eles vivem inventando história.

Naquele momento, um velho estranho, com um casaco curto e esfarrapado, entrou na loja.

–O que quer?

–Uma carta para o senhor.

–De quem?

–Está escrito aqui.

–Mas não é para responder? Espere um pouco.

–Não posso.

E o homem estranho, depois de entregar o envelope, foi embora afobado.

–Que esquisito!

Ievguiéni Mikháilovitch rasgou o envelope grosso e não acreditou nos próprios olhos: notas de cem rublos. Quatro. O que é isso? E também uma carta, cheia de erros de ortografia, para Ievguiéni Mikháilovitch: “No Evangelho está dito para pagar o mal com o bem. Você me fez muito mal com o cupom e eu tive de prejudicar o mujiquezinho, mas tenho pena de você. Tome aqui quatro catarinas e se lembre de seu zelador Vassíli”.

–Não, isso é espantoso – disse Ievguiéni Mikháilovitch, para a esposa e para si. E quando se lembrava ou falava disso com a esposa, as lágrimas vinham aos olhos e sua alma se alegrava.
XVIII

 

 

 

Na prisão de Suzdal, havia catorze religiosos, quase todos presos por desvio da ortodoxia; para lá foi mandado também Issidor. O padre Mikhail tratou Issidor conforme o documento que havia recebido e, sem conversar com ele, mandou que ficasse isolado numa cela solitária, como se fosse um grande criminoso. Na terceira semana de permanência de Issidor na prisão, o padre Mikhail fez a visita a todos os detentos. Ao entrar na cela de Issidor, perguntou:

–Precisa de alguma coisa?

–Preciso de muita coisa, mas não posso falar disso na frente dos outros. Dê a mim uma chance de falar com você a sós.

Os dois se fitaram nos olhos e Mikhail entendeu que não tinha o que temer. Mandou que levassem Issidor à sua cela e, quando ficaram sozinhos, disse:

–Pronto, fale.

Issidor caiu de joelhos.

–Irmão! – disse Issidor. – O que está fazendo? Tenha piedade de si. Pois não existe ninguém pior do que você, ofendeu tudo o que é sagrado...

Um mês depois, Mikhail apresentou os documentos que pediam a libertação, por arrependimento, não só de Issidor como de outros sete presos, e pediu para ficar em retiro num mosteiro.
XIX

 

 

 

Passaram dez anos.

Mítia Smokóvnikov terminou o curso na escola técnica, era engenheiro em minas de ouro na Sibéria e ganhava um salário elevado. Teve de inspecionar uma área. O diretor mandou levar o condenado a trabalhos forçados Stiepan Pelaguêiuchkin.

–Um condenado a trabalhos forçados? Não será perigoso?

–Com ele, não tem perigo. É um homem santo. Pergunte a quem quiser.

–Então por que está aqui?

O diretor sorriu.

–Matou seis pessoas, mas é um homem santo. Eu garanto.

Então Mítia Smokóvnikov aceitou Stiepan, careca, magro, queimado de sol, e foi com ele.

No caminho, Stiepan cuidava de Smokóvnikov como se fosse seu filho, como fazia com todos, sempre que podia, e no caminho lhe contou toda a sua história. E contou como, por quê e de que ele vivia, agora.

E foi surpreendente. Mítia Smokóvnikov, que até então vivia apenas para a bebida, a comida, o baralho, o vinho, as mulheres, pela primeira vez começou a pensar na vida. E tais pensamentos não se afastavam dele e, cada vez mais, desenvolviam sua alma. Ofereceram-lhe um cargo muito mais vantajoso. Ele recusou e resolveu comprar uma propriedade com o dinheiro que possuía, casar e servir ao povo da melhor forma que pudesse.
XX

 

 

 

Assim fez. Mas antes foi falar com o pai, com quem tinha relações desagradáveis por causa da família nova que o pai havia formado. Mas agora resolveu se aproximar do pai. E assim fez. O pai ficou admirado, zombou do filho, mas depois parou de acusá-lo e lembrou-se das muitas e muitas vezes em que fora culpado diante do filho.

1904

ALIOCHA GORCHOK

Aliocha era o irmão caçula. Chamavam-no de Gorchok1 porque a mãe o mandou levar um pote de leite para a esposa do diácono e ele tropeçou e quebrou o pote. A mãe bateu nele e a garotada passou a zombar do menino, chamando-o de “pote”. Assim, Aliocha Gorchok se tornou seu apelido.

Aliocha era miúdo, magricela, orelhudo (as orelhas se abriam como asas) e narigudo. A garotada zombava:

–O nariz do Aliocha é que nem um cachorro em cima de um morrinho.

Tinha uma escola na aldeia, mas Aliocha não aprendeu a ler, pois não tinha tempo para estudar. O irmão mais velho morava na casa de um comerciante, na cidade, e Aliocha teve de ajudar o pai desde pequeno. Tinha seis anos e, com a irmãzinha pequena, já vigiava as ovelhas e as vacas no pasto e, um pouco mais crescido, começou a vigiar os cavalos de dia e também de noite. Aos doze anos, já arava a terra e guiava a carroça. Força não tinha, mas era jeitoso. Estava sempre alegre. A garotada zombava dele; Aliocha ficava calado ou ria. Se o pai ralhava, ele ficava calado e obedecia. E assim que paravam de ralhar, sorria e tratava de fazer o trabalho que tinha na sua frente.

Aliocha estava com dezenove anos quando mandaram seu irmão para o Exército. E o pai pôs Aliocha no lugar do irmão, na casa do comerciante, para trabalhar de zelador. Deram a Aliocha as botas velhas do irmão, um chapéu e um casaco do pai e o mandaram para a cidade. Aliocha era só alegria com suas roupas, mas o comerciante não ficou satisfeito com o aspecto de Aliocha.

–Pensei que ia mandar um homem de verdade no lugar do Semion – disse o comerciante, olhando para Aliocha. – E você me manda esse espantalho. Para que ele serve?

–É capaz de fazer tudo, põe arreios, vai a qualquer lugar a cavalo e trabalha feito uma mula; esse jeito de caniço é só aparência. É muito forte.

–Está bem, vamos ver.

–E acima de tudo, é obediente. É doido para trabalhar.

–Vou ver o que eu faço com você. Pode ficar.

E Aliocha passou a morar com o comerciante.

A família do comerciante era pequena: a esposa e sua mãe idosa, o filho mais velho, casado e de pouca instrução, que trabalhava com o pai, e outro filho, mais instruído, que tinha terminado o ginásio e entrado na universidade, mas tinha sido expulso e morava na casa do pai, além de uma filha que cursava o ginásio.

No início, não gostaram de Aliocha – era muito mujique, se vestia mal, não tinha boas maneiras, tratava todos por “você”, mas logo se acostumaram com ele. Aliocha trabalhava ainda melhor do que o irmão. Era mesmo obediente, mandavam Aliocha cuidar de qualquer coisa e ele fazia tudo rápido e com boa vontade, passando de um serviço para outro, sem parar. E assim como acontecia em sua casa, também na casa do comerciante empurravam todo o trabalho nas costas dele. Quanto mais coisas Aliocha fazia, mais empurravam tarefas para Aliocha. A patroa, a mãe da patroa, a filha da patroa, o filho do patrão, o administrador, a cozinheira, todos mandavam Aliocha para um lado e para outro e o obrigavam a fazer ora isso, ora aquilo. Só se ouvia: “Vai correndo, irmão”, ou: “Aliocha, arrume isso, vamos. O que foi, Aliocha, você esqueceu, é? Olhe lá, não vá esquecer, hein, Aliocha”. E Aliocha corria, arrumava, prestava atenção e não esquecia, fazia tudo depressa e sempre rindo.

Aliocha logo arrebentou as botas do irmão, o patrão ralhou com ele por andar de botas com os dedos de fora e mandou comprarem botas novas para ele na feira. As botas eram novas e Aliocha se alegrou com elas, mas os pés continuavam os mesmos pés velhos de sempre e, à noite, se queixavam da canseira, e Aliocha se zangava com os pés. Aliocha tinha medo de que o pai, quando viesse pegar o dinheiro, ficasse zangado, porque o comerciante tinha descontado do seu salário o preço das botas.

No inverno, Aliocha se levantava antes do amanhecer, cortava lenha, depois varria o pátio, dava comida e água para a vaca e os cavalos. Depois apagava a estufa, limpava as botas e as roupas dos patrões, preparava os samovares, limpava, depois ou o administrador o chamava para pôr a mercadoria para fora ou a cozinheira o chamava para sovar massa de pão e limpar panelas. Depois mandavam Aliocha ir à cidade para entregar um bilhete, levar a filha da patroa ao ginásio, trazer azeite barato para a velha. “Onde você se meteu que demorou tanto, seu desgraçado?”, lhe dizia ora um, ora outro. “Para que você vai lá? Mande o Aliocha. Aliochka! Ei, Aliochka!” E Aliocha ia correndo.

Almoçava trabalhando e raramente tinha tempo para jantar com os outros. A cozinheira ralhava com ele por não chegar na hora e comer com os outros, mas tinha pena de Aliocha e guardava alguma coisa quente para ele jantar e cear. O trabalho aumentava bastante nos feriados e nos preparativos para os feriados. Aliocha se alegrava com os feriados especialmente porque, nessa ocasião, lhe davam gorjetas, bem pouco, é verdade, chegavam só a uns sessenta copeques, mesmo assim era um dinheiro seu. Podia gastar como quisesse. Já no seu salário mesmo, ele nem punha os olhos. O pai vinha, pegava o dinheiro com o comerciante e dizia para Aliocha que dali a pouco ele ia estragar as botas de novo.

Quando Aliocha juntou dois rublos com aquele dinheiro “de gorjetas”, comprou, por conselho da cozinheira, um casaco vermelho de tricô e, quando vestiu, não conseguiu parar de sorrir de satisfação.

Aliocha falava pouco e, quando falava, suas palavras eram sempre breves e entrecortadas. Quando o mandavam fazer alguma coisa ou perguntavam se podia fazer isso ou aquilo, ele sempre dizia, sem a menor hesitação:

–Para tudo tem um jeito. – E logo tratava de pôr mãos à obra e acabava fazendo.

Rezar, ele não sabia; assim que a mãe terminava de ensinar, ele logo esquecia, e mesmo assim Aliocha rezava de manhã e de noite – rezava com as mãos, fazia o sinal da cruz.

Aliocha viveu assim um ano e meio e então, na segunda metade do segundo ano, aconteceu com ele o fato mais extraordinário de sua vida. O fato foi que, para sua própria surpresa, descobriu que, entre as pessoas, além das relações que vinham da necessidade que uns têm dos outros, existia outra relação muito diferente: não era a necessidade que tem uma pessoa de que limpem suas botas, tragam as compras ou arreiem o cavalo, mas sim uma relação em que uma pessoa não é nem um pouco necessária para outra, mas tem a necessidade de servir a ela, mostrar carinho por ela; e ele, Aliocha, era essa pessoa. Descobriu isso por meio da cozinheira Ustínia. Ustiucha era órfã, jovem, tão trabalhadora quanto Aliocha. Começou a sentir pena de Aliocha e ele, pela primeira vez, sentiu que ele, ele mesmo, não seus serviços, era necessário a outra pessoa. Quando a mãe tinha pena dele, Aliocha nem notava, parecia que era assim porque tinha de ser, era a mesma coisa que ele ter pena de si mesmo. Mas de repente, agora, Aliocha via que Ustínia era uma pessoa de fora da família, e tinha pena dele, guardava comida quentinha para ele, separava papa com manteiga, e quando ele comia e limpava o queixo nas costas da mão fechada, ficava olhando para ele. E Aliocha olhava para ela de relance, e Ustínia ria e ele também ria.

Era algo tão novo e tão estranho que, de início, assustou Aliocha. Ele sentiu que aquilo atrapalhava seu trabalho, a maneira de trabalhar. Mesmo assim estava contente e, quando olhava suas calças remendadas por Ustínia, balançava a cabeça e sorria. Durante o trabalho ou na estrada, muitas vezes se lembrava de Ustínia e dizia:

–Ai, essa Ustínia!

Ustínia ajudava Aliocha como podia e ele a ajudava. Ela contou para Aliocha seu destino, como tinha ficado órfã, como foi criada pela tia, como foi deixada na cidade, como o filho do comerciante lhe disse umas bobagens e como ela deu uma boa bronca no rapaz. Ustínia adorava falar e Aliocha gostava de escutar. Ouvia dizer que, na cidade, muitas vezes acontecia de mujiques empregados nas residências casarem com as cozinheiras. E uma vez ela perguntou a Aliocha se iam casá-lo em pouco tempo. Ele respondeu que não sabia e que não tinha vontade de casar com nenhuma moça da aldeia.

–Mas, então, está de olho em quem? – perguntou Ustínia.

–Eu podia ficar com você. Eu caso, que tal? Quer?

–Puxa, cabecinha de pote de barro, que jeito você inventou de falar – disse ela, e bateu nas costas dele com um martelinho de bater carne. – E por que eu não ia querer?

Na época do carnaval, o pai veio à cidade pegar o dinheiro. A esposa do comerciante tinha descoberto que Aleksei queria casar com Ustínia e ela não gostou daquilo. “Fica grávida e, com um filho, para que ela vai servir?” Contou para o marido.

O patrão entregou o dinheiro ao pai de Alekséiev.

–E então, meu filho vai bem? – perguntou o mujique. – Eu disse que era obediente.

–Obediente, sim, até demais, só que inventou uma bobagem. Inventou de casar com a cozinheira. E eu não quero saber de criados casados. Não vamos aceitar isso.

–Que burro, que burro, o que foi inventar agora – disse o pai. – Não se preocupe. Vou mandar que ele não faça nada disso.

O pai foi à cozinha, sentou-se diante da mesa e esperou o filho. Aliocha estava cuidando de seus afazeres e voltou correndo, ofegante.

–Pensei que você tinha a cabeça no lugar. O que inventou agora? – disse o pai.

–Eu? Nada.

–Como, nada? Quer casar. Vou casar você quando chegar a hora e vou casar você com a pessoa certa, e não com uma vagabunda da cidade.

O pai falou muito. Aliocha ficou parado, suspirando. Quando o pai terminou, Aliocha sorriu.

–Está bem, posso deixar para lá.

–Certo.

Quando o pai foi embora e Aliocha ficou sozinho com Ustínia, disse para ela (Ustínia estava atrás da porta e tinha ouvido o pai falar com o filho):

–O nosso trato não vai poder ser. Você ouviu? Ele ficou com raiva, não deixa.

Ustínia começou a chorar, em silêncio, a cara no avental. Aliocha estalou a língua.

–A gente tem de obedecer. Claro, tem de deixar para lá.

À noite, quando a esposa do comerciante chamou Aliocha para fechar as venezianas, ela lhe disse:

–Então, obedeceu ao pai? Largou essa bobagem?

–Claro, larguei – respondeu Aliocha, riu, e na mesma hora começou a chorar.

Desde então, Aliocha não falou mais com Ustínia sobre casamento e continuou a viver como antes.

Tempos depois, o administrador mandou Aliocha remover a neve do telhado. Ele subiu no telhado, limpou tudo, começou a soltar a neve congelada nas calhas, os pés escorregaram e ele caiu com a pá. Por azar, não caiu sobre a neve, mas em cima da porta de saída, revestida de ferro. Ustínia e a filha da patroa foram correndo.

–Se machucou, Aliocha?

–Pois é, machuquei. Não foi nada.

Quis levantar, mas não conseguiu e começou a sorrir. Carregaram Aliocha para o quarto do zelador. Veio um enfermeiro. Examinou e perguntou onde doía.

–Está doendo tudo, mas não é nada, não. Só que o patrão vai ficar zangado. Tem de avisar meu pai.

Aliocha ficou de cama dois dias inteiros e, no terceiro, chamaram o padre.

–Mas o que é isso? Será que você vai morrer? – perguntou Ustínia.

–E o que é que tem? Por acaso a gente vive para sempre? Um dia tem de ser – respondeu Aliocha, depressa, como sempre. – Obrigado, Ustínia, por ter pena de mim. Olhe, no final foi melhor mesmo não deixarem a gente casar, senão, no que ia dar? Agora, tudo está melhor.

Rezou com o padre só com as mãos e o coração. E dentro do coração o que estava era que assim como aqui é bom, se a gente obedece e não ofende, no outro mundo também vai ser bom.

Falou pouco. Só pedia para beber e estava admirado com alguma coisa.

Ficou admirado com alguma coisa, esticou-se e morreu.

1905

KORNEI VASSÍLIEV
I

 

 

 

Kornei Vassíliev tinha cinquenta e quatro anos quando foi à aldeia pela última vez. Não havia ainda nenhum fio branco nos densos cabelos encaracolados e só na parte alta da barba preta, embaixo dos olhos, havia algum grisalho. O rosto era liso e rosado, a nuca larga e robusta e todo o seu corpo forte era envolvido em gordura, por causa da vida de fartura da cidade.

Vinte anos antes, havia deixado o serviço militar e voltara do Exército com dinheiro. No início, montou uma venda, depois largou a venda e começou a negociar com gado. Viajava para a Circássia para pegar a “mercadoria” (o gado) e levava para Moscou.

Na aldeia de Gai, em sua casa de pedra com telhado de ferro, moravam a velha mãe, a esposa e dois filhos (um menino e uma menina), além de um sobrinho órfão, mudo, de quinze anos, e um empregado. Kornei casou duas vezes. A primeira esposa era fraca, doente, morreu sem filhos e ele, um viúvo já de certa idade, casou com uma bonita moça saudável, filha de uma viúva pobre de uma aldeia vizinha. Seus filhos eram da segunda esposa.

Kornei vendeu em Moscou a última “mercadoria” com tanto lucro que acumulou quase três mil rublos. Tendo sabido por um conterrâneo que, perto da aldeia dele, um proprietário arruinado estava vendendo um bosque em condições vantajosas, teve a ideia de negociar também aquela floresta. Conhecia aquele ramo de negócio, pois ainda antes do serviço militar tinha trabalhado como ajudante do administrador de um comerciante de madeira.

Na estação da estrada de ferro, onde os passageiros desembarcavam do trem para ir para Gai, Kornei encontrou um conterrâneo de Gai, o manco Kuzmá. Ele vinha de Gai para ver o desembarque de todo trem que chegava, na esperança de conseguir passageiros para seu trenó, puxado por uma péssima parelha de pangarés peludos. Kuzmá era pobre e por isso detestava todos os ricos, especialmente o ricaço Kornei, que ele conhecia como Korniúchka.

De paletó e casaco de pele de ovelha, com uma maleta na mão, Kornei saiu no alpendre da estação e, depois de estufar a barriga, parou, bufando e olhando para os lados. Era de manhã. O tempo estava sereno, cinzento, com uma leve friagem.

–O que houve? Não achou passageiros, tio Kuzmá? – perguntou. – Não quer me levar?

–Claro, me dá um rublozinho. Eu levo.

–Por setenta copeques está feito.

–A barriga toda estufada e ainda quer tirar trinta copeques de um pobre.

–Bem, está certo, vamos lá, que seja – disse Kornei. E, colocando a mala e uma trouxa no pequeno trenó, sentou-se esparramado no banco de trás.

Kuzmá ficou na boleia.

–Muito bem. Toque os cavalos.

Deixaram os buracos em frente à estação e tomaram uma estradinha lisa.

–E então, como vão as coisas com você, não com a gente, mas com você, na aldeia? – perguntou Kornei.

–De bom, tem pouca coisa.

–Ah é? E a minha velha está viva?

–A velha está viva, sim. Outro dia mesmo estava lá na igreja. Sua velha está vivinha. E também a sua jovem patroa. Ela andou fazendo das suas. Contratou um empregado novo.

E Kuzmá deu uma risada esquisita, foi o que pareceu a Kornei.

–Que empregado? O que houve com o Piotr?

–Piotr ficou doente. Ela contratou o Evstígniei Biéli, de Kamienka – disse Kuzmá –, quer dizer, da sua própria aldeia.

–Mas como? – perguntou Kornei.

Ainda no tempo em que Kornei casou com Marfa, as mulheres já falavam de Evstígniei.

–Pois é, Kornei Vassílitch – disse Kuzmá. – A mulherada hoje em dia manda e desmanda.

–Nem me fale! – exclamou Kornei. – E a sua velha ficou bem grisalha – acrescentou, querendo mudar de assunto.

–Eu mesmo não sou mais jovem. Que nem o patrão – exclamou Kuzmá em resposta às palavras de Kornei, e deu uma lambada no cavalinho castrado, peludo e de perna torta.

No caminho, havia uma estalagem. Kornei mandou parar e entrou. Kuzmá conduziu os cavalos para um cocho vazio e ajeitou os arreios, sem olhar para Kornei e esperando que ele o chamasse.

–Vem cá, tio Kuzmá – disse Kornei, saindo para o alpendre. – Vem tomar um copinho.

–Claro, já vou – respondeu Kuzmá, fingindo não ter pressa.

Kornei pediu uma garrafa de vodca e levou para Kuzmá. Como não tinha comido nada desde a manhã, na mesma hora Kuzmá ficou embriagado. E assim que ficou embriagado, começou a contar para Kornei, em sussurros, inclinado para ele, o que andavam falando na aldeia. Diziam que Marfa, esposa de Kornei, tinha contratado como empregado um antigo namorado e que agora vivia com ele.

–Não é da minha conta. Mas tenho pena de você – disse Kuzmá, embriagado. – Só que não acho certo o povo ficar zombando. É claro que não têm medo do pecado. Pois esperem só, eu disse para eles. Vocês vão ver, no dia em que ele chegar. Ele não é de brincadeira, irmãos, o Kornei Vassílitch, não, senhor.

Em silêncio, Kornei escutava o que Kuzmá dizia e as sobrancelhas espessas se abaixavam cada vez mais sobre os cintilantes olhos pretos como carvão.

–Então, vai dar de beber aos cavalos? – disse ele apenas, quando a garrafa ficou vazia. – Senão, é melhor seguirmos viagem.

Pagou ao dono da estalagem e foi para fora.

Chegou em casa já no pôr do sol. Primeiro, encontrou o próprio Evstígniei Biéli, que Kornei não tinha conseguido tirar do pensamento durante toda a viagem. Kornei cumprimentou-o. Ao ver o rosto descarnado e o cabelo louro desbotado do afoito Evstígniei, Kornei se limitou a balançar a cabeça, perplexo. “Mentiu, o cachorro velho”, pensou, tendo em mente as palavras de Kuzmá. “Mas quem vai saber? Logo vou descobrir.”

Kuzmá estava parado junto aos cavalos e piscou um olho para Evstígniei.

–Quer dizer que está morando conosco, é? – perguntou Kornei.

–Pois é, a gente tem de trabalhar em algum lugar – respondeu Evstígniei.

–E está aquecida a sala?

–Claro. Matviévna está lá – respondeu Evstígniei.

Kornei subiu na varanda. Marfa, tendo ouvido vozes, foi à entrada, viu o marido, se entusiasmou, correu e o cumprimentou com um carinho especial.

–Já não aguentávamos mais de tanto esperar – disse ela, e entrou na sala, atrás de Kornei.

–E então, como passaram sem mim?

–Estamos todos como antes – respondeu ela e, segurando pela mão a filhinha de dois anos, que se agarrava à sua saia e pedia leite, foi para o vestíbulo em passadas largas e resolutas.

Kornéieva, mãe de Kornei, com olhos pretos como os dele, entrou na sala arrastando com dificuldade os pés metidos em botas de feltro.

–Obrigada por vir nos visitar – disse ela, balançando a cabeça trêmula.

Kornei explicou à mãe os negócios de que tinha ido tratar e, lembrando-se de Kuzmá, foi levar o dinheiro para ele. Assim que abriu a porta do vestíbulo, viu Marfa e Evstígniei bem na sua frente, parados junto à porta de saída. Estavam perto um do outro e ela lhe dizia alguma coisa. Ao ver Kornei, Evstígniei foi para fora, enquanto Marfa se aproximou para ajeitar a chaminé que estava chiando em cima do samovar.

Kornei passou por trás das costas curvadas da esposa sem dizer nada, pegou a trouxa e chamou Kuzmá para beber chá no salão. Antes do chá, Kornei distribuiu os embrulhos que trouxera de Moscou para os familiares: o xale de lã para a mãe, um livrinho com ilustrações para Fiédka, um paletozinho para o sobrinho mudo e uma estampa de vestido para a esposa.

Durante o chá, Kornei ficou sentado de sobrancelhas franzidas e não falou nada. Só de vez em quando, e de má vontade, sorria, olhando para o mudo, que divertia todos com sua alegria. Não cabia em si de tanto contentamento com o paletó. Dobrava e desdobrava o paletó, vestia e beijava a própria mão, olhava para Kornei, e sorria.

Depois do chá, Kornei foi imediatamente para o cômodo onde dormia com Marfa e a filha pequena. Marfa ficou no salão para arrumar a louça. Kornei sentou-se sozinho à mesa, apoiado nos braços, e esperou. O rancor pela esposa se revolvia, cada vez mais, dentro dele. Pegou o ábaco que estava pendurado na parede, tirou do bolso um caderninho de anotações e, a fim de distrair os pensamentos, começou a fazer contas. Fazia contas olhando para a porta e ouvindo as vozes no salão.

Ouviu a porta abrir algumas vezes e alguém ir para o vestíbulo, mas nunca era ela. Por fim, ouviu os passos da esposa, a porta sacudiu, abriu e ela, corada, bonita, num xale vermelho, entrou com a menina nos braços.

–A viagem deve ter deixado você exausto – disse, sorrindo, como se não percebesse o ar sombrio do marido.

Kornei olhou para ela um momento e recomeçou a fazer contas, apesar de não ter nada para calcular.

–Já não é cedo – disse ela e, baixando a menina dos braços, foi para trás da divisória.

Ele ouviu como ela arrumava a cama e punha a filhinha para dormir.

“As pessoas estão zombando”, lembrou-se das palavras de Kuzmá. “Esperem só para ver...”, pensou Kornei, controlando com dificuldade a respiração e, com um movimento vagaroso, levantou-se, enfiou um lápis roído no bolso do colete, pendurou o ábaco no prego, tirou o casaco de pele e foi na direção da divisória. Ela estava com o rosto voltado para os ícones e rezava. Ele parou, à espera. Ela se benzia demoradamente, se curvava e falava as preces num sussurro. Kornei teve a impressão de que a esposa já havia rezado todas as preces fazia muito tempo e estava repetindo de propósito. Então ela baixou a cabeça até o chão, levantou-se, sussurrou umas palavras de prece para si e virou o rosto para ele.

–A Agachka já está dormindo – disse, apontando para a menina e, sorrindo, sentou-se na cama, que rangeu.

–Evstígniei está aqui há muito tempo? – perguntou Kornei, entrando pela porta.

Com um movimento tranquilo, ela acomodou uma trança grossa por cima do ombro e sobre o peito e, com dedos ligeiros, começou a desmanchá-la. Olhava direto para o marido e seus olhos riam.

–O Evstígniei? Ah, quem sabe? Umas duas semanas, talvez três.

–Você vive com ele? – perguntou Kornei.

Ela soltou a trança, mas logo segurou de novo os cabelos espessos e duros e recomeçou a trançar.

–O que falta essa gente inventar? Se eu vivo com Evstígniei? – disse ela, pronunciando de forma especialmente sonora o nome Evstígniei. – Inventam tudo! Quem falou isso para você?

–Diga: é verdade ou não? – perguntou Kornei e, nos bolsos, cerrou os punhos vigorosos.

–Para que perder tempo com bobagens? Vai tirar as botas?

–Fiz uma pergunta – repetiu ele.

–Era só o que faltava. Eu ter interesse por Evstígniei – disse ela. – Mas quem foi que mentiu para você?

–O que você estava falando com ele, na porta?

–O que falei? Falei que era preciso pregar o arco do barril. Mas o que deu em você para me atormentar?

–Eu ordeno: diga a verdade. Eu te mato, canalha imunda.

Agarrou-a pela trança.

Ela tirou a trança de sua mão; o rosto dela estava contraído de dor.

–Por qualquer coisa você quer logo brigar... O que foi que vi de bom em você? Não sei mais o que fazer dessa vida.

–O que fazer? – exclamou ele, avançando para ela.

–Por isso puxou minha trança? Olhe, ficou tudo bagunçado. O que deu em você? Mas é verdade que...

Não terminou de falar. Ele a segurou pelo braço, puxou-a da cama e começou a bater na cabeça, nos lados, no peito. Quanto mais batia, mais a raiva aumentava dentro dele. A esposa gritava, se defendia, queria fugir, mas ele não a soltava. A menina acordou e correu para a mãe.

–Mamãe – berrou.

Kornei agarrou a menina pelo braço, separou-a da mãe e, como se fosse um gatinho, jogou-a para o canto. A menina deu um gemido e, segundos depois, não se ouviu mais nada.

–Bandido! Matou a menina – gritou Marfa e quis ir para perto da filha.

Mas ele a agarrou de novo e bateu no peito com tanta força que ela caiu de costas e também parou de gritar. Só a menina recomeçou a gritar desesperada, sem parar para respirar.

A velha, sem xale, com os cabelos grisalhos desgrenhados, a cabeça trêmula, arrastando os pés, entrou no quarto e, sem olhar para Kornei nem para Marfa, se aproximou da neta, afogada em lágrimas de desespero, e levantou-a.

Kornei estava de pé, ofegante, e olhava em volta, como se estivesse entorpecido, sem entender onde estava e quem estava com ele.

Marfa levantou a cabeça e, gemendo, enxugou com a blusa o rosto ensanguentado.

–Maldito desgraçado! – exclamou. – Eu vivo com Evstígniei e sempre vivi. Sim, me bata até a morte. E Agachka não é sua filha; ele é o pai – disse, falando depressa e cobrindo o rosto com o braço, à espera de uma pancada.

Mas Kornei, como se não estivesse entendendo nada, apenas fungava e olhava em volta.

–Olhe o que você fez com a menina: quebrou o braço – disse a velha, mostrando a ele o bracinho pendente e torcido para fora da menina, que não parava de dar gritos engasgados. Kornei virou-se e saiu em silêncio para o vestíbulo e depois para a varanda.

Lá fora, tudo continuava cinzento e gelado. A neve e a geada batiam nas bochechas e na testa, que queimavam. Sentou-se num degrau e comeu punhados de neve, que apanhava no corrimão. Pela porta, ouvia que Marfa gemia e a menina chorava de dar pena; depois a porta do vestíbulo se abriu e ele ouviu que sua mãe e a menina saíram do quarto, atravessaram o vestíbulo e foram para o salão. Kornei levantou-se e entrou no quarto. O lampião com quebra-luz iluminava pouco, sobre a mesa. Por trás da divisória, se ouviam os gemidos de Marfa, que aumentaram assim que ele entrou. Kornei vestiu-se calado, pegou a mala embaixo do banco, colocou suas coisas dentro dela e amarrou-a com uma corda.

–Por que me matou? Por quê? O que fiz a você? – disse Marfa com voz de dar pena. Sem responder, Kornei levantou a mala e levou para a porta. – Condenado. Bandido! Espere só para ver. Acha que não vai ser preso? – exclamou ela com uma voz raivosa e muito diferente.

Sem responder, Kornei empurrou a porta com o pé e bateu-a com tanta força que as paredes tremeram.

Ao entrar no salão, Kornei voltou um pouco a si e mandou atrelar o cavalo. O mudo, que acabara de acordar, olhava espantado para o tio, com ar interrogativo, e repuxava os cabelos com as duas mãos. Tendo afinal compreendido o que queriam dele, deu um pulo, calçou as botas de feltro, o casaco de pele rasgado, pegou o lampião e foi para o pátio.

Já estava claro quando Kornei saiu pelo portão no trenó com o mudo e voltou pelo mesmo caminho que tinha feito na véspera, com Kuzmá.

Chegou à estação cinco minutos antes da partida do trem. O mudo viu como ele comprou a passagem, pegou a mala e sentou-se dentro do vagão, de cabeça baixa, e como o vagão rolou em frente e sumiu de vista.

Marfa, além das pancadas no rosto, fraturou duas costelas e partiu a cabeça. No entanto a mulher, jovem e saudável, em meio ano estava recuperada, só restaram algumas marcas das pancadas. Mas a menina ficou aleijada para sempre. Teve dois ossos do braço fraturados e o braço ficou torto.

Quanto a Kornei, desde que foi embora, ninguém nunca mais ouviu falar dele. Ninguém sabia se estava vivo ou morto.
II

 

 

 

Passaram dezessete anos. Era um outono nebuloso. O sol subia pouco e antes das quatro horas da tarde já estava quase escuro. O rebanho de Andréievka estava voltando para a aldeia. O pastor, depois de cumprir seu turno de trabalho, tinha ido embora e só ia voltar na véspera do jejum, e as mulheres e as crianças que estavam de serviço tocavam o gado.

Mal o rebanho saiu do restolho de aveia para a estrada grande, enlameada, de terra preta, marcada por cascos bipartidos e riscada por sulcos, seguiu rumo à aldeia, com mugidos e balidos incessantes. Pela estrada, à frente do rebanho, ia andando um velho alto, de barba grisalha e cabelos grisalhos cacheados, num casaco caseiro e remendado, escurecido pela chuva, de chapéu grande e com um saco de couro nas costas arqueadas; só as sobrancelhas espessas eram pretas. Ele andava na lama, movendo com esforço as botas molhadas, grosseiras, arrebentadas, de bico aberto, e a cada passo se apoiava num cajado de carvalho. Quando o rebanho o alcançou, o velho parou, apoiando-se no cajado. Tocando os animais, vinha uma mocinha com um pano de aniagem cobrindo a cabeça, saia arregaçada e botas de mujique, e corria de um lado da estrada para o outro em passos ligeiros, cuidando de juntar as ovelhas e os porcos que ficavam para trás. Ao passar pelo velho, parou, olhando para ele.

–Boa tarde, vovô – disse com voz sonora, fresca e jovem.

–Boa tarde, menina – respondeu o velho.

–Não vai passar a noite com a gente?

–É, parece que sim. Estou exausto – disse o velho com voz rouca.

–Vovô, não precisa ir à delegacia rural – disse a mocinha, em tom carinhoso. – Vá direto à nossa casa, a terceira isbá a partir da ponta da aldeia. Minha sogra deixa entrar pessoas de fora.

–A terceira isbá. Quer dizer, a de Zinóviev? – perguntou o velho, movendo as sobrancelhas pretas de modo expressivo.

–Ora, você conhece?

–Conheci.

–O que está fazendo, Fiéduchka, está babando... e mancando desse jeito acabou ficando para trás – gritou a mocinha, apontando para uma ovelha manca, de três patas, que tinha ficado para trás, e, erguendo uma vara na mão direita e, com o braço esquerdo torto, estranhamente baixo, prendendo o pano de aniagem sobre a cabeça, correu para trás, na direção da ovelha preta, molhada e manca.

O velho era Kornei. A moça era a própria Agachka, cujo braço ele havia quebrado dezessete anos antes. Tinha casado e trabalhava para uma família rica de Andréievka, a quatro verstas de Gai.
III

 

 

 

De homem forte, rico, orgulhoso, Kornei Vassíliev se tornara aquilo que era agora: um velho mendigo que não possuía nada senão as esfarrapadas roupas do corpo, uma carteira de identidade militar e duas camisas na bolsa. Toda essa transformação ocorreu de modo tão gradual que nem ele poderia dizer quando começou e quando terminou. A única coisa que sabia, e de que estava firmemente convencido, era que a culpa de sua desgraça era de sua esposa malvada. Ele achava estranho e doloroso recordar o que tinha sido antes. E quando a lembrança vinha, Kornei se lembrava com ódio daquela que ele considerava a causa de todo o mal que tinha sofrido naqueles dezessete anos.

Na noite em que espancou a esposa, ele foi à casa do senhor de terras que estava vendendo um bosque. Não pôde comprar o bosque. Já tinha sido vendido. Kornei Vassíliev voltou para Moscou e lá desandou a beber. Já bebia antes, mas dessa vez ficou duas semanas inteiras embriagado e, quando se recuperou, foi para o campo a fim de comprar gado. A compra não foi bem-sucedida e ele teve prejuízo. Viajou uma segunda vez. E a segunda compra também não deu certo. E depois de um ano, dos três mil rublos que possuía, só restavam vinte e cinco rublos e ele teve de trabalhar como empregado. Antes, já bebia, mas agora passara a beber cada vez mais.

No início, por um ano, foi administrador de um criador de gado, mas bebia demais e o patrão o demitiu. Depois, graças a um conhecido, arranjou um emprego de vendedor de vinho, mas também não ficou muito tempo. Ele se embrulhava nas contas e o mandaram embora. Tinha vergonha de voltar para casa e a raiva o dominava. “Que se virem sem mim. Além do mais, a menina nem é minha filha”, pensou.

Tudo andava de mal a pior. Sem bebida, ele não conseguia viver. Já se empregava não como administrador, mas como condutor de carro de boi, e depois nem essa obrigação ele era capaz de cumprir. Quanto pior sua situação, mais culpava a esposa e mais se inflamava a raiva que sentia contra ela.

Na última vez, Kornei se empregou de condutor de carro de boi com um patrão desconhecido. O boi se machucou. Kornei não teve culpa, mas o patrão se enfureceu e demitiu Kornei e também o administrador. Ninguém queria lhe dar emprego e Kornei resolveu caminhar sem rumo. Fez ele mesmo um bom par de botas, uma bolsa, pegou chá, açúcar, oito rublos e partiu para Kíev. Não gostou de Kíev e seguiu para o Cáucaso, para Nova Athos. Antes de chegar a Nova Athos, teve uma febre. Enfraqueceu de repente. De seu dinheiro, só restavam um rublo e setenta copeques, não havia mais ninguém que ele conhecesse e então resolveu ir para a casa do filho. “Quem sabe, talvez ela tenha morrido, a minha miserável”, pensou. “Se estiver viva, tanto melhor, pois vou lhe contar tudo o que fez comigo, para que a desalmada fique sabendo, antes da morte”, pensou, e foi para casa.

A febre o fez tremer o dia inteiro. Ficou cada vez mais fraco, já não conseguia andar mais de dez ou quinze verstas por dia. Antes de percorrer as duzentas verstas até sua casa, o dinheiro terminou e ele passou a pedir esmola e dormir na delegacia rural. “Alegre-se, veja o que fez de mim!”, pensava em dizer para a esposa e, por um costume antigo, as mãos velhas e fracas cerravam os punhos. Mas não tinha em quem bater e os punhos cerrados já não tinham força.

Percorreu as duzentas verstas em duas semanas e, muito doente e fraco, alcançou aquele lugar, a quatro verstas de casa, onde, sem a reconhecer e sem ser reconhecido, encontrou a mesma Agachka que ele achava não ser sua filha e cujo braço ele havia quebrado.
IV

 

 

 

Kornei fez o que Agáfia lhe disse. Ao chegar à casa de Zinóviev, foi convidado a pernoitar ali. Eles o receberam.

Ao entrar na isbá, se benzeu diante dos ícones, como sempre fazia, e cumprimentou os anfitriões.

–Está congelado, vovô! Vá, vá para perto da estufa – disse a dona da casa, velha, alegre e enrugada, encolhida junto à mesa.

O marido de Agáfia, um mujique jovenzinho, estava sentado num banco perto da mesa e ajeitava o lampião.

–Como está molhado, vovô! – disse ele. – Desse jeito, não dá. Seque aí!

Kornei tirou a roupa, as botas, pendurou as perneiras junto à estufa e subiu na estufa.

Agáfia entrou com uma jarra na isbá. Já havia conseguido recolher o rebanho e preparar os animais.

–Não veio aqui um velho forasteiro? – perguntou ela. – Mandei que viesse para cá.


–Olhe ele lá – disse o dono da casa, apontando para o alto da estufa, onde Kornei estava sentado, esfregando as pernas peludas e descarnadas.

Os anfitriões chamaram também Kornei para o chá. Ele desceu da estufa e sentou na ponta do banco. Deram a ele uma xícara e um pedaço de açúcar.

Conversaram sobre o tempo, a colheita. Não tinha como transportar o cereal do campo. Os feixes de cereal ceifado dos senhores de terras estavam dando brotos no campo. Toda vez que começavam a carregar as carroças, caía chuva de novo. Os mujiques retiraram o seu. Mas o dos senhores de terras estava apodrecendo aos montes. E nos feixes havia ratos de meter medo.

Kornei contou que, na estrada, tinha visto um campo inteiro cheio de feixes amontoados. A mocinha encheu para ele uma quinta xícara de chá amarelo e ralo e serviu.

–Não tem importância. Beba, vovô, faz bem – disse ela, em resposta à recusa dele.

–O que houve com esse seu braço defeituoso? – perguntou ele, enquanto recebia com cuidado a xícara cheia, mexendo as sobrancelhas.

–Quebraram quando ainda era criança – disse a sogra, que gostava de falar. – Foi o pai dela que quis matar a nossa Agachka.

–Mas como foi isso? – perguntou Kornei. E, olhando para o rosto da mocinha, lembrou-se de repente de Evstígniei Biéli, com seus olhos azuis, e a mão que segurava a xícara tremeu tão forte que derramou metade do chá, enquanto a colocava sobre a mesa.

–Lá em Gai, havia um homem chamado Kornei Vassíliev. Era rico. Ficou chateado com a esposa. Deu uma surra na mulher e aleijou a menina desse jeito.

Kornei ficou calado, olhando ora para a dona da casa, ora para Agachka, por baixo das sobrancelhas negras, franzidas, que se mexiam.

–Por quê? – perguntou ele, mordendo o torrão de açúcar.

–Quem sabe? Todo mundo fala qualquer coisa de nossa irmã, quem vai saber? – respondeu a velha. – Houve alguma coisa lá por causa de um empregado. O empregado era um bom rapaz da nossa aldeia. Ele também morreu na casa deles.

–Morreu? – perguntou de repente Kornei e tossiu.

–Morreu faz tempo... Nós trouxemos a menina para casar. Viviam bem. Eram os mais importantes no povoado. Enquanto o dono da casa morou lá.

–E o que houve com ele? – perguntou Kornei.

–Também deve ter morrido. Foi embora desde aquele tempo. Já faz uns quinze anos.

–Não sei mais nada, mamãe só me disse que depois disso parou de me amamentar.

–Mas você não ficou magoada com ele porque seu braço... – Kornei começou a perguntar e foi interrompido por soluços.

–Não, afinal é meu pai, não é nenhum estranho. Tome mais chá, está com frio. Quer que ponha mais?

Kornei não respondeu e, soluçando, chorou.

–O que você tem?

–Nada, não ligue, que Cristo nos salve.

E Kornei, com as mãos trêmulas, agarrou-se ao jirau de tábuas sobre a estufa e à coluna que as escorava e, com as pernas magras e grandes, subiu para deitar ali.

–Ora, vejam só – disse a velha para o filho, piscando o olho na direção do velho.
V

 

 

 

No dia seguinte, Kornei acordou mais cedo do que os outros. Desceu da estufa, amarrou as perneiras secas; com esforço, calçou as botas endurecidas e pôs a bolsa nas costas.

–Mas, vovô, não vai comer com a gente? – perguntou a velha.

–Deus nos salve. Vou embora.

–Então leve uma panqueca de ontem. Vou pôr na sua bolsa.

Kornei agradeceu e se despediu.

–Passe aqui quando voltar, ainda vamos estar vivos...

Do lado de fora, havia uma densa neblina de outono que encobria tudo. Mas Kornei conhecia bem o caminho, conhecia toda descida e subida, cada arbusto e todo salgueiro pela estrada, os bosques à direita e à esquerda, embora em dezessete anos tenham derrubado alguns bosques e outros se formaram dos velhos, e aqueles que antes eram novos agora tinham ficado velhos.

A aldeia de Gai estava igual a antes, só que na periferia tinham sido construídas casas novas, como antigamente não se fazia. As casas de madeira passaram a ser de tijolos. Sua casa de pedra estava igual, só que mais velha. Fazia muito tempo que não pintavam o telhado, no canto havia tijolos quebrados e o alpendre estava torto.

Na hora em que ele se aproximava de sua antiga casa, pela porteira rangente estavam saindo uma égua, um potro, um velho cavalo ruão castrado e um cavalo de três anos. O ruão velho era muito parecido com a égua prenhe que Kornei tinha trazido de uma feira, um ano antes de ir embora de casa.

“Deve ser aquele mesmo que ela trazia na barriga, na época. Tem a mesma anca meio caída, o mesmo peito largo e as pernas peludas”, pensou.

Um menino de olhos pretos, com alparcatas de palha novas, tocava os cavalos para o bebedouro. “Deve ser meu neto, o filho de Fiédka, tem os mesmos olhos pretos dele”, pensou Kornei.

O menino observou o velho desconhecido e correu atrás do potro de um ano, que dava pinotes na lama. Atrás do menino, veio um cachorro correndo, tão preto quanto o antigo Voltchok.1

“Será o Voltchok?”, pensou. E lembrou que o cachorro teria vinte anos.

Kornei se aproximou do alpendre e, com dificuldade, subiu os degraus em que havia sentado, naquele dia, mastigando a neve do corrimão, e abriu a porta para o vestíbulo.

–Onde já se viu entrar sem pedir licença? – gritou uma voz de mulher, na isbá. Ele reconheceu a voz. E então ela própria, uma velha seca, forte, enrugada, apareceu na porta. Kornei esperava a bela e jovem Marfa que o havia ofendido. Tinha ódio dela e queria acusá-la, mas de repente, em seu lugar, na frente de Kornei, surgiu uma velha. – Para pedir esmola, fique na janela – exclamou com voz esganiçada, cortante.

–Não vim pedir esmola – disse Kornei.

–Então o que você quer? O que é?

De repente, ela ficou parada. E em seu rosto, ele viu que ela o havia reconhecido.

–Não interessa por onde andou. Vá embora, vá embora. Vá com Deus.

Kornei apoiou as costas na parede, escorando-se no cajado, olhou fixamente para a mulher e, com surpresa, sentiu que em sua alma não existia a raiva que ele havia alimentado por tantos anos, mas sim uma espécie de fraqueza comovida, que de repente o dominou.

–Marfa! Vamos morrer.

–Vá embora, vá embora, vá com Deus – disse ela, depressa, com rancor.

–Não tem mais nada a dizer?

–Não tenho nada para dizer – respondeu ela. – Vá com Deus. Vá, vá embora. Tem muitos que nem você, pobres-diabos, vagabundos, sem casa.

E voltou para dentro da isbá em passos ligeiros e bateu a porta.

–Para que brigar? – soou a voz de um mujique e, pela porta, com um machado na cintura, entrou um mujique moreno, tal como era Kornei quarenta anos antes, só que mais baixo e mais magro, porém com os mesmos olhos pretos e brilhantes.

Era o mesmo Fiédka, a quem ele dera de presente um livro ilustrado, dezessete anos antes. Era ele que censurava a mãe por não ter pena do mendigo. Junto, também com um machado na cintura, entrou o sobrinho mudo. Agora era um homem adulto, forte, de barba rala, rosto enrugado, pescoço comprido e olhar decidido, atento e penetrante. Os dois mujiques apenas tinham ido almoçar e voltavam para o bosque.

–Espere um pouco, vovô – disse Fiódor e, para o mudo, apontou primeiro para o velho e depois para a sala e fez com a mão o gesto de cortar pão.

Fiódor foi para o lado de fora e o mudo voltou para dentro da isbá. Kornei continuava de pé, de cabeça baixa, encostado na parede e escorado no cajado. Sentia uma grande fraqueza e, com dificuldade, continha o choro. O mudo voltou da isbá com um grande pedaço de pão preto, fresco e cheiroso, fez o sinal da cruz e entregou para Kornei. Quando Kornei recebeu o pão e também fez o sinal da cruz, o mudo virou-se para a porta da isbá, passou as duas mãos pela cara e fingiu que cuspia. Com isso, exprimiu sua desaprovação do comportamento da tia. De repente, ficou parado, a boca abriu, encarou Kornei como se o reconhecesse. Kornei não conseguiu mais reprimir as lágrimas e, esfregando os olhos, o nariz e a barba grisalha na aba do casaco, deu as costas para o mudo e saiu para o alpendre. Experimentava um sentimento estranho, comovente, arrebatador, de humildade, de humilhação, diante das pessoas, diante dela, diante do filho, diante de todo mundo, e esse sentimento rasgava sua alma, com dor e alegria.

Marfa estava olhando pela janela e só respirou sossegada quando viu o velho sumir por trás do canto da casa.

Quando Marfa se convenceu de que o velho tinha ido embora, sentou-se no tear e começou a tecer. Moveu dez vezes o mecanismo, mas as mãos não se mexiam. Ela parou e começou a pensar e se lembrar do Kornei que tinha acabado de ver – sabia que era ele –, o mesmo que a havia espancado e que antes a amava, e ela achou horrível o que havia acabado de fazer. Não fez o que era correto. Mas como devia proceder com ele? Pois afinal o homem não tinha dito que era Kornei nem que tinha voltado para casa.

E pegou de novo a lançadeira do tear e continuou a tecer, até de tarde.
VI

 

 

 

Mancando e com esforço, Kornei chegou a Andréievka ao anoitecer e, de novo, pediu para pernoitar na casa dos Zinóviev. Deixaram.

–O que houve, vovô? Não seguiu sua viagem?

