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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTOS / E. T. A. Hoffman
CONTOS / E. T. A. Hoffman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

 


Os espiões


Quando se falava do último cerco de Dresden1, Anselmo, habitualmente pálido, tornava-se mais pálido ainda. Ficava de mãos postas, com os joelhos batendo um no outro.
O olhar fixo indicava a agitação de sua alma e a perturbação de suas ideias.
— Deus de bondade! — resmungava ele. — Não sei como descalcei aquela bota! Não dei atenção à metralha, nem às granadas que explodiam; o que sei é que entrei na cidade
pela ponte nova. E aquele homem tão alto que encontrei! Que triste é estarmos encerrados num recinto cheio de baluartes, de parapeitos, de fortins, de caminhos cobertos!
Quantos trabalhos e misérias tive de padecer! E não havia nada que trincar! Se ao folhearmos o dicionário, para matar o tempo, se encontrava a palavra comer, exclamávamos
com admiração: "Comer? O que será isto?" Pessoas outrora gordas abotoavam a própria pele como uma camisa bem larga, como um paletó natural. Santo Deus! Se o arquivista
Lindhorst fosse ainda vivo! Papowicz queria me desancar, mas a argentina ninfa das águas salvou minha vida... Oh Agafia!...
Anselmo tinha por costume, quando pronunciava este nome, saltar da cadeira, dar uma corrida e dois ou três pulos, e tornar depois a se sentar.
Era completamente inútil perguntar a ele o que significavam aqueles trejeitos e exclamações disparatadas; contentava-se em responder: — E eu lá posso contar o que
me aconteceu com Papowicz e Agafia sem que me tomem por doido?
Pelos rostos dos circunstantes passava um sorriso equívoco que queria dizer: — Ora, meu caro! Isso não é necessário para ficarmos certos de que o senhor não tem
o juízo no lugar!
Numa noite sombria e silenciosa de outubro, Anselmo, que julgavam longe da localidade, entrou de improviso na casa de um amigo. Vinha profundamente terno, mais terno
e mais afetuoso do que de costume, quase triste. O seu gênio turbulento e por vezes selvagem fora suavizado e domado pelo misterioso poder que se apoderara de seu
espírito.
Como era noite fechada, o amigo de Anselmo quis pedir luz, este pegou-lhe nos dois braços, dizendo: — Fazes-me o favor de, ao menos por esta vez, procederes segundo
a minha fantasia? Não mandes vir luz. Contentemo-nos com a débil claridade do candeeiro que daquele gabinete nos envia uns pálidos raios. Podes fazer tudo o que
quiseres, beber chá, fumar; mas não quebres a xícara nem atires a isca acesa para cima do meu casaco novo. Não só isso me faria zangar, como perturbaria a tranquilidade
e o silêncio deste jardim encantado, onde entrei hoje e onde estou gozando delícias mil. Vou sentar-me neste sofá.
Sentou-se e, após longa pausa, continuou nestes termos: — Amanhã de manhã, às oito horas, faz precisamente dois anos que o conde de Lobau fez uma sortida em Dresden,
com doze mil homens e vinte e quatro peças de artilharia, a fim de abrir uma passagem para as serras de Misnie...
— Pela minha vida! — disse o amigo de Anselmo, rindo a bandeiras despregadas — ao ouvir-te falar em jardim encantado, esperava que se evolasse alguma aparição celeste.
O que tenho eu com o teu conde de Lobau e a sua sortida? Como podes lembrar desses números exatos, doze mil homens e vinte e quatro peças de artilharia? Desde quando
os fatos militares se gravaram tão bem no teu cérebro?
— Ora essa! — replicou Anselmo — então já esqueceste esse tempo tão cheio de acontecimentos variados? Já não lembras de que todos nós fomos invadidos por veleidades
belicosas?... O noli turbare não nos livrou dessas veleidades. Se nem sequer admitíamos que nos livrassem. Não sei que demônio nos dilacerava o peito, nos esporeava,
nos excitava a batalhar. Pegamos em armas pela primeira vez não para nos defender, mas para nos consolarmos buscando na morte o castigo de uma vergonhosa fraqueza.
Pois foi este ardor estranho que, arrancando-me das artes e das ciências, me atirou no meio da selvagem e sanguinolenta peleja... e esse ardor que por vezes me inflamava
nos negros dias dessa época apoderou-se precisamente de mim naquela noite... Não me era possível estar sentado diante da mesa! Vagueava pelas ruas, seguia, de tão
longe quanto possível, as tropas nas suas sortidas, unicamente para ver com meus próprios olhos, procurando uma esperança no que via, porque não ligava importância
alguma aos editais mentirosos, nem às proclamações empoladas. Deu-se finalmente a batalha de Leipzig2.
"A Alemanha inteira, orgulhosa e feliz por ter reconquistado a liberdade, estrondeou em gritos de alegria... e estávamos ainda acorrentados à escravidão! Pareceu-me
que devia, por uma ação extraordinária, procurar conquistar a liberdade para mim e para todos os que, como eu, estavam cativos. Isto pode te parecer extravagante,
talvez ridículo, em vista da índole que me supões, mas tive a louca ideia de incendiar, de fazer ir pelos ares um forte, onde sabia que os franceses haviam depositado
grande quantidade de pólvora..."
O amigo não pôde deixar de sorrir daquele súbito heroísmo do pacífico Anselmo, que, não lhe podendo ver o sorriso, por causa da obscuridade, continuou a falar, depois
de um momento de silêncio.
— Todos vocês me têm dito frequentemente que uma disposição particular do meu espírito me faz dar aos acontecimentos que me impressionam circunstâncias fabulosas
em que ninguém acredita. Também a mim, no princípio, essas circunstâncias me parecem fruto da minha imaginação; mas depressa tomam forma exteriormente ao meu ser,
qual místico símbolo do maravilhoso que encontramos na vida a cada passo. Foi o que me aconteceu em Dresden, faz hoje dois anos. O dia passara-se num triste silêncio,
repleto de pressentimentos,nas portas havia tranquilidade completa; não se disparou um tiro. Às dez horas da noite, entrei num café do mercado velho. Num reservado
retirado e oculto, onde nenhum estrangeiro podia entrar, reuniam-se amigos das mesmas opiniões, animando-se, consolando-se mutuamente, expondo suas esperanças. Foi
ali que, destruindo as mentiras oficiosas, nos foram comunicadas as verdadeiras notícias das batalhas de Katzbach e de Culm; foi ali que o nosso amigo R... nos anunciou
a vitória de Leipzig, que soubera não sei como. Ao passar em frente do palácio de Bruhl, habitado pelo Marechal, notara extraordinária iluminação nas salas e grande
tumulto no vestíbulo. Dei parte disto aos meus amigos, observando que indubitavelmente os franceses maquinavam qualquer coisa. Neste momento entrou R... com precipitação,
todo afogueado.
— Ouçam as notícias mais recentes —, gritou-nos ele. —Agora mesmo está reunido o conselho de guerra, em casa do marechal. O general Mouton, conde de Lobau, vai se
deslocar para Meissen com doze mil homens e vinte e quatro peças de artilharia. A partida será amanhã de manhã.
Discutiu-se muito e segundo a opinião de R..., a ativa vigilância dos russos podia tornar aquele plano funesto para os franceses, e forçar o marechal a capitular
mais depressa, pondo-se assim termo aos nossos males.
Quando voltei para casa, à meia noite, pus-me a refletir: como podia R... ter sabido, durante a reunião do conselho, o que este havia decidido? Daí a pouco ecoou,
no meio do fúnebre silêncio da noite, um estrondo abafado. Uma força de artilharia, seguida de viaturas carregadas de forragm, passava devagar pela minha frente,
dirigindo-se para o lado da ponte do Elba.
— R... tinha razão —, fui obrigado a dizer comigo mesmo.
Segui o trem até o meio da ponte, parando junto ao arco que fora pelos ares e que tinha sido substituído por um tabuleiro de macieira, de cada lado do qual se erguiam
sólidas obras de fortificação com altas paliçadas e entrincheiradas de terra.
Agachei-me junto ao parapeito, para não ser notado. De súbito pareceu-me que uma das estacas da paliçada saía do lugar, mexendo-se em todos os sentidos, e que se
inclinava para mim, murmurando em voz baixa palavras incompreensíveis. O céu estava toldado de nuvens e a escuridão espessa da noite impediam-me de ver nitidamente.
Logo que a artilharia acabou de passar e que reinou na ponte um silêncio de morte, ouvi os arrancos de uma respiração difícil, acompanhados de surdos gemidos; o
negro pedaço de madeira pareceu crescer e um horror glacial atordoou-me os sentidos.
Atemorizado por aquele pesadelo, não pude me mover. Meu corpo parecia de chumbo. Levantou-se o vento da noite varrendo o nevoeiro para além das serras, e a lua dardejou
uns raios enfraquecidos por entre as nuvens esfarrapadas. Avistei então a pouca distância um velho muito alto, de barba e cabelo compridos de um branco prateado.
Trazia uma capa que lhe chegava só até a cintura, caindo em amplas e numerosas pregas. Tinha na mão um comprido cajado, que estendia para o rio com o braço nu. Era
ele que murmurava e gemia.
Neste momento vi brilhar canos de espingardas do lado da cidade, e ouvi barulho de passos. Atravessava a ponte, em profundo silêncio, um batalhão francês. O velho
acocorou-se e pôs-se a gemer, apresentando o barrete como que para pedir esmola.
— Voilà Saint-Pierre qui veut pêcher (Eis São pedro que quer pecar) —, disse rindo um oficial francês.
O homem que marchava atrás ele parou, jogou dinheiro no barrete do velho e disse de modo sério: — Eh bien! Moi, pêcheur, je lui aiderai à pécher (Bem, eu, pecador,
o ajudarei a pecar).
Vários oficiais e soldados saíram da forma e deram dinheiro ao velho.
Alguns preocupados com a ideia de morte próxima, suspiravam baixinho. A cada esmola que recebia, o velho inclinava a cabeça de um modo singular, dando soluços abafados.
Um oficial general, que reconheci como o conde de Lobau, passou tão perto do ancião que por um pouco não o esmagou com o cavalo coberto de espuma. O general voltou-se
rapidamente para um ajudante, e, ajeitando o chapéu na cabeça, perguntou com voz forte: — Qui est cet homme? (Quem é este homem?)
Os cavaleiros que o escoltavam ficaram silenciosos, mas um porta-machado já idoso, que marchava fora da fileira com seu machado ao ombro, respondeu: — C'est un pauvre
maniaque bien connu ici. On l'appelle Saint-Pierre pêcheur. (É um pobre louco bem conhecido aqui. Todos os chamam de São Pedro pecador)
A força continuou a passar. Aquela marcha era triste e taciturna, desacompanhada dos petulantes gracejos de sempre. Assim que o exército desapareceu, embrenhando-se
nas trevas longínquas, o velho ergueu-se devagar e ficou de pé, com a cabeça levantada. Com o cajado erguido em atitude majestosa e imponente, parecia comandar as
ondas tempestuosas, como um santo dotado da faculdade de fazer milagres. O Elba espumava, redemoinhando com furor sempre crescente numa agitação que lhe revolvia
os abismos.
No meio do fragor das águas, julguei ouvir uma voz abafada, que parecia vir do rio e subir até mim.
— Michaël Popowicz, Michaël Popowicz! Não vês o homem de fogo? — dizia a voz, em russo.
O velho, que resmungava não sei que oração, exclamou: — Agafia!
Neste momento iluminou-lhe o rosto um clarão vermelho sanguíneo, que o Elba projetava em direção a ele. Turbilhões de chamas subiam para os ares, ao longe, nas serras
de Misnie.
Muito perto de mim, debaixo dos madeirames da ponte, ouviu-se um marulhar semelhante ao que produz um nadador, e vislumbrei um vulto, que trepou com dificuldade
em um barrote e saltou o parapeito com espantosa agilidade.
— Agafia! — disse o velho — Minha filha! Foi Deus que assim o quis!
— Como? Dorothea aqui! — exclamei eu.
Ia continuar, mas senti seus braços me apertarem, arrastando-me com força.
— Oh! Em nome de Deus, segue-me, meu caro Anselmo, senão te matam! — murmurou a moça, que acabava de sair das águas.
Estava defronte de mim, tremendo, quase morta de frio. Os compridos cabelos negros espalhavam-se pelos ombros, e a roupa molhada colava-se ao corpo esbelto. Caiu
no chão, extenuada de fadiga, e disse com doçura:
— Faz tanto frio ali dentro! Cuidado, não digas nada, meu caro Anselmo, senão nos matam!
Iluminava-lhe o rosto o clarão das fogueiras longínquas. Era bem ela, Dorothea, a bonita aldeã, que, quando a sua aldeia fora saqueada e lhe assassinaram o pai,
se refugiara em casa do dono da hospedaria, onde eu estava alojado.
— Seria excelente pessoa —, dizia sempre o hospedeiro —, se a desgraça a não tivesse tornado estúpida.
O homenzinho tinha razão. A garota só dizia coisas ininteligíveis. Um sorriso apagado e desagradável alterava-lhe a fisionomia, que devia ter sido encantadora. Trazia-me
todas as manhãs o café ao quarto, e tive ocasião de notar, como fato para mim positivo, que as suas maneiras, o talhe, a tez, não eram as de uma camponesa.
— Ora, senhor Anselmo —, dizia-me o hospedeiro —, a garota é filha de um rendeiro e, o que é mais, nasceu na Saxônia.
Ao vê-la molhada até os ossos, trêmula, respirando a custo e meio deitada a meus pés, tirei logo a capa e cobri-a com ela.
— Aquece-te —, disse-lhe baixinho —, aquece-te, querida Dorothea, senão morres. Mas o que fazias dentro deste rio gelado?
— Cala-te, cala-te! — respondeu a garota, afastando a gola da capa que lhe tapava o rosto, jogando para trás os cabelos gotejando água. — Vamos para aquele banco
de pedra. Meu pai não nos ouve. Está conversando com Santo André3.
Fomos devagarinho até o lugar indicado. Sentia-me dominado por extraordinária comoção. Excitado pelo horror e pela admiração, tomei a moça nos braços. A pobrezinha
sentou-se nos meus joelhos sem dificuldade.
Passou o braço em torno do meu pescoço, e senti a água fria, que lhe escorria dos cabelos, cair pelas minhas costas. Mas as gotas de água que caem num braseiro aumentam
de intensidade. Sentia-me invadido pelo fogo do amor e do desejo.
— Anselmo —, balbuciou a moça —, és um honrado mancebo. Quando cantas, o som da tua voz entra em meu coração, e além disso és tão delicado! Não me atraiçoas, não
é? Quem te arranjaria depois o café? Ouve, quando chegar a fome, quando nada tiveres que comer, entro no teu quarto à noite, sozinha, sem que ninguém o saiba, e
faço-te no fogão manjares deliciosos. Tenho farinha, farinha fina, escondida no meu quarto. Comeremos ambos excelentes bolos de núpcias, muito branquinhos.
Tinha estado a rir, mas, quando pronunciou estas palavras, soluçava.
— Ah! — continuou ela —, há de ser como em Moscou! Oh meu Alexis! Meu belo noivo! Nada, nada! Lá sai das ondas! Não te espera a tua noiva fiel? — Baixou a cabeça
e a voz foi enfraquecendo gradualmente. A respiração entrecortou-se de suspiros. Pareceu adormecer. Olhei para o velho. Lá estava, de braços cruzados, dizendo num
tom lúgubre:
— Meus valentes irmãos! O homem do fogo faz-lhes sinal. Olhem para ele. Com que força sacode as fulgurantes madeixas da sua barba de chamas! Com que afã estende
pela turba as suas colunas de fumaça! Não lhe ouvem o retumbar dos passos? Não os anima o seu sopro inflamado? Marchem para o lugar onde brilham as fagulhas. Corram,
meus valentes irmãos!
A voz de Popowicz tinha silvos como os do vento ao aproximar-se o furacão.
Enquanto falava, continuavam a chamejar os sinais nas serras de Misnie.
— Ampara-me, Santo André, ampara-me! — balbuciou a garota adormecida.
Acometida por súbito terror, levantou-se, agarrou-me fortemente com o braço esquerdo, e murmurou-me ao ouvido: — Anselmo, antes quero matar-te!
E vi brilhar uma faca na sua mão direita. Repeli-a aterrado, e dei um grito.
— Insensata, que fazes?
— Não —, continuou, sem responder a minha pergunta —, não tenho ânimo para isso, mas agora estás perdido.
O velho bradou nesta ocasião: — Com quem estás falando, Agafia?
E, sem me dar tempo para refletir, veio para perto de mim, de bordão levantado e deu-me uma tal pancada que me partiria o crânio, se Agafia não tivesse me puxado
para trás com violência. O pau ficou em pedaços na calçada e Popowicz caiu de joelhos.
— Marche! Marche! — gritavam de todos os lados.
Fui obrigado a erguer-me de repente e a abrir passagem, para não ser esmagado pela artilharia e as viaturas que se recolhiam.
Na manhã seguinte os russos repeliam das serras o infeliz general e obrigavam-no a refugiar-se na praça.
— É extraordinário —, dizia-se —, os russos conheciam o projeto do inimigo. As fogueiras acesas nas serras de Misnie fizeram convergir suas tropas para os lugares
onde os franceses esperavam derrotá-los, por encontrarem pouca resistência.
Passaram-se muitos dias e Dorothea já não me trazia o café. O hospedeiro, pálido de medo, contou-me que vira Dorothea e o mendigo louco da ponte do Elba serem conduzidos
por uma forte escolta da casa do marechal até a cidade nova.
— Oh Deus! — disse nesta altura o amigo de Anselmo — foram descobertos e executados?
Mas Anselmo respondeu, sorrindo de modo singular: — Não. Agafia silenciou e, depois da capitulação, recebi de suas mãos um bonito bolo de núpcias, que ela própria
cozinhara.
E foi tudo o que Anselmo contou a respeito daquela extraordinária aventura. Ninguém pôde lhe arrancar mais uma só palavra.


Notas


1 O autor assistiu a este cerco. No dia 9 de outubro de 1813 o conde Lobau refugiou-se com as suas tropas na cidade, que tinha uma guarnição francesa de 25 mil homens
sob o comando do marechal Gouvion-Saint-Cyr. Um corpo de exército russo, comandado pelo conde de Tolstoi, bloqueou a cidade até 11 de novembro, dia em que os franceses,
obrigados pela fome, tiveram de capitular.
2 Esmagado quase pela campanha da Rússia, Napoleão, depois das batalhas de Lutzen e Bautzen, podia ter assinado uma paz honrosa, mas repeliu as condições que o congresso
de Praga lhe oferecia e foi vencido em Leipzig pelos aliados, que invadiram a França e entraram em Paris.
3 Um dos padroeiros da Rússia.

 


