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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTOS ESCOLHIDOS / Aldous Huxley
CONTOS ESCOLHIDOS / Aldous Huxley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

O jovem Aldous Huxley viu a guerra de longe. Considerado inapto para o serviço militar, em razão dos graves problemas de visão que o acompanhariam por toda a vida, ele permaneceu em segurança no bucólico interior da Inglaterra, enquanto seus colegas de Eton e Oxford enfrentavam no continente o horror das trincheiras. Apesar disso, ou por essa mesma razão, a peculiar dialética que atinge o intelectual moderno fez com que Huxley se tornasse um dos observadores mais argutos dos efeitos devastadores gerados pela guerra de 1914-18 (que ainda não se chamava a Primeira, mas permaneceu sendo a Grande, para a maioria dos europeus).
A catástrofe da guerra abalou a confiança no progresso da ciência, varreu do mapa boa parte das monarquias europeias, enfraqueceu as bases ideológicas e políticas da manutenção dos extensos Impérios coloniais e, ao mesmo tempo em que fez despontar a esperança da Revolução Russa, destruiu também as certezas de toda uma geração. As artes acusaram o golpe, e se esforçaram para retratá-lo em novas formas. Nas áreas em que o jovem Huxley exercia intensa atividade crítica, como a música e as artes plásticas, mas também na poesia e no drama, gêneros aos quais dedicou seus esforços durante o conflito, o impacto da guerra solapou a confiança nas formas tradicionais de representação, já questionadas pelo modernismo da virada do século. A situação de crise abriu espaço para o radicalismo das vanguardas, termo não por acaso retirado do jargão militar.
No âmbito da narrativa, essa ruptura histórica e formal se consolidou em duas grandes vertentes da literatura europeia do pós-guerra. De um lado, aqueles que se aproximavam das intenções vanguardistas, optando por uma subversão ainda mais radical da forma, na tentativa de expressar, acolhendo as ruínas da narrativa realista, todo o sofrimento e absurdo da nova situação. De outro, os que adotavam uma atitude de certo modo conservadora, do ponto de vista formal, mas contemporânea quanto ao tom e matéria. Autores que ainda escreviam como os mestres realistas do século xix, mas exibiam uma irônica consciência da insuficiência dos meios narrativos que utilizavam para retratar o conturbado século xx.
Aldous Huxley faz parte dessa segunda vertente, aproximando-se do alemão Thomas Mann. Ambos foram logo reconhecidos pela crítica como grandes escritores, mas também foram acusados de passar ao largo das inovações técnicas que marcaram a narrativa dos anos 1920. Em busca de uma redefinição dos procedimentos realistas, ambos desenvolveram novas formas para a antiga “narrativa de ideias”, em que o essencial não é a ação dos protagonistas, mas sim o modo como, em longos diálogos e discussões, as personagens refletem sobre questões artísticas, políticas e sociais de seu tempo. O leitor atento percebe, através do olhar ao mesmo tempo compassivo e distanciado do narrador, que os dilemas da vida intelectual europeia, expostos em intermináveis jantares e festas, são também a prova de que seus fundamentos já estavam condenados historicamente.
Com o rigor ferino do humour britânico, sem dúvida mais acessível que a ironia metafísica alemã, Huxley retratou a comicidade involuntária da tragédia de seus personagens, atordoados na agitação desesperada dos roaring twenties. Nesse período, sua produção seguia o ritmo da época: em dez anos, Huxley publicou cinco livros de contos e novelas, seus primeiros quatro romances, além de vários volumes de ensaios, críticas e relatos de viagem. Três décadas e outra guerra depois, tendo trocado a velha Inglaterra pelos Estados Unidos e abandonado a narrativa curta para se dedicar aos experimentos filosóficos e aos romances, foi convencido a reunir seus melhores contos em um único volume. O resultado da escolha gerou o livro que o leitor tem em mãos, publicado pela primeira vez em 1957.
Os vinte e um contos valem por si, mas também reconhecemos neles a semente daquilo que, nos romances posteriores, iria caracterizar o típico narrador huxleyano, capaz de convencer e emocionar pela erudição sincera, ao mesmo tempo em que questiona a ideia e os usos da cultura. Sua crítica à afetação intelectual da elite inglesa adquire, desde o primeiro momento, o sentido de um diagnóstico do tempo, e isso afasta as suspeitas de um pedantismo ainda maior por parte do autor. No conto que abre o livro, vemos as consequências da distância entre a elevada educação clássica defendida pelos mestres de Oxford e a realidade mais palpável da guerra (e também do amor) na vida de seus jovens alunos. A visita a uma livraria, que “sobrevivia como um luxo” em meio ao comércio barato de um bairro pobre, aparentemente reforça o habitual desprezo pela ignorância das massas, mas a crença na superioridade intelectual revela-se tão frágil quanto o livro inútil comprado e logo jogado fora. Na história de Eupompus, o louvável interesse pela ciência transforma-se em obsessão descontrolada, levando o narrador a justificar o suicídio como única saída para o “lamentável absurdo da situação”. O universo clássico de Oxford nos impressiona, mas até mesmo a semelhança olímpica de alguns personagens com os deuses gregos tem um lado nefasto, como percebemos em “Cynthia”.
No mundo prosaico e pretensioso, o que reina, além da afetação esnobe, é o tédio de um cotidiano sem sentido, revelado na mordaz caracterização de alguns personagens: “Seus gostos eram excêntricos, seus hábitos, deploráveis, a amplitude de sua informação, imensa. Como ele agora está morto, nada mais direi sobre seu caráter”. A valorização da cultura e o interesse pelas artes, genuinamente cultivados por Huxley, aparecem nos contos como saudáveis diversões inócuas, como lemos em um diálogo de “Túneis verdes”: “A maior parte da vida — continuou o Sr. Topes — é um esforço prolongado para impedir-se de pensar. Seu pai e eu, nós colecionamos quadros e lemos a respeito dos mortos. Outras pessoas conseguem o mesmo resultado bebendo, ou criando coelhos, ou fazendo trabalho amador de carpintaria. Qualquer coisa para não pensar calmamente sobre coisas importantes”. Em outro conto, Huxley descreve a frivolidade de uma festa “classe alta” e “bastante cultural” da elite londrina: “Por que se vai a festas, por que razão? Sempre as mesmas pessoas chatas, o mesmo escândalo enfadonho e os mesmos truques de salão. Todas as vezes”.
Os personagens de Huxley estão a um passo de perceber que seus comportamentos são ditados pelo papel social que representam, mas não têm consciência de que representam esses papéis também para si mesmos. A maioria das conversas fiadas eruditas ocorre quando, na verdade, o que está em jogo é o dinheiro e a posição social dos interlocutores. Os retratos que Huxley faz dessa elite aristrocrática se aproximam das telas em que a Nova Objetividade vai pintar, na mesma época, as deformações da grande burguesia europeia. Um exemplo disso é o pungente banquete de Tillotson, no qual ricaços entediados organizam um jantar festivo para o último pintor pré-rafaelita vivo, o “decano da arte inglesa”. Apesar dos esforços de um jovem crítico de arte, o grupo de aristocratas se constrange com a própria soberba e frivolidade, quando o pintor ancião discursa sobre temas realmente profundos, em vez de encarar a homenagem como uma diversão frívola. Em outro conto, o interesse artístico não se distingue muito da decoração de interiores: “— Em uma casa desse estilo e com uma posição como a minha, é preciso ter alguns quadros. Velhos mestres, sabe; Rembrandt e aqueles sujeitos”.
O sexo é outro tema importante. Nos contos, o conflito entre os desgastados valores vitorianos e a liberalidade dos anos loucos revela mais um ingrediente da hipocrisia geral. Embora Freud seja citado algumas vezes (Huxley o considerava monomaníaco, mas admirava sua capacidade de ler com profundidade as metáforas mais banais), o modelo é a obra “escandalosa” de D. H. Lawrence, grande amigo do autor, que também desprezava o moralismo doentio de seus conterrâneos. Em “O sorriso de Gioconda”, uma virgem de 36 anos “presa de um tédio apavorante” sucumbe a um sedutor barato, e também a seu destino; em “Felizes para sempre”, um jovem em licença de guerra recusa como demasiado carnal o amor que lhe oferece a jovem namoradinha. Como sempre, o tema também faz parte das conversas, nas quais sempre é de bom-tom aceitar o sexo como “coisa natural”, ao mesmo tempo em que se atenta para a importância da manutenção das aparências: “Se quiser ir para a cama com o rapaz, vá para a cama com ele — disse. — A coisa em si não tem importância. Pelo menos não muita. Só é importante porque torna confidências mais secretas, porque fortalece a afeição, faz o homem ficar mais dependente, de certo modo. Além disso, é claro, é a coisa natural. Sou totalmente a favor da natureza, a não ser quando se trata de pintar o rosto”, aconselha uma personagem experiente, no conto “Hubert e Minnie”.
Sexo, natureza, arte e cultura vão se encontrar nas paisagens ensolaradas da Itália, refúgio preferido da elite inglesa, do próprio Huxley e de vários de seus colegas escritores (como James Joyce e D. H. Lawrence). Em várias narrativas, a figura exótica do “inglês em viagem” reforça o contraste entre a ridícula autoconsciência dos britânicos e a suposta espontaneidade mediterrânea dos latinos. Diante do onipresente passado da grande arte italiana, o sentimento de inferioridade é compensado pela ilusão de que toda essa cultura será salva das ruínas justamente pelo empenho culto dos ingleses, reais herdeiros da Antiguidade Clássica (os alemães, desde Goethe, também cultivaram essa ideia bárbara). É mais fácil, entretanto, comprar uma tela do que salvar o legado de séculos de cultura, como percebemos no conto “Mexicaninho”. Nas viagens, a perda temporária das rígidas normas da hierarquia social inglesa é, ao mesmo tempo, o que atrai e incomoda os personagens de Huxley: “Um dos prazeres ou perigos de viajar para o estrangeiro é que se perde a consciência de classe. Em casa não se pode esquecê-la, mesmo com a maior boa vontade do mundo”. Esse “esquecimento” gera liberdade e confusão, que o autor utiliza para desenvolver alguns de seus melhores contos: “Entre o duque e o corretor de seguros, o vigarista e o nobre rural, o olho e o ouvido inexperientes não percebem qualquer diferença”.
Pois o pano de fundo das histórias individuais, como ocorre em boa parte da literatura inglesa, é o conflito de classes. Huxley, que politicamente estava longe do humanitário socialismo inglês, percebe de dentro da elite o que existe no avesso do elitismo. O custo da distinção social é o tédio e o vazio de uma vida desprovida de sentido prático, mesmo em tempos difíceis: “Não será horrível quando não houver mais trabalho de guerra? — comentou — As pessoas não vão ter o que pensar ou fazer quando vier a paz”. A nobreza londrina acolhe com desdém os ricos burgueses que a sustentam, como bem sabe o personagem de “O monóculo”, “erudito, com cultura literária, ele estava sempre cônscio de ser herdeiro de um rico fabricante de botas”. Na distante Itália, Huxley comenta a simpatia de seus conterrâneos pelo fascismo: “Ah, os fascisti — repetiu a sra. Topes em um tom de aprovação. — Seria bom ver algo assim na Inglaterra. Com todas aquelas greves...”. As histéricas reclamações da patroa rica em Paris empalidecem diante da real infelicidade camareira que a acompanha, enquanto o pobre que espera mudar de vida ao salvar duas belas moças ricas do ataque de um buldogue é humilhado com uma cruel gorjeta.
Nas obras escritas durante os anos 1920, Huxley expõe os dilemas de sua própria classe e geração, pois sabe que os que sobreviveram à guerra não estão à altura das exigências do novo tempo. Isso aparece de forma alegórica, mas com paradoxal realismo, em dois contos desse volume. Em “O jovem Arquimedes”, um bem intencionado casal de ingleses, reconhecendo na Itália a genialidade de uma criança pobre, tenta salvá-la da ignorância da família camponesa, acreditando que “grandes épocas geram grandes homens”. A consequência é tão trágica quanto o final de outro conto, no qual um nobre inglês, de nome Hércules, tenta conviver com a dura realidade de ser um anão. Intelectual e moralmente superior aos que o cercam, termina ridicularizado pelo filho idiota de altura normal. A grandeza de Huxley, nesses breves contos, está na denúncia ao mesmo tempo trágica e irônica da pequenez do esnobismo elitista e vulgar de seus contemporâneos, e na firme convicção de que a cultura deve sempre criticar a si mesma, se não quiser ser reduzida a mera conversa de salão.
Jorge de Almeida
Doutor em filosofia e professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade de São Paulo. Tradutor e ensaísta, é autor de Crítica dialética em Theodor Adorno (Ateliê, 2007) e vários estudos sobre teoria crítica, literatura e música.

 

 


 

 


Felizes para sempre

I

Nas melhores circunstâncias é longo o caminho entre Chicago e Blaybury, em Wiltshire, mas a guerra instalou entre as duas cidades uma enorme distância. Parecia, portanto, um ato de singular devoção da parte de Peter Jacobsen ter vindo do Meio Oeste, no quarto ano da guerra, para visitar seu velho amigo Petherton, uma vez que o projeto implicava um combate solitário contra duas grandes potências a respeito de passaportes e o risco, depois que fossem obtidos, de perecer miseravelmente no caminho, vítima de atrocidades.

À custa de muito tempo e mais complicações, Jacobsen finalmente chegara; o abismo entre Chicago e Blaybury fora transposto. No vestíbulo da casa de Petherton encenou-se uma cena de boas-vindas sob o olhar vago de seis ou sete retratos de família, marrons, feitos por mestres desconhecidos dos séculos xviii e xix.

O velho Alfred Petherton, manta cinzenta nos ombros — pois precisava tomar cuidado, mesmo em junho, com correntes de ar e resfriados —, sacudia a mão de seu visitante com interminável cordialidade.

— Meu menino — repetia ele —, é um imenso prazer vê-lo. Meu menino...

Jacobsen abandonou lânguido o antebraço e esperou com paciência.

— Nunca serei suficientemente grato — continuou o sr. Petherton —, nunca, por você ter tido todo esse trabalho para vir visitar um velho decrépito; pois isso é tudo que sou agora, tudo, acredite.

— Ora, eu lhe asseguro... — disse Jacobsen, em vago protesto. “Le vieux crétin qui pleurniche”, disse a si mesmo. O francês era uma língua maravilhosamente expressiva, com certeza.

— Minha digestão e meu coração pioraram muito desde a última vez que o vi. Mas acho que lhe disse isso em minhas cartas.

— Disse, sim, e fiquei mortificado ao saber.

“Mortificado” — que sabor curioso essa palavra tinha! Como o chá de alguém, que costumava trazer à lembrança as misturas mais deliciosas de quarenta anos atrás. Mas era decididamente o mot juste. Tinha um ar obituário muito apropriado.

— Sim, minhas palpitações estão muito ruins agora — continuou o sr. Petherton. — Não estão, Marjorie? — ele recorreu à filha, parada a seu lado.

— As palpitações de papai estão muito ruins — ela respondeu, zelosa.

Era como se estivessem falando de alguma herança longa e amorosamente acalentada.

— E minha digestão... Essa enfermidade física torna tão difícil qualquer atividade mental. Mesmo assim, ainda sou capaz de produzir algo útil. Mas vamos discutir isso mais tarde. Você deve estar cansado e precisando de um banho depois dessa viagem. Vou levá-lo a seu quarto. Marjorie, você arranja alguém para subir com a bagagem?

— Eu mesmo posso fazer isso — disse Jacobsen, e ergueu uma pequena valise que tinha deixado junto à porta.

— É só isso? — perguntou o sr. Petherton.

— Só.

Pautado pela razão, Jacobsen era contra possuir coisas. Era muito fácil se tornar escravo das coisas, em vez de seu senhor. Ele gostava de ser livre; refreava seus instintos possessivos e limitava suas posses ao estritamente essencial. Sentia-se tão pouco em casa em Blaybury quanto em Pequim. Poderia ter explicado tudo isso, se quisesse. Mas no caso presente não valia a pena o trabalho.

— Esta é sua humilde câmara — declarou o sr. Petherton, abrindo a porta do que era, na verdade, um belo quarto de hóspedes, com tecidos estampados, flores nos vasos e castiçais de prata. — Pobre, mas seu.

Nobre delicadeza! Caro velhote! Citação oportuna.[1] Jacobsen desfez sua valise e arrumou o que trazia com cuidado e método nas várias gavetas e prateleiras do armário.

Já se passavam muitos anos desde que Jacobsen fora, no decorrer de seu grand tour educacional, a Oxford. Vivera alguns anos lá, pois gostava do lugar, e seus habitantes eram para ele uma infalível fonte de divertimento.

Norueguês, nascido na Argentina, educado nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra; um homem sem nacionalidade e sem preconceitos, deveras velho no que toca à experiência, Jacobsen descobriu algo muito novo, leve e divertido nos estudantes seus colegas com suas cômicas tradições de escola pública e sua fabulosa ignorância do mundo. Silenciosamente observava-os em suas pequenas farras, sentindo o tempo todo que grades os separavam dele, e ele devia, a cada truque particularmente divertido, oferecer-lhes um biscoito ou punhado de amendoins. Nos intervalos de seus passeios nesse estranho e delicioso Jardin des Plantes ele lia os Mestres, e foi através de Aristóteles que entrou em contato com Alfred Petherton, congregado e professor de sua universidade.

Petherton é um nome respeitável no mundo acadêmico. Você vai encontrá-lo na capa de livros meritórios, embora não exatamente brilhantes, tais como Os predecessores de Platão, Três metafísicos escoceses, Introdução ao estudo da ética, Ensaios sobre o neoidealismo. Algumas de suas obras estão publicadas em edições baratas como livros didáticos.

Uma dessas curiosas e inexplicáveis amizades que com frequência unem as pessoas mais improváveis surgira entre professor e aluno, e permanecera intacta por mais de vinte anos. Petherton sentia uma afeição paternal pelo rapaz mais jovem, juntamente com um orgulho de pai, agora que Jacobsen desfrutava de reputação mundial, por ter, como acreditava, lhe dado berço espiritual. E agora Jacobsen tinha viajado oito ou dez mil quilômetros atravessando um mundo em guerra só para visitar o velho. Petherton ficou profundamente emocionado.

— Você viu algum submarino no caminho? — perguntou Marjorie, quando ela e Jacobsen passeavam no jardim depois do café da manhã, no dia seguinte.

— Não percebi nenhum; mas sou muito desatento acerca dessas coisas.

Houve uma pausa. Finalmente:

— Imagino que sejam muitos os esforços de guerra na América agora — Marjorie comentou.

Jacobsen imaginava que sim; e sua mente fora acometida de uma visão de bandas marciais, oradores com megafones, desenhos patrióticos no céu, ruas tornadas perigosas pelo roubo organizado dos que pediam dinheiro para a Cruz Vermelha. Ele era preguiçoso demais para descrever tudo aquilo; além disso, ela não ia entender.

— Eu gostaria de poder fazer algum esforço de guerra — justificou-se Marjorie com alguma frustração. — Mas tenho que tomar conta de papai e cuidar da casa, de modo que não tenho mesmo tempo.

Jacobsen pensou detectar ali um discurso padrão para estranhos. Ela evidentemente queria parecer correta aos olhos dos outros. O comentário sobre cuidar da casa fez Jacobsen pensar na falecida sra. Petherton, mãe dela: tinha sido uma mulher bonita, esforçadamente jovial, com o desejo ardente de brilhar na comunidade acadêmica em Oxford. Descobria-se logo que era aparentada com bispos e famílias proprietárias; uma caçadora de leões eclesiásticos e uma esnobe. Ele sentiu-se alegre por ela já ter morrido.

— Não vai ser horrível quando não houver mais esforços de guerra? — comentou. — As pessoas não vão ter o que pensar ou fazer quando vier a paz.

— Eu vou ficar contente. Tomar conta da casa vai ser muito mais fácil.

— Verdade. É sempre um consolo.

Marjorie olhou para ele com suspeita; não gostava que rissem dela. Que homenzinho insosso ele era! Baixo, corpulento, bigode castanho encerado e uma testa que a calvície incipiente tornava interminavelmente alta. Parecia o tipo do homem a quem se diz: “Obrigado, vou querer em notas e prata no valor de uma libra”. Havia bolsas sob seus olhos e bolsas sob seu queixo, e nunca se podia adivinhar por sua expressão o que ele estava pensando. Ela ficou contente por ser mais alta e poder olhar para ele de cima.

O sr. Petherton apareceu vindo da casa, a manta cinzenta nos ombros e as páginas ruidosas do The Times aberto entre as mãos.

— Boa manhã! — exclamou.

Diante do entusiasmo shakespeariano desse cumprimento, Marjorie respondeu com a geladíssima modernidade de seu “Bom-dia” moderno. O pai sempre dizia “Boa manhã” em vez de “Bom-dia”, e esse fato a irritava com infalível regularidade todos os dias de sua vida.

— Há um relato interessantíssimo — informou o sr. Petherton — de um jovem piloto sobre uma batalha aérea no jornal de hoje — e, enquanto caminhavam de uma ponta a outra da alameda de cascalho, ele leu o artigo, que tinha uma coluna e meia de extensão.

Marjorie não se deu ao trabalho de disfarçar seu tédio, e ocupou-se lendo algo no outro lado da página, entortando o pescoço para ver. — Muito interessante — disse Jacobsen quando a leitura terminou.

O sr. Petherton tinha virado a página e agora lia a Circular da Corte.

— Estou vendo — informou — que há alguém chamado Beryl Camberley-Belcher que vai se casar. Sabe se é algum parente de Howard Camberley-Belcher, Marjorie?

— Não tenho ideia de quem seja Howard Camberley-Belcher — replicou Marjorie um tanto rispidamente.

— Ah, pensei que soubesse. Deixe-me ver. Howard Camberley-Belcher fez faculdade comigo. E ele tinha um irmão chamado James. Ou era William? E uma irmã que se casou com um dos Rider, ou pelo menos com um parente dos Rider; eu sei que os Camberley-Belcher e os Rider tinham algo em comum em algum lugar. Meu Deus, acho que minha memória para nomes está sumindo.

Marjorie entrou em casa para discutir com a cozinheira as estratégias e manobras domésticas do dia. Ao acabar, retirou-se para sua sala de estar e destrancou sua escrivaninha muito própria. Tinha que escrever para Guy nessa manhã. Marjorie conhecia Guy Lambourne havia muitos anos, desde tempos quase imemoriais. Os Lambourne eram velhos amigos de família dos Petherton; na verdade eram, embora distantes, parentes; eles “tinham algo em comum em algum lugar”, como diria o sr. Petherton — em algum lugar, algumas gerações atrás. Marjorie era dois anos mais nova que Guy; ambos eram filhos únicos; era natural que as circunstâncias colaborassem em muito para aproximá-los. Então o pai de Guy morreu, e não muito depois, a mãe, e aos dezessete anos Guy fora morar com os Petherton, pois o velho era seu tutor. E agora estavam noivos; isso mais ou menos desde o primeiro ano da guerra.

Marjorie pegou pena, tinta e papel. “Caro Guy”, começou (“Nós não somos sentimentais”, ela certa vez comentara, com um misto de desprezo e inveja secreta, a uma amiga que lhe confidenciara que ela e o noivo não começavam com algo menos que Querido). “Estou ansiando por outra carta sua...” Ela recitou a costumeira ladainha de saudade. “Ontem foi aniversário de papai; ele fez sessenta e cinco anos. Não suporto pensar que um dia você e eu seremos velhos assim. Tia Ellen mandou-lhe um queijo Stilton — um presente útil em tempo de guerra. Como cuidar da casa é enfadonho! De tanto pensar em queijos, minha mente está rapidamente virando um — um Gruyère, onde não há queijo, somente buracos, cheios de vácuo...”

Na verdade ela não se importava tanto em cuidar da casa. Encarava isso como coisa natural e só fazia porque o trabalho estava lá para ser feito. Guy, pelo contrário, nunca encarava coisa alguma como natural; ela fazia essas demonstrações para satisfazê-lo.

“Li as cartas de Keats, como você sugeriu, e achei-as muito lindas...”

Ao final de uma página de puro entusiasmo ela parou e mordeu a caneta. O que havia mais a dizer? Parecia absurdo ter de escrever cartas a respeito dos livros que lia. Mas não havia mais coisa alguma sobre o que escrever; nada acontecia. Afinal, que é que tinha acontecido em sua vida? A mãe morta quando ela tinha dezesseis anos; depois, a excitação de Guy ter vindo morar com eles; depois, a guerra, embora isso não tivesse muita importância para ela; depois Guy apaixonado, e o noivado deles. Na verdade, isso era tudo. Ela gostaria de poder escrever sobre seus sentimentos de modo preciso, complicado, como as pessoas nos romances; mas quando pensava nisso não parecia ter sentimentos para serem descritos.

Olhou para a última carta de Guy, enviada da França. “Às vezes”, escrevera, “sou torturado por um intenso desejo físico por você. Não consigo pensar em coisa alguma senão em sua beleza, seu corpo jovem e forte. Detesto isso; tenho que lutar para reprimi-lo. Você me perdoa?” Excitava-a o fato de que ele se sentisse assim a seu respeito: ele sempre fora tão frio, tão reservado, tão oposto ao sentimentalismo — aos beijos e carinhos que ela, talvez, secretamente tivesse apreciado. Mas ele tinha parecido tão correto quando dissera: “Temos que nos amar como seres racionais, com nossas mentes, não com mãos e lábios”. Mesmo assim...

Ela mergulhou a pena na tinta e recomeçou a escrever. “Conheço os sentimentos de que você falou em sua última carta. Às vezes sinto sua falta da mesma forma. Outra noite sonhei que tinha você em meus braços e acordei abraçada ao travesseiro.” Leu o que tinha escrito. Era horrível demais, vulgar demais! Precisava apagar aquilo. Mas não, deixaria, apesar de tudo, só para ver o que ele ia pensar. Terminou depressa a carta, selou-a e lacrou-a e chamou a empregada para levá-la ao correio. Depois que a empregada saiu, fechou a escrivaninha com força. Bang! A carta tinha ido, irrevogavelmente.

Pegou um livro volumoso que estava sobre a mesa e começou a ler. Era o primeiro volume de Declínio e queda. Guy dissera que ela precisava ler Gibbon, que não seria culta até ter lido Gibbon. Assim, na véspera ela procurara o pai na biblioteca para pegar o livro.

— Gibbon — tinha dito o pai. — Certamente, minha cara. Como é gostoso dar uma olhada nesses grandes livros novamente. Sempre se encontra algo novo, todas as vezes.

Marjorie deu-lhe a entender que nunca o tinha lido. Sentia certo orgulho de sua ignorância.

O sr. Petherton entregou-lhe o primeiro dos onze volumes.

— Grande livro — ele murmurou. — Um livro essencial. Preenche a lacuna entre sua história clássica e seu conhecimento medieval.

“Sua” história clássica, Marjorie repetiu consigo mesma, “sua” história clássica, claro! O pai tinha a mania irritante de achar que ela sabia tudo, que a história clássica era tanto dela quanto dele. Um ou dois dias antes virara-se para ela durante o almoço com um “você se lembra, minha cara filha, se foi Pomponazzi quem negou a imortalidade pessoal da alma, ou se foi aquele sujeito estranho, Laurentius Valla? Não estou conseguindo me lembrar agora”. Marjorie perdeu a calma diante da pergunta — para o inocente espanto de seu pobre pai.

Pôs-se a trabalhar com energia em Gibbon; seu marcador de páginas registrava o fato de que ela tinha percorrido cento e vinte e três páginas na véspera. Marjorie começou a ler. Parou depois de duas páginas. Verificou o número de páginas a serem lidas — e aquele era apenas o primeiro volume. Sentia-se como uma vespa preparando-se para o melhor de um vegetal. O volume de Gibbon não diminuíra perceptivelmente com sua primeira picada. Era grande demais. Ela fechou o livro e saiu para uma caminhada. Passando pela casa dos White, viu a amiga, Beatrice White, sentada no jardim com os dois bebês. Beatrice cumprimentou-a, e ela entrou.

— Dá bolo, dá bolo — disse. Aos dez meses, o bebê John já tinha aprendido a arte de dar bolos. Ele deu um tapa na mão estendida oferecida a ele, e seu rostinho, redondo, macio e rosado como um enorme pêssego, brilhou de prazer.

— Não é lindo? — exclamou Marjorie. — Sabe, tenho certeza de que ele cresceu desde que o vi pela última vez, que foi na terça-feira.

— Ele engordou trezentos gramas na semana passada — anunciou Beatrice.

— Que maravilha! E o cabelo está nascendo lindo...

O dia seguinte era domingo. Jacobsen apareceu para o café da manhã com um terno preto, arrumadíssimo. Parecia, achou Marjorie, mais do que nunca um contador. Morria de vontade de lhe dizer para se apressar, senão perderia o 8h53 pela segunda vez na semana, e o gerente ia ficar zangado. A própria Marjorie não estava, e disso tinha uma vaga consciência, vestida com suas melhores roupas de domingo.

— Qual é o nome do vigário? — inquiriu Jacobsen, enquanto se servia de bacon.

— Trubshaw. Luke Trubshaw, eu acho.

— Ele prega, bem?

— Não pregava quando eu costumava ouvi-lo. Mas não vou muito à igreja agora, de modo que não sei como ele anda hoje em dia.

— Por que você não vai à igreja? — inquiriu Jacobsen, com uma suavidade de tom que dissimulava o fundo grosseiro da pergunta.

Marjorie sentiu a dor de saber-se ruborizar. Encheu-se de raiva contra Jacobsen.

— Porque — declarou com firmeza — não acho que seja necessário exprimir meus sentimentos religiosos fazendo um monte de... — hesitou um momento — um monte de gestos sem sentido junto com uma multidão de pessoas.

— Você costumava ir — disse Jacobsen.

— Quando era criança, e não tinha pensado nessas coisas.

Jacobsen ficou em silêncio e escondeu um sorriso na xícara de café. Realmente, disse a si mesmo, deveria haver obrigatoriedade religiosa para as mulheres e para a maioria dos homens, também. Era grotesco o modo como essas pessoas achavam que conseguiam aguentar sozinhas — os idiotas, embora houvesse a infinita autoridade da religião organizada para apoiar suas ridículas fraquezas.

— Lambourne vai à igreja? — perguntou ele maliciosamente e com perfeito ar de ingenuidade e boa-fé.

Marjorie ruborizou-se novamente, e uma nova onda de raiva cresceu dentro dela. No momento em que dissera a frase, ela se perguntara se Jacobsen era capaz de perceber que as palavras “gestos sem sentido” não soavam propriamente como criação sua. “Gestos” — essa era uma das palavras de Guy, como “incrível”, “exacerbar”, “impingir”, “sinistro”. Claro que todas as suas opiniões atuais sobre religião vinham de Guy. Encarou Jacobsen com firmeza e respondeu:

— Sim, acho que ele vai à igreja com bastante regularidade. Mas na verdade não sei; a religião dele nada tem a ver comigo.

Jacobsen ficou absorto em prazer e admiração.

Pontualmente às 10h40, ele saiu para a igreja. De onde estava sentada, no gazebo, Marjorie observou-o atravessar o jardim, incrivelmente absurdo e inadequado em suas roupas pretas entre as flores brilhantes e o fresco esmeralda das árvores. Ele agora estava escondido atrás da cerca de sarça, todo menos o melão negro e duro de seu chapéu-coco saltitando entre os galhos mais altos.

Ela continuou a carta para Guy. “... Que homem estranho é o sr. Jacobsen! Imagino que seja muito inteligente, mas não consigo tirar muita coisa dele. Hoje, no café da manhã, tivemos uma discussão sobre religião; acho que saí vitoriosa. Ele agora foi para a igreja sozinho; era-me insuportável a ideia de ir com ele — espero que goste do sermão do velho sr. Trubshaw!”

Jacobsen gostou enormemente do sermão do sr. Trubshaw. Sempre fazia questão, estivesse em qualquer parte da Cristandade, de assistir ao serviço religioso. Tinha uma enorme admiração pelas Igrejas como instituições. Em sua solidez e imutabilidade, ele via uma das poucas esperanças para a humanidade. Mais ainda, ele sentia grande prazer em comparar a Igreja como instituição — esplêndida, poderosa, eterna — com a imbecilidade infantil de seus representantes. Como era delicioso sentar-se entre a congregação arrebanhada e ouvir a torrente sincera de um intelecto apenas um pouquinho menos limitado do que o de um aborígine australiano! Como era repousante sentir-se membro de um rebanho, guiado por um bom pastor — ele próprio um carneiro! E havia também o interesse científico (ele ia à igreja como estudante de antropologia, como um psicólogo freudiano) e o divertimento filosófico de contar os termos médios não distribuídos e tabular historicamente os sofismas já desmascarados no discurso do pároco.

Hoje o sr. Trubshaw pregou um sermão alusivo à situação irlandesa. Seu evangelho era o do Morning Post, levemente temperado com cristianismo. Era nosso dever, disse ele, rezar primeiramente pelos irlandeses, e se isso não tivesse efeito no recrutamento, ora, então temos que forçá-los, com o mesmo zelo com que rezamos antes.

Jacobsen recostou-se no banco com um suspiro de contentamento. Um connaisseur, ele reconhecia que aquilo estava ótimo.

— Bem — disse o sr. Petherton por sobre seu bife de domingo, ao almoço. — Gostou de nosso estimado vigário?

— Ele estava esplêndido — afirmou Jacobsen, com grave entusiasmo. — Um dos melhores sermões que já ouvi.

— É mesmo? Terei de ir ouvi-lo de novo. Deve fazer quase dez anos desde que o escutei.

— Ele é inimitável.

Marjorie olhou com bastante atenção para Jacobsen. Ele parecia inteiramente sério. Mais que nunca ela estava perplexa com aquele homem.

Os dias deslizavam, dias quentes e azuis que passavam como um clarão quase sem que fossem notados, dias frios e cinzentos parecendo inúmeros e sem fim, e sobre os quais se comentava com um ar de justa indignação, pois afinal era verão. Havia combates na França — batalhas terríveis, a julgar pelas manchetes em The Times; mas, afinal, o jornal de um dia era bem parecido com o do outro. Marjorie lia-os com muito cuidado, mas honestamente não aprendia muita coisa; pelo menos, esquecia-se logo das coisas. Não conseguia manter a contagem das batalhas de Ypres, e quando alguém lhe disse que ela devia ir ver as fotografias do Vindictive, sorriu vagamente e disse sim, sem se lembrar exatamente do que era o Vindictive — um navio, imaginava.

Guy estava na França, naturalmente, mas ele agora era um oficial de informações, de modo que ela quase não se preocupava com ele. Os clérigos costumavam dizer que a guerra estava nos trazendo a todos de volta a um sentido das realidades fundamentais da vida. Ela sentia que isso era verdade; as ausências forçadas de Guy eram para ela um sofrimento, e as dificuldades de manter a casa cresciam e multiplicavam-se continuamente.

O sr. Petherton demonstrava pela guerra um interesse mais qualificado do que a filha. Ele se orgulhava de ser capaz de ver a coisa como um todo, de ver tudo isso com um olhar histórico e divino. Falava sobre isso às refeições, insistindo que o mundo tinha que ser tornado seguro para a democracia. Entre as refeições ele se sentava na biblioteca trabalhando em sua monumental História da moral. Suas dissertações à hora do jantar eram ouvidas por Marjorie com alguma atenção e por Jacobsen com uma polidez infalível, brilhante, inteligente. O próprio Jacobsen raramente empenhava comentários sobre a guerra; pressupunha-se que suas opiniões eram exatamente como as de todos os que valia a pena ouvir. Entre as refeições ele trabalhava em seu quarto ou discutia a moral da Renascença italiana com seu anfitrião. Marjorie poderia muito bem escrever a Guy que nada acontecia, e que, se não fosse pela ausência dele e pelo tempo interferindo tanto no tênis, ela estaria perfeitamente feliz.

No meio dessa placidez caiu, maravilhoso raio vindo do nada, a notícia de que Guy obteria uma licença no final de julho. “Querido”, escreveu Marjorie, “estou tão feliz de saber que você estará comigo em tão pouco... tão longo, longo tempo.” Realmente, ela estava tão agitada e feliz que percebeu, em comparação e não sem uma pitada de remorso, quão pouco tinha pensado nele quando parecia não haver oportunidade de vê-lo, quão vago ele era na ausência. Uma semana mais tarde ela soube que George White tinha conseguido uma licença na mesma época para poder ver Guy. Ficou contente; George era um rapaz encantador, e Guy o apreciava muitíssimo. Os White eram os vizinhos mais próximos, e desde que viera morar em Blaybury, Guy o via com bastante frequência.

— Vai ser um grupo bem festivo — comentou o sr. Petherton. — Roger virá na mesma época que Guy.

— Eu tinha esquecido o tio Roger — disse Marjorie. — Claro, as férias dele vão começar, não vão?

O reverendo Roger era irmão de Alfred Petherton e professor em uma de nossas mais gloriosas escolas públicas. Marjorie não concordava com o pai em que sua presença aumentaria a “festividade” do grupo. Era uma pena que ele viesse nessa época em particular. No entanto, todos temos nossa pequena cruz para carregar.

O sr. Petherton alegrava-se.

— Mandemos descer o melhor falerno para a ocasião, engarrafado nos idos em que Gladstone era cônsul — disse ele. — Precisamos preparar coroas e unguentos e contratar um flautista e algumas dançarinas...

Passou o resto da refeição citando Horácio, Catulo, a Antologia Grega, Petrônio e Sidônio Apolinaris. O conhecimento de Marjorie a respeito das línguas mortas era decididamente limitado. Seus pensamentos estavam em outra parte, e era apenas vagamente, como se através de uma neblina, que ela ouvia o pai murmurando — se meramente consigo mesmo, ou com a esperança de extrair uma resposta de alguém, ela não sabia:

— Deixe-me ver: como é aquele epigrama? Aquele sobre as diferentes espécies de peixes e a guirlanda de rosas, de Meléagro, ou seria Posêidipo...?

II

Guy e Jacobsen passeavam no jardim holandês, uma dupla incongruente. Em Guy a servidão militar não deixara marca visível; sem o uniforme, ele parecia um calouro alto e desarrumado; continuava curvado como sempre; os cabelos ainda eram despenteados e, a julgar pela expressão sombria de seu rosto, ainda não aprendera a pensar soberanamente. Seu uniforme cáqui sempre pareceu um disfarce, como a mais absurda das fantasias. Jacobsen trotava a seu lado, baixo, gorducho, muito lustroso e correto. Conversavam desconexamente sobre assuntos sem importância. Guy, ansioso por um pouco de exercício intelectual depois de tantos meses de disciplina, tentara atrair seu companheiro para uma discussão filosófica. Jacobsen prontamente fugiu a seus esforços; era preguiçoso demais para falar com seriedade; não era capaz de ver que proveito obteria com as opiniões desse rapaz, e não tinha o menor desejo de arranjar um discípulo. Preferia, portanto, discutir a guerra e o tempo. Irritava-o profundamente que as pessoas quisessem invadir o domínio do pensamento — pessoas que não tinham o direito de viver em outro lugar além do plano vegetativo da mera existência. Gostaria que elas simplesmente se contentassem em ser ou fazer, não tentar, tão inutilmente, pensar, enquanto apenas um em um milhão é capaz de pensar com um mínimo de proveito para si mesmo ou qualquer outra pessoa.

Do canto dos olhos ele observou o rosto sensível e sombrio de seu companheiro: devia ter entrado nos negócios aos dezoito anos. Era o veredito de Jacobsen. Pensar lhe fazia mal; ele não era suficientemente forte.

O som alto de latidos rompeu a calma do jardim. Olhando para cima, os dois viram George White correndo pelo gramado verde da quadra de críquete com um enorme cão castanho saltando a seu lado.

— Bom dia — gritou ele. Vinha sem chapéu e sem fôlego. — Estava levando Bella para uma corrida, e resolvi passar e ver como iam as coisas por aqui.

— Que cachorro lindo — exclamou Jacobsen.

— Um velho mastim inglês, nosso único cachorro aborígene. O pedigree dela vai direto a Eduardo, o Confessor.

Jacobsen deu início a uma animada conversa com George sobre as virtudes e defeitos dos cães. Bella cheirou suas canelas e depois ergueu seus suaves olhos escuros para vê-lo. Parecia satisfeita.

Guy observou-os por algum tempo; estavam absortos demais em sua conversa canina para prestar atenção nele. Fez um gesto como se de repente tivesse se lembrado de algo, soltou um grunhido e, com uma expressão muito preocupada no rosto, voltou-se para ir na direção da casa. Sua pequena, ainda que elaborada, encenação passou despercebida aos supostos espectadores; Guy percebeu isso e sentiu-se mais infeliz, zangado e ciumento que nunca. Eles pensariam que ele se afastara, discreto e constrangido, porque não era desejado — o que era bem verdade — em vez de acreditar que tinha algo muito importante a fazer, que era o que queria que eles acreditassem.

Uma nuvem de insegurança pairava sobre ele. Será que sua mente era, afinal, sem valor e as coisinhas que ele escrevera, não a obra de um gênio potencial, como esperava, mas bobagens? Jacobsen tinha razão em preferir a companhia de George. George era fisicamente perfeito, uma criatura esplêndida; que é que ele próprio podia pretender?

“Sou de segunda classe”, pensou, “de segunda classe, fisicamente, moralmente, mentalmente. Jacobsen está certo.”

O melhor que podia esperar ser era um prosaico homem de letras com gostos modestos.

Não, não, não! Fechou as mãos em punho e, como se para registrar sua resolução diante do universo, disse alto:

— Eu vou fazer isso; vou ser de primeira classe, eu vou.

Ficou coberto de vergonha ao ver um jardineiro surgir, surpreso, de trás de uma moita de rosas silvestres. Falando sozinho — o homem deve ter pensado que ele era louco!

Atravessou às pressas o gramado, entrou na casa e correu escada acima para seu quarto. Não havia um segundo a perder; tinha que começar imediatamente. Escreveria algo — algo que duraria, sólido, rijo, brilhante...

— Danem-se todos! Eu vou conseguir, eu posso...

Havia material de escrita e uma mesa em seu quarto. Escolheu uma pena — com uma pena Relief ele poderia continuar durante horas sem se cansar — e uma folha de papel grande e quadrada para escrever.

Hatch House,

Blaybury,

Wilts.

Estação: Cogham, 5 km; Nobes

Monacorum, 7 km.

As pessoas eram estúpidas em mandar imprimir seus papéis de carta em vermelho, quando em preto ou azul era tão mais bonito! Passou tinta sobre as letras.

Ergueu o papel contra a luz; havia uma marca-d’água, “Pimlico Bond”. Que nome admirável para o herói de um romance! Pimlico Bond...

Há car-ne na despen-sa

E paa-tos no lago;

Gritando la, la, la, la...

Mordeu a ponta da pena. “O que quero obter”, disse consigo mesmo, “é algo muito duro, muito externo. Emoção intensa, mas de algum modo alguém terá saído dela.” Fez um movimento de mãos, braços e ombros, contraindo os músculos num esforço para exprimir para si mesmo, fisicamente, dureza, contração e firmeza do estilo pelo qual estava lutando.

Começou a desenhar em seu papel virgem. Uma mulher nua, um braço erguido sobre a cabeça de modo a levantar seu seio por aquele maravilhoso músculo curvo que desce do ombro. A superfície interna das coxas, lembre-se, é ligeiramente côncava. Os pés, vistos de frente, são sempre uma dificuldade.

Jamais poderia deixar aquilo por ali. O que pensariam os empregados? Transformou os mamilos em olhos, desenhou linhas grossas para o nariz, a boca e o queixo, usando bastante tinta; agora formava um rosto passável — embora um observador atento pudesse detectar a nudez original. Rasgou o desenho em pedaços pequenos.

Um estrondo crescente encheu a casa. Era o gongo. Olhou para o relógio. Hora do almoço, e ele não fizera nada. Oh, Deus!...

III

Era hora do jantar na última noite de licença de Guy. A mesa de mogno sem toalha era como uma tranquila poça de água marrom, em cujas profundezas as flores e o brilho de formas de cristal e prata pendiam, vagamente refletidas. O sr. Petherton sentava-se à cabeceira da mesa, ladeado pelo irmão Roger e Jacobsen. A juventude, representada por Marjorie, Guy e George White, reunira-se na outra ponta. Chegavam ao estágio da sobremesa.

— Este Porto é excelente — declarou Roger tão lustroso e reluzente quanto um cob irlandês[2] bem alimentado sob seu colete clerical de seda. Era um homem forte e atarracado de uns cinquenta anos, com um pescoço vermelho tão grosso quanto a cabeça. Os cabelos eram cortados à feição militar; ele gostava de dar bom exemplo aos garotos, alguns dos quais ostentavam tendências “estéticas” sofríveis e usavam cabelos longos.

— Fico contente por você gostar. Eu mesmo não posso beber, é claro. Tome outra taça. — O rosto de Alfred Petherton tinha uma expressão de melancolia dispéptica. Desejava não ter comido tanto pato.

— Obrigado, aceito. — Roger pegou o frasco com um sorriso de satisfação. — O mestre-escola fatigado merece sua segunda taça. White, você parece um tanto pálido; acho que deve tomar outro. — Roger tinha modos alegres e dados ao chiste, calculados para provar a seus alunos que ele não fazia o tipo de padre encarquilhado.

Na ponta jovem da mesa, todos estavam bastante entretidos numa animada conversa. Intimamente irritado por ter sido então interrompido em meio a ela, White voltou-se e lançou um leve sorriso para Roger.

— Ora, obrigado, senhor — disse, e empurrou sua taça à frente, para ser enchida. O “senhor” escapou sem querer; afinal, havia pouco tempo desde que fora estudante sob o domínio de Roger.

— É preciso sorte — continuou Roger com seriedade — para conseguir vinho do Porto hoje em dia. Sou grato por ter comprado dez dúzias dele de minha velha universidade há alguns anos para guardar em minha adega, caso contrário, não sei o que faria. Meu vendedor de vinho diz que não seria capaz de me arranjar uma única garrafa. Na verdade, ele quis comprar algumas das minhas, caso as vendesse. Mas eu não quis. Hoje em dia, uma garrafa na adega vale dez xelins no bolso. Sempre digo que o Porto se tornou uma necessidade, agora que se consegue tão pouca carne. Lambourne! Você é o outro de nossos bravos defensores; merece uma segunda taça.

— Não, obrigado — respondeu Guy, mal erguendo os olhos. — Já bebi o suficiente. — Continuou a conversar com Marjorie, sobre as diferentes opiniões de russos e franceses a respeito da vida.

Roger serviu-se de cerejas.

— É preciso escolhê-las com cuidado — comentou para proveito e instrução de George, que ouvia de má vontade. — Nada dá tanta dor de barriga quanto cerejas verdes.

— Julgo que esteja feliz, sr. Petherton, pelo início das férias — disse Jacobsen.

— Feliz? Claro que sim! O fim dos cursos de verão nos deixa tão exaustos. Não é, White?

White tinha aproveitado a oportunidade para voltar-se novamente e ouvir a conversa de Guy; ao ser chamado, como um cachorro de súbito atento a um aroma proibido, ele obedientemente assentiu que se ficava muito cansado no final do trimestre de verão.

— Suponho que você ainda ensine as mesmas coisas de sempre — disse Jacobsen. — César, versos latinos, gramática grega e o resto? Nós, americanos, não podemos acreditar que isso ainda seja feito.

— Graças a Deus — fez Roger — ainda inculcamos coisas bem fundamentadas neles. Ultimamente tem se feito muito alarde sobre novos currículos e coisas do gênero. Agora ministra-se muita ciência e coisas dessa espécie, mas não creio que as crianças aprendam alguma coisa. É pura perda de tempo.

— Mas não seria esse o problema da educação em geral? — respondeu Jacobsen em tom leve.

— Não, se você lhes ensina disciplina. Isso é que é necessário, disciplina. A maioria desses menininhos precisa de uma bela palmatória, e hoje em dia não recebem o suficiente. Além disso, se não se consegue enfiar conhecimento dentro da cabeça deles, pode-se pelo menos aplicar umas belas palmadas em seus traseiros.

— Mas que fúria, Roger — disse o sr. Petherton, sorrindo. Sentia-se melhor; o pato estava mais bem digerido.

— Não, é o mais importante. O melhor que a guerra nos trouxe foi a disciplina. O país estava ficando frouxo e precisava de um aperto. — O rosto de Roger brilhava de entusiasmo.

Da outra ponta da mesa ouviu-se a voz de Guy dizendo:

— Conhece o Dieu s’avance à travers la Lande, de César Franck? É uma das melhores peças religiosas que conheço.

O rosto do sr. Petherton iluminou-se; ele se inclinou para a frente.

— Não — respondeu jogando inesperadamente sua resposta no meio da conversa dos jovens. — Não conheço. Mas você conhece esta? Espere um minuto. — Franziu o sobrolho, e seus lábios moveram-se como se estivesse tentando relembrar uma fórmula. — Ah, sim. Diga-me? Que nome de uma famosa peça religiosa pronuncio quando ordeno a um velho carpinteiro, antigamente liberal, mas agora um renegado que aderiu ao conservadorismo, que marque o gado?

Guy desistiu; seu tutor sorriu com agrado.

— Ora, Tory, oh! Judas! Marque os bois![3] — enunciou. — Entendeu? Oratório Judas Macabeus!

Guy desejou que esse destroço da juventude patusca do sr. Petherton não tivesse assim vindo dar com as ondas a seus pés. Sentia-se como se estivesse espionando indecentemente “o abismo escuro e retrospectivo do tempo”.[4]

— Essa é boa — casquinou o sr. Petherton. — Vou ver se consigo lembrar outras.

Roger, que não era facilmente desviado de seu assunto favorito, esperou até que essa irrelevante faísca de inconveniência expirasse para dizer:

— É notável como nunca se consegue unir a disciplina ao ensino de ciências ou de línguas modernas. Quem já ouviu falar de um professor de ciências com uma boa turma? As turmas dos cientistas são sempre ruins.

— Que estranho! — comentou Jacobsen.

— Estranho, porém verdadeiro. Parece-me um grande erro dar-lhes turmas, se eles não conseguem manter a disciplina. E há a questão da religião. Alguns desses homens nunca vão à capela, a não ser quando estão em serviço. Eu lhes pergunto, que acontece quando eles preparam os meninos para a crisma? Ora, já me chegaram garotos que tinham sido preparados por um desses homens, e com poucas perguntas eu constatava que eles não sabiam coisa alguma sobre os aspectos mais fundamentais da Eucaristia. — Quer me passar mais dessas cerejas ótimas, por favor, White? — Claro, nesses casos faço o possível para dizer aos meninos o que pessoalmente sinto sobre a importância e profundidade dessas coisas. Mas geralmente não há tempo; a vida da gente é tão cheia... e eles vão para a crisma com uma vaga ideia do que se trata. Vejam como é absurdo deixar uma pessoa que não é um educador tradicional cuidar da vida dos meninos.

— Sacuda bastante, minha cara — o sr. Petherton instruía a filha, que chegara com o remédio.

— O que é isso? — perguntou Roger.

— Ah, é só minha peptona. Não consigo fazer a digestão sem ela.

— Você tem todo o meu apoio moral. Meu pobre colega Flexner sofre de colite crônica. Não consigo imaginar como ele continua a trabalhar.

— Pois é. Vejo que não consigo fazer nada que exija esforço.

Roger virou-se e mais uma vez dirigiu-se ao infeliz George.

— White, que isso seja uma lição para você. Cuide de seu interior; é o segredo de uma velhice feliz.

Guy ergueu os olhos rapidamente.

— Não se preocupe com a velhice dele — falou, com voz estranha e ríspida, bem diferente do tom gentil e elaboradamente modulado em que em geral falava. — Ele não vai ficar velho. Suas chances de sobreviver são de três contra catorze, se a guerra durar mais um ano.

— Ora, não seja pessimista — fez Roger.

— Mas não estou sendo. Eu lhe asseguro, estou dando uma opinião muitíssimo otimista das chances de George chegar à velhice.

Sentia-se que os comentários de Guy tinham sido de mau gosto. Houve um silêncio; olhares flutuavam sem rumo e pouco à vontade, tentando não encontrar uns com os outros. Roger abriu ruidosamente uma noz. Depois de desfrutar o bastante da situação, Jacobsen mudou de assunto comentando:

— Hoje de manhã nossos destróieres fizeram um belo trabalho, não foi?

— Ler aquilo me fez bem — declarou o sr. Petherton. — Tinha um toque de Nelson.

Roger ergueu a taça.

— Nelson! — exclamou, e esvaziou-a de um gole. — Que homem! Estou tentando convencer o diretor a transformar o dia de Trafalgar em feriado. É a melhor maneira de lembrar aos garotos coisas como aquela.

— Um inglês curiosamente atípico para ser herói nacional, não é? — comentou Jacobsen. — Tão emocional, sem a fleuma britânica.

O reverendo Roger assumiu um ar grave.

— Há uma coisa que nunca consegui entender sobre Nelson: como é que um homem que era o símbolo da honra e do patriotismo pôde ter sido... hum... imoral com Lady Hamilton. Conheço pessoas que dizem que era costume na época, que essas coisas não significavam nada etc.; mas mesmo assim, repito, não dá para entender como um homem que era um inglês tão intensamente patriota pôde ter feito uma coisa daquela.

— Não consigo entender o que o patriotismo tem a ver com isso — declarou Guy.

Roger fixou nele seu olhar mais pedagógico e declarou, lenta e gravemente:

— Então lamento por você. Não pensei que fosse necessário dizer a um inglês que a pureza moral é uma tradição nacional; principalmente a você, um homem formado em escola pública.

— Vamos jogar uma partida de bilhar — convidou o sr. Petherton. — Você vem, Roger? E você, George, e Guy?

— Eu sou péssimo — insistiu Guy — e realmente preferia não ir.

— Eu também — declarou Jacobsen.

— Então, Marjorie, você vai ter que completar o quarteto.

Os jogadores de bilhar saíram; Guy e Jacobsen ficaram sozinhos, remoendo o desastre do jantar. Houve um longo silêncio. Os dois homens fumavam. Guy, sentado numa postura bem relaxada esparramado na cadeira como um saco pela metade, e Jacobsen bem ereto e sereno.

— Você aguenta facilmente os tolos? — perguntou Guy abruptamente.

— Com o maior prazer.

— Eu gostaria de aguentar. O reverendo Roger tem a tendência a fazer meu sangue ferver.

— Mas é uma boa alma — insistiu Jacobsen.

— Pode ser, mas não deixa de ser um monstro.

— Você devia ter mais calma com ele. Faço questão de nunca me deixar perturbar por coisas não essenciais. Concentro-me em meus escritos e meus pensamentos. A verdade é bela, a beleza é verdadeira, e assim por diante; afinal, são as únicas coisas de valor sólido. — Jacobsen olhava para o rapaz com um sorriso enquanto dizia essas palavras. “Não resta dúvida”, disse a si mesmo, “de que este rapaz devia ter entrado para os negócios; que grande erro é essa educação refinada, meu deus.”

— Claro, são só coisas — exclamou Guy apaixonadamente. — Você pode dizer isso porque teve a sorte de ter nascido vinte anos antes que eu, e com quatro mil quilômetros de águas profundas entre você e a Europa. E aqui estou, convocado para dedicar minha vida, de modo muito diferente de como você dedica a sua à verdade e à beleza; dedicar a minha vida a... bem, a quê? Não tenho certeza, mas mantenho uma fé comovente de que seja a algo bom. E você me diz para ignorar as circunstâncias. Venha viver um pouquinho em Flandres, e tente... — E lançou-se em um discurso sobre agonia, morte, sangue e putrefação. — Que é que se pode fazer? — concluiu com desespero. — Que diabos é o certo? Eu pretendia passar minha vida escrevendo e pensando, tentando criar algo belo ou descobrir algo verdadeiro. Mas não se deve, afinal, quando se sobrevive, desistir de tudo o mais e tentar transformar esse covil que é o mundo em algo mais habitável?

— Acho que você pode se convencer de que um mundo que se deixou arrastar para essa loucura criminosa é um mundo sem esperanças. Siga suas inclinações; ou, melhor ainda, entre para um banco e ganhe muito dinheiro.

Guy explodiu em uma gargalhada, um tanto alta demais. — Incrível, incrível! — exclamou. — Voltando a nosso velho assunto dos tolos: francamente, Jacobsen, não posso imaginar por que você escolheu passar seu tempo com meu velho e caro tutor. É um senhor encantador, mas venhamos e convenhamos... — Fez um gesto amplo com as mãos.

— Temos que viver em algum lugar — disse Jacobsen. — Acho seu tutor uma companhia interessantíssima. Ei, olhe para esse cachorro!

No tapete em frente à lareira, o pequeno pequinês de Marjorie, Confúcio, preparava-se para deitar e dormir. Com todo o zelo, ele procedeu à circunspecta farsa de arranhar o chão, como se estivesse preparando um ninho confortável para deitar. Girava e girava, arranhando com diligência e método. Depois deitou-se, enrodilhou-se e adormeceu num piscar de olhos.

— Isso não é maravilhosamente humano? — exclamou Jacobsen, deliciado. Guy achou que agora podia ver por que Jacobsen gostava de morar com o sr. Petherton. O velho era tão maravilhosamente humano...

Mais tarde, na mesma noite, terminada a partida de bilhar e tendo o sr. Petherton atentado corretamente ao anacronismo de ensinar o jogo a Antônio e Cleópatra, Guy e Marjorie saíram para um passeio no jardim. A lua erguera-se acima das árvores e iluminava a frente da casa com sua brilhante luz pálida, incapaz de despertar as cores adormecidas do mundo.

— O luar é a luz arquitetônica adequada — declarou Guy, enquanto contemplavam a casa. A luz branca e as pesadas sombras negras destacavam toda a elegância de sua simetria georgiana.[5]

— Veja, eis o espectro de uma rosa. — Marjorie tocou numa flor grande e fria, que se adivinhava, mais do que se via, ser vermelha, um carmim lunar pálido e enganador. — E sinta o cheiro das flores do tabaco. Não é delicioso?

— Sempre pensei haver algo muito misterioso nos perfumes que pairam no escuro dessa forma. Parecem vir de um mundo imaterial inteiramente diverso, povoado por sensações incorpóreas, paixões fantasmagóricas. Pense no efeito espiritual do incenso numa igreja escura. Não é de espantar que as pessoas tenham acreditado na existência da alma.

Continuaram a caminhar em silêncio. Às vezes, acidentalmente, a mão dele esbarrava na dela no movimento da caminhada. Guy sentia uma intolerável sensação de expectativa, próxima ao medo. Aquilo o deixava quase fisicamente doente.

— Você se lembra — perguntou abruptamente — daquelas férias de verão que nossas famílias passaram juntas em Gales? Deve ter sido em 1904 ou 1905. Eu tinha dez anos e você, oito, por aí.

— Claro que me lembro — exclamou Marjorie. — De tudo. Havia aquela divertida ferrovia de brinquedo, pequenina, que vinha das pedreiras de ardósia.

— E você se lembra de nossa mina de ouro? Todas aquelas toneladas de metal férreo amarelo que juntamos e escondemos numa caverna, acreditando piamente que eram pepitas. Como parece incrivelmente distante!

— E você tinha um processo maravilhoso para testar se era ouro de verdade ou não. E todas as pedras passaram triunfantemente no teste como genuínas, eu me lembro.

— Aquele segredo foi o que primeiro nos fez amigos, acho.

— Também acho — concordou Marjorie. — Há catorze anos, quanto tempo! E você começou lá mesmo a me educar: tudo o que você me falou sobre mineração de ouro, por exemplo.

— Catorze anos — repetiu Guy pensativo. — E amanhã vou embora de novo...

— Não fale nisso. Fico tão infeliz quando você está longe. — Ela realmente esqueceu o verão maravilhoso que tinha tido, a não ser pela falta de tênis.

— Temos que fazer desta a hora mais feliz de nossa vida. Talvez seja a última que teremos juntos. — Guy olhou para a lua e percebeu, com um susto repentino, que ela era uma esfera ilhada em uma noite sem-fim, não um disco plano grudado a uma parede não tão distante. Isso o encheu de uma melancolia infinita; sentia-se por demais insignificante para viver.

— Guy, você não deve falar assim — pediu Marjorie.

— Temos doze horas — continuou Guy em voz pensativa. — Mas isso é só o tempo do relógio. Pode-se dar a uma hora a qualidade de durar para sempre, e passar anos que são como se nunca tivessem existido. Alcançamos nossa imortalidade aqui e agora; é uma questão de qualidade, não de quantidade. Não estou ansioso por harpas douradas ou coisas assim. Sei que, quando estiver morto, estarei morto; não existe um depois. Se me matarem, minha imortalidade estará na sua lembrança. Talvez, também, alguém vá ler as coisas que escrevi, e em sua mente vou sobreviver, fraca e parcialmente. Mas em sua lembrança vou sobreviver intacto e inteiro.

— Tenho certeza de que vamos continuar vivendo depois da morte. Ela não pode ser o fim. — Marjorie tinha consciência de ter ouvido essas palavras antes. Onde, ah, sim, era a sisuda Evangeline que as dissera na sociedade de debates da escola.

— Eu não contaria com isso — replicou Guy com uma risadinha. — Você pode ter uma decepção quando morrer. — Então, em voz alterada: — Não quero morrer. Odeio e temo a morte. Mas provavelmente não vou ser morto, afinal. Mesmo assim... — Sua voz morreu. Entraram num túnel de escuridão impenetrável, entre duas altas sebes de carpa. Ele se reduzira a uma voz, e esta também cessara; ele havia desaparecido. A voz recomeçou, baixa, rápida, monótona, um pouco sem fôlego. — Eu me lembro de ter lido um poema de um dos velhos trovadores provençais, dizendo que Deus certa vez lhe concedera a felicidade suprema; pois na noite da véspera de partir para a Cruzada fora-lhe dado ter sua dama em seus braços... durante toda uma breve noite eterna. Ainsi que j’aille outre-mer: quando eu ia para além-mar. — A voz tornou a interromper-se. Estavam parados exatamente na boca da alameda de carpas, olhando, de dentro daquele estreito rio de sombra, para um oceano de pálido luar.

— Como está quieto. — Eles não falavam; mal respiravam. Saturavam-se de quietude.

Marjorie rompeu o silêncio.

— Você me quer tanto assim, Guy? — Durante todo aquele longo e mudo minuto ela tentara dizer essas palavras, repetindo-as para si mesma, ansiando por dizê-las em voz alta, mas paralisada, sem conseguir. E finalmente as tinha dito, impessoalmente, como se pela boca de outra pessoa. Ela ouviu-as muito distintamente e espantou-se com seu tom impassível.

A resposta de Guy tomou forma de pergunta.

— Bem, imagine se eu fosse morto agora — disse ele —, poderia dizer que realmente vivi?

Tinham saído da profundeza da trilha para o luar. Ela agora podia vê-lo claramente, e havia nele algo tão choroso, tristonho e patético, ele parecia tanto uma criança supercrescida que uma onda de apaixonada piedade percorreu-a, reforçando outras emoções menos maternais. Ela ansiava por tomá-lo nos braços, acariciar seus cabelos, acalentá-lo, como a um bebê, para que dormisse em seu peito. E Guy, por sua vez, desejava apenas entregar suas fadigas e sensibilidades aos cuidados maternais dela, que ela beijasse depressa seus olhos, e ele assim dormisse sob seus carinhos. Em suas relações com as mulheres — embora sua experiência nesse campo fosse deploravelmente pequena — ele tinha, a princípio inconscientemente, mas mais tarde com a consciência do que estava fazendo, representado esse. papel de criança. Em momentos de autoanálise ria de si mesmo por “dar uma de criança”, como ele chamava. E ali estava então — ainda não o tinha percebido — fazendo a mesma coisa, choroso, tristonho, totalmente patético, frágil...

Marjorie foi dominada pela emoção. Iria se entregar a seu amante, apoderar-se de sua criança indefesa e digna de piedade. Rodeou o pescoço dele com os braços, ergueu o rosto para os beijos dele, sussurrou algo terno e inaudível.

Guy puxou-a para si e começou a beijar-lhe a boca macia e cálida. Tocou no braço despido que circundava seu pescoço; a carne era firme sob seus dedos; sentiu vontade de beliscá-la e rasgá-la.

Tinha sido exatamente assim com aquela vagabundinha da Minnie. Exatamente assim — só a horrível lascívia. Ele recordou um curioso fato fisiológico lido em Havelock Ellis. Estremeceu, como se tivesse tocado numa coisa nojenta, e empurrou-a.

— Não, não, não. É horrível; odioso. Bêbado de luar, entregando-me a sentimentalismos sobre a morte... Por que não dizer, com a franqueza bíblica, deite-se comigo, deite-se comigo?

Enchia-o de horror que esse amor, que era para ter sido tão maravilhoso, novo e bonito, terminasse libidinosa e bestialmente como o caso, nunca recordado sem um arrepio de vergonha, com Minnie (com a vulgaridade dela!).

Marjorie rompeu em lágrimas e afastou-se correndo, ferida e trêmula, para a solidão da sombra das carpas. “Vá embora, vá embora”, soluçava, com tal intensidade de comando que Guy, impulsionado por um remorso imediato e pela visão das lágrimas a abraçá-la e pedir perdão, teve de deixá-la ir.

Uma calma fria e impessoal sucedera-se imediatamente à sua explosão. Examinou criticamente o que tinha feito e achou, não sem certa satisfação, que tinha sido a maior “mancada” de sua vida. Mas pelo menos a coisa estava feita e não podia ser desfeita. Ele sentiu a felicidade do homem sem força de espírito diante da irrevocabilidade do ato. Percorreu os gramados de um lado para o outro, fumando um cigarro e pensando com clareza e calma — lembrando o passado, questionando o futuro. Quando o cigarro terminou, entrou em casa.

Chegou ao salão de fumar para ouvir Roger dizer: “... são os pobres que estão bem agora. Bastante comida, bastante dinheiro, sem pagar impostos. Nenhum imposto, isso é que dá nojo. O jardineiro de Alfred, por exemplo. Ele ganha vinte e cinco ou trinta xelins por semana e tem uma boa casa. É casado, mas só tem um filho. Um homem como ele está extraordinariamente bem. Devia estar pagando imposto de renda; tem condições para isso”. O sr. Petherton ouvia sonolento, Jacobsen com sua costumeira polidez atenta e inteligente; George brincava com o melancólico gatinho persa.

Tinha sido combinado que George dormiria lá, porque era desagradável ter de andar mais de um quilômetro no escuro até em casa. Guy acompanhou-o até o quarto e sentou-se na cama para um último cigarro, enquanto George se despia. Era a hora das confidências — aquele momento meio perigoso em que a fadiga relaxa as fibras da mente, deixando-a pronta e boa para os sentimentos.

— Fico tão deprimido — disse Guy — em pensar que você tem só vinte anos e eu já tenho vinte e quatro. Você ainda vai ser jovem e bem-disposto quando a guerra terminar; eu serei um velho acabado.

— Nem tão velho assim — respondeu George, arrancando a camisa. Sua pele era muito branca, e em comparação o rosto, o pescoço e as mãos pareciam de um marrom-escuro; havia uma linha bem demarcada de bronzeado na garganta e nos pulsos.

— Fico horrorizado em pensar no tempo que se perde nessa maldita guerra, ficando-se cada dia mais estúpido e grosseiro, sem conseguir coisa alguma. Serão cinco, seis, Deus sabe quantos anos retirados da nossa vida. Você vai ter um mundo pela frente quando tudo terminar, mas eu terei gasto minha melhor idade.

— Claro, para mim não faz tanta diferença — disse George através da espuma da pasta de dentes. — Não sou capaz de fazer coisa alguma que preste. Na verdade dá no mesmo se eu viver uma vida sem mácula como corretor de ações ou passar a vida sendo morto. Mas para você, concordo, é violento demais...

Guy continuou a fumar em silêncio, a mente cheia de um ressentimento lânguido contra as circunstâncias. George vestiu o pijama e esgueirou-se para dentro dos lençóis; teve que se enrodilhar, porque Guy estava deitado de través na cama e ele não podia esticar as pernas.

— Imagino... — disse Guy finalmente, em tom pensativo. — Imagino que os únicos consolos são, afinal, mulheres e vinho. Realmente vou ter que recorrer a eles. Só que as mulheres são na maioria tão profundamente chatas, e o vinho anda tão caro hoje em dia...

— Mas nem todas as mulheres! — George, era evidente, estava esperando para abrir o coração numa confidência.

— Suponho que você tenha encontrado as exceções.

George contou. Tinha acabado de passar seis meses em Chelsea — seis meses horríveis no alojamento; mas tinha havido intervalos brilhantes entre os exercícios e os cursos especiais, que ele tinha enchido com muitas viagens notáveis de descobertas por entre mundos desconhecidos. E principalmente, um Colombo para sua própria alma, ele descobrira todas aquelas potencialidades e aqueles detalhes que apenas as paixões trazem à luz. Nosce te ipsum,[6] era a ordem; e um cultivo criterioso das paixões é um dos caminhos mais seguros para o autoconhecimento. Para George, que mal contava vinte anos, era tudo surpreendentemente novo e excitante, e Guy escutava a história de suas aventuras com admiração e uma ponta de inveja. Ele lamentava a castidade vergonhosa e enclausurada – rompida apenas uma vez, e com que sordidez! Não teria aprendido muito mais, perguntava-se — não teria sido um ser humano melhor e mais verdadeiro se tivesse tido as experiências de George? Teria aproveitado delas muito mais do que George poderia. Havia o risco de que George se envolvesse num mero gasto tolo de espírito, num desperdício de vergonha. Podia não ser um indivíduo suficientemente forte para permanecer ele mesmo apesar do ambiente; sua mão iria se manchar com a tinta com a qual trabalhava. Guy tinha certeza de que ele próprio não teria corrido risco algum; teria vindo, visto e vencido, e voltado intacto e ainda ele mesmo, porém enriquecido pelo espólio de um novo conhecimento. Será que afinal ele errara? Será que a vida no claustro de sua própria filosofia tinha sido inteiramente inaproveitável?

Olhou para George. Glorioso efebo que era, não surpreendia que as mulheres o favorecessem.

“Com um rosto e um corpo como o meu”, pensou, “eu não poderia viver a vida dele, mesmo que quisesse.” E riu consigo mesmo.

— Você precisa conhecê-la — dizia George com entusiasmo.

Guy sorriu.

— Não preciso, não. Deixe-me dar-lhe um belíssimo conselho. Nunca tente compartilhar suas alegrias. As pessoas são solidárias na dor, mas não no prazer. Boa noite, George.

Inclinou-se sobre o travesseiro e beijou o rosto sorridente que era macio como o de uma criança sob seus lábios.

Guy ficou um longo tempo acordado, e os olhos estavam secos e doloridos quando finalmente o sono o alcançou. Passou aquelas horas escuras e intermináveis pensando — pensando muito, intensamente, dolorosamente. Assim que saíra do quarto de George, um sentimento de intensa infelicidade o possuíra. “Deformado de sofrimento”, era como ele descrevia a si mesmo; adorava forjar frases assim, pois sentia a necessidade do artista de expressar-se, além de sentir e pensar. Distorcido de sofrimento ele foi para a cama; distorcido de sofrimento ele deitou-se e pensou e pensou. Tinha, positivamente, uma sensação de deformação física: seus intestinos estavam retorcidos, tinha as costas curvadas, as pernas emaciadas...

Tinha o direito de estar infeliz. Voltaria para a França no dia seguinte, ferira violentamente o amor de sua amada e estava começando a duvidar de si mesmo, a perguntar-se se sua vida inteira não teria sido uma ridícula loucura.

Passou sua vida em revista, como um homem prestes a morrer. Imaginava que se tivesse nascido em outra época teria sido religioso. Cedo livrara-se da religião, como do sarampo — aos nove anos na Igreja Baixa,[7] aos doze como um liberal, e aos catorze agnóstico — mas ainda conservava o temperamento de um homem religioso. Intelectualmente aproximava-se de Voltaire, emocionalmente aderia a Bunyon. Ter chegado a essa fórmula era, ele sentia, inegável progresso no sentido do autoconhecimento. E como tinha sido tolo com Marjorie! Sua postura afetada — obrigando-a a ler Wordsworth quando ela não queria. Amor intelectual — suas frases nem sempre eram uma bênção; como enganara a si mesmo com palavras! E agora, essa noite, a mais rematada abominação, comportando-se com ela como um anacoreta histérico lidando com uma tentação. A essa lembrança seu corpo tremeu de vergonha.

Ocorreu-lhe uma ideia; iria vê-la, desceria a escada na ponta dos pés até o quarto dela, iria ajoelhar-se junto à cama, pediria seu perdão. Ficou deitado imóvel, imaginando a cena inteira. Chegou mesmo a levantar-se da cama, abrir a porta, que fez um ruído como o grito de um pavão, e esgueirar-se até a beira da escada. Ficou ali um longo tempo, os pés cada vez mais frios, e então resolveu que a aventura era na realidade por demais sordidamente parecida com o episódio no início da Ressurreição de Tolstói. A porta tornou a gritar quando voltou; deitou-se na cama, tentando convencer-se de que seu autocontrole tinha sido admirável e ao mesmo tempo maldizendo sua falta de coragem em não levar a cabo o que pretendia.

Lembrou-se de um discurso que certa vez fizera a Marjorie, sobre o Amor Sagrado e o Profano. Pobre garota, como ela ouvira com paciência! Era capaz de vê-la, e ela trazia uma expressão tão séria no rosto que parecia bem feia. Ela ficava tão bonita quando ria ou ficava feliz; na casa dos White, por exemplo, três noites antes, quando George e ela dançaram depois do jantar e ele ficou sentado, secretamente invejoso, lendo um livro no canto da sala e ostentando um ar superior. Não aprenderia a dançar, mas sempre quis saber. Era uma ocupação bárbara e afrodisíaca, ele dizia, e preferia gastar o tempo e as energias lendo. Novamente salvacionista! George mostrara-se uma pessoa muito mais sábia! Não tinha preconceitos nem opiniões teóricas sobre a conduta da vida; apenas vivia, admiravelmente, naturalmente, como o espírito, ou a carne, lhe ordenava. Se pelo menos pudesse tornar a viver sua vida, se ao menos pudesse abolir a monstruosa estupidez dessa noite...

Marjorie também estava acordada. Ela também se sentia deformada de sofrimento. Como ele tinha sido cruel, e como ela ansiava por perdoá-lo! Talvez ele viesse na escuridão, quando toda a casa estivesse dormindo, entrando na ponta dos pés, em silêncio, para ajoelhar-se junto à sua cama e pedir para ser perdoado. Ela se perguntava: será que ele viria? Fixou os olhos na escuridão acima e em volta dela, querendo que ele viesse, ordenando-o — zangada e infeliz porque ele demorava tanto a vir, porque ele não viera. Antes das duas horas, ambos estavam dormindo.

Sete horas de sono fazem uma diferença surpreendente no estado de espírito. Guy, que pensava que estava deformado para o resto da vida, acordou e encontrou-se saudavelmente normal. A raiva e o desespero de Marjorie tinham desaparecido. A hora que eles tiveram juntos, entre o café da manhã e a partida de Guy, foi preenchida com conversas quase triviais. Guy estava decidido a dizer algo sobre o incidente da véspera. Mas foi apenas no último momento, quando a carruagem já estava à porta, que ele conseguiu gaguejar um arrependimento pelo que tinha acontecido na véspera.

— Não pense nisso — dissera-lhe Marjorie. Assim, beijaram-se e separaram-se, e suas relações continuaram precisamente as mesmas que tinham sido antes de Guy vir em licença.

George deu baixa uma ou duas semanas depois, e um mês depois disso soube-se em Blaybury que ele perdera uma perna — felizmente, abaixo do joelho.

— Pobre rapaz! — exclamou o sr. Petherton. — Realmente preciso escrever para a mãe dele sem demora.

Jacobsen não fez comentário algum, mas era para si próprio uma surpresa descobrir como tinha ficado perturbado com a notícia. George White perdera uma perna; não conseguia tirar esse pensamento da cabeça. Mas apenas abaixo do joelho; podia ser chamado de sortudo. “Sortudo — as coisas são deploravelmente relativas”, ele refletiu. Agradece-se a Deus porque Ele achou apropriado privar uma de suas criaturas de um membro.

“E Ele também não se delicia com as pernas de qualquer homem”, hein? Nous avons changé tout cela.

George perdera uma perna. Não haveria mais aquela velocidade, força e beleza olímpicas. Jacobsen evocou em sua memória uma visão do rapaz correndo com seu grande cão castanho através de grandes extensões verdes de grama. Como ele parecia radiante, os finos cabelos castanhos voando como fogo ao vento de sua própria velocidade, as faces vermelhas, os olhos brilhantes. E com que facilidade corria, com passos longos e elásticos, baixando os olhos para o cão que saltava e latia a seu lado!

Dele fora a perfeição, e agora ela estava estragada. Em lugar de uma perna ele tinha um toco. Moignon, diziam os franceses; havia em moignon o tom repulsivo que faltava em “toco”. Soignons le moignon en l’oignant d’oignons.

Com frequência, à noite, antes de dormir, ele não conseguia deixar de pensar em George, na guerra e em todos os milhões de moignons que devia haver no mundo. Certa noite sonhara com nódulos vermelhos pegajosos, coisas que pareciam pólipos, que cresciam enquanto ele as olhava, inchando entre suas mãos — moignons, na verdade.

No fim do outono George estava suficientemente bem para vir para casa. Tinha aprendido a caminhar com as muletas com muita habilidade, e sua absurda cadeira de rodas puxada a jumento logo se tornou um objeto familiar nas trilhas da vizinhança. Era uma incrível cena quando George passava a trote, inclinando-se para a frente como um jovem Febo em sua carruagem e apressando o animal preguiçoso com a voz e a muleta. Ele ia a Blaybury quase todos os dias; Marjorie e ele conversavam infindavelmente sobre a vida e o amor, Guy e outros assuntos interessantes. Com Jacobsen ele jogava piquê e discutia mil assuntos. Estava sempre alegre e feliz — e era especialmente isso que cortava de pena o coração de Jacobsen.

IV

Tinham começado as férias de Natal e o reverendo Roger estava de volta a Blaybury. Estava sentado à escrivaninha na sala de estar, ocupado então em morder a ponta da pena e coçar a cabeça. Seu rosto ostentava uma expressão de perplexidade; podia-se dizer que estava no paroxismo da composição literária. E realmente estava. “Amado pupilo de Alfred Petherton...”, disse alto. “Amado pupilo”... Sacudiu a cabeça, em dúvida.

A porta abriu-se e Jacobsen entrou no aposento. Roger voltou-se imediatamente.

— Já ouviu a triste notícia? — perguntou.

— Não. Que é?

— O pobre Guy está morto. Recebemos um telegrama há meia hora.

— Meu Deus! — disse Jacobsen em voz dolorida, que parecia mostrar que ele tinha sido arrojado para longe da calma que possui aquele que leva a vida da razão. Desde a mutilação de George ele estava consciente de que suas defesas estavam mais fracas; as circunstâncias externas estavam marchando resolutas sobre ele. Agora elas o tinham invadido e, no momento, ele estava à sua mercê. Guy morto... Controlou-se o suficiente para dizer, depois de uma pausa:

— Bem, imagino que era de se esperar, mais cedo ou mais tarde. Pobre rapaz.

— É, é horrível, não é? — disse Roger, sacudindo a cabeça. — Estou escrevendo o anúncio para mandar ao The Times. Não se pode dizer “o amado pupilo de Alfred Petherton”, não é? Não soa muito bem; no entanto, seria bom dar expressão pública, de alguma forma, à profunda afeição que Alfred sentia por ele. “Amado pupilo”... Não, decididamente não serve.

— Você vai ter que dar um jeito — disse Jacobsen. A presença de Roger de certo modo tornava mais fácil voltar à vida da razão.

— Pobre Alfred — continuou o outro. — Você não tem ideia de como ele recebeu mal a notícia. Foi como se tivesse perdido um filho.

— Que desperdício! — exclamou Jacobsen. Sua emoção era profunda demais.

— Fiz o possível para consolar Alfred. Deve-se ter sempre em mente por que causa ele morreu.

— Toda aquela potencialidade destruída! Ele era um sujeito capaz, o Guy. — Jacobsen falava mais consigo mesmo que com o outro, mas Roger aceitou a sugestão.

— Era mesmo. Alfred achava que ele prometia muito. É principalmente por causa dele que lamento. Nunca me dei muito bem com o rapaz. Era excêntrico demais para o meu gosto. Pode-se ser inteligente demais, não? É um tanto desumano. Ele costumava fazer os iambos gregos mais notáveis quando garoto. Imagino que fosse um sujeito muito bom, debaixo de toda aquela inteligência e estranheza. É tudo muito triste, muito lamentável.

— Como foi que ele morreu?

— Morreu em consequência de ferimentos, ontem de manhã. Acha que seria bom colocar uma citação qualquer no final do anúncio no jornal? Algo como Dulce et Decorum, ou Sed Miles, Sed Pro Patria, ou Per Ardua ad Astra?

— Não me parece importante — opinou Jacobsen.

— Talvez não. — Os lábios de Roger moveram-se silenciosamente; ele estava contando. — Quarenta e duas palavras. Imagino que isso dê oito linhas. Pobre Marjorie! Espero que ela não fique muito amargurada. Alfred me disse que eles estavam noivos não oficialmente.

— Foi o que entendi.

— Acho que vou ter de dar a notícia a ela. Alfred está perturbado demais para fazer qualquer coisa. Vai ser uma tarefa dolorosíssima. Pobre moça! Imagino que, na verdade, eles não conseguiriam se casar tão cedo, pois Guy quase não tinha dinheiro. Esses casamentos apressados são perigosos. Deixe-me ver: oito vezes três xelins dá uma libra e quatro xelins, não é? Imagino que eles aceitem cheques sem problemas.

— Quantos anos ele tinha? — Jacobsen perguntou.

— Vinte e quatro e alguns meses.

Jacobsen caminhava inquieto de um lado para o outro do aposento.

— Mal chegando à maturidade! Hoje em dia temos de ser gratos por termos nosso próprio trabalho e nossos pensamentos para nos distrair desses horrores.

— É terrível, não é? Terrível. Foram tantos os meus alunos mortos que já perdi a conta.

Alguém bateu na janela francesa que dava para o jardim; era Marjorie pedindo para entrar. Ela cortara hera e azevinho para a decoração de Natal e carregava uma cesta cheia de folhas escuras e brilhantes.

Jacobsen destrancou a janela e Marjorie entrou, sorridente e ruborizada pelo frio. Jacobsen nunca a tinha visto tão bonita: ela estava esplendorosa, radiante, como Ifigênia entrando vestida de noiva para o sacrifício.

— Há muito pouco azevinho este ano — comentou ela. — Acho que nossa decoração de Natal não vai ficar tão linda desta vez.

Jacobsen aproveitou a oportunidade para esgueirar-se pela janela francesa em direção ao jardim. Embora estivesse desagradavelmente frio, ele caminhou de uma ponta à outra dos caminhos pavimentados do jardim holandês, sem chapéu e sem casaco, durante muito tempo.

Marjorie movimentava-se pela sala, colocando galhos de azevinho em volta das molduras dos quadros. Hesitando em falar, o tio a observava; ele se sentia completamente desconfortável.

— Infelizmente — disse afinal — seu pai está muito perturbado hoje. — A voz era rouca; ele fez um ruído explosivo para limpar a garganta.

— São as palpitações? — Marjorie perguntou friamente; as enfermidades do pai não lhe causavam muita ansiedade.

— Não, não. — Roger percebeu que sua jogada de abertura fora um erro. — Não. É... hum... mais uma aflição mental, e temo que vá perturbar você também. Marjorie, você tem de ser forte e corajosa; acabamos de saber que Guy está morto.

— Guy morto? — Ela não conseguia acreditar; mal imaginara a possibilidade; além disso, ele fazia serviço de escritório. — Oh, tio Roger, não é verdade.

— Infelizmente não há dúvida. O telegrama do Ministério da Guerra chegou logo que você saiu para buscar o azevinho.

Marjorie sentou-se no sofá e escondeu o rosto nas mãos. Guy morto; jamais o veria de novo, jamais o veria de novo, jamais; começou a chorar.

Roger aproximou-se e parou com a mão no ombro dela, postando-se como um leitor de pensamentos. Para aqueles dominados pelo sofrimento o toque de uma mão amiga é com frequência reconfortante. Eles caíram num abismo, e o toque da mão serve para lembrar-lhes que a vida, Deus e a solidariedade humana ainda existem, por mais profundo que o abismo da dor possa parecer. No ombro de Marjorie a mão de seu tio descansava com um calor úmido e pesado que lhe era estranhamente desagradável.

— Querida criança, é muito triste, eu sei; mas você precisa tentar ser forte e aguentar firme. Todos temos nossa cruz para carregar. Dentro de dois dias estaremos comemorando o nascimento de Cristo; lembre-se com que paciência Ele recebeu a taça de agonia. E também lembre-se por que causa Guy deu a vida. Ele teve a morte de um herói, a morte de um mártir, dando testemunho do Céu contra as forças do mal — sem o perceber Roger apelava às palavras de seu último sermão na capela da escola. — Você deve sentir orgulho pela morte dele, além da dor. Portanto, pronto, querida criança. — Deu-lhe uns tapinhas no ombro. — Talvez fosse melhor deixá-la agora.

Por algum tempo, depois da saída do tio, Marjorie ficou sentada imóvel, o corpo dobrado para a frente, o rosto entre as mãos. Repetia sem cessar as palavras “nunca mais”, e o som delas encheu-a de desespero e fê-la chorar. Elas pareciam desvendar uma paisagem sombria, cinzenta e infinita: “nunca mais”. Eram um feitiço que evocava lágrimas.

Levantou-se finalmente e começou a caminhar sem rumo pela sala. Parou diante de um pequeno espelho antigo emoldurado em preto, pendurado junto à janela, e contemplou seu reflexo. De certo modo esperara estar com a aparência diferente, transformada. Surpreendeu-se ao ver seu rosto inteiramente inalterado: grave, melancólico talvez, mas ainda assim o mesmo rosto que ela tinha visto quando se penteava de manhã. Uma ideia curiosa passou-lhe pela cabeça; ela se perguntou se seria capaz de sorrir agora, nesse momento terrível. Movimentou os músculos do rosto e ficou cheia de vergonha diante da visão do sorriso sem alegria que zombava dela no espelho. Como era estúpida e insensível! Explodiu em lágrimas e tornou a jogar-se no sofá, enterrando o rosto numa almofada. A porta abriu-se, e pelo ruído Marjorie reconheceu a aproximação de George White em suas muletas. Ela não ergueu os olhos. Diante da figura em frangalhos no sofá, George parou, sem saber o que fazer. Deveria ir embora silenciosamente ou ficar e tentar dizer algo consolador? A visão da moça ali deitada dava-lhe uma dor quase física. Resolveu ficar.

Aproximou-se do sofá e parou acima dela, equilibrado em suas muletas. Ela não ergueu a cabeça, mas apertou mais o rosto contra a escuridão sufocante da almofada, como se para fechar sua consciência a todo o mundo exterior. George contemplava-a em silêncio. Os cachinhos delicados que apareciam na nuca da jovem eram maravilhosamente bonitos.

— Eu já soube — disse ele finalmente. — Agora mesmo, quando cheguei. É horrível demais. Acho que gostava mais de Guy do que de qualquer outra pessoa no mundo. Nós dois, não é?

Ela recomeçou a soluçar. George ficou tomado de remorso sentindo que de alguma forma a tinha ferido, de alguma forma tinha aumentado a dor dela com o que tinha dito.

“Pobre criança, pobre criança”, disse ele, quase alto. Ela era um ano mais velha que ele, mas parecia indefesa e pateticamente jovem, agora que estava chorando.

Ficar muito tempo de pé fatigava-o, e ele baixou o corpo, lenta e dolorosamente, para sentar-se no sofá ao lado dela. Ela finalmente ergueu o rosto e começou a enxugar os olhos.

— Estou tão infeliz, George, principalmente porque sinto que não agi direito com o querido Guy. Houve ocasiões, sabe, em que eu me perguntava se não era tudo um grande erro estarmos noivos. Às vezes eu sentia que quase o odiava. Nessas últimas semanas senti tanta raiva dele. E agora vem isso, e me faz perceber como fui horrível com ele. — Ela sentia alívio em contar e confessar; George era tão solidário, ele compreenderia. — Agi como um animal.

Sua voz morreu, e foi como se alguma coisa se partisse na cabeça de George. Ele estava dominado pela piedade; não podia suportar que ela sofresse.

— Você não deve se perturbar em excesso, querida Marjorie — ele implorou, acariciando as costas da mão dela com sua palma enorme e áspera. — Não faça isso.

Marjorie continuou, impiedosamente.

— Quando tio Roger me contou, agora mesmo, sabe o que eu fiz? Eu me perguntei: será que me importo mesmo? Não consegui saber. Olhei no espelho para ver se meu rosto me respondia. Então de repente resolvi ver se conseguia rir, e consegui. E isso me fez sentir como sou detestável, e comecei a chorar de novo. Ah, eu sou um animal, George, não sou?

Ela explodiu em lágrimas apaixonadas e mais uma vez escondeu o rosto na almofada amiga. George não conseguiu suportar aquilo. Colocou a mão no ombro dela e inclinou-se para a frente, perto dela, até o rosto quase tocar-lhe os cabelos.

— Não — exclamou. — Não, Marjorie. Você não pode se atormentar assim. Sei que você amava Guy; nós dois o amávamos. Ele gostaria que fôssemos felizes e corajosos e que nossa vida continuasse, e não que fizéssemos da morte dele uma fonte de desespero. — Houve um silêncio, rompido apenas pelo som desesperado dos soluços dela. — Marjorie, querida, você não deve chorar.

— Pronto, não estou chorando — disse Marjorie através das lágrimas. — Vou tentar parar. Guy não ia querer que chorássemos por ele. Você tem razão; ele iria querer que vivêssemos por ele, com dignidade, à sua maneira esplêndida.

— Nós que o conhecemos e o amamos devemos fazer de nossas vidas a celebração de sua memória. — Em circunstâncias comuns, George preferia morrer a fazer um comentário desses. Mas ao falar dos mortos as pessoas se esquecem de si mesmas e se amoldam à peculiar convenção obituária de pensamento e linguagem. Espontaneamente, inconscientemente, George se amoldara.

Marjorie enxugou os olhos.

— Obrigada, George. Você sabe tão bem do que o querido Guy gostaria. Você me faz sentir mais forte para eu aguentar. Mas mesmo assim sinto-me odiosa pelo que pensei sobre ele às vezes. Não o amei o suficiente. E agora é tarde demais. Nunca mais vou vê-lo outra vez. — O feitiço daquele “nunca” tornou a funcionar: Marjorie soluçava desesperadamente.

A tristeza de George não tinha limite. Rodeou os ombros de Marjorie com o braço e beijou-lhe os cabelos.

— Não chore, Marjorie. Todos se sentem assim às vezes mesmo com as pessoas que mais amam. Você não deve se fazer infeliz.

Mais uma vez ela ergueu o rosto e olhou para ele com um sorriso triste, de cortar o coração.

— Você tem sido tão bom para mim, George. Não sei o que teria feito sem você.

— Pobre querida! — exclamou George. — Não suporto ver você infeliz. — Seus rostos estavam próximos, e parecia natural que seus lábios se encontrassem num longo beijo. — Vamos recordar apenas as coisas boas e gloriosas de Guy — ele assim o fez. — Que pessoa maravilhosa ele era, e como nós o amávamos. — Tornou a beijá-la.

— Talvez nosso querido Guy esteja conosco agora mesmo — disse Marjorie, com uma expressão de êxtase no rosto.

— Talvez esteja — repetiu George.

Foi nesse ponto que se ouviu uma passada pesada e uma mão sacudiu a porta. Marjorie e George afastaram-se um do outro. O intruso era Roger, que entrou apressado, esfregando as mãos com um ar de alegria forçada, fingindo com empenho que nada de inconveniente acontecera. É de nossa tradição inglesa que escondamos nossas emoções.

— Bem, bem — fez ele. — Acho que é melhor irmos almoçar. A sineta já tocou.


Com números, Eupompus conferiu nobreza à arte

— Fiz uma descoberta — disse Emberlin quando eu entrava em seu quarto.

— Sobre o quê? — perguntei.

— Uma descoberta — respondeu — sobre Descobertas. — Irradiava uma satisfação sem pudores; não restava dúvida de que a conversa decorrera exatamente como ele pretendia. Ele fizera sua frase e, repetindo-a amorosamente: — Uma descoberta sobre Descobertas —, sorriu-me indulgente deleitando-se com meu ar perplexo, expressão que, confesso, exagerara de propósito para lhe dar prazer. Pois Emberlin, em tantos aspectos tão infantil, gostava em particular de aturdir e intrigar seus conhecidos; e esses pequenos triunfos, essas pequenas “vitórias” sobre as pessoas davam-lhe alguns de seus maiores prazeres. Sempre condescendi com sua fraqueza quando podia, pois valia a pena estar nas boas graças de Emberlin. Poder escutar sua conversa após o jantar era realmente um privilégio. Não apenas ele era um grande conversador como tinha também o poder de estimular os outros a conversar bem. Era como um vinho sutil, embebedando apenas até um ponto meredithiano[8] de leve embriaguez. Em sua companhia a pessoa era alçada à esfera de concepções arejadas e mercuriais; e percebia de repente que algum milagre acontecera, que ela não mais vivia num mundo enfadonho de coisas embaralhadas mas em algum lugar acima da bagunça, num universo de ideias vítreo e perfeito onde tudo era informado, consistente, simétrico. E era Emberlin quem, como um deus, tinha o poder de criar esse mundo novo e real. Ele o construía de palavras, esse Éden de cristal onde nenhuma serpente rastejante, devoradora do lixo cotidiano, podia entrar e perturbar suas harmonias. Desde que conheço Emberlin passei a ter um respeito muito acentuado pela magia e por todas as fórmulas de sua liturgia. Se com palavras Emberlin pode criar um mundo novo para mim, pode fazer meu espírito desprender-se completamente da antiga dominação, por que não poderia ele, ou eu, ou qualquer um, tendo encontrado as frases apropriadas, exercer por meio delas uma influência mais vulgarmente miraculosa sobre o mundo de meros objetos? Realmente, quando comparo Emberlin ao mágico comercial comum, parece-me que Emberlin é o grande taumaturgo. Mas deixemos isso de lado; estou fugindo a meu propósito, que era dar uma descrição do homem que tão confiante sussurrou-me que fizera uma descoberta sobre Descobertas.

No melhor sentido da palavra, então, Emberlin era acadêmico. Para nós que o conhecíamos, seus aposentos eram um oásis de altivo alheamento plantado secretamente no coração do deserto de Londres. Ele exalava uma atmosfera que combinava a fantástica especulação do calouro com a estranheza mais temperada dos incrivelmente sábios catedráticos de outrora. Era imensamente erudito, mas de um modo nada enciclopédico — uma mina de informações irrelevantes, como diziam dele seus inimigos. Escrevia um pouco mas, como Mallarmé, evitava a publicação, considerando-a semelhante ao “pecado do exibicionismo”. Certa feita, contudo, no furor da juventude, há mais de uma década, ele publicou um volume de versos. Passou depois muito tempo reunindo assiduamente exemplares de seu livro para queimá-los. Deve haver muito poucos no mundo agora. Meu amigo Cope teve a sorte de encontrar um, outro dia — um livrinho azul que ele me mostrou muito secretamente. Não consigo entender por que Emberlin deseja apagar todos os vestígios dele. Não há nada de que se envergonhar no livro; alguns dos versos são, realmente, a seu modo cheio de juventude e êxtase, bons. Mas são certamente concebidos num estilo diferente de seus poemas atuais. Talvez seja isso que o torne inflexível diante deles. O que ele escreve agora, para uma circulação manuscrita muito particular, são coisas curiosas. Confesso que prefiro a obra anterior; não gosto da qualidade pétrea, dura, desse tipo de coisa — a única de que consigo me lembrar de sua produção mais recente. É um soneto para uma figura de mulher de porcelana, desenterrada em Cnossos:

Seus olhos de um lustre brilhante e imóvel

Todo imperturbável nem

Mesmo finge olhar

A saliente ausência de seu espartilho

Onde muitos boiões[9] sírios

Excitam o desejo com respingos de nardo.[10]

As beiradas abistradas[11] acima do rouge

De faces vermelhas como tangerina

Atestam que nenhum adiamento envergonhado

Vai impedir a realização nem retardar

O pagamento total do elogio licencioso

Até a última letra cheia de remorso.

Salve, sacerdotisa não sabemos de que

Estranho culto dos dias micênicos!”[12]

Infelizmente não recordo um sequer dos poemas franceses de Emberlin. Sua musa peculiar expressa-se melhor, eu acho, naquela linguagem do que em sua língua nativa.

Assim é Emberlin; assim, eu deveria dizer, era ele, pois, como pretendo demonstrar, ele não é agora o homem que era quando me sussurrou tão confidencialmente, quando entrei em seu quarto, que tinha feito uma descoberta sobre Descobertas.

Esperei pacientemente até que ele terminasse seu joguinho de palavras e, quando o momento pareceu apropriado, pedi-lhe que se explicasse. Emberlin estava pronto para se abrir.

— Bem, são estes os fatos — ele começou. — Uma introdução enfadonha, eu temo, porém necessária. Há alguns anos, quando li as Descobertas de Ben Jonson pela primeira vez, aquela estranha anotação, “Com números, Eupompus conferiu nobreza à arte”, mexeu com a minha curiosidade. Você mesmo deve ter ficado impressionado com essa frase, todo mundo deve tê-la percebido, e todo mundo deve ter percebido também que nenhum comentarista disse uma só palavra sobre o assunto. É assim com os críticos — os pontos óbvios exaustivamente explicados e discutidos, e as passagens difíceis, sobre as quais a pessoa pode querer saber algo, legadas ao silêncio da pura ignorância. “Com números, Eupompus conferiu nobreza à arte”; essa frase absurda ficou na minha cabeça. Certa época ela realmente me perseguiu. Costumava cantá-la no banho, musicada como um hino. Era assim, pelo que me lembro — e ele começou a cantar —: “Eupompus, Eu-u-pompus conferiu nobre-e-za...” — e assim por diante, através de todas as repetições, os altos e baixos arrastados de um hino parodiado. — Estou lhe cantando isso para mostrar que poder essa horrível frase tinha sobre a minha mente — disse ele ao terminar. — Durante oito anos, de vez em quando sua falta de sentido me encurralava. Consultei Eupompus em todos os livros óbvios de referência, é claro. Ele está lá direitinho: artista alexandrino, eternizado por algum autorzinho infeliz em alguma anedota ainda mais infeliz, que no momento esqueci inteiramente; de qualquer maneira, não tinha nada a ver com o embelezamento da arte por números. Desanimado, há muito tempo desisti da busca; Eupompus permaneceu para mim uma figura envolta em mistério, autor de um ultraje qualquer, responsável por algum benefício esquecido para a arte que ele praticava. A história dele parecia mergulhada numa escuridão impenetrável. E então ontem descobri tudo sobre ele e sua arte e seus números. Uma descoberta casual, e poucas coisas me deram maior prazer. Como eu disse, descobri-o ontem, quando folheava um volume de Zuylerius. Naturalmente, não o Zuylerius que conhecemos — acrescentou depressa. — Caso contrário já se teria descoberto o segredo de Eupompus há muitos anos.

— Naturalmente — repeti —, não o Zuylerius a que se tem acesso.

— Exatamente — disse Emberlin, levando a sério meu gracejo. — Não o conhecido John Zuylerius Junior, mas o mais velho, Henricus Zuylerius, uma figura muito menos famosa, ainda que talvez não merecesse tal destino, do que o filho. Mas não é hora de discutirmos seus respectivos méritos. De qualquer maneira, descobri num livro de diálogos críticos do Zuylerius mais velho a referência à qual, sem dúvida, Jonson aludia em sua anotação. (Era naturalmente uma mera anotação, que não era para ser impressa, mas que os executores literários de Jonson colocaram no livro com todo o resto do material póstumo disponível.) “Com números, Eupompus conferiu nobreza à arte”; Zuylerius faz um relato bem circunstancial do processo. Ele deve, imagino, ter encontrado as fontes em algum escritor agora perdido para nós.

Emberlin fez uma pequena pausa para pensar. A perda da obra de qualquer escritor antigo causava-lhe uma aguda tristeza. Chego a crer que ele tinha escrito uma versão dos livros não recuperados de Petrônio. Algum dia espero ter a oportunidade de ver que concepção Emberlin faz do Satyricon como um todo. Ele faria, disso não tenho dúvida, justiça a Petrônio; quase em demasia, talvez.

— Qual era a história de Eupompus? — perguntei. — Estou cheio de curiosidade para saber.

Emberlin soltou um suspiro e prosseguiu.

— A narrativa de Zuylerius — disse ele — é bem árida, mas no geral lúcida; e acho que ela nos dá os pontos principais da história. Vou lhe contar em minhas próprias palavras; é melhor do que ler o latim holandês dele. Eupompus, então, era um dos mais renomados retratistas de Alexandria. Sua clientela era grande, seus negócios imensamente lucrativos. Para um meio retrato em óleo os grandes cortesãos lhe pagavam um mês de salário. Ele pintava os retratos dos príncipes e dos mercadores em troca de seus mais caros e raros tesouros. Potentados negros como carvão viajavam mil e quinhentos quilômetros, vindos da Etiópia, para terem suas miniaturas desenhadas num pedaço especialmente escolhido de marfim; e como pagamento havia camelos carregados de ouro e especiarias. A fama, a riqueza e a honra foram dele enquanto ele ainda era jovem; à sua frente parecia haver uma carreira sem par. E então, de repente, ele desistiu de tudo: recusou-se a pintar outro retrato. As portas de seu estúdio foram fechadas. Era em vão que os clientes, por mais ricos, por mais famosos que fossem, pediam para entrar; os escravos tinham ordens: Eupompus só recebia seus íntimos.

Emberlin fez uma pausa na narrativa.

— Que era que Eupompus estava fazendo? — perguntei.

— Naturalmente ele estava ocupado — respondeu Emberlin — dando nobreza à arte com números. E isso, pelo que consegui entender do Zuylerius, foi como tudo aconteceu. De repente ele se apaixonou pelos números — irremediavelmente, a contagem pura tornava-se sua vida. O número parecia-lhe a única realidade, a única coisa da qual a mente do homem podia ter certeza. Contar era a única coisa que valia a pena, porque era a única coisa que se podia ter certeza de estar fazendo certo. Assim a arte, para que possa ter algum valor, tem que se aliar à realidade; isto é, tem que possuir um alicerce numérico. Ele colocou a ideia em prática pintando o primeiro quadro nesse novo estilo. Era uma tela gigantesca, cobrindo várias centenas de metros quadrados; não tenho dúvida de que Eupompus poderia ter dito a área exata até um centímetro; e sobre ela estava representado um oceano ilimitado, coberto, até onde a vista podia alcançar em qualquer direção, por uma multidão de cisnes negros. Havia trinta e três mil desses cisnes, cada um, mesmo que fosse apenas uma mancha no horizonte, distintamente desenhado. No meio do oceano havia uma ilha, sobre a qual postava-se uma figura mais ou menos humana com três olhos, três braços e três pernas, três seios e três umbigos. No céu plúmbeo três sóis expiravam palidamente. Não havia mais coisa alguma no quadro, Zuylerius descreve-o exatamente. Eupompus passou nove meses de trabalho árduo pintando-o. Os poucos privilegiados que puderam vê-lo definiram-no, quando terminado, como uma obra-prima. Agregaram-se em volta de Eupompus em uma pequena escola, denominando a si mesmos os Filarrítmicos. Sentavam-se durante horas diante da grande obra dele, contemplando os cisnes e contando-os; segundo os Filarrítmicos, contar e contemplar era a mesma coisa. O quadro seguinte de Eupompus, representando um pomar de árvores idênticas dispostas em quincôncios,[13] foi menos apreciado pelos connaisseurs. Seus estudos de multidões eram, no entanto, mais apreciados; neles ele as retratava dispostas em grupos que imitavam exatamente o número e a posição das estrelas que compunham várias das mais famosas constelações. E havia também seu célebre quadro do anfiteatro, que causou furor entre os Filarrítmicos. Zuylerius novamente dá uma descrição detalhada. Fileiras e fileiras de assentos são vistos, todos ocupados por estranhas figuras ciclópicas. Cada fileira acomoda mais pessoas do que a fileira abaixo, e o número aumenta numa progressão complicada, porém regular. Todas as figuras sentadas no anfiteatro possuem um só olho, enorme e luminoso, plantado no meio da testa; e todos esses milhares de olhos únicos estão fixos, num olhar perscrutador terrível e ameaçador, sobre uma criatura semelhante a um anão encolhendo-se miseravelmente na arena... Em toda a multidão, só ele possuía dois olhos. Eu daria tudo para ver esse quadro — acrescentou Emberlin, depois de uma pausa. — O colorido, sabe? Zuylerius não faz menção, mas de algum modo eu tenho certeza de que o tom dominante deve ter sido um vermelho-tijolo vivo: um anfiteatro de granito vermelho cheio de espectadores vestidos de vermelho, bem definidos contra um céu azul implacável.

— Os olhos seriam verdes — sugeri.

Emberlin fechou os olhos para visualizar a cena e depois assentiu, de forma um tanto vagarosa e reticente.

— Até aí a narrativa de Zuylerius é bem clara — Emberlin continuou finalmente. — Mas suas descrições da arte filarrítmica posterior se tornam extremamente obscuras; duvido que ele tenha entendido do que se tratava. Vou lhe dar o significado que consegui extrair do caos. Parece que Eupompus se cansou de pintar apenas números de objetos. Ele agora queria representar o próprio Número. E então concebeu o plano de tornar visíveis as ideias fundamentais da vida através daqueles termos puramente numéricos nos quais, segundo ele, elas têm de se resolver no final. Zuylerius fala vagamente de um retrato de Eros, que parece ter consistido de uma série de planos entrelaçados. Parece que a fantasia de Eupompus se voltou em seguida para vários dos diálogos socráticos sobre a natureza das ideias gerais, e ele fez uma série de ilustrações para eles no mesmo estilo aritmogeométrico. Finalmente há a louca descrição que Zuylerius faz do último quadro que Eupompus pintou. Dela, compreendi muito pouco. O tema da obra, pelo menos, está claramente declarado: era uma representação do Número Puro, ou Deus e o Universo, ou como quer que você queira chamar essa concepção agradavelmente vazia e tola da totalidade. Era um retrato do cosmo visto, pelo que entendi, através de uma camera obscura um tanto neoplatônica — muito claro e pequeno. Zuylerius sugere um desenho de planos irradiando-se de um único ponto de luz. Ouso dizer que deve ter sido algo assim. Na realidade, não tenho dúvida, a obra era uma expressão muito adequada, em forma visível, da concepção de um e muitos, com todos os estados intermediários de iluminação entre a matéria e a Fons Deitatis.[14] No entanto, não adianta especular o que o quadro seria. O pobre Eupompus ficou louco antes de tê-lo terminado inteiramente e, depois de ter despachado dois dos admiradores filarrítmicos com um martelo, jogou-se pela janela e quebrou o pescoço. Foi o seu fim, e foi assim que ele deu nobreza, lamentavelmente efêmero, à arte com números.

Emberlin parou de falar. Fumamos nossos cachimbos em pensativo silêncio; pobre Eupompus!

Isso foi há quatro meses. Hoje Emberlin é um filarrítmico declarado e aparentemente definitivo, um ardoroso eupompiano.

Sempre foi característico de Emberlin pegar ideias que encontra em livros e colocá-las em prática. Certa vez, por exemplo, tornou-se um alquimista ativo, e adquiriu uma habilidade considerável na grande arte. Estudou mnemônica com Bruno e Raymond Lully, e construiu para si próprio uma réplica da máquina de silogismos deste último, na esperança de ganhar o conhecimento universal que o Doutor Iluminado garantia a quem a usasse. Dessa vez foi o eupompianismo, e a coisa tomou conta dele. Apresentei-lhe todos os avisos apavorantes que pude encontrar na História. Mas não adiantou.

Há o espetáculo lamentável do dr. Johnson sob a tirania de um ritual eupompiano contando os postes e os paralelepípedos da rua Fleet. Ele próprio sabia bem como estava perto da loucura.

E também considero eupompianos todos os jogadores, todos os calculistas, todos os intérpretes das profecias de Daniel e do Apocalipse; e também os cavalos de Elberfeld, os mais completos dos eupompianos.