–Não fui. Estou fraco. Vou ter de voltar. Me deixam passar a noite aqui?

–Deite onde quiser. Vá se secar.

A noite toda, Kornei tremeu de febre. Antes de amanhecer, perdeu a consciência e, quando acordou, as pessoas da casa tinham saído para cuidar de seus afazeres e, na isbá, só havia ficado Agáfia.

Kornei estava deitado no jirau, sobre o casaco seco que a velha tinha estendido para ele. Agáfia tirou o pão da estufa.

–Boa menina – chamou ele, com voz fraca. – Chegue aqui perto.

–Já vou, vovô – respondeu ela, cortando o pão. – Quer beber alguma coisa? Um kvás?

Ele não respondeu.

Depois de cortar o último pedaço de pão, ela se aproximou de Kornei com uma tijelinha de kvás. Ele não se virou para ela, não bebeu e, do jeito que estava, deitado de rosto para cima, sem se virar, começou a falar.

–Gacha – disse, em voz baixa. – Minha hora chegou. Quero morrer. Então, em nome de Cristo, me perdoe.

–Deus vai perdoar. Você não me fez mal nenhum...

Ele ficou calado.

–Tem mais uma coisa: vá à casa de sua mãe, boa menina, e diga a ela... aquele vagabundo, por favor, diga... o vagabundo de ontem, diga a ela...

E começou a soluçar.

–Então você foi lá na nossa casa?

–Fui. Diga que o vagabundo de ontem... o vagabundo, diga... – parou de novo por causa dos soluços e, por fim, reunindo suas forças, disse: – Veio para se despedir dela – e começou a apalpar em volta do peito.

–Vou dizer, vovô, vou dizer, sim. O que está procurando? – perguntou Agachka.

O velho, sem responder, franzindo o rosto com o esforço, pegou no peito uma folha de papel, com a mão magra e peluda, e entregou para ela.

–Isto aqui, você dê a quem pedir. É minha carteira militar. Graças a Deus, todos os meus pecados estão desfeitos.

E seu rosto adquiriu uma expressão de triunfo. As sobrancelhas se levantaram, os olhos se fixaram no teto e ele ficou quieto.

–Uma velinha – disse ele, sem mover os lábios.

Agáfia entendeu. Pegou uma velinha de cera já queimada que estava junto dos ícones, acendeu e deu para ele. Kornei segurou a vela com os dedos grandes.

Agáfia se afastou para guardar a carteira militar de Kornei numa arca e, quando voltou para perto dele, a vela tinha tombado de sua mão, os olhos parados já não viam, o peito não respirava. Agáfia fez o sinal da cruz, soprou a vela, pegou uma toalha limpa e cobriu o rosto dele.

Durante toda a noite, Marfa não conseguiu dormir, pensou em Kornei o tempo todo. De manhã, vestiu uma túnica, cobriu-se com um xale e foi saber onde estava o velho da véspera. Logo soube que estava em Andréievka. Tirou um mourão da cerca, para servir de bengala, e foi para Andréievka. Quanto mais andava, mais medo sentia. “Eu e ele fazemos as pazes, trazemos para casa, acabou-se o pecado. Que possa morrer em casa, junto do filho”, pensou ela.

Quando Marfa se aproximava da casa da filha, viu uma grande multidão de gente junto à isbá. Uns estavam na entrada, outros embaixo das janelas. Todos já sabiam que o rico e famoso Kornei Vassíliev, que vinte anos antes mandava e desmandava na região, era aquele velho pobre que tinha passado a noite na casa da filha. A isbá também estava cheia de gente. As mulheres sussurravam, suspiravam e gemiam.

Quando Marfa entrou na isbá e o povo abriu caminho, ela viu ao pé dos ícones o corpo defunto lavado, arrumado, coberto, junto ao qual o alfabetizado Filip Konónitch, imitando um sacristão, lia em voz cantada as palavras dos Salmos em eslavo antigo.

Já não era possível perdoar nem pedir perdão. Mas pelo rosto velho, severo, bonito de Kornei, era impossível entender se ele perdoava ou se ainda tinha raiva.

1905

MORANGOS

Chegaram os dias quentes e sem vento que ocorrem em junho. As folhas na floresta estão cheias de seiva, densas e verdes, apenas aqui e ali caem umas folhas amareladas de bétula e de tília. As roseiras estão coalhadas de flores cheirosas, as campinas junto à mata estão cobertas de trevo doce, o centeio denso, viçoso, já meio maduro, ondula e ganha um tom escuro, nas várzeas os passarinhos cantam uns para os outros, no centeio e na aveia as codornizes oram chiam, ora estalam as asas, o rouxinol na floresta só de vez em quando canta uma firula e depois se cala, o calor seco torra. Nas estradas, a poeira ressecada se depositou numa camada de um dedo de espessura e se ergue numa nuvem espessa, que uma aragem fraca arrasta a esmo, ora para a direita, ora para a esquerda.

Camponeses terminam suas construções, carregam estrume em carroças, o gado passa fome na esturricada terra de pousio, à espera da nova brotação. Vacas e bezerros mugem com a cauda levantada e torcida e fogem dos vaqueiros no estábulo. A criançada vigia os cavalos nas trilhas e encruzilhadas. Mulheres trazem da mata sacos cheios de trevo, meninas e mocinhas, disputando umas com as outras, rastejam em meio aos arbustos, entre as árvores cortadas na floresta, para colher morangos, que vão vender de porta em porta nas casas de campo.

Os moradores das casas de campo, com sua arquitetura pomposa e pretensiosa, vagueiam preguiçosamente ao abrigo de sombrinhas, em trajes limpos, claros e caros, por trilhas cobertas de areia, ou sentam à sombra de árvores ou caramanchões, diante de mesinhas coloridas e, enlanguescidos pelo calor, tomam chá ou bebidas refrescantes.

Na frente da esplêndida datcha1 de Nikolai Semiónitch, que tem torre, varanda, sacada, galerias – tudo fresquinho, novinho, limpinho –, estão uma troica e uma carruagem de posta, com guizos, que chegou da cidade trazendo um senhor de Petersburgo, ao preço de quinze “vaivém”, como diz o cocheiro.

Esse senhor é um conhecido ativista liberal, que participa de todos os comitês, comissões e petições, astutamente preparados de modo que pareçam leais ao regime, mas no fundo imbuídos das orientações mais liberais possíveis. Ele chegou da cidade onde vive, como sempre, tremendamente ocupado e vai passar só um dia na casa de um amigo, seu camarada de infância e quase seu aliado.

Os dois divergem apenas um pouco quanto aos meios de aplicar as regras constitucionais. O de Pertersburgo é mais europeu, até com uma leve inclinação para o socialismo, e recebe um salário bastante alto em função das posições que ocupa. Já Nikolai Semiónitch é um puro russo, ortodoxo, com um toque eslavófilo, e possui muitos milhares de dessiatinas de terra.

Almoçaram no jardim uma refeição de quatro pratos, mas por causa do calor quase não comeram nada e, assim, o trabalho do cozinheiro de quarenta rublos e de seus ajudantes, que trabalharam com especial empenho para o hóspede, foi quase todo desperdiçado. Apenas tomaram umas poucas colheradas da botvínia2 feita com salmão branco fresco, do sorvete colorido e esculpido em formato bonito, enfeitado com açúcar cristalizado e bolinhos fofos. Almoçaram juntos o hóspede, um médico liberal, o professor dos filhos – um estudante social-democrata desesperado, um revolucionário, que Nikolai Semiónitch aprendeu a manter sob controle –, Marie, esposa de Nikolai Semiónitch, e os três filhos, dos quais o menor veio só para a sobremesa.

O jantar foi um pouco tenso, porque Marie, mulher extremamente nervosa, estava preocupada com a barriga desarranjada de Goga – assim se chamava o filho caçula de Nikolai (como é comum entre pessoas respeitáveis) – e também porque, logo que teve início a conversa sobre política entre o hóspede e Nikolai Semiónitch, o estudante desesperado, desejoso de mostrar que não tinha receio de exprimir suas convicções diante de pessoa alguma, interveio na conversa, e o hóspede se manteve calado, enquanto Nikolai aplacava o revolucionário.

Jantaram às sete horas. Depois do jantar, sentaram-se na varanda, refrescando-se com Narzan3 gelada e vinho branco leve, e conversaram.

A divergência entre eles se manifestava, antes de tudo, na questão de como devia ser a eleição, em um turno ou em dois turnos, e já estavam começando a discutir com fervor quando foram chamados para o chá na sala de jantar, protegida das moscas por uma tela. Durante o chá, conversaram sobre assuntos gerais com Marie, que não conseguiu se interessar por tal conversa, pois estava dominada pela preocupação com os sintomas do desarranjo de Goga. Falaram sobre pintura, e Marie declarou que na pintura decadentista existe um je ne sais quoi4 que é impossível negar. Naquele momento, ela não estava pensando nem um pouco na pintura decadentista, apenas dizia o que já dissera muitas vezes. O hóspede, por sua vez, não tinha nenhum interesse no assunto, mas entendeu que estavam falando contra o decadentismo e se exprimiu de maneira tão verossímil que ninguém poderia adivinhar que ele nada tinha a ver nem com o decadentismo nem com seu oposto. Já Nikolai Semiónitch, olhando para a esposa, sentiu que ela estava insatisfeita com alguma coisa e que talvez fosse fazer algo desagradável – além do mais, achava muito maçante ouvir o que a esposa dizia e que, assim lhe parecia, já tinha ouvido mais de cem vezes.

Do lado de fora da casa, acenderam lanternas e lampiões caros, de bronze, e em seguida puseram os filhos para dormir, depois que o enfermo Goga foi submetido a procedimentos médicos.

O hóspede, Nikolai Semiónitch e o médico saíram para a varanda. Um lacaio levou velas com quebra-luz e mais água mineral Narzan e, já por volta da meia-noite, teve início uma conversa a sério e animada sobre as medidas governamentais que deviam ser tomadas no momento atual, tão importante para a Rússia. Os dois não paravam de fumar, enquanto conversavam.

Fora, além dos portões da datcha, os cavalos da carruagem batiam as patas no chão e tilintavam os guizos, pois estavam sem comer, como também estava sem comer o velho cocheiro, que ora bocejava, ora roncava, e que já trabalhava havia vinte anos para o mesmo patrão e sempre mandava todo o dinheiro do salário para o irmão, em casa, exceto três ou cinco rublos, que guardava para beber. Quando em várias casas de campo os galos começaram a cantar, especialmente o galo de uma casa vizinha, que cantou mais alto e agudo, o cocheiro desconfiou que tinham se esquecido dele, desceu da carruagem e entrou na datcha. Viu que seu passageiro estava sentado, bebia alguma coisa e falava alto, em intervalos. Ficou preocupado e foi falar com o lacaio. Sentado, de libré, o lacaio dormia na antessala. O cocheiro acordou-o. O lacaio, que tinha sido servo doméstico e sustentava sua família numerosa – cinco filhas e dois filhos – com seu emprego (era um emprego lucrativo – quinze rublos de salário, além das gorjetas do patrão, que podiam chegar a cem rublos ao ano), se ergueu de um pulo e, depois de se arrumar e se sacudir, foi dizer aos senhores que o cocheiro estava preocupado e pedia que o deixassem ir embora.

Quando o lacaio entrou, a discussão estava no auge. O médico tinha se aproximado e tomava parte na conversa.

–Não posso admitir – disse o hóspede – que o povo russo tenha de seguir outro caminho de desenvolvimento. Antes de tudo, é preciso liberdade, liberdade política, essa liberdade, como é sabido por todos, é a principal liberdade, no respeito aos principais direitos das outras pessoas.

O hóspede sentiu que havia se confundido e que não era assim que se falava, mas no calor da discussão não conseguiu lembrar direito como se devia falar.

–Pois é – respondeu Nikolai Semiónitch, sem ouvir o hóspede e desejando apenas exprimir seu pensamento, que lhe agradava de modo especial. – Pois é, porém se pode chegar a isso por outro caminho, que não os votos da maioria, mas pela concordância geral. Observe as decisões do mir.

–Ah, lá vem você com o mir.

–Não se pode negar – disse o médico – que os povos eslavos têm seu olhar especial. Por exemplo, o direito polonês do veto. Não afirmo que isso seria melhor.

–Permitam que eu exprima toda a minha maneira de pensar – começou Nikolai Semiónitch. – O povo russo tem atributos específicos. Tais atributos...

Mas Ivan, de libré, que havia chegado com os olhos sonolentos, interrompeu:

–O cocheiro está preocupado...

–Diga a esse senhor (o hóspede de Petersburgo tratava todos os cocheiros por “senhor” e se orgulhava disso) que irei já. E pagarei pelo tempo a mais.

–Sim, senhor.

Ivan saiu e Nikolai Semiónitch pôde expor todo o seu pensamento. Porém o hóspede e o médico já tinham ouvido aquilo vinte vezes (ou pelo menos assim lhes parecia) e começaram a refutar, sobretudo o hóspede, que usou exemplos da história. Ele conhecia história esplendidamente.

O médico estava do lado do hóspede, admirava sua erudição e estava feliz por ter tido a chance de conhecê-lo.

A conversa se prolongou tanto que, do outro lado da estrada, atrás da floresta, começou a clarear, um rouxinol acordou, mas os interlocutores continuavam a fumar e conversar, a conversar e fumar.

A conversa talvez pudesse se estender ainda mais, no entanto uma criada entrou pela porta.

A criada era uma órfã que, para se sustentar, teve de trabalhar desde cedo. No início, trabalhou na casa de um comerciante, onde o administrador a seduziu e ela deu à luz. Seu bebê morreu, ela foi trabalhar na casa de um funcionário, onde o filho, estudante do liceu, não lhe dava sossego; depois foi trabalhar na casa de Nikolai Semiónitch como ajudante de criada e se considerava feliz, porque não era mais assediada pela luxúria dos senhores e porque recebia o salário em dia. Ela veio dizer que a senhora estava chamando o médico e Nikolai Semiónitch.

“Bem, na certa há alguma coisa com o Goga”, pensou Nikolai Semiónitch.

–O que é? – perguntou ele.

–O senhor Nikolai Nikoláievitch não está passando bem – disse a criada. Nikolai Nikoláievitch e o tratamento respeitoso por ela usado referiam-se a Goga, o menino com diarreia e que tinha comido demais.

–Bem, está na hora – disse o hóspede. – Vejam como está claro. Como demoramos – disse ele, sorrindo, como se elogiasse a si e seus interlocutores por terem conversado tanto, e despediu-se.

Ivan, com as pernas cansadas, teve de correr muito tempo para encontrar e trazer o chapéu e o guarda-chuva do hóspede, que o próprio hóspede havia metido nos lugares mais despropositados. Ivan esperava ganhar uma gorjeta, mas o hóspede, sempre generoso e que não se importaria em absoluto de lhe dar um rublo, entusiasmado com a conversa, esqueceu aquilo por completo e só na estrada foi lembrar que não dera nada ao lacaio. “Bem, agora não se pode fazer nada.”

O cocheiro subiu na boleia, empunhou as rédeas, sentou-se de lado e tocou os cavalos. Os guizos tilintaram. O homem de Petersburgo viajava no balanço das molas macias e pensava nas limitações e preconceitos de seu amigo.

O mesmo pensava Nikolai Semiónitch, que não foi logo ao encontro da esposa. “É horrível essa estreiteza provinciana de Petersburgo. Não conseguem escapar disso”, pensava.

Demorou para ir ao quarto da esposa, porque agora não esperava nada de bom de tal encontro. Toda a questão eram os morangos. No dia anterior, uns meninos trouxeram morangos. Nikolai Semiónitch comprou, sem pechinchar, dois tabuleiros de morangos que ainda não estavam maduros. Os filhos vieram correndo, pediram para provar e começaram a comer direto dos tabuleiros. Marie ainda não tinha saído de casa. Quando saiu e soube que tinham dado morangos para Goga, ficou tremendamente irritada, porque a barriga do menino já estava desarranjada. Começou a recriminar o marido, e o marido, a esposa. Houve uma conversa desagradável, quase uma discussão. À noite, justamente, Goga teve diarreia. Nikolai Semiónitch achou que aquilo ia passar, mas o chamado do médico significava que o problema havia piorado.

Quando foi ao encontro da esposa, ela, num roupão de seda colorido de que gostava muito, mas no qual agora nem estava pensando, se encontrava no quarto dos filhos com o médico, os dois debruçados sobre o penico, que ela iluminava com uma vela gotejante.

De pincenê, com o olhar atento, o médico observava o penico e remexia seu conteúdo fedorento com um pauzinho.

–Sim – disse ele, com ar grave.

–Tudo por causa dos malditos morangos.

–Mas o que têm os morangos? – disse Nikolai Semiónitch, de modo tímido.

–O que têm os morangos? Você encheu o menino de morangos, eu passei a noite sem dormir e o menino agora está morrendo...

–Ora, não está morrendo – disse o médico, sorrindo. – Uma pequena dose de bismuto e cuidado. Vamos dar agora.

–Ele está dormindo – disse Marie.

–Bem, é melhor não incomodar, darei amanhã.

–Obrigado.

O médico foi embora, Nikolai Semiónitch ficou sozinho e demorou muito para acalmar a esposa. Quando ele pegou no sono, já era dia claro.

Na aldeia vizinha, naquela mesma hora, os mujiques e a criançada voltavam do turno da noite, em que vigiavam os animais no pasto. Alguns vinham sozinhos, outros traziam os cavalos pelas rédeas e, atrás, corriam os potros e os filhotes de dois anos.

Taraska Rezúnov, menino de doze anos, com um casaco de pele curto, mas sem nada por baixo, de gorro, montado numa égua malhada, puxando pelo cabresto um cavalo castrado e um potro também malhado, como a mãe, ultrapassava todos os outros e galopava pelo morro na direção da aldeia. Um cachorro preto corria alegre na frente dos cavalos, virando-se para olhar para eles. Mais atrás, o potro malhado e bem nutrido dava pinotes ora para um lado, ora para outro, com as patas brancas junto aos cascos. Taraska aproximou-se da isbá, desmontou, amarrou os cavalos na porteira e entrou no vestíbulo.

–Ei, ainda estão dormindo? – começou a gritar para as irmãs e o irmão, que dormiam no vestíbulo, sobre sacos de aniagem.

A mãe, que dormia ao lado deles, estava levantando para ordenhar a vaca.

Olguchka ergueu-se de um salto e ajeitou com as mãos os cabelos compridos e desgrenhados; já Fiédka, que dormia com ela, continuou deitado, a cabeça enfiada no casaco de pele, e apenas esfregou com o calcanhar calejado o pezinho infantil e gracioso, por baixo da manta.

A criançada tinha colhido morangos desde o fim da tarde e Taraska prometera acordar as irmãs e o irmão caçula, quando voltasse do turno da noite.

Assim fez. Durante o turno da noite, sentado embaixo de um arbusto, ele tinha caído de sono; agora estava sem sono, resolveu não dormir, e sim ir com as meninas colher morangos. A mãe lhe deu um canecão de leite. Ele mesmo cortou uma fatia de pão e sentou-se à mesa, num banco alto, e começou a comer.

Quando ele saiu, só de calça e camisa, a passos rápidos, com os pés descalços traçando pegadas bem definidas na poeira da estrada, onde já havia pegadas também de pés descalços, umas maiores, outras menores, com os dedos nitidamente estampados, as meninas já estavam muito à frente, ao longe, como pontinhos vermelhos e brancos no verde escuro do bosque. (Ao anoitecer, elas prepararam tigelas e cuias e, sem comer o desjejum e sem levar pão, fizeram o sinal da cruz duas ou três vezes no canto do oratório e saíram.) Taraska alcançou-as depois do grande bosque, na hora em que elas já deixavam a estrada.

O orvalho continuava no capim, nas moitas, até nos ramos baixos das moitas e das árvores, e os pezinhos nus das meninas logo ficaram molhados e começaram a esfriar, mas depois se aqueceram, batendo ora no capim macio, ora nas irregularidades da terra seca. Os morangueiros ficavam na área onde as árvores do bosque tinham sido cortadas. As meninas foram primeiro ao lugar onde as árvores tinham sido derrubadas no ano anterior. A brotação nova tinha acabado de nascer e, entre os arbustos jovens e viçosos, viam-se áreas de capim baixo, onde amadureciam e se ocultavam morangos ainda rosados e esbranquiçados e, aqui e ali, já vermelhos.

As meninas, curvadas, colhiam morango após morango com as pequenas mãozinhas queimadas de sol e colocavam os piores na boca e os melhores nas cuias.

–Olguchka! Vem cá. Tem um monte de morango!

–Ah, é? Está mentindo! Ei! – gritaram as meninas umas para as outras, sem se afastar muito, enquanto iam para trás dos arbustos.

Taraska se afastou delas e foi além de uma ravina onde as árvores tinham sido cortadas havia mais de um ano e onde a brotação nova, sobretudo de nogueiras e bordos, já tinha uma altura maior do que a de uma pessoa. O capim crescia mais viçoso e espesso e, quando apareciam os morangueiros, as frutas estavam maiores e mais viçosas por baixo do capim.

–Gruchka!

–Oi!

–E se aparece um lobo?

–Que lobo, que nada! Quer me assustar. Mas eu não tenho medo – disse Gruchka e, distraída, pensando no lobo, colhia morango após morango, mas punha os melhores na boca e não na cuia.

–Olhe, o nosso Taraska foi para o outro lado da ravina. Ta-raaas-ka!

–Oi, estou aqui! – respondeu Taraska, do outro lado da ravina. – Venham cá.

–Vamos, sim, lá tem mais.

E as meninas desceram a borda da ravina, segurando-se nos arbustos, e subiram para o outro lado, se agarrando aos galhos, e lá, debaixo do sol, logo toparam com uma clareira de capim miúdo, totalmente abarrotada de morangos. As duas ficaram caladas e trabalharam sem parar, com as mãos e com os lábios.

De repente, algo passou em disparada e, no meio do silêncio, no capim e nos arbustos, ressoou um barulho que lhes pareceu aterrador.

Gruchka caiu de medo e entornou da cuia metade dos morangos.

–Mãezinha! – gritou ela, esganiçada, e desatou a chorar.

–É uma lebre, uma lebre! Taraska! É uma lebre, olha – gritou Olguchka, apontando para o dorso cinzento amarronzado e com orelhas, que cintilava no meio dos arbustos. – O que deu em você? – perguntou Olguchka para Gruchka, depois que a lebre sumiu.

–Pensei que fosse um lobo – respondeu Gruchka e, de repente, logo depois do susto e das lágrimas de desespero, deu uma gargalhada.

–Como é boba.

–Puxa, morri de medo! – disse Gruchka, soltando um riso tilintante como uma sineta.

Colheram morangos e foram adiante. O sol já havia subido e, com raios brilhantes, coloria a vegetação de manchas e sombras e cintilava nas gotas do orvalho, no qual as meninas se molhavam agora até a cintura.

As meninas já estavam quase no fim do bosque, continuaram a colher morangos, cada vez mais longe, na esperança de que, quanto mais longe, mais morangos houvesse, quando ouviram, de vários pontos, gritos de meninas e mulheres que tinham saído mais tarde, também para colher morangos.

Na hora do almoço, a caneca e o pote já estavam pela metade, quando as meninas se juntaram à tia Akulina, que também tinha ido pegar morangos. Atrás da tia Akulina, um menino barrigudo, só de camisa e sem gorro, muito miúdo, mancava nas perninhas tortas e gorduchas.

–Ele se agarrou em mim – disse Akulina às meninas, segurando o menino nos braços. – E eu não tinha com quem deixar.

–E a gente, que levou o maior susto com uma lebre. Que barulho ela fez... que medo...

–É mesmo? – disse Akulina e baixou o menino dos braços.

Depois de falar assim, as meninas deixaram Akulina e continuaram seus afazeres.

–Vamos sentar aqui – disse Olguchka, sentando à sombra de um espesso arbusto de avelãs. – Estou cansada. Eh, a gente não trouxe nem um pãozinho, agora bem que eu gostaria de comer.

–Também estou com vontade – disse Gruchka.

–Por que a tia Akulina está gritando desse jeito? Está ouvindo? Ei, tia Akulina!

–Olguchka-a-a-a! – respondeu Akulina.

–O que foi?

–O menino não está com vocês? – gritou Akulina, atrás das ramagens.

–Não.

Mas então os arbustos sacudiram e, por trás dos galhos, surgiu a própria tia Akulina, com a saia levantada acima dos joelhos e um saco na mão.

–Não viram o menino?

–Não.

–Mas que desgraça! Michka-a-a-a!

–Michka-a-a-a!

Ninguém respondeu.

–Ah, que infelicidade, ele se perdeu. Vai acabar entrando no bosque grande.

Olguchka se levantou depressa e foi, com Gruchka, procurar num lado, enquanto tia Akulina foi para o outro. Não pararam de chamar Michka em voz alta, mas ninguém respondia.

–Estou morta de cansaço – disse Gruchka, e parou, mas Olguchka gritava o tempo todo e andava ora para a direita, ora para a esquerda, olhando para os lados.

A voz desesperada de Akulina se ouvia ao longe, no bosque grande. Olguchka já queria parar de procurar e voltar para casa, quando, num arbusto mais espesso, perto de um cepo de tília que começava a brotar de novo, ela ouviu o trinado insistente, nervoso e irritado de um passarinho, na certa com filhotes, aborrecido com alguma coisa. O passarinho, pelo visto, estava com medo e algo o irritava. Olguchka olhou por trás do arbusto, envolto por um capim espesso e alto, com flores brancas, e bem embaixo dele viu um montinho azulado, que não parecia nenhum tipo de capim do bosque. Parou e olhou bem. Era Michka. Era com ele que o passarinho estava irritado e assustado.

Deitado em cima da barriga gorducha, as mãozinhas cruzadas embaixo da cabeça, as perninhas tortas e rechonchudas esticadas, Michka dormia docemente.

Olguchka gritou chamando a mãe, acordou o menino e lhe deu um morango.

E depois, por muito tempo, a todos que encontrava – a mãe, o pai, os vizinhos –, Olguchka contava como tinha procurado e encontrado o caçula de Akulina.

O sol já estava alto, por trás do bosque, e abrasava a terra e tudo que nela havia.

–Olguchka! Vamos tomar banho! – As meninas chamaram Olga para ir com elas. E todas, numa grande roda, foram cantando para o rio. Dando gritos esganiçados, se molhando e batendo os pés na água, as meninas nem notaram que uma nuvem baixa e preta se aproximava do lado oeste, o sol ora brilhava, ora ficava encoberto, soprava um aroma de flores e de folhas de bétula e começavam a ressoar trovões espaçados. As meninas nem tiveram tempo de se vestir quando a chuva desabou e as deixou ensopadas até os ossos.

Com as blusas escurecidas e coladas ao corpo, as meninas voltaram correndo para casa, comeram e levaram o jantar para o pai, que estava no campo, plantando batata.

Quando voltaram e jantaram, as blusinhas já estavam secas. Depois de selecionar os morangos e colocar em tigelas, levaram para a datcha de Nikolai Semiónitch, onde pagavam bem; mas, dessa vez, não quiseram.

Marie, sentada embaixo de uma sombrinha, numa grande cadeira estofada, entorpecida pelo calor, ao ver as meninas com morangos, sacudiu o leque na direção delas.

–Não precisa, não precisa.

Mas Vália, o filho mais velho, de doze anos, que relaxava dos esforços excessivos do liceu clássico e que estava jogando críquete com vizinhos, ao ver os morangos, se aproximou de Olguchka e perguntou:

–Quanto é?

Ela disse:

–Trinta copeques.

–Está caro – respondeu ele. E disse “está caro” porque era assim que os adultos sempre falavam. – Espere, dê a volta pelo outro lado – disse ele e correu para a babá.

Enquanto isso, Olguchka e Gruchka admiravam o globo espelhado que enfeitava o jardim e no qual se viam pequeninas casas, bosques, jardins. Aquele globo e muitas outras coisas não eram tão surpreendentes para elas, porque já esperavam as coisas mais espantosas do mundo dos senhores, para elas misterioso e incompreensível.

Vália correu para a babá e lhe pediu trinta copeques. A babá disse que bastavam vinte, pegou o dinheiro numa bolsinha e entregou a ele. O menino, dando a volta para evitar o pai, que tinha acabado de se levantar, depois da noite penosa da véspera, e fumava e lia os jornais, entregou as moedinhas às meninas e, depois de entornar os morangos num prato, se atirou a eles.

De volta para casa, Olguchka desatou com os dentes o nó do lenço em que tinha guardado as moedinhas e entregou-as para a mãe. A mãe escondeu o dinheiro e levou a roupa para lavar no riacho.

Já Taraska, que tinha plantado batatas com o pai desde a hora do almoço, estava dormindo à sombra de um carvalho espesso e escuro, onde o pai também estava sentado, vigiando o cavalo meio tonto, livre do arado, que pastava na divisa da terra do vizinho e a qualquer momento podia entrar na plantação de aveia ou no pasto do outro.

Na família de Nikolai Semiónitch, tudo estava como de costume. Tudo corria normalmente. O café da manhã de três pratos estava pronto, as moscas já se serviam dele fazia tempo, mas ninguém aparecia, porque não tinham vontade de comer.

Nikolai Semiónitch estava satisfeito com a justiça de suas opiniões, confirmada pelo que tinha acabado de ler nos jornais. Marie estava calma, porque Goga tinha evacuado normalmente. O médico estava satisfeito, porque os procedimentos aplicados por ele deram resultado. Vália estava satisfeito, porque havia comido um prato inteiro de morangos.

1905

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DO STÁRETS FIÓDOR KUZMITCH

[Morto no dia 20 de janeiro de 1864 na Sibéria, perto de Tomsk, nas terras do comerciante Khrómov.]

Ainda em vida do stárets Fiódor Kuzmitch,1 que chegou à Sibéria em 1836 e viveu em vários lugares durante vinte e sete anos, corriam a seu respeito boatos estranhos: de que ele escondia o nome e o título, de que ele não era outra pessoa senão o imperador Alexandre I; depois de sua morte, os boatos se espalharam mais ainda e ganharam força. E não só pessoas do povo como também da alta sociedade, e até da família imperial, durante o reinado de Alexandre III, acreditavam que ele, na verdade, era Alexandre I. O sábio Childer, historiador do reinado de Alexandre I, também acreditava nisso.

A causa dos boatos era que, em primeiro lugar, Alexandre morrera de forma totalmente inesperada, não havia sofrido nenhuma doença grave antes de morrer; em segundo lugar, havia morrido longe de todos, num lugar bastante obscuro, Taganrog; em terceiro lugar, quando foi colocado no caixão, os que o viram disseram que ele havia mudado tanto que era impossível reconhecê-lo e por isso o cobriram e não o mostraram a ninguém; em quarto lugar, Alexandre, repetidamente, disse e escreveu (com frequência maior ainda no final da vida) que só desejava uma coisa: livrar-se de sua condição e fugir do mundo; em quinto lugar – uma circunstância pouco conhecida –, na descrição protocolar do corpo de Alexandre I, estava dito que as costas e as nádegas eram vermelhas e roxas, o que nunca poderia acontecer no corpo muito bem tratado do imperador.

No que diz respeito a acharem que justamente Kuzmitch era um disfarce de Alexandre, o motivo era que, em primeiro lugar, na estatura, na constituição física e nas feições, o stárets era tão parecido com o imperador que as pessoas (os camaristas da corte chamavam Alexandre de Kuzmitch) que viam Alexandre e seus retratos encontravam entre os dois uma semelhança impressionante, além de terem a mesma idade e a mesma curvatura característica; em segundo lugar, Kuzmitch, que se via como uma espécie de andarilho que não se lembrava da origem familiar, sabia línguas estrangeiras e, por todas as suas maneiras, pela afabilidade imponente, revelava um homem habituado à mais alta esfera da sociedade; em terceiro lugar, o stárets jamais revelou a ninguém seu nome verdadeiro e sua posição social, todavia, em certas expressões que, sem querer, deixava escapar transparecia a imagem de um homem que, no passado, estivera acima dos demais; em quarto lugar, antes da morte, ele destruiu alguns papéis, dos quais restou uma folha com estranhos sinais cifrados e as iniciais A e P.; em quinto lugar, apesar de toda a devoção, o stárets nunca jejuava e confessava. Quando um bispo o visitou e quis convencê-lo a cumprir o dever cristão, o stárets disse:

–Se, na confissão, eu contasse a verdade sobre mim, o céu ficaria surpreso; se eu contasse quem sou, a terra ficaria surpresa.

Todas essas suposições e dúvidas deixaram de ser dúvidas e ganharam veracidade após a descoberta das memórias de Kuzmitch. Essas memórias são as seguintes. Começam assim:
I

 

 

 

Deus proteja o inestimável amigo Ivan Grigórievitch2 por este refúgio encantador. Não mereço suas atenções e a misericórdia divina. Aqui, estou tranquilo. Vem menos gente e estou sozinho com minhas lembranças criminosas e com Deus. Tentarei tirar proveito da solidão a fim de contar minha vida em detalhes. Ela pode ser instrutiva às pessoas.

Nasci e passei quarenta anos de minha vida entre as mais horríveis tentações e não só não me opunha a elas como me deleitava com elas, me deixava seduzir e seduzia os outros, pecava e obrigava a pecar. Mas Deus se voltou para mim. E toda a sordidez de minha vida, que eu tentava justificar e mesmo lançar sobre os outros, por fim se revelou para mim em todo o seu horror e Deus me ajudou a me libertar não do mal – ainda estou repleto de mal, embora o combata –, mas da cumplicidade com ele. Que tormentos espirituais padeci e o que se passou em minha alma, quando entendi toda a minha depravação e a necessidade de redenção (não a fé na redenção, mas a verdadeira redenção dos pecados por meio dos próprios sofrimentos), isso eu contarei em seu devido lugar. Agora vou descrever apenas meus atos propriamente ditos, como consegui escapar de minha situação, deixando para trás, em lugar do meu cadáver, o cadáver de um soldado que eu havia torturado até a morte, e depois passarei a descrever minha vida, desde o início.

Minha fuga começou assim. Em Taganrog, eu vivia na mesma loucura em que vivi todos aqueles últimos vinte e quatro anos. Eu, grande criminoso, assassino do pai, assassino de centenas de milhares de pessoas em guerras de que eu fui a causa, devasso abominável, malfeitor, acreditava no que diziam de mim, me considerava o salvador da Europa, o benfeitor da humanidade, de uma perfeição excepcional, un hereux hasard,3 como eu mesmo dizia para Madame de Staël. Eu me considerava assim, mas Deus não me abandonou de todo e a voz da consciência, que não dorme, não parava de me roer. Para mim, tudo era ruim. Todos eram culpados. Só eu era bom e ninguém entendia isso. Voltei-me para Deus, rezei ora ao Deus ortodoxo com Fóti, ora ao católico, ora ao protestante com Parrot, ora ao dos iluminados com Madame Krudener,4 mas eu só me voltava para Deus diante das pessoas para que elas gostassem de mim. Eu desprezava todos, mas a opinião dessas mesmas pessoas que eu desprezava era aquilo que mais me importava no mundo e eu vivia e agia só por conta de sua opinião. Ficar sozinho era um horror. Horror ainda maior era ficar com ela, minha esposa. Tacanha, falsa, caprichosa, malévola, tuberculosa e toda fingimento, ela, mais do que qualquer outra coisa, intoxicava minha vida. Nous étions censés5 viver nossa nova lune de miel,6 mas foi um inferno sob uma capa de decência, uma farsa e um horror.

Certa vez, me senti mais sórdido do que o comum: na véspera, tinha recebido uma carta de Araktchéiev sobre o assassinato de sua amante. Descrevia-me seu desgosto desesperado. E que grande surpresa: sua bajulação constante, mais que bajulação, sua dedicação verdadeiramente canina, que começara ainda no tempo de meu pai, quando nós, escondidos da vovó, juramos lealdade a ele, essa dedicação canina fez que eu amasse Araktchéiev, se é que nos últimos tempos amei alguém. Ainda que seja indecente empregar a palavra “amei” com relação a esse monstro. Também me unia a ele o fato de ele não ter participado do assassinato de meu pai, como muitos outros, que, justamente pelo fato de serem cúmplices de meu crime, eram detestáveis para mim. Ele não só não participou como era dedicado a meu pai e dedicado a mim. De resto, tratarei disso adiante.

Dormi mal. É estranho dizer, mas o assassinato da bela e malévola Nastássia (era extraordinariamente bela e sensual) despertou em mim a luxúria. Fiquei a noite toda sem dormir. O fato de, no quarto vizinho, estar deitada minha esposa tuberculosa e infame, inútil para mim, me irritava e atormentava mais ainda. Também me atormentavam as recordações de “Marie” (Naríchkina), que me largara em favor de seu insignificante diplomata. Está claro que meu destino e de meu pai é ter ciúme dos Gagárin. Mas de novo me deixo levar pelas recordações. Fiquei a noite toda sem dormir. O dia começou a nascer. Levantei a cortina da janela, vesti o roupão branco e chamei o camareiro. Todos continuavam dormindo. Vesti o paletó, o capote civil e o quepe, passei pelas sentinelas e saí para a rua.

O sol tinha acabado de subir na linha do mar, era um fresco dia de outono. Ao ar livre, logo me senti melhor. Os pensamentos sombrios desapareceram e andei na direção do mar, que aqui e ali brincava com a luz do sol. Antes de chegar à casa verde na esquina, ouvi o som de tambor e de flauta que vinha da praça. Prestei atenção e entendi que, na praça, ia haver uma execução: soldados passariam por um corredor formado por outros soldados que iriam golpeá-los com vergastas. Eu, que tantas vezes já havia autorizado esse castigo, nunca tinha presenciado o espetáculo. Por estranho que pareça (claro, deve ter sido influência do diabo), os pensamentos sobre a sensual Nastássia assassinada e sobre os corpos dos soldados rasgados por golpes de vergastas se fundiram num único sentimento exasperante. Lembrei-me dos soldados do regimento Semiónov e dos colonos militares, dos quais centenas foram golpeados até a morte, e de repente me veio a estranha ideia de assistir àquele espetáculo. Como estava disfarçado de civil, podia fazer isso.

Quanto mais perto chegava, mais claramente ouvia o rufo do tambor e a flauta. Com meus olhos míopes, não conseguia enxergar com clareza sem óculos, mas vi as fileiras de soldados e um vulto alto, de costas brancas, que passava entre elas. Quando parei no meio da multidão que estava atrás das fileiras e assistia ao espetáculo, pus os óculos e consegui distinguir tudo o que se passava. Um homem alto, com os braços nus amarrados a uma baioneta e as costas nuas já vermelhas de sangue em vários pontos, andava pela rua entre as fileiras de soldados com bastões. Aquele homem era eu, era meu duplo. A mesma altura, as mesmas costas curvadas, a mesma cabeça calva, as mesmas costeletas, sem bigode, as mesmas maçãs do rosto, a mesma boca e os mesmos olhos azuis, mas a boca não sorria, ela se abria e se retorcia com gritos a cada golpe, e os olhos não eram complacentes, afetuosos, mas terrivelmente protuberantes e ora fechavam, ora abriam.

Quando olhei para o rosto do homem, logo o reconheci. Era Struménski, um militar, sargento do flanco esquerdo da terceira companhia do regimento Semiónov, conhecido em toda a guarda por sua semelhança comigo. De brincadeira, o chamavam de Alexandre II.

Eu sabia que ele tinha sido transferido para uma guarnição junto com os revoltosos do Regimento Semiónov e entendi que, provavelmente, ali na guarnição, ele tinha feito algo, na certa fugira, fora capturado e agora seria castigado. E foi isso mesmo, como eu soube depois.

Fiquei como que enfeitiçado, vendo como aquele infeliz ia caminhando e como o espancavam, e sentia que algo acontecia dentro de mim. Mas de repente notei que havia pessoas comigo, espectadores, que olhavam para mim – uns se afastaram, outros se aproximaram. Era evidente que me reconheceram. Percebendo isso, dei meia-volta e retornei depressa para casa. O tambor continuava a bater, a flauta continuava a tocar; portanto o castigo continuava. O principal sentimento em mim deveria ser de simpatia pelo que faziam com meu duplo. Se não simpatia, ao menos o reconhecimento de que faziam o que era necessário – mas eu sentia que não era capaz. Ao mesmo tempo, sentia que, se eu não reconhecia que aquilo era o correto, que era bom, então eu devia reconhecer que toda a minha vida, toda a minha atividade, tudo era ruim e eu precisava fazer aquilo que havia muito tempo desejava: abandonar tudo, fugir, desaparecer.

Tal sentimento me dominou, lutei contra ele, ora reconhecia que o que faziam era o correto, que devia ser assim, que aquilo era uma triste necessidade, ora eu reconhecia que precisava ficar no lugar daquele infeliz. No entanto, por estranho que pareça, eu não sentia pena dele e, em vez de suspender a execução do castigo, apenas tive medo de que me reconhecessem e fugi de volta para casa.

Logo cessou o rufo do tambor e, depois que voltei para casa, tive a impressão de me libertar do sentimento que me havia dominado, tomei meu chá e recebi o relatório de Volkónski.7 Depois, o almoço de costume, as habituais, rotineiras, penosas e falsas relações com a esposa, depois Dibitch8 e um relatório que confirmava as informações sobre uma sociedade secreta. Quando chegar a hora de escrever toda a história de minha vida, se Deus permitir, vou descrever tudo em pormenores. Agora, direi apenas que ouvi tudo exibindo uma imagem exterior de calma. Mas isso se prolongou só até o fim do jantar. Depois do jantar, fui para o escritório, deitei no sofá e adormeci imediatamente.

Mal tinha dormido cinco minutos quando um solavanco em todo o corpo me acordou e ouvi o rufo do tambor, a flauta, os sons das pancadas, os gritos de Struménski e vi a ele ou a mim – eu mesmo não sabia se era ele ou eu –, vi seu rosto que sofria, as contrações sem esperança, o rosto soturno dos soldados e oficiais. Essa confusão mental durou pouco: levantei-me depressa, abotoei a sobrecasaca, peguei o chapéu e a espada e saí, dizendo que ia passear.

Sabia onde ficava o hospital militar e fui direto para lá. Como sempre, todos estavam afobados. O médico-chefe veio logo, ofegante, bem como o comandante do Estado-Maior. Eu disse que queria percorrer as enfermarias. Na segunda enfermaria, vi a cabeça calva de Struménski. Estava deitado de bruços, a cabeça apoiada na mão, e gemia de dar pena.

–Foi castigado por fugir – me explicaram.

Exclamei “Ah!”, fiz meu gesto habitual de que ouço e concordo, e segui adiante.

No dia seguinte, mandei saber como estava Struménski. Disseram-me que tinham dado a extrema-unção e que estava morrendo.

Era o dia do santo xará de meu irmão Mikhail. Houve uma parada e uma revista de tropas. Eu disse que não estava me sentindo bem, depois da viagem à Crimeia, e não fui ao jantar. Dibitch veio de novo falar comigo e me informou de novo sobre a conspiração do Segundo Exército, lembrando-me de que o conde Vitt já me falara a respeito, antes da viagem à Crimeia, bem como do relatório do sargento Chervud.

Só então, ao escutar o relatório de Dibitch, que atribuía uma relevância tão enorme àqueles planos de conspiração, senti de repente todo o significado e todo o poder da reviravolta que acontecera dentro de mim. Eles fazem uma conspiração para mudar a forma de governo, estabelecer uma Constituição – o mesmo que eu quis fazer, vinte anos atrás. Fiz e desfiz Constituições na Europa e para quê e para quem isso trouxe algum benefício? Acima de tudo, quem era eu para fazer isso? O principal é que toda a vida exterior, toda a organização de assuntos exteriores, toda a participação neles – e eu já havia participado tanto deles, já tinha feito tantas reformas nos povos da Europa – não tinha importância, era desnecessária e não me dizia respeito. De repente, entendi que tudo aquilo não era da minha conta. Que da minha conta era a minha alma. E todos os meus anteriores desejos de renúncia ao trono, na época apenas uma afetação, o mero desejo de causar espanto, impressionar as pessoas, mostrar a elas minha grandeza de alma, agora se transformaram, e se transformaram com força nova e sinceridade plena, e já não era para as pessoas, mas apenas para mim, para a alma. Como se todo o círculo radiante da vida percorrido por mim, no sentido mundano, tivesse sido percorrido apenas para eu regressar ao desejo juvenil de fugir de tudo, provocado pelo arrependimento, no entanto era um regresso sem vaidade, sem a ideia da glória mundana, era para mim, para Deus. Naquele tempo, eram desejos obscuros; agora, era a impossibilidade de continuar na mesma vida.

Mas como? Não para provocar a admiração das pessoas, para me elogiarem; ao contrário, era preciso fugir disso, para ninguém saber e para sofrer. E essa ideia me alegrou e me deslumbrou a tal ponto que comecei a pensar nos meios de colocá-la em prática e empreguei toda a força de minha inteligência, de minha astúcia, que me é peculiar, a fim de concretizar tal ideia.

E, para minha surpresa, a realização de meu intento se revelou imensamente mais fácil do que eu esperava. Minha intenção era esta: fingir que eu estava doente e moribundo, convencer e subornar o médico, pôr em meu lugar o moribundo Struménski, enquanto eu ia embora, fugia, escondendo meu nome de todos.

E, como se fosse de propósito, tudo contribuiu para o sucesso de meu plano. No dia 9, como se tudo estivesse combinado, adoeci e tive febre. Fiquei doente mais ou menos por uma semana, tempo em que minha intenção se tornou ainda mais forte e meus planos, mais precisos. No dia 16, levantei da cama e me senti recuperado.

Nesse dia, como de costume, fui fazer a barba e, distraído em meus pensamentos, me cortei com força em volta do queixo. Saiu muito sangue, me senti tonto e caí. Vieram correndo, me levantaram. Logo me dei conta de que aquilo podia me ser útil para a realização de meu plano e, embora me sentisse bem, fingi que estava muito fraco, deitei na cama e mandei chamar o ajudante do dr. Villiers. O dr. Villiers não aceitaria a minha fraude, mas eu tinha esperança de subornar aquele jovem. Revelei a ele minha intenção, o plano para alcançá-la, e propus lhe dar oitenta mil rublos, se fizesse tudo que eu exigisse. Meu plano era o seguinte: Struménski, como eu sabia, naquela manhã estava à beira da morte e devia chegar ao fim à noite. Deitei na cama, fingi estar irritado com todos e não admiti falar com ninguém, exceto o assistente do médico. Naquela noite, o médico devia trazer o corpo de Struménski dentro de uma banheira, colocá-lo no meu lugar e comunicar minha morte inesperada. O surpreendente é que tudo se passou exatamente como planejamos. E no dia 17 de novembro eu estava livre.

O corpo de Struménski foi enterrado num caixão fechado, com honras solenes. Meu irmão Nikolai ocupou o trono, depois de mandar os conspiradores para os trabalhos forçados.9 Mais tarde, vi alguns deles na Sibéria e meus sofrimentos foram insignificantes, em comparação com meus crimes, bem como são imerecidas minhas imensas alegrias, sobre as quais falarei em seu devido lugar.

Já agora, à beira da sepultura, velho de setenta e dois anos, tendo compreendido a futilidade da vida anterior e o significado da vida atual, em que vivi e vivo como um andarilho vagabundo, vou me esforçar para contar a história de minha vida horrorosa.

MINHA VIDA

12 de dezembro de 1849

Taiga da Sibéria, perto de Krasnorétchinsk

Hoje é o dia de meu aniversário, tenho setenta e dois anos. Há setenta e dois anos, nasci em Petersburgo, no palácio de Inverno, nos aposentos de minha mãe, a imperatriz – na época, a grande princesa Mária Fiódorovna.

Esta noite, dormi muito bem. Depois do mal-estar de ontem, fiquei um pouco melhor. O importante é que o estado de sonolência espiritual cessou e renasceu a possibilidade de dirigir toda a alma para Deus. Ontem à noite, rezei no escuro. Tive clara consciência de minha situação no mundo: eu – toda a minha vida – sou algo necessário a quem me enviou. E posso fazer o que é necessário a Ele ou não. Ao fazer o que é necessário a Ele, promovo o bem para mim e para o mundo todo. Não fazendo isso, privo-me do meu bem – não de todo o bem, mas daquele que poderia ser meu –, mas não privo o mundo do bem que lhe é destinado. Aquilo que eu deveria fazer outros farão. E Sua vontade será cumprida. Nisso reside a liberdade da minha vontade. Mas se Ele sabe o que vai acontecer, se tudo é determinado por Ele, não existe liberdade? Não sei. Aqui se encontra o limite do pensamento e o começo da prece, da prece simples, da criança e do velho: “Pai, não será a minha vontade, mas a Sua. Ajude-me. Venha e more em nós”. Simples: “Senhor, perdoe e tenha piedade; sim, Senhor, perdoe e tenha piedade, perdoe e tenha piedade. Não consigo dizer com palavras, mas Você conhece o coração, Você mesmo está dentro dele”.

E adormeci bem. Como sempre, por fraqueza da velhice, acordei umas cinco vezes e sonhei que estava tomando banho de mar, nadava e me admirava com a maneira como a água me mantinha suspenso no alto – de tal modo que eu não afundava; e a água era esverdeada, bonita; mas algumas pessoas me atrapalhavam, havia mulheres na praia, eu estava nu, era impossível sair. O significado do sonho é que a força de meu corpo ainda me atrapalha, mas a saída está próxima.