A mulher vampiro


O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes. O solar da família era situado
numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá-lo custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens
o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo a embelezar,ou para melhor dizer, a reconstruir
o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério.
Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.
E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela ideia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras,
afim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas.
Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai.
Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que o pai se lhe referia sempre com a mais profunda indignação, de mistura com certo receio. Sem explicar
o perigo que havia na convivência, afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam em pedir-lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em
que era melhor não falar.
O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera envolvida e em consequência do qual
se havia separado do marido e fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe perdoara-lhe.
Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as razões dessa aversão. Os deveres da hospitalidade,
que se respeitam principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de receber a importuna visita.
A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma produzira no conde repugnância tão manifesta.
Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendiado, mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua visita nos termos mais aviltantes de rasteira
humildade. Lastimou que o pai do conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas maldosamente pelos seus inimigos, a tivesse odiado de maneira tão
acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria, chegando quase a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar-se numa cidade da província, tendo
acabado de receber inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo que não pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio irreconciliável sempre
correspondera com profunda estima.
Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade, conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu a presença da graciosa e encantadora
menina que acompanhava a baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-lhe então
desculpas de uma falta em que o embaraço a fizera incorrer e apresentou-lhe a sua filha Aurélia.
Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai, devidos certamente a uma inadvertência,oferecendo-lhe
hospitalidade no castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições, pegou-lhe na mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos gelados,sem vida, ao mesmo tempo
que o vulto descarnado da baronesa, que fixava nele uns olhos embaciados, tomava o aspecto de um cadáver vestido de brocado.
— Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! — exclamou Aurélia.
E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que estas sincopes passavam de pronto sem auxílio
de remédios.
O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava nervosamente e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na de Aurélia cobrindo-a de beijos.
Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira vez uma forte paixão, tornando-se-lhe impossível dissimular o que sentia, tanto mais que era animado
pela graça encantadora com que Aurélia lhe acolhia as amabilidades.
A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia honrada com aquele convite,e que este
procedimento lhe apagava para sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.
Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única pessoa que podia, como esposa,dar-lhe
a suprema ventura.
A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria, reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz e de bons sentimentos. O conde acostumara-se
àquele rosto singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e atribuía tudo à má saúde da sua hospeda e ao gosto que ela tinha por sombrios passatempos.
Com efeito os criados contaram-lhe que a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do cemitério.
Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo, pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a inesgotável facúndia, exortando-o a renunciar
ao sentimento que o dominava e a relações que um dia poderiam desgraçá-lo. Convencido de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácil de imaginar o quanto
a baronesa ficou encantada com esta proposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma existência feliz.
A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos olhos suave brilho e às faces frescura
e colorido.
Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a baronesa estendida e sem movimento no parque,
a pouca distância do cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de levantar-se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na felicidade que ia gozar,
quando trouxeram a baronesa para o castelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era costume, mas todos os meios empregados para a chamar à vida foram
inúteis. Estava morta! Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e atônita por causa deste imprevisto golpe do destino, mas não verteu urna
única lágrima.
O conde, temendo melindrá-la, observou-lhe, com precaução e delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as conveniências e apressar o mais possível o casamento
não obstante a morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo, Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando muitas lágrimas, exclamou:
— Sim, pela minha salvação, consinto! O conde atribuiu esta exaltação à desconsoladora ideia de que, órfã e sem asilo, Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro
lhe não permitia ficar no castelo.
Teve o cuidado de colocar junto de Aurélia, até o dia fixado para a cerimônia, uma aia, matrona respeitável.
No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que do desgosto causado pela morte da
mãe.
Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu-se de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em lágrimas refugiou-se-lhe nos braços como se quisesse
fugir a um perseguidor invisível. Exclamou: — Não, nunca, nunca! Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum contratempo, é que a perturbação e a ansiedade
de Aurélia pareceram dissiparem-se.
Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a atormentava. Contudo, foi bastante delicado
para não a interrogar enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntou-lhe o que produzira aquela extraordinária disposição de espírito. Aurélia
significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a perturbação de Aurélia provinha do procedimento
criminoso da mãe.
— Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos obrigados a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe? Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não
se haviam enganado, e que a baronesa captara este último por meio de requintada hipocrisia.
O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora precisamente a morte da mãe que a enchera
de pressentimentos sombrios, e que o receio de que não poderia ainda triunfar, lhe dizia que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipitá-la num abismo,
depois de arrancá-la dos braços do seu amado esposo.
E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.
Eram estas.
Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriam-se e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos soltados por vozes desconhecidas.
Quando o sossego se restabeleceu, a ama de Aurélia pegou-lhe ao colo e levou-a para uma vasta sala onde estava muita gente. Sobre uma grande mesa, no meio da casa,
viu estendido um homem, que brincava sempre muito com ela e lhe dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu-lhe os braços para o beijar,mas aqueles lábios,
que tinha conhecido quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou a chorar sem saber porquê. Dali a ama levou-a para uma casa desconhecida, onde ficou por muitos
dias. Passado tempo a mãe foi buscá-la de carruagem e levou-a para a capital.
Completava Aurélia dezasseis anos, quando se apresentou em casa da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e familiaridade, como antigo conhecimento.
Multiplicaram-se as visitas e dentro em pouco operou-se considerável mudança na vida da baronesa. Em vez de morar numa água-furtada, de vestir pobremente,de passar
mal, foi habitar uma casa esplêndida no melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta, sendo seu inseparável comensal o desconhecido, e, finalmente,
não faltava a nenhum divertimento público.
Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que dantes e estava sempre fechada no
quarto, ao passo que a mãe ia às festas com o tal homem.
Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por isso deixava de repugnara Aurélia,
porque às vezes era ordinário e desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que tinha a homem amável e afidalgado.
Por este tempo, começou a deitar à mocinha certos olhares, que lhe infundiam inexplicável horror.
Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a dizer-lhe o seu nome e que o barão era um parente afastado, possuidor de colossal fortuna.
Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à filha que tal o achava e, como esta não ocultasse a repugnância que tinha por ele, acoimou-a de tola e dardejou-lhe
um olhar de meter medo, mas passou depois a tratá-la com agrado, deu-lhe bons vestidos, e levou-a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava tanta solicitude
e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe tornou verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia presenciou,cheia de mágoa, uma cena escandalosa,
que lhe tirou todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este, meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lhe claramente as suas intenções abomináveis.
O desespero deu forças à donzela que repeliu o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a fechar-se no quarto.
A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem fazia todas as despesas da
casa.
Como não estava para recair na miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão, o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixá-las.
Longe de se impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velha recebeu-os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou-lhe impudicamente uma ligação,
que lhe ofereceria todas as voluptuosidades mundanas, servindo-se de termos tão abomináveis e vergonhosos que Aurélia ficou aterrorizada.
Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de fazer uma trouxa com as coisas mais
indispensáveis, encaminhou-se para a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a mãe estaria dormindo e ia já para sair, quando alguém subiu precipitadamente
a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a descoberto os braços e o peito, a baronesa entrou na antecâmara
e foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado com um bordão nodoso, e bradando: — Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera
que já vou dar-te a refeição de núpcias! E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a maltratá-la cruelmente, espancando-a com o bordão.
A baronesa desatou a gritar desesperadamente e Aurélia, quase desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia passando uma patrulha policial e acudiu
logo.
— Prendam-no! — bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e de raiva. Prendam-no! Olhem-lhe para o ombro, que está a descoberto! É Urian! Assim que ela pronunciou
este nome, o sargento comandante da patrulha deu um grito e disse: — Olá! Apanhei-te finalmente! Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito da
resistência que empregava para desvencilhar-se.
Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a brutalmente por um braço, empurrou-a para
o quarto e fechou a porta à chave, sem dizer palavra.
No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas da fome e da sede.
Nos dias seguintes não recebeu muito melhor tratamento. A mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de cólera e parecia meditar qualquer projeto sinistro.
Afinal recebeu, certa noite, uma carta que pareceu alegrá-la, e disse a Aurélia: — Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora, felizmente, tudo
vai bem e Deus queira que evites o terrível castigo, que o demônio te reservava.
Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que desde que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de mais ampla liberdade.
Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um grande barulho na rua.
A criada de quarto entrou precipitadamente e disse-lhe que a polícia levava preso o filho do carrasco de .... O facínora, acusado do crime de roubo à mão armada,
fora, tempos antes marcado a ferro em brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta. Desta vez não lograria escapar, certamente.
Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela. Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e amarrado a uma carroça. Transferiam-no para
outra prisão, a fim de cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo que lhe fazia um
gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair numa poltrona.
A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe estariam iminentes.
A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e, sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama, disse um dia a Aurélia que lastimava
sinceramente a senhora baronesa, por ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem sabia o que havia de pensar a este respeito.
Parecia-lhe impossível que os guardas, que tinham prendido Urian em casa da baronesa, não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entre ambos, pois
que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o sinal infamante que ele tinha no ombro.
Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se muito àquele respeito. Andava de boca em boca a atoarda de que a justiça fizera uma severa sindicância
e que ameaçara a baronesa com a prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos verdadeiramente extraordinários.
A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe, visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava ainda a residir na capital.
A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem fundadas, e de fugir para lugar distante.
Durante esta viagem é que tinha ido ter ao castelo do conde.
Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que manifestava à mãe a alegria que o céu lhe
concedera, esta, com os olhos cintilantes, exclamou desabridamente: — Foste a causa da minha desgraça, criatura adjeta e maldita; mas ainda que a morte me leve repentinamente,
a vingança virá surpreender-te no meio da tua imaginária felicidade. É nestes acessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os artifícios de Satanás...
A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao marido, pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe pronunciara numa crise de furor insensato.
Sentia o coração esfacelar-se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa do demônio, ameaças que excediam todos os horrores imagináveis.
O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo esquivar-se a ter medo.
Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado uma sombra funesta numa existência
futura cheia de felicidade.
Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao mesmo tempo os seus modos extraordinários
e inquietos faziam suspeitar novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido; fechava-me no quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque; quando aparecia,
trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto desfigurado, denunciando o pesar que a devorava.
Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a mulher naquele estado. Aurélia caiu em profundo abatimento, de que saiu somente depois de consultar
uma celebridade médica.
O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer conceber a esperança de queia ter fruto
aquele casamento venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia. Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutor com o conde, mas aplicou
depois o ouvido, quando ouviu falar nos singulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a que não podiam resistir sem prejuízo da sua saúde e até
da saúde do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.
— Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos desregrados, que levaram diversas mulheres a ações verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher de
um ferreiro sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa embriagado,atirou-se
a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente, que o desgraçado expirou poucas horas depois.
Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaram-se com grande dificuldade.
O médico reconheceu que andara mal contando semelhante aventura na presença duma senhora tão impressionável.
Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía ela novamente num acesso de profunda
melancolia.
Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e o rosto cobria-se-lhe de palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-se com a saúde da esposa.
Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas as iguarias, especialmente pela carne.
Quando se servia qualquer prato desta substância, era obrigada a levantar-se da mesa, dando evidentes sinais de nojo.
Foi improfícua toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.
Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era de opinião que havia ali qualquer coisa
que frustrava o saber humano. Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o conde percebeu claramente que o estado da esposa parecera muito perigoso e
enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava absolutamente impossível de curar.
Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz. A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado velho aproveitou um momento,em que
o encontrou sozinho, para o avisar de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se de que, havia tempos,
ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe ministrasse sem ele dar por isso, para
poder sair clandestinamente do quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólito
recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera possuída, e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-se também do filho do carrasco e suspeitou
de qualquer ligação adultera.
A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa única do estado singular de Aurélia.
Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite, meteu-se na cama, leu comode costume,
e não sentiu a sonolência habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu que dormia profundamente. A condessa levantou-se então, sem fazer o
mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido, examinou-o por momentos, e saiu devagarinho do quarto.
Todo trêmulo, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e seguiu a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia luar, avistava-se distintamente o seu vestido
branco. Atravessou o parque e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro Hipólito seguiu-a, quase correndo; achou aberta a porta e entrou.
Viu à claridade do luar um espetáculo horripilante.
A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão, formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados, dilacerando com os dentes, como feras,
o cadáver de um homem.
E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e profundo horror o desgraçado fugiu daquela cena infernal! Correu ao acaso pelas alas do parque e só
caiu em si quando, de madrugada, viu-se em frente à porta do castelo. Subiu rápida e maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto. A condessa
parecia dormir serenamente.
Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que a capa estava ainda úmida do orvalho. Ainda assim tentou persuadir-se de que tinha sido joguete de uma alucinação.
Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo. A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das aves fizeram-lhe esquecer os fantasmas
noturnos.
Voltou mais tranquilo ao castelo e sentou-se à mesa com a mulher. Quando, porém, serviam um prato de carne assada e a condessa quis retirar-se mostrando repugnância,
o conde reconheceu a realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com violência:
— Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que te vais banquetear!
Mal ouviu estas palavras, Aurélia jogou-se sobre ele rugindo e mordeu-o no peito com a fúria duma hiena. O marido repeliu violentamente a possessa, que expirou em
meio a atrozes convulsões.
Veio a enlouquecer, o desgraçado.

 