E ali estava Emberlin juntando-se a essa seita, degradando-se ao nível dos animais que contam, e das crianças e dos homens irracionais, mais ou menos insano. Dr. Johnson nasceu no mínimo com um toque de aberração eupompiana; Emberlin a está adquirindo esforçada e conscientemente. Meus contra-argumentos, os contra-argumentos de todos os seus amigos, ainda não fizeram efeito. É em vão que digo a Emberlin que contar é a coisa mais fácil do mundo, que quando estou inteiramente exausto meu cérebro, por falta de capacidade de fazer qualquer outro trabalho, apenas conta e calcula, como uma máquina, como um cavalo de Elberfeld. Minha voz cai em ouvidos surdos; Emberlin apenas sorri e me mostra alguma nova anedota numérica que descobriu. Emberlin nunca mais pode entrar num banheiro azulejado sem contar quantas fileiras de azulejos há do chão ao teto. Ele considera um fato interessante que haja vinte e seis fileiras de azulejos no banheiro dele e trinta e duas no meu, enquanto todos os banheiros públicos de Holborn têm o mesmo número. Ele agora sabe quantos são os passos de um ponto de Londres a outro. Desisti de sair a passeio com ele. A consciência de ver seu olhar preocupado me irrita deveras, pois sei que está contando seus passos.

Suas noites, também, tornaram-se profundamente melancólicas; a conversa, por melhor que comece, sempre chega ao mesmo assunto nauseante. Não conseguimos fugir aos números; Eupompus nos persegue. Não que sejamos matemáticos e possamos discutir problemas de algum interesse ou valor. Não, nenhum de nós é matemático, menos ainda Emberlin. Emberlin gosta de conversar sobre assuntos como o significado numérico da Trindade, a importância imensa do fato de ela ser uma em três. E parece não ter consciência do quanto mudou para pior. Está feliz com um interesse que o consome por completo. É como se alguma lepra mental tivesse atacado sua inteligência.

Daqui a mais ou menos um ano, digo a Emberlin, ele quase poderá competir com os cavalos calculadores em seu próprio terreno. Terá perdido todos os traços da razão, mas conseguirá ex- trair raízes cúbicas de cabeça. Ocorre-me que a razão por que Eupompus se matou não foi por ser louco; pelo contrário, foi porque estava, temporariamente, são. Esteve louco durante anos, e então repentinamente a autocomplacência do idiota iluminou-se por um lampejo de sanidade. À sua luz momentânea ele enxergou os abismos de imbecilidade em que mergulhara. Viu e compreendeu, e todo o horror, o lamentável absurdo da situação, deixou-o desesperado. Ele vingou Eupompus contra o eupompianismo, a humanidade contra os Filarrítmicos. Tenho o maior prazer em pensar que ele liquidou dois daquele horrível grupo antes de morrer.


Cynthia

Daqui a uns cinquenta anos, quando meus netos me perguntarem o que eu fazia quando estava em Oxford nos primórdios de nosso monstruoso século, vou lançar o olhar para trás, por sobre o crescente abismo do tempo, e dizer-lhes com toda boa-fé que nunca trabalhei menos que oito horas por dia, que tinha um vivo interesse pelo Serviço Social e que café era o estimulante mais forte que eu bebia. E eles confirmarão com muita justiça... mas espero não ouvir. É por isso que me proponho a escrever minhas memórias sem demora, antes que tenha tempo para esquecê-las, de modo que, tendo a verdade à minha frente, não possa no futuro, consciente ou inconscientemente, dizer mentiras a meu próprio respeito.

No momento não tenho tempo para escrever um relato completo daquele período decisivo de minha história. Assim, tenho de me contentar em descrever um único acidente de meus dias de graduando. Escolhi este porque é curioso e ao mesmo tempo inteiramente característico da vida em Oxford antes da guerra.

Meu amigo Lykeham era bolsista na Faculdade Swellfoot. Ele combinava sangue (tinha um orgulho imenso de sua ascendência anglo-saxônica e da derivação de seu nome do inglês arcaico lycam, cadáver) com inteligência. Seus gostos eram excêntricos, seus hábitos, deploráveis, o conjunto de saberes que dominava, imenso. Como ele agora está morto, nada mais direi sobre seu caráter.

Continuando com meu caso: certa noite eu fora, como era meu costume, visitá-lo em seus aposentos na Swellfoot. Eram pouco mais de nove horas quando subi a escada, e o sino — nosso grande Tom[15] — ainda batia.

In Thomae laude

Resono bim bam sine fraude,[16]

como dizia aquele versinho bonitinho e bobo, e essa noite ele estava fazendo jus ao verso, bimbalhando num persistente basso profondo que formava um impressionante fundo dissonante para o som frenético de guitarra que emanava do quarto de Lykeham. Pela fúria de seu dedilhado eu percebia que tinha acontecido algo mais que normalmente cataclísmico, pois felizmente era apenas em momentos de enorme tensão que Lykeham tocava sua guitarra.

Entrei no aposento com as mãos nos ouvidos.

— Pelo amor de Deus... — implorei. Através da janela aberta o sino soltava um mi bemol profundo, com modulações abaixo e acima do tom, enquanto a guitarra matraqueava aguda e histericamente em ré natural. Lykeham riu, jogou a guitarra no sofá com tal violência que as cordas soaram todas num ronco trêmulo, e correu para mim. Bateu-me no ombro com doloroso entusiasmo; seu rosto irradiava alegria e excitação.

Posso ser solidário com o sofrimento dos outros, mas não com seu prazer. Há alguma coisa curiosamente enfadonha na felicidade alheia.

— Você está transpirando — falei friamente.

Lykeham enxugou-se, mas continuou sorrindo.

— Bem, que foi agora? — perguntei. — Está noivo outra vez?

Lykeham explodiu com o prazer triunfante de alguém que tenha finalmente encontrado a oportunidade de livrar-se de um segredo opressivo:

— Muito melhor que isso! — exclamou.

Soltei um grunhido.

— Um amor qualquer, mais desagradável do que o normal, imagino. — Eu sabia que ele estivera em Londres na véspera, tendo um compromisso importante com o dentista como desculpa para passar a noite lá.

— Não seja grosseiro — disse Lykeham, com uma risada nervosa que mostrava que minhas suspeitas tinham fundamento, afinal.

— Bem, então fale da deleitável Flossie, ou Effie, ou seja qual for o nome dela — disse com resignação.

— Eu lhe digo que ela era uma deusa.

— A deusa da razão, imagino.

— Uma deusa — continuou Lykeham. — A criatura mais maravilhosa que já vi. E o mais extraordinário é que parece que eu também sou uma espécie de deus — acrescentou confidencialmente e com surpreendente orgulho.

— Deus dos jardins;[17] mas vamos aos fatos.

— Vou lhe contar toda a história. Foi assim: ontem à noite eu estava na cidade, sabe, e fui ver aquela peça ótima que está em cartaz no Prince Consort. É uma dessas combinações inteligentes de melodrama e peça de tese, que nos enche de suspense e ao mesmo tempo dá a sensação virtuosa de que fomos ver uma peça séria. Bem, entrei meio atrasado, tendo conseguido um lugar admirável na primeira fila do balcão. Tropecei nas pessoas, e casualmente observei que havia uma garota sentada a meu lado, a quem pedi desculpas por ter pisado em seus pés. Não pensei mais nela durante o primeiro ato. No intervalo, quando as luzes estavam de novo acesas, virei-me para olhar as coisas em geral e descobri que havia uma deusa sentada a meu lado. Bastava olhar para ver que ela era uma deusa. Era incrivelmente bonita, meio pálida e virginal, magra e ao mesmo tempo muito imponente. Não consigo descrevê-la; ela era simplesmente perfeita — não há outra forma de descrevê-la.

— Perfeita — repeti. — Mas as outras também eram.

— Bobo! — respondeu Lykeham impaciente. — As outras eram apenas malditas mulheres. Essa era uma deusa, estou lhe dizendo. Não me interrompa mais. Eu estava olhando, atônito, para o perfil dela quando ela virou a cabeça e me encarou. Eu nunca tinha visto algo tão lindo; quase desmaiei. Nossos olhos se encontraram...

— Que horrível expressão de romancista! — comentei.

— Não posso evitar; não há outra palavra, nossos olhos se encontraram mesmo, e nós nos apaixonamos simultaneamente.

— Fale só por você.

— Eu vi nos olhos dela. Bem, continuando: olhamos um para o outro várias vezes durante o primeiro intervalo, e aí começou o segundo ato. Durante o segundo ato, bem por acaso, deixei cair meu programa no chão e, baixando-me para pegá-lo, toquei na mão dela. Bem, obviamente não havia o que fazer senão segurá-la.

— Que foi que ela fez?

— Nada. Ficamos sentados assim durante todo o resto do ato, extasiadamente felizes e...

— E silenciosamente transpirando palma com palma. Sei exatamente, de modo que podemos passar por cima. Prossiga.

— Claro que você não tem nem ideia; nunca segurou a mão de uma deusa. Quando as luzes se acenderam novamente eu soltei a mão dela com relutância, não gostando da ideia de sermos vistos pela multidão inconveniente, e, na falta de algo melhor para dizer, perguntei-lhe se ela era realmente uma deusa. Ela disse que era uma pergunta curiosa, pois estivera se perguntando que deus eu era. Aí dissemos: que incrível, e eu disse claro que ela era uma deusa, e ela disse que tinha certeza de que eu era um deus, e eu comprei chocolates, e começou o terceiro ato. Ora, sendo um melodrama, havia naturalmente no terceiro ato uma cena de assassinato e roubo, em que todas as luzes eram apagadas. No momento emocionante de escuridão total eu de repente senti que ela me beijava o rosto.

— Pensei que você tinha dito que ela era virginal.

— Ela era mesmo. Absoluta e geladamente virginal; mas era feita de uma espécie de gelo ardente, se é que você me entende. Era virginalmente apaixonada: exatamente a combinação que se espera encontrar numa deusa. Admito que levei um susto quando ela me beijou, mas com infinita presença de espírito beijei-a de volta, na boca. Então terminou o assassinato e as luzes se acenderam. Não aconteceu muito mais coisas até o fim do espetáculo, quando a ajudei a vestir o casaco e saímos juntos, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, e entramos num táxi. Pedi ao motorista que procurasse um lugar onde pudéssemos jantar, e ele assim fez.

— Com alguns abraços no caminho?

— Sim, com alguns abraços no caminho.

— Sempre apaixonadamente virginais?

— Sempre virginalmente apaixonados.

— Prossiga.

— Bem, nós jantamos, um acontecimento sem sombra de dúvida olímpico, néctar e ambrosia e apertos de mão roubados. Ela ficava mais maravilhosa a cada minuto. Meu Deus, você devia ter visto os olhos dela! Toda a alma parecia arder em suas profundezas, como o fogo sob o mar...

— Para uma narração, o estilo épico ou heroico é muito mais apropriado do que o lírico — interrompi.

— Bem, como eu estava dizendo, nós jantamos, e depois disso minha memória se torna uma espécie de névoa ardente.

— Vamos nos apressar e levantar o véu inevitável. Qual era o nome dela?

Lykeham confessou que não sabia; como ela era uma deusa, não parecia ter importância o seu nome terreno. Como ele pretendia encontrá-la de novo? Ele não tinha pensado nisso, mas sabia que ela ia aparecer de algum modo. Eu lhe disse que ele era um tolo, e perguntei que deusa em particular ele achava que ela era e que deus em particular ele próprio era.

— Nós discutimos isso — ele disse. — Primeiro pensamos em Ares e Afrodite; mas ela não era a minha ideia de Afrodite, e não sei se sou muito parecido com Ares.

Consultou pensativamente o velho espelho veneziano pendurado sobre a lareira. Era um olhar complacente, pois Lykeham era meio vaidoso de sua aparência pessoal, que era, na verdade, repulsiva à primeira vista mas, quando se tornava a olhar, tinha uma certa beleza feia, estranha e fascinante. Barbado, ele seria um Sócrates passável. Mas Ares... não, certamente ele não era Ares.

— Talvez você seja Hefesto — sugeri; mas a ideia foi recebida com frieza.

Ele tinha certeza de que ela era uma deusa? Não podia ser apenas uma ninfa? Europa, por exemplo. Lykeham repudiou a sugestão implícita de que ele era um touro, nem aceitava ser um cisne ou uma chuva de ouro. Era possível, no entanto, ele achava, que ele fosse Apolo e ela, Dafne, reencarnada de seu estado vegetal. E, embora eu risse às gargalhadas diante da ideia de que ele fosse Febo Apolo, Lykeham agarrou-se a essa teoria com crescente obstinação. Quanto mais pensava nisso, mais lhe parecia provável que sua ninfa com sua paixão ardente, fria e virginal fosse Dafne, ao passo que não lhe ocorrera duvidar de que ele mesmo fosse Apolo.

Foi mais ou menos quinze dias depois, em junho, no fim das aulas, que descobrimos a identidade olímpica de Lykeham. Tínhamos ido, Lykeham e eu, dar um passeio depois do jantar. Saímos na pálida tranquilidade do lusco-fusco e, seguindo um caminho rio acima até Godstow, paramos numa hospedaria para uma taça de vinho do Porto e uma conversa com a gloriosa Falstaff feminina, de seda negra, que era a proprietária. Fomos majestosamente entretidos com mexericos e vinho antigo e, depois de Lykeham cantar uma canção cômica que reduziu a velha senhora a uma geleia trêmula de riso histérico, partimos mais uma vez, pretendendo seguir um pouco mais rio acima antes de voltarmos. A essa altura a escuridão chegara; as estrelas iluminavam o céu; era o tipo de noite de verão a que Marlowe comparou Helena de Troia. Nas campinas, pavoncinos invisíveis giravam e soltavam seu grito melancólico; o distante trovão da represa era um peso contínuo e regular sobre todos os outros barulhinhos da noite. Lykeham e eu caminhávamos em silêncio. Tínhamos coberto uns quatrocentos metros quando de repente meu companheiro parou e começou a olhar fixamente para o oeste, na direção do monte Witham. Parei também e vi que ele estava olhando para o fino crescente da lua, que se preparava para morrer nos bosques escuros que coroavam a elevação.

— Que é que está olhando? — eu quis saber.

Mas Lykeham não prestou atenção, apenas murmurou algo consigo mesmo. De repente exclamou: “E ela!”, e saiu em pleno galope através dos campos na direção do monte. Imaginando que ele tivesse enlouquecido de repente, eu o segui. Atravessamos a primeira cerca com dez metros de distância entre nós. Depois chegou a água represada; Lykeham saltou, aterrisou antes de atravessar completamente o obstáculo e arrastou-se ensopado para a margem. Meu salto foi melhor e caí em meio à lama da outra margem. Duas cercas vivas mais e um campo arado, outra cerca viva, uma estrada, um portão, outro campo, e então estávamos no próprio monte Witham. Sob as árvores o negrume era total, e Lykeham foi obrigado a afrouxar o passo. Segui-o pelo ruído que ele fazia atravessando a vegetação e praguejando quando se machucava. Aquele bosque era um pesadelo, mas de alguma forma nós o atravessamos até a clareira no topo do monte. Através das árvores no outro lado da clareira brilhava a lua, parecendo incrivelmente próxima. Então, de repente, ao longo do caminho do luar, uma figura de mulher surgiu caminhando em meio às árvores até a clareira. Lykeham correu para ela e jogou-se a seus pés, e abraçou seus joelhos; ela inclinou-se e acariciou-lhe os cabelos despenteados. Voltei-me e afastei-me; não é dado a um mero mortal testemunhar os abraços dos deuses.

Enquanto caminhava de volta, perguntava-me quem Lykeham poderia ser. Pois não restava dúvida, ali estava a casta Cynthia entregando-se a ele. Será que ele podia ser Endimião?[18] Não, a ideia era absurda demais para ser levada a sério sequer por um momento. Mas não consegui pensar em outro ser amado pela Lua virgem. No entanto, eu certamente parecia recordar vagamente que houvera um deus favorecido; mas, por mais que me esforçasse, não conseguia me lembrar de qual se tratava. Durante todo o caminho de volta ao longo do rio rebusquei na memória o seu nome, que me fugia sem cessar.

Mas ao voltar consultei o Lemprière e quase morri de rir quando descobri a verdade. Pensei no espelho veneziano de Lykeham e seus complacentes olhares de soslaio para sua própria imagem, e sua crença de que ele era Apolo; e ri muito. E, quando, muito depois da meia-noite, Lykeham voltou para a faculdade, encontrei-o no pórtico e peguei-o em silêncio pela manga, e em seu ouvido sussurrei “pé de bode”,[19] e então mais uma vez caí na gargalhada.


A livraria

Parecia mesmo um lugar estranho para encontrar uma livraria. Todas as outras empresas comerciais da rua destinavam-se a prover as necessidades mínimas da movimentada escória do bairro. Nessa rua, a principal via de circulação, havia um brilho e uma vida especiais, produzidos pela rápida passagem do tráfego. Era quase arejada, quase alegre. Mas por toda a volta grandes trechos de favela pululavam em sua úmida clausura. Os habitantes faziam todas as suas compras na rua principal; passavam segurando peças de carne que pareciam viscosas mesmo através do embrulho de papel; pechinchavam linóleo em portas de estofadores; mulheres, de chapéu e xale pretos, passavam arrastando os pés em direção ao mercado com sacolas surradas de palha tecida. Como é que essas pessoas podiam, me perguntei, comprar livros? E no entanto aí estava ela, uma loja minúscula; e as vitrinas tinham prateleiras, e havia as lombadas marrons dos livros. À direita um grande empório inundava a rua com sua mobília fabulosamente barata; à esquerda as vitrinas discretas e cobertas de cortinas de um restaurante anunciavam em descascadas letras brancas os méritos das refeições de seis centavos. No meio, tão estreita que mal impedia a junção da comida com a mobília, estava a lojinha. Uma porta de um metro e meio de vitrina escura, era essa toda a extensão da fachada. Via-se aqui que a literatura era um luxo; aqui ela tomava seu lugar proporcional, nesse lugar de necessidade. Mesmo assim, o consolo era que ela sobrevivera, definitivamente sobrevivera.

O proprietário da loja estava parado à porta, um homem pequenino, de barba grisalha e com olhos muito vivos atrás dos óculos que encimavam seu nariz comprido e agudo.

— Os negócios vão bem? — perguntei.

— Eram melhores no tempo do meu avô — ele me respondeu, sacudindo a cabeça com tristeza.

— Nós ficamos cada vez mais filisteus — sugeri.

— É a nossa imprensa barata. O efêmero sobrepuja o permanente, o clássico.

— Esse jornalismo ou, pode-se dizer, esse cotidianismo trivial é a maldição de nossa era — concordei.

— Serve só para... — Ele gesticulou com as mãos, como se procurasse agarrar a palavra.

— Para o fogo.

O velho foi enfático ao dizer, em tom de triunfo:

— Não; para o esgoto.

Sorri, solidário com sua veemência.

— Concordamos agradavelmente em nossa opinião — falei. — Posso dar uma olhada em seus tesouros?

Dentro da loja havia um lusco-fusco marrom, recendendo a couro velho e o cheiro daquela poeira sutil e fina que se agarra às páginas de livros esquecidos, como que preservando seus segredos — como a areia seca dos desertos asiáticos sob a qual, ainda incrivelmente intactos, jazem os tesouros e o lixo de mil anos atrás. Abri o primeiro volume que me caiu nas mãos. Era um livro de estampas de moda, detalhadamente pintadas à mão em magenta e púrpura, marrom, escarlate e castanho e todos aqueles tons diluídos de verde que uma geração ainda anterior tinha denominado Os sofrimentos de Werther. Beldades em saia-balão deslizavam através das páginas com a desenvoltura de navios embandeirados. Representavam-se os pés magros, achatados e pretos, como folhas de chá destacando-se sob suas anáguas. Seus rostos eram ovais, rodeados por cabelos de um negro brilhante, e exprimiam uma pureza imaculada. Pensei em nossos manequins modernos, com seus saltos altos e o arco de seus pés, seus rostos achatados e o sorriso enfadado. Era difícil não preferir o passado. Comovo-me facilmente com símbolos; há algo de Quarles[20] em minha natureza. Não dispondo de uma mente filosófica, prefiro ver minhas abstrações concretamente retratadas. E ocorreu-me então que, se quisesse um símbolo para a santidade do casamento e a influência do lar, não poderia escolher melhor do que dois pezinhos escuros como folhas de chá espiando decorosamente sob bainhas de imensas anáguas. Ao passo que saltos altos e pés arqueados deveriam simbolizar — ah, bem, o oposto.

A corrente de meus pensamentos foi desviada pela voz do velho.

— Imagino que você seja amante da música — disse ele.

Ah, sim, eu era um pouco; e ele me ofereceu um volumoso fólio.

— Alguma vez já ouviu isto? — ele perguntou.

Robert, o Demônio;[21] não, eu não tinha ouvido. Eu não duvidava de que era uma lacuna em minha educação musical.

O velho pegou o livro e puxou uma cadeira dos sombrios recessos da loja. Foi então que percebi um fato surpreendente: o que eu imaginara, a um olhar descuidado, ser um balcão comum, percebia agora ser um estranho piano quadrado. O velho sentou-se diante dele.

— Você deve perdoar qualquer defeito na afinação — disse, voltando-se para mim. — Um antigo Broadwood, georgiano, sabe, e já viu muito trabalho em cem anos.

Abriu a tampa, e as teclas amarelas sorriram para mim no escuro como os dentes de um cavalo antigo.

O velho folheou as páginas até encontrar o trecho desejado.

— O tema do balé — disse. — É lindo. Escute.

Suas mãos ossudas e um tanto trêmulas começaram subitamente a movimentar-se com incrível agilidade, e, fraca e tilintante contra o rugido do tráfego, ergueu-se uma melodia alegre e saltitante. O instrumento sacudia consideravelmente, e o volume de som era fino como o fio d’água de um regato atingido pela seca; mas era afinado, e a melodia lá estava, tênue, aérea.

— E agora a canção dos bêbados — exclamou o velho, entusiasmando-se com sua execução. Tocou uma série de acordes que modulavam num crescendo, até o clímax; tão supremamente operístico que era sem dúvida alguma uma paródia daquele momento de tensão e suspense, quando os cantores se preparam para uma explosão de paixão. E então chegou o coro dos bêbados. Imaginavam-se homens envoltos em mantos, rudemente joviais, com o vazio de garrafões de vinho de papelão.

Versiam’a tazza piena

Il generoso umor.

A voz do velho era aguda e rachada, mas seu entusiasmo compensava quaisquer problemas de execução. Eu nunca tinha visto alguém imerso em tão absoluto deleite.

Ele passou mais algumas páginas.

— Ah, a Valse Infernale — disse. — Esta é boa. — Houve um pequeno e melancólico prelúdio e em seguida a melodia, talvez não tão infernal como se era levado a esperar, mas mesmo assim bastante agradável. Olhei por cima do ombro dele e cantei com seu acompanhamento.

Demoni fatali

Fantasmi d’orror,

Dei regni infernali

Plaudite al signor

Um grande caminhão de cerveja, movido a vapor, passou rugindo com seu trovão aniquilador e fez desaparecer por completo a última linha. As mãos do velho ainda se movimentavam sobre as teclas amarelas, eu abria e fechava a boca; mas não havia som de palavras ou de música. Era como se os demônios fatais, os fantasmas de horror, tivessem irrompido subitamente nesse lugar tranquilo e perdido.

Olhei para fora através da porta estreita. O tráfego corria sem cessar; homens e mulheres passavam apressados, com rostos tensos. Fantasmas de horror, todos eles: habitavam reinos infernais. Lá fora, homens viviam sob a tirania das coisas. Todos os seus atos eram determinados por ordens da mera matéria, por dinheiro, e pelas ferramentas de seu ofício e pelas leis irrefletidas do hábito e das convenções. Mas aqui eu parecia a salvo das coisas, vivendo a um passo da realidade; aqui, onde um senhor barbado, improvável sobrevivente de alguma outra era, corajosamente tocava a música da romança, não obstante o fato de que fantasmas de horror pudessem vez por outra abafar o som dela com sua turba.

— E então, vai levar? — A voz do homem invadiu meus pensamentos. — Posso deixar por cinco xelins.

Ele segurava o volume grosso e gasto em minha direção. Seu rosto refletia uma ansiedade tensa. Eu via como ele estava ansioso por meus cinco xelins, como lhe eram — pobre homem! — necessários. Ele tocou, pensei com uma amargura nada razoável, ele tocou simplesmente para mim como um cachorro treinado. Sua altivez, sua cultura — tudo um truque de negociante. Senti-me ofendido. Ele era apenas um dos fantasmas de horror disfarçado em anjo nesse paraíso de contemplação um tanto cômico. Dei-lhe duas moedas, e ele começou a embrulhar o volume em papel.

— Sabe, fico triste em me separar dele — comentou. — Sou muito ligado a meus livros, mas eles sempre têm de ir.

Suspirou com uma emoção tão obviamente genuína que me arrependi da opinião que fizera dele. Era um habitante renitente dos domínios infernais, exatamente como eu.

Lá fora começavam a anunciar os jornais da tarde: um navio afundado, trincheiras capturadas, o novo discurso emocionante de alguém. Olhamos um para o outro — o velho vendedor de livros e eu — em silêncio. Nós nos compreendíamos sem palavras. Ali estávamos nós em particular, e ali estava toda a humanidade em geral, todos enfrentando o horrível triunfo das coisas. Nesse contínuo massacre de homens, no sacrifício forçado desse velho, a matéria triunfava igualmente. E caminhando para casa através do Regent’s Park, eu também descobri a matéria triunfando sobre mim. Meu livro era despropositadamente pesado, e eu me perguntei o que poderia fazer com uma partitura de Robert, o Demônio quando chegasse em casa. Seria apenas mais uma coisa a me pesar e me atrapalhar; e naquele momento ela era pesada, ah, abominavelmente pesada. Inclinei-me sobre a grade que rodeia o lago ornamental e, o mais discretamente que pude, deixei cair o livro entre os arbustos.

Com frequência penso que seria melhor não tentar a solução do problema da vida. Viver já é bastante difícil sem complicar o processo pensando nele. A coisa mais sábia, talvez, é aceitar a “aborrecida condição da humanidade, nascida sob uma só lei, todos uns presos aos outros”[22] e parar por aí, sem tentar reconciliar os incompatíveis. Ah, a absurda dificuldade de tudo isso! E, além do mais, gastei cinco xelins, o que é sério, sabe, nesses tempos difíceis.


A morte de Lully

O mar estava calmo e a galé, aninhada em sua água transparente, movia-se compassadamente ao pulsar lento de sua vida adormecida. Lá embaixo, a várias braças de profundidade de um Mediterrâneo translúcido como cristal, a sombra do navio balançava-se preguiçosa, uma longa mancha escura movimentando-se para a frente e para trás sobre a areia branca do fundo do mar — bem devagar, a escuridão verde avançando e recuando de forma quase imperceptível. Às vezes passavam peixes, ora imóveis, com suas barbatanas trêmulas e remansosas, ora arremessando-se para a frente, sem esforço e com incrível rapidez; e sempre, pelo que parecia, inteiramente sem destino, estivessem parados ou em movimento; como a vida dos anjos, a vida deles parecia misteriosa e incognoscível.

Tudo era silêncio a bordo do barco. Em sua gaiola fétida abaixo do convés os remadores dormiam sentados, acorrentados em seus bancos estreitos. No convés, marinheiros dormiam ou sentavam-se em pequenos grupos jogando dados. A proa era reservada, ao que parecia, para os passageiros distintos. Duas figuras, um homem e uma mulher, lá estavam reclinados em espreguiçadeiras, os rostos e os membros semidespidos ruborizados pela sombra colorida do grande toldo vermelho esticado acima deles.

Eram um nobre, os marinheiros tinham ouvido dizer, e sua amante que estavam a bordo. Os dois tinham comprado passagem em Scanderoon e voltavam para casa, na Espanha. Orgulhosos como o pecado eram esses espanhóis; o homem os tratava como escravos ou cachorros. Quanto à mulher, ela era razoável, mas em sua nativa Gênova eles podiam encontrar rostos e bustos que se comparassem aos dela. Se alguém apenas olhasse para ela, mesmo a uma distância de meio navio entre eles, seu proprietário ficava uma fúria. Ele batera num homem por ter sorrido para ela. Maldito catalão, ciumento como um cervo; deste a marujada lhe desejava os chifres e a disposição.

Fazia um calor intenso, mesmo sob o toldo. O homem acordou de seu sono difícil e esticou a mão para uma mesinha a seu lado, onde havia uma funda taça de prata de vinho misturado com água. Bebeu um gole; estava quente como sangue e não refrescou sua garganta. Voltou-se e, apoiando-se no cotovelo, olhou para sua companheira — esta deitada de costas, respirando silenciosamente através dos lábios entreabertos, ainda adormecida. Inclinou-se e beliscou-a no seio, de modo que ela acordou de um salto e com um grito de dor.

— Por que me acordou? — perguntou.

Ele riu e deu de ombros. Na verdade, não tivera razão para fazer isso, mas o caso é que não gostava que ela dormisse confortavelmente enquanto ele estava acordado e tão consciente do desagradável calor.

— Está mais quente que nunca — comentou, com uma espécie de sombria satisfação ao pensar que ela agora teria de sofrer o mesmo desconforto que ele. — O vinho queima em vez de refrescar; o sol não parece ter se movido no céu.

A mulher mostrou-se aborrecida:

— Você me beliscou com maldade — disse. — E ainda não sei por que quis me acordar.

Ele tornou a sorrir, dessa vez com lascívia bem-humorada.

— Queria beijar você — disse. Possessivo, passou a mão pelo corpo dela, como um homem que acariciasse um cachorro.

De repente a calma da tarde foi rompida. Ergueu-se um grande clamor, áspero e irregular. Gritos agudos trespassavam o estrondo surdo de vozes graves, atravessavam o som de tambores percutidos e metais martelados.

— Que é que estão fazendo na cidade? — a mulher perguntou ansiosamente ao amante.

— Só Deus sabe — ele respondeu. — Talvez os cães pagãos estejam criando problemas com nossos homens.

Levantou-se e caminhou até a murada do navio. A trezentos metros de distância, além das águas calmas da baía, ficava a pequena cidade africana que eles tinham parado para visitar. A luz do sol exibia todas as coisas com uma nitidez áspera e impiedosa. Céu, palmeiras, casas brancas, domos e torres pareciam feitos de algum metal rijo e esmaltado. Uma fila de montes baixos e vermelhos estendia-se para a direita e para a esquerda. O brilho do sol dava a todas as coisas do cenário a mesma clareza de detalhes, de modo que para os olhos do espectador não havia impressão de distância. Tudo parecia pintado num mesmo plano.

O rapaz voltou para sua espreguiçadeira sob o toldo e deitou-se. Estava mais quente que nunca, ou assim parecia, pelo menos, já que ele fizera o esforço de levantar-se. Pensou nas frescas pastagens nos montes, com o som agradável dos regatos bem fundos e escondidos em seus canais profundos. Pensou nos ventos que eram frescos e perfumados — ventos que não eram apenas alentos de poeira e fogo. Pensou na sombra dos ciprestes, uma faixa de escuridão estreita e opaca; e pensou também no frescor verde, mais difuso, fluído e transparente, dos castanhais. E pensou nas pessoas de quem se lembrava sentadas sob as árvores — pessoas jovens, alegres e vestidas em cores brilhantes, cuja vida era só diversão e delícia. Havia canções que elas cantavam; ele recordou as vozes e a dança das cordas. E havia perfumes e, quando se chegava mais perto, a fragrância inebriante de um corpo de mulher. Pensou nas histórias que contavam; uma em particular veio-lhe à mente, uma ótima história de um feiticeiro que se ofereceu para transformar a mulher de um camponês em uma égua, e como ele enganou o camponês e divertiu-se com a mulher na frente dele, e as desculpas deliciosas que ele inventou por não ter transformado a mulher. Sorriu para si mesmo ao pensar nisso, e estendendo o braço tocou em sua amante. O seio dela era tão macio sob seus dedos e úmido de suor; ele teve a ideia desagradável de que ela estava derretendo no calor.

— Por que você me toca? — ela perguntou.

Ele não respondeu e deu-lhe as costas. Perguntou-se como seria o corpo das pessoas ao ressuscitarem. Parecia curioso, considerando-se a manifesta atividade dos vermes. E se a pessoa ressuscitasse com o corpo que tinha na velhice? Ele estremeceu, imaginando como seria essa mulher aos sessenta, setenta anos. Ela seria repulsiva para além das palavras. Os velhos também eram horríveis. Eles fediam, e seus olhos eram remelentos e viscosos como os olhos de uma corça. Resolveu que iria matar-se antes de ficar velho. Tinha vinte e oito anos. Daria a si mesmo mais doze anos. Depois acabaria com tudo. Seus pensamentos tornaram-se mais vagos e desapareceram no sono.

A mulher contemplou-o enquanto dormia. Era um bom homem, pensou, embora cruel às vezes. Ele era diferente de todos os outros homens que ela conhecera. Antes, quando tinha dezesseis anos e pouco sabia o que era o amor, pensara que todos os homens estavam sempre bêbados quando faziam amor. Eram todos sujos e como animais; ela se sentia superior a eles. Mas esse homem era um nobre. Ela não conseguia compreendê-lo; seus pensamentos eram sempre obscuros. Ela se sentia infinitamente inferior a ele. Tinha medo dele e de sua crueldade ocasional; mas ainda assim ele era um bom homem, e podia fazer o que quisesse dela.

De longe veio o som de remos, seu mergulho e guincho ritmados. Alguém gritou, e surpreendentemente próximo um dos marinheiros respondeu ao chamado.

O rapaz acordou com um susto.

— Que foi isso? — perguntou, voltando-se para a moça com um olhar furioso, como se a considerasse responsável por essa interrupção em seu cochilo.

— O bote, eu acho — disse ela. — Deve estar voltando da praia.

A tripulação do bote subiu pela lateral, e toda a vida estagnada da galé fluiu excitadamente em torno dos recém-chegados. Eles eram o centro de um vórtice para onde todos eram atraídos. Até mesmo o jovem catalão, apesar de todo o seu ódio desses malcheirosos marinheiros genoveses, foi sugado pelo redemoinho. Todos falavam ao mesmo tempo, e na confusão geral de perguntas e respostas nada se conseguia entender de coerente. Agudamente nítida acima de todo o barulho chegou a voz do pequeno camareiro, que tinha ido à praia com a tripulação do bote. Ele corria para cada um, repetindo:

— Acertei um deles. Sabe, eu acertei um. Com uma pedrada na testa. Como ele sangrou, ah, como sangrou! — E dançava em incontrolável agitação.

O capitão ergueu o braço e gritou por silêncio.

— Um de cada vez — ordenou, e, quando a ordem tinha sido ligeiramente restaurada, acrescentou um resmungo: — Como um bando de cães com um osso. Fale você, contramestre.

— Eu acertei um deles — começou o rapaz. Alguém lhe deu um soco na cabeça, e ele silenciou.

Quando a história do contramestre conseguiu vencer os labirintos de digressões, os inúmeros obstáculos de interrupções e emendas, até chegar ao fim, o espanhol voltou para junto de sua companheira sob o toldo. Assumira mais uma vez sua habitual indiferença.

— Quase chacinados — disse languidamente, em resposta às ansiosas perguntas dela. — Eles — fez um gesto com a mão apontando a cidade — estavam apedrejando um velho que viera pregar a fé. Deixaram-no morto na praia. Nossos homens precisaram correr.

Ela não conseguiu arrancar mais nada; ele voltou-se e fingiu adormecer.

À tardinha receberam a visita do capitão. Era um homem alto e belo, com argolas de ouro brilhando nas orelhas em meio aos cabelos negros.

— A divina providência — sentenciou gravemente, depois das cortesias costumeiras — nos chamou para executarmos um trabalho notável.

— É mesmo? — perguntou o rapaz.

— Nada menos — continuou o capitão — do que salvar das garras dos pagãos e infiéis os preciosos despojos de um santo mártir.

O capitão abandonou seu jeito pretensioso. Era evidente que tinha preparado essas sentenças beatas, elas saíam facilmente de sua boca. Mas agora estava ansioso por continuar sua história, e em tom mais simples continuou:

— Se vocês conhecessem esses mares tão bem quanto eu, e já faz quase vinte anos que navego neles, teriam conhecimento desse mesmo santo homem que esses malditos árabes, que Deus apodreça suas almas, mataram aqui. Ouvi falar dele mais de uma vez, e nem sempre bem; para falar a verdade, ele fez mais mal aos bons mercadores cristãos com suas prédicas do que fez bem aos cães infiéis de coração negro. Deixe as abelhas em paz, é o que sempre digo, e se você conseguir tirar um pouco de mel delas tranquilamente, tanto melhor; mas ele ia até as colmeias com uma vara de pau, criando confusão para si mesmo e para os outros também. Deixe-os em paz com sua danação, é o que digo, e consiga o que puder deles do lado de cá do inferno. Mas, mesmo assim, ele teve a morte de um santo mártir. Que Deus acolha sua alma! Um mártir é uma coisa maravilhosa, sabe, e não nos compete entender o que eles fazem.

“Dizem também que ele sabia fazer ouro. E, para mim, seria uma coisa mais agradável a Deus e ao homem se ele ficasse em casa fazendo dinheiro para os pobres e doando-o, de modo que não haveria mais necessidade de trabalhar e de se matar por um pedaço de pão. É, ele era muito bom em fazer ouro, e com os livros também. Dizem que ele era chamado de Doutor Iluminado. Mas eu ainda o conheço só como Lully. Costumava ouvir meu pai falar dele, apenas Lully, e ele nunca foi mais que isso.”

“Meu pai era construtor de navios em Minorca nessa época”, continuou. “Há quanto tempo? Cinquenta, sessenta anos talvez. Ele o conheceu então; muitas vezes me contou a história. E ele era um sujeitinho bem à toa. Bebendo, andando com prostitutas ou jogando dados, ele era o melhor de todos, e no intervalo das farras escrevia poemas, dizem, o que era mais do que os outros podiam fazer. Mas desistiu de tudo de repente. Doou suas terras, largou os antigos companheiros e virou eremita nas montanhas, vivendo sozinho como uma raposa em sua toca, bem acima das parreiras. E tudo por causa de uma mulher e de seu próprio estômago sensível.”

O capitão fez uma pausa e serviu-se de um pouco de vinho.

— E que foi que essa mulher fez? — perguntou a jovem, curiosa.

— Ah, não foi o que ela fez e sim o que ela não fez — respondeu o capitão com uma careta e uma piscadela. — Ela o mantinha à distância, com a exceção de uma vez; só uma vez. E foi isso que o colocou no caminho do martírio. Bem, mas estou me apressando demais. Tenho que ir mais devagar. Havia na ilha uma mulher de alguma importância. Uma Castello, acho que era; o primeiro nome me fugiu à memória. Anastasia ou qualquer coisa assim. Lully toma-se de paixão por ela, e suspira e a busca com insistência durante não sei quantos meses e anos. A história correu depois de tudo terminado, quando ele já tinha virado eremita nas montanhas. O que aconteceu, como eu disse, foi isso. Ela finalmente lhe diz que ele pode ir vê-la, marcando um lugar e uma hora sombrios, o próprio quarto dela ao cair da noite. Vocês podem imaginar como ele se lava, se penteia e se perfuma, faz a barba, mastiga hortelã; disfarça tudo que nele pudesse recender a bode. Lá vai ele, sonhando com êxtases, antecipando doçuras inconcebíveis. Ao chegar, ele encontra a moça um pouco melancólica; ela era assim mesmo, mas um homem espera um sorriso em uma ocasião como essa. Mesmo assim, nem um pouco desanimado, ele se joga aos pés dela e derrama seu caso desesperado, contando a ela como tem suspirado durante sete anos, e não fecha os olhos por mais de cem noites, e está magro como uma sombra, e, em uma palavra, vai morrer se ela não mostrar alguma piedade. Ela, ainda melancólica (seu humor de sempre, lembrem-se), responde que está pronta para ceder, e que seu corpo é inteiramente dele. Com isso, ela se deixa possuir como ele quis, mas sempre com tristeza. “Você é toda minha”, ele diz, “toda minha”, e desata o corpete dela para provar o fato. Mas ele estava errado, outro amante frequentava seu peito, e seus beijos tinham sido apaixonados — ah, abrasadoramente apaixonados, pois ele devorara metade do seu seio esquerdo. Do mamilo para baixo ele tinha sido carcomido por um câncer.

“Ora, um homem pode ver coisa pior na rua ou na porta das igrejas, onde os mendigos se juntam’’, continuou o capitão. “Garanto que é uma visão desagradável; a carne comida pelos vermes, mas, mesmo assim, não é o suficiente, vocês vão concordar, para transformar alguém em eremita. Mas eu já disse que ele tinha o estômago fraco. Sem dúvida isso tudo fazia parte dos planos de Deus de fazer dele um santo mártir. Não fosse por essa fraqueza, ele ainda estaria vivendo lá, um velho libertino; ou então teria tido uma morte malcheirosa, em vez de entrar pelas portas do paraíso em odor de santidade. Não sei o que lhe aconteceu entre o tempo de ermitão e o martírio. A primeira vez que o vi foi há doze anos, em Túnis. Ele estava sempre sendo jogado na prisão, ou então lhe arrancavam a barba, por causa de seus sermões. Desta vez parece que fizeram dele um santo mártir, fizeram o serviço direito, sem erros. Bem, que ele possa rezar por nossas almas junto ao trono de Deus. Esta noite vou secretamente à praia para roubar seu corpo. Está lá na praia, depois do cais. Vai ser uma obra notável, eu lhe digo, trazer de volta para a Cristandade um corpo tão precioso. Uma obra bem notável...”

O capitão esfregava as mãos.

Passava de meia-noite, mas ainda se ouvia agitação a bordo da galé. Esperavam para qualquer momento a chegada do bote com o corpo do mártir. Uma cama cuidadosamente forrada de preto, com pares de velas ardendo nas extremidades, tinha sido colocada no tombadilho para receber o corpo. O capitão chamou o jovem espanhol e sua amante para ver o esquife.

— Eis aí um bom trabalho — disse ele, com orgulho justificado. — Desafio qualquer um a fazer um lugar melhor que este para um mártir descansar. Não sairia melhor em terra, com todos os recursos à mão. Mas nós, marinheiros, fazemos milagres. Uma cama de rodas, um pedaço de lona alcatroada e quatro velas de sebo das lanternas das cabinas e pronto, um ataúde para um rei.

Afastou-se, apressado, e pouco depois o rapaz e a moça ouviram-no gritar ordens e maldições em algum lugar lá embaixo. As chamas das velas ardiam quase imóveis no ar sem vento, e os reflexos das estrelas eram trilhas de fogo longas e finas sobre a água inteiramente parada.

— Se houvesse flores perfumadas e o som de um alaúde, a noite estremeceria de paixão — disse o jovem espanhol. — O amor devia surgir sem ser procurado numa noite como esta, entre essas águas escuras e as estrelas que dormem tão calmamente em seu seio.

Abraçou a jovem e inclinou a cabeça para beijá-la. Mas ela desviou o rosto. Ele sentiu que um arrepio percorria o corpo dela.

— Hoje não — sussurrou ela. — Estou pensando no coitado do morto. Prefiro rezar.

— Não, não — exclamou ele. — Esqueça-o. Lembre-se apenas de que estamos vivos e de que temos pouco tempo, nenhum a perder.

Puxou-a para a sombra sob o parapeito e, sentando-se sobre um rolo de corda, apertou-lhe o corpo contra o seu e começou a beijá-la com fúria.

A princípio ela estava inerte e dura em seus braços, mas gradualmente a paixão dele atiçou-a.

Um ruído de remos anunciou a aproximação do bote. O capitão gritou para a escuridão:

— Vocês o encontraram?

— Sim, ele está aqui — veio a resposta.

— Ótimo. Encostem, e vamos içá-lo. Temos o féretro pronto. Ele permanecerá exposto às homenagens de todos esta noite.

— Mas ele não está morto — gritou de volta a voz na noite.

— Não está morto? — repetiu o capitão, perturbado. — Mas então, e o ataúde?

Uma voz fina e fraca respondeu.

— Seu trabalho não será perdido, meu amigo. Dentro de pouco tempo vou precisar dele.

O capitão, confuso, respondeu em tom mais suave:

— Nós pensávamos, santo padre, que os infiéis tinham feito o pior e que o Todo-Poderoso já lhe havia concedido a coroa dos mártires.

A essa altura o bote emergia da escuridão. Nos lençóis da proa jazia um velho, os cabelos e a barba brancos manchados de sangue, o hábito de dominicano rasgado e sujo de poeira. Ao vê--lo, o capitão arrancou o chapéu e caiu de joelhos.

— Dê-nos sua bênção, santo padre — pediu.

O velho ergueu a mão e desejou-lhe paz.

Ergueram-no para bordo e, a seu próprio pedido, deitaram-no no esquife que fora preparado para seu cadáver.

— Seria um desperdício me colocar em outro lugar, já que logo estarei aí mesmo — disse ele.

E assim ele ficou deitado ali, imóvel sob as quatro velas. Podia-se imaginar que ele já estava morto, porém seus olhos, quando os abria, brilhavam fortemente.

Pediu que saíssem todos da proa, menos o jovem espanhol.

— Somos conterrâneos, e ambos de sangue nobre. Preferia ter você a meu lado a qualquer outra pessoa.

Os marinheiros ajoelharam-se para uma bênção e desapareceram; logo podiam ser ouvidos levantando a âncora; era mais seguro partir antes do amanhecer. Curados, o espanhol e sua amante postaram-se de cada lado do esquife iluminado como duas carpideiras. O corpo do velho, ainda vivo, jazia quieto sob as velas. O mártir ficou em silêncio por algum tempo, mas finalmente abriu os olhos e olhou para o rapaz e para a mulher.

— Eu também me apaixonei uma vez — disse. — Este ano é o jubileu de minha última paixão terrena; cinquenta anos se passaram desde que pela última vez desejei a carne; cinquenta anos desde que Deus abriu meus olhos para o horror da corrupção que o homem fez cair sobre si. Vocês são jovens e seus corpos são limpos e eretos, sem manchas, úlceras ou lepra para macular sua desejável beleza; mas, por causa de seu orgulho externo, pode ser que suas almas estejam tomadas de pústulas e escarras por dentro. No entanto, Deus nos fez todos perfeitos; são apenas os acidentes e o mal da vontade os responsáveis pela corrupção. Todos os metais deveriam ser ouro, não fosse por seus elementos terem o arroubo infesto em seu desejo de se combinar. É o mesmo com os homens: o enxofre ardente da paixão, o sal da sabedoria, a ágil alma mercurial deveriam juntar-se para formar um ser dourado, incorruptível e inoxidável. Mas os elementos colidem e, trêmulos, se combinam, não na harmonia pura do amor, e o ouro é raro, enquanto o chumbo, o ferro e o bronze venenoso, com o gosto que deixa, semelhante ao do remorso, são comuns em toda parte.

“Deus abriu meus olhos para isso antes que minha juventude tivesse sido inteiramente desperdiçada em podridão” — continuou o velho. “Foi há meio século, mas ainda a vejo, minha Ambrósia, com seu rosto pálido e triste e seu corpo nu e aquela doença monstruosa devorando-lhe o seio. Desde então vivi tentando consertar o mal, tentando restaurar, tanto quanto minhas pobres forças me permitiram, parte da perfeição original a esse mundo corrompido. Lutei para dar a todos os metais sua verdadeira natureza, fazer ouro verdadeiro dos metais falsos, irreais, acidentais, chumbo e cobre e estanho e ferro. E tentei aquela alquimia mais difícil, a transformação dos homens. Agora morro em meu esforço de purgar o lixo imundo da heresia das almas desses infiéis. Consegui alguma coisa? Não sei.”

A galé movia-se agora voltada para o mar. As velas estremeceram ao vento de sua velocidade, jogando sombras incertas e cambiantes no rosto dele. Houve um longo silêncio no tombadilho. Os remos estalavam e batiam na água. De vez em quando surgia um grito de baixo, ordens dadas pelo feitor dos escravos, uma praga, o som de um golpe. O velho tornou a falar, agora mais fraco, como se consigo mesmo.

— Já tenho oitenta anos disso — falou. — Oitenta anos no meio desse mar corrosivo de ódio e luta. Um homem precisa manter a pureza de seu coração de ouro, esse pequeno centro de perfeição com o qual todos nós, mesmo em nosso declínio de tempo, nascemos. Todos os outros metais, mesmo que duros como o aço, brilhantes como o bronze, derreterão diante da insaciável amargura da vida. Ódio, luxúria, raiva — as paixões vis vão corroer sua vontade de ferro, a majestade guerreira de seu escudo de bronze. É preciso a perfeição dourada do amor puro e do conhecimento puro para suportá-los. Deus desejou que eu fosse a pedra — fraca, é verdade, em virtude — que tocasse e transformasse pelo menos um pouco do mais vil metal no ouro que está acima da decadência. Mas é trabalho árduo e ingrato. O homem fez de seu mundo um inferno e ergueu deuses de sofrimento para governá-lo. Deuses caprinos, que se deleitam e festejam a agonia de tudo, observando o mundo torturado, como esses horríveis amantes cuja luxúria transforma-se em negra crueldade.

“A febre nos leva através da vida num delírio de loucura”, continuou. “Sedento dos pântanos do mal de onde veio a febre, sedento das miragens de seu próprio delírio, o homem ruma de cabeça sem saber para onde. E todo o tempo um câncer devorador lhe morde as entranhas. Vai matá-lo no final, quando até mesmo a horrível inspiração da febre não será suficiente para fustigá-lo para a frente. Ele vai cair, um estorvo sobre a terra, monturo de podridão e dor, até que venha finalmente o fogo purificador para varrer o horror. Febre e câncer; ácidos que queimam e corroem... Tive oitenta anos disso. Graças a Deus chegou o fim.”

Já era madrugada; as velas mal eram visíveis à luz, desaparecendo até sumir, como almas em ascensão. Pouco depois o velho dormia.

O capitão aproximou-se na ponta dos pés e chamou o jovem espanhol para uma conversa confidencial.

— Acha que ele vai morrer hoje? — perguntou.

O rapaz assentiu.

— Que Deus o tenha — disse o capitão fervorosamente. — Mas acha melhor levarmos o corpo dele para Minorca ou para Gênova? Em Minorca dariam muito para ter seu próprio mártir padroeiro. Ao mesmo tempo aumentaria a glória de Gênova se ela possuísse uma relíquia tão santa, embora ele não tenha ligação alguma com a cidade. Nisso reside minha dificuldade. Vamos imaginar que meu pessoal em Gênova não queira o corpo, sendo ele de Minorca e não um deles. Eu então iria parecer um tolo, levando-o com todas as honras. Ah, é difícil, é difícil. Há tanto em que pensar... Não tenho certeza se não seria melhor parar em Minorca primeiro. Que acha?

O espanhol deu de ombros.

— Não tenho conselho algum a oferecer.

— Meu Deus — dizia o capitão, afastando-se apressado —, a vida é um nó difícil de desatar.


Sir Hércules

O garoto destinado a tornar-se o quarto baronete do clã dos Lapith nasceu no ano de 1740. Era um bebê bem pequeno, pesando não mais que um quilo e meio, mas desde o princípio apresentou-se forte e saudável. Em homenagem a seu avô materno, Sir Hércules Occam — nome de família Occam, como o do bispo[23] —, foi batizado Hércules. Sua mãe, como muitas outras mães, tinha um caderno onde anotava seus progressos a cada mês. Ele andou aos dez meses, e antes de completar seu segundo ano já aprendera a falar algumas palavras. Aos três anos pesava apenas dez quilos e oitocentos, e aos seis, embora soubesse ler e escrever perfeitamente e demonstrasse notável talento para a música, não era maior nem mais pesado do que uma criança de dois anos bem desenvolvida. Sua mãe tivera mais dois filhos, um menino e uma menina, sendo que um deles morreu de crupe ainda bem novo, ao passo que o outro teve a vida ceifada pela varíola antes de chegar aos cinco anos. Hércules foi o único filho que sobreviveu.

Em seu décimo segundo aniversário, Hércules ainda tinha apenas noventa e cinco centímetros de altura. A cabeça, bela e de formato nobre, era grande demais para o corpo; não obstante, ele era maravilhosamente proporcionado e, haja visto seu tamanho, dotado de muita força e agilidade. Os pais, na esperança de fazê-lo crescer, consultaram todos os mais famosos médicos da época. As suas várias receitas eram seguidas à risca, porém em vão. Um deles ordenou uma dieta farta; outro, ginástica; um terceiro construiu uma pequena barra, copiada das usadas pela Santa Inquisição, na qual o jovem Hércules era esticado, em meio a tormentos cruciantes, durante meia hora, todas as manhãs e todas as noites. Durante os três anos seguintes, Hércules ganhou talvez cinco centímetros. Depois disso seu crescimento cessou completamente, e pelo resto da vida ele permaneceu um pigmeu de um metro. O pai, que acalentara as esperanças mais extravagantes em relação ao filho, planejando para ele, em sua imaginação, uma carreira militar igual à de Marlborough, tornou-se um homem frustrado. “Trouxe um aborto para o mundo”, dizia, e criou tal horror ao filho que o garoto mal ousava apresentar-se a ele. Seu temperamento, até então sereno, transformou-se em morosidade e selvageria pela decepção. Evitava companhias (tendo vergonha de mostrar-se, dizia, sendo o pai de um lusus naturae[24] entre seres humanos normais e saudáveis) e começou a beber sozinho, o que depressa o levou à sepultura; pois um ano antes da maioridade de Hércules o pai foi levado por uma apoplexia. A mãe, cujo amor por ele crescera com o aumento da crueldade do pai, não sobreviveu muito tempo e sucumbiu pouco mais de um ano depois da morte do marido, de um ataque de febre tifoide, depois de comer duas dúzias de ostras.

Assim sendo, Hércules encontrou-se aos vinte e um anos sozinho no mundo, dono de uma fortuna considerável, inclusive a propriedade e a mansão de Crome. A beleza e a inteligência de sua infância perduraram na idade adulta, e, a não ser pela estatura anã, ele teria tomado seu lugar entre os mais belos e dotados jovens de seu tempo. Tinha um bom conhecimento dos autores gregos e latinos, assim como dos modernos de algum mérito que escrevessem em inglês, francês ou italiano. Tinha bom ouvido para a música e não era um intérprete medíocre no violino, que costumava tocar como um violoncelo, sentado numa cadeira com o instrumento entre as pernas. Tinha grande predileção pela música do cravo e do clavicórdio, mas o tamanhinho de suas mãos tornava-lhe impossível tocar esses instrumentos. Mandou fazer uma pequena flauta de marfim, na qual, sempre que estava melancólico, costumava tocar uma ária ou uma giga simples, afirmando que essa música rústica tinha mais poder de iluminar e levantar o espírito do que as mais sofisticadas e artificiosas produções dos mestres. Desde criança praticava a composição poética mas, embora cônscio de seus grandes poderes nessa arte, não publicava sequer uma amostra de seus escritos. “Minha estatura está refletida em meus versos”, costumava dizer. “Se o público os lesse, não seria porque sou poeta, mas porque sou anão.” Vários livros manuscritos de poemas de Sir Hércules sobreviveram. Uma única amostra será suficiente para ilustrar suas qualidades como poeta.

Nos tempos antigos, enquanto o mundo era ainda jovem,

Antes que Abraão alimentasse seus rebanhos ou Homero cantasse;

Quando o ferreiro Tubal domou o fogo criativo,

E Jabal morava em tendas e Jubal tocava a lira;

A carne corrompida criou um nascimento monstruoso

E gigantes obscenos caminhavam na terra que encolhia,

Até que Deus, impaciente com sua progênie,

Liberou sua cólera e afogou-os no Dilúvio.

Proliferando novamente, a Terra repovoada faz nascer

O Herói rústico e o Guerreiro;

Altas torres de Músculo, encimadas por uma Caveira vazia,

Estupidamente corajosos, heroicamente tolos.

Longas eras se passaram, e o Homem refinou-se,

Fraco em música e de Mente mais vasta,

Sorriu à espada de seus antepassados, arco e alabarda,

E aprendeu a manejar o Lápis e a Pena.

A tela brilhante e a página escrita

Imortalizaram seu nome por muitas eras,

Seu nome embrasonado na parede do templo da Fama;

Pois a Arte cresceu tanto quanto a Humanidade diminuía.

Assim passo a passo traçamos o longo progresso do homem

Morre o Gigante, o herói toma seu lugar;

O Gigante vil, o estúpido herói tolo:

Um nos assusta e do outro zombamos.

O homem aparece afinal. Nele a pura chama da Alma

Arde mais brilhante em uma moldura não extravagante.

Antigamente, quando os Heróis lutavam e os Gigantes enxameavam,

Os homens eram enormes montes de matéria mal informada;

Cansado de fermentar uma massa tão vasta,

O espírito dormiu e toda a mente era crassa.

A carcaça menor desses dias mais recentes

É logo formada; a Alma descansada brinca

E como um Farol arremessa longe seus raios mentais.

Mas podemos pensar que a Providência vai amparar

Os passos do Homem aqui no caminho ascendente?

A Humanidade, em compreensão e em graça

Avançou tanto além da raça dos Gigantes?

Fora, pensamento ímpio! Ainda guiado pela própria Mão de Deus,

A Humanidade prossegue em direção à Terra Prometida.

Chegará um tempo (profético, eu avisto

Alvoradas mais remotas ao longo do céu sombrio),

Quando felizes mortais de uma Era Dourada

Vão tornar a virar a escura página da História,

E em nossa jactanciosa raça de Homens contemplar

Uma forma tão rústica, uma Mente tão morta e fria

Como as que vemos nos Gigantes, nos Guerreiros de outrora.

Chegará um tempo em que a Alma será

De toda a matéria supérflua libertada:

Quando o corpo leve, ágil como o de um cervo,

Brincará com graça ao longo dos gramados aveludados.

Delicadíssima e definitiva progênie da Natureza,

A Humanidade aperfeiçoada possuirá a terra.

Porém, ah, não ainda! Pois ainda a raça dos Gigantes,

Enorme, embora diminuída, pisoteia na bela face da Terra;

Estúpidos e repulsivos, no entanto perversamente orgulhosos,

Os homens se jactam em voz alta de suas imperfeições.

Vaidosos de sua corpulência, de tudo o que ainda possuem

Da feiura gigantesca absurdamente vaidosos;

A tudo o que é pequeno eles voltam sua zombaria estúpida

E, monstros, julgam-se nascidos divinamente.

Triste é o destino desses, ah, realmente triste,

Os raros precursores da raça mais nobre!

Que chegam para predizer a glória dourada do homem,

Mas que, apontando para o Céu, vivem eles próprios no Inferno.[25]

Tão logo tomou posse de sua fortuna, Sir Hércules pôs-se a substituir a criadagem. Pois, embora nem um pouco envergonhado de sua deformidade — na verdade, se podemos julgar pelo poema acima transcrito, ele se considerava em muitos aspectos superior à raça comum de homens —, achava embaraçosa a presença de homens e mulheres crescidos. Percebendo, também, que devia abandonar todas as ambições no grande mundo, resolveu retirar-se totalmente dele e criar, por assim dizer, um mundo particular em Crome, no qual tudo seria proporcional a ele. Assim, despediu todos os antigos empregados da casa e substituiu-os, pouco a pouco, quando conseguia encontrar sucessores apropriados, por outros de estatura anã. Ao longo de seus poucos anos reunira à sua volta uma numerosa criadagem da qual nenhum membro tinha mais de um metro e vinte de altura e o menor deles mal alcançava setenta centímetros. Os cachorros de seu pai — setters, mastins, galgos e uma matilha de beagles — ele os vendeu ou deu, por serem grandes e impetuosos demais para sua casa, substituindo-os por pequenos pugs, spaniels e quaisquer outras raças de porte diminuto. A cavalariça do pai também foi vendida. Para seu uso próprio, seja cavalgando ou dirigindo uma carruagem, ele tinha seis pôneis shetland pretos e quatro animais malhados da raça de New Forest escolhidos a dedo.

Tendo assim ajeitado seu ambiente doméstico a seu gosto, só lhe restava encontrar uma companhia apropriada com quem compartilhar esse paraíso. Sir Hércules tinha o coração sensível, e mais de uma vez, entre os dezesseis e os vinte anos, sentira o que era estar apaixonado. Mas aí sua deformidade fora fonte de amaríssima humilhação, pois, ousando declarar-se certa feita a uma jovem de sua escolha, foi recebido com risos. Tendo ele insistido, ela o erguera e o sacudira como a uma criança desagradável mandando-o sumir e não incomodá-la mais. A história logo se espalhou — na verdade, a própria jovem costumava contá-la como uma anedota muito divertida —, e o escárnio e a zombaria por ela ocasionados tornaram-se fonte de aguda tristeza para Hércules. Dos poemas escritos nessa época deduzimos que lhe ocorreu acabar com a própria vida. Com o passar do tempo, no entanto, ele superou sua humilhação; mas nunca mais, embora frequentemente se apaixonasse, e com muita paixão, ele ousou cortejar aquelas por quem se interessava. Depois de tomar posse da herança e descobrir que estava em posição de criar seu próprio mundo como o desejasse, percebeu que, para ter uma esposa — o que ele muito desejava, sendo de temperamento afetuoso e, na verdade, amoroso —, ele precisaria escolhê-la como o fizera com os empregados — entre a raça dos anões. Mas encontrar uma esposa apropriada era, descobriu, uma questão um tanto difícil; pois não se casaria com quem não se distinguisse pela beleza e pelo berço nobre. A filha anã de lorde Bemboro ele recusou porque, além de anã, era corcunda; ao passo que outra jovem, uma órfã que pertencia a uma família muito boa em Hampshire, foi por ele rejeitada porque seu rosto, como o de tantos anões, era encarquilhado e repulsivo. Finalmente, quando não lhe restava esperança de sucesso, ouviu de fonte segura que o conde Titimalo, um nobre veneziano, possuía uma filha de particular beleza e grandes qualidades, mas que tinha apenas noventa centímetros de altura. Partindo na mesma hora para Veneza, ele foi, logo ao chegar, prestar seus respeitos ao conde, a quem encontrou morando com a esposa e cinco filhos em um apartamento muito ruim num dos bairros mais pobres da cidade. Realmente, o conde estava tão empobrecido que até entrara em negociações (dizia-se) com uma trupe de palhaços e acrobatas, que tivera o azar de perder seu anão, para a venda de sua filha Filomena. Sir Hércules chegou a tempo de salvá-la desse destino cruel, pois ficou tão encantado com a graça e a beleza de Filomena que no final de três dias de corte fez-lhe uma proposta formal de casamento, esta aceita por ela não menos alegremente que pelo pai, que percebia num genro inglês uma rica e infalível fonte de renda. Depois de um casamento sem ostentação, no qual o embaixador inglês foi uma das testemunhas, Sir Hércules e sua esposa retornaram por mar à Inglaterra, onde estabeleceram, como ficou provado, uma vida de rotineira felicidade.

Crome e sua criadagem de anões deliciaram Filomena, que pela primeira vez se sentia uma mulher livre vivendo entre seus pares num mundo amigável. Tinha muitos gostos em comum com o marido, especialmente a música. Dotada de uma bela voz, de força surpreendente para alguém tão pequeno, conseguia alcançar um lá agudo sem esforço. Acompanhada pelo marido em seu belo violino de Cremona, que ele tocava, como já observamos, como se toca um violoncelo, ela cantava as árias mais vivas e mais ternas das óperas e cantatas de seu país natal. Sentados juntos ao cravo, descobriram que com suas quatro mãos podiam tocar todas as músicas escritas para duas mãos de tamanho comum, detalhe que dava extremo prazer a Sir Hércules.

Quando não estavam executando música ou lendo juntos, como faziam com frequência, tanto em inglês quanto em italiano, passavam o tempo em saudáveis exercícios ao ar livre, às vezes remando um barquinho no lago, porém mais amiúde cavalgando ou passeando de carruagem, ocupações nas quais, por lhe serem inteiramente novas, Filomena experimentava especial prazer. Quando se tornou uma amazona hábil, Filomena e o marido costumavam caçar no parque, naquele tempo muito mais extenso do que é agora. Não caçavam raposas ou lebres, mas coelhos, usando uma matilha de uns trinta pugs pretos e castanhos — uma raça de cachorro que, se não for superalimentada, pode perseguir um coelho tão bem quanto qualquer outra de porte maior. Quatro cavalariços anões, vestidos de librés escarlates e montados em pôneis exmoor brancos, caçavam com a matilha, ao passo que o patrão e a patroa, de roupas verdes, seguiam nos pôneis shetland pretos ou nos pôneis malhados new forest. Um retrato de toda a companhia de caça — cães, cavalos, cavalariços e patrões — foi pintado por William Stubbs, cuja obra Sir Hércules admirava tanto que o convidou, apesar de tratar-se de um homem de estatura normal, para ficar no castelo enquanto executava o quadro. Stubbs pintou também um retrato de Sir Hércules e sua esposa dirigindo a caleça verde esmaltada puxada por quatro pôneis shetland pretos. Sir Hércules usa um casaco de veludo cor de pêssego e culotes brancos; Filomena usa musselina florida e um chapéu grande com penas cor-de-rosa. As duas figuras em sua alegre carruagem destacam-se vivamente contra um fundo escuro de árvores, mas à esquerda do quadro as árvores se distanciam e desaparecem, de modo que os quatro pôneis pretos são vistos contra um céu pálido e estranhamente sinistro que tem a cor castanho-dourada de nuvens de tempestade iluminadas pelo sol.

Assim quatro anos passaram alegremente. No final desse tempo Filomena engravidou. Sir Hércules ficou felicíssimo. “Se Deus é bom”, escreveu em seu diário, “o nome de Lapith vai ser perpetuado e nossa mais rara e delicada raça transmitida através de gerações até que o mundo acabe reconhecendo a superioridade desses seres de quem agora costumam zombar.” Quando a esposa deu à luz um filho, ele escreveu um poema sobre o assunto. A criança foi batizada Ferdinando, em memória do fundador da casa.

Com a passagem dos meses certa inquietude começou a invadir a mente de Sir Hércules e sua esposa. Pois a criança crescia com uma rapidez extraordinária. Com um ano ela pesava tanto quanto Hércules pesava aos três. “Ferdinando segue em crescendo”, Filomena escreveu em seu diário. “Não parece natural.” Com dezoito meses o bebê era quase tão alto quanto o jóquei menor, um homem de trinta e seis anos. Será que Ferdinando estava destinado a se tornar um homem de dimensões normais, gigantescas? Era um pensamento que seus pais não ousavam formular em voz alta, mas na intimidade de seus respectivos diários ambos meditavam sobre isso com terror e consternação.

Em seu terceiro aniversário Ferdinando era mais alto que a mãe e não mais que alguns centímetros menor que o pai. “Hoje, pela primeira vez”, escreveu Sir Hércules, “discutimos a situação. A hedionda verdade não pode mais ser escondida: Ferdinando não é um de nós. Hoje, seu terceiro aniversário, um dia em que devíamos festejar a saúde, a força e a beleza de nosso filho, choramos juntos pela ruína de nossa felicidade. Deus nos dê forças para suportar esta cruz.”

Aos oito anos Ferdinando era tão grande e tão exuberantemente saudável que os pais decidiram, embora a contragosto, mandá-lo para a escola. Ele foi enviado para Eton no início do semestre seguinte. A casa foi tomada de uma paz profunda. Ferdinando voltou nas férias de verão, maior e mais forte que nunca. Um dia ele derrubou o mordomo e quebrou-lhe o braço. “Ele é rude, indelicado, insensível à persuasão”, escreveu o pai. “A única coisa que lhe ensina bons modos é o castigo corporal.” Ferdinando, que nessa idade já era trinta e cinco centímetros maior que o pai, não recebeu nenhuma punição desse tipo.

Mais ou menos três anos depois, nas férias de verão, Ferdinando voltou para Crome acompanhado de enorme cão mastim. Ele o comprara de um velho em Windsor, que achava o animal caro demais para alimentar. Era um cão selvagem, no qual não se podia confiar; mal entrara na casa e atacou um dos pugs favoritos de Sir Hércules, agarrando a criatura na boca e sacudindo-a até quase matá-la. Não pouco perturbado pelo acontecimento, Sir Hércules ordenou que o animal fosse acorrentado nas cavalariças. Ferdinando respondeu de mau humor que o cachorro era seu, e ele o manteria onde bem entendesse. O pai, cada vez mais furioso, mandou que ele tirasse o cachorro da casa imediatamente, sob o risco de um grande aborrecimento. Ferdinando recusou-se. Sua mãe nesse momento entrou na sala, e o cão saltou sobre ela, derrubou-a e num piscar de olhos feriu seriamente seu ombro e braço; e teria, em seguida, atacado sua garganta se Sir Hércules não tivesse sacado da espada e estocado o animal no coração. Voltando-se para o filho, ordenou-lhe que deixasse o aposento imediatamente, por ser indigno de ficar no mesmo lugar que a mãe, a quem ele quase assassinara. Tão apavorante era o espetáculo de Sir Hércules postado com um pé sobre a carcaça do gigantesco cachorro, a espada em punho ainda ensanguentada, e tão autoritários eram sua voz, seus gestos e a expressão de seu rosto que Ferdinando fugiu da sala apavorado e comportou-se, pelo resto das férias, de modo exemplar. A mãe logo se recuperou das mordidas do mastim, mas o efeito dessa aventura em sua mente foi definitivo; dessa ocasião em diante ela sempre viveu em meio a terrores imaginários.

Os dois anos que Ferdinando passou no Continente, fazendo a Grande Viagem, foi um período de feliz descanso para seus pais. Mesmo então, contudo, a ideia do futuro os perturbava; não eram capazes de encontrar consolo com as diversões dos tempos anteriores. Lady Filomena perdera a voz, e Sir Hércules sofria demais de reumatismo para tocar violino. Ele, é verdade, ainda caçava com seus pugs, mas a esposa sentia-se velha demais e, desde o episódio com o mastim, por demais nervosa para tais esportes. No máximo, para agradar ao marido, ela seguia a caçada à distância, na pequena caleça puxada pelo mais velho e seguro dos pôneis shetland.

Chegou o dia marcado para a volta de Ferdinando. Filomena, adoentada por vagos receios e pressentimentos, retirou-se para seu quarto e sua cama. Sir Hércules recebeu o filho a sós. Um gigante de terno de viagem marrom entrou no aposento.

— Bem-vindo à casa, meu filho — disse Sir Hércules, a voz um pouco trêmula.

— Espero vê-lo bem, senhor. — Ferdinando inclinou-se para apertar-lhe a mão, depois endireitou-se novamente. O topo da cabeça do pai alcançava-lhe o quadril.

Ferdinando não viera sozinho. Dois amigos de sua idade acompanhavam-no, e cada um dos rapazes trouxera um criado. Durante trinta anos Crome não fora maculada pela presença de tantos membros da raça comum dos homens. Sir Hércules ficou estarrecido e indignado, mas as leis da hospitalidade tinham de ser obedecidas. Recebeu os dois rapazes com severa polidez e mandou os criados para a cozinha, com ordens para que fossem bem tratados.

A velha mesa de jantar da família foi arrastada para fora e espanada (Sir Hércules e a esposa estavam acostumados a jantar a uma mesinha de cinquenta centímetros de altura). Simon, o idoso mordomo, que mal podia enxergar o tampo da mesa, teve a ajuda dos três criados trazidos por Ferdinando e seus amigos.

Sir Hércules presidiu a refeição, e com sua elegância costumeira sustentou uma conversa sobre os prazeres de viajar ao estrangeiro, as belezas da arte e da natureza a serem vistas lá fora, a ópera em Veneza, o coral dos órfãos nas igrejas da mesma cidade e outros temas de natureza semelhante. Os jovens não estavam prestando atenção particular a seus discursos; estavam ocupados observando os esforços do mordomo para mudar os pratos e encher as taças. Disfarçavam as risadas com violentos e repetidos ataques de tosse ou engasgos. Sir Hércules fingiu não perceber, mas mudou o assunto da conversa para o esporte. Aí um dos rapazes perguntou se era verdade, como ele ouvira dizer, que ele costumava caçar coelhos com uma matilha de pugs minúsculos. Sir Hércules replicou que era, e pôs-se a descrever pormenorizadamente a caçada. Os rapazes rolavam de rir.

Depois do jantar, Sir Hércules desceu de sua cadeira e, dando a desculpa de que precisava ver como estava a esposa, desejou-lhes boa noite. O som das risadas seguiu-o escada acima. Filomena não estava dormindo; estava deitada na cama, ouvindo o som das gargalhadas e o passo de pés estranhamente pesados pelas escadas e ao longo dos corredores. Sir Hércules puxou uma cadeira para a beira da cama e sentou-se, silencioso durante um longo tempo, segurando a mão da esposa e às vezes apertando-a levemente. Mais ou menos às dez horas assustaram-se com um ruído violento. Houve vidro quebrado, pés batendo e uma explosão de gritos e risadas. Como o tumulto continuasse por vários minutos, Sir Hércules pôs-se de pé e, apesar dos pedidos da esposa, preparou-se para ir ver o que estava acontecendo. Não havia luz na escada e Sir Hércules tateou seu caminho cuidadosamente, descendo degrau por degrau e parando um momento em cada um antes de aventurar-se a um novo passo. O ruído era maior ali; a gritaria articulou-se em palavras e frases reconhecíveis. Uma réstia de luz era visível sob a porta da sala de jantar. Sir Hércules atravessou silenciosamente o vestíbulo em direção a ela. Ao aproximar-se da porta, houve outro terrível estrondo de vidro quebrado e metal golpeado. Que poderiam estar fazendo? Na ponta dos pés ele conseguiu olhar pela fechadura. No meio da mesa devastada o velho Simon, o mordomo, tão cheio de bebida que mal podia manter o equilíbrio, dançava uma giga. Os pés esmigalhavam o vidro quebrado, e os sapatos estavam molhados de vinho derramado. Os três rapazes estavam sentados em volta, esmurrando a mesa com as mãos ou com garrafas de vinho vazias, rindo e gritando frases de encorajamento. Os três criados, encostados à parede, riam também. Ferdinando jogou de repente um punhado de castanhas na cabeça do dançarino, o que surpreendeu e assustou tanto o homenzinho que ele cambaleou e caiu de costas, derrubando um frasco de cristal e várias taças. Eles ergueram-no, deram-lhe conhaque para beber, bateram-lhe nas costas. O velho sorriu e soluçou.

— Amanhã vamos fazer um balé com toda a criadagem — declarou Ferdinando.

— Com papai Hércules usando seu porrete e sua roupa de pele de leão — acrescentou um de seus companheiros, e os três caíram na gargalhada.

Sir Hércules não quis ver nem ouvir mais. Tornou a atravessar o vestíbulo e começou a subir a escada, erguendo os joelhos dolorosamente a cada degrau. Era o fim; agora não havia lugar para ele no mundo, nenhum lugar para ele e Ferdinando juntos.

A esposa ainda estava acordada; a seu olhar interrogador ele respondeu:

— Estão zombando do velho Simon. Amanhã será nossa vez.

Ficaram em silêncio por algum tempo. Finalmente Filomena falou:

— Não quero ver o amanhã.

— É melhor não — disse Sir Hércules.

Indo para seu gabinete, escreveu em seu diário um relato completo e detalhado dos acontecimentos da noite. Ainda ocupado nessa tarefa, chamou um criado e mandou que lhe preparassem água quente e um banho para as onze horas. Terminando de escrever, foi ao quarto da esposa e, preparando uma dose de ópio vinte vezes mais forte do que a que ela estava acostumada a tomar quando não conseguia dormir, deu-a a ela, dizendo:

— Aqui está seu remédio para dormir.

Filomena pegou o copo e segurou-o por algum tempo, mas não bebeu imediatamente. Lágrimas vieram-lhe aos olhos.

— Você se lembra das canções que costumávamos cantar, sentados lá fora sulla terrazza no verão? — Começou a cantar suavemente com o resto de sua voz estragada alguns compassos do Amor, amor, non dormir più, de Stradella. — E você tocando o violino. Parece que foi há tão pouco tempo, no entanto está tão longe, longe, longe. Addio, amore. A rivederci.

Bebeu a poção e, deitando-se sobre o travesseiro, fechou os olhos. Sir Hércules beijou-lhe a mão e saiu pé ante pé, como se tivesse medo de despertá-la. Voltou para seu gabinete e, tendo registrado as últimas palavras da esposa para ele, derramou na banheira a água que lhe fora trazida de acordo com suas ordens. Como a água estava demasiado quente para que ele entrasse imediatamente, tirou da estante seu exemplar de Suetônio. Queria ler como Sêneca tinha morrido. Abriu o livro ao acaso. “Mas os anões”, leu, “eram odiados por ele por serem lusus naturae e um presságio ruim.” Encolheu-se como se tivesse sido golpeado. Esse mesmo Augusto, ele se lembrava, tinha exibido no anfiteatro um rapaz chamado Lúcio, de boa família, que não chegava a sessenta centímetros de altura e pesava sete quilos e meio, porém possuía voz estentórea. Virou a página. Tibério, Calígula, Cláudio, Nero: era uma história de horror crescente. “Sêneca, seu preceptor, obrigou-o a suicidar-se.” E havia Petrônio, que em seus últimos momentos chamou os amigos, pedindo-lhes que lhe falassem, não dos consolos da filosofia, mas de amor e galanteria, enquanto a vida lhe fugia através das veias abertas. Mergulhando mais uma vez a pena na tinta ele escreveu na última página no diário: “Teve uma morte romana”. Então, colocando os dedos de um pé na água e constatando que ela já não estava quente demais, tirou o roupão e, pegando uma lâmina, sentou-se na banheira. Com um talho profundo cortou a artéria do pulso esquerdo, depois recostou-se e aquietou a mente para meditar. O sangue escorreu, flutuando na água em círculos e espirais que se dissolviam. Em pouco tempo a água estava tinta de cor-de-rosa. A cor escureceu; Sir Hércules encontrou-se dominado por uma tonteira invencível; afundava de sonho vago a sonho vago. Logo estava profundamente adormecido. Não havia muito sangue em seu corpo pequeno.


O sorriso de Gioconda

I

— A senhorita Spence já vai descer, senhor.

— Obrigado — disse o sr. Hutton, sem se voltar.

A criada de Janet Spence era tão feia — feia de propósito, sempre lhe parecera, malignamente, criminosamente feia — que ele não suportava olhar para ela mais que o necessário. A porta fechou-se. Deixado a sós, o sr. Hutton levantou-se e começou a caminhar pela sala, contemplando com os olhos meditativos os objetos familiares que ela continha.

Fotografias de estatuária grega, fotografias do Fórum romano, gravuras coloridas de obras-primas italianas, todas bastante fiéis e conhecidas. Coitada, querida Janet, que pedante — que esnobe intelectual! Seu verdadeiro gosto estava ilustrado naquela aquarela feita pelo artista de calçada, aquela pela qual pagara meia coroa (e trinta e cinco xelins pela moldura). Com que frequência ele a ouvira contar a história, com que frequência discorria sobre as belezas daquela competente imitação de uma oleografia! “Um verdadeiro Artista nas ruas”, e podia-se ouvir o A maiúsculo em Artista quando ela falava. Ela fazia as pessoas sentirem que parte da glória dele tinha entrado em Janet Spence quando ela lhe dera aquela meia coroa pela cópia da oleografia. Insinuava um elogio a seu próprio gosto e discernimento. Um genuíno Mestre Antigo por meia coroa. Coitada, querida Janet!

O sr. Hutton estacou diante de um pequeno espelho oblongo. Inclinando-se um pouco para poder ver o rosto por inteiro, passou um dedo branco e bem tratado pelo bigode. Era tão cacheado e tão vivamente castanho-avermelhado quanto fora vinte anos antes. Os cabelos ainda mantinham sua cor, e não havia sinal de calvície — apenas certa elevação da testa, “shakespeariana”, pensou o sr. Hutton, com um sorriso, examinando a extensão lisa e polida de sua testa.

Outros enfrentam nossa pergunta, tu estás livre... Passos no mar... Majestade... Shakespeare, devias estar vivo a essa hora. Não, isso era Milton, não era? Milton, a Senhora de Cristo. Não havia coisa alguma de senhora nele. Era o que as mulheres chamariam de um homem másculo. Era por isso que gostavam dele — pelo bigode cacheado, castanho-avermelhado, e o discreto cheiro de tabaco. O sr. Hutton tornou a sorrir; gostava de zombar de si mesmo. Da Senhora de Cristo? Não, não. Ele era o Cristo das Senhoras. Muito bonito, muito bonito. O Cristo das Senhoras. O sr. Hutton desejou que houvesse alguém a quem ele pudesse contar a brincadeira. A coitada e querida Janet não ia apreciá-la, que pena!

Endireitou-se, ajeitou os cabelos e reencetou a peregrinação. Dane-se o Fórum romano; odiava aquelas fotografias horrendas.

De repente tomou consciência de que Janet Spence estava na sala, parada, junto à porta. O sr. Hutton assustou-se, como se tivesse sido pego num ato criminoso. Essas aparições silenciosas e fantasmagóricas eram um dos talentos peculiares de Janet Spence. Talvez ela estivesse na sala todo o tempo, talvez o tivesse visto olhando-se no espelho. Impossível! Mas, mesmo assim, era inquietante.

— Ah, você me deu um susto — disse o sr. Hutton, recuperando o sorriso e avançando com a mão estendida ao encontro dela.

A srta. Spence estava sorrindo também: seu sorriso de Gioconda, ele uma vez assim o chamara num momento de lisonja meio irônica. A srta. Spence levara o elogio a sério e sempre tentava corresponder ao padrão de Leonardo. Continuou sorrindo em silêncio enquanto o sr. Hutton apertava-lhe a mão; isso fazia parte da Gioconda.

— Espero que esteja bem — falou o sr. Hutton. — Sua aparência é boa.

Que rosto estranho ela tinha! Aquela boca pequena enrugada para a frente pela expressão de Gioconda num pequeno focinho com um buraco no meio, como que para assobiar — era como um porta-caneta visto de frente. Acima da boca um nariz bem-feito, finamente aquilino. Os olhos grandes, brilhantes e escuros, com a grandeza, o brilho e a escuridão que parecem convidar terçóis e uma eventual infiltração sanguínea. Eram olhos belos, mas imutavelmente severos. O porta-caneta podia ter seu efeito de Gioconda, mas os olhos nunca se alteravam em sua seriedade. Acima deles, um par de sobrancelhas negras, ousadamente arqueadas e muito pintadas, davam surpreendente ar de poder, como o de uma matrona romana, à parte superior do rosto. Os cabelos eram escuros e igualmente romanos; Agripina com as sobrancelhas erguidas.

— Resolvi passar por aqui a caminho de casa — continuou o sr. Hutton. — Ah, é bom estar de volta — indicou com um aceno as flores nos vasos, a luz do sol e o verdor além das janelas —, é bom estar de volta ao campo depois de um abafado dia de negócios na cidade.

A srta. Spence, que se sentara, indicou uma cadeira a seu lado.

— Não, na verdade não posso me sentar — protestou o sr. Hutton. — Preciso voltar para ver como está a coitada da Emily. Ela estava meio indisposta hoje de manhã. — No entanto, sentou-se. — São essas danadas cólicas do fígado. Ela está sempre com isso. Mulheres... — Interrompeu-se e pigarreou, para esconder o fato de que tinha falado. Estava prestes a dizer que mulheres de digestão fraca não deveriam casar-se; mas o comentário era cruel demais, e ele realmente não achava isso. Além do mais, Janet Spence acreditava nas chamas eternas e nas ligações espirituais. — Ela espera estar boa para receber você para o almoço amanhã — continuou. — Você pode vir? Venha! — Sorriu persuasivamente. — O convite é meu também, você sabe.

Ela baixou os olhos, e o sr. Hutton quase pensou detectar certo rubor nas faces dela. Era um cumprimento; ele acariciou o bigode.

— Eu gostaria, se você acha que Emily está realmente boa para receber visitas...

— Claro. Você vai lhe fazer bem. Vai fazer bem a nós dois. Na vida de casado, três é com frequência melhor que dois.

— Ah, você é um cínico.

O sr. Hutton sempre tinha vontade de dizer “Au au au” quando ouvia essa palavra. Irritava-o mais do que qualquer outra palavra da língua. Mas em vez de latir ele apressou-se a protestar.

— Não, não. Estou só dizendo uma verdade melancólica. A realidade nem sempre alcança o ideal, sabe. Mas isso não me faz acreditar menos no ideal. Na verdade, acredito nele com paixão — o ideal de um casamento entre duas pessoas em perfeito acordo. Acho que é possível. Tenho certeza de que é.

Fez uma pausa significativa e olhou para ela com expressão maliciosa. Uma virgem de trinta e seis anos, mas ainda não murcha; ela tinha seus encantos. E havia algo realmente enigmático nela. A srta. Spence não respondeu, mas continuou a sorrir. Havia ocasiões em que o sr. Hutton ficava um tanto entediado com a Gioconda. Levantou-se.

— Tenho de ir agora. Adeus, misteriosa Gioconda.

O sorriso ficou mais intenso, como que concentrado num focinho mais afilado. O sr. Hutton fez um gesto digno do Cinquecento e beijou-lhe a mão estendida. Era a primeira vez que tinha feito tal coisa; o ato não pareceu ter sido desaprovado.

— Mal posso esperar pelo dia de amanhã.

— É mesmo?

Como resposta o sr. Hutton mais uma vez beijou-lhe a mão, depois voltou-se para sair. A srta. Spence acompanhou-o até o pórtico.

— Onde está seu carro? — perguntou ela.

— Deixei-o junto ao portão.

— Vou com você até lá.

— Não, não. — O sr. Hutton estava brincalhão, porém decidido. — Não faça isso. Eu simplesmente proíbo.

— Mas eu gostaria de ir — protestou a srta. Spence, lançando-lhe um sorriso de Gioconda.

O sr. Hutton ergueu a mão.

— Não — repetiu, e então, com um gesto que era quase um beijo, começou a correr pela alameda com graça, na ponta dos pés, com passos longos e saltitantes como os de um garoto. Tinha orgulho de sua corrida; era maravilhosamente juvenil. Ademais, ficou feliz por a alameda não ser tão comprida. Na última curva, antes de sair do campo de visão da casa, ele estacou e voltou-se. A srta. Spence ainda estava parada nos degraus, sorrindo seu sorriso. Ele acenou com a mão, e dessa vez bem aberta e definidamente mandou um beijo em sua direção. Depois, reencetando sua magnífica corrida, rodeou o último promontório escuro de árvores. Uma vez fora do campo de visão da casa ele deixou suas passadas altas reduzirem-se a um trote, e, por fim, a um caminhar normal. Pegou o lenço e começou a enxugar o pescoço dentro do colarinho. Que tolos, que tolas! Será que existia um asno igual à coitada, querida Janet Spence? Nunca, a não ser que fosse ele mesmo. Não restava dúvida de que ele era um grande tolo maligno, já que, pelo menos, tinha consciência de sua tolice e ainda persistia nela. Por que persistia? Ah, o problema que ele próprio era, o problema que as outras pessoas eram...

Chegou ao portão. Um automóvel grande e de belíssima aparência estava parado na rua.

— Para casa, M’Nab. — O motorista tocou no boné. — E pare na encruzilhada do caminho, como sempre — acrescentou o sr. Hutton, falando para a obscuridade que espreitava lá dentro.

— Ah, Ursinho, como você demorou! — Era uma voz fresca e infantil que dizia essas palavras. Havia um levíssimo toque de impureza cockney[26] no som das vogais.

O sr. Hutton dobrou seu corpo comprido e entrou no carro com a agilidade de um animal chegando à toca.

— Foi mesmo? — disse ele, fechando a porta. O carro começou a andar. — Você deve ter sentido muita saudade, se achou o tempo tão comprido. — Recostou-se no assento baixo; um calor aconchegante envolveu-o.

— Ursinho... — e com um suspiro de contentamento uma encantadora cabecinha reclinou-se no ombro do sr. Hutton. Embevecido, ele baixou os olhos para o lado, para o rosto redondo e infantil.

— Sabe, Dóris, você parece os retratos de Louise de Kéroual. — Passou os dedos pela massa de cabelos cacheados.

— Quem é Louise de Kera-sei-lá-o-quê? — perguntou Dóris afastando-se.

— Infelizmente ela era! Fuit. Todos seremos “era” um dia desses. Enquanto isso...

O sr. Hutton cobriu de beijos o rosto infantil. O carro rodava suavemente. As costas de M’Nab, através da janela fronteira, eram petreamente impressionantes, as costas de uma estátua:

— Suas mãos — Dóris murmurou. — Ah, você não deve tocar em mim. Elas me dão choques elétricos.

O sr. Hutton adorou-a pela imbecilidade virginal dessas palavras. Como as pessoas descobrem o corpo tarde na vida!

— A eletricidade não está em mim, está em você. — Tornou a beijá-la, sussurrando seu nome várias vezes: Dóris, Dóris! Dóris! Denominação científica do rato marinho, pensava ele enquanto beijava a garganta que ela lhe oferecia, branca e estendida como a garganta de uma vítima esperando a faca do sacrifício. O rato marinho era uma salsicha com pele iridescente; muito curioso. Ou Dóris seria o pepino marinho, que em momentos de perigo vira-se do avesso? Teria realmente de voltar a Nápoles, só para ver o aquário. As criaturas do mar eram fabulosas, incrivelmente fantásticas.

— Ah, Ursinho! (Mais zoologia; mas ele era apenas um animal terrestre. Suas pobres piadinhas!) — Ursinho, estou tão feliz!

— Eu também — disse o sr. Hutton. Seria verdade?

— Mas eu queria saber se está certo. Diga, Ursinho, está certo ou errado?

— Ah, minha querida, é exatamente o que venho perguntando nos últimos trinta anos.

— Fale sério, Ursinho. Quero saber se está certo; se está certo que eu esteja aqui com você e que a gente se ame, e que eu sinta choques elétricos quando você me toca.

— Certo? Bem, claro que é bom que você sinta choques elétricos em vez de repressões sexuais. Leia Freud; repressões são o diabo.

— Ah, você não me ajuda. Por que nunca fala sério? Se soubesse como fico infeliz às vezes, pensando que não está certo. Talvez, sabe, talvez haja um inferno, e tudo isso. Não sei o que fazer. Às vezes acho que devia parar de amar você.

— Mas você conseguiria? — perguntou o sr. Hutton, confiante no poder de sua sedução e de seu bigode.

— Não, Ursinho, você sabe que eu não conseguiria. Mas poderia fugir, poderia me esconder de você, poderia me trancar e me obrigar a não procurar você.

— Bobinha! — Ele abraçou-a com mais força.

— Ah, meu bem, espero que não esteja errado. E às vezes não me importo se estiver.

O sr. Hutton ficou emocionado. Tinha uma certa afeição protetora por essa criaturinha. Encostou a face nos cabelos dela e assim, abraçados, ficaram em silêncio, enquanto o carro, balançando um pouco devido à velocidade, parecia engolir com voracidade a estrada branca e as cercas empoeiradas.

— Até logo, até logo.

O carro seguiu, aumentou a velocidade, desapareceu atrás de uma curva, e Dóris ficou parada junto ao poste na encruzilhada, ainda tonta e fraca com o langor provocado por aqueles beijos e o choque elétrico daquelas mãos gentis. Teve que respirar fundo, endireitar-se vagarosamente, antes de sentir-se suficientemente forte para iniciar sua caminhada para casa. Tinha quase meio quilômetro para inventar as mentiras necessárias.

Sozinho, o sr. Hutton de repente descobriu ser a presa de um tédio apavorante.

II

A sra. Hutton estava deitada no sofá em seu quarto de vestir, jogando paciência. Apesar do calor da noite de julho, um fogo ardia na lareira. Um lulu da Pomerânia preto, exaurido pelo calor e pela fadiga da digestão, dormia diante do fogo.

— Ufa! Não está quente demais aqui? — perguntou o sr. Hutton ao entrar no aposento.

— Você sabe que preciso ficar aquecida, querido. — A voz parecia à beira das lágrimas. — Sinto tantos arrepios...

— Espero que esteja melhor hoje.

— Não muito, infelizmente.

A conversa estagnou. O sr. Hutton apoiou-se à prateleira sobre a lareira. Baixou os olhos para o lulu adormecido a seus pés, e com a ponta da bota direita rolou o cachorrinho e esfregou-lhe o peito e a barriga manchados de branco. O animal continuou deitado, em êxtase inerte. A sra. Hutton continuou jogando paciência. Chegando a um impasse, ela alterou a posição de uma carta, pegou outra de volta e continuou jogando. Sua paciência sempre se manifestava.

— O dr. Libbard acha que eu devia ir para Llandrindrod Wells no verão.

— Bem, então vá, minha querida. Vá, é claro.

O sr. Hutton estava pensando nos acontecimentos da tarde: como ele e Dóris tinham ido de carro até o bosque, tinham deixado o carro estacionado sob a sombra das árvores e caminhado juntos para o sol sem vento da chapada de greda.

— Preciso beber as águas por causa do meu fígado, e ele acha que eu deveria fazer massagem e um tratamento elétrico também.

Chapéu na mão, Dóris perseguira quatro borboletas azuis que dançavam juntas em volta de uma flor de saudade com um movimento que era como o piscar de um fogo azul. O fogo azul explodiu e espalhou-se em faíscas que giravam; ela as perseguira, rindo e gritando como uma criança.

— Tenho certeza de que vai lhe fazer bem, minha querida.

— Estive imaginando se você viria comigo, meu querido.

— Mas você sabe que vou à Escócia no final do mês.

A sra. Hutton ergueu os olhos suplicantes.

— É a viagem — disse. — A ideia é um pesadelo. Não sei se vou conseguir. E você sabe que não consigo dormir em hotéis. E há a bagagem e todas essas preocupações. Não posso ir sozinha.

— Mas você não estará sozinha. Sua criada estará com você.

Ele falou com impaciência. A mulher doente estava usurpando o lugar da mulher saudável. Ele estava sendo levado para longe da lembrança da chapada iluminada pelo sol e da garota viva e sorridente, de volta para o aposento insalubre, superaquecido, e sua queixosa ocupante.

— Acho que não vou poder ir.

— Mas você tem de ir, minha cara, se o médico mandar. Além disso, uma mudança vai lhe fazer bem.

— Acho que não.

— Mas Libbard acha que sim, e ele sabe do que está falando.

— Não, não vou aguentar. Estou fraca demais. Não posso ir sozinha. — A sra. Hutton tirou um lenço da bolsa de seda preta e levou-o aos olhos.

— Bobagem, minha cara, você precisa fazer um esforço.

— Prefiro ser deixada em paz para morrer aqui. — Ela agora chorava de verdade.

— Ah, Deus! Ora, seja razoável. Agora escute, por favor. — A sra. Hutton apenas soluçou com mais violência. — Ah, que é que se pode fazer? — Ele deu de ombros e saiu do aposento.

O sr. Hutton tinha consciência de que não se comportara com a paciência necessária; mas nada podia fazer. Muito cedo em sua vida descobrira que não apenas não sentia pena dos pobres, fracos, doentes ou deformados; na verdade, os odiava. Uma ocasião, quando calouro, passara três dias numa missão no East End. Voltou cheio de um nojo profundo e indelével. Em vez de se apiedar, ele abominava os infelizes. Sabia que não era uma emoção muito bonita, e a princípio envergonhava-se dela. Finalmente decidira que era de seu temperamento, inevitável, e desistiu dos escrúpulos. Emily era saudável e bonita quando ele se casara com ela. Ele a amava então. Mas agora — era culpa dele ela estar assim?

O sr. Hutton jantou sozinho. A comida e a bebida deixaram-no mais benevolente do que antes do jantar. Para desculpar-se por sua demonstração de impaciência foi ao quarto da esposa e ofereceu-se para ler para ela. Ela ficou comovida, aceitou a oferta, cheia de gratidão, e o sr. Hutton, que tinha particular orgulho de sua pronúncia, sugeriu uma pequena leitura em francês.

— Francês? Aprecio tanto o francês. — A sra. Hutton falava da língua de Racine como se falasse de um prato de ervilhas.

O sr. Hutton correu à biblioteca e voltou com um volume amarelo. Começou a ler. O esforço de pronunciar perfeitamente absorveu toda a sua atenção. Mas como seu sotaque era bom! A sua perfeição parecia melhorar a qualidade do romance que lia.

No final de quinze páginas um som inconfundível chamou-lhe a atenção. Ergueu os olhos: a sra. Hutton adormecera. Ficou imóvel por algum tempo, olhando com uma curiosidade desinteressada para o rosto adormecido. Ele já fora lindo, antes; antes, havia muito tempo, a visão daquele rosto, sua lembrança, suscitavam uma emoção profunda, talvez mais do que já sentira antes ou depois. Agora ele estava vincado e cadavérico. A pele esticava-se sobre as maçãs do rosto, sobre o nariz agudo como o bico de um pássaro. Os olhos fechados apresentavam-se perdidos em profundas órbitas. A luz da lâmpada, batendo no rosto de lado, enfatizava com luz e sombra suas cavidades e projeções. Era o rosto de um Cristo morto pintado por Morales.

Le squelette était invisible

Aux temps heureux de l’art païen[27]

Estremeceu e saiu do aposento pé ante pé.

No dia seguinte a sra. Hutton desceu para o almoço. Tivera algumas palpitações desagradáveis durante a noite, mas sentia-se melhor agora. Além disso, queria ser gentil com sua convidada. A srta. Spence ouviu suas queixas sobre Llandrindrod Wells e foi pródiga em solidariedade, generosa em conselhos. O que quer que dissesse era sempre dito com intensidade. Inclinava-se para a frente, apontada, por assim dizer, como uma pistola e disparando suas palavras. Bang! A pólvora em sua alma era acesa, e as palavras sibilavam pelo cano estreito de sua boca. Ela era uma metralhadora crivando sua anfitriã de solidariedade. O sr. Hutton já sofrera bombardeios semelhantes, a maioria de caráter literário ou filosófico — bombardeios de Maeterlinck, da sra. Besant, de Bergson, de William James. Hoje os projéteis eram medicinais. Ela falou sobre insônia, estendeu-se sobre as virtudes de drogas inofensivas e de especialistas generosos. Sob o bombardeio a sra. Hutton abriu-se como uma flor ao sol.

O sr. Hutton observava em silêncio. O espetáculo de Janet Spence despertava nele uma curiosidade infalível. Ele não era suficientemente romântico para imaginar que todos os rostos escondiam uma faceta interior de beleza ou estranheza, que a conversa fiada de todas as mulheres era como uma neblina sobre misteriosos abismos. A esposa, por exemplo, e Dóris; elas nada mais eram do que pareciam ser. Mas com Janet Spence era, de certo modo, diferente. Ali podia-se ter certeza de que havia uma espécie qualquer de rosto estranho sob o sorriso de Gioconda e as sobrancelhas romanas. A única pergunta era: o que exatamente havia ali? O sr. Hutton não conseguia descobrir.

— Mas talvez você não precise ir para Llandrindrod — dizia a srta. Spence. — Se ficar boa logo, o dr. Libbard vai dispensá-la.

— Só espero que sim. Realmente, eu me sinto bem melhor hoje.

O sr. Hutton sentiu-se envergonhado. Até que ponto era a falta de solidariedade dele que a impedia de sentir-se bem todos os dias? Mas consolou-se refletindo que era apenas um caso de sentir-se, não de estar melhor. A solidariedade não conserta um fígado doente ou um coração fraco.

— Minha cara, eu não comeria essas groselhas se fosse você — disse ele, subitamente apreensivo. — Sabe que Libbard proibiu tudo o que tiver casca e caroço.

— Mas gosto tanto delas — protestou a sra. Hutton. — E estou me sentindo tão bem hoje.

— Não seja tirano — falou a srta. Spence, olhando primeiro para ele e depois para a esposa. — Deixe a pobre enferma comer o que quiser; vai lhe fazer bem. — Colocou a mão no braço da sra. Hutton e deu-lhe dois ou três tapinhas afetuosos.

— Obrigada, minha querida. — A sra. Hutton serviu-se de groselhas cozidas.

— Bem, não me culpe se elas lhe fizerem mal.

— Alguma vez culpei você, meu bem?

— Você não tem do que me culpar — respondeu o sr. Hutton em tom brincalhão. — Sou o marido perfeito.

Depois do almoço sentaram-se no jardim. Da ilha de sombra sob o velho cipreste viam o extenso gramado, no qual os canteiros de flores faiscavam com um brilho metálico.

O sr. Hutton respirou profundamente o ar quente e perfumado.

— É bom estar vivo — comentou.

— Apenas estar vivo — repetiu a esposa, estendendo para o sol a mão pálida e de juntas grossas.

Uma criada trouxe o café; os bules de prata e as xícaras azuis foram colocados numa mesa dobrável junto ao grupo de cadeiras.

— Ah, o meu remédio! — exclamou a sra. Hutton. — Vá buscá-lo, sim, Clara? A garrafa branca no aparador.

— Eu vou — falou o sr. Hutton. — De qualquer maneira, tenho de ir buscar um charuto.

Correu na direção da casa. Na soleira, voltou-se por um instante. A criada caminhava de volta pelo gramado. A esposa estava sentada em sua espreguiçadeira, ocupada em abrir seu guarda-sol branco. A srta. Spence estava inclinada sobre a mesa servindo o café. Ele entrou na fresca obscuridade da casa.

— Gosta de açúcar em seu café? — perguntou a srta. Spence.

— Sim, por favor. Ponha bastante. Vou beber depois do remédio, para tirar o gosto.

A sra. Hutton recostou-se na cadeira, baixando a sombrinha sobre os olhos para esconder de sua visão o céu ardente.

Atrás dela, a srta. Spence fazia ruídos delicados com as xícaras de café.

— Coloquei três colheres cheias. Isso deve tirar o gosto. E aí vem o remédio.

O sr. Hutton reaparecera, trazendo uma taça cheia até a metade de um líquido claro.

— O cheiro é delicioso — comentou, entregando-o à esposa.

— É só o aromatizante que eles colocam. — Bebeu tudo de um gole, estremeceu e fez uma careta. — Ui, é tão ruim. Me dê o café.

A srta. Spence passou-lhe a xícara; ela tomou um gole.

— Você o engoliu feito um xarope. Mas está muito bom, depois desse remédio atroz.

Às três e meia a sra. Hutton queixou-se de que não se sentia tão bem quanto antes e entrou para deitar-se. O marido gostaria de ter dito algo sobre as groselhas, mas conteve-se; o triunfo de um “não lhe disse?” seria demasiadamente fácil. Em vez disso, foi solidário e deu-lhe o braço até a casa.

— Um descanso vai lhe fazer bem — disse. — A propósito, não estarei de volta antes do jantar.

— Mas por quê? Aonde você vai?

— Prometi ir à casa de Johnson esta tarde. Temos que discutir o memorial de guerra, sabe.

— Ah, preferia que você não fosse. — A sra. Hutton estava quase em lágrimas. — Não pode ficar? Não gosto de ficar sozinha em casa.

— Mas, minha cara, prometi há várias semanas. — Era uma amolação ter de mentir assim. — E agora preciso voltar e cuidar da srta. Spence.

Beijou-a na testa e tornou a sair para o jardim. A srta. Spence recebeu-o objetiva e veemente.

— Sua esposa está terrivelmente doente — disparou contra ele.

— Achei que ela ficou muito melhor quando você veio.

— Isso foi puramente nervoso, puramente nervoso. Eu a estava observando de perto. Com um coração nessas condições e a digestão destruída — sim, destruída — tudo pode acontecer.

— Libbard não tem uma opinião tão pessimista sobre a saúde da pobre Emily. — O sr. Hutton abriu o portão que levava do jardim à alameda; o carro da srta. Spence estava esperando perto da porta da frente.

— Libbard é só um médico rural. Você devia consultar um especialista.

Ele não conteve o riso.

— Você tem uma paixão macabra por especialistas.

A srta. Spence ergueu a mão em protesto.

— Estou falando sério. Acho que a coitada da Emily está em péssimo estado. Qualquer coisa pode acontecer... a qualquer momento.

Ele ajudou-a a entrar no carro e fechou a porta. O motorista ligou o motor e acomodou-se em seu banco, pronto para partir.

— Posso mandar seguir? — Ele não tinha vontade alguma de continuar a conversa.

A srta. Spence inclinou-se para a frente e disparou um sorriso de Gioconda na direção dele.

— Lembre-se, espero que venha me ver logo.

Ele sorriu mecanicamente, emitiu um ruído educado e, quando o carro pôs-se em movimento, acenou com a mão. Estava feliz por ficar sozinho.

Poucos minutos depois o próprio sr. Hutton saiu de carro. Dóris estava esperando na encruzilhada. Jantaram juntos a trinta quilômetros de casa, num hotel de beira de estrada. Era uma dessas refeições ruins e caras que só são feitas em hotéis do campo frequentados por motoristas. Aquilo revoltou o sr. Hutton, mas Dóris gostou. Ela sempre gostava das coisas. O sr. Hutton pediu uma marca não muito boa de champanhe. Desejava ter passado a noite em sua biblioteca.

Na volta para casa Dóris estava levemente embriagada e bastante carinhosa. Estava muito escuro dentro do carro, mas, olhando para a frente, além da figura imóvel de M’Nab, podiam ver um universo brilhante e estreito de formas e cores resgatadas da escuridão pelos faróis.

Eram mais de onze horas quando o sr. Hutton chegou a casa. O dr. Libbard esperava no vestíbulo. Era um homem pequeno, com mãos delicadas e feições bem formadas, quase femininas. Seus olhos castanhos eram grandes e melancólicos. Costumava passar muito tempo sentado à cabeceira de seus pacientes, olhando tristemente com aqueles olhos e falando em voz pesarosa e baixa sobre nada em particular. Sua pessoa exalava um cheiro agradável, sem dúvida antisséptico, mas ao mesmo tempo suave e discretamente delicioso.

— Libbard? — disse o sr. Hutton, surpreso. — Você aqui? Minha esposa não está bem?

— Tentamos encontrá-lo mais cedo — respondeu a voz suave e melancólica. — Pensava-se que você estava na casa do sr. Johnson, mas eles não tinham notícias suas.

— Não, não consegui chegar. O carro quebrou — respondeu o sr. Hutton irritado. Era desagradável ser pego em uma mentira.

— Sua esposa queria vê-lo com urgência.

— Bem, posso vê-la agora. — O sr. Hutton dirigiu-se para a escada.

O dr. Libbard colocou a mão no braço dele.

— Infelizmente é tarde demais.

— Tarde demais? — Começou a tentar tirar o relógio que não queria sair do bolso.

— A sra. Hutton faleceu há meia hora.

A voz permaneceu regular em sua suavidade, a melancolia dos olhos não se aprofundou. O dr. Libbard falava da morte como falaria de uma partida local de críquete. Todas as coisas eram igualmente vãs e deploráveis.

O sr. Hutton surpreendeu-se pensando nas palavras de Janet Spence. A qualquer momento, a qualquer momento. Ela estava extraordinariamente certa.

— Que aconteceu? — perguntou. — Qual foi a causa?

O dr. Libbard explicou. Tinha sido uma parada cardíaca provocada por um violento ataque de náusea, causado, por sua vez, pela ingestão de algo de natureza indigesta. Groselhas?, sugeriu o sr. Hutton. Muito provável. Fora demais para o coração. Havia uma doença valvular crônica: alguma coisa cedera sob o esforço. Estava tudo acabado; ela não deve ter sofrido muito.

III

— É uma pena que tenham escolhido o dia do jogo entre Eton e Harrow para o funeral — dizia o velho general Grego, de pé, cartola na mão, sob a sombra do portão, enxugando o rosto com o lenço.

O sr. Hutton ouviu o comentário e com dificuldade conteve o desejo de infligir um doloroso castigo corporal ao general. Tinha vontade de atingir o velho brutamontes no meio de seu rosto grande e vermelho. Monstruosa amora gigante, salpicada de comida! E o respeito pelos mortos? Ninguém se importava? Na teoria ele não se importava muito; que os mortos enterrem seus mortos. Mas ali, à beira da sepultura, ele se pegara de fato soluçando. Pobre Emily, eles tinham sido muito felizes tempos antes. Agora ela jazia no fundo de um buraco de dois metros. E ali estava Grego reclamando que não podia ir ao jogo entre Eton e Harrow.

O sr. Hutton olhou em volta, para os grupos de figuras negras que saíam lentamente do adro em direção ao grupo de carruagens e automóveis estacionados na estrada. Contra o fundo brilhante da grama, das flores e das folhagens de julho, tinham uma aparência horrivelmente estranha e pouco natural. Agradava-lhe pensar que todas essas pessoas logo estariam mortas também.