Levantei antes do nascer do sol, tentei riscar uma fagulha na pederneira e demorei muito para acender o pavio. Vesti meu roupão de couro de alce e saí. Por trás dos pinheiros e lariços cobertos de neve, a alvorada raiava num tom laranja-avermelhado. Levei para dentro a lenha cortada no dia anterior e depois cortei mais lenha. O dia clareou. Comi biscoitos molhados. O fogo da estufa pegou, fechei a chaminé e me sentei para escrever.

Nasci há exatamente setenta e dois anos, no dia 12 de dezembro de 1777, em Petersburgo, no palácio de Inverno. O nome que me foi dado, conforme o desejo de minha avó, foi Aleksandr – um presságio, como ela mesma me disse, de que eu seria tão grande quanto Alexandre da Macedônia e tão santo quanto Alexandre Niévski. Fui batizado uma semana depois, na grande igreja do palácio de Inverno. A duquesa de Courlande me levou sobre um travesseiro de seda bordada em ouro, os mais altos dignitários seguravam o véu, a madrinha era a imperatriz, os padrinhos eram o imperador austríaco e o rei da Prússia. O quarto onde me puseram tinha sido construído conforme os planos de minha avó. Não me lembro de nada disso, mas sei pelo que me contaram depois.

Naquele vasto quarto, com três janelas altas, um baldaquim de veludo com cortinas de seda que iam até o chão ficava suspenso no teto alto, bem no centro do quarto, entre quatro colunas. Sob o baldaquim, puseram uma caminha de ferro com colchão de couro, um travesseirinho e um leve cobertor inglês. Em volta do baldaquim, havia uma balaustrada com dois archin de altura, de modo que os visitantes não pudessem se aproximar. No quarto, não havia nenhum móvel, apenas a cama da ama de leite, atrás do baldaquim. Todos os detalhes de meus cuidados corporais eram decididos por minha avó. Era proibido me embalar, enfaixavam-me de um modo especial, os pés ficavam sem meias, davam-me banho primeiro com água quente e depois com água fria, as roupas eram especiais, não tinham costuras nem cadarços e eram vestidas de uma vez só. Assim que comecei a engatinhar, punham-me sobre um tapete e me deixavam por minha conta. Dizem que, nos primeiros dias, minha avó muitas vezes sentava no tapete e brincava comigo. Não me lembro de nada disso, também não me lembro da ama de leite.

Minha ama de leite era a esposa do jovem jardineiro, Avdótia Petrova, de Tsárkoie Seló. Não me lembro dela. Eu a vi pela primeira vez quando eu tinha dezoito anos, em Tsárskoie Seló. Ela se aproximou de mim e disse seu nome. Foi uma das melhores épocas de minha vida, a de minha primeira amizade com Czartoryski10 e da sincera repulsa por tudo que se praticava nas duas Cortes, a de meu pai infeliz e a de minha avó, que eu detestava. Eu já era um homem, na época, e não era um homem mau, tinhas boas aspirações. Eu caminhava com Adam pelo parque, quando de uma alameda lateral veio uma mulher bem-vestida, com um rosto extraordinariamente bondoso, muito branco, agradável, sorridente e emocionado. Aproximou-se de mim depressa, se pôs de joelhos, agarrou minha mão e começou a beijá-la.

–Paizinho, Vossa Alteza. Afinal Deus permitiu.

–Quem é a senhora?

–Sua ama de leite, Avdótia, Duniacha, amamentei por onze meses. Deus permitiu ver o senhor.

Levantei-a com esforço, perguntei onde morava e prometi ir visitá-la. Sua meiga e limpa casinha de intérieur; sua filhinha, de uma beleza perfeitamente russa, minha irmã de leite, noiva de um instrutor de equitação; o pai dela, jardineiro, sorridente como a esposa, e um bando de crianças, também sorridentes – todos pareceram me iluminar na escuridão. “Isto é a vida autêntica, a felicidade autêntica”, pensei. “Tudo é simples, claro, nenhuma intriga, inveja, desavença.”

Então foi aquela meiga Duniacha que me amamentou. Minha babá mais importante foi a alemã Sófia Ivánovna Benkendorf; minha preceptora foi uma inglesa, Gessler. Sófia Ivánovna Benkendorf, a alemã, era gorda, branca, de nariz reto, de aspecto imponente quando impunha ordem no quarto das crianças, mas surpreendentemente humilde, submissa, servil com minha avó, cuja cabeça batia em seu ombro. Comigo, mostrava-se especialmente obsequiosa e, ao mesmo tempo, severa. Ora era uma tsarina, com suas saias largas e seu rosto imponente, de nariz reto, ora de repente se tornava uma menina dissimulada.

Praskóvia Ivánovna (Gessler), a inglesa, tinha rosto comprido, cabelo castanho e estava sempre séria. Em compensação, quando sorria, se iluminava toda e era impossível evitar sorrir também. Eu gostava de sua pontualidade, moderação, limpeza e cordialidade firme. Parecia-me que ela sabia algo que ninguém mais sabia, nem mamãe, nem papai, nem mesmo vovó.

De minha mãe, lembro-me em princípio como uma visão estranha, triste, sobrenatural e fascinante. Bela, elegante, radiosa em seus diamantes, suas roupas de seda, seus braços brancos, fartos, nus e com rendas, ela entrava em meu quarto e, com uma expressão no rosto estranha, triste, alheia a mim e que não me dizia respeito, me fazia carinhos, me tomava em seus braços fortes e lindos, me encostava em seu rosto ainda mais lindo, inclinava os cabelos densos e perfumados e me beijava e chorava e, certa vez, até me soltou das mãos e caiu, desfalecida.

É estranho: talvez fosse algo incutido por minha avó, ou a maneira como minha mãe me tratava, ou meu faro de criança que percebia aquela intriga da Corte da qual eu era o centro, o fato é que eu não tinha o simples sentimento ou mesmo nenhum sentimento de amor por minha mãe. Sentia-se algo artificial em sua relação comigo. Ela parecia expressar alguma coisa para além de mim, esquecendo-se de mim, e eu sentia isso. E era isso mesmo. Vovó me afastou dos pais, me tomou sob seu controle total a fim de transferir o trono para mim em detrimento do filho, que ela odiava, meu pai infeliz. Claro, durante muito tempo eu não soube nada disso, mas desde os primeiros dias de consciência, sem entender os motivos, me dei conta de que eu era objeto de uma espécie de hostilidade, de uma rivalidade, que eu era o joguete de certas intrigas e sentia a frieza e a indiferença que havia por mim, por meu espírito infantil, que não precisava de coroa nenhuma, apenas de um amor simples. E isso não existia. Havia mamãe, sempre triste em minha presença. Certa vez, depois de falar algo em alemão com Sófia Ivánovna, ela desatou a chorar e quase fugiu correndo do quarto, ao ouvir o som dos passos da vovó. Havia papai, que às vezes entrava em nosso quarto e a cuja presença, depois, me levavam, junto com meu irmão. Mas esse pai, meu pai infeliz, ao me ver, de modo ainda mais forte e mais decidido do que minha mãe, exprimia sua insatisfação e até sua raiva contida.

Lembro que certa vez nos levaram, a mim e meu irmão Konstantin, a seus aposentos. Foi antes de sua viagem ao exterior, em 1781. De repente, ele me afastou com a mão e, com olhos terríveis, levantou-se da cadeira e, ofegante, disse algo sobre mim e minha avó. Não entendi, mas lembro as palavras:

–Après 62, tout est possible...11

Fiquei assustado, comecei a chorar. Mamãe pegou-me nos braços e começou a me beijar. Depois me entregou a meu pai. Ele me abençoou às pressas e, batendo com saltos altos no chão, saiu quase correndo da sala. Muito tempo depois entendi o significado daquela comoção. Ele e mamãe iam viajar para o exterior, sob os nomes de Comte e Comtesse du Nord. Foi vovó quem quis assim. E ele temia que, durante sua ausência, fosse declarado privado do direito ao trono e eu fosse nomeado herdeiro...

Meu Deus, meu Deus! E ele tinha apreço por aquilo que nos destruiu, a ele e a mim, física e espiritualmente, e eu, pobre de mim, também dava valor a isso.

Alguém bate na porta e diz a prece: “Em nome do Pai e do Filho”. Digo “Amém”. Vou guardar estas páginas e abrir a porta. Se Deus permitir, continuarei amanhã.

13 de dezembro

Dormi mal e tive sonhos ruins: uma mulher desagradável, fraca, se aperta a mim e eu não tenho medo dela, nem do pecado, mas tenho medo de que minha esposa a veja. E de que haja de novo as acusações. Setenta e dois anos e ainda não estou livre de tudo... Em vigília, é possível me iludir, mas o sonho dá a verdadeira medida do grau que alcançamos. Sonhei também – e de novo isso confirma o baixo nível de moralidade em que me encontro – que alguém me trouxe aqui uns bombons envoltos em musgos, mas bombons extraordinários, e nós retiramos os bombons do musgo e distribuímos. Mas, depois da distribuição, ainda sobraram bombons e escolhi alguns para mim, mas então um menino semelhante ao filho do sultão turco, de olhos pretos, desagradável, estende a mão para os bombons, apanha-os na mão, eu o afasto com um empurrão e, no mesmo instante, me dou conta de que desejar bombons é muito mais adequado a um menino do que a mim, mesmo assim não lhe dou os bombons e sinto algo ruim por ele, e no mesmo instante sei que isso é ruim.

Por estranho que pareça, hoje, durante a vigília, aconteceu comigo a mesma coisa. Mária Martiemiánovna veio me ver. Ontem, ela mandou alguém perguntar se poderia vir hoje. Respondi que sim. Essas visitas são penosas para mim, mas sei que ela ficaria ofendida se eu negasse. Então ela veio hoje. Ouvi de longe os patins do trenó chiando sobre a neve. E, ao entrar em seu casaco de pele e com seus xales, trouxe uma bolsinha com guloseimas, junto com um frio tão forte que vesti meu capote. Ela trouxe panquequinhas, azeite e maçãs. Veio perguntar a respeito da filha. Um viúvo rico quer casar com ela. Deve concordar? É muito penosa para mim a confiança que eles têm em minha sagacidade. Tudo o que digo contra isso eles atribuem à minha modéstia. Disse o que sempre digo, que a castidade é melhor do que o casamento, mas, como disse Paulo, é melhor casar do que arder. Com ela, veio seu cunhado Nikanor Ivánovitch, o mesmo que me convidou para visitar sua casa e depois não parou mais de me assediar com suas visitas.

Nikanor Ivánovitch é uma grande tentação para mim. Não consigo superar a antipatia, a repugnância que sinto por ele. “Ah, Senhor, faça que eu veja meus pecados e não julgue meus irmãos.” Mas eu vejo todos os seus pecados, adivinho e, com a perspicácia da maldade, vejo toda a sua fraqueza e não consigo vencer a antipatia por ele, meu irmão, que, assim como eu, é portador do princípio divino.

O que significam tais sentimentos? Durante minha longa vida, já os experimentei várias vezes. Mas minhas duas antipatias mais fortes foram contra Ludovico XVIII, com sua barriga, seu nariz curvado, suas mãos brancas e repugnantes, sua autoconfiança, sua petulância, sua obtusidade (pronto, já comecei a insultá-lo), e a outra antipatia é por esse Nikanor Ivánovitch, que ontem me atormentou por duas horas. Do som da voz até o cabelo e as unhas, tudo nele despertou aversão em mim. E eu, para explicar a Mária Martiemiánovna meu mau humor, menti e disse que não me sentia bem. Depois deles, fiquei rezando e depois me acalmei. Obrigado a Ti, Deus, por deixar a meu alcance a única coisa de que preciso. Lembrei que Nikanor Ivánovitch foi menino e vai morrer, também me lembrei de Ludovico XVIII, sabendo que já morreu, e lamentei que Nikanor Ivánovitch não estivesse mais presente, para que eu pudesse exprimir meu bom sentimento por ele.

Mária Martiemiánovna me trouxe muitas velas e posso escrever à noite. Fui para o ar livre. Do lado esquerdo, as estrelas brilhantes se apagavam numa admirável aurora boreal. Que bonito, que bonito! Agora, vou continuar.

Meu pai e minha mãe partiram numa viagem para o exterior e eu e meu irmão Konstantin, que nascera dois anos depois de mim, ficamos totalmente sob a autoridade da vovó, durante todo o tempo da ausência dos pais. Deram a meu irmão o nome Konstantin como expressão do desejo de que ele um dia fosse como o imperador grego em Constantinopla.

As crianças gostam de todos, sobretudo daqueles que gostam delas e fazem carinhos. Vovó era carinhosa, me elogiava e eu a amava, apesar do cheiro ruim que me repugnava e que sempre pairava em sua volta, por mais perfumes que usasse; sobretudo quando me colocava sobre os joelhos. Eu também achava desagradáveis suas mãos limpas, amareladas, enrugadas, meio escorregadias e brilhosas, com os dedos recurvos para dentro e as unhas estranhamente compridas e nuas. Tinha os olhos turvos, cansados, quase mortos, que junto com a boca sorridente e desdentada causavam uma impressão penosa, mas não repulsiva. Eu atribuía aquela expressão de seus olhos (da qual me lembro agora com aversão) a todo o trabalho que tinha com as pessoas, pois assim me convenceram, e eu sentia pena dela por causa da expressão debilitada em seus olhos. Duas ou três vezes, vi Potiomkin. Era horrível, aquele homem curvado, torto, enorme, moreno, suado, sujo.

O que mais me assustava nele era o fato de ser o único que não tinha medo da vovó, falava diante dela com voz alta e cortante e, embora me chamasse de Alteza, mexia comigo e me fazia carinhos de modo atrevido.

Entre as pessoas que eu via com minha avó, em minha primeira infância, havia também Lanskoi. Estava sempre com ela, todos o respeitavam e lhe obedeciam. O importante era que a própria imperatriz seguia sempre suas recomendações. Na época, é claro, eu não entendia quem era Lanskoi e gostava muito dele. Gostava de seu cabelo cacheado, dos quadris e das panturrilhas bonitas, envoltas em tiras de couro de alce, gostava de seu sorriso alegre, feliz, despreocupado e dos diamantes que reluziam nele todo.

Foi uma época muito alegre. Levavam-nos a Tsárskoie Seló. Andávamos de bote, cavávamos no jardim, passeávamos, andávamos a cavalo. Konstantin, gorducho, ruivinho, un petit Bacchus,12 como vovó o chamava, divertia todos com seus gracejos, seu atrevimento e suas histórias. Ele imitava todo mundo, até Sófia Ivánovna e vovó.

O acontecimento mais importante dessa época foi a morte de Sófia Ivánovna Benkendorf. Ocorreu à noite, em Tsárskoie Seló, nos aposentos da vovó. Foi depois do jantar, Sófia Ivánovna tinha acabado de nos trazer, disse algo, sorriu, e de repente seu rosto ficou sério, ela começou a oscilar, se encostou na porta, escorregou e caiu pesadamente. Pessoas acudiram, levaram-nos embora. Mas no dia seguinte soubemos que tinha morrido. Chorei muito tempo, fiquei triste e não conseguia me recuperar. Todos achavam que eu chorava por causa de Sófia Ivánovna, mas eu não chorava por ela e sim porque as pessoas morriam, porque a morte existia. Eu não conseguia entender isso, não conseguia acreditar que esse fosse o destino de todas as pessoas. Lembro que então, em minha alma infantil de cinco anos, se ergueram, com todo o seu alcance, questões sobre o que é a morte, o que é a vida que termina com a morte. Essas graves questões, que se apresentam a todos, para as quais os sábios em vão procuram respostas e que os levianos tentam pôr de lado, esquecer. Fiz como é peculiar numa criança, em especial naquele mundo em que eu vivia: afastei de mim aqueles pensamentos, esqueci a morte, vivi como se ela não existisse, e com isso ela se tornou aterradora para mim.

Outro fato importante relacionado à morte de Sófia Ivánovna foi nossa transferência para mãos masculinas e a indicação de Nikolai Ivánovitch Saltikov como nosso preceptor. Não aquele Saltikov que, muito provavelmente, era nosso avô, mas Nikolai Ivánovitch, que servia à Corte de meu pai, homem miúdo, de cabeça enorme, rosto estúpido, sempre com uma careta, que meu irmão menor Kóstia imitava de modo admirável. Essa mudança para mãos masculinas foi dolorosa para mim, por causa do afastamento de minha antiga babá, Praskóvia Ivánovna.

Para as pessoas que não têm a infelicidade de nascer na família imperial, eu creio, é difícil imaginar toda a distorção da imagem que se tem das pessoas, e da relação com elas, que experimentamos, que eu experimentei. Em lugar do sentimento, natural a uma criança, de dependência dos adultos e dos mais velhos, em lugar da gratidão por todo o bem que se desfruta, incutiam em nós a convicção de que somos seres especiais, que não apenas devem ser satisfeitos com todos os bens possíveis como também, só por meio de uma palavra ou sorriso, pagam todo e qualquer bem que recebam, premiam as pessoas e as deixam felizes. Na verdade, exigiam de nós uma relação cortês com as pessoas, porém, com minha sensibilidade infantil, eu entendia que se tratava apenas de uma fachada e que fazíamos aquilo não para elas, não para as pessoas com quem devíamos ser corteses, mas para nós mesmos, para que nossa grandeza ganhasse ainda mais relevo.

Num dia solene qualquer, passamos pela avenida Niévski num landau enorme e alto: eu, meu irmão e Nikolai Ivánovitch Saltikov. Estávamos nos lugares da frente da carruagem. Dois lacaios empoados, de libré vermelha, estavam postados nas laterais. Era um dia claro de primavera. Eu vestia um uniforme militar, colete branco e, sobre ele, a fita azul da condecoração da Cruz de Santo André, igual ao Kóstia; estávamos de chapéus com plumas que, aqui e ali, tirávamos em cumprimento às pessoas. O povo em volta parava, se curvava para nos saudar, alguns até corriam atrás de nós.

–On vous salue – repetia Nikolai Ivánovitch. – À droite.13

Passamos pelo calabouço e as sentinelas vieram correndo para fora, para nos ver passar.

Esses eu via sempre. O amor pelos soldados, pelos exercícios militares, é algo que tenho desde criança. Incutiram em nós – sobretudo vovó, ela própria, que acreditava nisso menos do que qualquer outra pessoa – que todas as pessoas são iguais e que devíamos nos lembrar sempre disso. Mas eu sabia que aqueles que assim falavam não acreditavam nisso.

Lembro que uma vez Sacha Golítsin, brincando comigo, me empurrou e me machucou.

–Como se atreve?

–Foi sem querer. Não foi tão sério.

Senti o sangue subir ao coração de tanta raiva e afronta. Fui me queixar com Nikolai Ivánovitch e não tive vergonha quando Golítsin me pediu desculpas.

Mas por hoje chega. A vela está chegando ao fim. E preciso juntar uns gravetos para o fogo. O machado está cego e não tenho com que amolar. De resto, não sei mesmo fazer isso.

16 de dezembro

Fiquei dois dias sem escrever. Andei doente. Li o Evangelho, mas não consegui despertar em mim aquela compreensão, aquela relação com Deus que antes experimentava. Antes, muitas vezes pensei que o homem não podia deixar de desejar. Sempre desejei e desejo. Antes, desejei a vitória sobre Napoleão, desejei a pacificação da Europa, desejei me libertar da Coroa, e todos os meus desejos se realizaram, porém, quando se realizaram, pararam de me atrair, ou se tornaram irrealizáveis, e parei de desejar. Mas, enquanto os desejos anteriores estavam por se realizar ou se tornavam irrealizáveis, nasciam desejos novos, e assim continuava até o fim. Agora, desejei o inverno, ele começou, desejei a solidão, e quase consegui, e agora desejo escrever minha vida e fazer isso da melhor forma possível, para ser útil às pessoas. Quer isso se realize, quer não, surgirão desejos novos. A vida toda reside nisso.

Veio à minha cabeça que, se toda a vida consiste na geração de desejos e se a alegria da vida é sua realização, será que não existe um desejo que seja próprio do homem, de todo homem, sempre, e que sempre se realiza, ou melhor, sempre se caminha para sua realização? Então ficou claro para mim que assim seria para o homem que desejasse a morte. Sua vida toda seria uma aproximação do cumprimento desse desejo; e esse desejo certamente se realizaria.

De início, me pareceu estranho. Mas, pensando bem, de repente vi que era isso mesmo, que o único desejo razoável do homem era a aproximação da morte. Não o desejo da morte, da morte em si, mas do movimento da vida que conduz à morte. Esse movimento consiste em libertar das paixões e das seduções o princípio espiritual que habita todas as pessoas. Sinto isso agora, que estou livre da maior parte daquilo que escondia de mim a essência de minha alma, sua unidade com Deus, e escondia Deus de mim. Cheguei a esse estado de modo inconsciente. No entanto, se eu definisse isso como meu bem supremo (e isso não só é possível como deve ser assim), se eu considerasse meu bem supremo libertar-me das paixões e aproximar-me de Deus, então tudo que me aproximasse da morte – a velhice, a doença – seria a realização de meu principal e único desejo. É assim e é o que sinto quando estou saudável. Mas quando, como aconteceu ontem e anteontem, sinto dores na barriga, não consigo despertar esse sentimento e, embora não me oponha à morte, não consigo desejar aproximar-me dela. Sim, esse estado é o estado de sono espiritual. É preciso esperar com calma.

Continuo o texto de anterior. O que escrevi sobre minha infância é baseado, sobretudo, no que me contaram, e muitas vezes o que me contaram se mistura com aquilo que de fato experimentei, e assim, às vezes, não distingo o que vivi daquilo que ouvi das pessoas.

Minha vida, toda ela, do meu nascimento até a velhice atual, me faz lembrar um local todo encoberto por uma densa neblina, como o que vi após a batalha de Dresden, quando tudo ficou encoberto, não se enxergava nada, e de repente, aqui e ali, revelavam-se ilhotas, des éclaircies,14 nas quais se viam pessoas e objetos desconexos, envoltos de todos os lados numa cortina impenetrável. Assim são minhas lembranças de infância. Essas éclaircies na infância só raramente, muito raramente, se revelam no meio do infinito mar de neblina ou de fumaça; depois, aparecem com frequência cada vez maior. No entanto, até agora, há momentos de que não restou nada em minha memória. Na infância, as clareiras são extremamente escassas e, quanto mais recuo no tempo, mais raras se tornam.

Falei desses intervalos de claridade dos primeiros tempos: a morte de Benkendorf, a despedida de meus pais, as imitações de Kóstia, mas algumas outras lembranças daquele tempo se revelam diante de mim, agora, quando penso no passado. Por exemplo, não lembro claramente quando apareceu Kóstia, quando começamos a morar juntos, no entanto lembro nitidamente que, certa vez, quando eu tinha sete anos e Kóstia cinco, após a missa da véspera do Natal, fomos dormir e, aproveitando que todos tinham saído de nosso quarto, ficamos juntos na mesma cama. Kóstia, só de camisa, subiu em mim e começou alguma brincadeira engraçada, que consistia em dar palmadas um no outro, no corpo nu. E ríamos de doer a barriga, estávamos muito felizes, quando de repente entrou Nikolai Ivánovitch, em seu caftã bordado e com medalhas, sua imensa cabeça empoada, os olhos esbugalhados, e se atirou sobre nós com um horror que eu não consegui entender de forma nenhuma, nos separou e, com raiva, prometeu nos castigar e se queixar à vovó.

Outra recordação marcante, já um pouco mais tarde – eu tinha uns nove anos –, foi uma desavença entre Aleksei Grigórievitvh Orlov e Potiomkin, que teve lugar nos aposentos da vovó e em nossa presença. Foi pouco antes da viagem de vovó à Crimeia e de nossa primeira viagem a Moscou. Como de hábito, Nikolai Ivánovitch nos levou aos aposentos de vovó. O quarto grande, com teto pintado e ornado com relevos, estava cheio de gente. Vovó já estava penteada. O cabelo estava puxado para o alto, acima da testa, e com um arranjo especialmente caprichado no topo da cabeça. Usava um robe branco, sentada diante de uma penteadeira dourada. Suas serviçais estavam a seu lado e arrumavam sua cabeça. Sorrindo, ela olhava para nós, enquanto continuava a falar com um general grande, alto, largo, com a fita da condecoração de Santo André e, na face, uma cicatriz apavorante, que ia da boca até a orelha. Era Orlov, Le Balafré.15 Foi a primeira vez que o vi. Em torno da vovó, estavam cães galgos e borzóis. Minha preferida, Mimi, pulou do colo da vovó, saltou com as patas sobre mim e lambeu meu rosto. Chegamos perto da vovó e beijamos sua mão branca e balofa. A mão se virou e os dedos recurvos seguram meu rosto e me afagam. Apesar dos perfumes, sinto o cheiro desagradável da vovó. Mas ela continua a olhar para o Balafré e fala com ele.

–Que rapagão – diz ela, apontando para mim. – O senhor ainda não o tinha visto, não é, conde? – pergunta.

–Os dois são belos rapazes – diz o conde, beijando minha mão e a de Kóstia.

–Muito bem, muito bem – diz ela para a criada que ajeita o gorro em sua cabeça. Essa criada, Mária Stiepánovna, era uma mulher empoada, maquiada, simpática, que sempre me fazia carinho.

–Où est ma tabatière?16

Lanskoi se adianta e entrega a tabaqueira aberta. Vovó cheira e, sorrindo, olha para Matriona Danílovna, sua comediante particular, que se aproxima.17

1905

PADRE VASSÍLI
I

 

 

 

Era outono. Ainda não tinha amanhecido quando uma carroça, fazendo grande barulho pela estrada congelada, chegou à casa pequena, de duas alas e telhado de palha, que pertencia ao sacerdote Vassíli Davíditch. Da carroça, desceu um mujique de caftã com a gola levantada e gorro e, depois de prender o cavalo, começou a bater com o chicote na janela da ala em que sabia residirem o empregado e a cozinheira do padre.

–Quem é?

–Quero falar com o padre.

–Para quê?

–Tem uma pessoa doente.

–De onde você é?

–Vozdremo.

O empregado acendeu um lampião, foi para o vestíbulo e para o lado de fora e deixou o mujique entrar pelo portão.

De xale, botas de feltro e casaco curto forrado de pele, a mulher do padre, gorda e troncuda, saiu da ala dos patrões e começou a falar com voz rouca e zangada:

–Quem mais o diabo mandou aqui para esta casa?

–Vim falar com o padre.

–Mas vocês ainda estão dormindo? Nem acenderam a estufa.

–Já está na hora?

–Eu não estaria falando se não estivesse na hora.

O mujique de Vozdremo entrou na ala dos empregados, fez o sinal da cruz voltado para os ícones, cumprimentou a senhora com uma reverência e sentou-se num banco junto à porta.

A esposa do mujique estava sofrendo havia muito tempo, dera à luz uma criança morta e agora ela mesma estava morrendo.

O mujique sentou-se e, enquanto via o que acontecia na isbá, pensava no modo de transportar o padre: diretamente, ou por Kóssoie, como tinha vindo, ou então fazendo um desvio. “Pelo lado da aldeia já está horrível. O rio congelou, mas o gelo não sustenta a carroça. Quase não consegui passar.” O empregado entrou e, depois de largar uma braçada de lenha de bétula junto à estufa, pediu que o mujique picasse lascas de uma acha seca. E o mujique começou a trabalhar.

O sacerdote acordou alegre e bem-disposto, como sempre. Ainda deitado na cama, fez o sinal da cruz e pronunciou sua oração predileta, “Ao Rei do Céu”, e repetiu algumas vezes:

–Senhor, tende misericórdia.

Depois de baixar os pés no chão, se calçou, se lavou, penteou o cabelo comprido, vestiu a batina velha e se pôs de pé na frente dos ícones para rezar. No meio do pai-nosso, nas palavras “perdoai nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores”, ele se deteve e lembrou-se do diácono que havia encontrado na véspera, com ar de embriagado, e que murmurava com uma voz que mal dava para ouvir:

–Fariseus, hipócritas.

As palavras “fariseus, hipócritas” tinham ofendido Vassíli Davídovitch de forma especial, porque ele se considerava sujeito a todos os defeitos, menos à hipocrisia. E ficou aborrecido com o diácono. “Deixe para lá”, disse consigo, “que Deus o ajude”, e foi em frente. Nas palavras “não nos deixeis cair em tentação”, lembrou-se de que, na véspera, depois da vigília doméstica que ele havia celebrado na casa do rico proprietário Moltchánov, sentiu prazer ao beber chá com rum.
II

 

 

 

Depois de rezar, mirou-se num espelho que deformava o rosto, penteou de ambos os lados os cabelos louros que cresciam em redor de uma grande calva, observou com prazer o rosto largo, simpático, de barba rala, jovial, apesar de seus quarenta e dois anos, e saiu rumo à sala, para onde a esposa, afobada, com dificuldade, tinha acabado de trazer o samovar à beira de ferver.

–Por que está cuidando disso? E a Fiokla?

–Por que está cuidando disso? – arremedou a mulher do padre. – Quem vai fazer?

–Mas por que tão cedo?

–Tem alguém de Vozdremo para falar com você, por causa de uma pessoa doente. A mulher está morrendo.

–Chegou faz muito tempo?

–Já faz um tempo.

–Por que não me acordaram?

O padre Vassíli bebeu o chá do jejum1 (era sexta-feira), pegou o material para o sacramento, vestiu o casaco de pele, o gorro e saiu a passo firme para a porta. O mujique de Vozdremo o esperava no vestíbulo.

–Bom dia, Mítri – disse o padre Vassíli e, arregaçando a manga, fez o sinal da cruz para o mujique, lhe deu para beijar a mão pequena e firme, de unhas curtas e lixadas, e saiu para a varanda.

O sol tinha nascido, mas não dava para vê-lo atrás das nuvens baixas. O mujique pegou a carroça no portão e levou-a até a frente da varanda. Vassíli Davíditch subiu com facilidade na carroça, apoiando-se num dos raios da roda de trás, e sentou-se no banco forrado de feno. Mítri sentou-se ao lado, tocou o chicote na égua pançuda, de orelhas caídas, e a carroça seguiu, fazendo muito barulho, pela estrada congelada. Uma neve fina pairava no ar.
III

 

 

 

A família de Vassíli Davídovitch Mojáiski consistia em esposa, a mãe dela, viúva de um pope, e três filhos: dois meninos e uma menina. O mais velho tinha terminado o curso no seminário e se preparava para a faculdade; o segundo, o caçula Aliocha, era o predileto da mãe, tinha quinze anos e ainda estava no seminário; a filha, Liona, de dezesseis anos, morava em casa, pouco ajudava a mãe e estava insatisfeita com sua vida. O próprio Mojáiski, em seu tempo de seminário, tinha sido tão bom estudante que, em 1840, ao terminar o curso entre os melhores alunos, se preparou para entrar na Academia e sonhava em ser professor na universidade ou bispo. Mas sua mãe, viúva de um sacristão, com um filho alcoólatra e três filhas, passava grande necessidade. E a decisão que ele tomou, então, deu a toda a sua vida um sentido de sacrifício e de renúncia. A fim de não magoar a velha mãe, resolveu abandonar os sonhos de Academia e tornar-se sacerdote no campo. Fez isso por amor à mãe, porém, para si mesmo, não era assim que justificava sua decisão: ele a justificava como fruto da preguiça e da falta de amor pelo estudo.

A condição para obter o cargo de sacerdote num povoado pequeno era o casamento com a filha do sacerdote anterior. Tratava-se de um emprego modesto, o sacerdote anterior era pobre, como era pobre também sua família: a viúva e as duas filhas.

A tal Ánnotchka a que estava ligada a obtenção do cargo era uma jovem feia, mas muito animada, e, no verdadeiro sentido da palavra, enfeitiçou Vassíli Davídovitch, forçou-o a casar sem refletir.

Vassíli Mojáiski casou-se e tornou-se o padre Vassíli, de início com cabelos curtos, mas depois compridos, e viveu feliz com a esposa Anna Tikhónovna por vinte e dois anos, e agora, apesar de uma breve paixão romântica de Anna Tikhónovna por um estudante universitário, filho do diácono anterior, Vassíli continuava a ser bom para ela como antes e parecia amar a esposa com mais ternura ainda, para compensar o sentimento ruim que teve por ela durante sua paixão. Essa paixão serviu para Vassíli como mais um motivo para o mesmo sentimento de renúncia e abnegação em razão do qual havia desistido da Academia, e lhe deu a mesma discreta alegria interior e serena.
IV

 

 

 

De início, o pope e o mujique viajaram calados. Mas a estrada tinha tantos buracos que, apesar de andarem devagar, a carroça sacudia de um lado para outro e o pope volta e meia escorregava do banco, se ajeitava e se enrolava no casaco.

Só quando saíram da aldeia, atravessaram o canal e o mujique entrou no prado, o pope começou a falar:

–Então quer dizer que a patroa está muito mal? – perguntou.

–Já nem deve estar viva – respondeu o mujique, relutante.

–Está nas mãos de Deus, não nas nossas. É a vontade divina – disse o pope. – O que fazer? Agora é se conformar.

O mujique ergueu a cabeça e lançou um olhar para o rosto do pope. Estava claro que queria dizer alguma coisa áspera. Porém, ao ver o rosto que o fitava com carinho, se abrandou, sacudiu a cabeça e disse apenas:

–A vontade de Deus é a vontade de Deus. Mas é muito difícil, padre. Estou sozinho. O que se vai fazer com a criançada?

–Não perca a coragem, Deus vai ajudar.

O mujique não respondeu e se limitou a xingar a égua, que havia passado do trote para o passo lento, e deu puxões nas rédeas.

Entraram na floresta, onde a estrada cheia de sulcos era igualmente ruim para todas as direções. Seguiram muito tempo calados, atentos aos locais por onde era melhor passar. Só quando saíram na estrada que seguia entre fileiras radiantes de plantações o pope recomeçou a falar:

–Bonita plantação – disse ele.

–É – disse o mujique e não respondeu a mais nada que o pope falou.

Chegaram à casa da enferma na hora do desjejum.

A mulher ainda estava viva. O sofrimento tinha acabado e ela estava deitada na cama, fraca demais para se mexer, só pelo movimento dos olhos demonstrava a presença de vida. Com ar de súplica, fitava o sacerdote e apenas o sacerdote. A seu lado, estava uma velha. Os filhos estavam em cima da estufa. A filha mais velha, de dez anos, só de camisa, sem gorro, estava de pé junto a um pilar, como se fosse adulta, a cabeça apoiada na mão direita e o cotovelo apoiado na esquerda, e olhava para a mãe em silêncio.

O pope chegou perto da doente, rezou uma prece, deu o sacramento, fez o sinal da cruz sobre ela e rezou para os ícones.

A velha se aproximou da agonizante, olhou para ela, balançou a cabeça e cobriu seu rosto com um pano. Dali, chegou perto do pope e pôs uma moeda em sua mão. Ele sabia que era uma moeda de cinco copeques e guardou-a.

O dono da casa entrou.

–Morreu? – perguntou.

–Está morrendo – respondeu a velha.

Ao ouvir isso, a menina começou a chorar, enquanto balbuciava alguma coisa. Em três vozes, as crianças que estavam em cima da estufa também começaram a berrar.

O mujique fez o sinal da cruz, se aproximou da esposa, retirou o pano e olhou para ela. O rosto sem sangue estava calmo e imóvel. O mujique ficou parado uns dois minutos diante da morta, depois cobriu o rosto de novo com cuidado e fez novamente o sinal da cruz algumas vezes, virou para o pope e disse:

–E então, está na hora de ir?

–Pois é, vamos.

–Certo. A égua tem de tomar um pouco de água.

E o mujique saiu da isbá.

A velha começou uma cantoria de lamento, que falava de órfãos, sem mãe, sem ninguém que os alimentasse, que os vestisse, e que crianças sem a mãe são como filhotes de passarinho que caem do ninho. E a cada verso da cantoria, ela tomava fôlego, com força e barulho, e ouvindo a si mesma, ficava cada vez mais comovida. O pope escutava, ficou triste, teve pena das crianças e quis fazer alguma coisa para elas. Apalpou a carteira dentro do bolso e lembrou que ainda tinha ali meio rublo, que ganhara no dia anterior na casa de Moltchánov. Não tivera tempo de entregar para a esposa, como fazia com todo o dinheiro, e, sem pensar nas consequências, pegou o meio rublo, mostrou para a velha e colocou no peitoril da janela.

O dono da casa entrou sem casaco e disse que tinha pedido ao compadre que levasse o padre, enquanto ele ia arranjar tábuas para fazer o caixão.
V

 

 

 

O compadre de Mítia que levou Vassíli Davídovitch para casa era um mujique barbado, ruivo, bem-disposto, alegre e falante. Para celebrar a convocação do filho para o Exército, ele já havia bebido muito e estava especialmente alegre.

–A égua do Mítia já não se aguentava mais – disse ele. – Por que não ajudar? A gente tem de ter pena. Não estou dizendo a verdade?... Ei, vamos, meu amigo – gritou para o cavalo baio castrado, de rabo amarrado com força, e tocou-o com o chicote.

–Vá mais devagar – disse Vassíli Davídovitch, sacudindo com os buracos da estrada.

–Tudo bem, a gente pode ir mais devagar. E aí, ela morreu?

–Sim, descansou – disse o pope.

O ruivo também queria ter pena, mas também tinha vontade de se divertir.

–Bom, uma mulher se foi, uma moça vai vir – disse ele, dando alegria à voz.

–Não, dá pena de verdade – disse o pope.

–Claro que dá pena. Coitado. Ficou sozinho. Vem cá, ele disse, leve o pope, minha égua está cansada. Claro, a gente tem de ter pena mesmo. É o que eu digo, não é, padre?

–E você, pelo que vejo, já bebeu muito. Não é? Isso não adianta nada, Fiódor. Hoje é dia útil.

–E por acaso eu bebo à conta dos outros? Bebo por minha conta mesmo. Levei meu filho para o Exército. Desculpe, padre. Em nome de Cristo.

–O que tenho para perdoar? Só disse que é melhor não beber.

–E é melhor mesmo, mas como? Se eu fosse qualquer um, mas graças a Deus a gente vive bem. Na frente dos outros, não pode. Mas no fundo tenho muita pena do Mítri. Como é que pode não ter pena? No verão, alguém roubou o cavalo dele. Hoje em dia, o povo também não quer saber.

E Fiódor começou a contar uma história comprida, como roubaram uns cavalos na feira, como tiraram o couro de um para vender e como os mujiques apanharam um ladrão.

–E bateram, mas bateram tanto – contou Fiódor com prazer.

–Mas bater para quê?

–Mas, então, era para fazer carinho?

Em conversas como essa, acabaram chegando à casa de Vassíli Davídovitch.

Vassíli Davídovitch esperava poder descansar, mas para seu azar, em sua ausência, havia chegado um documento do deão e uma carta do filho. O documento do deão não tinha importância, mas a carta do filho provocou uma tempestade na família, que ganhou mais força ainda quando a esposa do pope exigiu dele o dinheiro das vésperas celebradas no dia anterior, e ele já não tinha o meio rublo. A perda do meio rublo apenas reforçou a raiva da esposa, mas a causa principal da raiva foi a carta do filho e a impossibilidade de satisfazer seu desejo, impossibilidade cuja causa a esposa do pope identificava na indiferença do marido.

1906

PARA QUÊ?
I

 

 

 

Na primavera de 1830, a Rozanka, a propriedade ancestral da família do Pan Jaczewski, chegou o filho único de um amigo falecido, o jovem Ióssif Migurski. Jaczewski era um velho de sessenta anos, testa larga, peito largo, bigodes compridos e brancos no rosto vermelho-tijolo, um patriota dos tempos da segunda divisão da Polônia.1 Quando jovem, tinha servido no Exército com o pai de Migurski, sob a bandeira de Kosciuszko, e, com todas as forças de seu espírito patriótico, odiava a prostituta apocalítica, como ele chamava Catarina II, e seu amante, o traidor abominável Poniatowski, e continuava a acreditar na restauração da Rzecz Pospolita,2 assim como acreditava que o sol ia nascer depois da noite. Em 1812, comandou um regimento das tropas de Napoleão, a quem adorava. A ruína de Napoleão deixou-o abatido, mas ele não perdeu a esperança na restauração, ainda que mutilada, do reino da Polônia. A instauração do Parlamento em Varsóvia, por Alexandre I, reanimou suas esperanças, mas a Santa Aliança,3 a reação por toda a Europa e a tirania de Konstantin4 adiaram a realização do desejo acalentado. A partir de 1825, Jaczewski se fixou no campo e vivia o tempo todo em sua Rozanka, se ocupava com a propriedade, a caça e a leitura de jornais e cartas, por meio dos quais acompanhava, ainda com ardor, os acontecimentos políticos em sua pátria. Era casado em segundas núpcias com uma bela e empobrecida szlchatka5 e seu casamento não era feliz. Ele não amava nem respeitava a segunda esposa, sentia-se incomodado com ela, tratava-a mal, de modo grosseiro, como se castigasse a esposa por seu próprio erro de ter casado uma segunda vez. Não tinha filhos com a segunda esposa. Da primeira, tinha duas filhas: a mais velha, Wanda, uma beldade imponente, que sabia o valor da própria beleza e se sentia entediada no campo, e a caçula, Albina, a predileta do pai, menina animada, magra, de cabelos louros, cacheados, e olhos grandes, brilhantes, azuis e afastados um do outro, como os do pai.

Albina tinha quinze anos quando da visita de Ióssif Migurski. Tempos antes, quando era estudante, Migurski já estivera na casa de Jaczewski, em Vilnius, onde eles passavam os invernos, havia cortejado Wanda e agora vinha visitá-los no campo, pela primeira vez na condição de homem adulto e independente. A chegada do jovem Migurski agradou a todos os moradores de Rozanka. Agradou ao velho, porque o rapaz o fazia lembrar-se do amigo, pai dele, no tempo em que os dois eram jovens, e conversavam com o mesmo ardor e com as mais róseas esperanças sobre a fermentação revolucionária não só na Polônia, mas também no exterior, de onde o jovem tinha acabado de chegar. Agradou à Pani Jaczewskaia, porque, diante de visitas, o velho Jaczewski se continha e não brigava com ela por qualquer motivo, como era seu costume. Agradou a Wanda, porque estava convencida de que Migurski tinha vindo por sua causa, com o propósito de lhe fazer um pedido de casamento; ela se preparava para responder que aceitava, mas tinha a intenção de, como ela mesma dizia para si, lui tenir la dragée haute.6 Albina estava contente, porque todos estavam contentes. Não era só Wanda que estava convencida de que Migurski tinha vindo com a intenção de fazer um pedido de casamento. Todos na casa pensavam assim – do velho Jaczewski até a governanta Ludvika, apesar de ninguém o dizer.

E era mesmo verdade. Migurski viera com essa intenção, mas, depois de uma semana, confuso e desconcertado com alguma coisa, foi embora sem fazer o pedido de casamento. Todos ficaram surpresos com aquela partida inesperada e ninguém, exceto Albina, entendia o motivo. Albina sabia que o motivo da estranha partida era ela mesma. Durante todo o tempo em que Migurski esteve em Rozanka, ela notou que o rapaz só ficava especialmente animado e alegre quando se achava em sua companhia. Ele a tratava como uma criança, brincava com ela, a provocava, mas Albina, com faro de mulher, pressentia que nessa maneira de tratá-la não havia a atitude de um adulto com uma criança, mas sim de um homem com uma mulher. Albina percebia isso no olhar enamorado e no sorriso afetuoso dele quando a encontrava, ou quando Migurski entrava num aposento onde ela estava, e no fato de que ele a acompanhava, quando ela saía. Albina não formulava para si mesma uma resposta clara sobre o significado daquilo, mas a atitude de Migurski em relação a ela a deixava alegre e, sem se dar conta, Albina tentava fazer tudo que agradasse a ele. Já Migurski, tudo o que Albina fizesse lhe agradava. Por isso, na presença dele, Albina fazia tudo com um entusiasmo especial. A Migurski, agradava a maneira como ela apostava corrida com o belo cão borzói, que pulava em cima dela e lambia seu rosto radiante, afogueado e vermelho; agradava-lhe a maneira como Albina, continuando a sorrir alegremente com os olhos, fazia cara séria e ouvia o sermão maçante do padre católico; agradava-lhe a maneira como ela imitava, com extraordinária exatidão e senso de humor, a velha governanta, ou um vizinho beberrão, ou o próprio Migurski, passando num piscar de olhos da representação de um para o retrato de outro. Acima de tudo, agradava-lhe sua vivacidade entusiasmada, como se ela tivesse acabado de descobrir todo o encanto da vida e se apressasse para desfrutá-lo. Agradava a Migurski aquela vivacidade peculiar de Albina, mas a vivacidade se alvoroçava e aumentava exatamente porque ela sabia que a vivacidade o encantava. Por isso só Albina sabia por que Migurski, que tinha vindo para pedir Wanda em casamento, fora embora sem fazer o pedido. Embora não se decidisse a contar a ninguém, e também não o dissesse com clareza nem para si mesma, no fundo da alma ela sabia que Migurski queria gostar da irmã, mas acabou gostando dela, Albina. Isso deixou Albina muito surpresa, pois se considerava inteiramente insignificante em comparação com a inteligente, culta e bela Wanda, porém não podia ignorar que era verdade e também não podia deixar de se alegrar com isso, porque ela mesma, com todas as forças da alma, tinha se enamorado de Migurski, e o amava como se ama só na primeira vez, e só uma vez, na vida.
II

 

 

 

No fim do verão, os jornais trouxeram a notícia da revolução em Paris.7 Depois, começaram a chegar notícias sobre as iminentes desordens em Varsóvia. Com temor e esperança, Jaczewski esperava, a cada chegada do correio, a notícia do assassinato de Konstantin e do início da revolução. Por fim, em novembro, chegou a Rozanka a notícia, primeiro, da queda do palácio Belvedere e da fuga de Konstantin Pávlovitch; depois, de que o Parlamento havia declarado que a dinastia Romanov estava banida do trono polonês, que Chlopicki tinha sido declarado ditador e que o povo polonês estava livre de novo. A revolta não chegou a Rozanka, mas todos os habitantes do local acompanhavam seus passos, esperavam sua chegada ao local e se preparavam para isso. O velho Jaczewski trocava cartas com um velho conhecido, que era um dos líderes da revolta, recebia agentes comerciais secretos judeus, não para tratar de questões econômicas, mas revolucionárias, e se preparava para integrar-se à revolta, quando chegasse a hora. Pani Jaczewskaia, não como sempre e sim mais ainda, se preocupava com as condições materiais do marido e, como sempre, por isso mesmo, o irritava cada vez mais. Wanda mandou seus diamantes para uma amiga em Varsóvia vender e, depois, doar o dinheiro para o comitê revolucionário. Albina só se interessava pelo que Migurski fazia. Por meio do pai, soube que ele fazia parte da brigada de Dwernicki e Albina tentava saber de tudo o que dissesse respeito àquela brigada. Migurski escreveu duas vezes: uma vez comunicou que tinha se incorporado ao Exército; na outra vez, na metade de fevereiro, mandou uma carta entusiástica sobre a vitória dos poloneses em Stoczek, onde capturaram seis canhões russos e fizeram prisioneiros. “Zwyci?stwo Polakòw i kl?ska Moskali! Wiwat!”8 – assim ele terminava a carta. Albina ficou em êxtase. Observava a carta, avaliava quando e onde os moscovitas deviam ser definitivamente derrotados e ficava pálida e trêmula quando o pai desembrulhava lentamente os pacotes trazidos pelo correio. Certa vez, a madrasta, ao entrar no quarto de Albina, surpreendeu-a na frente do espelho, em calças de homem e konfederatka.9 Albina se preparava para fugir de casa em roupas masculinas a fim de se incorporar às tropas polonesas. A madrasta contou para o pai. O pai chamou a filha e, escondendo sua simpatia por ela, e até sua admiração, repreendeu-a com dureza e exigiu que tirasse da cabeça as ideias tolas sobre participar da guerra.

–As mulheres têm outra função: amar e confortar aqueles que se sacrificam pela pátria – disse ele.

Agora, Albina era necessária a ele, constituía sua alegria e seu consolo, e chegaria o tempo em que ela também seria necessária ao marido. Ele sabia como impressionar Albina. Lembrou que era um homem sozinho e infeliz, e beijou-a. Ela estreitou seu rosto ao dele, escondendo as lágrimas, que mesmo assim molharam a manga do roupão do pai, e lhe prometeu não tomar nenhuma iniciativa sem sua concordância.
III

 

 

 

Só as pessoas que experimentaram o mesmo que os poloneses, depois da divisão da Polônia e da sujeição de uma parte de seu país ao poder dos odiados alemães e da outra parte ao poder dos ainda mais odiados moscovitas, podem entender o júbilo que os poloneses experimentaram nos anos de 1830 e 1831, quando, após as primeiras tentativas frustradas de libertação, uma nova esperança de libertação pareceu viável. Mas tal esperança não durou muito. As forças eram demasiado desproporcionais e a revolução, mais uma vez, foi esmagada. Mais uma vez, de forma insensata, dezenas de milhares de russos foram subjugados e conduzidos à Polônia e, sob o comando ora de Dibitch, ora de Paskevitch, e também do chefe supremo, Nicolau I, sem saberem eles mesmos para que faziam isso, depois de encharcarem a terra com o próprio sangue e com o sangue de seus irmãos poloneses, os esmagaram e os devolveram, mais uma vez, ao poder de pessoas fracas e insignificantes, que não queriam nem a liberdade nem a opressão dos poloneses, mas sim só uma coisa: satisfazer sua ambição e sua vaidade infantil.