O pequeno monstrengo


Grande perigo de um nariz sacerdotal
Como o Príncipe Paphnutius introduziu o Iluminismo em seu reino
e a fada Rosabelverde ingressou em um estabelecimento
de reclusão para moças nobres.
Nas imediações de uma graciosa aldeia, logo à beira do caminho, uma pobre camponesa em farrapos jazia estirada no chão que ardia com o calor do sol. Atormentada
pela fome, ressequida pela sede, quase sucumbindo de fraqueza, a infeliz havia caído sob o peso do cesto carregado de uma grande pilha de lenha seca, recolhida a
duras penas na floresta, debaixo das árvores e arbustos; e, como mal conseguia respirar, não tinha mais dúvidas de que estava prestes a morrer e que assim, pelo
menos, sua desgraçada miséria terminaria de uma vez. No entanto, logo conseguiu reunir forças suficientes para soltar as cordas com as quais tinha atado o cesto
de madeira às costas, e alçar-se até um torrão de relva que havia ali perto. Lá ela prorrompeu em altas lamentações: — Será — lastimava-se — será que todas as necessidades
e misérias têm de se abater unicamente sobre mim e meu pobre marido? Não somos nós, afinal, os únicos na aldeia que, apesar de todo o trabalho, todo o suor penosamente
derramado, permanecemos em constante pobreza, mal conseguindo o bastante para acalmara fome? Há três anos, quando meu marido encontrou aquelas moedas de ouro ao
remexer a terra em nossa horta, aí sim, acreditamos que a sorte tinha finalmente batido à nossa porta e que os bons tempos iriam começar; mas o que aconteceu!...
Ladrões roubaram o dinheiro, a casa e o celeiro queimaram debaixo de nosso nariz, o cereal no campo foi destroçado pelo granizo e, para cúmulo de nosso sofrimento,
o céu ainda nos castigou com este pequeno monstrengo que eu dei à luz para a vergonha e o escárnio de toda a aldeia...
No dia de São Lourenço o menino completou dois anos e meio mas, com suas perninhas de aranha, não consegue ficar em pé nem andar e, em vez de falar, rosna e mia
como um gato. Além disso, o malfadado aborto devora sua comida como se fosse o mais forte dos meninos de pelo menos oito anos sem que isso lhe traga o menor proveito.
Que Deus tenha piedade dele e de nós por sermos obrigados, para nosso tormento e maior penúria, a alimentar o menino até que fique grande; pois certamente o Pequeno
Polegar irá comer e beber sempre mais e mais, mas trabalhar, ah,isso ele não vai fazer em toda a sua vida!... Não, não, isto é mais do que um ser humano pode aguentar
sobre esta Terra!... Ah, se eu apenas pudesse morrer... apenas morrer!" E com isto a pobre começou a chorar e a soluçar até que, subjugada pela dor, totalmente enfraquecida,
adormeceu...
Com razão a mulher podia lamentar-se pelo horrível monstrengo que trouxera ao mundo há dois anos e meio. Aquilo, que bem se poderia tomar à primeira vista por um
toquinho de madeira estranhamente retorcido, era de fato um menino disforme que mal alcançava dois palmos de altura e que, tendo-se arrastado para fora do cesto
onde estava estendido de través, agora rolava grunhindo sobre a relva. A coisinha tinha a cabeça profundamente enfiada por entre os ombros,o lugar das costas era
ocupado por uma excrescência semelhante a uma abóbora e, logo abaixo do peito, pendiam-lhe as perninhas finas como vara de aveleira,de modo que o menino parecia
um rabanete partido. Seria difícil que olhos obtusos discernissem algo do rosto, mas, olhando-se mais atentamente, com certeza se perceberia o nariz comprido e pontiagudo
que despontava em meio aos cabelos escuros e desgrenhados, e um par de pequenos olhinhos negros e faiscantes que — sobretudo tendo em vista os traços de resto bem
envelhecidos e enrugados do rosto — pareciam anunciar uma pequena mandragorazinha.
Ora, assim que — como foi dito — a mulher, vencida pelo pesar, havia caído em profundo sono, e o seu filhinho rolado até bem perto dela, ocorreu que a senhorita
von Rosenschön, dama do claustro que ficava nas proximidades, vinha passando lentamente por este caminho de volta para casa após um passeio. Ela deteve-se e, dado
que era de natureza terna e compassiva, ficou comovida pela cena de miséria que tinha à sua frente.
— Oh, céus — exclamou — quanta desolação e penúria existem sobre esta Terra!... Pobre e infeliz mulher! Eu sei que ela mal consegue levar a vida, e mesmo assim trabalha
acima de suas forças e caiu de fome e desgosto! Quão profundamente sinto agora minha pobreza e impotência! Ah, se eu pudesse realmente ajudar como gostaria!... Mas
o que ainda me restou, os poucos dons de que ainda disponho e que o destino hostil não conseguiu me arrebatar ou destruir, quero empregar com força e dedicação para
combater este sofrimento. Dinheiro, ainda que eu o possuísse, em nada a ajudaria, pobre mulher, e poderia até mesmo piorar sua situação. A você e a seu marido, a
vocês dois decididamente não está destinada a riqueza, e quando a riqueza não está destinada a alguém, as moedas de ouro lhe desaparecem do bolso sem que ele próprio
saiba como, não lhe trazendo senão grandes dissabores, e quanto mais dinheiro lhe aflui, tanto mais pobre se torna. Mas eu sei que, mais do que toda a pobreza, mais
do que todo o infortúnio, o que está atormentando seu coração é o fato de ter dado à luz este pequeno monstrinho que se escora em você como uma carga maligna e temível,
que você é forçada a carregar pela vida afora. Alto... belo... forte... inteligente, não, nada disso o menino vai mesmo se tornar, mas talvez ele ainda possa ser
ajudado de outro modo...
Com isto ela sentou-se na relva e tomou o pequeno ao colo. A maldosa mandragorazinha esperneou e debateu-se, rosnou e quis morder o dedo da senhorita von Rosenschön,
mas esta lhe disse: — Calma, calma, pequena joaninha! — enquanto lhe passava a palma da mão leve e suavemente ao longo da cabeça, desde a testa até a nuca.
Durante esta carícia, o cabelo desgrenhado do pequeno foi-se alisando aos poucos até cair, repartido e bem alinhado à testa, em belos cachos macios sobre os ombros
altos e as costas de abóbora. O pequeno foi se acalmando cada vez mais até, por fim, adormecer profundamente. Nesse momento a senhorita Rosenschön deitou-o cuidadosamente
na relva bem ao lado da mãe, respingou nela um pouco de água de cheiro do frasco de perfume que havia retirado da bolsa, e afastou-se com passos rápidos.
Quando pouco depois a mulher acordou, sentia-se maravilhosamente refrescada e fortalecida. Tinha a impressão de ter feito uma boa refeição e tomado um bom gole de
vinho.
— Ai — exclamou — quanto consolo, quanta disposição este bocadinho de sono me trouxe!... Mas o sol já quase se pôs atrás das montanhas, temos agora que ir para casa!...
A seguir, a mulher ia atar o cesto às costas, mas, ao olhar para dentro dele, notou a falta do pequeno, o qual nesse mesmo instante se erguia da relva choramingando.
Quando a mãe voltou os olhos em sua direção, bateu palmas de admiração e exclamou: — Zacarias... Pequeno Zacarias, mas quem foi que nesse meio tempo penteou seu
cabelo de maneira tão bonita? Zacarias... Pequeno Zacarias, como estes cachos lhe ficariam bem se não você fosse um menino tão horrivelmente feio!... Bem, agora
venha, venha!... Para dentro do cesto! Ela ia pegá-lo para estendê-lo sobre a lenha, mas o Pequeno Zacarias esperneou, fez uma careta para a mãe e miou de modo bem
audível: — Não quero! — Zacarias!... Pequeno Zacarias — gritou a mãe fora de si — mas quem foi que nesse meio tempo ensinou você a falar? Ora, se você tem o cabelo
tão bem penteado,se você sabe falar tão bem, então com certeza também saberá andar.
De um golpe a mulher recolocou o cesto às costas, o Pequeno Zacarias enganchou-se em seu avental, e assim seguiram rumo à aldeia.
Para chegar lá, tinham que passar em frente à casa do pároco, e ocorreu que este se encontrava à porta com o seu filho mais novo, um lindo garoto de três anos de
idade, com belos cachos dourados. Quando o pároco viu a mulher aproximando-se com o pesado cesto de lenha e o Pequeno Zacarias pendurado em seu avental, exclamou
em sua direção: — Boa tarde, senhora Liese, como tem passado? Mas a senhora recolheu um fardo pesado demais e mal consegue seguir em frente. Venha, descanse um pouco
neste banco em frente à minha porta, minha criada virá oferecer-lhe uma bebida refrescante! Liese não esperou que ele lhe dissesse isso duas vezes e, baixando seu
cesto, estava prestes a abrir a boca para queixar-se àquele respeitável senhor de toda a sua miséria e infortúnio, quando o Pequeno Zacarias, que perdera o equilíbrio
com o brusco movimento da mãe, foi lançado aos pés do pároco. Este se abaixou rapidamente e ergueu o pequeno enquanto dizia: — Ai, senhora Liese, mas que menino
lindo e adorável a senhora tem aí. É uma verdadeira bênção dos céus possuir um filho tão maravilhoso — e, com isso,tomou o pequeno nos braços e acariciou-o, não
parecendo de modo algum notar que o malcriado Pequeno Polegar rosnava e miava de forma muito desagradável e até tentava morder o respeitável senhor no nariz.
Liese, no entanto, estava completamente atônita diante do clérigo e fitava-o com olhos escancarados e imóveis, não sabendo o que deveria pensar: — Ah, prezado senhor
pároco — começou por fim a dizer com voz chorosa — um homem de Deus, como o senhor, com certeza não estará escarnecendo de uma pobre e infeliz mulher, a quem o céu,
por motivos que apenas ele mesmo conhece, castigou com este abominável monstro! — Mas — replicou o sacerdote em um tom muito sério — mas que bobagens são essas,
cara senhora! Escárnio, monstro, castigo do céu... Não consigo absolutamente entendê-la, e sei apenas que a senhora deve estar totalmente cega se não ama seu belo
menino de todo o coração... Beije-me, gentil homenzinho! O pároco abraçou o pequeno, mas Zacarias rosnou: — Não quero! — e investiu novamente contra o nariz do sacerdote.
— Veja a besta maligna! — exclamou Liese assustada.
Mas neste momento o filho do pároco disse: — Ah, querido pai, o senhor é tão bondoso, o senhor é tão gentil com as crianças que todas elas certamente o amam do fundo
do coração! — Oh, ouça só — exclamou o pároco com os olhos brilhando de alegria — oh, ouça só, senhora Liese, o belo e inteligente menino, seu querido Zacarias,
ao qual a senhora quer mal. Já percebo, a senhora nunca irá ligar para ele, não importa quão formoso e inteligente ele seja. Ouça, senhora Liese, entregue-me seu
filho tão promissor para que eu o crie e eduque. Dada a sua opressora pobreza, o menino apenas lhe será um peso, e para mim será uma satisfação criá-lo como meu
próprio filho! Liese não conseguia voltar a si de tão atônita, e seguia repetindo: — Mas prezado senhor pároco... senhor pároco, será que o senhor está mesmo dizendo
seriamente que quer tomar para si a pequena deformidade, criá-la, e libertar-me da penúria que me traz esse monstro? No entanto, quanto mais a mulher descrevia ao
pároco a abominável feiura de sua mandragorazinha, tanto mais fervorosamente este afirmava que ela, na sua louca cegueira, não merecia de modo algum ter recebido
do céu a prodigiosa dádiva de um garoto tão maravilhoso; até que, por fim, totalmente enraivecido,entrou em casa com o Pequeno Zacarias ao colo e trancou a porta
por dentro.
Lá ficou então Liese, como que petrificada, diante da porta do pároco, não sabendo o que pensar de tudo aquilo.
— Cáspite — disse a si mesma — o que terá acontecido com o nosso digno senhor pároco para que ele ficasse tão enlouquecido pelo meu Pequeno Zacarias a ponto de tomar
o tolo fedelho por um menino belo e inteligente? Bem, que Deus ajude o bondoso homem; ele tirou o peso das minhas costas e tomou para si o fardo,ele que veja agora
como conseguirá carregá-lo! Ah! Como o cesto de lenha agora ficou leve, já que não está mais sentado em cima dele o Pequeno Zacaria se, com ele, a maior das preocupações!
Em seguida Liese, com o cesto de lenha às costas, tomou o seu caminho alegre e bem disposta! Mesmo que por ora eu ainda quisesse silenciar totalmente sobre o assunto,
com certeza você, amigo leitor, já terá suspeitado de que deve haver alguma circunstância fora do comum envolvendo a reclusa von Rosenschön, ou Rosengrünschön, como
ela também se chamava. Pois o fato de que o Pequeno Zacarias tenha sido tomado pelo bondoso pároco como uma criança bela e inteligente, sendo logo adotado como um
filho, não foi certamente senão o misterioso efeito de ela ter acariciado sua cabeça e alisado seus cabelos. Ainda assim, prezado leitor, você poderia, não obstante
a sua excelente perspicácia, entregar-se a falsas suposições ou, até mesmo, em grande detrimento de nossa história, saltar várias páginas para de imediato ficar
sabendo mais acerca da misteriosa dama; sendo assim,é melhor sem dúvida que eu conte logo tudo o que eu mesmo sei sobre a digna donzela.
A senhorita von Rosenschön era de estatura alta, porte nobre e majestoso, e temperamento um pouco altivo e imperioso. Embora fôssemos imediatamente levados a considerá-lo
muito formoso, seu rosto, em especial quando ela, como de costume, olhava fixamente à sua frente com seriedade e obstinação, causava uma impressão estranha, quase
assustadora, o que se devia sobretudo a um traço bastante estranho e particular entre as sobrancelhas, do qual não se saberia muito bem se de fato uma nobre donzela
reclusa poderia ostentá-lo na testa. Por outro lado — notadamente na época de floração das rosas, em dias claro se de bom tempo — também havia frequentemente tanta
benevolência e graça em seu olhar que todos se sentiam cativados por uma doce e irresistível magia.
Quando tive a honra de ver a nobre senhorita pela primeira e última vez, ela era, pelas aparências, uma mulher que alcançara o pleno desabrochamento de seus anos,
o ponto culminante antes do retrocesso, e eu supus ter sido premiado pela sorte por ainda ter podido ver a dama neste apogeu e assustar-me,de certo modo, com a sua
maravilhosa beleza, o que muito em breve provavelmente não mais ocorreria. Mas eu estava enganado. As pessoas mais idosas da aldeia asseguraram-me de que conheciam
a nobre donzela há tanto tempo quanto conseguiam recordar-se, e de que a dama nunca tivera outra aparência, nem mais velha nem mais jovem, nem mais feia nem mais
bonita do que tal como agora. O tempo, portanto, não parecia ter poder sobre ela, e só isso já poderia causar estranheza a muitos. Mas havia ainda muitas outras
coisas com as quais qualquer um, se refletisse seriamente sobre elas, igualmente se espantaria, a ponto de, por fim, certamente não conseguir desvencilhar-se do
assombro no qual se encontraria emaranhado. Para começar, revelava-se na moça o parentesco com as flores cujo nome ela trazia. Pois não apenas ninguém no mundo era
capaz, como ela, de cultivar rosas tão esplêndidas, com milhares de pétalas, como também aquelas flores brotavam na maior abundância e na forma mais soberba do pior
e mais seco espinho que ela houvesse enfiado no solo. Fora isso, sabia-se com certeza que, durante passeios solitários na floresta, ela mantinha sonoras conversas
com vozes misteriosas que pareciam provir das árvores, dos arbustos, das fonte se regatos. Um jovem caçador até mesmo a tinha espreitado quando certa vez ela se
encontrava no interior da mais cerrada mata, e estranhos pássaros de plumagem colorida e brilhante, que absolutamente não havia no reino, esvoaçavam em torno dela
e a acariciavam, e, com alegres cantos e gorjeios, pareciam contar-lhe uma variedade de coisas divertidas, com o que ela ria e ficava contente. Isto explica porque
a senhorita von Rosenschön, quando chegou para morar no claustro,não tardou a chamar a atenção de todos na região. Sua admissão no estabelecimento para moças nobres
tinha se dado por ordem do Príncipe, motivo pelo qual o barão Prätextatus von Mondschein, dono da propriedade em cuja proximidade se localizava aquele estabelecimento,
do qual ele era administrador, não pôde se opor, muito embora fosse acometido pelas mais terríveis incertezas. Pois resultaram inúteis os seus esforços para encontrar
a família Rosengrünschön no Livro de Justas de Rixner e em outras crônicas. Em vista disso, era com razão que ele punha em dúvida o direito da moça — que não podia
apresentar uma árvore genealógica com trinta e dois antepassados — de ser admitida no estabelecimento, e suplicou-lhe por fim, todo contrito e com lágrimas nos olhos,que
pelo amor de Deus ao menos não usasse o nome Rosengrünschön, mas Rosenschön, pois neste último ainda havia algum bom senso e a possibilidade de um antepassado. Ela
assim o fez para agradá-lo. Talvez o magoado Prätextatus manifestasse seu rancor contra a moça sem antepassados de uma ou outra maneira,dando origem aos maledicentes
falatórios que se espalhavam mais e mais pela aldeia. Pois àquelas conversas mágicas na floresta, que todavia não eram de maior importância, acrescia-se uma série
de circunstâncias suspeitas, que passavam de boca em boca e mostravam a verdadeira natureza da moça sob uma forma equivocada. Mãe Anne, a mulher do alcaide, afirmava
resolutamente que, sempre quando a senhorita espirrava com força em direção à janela, o leite de toda a aldeia azedava. Mal isso se tinha confirmado quando se deu
o terrível incidente.
Michel, o filho do mestre-escola, estava furtando batatas assadas no cabido e foi surpreendido pela reclusa que, sorrindo, ameaçou-o com o dedo. A boca do menino
permaneceu aberta, exatamente como se ele continuamente tivesse nela uma batata assada em brasa, e, a partir de então, ele se viu obrigado a usar um chapéu com aba
larga e saliente, caso contrário, a chuva cairia na boca do infeliz. Logo se espalhou a convicção de que a senhorita Rosenschön sabia conjurar fogo e água, agregar
nuvens de tempestade e granizo, espalhar a plica polônica etc., e ninguém duvidou da declaração do pastor de ovelhas que alegava ter visto, com calafrios de pavor,
como a senhorita voava zunindo pelos ares em uma vassoura, à meia-noite, à frente um monstruoso cervo voador de cujas antenas subiam altas chamas azuis! Todos então
se alvoroçaram, querendo prender a feiticeira, e os tribunais da aldeia decidiram nada menos que arrancar a moça do claustro e atirá-la na água para que fosse submetida
ao costumeiro teste das bruxas. O barão Prätextatus permitiu que tudo isso acontecesse e disse sorrindo a si mesmo: — Isso é o que acontece a pessoas simplórias
sem antepassados e que não têm uma linhagem tão boa como a dos Mondschein.
A reclusa, informada dos abusos que a ameaçavam, refugiou-se na capital, e logo a seguir o barão Prätextatus recebeu uma ordem do gabinete do Príncipe do reino,
pela qual era notificado da inexistência de bruxas e recebia a ordem de lançar ao calabouço os magistrados da aldeia pelo seu impertinente desejo de contemplar as
habilidades natatórias de uma reclusa, e a recomendação de insinuar aos demais camponeses e suas mulheres, com a ameaça de vigoroso castigo corporal, que não pensassem
mal da senhorita Rosenschön. Todos caíram em si, ficaram com medo da punição com que tinham sido ameaçados e passaram desde então a pensar bem da moça, o que para
ambas as partes, tanto a aldeia como a senhorita Rosenschön, teve as mais benéficas consequências.
No gabinete do príncipe sabia-se muito bem que a senhorita von Rosenschön não era ninguém menos do que a fada Rosabelverde, outrora famosa e conhecida no mundo inteiro.
A história por trás de todo este caso é a seguinte: Em toda a vasta Terra provavelmente seria difícil encontrar um lugar mais charmoso do que o pequeno principado
no qual se situava a propriedade do barão Prätextatus von Mondschein, no qual residia a senhorita von Rosenschön e, em resumo, no qual se passou tudo isso que eu,
meu estimado leitor, pretendo contar em detalhes.
Cercado de altas montanhas, o pequeno reino, com suas florestas verdes e perfumadas, suas campinas floridas, seus rios rumorejantes e alegres fontes a borbulhar,assemelhava-se
— sobretudo pelo fato de não haver cidades, mas apenas aprazíveis aldeias e, aqui e acolá, alguns poucos palácios isolados — a um jardim esplêndido e maravilhoso,
no qual os moradores caminhavam como que por puro prazer, livres de todo o fardo que pesa sobre a existência. Todos sabiam que o príncipe Demetrius conduzia o reino;
ninguém, entretanto, notava a menor interferência do governo, e todos estavam plenamente satisfeitos com a situação.
Pessoas que amavam a liberdade plena em todos os seus afazeres, uma bela região, um clima ameno, não poderiam escolher uma morada melhor do que este principado;e
foi assim que, entre outros, diversas excelentes fadas, do tipo benevolente, que notoriamente prezam o calor e a liberdade acima de tudo, lá também se estabeleceram.
A elas devia provavelmente ser atribuído o fato de que, em quase todas as aldeias, mas em especial nas florestas, ocorriam amiúde os mais agradáveis prodígios, e
que todos, imersos no encantamento desses prodígios, acreditavam plenamente no maravilhoso e, mesmo sem sabê-lo, exatamente por isso permaneciam cidadãos alegres
e, com isso, bons. As boas fadas, que lá se instalaram a seu bel-prazer tal como se estivessem no Djinistão, de boa vontade teriam conferido ao excelente Demetrius
uma vida eterna. Isso, entretanto, não estava em seu poder. Demetrius faleceu e foi sucedido no governo pelo jovem Paphnutius. Este, ainda durante a vida de seu
digno pai, alimentara em seu íntimo um secreto pesar pelo fato de que, em sua opinião, o povo e o Estado estavam sendo negligenciados e relegados ao abandono da
maneira mais escabrosa. Ele decidiu governar, e nomeou imediatamente para Primeiro Ministro do reino o seu valete de quarto Andres, que uma vez lhe emprestara seis
ducados quando o Príncipe esqueceu sua bolsa em uma estalagem, tirando-o assim de um apuro.
— Eu quero governar, meu caro! — disse-lhe Paphnutius.
Andres leu nos olhares de seu senhor o que se passava em seu íntimo, e jogou-se a seus pés, dizendo solenemente:
— Senhor! O grande momento chegou!... Por seu intermédio um reino se ergue fulgurante do tenebroso caos!... Senhor! Aqui implora o mais leal dos vassalos,tendo em
seu peito e boca as milhares de vozes do pobre povo infeliz!... Senhor... Introduza o Iluminismo! Paphnutius sentiu-se profundamente comovido com a sublime ideia
de seu ministro. Erguendo-o do chão, apertou-o tempestuosamente contra o peito e disse soluçando: — Ministro... Andres... eu lhe devo seis ducados... mais ainda...
minha felicidade... meu reino!... Oh, fiel e inteligente servidor!...
Paphnutius quis de imediato mandar imprimir em letras grandes e afixar por todos os cantos um edital informando que, a partir de então, o Iluminismo estava introduzido
e que todos teriam que se guiar por ele.
— Excelentíssimo senhor! — disse Andres no entanto — Excelentíssimo senhor! Assim não vai funcionar! — Mas então, meu caro, como poderia funcionar? — disse Paphnutius,
e agarrou seu ministro pela lapela, puxando-o para o interior do gabinete cuja porta trancou.
— Veja — começou Andres depois de assentar-se em um pequeno tamborete em frente ao Príncipe — veja, gracioso senhor! O resultado de seu édito principesco sobre o
Iluminismo talvez venha a sofrer uma desagradável interferência se nós não o associarmos a uma medida que, muito embora pareça severa, é ditada pela prudência. Antes
de darmos prosseguimento ao Iluminismo, isto é, antes de mandarmos abater as florestas, tornar os rios navegáveis, cultivar batatas,melhorar as escolas dos vilarejos,
plantar acácias e choupos, fazer os jovens entoarem a duas vozes seus cantos matinais e vespertinos, construir estradas,aplicar a vacina contra a varíola, é necessário
banir todos os indivíduos de convicções perigosas que não dão ouvidos à razão e que seduzem o povo comum a leva de tolices. O senhor terá lido As Mil e Uma Noites,
digníssimo Príncipe, pois eu sei que Sua Majestade, seu finado pai — que Deus lhe dê a paz na sepultura — amava este tipo de livros fatídicos e dava-os nas mãos
quando o senhor ainda fazia uso do cavalinho de pau e comia douradas broinhas de mel. Pois bem! Desse livro totalmente confuso o digníssimo senhor deve conhecer
as assim chamadas fadas, mas certamente não suspeitará que diversas dessas pessoas perigosas se estabeleceram aqui mesmo em seu querido reino, bem perto de seu palácio,
e que provocam todo tipo de desordens.
— Como?... Que está dizendo?... Andres! Ministro!... Fadas!... Aqui em meu reino? — gritou muito pálido o Príncipe, deixando-se afundar contra o encosto da cadeira.
— Ficaremos calmos, meu digníssimo senhor! — continuou Andres. — Ficaremos calmos tão logo combatamos com bom senso essas inimigas do Iluminismo. Sim, eu as chamo
de inimigas do Iluminismo, pois, tendo abusado da bondade do finado senhor seu pai, só elas têm a culpa de o nosso amado reino ainda se encontrar imerso completamente
nas trevas. Elas se dedicam a perigosas atividades com o maravilhoso e não receiam difundir, sob o nome de poesia, um veneno secreto que torna as pessoas totalmente
incapacitadas para servir ao Iluminismo. Além disso, elas têm costumes tão desagradáveis e avessos às normas da polícia,que apenas em função disso já não deveriam
ser toleradas em nenhum país civilizado. Assim, por exemplo, as atrevidas têm a ousadia de, sempre que lhes dá na veneta, passear pelos ares atreladas a pombas,
cisnes, até mesmo cavalos alados. Mas eu pergunto agora, digníssimo senhor, vale a pena o esforço para criar e implantar um elaborado sistema de impostos incidentes
se houver pessoas no reino em condições de atirar mercadorias, como bem lhes aprouver,pela chaminé de qualquer cidadão inconsequente, sem pagar o imposto? Por isso,
digníssimo senhor, assim que for anunciado o Iluminismo, fora com as fadas! Seus palácios serão cercados pela polícia, seus perigosos bens serão confiscados e elas
serão expulsas como vagabundos para a sua pátria, a qual, como o prezadíssimo senhor deve conhecer das Mil e uma noites, é o pequeno país chamado Djinistão.
— A carruagem do correio chega até esse país, Andres? — perguntou o Príncipe.
— Até o momento, não — retrucou Andres — mas após a introdução do Iluminismo talvez se possa organizar com proveito um correio diário para lá.
— Mas Andres — continuou o Príncipe — nosso procedimento contra as fadas não será porventura considerado demasiado severo? O povo, mal-acostumado, não se queixará?
— Também para isso — disse Andres — também para isso eu conheço um remédio. Nem todas as fadas, digníssimo senhor, serão deportadas para o Djinistão, algumas nós
conservaremos no reino, mas não apenas vamos despojá-las de todos os meios de prejudicar o Iluminismo como usaremos dos recursos apropriados para transformá-las
em membros úteis do Estado esclarecido. Caso elas não queiram consentir em sólidos casamentos, poderão dedicar-se, sob estrita vigilância, a alguma atividade útil,
tal como tricotar meias para o exército em tempos de guerra, ou algo desse tipo. Note, digníssimo senhor, que as pessoas rapidamente deixarão de acreditar em fadas
quando elas passarem a caminhar em seu meio, e isto é que é o melhor. Assim cessarão por si mesmas as queixas eventuais. Ademais, quanto aos apetrechos das fadas,
eles irão para o Tesouro do principado; as pombas e cisnes serão entregues à cozinha principesca como deliciosos assados, com os cavalos alados poder-se-á tentar
domesticá-los e torná-los bestas úteis, cortando suas asas e submetendo-os à alimentação em estábulos, os quais, espero,serão introduzidos com o Iluminismo.
Paphnutius ficou satisfeitíssimo com todas as sugestões de seu ministro, e já no dia seguinte pôs-se em prática tudo o que fora decidido.
Em todos os cantos foi afixado o édito referente ao Iluminismo, ao mesmo tempo em que a polícia invadia os palácios das fadas, confiscava seus bens e levava-as como
prisioneiras.
Só os céus sabem como pôde acontecer que a fada Rosabelverde tenha sido a única de todas que, poucas horas antes da irrupção do Iluminismo, foi informada a respeito
e empregou o tempo para libertar seus cisnes e colocar suas roseiras e outras preciosidades em segurança. Pois ela também soube que fora escolhida para permanecer
no país, ao que aquiesceu, embora de má vontade.
Aliás, nem Paphnutius nem Andres puderam compreender por que as fadas que eram transportadas para o Djinistão expressavam uma alegria tão exagerada e repetiam uma
vez atrás da outra que não se incomodavam minimamente com as propriedades que eram obrigadas a deixar para trás.
— Vai ver — disse Paphnutius indignado — vai ver que o Djinistão é um reino muito mais bonito do que o meu, e elas se riem às minhas custas, até de meu édito e de
meu Iluminismo. Mas agora sim é que ele deverá ter pleno êxito! O geógrafo e o historiador do reino foram encarregados de elaborar um relato minucioso acerca do
país.
Ambos concordaram que o Djinistão era um país deplorável, sem cultura, Iluminismo, erudição, acácias e varíola, e, na verdade, nem sequer existia. Com certeza,nada