Naquela noite o sr. Hutton ficou até tarde em sua biblioteca lendo a vida de Milton. Não havia uma razão particular para tê-lo escolhido; foi o livro que primeiro lhe caiu nas mãos, só isso. Era mais de meia-noite quando terminou. Levantou-se da poltrona, destrancou as portas-janelas e saiu para o pequeno terraço pavimentado. A noite era clara e silenciosa. O sr. Hutton olhou para as estrelas e para os buracos entre elas, baixou os olhos para os gramados obscuros e as flores sem brilho do jardim e deixou-os passear pela paisagem longínqua, preta e cinzenta sob a lua.

Começou a pensar com uma espécie de violência confusa. Havia as estrelas, havia Milton. Um homem pode de alguma forma ter a grandeza das estrelas e da noite. Esplendor, nobreza. Mas existe, a sério, uma diferença entre o nobre e o ignóbil? Milton, as estrelas, a morte e ele próprio — ele próprio. A alma, o corpo; a natureza elevada e a mais baixa. Talvez houvesse alguma coisa nisso, afinal. Milton tinha um deus a seu lado, e a virtude. E ele, o que tinha? Nada, coisa nenhuma. Havia apenas os pequenos seios de Dóris. Qual era o sentido disso tudo? Milton, as estrelas, a morte, e Emily em sua sepultura, Dóris e ele próprio — sempre ele próprio...

Ah, ele era um ser fútil e asqueroso. Tudo o convencia disso. Era um momento solene. Falou alto: “Vou conseguir, vou conseguir”. O som de sua própria voz na escuridão era assustador; parecia-lhe que fizera um juramento infernal ao qual submetia até mesmo os deuses: “Vou conseguir, vou conseguir”. No passado houvera dias de Ano-Novo e aniversários solenes, quando ele sentira a mesma contrição e registrara resoluções semelhantes. Todas tinham se dissipado, essas resoluções, como fumaça, até o nada. Mas esse era um momento maior e ele pronunciara um julgamento mais temível. No futuro tudo seria diferente. Sim, ele viveria pela razão, seria diligente, conteria seus apetites, devotaria sua vida a um bom propósito qualquer. Estava resolvido e assim seria.

Na prática ele se via passando as manhãs em empreendimentos agrícolas, cavalgando com o capataz, providenciando para que a terra fosse cultivada pelo melhor método moderno — silos, adubo artificial e colheita contínua, tudo isso. O resto do dia deveria ser dedicado ao estudo sério. Havia aquele livro que há tanto tempo pretendia escrever — O efeito das doenças na civilização.

O sr. Hutton foi para a cama humilde e contrito, mas com a sensação de que a graça o penetrara. Dormiu sete horas e meia e acordou para encontrar o sol brilhando. As emoções da noite anterior tinham sido transformadas por uma noite de sono em sua costumeira alegria. Somente muitos segundos depois de sua volta à consciência foi que se lembrou de sua resolução, de seu juramento estígio. Milton e a morte pareciam de alguma forma diferentes à luz do sol. Quanto às estrelas, não estavam lá. Mas as resoluções eram boas; mesmo à luz do dia ele percebia isso. Mandou selarem o cavalo depois do café da manhã e cavalgou pela fazenda com o capataz. Depois do almoço leu Tucídides sobre a praga em Atenas. À noite fez algumas anotações sobre a malária no sul da Itália. Enquanto se despia lembrou-se de que havia uma boa anedota no livro de piadas de Skelton acerca da doença do suor. Teria anotado o fato, se tivesse encontrado um lápis.

Na sexta manhã de sua nova vida o sr. Hutton encontrou em sua correspondência um envelope endereçado naquela caligrafia peculiarmente vulgar que ele sabia ser de Dóris. Abriu-o e começou a ler. Ela não sabia o que dizer; as palavras eram tão impróprias. A mulher dele morrendo assim, e tão de repente — era horrível demais. O sr. Hutton suspirou, mas seu interesse reviveu um pouco ao continuar a ler:

A morte é tão apavorante, nunca penso nela. Mas quando acontece uma coisa assim, ou quando estou me sentindo doente ou deprimida, não consigo deixar de pensar que ela está tão perto, e penso em todas as coisas más que fiz e sobre você e eu, e me pergunto o que acontecerá, e fico muito assustada. Estou tão sozinha, Ursinho, e tão infeliz, não sei o que fazer. Não consigo me livrar da ideia de morrer, estou tão infeliz e desamparada sem você. Não pretendia escrever-lhe; pretendia esperar até você tirar o luto e poder vir me ver de novo, mas eu estava tão sozinha e infeliz, Ursinho, tinha que escrever. Não pude evitar. Perdoe-me, quero você muito; não tenho ninguém no mundo além de você. Você é tão bom, gentil e compreensivo; não há ninguém como você. Nunca esquecerei como você foi bom e generoso para mim, e você é tão inteligente e sabe tantas coisas, não consigo entender como você chegou a prestar atenção em mim, pois você me ama um pouquinho, não ama, Ursinho?

O sr. Hutton sentiu vergonha e remorso. Que lhe agradecessem assim, ser venerado por ter seduzido a garota — era demais. Tinha sido apenas um ato de irresponsabilidade imbecil. Imbecil, idiota: não havia outra maneira de descrevê-lo. Pois, afinal, tivera muito pouco prazer com aquilo. Levando tudo em consideração, provavelmente se entediara mais do que se divertira. Antigamente ele se considerava um hedonista. Mas ser hedonista implica certo processo de raciocínio, uma escolha deliberada de prazeres conhecidos, uma rejeição de sofrimentos conhecidos. Aquilo tinha sido feito sem razão, contra ela própria. Pois ele sabia de antemão — tão bem, tão bem — que não havia interesse ou prazer a ser tirado desses casos infelizes. No entanto, cada vez que a coceira vaga o atingia ele sucumbia, envolvendo-se mais uma vez na velha estupidez. Houvera Maggie, a criada da esposa, e Edith, a garota na fazenda, e a sra. Pringole, e a garçonete em Londres, e outras — parecia haver dúzias delas. Tinha sido tudo estagnado e tedioso demais. Ele sabia que seria; sempre sabia. E no entanto, no entanto... A experiência não ensina.

Pobre Dóris! Escreveria para ela carinhosamente, consoladoramente, mas não a veria de novo. Um empregado veio avisar que o cavalo estava selado e esperando. Ele montou e partiu. Nessa manhã o velho capataz estava mais irritante que de costume.

Cinco dias mais tarde Dóris e o sr. Hutton estavam sentados juntos no cais em Southend; Dóris, de musselina branca com enfeites cor-de-rosa, irradiava felicidade; o sr. Hutton, pernas esticadas e cadeira inclinada, empurrava o Panamá para longe da testa e tentava sentir-se como um viajante. Naquela noite, quando Dóris dormia, respirando calidamente a seu lado, ele recapturou, naquele momento de escuridão e fadiga física, a emoção um tanto cósmica que o dominara naquela tarde, menos de quinze dias antes, quando tomara sua grande resolução. E seu juramento tão solene já tinha seguido o caminho de tantas outras resoluções. A falta de razão triunfara; à primeira coceira do desejo ele cedera. Ele não tinha jeito, não tinha jeito.

Durante um longo tempo ficou deitado de olhos fechados, ruminando sua humilhação. A jovem mexeu-se no sono. O sr. Hutton virou-se e olhou para ela. Entre as cortinas semicerradas entrava luz suficiente para mostrar o ombro nu e o braço, o pescoço e a massa escura de cabelos sobre o travesseiro. Era linda, desejável. Por que ele ficava remoendo seus pecados? Qual a importância disso? Se ele não tinha jeito, então pronto; faria o melhor possível de sua falta de jeito. Um glorioso senso de irresponsabilidade encheu-o de repente. Estava livre, magnificamente livre. Em uma espécie de exaltação ele puxou a jovem para si. Ela acordou, surpresa, quase assustada sob seus beijos bruscos.

A tempestade de seu desejo diminuiu para uma espécie de alegria serena. Toda a atmosfera parecia estar estremecendo com uma enorme gargalhada silenciosa.

— Será que alguém poderia amar você tanto quanto eu amo, Ursinho? — A pergunta chegou tenuemente de mundos distantes do amor.

— Acho que conheço alguém que ama — respondeu o sr. Hutton. A gargalhada submarina estava inchando, crescendo, prestes a romper a superfície de silêncio e ressoar.

— Quem? Diga. Que quer dizer? — A voz viera de bem perto; carregada de suspeita, angústia, indignação, pertencia a esse mundo imediato.

— Ah!

— Quem?

— Você nunca vai adivinhar. — O sr. Hutton manteve a brincadeira até começar a ficar enfadonha, e então pronunciou o nome: — Janet Spence.

Dóris não acreditou.

— A srta. Spence, da Mansão? Aquela velha? — Era ridículo. O sr. Hutton riu também.

— Mas é verdade — ele disse. — Ela me adora. — Ah, que grande piada! Iria vê-la assim que voltasse: ver e conquistar. — Acho que ela quer se casar comigo — acrescentou.

— Mas você não iria... você não pretende...

O ar crepitava de humor. O sr. Hutton riu alto.

— Pretendo me casar com você — disse. Parecia-lhe a melhor piada que já fizera na vida.

Quando o sr. Hutton saiu de Southend, era mais uma vez um homem casado. Foi combinado que, por enquanto, o fato seria mantido em segredo. No outono viajariam juntos ao estrangeiro e o mundo seria informado. Por enquanto ele voltaria para sua própria casa e Dóris para a dela.

No dia seguinte à sua volta ele saiu à tarde para visitar a srta. Spence. Ela recebeu-o com o velho sorriso Gioconda.

— Estava esperando sua vinda.

— Não consegui ficar longe — respondeu galantemente o sr. Hutton.

Sentaram-se no pavilhão de verão. Era um lugar agradável — um pequeno templo de estuque escondido entre densas moitas de sempre-vivas. A srta. Spence deixara sua marca ali pendurando sobre a cadeira uma placa ornamental azul e branca de Della Robbia.

— Estou pensando em ir para a Itália no outono — declarou o sr. Hutton. Ele se sentia como uma garrafa de cerveja de gengibre, prestes a explodir sua excitação borbulhante e alegre.

— Itália... — A srta. Spence fechou os olhos em êxtase. — Eu me sinto atraída por lá, também.

— Por que não se deixa levar?

— Não sei. De algum modo não tenho energia e iniciativa para ir sozinha.

— Sozinha... — Ah, som de guitarras e de canções roucas! — É, viajar sozinho não é muito divertido.

A srta. Spence recostou-se na cadeira sem falar. Os olhos ainda estavam fechados. O sr. Hutton acariciou o bigode. O silêncio prolongou-se pelo que parecia um longo tempo.

Diante da insistência para que ficasse para o jantar, o sr. Hutton não recusou. O divertimento mal começara. A mesa foi posta na varanda. Através de seus arcos eles viam o jardim em declive, até o vale lá embaixo e os montes mais distantes. A luz caía; o calor e o silêncio eram opressivos. Uma enorme nuvem subia no céu, e havia sussurros distantes de trovoada. A trovoada chegou mais perto, começou a soprar um vento e caíram os primeiros pingos da chuva. A mesa foi retirada. A srta. Spence e o sr. Hutton ficaram sentados em meio à escuridão crescente.

A srta. Spence rompeu um longo silêncio dizendo pensativamente:

— Acho que todo mundo tem direito a uma certa dose de felicidade, você não acha?

— Sem dúvida.

Mas aonde ela queria chegar? Ninguém faz generalizações sobre a vida a não ser que pretenda falar sobre si mesmo. Felicidade: ele rememorou a própria vida e viu uma existência alegre e plácida jamais perturbada por grandes tristezas, desconfortos ou sustos. Sempre tivera dinheiro e liberdade; tinha podido fazer o que queria. Sim, ele imaginava que tinha sido feliz, mais feliz que a maioria dos homens. E agora não era meramente feliz; tinha descoberto na irresponsabilidade o segredo da alegria. Estava prestes a dizer algo sobre sua felicidade quando a srta. Spence continuou:

— Pessoas como eu e você têm o direito de ser felizes alguma vez na vida.

— Eu? — disse o sr. Hutton, surpreso.

— Pobre Henry! A vida não nos tratou muito bem.

— Ora, bem, podia ter me tratado pior.

— Você está sendo otimista. É muito corajoso de sua parte. Mas não pense que não posso enxergar atrás da máscara.

A srta. Spence falava cada vez mais alto, à medida que a chuva caía cada vez mais forte. Periodicamente o trovão interrompia suas palavras. Ela continuou a falar, gritando contra o tonitroar.

— Eu compreendo você tão bem, e há tanto tempo.

Um relâmpago revelou-a, obstinada e decidida, inclinando-se na direção dele. Os olhos eram dois canos de pistola, profundos e ameaçadores. A escuridão tornou a engoli-la.

— Você era uma alma solitária procurando uma alma companheira. Eu me solidarizava com você em sua solidão. Seu casamento...

O trovão interrompeu a frase. A voz da srta. Spence tornou-se novamente audível com as palavras:

— ... não podia oferecer companheirismo a um homem de sua classe. Você precisava de uma alma irmã.

Uma alma irmã — ele, uma alma irmã! Era absolutamente fantástico. “Georgette Leblanc, a ex-alma irmã de Maurice Mae- terlinck.” Ele tinha visto isso no jornal alguns dias antes. Então era assim que Janet Spence o pintara na imaginação — uma alma procurando seu par. E para Dóris ele era a personificação do bem e o homem mais inteligente do mundo. E verdadeiramente, que era ele? Quem sabe?

— Meu coração se comoveu. Eu podia compreender; também estava solitária. — A srta. Spence pousou a mão no joelho dele. — Você foi tão paciente. — Outro relâmpago. Ela ainda estava decidida, perigosamente. — Você nunca se queixava. Mas eu podia adivinhar, eu podia adivinhar.

— Que maravilhoso! — Então ele era uma âme incomprise. — Só mesmo a intuição feminina...

O trovão explodiu e ecoou, diminuiu, e sobrou apenas o ruído da chuva. O trovão era a gargalhada dele, aumentada, exteriorizada. Relâmpago e trovão lá estavam de novo, bem em cima deles.

— Você não sente que tem dentro de si algo semelhante a essa tempestade? — Ele podia imaginá-la inclinada para a frente enquanto falava. — A paixão torna a pessoa igual aos elementos.

Qual era a jogada dele agora? Ora, obviamente deveria ter dito “sim” e aventurado um gesto inequívoco qualquer. Mas o sr. Hutton assustou-se de repente. A cerveja de gengibre dentro dele ficara choca. A mulher estava falando sério, terrivelmente sério. Ele ficou apavorado. Paixão?

— Não — respondeu desesperadamente. — Não há paixão.

Mas seu comentário não foi ouvido ou não foi levado em conta, pois a srta. Spence continuou em arrebatamento crescente, falando tão rapidamente e, no entanto, num sussurro tão ardente e íntimo que o sr. Hutton achou muito difícil distinguir o que ela dizia. Ela estava contando, pelo que ele podia entender, a história de sua vida. Os relâmpagos eram menos frequentes agora, e havia longos intervalos de escuridão. Mas a cada clarão ele a via ainda apontada na sua direção, ainda inclinada para a frente com uma intensidade aterrorizante. A escuridão, a chuva e então o relâmpago, e lá estava o rosto dela, bem próximo. Uma máscara pálida, de um branco esverdeado; os olhos grandes, o cano estreito da boca, as sobrancelhas pesadas. Agripina, ou não era mais — sim, não era antes George Robey?[28]

Começou a fazer planos absurdos para fugir. Poderia subitamente escapar de um salto, fingir que tinha visto um ladrão — pega ladrão! Pega ladrão! E disparar noite afora em perseguição. Ou deveria dizer que se sentia fraco, um ataque de coração? Ou que tinha visto um fantasma, o fantasma de Emily, no jardim? Absorto em planos infantis, deixara de prestar atenção às palavras da srta. Spence. O aperto espasmódico da mão dela chamou sua atenção.

— Eu o venerei por isso, Henry — ela estava dizendo.

Venerou-o por quê?

— O casamento é um laço sagrado, e seu respeito por ele, mesmo sendo o casamento, como no seu caso, infeliz, fez com que eu respeitasse e admirasse você, e... será que ousarei dizer a palavra...?

Ah, o ladrão, o fantasma no jardim! Mas era tarde demais. — ... sim, amasse você, Henry, ainda mais. Mas agora estamos livres, Henry.

Livres? Houve um movimento na escuridão, e ela estava ajoelhada no chão perto da cadeira dele.

— Ah, Henry, Henry, eu também tenho sido infeliz.

Seus braços envolveram-no, e pelo tremor do corpo dela ele podia sentir que ela soluçava. Podia ser um suplicante implorando misericórdia.

— Não faça isso, Janet — ele protestou. Aquelas lágrimas eram terríveis, terríveis. — Agora não, agora não! Você tem que ficar calma; tem que ir para a cama. — Deu um tapinha no ombro dela e levantou-se desembaraçando-se do abraço. Deixou-a ainda caída no chão junto à cadeira em que ele se sentara.

Tateando o caminho para o vestíbulo, e sem se deter para procurar o chapéu, ele saiu da casa, tomando um cuidado infinito para fechar a porta da frente sem ruído atrás de si. As nuvens tinham sido sopradas para longe e a lua brilhava no céu claro. Havia poças d’água ao longo de toda a estrada, e o ruído de água corrente vinha das valas e sarjetas. O sr. Hutton caminhava sem se importar de ficar molhado.

Como eram comoventes seus soluços! Junto com as emoções de pena e remorso que essa lembrança provocava nele havia um certo ressentimento: por que ela não podia ter jogado o jogo que ele estava jogando — o jogo frio e divertido? Sim, mas todo o tempo ele sabia que ela não jogaria, não poderia jogar esse jogo; ele sabia, mas persistira.

O que ela tinha dito sobre a paixão e os elementos? Alguma coisa absurdamente antiga, mas verdadeira, verdadeira. Lá estava ela, uma nuvem de interior negro e carregada de trovões, e ele, como um absurdo Benjamin Franklin, tinha mandado uma pipa para o coração do perigo. Agora reclamava que seu brinquedo atraíra o raio.

Ela com certeza ainda estava ajoelhada junto à cadeira na varanda, chorando.

Mas por que ele não conseguira manter o jogo? Por que sua irresponsabilidade desertara, deixando-o subitamente sóbrio num mundo frio? Não havia resposta para qualquer de suas perguntas. Uma ideia queimava forte e luminosa em sua mente: a ideia de fuga. Precisava ir embora imediatamente.

IV

— Em que está pensando, Ursinho?

— Em nada.

Silêncio. O sr. Hutton continuou imóvel, os cotovelos no parapeito do terraço, o queixo nas mãos, contemplando Florença. Tinha alugado uma casa em uma das colinas ao sul da cidade. De um pequeno terraço elevado no final do jardim via-se um extenso vale fértil até a cidade e, atrás dela, a massa escura do monte Morello e, para o leste, a colina de Fiesole, pontilhada de casas brancas. Tudo estava claro e luminoso ao sol de setembro.

— Está preocupado com alguma coisa?

— Não, nada.

— Conte-me, Ursinho.

— Mas, minha cara, não há coisa alguma a dizer. — O sr. Hutton voltou-se, sorriu e deu um tapinha na mão da jovem. — Acho que é melhor você entrar para a sesta. Está quente demais para você aqui.

— Muito bem, Ursinho. Você vem também?

— Quando terminar o charuto.

— Certo. Mas ande depressa, Ursinho. — Lentamente, com relutância, ela desceu os degraus do terraço e se encaminhou para a casa.

O sr. Hutton continuou sua contemplação de Florença. Tinha necessidade de ficar sozinho. Às vezes era bom escapar de Dóris e dos incansáveis e excessivos cuidados de sua paixão. Ele nunca conhecera o sofrimento de amar sem esperança, mas estava experimentando agora o sofrimento de ser amado. Essas últimas semanas tinham sido um período de desconforto crescente. Dóris estava sempre com ele, como uma obsessão, como uma consciência de culpa. Sim, era bom estar sozinho.

Tirou do bolso um envelope e abriu-o, não sem relutância. Odiava cartas; sempre continham algo desagradável — hoje em dia, desde o seu segundo casamento. Essa era de sua irmã. Ele começou a ler por alto as verdades insultuosas que a compunham. As expressões “pressa indecente”, “suicídio social”, “mal esfriou na sepultura”, “pessoa das classes inferiores” — todas foram solicitadas. Agora elas eram inevitáveis em qualquer mensagem de um parente de boas intenções e ideias corretas. Impaciente, ele estava prestes a rasgar em pedaços a carta idiota quando seu olho recaiu sobre uma frase no final da terceira página. Seu coração bateu com uma violência incômoda ao lê-la. Era monstruoso demais! Janet Spence estava dizendo para todo mundo que ele tinha envenenado a esposa para poder se casar com Dóris. Que maldade abominável! Normalmente um homem de temperamento suave, o sr. Hutton encontrou-se tremendo de raiva. Procurou consolo infantil nos palavrões — e xingou a mulher.

Então de repente ele viu o lado ridículo da situação. A ideia de que ele assassinasse alguém para casar-se com Dóris! Se ao menos soubessem como ele estava entediado. Coitada, querida Janet! Ela tentara ser maldosa; só conseguira ser estúpida.

O som de passos despertou-o; olhou em volta. No jardim abaixo do pequeno terraço a empregada da casa estava colhendo frutas. Napolitana que de algum modo vagara até Florença, ela fazia o tipo clássico — um pouco vulgar. O perfil poderia ter sido tirado de uma moeda siciliana de um período ruim. As feições, cunhadas à maneira ornada da grande tradição local, exprimiam uma imbecilidade quase perfeita. A boca era o que tinha de mais belo; a mão caligráfica da natureza a tinha ricamente curvado numa expressão de mau humor asinino... Sob as horrorosas roupas pretas, o sr. Hutton adivinhou um corpo poderoso, firme e maciço. Olhara para ela antes com um vago interesse e curiosidade. Hoje a curiosidade definiu-se e centralizou-se em desejo. Um idílio de Teócrito. Ali estava a mulher; ele, coitado, não era precisamente um pastor de cabra nos montes vulcânicos. Chamou-a.

— Armida!

O sorriso com que ela respondeu era tão provocante, testemunhava uma virtude tão fácil que o sr. Hutton ficou com medo. Mais uma vez estava prestes a — prestes a. Precisava recuar, ah, depressa, depressa, antes que fosse tarde demais. A moça continuava a olhar para ele.

— Ha chiamato? — perguntou ela finalmente.

Estupidez ou razão? Ah, agora não havia escolha. Era a imbecilidade.

— Scendo — gritou para ela. Doze degraus levavam do jardim ao terraço. O sr. Hutton contou-os. Descendo, descendo, descendo, descendo... Teve a .visão de si mesmo descendo de um círculo do inferno para o seguinte, de uma escuridão cheia de vento e granizo para um abismo de areia movediça.

V

Por muitos dias o caso Hutton ocupou a primeira página de todos os jornais. Não houve julgamento mais popular desde que George Smith eclipsara temporariamente a Guerra Europeia afogando numa banheira quente sua sétima noiva. A imaginação pública foi despertada por essa história de assassinato trazida à luz meses depois da data do crime. Ali, sentia-se, estava um desses incidentes na vida humana, tão notáveis porque são tão raros que, definitivamente, justificam os caminhos de Deus para o homem. Um homem mau fora levado por uma paixão ilícita a matar a esposa. Durante meses ele vivera em pecado e imaginara a segurança — apenas para ser jogado finalmente, de modo mais horrível, na armadilha que preparara para si mesmo. O crime não compensava, e ali estava a prova disso. Os leitores dos jornais estavam em posição de seguir todos os movimentos da mão de Deus. Tinha havido rumores vagos, porém persistentes, nas vizinhanças; a polícia agira finalmente. Então veio a ordem de exumação, o exame post mortem, o inquérito, o depoimento dos especialistas, o veredito do júri de instrução, o julgamento, a condenação. Pelo menos uma vez a Providência cumprira seu dever, óbvia, contundente, didaticamente, como num melodrama. Os jornais tinham razão em fazer desse caso o principal alimento intelectual de toda uma estação.

A primeira emoção do sr. Hutton ao ser chamado da Itália para depor no inquérito foi de indignação. Era uma coisa monstruosa, escandalosa, que a polícia levasse a sério um mexerico tão bobo e malicioso. Quando o inquérito findasse, ele entraria com uma ação contra o delegado do condado por perseguição; processaria a tal Spence por calúnia.

Foi aberto o inquérito; a surpreendente prova foi descoberta. Os especialistas tinham examinado o corpo e encontrado traços de arsênico; eram da opinião de que a causa mortis da finada sra. Hutton fora envenenamento por arsênico.

Envenenamento por arsênico... Emily morrera de envenenamento por arsênico? Depois disso, o sr. Hutton soube com surpresa que havia herbicida arsenicado em suas estufas em quantidade suficiente para envenenar um exército.

Foi então, de repente, que ele percebeu: havia um caso contra ele. Fascinado, ele o viu crescer, crescer, como uma monstruo- sa planta tropical. Ela o envolvia, o rodeava; ele estava perdido numa mata fechada.

Quando tinha sido ministrado o veneno? Os especialistas concordavam em que ele deve ter sido ingerido oito ou nove horas antes da morte. Mais ou menos na hora do almoço? Sim, mais ou menos na hora do almoço. Clara, a copeira, foi chamada. A sra. Hutton, lembrava-se ela, tinha lhe pedido para ir buscar seu remédio. O sr. Hutton se oferecera para ir; ele fora sozinho. A srta. Spence... ah, a lembrança da tempestade, o rosto branco armado! O horror de tudo aquilo! A srta. Spence confirmou a declaração de Clara e acrescentou que o sr. Hutton voltara com o remédio já em uma taça, não no frasco.

A indignação do sr. Hutton evaporou-se. Ele estava abismado, apavorado. Era tudo fantástico demais para ser levado a sério, e no entanto aquele pesadelo era um fato, estava realmente acontecendo.

M’Nab os tinha visto se beijando muitas vezes. Ele os levara para um passeio no dia da morte da sra. Hutton. Ele podia vê-los refletidos no para-brisa, às vezes pelo canto do olho.

O inquérito foi adiado. Naquela noite Dóris foi deitar-se com dor de cabeça. Quando foi ao quarto dela depois do jantar, o sr. Hutton encontrou-a chorando.

— Que foi? — Ele sentou-se na beirada da cama e começou a acariciar-lhe os cabelos. Durante muito tempo ela não respondeu, e ele continuou a acariciar-lhe os cabelos mecanicamente, quase inconscientemente; às vezes até se inclinava e beijava seu ombro nu. No entanto ele tinha seus negócios para pensar. O que tinha acontecido? Como foi que aquele mexerico estúpido tinha se tornado verdade? Emily tinha morrido de envenenamento por arsênico: era absurdo, impossível. A ordem das coisas tinha sido rompida, e ele estava à mercê de uma irresponsabilidade. Que tinha acontecido, que ia acontecer? Foi interrompido no meio de seus pensamentos.

— A culpa é minha, a culpa é minha! — soluçou Dóris de repente. — Eu não devia ter amado você; não devia ter deixado que você me amasse. Por que foi que nasci?

O sr. Hutton não disse coisa alguma, mas baixou os olhos em silêncio para a abjeta imagem do sofrimento deitada na cama.

— Se fizerem alguma coisa com você, eu me mato.

Ela sentou-se, segurou-o por um momento à distância e olhou para ele com uma espécie de violência, como se nunca mais fosse vê-lo.

— Eu te amo, te amo, te amo. — Puxou-o, inerte e passivo, para si, agarrou-se nele. — Não sabia que você me amava tanto assim, Ursinho. Mas por que você fez isso, por que fez isso?

O sr. Hutton afastou os braços que o prendiam e levantou-se. Seu rosto ficou muito vermelho.

— Você parece aceitar que eu assassinei minha esposa — disse. — É realmente grotesco demais. Por quem vocês todos me tomam? Um herói de cinema? — Ele começava a perder a paciên- cia. Toda a exasperação, todo o medo e o pasmo do dia transformaram-se em violenta raiva contra ela. — É tudo uma maldita estupidez. Você não tem a menor concepção da mentalidade de um homem civilizado? Pareço o tipo de homem que sai por aí matando os outros? Acho que você imaginou que eu estava tão loucamente apaixonado por você que cometeria qualquer loucura. Quando é que vocês mulheres vão entender que ninguém fica loucamente apaixonado? Tudo o que se quer é uma vida sossegada, o que vocês não permitem que se tenha. Não sei que diabo me levou a me casar com você. Foi tudo uma brincadeira estúpida. E agora você sai por aí dizendo que sou um assassino. Não vou permitir.

O sr. Hutton foi até a porta. Tinha dito coisas horríveis, sabia disso; coisas odiosas, que deveria desdizer rapidamente. Mas não queria. Fechou a porta atrás de si.

— Ursinho!

Ele girou a maçaneta; a lingueta entrou no lugar com um estalido.

— Ursinho!

A voz que chegou a ele através da porta fechada era desesperada. Deveria voltar? Tinha de voltar. Tocou na maçaneta, depois retirou os dedos e afastou-se rapidamente. Quando estava no meio da escada, parou. Ela podia tentar alguma bobagem — jogar-se da janela ou sabe Deus o quê! Escutou com atenção, não havia som algum. Mas ele a imaginou com muita clareza, atravessando o quarto pé ante pé, levantando a vidraça o máximo possível, debruçando-se para o frio ar da noite. Chovia um pouco. Sob a janela havia o terraço pavimentado. A que distância? Sete ou dez metros? Uma vez, quando caminhava por Piccadilly, um cão saltara de uma janela do terceiro andar do Ritz. Ele o tinha visto cair; tinha ouvido o baque na calçada. Devia voltar? De jeito nenhum; ele a odiava.

Sentou-se por um longo tempo na biblioteca. Que tinha acontecido? Que estava acontecendo? Revolveu a pergunta inúmeras vezes na mente e não conseguiu encontrar resposta. E se o pesadelo sonhasse a si mesmo até o fim, até sua conclusão horrível? A morte esperava por ele. Seus olhos encheram-se de lágrimas; queria apaixonadamente viver. “Apenas estar vivo.” A pobre Emily também desejara isso, ele se lembrava. “Apenas estar vivo.” Havia tantos lugares nesse mundo impressionante ainda não visitados, tantas pessoas estranhas e maravilhosas ainda desconhecidas, tantas mulheres lindas ainda nem entrevistas. Os enormes bois brancos ainda estariam puxando seus carros ao longo das estradas toscanas, os ciprestes ainda cresceriam, eretos como colunas, para o céu azul; mas ele não estaria lá para vê-los. E os doces vinhos do sul — Lágrima de Cristo e Sangue de Judas —, outros os beberiam, não ele. Outros caminhariam pelos corredores escuros e estreitos entre as estantes de livros na Biblioteca de Londres, aspirando o perfume empoeirado da boa literatura, lendo títulos estranhos, descobrindo nomes desconhecidos, explorando as fronteiras dos vastos domínios do conhecimento. Ele estaria num buraco no chão. E por que, por quê? Confusamente ele sentiu que alguma espécie extraordinária de justiça estava sendo feita. No passado ele tinha sido leviano, idiota e irresponsável. Agora o Destino estava brincando com ele, também leviana e irresponsavelmente. Era olho por olho, e Deus existia afinal.

Sentiu que gostaria de rezar. Quarenta anos antes ele costumava ajoelhar-se junto ao leito todas as noites. A fórmula noturna de sua infância veio-lhe quase automaticamente de alguma câmara de sua memória que há muito não era aberta. “Deus abençoe papai e mamãe, Tom e Cissie e o neném, Mademoiselle e a babá, e todo o mundo que eu amo, e faça de mim um bom menino. Amém.” Estavam todos mortos agora — todos, exceto Cissie.

Sua mente pareceu amolecer e dissolver-se; uma grande calma desceu sobre seu espírito. Subiu ao segundo andar para pedir o perdão de Dóris. Encontrou-a deitada no sofá aos pés da cama. No chão ao lado dela havia uma garrafa azul de unguento, rotulada “Não deve ser ingerido”; parecia que ela bebera a metade.

— Você não me amava — foi tudo o que ela disse quando abriu os olhos e encontrou-o debruçado sobre ela.

O dr. Libbard chegou a tempo de impedir consequências sérias.

— Não deve fazer isso de novo — disse ele quando o sr. Hutton não estava no quarto.

— Quem é que vai me impedir? — perguntou ela em desafio.

O dr. Libbard olhou para ela com seus olhos grandes e tristes.

— Nada vai impedi-la — respondeu. — Apenas você mesma e seu bebê. Não é azar do bebê não poder vir ao mundo porque você quer sair dele?

Dóris ficou em silêncio por algum tempo.

— Está bem — sussurrou. — Não vou mais fazer isso.

O sr. Hutton sentou-se à cabeceira dela pelo resto da noite. Agora sentia-se mesmo um criminoso. Durante algum tempo se persuadiu de que amava essa pobre criança. Cochilando em sua cadeira, ele acordou, rígido e friorento, para encontrar-se enxugado, por assim dizer, de toda emoção. Tornara-se nada, a não ser uma carcaça cansada e sofredora. Às seis horas ele despiu-se e foi para a cama para dormir um pouco. Na mesma tarde o júri de instrução apresentou o veredito de “homicídio doloso” e o sr. Hutton foi preso para ser julgado.

VI

A srta. Spence não estava nada bem. Achara suas aparições públicas no banco das testemunhas muito cansativas, e quando tudo terminou ela teve algo que era quase um colapso. Dormia mal e sofria de indigestão nervosa. O dr. Libbard costumava visitá-la de dois em dois dias. Ela conversava muito com ele; geralmente a respeito do caso Hutton... Sua indignação moral estava sempre fervilhando. Não era horrível pensar que ela recebera um assassino em sua própria casa? Não era extraordinário que ela pudesse por tanto tempo enganar-se quanto ao caráter do homem? (Mas desde o princípio ela tinha uma suspeita.) E a garota com quem ele tinha fugido: classe tão baixa, só um pouco melhor que uma prostituta. A notícia de que a segunda sra. Hutton estava esperando um bebê — o filho póstumo de um criminoso condenado e executado — revoltava-a; a coisa era chocante, uma obscenidade. O dr. Libbard respondia gentil e vagamente, e receitava-lhe brometo.

Certa manhã ele interrompeu-a no meio de seu discurso costumeiro.

— Aliás — disse ele em sua voz suave e melancólica —, imagino que na verdade foi você quem envenenou a sra. Hutton.

A srta. Spence encarou-o durante dois ou três segundos com olhos enormes, em seguida disse baixinho:

— Sim. — Depois disso começou a chorar.

— No café, imagino.

Pareceu-lhe que ela inclinou a cabeça concordando. O dr. Libbard pegou a caneta e, em sua caligrafia precisa e meticulosa, escreveu uma receita de remédio para dormir.


O banquete de Tillotson

I

O jovem Spode não era um esnobe; era inteligente demais para isso, demasiada e fundamentalmente correto. Não era esnobe; mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de se sentir muito contente ao pensar que jantaria, a sós e intimamente, com lorde Badgery. Era um acontecimento extraordinário em sua vida, um passo à frente, ele sentia, em direção ao sucesso definitivo, social, material e literário que, quando viera para Londres, tinha o firme propósito de conseguir. Conquistar e capturar Badgery eram movimentos estratégicos para o sucesso da campanha.

Edmund, quadragésimo sétimo barão Badgery, era descendente direto daquele Edmund, de sobrenome Le Blayreau, que chegou ao solo inglês na esteira de Guilherme, o Conquistador. Elevados à nobreza por William Rufus, os Badgery eram uma das poucas famílias de barões a sobreviverem à Guerra das Rosas e a todas as outras mudanças e acasos da história inglesa. Eram uma raça ajuizada e prolífica. Nenhum Badgery jamais lutara em qualquer guerra, nenhum Badgery jamais se envolvera com qualquer tipo de política. Contentavam-se em viver e quietamente propagar sua espécie num enorme castelo normando provido de balestreiros, rodeado por uma muralha tripla, saindo de lá apenas para cultivar sua propriedade e recolher seus arrendamentos. No século xviii, quando a vida se tornara relativamente segura, os Badgery começaram a aventurar-se na sociedade civilizada. De rústicos cavalheiros, floresceram em grands seigneurs, patronos das artes, virtuoses. Sua propriedade era grande, eles eram ricos; e com o crescimento do industrialismo sua riqueza também cresceu. Povoados em sua propriedade transformaram-se em cidades industriais, descobriu-se carvão sob a superfície de suas planícies pouco férteis. Em meados do século xix, os Badgery estavam entre as mais ricas famílias nobres inglesas. O quadragésimo sétimo barão dispunha de uma renda de pelo menos duzentas mil libras por ano. Seguindo a grande tradição dos Badgery, ele se recusara a se envolver em política ou guerra. Ocupava-se em colecionar quadros; interessava-se por produções teatrais; era amigo e patrono de homens de letras, pintores e músicos. Uma personagem, em suma, de considerável importância nesse mundo particular que o jovem Spode escolhera para fazer sucesso.

Fazia pouquíssimo tempo que Spode deixara a universidade. Simon Gollamy, editor da World’s Review (“O melhor de todos os mundos possíveis”), o conhecera (estava sempre atento a talentos jovens), vira possibilidades no rapaz e indicou-o como crítico de arte em seu jornal. Gollamy gostava de ter à sua volta pessoas jovens e capazes de aprender. Ter discípulos a seu redor lisonjeava sua vaidade, e ele achava mais fácil, além do mais, dirigir seu jornal com colaboradores dóceis do que com homens tornados teimosos e insensíveis pela idade. Spode não se saíra mal em seu novo emprego. De qualquer maneira, seus artigos tinham sido suficientemente inteligentes para despertar o interesse de lorde Badgery. Era, em última análise, a eles que devia a honra de sentar-se esta noite na sala de jantar de Badgery House.

Encorajado por diversas variedades de vinho e uma taça de conhaque envelhecido, Spode sentia-se mais confiante e à vontade do que se sentira a noite inteira. Badgery era um anfitrião um tanto perturbador. Tinha o hábito alarmante de mudar o assunto de qualquer conversa que durasse mais de dois minutos. Spode julgou digno de ofensa, por exemplo, quando seu anfitrião, interrompendo o que era, vangloriava-se, uma fala particularmente sofisticada e esclarecedora sobre a arte barroca, passeara o olhar perdido pelo aposento e perguntara-lhe abruptamente se gostava de papagaios. Ele enrubescera e olhara para o outro com suspeita, imaginando que tentava humilhá-lo. Mas não; o rosto branco, carnudo, hanoveriano de Badgery ostentava uma expressão de perfeita boa-fé. Não havia dolo em seus pequenos olhos verdes. Ele claramente queria saber se Spode gostava de papagaios. O rapaz engoliu sua irritação e respondeu que gostava. Badgery então contou uma boa história sobre papagaios. Spode estava prestes a rebater com uma história melhor quando o anfitrião começou a falar sobre Beethoven. E assim continuou o jogo. Spode talhou sua conversa para adaptá-la aos desejos de seu anfitrião. Durante dez minutos ele fez um epigrama mais ou menos inteligente sobre Benevenuto Cellini, a rainha Vitória, esportes, Deus, Stephen Phillips e arquitetura mourisca. Lorde Badgery achou-o um rapaz encantador e muito inteligente.

— Se você terminou seu café, vamos ver os quadros — disse, levantando-se enquanto falava.

Spode ergueu-se com entusiasmo, e só então percebeu que bebera um pouquinho demais. Teria que tomar cuidado, falar deliberadamente e plantar os pés no chão conscientemente, um após o outro.

— Esta casa está atulhada de quadros — queixou-se lorde Badgery. — Na semana passada mandei um vagão cheio para o campo; mas ainda são demais. Meus ancestrais tiveram seus retratos pintados por Romney. Um artista tão ofensivo, não acha? Por que não podiam ter escolhido Gainsborough, ou até mesmo Reynolds? Agora mandei pendurar todos os Romney no salão dos empregados. É um grande consolo saber que ninguém mais os verá de novo. Imagino que você conheça tudo sobre os antigos hititas.

— Bem... — respondeu o rapaz, com apropriada modéstia.

— Olhe para isto, então. — Indicou uma grande cabeça de pedra colocada em uma estante perto da porta da sala de jantar. — Não é grega, nem egípcia, nem persa, nem outra coisa; assim, se não for hitita antigo, não sei o que é. E isso me lembra daquela história sobre lorde George Sanger, o Rei do Circo... — e, sem dar a Spode tempo de examinar a relíquia hitita, encaminhou-se para a longa escadaria, interrompendo-se a todo momento para mostrar algum novo espetáculo de curiosidade ou beleza.

— Imagino que conheça as pantomimas de Deburau — Spode sugeriu assim que a história terminou. Estava ansioso para passar sua informação sobre Deburau. Badgery lhe dera uma abertura perfeita com seu ridículo Sanger. — Que homem perfeito, não é? Ele costumava...

— Esta é a galeria principal — disse lorde Badgery, abrindo uma folha de uma alta porta dobrável. — Tenho de pedir desculpas por ela. Parece um rinque. — Mexeu nos interruptores e de repente havia luz, luz que revelava uma enorme galeria, devidamente desaparecendo à distância segundo todas as leis da perspectiva. — Ouso dizer que você ouviu falar sobre meu pobre pai — continuou lorde Badgery. — Um pouco insano, sabe? Uma espécie de gênio mecânico com um parafuso solto. Costumava ter sua ferrovia de brinquedo neste aposento. Muito se divertiu com ela, rastejando pelo chão atrás de seus trens. E todos os quadros estavam empilhados no porão. Não posso lhe dizer como estavam quando os encontrei, fungos crescendo nos Botticelli. Agora, tenho certo orgulho deste Poussin; ele o pintou para Scarron.

— Maravilhoso! — exclamou Spode, fazendo com a mão um gesto como se estivesse modelando uma forma pura no ar. — Como é esplêndido o movimento dessas árvores e dessas figuras inclinadas! E o modo como foram pegas, por assim dizer, e imobilizadas por aquela figura divina única opondo-se a elas com seu movimento contrário! E os drapejados...

Mas lorde Badgery adiantara-se e estava parado diante de uma pequena Virgem do século xv de madeira entalhada.

— Escola de Rheims — explicou.

“Fizeram” a galeria em alta velocidade. Badgery não permitiu que seu convidado parasse por mais de quarenta segundos diante de qualquer obra de arte. Spode teria gostado de passar alguns momentos de rememoração e tranquilidade diante de algumas daquelas lindas coisas. Mas não lhe foi permitido.

Feita a galeria, passaram para um pequeno aposento. Ao ver o que as luzes revelavam, Spode engasgou-se.

— É como alguma coisa de Balzac — exclamou — Un de ces salons dorés où se déploie un luxe insolent. Você sabe.

— Minha câmara do século xix — explicou Badgery. — A melhor de seu gênero — orgulhou-se em dizer — fora dos Aposentos Reais, em Windsor.

Spode andou pela câmara na ponta dos pés, contemplando atônito todos os objetos de vidro, bronze dourado, porcelana, plumas, seda bordada e pintada, contas, cera, objetos de formas e cores das mais fantásticas, todos os estranhos produtos de uma tradição decadente que enchiam o aposento. Havia quadros nas paredes — um Martin, um Wilkie, um Landseer dos primeiros anos, vários Etty, um grande Haydon, uma leve aquarela de uma moça pintada por Wainewright, pupilo de Blake e mestre em envenenamento por arsênico, e muitos outros. Mas o quadro que prendeu a atenção de Spode foi uma tela de tamanho mediano representando Tróilo adentrando Troia a cavalo em meio às flores e aos aplausos da multidão de admiradores e alheio (via-se em sua expressão) a tudo exceto aos olhos de Créssida, que o contemplava de uma janela com Pândaro sorrindo por cima do ombro dela.

— Que quadro absurdo e encantador! — exclamou Spode.

— Ah, você descobriu meu Tróilo. — Lorde Badgery ficou contente.

— Que cores brilhantes! Como as de Etty, só que mais fortes, não tão obviamente bonitas. E há uma energia que me lembra um quadro de Haydon. Só que Haydon jamais conseguiria fazer algo de gosto tão impecável. Quem fez? — Spode voltou-se interrogativamente para seu anfitrião.

— Você acertou ao identificar Haydon — respondeu lorde Badgery. — É de um pupilo dele, Tillotson. Queria obter outras obras dele. Mas parece que ninguém sabe coisa alguma sobre ele. E parece que ele fez tão poucos quadros.

Dessa vez foi o rapaz quem interrompeu.

— Tillotson, Tillotson... — Levou a mão à testa. Uma ruga incongruente distorceu seu rosto redondo e de curvos ornatos. — Não... Sim, já sei. — Ergueu os olhos em triunfo, sobrancelhas serenas e infantis. — Tillotson, Walter Tillotson. O sujeito ainda está vivo.

Badgery sorriu.

— Lembre-se que este quadro foi pintado em 1846.

— Bem, está certo. Digamos que ele tenha nascido em 1820, pintou sua obra-prima aos vinte e seis anos, e estamos em 1913; quer dizer que ele tem só noventa e três anos. Não tão velho quanto Ticiano.

— Mas ninguém ouve falar dele desde 1860 — protestou lorde Badgery.

— Exatamente. A menção do nome dele lembrou-me da descoberta que fiz outro dia quando lia as notícias obituárias nos arquivos da World’s Review. (Precisamos colocar as informações em dia todos os anos para não sermos pegos cochilando se um desses velhotes resolver apagar de repente.) Bem, lembro-me do meu espanto na época: entre elas encontrei a biografia de Walter Tillotson. Bastante completa até 1860 e depois um buraco, exceto por uma anotação a lápis no início do século dizendo que ele voltara do Oriente. O obituário nunca havia sido usado ou ampliado. Tirei a conclusão óbvia: o velho ainda não está morto. Só que de alguma forma se esqueceram dele.

— Mas isso é fantástico! — exclamou lorde Badgery. — Você precisa encontrá-lo, Spode, tem que encontrá-lo. Vou contratá-lo para pintar afrescos em volta desta sala. É exatamente o que eu sempre quis e sem sucesso: um verdadeiro artista do século xix para decorar este lugar para mim. Ah, precisamos encontrá-lo, imediatamente.

Lorde Badgery caminhava de um lado para outro em estado de grande excitação.

— Estou vendo como esta sala poderia ficar perfeita — continuou. — Tiramos todas essas estantes e encheremos aquela parede com um afresco heroico de Heitor e Andrômaca, ou “Confisco por dívida de aluguel”[29], ou Fanny Kemble como Belvidera em “Veneza preservada” — qualquer coisa do gênero, desde que seja imponente como nas décadas de 1830 ou 1840. E aqui eu colocaria uma paisagem com lindas perspectivas recuando, ou então algo arquitetônico e imponente, no estilo do banquete de Baltasar. Depois tiramos essa lareira Adam e substituímos por algo gótico-mourisco. E nessas paredes teremos espelhos, ou não... Deixe-me ver...

Mergulhou em silêncio pensativo, do qual finalmente acordou para exclamar:

— O velho, o velho! Spode, precisamos encontrar essa espantosa criatura. E não conte uma palavra a ninguém. Tillotson! Será nosso segredo. Ah, é perfeito, incrível! Pense nos afrescos!

O rosto de lorde Badgery parecia definitivamente contente. Ele conversara sobre um único assunto durante quase quinze minutos.

II

Três semanas mais tarde lorde Badgery foi despertado de sua costumeira sonolência de depois do almoço pela chegada de um telegrama. A mensagem era curta. “Encontrei. — Spode.” Um ar de prazer e inteligência tornou humano o rosto acinzentado de descomedimentos de lorde Badgery.

— Nenhuma resposta — disse. O criado retirou-se com passos silenciosos.

Lorde Badgery fechou os olhos e começou a imaginar. Encontrado! Que sala ele teria! Não haveria no mundo coisa como ela. Os afrescos, a lareira, os espelhos, o teto... E um velhinho pequenino e enrugado escalando os andaimes, ágil e rápido como um daqueles macaquinhos cabeludos do zoológico, pintando, pintando... Fanny Kemble como Belvidera, Heitor e Andrômaca, ou por que não o duque de Clarence no Butt, o duque de Malmsey, o Butt de Clarence... Lorde Badgery dormia.

Spode não chegou muito depois de seu telegrama. Às seis horas estava em Badgery House. Sua Excelência estava na sala do século xix, ocupado em retirar os objetos da sala por conta própria. Spode encontrou-o sem fôlego e vermelho.

— Ah, aí está você — disse lorde Badgery. — Veja que já estou preparando as coisas para a chegada do grande homem. Agora tem de me contar tudo sobre ele.

— Ele é ainda mais velho do que eu pensava — informou Spode. — Faz noventa e sete anos este ano. Nasceu em 1816. Incrível, não é? Mas assim estou começando pelo fim.

— Comece onde quiser — disse Badgery eufórico.

— Não vou lhe contar todos os incidentes da caçada. Não tem ideia do trabalho que tive para encontrá-lo. Era como uma história de Sherlock Holmes, imensamente complicada, complicada demais. Qualquer dia vou escrever um livro sobre isso. De qualquer maneira, finalmente encontrei-o.

— Onde?

— Em uma espécie de favela respeitável em Holloway, mais velho, mais pobre e mais sozinho do que se poderia acreditar. Descobri como foi que chegou a ser esquecido e como, então, se retirou da vida. Ele enfiou na cabeça, pelos idos de 1860, de ir para a Palestina a fim de conseguir cor local para seus quadros religiosos — bodes expiatórios e coisas do gênero.[30] Bem, ele foi para Jerusalém e depois para o monte Líbano e sempre em frente, e então, em algum lugar no meio da Ásia Menor, ele pirou — e por lá ficou lá durante uns quarenta anos.

— Mas que foi que ele fez todo esse tempo?

— Ah, ele pintava, e fundou uma missão, e converteu três turcos, e ensinou aos paxás locais rudimentos de inglês, latim, perspectiva e Deus sabe mais o quê. Então, mais ou menos em 1904, parece que lhe ocorreu que estava ficando meio velho e estivera fora de casa por bastante tempo. Assim voltou para a Inglaterra, para descobrir que todos a quem conhecia estavam mortos, que os comerciantes de arte nunca tinham ouvido falar dele e não queriam comprar seus quadros, que era apenas um velho ridículo. Assim, conseguiu um emprego como professor de desenho num colégio feminino em Holloway e esteve lá desde então, cada vez mais velho, e mais fraco, cego e surdo e em geral mais gagá, até que finalmente a escola o despediu. Ele tinha umas dez libras ao todo quando o encontrei. Vive numa espécie de buraco escuro num porão cheio de baratas. Quando tiver gastado suas dez libras, acho que vai morrer ali em paz.

Badgery ergueu a mão pálida.

— Chega, chega. Já acho a literatura suficientemente deprimente. Insisto que pelo menos a vida seja um pouco mais alegre. Você lhe disse que quero que pinte minha sala?

— Mas ele não pode pintar. Está cego e trêmulo demais.

— Não pode pintar? — exclamou Badgery com horror. — Então qual é a vantagem do velhote?

— Bem, colocando as coisas assim... — começou Spode.

— Não vou ter mais meus afrescos. Toque a campainha; sim?

Spode tocou.

— Que direito Tillotson tem de continuar existindo se não pode pintar? — continuou lorde Badgery com petulância. — Afinal, era sua única justificativa para ocupar um lugar ao sol.

— Ele não tem muito sol em seu porão.

O criado apareceu à porta.

— Arranje alguém para colocar essas coisas de volta no lugar — ordenou lorde Badgery indicando com a mão as estantes pilhadas, a confusão de vidro e porcelana com que ele atulhara o chão, os quadros dependurados. — Vamos para a biblioteca, Spode; lá é mais confortável.

Guiou-o através da longa galeria e escada abaixo.

— Lamento que o velho Tillotson tenha sido uma decepção tão grande — disse Spode com simpatia.

— Vamos falar de outra coisa; ele deixou de me interessar.

— Mas não acha que devíamos fazer alguma coisa por ele? Só dez libras o separam do asilo. E se tivesse visto os besouros naquele porão!

— Chega, chega. Faço qualquer coisa que você achar apropriada.

— Achei que podíamos fazer uma coleta entre os amantes da arte.

— Não existe nenhum — disse Badgery.

— Não; mas muitas pessoas vão contribuir por esnobismo.

— Só se você lhes der algo em troca do dinheiro.

— É verdade. Não tinha pensado nisso. — Spode ficou em silêncio por um momento. — Podíamos dar um jantar em homenagem a ele. O Grande Banquete de Tillotson. O Decano da Arte Inglesa. Um Elo com o Passado. Não está vendo os jornais? Eu faria um grande movimento na World’s Review. Isso vai atrair os esnobes.

— E vamos convidar muitos artistas e críticos; todos os que não se suportam. Vai ser engraçado vê-los discutindo. — Badgery riu. Depois seu rosto tornou a anuviar-se. — Mesmo assim — acrescentou — vai ser um consolo muito pobre para os meus afrescos. Você vai ficar para jantar, é claro.

— Bem, já que convida. Muito obrigado.

III

O Banquete de Tillotson foi marcado para umas três semanas depois. Spode, encarregado dos arranjos, mostrou-se um excelente organizador. Alugou o enorme salão de banquetes do Café Bomba e, entre elogios e intimidações, conseguiu convencer o gerente a dar um jantar para cinquenta pessoas a doze xelins por cabeça, incluindo o vinho. Mandou convites e recolheu contribuições. Escreveu um artigo sobre Tillotson na World’s Review — um desses artigos encantadores e inteligentes, vazado na agradável mistura de indulgência e crítica com que se fala dos grandes homens de 1840. Também não negligenciou o próprio Tillotson. Costumava ir quase todos os dias a Holloway para ouvir as histórias infindáveis do velho sobre a Ásia Menor e a Grande Exposição de 1851 e Benjamin Robert Haydon. Tinha sincera pena daquela relíquia de outra era.

O quarto do sr. Tillotson ficava a uns três metros abaixo do nível do solo em Holloway Sul. Uma tênue luz cinzenta penetrava através das barras da área, passava com dificuldade pelas vidraças opacas e sujas e dissipava-se, como uma gota de leite que cai num tinteiro, por entre as sombras espessas do porão. O lugar estava impregnado pelo cheiro acre de reboco úmido e de madeira cujo âmago começava a pulverizar-se secretamente. Móveis um tanto heterogêneos, incluindo uma cama, um lavatório e uma cômoda, uma mesa e uma ou duas cadeiras, escondiam-se nos cantos obscuros do porão ou se aventuravam a aparecer furtivamente. Ali Spode ia quase todos os dias, levando ao velho notícias sobre o andamento dos planos para o banquete. Todos os dias encontrava o sr. Tillotson sentado no mesmo lugar sob a janela, banhando-se, por assim dizer, em sua minúscula poça de luz. “O ancião que sempre teve cabelos grisalhos”, refletia Spode, olhando para ele. Só que naquela cabeça calva e opaca restavam poucos cabelos. Ao som da batida do visitante, o sr. Tillotson voltava-se na cadeira e fixava na direção da porta seus olhos pouco firmes e pestanejantes. Estava sempre cheio de desculpas por demorar tanto a reconhecer quem chegava.

— Não é falta de cortesia — dizia, depois de convidá-lo a entrar. — Não é que tenha me esquecido de você. Só que está tão escuro e minha vista não é mais o que era.

Depois disso ele nunca deixava de soltar uma risadinha e, apontando através da janela para as barras da área, dizia:

— Ah, aquele é o lugar para alguém de vista boa. É o lugar para olhar os tornozelos. É o palanque.

Era a véspera do grande evento. Spode veio como sempre, e o sr. Tillotson soltou pontualmente sua piada sobre os tornozelos, e Spode riu também pontualmente.

— Bem, sr. Tillotson — falou, depois que a reverberação da piada desapareceu. — Amanhã o senhor faz sua reentrada no mundo da arte e da moda. Vai encontrar algumas mudanças.

— Sempre tive uma sorte extraordinária — disse o sr. Tillotson, e Spode podia ver em sua expressão sincera que ele de fato acreditava nisso, que esquecera o buraco escuro e os besouros e as dez libras, quase todas gastas, que o separavam do asilo. — Que sorte espantosa, por exemplo, você ter me descoberto exatamente naquela ocasião. Agora, esse jantar vai me levar de volta ao meu lugar no mundo. Vou ter dinheiro e, em pouco tempo, quem sabe, poderei enxergar o suficiente para pintar outra vez. Acredito que meus olhos estão melhorando, sabe. Ah, o futuro é dourado.

O sr. Tillotson ergueu os olhos, o rosto enrugado em um sorriso, e fez um gesto de assentimento às suas palavras.

— Acredita na vida futura? — perguntou Spode, e imediatamente ruborizou-se de vergonha pela crueldade das palavras.

Mas o sr. Tillotson estava alegre demais para perceber seu significado.

— A vida futura — repetiu. — Não, não acredito nessas coisas, desde 1859. A origem das espécies mudou minha opinião, sabe? Nenhuma vida futura para mim, obrigado! Você não se lembra da confusão, naturalmente. É muito jovem, sr. Spode.

— Bem, não sou tão velho quanto era — replicou Spode. — Sabe como a pessoa se sente na meia-idade quando estudante e calouro? Agora sou suficientemente adulto para saber que sou jovem.

Spode estava a ponto de desenvolver um pouco mais esse pequeno paradoxo, mas percebeu que o sr. Tillotson não estava escutando. Anotou a jogada para usar em companhias que apreciassem mais as sutilezas.

— Você estava falando sobre A origem das espécies — disse.

— Estava? — perguntou o sr. Tillotson, acordando de seu devaneio.

— Sobre o efeito do livro em sua fé, sr. Tillotson.

— Sim, claro. Sacudiu minha fé. Mas lembro-me de uma coisa linda do Poeta Laureado, alguma coisa sobre haver mais fé na dúvida honesta,[31] creia-me, do que em toda... em toda... esqueci exatamente em quê; mas você percebeu o raciocínio. Ah, era uma época ruim para a religião. Estou contente que meu mestre Haydon não tenha vivido para ver isso. Era um homem de muita fé. Lembro-me de vê-lo caminhando de um lado para o outro de seu estúdio em Lisson Grove, cantando, gritando e rezando ao mesmo tempo. Quase me assusta. Ah, mas ele era um homem maravilhoso, um grande homem. No todo, não vamos encontrar outro como ele. Como sempre, o Bardo está certo. Mas foi tudo há muito tempo, antes do seu tempo, sr. Spode.

— Bem, não sou tão velho quanto fui — disse Spode, na esperança de que dessa vez seu paradoxo fosse apreciado. Mas o sr. Tillotson continuou sem perceber a interrupção.

— Há muito, muito tempo. No entanto, quando olho para trás, parece que foi há um ou dois dias. Estranho que cada dia pareça tão longo e que muitos dias juntos sejam menos que uma hora. Como vejo claramente o velho Haydon andando de um lado para o outro! Muito mais claramente, na verdade, do que o vejo agora, sr. Spode. Os olhos da memória não enfraquecem. Mas minha vista está melhorando, eu lhe asseguro; está melhorando diariamente. Logo poderei ver aqueles tornozelos. — Riu como um sino rachado, um daqueles pequenos sinos antigos, imaginou Spode, que tocam nos distantes alojamentos dos empregados em casas antigas. — E logo — continuou o sr. Tillotson — estarei pintando de novo. Ah, sr. Spode; minha sorte é extraordinária. Acredito nela, confio nela. E, afinal, que é a sorte? Simplesmente outro nome da Providência, apesar de A origem das espécies e tudo o mais. Como o Laureado estava certo quando disse que há mais fé na dúvida honesta, creia-me, do que em toda... hum, toda... hum... bem, você sabe. Eu o considero, sr. Spode, um emissário da Providência. Sua vinda marcou um ponto decisivo em minha vida e o início, para mim, de dias mais felizes. Sabe, uma das primeiras coisas que farei quando minha fortuna for restaurada será comprar um porco-espinho.

— Um porco-espinho, sr. Tillotson?

— Para as baratas. Não há nada como um porco-espinho para as baratas. Ele come baratas até ficar doente, até morrer de indigestão. Isso me lembra uma vez em que disse a meu pobre grande mestre Haydon, brincando, é claro, que ele devia mandar um desenho do rei João morrendo de excesso de lampreias para os afrescos das novas Casas do Parlamento. Como eu disse a ele, é um acontecimento notabilíssimo nos anais da liberdade inglesa: a remoção providencial e exemplar de um tirano.

O sr. Tillotson riu novamente — o sininho na casa deserta; uma mão fantasmagórica puxando uma corda na sala de estar e criados fantasmas respondendo ao som fraco e quebrado.

— Lembro-me de que ele riu como um touro, em seu modo imponente. Mas ah, foi um golpe terrível quando recusaram seus desenhos, um golpe terrível. Foi a causa primeira e fundamental de seu suicídio.

O sr. Tillotson interrompeu-se. Houve um longo silêncio. Spode sentia-se estranhamente comovido, mal sabia por quê, na presença desse homem, tão frágil, tão velho, em um corpo três quartos morto e com um espírito tão cheio de vida e de esperançosa paciência. Sentia-se envergonhado. Qual era a utilidade de sua própria juventude e inteligência? Viu a si mesmo de repente como um menino com um chocalho espantando pássaros; chocalhando sua barulhenta inteligência, sacudindo os braços em atividade inútil e sem fim, nunca descansando em seus esforços para espantar os pássaros que estavam sempre tentando pousar em sua mente. E que pássaros! Bonitos, de asas compridas, todos esses pensamentos, crenças e emoções tranquilas que só visitam as mentes que se tornaram humildes e serenas. Esses eram os graciosos visitantes contra os quais ele estava sempre usando todas as suas energias. Mas a mente desse velho, como seu porco-espinho e suas dúvidas honestas e tudo o mais, era como um campo embelezado pela liberdade de idas e vindas, pelos pousos sem temor de uma multidão de criaturas brancas, de asas brilhantes. Sentiu-se envergonhado. Mas seria possível alterar a vida? Não era um pouco absurdo arriscar uma conversão? Spode deu de ombros.

— Vou lhe arranjar um porco-espinho imediatamente — disse. — Certamente terão alguns na Whiteley’s.[32]

Antes de partir naquela noite, Spode fez uma descoberta alarmante. O sr. Tillotson não possuía fraque. Era impossível pensar em mandar fazer um em prazo tão curto, e, além disso, que despesa supérflua!

— Vamos ter de pedir um fraque emprestado, sr. Tillotson. Eu devia ter pensado nisso antes.

— Ora, ora. — O sr. Tillotson estava triste por causa dessa descoberta aziaga. — Pedir um fraque emprestado?

Spode saiu correndo para aconselhar-se em Badgery House. Lorde Badgery surpreendentemente fez jus à ocasião. — Mande Boreham vir me ver — ordenou ao empregado que atendeu à campainha.

Boreham era um desses mordomos imemoriais que permanecem, geração após geração, nas casas dos grandes. Tinha mais de oitenta anos agora, curvado, ressecado, encolhido com a idade.

— Todos os velhos são mais ou menos do mesmo tamanho — declarou lorde Badgery. Era uma teoria reconfortante. — Ah, aqui está ele. Você tem um fraque extra, Boreham?

— Tenho um fraque velho, meu lorde, que parei de usar em... deixe-me ver... foi em 1907 ou 1908?

— Exatamente. Eu ficaria muito grato, Boreham, se você pudesse emprestá-lo ao sr. Spode aqui por um dia.

O ancião retirou-se e logo reapareceu trazendo no braço um fraque preto muito velho. Ergueu o paletó e as calças para exame. À luz do dia eram deploráveis.

— O senhor não tem ideia — disse Boreham a Spode em tom suplicante —, não tem ideia de como as coisas se sujam com facilidade, de gordura, de molho e assim por diante. Por mais cuidado que se tome, senhor. Por mais cuidado que se tome.

— Imagino que sim. — O tom de Spode era de simpatia.

— Por mais cuidado que se tome, senhor.

— Mas à luz artificial vai parecer bem.

— Perfeitamente bem — repetiu lorde Badgery.

— Obrigado, Boreham; vai tê-lo de volta na quinta-feira.

— De nada, meu senhor, de nada. — E o velho curvou-se e desapareceu.

Na tarde do grande dia Spode levou para Holloway um pacote contendo o fraque aposentado de Boreham e todos os complementos necessários, tais como camisa e colarinho. Devido à escuridão e à sua visão fraca, o sr. Tillotson ficou alegremente inconsciente dos defeitos do fraque. Estava em um estado de extrema agitação nervosa. Foi com alguma dificuldade que Spode conseguiu impedi-lo, embora fossem apenas três horas, de iniciar sua toalete imediatamente.

— Calma, sr. Tillotson, calma. Não precisamos sair antes das sete e meia.

Spode partiu uma hora depois, e logo que se certificou de sua saída do aposento o sr. Tillotson começou a preparar-se para o banquete. Acendeu o gás e algumas velas e, piscando com toda sua miopia para a imagem que o encarava no espelho minúsculo que ficava sobre a cômoda, pôs-se a trabalhar com todo o entusiasmo de uma jovem preparando-se para seu primeiro baile. Às seis horas, após os últimos retoques, ele estava satisfeito.

Marchou de um lado para o outro em seu porão, cantarolando consigo mesmo a canção alegre que tinha sido tão popular em sua juventude:

Oh, oh, Anna Maria Jones!

Rainha do pandeiro, dos címbalos e dos ossos!

Spode chegou uma hora mais tarde no segundo Rolls-Royce de lorde Badgery. Abrindo a porta da enxovia do ancião, parou por um momento, olhos arregalados de espanto, à soleira. O sr. Tillotson estava parado junto ao caixote vazio, um cotovelo descansando na prateleira acima da lareira, uma perna cruzada sobre a outra numa pose janota e cavalheiresca. O efeito da luz das velas brilhando em seu rosto era de aprofundar cada ruga com sombras intensamente negras; parecia infinitamente velho. Era uma cabeça nobre e patética. Por outro lado, o fraque bastante usado de Boreham era simplesmente cômico. O paletó tinha as mangas e a cauda compridas demais; as calças formavam bolsas em rugas elefantinas nos tornozelos. Algumas das manchas de gordura eram visíveis até à luz de vela. A gravata branca, com a qual o sr. Tillotson tivera um trabalho infinito e que acreditava, em sua quase cegueira, estar perfeita, estava fantasticamente torta para um lado. Ele tinha abotoado o colete de tal maneira que um botão estava privado de sua casa e uma casa de seu botão. Atravessando a frente da camisa havia larga fita verde de uma Ordem desconhecida qualquer.

— Rainha do pandeiro, dos címbalos e dos ossos — concluiu o sr. Tillotson com voz de mosquito antes de dar as boas-vindas ao visitante. — Bem, Spode, aí está você. Já estou pronto, está vendo? Fico lisonjeado de poder dizer que o fraque me serve muito bem, quase como se tivesse sido feito para mim. Sou todo gratidão para com o cavalheiro que teve a gentileza de emprestá-lo; vou tomar o maior cuidado com ele. É perigoso emprestar roupa. Pois amiúde se perde a coisa emprestada e o amigo. O Bardo está sempre certo.

— Só uma coisa — disse Spode. — Um toque no seu colete.

Desabotoou a peça de roupa envelhecida e abotoou-a novamente, de modo mais simétrico.

O sr. Tillotson ficou um tanto ofendido por ter sido pego num erro tão absurdo.

— Obrigado, obrigado — disse, em tom de protesto, tentando afastar-se de seu valete. — Está bem, sabe; posso fazer isso sozinho. Esquecimento tolo. Agrada-me que o terno me sirva tão bem.

— E talvez a gravata possa... — Spode começou em tom de tentativa. Mas o velho não quis saber daquilo.

— Não, não. A gravata está certa. Sei dar o nó numa gravata, sr. Spode. A gravata está bem. Deixe-a assim, eu lhe peço.

— Gosto de sua Ordem.

O sr. Tillotson baixou os olhos complacentemente para o peito da camisa.

— Ah, você notou a minha Ordem. Faz muito tempo que não uso isso. Foi o Grand Porte que me deu, sabe, por serviços prestados na Guerra Russo-Turca. É a Ordem da Castidade, segunda classe. Eles só dão a primeira classe a cabeças coroadas, sabe; cabeças coroadas e embaixadores. E só paxás do nível mais alto recebem a segunda. A minha é a segunda. Eles só dão a primeira classe para cabeças coroadas...

— Naturalmente, naturalmente — disse Spode.

— Acha que estou bem, sr. Spode? — perguntou o sr. Tillotson, um pouco ansioso.

— Esplêndido, sr. Tillotson, esplêndido. A Ordem é magnífica.

O rosto do velho tornou a brilhar.

— Fico lisonjeado — disse — porque esse fraque emprestado me serve muito bem. Mas não gosto de pedir roupas emprestadas. Pois com frequência perde-se a coisa emprestada e o amigo, sabe? E o Bardo está sempre certo.

— Ui, uma dessas baratas horríveis! — exclamou Spode.

O sr. Tillotson curvou-se e fixou o olhar no chão.

— Estou vendo — declarou, e pisou com força num pedacinho de carvão, que virou pó sob seu pé. — Seguramente vou comprar um porco-espinho.

Era hora de partirem. Uma multidão de meninos e meninas juntaram-se ao redor do enorme carro de lorde Badgery. O motorista, sentindo que a honra e a dignidade corriam risco, fingia não notar as crianças e contemplava, como uma estátua, a eternidade. A visão de Spode e do sr. Tillotson emergindo da casa provocou um grito de admiração e troça, que diminuiu até um silêncio atônito enquanto entravam no carro.

— Para o Bomba — ordenou Spode. O Rolls-Royce soltou um suspiro vagamente ofegante e começou a mover-se. As crianças tornaram a gritar e correram ao lado do carro, acenando com os braços num frenesi de excitação. Foi quando o sr. Tillotson, com um gesto incomparavelmente nobre, inclinou-se para a frente e jogou para a agitadíssima multidão de crianças suas três últimas moedas.

IV

No grande salão do Bomba juntavam-se os convidados. Os compridos espelhos emoldurados em dourado refletiam uma coleção singular de pessoas. Acadêmicos de meia-idade lançavam olhares suspeitosos a jovens de quem suspeitavam, com bastante razão, serem iconoclastas, organizadores de exposições pós-impressionistas. Críticos de arte rivais, postos subitamente frente a frente, estremeciam com ódio incontido. A sra. Nobes, a sra. Cayman e a sra. Mandragore, essas infatigáveis perseguidoras de caça artística pesada, encontraram-se sem aviso nessa aglomeração, onde cada uma pensara caçar sozinha, e encheram-se de raiva. Através dessa multidão de vaidades mutuamente repelentes lorde Badgery movia-se com uma suavidade que parecia inconsciente a todas as brigas e ódios. Estava se divertindo imensamente. Atrás da pesada máscara cerúlea de seu rosto, emboscado atrás do nariz hanoveriano, os olhinhos baços de porco, os lábios grossos e pálidos, havia um pequeno demônio de alegre malícia que rolava de rir.

— Muita gentileza a sua de ter vindo, sra. Mandragore, honrar o passado artístico da Inglaterra. E estou feliz em ver que trouxe a querida sra. Cayman. E a sra. Nobes, também? É mesmo! Não a tinha visto antes. Que maravilha! Sabia que podia confiar em seu amor à arte.

E ele saiu apressado para aproveitar a oportunidade de apresentar aquele famoso escultor, Sir Herbert Herne, ao brilhante e jovem crítico que o chamara, na imprensa, de um pedreiro monumental.

Um momento mais tarde o maître d’hôtel chegou à porta do salão dourado e anunciou, em voz alta e viva:

— Sr. Walter Tillotson.

Guiado por trás pelo jovem Spode, o sr. Tillotson entrou no salão lenta e hesitantemente. Ao brilho das luzes, suas pesadas pálpebras bateram dolorosamente, como as asas de uma vespa aprisionada, sobre os olhos úmidos. Uma vez do lado de dentro da porta ele estacou e endireitou-se com uma tomada consciente de dignidade. Lorde Badgery aproximou-se depressa e apertou-lhe a mão.

— Bem-vindo, sr. Tillotson. Bem-vindo, em nome da arte inglesa!

O sr. Tillotson inclinou a cabeça em silêncio. Estava por demais emocionado para poder responder.

— Gostaria de apresentá-lo a alguns de seus colegas mais jovens, que se reuniram aqui para homenageá-lo.

Lorde Badgery apresentou todos na sala ao velho pintor, que inclinava-se, apertava mãos, fazia ruídos com a garganta, mas ainda se encontrava incapaz de falar. A sra. Nobes, a sra. Cayman e a sra. Mandragore disseram coisas encantadoras.

O jantar foi servido; as pessoas tomaram seus lugares. Lorde Badgery sentou-se à cabeceira da mesa, com o sr. Tillotson à sua direita e Sir Herbert Herne à sua esquerda. Posto diante da suculenta cozinha do Bomba e dos vinhos do Bomba, o sr. Tillotson comeu e bebeu bastante. Tinha o apetite de alguém que viveu de verduras e batatas durante dez anos entre as baratas. Depois da segunda taça de vinho ele começou a falar, abrupta e torrencialmente, como se uma comporta tivesse sido aberta.

— Na Ásia Menor — começou — é costume, quando se vai a um jantar, arrotar como sinal de satisfação. Eructavit cor meum,[33] como disse o salmista; ele próprio era oriental.

Spode deu um jeito para sentar-se ao lado da sra. Cayman; tinha objetivos que a envolviam. Era uma mulher impossível, naturalmente, mas rica e útil; ele queria seduzi-la para que comprasse alguns quadros de seu novo amigo.

— Em um porão? — dizia a sra. Cayman. — E com baratas? Ah, que horror! Pobre homem! E ele tem noventa e sete anos, você disse? Não é chocante? Espero que a coleta seja grande. Claro, gostaria de ter dado mais. Mas, sabe, tantas despesas e as coisas andam tão difíceis.

— Eu sei, eu sei — disse Spode, com sentimento.

— Tudo por causa do trabalhismo — explicou a sra. Cayman. — Claro, eu simplesmente adoraria convidá-lo para jantar às vezes. Mas sinto que na verdade ele é velho demais, farouche e gâteux demais; não seria bondoso para com ele, seria? E então você agora está trabalhando com o sr. Gollamy? Que homem encantador, tão talentoso, uma conversa tão...

— Eructavit cor meum — falou o sr. Tillotson pela terceira vez. Lorde Badgery tentou desviá-lo do assunto da etiqueta turca, mas em vão.

Pelas nove e meia uma atmosfera etílica mais generosa tinha adormecido os ódios e as suspeitas de antes do jantar. Sir Herbert Herne descobrira que o jovem cubista sentado a seu lado não era maluco e na verdade conhecia bastante os Velhos Mestres. Por sua parte esses rapazes tinham percebido que os mais velhos não eram nem um pouco malignos; eram apenas muito estúpidos e patéticos. Apenas nos peitos da sra. Nobes, da sra. Cayman e da sra. Mandragore o ódio ainda reinava. Sendo damas e antiquadas, elas quase não tinham bebido vinho.

Chegou o momento dos discursos. Lorde Badgery pôs-se de pé, disse o que se esperava dele e chamou Sir Herbert para erguer o brinde da noite. Sir Herbert tossiu, sorriu e começou. Durante um discurso que durou vinte minutos ele contou anedotas do sr. Gladstone, de lorde Leighton, Sir Alma Tadema e do finado bispo de Bombaim; fez três trocadilhos, citou Shakespeare e Whittier, foi brincalhão, eloquente, sério... No final de sua arenga Sir Herbert entregou ao sr. Tillotson uma bolsa de seda contendo cinquenta e oito libras e dez xelins, o total da coleta. A saúde do velho foi brindada sob aplausos.

O sr. Tillotson pôs-se de pé com dificuldade. A pele de seu rosto, seca como a de uma serpente, estava ruborizada; a gravata estava mais torta que nunca; a fita verde da Ordem da Castidade segunda classe tinha de algum modo escalado o peito amassado e manchado da camisa.

— Meu lorde, damas e cavalheiros — começou em voz embargada, e depois desmoronou completamente. Era um espetáculo doloroso e patético. Uma sensação de intenso desconforto atingiu a mente de todos que contemplavam aquela trêmula ruína humana, ali parada chorando e gaguejando. Era como se uma brisa do vento da morte tivesse soprado de súbito através da sala, levando os vapores de vinho e a fumaça de tabaco, extinguindo o riso e as chamas das velas. Olhos vagavam pouco à vontade, sem saber para onde olhar. Lorde Badgery, com grande presença de espírito, ofereceu ao ancião uma taça de vinho. O sr. Tillotson começou a recuperar-se. Os convidados ouviram-no murmurar algumas palavras desconexas.

— Esta grande honra... dominado pela generosidade... este banquete magnífico... não acostumado... na Ásia Menor... eructavit cor meum.

Nesse ponto lorde Badgery puxou com força uma das pontas do paletó do velho. O sr. Tillotson parou de falar, tomou outro gole do vinho e então continuou com coerência e energia recém-conquistadas.

— A vida do artista é dura. Seu trabalho é diferente do trabalho de outros homens, que pode ser feito mecanicamente, de cor e, pode-se dizer, dormindo. Requer dele um gasto constante de espírito. Ele dá continuamente o melhor de sua vida, e em troca recebe muita alegria, é verdade; muita fama, pode ser; mas, de bênçãos materiais, muito poucas. Faz oitenta anos desde que consagrei minha vida ao serviço da arte; oitenta anos, e quase todos esses anos me trouxeram provas novas e dolorosas do que acabo de dizer: a vida do artista é dura.

Esse inesperado desvio para um discurso que fazia sentido aumentou a sensação geral de desconforto. Tornava-se necessário levar a sério o ancião, vê-lo como um ser humano. Até então ele fora apenas um objeto de curiosidade, uma múmia num terno absurdo com uma faixa verde atravessada no peito. As pessoas não podiam deixar de pensar que poderiam ter contribuído com um pouco mais. Cinquenta e oito libras e dez xelins — não era muito. Mas felizmente para a paz de espírito da plateia o sr. Tillotson interrompeu-se para, de acordo com sua verdadeira personalidade, falar absurdamente.

— Quando penso na vida desse grande homem, Benjamin Robert Haydon, um dos maiores homens que a Inglaterra já produziu...

A assistência soltou um suspiro de alívio; era assim que devia ser. Houve uma explosão de vivas e palmas. O sr. Tillotson passeou os olhos sombrios pela sala e sorriu com gratidão às figuras enevoadas que enxergava.

— Esse grande homem, Benjamin Robert Haydon — continuou —, a quem me orgulho de chamar meu mestre e que, meu coração se alegra ao constatar, ainda vive em sua lembrança e estima, esse grande homem, um dos maiores que a Inglaterra já produziu, teve uma vida tão deplorável que não posso pensar nela sem uma lágrima.

E com infinitas repetições e digressões o sr. Tillotson contou a história de B. R. Haydon, suas prisões por dívidas, sua batalha com a Academia, seus triunfos, seus fracassos, seu desespero, seu suicídio. Bateram as dez e meia. O sr. Tillotson exprobava os juízes estúpidos e preconceituosos que tinham recusado os desenhos de Haydon para a decoração das novas Casas do Parlamento em favor dos insignificantes rabiscos alemães.

— Esse grande homem, um dos maiores que a Inglaterra já produziu, esse grande Benjamin Robert Haydon, a quem me orgulho de chamar meu mestre e que, alegro-me em ver, ainda vive em sua lembrança e estima — ante tamanha afronta seu grande coração explodiu; foi a maior de todas as decepções. Ele que trabalhara a vida toda para o reconhecimento do artista pelo Estado, ele que tinha peticionado a todos os primeiros-ministros, inclusive ao duque de Wellington, durante trinta anos, implorando-lhes que empregassem artistas para decorar os prédios públicos, ele a quem era inegavelmente devido o esquema para a decoração das Casas do Parlamento... — O sr. Tillotson perdeu o controle da sintaxe e iniciou uma nova sentença. — Foi a maior de todas as decepções, foi a gota d’água. A vida do artista é dura.

Às onze horas o sr. Tillotson estava falando sobre os pré-rafaelitas. Às onze e quinze começou a contar toda a história de B. R. Haydon de novo. Aos vinte e cinco minutos para a meia-noite ele desabou, sem fala, sobre a cadeira. A maioria dos convidados já tinha ido embora; os poucos que tinham ficado apressaram-se a sair. Lorde Badgery levou o ancião até a porta e colocou-o no segundo Rolls-Royce. O Banquete de Tillotson tinha terminado; fora uma noite agradável, mas um pouco longa demais.

Spode foi a pé para seus aposentos em Bloomsbury, assoviando enquanto caminhava. As lâmpadas de Oxford Street refletiam-se na superfície polida da rua: canais de bronze escuro. Ele precisava colocar isso num artigo algum dia. A Cayman fora lograda com muito sucesso. Voi Che Sapete, ele assoviava — um tanto desafinado, mas não percebia isso.

Quando a senhoria do sr. Tillotson veio chamá-lo na manhã seguinte, encontrou o ancião deitado na cama inteiramente vestido. Parecia muito doente e muito velho; o fraque de Boreham estava em terrível estado e a faixa verde da Ordem da Castidade, estragada. O sr. Tillotson estava imóvel, mas não estava dormindo. Ouvindo o som de passos, ele abriu um pouco os olhos e gemeu de leve. A senhoria olhou para ele ameaçadoramente.

— Nojento! — disse. — Acho isso nojento. Na sua idade.

O sr. Tillotson tornou a gemer. Fazendo um grande esforço, tirou do bolso da calça uma grande bolsa de seda, abriu-a e extraiu uma moeda de uma libra.

— A vida do artista é dura, sra. Green — disse, estendendo a moeda. — Será que se importa de mandar chamar o médico? Não me sinto muito bem. E que é que vamos fazer com essas roupas? Que vou dizer ao cavalheiro que teve a generosidade de emprestá-las a mim? Perde-se o empréstimo e o amigo. O Bardo está sempre certo.


Túneis verdes

— Nos jardins italianos do século xiii... — O sr. Buzzacott interrompeu-se para servir-se novamente do risoto que lhe era oferecido. — Excelente risoto, este — observou. — Ninguém que não tenha nascido em Milão sabe fazê-lo direito. É o que dizem.

— É o que dizem — repetiu o sr. Topes com sua voz triste e contrita, e serviu-se por sua vez.

— Pessoalmente — disse a sra. Topes com firmeza — acho toda a cozinha italiana abominável. Não gosto do azeite, especialmente quente. Não, obrigada. — Afastou-se do prato oferecido.

Depois da primeira garfada o sr. Buzzacott baixou o talher.

— Nos jardins italianos do século xiii — recomeçou, fazendo com a mão longa e pálida um gesto curvo e floreado que terminou com uma carícia na barba — fazia-se uso frequente e muito feliz dos túneis verdes.

— Túneis verdes? — Bárbara despertou subitamente de seu silêncio. — Túneis verdes?

— Sim, minha cara — disse o pai. — Túneis verdes, sim. Alamedas em arco cobertas de vinhas ou outras trepadeiras. Sua extensão era considerável.

Mas Bárbara tinha mais uma vez deixado de prestar atenção ao que ele dizia. Túneis verdes — as palavras flutuaram até ela através de imensas profundezas de sonho, através de grandes espaços de abstrações, assustando-a como o som de um sino de estranha afinação. Túneis verdes: que ideia maravilhosa. Ela não iria ouvir o pai explicar a frase até torná-la enfadonha. Ele tornava tudo enfadonho: um alquimista às avessas, transformando ouro em chumbo. Ela imaginou cavernas num grande aquário, longas paisagens entre pedras e plantas que mal ondeavam e corais pálidos e descoloridos; infinitos corredores de verde e sombra com enormes e preguiçosos peixes vagando sem rumo entre eles. Monstros de rostos verdes e olhos esbugalhados e bocas que se abriam e se fechavam lentamente. Túneis verdes...

— Eu os vi ilustrados em manuscritos com iluminuras desse período — continuou o sr. Buzzacott; mais uma vez levou a mão à barba castanha e pontuda; acariciou-a e penteou-a com os dedos longos.

O sr. Topes ergueu os olhos. As lentes de seus óculos redondos de coruja faiscavam quando ele movia a cabeça.

— Sei o que quer dizer — declarou.

— Tenho muita vontade de plantar um em meu jardim aqui.

— Vai demorar muito tempo para crescer — disse o sr. Topes. — Nessa areia, tão perto do mar, você só vai conseguir plantar parreiras. E elas crescem muito devagar, realmente muito devagar. — Sacudiu a cabeça e os pontos de luz dançaram enlouquecidos em seus óculos. A voz, desanimada, esmoreceu, o bigode cinza esmoreceu, toda a sua pessoa esmoreceu. Então, de repente, ele se recompôs. Um sorriso tímido e contrito apareceu em seu rosto. Remexeu-se desconfortavelmente. Então, com um último sacudir rápido da cabeça, proferiu uma citação:

Mas às minhas costas sempre posso ouvir

A carruagem alada do tempo aproximando-se depressa.[34]

Falou vagarosamente, e sua voz tremia um pouco. Sempre achara dolorosamente difícil dizer algo refinado e fora do comum; no entanto, que tesouro de frases recordadas, que manancial de novas ideias estava sempre surgindo em sua mente agitada!

— Elas não crescem tão devagar assim — disse o sr. Buzzacott confiante. Tinha pouco mais de cinquenta anos e parecia um belo homem de trinta e cinco. Dava a si mesmo pelo menos outros quarenta anos; na verdade, não tinha ainda começado a pensar na possibilidade de um dia se acabar.

— A srta. Bárbara vai apreciá-lo, talvez: o seu túnel verde. — O sr. Topes suspirou e olhou por cima da mesa para a filha de seu anfitrião.

Bárbara estava sentada com os cotovelos sobre a mesa, o queixo nas mãos, olhos fixos à frente. O som de seu nome alcançou-a vagamente. Voltou a cabeça na direção do sr. Topes e viu-se enfrentada pelo brilho dos óculos redondos e convexos. Ao final do túnel verde (ela encarava os círculos brilhantes) havia os olhos esbugalhados de um peixe. Eles se aproximavam, flutuando, cada vez mais perto, ao longo do sombrio corredor submarino.

Enfrentado por esse olhar fixo, o sr. Topes desviou os olhos. Que olhos pensativos! Ele não se lembrava de ter visto olhos tão cheios de pensamento. Havia certas Madonnas de Montagna, ele refletiu, muito parecidas com ela: suaves Madonnas louras com narizes ligeiramente arrebitados e muito, muito jovens. Mas ele era velho; levaria muitos anos, apesar de Buzzacott, para que as parreiras crescessem e formassem um túnel verde. Tomou um gole de vinho; então, mecanicamente, chupou o grisalho bigode que lhe pendia sobre a boca.

— Arthur!

Ao som da voz da esposa o sr. Topes assustou-se, levou o guardanapo à boca. A sra. Topes não permitia que se chupassem bigodes. Era apenas em momentos de distração que ele alguma vez errava, como agora.

— O marquês Prampolini vem para o café — disse o sr. Buz- zacott de repente. — Quase me esqueço de avisá-los.

— Um desses marqueses italianos, imagino — comentou a sra. Topes, que não era esnobe, a não ser na Inglaterra. Ergueu o queixo com um pequeno estremecimento.

O sr. Buzzacott executou uma curva ascendente com a mão na direção dela.

— Eu lhe asseguro, sra. Topes, que ele pertence a uma família muito antiga e distinta. São de origem genovesa. Lembra-se do palácio deles, Bárbara? Construído por Alessi.

Bárbara ergueu os olhos.

— Ah, sim — disse vagamente. — Alessi. Sei. — Alessi: Aleppo, lugar de um turco perverso e de turbante. — E de turbante; eles sempre lhe pareceram muito engraçados.

— Vários de seus ancestrais — continuou o sr. Buzzacott — distinguiram-se como vice-reis da Córsega. Fizeram um ótimo trabalho reprimindo rebeliões. Estranho, não é? — Voltou-se para o sr. Topes como se fizesse um parêntese. — O modo como a simpatia vai sempre para o lado dos rebeldes? Que confusão as pessoas fizeram por causa da Córsega! Aquele livro de Gregorovius, por exemplo. E os irlandeses, os poloneses, e todo o resto deles. Isso sempre me pareceu supérfluo e absurdo.

— Não é, talvez, um pouco natural? — começou o sr. Topes, tímida e cautelosamente, mas seu anfitrião continuou, sem ouvir.

— O atual marquês está à frente dos fascisti locais. Fizeram um grande bem neste distrito, no sentido de preservar a lei e a ordem e manter as classes inferiores em seu lugar.

— Ah, os fascisti — repetiu a sra. Topes em tom de aprovação.

— Seria bom ver algo assim na Inglaterra. Com todas aquelas greves...

— Ele me pediu uma contribuição para os fundos da organização. Vou lhe dar, é claro.

— É claro — assentiu a sra. Topes. — Meu sobrinho, aquele que foi major durante a guerra, foi voluntário na última greve dos mineiros. Ele lamentou, sabe, que não tenham chegado à luta. “Tia Annie”, ele me disse quando o vi pela última vez, “se tivesse havido luta nós teríamos acabado completamente com eles. Completamente.”

Em Aleppo, os fascisti, maléficos e de turbante, estavam lutando sob as palmeiras. Não eram palmeiras aquelas plumas com tufos verdes?

— O quê, nada de sorvete hoje? Niente gelato? — inquiriu o sr. Buzzacott quando a empregada colocou na mesa a compota de pêssegos.

Concetta pediu desculpas. A máquina de fazer sorvete do povoado quebrara. Não haveria sorvete até o dia seguinte.

— Muito ruim — disse o sr. Buzzacott. — Troppo male, Concetta.

Sob as palmeiras, Bárbara os viu; eles saracoteavam, lutando. Estavam montados em grandes cães, e nas árvores havia enormes pássaros multicoloridos.

— Meu Deus, esta garota está dormindo. — A sra. Topes oferecia o prato de pêssegos. — Por quanto tempo vou ter que segurar este prato debaixo do seu nariz, Bárbara?

Bárbara sentiu-se enrubescer.

— Desculpe — murmurou, e pegou o prato desajeitadamente.

— Sonhando acordada. É um mau hábito.

— Todos nos entregamos a isso, às vezes — observou o sr. Topes em tom de indulgência, com um leve tremor nervoso da cabeça.

— Você, pode ser, meu caro — disse a esposa. — Eu, não.

O sr. Topes baixou os olhos para o prato e continuou a comer.

— O marchese deve chegar a qualquer momento — disse o sr. Buzzacott consultando o relógio. — Espero que não se atrase. Descobri que me faz muito mal adiar minha siesta. Este calor italiano — acrescentou, em tom de queixa. — Todo cuidado é pouco.

— Ah, mas quando eu estava na Índia com meu pai... — começou a sra. Topes em tom de superioridade. — Ele era um civil indiano, sabem...

Aleppo, Índia — sempre as palmeiras. Cavalgadas de enormes cães e também de tigres.

Concetta fez entrar o marquês. Encantado. Prazer em conhecê-lo. Fala inglês? Sim, sim. Pocchino. Sra. Topes; e o sr. Topes, o famoso antiquário. Ah, é claro; conheço bem seu nome. Minha filha. Encantado. Muitas vezes vi a signorina na praia. Admiro o modo como mergulha. Belíssimo — a mão fez um gesto longo e acariciante. Essas atléticas signorine inglesas. Os dentes brilhavam, espantosamente brancos no rosto queimado, os olhos escuros faiscavam. Ela sentiu-se enrubescer de novo, desviou os olhos, sorriu tolamente. O marquês já tornara a voltar-se para o sr. Buzzacott.

— Então resolveu estabelecer-se em nossa Carrara.

Bem, não exatamente estabelecer-se; o sr. Buzzacott não iria tão longe a ponto de dizer estabelecer-se. Um villino para os meses de verão. O inverno em Roma. Era-se obrigado a viver no estrangeiro. Os impostos na Inglaterra... Logo estavam todos falando. Bárbara observava-os. Perto do marquês pareciam todos moribundos. O rosto brilhava quando ele falava; parecia estar fervilhando de vida. O pai era mole e pálido, como algo que tivesse ficado durante muito tempo enterrado longe da luz; o sr. Topes era todo seco e enrugado; e a sra. Topes mais do que nunca parecia algo que funcionava movido a corda. Estavam falando sobre socialismo e os fascisti, coisas assim. Bárbara não escutava o que diziam; mas os observava, absorta.

Adeus, adeus. A face animada com o clarão de um sorriso virava-se feito uma lanterna de um para outro. Agora estava voltada para ela. Talvez uma noite ela viesse, com o pai e a signora Topes. Ele e a irmã davam pequenos bailes às vezes. Só uma vitrola, naturalmente. Mas era melhor que nada, e a signorina devia dançar divinamente — outro clarão —, ele tinha certeza. Tornou a apertar-lhe a mão. Adeus.

Era hora da siesta.

— Não se esqueça de baixar o mosquiteiro, minha cara — exortou o sr. Buzzacott. — Há sempre o perigo de anofilinas.

— Está bem, papai. — Ela se dirigiu para a porta sem se voltar para responder. Ele era sempre tão enfadonho a respeito de mosquiteiros. Uma vez tinham atravessado a Campagna num carro alugado, completamente envolvidos por um mosquiteiro improvisado. Os monumentos ao longo da Via Appia surgiam enevoados como se através de um véu de noiva. E como todos riam! Mas o pai, naturalmente, nem tinha percebido. Ele nunca percebia coisa alguma.

— Está em Berlim aquela encantadora Madonna de Montagna? — perguntou abruptamente o sr. Topes. — Aquela com o Donor ajoelhado no canto esquerdo como se fosse beijar os pés do Infante. — Seus óculos faiscaram na direção do sr. Buzzacott.

— Por que pergunta?

— Não sei. Estava pensando nisso.

— Acho que você está falando daquela da coleção Mond.

— Ah, sim, com certeza. Na Mond...

Bárbara abriu a porta e entrou para a escuridão de seu quarto fechado. Até ali estava quente; nas três horas seguintes seria impossível mexer-se. E aquela velha idiota, a sra. Topes, sempre criava caso se alguém aparecesse para o almoço de pernas nuas e com a saída de banho. “Na Índia sempre fazíamos questão de estar apropriadamente vestidos. Uma inglesa deve manter sua posição com os nativos, e para todos os efeitos os italianos são nativos.” E assim ela sempre tinha de colocar sapatos e meias e um vestido convencional exatamente na hora mais quente do dia. Que imbecil era aquela mulher! Despiu as roupas o mais rápido que pôde. Assim estava um pouco melhor.

Parada diante do comprido espelho na porta do armário, ela chegou à conclusão humilhante de que parecia um pedaço de pão mal torrado. Rosto marrom, pescoço e ombros marrons, braços marrons, pernas marrons do joelho para baixo; mas todo o resto era branco, tolo, sem vigor, branco de cidade. Se pudesse andar por aí sem roupas até ficar como aquelas crianças acobreadas que rolavam e caíam na areia quente! Agora ela estava mal passada, meio assada e inteiramente ridícula. Por um longo tempo contemplou sua imagem pálida. Via-se correndo pela areia, o corpo todo bronzeado; ou através de um campo de flores, narcisos e tulipas silvestres; ou na relva macia sob o tom gris das oliveiras. Virou-se com um susto repentino. Ali, nas sombras atrás de si... Não, claro que não havia coisa alguma. Era aquela foto horrível que vira numa revista, muitos anos antes, quando era criança. Havia uma mulher sentada à penteadeira, penteando os cabelos em frente ao espelho; e um enorme macaco cabeludo e preto aproximando-se por trás. Ela sempre tinha medo quando se olhava ao espelho. Muito tolo. Ainda assim. Deu as costas ao espelho, atravessou o quarto e, sem baixar o mosquiteiro, deitou-se na cama. As moscas zumbiam a seu redor, pousando incessantemente em seu rosto. Ela sacudiu a cabeça e, com raiva, espantou-as com as mãos. Haveria paz se ela baixasse o mosquiteiro. Mas pensou na Via Appia vista sob aquele véu de noiva e preferiu aguentar as moscas. Finalmente teve de render-se: as pestes eram demais para ela. Mas, de qualquer maneira, não foi o medo de anofilinas que a fez baixar o mosquiteiro.

Em paz agora e imóvel, ela ficou estendida, calorenta, sob a transparente tenda de filó. Um espécime sob uma redoma. A fantasia tomou conta de sua mente. Viu um enorme museu com milhares de redomas, cheias de fósseis e borboletas e pássaros empalhados e colheres e armaduras medievais e joias florentinas e múmias e marfim entalhado e manuscritos com iluminuras. Porém uma das redomas continha um ser humano, aprisionado vivo.

De repente ela se sentiu horrivelmente infeliz.

— Chato, chato, chato — sussurrou, formulando as palavras em voz alta. Será que nunca ia deixar de ser chato? As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Como tudo era horrível! E talvez fosse continuar sendo ruim assim por toda a vida. Dezessete para setenta eram cinquenta e três. Cinquenta e três anos disso. E, se vivesse cem anos, haveria mais de oitenta.

A ideia deixou-a deprimida a noite inteira. Até mesmo o banho de mar depois do chá não adiantou. Nadando para longe, bem longe, ela ficou boiando na água morna. Às vezes olhava para o céu, às vezes voltava a cabeça em direção à costa. Emolduradas em seus bosques de pinheiros, as villas pareciam pequenas e aconchegantes como no anúncio de um balneário. Mas atrás delas, além das planícies, havia as montanhas. Picos nus e agudos de calcário, encostas verdes de bosques e extensões verde-acinzentadas dos platôs de oliveiras — pareciam maravilhosamente próximos e nítidos nessa luz vespertina. E lindos, mais lindos do que se pode expressar. Mas isso, de alguma forma, só piorava as coisas. E Shelley vivera alguns quilômetros litoral acima, ali, atrás do cabo que protegia o golfo de Spezia. Shelley tinha morrido afogado nesse mar quente como leite. Isso também piorava as coisas.

O sol estava bem baixo e vermelho sobre o mar. Ela nadou lentamente de volta. Na praia a sra. Topes a esperava com sua postura reprobatória. Ela conhecera uma pessoa, um homem forte, que teve cãibras por ficar tanto tempo dentro d’água. Afundou como uma pedra. Como uma pedra. Quanta gente estranha a sra. Topes tinha conhecido! E que coisas engraçadas elas faziam, que coisas estranhas lhes aconteciam!

O jantar naquela noite foi mais enfadonho que nunca. Bárbara foi cedo para a cama. A noite inteira a mesma cigarra irritante cantava sem parar entre os pinheiros, monótona e regular como um relógio. Sip, sip, sip, sip, sip. Chato, chato. Será que o bicho nunca se entediava com seu próprio barulho? Parecia estranho que não. Mas, pensando bem, ninguém se entediava com o próprio barulho. A sra. Topes, por exemplo: ela nunca parecia se entediar. Sip, sip, sip, sip, sip. A cigarra continuou a cantar sem interrupção.

Concetta bateu à porta às sete e meia. A manhã estava radiante e sem nuvens como todas as manhãs. Bárbara saltou da cama, olhou por uma das janelas para as montanhas, por outra para o mar; tudo parecia estar bem com eles. Tudo estava bem com ela, também, nessa manhã. Sentada ao espelho, nem pensou no macaco enorme a um canto distante e escuro do quarto. Roupa de banho e roupão, sandálias, um lenço na cabeça, e ela estava pronta. O sono não deixara lembrança do tédio mortal da véspera. Correu para o primeiro andar.

— Bom dia, sr. Topes.

O sr. Topes passeava no jardim entre as parreiras. Ele voltou-se, tirou o chapéu, sorriu em cumprimento.

— Bom dia, srta. Bárbara. — Fez uma pausa. Depois, com um tremor embaraçado de abertura, continuou; a voz assumiu um pequeno gaguejar estranho. — Uma manhã realmente chauceriana, srta. Bárbara. Uma manhã digna de maio, porém, em pleno setembro. A natureza está aprazível e irradiante, e há pelo menos um espécime nesse jardim de sonho — tornou a remexer-se mais desconfortavelmente que nunca, e havia um brilho trêmulo nas lentes redondas dos óculos — da “aprazível juventude” dos poetas. — Fez uma reverência na direção dela, sorriu contritamente e silenciou. O comentário, parecia-lhe agora que terminara de falar, não era, de algum modo, tão bom quanto ele pensara que ia ser.

Bárbara riu.

— Chaucer! Eles nos faziam ler os Contos de Canterbury na escola. Mas sempre me entediaram. O senhor vai à praia?

— Não antes do almoço. — O sr. Topes sacudiu a cabeça. — Fica-se um tanto velho para isso.

— Fica-se? — Por que o velho bobo sempre dizia “fica-se”, “é-se”, quando queria dizer “eu fico, eu sou”? Não conseguiu deixar de rir dele. — Bem, tenho que me apressar, senão vou me atrasar para o café outra vez, e sabe o que me acontece.

Saiu correndo pelo portão no muro, através da praia até a cabine listrada de vermelho e branco que ficava na frente da casa. A uns cinquenta metros de distância viu o marquês Prampolini, ainda molhado do mar, correndo para sua cabine. Avistando-a, ele sorriu em sua direção e fez um cumprimento militar. Bárbara acenou, depois achou que o gesto fora um pouco familiar demais (mas a essa hora da manhã era difícil não ser alegremente mal-educada) e acrescentou uma rígida reverência corretiva. Afinal, só o conhecera na véspera. Logo nadava mar adentro e, ai, que quantidade enorme de algas.

O sr. Topes a seguira devagar pelo portão e através da areia. Observou-a correr da cabine, esguia como um garoto, os passos longos e elásticos. Observou-a saltar e mergulhar levantando espuma através da água cada vez mais profunda, depois lançar-se à frente e começar a nadar. Observou-a até que ela se tornasse apenas um pontinho escuro à distância.

Emergindo de sua cabine, o marquês encontrou-o caminhando lentamente ao longo da praia, cabeça baixa e os lábios em leves movimentos, como se repetisse algo, uma oração ou um poema, consigo mesmo.

— Bom dia, signore. — O marquês apertou-lhe a mão com uma cordialidade mais que inglesa.

— Bom dia — replicou o sr. Topes, permitindo que sua mão fosse sacudida. Irritou-se com tal interrupção de seus pensamentos.

— Ela nada muito bem, a srta. Buzzacott.

— Muito — assentiu o sr. Topes, e sorriu consigo mesmo ao pensar nas coisas lindas e poéticas que poderia ter dito, se quisesse.

— Bem, é isso — fez o marquês, por demais coloquial. Apertaram-se as mãos novamente, e os dois homens seguiram seus caminhos respectivos.

Bárbara ainda estava a uns cem metros da praia quando ouviu crescer e diminuir o som do gongo, flutuando até ela vindo da villa. Droga! Ia se atrasar de novo. Aumentou a rapidez das braçadas e atravessou correndo a parte rasa, enrubescida e sem fôlego. Estaria dez minutos atrasada, calculou. Levaria pelo menos isso para pentear os cabelos e vestir-se. A sra. Topes mais uma vez a receberia com hostilidade; embora só Deus soubesse que direito tinha a velha de lhe pregar sermões como fazia. Ela sempre conseguia fazer-se horrivelmente ofensiva e desagradável.

A praia estava deserta quando ela a atravessou, ofegante e em passos rápidos, vazia para a direita e para a esquerda até onde podia enxergar. Se pelo menos tivesse um cavalo para galopar pela beira d’água, quilômetros e quilômetros. Iria até a Bocca d’Arno, nadaria no rio — podia ver-se curvada sobre as costas do cavalo, enquanto ele nadava, com as pernas encolhidas na sela, tentando não molhar os pés — e tornaria a galopar, só Deus sabia até onde.

Estacou subitamente em frente à cabine. Ali, na areia ondulada, ela tinha visto algo escrito. Letras grandes, vagamente legíveis, espalhavam-se através de seu caminho.

Ó, Clara d’Ellébeuse[35]

Refez as letras quase apagadas. Não estavam ali quando ela saíra para nadar. Quem?... Olhou em volta. A praia estava deserta. E qual era o significado? “Ó, Clara d’Ellébeuse.” Pegou o roupão na cabine, calçou as sandálias e correu de volta para casa o mais rápido que conseguiu. Sentia-se horrivelmente assustada.

Era uma manhã pesada, opressiva, com um siroco quente que sacudia as bandeiras nos mastros. Ao meio-dia as nuvens de tempestade tinham encoberto metade do céu. O sol ainda brilhava no mar, mas sobre as montanhas estava tudo negro e azul-escuro. A tempestade explodiu ruidosamente quando bebiam o café depois do almoço.

— Arthur — disse a sra. Topes, irritantemente calma. — Feche as janelas, por favor.

Ela não estava com medo. Mas preferia não ver os relâmpagos. Quando o aposento ficou escurecido ela começou a falar, suave e incessantemente.

Recostada em sua poltrona funda, Bárbara pensava em Clara d’Ellébeuse. Que significava aquilo, e quem era Clara d’Ellébeuse? E por que ele tinha escrito aquilo para ela ver? Ele — pois não havia dúvida de quem tinha escrito. O clarão dos dentes e dos olhos, o cumprimento militar, sabia que não devia ter acenado para ele. Tinha escrito aquilo enquanto ela estava nadando. Escreveu e depois fugiu. Ela até que gostava disso: apenas palavras fabulosas na areia, como a pegada em Robinson Crusoe.

— Pessoalmente — dizia a sra. Topes — prefiro a Harrod’s.

O trovão explodiu e estrondeou. Era bastante excitante, pensou Bárbara; sentia-se que alguma coisa estava acontecendo, para variar. Lembrou-se do quartinho na metade da escada na casa de Lady Thingumy, com as estantes de livros, as cortinas verdes e a cúpula alaranjada da lâmpada; e aquele rapaz horrível, como uma lesma branca, que tentara beijá-la ali, no baile do ano passado. Mas aquilo fora diferente — nem um pouco sério; e ademais, o rapaz era muito feio. Ela viu o marquês correndo pela praia, rápido e alerta. Todo cor de cobre, os cabelos negros. Era sem dúvida muito bonito. Mas, quanto a estar apaixonada, bem... o que significa isso exatamente? Talvez, quando o conhecesse melhor. Mesmo agora ela imaginava perceber alguma coisa. Ó, Clara d’Ellébeuse. Que coisa fabulosa!

Com seus dedos longos o sr. Buzzacott penteava a barba. Neste inverno, pensava ele, trocaria mais mil libras em moeda italiana quando o câmbio estivesse favorável. Na primavera ele sempre parecia cair de novo. Podia-se lucrar trezentas libras com o capital, se o câmbio descesse para setenta. A renda de trezentas libras era quinze libras por ano, e quinze libras eram agora mil e quinhentas liras. E mil e quinhentas liras, pensando bem, eram na verdade sessenta libras. Isso significava que era possível acrescentar mais de uma libra por semana à renda, com essa simples especulaçãozinha. Percebeu que a sra. Topes lhe fizera uma pergunta.

— Sim, sim, perfeitamente — respondeu.

A sra. Topes continuou a falar; ela estava mantendo seu moral alto. Teria ela razão em desfazer-se da tensão e acreditar que o trovão soara um pouco menos alto e próximo?

O sr. Topes estava sentado, lustrando os óculos com um lenço de seda branca. Vagos e míopes entre as pálpebras franzidas, seus olhos pareciam perdidos, sem lar, infelizes. Ele estava pensando sobre a beleza. Havia certas relações entre as pálpebras e as têmporas, entre o busto e o ombro; havia certas sucessões de sons. E o que dizer deles? Ah, esse era o problema, esse era o problema. E havia a juventude, havia a inocência. Mas era tudo muito obscuro, e havia tantas frases, tantos quadros e tantas melodias relembradas; ele parecia estar preso em seu emaranhado. E como era velho e inútil.

Tornou a colocar os óculos, e a definição surgiu no mundo nebuloso diante de seus olhos. A sala fechada estava muito escura. Ele podia distinguir o perfil renascentista do sr. Buzzacott, a barba, as feições delicadas. Em sua poltrona funda, Bárbara aparecia, levemente branca, em atitude relaxada e pensativa. E a sra. Topes nada mais era que uma voz na escuridão. Chegara ao casamento do príncipe de Gales. Quem encontrariam para ele?