Varsóvia foi tomada, as brigadas isoladas foram destruídas. Centenas, milhares de pessoas foram fuziladas, surradas com porretes, exiladas. Entre os exilados, estava o jovem Migurski. Sua propriedade foi confiscada e ele mesmo foi alistado como soldado raso no batalhão de linha de Uralsk.

Os Jaczewski passaram o inverno de 1832 em Vilnius, por causa da saúde do velho, que havia trinta e um anos sofria do coração. Lá, ele recebeu uma carta de Migurski, vinda da fortaleza onde servia. Contou que, por mais penoso que fosse o que ele havia suportado, e o que ainda teria de enfrentar, estava feliz, porque tivera a chance de sofrer pela pátria; disse que não perdera a esperança naquela causa sagrada, à qual tinha sacrificado uma parte da própria vida e estava disposto a sacrificar a vida que lhe restava, e que, se amanhã surgisse uma nova oportunidade, ele agiria da mesma forma. Ao ler a carta em voz alta, o velho soluçou nesse ponto e demorou muito, até conseguir continuar. Na parte restante da carta, que Wanda leu em voz alta, Migurski escreveu que “quaisquer que tenham sido seus planos e sonhos” na ocasião de sua última visita, que permaneceria para sempre como um ponto luminoso em sua vida, ele agora não podia e não queria falar sobre aquilo.

Wanda e Albina entenderam, cada uma à sua maneira, o sentido de tais palavras, porém não explicaram a ninguém como as entendiam. No fim da carta, Migurski mandou saudações a todos e, de passagem, no mesmo tom de brincadeira com que se dirigia a Albina na época de sua visita, se dirigiu a ela também na carta, perguntando se ainda corria tão depressa, ultrapassando o cão borzói, e se ainda imitava todos tão bem quanto antes. Desejou saúde ao velho, sucesso nos afazeres domésticos para a mãe, um marido que fosse digno de Wanda e que Albina continuasse a ter a mesma vivacidade de antes.
IV

 

 

 

A saúde do velho Jaczewski ficava cada vez pior e, em 1833, a família toda mudou-se para o exterior. Em Baden, Wanda conheceu um emigrante polonês rico e casou com ele. O velho enfermo piorou e, no início de 1833, morreu no exterior, nos braços de Albina. Não havia permitido que a esposa o acompanhasse e, até o último minuto, não pôde lhe pedir perdão pelo erro que havia cometido ao casar com ela. Pani Jaczewskaia voltou com Albina para o campo. O principal interesse da vida de Albina era Migurski. A seus olhos, era o maior dos heróis e mártires, a quem havia decidido dedicar sua vida. Ainda antes da partida para o exterior, Albina havia começado a se corresponder com ele, primeiro como porta-voz do pai, depois por conta própria. Em seguida à morte do pai, ela voltou à Rússia e continuou a se corresponder com ele e, quando fez dezoito anos, comunicou à madrasta que decidira partir para Uralsk, ao encontro de Migurski, a fim de casar com ele. A madrasta passou a acusar Migurski de, por motivos egoístas, buscar alívio para sua situação difícil seduzindo uma jovem rica e obrigando-a a compartilhar sua infelicidade. Albina irritou-se e declarou à madrasta que só ela era capaz de atribuir pensamentos tão baixos ao homem que havia sacrificado tudo por seu povo, que Migurski, ao contrário, rejeitava a ajuda que ela lhe oferecia e que ela, de forma irrevogável, decidira ir a seu encontro e casar com ele, caso Migurski quisesse lhe dar essa felicidade. Albina era maior de idade e tinha dinheiro – os trinta mil zloti que um tio falecido deixara para as duas sobrinhas. Portanto, nada podia impedir Albina.

Em novembro de 1833, Albina deu adeus aos criados, que se despediram com lágrimas, como se fosse sua morte, na hora da partida rumo à distante e desconhecida fronteira da bárbara Moscóvia, e ela sentou ao lado da velha e dedicada governanta Ludvika, que Albina levou consigo, no trenó fechado que pertencia ao pai e que tinha sido reformado para aquela longa viagem, e seguiu pela longa estrada.
V

 

 

 

Migurski não morava na caserna, mas num alojamento individual. Nikolau Pávlovitch10 exigia que os oficiais poloneses rebaixados de posto não apenas suportassem todo o peso da vida dura de um soldado raso como também sofressem todas as humilhações a que os soldados estavam sujeitos na época; porém a maior parte das pessoas simples que deveriam cumprir tais ordens compreendia todo o peso da situação daqueles rebaixados e, apesar do perigo decorrente de não cumprirem sua vontade, quando possível, não a cumpriam. O comandante do batalhão a que Migurski fora incorporado era um semianalfabeto que tinha subido na hierarquia desde o posto de soldado raso e compreendia a situação do jovem instruído que havia sido rico e perdera tudo, sentia pena de Migurski, o respeitava e lhe fazia todo tipo de concessão. E Migurski não podia deixar de reconhecer a bondade do tenente-coronel de costeletas brancas no rosto gorducho de soldado e, para recompensá-lo, aceitou dar aulas de francês e matemática para seus filhos, que se preparavam para entrar na escola militar.

A vida de Migurski em Uralsk, que já se arrastava havia seis meses, era não só monótona, melancólica e maçante como também árdua. Além do comandante do batalhão, de quem ele tentava manter a maior distância possível, suas relações se limitavam a um polonês desterrado, homem desagradável, dissimulado e de pouca instrução, que ali trabalhava no comércio de peixes. O que havia de mais penoso na vida de Migurski era sua dificuldade para se habituar à penúria. Depois do confisco de sua propriedade rural, ele ficou sem nenhum recurso e conseguia sobreviver vendendo os objetos de ouro que lhe restaram.

Sua única e grande alegria após a deportação era a correspondência com Albina, a imagem meiga, poética, que desde o tempo de sua estadia em Rozanka ficara gravada em seu espírito e agora, no exílio, se tornava cada vez mais bela. Numa de suas primeiras cartas, ela, de passagem, perguntou o que significavam as palavras que Migurski escrevera numa carta antiga: “Quaisquer que tenham sido meus planos e sonhos”. Ele respondeu que agora podia confessar que os sonhos eram pedir Albina em casamento. Ela respondeu que o amava. Ele respondeu que melhor seria ela não ter escrito isso, porque era horrível pensar que na época seria possível e que agora não era mais. Albina respondeu que não só era possível como iria acontecer, a qualquer preço. Ele respondeu que não podia aceitar o sacrifício dela, que nas condições atuais isso era impossível para ele. Logo depois dessa carta, Migurski recebeu uma remessa de dois mil zloti. Pelo selo no envelope e pela letra, reconheceu que tinha sido enviado por Albina e lembrou que, numa das primeiras cartas, em tom de brincadeira, ele tinha descrito para ela a satisfação que experimentava agora com as aulas, que lhe rendiam o dinheiro necessário para comprar tudo de que necessitava – chá, tabaco e até livros. Migurski colocou o dinheiro em outro envelope e o devolveu, junto com uma carta, na qual pediu que ela não corrompesse com dinheiro as sagradas relações que havia entre ambos. Ele tinha tudo em quantidade suficiente, escreveu, e sentia-se plenamente feliz sabendo que tinha uma amiga como ela. Com isso, a correspondência entre os dois parou.

Em novembro, Migurski estava na casa do tenente-coronel, dando aula para os meninos, quando se ouviu a sineta de uma carruagem de posta que se aproximava, o chiado de esquis sobre a neve congelada, e um trenó parou na frente da casa. Os meninos se levantaram de um pulo para ver quem tinha chegado. Migurski ficou no quarto, olhando para a porta e esperando o regresso das crianças, mas pela porta veio a própria esposa do tenente-coronel.

–Pan, algumas senhoras vieram para ver o senhor, estão perguntando pelo senhor – disse. – Devem vir da sua terra, parecem polonesinhas.

Se perguntassem a Migurski se achava possível que Albina viesse vê-lo, responderia que era inconcebível; mas, no fundo, era o que esperava. O sangue afluiu ao coração e ele, ofegante, correu para a entrada. Ali, uma mulher gorda, com o rosto marcado por bexigas, estava desamarrando o xale que cobria a cabeça. Outra mulher estava entrando pela porta do quarto do tenente-coronel. Ao ouvir passos atrás de si, ela se virou. Por baixo do capuz, brilharam os olhos azuis de Albina, alegres, radiantes, bem afastados um do outro, com as pestanas cobertas de geada. Ele parou estupefato, sem saber como recebê-la, como cumprimentá-la.

–Iusiô! – gritou Albina, chamando-o como o pai o chamava e como ela mesma o chamava, em pensamento, envolveu seu pescoço com os braços, uniu ao rosto dele seu rosto frio, ruborizado, e começou a rir e chorar.

Sabendo quem era Albina e por que tinha vindo, a boa esposa do tenente-coronel recebeu-a e hospedou-a em sua casa, até o casamento.
VI

 

 

 

O generoso tenente-coronel insistiu muito até obter uma autorização de seus superiores. Chamaram um padre católico de Orenburg e casaram os Migurski. A esposa do comandante do batalhão foi a madrinha, um dos alunos levou o ícone e Brzozowski, o polonês exilado, foi o padrinho.

Albina, por mais estranho que possa parecer, amava apaixonadamente seu marido, mas não o conhecia de maneira nenhuma. Só agora travava conhecimento com ele. Nem é preciso dizer que ela descobriu no homem de carne e osso muitas coisas banais e nada poéticas que não existiam na imagem que ela trazia e alimentava na imaginação; porém, justamente por ser um homem de carne e osso, Albina descobriu nele muitas coisas simples e boas que não existiam naquela imagem abstrata. Por conhecidos e amigos, Albina ouvira falar da bravura de Migurski na guerra e sabia da coragem com que enfrentara a perda da fortuna e da liberdade e o imaginava como um herói, sempre levando uma vida heroica e grandiosa; mas na realidade, mesmo com sua incomum força física e bravura, ele se revelou um dócil e tímido cordeiro, um homem extremamente simples, com suas brincadeiras bem-humoradas, com o mesmo sorriso infantil na boca sensual, rodeada pelo bigode e pela barba loura que fascinavam Albina em Rozanka, e com um inextinguível cachimbo, que foi um grande incômodo para ela durante a gravidez.

Também Migurski só agora estava conhecendo Albina e, pela primeira vez, descobria a mulher que havia nela. Nas mulheres que tinha conhecido antes do casamento, ele não pudera conhecer a mulher propriamente. E aquilo que descobriu em Albina, como na mulher em geral, o surpreendeu e poderia muito bem deixá-lo desapontado com a mulher em geral, caso não sentisse por Albina, e só por Albina, uma ternura e uma gratidão especial. Por Albina, como pelas mulheres em geral, ele sentia uma indulgência carinhosa, um pouco irônica, mas por Albina, e só por Albina, sentia um amor terno e um arrebatamento, além da consciência de uma dívida impossível de pagar, por causa do sacrifício dela, que lhe deu uma felicidade imerecida.

Os Migurski eram felizes porque, dirigindo toda a força de seu amor de um para o outro, experimentavam, em meio a pessoas estranhas, o sentimento de dois andarilhos que, sob os rigores do inverno gelado, se aquecem um ao outro. A alegria da vida dos Migurski era reforçada graças à participação da governanta Ludvika, generosa, ranzinza e divertida, abnegadamente dedicada à sua senhora, como uma escrava, e pronta para se apaixonar por qualquer homem. Os Migurski também foram felizes com os filhos. Após um ano, nasceu um menino. Um ano e meio depois, uma menina. O menino era uma réplica da mãe: os mesmos olhos, a mesma vivacidade e graça. A menina era um animalzinho selvagem, saudável e bonito.

No entanto os Migurski eram infelizes devido a seu afastamento da terra natal e, sobretudo, ao peso da condição de pobreza a que não estavam acostumados. Albina era quem mais sofria com aquela pobreza. Ele, o seu Iusiô, o herói, o homem ideal, tinha de prestar continência diante de qualquer oficial, ficar em posição de apresentar armas, ficar de sentinela e obedecer sem reclamar.

Além disso, as notícias que vinham da Polônia eram as mais tristes. Quase todos os parentes e amigos tinham sido ou exilados ou tinham fugido para o exterior, privados de tudo. Quanto aos próprios Migurski, não havia nenhuma perspectiva de um fim para aquela situação. Toda tentativa de apresentar uma petição de clemência ou mesmo de qualquer melhoria de sua situação, como de uma promoção a um posto de oficial, não alcançava nenhum resultado. Nikolai Pávlovitch fazia revistas de tropas, paradas, exercícios, ia a bailes de máscaras, flertava disfarçado com fantasias, galopava à toa pela Rússia, de Tchugúiev até Novorossisk, em Petersburgo e em Moscou, assustando o povo e chicoteando os cavalos até a exaustão, e quando algum imprudente se atrevia a pedir clemência da parte de exilados dezembristas ou poloneses, que sofriam por causa do mesmo amor à pátria que ele tanto enaltecia, o tsar, estufando o peito, cravava os olhos cor de estanho em qualquer coisa que estivesse na sua frente e dizia:

–Que continuem a pagar. É cedo. – Como se soubesse quando já não seria mais cedo, quando estaria na hora. E todas as pessoas próximas, generais, cortesãos e suas esposas, que viviam às custas dele, se comoviam diante da extraordinária sagacidade e sabedoria daquele grande homem.

Porém, no geral, havia mais felicidade do que infelicidade na vida dos Migurski.

Assim viveram cinco anos. Mas de repente ocorreu uma desgraça inesperada e terrível. Primeiro, adoeceu a menina e, dois dias depois, o menino: ardeu de febre por três dias e, sem ajuda de médicos (era impossível encontrar um médico), morreu no quarto dia. Dois dias depois, morreu também a menina.

Albina só não se afogou no rio Ural porque não conseguia pensar sem horror na situação do marido, ao receber a notícia de seu suicídio. Mas, para ela, viver era difícil. Antes sempre atarefada e ativa, agora deixava todos os seus afazeres por conta de Ludvika, ficava horas sentada sem ter o que fazer, olhando calada para o que estivesse diante dos olhos, e de repente se levantava de um pulo e fugia correndo para seu quarto e lá, sem responder aos consolos do marido e de Ludvika, chorava em silêncio, apenas balançando a cabeça, pedindo que eles saíssem e a deixassem sozinha. No verão, ia ao túmulo dos filhos e ficava ali sentada, dilacerando o coração com recordações do passado e pensando no que poderia ter sido sua vida. Mais que tudo, a torturava a ideia de que as crianças poderiam estar vivas se morassem numa cidade, onde era possível obter socorro médico. “Para quê? Para quê?”, pensava Albina. “Iusiô e eu não queremos nada de ninguém, senão que ele viva como nasceu e como viveram seus avós e bisavós, e para mim, só que eu possa viver com ele, amá-lo, amar meus filhinhos, educá-los. E de repente o fazem sofrer, o mandam para o exílio, e tomam de mim aquilo que me é caro no mundo. Para quê? Para quê?” Albina lançava essa pergunta às pessoas e a Deus. E não conseguia imaginar nenhuma resposta possível.

E sem essa resposta não havia vida. E a vida dela estagnou. A vida pobre, no desterro, que ela antes sabia enfeitar com seu gosto e requinte femininos, tornou-se insuportável não só para ela como também para Migurski, que sofria por ela e não sabia como ajudá-la.
VII

 

 

 

Justamente nessa época mais penosa para os Migurski, apareceu em Uralsk um polonês chamado Rosolowski, envolvido num plano grandioso de insurreição e de fuga, organizado naquela época na Sibéria pelo padre católico exilado Sirocynsky.

A exemplo de Migurski e de milhares de outras pessoas condenadas ao exílio na Sibéria porque desejavam viver como haviam nascido, ou seja, como poloneses, Rosolowski tinha se envolvido naquele plano e por isso foi castigado com vergastadas e incorporado ao Exército no mesmo batalhão em que estava Migurski. Ex-professor de matemática, Rosolowski era um homem alto, magro, arqueado, de bochechas encovadas e testa franzida.

Na primeira noite de sua estadia, Rosolowski, tomando chá na casa dos Migurski, com naturalidade, com sua voz de baixo, calma e vagarosa, começou a contar o caso pelo qual havia sofrido tão cruelmente. Aconteceu que Sirocynsky estava organizando em toda a Sibéria uma sociedade secreta cujo objetivo era, com a ajuda dos poloneses incorporados aos regimentos de linha e de cossacos, amotinar os soldados e os condenados a trabalhos forçados, sublevar os colonos, capturar a artilharia em Omsk e libertar todos.

–Mas isso era possível? – perguntou Migurski.

–Perfeitamente possível, tudo estava pronto – disse Rosolowski, franzindo as sobrancelhas com ar sombrio.

E, devagar e com calma, passou a contar todo o plano de libertação e todas as medidas tomadas para o sucesso do plano e, em caso de insucesso, para o salvamento dos conspiradores. O êxito seria certo, se não fossem dois traidores. Pelas palavras de Rosolowski, Sirocynsky era um homem genial e de grande força de espírito. Morreu como herói e mártir. E, com voz de baixo, calma e contida, Rosolowski relatou detalhes da execução que ele, por ordem das autoridades, teve de presenciar, junto com todos os condenados naquele caso.

–Dois batalhões de soldados formaram duas filas, num corredor comprido, cada soldado tinha na mão uma vara flexível, com a espessura determinada por Sua Alteza, de modo que mais do que três não pudessem entrar juntas no cano de um fuzil. Primeiro levaram o médico Szakalski. Dois soldados o conduziam e os que tinham varas nas mãos batiam em suas costas nuas, quando passava por eles. Só vi isso quando ele se aproximou do lugar onde eu estava. De início, eu só ouvia o toque do tambor, mas depois, quando deu para ouvir o sibilar das varas e o som dos golpes no corpo, entendi que ele estava chegando. E vi como os soldados o empurravam com os fuzis, e ele andava, tremendo, virando a cabeça, ora para um lado, ora para o outro. E uma vez, quando o fizeram passar por nós, ouvi como o médico russo dizia aos soldados: “Não batam com força, tenham pena”. Mas eles continuavam batendo; quando ele passou por mim pela segunda vez, já não conseguia andar sozinho, estava sendo arrastado. Era pavoroso olhar suas costas. Fechei os olhos. O homem caía e eles o carregavam. Depois levaram o segundo. Depois o terceiro, depois o quarto. Todos caíam e eram arrastados: uns pareciam mortos, outros, com a vida por um fio, e nós éramos obrigados a ficar de pé e ver tudo. Aquilo demorou seis horas, desde de manhã cedo até duas da tarde. Por último, levaram o próprio Sirocynsky. Fazia tempo que eu não o via e não o teria reconhecido, de tão envelhecido que estava. Seu rosto de barba raspada, cheio de rugas, estava branco e esverdeado. O copo nu era magro, amarelo e as costelas sobressaíam na pele esticada da barriga. Ele caminhava como todos os outros, a cada golpe estremecia e levantava a cabeça, mas não gemia e rezava em voz alta: “Miserere mei Deus secundam magnam misericordiam Tuam”.11 Eu mesmo ouvi – disse rápido Rosolowski, com voz rouca, fechou a boca e bufou pelo nariz.

Sentada junto à janela, Ludvika chorava, com o rosto coberto por um lenço.

–Nem precisa dizer mais! São feras, feras! – exclamou Migurski, atirou o cachimbo para o lado, ergueu-se bruscamente da cadeira e, a passos ligeiros, saiu para o quarto escuro. Albina ficou onde estava, como que petrificada, os olhos cravados num canto escuro.
VIII

 

 

 

No dia seguinte, ao chegar em casa depois de uma aula, Migurski ficou surpreso com o aspecto da esposa, que, como no passado, veio recebê-lo em passos ligeiros e com o rosto radiante e o conduziu para o quarto.

–Bem, Iusiô, escute.

–Estou ouvindo. O que foi?

–Pensei a noite inteira naquilo que Rosolowski contou. E tomei uma decisão: não posso viver assim, não consigo viver desse jeito. Não consigo! Vou morrer, mas não vou ficar aqui.

–Mas o que fazer?

–Fugir.

–Fugir? Como?

–Pensei em tudo. Escute.

E ela contou o plano que tinha elaborado naquela noite. O plano era o seguinte: ele, Migurski, sairia de casa à noite, deixaria seu capote na margem do rio Ural e, no capote, uma carta na qual estaria escrito que ia se matar. Iam pensar que ele se afogou. Iam procurar o corpo, iam mandar os documentos. E ele ia ficar escondido. Albina ia escondê-lo de tal modo que ninguém o encontraria. Poderia viver assim talvez por um mês. E, quando tudo tivesse se acalmado, eles fugiriam.

No primeiro minuto, o plano de Albina pareceu impraticável para Migurski, mas no fim do dia, quando ela argumentou com muito ardor e muita convicção, ele começou a concordar. Além disso, também ficou inclinado a concordar porque o castigo por uma tentativa de fuga frustrada, o mesmo castigo que Rosolowski tinha descrito, seria aplicado contra ele, Migurski, ao passo que o sucesso da fuga traria a liberdade para Albina e ele via que, depois da morte dos filhos, era doloroso demais para ela continuar vivendo ali.

Rosolowski e Ludvika se envolveram no esquema e, depois de longas discussões, alterações e correções, o plano de fuga ficou estabelecido. De início, queriam que Migurski fugisse sozinho, a pé, depois de ser declarado morto por afogamento. Albina iria embora de carruagem e o encontraria num lugar combinado. Esse foi o primeiro plano. Mas depois, quando Rosolowski contou a respeito de todas as tentativas fracassadas de fuga dos últimos cinco anos na Sibéria (tempo em que só um felizardo tinha conseguido se salvar), Albina concebeu outro plano, no qual Iusiô viajaria com ela e Ludvika, escondido na carruagem, até Sarátov. Em Sarátov, disfarçado, ele caminharia rio abaixo pela margem do Volga e, num local combinado, entraria num barco que Albina alugaria em Sarátov e ele navegaria com Albina e Ludvika rio abaixo pelo Volga, até Astrakhan, atravessariam o mar Cáspio e chegariam à Pérsia. O plano foi aprovado por todos, inclusive por seu principal arquiteto, Rosolowski, mas surgiu o problema de instalar na carruagem um esconderijo que não chamasse a atenção das autoridades e ao mesmo tempo fosse capaz de comportar uma pessoa. Quando Albina, depois de uma visita ao túmulo dos filhos, disse a Rosolowski que sentia muita tristeza por deixar as cinzas dos filhos numa terra estrangeira, ele pensou um pouco e disse:

–Peça às autoridades permissão para levar consigo os caixões dos filhos, eles vão autorizar.

–Não, eu não quero, não quero fazer isso! – disse Albina.

–Peça. Faça apenas isso. Não vamos levar os caixões, mas faremos uma caixa grande para eles e, lá dentro, instalaremos o Ióssif.

Por um momento, Albina quis rejeitar a sugestão, pois achava repulsivo associar aquela fraude à memória dos filhos, mas, quando Migurski aprovou com alegria o projeto, ela também concordou.

Portanto o plano definitivo ficou estabelecido assim: Migurski faria tudo o que fosse necessário para persuadir as autoridades de que havia se afogado. Quando sua morte fosse reconhecida, Albina mandaria a solicitação para que, após a morte do marido, tivesse permissão de voltar a seu país e levar consigo as cinzas dos filhos. Quando ela recebesse a permissão, dariam a impressão de que as sepulturas tinham sido escavadas e os caixões, exumados, mas os caixões continuariam no mesmo lugar e, em vez dos caixões dos filhos, na caixa preparada com esse fim, seria instalado Migurski. Fixariam a caixa na carruagem e seguiriam assim até Sarátov. Em Sarátov, tomariam um barco. No barco, Iusiô sairia da caixa e eles seguiriam pelo rio até o mar Cáspio. De lá, iriam para a Pérsia ou para a Turquia e... para a liberdade.
IX

 

 

 

Antes de tudo, os Migurski compraram uma carruagem sob o pretexto de que Ludvika ia partir para a terra natal. Depois teve início a instalação no veículo de uma caixa, dentro da qual, sem sufocar, fosse possível ficar deitado, ainda que torto, e da qual fosse possível sair e entrar outra vez, rastejando, depressa e sem ser notado. Os três, Albina, Rosolowski e o próprio Migurski, projetaram e fixaram a caixa. Foi especialmente importante a ajuda de Rosolowski, que era um bom marceneiro. A caixa foi feita de modo que, fixada às hastes traseiras da carroceria, ficou bem unida a ela, e a parede colada à carroceria podia ser aberta, de tal modo que um homem, depois de baixar a parede, podia deitar-se e ficar com uma parte do corpo na caixa e a outra no fundo da carruagem. Além disso, na caixa, foram abertos furos para a entrada de ar, e a parte de cima e as laterais da caixa deviam ser cobertas por esteiras, presas por cordas. Era possível entrar e sair da caixa pelo interior da carruagem, onde foi feito um assento.

Quando a carruagem e a caixa ficaram prontas, antes mesmo do desaparecimento do marido, Albina, a fim de preparar as autoridades, procurou o coronel e comunicou que o marido tinha caído num estado de melancolia, tentara se matar e que ela temia por sua vida e pedia que o libertassem enquanto ainda era tempo. Seus talentos na arte dramática foram úteis. A preocupação e o medo que exprimiu pelo marido foram tão naturais que o coronel ficou tocado e prometeu fazer tudo o que pudesse. Depois disso, Migurski compôs a carta que devia ser encontrada no punho de seu capote, na beira do rio Ural e, no dia combinado, à tardinha, foi até o rio Ural, esperou escurecer, deixou na margem a roupa, o capote com a carta e, às escondidas, voltou para casa. No sótão, trancado com ferrolho, foi preparado um esconderijo para ele. À noite, Albina mandou Ludvika comunicar ao coronel que o marido tinha saído de casa vinte horas antes e não voltara. De manhã, trouxeram para ela a carta do marido e Albina, com expressão de forte desespero, em lágrimas, levou-a para o coronel.

Uma semana depois, Albina entregou um pedido para voltar à terra natal. O sofrimento que a sra. Migurski exprimia impressionava a todos que a viam. Todos tinham pena da mãe e esposa infeliz. Quando sua partida foi autorizada, ela mandou outro pedido: uma autorização para exumar os cadáveres dos filhos e levá-los consigo. As autoridades ficaram admiradas com aquele sentimentalismo, mas acataram também esse pedido.

No dia seguinte, depois de receber a autorização, à tardinha, Rosolowski, Albina e Ludvika, num coche alugado e com uma caixa onde deviam ser colocados os caixões dos filhos, partiram rumo ao cemitério e ao túmulo dos filhos. Albina, de joelhos diante da sepultura dos filhos, rezou, logo se levantou e, de sobrancelhas franzidas, dirigindo-se a Rosolowski, disse:

–Faça o que for preciso, eu não consigo... – e se afastou.

Rosolowski e Ludvika moveram a pedra sepulcral e escavaram com a pá as camadas de terra de cima da sepultura, de modo a dar a impressão de que a terra do túmulo tinha sido revirada. Uma vez feito isso, chamaram Albina e, com a caixa cheia de terra, voltaram para casa.

Chegou o dia marcado para a partida. Rosolowski se alegrou com o bom andamento do plano, já levado quase até o fim. Ludvika assou biscoitos e tortas para a viagem e, recitando seu provérbio predileto, “Jak mame kocham”,12 dizia que seu coração estava rebentando de medo e de alegria. Migurski estava muito alegre por se livrar do sótão, onde já estava escondido fazia mais de um mês, e sobretudo com a animação e o entusiasmo de Albina. Ela parecia ter esquecido a antiga mágoa, todo o perigo e, como nos tempos de menina, corria ao encontro dele, no sótão, radiante e extasiada de alegria.

Às três horas da manhã, chegou o cossaco que ia acompanhá-las, trazendo um cocheiro cossaco e uma troica de cavalos. Albina, Ludvika e um cãozinho sentaram nas almofadas da carruagem, cobertas por um tapete. O cossaco e o cocheiro sentaram-se na boleia. Migurski, em trajes de camponês, estava deitado no interior da carroceria da carruagem.

Saíram da cidade e a boa troica conduziu a carruagem pela estrada batida e lisa como pedra, através da estepe infinita, de terra não lavrada, coberta pelo capim prateado, crescido no ano anterior.
X

 

 

 

No peito de Albina, o coração se apertava de esperança e exaltação. Desejando compartilhar seus sentimentos, de vez em quando, quase sorrindo, ela acenava com a cabeça para Ludvika, apontando ora para as costas largas do cossaco sentado na boleia, ora para o fundo da carruagem. Ludvika, com fisionomia expressiva, olhava imóvel para a frente e apenas franzia os lábios muito de leve. O dia estava claro. A estepe vazia e ilimitada se alastrava para todos os lados, o capim prateado reluzia nos raios oblíquos do sol da manhã. Viam-se montinhos de terra feitos por esquilos, ora de um lado, ora do outro da estrada dura, na qual os cascos ligeiros e não ferrados dos cavalos dos baskires batiam com som oco, como se andassem sobre asfalto; sentados no alto daqueles montinhos, os animaizinhos ficavam de sentinela e, ao pressentir o perigo, davam um guincho estridente e se escondiam na toca. Era raro elas encontrarem um viajante: apenas alguma carroça de cossacos com trigo ou baskires a cavalo, com os quais o cossaco trocava zombarias animadas, misturadas com palavras tártaras. Em todas as estações de muda, os cavalos estavam descansados e bem alimentados e as moedas de meio rublo que Albina dava para a vodca garantiam que os cocheiros tocassem os animais a galope por todo o caminho, como Feldjägers,13 nas palavras deles.

Já na primeira estação de muda, na hora em que o cocheiro anterior desatrelou os cavalos e o novo ainda não havia trazido os outros, e o cossaco tinha ido para o pátio, Albina se curvou e perguntou ao marido como se sentia, se precisava de alguma coisa.

–Está tudo ótimo, fique tranquila. Não preciso de nada. Posso muito bem ficar aqui deitado dois dias e duas noites.

Ao anoitecer, chegaram à grande aldeia de Dergatchi. Para que o marido pudesse esticar os braços e as pernas e se refrescar, Albina parou não numa estação de muda de cavalos, mas sim numa estalagem de cocheiros, e imediatamente deu um dinheiro para o cossaco e mandou-o comprar ovos e leite. A carruagem estava embaixo de um toldo, no pátio estava escuro e, depois de mandar Ludvika vigiar o cossaco, Albina deixou o marido sair do esconderijo, alimentou-o e, antes do regresso do cossaco, Migurski rastejou de novo para seu esconderijo. Atrelaram novos cavalos e seguiram adiante, outra vez. Albina sentia uma exaltação de ânimo cada vez maior e não conseguia conter seu entusiasmo e sua alegria. Não tinha com quem falar, a não ser com Ludvika, o cossaco e o cachorro Trezorka, e Albina se divertia com eles.

Ludvika, apesar de sua falta de beleza, a cada contato com um homem, logo achava que ele tinha intenções amorosas em relação a ela e agora supunha exatamente isso, a respeito do corpulento e simpático cossaco do Ural, de olhos azuis, bondosos e extraordinariamente claros, que as conduzia e que, com sua simplicidade e seu carinho bondoso, agradava muito às duas mulheres. Além de Trezorka, que Albina ameaçava, impedindo que ele ficasse farejando embaixo do assento, ela agora se divertia com Ludvika e suas cômicas tentativas de sedução do cossaco, que nem desconfiava das intenções atribuídas a ele e sorria com muita simpatia em resposta a tudo que lhe diziam. Albina, animada com o perigo, com o sucesso do plano que começava a se realizar, com o tempo bonito que estava fazendo e com o ar da estepe, experimentava um entusiasmo e uma alegria infantil, que fazia muito tempo não provava. Migurski ouvia as palavras alegres de Albina e, apesar do incômodo físico de sua posição, que ele escondia das mulheres (sentia muito calor e a sede o torturava), esquecendo-se de si mesmo, também se alegrava com a alegria de Albina.

Na tarde do segundo dia, começaram a distinguir algo na neblina. Era Sarátov e o rio Volga. Com seus olhos de homem da estepe, o cossaco avistou o Volga e os mastros dos barcos e apontou-os para Ludvika. Ela disse que também estava vendo. Mas Albina não conseguia enxergar nada. E falou alto, de propósito, para que o marido também pudesse ouvir:

–Sarátov, o Volga – como se estivesse falando para o cachorro Trezorka, Albina contava ao marido tudo o que estava vendo.
XI

 

 

 

Sem entrar em Sarátov, Albina parou a carruagem no lado esquerdo do Volga, no vilarejo de Pokrov, bem em frente à cidade. Ali, Albina tinha esperança de poder conversar com o marido durante a noite e até de retirá-lo do esconderijo. No entanto, durante toda a curta noite de verão, o cossaco não se afastou da carruagem e ficou sentado junto a ela, numa carroça vazia, parada embaixo de um telheiro. A pedido de Albina, Ludvika ficou na carruagem e, como estava absolutamente convencida de que era por sua causa que o cossaco não se afastava da carruagem, Ludvika piscava o olho, ria e cobria com o xale o rosto marcado pela varíola. Mas Albina já não via nisso nenhuma graça e, cada vez mais, se inquietava, sem entender por que o cossaco se mantinha tão obstinadamente perto da carruagem.

Durante aquela breve noite de maio, em que o pôr do sol se misturava com a aurora, Albina saiu várias vezes dos aposentos da estalagem, através do corredor malcheiroso, e ia ao alpendre dos fundos. O cossaco continuava acordado e, com os pés para baixo, se mantinha sentado na carroça vazia, ao lado da carruagem. Pouco antes do raiar do dia, quando os galos já haviam despertado e cantavam uns para os outros em várias casas, Albina saiu mais uma vez para tentar falar com o marido. O cossaco roncava, estirado na carroça. Albina se aproximou da carruagem com cuidado e bateu na caixa.

–Iusiô! – Não veio resposta. – Iusiô, Iusiô! – assustada, ela falou mais alto.

–O que é, querida, o que foi? – exclamou Migurski com voz de sono, dentro da caixa.

–Por que não respondeu?

–Estava dormindo – sussurrou ele, e Albina, pelo tom de voz, entendeu que ele estava sorrindo. – E então, vou sair? – perguntou.

–Não é possível, o cossaco está aqui. – E, dizendo isso, espiou o cossaco, que dormia na carroça.

E o extraordinário era que o cossaco roncava, mas seus olhos, os bondosos olhos azuis, estavam abertos. O cossaco olhava para ela e, percebendo o olhar de Albina, fechou os olhos.


“Foi impressão minha ou parece mesmo que ele não está dormindo?”, perguntou-se Albina. “Sem dúvida, foi só impressão”, pensou e dirigiu-se de novo ao marido.

–Aguente mais um pouco – disse ela. – Quer comer?

–Não. Quero fumar.

Albina olhou outra vez para o cossaco. Estava dormindo. “Sim, foi só impressão minha”, pensou.

–Agora vou falar com o governador.

–Certo, é uma boa hora...

E Albina, depois de pegar um vestido na mala, foi para o quarto trocar de roupa.

Usando seu melhor vestido de viúva, Albina atravessou o Volga. No cais, pegou um coche de aluguel e foi ao encontro do governador. O governador a recebeu. A bela viúva polonesa, de sorriso meigo, que falava francês esplendidamente, causou uma ótima impressão no velho governador, que gostava de passar por jovem. Ele acatou tudo que ela solicitou e pediu que Albina voltasse no dia seguinte para receber dele a ordem escrita para o governador da cidade de Tsarítsin. Contente com o êxito de sua petição e com o efeito de seu aspecto atraente, que ela percebeu na atitude do governador, Albina, feliz e cheia de esperança, voltou morro abaixo pela rua não calçada, no coche, rumo ao cais. O sol já estava acima da floresta e, com os raios oblíquos, reluzia na água encrespada do vasto rio. À direita e à esquerda, pelo morro, viam-se macieiras cobertas de flores cheirosas, como nuvens brancas. Via-se uma floresta de mastros junto à margem e as velas brilhavam brancas na água do rio, encrespada pela brisa e reluzente com o sol. No cais, ao conversar com o cocheiro de praça, Albina perguntou se podia alugar um barco até Astrakhan e logo dezenas de barqueiros ruidosos, alegres, ofereceram-lhe seus serviços e seus barcos. Albina acertou tudo com um dos barqueiros, que lhe agradou mais do que os outros, e foi examinar sua embarcação, que estava no cais, espremida no meio dos outros barcos. Tinha um pequeno mastro com uma vela adaptada, para poder se deslocar com o vento. No caso de não ventar, havia remos e, sentados no barco debaixo do sol, dois vigorosos e alegres barqueiros, prontos para remar ou ir para a margem e puxar a embarcação com cordas. O piloto simpático e animado recomendou a Albina não abandonar a carruagem, mas retirar as rodas e levá-la para o barco.

–Tem o espaço certinho para isso e na carruagem a senhora vai viajar com mais conforto. Se Deus nos permitir um tempo bom, chegaremos a Astrakhan em uns cinco dias.

Albina negociou o preço com o dono do barco e mandou que ele fosse mais tarde ao povoado de Pokrov, na estalagem dos Loguin, para examinar a carruagem e receber uma parte do pagamento. Tudo correu melhor do que ela esperava. No maior entusiasmo e felicidade, Albina atravessou o Volga e, depois de acertar as contas com o cocheiro de praça, se dirigiu à estalagem.
XII

 

 

 

O cossaco Danilo Lifánov era de Strelétski Umet, em Óbschi Sirt.14 Tinha trinta e quatro anos e estava terminando o último mês de seu tempo do serviço obrigatório dos cossacos. Na família, tinha um avô de noventa anos, que ainda se lembrava de Pugatchóv, dois irmãos, a nora do irmão mais velho, condenado a trabalhos forçados na Sibéria por ser adepto dos Velhos Crentes, a esposa, duas filhas e dois filhos. Seu pai tinha morrido na guerra contra os franceses. Agora, era ele que sustentava a família. Tinham dezesseis cavalos, duas parelhas de bois para puxar o arado e quinhentas sájeni de terras próprias, aradas e plantadas com trigo. Danilo prestara o serviço obrigatório em Orenburg, em Kazan e agora estava concluindo seu tempo de serviço. Seguia com afinco a fé dos Velhos Crentes, não fumava, não bebia, não comia nos pratos usados pelos mundanos e, com o mesmo rigor, era fiel ao juramento que havia prestado. Em tudo que fazia, era lento, rigoroso e minucioso na execução daquilo que seu chefe ordenara, empregava toda a sua atenção e, até ter encerrado tudo, não esquecia por nenhum instante sua missão, tal como a entendia. Dessa vez, suas ordens eram conduzir até Sarátov duas polonesas e os caixões, para que nada de ruim lhes acontecesse na viagem, para que elas viajassem sem sofrer nenhuma maldade, e, em Sarátov, entregá-las sãs e salvas às autoridades. Assim, ele as levou até Sarátov com o cachorrinho e com todos os seus caixões. Mas ali no povoado de Pokrov, à tarde, ao passar pela carruagem, ele viu que o cachorro saltou para dentro da carruagem e, lá, começou a ganir e abanar o rabo, e o cossaco teve a impressão de ouvir uma voz que vinha da parte de baixo da carruagem. Uma das polonesas, a mais velha, ao ver o cachorro dentro da carruagem, se assustou, pegou o cachorro e o levou embora.

“Tem alguma coisa aí”, pensou o cossaco e começou a observar. Quando a polonesa jovem saiu à noite e foi à carruagem, ele fingiu que dormia e ouviu claramente a voz do marido, dentro da caixa. De manhã cedo, o cossaco foi à polícia e comunicou que as polonesas que ele fora encarregado de acompanhar estavam agindo mal e, em vez de mortos, levavam um homem vivo dentro de uma caixa.

Albina voltou à estalagem num estado de ânimo muito alegre e exultante, convencida de que agora tudo estava terminado e de que, dali a poucos dias, eles estariam livres, mas quando chegou viu com surpresa, junto ao portão, uma carruagem elegante com uma parelha de cavalos e um terceiro cavalo ao lado, além de dois cossacos. No portão, amontoava-se um bando de gente, olhando para a estalagem.

Albina estava tão cheia de esperança e de energia que nem passou pela sua cabeça que a parelha de cavalos e as pessoas aglomeradas tinham alguma relação com ela. Entrou no pátio e, assim que olhou para o telheiro onde estava sua carruagem, viu que as pessoas estavam aglomeradas justamente em volta da sua carruagem e, no mesmo instante, ouviu um latido desesperado de Trezorka. Aconteceu exatamente a coisa horrível que podia acontecer. Diante da carruagem, reluzente em seu uniforme limpo, cintilante ao sol, com os botões, os galões e as botas laqueadas, estava um homem distinto, de suíças pretas, que falava algo em voz alta, rouca e autoritária. À sua frente, entre dois soldados, em trajes de camponês, com feno misturado aos fios do cabelo alvoroçado, estava o seu Iusiô e, com o ar de quem não entendia o que se passava à sua volta, erguia e baixava os ombros vigorosos. Trezorka, sem saber que ele era a causa de toda aquela infelicidade, eriçava o pelo e latia raivoso e em vão para o chefe de polícia. Ao ver Albina, Migurski teve um sobressalto, quis andar na direção dela, mas os soldados o seguraram.

–Está tudo bem, Albina, está tudo bem! – exclamou Migurski, sorrindo do seu jeito dócil.

–Aí está a senhora! – exclamou o chefe de polícia. – Por favor, venha cá. Os caixões são de seus filhos? Hein? – disse ele, piscando os olhos para Migurski.

Albina não respondeu, apenas apertou o peito com as mãos, abriu a boca e olhou com horror para o marido.

Como acontece nos minutos que antecedem a morte e, em geral, nos momentos decisivos da vida, num instante ela pressentiu e previu um turbilhão de sentimentos e pensamentos e, no entanto, ainda não entendia e não acreditava em sua desgraça. O primeiro foi um sentimento que ela já conhecia havia muito tempo – o sentimento de orgulho ferido ao ver seu marido e herói humilhado diante daquelas pessoas rudes, selvagens, que agora o tinham sob seu poder. “Como se atrevem a prender a ele, o melhor entre todos os homens?” O outro sentimento que a dominou, ao mesmo tempo que aquele, foi a consciência da desgraça que estava de fato ocorrendo. E a consciência de tal desgraça despertou em sua memória a principal desgraça de sua vida: a morte dos filhos. E logo lhe veio a pergunta: para quê? Para que os filhos foram tirados dela? E essa pergunta, para quê os filhos foram tirados dela, despertou outra: para que aniquilar e torturar agora seu marido, o melhor dos homens? E então ela lembrou o castigo desonroso que o aguardava e também que ela, só ela, era a culpada daquilo.

–O que ele é da senhora? Seu marido? – repetiu o chefe de polícia.

–Para quê? Para quê? – gritou Albina e, dando uma risada histérica, caiu sobre a caixa, que tinha sido retirada da carroceria e agora estava no chão, ao lado da carruagem. Toda trêmula de soluços, com o rosto coberto de lágrimas, Ludvika se aproximou de Albina.

–Panienka, querida panienka! Jak Boga kocham,15 nada vai acontecer, nada – disse Ludvika, aturdida, afagando Albina.

Algemaram Migurski e o levaram embora. Ao ver isso, Albina correu atrás dele.

–Perdoe-me, perdoe-me – disse ela. – É tudo culpa minha! Sou a única culpada.

–Lá no tribunal será decretado de quem é a culpa. E a questão vai alcançar a senhora – disse o chefe de polícia e, com a mão, empurrou-a para trás.

Levaram Migurski para a passagem que atravessava o rio e Albina, sem saber por que agia assim, foi atrás deles sem dar ouvidos aos apelos de Ludvika.

O cossaco Danilo Lifánov, durante todo o tempo, ficou junto a uma roda da carruagem, lançando olhares sombrios ora para o chefe de polícia, ora para Albina, ora para os próprios pés.

Quando levaram Migurski embora, Trezorka se viu sozinho e, abanando o rabo, começou a se esfregar no cossaco. Danilo tinha se acostumado ao cachorro durante a viagem. De repente, o cossaco se desencostou da carruagem, arrancou o gorro da cabeça, jogou-o com toda a força de encontro ao chão, empurrou Trezorka para longe com o pé e entrou numa taverna. Ali, pediu vodca e bebeu um dia e uma noite seguidos, bebeu todo o dinheiro que tinha e toda a roupa do corpo e só na noite seguinte, ao acordar caído numa vala, parou de pensar na pergunta que o torturava: será que tinha agido bem ao denunciar às autoridades que o marido da polonesinha estava dentro da caixa?

Migurski foi julgado e condenado a passar por um corredor de soldados, com mil varas. Seus parentes e Wanda, que tinham conhecidos em Petersburgo, apelaram para amenizar o castigo e ele foi enviado para o exílio perpétuo na Sibéria. Albina foi com ele. Já Nikolai Pávlovitch estava alegre, porque havia esmagado a hidra da revolução, não só na Polônia, mas em toda a Europa, e se orgulhava por não ter violado os princípios da autocracia russa e, para o bem do povo russo, ter mantido a Polônia sob o poder da Rússia. E pessoas de medalhas e de uniformes engalanados o exaltaram por isso a tal ponto que ele mesmo acreditou sinceramente que era um grande homem e que sua vida era um grande bem para a humanidade, sobretudo para os russos, cuja corrupção e cujo entorpecimento constituíam o objetivo inconsciente de todos os seus poderes.

1906

O DIVINO E O HUMANO
I

 

 

 

Eram os anos 1870, na Rússia, no auge da luta dos revolucionários contra o governo.

O general governador de uma província do sul, um alemão robusto, de bigode curvado para baixo, olhar frio, rosto inexpressivo e casaco militar, com uma cruz branca no pescoço, estava à noite em seu gabinete, sentado diante da mesa, com quatro velas acesas atrás de abajures verdes, e examinava e assinava documentos levados a ele por seu secretário. “General ajudante fulano”, concluía ele, com um floreado comprido da pena, e punha o documento de lado.

Entre os documentos, estava a sentença de morte na forca de um candidato à universidade de Novorrossia chamado Anatóli Svetlogub, por tomar parte numa conspiração cujo objetivo era derrubar o governo vigente. O general, com uma contração especial das sobrancelhas, assinou também esse documento. Com os dedos brancos, bem cuidados, enrugados pela velhice e pelo sabonete, ele alinhou meticulosamente as beiradas das folhas de papel e colocou-as de lado. O documento seguinte tratava da destinação de dinheiro para o transporte de provisões militares. Ele estava lendo com atenção o documento, pensando se as quantias tinham sido calculadas de modo correto, quando de repente se lembrou de sua conversa com seu ajudante de ordens sobre o caso de Svetlogub. O general supunha que a descoberta de dinamite na casa de Svetlogub ainda não bastava para provar sua intenção criminosa. Já o ajudante de ordens insistia no fato de que, além da dinamite, havia muitos indícios que mostravam que Svetlogub era o cabeça do bando. E, lembrando isso, o general pôs-se a refletir e, por baixo do casaco acolchoado no peito e com lapelas duras como papelão, o coração começou a bater descompassado e o general respirou de modo tão ofegante que a grande cruz branca, objeto de sua alegria e de seu orgulho, se agitou sobre o peito. Ainda era possível chamar de volta o secretário e, se não modificar, pelo menos adiar a sentença.

“Chamar de volta? Não chamar?”

O coração continuava batendo descompassado. Ele tocou a sineta. Em passos ligeiros e silenciosos, entrou o mensageiro.

–Ivan Matviéievitch já saiu?

–Não, senhor, Vossa Excelentíssima, ele se dirigiu à chancelaria.

O coração do general ora estancava, ora dava pancadas aceleradas. Ele se lembrou da advertência do médico que o auscultara dias antes de seu ataque do coração: “O principal”, dissera o médico, “é que o senhor, assim que sentir que existe um coração, interrompa seus afazeres e se distraia. O pior de tudo são as emoções fortes. Não permita isso em nenhuma hipótese”.

–O senhor quer que eu o chame?

–Não, não precisa – respondeu o general. “Sim”, disse consigo, “a indecisão é o que mais perturba. Está assinado e pronto, acabou. Ein jeder macht sich sein Bett und muss d’rauf schlafen”,1 repetiu para si seu provérbio predileto. “Afinal, isso não é da minha conta. Sou um executor de uma vontade superior e devo ficar acima de tais considerações”, acrescentou, movendo as sobrancelhas, a fim de incutir em si a crueldade que não existia em seu coração.

E então se lembrou de seu último encontro com o soberano e como o soberano, depois de mostrar um rosto severo e dirigir a ele seu olhar de vidro, disse: “Confio em você: assim como não se poupou na guerra, agirá com a mesma determinação na luta contra os vermelhos, não ceda, não se iluda e não tenha medo. Adeus!”. E, depois de lhe dar um abraço, o soberano lhe ofereceu o ombro para receber um beijo. O general lembrou-se daquilo e também do que respondeu ao soberano: “Meu único desejo é dar minha vida a serviço de meu soberano e da pátria”.