de pior poderia ocorrer a uma pessoa, ou a um país inteiro, do que não existir.
Paphnutius sentiu-se tranquilizado.
Quando foi derrubado o belo arvoredo florido no qual ficava o palácio abandonado da fada Rosabelverde e quando, para dar o exemplo, Paphnutius em pessoa aplicou
em todos os moleques do povoado mais próximo a vacina contra varíola, a fada ficou à espreita do Príncipe na floresta pela qual ele e o ministro Andres deveriam
passar de volta a seu castelo. Então, com toda sorte de palavras gentis — mas especialmente com alguns assustadores passes de mágica que ela conseguira ocultar da
polícia — ela o encurralou de tal forma que o Príncipe pediu-lhe pelo amor de Deus que se desse por satisfeita com uma vaga no único e, portanto, o melhor estabelecimento
de reclusão para moças nobres de todo o reino, onde ela poderia viver e agir como bem quisesse, sem importar-se com o édito do Iluminismo.
A fada Rosabelverde aceitou a proposta e desse modo ingressou no estabelecimento de reclusão, no qual, como já foi narrado, ela assumiu o nome von Rosengrünschön,e
mais tarde, atendendo às súplicas do barão Prätextatus von Mondschein, tornou-se a senhorita von Rosenschön.
2
Do povo desconhecido que o erudito Ptolomäus Philadelphus
descobriu durante suas viagens
A Universidade de Kerepes
Como um par de botas de montaria voou em torno da cabeça de Fabian
e o Professor Mosch Terpin convidou o estudante Balthasar para o chá
Das afetuosas cartas que o mundialmente conhecido erudito Ptolomäus Philadelphus escrevia ao seu amigo Rufin quando se encontrava em suas longas viagens consta a
singular passagem a seguir: "Você sabe, meu querido Rufin, que não há nada que eu tema e receie mais do que os ardentes raios solares do dia, os quais consomem as
forças do meu corpo e afrouxam e fatigam de tal modo o meu espírito que todos os pensamentos confluem em um quadro desordenado, e é em vão que luto por formar alguma
imagem precisa em minha mente.
Por isso, nesta estação quente, tenho o hábito de descansar durante o dia, enquanto à noite prossigo em minha viagem, e foi assim que me encontrava viajando também
na noite passada. Em meio à profunda escuridão, meu cocheiro extraviou-se do caminho correto e conveniente, desembocando de súbito em uma estrada de cascalho. Muito
embora fosse atirado para lá e para cá dentro do carro pelos violentos solavancos — a ponto de minha cabeça cheia de galos mais parecer-se a um saco repleto de nozes
— só acordei do profundo sono no qual estava mergulhado quando um terrível abalo arrojou-me para fora do carro sobre o chão duro. O clarão do sol atingiu em cheio
meu rosto e, através da barreira levadiça imediatamente à minha frente, avistei as altas torres de uma imponente cidade. O cocheiro prorrompeu em lamentações pois
não apenas a lança como também uma roda traseira do carro tinham-se quebrado contra uma grande pedra que havia no meio da estrada, e parecia preocupar-se pouco ou
mesmo nada comigo. Reprimi minha cólera, como convém a um sábio,e apenas bradei mansamente ao vilão que ele era um maldito sacripanta e disse-lhe que ponderasse
o fato de Ptolomäus Philadelphus, o mais famoso erudito de seu tempo, estar sentado com a b... no chão, e que mandasse às favas a lança e a roda. Você bem conhece,
meu querido Rufin, o poder que eu exerço sobre o coração humano, e assim aconteceu de fato que o cocheiro imediatamente parou de lamentar-se e, com o auxílio do
cobrador da barreira, em frente de cuja casa se dera o acidente, ajudou-me a ficar em pé. Por sorte eu não sofrera nenhum dano mais sério, estando em condições de
caminhar lentamente pela estrada enquanto o cocheiro seguia-me, arrastando com esforço o carro quebrado. À pouca distância do portão da cidade que eu avistara ao
longe no horizonte azulado,deparei-me com uma multidão de pessoas de maneiras tão extravagantes e com roupas tão estranhas que esfreguei meus olhos para verificar
se realmente estava acordado ou se um sonho disparatado e zombeteiro não me teria porventura acabado de transportar para um desconhecido país de fábula... Estas
pessoas, que eu podia razoavelmente supor que eram os habitantes da cidade de cujo portão eu as via sair, usavam pantalonas longas, bem largas e cortadas ao estilo
japonês — feitas de custosos materiais: veludo, veludo de Manchester, um tecido fino ou mesmo linho entremeado de fios coloridos — e guarnecidas abundantemente de
galões ou vistosas fitas e cordões; a isso acresciam-se pequenas jaquetas de criança que mal chegavam abaixo da cintura, em geral de cores bem claras,só algumas
poucas sendo pretas.
Os cabelos caíam despenteados em natural desordem sobre os ombros e as costas, e na cabeça portavam um pequeno e estranho gorrinho. Alguns tinham o pescoço totalmente
descoberto à maneira dos turcos e gregos modernos, outros, ao contrário, usavam em torno do pescoço e do peito uma pequena peça de linho branco parecendo quase uma
gola de camisa, como você, meu querido Rufin, provavelmente já viu em quadros de nossos antepassados.
Se bem que essas pessoas parecessem todas muito jovens, sua linguagem era grave e rude, e todos os seus movimentos desajeitados, tendo vários deles uma sombra estreita
abaixo do nariz, como se lá houvesse um bigode de pontas levantadas. Muitos tinham, saindo da traseira de seus pequenos casacos, um longo tubo do qual pendiam grandes
borlas de seda. Outros haviam retirado estes tubos e atado na sua parte inferior cabaças — pequenas um pouco maiores ou às vezes bastante grandes e de formatos bizarros
— das quais eles habilmente sabiam fazer sair nuvens artificiais de vapor, soprando por cima através de um tubinho que terminava em uma ponta extremamente fina.
Outros levavam nas mãos espadas largas e reluzentes como se quisessem lançar-se contra o inimigo;outros ainda tinham pendurados nos ombros ou amarrados às costas
pequenos recipientes de couro ou folha de Flandres. Você pode muito bem imaginar, meu querido Rufin, que eu, sempre procurando enriquecer meus conhecimentos através
de uma cuidadosa observação de todos os novos fenômenos, fiquei estatelado e de olhos fixos nessas estranhas pessoas. Elas se agruparam então ao meu redor gritando
com força: "Filisteu... Filisteu!", prorrompendo em uma horrível gargalhada... Isto me deixou muito aborrecido. Pois, querido Rufin, haveria algo mais ofensivo para
um grande erudito do que ser tomado por membro de um povo que há muitos milhares de anos foi abatido a golpes de uma queixada de asno? Controlei-me, com minha dignidade
inata, e disse em voz bem alta ao estranho povo à minha volta que eu esperava encontrar-me em um lugar civilizado, e que iria dirigir-me à polícia e aos tribunais
para vingar o insulto que me fora dirigido. Nesse momento todos eles passaram a resmungar, e mesmo aqueles que até então ainda não haviam soltado vapor tiraram dos
bolsos as máquinas destinadas a esse fim e todos sopraram em meu rosto as grossas nuvens de fumaça que, como só então fui perceber, tinha um cheiro totalmente insuportável
que atordoava meus sentidos. A seguir, eles lançaram contra mim uma espécie de maldição, cujas palavras, meu prezado Rufin, eu não quero repetir-lhe, por serem de
tal forma medonhas. Eu mesmo só consigo pensar nelas com profundo horror. Finalmente eles me deixaram, debaixo de fortes gargalhadas de escárnio, e eu tive a impressão
de ouvir desvanecendo nos ares as palavras "golpes de azorrague". Meu cocheiro, que igualmente ouvira e presenciara tudo, torceu as mãos e disse: "Ah, meu prezado
senhor, agora que aconteceu o que aconteceu, não entre de jeito nenhum naquela cidade! Como se diz, nem mesmo um cão aceitaria um pedaço de pão de suas mãos, e o
senhor estaria permanentemente ameaçado pelo perigo de ser surr..." Não permiti que o bravo homem terminasse de falar e dirigi meus passos o mais rápido que pude
em direção à aldeia mais próxima. Escrevo-lhe tudo isto, meu querido Rufin, sentado no solitário quartinho da única estalagem desta aldeia!... Na medida do possível,
vou recolher informações sobre o estranho povo bárbaro que habita aquela cidade. Sobre seus costumes, hábitos, sobre sua língua, etc., eu já consegui que me fossem
narradas coisas extremamente singulares e vou contá-las fielmente etc., etc." Como você pode perceber, oh, meu prezadíssimo leitor, alguém pode ser um grande erudito
sem ter o menor conhecimento de fatos muito comuns da vida, e entregar-se aos sonhos mais bizarros a respeito de coisas universalmente conhecidas. Ptolomäus Philadelphus
tinha estudado na universidade e nem ao menos conhecia estudantes; e não tinha a menor ideia de que, enquanto escrevia a seu amigo sobre um acontecimento que em
sua cabeça se transformara em uma aventura das mais inusitadas, estava instalado na aldeia de Hoch-Jakobsheim, a qual, como todos sabem, fica bem próxima à famosa
Universidade de Kerepes. O bom Ptolomäus assustou-se ao se deparar com estudantes que prazeirosamente passeavam alegres e bem dispostos pelos campos. Que medo, então,
não o teria assaltado caso houvesse chegado a Kerepes uma hora mais cedo e se o acaso o tivesse conduzido para diante da casa de Mosch Terpin, o professor de Ciências
Naturais! Centenas de estudantes jorrando para fora teriam-no rodeado em meio a ruidosas disputas etc., e fantasias ainda mais extravagantes assaltariam sua imaginação
como resultado dessa confusão, desse tropel.
Pois as aulas de Mosch Terpin eram as mais frequentadas em toda Kerepes. Ele era, como foi dito, Professor de Ciências Naturais; explicava como chove, troveja,relampeja,
por que o Sol brilha durante o dia e a Lua à noite, como e por que a relva cresce, etc., de tal forma que qualquer criança forçosamente o compreenderia.
Ele tinha comprimido toda a Natureza em um pequeno e gracioso compêndio de modo a poder comodamente manuseá-la à vontade e retirar dali, como de uma gaveta,a resposta
para toda e qualquer pergunta. Seu renome havia inicialmente se estabelecido quando, depois de muitos experimentos físicos, ele teve êxito na descoberta de que a
escuridão provém principalmente da ausência de luz. Isto, bem como o fato de que ele sabia converter com muita destreza aqueles experimentos físicos em graciosos
espetáculos, e de que praticava divertidas artes de prestidigitação, proporcionavam-lhe aquela incrível afluência. Permita-me, meu benévolo leitor, já que você conhece
os estudantes bem melhor do que o famoso erudito Ptolomäus Philadelphus, já que você não compartilha do seu temor fantasioso, que eu o conduza agora para Kerepes,
para diante da casa do Professor Mosch Terpin, no momento em que ele acaba de concluir sua aula. Entre os estudantes jorrando em massa para a rua, há um que cativa
imediatamente a sua atenção. Você vê um rapaz formoso, de vinte e três a vinte e quatro anos,em cujos olhos escuros e brilhantes se expressa com eloquência um vivaz
e proeminente espírito interior. Seu olhar quase poderia ser qualificado de ousado,não fosse a sonhadora tristeza que, do modo como se estendia por todo o semblante
pálido, assemelhava-se a um véu ocultando os raios ardentes. Seu casaco, de fino tecido preto guarnecido de veludilho, é cortado segundo o antigo feitio alemão,
e combina muito bem com a delicada gola de renda resplandecente de brancura, bem como com o barrete de veludo assentado sobre os belos cachos castanhos.
Esta vestimenta lhe cai especialmente bem porque ele parece — de acordo com toda a sua natureza, seu decoro no andar e na postura, os traços expressivos de seu rosto
— pertencer realmente a um passado belo e inocente e, precisamente por isso, não se deve pensar naquela afetação que surge com frequência da imitação mesquinha de
modelos mal interpretados para curvar-se a exigências da nossa época, igualmente mal interpretadas. Este jovem que lhe agrada tanto à primeira vista, amado leitor,
não é ninguém mais do que o estudante Balthasar, filho de gente decente e abastada, jovem puro, inteligente, aplicado, de quem pretendo, oh meu leitor, falar-lhe
longamente na história que me propus a narrar.
Balthasar deixou a aula do Professor Mosch Terpin e vagou, sério e perdido em pensamentos — como era do seu feitio — rumo ao portão da cidade para dirigir-se não
à quadra de esgrima, mas à adorável pequena floresta que dista de Kerepes nem bem umas poucas centenas de passos. Seu amigo Fabian, um belo rapaz de aparência vivaz
e disposição análoga, correu em seu encalço e alcançou-o bem próximo ao portão.
— Balthasar! — chamou Fabian bem alto — Balthasar, com que então você quer embrenhar-se novamente na floresta e vagar sozinho como um filisteu melancólico,enquanto
rapazes vigorosos se exercitam com galhardia na nobre arte da esgrima!... Eu lhe peço, Balthasar, deixe de uma vez esses seus modos lúgubres e tolos e volte a ser
alegre e jovial como era outrora. Venha! Vamos treinar alguns assaltos de esgrima e, se depois disso você ainda quiser sair, então eu irei com você.
— Você tem boas intenções — replicou Balthasar — você tem boas intenções, Fabian, e por isso eu não quero zangar-me consigo por me seguir às vezes, como um possesso,
por onde quer que eu ande, estragando muitos prazeres dos quais você não tem a menor ideia. É fato consumado que você pertence àquele estranho tipo de pessoas que
tomam todos os que elas veem vagando solitários por tolos melancólicos, e querem logo tratá-los e curá-los à sua maneira, como aquele cortesão quis fazer com o digno
príncipe Hamlet, que deu-lhe uma boa lição no momento em que o homenzinho confessou não saber tocar flauta. Desejo poupá-lo disso, caro Fabian, mas, de resto, gostaria
de pedir-lhe do fundo do coração que procure outro companheiro para sua nobre esgrima com floretes e espadas,e que me deixe seguir vagando tranquilamente pelo meu
caminho.
— Não, não — exclamou Fabian rindo — assim você não me escapa, meu caro amigo! Se você não quiser ir comigo à quadra de esgrima, então eu o acompanharei à pequena
floresta. É obrigação do amigo fiel alegrá-lo na sua tristeza. Venha, querido Balthasar, venha, se é isso que você quer.
Com isso, tomou o amigo pelo braço e saiu caminhando vigorosamente com ele. Intimamente enfurecido, Balthasar cerrou os dentes e conservou-se em um silêncio taciturno,
enquanto Fabian contava de um só fôlego um rol inesgotável de coisas divertidas. Também foram ditas muitas tolices, o que sempre costuma acontecera o se narrar de
um só fôlego coisas divertidas.
Quando finalmente adentraram as frescas sombras da floresta perfumada, quando os arbustos sussurraram como em saudosos suspiros, quando as maravilhosas melodias
dos riachos rumorejantes e as canções dos pássaros soaram, espalhando-se para longe e despertando os ecos que respondiam vindos das montanhas, Balthasar parou de
súbito e, estendendo os braços até que ficassem bem abertos, como se quisesse envolver amorosamente com eles as árvores e as moitas,exclamou: — Agora me sinto bem
novamente!... Indescritivelmente bem! Fabian olhou um pouco perplexo para o amigo, como alguém que não consegue entender o que foi dito, ou não sabe como reagir.
Balthasar tomou-o então pela mão e exclamou, cheio de arrebatamento: — Não é verdade, irmão, que agora o seu coração também se abre, que agora também você compreende
o bem-aventurado mistério da solidão na floresta? — Eu não o estou entendendo muito bem, querido, irmão — retrucou Fabian — mas se você acha que um passeio aqui
na floresta lhe faz bem, então sou totalmente da mesma opinião. Afinal, não é verdade que também gosto de passear, especialmente em boa companhia, com a qual se
pode manter uma conversa sensata e instrutiva?Assim, por exemplo, é um verdadeiro prazer andar pelos campos com o nosso Professor Mosch Terpin. Ele conhece cada
plantinha, cada graminha, e sabe como se chama e em que classe se enquadra, e entende dos ventos e do tempo...
— Pare — gritou Balthasar — eu lhe suplico, pare!... Você está tocando em um ponto que me deixaria enraivecido se não houvesse um consolo em outra parte.
A maneira como o Professor fala sobre a Natureza despedaça-me o coração. Ou antes, sou possuído por um inquietante pavor, como se visse um demente que,tomando-se
por rei e soberano em sua parvoíce afetada, acaricia uma bonequinha de palha feita por ele mesmo e julga estar abraçando sua régia noiva! Seus assim chamados experimentos
dão-me a impressão de uma abominável zombaria do Ser divino, cujo sopro, na Natureza, roça-nos a face e estimula em nosso coração os mais profundos e sagrados pressentimentos.
Muitas vezes sinto-me tentado a destroçar seus frascos, suas retortas, toda a sua tralha, se não pensasse que um macaco, afinal, não cessa de brincar com fogo enquanto
não queimar a pata... Veja, Fabian, esses sentimentos me angustiam, oprimem meu coração durante as aulas de Mosch Terpin, e é certo que nessas ocasiões eu devo parecer
a vocês mais melancólico e misantropo do que nunca. Sinto-me então como se as casas fossem desabar sobre minha cabeça, e uma ânsia indescritível me impulsiona para
fora da cidade. Mas aqui, aqui meu íntimo logo se enche de uma doce tranquilidade.
Deitado sobre a relva florida, levanto meus olhos para o amplo azul do céu e, acima de mim, acima da floresta exultante, passam nuvens douradas como magníficos sonhos
provenientes de um mundo longínquo e cheio de ditosas alegrias!... Oh, Fabian, nesse momento eleva-se de dentro do meu próprio peito um espírito maravilhoso, e eu
ouço como ele dita palavras misteriosas às moitas, às árvores, às vagas no riacho da floresta, e não posso expressar o deleite que então trespassa todo o meu ser
em um doce e nostálgico estremecimento! — Ai — exclamou Fabian — ai, lá vem outra vez a velha e eterna conversa de nostalgia e deleite, e árvores e regatos que falam
na floresta. Todos os seus versos estão repletos dessas coisas graciosas, que até soam bem agradáveis aos ouvidos e são empregadas com proveito sempre que não se
procura dar-lhes um sentido por demais profundo...
Mas, meu excelentíssimo melancólico, se de fato as aulas de Mosch Terpin o ofendem e incomodam de modo tão terrível,diga-me então por que diabos você acorre a todas
elas, por que você não deixa de comparecer a uma única sequer e, então sim, fica sentado mudo e rígido,com os olhos fechados como que absorto em um sonho? — Não
me pergunte — replicou Balthasar, enquanto baixava os olhos — não me pergunte sobre isso, querido amigo!... Um poder desconhecido atrai-me todas as manhãs para a
casa de Mosch Terpin. Eu pressinto meu tormento e mesmo assim não posso resistir, uma sombria fatalidade me arrasta! — Ha, ha! — riu Fabian em sonora gargalhada
— ha, ha, ha, que delicado, que poético, que misterioso! O poder desconhecido que o atrai à casa de Mosch Terpinemana dos olhos azuis-escuros da bela Cândida!...
Que você está apaixonado até as orelhas pela graciosa filhinha do Professor, todos nós já sabemos há muito, e por isso desculpamos as suas fantasias e seu jeito
amalucado. Afinal, os apaixonados são assim mesmo. Você se encontra no primeiro estágio da doença do amor e tem que passar, nos anos mais maduros de sua mocidade,
por todos os trejeitos cômicos e bizarros pelos quais nós — eu e muitos outros— passamos no tempo do colégio sem ter um grande público assistindo. Mas acredite-me,
doce coração...
Fabian entrementes havia agarrado outra vez seu amigo Balthasar pelo braço e voltado a caminhar a passos rápidos. Eles acabavam de sair do espesso arvoredo alcançando
o largo caminho que atravessava o coração da floresta. Nesse momento Fabian distinguiu ao longe um cavalo que, envolto em uma nuvem de poeira,vinha trotando sem
cavaleiro.
— Ei! Ei! — gritou ele, interrompendo sua fala — Ei, ei, lá está um maldito rocim que fugiu em disparada e derrubou seu cavaleiro... Temos que capturá-lo e depois
procurar o dono na floresta.
Assim dizendo, ele postou-se bem no meio do caminho.
O cavalo aproximava-se mais e mais, e pareceu então que duas botas de montaria balançavam-se uma de cada lado, para cima e para baixo, enquanto algo escuros e mexia
e remexia sobre a sela. Logo à frente de Fabian ressoou um longo e estridente "Prrr... Prrr..." e no mesmo instante um par de botas de montaria voou-lhe em volta
da cabeça, e uma coisa pequena, estranha e escura rolou por entre suas pernas. Totalmente imóvel, com o pescoço longamente esticado para frente, o cavalo farejava
seu minúsculo patrãozinho, que rolava na areia e finalmente pôs-se de pé a duras penas. A cabeça do pirralho introduzia-se profundamente por entre os ombros altos;
ele assemelhava-se — com a excrescência no peito e nas costas, com seu tronco curto e suas longas perninhas de aranha — a uma maçã espetada em um garfo, na qual
alguém tivesse talhado uma careta. Quando Fabian viu esse pequeno e estranho monstro em pé diante de si, não conteve uma alta gargalhada. Mas o pequeno, enfiando
até os olhos, zangado, o barretinho que apanhara do chão, perguntou em um tom áspero e muito rouco, enquanto trespassava Fabian com o olhar furioso: — É este o caminho
correto para Kerepes? — Sim, meu senhor! — respondeu Balthasar meigo e sério, e passou-lhe as botas que acabara de recolher.
Todos os esforços do pequeno para calçar as botas foram vãos; ele emborcava seguidamente e rolava na areia gemendo. Balthasar colocou de pé as duas botas juntas,
levantou delicadamente o pequeno e baixou-o, enfiando os dois pezinhos nos invólucros excessivamente largos e pesados. Com modos altivos, uma mão fixa na cintura
e levando a outra contra o barrete, o pequeno exclamou: — Gratias, meu senhor! — e dirigiu-se rumo ao cavalo, tomando os arreios. Todas as tentativas para alcançar
o estribo ou escalar o grande animal frustraram-se.
Balthasar, sempre sério e meigo, veio e ergueu o pequeno até os estribos. Provavelmente seu impulso foi demasiado forte, pois mal ele se assentara na sela,já estava
caído do outro lado.
— Não seja tão fogoso, queridíssimo Monsieur! — exclamou Fabian, enquanto, novamente, rompia em ruidosa gargalhada.
— Ao diabo com seu queridíssimo Monsieur — berrou furioso o pequeno enquanto batia em suas roupas para tirar o pó. — Eu sou um estudante universitário e,se você
também for um, então é uma afronta que esteja rindo na minha cara como um poltrão, e amanhã você terá que bater-se comigo em Kerepes! — Caramba — exclamou Fabian
sempre a rir — caramba, isto é que é um rapaz de qualidades, um homem experiente, tanto no que se refere à coragem quanto ao autêntico comportamento estudantil.
Assim dizendo, ergueu o pequeno para o alto, apesar de este debater-se e espernear, e sentou-o em cima do cavalo que, relinchando alegremente, no mesmo instante
saiu trotando com o seu patrãozinho! Fabian segurava seus dois flancos para não sufocar de tanto rir.
— É cruel — disse Balthasar — escarnecer de um ser humano que a Natureza deformou de modo tão horrível, como esse pequeno cavaleiro. Se ele realmente forum estudante
você terá de bater-se com ele e, embora isso seja totalmente contrário aos costumes acadêmicos, com pistolas, uma vez que ele não é capaz de manejar nem o florete
nem a espada.
— Meu querido amigo Balthasar — disse Fabian — meu querido amigo Balthasar, você mais uma vez está encarando tudo de forma demasiado séria e funesta! Nunca pensei
em ridicularizar um ser que nasceu deformado. Mas diga-me, pode um Pequeno Polegar tão cartilaginoso sentar-se sobre um cavalo tão grande a ponto de não conseguir
enxergar por sobre seu pescoço? Pode ele enfiar os pezinhos em botas tão absurdamente grandes? Pode ele usar uma túnica apertada com milhares de cordões e galões
e borlas, e um barrete de veludo tão estranho? Pode ele adotar um comportamento tão arrogante? Pode ele emitir sons tão barbaramente roucos? Eu pergunto, pode ele
fazer tudo isso sem ser com razão ridicularizado como um inveterado poltrão? Mas tenho que ir até lá, tenho que presenciar o alvoroço que vai ocorrer quando o brioso
estudante fizer sua entrada na cidade sobre seu soberbo corcel! Com você, não há o que se fazer hoje! Passe muito bem! A toda pressa, Fabian saiu a correr através
do bosque, de volta para a cidade.
Balthasar abandonou o caminho aberto e embrenhou-se na mata mais densa. Lá deixou-se cair sobre um assento de musgo, tomado, ou melhor, subjugado pelos sentimentos
mais amargos. Era de fato verdade que ele estava amando a graciosa Cândida, mas tinha encerrado este amor no íntimo de sua alma como um profundo e delicado segredo,
guardado de todas as pessoas e até de si mesmo. Assim, quando Fabian falou desse assunto tão sem reservas, tão levianamente, pareceu-lhe que mãos rudes tinham arrancado
com atrevida petulância os véus da imagem santa que ele não ousava tocar, e que agora a santa não poderia deixar de se encolerizar com ele próprio para sempre. Sim,
as palavras de Fabian soaram-lhe como uma terrível zombaria de todo o seu modo de ser e de seus sonhos mais doces.
— Você — exclamou ele no auge de seu pesar — você me toma, então, por um tolo apaixonado, Fabian! Por um bobo que acorre às aulas de Mosch Terpin para ficar pelo
menos durante uma hora debaixo do mesmo teto que a bela Cândida, que vagueia solitário na floresta para ruminar versos lastimáveis endereçados à amada e anotá-los
de forma ainda mais lastimável, que danifica as árvores, gravando em seus troncos lisos tolas iniciais, que na presença da jovem não consegue dizer uma só palavra
sensata, limitando-se a suspirar e gemer e fazer caretas chorosas como se estivesse sofrendo um acesso de cãibras, que leva diretamente sobre o peito as flores murchas
que ela trazia ao regaço, ou ainda a luva que ela perdeu, enfim, que faz mil doidices infantis!... E por isso, Fabian,você me importuna, e por isso todos os rapazes
escarnecem de mim, e por isso eu, juntamente com o mundo secreto que se revelou a mim, sou um objeto de chacota.... E a graciosa, encantadora, magnífica Cândida...
Quando ele disse este nome em voz alta, sentiu como se seu coração estivesse sendo trespassado pelo golpe de um punhal em brasa! Ah!... Neste momento uma voz em
seu íntimo sussurrou-lhe distintamente que, de fato, só ia à casa de Mosch Terpin por causa de Cândida, que fazia versos para a amada, que gravava seus nomes no
tronco das árvores, que emudecia na presença dela, suspirava, gemia, que levava junto ao peito as flores murchas que ela perdeu, e que, por conseguinte, incorria
realmente em todas as tolices que Fabian poderia citar-lhe. Só agora ele sentiu em cheio como amava inefavelmente a formosa Cândida,mas sentiu ao mesmo tempo — o
que é suficientemente estranho — que até o amor mais puro e forte se manifesta na vida exterior de maneira um pouco estapafúrdia,o que provavelmente se deve à profunda
ironia inserida pela Natureza em todos os assuntos humanos. Talvez Balthasar tivesse razão, mas não tinha absolutamente razão ao irritar-se tanto com o assunto.
Sonhos que geralmente o envolviam estavam perdidos, as vozes da floresta soavam-lhe como sarcasmo e zombaria;ele correu de volta para Kerepes.
— Senhor Balthasar... mon cher Balthasar — chamaram-no. Ele levantou o olhar e ficou imóvel como que enfeitiçado, pois ao seu encontro vinha o Professor Mosch Terpin
conduzindo pelo braço sua filha Cândida. Esta cumprimentou o rapaz, que se transformara em uma rija estátua, com a jovial e amável naturalidade que lhe era peculiar.
— Balthasar, mon cher Balthasar — chamou o professor — você, com efeito, é o mais aplicado, o mais querido de meus alunos!... Oh, meu caro, eu noto que você ama
a Natureza com todos os seus prodígios, assim como eu, que sou verdadeiramente louco por ela!... Certamente esteve herborizando em nosso pequeno bosque!... Encontrou
algo de proveitoso?... Bem! Temos que travar uma amizade mais sólida!... Visite-me... sempre bem vindo... Poderemos fazer experiências juntos... Já viu minha nova
máquina pneumática?... Então, mon cher... amanhã um círculo de amigos irá se reunir em minha casa para degustar chá e pão com manteiga, e para divertir-se em agradáveis
conversações, venha ampliá-lo com sua valiosa companhia... Vai ficar conhecendo um jovem encantador, que me foi especialmente recomendado... Bon soir, mon cher...
Até logo, meu caro... au revoir... Adeus!... Você virá amanhã para a aula, não é?... Então... mon cher, adieu! Sem esperar que Balthasar respondesse, o Professor
Mosch Terpin já se afastava com sua filha.
Balthasar, em sua consternação, não tinha ousado levantar os olhos, mas os olhares de Cândida queimavam-lhe peito adentro; ele sentia o sopro de seu hálito,e doces
estremecimentos agitavam o mais íntimo de seu ser.
Todo seu pesar tinha-se desvanecido, cheio de arrebatamento ele acompanhava com os olhos a graciosa Cândida até que ela desapareceu por detrás das aleias.
Lentamente, então, Balthasar retornou ao bosque, para sonhar mais esplendidamente do que nunca.