Clara d’Ellébeuse, Clara d’Ellébeuse. Já se via nitidamente como a marchesa. Teriam uma casa em Roma, um palácio. Estava no Palazzo Spada — havia um lindo corredor abobadado levando do pátio até os jardins nos fundos. “Marchesa Prampolini, Palazzo Spada, Roma” — um grande cartão de visitas lindamente gravado. E ela cavalgaria todos os dias no Pincio. “Mi porta il mio cavallo”, diria ao lacaio que atendia à campainha. Porta? Seria correto? Absolutamente. Ela precisaria de algumas boas lições de italiano para falar com os criados. Não se deve ser ridículo diante dos criados. “Voglio il mio cavallo.” Isso se dizia em tom altivo, sentada à escrivaninha, em traje de equitação, sem se virar. Seria um traje verde, com um chapéu tricórnio preto, enfeitado de prateado.

“Prendero la mia collazione al letto”: Era assim que se pedia o café da manhã na cama? Porque ela tomaria o café na cama, sempre. E quando se levantasse, haveria maravilhosos espelhos com três folhas onde a pessoa podia ver-se de lado. Imaginou-se inclinada para a frente, empoando o nariz com cuidado e ciência. Com o macaco se aproximando por trás? Oh! Horrível! Ho paura di questa scimmia, questo scimmione.

Voltaria para o almoço depois de cavalgar. Talvez Prampolini estivesse em casa; ela até então o tinha deixado de fora. “Dov’è il Marchese?” “Nella sala di pranza, signora.” Comecei sem você, estava com tanta fome. Pasta asciutta. Onde você esteve, meu amor? Cavalgando, meu pombinho. Imaginava que teriam o hábito de dizer coisas assim. Parece que todos diziam. E você? Eu saí com os fascisti.

Ah, esses fascisti! Será que valeria a pena viver se ele estava sempre saindo com pistolas, bombas e coisas? Um dia seria trazido numa maca. Ela o via. Pálido, pálido, com sangue. Il signore è ferito. Nel petto. Gravamente. È morto.

Como ela suportaria? Era horrível demais; terrível demais. Sua respiração saiu como uma espécie de soluço; ela estremeceu como se tivesse sido ferida. È morto. È morto. As lágrimas subiram-lhe aos olhos.

Foi despertada de súbito por uma luz cegante. A tempestade afastara-se o suficiente para permitir que a sra. Topes abrisse as janelas.

— Parou de chover.

Ser perturbada na dor íntima e no abandono junto ao leito de morte pela intrusão de um desconhecido, de uma voz estranha... Bárbara desviou o rosto da luz e disfarçadamente enxugou os olhos. Podiam vê-la e perguntar por que ela estava chorando. Ela odiava a sra. Topes por ter aberto as janelas; à entrada da luz algo de belo fugira, uma emoção desaparecera, irrecuperavelmente. Era um sacrilégio.

O sr. Buzzacott consultou o relógio.

— Tarde demais para a siesta agora — comentou. — E se pedirmos o chá mais cedo?

— Uma sucessão interminável de refeições — falou o sr. Topes com voz trêmula e um suspiro. — É o que parece ser a vida, a vida real.

— Andei calculando... — O sr. Buzzacott voltou os olhos verdes como cristais para seu convidado. — Talvez eu tenha condições de comprar aquele lindo cinque cassone, afinal. Ia ficar um pouco apertado. — Brincou com a barba. — Mas mesmo assim...

Depois do chá, Bárbara e o sr. Topes saíram para um passeio ao longo da praia. Ela não tinha muita vontade de ir, mas a sra. Topes achou que seria bom para ela; assim, ela teve de ir. A tempestade passara, e o céu estava claro sobre o mar. Mas as ondas ainda quebravam num desassossegado rugir, e a água cobria a areia uns vinte ou trinta metros para além da linha onde, em dias calmos, a espuma se dissipava. Brilhantes extensões de água avançavam e recuavam como superfícies de aço movimentadas por uma enorme máquina. Através do ar lavado pela chuva as montanhas apareciam com uma clareza incrível. Acima delas pairavam enormes massas de nuvens.

— Nuvens sobre Carrara — disse o sr. Topes, pedindo desculpas pelo comentário com um leve sacudir da cabeça e um movimento dos ombros. — Às vezes fico imaginando que os espíritos dos grandes escultores vivem em meio a esses montes de mármore, e que são suas mãos invisíveis que modelam as nuvens nessas formas enormes e esplêndidas. Imagino os fantasmas deles — sua voz estremeceu — estudando concepções sobre-humanas, planejando enormes grupos, frisos e figuras monumentais com panejamentos esvoaçantes; planejando, concebendo, mas sem nunca conseguir. Veja, há algo de Michelangelo naquela nuvem branca com as sombras escuras embaixo. — O sr. Topes apontou, e Bárbara assentiu e disse “sim, sim”, embora não tivesse bem certeza de qual nuvem ele mostrava. — É como a Noite no túmulo dos Médici; toda a força e a paixão estão ali dentro, presas, latentes. E ali, naquele pedaço de vapor que se ergue e gesticula, está vendo qual é? Aquilo é um Bernini. Toda a paixão está na superfície, expressa; o gesto foi apreendido em sua maior violência. E aquela branca e esguia ali é um Canova deliciosamente absurdo. — O sr. Topes deu uma risadinha.

— Por que o senhor sempre fala sobre arte? — perguntou Bárbara. — O senhor traz essas pessoas mortas para tudo. Que é que sei de Canova ou seja quem for?

Nenhum deles estava vivo. Ela pensou naquele rosto escuro, no qual a vida brilhava como um candeeiro. Ele pelo menos não estava morto. Perguntou-se se as letras ainda estariam na areia diante da cabine. Não, claro que não; a chuva e o vento as teriam apagado.

O sr. Topes ficou em silêncio; caminhava com os joelhos ligeiramente curvados e os olhos fixos no chão; usava um chapéu de palha preto e branco. Sempre pensava em arte; era isso que estava errado com ele. Era como uma árvore velha; feito de madeira morta, com apenas umas poucas fibras de vida para impedir que apodrecesse. Caminhava em silêncio durante um longo tempo.

— Eis o rio — disse o sr. Topes finalmente.

Mais alguns passos e estavam à margem de um riacho largo que descia lentamente através da planície em direção ao mar. Até chegar à praia ele era bordejado de pinheiros; além das árvores podia-se ver a planície, e além da planície havia as montanhas. Nessa luz calma depois da tempestade tudo parecia estranho. As cores pareciam mais profundas e mais intensas do que em ocasiões comuns. E, embora tudo estivesse tão claro, havia um misterioso ar de distanciamento em toda a cena. Não havia som, exceto a respiração contínua do mar. Ficaram parados um pouco, olhando; depois voltaram.

À distância, ao longo da praia, duas figuras aproximavam-se lentamente. Calças de flanela branca, uma camisa cor-de-rosa.

— A natureza — enunciou o sr. Topes sacudindo a cabeça. — Deve-se sempre voltar à natureza. Em um momento como este, em um ambiente como este, é que se percebe isso. Agora se vive; mais sossegadamente, talvez, porém mais profundamente. Águas profundas. Águas profundas...

As figuras se aproximavam. Não era o marquês? E quem estava com ele? Bárbara esforçou-se para enxergar.

— A maior parte da vida — continuou o sr. Topes — é um esforço prolongado para evitar o pensamento. Seu pai e eu, nós colecionamos quadros e lemos a respeito dos mortos. Outras pessoas conseguem o mesmo resultado bebendo, criando coelhos, fazendo trabalho amador de carpintaria. Qualquer coisa para não pensar calmamente sobre as coisas importantes.

O sr. Topes silenciou. Olhou em volta, para o mar, as montanhas, as grandes nuvens, sua companheira. Uma frágil Madonna de Montagna, com o mar e o sol no poente, as montanhas e a tempestade, toda a eternidade como pano de fundo. E ele tinha sessenta anos, com toda uma vida atrás de si, uma vida vazia, imensamente longa porém infinitamente curta. Pensou na morte e nos milagres da beleza; por trás de seus óculos redondos e faiscantes sentia-se inclinado a chorar.

O casal que se aproximava estava bem perto agora.

— Que morsa mais engraçada — comentou a mulher.

— Morsa? Sua história natural está toda errada. — O marquês riu. — Ele é seco demais para ser uma morsa. Sugiro algo como um gato velho.

— Bem, seja o que for, tenho pena da pobre menina. Imagine, não ter alguém melhor com quem sair!

— Bonitinha, não é?

— É, mas jovem demais, naturalmente.

— Gosto da inocência.

— Inocência? Cher ami! Essas garotas inglesas, oh, la la! Podem parecer inocentes. Mas creia-me...

— Psiu, vão ouvir você.

— Bah, eles não entendem italiano.

O marquês ergueu a mão.

— A velha morsa... — sussurrou; depois dirigiu-se em voz alta e jovial aos recém-chegados.

— Boa tarde, signorina. Boa tarde, sr. Topes. Depois de uma tempestade o ar é sempre mais puro, não concordam?

Bárbara assentiu, deixando a resposta para o sr. Topes. Não era a irmã dele. Era a mulher russa de quem a sra. Topes costumava dizer que era um absurdo permitirem que ela ficasse no hotel. Ela voltara as costas, dissociando-se da conversa; Bárbara observou o perfil de seu rosto. O sr. Topes estava dizendo algo sobre a Sinfonia pastoral. Pó de arroz escarlate à luz do dia; medonho.

— Bem, au revoir.

O clarão do sorriso do marquês foi dirigido a eles. A mulher russa deu as costas ao mar, fez uma reverência ligeira, sorriu languidamente. As pesadas pálpebras brancas estavam quase fechadas; parecia presa de um enorme tédio.

— Eles destoam um pouco — disse o sr. Topes quando se afastaram. — Destoam da hora, do lugar, da emoção. Não possuem a inocência para essa... essa... — remexeu-se e sua voz tremeu ao dizer a palavra certa, a palavra preciosa — essa paisagem prelapsariana.

Olhou de lado para Bárbara e se perguntou por que ela franzia a testa tão pensativa. Ah, maravilhosa e delicada jovem criatura! Que poderia ele dizer de adequado sobre a morte, a beleza, a ternura? Ternura...

— Tudo isso — continuou desesperadamente, e fez um gesto com a mão para indicar o céu, o mar, as montanhas —, essa cena é como algo relembrado, claro e inteiramente calmo; relembrado através de grandes golfos de tempo interveniente.

Mas aquilo não era realmente o que ele queria dizer.

— Entende o que quero dizer? — perguntou em tom dúbio. Ela não respondeu. Como poderia entender? — Essa cena é tão clara e pura e remota; você precisa da emoção correspondente. Essas pessoas estavam fora de harmonia. Não eram claras e puras o suficiente. — Ele parecia estar cada vez mais enrolado. — É uma emoção dos jovens e dos velhos. Você poderia senti-la, eu poderia senti-la. Essas pessoas não poderiam. — Ele estava tateando seu caminho através de obscuridades. Onde chegaria finalmente? — Certos poemas exprimem isso. Conhece Francis Jammes? Pensei muito na obra dele ultimamente. Arte em lugar da vida, como sempre; mas sou assim. Não consigo deixar de pensar em Jammes. Essas coisas delicadas e maravilhosas que ele escreveu sobre Clara d’Ellébeuse.

— Clara d’Ellébeuse? — Ela estacou e encarou-o.

— Conhece os versos? — O sr. Topes sorriu deliciado. — Este lugar me faz pensar, você me faz pensar neles. “J’aime dans les temps Clara d’Ellébeuse...” Mas, minha cara Bárbara, que foi que aconteceu?

Ela tinha começado a chorar, sem razão alguma.


Freiras no almoço

— O que andei fazendo desde que você me viu pela última vez? — A srta. Penny repetiu minha pergunta em sua voz alta e enfática. — Bem, quando me viu pela última vez?

— Deve ter sido em junho — calculei.

— Foi depois que o general russo me pediu em casamento?

— Sim; eu me lembro de ter ouvido falar no general russo.

A srta. Penny jogou a cabeça para trás e riu. Seus brincos compridos balançaram-se ruidosamente — cadáveres pendurados em correntes: uma analogia agradavelmente literária. E a risada dela era como cobre, mas isso já fora dito antes.

— Aquele incidente foi cômico. Pena que você já tenha ouvido. Adoro minha história do general russo. “Vos yeux me rendent fou.” — Ela riu de novo.

Vos yeux — ela tinha olhos de lebre, fundos e muito brilhantes, com um fulgor superficial e sem expressão. Que mulher formidável. Senti pena do general russo.

— “Sans coeur et sans entrailles” — ela continuou, citando as palavras do pobre-diabo. — Uma epígrafe tão deliciosa, não acha? Como “Sans peur et sans reproche”. Mas deixe-me pensar: que andei fazendo desde então? — Pensativamente ela mordeu a casca do pão com dentes longos, aguçados e brancos.

— Dois assados mistos — pedi ao garçom.

— Mas é claro — exclamou de repente a srta. Penny. — Não vejo você desde a minha viagem à Alemanha. Toda espécie de aventuras. Minha apendicite; minha freira.

— Sua freira?

— Minha freira maravilhosa. Preciso lhe contar tudo sobre ela.

— Faça isso. — Os casos da srta. Penny eram sempre curiosos. Eu previa um almoço bastante divertido.

— Sabia que estive na Alemanha no outono?

— Bem, não sabia. Porém...

— Eu estava só passeando por lá. — A srta. Penny descreveu um círculo no ar com sua mão exuberantemente cheia de joias. Sempre brilhava de joias pesadas e estranhas. — Passeando, vivendo com três libras por semana, em parte me divertindo, em parte juntando material para alguns artigos. “O que é ser uma nação conquistada”: coisas lacrimejantes para a imprensa liberal, sabe. E “Como o huno está tentando escapar da indenização”, para os outros sujeitos. É preciso tirar o melhor de todos os mundos possíveis, não acha? Mas não vamos falar de trabalho. Bem, eu estava passeando por lá e achando tudo muito agradável. Berlim, Dresden, Leipzig. Depois desci para Munique e andei por lá. Um belo dia cheguei a Grauburg. Conhece Grauburg? É uma dessas cidades alemãs dos álbuns de fotografias, com um castelo no morro, jardins suspensos, uma igreja gótica, uma velha universidade, um rio, uma linda ponte e florestas em toda a volta. Encantadora. Mas não tive muita oportunidade de apreciar as belezas do lugar. No dia seguinte à minha chegada, bangue! Caí com apendicite. Gritei de dor, fique sabendo.

— Mas que horror!

— Eles me levaram depressa para o hospital e me abriram num piscar de olhos. Excelente cirurgião, irmãs de caridade muito eficientes cuidando de mim; não poderia estar em melhores mãos. Mas era uma amolação ficar lá presa pela perna durante quatro semanas, uma grande amolação. Mesmo assim havia algumas compensações. Havia a minha freira, por exemplo. Ah, chegou a comida, graças a Deus!

O assado misto mostrou-se excelente. A descrição que a srta. Penny fez da freira chegou-me aos pedaços. Um rosto redondo, rosado e bonito sob a touca; olhos azuis e feições regulares; dentes perfeitos demais; falsos, aliás. Mas o efeito geral era extremamente agradável. Uma jovem teutônica de vinte e oito anos.

— Ela não era a minha enfermeira — explicou a srta. Penny. — Mas costumava vê-la com muita frequência quando ela vinha dar uma olhada na tolle Engländerin. Seu nome era irmã Agatha. Durante a guerra, disseram-me, ela convertera inúmeros soldados feridos para a fé verdadeira. O que não era de espantar, considerando-se como era bonita.

— Ela não tentou converter você? — perguntei.

— Não era tão tola assim. — A srta. Penny riu e sacudiu as correntes em miniatura de suas orelhas.

Diverti-me por um momento com a ideia da conversão da srta. Penny; a srta. Penny diante de uma grande assembleia de padres, sacudindo seus brincos aos discursos sobre a Trindade, rindo seu riso assustador à doutrina da Imaculada Conceição, encontrando o olhar sério do Grande Inquisidor com um clarão de seus olhos brilhantes e sem emoção. Qual era o segredo para uma mulher ser tão formidável?

Mas eu estava perdendo a história. Que foi que tinha acontecido? Ah, sim, o importante era que a irmã Agatha tinha aparecido certa manhã, depois de dois ou três dias de ausência, vestida não como freira, mas com um macacão das faxineiras do hospital, com um lenço em vez da touca em sua cabeça raspada.

— Morta — declarou a srta. Penny. — Ela parecia estar morta. Um cadáver ambulante, é o que ela era. Uma coisa impressionante. Eu não teria achado possível que alguém mudasse tanto em tão pouco tempo. Ela caminhava com dificuldade, como se tivesse passado meses doente, tinha grandes círculos escuros em volta dos olhos e rugas fundas no rosto. E a expressão geral de infelicidade, isso era algo bastante assustador.

Inclinou-se para a passagem entre as duas fileiras de mesas e agarrou pela ponta do paletó um garçom que passava. O pequeno italiano olhou em volta com uma expressão de surpresa que se transformou em terror.

— Uma caneca de Guinness — pediu a srta. Penny. — E depois me traga um rocambole.

— Não temos rocambole hoje, madame.

— Droga! — exclamou a srta. Penny. — Traga-me o que quiser, então.

Ela soltou o paletó do garçom e reencetou sua narrativa.

— Onde é que eu estava? Ah, eu me lembro. Ela entrou em meu quarto com um balde de água e um escovão, vestida de faxineira. Naturalmente fiquei bastante surpresa. “Que é que está fazendo, irmã Agatha?”, perguntei. Nenhuma resposta. Ela apenas sacudiu a cabeça e começou a esfregar o chão. Quando terminou, saiu do quarto sem nem mesmo olhar para mim. “Que aconteceu com a irmã Agatha?”, perguntei à minha enfermeira quando ela apareceu. “Não sei.” “Não quer dizer”, retruquei. Nenhuma resposta. Levei quase uma semana para descobrir o que realmente tinha acontecido. Ninguém ousava me contar; era strengst verboten,[36] como se costumava dizer nos velhos tempos. Mas finalmente consegui. Minha enfermeira, o médico, as faxineiras — extraí alguma coisa de todos eles. Sempre consigo o que quero. — A srta. Penny riu como um cavalo.

— Tenho certeza que sim — comentei educadamente.

— Muito obrigada — agradeceu a srta. Penny. — Mas continuando: minha informação me chegou em sussurros fragmentados. “A irmã Agatha fugiu com um homem.” Meu Deus! “Um dos pacientes.” Não diga! “Um criminoso saído da prisão.” O enredo se complica. “Ele fugiu dela.” O enredo se simplifica novamente. “Trouxeram-na de volta para cá; ela caiu em desgraça. Houve um serviço funerário para ela na capela, com caixão e tudo. Ela precisou estar presente ao próprio enterro. Não é mais freira. Agora tem que fazer o trabalho de faxineira, o mais duro do hospital. Não tem permissão de falar com ninguém e ninguém pode falar com ela. É tida como morta.” — A srta. Penny fez uma pausa para chamar o aflito italianinho. — Minha Guinness! — gritou.

— Já vai, já vai — e a voz estrangeira gritou “Guinness” para dentro do poço do elevador, e lá de baixo outra voz ecoou: “Guinness”.

— Aos poucos fui sabendo dos detalhes. Para começar, havia o nosso herói; tive que incluí-lo na história, o que era meio difícil, pois nunca o tinha visto. Mas arranjei uma fotografia dele. A polícia distribuiu uma quando ele fugiu; acho que nunca o pegaram. — A srta. Penny abriu a bolsa. — Sempre a carrego comigo; virou uma superstição. Durante anos, eu me lembro, costumava carregar um pedacinho de urze amarrada com barbante. Lindo, não é? Ele tem uma aparência meio renascentista, não acha? Era meio italiano, sabe?

Italiano. Ah, isso explicava tudo. Eu estava me perguntando como a Bavária poderia ter produzido essa criatura de rosto fino e grandes olhos escuros, o nariz e o queixo finamente moldados e os lábios carnudos tão majestosa e sensualmente curvados.

— Não há dúvida de que ele impressiona — falei, devolvendo a foto.

A srta. Penny guardou-a cuidadosamente na bolsa.

— Não é? Maravilhoso. Mas o caráter e o cérebro eram ainda melhores. Vejo-o como um desses monstros de iniquidade inocentes e infantis, que simplesmente ignoram a existência de certo e errado. E ele tinha um enorme talento, o talento italiano para a engenharia, para dominar e explorar a natureza. Um verdadeiro filho dos construtores dos aquedutos romanos ele era, e irmão dos engenheiros eletricistas. Só que Kuno — esse era seu nome — não trabalhava com água; ele trabalhava com mulheres. Sabia como fazer uso da energia natural da paixão; fazia a devoção mover seus moinhos. A exploração comercial da energia do amor, essa era a sua especialidade. Às vezes me pergunto — acrescentou a srta. Penny em tom diferente — se algum dia vou ser explorada, quando ficar um pouco mais velha e celibatária, por um desses jovens engenheiros da paixão. Seria humilhante, especialmente porque eu própria explorei um pouco.

Franziu a testa e ficou em silêncio por um momento. Não, decididamente, a srta. Penny não era bonita; nem se podia dizer honestamente que tinha encantos ou que era atraente. A coloração escocesa, aqueles olhos de lebre, a voz, a risada apavorante, e o tamanho dela, sua imponência geral. Não, não, não.

— Você disse que ele estivera preso — falei. O silêncio, com todas as suas implicações, estava ficando embaraçoso.

A srta. Penny suspirou, ergueu os olhos e assentiu.

— Ele foi suficientemente tolo para deixar a estrada reta e segura da exploração das mulheres em nome dos sinuosos perigos do roubo. Todos temos nossos acessos ocasionais de loucura. Deram-lhe uma sentença pesada, mas ele conseguiu pegar pneumonia, acho que foi isso, uma semana depois de entrar na prisão. Foi transferido para o hospital. A irmã Agatha, com seu conhecido talento para salvar almas, foi designada para atendê-lo. Mas foi ele quem fez a conversão.

A srta. Penny terminou o último pedaço do pudim de gengibre que o garçom lhe trouxera em lugar do rocambole.

— Imagino que você não fume charutos — falei, abrindo minha charuteira.

— Bem, para falar a verdade, fumo, sim — replicou a srta. Penny. Passeou o olhar aguçado pelo restaurante. — Só preciso ver se há aqui algum desses horríveis colunistas mexeriqueiros. Não quero aparecer na coluna social amanhã de manhã: “Um fato que não é tão conhecido quanto deveria ser é que a srta. Penny, a famosa jornalista, sempre termina seu almoço com um charuto da Birmânia de vinte centímetros. Vi-a ontem num restaurante a menos de cem quilômetros da rua Carmelita, fumando feito uma chaminé”. Você conhece o gênero. Mas a costa me parece livre, graças a Deus.

Pegou um charuto da charuteira, acendeu-o no fósforo que eu lhe estendi e continuou a falar.

— Sim, foi o jovem Kuno quem fez a conversão. A irmã Agatha foi convertida de volta à Melpomene Fugger mundana que fora antes de se tornar noiva da santidade.

— Melpomene Fugger?

— Era o nome dela. Ouvi a história dela do meu velho médico. Ele tinha visto toda Grauburg nascer, multiplicar-se e morrer durante gerações. Melpomene Fugger... Ora, ele tinha ajudado no parto da pequena Melpel, a pequena Melpchen. O pai dela era o professor Fugger, o grande professor Fugger, o berühmter Geolog,[37] Ah, sim, é claro, conheço o nome. Tão bem... Foi ele quem escreveu o trabalho clássico sobre a Lemúria: sabe, o continente hipotético de onde vieram os lêmures. Mostrei o devido respeito. Era liberal, discípulo de Herder, um cidadão do mundo, como eles dizem lá. Anglófilo, também, e sempre comeu mingau no café da manhã, até agosto de 1914. Então, na radiante manhã do dia 5, ele renunciou para sempre ao mingau, solenemente e com lágrimas nos olhos. O alimento nacional de um povo que traíra a cultura e a civilização, como poderia ele continuar comendo? Ficaria preso em sua garganta. No futuro ele comeria ovo quente. Parecia-me encantador. E a filha, Melpomene — ela também parecia encantadora; e que rabo de cavalo, espesso e loiro, ela tinha quando criança! A mãe estava morta, e uma irmã do grande professor comandava a casa com mão de ferro. Tia Bertha era o nome dela. Bem, Melpomene cresceu, gordinha e apetitosa. Aos dezesete anos, algo odioso e desagradável lhe aconteceu. Nem mesmo o médico sabia exatamente o que tinha sido, mas ele não se surpreenderia se fosse algo relativo ao então professor de latim, um velho amigo da família, que, parece, aliava grande erudição a uma horrível predileção por mocinhas bem jovens.

A srta. Penny derrubou dois centímetros de cinza do charuto em seu copo vazio.

— Se eu escrevesse contos — continuou, pensativa —, se não fosse trabalho demais, transformaria esse caso numa espécie de biografia, começando com a cena imediatamente posterior a esse desagradável acontecimento na vida de Melpomene. Vejo claramente a cena. A pobre Melpel, debruçada sobre o parapeito do castelo Grauburg, chorando numa noite de junho, e as amoreiras nos jardins dez metros abaixo. Dominam-na lembranças do que aconteceu naquela terrível tarde. O professor Engelmann, o velho amigo de seu pai, com a magnífica barba assíria vermelha... Horrível demais, demais! Mas, como estava dizendo, escrever contos dá muito trabalho, ou talvez eu seja burra demais para escrevê-los. Cedo-o a você. Você sabe como fazer funcionar essas coisas.

— Você é muito generosa.

— Nem um pouco — replicou a srta. Penny. — Minhas condições são uma comissão de dez por cento nas vendas americanas. Aliás, não haverá vendas americanas. A história da pobre Melpchen não serve para o casto público daqueles Estados. Mas diga-me o que você pretende fazer com Melpomene, agora que a tem no parapeito do castelo.

— É simples — declarei. — Conheço tudo sobre as universidades alemãs e os castelos nos montes. Vou fazer com que ela contemple a noite de junho, como você sugeriu; a noite violeta com seus pontos de chama dourada. Haverá a silhueta negra do castelo, com seus telhados pontiagudos e suas torrezinhas cobertas, atrás dela. Das cervejarias da cidade, lá embaixo, a voz dos estudantes, cantando em perfeita harmonia a quatro vozes, flutuará através da amplidão azul-escura. “Röslein, Röslein, Röslein rot” e “Das Ringlein sprang in zwei” — as canções comoventes e doces de antigamente vão fazê-la chorar mais ainda. Suas lágrimas cairão como chuva sobre as folhas das amoreiras no jardim abaixo. Isso lhe parece adequado?

— Muito bonito — aplaudiu a srta. Penny. — Mas como é que você vai trazer o problema sexual e todos os seus horrores para esta paisagem?

— Bem, deixe-me pensar. — Chamei à lembrança aqueles distantes verões no estrangeiro quando estava completando minha educação. — Já sei. Vou trazer de repente um enxame de velas e lanternas chinesas movendo-se sob as amoreiras. Pode imaginar a riqueza de luz e sombra, as folhas reluzindo feito joias, os rostos e membros dos homens e mulheres vistos por um instante e logo desaparecidos. São estudantes e moças da cidade que saíram para dançar nessa noite azul e parada de junho sob as amoreiras. E agora começam, girando em roda, batendo os pés ao compasso da música de suas canções:

Wir können spielen

Vio-vio-vio-lin,

Wir können spielen

Vi-o-lin.

E o ritmo muda, fica mais rápido:

Und wir können tanzen Bumstarara,

Bumstarara, Bumstarara,

Und wir können tanzen Bumstarara,

Bumstarara-rara.

“A dança se torna um tropel, um pisotear elefantino na grama seca sob as amoreiras. E do baluarte Melpomene observa e percebe, de súbito e como que num apocalipse, que tudo no mundo é sexo, sexo, sexo. Homens e mulheres, machos e fêmeas — sempre a mesma coisa, e tudo, à luz do horror daquela tarde, nojento. É assim que eu faria, srta. Penny.”

— E muito bem. Mas gostaria que você encontrasse um lugar para encaixar minha conversa com o médico. Nunca me esquecerei do modo como ele pigarreou e tossiu antes de embarcar em assunto tão delicado. “Deve saber, hum, minha graciosa senhorita”, ele começou, “deve saber que os fenômenos religiosos são com frequência, hum, intimamente ligados a causas sexuais.” Respondi que ouvira rumores que poderiam justificar minha crença de que isso é verdade entre os católicos, mas que na Igreja da Inglaterra (pois eu praticava o anglicanismo) era muito diferente. Pode ser, disse o médico; no decorrer de sua longa carreira médica ele não tivera oportunidade de estudar o anglicanismo. Mas era capaz de garantir o fato de que entre seus pacientes, ali em Grauburg, o misticismo apresentava-se amiúde misturado ao Geschlechtsleben.[38] Melpomene era um caso desses. Depois daquela tarde horrível ela se tornara extremamente religiosa; o professor de latim desviara suas emoções dos canais naturais. Ela se rebelou contra o agnosticismo plácido do pai e à noite, em segredo, quando os olhos de dragão de tia Bertha estavam fechados, ela lia livros proibidos, tais como a Vida de Santa Teresa, As florezinhas de São Francisco, a Imitação de Cristo e o monstruosamente fascinante Livro dos mártires. Tia Bertha confiscava essas obras quando as encontrava; considerava-as mais perniciosas do que os romances de Marcel Prévost. O caráter de uma boa esposa em potencial podia ser inteiramente minado por leituras desse tipo. Foi um alívio para Melpomene quando tia Bertha libertou-se, no verão de 1911, de seus deveres mortais. Ela era uma dessas pessoas indispensáveis sobre as quais descobrimos, depois que se foram, que poderíamos ter passado muito bem sem elas. Pobre tia Bertha!

— Pode-se imaginar Melpomene tentando acreditar que estava triste e ficando horrivelmente envergonhada ao descobrir que na verdade, em segredo, estava quase contente. — A sugestão me parecia engenhosa, mas a srta. Penny julgou-a óbvia.

— Exatamente — disse. — E a emoção só confirmaria e daria novo alento às tendências às quais a morte da tia abria caminho para que as vivesse como quisesse. Remorso, contrição — tais sentimentos levariam à ideia da penitência. E, para uma pessoa agora mergulhada no martirológio, penitência era a mortificação da carne. Ela costumava passar horas ajoelhada, à noite, no frio; comia pouco, e quando seus dentes doíam (o que acontecia com frequência, disse-me o médico, pois sua dentadura sempre lhe deu problemas), ela não ia ao dentista, mas ficava acordada toda a noite, desfrutando de todo o seu sofrimento e sentindo triunfantemente que este devia, à sua maneira enviesada, agradar às Forças Misteriosas. Continuou assim por dois ou três anos, até estar inteiramente envenenada. Por fim, ganhou uma úlcera gástrica. Levou três meses até sair do hospital, bem pela primeira vez em anos e com uma dentadura novinha de dentes duráveis, tudo ouro e marfim. Também por dentro ela estava mudada — para melhor, imagino. As freiras que cuidaram dela fizeram-na ver que, mortificando-se, ela agira com exagero, motivada pelo orgulho espiritual; em vez de agir certo, ela pecara. O único caminho para a salvação, disseram-lhe, estava na disciplina, na ordem da religião estabelecida, na obediência à autoridade. Secretamente, para não entristecer seu pobre pai, cujo agnosticismo era extremamente dogmático apesar de toda a sua moderação, Melpomene tornou-se católica romana. Tinha vinte e dois anos. Poucos meses mais tarde veio a guerra e a renúncia eterna do professor Fugger ao mingau. Ele não sobreviveu muito tempo a seu gesto patriótico. No outono de 1914 pegou uma gripe fatal. Melpomene estava sozinha no mundo. Na primavera de 1915 havia uma nova e muito escrupulosa irmã de caridade trabalhando entre os feridos no hospital de Grauburg. Aqui — explicou a srta. Penny, cortando o ar com o dedo indicador — você põe uma linha de asteriscos ou pontos para significar um intervalo de seis anos na narração. E começa de novo bem no meio de um diálogo entre a irmã Agatha e o convalescente Kuno.

— Sobre o que vai ser o diálogo deles?

— Ah, isso é fácil — declarou a srta. Penny. — Qualquer coisa serve. Que tal isso, por exemplo? Você explica que a febre acabou de baixar; pela primeira vez em vários dias o rapaz está inteiramente consciente. Sente-se muito bem, renascido, por assim dizer, em um mundo novo — um mundo tão brilhante e diferente e alegre que ele não consegue deixar de rir. Olha em volta; as moscas no teto lhe parecem extremamente cômicas. Como conseguem andar de cabeça para baixo? Elas têm ventosas nos pés, diz a irmã Agatha, perguntando-se se sua história natural estaria correta. Ventosas nos pés, ha, ha! Que ideia louca! Ventosas nos pés, isso é ótimo! Você pode dizer umas coisinhas encantadoras, patéticas, de todo ternas sobre a descabida alegria dos convalescentes — ainda mais nesse caso particular, em que a alegria é expressada por um rapaz que será levado de volta à prisão tão logo consiga firmar-se nas pernas. Ha, ha! Continue a rir, pobre rapaz! É a gargalhada do Destino, das Parcas, das Nornas!

A srta. Penny fez uma exagerada imitação de sua própria risada metálica. A esse som, os poucos comensais que ainda restavam nas outras mesas ergueram os olhos, assustados.

— Você pode escrever páginas sobre o Destino e sua gargalhada irônica. É tremendamente impressionante, e há dinheiro em cada linha.

— Pode ter certeza de que escreverei.

— Ótimo! Então posso continuar com minha história. Os dias passam e a primeira alegria da convalescença desaparece. O rapaz se lembra e fica melancólico; sua força retorna, e com ela uma sensação de desespero. Sua mente interroga incessantemente o odioso futuro. Quanto aos consolos da religião, ele não quer saber. A irmã Agatha persevera — ah! mas com que solicitude e ansiedade, na tentativa de fazê-lo compreender e crer e encontrar consolo. É tudo tremendamente importante, e nesse caso, de alguma forma, mais importante do que em qualquer outro. E agora você vê a Geschlechtsleben em operação, fecunda e obscura, e mais uma vez ouve-se a gargalhada das Nornas. Aliás — fez a srta. Penny, mudando de tom e inclinando-se em postura de confidência por sobre a mesa —, gostaria que me dissesse uma coisa. Você acredita mesmo, diga com toda a honestidade, você acredita seriamente na literatura?

— Se eu acredito na literatura?

— Estava pensando — explicou a srta. Penny — no Destino Irônico e nas gargalhadas das Nornas, essas coisas.

— Hum, sim.

— E também esse negócio de psicologia e introspecção; e construção, boa narração, imagens e le mot juste, mágica verbal e metáforas fortes.

Lembrei-me de ter comparado os brincos tintilantes da srta. Penny a esqueletos presos a correntes.

— E então, finalmente e para começar, Alfa e Ômega, nós próprios: dois profissionais saboreando, com uma falta de simpatia absoluta, a sedução de uma freira e especulando a melhor maneira de transformar os infortúnios dela em dinheiro. É tudo muito curioso, não é?, quando a gente começa a pensar friamente sobre isso.

— Muito curioso — concordei. — Mas tudo é, quando se olha assim.

— Não, não — discordou a srta. Penny. — Nada é tão curioso quanto nosso negócio. Mas jamais chegarei ao fim de minha história se começar a entrar nos princípios.

A srta. Penny continuou sua narrativa. Eu ainda estava pensando na literatura. Você acredita nela? Seriamente? Oh! Felizmente a pergunta não tinha sentido. A história me chegou um tanto vagamente, mas parecia que o rapaz estava melhorando; em poucos dias, disse o médico, ele estaria bem — bem o suficiente para voltar para a cadeia. Não, não. A pergunta não tinha sentido. Não iria mais pensar nela. Concentrei novamente minha atenção.

— A irmã Agatha — ouvi a srta. Penny dizer — rezou, exortou, doutrinou. Sempre que tinha meio minuto de folga de suas demais obrigações ela corria para o quarto do rapaz. “Eu me pergunto se você compreende inteiramente a importância da oração”, ela dizia, e, antes que ele tivesse tido tempo para responder, ela lhe dava uma lição sobre os usos e as virtudes da súplica regular e paciente. Ou então era: “Posso lhe falar sobre Santa Teresa?” ou “Santo Estêvão, o primeiro mártir, você já ouviu falar dele, não ouviu?” A princípio Kuno simplesmente não queria ouvir. Parecia-lhe fantasticamente descabida essa absurda interrupção de seus pensamentos, de seus pensamentos sérios e desesperados sobre o futuro. A prisão era real, iminente, e essa mulher o perseguia com seus ridículos contos de fadas. Então, de repente, um dia ele começou a escutar e a mostrar sinais de contrição e conversão. A irmã Agatha anunciou seu triunfo às outras freiras, e houve regozijo por causa da ovelha tresmalhada. Melpomene nunca se sentira tão feliz na vida, e Kuno, olhando para seu rosto radiante, deve ter se perguntado como podia ter sido tão tolo de não ver desde o início o que agora lhe era tão óbvio. A mulher perdera a cabeça por ele. E ele só tinha quatro dias — quatro dias para canalizar essa incrível energia amorosa e colocá-la trabalhando para sua fuga. Por que não começara uma semana antes? Então podia ter certeza de dar certo. Mas agora? Não era possível saber. Quatro dias era um tempo curto demais.

— Como foi que ele fez isso? — perguntei, pois a srta. Penny se interrompera.

— Isso é você quem vai dizer — ela respondeu, e sacudiu os brincos para mim. — Não sei. Ninguém sabe, imagino, exceto pelas duas pessoas envolvidas e talvez o confessor da irmã Agatha. Mas pode-se reconstruir o crime, como dizem. Como você teria agido? Você é homem, deve conhecer o processo da engenharia amorosa.

— Você me lisonjeia — respondi. — Então imagina que...? — Estendi os braços. A srta. Penny riu como um cavalo. — Não. Mas, sério, é um problema. Esse caso é muito especial. A pessoa, uma freira; o lugar, um hospital; as oportunidades, poucas. Não podia haver circunstâncias favoráveis — luar, música distante; e qualquer forma de ataque direto com certeza falharia. Aquele tipo de confiança audaciosa que é a melhor arma do seu sedutor não funcionaria aqui.

— Claro — disse a srta. Penny. — Mas com certeza há outros métodos; pode ser a abordagem pela piedade e o instinto maternal. E a abordagem espiritual pelas mais Elevadas Esferas, pela alma. Kuno deve ter trabalhado com essas armas, não acha? Pode-se imaginá-lo deixando-se converter, rezando com ela e ao mesmo tempo apelando à sua solidariedade e até mesmo ameaçando, com ar sério, matar-se para não voltar para a cadeia. Você pode escrever isso facilmente e de modo convincente. Mas é o tipo de coisa que acho entediante fazer. Por isso não consigo escrever ficção. Qual é o sentido de tudo isso? E o modo como vocês, literatos, se acham tão importantes — especialmente se escrevem tragédias. É tudo muito estranho, muito estranho mesmo.

Não respondi. A srta. Penny mudou de tom e continuou com a história:

— Bem, seja qual for o meio empregado, o processo de engenharia foi perfeito. O amor foi obrigado a achar um modo. Na tarde da véspera do dia em que Kuno voltaria para a prisão, duas irmãs de caridade saíram pelos portões do hospital, cruzaram a praça defronte, desceram as ruelas em direção ao rio, pegaram um bonde na ponte e não saltaram até o bonde chegar ao ponto final, num subúrbio distante. Saíram caminhando ao longo da estrada para o campo. “Veja!”, disse uma delas, quando deixaram as casas para trás; e com um gesto de ilusionista tirou do nada uma carteira de couro vermelho. “De onde surgiu isso?”, perguntou a outra, arregalando os olhos. Lembranças de Eliseu e os corvos, do jarro da viúva, devem ter passado pela névoa iluminada da cabeça da pobre Melpomene. “A velha que estava sentada a meu lado no bonde deixou a bolsa aberta. Não podia ser mais fácil.” “Kuno, você não está querendo dizer que roubou a bolsa, está?” Kuno praguejou horrivelmente. Tinha aberto a carteira. “Só sessenta marcos. Quem ia pensar que aquela camela velha, toda enfeitada de sedas e peles, teria só sessenta marcos na carteira? E eu preciso de pelo menos mil marcos para fugir.” É fácil reconstituir o resto da conversa até o inevitável “Pelo amor de Deus, cale a boca” com que Kuno poria fim à consternada pregação moral de Melpomene. Continuam caminhando em silêncio. Kuno pensa desesperadamente. Só sessenta marcos não davam para nada. Se pelo menos tivesse alguma coisa para vender, uma joia, ouro ou prata — qualquer coisa, qualquer coisa. Conhece um lugar ótimo para vender coisas. Será que vai ser preso de novo só por falta de uns poucos marcos? Melpomene também está pensando. Muitas vezes é preciso fazer o mal para que possa vir o bem. Afinal, ela mesma não tinha roubado as roupas da irmã Maria da Purificação quando a outra dormia depois da noite de plantão? Não tinha fugido do convento, quebrado seus votos? E, no entanto, como estava convencida de que estava fazendo o certo? As Forças misteriosas enfaticamente aprovavam; ela tinha certeza disso. E agora essa carteira vermelha. Mas o que era uma carteira vermelha quando comparada a uma alma salva? E, afinal, o que ela estava fazendo, senão salvando a alma de Kuno? — A srta. Penny, que adotara a voz e os gestos de um orador fazendo perguntas retóricas, baixou a mão sobre a mesa com um tapa. — Meu Deus, como esse tipo de coisa é enfadonha! — exclamou. — Vamos chegar ao fim dessa piada arrastada o mais depressa possível. Aquela hora, você pode imaginar, as sombras da noite caíam depressa — o frio do crepúsculo de novembro, etc., etc. Mas vou deixar para você as descrições. Kuno entra na vala à beira da estrada e tira o hábito. Imagino que ele se sentiria mais seguro de calças, mais capaz de agir com decisão numa crise. Andam quilômetros. Tarde da noite saem da estrada e atravessam os campos em direção a uma floresta. Na beira do bosque encontram um desses casebres sobre rodas onde os pastores dormem na temporada de procriação.

— A verdadeira Maison du Berger?[39]

— Exatamente — confirmou a srta. Penny, e começou a recitar:

Si ton coeur gémissant du poids de notre vie,

Se traîne et se débat comme un aigle blessé...

“Como é que continua? Eu adorava isso tanto quando era garota!”

Le seuil est parfumé, l’alcôve est large et sombre,

Et là parmi les fleurs, nous trouverons dans l’ombre,

Pour nos cheveux unis un lit silencieux.

“Eu poderia continuar indefinidamente.”

— Então continue — pedi.

— Não, não, não, não. Estou resolvida a terminar essa história desgraçada. Kuno quebrou o cadeado da porta. Entraram. Que aconteceu naquele barracãozinho? — A srta. Penny inclinou-se em minha direção. Seus grandes olhos de lebre brilhavam, os brincos compridos balançavam e tilintavam de leve. — Imagine as emoções de uma virgem de trinta anos, ainda por cima uma freira, na presença aterrorizante do desejo. Imagine as brutalidades fáceis e costumeiras do rapaz. Ah, pode-se fazer páginas e páginas disso — a escuridão absolutamente impenetrável, o cheiro de palha, as vozes, o choro abafado, os movimentos. E é bom imaginar que as emoções pulsando naquele espaço confinado tinham vibrações palpáveis, como um som baixo que sacode o ar. Ora, essa cena é literatura já pronta. De manhã — continuou a srta. Penny depois de uma pausa — dois lenhadores a caminho do trabalho perceberam que a porta do casebre estava escancarada. Aproximaram-se com cuidado, os machados erguidos e prontos para um golpe se houvesse necessidade. Olhando para dentro, viram uma mulher de preto deitada de rosto para baixo na palha. Morta? Não; ela se movia, gemia. “Qual é o problema?” Um rosto inchado, manchado com listras de poeira cinzenta misturada a lágrimas, ergue-se para eles. “Qual é o problema?” “Ele foi embora!” Que exclamação estranha, indistinta. Os lenhadores se entreolham. Que é que ela está dizendo? Talvez seja estrangeira. “Qual é o problema?”, tornam a repetir. A mulher tem uma violenta explosão de choro. “Foi embora, foi embora! Ele foi embora!”, ela soluça ininteligivelmente. “Ah, foi embora, isso é que ela está dizendo. Quem foi embora?” “Ele me deixou.” “Quê?” “Me deixou...” “Que diabos...? Fale mais claro.” “Não posso”, ela geme. “Ele levou meus dentes.” “Seus quê?” “Meus dentes!” E a voz aguda transforma-se num grito, e ela torna a cair soluçante sobre a palha. Os lenhadores se entreolham significativamente. Um deles leva o dedo indicador, grosso e de unha amarela, até o lado da cabeça e faz círculos.

A srta. Penny consultou o relógio.

— Céus! — exclamou. — São quase três e meia da tarde. Tenho que voar. Não se esqueça do serviço funerário — acrescentou enquanto vestia o casaco. — Os círios, o caixão negro no meio da nave da igreja, as freiras com suas toucas de asas brancas, os cânticos tristes e a pobre criatura encolhida, sem dentes, o rosto como o de uma velha — perguntando-se se não estaria realmente e de fato morta. Perguntando-se se já não estaria no inferno. Adeus.


Mexicaninho

O vendedor chamava-o, com afeto, mexicaninho; e para um mexicano, ele pode ter sido pequeno. Mas nesta nossa Europa, onde o espaço é limitado e a escala é menor, o mexicaninho era portentoso, um gigante entre chapéus. Estava ali pendurado no centro da vitrine da chapelaria, uma enorme auréola negra, digna de um rei entre demônios. Mas nenhum demônio caminhava naquela tarde pelas ruas de Ravena; apenas o mais inofensivo de todos os turistas literários. Aqueles eram os dias em que chapéus grandes pareciam, a meus olhos, desejáveis, e era sobre a minha cabeça tão indigna que aquela auréola de escuridão estava destinada a descer. Sobre minha cabeça; pois à primeira vista do chapéu corri para dentro da loja, experimentei-o, achei-o perfeito de tamanho e comprei-o, sem barganhar, por um preço de estrangeiro. Saí da loja com o mexicaninho na cabeça, e minha sombra nas calçadas de Ravena parecia a sombra de uma magnólia.

O mexicaninho está muito velho agora, verde e roído pelas traças. Mas ainda o tenho comigo. De vez em quando, em nome das velhas amizades, eu até o uso. Querido mexicaninho! Ele representa para mim toda uma época de minha vida. Significa a emancipação e o primeiro ano na universidade. Simboliza a descoberta de tantas coisas novas, ideias novas, sensações novas! Da literatura francesa, do álcool, da pintura moderna, de Nietzsche, do amor, da metafísica; de Mallarmé, do sindicalismo e Deus sabe do que mais. Mas, acima de tudo, eu o aprecio porque me lembra minha primeira descoberta da Itália. Ele torna a suscitar para mim, o meu mexicaninho, todas as emoções, surpresas e êxtases virginais daquela primeira turnê italiana no início do outono de 1912. Urbino, Rimini, Ravena, Ferrara, Módena, Mântua, Verona, Pádua, Veneza, minha primeira impressão de todos esses nomes fabulosos descansa, como um chapéu cheio de joias, na coroa do mexicaninho. Será que um dia terei coragem de jogá-lo fora?

E também, é claro, há Tirabassi. Sem o mexicaninho eu nunca teria conhecido Tirabassi. Ele nunca teria imaginado que eu, em meu pouco enfático chapéu inglês, fosse um pintor. E, consequentemente, eu nunca teria visto os afrescos nem conversado com o velho conde nem ouvido falar na Colombella. Nunca... Quando penso nisso, o mexicaninho me parece ainda mais precioso.

Era, naturalmente, bem típico de Tirabassi supor, pelo tamanho do meu chapéu, que eu devia ser pintor. Ele tinha a mentalidade militar que se recusava a aceitar a vaga desordem do mundo. Estava sempre pronto a etiquetar, classificar e limitar seu universo; e quando os objetos classificados saíam de seus compartimentos e arrancavam as etiquetas do pescoço Tirabassi ficava confuso e aborrecido. De qualquer maneira, para ele era óbvio, desde o primeiro momento em que me viu no restaurante em Pádua, que eu devia ser pintor. Todos os pintores usam chapéus grandes e pretos. Eu estava usando o mexicaninho. Ergo, eu era pintor. Era silogístico, inescapável.

Ele mandou um garçom me perguntar se eu lhe daria a honra de tomar café com ele em sua mesa. No início, confesso, fiquei um pouco assustado. Esse impetuoso tenente da cavalaria, que diabos podia querer comigo? As fantasias mais absurdas encheram-me a mente: cometera, de modo inteiramente inconsciente, alguma terrível impostura; pisara nos pés da honra do tenente, e ele estava prestes a me desafiar para um duelo. A escolha das armas, refleti rapidamente, seria minha. Mas o quê, que arma eu escolheria? Espadas? Não era treinado na esgrima. Pistolas? Uma vez dera seis tiros numa garrafa e errara todos os seis. Haveria tempo para escrever uma ou duas cartas, fazer um tipo qualquer de testamento de meus pertences pessoais? Dessa angústia o garçom, voltando em seguida com meu polvo frito, me salvou. O tenente Conde, ele explicou num sussurro confidencial, tinha uma villa no Brenta, não muito longe do Strà. Uma villa — ele estendeu os braços em um gesto generoso — cheia de pinturas. Cheia, cheia, cheia. E estava ansioso para que eu as visse, pois tinha certeza de que me interessava por pintura. Ah, naturalmente — sorri um tanto tolamente, pois o garçom parecia esperar de mim algum comentário confirmando — eu era interessado em pintura; muitíssimo. Nesse caso, disse o garçom, o Conde teria muito prazer em me levar para vê-las. Deixou-me ainda confuso, mas bastante aliviado. De qualquer maneira, eu não teria que fazer a embaraçosa escolha entre espadas e pistolas.

Com discrição, todas as vezes que ele não estava olhando na minha direção eu examinava o tenente Conde. Sua aparência não era tipicamente italiana (mas o que é um italiano típico?). Ele não tinha a queixada azulada, os olhos vivos, não era moreno nem aquilino. Pelo contrário, tinha cabelos castanho-claros, olhos cinzentos, nariz arrebitado e pele sardenta. Eu conhecia muitos ingleses que poderiam ser os irmãos menos vivazes do conde Tirabassi.

Ele me recebeu, quando chegou a hora, com a mais refinada cortesia, desculpando-se pelo modo pouco cerimonioso com que me abordara.

— Mas como eu estava certo — falou — de que você se interessava pela arte, achei que me perdoaria por causa do que tenho para lhe mostrar.

Não pude deixar de me perguntar por que o conde tinha tanta certeza do meu interesse pela arte. Foi só mais tarde, quando deixamos juntos o restaurante, que compreendi; pois, ao colocar meu chapéu para sair, ele apontou com um sorriso para o mexicaninho.

— Pode-se ver que você é um artista de verdade.

Fiquei perdido, sem saber o que responder.

Passada a troca preliminar de cortesias, o tenente atacou de imediato, e totalmente por minha causa, como podia notar o tema.

— Hoje em dia — disse — nós, italianos, não somos bastante interessados em arte. Em um país moderno, compreende... — Deu de ombros deixando a frase por terminar. — Mas não acho isso certo. Adoro arte. Simplesmente adoro. Quando vejo estrangeiros andando por aí com seus livros de informações, parados meia hora diante de um quadro, olhando primeiro para o livro, depois para o quadro... Neste ponto, ele fez uma brilhante imitação de um clérigo anglicano, “fazendo” cuidadosamente a capela Mantegna: primeiro uma olhada no livro imaginário apoiado nas duas mãos, depois, com o movimento de uma galinha bebendo, o rosto erguido para um afresco imaginário, um olhar comprido entre pálpebras franzidas, a boca entreaberta, e finalmente os olhos voltando para as páginas inspiradas do guia Baedeker. Quando os vejo, sinto vergonha por nós, italianos. — O conde falava com muita seriedade, sentindo, talvez, que seu talento para a mímica o levara um pouco longe demais. — E se eles passam meia hora olhando para o negócio, eu vou e passo uma hora. É a maneira de entender a arte. A única maneira. — Recostou-se na cadeira e tomou um gole de café. — Infelizmente — acrescentou, depois de um momento —, não se tem muito tempo.

Concordei com ele:

— Quando a pessoa não pode passar mais de um mês seguido na Itália, como eu...

— Ah, se pelo menos pudesse viajar pelo mundo como você — o conde suspirou. — Mas aqui estou, preso nesta cidade desgraçada. E quando penso no capital enorme pintado lá nas paredes de minha casa...

Interrompeu-se, sacudindo a cabeça. Então, mudando de tom, começou a falar-me sobre sua casa no Brenta. Parecia bom demais para ser verdade. Carpioni, sim — estavam lá os afrescos de Carpioni; quase todo mundo poderia tê-los. Mas um vestíbulo por Veronese, quartos por Tiepolo, tudo na mesma casa — isso parecia inacreditável. Não podia deixar de acreditar que o entusiasmo do conde pela arte o tinha dominado. Mas, de qualquer maneira, no dia seguinte eu poderia julgar por mim mesmo; o conde me convidara para almoçar com ele.

Saímos do restaurante. Ainda constrangido pelas referências do conde ao meu mexicaninho, caminhei a seu lado em silêncio pela rua em arcada.

— Vou apresentá-lo a meu pai — disse o conde. — Ele também adora as artes.

Mais do que nunca me sentia um vigarista. Conquistara a confiança do conde sob falsos pretextos; meu chapéu era uma mentira. Senti que devia fazer alguma coisa para esclarecer o mal-entendido. Mas o conde estava tão ocupado queixando-se do pai que não tive oportunidade para introduzir minha explicação. Confesso, não ouvi com muita atenção o que ele dizia. Durante um ano em Oxford, escutara muitos jovens reclamando dos pais. Pouco dinheiro, muita interferência: sempre a mesma história. Ademais, naquela época eu adotara uma visada mais filosófica e elevada sobre esse tipo de coisa. Eu fingia que as pessoas não me interessavam — somente os livros, somente as ideias. Como se pode bancar o bobo nessa idade!

— Eccoci — fez o conde. Paramos diante do Café Pedrochi. — Ele sempre vem tomar café aqui.

E onde mais iria ele tomar seu café? Quem, em Pádua, iria a outro lugar?

Encontramo-lo sentado no terraço, no canto oposto do prédio. Eu nunca vira um velho cavalheiro mais jovial, pensei. O velho conde tinha o rosto envelhecido, com bigodes brancos erguendo-se galantes e uma pera branca à suntuosa moda renascentista de Vítor Emanuel 11. Sob as sobrancelhas brancas e fartas, em meio a uma teia de rugas sutis, os olhos eram castanhos e brilhantes como os de um tordo. Seu nariz comprido parecia, de certo modo, mais útil na prática do que o nariz humano normal, como se feito para aspirar com fineza e pose, para brincadeiras delicadas. Robusto e forte, ele sentava-se solidamente na cadeira, joelhos separados, mãos juntas sobre o castão da bengala, carregando a pança com dignidade, nobremente chego a dizer, à frente do corpo. Estava todo vestido de linho branco — pois o tempo ainda era quente — e seu largo chapéu cinzento estava puxado malandramente sobre o olho esquerdo. Dava satisfação olhar para ele; tão completo, tão perfeito a seu modo ele era.

O jovem conde me apresentou:

— Este é um cavalheiro inglês. Signor... — Voltou-se para mim.

— Oosselay — respondi, tendo aprendido por experiência que isso era o mais perto que qualquer italiano conseguia chegar do meu nome.

— O signor Oosselay — continuou o jovem conde — é artista.

— Bem, não exatamente artista — comecei; mas ele não me deixou terminar.

— Ele também se interessa muito por arte antiga — continuou ele. — Amanhã vou levá-lo a Dolo para ver os afrescos. Sei que ele vai gostar.

Sentamo-nos à mesa do velho conde; ele olhou criticamente para mim e assentiu.

— Benissimo — falou, e acrescentou: — Vamos esperar que possa fazer alguma coisa para nos ajudar a vendê-los.

Isso era surpreendente. Olhei, meio perplexo, para o jovem conde. Ele olhava com raiva para o pai. O velho cavalheiro evidentemente dissera a coisa errada; falara, imaginei, cedo demais. De qualquer maneira, entendeu a indireta do filho e passou serenamente para outro assunto.

— A fantasia férvida de Tiepolo — começou sonoramente. — O esplendor frio e desapaixonado de Veronese... Em Dolo você vai ver os dois contrastados. — Escutei atento, enquanto o velho prosseguia ruidosamente no que era, não havia sombra de dúvida, um discurso ensaiado. Quando ele terminou, o jovem conde levantou-se; tinha que estar de volta ao quartel às duas e meia da tarde. Preparei-me para sair também; mas o velho colocou a mão em meu braço. — Fique comigo — disse. — Aprecio imensamente sua conversa. E como ele próprio mal fechara a boca por um momento desde que eu o conhecera, acreditei. Com o gesto de uma dama erguendo as saias para longe da lama (e aqueles eram dias em que as saias ainda tinham de ser erguidas), o jovem conde ergueu seu sabre pendente e partiu, muito militar, vivo e radiante, como um soldado de teatro, para a luz do sol, e desapareceu de vista.

Os olhos com brilho de pássaro do ancião acompanharam sua partida.

— Bom rapaz, o Fábio — disse, voltando-se finalmente para mim. — Um bom filho. — Falava com afeição; mas havia em seu sorriso, achei, no tom de sua voz, um toque de divertimento, de ironia. Era como se ele tivesse acrescentado implicitamente: “Mas bons rapazes, afinal, são tolos em serem tão bons”. Vi-me, apesar do afetado alheamento, bastante curioso acerca daquele velho cavalheiro. Ele, por sua vez, não era homem de deixar qualquer pessoa em sua companhia permanecer muito tempo em esplêndido isolamento. Insistia em que eu me interessasse por seus negócios. Contou-me tudo sobre eles — ou, pelo menos, tudo sobre alguns deles —, fazendo jorrar suas confidências com uma impressionante falta de reserva. Depois do amigo íntimo e de confiança, um perfeito desconhecido é o melhor dos confidentes. Não existe um só viajante comercial, de aparência moderadamente simpática, que durante seus dias nos trens e suas noites nas portarias dos hotéis comerciais não tenha sido feito repositório de mil segredos íntimos — até mesmo na Inglaterra. E na Itália — Deus sabe o que os viajantes comerciais ouvem na Itália. Mesmo eu, um estrangeiro, falando mal a língua e de qualquer modo não muito hábil em conversar com desconhecidos, tinha ouvido coisas estranhas nos vagões de segunda classe dos trens italianos... Ali, também, no terraço do Pedrochi, eu ouviria coisas estranhas. Uma porta seria aberta e através da fresta eu teria uma visão de vidas pouco familiares.

— O que eu devia fazer com ele — prosseguiu o velho —, realmente não sei. O modo como ele dirige a propriedade é simplesmente maravilhoso. — E continuou a falar em longas divagações sobre a estupidez dos camponeses, a incompetência e a desonestidade dos capatazes, a severidade do tempo, a disseminação de pragas nas parreiras, o alto preço do esterco. O desfecho era que, desde que Fábio se encarregara da propriedade, tudo ia bem; até mesmo o tempo tinha melhorado. — É um alívio tão grande — concluiu o conde — sentir que tenho alguém em quem possa confiar inteiramente, tomando conta de tudo. Isso me deixa livre para dedicar minha mente a coisas mais importantes.

Não pude deixar de imaginar quais seriam as coisas importantes; mas senti que seria impertinência perguntar. Em vez disso, fiz uma pergunta mais prática:

— Mas que vai acontecer quando o serviço militar de seu filho afastá-lo de Pádua?

O velho conde deu-me uma piscadela e levou o dedo indicador, com bastante deliberação, à lateral de seu grande nariz. O gesto era rico de significado.

— Isso nunca vai acontecer — disse. — Está tudo arranjado. Uma pequena combinazione, você sabe. Tenho um amigo no Ministério. O serviço militar vai mantê-lo sempre em Pádua. — Tornou a piscar e sorriu.

Não pude deixar de rir, e o velho Conde juntou-se a mim com um jovial “ha, ha, ha”, expressão de uma satisfação profunda que era, por assim dizer, uma rajada de aplausos para si mesmo. Tinha um evidente orgulho de sua pequena combinazione. Mas tinha ainda mais orgulho da outra combinação, e acerca desta ele agora se inclinava sobre a mesa para, em tom de confidência, me contar. Era decididamente a mais sutil das duas.

— E não é meramente seu serviço militar — falou, sacudindo o dedo grosso e de unha amarela que levara ao nariz. — Não é só o serviço militar que vai manter o rapaz em Pádua. É o dever doméstico. Ele é casado. Eu o casei. — Recostou-se na cadeira e estudou-me, a sorrir. As ruguinhas em volta dos olhos pareciam vivas. — Esse rapaz, eu disse a mim mesmo, precisa sossegar. Precisa ter um ninho, senão voa para longe. Precisa de raízes, senão vai fugir. E o pobre do seu pai ficará mal. Ele é jovem, pensei, mas precisa se casar. Tem que se casar. Imediatamente. — E o velho fez largos gestos com o indicador. Era uma história comprida. Seu velho amigo, o avvocato Monaldeschi, tinha doze filhos, três rapazes e nove moças. (E aqui houve divagações sobre o avvocato e o tamanho das boas famílias católicas.) A mais velha tinha a idade certa para Fábio. Dinheiro nenhum, é claro; mas uma boa moça, e bonitinha, e muito bem educada e religiosa. Religiosa — isso era muito importante, pois era essencial que Fábio tivesse uma família grande (para prendê-lo com mais eficiência, explicou o velho conde) e com essas moças modernas, criadas fora da Igreja, não se podia ter certeza de filhos. Sim, a religião era importantíssima; ele estudara isso cuidadosamente antes de escolhê-la. Bem, o passo seguinte, naturalmente, era que Fábio fosse induzido a escolhê-la. Tinha sido uma questão de levar o cavalo à água e fazê-lo beber. Ah, uma coisa dificílima e delicadíssima! Pois Fábio orgulhava-se de sua independência; e era teimoso como uma mula. Ninguém podia interferir em seus negócios, ninguém podia obrigá-lo a fazer o que ele não queria. E era tão suscetível, tão cabeça-dura que muitas vezes não fazia o que realmente queria só porque alguém sugeria que ele o fizesse. De modo que eu podia imaginar — e o velho conde estendia os braços à minha frente — como tinha sido um negócio difícil e delicado. Só um diplomata consumado poderia ter tido sucesso. Ele o conseguiu juntando-os várias vezes e, entrementes, falando sobre a estupidez de casamentos apressados, a inutilidade de esposas pobres, a indesejabilidade de esposas que não eram de berço nobre. Funcionou como um feitiço: dentro de quatro meses Fábio estava noivo; dois meses depois estava casado e dez meses depois disso tinha um filho e herdeiro. E agora estava preso, enraizado. O velho cavalheiro deu uma risadinha, e eu podia imaginar que estava escutando a risada de um velho tirano de cabelos brancos do quattrocento congratulando-se pelo sucesso de uma manobra qualquer peculiarmente engenhosa — uma cidade rica induzida a render-se pela fraude, um rival perigoso atraído por palavras doces a uma armadilha. Pobre Fábio, pensei; e também, que desperdício de talento!

Sim, continuou o velho conde, agora ele jamais partiria. Não era como o irmão mais moço, Lúcio. Lúcio era um tratante, furbo, esperto; não tinha consciência. Mas Fábio tinha ideias sobre o dever, e vivia de acordo com elas. Uma vez assumido um compromisso, ele o manteria, obstinado, com toda a teimosia de seu caráter. Bem, agora ele vivia na propriedade, na grande casa pintada de Dolo. Três dias por semana vinha a Pádua para seu serviço militar, e o resto do tempo era dedicado à propriedade. Ela agora rendia muito mais do que antes. Mas só Deus sabia, queixou-se o velho, que mesmo isso era bem pouco. Pão e azeite, vinho e leite, galinhas e carne — havia bastante disso, até demais. Fábio poderia ter uma família de cinquenta pessoas e nunca passariam fome. Mas dinheiro vivo — disso não havia muito. — Na Inglaterra — concluiu o conde — vocês são ricos. Mas nós, italianos... — Ele sacudiu a cabeça.

Passei o quarto de hora seguinte tentando convencê-lo de que não éramos todos milionários. Mas em vão. Minhas estatísticas, baseadas em lembranças meio imperfeitas do sr. e da sra. Sidney Webb, não inspiravam confiança. Afinal desisti.

Na manhã seguinte Fábio apareceu à porta do meu hotel num Fiat grande, muito velho e barulhento. Amassada, arranhada e suja por anos de serviço, para a família era a máquina pronta para qualquer empreitada. Fábio dirigia com incrível e segura despreocupação. Atravessamos correndo a cidade, serpenteando pelas ruas estreitas, com um desprezo pelas regras de trânsito que, num país pedante como a Inglaterra, significaria pelo menos cinco libras de multa e a licença cassada. Mas aqui os carabinieri, caminhando gravemente em grupos de dois sob as arcadas, deixavam-nos passar sem comentários. Direita ou esquerda — afinal, que importância tinha?

— Por que você não tem escapamento? — gritei através da horrível barulheira do motor.

Fábio deu de ombros.

— È più allegro così — respondeu.

Não falei mais. De um membro dessa raça rija que gosta de barulho e aprecia o desconforto, um inglês nervoso não podia esperar muita solidariedade.

Logo estávamos fora da cidade. Arrastando atrás de nós uma agitada esteira de poeira branca, e com o motor arrojando suas explosões como uma bateria de metralhadoras, disparamos pela estrada de Fusina. De ambos os lados estendia-se a planície cultivada. A estrada era margeada por fossos, e nos barrancos, em vez de cercas, havia fileiras de tocos de árvores, aos quais se entrelaçavam como grinaldas parreiras carregadas de uvas. Brancas de poeira, as gavinhas, as frutas e as folhas pareciam um trabalho de ourivesaria esculpido em metal fosco, pendendo como guirlandas de fruta e folhagem ao redor de uma gamela de prata. Seguimos em disparada. Logo, à nossa direita, tínhamos o Brenta, fundo entre as margens de seu canal. E agora estávamos em Strà. Através de portões enriquecidos por fantásticos trabalhos de estuque, cruzando túneis de sombras perenes, entreviam-se rápidas imagens do coração do parque. E agora por um instante as estátuas no telhado da villa acenaram de encontro ao céu e passaram. Continuamos. À direita e à esquerda, em cada margem do rio, de vez em quando eu divisava alguma encantadora mansão, alegre e brilhante mesmo na decadência. Pequenos pavilhões barrocos insinuavam-se a mim por sobre os muros; e através de grandes portões, no final de empoeiradas alamedas de ciprestes, um pouco por brincadeira, ao que parecia, fachadas pomposas e frívolas erguiam-se em desafio a todas as regras. Teria me agradado fazer essa viagem devagar, parar aqui e ali, olhar, saborear com calma, mas Fábio recusava-se a viajar a menos de cinquenta quilômetros por hora e eu tinha de me contentar com vislumbres momentâneos e precários. Era nessas villas, refleti enquanto o carro avançava em meio à desolação da poeira branca, que Casanova costumava vir passar o verão; seduzindo as camareiras, aproveitando-se das marquesas aterrorizadas em calèches durante tempestades, ludibriando velhos senadores de Veneza com suas previsões do futuro e sua magia negra. Esplêndido e infeliz patife! Apesar de meu declarado alheamento, eu o invejava. E, na verdade, o que era esse famoso alheamento senão uma expressão disfarçada da inveja que os sucessos e as audácias de Casanova necessariamente despertavam em todas as mentes tímidas e acanhadas?

Se eu vivia em esplêndido isolamento, era porque me faltava a audácia para guerrear — até mesmo para fazer alianças que me prendessem. Estava absorto nesses agradáveis pensamentos autocondenatórios quando o carro diminuiu a marcha e parou em frente a um portão enorme e imponente. Fábio fez soar a buzina com impaciência; houve um ruído de passos leves, o som de trancas puxadas, e o portão abriu-se. No final de uma curta alameda, muito larga e severa, muito casta e austera, ficava a casa. Era consideravelmente mais velha do que a maioria das outras villas que se desvelavam pelo caminho. Não havia frivolidade em sua fachada, nenhuma grandiloquência irregular. Um grande bloco de tijolo enfeitado com estuque; um pórtico central no alto de alguns degraus, encimado por um enorme frontão; uma fileira de estátuas rígidas na balaustrada acima da cornija. Era correta, até mesmo friamente, paladiana.[40] Fábio parou o carro em frente ao pórtico. Saltamos. No alto dos degraus postava-se uma jovem com uma criança de cabelos vermelhos nos braços. Era a condessa com o filho e herdeiro.

A condessa impressionou-me agradavelmente. Era magra e alta — uns cinco centímetros mais alta que o marido; com cabelos escuros, puxados para trás e enrolados em nó sobre a nuca; olhos escuros, vagos, brilhantes e melancólicos, como os de um dócil animalzinho; a pele morena e transparente como âmbar escurecido. Seus modos eram gentis e pouco enfáticos. Ela raramente gesticulava; nunca a ouvi erguer a voz. Falava, na verdade, muito pouco. O velho conde contara-me que sua nora era religiosa, e por sua aparência eu podia tranquilamente acreditar nisso. Olhava para as pessoas com o olhar calmo e distante de alguém cuja vida acontece na maior parte atrás dos olhos.

Fábio beijou a esposa e então, baixando o rosto para a criança, fez uma careta assustadora e rugiu como um leão. Tudo isso foi feito afetuosamente; mas a pobre criatura encolheu-se, aterrorizada. Fábio riu e beliscou-lhe a orelha.

— Não implique com ele — disse a condessa suavemente. — Vai fazê-lo chorar.

Fábio voltou-se para mim.

— Isso é o que dá deixar um garoto para mulheres tomarem conta. Ele chora por tudo. Vamos entrar — acrescentou. — No momento só usamos dois ou três aposentos no andar térreo, e a cozinha no porão. Todo o resto está vazio. Não sei como esse pessoal antigo conseguia manter seus palácios. Eu não consigo. — Deu de ombros. Através de uma porta à direita do pórtico entramos na casa. — Esta é nossa sala de estar e de jantar.

Era um aposento grande e belo, de proporções nobres — um cubo duplo, adivinhei — com portadas de mármore esculpido e uma lareira magnífica ladeada por um par de ninfas sobre cujos ombros curvados descansava uma prateleira entalhada com escudos de armas e festões de folhagem. Em volta das paredes corria um friso pintado em grisalha; em graciosa confusão de cornucópias e panóplias, deusas reclinavam-se suntuosamente, querubins contorciam-se e voavam. A mobília era estranhamente misturada. Em volta de uma mesa do século xvi, que era uma obra de arquitetura paladiana de madeira, estavam arrumadas oito cadeiras no estilo da Secessão vienense de 1905. Um grande relógio cuco em forma de chalé, de Berna, estava pendurado na parede entre dois armários de nogueira, com pilastras e frontões para parecerem pequenos templos, e com estatuetas heroicas em buxo amarelo postadas em nichos entre as pilastras. E os quadros nas paredes, os cretones com que as poltronas eram forradas! Com muita discrição, no entanto, admirei tudo, novo e velho.

— E agora os afrescos — disse o conde.

Segui-o através de uma das portas emolduradas em mármore e encontrei-me imediatamente no grande vestíbulo central da villa. O conde voltou-se para mim.

— Pronto! — exclamou, sorrindo triunfalmente com o ar de alguém que realmente conseguiu tirar um coelho de uma cartola vazia. E, realmente, o espetáculo era suficientemente espantoso.

As paredes do enorme aposento estavam completamente cobertas de afrescos que não necessitavam de muito conhecimento crítico para ser reconhecidos como Veroneses genuínos. A autoria era óbvia, palpável. Quem mais poderia ter pintado esses grupos harmoniosamente ondulantes de figuras em sua esplêndida moldura arquitetônica? Quem, senão Veronese, podia ter aliado tal esplendor a tal frieza, tanta opulência extravagante a tamanha suavidade requintada?

— É grandioso! — disse ao conde.

E era mesmo. Grandioso; não havia outra palavra. Uma rica galeria triunfal corria em volta do aposento, quatro ou cinco arcos aparecendo em cada parede. Através dos arcos olhava-se para um jardim; e lá, de encontro a um fundo de ciprestes e estátuas e montanhas azuis à distância, grupos de damas e cavalheiros venezianos divertiam-se discretamente. Sob um dos arcos faziam música; através de outro, sentavam-se ao redor de uma mesa, bebendo à saúde uns dos outros com taças de vinho tinto, enquanto um pequeno lacaio negro em libré verde e amarela carregava uma jarra de prata. No painel seguinte assistiam a uma luta entre um macaco e um gato. Na parede oposta um poeta lia seus versos para um grupo, e ao lado dele o próprio Veronese — o autorretrato era reconhecível — postava-se junto a seu cavalete, pintando o retrato de uma loura de bastas carnes em cetim cor-de-rosa. Aos pés do artista deitava-se seu cão; dois papagaios e um macaco estavam sentados na balaustrada de mármore a meia distância. Contemplei deliciado.

— Que coisa maravilhosa você possui! — exclamei, dominado pelo entusiasmo. — Eu o invejo.

O Conde fez uma careta e riu.

— Vamos ver os Tiepolo? — perguntou.

Passamos através de alguns aposentos alegres, pintados por Carpioni — sátiros perseguindo ninfas através de uma romântica floresta e, nas franjas de uma paisagem marítima, um rapto muito excêntrico de sereias por centauros —, e atravessando uma porta entramos nesse universo brilhante, ao mesmo tempo delicado e violentamente extravagante, selvagem e sutilmente organizado, que Tiepolo, nos últimos dias da pintura italiana, criou tão magistral e magicamente. Era a história de Eros e Psique, e o enredo atravessava três aposentos amplos, espalhando-se até mesmo para os tetos, onde, num céu pálido manchado de nuvens brancas e douradas, as deidades apropriadas equilibravam-se, mergulhando ou ascendendo através do firmamento com aquele ar de estarem perfeitamente à vontade em seu elemento, que parece pertencer, na natureza, apenas aos peixes e talvez a alguns insetos alados e pássaros.

Fábio gabara-se a mim que, diante de um quadro, ele podia passar mais tempo contemplando do que qualquer estrangeiro. Mas fiquei um tempo tão mortalmente longo admirando aquelas deslumbrantes fantasias que finalmente ele perdeu a paciência.

— Eu queria lhe mostrar a fazenda antes do almoço — disse, consultando o relógio. — O tempo é curto.

Segui-o com relutância. Admiramos as vacas, os cavalos, o touro premiado, os perus. Contemplamos os montes de feno altos e finos, em forma de charutos gigantescos colocados de pé. Contemplamos os sacos de trigo no celeiro. Por falta de um comentário melhor, disse ao conde que eles me lembravam os sacos de trigo nos celeiros ingleses; ele pareceu maravilhado.

Os prédios da fazenda ficavam em volta de um imenso pátio. Tínhamos explorado três lados dessa piazza; então chegamos ao quarto, que era ocupado por um prédio comprido e baixo, perfurado de passagens em arco e, fiquei surpreso ao vê-lo inteiramente vazio.

— Que é isso? — perguntei quando entramos.

— Não é nada — respondeu o conde. — Mas um dia pode se tornar... chi sa? — Ficou por um momento parado em silêncio, franzindo a testa pensativamente, com a expressão de Napoleão em Santa Helena: sonhando com o futuro, lamentando oportunidades passadas para sempre perdidas. Seu rosto sardento, normalmente um farol brilhante, tornou-se despropositadamente sombrio. Então subitamente explodiu: amaldiçoando a vida, praguejando contra o destino, pedindo a Deus para poder ir embora e fazer alguma coisa em vez de desperdiçar energia ali. Escutei, fazendo de vez em quando um vago ruído de simpatia. Que poderia eu fazer? E então, para meu terror, descobri que eu poderia fazer alguma coisa, que era esperado que eu fizesse alguma coisa. Ele insinuava que eu o ajudasse a vender seus afrescos. Como artista, era óbvio, eu devia ter conhecimento com patronos ricos, com museus, com milionários. Eu tinha visto os afrescos; podia honestamente recomendá-los. E agora havia esse processo aperfeiçoado para transferir afrescos para tela. As paredes podiam facilmente ser descascadas, as telas enroladas e levadas a Veneza. E de lá seria a coisa mais fácil do mundo escondê-las a bordo de um navio e partir com elas. Quanto aos preços: se ele conseguisse um milhão e quinhentas mil liras, tanto melhor; mas aceitaria um milhão, até mesmo três quartos. E me daria uma comissão de dez por cento...

E depois, quando vendesse seus afrescos, que faria? Para começar, ele sorriu triunfalmente para mim, transformaria esse prédio vazio no qual estávamos numa moderna fábrica de queijos. Podia começar o negócio muito bem com meio milhão, e então, usando a mão de obra feminina barata do campo, podia quase ter certeza de tirar grandes lucros imediatamente. Em dois anos, calculava, estaria ganhando oitenta ou cem mil liras por ano com seus queijos. E então, ah, então ele seria independente, poderia viajar, ver o mundo. Iria ao Brasil e à Argentina. Um homem empreendedor, com capital, sempre podia se dar bem lá. Iria a Nova York, Londres, Berlim, Paris. Não havia o que ele não pudesse fazer.

Enquanto isso, os afrescos ainda estavam nas paredes — lindos, sem dúvida (pois, relembrou o conde, ele adorava arte), mas inúteis; um enorme capital congelado no gesso, inteiramente imprestável. Ao passo que, com sua fábrica de queijos...

Lentamente caminhamos de volta para a casa.

Estive novamente em Veneza em setembro do ano seguinte, 1913. Havia naquele outono, eu imaginava, mais casais alemães em lua de mel, mais grupos daqueles passarinhos de arribação e mochila[41] do que nunca na cidade. De qualquer maneira, eram demais para mim; arrumei minha mala e peguei o trem para Pádua.

A princípio não pretendia ver o jovem Tirabassi de novo. Não sabia, na verdade, até que ponto ele ficaria satisfeito em me ver. Pois os afrescos, pelo que sabia, ainda estavam nas paredes, a fábrica de queijos ainda distante no futuro, na imaginação. Eu lhe escrevera mais de uma vez, dizendo que estava fazendo o possível, mas no momento etc. etc. Não que eu alguma vez tivesse dado muita esperança. Desde o início deixei claro que meus conhecidos entre os milionários eram poucos, que não contava com diretores de museus americanos entre minhas relações, que não tinha a menor ligação com quaisquer comerciantes internacionais de arte. Mas a fé do conde em mim permaneceu, mesmo assim, sólida. Era o mexicaninho, imagino, que lhe inspirava tanta confiança. Mas agora, depois de minhas cartas, depois de todo esse intervalo de tempo e nada feito, ele podia achar que eu o decepcionara, de alguma forma o enganara. Foi por isso que não o procurei. Mas o acaso passou por cima da minha decisão. No terceiro dia de minha estada em Pádua esbarrei com ele na rua. Ou melhor, ele esbarrou comigo.

Eram quase seis horas e eu tinha passeado até a Piazza del Santo. Àquela hora, quando a luz oblíqua é cheia de cores e as sombras são longas e profundas, a grande igreja, com suas cúpulas, torrinhas e campanários, toma um aspecto mais do que nunca fantástico e oriental. Eu rodeara a igreja, e agora estava parado aos pés da estátua de Donatello, olhos erguidos para o sisudo homem de bronze e o animal de pés maciços, quando de repente tomei consciência de que alguém estava parado muito perto, atrás de mim. Dei um passo para o lado e voltei-me. Era Fábio. Usando sua famosa expressão de clérigo turista, ele contemplava a estátua, a boca aberta como um peixe. Comecei a rir.

— Eu estava assim? — perguntei.

— Exatamente. — Ele riu também. — Fiquei observando você nos últimos dez minutos, vagando em volta da igreja. Vocês, ingleses, realmente... — Sacudiu a cabeça.

Juntos subimos a Via del Santo, conversando.

— Lamento não ter conseguido fazer coisa alguma a respeito dos afrescos — falei. — Mas realmente... — Entrei em explicações.

— Qualquer dia, talvez. — Fábio ainda estava otimista.

— E como vai a condessa?

— Ah, ela vai muito bem — disse Fábio. — Apesar de tudo. Sabe que ela teve outro filho três ou quatro meses depois que você nos visitou?

— Não!

— E agora está esperando outro. — Fábio falava com certa tristeza, achei. Mais do que nunca admirei a sagacidade do velho conde. Mas fiquei com pena, por causa de seu filho, de que ele não tivesse um campo mais amplo para exercitar seus talentos.

— E seu pai? — perguntei. — Vamos encontrá-lo sentado no Pedrochi como sempre?

Fábio riu.

— Não — respondeu significativamente. — Ele fugiu.

— Fugiu?

— Foi embora, sumiu, desapareceu.

— Mas foi para onde?

— Quem sabe? — fez Fábio. — Meu pai é como as andorinhas; vai e vem. Todos os anos... Mas a migração não é regular. Às vezes ele vai embora na primavera; às vezes no outono, às vezes no verão. Uma bela manhã o criado entra em seu quarto para acordá-lo, como de costume, e ele não está. Sumiu. Pode até estar morto. Ah, mas não está. — Fábio riu. — Dois ou três meses mais tarde ele aparece, como se estivesse voltando de um passeio no Jardim Botânico. “Boa noite.” — Fábio imitou a voz e o jeito do velho conde, cheirando o ar como um cavalo, retorcendo as pontas de um imaginário bigode branco. — “Como está sua mãe? Como vão as meninas? Como foram as uvas este ano?” Snif, snif, snif. “Como vai o Lúcio? E quem diabos deixou todo esse lixo no meu escritório?” — Fábio explodiu num urro indignado que fez com que os passantes na Via Roma se voltassem, espantados, em nossa direção.

— E aonde ele vai? — quis saber.

— Ninguém sabe. Minha mãe costumava perguntar, antigamente. Mas logo desistiu. Não adiantava. “Onde você esteve, Ascânio?” “Minha cara, acho que a colheita de azeitonas vai ser pequena este ano.” Snif, snif. E quando ela o apertava, ele ficava furioso e batia as portas... Que é que você diz de um aperitivo?

As portas do Pedrochi nos convidavam. Entramos, escolhemos uma mesa retirada e nos sentamos.

— Mas o que você imagina que o velho cavalheiro faça quando viaja?

— Ah! — E fazendo o gesto altamente significativo que eu tanto admirara em seu pai, o jovem conde levou o dedo à lateral do nariz e, lenta e solenemente, piscou o olho esquerdo.

— Quer dizer...?

Fábio assentiu.

— Aqui em Pádua há uma viuvinha. — Com o dedo esticado o jovem Conde descreveu no ar uma linha ondulante. — Bonita e roliça. Olhos pretos. Percebi que em geral ela está fora da cidade exatamente na época em que o velho faz sua migração. Mas pode ser, é claro, mera coincidência. — O garçom trouxe nosso vermute. Pensativo, o jovem conde bebeu. A alegria desaparecera de seu rosto aberto e luminoso. — E enquanto isso — continuou devagar e em voz alterada — eu fico aqui, cuidando da propriedade, para que o velho possa correr mundo com sua pombinha — la sua colombella. (Essa expressão tocou-me com sua particular precisão e agudeza.) — Ah, é engraçado, sem dúvida — continuou o jovem conde. — Mas não está certo. Se eu não fosse casado, iria embora tentar a sorte em outro lugar qualquer. Deixaria que ele ficasse tomando conta de tudo. Mas com mulher e dois filhos, quase três, como posso me arriscar? De qualquer maneira, há bastante comida enquanto eu ficar aqui. Minha única esperança — acrescentou depois de uma pausa — são os afrescos.

O que insinuava, eu refleti, que sua única esperança era eu; senti pena dele.

Na primavera de 1914 recomendei a villa a dois norte-americanos ricos. Nenhum dos dois fez oferta alguma para comprar os afrescos; teria ficado espantado se o tivessem feito. Mas Fábio ficou bastante animado com a visita. “Sinto que agora houve um início”, ele escreveu em carta. “Esses norte-americanos vão voltar ao país deles e contar aos amigos. Logo haverá uma procissão de milionários para ver os afrescos. Enquanto isso, a vida continua igual. Ou até pior. Nossa filhinha, que batizamos de Emília, nasceu no mês passado. Minha esposa teve um parto muito ruim e ainda está longe de ficar boa, o que é muito problemático.” (Esse me pareceu um adjetivo curioso, nessas circunstâncias.) Vindo de Fábio, no entanto, eu o compreendi; ele era uma dessas pessoas excessivamente saudáveis a quem qualquer tipo de doença é misteriosa, inexplicável, e acima de tudo extraordinariamente cansativa e irritante. “Anteontem meu pai tornou a desaparecer. Ainda não tive tempo de descobrir se a Colombella também desapareceu. Meu irmão, Lúcio, conseguiu lhe tirar uma motocicleta, que é mais do que eu alguma vez consegui. Mas também nunca fui de ficar rodeando diplomaticamente alguma coisa, como ele... Ultimamente andei estudando com muito cuidado esse negócio da fábrica de queijo, e não tenho certeza se não seria mais lucrativo montar um estabelecimento de tecelagem de seda. Quando você voltar, vou lhe contar os detalhes.”

Mas demorou muito tempo antes que eu visse Pádua e o conde novamente... A guerra pôs fim às minhas visitas anuais à Itália, e por várias razões, mesmo depois que ela terminou, não pude ir ao sul novamente tão rápido quanto gostaria. Só no outono de 1921 foi que embarquei novamente no expresso de Veneza.

Eu me encontrava numa Itália muito pouco familiar — uma Itália repleta de violência e derramamento de sangue. Fascistas e comunistas ainda lutavam ativamente. Rugindo à frente de suas tempestades de poeira, e carregados de rapazes cantando, os caminhões disparavam através do país em busca de aventura e o bolchevismo à espreita. As pessoas paravam respeitosamente quando eles passavam; e através da poeira que flutuava, através do ruído do motor, um fiapo de canção era soprado: “Giovinezza, giovinezza, primavera di bellezza...” (Juventude, juventude, primavera de beleza). Onde, senão na Itália, colocariam essas palavras numa canção política? E as proclamações, os manifestos, as denúncias, os apelos! Todos os tapumes e muros estavam cobertos de palavras. Entre a estação e o Pedrochi passei por toda uma biblioteca dessas coisas. “Cidadãos!”, eles começavam. “Uma brisa heroica está fazendo renascer hoje a alma quase asfixiada de nossa infeliz Itália, dominada pelos gases venenosos do bolchevismo e rastejando em ignóbil humilhação aos pés das outras nações.” E geralmente terminavam com referências a Dante. Li-os todos com prazer infinito.

Cheguei por fim ao Pedrochi. No terraço, sentado no mesmo canto onde eu o conhecera anos antes, estava o velho conde. Encarou-me sem expressão quando o cumprimentei, sem me reconhecer. Comecei a explicar quem eu era; depois de um momento ele me interrompeu, quase com impaciência, protestando que se lembrava então, perfeitamente. Duvidei muito que ele realmente se lembrasse, mas ele era orgulhoso demais para confessar que se esquecera. Enquanto isso, convidou-me a sentar-me à sua mesa.

À primeira vista, de longe, imaginei que o velho conde não envelhecera desde que o vira. Mas estava enganado. Da rua só enxergara o caimento malandro de seu chapéu, o esplendor de seu bigode e sua pera brancos, os joelhos separados, a nobre protuberância de sua pança. Mas, agora que podia vê-lo de perto e com calma, vi que ele era na verdade um homem muito diferente. Sob o chapéu de lado o rosto era de um púrpura doentio; a carne pendia em bolsas. No branco dos olhos, descoloridos como se estivessem embaçados pela idade, as veiazinhas rompidas surgiam vermelhas. E, opacos, pareciam olhar sem interesse o que viam. Os ombros eram curvados como que sob um peso, e quando levou a xícara aos lábios a mão tremia tanto que uma gota de café caiu na mesa. Ele agora era um homem velho, velho e cansado.

— Como vai o Fábio? — perguntei. — Desde 1916 não tivera notícias dele.

— Ah, Fábio está bem — respondeu o velho conde. — Fábio está muito bem. Agora tem seis filhos, sabe? — E o velho cavalheiro assentiu e sorriu para mim sem um traço de malícia. Parecia ter esquecido as razões pelas quais tomara tanto trabalho para escolher uma boa católica como nora. — Seis — repetiu. — Sabe, ele se deu muito bem na guerra. Nós, Tirabassi, sempre fomos guerreiros. — Cheio de orgulho, ele me contou as proezas e os sofrimentos de Fábio. Duas vezes ferido, promoção especial no campo de batalha, condecorações esplêndidas. Ele agora era major.

— E o serviço militar ainda o prende a Pádua?

O velho assentiu, e de repente apareceu em seu rosto algo como o antigo sorriso.

— Uma pequena combinazione minha — disse, com uma risadinha.

— E a propriedade? — perguntei.

Ah, essa ia muito bem, dentro das circunstâncias. Tinha ficado um pouco descontrolada durante a guerra, quando Fábio estava no front. E então, depois, houve muitos problemas com os camponeses; mas Fábio e seus fascistas estavam consertando tudo.

— Com Fábio aqui, não tenho preocupações — disse o velho cavalheiro. E então pôs-se a me contar, de novo, as façanhas de Fábio na guerra.

No dia seguinte peguei um trem para Strà, e depois de uma hora agradável passada na villa e no parque caminhei sem pressa em direção a Dolo. Levei muito tempo para chegar, pois nessa ocasião pude parar e contemplar pelo tempo que quisesse as coisas encantadoras no caminho. Casanova me parecia agora muito menos invejável, percebi, olhando para dentro de mim mesmo, do que quando eu passara por ali pela última vez. Eu era nove anos mais velho.

O portão estava aberto; entrei. Lá estava a casa, grave e pesada como sempre, porém mais descuidada do que quando a vira antes. As janelas precisavam de pintura, e aqui e ali o estuque descascava. Aproximei-me. De dentro da casa vinha o ruído alegre de gritos e risadas de crianças. A família, imaginei, estava brincando de esconder, ou de trenzinho, ou talvez de algum jogo atual de fascistas e comunistas. Enquanto subia os degraus da varanda, podia ouvir o som de pezinhos correndo sobre o chão de lajota; nos aposentos vazios os passos e os gritos ecoavam estranhamente. E então, de repente, da sala de estar à direita, veio o som da voz de Fábio, gritando com fúria:

— Ah, pelo amor de Deus, faça essas crianças calarem a boca. — E então, reclamando com petulância: — Como você quer que eu faça contas com tudo isso?

Fez-se imediatamente um silêncio profundo e, por assim dizer, pouco natural; em seguida, o som de pezinhos afastando-se em silêncio, alguns sussurros, uma risadinha nervosa. Toquei a campainha.

Foi a condessa quem abriu a porta. Hesitou por um momento, perguntando-se quem seria eu; depois lembrou-se, sorriu, estendeu a mão. Ela emagrecera, percebi, e com o envelhecimento do rosto os olhos pareciam maiores. Sua expressão era gentil e serena, como sempre; ela parecia estar olhando para mim de longe.

— Fábio vai adorar vê-lo — disse ela, e levou-me pela porta à direita do pórtico diretamente para a sala. Fábio estava sentado à mesa paladiana diante de uma pilha de papéis, mordendo a ponta do lápis.

Mesmo em seu uniforme verde-acinzentado o jovem conde parecia maravilhosamente brilhante, como um soldado no palco. O rosto ainda era sardento como o de um menino, mas a pele estava bastante enrugada; ele parecia bem mais velho do que quando o vira pela última vez; mais velho do que realmente era. A alegria aberta, o brilho iluminado já não estavam ali. Em seu rosto de feições finas ele ostentava uma expressão incongruente de melancolia crônica. Ele iluminou-se por um momento, é verdade, quando apareci; acho que estava genuinamente feliz em me ver.

— Caspita! — repetia sem parar. — Caspita! — Era sua expressão favorita de espanto, uma palavra estranha, fora de moda. — Quem poderia imaginar? Depois de tanto tempo!

— E toda a eternidade da guerra também — disse eu.

Mas, quando a primeira ebulição de surpresa e alegria diminuiu, o ar melancólico voltou.

— Fico deprimido em ver você de novo — confessou ele. — Ainda viajando por aí; livre para ir aonde quiser. Se soubesse como é a vida aqui...

— Bem, de qualquer maneira a guerra terminou, e vocês escaparam de uma revolução de verdade — falei, sentindo que devia, por causa da condessa, fazer algum tipo de protesto. — Isso já é alguma coisa.

— Ah, você é tão ruim quanto Laura — disse o conde com impaciência. Olhou para a esposa, como se esperasse que ela dissesse algo. Mas a condessa continuou com sua costura sem mesmo erguer os olhos. O conde pegou-me pelo braço. — Venha — falou, e seu tom era quase de raiva. — Vamos dar uma volta lá fora. — A resignação religiosa da esposa, sua paciência, sua serenidade o irritavam, eu percebia, como uma reprimenda; tácita, na verdade, e sem intenção, mas mesmo assim não menos irritante.

Ao longo dos caminhos cheios de erva no que uma vez, nos antigos dias de esplendor, fora o jardim, lentamente caminhamos em direção à fazenda. Algumas árvores maltratadas cresciam ao longo da beira do caminho; outrora havia cercas bem cuidadas. Sobre uma concha de mármore seca um tritão soprava sua trombeta sem água. No final da alameda dois pares — Plutão e Prosérpina, Apolo e Dafne — contorciam-se em desespero contra o céu.

— Vi seu pai ontem — comentei. — Ele parece mais velho.

— Não podia ser diferente — disse Fábio ferozmente. — Tem sessenta e nove anos.

Senti, pouco à vontade, que o assunto se tornara sério demais para uma conversa leve. Queria perguntar pela Colombella; dadas as circunstâncias, resolvi que seria mais sábio não falar nela. Reprimi minha curiosidade. Caminhávamos agora no curral de sob os prédios da fazenda.

— As vacas parecem muito saudáveis — comentei educadamente, olhando por uma porta aberta. No crepúsculo do interior, seis traseiros cinzentos, sujos de bosta seca, apresentavam-se em fila; seis compridas caudas de couro balançavam-se com impaciência de um lado para o outro. Fábio não fez nenhum comentário; apenas resmungou.

— De qualquer maneira — continuou ele devagar, depois de outro silêncio — ele não pode viver mais muito tempo. Vou vender minha parte e sumir para a América do Sul, apesar da família. — Era uma ameaça contra seu próprio destino, uma ameaça que ele devia saber vã. Enganava-se para manter a coragem.

— Mas ora! — exclamei, tentando uma oportunidade melhor para mudar o assunto. — Vejo que você afinal começou uma fábrica aqui. — Caminhamos devagar para o extremo oposto da praça. Através das janelas do prédio comprido e baixo que, em minha última visita, estivera deserto, vi formas complicadas de máquinas, uma série delas em fila dupla ao longo de todo o comprimento do prédio. — Teares? Então você desistiu do queijo? E os afrescos? — Voltei-me interrogativamente em direção ao conde. Tinha o medo horrível de que, quando voltássemos para a casa, encontrasse o grande vestíbulo descascado de seus Veronese e uma parede lisa onde antes havia a história de Eros e Psique.

— Ah, os afrescos ainda estão lá, o que sobrou deles. — E apesar do rosto triste de Fábio, fiquei contente com as notícias. — Convenci meu pai a vender parte de suas propriedades em Pádua, e começamos esse negócio de tecelagem aqui há dois anos. Bem a tempo — Fábio acrescentou — para a revolução comunista.

Pobre Fábio, ele não tinha sorte. Os camponeses tinham tomado sua fábrica e tentado apossar-se de sua terra. Durante três semanas ele vivera na villa sitiada, defendendo o lugar, com vinte fascistas para ajudá-lo, contra todos os camponeses da região. O perigo tinha passado agora; mas as máquinas estavam quebradas, e de qualquer maneira estava fora de questão colocá-las em funcionamento; os ânimos estavam ainda muito exaltados. E o que piorava tudo para Fábio era o fato de seu irmão Lúcio, que também arranjara um pequeno capital com o velho, ter ido para a Bulgária e investido numa fábrica de cadarços de bota. Era a única fábrica de cadarços no país, e Lúcio estava ganhando dinheiro a rodo. Estava livre como o vento e rico, com uma linda garota turca como amante. Para Fábio, era claro que a garota turca era a última gota.

— Una turca, una vera turca — repetia ele, sacudindo a cabeça. Essa mulher pagã simbolizava a seus olhos tudo o que era exótico, irregular, não doméstico; tudo o que não era família; tudo que era distante de Pádua e da propriedade.

— E eram máquinas tão lindas — disse Fábio, parando por um momento para olhar pela última da longa fila de janelas. — Vendê-las, esperar até tudo isso passar ou então consertá-las e tentar recomeçar... não sei. — Deu de ombros com desânimo. — Ou deixar as coisas correrem até o velho morrer. — Dobramos a esquina da praça e começamos a caminhar de volta para casa. — Às vezes — acrescentou, depois de um silêncio — não acredito que ele vá morrer algum dia.

As crianças estavam brincando no grande vestíbulo dos Veronese. As majestosas portas duplas que davam para o pórtico estavam abertas; através da abertura as observamos por um momento sem sermos vistos. A família estava formada em ordem de batalha. Um garoto ruivo de dez ou nove anos abria a vanguarda, um menino moreno vinha em seguida. Depois vinham três garotinhas, diminuindo em tamanho como três pérolas graduadas; e finalmente uma figurinha ainda aprendendo a andar, de macacão azul. Todos os seis carregavam bambus ao ombro, e cantavam em precário uníssono ao som de uma espécie de toque de clarim de três notas: “All’ armi i Fascisti; a morte i Communisti; a basso i Socialisti” — vez após vez. E enquanto cantavam marchavam à roda, esforçada e incansavelmente. O enorme aposento ecoava como uma piscina. Distantes sob seus arcos triunfais, em seu mundo sereno de fantástica beleza, as damas e os cavalheiros sedosos tocavam sua música, bebiam seu vinho; o poeta declamava, o pintor segurava seu pincel diante da tela; os macacos trepavam pelas ruínas romanas, os papagaios cochilavam nas balaustradas. “All’ armi i Fascisti, a morte i Communisti...” Devia ter ficado ali em silêncio, só para ver por quanto tempo as crianças continuariam sua marcha patriótica. Mas Fábio não possuía minha curiosidade científica; ou, se possuía, ela já tinha sido exaurida muito antes de ter nascido o último de seus filhos. Depois de me permitir o espetáculo por um momento, ele acabou de abrir a porta e entrou. As crianças olharam em volta e silenciaram imediatamente. Com seu mau humor e sua teoria de educar implicando, elas pareciam ter pavor do pai.

— Continuem — disse ele. — Continuem. — Mas elas não queriam; obviamente não podiam, em sua presença aterradora. Esgueiraram-se para longe discretamente.

Fábio levou-me para rodear o quarto.

— Olhe aqui — dizia ele — e aqui. — Numa das paredes do enorme vestíbulo havia meia dúzia de buracos de bala. Faltava uma lasca em uma das cornijas pintadas; uma dama tinha sido horrivelmente ferida no rosto; havia dois ou três buracos na paisagem, e a cauda de um macaco fora cortada. — Nossos amigos, os camponeses — Fábio explicou.

Nos salões de Carpioni tudo estava bem; os sátiros ainda perseguiam suas ninfas, e, na sala dos centauros e das sereias, os homens que eram metade cavalos ainda galopavam tão tumultuosamente quanto sempre para dentro do mar para encantar as mulheres que eram metade peixe. Mas a história de Eros e Psique sofrera horrivelmente. O primoroso painel no qual Tiepolo pintara Psique segurando a lamparina para olhar para seu amante misterioso era pouco mais que um borrão fraco e mofado. E onde o antigamente indignado jovem deus alçara voo para voltar a seus parentes olímpicos (que ainda, felizmente, deslizavam intactos por entre as nuvens do teto) nada havia senão o palidíssimo fantasma de um Cupido ascendendo, ao passo que Psique, chorando na terra lá embaixo, estava agora quase invisível.

— Nossos amigos, os franceses — disse Fábio. — Ficaram aquartelados aqui em 1918, e não se davam o trabalho de fechar as janelas quando chovia.

Pobre Fábio! Tudo estava contra ele. Eu não tinha consolo algum a oferecer. Naquele outono mandei-lhe um crítico de arte e mais três norte-americanos. Mas dessas visitas nada surgiu. O fato é que ele tinha coisa demais a oferecer. Um quadro, isso podia ser vendido facilmente. Mas que se poderia fazer com uma casa cheia de pinturas, como essa?

Passaram-se os meses. Por volta da Páscoa do ano seguinte recebi outra carta de Fabio. A colheita das azeitonas tinha sido ruim. A condessa esperava outro bebê e não se sentia muito bem. As duas crianças mais velhas estavam com rubéola, e a mais nova contraíra o que os italianos chamam de tosse asinina. Sua expectativa era de que logo todas acabassem por contrair ambas as doenças. Sentia-se também bastante em dúvida quanto a se valeria ou não a pena reativar seus teares; a situação do mercado de seda não era tão boa quanto a de fins de 1919. Ai se tivesse enveredado pelos queijos, seu primeiro projeto! Mas Lucio acabava de amealhar 50 mil liras num golpe de sorte especulativa; sua mulher infiel, contudo, fugira com um romeno. O velho conde envelhecia a olhos vistos; quando Fabio o vira pela última vez, ele lhe contara a mesma piada três vezes no intervalo de dez minutos. Com essas duas boas notícias — ambas eram para ele, tanto quanto posso imaginar, os únicos pontos de luz em meio à treva — Fabio encerrou a carta. Quedei pensativo — por que razão ele teria se dado ao trabalho de escrever? Talvez obtivesse algum prazer, ainda que mórbido, em arrolar de tal maneira suas agruras.

Naquele mês de agosto estava programado um festival de música em Salzburgo. Nunca estivera na Áustria; a ocasião pareceu-me apropriada. Fui — e diverti-me como nunca. Salzburgo fazia-se, então, puro movimento. Havia igrejas barrocas aos montes; fontes em estilo italiano; jardins e palácios que, à sua pesada e extravagante maneira alemã, imitavam jardins e palácios de Roma; e, dos tesouros o mais refinado, um túnel de 12 metros de altura atravessando uma íngreme escarpa — túnel com o qual apenas um príncipe-bispo do século xvii poderia ter sonhado, tendo a cada ponta um arco triunfal com pilastras, frontões abertos, estátuas e brasões, todos esculpidos na rocha bruta — uma obra-prima entre os túneis, e isto numa cidade onde tudo, não sendo verdadeiramente bom, é no mínimo adoravelmente “divertido”, esta a mais divertida das qualidades. Ah, Salzburgo é sem dúvida puro movimento.

Certa tarde subi no funicular ao castelo. Havia um bar no terraço de sob os muros da fortaleza, do qual se tinha uma vista bastante famosa em Baedeker. Abaixo de você, de um lado, estava a cidade, estendendo-se pelas ondulações do vale e cortada por um rio como fosse uma pequena versão alemã de Florença. Do outro lado do terraço você tinha diante de si uma paisagem que em nada afetava italianismos; era tão doce e romanticamente alemã quanto uma ária de Freischütz, de Weber. No horizonte viam-se as montanhas, pontiagudas e azuis como fossem parte de um livro de imagens; e em primeiro plano, correndo em direção ao próprio sopé do precipício improvável em que castelo e terraço se aninhavam, um verde campo, vasto e plano — quilômetros e quilômetros de campinas férteis pontilhadas de vacas mínimas, com fazendinhas de brinquedo aqui e ali ou, mais raramente, um grupo de casinhas de boneca, com uma torre erguendo-se brilhante entre elas.

Eu estava sentado com minha cerveja clara diante dessa paisagem deliciosa e ligeiramente cômica, pensando confortavelmente em nada em particular, quando ouvi atrás de mim uma voz extasiada exclamando: “Bello! Bello!”. Olhei para trás com curiosidade — pois me pareceu bem surpreendente ouvir italiano ali — e vi uma dessas mulheres suntuosas que no sul eles tanto admiram. Ela era uma bella grassa, gorducha à beira do exagero e perigosamente próxima da meia-idade; mas ainda, a seu modo, extremamente bonita. Seu rosto tinha as proporções de um iceberg — um quinto acima d’água, quatro quintos abaixo. Ampla e exuberante dos olhos para baixo, quase não tinha testa; os cabelos começavam logo acima das têmporas. Os olhos eram escuros, grandes e, para meu gosto pelo menos, excessivamente ternos. Observei-a por um momento e estava prestes a desviar os olhos novamente quando seu companheiro, que estivera contemplando a paisagem do outro lado, voltou-se. Era o velho conde.

Eu fiquei bem mais constrangido, acredito, do que ele. Senti que ruborizava, quando nossos olhos se encontraram, como se fosse eu quem estivesse viajando pelo mundo com uma Colombella e ele quem tivesse me pegado em flagrante. Não sabia o que fazer: se sorrir e falar com ele, ou dar as costas como se não o tivesse reconhecido, ou fazer um gesto de cabeça e então, discretamente, desaparecer. Mas o velho conde pôs fim à minha hesitação chamando meu nome em tom de espanto, correndo para mim e agarrando-me a mão. Que delícia ver um velho amigo! Logo ali! Naquele país esquecido — embora fosse bastante barato, não achava? Ele ia me apresentar a uma encantadora compatriota sua, uma dama italiana que ele conhecera na véspera no trem de Viena.

Fui apresentado a Colombella, e nos sentamos à minha mesa. Empenhado em seu italiano, o conde pediu mais duas cervejas. Conversamos. Ou melhor, o conde conversou; pois a conversa foi um monólogo. Ele nos contou anedotas da Itália de cinquenta anos antes; fez-nos imitações de personagens estranhos que conhecera; até mesmo, a certo momento, imitou o zurro de um burro — não me lembro em que contexto; mas o zurro permanece vívido em minha memória. Cheirando o ar entre cada frase, ele nos deu sua opinião sobre as mulheres. A Colombella guinchava protestos indignados e derretia-se de rir. O velho conde retorcia os bigodes, piscando para ela através de sua rede de rugas. De vez em quando virava-se em minha direção e dava-me uma piscadela.

Eu ouvia atônito. Esse era o homem que contara a mesma anedota três vezes em dez minutos? Olhei para o velho Conde. Ele estava inclinado para a Colombella sussurrando em seu ouvido algo que a fez rir tanto que teve de enxugar os olhos. Dando-lhe as costas, ele interceptou meu olhar; sorrindo, deu de ombros como se dissesse: “Essas mulheres! Que imbecis, mas que deliciosas, que criaturas indispensáveis!”. Esse era o velho cansado que eu tinha visto um ano antes sentado no terraço do Pedrochi? Parecia incrível.

— Bem, adeus, a rivederci. — Eles precisavam descer para a cidade novamente. O funicular estava esperando.

— Tive muito prazer em vê-lo — disse o velho conde apertando-me a mão afetuosamente.

— Eu também — afirmei. — Especialmente por vê-lo tão bem.

— Sim, agora estou muito bem — disse-me ele estufando o peito.

— E jovem — continuei. — Mais jovem que eu! Como foi que conseguiu?

— Ahá! — O velho conde inclinou a cabeça para o lado misteriosamente.

Mais por brincadeira do que a sério, eu disse:

— Acho que o senhor andou procurando Steinach em Viena para uma operação de rejuvenescimento.

Como resposta, o velho conde ergueu o dedo indicador da mão direita, pousando-o primeiro nos lábios, depois na lateral do nariz, piscando. Então, apertando o punho e com o polegar esticado para cima rigidamente, ele fez um gesto complicado que para um italiano, tenho certeza, seria cheio de significado profundo e vital. Para mim, no entanto, pouco familiar com a linguagem de sinais, o sentido exato não ficou inteiramente claro. Mas o conde não ofereceu nenhuma explicação verbal. Ainda sem dizer uma palavra, levantou o chapéu; depois, pousando o dedo mais uma vez nos lábios, voltou-se e correu com espantosa agilidade pela descida inclinada em direção ao pequeno vagão do funicular, no qual a Colombella já se sentara.


Hubert e Minnie

Para Hubert Lapell esse primeiro caso de amor era extremamente importante. “Importante” era a palavra que ele próprio usava quando escrevia sobre ele em seu diário. Era um acontecimento em sua vida, um acontecimento de verdade, para variar. Marcava, ele sentia, um verdadeiro ponto de mudança em seu desenvolvimento espiritual.