E, tendo recordado o sentimento de comoção servil que experimentou com a consciência da devoção abnegada ao soberano, o general afastou de si o pensamento que o confundira por um momento, assinou os documentos restantes e tocou a sineta outra vez.

–O chá está pronto? – perguntou.

–Vou servir já, Vossa Excelentíssima.

–Está bem, vá.

O general suspirou fundo e, esfregando a mão no lugar onde ficava o coração, saiu em passos arrastados rumo a um grande salão vazio e, atravessando o assoalho recém-encerado do salão, entrou na sala de visitas, de onde vinham vozes.

A esposa do general recebia convidados: o governador e a esposa, uma velha princesa, grande patriota, e um oficial da guarda, noivo da última filha solteira do general.

A esposa do general, seca, de rosto frio e lábios finos, sentada diante de uma mesinha baixa, sobre a qual estavam as xícaras de chá, com uma chaleira prateada sobre um bico de gás aceso, contava num falso tom de tristeza para uma senhora gorda, que se fazia de jovem, esposa do governador, suas inquietações com a saúde do marido.

–Todo dia, chegam novas mensagens revelando conspirações e uma porção de coisas horríveis... E tudo isso cai nas costas de Basile, ele tem de resolver tudo.

–Ah, nem me fale! – disse a princesa. – Je deviens féroce quand je pense à cette maudite engeance.2

–Sim, sim, é horrível! Acredite, ele trabalha doze horas por dia, e com seu coração fraco. Tenho muito medo de que...

Ela não terminou, vendo que o marido se aproximava.

–Sim, a senhora não pode deixar de ouvi-lo. Barbini é um tenor extraordinário – disse ela, sorrindo com simpatia para a esposa do governador, referindo-se a um cantor recém-chegado de maneira tão natural como se elas estivessem, de fato, conversando sobre aquilo.

A filha do general, mocinha carnuda e atraente, estava sentada com o noivo num canto afastado da sala, atrás de um pequeno biombo chinês. Ela se levantou e, acompanhada do noivo, se aproximou do pai.

–Puxa, nós nem nos vimos hoje! – disse o general, beijando a filha e apertando a mão do noivo.

Depois de cumprimentar os convidados, o general sentou-se junto à mesinha e travou conversa com o governador sobre as últimas notícias.

–Não, não, não vamos falar de trabalho, é proibido! – a esposa do general interrompeu as palavras do governador. – Ah, bem na hora, chegou o Kopiov; ele vai nos contar algo divertido. Bom dia, Kopiov.

E Kopiov, famoso gozador e espirituoso, de fato contou a mais recente anedota, que fez todos rirem.
II

 

 

 

–Não, não é possível, não pode ser, não pode! Larguem-me! – gritava a mãe de Svetlogub com voz estridente, desvencilhando-se das mãos de um professor do ginásio, camarada do filho, e de um médico, que tentavam contê-la.

A mãe de Svetlogub era uma mulher de boa aparência, ainda jovem, com cachos que começavam a ficar grisalhos e rugas em forma de estrela no canto dos olhos. O professor, camarada de Svetlogub, que já sabia que a sentença de morte tinha sido assinada, queria prepará-la com cuidado para a notícia terrível, mas assim que começou a falar sobre Svetlogub, pelo tom da voz, pelo olhar temeroso, a mulher adivinhou que acontecera o que ela temia.

Aquilo se passava num pequeno quarto do melhor albergue da cidade.

–Por que vocês me seguram? Larguem-me! – gritou, desvencilhando-se do médico, velho amigo de seu filho, que com uma mão a segurava pelo cotovelo magro e, com a outra, colocava sobre a mesa oval, na frente do sofá, um frasco de gotas calmantes. Ela estava contente por eles a segurarem, pois sentia que precisava fazer alguma coisa, mas não sabia o quê, e tinha medo de si mesma.

–Acalme-se. Tome, beba umas gotas – disse o médico, oferecendo um copo com um líquido turvo.

Ela se acalmou de repente, quase dobrou o corpo ao meio, baixou a cabeça até o peito afundado e, de olhos fechados, deixou-se cair no sofá.

E lembrou como o filho, três meses antes, se despedira, com um ar misterioso e tristonho. Depois se lembrou do menino de oito anos, de casaquinho de veludo, perninhas nuas e cabelos compridos, louros, torcidos em cachos. “E é com ele, ele, esse mesmo menino... que vão fazer isso!”

Ela se levantou de um pulo, empurrou a mesa e se desprendeu das mãos do médico. Ao chegar à porta, ela tombou de novo numa poltrona.

–E ainda dizem... que Deus existe! Que Deus é ele, se permite uma coisa dessas? Que o diabo o carregue, a esse Deus! – gritou, ora soluçando, ora dando uma risada histérica. – Vão enforcar, vão enforcar aquele que abriu mão de tudo, de toda a carreira, que entregou a fortuna aos outros, ao povo, deu tudo – disse ela, que antes sempre censurara o filho justamente por fazer aquilo, mas agora enaltecia para si mesma o mérito que havia na abnegação do filho. – E é com ele, com ele, que vão fazer isso! E vocês ainda me dizem que Deus existe! – gritou.

–Sim, não digo nada, apenas peço à senhora que tome umas gotas.

–Não quero nada. Ha, ha, ha! – gargalhava e soluçava, inebriando-se com o próprio desespero.

À noite, estava tão exausta que já não conseguia falar nem chorar, apenas olhava fixo para a frente, com um olhar parado, louco. O médico lhe aplicou uma dose de morfina e ela adormeceu.

O sono foi sem sonhos, mas o despertar foi ainda mais horrível. E o mais horrível de tudo era que as pessoas pudessem ser tão cruéis, não só os horríveis generais de barba raspada e os policiais, mas todos, todos: a jovem arrumadeira, que com o rosto tranquilo veio arrumar o quarto; os hóspedes no quarto vizinho, que se cumprimentaram com alegria e riram de alguma coisa, como se não estivesse acontecendo nada.
III

 

 

 

Svetlogub estava preso havia mais de um mês numa cela solitária e, durante aquele tempo, tinha sofrido muito.

Desde a infância, de modo inconsciente, Svetlogub sentia a injustiça de sua condição excepcional de homem rico e, embora tentasse sufocar essa consciência dentro de si mesmo, muitas vezes, quando encontrava gente necessitada, e em certas ocasiões só por sentir-se especialmente bem e alegre, ele ficava envergonhado diante daquelas pessoas – camponeses, velhos, mulheres, crianças que nasciam, cresciam e morriam não só sem conhecer todas as alegrias que ele desfrutava, sem lhes dar valor, como também sem conseguir jamais escapar da fadiga, do trabalho e da pobreza. Quando terminou a universidade, a fim de se libertar da consciência da própria culpa, criou uma escola em suas terras, no campo, uma escola-modelo, um armazém de consumo comunitário, um asilo para velhas e velhos desamparados. Porém, por estranho que pareça, mesmo se ocupando com alegria de tais afazeres, que lhe traziam proveito, sua vergonha diante do povo era ainda maior do que quando jantava com os amigos ou galopava num cavalo caro e puro-sangue. Sentia que tudo aquilo não era o correto e, até pior do que isso: era algo ruim, moralmente impuro.

Num daqueles períodos em que se sentia decepcionado com suas iniciativas no campo, foi a Kíev e se encontrou com um de seus melhores camaradas da universidade. Esse camarada, três anos depois do encontro dos dois, foi fuzilado no fosso da fortaleza de Kíev.

Aquele camarada, fervoroso, determinado e com enormes talentos, convencera Svetlogub a participar de uma sociedade cujos fins eram a educação do povo, a promoção da consciência de seus direitos e a formação de círculos interligados, que trabalhassem com afinco para se libertar do poder dos senhores de terras e do governo. As conversas com aquele homem e seus amigos pareceram a Svetlogub criar uma consciência clara de tudo que até então ele sentia de maneira confusa. Agora ele entendia o que precisava fazer. Sem interromper a relação com os novos camaradas, foi para o campo e, lá, deu início a uma atividade bem diferente. Ele mesmo passou a ser o professor, organizou turmas para adultos, lia para eles livros e folhetos, explicava aos camponeses sua situação; além disso, imprimia livros e folhetos populares clandestinos e, sem tocar no que pertencia à mãe, gastava tudo que podia na construção de centros semelhantes em outras aldeias.

Desde os primeiros passos da nova atividade, Svetlogub encontrou dois obstáculos inesperados: um foi que a maioria das pessoas do povo não só era indiferente a suas exortações como olhava quase com desprezo para ele. (Só alguns indivíduos fora do comum e, muitas vezes, pessoas de moralidade duvidosa o compreendiam e mostravam simpatia por ele.) O outro obstáculo veio do governo. A escola foi proibida, fizeram buscas em sua casa e nas casas de pessoas próximas a ele e apreenderam livros e documentos.

Svetlogub deu pouca atenção ao primeiro obstáculo – a indiferença do povo –, pois ficou chocado demais com o segundo obstáculo: os atos de repressão do governo, insensatos e ultrajantes. O mesmo sofriam seus camaradas, em suas atividades em outros lugares, e o sentimento de irritação com o governo, fomentado de modo recíproco, chegou a tal ponto que a maior parte daquele círculo resolveu usar a força na luta contra o governo.

O chefe do círculo era um certo Mejeniétski – que todos consideravam dotado de uma força de vontade inabalável, de uma lógica invencível e totalmente dedicado à revolução.

Svetlogub se submeteu à influência daquele homem e, com a mesma energia com que antes trabalhava no campo, se entregou à atividade terrorista. Tratava-se de uma atividade perigosa, mas era exatamente o perigo que atraía Svetlogub, acima de tudo.

Dizia para si: “A vitória ou o martírio e, se for o martírio, esse martírio será também uma vitória, só que no futuro”. E o fogo aceso dentro dele não só não se apagou no decorrer dos sete anos de sua atividade revolucionária como ardeu cada vez mais forte, sustentado pelo amor e pelo respeito que tinha pelas pessoas que o rodeavam.

Ele não atribuía nenhuma importância ao fato de ter dado àquela causa quase toda a sua fortuna, deixada em herança pelo pai; tampouco dava importância ao trabalho árduo e às necessidades que muitas vezes tinha de suportar naquela atividade. Só uma coisa o afligia: era o sofrimento que ele, com tal atividade, causava à mãe e à sua protegida, uma jovem que morava com ela e que amava Svetlogub.

Nos últimos tempos, um camarada terrorista desagradável e de que ele não gostava, vendo-se perseguido pela polícia, pediu a Svetlogub que escondesse dinamite para ele. Sem hesitar, Svetlogub concordou justamente porque não gostava daquele camarada, mas, no dia seguinte, a polícia deu uma busca no apartamento de Svetlogub e achou a dinamite. Svetlogub se recusou a responder a todas as perguntas sobre a origem da dinamite.

E então o martírio que ele esperava começou. Nos últimos tempos, em que tantos amigos eram executados, presos, degredados, em que tantas mulheres sofriam, Svetlogub quase desejava o martírio. E nos primeiros minutos de detenção e interrogatório, ele sentiu uma emoção singular, quase uma alegria.

Experimentou esse sentimento quando o despiram, o revistaram, quando o levaram para a prisão e trancaram a porta de ferro. No entanto, quando passou um dia, outro, o terceiro, quando passou uma semana, e outra e a terceira, na cela úmida e imunda, repleta de insetos, na solidão e na ociosidade involuntária, apenas interrompida pelas mensagens que, por meio de batidas, trocava com os camaradas presos e que davam sempre notícias ruins e tristes, e de vez em quando por interrogatórios feitos por pessoas frias e hostis, que se empenhavam para arrancar dele a denúncia contra algum camarada, suas forças morais se debilitaram continuamente, junto com as forças físicas, e ele apenas se angustiava e desejava, como dizia para si, algum fim, qualquer que fosse, para aquela situação martirizante. Sua angústia aumentava também porque ele duvidava das próprias forças. No segundo mês de encarceramento, começou a se apanhar de surpresa pensando em contar toda a verdade, contanto que ficasse livre. Horrorizava-se com a própria fraqueza, mas já não encontrava em si as forças de antes, abominava e desprezava a si mesmo e sua angústia aumentava cada vez mais.

O mais horrível era que, na prisão, começou a lamentar a tal ponto as forças e as alegrias de juventude que ele havia sacrificado com tanta facilidade quando era livre, e que agora lhe pareciam tão fascinantes, que se arrependia do que considerava bom, às vezes se arrependia até de toda a sua atividade. Vinham-lhe pensamentos de como poderia viver bem e feliz, em liberdade – no campo, livre, no exterior, entre amigos queridos e amados. Casar com ela, talvez com outra, e ter com ela uma vida simples, alegre, radiante.
IV

 

 

 

Num dos dias torturantemente rotineiros do segundo mês de prisão, o carcereiro, em sua ronda habitual, deu a Svetlogub um livrinho com uma cruz dourada na capa marrom, e disse que a esposa do governador tinha visitado a prisão e deixara exemplares do Evangelho, que era permitido distribuir aos detentos. Svetlogub agradeceu e sorriu de leve, colocando o livrinho na mesinha encostada à parede.

Quando o carcereiro foi embora, Svetlogub comunicou aos vizinhos, por meio de batidas, que o carcereiro tinha vindo e nada contara de novo, apenas deixara o Evangelho, e um vizinho respondeu que também tinha ganhado um exemplar.

Depois do almoço, Svetlogub abriu as folhas do livrinho, grudadas pela umidade, e começou a ler. Nunca tinha lido o Evangelho como um livro. Tudo que sabia a respeito era o que o professor de religião, no ginásio, tinha ensinado e o que o padre e o sacristão liam na igreja, com voz cantada.

“Primeiro capítulo. Genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão [...], Isaac gerou Jacó, Jacó gerou Judá [...]”, leu ele. “[...] Zorobabel gerou Abiud [...]”, continuou a ler. Tudo aquilo era o que ele já esperava: um palavrório confuso e que não servia para nada. Se não estivesse na prisão, não conseguiria ler nem uma página, mas ali continuou a ler, pelo mero processo da leitura. “Como o Petruchka, de Gógol”,3 pensou. Leu o primeiro capítulo sobre o parto da Virgem e sobre a profecia segundo a qual dariam ao recém-nascido o nome de Emanuel, que significa “Deus está conosco”. “Mas de onde vem essa profecia?”, pensou, e continuou a ler. Leu também o segundo capítulo – sobre a estrela cadente –, e o terceiro – sobre João, que comia gafanhotos –, e o quarto – sobre uma espécie de diabo, que sugeriu a Cristo um exercício de ginástica, pulando do telhado. Tudo aquilo lhe pareceu tão desprovido de interesse que, apesar do tédio da prisão, já queria fechar o livro e começar sua atividade vespertina rotineira – tirar a camisa e catar pulgas no pano –, quando de repente lembrou que, numa prova que fez na quinta série do ginásio, ele tinha esquecido uma das bem-aventuranças e o professor, de cara rosada, cabelo crespo, de repente se irritou e lhe deu nota 2. Svetlogub não conseguia lembrar qual era a bem-aventurança e leu todas. “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos Céus”, leu. “Na certa, isso se refere a nós”, pensou. “Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem [...]. Alegrai-vos e regozijai-vos, [...] pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós.” “Vós sois o sal da terra. Se o sal se tornar insosso, com que a salgaremos? Para nada mais servirá, senão para ser jogado fora e pisado pelos homens.”

“Isso se refere a nós, não há dúvida”, pensou, e continuou a ler. Depois de ler o quinto capítulo até o fim, pôs-se a refletir: “Não se irrite, não cometa adultério, suporte o mal, ame os inimigos”.

“Sim, se vivêssemos desse jeito”, pensou, “nem seria preciso uma revolução.” Continuando a ler, o pensamento assimilava cada vez mais a fundo as passagens do livro que eram plenamente compreensíveis. E quanto mais lia, mais lhe vinha ao pensamento que, naquele livro, era dita uma coisa especialmente importante. Importante, simples e comovente, como ele jamais tinha ouvido antes, mas que também parecia algo já sabido por ele havia muito tempo.

“E a todos eles disse: ‘Se alguém quer vir comigo, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar a sua alma, vai perdê-la, mas aquele que perder a sua alma por causa de mim, esse a salvará. Pois que aproveitará ao homem ganhar o mundo inteiro e arruinar e perder a si mesmo?’ ”

–Sim, sim, é isso! – exclamou de repente, com lágrimas nos olhos. – Era isso mesmo que eu queria fazer. Sim, era isso mesmo que eu queria: dar minha alma; não salvar, mas dar. Nisso está a alegria desta vida. “Fiz muita coisa para as pessoas, para a glória humana”, pensou, “não para obter a glória da multidão, mas a glória da boa opinião daqueles que eu respeitava e amava: Natacha, Dmítri Chelómov, e então vinham dúvidas, eu ficava perturbado. Só me sentia bem quando fazia algo apenas porque a alma exigia, quando eu queria me dar, dar tudo...”

A partir desse dia, Svetlogub passou a dedicar a maior parte do tempo à leitura e à reflexão do que estava dito naquele livro. A leitura despertava nele não só um estado de comoção que o retirava das condições em que se encontrava, como também uma atividade de pensamento como ele jamais conhecera em si mesmo. Tentava entender por que razão as pessoas, todas as pessoas, não viviam como estava dito no livro. “Pois viver assim é bom não só para um, mas para todos. Basta viver assim e não haverá mais infelicidade, penúria, só vai haver bem-aventurança. Se ao menos isto terminar, se eu ficar de novo em liberdade”, pensava às vezes, “se um dia me soltarem, mesmo que me mandem para os trabalhos forçados, não importa. Em toda parte é possível viver assim. E vou viver assim. É possível e é necessário viver assim, e não viver assim é loucura.”
V

 

 

 

Num dos dias em que ele se encontrava nesse estado de alegria e arrebatamento, o carcereiro entrou em sua cela num horário incomum e perguntou se ele estava bem, se não queria alguma coisa. Svetlogub se admirou, sem entender o que significava aquela mudança, e pediu um cigarro, esperando uma negativa. Mas o carcereiro disse que ia trazer logo; e de fato trouxe para ele um maço de cigarros e fósforos.

“Na certa, alguém está intercedendo a meu favor”, pensou, fumou um cigarro e começou a andar para um lado e para outro, dentro da cela, refletindo sobre o significado daquela mudança.

No dia seguinte, foi levado ao tribunal. Na sala do tribunal, onde ele já estivera algumas vezes, não o interrogaram. Mas um dos juízes, sem olhar para ele, se levantou da cadeira, os outros também se levantaram, e, segurando um papel nas mãos, começou a ler em voz bem alta, impostada e inexpressiva.

Svetlogub ouvia e olhava para o rosto dos juízes. Nenhum dos juízes olhava para ele e todos ouviam com fisionomia fatigada e imponente.

No papel estava dito que Anatóli Svetlogub, por comprovada participação em atividade revolucionária, cujo objetivo era a derrubada, no futuro imediato ou distante, do governo vigente, estava condenado à perda de todos os direitos e à pena de morte por enforcamento.

Svetlogub ouviu e entendeu o sentido das palavras pronunciadas pelo funcionário. Observou o absurdo das palavras: no futuro próximo ou distante, além da privação dos direitos de um homem condenado à morte, mas não compreendeu perfeitamente o significado para ele daquilo que foi lido.

Só muito depois, quando lhe disseram que podia ir, e ele saiu para a rua, escoltado pelos guardas, Svetlogub começou a entender o que tinham anunciado.

“Tem alguma coisa aqui que não está certa, não está certa... É um absurdo. Não pode ser”, dizia consigo, ao sentar na carroça que o levou de volta para a prisão.

Sentia em si tamanha força de vida que não conseguia conceber a morte: não conseguia unir a consciência de seu “eu” com a morte, com a ausência do “eu”.

De volta para sua cela na prisão, Svetlogub sentou em seu beliche e, de olhos fechados, tentou representar para si, de maneira real, aquilo que o aguardava, e não conseguiu, de jeito nenhum. Não conseguia, de maneira nenhuma, imaginar que ele não existia, também não conseguia imaginar que pessoas pudessem querer matá-lo.

“Sou jovem, bondoso, feliz, amado por tanta gente...”, pensava. E lembrou-se do amor que a mãe, Natacha e os amigos tinham por ele. “Vão me matar, me enforcar! Quem está fazendo isso? Para quê? E depois, o que vai acontecer, quando eu não existir mais? Não pode ser”, disse para si.

Veio o carcereiro. Svetlogub não percebeu sua entrada.

–Quem é? Quem é você? – exclamou Svetlogub, sem reconhecer o carcereiro. – Ah, sim, é você! Quando vai ser? – perguntou.

–Não tenho como saber – respondeu o carcereiro e, depois de alguns segundos de silêncio, de repente com voz branda, afetuosa, declarou: – O nosso padre aqui gostaria de... dar... gostaria de falar com o senhor...

–Não preciso, não preciso, não preciso de nada! Vá embora! – gritou Svetlogub.

–Não precisa escrever para alguém? É permitido – disse o carcereiro.

–Sim, sim, traga uma folha. Vou escrever.

O carcereiro saiu.

“Deve ser de manhã”, pensou Svetlogub. “Sempre fazem assim. Amanhã de manhã, eu não vou mais existir... Não, não pode ser, isto é um sonho.”

Mas o carcereiro voltou, o carcereiro real, conhecido, e trouxe duas penas, um tinteiro, um maço de folhas de papel de carta, envelopes azulados, e pôs um banquinho junto à mesa. Tudo aquilo era real, não era um sonho.

“É preciso não pensar, não pensar. Sim, sim, escrever. Vou escrever para mamãe”, pensou Svetlogub. Sentou-se no banquinho e logo começou a escrever.

“Querida, adorada!”, escreveu e começou a chorar. “Perdoe-me, perdoe-me por todo o desgosto que causei a você. Não sei se errei ou não, mas eu não podia agir de outro modo. Só peço uma coisa: me perdoe.” “Mas isso eu já escrevi”, pensou. “Bem, não faz diferença, agora não há tempo para reescrever.” “Não fique triste por minha causa”, escreveu ainda.
Um pouco mais cedo, um pouco mais tarde... faz alguma diferença? Não tenho medo e não me arrependo do que fiz. Não podia agir de outro modo. Apenas me perdoe. E não se zangue com eles, nem com aqueles com quem trabalhei, nem com quem me executar. Nenhum deles podia agir de outro modo: perdoe a eles, não sabem o que fazem. Não me atrevo a repetir essas palavras sobre mim mesmo, mas elas estão na minha alma e me elevam e me acalmam. Perdoe-me, beijo suas queridas mãos velhas e enrugadas!

 

 

 

Duas lágrimas, uma depois da outra, pingaram no papel e se desmancharam na folha.
Estou chorando, mas não é de dor ou de medo, e sim de comoção em face do minuto mais solene de minha vida e também porque amo você. Não repreenda meus amigos, ame-os. Em especial o Prókhorov, justamente por ter sido ele a causa de minha morte. Dá muita alegria amar quem, mesmo sem culpa, pode ser alvo de repreensão e de ódio. Amar tal pessoa – um inimigo – é uma grande felicidade. Diga à Natacha que seu amor foi meu consolo e minha alegria. Eu não entendia isso com clareza, mas bem lá no fundo eu tinha consciência. Para mim, foi mais fácil viver sabendo que ela existe e me ama. Bem, já disse tudo. Adeus!

 

 

 

Releu a carta e, no fim, ao ler o nome de Prókhorov, de repente lembrou que podiam ler a carta, seguramente iam ler, e seria a ruína de Prókhorov.

–Meu Deus, o que eu fiz! – gritou de repente, rasgou a carta em tiras compridas e começou a queimá-las às pressas na chama do lampião.

Sentou-se para escrever em desespero e agora se sentiu tranquilo, quase alegre.

Pegou outra folha e logo se pôs a escrever. Os pensamentos se aglomeravam, um após o outro, dentro da cabeça.

“Querida, adorada mamãe!”, escreveu e de novo os olhos se turvaram de lágrimas, e ele teve de enxugá-los com a manga do casaco, para enxergar o que estava escrevendo.
Como eu não conhecia a mim mesmo, não conhecia toda a força do amor por você e da gratidão que sempre existiu no meu coração! Agora sei e sinto e, quando lembro nossas discórdias, minhas palavras ruins, ditas para você, sofro, sinto vergonha e é quase inexplicável. Perdoe-me e lembre-se apenas do que for bom em mim, se houver algo de bom.

 

 

 

Não temo a morte, mas, para dizer a verdade, não a entendo, não acredito nela. Pois se existe a morte, a aniquilação, então não faz diferença nenhuma morrer aos trinta anos ou aos trinta minutos, mais cedo ou mais tarde. E se não existe morte, também não faz a menor diferença, mais cedo ou mais tarde.

 

 

 

“Mas para que fico filosofando?”, pensou. “Tenho de escrever o que estava na outra carta, algo mais bonito no fim... Sim.” “Não repreenda meus amigos, ame-os, e sobretudo aquele que foi a causa involuntária de minha morte. Dê um beijo em Natacha, por mim, e diga a ela que sempre a amei.”

Dobrou a carta, fechou e sentou-se na cama, com as mãos nos joelhos e engolindo as lágrimas.

Continuava sem acreditar que devia morrer. Várias vezes, perguntando de novo a si mesmo se estava dormindo, tentava acordar, sem conseguir. E essa ideia o levou para outra: será que toda a vida neste mundo é um sonho cujo despertar é a morte? Se for assim, será que a consciência da vida neste mundo é apenas o despertar do sono de uma vida anterior, de cujos detalhes não me lembro? De modo que a vida aqui não é um início, mas apenas uma nova forma de vida. Vou morrer e passarei para uma forma nova. A ideia agradou a Svetlogub; mas, quando quis apoiar-se nela, sentiu que tal ideia, como toda e qualquer ideia, não podia lhe dar coragem diante da morte. Por fim, se cansou de pensar. O cérebro não trabalhava mais. Fechou os olhos e ficou muito tempo parado assim, sem pensar.

“Como vai ser? O que vai acontecer?”, lembrou-se de novo. “Nada? Não, nada, não. Mas o quê?”

E de repente ficou absolutamente claro que, para um homem vivo, aquelas perguntas não têm e não podem ter resposta.

“Então para que fico me perguntando sobre isso? Para quê? Sim, para quê? Não é preciso perguntar, é preciso viver, como eu vivo agora, quando escrevo esta carta. Pois estamos todos condenados há muito tempo, sempre, e vivemos. Vivemos bem, com alegria, quando... amamos. Sim, quando amamos. Veja, eu estava escrevendo a carta, amava e me sentia bem. É assim que é preciso viver. E é possível viver em toda parte e sempre, em liberdade, na prisão, hoje, amanhã, até o fim.”

Agora tinha vontade de conversar com alguém, com carinho, afeição. Bateu na parede e quando a sentinela olhou para ele, Svetlogub perguntou que horas eram e se faltava muito para terminar seu turno de vigia, mas a sentinela nada respondeu. Então pediu para falar com o carcereiro. O carcereiro veio e perguntou o que ele queria.

–Olhe, escrevi uma carta para minha mãe, entregue, por favor – disse, e lágrimas lhe correram dos olhos, ao lembrar-se da mãe.

O carcereiro pegou a carta e, prometendo entregá-la, fez menção de sair, mas Svetlogub o deteve.

–Escute, o senhor é bom. Por que o senhor trabalha neste serviço tão penoso? – perguntou, tocando-o gentilmente na manga.

O carcereiro sorriu com um ar de pena pouco natural e, de olhos baixos, disse:

–É preciso viver.

–O senhor podia largar esse trabalho. Afinal, sempre se dá um jeito. O senhor é tão bom. Talvez eu pudesse...

De repente o carcereiro teve um soluço de choro, deu meia-volta e saiu depressa, batendo a porta.

A emoção do carcereiro comoveu Svetlogub mais ainda e, contendo lágrimas de alegria, ele começou a andar de uma parede à outra, já agora sem experimentar nenhum temor, mas apenas um estado de ternura que o erguia acima do mundo.

A mesma pergunta – o que aconteceria com ele após a morte? –, a que ele tanto se esforçava para responder, e não conseguia, agora lhe parecia resolvida, e não com alguma resposta positiva, racional, mas com a consciência da verdade da vida que existia dentro dele.

E lembrou-se das palavras do Evangelho: “Em verdade, em verdade, vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto”. “Agora eu também vou cair na terra. Sim, é verdade, é verdade”, pensou.

“Era melhor dormir”, pensou, de repente, “para não ficar fraco depois.” E deitou no beliche, fechou os olhos e adormeceu imediatamente.

Acordou às seis horas da manhã, dominado pela impressão de um sonho radiante e alegre. No sonho, viu que estava com uma menina loura, miúda, trepava em árvores frondosas, carregadas de cerejas pretas e maduras, colhia as frutas e jogava numa grande tigela de bronze. As cerejas não caíam dentro da tigela, se espalhavam na terra, e alguns animais estranhos, parecidos com gatos, pegavam as cerejas, jogavam para o alto e pegavam de novo. Vendo aquilo, a menina dava risadas, seu riso era tão contagiante que também Svetlogub ria com alegria no sonho, sem saber por quê. De repente a tigela de bronze escorregou das mãos da menina, Svetlogub quis apanhá-la, mas não teve tempo, e a tigela de bronze, com estrondo, batendo pelos galhos, caiu na terra. Ele acordou sorrindo e ainda ouvindo o prolongado barulho da tigela de bronze. Aquele barulho era o som das trancas de ferro que abriam, no corredor. Ouviram-se, no corredor, passos e o tilintar de fuzis. De repente, lembrou tudo. “Ah, quem dera eu adormecesse outra vez!”, pensou Svetlogub, mas já era impossível adormecer. Os passos se aproximaram de sua porta. Ele ouviu a chave entrar na fechadura e girar, ouviu a porta ranger.

Entraram um oficial da polícia, o carcereiro e uma escolta.

“A morte? Bem, e então? Já vou. Sim, está certo. Tudo certo”, pensou Svetlogub, sentindo que voltava ao estado de comoção solene em que se encontrava na véspera.
VI

 

 

 

Na mesma prisão em que estava Svetlogub, também se encontrava preso um velho raskólnik,4 um “sem-pope”, que desconfiava de seus guias espirituais e buscava a fé verdadeira. Ele recusava não só a igreja de Nikon como também o governo, desde o tempo de Pedro, o Grande, que ele considerava o Anticristo, chamava o regime do tsar de “poder do tabaco” e dizia corajosamente o que pensava, denunciando os popes e os funcionários, por isso foi julgado e aprisionado, e o mandavam de uma prisão para outra. O fato de não estar livre, mas na prisão, de ser xingado pelos carcereiros, de ficar preso em correntes, de ser ridicularizado pelos companheiros detentos, e de todos eles, inclusive o diretor do presídio, renegarem Deus, se insultarem uns aos outros e profanarem de mil maneiras a imagem de Deus que traziam dentro de si – tudo isso não o incomodava, tudo isso ele tinha visto em toda parte no mundo, quando esteve em liberdade. Tudo isso acontecia, ele sabia, porque as pessoas tinham perdido a fé verdadeira e todos se extraviaram, como cachorrinhos cegos que se perderam da mãe. No entanto ele sabia que existe uma fé verdadeira. Sabia disso porque sentia essa fé em seu coração. E procurava essa fé em toda parte. Acima de tudo, esperava encontrá-la no Apocalipse de São João.

“Que o injusto cometa ainda a injustiça e o sujo continue a sujar-se; que o justo pratique ainda a justiça e que o santo continue a santificar-se. Eis que eu venho em breve, e trago comigo o salário para retribuir a cada um conforme o seu trabalho.” E lia o tempo todo aquele livro misterioso e esperava a qualquer minuto “o anunciado”, que não só retribuiria a cada um segundo seu trabalho como também revelaria às pessoas toda a verdade de Deus.

Na manhã da execução de Svetlogub, ele ouviu os tambores e, trepado na janela, viu através das grades que traziam uma carroça, viu que um jovem de olhos radiantes e cabelos crespos subiu sorrindo na carroça. Na mão branca e pequena do jovem, havia um livro. O jovem apertava o livro ao coração – o raskólnik sabia que era o Evangelho – e, sorrindo, cumprimentou com a cabeça os detentos que estavam nas janelas, trocou olhares com eles. Os cavalos se puseram em movimento e o jovem, luminoso como um anjo, foi sentado na carroça, que saiu pelo portão, rodeada por guardas, fazendo barulho nas pedras do calçamento.

O raskólnik desceu da janela, sentou em seu beliche e pôs-se a pensar. “Esse conheceu a verdade”, pensou. “Por isso os servos do Anticristo vão estrangular esse homem com uma corda, para que ele não a revele para ninguém.”
VII

 

 

 

Era uma cinzenta manhã de outono. Não se via o sol. Um vento morno e úmido soprava do mar.

O ar livre, a visão das casas, da cidade, dos cavalos, das pessoas que olhavam para ele – tudo aquilo distraía Svetlogub. Sentado num banquinho da carroça, as costas viradas para o cocheiro, ele não podia deixar de ver o rosto dos soldados que o escoltavam e dos habitantes da cidade que passavam.

Era muito cedo, as ruas por onde o levavam estavam quase desertas e só cruzavam com trabalhadores. Pedreiros em aventais manchados de cal, que caminhavam depressa em sentido contrário, pararam um momento e voltaram atrás, ao lado da carroça. Um deles disse alguma coisa, sacudiu a mão, e todos deram meia-volta e retornaram a seus afazeres; carreteiros que transportavam barras de ferro em suas carroças puxaram os cavalos possantes para o lado, a fim de dar passagem para a carroça de Svetlogub, pararam e, com uma curiosidade perplexa, olharam para ele. Um dos carreteiros tirou o chapéu e fez o sinal da cruz. Uma cozinheira de avental branco e touca, com uma cesta na mão, saiu por um portão, mas, ao ver a carroça, rapidamente voltou para dentro, saiu de novo com outra mulher e as duas, com olhos arregalados, sem parar para tomar fôlego, seguiram a carroça enquanto puderam vê-la. Um homem grisalho, vestido em trapos, de barba por fazer, com gestos enérgicos, tentava convencer um porteiro de alguma coisa, apontando para Svetlogub com evidente desaprovação. Dois meninos vieram correndo para alcançar a carroça e, com a cabeça virada, sem olhar para a frente, andavam pela calçada a seu lado. Um, o mais velho, andava a passos ligeiros; o outro, o menor, sem gorro, segurava-se ao mais velho e olhava assustado para a carroça, enquanto se apressava com dificuldade, aos tropeções, com as perninhas curtas, atrás do mais velho. Svetlogub cumprimentou-o com a cabeça. Esse gesto do homem terrível, transportado na carroça, perturbou o menino a tal ponto que ele arregalou os olhos, escancarou a boca e se preparou para chorar. Então Svetlogub levou a mão à boca e lhe mandou um beijo, sorrindo para ele. De repente, de modo inesperado, o menino respondeu com um sorriso meigo e bondoso.

Durante todo o tempo da viagem, a consciência do que o aguardava não perturbava o ânimo tranquilo e solene de Svetlogub. Só quando a carroça se aproximou do cadafalso, o retiraram da carroça e ele viu as colunas com a trave e, nela, a forca que balançava de leve com o vento, Svetlogub sentiu como que um golpe físico no coração. De repente, sentiu náuseas. Mas não durou muito. Em torno do palanque, viu fileiras negras de soldados com fuzis. À frente dos soldados, andavam oficiais. E assim que o fizeram descer da carroça, irrompeu o rufo dos tambores com um estrondo inesperado, que o obrigou a se retrair. Atrás das fileiras de soldados, Svetlogub viu carruagens de senhores e damas que, sem dúvida, tinham ido assistir ao enforcamento. No primeiro minuto, a visão de tudo aquilo surpreendeu Svetlogub, mas logo ele se refez, lembrou-se de como estava se sentindo na prisão e começou a lamentar o fato de aquelas pessoas não saberem o que ele agora sabia. “Mas eles vão saber. Vou morrer, mas a verdade não vai morrer. Eles vão saber. Vão saber como todos, não eu, mas todos eles, poderiam ser e serão felizes.”

Levaram-no ao cadafalso e, atrás, foi um oficial. Os tambores silenciaram e o oficial leu, com uma voz impostada que, no meio do campo largo e depois do rufo dos tambores, soava especialmente fraca, a mesma tola sentença de morte que tinham lido no tribunal: privação de todos os direitos da pessoa que vão matar.

“Para quê, para que fazem tudo isso?”, pensou Svetlogub. “Que pena que eles ainda não sabem e que eu não posso mais transmitir tudo para eles, mas vão saber. Vão saber tudo.”

Aproximou-se de Svetlogub um sacerdote de manto lilás, com uma pequena cruz banhada em ouro no peito e outra cruz, grande, de prata, que segurava na mão fraca, branca, nodosa, magra, que brotava do punho preto de veludo.

–O Senhor é misericordioso – começou, passando a cruz da mão esquerda para a direita e aproximando-a de Svetlogub.

Svetlogub recuou a cabeça e se retraiu. Por pouco não falou palavras hostis para o sacerdote, que participava do que estavam fazendo com ele e falava de misericórdia, mas, lembrando as palavras do Evangelho, “não sabem o que fazem”, Svetlogub fez um esforço e falou timidamente:

–Desculpe, não preciso disso. Por favor, me desculpe, mas não preciso mesmo. Agradeço ao senhor.

Estendeu a mão para o sacerdote. O sacerdote passou a cruz de novo para a mão esquerda, apertou a mão de Svetlogub, tentando não olhar para seu rosto, e desceu do cadafalso. Os tambores rufaram de novo, abafando todos os outros sons. Após o sacerdote, a passos ligeiros, fazendo ranger as tábuas do cadafalso, aproximou-se de Svetlogub um homem de estatura mediana, ombros arqueados e braços musculosos, com um casaco por cima de uma camisa russa. Depois de lançar um rápido olhar para Svetlogub, ele chegou bem perto, exalou um cheiro desagradável de bebida e suor, segurou-o pelo braço, acima do pulso, com dedos tenazes e, apertando a ponto de causar dor, inclinou as costas de Svetlogub e amarrou-o com força. Depois de amarrar as mãos, o carrasco parou um instante, como que para se preparar, e olhava ora para Svetlogub, ora para alguns objetos que havia trazido e colocara sobre o cadafalso, ora para a corda suspensa na trave. Depois de preparar o que era necessário, foi até a corda, fez alguma coisa com ela, moveu Svetlogub para a frente, para perto da corda e da beira do cadafalso.

Assim como na hora da leitura da sentença de morte Svetlogub não tinha conseguido entender todo o significado do que lhe comunicavam, agora também não conseguia entender todo o significado do minuto iminente e, com admiração, olhava para o carrasco, que, com agilidade, rapidez e preocupação, cumpria sua tarefa horrorosa. O rosto do carrasco era o mais comum dos rostos do trabalhador russo; não era mau, mas concentrado, como acontece com pessoas empenhadas em executar, com a máxima precisão, uma tarefa necessária e complicada.

–Chegue um pouco para cá... para a frente... – disse o carrasco com voz rouca, empurrando-o na direção da forca. Svetlogub obedeceu.

–Senhor, me ajude, me ajude! – disse ele.

Svetlogub não acreditava em Deus e até ria de quem acreditava. Mesmo agora, ele não acreditava em Deus, e não acreditava porque não conseguia exprimi-Lo com palavras nem explicá-Lo por meio do pensamento. Mas isso que agora havia entendido sobre aquele a quem se dirigia – Svetlogub sabia disso – era o que havia de mais real em tudo o que sabia. E sabia que aquele apelo era necessário e importante. Sabia disso porque o apelo, imediatamente, o havia tranquilizado e revigorado.

Moveu-se na direção da forca e, sem querer, lançou um olhar para as fileiras de soldados e de espectadores diversos, e pensou mais uma vez: “Para quê, para que fazem isso?”. E sentiu pena deles e de si, e vieram-lhe lágrimas aos olhos.

–Você não sente pena de mim? – perguntou, cruzando o olhar com os olhos cinzentos e vivazes do carrasco.

O carrasco se deteve um instante. De repente, seu rosto mostrou uma expressão malvada.

–Ora essa! Conversa! – resmungou e inclinou-se ligeiro para o chão, onde estavam seu casacão e um pano e, com um movimento ágil das mãos, abraçou Svetlogub pelas costas, cobriu sua cabeça com um saco de lona e, às pressas, curvou-o ao meio para a frente.

“Em Tuas mãos entrego minha alma”, lembrou-se Svetlogub das palavras do Evangelho.

Sua alma não se opunha à morte, mas seu corpo forte e jovem não a aceitava, não se rendia e queria lutar.

Ele quis gritar, resistir, mas no mesmo instante sentiu um baque, perdeu o ponto de apoio, o horror animal do sufocamento, um barulho dentro da cabeça e o desaparecimento de tudo.

Balançando, o corpo de Svetlogub pendia da forca. Duas vezes, os ombros baixaram e subiram.

O carrasco esperou dois minutos, de rosto franzido e ar sombrio, pôs as mãos nos ombros do cadáver e puxou-o para baixo com um movimento forte. Todos os movimentos do cadáver cessaram, exceto o balanço vagaroso daquele boneco de marionete, com a cabeça enfiada num saco e inclinada para a frente, de um jeito pouco natural, com as pernas esticadas e os pés cobertos por meias de presidiário.

Ao descer do cadafalso, o carrasco avisou ao chefe que o cadáver podia ser retirado do laço e enterrado.

Uma hora depois, o cadáver foi retirado da forca e levado para um cemitério não consagrado.

O carrasco fez o que queria e o que tinha sido incumbido de fazer. Mas a execução não tinha sido fácil. As palavras de Svetlogub – “Você não sente pena de mim?” – não saíam de sua cabeça. Ele era um assassino, condenado a trabalhos forçados, e a função de carrasco lhe concedia uma liberdade relativa e uma vida de luxo, mas a partir daquele dia ele se recusou a cumprir a função que lhe foi designada e, durante aquela semana, bebeu tanto que gastou não só todo o dinheiro recebido com a execução como também toda a sua roupa, relativamente cara, e tanto fez que acabou sendo posto na prisão e, da prisão, foi levado ao hospital.
VIII

 

 

 

Um dos cabeças do partido revolucionário dos terroristas, Ignáti Mejeniétski, o mesmo que atraíra Svetlogub para a atividade terrorista, foi transferido da província onde foi preso para Petersburgo. Na mesma prisão, estava o velho raskólnik que vira a execução de Svetlogub. Ele estava a caminho da Sibéria, para onde tinha sido transferido. Continuava pensando o tempo todo em como e onde ia descobrir o que era a fé verdadeira e às vezes se lembrava daquele jovem radiante que sorria, a caminho da morte.

Ao saber que numa das celas da mesma prisão estava um camarada daquele jovem, que tinha a mesma fé que ele, o raskólnik se alegrou e pediu a um guarda que o apresentasse ao amigo de Svetlogub.

Mejeniétski, apesar de todo o rigor da disciplina da prisão, não parava de se comunicar com as pessoas de seu partido e, todo dia, esperava notícias do túnel que ele mesmo havia imaginado e projetado para mandar pelos ares o trem do tsar. Agora, tendo reparado em alguns detalhes do plano que deixara escapar, ele inventava meios de transmiti-los a seus cúmplices. Quando o guarda entrou em sua cela e, com cuidado, em voz baixa, disse que um dos presos queria falar com ele, Mejeniétski se alegrou, na esperança de que o encontro lhe daria a chance de comunicar-se com seu grupo.

–Quem é? – perguntou.

–Um dos camponeses.

–E o que ele quer?

–Quer falar sobre a fé.

Mejeniétski sorriu.

–Bem, tanto faz, mande vir – disse. “Eles, os raskólniki, também odeiam o governo. Talvez seja útil”, pensou.

O guarda saiu e, minutos depois, abriu a porta e fez entrar na cela um velho seco e baixo, de cabelos espessos, barbicha rala e grisalha, olhos bondosos, cansados e azuis.

–O que o senhor quer? – perguntou Mejeniétski.

O velho lançou um olhar para ele, baixou os olhos às pressas e estendeu a mão pequena, vigorosa e seca.

–O que o senhor quer? – repetiu Mejeniétski.

–Uma palavra com você.

–Que palavra?

–Sobre a fé.

–Que fé?

–Dizem que você tem a mesma fé daquele jovem que os servos do Anticristo enforcaram em Odessa.

–Que jovem?

–Foi em Odessa, enforcaram no outono.

–Deve ser o Svetlogub, não é?

–Ele mesmo. Amigo seu? – a cada pergunta, com os olhos bondosos, o velho lançava um olhar curioso para o rosto de Mejeniétski e, logo em seguida, baixava os olhos de novo.

–Sim, era um homem muito ligado a mim.

–E tem a mesma fé?

–Deve ser a mesma – respondeu Mejeniétski, sorrindo.

–É sobre isso que quero conversar com você.

–Mas o que exatamente o senhor quer?

–Conhecer sua fé.

–Nossa fé... Bem, sente – disse Mejeniétski, encolhendo os ombros. – Nossa fé é a seguinte. Acreditamos que existem pessoas que tomaram o poder do povo, torturam e enganam o povo, e que é preciso não ter piedade de si mesmo e lutar contra essas pessoas para salvar o povo, que elas exploram – disse Mejeniétski, como era costume –, que elas torturam – emendou ele. – E então é preciso dar cabo dessas pessoas. Elas matam, então é preciso matá-las, antes que elas possam se recuperar e reagir.

O velho suspirou, sem erguer os olhos.

–Nossa fé é que, sem ter pena de si mesmo, é preciso derrubar o regime despótico e estabelecer um regime livre, eleito, popular.

O velho deu um suspiro profundo, ajeitou as abas do casacão, ficou de joelhos e se estirou aos pés de Mejeniétski, batendo com a testa nas tábuas imundas do chão.

–Por que o senhor se curvou?

–Não me engane, revele qual é a fé de vocês – disse o velho, sem se levantar e de cabeça baixa.

–Já disse qual é nossa fé. Agora, levante, senão eu não falo mais nada.

O velho levantou-se.

–Essa também era a fé daquele jovem? – perguntou, de pé, diante de Mejeniétski, olhando de vez em quando para o rosto dele com os olhos bondosos, e baixando-os logo em seguida.

–Era essa mesma, e por isso foi enforcado. Quanto a mim, por essa mesma fé, estou sendo levado para a prisão na fortaleza de Pedro e Paulo.

O velho curvou-se para a frente num cumprimento e saiu da cela.

“Não, não era essa a fé daquele jovem”, pensou. “Aquele jovem sabia a fé verdadeira, mas esse outro ou está querendo contar vantagem dizendo que tem a mesma fé dele, ou não quer me revelar... Seja como for, vou procurar até achar. Aqui ou na Sibéria. Deus está em toda parte, tem gente em toda parte. Se a gente está na estrada, pergunta para a estrada”, pensou o velho e de novo pegou o Novo Testamento, abriu no Apocalipse, pôs os óculos, sentou-se junto à janela e começou a ler.
IX

 

 

 

Passaram mais sete anos. Mejeniétski tinha cumprido a pena de prisão em cela solitária na fortaleza de Pedro e Paulo e foi enviado aos trabalhos forçados.

Tinha sofrido muito naqueles sete anos, mas a orientação de seu pensamento não mudara e sua energia não enfraquecera. Nos interrogatórios, antes do encarceramento na fortaleza, ele impressionou os investigadores e juízes com sua firmeza e seu desprezo pelas pessoas sob cujo poder se encontrava. No fundo da alma, sofria por estar preso e não poder concluir a missão iniciada, mas não o demonstrava: assim que entrava em contato com as pessoas, a energia do rancor se erguia dentro dele. Diante das perguntas que lhe faziam, ele silenciava e só falava quando tinha chance de ofender os interrogadores – um agente da polícia ou promotor.

Quando lhe diziam a frase rotineira: “O senhor pode aliviar sua situação com uma confissão sincera”, ele sorria com desdém e, depois de ficar calado um momento, dizia:

–Se vocês acham que com o medo ou com vantagens vão me convencer a trair meus camaradas, estão enganados. Por acaso acham que, fazendo aquilo pelo que estou sendo julgado, eu não estou preparado para enfrentar o pior? Vocês não podem me surpreender nem me assustar com nada. Façam o que quiserem comigo, não importa, não vou falar.

E tinha prazer ao ver que eles trocavam entre si olhares confusos.

Na fortaleza Pedro e Paulo, quando o levaram para uma cela pequena, úmida, com um vidro escuro numa janela alta, ele entendeu que não ia ficar ali meses, mas sim anos – e lhe veio um horror. Era horroroso aquele sistemático silêncio de morte, a consciência de que não estava sozinho, de que atrás daquelas paredes impenetráveis estavam prisioneiros condenados a dez, vinte anos, que se matavam, se enforcavam e enlouqueciam, ou morriam lentamente de tuberculose. Ali também estavam mulheres, e homens, talvez amigos... “Vão se passar os anos e você também vai enlouquecer, se enforcar ou morrer, e ninguém vai saber o que houve com você”, pensou.