 


O reflexo perdido


1
Uma tarde de inverno, à espera do último dia do ano, senti de repente o sangue queimar-me nas veias e o coração gelar-se em meu peito. Lá fora, rafadas de tempestade
agitavam a noite. Esta crise do céu transmitia-me descargas elétricas ao corpo; o meu cérebro fervia como metal em fusão.
Quando todos os meus nervos ficaram saturados desse fluido desconhecido, a que se dá o nome de febre ou delírio, não pude mais ficar em casa e corri para fora, sem
agasalho, os cabelos ao vento. Os cataventos das casas guinchavam como gatos enfurecidos e parecia-me distinguir, entre as vozes confusas da tempestade, o tiquetaquear
do relógio que assinala a queda das horas no abismo da eternidade.
Coisa bizarra! A véspera de Ano Novo que é, para toda gente, uma data alegre, encontrava-me presa de fundas dores morais. Seria porque, a cada festa de Natal, contando
os dias que haviam decorrido e sentindo-me envelhecer, eu entrevisse mais de perto a aproximação do fim? Pressentia-o apenas e não podia evitar que um terror misterioso
de mim se apoderasse; tanto mais quanto o diabo sempre teve o cuidado de reservar-me, para o São Silvestre, qualquer nova desventura.
Ontem, por exemplo, ao entrar num salão, deparei, sentada em companhia de um grupo de damas, com uma figura de feições angelicais... Sim, era Ela! Ela, a quem eu
não via há cinco anos!... "Deus seja bendito", exclamei no fundo da alma; "Ela voltou para mim". Fiquei interdito, como se a varinha de um mágico me houvesse tocado.
Nesse instante, o dono da casa tocou-me levemente o ombro:
— Então, caríssimo Hoffmann — disse-me ele — em que pensas?
Voltei a mim, muito envergonhado de minha inépcia, e aproximei-me da mesa de chá para sair do embaraço.
Nesse momento, Ela me viu, levantou-se e veio dizer-me, num tom de voz cheio de indiferença:
— Tu aqui? Encantada de ver-te. Como tens passado?
Depois, sem esperar resposta, sentou-se novamente, dirigindo à sua vizinha estas palavras, que me trespassaram o coração:
— Teremos, então, na semana que vem, um belo concerto no palácio? Um raio, caindo a meus pés, não me teria perturbado tanto. Imaginai o que experimentaria um homem
que ao aproximar-se de uma rosa cultivada com amor, para respirar-lhe o perfume, sentisse uma vespa sair do cálice da flor e picar-lhe o nariz. Recuei de modo tão
brusco, os olhos turvados pelo sangue que me subira à cabeça, que derrubei ao chão uma travessa de sorvetes. Rolou tudo sobre o tapete; nesse instante, desejaria
estar enterrado a cem metros de profundidade. Por sorte, um artista célebre acaba de entrar. Fui esquecido e pude contemplá-la, a Ela, Júlia, em todo o esplendor
de sua beleza.
Pareceu-me mais alta, mais cheia de formas, mais sedutora do que nunca.
Suas vestes, de imaculada brancura, ondeavam, em pregas, sobre seu corpo.
Suas espáduas e seu pescoço se destacavam, como um bloco de neve, contra o decote enfeitado de rendas; seus cabelos de um negro de ébano, desatavam-se em cachos
cambiantes, que lhe davam à face um caráter seráfico. Ao passar perto de mim, voltou-se e acreditei ter lido, no seu olhar de um azul tão doce, não sei que expressão
zombeteira.
Minha razão sumiria se o maestro, que acabara de iniciar uma cantata, não me houvesse refrescado a alma com uma cascata de harmonias. Apenas terminou a execução,
o auditório cumulou-o de felicitações. Mas, nesse turbilhão de diletantes, vi-me separado de Júlia por alguns instantes.
Reencontramo-nos pouco depois, diante de uma poncheira. Então, ó ventura inaudita! ela ofereceu-me um copo, sorrindo celestialmente e dizendo-me, com uma voz cuja
lembrança nada poderá jamais apagar de minha memória:
— Quer aceitá-lo de minhas mãos, como antigamente? Ao recebê-lo, rocei-lhe os dedos; mil faíscas abrasaram-me o sangue. Bebi o licor dourado até a última gota e
pareceu-me que chamas azuladas voavam sobre meus lábios. Meus sentidos nadavam numa embriaguez deliciosa e quando voltei a mim, estávamos, eu e Ela, lado a lado,
sobre os coxins de um divã rosa, ao fundo de um gabinete iluminado pela luz sonhadora de uma lâmpada de alabastro, suspensa por cadeias de prata.
Júlia a meu lado, Julia sorridente, afetuosa como outrora; não seria tudo um sonho? Ai! Sonho ou realidade, a ele me entregava inteiramente.
Parecia-me ouvi-la dizer as palavras mágicas:
— Meu Teodoro, amo-te, não vivo senão por ti. És a minha poesia e a minha felicidade! E eu lhe respondia:
— Deus nos reuniu e nem todas as potências do inferno poderão nos separar!
Subitamente um pequeno manequim, com olhos de rã, sustentado por patas de aranha, apareceu tropeçando no meio do gabinete.
— Onde, com todos os diabos, te meteste, Júlia? — disse, esticando um nariz pintalgado de tabaco de Espanha.
Júlia levantou-se e despertou-me atrozmente com estas palavras:
— Então, não achas que devemos voltar à festa? Como vês, meu marido está à minha procura. És bem divertido, tanto quanto outrora, meu caro Teodoro; entretanto, não
deves beber tanto ponche.
Soltei um grito de desespero.
Perdida para toda a eternidade!!!
— É como diz, meu bravo senhor — respondeu o odioso animal, a quem ela chamava seu marido.
Era demais para as minhas forças. Sentia-me enlouquecer. Num átimo, vi-me fora do salão, correndo escada abaixo. Na rua, a chuva que tombava em cascatas molhava-me
o rosto. Eu corria desabaladamente, sem direção nem consciência. E teria continuado a correr se a taverna de mestre Thiermann não me detivesse a fuga com suas portas
abertas. Por elas adentro me precipitei, a respiração ofegante, a goela seca e os olhos dilatados.
Julgaram-me bêbado; não há freguês melhor que um bêbado. Destarte, malgrado a falta de chapéu e casaco, o hospedeiro, ao me ver elegantemente trajado, perguntou-me
polidamente o que desejava eu.
— Um canecão de cerveja e um cachimbo!
Fui servido imediatamente.
Os frequentadores da taverna me olhavam pelo canto dos olhos e o hospedeiro ia talvez me interrogar sobre a aventura, que a minha visita, em semelhante desalinho,
fazia suspeitar, quando três batidas nas vidraças da taverna seguidas de um grito: "Abra depressa, sou eu!", desviou-lhe a atenção. Ele acorreu à porta, com um castiçal,
e logo depois um homem alto, descarnado como um esqueleto, entrou na sala e encaminhou-se, andando de lado, com as costas voltadas para a parede, para uma pequena
mesa, onde se sentou.
Esta personagem tinha aparência distinta, mas pensativa. Pediu, como eu, cerveja e tabaco; encheu o cachimbo com impaciência e envolveu-se em seguida em espessa
nuvem de fumaça. Em meio a fumaceira, tirou o chapéu de feltro e o casaco; pude então notar, com surpresa, que sobre as botas trazia chinelas. Continuando a fumar,
passou em revista uma pilha de ervas, que retirou de uma caixa de metal semelhante às usadas pelos botânicos.
Atrevi-me, para iniciar conversa, a fazer-lhe algumas perguntas sobre as ervas que pareciam interessá-lo tanto.
— O senhor não é muito forte em botânica — respondeu-me ele à meia voz. — Senão, teria visto logo que são plantas exóticas; estas foram colhidas na América, nas
cercanias do famoso vulcão Chimborazo.
A entonação de sua voz produziu em mim uma espécie de comoção magnética.
Senti que as palavras morriam rm meus lábios e pareceu-me que, por desconhecidos que fossem, os traços deste homem haviam aparecido nos sonhos de minhas noites agitadas.
Minha preocupação foi interrompida pelo ruído de novo golpear ansioso nas vidraças da taverna. O hospedeiro abriu a porta, mas o recém-chegado gritou de fora, antes
de entrar:
— Não se esqueça de cobrir bem o espelho!
— Bem, bem — disse o hospedeiro, prendendo uma toalha ao caixilho do espelho — eis que chega o general Suwarow.
O general nada tinha de belicoso. Entrou saltitante, com passos pesados, descrevendo uma série de ziguezagues. Era baixinho, todo envolto num capote pardo de mangas
largas, dentro do qual parecia, contudo, tremer de frio.
Veio sentar-se à nossa mesa, colocando-se entre o botânico de Chimborazo e eu. Mas as nossas cachimbadas o incomodavam e, voltando-se alternadamente para cada um
de nós, queixou-se da fumaça e lamentou ter esquecido seu rapé.
Eu trazia comigo uma tabaqueira de aço polido, muito nova e brilhante.
Apressei-me a oferecê-la a ele, delicadamente. Apenas a viu, cobriu o rosto com ambas as mãos e gritou:
— Com todos os diabos! Esconda este maldito espelho!
Sua voz era convulsa e todo o seu corpo tremia. Julguei-o louco.
Serviram-lhe vinho do norte. Eu o espiava furtivamente quando, de súbito, vi seu rosto mudar de expressão e cor, como as imagens de uma lanterna mágica.
Desta vez, um suor gelado inundou-me a fronte; senti um medo terrível, não me pejo de confessá-lo.
"Este general Suwarow" — disse comigo mesmo — "não será Satã disfarçado, que vem me tentar?" Enquanto eu dava curso às suposições mais fantástica, o ilustre personagem
das ervas passava o seu tempo a espevitar a candeia com extremo cuidado e o pequeno se levantara para arrumar melhor o pano que velava o espalho.
Essa bizarria não era de molde a tranquilizar-me, quanto às suas faculdades mentais. Ambos se puseram em seguida a conversar sobre um jovem pintor que expusera recentemente
um magnífico retrato de mulher.
— Sem dúvida alguma — dizia o magricela — é uma obra maravilhosa; pode-se dizer que o retrato é o reflexo do modelo.
— Reflexo? Reflexo? Que animal estúpido poderia se apoderar de um reflexo, a não ser o diabo em pessoa? — gritou o general, dando um pulo na cadeira.
— Mostre-me um reflexo roubado de um espelho — desafio-o a fazê-lo — e darei um pulo de quinhentas toesas de altura! Nesse instante o magricela, pouco lisonjeado
com a tirada de seu interlocutor, levantou-se e, passando a mão sob o queixo, disse com um sorriso amargo:
— Calma, meu pequeno, não te faças violento. Os movimentos muito bruscos me impacientam facilmente e eu poderia atirar-te pela janela...
O general, pestanejante, apanhou o chapéu, ergueu-se e recuou até a porta.
— Peste de homem! — disse, fazendo reverências e saltitando de maneira cômica — diabo raivoso, passa bem. Se não posso ver-me ao espelho, conservarei, ao menos,
minha sombra, enquanto tu, meu caro... Bem, aqui ficam meus cumprimentos!...
Dito isso, desapareceu, deixando o botânico num estado de consternação difícil de descrever.
A ideia de um homem sem sombra me causava espécie. Vi-o partir também em seguida. Ao atravessar a sala, seu corpo não projetava sombra alguma.
Lembrando-me então do famoso Peter Schlemihl, esse Judeu Errante da Alemanha, corri atrás dele. Mas apenas atravessara a porta quando o hospedeiro me deu um empurrão,
gritando:
— Que o diabo leve todos os fregueses de vossa espécie e Deus permita que nunca mais vos veja! Quanto ao magricela, não consegui alcançá-lo. Com três passadas, desaparecera
rua abaixo.
Eu havia esquecido minha chave no bolso do casado. Era-me, pois, impossível entrar em casa. Decidi a pedir asilo a um de meus amigos, o proprietário do Águia de
Ouro. O porteiro não me fez esperar e fui conduzido a um belíssimo aposento, enfeitado com um grande espelho recoberto por uma cortina de sarja verde. Não sei porque
me veio o capricho de levantar a cortina. Vi-me refletido no espelho, tão pálido e tão desfeito que mal consegui me reconhecer; depois, parecendo-me que, do fundo
do espaço refletido pelo espelho, vinha avançando para mim uma forma indecisa e vaporosa.
Ao fixar os olhos nessa aparição, acreditei ver... sim, era Ela mesma, a figura adorada de Júlia.! Ó, minha querida, voltas para aquele que não pode viver sem ti?
Um profundo suspiro me respondeu. Tal suspiro saiu das dobras do cortinado que escondia a alcova. Corri para o leito e deixo à vossa imaginação a tarefa de figurar
o que devo ter sentido ao encontrar nele deitado, o homenzinho a quem o hospedeiro da taverna chamara general Suwarow.
Esse bizarro personagem sonhava em voz alta e seus lábios, contraídos por uma emoção penosa, pronunciavam um nome que me fez bater o coração mais depressa:
— Giulietta!... Giulietta! Sacudi vivamente o homenzinho até acordá-lo.
— Com quantos diabos resolveu ocupar — disse-lhe — o quarto que me havia sido destinado? — Ah! senhor — retorquiu, abrindo os olhos e estirando os braços — como
lhe sou grato por haver interrompido o pesadelo que me oprimia! Uma rápida explicação foi quanto bastou para eu descobrir que o porteiro havia-se enganado ao levar-me
para aquele aposento. Pedi desculpas ao general e começamos a conversar.
— Devo ter-lhe parecido — disse o desconhecido — bem inconveniente ou louco esta noite, na taverna. Mas o senhor será indulgente para comigo se alguma vez lhe aconteceu
experimentar sensações inexplicáveis.
— Ah! meu caro senhor — repliquei — poder-se dizer de mim outro tanto; pois olhe, não faz muito tempo que revendo Júlia...
— Júlia! Que nome acaba o senhor de pronunciar! — gritou o homenzinho, jogando-se sobre o travesseiro. — Oh! cale-se, pelo amor de Deus, deixe-me dormir e não esqueça
de cobrir o espelho.
— Mas como — continuei — o nome de uma mulher que o senhor certamente não conhece pode impressioná-lo tanto? Quer-me parecer que a expressão do seu rosto altera-se
a cada instante. Vamos, acalme-se e consinta que eu repouse, até o amanhecer, ao seu lado. Tratarei de não incomodá-lo.
— Não, pode ficar com o quarto todo. Vejo que para mim não existe calma nem repouso possíveis. O senhor pronunciou o nome de Júlia... Júlia! Giulietta!... É muito
estranho. Estaremos unidos pela fatalidade, sem sabê-lo, no mesmo infortúnio?... Embora eu tenha talvez de afligi-lo mortalmente, não posso evitá-lo. Devo confessar
a causa do meu infortúnio. Acho que isso me aliviará.
O homenzinho deslizou para fora do leito e dirigiu-se para o espelho, do qual retirou a cobertura. Todos os objetos e luzes do quarto, assim como minha figura, nele
se refletiram nitidamente. Mas o reflexo do general Suwarow nele não aparecia.
— Veja — continuou ele com voz plangente — se sou ou não muito infeliz? Pedro Schlemihl vendeu sua sombra ao Diabo; pois bem, eu, eu dei meu reflexo a Giulietta,
que nunca mais mo devolverá! Meu Deus! Meu Deus! que fatalidade! Fiquei estupefato com a narrativa. Em meu coração, o horror se misturava à piedade.
O homenzinho, entregue completamente à sua dor, jogara-se no leito convulsivamente; mas, dali a pouco, estava roncando. O ruído que fazia acabou por me fazer mergulhar
numa sonolência irresistível. Apaguei as luzes e estendi-me ao seu lado, sem despir-me, decidido a esperar o amanhecer.
A excitação do meu sistema nervoso atingira o máximo; meu espírito turbilhonava num labirinto povoado de fantasma indescritíveis. Pareceu-me, de repente, que o mundo
diminuía, como aquelas casas de bonecas. Vi todos meus amigos mudados em homúnculos de açúcar. Depois todas essas figuras cresceram desmesuradamente e, no meio delas,
apareceu Julia, que me estendia um copo cheio de ponche, dizendo:
— Bebe, meu anjo, bebe este licor divino!
Vi pequenas chamas azuladas tremularem à borda do copo. Estava prestes a agarrá-lo quando uma voz gritou atrás de mim:
— Não beba! Não beba! É o veneno de Satã!
Virei-me e reconheci o general Suwarow, que ria debaixo do meu nariz.
Julia continuava com suas provocações; seu olhar me queimava, o timbre de sua voz me dava vertigens.
— Por que tens medo? — dizia ela — Não nascemos um para o outro por toda a eternidade? Não me deste teu reflexo em troca de um beijo?
Eu me sentia morrer e estendi o braço para receber a taça mágica no fundo da qual desejava afogar minha alma. Mas o pequeno Suwarow gritava, em voz mais forte ainda:
— Não beba! Não beba! Essa bela moça que lhe sorri é o diabo em pessoa; se tocar os lábios na taça, o sortilégio desaparecerá, restando somente a realidade da perda.
Julia continuava a insistir e a embriagar-me com sua sedução; não sei o que iria me acontecer quando, de súbito, todas as figuras de açúcar cândi se puseram a dançar
em torno de mim, com uma tal rapidez que não discerni mais nada. Esse pesadelo não terminou senão às onze horas da manhã, quando um criado do Águia de Ouro veio
despertar-me para avisar que o desjejum estava servido. O general Suwarow se levantara muito cedo, pagara sua despesa e deixara, endereçado a mim, um pacote lacrado
dentro do qual havia um manuscrito, de letra miúda e de difícil decifração, no qual se narrava a singular história que se segue. Era, talvez, a sua história.