“Voltaire”, ele escreveu no diário — e escreveu pela segunda vez em uma das cartas a Minnie —, “Voltaire disse que a pessoa morria duas vezes: uma com a morte do corpo inteiro e outra antes, com a morte da capacidade de amar. E do mesmo modo uma pessoa nasce duas vezes, sendo a segunda na ocasião em que a pessoa se apaixona. A pessoa nasce, então, para um novo mundo — um mundo de sentimentos mais intensos, valores mais elevados, discernimento mais agudo.” E assim por diante.

Na realidade, Hubert achou esse novo mundo um pouco decepcionante. Os sentimentos mais intensos mostraram-se bem tranquilos; de maneira alguma alcançavam padrões literários.

Eu vos digo que sou louco

No amor de Créssida. Vós respondeis: ela é bela.

Derramais na úlcera aberta de meu coração

Seus olhos, seus cabelos, sua face, seu andar, sua voz...

Não, com certeza não era bem assim. Em seu diário, em suas cartas para Minnie, ele pintava, é verdade, uma série de paisa-gens brilhantes e românticas do novo mundo. Mas eram paisagens imaginárias combinadas à maneira de Salvator Rosa — mais ricas, mais selvagens, mais pitorescamente claro-escuras que o mundo real. Hubert agarrava-se com avidez à menor veleidade de uma infelicidade, um desejo físico, uma ânsia espiritual, para desenvolvê-la em suas cartas e diários em algo substancialmente romântico. Havia ocasiões, geralmente bem tarde da noite, em que conseguia convencer-se de que era de fato o mais selvagem, o mais infeliz, o mais apaixonado dos amantes. Mas durante o dia ele tratava de seus negócios acalentando algo como uma queixa contra o amor. O negócio era uma fraude; sim, decidiu ele, de certo modo uma verdadeira fraude. Mesmo assim, supunha que era importante.

Para Minnie, no entanto, o amor não tinha nada de fraude. Quase desde o primeiro momento ela o adorou. Um amigo comum o levara certa feita a uma de suas noitadas de quarta-feira. “Este é o sr. Lapell; mas é jovem demais para não ser chamado de Hubert.” Assim ele fora apresentado. E, rindo, ela pegara a mão dele e chamara-o de Hubert imediatamente. Ele também rira, um tanto nervoso. “Meu nome é Minnie”, ela disse. Mas ele era tímido demais para chamá-la de qualquer coisa naquela noite. Seus cabelos castanhos eram espessos e revoltos, como os de um garotinho, e ele tinha olhos cinzentos tímidos que nunca olhavam uma pessoa mais de uma vez, e afastavam-se quase imediatamente, como se tivessem medo. Ele olhava para você rápida, ansiosamente — e então afastava o olhar; e sua voz musical, com suas ênfases súbitas, suas rápidas modulações de alto a grave pareciam sempre dirigir-se a um fantasma flutuando baixo, ao lado da pessoa com quem ele falava. Acima das sobrancelhas havia uma testa lindamente abobadada, com uma ruga reflexiva subindo entre os olhos. Em repouso, sua boca de lábios cheios fazia um leve biquinho, como se exprimisse algum descontentamento crônico com o mundo. E, naturalmente, pensava Minnie, o mundo não era suficientemente belo para o idealismo dele.

— Mas afinal — ele dissera — a pessoa tem o mundo das ideias para viver. Isso, de qualquer modo, é simples, claro e belo. Pode-se sempre viver longe da bagunça brutal.

E das profundezas da poltrona onde, frágil, cansada, e nesse ambiente “artístico” quase incoerentemente elegante, ela estava sentada, Helen Glamber soltou sua risadinha sincera.

— Pelo contrário, eu acho — disse ela. (Minnie lembrava-se de cada incidente daquela primeira noite.) — Para mim, a pessoa devia agitar por aí e conhecer milhares de pessoas e comer e beber bastante e fazer amor incessantemente e gritar e rir e bater na cabeça dos outros. — E tendo dado vazão a esses sentimentos rabelaisianos, a sra. Glamber reclinou-se com um suspiro de cansaço, cobrindo os olhos com a mão magra e branca pois tinha uma dor de cabeça de rachar, e a luz lhe fazia mal.

— Sério? — Minnie protestou, rindo. Teria ficado bastante chocada se qualquer outra pessoa tivesse dito aquilo, mas a Helen Glamber permitia-se dizer qualquer coisa.

Hubert reafirmou seu quietismo. Elegante, exausta, infinitamente frágil, a sra. Glamber recostava-se na poltrona, ouvindo. Ou talvez, sob a mão que a escondia, ela estivesse tentando dormir.

Ela o adorara à primeira vista. Agora que olhava para trás podia ver que fora à primeira vista. Adorou-o como quem quisesse protegê-lo, como uma mãe — pois ele tinha só vinte anos e era muito novo, apesar da ruga entre as sobrancelhas, das palavras difíceis e do conhecimento recém-descoberto de graduando; apenas vinte anos, e ela tinha quase vinte e nove. Também se apaixonara, vale dizer, pela beleza dele. Ah, completamente.

Hubert, percebendo isso mais tarde, ficou surpreso e muito lisonjeado. Nunca lhe acontecera nada igual antes. Gostava de ser adorado, e já que Minnie tinha se apaixonado tão violentamente por ele, parecia-lhe a coisa mais natural do mundo que estivesse apaixonado por Minnie. É verdade que, se ela não tivesse começado por adorá-lo, nunca ocorreria a Hubert apaixonar-se por ela. E em seu primeiro encontro achou-a certamente muito boazinha, mas não particularmente excitante. Depois, a expressão manifesta da adoração dela fizera com que a achasse mais interessante, e afinal ele próprio se apaixonara. Mas talvez não fosse de espantar que ele tivesse achado o processo um pouco decepcionante.

Mesmo assim, ele refletia naquelas ocasiões secretas quando tinha que admitir a si próprio que alguma coisa estava errada com sua paixão, que o amor sem a posse jamais poderia, certamente, conforme a ordem natural da vida, ser a coisa real e verdadeira. Em seu diário registrou com muito acerto essas quadras de John Donne:

Assim as almas dos amantes devem

Descer às afeições e às faculdades

Que os sentidos atingem e percebem.

Ou um príncipe jaz aprisionado.

Aos corpos finalmente retornemos

Descortinando o amor a toda a gente;

Os mistérios do amor a alma os sente,

Porém o corpo é a página que lemos.[42]

Em seu encontro seguinte ele as recitou para Minnie. A conversa que se seguiu, feita de filosofia e confidências pessoais, foi refinada. A conversa, Hubert sentia, atingira de fato um padrão literário.

Na manhã seguinte Minnie ligou para sua amiga Helen Glamber e perguntou se podia aparecer para o chá naquela tarde. Tinha muitas coisas para conversar com ela. A sra. Glamber suspirou ao desligar o telefone.

— Minnie vem para o chá — falou, voltando-se para a porta aberta.

Do outro lado do corredor veio a voz do marido.

— Meu Deus! — Isso foi dito num tom de horror distante, de resignação distraída; pois John Glamber estava mergulhado no trabalho e sobrava muito pouco dele, por assim dizer, acima da superfície para reagir às más notícias.

Helen Glamber tornou a suspirar e, recostando-se com mais conforto nas almofadas, estendeu a mão para o livro. Conhecia aquela voz distante e o que ela significava. Significava que ele não responderia se ela continuasse a conversa; apenas diria “hum” ou “sim”. E se depois disso ela persistisse, significava que ele diria, em tom queixoso e comovente: “Querida, você precisa me deixar trabalhar”. E naquele momento ela teria adorado conversar um pouco. Em vez disso, continuou a leitura no ponto onde a interrompera para atender ao telefonema de Minnie.

“A essa altura as chamas tinham envolvido o gynaeceum. Dezenove vezes o Patriarca de Alexandria aventurou-se a entrar no edifício em fogo, de onde conseguiu salvar as lindas ocupantes, exceto duas — vinte e sete ao todo, e fez com que todas fossem transportadas imediatamente para seus aposentos particulares...”

Era um desses livros instrutivos que John gostava que ela lesse. História, mistério, lição e lei. Mas no momento ela não sentia muita vontade de ler História. Tinha vontade de conversar. E isso estava fora de questão; absolutamente fora.

Largou o livro e começou a lixar as unhas e a pensar na pobre Minnie. Sim, pobre Minnie. Por que não se conseguia deixar de dizer um “Meu Deus!”, do fundo do coração, quando se anunciava que ela viria tomar chá? E por que não se tinha coragem de recusar-se a deixar que ela viesse tomar chá? Ela era patética, mas patética de um modo enfadonho. Há algumas pessoas com quem é bom ser generoso, pessoas que se quer ajudar e de quem se quer ser amigo. Pessoas que olham para a gente com olhos de macaco doente. Nosso coração se parte quando as vemos. Mas a pobre Minnie não tinha nenhum dos encantos de um macaco doente. Ela era apenas uma mulherona saudável e jovem, de vinte e nove anos, que devia estar casada e com filhos e não estava. Ela teria dado uma esposa muito boa, uma mãe admiravelmente solícita e cuidadosa. Mas aconteceu que nenhum dos homens que ela conhecera quis casar com ela. E por que deveriam? Quando ela entrava em uma sala, a luz parecia diminuir sensivelmente e a tensão elétrica afrouxava. Ela não trazia vida alguma consigo; absorvia a que havia, era como um mata-borrão. Não era de admirar que ninguém quisesse casar com ela. Embora fosse isto o essencial. Particularmente porque ela estava sempre se apaixonando. O essencial.

— John! — chamou de repente a sra. Glamber. — É verdade aquilo dos furões?

— Furões? — repetiu a voz do outro lado do corredor com uma irritação distante. — O que é que é verdade sobre os furões?

— Que as fêmeas morrem se não cruzarem.

— Como é que vou saber?

— Você geralmente sabe tudo.

— Mas, minha querida, realmente... — A voz era queixosa, cheia de recriminação.

A sra. Glamber tapou a boca com a mão e só a retirou para mandar um beijo.

— Certo — disse depressa. — Está bem. Realmente. Desculpe. Não vou fazer isso de novo. Realmente. — Mandou outro beijo em direção à porta.

— Mas furões... — repetiu a voz.

— Psiu, psiu.

— Por que furões?

— Querido, você tem que continuar seu trabalho — disse quase com dureza a sra. Glamber.

Minnie veio tomar chá. Ela expôs o caso — a princípio hipoteticamente, como se fosse o caso de uma terceira pessoa; depois, ganhando coragem, ela o colocou em termos pessoais. Era seu próprio caso. Das profundezas de sua inocência tranquila e pagã, Helen Glamber aconselhou-a sem meias palavras.

— Se você quer ir para a cama com o rapaz, vá para a cama com ele — disse. — A coisa em si não tem importância. Pelo menos não muita. Só é importante porque torna possível confidências mais secretas, porque fortalece a afeição, faz o homem ficar mais dependente, de certo modo. Além disso, é claro, é a coisa natural. Sou totalmente a favor da natureza, a não ser quando se trata de pintar o rosto. Dizem que os furões...

Mas Minnie percebeu que ela não terminara a frase. Apavorada e fascinada, chocada e no entanto convencida, ela escutava.

— Meu querido, quem foi que inventou a religião, o pecado, tudo isso? — perguntou a sra. Glamber naquela noite quando o marido voltou (pois ele não tinha sido capaz de enfrentar Minnie e saira para tomar o chá no clube). — E por quê?

John riu.

— Foi inventado por Adão, por várias pequenas razões transcendentais que você provavelmente acharia difícil de apreciar — disse ele. — Mas também com o propósito muito prático de manter Eva na linha.

— Bem, se você acha que complicar a vida das pessoas é mantê-las na linha, então acho que concordo. — A sra. Glamber sacudiu a cabeça. — Acho tudo muito obscuro. Aos dezesseis anos, sim. Mas aos vinte anos uma pessoa já devia ter ultrapassado isso. E aos trinta... ela tem quase trinta, você sabe... ora, realmente...

Finalmente, Minnie escreveu para Hubert dizendo que tinha se decidido. Hubert estava em Hertfordshire com seu amigo Wat- chett. Era uma casa grande, a comida era boa, ficava-se muito confortável; e o velho sr. Watchett, além disso, tinha uma biblioteca bem completa. À sombra impenetrável das sequoias, Hubert e Ted Watchett jogavam críquete e discutiam os melhores métodos de cultivar o Eu. Concluíram que se podia fazer muita coisa com a arte — livros, você sabe, pintura e música.

— Ouça o Sacre de Stravinsky e está para sempre dispensado de ir ao Tibete ou à Costa do Ouro ou a qualquer desses lugares horrorosos — declarou Ted Watchett. — E Dostoiévski substitui o assassinato, assim como D. H. Lawrence é sucedâneo do sexo.

— Mesmo assim — contestou Hubert — é preciso certa quantidade de experiência não imaginária. — Ele falava sinceramente, abstratamente; mas a carta de Minnie estava em seu bolso. — Gnosce teipsum. Não se pode realmente conhecer a si mesmo sem entrar em colisão com os acontecimentos, não é?

No dia seguinte, a prima de Ted, Phoebe, chegou. Tinha cabelos vermelhos e pele leitosa, e mais ou menos trabalhava em comédias musicais.

— Um pé dentro e um pé fora — ela explicou. — Os saltos. — E ali mesmo ela os executou, em grand écart, no tapete da sala de estar. — É bem fácil — declarou, rindo, e tornou a saltar com uma graciosidade fácil que arrebatava quem a via. Ted não gostava dela.

— Menina cansativa — disse. — E tão boba, também. Conscientemente boba, boba de propósito, o que piora tudo.

Era verdade, ela gostava de se vangloriar da quantidade de champanhe que conseguia entornar sem ficar de pileque, e do número de vezes que ultrapassara esse generoso limite e ficara “cega para o mundo”. Gostava de falar de seus admiradores em termos que poderiam fazer você supor que eram todos seus amantes. Mas então ela dava a justificativa de sua vitalidade e seus brilhantes cabelos vermelhos.

“A vitalidade”, Hubert escreveu em seu diário (imaginava uma data distante, depois ou, preferivelmente, antes de sua morte, quando essas confissões e aforismos seriam publicados), “a vitalidade pode fazer exigências ao mundo quase tão imperiosamente quanto a beleza. Às vezes a beleza e a vitalidade encontram-se em uma só pessoa.”

Foi Hubert quem arranjou para que ficassem no moinho. Um de seus amigos uma vez estivera lá com uma turma de leitura e achou o lugar confortável, retirado e admiravelmente sossegado. Isto é, sossegado com o sossego peculiar aos moinhos. Pois o silêncio de lá não era o silêncio de uma noite na montanha; era o silêncio feito de um trovão contínuo. Todos os dias às nove horas da manhã a roda do moinho começava a girar, e seu fragor não parava o dia inteiro. Nos primeiros momentos o ruído era aterrorizante, quase insuportável. Então, pouco tempo depois, a pessoa se acostumava a ele. O trovão tornava-se, por causa de sua própria constância, um silêncio perfeito, maravilhosamente rico e profundo.

Atrás do moinho havia um pequeno jardim cercado em três lados pela casa, pelos anexos e por um alto muro de tijolos, porém aberto no quarto lado em direção à água. Olhando por cima do parapeito, Minnie observou-a em movimento. Era como uma serpente marrom com marcas como flechas nas costas; e ela se arrastava, escorregava, deslizava para sempre. Ela se sentou ali, à espera: seu trem, saindo de Londres, a levara logo depois do almoço; Hubert, atravessando o país desde a casa dos Watchett, não chegaria antes das seis. A água fluía sob os olhos dela como o tempo, como o destino, correndo suave de encontro a um acontecimento qualquer, novo e violento.

O barulho enorme que nesse jardim era silêncio envolveu-a. Conformada, sua mente movia-se ali como se estivesse em seu elemento nativo. Do outro lado do parapeito vinham a frieza e o cheiro vegetal da água. Mas quando virava em direção ao jardim ela respirava imediatamente o perfume quente do sol batendo nas flores e amadurecendo as frutas. Ao sol da tarde o mundo inteiro estava maduro. A velha casa vermelha ali estava, madura, como uma ameixa no chão; as paredes eram mais maduras do que os frutos das nectarinas, tão terna e perfeitamente crucificadas em seus tijolos quentes. E aquele silêncio fecundo do trovão incessante parecia, por assim dizer, o desabrochar de um dia que tinha chegado à refinada maturidade e agora pendia, redondo como um pêssego e cheio do suco da vida e da felicidade, esperando ao sol a mordida de dentes ansiosos.

No coração desse mundo de fruta madura Minnie esperava. A água fluía em direção à roda: suavemente, suavemente — depois caía, despedaçava-se na roda que girava. E o tempo deslizava para diante, em silêncio rumo a um acontecimento que romperia a suavidade de sua vida.

“Se você realmente quer ir para a cama com o rapaz, vá para a cama com ele.” Podia ouvir a voz clara e aguda de Helen dizendo coisas impossíveis, brutais. Se qualquer outra pessoa as tivesse dito, ela teria saído correndo da sala. Mas na boca de Helen elas pareciam, de certa forma, tão simples, inócuas e verdadeiras. E no entanto tudo o que as outras pessoas tinham dito ou insinuado — em casa, na escola, entre as pessoas que ela costumava encontrar — parecia igualmente verdadeiro.

Mas além disso, naturalmente, havia o amor. Hubert tinha escrito um soneto shakespeariano que começava assim:

O amor santifica tudo onde ele verdadeiramente está,

Transforma a escória em ouro com um toque de seu dardo,

Faz da matéria a mente, casta a paixão mais extremada,

E constrói um templo no coração lascivo.

Ela achava o soneto lindo. E muito verdadeiro. Parecia lançar uma ponte entre Helen e as outras pessoas. O amor, o verdadeiro amor, fazia toda a diferença. Justificava. O amor — quanto, quanto ela amava!

O tempo passou e a luz ficou mais rica à medida que o sol declinava das alturas do céu. O dia ficou cada vez mais deliciosamente maduro, inchado de uma doçura desconhecida. Sobre sua face corada de sol, o silêncio trovejante da roda do moinho estendia o mais macio, o mais aveludado dos brilhos. Minnie sentou-se no parapeito, esperando. Às vezes baixava os olhos para a água que deslizava, às vezes voltava-os para o jardim. O tempo fluía, mas ela agora não tinha mais medo do acontecimento cabal que trovejava ali, no futuro. O dulçor maduro da tarde parecia entrar em seu espírito, enchendo-o até a borda. Não havia mais espaço para dúvidas, para antecipações medrosas ou remorsos. Ela estava feliz. Ternamente, com uma ternura que ela não conseguiria exprimir em palavras, somente com o mais leve e suave dos beijos, com dedos carinhosamente passados pelos cabelos despenteados, ela pensava em Hubert, no seu Hubert.

Hubert, Hubert... E de repente, espantosamente, ele estava ali parado a seu lado.

— Ah! — disse ela, e por um momento encarou-o com seus olhos redondos e castanhos, nos quais nada havia a não ser espanto. Então sua expressão modificou-se. — Hubert — murmurou suavemente.

Hubert tomou-lhe a mão e tornou a largá-la; olhou para ela por um instante, depois deu-lhe as costas. Inclinado sobre o parapeito, ele contemplou a água que corria; seu rosto não sorria. Durante um longo tempo ambos ficaram em silêncio. Minnie continuou onde estava, sentada imóvel, olhos fixos no rosto desviado do rapaz. Ela estava feliz, feliz, feliz. O longo dia amadurecia e amadurecia, perfeição após perfeição.

— Minnie — disse o rapaz de súbito, alta e abruptamente, como se durante muito tempo estivesse se decidindo a falar e por fim conseguisse pronunciar as palavras preparadas e prontas. — Acho que me comportei muito mal com você. Nunca devia ter-lhe pedido para vir aqui. Eu errei. Desculpe.

— Mas eu vim porque quis! — exclamou Minnie.

Hubert olhou para ela de relance, depois desviou os olhos e continuou a dirigir-se a um fantasma que flutuava, parecia, logo acima da face da água que deslizava.

— Foi pedir demais. Eu não devia ter feito isso. Para um homem é diferente. Mas para uma mulher...

— Mas, estou lhe dizendo, eu queria.

— É demais.

— Não é nada, porque eu te amo — disse Minnie. E, inclinando-se para a frente, correu os dedos pelos cabelos dele. Ah, a ternura que palavra nenhuma pode expressar! — Seu menino bobo — sussurrou ela. — Você pensou que eu não o amava bastante para isso?

Hubert não ergueu os olhos. A água continuava deslizando sob seus olhos; os dedos de Minnie brincavam com seus cabelos, percorriam carinhosamente sua nuca. Ele sentiu de repente um verdadeiro ódio por essa mulher. Idiota! Por que ela não entendia uma insinuação? Ele não a queria. E por que tinha chegado a imaginar que a queria? Durante toda a viagem de trem ele se fizera essa pergunta. Por quê? Por quê? E a pergunta se fazia ainda mais urgente naquele momento em que, parado à porta do jardim, ele olhara através da macieira e a analisara, sem ser observado, durante um longo minuto; analisara-a sentada ali no parapeito, voltando os olhos marrons e vagos para a água, depois para o jardim, e sorrindo consigo mesma com uma expressão que lhe parecia tão obtusa e vazia que ele quase podia imaginá-la uma imbecil.

E com Phoebe na véspera ele tinha parado na crista nua da chapada de greda. Como um mar a seus pés estendia-se a planície, e acima do horizonte obscuro pairavam grandes nuvens. Dedos de vento erguiam os cachos vermelhos dos cabelos dela. Ela estava como que a postos, pronta para voar para o céu agitado. “Como eu gostaria de voar!”, disse. “Há algo especialmente atraente nos pilotos, sempre achei.” E correra morro abaixo.

Mas Minnie, com seus cabelos baços, suas bochechas vermelhas como maçãs, seu corpo grande e lerdo, era como uma camponesa. Como foi que ele se convencera de que a queria? E o que piorava muito, naturalmente, era que ela o adorava, para seu constrangimento e enfado, como um cachorro carinhoso demais que insiste em rolar a nossos pés e lamber nossas mãos quando o que queremos é sentar-nos calmamente e concentrar-nos em coisas sérias.

Hubert afastou-se, saindo do alcance da mão acariciante. Ergueu para ela por um momento um par de olhos que se tinham tornado, por assim dizer, opacos de uma raiva fria; depois baixou-os novamente.

— O sacrifício é grande demais — disse, com uma voz que a ele próprio soava como se fosse de outra pessoa. Achava muito difícil dizer esse tipo de coisa convincentemente. — Não posso lhe pedir isso — continuou o ator. — Não quero.

— Mas não é um sacrifício — Minnie protestou. — É uma alegria, é a felicidade. Ah, você não entende?

Hubert não respondeu. Imóvel, os cotovelos no parapeito, fixou os olhos na água. Minnie olhou para ele, a princípio apenas perplexa; mas de repente ela foi presa de uma dúvida dolorosa e indefinível que aumentava dentro de si, à medida que o silêncio se prolongava, como um horrível câncer do espírito, até ter devorado toda a sua felicidade, até não sobrar coisa alguma em sua mente exceto dúvida e apreensão.

— Que foi? — ela perguntou finalmente. — Por que você está tão estranho? Que foi, Hubert? Que foi?

Inclinando-se ansiosamente, colocou as mãos de cada lado do rosto dele e virou-o para ela. Vazios e opacos de raiva estavam os olhos dele.

— Que foi? — repetiu ela. — Hubert, que foi?

Hubert desvencilhou-se.

— Não adianta — disse em voz densa. — Não adianta mesmo. Foi tudo um erro. Lamento. Acho melhor eu ir embora. A carruagem ainda está aí fora.

E sem esperar que ela dissesse alguma coisa, sem explicar-se mais, voltou-se e afastou-se rapidamente, quase correndo, em direção à casa. Bem, graças a Deus, disse a si mesmo, estava fora disso. Não tinha agido muito bem, com elegância ou coragem; mas, de qualquer maneira, estava fora. Pobre Minnie! Sentia pena dela; mas, afinal, que poderia fazer? Pobre Minnie! Mesmo assim, sua vaidade ficava lisonjeada ao pensar que ela choraria por ele. E, de qualquer maneira, assegurou à sua consciência, não era possível que ela fosse se importar demais. No entanto, por outro lado, lembrou-lhe sua vaidade, ela o adorava realmente. Ah, ela absolutamente o venerava...

A porta fechou-se atrás dele. Minnie estava novamente sozinha no jardim. Maduro, maduro ele jazia ao sol do fim da tarde. Metade dele estava à sombra agora; mas o resto, à luz colorida do crepúsculo, parecia ter chegado à perfeição definitiva e absoluta da maturidade. Amadurecida com o silêncio trovejante, a fruta preferida de todos os tempos ali pendia, deliciosamente doce, doce até o fim; pendia rubra e linda à margem da escuridão.

Minnie ficou sentada imóvel, perguntando-se o que tinha acontecido. Ele tinha ido embora, tinha mesmo ido embora? A porta fechou-se atrás dele com uma pancada e, quase como se o som fosse um sinal combinado, um homem saiu do moinho, foi até o dique e fechou a comporta. E de repente a roda ficou imóvel. Fez um silêncio apocalíptico; o silêncio da ausência de som tomou o lugar desse outro silêncio que era o do som sem fim. Abismos abriam-se infinitos à sua volta; ela estava sozinha. Do outro lado do abismo de ausência de som uma abelha atrasada levava consigo seu zumbido fino; os pardais chilreavam, e do outro lado da água vinha o som de vozes e risadas distantes. E, como se acordasse de um sono, Minnie ergueu os olhos e escutou, temerosa, virando a cabeça de um lado para o outro.


Fardo

Eles estavam discutindo havia quase três quartos de hora. Abafadas e ininteligíveis, as vozes flutuavam pelo corredor desde o extremo oposto do apartamento. Inclinada sobre sua costura, Sophie perguntou-se, sem muita curiosidade, o que seria dessa vez. Era a voz de Madame que ela ouvia com mais frequência. Aguda de raiva e indignada de lágrimas, ela explodia em rajadas, em jorros. Monsieur era mais controlado, e sua voz mais baixa era suave demais para atravessar com facilidade as portas fechadas e o corredor. Para Sophie, em seu quartinho frio, a briga parecia, na maior parte do tempo, uma série de monólogos de Madame, interrompidos por silêncios estranhos e pesados. Mas, de vez em quando, Monsieur parecia perder completamente a paciência e então não havia silêncio entre as rajadas, e sim um grito áspero, profundo, zangado. Madame mantinha o tom agudo e alto continuamente e sem esmorecer; sua voz tinha, mesmo na raiva, uma monotonia curiosa e regular. Mas Monsieur às vezes falava alto, às vezes baixo, com ênfases, modulações e explosões súbitas, de modo que suas contribuições à discussão, quando eram audíveis, soavam como uma série de explosões distintas. Uau, uau, uau-uau-uau, uau — um cachorro latindo estupidamente.

Depois de algum tempo Sophie não prestou mais atenção ao barulho da briga. Consertava uma das camisolas de Madame, e o trabalho requeria toda a sua atenção. Sentia-se muito cansada; seu corpo todo doía. Tinha sido um dia difícil; a véspera também, e o dia anterior à véspera também. Todos os dias eram dias difíceis, e ela não era mais tão jovem quanto antes. Mais dois anos e teria cinquenta. Todos os dias tinham sido difíceis desde que ela se lembrava. Pensou nos sacos de batatas que costumava carregar quando era menina, no campo. Devagar, devagar ela caminhava pela estrada poeirenta com o saco sobre o ombro. Mais dez passos; podia conseguir isso. Só que nunca era o fim; tinha-se sempre que começar de novo.

Ergueu os olhos da costura, moveu a cabeça de um lado para o outro, piscou. Começava a ver luzes e manchas de cor dançando diante dos olhos; agora isso lhe acontecia com frequência. Uma espécie de verme brilhante e amarelado contorcia-se em direção ao canto direito de seu campo de visão; e embora ele estivesse sempre em movimento para cima, para cima, estava sempre ali no mesmo lugar. E havia estrelas vermelhas e verdes que surgiam, brilhavam e sumiam em torno do verme. Eles se moviam entre ela e a costura; estavam lá quando ela fechava os olhos. Depois de um momento ela continuou o trabalho; Madame queria a camisola muito especialmente na manhã seguinte. Mas era difícil ver atrás do verme.

Houve um súbito aumento de barulho do outro lado do corredor. Uma porta foi aberta; as palavras se articulavam.

— ... bien tort, mon ami, si tu crois que je suis ton esclave. Je ferai ce que je voudrai.

— Moi aussi. — Monsieur soltou uma risada áspera, perigosa. Houve o som de passos pesados no corredor, um ruído no porta-guarda-chuvas; então a porta da frente bateu.

Sophie tornou a baixar os olhos para o trabalho. Ah, o verme, as estrelas coloridas, a dolorosa fadiga em todos os seus membros! Se pudesse passar um dia inteiro na cama, uma cama imensa, macia, quente, o dia inteiro...

A campainha assustou-a. Sempre a deixava nervosa, aquele zumbido de vespa furiosa. Levantou-se, deixou o trabalho na mesa, alisou o avental, ajeitou a touca e saiu para o corredor. Mais uma vez a campainha soou furiosamente. Madame estava impaciente.

— Finalmente, Sophie. Pensei que você nunca viesse. Sophie não disse nada; não havia nada a dizer. Madame estava parada junto ao armário aberto. Uma porção de roupas estava pendurada em seu braço e havia mais roupas em um monte sobre a cama.

“Une beauté à la Rubens”, seu marido costumava chamá-la quando se mostrava mais carinhoso. Gostava dessas mulheres grandes, esplêndidas, imponentes. Nada desses canos flexíveis para ele. “Hélène Fourmont” era seu apelido para ela.

— Algum dia — Madame costumava dizer aos amigos — eu tenho que ir até o Louvre ver meu retrato. O feito por Rubens, sabe. É extraordinário uma pessoa morar a vida inteira em Paris e nunca ter ido ao Louvre. Você não acha?

Essa noite ela estava soberba. As faces estavam enrubescidas; os olhos azuis brilhavam com um fulgor incomum entre as longas pestanas; os cabelos curtos, castanho-avermelhados, estavam despenteados.

— Amanhã, Sophie, nós partiremos para Roma — ela anunciou dramaticamente. — Amanhã de manhã. — Enquanto falava tirou outro vestido do armário e jogou-o na cama. Com o movimento seu roupão abriu-se, e houve uma visão de roupas de baixo enfeitadas e de carne branca e exuberante. — Temos que fazer as malas imediatamente.

— Por quanto tempo, Madame?

— Quinze dias, três meses; como vou saber?

— Faz diferença, Madame.

— O importante é ir embora. Não vou voltar a esta casa, depois do que me foi dito hoje, até que me peçam humildemente.

— Então é melhor levarmos o baú grande, Madame; vou buscá-lo.

O ar no quarto de guardados estava insuportável, cheirava a poeira e couro. O baú grande estava enfiado num canto distante. Ela teve de inclinar-se e esforçar-se para poder puxá-lo para fora. O verme e as estrelas coloridas piscavam diante de seus olhos; sentiu-se tonta quando se endireitou.

— Vou ajudá-la, Sophie — disse Madame, quando a empregada voltou arrastando o baú pesado atrás de si. Que cara de morte essa mulher tinha ultimamente! Ela odiava ter pessoas velhas e feias perto de si. Mas Sophie era tão eficiente; seria loucura livrar-se dela.

— Madame não precisa se preocupar. — Isso não teria fim, Sophie sabia, se Madame começasse a abrir gavetas e jogar coisas. — É melhor Madame ir dormir. Já é tarde.

Não, não. Ela não conseguiria dormir. Estava enervada a tal ponto... Esses homens... Que animalidade! Ninguém era escravo deles. Ninguém queria ser tratado assim.

Sophie arrumava o baú. Um dia inteiro na cama, em uma cama grande e macia como a de Madame. Cochilar, acordar por um momento, cochilar novamente.

— O último jogo dele — Madame dizia com indignação — é me dizer que não tem dinheiro. Não posso comprar roupas, diz. Grotesco demais. Não posso andar nua por aí, posso? — Ergueu as mãos. — E, quanto a dizer que ele não pode pagar, isso é besteira pura. Pode, perfeitamente bem. Só que ele é mau, mau, horrivelmente mau. E se ao menos fizesse um trabalho honesto, para variar, em vez de escrever versos tolos e publicá-los por sua própria conta, teria muito dinheiro. — Caminhou de um lado para o outro no quarto. — Além disso há o pai dele — continuou. — Para que ele serve eu gostaria de saber. “Você deve se orgulhar de ter um marido poeta”, diz. — Ela fez a voz tremer como a de um velho. — Mal posso me conter para não rir na cara dele. “E que versos lindos Hégésippe escreve sobre você! Que paixão, que fogo!” — Pensando no velho, ela esboçou uma careta e fez a cabeça vacilar, o dedo tremer e as pernas capengarem. — E quando se pensa que o pobre Hégésippe é calvo e pinta os poucos cabelos que tem... — Ela riu. — Quanto à paixão de que ele tanto fala em seus detestáveis versos, é tudo pura invenção. Mas, minha boa Sophie, em que você está pensando? Por que está guardando esse vestido verde velho e horroroso?

Sophie tirou o vestido do baú sem dizer coisa alguma. Por que essa mulher foi escolher logo esta noite para parecer tão terrivelmente doente? Tinha o rosto amarelo e os dentes azuis. Madame estremeceu; era horrível demais. Devia mandá-la para a cama. Mas, afinal, o trabalho tinha de ser feito. Que é que se podia fazer? Ela se sentia mais que nunca melindrada.

— A vida é terrível. — Suspirando, sentou-se pesadamente na beirada da cama. As molas flexíveis sacudiram-na suavemente uma ou duas vezes. — Ser casada com um homem assim. Logo estarei ficando velha e gorda. E nem uma vez infiel. Mas veja como ele me trata. — Tornou a levantar-se e começou a caminhar sem rumo pelo quarto. — Não vou aguentar isso — explodiu.

Parou em frente ao espelho comprido e ficou admirando sua figura trágica e esplêndida. Ninguém acreditaria, olhando para ela, que tinha mais de trinta anos. Atrás da beleza trágica ela podia ver no espelho uma criatura velha, magra e infeliz, com rosto amarelo e dentes azuis, acocorada junto ao baú. Realmente, era desagradável demais. Sophie parecia uma dessas mendigas que se veem nas manhãs frias, paradas na sarjeta. A pessoa passa depressa, tentando não olhar para elas? Ou para, abre a bolsa e lhes dá uma moeda — até mesmo uma nota de dois francos, se não se tem trocado? Seja o que for que faça, a pessoa fica sempre desconfortável, sempre se sente como se desculpando por suas pelicas. Era isso que dava andar. Se a pessoa tivesse um carro — mas essa era outra das maldades de Hégésippe —, não teria, viajando atrás de janelas fechadas, que tomar consciência delas. Ela deu as costas ao espelho.

— Não vou aguentar — disse, tentando não pensar nas mendigas, em dentes azuis e rostos amarelos. — Não vou aguentar. — Deixou-se cair numa cadeira.

Mas pensar em um amante com rosto amarelo e dentes azuis e desiguais! Ela fechou os olhos, estremecendo ao pensar nisso. Seria o bastante para deixar a pessoa doente. Sentiu-se impelida a dar outra olhada: os olhos de Sophie tinham a cor de chumbo esverdeado, sem vida. Que é que se podia fazer? O rosto da mulher era uma repreensão, uma acusação. E, além disso, vê-la fazia-a sentir-se verdadeiramente doente. Nunca tinha ficado tão profundamente irritada.

Sophie ergueu-se lentamente e com dificuldade; uma expressão de dor cruzou seu rosto. Lentamente ela caminhou para a cômoda, lentamente contou seis pares de meias de seda. Tornou a virar-se para o baú. Essa mulher era um cadáver ambulante!

— A vida é terrível — Madame repetiu com convicção. — Terrível, terrível, terrível.

Devia mandar a mulher para a cama. Mas nunca conseguiria arrumar as coisas sozinha. E era tão importante ir embora na manhã seguinte. Ela tinha dito a Hégésippe que iria e ele simplesmente rira; não tinha acreditado. Desta vez tinha que lhe dar uma lição. Em Roma ela veria Luigino. Um rapaz tão encantador, e marquês, também. Talvez... Mas ela não conseguia pensar em coisa alguma além do rosto de Sophie; os olhos plúmbeos, os dentes azulados, a pele amarela e enrugada.

— Sophie — disse de repente; era com dificuldade que não gritava —, olhe em minha penteadeira. Vai ver uma caixa de ruge, o Dorin número 24. Coloque um pouco no rosto. E há um bastão de pomada para os lábios na gaveta da direita.

Manteve os olhos resolutamente afastados enquanto Sophie se levantava (com que horrível estalar das juntas!), caminhava até a penteadeira e ficava parada ali, ruidosa, durante o que parecia ser uma eternidade. Que vida, meu Deus, que vida! Passos lentos voltavam. Ela abriu os olhos. Ah, isso era melhor, muito melhor.

— Obrigada, Sophie. Você parece muito menos cansada agora. — Levantou-se vivamente. — E agora temos que nos apressar. — Cheia de energia, ela correu para o armário. — Meu Deus! — exclamou, levantando as mãos. — Você esqueceu de pegar meu vestido azul de noite. Como pode ser tão estúpida, Sophie?


O retrato

— Pinturas — disse o sr. Bigger. — Você quer ver algumas pinturas? Bem, temos no momento, em nossas galerias, uma exposição mista de coisas modernas muito interessante. Francesas e inglesas, sabe?

O freguês ergueu a mão e sacudiu a cabeça.

— Não, não. Nada de moderno para mim — declarou, em seu agradável inglês do norte. — Quero pinturas de verdade, pinturas antigas. Rembrandt e Sir Joshua Reynolds, esse tipo de coisa.

— Perfeitamente — assentiu o sr. Bigger. — Os Velhos Mestres. Ah, naturalmente lidamos com os antigos, assim como com os modernos.

— O fato é — disse o outro — que acabei de comprar uma casa meio grande. Um Solar — acrescentou em tom imponente.

O sr. Bigger sorriu; havia naquele sujeito simples uma ingenuidade muito simpática. Perguntou-se como o homem teria ganhado dinheiro. “Um Solar.” O modo como ele tinha dito isso era de fato encantador. Ali estava um homem que com seu trabalho ascendera da servidão à posse de um solar, desde a base larga da pirâmide feudal até o cume estreito. Sua própria história e toda a história das classes sociais estavam implícitas naquela ênfase orgulhosa e reverente de “Solar”. Mas o desconhecido continuava a falar; o sr. Bigger não podia se dar ao luxo de maiores divagações.

— Em uma casa desse estilo — dizia o outro — e com uma posição como a minha, é preciso ter alguns quadros. Velhos Mestres, sabe; Rembrandt e aqueles sujeitos.

— Naturalmente — disse o sr. Bigger —, um Velho Mestre é um símbolo de superioridade social.

— É exatamente isso — exclamou o outro com um sorriso largo. — Você disse o que eu queria dizer.

O sr. Bigger inclinou-se e sorriu. Era delicioso encontrar alguém que tomava suas pequenas ironias como grave seriedade.

— Claro, precisamos de um só Velho Mestre no primeiro andar, no salão de recepções. Seria bom demais ter um em cada quarto também.

— Realmente seria — assentiu o sr. Bigger.

— Aliás, minha filha desenha um pouco — continuou o Senhor do Solar. — E muito bem. Mandei emoldurar algumas das coisas dela para pendurar nos quartos. É útil ter um artista na família. Economiza na compra de quadros. Mas, é claro, precisamos ter alguma coisa antiga no primeiro andar.

— Acho que tenho exatamente o que você quer. — O sr. Big- ger levantou-se e tocou a campainha. “Minha filha desenha um pouco”: ele imaginou uma personagem grande, loura, do tipo de uma estalajadeira, com trinta e um anos e ainda solteira, um pouco decadente. Sua secretária apareceu à porta. — Traga-me o retrato veneziano, srta. Pratt, aquele na sala dos fundos. Sabe a qual me refiro.

— Você está bem instalado aqui — comentou o Senhor do Solar. — Os negócios vão bem, espero.

O sr. Bigger suspirou.

— A recessão — disse. — Nós, comerciantes de arte, somos mais afetados por ela do que qualquer outra pessoa.

— Ah, a recessão. — O Senhor do Solar deu uma risadinha. — Eu previ isso o tempo todo. Algumas pessoas pareciam pensar que os bons tempos durariam para sempre. Que tolos! Vendi tudo na crista da onda. Por isso posso comprar quadros agora.

O sr. Bigger riu também. Esse era o tipo certo de freguês.

— Eu gostaria de ter tido algo para vender durante a alta — disse.

O Senhor do Solar riu até as lágrimas rolarem por seu rosto. Ainda estava rindo quando a srta. Pratt tornou a entrar na sala. Ela carregava um quadro, como um escudo, com as duas mãos, à sua frente.

— Coloque-o no cavalete, srta. Pratt — disse o sr. Bigger. — Agora, o que acha? — perguntou, voltando-se para o Senhor do Solar.

O quadro que estava no cavalete à frente deles era um retrato de meia altura. De rosto redondo, pele branca, busto alto em seu vestido profundamente decotado de seda azul, a pessoa retratada parecia uma típica dama italiana de meados do século xviii. Um pequeno sorriso complacente curvava os lábios carnudos, e em uma das mãos ela segurava uma máscara preta, como se tivesse acabado de retirá-la depois de um dia de carnaval.

— Muito bonito — fez o Senhor do Solar, mas acrescentou, em tom de dúvida: — Não parece muito Rembrandt, não é? É tão claro e brilhante... Geralmente nos Velhos Mestres a gente nunca enxerga nada, são tão escuros e embaçados.

— É verdade — disse o sr. Bigger. — Mas nem todos os Velhos Mestres são como Rembrandt.

— Imagino que não. — O Senhor do Solar não parecia convencido.

— Este quadro é veneziano, do século xviii. As cores dele são sempre luminosas. Giangolini foi o pintor. Ele morreu jovem, sabe? Não mais que meia dúzia de seus quadros são conhecidos. Este é um deles.

O Senhor do Solar assentiu. Ele sabia apreciar o valor da raridade.

— Percebe-se ao primeiro olhar a influência de Longhi — continuou vivamente o sr. Bigger. — E há algo da morbidezza de Rosalba no rosto.

O Senhor do Solar olhava desconfortavelmente do sr. Bigger para o quadro e do quadro para o sr. Bigger. Não há nada mais embaraçoso do que ouvir alguém que possua mais conhecimento do que nós. O sr. Bigger aproveitou sua vantagem.

— É curioso — continuou — que não se reconheça coisa alguma do estilo de Tiepolo nele. Você não acha?

O Senhor do Solar assentiu. Seu rosto tinha uma expressão sombria. Os cantos de sua boca de bebê caíram. Podia-se imaginar que ele ia desatar em lágrimas.

— É agradável — disse o sr. Bigger, compadecendo-se afinal — conversar com alguém que realmente entende de pintura. Tão poucas pessoas entendem.

— Bem, não posso dizer que tenha estudado muito o assunto — disse o Senhor do Solar modestamente. — Mas sei o que me agrada quando o vejo. — Seu rosto iluminou-se como se mais uma vez se sentisse em terreno seguro.

— Um instinto natural — disse o sr. Bigger. — Isso é um dom muito precioso. Vi em seu rosto que o senhor o possui; vi no momento em que entrou na galeria.

O Senhor do Solar ficou deliciado.

— Realmente, ora — disse. Sentia-se crescer, ficar mais importante. — Realmente. — Inclinou a cabeça criticamente para o lado. — Sim, devo dizer que acho esse quadro muito bom. Muito bom. Mas o fato é que eu preferia uma peça mais histórica, entende o que quero dizer? Alguém com mais jeito de ancestral, sabe? Um retrato de alguém com uma história — Ana Bolena, ou Nell Gwynn, ou o Duque de Wellington, algo do gênero.

— Mas, meu caro cavalheiro, eu ia justamente lhe contar. Este quadro tem uma história. — O sr. Bigger inclinou-se para a frente e deu um tapinha no joelho do Senhor do Solar. Seus olhos brilhavam com um fulgor benevolente e divertido sob as sobrancelhas cerradas. Havia uma bondade sábia em seu sorriso. — Uma história extraordinária está ligada à pintura deste quadro.

— Não diga! — O Senhor do Solar ergueu as sobrancelhas.

O sr. Bigger recostou-se na cadeira.

— A dama que o senhor vê ali — disse, indicando o retrato com um gesto de mão — era a esposa do quarto conde Hurtmore. A família agora está extinta. O nono conde morreu no ano passado. Consegui esse quadro quando a casa foi vendida. Triste ver o fim dessas velhas casas ancestrais.

O sr. Bigger suspirou. O Senhor do Solar parecia solene, como se estivesse em uma igreja. Houve um momento de silêncio; então o sr. Bigger continuou, em tom diferente:

— Pelos retratos dele, que eu vi, o quarto conde parece ter sido um sujeito de rosto comprido, sombrio e acinzentado. Não se poderia imaginá-lo jovem; era o tipo de homem que parece permanentemente ter cinquenta anos. Seus maiores interesses na vida eram a música e antiguidades romanas. Há um retrato dele segurando uma flauta de marfim em uma das mãos e descansando a outra sobre um fragmento de um entalhe romano. Passou pelo menos metade da vida viajando pela Itália, procurando antiguidades e ouvindo música. Quando tinha uns cinquenta e cinco anos, resolveu de repente que era hora de se casar. Esta foi a dama de sua escolha. — O sr. Bigger apontou para o quadro. — O dinheiro dele e o título devem ter compensado muitas deficiências. Não se pode imaginar, pela aparência dela, que lady Hurtmore tivesse muito interesse em antiguidades romanas. Tampouco ocorre-me pensar se importava muito com ciência e história da música. Ela gostava de roupas, gostava de sociedade, gostava de jogar, gostava de flertar, gostava de se divertir. Não parece que o casal recém-casado tenha se dado muito bem. Mas mesmo assim eles evitaram uma ruptura. Um ano depois do casamento, lorde Hurtmore resolveu fazer outra visita à Itália. Chegaram a Veneza no início do outono. Para lorde Hurtmore, Veneza significava música ilimitada. Significava os concertos diários de Galuppi no orfanato da Misericórdia. Significava Puccini na Santa Maria. Significava novas óperas em San Moise; significava cantatas deliciosas em cem igrejas. Significava concertos privados de amadores; significava Pórpora e os melhores cantores da Europa; significava Tartini e os maiores violinistas. Para lady Hurtmore, Veneza significava algo bem diferente. Significava jogar no Ridotto, bailes de máscaras, jantares alegres, todas as delícias da cidade mais divertida do mundo. Vivendo suas vidas separadas, ambos poderiam ter sido felizes lá em Veneza quase indefinidamente. Mas um dia lorde Hurtmore teve a ideia desastrosa de mandar pintar o retrato da esposa. O jovem Giangolini lhe foi recomendado como pintor promissor, de futuro. Lady Hurtmore iniciou as sessões de pintura. Giangolini era bonito e ousado, Giangolini era jovem. Tinha uma técnica amorosa tão perfeita quanto sua técnica artística. Lady Hurtmore teria sido mais que humana se fosse capaz de resistir a ele. Ela não era mais que humana.

— Nenhum de nós é, não? — O Senhor do Solar enfiou o dedo nas costelas do sr. Bigger e riu.

Educadamente o sr. Bigger o acompanhou em seu divertimento; quando este arrefeceu, ele continuou:

— Finalmente eles decidiram fugir juntos através da fronteira. Viveriam em Viena, com as joias da família Hurtmore, que a dama teria o cuidado de levar em sua mala. Elas valiam mais de vinte mil, as joias Hurtmore; e em Viena, sob Maria Teresa, podia-se viver muito bem com os juros de vinte mil. Os planos foram feitos facilmente. Giangolini tinha um amigo que fez tudo para eles: arranjou passaportes com nomes falsos, alugou cavalos para esperar em terra firme, colocou sua gôndola à disposição deles. Decidiram fugir no dia da última sessão de pintura. O dia chegou. Lorde Hurtmore, segundo seu costume, levou a esposa ao estúdio de Giangolini em uma gôndola, deixou-a lá, aninhada ao alto encosto do trono da modelo, e saiu de novo para ouvir o concerto de Galuppi na Misericórdia. Era o momento alto do carnaval. Mesmo durante o dia as pessoas andavam mascaradas. Lady Hurtmore usava uma máscara de seda preta — o senhor a vê com a máscara ali no retrato. O marido, embora não fosse boêmio e desaprovasse a confusão do carnaval, preferia conformar-se à moda grotesca de seus vizinhos em vez de atrair atenção sobre si por não conformar-se. O comprido casaco preto, o enorme chapéu preto de três pontas, a máscara de nariz comprido de papel branco eram o traje comum a todos os cavalheiros venezianos nessas semanas de carnaval. Lorde Hurtmore não queria parecer diferente; e usava a mesma coisa. Certamente havia algo ricamente absurdo e esdrúxulo no espetáculo do sisudo cavalheiro inglês de respeitosas feições vestido com o uniforme de palhaço de um alegre mascarado veneziano. “Pantaleão nas roupagens de Pulcinella” foi como os amantes o descreveram, o velho caduco da eterna comédia vestido de palhaço. Bem, nessa manhã, como já disse, lorde Hurtmore chegou como sempre em sua gôndola alugada, trazendo consigo sua dama. E ela por sua vez trazia, sob as dobras de sua capa ampla, uma pequena caixa de couro dentro da qual, aconchegadas em seu leito de seda, repousavam as joias Hurtmore. Sentados na pequena cabine escura da gôndola, eles contemplavam as igrejas, os palazzi ricamente ornamentados, as casas altas e estreitas por entre as quais deslizavam. Sob sua máscara de palhaço ouviu-se a voz de lorde Hurtmore, grave, lenta, imperturbável. “O erudito padre Martini prometeu dar-me a honra de vir jantar conosco amanhã”, disse ele. “Duvido que alguém conheça mais a história musical do que ele. Eu lhe peço que se esforce para lhe prestar homenagens especiais.” “Esteja certo de que as farei, meu lorde.” Ela mal podia conter a alegre excitação que borbulhava dentro de si. No dia seguinte, à hora do jantar, ela estaria muito longe — além da fronteira, depois de Gorizia, galopando pela estrada de Viena. Pobre velho Pantaleão! Mas não, ela não tinha a menor pena dele. Afinal, ele tinha sua música, tinha suas miudezas de mármore quebrado. Sob a capa ela segurou a caixa de joias com mais força. Como era divertido seu segredo! Sentia-se como que embriagada.

O sr. Bigger apertou as mãos e levou-as dramaticamente ao coração. Ele próprio se divertia. Virou o nariz comprido como o focinho de uma raposa em direção ao Senhor do Solar e sorriu com benevolência. O Senhor do Solar, por sua parte, era todo atenção.

— E então? — inquiriu.

O sr. Bigger soltou as mãos e deixou-as cair no joelho do outro.

— Bem, a gôndola para à porta de Giangolini, lorde Hurtmore ajuda a esposa a sair, leva-a até o grande aposento do pintor no primeiro andar, entrega-a a ele com sua costumeira fórmula educada, e então parte para ouvir o concerto matinal de Galuppi na Misericórdia. Os amantes têm umas boas duas horas para fazer os preparativos finais. Assim que o velho Pantaleão some de vista, surge o útil amigo do pintor, de capa e máscara como qualquer pessoa nas ruas e canais dessa Veneza em pleno carnaval. Seguem-se abraços, apertos de mão e risadas; tudo saiu tão maravilhosamente bem, nenhuma suspeita despertada. De sob o casaco de lady Hurtmore surge a caixa de joias. Ela a abre e há altas exclamações italianas de espanto e admiração. Os brilhantes, as pérolas, as grandes esmeraldas Hurtmore, os broches de rubis, os brincos de diamantes — todas essas coisas brilhantes e faiscantes são examinadas com carinho, manuseadas com conhecimento. No mínimo cinquenta mil cequins é a estimativa do comparsa. Os dois amantes, extasiados, jogam-se nos braços um do outro. O comparsa os interrompe; ainda há algumas poucas coisas a serem feitas. Eles têm de assinar os passaportes no Ministério da Polícia. Ah, uma simples formalidade; mas precisa ser cumprida. Enquanto isso ele vai sair e vender um dos diamantes da dama para obter os fundos necessários para a viagem.

O sr. Bigger parou para acender um cigarro. Soprou uma nuvem de fumaça e continuou:

— Assim saíram todos, com suas máscaras e capas, o comparsa em uma direção, o pintor e a amante em outra. Ah, o amor em Veneza! — O sr. Bigger revirou os olhos, em êxtase. — Você já esteve em Veneza e apaixonado? — perguntou ao Senhor do Solar.

— Nunca fui mais longe que Dieppe — respondeu o Senhor do Solar sacudindo a cabeça.

— Ah, então perdeu uma das grandes experiências da vida. Nunca se pode entender completamente o que podem ter sido as sensações da pequena lady Hurtmore e do artista enquanto seguiam pelos longos canais, contemplando um ao outro através dos orifícios de suas máscaras. Às vezes, talvez, beijavam-se — embora isso devesse ser difícil sem tirar as máscaras; ademais, sempre havia o perigo de que alguém reconhecesse seus rostos nus através das janelas de sua pequena cabine. Não — concluiu pensativamente o sr. Bigger. — Acho que eles se limitaram a contemplar-se. Mas em Veneza, ao longo do torpor dos canais, pode-se quase satisfazer-se em olhar — só olhar.

Acariciou o ar com a mão e deixou a voz esvair-se em silêncio. Deu duas ou três tragadas no cigarro sem falar coisa alguma. Quando continuou, sua voz era baixa e regular.

— Mais ou menos meia hora depois que eles partiram, uma gôndola parou à porta de Giangolini e um homem com máscara de papel, envolto numa capa preta e usando na cabeça o inevitável chapéu de três pontas, saltou e subiu para o aposento do pintor. Estava vazio. Doce, ou talvez um pouco tolamente, o retrato sorria no cavalete. Mas não havia pintor diante dele, e o trono da modelo estava desocupado. A máscara de nariz comprido contemplou o aposento com uma curiosidade sem expressão. O olhar errante veio pousar finalmente sobre a caixa de joias que estava onde os amantes a tinham descuidadamente deixado, aberta sobre a mesa. Profundos e sombreados de negro por trás da máscara grotesca, os olhos contemplaram longa e fixamente esse objeto. O Pulcinella de nariz comprido parecia estar absorto em meditação. Alguns minutos mais tarde houve o som de passos na escada, de duas vozes rindo juntas. O mascarado voltou-se para olhar pela janela. Atrás dele a porta abriu-se ruidosamente; bêbados de excitação e de uma alegre e animada irresponsabilidade, os dois amantes entraram. “Ah, caro amico! Já de volta? Teve sorte com o diamante?” A figura embuçada não se mexeu; Giangolini continuou a falar alegremente. Não tinha havido o menor problema com as assinaturas, nenhuma pergunta; os passaportes estavam em seu bolso. Podiam partir imediatamente. De repente lady Hurtmore começou a rir incontrolavelmente; não conseguia parar. “Que foi?”, perguntou Giangolini, rindo também. “Eu estava pensando”, ela ofegou, no paroxismo de sua alegria, “estava pensando no velho Pantaleão sentado na Misericórdia, solene como uma coruja, escutando” — ela quase engasgou, e as palavras saíram agudas e forçadas como se ela falasse através de lágrimas — “as enfadonhas cantatas velhas do velho Galuppi.” O homem à janela voltou-se. “Infelizmente, madame”, disse ele, “o sábio maestro estava indisposto esta manhã. Não houve concerto.” Ele tirou a máscara. “E assim tomei a liberdade de voltar mais cedo do que o costume.” O rosto comprido, cinzento e sério de lorde Hurtmore enfrentou-os. Os amantes ficaram por um momento sem fala. Lady Hurtmore levou a mão ao coração; ele tinha dado um pulo, e ela sentia uma sensação horrível na boca do estômago. O pobre Giangolini ficara branco como sua máscara de papel. Mesmo nesses dias de cicisbei, de cavalheiros amigos oficiais, havia casos de maridos ultrajados e ciumentos recorrendo ao homicídio. Ele estava desarmado, e só Deus sabia que armas de destruição estavam escondidas sob aquela enigmática capa preta. Mas lorde Hurtmore não fez nada brutal ou indigno. Grave e calmamente, como era seu costume, ele caminhou até a mesa, pegou a caixa de joias, fechou-a com o maior cuidado e, dizendo “Minha caixa, eu creio”, guardou-a no bolso e saiu do aposento. Os amantes foram deixados olhando interrogativamente um para o outro.

Houve um silêncio.

— Que aconteceu depois? — perguntou o Senhor do Solar.

— O anticlímax — respondeu o sr. Bigger, sacudindo a cabeça tristemente. — Giangolini imaginara fugir com cinquenta mil cequins. Pensando um pouco melhor, lady Hurtmore não se via muito à vontade com a ideia de amor numa cabana. O lugar da mulher, ela decidiu finalmente, é em casa — com as joias da família. Mas lorde Hurtmore veria o assunto exatamente sob o mesmo prisma? Essa era a questão, a questão alarmante, inquietante. Ela resolveu ir ver por si própria. Chegou à casa bem na hora do jantar. “Sua Ilustríssima Excelência está esperando na sala de jantar”, disse o mordomo. As portas altas foram abertas à sua frente; ela entrou majestosa, de queixo erguido; mas com que terror na alma! Seu marido estava postado junto à lareira. Adiantou-se para ir ao encontro dela. “Eu a estava esperando, madame”, disse, e levou-a a seu lugar. Foi a única referência que fez ao incidente. À tarde ele mandara um empregado buscar o retrato no estúdio do pintor. Era parte da bagagem deles quando, um mês depois, partiram para a Inglaterra. A história foi transmitida junto com o retrato de uma geração para outra. Eu a ouvi de um velho amigo da família quando comprei o retrato no ano passado.

O sr. Bigger jogou o cigarro na lareira. Orgulhava-se de ter contado a história muito bem.

— Muito interessante — disse o Senhor do Solar. — Realmente muito interessante. Bastante histórico, não é? Não se pode dizer que Nell Gwynn ou Ana Bolena sejam melhores.

O sr. Bigger produziu um sorriso vago, distante. Estava pensando em Veneza — a condessa russa hospedada em sua pensão, a árvore copada no pátio do lado de fora do seu quarto, o perfume forte e quente que ela usava (fazia a pessoa prender a respiração ao senti-lo pela primeira vez) e os banhos no Lido, a gôndola e a cúpula do Salute de encontro ao céu nublado, parecendo igual a quando Guardi a pintou. Como tudo parecia tão imensamente longe! Ele era pouco mais que um menino então; tinha sido sua primeira grande aventura. Acordou de seus devaneios com um susto.

O Senhor do Solar estava falando.

— Agora, quanto você quer pelo quadro? — perguntou ele. Seu tom era neutro, sem preparação alguma; era uma peça rara demais para barganhar.

— Bem — disse o sr. Bigger, deixando com relutância a condessa russa, a Veneza paradisíaca de vinte e cinco anos antes. — Já pedi até mil por obras menos importantes que esta. Mas não me importo de vendê-la por setecentos e cinquenta.

O Senhor do Solar assobiou.

— Setecentos e cinquenta? — repetiu. — É demais.

— Mas, meu caro cavalheiro — protestou o sr. Bigger —, pense no que teria de pagar por um Rembrandt deste tamanho e qualidade: vinte mil pelo menos. Setecentos e cinquenta não é demais. Pelo contrário, é muito pouco, considerando-se a importância do quadro que levará. O senhor tem esclarecimento o bastante para ver que esta é uma bela obra de arte.

— Ah, não estou negando isso — disse o Senhor do Solar. — Tudo o que estou dizendo é que setecentos e cinquenta é muito dinheiro. Uau! Ainda bem que minha filha desenha. Pense se eu tivesse que enfeitar os quartos com pinturas a setecentos e cinquenta cada uma! — Ele riu.

O sr. Bigger sorriu.

— O senhor tem de se lembrar também de que está fazendo um bom investimento — disse. — Os antigos venezianos estão subindo. Se eu tivesse um capital sobrando...

A porta abriu-se e a cabeça loura e ondulada da srta. Pratt assomou.

— O sr. Crowley quer saber se pode recebê-lo, sr. Bigger.

O sr. Bigger franziu a testa.

— Diga-lhe que espere — respondeu com irritação. Tossiu e voltou-se novamente para o Senhor do Solar. — Se eu tivesse algum capital sobrando, ia colocá-lo todo em antigos venezianos. Até o último centavo.

Enquanto dizia essas palavras, perguntou-se quantas vezes já dissera às pessoas que colocaria todo o seu capital, se tivesse algum, em cubismo primitivo, escultura negra, gravuras japonesas...

Finalmente o Senhor do Solar escreveu-lhe um cheque de seiscentos e oitenta.

— Você podia me arranjar uma cópia datilografada da história — pediu, enquanto punha o chapéu. — Seria um bom caso para contar aos convidados durante o jantar, não acha? Eu gostaria de ter os detalhes bem corretos.

— Ah, naturalmente, naturalmente — disse o sr. Bigger. — Os detalhes são importantíssimos.

Levou o homenzinho roliço até a porta.

— Bom dia, bom dia.

O homem partiu.

Um rapaz alto e pálido, com costeletas, apareceu à porta. Seus olhos eram escuros e melancólicos; sua expressão, sua aparência geral, eram românticas e ao mesmo tempo davam um pouco de pena. Era o jovem Crowley, o pintor.

— Lamento tê-lo feito esperar — disse o sr. Bigger. — Por que queria me ver?

O sr. Crowley parecia constrangido, e hesitou. Como odiava ter de fazer esse tipo de coisa!

— O fato é que estou terrivelmente sem dinheiro — disse afinal. — Imaginei que talvez o senhor não se importasse, se lhe fosse conveniente, de me pagar por aquela coisa que fiz para o senhor no outro dia. Lamento muito incomodá-lo assim.

— Não se preocupe, meu caro amigo. — O sr. Bigger tinha pena dessa criatura desgraçada que não sabia como cuidar de si mesmo. O pobre jovem Crowley era indefeso como um bebê. — Quanto foi que combinamos?

— Vinte libras, acho que era — disse o sr. Crowley timidamente.

O sr. Bigger pegou sua carteira.

— Vamos dizer vinte e cinco — falou.

— Ah, não, realmente, eu não poderia. Muito obrigado. — O sr. Crowley ruborizou-se como uma menina. — Imagino que não gostaria de fazer uma exposição com algumas de minhas paisagens, não é? — perguntou, encorajado pelo ar de benevolência do sr. Bigger.

— Não, não. Nada de seu. — O sr. Bigger sacudiu a cabeça inexoravelmente. — Não há dinheiro em coisas modernas. Mas compro qualquer quantidade desses falsos Velhos Mestres seus. — Tamborilou com os dedos no ombro pintado de lady Hurtmore. — Tente outro veneziano — acrescentou. — Este aqui foi um grande sucesso.


O jovem Arquimedes

Foi a vista que finalmente nos fez ficar com a casa. É verdade que ela tinha suas desvantagens. Ficava longe da cidade e não tinha telefone. O aluguel era exorbitantemente alto, o escoamento do esgoto, ruim. Em noites de ventania, quando as vidraças mal colocadas batiam com tanta fúria nos caixilhos que a pessoa podia imaginar-se num hotel-carruagem, a luz elétrica, por alguma razão misteriosa, costumava invariavelmente acabar e deixar a pessoa na barulhenta escuridão. Havia um banheiro esplêndido; mas a bomba elétrica, que deveria mandar a água das cisternas de água pluvial do terraço, não funcionava. O poço de água secava religiosamente em todos os outonos. E nossa senhoria era mentirosa e trapaceira.

Mas essas são as pequenas desvantagens de toda casa alugada, no mundo inteiro. Para os padrões italianos este não chegava a ser o pior dos mundos. Já vi muitas casas que tinham esses e mais centenas de outros problemas, sem possuir as vantagens compensadoras da nossa — o jardim e o terraço virados para o sul, para o inverno e a primavera, os grandes aposentos frescos contra o calor do verão, o ar arejado e sem mosquitos do alto da colina e, por fim, a vista.

E que vista! Ou melhor, que sucessão de vistas! Pois era diferente todos os dias; e sem sair da casa tinha-se a impressão de uma mudança incessante de cenário: todas as delícias de viajar, sem o cansaço. Havia dias de outono em que todos os vales estavam cheios de névoa e o sopé dos Apeninos erguia-se escuro de um lago plano e branco. Havia dias em que a névoa invadia até mesmo nosso alto da colina e ficávamos envoltos num vapor suave no qual as oliveiras cor de neblina, que desciam abaixo de nossas janelas em direção ao vale, desapareciam como se voltassem à sua essência espiritual; e as únicas coisas firmes e definidas no mundo pequeno e escuro em que nos encontrávamos confinados eram os dois ciprestes altos e escuros que cresciam num pequeno terraço trinta metros morro abaixo. Negros, agudos e sólidos, eles ali se postavam, pilares gêmeos de Hércules na extremidade do universo conhecido; para além deles havia apenas uma nuvem pálida, e em volta deles apenas as nebulosas oliveiras.

Esses eram os dias de inverno. Mas havia os dias de primavera e de outono, dias invariavelmente sem nuvens, ou — mais adorável ainda — tornados diferentes pelas imensas e flutuantes formas de vapor que, brancas por cima das distantes montanhas cobertas de neve, gradualmente revelavam, contra o pálido e reluzente azul, irregulares e heroicas posturas. E no alto do céu os véus bojudos, os cisnes, os mármores aéreos, talhados e deixados inconclusos pelos deuses cansados da criação quase antes de a terem começado, deslizavam adormecidos ao longo do vento, mudando de forma enquanto se moviam. E o sol vinha e desaparecia atrás deles; e ora a cidade no vale desbotava e quase desaparecia na sombra, ora, como uma enorme joia entre as colinas, ela brilhava como se por sua própria luz. E olhando por cima do vale tributário mais próximo, que se estendia desde nosso sopé, descendo em direção ao Arno, olhando por cima do ombro escuro da colina em cujo promontório externo ficava a igreja de San Miniato com suas torres, via-se a enorme cúpula pendendo levemente de suas costelas de alvenaria, o campanário quadrado, a aguda flecha da torre da Santa Croce e o dossel da torre da Signoria, erguendo-se acima do intrincado labirinto de casas, distintas e brilhantes como pequenos tesouros talhados em pedras preciosas. Sua luz, de repente, desaparecia, e o foco errante escolhia, entre os montes azuis mais além, uma única escarpa dourada.

Havia dias em que o ar estava úmido da chuva que já tinha passado ou ainda se aproximava, e todas as distâncias pareciam miraculosamente próximas e claras. As oliveiras destacavam-se umas das outras nas encostas distantes; os povoados longínquos mostravam-se lindos e patéticos como os mais refinados brinquedos. Havia dias de verão, dias de tempestade iminente em que, brilhantes e iluminadas pelo sol contra enormes massas bojudas de preto e púrpura, as colinas e as casas brancas cintilavam por assim dizer precariamente, num esplendor moribundo, à beira de alguma horrível calamidade.

Como mudavam e variavam as colinas! A cada dia e praticamente a cada hora do dia elas se transformavam. Havia momentos em que, olhando através de Florença, via-se apenas uma silhueta azul-escura contra o céu. A paisagem não tinha profundidade; havia apenas uma cortina pendente, pintada com os símbolos das montanhas. E então, quase subitamente, com a passagem de uma nuvem à descida do sol a um certo nível no céu, a paisagem plana tornava-se outra; e onde antes só havia uma cortina pintada, surgiam então serras e serras, com graduações de tom de marrom, ou cinzento, ou um ouro esverdeado até o azul distante. Formas que um momento antes estavam fundidas indiscriminadamente numa massa única agora decompunham-se em seus constituintes. O Fiesole, antes tão somente um contraforte do monte Morello, então se revelava promontório saliente de outro sistema de morros, separados dos bastiões mais próximos de seu vizinho por um vale profundo e sombreado.

Ao meio-dia, durante o calor do verão, a paisagem fazia-se baça, poeirenta, vaga e quase sem cor sob o sol a pino; as colinas desapareciam nas franjas trêmulas do céu. Mas, à medida que a tarde seguia, a paisagem tornava a emergir, perdia seu anonimato, erguia-se do nada para constituir-se forma e vida. E sua vida, quando o sol mergulhava lentamente através da longa tarde, ficava mais rica, mais intensa a cada momento. A luz horizontal, com as sombras escuras e alongadas que a seguiam, deixava a nu, por assim dizer, a anatomia da terra; as colinas — cada escarpa ocidental brilhando e cada encosta escondida do sol profundamente sombreada — tornavam-se maciças, escarpadas e sólidas. Pequenas dobras e depressões no terreno aparentemente regular revelavam-se. A leste de nosso morro, através da planície de Ema, um penhasco enorme lançava sua sombra cada vez maior; à claridade do vale uma cidade inteira ficava eclipsada dentro dela. E quando o sol expirava no horizonte, os morros distantes enrubesciam em sua luz cálida, até que seus flancos iluminados ficavam da cor de rosas amareladas; mas os vales já estavam cheios da neblina azul da noite. E ela subia, subia; o fogo retirava-se das janelas ocidentais das encostas povoadas; apenas as cristas ainda estavam acesas, e finalmente elas também se extinguiam. As montanhas desbotavam e tornavam a fundir-se numa pintura plana de montanhas contra o pálido céu noturno. Pouco depois era noite; e, se a lua estava cheia, um fantasma do cenário morto ainda assombrava os horizontes.

Mutável em sua beleza, essa larga paisagem sempre preservou uma característica de humanidade e domesticação que fazia dela, pelo menos para mim, a melhor das paisagens para viver. Dia a dia a pessoa viajava através de suas belezas diferentes; mas a viagem, como a Grande Travessia de nossos ancestrais, era sempre uma viagem através da civilização. Apesar de todas as suas montanhas, encostas íngremes e vales profundos, a paisagem toscana é dominada por seus habitantes. Eles cultivaram cada pedaço de terra que pôde ser cultivado; suas casas estão densamente espalhadas até mesmo sobre os morros, e os vales são populosos. Solitário no topo do morro, não se está sozinho no ermo. Os traços do homem estão sobre o campo, e já — sente-se isso com satisfação quando se contempla o campo — por séculos, por milhares de anos, tem sido dele, submisso, domado e humanizado. As vastas e vazias charnecas, as areias, as florestas de árvores inumeráveis — esses são lugares para uma visita ocasional, saudável ao espírito que se submete a eles por pouco tempo. Mas influências diabólicas assim como divinas assombram estes eremitérios. A vida vegetativa de plantas e coisas é estranha e hostil à vida humana. Os homens não podem viver em paz a não ser onde tiverem dominado seu ambiente e onde seu número supera as vidas vegetativas à sua volta. Despida de seus bosques negros, plantada, cortada em terraços e cultivada quase até o topo das montanhas, a paisagem toscana é humanizada e segura. Às vezes cai sobre aqueles que vivem no meio dela uma ânsia por algum lugar que seja solitário, inumano, sem vida ou povoado apenas com formas de vida exóticas. Mas a ânsia é logo satisfeita, e fica-se contente ao retornar à paisagem civilizada e submissa.

Descobri que a casa no alto do morro era o lugar ideal de moradia. Pois ali, seguro no meio de uma paisagem humanizada, estava-se não obstante sozinho; podia-se ficar solitário à vontade. Os vizinhos que nunca são vistos de perto são os vizinhos ideais e perfeitos.

Nossos vizinhos mais próximos, em termos de proximidade física, moravam muito perto. Aliás, eram dois grupos, quase na mesma casa conosco. Um era a família de camponeses que ocupava um prédio comprido e baixo, parte moradia, parte estábulo, depósito e estrebaria, junto à villa. Nossos outros vizinhos — vizinhos intermitentes, pois só se aventuravam a sair da cidade ocasionalmente, quando o tempo estava perfeito — eram os proprietários da villa, que tinham reservado para si a ala menor da imensa casa em L — apenas uma dúzia de aposentos, ou algo que o valesse — deixando para nós os dezoito ou vinte aposentos restantes.

Eram um casal curioso os nossos senhorios. Um marido velho, cinzento, apático, trôpego, no mínimo setenta anos; e uma esposa de uns quarenta, baixa, bem gordinha, com mãozinhas e pezinhos gordos e um par de olhos negros muito grandes, muito escuros, que ela usava com a habilidade de uma comediante nata. Sua vitalidade, se pudesse ser canalizada para algum trabalho útil, teria abastecido de energia elétrica uma cidade inteira. Os físicos falam de tirar energia do átomo; eles teriam muito com que se ocupar, e de maneira bem mais proveitosa, perto de suas casas — descobrindo algum meio de utilizar essa enorme quantidade de energia vital que se acumula em mulheres desocupadas e de temperamento forte que, no atual e imperfeito estado da organização social e científica, dão vazão a si mesmas por meios geralmente não pouco deploráveis: interferindo nos negócios dos outros, criando cenas sentimentais, pensando em amor e fazendo-o ou incomodando os homens até que eles não consigam continuar a trabalhar.

A signora Bondi gastava sua energia supérflua, entre outras maneiras, “liquidando” seus inquilinos. O velho cavalheiro, comerciante aposentado com uma reputação da mais perfeita honradez, não tinha permissão de tratar conosco. Quando viemos ver a casa, foi a mulher quem nos mostrou tudo. Foi ela quem, com uma pródiga demonstração de encanto e um irresistível jogo de olhares, alongou-se nos méritos do lugar, cantou as maravilhas da bomba elétrica, glorificou o banheiro (que, levado em consideração, tornava o aluguel incrivelmente barato, segundo ela) e, quando sugerimos chamar um avaliador para examinar a casa, implorou-nos ansiosamente, como se nosso bem-estar fosse sua única preocupação, que não desperdiçássemos nosso dinheiro fazendo algo tão supérfluo.

— Afinal, somos pessoas honestas — disse ela. — Eu não sonharia em alugar a casa para vocês a não ser em perfeitas condições. Tenham confiança.

E ela olhava para mim com uma dolorida expressão de apelo em seus olhos magníficos, como que me implorando a não insultá-la com minhas rudes suspeitas. E deixando-nos sem tempo para estender o assunto de avaliadores, ela começou a nos assegurar que nosso menino era o mais belo anjo que ela já vira. Quando nossa entrevista com a signora Bondi estava no final, tínhamos decidido definitivamente aceitar a casa.

— Mulher encantadora — falei, quando saímos da casa. Mas acho que Elizabeth não tinha tanta certeza disso quanto eu.

Então teve início o episódio da bomba.

Na noite da nossa chegada na casa, ligamos a eletricidade. A bomba fez um ruído muito profissional; mas não saiu água das torneiras do banheiro. Entreolhamo-nos com ar de dúvida.

— Mulher encantadora? — Elizabeth ergueu as sobrancelhas.

Pedimos encontros; mas de algum jeito o velho cavalheiro nunca podia nos receber, e a signora estava invariavelmente fora ou indisposta. Deixamos recados; nunca eram respondidos. Por fim, achamos que o único método de nos comunicarmos com nossos senhorios, que moravam na mesma casa que nós, era descer a Florença e mandar-lhes uma carta expressa registrada. Para isso eles teriam que assinar dois recibos separados e até mesmo, se resolvêssemos pagar mais quarenta cêntimos, um terceiro documento incriminador, que então voltava para nós. Não poderia haver a mentira, como sempre havia com cartas ou bilhetes comuns, de que a comunicação não fora recebida. Começamos finalmente a obter respostas a nossas queixas. A signora, que escrevia todas as cartas, começou por nos dizer que, naturalmente, a bomba não funcionava pois as cisternas estavam vazias devido à longa estiagem. Tive que caminhar cinco quilômetros até o correio para registrar minha carta lembrando-lhe que caíra uma violenta tempestade na quarta-feira anterior, portanto, e que as cisternas estavam mais que a metade cheias. A resposta voltou: a água de banho não era garantida pelo contrato; se eu a queria, por que não mandara verificar a bomba antes de alugar a casa? Outra caminhada até a cidade para perguntar à signora da porta ao lado se ela se lembrava de suas súplicas para que tivéssemos confiança nela e para informar que a existência de um banheiro em uma casa era por si mesma a garantia implícita de água para o banho. A resposta a isso foi que a signora não poderia continuar comunicando-se com pessoas que lhe escreviam tão rudemente. Depois disso coloquei a questão nas mãos de um advogado. Dois meses depois a bomba foi trocada. Mas tivemos que apresentar um mandado para que ela cedesse. E o custo foi considerável.

Um dia, já pelo final do episódio, encontrei o velho cavalheiro na estrada, levando o seu cachorro — ou melhor, sendo levado a passear pelo cachorro, um enorme pastor maremano. Pois aonde o cachorro o puxava, o velho forçosamente tinha que segui-lo. E quando ele parava para farejar, ou arranhar o chão ou deixar seu cartão de visita ou um desafio ofensivo junto à trave de algum portão, pacientemente, em sua ponta da coleira, o velho tinha que esperar. Passei por ele parado à beira da estrada, poucas centenas de metros abaixo de nossa casa. O cachorro farejava as raízes de um dos ciprestes gêmeos que cresciam a cada lado da entrada de uma fazenda; ouvi o animal rosnando consigo mesmo, indignado como se farejasse um insulto intolerável. O velho signor Bondi, atrelado ao cachorro, esperava. Os joelhos dentro das calças cinzentas tubulares estavam ligeiramente dobrados. Inclinado sobre a bengala, ele contemplava a paisagem triste e vagamente. O branco de seus velhos olhos estava descolorido, como se fossem duas velhas bolas de bilhar. No rosto cinzento e profundamente enrugado, o nariz surgia dispepticamente vermelho. O bigode branco, maltratado e amarelado nas pontas, pendia em uma curva melancólica. Na gravata preta ele usava um diamante muito grande; talvez fosse isso que a signora Bondi achava atraente nele.

Tirei o chapéu ao me aproximar. O velho encarou-me distraidamente, e só quando já tinha quase passado por ele foi que se lembrou de quem eu era.

— Espere! — gritou às minhas costas. — Espere! — E desceu apressadamente a estrada em perseguição. O cachorro, tomado inteiramente de surpresa e em desvantagem (pois estava ocupado em retribuir a afronta encontrada na raiz do cipreste), permitiu que fosse arrastado. Espantado demais para fazer outra coisa senão obedecer, seguiu o dono. — Espere!

Esperei.

— Meu caro senhor — disse o velho cavalheiro, segurando-me pela lapela do casaco e bafejando de modo desagradabilíssimo em meu rosto. — Quero pedir desculpas. — Olhou em volta, como se tivesse medo de ser ouvido até mesmo ali. — Quero pedir desculpas por aquela bomba elétrica desgraçada — continuou. — Eu lhe asseguro que, se fosse só comigo, teria mandado consertar imediatamente. O senhor tem razão: um banheiro é uma garantia implícita de água para o banho. Desde o início vi que não teríamos chance se a coisa fosse à Justiça. Além disso, acho que se deve tratar um inquilino o melhor possível. Mas minha esposa... — Ele baixou a voz. — O fato é que ela gosta desse tipo de coisa, mesmo sabendo que está errada e vai perder. Além disso, ela esperava, eu imagino, que o senhor ficasse cansado de pedir e fizesse o trabalho o senhor mesmo. Eu disse a ela desde o início que devíamos ceder; mas ela não quis ouvir. Sabe, ela gosta disso. Mesmo assim, ela agora vê que tem que ser feito. Nos próximos dois ou três dias o senhor terá sua água para banho. Mas achei que seria bom lhe dizer como... — mas o cachorro, que a essa altura já tinha se recuperado da surpresa de um momento antes, saltou de repente, rosnando, estrada acima. O velho cavalheiro tentou segurar o animal, prendeu com firmeza a coleira, cambaleou e, então, desequilibrado, desistiu e deixou-se arrastar — ... como lamento — continuou enquanto se afastava — que esse pequeno mal-entendido... — mas não adiantava. — Até logo. — Sorriu educadamente, fez um pequeno gesto de impotência, como se de repente tivesse recordado um compromisso importante e não tivesse tempo de explicar o que era. — Até logo. — Tirou o chapéu e abandonou-se completamente ao cão.

Uma semana mais tarde a água realmente começou a correr, e um dia depois do nosso primeiro banho a signora Bondi, usando cetim cinza-claro e todas as suas pérolas, veio nos visitar.

— Agora estamos em paz? — ela perguntou, com encantadora franqueza, quando apertávamos as mãos.

Asseguramos que, quanto a nós, certamente estávamos.

— Mas por que o senhor me escreveu cartas tão horríveis e rudes? — perguntou, dirigindo a mim um olhar de censura que deveria levar o mais empedernido criminoso à contrição. — E depois aquele mandado. Como pôde? Para uma dama...

Resmunguei algo sobre a bomba e nós querermos tomar banho.

— Mas como quer que eu o escute enquanto está com aquela raiva? Por que não fez tudo diferente, educadamente, com elegância? — Ela sorriu e baixou as pálpebras trêmulas.

Achei melhor mudar de assunto. Quando a pessoa está certa, é desagradável parecer errada.

Poucas semanas mais tarde recebemos uma carta — devidamente registrada e por mensageiro expresso — na qual a signora nos perguntava se pretendíamos renovar o contrato (que era só por seis meses) e notificava que, se o fizéssemos, o aluguel receberia um aumento de vinte e cinco por cento, por causa das melhorias que tinham sido feitas. Achamos que tivemos sorte, depois de muita barganha, de conseguir renovar o contrato por um ano inteiro com um aumento de só quinze por cento no aluguel.

Era sobretudo por causa da vista que aguentávamos essas extorsões intoleráveis. Mas tínhamos descoberto outras razões, depois de alguns dias de resistência, para gostar da casa. Dessas, a mais poderosa era que, no filho mais velho dos camponeses, descobrimos o que parecia ser o perfeito companheiro de brincadeiras de nosso filho. Entre o pequeno Guido — esse era o nome dele — e o mais jovem de seus irmãos havia um espaço de seis ou sete anos. Seus dois irmãos maiores trabalhavam no campo com o pai; desde a morte da mãe, dois ou três anos antes de os conhecermos, a irmã mais velha tomava conta da casa, e a mais nova, que acabara de sair da escola, ajudava e nos intervalos ficava de olho em Guido, que nessa época, no entanto, já necessitava de poucos cuidados; pois entre os seis e sete anos ele era precoce, seguro de si e responsável como geralmente são os filhos dos pobres, deixados por sua conta desde que começam a andar.

Embora dois anos e meio mais velho do que o pequeno Robin — e nessa idade trinta meses são cheios de experiência de uma meia vida —, Guido não se aproveitava indevidamente de sua força e inteligência superiores. Nunca vi uma criança mais paciente, tolerante e nada tirana. Jamais ria dos esforços desajeitados de Robin para imitar suas próprias façanhas prodigiosas; não implicava nem provocava, mas ajudava seu pequeno companheiro quando este estava em dificuldades e explicava quando ele não conseguia entender. Por sua vez, Robin adorava-o, considerava-o o modelo do perfeito Garotão e humildemente imitava-o em tudo o que podia.

Essas tentativas de Robin de imitar seu companheiro eram com frequência muitíssimo cômicas. Pois, por uma obscura lei psicológica, palavras e atos em si mesmos muito sérios se tornam cômicos assim que são copiados; e quanto mais acuradamente, caso a imitação seja uma paródia deliberada, tanto mais engraçada — pois uma imitação exagerada de alguém que conhecemos não nos faz rir tanto quanto uma que seja quase indistinguível do original. A imitação ruim só é cômica quando se trata de ato de lisonja sincera e esforçada que não dá certo. As imitações de Robin eram na maioria dessa espécie. Suas tentativas heroicas e fracassadas de executar as façanhas de força e habilidade que Guido podia fazer com facilidade eram primorosamente engraçadas. E suas imitações cuidadosas dos hábitos e maneirismos de Guido não eram menos divertidas. Mais cômico que tudo, porque levada a cabo com mais seriedade, e mais estranho no imitador, era a imitação que Robin fazia de Guido pensativo. Guido era uma criança pensativa, dada a devaneios e abstrações repentinas. Podia-se encontrá-lo sentado a um canto, queixo na mão, cotovelo no joelho, mergulhado, a julgar pelas aparências, na mais profunda meditação. E às vezes, mesmo no meio da brincadeira, ele de repente parava e se postava, mãos atrás das costas, testa franzida, olhando o chão. Quando isso acontecia, Robin ficava amedrontado e um pouco inquieto. Em espantado silêncio ele olhava para o companheiro. “Guido”, dizia baixinho, “Guido.” Mas Guido geralmente estava preocupado demais para responder; e Robin, não se aventurando a insistir, esgueirava-se para perto dele e, colocando-se o mais possível na atitude de Guido — parado napoleonicamente, mãos juntas atrás das costas, ou sentado na posição do Lourenço, o Magnífico, de Michelangelo —, tentava meditar também. Mas no fim de um minuto ele começava a ficar impaciente; a meditação não era seu forte. “Guido”, ele chamava de novo, mais alto, “Guido!”. E pegava-lhe a mão e tentava puxá-lo. Às vezes Guido despertava de seu devaneio e voltava à brincadeira interrompida. Às vezes não ligava. Melancólico, perplexo, Robin tinha que ir brincar sozinho. E Guido continuava sentado ou de pé, imóvel; e seus olhos, se alguém os observasse, eram lindos em sua calma grave e pensativa.

Eram olhos grandes, separados e, o que era estranho em uma criança italiana de cabelos escuros, de uma luminosa cor pálida azul-acinzentada. Não eram sempre graves e calmos, como nesses momentos pensativos. Quando estava brincando, quando falava ou ria, eles se acendiam; e a superfície desses dois claros lagos de pensamentos parecia, por assim dizer, ser sacudida e transformar-se em brilhantes ondas de clarões de sol. Acima desses olhos a testa era bonita, alta, reta e abobadada em uma curva que era como a curva sutil de uma pétala de rosa. O nariz era reto, o queixo pequeno e um tanto pontudo, a boca caía um pouco tristemente nos cantos.

Tenho um instantâneo das duas crianças sentadas juntas no parapeito do terraço. Guido está sentado quase de frente para a câmera, mas olhando um pouco para o lado e para baixo; as mãos estão cruzadas no colo e a expressão, a postura são pensativas, graves, absortas. É Guido num daqueles momentos de abstração em que ele mergulhava mesmo no meio de uma risada ou brincadeira — súbita e completamente, como se tivesse de repente decidido ir embora e tivesse deixado o corpo silencioso e belo, como uma casa vazia, esperando sua volta. E a seu lado está sentado o pequeno Robin, voltando-se para olhar para ele, o rosto um pouco desviado da câmera, mas a curva da face mostrando que ele está sorrindo; uma das mãozinhas, erguida, está presa no alto de um gesto, a outra agarra a manga de Guido, como se insistisse para que ele fosse brincar. E as pernas pendentes do parapeito foram vistas pela máquina piscante em meio a um movimento impaciente; ele está prestes a escorregar para o chão e correr para brincar de esconder no jardim. Todas as características essenciais de ambas as crianças estão nesse pequeno instantâneo.

— Se Robin não fosse Robin, eu quase queria que ele fosse Guido — costumava dizer Elizabeth.

Mesmo naquela época em que eu não tinha interesse particular pela criança, concordei com ela. Guido me parecia um dos garotinhos mais encantadores que eu já conhecera.

Não éramos os únicos a admirá-lo. A signora Bondi, quando vinha nos visitar nos intervalos amigáveis entre nossas brigas, estava constantemente falando nele.

— Uma criança tão linda, tão linda! — ela exclamava com entusiasmo. — É realmente uma pena que ele pertença a camponeses que não podem vesti-lo direito. Se ele fosse meu, eu o vestiria de veludo preto; ou pequenos calções brancos e uma camisa de malha de seda com uma listra vermelha no colarinho e nos punhos; ou talvez uma roupa de marinheiro branca ficasse bonita. E no inverno um pequeno casaco de pele, com um boné de pele de esquilo, e possivelmente botas russas... — Sua imaginação estava descontrolada. — E deixaria os cabelos dele crescerem, como os de um pajem, e mandaria cachear só um pouquinho nas pontas. E uma franja reta no meio da testa. Todos iam virar para olhar para nós se eu o levasse comigo à Vila Tornabuoni.

O que você quer, eu gostaria de dizer a ela, não é uma criança; é um boneco de corda ou um macaco amestrado. Mas não falei isso — em parte porque não conseguia lembrar do italiano para boneco de corda e em parte porque não queria correr o risco de ter outro aumento de quinze por cento no aluguel.

— Ah, se pelo menos eu tivesse um garotinho como esse! — Ela suspirou e modestamente baixou as pálpebras. — Adoro crianças. Às vezes penso em adotar uma; isto é, se meu marido permitisse.

Pensei no coitado do velho cavalheiro sendo arrastado na esteira de seu maremano branco e sorri interiormente.

— Mas não sei se ele permitiria — continuava a signora. — Não sei se ele permitiria. — Ficou em silêncio por um momento, como se pensasse em uma ideia nova.

Poucos dias depois, quando estávamos sentados no jardim depois do almoço, bebendo nosso café, o pai de Guido, em vez de passar com um cumprimento e o costumeiro e alegre bom-dia, parou à nossa frente e começou a falar. Era um belo homem, não muito alto, mas bem-proporcionado, de movimentos rápidos e elásticos e cheio de vida. Tinha o rosto magro e moreno, com feições como as de um romano e iluminado pelo par de olhos de aparência mais inteligente que já vi. Seus olhos exibiam quase inteligência demais quando, como acontecia com frequência, ele tentava, com a mais perfeita franqueza e inocência infantil, enganar alguém ou conseguir alguma coisa de alguém. Nessas ocasiões, a inteligência reluzia malandramente, deliciando-se de si mesma. O rosto podia ser esperto, impassível ou quase imbecil em sua expressão; mas os olhos nessas ocasiões denunciavam-no por inteiro. Sabia-se, quando eles brilhavam assim, que era preciso ter cuidado.

Naquele dia, no entanto, não havia luzes perigosas neles. Ele não queria nada de nós, nada de valor — apenas conselhos, que é um artigo, ele sabia, que muita gente está ansiosa por dar. Mas ele queria conselhos sobre o que era, para nós, um assunto um tanto delicado: sobre a signora Bondi. Carlo muitas vezes reclamara dela conosco. O velho é bom, ele nos disse, muito bom e generoso. O que significava, ouso dizer, entre outras coisas, que ele podia ser enganado com facilidade. Mas a esposa... Bem, aquela mulher era um animal. E então passou às histórias de sua cupidez insaciável: ela estava sempre exigindo mais da metade da produção, que, pelas leis do sistema de meias, era direito do proprietário. Reclamou das suspeitas dela: estava sempre acusando-o de ações erradas ou de roubo — ele, bateu no peito, a personificação da honestidade. Reclamou da avareza míope: ela não queria gastar o suficiente com esterco, não queria lhe comprar outra vaca, não queria instalar luz elétrica no estábulo. E fomos solidários, mas com cautela, sem expressar uma opinião muito forte sobre o assunto. Os italianos são maravilhosamente evasivos em sua fala; não soltam nada para seu interlocutor até terem certeza de que é certo, necessário e, acima de tudo, seguro fazê-lo. Vivíamos entre eles havia tempo suficiente para imitar sua cautela. Cedo ou tarde, o que havíamos dito a Carlo certamente voltaria à signora Bondi. Nada se ganharia com um desgaste desnecessário nas nossas relações com a dama — apenas outros quinze por cento, muito provavelmente, seriam perdidos.

Nesse dia ele não estava exatamente reclamando, mas sim sentindo-se perplexo. A signora o mandara chamar, parecia, e lhe perguntara se ele gostaria que ela lhe fizesse uma oferta — era tudo muito hipotético, com a cautela do estilo italiano — para adotar o pequeno Guido. O primeiro instinto de Carlo fora dizer que não gostava da ideia. Mas uma resposta assim implicaria algum nível de comprometimento. Preferiu dizer que pensaria a respeito. E agora nos estava pedindo conselho.

Faça o que você achar melhor, foi o que realmente respondemos. Mas demos a entender, fria porém claramente, que achávamos que a signora Bondi não seria uma madrasta muito boa para a criança. E Carlo estava inclinado a concordar. Além disso, ele era muito apegado ao garoto.

— Mas o caso é que, se ela realmente resolver ter a criança, não há o que não faça para conseguir — concluiu ele com tristeza.

Era claro para mim que ele também gostaria que os físicos usassem as mulheres desocupadas e sem filhos e de temperamento forte antes de lidarem com o átomo. Mesmo assim, refleti, observando-o afastar-se pelo terraço, cantando a plenos pulmões, ali há força, há vida suficiente nesses membros elásticos, atrás desses olhos cinzentos brilhantes, para armar uma boa briga, mesmo contra as energias vitais acumuladas da signora Bondi.

Poucos dias depois disso meu gramofone e duas ou três caixas de discos chegaram da Inglaterra. Eram para nós um grande conforto no alto do morro, fornecendo a única coisa de que aquela solidão espiritualmente fértil — doutro modo uma perfeita ilha para a família Robinson suíça — não dispunha: música. Hoje em dia não há muita música para ouvir em Florença. Foi-se a época em que o dr. Burney podia viajar pela Itália ouvindo uma sucessão infinda de novas óperas, sinfonias, quartetos, cantatas. Acabaram-se os dias em que um músico erudito, inferior apenas ao reverendo padre Martini de Bolonha, podia admirar o que os camponeses cantavam e os músicos ambulantes dedilhavam e tocavam em seus instrumentos. Viajei semanas através da península e mal ouvi uma nota que não fosse Salomé ou a canção dos fascistas. Pobres em tudo que faça a vida agradável ou mesmo suportável, as metrópoles do norte são ricas em música. Talvez seja o único incentivo que um homem razoável pode encontrar para viver lá. As outras atrações — a alegria organizada, o povo, a conversa, os prazeres sociais —, que são elas, afinal, senão um dispêndio de espírito que nada compra? E o frio, a escuridão, a sujeira, a umidade e a miséria... Não, onde não haja uma necessidade que nos detenha, a música pode ser o único incentivo. E isso, graças ao engenhoso Edison, pode agora ser carregado numa caixa a ser aberta em qualquer eremitério que tenhamos escolhido para visitar. Pode-se viver em Benin, ou Nuneaton, ou Tozeur no Saara, e mesmo assim escutar quartetos de Mozart e seleções do Cravo bem temperado, a Quinta sinfonia e o Quinteto para clarinete de Brahms, ou motetos de Palestrina.

Carlo, que descera à estação com a mula e a carroça para buscar o caixote, estava muitíssimo interessado no aparelho.

— Vai-se ouvir música novamente — ele disse, observando-me desempacotar o gramofone e os discos. — É difícil fazer muita coisa sozinho.

Mesmo assim, pensei, ele consegue fazer muito. Nas noites quentes costumávamos escutá-lo, sentado à porta de sua casa, tocando seu violão e cantando baixinho; o filho mais velho aguçava a melodia no bandolim, e às vezes toda a família entrava, e a escuridão enchia-se com seu canto apaixonado e rouco. Cantavam principalmente canções de Piedigrotta; e as vozes escorregavam macias de uma nota a outra, subiam preguiçosamente ou saltavam com súbitas ênfases soluçantes de um tom para outro. À distância e sob as estrelas o efeito não era desagradável.

— Antes da guerra — prosseguiu ele —, nos tempos normais — e Carlo tinha uma esperança, até mesmo uma crença, de que os tempos normais estavam voltando e que a vida logo seria tão fácil e barata quanto tinha sido nos dias antes do dilúvio —, eu costumava ir ouvir as óperas no Politeama. Ah, eram magníficas. Mas agora custa cinco liras para entrar.

— Demais — concordei.

— Você tem o Trovatore? — ele perguntou.

Sacudi a cabeça.

— O Rigoletto?

— Infelizmente, não.

— A Bohème? Fanciulla del West? Pagliacci?

Tive que continuar a decepcioná-lo.

— Nem mesmo a Norma? Ou o Barbiere?

Coloquei Battistini em “Là Ci Darem”, de Don Giovanni. Ele concordou que o coro era bom, mas pude ver que ele não gostava muito da música. Por que não? Ele achou difícil explicar.

— Não é como Pagliacci — disse afinal.

— Não é arrebatador? — opinei, usando uma palavra que eu tinha certeza que lhe era familiar; pois ela ocorre em todo discurso político e em todo artigo patriota na Itália.

— Não é arrebatador — ele concordou.

E eu refleti que é precisamente pela diferença entre Pagliacci e Don Giovanni, entre o arrebatador e o não arrebatador, que o gosto musical moderno é separado do antigo. A corrupção do melhor, refleti, é o pior. Beethoven ensinou a música a arrebatar com sua paixão intelectual e espiritual. Ela continua arrebatando desde então, mas com a paixão de homens inferiores. Indiretamente, pensei, Beethoven é responsável por Parsifal, Pagliacci e o “Poema de fogo”; ainda mais indiretamente por Sansão e Dalila e pelo foxtrote “Ivy, Cling To Me”. As melodias de Mozart podem ser brilhantes, memoráveis e contagiosas; mas não arrebatam, não nos pegam entre o vento e a água, não lançam o ouvinte a êxtases eróticos.

Suspeito que Carlo e seus filhos mais velhos acharam o gramofone uma decepção. Eram educados demais, no entanto, para dizê-lo; simplesmente deixaram, depois dos primeiros dias, de se interessar pela máquina e pela música que ela tocava. Preferiam o violão e seu próprio canto.

Guido, por outro lado, ficou imensamente interessado. E ele gostava, não das alegres canções de danças, a cujos ritmos agudos nosso pequeno Robin adorava sair marchando em volta da sala fingindo ser um regimento inteiro de soldados, mas da coisa verdadeira. O primeiro disco que ele ouviu, lembro-me, foi o do movimento lento do Concerto em ré menor para dois violinos, de Bach. Foi o disco que coloquei assim que Carlo saiu. Ele me parecia, por assim dizer, a peça de música mais musical com que poderia refrescar minha mente há muito sedenta — a mais fresca e clara das poções. O movimento estava no início e começava a desdobrar suas belezas puras e melancólicas segundo as leis da lógica intelectual mais exigentes, quando as duas crianças, Guido à frente e o pequeno Robin seguindo-o sem fôlego, entraram na sala vindos da loggia.

Guido estacou diante do gramofone e ali ficou, imóvel, ouvindo. Seus olhos claros azuis-acinzentados arregalaram-se; fazendo um pequeno gesto nervoso que eu com frequência já notara nele antes, ele beliscava o lábio inferior com o polegar e o indicador. Deve ter um excelente fôlego, pois percebi que, depois de escutar por alguns segundos, ele expirou com força e inspirou nova lufada de ar fresco. Por um instante olhou para mim — um olhar interrogador, atônito, arrebatado —, deu uma risadinha que terminou numa espécie de estremecimento nervoso e tornou a virar-se para a fonte de sons incríveis. Humildemente imitando seu camarada mais velho, Robin também tinha tomado seu lugar em frente ao gramofone, na mesma posição exata, olhando de relance para Guido de vez em quando para se certificar de que estava fazendo tudo certo, até mesmo beliscando o lábio. Mas depois de um minuto ele ficou entediado.

— Soldados — disse, voltando-se para mim. — Eu quero soldados. Como em Londres. — Ele se lembrava do ragtime e das alegres marchas em volta da sala.

Levei o dedo aos lábios.

— Depois — sussurrei.

Robin conseguiu permanecer em silêncio e imóvel por uns outros vinte segundos. Depois agarrou Guido pelo braço, gritando:

— Vieni, Guido! Soldados. Soldati. Vieni giuocare soldati. Foi então que pela primeira vez vi Guido impaciente.

— Vai! — exclamou ele com raiva, deu um tapa na mão de Robin que o agarrava e empurrou-a bruscamente. E inclinou-se para mais perto do instrumento, como se para compensar, ouvindo mais intensamente o que a interrupção o fizera perder.

Robin olhou para ele atônito. Uma coisa dessas nunca tinha acontecido antes. Então rompeu em choro e veio me pedir consolo.

Quando fizeram as pazes — e Guido estava sinceramente arrependido, era tão bonzinho quanto sabia ser quando a música terminou e sua mente estava livre para pensar em Robin de novo —, eu lhe perguntei se tinha gostado da música., Ele disse que tinha achado bonito. Mas bello em italiano é uma palavra vaga demais, pronunciada com muita facilidade e frequência, para significar muita coisa.

— De que você gostou mais? — insisti. Pois ele parecia ter gostado tanto que fiquei curioso para descobrir o que realmente o impressionara.

Ele ficou em silêncio por um momento, franzindo a testa pensativamente.

— Bem, gostei do pedaço que era assim — disse afinal, e cantarolou uma longa frase. — E havia aquela outra coisa cantando ao mesmo tempo. Mas que são essas coisas que cantam assim?

— Chamam-se violinos — falei.

— Violinos. — Ele assentiu. — Bem, o outro violino faz assim. — Tornou a cantarolar. — Por que a gente não consegue cantar os dois ao mesmo tempo? E o que há nesta caixa? Que é que faz esse barulho? — A criança derramava suas perguntas.

Respondi-lhe o melhor que pude, mostrando-lhe as pequenas espirais no disco, a agulha, o diafragma. Disse-lhe para lembrar como a corda do violão tremia quando alguém tangia; o som é um estremecimento no ar, eu lhe disse, e tentei explicar como esses estremecimentos são impressos no disco preto. Guido ouviu-me com muita seriedade, assentindo de vez em quando. Eu tinha a impressão de que ele entendia perfeitamente tudo o que eu estava dizendo.

A essa altura, no entanto, o pobre Robin estava tão horrivelmente entediado que por pena dele tive que mandar as duas crianças saírem para brincar no jardim. Guido obedeceu; mas eu podia ver que ele teria preferido ficar dentro de casa ouvindo mais música. Pouco mais tarde, quando olhei para fora, ele estava escondido no recesso escuro do grande loureiro, rugindo como um leão, e Robin rindo, mas um pouco nervoso, como se tivesse medo que o horrível barulho pudesse possivelmente ser mesmo, afinal, o rugido de um leão de verdade, batia na moita com uma vara, gritando:

— Saia, saia! Quero atirar em você!

Depois do almoço, quando Robin subiu para dormir a sesta, ele reapareceu.

— Posso ouvir a música agora? — pediu.

E durante uma hora ficou sentado diante do instrumento, a cabeça ligeiramente caída para um lado, escutando enquanto eu colocava disco após disco.

Daí em diante ele veio todas as tardes. Logo conhecia toda a minha discoteca, tinha suas preferências e antipatias, e pedia o que queria cantarolando o tema principal.

— Não gosto desta — disse do Till Eulenspiegel, de Strauss. — É como quando cantamos em casa. Não é exatamente igual. Mas mesmo assim é bem parecido. O senhor entende? — Ele olhou para nós perplexo e suplicante, como se nos implorasse para entendermos o que ele queria dizer e poupá-lo de continuar explicando. Assentimos. Guido continuou. — E o final parece que não sai propriamente do começo. Não é como aquela que o senhor tocou na primeira vez. — Ele cantarolou um ou dois compassos do movimento lento do Concerto em ré menor de Bach.

— Não é como dizer: todos os meninos gostam de brincar. Guido é um menino. Portanto Guido gosta de brincar — sugeri. Ele franziu a testa.

— É, talvez seja isso — disse finalmente. — Aquela que o senhor tocou primeiro é mais assim. Mas sabe — acrescentou, com um apego excessivo à verdade —, não gosto tanto de brincar quanto Robin.

Wagner estava entre suas ojerizas; e também Debussy. Quando toquei o disco de um dos Arabescos de Debussy, ele disse:

— Por que ele diz a mesma coisa muitas vezes seguidas? Deveria dizer alguma coisa nova, ou continuar, ou fazer a coisa crescer. Será que ele não consegue pensar em alguma coisa diferente? — Mas censurava menos o Après-midi d’un faune. — As coisas têm vozes lindas — comentou.

Mozart enchia-o de satisfação. O dueto de Don Giovanni, que seu pai tinha achado insuficientemente arrebatador, encantou Guido. Mas ele preferia os quartetos e as peças de orquestra.

— Gosto mais de música do que de canto — ele disse.

Refleti que a maioria das pessoas gosta mais de canto do que de música; são mais interessadas no executante do que naquilo que ele executa e acham a orquestra impessoal menos emocionante do que o solista. O toque do pianista é um toque humano, e o dó agudo da soprano é uma nota pessoal. É por causa do toque dele, dessa nota, que as plateias enchem as salas de concertos.

Guido, no entanto, preferia a música. É verdade que ele gostava de “La ci Darem”; gostava de “Deh Vieni alla Finestra”; achava “Che Soave Zefiretto” tão linda que quase todos os nossos concertos tinham que começar com ela. Mas ele preferia as outras coisas. A abertura do Figaro era uma de suas favoritas. Há uma passagem, não muito distante do início da peça, em que os primeiros violinos de repente sobem como um foguete até as alturas da beleza; quando a música se aproximava desse ponto, eu costumava ver um sorriso desenvolvendo-se e aos poucos iluminando o rosto de Guido, e quando, pontualmente, a coisa acontecia, ele batia palmas e ria alto de prazer.

Aconteceu que no outro lado do mesmo disco estava gravada a abertura Egmont, de Beethoven. Ele gostava dela quase mais que do Fígaro.

— Tem mais vozes — explicou. E eu fiquei deliciado com a agudeza de sua crítica; pois é precisamente na riqueza de sua orquestração que Egmont supera Fígaro.

Mas o que o perturbava mais que qualquer outra coisa era a abertura Coriolano. O terceiro movimento da Quinta sinfonia, o segundo movimento da Sétima, o movimento lento do Concerto Imperador — todas essas coisas estavam no páreo. Mas nenhuma o excitava tanto quanto a Coriolano. Um dia ele me fez tocá-la três ou quatro vezes seguidas; depois guardou-a.

— Acho que não quero mais ouvir isso — disse.

— Por que não?

— É muito... muito... — hesitou. — Muito grande — disse finalmente. — Eu não a compreendo de verdade. Toque aquela que faz assim. — Ele cantarolou uma frase do Concerto em ré menor.

— Gosta mais desta? — perguntei.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não é exatamente isso. Mas é mais fácil.

— Mais fácil? — Aquela palavra me parecia um tanto estranha, aplicada a Bach.

— Eu a compreendo melhor.

Certa tarde, quando estávamos no meio de nosso concerto, a signora Bondi surgiu. Começou de imediato a ser exageradamente carinhosa com a criança: beijava-a, dava tapinhas em sua cabeça, fazia os elogios mais disparatados de sua aparência. Guido afastou-se dela.

— E você gosta de música? — perguntou ela.

A criança assentiu.

— Acho que ele tem o dom — falei. — De qualquer maneira, tem um ouvido maravilhoso e um poder de escutar e criticar que nunca vi em uma criança da idade dele. Estamos pensando em alugar um piano para ele aprender.

Um momento depois eu me amaldiçoava por minha franqueza indevida ao elogiar o garoto. Pois a signora Bondi começou imediatamente a protestar que se pudesse se encarregar da educação do menino ela iria dar-lhe os melhores professores, fazer seu talento brotar, fazer dele um maestro — e, além disso, uma criança-prodígio. E naquele momento, tenho certeza, ela se via sentada maternalmente, de pérolas e cetim preto, junto ao enorme Steinway, enquanto um Guido angélico, vestido como o pequeno Lorde Fauntleroy, executava Liszt e Chopin para a delícia de um auditório repleto. Ela via os ramalhetes e todos os elaborados tributos florais, ouvia os aplausos e as poucas palavras bem escolhidas com que os maestros veteranos, comovidos quase até as lágrimas, saudariam o aparecimento do pequeno gênio. Ter a criança para si tornou-se mais que nunca importante para ela.

— Você a deixou bem voraz — disse Elizabeth, depois que a signora Bondi tinha ido embora. — É melhor lhe dizer da próxima vez que você estava enganado e que o garoto não tem o menor talento musical.

No devido tempo o piano chegou. Depois de lhe dar um mínimo de instrução preliminar, soltei Guido nele. Ele começou tirando por si mesmo as melodias que escutara, reconstruindo as harmonias onde elas estavam incrustadas. Depois de umas poucas lições, ele entendia os rudimentos da notação musical e podia ler uma passagem simples à primeira vista, embora devagar. Todo o processo de ler ainda era estranho para ele; de alguma forma ele compreendia as letras, mas ninguém ainda lhe tinha ensinado a ler palavras e frases inteiras.