Em sua alma, cresceu uma raiva contra todas as pessoas, em especial contra os que eram a causa de seu encarceramento. Essa raiva exigia a presença de objetos para extravasar, exigia movimento, barulho. Mas ali só havia um silêncio de morte, passos leves de gente calada, que não respondia às perguntas das pessoas, sons de cadeados de portas que abriam e fechavam em horários regulares, para as refeições, a visita de pessoas caladas e, através do vidro turvo, a luz do sol nascente, a penumbra e o mesmo silêncio, os mesmos passos leves, os mesmos sons de sempre. Era assim hoje, amanhã... E a raiva, sem encontrar uma saída, corroía seu coração.

Tentava se comunicar por meio de batidas, mas ninguém respondia e suas batidas despertavam apenas os mesmos passos leves lá fora e a voz sempre igual de um homem que o ameaçava com a cela de castigo.

A única ocasião de descanso e de alívio era a hora do sono. Em compensação, o despertar era horrível. No sono, ele sempre se via em liberdade e, na maioria das vezes, atraíam-no coisas que ele considerava em desacordo com a atividade revolucionária. Ora tocava um violino estranho, ora fazia a corte a mocinhas, ora andava de bote, ora ia caçar, ora ganhava o título de doutor numa universidade estrangeira por causa de uma estranha descoberta científica que ele tinha feito e fazia um discurso de agradecimento após o almoço. Aqueles sonhos eram tão vívidos e a realidade era tão maçante e monótona que as recordações dos sonhos pouco se distinguiam da realidade.

Nos sonhos, a única coisa penosa era que, em geral, Mejeniétski acordava no momento em que estava prestes a se realizar o que ele desejava, o que ele queria alcançar. De repente, uma batida do coração e toda a alegria da situação desaparecia; restava um desejo torturante e insatisfeito, e de novo aquela parede úmida e cinzenta, com arabescos formados pela umidade, iluminada pela lamparina e, sob o corpo, a cama dura, com o colchão de palha todo achatado de um lado.

O sono era a melhor hora. Porém, quanto mais tempo demorava o encarceramento, menos ele dormia. Esperava o sono como uma felicidade suprema, porém, quanto mais desejava, menos sono sentia. Bastava fazer a si mesmo a pergunta: “Será que vou dormir?”, e toda a sonolência passava.

Correr e pular dentro de sua jaula não ajudava. O movimento e o esforço apenas lhe davam fraqueza e deixavam os nervos ainda mais agitados, ele sentia dor de cabeça no escuro e bastava fechar os olhos para que, sobre um fundo escuro com pontinhos de luz, começassem a surgir caras cabeludas, carecas, de boca grande, de boca torta, cada uma mais terrível do que a outra. As caras faziam as mais horríveis caretas. Depois começavam a aparecer mesmo quando estava de olhos abertos, e já não eram só caras, mas vultos completos que começaram a falar e dançar. Era um horror, ele dava pulos, batia com a cabeça na parede e berrava. A janelinha da porta se abria.

–É proibido gritar – dizia uma voz calma, monótona.

–Chame o carcereiro! – gritava Mejeniétski. Nada respondiam e a janelinha era fechada.

E tamanho foi o desespero que dominou Mejeniétski que ele só desejava uma coisa: a morte.

Certa vez, naquele estado, resolveu tirar a própria vida. Na cela, havia um tubo de ventilação no qual era possível prender uma corda com um laço e, ficando de pé sobre a cama, enforcar-se. Mas não havia corda. Ele começou a rasgar o lençol em tiras estreitas, mas o lençol era pequeno. Resolveu se matar de fome e ficou dois dias sem comer, mas no terceiro dia foi dominado pela fraqueza e teve um ataque de alucinação especialmente forte. Quando trouxeram a refeição, estava deitado no chão, sem sentidos, de olhos abertos.

Veio o médico, colocou-o na cama, lhe deu bromato e morfina e ele adormeceu.

Quando acordou, no dia seguinte, o médico estava de pé a seu lado e balançou a cabeça. De repente Mejeniétski foi dominado pelo conhecido sentimento de raiva que antes o revigorava e que fazia muito tempo não experimentava.

–Como não se envergonha de trabalhar aqui? – disse ele para o médico, que tomava seu pulso, de cabeça inclinada. – Para que o senhor me cura só para depois me torturar? Afinal, é o mesmo que fazer uma amputação e decidir repetir a cirurgia.

–Tente ficar deitado de costas – disse o médico, impassível, sem olhar para ele e tirando o estetoscópio do bolso lateral.

–É como aqueles médicos que curam os ferimentos de um homem para que possa levar as cinco mil chibatadas que faltam. Vá para o diabo, para o inferno! – começou a gritar de repente, baixando as pernas da cama. – Suma daqui, posso bater as canelas sem o senhor!

–Isso é ruim, meu jovem, nós sabemos como responder a suas grosserias.

–Vá para o diabo, para o diabo!

E Mejeniétski se mostrou tão assustador que o médico saiu depressa.
X

 

 

 

Se aquilo passou por causa dos remédios, ou porque ele superou a crise, ou porque a raiva contra o médico o curou, não se sabe, mas o fato é que a partir daí ele retomou o domínio de si e teve início uma vida totalmente diferente.

“Eles não podem me manter preso aqui para sempre e não vão fazer isso”, pensou. “Um dia, vão me libertar. Talvez, e isso é o mais provável, o regime mude (os nossos continuam trabalhando), e por isso é preciso cuidar da vida, para sair forte, saudável e estar em condições de continuar o trabalho.”

Refletiu por muito tempo sobre a melhor forma de vida para alcançar esse objetivo e planejou o seguinte: deitar às nove horas e obrigar-se a ficar deitado – dormir ou não dormir, não fazia diferença – até cinco horas da manhã. Às cinco horas, ele ia levantar, se arrumar, se lavar, fazer ginástica e depois, como dizia para si mesmo, ir para o trabalho. E, em sua imaginação, ia a Petersburgo, andava da avenida Niévski para a rua Nadiéjdinskaia, tentando imaginar tudo o que podia encontrar naquele caminho: letreiros, prédios, guardas, pedestres e carruagens que passavam. Na rua Nadiéjdinskaia, entrava na casa de um colaborador, conhecido seu, e lá os dois, com outros camaradas que iam chegando, discutiam sua próxima operação. Havia debates, desavenças. Mejeniétski falava por si e pelos outros. Às vezes erguia muito a voz e a sentinela o repreendia pela janelinha, mas Mejeniétski não lhe dava a menor atenção e continuava seu dia imaginário em Petersburgo. Depois de ficar umas duas horas na casa do amigo, voltava para casa e almoçava, de início na imaginação e depois na realidade, a refeição que lhe traziam, e sempre comia moderadamente. Depois, na imaginação, ficava em casa e se ocupava em estudar história, matemática e às vezes, aos domingos, literatura. O estudo de história consistia em escolher uma determinada época ou algum povo e recordar os fatos e a cronologia. O estudo de matemática consistia em fazer cálculos e resolver problemas geométricos de cabeça. (Ele gostava muito dessa atividade.) Aos domingos, lembrava-se de Púchkin, Gógol, Shakespeare e também escrevia ele mesmo.

Antes do sono, ainda fazia uma pequena excursão com seus camaradas, homens e mulheres, travando conversas divertidas, alegres, às vezes sérias, às vezes eram conversas que de fato tivera antes, outras vezes, inventadas. E assim se mantinha ocupado até a noite. Antes do sono, para se exercitar, dava na realidade dois mil passos dentro da cela, deitava na cama e, em geral, dormia.

No dia seguinte, fazia a mesma coisa. Às vezes viajava para o sul e incitava o povo, começava uma revolta e, junto com o povo, enxotava os senhores de terras e distribuía as terras entre os camponeses. No entanto ele não imaginava tudo isso de repente, mas pouco a pouco, em todos os detalhes. Na imaginação, o partido revolucionário triunfava em toda parte, o poder do governo se enfraquecia e se via obrigado a convocar um concílio. A família do tsar e todos os opressores do povo desapareciam, era fundada uma república e ele, Mejeniétski, era eleito presidente. Às vezes alcançava isso muito depressa e então recomeçava outra vez do início e alcançava o objetivo por outros meios.

Assim viveu um ano, dois, três, às vezes fugia dessa vida ordenada e rigorosa, mas em geral voltava a ela. Dirigindo sua imaginação, ele se livrava das alucinações involuntárias. Só em raras ocasiões lhe vinham ataques de insônia e visões, rostos, e então olhava para o tubo de ventilação e imaginava como ia amarrar a corda, como ia fazer o laço e se enforcar. Mas esses ataques não duravam muito. Ele os vencia.

Assim passaram quase sete anos. Quando seu período de encarceramento terminou e o mandaram para os trabalhos forçados, Mejeniétski estava muito bem-disposto, saudável e em pleno domínio de suas faculdades mentais.
XI

 

 

 

Na condição de criminoso muito importante, foi mantido isolado durante a viagem, sem poder se comunicar com os outros. E só na prisão de Krasnoiarsk lhe permitiram, pela primeira vez, entrar em contato com outros criminosos políticos, também deportados para os trabalhos forçados; eram seis pessoas – duas mulheres e quatro homens. Todos jovens, de um tipo novo, desconhecido de Mejeniétski. Eram da geração revolucionária seguinte à sua, seus herdeiros, e por isso lhe interessavam de modo especial. Mejeniétski esperava encontrar pessoas que seguissem seu exemplo e que, por isso, valorizassem ao máximo tudo o que tinha sido feito por seus predecessores, sobretudo por ele, Mejeniétski. Estava pronto para se entender com eles, de modo afetuoso e condescendente. Mas, para sua desagradável surpresa, aquela juventude não só não o considerava seu predecessor e mestre como o tratava com uma espécie de indulgência, desculpando e evitando suas opiniões, tidas como antiquadas. Na opinião deles, os novos revolucionários, tudo o que Mejeniétski e seus amigos fizeram, todas as tentativas de revoltar os camponeses e, acima de tudo, o terror e todos os assassinatos – do governador Kropótkin, de Meziéntsov e do próprio tsar Alexandre II,5 – tudo aquilo era uma série de equívocos. Tudo aquilo só servira para dar mais força à reação, que havia triunfado com Alexandre III, e fizera a sociedade regredir quase ao regime escravo. O caminho para a libertação do povo, na opinião dos novos, era totalmente distinto.

Ao longo de dois dias e quase duas noites, as discussões entre Mejeniétski e seus novos conhecidos não cessaram. Em especial um deles, o mentor dos demais, Roman, como o chamavam, usando apenas o prenome, afligia Mejeniétski de modo torturante, com sua inabalável convicção de que tinha razão e com a recusa indulgente e até desdenhosa de toda a atividade anterior de Mejeniétski e seus camaradas.

No entender de Roman, o povo era uma multidão grosseira, “boçal”, e com o povo no grau de desenvolvimento em que se encontrava agora não era possível fazer nada. Qualquer tentativa de levantar a população rural russa era o mesmo que tentar atear fogo numa pedra ou no gelo. Era preciso educar o povo, era preciso ensinar-lhe a solidariedade, e isso só era possível por meio da grande indústria e construindo nela a organização socialista do povo. A terra não apenas não era necessária ao povo como o tornava conservador e escravo. Não só ali, mas também na Europa. E ele trazia à memória opiniões de autoridades no assunto além de dados estatísticos. É preciso libertar o povo da terra. E quanto antes se fizer isso, melhor. Quanto mais deles forem para as fábricas, quanto mais terras forem para as mãos dos capitalistas e quanto mais forem os oprimidos, melhor. Só é possível aniquilar o despotismo e, sobretudo, o capitalismo mediante a solidariedade da gente do povo e tal solidariedade só pode ser alcançada por meio das associações, das corporações de trabalhadores, ou seja, só quando as massas populares deixarem de ser formadas por pequenos proprietários de terras e passarem a ser proletárias.

Mejeniétski discutia e se exaltava. Sobretudo se irritava com uma das mulheres, morena de cabelo bonito e olhos muito brilhantes, que, sentada na janela e dando a impressão de não participar diretamente da conversa, de vez em quando introduzia uma palavrinha de apoio aos argumentos de Roman, ou apenas dava um riso de desdém para as palavras de Mejeniétski.

–Mas será mesmo possível transformar todo o povo agrícola em operários fabris? – perguntou Mejeniétski.

–Por que seria impossível? – retrucou Roman. – É uma lei geral da economia.

–E como sabemos que é uma lei universal? – disse Mejeniétski.

–Leia Kautsky – disse a morena, sorrindo com desdém.

–Mesmo se admitirmos – argumentou Mejeniétski – (e eu não admito) que o povo vai se transformar em proletários, por que acham que eles vão se organizar da forma preestabelecida por vocês?

–Porque isso está cientificamente comprovado – disse a morena, dando as costas para a janela.

Quando a discussão tratava da forma de ação necessária para alcançar o objetivo, a discordância se tornava maior ainda. Roman e seus amigos insistiam em que era preciso preparar um exército de trabalhadores, promover a transição de camponeses a operários fabris e fazer propaganda do socialismo entre os trabalhadores. E não só não lutar diretamente contra o governo, como fazer uso do governo para alcançar os objetivos deles. Por seu lado, Mejeniétski dizia que era preciso combater diretamente o governo, aterrorizá-lo, e que o governo era mais astuto do que eles. “Vocês não enganam o governo, ele é que engana vocês. Nós também fizemos propaganda com o povo e lutamos contra o governo.”

–E quanta coisa conseguiram! – exclamou a morena, em tom de ironia.

–Sim, acho que a luta direta contra o governo é um gasto inútil de energia – disse Roman.

–O Primeiro de Março foi um desperdício de energia! – gritou Mejeniétski. – Nós nos sacrificamos, sacrificamos nossa vida, enquanto vocês estavam tranquilos em casa, gozando a vida, e só sabem fazer sermões.

–Não gozamos a vida tanto assim – disse Roman tranquilo, olhando para seus camaradas, e gargalhou triunfante, com sua risada que não era contagiosa, mas alta, clara e segura de si.

A morena, balançando a cabeça, sorriu.

–Não gozamos a vida tanto assim – disse Roman. – E se estamos aqui, é por causa da reação, a reação provocada justamente pelo Primeiro de Março.

Mejeniétski ficou calado. Sentiu-se sufocar de raiva e saiu pelo corredor.
XII

 

 

 

Tentando se acalmar, Mejeniétski começou a andar para um lado e para o outro, pelo corredor. As portas das celas ficavam abertas até a chamada vespertina. Um prisioneiro alto, louro, com um rosto cuja simpatia não era em nada prejudicada pelo fato de ter metade da cabeça raspada,6 se aproximou de Mejeniétski.

–Tem um prisioneiro na nossa cela que viu Vossa Senhoria e disse: traga aquele homem para falar comigo.

–Que prisioneiro?

–O “Poder do Tabaco”, é assim que ele é chamado. Um velhinho, um dos raskólniki. Disse: chame aquele homem para falar comigo. É Vossa Senhoria.

–E onde ele está?

–Ali, na nossa cela. Disse: Chamem aquele senhor.

Mejeniétski entrou com o prisioneiro numa cela pequena, com camas de tábuas, sobre as quais os prisioneiros estavam sentados ou deitados.

Sobre as tábuas nuas, na beira da cama, debaixo de um roupão cinzento, estava deitado o mesmo velho raskólnik que, sete anos antes, havia procurado Mejeniétski e perguntado a respeito de Svetlogub. O rosto do velho, pálido, estava todo enrugado e ressequido, o cabelo continuava espesso, a barba rala estava toda grisalha e retorcida para cima. Os olhos azuis eram bondosos e atentos. Ele estava de barriga para cima e, pelo visto, tinha febre: havia um rosado doentio nas bochechas ossudas.

Mejeniétski chegou perto dele.

–O que o senhor quer? – perguntou.

O velho levantou-se com dificuldade, apoiado nos cotovelos, e estendeu a mão trêmula, pequena e seca. Preparando-se para falar, o velho pareceu balançar, começou a ofegar e, controlando a respiração com esforço, falou em voz baixa:

–Você não quis me revelar naquele dia. Deus o proteja, mas agora eu estou revelando para todo mundo.

–E o que o senhor está revelando?

–O cordeiro... o cordeiro, eu estou revelando... aquele jovem estava com o cordeiro. E está dito: o cordeiro vencerá, vencerá a todos... E aqueles que estiverem com ele serão os escolhidos e os fiéis.

–Não estou entendendo – disse Mejeniétski.

–Mas vai entender com o espírito. Os tsares terão uma província com a besta. Mas o cordeiro vencerá.

–Que tsares?

–Os tsares são sete: cinco caíram e sobrou um; o outro ainda não vem, quer dizer, não veio. E quando vier, vai ter pouco tempo... quer dizer, seu fim virá logo... entendeu?

Mejeniétski balançou a cabeça, achando que o velho delirava e que suas palavras eram loucas. O mesmo achavam os prisioneiros, camaradas de cela. O prisioneiro de cabeça raspada que tinha chamado Mejeniétski se aproximou, tocou-o de leve com o cotovelo e, chamando atenção para si, piscou o olho, apontando para o velho.

–Fala o tempo todo, fala sem parar, o nosso Poder do Tabaco – disse. – Nem ele mesmo sabe o que diz.

Olhando para o velho, assim pensavam Mejeniétski e seus camaradas de cela. Mas o velho sabia muito bem o que estava dizendo e o que dizia tinha, para ele, um sentido muito claro e profundo. O sentido era que não restava muito tempo para o reinado do mal, que o cordeiro venceria todos por meio do bem e da humildade, que o cordeiro enxugaria todas as lágrimas e não haveria choro nem dor nem morte. E ele sentia que isso já estava se realizando, se realizava em todo o mundo, porque estava se realizando na sua alma, iluminada na iminência da morte.

–Ei, vem logo! Amém. Vem, Senhor Jesus! – exclamou e sorriu de leve, com ar expressivo e, assim pareceu a Mejeniétski, enlouquecido.
XIII

 

 

 

“Aí está ele, um representante do povo”, pensou Mejeniétski, ao deixar o velho. “E é um dos melhores entre eles. E que ignorância! Eles (referia-se a Roman e seus amigos) dizem: com esse povo que existe hoje, não se pode fazer nada.”

Mejeniétski, no passado, tinha executado seu trabalho revolucionário entre o povo e conhecia toda a “inércia”, como ele dizia, do camponês russo; conhecera soldados no serviço militar e na reserva e conhecia sua fé obtusa no juramento, na necessidade de obediência, e a impossibilidade de influenciá-los por meio de raciocínios. Conhecia tudo isso, mas nunca extraíra desse conhecimento a conclusão que necessariamente decorre daí. A conversa com os novos revolucionários o havia desconcertado e irritado.

“Dizem que tudo que fizemos, tudo que fizeram Khaltúrin, Kibaltchitch, Peróvskaia,7 que tudo isso foi desnecessário e até prejudicial, que foi isso que provocou a reação de Alexandre III, que graças a eles o povo foi convencido de que toda atividade revolucionária é promovida pelos senhores de terras, que assassinaram o tsar por ter tirado deles os servos. Que absurdo! Que incompreensão e que descaramento pensar desse jeito!”, pensava, enquanto caminhava pelo corredor.

Todas as celas foram fechadas, menos aquela em que estavam os novos revolucionários. Ao aproximar-se dela, Mejeniétski ouviu o riso da morena que ele detestava e a voz cortante e decidida de Roman. Era evidente que falavam sobre ele. Mejeniétski parou para ouvir. Roman disse:

–Sem entender as leis econômicas, eles não se davam conta do que estavam fazendo. Na maior parte, eram...

Mejeniétski não conseguiu e não quis ouvir até o fim, não quis saber o que eram na maior parte, mas também não precisava saber. Só o tom de voz daquele homem demonstrava o completo desprezo que sentiam por ele, Mejeniétski, um herói da revolução, que sacrificara doze anos de vida por aquela causa.

E na alma de Mejeniétski se ergueu um rancor tão terrível como nunca havia experimentado. Um rancor contra todos, contra tudo, contra todo esse mundo enlouquecido em que só podiam viver pessoas semelhantes a animais, como aquele velho com seu cordeiro, e outros quase animais, como os carrascos, os carcereiros, e aqueles doutrinários insolentes, arrogantes e natimortos.

Entrou o guarda de plantão e conduziu as prisioneiras políticas para a ala feminina. Mejeniétski se afastou para o fim do corredor, para não se encontrar com elas. Ao voltar, o guarda trancou a porta dos novos presos políticos e sugeriu a Mejeniétski que fosse para sua cela. Mecanicamente, Mejeniétski obedeceu, mas pediu que não trancasse sua porta.

De volta à cela, Mejeniétski deitou-se no beliche, de cara para a parede.

“Será que de fato sacrificamos à toa todas as nossas energias: o vigor, a força de vontade, a genialidade (ele jamais acreditara que existisse alguém superior a ele, nas faculdades intelectuais) foram sacrificados em vão?” E lembrou-se da carta da mãe de Svetlogub, que ele tinha recebido pouco antes, já na viagem para a Sibéria, em que ela, estupidamente, à maneira das mulheres, como ele achava, o acusava por ter destruído seu filho, ao atraí-lo para o partido revolucionário. Quando recebeu a carta, ele se limitou a sorrir com desdém: o que uma mulher tola podia entender das questões que ele e Svetlogub enfrentavam? Mas agora, ao lembrar-se da carta e da personalidade meiga, crédula, ardorosa de Svetlogub, Mejeniétski pensou de início no amigo e depois em si mesmo. Será possível que toda a vida foi um erro? Fechou os olhos e quis dormir, mas de repente sentiu com horror que havia voltado ao estado que experimentara em seu primeiro mês na fortaleza de Pedro e Paulo. De novo o sofrimento no escuro, de novo os rostos de boca grande, cabeludos, horrorosos, os pontos luminosos sobre o fundo escuro, e de novo os vultos que apareciam de olhos abertos. A novidade era que agora um criminoso comum, de calças cinzentas e cabeça raspada, se balançava montado em suas costas. E de novo, por uma associação de ideias, ele se pôs a procurar um tubo de ventilação em que fosse possível amarrar uma corda.

Uma raiva insuportável, que exigia uma forma de se manifestar, queimava o coração de Mejeniétski. Ele não conseguia ficar parado, não conseguia se acalmar, não conseguia rechaçar aqueles pensamentos.

“Como?”, pôs-se a se fazer perguntas. “Cortar uma artéria? Não sei fazer isso. Enforcar-me? Claro, é o mais simples.”

Lembrou-se da corda que usavam para amarrar feixes de lenha e que estava no corredor. “Ficar de pé em cima da lenha ou sobre um banquinho. O guarda passa no corredor. Mas ele vai dormir ou vai dar uma volta. É preciso esperar e então trazer a corda aqui para dentro e prender no tubo de ventilação.”

Parado na porta, Mejeniétski escutou com atenção os passos do guarda no corredor e, em alguns momentos, quando o guarda se afastava para longe, lançava um olhar pelo buraco da porta. O guarda não dormia nem saía. Mejeniétski escutava sofregamente o som de seus passos e esperava.

Naquela mesma hora, na cela em que estava o velho doente, no escuro, mal iluminado por um lampião turvo de fuligem, no meio dos sons noturnos das pessoas adormecidas – a respiração, as tosses, os roncos, os gemidos, os resmungos –, se passava a questão mais importante do mundo. O velho raskólnik estava morrendo e, ao seu olhar espiritual, se revelava tudo aquilo que ele procurava e desejava tão apaixonadamente, ao longo de toda a vida. Em meio a uma luz ofuscante, via o cordeiro na forma do jovem luminoso, e uma grande multidão de pessoas, de todos os povos, estava à sua frente em roupas brancas, e todos estavam alegres, o mal já não existia no mundo. Tudo aquilo se realizara, o velho sabia e, em sua alma, sentia uma grande alegria e serenidade.

Já para as pessoas que estavam na cela, o que havia era que o velho ofegava alto, nos estertores da morte, e seu vizinho acordou e despertou os demais; e quando a respiração ofegante cessou e o velho silenciou e esfriou, seus camaradas de cela começaram a bater na porta.

O guarda abriu a tranca e entrou na cela. Uns dez minutos depois, dois prisioneiros levaram o corpo morto e puseram no necrotério. O guarda foi atrás deles e trancou a porta ao sair. O corredor ficou vazio.

“Feche, pode fechar”, pensou Mejeniétski, acompanhando de sua porta tudo o que se passava. “Não vai me impedir de fugir de todo este horror absurdo.”

Mejeniétski já não experimentava, agora, aquele horror interior que o afligia até então. Todo ele estava tomado por um só pensamento: não permitir que nada o impedisse de realizar o que pretendia.

Com o coração palpitante, aproximou-se do feixe de lenha amarrado, soltou a corda, puxou-a por baixo da lenha e, lançando um olhar para a porta, levou-a para sua cela. Dentro da cela, subiu num banquinho e passou a corda por cima do tubo de ventilação. Amarrou as duas pontas da corda, apertou o nó e, com a corda dobrada, fez um laço. O laço ficou apertado demais. Soltou a corda de novo, refez o laço, ajustou-o à medida do pescoço e, escutando com atenção e olhando inquieto para a porta, subiu no banquinho, enfiou a cabeça no laço, ajeitou-o, empurrou o banquinho para o lado e se enforcou...

Só na ronda da manhã o guarda viu Mejeniétski, que estava de pé, com os joelhos dobrados, ao lado do banquinho tombado. Retiraram-no do laço. O carcereiro veio correndo e, ao saber que Roman era médico, chamou-o para prestar socorro ao estrangulado.

Foram empregados todos os meios habituais para reanimá-lo, mas Mejeniétski não voltou à vida.

Levaram o corpo de Mejeniétski e puseram numa cama de tábua, ao lado do corpo do velho raskólnik.

1906

O QUE VI NUM SONHO
I

 

 

 

–Eu não a considero como uma filha; entenda, não considero, mas também não sou capaz de deixá-la viver por conta de outras pessoas. Farei o necessário para que ela possa viver como quiser, mas não posso ter contato com ela. Sim, sim. Nunca poderia sequer passar pela minha cabeça uma coisa assim... Horrível, horrível!

Encolheu os ombros, balançou a cabeça e levantou os olhos. Quem falou isso foi o príncipe Mikhail Ivánovitch III, de sessenta anos, para seu irmão caçula, o príncipe Piotr Ivánovitch, de cinquenta e seis anos, marechal da nobreza naquela capital de província.

A conversa se passava na capital da província aonde chegara o irmão mais velho, vindo de Petersburgo, depois de saber que a filha que fugira de sua casa um ano antes se havia estabelecido naquela cidade, com um bebê.

O príncipe Mikhail Ivánovitch era um velho bonito, alto, viçoso, de cabelo grisalho, rosto orgulhoso e maneiras cativantes. Sua família era formada pela esposa vulgar, irritável, que muitas vezes discutia com ele por qualquer bobagem, um filho malsucedido na vida, esbanjador e farrista, mas ainda assim um homem perfeitamente “digno”, do ponto de vista do pai, e duas filhas, uma das quais, a mais velha, estava muito bem casada e morava em Petersburgo, e a mais jovem, sua filha predileta, Liza, a mesma que um ano antes tinha fugido de casa e só agora fora encontrada, com um bebê, numa distante cidade de província.

O príncipe Piotr Ivánovitch queria perguntar ao irmão em que circunstâncias a sobrinha tinha fugido e quem poderia ser o pai da criança, mas não conseguia tomar coragem. Naquela mesma manhã, quando a esposa de Piotr Ivánovitch demonstrara compaixão pelo cunhado, o príncipe Piotr Ivánovitch viu o sofrimento que se exprimiu no rosto do irmão, percebeu como se esforçou para esconder o sofrimento atrás de uma expressão de orgulho inexpugnável e passou a perguntar à cunhada quanto pagava por sua residência. Durante o almoço, entre familiares e convidados, ele, como sempre, foi irônico, mordaz e espirituoso. Com todos, mostrou-se de uma arrogância inabalável, menos com as crianças, que tratava com uma espécie de carinho respeitoso. De resto, fazia aquilo de modo tão natural que todos pareciam reconhecer seu direito de ser arrogante.

Ao anoitecer, o irmão organizou um jogo de cartas, uma partida de vint. Depois foi para o quarto preparado para ele e, na hora em que ia tirar a dentadura, soaram duas batidas bem leves na porta.

–Quem é?

–C’est moi, Michel!1

O príncipe Mikhail Ivánovitch reconheceu a voz da cunhada, franziu as sobrancelhas, recolocou na boca os dentes postiços e disse consigo mesmo: “O que será que ela quer?”, e pediu em voz alta:

–Entrez.2

A cunhada era uma criatura discreta, dócil, que se submetia com obediência ao marido, mas era um tanto excêntrica (alguns a julgavam até idiota) e, embora fosse bonita, estava sempre mal penteada, vestida com desleixo e sem cuidado, sempre distraída e com as ideias mais estranhas do mundo, nada aristocráticas, incompatíveis com a condição de esposa de um marechal da nobreza, ideias que ela exprimia de súbito, para surpresa de todos, dos conhecidos e também do marido.

–Vous pouvez me renvoyer, mais je ne m’en irai pas, je vous le dis d’avance3 – começou ela, com sua peculiar falta de lógica.

–Dieu preserve – respondeu o cunhado, com sua cortesia habitual, um pouco exagerada, e empurrou uma cadeira para ela sentar. – Ça ne vous dérange pas?4 – disse, pegando um cigarro.

–Veja, Michel, não vou falar nada desagradável, só queria falar sobre Lizanka.

Mikhail Ivánitch deu um suspiro, que pareceu de dor. Mas logo se refez, deu um sorriso cansado e disse:

–Minha conversa com você só pode ser sobre um assunto, exatamente aquele sobre o qual você deseja falar – disse, sem olhar para a cunhada e, pelo visto, evitando até nomear o objeto da conversa.

Mas a cunhada gordinha, carnuda, bonita, não se embaraçou e, com o mesmo olhar bondoso, humilde e suplicante dos olhos azuis, continuou fitando Mikhail Ivánovitch e disse, também com um suspiro, ainda mais fundo que o dele:

–Michel, mon bon ami,5 tenha pena dela. – Como sempre fazia ao falar com o cunhado, o tratava por “senhor”. – Ela é um ser humano.

–Nunca duvidei disso – retrucou Mikhail Ivánovitch, com um sorriso desagradável.

–É sua filha.

–Foi. Sim. Mas, querida Alin, para que esta conversa?

–Michel, meu caro, vá conversar com ela. Eu só queria dizer ao senhor que aquele que é culpado de tudo...

O príncipe Mikhail Ivánovitch suspirou, seu rosto adquiriu um aspecto terrível.

–Pelo amor de Deus, não vamos conversar. Já sofri o bastante. Agora, não existe mais nada para mim, exceto o desejo de deixá-la numa situação em que ela não seja um peso para ninguém, em que ela não precise travar nenhum contato comigo, em que ela possa viver sua vida à parte, sem que eu e minha família saibamos nada sobre ela. Não posso agir de outro modo.

–Michel, sempre “eu”. Mas ela também é um “eu”.

–Não há dúvida, porém, querida Alin, por favor, deixemos isso de lado. É penoso demais para mim.

Aleksandra Dmítrievna calou-se, balançou a cabeça.

–E a Macha (a esposa de Mikhail Ivánovitch) também pensa assim?

–Exatamente igual.

Aleksandra Dmítrievna estalou a língua.

–Brissons là-dessus. Et bonne nuit6 – disse ele.

Mas Aleksandra Dmítrievna não se retirou. Continuou ali, calada, mais um pouco.

–Pétia me disse que o senhor queria deixar dinheiro para a mulher em cuja casa ela está morando. O senhor sabe o endereço?

–Sei.

–Então não faça isso por nosso intermédio, leve o senhor mesmo. Apenas veja como ela está vivendo. Se o senhor não quer vê-la, certamente não a verá. E ele não está lá, não há ninguém lá.

Mikhail Ivánovitch teve um tremor dos pés à cabeça.

–Ah, para quê, para que a senhora me atormenta? Isso é falta de hospitalidade.

Aleksandra Dmítrievna levantou-se e, com lágrimas na voz, comovida consigo mesma, exclamou:

–Ela dá tanta pena e é tão bonita.

Ele se levantou e ficou de pé, esperando que a cunhada terminasse. Ela lhe estendeu a mão.

–Michel, isso não está certo – disse e saiu.

Muito depois, Mikhail continuava caminhando sobre o tapete do quarto preparado para ele e, de sobrancelhas franzidas, trêmulo, exclamava: “Oh, oh!”, e ao ouvir a própria voz, se assustava e emudecia.

O orgulho ferido o torturava. A filha dele, homem que tinha sido criado na casa de sua mãe, a famosa Avdótia Boríssovna, que recebia visitas da imperatriz, a filha dele, homem cuja mera atenção já representava uma grande honra para todos, a filha dele, homem que levara uma vida de cavalheiro, sem temor e sem mácula nenhuma... O fato de ter um filho ilegítimo com uma francesinha, que ele havia instalado numa residência no exterior, não diminuía em nada a elevada opinião que Mikhail tinha de si mesmo. E agora sua filha, pela qual fizera tudo que um pai podia e devia fazer, a quem dera uma educação primorosa, a possibilidade de escolher um marido da melhor e mais alta sociedade russa, a filha a quem ele não só dera tudo que uma jovem pode desejar como também dera todo o seu amor, a filha que ele adorava e de que se orgulhava tanto, essa mesma filha o havia desonrado, fizera com que ele não fosse capaz de fitar as pessoas nos olhos e sentisse vergonha diante de todos.

E Mikhail recordou o tempo em que não só a tratava como filha, membro de sua família, mas também a amava com ternura, se alegrava com ela, tinha orgulho dela. Recordou a filha tal como era aos oito, nove anos de idade: uma menina inteligente, viva, que entendia tudo, rápida, graciosa, de olhos pretos brilhantes e cabelos castanho-claros, soltos, compridos sobre as costas magras. Recordou como ela ria para ele, de joelhos, e o abraçava pelo pescoço, fazia cócegas nele enquanto dava gargalhadas e, apesar dos gritos de protesto de Mikhail, continuava, e depois o beijava na boca, nos olhos, nas bochechas. Ele era avesso a qualquer expansividade, mas aquela expansividade o comovia e às vezes ele se rendia a isso e, agora, lembrava como eram bons os carinhos da filha.

E aquele ser tão meigo no passado fora capaz de se tornar no que era agora – uma criatura em que ele não conseguia pensar sem aversão.

Agora também recordou o tempo em que ela se tornara mulher e o singular sentimento de medo e de afronta que ele experimentou diante da filha, quando notou que os homens a olhavam como mulher. E lembrou sua relação ciumenta com a filha, quando ela, com um sentimento de quem se exibe, sabendo que era bonita, ia falar com o pai em vestidos de baile, e quando ele a via nos bailes. Mikhail Ivánovitch temia olhares impuros para a filha e ela não só não o compreendia como até se alegrava com isso. “Sim”, pensava ele, “que superstição é a pureza da mulher. Ao contrário, elas não conhecem a vergonha, elas não têm vergonha.”

Lembrou como a filha, de modo incompreensível para ele, recusou dois ótimos pretendentes e como, continuando a circular pela sociedade, se sentia atraída não por alguma pessoa, mas sim pelo seu próprio sucesso. No entanto aquele sucesso não podia durar muito tempo. Passaram um, dois, três anos. Todos a olhavam com atenção. Era bonita, mas já não estava na primeira mocidade, parecia um acessório rotineiro dos bailes. Mikhail Ivánovitch pressentia que a filha ia ficar solteira e queria só uma coisa para ela: casá-la quanto antes, mesmo que não fosse um casamento tão bom quanto teria se tivesse casado mais cedo, contanto que fosse algo decente. Porém, assim parecia a Mikhail, ela se portava com um orgulho altivo incomum e, ao lembrar-se disso, lhe veio um rancor ainda mais forte contra a filha. Recusou pessoas tão corretas para depois cair nesse horror! “Oh, oh!”, gemeu ele de novo, parou de andar, fumou um cigarro, quis pensar em outra coisa. Tentou pensar em como ia mandar o dinheiro para a filha, sem permitir que o visse, mas de novo lhe veio a lembrança de como ela, pouco tempo antes – naquela ocasião, a filha tinha já mais de vinte anos –, se envolvera numa espécie de romance com um menino de catorze anos, um pajem, que passara uma temporada no campo com eles, lembrou como a filha levara o menino à loucura, como ele se desmanchava de tanto chorar e como ela, com ar sério, frio e até bruto, respondera ao pai quando ele, para pôr fim naquele romance tolo, mandou o menino ir embora; e como, desde então, suas relações já frias com a filha se tornaram ainda mais frias, também por parte dela. A filha parecia considerar-se ofendida de alguma forma.

“Eu estava mais do que certo”, pensou ele agora. “É uma natureza desavergonhada e cruel.”

E então, mais uma vez, a lembrança horrível da carta de Moscou, na qual ela dizia que não podia voltar para casa, que era uma mulher perdida, desgraçada, pedia que a perdoasse e a esquecesse, e a horrível lembrança das conversas com a esposa, as desconfianças, as cínicas desconfianças que, no final, resultaram em certeza de que a desgraça havia ocorrido na Finlândia, onde ela fora passar uma temporada na casa de uma tia, e de que o culpado era um estudante sueco, homem insignificante, vazio, vulgar e casado.

Lembrava-se de tudo isso agora e andava, andava para um lado e para outro, sobre o tapete do quarto, recordando seu antigo amor pela filha, o orgulho que tinha dela, se horrorizava com aquela queda, para ele incompreensível, e sentia ódio da filha pelo desgosto que lhe havia causado. Lembrou o que a cunhada dissera e tentou imaginar como poderia perdoar a filha, porém bastava lembrar aquele “eu” e o horror, a aversão, o orgulho ferido enchiam seu coração. E Mikhail gemia: “Oh, oh!”, e tentava pensar em outra coisa.

“Não, é impossível. Vou dar o dinheiro para o Piotr, para que entregue a ela todo mês. Não tenho mais filha...”

E foi arrastado de novo por aquele mesmo sentimento estranho e confuso de antes, que não parava de atormentá-lo; o sentimento de ternura diante da lembrança de seu amor pela filha e o sentimento de um rancor torturante, por ela ser capaz de lhe causar um desgosto tão grande.
II

 

 

 

Só naquele último ano, Liza tinha vivido muito mais do que nos vinte e cinco anos anteriores; nem se podia comparar. Naquele ano, de repente, se revelou para ela todo o vazio de sua vida até então: tornou-se clara toda a baixeza, toda a sordidez da vida que levava na sociedade rica de Petersburgo e em sua casa, onde ela e todos levavam uma vida de animais, preocupada só com sua superfície, desfrutando todos os seus encantos, mas sem descer até seu fundo. Foi bom por um ano, dois, três, mas quando aquilo – as festas, os bailes, os concertos, os jantares, os vestidos de baile e os penteados que realçavam a beleza do corpo, e os cortejadores jovens ou velhos, todos iguais, que pareciam todos saber de alguma coisa, que pareciam ter o direito de desfrutar tudo e ter a necessidade de rir de tudo, e quando as temporadas de verão nas casas de campo, sempre com a mesma natureza, que também só proporcionavam os prazeres superficiais da vida, e quando as músicas e as leituras, também iguais, que apenas atiçavam as questões da vida, mas não as resolviam –, quando tudo isso se estendeu por sete, oito anos, não só sem prometer nenhuma mudança, mas, ao contrário, perdendo cada vez mais o encanto, ela chegou ao desespero, um estado de completo desespero a dominou, e veio o desejo de morrer. Amigas a encaminharam para atividades filantrópicas. De um lado, ela viu a miséria real, repulsiva, e de outro viu a miséria fingida, ainda mais lamentável e repulsiva, e viu também a terrível frieza das damas benfeitoras, que chegavam em seus coches de milhares de rublos, em roupas de milhares de rublos, e Liza sentiu-se cada vez pior. Queria algo real, queria a vida e não uma brincadeira de vida, não queria aproveitar só a melhor parte. E não a encontrava em lugar nenhum. Sua melhor recordação era o amor pelo cadete Koko, como o chamavam. Foi bonito, honesto, franco, mas agora não havia nem podia haver nada semelhante. Toda ela se angustiava, cada vez mais, e naquela situação triste foi visitar a tia na Finlândia. Circunstâncias novas, natureza nova e pessoas novas, com algo de diferente, pessoas que lhe pareceram muito atraentes.

Como e quando aquilo começou, ela não conseguia responder. Havia um hóspede sueco na casa da tia. Ele falava de seu trabalho, de seu povo, de um novo romance sueco, nem ela sabia dizer como e quando começou aquele estranho contágio por meio de olhares e sorrisos, cujo significado era impossível exprimir com palavras, mas que tinham um sentido, assim lhe parecia, mais elevado do que quaisquer palavras. Tais olhares e sorrisos revelavam suas almas um ao outro, e não só as almas, mas também alguns grandes e importantíssimos mistérios comuns a toda a humanidade. Qualquer palavra dita por eles recebia daqueles sorrisos um significado imenso e maravilhoso. Era o mesmo significado que também recebia a música, quando a ouviam juntos ou cantavam um dueto. Era o mesmo significado que recebiam as palavras de um livro que lessem em voz alta. Às vezes discutiam, cada um fincava pé em sua opinião, mas bastava os olhos de ambos se cruzarem e brilhar um sorriso para a discussão ficar para trás, em algum lugar mais abaixo, enquanto os dois ascendiam a uma região elevada, só alcançada por eles.

Como aquilo começou, como e quando daqueles sorrisos e olhares saiu o diabo e se apoderou dos dois ao mesmo tempo, Liza não saberia dizer, mas, quando sentiu medo do diabo, os fios invisíveis que os uniam já estavam tão entrelaçados que ela percebeu sua impotência para se desvencilhar daquilo e toda esperança já se apoiava nele, na nobreza dele. Liza esperava que ele não tirasse proveito de sua força, no entanto, de modo confuso, não era isso que ela mesma desejava.

Sua impotência para a luta aumentava também porque não tinha motivos para se conter. Sua vida mundana, com sua superficialidade e falsidade, lhe causava aversão. Não amava a mãe e o pai a repelia, era sua impressão, e Liza sentia uma vontade ardorosa não de brincar de viver e sim de viver de verdade, e era no amor, no amor pleno de uma mulher por um homem, que ela pressentia se encontrar aquela vida. E sua natureza apaixonada e saudável a arrastava justamente para lá. Aquela vida lhe pareceu estar nele, em sua figura alta, forte, em sua cabeça loura e no bigode louro e curvado para cima, sob o qual reluzia um sorriso atraente e poderoso. Naquilo, ela via a promessa do que seria o melhor que existe no mundo. E os sorrisos e os olhares, as esperanças e as promessas de algo incrivelmente belo acabaram por levá-los para aquilo a que tinham mesmo de ser levados, mas que ela temia e, de modo confuso, inconsciente, desejava. E de repente tudo o que era belo, espiritual, alegre, cheio de esperanças no futuro, de repente tudo se tornou repulsivo, brutal e não só lamentável como também desesperador.

Liza fitava-o nos olhos, tentava sorrir, tentava fingir que não temia nada, que aquilo era o que devia ser, mas no fundo sabia que agora estava tudo perdido, que nele não havia aquilo que ela procurava, o que não havia nele e havia em Koko. Liza disse que agora ele devia escrever para o pai dela e pedir sua mão em casamento. Ele respondeu que ia fazer isso. Depois, no encontro seguinte, disse que não podia fazê-lo agora. Nos olhos dele, havia algo envergonhado, obscuro, e as dúvidas de Liza aumentaram ainda mais. No dia seguinte, ele lhe mandou uma carta, na qual confessava que era casado, que a esposa o deixara muito tempo antes, que agora estava liquidado aos olhos dela, que ele era culpado e suplicava seu perdão.

Ela o chamou e lhe disse, com todas as letras, que o amava, que não se importava que ele fosse casado, sentia-se unida a ele para sempre e não o deixaria.

No encontro seguinte, ele disse que não possuía nada, que os pais eram pobres e que só tinha condições de lhe oferecer uma vida muito pobre. Liza respondeu que não precisava de nada e que estava disposta a ir com ele para onde ele quisesse, naquele mesmo instante.

Ele a dissuadiu, recomendou esperar um pouco. Ela concordou. Mas a vida dissimulada para as pessoas de casa, os encontros fortuitos e as cartas secretas eram uma tortura para Liza, e ela insistiu em partir e fugir.

Quando ela foi para Petersburgo, ele escrevia para ela, prometia ir até lá, depois parou de escrever e desapareceu. Liza tentava viver como antes, mas não conseguia. Começou a sentir-se mal. Ia ao médico, mas seu estado ficava cada vez pior. Quando já estava convencida de que não poderia mais esconder aquilo que queria esconder, resolveu se matar. Mas como fazer isso de modo que a morte parecesse natural? Queria se matar, tinha a impressão de que havia decidido de forma definitiva, e pegou um veneno, verteu numa taça e estava pronta para beber de um gole. E de fato teria bebido, se naquele instante não tivesse entrado correndo no quarto um sobrinho de cinco anos, filho da irmã, mostrando para ela um brinquedo que ganhara de presente da avó. Liza parou, acariciou o menino e, de repente, desatou a chorar. Veio-lhe o pensamento de que poderia ser mãe, se ele já não fosse casado, e a ideia da maternidade pela primeira vez obrigou Liza a voltar-se para si, pensar não no que os outros pensariam e falariam sobre ela, mas em sua vida real. Matar-se por causa da opinião dos outros parecia fácil, mas matar-se por sua própria causa era impossível. Jogou fora o veneno e parou de pensar no suicídio, passou a viver dentro de si mesma e essa vida era torturante, mas era a vida, e Liza não queria e não podia separar-se dela. Passou a rezar, o que já não fazia desde muito tempo antes, mas isso não trouxe alívio: ela sofria não por si, mas pelos sofrimentos do pai, que ela entendia, e tinha pena dele, mas sabia que tais sofrimentos iriam vir, e ela era a culpada. Durante alguns meses, sua vida seguiu assim e, de repente, aconteceu com ela algo inesperado, que ninguém notou, que ela mesma quase não percebeu, mas que pôs sua vida de cabeça para baixo. De repente, sentada, trabalhando – ela tricotava uma manta –, teve uma estranha sensação de movimento... dentro de si.

–Não, não pode ser. – Ficou paralisada, com a agulha e a manta nas mãos. E de novo aquela mesma vibração repentina. Será que era menino ou menina? E, esquecida de si mesma, de sua baixeza e de sua mentira, da irritação da mãe, do desgosto do pai, Liza se iluminou com um sorriso, não o sorriso vil com que ela respondia ao mesmo sorriso que ele lhe dirigia, mas um sorriso radiante, puro e alegre.

Liza então se horrorizou com a ideia de que havia podido pensar em matar a ele junto consigo e agora dirigiu todos os seus pensamentos para uma forma de sair de casa, para um lugar aonde ir e onde se tornar mãe, uma mãe infeliz e digna de pena, mas mesmo assim uma mãe. E pensou em tudo isso, se organizou, fugiu de casa e se instalou numa cidade distante de província, onde ninguém poderia encontrá-la, onde julgava estar fora do alcance de seus familiares e onde, para sua desgraça, o governador recém-nomeado era irmão de seu pai, algo com que não contava de forma nenhuma.

Ela morava na casa da parteira Mária Ivánovna já havia quatro meses e, ao saber que o tio estava na cidade, logo se dispôs a ir embora, para qualquer lugar bem longe.
III

 

 

 

Mikhail Ivánovitch acordou cedo e, na mesma manhã, ao entrar no gabinete do irmão, entregou-lhe um cheque com o valor já preenchido, pediu que, todo mês, desse uma determinada quantia daquele dinheiro para a filha e perguntou quando partia o trem expresso para Petersburgo. O trem partia às sete horas da noite, de modo que Mikhail Ivánovitch tinha tempo para jantar cedo, antes da partida. Depois de tomar café com a cunhada, que não disse mais nada que fosse penoso para Mikhail e apenas lhe dirigiu olhares tímidos, ele, seguindo sua rotina higiênica habitual, foi dar o passeio de costume.

Aleksandra Dmítrievna acompanhou-o até o vestíbulo.

–Michel, vá ao parque municipal, é maravilhoso caminhar ali, e é perto de tudo – disse ela, olhando com ar de pena para seu rosto zangado.

Mikhail Ivánovitch obedeceu ao conselho da cunhada e foi ao parque municipal, que ficava perto de tudo, e pensava aborrecido na tolice, na teimosia e na crueldade das mulheres. “Ela não tem pena de mim”, pensou, referindo-se à cunhada. “Não consegue entender meus sofrimentos. E ela?”, pensou na filha. “Ela sabe o que é isso para mim, que martírio. Que golpe horrível no fim da vida, que sem dúvida ela mesma trata de abreviar. Bem, é até melhor chegar logo ao fim do que continuarem esses tormentos. E tudo isso pour les beaux yeux d’un chenapan.”7 “Oh-oh-oh”, gemeu alto, e dentro dele se ergueu tamanho sentimento de ódio e de rancor ao pensar em tudo que iriam dizer na cidade quando soubessem (na certa, todos já sabiam), se ergueu dentro dele tamanho sentimento de rancor contra a filha que teve vontade de lhe dizer tudo cara a cara, fazê-la entender todo o significado do que ela havia feito. “Elas não entendem.”