2
Numa bela manhã, mestre Erasmo Spickherr viu-se, pela primeira vez, em condições de satisfazer a mais ardente paixão de sua vida. Acabara de juntar uma pequena herança,
da qual retirou uma soma suficiente para cobrir os gastos de uma viagem à Itália. Na hora da partida, sua jovem esposa acompanhou-o, com o filho nos braços, até
a carruagem: — Adeus! — gritou ela, os olhos úmidos de lágrimas — querido Erasmo! Pensa sempre em mim, que ficarei em casa, e tem cuidado para não perder a boina
de viagem, dormindo com a cabeça para fora da janela da carruagem.
Em Florença, Erasmo travou conhecimento com um alegre grupo de compatriotas seus, que jogavam dinheiro fora e levavam a vida mais desvairada que qualquer artista
ou filho-família jamais viveu sob o tépido sol da Itália.
Eram festas e banquetes, noite e dia, em mansões esplendorosas, com mulheres trajando costumes fantásticos, cuja elegância e riqueza de cores emprestava-lhes o aspecto
de flores animadas. Somente Erasmo, fiel à lembrança de sua esposa legítima, não se arriscava, malgrado seus vinte e sete anos, a nenhuma excursão além do círculo
da fé conjugal.
Certa noite, quando esses pândegos estavam reunidos numa orgia regada a vinho, um deles, Frederico, o mais fogoso do grupo, rodeando com o braço o talhe esguio da
amante, e erguendo seu copo onde brilhava um líquido dourado, ergueu um brinde incandescente à beleza das rainhas da noite, acrescentando: — Quanto a ti, meu pobre
Erasmo — disse a Spickherr — entristece-nos profundamente com essa fisionomia fúnebre. Bebes e cantas como um coveiro e portas-te de modo lamentável para com nossas
damas.
— Juro-te, meu caro — respondeu Erasmo — que é meu dever permanecer indiferente ao encanto dessas damas. Deixei na pátria minha digna esposa e, quando se é, como
eu, pai de família...
A estas palavras, ditas pelo pobre Erasmo com solene gravidade, os presentes caíram num frouxo de riso. A amante de Frederico, depois de lhe terem dito em italiano
o que dissera Erasmo, voltou-se para o frio alemão e disse-lhe: — Toma cuidado. Se visses Giulietta a neve do teu coração se fundiria como gelo ao sol.
No mesmo instante um ligeiro roçagar de sedes por entre a folhagem anunciou a aparição de uma jovem de esplendorosa beleza. Um vestido branco, que lhe punha a descoberto
as espáduas níveas e a garganta magnífica, caía em dobras sedutoras sobre seu talhe de fada. Sua cabeleira, perfumada, desnastrada em ondas de ébano, enquadrava,
com um encanto inefável, o oval admirável de um rosto de madona. Pedrarias cintilantes adornavam-lhe os braços e o colo.
— É Giulietta — exclamaram as moças.
— Sim, sou eu — disse, com um sorriso angélico, a bela desconhecida. — Permitis que vos faça companhia por um instante? Bem, vou sentar-me ao lado deste alemão carrancudo
que não diz uma palavra.
Em meio aos sussurros de suas rivais em beleza, a recém-chegada tomou lugar ao lado de Erasmo, que pensava sonhar. A vista de tantos encantos, sentia o coração pular;
seu olhar se fixava em Giulietta como que aterrorizado. A bela florentina apanhou da mesa uma taça cheia e entregou a ele dizendo:
— Gostarias, severo estrangeiro, que eu fosse a senhora dos teus pensamentos?
Erasmo enrubesceu; todo o seu ser vibrava; erguendo-se, como que impelido por uma mola, caiu diante dela, numa postura de adoração:
— Sim! — exclamou — é a ti que eu amo, anjo dos céus! Tua imagem morava em meus sonhos; tu me trazes a felicidade dos eleitos.
Esta explosão fez crer aos presentes que Erasmo enlouquecera. Giulietta ergueu-o, pedindo que se acalmasse, e a alegre conversa recomeçou, mais animada. Solicitada
a cantar, ela concordou, com graça esquisita. Sua voz magnética provocava sensações inéditas. As horas passaram como se fossem minutos.
Ao amanhecer, Giulietta decidiu retirar-se. Erasmo queria acompanhá-la mas ela recusou e, indicando os lugares onde ele poderia reencontrá-la, desapareceu como uma
sílfide. O pobre apaixonado não ousou segui-la e dirigia-se tristemente para casa quando, a uma esquina, encontrou um personagem alto e magro, trajando um costume
escarlate pontilhado de botões de aço.
— Oh! Oh! — fez o desconhecido — que cara desconsolada tem o Senhor Spickherr esta manhã! Os moleques da cidade vão correr atrás do senhor! Trate de esconder-se.
— Ei! Quem és tu, imbecil, para me falares dessa maneira? Segue teu caminho! Respondeu-lhe Erasmo.
— Devagar, meu valente — continuou o homem de escarlate. — Mesmo que tivesses asas de águia, não alcançarias Giulietta esta manhã! — Giulietta! Que quer dizer? —
retorquiu Erasmo, fazendo meia volta para agarrar seu interlocutor.
Este, porém, desembaraçando-se com uma pirueta, eclipsou-se como um fogo fátuo.
Erasmo viu novamente Giulietta. A bela mulher o recebeu de bom grado, mas sem lhe permitir quaisquer liberdades. Entretanto, quando ele lhe falava, fogoso e apaixonado,
ela lhe lançava, rapidamente, olhares cheios de fascínio. Ele abandonou a companhia ruidosa dos amigos para segui-la por toda a parte, como se não pudesse viver
senão do mesmo ar que ela respirava.
Certo dia, reencontrou Frederico; não pôde escapar-lhe, e este lhe disse: — Meu caro Spickherr, eis-te enfeitiçado pelos filtros de uma nova Circe! Ainda não compreendeste
que Giulietta é a mais dissoluta das criaturas? — Ignoras então a fieira de histórias que se contam sobre ela? É preciso que sejas muito tresloucado para esqueceres
tão depressa aquela boa esposa de que falavas com tanta ternura.
Erasmo escondeu o rosto entre as mãos e não pôde conter as lágrimas.
— Vamos — continuou Frederico — deixa essa paixão que te perde e vem comigo. Deixemos Florença sem perda de tempo! — Sim, sim, imediatamente — exclamou Erasmo. Partamos
hoje mesmo.
Os dois amigos caminhavam apressadamente quando o homem de escarlate cruzou-lhes, de súbito, o caminho: — Vamos, senhor — disse a Spickherr — apresse-se pois a bela
Giulietta espera-o com ansiedade.
— Vá para o diabo, animal! — exclamou Frederico — Este é o signor Dapertuto, muito conhecido como doutor em milagres; um charlatão maldito que vende a Giulietta
drogas infernais...
— Quê! — interrompeu Spickherr — então este imbecil frequenta a casa de Giulietta? Antes que seu amigo pudesse replicar, ouviu, ao passarem sob um balcão, a voz
argentina de Giulietta que o convidava a subir. A magia desse apelo perturbou a resolução de Erasmo. Mais embriagado do que nunca apela paixão, deixou-se de novo
prender pela amorosa algema e acompanhou a bela cortesã a uma vila de recreio para onde ela se dirigia em busca de prazeres. Um jovem italiano, notavelmente feio
de rosto e grosseiro de maneiras, se achava lá e perseguia Giulietta com seus galanteios. Erasmo sentiu todas as serpentes do ciúmes morderem-lhe o coração e afastou-se
com ar sombrio. Giulietta correu atrás dele: — Vamos, querido — disse-lhe languidamente — não és todo meu?...
Ao mesmo tempo em que falava, aproximou-se dele e roçou-lhe a face com um beijo.
— Para sempre! — exclamou Erasmo, abraçando-a inflamado de amor.
A florentina escapou-lhe habilmente e lançou-lhe um olhar cuja expressão quase o fez perder o pouco da razão que lhe restava. Voltaram ambos para a festa. O jovem
italiano havia os acompanhado com os olhos e, fazendo-se de rival ofendido, vingou-se com amargos sarcasmos contra os alemães. Erasmo, que se irritava facilmente,
ameaçou o italiano de rude correção. Este fez brilhar um punhal. Não podendo mais se conter, Erasmo saltou-lhe à garganta, derrubando-o por terra e assentou-lhe
na cabeça um pontapé tão violento que o desgraçado perdeu os sentidos. Mas o estupor que esse acontecimento lhe causou deu-lhe também vertigens.
Quando voltou a si estava no boudoir de Giulietta.
— Meu pobre e querido alemão — dizia ela — quero salvar-te. Mas é preciso que abandones Florença o mais depressa possível. É preciso que me deixes para sempre, a
mim que te amo tanto! Não nos veremos mais.
— Ah! — exclamou Spickherr — antes morrer de mil mortes. Mesmo que eu devesse perder a alma, sou teu para sempre! — Oh! — continuou Giulietta — voltarás para tua
esposa, a quem também amas e, ao lado dela, me esquecerás logo.
Ambos se achavam sentados diante de um magnífico espelho veneziano. A florentina prendeu Erasmo dentro de seus braços ebúrneos.
— Ah! se ao menos — disse ela com olhos úmidos — se ao menos me deixasses teu reflexo, enquanto esperássemos que o amor nos reunisse novamente...
— Meu reflexo!... que queres dizer?... Meu reflexo!... — balbuciou Erasmo, desconcertado. — Mas como poderias guardá-lo, se ele é inseparável de mim? — Recusas,
então? — disse ela, com um suspiro fundo. — Nada me restará da lembrança, nem mesmo esta fugitiva imagem que me sorri do fundo do espelho! E as lágrimas tombavam
como gotas de fogo, sobre o rosto do jovem alemão.
— Choras, Giulietta, minha adorada! — exclamou — Ah! já é preciso fugir para subtrair-me à desgraça que nos separaria para toda a vida, que, ao menos, eu te possa
deixar, para a eternidade, esse reflexo cuja presença adoçará tuas recordações!...
Apenas acabara de falar, quando, lançando um olhar ao espelho, não mais viu a sua imagem. A mesma Giulietta, que ele apertava ao coração, esvaneceu-se como nuvem.
Vozes fantásticas ressoavam no silêncio do apartamento deserto.
Erasmo, transido de espanto, sentiu um véu gelado descer-lhe sobre os olhos; procurou a porta tateando, como um embriagado, abriu-a com dificuldade e desceu a escada
num silêncio cheio de horror. Apenas alcançara a rua quando braços o agarraram no meio das trevas e o meteram numa carruagem, que partiu velozmente.
— Não tenha medo — disse-lhe uma voz. — Giulietta confiou-o aos nossos cuidados. Sabe que aquele estúpido italiano recebeu uma de que jamais se esquecerá? Esse acidente
me entristece, pois Giulietta amava o senhor. No momento, não lhe resta alternativa senão escapar às garras da justiça e, se realmente insistir em não deixar Florença,
sei de um meio de escondê-lo de todos os olhares...
— Oh! caro senhor — respondeu Erasmo, soluçante — como poderia fazê-lo? — Nada mais fácil — continuou o desconhecido. — Tenho um segredo para tornar as pessoas irreconhecíveis,
alterando-lhes os traços fisionômicos.
Quando amanhecer, faremos uma tentativa e, olhando-se no espelho, o senhor mesmo será o juiz.
— Deus! — exclamou Erasmo — que horror! — Não vejo nada de horrível — replicou o homem oculto. — Arranjar-lhe-ei um reflexo muito delicado.
Ah! Devo confessar que... que...
— Que houve?... Terá por acaso esquecido seu reflexo em casa de Giulietta? Se assim for, não há o que fazer senão voltar à sua pátria. Creio que sua querida esposa
se importará pouco com o que perdeu, desde que o tenha de volta em carne e osso.
A certa altura, a carruagem cruzou com um bando de alegres convivas, que voltavam para casa a luz de tochas. Erasmo olhou para seu companheiro de viagem e reconheceu
nele o homem de escarlate, a quem seu amigo Frederico chamava Dapertuto. Num átimo, saltou do veículo e correu à toda velocidade atrás dos condutores de tochas,
entre os quais estava Frederico.
— Salva-me! — disse-lhe ao ouvido, com voz opressa — fiz uma loucura! Mas não acrescentou que perdeu seu reflexo. Frederico levou-o para casa e, sem perda de tempo,
arranjou-lhe meios de deixar Florença a cavalo, ao amanhecer.
O infeliz Spickherr escreveu a história dessa triste viagem. Suas aventuras são comoventes. Certo dia em que, morto de fadiga, desejava repousar numa hospedaria,
cometeu a imprudência de se colocar diante de um espelho. O garçom, que servia a mesa, olhando por acaso para o vidro e não vendo refletido nele a imagem do freguês,
comunicou esse fato surpreendente a um vizinho; este contou-o a outro e logo vários dos presentes começaram a gritar: — Quem é este homem sem reflexo? É um maldito,
um enfeitiçado, ou o Diabo em pessoa! Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contava poder passar a noite.
Todavia, logo depois vieram agentes da polícia dizer-lhe que, em nome dos magistrados, deveria ou mostrar seu reflexo ou deixar a cidade sem perda de tempo.
Forçado a fugir através dos campos, para evitar as caravanas que cruzavam o caminho, ele não entrava nos albergues senão ao cair da noite; pedia ao proprietário
para cobrir os espelhos; foi por isso que recebeu a alcunha de general Suwarow, porque, ao que se dizia, este general tinha a mesma mania.
Chegou, por fim, à sua cidade natal. A esposa o recebeu de braços abertos e ele acreditou, por um momento, que sua desgraça chegara ao fim. Tomando toda sorte de
precauções, conseguiu dissimular a perda do seu reflexo.
Conseguiu mesmo esquecer Giulietta. Mas, certa noite em que brincava com o filho, este tendo sujado as mãos na chaminé do fogão, comprimiu-as contra o rosto do pai,
gritando alegremente: Veja, papai, como senhor ficou lambuzado! Depois, escapando-se dos braços do pai, apanhou um espelho, colocando-o diante dele e espiando por
cima do seu ombro. Antes que Spickherr pudesse se erguer, o pequeno, não vendo no vidro o reflexo do pai, deixou cair o espelho e fugiu, chorando. Ao ruído, apareceu
a mãe.
— Que é que me diz a criança? — perguntou ela.
— Ei! Por Deus — respondeu Spickherr, com um riso forçado — ele te diz que não tenho reflexo. Pois bem! Que importa? Um reflexo não é mais que uma ilusão, minha
querida; quem se olha ao espelho, peca por vaidade; Deus me livre desse pecado! A pobre mulher agarrou o marido pela mão, arrastou-o, como se arrasta um culpado,
até diante do espelho e, dando-se conta da horrível verdade, transformou-se numa megera furiosa.
— Vai embora — gritou — vai para bem longe daqui, maldito; deves ter feito algum pacto com o Demônio! Ou talvez nem sejas meu Erasmo: és um espírito do inferno!
Persignou-se inúmeras vezes. Erasmo, desesperado, abandonou a casa a correr e foi se refugiar numa campina deserta. Enquanto errava ao azar, roído de mil angústias,
a imagem de Giulietta lhe apareceu de repente, mais bela do que nunca.
— Ai — disse ele — que te fiz para que me persigas? Minha mulher me abandonou, não tenho mais nenhum afeto sobre a terra; tem piedade, Giulietta, tem piedade de
mim. Onde te reencontrarei agora? — Bem perto daqui, meu caro, pois ela está ansiosa por revê-lo — respondeu uma voz atrás dele. Voltou-se, muito surpreso, e deu
de cara com o odioso Dapertuto, que o mirava com olhar sardônico.
— Sou seu humilde servidor — continuou o homem — e afirmo-lhe que tão logo Giulietta esteja certa de poder possuí-lo em pessoa, terá imenso prazer em devolver-lhe
o reflexo que, evidentemente, não pode saciar seu amor.
Erasmo estava fora de si.
— Leve-me a ela — exclamou — e lhe pertencerei sem qualquer reserva...
— Perdão — disse Dapertuto — isso exige o cumprimento de uma formalidade.
O senhor está comprometido por ligações que devem ser rompidas, visto que Giulietta quer possuí-lo sem partilha. Ora, sua mulher e seu filho...
— Ah! minha mulher... meu filho...
— É preciso desembaraçar-se deles; oh! mas de uma maneira muito simples, que não o comprometerá. Tenho aqui, dentro de um pequeno frasco, um elixir, do qual duas
gotas apenas livram a pessoa de toda sorte de importunos. Estes nem sequer farão, garanto-lhe, uma careta. Tome, meu caro, isto exala um ligeiro perfume de amêndoas
que provoca um sono... um sono definitivo.
— Miserável! — urrou Erasmo — Ousas então propor-me tal crime? — Eh! Quem fala de crime? — replicou Dapertuto. — O senhor deseja rever Giulietta e lhe ofereço o
meio, eis tudo. Tome logo o frasco e não banque a mulherzinha.
Erasmo, preso de vertigens, achou-se de súbito com o frasco na mão e diante do leio no qual sua mulher se agitava nas aflições de um pesadelo.
O pobre marido sentiu o coração partir-se-lhe no peio ante este espetáculo. Abriu a janela, jogou o frasco bem longe e foi-se fechar no quarto vizinho, para chorar
seu destino. A lembrança de Giulietta veio atormentá-lo.
— Anjo ou demônio — gritou ele — causa da minha desgraça. Pois bem! Aceito meu destino: aparece mais uma vez diante de meus olhos; quero morrer revendo-a! Nesse
instante, soou meia-noite. À última pancada do relógio, Giulietta apareceu.
— Meu bem amado — disse-lhe — guardei fielmente teu reflexo: ei-lo! O véu que cobria o espelho tombou e Erasmo viu sua imagem enlaçada a da bela florentina.
— Oh! se me amas, devolve-me o reflexo; devolve-me, por piedade! — disse ele, caindo de joelhos. — Mas não posso comprá-lo ao preço do crime que me exige Dapertuto!
— Escuta — continuou Giulietta — não podemos nos unir senão quando teus laços estejam rompidos. Um padre os atou; somente tu podes renunciar a eles. Mas não é preciso
que o faças pessoalmente; toma apenas este papel e escreve em cima que renuncias à tua família terrestre para me pertencer eternamente...
Erasmo tremia. Giulietta o beijava ardentemente. Subitamente, viu erguer-se de trás dela a figura de Dapertuto, que lhe apresentava uma pena de metal. Nesse mesmo
instante, uma veia de sua mão esquerda rebentou e o sangue começou a jorrar.
— Escreve! Escreve! — dizia Dapertuto, com voz metálica.
— Escreve meu bem-amado! — dizia Giulietta, cujos véus haviam caído para oferecer aos olhares fascinados de Erasmo todos os tesouros da mais voluptuosa das belezas.
Ele tomou da pena, molhou-a no sangue e ia assinar, quando um fantasma pálido entrou no quarto e pronunciou estas palavras, com voz sepulcral: — Erasmo! Erasmo!
Queres dar tua alma ao Diabo? Em nome de Jesus, para...
Erasmo reconheceu a voz de sua esposa.
Ao ser pronunciado o nome sagrado, Giulietta mudou de aspecto e transformou-se num espectro de fogo.
— Para trás, Satã! — gritou Spickherr — volta ao inferno de onde saíste! Logo em seguida um tremor de fazer medo estremeceu a casa; o chão se abriu e Giulietta e
Dapertuto desapareceram numa nuvem de vapor sulfuroso.
Depois, tudo voltou ao silêncio.
Quando Erasmo, aturdido, conseguiu coordenar as ideias, a luz do dia penetrava no quarto. Voltou para junto da esposa. Esta já estava desperta e brincava com o filho
na cama.
— Meu amigo — disse-lhe ela com doçura — agora sei da aventura que tiveste na Itália. Estou contristada; vê como são astutas as partidas pregadas pelo Demônio, que
te roubou o reflexo que eu tanto gostava de ver sorrindo para mim, no espelho! De hoje em diante não podes mais continuar a ser um respeitável chefe de família;
todos de apontarão com o dedo. Sugiro que te ponhas a caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tão logo o encontres, conforme espero, apressa-te em voltar.
Esperar-te-ei com impaciência e rever-te-ei com alegria. Beija-me e parte com Deus.
Lembra-te de enviar, de vez em quando, algum confeito ou brinquedo ao teu filho, para que ele não te esqueça.
Spickherr, o coração opresso, beijou a esposa e o filho, apanhou o bordão e pôs-se a caminho. Encontrou certo dia o famoso Pedro Schlemihl, que havia perdido a sombra.
Os dois desafortunados propuseram-se viajar juntos; Spickherr entrava com a sua sombra e Schlemihl com seu reflexo.
Mas não conseguiram chegar a nenhum acordo e, até hoje, ninguém sabe o que lhes aconteceu.

 


A máscara da morte


1
No dia de S. Miguel, quando as ave-marias batiam no convento do Carmo, uma elegante berlinda de viagem puxada por quatro cavalos de posta rolava com estrondo pelas
ruas da pequena cidade de Lilinitz, nas fronteiras da Polônia, indo parar diante do portão da casa que o velho burgomestre alemão habitava.
Os filhos do burgomestre, cheios de curiosidade, correram para a janela; mas a dona da casa levantou-se e atirou zangada para cima da mesa com os apetrechos de costura.
— Maldita ideia a tua de mandares dourar a pomba de pedra, que encima a porta! — disse ela ao marido, que saía precipitadamente dum quarto próximo. — Aí tens mais
viajantes, que tomam a nossa casa por uma hospedaria! O velho sorriu com malícia, sem responder uma única palavra. Despiu num instante o roupão e vestiu o seu fato
de cerimônia, o qual, escovado com cuidado quando o envergara para ir à igreja, estava estendido nas costas duma cadeira. Antes que a mulher estupefata tivesse aberto
a boca para o interrogar, correra para a portinhola da berlinda que um criado abrira. O burgomestre tinha debaixo do braço o seu boné de veludo, e na obscuridade
do crepúsculo brilhava-lhe a cabeça com reflexos de prata.
Uma senhora idosa, envolvida num manto cinzento de viagem, desceu da carruagem, seguida por outra mais nova com o rosto velado; esta encostou-se ao braço do burgomestre
e encaminhou-se para a habitação, mais arrastando-se do que andando. Logo que entrou no aposento foi cair, meio desmaiada, numa poltrona, que, a um sinal do marido,
a dona da casa se apressara em oferecer-lhe.
— Pobre criança! — disse a senhora idosa ao burgomestre, em voz baixa e melancólica. É preciso que fique alguns instantes ao pé dela.
E, ajudada pela filha mais velha do burgomestre, tirou o manto de viagem. O seu vestido de freira e a brilhante cruz, que trazia ao peito, denunciavam-na como abadessa
dum convento da ordem de Cister.
Entretanto a dama velada não dera sinais de vida a não ser um gemido fraco, pouco perceptível. Pediu por fim um copo d'água à dona da casa. Esta foi buscar toda
a qualidade de elixires e de licores fortificantes, cujas propriedades maravilhosas elogiou, e pediu licença à dama para lhe tirar o véu espesso, que devia dificultar-lhe
a respiração. Mas foram inúteis as instâncias da mulher do burgomestre; a dama repeliu— lhe a mão voltando a cabeça com sinais de terror. A doente bebeu dois os
três goles d'água, na qual a serviçal dona da casa deitara algumas gotas dum poderoso cordial; consentiu também em respirar um frasco de sais, mas sem levantar o
véu.
— Preparou tudo como lhe foi indicado? — perguntou a abadessa ao burgomestre.
— Sim, minha senhora, respondeu o ancião; espero que o nosso sereníssimo príncipe fique contente comigo, bem como esta senhora, para quem tudo preparei o melhor
que pude.
— Bem. Deixem-me por alguns instantes a sós com a pobre criança —, tornou a abadessa.
A família saiu do aposento. Ouviram a abadessa falar à dama com fervor e unção e esta pronunciar algumas palavras num tom que comovia profundamente o coração.
Sem querer escutar, a dona da casa ficara junto à porta do quarto. Falavam italiano, o que contribuía para tornar a aventura mais misteriosa e aumentava a angústia
da mulher do burgomestre.
Este disse à filha e à mulher que preparassem vinho e refrescos e tornou logo a entrar no aposento.
A dama velada estava em frente da abadessa, com a cabeça inclinada, as mãos postas, parecendo mais sossegada. A abadessa aceitou alguns refrescos, que a dona da
casa lhe ofereceu. Depois disse comovida: — Vamos, já é tempo! A dama velada caiu de joelhos. A abadessa estendeu-lhe as mãos sobre a cabeça e murmurou uma oração.
Depois abraçou-a, apertando-a contra o coração com urna veemência que bem provava o excesso da sua dor, e o rosto banhou-se-lhe de lágrimas. Com uma imponente dignidade
abençoou a família e, ajudada pelo velho, subiu precipitadamente para a berlinda, cujo tiro havia sido renovado.
O postilhão excitou os cavalos, que rinchavam ruidosamente, e a carruagem afastou-se com rapidez.
Quando a dona da casa compreendeu que a dama velada, para quem haviam tirado da berlinda duas pesadas malas, ia ficar talvez por mui tempo ali hospedada, não pôde
evitar um penoso sentimento de inquietação e de curiosidade. Foi ter com o marido ao vestíbulo, detendo-o na ocasião em que ia voltar para o aposento.
— Em nome do Cristo —, murmurou ela com voz perturbada; quem meteste em casa? Porquê, estando tu prevenido de tudo, nada me disseste?
— Dir-te-ei tudo o que sei —, respondeu tranquilamente o ancião.
— Ah! Ah! — prosseguiu a mulher redobrando de agitação; mas talvez que tu não saibas tudo, pois não estavas há pouco no aposento. Logo que a senhora abadessa saiu,
a dama, naturalmente incomodada pelo espesso véu, tirou-o e vi...
— Então o que viste? — interrompeu o velho.
A mulher tremia e passeava em torno de si uns olhares espantados, como se houvesse visto um espectro.
— Nada —, continuou ela. — Não pude distinguir completamente as feições, porque o rosto ficou coberto por outro véu mais fino, mas pareceram-me as dum cadáver, duma
horrorosa cor de cadáver. E também deves notar que é evidente, o mais evidente possível, claro como o dia, que a dama está grávida. O parto não deve demorar-se muitas
semanas.
— Já o sabia, mulher —, disse o burgomestre com modos desagradáveis. — E com medo de que caias doente de inquietação e curiosidade, vou esclarecer-te este mistério
em duas palavras. O príncipe Zapolski, nosso poderoso protetor, escreveu-me há algumas semanas, dizendo-me que a abadessa do convento cisterciense de Oppeln me traria
uma dama, pediu que eu a recebesse em minha casa, sem ruído, e evitando com cuidado olhares indiscretos. A dama, apresentada com o nome de Celestina terá em minha
casa o parto e depois vai embora com a criança. O príncipe recomendou-me com instância que tivesse para com ela as maiores atenções. Para me indenizar de despesas
e trabalhos, mandou-me uma grande bolsa cheia de ducados, que podes ver, se quiseres remexer na minha cômoda. Acabaram-se os escrúpulos?
— Somos então obrigados —, disse a mulher —, a auxiliar os pecados que os grandes cometem?
Antes que o ancião tivesse tempo de responder, a filha saiu do aposento e disse que a dama, tendo necessidade de descanso, desejava ser conduzida ao quarto que lhe
era destinado.

2
O burgomestre fizera arranjar o melhor possível dois pequenos quartos no andar superior e ficou seriamente embaraçado quando Celestina lhe perguntou se, além daquelas
duas divisões, não tinha nenhuma outra, cuja janela desse para as traseiras da casa.
Respondeu negativamente, ajuntando, por descargo de consciência, que havia outro quarto bem pequeno, com uma só janela para o jardim, que na verdade não era um quarto,
mas uma péssima mansarda, uma cela miserável em que só cabia uma cama, uma mesa e uma cadeira.
Celestina pediu logo para ver o tal quarto e, assim que entrou, declarou que era exatamente o que desejava, e que mudaria para outro mais espaçoso, se tivesse necessidade
duma enfermeira.
O burgomestre comparara o pequeno quarto a uma cela; desde o dia seguinte esta comparação tornou-se bem exata. Celestina pregou na parede uma imagem da Virgem Maria
e colocou em cima da mesa um crucifixo. O leito era um saco de palha com um cobertor de lá. Excepto um escabelo de pau e outra mesa mais pequena, Celestina recusou
quaisquer outros móveis.
A dona da casa, reconciliada com a desconhecida pela compaixão que lhe causava a profunda e dilacerante dor demonstrada pelo seu aspecto, julgou do seu dever ir
fazer-lhe uma visita, ela porém, rogou-lhe com as mais enternecedoras instâncias que não lhe perturbasse a solidão onde encontrava as consolações que a Virgem e
os santos lhe dispensavam.
Todas as manhãs, logo ao despontar do dia, Celestina ia ouvir a missa das almas ao convento do Carmo.
Parecia consagrar o resto do dia a exercícios de devoção, pois que, sempre que havia necessidade de entrar no quarto, a encontravam orando ou lendo livros religiosos.
Só comia legumes e só bebia água. O burgomestre representou-lhe que o seu estado e a conservação da sua saúde exigiam melhor alimentação, mas só à força de muitas
súplicas conseguiu que ela aceitasse um pouco de caldo e de vinho.
As pessoas de casa consideravam este modo de vida austero, claustral, como expiação duma falta grave; todavia sentiam pela desconhecida uma comiseração e veneração
profundas, aumentadas pela nobreza das suas maneiras e pela cativante graça dos seus movimentos. Mas a persistência em nunca levantar o véu, misturava a estes sentimentos
uma espécie de terror. A não ser o burgomestre e a família, ninguém dela se aproximava, e os habitantes, que nunca haviam saído da pequena cidade, não podiam reconhecer
as feições dum rosto que nunca tinham visto e não conseguiam assim desvendar o mistério. Para que servia então o tal véu? A ativa imaginação feminina inventou logo
uma história medonha.
Um terrível sinal, diziam as mulheres, a marca das garras do diabo, arrogara horrorosamente o rosto da desconhecida; daí o uso do véu.
O burgomestre teve muito trabalho em reprimir as murmurações, e em impedir que, pelo menos defronte da casa, não se juntassem fazendo errôneas conjecturas a respeito
da desconhecida, cujos passeios ao convento do Carmo também foram notados. Passaram a chamá-la de "a dama negra do burgomestre", qualificação que envolvia a ideia
de aparição sobrenatural.
O acaso quis que um dia, quando a filha do burgomestre levava o jantar a Celestina, uma corrente de ar erguesse o véu. A desconhecida voltou-se com a rapidez do
relâmpago, para se subtrair ao olhar da garota; esta empalideceu e pôs-se a tremer; não lhe distinguira as feições, mas como sua mãe, vira uma face cadavérica dum
branco marmóreo, e, profundamente encovados, uns olhos de fulgor estranho.
O burgomestre combateu com razões as ideias da garota, mas ele próprio não estava muito longe de partilhá-las e desejava ver sair de sua casa essa desconhecida,
que ali levara a inquietação, não obstante a devoção de que fazia tanto alarde.
Uma noite, o ancião acordou a mulher e disse-lhe que já há alguns minutos ouvia queixumes e gemidos, acompanhados de ligeiras pancadas, que pareciam vir do quarto
de Celestina. A dona da casa, pressentindo o que seria, correu ao quarto da desconhecida. Foi encontrá-la vestida e envolvida no véu, deitada na cama quase sem sentidos
e convenceu-se de que o parto estava próximo. Desde há muito que os preparativos necessários estavam feitos, e, pouco tempo depois, nasceu um menino encantador e
bem constituído.
Este acontecimento teve por efeito o acabar com o constrangimento que tornava pouco agradáveis as relações da família com Celestina. A criança era como que o medianeiro
da reconciliação da mãe com a humanidade. O estado de Celestina não lhe permitia as práticas ascéticas, e a necessidade que tinha dos cuidados assíduos dos seus
semelhantes habituou-a gradualmente à sua presença. A dona da casa, que tratava da doente e que por suas próprias mãos lhe preparava os caldos nutritivos, esqueceu,
entregando-se a estes trabalhos domésticos, a desconfiança que desde o começo lhe inspirara a enigmática desconhecida. O burgomestre, todo contente, brincava e ria
com o pequeno como se ele fosse seu neto e acostumou-se, assim como o resto da família, a ver Celestina sempre com o véu, que nem mesmo por ocasião das dores de
parto quisera tirar. A parteira fora obrigada a jurar-lhe que, mesmo no caso dum desmaio, não lhe tiraria o véu, o que só faria, no caso de eminente perigo. Era
certo que a mulher do burgomestre vira Celestina sem o véu, mas aquela limitava-se a dizer: — Pobre senhora! Bem precisa de esconder o rosto! Dias depois voltou
o monge do convento do Carmo que baptizou a criança. A sua conversação com Celestina, que ninguém se atreveu a ir perturbar, durou mais de duas horas. Ouviram-no
falar acaloradamente e orar. Logo que ele saiu, foram encontrar Celestina sentada numa poltrona, com o filho deitado nos joelhos; a criança tinha os ombros cobertos
com um escapulário e via-se no peito um Agnus Dei.
Semanas e meses se passaram sem que viessem buscar Celestina e o filho, como o burgomestre esperava e como lhe afirmara o príncipe Zapolski. A desconhecida entraria
na intimidade da família se não fosse o fatal véu. O burgomestre lembrou-se um dia de lhe pedir explicações, porém ela respondeu com voz surda e solene: — Só trocarei
este véu pela mortalha.
O burgomestre calou-se e de novo desejou a volta da berlinda e da abadessa.