Quando voltei a ver a signora Bondi, aproveitei a ocasião para assegurar-lhe que Guido me decepcionara. Seu talento musical não existia, de verdade. Ela declarou lamentar muito; mas pude ver que nem por um momento acreditou em mim. Provavelmente achou que também estávamos querendo o garoto e pretendíamos guardar a criança-prodígio para nós mesmos antes que ela conseguisse entrar com seu pedido, privando-a assim do que ela considerava quase como seu direito feudal. Pois, afinal, eles não eram os seus camponeses? Se alguém fosse lucrar adotando a criança, devia ser ela.

Com tato e diplomacia, ela renovou suas negociações com Carlo. O garoto, ela o declarou, era um gênio. Fora o cavalheiro estrangeiro quem lhe dissera isso, e não havia dúvida de que ele era o tipo de homem que entendia dessas coisas. Se Carlo deixasse que ela adotasse o menino, ia fazer com que estudasse. Ele se tornaria um grande maestro, com contratos na Argentina e nos Estados Unidos, em Paris e Londres. Ganharia milhões e milhões. Pense em Caruso, por exemplo. Uma parte dos milhões, ela explicou, naturalmente viria para Carlo. Mas antes que eles começassem a aparecer, esses milhões, o garoto teria que estudar. Os estudos, no entanto, eram muito caros. Em seu próprio interesse, assim como no de seu filho, ele devia deixar que ela se encarregasse da criança. Carlo disse que iria pensar, e novamente procurou nosso conselho. Sugerimos que seria melhor, de qualquer maneira, esperar um pouco e ver os progressos do menino.

Ele fez grandes progressos, apesar de minha declaração à signora Bondi. Todas as tardes, enquanto Robin dormia, ele vinha para seu concerto e sua aula. Estava indo muito bem na leitura; seus dedinhos estavam adquirindo força e agilidade. Mas o que para mim era mais interessante era que ele começava a criar pequenas peças por conta própria. Algumas delas eu transcrevi enquanto ele tocava, e ainda as tenho. A maior parte, por mais estranho que seja, como pensei na época, são cânones. Ele tinha paixão por cânones. Quando lhe expliquei os princípios dessa forma, ele ficou encantado.

— É lindo — disse com admiração. — Lindo, lindo. E tão fácil!

Novamente a palavra me surpreendeu. O cânone não é, afinal, tão obviamente simples. Daí em diante ele passou a maior parte de seu tempo ao piano trabalhando em pequenos cânones para seu próprio divertimento. Eram com frequência muito engenhosos. Contudo, na invenção de outros tipos de música ele não se mostrou tão fértil quanto eu esperara. Compôs e harmonizou uma ou duas ariazinhas solenes como hinos, além de algumas peças mais rápidas, ao espírito da marcha militar. Eram extraordinárias, é claro, por serem invenções de uma criança. Mas muitas crianças podem fazer coisas extraordinárias; somos todos gênios aos dez anos de idade. Porém, minha expectativa era a de que Guido fosse uma criança que se tornaria um gênio aos quarenta; nesse caso o que era extraordinário para uma criança comum não era extraordinário o suficiente para ele. “Não chega a ser um Mozart”, concordamos, ao tocar suas pequenas peças. Devo confessar que me senti quase ofendido. Qualquer coisa menos que um Mozart, me parecia, não valia a pena.

Ele não era um Mozart. Não. Mas era alguém, como eu descobriria, tão extraordinário quanto ele. Foi numa manhã no início do verão que fiz a descoberta. Estava sentado na sombra quente de nossa varanda virada para o oeste, trabalhando. Guido e Robin brincavam no pequeno jardim cercado, embaixo da varanda. Absorto em meu trabalho, acho que foi só depois de o silêncio ter se prolongado por um tempo considerável que tomei consciência de que as crianças estavam fazendo pouquíssimo barulho. Não havia gritos nem correrias; apenas uma conversa tranquila. Sabendo por experiência que quando as crianças estão sossegadas isso geralmente significa que estão absortas em alguma deliciosa encrenca, levantei-me da cadeira e olhei por cima da balaustrada para ver o que estavam fazendo. Imaginava pegá-los brincando com água, fazendo uma fogueira, cobrindo-se de piche. Mas o que na verdade vi foi Guido demonstrando nos paralelepípedos com um bastão queimado que o quadrado da hipotenusa de um triângulo regular é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados.

Ajoelhado no chão, ele desenhava com a ponta enegrecida do bastão nas pedras. E Robin, ajoelhado da mesma maneira a seu lado, estava ficando, eu podia perceber, meio impaciente com esse jogo tão lento.

— Guido! — ele chamou. Mas Guido não prestou atenção. Franzindo a testa pensativamente, ele continuou seu diagrama. — Guido! — A criança mais nova inclinou-se e virou o pescoço para olhar para o rosto de Guido. — Por que você não desenha um trem?

— Depois — disse Guido. — Mas só quero mostrar isto para você primeiro. É tão lindo — acrescentou, tentando iludi-lo.

— Mas eu quero um trem — insistiu Robin.

— Daqui a pouco. Espere só um momento. — O tom era quase implorante. Robin armou-se de paciência renovada. Um minuto mais tarde Guido terminava seus dois diagramas. — Pronto! — exclamou em tom triunfante, e endireitou-se para olhar para eles. — Agora vou explicar.

E passou a provar o teorema de Pitágoras — não à maneira de Euclides, mas por um método mais simples e satisfatório que, muito provavelmente, fora empregado pelo próprio Pitágoras. Ele tinha desenhado um quadrado e dividido esse quadrado, com um par de perpendiculares cruzadas, em dois quadrados e dois retângulos iguais. Os retângulos iguais ele dividiu por suas diagonais em quatro triângulos retângulos iguais. Os dois quadrados então são vistos como os quadrados em dois lados de qualquer desses triângulos, excluindo-se a hipotenusa. Esse era o primeiro diagrama. No segundo ele pegou os quatro triângulos retângulos nos quais os retângulos tinham sido divididos e redistribuiu-os em volta do quadrado original de modo que seus ângulos retos enchiam os cantos do quadrado, as hipotenusas voltadas para dentro, e os lados maiores e menores dos triângulos em continuação ao longo dos lados do quadrado (que são cada um igual à soma desses lados). Assim o quadrado original é redividido em quatro triângulos retângulos e o quadrado na hipotenusa. Os quatro triângulos são iguais aos dois retângulos da divisão original. Portanto o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos dois quadrados — os quadrados nos outros dois lados — nos quais, com os retângulos, o quadrado original tinha sido dividido no início.

Em linguagem muito pouco técnica, mas de forma clara e com uma lógica implacável, Guido expôs sua prova. Robin escutava, com uma expressão de perfeita incompreensão em seu rosto brilhante e sardento.

— Treno — ele repetia de vez em quando. — Treno. Faça um trem.

— Daqui a pouco — implorava Guido. — Espere um momento. Mas por favor olhe para isto. Por favor — pedia ele, solerte. — É tão lindo. É tão fácil.

Tão fácil... O teorema de Pitágoras parecia, para mim, explicar as predileções musicais de Guido. Não era um Mozart criança que estivéramos alimentando; era um pequeno Arquimedes com um dom musical incidental, como a maioria dos de sua espécie.

— Treno, treno! — gritou Robin, cada vez com mais impaciência à medida que a explicação prosseguia. E quando Guido insistiu em continuar com sua prova, ele perdeu a paciência. — Cattivo Guido — gritou, e começou a golpeá-lo com os punhos.

— Está certo — disse Guido resignadamente. — Vou fazer um trem. — E com seu galho carbonizado começou a rabiscar nas pedras.

Fiquei olhando em silêncio por um momento. Não era um trem muito bom. Guido podia ser capaz de inventar sozinho e provar o teorema de Pitágoras; mas não era um grande desenhista.

— Guido! — chamei. As duas crianças voltaram-se e olharam para cima. — Quem lhe ensinou a desenhar esses quadrados? — Era concebível, claro, que alguém pudesse ter ensinado a ele.

— Ninguém. — Ele sacudiu a cabeça. Então, meio ansioso, como se tivesse medo de que pudesse haver algo errado em desenhar quadrados, pôs-se a desculpar-se e a explicar. — Sabe, é que isso me pareceu tão bonito. Porque esses quadrados — apontou para os dois quadrados pequenos da primeira figura — são do mesmo tamanho deste. — E, indicando o quadrado na hipotenusa no segundo diagrama, ergueu os olhos para mim com um sorriso conciliador.

Assenti.

— É muito bonito — falei. — Muito bonito mesmo.

Uma expressão de alívio deliciado surgiu em seu rosto; ele riu com prazer.

— Entende, é assim — continuou, ansioso por me iniciar no glorioso segredo que tinha descoberto. — Corta-se esses dois quadrados compridos — ele queria dizer os retângulos — em duas fatias. E então ficam quatro fatias, todas iguais, porque... porque... ah, eu devia ter dito isso antes! Porque esses quadrados compridos são o mesmo, por causa daquelas linhas, entende...

— Mas eu quero um trem — Robin protestou.

Debruçado sobre o parapeito da varanda, eu observava as crianças lá embaixo. Pensei na coisa extraordinária que tinha acabado de ver e no que ela representava.

Pensei nas enormes diferenças entre os seres humanos. Classificamos os homens pela cor de olhos e cabelos, pelo formato do crânio. Não seria mais sensato dividi-los em espécies intelectuais? Haveria diferenças ainda maiores entre os tipos mentais extremos do que entre um aborígene australiano e um escandinavo. Essa criança, pensei, quando crescer, será para mim, intelectualmente, o que um homem é para um cachorro. E há outros homens e mulheres que são, talvez, quase como cachorros para mim.

Talvez os homens de gênio sejam os únicos homens de verdade. Em toda a história da raça houve apenas poucos milhares de homens verdadeiros. E o resto de nós, o que somos? Animais ensináveis. Sem o auxílio dos homens de verdade, quase nada teríamos descoberto. Quase todas as ideias com que estamos familiarizados nunca poderiam ter ocorrido a mentes como as nossas. Plante ali as sementes e elas crescerão; mas nossas mentes jamais poderiam tê-las gerado espontaneamente.

Tem havido nações inteiras de cães, pensei; épocas inteiras em que nenhum Homem nasceu. Dos obtusos egípcios, os gregos pegaram a experiência crua e normas empíricas e fizeram ciências. Mais de mil anos se passaram antes que Arquimedes tivesse um sucessor comparável. Houve somente um Buda, um Jesus, apenas um Bach que conheçamos, um Michelangelo.

É por puro acaso, perguntei a mim mesmo, que nasce um Homem de vez em quando? O que faz toda uma constelação deles nascer na mesma época e de um único povo? Taine achava que Leonardo, Michelangelo e Rafael tinham nascido quando nasceram porque a época estava pronta para grandes pintores e o ambiente italiano era adequado. Na boca de um francês nacionalista do século xix essa doutrina é estranhamente mística; porém não deixa de poder ser verdadeira. Mas e os que nasceram fora de época? Blake, por exemplo; e quanto a esses?

Esta criança, pensei, tem a sorte de ter nascido numa época em que poderá fazer bom uso de sua capacidade. Encontrará os mais elaborados métodos analíticos a sua espera; terá atrás de si uma experiência prodigiosa. Suponhamos que ele tivesse nascido enquanto construíam Stonehenge; ele poderia ter passado a vida inteira descobrindo os rudimentos, tentando adivinhar onde poderia ter uma chance de prová-los. Se tivesse nascido na época da Conquista Normanda, teria tido que lutar com todas as dificuldades preliminares criadas por um simbolismo inadequado; levaria longos anos, por exemplo, para aprender a arte de dividir mmmccclxxxviii por mcmxix. Em cinco anos, hoje em dia, ele aprenderá o que precisou de gerações e gerações de homens para ser descoberto.

E pensei no destino de todos os Homens nascidos tão irremediavelmente fora de tempo que pouco ou nada conseguiam fazer de valor. Beethoven nascido na Grécia, pensei, teria que se contentar em tocar melodias simples na flauta ou na lira; naquele ambiente intelectual não lhe teria sido possível imaginar a natureza da harmonia.

As crianças no jardim tinham passado de desenhar trens a brincar de trens. Troteavam em círculos; com as bochechas redondas e cheias e os lábios franzidos, como o anjo que simboliza um vento, Robin fazia puf puf e Guido, segurando a barra de sua camisa, arrastava os pés atrás dele, apitando. Andavam para frente, recuavam, paravam em estações imaginárias, entravam em desvios, rugiam sobre pontes, atravessavam túneis, de vez em quando colidiam e descarrilavam. O jovem Arquimedes parecia tão feliz quanto o pequeno e louro bárbaro. Poucos minutos antes ele se ocupava com o teorema de Pitágoras. Agora, apitando sem descanso ao longo de trilhos imaginários, ele estava perfeitamente feliz em andar para a frente e para trás entre os canteiros de flores, entre os pilares do terraço, para dentro e para fora dos túneis escuros do loureiro. O fato de ser um futuro Arquimedes não impede que a pessoa seja uma criança normal e feliz. Pensei nesse estranho talento, específico e separado do resto da mente, quase independente da experiência. As típicas crianças-prodígio desenvolvem-se na música e na matemática; os demais talentos amadurecem devagar sob a influência da vivência e do crescimento emocional. Até os trinta anos Balzac nada demonstrara senão inaptidão; mas aos quatro o pequeno Mozart já era músico, e alguns dos trabalhos mais brilhantes de Pascal foram produzidos antes que ele saísse da adolescência.

Nas semanas que se seguiram, alternei as aulas diárias de piano com aulas de matemática. Mais do que aulas, eram insinuações, pois eu apenas dava sugestões, indicava métodos e deixava a criança sozinha desenvolver as ideias em detalhe. Assim apresentei-o à álgebra mostrando outra prova do teorema de Pitágoras. Nessa prova baixa-se uma perpendicular desde o ângulo reto até a hipotenusa e, argumentando a partir do fato de que os dois triângulos assim criados são semelhantes um ao outro e ao triângulo original, e que as proporções que seus lados correspondentes mantêm um com o outro são portanto iguais, pode-se demonstrar em forma algébrica que c2 + d2 (os quadrados dos outros dois lados) são iguais a a2 + b2 (os quadrados dos dois segmentos da hipotenusa) + 2ab; que por sua vez, é fácil demonstrar geometricamente, é igual a (a + b)2, ou o quadrado da hipotenusa. Guido ficou tão encantado com os rudimentos de álgebra quanto teria ficado se eu lhe tivesse dado uma máquina a vapor e uma lâmpada a álcool metilado para aquecer a caldeira; mais encantado ainda, talvez, pois a máquina iria se quebrar e, permanecendo sempre a mesma, de qualquer maneira teria perdido seu encanto, ao passo que os rudimentos de álgebra continuavam a crescer e a desabrochar em sua mente com incessante exuberância. Todos os dias ele fazia a descoberta de algo que lhe parecia primorosamente belo; o novo brinquedo era inexaurível em suas potencialidades.

Nos intervalos de aplicar álgebra ao segundo livro de Euclides, fazíamos experiências com círculos; enfiávamos bambus na terra seca, medíamos suas sombras em diferentes horas do dia e tirávamos conclusões excitantes de nossas observações. Às vezes, por divertimento, cortávamos e dobrávamos folhas de papel para fazer cubos e pirâmides. Certa tarde Guido apareceu carregando cuidadosamente entre as mãos pequeninas e meio sujas um frágil dodecaedro.

— È tanto bello! — disse, exibindo-nos seu cristal de papel; e quando lhe perguntei como tinha conseguido fazer aquilo, ele simplesmente sorriu e disse que tinha sido muito fácil. Olhei para Elizabeth e ri. Mas seria mais simbolicamente acurado, sentia eu, se tivesse caído de quatro, sacudido o prolongamento imaginário de meu cóccix e latido minha atônita admiração.

Era um verão extraordinariamente quente. No início de julho o nosso pequeno Robin, desacostumado com essas temperaturas altas, começou a ficar pálido e cansado; andava apático, perdera o apetite e a energia. O médico recomendou o ar da montanha. Resolvemos passar as dez ou doze semanas seguintes na Suíça. Meu presente de despedida para Guido foram os seis primeiros livros de Euclides em italiano. Ele folheou as páginas, olhando em êxtase para as figuras.

— Se ao menos eu soubesse ler direito — disse ele. — Sou muito burro. Mas agora vou mesmo tentar aprender.

De nosso hotel perto de Grindewald mandamos ao garoto, em nome de Robin, vários cartões-postais de vacas, trompas alpinas, chalés suíços, edelweiss, coisas assim. Não recebemos resposta a esses cartões; mas não esperávamos resposta. Guido não sabia escrever, e não havia razão para que o pai ou as irmãs se dessem ao trabalho de escrever por ele. A falta de notícias, assim encaramos, significava boas notícias. E então um dia, no início de setembro, chegou ao hotel uma carta estranha. O gerente a prendera no quadro de avisos no vestíbulo, de modo que todos os hóspedes a vissem e quem quer que julgasse que lhe pertencia pudesse reclamá-la. Passando pelo quadro a caminho do almoço, Elizabeth parou para vê-la.

— Mas deve ser de Guido — disse.

Aproximei-me e olhei para o envelope por sobre o ombro dela. Estava sem selo e preta de carimbos postais. Escritas a lápis, as grandes maiúsculas espalhavam-se pelo papel. Na primeira linha estava escrito: Al babbo di Robin; e seguia-se uma versão caricata do nome do hotel e do lugar. Em volta do endereço, perplexos funcionários postais tinham rabiscado sugestões de probabilidades. A carta tinha vagado pelo menos por duas semanas, de um lado para o outro, por toda a Europa.

— Al babbo di Robin. Ao pai de Robin. — Ri. — Muito esperto de os carteiros terem trazido a carta até aqui.

Fui até o escritório do gerente, demonstrei-lhe meu direito à carta e, tendo pago a multa de cinquenta cêntimos pela falta do selo, fiz com que abrissem o quadro de avisos e me entregassem a carta. Fomos almoçar.

— A caligrafia é magnífica — concordamos, rindo, examinando de perto o endereço.

— Graças a Euclides — acrescentei. — É o que dá deixar-se dominar pela paixão.

Mas, quando abri o envelope e li seu conteúdo, parei de rir. A carta era breve e de estilo quase telegráfico. “Sono dalla Padrona”, dizia, “Non mi piace ha rubato il mio libro non voglio suonare piu voglio tornare a casa venga subito Guido.”[43]

— Que é?

Passei a carta para Elizabeth.

— Aquela mulher desgraçada agarrou-o — respondi.

Bustos de homens com chapéus de feltro, anjos banhados em lágrimas de mármore apagando tochas, estátuas de menininhas, figuras veladas, alegorias e realismos implacáveis: os ídolos mais estranhos e diversos chamavam e gesticulavam ao passarmos. Impressas indelevelmente em lata e incrustadas na rocha viva, as fotografias marrons expunham-se, sob vidro, em cruzes, pedras tumulares, colunas partidas mais humildes. Senhoras mortas, na moda geométrica cubista de trinta anos antes — dois cones de cetim preto com as pontas encontrando-se na cintura, e os braços; uma esfera perto do cotovelo, um cilindro polido abaixo —, sorriam tristemente em suas molduras de mármore; os rostos sorridentes, as mãos brancas eram as únicas coisas humanas reconhecíveis que emergiam da sólida geometria de suas roupas. Homens de bigodes pretos, homens de barbas brancas, rapazes barbeados encaravam ou desviavam o olhar para mostrar um perfil romano. Crianças em suas rígidas roupas de festa arregalavam os olhos, sorriam esperançosamente na antecipação do passarinho que surgiria da câmera, sorriam ceticamente na certeza de que ele não surgiria, sorriam laboriosa e obedientemente porque lhes tinha sido ordenado. Em pontiagudos chalés góticos de mármore os mortos mais ricos repousavam com privacidade; através de portas gradeadas podia-se entrever pálidos Desolados chorando, Gênios procelosos guardando o segredo da tumba. As camadas menos prósperas da maioria dormiam em comunidade, apertadas mas elegantemente abrigadas sob extensos solos de mármore liso, em que cada pedra era a boca de uma sepultura.

Esses cemitérios continentais, pensei enquanto Carlo e eu avançávamos por entre os mortos, são mais assustadores que os nossos, porque essas pessoas dão mais atenção a seus mortos que nós. Esse culto primordial aos cadáveres, esse prestimoso carinho por seu bem-estar material, que levava os antigos a abrigar seus mortos em pedra enquanto eles próprios viviam entre bambus e sobre esteiras, ainda se encontra aqui; persiste, pensei, mais vigorosamente do que conosco. Há milhares de estátuas gesticulando aqui para cada uma em um cemitério inglês. Há mais jazigos de família mais “luxuosamente guarnecidos” (como dizem de navios e hotéis) do que se encontraria em minha terra. E incrustadas em cada lápide havia fotografias para lembrar aos ossos tornados pó qual a forma que deveriam reassumir no Dia do Juízo; ao lado de cada uma há pequenas lamparinas pendentes para arder com otimismo no dia de Finados. Para o Homem que construiu as Pirâmides eles estão mais próximos, pensei, do que nós.

— Se eu soubesse — repetia Carlo sem cessar. — Se ao menos eu soubesse. — Sua voz me chegava através de minhas reflexões como se de muito longe. — Na ocasião ele não se importou nem um pouco. Como eu poderia saber que depois ele ia ficar tão afetado? E ela me enganou, ela mentiu para mim.

Assegurei-lhe mais uma vez que não era culpa sua. Embora, naturalmente, fosse, em parte. Era minha também, em parte; eu devia ter pensado na possibilidade e de algum modo tomado precauções contra ela. E ele não devia ter deixado a criança ir, ainda que temporariamente e por experiência, ainda que a mulher o estivesse pressionando. E a pressão fora imensa. Eles trabalhavam no mesmo lugar havia mais de cem anos, os homens da família de Carlo; e ela fez o velho ameaçar mandá-lo embora. Seria uma coisa horrível deixar o lugar; além disso, não seria fácil encontrar outro. No entanto, ficou bem claro que ele poderia ficar se lhe deixasse o menino. Só por pouco tempo, para começar; só para ver como ele se saía. Não haveria nenhuma compulsão para que ele ficasse, se não gostasse. E seria tudo para o bem de Guido; e do pai dele, também, no final. E aquilo que o inglês tinha dito de que ele não era um músico tão bom como ele tinha pensado era obviamente mentira — puro ciúme e egoísmo; o homem queria ter o mérito para si, só isso. E o menino, era óbvio, não aprenderia coisa alguma com ele. O que precisava era de um bom professor de verdade.

Toda a energia que, se os físicos conhecessem seus assuntos, estaria movendo dínamos entrou nessa campanha. Começou no momento em que saímos de casa, intensivamente. Teria mais chance de sucesso, pensou sem dúvida a signora, se não estivéssemos lá. Além disso, era essencial aproveitar a oportunidade quando ela se oferecia e pegar a criança antes que pudéssemos fazer nossa oferta — pois era óbvio que nós queríamos Guido tanto quanto ela o queria.

Dia após dia ela renovava o assalto. No final da semana mandou o marido reclamar do estado das parreiras: a condição delas era inaceitável; ele decidira, ou estava perto de, mandar Carlo embora. Submisso, envergonhado, obedecendo a ordens superiores, o velho cavalheiro pronunciou suas ameaças. No dia seguinte a signora Bondi voltou ao ataque. O padrone, declarou, estava perturbadíssimo; mas ela faria o possível, o melhor possível, para acalmá-lo. E depois de uma pausa significativa começou a falar sobre Guido.

Finalmente Carlo cedeu. A mulher era persistente demais, tinha muitas cartas na manga. A criança poderia ficar um ou dois meses com ela, em caráter de experiência. Depois, se realmente mostrasse vontade de continuar com ela, poderia ser adotada formalmente.

À ideia de passar umas férias à beira-mar — e era para a costa, a signora Bondi lhe dissera, que iriam — Guido ficou contente e excitado. Muito ouvira Robin falar sobre o mar. “Tanta acqua!” Parecia quase bom demais para ser verdade. E agora ele mesmo iria ver essa maravilha. Foi com muita alegria que ele se separou da família.

Mas depois que terminaram as férias à beira-mar, e a signora Bondi o trouxera de volta para sua casa em Florença, ele começou a ter saudade de casa. A signora, era verdade, tratava-o muitíssimo bem, comprou-lhe roupas novas, levou-o para tomar chá na Vila Tornabuoni e enchia-o de bolos, morangos gelados, creme batido e chocolates. Mas obrigava-o a estudar piano mais do que ele gostava e, o que era pior, tirou seu Euclides, sob o pretexto de que ele perdia tempo demais com aquilo. E quando ele disse que queria ir para casa ela adiou com promessas, desculpas e rematadas mentiras. Disse a ele que não podia levá-lo imediatamente, mas na semana seguinte, se ele ficasse bonzinho e, enquanto isso, estudasse com afinco o piano, na semana seguinte... E quando chegou o dia ela lhe disse que o pai não o queria de volta. E redobrou as adulações, deu-lhe presentes caros e entupiu-o com comidas ainda menos saudáveis. Em vão. Guido não gostava de sua nova vida, não queria estudar escalas, queria seu livro e ansiava em voltar para os irmãos e irmãs. A signora Bondi, entrementes, continuava a esperar que o tempo e os chocolates eventualmente fizessem com que a criança fosse sua; e, para manter a família à distância, ela sempre escrevia a Carlo cartas que ainda declaravam ser da cidade à beira-mar (tomava o trabalho de mandá-las a uma amiga, que as despachava novamente para Florença) e nas quais pintava um quadro encantador da felicidade de Guido.

Foi então que Guido escreveu a carta para mim. Abandonado, como imaginava, pela família — pois o fato de não se darem o trabalho de ir visitá-lo estando tão perto só era explicável pela hipótese de que realmente tinham esquecido dele —, ele deve ter me considerado sua última e única esperança. E a carta, com seu endereço fantástico, tinha passado quase quinze dias viajando. Quinze dias — deviam parecer centenas de anos; e à medida que os séculos se sucediam, gradualmente, sem dúvida, a pobre criança se convencera de que eu também a abandonara. Não havia mais esperança.

— Aqui estamos — disse Carlo.

Olhei para cima e me vi enfrentado por um enorme monumento. Numa espécie de gruta cavada nos flancos de um monólito de arenito cinzento, o Sagrado Amor, de bronze, abraçava uma urna funerária. E em letras de bronze presas à pedra havia uma comprida lenda de que o inconsolável Ernesto Bondi erguera esse monumento à memória de sua amada esposa, Annunziata, como sinal de seu imorredouro amor por aquela a quem, arrancada dele por uma morte prematura, ele esperava logo unir-se sob aquela pedra. A primeira signora Bondi tinha morrido em 1912. Pensei no velho atrelado a seu cachorro branco; ele deve ter sido sempre, refleti, um marido escravizado.

— Eles o enterraram aqui.

Ficamos parados ali em silêncio por um longo tempo. Senti as lágrimas virem-me aos olhos ao pensar na pobre criança que jazia ali no fundo da terra. Pensei naqueles olhos luminosos e sérios, na curva da bela testa, no caimento da boca melancólica, na expressão de delícia que lhe iluminava o rosto quando descobria uma nova ideia que o agradava, quando ele ouvia uma música de que gostava. E esse serzinho lindo estava morto; e o espírito que habitara essa forma, o espírito espantoso, ele também fora destruído quase antes de ter começado a existir.

E a infelicidade que deve ter precedido o ato final, o desespero da criança, a convicção de seu completo abandono — era terrível pensar nisso, terrível.

— Acho que é melhor irmos embora agora — falei finalmente, e toquei no braço de Carlo. Ele estava parado ali como um cego, olhos fechados, o rosto ligeiramente erguido em direção à luz; por entre suas pálpebras fechadas as lágrimas afloravam, pendiam por um instante e desciam pelo rosto. Os lábios tremiam, e eu percebia que ele estava fazendo um esforço para mantê-los firmes. — Vamos embora — repeti.

O rosto, que estivera imobilizado na dor, convulsionou-se de repente; ele abriu os olhos, e através das lágrimas eles brilhavam de raiva violenta.

— Vou matá-la — disse. — Vou matá-la. Quando penso nele se jogando, caindo pelo ar... — Com as duas mãos ele fez um gesto violento, deixando-as cair de sobre a cabeça e imobilizando-as com um solavanco súbito quando estavam diante de seu peito. — E então crás. — Estremeceu. — Ela é tão responsável como se ela mesma tivesse empurrado o menino. Vou matá-la. — Rilhou os dentes.

Ficar zangado é mais fácil do que ficar triste, menos doloroso. É confortador pensar na vingança.

— Não fale assim — aconselhei. — Não adianta. É estúpido. E de que adiantaria? — Ele tinha tido esses acessos antes, quando a dor ficava forte demais e ele tentava escapar dela. A raiva tinha sido o meio de fuga mais fácil. Antes disso eu já tivera de convencê-lo a voltar ao caminho mais difícil da dor. — É estupidez falar assim — repeti, e levei-o para longe daquele horrível labirinto de túmulos, onde a morte parecia ser ainda mais terrível do que é.

Depois que saímos do cemitério, descendo de San Miniato em direção ao Piazzale Michelangelo, ele ficou mais calmo. Sua raiva tornara a acalmar-se na tristeza de onde extraíra toda a sua força e amargura. No Piazzale paramos por um momento para olhar a cidade no vale abaixo de nós. Era um dia de nuvens flutuantes — grandes formas, brancas, douradas e cinzentas; e entre elas pedaços de um azul fino e transparente. Com sua claraboia quase ao nível de nossos olhos, a cúpula da catedral revelava-se em toda a sua leveza grandiosa, sua vastidão e sua força aérea. Nos inumeráveis telhados marrons e rosados da cidade a luz do sol da tarde batia suave, suntuosa, e as torres pareciam envernizadas e esmaltadas de um ouro antigo. Pensei em todos os Homens que viveram aqui e deixaram traços visíveis de seu espírito e conceberam coisas extraordinárias. Pensei na criança morta.


O meio-feriado

I

Era sábado à tarde, e o tempo estava bom. À luz nevoenta do sol de primavera Londres entrevia-se linda, como uma cidade de imaginação. Luzes douradas, sombras azuis e violetas. Com sua esperança indefectível, as árvores fuliginosas do parque rebentavam em folhas; e o verde novo era incrivelmente vivo, leve e etéreo, como se as minúsculas folhas tivessem sido recortadas da faixa esmeralda central de um arco-íris. O milagre, para todos os que caminhavam no parque aquela tarde, era visível. O que fora morte ali revivia; e da fuligem brotava o verde de um arco-íris. Sim, era visível. E, além disso, aqueles que percebiam essa mudança taumatúrgica da morte para a vida estavam eles mesmos mudados. Havia algo contagioso no milagre primaveril. Amando mais, os casais tranquilos sob as árvores estavam mais felizes — ou muito mais agudamente infelizes. Homens corpulentos tiravam os chapéus, e enquanto o sol beijava suas cabeças calvas eles tomavam resoluções — a respeito de uísque, a respeito da linda datilógrafa do escritório, a respeito de acordar cedo. Abordadas por rapazes bêbados da primavera, as jovens consentiam, a despeito do que lhes diziam sua educação e temores, em ir passear. Cavalheiros de meia-idade, passeando pelo parque em direção a suas casas, de repente sentiam seus corações, cascudos e encardidos de negócios, desabrochando como essas árvores em bondade e generosidade. Pensavam em suas esposas, pensavam nelas com súbita afeição, apesar de vinte anos de casamento. “Tenho que parar no caminho de volta e comprar um presentinho para a patroa”, diziam a si mesmos. Que poderia ser? Uma caixa de frutas cristalizadas? Ela gostava de frutas cristalizadas. Ou um vaso de azaleias? Ou... E então lembravam-se de que era sábado de tarde. As lojas estariam quase todas fechadas. E pensavam, suspirando, que provavelmente o coração da patroa também estaria fechado; pois a patroa não tinha caminhado sob as árvores em botão. Assim é a vida, eles refletiam, olhando com tristeza para os barcos no brilhante Serpentine, as crianças que brincavam, os namorados sentados de mãos dadas na grama verde. Assim é a vida; quando o coração está aberto, as lojas geralmente estão fechadas. Mas mesmo assim resolviam tentar, no futuro, controlar seus humores.

A exemplo do que se passava com todos os que entravam em sua zona de influência, o alegre sol primaveril e as árvores em broto causavam profunda impressão em Peter Brett. Faziam-no sentir-se a um só tempo mais solitário e mais infeliz do que jamais se sentira. Em contraste com a luminosidade à sua volta, sua alma parecia mais escura. Das árvores rebentavam os brotos; ele permanecia morto. Os namorados passeavam aos pares; ele caminhava sozinho. Apesar da primavera, apesar do sol, apesar do fato de que era sábado e o dia seguinte seria domingo — ou melhor, por causa dessas coisas que deveriam fazê-lo tão feliz e que realmente faziam felizes as outras pessoas — ele passava pelo milagre do Hyde Park sentindo-se profundamente infeliz.

Como sempre, procurou conforto na imaginação. Por exemplo, uma linda criatura poderia escorregar numa pedra bem na frente dele e torcer o tornozelo. Enorme e bonitão, Peter acorreria para ministrar os primeiros socorros. Iria levá-la de táxi (ele teria dinheiro para pagá-lo) até a casa dela — em Grovesnor Square. Ele descobriria que ela era filha de um nobre. Eles se amariam...

Ou então ele salvava uma criança que caíra no lago, ganhando, assim, a gratidão eterna, e mais que a gratidão, de sua mãe viúva, rica e jovem. Sim, viúva; Peter fazia questão de frisar a viuvez da mulher. Suas intenções eram estritamente honradas. Ainda era muito jovem e fora bem-educado.

Ou então não havia um acidente preliminar. Ele apenas via uma moça sentada sozinha num banco, parecendo muito solitária e triste. Ousado, porém cortês, ele se aproximava, tirava o chapéu, sorria. “Percebo que está sozinha”, dizia; e falava com elegância e desenvoltura, sem um traço de seu sotaque de Lancashire, nem mesmo um vestígio dessa horrível gagueira que, na vida real, lhe tornava a fala um tormento. “Percebo que está sozinha. Eu também. Posso me sentar a seu lado?” Ela sorria, e ele se sentava. E então contava a ela que era órfão e que tudo o que tinha era uma irmã casada que morava em Rochdale. E ela dizia: “Também sou órfã”. E isso produzia uma grande ligação entre eles. E contavam um para o outro como eram infelizes. E ela começava a chorar. E então ele dizia: “Não chore, você tem a mim”. E com isso ela se alegrava um pouco. E então eles iam ao cinema. E finalmente, supunha, casavam-se. Mas essa parte da história era um pouco obscura.

Mas, é claro, nenhum acidente chegou a acontecer, e ele nunca teve coragem de dizer a alguém como era solitário; e sua gagueira era horrível; e ele era baixinho, usava óculos e quase sempre tinha espinhas no rosto; e seu terno cinzento escuro estava ficando puído e um tanto curto nas mangas; e as botas, embora cuidadosamente engraxadas, pareciam tão baratas quanto realmente eram.

Foram as botas que mataram seus devaneios nessa tarde. Caminhando de olhos baixos, pensativo, ele tentava decidir o que diria à linda filha do nobre no táxi a caminho de Grovesnor Square, quando subitamente tomou consciência dos largos passos de suas botas, imiscuindo-se negramente entre os fantasmas translúcidos de sua vida interior. Como eram feias! E como eram tristemente diferentes daquelas botas elegantes, brilhantes e suntuosas que cobriam os pés dos ricos! Elas já eram bastante feias quando novas; a idade as deixara verdadeiramente repulsivas. Nenhuma fôrma conseguia corrigir os efeitos do uso, e o peito, logo acima da biqueira, era profunda e medonhamente enrugado. Sob a graxa ele percebia uma rede de inúmeras rachaduras no couro ressecado e de qualidade inferior. No lado externo da bota direita a biqueira descolara e fora mal recosturada; o remendo era por demais visível. Gastos de tanto dar passagem aos cadarços, os furos tinham perdido seu esmalte preto e revelavam-se em sua nudez de cobre.

Ah, como eram horríveis, como eram nojentas suas botas! Mas teriam que durar ainda muito tempo. Peter começou a refazer os cálculos que tantas vezes fizera. Se gastasse 3,5 pence a menos todos os dias no almoço; se, com o tempo bom, ele caminhasse para o trabalho todas as manhãs em vez de pegar o ônibus... Mas, por mais cuidadosa e por mais frequentemente que ele fizesse seus cálculos, vinte e sete xelins e seis pence por semana continuavam sendo vinte e sete e seis. Botas eram caras; e quando ele tivesse economizado o suficiente para comprar um par novo, ainda havia o problema do terno. E para piorar as coisas era primavera; as folhas estavam brotando, o sol brilhava, e entre os casais enamorados ele caminhava sozinho. A realidade era demais para ele nesse dia; não conseguia escapar. As botas perseguiam-no para onde quer que tentasse fugir e arrastavam-no de volta à contemplação de sua infelicidade.

II

As duas moças saíram da trilha cheia de gente ao longo da margem do Serpentine e subiram a colina por um caminho menor na direção da estátua de Watts. Peter seguiu-as. Um refinado perfume pairava no ar atrás delas. Ele o respirou com desejo, e seu coração começou a bater com uma violência fora do comum. Elas lhe pareciam verdadeiros portentos, não seres humanos. Eram tudo de lindo e inalcançável. Ele as encontrara caminhando lá embaixo, perto do Serpentine, ficara fascinado por aquele vislumbre de uma beleza luxuosa e altiva e imediatamente voltara-se para segui-las. Por quê? Ele próprio mal sabia. Simplesmente para poder estar perto delas; e talvez com a esperança fantástica e incontrolável de que alguma coisa pudesse acontecer, algum milagre que o projetasse em suas vidas.

Desejoso, aspirou o perfume delicado delas; com uma espécie de desespero, como se sua vida dependesse disso, observou-as, estudou-as. Ambas eram altas. Uma delas usava um casaco de tecido cinzento, arrematado por pele cinza-escura; o casaco da outra era todo de pele; sabe-se lá quantas raposas douradas não tinham sido assassinadas para que ela pudesse ficar aquecida entre as sombras geladas dessa tarde de primavera. Uma delas usava meias cinzentas e a outra cor de camurça. Uma caminhava em pelica, e a outra em couro de cobra. Os chapéus eram pequenos e justos. Um pequeno buldogue francês preto acompanhava-as correndo, às vezes junto a seus calcanhares, às vezes à frente delas. A coleira do cão era enfeitada com pele de lobo malhado que se destacava como uma franja de pelos em volta de sua pequena cabeça negra.

Peter caminhava tão perto delas que, quando estavam longe da multidão, conseguia ouvir pedaços de sua conversa. Uma tinha a voz doce, a outra falava meio roucamente.

— Que homem maravilhoso! — dizia a voz rouca. — Realmente divino!

— Foi o que Elizabeth me contou — disse a de voz doce.

— E uma festa perfeita, também — continuou a Rouca. — Ele nos fez rir a noite inteira. Todo mundo ficou meio tonto, também. Quando chegou a hora de ir embora, eu disse que ia caminhar e tentar a sorte de encontrar um táxi no caminho. Foi então que ele me convidou para ir procurar um táxi em seu coração. Ele disse que tinha muitos lá, todos desocupados.

Ambas riram. A conversa de um grupo de crianças que vinham de trás e passavam naquele instante impediu que Peter ouvisse o que se disse a seguir. Interiormente ele amaldiçoou as crianças. Demoniozinhos animalescos — estavam fazendo com que ele perdesse sua revelação. E que revelação! De uma vida tão estranha, pouco familiar e extravagante! Os sonhos de Peter sempre tinham sido idílicos e pastorais. Mesmo com a filha do nobre ele pretendia viver no campo, uma vida sossegada e doméstica. O mundo no qual existem festas perfeitas onde todos ficam meio tontos e homens divinos convidam jovens deusas para procurar táxis em seus corações lhe era inteiramente desconhecido. Ele tivera um vislumbre desse mundo naquele momento; ficara fascinado com sua peculiaridade exótica e tropical. Toda a sua ambição era agora entrar nesse mundo maravilhoso, envolver-se, de alguma forma e a todo custo, na vida dessas jovens deusas. E se agora ambas tropeçassem ao mesmo tempo naquela raiz protuberante e torcessem os tornozelos. E se... Mas ambas passaram por cima dela em segurança. E então, de repente, ele viu uma esperança — no buldogue.

O cachorro tinha deixado o caminho para farejar a base de um olmo que crescia a poucos metros à direita. Tinha farejado, tinha rosnado, tinha deixado uma desafiadora lembrança de sua visita e então, ameaçador, jogava terra e galhos com as patas traseiras contra a árvore, quando um terrier irlandês amarelo apareceu e começou por sua vez a farejar, primeiro a árvore, depois o buldogue. O buldogue parou suas investidas na terra e farejou o terrier. Cautelosamente os dois animais andaram um ao redor do outro farejando e rosnando. Peter observou-os por um momento com uma curiosidade lânguida e vaga. Sua mente estava alhures; ele mal via os dois cachorros. Então, num clarão revelador, ocorreu-lhe que eles poderiam começar a brigar. Se brigassem, ele era um homem feito. Correria para separá-los, heroicamente. Podia até ser mordido. Mas não importava. Na verdade, seria até melhor. Uma mordida poderia ser mais um trunfo para a gratidão das deusas. Desejou ardentemente que os cachorros brigassem. A coisa horrível seria se as deusas ou os donos do terrier amarelo percebessem e interferissem antes que a briga pudesse começar. “Ah, Deus, não deixe que chamem os cachorros agora”, ele rezou fervorosamente. “Mas deixe os cachorros brigarem. Em nome de Jesus Cristo. Amém.” Peter tivera uma educação cristã.

As crianças tinham passado. As vozes das rainhas tornaram-se novamente audíveis.

— ... um chato tão horrível — dizia a de voz doce. — Não posso dar um passo sem encontrá-lo. E ele não se manca. Eu lhe disse que odiava judeus, que o acho feio, estúpido, sem tato, impertinente e chato. Mas parece que não faz a menor diferença.

— Você devia fazer com que ele fosse útil, pelo menos. — disse a Rouca.

— Ah, eu faço — afirmou a Doce.

— Já é alguma coisa.

— Alguma coisa — admitiu a Doce. — Mas não muito.

Houve uma pausa. “Ah, Deus, não deixe que elas vejam”, rezou Peter.

— Se pelo menos os homens entendessem que... — começou a Doce pensativamente.

Um barulho assustador de rosnados e latidos interrompeu-a violentamente. As duas moças voltaram-se na direção de onde vinha o som.

— Pongo! — gritaram em coro, ansiosa e autoritariamente. E novamente, com mais urgência: — Pongo!

Mas seus gritos eram vãos. Pongo e o terrier amarelo já estavam brigando com demasiada fúria para prestar atenção.

— Pongo! Pongo!

— Benny! — gritavam também em vão a menininha e sua corpulenta babá. — Benny, venha cá!

Chegara o momento, o apaixonadamente esperado, o precioso e significativo momento. Exultante, Peter jogou-se sobre os cachorros.

— Afaste-se, seu bruto — gritou, chutando o terrier irlandês. Pois o terrier era o inimigo, e o buldogue francês, o buldogue francês delas, o amigo a quem ele viera, como um dos deuses do Olimpo na Ilíada, socorrer. — Afaste-se! — Em sua excitação esqueceu que era gago. A letra f sempre lhe era difícil; mas ele conseguiu nessa ocasião gritar “Afaste-se!” sem um traço de hesitação. Agarrou os cachorros pelos tocos das caudas, pela pele do pescoço e tentou apartá-los. De vez em quando ele chutava o terrier amarelo. Mas foi o buldogue que o mordeu. Ainda mais estúpido que Ajax, o buldogue não conseguira entender que o imortal estava lutando do seu lado. Mas Peter não se ressentiu e, no calor do momento, quase não deu com a dor. O sangue começou a escorrer de uma fileira de furos rasgados em sua mão esquerda.

— Ai! — gritou a Doce, como se fosse a sua mão que tivesse sido mordida.

— Tome cuidado — admoestou a Rouca ansiosamente. — Tome cuidado.

O som de suas vozes encorajou-o a outros esforços. Chutou e puxou com mais força; e finalmente, por uma fração de segundo, conseguiu separar os animais furiosos. Por uma fração de segundo nenhum cachorro tinha qualquer porção da anatomia do outro em sua boca. Peter aproveitou a oportunidade, e pegando o buldogue francês pela pele solta na nuca ergueu-o, ainda latindo furiosamente, rosnando e lutando, no ar. O terrier amarelo ficou à sua frente, latindo e de vez em quando saltando num esforço alucinado para morder as patas pretas pendentes de seu inimigo. Mas Peter, com o gesto de Perseu erguendo a cabeça cortada da Górgona, levantou o agitado Pongo para fora do perigo, estendendo o braço ao máximo. Com o pé manteve o cachorro amarelo à distância; e a babá e a menininha, que a essa altura tinham recuperado em parte sua presença de espírito, aproximaram-se do furioso animal por detrás e conseguiram finalmente prender a guia na coleira. As quatro patas rigidamente plantadas derrapando na grama, o terrier amarelo foi arrastado para longe à força bruta, ainda latindo, embora sem tanta potência — meio estrangulado que estava em seus esforços para escapar. Suspenso quase dois metros acima do chão pela pele escura de seu pescoço, Pongo contorcia-se em vão.

Peter voltou-se e aproximou-se das deusas. A Rouca tinha olhos apertados e uma boca triste; era um rosto magro, de aparência trágica. A Doce era mais redonda, mais rosada e mais branca, de olhos mais azuis. Peter olhou de uma para a outra e não conseguiu decidir qual era a mais bonita.

Baixou o agitado Pongo.

“Aqui está seu cachorro” era o que ele queria dizer. Mas a beleza dessas criaturas radiantes trouxe de volta de repente toda a sua timidez, e com ela sua gagueira.

— Aqui está seu... — começou, mas não conseguia pronunciar cachorro. C, para Peter, era sempre uma letra difícil.

Para todas as palavras comuns que começavam com letras difíceis Peter tinha de prontidão um estoque de sinônimos mais fáceis. Assim, ele sempre chamava os gatos de “bichanos”, não por qualquer afetação de infantilidade, mas porque b era mais pronunciável do que o impossível g. Carvão ele tinha que dizer na forma mais vaga de “lenha”. Detritos, para ele, eram sempre “sujeira”. Na descoberta de sinônimos ele tinha se tornado quase tão engenhoso quanto aqueles poetas anglo-saxões que, usando a aliteração em vez de rimas, eram compelidos, em seus esforços para fazer, digamos, o mar começar com a mesma letra de suas ondas ou suas espumas, a chamá-lo “orgulho de Netuno” ou “estrada das baleias”. Mas Peter, que não podia permitir-se a total licença poética de seus ancestrais saxões, às vezes era obrigado a soletrar as palavras mais difíceis para as quais acontecia não existir um equivalente prosaico e conveniente. Assim, nunca tinha muita certeza se devia chamar uma caneca de xícara ou c-a-n-e-c-a.

No momento presente, era a miserável palavrinha “cachorro” que o retinha. Peter tinha vários sinônimos para cachorro.

Se não tivesse problemas com f, poderia dizer “filhote”. Ou então, de modo entre brincalhão e pseudo-heroico, um “mastim”. Mas a presença das duas deusas era tão emocionante que Peter achou tão desesperadamente impossível pronunciar um m quanto um c. Hesitou dolorosamente, tentando pronunciar primeiro cachorro, depois filhote, depois mastim. Seu rosto ficou muito vermelho. Ele estava angustiado.

— Aqui está seu bicho — conseguiu dizer afinal. A palavra, ele tinha consciência, era um pouco imprópria para uma conversa elegante. Mas foi a única que saiu.

— Muitíssimo obrigada — disse a Doce.

— Você foi esplêndido, realmente esplêndido — asseverou a Rouca. — Mas acho que você se feriu.

— Ah, não é n-nada — Peter declarou. E, enrolando o lenço em volta da mão mordida, enfiou-a no bolso.

A Doce, enquanto isso, tinha prendido a ponta da correia à coleira de Pongo.

— Pode colocá-lo no chão agora — falou.

Peter fez o que ela mandava. O cachorrinho preto imediatamente saltou na direção de seu inimigo que relutava em afastar-se. Chegou ao fim da corda com um solavanco que o deixou de pé nas patas traseiras e o manteve, latindo, na posição de um leão rampante num escudo de armas.

— Mas tem certeza de que não é nada? — insistiu a Rouca. — Deixe-me dar uma olhada.

Obedientemente Peter tirou o lenço e estendeu a mão. Parecia-lhe que tudo estava acontecendo como ele esperava. Então percebeu com horror que suas unhas estavam sujas. Se pelo menos, se pelo menos tivesse pensado em tomar banho antes de sair! Que é que pensariam dele? Enrubescendo, tentou retirar a mão. Mas a Rouca segurou-a.

— Espere — disse ela. E acrescentou: — Foi uma mordida feia.

— Horrível — afirmou a Doce, que também estava inclinada sobre a mão dele. — Lamento tanto que meu cachorro estúpido tenha...

— Você devia ir direto a uma farmácia — disse a Rouca, interrompendo-a — mandar desinfetar e fazer um curativo.

Ergueu os olhos da mão para o rosto dele.

— Uma farmácia — ecoou a Doce, e também ergueu os olhos.

Peter olhou de uma para a outra, igualmente entontecido pelos olhos azuis arregalados e os olhos verdes apertados e secretos. Sorriu vagamente e vagamente sacudiu a cabeça. Discretamente enrolou a mão no lenço e escondeu-a.

— N-não foi n-nada — disse.

— Mas é preciso — insistiu a Rouca.

— É preciso — exclamou a Doce.

— N-nada — ele repetiu. Não queria ir a uma farmácia. Queria ficar com as deusas.

A Doce voltou-se para a Rouca.

— Qu’est-ce qu’on donne à ce petit bonhomme? — perguntou, falando muito depressa e em voz baixa.

A Rouca sacudiu os ombros e fez uma pequena careta que sugeria incerteza.

— Il serait offensé, peut-être — sugeriu.

— Tu crois?

A Rouca lançou um olhar de soslaio ao objeto de sua discussão, avaliando-o criticamente desde o chapéu de feltro barato até as botas baratas, do rosto pálido e manchado às mãos meio sujas, dos óculos de armação de aço à correia de couro do relógio. Peter viu que ela olhava para ele e sorriu-lhe com vago e tímido arroubo. Como era linda! Perguntou-se o que estariam cochichando. Talvez estivessem debatendo se deveriam convidá-lo para tomar chá. E assim que essa ideia lhe ocorreu teve certeza de que era isso. Miraculosamente as coisas estavam acontecendo como aconteciam em seus sonhos. Perguntou-se se teria coragem de lhes dizer — nessa primeira vez — que elas poderiam procurar táxis em seu coração.

A Rouca voltou-se para a companheira. Mais uma vez sacudiu os ombros.

— Vraiment, je ne sais pas — sussurrou.

— Si on lui donnait une livre? — sugeriu a Doce.

A Rouca assentiu.

— Comme tu voudras. — E, enquanto a outra voltava-se para remexer discretamente a bolsa, ela se dirigia a Peter.

— Você foi muitíssimo corajoso — disse, sorrindo.

Peter só conseguiu sacudir a cabeça, enrubescer e baixar os olhos diante daquele olhar firme, seguro, frio. Desejava olhar para ela; mas quando estava pronto a fazê-lo, simplesmente não conseguia manter os olhos firmemente fixos naqueles olhos decididos.

— Talvez você esteja acostumado com cachorros — continuou. — Você tem um?

— N-não — Peter conseguiu dizer.

— Ah, bem, isso o faz ainda mais corajoso — disse a Rouca. Então, percebendo que a Doce tinha encontrado o dinheiro que procurava, ela pegou a mão do rapaz e sacudiu-a calorosamente. — Estamos muitíssimo gratas a você. Nossa, estou até arrepiada! — repetiu. E enquanto repetia perguntava-se por que usou a palavra arrepiada com tanta frequência. Normalmente quase nunca a usava. De qualquer forma, parecia adequada, já que estava falando com aquele sujeito. Ela sempre era calorosa, enfática e usava linguagem escolar quando tratava com classes inferiores.

— G-g-g... — começou Peter. Será que elas estavam indo embora, perguntou-se em agonia, saindo subitamente de seu sonho confortável e rosado. Indo de fato embora, sem convidá-lo para o chá ou dar-lhe seus endereços? Ele queria implorar-lhes para que ficassem mais um pouco, para que deixassem que ele as visse novamente. Mas sabia que não conseguiria pronunciar as palavras necessárias. Diante do adeus da Rouca ele se sentiu como um homem que se vê sob a iminência de uma terrível catástrofe e nada pode fazer para impedi-la. — G-g... — gaguejou baixinho. Mas encontrou-se apertando a mão da outra antes de ter terminado a despedida fatal.

— Você foi realmente esplêndido — disse a Doce, apertando-lhe a mão. — Realmente esplêndido. Só precisa ir imediatamente a uma farmácia desinfetar a mordida. Adeus, e muito, muito obrigada. — Enquanto dizia essas últimas palavras deixou uma nota de uma libra bem dobrada na palma dele e com suas duas mãos fechou-lhe os dedos sobre ela. — Muito, muito obrigada — repetiu.

Enrubescendo violentamente, Peter sacudiu a cabeça.

— N-n... — começou, e tentou fazer com que ela pegasse a nota de volta.

Mas ela apenas sorriu mais docemente.

— Sim, sim — insistiu. — Por favor. — E sem esperar para ouvir mais, voltou-se e correu até a Rouca, que continuava a andar, subindo o caminho, levando o relutante Pongo, que ainda latia e forçava heraldicamente a guia.

— Bem, está tudo certo — disse, quando alcançou a companheira.

— Ele aceitou?

— Sim, sim — assentiu. Depois, mudando de tom: — Deixe-me ver... de que é que estávamos falando quando este cachorro desgraçado nos interrompeu? — continuou.

— N-não — Peter conseguiu dizer finalmente. Mas ela já tinha lhe dado as costas e afastava-se correndo. Ele deu alguns passos em seu encalço; depois estacou. Não adiantava. Se tentasse explicar, apenas provocaria mais humilhações. Ora, poderiam até pensar, enquanto estava parado ali esforçando-se para dizer as palavras, que tinha corrido atrás delas para pedir mais. Poderiam deixar outra libra em sua mão e fugir ainda mais depressa. Observou-as até desaparecerem de vista, sobre o topo da colina; depois voltou na direção do Serpentine.

Em sua imaginação ele recriou a cena, não como tinha realmente acontecido, mas como deveria ter acontecido. Quando a Doce deixou a nota em sua mão ele sorriu e devolveu-a educadamente, dizendo: “Acho que você cometeu um erro. Um erro bem justificável, admito. Pois pareço pobre, e na verdade sou pobre. Mas sou um cavalheiro, sabe? Meu pai era médico em Rochdale. Minha mãe era filha de médico. Fui para uma boa escola até os dois morrerem. Eles se foram quando eu tinha dezesseis anos, com meses de diferença um do outro. Assim, tive de ir trabalhar antes de terminar os estudos. Mas percebe que não posso aceitar seu dinheiro”. E então, tornando-se mais galante, pessoal e confidencial, continuou: “Separei esses cachorros horríveis porque queria fazer algo por você e sua amiga. Porque achei vocês lindas e maravilhosas demais. De modo que mesmo que não fosse um cavalheiro eu não aceitaria seu dinheiro”. A Doce ficou profundamente emocionada com esse pequeno discurso. Apertou a mão dele e disse-lhe que lamentava muito. E ele a deixou à vontade assegurando-lhe que seu engano era perfeitamente compreensível. E então ela perguntou se ele gostaria de ir com elas tomar uma xícara de chá. E desse ponto em diante os devaneios de Peter tornaram-se mais vagos e cor-de-rosa, até que ele voltou ao velho sonho familiar da filha do nobre, da viúva agradecida e da órfã solitária; apenas acontecia que dessa vez eram duas deusas, e seus rostos em vez de obscuras criações da imaginação eram reais e definidos.

Mas ele sabia, mesmo no meio de seu sonho, que as coisas não tinham acontecido assim. Sabia que ela fora embora antes que ele conseguisse dizer alguma coisa; e que mesmo que tivesse corrido atrás delas e tentado apresentar sua explicação nunca o teria conseguido. Por exemplo, ele teria de dizer que seu pai era “doutor”, não médico (d sendo mais fácil que m). E quando chegasse a hora de lhes dizer que os seus tinham morrido, teria de ter dito “perecido” o que soaria pedante, como se ele estivesse tentando fazer uma piada. Não, não, a verdade tinha de ser enfrentada. Ele aceitara o dinheiro, e elas tinham ido embora pensando que ele era só algum vagabundo de rua, que se arriscara a uma mordida por uma boa gorjeta. Quanto a convidá-lo para tomar chá e fazê-lo amigo delas...

Mas sua imaginação ainda estava ativa. Ocorreu-lhe que teria sido desnecessário dar qualquer explicação. Poderia simplesmente ter forçado a nota de volta à mão dela, sem dar uma palavra. Por que não o tinha feito? Precisava desculpar a si mesmo por sua omissão. Ela tinha se afastado rápido demais; essa era a razão.

E se ele tivesse caminhado na frente delas e ostensivamente dado o dinheiro ao primeiro menino de rua que encontrasse? Uma boa ideia, essa. Infelizmente não tinha lhe ocorrido na hora.

Toda aquela tarde Peter caminhou pensando no que acontecera, imaginando alternativas plausíveis e satisfatórias. Mas o tempo todo ele sabia que essas alternativas eram apenas imaginárias. Às vezes a lembrança de sua humilhação era tão vívida que o fazia encolher-se e estremecer.

A luz começou a cair. No crepúsculo cinzento e violáceo os namorados abraçavam-se com mais força enquanto passeavam, apertavam-se ainda mais sob as árvores. Filas de lâmpadas amarelas brotavam na escuridão crescente. Bem alto no céu pálido, um quarto de lua se fez visível. Ele se sentia mais infeliz e solitário que nunca.

A essa altura sua mão mordida doía muito. Ele saiu do parque e seguiu pela rua Oxford até encontrar uma farmácia. Depois que a mão foi desinfetada e coberta com um curativo, ele entrou numa casa de chá e pediu um ovo pochê, um pãozinho e uma caneca de moca, que teve de traduzir para a garçonete como uma x-í-c-a-r-a de c-a-f-é.

“Parece-me que você pensa que sou um vagabundo ou um malandro.” Era isso que devia ter dito a ela, indignado e orgulhoso. “Você me insultou. Se você fosse um homem, eu acabava com você. Pegue seu dinheiro sujo.” Mas, refletiu, não podia esperar que elas se tornassem suas amigas depois disso. Pensando bem, decidiu que sua indignação de nada adiantaria.

— Machucou a mão? — perguntou-lhe simpaticamente a garçonete enquanto servia seu ovo e sua caneca de moca.

Peter assentiu.

— Atacado p-por um c-c... um bicho. — A palavra saltou finalmente, explosivamente.

A lembrança do vexame fê-lo enrubescer enquanto falava. Sim, tinham-no tomado por um malandro, tinham-no tratado como se ele na verdade não existisse, como se fosse apenas um instrumento cujos serviços se contratava e ao qual, depois de pagar a conta, não se prestava mais atenção. A lembrança da humilhação era tão vívida, a percepção dela tão profunda e completa que afetava não apenas sua mente mas também seu corpo. O coração batia com rapidez e violência anormais; sentia-se enjoado. Foi com a maior dificuldade que conseguiu comer seu ovo e beber sua caneca de moca.

Ainda recordando a dolorosa realidade, ainda construindo febrilmente suas alternativas imaginárias, Peter deixou a casa de chá e, embora estivesse muito cansado, recomeçou suas andanças sem rumo. Caminhou ao longo da rua Oxford até o Circus, desceu a rua Regent, parou no Piccadilly para contemplar os luminosos que estremeciam epileticamente, subiu a avenida Shafsbury e, virando para o sul, avançou por suas laterais até o Strand.

Em uma rua perto do Covent Garden uma mulher esbarrou nele.

— Alegre-se, rapaz. Não fique tão triste — disse ela.

Peter olhou-a espantado. Seria possível que estivesse falando com ele? Uma mulher... seria possível? Ele sabia, naturalmente, que ela era o que as pessoas chamavam de uma mulher perdida. Mas o fato de que falasse com ele lhe parecia mesmo assim extraordinário; e ele não o relacionou com sua “perdição”.

— Venha comigo — falou dengosa.

Peter assentiu. Não conseguia acreditar que era verdade. Ela o pegou pelo braço.

— Você tem dinheiro? — perguntou, ansiosa.

Ele tornou a assentir.

— Parece que você esteve num enterro — disse a mulher.

— Eu estou s-solitário — explicou. Sentia-se prestes a chorar. Chorar e ser consolado. A voz tremia quando falou.

— Solitário? É engraçado. Um rapaz bonitão como você não tem por que ficar solitário. — Ela riu de forma expressiva e sem alegria.

O quarto dela era penumbroso, com um toque de rosa na iluminação. Um cheiro de perfume barato e roupa suja pairava no ar.

— Espere um instante — disse ela, e desapareceu por uma porta em um aposento oculto.

Ele sentou-se e esperou. Um minuto depois ela voltou, usando roupão e chinelos. Sentou-se nos joelhos dele, abraçou-o e começou a beijá-lo.

— Amorzinho — falou com sua voz rachada. — Amorzinho. — Os olhos eram duros e frios. O hálito rescendia a álcool. Vista de perto ela era indescritivelmente horrível.

Peter viu-a, parecia-lhe que pela primeira vez: viu e deu-se conta do que tinha diante de si. Desviou o rosto. Lembrando-se da filha do nobre que torcera o tornozelo, da órfã solitária, da viúva cujo filho caíra no lago; lembrando-se da Doce e da Rouca, desvencilhou-se dos braços dela, empurrou-a para longe e pôs-se de pé.

— Desculpe — disse. — Tenho que s-s... Esqueci uma c-c... Eu... — Pegou o chapéu e se encaminhou para a porta.

A mulher correu atrás dele e pegou-o pelo braço.

— Seu diabo — gritou. Seus insultos eram terríveis e sujos. — Convida uma garota e depois tenta se mandar sem pagar. Ah, não vai não, não vai não. Você...

E os insultos recomeçaram.

Peter enfiou a mão no bolso e puxou a nota cuidadosamente dobrada da Doce.

— D-deixe-me ir — disse, entregando-lhe a nota.

Enquanto ela abria a nota, cheia de suspeitas, ele se afastou depressa, batendo a porta atrás de si, e desceu correndo a escada escura para a rua.


O monóculo

A sala ficava no primeiro andar. O ruído indistinto e ininteligível de muitas vozes flutuava escada abaixo, como o fragor de um trem distante. Gregory tirou o sobretudo e entregou-o à criada.

— Não é necessário me acompanhar — disse. — Conheço o caminho.

Sempre tão gentil! E no entanto, por uma razão qualquer, os empregados nunca faziam coisa alguma por ele; desprezavam-no e não gostavam dele.

— Não se preocupe — insistiu.

A criada, que era jovem, rosada e de cabelos louros, olhou para ele com um desprezo silencioso, pareceu-lhe, e afastou-se. Com toda certeza, refletiu, ela não tinha mesmo a intenção de acompanhá-lo. Sentiu-se humilhado — mais uma vez.

Ao pé da escada havia um espelho. Ele estudou sua imagem, deu um tapinha nos cabelos e endireitou a gravata. Seu rosto era liso e oval, tinha feições regulares, cabelos claros e boca bem pequena, com um efeito de arco de cupido no lábio superior. Rosto de pároco. Secretamente se considerava bonito e sempre se admirava de que mais pessoas não tivessem a mesma opinião.

Gregory subiu a escada lustrando o monóculo enquanto andava. O volume do som aumentou. Do patamar onde a escada fazia uma curva ele via a porta da sala aberta. A princípio só conseguia ver a parte superior do vão da porta, esta bem alta, e através dele, um pedaço do teto; mas juntamente com cada degrau ele via mais coisas — uma faixa de parede sob a cornija, um quadro, a cabeça das pessoas, corpos inteiros, pernas e pés. No penúltimo degrau ele colocou o monóculo e guardou o lenço no bolso. Endireitando os ombros, marchou para dentro da sala — quase como um militar, gabou-se. A anfitriã estava parada perto da janela no extremo oposto da sala. Avançou logo em sua direção, embora ela não o tivesse visto ainda, sorrindo mecanicamente suas saudações. A sala estava repleta, quente e nevoenta de fumaça de cigarro. O ruído era quase palpável; Gregory tinha a impressão penosa de abrir caminho através de um elemento denso. Atolado, chapinhou ruído adentro, não obstante protegendo seu sorriso do contato com a multidão. Apresentou-o intato à anfitriã.

— Boa noite, Hermione.

— Ah, Gregory. Que alegria! Boa noite.

— Adoro seu vestido — comentou Gregory, seguindo, cuidadoso, o conselho de um amigo invejavelmente bem-sucedido que lhe dissera que nunca se deve negligenciar um elogio, ainda que obviamente insincero. Ademais, não era um vestido feio. Mas a coitada da querida Hermione era capaz de estragar qualquer coisa que vestisse. Sempre parecera a Gregory que houvesse um fundo deliberado, propriamente maligno, na feiura e mau gosto de Hermione. — Lindo demais — arrulhou em sua voz estridente.

Hermione sorriu com prazer.

— Fico contente — ela começou. Mas antes que pudesse continuar, uma voz alta, fanhosa e cantante, interrompeu-a.

— Cuidado com o monstro Polifemo, cuidado com o monstro Polifemo — citava, musicalmente, Ácis e Galateia.

Gregory enrubesceu. Uma mão enorme deu-lhe um tapa no meio das costas, abaixo das omoplatas. Seu corpo emitiu o ruído oco de um cão estapeado.

— Bem, Polifemo. — A voz cessara de cantar e tornara-se coloquial. — Bem, Polifemo, como vai você?

— Muito bem, obrigado — replicou Gregory sem olhar para trás. Era aquele sul-africano sujeitinho desagradável, bêbado e grosseiro, o Paxton. — Muito bem, obrigado, Sileno — acrescentou.

Paxton o chamara de Polifemo por causa do monóculo: Polifemo, o Ciclope caolho, de olho enorme. Diálogo mitológico. No futuro, sempre chamaria Paxton de Sileno.

— Bravo! — exclamou Paxton. Gregory encolheu-se e engasgou à força de um segundo e mais entusiasmado tapa. — Bem classe alta, esta festa. Hein, Hermione? Bastante cultural, não é? Não é todo dia que uma anfitriã pode ouvir seus convidados disparando gracejos greco-romanos uns nos outros. Eu lhe dou os parabéns, Hermione. — Abraçou-a pela cintura. — Eu lhe dou os parabéns por nós.

Hermione desvencilhou-se dele.

— Não seja chato, Paxton — disse com impaciência.

Paxton riu teatralmente.

— Ah, ah! — Uma risada de vilão num melodrama de tea- tro. E não era só sua risada que era teatral; toda a sua pessoa parodiava um antiquado ator trágico. O perfil agudo e aquilino, os olhos afundados, os cabelos negros um tanto compridos eram característicos. — Mil perdões. — Ele falava com uma cortesia irônica. — O pobre colono perde a cabeça. Campônio bêbado e mal-educado!

— Idiota! — fez Hermione, e afastou-se.

Gregory fez menção de segui-la, mas Paxton pegou-o pela manga.

— Diga-me, por que você usa um monóculo, Polifemo? — perguntou com seriedade.

— Bem — respondeu Gregory com alguma dureza —, se você realmente quer saber, pela simples razão de que acontece que sou míope e astigmático no olho esquerdo e não no direito.

— Míope e astigmático? — o outro repetiu em tom de espanto fingido. — Míope e astigmático? Deus me perdoe, eu pensava que era porque você quisesse ficar parecido com um duque de comédia musical.

A risada de Gregory almejava a expressão franca de um espanto divertido. Como alguém imaginaria uma coisa dessas! Incrível, cômico! Mas uma nota de embaraço e desconforto soou junto com o espanto. Pois, é claro, Paxton estava muito e diabolicamente próximo da verdade. Com aguda consciência de sua nulidade, de seu provincianismo e falta de arrogância bem-sucedida, ele fizera do diagnóstico do oculista uma desculpa para tentar uma aparência melhor, mais insolente e forte. Em vão. Seu monóculo de nada adiantara para aumentar sua autoconfiança. Nunca se sentia à vontade usando-o. As pessoas que usam monóculo, ele concluiu, são como os poetas; nascem assim. Cambridge não erradicava o garoto de educação interiorana. Erudito, com cultura literária, ele estava sempre cônscio de ser herdeiro de um rico fabricante de botas. Não conseguia acostumar-se ao monóculo. Boa parte do tempo, apesar das recomendações do oculista, ele ficava pendurado em sua corrente, um pêndulo quando ele caminhava e um incômodo no caso de seus mergulhos desajeitados, quando ele comia, em sopa e chá, em geleia e manteiga. Era apenas em certas ocasiões, em circunstâncias especialmente favoráveis, que Gregory ajeitava-o no olho; e era ainda mais raramente que o mantinha, uma vez colocado, mais do que alguns minutos, mesmo alguns segundos, sem erguer a sobrancelha e deixá-lo cair. E como eram raras as circunstâncias favoráveis ao monóculo de Gregory! Às vezes o ambiente era baixo demais para ele, às vezes elegante demais. Usar monóculo na presença de pobres, miseráveis e analfabetos soa ostensivamente vitorioso em face de sua sorte. Ademais, os pobres e os analfabetos possuem o hábito muitíssimo deplorável de rir zombeteiramente desses símbolos da casta superior. Gregory não era à prova de riso;. faltava-lhe a confiança senhorial e a inconsciência dos que nasceram para usar monóculo. Não sabia como ignorar os pobres, tratá-los, no caso de ser absolutamente necessário lidar com eles, como se fossem máquinas ou animais domésticos. Tinha visto demasiado deles quando seu pai era vivo e o forçara a desenvolver um interesse prático no negócio. Era a mesma falta de confiança que o deixava quase igualmente incomodado de usar seu monóculo na presença dos ricos. Com eles, nunca se sentia inteiramente seguro de ter direito a seu monóculo. Sentia-se um parvenu da monocularidade. E havia também os inteligentes. A companhia deles, também, era pouquíssimo favorável ao monóculo. De monóculo, como se podia falar de coisas sérias? Pode-se dizer, por exemplo: “Mozart é tão puro, tão espiritualmente bonito”? Era impensável dizer essas palavras com um disco de cristal encaixado na órbita de seu olho esquerdo. Não, as circunstâncias raramente eram favoráveis. Ainda assim, circunstâncias benignas às vezes se apresentavam. As festas meio boêmias de Hermione, por exemplo. Mas ele não tinha considerado Paxton.

Entretido, espantado, ele riu. Como se por acidente, o monóculo caiu-lhe do olho.

— Ah, ponha de volta — exclamou Paxton. — Ponha de volta, eu lhe imploro! — E ele mesmo pegou a lente, que se balançava sobre o estômago de Gregory, e tentou recolocá-la.

Gregory recuou; com uma das mãos empurrou seu perseguidor e com a outra tentou tirar o monóculo de seus dedos. Paxton não queria soltá-lo.

— Eu lhe imploro! — repetia Paxton sem cessar.

— Devolva-me imediatamente — disse Gregory, furioso, mas em voz baixa, de modo que as pessoas não se voltassem para ver a causa grotesca da discussão. Ele nunca tinha feito um papel de bobo tão ultrajante.

Paxton cedeu finalmente.

— Perdoe-me — disse, com fingido arrependimento. — Perdoe um pobre colono bêbado que não sabe o que se faz e não se faz na alta sociedade. Você tem de lembrar que sou apenas um bêbado, apenas um bêbado pobre e trabalhador. Conhece esses formulários de registro que eles dão nos hotéis franceses? Nome, data de nascimento etc. Conhece?

Gregory assentiu com dignidade.

— Bem, quando chega na profissão, sempre escrevo ivrogne. Quero dizer, quando estou o bastante sóbrio para me lembrar do nome em francês. Se estou queimado demais, coloco só drunkard. Hoje em dia todos falam inglês.

— Ah — fez Gregory friamente.

— É uma profissão maravilhosa — confidenciou Paxton. — Permite que a gente faça o que tiver vontade — qualquer coisa louca que nos passe pela cabeça. Abraçar qualquer mulher que se tenha vontade, dizer-lhe as impertinências mais grosseiras e fantásticas, insultar os homens, rir na cara das pessoas — tudo é permitido ao pobre bêbado, principalmente se ele é só um pobre colono que não sabe de nada. Verb. sap.[44] Aceite um conselho, velhinho. Esqueça o monóculo. Não adianta. Seja um bêbado; vai se divertir muito mais. O que me lembra que preciso ir procurar uma bebida de qualquer maneira; estou ficando sóbrio.

Ele desapareceu na multidão. Aliviado, Gregory olhou em volta em busca de rostos familiares. Enquanto olhava, poliu o monóculo, aproveitou a oportunidade para enxugar a testa, depois colocou a lente no olho.

— Com licença. — Esgueirou-se, serpentino, por entre cadeiras colocadas muito juntas, passou como uma lesma (“com licença”) entre as costas quase contíguas de dois grupos de pé. — Com licença. — Avistara conhecidos junto à lareira: Ranson e Mary Haig e a srta. Camperdown. Reuniu-se à conversa: falavam sobre a sra. Mandragore.

Todas as velhas histórias conhecidas sobre aquela famosa caçadora de leões estavam sendo repetidas. Ele mesmo repetiu duas ou três, com a pantomima apropriada e aperfeiçoada por mil narrações. No meio de uma careta, no clímax de um gesto elaborado, ele de repente via a si mesmo careteando, gesticulando, de repente ouvia as cadências de sua voz repetindo, de cor, as velhas frases. Por que se vai a festas, por que razão? Sempre as mesmas pessoas chatas, o mesmo escândalo enfadonho e os mesmos truques de salão. Todas as vezes. Mas ele sorria com afetação, ele representava, ele contava sua história, às vezes suave, às vezes com veemência, até o fim. Seus ouvintes até riram; foi um sucesso. Mas Gregory sentiu-se envergonhado. Ranson começou a contar a história da sra. Mandragore e o marajá de Pataliapur. Ele gemeu em espírito. Por quê? Ele se perguntava por quê, por quê, por quê? Atrás dele falavam de política. Ainda fingindo sorrir à fábula da Mandragore, ele escutava.

— É o princípio do fim — dizia o político, profetizando destruições em voz alta e alegre.

— “Querido Marajá” — Ranson imitava a voz intensa da Mandragore, seus gestos incisivos e dramáticos. — “Se o senhor soubesse como eu adoro o Oriente...”

— Nossa posição ímpar se devia ao fato de termos iniciado o sistema industrial antes dos outros. Agora que o resto do mundo seguiu nosso exemplo, achamos ser uma desvantagem termos começado primeiro. Todo o nosso equipamento é antiq...

— Gregory — chamou Mary Haig. — Como é sua história sobre o Soldado Desconhecido?

— O Soldado Desconhecido? — repetiu Gregory vagamente, tentando ouvir o que estava sendo dito atrás de si.

— Os que chegaram por último têm a maquinaria mais moderna. É óbvio. Nós...

— Você sabe qual. A festa da Mandragore; você sabe.

— Ah, quando ela nos convidou a todos para o chá para conhecer a Mãe do Soldado Desconhecido.

— ... como a Itália — dizia o político em sua voz alta e jovial. — No futuro, sempre teremos um ou dois milhões de pessoas a mais do que podemos empregar. Vivendo do Estado.

Um ou dois milhões. Ele pensou na corrida anual de cavalos. Talvez houvesse umas cem mil pessoas naquela multidão. Dez multidões como aquela, vinte, todos meio famintos, caminhando pelas ruas com charangas e bandeiras. Deixou cair o monóculo. Tenho que mandar cinco libras para o Hospital de Londres, pensou. Quatro mil e oitocentas por ano. Treze libras por dia. Descontados os impostos, é claro. Os impostos eram terríveis. Monstruosos, senhor, monstruosos. Ele tentou sentir-se tão indignado com os impostos quanto aqueles cavalheiros idosos que ficavam de rosto vermelho quando falavam sobre isso. Mas, de algum modo, não era capaz de fazê-lo. Ademais, os impostos não eram desculpa, não eram justificativa. Sentiu de repente uma profunda tristeza. Mesmo assim, tentou consolar-se, não mais de vinte ou vinte e cinco entre dois milhões dispunham de sua renda. Vinte e cinco entre dois milhões — era absurdo, ínfimo! Mas não se sentiu consolado.

— E o estranho — Ranson ainda falava sobre a Mandragore — é que ela na verdade não está nem um pouco interessada em seus leões. — Começa a contar o que Anatole France lhe disse e então esquece no meio, de puro tédio, o que estava falando.

Ah, Deus, Deus, pensou Gregory. Quantas vezes ouvira Ranson fazer as mesmas reflexões sobre a psicologia da Mandragore! Quantas vezes! Logo ele estaria mencionando aquele trecho sobre os chimpanzés. Que Deus nos ajude!

-— Você já observou os chimpanzés no zoológico? — perguntou Ranson. — A maneira com que pegam uma palha ou uma casca de banana e a examinam durante alguns segundos com uma atenção apaixonada? — Fez a pantomima. — Aí, de repente, ficam inteiramente entediados, deixam a coisa cair dos dedos e olham vagamente ao redor à procura de outra coisa. Sempre me lembram a Mandragore e seus convidados. O modo como ela começa, intensamente, como se a pessoa fosse a única do mundo; aí de repente...

Gregory não aguentava mais. Resmungou alguma coisa à srta. Camperdown sobre ter visto alguém com quem precisava conversar e desapareceu, “Com licença”, como uma lesma por entre a multidão. Ah, que infelicidade, que pavorosa melancolia tudo aquilo! A um canto, encontrou o jovem Crane e dois ou três outros sujeitos com copos nas mãos.

— Ah, Crane — disse. — Pelo amor de Deus me diga onde você conseguiu esta bebida.

Aquele fluido dourado parecia a única esperança. Crane apontou na direção do arco que levava à sala dos fundos. Ergueu o copo sem falar, bebeu e piscou para Gregory por sobre o copo. Tinha um rosto que parecia um acidente. Gregory esgueirou-se através da multidão

— Com licença — disse em voz alta; mas interiormente dizia: “Deus nos ajude”.

No extremo da sala dos fundos havia uma mesa com garrafas e copos. O bêbado profissional estava sentado num sofá próximo, copo na mão, fazendo consigo mesmo comentários pessoais sobre todas as pessoas que se aproximavam o suficiente para ouvi-lo.

— Cristo! — estava dizendo ele quando Gregory se aproximou da mesa. — Cristo! Veja só aquilo! — Aquilo era a esguia sra. Labadie coberta de ouro e pérolas. — Cristo! — Ela saltava como um gato sobre um tímido rapaz entrincheirado atrás da mesa.

— Diga-me, sr. Foley — começou, aproximando seu rosto de cavalo do rapaz e falando-lhe em tom convidativo. — O senhor que sabe tudo sobre matemática, diga-me...

— É possível isto? — exclamou o bêbado profissional. — Na terra verde e agradável da Inglaterra? Ha, ha, ha! — Riu sua risada melodramática.

Tolo pretensioso, pensou Gregory. Como ele se julga romântico! O filósofo risonho, então? Bêbado porque o mundo não é suficientemente bom para ele. Bem o pequeno Fausto.

— E Polifemo também — continuou Paxton a monologar. — O engraçadinho do Polifemo! — Tornou a rir. — O herdeiro de todas as épocas. Cristo!

Com dignidade, Gregory serviu-se de uísque e encheu o copo no sifão — com dignidade, com graça e precisão conscientes, como se estivesse representando o papel de um homem que se serve de uísque e soda no palco. Bebericou do copo; então elaboradamente representou o papel de uma pessoa tirando o lenço e assoando o nariz.

— Esse pessoal todo não faz a gente acreditar em controle de natalidade? — continuava o bêbado profissional. — Se pelo menos seus pais pudessem ter trocado algumas palavras íntimas com Stopes![45] Ei, ou! — Ele emitiu um suspiro shakespeariano estilizado.

Palhaço, pensou Gregory. E o pior é que se alguém o chamasse de palhaço ele fingiria que ele próprio tinha dito isso o tempo todo — e tinha mesmo, naturalmente, só para ficar seguro. Mas na realidade, é óbvio, o sujeito se julga uma espécie de Musset ou Byron moderno. Uma bela alma, enegrecida e amargurada pela experiência. Ugh!

Ainda fingindo não perceber a proximidade do bêbado profissional, Gregory executou as ações de uma pessoa que bebe.

— Como você esclarece tudo! — dizia a sra. Labadie, à queima-roupa, na cara do jovem matemático. Sorria para ele; esse cavalo, pensou Gregory, tem uma expressão terrivelmente humana.

— Bem — fez o jovem matemático nervosamente. — Agora chegamos a Riemann.

— Riemann! — repetiu a sra. Labadie, com uma espécie de êxtase. — Riemann! — como se a alma do geômetra estivesse em seu nome.

Gregory tinha vontade de que ali houvesse alguém com quem pudesse conversar, alguém que pudesse aliviá-lo da necessidade de representar o papel de inconsciente indiferença diante dos olhos observadores de Paxton. Recostou-se à parede como quem caísse de repente em depressão. Com expressão vazia e pensativa fixou os olhos num ponto qualquer da parede oposta, bem alto, logo abaixo do teto. As pessoas devem estar se perguntando, refletiu, em que ele estaria pensando. E em que ele estava pensando? Nele mesmo. Vaidade, vaidade. Ah, que tristeza, que melancolia, aquilo tudo!

— Polifemo!

Ele fingiu não escutar.

— Polifemo! — dessa vez foi um grito.

Gregory exagerou ligeiramente o papel de alguém que de repente é despertado da meditação mais profunda. Assustou-se; pestanejando, um pouco tonto, ele voltou a cabeça.

— Ah, Paxton — falou. — Sileno! Não tinha percebido que você estava aí.

— Não tinha? — disse o bêbado profissional. — Muito inteligente de sua parte. Em que estava pensando tão pitorescamente, ali?

— Ah, em nada — disse Gregory, sorrindo com a confusão modesta do Pensador pego em flagrante.

— Exatamente o que imaginei — disse Paxton. — Nada. Nada. Jesus Cristo! — acrescentou para si mesmo.

O sorriso de Gregory era meio doentio. Ele desviou o rosto e mais uma vez passou à meditação. Parecia, nas circunstâncias, a melhor coisa a fazer. Sonhadoramente, como se inconsciente do que estava fazendo, esvaziou o copo.

— Droga! — ouviu o bêbado profissional murmurar. — É como um enterro. Triste, triste.

— Bem, Gregory.

Gregory interpretou outro de seus graciosos sustos, acrescentando feições de confusão. Por um momento tivera medo de que Spiller respeitasse sua meditação e não falasse com ele. Isso teria sido muito embaraçoso.

— Spiller! — exclamou com prazer e espanto. — Meu caro amigo! — Apertou-lhe calorosamente a mão.

Rosto quadrado, a boca larga e a testa imensa, emoldurada por cabelos cacheados e copiosos, Spiller parecia uma celebridade vitoriana. Seus amigos declaravam que ele podia realmente ter sido uma celebridade georgiana, não fosse o fato de preferir falar a escrever.

— Vim passar só o dia — Spiller explicou. — Não conseguia aguentar mais nem uma hora do maldito campo. Trabalhando o dia inteiro. Sem companhia a não ser eu mesmo. Descobri que me acho um chato. — Serviu-se de uísque.

— Jesus! O grande homem! Ha, ha! — O bêbado profissional cobriu o rosto com as mãos e estremeceu com violência.

— Quer dizer que você veio especialmente para isto? — perguntou Gregory, fazendo um gesto de mão para indicar a reunião.

— Especialmente, não. Acidentalmente. Ouvi dizer que Hermione estava dando uma festa e resolvi aparecer.

— Por que as pessoas vão a festas? — disse Gregory, assumindo inconscientemente algo dos modos byrônicos e amargurados do bêbado profissional.

— Para satisfazer as necessidades do instinto de rebanho. — Spiller respondeu à pergunta retórica sem hesitar e com um ar pontifical de infalibilidade. — Assim como se perseguem mulheres para satisfazer as necessidades do instinto reprodutor. — Spiller tinha um modo impressionante de fazer tudo o que dizia soar científico; tudo parecia vir direto da fonte, por assim dizer. Gregory, sendo um tanto confuso, achava-o muitíssimo estimulante.

— Quer dizer, vai-se a festas para ficar na multidão?

— Precisamente — respondeu Spiller. — Só para sentir o calor do rebanho em volta e aspirar o cheiro dos companheiros humanos. — Ele aspirou o ar espesso e quente.

— Acho que você pode estar certo — disse Gregory. — Com certeza é muito difícil pensar em outra razão qualquer.

Olhou em volta da sala como se procurasse outras razões. E, surpreendentemente, encontrou uma: Molly Voles. Não a tinha visto antes; ela devia ter acabado de chegar.

— Tenho uma ideia esplêndida para um novo jornal — começou Spiller.

— Tem? — Gregory não mostrou muita curiosidade. Como o pescoço dela era lindo, e aqueles braços magros!

— Arte, literatura e ciência — Spiller continuou. — A ideia é realmente moderna. É colocar a ciência em contato com as artes e portanto em contato com a vida. Vida, arte, ciência, as três ganhariam. Compreende a ideia?

— Sim, compreendo — disse Gregory. Estava olhando para Molly, esperando interceptar o olhar dela. Conseguiu finalmente aquele olhar cinzento, frio e firme. Ela sorriu e fez um gesto de cabeça.

— Gosta da ideia? — perguntou Spiller.

— Acho esplêndida! — respondeu Gregory com um calor súbito que espantou seu interlocutor.

O rosto redondo e severo de Spiller brilhou de prazer.

— Ah, fico feliz — disse. — Fico mesmo muito feliz por você ter gostado tanto.

— Acho que é esplêndida — disse Gregory extravagantemente. — Simplesmente esplêndida. — Ela parecia realmente feliz em vê-lo, pensou.

— Eu estava pensando... — Spiller continuou, com um jeito casual bastante elaborado. — Estava pensando que você poderia gostar de me ajudar a começar a coisa. Seria possível colocá-la em funcionamento facilmente com um capital de mil libras.

O entusiasmo desapareceu do rosto de Gregory; ele tornou-se vazio em sua redondeza clerical. Sacudiu a cabeça.

— Se eu tivesse mil libras... — disse em tom melancólico. — Maldito sujeito — ele pensou. Veja só que arapuca ele armou!

— Se — Spiller repetiu. — Mas, meu querido companheiro! — Riu. — Além disso, é um investimento seguro, a seis por cento. Posso juntar um grupo de contribuintes extraordinariamente forte, sabe?

Gregory tornou a sacudir a cabeça.

— Quem dera — disse. — Quem dera...

— E mais ainda — insistiu Spiller —, você seria um benfeitor da sociedade.

— Impossível. — Gregory estava firme; plantou os pés como uma mula e não se moveria. O dinheiro era a única coisa a respeito da qual ele não tinha dificuldade em ser firme.

— Mas, escute — disse Spiller —, o que são mil libras para um milionário como você? Você tem... quanto você tem mesmo?

Gregory encarou-o com olhos vítreos.

— Mil e duzentas por ano — disse. — Digamos, mil e quatrocentas. — Percebia que Spiller não acreditava. Maldito sujeito! Não que realmente esperasse que ele acreditasse; mas mesmo assim... — E há os impostos — acrescentou queixosamente. — E as contribuições para a caridade. — Lembrou-se da nota de cinco que ia mandar para o Hospital de Londres. — O Hospital de Londres, por exemplo, sempre sem dinheiro. — Sacudiu a cabeça com tristeza. — Impossível, infelizmente. — Pensou em todos os desempregados; dez plateias da corrida de cavalos, meio famintas, com bandeiras e charangas. Sentiu-se enrubescer. Maldito sujeito! Estava furioso com Spiller.

Duas vozes soaram simultaneamente em seus ouvidos: a do bêbado profissional e outra, de uma mulher, de Molly.

— O súcubo! — resmungou o bêbado profissional. — Il ne manquait que ça!

— Impossível? — disse a voz de Molly, repetindo inesperadamente a última palavra dele. — O que é impossível?

— Bem... — disse Gregory, embaraçado e hesitante.

Foi Spiller quem explicou.

— Ora, é claro que Gregory pode empregar mil libras — disse Molly, quando soube qual era o assunto em questão. Olhou para ele com indignação, com desprezo, como se o repreendesse por sua avareza.

— Você sabe mais que eu, então — disse Gregory, tentando dar um ar leve e brincalhão ao assunto. Lembrou-se do que o amigo invejavelmente bem-sucedido dissera sobre elogios. — Como você está linda com esse vestido branco, Molly — acrescentou, e temperou a jovialidade do sorriso com um olhar que tinha a intenção de ser ao mesmo tempo insolente e terno. — Adorável demais — ele repetiu, colocando o monóculo para vê-la.

— Obrigada — disse ela, retribuindo-lhe o olhar com firmeza. Seus olhos eram calmos e brilhantes. Contra aquele olhar firme e penetrante, sua jovialidade, sua tentativa de uma ternura insolente rompeu-se e murchou. Ele desviou os olhos, deixou cair o monóculo. Era uma arma que ele não ousava ou não sabia como utilizar; fazia com que ficasse ridículo. Ele era como a sra. Labadie e sua cara de cavalo flertando como uma coquete com seu leque.

— Gostaria de discutir a questão, em todo caso — disse a Spiller, contente com qualquer desculpa para escapar daqueles olhos. — Mas lhe asseguro que realmente não posso... Não o total de mil, pelo menos — acrescentou, sentindo desesperadamente que tinha sido forçado a se render contra sua vontade.

— Molly! — gritou o bêbado profissional.

Obedientemente ela foi sentar-se ao lado dele no sofá.

— Bem, Tom — disse, e pousou a mão no joelho dele. — Como vai?

— Como sempre, quando você está por perto — respondeu o bêbado profissional tragicamente. — Insano. — Abraçou-lhe os ombros e inclinou-se em sua direção. — Inteiramente insano.

— Eu preferia que não sentássemos assim, sabe? — Sorriu para ele; entreolharam-se de perto. Então Paxton retirou o braço e tornou a se recostar no canto do sofá.

Olhando para eles, Gregory convenceu-se subitamente de que eram namorados. Temos que amar o mais torpe quando o vemos. Todos os namorados de Molly eram assim: malandros. Voltou-se para Spiller.

— Vamos até meu apartamento? — sugeriu, interrompendo-o no meio de um longo discurso explanatório sobre o jornal em projeto. — É mais sossegado e menos abafado. — Molly e Paxton. Molly e aquele animal bêbado. Seria possível? Era certo: ele não tinha dúvidas. — Vamos sair depressa deste lugar horrível — acrescentou.

— Está bem — concordou Spiller. — Uma última dose de uísque para nos sustentar no caminho. — Estendeu a mão para a garrafa.

Gregory bebeu quase metade de um copo, puro. Alguns metros ao longo da rua e ele percebeu que estava meio tonto.

— Acho que devo ter um instinto de rebanho pouco desenvolvido — disse. — Odeio essas multidões! — Molly e Sileno Paxton! Imaginou-os em meio a carícias. E tinha pensado que ela tinha ficado feliz em vê-lo quando se encontraram.

Emergiram na praça Bedford. Os jardins eram tão escuros e misteriosos quanto um pedaço de bosque no campo. O bosque fora e o uísque dentro uniram-se na vocalização da melancolia de Gregory. Che farò senz’ Euridice?, ele cantou num sussuro.

— Você pode passar sem ela muito bem — disse Spiller, respondendo à citação. — Este é o engano e a estupidez do amor. A cada vez você fica convencido de que é algo imensamente significativo e eterno: sente tudo infinitamente. A cada vez. Três semanas depois você começa a achá-la chata; ou outra pessoa pisca o olho e as emoções infinitas são transferidas e você parte para outro fim de semana eterno. É uma espécie de brincadeira. Muito estúpida e desagradável. Mas o humor da natureza não é o nosso.

— Você acha que é uma brincadeira esse sentimento infinito? — Gregory perguntou, indignado. — Eu não. Acredito que ele representa uma coisa real, fora de nós, uma coisa qualquer na estrutura do universo.

— Um universo diferente com cada amante, não é?

— Mas e se acontecer só uma vez na vida? — Gregory perguntou em tom sentimental. Ansiava em contar ao companheiro como se sentia infeliz a respeito de Molly, como era muito mais infeliz do que qualquer outra pessoa já fora antes.

— Não é verdade — afirmou Spiller.

— Mas se eu digo que acontece? — disse Gregory entre soluços.

— Isto se deve só à falta de oportunidade — respondeu Spiller com seu jeito mais científico, ex cathedra.

— Não concordo com você — foi tudo o que, baixinho, Gregory conseguiu dizer. Resolveu não mencionar sua infelicidade. Spiller podia não ser um ouvinte solidário. Diabo de sujeito bruto!

— Pessoalmente, há muito tempo parei de tentar entendê-las — continuou Spiller. — Apenas aceito essas emoções pelo que são, muito estimulantes e excitantes enquanto duram, e não tento racionalizar ou explicá-las. É o único método lúcido e científico de tratar os fatos.

Silêncio. Tinham emergido no fulgor da rua Tottenham Court. O calçamento polido refletia a luz dos postes. As entradas dos salões de cinema eram cavernas de luz amarela e brilhante. Um par de ônibus passou rugindo.

— São perigosas essas emoções infinitas — continuou Spiller. — Muito perigosas. Por causa de uma delas, uma vez estive a um passo de me casar. Começou em um navio. Sabe como são os navios. Que extraordinários efeitos afrodisíacos as viagens por mar têm nas pessoas que não estão acostumadas, especialmente nas mulheres! Elas deviam realmente ser estudadas por um fisiologista competente. Claro, pode ser apenas o resultado da ociosidade, da excitação e da proximidade constante — embora eu duvide que se conseguissem os mesmos resultados em circunstâncias semelhantes em terra. Talvez a mudança total de ambiente, da terra para a água, mine os costumeiros preconceitos terrestres. Talvez a própria duração curta da viagem ajude — a sensação de que logo terminará e os botões de rosa devem ser colhidos e a festa feita enquanto o sol brilha. Quem sabe? — Deu de ombros. — Mas, de qualquer maneira, é muitíssimo extraordinária. Bem, como eu disse, começou em um navio.

Gregory ouvia. Alguns minutos antes as árvores da praça Bedford tinham acenado na escuridão de sua alma ébria e chorosa. As luzes, o ruído, o movimento da rua Tottenham Court estavam agora atrás de seus olhos assim como diante deles. Ele ouviu, sorrindo. A história durou até um bom pedaço da rua Charing Cross.

Quando ela terminou, Gregory sentia-se inteiramente jovial e despreocupado. Associara-se a Spiller; as aventuras de Spiller eram suas. Gargalhou, reajustou o monóculo que durante todo esse tempo estivera pendente da ponta do cordão, tilintando a cada passo contra os botões do colete. (Um coração partido, deveria ser óbvio a qualquer um que tivesse a mínima sensibilidade, não pode possivelmente usar monóculo.) Ele agora era também meio malandro. Soluçou; uma leve suspeita de náusea temperou sua jovialidade, mas não era mais que uma sutilíssima suspeita. Sim, sim; ele também sabia tudo sobre a vida em navios a vapor, mesmo que a mais longa de suas viagens marítimas tivesse sido só entre Newhaven e Dieppe.

Quando chegaram a Cambridge Circus, os teatros vomitavam suas plateias. As calçadas estavam cheias de gente; o ar estava cheio de barulho e do perfume das mulheres. Acima, os letreiros luminosos piscavam e tremiam. Os vestíbulos dos teatros brilhavam. Era um luxo vulgar e nada aristocrático, ao qual Gregory não achava difícil sentir-se superior. Através de seu monóculo ciclópico, ele olhava interrogativamente para cada mulher por quem passavam. Sentia-se maravilhosamente temerário (a náusea era a mínima impressão de uma sensação desagradável), maravilhosamente alegre e — sim, isso era curioso — grande: maior que a realidade. Quanto a Molly Voles, ele ia dar-lhe uma lição.

— Criatura maravilhosa, aquela — comentou, indicando um casaco de seda cor-de-rosa e dourada, uma cabeça dourada, de cabelos curtos.

Spiller assentiu com indiferença.

— Sobre aquele nosso jornal — disse pensativamente. — Acho que poderíamos começar com uma série de artigos sobre a base metafísica da ciência, as razões históricas e filosóficas que temos para supor que a verdade científica é verdadeira.

— Hum — fez Gregory.

— E ao mesmo tempo uma série sobre o significado e o objetivo da arte. Começar desde o princípio nos dois casos. Uma boa ideia, não acha?

— Muito — disse Gregory. Um de seus olhares monoculares fora recebido com um sorriso convidativo; infelizmente, ela era feia, e, obviamente, profissional. Altivo, ele mirou para além dela, como se ela não estivesse ali.

— Mas se Tolstói estava certo — dizia Spiller pensativamente — eu não tenho certeza. É verdade o que ele diz, que a função da arte é exprimir emoção? Em parte, eu diria, mas não exclusivamente, não exclusivamente. — Sacudiu a cabeçorra.

— Parece que eu estou ficando mais bêbado — disse Gregory, mais para si mesmo que para o companheiro. Ele ainda caminhava corretamente, mas estava consciente, demasiado consciente, desse fato. E a suspeita de náusea estava se tornando bem fundada.

Spiller não ouviu ou, tendo ouvido, ignorou o comentário.

— Para mim — continuou — a função principal da arte é transmitir conhecimento. O artista sabe mais do que o resto de nós. Ele nasce sabendo mais a respeito de sua alma do que sabemos a respeito da nossa, e mais sobre as relações existentes entre sua alma e o cosmos. Ele antecipa o que será do conhecimento comum num estágio de desenvolvimento mais avançado. Nossos modernos são, em sua maioria, primitivos, quando comparados com os mais avançados dos mortos.

— Certo — disse Gregory, sem ouvir. Seus pensamentos estavam em outra parte, com seus olhos.

— Além disso, ele pode dizer o que sabe, e dizê-lo de um modo que faz com que nosso próprio conhecimento rudimentar, incoerente e desapercebido, se encaixe numa espécie de padrão — como limalhas de ferro sob a influência de um ímã.

Havia três delas — arrebatadora, provocantemente jovens — paradas em grupo junto ao meio-fio. Conversavam, encaravam os passantes com olhos brilhantes e zombeteiros, faziam comentários em sussurros audíveis, explodiam em risadas agudas e incontroláveis. Spiller e Gregory aproximaram-se, foram vistos por uma das três, que cutucou suas companheiras.

— Ah, senhor!

Davam risadinhas, riam alto, contorciam-se de zombaria.

— Olhe o velho Golliwog! — Aquilo era com Spiller, que caminhava de cabeça descoberta, o grande chapéu cinzento na mão.

— E o maluco! — Outra exclamação, para o monóculo.

— É essa força magnética — disse Spiller, inteiramente alheio à encantadora zombaria de que era objeto —, essa força de organizar o caos mental num padrão, que torna uma verdade expressa poeticamente, na arte, mais valiosa do que uma verdade expressa cientificamente, em prosa.

Com um ar brincalhão de reprovação, Gregory sacudiu o dedo para as trocistas. Houve outra comoção, ainda mais estridente. Os dois passaram; sorridente, Gregory olhou para trás. Sentia-se mais animado e jovial do que nunca; mas a suspeita amadurecia e transformava-se em certeza.

— Por exemplo, posso saber muito bem que todos os homens são mortais — continuou Spiller. — Mas esse conhecimento é organizado e colocado em uma forma, ou até mesmo aumentado e aprofundado, quando Shakespeare fala sobre todos os nossos ontens iluminando aos tolos o caminho ao pó da morte.[46]

Gregory estava tentando pensar em uma desculpa para fugir de seu companheiro e voltar para divertir-se com as três. Amaria as três, simultaneamente.

La touffé échevelée

De baisers que les dieux gardaient si bien mêlée.[47]

O verso de Mallarmé veio-lhe à mente, impondo a seus vagos desejos (o velho Spiller tinha toda razão, velho imbecil!) a mais elegante das formas. As palavras de Spiller chegavam-lhe como se de muito longe.

— E a abertura Coriolano é um trecho de conhecimento novo, assim como a configuração de um conhecimento caótico existente.

Ele proporia que passassem no Monico, sob o pretexto de um chamado da natureza, escapuliria e não voltaria. Velho imbecil, tagarelando assim! Não que não pudesse ser bastante interessante no momento certo. Mas agora... E ele pensava, sem dúvida, que ia mordê-lo, a ele, Gregory, em mil libras! Gregory teve vontade de rir alto. Mas sua zombaria estava misturada a uma incômoda consciência de que seu pileque tinha definitivamente tomado uma forma nova e inquietante.

— Algumas das paisagens de Cézanne — ouviu Spiller dizer.

De repente, de uma porta escura poucos metros à frente deles, emergiu devagar, tremulamente, uma coisa: uma trouxa de farrapos negros que se movia sobre um par de botas velhas e estragadas era encimada por um chapéu amassado e puído. A coisa tinha um rosto, magro e da cor da argila. Tinha mãos!, uma das quais segurava uma pequena bandeja com caixas de fósforos. A coisa abriu a boca, onde faltavam dois ou três dos dentes descoloridos; ela cantou, quase inaudivelmente. Gregory pensou reconhecer Mais perto de Vós, meu Senhor. Eles se aproximaram.

— Certos afrescos de Giotto, certas esculturas gregas antigas — Spiller continuava com seu catálogo interminável.

A coisa olhou para eles, Gregory olhou para a coisa. Seus olhos se encontraram. Gregory arregalou o olho esquerdo. O monóculo caiu e ficou pendurado em seu cordão de seda. Apalpou o bolso direito da calça, o bolso onde guardava as moedas, procurando uma de seis pence, até mesmo um xelim. O bolso continha apenas quatro moedas de meia coroa. Meia-coroa? Ele hesitou, puxou uma moeda, deixou-a cair de volta com um ruído. Enfiou a mão esquerda no outro bolso da calça, retirou-a cheia. Na bandeja estendida ele deixou cair três pence e um meio pence.

— Não, eu não quero fósforos — disse.

A gratidão interrompeu o hino. Gregory nunca se sentira tão envergonhado na vida. Seu monóculo tilintava de encontro aos botões do colete. Deliberadamente ele colocou um pé à frente do outro, caminhando com correção mas como que em uma corda bamba. Mais um insulto à coisa. Desejou estar sóbrio. Desejou não ter desejado com tanta precisão aquele “tufo despenteado de beijos”. Três pence e meio! Mas ainda podia correr de volta e dar meia coroa, duas moedas de meia coroa. Ainda podia correr lá. Passo a passo, como se em uma corda bamba, ele avançava ao lado de Spiller. Quatro passos, cinco passos... onze passos, doze passos, treze passos. Ah, que falta de sorte! Dezoito passos, dezenove... Tarde demais; seria ridículo voltar agora, seria por demais conspicuamente tolo. Vinte e três, vinte e quatro passos. A suspeita era uma certeza de náusea, uma certeza crescente.

— Ao mesmo tempo, não vejo realmente como a grande maioria de verdades e hipóteses científicas possa tornar-se assunto de arte — dizia Spiller. — Não vejo como possam ganhar significado poético e emotivo sem perder sua precisão. Como se pode exprimir a teoria eletromagnética da luz, por exemplo, em forma literária comovente? Simplesmente não pode ser feito.

— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Gregory em uma súbita explosão de fúria. — Pelo amor de Deus, cale a boca! Como você pode ficar falando assim, sem parar? — Tornou a soluçar, mais profunda e ameaçadoramente que antes.

— Mas por que não? — perguntou Spiller com um leve espanto.

— Falando sobre arte, ciência e poesia — disse Gregory em tom trágico, quase com lágrimas nos olhos — quando há dois milhões de pessoas na Inglaterra à beira da inanição. Dois milhões. — Ele pretendia que a repetição impressionasse, mas tornou a soluçar. Sentia-se definitivamente enjoado. — Vivendo em casebres fedorentos — continuou, decrescendo. — Em promiscuidade, arrebanhados como animais. Pior que animais.

Tinham parado; estavam um diante do outro.

— Como é que você pode? — repetiu Gregory, tentando reproduzir a generosa indignação de um momento antes. Mas a antecipação da náusea subia de seu estômago, como o miasma de um pântano, enchendo sua mente, expulsando dela todos os pensamentos, todas as emoções exceto a horrível apreensão de vomitar.

O rosto largo de Spiller perdeu subitamente sua aparência monumental de celebridade vitoriana; pareceu quebrar-se em pedaços. A boca abriu-se, os olhos arregalaram-se, a testa fez-se em rugas e as linhas profundas que corriam desde os dois lados do nariz até os cantos da boca expandiam-se e contraíam-se loucamente. Um som imenso saiu dele. Seu corpanzil sacudiu-se com uma gargalhada gigantesca.

Pacientemente — a paciência era tudo o que lhe restava, a paciência e uma esperança que minguava — Gregory esperou o ataque diminuir. Tinha feito papel de tolo; estava sendo escarnecido. Mas já não se importava.

Spiller recuperou-se o suficiente para falar.

— Você é maravilhoso, meu caro Gregory — disse, ofegante. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Realmente grandioso. — Tomou o braço do outro com afeição e, ainda rindo, continuou a andar. Gregory foi obrigado a andar também; não tinha escolha.

— Se você não se importa, acho que vamos pegar um táxi — disse, depois de alguns passos.

— O quê, até a rua Jermyn? — estranhou Spiller.

— Acho melhor — insistiu Gregory.

Entrando no veículo, ele conseguiu prender o monóculo na maçaneta da porta. O cordão rompeu-se: a lente caiu no chão do táxi. Spiller pegou-a e devolveu-a a ele.

— Obrigado — disse Gregory, e guardou-o a salvo no bolso do colete.


A fada madrinha

I

O número 17 das villas Purlieu era o ponto de chegada de uma fada madrinha. O enorme Daimler — parecia maior que a própria casa — subia a rua como sussurrasse, azul-escuro e discretamente lustroso (“Como estrelas no mar” — o brilho escuro do Daimler sempre lembrava a Susan as Melodias hebraicas — “quando a onda azul desliza à noite na profunda Galileia”). Entre as cortinas de renda olhos seguiam sua passagem; não era sempre que quarenta cavalos passavam em frente a essas janelas suburbanas. No portão do número 17 o portento estacou. O motorista saltou e abriu a porta. A fada madrinha emergiu.

A sra. Escobar era muitíssimo alta e esguia — a tal ponto que, vestida ao gosto da moda, ela se erguia como se fosse uma gravura — de fabulosa elegância, para além de toda a realidade.

Nesse dia ela vestia preto — um conjunto com debruns vermelhos muito finos nos punhos e na gola, nos bolsos e ao longo da bainha da saia. Uma gola alta de musselina emoldurava-lhe o pescoço, e dela descia um sofisticado babado que se projetava entre as lapelas do casaco como as preguiçosas barbatanas de um peixe tropical ao sabor das águas. Os sapatos eram vermelhos; havia detalhes do mesmo vermelho nas luvas e no chapéu.

Ela saiu do carro e, voltando-se para a porta aberta, disse:

— Bem, Susan, você não parece ter muita pressa em descer.

Susan, inclinada catando os pacotes espalhados pelo chão do carro, ergueu os olhos.

— Já vou — disse.

Estendeu apressadamente a mão ao ramo de rosas brancas e a terrina de foie gras. Nisso deixou cair a caixa contendo o bolo de chocolate.

A sra. Escobar riu.

— Sua boba! — exclamou e a encantadora zombaria fez com que sua voz vibrasse profundamente. — Saia e deixe que Robbins leve as coisas. Você leva as coisas, Robbins — acrescentou em outro tom, voltando-se para o motorista. — Você vai levá-las, não vai?

Olhou para ele com intimidade; seu sorriso era persuasivo, quase lânguido.

— Não vai, Robbins? — repetiu, como pedisse o maior dos favores pessoais.