“Fica perto de tudo”, pensou e, pegando uma caderneta de anotações, leu o endereço dela: “Rua Kúkhonnaia, casa de Abrámov, Viera Ivánovna Seliviérstova”. Ela usava aquele nome. Mikhail se dirigiu à saída do parque e chamou um coche de praça.

–Com quem o senhor quer falar? – perguntou Mária Ivánovna, a parteira, quando ele entrou no pátio estreito que dava para uma escada íngreme e fedorenta.

–A senhora Seliviérstova mora aqui?

–Viera Ivánovna? Mora aqui, sim, por favor. Ela deu uma saída, foi ao mercado, deve voltar logo.

Atrás da gorda Mária Ivánovna, Mikhail Ivánovitch entrou numa sala pequena e um grito atroz de bebê, vindo do quarto vizinho, feriu-o como uma faca, assim lhe pareceu.

Mária Ivánovna pediu desculpas, foi para aquele quarto e ouviu-se que tentava acalmar o bebê. O bebê se calou e ela voltou.

–É o filhinho dela. Já vai voltar. E o senhor quem é?

–Sou um conhecido, mas é melhor voltar mais tarde – disse Mikhail Ivánovitch, preparando-se para sair. Era uma tortura preparar-se para o encontro com ela e, além do mais, lhe parecia de todo impossível chegarem a algum acordo.

Tinha acabado de virar-se para sair quando soaram na escada passos ligeiros, leves, e ele reconheceu a voz de Liza.

–Mária Ivánovna! E então, ele gritou quando eu estava fora?... Eu...

E de repente ela viu o pai. O saquinho que tinha na mão soltou-se e caiu.

–Papai?! – exclamou e, toda pálida e com o corpo todo trêmulo, ficou parada na porta.

Ele olhou para ela sem sair do lugar. Liza tinha emagrecido, os olhos tinham ficado maiores, o nariz mais pontudo, as mãos mais finas, ossudas. Ele não sabia o que dizer nem o que fazer. E então esqueceu tudo que pensava de sua vergonha e agora tudo que sentia era pena, pena dela, pena de sua magreza, de sua roupa ruim, ordinária, e sobretudo do rosto desolador, com olhos que imploravam algo, apontados para ele.

–Papai, me perdoe – disse, aproximando-se dele.

–Perdoe – disse ele –, me perdoe você – e começou a fungar como uma criança, enquanto beijava o rosto da filha, suas mãos e as cobria de lágrimas.

A pena que sentiu da filha revelou-o a si mesmo. E ao ver-se como era na realidade, entendeu a que ponto era culpado perante ela, culpado por seu orgulho, por sua frieza, até por sua maldade com a filha. E sentiu-se contente por ser culpado, por não ter nada a perdoar, mas sim precisar de perdão.

Liza levou-o a seu quarto, contou como vivia, mas não lhe mostrou o bebê e não disse nada sobre o passado, sabendo que seria um tormento para o pai. Mikhail lhe disse que ela precisava se instalar de outra maneira.

–Sim, se ao menos eu estivesse no campo – disse ela.

–Nós vamos pensar nisso tudo – disse ele.

De repente, atrás da porta, o bebê começou a gemer e depois passou a gritar. Ela arregalou os olhos e, sem desviá-los do pai, ficou paralisada, indecisa.

–Bem, você precisa amamentar – disse Mikhail Ivánovitch, movendo as sobrancelhas com um evidente esforço interior.

Liza levantou-se e, de repente, lhe veio a ideia louca de mostrar a quem ela amava havia tanto tempo aquele que agora ela amava mais que tudo no mundo. Mas, antes de dizer o que queria, observou por um momento o rosto do pai. Iria se zangar ou não?

O rosto do pai exprimia não irritação, mas apenas sofrimento.

–Sim, vá, vá – disse ele. – Graças a Deus. Sim, amanhã virei de novo e vamos decidir. Até logo, meu bem. Sim, até logo. – E de novo teve dificuldade para conter o bolo que subiu na garganta.

Quando Mikhail Ivánovitch voltou à casa do irmão, Aleksandra Dmítrievna logo lhe perguntou:

–E então?

–Tudo bem.

–Encontraram-se? – perguntou ela, adivinhando pelo rosto do cunhado que algo havia ocorrido.

–Sim – disse ele depressa e, de repente, desatou a chorar. – Sim, envelheci e fiquei tolo – disse, depois de se acalmar.

–Não, inteligente, muito inteligente.

Mikhail Ivánovitch perdoou a filha, perdoou inteiramente e, graças ao perdão, venceu dentro de si todo o temor da glória mundana. Instalou a filha na casa da irmã de Aleksandra Dmítrievna, que morava no campo, encontrava-se com a filha e a amava não só como antes e sim mais ainda, ia visitá-la, passava temporadas com ela. Mas evitava ver o bebê e não conseguia vencer dentro de si o sentimento de aversão, de repulsa por ele. E isso era uma fonte de sofrimento para a filha.

13 de novembro de 1906

GENTE POBRE1

Num barraco de pescadores, junto à janela, estava sentada Janna, esposa de um pescador, que consertava uma vela muito velha. Do lado de fora, o vento assoviava e uivava e as ondas rugiam, espumavam e quebravam com força na praia... Do lado de fora estava escuro e frio, no mar havia uma tempestade, mas no barraco do pescador estava quente e confortável. O chão de terra estava limpo e varrido; na estufa, o fogo ainda não tinha apagado; na estante, panelas e pratos brilhavam. Numa cama, com a cortina branca baixada, dormiam os cinco filhos, sob os uivos do mar tempestuoso. O marido pescador tinha saído para o mar em seu barco desde a manhã e ainda não tinha voltado. A mulher do pescador ficava escutando com atenção o ronco das ondas e o rugido do vento. Janna estava apavorada.

O velho relógio de madeira, com pancadas roucas, bateu dez horas, onze... O marido não chegava. Janna ficou pensando. O marido não se poupava, ia pescar no frio e na tempestade. Ela ficava em casa trabalhando, da manhã até a noite. E para quê? Mal dava para comer. Os filhos continuavam sem ter sapatos e andavam descalços no verão e no inverno; não comiam pão de trigo – e era ótimo quando conseguiam pão de centeio. O único ponto forte da refeição era o peixe. “Bem, graças a Deus as crianças são saudáveis. Não tenho do que me queixar”, pensou Janna e, de novo, ouviu a tempestade. “Onde é que ele está agora? Deus, proteja, salve e perdoe!”, disse e fez o sinal da cruz.

Ainda era cedo para dormir. Janna levantou-se, cobriu a cabeça com um xale grosso, acendeu o lampião e saiu para a rua para ver se o mar tinha ficado mais manso, se o tempo estava limpando, se ainda estava acesa a luz do farol e se não avistava o barco do marido. Mas não se via nada no mar. O vento arrancou o xale de sua cabeça, bateu a porta do casebre vizinho como se a arrebentasse e Janna lembrou que, ainda à tarde, queria visitar a vizinha doente. “Não tem ninguém para cuidar dela”, pensou Janna e bateu na porta. Escutou... Ninguém veio atender.

“Vida dura a de uma viúva”, pensou Janna, parada diante da porta. “Apesar de ter poucos filhos, só dois, tem de resolver tudo sozinha. Ainda por cima está doente! Eh, vida dura a de uma viúva. Vou ver como está.”

Janna bateu mais algumas vezes. Ninguém respondeu.

–Ei, vizinha! – gritou. “Será que aconteceu alguma coisa?”, pensou, e empurrou a porta.

No casebre, estava úmido e frio. Janna ergueu o lampião para ver onde estava a enferma. A primeira coisa em que os olhos bateram foi a cama em frente à porta e, sobre a cama, ela, a vizinha, deitada de barriga para cima, tão quieta e imóvel como só ficam os mortos. Janna aproximou o lampião ainda mais. Sim, era ela. A cabeça inclinada para trás; no rosto frio e azulado, a tranquilidade da morte. A mão pálida e morta, como se tivesse tentado puxar alguma coisa, pendia tombada ao lado do colchão de palha. E ali mesmo, perto da mãe morta, duas crianças pequenas, de cabelos cacheados e bochechas gorduchas, cobertas por um vestido velho, dormiam encolhidas, as duas cabecinhas louras encostadas uma na outra. Pelo visto a mãe, ao morrer, ainda teve tempo de agasalhar as perninhas deles com um xale velho e cobrir as duas com seu vestido. A respiração das crianças era calma e ritmada, dormiam profunda e docemente.

Janna pegou o berço com as crianças, cobriu-as com um xale e levou para casa. Seu coração batia com força; ela mesma não sabia como e para que tinha feito aquilo, mas sabia que não podia deixar de fazer o que fez.

Em casa, colocou as crianças ainda adormecidas sobre a cama junto com seus filhos e, afobada, fechou a cortina. Estava pálida e emocionada. A consciência parecia torturá-la. “O que ele vai dizer?”, perguntava para si mesma. “Parece brincadeira, já temos cinco filhos, ele já tem trabalho de sobra para criar os cinco... Será que é ele?... Não, ainda não!... Para que pegar? Ele vai até me bater! E vai ser bem feito, eu mereço. Lá vem ele! Não!... Bem, tanto melhor!”

A porta rangeu, alguém pareceu entrar. Janna estremeceu e levantou-se da cadeira.

“Não. Ninguém, de novo! Meu Deus, para que fui fazer isso? Como é que vou poder olhar nos olhos dele, agora?...” E Janna ficou pensando, muito tempo calada, sentada junto à cama.

A chuva parou; amanheceu, mas o vento zumbia e o mar rugia como antes.

De repente, a porta abriu de supetão, uma rajada de ar fresco do mar irrompeu na sala e um pescador alto e bronzeado, puxando atrás de si uma rede rasgada e molhada, entrou e disse:

–Pronto, cheguei, Janna!

–Ah, é você! – disse Janna e parou, sem se atrever a erguer os olhos para ele.

–Puxa, que noitezinha! Um horror!

–Sim, sim, fez um tempo horrível! Bem, e como foi a pescaria?

–Uma porcaria, a maior porcaria! Não peguei nada. Só rasguei a rede. Ruim, ruim! Mas também, vou lhe contar, que tempinho feio! Acho que não me lembro de outra noite feito essa. Como é que se pode pescar? Graças a Deus voltei vivo para casa... Bom, e você, o que andou fazendo por aqui sem mim?

O pescador puxou a rede para dentro da sala e sentou-se junto à estufa.

–Eu? – disse Janna, empalidecendo. – Bom, sabe, eu... fiquei costurando... O vento uivava tanto que dava muito medo. Fiquei com medo por você.

–Sei, sei – balbuciou o marido. – Tempinho ruim dos diabos! O que se vai fazer?

Os dois ficaram calados.

–Sabe – disse Janna –, a vizinha Simon morreu.

–É?

–Não sei quando foi; na certa, foi ontem. Pois é, morrer foi penoso para ela. Seu coração deve ter doído muito pelos filhos! Duas crianças tão fraquinhas... Uma nem fala ainda e a outra mal começou a engatinhar...

Janna ficou calada. O pescador franziu as sobrancelhas; seu rosto ficou sério, preocupado.

–Bom, era o que faltava! – exclamou ele, coçando a nuca. – Pois é, o que se vai fazer? Vamos ter de pegar. Quando acordarem, como é que vão ficar com a defunta? Pois é, a gente dá um jeito de criar! Vá lá depressa!

Mas Janna não se mexeu.

–O que deu em você? Não quer? O que deu em você, Janna?

–Elas estão ali – disse Janna, e abriu a cortina.

1908

A FORÇA DA INFÂNCIA1

–Matem!... Fuzilem!... Fuzilem o canalha agora mesmo!... Matem!... Cortem o pescoço do assassino!... Matem, matem! – gritavam vozes de homens e mulheres na multidão.

Uma enorme multidão conduzia pela rua um homem amarrado. O homem alto, ereto, caminhava em passos firmes, com a cabeça bem erguida. No rosto viril e bonito havia uma expressão de desprezo e rancor pelas pessoas que o rodeavam.

Era uma dessas pessoas que, na guerra do povo contra o poder, combatem do lado do poder. Agora o agarraram e levavam para a execução.

“O que fazer? Nem sempre a força está do nosso lado. O que fazer? Agora, eles estão com o poder. Morrer, parece que é preciso morrer”, pensava o homem e, encolhendo os ombros, sorria com firmeza em resposta aos gritos, que continuavam na multidão.

–Ele é da polícia, ainda de manhã estava dando tiros na gente! – gritaram na multidão.

Mas a multidão não parava e o conduziram adiante. Quando chegaram à rua onde, perto da ponte, jaziam corpos de soldados mortos na véspera que ainda não tinham sido removidos, a multidão se enfureceu.

–Nada de esperar! Vamos fuzilar já, aqui mesmo. Afinal, para onde vão levar ainda? – gritaram.

O prisioneiro franziu as sobrancelhas e apenas ergueu mais a cabeça. Parecia odiar a multidão ainda mais do que a multidão o odiava.

–Liquidem todos eles! Espiões! Reis! Papas! E também esses canalhas! Matem, matem agora mesmo! – berraram vozes estridentes de mulher.

Mas os líderes da multidão resolveram levá-lo à praça e, lá, dar cabo dele.

A praça já estava perto, quando, num instante de calma, ouviu-se uma vozinha chorosa de criança nas fileiras de trás da multidão.

–Papai! Papai! – gritava gemendo um menino de seis anos, que se enfiava no meio da multidão tentando alcançar o prisioneiro. – Papai! O que estão fazendo com você? Espere, espere, me deixe passar, me deixe!

Os gritos cessaram no lado da multidão de onde vinha o menino e, abrindo passagem à frente dele, como que sob o efeito de uma força, a multidão deixava que o menino chegasse cada vez mais perto do pai.

–Ah, que bonitinho! – exclamou uma mulher.

–O que você quer? – perguntou outra mulher, inclinando-se para o menino.

–O papai! Me deixem chegar ao papai! – gritou o menino com voz esganiçada.

–Quantos anos você tem, menino?

–O que vocês querem fazer com o papai? – disse o menino.

–Vá para casa, menino, vá para sua mãe – disse um homem para o garoto.

O prisioneiro já estava ouvindo a voz do menino e o que estavam dizendo para ele. Seu rosto ficou ainda mais sombrio.


–Ele não tem mãe! – gritou em resposta a quem disse para o menino ficar com a mãe.

O menino avançou empurrando a multidão, chegou cada vez mais perto, até que alcançou o pai e subiu em seus braços.

Na multidão, continuavam a gritar:

–Matem! Enforquem! Fuzilem o canalha!

–Por que saiu de casa? – perguntou o pai ao menino.

–O que eles querem fazer com você? – disse o menino.

–Você vai fazer uma coisa – disse o pai.

–O quê?

–Conhece a Katiucha?

–A vizinha? Claro que conheço.

–Então vá para a casa dela e fique lá. Eu... eu vou voltar.

–Sem você, eu não vou – disse o menino e começou a chorar.

–Por que não vai?

–Eles vão matar você.

–Não, nada disso, não é nada.

E o prisioneiro baixou o menino dos braços e se aproximou do homem que comandava a multidão.

–Escute – disse. – Podem me matar, onde e como quiserem, mas não na frente dele. – Apontou para o menino. – Desamarrem-me só dois minutos, me segurem pelo braço, e vou dizer a ele que eu e vocês vamos dar um passeio, que vocês são meus amigos, e aí ele vai embora. E então... então me matem como quiserem.

O líder concordou.

Então o prisioneiro tomou de novo a mão do menino e disse:

–Seja um bom menino, vá para a casa da Kátia.

–E você, o que vai fazer?

–Olhe, vou dar um passeio com esses meus amigos, vamos andar mais um pouco, você vai indo que eu vou depois. Agora vá, seja um bom menino.

O menino fitou os olhos do pai, inclinou a cabeça para um lado e para outro, e ficou pensativo.

–Vá, meu querido, eu vou depois.

–Vai mesmo?

E o menino obedeceu. Uma das mulheres o levou para fora da multidão.

Quando o menino se foi, o prisioneiro disse:

–Agora estou pronto, matem-me.

E então aconteceu algo totalmente inesperado, incompreensível. O mesmo espírito despertou, de uma só vez, em todos aqueles que um minuto antes eram cruéis, implacáveis, rancorosos, e uma mulher disse:

–Querem saber de uma coisa? É melhor soltar.

–É, sim, vá com Deus – disse mais alguém. – Soltem.

–Soltem, soltem! – bradou a multidão.

E o homem orgulhoso, implacável, que um minuto antes odiava a multidão, começou a soluçar, cobriu o rosto com as mãos e, como se fosse culpado, saiu da multidão correndo, e ninguém o deteve.

1908

O LOBO

Era uma vez um menino. Ele gostava muito de comer frangos e tinha muito medo de lobos.

Um dia esse menino se deitou e dormiu. Sonhou que andava sozinho pela floresta para colher cogumelos e, de repente, um lobo pulou das moitas e avançou na direção do menino.

O menino se assustou e gritou:

–Ai, ai! Ele vai me comer!

O lobo disse:

–Espere, não vou comer você, só vou falar com você.

E o lobo começou a falar com voz de gente. E o lobo disse:

–Você está com medo que eu coma você. Mas o que é que você mesmo faz? Você não adora comer frangos?

–Adoro.

–E para que come os frangos? Afinal, os frangos também são seres vivos, como você. Toda manhã, você pode ver como são apanhados, como o cozinheiro os leva para a cozinha, como cortam seu pescoço, como a mãe deles cacareja porque tomaram seus filhotes. Você já viu isso? – disse o lobo.

O menino respondeu:

–Não vi.

–Se não viu, então vá ver. E agora eu vou comer você. Você é igual a um franguinho e eu vou comer você.

E o lobo pulou em cima do menino e o menino se assustou e gritou:

–Ai, ai, ai!

Gritou e acordou.

Desde então, o menino não come mais carne, nem de vaca nem de bezerro nem de carneiro nem de galinha.

1908

CONVERSA COM UM PASSANTE

Saí cedo. Sentia-me bem, alegre. Manhã maravilhosa, o sol tinha acabado de subir de trás das árvores, o orvalho reluzia no capim e nas árvores. Tudo era encanto e todos eram encantadores. Era tão bom que ninguém queria morrer. Exatamente isso, ninguém queria morrer. A vontade era de continuar vivendo neste mundo, com tanta beleza em volta e com tanta alegria na alma. Bem, mas isso não é da minha conta, e sim do patrão...

Vou chegando perto da aldeia; em frente à primeira casa, na estrada, de lado para mim, um homem está de pé, parado. É claro que espera alguma coisa ou alguém, e espera como só a gente trabalhadora sabe esperar – sem impaciência, sem irritação. Chego mais perto – um camponês barbado, cabeludo, grisalho, saudável, com um rosto simples de trabalhador. Não está fumando um cigarro de papel, mas um cachimbo. A gente se cumprimenta.

–Onde mora por aqui o velho Aleksei? – pergunto.

–Não sei, meu caro, nós não somos daqui.

Não disse eu não sou daqui, mas sim nós não somos daqui. Esse jeito de falar mostra que o russo nunca está sozinho (quando faz uma coisa ruim, diz: eu). A família somos nós, a cooperativa somos nós, a sociedade somos nós.

–Não é daqui? Então é de onde?

–Somos de Kalútski.

Apontei para o cachimbo.

–E quanto você gasta por ano para fumar? Uns três rublos, imagino.

–Três? Não dá para fumar com três.

–E não vai parar?

–Parar, como? É o costume.

–Eu também fumava e parei; é muito bom, é fácil.

–Todo mundo sabe. Mas sem fumar fica chato.

–Pare que não vai ser chato. Fumar traz pouco benefício.

–Mas é bom.

–Não é bom, não precisa disso. Vai virar outro, quando olharem para você. O pior é a garotada. Vão dizer: olhem lá o velho fumando, Deus mandou a gente fumar também.

–Pois é.

–E o filho vai fumar, vendo você fumar.

–É isso mesmo, o filho também...

–Então pare.

–Eu até parava, mas fica muito chato sem fumar, e as moscas comem a gente. É mais por causa do tédio. Começa a ficar chato, eu logo fumo. A desgraça toda é esta: o tédio. Dá tédio outra vez... um tédio, um tédio – prolongou a voz.

–Mas, para o tédio, é melhor pensar na alma.

Ele cravou os olhos em mim, seu rosto de repente ficou muito diferente, atento, sério, não o mesmo de antes, mas simpático, jocoso, vivaz, falante.

–Pensar na alma, na alma, não é? – disse, olhando para meus olhos com ar de curiosidade.

–Sim, a gente para a fim de pensar na alma e todas as bobagens desaparecem.

O rosto dele ficou radiante de afeição.

–Isso é verdade, velhinho. Falou uma verdade. Pensar na alma é o principal. O principal é pensar na alma. (Calou-se um instante.) Obrigado, velhinho. Isso é verdade. (Apontou para o cachimbo.) Isto aqui é uma dessas bobagens, pensar na alma é o principal – repetiu. – Você falou uma verdade. – E seu rosto ficou ainda mais bondoso e mais sério.

Eu queria continuar a conversa, mas uma coisa subiu na garganta (eu chorava à toa), não consegui mais falar, me despedi e, com um sentimento alegre e comovido, engolindo as lágrimas, fui embora.

Também, como não ficar alegre vivendo no meio de gente assim, como não esperar tudo, as melhores coisas, de tal povo?

9 de setembro de 1909

KREKCHINO

CANÇÕES NO CAMPO1

As vozes e a harmônica se ouviam com clareza e bem perto, mas por trás da neblina não se via ninguém. Era um dia de feira e por isso a cantoria logo cedo me surpreendeu.

“Devem ser os recrutas que estão sendo levados”, pensei, lembrando uma conversa de uns dias antes, sobre cinco jovens de nossa aldeia que tinham sido convocados, e fui na direção da canção alegre, que atraía a gente, mesmo sem querer. Quando cheguei mais perto dos cantores, a cantoria e a harmônica pararam. Os cantadores, quer dizer, os rapazes que passavam, entraram numa isbá de pedra de dois andares, onde morava o pai de um dos convocados. Em frente à porta, estava um pequeno grupo de mulheres, moças e crianças. Enquanto eu fazia perguntas àquelas camponesas, para saber quais rapazes estavam indo e por que entraram naquela isbá, os próprios rapazes saíram pela porta, acompanhados de mães e irmãs. Eram cinco: quatro solteiros, um casado. Nossa aldeia ficava pertinho da cidade e quase todos os convocados trabalhavam na cidade e estavam em roupas civis, pareciam vestir suas melhores roupas: paletós, bonés novos, botas elegantes de cano alto. Naturalmente, chamava mais atenção que os outros um rapaz baixo e de corpo bem-feito, rosto meigo, alegre e expressivo, bigodinho e barbicha que mal começavam a nascer e olhos brilhantes e castanhos. Assim que saiu, imediatamente pegou uma harmônica grande e cara, pendurou nos ombros e, depois de me cumprimentar com uma inclinação da cabeça, correndo os dedos no teclado, logo começou a tocar uma alegre bárinia2 e, no mesmo ritmo, com agilidade, em passos bruscos, saiu pela rua.

Com ele seguiu também um jovem baixo, louro, robusto. Olhava com ar vivo para os lados e, com primor, fazia a segunda voz, enquanto o outro entoava a primeira. Ele era o único casado. Os dois foram na frente. Os outros três, também muito bem-vestidos, foram atrás e nada neles chamava atenção, exceto o fato de um ser muito alto.

Fui com a multidão atrás dos rapazes. As canções eram sempre alegres e, durante o cortejo, não houve nenhum sinal de desgosto. Porém, assim que chegaram à casa seguinte, onde também iam servir comida, assim que eles pararam, começou a choradeira das mulheres. Era difícil entender seus lamentos. Só se ouviam com nitidez as palavras: mortezinha... do pai e da mãe... terrinha querida... E depois de cada verso da canção, lamentando-se, tomando fôlego, erguiam-se primeiro gemidos demorados e depois irrompia um riso histérico. Eram as mães, as irmãs dos que iam partir. Além dos lamentos esganiçados das mulheres da família, ouviam-se as conversas das pessoas de fora.

–Será o que Deus quiser, Matriona, a gente aguenta – ouvi a voz de uma das mulheres que tentavam aplacar as lamentações.

Os rapazes entraram na isbá e eu fiquei na rua conversando com um camponês conhecido meu, Vassíli Orékhov, que tinha sido meu aluno. O filho dele era um dos cinco, o único casado, que entoava a segunda voz da canção.

–E então? Dá pena, não é? – eu disse.

–O que se vai fazer? Com pena ou sem pena, tem de servir no Exército.

E me contou toda a sua situação. Tinha três filhos: um já ganhava a vida sozinho, o outro era aquele que estava indo para o Exército e o terceiro, como o primeiro, já vivia por sua conta e ajudava em casa. Aquele que ia partir, pelo visto, não ajudava muito em casa.

–A esposa é da cidade, não se dá bem com o trabalho da gente. Ele vive separado. Vive à sua própria custa. Mas que dá pena, dá. Agora, o que se vai fazer?

Enquanto conversávamos, os rapazes saíram da casa para a rua e de novo começaram as lamentações, os gritos esganiçados, as risadas, o falatório. Depois de ficarem uns cinco minutos no pátio da casa, foram em frente e de novo soaram a harmônica e as canções. Era impossível não se maravilhar com a energia, a animação do músico, como ele quebrava o ritmo com segurança, como batia o pé no chão, parava, ficava em silêncio um instante e depois retomava a canção com voz radiante, olhando em volta com os olhos castanhos e afetuosos. Era evidente que tinha um grande e verdadeiro talento musical. Eu o observava e, quando nossos olhares se cruzavam – pelo menos, foi minha impressão –, ele parecia ficar embaraçado e, movendo as sobrancelhas, se virava para o lado e cantava ainda mais animado. Quando se aproximaram da quinta e última casa e os rapazes entraram, entrei também atrás deles. Os rapazes, todos os cinco, sentaram-se a uma mesa, arrumada e coberta por uma toalha. Sobre a mesa, havia pão e vodca. O dono da casa, o mesmo homem com quem eu havia falado e que acompanhava o filho casado, servia a bebida e a comida. Os rapazes não beberam quase nada, não tomaram mais que quatro copinhos, e mesmo assim só provaram um pouco e puseram de lado. A dona da casa cortou uma broa e ofereceu os pedaços. O dono da casa enchia os copinhos e levava para servir. Na hora em que eu estava olhando para os rapazes, bem ao lado do lugar onde eu estava sentado, desceu da estufa uma mulher com uma roupa que me pareceu muito estranha e inesperada. Usava um vestido verde-claro que parecia de seda, com enfeites chiques, calçava botinas de tacões altos, os cabelos louros estavam penteados de um jeito chique e, nas orelhas, tinha brincos de argolas douradas. Seu rosto não era nem triste nem alegre, mas parecia ofendido. Desceu batendo com agilidade no chão suas botinas novas, de tacões altos, e saiu para o vestíbulo, sem olhar para os rapazes. Tudo naquela mulher – a vestimenta, o rosto ofendido e acima de tudo os brincos –, tudo era tão alheio àquilo que a rodeava que eu não consegui entender quem poderia ser ela e como tinha ido parar em cima da estufa da casa de Vassíli. Perguntei às mulheres sentadas a meu lado quem era ela.

–É a nora de Vassíliev. Trabalha na casa do patrão.

O dono da casa começou a servir bebida mais uma vez, porém os rapazes recusaram a gentileza, levantaram, despediram-se, agradeceram aos donos da casa e foram para a rua. Na rua, logo recomeçou a choradeira. A primeira a se lamentar foi uma mulher curvada e muito velha, que veio atrás dos rapazes. Sua voz esganiçada dava tanta pena e comovia tanto que as mulheres não paravam de tentar acalmá-la e puxavam pelo cotovelo a velhinha, que uivava, se balançava e ameaçava tombar para a frente.

–Quem é ela? – perguntei.

–A avó dele. Mãe de Vassíli.

Assim que a velha começou a rir de um jeito histérico e desabou nos braços que as mulheres estendiam para ela, o cortejo foi em frente e de novo ressoaram a harmônica e as vozes alegres.

Na saída da aldeia, havia carroças para levar os recrutados até a sede do distrito. Não havia mais choro e lamentos. O tocador de harmônica tocava com desenvoltura cada vez maior. Com a cabeça tombada para o lado, apoiado num pé e com o outro virado, ele batia ligeiro no teclado, as mãos faziam floreios bonitos e constantes e, na hora certa, quando necessário, sua voz alegre, animada, alta, retomava a melodia, junto com a bonita segunda voz do filho de Vassíliev. E velhos e jovens, a multidão que rodeava os rapazes, entre eles eu mesmo, todos nós, sem desviar os olhos, observávamos o cantor, com admiração.

–Como é ágil, o sem-vergonha! – exclamou um mujique.

–Faz até chorar, canta com sentimento.

Naquele momento, em passos grandes e vigorosos, aproximou-se do cantor o rapaz especialmente alto. Chegou perto do tocador de harmônica e lhe disse algo.

“Que bela figura”, pensei. “Com certeza, esse vai ser indicado para a guarda.” Eu não sabia quem era ele, de que casa tinha vindo.

–Quem é? – apontando para o belo rapaz, perguntei para um velhinho que veio na minha direção.

O velhinho tirou o chapéu, me cumprimentou com uma inclinação da cabeça, mas não ouviu minha pergunta.

–O que o senhor disse?

No primeiro instante, não o reconheci, mas assim que começou a falar, logo me lembrei do trabalhador, do bom mujique, que, como acontece muitas vezes, como se tivesse sido escolhido, havia sofrido uma desgraça depois da outra: roubaram seus dois cavalos, sua casa pegou fogo, a esposa morreu. Não o reconheci no primeiro momento, porque fazia muito tempo que não o via e me lembrava de Prokófi como um homem de estatura mediana, de cabelo ruivo-avermelhado, e agora estava grisalho e muito pequeno.

–Ah, é você, Prokófi – eu disse. – Perguntei quem é aquele rapaz, aquele ali, que chegou perto do Aleksandr.

–Aquele? – repetiu Prokófi, apontando para o rapaz alto, com um movimento da cabeça. Em seguida, balançou a cabeça e resmungou algumas palavras, que não entendi.

–Eu queria saber quem é o rapaz – perguntei outra vez e olhei de novo para Prokófi.

O rosto de Prokófi se contraiu, as maçãs do rosto tremeram.

–Esse é o meu – exclamou, virou-se, cobriu o rosto com a mão e começou a soluçar como uma criança.

E só então, depois daquelas poucas palavras de Prokófi – “esse é o meu” –, não com o raciocínio, mas com todo o meu ser, senti todo o horror do que se passava à minha frente, naquela manhã nebulosa, memorável para mim. Tudo aquilo que eu via como vago, incompreensível, estranho, de repente tudo ganhou um significado simples, claro e horrível para mim. Senti uma vergonha torturante por estar assistindo àquilo como um espetáculo interessante. Parei e, com a terrível consciência de um crime, voltei para casa.

E pensar que tudo isso acontece agora com milhares, dezenas de milhares de pessoas, em toda a Rússia, aconteceu e vai acontecer ainda por muito tempo, com esse povo russo dócil, sábio, santo, tratado de modo tão cruel e traiçoeiro.

8 de outubro de 1909

IÁSNAIA POLIANA

[Três dias na aldeia]

PRIMEIRO DIA | GENTE ERRANTE

Hoje em dia, acontece nas aldeias uma coisa completamente nova, nunca vista ou sabida. Todo dia em nossa aldeia, formada por oitenta casas, aparecem de seis a doze andarilhos esfarrapados, com fome, com frio, para passar a noite.

Essa gente esfarrapada, quase despida, descalça, muitas vezes doente e imunda no mais alto grau, chega à aldeia e vai à casa do capataz. O capataz não os encaminha para a residência do senhor de terras, onde, além dos dez quartos em sua casa propriamente falando, há dezenas de acomodações no escritório, na cocheira, na lavanderia, nos alojamentos dos empregados domésticos e na cozinha, além de outras dependências; tampouco para a casa do sacerdote, do diácono e do comerciante, onde, embora sejam casas pequenas, há ainda certo espaço, mas os encaminha para a casa de algum camponês, onde toda a família, a esposa, as noras, as moças, rapazes, crescidos e pequenos, todos ficam num mesmo cômodo de sete, oito ou dez archin. E o dono da casa recebe o homem faminto, com frio, esfarrapado, imundo e repugnante e lhe dá não só um abrigo para pernoitar como também comida.

–Senta na mesa com a gente – disse-me o velho dono da casa. – Não dá para não chamar. Senão a alma pesa, e a gente dá comida e serve chá.

Assim são as visitas noturnas; mas, durante o dia, vão à casa de cada camponês não dois, mas três, dez ou até mais visitas como essa. E é sempre a mesma coisa: “Não dá para não chamar...”.

E, apesar de o pão estar longe de ser suficiente para os visitantes, todas as camponesas cortam uma fatia mais grossa ou mais fina, conforme o tamanho do homem.

–Se a gente der tudo, não vai ter broa para o resto do dia – dizem as mulheres. – E aí no dia seguinte a gente tem de recusar, e isso é pecado.

E assim acontece todo dia, em toda a Rússia. O enorme exército, que aumenta todo ano, de mendigos, inválidos, deportados, velhos desamparados e, sobretudo, trabalhadores desempregados vive, se desloca, melhor dizendo, foge do frio e do mau tempo, e se alimenta graças à ajuda direta e imediata de quem vive nas condições de trabalho mais pobres e penosas – os camponeses.

Temos asilos de pobres, de crianças abandonadas, existem leis de proteção social, existe todo tipo de instituição filantrópica pelas cidades afora. E em todas essas instituições, em prédios com iluminação elétrica, soalho no chão, há serventes limpos e diversos funcionários, com bons salários, que cuidam de milhares de pessoas desamparadas de todos os tipos. Porém, por mais numerosas que sejam essas pessoas, tudo isso não passa de uma gota no mar dessa imensa população (o número é desconhecido, mas deve ser enorme) que agora vagueia mendigando pela Rússia e que se abriga e se alimenta sem nenhuma instituição, mas só com a ajuda do povo camponês das aldeias, que por força de seu sentimento cristão e mais nada é impelido ao cumprimento dessa enorme e pesada responsabilidade.

Pensem só no que diriam as pessoas que não vivem como os camponeses se, em cada quarto de sua casa, tivessem para passar a noite, às vezes durante uma semana inteira, um desses passantes imundos, fedorentos, mortos de frio e de fome. Já os camponeses não só acomodam essa gente, os vagabundos, como dão comida e chá, porque “fica uma coisa na alma, se não chamar para sentar com a gente na mesa”. (Em lugares obscuros de Sarátov, Tambov e outras províncias, os camponeses não esperam que os capatazes levem esses andarilhos, eles mesmos sempre os recebem, mesmo sem ordem nenhuma, e abrigam e alimentam essa gente.)

E, como toda boa ação verdadeira, os camponeses não param de fazer isso e não percebem que se trata de uma boa ação. Ao mesmo tempo, além de ser uma boa ação “para a alma”, é uma ação de enorme importância para toda a sociedade russa. A importância de tal ação para toda a sociedade russa consiste em que, se não fosse o povo camponês e se nele não houvesse esse sentimento cristão, que nele vive com tanta força, é difícil imaginar o que seria não só das centenas de milhares de infelizes desabrigados e vagabundos, mas também de todos os habitantes remediados e, sobretudo, ricos das aldeias, que têm onde morar.

Basta ver a que grau de privação e sofrimento chegaram, ou foram impelidos, esses desabrigados e vagabundos e imaginar em que estado moral devem se encontrar, para entender que só a ajuda prestada a eles pelos camponeses evita os crimes, inteiramente naturais em sua situação, que cometeriam contra pessoas que possuem em excesso tudo aquilo de que eles precisam apenas para o sustento da própria vida.

Portanto não são as associações filantrópicas nem o governo com suas polícias e diversas instituições judiciárias que nos protegem a nós, pessoas das classes abastadas, da pressão das pessoas que vagam sem abrigo, com fome, com frio, que chegaram, e na maior parte foram impelidas, ao mais alto grau de indigência e desespero; o que nos protege, assim como nos alimenta, é de novo essa mesma força fundamental da vida do povo russo: o camponês.

Se não houvesse na vasta população camponesa russa a profunda consciência religiosa da fraternidade de todas as pessoas, por mais polícia que houvesse (e ela já é pouca e não pode ser numerosa no campo), há muito tempo que toda essa gente desabrigada, que chegou ao mais alto grau de desespero, já teria feito em pedaços todas as casas dos ricos, massacrando todos que se pusessem em seu caminho. Portanto é preciso não se horrorizar nem se admirar com o que lemos e ouvimos – que roubaram, que mataram um homem para roubar –, mas entender e lembrar que, se coisas assim acontecem tão raramente, devemos isso apenas à ajuda desinteressada que o camponês presta a essa população infeliz e errante.

Todo dia, em nossa casa, aparecem de dez a quinze pessoas. Entre elas, há mendigos de verdade que por algum motivo escolheram esse meio de vida, costuraram bolsas, vestiram-se, calçaram-se como puderam e saíram pelo mundo. Entre eles, há cegos, sem braços e sem pernas e há também crianças e mulheres, mas é raro. São em menor número. Agora, a maioria dos mendigos não leva bolsas e, em sua maior parte, são jovens sem deficiências físicas. Todos de aspecto extremamente lamentável, descalços, quase despidos, emagrecidos, trêmulos de frio. A gente pergunta: “Para onde vai?”. Quase sempre, respondem: “Procurar trabalho”, ou “Procurei trabalho, mas não achei e estou voltando para casa. Não tem trabalho, estão fechando tudo”. Entre eles, há uns poucos que voltam da deportação.

Entre esses numerosos mendigos errantes, há muitas características diferentes: há pessoas obviamente embriagadas, levadas a tal situação pela bebida, há pessoas pouco alfabetizadas, mas há os muito inteligentes e cultos, há os humildes, envergonhados e, ao contrário, há os importunos, exigentes.

Há alguns dias, assim que acordei, Iliá Vassílievitch me disse:

–Tem cinco vagabundos na varanda.

–Pegue na mesa – falei.

Iliá Vassílievitch pegou o dinheiro e deu cinco copeques a cada um, como mandei. Passou mais ou menos uma hora. Fui à varanda. Horrivelmente esfarrapado, em sapatos completamente destroçados, um homem pequeno, de rosto doentio e olhos inchados e esquivos, começou a me cumprimentar, inclinando o tronco para a frente, e me mostrou um documento de identificação.

–Deram alguma coisa para o senhor?

–Vossa Excelência, para que me servem cinco copeques? Vossa Excelência, ponha-se na minha situação. – Mostrou-me o documento de identificação. – Faça a bondade de examinar, Vossa Excelência, faça a bondade de ver – e me mostrou sua roupa. – Aonde posso ir, Vossa Excelência (e cada vez que dizia “Vossa Excelência”, havia ódio no rosto), o que vou fazer, onde vou parar?

Respondo que dou a mesma quantia para todos. Ele continua a implorar, exige que eu leia a identidade. Eu nego. Ele fica de joelhos. Peço que vá embora.

–Então quer dizer que devo me matar? É só o que resta. Não tenho mais nada que fazer. Dê qualquer coisa.

Dou vinte copeques, ele vai embora e é claro que está magoado.

E há aqueles particularmente insistentes, que sem dúvida reconhecem em si mesmos o direito de exigir sua cota dos ricos. Na maioria, são alfabetizados, muitas vezes até instruídos, para quem a revolução não ocorreu à toa.1 Eles encaram os ricos não como fazem os antigos mendigos de costume, pessoas que dão esmolas para salvar a alma, mas sim como bandidos, ladrões, que sugam o sangue do povo trabalhador; muitas vezes, os mendigos desse tipo não trabalham e fogem do trabalho de todas as maneiras possíveis, mas em nome do povo trabalhador se consideram não só no direito como na obrigação de odiar os ladrões do povo, ou seja, os ricos, e os odeiam com toda a força de sua penúria, e se pedem, em vez de exigir, é só por fingimento.

Há muitas pessoas assim, inclusive bêbados, sobre os quais vem a vontade de dizer que os culpados são eles mesmos; no entanto, entre os vagabundos, não são poucas as pessoas de uma categoria totalmente distinta, dóceis, mansas, que dão muita pena, e é terrível pensar na situação justamente dessas pessoas.

Aparece um homem bonito, de paletó esfarrapado e curto. De botas já estragadas e de sola gasta, rosto inteligente, bondoso. Tira o quepe e pede, como de costume. Dou, ele agradece. Pergunto: de onde? Para onde?

–De Petersburgo, de casa para a aldeia (em nossa província).

Pergunto: por que vai a pé?

–É uma longa história – responde, encolhendo os ombros.

Peço que conte. Ele conta, com evidente sinceridade, que “morava em Petersburgo, tinha um emprego bom num escritório, ganhava trinta rublos”. Vivia muito bem.

–Li os livros do senhor: Guerra e paz, Anna Kariênina – diz sorrindo outra vez de modo particularmente simpático. – Aí, minha família – prosseguiu – inventou de ir morar na Sibéria, na província de Tómsk.

Eles escreveram perguntando se ele concordava em vender sua parte da terra da antiga propriedade da família. Ele concordou. Os familiares partiram, mas aconteceu que a terra deles na Sibéria era muito ruim, gastaram tudo que tinham e voltaram para casa. Agora moram em casas alugadas na aldeia deles, não têm terra nenhuma e vivem só do salário. Aconteceu que, ao mesmo tempo, a vida dele em Petersburgo piorou de repente. Primeiro, perdeu o emprego, e não foi por sua culpa: a firma onde trabalhava faliu e demitiu os empregados.

–E aí, para dizer a verdade, conheci uma sueca – de novo o mesmo sorriso –, ela me enrolou todo. Antes, eu ajudava o meu pessoal, mas agora, olhe só que belo homem me tornei. Bem, Deus há de ter piedade, talvez eu consiga dar um jeito.

Está claro que é um homem inteligente, forte, ativo e que foi só uma série de acidentes que o levou à situação atual.

Ou outro: com os pés enrolados em trapos, uma corda na cintura. A roupa toda esburacada e em farrapos, não que tivesse sido rasgada, apenas estava gasta até último grau, e o rosto agradável, inteligente, sóbrio e de zigomas salientes. Dou os cinco copeques de costume, ele agradece. Conversamos. Ele foi deportado, morava em Viatka. Lá, a vida foi muito ruim e agora, já muito abatido, ele vai para Riazan, onde morava antes. Pergunto em que trabalhava.

–Vendedor de jornal, distribuía jornais.

–Por que foi condenado?

–Por difundir literatura ilegal.

Começamos a falar sobre a revolução. Dei minha opinião, disse que tudo está dentro de nós mesmos, que por meio da força é impossível derrubar uma força tão enorme.

–O mal será destruído fora de nós só quando ele for destruído dentro de nós – eu disse.

–Se é assim, vai demorar muito.

–Depende de nós.

–Li o livro do senhor sobre a revolução.

–Não é meu, mas eu também acho isso.

–Queria pedir ao senhor os seus livros.

–Com prazer. Só que podem criar problemas para o senhor.2 Vou dar os mais inocentes.

–Para que se preocupar? Não tenho medo de mais nada. Para mim, a prisão é melhor do que viver assim. Não tenho medo nenhum da prisão. Às vezes, tenho até vontade de ir para lá – exclamou com ar triste.

–Que pena que uma força tão grande seja desperdiçada – falei. – Que pessoas como você estraguem sua vida assim. Bom, e o que vai fazer agora? Que providências vai tomar?

–Eu? – exclamou, lançando um olhar para meu rosto.

Ele tinha me respondido com alegria e animação quando se tratava do passado e de questões gerais, mas assim que a conversa passou a tratar dele mesmo e percebeu minha compaixão, virou-se, cobriu os olhos com a manga e sua nuca começou a tremer.

E quanta gente assim existe!

Essas pessoas comovem, emocionam, mas também se encontram num limiar a partir do qual basta dar um passo para entrarem numa situação desesperadora, em que um homem bom se torna capaz de tudo.

“Por mais sólida que pareça nossa civilização”, diz Henry George, “nela já estão se desenvolvendo forças destrutivas. Não nos desertos e nas florestas, mas nos bairros pobres das cidades e nas grandes estradas se formam os bárbaros que farão com nossa civilização o mesmo que fizeram os hunos e os vândalos com as antigas.”

Sim, aquilo que Henry George previu vinte anos atrás está se realizando agora diante de nossos olhos em toda parte e, com clareza especial, entre nós, na Rússia, graças à surpreendente cegueira do governo, que se empenha para minar o fundamento em que se apoia e em que pode se apoiar qualquer melhoramento social que seja.

Os vândalos previstos por Henry George já estão prontos e a postos entre nós, na Rússia. Eles, esse vândalos, essas pessoas temerárias, por mais estranho que pareça, se mostram especialmente terríveis entre nós, no meio de nosso povo profundamente religioso. Esses vândalos se mostram especialmente terríveis entre nós justamente porque, entre nós, não temos e não existe o princípio de contenção, de observação da decência, da opinião pública, que é tão forte nos povos europeus. Temos ou um profundo e sincero sentimento religioso, ou a completa ausência de quaisquer princípios de contenção: Stienka Rázin, Pugatchóv...3 E, é estranho dizer, o exército de Stienka e de Emelka se desenvolve cada vez mais, graças às ações de nosso governo ultimamente, dignas de um Pugatchóv, com os horrores de seus crimes policiais e as loucuras das deportações, prisões, trabalhos forçados, fortalezas e execuções diárias.

Essa atividade libera os Stienka Rázin dos últimos vestígios de contenção moral. “Se os senhores instruídos agem desse jeito, Deus também quer que a gente faça assim”, dizem e pensam eles.

Muitas vezes recebo cartas de pessoas desse tipo, sobretudo deportados. Eles sabem que escrevi algo dizendo que não se deve combater o mal com a violência e, na maior parte, embora pouco alfabetizados, me fazem objeções com grande ardor, dizendo que a tudo que as autoridades e os ricos fazem com o povo é possível e necessário responder só de uma forma: vingar-se, vingar-se, vingar-se.

É surpreendente a cegueira de nosso governo. Ele não vê, não quer ver, que tudo que faz para desarmar seus inimigos serve apenas para aumentar seu número e suas energias. Sim, essas pessoas são terríveis: terríveis para o governo e também para os ricos, bem como para todos que vivem entre os ricos.

Mas, além do sentimento de medo que tais pessoas despertam, há outro sentimento, muito mais implacável do que o sentimento de medo, um sentimento que nenhum de nós pode deixar de experimentar em relação às pessoas que, por força de uma série de acidentes, acabaram caindo na situação horrível da vida dos vagabundos. Esse sentimento é o sentimento de vergonha e de compaixão.

E é menos o medo do que o sentimento de vergonha e de compaixão que deve obrigar a nós, que não nos encontramos em tal situação, a reagir de uma forma ou de outra a esse fenômeno novo e horrível da vida russa.

SEGUNDO DIA | OS QUE VIVEM E OS QUE MORREM

Estou sentado trabalhando, Iliá Vassílievitch entra com discrição e, obviamente sem querer interromper meu trabalho, diz que faz muito tempo que alguns passantes e uma mulher estão à minha espera.

–Tome, por favor, e dê para eles.

–A mulher tem algum assunto para tratar.

Peço que espere um pouco e continuo a trabalhar. Saio, totalmente esquecido da mulher. De trás do canto da casa, sai uma camponesa jovem, de rosto comprido, magra, muito pobre, pouco agasalhada para o frio que faz.

–O que deseja, do que se trata?

–Falar com Vossa Excelência.

–Mas sobre o quê? Do que se trata?

–Falar com Vossa Excelência.

–Sobre o quê?

–Tiraram ele de mim, mas foi fora da lei. Fiquei sozinha com três filhos.

–Quem? Para onde foi?

–Meu marido, levaram para Krapivna.

–Aonde, por quê?

–Para o Exército, sabe? Mas é fora da lei, porque é arrimo de família. Sem ele, a gente não pode continuar vivendo. Seja um pai.

–Mas então ele é o único homem?

–Só tem ele mesmo.

–Então como é que levaram, se é o único?

–Quem vai saber o que passa na cabeça deles? Agora fiquei sozinha com os filhos. Não tem jeito. Para mim, só resta morrer mesmo. Mas dá pena das crianças. Só tenho esperança na bondade do senhor, porque não foi certo, pela lei, entende?

Anotei a aldeia, prenome, sobrenome, digo que quando souber, mandarei avisar.

–Dê uma ajuda, por pouco que seja. As crianças querem comer e, Deus é testemunha, não têm nenhum pedaço de pão. Meus peitos estão vazios. Não tem leite nos peitos. Que Deus proteja.

–E não tem vacas? – pergunto.

–Que vaca, que nada. Morreu tudo de fome.

Chora e treme toda em seu casaquinho rasgado.

Eu me despeço dela e vou dar meu passeio habitual. Por acaso, o médico que mora conosco tem de atender um doente na mesma aldeia de onde veio a mulher do soldado e no lugar onde fica a administração distrital. Resolvo fazer companhia ao médico e vamos juntos.

Vou para a administração local. O médico vai para a aldeia fazer seu trabalho.