3
Tornara a primavera; a família do burgomestre voltava dum passeio e trazia ramilhetes de flores, as mais belas das quais eram destinadas à devota Celestina.
Na ocasião em que iam a entrar em casa, parou um cavaleiro defronte da porta. Trazia o fardamento dos oficiais de caçadores da guarda imperial francesa; perguntou
com instância pelo burgomestre.
— Sou eu, disse o ancião, e está à minha porta.
O cavaleiro apeou-se rapidamente, prendeu o cavalo a um poste e correu para dentro de casa, gritando com voz estridente: — Ela está aqui! Ela está aqui! Subiu rapidamente
a escada. Ouviu-se uma porta que se abria, e Celestina dar um grito de angústia. O burgomestre acudiu cheio de medo.
O desconhecido arrancara a criança do berço, envolvera-a no manto, e agarrava— lhe com o braço esquerdo enquanto com o direito repelia Celestina, que empregava todos
os esforços para tirar o filho ao raptor. Nesta luta, o oficial fez cair o véu e viram então um rosto pálido e inanimado, assombreado por madeixas de cabelos negros,
uns olhos que dardejavam relâmpagos e uns lábios imóveis e entreabertos donde saíam clamores estridentes.
O burgomestre compreendeu que Celestina tinha uma máscara branca estreitamente ligada ao rosto, cujos contornos desenhava.
— Horrível mulher! — gritou o oficial, queres que eu partilhe a tua loucura? E repeliu Celestina com tanta força que esta caiu no chão. A pobre senhora abraçou-lhe
os joelhos, esmagada por urna dor invencível.
— Deixa-me essa criança, disse ela num tom suplicante, que dilacerava o coração. Pela tua salvação eterna, não ma roubes! Em nome do Cristo e da Virgem Santa, dá—
me essa criança! E, apesar destas veementes lamentações, nenhum músculo mexia; os lábios daquele rosto de cadáver ficavam imóveis; os circunstantes sentiam que o
sangue se lhes gelava nas veias, de horror.
— Não! — retorquiu o oficial, como que arrebatado pelo desespero, não, mulher desumana e inexorável! Podes arrancar-me o coração, mas, no teu delírio funesto, não
deves perder este ente, que o céu destinou a minorar as dores duma ferida que sangra ainda! O oficial apertou com mais força a criança contra o seio; esta pôs-se
a chorar e a gritar.
— Vingança! — uivou Celestina com voz surda — que o castigo do céu caia sobre ti, assassino! — Deixa-me, deixa-me, afasta-te, aparição saída do inferno — exclamou
o oficial.
E, empurrando com o pé Celestina, com um movimento brusco, tentou alcançar a porta. O burgomestre embargou-lhe a passagem, mas o oficial puxou rapidamente por uma
pistola e apontou-a ao velho.
— Uma bala na cabeça daquele que tentar tirar o filho a seu pai! Dizendo isto, desceu precipitadamente a escada, correu para o cavalo, sem largar a criança, e partiu
a galope.
A dona da casa, com o coração comprimido, dominando o horror que lhe inspirava a terrível máscara de cadáver, entrou no quarto no intuito de consolar Celestina;
foi encontrar a pobre mãe no meio da casa, imóvel e muda como uma estátua, com os braços pendentes. Não podendo suportar a vista da máscara, a mulher do burgomestre
pôs a Celestina o véu que caíra no chão. Esta não pronunciou uma palavra, não fez um movimento; estava reduzida ao estado de autômato. Ao vê-la assim, a mulher sentiu
redobrar a sua inquietação e ansiedade e pediu a Deus que a livrasse da funesta desconhecida.
Foi ouvida aquela prece, porque imediatamente a berlinda que trouxera Celestina parou defronte da porta. A abadessa entrou acompanhada pelo príncipe Zapolski.
Quando este soube o que acabava de se passar, disse com sossego, suavemente: — Chegamos muito tarde! Submetamo-nos à vontade de Deus!
Celestina foi levada e colocada na carruagem, sem movimento, sem fala, sem dar o mínimo sinal de vontade, de pensamento. A berlinda partiu.
O ancião e a família como que acordavam de um mau sonho, que os enchera de inquietações.
Pouco depois das cenas passadas em casa do burgomestre, era enterrada com uma solenidade desacostumada, uma religiosa da ordem de Cister, em Oppeln. Correu o boato
de que esta freira era a condessa Hermenegilda de Czernski, que todos julgavam estar em Itália com a irmã do pai, a princesa Zapolski.
Pela mesma época, o conde Nepomuceno Czernski, pai de Hermenegilda, veio a Varsóvia e reservando para si apenas uma pequena propriedade na Ucrânia, renunciou ao
resto dos seus bens a favor dos dois filhos do príncipe Zapolski, seus sobrinhos. Perguntaram-lhe se dotava a filha; por única resposta ergueu ao céu os olhos úmidos
de lágrimas, dizendo com voz surda: — Já está dotada! Não empregou meio algum para confirmar o boato da morte de Hermenegilda no convento de Oppeln, nem para destruir
as suposições que faziam sobre a sorte da filha, que todos julgavam como vítima levada prematuramente ao túmulo pela dor.
Vários patriotas polacos, humilhados, mas não abatidos pela queda da pátria, procuraram fazer entrar de novo o conde numa associação secreta, que se destinava à
libertação da Polônia; mas não encontraram já nele o homem ardente, amante entusiástico da liberdade e da pátria, cuja coragem heroica outrora os auxiliara nas suas
nobres empresas. Tornara-se um velho sem energia, feito misantropo por uma dor profunda, estranho a todas as cousas mundanas.

4
Outrora, na época em que o primeiro desmembramento da Polônia excitou uma sanguinolenta insurreição, o castelo do conde Nepomuceno de Czernski fora teatro das secretas
reuniões dos patriotas.
Ali, em banquetes solenes exaltavam-se os conjurados, jurando combater pela oprimida pátria. Hermenegilda aparecia no meio destes heróis, como um anjo descido dos
céus para os abençoar. Tinha a índole das mulheres da sua nação; tomava parte em tudo, até mesmo nas deliberações políticas; examinava com atenção o estado das cousas,
e, apesar de não ter ainda dezassete anos, combatia por vezes o modo de ver geral; a sua opinião, ditada pelo bom senso e por uma extraordinária penetração, arrastava
a maioria da assembleia.
Segundo Hermenegilda, ninguém era melhor conselheiro, ninguém examinava melhor as questões do que o conde Estanislau de Ramskay, mancebo de vinte anos, ardente e
dotado de grandes qualidades. Acontecia, pois, que, por vezes, Hermenegilda e Estanislau dirigiam o curso das discussões difíceis. A sós, examinavam, aceitavam,
rejeitavam e emendavam as propostas; e quase sempre o resultado destas conferências era adotada por velhos hábeis em tratar dos negócios do Estado, e cuja prudência
e capacidade eram comprovadas pelos seus conselhos de outrora.
Natural era pensar numa união entre os dois jovens, cujos maravilhosos talentos podiam ser instrumento da salvação da pátria. Além disto a política parecia exigir
uma aliança estreita entre as duas famílias, porque as julgavam animadas, uma contra a outra, por interesses opostos, circunstância esta que já arrastara à ruína
muitas famílias polacas.
A donzela, compenetrada destas ideias, aceitou como dádiva da pátria, o esposo que lhe destinavam. As patrióticas reuniões do castelo terminaram pelos solenes esponsais
de Hermenegilda e Estanislau.
Sabe-se como sucumbiram os polacos e como a queda de Kosciusko1 produziu a ruína de uma empresa baseada na demasiada confiança que os combatentes tinham em si próprios,
em falsas previsões e numa fidelidade cavalheiresca.
O conde Estanislau, cuja estreia na carreira militar, juventude e força lhe marcavam um lugar no exército, bateu-se com a coragem do leão; a custo escapou a um vergonhoso
cativeiro e ficou gravemente ferido. Só Hermenegilda o prendia então à vida; julgava ir encontrar nos seus braços consolações e a esperança que perdera. Logo que
as feridas começaram a cicatrizar, correu ao castelo do conde Nepomuceno, onde ia ser ferido de novo e mais profundamente.
Hermenegilda recebeu-o com altivez quase desdenhosa.
— Onde está o herói que queria morrer pela pátria? — perguntou ela, indo-lhe ao encontro.
No seu louco entusiasmo parecia considerar o noivo como um paladino dos tempos heroicos, cuja espada podia, por si só, aniquilar exércitos.
Em vão o conde implorou com o mais apaixonado amor, em vão protestou que nenhum poder humano podia lutar contra a torrente devastadora, que caíra mugindo sobre a
malfadada Polônia; foi tudo inútil. Hermenegilda, cujo coração frio como a morte só podia aquecer no turbilhão das cousas mundanas, persistiu na resolução de só
conceder a sua mão ao conde Estanislau, quando os estrangeiros fossem expulsos da pátria.
O conde viu já tarde que Hermenegilda o não amava; a condição que esta lhe impunha, se viesse a realizar-se, só se daria num tempo mui longínquo. Jurou à sua bem
amada que lhe seria fiel até a morte, e deixou-a para ir alistar-se no exército francês, que combatia em Itália.
Diz-se que as mulheres polacas têm uma índole fantástica que lhes é própria. Sensibilidade profunda, inconstância, abandono, abnegação estoica, paixões ardentes,
frieza glacial, tudo isto se contém à mistura na sua alma, e produz à superfície espantosas instabilidades. Os caprichos do seu gênio variável, assemelham-se aos
redemoinhos dum ribeiro revolvido nas suas profundezas, à superfície do qual sobem sem cessar novas ondas mugidoras.
Hermenegilda viu com indiferença o noivo afastar-se; mas, passados alguns dias, sentiu apoderar-se dela um desejo inexprimível, desejo que só o mais ardente amor
podia gerar.
O vendaval da guerra passara. Proclamada uma amnistia, foram postos em liberdade os oficiais polacos prisioneiros. Vários irmãos de armas de Estanislau chegaram
ao castelo; conversaram com profunda dor do dia da derrota, e da intrepidez que todos, sobretudo Estanislau, haviam mostrado. No momento em que a batalha parecia
perdida, o conde fez voltar ao combate os batalhões que recuavam, e conseguiu com a cavalaria romper as fileiras inimigas. Era duvidosa a sorte da batalha quando
o atingiu uma bala. Caiu banhado em sangue, repetindo estas palavras: — Pátria!... Hermenegilda! Cada palavra daquela narrativa era uma punhalada que trespassava
o coração da donzela.
— Não, não sabia que o amava ardentemente, disse ela. Que demônio me cegou e me induziu em erro? Que demônio me fez crer que podia viver sem aquele que é a minha
vida? Enviei-o à morte! Não voltará! E assim Hermenegilda desafogava as tempestuosas dores que lhe iam na alma. Sem sono, incapaz de tomar o mínimo descanso, errava
pelo parque, de noite, e, como se o vento pudesse levar ao amado ausente as suas palavras, gritava:
— Estanislau! Estanislau, volta! Sou eu, é Hermenegilda que te chama! Não me ouves? Volta ou morrerei de inquietação, de amor e de desespero!

5
A agitação de Hermenegilda ameaçava degenerar em verdadeira loucura, que se manifestava por mil extravagancias. O conde Nepomuceno, cheio de temor e de ansiedade
pelo estado da filha querida, julgou que talvez lhe fossem salutares os socorros da medicina, e conseguiu encontrar um doutor que condescendeu em passar algum tempo
no castelo e em tomar conta da doente.
O seu método, mais moral do que físico, não produziu resultado algum.
A cura de Hermenegilda tornou-se mui duvidosa. Após longos intervalos de tranquilidade, a jovem recaía de improviso nos mais estranhos paroxismos.
Uma aventura íntima deu à doença de Hermenegilda uma nova direção sintomática.
Tinha ela um boneco vestido de ulano, ao qual testemunhava viva ternura e prodigalizava os mais doces epítetos, como se ele fosse o seu bem amado. Atirou-o ao fogo
do salão, despeitada, porque ele não tinha querido cantar uma canção polaca que principiava assim: "Podrosz twoia nam nie mila" "Milsza przyiazin w kraiu byla" (Não
nos foi agradável a tua viagem, A tua amizade era-nos preciosa no país) Quando atravessava o vestíbulo, para ir para os seus aposentos, ouviu um tinido e o ruído
de passos. Olhou em torno e viu um oficial com o grande uniforme da guarda imperial francesa, que trazia um braço ao peito.
— Estanislau! Meu Estanislau! — exclamou ela, correndo para ele e caindo desmaiada nos seus braços.
O estupefacto oficial a custo susteve Hermenegilda com o braço livre, pois que a jovem, alta e nutrida, estava longe de ser um fardo ligeiro; conduziu-a para uma
sala lateral, apertando-a contra o peito numa pressão crescente. Ao sentir o coração da jovem bater tão perto do seu, o oficial confessou que era esta a aventura
mais deliciosa que até ali lhe acontecera.
Os minutos passavam; o oficial sentiu invadi-lo o fogo dos desejos, cujas centelhas eléctricas jorravam do corpo encantador que apertava nos braços.
O conde Nepomuceno, que saía dos seus aposentos, foi encontrar a filha ainda desmaiada nos braços do oficial; mas neste momento Hermenegilda voltou a si, beijou
o oficial com calor, e exclamou de novo, no seu delírio: — Estanislau! Meu bem amado! Meu esposo! O oficial todo trémulo, com o rosto vermelho, perdeu a firmeza,
recuou um passo e desenvencilhou-se com brandura do convulsivo amplexo de Hermenegilda.
— É este o mais suave momento da minha vida, balbuciou ele com timidez, mas não quero gozar duma ventura proporcionada por um equívoco. Não sou Estanislau, com pesar
meu, não sou Estanislau! Ao ouvir estas palavras, Hermenegilda espantada deu um salto para trás, fixou no oficial um olhar penetrante, convenceu-se de que fora enganada
por uma extraordinária semelhança e afastou-se lastimando-se.
O oficial deu-se a conhecer pelo conde Xavier de Ramskay, primo de Estanislau. O conde Nepomuceno mal podia acreditar que, em tão pouco tempo, a criança que conhecera
se houvesse metamorfoseado num homem alto e robusto, a cujo rosto as fadigas da guerra tinham dado um tipo másculo.
O conde Xavier deixara a pátria ao mesmo tempo que o primo e amigo conde Estanislau e, como este fora servir no exército francês e fizera a campanha de Itália.
Tendo então apenas dezoito anos, distinguiu-se mostrando tanta coragem, que o general em chefe o nomeara ajudante de campo e que aos vinte anos alcançara o posto
de coronel.
Como as feridas que recebera exigiam algum tempo de repouso, voltara à pátria, e, portador duma carta de Estanislau para a sua noiva, vinha ao castelo do conde Nepomuceno,
onde Hermenegilda, numa alucinação febril, o tomou pelo primo.
O conde Nepomuceno e o médico tentaram, mas em vão, acalmar Hermenegilda, que resolveu não sair dos seus aposentos em quanto o recém-vindo estivesse no castelo.

6
Xavier ficou aflito com a decisão de Hermenegilda. Escreveu-lhe dizendo que lhe fazia expiar bem rigorosamente uma desgraçada semelhança de que não era culpado.
Acrescentou que a sua grande desventura atingia também a Estanislau, porquanto este lhe confiara uma carta de amor dizendo que comunicasse a Hermenegilda de viva
voz o que não tinha tido tempo de escrever. Pela resolução da jovem, via-se impossibilitado de cumprir aquela missão.
A criada de quarto de Hermenegilda, que Xavier comprara, encarregou-se de lhe apresentar o bilhete aproveitando-se duma ocasião favorável e as poucas linhas de Xavier
fizeram o que o pai e o médico não tinham podido fazer. Hermenegilda consentiu em recebê-lo.
Esperou-o no seu quarto, silenciosa, de olhos baixos. Xavier entrou a passos um tanto hesitantes e veio sentar-se defronte da jovem, mas, inclinando-se na cadeira,
mais parecia ajoelhado do que sentado.
Nesta postura, pediu-lhe perdão nos mais tocantes termos, como se se acusasse dum crime irremissível que, no fim de contas, provinha dum equívoco. Depois, entregou-lhe
a carta e começou falando de Estanislau, dizendo-lhe com que fidelidade cavalheiresca pensava sempre na sua dama quando combatia, com que ardor amava a liberdade
e a pátria. O fogo e a vivacidade da narração de Xavier arrebataram Hermenegilda, que, pela primeira vez desde o começo da entrevista, fixou no mancebo os seus encantadores
olhares; e este, como Calaf, embriagado de amor pelo olhar de Turandot2, a custo continuou a narrativa. Sem mesmo dar por isso, e preocupado pela luta que sustentava
contra uma paixão cujo ardor ameaçava aumentar, perdeu-se numa confusa descrição de batalhas. Falou de cargas de cavalaria, de batalhões esmagados, de baterias tomadas.
Hermenegilda interrompeu-o com impaciência: — Malditas sejam essas cenas sanguinolentas preparadas pelo inferno! Diga-me só que ele me ama! Xavier, mui impressionado,
pegou na mão da jovem e apoiou-a contra o coração.
— Escuta-o, a ele próprio, ao teu Estanislau! — exclamou, deixando sair dos lábios uma torrente de protestos de ardente amor, como que inspirados na mais devoradora
paixão.
Caíra aos pés de Hermenegilda, enlaçara-a nos braços e procurava atraí-la a si, quando a jovem o repeliu, fixando-o com um olhar estranho.
— Vaidoso boneco! — disse com voz surda. Ainda que te desse vida com o calor do meu seio, nunca serias, não és o meu Estanislau! E saiu do quarto lentamente, sem
ruído; Xavier viu já tarde a sua leviandade; sentiu que amava perdidamente Hermenegilda, a noiva dum parente e amigo, e que corria o risco de atraiçoar a amizade
que o unia a Estanislau. Adotou a heroica resolução de partir sem tornar a ver a donzela e mandou arranjar as malas e preparar a carruagem.
O conde Nepomuceno ficou admirado, quando Xavier se foi despedir dele. Empregou todos os meios para o fazer desistir daquele propósito, mas Xavier, a pretexto de
negócios urgentes, recusou-se com uma firmeza que mais provinha do nervosismo do que da força de vontade.
Quando o criado de Xavier estava na antecâmara com a capa do amo e este, de espada à cinta, pegava no boné para se dirigir para a carruagem cujos cavalos relinchavam
de impaciência, abriu-se a porta do salão e Hermenegilda entrou com o pai, aproximou-se do conde Xavier e disse-lhe com um sorriso de inexprimível graça: — Vai-se
embora, meu caro Xavier? E eu que contava ouvi-lo falar mais vezes do meu amado Estanislau! Não sabe que as suas narrativas me consolam maravilhosamente? Xavier
corou e baixou os olhos. Sentaram-se. O conde Nepomuceno assegurou por várias vezes que desde muitos meses não via Hermenegilda tão tranquila e expansiva. Chegou
a hora da ceia. A uma ordem do conde, foi a refeição servida no salão em que estavam. Com o rosto animado, Hermenegilda encheu uma taça de espumante vinho da Hungria
e bebeu pelo noivo, pela liberdade e pela pátria.
— Partirei esta noite, disse Xavier consigo mesmo.
Levantada a mesa, Xavier perguntou ao criado se a carruagem o estava esperando. Este respondeu-lhe que, por ordem do conde Nepomuceno, as bagagens haviam sido descarregadas
e postas de novo no quarto, a carruagem voltara para a cocheira e os cavalos para a cavalariça.
Xavier tomou um partido. A imprevista aparição de Hermenegilda convencera-o de que era possível e, mais ainda, conveniente que ficasse, e desta convicção resultou
uma outra: devia ser senhor de si, isto é, reprimir os arrebatamentos da paixão, os quais, irritando o espírito doentio de Hermenegilda, lhe podiam ser prejudiciais.
E terminou estas reflexões dizendo que podia esperar tudo das circunstâncias, e que Hermenegilda, tirada dos seus devaneios, viria talvez a preferir um presente
tranquilo a um futuro duvidoso, e que, ficando no castelo, não era nem desleal nem traidor para com o amigo.

7
Xavier tornou a ver Hermenegilda. Comedindo-se com cuidado, conseguiu acal— mar o ardor do sangue e lutar eficazmente contra a paixão. Conservando-se nos limites
das mais estritas conveniências, deu à conversação o tom melífluo de galantaria que muitas vezes oculta um veneno funesto para a mulher.
Xavier, mancebo de vinte anos, pouco hábil nas astúcias amorosas, mais guiado por um fino tacto, demonstrou a arte dum experimentado mestre. Só falou de Estanislau,
do seu inexprimível amor pela bela noiva; mas, com o fogo que ativou, soube-se destramente iluminar a si próprio, de maneira que Hermenegilda, apossada dum penoso
desvairamento, não sabia como separar as duas imagens, a de Estanislau ausente e a de Xavier presente.
Em breve a presença deste se tornou indispensável para Hermenegilda, completamente fascinada; viram-nos então quase sempre juntos e conversando familiarmente como
dois namorados. O hábito foi gradualmente vencendo a timidez de Hermenegilda, e ao mesmo tempo Xavier transpôs a barreira que entre eles levantavam as frias conveniências
e em cujos limites se conservara até ali. Hermenegilda e Xavier passeavam, de braço dado, pelo parque e a jovem abandonava-lhe negligentemente a mão quando, sentado
junto dela no seu quarto, o mancebo falava de Estanislau.
Absorvido pelos negócios de Estado, e por tudo que se relacionava com a pátria, o conde Nepomuceno era incapaz de sondar corações. Contentava-se em ver o que se
passava à superfície; o seu pensamento, morto para qualquer outro assunto, não podia refletir senão passageiramente, como um espelho, às fugitivas imagens da vida,
que se desvaneciam sem deixar vestígios. De modo algum suspeitou do estado do coração de Hermenegilda e não achou mau que a filha trocasse um mancebo vivo pelo boneco
que o delírio lhe fazia tomar pelo noivo. Julgou mostrar mui finura ao prever que Xavier, genro tão conveniente como o outro, não tardaria a substituir Estanislau,
e deixou de pensar neste último.
Xavier teve análogas ideias; persuadiu-se de que, ao cabo de alguns meses, Hermenegilda, por mais preocupada que estivesse com o pensar em Estanislau, consentiria
em escutar os juramentos daquele que o substituía.
Uma manhã, disseram que Hermenegilda se fechara nos seus aposentos, com a criada de quarto, e que não queria ver pessoa alguma.
O conde Nepomuceno julgou que se tratava dum novo paroxismo, que pouco duraria. Rogou ao conde Xavier que empregasse na cura da filha o império que sobre esta exercia,
mas qual foi o seu espanto quando Xavier não só se recusava a ir ter com Hermenegilda sob pretexto algum, mas também mostrava mudança completa na sua conduta! Em
lugar de ostentar, como dantes, uma ousadia excessiva, estava perturbado como se houvesse visto fantasmas; tinha a voz trémula, exprimia-se com dificuldade e a sua
conversação era vaga, incoerente.
Declarou que se via obrigado a voltar a Varsóvia; que nunca mais tornaria a ver Hermenegilda; que, nos últimos tempos, o desvairamento da doente o enchera de espanto;
que renunciava a todas as venturas do amor; que a felicidade de Hermenegilda, levada até o delírio, lhe fazia cruelmente sentir a extensão da perfídia de que ia
tornar-se culpado para com o amigo, e que uma pronta fuga era o único recurso que se lhe antolhava.
O conde Nepomuceno nada compreendeu desta conversa, e esteve tentado a crer que o desvairamento de Hermenegilda contagiara o mancebo. Em vão procurou tranquilizá-lo.
Quanto mais o conde provava a necessidade de ver a filha para a curar das suas extravagâncias, mais Xavier teimava em recusar. O oficial abreviou esta discussão
atirando-se para dentro da sua carruagem, e afastando-se como que impulsionado por um poder oculto e incompreensível.
O conde Nepomuceno, irritado e pesaroso com a conduta da filha, não mais se importou dela e Hermenegilda passou muitos dias metida nos aposentos com a criada.
Um dia o conde Nepomuceno estava no quarto, sentado e mergulhado nas suas reflexões. Pensava nas façanhas do homem que os polacos invocavam então como um ídolo,
ídolo falso (3). De repente abriu-se uma porta e Hermenegilda apareceu de luto carregado, quase totalmente coberta por um comprido véu preto; aproximou-se do pai
a passos lentos, solenes e caiu de joelhos, dizendo com voz trémula: — Meu pai! O conde Estanislau, meu mui amado noivo, já não existe! Caiu como um bravo num combate
sangrento! Está ajoelhada a teus pés a sua inconsolável viúva! O conde Nepomuceno considerou estas palavras como uma nova prova do desequilíbrio mental de Hermenegilda,
tanto mais que, no dia precedente, recebera notícias da boa saúde de Estanislau. Ergueu-a com brandura, dizendo: — Tranquiliza-te, querida filha. Estanislau está
de saúde; dentro em pouco o terás nos teus braços.
Hermenegilda deu um suspiro, que mais parecia o estertor dum moribundo e, ferida por dor estranha, foi cair sobre os coxins, ao lado do pai. Levou alguns instantes
a restabelecer-se daquele delíquio, e disse com singular tranquilidade: — Deixe-me dizer-lhe, meu caro pai, o que se passou, para que possa reconhecer— me como viúva
do conde Estanislau. Há seis dias, à tardinha, achava-me no pavilhão situado no sul do parque. Todo o meu ser, todos os meus pensamentos eram para o meu bem amado.
Senti que os olhos se me fechavam involuntariamente; não dormia mas estava num estranho estado a que não posso dar outro nome senão o de alucinação. Zumbiram-me
os ouvidos e pareceu-me que a casa andava à roda; ouvi um tumulto sinistro e um estrondear de tiros, que se aproximavam cada vez mais. Levantei-me e mui espantada
fiquei de me achar numa barraca de campanha. Ele, o meu Estanislau, estava de joelhos em frente de mim! Abracei-o. — "Deus seja louvado! exclamei; vives, és meu!"
Disse-me que logo apôs a cerimônia nupcial eu caíra num profundo desmaio. Lembrei-me então da benção que nos fora dada, numa capela vizinha, pelo padre Cipriano,
no meio do troar da artilharia e do ruído do combate. Cintilava-me no dedo o anel de casamento; era inexprimível a ventura que sentia em apertar meu esposo nos braços;
um arrebatamento sem nome, e que nunca experimentara, me enchia a alma; meus sentidos se perturbaram; apoderou-se de mim um frio de gelo; fechei os olhos. Espetáculo
horroroso! De repente, acho-me no meio duma refrega furiosa. A tenda, donde provavelmente me haviam arrancado, arde. Estanislau é rodeado por cavaleiros inimigos;
os amigos voam em seu socorro, mas é tarde! Um dos cavaleiros derruba o meu querido esposo...
Esmagada pela dor, Hermenegilda caiu de novo desmaiada. Nepomuceno correu em busca de cordiais, que não teve tempo de aplicar porque a filha recuperou os sentidos
sob a ação duma energia singular.
— Cumpra-se a vontade do céu! — disse ela, surda e solenemente; não devo lastimar-me; mas, fiel ao meu esposo ate à morte, respeitarei a sua memória e jamais tomarei
ligação alguma terrestre! Chorá-lo, orar por ele e pela nossa salvação, eis o dever a que nunca faltarei!