Aquele era o jeito da sra. Escobar. Ela gostava de imprimir em todos os relacionamentos, mesmo nos mais casuais, mais profissionais ou formais, certa qualidade íntima, de coração. Conversava com funcionários de lojas sobre suas namoradas, sorria aos empregados como se quisesse fazer deles seus confidentes ou até mesmo seus amantes, discutia filosofia com o encanador, dava chocolates aos meninos que faziam entregas e, quando eram particularmente angelicais, chegava a dar-lhes beijos maternais. Queria “entrar em contato com as pessoas”, como ela dizia, apalpar e torcer suas almas e espremer os segredos de seus corações. Queria que todos a percebessem, a apreciassem e a adorassem à primeira vista. O que não a impedia de ter ataques de fúria com os vendedores que não lhe dessem imediatamente a coisa exata que ela queria, de insultar com violência os empregados quando estes deixavam de atender à campainha com suficiente prontidão, de chamar o encanador vagaroso de ladrão e mentiroso, de despedir o garoto de entrega que lhe levasse um presente do admirador errado, não apenas sem chocolates e sem beijo, mas inclusive sem gorjeta.

— Não vai? — E seu olhar parecia acrescentar: “por mim”. Seus olhos eram compridos e estreitos. A pálpebra inferior descrevia uma linha quase horizontal, e a superior promovia uma curva gradual. Entre as pálpebras, um par de íris azul-claras dardejavam expressivas de um lado para o outro.

O motorista era jovem e novo no emprego. Enrubesceu, desviou o olhar.

— Ah, sim, madame, é claro — disse, e tocou no boné.

Susan abandonou o bolo de chocolate e o foie gras e saiu. Seus braços estavam cheios de pacotes e flores.

— Você parece uma pequena Mamãe Noel — disse a sra. Escobar, brincando afetuosamente. — Deixe-me pegar alguma coisa. — Escolheu o ramo de rosas brancas, deixando para Susan a sacola de laranjas, a galinha assada, a língua e o ursinho de pelúcia.

Robbins abriu o portão; elas entraram no pequeno jardim.

— Onde está Ruth? — disse a sra. Escobar. — Ela não está nos esperando? — Sua voz exprimia decepção e insinuava censura. Evidentemente, ela esperava ser recebida no portão e acompanhada ao longo do jardim.

— Imagino que ela não possa deixar o bebê — disse Susan, olhando ansiosa por cima da pilha de pacotes para a sra. Escobar. — Nunca se pode ter certeza de fazer o que se quer quando se tem filhos, não é? — Mesmo assim desejava que Ruth tivesse aparecido ao portão. Seria horrível se a sra. Escobar a julgasse negligente ou ingrata. “Ah, Ruth, venha!”, disse a si mesma, desejando com tanta força que se viu crispando os dedos e contraindo os músculos do estômago.

Os dedos e os músculos abdominais fizeram seu trabalho, pois a porta da casa abriu-se de repente e Ruth desceu correndo os degraus carregando o bebê no braço.

— Desculpe, sra. Escobar — começou ela. — Mas, sabe, o bebê estava justamente...

A sra. Escobar não lhe permitiu terminar a frase. Por um instante carregado, seu rosto fez-se luz outra vez, lançando um sorriso arrebatador. As pálpebras aproximaram-se mais ainda uma da outra; pequenas linhas de expressão radiavam delas, uma auréola de humor encantador.

— Aqui está a pequena Mamãe Noel — disse, apontando para Susan. — Carregada de Deus sabe o quê! E umas pobres florezinhas de minha parte. — Ergueu as rosas até os lábios, beijou-as e tocou o rosto de Ruth com as flores entreabertas. — E como vai esta pessoa deliciosa? — Pegou a mãozinha do bebê e beijou-a. A criança olhou para ela com olhos grandes e sérios — puros e, por sua pureza, profundamente críticos, como os de um anjo no dia do juízo final.

— Como vai? — ele disse, em sua voz solene e infantil.

— Que gracinha! — disse a sra. Escobar, e não lhe deu mais atenção. Não estava muito interessada em crianças. — E você, minha cara? — perguntou, dirigindo-se a Ruth. Beijou-a nos lábios.

— Muito bem, obrigada, sra. Escobar.

A sra. Escobar examinou-a à distância de um braço, a mão no ombro de Ruth.

— Você certamente parece ótima, minha cara criança — disse. — E mais bonita que nunca. — Jogou o grande ramo de rosas no braço desocupado da jovem mãe. — Que doce Madonna! — exclamou e, voltando-se para Susan — Você já viu alguma coisa mais encantadora? — Susan sorriu e assentiu, um tanto sem graça; afinal, Ruth era sua irmã mais velha. — E tão, mas tão absurdamente jovem! — continuou a sra. Escobar. — Ora, é sem dúvida um détournement de mineur você ser casada e ter um filho. Sabe, minha cara, você realmente parece mais nova que Susan. É um escândalo.

Constrangida pelos elogios diretos da sra. Escobar, Ruth enrubesceu. E não era só a modéstia que levava o sangue às suas faces. A insistência na juventude de sua aparência humilhava-a. Pois esse ar infantil era na maior parte devido às suas roupas. Ela fazia seus próprios vestidos — coisinhas um tanto “artísticas” de linho em cores fortes ou grandes quadriculados. Fazia-os da única maneira que sabia ou tinha tempo para fazer: retos de cima a baixo, com pala e sem mangas, para serem usados sobre uma camisa. Monotonamente estudantil! Mas o que se pode fazer se não se pode comprar roupas decentes? E seus cabelos cacheados eram também terrivelmente infantis. Ela sabia. Mas o que podia fazer sobre isso? Deixá-los crescer? Dariam muito trabalho para manter o penteado, e ela tinha muito pouco tempo. Cortá-los bem curtos? Mas teria que mandar frisá-los, e cortá-los sempre num bom cabeleireiro. Tudo isso requeria dinheiro. Dinheiro, dinheiro, dinheiro!

Não, se ela parecia tão acintosamente jovem, era simplesmente porque era pobre. Susan era uma criança, cinco anos mais moça que ela. Mas parecia mais adulta. Parecia adulta porque estava vestida de maneira adequada, com roupas feitas numa costureira de verdade. Roupas adultas, embora tivesse só dezessete anos. E os cabelos castanhos e curtos estavam lindamente frisados. A sra. Escobar dava a Susan tudo o que ela queria. Tudo mesmo.

De repente encontrou-se odiando e desprezando sua irmã invejavelmente feliz. Afinal, quem era ela? Apenas um bichinho de estimação na casa da sra. Escobar. Só uma boneca; a sra. Escobar divertia-se em vesti-la, brincar com ela, fazê-la dizer “mamãe”. Era uma posição desprezível, desprezível. Mas, mesmo enquanto pensava na vileza de Susan, queixava-se ao destino que não lhe permitira compartilhar da felicidade de Susan. Por que Susan podia ter tudo, quando ela...?

Mas então, de súbito, lembrou-se do bebê. Voltou a cabeça impulsivamente e beijou a face roliça e rosada da criança. A pele era macia, suave e fria, como uma pétala de flor. Pensar no bebê fazia com que pensasse em Jim. Imaginou como ele a beijaria quando voltasse do trabalho. E nessa noite, enquanto ela costurasse, ele leria em voz alta o Declínio e queda, de Gibbon. Como ela o adorava quando ficava sentado, de óculos, lendo! E a maneira curiosa como ele pronunciava a palavra “persas” — não aspirando, mas vibrando o “r”. A lembrança desses persas vibrantes fez com que desejasse violentamente que ele estivesse ali a seu lado, de modo que pudesse abraçar-lhe o pescoço e beijá-lo. “Persas, persas”, ela repetiu consigo mesma. Ah, ela os adorava demais!

Com uma explosão súbita de afeição, intensificada ao mesmo tempo pelo arrependimento por seus pensamentos odiosos e pela lembrança de Jim, voltou-se para a irmã.

— Bem, Sue — disse. Beijaram-se por cima da galinha assada e da língua.

A sra. Escobar observava as duas irmãs e, observando-as, enchia-se de prazer. Como eram encantadoras, pensou; como eram frescas, jovens e bonitas! Sentiu orgulho delas — afinal, elas não eram, de certa forma, invenção sua? Um par de jovens muito bem-educadas, até mesmo com luxo; e de repente órfãs e sem um centavo. Podiam simplesmente ter afundado, desaparecido e nunca mais se ouviria falar delas. Mas a sra. Escobar, que conhecera a mãe delas, veio em seu socorro. Viriam morar com ela, pobres crianças! E ela seria sua mãe. Não sem ingratidão — assim o parecera —, Ruth preferira aceitar a proposta do jovem Jim Waterton de um casamento prematuro e arriscado. Waterton, é lógico, não tinha dinheiro; era apenas um garoto, com toda a sua carreira pela frente. Mas Ruth fizera deliberadamente sua escolha. Estavam casados havia quase cinco anos. A sra. Escobar tinha ficado um pouco magoada. Mesmo assim, fazia suas periódicas visitas de fada madrinha às villas Purlieu; e era a madrinha humana do bebê. Susan, por sua vez, que contava apenas treze anos quando o pai morreu, crescera sob os cuidados da sra. Escobar. Chegava aos dezoito agora, e de forma encantadora.

“O maior prazer do mundo”, gostava de dizer a sra. Escobar, “é ser generoso com as outras pessoas.” E em particular, podia ter acrescentado, quando as outras pessoas são criaturinhas jovens e fascinantes que a adoram.

— Queridas crianças — disse e, entrando entre elas, abraçou-as pela cintura. Sentia-se de repente profunda e lindamente emocionada, como se sentia quando ouvia o Sermão da Montanha ou a história da mulher adúltera, na igreja. — Queridas crianças. — Sua voz rica tremia um pouco, as lágrimas brotavam-lhe aos olhos. Apertou mais as garotas de encontro a si. Entrelaçadas, elas seguiram pelo caminho em direção à porta da casa. Robbins seguia a uma distância respeitosa, carregando o foie gras e o bolo de chocolate.

II

— Mas por que não é um trem? — perguntou o bebê.

— Mas é um ursinho tão bonito.

— Tão bonito... — insistiu Susan.

Os rostos das irmãs exprimiam uma ansiedade envergonhada. Quem poderia ter imaginado? O bebê odiou o ursinho de pelúcia. Ele queria um trem, e só um trem. E a sra. Escobar escolhera ela mesma o ursinho. Era um urso muito especial, a um só tempo cômico e artístico; feito de pelúcia preta, com olhos muito grandes de couro branco e botões de sapato.

— E veja como ele rola — disse Ruth à guisa de forçado conhecimento. Deu um empurrão no animal; ele rolou pelo chão. — Tem rodinhas — acrescentou. O garotinho tinha um fraco por rodas.

Susan esticou o braço e puxou o urso de volta.

— E quando você puxa este cordão — explicou ela — ele ruge. Puxou o cordão. O urso guinchou roucamente.

— Mas eu quero um trem — insistiu a criança. — Com trilhos e túneis e sinais. — Ele dizia “sinhais”.

— Da próxima vez, querido — disse Ruth. — Agora dê um grande beijo no urso. Coitado do urso! Ele está triste.

Os lábios da criança estremeceram, seu rosto contorceu-se de dor, começou a chorar.

— Eu quero sinhais — disse. — Por que ela não me traz sinhais? — Apontou em postura acusatória para a sra. Escobar.

— Pobrezinho — disse a sra. Escobar. — Ele vai ganhar os sinhais.

— Não, não — implorou Ruth. — Ele na verdade adorou o urso. É só uma ideia boba que meteu na cabeça.

— Ai, pobrezinho — repetiu a sra. Escobar. Mas como era mal-educada essa criança, pensou. Tão estragada, e já blasé. Ela tivera tanto trabalho com o urso. Uma verdadeira obra de arte. Devia chamar a atenção de Ruth, para seu próprio bem e o da criança. Mas ela era tão sensível... Como as pessoas eram tolas em ser sensíveis sobre esse tipo de coisa! Talvez o melhor fosse conversar com Susan sobre isso e deixar que ela conversasse calmamente com Ruth, quando estivessem sozinhas.

Ruth tentou uma distração.

— Veja este livro lindo que a sra. Escobar nos trouxe. — Ergueu um exemplar novinho do Book of Nonsense, de Lear. — Veja. — Virava as páginas convidativamente diante dos olhos da criança.

— Não quero olhar — respondeu o bebê, decidido a ser um mártir. Por fim, no entanto, não foi capaz de resistir às figuras. — Que é isso? — perguntou emburrado, ainda tentando fingir desinteresse.

— Você gostaria que eu lesse um desses lindos poemas? — perguntou, não sem malícia, a sra. Escobar, como desferisse a brasa da vingança sobre o garotinho.

— Ah, sim — exclamou Ruth expondo uma vontade mais digna de ansiedade. — Sim, por favor.

— Por favor — repetiu Susan.

O garotinho não disse nada, mas quando a mãe quis entregar o livro à sra. Escobar ele tentou resistir...

— O livro é meu — disse, alto e irritado, em tom de queixa.

— Calma, calma — disse Ruth, e acariciou-lhe a cabeça. Ele cedeu.

— Qual vai ser? — perguntou a sra. Escobar folheando o livro. — “A corçazinha boba”? ou “A tartaruga que não tinha dedos”? ou “O burrinho”? ou “A coruja e o gatinho”? — Ergueu os olhos interrogativamente.

— “A tartaruga” — sugeriu Susan.

— Acho que “A coruja e o gatinho” seria melhor para começar — opinou Ruth. — É mais fácil de entender que as outras. Você gostaria de ouvir a história do Gatinho, não gostaria, querido?

A criança assentiu sem entusiasmo.

— Que gracinha! — fez a sra. Escobar. — Ele vai ter seu Gatinho. Eu também a adoro. — Encontrou o lugar no livro. — “A coruja e o gatinho” — anunciou, em voz mais rica, doce e vibrante do que o normal. A sra. Escobar estudara empostação de voz com os melhores professores, e gostava de representar para caridade. Fora inesquecível como Tosca em benefício do Hospital Infantil de Hoxton. E também como a Pórcia ortopédica e a sra. Tanqueray tuberculosa (ou tinha sido a sra. Tanqueray para os incuráveis?).

— Que é uma coruja? — perguntou o bebê.

Interrompida, a sra. Escobar começou uma leitura preliminar do poema para si mesma; seus lábios moviam-se enquanto lia.

— Uma coruja é uma espécie de pássaro grande e engraçado — respondeu a mãe dele, abraçando-o. Esperava que ele ficasse mais quieto se ela o segurasse assim.

— As macorujas mordem?

— Corujas, querido, não macorujas.

— Elas mordem?

— Só quando as pessoas mexem com elas.

— Por que as pessoas mexem com elas?

— Psiu! — fez Ruth. — Agora você tem que escutar. A sra. Escobar vai ler para você uma linda história sobre uma coruja e um gatinho.

Enquanto isso a sra. Escobar estudava seu poema.

— Lindo demais! — exclamou alto, para ninguém em particular, sorrindo, enquanto falava, com os olhos e os lábios. — Tão poético, na verdade, embora seja tudo nonsense. Afinal, o que é a poesia, senão nonsense? O nonsense dos deuses.

Susan assentiu em concordância.

— Posso começar? — perguntou a sra. Escobar.

— Ah, sim — fez Ruth, sem deixar de acariciar os cabelos sedosos da criança, que estava mais calma agora.

A sra. Escobar começou:

“A coruja e o gatinho foram ao mar

Em um lindo (depois de uma pausa e com intensidade) barquinho verde cor de ervilha.

Levaram um pouco de mel e (a voz rica subiu um tom e caiu) muito dinheiro,

Embrulhado (pausa pequena) em (pausa pequena) uma nota de cinco libras.”

— Que é uma nota de cinco libras? — perguntou o bebê.

Ruth apertou com mais força a mão sobre a cabeça da criança, como se para achatar sua curiosidade crescente.

— Psiu! — fez.

Ignorando a interrupção, a sra. Escobar continuou, depois de um breve silêncio dramático, com o segundo verso.

“A coruja ergueu os olhos para as estrelas no céu (a voz dela silvava com a paixão da noite tropical e amorosa)

E cantou ao som de um pequeno violão...”

— Mamãe, que é um vio...?

— Quietinho, filho, quietinho. — Ela podia quase sentir o espírito inquisitivo da criança escorrendo por entre os dedos que a prendiam.

Com um clarão verde de esmeraldas, um brilho multicolorido de brilhantes, a sra. Escobar pousou a mão longa e branca no coração e ergueu os olhos para constelações imaginárias.

“Ah, lindo gatinho, ah, gatinho, meu amor,

Que (do alto, a voz reduzia enfaticamente o volume) lindo gatinho você é,

Que lindo gatinho você é!”

— Mas, mamãe, as corujas gostam de gatos?

— Não fale, querido.

— Mas você me disse que os gatos comem os pássaros.

— Esse gato não, meu querido.

— Mas você disse, mamãe...

A sra. Escobar começou o verso seguinte.

“Disse o gato à coruja: Pássaro elegante,

Como você canta bonito e doce (a voz da sra. Escobar fez-se lânguida).

Venha, vamos nos casar; já esperamos demais.

Mas o que (pausa; a sra. Escobar fez um gesto desesperançado, resplandecente de anéis)

Vamos usar (pausa) de (pausa, e a voz subiu com a pergunta) Anel, anel?

Mas o que vamos usar de anel?

Assim velejaram por um ano e um dia

Até a terra onde a altabonga[48] cresce...”

— O que é altabonga, mamãe?

A sra. Escobar elevou um pouco a voz para cobrir a interrupção infantil e continuou sua récita.

“E lá (pausa) em um bosque (pausa) um porquinho havia,

Com um anel...”

— Mas, mamãe...

“Com um anel (a sra. Escobar repetiu ainda mais alto, descrevendo no ar um círculo brilhante) na ponta do nariz, seu nariz...”

— Mamãe! — A criança estava furiosa de impaciência; sacudiu os braços da mãe. — Por que você não diz? O que é uma altabonga?

— Você tem que esperar, meu amor.

Susan levou os dedos aos lábios.

— Psiu! — Ah, como desejava que ele fosse bonzinho! Que é que a sra. Escobar ia pensar? E ela lia lindamente.

“Com um anel (a sra. Escobar descreveu um círculo ainda maior) na ponta do nariz.”

— É uma espécie de árvore alta — sussurrou Ruth.

“Querido porco, você aceita vender por um xelim

Seu anel? Disse o Porquinho: eu vendo.

Assim, levaram o anel e se casaram no dia seguinte

Pelo peru que morava na colina (o tom sonhador na voz da sra. Escobar fazia a colina do peru soar maravilhosamente azul, romântica e remota).

Jantaram picadinho e fatias de marmelada,

Que comeram com uma colher-garfo,

E...”

— O que é colher-garfo?

— Psiu, querido.

“... de mãos dadas (a voz tornou-se docemente terna, desabrochando como um pêssego com emoção aveludada), à beira...”

— Mas por que você faz psiu psiu assim? — gritou o menino. Estava tão zangado que começou a bater na mãe com os punhos.

A. interrupção era tão escandalosa que a sra. Escobar foi forçada a tomar conhecimento dela. Contentou-se em franzir a testa e levar o dedo aos lábios.

“... à beira da areia (todo o oceano estava na voz da sra. Escobar),

Eles dançaram (com que alegria e refinamento, com que ternura nupcial!) à luz (ela falava bem devagar; deixava a mão, que tinha erguido, descer gradualmente, como um pássaro cansado, até o joelho) do lu-u-ar.”

Se alguém tivesse conseguido ouvir essas palavras finais, teria ouvido o espaço interestelar, o mistério do movimento planetário, a serenata de Don Juan, a varanda de Julieta. Se alguém tivesse conseguido ouvir. Mas o grito que o bebê soltou foi tão estridentemente alto que elas ficaram ininteligíveis.

III

— Acho que um dia desses você devia conversar seriamente com Ruth — disse a sra. Escobar no caminho de volta das villas Purlieu. — Sobre o bebê. Acho que ela não o educa direito. Ele é muito mimado.

A acusação foi apresentada em termos gerais. Mas Susan de pronto começou a desculpar-se pelo que tinha certeza de ser a ofensa particular do garotinho.

— Claro — falou. — O problema foi que havia no poema muitas palavras que ele não entendia.

A sra. Escobar irritou-se por ter sido demasiado bem compreendida.

— O poema? — repetiu, como se não compreendesse o que Susan estava dizendo. — Ah, não estou falando disso. Achei que ele foi muito bonzinho, levando-se em conta as circunstâncias, enquanto eu estava lendo. Você não achou?

Susan enrubesceu culposamente.

— Achei que ele interrompeu muito — falou.

A sra. Escobar riu com indulgência.

— Mas o que se pode esperar de uma criancinha como aquela? Não, não; eu estava pensando em seu comportamento em geral. No chá, por exemplo... Você realmente devia conversar com Ruth sobre isso.

Susan prometeu que o faria.

Mudando de assunto, a sra. Escobar começou a falar em Sydney Fell, que vinha jantar naquela noite. Uma criatura tão maravilhosa! Cada vez o apreciava mais. Tinha uma boca lindíssima; tão refinada e sensível, e ao mesmo tempo tão forte, tão sensual. E ele era tão espirituoso, um conquistador tão perfeito... Susan escutava com tristeza e silêncio.

— Você não acha? — insistia em perguntar a sra. Escobar. — Não acha que ele é maravilhoso?

Susan escutava aflita e calada.

— Eu o odeio! — exclamou, e começou a chorar.

— Você o odeia? — perguntou a sra. Escobar. — Mas por quê? Por quê? Você não está com ciúme, está? — Ela riu.

Susan sacudiu a cabeça.

— Está sim! — insistiu a sra. Escobar. — Está sim!

Susan continuou a sacudir a cabeça obstinadamente. Mas a sra. Escobar sabia que tinha tirado sua desforra.

— Sua criança tola, tola — disse, num tom em que havia tesouros de afeição. Rodeou os ombros da jovem com o braço, puxou-a gentil e ternamente de encontro a si e começou a beijar-lhe o rosto molhado. Susan abandonou-se à sua felicidade.


Chawdron

De trás do Times aberto rompi o silêncio.

— Estou vendo que seu amigo Chawdron morreu.

— Morreu? — repetiu Tilney, meio incrédulo. — Chawdron morreu?

— De repente, de ataque do coração — continuei, lendo o obituário —, em sua residência na praça St. James.

— É, o coração dele... — Ele falava em tom pensativo. — Quantos anos tinha? Sessenta?

— Cinquenta e nove. Não tinha noção de que o velho malandro era rico há muito tempo. “... o extraordinário instinto para negócios, juntamente com uma teimosia e uma determinação tipicamente escocesas, que o elevaram, antes dos trinta e cinco anos, da obscuridade e relativa pobreza ao cume da opulência.” Você não gostaria de poder escrever assim? Meu pai perdeu as economias de um quarto de século em uma das companhias dele.

— Bem feito para ele, por economizar! — disse Tilney com uma fúria súbita. Surpreso, olhei por cima de meu jornal. Em seu rosto nodoso e corado havia uma expressão de irritada melancolia intratável. A notícia evidentemente o deprimira. Ademais, ele sempre estava de mau humor no café da manhã. Meu pobre pai estava pagando. — Que tipo de geleia é essa perto de você? — perguntou ferozmente.

— Morango.

— Então vou comer geleia de marmelo.

Passei-lhe a geleia de marmelo e, ignorando seu mau humor, continuei:

— Quando meu velho e, com ele naturalmente, a maioria dos outros investidores tinham liquidado suas ações sem compensação alguma com um prejuízo de mais ou menos oitenta por cento, Chawdron fez alguns truques de mágica e os preços então dispararam. Mas a essa altura ele já era dono de praticamente toda a companhia.

— Estou sempre a favor dos malandros — disse Tilney. — Por princípio.

— Ah, eu também. Mesmo assim, lamento aquelas doze mil libras.

Tilney não disse nada. Voltei ao obituário.

— O que dizem sobre o escândalo da Companhia de Petróleo Nova Guiné? — perguntou ele, depois de um silêncio.

— Muito pouco; e o toque é lindamente leve. “As conclusões da Comissão Real foram em geral favoráveis, embora na época se comentasse que o sr. Chawdron agira um tanto indelicadamente.” Tilney riu.

— “Indelicadamente” é bom. Gostaria de ganhar um milhão e quatrocentas mil pratas cada vez que fosse indelicado.

— Foi isso que ele ganhou com o negócio da Petróleo Nova Guiné?

— Foi o que ele me disse, e acho que não exagerou. Ele nunca mentia por prazer. Fora do expediente de trabalho ele era incrivelmente honesto.

— Você deve tê-lo conhecido muito bem.

— Intimamente — disse Tilney, que, empurrando o.prato para longe, começava a encher o cachimbo.

— Eu o invejo. Um espécime digno de coleção! Mas você não ficava um pouco entediado de viver dentro do museu, por assim dizer, atrás das grades das jaulas? Ser íntimo de um espécime desses deve ser difícil.

— Não, se ele é imensamente rico — Tilney respondeu. — Sabe, tenho um fraco por conhaque Napoleon e charuto Coronas; o parasitismo tem suas recompensas. E se você for hábil, não precisa haver muitas desvantagens. É possível ser um parasita de alma refinada, um verme independente. Mas conhaque Napoleon e Coronas não eram, para mim, as únicas atrações que Chawdron possuía. Tenho uma curiosidade científica e desinteressada pelos imensamente ricos. Um homem com uma renda de mais de cinquenta mil por ano é um ser fantástico e improvável. Chawdron era especialmente interessante porque fizera todo o seu dinheiro — a maior parte desonestamente; isso é que era fascinante. Era um escroque de grande alcance, napoleônico. E, por Deus, ele parecia mesmo! Você o conhecia de vista?

Assenti com a cabeça.

— Como uma ilustração das teorias de Lombroso. Um tipo criminoso. Mas inteligente, não brutalmente criminoso. Ele não era violento.

— Pensei que fosse parecido com um chimpanzé.

— Era mesmo — concordou Tilney. — Mas, afinal, um chimpanzé não tem aparência brutal. O que nos impressiona no chimpanzé é sua aparência quase humana. Tão inteligente, quase um homem. O rosto de Chawdron tinha essa mesma expressão. Mas com uma diferença. O chimpanzé parece bonzinho e virtuoso e sem humor. Já a inteligência quase humana de Chawdron era astuta e, debaixo daquela jovialidade efervescente, bastante implacável. Ah, uma criatura estranha, interessante! Diverti-me muito estudando-o. Mas no final, é claro, ele realmente me entediava. Me matava de tédio. Era tão horrivelmente ignorante. Não sabia as coisas mais óbvias, era incapaz de compreender uma generalização. E nojentamente sem gosto, sem senso ou entendimento estético. Em termos artísticos e metafísicos, um cretino.

— Parece que o obituarista não é da sua opinião. — Voltei-me novamente para o Times. — Onde está? Ah! “Perdeu-se um escritor notável quando Chawdron dedicou-se às finanças. Não se perdeu inteiramente, no entanto; pois a brilhante Autobiografia, publicada em 1921, permanece como uma lembrança de seus talentos como estilista e narrador.” Que é que você diz disso? — perguntei, erguendo os olhos para Tilney.

Ele sorriu enigmaticamente.

— É a pura verdade.

— Confesso que nunca li o livro. É bom?

— É ótimo. — Abria um sorriso, incompreensivelmente zombeteiro.

— Você está brincando comigo?

— Não, ele é bom de verdade.

— Então ele não podia ser o cretino artístico que você descreveu.

— Não podia? — repetiu Tilney e, depois de uma pequena pausa, riu alto. — Mas ele era mesmo um cretino — prosseguiu, numa onda de confidências que parecia derrubar as barreiras de sua discrição —, e o livro era bom. Pela excelente razão de que ele não o escreveu. Eu o escrevi.

— Você? — Encarei-o, perguntando-me se ele estaria brincando. Mas seu rosto, depois da rápida iluminação do riso, tinha ficado sério, quase sombrio. Um rosto curioso, refleti. Belo a seu modo, inteligente, atento, mas com algo um tanto sinistro, quase repulsivo. O encanto superficial e o bom humor do sujeito pareciam cobrir uma dureza fundamental, uma falta de sentimentos, até mesmo uma hostilidade. Uma vida boa demais, além disso, deixara suas marcas em seu rosto. Trazia manchas vermelhas e uma dureza nodosa. As feições finas tornaram-se um tanto grosseiras. Havia uma rudeza misturada com o refinamento nativo. Gostava de Tilney, ou não? Nunca soube direito. E talvez a pergunta fosse irrelevante. Talvez Tilney fosse um daqueles homens que não são feitos para ser apreciados ou odiados como homens — apenas como executantes. Gostava da conversa dele; divertia-me, interessava-me, instruía-me com o que ele dizia. Perguntar-me se também gostava do que ele era, isso sem dúvida era irrelevante.

Tilney levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro do aposento, o cachimbo entre os dentes, fumando.

— O pobre Chawdron está morto agora, de modo que não há motivo... — Deixou a frase por terminar e ficou em silêncio durante alguns segundos. De pé junto à janela, olhava pelo vidro borrado de chuva para os verdes e os cinzentos molhados da paisagem de Kent. — A Inglaterra parece as verduras do jantar de uma pensão de Bloomsbury — disse devagar. — Horrível! Por que moramos neste país horrível? Ugh! — Ele estremeceu e voltou-se. Houve outro silêncio. A porta abriu-se, e a moça entrou para tirar a mesa do café. Eu digo “a moça”, mas esse termo impessoal e breve não é acurado. Não é acurado porque é totalmente inadequado para descrever Hawtrey. O que entrou quando a porta se abriu foi a eficiência personificada, foi um dragão implacável, foi uma feiura pétrea, foi um pilar da sociedade, foram os Dez Mandamentos sobre pernas. Tilney, que não a conhecia, não compartilhava do meu terror ao monstro doméstico. Alheio à intensa censura que eu sentia irradiar-se do seu silêncio (eram mais de dez horas; os hábitos preguiçosos de Tilney tinham atrapalhado toda a sua rotina matinal), ele continuou a andar de um lado para o outro, enquanto Hawtrey ocupava-se em volta da mesa. De repente ele riu.

— A Autobiografia de Chawdron foi o único dos meus livros que me rendeu algum dinheiro — comentou Tilney. Eu escutava com apreensão, com medo de que ele dissesse alguma coisa que pudesse chocar ou ofender o dragão. — Ele deixou para mim todos os direitos autorais — continuou Tilney. — Fiz mais de três mil libras com a Autobiografia dele. Sem mencionar as quinhentas que ele me deu para escrevê-la. (Seria delicado, perguntei-me, falar de tanto dinheiro na frente de alguém tão incomparavelmente mais virtuoso que nós, e tão mais pobre? Felizmente Tilney mudou de assunto.) Você devia ler o livro — disse. — Na verdade, sinto-me ofendido por você não tê-lo lido ainda. Toda aquela infância de classe média baixa em Peebles — é realmente primoroso. (“Classe média baixa”; estremeci. O pai de Hawtrey fora proprietário de uma loja; mas tinha tido seus infortúnios.) É o Clayhanger, L’Éducation Sentimentale e David Copperfield juntos. Realmente esplêndido. E as primeiras aventuras no mundo das finanças eram puro Balzac, magníficas. — Tornou a rir, dessa vez sem amargura, divertidamente; estava ficando entusiasmado com o assunto. — Cheguei até a colocar um solilóquio de Rastignac[49] no alto da cúpula de St. Paul, fiz com que ele sacudisse o punho à cidade. Pobre Chawdron! Ele ficou fascinado. “Se ao menos eu tivesse sabido como a minha vida era interessante”, costumava me dizer. “Sabido disso enquanto a vida passava.” (Olhei para Hawtrey para ver se ela estava achando ruins as referências a uma vida interessante. Mas seu rosto estava fechado; ela trabalhava como se fosse surda.) “Você não teria gostado”, eu lhe disse. “Tem que deixar para os artistas a descoberta das coisas excitantes.” — Tornou a silenciar. Hawtrey colocou a última colher na bandeja e encaminhou-se para a porta. Graças a Deus! — Sim, o artista — continuou Tilney num tom que se tornara novamente melancólico. — Eu realmente era um, sabe? (Hawtrey, que saía, deve ter ouvido essa confissão comprometedora. Mas, refleti, ela sempre soubera que eu e meus amigos éramos uma turma ruim.) Sou mesmo um artista — insistiu. — Qualis artifex! Mas pereo, pereo. De algum modo, nunca fiz coisa alguma a não ser morrer, toda a minha vida. Morrer, morrer, morrer. Por preguiça e porque sempre parecia haver muito tempo. Mas vou fazer quarenta e oito anos em junho. Quarenta e oito! Não há tempo. E a preguiça é um hábito. Assim como falar. É tão fácil falar. E tão divertido. Pelo menos para si mesmo.

— Para as outras pessoas também — falei; e o elogio era sincero. Eu podia não ter certeza de gostar ou não de Tilney. Mas apreciava genuinamente seu desempenho como orador. Às vezes, talvez, esse desempenho era um pouco profissional demais. Mas, afinal, um artista tem de ser profissional.

— É o que dá ser a maior parte irlandês — continuou Tilney. — Falar é o vício nacional. Como fumar ópio com os chineses! (Hawtrey retornou silenciosamente para varrer as migalhas e dobrar a toalha.) Se você soubesse o número de obras-primas que permiti que se evaporasse em mesas de jantar, fumando charutos e bebendo uísque! (Duas coisas que, eu sabia, o virtuoso Pilar da Sociedade desaprovava.) Uma biblioteca inteira. Eu podia ter sido... o quê? Bem, imagino que poderia ter sido um horrível velho chato — respondeu a si mesmo com uma autozombaria forçada. — “As obras completas de Edmund Tilney, em trinta e oito volumes, post octavo”. Ouso dizer que o mundo devia ser grato a mim por poupá-lo deles. Mesmo assim, fico um pouco deprimido quando releio os números antigos da Thursday Review e leio aqueles meus artigozinhos bobos. Parturiunt montes...[50]

— Mas os artigos são bons — protestei. Se eu fosse mais honesto, diria que às vezes eram bons, quando ele se dava o trabalho de fazê-los bons. Às vezes, por outro lado...

— Merci, mon cher maître! — ele respondeu ironicamente. — Mas não são mais duradouros do que o bronze,[51] você tem de admitir. Monumentos de polpa de madeira. É deprimente ser um fracasso. Principalmente quando a culpa é nossa, quando deveríamos ter sido qualquer outra coisa.

Resmunguei alguma coisa. Que havia a dizer? A não ser como conversador profissional, Tilney tinha mesmo sido um fracasso. Tinha grande talento e era um jornalista literário que vez por outra escrevia um bom artigo. Tinha razão para sentir-se deprimido.

— E a coisa absurda, irônica, é que a única peça boa que já produzi é a autobiografia de outra pessoa — continuou. — Nunca poderia provar minha autoria mesmo que eu quisesse. O velho Chawdron teve o maior cuidado em destruir todas as provas do crime. As combinações foram todas verbais. Nenhum documento de espécie alguma. E o manuscrito, o meu manuscrito, ele comprou de mim. Foi incinerado.

Eu ri.

— Ele não se arriscou com você. — Graças a Deus! O dragão estava se preparando para sair definitivamente.

— Nem um pouco — concordou Tilney. — Queria ter certeza de usar sua coroa de louros. Não haveria outro concorrente. E naquela época, naturalmente, eu não dava a mínima. Tinha ideias esnobes sobre a fama. A boa arte — e a Autobiografia de Chawdron era boa arte, um romance de primeira classe — a boa arte é sua própria recompensa. (O comentário que Hawtrey fez a isso foi bater a porta ao sair.) Conhece o estilo da coisa? E nesse caso ela foi mais que sua própria recompensa. Havia dinheiro nisso. Quinhentas libras na hora e todos os direitos autorais. E eu estava horrivelmente sem dinheiro no momento. Não fosse por isso, jamais teria escrito o livro. Talvez essa tenha sido uma de minhas desvantagens — uma pequena renda independente e gostos não muito extravagantes. Aconteceu que, na época em que Chawdron fez sua oferta, eu estava apaixonado por uma jovem muito cara. Não se pode sair para dançar e beber champanhe com quinhentas libras por ano. O cheque de Chawdron chegou bem na hora. E lá estava eu, comprometido a escrever as memórias dele. Um tédio, é claro. Mas por sorte a jovem me despachou logo a seguir; assim, eu tinha tempo para gastar. E Chawdron era um feitor implacável. Além disso, eu realmente passei a gostar da coisa, depois que comecei. Era mesmo sua própria recompensa. Mas agora — agora que o livro foi escrito, o dinheiro foi gasto e eu logo terei cinquenta anos, em vez de quarenta como tinha então, agora, devo dizer, preferia ter pelo menos um bom livro a meu crédito. Gostaria de ser conhecido como o autor daquele romance admirável, A autobiografia de Benjamin Chawdron, mas não serei. — Ele suspirou. – É Benjamin Chawdron, e não Edmund Tilney, quem terá seu pequeno nicho na história literária. Não que eu me importe muito com a história literária. Mas me importo, tenho que confessar, com as antecipações atuais desse nicho. A reputação de salão, as menções nos jornais, o respeito dos jovens, a curiosidade simpática das mulheres. Todos os subprodutos de uma carreira literária de sucesso. Mas vendi-os para Chawdron. Por um bom preço. Não posso me queixar. Mesmo assim eu ainda me queixo. Você tem algum fumo de cachimbo? O meu acabou.

Entreguei-lhe minha bolsa de tabaco.

— Se eu tivesse a energia, ou estivesse desesperadamente sem dinheiro, o que, graças a Deus mas também infelizmente, não é o caso no momento, poderia fazer outro livro a respeito de Chawdron — continuou ele, enquanto enchia o cachimbo. — Outro livro, e melhor. Melhor — ele começou a explicar, e interrompeu-se para chupar a labareda do fósforo que acendera — porque... muito mais... malicioso. — Jogou o fósforo fora. — Não se pode escrever um bom livro sem ser malicioso. Na Autobiografia transformei Chawdron num herói. Fui pago para isso; além do mais, foi o próprio Chawdron quem me forneceu a documentação. Nesse outro livro ele seria o vilão. Ou, em outras palavras, ele seria ele mesmo como as outras pessoas o viam, não como ele próprio se via. O que é, aliás, a única diferença válida que eu consegui descobrir entre os virtuosos e os maus. Quando nós mesmos nos permitimos qualquer um dos pecados mortais, estamos sempre absolvidos — eles nunca são mortais. Mas, quando se trata de outra pessoa, a gente fica indignado com muita razão. O velho Rousseau teve a coragem de dizer que ele era o homem mais virtuoso do mundo. O resto de nós só acredita nisso silenciosamente. Mas, voltando a Chawdron, o que eu gostaria de fazer agora é escrever a biografia dele, não sua autobiografia. E a biografia de um aspecto bem diferente dele. Não sobre o homem de ação, o capitão de indústria, o Napoleão das finanças etc. Mas sobre o Chawdron doméstico, particular, sentimental.

— O Times diz alguma coisa sobre isso — falei; e, tornando a pegar o jornal, li: — “Sob seus modos desconcertantemente bruscos e até mesmo ríspidos, o sr. Chawdron escondia a mais generosa das naturezas. Uma pessoa, ao conhecê-lo, muitas vezes ressentia-se de uma certa aspereza superficial. Era apenas aos íntimos que ele revelava...” — Adivinhe o quê! — “um coração de ouro.”

— Coração de ouro! — Tilney tirou o cachimbo da boca para rir.

— E estou vendo que ele tinha também “um profundo senso religioso”. — Larguei o jornal.

— Profundo? Não tinha fim!

— Extraordinário — refleti alto. — Todos eles têm coração de ouro e senso religioso. Cada um deles, desde o ríspido velho cientista até o duro velho negociante e o carrancudo velho estadista.

— Corações de ouro — repetiu Tilney. — Mas o ouro é duro demais. Corações de barro, corações de vaselina, corações de lavagem de porcos. Eis o que mais lhes parece. Corações de lavagem de porco. Quanto mais duros, abruptos e carrancudos eles são por fora, mais moles são por dentro. É uma lei da natureza. Nunca encontrei uma exceção. Chawdron era a encarnação dessa regra. O que é precisamente o que quero mostrar nesse meu outro livro em potencial — o implacável Napoleão das finanças pagando por sua implacabilidade, e seu napoleonismo dissolvendo-se interiormente até virar lavagem de porcos. Pois foi o que aconteceu com ele: dissolveu-se e virou lavagem de porcos. Como em O estranho caso do sr. Valdemar, de Edgar Allan Poe. Vi isso com meus próprios olhos. É um espetáculo apavorante. E ainda mais apavorante quando percebemos que, a não ser pela graça de Deus, vamos para lá nós mesmos — e ainda mais quando começamos a duvidar da graça de Deus, quando vemos que na verdade vamos mesmo. Sim, você ou eu, meu rapaz. Pois não são só os velhos negociantes duros quem têm coração de lavagem de porcos. São também, como você mesmo acabou de dizer, os velhos cientistas ríspidos, os velhos eruditos rudes, os velhos almirantes intratáveis, os bispos e todos os outros pilares da sociedade cristã. É todo o mundo, em uma palavra, que se fez duro demais na cabeça ou na couraça; todo o mundo que aspira a ser não humano — se anjo ou máquina não faz diferença. A super-humanidade é tão ruim quanto a sub-humanidade, é a mesma coisa no fim. O que mostra como devemos tomar cuidado, se somos intelectuais. Mesmo o tipo mais leve de intelectual. Como eu, por exemplo. Não sou um de seus eruditos ascéticos genuínos. Deus me livre! Mas sou decididamente intelectual, e sou literato; sou até mesmo o que os jornais chamam de “pensador”. Sofro de uma paixão por ideias. Sempre sofri, desde garoto. Com que resultados? Que nunca me senti atraído por mulher alguma que não fosse uma prostituta.

Eu ri. Mas Tilney ergueu a mão em um gesto de protesto.

— A coisa é séria — declarou. — Suas consequências podem ser terríveis, inclusive. Nada além de prostitutas. Imagine!

— Estou imaginando — falei. — Mas onde entram os livros e as ideias? Post não é necessariamente propter.[52]

— Nesse caso é propter mesmo. Graças aos livros e às ideias, nunca aprendi a lidar com situações reais, com pessoas e coisas sólidas. Os relacionamentos pessoais — nunca consegui lidar com eles direito. Só com ideias. Com ideias eu me sinto em casa. Com a ideia de relacionamentos pessoais, por exemplo. As pessoas acham que sou um excelente psicólogo. E acho que sou mesmo. Como espectador. Mas sou um péssimo experimentador. Vivi a maior parte de minha vida postumamente, se é que você me entende; em reflexões e conversas depois de os fatos terem se consumado. Como se minha existência fosse um romance ou um livro didático de psicologia ou uma biografia, como quaisquer outros nas estantes das bibliotecas. Uma situação horrível. Foi por isso que sempre gostei tanto de prostitutas, sempre fui grato a elas; porque foram as únicas mulheres com quem consegui ter uma relação não póstuma, contemporânea, concreta. As únicas. — Por um momento ele ficou fumando em silêncio.

— Mas por que as únicas? — perguntei.

— Por quê? — repetiu Tilney. — Não é bastante óbvio? Para o homem tímido, isto é, o homem que não sabe como lidar com pessoas e situações reais, as prostitutas são as únicas amantes possíveis, porque são as únicas mulheres que estão prontas a vir ao encontro dele, as únicas que vão tomar a iniciativa que ele não sabe tomar.

Assenti.

— Os homens tímidos têm razões para sentir atração pelas prostitutas; compreendo isso. Mas por que as prostitutas sentiriam atração pelos homens tímidos? O que as leva a tomar a iniciativa apropriada? É isso que não entendo.

— Ah, é claro que elas não tomam essa iniciativa a menos que o homem tímido seja atraente — respondeu Tilney. — Mas no meu caso as prostitutas sempre se sentiram atraídas. Sempre. E, para falar francamente, elas estavam certas. Eu era toleravelmente pitoresco, tinha o encanto profissional irlandês, sabia conversar, era várias centenas de vezes mais inteligente que qualquer rapaz que elas poderiam conhecer. Além disso, imagino, minha timidez era uma vantagem. Não parecia ser timidez. Ela se exteriorizava como uma espécie de impessoalidade e distanciamento divinos — muitíssimo excitante para mulheres assim. Eu tinha, aos olhos delas, os encantos do monte Everest ou do polo Norte — uma coisa difícil e inconquistada que fazia surgir nelas o instinto de quebrar recordes. E ao mesmo tempo meu distanciamento tímido me fazia parecer superior de alguma forma; e, como você sabe, poucos prazeres podem ser comparados ao esporte de derrubar a superioridade e provar que ela não é melhor que nós. Meu ar de distanciamento desinteressado sempre teve um succès fou com as prostitutas. Elas todas me adoram porque sou “diferente”. “Mas você é diferente, Edmund, você é diferente” — cantarolou em falsete. — Essas prostitutas? Sob seus sentimentalismos, o único desejo delas, naturalmente, era me reduzir o mais depressa possível à mais ignóbil falta de diferenças...

— E conseguiam? — perguntei.

— Ah, sempre. Naturalmente. Não é porque um homem é tímido e literato que não é um porco di prim’ordine. Na verdade, quanto mais tímido e estudioso, mais probabilidades tem de ser secretamente um suíno. Ou, se não um porco, pelo menos um asino, um oca, um vitello. É a regra, como eu já disse; a lei da natureza. Não há como escapar.

Eu ri.

— Eu me pergunto qual dos animais eu sou...

Tilney sacudiu a cabeça.

— Não sou zoólogo. Pelo menos quando estou falando com o espécime em discussão — acrescentou. — Pergunte à sua própria consciência.

— E Chawdron? — Eu queria saber mais sobre Chawdron. — Ele grunhia, zurrava ou mugia?

— Um pouco de cada. E se os rapinos fizessem algum ruído... Não, rapinos não. Pior que isso. Chawdron era um caso extremo, e os casos extremos estão fora do reino animal.

— Que são, então? Vegetais?

— Não, não. Piores que vegetais. São espirituais. Anjos, é o que são: anjos apodrecidos. É apenas nos primeiros estágios da degeneração que eles zurram e bodejam. Depois eles tocam harpa e batem as asas. Asas de porco, é claro. São anjos em roupagens de porcos. Corações de lavagem de porcos. Já lhe falei sobre Chawdron e Charlotte Salmon?

— A violoncelista?

Ele assentiu.

— Que mulher!

— E sua execução! Tão carregada, deprimida, escorregadia... — Eu procurava a descrição correta.

— Tão terrivelmente judia, em uma palavra — disse Tilney. — Aquele emocionalismo nauseabundo, aquela espiritualidade digna de enjoo em alto-mar — puramente hebraico. Se ao menos houvesse mais arianos no mundo da música! Meus olhos se enchem de lágrimas sempre que vejo a besta loura ao piano. Mas isso não importa. Eu ia contar-lhe sobre Charlotte. Você a conhece, naturalmente.

— E como!

— Bem, foi Charlotte quem primeiro me revelou o coração de lavagem de porcos do pobre Chawdron. O meu também, indiretamente. Foi uma noite na casa do velho Cryle. Chawdron estava lá, e Charlotte, e eu, e não me lembro quem mais. Não sei como, éramos pessoas de todos os mundos — do céu e do inferno. Cryle, como você sabe, tem um pé em cada. Ele acha que sua missão é juntá-los. É o alcoviteiro entre Deus e Mammon. Nesse caso ele certamente imaginou-se o responsável pelo casamento. Chawdron era mesmo Mammon; e embora você e eu não ousássemos rotular Charlotte de Deus, tenho certeza de que o velho Cryle não tinha dúvida. Afinal, ela toca violoncelo; é uma artista. Que mais queremos?

— Realmente!

— Devo dizer que admirei Charlotte nessa noite — continuou. — Ela sabia exatamente que caminho tomar com Chaw- dron; isso era mais surpreendente ainda porque a mim ela nunca convenceu. Comigo ela tenta bancar a sereia, bastante ousada e ao mesmo tempo extremamente misteriosa. Seu truque é responder a meus comentários mais banais com algo absolutamente incompreensível, mas obviamente muito significativo. Se eu lhe pergunto, por exemplo: “Você vai à corrida de cavalos este ano?”, ela sorri um sorriso verdadeiramente etrusco e responde: “Não, estou ocupada demais assistindo à corrida de barcos dentro do meu coração”. Bem, obviamente é minha deixa para ficar mais do que intrigado. “Esfinge fascinante”, eu devia responder, “conte-me mais sobre sua corrida de barcos visceral”, ou algo assim. E quase com certeza eu descobriria que estava remando no barco vencedor. Mas acho que não consigo fazer o que esperam de mim. Digo apenas: “Que pena! Eu estou organizando um grupo para ir a Epsom” — e me afasto depressa. Sem dúvida, se ela fosse menos desastrosamente semita sua corrida de barcos me seria irresistível. Mas na realidade suas manobras não funcionam. Ela ainda não conseguiu pensar em coisa melhor. Com Chawdron, no entanto, ela descobriu desde o princípio a estratégia correta. Nada de sereia, nada de mistério com ele. O coração dele era dourado e sujo demais para isso. Além do mais, ele tinha cinquenta anos. É a idade em que os clérigos começam a preocupar-se com as roupas de baixo das menininhas de escola nos trens, a idade em que arqueólogos eminentes começam a ter um interesse de fato apaixonado pelo escotismo. Sob a máscara criminosa de Chawdron, Charlotte descobriu o anjo suíno, o sentimental e simplório amante de crianças com um fraco pelo détournement de mineurs. Charlotte é uma mulher prática: era preciso uma criança, ela tornou-se imediatamente uma criança. E que criança! Nunca tinha visto coisa igual. Tanta tagarelice! Olhos grandes tão inocentes! Uma risada tão alegre! Um modo tão maravilhosamente inteligente de dizer coisas muito arriscadas sem saber (doce inocência) o que elas significam! Eu via e escutava — estupefato. Horrorizado também. A performance era realmente apavorante. Deixai vir a mim...[53] Mas quando a criancinha tem vinte e oito anos e é dura para a idade que tem — ah, não; dela é o reino do inferno. Para mim, pelo menos. Mas Chawdron ficou encantado. Parecia mesmo imaginar que tinha se apossado de algo abaixo da idade de consentir. Olhei para ele com espanto. Seria possível que ele estivesse sendo enganado? A representação era tão ruim, incrivelmente pouco convincente. Sarah Bernhardt aos setenta representando L’Aiglon parecia mais genuinamente uma criança do que nossa pequena e dura Charlotte. Mas Chawdron não via isso. Aquele homem que vivia por sua astúcia, e não apenas vivia como fizera uma fortuna enorme com ela — seria possível que o mais brilhante financista da época podia ser tão fabulosamente estúpido? “A juventude é contagiosa”, declarou-me depois do jantar, quando as mulheres se retiraram. E então — você devia ter visto o sorriso no rosto dele: beatífico, lubricamente terno — “Ela é uma gatinha feliz, não acha?”. Mas eu pensava era na Companhia de Petróleo Nova Guiné. Como era possível? E então percebi de repente que não era apenas e simplesmente possível; era absolutamente necessário. Apenas e por ser capaz de ganhar um milhão e quatrocentas mil libras com o escândalo da Petróleo Nova Guiné, era inevitável que confundisse uma pequenina tarântula feliz como Charlotte com uma gatinha feliz. Inevitável. Assim como era inevitável que eu fosse abordado por todas as prostitutas que aparecessem no meu caminho. Chawdron passara a vida pensando em petróleo, ações da bolsa e flutuações. Eu passara a vida lendo o melhor que fora pensado e dito. Nenhum de nós tivera tempo ou energia para viver — viver completa e intensamente, como deve viver um ser humano, em todos os níveis da existência. Assim ele era enganado pela pseudogatinha, ao passo que eu sucumbia à prostituta genuína. E o que é pior, sucumbia com pleno conhecimento. Pois nunca fui realmente enganado. Sempre soube que as prostitutas eram prostitutas e não camponesas puras. E agora sei também por que elas me cativavam. Mas isso, naturalmente, não me impede de continuar sendo cativado por elas. A experientia não o impede, apesar do papaizinho da sra. Micawber. Nem o saber. — Fez uma pausa para acender o cachimbo.

— Então o que impede? — perguntei.

Tilney deu de ombros.

— Nada, uma vez que tenhamos saído dos trilhos instintivos normais.

— Às vezes me pergunto se esses trilhos realmente existem.

— Eu também, às vezes — confessou ele. — Mas acredito piamente.

— Rousseau e Shelley também acreditavam piamente. Mas alguém já viu um Homem Natural? Esses Nobres Selvagens... Leia Malinóvski a respeito deles; leia Frazer; leia...

— Ah, eu li, eu li. E naturalmente o selvagem não é nobre. Os Primitivos são horríveis. Eu sei. Mas o Homem Natural não é o Homem Primitivo. Não é a matéria-prima da humanidade; é o produto acabado. O Homem Natural é um artigo manufaturado. Não, manufaturado não; é mais uma obra de arte. O que está errado com pessoas como Chawdron é que elas são obras de arte muito ruins. Não são naturais porque não são artísticas. Ary Scheffer em lugar de Manet. Mas com essa diferença. Um Ary Scheffer é estatisticamente ruim; ele não piora com a passagem do tempo. Ao passo que um ser humano não artístico degenera dinamicamente. Uma vez tendo começado mal, ele se torna cada vez mais não artístico. É preciso um terremoto moral para refrear o processo. Arremedos cheios de trivialidade, como a experiência e o conhecimento, de nada adiantam. A experientia não ensina. Se ensinasse, nunca teria sucumbido como sucumbi, nem teria tido problemas financeiros e, portanto, nem teria escrito a autobiografia de Chawdron, nem teria tido a oportunidade de juntar o material íntimo e desabonador para a biografia que, oh Deus, jamais escreverei. Não, não; a experiência não me salvou de mais uma vez ser vítima. E de um espécime tão ruinosamente raro. Não que ela fosse mercenária — colocou à guisa de esclarecimento. — Estava muito bem de vida para precisar disso. Tão bem, no entanto, que o simples custo de alimentá-la e diverti-la no estilo a que estava acostumada a ser alimentada e divertida estava inteiramente além de minha capacidade. Claro que ela nunca percebeu isso. Não se pode esperar que as pessoas que nascem com mais de cinco mil libras por ano percebam. Ela teria ficado muito perturbada se tivesse percebido; pois tinha um coração de ouro — como o resto de nós. — Riu melancolicamente. — Pobre Sybil! Imagino que você se lembre dela.

O nome evocava para mim um fantasma de olhos e cabelos claríssimos.

— Que criatura espantosamente linda ela era!

— Era, era — repetiu — Fuit. Linda e fatal. Que agonias ela me fez sofrer! Mas era tão fatal para si mesma quanto para os outros. Pobre Sybil! Tenho vontade de chorar quando penso no inevitável caminho dela, em sua trajetória predestinada. — Com o dedo esticado ele traçou no ar uma curva que subia e tornava a descer. — Ela tinha acabado de passar o pico quando a conheci. A descida era horrivelmente íngreme. Que profundezas a esperavam! Aquele horrível judeuzinho do East Side com quem ela se deu o trabalho de se casar! E, depois do judeu, o índio mexicano. E enquanto isso, um pouco de champanhe se tornara um bocado de champanhe, um bocado de conhaque; e os momentos divertidos ocasionais tornaram-se incessantes, uma necessidade, mas tão tediosa, uma rotina tão melancólica, tão terrivelmente cansativa... Passei quatro anos sem vê-la depois de nossa briga definitiva; e então (você não tem ideia de como foi doloroso) de repente encontrei-me apertando a mão de um momento mori. Tão gasta, doente e cansada, tão terrivelmente velha. Velha aos trinta e quatro anos. E a última vez em que eu a vira ela estava radiante. Dezoito meses depois estava morta; mas não antes que o índio tivesse dado lugar a um chinês e o conhaque à cocaína. Era tudo inevitável, naturalmente, tudo perfeitamente previsível. Nêmesis funcionou com regularidade exemplar. O que só piorava as coisas. Nêmesis está de bom tamanho para desconhecidos e conhecidos casuais. Mas para nós mesmos, para as pessoas que apreciamos, ah, não! Para nós, o certo seria poder semear sem colher. Mas não pode ser. Eu semeei livros e colhi Sybil. Sybil semeou a mim (para não mencionar os outros) e colheu mexicanos, cocaína, morte. Inevitável, mas um ultraje, uma negação insultuosa da diferença e da singularidade de cada um de nós. Ao passo que, quando pessoas como Chawdron semeiam Petróleos Nova Guiné e colhem gatinhas Charlottes, ficamos deliciados; a precisão do destino parece admirável.

— Não sabia que Charlotte fora colhida por Chawdron — interpus. — A colheita deve ter sido feita com uma discrição extraordinária. Charlotte geralmente gosta tanto de publicidade, mesmo nesses assuntos. Nunca imaginei que ela...

— Mas a colheita foi muito breve e parcial — Tilney explicou.

Aquilo me surpreendeu ainda mais.

— Charlotte, sempre tão decidida e grudenta! E com os milhões de Chawdron para grudar...

— Ah, não foi por culpa dela que o caso não foi adiante. Ela tinha toda a intenção de ser colhida e permanentemente armazenada. Mas tinha combinado passar dois meses na América em uma turnê de concertos. Seria complicado quebrar o contrato; Chawdron parecia completamente apaixonado; ademais, dois meses passam depressa. E, assim, ela foi. Cheia de confiança. Mas, quando voltou, contudo, Chawdron estava ocupado com outra coisa.

— Outra gatinha?

— Gatinha? A pobre Charlotte era uma velha tigresa de bigodes brancos, em comparação. Ela chegou até a me procurar em desespero. Dessa vez sem sutilezas enigmáticas: esquecera-se de que era a esfinge. “Acho que você devia avisar o sr. Chawdron sobre aquela mulher”, disse-me. “Ele devia ficar sabendo que ela o está explorando. É ultrajante.” Ela estava cheia de moralidade indignada. Não sem razão. Chegou até a ficar zangada comigo porque não quis fazer coisa alguma. “Mas ele quer ser explorado”, falei. “É sua única alegria na vida.” O que era a mais absoluta verdade. Mas não resisti e fui um pouco malicioso. “Por que você quer estragar o divertimento dele?”, perguntei. Ela ficou vermelha. “Porque acho nojento.” — Tilney fez sua voz estrilar em revolta. — “Fico realmente chocada em ver o sr. Chawdron fazendo papel de tolo.” Pobre Charlotte! Seus sentimentos eram elogiáveis. Mas de nada serviram. Chawdron continuou fazendo papel de tolo, apesar da indignação moral dela. Charlotte teve que desistir. O inimigo estava inexpugnavelmente entrincheirado.

— Mas quem era ela, o inimigo?

— A femme fatale menos provável que você já viu. Baixinha; feia; doentia — sim, genuinamente doentia, acho, embora fosse muito dada a fingir doença. Uma dama refinada demais, você conhece o tipo. Uma governanta; não as governantas modernas e atléticas, mas tipo Jane Eyre, frágil, filha de clérigo. Seu único mérito visível era ser jovem. Uns vinte e cinco anos, acredito.

— Mas como eles se conheceram? Milionários e governantas...

— Por puro milagre — afirmou Tilney. — O próprio Chawdron detectou a mão da Providência. Era o profundo senso religioso agindo. “Se minhas duas secretárias não tivessem ficado doentes no mesmo dia”, declarou-me solenemente (e você não tem ideia de como ele ficava ridículo quando estava sendo solene: o falsário santo, o ladrão no púlpito), “se não fosse por isso — e, afinal, é muito difícil duas secretárias ficarem doentes no mesmo momento; é coisa do destino! Eu nunca teria conhecido minha pequena Fada.” E você tem que imaginar essa última palavra pronunciada com um sorriso belo e reverente, indescritivelmente incongruente naquela cara de bandido. “Minha pequena Fada (aliás, o nome dela era Maggie Spindell), minha pequena Fada! — Tilney sorriu seraficamente e arregalou os olhos. — Você não pode imaginar a expressão dele. São Carlos Borromeu no ato de arrombar a gaveta do dinheiro.

— Pintado por Carlo Dolci — sugeri.

— Com a ajuda de Rowlandson. Está começando a entender?

Assenti.

— Mas, e as secretárias? — Eu estava ansioso para ouvir a história.

— Elas tinham ordens de lidar sumariamente com todas as cartas com pedidos, todas as comunicações de malucos, inventores, gênios incompreendidos e, finalmente, mulheres. O trabalho era duro, posso lhe dizer. Você não faz ideia de como é a correspondência de um homem rico. Fantástica. Bem, como eu dizia, a Providência derrubara as duas secretárias particulares de Chawdron com uma gripe. Aconteceu que Chawdron não tinha coisa melhor a fazer nessa manhã (novamente a Providência); de modo que começou a abrir sua própria correspondência. A terceira carta que abriu era da Fada. A carta derrubou-o.

— O que havia nela?

Tilney deu de ombros.

— Ele nunca me mostrou. Mas pelo que entendi ela escreveu sobre Deus e o Universo em geral e sua alma em particular, para não mencionar a alma dele próprio. Não tendo gosto e sendo inteiramente sem educação, Chawdron ficou tremendamente impressionado por sua trapalhada filosófica. Tocava-lhe o profundo sentimento religioso! Realmente, ele ficou tão impressionado que escreveu imediatamente marcando um encontro com ela. Ela veio, viu e venceu. “Providencial, meu caro rapaz, providencial.” E naturalmente ele tinha razão. Só que eu teria mudado o nome da força para Nêmesis. A srta. Spindell foi o instrumento de Nêmesis; ela era a Até usando a fantasia que o modo de vida de Chawdron fizera com que achasse irresistível. Ela era o fruto finalmente amadurecido da semeadura da Petróleos Nova Guiné ou coisa semelhante.

— Mas, se seu relato está correto, o fruto era delicioso, ao menos para o gosto dele — interrompi. — Ser explorado por gatinhas era sua única alegria; você mesmo disse isso. Nêmesis o estava premiando por seus pecados, não castigando.

Tilney interrompeu sua caminhada de um lado para o outro do aposento, franziu a testa pensativamente e, tirando o cachimbo da boca, esfregou a lateral do nariz com o bojo quente.

— É, isso é um ponto importante — disse devagar. — Já andei pensando vagamente nisso; mas agora você colocou tudo às claras. Do ponto de vista do pecador, os castigos de Nêmesis podem realmente parecer recompensas. É verdade, sim.

— Nesse caso, sua Nêmesis não tem muita utilidade como policial.

Ele ergueu a mão.

— Mas Nêmesis não é um policial. Nêmesis não é moral, pelo menos, é apenas incidentalmente moral, mais ou menos por acidente. Nêmesis é algo como a lei da gravidade, indiferente. Tudo o que faz é garantir que você colha o que semeou. E se você semeia o embrutecimento próprio, como Chawdron fazia com seu interesse excessivo em dinheiro, colhe a humilhação grotesca. Mas como você já está reduzido a uma condição sub-humana por seus pecados, então não vai perceber que a humilhação grotesca é uma humilhação. Aí está sua explicação de por que Nêmesis às vezes parece ser uma recompensa. O que ela traz é uma humilhação apenas no sentido absoluto, para o ser humano ideal e completo; ou, de qualquer maneira, na prática, para o quase completo, o ser humano próximo ao ideal. Para o espécime sub-humano ela pode parecer um triunfo, uma consumação, uma realização dos desejos do coração. Mas você tem de se lembrar que esse coração que deseja é um coração de lavagem de porcos...

— Moral: “Viva sub-humanamente e Nêmesis pode trazer-lhe felicidade” — concluí.

— Exatamente. Mas que felicidade!

Dei de ombros.

— Mas, afinal, para o relativismo, um tipo de felicidade é tão bom quanto outro qualquer. Você está tomando o ponto de vista de Deus.

— O ponto de vista dos gregos — ele corrigiu.

— Como quiser. Mas, de qualquer maneira, do ponto de vista de Chawdron a felicidade é perfeita. Portanto devíamos ser como Chawdron.

Tilney assentiu.

— Sim, é preciso ser um pouco platônico para ver que os castigos são castigos. E naturalmente, se houvesse outra vida... Ou melhor ainda, metempsicose: há alguns insetos incrivelmente nojentos... Mas, mesmo do ponto de vista meramente utilitário, o chawdronismo é perigoso. Socialmente perigoso. Uma sociedade construída por e para homens não pode funcionar se todos os seus componentes são emocionalmente sub-homens. Quando a maioria dos corações virou lavagem de porcos, alguma coisa catastrófica tem de acontecer. De modo que Nêmesis acaba sendo um policial, afinal. Espero que você esteja satisfeito.

— Perfeitamente.

— Você sempre teve um respeito muito desabonador pela lei, a ordem e a moral — reclamou.

— Elas têm que existir...

— Não sei por quê — ele interrompeu.

— Para que você e eu possamos ser imorais confortavelmente — expliquei. — A lei e a ordem existem para tornar o mundo seguro para os individualistas desordeiros e sem lei.

— Para não mencionar os fora da lei, gente do submundo como Chawdron. De quem, aliás, parece que nos afastamos. Onde é que eu estava?

— Você tinha chegado ao providencial encontro com a Fadinha.

— Sim, sim. Bem, como eu disse, ela veio, viu e venceu. Três dias depois estava instalada na casa. Ele a tornou sua bibliotecária.

— E amante, imagino.

Tilney deu de ombros e estendeu as mãos em um gesto de dúvida.

— Ah, esta é a questão. Aí você está tocando no coração do mistério.

— Mas você não está querendo dizer que...

— Não estou querendo dizer coisa alguma, pela boa razão de que não sei. Só posso imaginar.

— E que é que você imagina?

— Às vezes uma coisa, às vezes outra. A Fada era genuinamente enigmática. Sem o ar de esfinge que Charlotte fabricava: um mistério real. Com a Fada qualquer coisa era possível.

— Mas certamente não com Chawdron. Nesses assuntos, ele não era... bem, humano demais?

— Não, era sub-humano demais. O que é bem diferente. A Fada despertava nele toda a sua espiritualidade e religiosidade sub-humanas. Enquanto com Charlotte assomava à superfície a paixão não menos sub-humana pelo détournement de mineurs.

— Isso é por demais primitivo e esquemático para ser boa psicologia — objetei. — Os estados emocionais não são tão definidos assim. Não há um compartimento para a espiritualidade e outro, estanque, para o détournement de mineurs. Há sempre uma fusão, uma mistura.

— Você provavelmente tem razão — concordou Tilney. — E, de fato, uma de minhas conjeturas era exatamente sobre essa fusão. Conhece o tipo de coisa: os discursos insensivelmente dando lugar à ação amorosa — se bem que “ação” pareça uma palavra forte demais para descrever o que tenho em mente. Alguma coisa suavemente senil e infantil. Contatos positivamente espirituais. O amor dos anjos — tão angélico que, quando terminou, não se podia ter certeza de ter havido ou não alguma interrupção na conversa mística. O que justificaria a virtuosa indignação da Fada quando ouvia alguém aventurar-se a supor que ela era qualquer coisa além da bibliotecária de Chawdron. Quase conseguia acreditar honestamente que não era. “Acho que as pessoas são horríveis”, ela costumava me dizer nessas ocasiões. “Acho que são simplesmente nojentas. Será que não podem acreditar nem na possibilidade de pureza?” Ela ficava furiosa, ofendida, magoada. E a emoção parecia absolutamente real. O que era uma ocorrência tão rara na vida da Fada — ou pelo menos me parecia — que eu era forçado a crer que havia um motivo genuíno.

— Não ficamos todos genuinamente zangados quando sabemos que nossos conhecidos dizem de nós as mesmas coisas que dizemos deles?

— Claro; e quanto mais verdadeiro o mexerico, mais zangados ficamos. Mas a Fada ficava zangada porque o mexerico era falso. Ela insistia nisso — e insistia tão genuinamente (era a isso que eu estava querendo chegar) que me parecia impossível não crer que ela tivesse alguma justificativa. Ou nada tinha acontecido, ou então tratava-se de algo tão suavemente angelical que passara despercebido, evadia a observação aguda e, por isso, não contava.

— Mas, afinal, não é porque a aparência é honesta que se fala a verdade — protestei.

— Não. Mas você não conheceu a Fada. Ela quase nunca parecia honesta. Pouco havia do que ela dizia que não me soasse de um modo ou de outro uma mentira deslavada. De modo que, quando ela parecia estar falando a verdade (e era incrível como isso acontecia raramente), eu sempre ficava impressionado. Não podia deixar de pensar que devia haver uma razão. É por isso que dou tanta importância ao modo realmente sincero como ela ficava zangada quando lançavam dúvidas sobre a pureza de suas relações com Chawdron. Acredito que eram mesmo puras, ou então, mais provavelmente, que a impureza era tão pequena, por assim dizer, que ela podia honestamente considerá-la inexistente. Você teria a mesma impressão se a escutasse. A veracidade da raiva, o protesto ultrajado eram pura obviedade. E de repente ela se lembrava de que era cristã, praticamente uma santa; e começava a perdoar os inimigos. “Tenho pena deles”, dizia, “porque não sabem o que fazem. Gente miserável! Ignorantes de todos os sentimentos mais elevados, de todos os relacionamentos mais belos.” Não posso lhe dizer como a palavra “belo” soava pavorosa em sua boca! Realmente de fazer gelar o sangue. Ugh! — Ele estremeceu. — Dava vontade de matá-la. Todo esse tom de sentimentos cristãos dava vontade de matá-la. Quando ela perdoava as pobres pessoas desencaminhadas que não conseguiam ver o “belo” em suas relações com Chawdron, eu ficava horrorizado, enjoado, arrepiado. Pois a coisa toda era uma mentira, inteira e profundamente falsa. Depois da raiva genuína contra os mexeriqueiros, a falsidade soava ainda mais falsa do que o normal. Óbvia, inconfundível, dolorosa — como um piano desafinado, como um cuco em junho. Chawdron era surdo a essa falsidade, naturalmente; não conseguia ouvi-la. Se uma pessoa tem um profundo sentimento religioso, imagino que não perceba essas coisas. “Acho que ela tem o mais belo caráter que já encontrei num ser humano”, costumava me dizer. (Novamente “belo”, percebe? Chawdron aprendeu com ela. Mas na boca dele era apenas engraçado, não era assustador.) “O mais belo caráter”... e então aquele sorriso beatífico. Grotesco! Era exatamente o mesmo com Charlotte; ele a engoliu inteira. Charlotte fingia-se de gatinha feliz, e ele a aceitava como uma gatinha feliz. A ambição da Fada era ser considerada uma santa gatinha cristã, crismada, comungante, católica, canonizada — assim ele via sua gatinha. Incrível. Mas se alguém gasta toda a inteligência e energia aprendendo sobre petróleo, não se pode esperar que saiba muita coisa sobre o resto. Não se pode esperar que saiba a diferença entre tarântulas e gatinhas, por exemplo; nem a diferença entre Santa Catarina de Siena e uma mentirosazinha como Maggie Spindell.

— Mas ela sabia que mentia? — perguntei. — Era conscientemente hipócrita?

Tilney repetiu seu gesto de incerteza.

— Chi lo sa? Esta é finalmente a pergunta irrespondível. Ela nos leva de volta aonde estávamos agora mesmo com Chawdron: à fronteira entre biografia e autobiografia. Qual é mais real: você como você mesmo se vê ou como os outros o veem? Você em suas intenções e seus motivos ou você no produto de suas intenções? Você em suas ações ou você nos resultados de suas ações? E de qualquer maneira, quais são suas intenções e seus motivos? E quem é o “você” que tem intenções? De modo que, quando você pergunta se a Fada era uma mentirosa e uma hipócrita consciente, tenho de responder que não sei. Ninguém sabe. Nem mesmo a própria Fada. Pois, afinal de contas, eram muitas as Fadas. Havia uma que queria ser alimentada e cuidada e ter dinheiro e talvez casar-se um dia, se acontecesse de a esposa de Chawdron morrer.

— Não sabia que ele tinha uma esposa — interrompi, espantado.

— Louca — Tilney explicou telegraficamente. — Passou os últimos vinte e cinco anos num sanatório. Eu também ficaria louco se fosse casado com Chawdron. Mas isso não impedia que a Fada aspirasse a ser a segunda sra. Chawdron. Dinheiro é sempre dinheiro. Bem, havia essa Fada — a aventureira, a espécie darwiniana lutando pela existência. Mas havia também uma Fada que queria ser genuinamente cristã e santa. Uma Fada espiritual. E se a espiritualidade rendesse com financistas cansados como Chawdron — bem, naturalmente, tant mieux.

— Mas, e a falsidade de que você falou, as mentiras, a hipocrisia?

— Mera ineficiência — respondeu Tilney. — Apenas uma representação malfeita. Pois, no fim das contas, o que é a hipocrisia senão representar mal? Ela difere da santidade como um desempenho de Lucien Guitry difere de um desempenho de seu filho. Um é artisticamente bom e o outro não é.

Eu ri.

— Você esquece que sou moralista; pelo menos você disse que eu era. Essas heresias estéticas...

— Não são heresias; são reconhecimentos de fatos óbvios. Pois o que é a prática da moralidade? E só fingir ser alguém que você por natureza não é. É representar o papel de santo, ou de herói, ou de cidadão respeitável. Qual é o mais alto ideal ético da Cristandade? Ele está expresso na fórmula de Tomás de Kempis, A imitação de Cristo. De modo que as Igrejas organizadas não são mais que enormes e complicadas Academias de Arte Dramática. E todas as escolas são escolas de representar. Todas as famílias são famílias Crummles.[54] Todos os seres humanos são educados para pantomimeiros. Toda educação, à parte a educação meramente intelectual, é apenas uma série de ensaios para o papel de Jesus, de Podsnap ou de Alexandre, o Grande, ou quem quer que seja o favorito local. O homem virtuoso é aquele que aprendeu completamente seu papel e o representa com competência e de maneira convincente. O santo e o herói são grandes atores; são os Kembles[55] e Siddons[56] — pessoas com um grande talento para representar personagens heroicos que elas não são; ou pessoas com a sorte de terem nascido tão parecidas com o ideal heroico que podem começar direto com o papel, sem ensaiar. Os maus são aqueles que ou não conseguem representar ou não querem aprender. Imagine um encarregado de mudar os cenários, ligeiramente bêbado, usando seu macacão e fumando um cachimbo; ele entra no palco cambaleando, no meio da cena do julgamento em O mercador de Veneza, grita com Pórcia, dá um chute nas costelas de Antônio, derruba alguns Magníficos e puxa a barba postiça de Shylock. Ele é o criminoso. Quanto ao hipócrita — ele é o mesmo tipo de criminoso que tudo interrompe, disfarçado de ator temporariamente ou segundo fins particulares (é Tartufo); ou então (e acho que é o tipo mais comum) é apenas um mau ator. Por natureza, como o resto de nós, ele é um criminoso que interrompe a cena; mas aceita os ensinamentos das Academias de Arte Dramática locais e admite que o mais alto dever do homem é fazer o papel de astro para plateias embevecidas. Mas ele é inteiramente sem talento. Quando está pensando em seu nobre papel, ele fala, declama e gesticula até fazer quem lhe assiste sentir-se envergonhado — por si mesmo, por ele, pela espécie humana. “Julgo que a dama, ou o cavalheiro, proteste demais” — eis o que se diz. E esses protestos parecem ainda mais excessivos quando, poucos momentos depois, observa-se que quem protestava esqueceu-se inteiramente de que estava representando um papel e está se comportando como o criminoso perturbador que está em sua natureza ser. Mas ele mesmo é tão mau pantomineiro, tão completamente sem talento para a representação convincente que não percebe suas próprias interrupções; ou, se percebe, é muito de leve e com a convicção de que ninguém mais vai notá-las. Em outras palavras, a maioria dos hipócritas é de hipócritas mais ou menos inconscientes. A Fada, tenho certeza, era um deles. Simplesmente não tinha consciência de ser uma aventureira de olho nos milhões de Chawdron. Tinha consciência, isso sim, de seu papel — o papel de Santa Catarina de Siena. Acreditava nele; tinha a ambição de ser uma artista de alta classe do West End. Mas, infelizmente, não tinha talento. Representava seu papel com tão pouca naturalidade, com tantos exageros grotescos que uma pessoa normalmente sensível só podia estremecer diante de tão vergonhoso espetáculo. Era um desempenho capaz de convencer apenas os cegos e surdos espirituais. E, graças às suas preocupações com a Petróleos Nova Guiné, Chawdron era cego e surdo espiritualmente falando. Seu profundo senso religioso era o profundo senso religioso de um sub-homem. Quando ele exibia a gatinha canonizada, eu tinha náuseas; mas Chawdron achava que ela tinha o caráter mais “belo” que ele já encontrara num ser humano. E não apenas pensava que ela tinha o caráter mais belo; ele também pensava, o que era quase mais engraçado, que ela tinha a mente refinada. Era a conversa metafísica dela que o impressionava. Ela lera uns trechinhos de Spinoza e Platão e um livrinho qualquer sobre os místicos do cristianismo e uma boa quantidade daquela frouxa literatura teosófica tão popular nos subúrbios e entre coronéis aposentados e senhoras de certa idade; de modo que podia falar sobre o cosmo com muita profundidade. E, por Deus, como ela era profunda! Eu costumava às vezes perder a paciência, tudo era uma bobagem tão grande, era tanta a ignorância... Mas Chawdron a escutava reverente, cheio de enlevo, admiração e fé. Acreditava em cada palavra. Quando alguém é totalmente sem educação e amealhou fortunas mediante fraudes legais, essa pessoa é capaz de acreditar na falácia da matéria, na não existência do mal, na unidade de toda a diversidade e na espiritualidade de todas as coisas. Toda a sua vida ele conservou o presbiterianismo da infância — e com muitíssimo fervor. E agora enxertava a chorumela da Fada no Catecismo, ou no que quer que os presbiterianos aprendam na infância. Não via incongruência alguma em ser tanto um bom presbiteriano quanto um consumado vigarista. Representava o papel de presbiteriano apenas aos domingos e quando estava doente, nunca em horário de trabalho. A religião nunca tivera permissão para invadir a santidade de sua vida particular. Mas com o avançar da meia-idade sua mente ficou mais frouxa, os efeitos de uma vida mal usada começaram a se fazer sentir. E ao mesmo tempo seu afastamento dos negócios eliminou quase todas as distrações não essenciais. Seu profundo senso religioso tinha mais chance de expressar-se. Ele podia chafurdar tranquilo no sentimentalismo e na tolice. A Fada fez sua aparição providencial e mostrou-lhe quais eram os montes de estrume emocionais e intelectuais mais macios para ele chafurdar. Ele ficou grato — lealmente grato, mas não sem perder o senso do ridículo. Nunca me esquecerei, por exemplo, da ocasião em que falou sobre o gênio da Fada. Estávamos jantando na casa dele, eu, ele e a Fada. Um jantar horrível, com a Fada, mistura de Santa Catarina de Siena e Mahatma Gandhi, explicando por que era vegetariana e asceta. Tinha aquele horrível complexo da classe média fina a respeito de comida que faz com que os modos à mesa nas praças de alimentação das galerias sejam tão grotescamente perfeitos — aquele medo de ser baixo ou vulgar que leva as pessoas a comerem como se não estivessem comendo. Elas nunca botam comida na boca, e só mastigam com os dentes da frente, como coelhos. E nunca tocam em coisa alguma com os dedos. Já vi uma mulher comer cereja com garfo e faca em um lugar desses. Muitíssimo extraordinário e repulsivo. Bem, a Fada tinha esse complexo — é uma questão de classe — mas com ela era racionalizado em termos de ahimsa e ascetismo cristão. Bem, ela tinha passado a noite inteira tagarelando sobre o espírito do amor e sua incompatibilidade com uma dieta de carne, e a necessidade de mortificar o corpo por causa da alma, e sobre Buda e São Francisco e os êxtases místicos e, acima de tudo, sobre si mesma. Deixou-me quase louco de irritação, sem mencionar o fato de que ela realmente começou a me fazer perder a fome com suas rapsódias de horror e nojo santos. Fiquei grato quando finalmente ela nos deixou em paz com nosso conhaque e nossos charutos. Mas Chawdron inclinou-se sobre a mesa em minha direção, brilhando espiritualmente em cada centímetro daquele seu rosto de falsário. “Ela não é maravilhosa?”, perguntou. “Não é simplesmente ma-ra-vi-lho-sa?” “Maravilhosa”, concordei. E então, com muita solenidade, sacudindo o dedo para mim, ele disse: “Conheci três grandes intelectos em minha vida, três gênios — Lorde Northcliffe, o sr. John Morley e essa menininha. Esses três”. E recostou-se novamente na cadeira assentindo para mim quase ferozmente, como se me desafiasse a negar.

— E você aceitou o desafio? — perguntei rindo.

Tilney sacudiu a cabeça.

— Apenas me servi de mais uma dose do seu conhaque de 1820; era a única resposta que um homem racional podia dar.

— E a Fada concordava com a opinião de Chawdron sobre sua mente?

— Ah, acho que sim — disse Tilney. — Acho que sim. Ela tinha um ótimo conceito de si mesma. Como todas essas pessoas espirituais. Um conceito injustificado. Representava muito mal e sem consistência alguma o papel superior. Mas mesmo assim estava convencida de sua superioridade. Era inevitável, pois tinha uma capacidade enorme de autossugestão. O que dizia três vezes tornava-se verdade. Por exemplo, a princípio eu costumava achar que havia alguma palavra mágica, um hocus-pocus, naquele ascetismo dela. Ela comia tão absurdamente pouco em público e nas refeições que imaginei que ela devia ter algum momento de glutonice escondida nos intervalos. Mas depois cheguei à conclusão de que tinha cometido uma injustiça com ela. Por obra de dizer constantemente a si mesma e às outras pessoas que comer era grosseiro e pouco espiritual, para não dizer mal-educado e vulgar, ela realmente tinha conseguido, acredito, fazer com que a comida lhe desse enjoo. Tinha chegado ao ponto de não poder mesmo comer mais que um mínimo. O que era uma das causas de suas mazelas. Era simplesmente subnutrida. Mas a subnutrição era apenas uma das causas. Ela era também diplomaticamente doente. Ameaçava morrer como um estadista ameaça mobilizar, para conseguir o que queria. Chantagem, na verdade. Não por dinheiro; de muitos modos ela era curiosamente despojada. O que queria era o interesse dele, era poder sobre ele, era autoafirmação. Tinha dores de cabeça pela mesma razão por que um bebê chora. Se cedemos ao bebê e fazemos o que ele quer, ele vai tornar a chorar, vai fazer do choro um hábito. Chawdron era um desses pais do tipo fraco. Quando a Fada tinha uma de suas famosas dores de cabeça, ele ficava terrivelmente perturbado. O modo como ele se alvoroçava pelo quarto com bolsas de gelo e de água quente e água de colônia! O obituarista do Times teria chorado ao vê-lo; uma exibição tão comovente do coração de ouro! O resultado foi que a Fada costumava ter uma dor de cabeça a cada dois ou três dias. Era absolutamente intolerável.

— Mas eram puramente imaginárias essas dores de cabeça?

Tilney deu de ombros.

— Sim e não. Certamente havia uma base fisiológica. A mulher tinha mesmo dor de cabeça de vez em quando. Era de esperar; estava fraca por não comer o suficiente; não fazia bastante exercício, de modo que tinha prisão de ventre crônica; a prisão de ventre crônica provavelmente provocou uma leve inflamação crônica nos ovários; e ela certamente sofria de algum problema nos olhos — dava para perceber por aquele olhar belamente vago e espiritual característico da miopia não corrigida. Havia, como se vê, muitas razões fisiológicas para as dores de cabeça. O corpo lhe dava de presente, por assim dizer, uma dor. Sua mente então punha-se a trabalhar essa matéria-prima. E que formas não surgiram! Tocadas por sua imaginação, as dores de cabeça tornavam-se místicas, transcendentais. Era o infinito num grão de areia, e a eternidade numa estase intestinal. Regularmente todas as terças e sextas-feiras ela morria — morria com uma linda resignação cristã, a coragem de um mártir. Chawdron costumava descer do quarto da doente com lágrimas nos olhos. Nunca vira tanta paciência, tanta coragem, tanta garra. Poucos homens havia que ela não suplantava. Era um exemplo maravilhoso. E assim por diante. E ouso dizer que era tudo verdade. Ela começava fingindo um pouco, fingindo que as dores de cabeça eram piores do que eram. Mas sua imaginação era demais para ela; fugia de seu controle. Seus fingimentos gradualmente tornavam-se verdade, e ela realmente sofria um martírio todas as vezes; ela de fato chegava às raias da morte. E então surgiu o hábito do martírio, e as crises tornaram-se corriqueiras; a imaginação estimulava as atividades normais dos ovários inflamados e dos intestinos envenenados; a dor surgia e imediatamente tornava-se a matéria-prima de um martírio místico e espiritual tendo lugar num plano mais alto. De qualquer maneira, era tudo muito complicado e obscuro. E, obviamente, se a própria Fada tivesse feito a você um relato de sua vida naquela época, seria parecido com as reminiscências da vida de São Lourenço sobre a grelha. Ou melhor, seria parecido com a produção insincera dessas reminiscências. Pois a Fada, como já disse antes, não tinha talento, e a sinceridade e a santidade são questões de talento. A hipocrisia e a falta de sinceridade são produtos de uma incompetência nata. Aqueles que são culpados delas são as pessoas sem capacidade para as artes do comportamento e da autoexpressão. A conversa da Fada teria soado para você inteiramente falsa. Mas para ela era tudo genuíno. Ela realmente sofria, realmente morria, realmente era boa, resignada e corajosa. Assim como o paranoico é realmente Napoleão Bonaparte, e o rapaz com dementia praecox está realmente sendo espionado e perseguido por um bando de inimigos diabolicamente inteligentes. Se eu fosse contar a história do ponto de vista dela, soaria realmente bela — não “bela”, por favor; mas genuína e verdadeiramente bela; e pela simples razão de que eu tenho o dom da expressão, que a pobre Fada não tem. De modo que, para todos, exceto os cretinos emocionais como Chawdron, ela era obviamente hipócrita e mentirosa. E também um caso patológico. Conseguia fazer as coisas se tornarem muito verdadeiras. Não apenas doenças, martírio e santidade mas também fatos históricos, ou melhor, não fatos históricos. Ela autenticava esses não fatos pela simples repetição de que eles tinham acontecido. Por exemplo, ela queria que as pessoas acreditassem — e ela mesma queria acreditar — que era íntima de Chawdron havia muitos anos, desde a infância, desde que nascera. O fato de que ele a conhecia desde que ela era “daquele” tamanho explicaria e justificaria seu atual relacionamento com ele. Os mexeriqueiros não teriam desculpa para falar. Assim, ela se pôs a fabricar pedacinho por pedacinho uma intimidade de uma vida inteira, até mesmo certo parentesco, com seu tio Benny. Eu lhe contei que era assim que ela o chamava, não contei? Esse apelido tinha sua importância; colocava-o imediatamente em sua tabela de consanguinidade e então desinfetava suas relações, por assim dizer; automaticamente tornava-as inocentes.

— Ou incestuosas — acrescentei.

— Ou incestuosas. Isso mesmo. Mas ela não pensava nos refinamentos d’Annunzianos. Quando lhe dava esse nome, ela promovia Chawdron ao grau de um velho parente querido, ou pelo menos um velho e querido amigo de família. Às vezes até o chamava de “titiozinho Benny”, para mostrar que o conhecia desde o berço — e assim articulava os sons, pois assim eles se materializavam. Mas isso não era suficiente. A prova tinha de ser maior, mais circunstancial. Assim ela inventava: brincadeiras com o titiozinho, visitas ao circo com ele, todo um suprimento de lembranças infantis.

— Mas e quanto a Chawdron? — perguntei. — Ele participava das lembranças inventadas?

Tilney assentiu.

— Mas para ele, naturalmente, elas eram mesmo inventadas. As outras pessoas, no entanto, aceitavam-nas como fatos. As lembranças dela eram tão detalhadas que, a não ser que se soubesse que era mentirosa, simplesmente tinha-se que aceitá-las. Com o próprio Chawdron ela não podia, é claro, fingir que o conhecia, literal e historicamente, todos aqueles anos. Não a princípio, de qualquer maneira. A intimidade de uma vida inteira começou sendo figurativa e espiritual. “Sinto que conheço meu tio Benny desde criancinha”, disse-me na presença dele, logo depois de tê-lo conhecido; e como sempre, nessas ocasiões, sua voz era mais infantil que nunca. Era uma voz horrível — tão choramingas, tão falsamente doce... “Desde que eu era um bebezinho pequetitinho. Você não sente isso, tio Benny?” E Chawdron concordava calorosamente; claro que ele sentia isso. Desse dia em diante ela começou a discorrer sobre os incidentes que deviam ter ocorrido naquela distante infância com o querido titiozinho. Eram os mesmos incidentes, é claro, que ela rememorava quando conversava com outras pessoas e ele não estava presente. Fez com que lhe desse velhas fotografias dele — imagens de colarinho alto e fraque, em estranhos paletós de Norfolk, de cartola, sentado em uma caleça. Ajudaram a fazer reais suas invenções. Com a ajuda delas e a ajuda das reminiscências dele, construiu uma vida inteira em comum com ele. “Você se lembra, tio Benny, daquela vez que fomos para Cowes no seu iate e eu caí no mar?”, ela perguntava. E Chawdron, que entrara de cabeça no jogo, respondia: “Claro que me lembro. E, quando a pescamos, tivemos que enrolá-la em cobertores quentes e dar-lhe um rum aquecido com leite. E você ficou bêbada”. “Eu era engraçada quando estava bêbada, tio Benny?” E Chawdron dava-se ao penoso trabalho de inventar algumas gracinhas capengas que eram então incorporadas à história. De modo que em outra ocasião a Fada poderia começar: “Titiozinho Benny, você se lembra das coisas ridículas que eu disse quando você me fez ficar bêbada com rum e leite quente naquela vez em que caí no mar em Cowes?”. E assim por diante. Chawdron adorava esse jogo, achava-o simplesmente doce, engraçado e comovente — de fato alguma coisa tirada de Barrie ou A. A. Milne, e nunca se cansava de jogá-lo. Quanto à Fada — para ela não era um jogo. Os não fatos tinham sido repetidos até se transformar em fatos. “Mas, convenhamos, srta. Spindell”, eu lhe disse certa vez, quando ela me contava — me contava! — sobre uma aventura que tivera com o tio Benny quando ela era pequenininha, “convenhamos, srta. Spindell” (eu sempre a chamava assim, embora ela ansiasse por ser minha Fada assim como de Chawdron, e me teria chamado de tio Ted se eu lhe desse o menor encorajamento; mas permaneci firme; para mim ela era sempre a srta. Spindell), “convenhamos”, disse, “a senhorita parece esquecer-se que faz pouco mais de um ano que viu o sr. Chawdron pela primeira vez.” Ela olhou para mim sem expressão e sem dizer coisa alguma. “Não pode seriamente esperar que eu também esqueça”, acrescentei. Pobre Fada! A falta de expressão deu lugar a um embaraço triste, ruborizado. “Ah, é claro”, ela começou, e riu nervosamente. “É como se eu o conhecesse desde sempre. Minha imaginação...” A frase terminou em silêncio, e um minuto depois ela arranjou uma desculpa para sair. Eu percebia que ela estava perturbada, fisicamente perturbada, como se tivesse acordado depressa demais de um sono profundo, jogada para fora de um mundo e caindo em outro que se movia em direção diferente. Mas, quando a encontrei no dia seguinte, ela parecia novamente ela própria. Tinha sugestionado a si mesma de volta ao mundo dos sonhos; da outra ponta da mesa, ao almoço, ouvi-a conversar com um americano, conhecido de negócios de Chawdron, sobre os momentos divertidos que ela e o tio Benny costumavam ter na casa dele numa charneca na Escócia. Mas daí em diante, percebi, ela nunca mais conversou comigo sobre sua infância apócrifa. Um incidente curioso: fazia com que eu visse sua hipocrisia sob outro prisma. Foi então que comecei a perceber que a mentira em sua alma era principalmente uma mentira inconsciente, produto de patologia e falta de talento. Principalmente; pois às vezes, ao contrário, a mentira era consciente e deliberada. A mais extraordinária foi a mentira no fundo do grande caso dos estigmas.

— Os estigmas? — repeti. — Uma mentira religiosa, então.

— Religiosa — ele assentiu. — Era assim que ela a justificava para si mesma. Embora, naturalmente, a seus olhos todas as suas mentiras fossem religiosas. Religiosas porque serviam a seus propósitos, e ela era uma santa; sua causa era sagrada. E depois, é claro, quando ela tivesse tratado as mentiras pelo processo de desinfecção imaginativa, elas deixavam de ser mentiras e esvoaçavam para longe como verdades religiosas brancas como a neve. O caso dos estigmas deixou isso bem claro. Eu a peguei em flagrante. Tudo começou com um furúnculo que surgiu no pé de Chawdron.

— Lugar curioso para um furúnculo.

— Não é comum — concordou ele. — Eu mesmo já tive um quando era menino. Desagradabilíssimo, eu lhe asseguro. Bem, a mesma coisa aconteceu com Chawdron. Ele e eu estavámos em sua casa de campo, jogando golfe nos intervalos da confecção da Autobiografia. Nós nos sentávamos com charutos e conhaque, e eu o interrogava de leve. Deixado por sua própria conta, ele era capaz de divagar e tornar-se incoerente e sem cronologia. Eu tinha de canalizar a narração, por assim dizer. Incrivelmente franco ele era. Aprendi coisas curiosas sobre o mundo dos negócios, posso lhe garantir. Não é necessário dizer que elas não estão na Autobiografia. Eu as estou reservando para a Vida. O que significa que ninguém jamais vai conhecê-las. Bem, como eu dizia, estávamos no campo para um fim de semana prolongado, de sexta a terça. A Fada ficara em Londres. Periodicamente ela levava a sério seu emprego de bibliotecária e protestava que simplesmente tinha de continuar seu catálogo. “Tenho minhas obrigações”, disse quando Chawdron sugeriu que ela viesse conosco. “Você tem de me deixar cumprir com minhas obrigações. Acho que não se deve ser apenas frívolo; não acha, tio Benny? Além disso, realmente adoro meu trabalho.” Deus, como ela me enfurecia com aquela conversa mole! Mas Chawdron, naturalmente, ficou emocionado e encantado. “Que pessoazinha extraordinária ela é!”, disse-me quando saímos juntos de casa. Ainda mais extraordinária do que você imagina, pensei. Ele continuou com a rapsódia até Watford. Mas, de certo modo, percebi quando chegamos, de certo modo ele estava bem satisfeito por ela não ter ido. Era para ele um alívio ter umas breves férias masculinas. Ela tinha a esperteza de ver que ele precisava dessas pausas de vez em quando. Bem, jogamos nosso golfe, com o resultado de que no domingo de manhã o furúnculo do pobre Chawdron, que na sexta-feira era só uma manchinha insignificante, tinha inchado com o exercício e a fricção até transformar-se num enorme hemisfério vermelho que fazia com que caminhar fosse um sofrimento. Desagradável, sem dúvida; mas nada que, para uma pessoa comum, fosse motivo de preocupação séria. Chawdron, no entanto, não era uma pessoa comum no que se referia a furúnculos. Ele tinha um complexo de furúnculo, uma furunculofobia. Desculpável, talvez; parece que o irmão dele tinha morrido de uma gangrena horrível que começara, aparentemente inócua, com uma espinha no rosto. Chawdron não podia ter uma pinta sem imaginar que tinha pegado a doença do irmão. Esse caso do pé deixou-o apavorado. Via o osso infectado, a perna inteira apodrecendo, amputações, morte. Ofereci todo o consolo e encorajamento que pude e mandei buscar o médico local. Ele veio imediatamente e aconteceu de ser um rapaz muito decidido, eficiente e que inspirava confiança. O furúnculo foi anestesiado, lancetado, limpo, coberto com um curativo. Ele prometeu a Chawdron que não haveria complicações. E não houve. A coisa cicatrizou normalmente. Chawdron resolveu voltar para a cidade na terça-feira, como tinha sido combinado. “Não gostaria de decepcionar a Fada”, explicou. “Ela ficaria tão triste se não voltasse quando prometi. Além disso, pode ficar nervosa. Você não tem ideia da intuição que aquela menininha tem. É quase sobrenatural, como a vidência. Ela ia adivinhar que alguma coisa está errada e ia ficar preocupada; e você sabe como preocupar-se faz mal a ela.” Eu sabia realmente; aquelas suas dores de cabeça místicas eram a maldição da minha vida. Não, não, concordei. Ela não podia se preocupar. Assim, foi decidido que a Fada permaneceria na feliz ignorância do furúnculo até Chawdron chegar. Mas surgiu a questão: como ele deveria chegar? Tínhamos ido para o campo no Bugatti de Chawdron. Ele tinha um fraco pela velocidade. Mas não era carro para enfermo. Foi combinado que o motorista levaria o Bugatti para a cidade e voltaria com o Rolls. No caso improvável de encontrar a srta. Spindell, ele não podia dizer-lhe por que tinha sido mandado à cidade. Essas eram as suas ordens. O sujeito foi e voltou com o Rolls. Chawdron foi instalado, quase como se estivesse numa ambulância, e viajamos majestosamente para Londres. Que volta ao lar! Antevendo a solidariedade que receberia da Fada, Chawdron começou a ter uma leve recaída à medida que nos aproximávamos de casa. “Sinto o pé latejando”, assegurou-me; e quando saímos do carro, como ele mancava! Como se tivesse perdido uma perna em Gallipoli. Realmente heroico. O mordomo teve que ampará-lo até a sala de estar. Ele foi colocado no sofá. “A srta. Spindell está em seu quarto?” O mordomo achava que sim. “Então peça a ela para descer até aqui imediatamente.” O mordomo saiu; Chawdron fechou os olhos — afetando fadiga, como um homem muito doente. Estava se preparando para conseguir a solidariedade que pudesse e, é lógico, saboreando-a voluptuosamente de antemão. “Ainda latejando?”, perguntei, um tanto irreverente. Ele assentiu sem abrir os olhos. “Ainda latejando.” Seus modos eram graves, sepulcrais. Tive de me esforçar para não rir. Houve um silêncio, nós esperamos. E então a porta abriu-se. A Fada apareceu. Mas uma Fada estropiada. Um pé calçando sapato de salto alto, o outro de chinelo. E como mancava! “Outra perna perdida em Gallipoli”, pensei eu. Quando ouviu a porta abrir-se, Chawdron fechou os olhos com mais força e virou o rosto para a parede, ou pelo menos para o encosto do sofá. Eu percebi que isso constrangeu um pouco a Fada. Sua entrada tinha sido dramática; ela queria que ele visse sua enfermidade imediatamente; não contava encontrá-lo numa cena de leito de morte. Teve de improvisar apressadamente outro truque teatral, um novo roteiro; a cena que tinha preparado não ia servir. O que era ainda mais constrangedor para ela, porque eu estava lá, observando — um espectador muito exigente, ela sabia; nem um pouco fã de Maggie Spindell. Hesitou um segundo perto da porta, esperando que Chawdron virasse o rosto; mas ele mantinha os olhos resolutamente fechados e o rosto escondido. Evidentemente decidira representar o papel de moribundo com todas as suas forças. Assim, depois de um olhar meio nervoso em minha direção, ela atravessou mancando a sala até o sofá. “Tio Benny!” Ele levou um susto, como se não soubesse que ela estava ali. “É você, Fada?” Isso pianissimo, con espressione. Então, molto agitato da parte da Fada: “Que foi, titiozinho? Que foi? Ah, conte-me!”. Ela estava suficientemente perto agora para colocar a mão no ombro dele. “Conte-me.” Ele voltou o rosto para ela — o ladrão ternamente transfigurado. Seu coração transbordava — “Fada!” — a lavagem de porcos. “Mas que foi que aconteceu, tio Benny?” “Nada, Fada.” Seu tom insinuava que isso era uma heroica minimização, à maneira de Sir Philip Sidney. “Só o meu pé.” “Seu pé!” A Fada demonstrou tamanho espanto que nós dois quase saltamos. “Alguma coisa errada com seu pé?” “Sim, por que não?” Chawdron estava meio irritado; não estava recebendo o tipo de solidariedade que tinha esperado. Ela voltou-se para mim. “Mas quando aconteceu isso, sr. Tilney?” Eu estava tranquilo. “Um furúnculo feio”, expliquei. “Andar pelo campo de golfe não foi muito bom. Ele teve de ser lancetado no domingo.” “Mais ou menos às onze e meia da manhã de domingo?” “Sim, acho que foi mais ou menos às onze e meia”, respondi, achando estranha a pergunta. “Foi exatamente às onze e meia que isto aconteceu”, disse ela tragicamente, apontando para seu pé calçado de chinelo. “‘Isto’ o quê?”, perguntou Chawdron, irritado. Estava profundamente zangado por ter sido subtraído da solidariedade. Tive pena da Fada; as coisas pareciam estar correndo mal para ela. Percebi que ela tinha preparado um golpe que não tinha dado certo. “Parece que a srta. Spindell também machucou o pé”, expliquei. “Você não viu como ela mancava?” “Como foi que você se machucou?”, perguntou Chawdron. Ainda estava mal-humorado. “Eu estava sentada tranquilamente na biblioteca, trabalhando no catálogo”, começou; e eu adivinhei, pelo modo que as frases saíam, que ela estava finalmente podendo usar o material que tinha preparado. “De repente, exatamente às onze e meia (eu me lembro de ter consultado o relógio), senti uma dor horrível no pé. Como se alguém estivesse enfiando uma faca muito afiada nele. Foi tão forte que quase desmaiei.” Ela fez uma pausa, esperando um comentário. Mas Chawdron não quis fazê-lo. De modo que coloquei um “Meu Deus, que extraordinário!” com o qual ela teve que se contentar. “Quando me levantei, mal podia ficar de pé, de tanto que o pé doía”, continuou. “E desde então estou mancando. E a coisa mais extraordinária é que há uma marca vermelha no meu pé, como uma cicatriz.” Outra pausa cheia de expectativa. Mas ainda nenhuma palavra de Chawdron. Ele ficou ali com a boca bem fechada, e as rugas que separavam suas bochechas daquele enorme lábio superior de macaco pareciam talhadas na pedra. A Fada olhou para ele e viu que ele tomara um caminho indesejado. Seria tarde demais para remediar o erro? Colocou o novo plano de campanha em execução imediata. “Mas você, pobre titiozinho!”, começou, no tom que se usa com um cachorro doente. “Como sou egoísta de falar sobre minhas dores, com você deitado aí com o pé todo enfaixado!” O cão começou imediatamente a abanar o rabo. O olhar beatífico voltou a seu rosto. Ele pegou a mão dela. Eu não ia conseguir suportar aquilo. “Acho melhor ir embora”, falei; e fui.

— Mas e o pé? — perguntei. — A dor perfurante exatamente às onze e meia?

— Boa pergunta. Como o próprio Chawdron comentou, quando o encontrei de novo, “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha tua filosofia”. — Tilney riu. — A Fada tinha triunfado. Depois que ele teve sua dose de amor maternal, caridade cristã e simpatia felina, acho que estava pronto para ouvir a história dela. A dor perfurante às onze e meia, a cicatriz vermelha. Estranho, misterioso, inexplicável. Ele discutiu isso tudo comigo, com muita seriedade. Falamos sobre espiritualismo e telepatia. Separamos cuidadosamente as coisas milagrosas e as paranormais. “Como você sabe”, disse-me, “a vida inteira fui um bom presbiteriano, e como tal era inclinado a considerar como meras invenções todas as histórias dos santos católicos. Nunca acreditei na história dos estigmas de São Francisco, por exemplo. Mas agora acredito!” Uma pausa solene e tremenda. “Agora sei que é verdade.” Apenas baixei a cabeça em silêncio. Mas quando voltei a encontrar M’Crae, o motorista, fiz-lhe algumas perguntas. Sim, ele tinha encontrado a srta. Spindell no dia em que levara o Bugatti para Londres e voltara com o Rolls. Tinha ido até o escritório das secretárias para ver se havia alguma carta para levar ao sr. Chawdron, e a srta. Spindell colidira com ele quando ele saía. Perguntou-lhe o que estava fazendo em Londres e ele não conseguiu pensar em algo para responder, apesar das ordens do sr. Chawdron, a não ser a verdade. Desde então isso estava em sua consciência; esperava não ter causado mal algum. “Pelo contrário”, assegurei, e também que certamente eu não iria contar ao sr. Chawdron. E nunca contei. Achei... Mas meu Deus! — interrompeu-se ele. — Que é isso? — Era Hawtrey, que entrara para arrumar a mesa para o almoço. Ela nos ignorou deliberadamente. Era não apenas como se não existíssemos, mas também como se não tivéssemos o direito de existir. Tilney pegou seu relógio. — Uma e vinte. Deus do céu! Quer dizer que passei a manhã inteira falando, desde o café?

— Parece que sim — respondi.

Ele gemeu.

— Está vendo o que é ter o dom da tagarelice. Uma preciosa manhã inteiramente desperdiçada.

— Para mim, não — declarei.

Ele deu de ombros.

— Talvez não. Para você a história era nova e curiosa. Mas para mim é conhecida, passada.

— Mas também era para Shakespeare a história de Otelo, mesmo antes de começar a escrevê-la.

— É, mas ele escrevia, não falava. Havia algo para mostrar em troca do tempo que ele gastava. Seu Otelo não desapareceu no ar, como o meu pobre Chawdron.

Suspirou e silenciou. De rosto pétreo e sombrio, Hawtrey movimentava-se engomada e levemente ruidosa em volta da mesa; houve um tilintar de aço e prata quando ela arrumou os lugares. Esperei até ela sair do aposento antes de tornar a falar. Quando os empregados de alguém são mais respeitáveis que esse alguém (e hoje em dia eles geralmente são), todo cuidado é pouco.

— E como terminou? — perguntei.

— Como terminou? — ele repetiu, a voz de repente vazia e sem expressão; estava cansado da história, queria pensar em outra coisa. — Terminou, pelo que me dizia respeito, quando terminei a Autobiografia e me cansei do assunto. Gradualmente desapareci da existência de Chawdron. Como o Gato de Alice no País das Maravilhas.

— E a Fada?

— Desapareceu gradualmente da vida um ano depois do caso dos estigmas. Retirara-se demasiadas vezes para seu leito de morte místico. Seus fingimentos tornaram-se afinal realidade; sempre existira esse risco. Ela por fim morreu.

A porta abriu-se; Hawtrey entrou, carregando uma travessa.

— E Chawdron, imagino, ficou inconsolável? — A inconsolabilidade é, felizmente, um assunto respeitável.

Tilney assentiu.

— Voltou-se para o espiritualismo, é claro. Nêmesis mais uma vez.

Hawtrey levantou a tampa da travessa; um cheiro de solhas fritas escapou para o ar.

— O almoço está servido — anunciou ela, com o que me parecia uma censura e desaprovação mal disfarçadas.

— O almoço está servido — repetiu Tilney, aproximando-se de seu lugar. Sentou-se e desdobrou o guardanapo.

— Uma refeição depois da outra, pontualidade, dia após dia, dia após dia. Que vida! Seria bastante tolerável se alguma coisa fosse feita entre as refeições. Mas, em meu caso, nada é feito. Refeição após refeição, e entre as refeições um vácuo, uma espécie de... — Hawtrey, que passara os últimos segundos oferecendo-lhe o sauce tartare, deu-lhe uma discretíssima cotovelada. Tilney voltou a cabeça. — Ah, obrigado — disse, servindo-se.


A cura de repouso

Era uma mulher pequenina, de cabelos escuros e olhos cinza-azulados, muito grandes e arrebatadores no rosto pequeno e pálido. Um rosto de menininha, com feições pequenas e delicadas, mas gasto — prematuramente gasto; pois a sra. Tarwin tinha só vinte e oito anos; e os olhos grandes e abertos eram inquietos e perturbadoramente brilhantes. “Moira tem nervos”, explicava o marido quando as pessoas perguntavam por que ela não estava com ele. Nervos que não conseguiam aguentar a tensão de Londres ou Nova York. Tinha de viver tranquilamente em Florença. Uma espécie de cura de repouso. “Pobre querida!”, acrescentava, em voz que se tornava de repente forrada de sentimentos; e clareava seu rosto inteligente, normalmente sem expressão, com um daqueles seus sorrisos iluminados — tão melancólicos, ternos e encantadores. Quase encantadores demais, sentia-se não sem incômodo. Ele ligava o encanto e a melancolia como eletricidade. Clique! O rosto iluminava-se brevemente. E então clique! A luz tornava a sumir, e ele tornava-se mais uma vez o pesquisador inteligente e sem expressão. Seu assunto era o câncer.