O sargento não está, nem o escrivão, só o ajudante do escrivão, um rapaz que conheço, jovem, inteligente. Pergunto sobre o caso da mulher do soldado. Por que convocaram o único homem da casa? O ajudante vai verificar e diz que ele não é o único homem, que são dois irmãos.

–Então como é que ela me disse que só tem ele?

–Mente. Ela sempre faz isso – diz, sorrindo.

Faço perguntas sobre vários assuntos que preciso resolver na administração distrital. Vem o médico, depois de atender o último doente, e partimos juntos, rumo à aldeia onde mora a mulher do soldado. Porém, antes mesmo de sairmos do povoado, uma menina de uns doze anos aparece em nosso caminho.

–Na certa, querem sua ajuda – digo para o médico.

–Não, é com Vossa Excelência – diz a menina, dirigindo-se a mim.

–O que quer?

–É com Vossa Excelência. Mamãe morreu e ficamos sozinhos, órfãos. Somos cinco... Ajude, pense na necessidade que a gente está passando...

–Mas de onde você vem?

A menina aponta para uma casa de tijolos bastante boa.

–Sou dali, é a nossa casa. Entre e veja o senhor mesmo.

Desço do trenó, vou na direção da casa. Uma mulher sai da casa e me convida para entrar. A mulher é tia dos órfãos. Entro. Uma residência limpa, espaçosa. Todas as crianças estão ali. Quatro, além da mais velha: dois meninos, uma menina e o menor, de uns dois anos, outro menino. A tia conta detalhes da situação da família. Dois anos atrás, o pai das crianças morreu soterrado numa mina. Pediram uma indenização, não conseguiram nada. A viúva ficou com quatro filhos, o quinto já nasceu sem o pai. Tentaram se virar sem o marido. Primeiro a viúva contratou um empregado para trabalhar na terra. Mas sem o marido tudo foi de mal a pior, primeiro venderam as vacas, depois o cavalo, sobraram só duas ovelhas. Apesar de tudo isso, ainda conseguiam tocar a vida, mas um mês atrás ela mesma ficou doente e morreu. Sobraram cinco crianças, a mais velha só de doze anos.

–Eles se viram para viver. Ajudo como posso – diz a tia –, mas posso pouco. E não sei mais o que fazer com as crianças. Quem dera morressem. Se desse para deixar num orfanato qualquer, pelo menos algumas.

A mais velha, é claro, já entende tudo, se intromete em minha conversa com a tia.

–Era bom deixar pelo menos o Mikolachka em algum lugar, ele é uma desgraça, a gente não pode deixar ele sozinho nem um instante – diz ela, apontando para o bravo garotinho de dois anos, que ri alegre de alguma coisa com a irmãzinha e, está claro, não concorda nem de longe com o desejo da tia.

Prometo pedir vagas num orfanato para algumas das crianças. A mais velha agradece e pergunta quando deve ir buscar a resposta. Os olhos de todas as crianças, até de Mikolachka, ficam cravados em mim, como se eu fosse uma criatura mágica, que pode fazer tudo para eles.

Ao sair da casa, antes de chegar ao trenó, encontro um velho. Ele me cumprimenta e logo começa a perguntar sobre os órfãos.

–Que desgraça – diz ele. – Dá pena de olhar. E a garotinha mais velha, como se mexe para lá e para cá. Igual a uma mãe para eles. E ela só tem Deus para ajudar. Ainda bem que as pessoas não abandonam, senão já teriam morrido de fome, os coitadinhos. A essas crianças, não é pecado ajudar – diz, obviamente recomendando que eu faça o mesmo.

Despedimo-nos do velho, da tia, da menina e eu e o médico vamos à aldeia, ao encontro da mulher do soldado que falou comigo de manhã.

Pergunto na primeira casa onde mora a mulher do soldado. Acaba que, nessa primeira casa, mora uma viúva, grande conhecida minha, que vive de esmolas e que sabe pedir de maneira obstinada e atrevida. Essa viúva, como de hábito, logo vem me pedir ajuda. Precisa de ajuda agora especialmente para dar de comer à sua novilha.

–Ela está acabando comigo e com a velha. O senhor entre aqui e veja.

–E a velha, como vai?

–Ora, a velha vai aguentando.

Prometo entrar para ver não só a novilha como também a velha. De novo pergunto onde fica a casa da mulher do soldado. A viúva me aponta a segunda isbá e logo acrescenta que “são pobres demais, sim, mas o cunhado também bebe um bocado”...

Vou para a casa apontada pela viúva.

Por mais que as casas dos pobres da aldeia sejam de dar pena, faz muito tempo que não vejo uma casa tão estropiada como a da mulher do soldado. Todo o telhado e até as paredes estão inclinados a tal ponto que as janelas entortaram.

Por dentro não é melhor do que por fora. A isbazinha pequena, com uma estufa que ocupa a terça parte de seu espaço, está toda torta, preta, imunda e, para minha surpresa, cheia de gente. Achei que ia encontrar a mulher do soldado e seus filhos, mas ali também está a cunhada, uma mulher jovem, e seus filhos, além da velha sogra. A própria mulher do soldado acabou de voltar do encontro comigo, encolhida de frio, está se aquecendo em cima da estufa. Enquanto desce, a sogra me conta sua vida. Os filhos dela, dois irmãos, no início moravam juntos. Sustentavam todos.

–Mas, hoje, quem é que mora junto? Todo mundo vive separado – diz a sogra tagarela. – As mulheres passaram a brigar, os irmãos se separaram, a vida ficou ainda pior. A terra é pouca. A gente só ganhava a vida graças ao salário. E aí tomaram o Piotr da gente. Como é que ela vai fazer agora para cuidar dos filhos? O jeito foi morar com a gente. Só que não dá para alimentar todo mundo. O que fazer? A gente não sabe mais. Dizem que ele pode voltar.

A mulher do soldado desce da estufa e também continua a pedir que eu dê um jeito para trazer o marido de volta. Digo que não é possível e pergunto que propriedade ficou para ela, depois da partida do marido. Não tem propriedade nenhuma. A terra do marido ficou para o irmão, cunhado dela, para que ele sustentasse a ela e os filhos. Havia três ovelhas, mas duas foram vendidas para ajudar na partida do marido. Sobraram, como ela diz, uns cacarecos, uma ovelha e duas galinhas. Isso é toda a sua propriedade. A sogra confirma o que ela diz.

Pergunto à mulher do soldado de onde ela veio. Veio de Sérguievskoie. É um povoado rico, grande, a quarenta verstas de nós.

Pergunto se o pai e a mãe estão vivos e como vivem.

–Vivem bem – responde.

–Por que não vai para a casa deles?

–Estou pensando nisso. Mas tenho medo que não aceitem a nós quatro.

–Talvez aceitem. Escreva para eles. Quer que eu escreva?

A mulher do soldado concordou e eu anotei os nomes de seus pais.

Enquanto estou conversando com as mulheres, a filha mais velha da mulher do soldado, menininha barriguda, se aproxima dela, segura sua manga e pede alguma coisa, parece que pede para comer. A mulher do soldado continua conversando comigo e não responde. A menininha puxa de novo e murmura alguma coisa.

–Vocês não têm jeito mesmo! – grita a mulher do soldado e bate com força na cabeça da menina.

Ela dá um berro.

Terminado meu assunto ali, saio da isbá e vou à casa da viúva que tem uma novilha.

A viúva já está à minha espera na frente da casa e pede de novo que eu entre e veja a novilha. Entro. No vestíbulo, está a novilha. A viúva pede que eu dê uma olhada na novilha. Observo e vejo que toda a vida da viúva se concentra a tal ponto na novilha que ela não consegue nem imaginar a possibilidade de que eu não tenha o menor interesse em ver a novilha.

Depois de olhar bem para a novilha, saio da casa e pergunto onde está a velha.

–A velha? – repete a viúva, obviamente surpresa por eu, depois de ver a novilha, ainda mostrar interesse pela velha. – Está em cima da estufa. Onde mais estaria?

Vou até a estufa e cumprimento a velha.

–Oh-oh! – responde uma voz fraca e rouca. – Quem está aí?

Digo meu nome e pergunto como vai a vida.

–E isto é vida?

–O que é? O que está doendo?

–Dói tudo. Oh-oh!

–Estou com o médico aqui. Quer que eu chame?

–Médico? Oh-oh! Para que me serve o seu médico? Lá em cima é que está o meu médico... Médico?... Oh-oh!

–Sabe como é, está muito velha – diz a viúva.

–Ora, não é mais velha do que eu – respondo.

–Como não é mais velha? É muito mais velha. Dizem que ela tem noventa – diz a viúva. – Todo o seu cabelo estava caindo. Resolvi raspar tudo.

–Por que fez isso?

–Já tinha caído tudo mesmo. Aí raspei logo.

–Oh-oh! – gemeu a velha de novo. – Oh-oh! Deus se esqueceu de mim! Não leva minha alma. Ah, paizinho, ela não sai, ela não sai sozinha... Oh-oh!... Deve ser por causa de meus pecados. Não tem nada para molhar a garganta. Quem dera tivesse um chazinho para eu beber pela última vez. Oh-oh!

O médico entra na isbá, eu me despeço e nós saímos para a rua, sentamos no trenó e vamos para uma aldeiazinha próxima, para o médico visitar seu último paciente. O médico foi chamado na véspera para ver aquele paciente. Chegamos, entramos juntos na isbazinha. Uma casa pequena mas limpa, um berço no centro e uma mulher que balança o berço com esforço. À mesa, está sentada uma menina de uns oito anos, que olha para nós com surpresa e susto.

–Onde está ele? – pergunta o médico, referindo-se ao paciente.

–Em cima da estufa – responde a mulher, sem parar de balançar o berço com o bebê.

O médico sobe no jirau, apoia os cotovelos na estufa, se inclina sobre o paciente e faz alguma coisa.

Chego perto do médico e pergunto como está o doente.

O médico não responde. Subo também no jirau, olho no escuro e só a muito custo começo a distinguir a cabeça cabeluda do homem deitado na estufa.

Um cheiro pesado, ruim, paira em torno do paciente. Ele está deitado de costas. O médico toma seu pulso da mão esquerda.

–Está muito mal? – pergunto.

O médico não responde e se dirige à dona da casa.

–Acenda um lampião – diz ele.

A mulher chama a menina, manda que balance o berço, ela mesma acende um lampião e dá para o médico. Desço do jirau para não atrapalhar o médico. Ele pega o lampião e continua a examinar o paciente.

A menina olha para nós, balança o berço com força insuficiente e o bebê começa a dar gritos esganiçados e comoventes. Depois de entregar o lampião para o médico, a mãe afasta a menina e passa a balançar o berço ela mesma.

Eu me aproximo do médico outra vez. Pergunto de novo como está o homem.

O médico, ainda ocupado com o paciente, me diz uma palavra em voz baixa.

Não escuto o que ele diz e pergunto de novo.

–Agonia – o médico repete a palavra, desce do jirau e coloca o lampião sobre a mesa.

O bebê não para de dar gritos fracos e comoventes.

–E então, já morreu? – diz a mulher, que parece ter entendido o sentido da palavra dita pelo médico.

–Ainda não, mas não vai escapar – diz o médico.

–Então é melhor chamar o pope, não é? – diz a mulher, de má vontade, balançando com cada vez mais força o bebê, que não para de gritar.

–O bom era se tivesse alguém em casa agora. Quem é que vou mandar chamar o pope? Olhe, todo mundo foi pegar lenha.

–Não posso fazer mais nada – diz o médico, e saímos.

Depois eu soube que a mulher achou alguém para chamar o pope, que mal teve tempo de dar a extrema-unção ao moribundo.

Vamos para casa e ficamos calados no caminho. Acho que ambos experimentamos o mesmo sentimento.

–O que ele teve? – pergunto.

–Inflamação dos pulmões. Eu não esperava um fim tão rápido, tinha o organismo forte, mas as condições eram prejudiciais. Com quarenta graus de febre, ele ficou do lado de fora, onde fazia cinco graus de frio.

Ficamos calados de novo e seguimos em silêncio por muito tempo.

–Não vi nem cama nem travesseiro em cima da estufa – digo.

–Não tem nada – diz o médico.

E, certamente, entendendo o que estou pensando, diz:

–Ontem mesmo estive em Krítoie para atender uma parturiente. Para examinar, era preciso colocar a mulher deitada ao comprido, bem esticada. Mas na isbá não tinha espaço nem lugar para isso.

De novo, ficamos calados e, de novo, provavelmente, pensamos a mesma coisa. Em silêncio, chegamos em casa. Diante da varanda, está uma parelha de cavalos magníficos, atrelada a um trenó estofado. O cocheiro muito elegante, de casacão de pele de carneiro e gorro felpudo. É do meu filho, que veio de sua propriedade.

Sentamos à mesa de jantar, servida para dez pessoas. Um lugar está vazio. É da minha neta. Hoje, ela não está se sentindo bem e vai jantar no quarto, com a babá. Para ela, prepararam um jantar especialmente higiênico: sopa de carne e sagu.

Durante o farto jantar de quatro pratos, com dois tipos de vinho, dois lacaios para servir e flores na mesa, ocorrem conversas.

–De onde vêm essas rosas lindas? – pergunta meu filho.

A esposa responde que as flores vieram de Petersburgo, foram enviadas por uma dama que não revelou seu nome.

–Essas rosas não saem por menos de um rublo e meio cada – diz o filho. E conta que, numa espécie de concerto ou apresentação, cobriram o palco inteiro com flores como aquelas.4

A conversa se desvia para a música e para um grande especialista e mecenas da música.

–E então? Como vai ele?

–Nada bem. Vai viajar de novo para a Itália. Sempre passa o inverno lá e, de modo surpreendente, melhora.

–A viagem é cansativa e maçante.

–Não, nada disso, no express, são ao todo trinta e nove horas.

–Mesmo assim, é enfadonho.

–Espere mais um pouco e logo vamos estar voando.

TERCEIRO DIA | TRIBUTOS

Além das visitas e solicitações de costume, hoje há algumas especiais: primeiro, um velho camponês sem filhos, que leva seu fim de vida na maior pobreza; segundo, uma mulher muito pobre, com uma porção de filhos; terceiro, um camponês remediado, até onde sei. Os três são de nossa aldeia e os três vêm tratar do mesmo assunto. Estão recolhendo os tributos antes do ano-novo e registraram para confiscar como garantia o samovar do velho, a ovelha da mulher e a vaca do camponês remediado. Todos eles pedem ajuda ou proteção, ou as duas coisas.

Primeiro, fala o camponês próspero, homem alto, bonito, que está começando a envelhecer. Conta que o estaroste veio, confiscou a vaca e ainda exige mais vinte e oito rublos. É o dinheiro para o fundo de alimentação obrigatório que, na opinião do camponês, não deve ser cobrado agora. Não entendo nada do assunto e digo que vou perguntar e pedir informações na administração distrital e depois direi se é possível ou não se isentar desse pagamento.

O segundo a falar é o velho de quem confiscaram o samovar. Miúdo, magricela, fraco, malvestido, com tristeza e perplexidade comoventes, ele conta como vieram, tomaram o samovar e exigem três rublos e oitenta copeques, que ele não possui nem tem onde arranjar.

Pergunto: para que são esses impostos?

–Quem vai saber? É a lei. Onde eu a minha velha vamos arranjar esse dinheiro? Do jeito que está, já mal dá para viver. Que leis são essas? Tenha piedade de nossa velhice. Ajude de algum jeito.

Prometo procurar saber e ajudar como puder. Dirijo-me à mulher. Magra, cansada, eu a conheço. Sei que o marido é um bêbado e que tem cinco filhos.

–Confiscaram a ovelha. Vieram. Dê o dinheiro, disseram. Falei: o marido não está, está no trabalho. Dê o dinheiro, disseram. De onde vou tirar? Tenho uma ovelha só, e levaram. – Chora.

Prometo procurar informações e ajudar, se puder, e antes de mais nada vou à aldeia falar com o estaroste, saber detalhes, que impostos são esses e por que são cobrados com tanto rigor.

Na rua da aldeia, mais duas pessoas me detêm, com pedidos – mulheres. Os maridos estão no trabalho. Uma pede que eu compre um linho: faz por dois rublos.

–Confiscaram as galinhas. Acabei de criar. Com elas me sustento, pego os ovos e vendo. Compre, o linho é bonito. Eu não venderia nem por três, se não fosse a necessidade.

Mando que vá para casa e digo que, quando voltar, vou ver se resolvo a situação, se puder. Antes que eu chegue à casa do estaroste, uma ex-aluna minha, de olhos ligeiros, pretos, surge na minha frente. É Olguchka, agora já velha. A mesma desgraça – confiscaram a novilha.

Vou à casa do estaroste. Mujique forte, de barba grisalha e olhos inteligentes, ele vem a meu encontro, na rua. Pergunto que impostos estão cobrando e por que aquele rigor repentino. O estaroste me conta que a ordem era cobrar com rigor todos os atrasados antes do ano-novo.

–Mas tinha ordens para confiscar samovares, animais? – pergunto.

–Claro – responde o estaroste, encolhendo os ombros fortes. – Ninguém pode ficar sem pagar. Olhe só o caso do Abakumov. – Ele se refere ao camponês próspero de quem confiscaram uma vaca por causa do pagamento do fundo de alimentação obrigatório. – O filho trabalha no mercado, tem três cavalos. Por que ele não paga? Vive se fazendo de desentendido.

–Bem, nesse caso, pode ser – digo. – Mas e os pobres, como é possível? – E falo do velho de quem tomaram o samovar.

–Esse, sim, esse é pobre mesmo, e não tem de onde tirar. Só que lá nem querem saber disso.

Falo da mulher de quem tomaram a ovelha. E dessa o estaroste tem pena, mas, como que para se justificar, diz que não pode deixar de cumprir uma ordem.

Pergunto se faz muito tempo que é estaroste e quanto ganha.

–Quanto ganho? – diz ele, respondendo não à pergunta que fiz, mas à pergunta que não falei e que ele adivinhou: por que ele participa dessa atividade. – Quero me aposentar. Nosso salário é trinta rublos, mas a gente não fica livre desses pecados.

–E então vão mesmo confiscar samovares, ovelhas e galinhas? – pergunto.

–Claro! São obrigados a confiscar. E a administração distrital vai leiloar logo.

–Vão vender?

–Vão, eles vão ter de se virar de algum jeito...

Vou à casa da mulher que veio reclamar da ovelha confiscada. Uma isbazinha minúscula, no vestíbulo a única ovelha, que deve ser levada para completar o orçamento do Estado. A mulher, nervosa, esgotada pela penúria e pelo trabalho, assim que me vê, segundo o costume de camponesa, começa a falar depressa e com emoção.

–Olhe só como vivo: vão levar a última ovelha. Eu e esses moleques mal conseguimos viver. – Aponta para a estufa e para o jirau. – Venha cá! Não tenha medo. Olhe, como é que alguém pode se sustentar e também esses barrigudinhos pelados?

Crianças de fato barrigudinhas, em camisas esfarrapadas e sem calças, descem da estufa e ficam em volta da mãe...

Nesse mesmo dia, vou à administração distrital para saber detalhes daquele método, novo para mim, de cobrar tributos.

O sargento não está. Virá logo. Na administração, alguns homens estão atrás da grade do guichê, também à espera do sargento.

Pergunto a eles: quem são, o que querem? Dois querem passaporte. Vão viajar para trabalhar. Trouxeram dinheiro para tirar o passaporte. Um veio pegar uma cópia da decisão do juiz local que negou seu pedido para que a casa e o terreno onde ele morou e trabalhou durante vinte e três anos e que pertenciam ao tio e à tia, que o adotaram e que agora tinham morrido, não fossem tomados dele e entregues à neta do tio. Essa neta, herdeira direta do tio, valendo-se da lei de 9 de novembro, vai vender os bens, a casa e a terra onde vive o requerente. Seu pedido foi negado, mas ele não quer acreditar que existem leis como essa e quer apelar a algum tribunal superior, nem sabe qual. Eu lhe explico que a lei é assim mesmo e isso provoca em todos os presentes uma desaprovação que chega à perplexidade e à incredulidade.

Mal termino de falar com esse camponês quando outro, alto, de expressão severa e dura no rosto, se dirige a mim para explicar seu caso. A questão é que ele e seus companheiros de aldeia escavam uma mina de ferro em suas terras de lavoura, escavam essa mina desde que o mundo é mundo.

–Agora fizeram uma lei. Não deixam cavar. Não deixam cavar na nossa terra. Que lei é essa? É só com isso que a gente se sustenta. Já vai para o segundo mês que a gente está pedindo e nada mais está andando direito. A gente não entende, eles vão arruinar a gente e pronto, acabou.

Não consigo dizer nada de confortante para o homem e me dirijo ao sargento, que entra, e faço minhas perguntas sobre as medidas rigorosas que estão aplicando em nossa aldeia para cobrar tributos em atraso. Pergunto também o seguinte: que artigos da lei permitem cobrar os impostos desse jeito. O sargento me avisa que ao todo há sete tipos de tributos que agora são cobrados dos camponeses: 1) os do Tesouro, 2) os do ziémstvo, 3) os do seguro, 4) os das dívidas alimentares em atraso, 5) os do fundo de alimentação em lugar do pagamento em espécie, 6) os da comuna e da administração distrital, 7) os da aldeia.

O sargento me diz o mesmo que o estaroste, que a causa do rigor especial na cobrança é uma ordem das autoridades superiores. O sargento reconhece que é duro tomar dos pobres, mas já não se refere aos pobres com a mesma compaixão do estaroste, já não se permite julgar as autoridades e, acima de tudo, quase não tem dúvidas da necessidade de sua função e da ausência de pecado em sua participação nessas coisas.

–Afinal, não se pode dar trela para...

Pouco depois disso, me aconteceu de falar sobre o assunto com um diretor do ziémstvo. Esse homem já tinha muito pouca compaixão da situação difícil dos miseráveis, que ele quase não via, e também tinha poucas dúvidas sobre a legitimidade moral de sua função. Embora na conversa comigo ele concordasse que, no fundo, seria mais tranquilo não exercer nenhuma função no serviço público, ainda assim se considerava um funcionário útil, porque outros em seu lugar seriam até piores. E, já que se mora no campo, por que não tirar proveito do salário de diretor do ziémstvo, por pequeno que fosse?

As avaliações de um governador sobre a cobrança dos tributos necessários para suprir as necessidades das pessoas ocupadas com o aprimoramento do povo eram totalmente livres de quaisquer considerações sobre samovares, novilhas, ovelhas e linho confiscados de miseráveis das aldeias; já não existia a menor dúvida sobre a utilidade de seu trabalho.

E os ministros, os que cuidam da venda de vodca, os que cuidam de ensinar pessoas a cometer assassinatos, os que cuidam das sentenças de deportação, de prisão, de trabalhos forçados, de enforcamento de pessoas, todos os ministros e seus ajudantes – esses já estão inteiramente convencidos de que os samovares, as ovelhas, o linho, as novilhas confiscadas dos miseráveis encontram sua melhor aplicação na produção da vodca que intoxica o povo, na fabricação de armas para assassinar, na construção de prisões, de campos de trabalhos forçados etc. e, entre outras coisas, no pagamento dos salários deles e de seus ajudantes, na construção de casarões, na aquisição de roupas para as esposas e na cobertura das despesas necessárias para viagens e entretenimentos que eles desfrutam, a fim de repousar do peso das preocupações e dos afazeres em prol do bem-estar desse povo rude e ingrato.

1909

KHODINKA

–Não entendo essa teimosia. Por que fica sem dormir e vai “para o povo”, quando poderia ir tranquilamente amanhã, com sua tia Vera direto para o palanque.1 E ia ver tudo. E eu já lhe disse que o Behr me prometeu que ia levar você. E você, como dama de honra da imperatriz, tem o direito.

Assim falava o príncipe Pável Golítsin, conhecido em toda a alta sociedade pelo apelido de “Dândi”, para sua filha Aleksandra, de vinte e três anos, chamada pelo apelido de “Rina”. A conversa se deu na tarde de 17 de maio de 1896, em Moscou, véspera da festa popular da coroação. A questão era que Rina, moça bonita, forte, com o perfil característico dos Golítsin, de nariz arqueado de ave de rapina, que já vivera o período de entusiasmo por bailes de sociedade e era, ou pelo menos se julgava, uma mulher avançada, tinha simpatia pelos naródniki.2 Era a única filha, protegida do pai, e fazia o que queria. Agora, tinha enfiado na cabeça, como dizia o pai, a ideia de ir para o passeio público com seu primo, não ao meio-dia junto com as pessoas da Corte, mas junto com o povo, ou seja, o zelador e o ajudante do cocheiro, que iam sair de casa de manhã bem cedo.

–Mas, papai, quero ver o povo, ficar com eles. Quero ver a relação do povo com o jovem tsar. Não seria possível, pelo menos uma vez...

–Está bem, faça como quiser, conheço sua obstinação.

–Não fique zangado, papai querido. Prometo que tomarei cuidado, e o Alek vai ficar comigo o tempo todo.

Por mais estranha e louca que a ideia parecesse ao pai, ele não foi capaz de negar.

–Claro, pegue – respondeu à filha, que perguntou se podia usar a caleche. – Vá de caleche até Khodinka e depois a mande de volta.

–Certo, está bem.

Ela chegou mais perto do pai. Como de costume, ele a benzeu com o sinal da cruz, a filha beijou sua mão grande e branca. E os dois se despediram.

Naquela mesma tarde, no alojamento que a conhecida Mária Iákovlievna alugava para os operários de uma fábrica de cigarros, também ocorriam conversas sobre a festa do dia seguinte. No alojamento de Emelian Iágodnov, ele e alguns camaradas se haviam reunido e combinavam quando iam sair.

–Já não dá tempo de ir para a cama, senão a gente acaba dormindo até tarde demais – disse Iacha, um rapaz alegre, animado, que ficava do outro lado da divisória.

–Por que não dormir? – retrucou Emelian. – Vamos sair ao raiar do dia. O pessoal já falou.

–Está bem, então a gente dorme logo. Só que você, Semiónitch, vai acordar a gente.

Semiónitch Emelian prometeu que ia fazer isso e pegou na mesa um fio de seda, puxou a luz para perto e tratou de pregar um botão em seu paletó de verão. Terminado o trabalho, preparou sua melhor roupa, colocou sobre o banco, limpou as botas, depois rezou, recitando algumas preces, “pai”, “virgem”, cujo significado não entendia e nunca teve interesse de entender, tirou as botas e as calças e deitou-se no colchãozinho achatado da cama rangente.

“Por quê?”, pensou. “Tem gente que tem sorte. Quem sabe meu bilhete de loteria é sorteado?” (Entre o povo, corria o boato de que, além de presentes, seriam distribuídos bilhetes de loteria.) “Dez mil, eu nem digo. Mas uns quinhentos rublos já era ótimo. Eu ia fazer um monte de coisas: ia mandar algum para os velhos e trazia minha mulher. Separado assim não é vida. Comprava um relógio de verdade. Mandava fazer um casaco de pele para mim e para ela. Desse jeito, a gente fica se matando, se matando... e nunca sai da miséria.” E então ele se imaginou passeando com a esposa pelo Jardim Aleksandróvski, viu o mesmo guarda que no verão o prendeu porque estava bêbado e se meteu numa briga, só que o guarda não é mais guarda e sim general, e esse general ri e o convida para entrar numa taverna e ouvir alguém tocar órgão. E o órgão toca, toca, do mesmo jeito que o relógio bate. E Semiónitch acorda e ouve que o relógio guincha e bate, a dona da casa, Mária Iákovlievna, tosse do outro lado da porta e na janela já não está tão escuro como antes. “Tomara que eu não tenha dormido demais.”

Emelian levanta, anda descalço para o outro lado da divisória, sacode o Iacha, se veste, passa pomada no cabelo, se penteia e olha para o espelho quebrado.

“Nada mau, está bonito. É por isso que as meninas me adoram. E também não quero fazer bobagem...”

Foi falar com a senhoria. Conforme combinado no dia anterior, levava na sacola uma torta, dois ovos, presunto, meia garrafa de vodca e, quando o dia mal começava a nascer, ele e Iacha saíram e foram para o parque Petróvski. Não eram os únicos. Tem gente na frente, atrás vêm outros, de todos os lados saem de casa e andam na mesma direção homens, mulheres, crianças, todos alegres e arrumados, seguindo o mesmo caminho.

E chegaram ao campo Khodinka. Lá, o povo já escureceu todo o parque. E de vários pontos subia uma fumaça. A manhã estava fria e as pessoas procuravam gravetos, lenha, e acendiam fogueiras.

Emelian e seus camaradas se juntaram, também acenderam uma fogueira, sentaram, pegaram comida, bebida. Então o sol começou a sair, limpo, claro. E a manhã ficou alegre. Cantaram, conversaram, falaram brincadeiras, riram, todos se divertiam, esperavam a diversão. Emelian e seus camaradas beberam muito, ele começou a fumar e ficou ainda mais alegre.

Todos estavam bem-vestidos, mas no meio dos trabalhadores e suas mulheres se destacavam ricos comerciantes com as esposas e os filhos, que foram parar no meio do povo. Assim, Rina Golítsina chamou atenção, quando, alegre, radiante com a ideia de que tinha conseguido o que queria e estava com o povo, no meio do povo, festejando a ascensão ao trono de um tsar adorado pelo povo, caminhava com o irmão Alek entre as fogueiras.

–Bom dia, patroa bonita – gritou para ela um jovem operário, erguendo um copinho à boca. – Não tenha nojo do nosso pão e sal.

–Obrigado. Comam vocês mesmos – respondeu Alek, exibindo seu conhecimento dos hábitos populares, e seguiram em frente.

Pelo hábito de sempre ocupar os primeiros lugares, ao passarem pelo campo no meio do povo, onde já havia pouco espaço (havia tanta gente que, apesar da manhã clara, acima do campo, pairava uma névoa densa, formada pela respiração das pessoas), eles foram direto para o palanque. Mas os policiais não os deixaram passar.

–Muito bem. Por favor, vamos de novo para lá – disse Rina e os dois voltaram para a multidão.

–Mentira – respondeu Emelian, sentado com seus camaradas em redor de petiscos sobre uma folha de papel, a um operário que acabara de chegar e havia falado sobre o que iam distribuir. – É mentira.

–Pois estou lhe dizendo. Não é certo, não é na lei, mas estão distribuindo, sim. Eu mesmo vi. Estão dando um embrulhinho e um copo.

–Está na cara, são os danados dos artesãos. Eles não têm jeito. Dão só para quem eles querem.

–Mas como é que pode? Será que podem fazer uma coisa contra a lei?

–Está vendo como podem?

–Vamos lá, pessoal. Vamos ver como é que é essa história.

Todos levantaram. Emelian pegou sua garrafinha com o resto de vodca e foi em frente, com seus camaradas.

Não tinha dado dez passos quando o povo se apertou de tal modo que ficou difícil andar.

–Por que está empurrando?

–E você, por que está empurrando?

–Acha que está sozinho?

–Chega para lá.

–Gente, estão sufocando – ouviu-se uma voz de mulher. Soou um grito de criança do outro lado.

–Vá para o inferno...

–O que está pensando? Acha que está sozinho aqui?

–Vão pegar tudo. Sai, deixa eu chegar lá. Inferno, demônios!

Era Emelian quem gritava e, empurrando com os ombros largos, saudáveis, e espetando com os cotovelos, abria caminho como podia, rompia em frente, sem saber direito para quê, só porque todo mundo empurrava e lhe parecia que era absolutamente necessário ir em frente. Atrás dele, dos dois lados, havia gente e todos o espremiam. Na frente, as pessoas não se moviam e não deixavam os outros passar. E não paravam de gritar, gemer, berrar. Emelian ficou calado e, cerrando os dentes fortes, contraindo as sobrancelhas, não desanimava, não fraquejava, empurrava os que estavam na frente e, embora devagar, avançava. De repente, tudo se mexeu e, depois de um movimento ritmado, houve uma arremetida para a frente e para a direita. Emelian olhou para lá e viu que uma coisa voou, e outra e uma terceira, e todas caíam na multidão. Ele não entendeu o que era, mas perto dele uma voz gritou:

–Demônios malditos, despejar em cima do povo desse jeito.

E lá onde voavam as bolsinhas com presentes, ouviam-se gritos, risos, choro e gemidos.

Alguém machucou Emelian com um empurrão na costela. Ele ficou ainda mais sombrio e zangado. Mas nem teve tempo para se recuperar da dor e alguém chutou sua perna. Seu paletó, um paletó novo, agarrou em alguma coisa e rasgou. Em seu coração, bateu uma raiva e, com toda a força, ele começou a espremer quem estava na frente, empurrando por trás. Mas de repente aconteceu algo que ele não conseguiu entender. Não viu mais nada na frente, senão as costas das pessoas, e aí, de repente, tudo o que estava na sua frente se abriu. Ele viu as barracas, as barracas onde deviam distribuir os pacotes. E alegrou-se, mas a alegria durou só um minuto, porque logo compreendeu que só se revelava o que havia na sua frente porque todos haviam chegado à beira de um fosso e todos que estavam na frente, uns de pé, outros de gatinhas, desabaram dentro do fosso e ele mesmo caiu lá, sobre as pessoas, bem em cima das pessoas, e sobre ele caíram outros, que vinham atrás. Então, pela primeira vez, sentiu medo. Tombou. Uma mulher de vestido estofado desabou em cima dele. Emelian a sacudiu para o lado, quis virar-se, mas o imprensavam por trás e ele não tinha força. Quis andar para a frente, mas as pernas tropeçavam em coisas moles, as pessoas. Agarravam seus pés, gritavam. Ele não enxergava nada, não ouvia, abria caminho à força para a frente, pisando em pessoas.

–Irmãos, peguem meu relógio, é de ouro! Irmãos, ajudem! – gritou um homem a seu lado.

“Agora, ninguém liga para relógios”, pensou Emelian e começou a sair pelo outro lado do fosso. Em sua alma, havia dois sentimentos, ambos torturantes: um era o temor por si mesmo, pela própria vida; o outro era a raiva de todas aquelas pessoas desnorteadas que o espremiam daquele jeito. Ao mesmo tempo, desde o início, ele havia traçado um objetivo: chegar às barraquinhas e receber a sacola com os presentes e, dentro dela, o bilhete de loteria: desde o início, era esse objetivo que o atraía.

As barraquinhas já estavam à vista, também dava para ver os artesãos que iam distribuir os brindes, já se ouviam os gritos das pessoas que tinham conseguido chegar às barraquinhas, ouviam-se também os estalos das passarelas de tábuas onde a parte da frente da multidão se espremia para passar. Emelian fez mais um esforço e só faltavam vinte passos, quando ouviu de repente, embaixo dos pés, ou melhor, entre os pés, o grito e o choro de uma criança. Emelian olhou para os pés: um menino sem gorro, com a camisa rasgada, estava deitado de barriga para cima e, sem parar de gritar, agarrou seus pés. De repente, algo apertou seu coração. O temor por si mesmo passou. Também passou a raiva das pessoas. Sentiu pena do menino. Emelian se abaixou, apanhou o menino, segurando por baixo da barriga, mas os que vinham atrás o empurraram de tal modo que ele quase caiu, teve de soltar o menino, mas logo depois, reunindo todas as suas forças, de novo o segurou e o jogou sobre os ombros. Os que estavam empurrando passaram a empurrar menos e Emelian carregou o menino.

–Me dá ele aqui – gritou um cocheiro que andava ao lado de Emelian, pegou o menino e ergueu-o acima da multidão.

–Vai passando por cima do povo.

E, virando-se, Emelian viu como o menino, ora afundando no povo, ora emergindo acima dele, foi se afastando cada vez mais, sobre os ombros e as cabeças das pessoas.

Emelian continuou a se mover. Era impossível ficar parado, mas agora já não estava mais preocupado com os brindes nem em alcançar as barraquinhas. Estava pensando no menino, onde tinha ido parar o Iacha, o que seria das pessoas esmagadas que ele tinha visto quando atravessou o fosso. Chegou a uma barraquinha, recebeu a sacola e o copo, mas aquilo já não o deixou contente. No primeiro minuto, ficou contente, porque ali tinha terminado o sufoco. Podia respirar e se mexer. Mas logo também aquela alegria passou, por causa do que viu ali. Viu uma mulher de vestido listrado e rasgado, de cabelo ruivo desgrenhado, de botinas com botões. Estava deitada de barriga para cima; os pés nas botinas estavam apontados para cima. Uma das mãos jazia na grama, a outra, com os dedos fechados, estava embaixo do peito. O rosto não estava pálido, mas branco-azulado, como só acontece com os mortos. Aquela mulher foi a primeira pisoteada até a morte e tinha sido deixada ali, atrás da cerca, diante do palanque do tsar.

Na hora em que Emelian olhava para a mulher, junto a ela estavam dois guardas, e um policial dava ordens. Então chegaram os cossacos, o chefe deu alguma ordem e eles avançaram sobre Emelian e outras pessoas que estavam ali e as enxotaram para trás, rumo à multidão. Emelian caiu de novo na multidão, de novo o sufocamento, dessa vez ainda pior. De novo os gritos, os gemidos de mulheres, crianças, de novo pessoas pisoteando umas às outras, sem conseguir deixar de pisar. Mas agora Emelian já não tinha mais temor por si mesmo nem raiva daqueles que o espremiam, só havia um desejo – fugir, desvencilhar-se, entender o que era aquilo que crescia dentro de sua alma, fumar e beber. Sentia uma vontade tremenda de fumar e beber. E conseguiu: saiu para um lugar mais livre, fumou e bebeu.

Mas não foi o que aconteceu com Alek e Rina. Sem querer nenhum brinde, eles andavam no meio do povo, sentado em rodinhas, conversando com mulheres, crianças, quando de repente todo o povo disparou na direção das barraquinhas, na hora em que correu o boato de que os artesãos não iam distribuir os presentes da maneira correta. Rina nem teve tempo de se virar, foi arrastada para longe de Alek e a multidão a carregou. O horror a dominou. Tentou ficar calada, mas não conseguiu e gritou, pedindo piedade. Mas não havia piedade, ela foi arrastada cada vez para mais longe, o vestido rasgou, o chapéu voou. Ela não podia ter certeza, mas teve a impressão de que arrancaram seu relógio com a correntinha. Era uma jovem forte e conseguiria se manter de pé, mas a sensação de sufocamento e de horror era tão aflitiva que Rina não conseguia respirar. Esfarrapada, amarrotada, ela mal conseguia se manter de pé; mas na hora em que os cossacos arremeteram contra a multidão para dispersá-la, Rina se desesperou e, assim que se desesperou, perdeu as forças e desmaiou. Caiu e não viu mais nada.

Quando voltou a si, estava deitada de costas sobre a grama. Um homem com aspecto de operário, de barbicha e paletó rasgado, estava de cócoras na sua frente e borrifava água em seu rosto. Quando ela abriu os olhos, o homem fez o sinal da cruz e cuspiu a água que tinha na boca. Era Emelian.

–Onde estou? Quem é o senhor?

–Em Khodinka. Eu? Sou uma pessoa. Também me amassaram. Mas a gente aguenta – disse Emelian.

–E o que é isso? – Rina apontou para as moedas de bronze em cima da barriga dela.

–Isso quer dizer que o povo achou que você estava morta. É para pagar o enterro. Mas eu olhei e pensei: não, está viva. Fiquei para descobrir.

Rina olhou em volta e viu que ela estava toda rasgada e uma parte do peito estava nua. Sentiu vergonha. O homem entendeu e a cobriu.

–Tudo bem, patroa, vai ficar viva.

Veio mais gente, um guarda. Rina levantou-se e sentou, disse de quem era filha e onde morava. E Emelian foi procurar um coche de praça.

Quando Emelian voltou com o cocheiro, já tinha juntado muita gente. Rina ficou de pé, quiseram carregá-la, mas ela mesma sentou no coche. Sentia apenas vergonha de suas roupas rasgadas.

–E seu irmão, onde está? – perguntou uma das mulheres que se aproximaram.

–Não sei. Não sei – disse Rina, em tom desolado. (Ao chegar em casa, Rina soube que, quando o tumulto começou, Alek conseguiu se desvencilhar da multidão e voltou para casa sem nenhum ferimento.)

–Olhe, foi ele que me salvou – disse Rina. – Se não fosse ele, nem sei o que seria. Como o senhor se chama? – dirigiu-se a Emelian.

–Quem, eu? Não interessa como me chamo.

–Ela é uma princesa – advertiu uma das mulheres. – Ri-i-i-i-ca.

–Venha comigo, para falar com meu pai. Ele vai lhe agradecer.

E, de repente, subiu na alma de Emelian uma coisa tão forte que ele não trocaria nem por um lucro de duzentos rublos.

–Nada disso. Não, patroa, vá para sua casa. Não tem nada para agradecer.

–Não, não pode. Assim não vou me acalmar.

–Até logo, patroa, vá com Deus. Só não leve meu paletó.

E deu um sorriso tão alegre, com os dentes tão brancos, que Rina, nos momentos mais difíceis de sua vida, iria sempre se lembrar daquele sorriso, como um consolo.

E Emelian também experimentava um grande sentimento de alegria, que o ajudava a suportar esta vida, quando se lembrava de Khodinka, daquela senhora e da última conversa com ela.

1910

SEM QUERER

Antes das seis da manhã, ele voltou para casa e, como de costume, passou pelo banheiro, mas em vez de tirar a roupa, sentou-se – caiu na cadeira, as mãos largadas sobre os joelhos –, e ficou assim imóvel por uns cinco minutos, ou dez, ou por uma hora – ele não percebeu.

–Sete de copas. Perdi! – E viu no espelho seu focinho horroroso, inabalável, mas mesmo assim deixava transparecer a satisfação consigo mesmo.

–Ah, diabo! – exclamou bem alto.

Por trás da porta, houve um movimento. E, de touca de dormir e camisola bordada, de chinelos verdes de veludo, entrou sua esposa, uma morena bonita e vigorosa, de olhos brilhantes.

–O que você tem? – perguntou ela com voz normal, mas, ao olhar para o rosto do marido, deu um grito de verdade: – O que você tem? Micha! O que você tem?

–O que tenho é que perdi.

–No jogo?

–Foi.

–E daí?

–E daí? – repetiu ele com certa ironia. – Estou acabado! – E deu um soluço, contendo as lágrimas.

–Quantas vezes eu pedi, implorei.

Tinha pena dele, e mais pena ainda de si mesma – e também porque passariam necessidade, porque ela havia ficado a noite toda sem dormir, angustiada, à espera do marido. “Já são cinco horas”, pensou ela, depois de olhar para o relógio sobre a mesinha de cabeceira.

–Ah, seu torturador. Quanto?

Ele levantou as mãos até as orelhas.

–Tudo! Tudo, não, mais que tudo: tudo o que é meu e ainda o que é do Estado. Pode me matar. Faça comigo o que quiser. Estou acabado. – E cobriu o rosto com as mãos. – Não sei mais de nada!

–Micha! Micha, escute. Tenha pena de mim, também sou um ser humano, fiquei a noite toda sem dormir. Esperando você, angustiada, e esse é meu prêmio. Diga pelo menos: o quê? Quanto?

–Tanto que nem eu nem ninguém pode pagar. Sessenta mil, ao todo. Está tudo acabado. Fugir, mas como?

Olhou para ela e, de modo totalmente inesperado para Micha, sua esposa o atraiu para junto de si. “Como ela é boa”, pensou e abraçou-a. Ela o afastou.

–Micha, me diga só como é que você pôde fazer isso.

–Tinha esperança de recuperar o que perdia. – Pegou o maço de cigarros e começou a fumar sofregamente. – Sim, é claro. Sou um canalha, não sou digno de você. Me abandone. Perdoe pela última vez e depois vou embora, vou desaparecer. Kátia. Não posso, não posso. Eu estava como num sonho, foi sem querer. – Franziu um pouco o rosto. – Mas o que fazer? Estou acabado do mesmo jeito. Mas você pode me perdoar. – De novo, quis abraçá-la, mas a esposa recuou, irritada.

–Ah, esses homens dão pena. Quando tudo vai bem, se fazem de corajosos, mas quando as coisas vão mal, é um desespero, não prestam para nada.

Ela sentou no outro lado da mesinha de toalete.

–Conte em detalhes.

E ele contou. Contou que tirou o dinheiro do banco e encontrou-se com Nekrássov. Que propôs irem à sua casa e jogarem. E jogaram, ele perdeu tudo e agora tinha decidido dar cabo de si mesmo. Disse que tinha decidido dar cabo de si mesmo, mas ela via que Micha não tinha decidido coisa nenhuma, mas estava desesperado e disposto a tudo. Ela escutou até o fim e, quando ele terminou, disse:

–Tudo isso é estúpido, sórdido: é impossível perder dinheiro à toa. É muita cretinice.

–Pode xingar à vontade, faça comigo o que quiser.

–Não quero xingar, quero salvar você, como sempre salvei, por mais que você me maltrate e não tenha pena de mim.

–Bata, pode bater. Não vou durar muito...

–Então escute uma coisa. Para mim, por mais que me torture de maneira desumana e indecente... Estou doente e logo hoje recebo... de repente essa surpresa. Sem falar nessa incapacidade de agir. Você pergunta: o que fazer? Pois é muito simples o que tem de fazer. Agora mesmo, veja, são seis horas, vá à casa do Frim e conte para ele.

–Mas será que o Frim vai ter pena? É impossível contar para ele.

–Mas como você é burro. Acha que vou aconselhar você a contar ao diretor do banco que você perdeu no jogo o dinheiro confiado a você?... Conte que foi à estação de trem Nikoláievski... Não. Vá agora à polícia. Não, agora não, mais tarde, às dez horas. Você foi à travessa Netcháievski, foi atacado por dois homens. Um barbado, o outro era quase um menino, com uma pistola Browning, e tomaram o dinheiro. E logo depois vá falar com Frim. Conte a mesma coisa.

–Sim, mas... – Começou de novo a fumar o cigarro. – Eles podem estar sabendo de Nekrássov.

–Vou falar com Nekrássov. Conto para ele. Eu cuido disso.

Micha começou a se acalmar e, às oito horas da manhã, pegou no sono, como um morto. Às dez horas, a esposa o acordou.

Isso aconteceu de manhã cedo, no primeiro andar. No térreo, na casa da família Ostróvski, às seis horas da tarde, aconteceu o seguinte:

Tinham acabado de jantar. A jovem mãe, a princesa Ostróvskaia, chamou o lacaio, que já tinha servido todos os doces, a geleia de laranja, pediu um prato limpo, pôs nele uma porção de geleia, voltou-se para os filhos – eram dois: o mais velho, um menino de sete anos, Voka; e uma menina de quatro anos e meio, Tânietchka. Os dois eram muito bonitos: Voka era um menino sério, saudável, compenetrado, com um sorriso encantador, que deixava à mostra dentes espalhados, que estavam mudando, e Tânietchka era ágil, vigorosa, de olhos pretos, falante, divertida, risonha, sempre alegre e afetuosa com todos.

–Crianças, quem vai levar doces para a babá?

–Eu – respondeu Voka.

–Eu, eu, eu, eu, eu – gritou Tânietchka e logo pulou da cadeira.

–Não, Voka falou primeiro. Leve – disse o pai, que sempre mimava Tânietchka e por isso sempre ficava feliz a qualquer oportunidade de mostrar sua imparcialidade. – E você, Tânietchka, dê a vez a seu irmão – disse para sua predileta.

–Sempre fico feliz de dar a vez ao Voka. Leve, Voka, vá. Se for para o Voka, não fico triste.

Como era costume, as crianças agradeceram a refeição. E os pais tomaram café e esperaram a volta de Voka. Mas ele demorou muito.

–Tânietchka, vá ao quarto das crianças e veja por que o Voka está demorando.

Tânietchka pulou da cadeira, pegou uma colher, deixou cair, levantou, colocou na beira da mesa e a colher caiu de novo, a menina apanhou a colher outra vez e, com uma risada, batendo no chão os pezinhos gordos calçados em meias, voou para o corredor, para o quarto das crianças, atrás do qual ficavam os aposentos da babá. Ia passar correndo pelo quarto das crianças, mas de repente ouviu um choro. Virou-se. Voka estava ao lado da cama e, olhando para o cavalo de brinquedo, segurava o prato na mão e chorava amargamente. O prato estava vazio.

–Voka, o que você tem? E os doces?

–Sem querer, eu comi no caminho. Não vou... para lugar nenhum... não vou. Tânia, eu... eu... sério, foi sem querer... comi tudo... primeiro um pouquinho, depois comi tudo.

–E agora, o que a gente vai fazer?

–Foi sem querer...

Tânietchka pensou. Voka chorava sem parar. De repente, Tânietchka ficou radiante.

–Voka, olhe só. Não chore, vá falar com a babá e conte para ela que foi sem querer e peça desculpa, e diga que amanhã vai dar seus doces para ela. Ela é boa.

Os soluços de Voka pararam, ele enxugou as lágrimas com a palma das mãos e com o lado de trás da manga.

–E como é que vou falar? – exclamou ele, com voz trêmula.

–Bom, vamos juntos, então.

Foram e voltaram felizes e alegres. E alegres e felizes ficaram também a babá e os pais, quando a babá, rindo e se comovendo, lhes contou toda a história.

 

 

                                                                  Leâo Tolstoi

 

 

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