8
O conde Nepomuceno julgou que a loucura da filha criara aquela visão. Esperou que o luto de Hermenegilda contribuiria para mudar tão desordenada agitação em uma
dor tranquila e concentrada, e contou com o regresso do conde Estanislau para pôr termo a esta nova extravagância.
Por vezes o velho fidalgo pronunciava as palavras: devaneios, visões; mas Hermenegilda sorria com amargura, unia aos lábios o anel de ouro, que trazia no dedo, e
banhava-o em lágrimas ardentes.
O conde notou com espanto que aquele anel não pertencia realmente à filha; nunca lho vira; fez mil conjecturas sobre a sua proveniência, mas sem se dar ao trabalho
de uma investigação séria.
Veio afligi-lo uma má nova: o conde Estanislau fora feito prisioneiro.
Por esta época chegou ao castelo o príncipe Zapolski com sua mulher. Morta a mãe de Hermenegilda, a princesa substituíra-a para com a órfã, que lhe testemunhava
dedicação filial. A jovem, patenteando-lhe o coração, lastimou-se amargamente de que, embora tivesse as mais convincentes provas da sua união com Estanislau, a tratassem
como visionária e insensata. A princesa, já sabedora do desequilíbrio mental de Hermenegilda, de modo algum a quis contradizer; contentou-se em lhe assegurar, que
com o tempo tudo se esclareceria e que por enquanto era conveniente que se submetesse à vontade do céu.
A princesa tornou-se mais atenta quando Hermenegilda lhe falou do seu estado físico, e lhe descreveu os sintomas singulares duma indisposição que sentia. Viram a
princesa velar por Hermenegilda com a mais viva solicitude e surpreendente ansiedade, à medida que a jovem parecia restabelecer-se. Uma vermelhidão bem pronunciada
foi substituindo, a pouco e pouco, a palidez lívida do rosto e dos lábios de Hermenegilda, e os olhos perdiam o fogo sombrio, sinistro, que dantes os animava, e
tornavam-se suaves e serenos. As suas formas emagrecidas arredondavam-se a olhos vistos, e dentro em pouco voltaram a frescura e a beleza.
Todavia a princesa parecia considerá-la mais doente do que nunca, porque, logo que ela suspirava ou empalidecia um pouco, lhe perguntava com inquietação bem visível:
— Como estás? O que tens? O que sentes, minha filha? O conde Nepomuceno, o príncipe e a princesa, reuniram-se um dia, discutindo o estado de Hermenegilda e a sua
ideia fixa de que era viúva de Estanislau.
— Infelizmente creio o seu delírio incurável, disse o príncipe, porque não estando fisicamente doente, as forças corporais mantêm-lhe a perturbação da alma.
A princesa levantou os olhos ao céu com um modo triste e pensativo.
— Sim, continuou o príncipe, não sofre e contudo, em seu detrimento, atormentam— na fora de propósito como se fora uma doente.
A princesa, a quem se dirigiam estas palavras, olhou de frente para o conde Nepomuceno e redarguiu num tom vivo e resoluto: — Não, Hermenegilda não está doente;
mas se não fosse impossível ela ter-se entregado a alguém, diria, convencida, que está gravida.
E, dizendo isto ergueu-se e saiu do salão.
O conde e o príncipe ficaram atônitos, como que feridos por um raio. O príncipe foi quem primeiro tomou a palavra, dizendo que a mulher também tinha por vezes visões
singulares.
O conde respondeu de modo severo: — A princesa tem razão; uma tal falta da parte de Hermenegilda está no rol das cousas impossíveis. Mas, se te disser que o mesmo
pensamento me ocorreu ontem quando a vi, que esta ideia me foi facilmente sugerida pelo seu aspecto, compreenderás naturalmente quanta comoção, quanto pesar me causaram
as palavras da princesa.
— Pois é preciso que um médico ou uma parteira decidam a questão, tornou o príncipe, para que seja aniquilado o juízo talvez precipitado da princesa ou comprovada
a nossa vergonha.
Durante muitos dias divagaram sobre vários projetos. Pareceu-lhes cada vez mais suspeito o estado de Hermenegilda e decidiram consultar a princesa sobre o que se
devia fazer. Esta rejeitou a intervenção dum médico tagarela e acrescentou que dentro de cinco meses seriam precisos outros socorros.
— Quais? — perguntaram ao mesmo tempo o conde e o príncipe.
— Já não tenho dúvidas, prosseguiu a princesa com modo firme. Ou Hermenegilda é uma hipócrita infame ou há nisto um mistério inconcebível. Está positivamente grávida.
Esmagado pela consternação, o conde não pôde a princípio articular palavra; mas depois, dominando-se com esforço, pediu à princesa para que a todo o custo soubesse
de Hermenegilda o nome do miserável que imprimira no seu nome uma nódoa indelével.
— Hermenegilda ainda não suspeita de que conheço o seu estado, disse a princesa, e decerto saberei tudo logo que lho diga. Cairá a máscara da hipocrisia ou terei
brilhantes provas da sua inocência, o que, devo confessar, me parece mui problemática.

9
Naquela mesma noite, a princesa foi ter com Hermenegilda, cuja gravidez era cada vez mais aparente. Pegou-lhe nos dois braços, encarou-a bem e disse-lhe de repente
e com intimativa: — Minha querida, tu estás grávida! Hermenegilda ergueu os olhos ao céu como num êxtase celeste, e exclamou com a mais viva alegria: — Oh! Minha
mãe, minha mãe, eu bem o sei! Sei-o há mui tempo e sinto um inexprimível bem estar, não obstante o meu caro esposo ter caído sob os golpes homicidas dos inimigos.
Sim, sinto ainda os momentos da minha maior felicidade terrestre. e o meu bem amado revive no terno penhor duma doce união! Pareceu à princesa que tudo dançava em
volta de si e que ia perder a cabeça. A ingenuidade das expressões de Hermenegilda, o seu arroubamento, aquele tom de verdade, não permitiam acusá-la de perfídia,
e só se podia compreender que o delírio a cegasse a respeito da grandeza do seu erro.
Ferida por esta última ideia, a princesa repeliu a jovem e exclamou colérica: — Insensata! Podia um sonho pôr-te nesse estado, que a todos nós nos vota à ignomínia?
Julgas lograr-me com essas narrativas absurdas? Reflete; invoca as tuas recordações; só uma confissão ditada pelo arrependimento te pode reconciliar connosco.
Banhada em lágrimas de dor, Hermenegilda caiu aos pés da princesa, dizendo com voz de agonia:
— Também tu, minha mãe, me chamas visionária? Também tu recusas crer que a Igreja me uniu a Estanislau; que sou sua mulher? Não vês o anel que trago no dedo? Mas
o que estou eu a dizer? Pois conhecendo tu o meu estado, não achas isto bastante para te convenceres de que não sonhei? Com grande espanto seu, a princesa reconheceu
que nunca o pensamento duma falta ocorrera a Hermenegilda e que esta não compreendia as censuras que lhe dirigira. A triste, apertando com fogo contra o coração
as mãos da mãe adotiva, suplicou-lhe que acreditasse no casamento, comprovado como era pelo seu estado. A boa senhora, desconcertada, fora de si, não soube o que
responder, nem que meio devia empregar para descobrir algum vislumbre do segredo que envolvia Hermenegilda.
Só muitos dias depois é que a princesa declarou ao conde Nepomuceno que era impossível saber qualquer cousa pela jovem, que julgava, com profunda convicção, trazer
no seio um fruto do amor de seu esposo.
O conde e o príncipe, irritados, alcunharam Hermenegilda de hipócrita, e Nepomuceno jurou que, se os meios brandos não conseguissem dissipar-lhe a loucura e arrancar-lhe
a confissão da sua desonra, usaria de medidas de rigor.
A princesa foi de opinião que o emprego da força seria tão cruel como inútil, pois que estava convencida de que Hermenegilda, longe dum embuste, acreditava com toda
a alma no que dizia. E acrescentou: — No mundo há ainda muitos mistérios que estamos mui longe de compreender. Quem sabe se uma ardente união do pensamento terá
uma ação física e se as relações espirituais de Estanislau e Hermenegilda produziram esse estado que nos parece incompreensível? Não obstante a cólera e as inquietações
do presente, o príncipe e o conde não puderam deixar de rir, e classificaram a ideia da princesa como uma das mais sublimes e etéreas que o espiritualismo pode ainda
produzir.
A princesa, excessivamente corada, disse que semelhantes cousas se achavam fora do alcance do espírito dos homens; persuadida, como estava, da inocência de Hermenegilda,
não deixava de julgar crítica a posição. Propôs uma viagem com Hermenegilda, como o único meio de a subtrair à vergonha.
O conde concordou com esta proposta, porque Hermenegilda mistério algum fazia da gravidez e, se queria conservar a reputação, devia afastar-se do círculo das suas
habituais relações.
Regulada a questão, todos se sentiram mais tranquilos, especialmente o conde, perante a possibilidade de esconder o funesto segredo ao mundo, cujo escárnio era o
que ele mais temia. O príncipe julgou com razão que, dado o estranho encadeamento das circunstâncias e o desarranjo mental de Hermenegilda, se devia esperar que
o tempo trouxesse o desfecho de tão extraordinário acontecimento.
Fechada a discussão, iam separar-se, quando a repentina chegada do conde Xavier veio causar novos cuidados e embaraços.
Afogueado por uma rápida correria, coberto de pó, Xavier precipitou-se no salão com o ardor que produz uma paixão desordenada, e, sem cumprimentar, nem dar atenção
a pessoa alguma, gritou com voz estridente: — Morreu! O conde Estanislau morreu! Não caiu prisioneiro... não... foi morto pelo inimigo... aqui estão as provas!...
E, dizendo isto, tirou rapidamente da algibeira várias cartas e entregou-as ao conde Nepomuceno, que ficou transtornado com o conteúdo. A princesa deitou um olhar
a uma das cartas; logo às primeiras linhas pôs as mãos, ergueu os olhos ao céu e exclamou dolorosamente: — Hermenegilda! Pobre criança! Que inexplicável mistério
Vira que o dia da morte de Estanislau era precisamente o que Hermenegilda designara como sendo o da sua entrevista com o noivo, e que estes dois acontecimentos deviam
ter sido simultâneos.
— Morreu, disse Xavier vivamente. Hermenegilda está livre. Obstáculo algum se levanta entre ela e mim, e eu amo-a mais do que a vida. Peço a sua mão! O conde Nepomuceno
estava incapaz de responder. A princesa tomou a palavra, e declarou que certas circunstâncias os colocavam na impossibilidade de bem acolherem aquele pedido, que
presentemente ele não podia ver Hermenegilda e que lhe pediam para partir o mais depressa possível.
Xavier respondeu, que mui bem conhecia a perturbação do espírito de Hermenegilda, à qual naturalmente queriam aludir, mas que não a considerava como obstáculo, pois
que o casamento poria termo àquele estado funesto.
A princesa afirmou-lhe que Hermenegilda jurara conservar-se fiel a Estanislau até a morte, que repeliria qualquer aliança e que finalmente a jovem não estava no
castelo.
Xavier pôs-se a rir, dizendo que lhe bastava o consentimento do pai e que tomaria o cuidado de restabelecer a tranquilidade na alma de Hermenegilda.
Irritado ao último ponto com a importunidade do mancebo, o conde Nepomuceno declarou que era inútil contar com o seu consentimento e convidou Xavier a sair do castelo.
Xavier encarou-o fixamente, abriu a porta do vestíbulo e gritou ao cocheiro que apeasse as bagagens, que desarreasse os cavalos e os metesse na cavalariça. Depois
voltou para o salão e sentou-se numa poltrona junto à janela, dizendo num tom tranquilo e severo: — Só à força me arrancarão do castelo antes de ter visto Hermenegilda,
antes de lhe ter falado.
— Então ficará aqui por mui tempo —, respondeu o conde Nepomuceno. — E quanto a mim cedo-lhe o lugar e peço licença para deixar o castelo.
O conde Nepomuceno, o príncipe e a princesa saíram logo do salão para prepararem a partida imediata de Hermenegilda.
Quis o acaso que a jovem, contra os seus hábitos, saísse a passear no parque. Xavier avistou-a da janela, correu e alcançou-a quando entrava no fatal pavilhão do
sul. O seu estado era bem visível.
— Oh! Poder celeste — exclamou Xavier.
E caiu de joelhos diante dela, fazendo-lhe os mais ardentes protestos de amor e suplicando-lhe que o aceitasse por esposo.
— Conduziu-o aqui um mau gênio —, respondeu Hermenegilda com temor e surpresa. — Não procure perturbar a minha tranquilidade. Serei fiel até a morte ao meu bem amado;
nunca, nunca serei mulher de outro!
Xavier, vendo repelidas as suas instâncias e súplicas, disse-lhe que se enganava a si própria, que já dera a ele, Xavier, as mais doces provas de amor; mas quando
se levantou e quis apertá-la nos braços, Hermenegilda, numa palidez mortal, repeliu-o cheia de horror e desdém, dizendo:
— Miserável! Louco presunçoso! Não poderás determinar-me a violar a fé jurada, como não podes anular a prova da minha união com Estanislau! Sai da minha presença!
Xavier cerrou os punhos, e, dando uma gargalhada de desprezo, exclamou: — Insensata! Não quebraste tu mesmo esses absurdos juramentos? A criança que trazes no seio
é meu filho! Fui eu que te apertei nos braços aqui, neste mesmo lugar! Foste minha amante e só te restará este título, se o não trocares pelo de esposa!
Hermenegilda fixou-o com um olhar onde brilhavam as chamas do inferno.
— Monstro! — exclamou ela.
E, como que ferida de morte súbita, caiu ao chão.

10
Xavier voltou correndo ao castelo, como se fosse perseguido por todas as fúrias do inferno; encontrou a princesa no caminho, pegou sua mão e arrastou-a para o salão.
— Repeliu-me com horror, a mim, ao pai de seu filho!
— Por todos os santos do paraíso! Tu, Xavier! Fala! Será possível?
— Podem me condenar —, disse ele um pouco mais sossegado. — Mas quem tiver nas veias um sangue ardente como o meu será também culpado num momento de fascinação.
Encontrei Hermenegilda no pavilhão; era tão extraordinário o seu estado que não posso descrevê-lo. Estava estendida num canapé e parecia sonhar, entregue a sono
profundo. Apenas entrei, levantou-se, veio ao meu encontro, pegou minha mão e me levou para o meio da sala com passos lentos, solenes. Ajoelhou e eu fiz o mesmo;
pôs-se a rezar e compreendi que imaginava ter um padre na sua presença. Tirou do dedo um anel e apresentou-o ao invisível sacerdote. Recebi-o e dei-lhe o meu em
troca. Em seguida deixou-se cair nos meus braços, num acesso de amor ardente... Quando fugi, Hermenegilda ficou mergulhada em profunda modorra...
— Miserável! Que horrendo crime! — exclamou a princesa, fora de si.
O conde Nepomuceno e o príncipe entraram e ficaram a par das confissões de Xavier; a princesa sentiu-se ferida em sua delicadeza, quando declararam a ação criminosa
de Xavier desculpável, já que podia ser reparada pelo casamento.
— Não —, disse a princesa, jamais Hermenegilda concedeu a mão àquele que, à laia de gênio mau, envenenou sua existência com um crime odioso.
— Pois é preciso que seja minha mulher —, disse o conde Xavier com fria e desdenhosa altivez —; assim é necessário, para a salvação de sua honra. Fico e tudo se
arranjará.
Neste momento ouviu-se um ruído surdo; traziam para o castelo Hermenegilda, que o jardineiro encontrara desmaiada no pavilhão. Colocaram-na num sofá; antes que a
princesa tivesse tempo de impedir, Xavier pegou a mão de Hermenegilda. Esta, de súbito levantou-se, dando um horroroso grito que nada tinha de humano; imóvel, mas
ela inteira em terrível convulsão, fixou no conde um olhar cintilante.
Era tão fulminante o seu olhar que Xavier cambaleou e murmurou com voz inteligível a custo: — Um cavalo!
A um sinal da princesa, saíram para aprontar um.
— Vinho! Vinho! — exclamou o mancebo.
Depois de beber precipitadamente alguns copos, montou de um pulo no cavalo e desapareceu.
O estado de Hermenegilda, cujo sombrio delírio parecia querer degenerar em loucura furiosa, mudou as disposições do pai e do príncipe, que reconheceram pela primeira
vez o horror da irremediável ação de Xavier. Quiseram mandar chamar um médico, mas a princesa rejeitou os socorros da ciência, pois que o caso só requeria, talvez,
consolações espirituais; por isso foi chamado o padre Cipriano, frade da ordem mendicante do Carmo e confessor da casa, o qual conseguiu tirar Hermenegilda do seu
abatimento e delírio. As melhoras acentuaram-se. Teve com a princesa conversas bem orientadas e exprimiu o desejo de ir, após o parto, viver penitente, desolada,
no convento da ordem de Cister, em Oppeln.
Acrescentou aos trajes de luto, um véu que lhe escondia completamente o rosto e que nunca mais ergueu.
O padre Cipriano saiu do castelo, mas voltou no fim de alguns dias. Entretanto o príncipe Zapolski escrevia ao burgomestre de Lilinitz, em casa de quem Hermenegilda
devia ter o parto; a abadessa do convento de Cister, parente da casa, devia conduzi-la a Lilinitz; durante este tempo a princesa viajaria pela Itália, acompanhada,
na aparência, por Hermenegilda.
Era meia-noite; a berlinda que devia transportar a infeliz ao convento parou à porta. Acabrunhado pela dor, Nepomuceno, o príncipe e a princesa, esperavam a pobre
criança para fazerem as suas despedidas.
Apareceu coberta com o véu, ao lado do frade, que trazia na mão um candelabro, cuja luz iluminou o vestíbulo.
— A irmã Celestina —, disse Cipriano com voz solene —, pecou gravemente quando ainda pertencia ao mundo; um crime de Satanás poluiu sua pureza; mas um voto, que
nunca quebrará, há de dar-lhe consolação, tranquilidade e a ventura eterna! Nunca mais o mundo tornara a ver seu rosto, cuja beleza tentou o demônio! Olhem: é assim
que Celestina vai começar a expiação.
O monge levantou o véu e todos deram um grito: Hermenegilda escondera para sempre a angélica beleza do rosto sob uma máscara de palidez mortal.
Sem proferir uma palavra, a jovem separou-se do pai, que, esmagado pela dor, julgou não poder suportar a vida; o príncipe, homem de mais firmeza, verteu contudo
uma torrente de lágrimas; só a princesa, domando com todas os forças o horror que lhe inspirava aquele voto, conseguiu ser senhora de si.
Nunca se pôde explicar como o conde Xavier descobriu o retiro de Hermenegilda, como soube a consagração do recém-nascido à igreja. Foi inútil o rapto do filho, porque,
quando chegou a Praga e o quis entregar a uma mulher de confiança, não estava desmaiado de frio, como Xavier pensara, mas sim morto. O conde Xavier desapareceu sem
deixar vestígios; pensou-se num suicídio.
Eram passados muitos anos quando o príncipe Boleslau Zapolski, durante uma viagem a Nápoles, foi visitar o monte Pausilippo, onde se ergue, no meio da mais deliciosa
região, o convento dos Camaldulos. O príncipe dirigiu-se para ali a fim de gozar um panorama dos mais afamados do reino napolitano.
Ao passar pelo jardim do convento, reparou num frade sentado numa grande pedra, com um livro de horas aberto sobre os joelhos e os olhos perdidos no horizonte. No
rosto, ainda juvenil, tinha impresso um profundo pesar.
Uma vaga recordação assaltou o príncipe à medida que se aproximava. Cuidadosamente foi prostrar-se atrás dele e reconheceu que o livro era escrito em polaco. Em
polaco falou ao religioso, mas este voltou-se com espanto e, apenas reparou no príncipe, velou o rosto e fugiu por entre as moitas, como que perseguido por um gênio
mau.
Quando o príncipe contou o incidente ao conde Nepomuceno, este assegurou-lhe que o frade era o conde Xavier.

 


Notas


1 A Polônia foi vencida na batalha de Maciejowice em 4 de outubro de 1794 e nela o valente caudilho disse a célebre frase: Finis Poloniæ, grito de desespero daquele heroico coração. Kosciusko caiu nas mãos dos russos e foi posto em liberdade pelo czar Paulo I. Morreu obscuro em 1817 com 71 anos de idade.
2 Personagens de uma comédia do conde Carlos Gozzi.
3 É provável que Hoffman se refira aqui a Napoleão, com quem os poloneses inutilmente contaram para restabelecer-lhes a independência.

 

 

 

                                                                  E. T. A. Hoffman

 

 

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