Pobre Moira! Esses seus nervos! Ela era cheia de caprichos e obsessões. Por exemplo, quando alugou a villa na encosta do Bello Sguardo, queria que lhe permitissem cortar os ciprestes no final do jardim. “Parece um cemitério”, repetia ao velho signor Bargioni. O velho Bargioni era simpático, mas firme. Não tinha intenção de sacrificar seus ciprestes. Eles davam o toque final de perfeição à vista mais linda de toda Florença; da janela do melhor quarto via-se a cúpula e a torre de Giotto emolduradas entre suas colunas escuras. Com toda sua inesgotável loquacidade, ele tentou convencê-la de que os ciprestes não eram realmente nem um pouco fúnebres. Pelo contrário, para os etruscos (ele inventou esse pequeno fato arqueológico na inspiração do momento) o cipreste era um símbolo de alegria; as festas do equinócio primaveril terminavam com danças em volta da árvore sagrada. Boecklin, era verdade, tinha plantado ciprestes em sua Ilha dos Mortos. Mas acontece que Boecklin, afinal... E se ela realmente achasse os ciprestes deprimentes, podia plantar capuchinhas para subir por eles. Ou rosas. As rosas, para os gregos...

— Está bem, está bem — apressou-se a dizer Moira Tarwin. — Vamos deixar os ciprestes.

Aquela voz, aquele fluxo interminável de cultura e de inglês estrangeiro. O velho Bargioni era realmente terrível. Ela teria gritado se tivesse que ouvir por um momento mais. Cedeu por pura autodefesa.

— E la Tarwinnè — perguntou a signora Bargioni quando o marido voltou para casa.

Ele deu de ombros.

— Una donnina piuttosto sciocca — foi seu veredito.

Meio tola. O velho Bargioni não era o único homem que pensava assim. Mas era um dos poucos que consideravam essa tolice um defeito. A maioria dos homens que a conheciam ficava encantada por sua tolice; adoravam enquanto sorriam. Em conjunto com a estatura minúscula, aqueles olhos e o rosto delicado e infantil, a tolice dela inspirava devoções avunculares e amores protetores. Ela tinha a capacidade de fazer com que os homens se sentissem, por contraste, agradavelmente grandes, superiores e inteligentes. E por sorte, ou talvez por falta de sorte, Moira passara a vida entre homens realmente inteligentes e os chamados superiores. O velho Sir Watney Croker, seu avô, com quem vivera desde os cinco anos (pois seu pai e sua mãe tinham morrido jovens), era um dos mais eminentes médicos de sua época. Sua monografia sobre as úlceras duodenais permanece até hoje a obra clássica sobre o assunto. Entre uma e outra úlcera duodenal, Sir Watney encontrava tempo para adorar, contentar e estragar sua netinha, juntamente com a pesca com mosca e a metafísica, ela era seu passatempo. O tempo passou; Moira cresceu, em respeito à cronologia; Sir Watney contudo continuou a tratá-la como uma criança mimada, continuou encantando-se com seus pipilos de passarinho, sua esperteza e sua impertinência de enfant terrible. Encorajava-a, quase a compelia a conservar sua criancice. Mantê-la um bebê apesar da idade dela divertia-o. Adorava-a bebezinha, e só conseguia amá-la assim. Todas aquelas úlceras duodenais — talvez elas tenham feito algo à sua sensibilidade, a tenham pervertido um pouco, a tenham conservado um tanto tolhida e não adulta, como a própria Moira. Das profundezas de seu ser não especializado e não profissional, Sir Watney era ele mesmo um bebê. Demasiada preocupação com o duodeno impedira que essa parte negligenciada crescesse plenamente. Os semelhantes se atraem; o velho bebê Watney amava o bebê em Moira e queria manter a jovem permanentemente criança. A maioria dos amigos compartilhava dos gostos de Sir Watney. Médicos, juízes, professores, funcionários públicos — todos os membros do círculo de Sir Watney eram profissionalmente eminentes, especialistas veteranos. Ser convidado para um de seus jantares era um privilégio. Nessas ocasiões augustas, desde os dezessete anos, Moira sempre estivera presente, a única mulher à mesa. Não realmente uma mulher, o sr. Watney explicava; uma criança. Os veteranos especialistas eram todos seus tios indulgentes. Quanto mais infantil era, mais eles gostavam dela. Moira lhes punha apelido. O professor Stagg, por exemplo, o neo-hegeliano, era o tio Bonzo; o juiz Gidley era o Bode Giddy. E assim por diante. Quando eles brincavam, ela respondia com impertinência. Como eles riam! Quando começavam a discutir o absoluto ou o futuro industrial da Inglaterra, ela interpunha um comentário qualquer deliciosamente irrelevante que os fazia rir ainda mais. Maravilhoso! E no dia seguinte a história seria contada aos colegas nos tribunais ou no hospital, aos amigos no Ateneu. Em círculos eruditos e profissionais, Moira gozava de uma verdadeira celebridade. No final ela deixara de ser não apenas uma mulher; quase deixara de ser uma criança. Era pouco mais que a mascote deles.

Às nove e meia ela deixava a sala de jantar, e a conversa voltava às úlceras, à realidade e à revolução emergente.

— Dá vontade de tê-la como bichinho de estimação — tinha dito John Tarwin quando a porta se fechou atrás dela naquela primeira ocasião em que jantou na casa de Sir Watney.

O professor Broadwater concordou. Houve um pequeno silêncio. Foi Tarwin quem o rompeu.

— Qual é sua opinião — perguntou, inclinando-se para a frente com aquela expressão de inteligência inexpressiva em seu rosto ansioso e de feições agudas — a respeito da validade de experiências com tumores artificialmente enxertados, em oposição aos tumores naturais?

Tarwin tinha apenas trinta e três anos e parecia ainda mais moço entre os veteranos de Sir Watney. Já tinha feito um bom trabalho, Sir Watney explicou a seus convidados reunidos antes da chegada do rapaz, e podia-se esperar que ele fizesse muito mais. Um sujeito interessante, também. Tinha estado em toda parte: África tropical, Índia, América do Norte e do Sul. Em boa situação. Não era preso a um trabalho acadêmico para ganhar a vida. Tinha trabalhado em Londres, na Alemanha, no Instituto Rockefeller em Nova York, no Japão. Oportunidades invejáveis. Muito a ser dito a favor de uma renda particular. “Ah, aí está você, Tarwin. Boa noite. Não, você não está atrasado. Este é o juiz Gidley, o professor Broadwater, o professor Stagg e — ora! Não tinha visto você, Moira; você é ultramicroscópica — minha neta.” Tarwin sorriu para ela. Ela era mesmo encantadora.

Bem, agora estavam casados há cinco anos, pensava Moira enquanto empoava o rosto diante do espelho. Tonino viria para o chá; ela acabava de mudar de roupa. Através da janela atrás do espelho contemplava-se, por entre os ciprestes, a cidade de Florença — um amontoado de telhados marrons, e acima deles, no centro, a torre de mármore e a enorme e leve cúpula. Cinco anos. Foi a fotografia de John no porta-retrato de couro que a fizera pensar no casamento deles. Por que a mantinha ali na penteadeira? Força do hábito, supunha. Não que a foto lhe recordasse os dias em que fora particularmente feliz. Pelo contrário. Havia algo, ela agora sentia, levemente desonesto em mantê-la ali. Fingindo amá-lo quando não amava... Tornou a olhar para a foto. O perfil era bem definido e vivo. O jovem e capaz pesquisador atentamente debruçado sobre um tumor. Ela realmente gostava mais dele como pesquisador do que quando ele tinha uma alma, ou bancava o poeta ou o enamorado. Parecia uma coisa horrível de dizer, mas o pesquisador era de melhor qualidade do que o ser humano.

Ela sempre soubera disso — ou melhor, não soubera, sentira. O ser humano sempre a deixara meio desconfortável. Quanto mais humano, mais desconfortável. Ela nunca devia ter se casado com ele, naturalmente. Mas ele pedira com tanta determinação; e tinha tanta vitalidade; todos falavam tão bem dele; ela até que gostava de sua aparência; ele parecia levar uma vida tão alegre, viajando pelo mundo; e ela estava cansada de ser a mascote dos veteranos do avô. Havia um bom número de pequenas razões como essas. Somadas, ela imaginara que seriam equivalentes a uma razão grande e importante. Mas não eram; ela tinha cometido um erro.

Sim, quanto mais humano, mais desconfortável. O modo perturbador como ele ligava a linda iluminação de seu sorriso! Ligava-a de repente, apenas para tornar a desligá-la sem aviso quando algo realmente sério, como câncer ou filosofia, tinha de ser discutido. E a voz quando ele estava falando sobre a Natureza, ou o Amor, ou Deus, ou algo dessa espécie — forrada de sentimento! O modo desnecessariamente comovido e trêmulo como ele dizia “Até logo!”. “Como um landseer”,[57] ela lhe dissera uma vez, antes de se casarem, rindo e fazendo uma imitação ridícula de seu “Até logo, Moira” exageradamente comovido. A zombaria o tinha magoado. John orgulhava-se tanto de sua alma e seus sentimentos quanto de seu intelecto; tanto da sua apreciação da Natureza e seus anseios poéticos quanto do seu conhecimento sobre tumores. Goethe era seu personagem literário e histórico favorito. Poeta e cientista, pensador profundo e amoroso ardente, artista em pensamento e na vida — John via-se assim. Fê-la ler Fausto e Wilhelm Meister. Moira fez o possível para fingir entusiasmo que não sentia. Em seu íntimo, achava Goethe uma fraude.

“Não devia ter me casado com ele”, disse à sua imagem no espelho, e sacudiu a cabeça.

John fazia as vezes de amante de bichinhos de estimação, assim como de educador dedicado. Havia momentos em que a infantilidade de Moira o deliciava tanto quanto deliciara Sir Watney e seus veteranos, em que ele ria de qualquer ingenuidade ou impertinência que ela proferisse, e não apenas ria mas chamava a atenção pública para ela, levava-a a novas infantilidades e repetia as histórias de suas façanhas a qualquer um que estivesse disposto a ouvi-las. Ficava menos entusiasmado, no entanto, quando Moira era infantil às suas custas, quando a tolice dela comprometia de algum modo sua dignidade ou interesses. Nessas ocasiões ele perdia a paciência, chamava-a de tola, dizia-lhe que ela devia envergonhar-se. Depois do quê, controlando-se, ele se tornava sério, paternal, pedagógico. Fazia Moira sentir, coitada, que não era digna dele. E finalmente ligava o sorriso e resolvia tudo com carícias que a deixavam como pedra.

“E pensar que gastei tanto tempo e energia tentando acompanhá-lo”, refletia ela, guardando a esponja do pó de arroz.

Todos aqueles artigos científicos que ela tinha lido, aqueles esboços de medicina e fisiologia, aqueles livros didáticos de não sei quê (ela nem conseguia lembrar o nome da ciência), sem falar naquelas coisas aborrecidíssimas de Goethe! E ter de sair quando tinha dor de cabeça ou estava cansada! Conhecer pessoas que a entediavam mas que eram realmente, segundo John, tão interessantes e importantes! Todas as viagens, as excursões terrivelmente cansativas, as visitas a estrangeiros famosos e suas esposas geralmente menos famosas! Era difícil para ela acompanhá-lo, até mesmo fisicamente — suas pernas eram tão curtas, e John sempre estava com tanta pressa. Mentalmente, apesar de todos os seus esforços, ela estava sempre cem quilômetros atrás.

— Horrível! — disse alto.

Todo o seu casamento fora horrível. Desde aquela horrível lua de mel em Capri, quando ele a fizera caminhar demais, depressa demais, morro acima, só para ler para ela trechos de Wordsworth quando chegaram ao Aussichspunkt; quando ele conversava com ela sobre amor e fazia amor, com demasiada frequência, e lhe dizia os nomes latinos das plantas e das borboletas — desde aquela horrível lua de mel até a época em que, quatro meses antes, seus nervos tinham cedido e o médico dissera que ela tinha de levar as coisas com calma, longe de John. Horrível! Aquela vida quase a matara. E não era (ela finalmente entendera), na verdade, vida; era apenas uma atividade galvânica, como a crispação da perna de um sapo morto quando se toca o nervo com um fio eletrificado. Não era vida, apenas morte galvanizada.

Lembrou-se da última de suas brigas, logo antes de que o médico a mandasse viajar. John estava sentado a seus pés, com a cabeça em seus joelhos. E a cabeça dele estava começando a ficar calva! Ela mal suportava olhar para aqueles fios compridos grudados por cima do couro cabeludo. E, porque ele estava cansado de todo aquele trabalho com o microscópio, cansado e ao mesmo tempo (não fazia amor com ela, graças a Deus, havia mais de quinze dias) amoroso, como ela podia perceber pelo olhar dele, ele estava sendo muito sentimental e falando em sua voz mais melosa sobre o Amor e a Beleza e a necessidade de ser como Goethe. Falando até ela ter vontade de gritar. Finalmente não conseguiu mais aguentar.

— Pelo amor de Deus, John — exclamou, em voz estridente, à beira do descontrole —, cale a boca!

— Qual é o problema? — Ele ergueu os olhos para ela interrogativamente, magoado.

— Falando desse jeito! — Ela estava indignada. — Mas você nunca amou ninguém a não ser você mesmo. Nem sentiu a beleza de coisa alguma. Exatamente como aquele velho farsante do Goethe. Você sabe o que devia sentir quando há uma mulher por perto, ou uma paisagem; você sabe o que as melhores pessoas sentem. E você deliberadamente se propõe a sentir a mesma coisa, na sua cabeça.

John ficou magoado no âmago de sua vaidade.

— Como pode dizer isso?

— Porque é verdade, é verdade. Você vive da sua cabeça. E uma cabeça calva, ainda por cima — acrescentou, e começou a rir incontrolavelmente.

Que cena! Ela continuou rindo enquanto ele despejava sua fúria sobre ela; não conseguia parar.

— Você está histérica — disse finalmente; e então acalmou-se. A pobre criança estava doente. Com esforço ele ligou a expressão de ternura paternal e saiu para buscar o sal aromático.

Um último retoque nos lábios, e pronto! Estava pronta. Desceu para a sala de estar, para descobrir que Tonino já tinha chegado — ele sempre se adiantava — e estava esperando. Levantou-se quando ela entrou, inclinou-se sobre sua mão estendida e beijou-a. Moira sempre ficava encantada com os modos sulinos dele, floreados e um tanto excessivos. John estava sempre ocupado demais sendo o grande pesquisador ou o poeta de voz aveludada para ter bons modos. Não achava que a polidez fosse particularmente importante. A mesma coisa com as roupas. Era cronicamente malvestido. Tonino, por outro lado, era um modelo de elegância janota. Esse terno cinza-claro, essa gravata lilás, esses sapatos bicolores de verniz e pelica branca — maravilhosos!

Um dos prazeres ou perigos de viajar para o estrangeiro é que se perde a consciência de classe. Em casa não se pode esquecê-la, mesmo com a maior boa vontade do mundo. O hábito torna os compatriotas tão imediatamente compreensíveis quanto sua própria língua. Uma palavra, um gesto é suficiente — e eis a pessoa rotulada. Mas no estrangeiro as pessoas são ilegíveis. Os produtos menos óbvios da educação — os refinamentos mais sutis, os tons mais leves da vulgaridade — escapam à atenção. O sotaque, a inflexão da voz, o vocabulário nada revelam. Entre o duque e o corretor de seguros, o vigarista e o nobre rural, o olho e o ouvido inexperientes não percebem diferença alguma. Para Moira, Tonino parecia a flor característica da nobreza italiana. Sabia, naturalmente, que ele não estava bem de vida; mas muitas das melhores pessoas são pobres. Ela via nele o equivalente de um desses filhos de nobres ingleses empobrecidos — o tipo de rapaz que coloca um anúncio pedindo emprego na Coluna da Agonia do Times. “Educação universitária, gostos esportivos; aceita qualquer posição bem paga de confiança.” Ela teria ficado magoada, indignada e surpresa se ouvisse o velho Bargioni descrevê-lo, depois de seu primeiro encontro, como “il tipo del parrucchiere napolitano” — o típico barbeiro napolitano. A sra. Bargioni sacudiu a cabeça pensando no escândalo iminente e secretamente achou ótimo.

Na realidade, Tonino não era barbeiro. Era filho de um capitalista — um pequeno capitalista, sem dúvida; mas, mesmo assim, um genuíno capitalista. O velho Vasari possuía um restaurante em Possuoli e ambicionava abrir um hotel. Haviam mandado Tonino estudar a indústria turística com um amigo da família que era gerente de um dos melhores estabelecimentos de Florença. Quando tivesse aprendido todos os segredos, deveria voltar para Possuoli e dirigir a pensão rejuvenescida que o pai propunha modestamente rebatizar como Grande Hotel Ritz-Carlton. Enquanto isso, ele era um ocioso habitante de Florença. Travara conhecimento com a sra. Tarwin romanticamente, na estrada. Dirigindo, como era de seu costume, sozinha, Moira tinha passado por cima de um prego. Um pneu furado. Nada é mais fácil do que trocar um pneu — isto é, nada, se a pessoa tem suficiente força muscular para desapertar os parafusos que seguram o pneu furado ao eixo. Moira não tinha. Quando Tonino a encontrou, dez minutos depois do infortúnio, ela estava sentada no estribo do carro, vermelha, despenteada pelo esforço e em lágrimas.

“Una signora forestiera.” No café, naquela noite, Tonino narrou sua aventura com certa satisfação ilusória. Na pequena burguesia onde ele fora criado, uma senhora estrangeira era uma criatura quase fabulosa, um ser de fortuna, excentricidade e independência lendárias. “Inglese”, especificou. “Giovane” e “bella, bellissima”. Seus ouvintes ficaram incrédulos; a beleza, por uma razão qualquer, não é comum entre os espécimes de feminilidade inglesa encontrados no estrangeiro. “Ricca” ele acrescentou. Aquilo parecia menos intrinsecamente improvável; as senhoras estrangeiras eram todas ricas, quase por definição. De maneira viva e respeitosa Tonino descreveu o carro que ela dirigia, a luxuosa villa onde morava.

O conhecimento transformara-se depressa em amizade. Aquela era a quarta ou quinta vez em quinze dias que ele vinha à casa.

— Algumas humildes flores — disse o rapaz em tom de desculpa terna e adulatória; e avançou a mão esquerda, que estivera escondida atrás de si. Ela segurava um buquê de rosas brancas.

— Mas que gentileza! — ela exclamou em mau italiano. — Que lindas! — John nunca levava flores a pessoa alguma; considerava bobagem esse tipo de coisa. Ela sorriu para Tonino por cima dos botões. — Mil vezes obrigada.

Fazendo um gesto de modéstia, ele devolveu o sorriso. Seus dentes brilhavam, perolados e regulares. Os olhos grandes eram brilhantes, escuros, líquidos e um tanto sem expressão, como os de uma gazela. Era incrivelmente bonito.

— Rosas brancas para uma rosa branca — falou.

Moira riu. O elogio era ridículo; mas mesmo assim agradou-lhe.

Elogiar não era a única coisa que Tonino sabia fazer. Ele sabia ser útil. Quando, poucos dias depois, Moira resolveu mandar pintar o vestíbulo e a sala de jantar, um tanto escuros, ele foi imprescindível. Era ele quem regateava com o decorador, quem fazia cenas quando havia algum atraso, quem interpretava as ideias um tanto particulares de Moira sobre cores para os trabalhadores, quem supervisionava suas atividades.

— Se não fosse você, eu teria sido roubada e eles não teriam feito nada direito — disse Moira com gratidão, quando o trabalho terminou.

Era um grande consolo, ela refletia, ter por perto um homem que não tinha sempre algo mais importante para fazer e pensar; um homem que podia passar seu tempo sendo útil e ajudando. Um grande consolo! E que mudança! Quando estava com John, era ela quem devia fazer todas as coisas práticas e cansativas. John sempre tinha seu trabalho, e seu trabalho tinha precedência sobre tudo, inclusive a conveniência dela. Tonino era apenas um homem comum, sem nada de sobre-humano em si mesmo ou em suas funções. Era um grande alívio.

Aos poucos Moira passou a confiar nele para tudo. Ele se fazia universalmente útil. Os fusíveis queimavam; era Tonino quem os substituía. Os marimbondos faziam ninho na chaminé; heroico, Tonino os espantava com enxofre. Mas sua especialidade era a economia doméstica. Criado em um restaurante, ele sabia tudo sobre comida, bebida e preços. Quando a carne não estava de acordo, ele ia até o açougue e jogava o bife duro na cara do açougueiro, quase literalmente. Baixou os preços extorsivos do verdureiro. Com um homem do mercado de peixes ele fez uma combinação amigável pela qual Moira recebia as melhores solhas e tainhas. Comprava vinho para ela, e óleo — no atacado, em enormes garrafas de vidro; e Moira, que desde a morte de Sir Watney tinha condições financeiras para não beber coisa mais barata do que Pol Roger 1911 e cozinhar com manteiga de iaque importada, exultava com ele em compridas conversas domésticas sobre economias de um centavo por litro ou de um ou dois xelins por quilo. Para Tonino, o preço e a qualidade dos alimentos e da bebida eram assuntos da maior importância. Conseguir uma garrafa de Chianti por cinco liras e noventa em vez de seis liras era, a seus olhos, uma verdadeira vitória; e a vitória transformava-se em triunfo se pudesse ser provado que o Chianti tinha pelo menos três anos e um conteúdo alcoólico de mais de catorze por cento. Por natureza, Moira não era gulosa nem avarenta. Sua educação confirmara nela suas tendências naturais. Tinha o desinteresse daqueles que nunca conheceram a falta de dinheiro; e sua indiferença abstêmia aos prazeres da mesa nunca fora temperada pela preocupação de dona de casa com o apetite e a digestão das outras pessoas. Nunca; pois Sir Waltney tinha uma governanta, e com John Tarwin, que de qualquer maneira mal percebia o que comia e achava que as mulheres deviam gastar seu tempo com algo mais importante e intelectual do que dirigir uma cozinha, ela vivera a maior parte de sua vida de casada em hotéis e apartamentos com serviço de cozinha, ou então em quartos alugados, em estado crônico de piquenique. Tonino revelou-lhe o mundo dos mercados e da cozinha. Ainda acostumada a pensar, com John, que a vida doméstica comum não era suficientemente boa, a princípio ela ria das intensas preocupações dele com a carne e com meio centavo. Mas depois de pouco tempo ela começou a contagiar-se com o entusiasmo quase religioso dele pelos cuidados domésticos; começou a descobrir que a carne e o meio centavo eram interessantes, afinal, reais e importantes — e muito mais reais e importantes, por exemplo, do que ler Goethe quando se julgava que ele era um chato e um farsante. Carinhosamente cuidada pelos mais competentes advogados e corretores, a fortuna do finado Sir Watney rendia cinco por cento, livres de impostos. Mas, na companhia de Tonino, Moira podia esquecer seu saldo bancário. Descendo o Sinai financeiro ao qual fora elevada tão acima do mundo comum, ela descobriu, com ele, as preocupações da pobreza. Elas eram curiosamente interessantes e excitantes.

— Os preços que eles pedem por peixes em Florença! — disse Tonino, depois de um silêncio, quando já tinha exaurido o assunto das rosas brancas. — Quando penso em como pagamos pouco pelo polvo em Nápoles! É um escândalo!

— Um escândalo! — repetiu Moira, com uma indignação tão genuína quanto a dele. Conversaram interminavelmente.

No dia seguinte o céu não estava mais azul, mas opacamente branco. Não havia sol, apenas um brilho difuso que não fazia sombras. A paisagem estava inteiramente sem vida sob o olhar de peixe morto do céu. Estava muito quente, não havia vento, o ar mal era respirável, como se fosse de lã. Moira acordou com dor de cabeça, e seus nervos pareciam ter uma incômoda e incerta vida própria, separada da dela. Eram como pássaros engaiolados esvoaçando, saltando e piando a cada alarme; e seu corpo cansado e dolorido era seu aviário. Contra sua própria vontade e intenção, ela perdeu a paciência com a empregada e disse coisas cruéis. Teve de dar-lhe um par de meias para compensar. Depois de vestir-se, quis escrever algumas cartas; mas a caneta manchou seus dedos, e ela ficou tão furiosa que jogou pela janela o objeto bestial, que se partiu em pedaços nas pedras do pavimento. Não tinha com que escrever; era exasperante. Lavou a tinta das mãos e pegou seu bastidor. Mas seus dedos estavam desajeitados. E então ela picou-se com a agulha. Ah, tanta dor! As lágrimas vieram-lhe aos olhos; ela começou a chorar. E, tendo começado, não conseguia parar. Assunta entrou cinco minutos depois e encontrou-a soluçando.

— Mas que foi, signora? — perguntou, ainda mais afetuosamente solícita por causa do presente das meias. Moira sacudiu a cabeça.

— Vá embora — disse entrecortadamente. A moça insistiu. — Vá embora — repetiu Moira. Como poderia explicar qual era o problema, quando a única coisa que tinha acontecido era ela ter furado o dedo? Não havia problema algum. E no entanto tudo era problema, tudo.

Esse tudo que era problema reduziu-se finalmente ao tempo. Mesmo no auge da saúde, Moira sempre fora dolorosamente consciente da aproximação de uma tempestade. Seus nervos adoentados estavam mais sensíveis que o normal. As lágrimas, as raivas e os desesperos desse dia horrível tinham uma causa puramente meteorológica. Mas nem por isso deixavam de ser violentos e dolorosos. As horas passaram melancolicamente. Carregado de enormes nuvens negras, o crepúsculo chegou em silêncio carrancudo e expectante, e anoiteceu prematuramente. O reflexo dos relâmpagos distantes, em clarões longínquos além do horizonte, iluminava o céu a oriente. Os picos e as serras dos Apeninos destacavam-se negros de encontro às extensões momentaneamente claras de vapor prateado, e desapareciam mais uma vez em silêncio; a calma atenta ainda não fora rompida. Com uma espécie de apreensão avassaladora — pois tinha pavor de tempestades — Moira sentou-se à janela, observando os montes pretos saltarem contra o prateado e morrerem, saltarem e morrerem. Os clarões ficaram mais fortes; e então, pela primeira vez, ela ouviu o trovão, distante e leve como o sussurro do mar numa concha. Moira estremeceu. O relógio no vestíbulo bateu nove horas e, como se o som fosse um sinal combinado de antemão, uma rajada de vento sacudiu, subitamente, a magnólia que ficava no cruzamento de caminhos no jardim. As compridas folhas rígidas roçavam umas nas outras. Houve outro relâmpago. No fugaz clarão branco ela viu os dois ciprestes fúnebres contorcendo-se e balançando-se como se em desesperado espasmo de dor. E de repente a tempestade explodiu catastrófica, parecendo estar diretamente acima dela. À selvagem violência daquela chuva gelada Moira afastou-se depressa e fechou a janela. Um rastro de fogo branco ziguezagueou apavorantemente logo atrás dos ciprestes. O trovão que se seguiu foi como uma rocha sólida que rachava e caía. Moira correu para longe da janela e jogou-se na cama. Cobriu o rosto com as mãos. Através do rugido contínuo da chuva, o trovão explodia e reverberava, tornava a explodir e lançava estilhaços de som em todas as direções através da noite. A casa inteira estremecia. Nas molduras das janelas os vidros sacudidos matraqueavam como as vidraças de um ônibus antigo rodando sobre cascalho.

— Ah, meu Deus, ah, meu Deus — Moira repetia sem cessar. No enorme tumulto, sua voz era fraca e, por assim dizer, nua, inteiramente abjeta.

“Mas é estupidez ficar com medo.” Ela recordou a voz de John, seus modos jovialmente encorajadores, superiores. “As chances de ser atingida são de milhares contra uma. E, de qualquer maneira, esconder a cabeça não vai impedir o raio de...”

Como ela o odiava por ser tão razoável e correto!

— Ah, meu Deus! — Outro trovão. — Meu Deus, meu Deus...

E então aconteceu subitamente uma coisa horrível: a luz apagou-se. Através das pálpebras fechadas ela não via mais o vermelho do sangue translúcido, mas a escuridão total. Descobrindo o rosto, ela abriu os olhos e olhou ansiosa em volta — novamente na escuridão. Tateou à procura do interruptor junto à cama, encontrou-o, apertou-o várias vezes; a escuridão continuou impenetrável.

— Assunta! — chamou.

E de repente o quadrado da janela era uma pintura descoberta do jardim, visto contra um fundo de céu violeta e a chuva a cair com violência.

— Assunta! — Sua voz foi abafada pelo trovão que parecia ter explodido bem no telhado. — Assunta! Assunta! — Em pânico ela atravessou tropeçando o quarto escuro como uma sepultura, até a porta. Outro clarão revelou a maçaneta. Ela abriu. — Assunta!

Sua voz soava oca sobre o abismo escuro da escada. O trovão tornou a explodir acima dela. Com um ruído forte e o tilintar de vidro quebrado uma das janelas do quarto abriu-se com violência. Uma rajada de vento frio ergueu-lhe os cabelos. Um voo de papéis ergueu-se de sua escrivaninha e girou num redemoinho de asas crepitantes na escuridão. Uma delas tocou em seu rosto como uma coisa viva. Ela gritou alto. A porta bateu atrás dela. Desceu correndo a escada, aterrorizada como se tivesse um inimigo nos calcanhares. No vestíbulo encontrou Assunta e a cozinheira aproximando-se, acendendo fósforos.

— Assunta, a luz! — Apertou o braço da jovem.

Só o trovão respondeu. Quando o barulho diminuiu, Assunta explicou que todos os fusíveis tinham queimado e que não havia uma só vela na casa. Nem uma única vela, e só mais uma caixa de fósforos.

— Mas então vamos ficar no escuro — disse Moira histericamente.

Através das três janelas do vestíbulo, três imagens separadas do jardim alagado revelaram-se e desapareceram. Os velhos espelhos venezianos nas paredes piscaram por um instante, adquirindo vida, como olhos mortos fugazmente abertos.

— No escuro — ela repetiu, com insistência quase enlouquecida.

— Ai! — gritou Assunta, e deixou cair o fósforo que começava a queimar seus dedos. O trovão caiu sobre elas, vindo de uma escuridão que se tornava mais densa e desesperada pela perda da luz.

Quando o telefone tocou, Tonino estava sentado na sala da gerência de seu hotel, jogando cartas com os dois filhos do proprietário e com outro amigo.

— Alguém quer falar com o senhor, signor Tonino — disse o porteiro, assomando à porta. — Uma senhora. — Piscou significativamente.

Tonino assumiu uma expressão séria e saiu da sala. Quando voltou minutos depois, segurava o chapéu com uma das mãos e abotoava a capa de chuva com a outra.

— Lamento — declarou. — Tenho que sair.

— Sair? — exclamaram os outros incredulamente. Fora das janelas fechadas a tempestade rugia como uma cachoeira e explodia selvagemente. — Mas para onde? — perguntaram. — Por quê? Você enlouqueceu?

Tonino deu de ombros, como se sair durante um furacão não fosse muita coisa, como se estivesse acostumado a isso. A signora forestiera, explicou, odiando-os por sua curiosidade; a Tarwin — ela pedira que ele fosse até o Bello Sguardo imediatamente. Os fusíveis... nenhuma vela em casa... totalmente escuro... muito agitada... nervos...

— Mas numa noite como esta... Você não é eletricista. — Os dois filhos do proprietário falaram em coro. Achavam, indignados, que Tonino estava se deixando explorar.

Mas o terceiro rapaz recostou-se na cadeira e riu.

— Vai, caro, vai — disse, e então, sacudindo o dedo para Tonino com ar de conhecedor, acrescentou: — Ma fatti pagare per il tuo lavoro. — “Faça com que lhe paguem por seu serviço.” Berto era um conquistador notório, especialista experimentado em estratégia amorosa, um reconhecido expert. — Aproveite a oportunidade. — Os outros juntaram-se a sua risada um tanto desagradável. Tonino também sorriu e assentiu.

O táxi disparava pelas ruas desertas e molhadas, levantando água como uma fonte ambulante. Tonino, sentado na escuridão do táxi, ruminava o conselho de Berto. Ela era bonita, certamente. Mas de algum modo — por que seria? — mal lhe ocorrera pensar nela como uma possível amante. Fora polidamente galante com ela quase por princípio — e por força do hábito —, mas sem realmente almejar o sucesso; e quando ela se mostrara insensível, ele não se importara. Mas talvez devesse ter se importado, talvez devesse ter insistido mais. No mundo de Berto, era um dever esportivo fazer todo o possível para seduzir todas as mulheres que se pudesse. O homem mais admirável era o homem com o maior número de mulheres a seu crédito. Realmente adorável, continuou Tonino consigo mesmo, tentando fazer crescer em si um entusiasmo pelo esporte. Seria um triunfo para se orgulhar. Ainda mais porque era estrangeira. E muito rica. Pensou com satisfação no carro grande, na casa, nos empregados, na prataria. “Certo”, disse a si mesmo com complacência, “mi vuol bene.” Ela gostava dele; disso não havia dúvida. Pensativamente ele acariciava o rosto macio; os músculos moviam-se sob seus dedos. Sorria consigo mesmo na escuridão; ingenuamente, um sorriso de prostituta ingênua.

— Moira — disse alto. — Moira. Strano, quel nome. Piuttosto ridicolo.

Foi Moira quem lhe abriu a porta. Estivera parada à janela, olhando, esperando e esperando.

— Tonino! — estendeu as duas mãos para ele; nunca ficara tão feliz em ver alguém.

O céu tornou-se momentaneamente branco-arroxeado atrás dele, parado ali na soleira. As abas de sua capa de chuva sacudiam-se ao vento; uma rajada molhada soprou, esfriando o rosto dela. O céu tornou a escurecer. Ele bateu a porta atrás de si. Estavam em total escuridão.

— Tonino, você foi maravilhoso em ter vindo. Realmente...

O trovão que a interrompeu era como o fim do mundo. Moira estremeceu.

— Ah, meu Deus! — ela gemeu; e então estava de repente apertando o rosto de encontro ao colete dele e chorando, e Tonino a abraçava e acariciava-lhe os cabelos. O clarão seguinte mostrou a ele a posição do sofá. Na escuridão que se seguiu ele a carregou através da sala, sentou-se e começou a beijar-lhe o rosto molhado de lágrimas. Ela ficou imóvel nos braços dele, relaxada, como uma criança assustada que finalmente encontrasse consolo. Tonino abraçava-a, beijando-a de leve inúmeras vezes. — Ti amo, Moira — sussurrou. E era verdade. Abraçando-a, tocando nela no escuro, ele realmente a amava. — Ti amo. — Quão profundamente! — Ti voglio un bene immenso — continuou, com paixão, com uma ternura profunda e cálida nascida quase subitamente da escuridão e do contato suave e cego. Pesada e quente de vida, ela estava apertada contra ele. Seu corpo curvava-se e era sólido sob as mãos dele, suas faces eram arredondadas e frias, suas pálpebras curvas, trêmulas e molhadas de lágrimas, sua boca tão macia, tão macia sob os lábios dele. — Ti amo, ti amo. — Ele ofegava de amor, e era como se houvesse um vazio no centro de seu ser, um vácuo de ternura desejosa que ansiava por ser preenchido, que só podia ser preenchido por ela, um vazio que a puxava para ele, para dentro dele, que a bebia como um vaso vazio bebe ansiosamente a água. Imóvel, de olhos fechados, imóvel ela estava em seus braços, deixando-se ser bebida pela ternura dele, ser atraída pelo ansioso vazio do coração dele, feliz em ser passiva, em entregar-se àquela paixão suave e insistente.

“Fatti pagare, fatti pagare.” A recordação das palavras de Berto transformaram-no subitamente de um enamorado num esportista amoroso com uma reputação a preservar e recordes a quebrar. “Fatti pagare.” Arriscou uma carícia mais íntima. Mas Moira encolheu-se, tão trêmula e acuada que ele desistiu, envergonhado.

— Ebbene, você trocou os fusíveis? — perguntou Berto quando, uma hora mais tarde, ele voltou.

— Sim, troquei os fusíveis.

— E foi pago?

Tonino sorriu um sorriso de esportista amoroso.

— Um pouco, como entrada — respondeu, e imediatamente sentiu raiva de si próprio por ter dito essas palavras e dos outros por terem rido delas. Por que se dava o trabalho de estragar algo que fora tão lindo? Pretextando dor de cabeça, subiu para seu quarto. A tempestade tinha passado, a lua agora brilhava em um céu claro. Ele abriu a janela e olhou para fora. Rio de tinta e mercúrio, o Arno fluía murmurante. Na rua embaixo as poças brilhavam como olhos vivos. O fantasma de Caruso cantava num gramofone, muito longe, do outro lado da água. “Stretti, stretti, nell’ estasi d’amor...” Tonino ficou profundamente comovido.

Na manhã seguinte o céu estava azul, o sol cintilava nas folhas brilhantes da magnólia, o ar estava recatadamente sem vento. Sentada à penteadeira, Moira olhou para fora e perguntou-se incredulamente se coisas como tempestades eram possíveis. Mas as plantas estavam partidas e prostradas em seus leitos; os caminhos estavam pontilhados de folhas e pétalas espalhadas. Apesar do ar suave e do sol, os horrores da noite anterior tinham sido mais que um pesadelo. Moira suspirou e pôs-se a escovar os cabelos. Em sua moldura de couro, o perfil de John Tarwin encarava-a, com seu centrado brilhantismo em tumores imaginários. Olhos fixos nele, Moira continuou mecanicamente escovando os cabelos. Então, de repente, interrompendo o ritmo de seus movimentos, levantou-se, pegou o porta-retrato de couro e, atravessando o quarto, jogou-o para cima do armário alto, fora de vista. Pronto! Voltou para seu lugar e, cheia de uma espécie de entusiasmo assustado, continuou a escovar os cabelos.

Depois de vestir-se, foi de carro à cidade e passou uma hora no Settepassi, o joalheiro. Quando saiu, foi acompanhada com reverência até o Lugano como uma princesa.

— Não fume estes — disse a Tonino naquela tarde, quando ele esticou o braço para pegar um cigarro na caixa de prata que ficava sobre a lareira da sala. — Tenho alguns daqueles egípcios que você gosta. Arranjei especialmente para você. — E, sorrindo, entregou-lhe um pacotinho.

Tonino agradeceu profusamente — profusamente demais, como era seu costume. Mas, quando retirou o papel e viu o ouro polido de uma grande cigarreira, só conseguiu olhar para ela com um espanto constrangido e curioso.

— Não acha bonitinha? — ela perguntou.

— Maravilhosa! Mas é... — Ele hesitou. — É para mim?

Moira riu com prazer de sua timidez. Nunca o tinha visto envergonhado antes. Ele era sempre o homem cosmopolita e seguro de si, firme e inexpugnável dentro de sua armadura de refinamento sulino. Ela admirava essa couraça elegante. Mas divertia-se em vê-lo, pelo menos uma vez, sem ela, vê-lo pouco à vontade, ruborizado e gaguejante como um menininho. Isso a divertia e lhe agradava; gostava ainda mais dele por ser menininho também, além do rapaz polido e socialmente competente.

— Para mim? — macaqueou, rindo. — Você gosta? — Seu tom mudou; ela ficou séria. — Queria que você tivesse alguma coisa para lembrar a noite de ontem. — Tonino tomou as mãos dela e beijou-as em silêncio. Ela o tinha recebido com uma jovialidade tão natural, tão à vontade, como se nada tivesse acontecido, que as ternas referências aos acontecimentos da véspera (preparadas com tanto cuidado enquanto ele subia o morro) tinham ficado por serem feitas. Ele teve medo de dizer a coisa errada e ofendê-la. Mas agora o encanto estava quebrado — e pela própria Moira. — Não se deve esquecer as próprias boas ações — ela continuou, abandonando-lhe as mãos. — Cada vez que você tirar um cigarro desta cigarreira, vai lembrar-se de como foi bonzinho e generoso com uma ridícula tolinha?

Tonino tivera tempo de recuperar os bons modos.

— Vou me lembrar da mais adorável, da mais linda... — Ainda segurando as mãos dela, encarou-a por um momento em silêncio, eloquentemente. Moira sorriu para ele. — Moira! — E ela estava em seus braços. Ela fechou os olhos e ficou passiva no círculo forte dos seus braços, macia e passiva contra seu corpo firme. — Eu te amo, Moira. O hálito de seu sussurro era quente contra as faces dela. — Ti amo. — E de repente seus lábios estavam mais uma vez sobre os dela, beijando-a impaciente, violentamente. Entre beijos, suas palavras sussurradas chegavam apaixonadas aos ouvidos dela. — Ti amo pazzamente... piccina... tesoro... amore... cuore... — Declarado em italiano, seu amor parecia de certa forma especialmente forte e profundo. Coisas descritas em outra língua carregam certa estranheza. — Amami, Moira, amami. Mi ama un po? — Ele insistia. — Um pouco, Moira, você me ama um pouco?

Ela abriu os olhos e encarou-o. Depois, com um movimento rápido tomou-lhe o rosto entre as mãos, puxou-o para baixo e beijou-o na boca.

— Sim — sussurrou ela. — Eu te amo. — E então, suavemente, ela o empurrou. Tonino queria beijá-la de novo. — Não, não — disse ela, com uma espécie de apelo peremptório. — Não estrague tudo agora.

Passaram-se os dias, quentes e dourados. O verão aproximava-se. Os rouxinóis cantavam invisíveis no frescor da noite.

— L’usignuolo — Moira murmurou baixinho consigo mesma, ouvindo o canto. — L’usignuolo. — Até mesmo os rouxinóis ficavam sutilmente melhores em italiano. O sol se pusera. Eles estavam sentados no pequeno pavilhão de verão no final do jardim, contemplando do alto a paisagem escurecida. As fazendas e villas de paredes brancas, na encosta abaixo, destacavam-se quase assustadoramente claras contra o lusco-fusco das oliveiras, como se carregadas de algum significado estranho e novo. Moira suspirou. — Estou tão feliz — disse; Tonino segurou-lhe a mão. — Ridiculamente feliz. — Pois afinal, ela pensava, era mesmo meio ridículo ser tão feliz por nenhuma razão válida. John Tarwin lhe ensinara a imaginar que só se podia ser feliz quando se estava fazendo alguma coisa “interessante” (como ele dizia) ou convivendo com pessoas que “valiam a pena”. Tonino não era alguém em particular, graças a Deus! E fazer piqueniques não era exatamente “interessante” no sentido que John dava à palavra; nem conversar sobre os respectivos méritos de diferentes tipos de carro; nem ensiná-la a dirigir; nem fazer compras, nem discutir o problema de cortinas novas para a sala; nem sentar-se no pavilhão de verão sem dizer coisa alguma. Apesar disso, ou por causa disso, ela estava feliz, com uma felicidade sem precedentes. — Ridiculamente feliz — repetiu.

Tonino beijou-lhe a mão.

— Eu também — declarou. E não estava simplesmente sendo gentil. A seu próprio modo ele estava genuinamente feliz com ela. As pessoas o invejavam, sentado no magnífico carro amarelo ao lado dela. Ela era tão bonita e elegante, tão estrangeira também; ele tinha orgulho de ser visto com ela. E a cigarreira, a bengala montada em ouro, com castão de ágata, que ela lhe dera de aniversário... Além disso, ele realmente gostava dela, realmente, de um modo obscuro, a amava. Não era à toa que ele a abraçara e acariciara na escuridão daquela noite de trovão. Algo daquela ternura profunda e apaixonada, nascida de repente da noite e de seu contato quente e cego, ainda permanecia nele — ainda permanecia mesmo depois que os anseios físicos que ela então inspirara tinham sido indiretamente satisfeitos. (E sob a orientação especializada de Berto eles tinham mesmo sido satisfeitos, com frequência.) Se não tivesse sido pelos comentários satíricos de Berto sobre a natureza ainda platônica de sua ligação, ele estaria inteiramente contente.

— Alle donne — generalizava Berto sentenciosamente — piace sempre la violenza. Elas adoram ser violentadas. Você não sabe fazer amor, meu pobre rapaz. — E relatava suas conquistas como um exemplo a ser seguido. Para Berto, o amor era uma espécie de vingança lúbrica contra as mulheres pelo crime de sua pureza.

Impulsionado pelas zombarias do amigo, Tonino fez outra tentativa de receber pagamento por ter mudado os fusíveis na noite da tempestade. Mas seu rosto foi estapeado com convicção, e o tom em que Moira ameaçou nunca mais vê-lo novamente a não ser que ele se comportasse foi tão convincente e severo que ele não renovou seu ataque. Contentava-se em parecer triste e reclamar da crueldade dela. Mas, apesar de sua tristeza ocasional, ele estava feliz com ela. Feliz como um gato de lareira. O carro, a casa, a elegante beleza estrangeira dela, os presentes maravilhosos que ela lhe dava mantinham-no ronronando.

Passaram-se os dias e as semanas. Teria agradado a Moira que a vida fluísse assim para sempre, um rio alegre e brilhante com margens ocasionais de calma sentimentalidade, mas nunca perigosamente profundo ou turbulento, sem cachoeiras, redemoinhos ou corredeiras. Ela queria que sua existência permanecesse para sempre o que era nesse momento — uma espécie de brincadeira com um companheiro agradável e emocionalmente excitante, brincar de viver e de amar. Se ao menos essa feliz hora do recreio pudesse durar para sempre!

Foi John Tarwin quem decretou que não duraria. “Participando Congresso Citológico Roma passarei alguns dias aí chego quinta amor john.” Esse era o texto do telegrama que Moira encontrou esperando por ela ao voltar à villa certa noite. Ela o leu e sentiu-se de repente deprimida e apreensiva. Por que ele tinha de vir? Ia estragar tudo. A noite brilhante morreu diante de seus olhos; a felicidade que transbordava dela quando voltou com Tonino daquele passeio maravilhoso entre os Apeninos esvaiu-se. Sua tristeza escureceu retrospectivamente a beleza azul e dourada das montanhas, apagou as flores brilhantes, escureceu as risadas e as conversas do dia. “E por que ele quer vir?” Com tristeza e ressentimento ela se perguntava isso. “E que é que vai acontecer, que é que vai acontecer?” Sentia-se fria, sem fôlego e quase nauseada de apreensão.

O rosto de John, quando a viu parada na estação, iluminou-se instantaneamente com sua ternura e encanto de cem velas.

— Minha querida! — A voz era melosa e trêmula. Inclinou-se para ela. Enrijecendo, Moira aguentou ser beijada. As unhas dele, ela percebeu com nojo, estavam sujas.

A perspectiva de uma refeição a sós com John a apavorava; ela tinha convidado Tonino para jantar. Além disso, queria que John o conhecesse. Manter a existência de Tonino escondida de John teria sido admitir que havia alguma coisa errada em suas relações com ele. E não havia. Ela queria que John o conhecesse assim, naturalmente, de modo casual. Se ia gostar de Tonino quando o conhecesse era outra questão. Moira tinha suas dúvidas. Elas foram justificadas pelos acontecimentos. John começou a protestar quando ouviu que ela convidara alguém. A primeira noite deles — como podia...? A voz tremulava. Foi obrigada a ouvir efusões de sentimento. Mas, por fim, quando chegou a hora do jantar, ele desligou a veia patética e tornou-se mais uma vez o pesquisador. Brilhantemente curioso, apaticamente inteligente, John interrogou o convidado a respeito de todas as coisas interessantes e importantes que estavam acontecendo na Itália. Qual era a situação política real? Como funcionava o novo sistema educacional? O que as pessoas pensavam da reforma do código penal? Sobre todos esses assuntos Tonino era, naturalmente, bem menos informado do que seu inquiridor. A Itália que conhecia era a Itália de seus amigos e sua família, de lojas, cafés, garotas e a luta cotidiana pelo dinheiro. Toda a Itália histórica, impessoal, sobre a qual John tão inteligentemente lera em artigos eruditos, era-lhe de todo desconhecida. Suas respostas às perguntas de John eram tolas como as de uma criança. Moira ouvia, muda de infelicidade.

— Que é que você vê nesse sujeito? — perguntou o marido, depois que Tonino foi embora. — Ele me pareceu particularmente desinteressante.

Moira não respondeu. Houve um silêncio. John de repente ligou seu sorriso terno, protetor e ansiosamente marital.

— Hora de ir para a cama, querida — disse. Moira ergueu os olhos para ele e viu nos seus olhos aquela expressão que conhecia tão bem e odiava. — Minha querida — ele repetiu, e o cão landseer apresentava-se amoroso. Abraçou-a e inclinou-se para beijar-lhe o rosto. Moira estremeceu; mas impotente, passiva, sem saber como fugir.

Quando John a deixou, ela ficou acordada até tarde da noite, recordando os ardores e os sentimentalismos dele com um horror que a passagem do tempo parecia aumentar. O sono veio enfim libertá-la.

Sendo um arqueólogo, o velho signor Bargioni era decididamente “interessante”.

— Mas ele é um chato — disse Moira quando, no dia seguinte, o marido sugeriu que fossem visitá-lo. — Aquela voz! E ele não para de falar! E aquela barba! E a mulher!

John enrubesceu de raiva.

— Não seja criança — disparou, esquecendo-se de como gostava da criancice dela quando isso não interferia com seus divertimentos ou seus negócios. — Afinal, provavelmente não há um homem vivo que saiba mais sobre a Toscana na Idade das Trevas.

Mesmo assim, apesar da trevosa Toscana, John teve que fazer a visita sem ela. Passou uma hora muito instrutiva, conversando sobre a arquitetura romana e os reis lombardos. Mas pouco antes que ele saísse a conversa de alguma forma tomou novo rumo; casualmente, como se por acaso, o nome de Tonino foi mencionado. Foi a signora quem insistiu que ele fosse mencionado. A ignorância, protestou o marido, é a felicidade. Mas a signora Bargioni adorava um escândalo e, sendo de meia-idade, feia, invejosa e maliciosa, estava cheia de virtuosa indignação contra a jovem esposa, e cheia de solidariedade hipócrita pelo marido possivelmente injuriado. “Pobre Tarwin,” insistia ela, “ele precisa ser avisado.” E assim, com tato, sem parecer estar dizendo nada em particular, o velho fez suas insinuações.

Caminhando de volta para Bello Sguardo, John estava inquieto e pensativo. Não que ele imaginasse que Moira tinha sido ou tinha probabilidade de vir a ser infiel. Não julgava ser possível. Moira obviamente gostava do desinteressante rapaz; mas, afinal, e apesar de sua infantilidade, Moira era um ser humano civilizado. Tinha sido demasiado bem-educada para fazer algo estúpido. Além disso, refletiu, lembrando-se da noite da véspera, lembrando-se de todos aqueles anos de casamento, ela não tinha temperamento para isso; não sabia o que era a paixão, era inteiramente desprovida de sensualidade. Sua infantilidade nata reforçaria seus princípios morais. As crianças são puras; mas (e era isso que preocupava John Tarwin) não são experientes. Moira não permitiria que fizessem amor com ela; mas poderia facilmente permitir que fosse enganada. O velho Bargioni fora muito discreto e não se comprometera; mas era óbvio que ele considerava esse rapaz um aventureiro, procurando o que pudesse conseguir. John caminhava de testa franzida, mordendo o lábio.

Chegou em casa e encontrou Moira e Tonino dirigindo a colocação dos novos forros de cretone para as cadeiras da sala.

— Cuidado, cuidado — dizia Moira ao estofador, quando ele entrou. Ao som de seus passos, ela voltou-se. Uma nuvem pareceu escurecer o brilho do rosto dela quando o viu; mas fez um esforço para manter a alegria. — Venha dar uma olhada, John — chamou. — É como enfiar uma velha muito gorda num vestido muito apertado. Ridículo!

Mas John não sorriu com ela, seu rosto era uma máscara de seriedade pétrea. Aproximou-se da cadeira, cumprimentou Tonino com um gesto breve de cabeça, o mesmo com o estofador, e postou-se ali observando o trabalho como se fosse um desconhecido, um desconhecido hostil. A visão de Moira e Tonino rindo e conversando provocara nele uma fúria súbita e violenta. “Aventureirozinho nojento”, disse a si mesmo ferozmente por trás de sua máscara.

— É bonitinho, não acha? — perguntou Moira. Ele apenas grunhiu.

— Muito moderno, também — acrescentou Tonino. — As lojas aqui são muito modernas — continuou, falando com a insistência meio defensiva a respeito de modernidade que caracteriza os habitantes de uma cidade com poucos banheiros e muitos monumentos.

— É mesmo? — disse John sarcasticamente.

Moira franziu a testa.

— Você não tem ideia de como Tonino me ajudou — disse, com certo calor.

Tonino começou a negar efusivamente que ela tivesse alguma obrigação para com ele. John Tarwin interrompeu-o.

— Ah, não tenho dúvida de que ele ajudou — disse, no mesmo tom sarcástico e com um sorrisinho de desprezo.

Houve um silêncio incômodo. Então Tonino despediu-se. No momento em que ele saiu Moira voltou-se para o marido. Seu rosto estava pálido, seus lábios tremiam.

— Como você ousa falar assim com um de meus amigos? — perguntou em voz pouco firme, de tanta raiva.

John explodiu.

— Porque eu queria me livrar desse sujeito — respondeu; e a máscara caiu, seu rosto estava furioso. — É nojento ver um homem como esse frequentando a casa. Um aventureiro. Explorando sua tolice. Aproveitando-se de você.

— Tonino não se aproveita de mim. E, aliás, que é que você sabe sobre isso?

Ele deu de ombros:

— As pessoas falam.

— Ah, são aqueles velhos nojentos, não são? — Ela odiava os Bargioni, odiava. — Em vez de ser grato a Tonino por me ajudar! O que é mais do que você já fez, John. Você, com seus tumores horríveis e seu velho Fausto podre! — O desprezo na voz dela era violento. — Deixando que eu me arranjasse sozinha. E quando surge alguém que é humanamente decente comigo, você o insulta. E fica louco de ciúme porque sou normalmente grata a ele.

John tivera tempo de reajustar sua máscara.

— Não fico louco por coisa alguma — disse, controlando a raiva e falando lenta e friamente. — Só não quero ver você caçada por gigolôs morenos e bonitões das favelas de Nápoles.

— John!

— Mesmo que a caçada seja platônica — continuou ele. — O que estou certo de ser. Mas não quero nem mesmo um gigolô platônico por aqui. — Falava friamente, devagar, com a intenção deliberada de feri-la tanto quanto possível. — Quanto ele já tirou de você até agora?

Moira não respondeu, mas voltou-se e saiu correndo da sala.

Tonino tinha chegado ao pé do monte quando uma buzina alta e insistente fez com que se voltasse. Um grande carro amarelo estava junto a ele.

— Moira! — exclamou, atônito. O carro parou ao lado dele.

— Entre — ela ordenou quase ferozmente, como se estivesse zangada com ele.

Fez o que ela mandava.

— Mas aonde pretende ir? — perguntou.

— Não sei. Qualquer lugar. Vamos pegar a estrada de Bolonha para as montanhas.

— Mas você não trouxe chapéu — objetou. — Nem casaco.

Ela apenas riu e, engrenando o carro, partiu a toda velocidade.

John passou a noite solitário. Começou a censurar-se. “Não devia ter falado com tanta brutalidade”, pensou, quando soube da partida precipitada de Moira. Que coisas ternas e encantadoras diria, quando ela voltasse, para compensar suas palavras duras! E então, depois de feitas as pazes, conversaria com ela delicadamente, paternalmente, sobre os perigos das más amizades. Até mesmo a antecipação do que diria a ela fez com que seu rosto se iluminasse com um lindo sorriso. Mas quando, quarenta e cinco minutos depois da hora do jantar, sentou-se para uma refeição solitária e passada do ponto, seu humor já era outro. “Se ela quer fazer malcriação, que faça”, disse a si mesmo. E, à medida que as horas passavam, seu coração se endurecia. Bateu meia-noite. Sua raiva começou a misturar-se a certa apreensão. Será que algo lhe acontecera? Ele estava preocupado. Mas mesmo assim foi para a cama, por princípio, firmemente. Vinte minutos mais tarde ouviu os passos de Moira na escada e depois a porta do quarto dela fechando-se. Ela estava de volta; nada tinha acontecido; perversamente, ficou ainda mais irritado por ela estar a salvo. Será que ela viria dar boa-noite? Ele esperou.

Enquanto isso, Moira despira-se distraída, mecanicamente. Pensava em tudo o que acontecera na eternidade desde que ela saíra de casa. Aquele maravilhoso pôr do sol nas montanhas! Todas as encostas viradas para o oeste coloriram-se de rosa e dourado; abaixo deles havia um abismo de sombra azul. Eles ficaram em silêncio, contemplando. “Beije-me, Tonino”, ela sussurrara de repente, e o toque dos lábios dele fez com que uma espécie de deliciosa apreensão lhe arrepiasse a pele. Ela apertou-se contra ele; o corpo dele era firme e sólido. Ela podia sentir o coração dele pulsando contra sua face, como se tivesse vida própria. Tum, tum, tum — e aquela vida pulsante não era a vida do Tonino que conhecia, o Tonino que ria e fazia elogios e trazia flores; era a vida de uma força misteriosa e própria. Uma força com a qual o indivíduo conhecido como Tonino estava ligado por acaso, mas de modo quase irrelevante. Ela estremeceu. Misteriosa e apavorante. Mas o pavor era de certa forma atraente, como um precipício escuro que atrai. “Beije-me, Tonino, beije-me.” A luz diminuiu; os montes apagaram-se em formas planas contra o céu. “Estou com frio”, disse finalmente, estremecendo. “Vamos embora.” Jantaram numa pequena hospedaria bem no alto, entre dois desfiladeiros. Quando saíram de lá, era noite. Ele abraçou-a e beijou-lhe o pescoço, na nuca, onde os cabelos curtos roçavam seus lábios...

— Você vai me fazer cair em uma vala — ela riu. Mas para Tonino não havia riso.

— Moira, Moira — ele repetia; e havia algo como sofrimento em sua voz. — Moira. — E finalmente, atendendo aos rogos dele, ela parou o carro. Eles saltaram. Sob as castanheiras, que escuridão!

Moira tirou a última peça de roupa e, nua diante do espelho, contemplou sua imagem. Parecia o mesmo de sempre, seu corpo claro; mas na realidade era diferente, era novo, tinha acabado de nascer.

John ainda esperava, mas a esposa não vinha. “Então está certo”, disse a si mesmo, com uma raivazinha despeitada que se disfarçava como uma justiça divina e impessoal. “Ela que fique emburrada, se quiser. Está só castigando a si mesma.” Apagou a luz e preparou-se para dormir. No dia seguinte partiu para Roma e para o Congresso Citológico sem se despedir; isso lhe serviria de lição. Contudo, “Graças a Deus!” foi a primeira reação de Moira quando soube que ele partira. E então, de repente, sentiu pena dele. Pobre John! Como um sapo morto galvanizado; contorcendo-se, mas morto. Ele era realmente patético. Ela era tão rica em felicidade que podia se permitir ter pena dele. E de certo modo estava até grata a ele. Se ele não tivesse vindo, se não tivesse se comportado de maneira imperdoável, nada teria acontecido entre Tonino e ela. Pobre John! Mas de qualquer maneira ele não tinha jeito.

Os dias transcorriam brilhantes e serenos. Mas a vida de Moira não mais fluía como o regato claro e raso que era antes da vinda de John. Era turbulento agora, havia profundeza e escuridões. E o amor não era mais uma brincadeira com uma companhia agradável; era violento, absorvente e até um pouco terrível. Tonino tornou-se para ela uma espécie de obsessão. Ela estava obcecada por ele — por seu rosto, por seus dentes brancos e seus cabelos escuros, por suas mãos, membros e corpo. Queria estar com ele, sentir sua proximidade, tocá-lo. Passava horas acariciando-lhe os cabelos, despenteando-os, arrumando-os fantasticamente, eriçados, como um espantalho, ou com franjas, ou com os cachos enrolados como chifres. E quando conseguia um efeito especialmente cômico, batia palmas e ria, ria até as lágrimas correrem por seu rosto. “Se você se visse agora!”, exclamava. Ofendido pelas risadas dela, Tonino protestava, com uma expressão de dignidade irada um tanto cômica: “Você brinca comigo como se eu fosse uma boneca”. O riso sumia do rosto de Moira e, com uma seriedade que era feroz, quase cruel, ela se inclinava e beijava-o, silenciosamente, violentamente, vezes sem conta.

Ausente, ele ainda estava com ela, como uma consciência pesada. Seus momentos de solidão eram meditações infinitas sobre ele. Às vezes o desejo de sua presença tangível era por demais doloroso para que pudesse suportar. Desobedecendo a todas as recomendações dele, quebrando todas as suas promessas, ela lhe telefonava para vir, saía à procura dele. Uma vez, por volta da meia-noite, Tonino foi chamado em seu quarto de hotel por um recado de que uma senhora queria falar com ele. Encontrou-a sentada no carro.

— Mas não pude aguentar, simplesmente não pude aguentar! — exclamou para desculpar-se e suavizar a raiva dele. Tonino recusou-se a perdoá-la. Chegando assim no meio da noite! Era loucura, era escandaloso! Ela ficou sentada ouvindo, pálida, de lábios trêmulos e com lágrimas nos olhos. Ele finalmente silenciou. — Mas se você soubesse, Tonino — murmurou. — Se você soubesse... — Pegou as mãos dele e beijou-as com humildade.

Berto, quando ouviu as boas notícias (pois Tonino, orgulhosamente, logo lhe contara), ficou curioso em saber se a signora forestiera era tão fria quanto as mulheres do norte tinham fama de ser.

— Macchè! — protestou Tonino vigorosamente. Pelo contrário. Por um longo tempo os dois esportistas discutiram a questão de temperaturas amorosas, discutiram-na técnica, profissionalmente.

Os êxtases de Tonino não eram tão extravagantes quanto os de Moira. No que lhe dizia respeito, esse tipo de coisa já tinha acontecido antes. Com Moira a paixão não diminuía com a satisfação; pelo contrário, uma vez que a satisfação era para ela tão nova, tão intrinsecamente apocalíptica, aumentava. No entanto, o que nela fazia a paixão aumentar nele produzia um arrefecimento. Ele conseguira o que queria; sua ânsia por ela, concebida durante a noite e nascida de um toque (apagada e diminuída, no intervalo, por todas as caçadas amorosas esportivas levadas a cabo ao lado de Berto), tinha sido satisfeita. Ela não era mais desejável e inalcançável, mas possuída, conhecida. Com sua entrega ela se rebaixara ao nível de todas as outras mulheres com quem já tinha feito amor; era apenas outro item na contagem total do esportista.

Sua postura em relação a ela sofreu uma mudança. A familiaridade começou a embotar sua cortesia; seus modos tornaram-se casualmente maritais. Quando a via depois de uma ausência, dizia “Ebbene, tesoro”, em tom pouco romântico e jovial, e dava-lhe um ou dois tapinhas nas costas ou no ombro, como se faz com um cavalo. Permitia que ela tocasse a própria vida, e nela incluía algumas de suas próprias obrigações. Moira ficava feliz em servi-lo. Seu amor por ele era, pelo menos num de seus aspectos, quase abjeto. Ela parecia um cão em seu devotamento. Tonino achava a adoração dela muito agradável, contanto que se exprimisse em levar e trazer, em concordar com as sugestões dele e dar-lhe presentes. “Mas você não deve, minha querida, não pode”, protestava cada vez que ela lhe dava algo. Mesmo assim, aceitou um pregador de gravata de pérola, um par de abotoaduras de ouro e esmalte, um relógio com corrente de ouro e platina. O amor exige tanto quanto dá. Ela queria muito — o coração dele, sua presença física, suas carícias, suas confidências, seu tempo, sua fidelidade. Era tirânica em sua abjeção apaixonada. Importunava-o com sua devoção, e Tonino ficava entediado e irritado por seu amor excessivo. O onisciente Berto, a quem ele confidenciava seus problemas, aconselhou-o a ser firme. “As mulheres”, declarou, “precisam ser mantidas em seus lugares, firmemente. Elas amam mais ainda se são um pouco maltratadas.”

Tonino seguiu os conselhos dele e, pretextando trabalho e compromissos sociais, reduziu o número de suas visitas. Que alívio, estar livre da importunação dela! Inquieta, Moira deu-lhe de presente uma piteira de âmbar. Ele protestou, aceitou-a, mas não lhe deu em troca mais tempo de sua companhia. Um conjunto de botões de diamante não produziu melhor efeito. Ele falava vagamente, porém cheio de retórica, sobre sua carreira e a necessidade de trabalhar duro; essa era sua desculpa para não vir vê-la com mais frequência. Certa tarde, ela quase falou que ela seria a sua carreira e iria dar-lhe tudo o que quisesse, se apenas... Mas a lembrança das palavras odiosas de John fizeram com que nada dissesse. Estava apavorada temendo que ele não opusesse dificuldades para aceitar seu oferecimento.

— Fique comigo esta noite — implorou ela, abraçando-lhe o pescoço. Ele permitiu que ela o beijasse.

— Gostaria de poder ficar — respondeu hipocritamente. — Mas tenho negócios importantes esta noite. — O negócio importante era jogar bilhar com Berto.

Moira olhou para ele em silêncio por um momento; então, retirando as mãos de seus ombros, deu-lhe as costas. Ela vira nos olhos dele um tédio quase aterrorizante.

O verão seguiu seu curso; mas na alma de Moira não havia um brilho interior para combinar com o do sol. Passava os dias em um sofrimento que oscilava entre a inquietude e a apatia. Seus nervos começaram mais uma vez a levar sua própria vida irresponsável, separada da dela. Sem motivo suficiente e contra a sua vontade, encontrava-se incontrolavelmente furiosa, ou chorando ou rindo. Quando Tonino vinha visitá-la, ela quase sempre estava, apesar de todas as suas resoluções, amargamente furiosa ou histericamente em lágrimas. “Mas por que me comporto assim?”, ela se perguntava com desespero. “Por que digo essas coisas? Estou fazendo com que ele me odeie.” Mas quando ele vinha novamente ela agia do mesmo modo. Era como se estivesse possuída por um demônio. E não era só sua mente que estava enferma. Quando subia a escada depressa demais, seu coração parecia parar de bater por um momento e havia uma escuridão girando diante de seus olhos. Tinha dores de cabeça quase diárias, perdeu o apetite, não conseguia digerir o que comia. Em seu rosto abatido os olhos ficaram enormes. Olhando-se no espelho, achava-se horrível, velha, repulsiva. “Não é de estranhar que ele me odeie”, pensava, e durante horas ruminava a ideia de que se tornara fisicamente repulsiva para ele, repulsiva aos olhos, ao toque, contaminando o ar com seu hálito. Essa ideia tornou-se uma obsessão, indescritivelmente dolorosa e humilhante.

“Questa donna!”, reclamava Tonino, com um suspiro, quando voltava de visitá-la. Por que não a deixava, então? Berto era a favor de medidas drásticas. Tonino protestava que não tinha coragem; a pobre mulher ficaria demasiado infeliz. Mas ele também gostava de um bom jantar, de passear num carro luxuoso e receber suntuosas contribuições a seu guarda-roupa. Contentava-se em reclamar e ser um mártir cristão. Certa noite, seu velho amigo Carlo Menardi apresentou-o à irmã. Depois disso ele suportou o martírio com ainda menos paciência que antes. Luisa Menardi tinha apenas dezessete anos, era fresca, saudável, provocantemente bonita, com olhos pretos vivazes que diziam todo tipo de coisas e uma língua impertinente. Os encontros de negócios de Tonino tornaram-se mais numerosos do que nunca. Moira ficava sozinha, ruminando o tema horrível de sua própria repugnância.

Então, de repente, os modos de Tonino para com ela sofreram outra mudança. Ele tornou-se novamente assíduo e terno, generoso, carinhoso. Em vez de endurecer-se com um dar de ombros indiferente diante das lágrimas dela, em vez de responder à raiva com raiva, ele tinha paciência com ela, era amoroso, gentil e alegre. Gradualmente, por uma espécie de contágio espiritual, ela também se tornou amorosa e gentil. Quase com relutância — pois o demônio dentro dela era inimigo da vida e da felicidade — ela voltou à luz.

“Meu querido filho”, tinha escrito o sr. Vasari em sua carta eloquente e inquietante. “Não sou do tipo de reclamar do destino; toda a minha vida tem sido um longo ato de fé e de vontade inexpugnável. Mas há golpes sob os quais mesmo o homem mais forte deve ceder; golpes que...” A carta continuava no mesmo estilo por várias páginas. O fato desagradável que emergia sob aquela eloquência era que o pai de Tonino andara especulando na Bolsa de Nápoles, especulando sem sucesso. No dia primeiro do mês seguinte ele teria de pagar uns cinquenta mil francos a mais do que podia conseguir. O Grande Hotel Ritz-Carlton estava liquidado; talvez tivesse até de vender o restaurante. Havia alguma coisa que Tonino pudesse fazer?

— É possível? — disse Moira com um suspiro de felicidade. — Parece bom demais para ser verdade. — Apoiou-se nele; Tonino beijou-lhe os olhos e falou palavras carinhosas. Não havia lua; o céu azul-escuro estava cheio de estrelas; e, como outro universo estrelado que enlouquecera deliciosamente, os vaga-lumes dardejavam, alternadamente apagados e brilhantes, entre as oliveiras.

— Querida — ele disse em voz alta, e se perguntou se seria um momento propício para falar. — Piccina mia. — Finalmente decidiu esperar mais um ou dois dias. Em mais um dia ou dois, ele calculou, ela não conseguiria negar-lhe coisa alguma.

Os cálculos de Tonino estavam corretos. Ela entregou-lhe o dinheiro, não apenas sem hesitar, mas ansiosa, alegremente. A relutância estava toda do lado dele, em receber. Ele quase chorou ao pegar o cheque, e as lágrimas eram lágrimas de emoção genuína.

— Você é um anjo — disse, e sua voz tremia. — Você nos salvou a todos.

Moira chorava sem nenhuma reserva ao beijá-lo. Como John podia ter dito aquelas coisas? Ela chorava e era feliz. Um par de escovas de cabelo encastoadas em prata acompanhou o cheque — só para mostrar que o dinheiro não fazia diferença no relacionamento deles. Tonino reconheceu a delicadeza da intenção dela e ficou comovido.

— Você é boa demais para mim — insistiu. — Boa demais. — Sentia-se meio envergonhado.

— Vamos dar um longo passeio amanhã — sugeriu ela.

Tonino combinara ir a Prato com Luisa e o irmão. Mas tão forte era sua emoção que estava prestes a aceitar o convite de Moira e sacrificar Luisa.

— Está bem — começou, e de repente pensou melhor. Afinal, podia passear com Moira em qualquer dia. Era raro ter uma chance de sair com Luisa. Bateu na testa e fez cara de desespero. — Mas em que estou pensando! — exclamou. — Amanhã é o dia em que estamos esperando o gerente da companhia de hotéis de Milão.

— Mas você precisa estar lá?

— Infelizmente!

Era triste demais. Até que ponto, Moira só percebeu inteiramente no dia seguinte. Nunca se sentira tão solitária, nunca ansiara tão ardentemente pela presença e a afeição dele. Esperando fugir à solidão e ao tédio com os quais ela tinha enchido a casa, o jardim, a paisagem, pegou o carro e saiu dirigindo sem rumo, sem saber para onde. Uma hora depois encontrava-se em Pistoia, e Pistoia era tão odiosa quanto todos os outros lugares; tomou o rumo de casa. Em Prato havia uma feira. A estrada estava cheia; o ar estava repleto de uma névoa de poeira e o ruído de música estridente. Num campo perto da entrada da cidade, os carrosséis giravam faiscando ao sol. Um cavalo em disparada interrompeu o tráfego. Moira parou o carro e olhou em volta para a multidão, os balanços, os carrosséis com uma hostilidade fria e desprazer. Odioso! E de repente lá estava Tonino, sentado em um cisne no carrossel mais próximo, com uma moça de vestido de musselina cor-de-rosa sentada à frente dele, entre as asas brancas e o pescoço arqueado. Subindo e descendo, o cisne desapareceu de vista. A música continuava. Mas pobre papai, pobre papai, ele não tem mais nada. O cisne reapareceu. A moça de rosa olhava para trás por cima do ombro e sorria. Era bem jovem, vulgarmente bonita, brilhante e de uma saúde roliça. Os lábios de Tonino moviam-se; por trás da parede de ruídos, que é que ele estava dizendo? Tudo o que Moira sabia era que a moça riu; seu riso era como uma explosão de juventude e jovialidade. Tonino ergueu a mão e segurou o braço nu e moreno. Como um planeta a ondular, o cisne mais uma vez desapareceu de vista. Enquanto isso, o cavalo tinha sido acalmado, o tráfego tinha começado a avançar. Atrás dela uma buzina soou insistentemente. Mas Moira não se moveu. Alguma coisa em sua alma desejava que a agonia se repetisse e se prolongasse. Fon, fon, fon! Ela não deu atenção. Subindo e descendo, o cisne surgiu mais uma vez. Dessa vez Tonino a viu. Seus olhos se encontraram; o riso sumiu de seu rosto.

— Porca madonna! — gritou o furioso motorista atrás dela. — Não vai andar?

Moira engatou a marcha e disparou pela estrada empoeirada.

O cheque ainda estava no correio; ainda havia tempo, Tonino refletiu, de impedir o pagamento.

— Você está muito quieto — disse Luisa, provocante, quando voltavam para Florença. O irmão dela estava sentado na frente, ao volante; ele não tinha olhos nas costas. Mas Tonino estava sentado ao lado dela como um boneco. — Por que está tão quieto?

Ele olhou para ela, e seu rosto estava sério e inteiramente alheio às suas provocações. Suspirou, depois, fazendo um esforço, sorriu com melancolia. A mão dela estava sobre o joelho, palma para cima, com um jeito patético de inutilidade. Fazendo mecanicamente o que se esperava dele, Tonino pegou a mão dela.

Às seis e meia ele estava apoiando a motocicleta emprestada no muro da villa de Moira. Sentindo-se como um homem que está prestes a sofrer uma operação perigosa, tocou a campainha.

Moira estava deitada na cama, estava deitada desde que chegara; ainda usava o casaco, nem mesmo tirara os sapatos. Afetando tranquila jovialidade, como se nada de diferente tivesse acontecido, Tonino entrou quase despreocupadamente.

— Deitada? — falou, em tom de surpresa solicitude. — Você não está com dor de cabeça, está? — Suas palavras caíram, triviais e ridículas, em abismos de silêncio significativo. Com o coração pesado sentou-se na beirada da cama, colocou a mão no joelho dela. Moira não se moveu, mas continuou deitada com o rosto escondido, remota e inatingível. — Que foi, minha querida? — Deu-lhe uns tapinhas de carinho. — Você não está zangada porque fui a Prato, está? — continuou, no tom incrédulo de um homem que tem certeza de uma resposta negativa à sua pergunta. Ela continuou em silêncio. Esse silêncio era pior do que o escândalo que ele tinha esperado. Desesperadamente, sabendo que não adiantaria, ele começou a falar em seu velho amigo, Carlo Menardi, que viera de carro buscá-lo; e como o diretor da companhia de hotéis tinha ido embora logo depois do almoço — ninguém esperava! — e como ele pensara que Moira certamente não estaria em casa, ele por fim cedera e fora com Carlo e sua turma. Claro, se tivesse sabido que Moira não tinha saído, tê-la-ia convidado para ir com eles. Para ele, a companhia dela teria feito toda a diferença.

A voz dele era doce, insinuante, apologética. “Um gigolô de cabelos pretos das favelas de Nápoles.” As palavras de John reverberavam em sua lembrança. E então Tonino nunca se importara com ela, só com seu dinheiro. Aquela outra mulher... Tornou a ver o vestido cor-de-rosa, de um tom mais claro que a pele macia e queimada de sol; a mão de Tonino no braço moreno; o brilho dos olhos e dos dentes risonhos. E enquanto isso ele continuava a falar, e até sua voz era uma mentira.

— Vá embora — ela disse finalmente, sem olhar para ele.

— Mas, minha querida... — Inclinando-se sobre ela, ele tentou beijar-lhe o rosto. Ela voltou-se e, com toda a força, bateu-lhe no rosto.

— Maldição! — exclamou ele, furioso com a dor do golpe. Tirou o lenço e segurou-o junto ao lábio que sangrava. — Muito bem, então. — Sua voz tremia de raiva. — Se você quer que eu vá, eu vou. Com prazer. — Afastou-se caminhando pesadamente. A porta bateu atrás dele.

Mas talvez, pensou Moira ouvindo o som dos passos dele descendo a escada, talvez não tivesse sido tão ruim quanto parecia; talvez ela o tivesse julgado mal. Sentou-se; na colcha amarela havia uma pequena mancha vermelha; uma gota do sangue dele. E tinha sido ela quem o golpeara.

— Tonino! — gritou; mas a casa estava silenciosa. — Tonino! — Ainda chamando, ela desceu correndo a escada, e atravessou o vestíbulo e saiu para o pórtico. Teve tempo apenas de vê-lo partir através do portão em sua motocicleta. Ele guiava com uma das mãos; a outra ainda apertava o lenço contra a boca.

— Tonino, Tonino! — Mas ele não ouviu, ou não quis ouvir. A motocicleta desapareceu de vista. E porque ele tinha partido, porque ele estava zangado, por causa de seu lábio sangrando, Moira subitamente convenceu-se de que o acusara falsamente, a culpa era toda dela. Em um estado de agitação dolorosa e incontrolável ela correu para a garagem. Era essencial que o alcançasse, falasse com ele, pedisse perdão, implorasse sua volta. Ligou o carro e partiu.

“Um desses dias você vai despencar pelo barranco, se não tomar cuidado”, John a avisara. “É uma curva horrível.”

Saindo pela porta da garagem, ela girou todo o volante, como sempre. Mas, impaciente demais para estar com Tonino, ela apertou o acelerador ao mesmo tempo. A profecia de John cumpriu-se. O carro chegou perto demais da beira do barranco; a terra seca desmanchou-se e escorreu sob as rodas de fora. O carro inclinou-se horrivelmente, pendeu por um longo instante no ponto de equilíbrio e caiu. Se não fosse o azinheiro, ele teria se esborrachado declive abaixo. Aconteceu que o carro caiu menos de um metro e parou, apoiando-se de lado com o flanco contra o tronco da árvore. Assustada, mas ilesa, Moira subiu pela lateral do carro e saltou para o solo.

— Assunta! Giovanni! — A empregada e o jardineiro vieram correndo. Quando viram o que tinha acontecido, houve uma babel de exclamações, perguntas, comentários.

— Mas você não consegue colocá-lo na estrada novamente? — Moira insistia com o jardineiro; porque era necessário, mais do que necessário, que ela visse Tonino imediatamente.

Giovanni sacudiu a cabeça. Seriam necessários pelo menos quatro homens com alavancas e um par de cavalos...

— Então peça um táxi por telefone — ela ordenou a Assunta e correu para dentro de casa. Se ficasse por mais um instante sequer com aquelas pessoas tagarelas, começaria a gritar. Seus nervos adquiriam novamente vida própria; crispando os punhos, tentou lutar contra eles.

Subindo para seu quarto, sentou-se diante do espelho e começou, metodicamente e com deliberação (era sua vontade impondo-se sobre os nervos), a maquiar o rosto. Esfregou um pouco de vermelho nas faces pálidas, pintou os lábios. Empoou-se. “Tenho que estar apresentável”, pensou, e colocou o chapéu mais bonito. O táxi não chegaria nunca? Lutou contra a impaciência. “Minha bolsa”, disse a si mesma. “Vou precisar de algum dinheiro para o táxi.” Estava contente consigo mesma por ser tão prudente, tão friamente prática apesar dos nervos. “Sim, claro; minha bolsa.”

Mas onde estava a bolsa? Lembrava-se tão claramente de tê-la jogado sobre a cama, quando voltara do passeio. Não estava lá. Olhou debaixo do travesseiro, ergueu a colcha. Ou talvez tivesse caído no chão. Olhou debaixo da cama; a bolsa não estava lá. Seria possível que não a tivesse colocado na cama? Mas não estava na penteadeira, nem em cima da lareira, nem em qualquer das prateleiras, nem em qualquer das gavetas do armário. Onde, onde, onde? E de repente um pensamento horrível ocorreu-lhe. Tonino... seria possível? Os segundos passaram. A possibilidade tornou-se uma horrível certeza. Um ladrão, além de... As palavras de John ecoavam em sua cabeça. “Gigolô de cabelos pretos das favelas de Nápoles, gigolô de cabelos pretos das favelas...” E também ladrão. A bolsa era feita de malha de ouro; havia nela mais de quatro mil liras. Ladrão, ladrão... Ela ficou imóvel, tensa, rígida, olhos parados. Então alguma coisa rompeu-se, alguma coisa pareceu partir-se dentro dela. Ela gritou como se sofresse uma dor intolerável.

O som do tiro trouxe-os correndo para o segundo andar. Encontraram-na deitada, de rosto para baixo, atravessada na cama, ainda respirando de leve. Morreu antes que o médico conseguisse vir da cidade. Em uma cama que ficava, como a dela, em um nicho, era difícil arrumar o corpo. Quando eles a tiraram do recesso, houve o som de algo duro e metálico caindo no chão. Assunta inclinou-se para ver o que tinha caído.

— É a bolsa dela — disse. — Deve ter ficado presa entre a cama e a parede.


Os Claxton

Em sua casinha no bosque, como era linda, como era espiritual a vida dos Claxton! Até o gato era vegetariano — pelo menos oficialmente. Até o gato. O que tornava realmente indesculpável o comportamento da pequena Sylvia. Pois afinal a pequena Sylvia era humana e tinha seis anos de idade, ao passo que o gato tinha só quatro e era um animal. Se o gato podia contentar-se com verduras, batatas, leite e uma ocasional porção de manteiga de amendoim como prêmio — o gato, que tinha um tigre em seu sangue —, certamente podia-se esperar que Sylvia fosse capaz de evitar comer toicinho às escondidas. Particularmente na casa dos outros. O que tornava o incidente especialmente doloroso para os Claxton era que tinha ocorrido sob o teto de Judith. Era a primeira vez que ficavam com Judith desde seu casamento. Martha Claxton nutrira certo medo da irmã, medo de sua língua ferina, de seu riso e de sua irreverência assustadora. E, por causa de seu próprio marido, ela tinha um pouco de ciúme do marido de Judith. Os livros de Jack Bamborough não eram apenas apreciados; também rendiam dinheiro. Ao passo que o pobre Herbert... “A arte de Herbert é interior demais, espiritual demais para a maioria das pessoas”, costumava explicar a esposa. Ela tinha raiva do sucesso de Jack Bamborough; era completo demais. Não se importaria muito se ele tivesse ganhado rios de dinheiro às voltas com o desprezo da crítica; ou se os críticos tivessem aprovado e ele não tivesse ganhado coisa alguma. Mas ganhar elogios e mil libras por ano, isso era demais. Um homem não tinha o direito de ter o melhor de ambos os mundos desse jeito, quando Herbert nunca vendia coisa alguma e era inteiramente ignorado. Apesar de tudo isso ela tinha aceitado finalmente os repetidos convites de Judith. Afinal devia-se amar a irmã e o marido da irmã. Ademais, todas as chaminés da casa precisavam de limpeza, e o telhado teria de ser consertado onde havia goteiras. O convite de Judith chegara num momento conveniente. Martha aceitou-o. E então Sylvia acabou fazendo aquela coisa realmente inadmissível. Descendo para o café da manhã antes dos outros, ela roubou uma fatia do prato de toicinho com o qual a tia e o tio tão barbaramente começavam seu dia. A chegada da mãe impediu-a de comê-lo no local; teve de escondê-lo. Semanas mais tarde, quando Judith procurava algo na cômoda italiana marchetada, uma pequena poça de gordura seca dava um testemunho eloquente do crime. O dia passou; mas Sylvia não encontrou oportunidade para consumar a transgressão que iniciara. Foi só à noite, enquanto seu irmãozinho Paul recebia o banho, que ela conseguiu recuperar o toicinho, agora rígido e viscoso. Com pressa e culpa, ela correu para cima e escondeu-o sob o travesseiro. Quando a luz foi apagada, comeu-o. De manhã, as manchas de gordura e um pedaço de casca mastigada denunciaram-na. Judith teve inesgotáveis ataques de riso.

— É como o Jardim do Éden — ofegou entre as explosões de riso. — A carne do Porco do Conhecimento do Bem e do Mal. Mas se você insiste em dar ao toicinho todos esses imperativos categóricos e esse mistério, o que poderia esperar, minha querida Martha?

Martha continuou sorrindo seu sorriso costumeiro de doce benevolência e perdão. Mas por dentro sentia-se extremamente irada; a criança tinha feito com que eles todos parecessem tolos diante de Judith e Jack. Ela gostaria de dar-lhe uma boa surra. Em vez disso — pois nunca se deve ser ríspido com uma criança, nunca se deve deixá-la perceber que se está irritado —, ela conversou com Sylvia, explicou, pediu e apelou, mais com tristeza do que com raiva, para seus melhores sentimentos.

— Seu pai e eu não achamos correto fazer os animais sofrerem, se podemos comer verduras, que não sofrem.

— Como você sabe que elas não sofrem? — perguntou Sylvia, fazendo a pergunta com malícia. Tinha no rosto as marcas do mau humor.

— Não achamos direito, querida — continuou a sra. Claxton, ignorando a interrupção. — E tenho certeza de que você também não acharia, se pensasse. Pense, meu amor; para fazer aquele toicinho, um porquinho teve de ser morto. Morto, Sylvia, pense nisso. Um pobre porquinho inocente que não tinha feito mal a ninguém.

— Mas eu odeio porcos — exclamou Sylvia. Sua raiva explodiu em súbita ferocidade; os olhos, que estavam fixos e vidrados de ressentimento, brilharam obscuramente. — Odeio, odeio, odeio.

— Muito bem — disse tia Judith, que entrara inoportunamente no meio do sermão. — Muito bem. Os porcos são nojentos. É por isso que são chamados porcos.

Martha ficou contente em voltar para a casinha no bosque e a bela vida, feliz em escapar do riso irreverente de Judith e da eterna censura do sucesso de Jack. Em sua casa ela comandava, era a senhora dos destinos da família. Aos amigos que vinham visitá-los ela gostava de dizer, com aquele seu sorriso: “Sinto que, a nosso modo e em escala mínima, construímos Jerusalém na terra verde e agradável da Inglaterra”.

Tinha sido o bisavô de Martha quem iniciara a fábrica de cerveja. Postagate’s Entire era uma palavra costumeira em Cheshire e Derbyshire. A parte de Martha na fortuna da família era de umas setecentas libras por ano. A espiritualidade e o desprendimento dos Claxton eram as flores de uma planta econômica cujas raízes eram regadas a cerveja. Se não fosse a sede dos trabalhadores britânicos, Herbert teria de gastar tempo e energia produzindo lucro, não vivendo em meio à beleza. A cerveja e o fato de ter se casado com Martha permitiam-lhe cultivar as artes e as religiões, distinguir-se em um mundo grosseiro como um apóstolo do idealismo.

— É o que se chama divisão de trabalho — dizia Judith, rindo. — Outras pessoas bebem. Martha e eu pensamos. Ou, pelo menos, pensamos que pensamos.

Herbert era um desses homens que nunca estão sem uma mochila nas costas. Mesmo na rua Bond, nas raras ocasiões em que ia a Londres, Herbert parecia estar prestes a escalar o Mont Blanc.[58] A mochila é um sinal de espiritualidade. Para o moderno teutão ou anglo-saxão pensador e puro de coração, o escândalo da mochila é o que o escândalo da cruz era para os Franciscanos. Quando Herbert passava, de pernas compridas e calças curtas, a barba clara como uma explosão em volta de seu rosto, a mochila transbordando com alhos-porós e repolhos em abundância necessária para manter uma família puramente graminívora, os garotos de rua gritavam, as raparigas dobravam-se de rir. Herbert ignorava-os, ou então sorria através da barba com ar de perdão e um humor meio estudado. Todos nós temos nossas pequenas mochilas para carregar. Herbert carregava a dele não com mera resignação, mas corajosamente, provocantemente, jogando-a na cara das pessoas; e, junto com a mochila, os outros símbolos de diferença, de separação da humanidade comum e vulgar: a barba, as calças curtas, a camisa byrônica. Ele tinha orgulho de sua diferença.

— Ah, sei que vocês nos acham ridículos — dizia aos amigos do mundo grosseiro e materialista. — Sei que riem de nós e nos acham malucos.

— Não, não — respondiam os amigos, mentindo educadamente.

— No entanto, se não fosse pelos malucos, onde estariam vocês agora, o que estariam fazendo? — Herbert insistia. — Estariam surrando crianças e torturando animais e enforcando pessoas por roubarem um xelim e fazendo todas as outras coisas horríveis que se faziam antigamente.

Ele tinha orgulho, orgulho; sabia-se superior. Assim como Martha. Apesar de seu belo sorriso cristão, ela também tinha certeza de sua superioridade. Aquele seu sorriso era a marca registrada de sua espiritualidade. Versão mais benevolente do sorriso da Mona Lisa, ele mantinha seus lábios um tanto finos e sem sangue quase cronicamente curvados para cima numa lua crescente de doce caridade e perdão; ele sobrecarregava a casmurrice natural do rosto dela com uma espécie de doçura descabida. Era o produto de longos anos de autonegação, de teimosas aspirações em direção ao elevado, de um amor consciente e decidido pela humanidade e por seus inimigos. (E para Martha os termos eram realmente idênticos; a humanidade, embora naturalmente ela não o admitisse, era mesmo sua inimiga. Ela sentia-a hostil e, portanto, amava-a, consciente e conscienciosamente; amava-a porque na realidade a odiava.)

Por fim o hábito fixara o sorriso em seu rosto de maneira indelével. Ele brilhava permanentemente, como os faróis de um carro deixados ligados, acidentalmente e sem nenhuma necessidade, durante o dia. Mesmo quando aborrecida ou radicalmente zangada, mesmo quando, teimosa, lutava para impor sua vontade, o sorriso persistia. Emoldurados por cachos pré-rafaelitas de cabelos cor de rato, o rosto pesado, de feições amuadas e doentiamente pálido, continuava a brilhar com o incongruente e amoroso perdão por todo aquele mundo de humanidade odiosa e hostil; apenas nos olhos cinzentos havia algum traço das emoções que Martha reprimia tão cuidadosamente.

Quem ganhara o dinheiro tinham sido o bisavô e o avô dela. O pai já era, por berço e criação, um cavalheiro proprietário de terras. A fábrica de cerveja era apenas o pano de fundo longínquo, porém lucrativo, de atividades mais refinadas, como esportista, agricultor, criador de cavalos e de rododendros, membro do parlamento e sócio dos melhores clubes de Londres.

A quarta geração estava, obviamente, madura para a arte e o pensamento superior. E assim, a seu tempo, a adolescente Martha descobriu William Morris e a sra. Besant, descobriu Tolstói, Rodin, Dança Folclórica e Lao-Tsé. Teimosamente, com todo o poder de sua vontade pesada, ela dirigiu-se à conquista da espiritualidade, ao cerco e à captura do superior. E, não menos a seu tempo que a irmã, a adolescente Judith descobriu a literatura francesa e ficou levemente entusiasmada (pois estava em sua natureza ser leve e alegre) com Manet e Daumier, e até mesmo, a seguir, com Matisse e Cézanne. A longo prazo, fabricar cerveja leva quase inevitavelmente ao impressionismo, à teosofia ou ao comunismo. Mas há outras estradas para as alturas espirituais; era por uma dessas outras estradas que Herbert tinha viajado. Não havia fabricante de cerveja entre os ancestrais de Herbert. Ele vinha de uma camada mais baixa, ou pelo menos mais pobre, da sociedade. Seu pai tinha um armarinho em Nantwich. O sr. Claxton era um homem magro e frágil, com uma queda para a discussão e para picles de cebola. A indigestão estragara-lhe o humor, e a crônica consciência de inferioridade fizera dele um revolucionário e um valentão doméstico. Nos intervalos do trabalho ele lia a literatura do socialismo e da descrença e implicava com a esposa, que se refugiava na piedade não conformista. Herbert era um menino inteligente, com talento para passar nos exames. Dava-se bem na escola. Em casa tinham muito orgulho dele, pois era filho único.

“Guarde bem o que lhe digo”, dizia o pai, iluminando-se profeticamente naquela beatitude de quinze minutos que surgia entre o jantar e o início da digestão. “Este menino ainda vai fazer alguma coisa notável.”

Poucos minutos mais tarde, com os primeiros roncos e as primeiras convulsões da indigestão, ele estaria gritando com o filho, furioso, esmurrando-o, expulsando-o da sala.

Não sendo bom em jogos, Herbert vingava-se de seus rivais mais atléticos através da leitura. Aquelas tardes passadas na biblioteca pública em vez de no campo de futebol, ou em casa com um dos livros revolucionários do pai, foram o início de sua diferença e superioridade. Era, quando Martha o conheceu, uma diferença política, uma diferença anticristã. A superioridade dela era principalmente artística e espiritual. A personalidade de Martha era a mais forte; em pouco tempo o interesse de Herbert pelo socialismo tornava-se inteiramente secundário ao seu interesse pela arte, e seu anticlericalismo adquiriu tons de religiosidade oriental. Era de esperar.

O que não era de esperar foi os dois se casarem, ou até mesmo se conhecerem. Não era comum que filhos de cervejeiros latifundiários e de donos de armarinho se conhecessem e se casassem.

Uma sessão de dança medieval fez o milagre. Eles se conheceram em certo jardim nos subúrbios de Nantwich onde o sr. Winslow, o professor, presidia os passinhos e saltinhos um tanto solenes de tudo o que era o melhor da juventude de Cheshire oriental. Martha foi do campo para esse jardim suburbano de automóvel. Herbert foi de bicicleta, da rua principal. Conheceram-se: o amor fez o resto.

Martha tinha vinte e quatro anos e, em seu estilo pesado e pálido, não era feia. Herbert era um ano mais velho, um rapaz alto, desproporcionalmente magro, com o rosto de feições fortes e aquilinas, no entanto singularmente calmas (“um carneiro em vestes de águia”, foi como Judith o descreveu certa vez), e cabelos muito claros. Barba, na época ele não mantinha. A necessidade econômica ainda o impedia de anunciar a sua diferença e superioridade. No escritório do leiloeiro onde Herbert trabalhava, uma barba seria tão inteiramente inadmissível quanto calças curtas, camisa aberta, e aquele símbolo exterior e visível da graça interior, a mochila. Para Herbert, essas coisas só se tornaram possíveis quando o casamento e as setecentas libras anuais de Martha ergueram-no acima das implacáveis influências da razão econômica. Nesses dias de Nantwich o máximo que ele podia se permitir era uma gravata vermelha e algumas opiniões particulares.

Foi Martha quem se incumbiu da maior parte do amor. Taciturnamente, com uma paixão quase sombria em sua intensidade teimosa, ela o adorava — o corpo frágil, as mãos delicadas, de dedos longos, aquele rosto aquilino com seu ar de distinção e inteligência que outros olhos consideravam falso, todo ele, todo. “Ele leu William Morris e Tolstói”, escreveu em seu diário. “É uma das poucas pessoas que conheci que se sentem responsáveis a respeito das coisas. Todas as outras são terrivelmente frívolas, egocêntricas e indiferentes. Como Nero tocando violino enquanto Roma ardia. Ele não é assim. Ele é consciente, atento, ele aceita a carga. Por isso gosto dele.” Por isso, de qualquer maneira, ela achava que gostava dele. Mas sua paixão era na verdade pelo Herbert Claxton físico. Pessoalmente, como uma nuvem escura carregada de eletricidade, ela pairava sobre ele como uma espécie de ameaça, prestes a explodir sobre ele com os raios da paixão e da vontade dominadora. Herbert carregou-se com um pouco da eletricidade de paixão que despertara nela. Porque ela amava, ele a amava de volta. Sua vaidade também estava lisonjeada; era apenas teoricamente que ele desprezava as diferenças sociais e a fortuna.

Os proprietários-cervejeiros ficaram horrorizados quando Martha declarou que pretendia casar-se com o filho de um comerciante. As objeções apenas intensificaram a teimosa determinação de Martha de fazer o que queria. Mesmo que não o amasse, teria casado com ele por princípio, só porque o pai dele era comerciante e porque todo esse negócio de classes era uma bobagem sem importância. Além disso, Herbert tinha talento. Que tipo de talento era difícil especificar. Mas, fosse qual fosse esse talento, ele estava sendo destruído no escritório do leiloeiro. Suas setecentas libras por ano lhes dariam liberdade. Era praticamente um dever casar-se com ele.

— Um homem é um homem, apesar de tudo — declarou ao pai, citando, na esperança de persuadi-lo, o poeta favorito dele; ela própria achava que Burns era por demais grosseiro e pouco espiritual.

— E um carneiro é um carneiro — retorquiu o sr. Postgate. — E um inseto é um inseto, apesar de tudo.

Martha enrubesceu violentamente e deu-lhe as costas sem dizer mais nada. Três semanas mais tarde, ela e o quase passivo Herbert estavam casados.

Bem, agora Sylvia tinha seis anos e dava bastante trabalho; o pequeno Paul, que era manhoso e tinha adenoides, acabara de fazer cinco; e Herbert, sob a influência da esposa, descobrira inesperadamente que seus talentos eram na realidade artísticos, sendo nessa época um pintor com uma estabelecida reputação de inépcia e falta de vida. Depois de cada reafirmação de sua falta de sucesso, ele exibia, mais desafiador, o escândalo da mochila, os escândalos das calças curtas e da barba. Martha, enquanto isso, falava sobre a interioridade da arte de Herbert. Eles conseguiam convencer-se de que era sua superioridade que os impedia de receber o reconhecimento que mereciam. A falta de sucesso de Herbert era até mesmo uma prova (embora talvez não a espécie mais satisfatória de prova) dessa superioridade.

— Mas o dia de Herbert chegará — afirmava Martha profeticamente. — Tem de chegar.

Enquanto isso a pequena casa transbordava de quadros não vendidos. Alegóricos, eles eram pintados sem muito cuidado, num estilo que era indiano antigo, não obstante temperado, sempre que os originais orientais decaíam por demais lascivamente para seios e cinturas de vespa e coxas como a lua, pela melancólica respeitabilidade de Puvis de Chavannes.

— E deixe-me implorar, Herbert — esses tinham sido os conselhos de despedida de Judith, enquanto esperavam na plataforma o trem que os levaria de volta à casinha no bosque. — Deixe-me implorar a você: tente ser um pouco mais indecente em seus quadros. Não tão chocantemente puro. Você não sabe como me faria feliz se pudesse ser realmente obsceno, ao menos uma vez. Realmente obsceno.

Era um alívio, pensou Martha, estar se distanciando desse tipo de coisa. Judith era muito... Seus lábios sorriam, sua mão acenou em despedida.

— Não é maravilhoso estar de volta a nossa casinha querida! — ela exclamou, quando o táxi entrou aos solavancos pelo caminho que atravessava o terreno até o portão do jardim. — Não é maravilhoso?

— Maravilhoso — disse Herbert, fazendo ecoar obedientemente seu êxtase um tanto forçado.

— Maravilhoso! — repetiu o pequeno Paul, fanhosamente, por causa das adenoides. Era uma criança boa, quando não estava fazendo manha, e sempre dizia e fazia o que se esperava dele.

Pela janela do táxi Sylvia contemplou criticamente a casa comprida e baixa entre as árvores.

— Acho que a casa de tia Judith é mais bonita — concluiu com decisão.

Martha voltou-se para ela com a doce iluminação de seu sorriso.

— A casa de tia Judith é maior e muito mais luxuosa — disse. — Mas este é o lar, minha querida. Nosso próprio lar.

— Mesmo assim, gosto mais da casa de tia Judith — insistiu Sylvia.

Martha sorriu-lhe em perdão e sacudiu a cabeça.

— Quando você crescer vai entender o que quero dizer — falou. “Uma criança estranha”, pensava, “uma criança difícil.” Não como Paul, que era tão fácil. Fácil demais. Paul aceitava sugestões, fazia o que lhe mandavam, coloria-se com as cores do ambiente espiritual. Sylvia não. Ela tinha vontade própria. Paul era como o pai. Na menina, Martha via algo de sua própria teimosia, paixão, determinação. Se essa vontade pudesse ser dirigida... Mas o problema é que ela era, com demasiada frequência, hostil, relutante, contrária. Martha pensou naquela ocasião deplorável, poucos meses antes, em que Sylvia, num ataque de raiva por não ter permissão de fazer algo que queria fazer, cuspira no rosto do pai. Herbert e Martha tinham concordado que ela devia ser castigada. Mas como? Não surrada, naturalmente surrar estava fora de questão. A coisa importante era fazer a criança entender o horror do que tinha feito. Finalmente resolveram que a melhor coisa a fazer seria Herbert conversar com ela muito seriamente (mas muito suavemente, é claro) e então deixá-la escolher seu próprio castigo. Deixar que a consciência dela decidisse. Parecia uma ideia excelente.

— Quero lhe contar uma história, Sylvia — disse Herbert naquela noite, colocando a criança no colo. — Sobre uma menininha que tinha um pai que a amava muito, muito. — Sylvia olhou para ele com suspeita, mas não disse nada. — E um dia essa menininha, que às vezes era uma menina um pouco estouvada, embora eu não acredite que fosse realmente má, estava fazendo uma coisa que não era certo ou bom para ela. E o pai lhe disse que não fizesse. E o que acha que essa menininha fez? Ela cuspiu no rosto do pai. E o pai ficou muito triste. Porque o que sua filhinha fez estava errado, não estava? — Sylvia assentiu desafiadoramente. — E quando alguém faz alguma coisa errada, deve ser castigado, não deve? — A criança tornou a assentir. Herbert ficou contente; suas palavras tinham tido efeito; a consciência dela estava sendo tocada. Sobre a cabeça da criança ele trocou um olhar com Martha. — Se você fosse esse pai, e a menina que você amava tanto tivesse cuspido em seu rosto, o que você teria feito, Sylvia?

— Cuspido de volta — respondeu Sylvia ferozmente e sem hesitar.

À lembrança dessa cena, Martha suspirou. Sylvia era difícil, Sylvia era decididamente um problema. O táxi parou no portão; os Claxton descarregaram a si mesmos e a bagagem. Diante da gorjeta insuficiente, o motorista fez a cena de costume. Carregando a mochila, Herbert deu-lhe as costas com digna paciência. Estava acostumado a esse tipo de coisa; era um martírio crônico. O desagradável dever de pagar era sempre dele. Martha apenas fornecia o dinheiro — e com que relutância extrema, crescente a cada ano! Ele sempre ficava entre o fogo da gorjeta insuficiente e a frigideira da avareza de Martha.

— Uma viagem de quatro quilômetros e uma gorjeta de dois pence! — gritou o motorista para as costas emochiladas de Herbert, que se afastava.

Martha reclamava até dos dois pence. Mas a convenção exigia que alguma gorjeta fosse dada. As convenções são coisas estúpidas; mas até mesmo os Filhos do Espírito tinham de fazer concessões ao Mundo. Nesse caso Martha estava disposta a fazer uma concessão de até o máximo de dois pence. Não mais. Herbert sabia que ela ficaria muito zangada se ele tivesse dado mais. Não abertamente, é claro; não explicitamente. Ela nunca perdia a paciência ou o sorriso a olhos vistos. Mas sua desaprovação clemente teria pesado em cima dele durante vários dias. E durante vários dias ela teria encontrado desculpas para economizar, para poder compensar a enorme extravagância de uma gorjeta de seis pence em vez de dois. Suas economias eram principalmente na comida, e sua justificativa era sempre espiritual. Comer era grosseiro; viver bem era incompatível com pensar bem; era horrível pensar nos pobres com fome enquanto as pessoas viviam em luxuosa gula. Haveria um corte na manteiga e nas castanhas, nas verduras mais gostosas e nas melhores frutas. As refeições consistiriam mais e mais exclusivamente em pirão, batata, repolho, pão. Só quando a extravagância original tivesse sido compensada cem vezes é que Martha começaria a relaxar em seu ascetismo. Herbert nunca se aventurou a reclamar. Depois de um desses ataques de vida sob necessidades básicas, ele durante muito tempo tomou cuidado para evitar outras extravagâncias, mesmo quando, como nesse caso, suas economias o levavam a um conflito doloroso e humilhante com aqueles sobre quem elas eram praticadas.

— Da próxima vez vou cobrar mais caro pela barba — gritava o motorista.

Herbert atravessou a soleira e fechou a porta atrás de si. Salvo! Tirou a mochila e depositou-a cuidadosamente numa cadeira. Grosso, vulgar, animal! Mas de qualquer maneira ele fora embora com os dois pence. Martha não teria razão para diminuir o suprimento de ervilhas. De modo manso e espiritual, Herbert gostava muito de comer. Martha também — de modo mal-humorado e violento. Por isso ela se tornara vegetariana, por isso suas economias eram sempre à custa do estômago — exatamente porque gostava tanto de comer. Ela sofria quando se privava de um petisco delicioso. Mas havia um sentido no qual ela amava seu sofrimento mais que o petisco. Negando-se, ela sentia todo o seu ser irradiado por um brilho de poder; sofrendo, ela se fortalecia, sua vontade se firmava, sua energia aumentava. Os instintos represados subiam sem parar atrás do muro da mortificação voluntária, profundos e pesados com o potencial de força. Na luta entre os instintos, o amor que Martha tinha pelo poder era em geral suficientemente forte para vencer sua gula; entre a hierarquia de prazeres, a alegria de exceder a vontade pessoal consciente era mais intensa do que a alegria de comer até mesmo chocolate com menta ou morangos com creme. Nem sempre, no entanto; pois havia ocasiões em que, vencida por um desejo súbito e irresistível, Martha comprava e, em um só dia, consumia secretamente um quilo inteiro de bombons de chocolate, jogando-se sobre os doces com a mesma violência pesada que caracterizara sua paixão por Herbert. Com a passagem do tempo e a diminuição, depois do nascimento dos dois filhos, de sua paixão física pelo marido, as orgias de Martha entre os chocolates se tornaram mais frequentes. Era como se suas energias vitais estivessem sendo forçadas, pelo fechamento do canal sexual, a encontrar um escoadouro na gulodice. Depois de uma dessas orgias Martha sempre tendia a se tornar mais severa do que era em sua ascética espiritualidade.

Três semanas depois da volta dos Claxton à sua casinha no bosque, irrompeu a guerra.

— Ela mudou a maioria das pessoas — comentou Judith no terceiro ano de guerra. — Alterou algumas a um ponto irreconhecível. Não Herbert e Martha, no entanto. Só os fez mais... mais como eles mesmos do que eram antes. Curioso — ela sacudiu a cabeça. — Muito curioso.

Mas não era curioso: era inevitável. A guerra não podia deixar de intensificar tudo o que era caracteristicamente herbertiano e marthaense em Herbert e Martha. Ela aumentava seu senso de superioridade distante, separando-os ainda mais do rebanho comum. Pois enquanto as pessoas comuns acreditavam na guerra, lutavam e trabalhavam para vencer, Herbert e Martha desaprovavam-na inteiramente e, pela razão de serem parcialmente budistas, parcialmente socialistas e parcialmente tolstoianos, recusaram-se a participar daquela coisa maldita. No meio da loucura universal, só eles eram sãos. E sua superioridade era provada e divinamente aureolada pela perseguição. A desaprovação não oficial dera lugar, depois da lei do alistamento compulsório, à repressão oficial. Herbert alegou uma objeção consciente. Ele foi mandado trabalhar na terra em Dorset, um mártir, um ser humano diferente e espiritualmente superior. O ato de um ministério da Guerra brutal o tinha definitivamente promovido para além das fileiras da humanidade comum. Dessa promoção Martha participava por extensão. Mas o que mais poderosamente estimulava a espiritualidade dela não era a perseguição do tempo da guerra, mas sim a instabilidade financeira do tempo da guerra, do aumento dos preços no tempo da guerra. Nas primeiras semanas de confusão ela ficara em pânico; imaginava que todo o seu dinheiro estava perdido, via-se com Herbert e as crianças, famintos e sem casa, mendigando de porta em porta. Imediatamente despediu as duas empregadas, reduziu o suprimento de comida da família a uma ração de prisão. O tempo passou e seu dinheiro entrava como sempre. Mas Martha estava tão deliciada com as economias que fizera que não quis voltar ao antigo modo de vida.

— Afinal, não é realmente agradável ter desconhecidos dentro de casa para nos servir — argumentava. — Além disso, por que deveriam nos servir? Eles são tão bons quanto nós. — Era um tributo hipócrita à doutrina cristã; na verdade, eles eram imensuravelmente inferiores. — Só porque acontece que somos capazes de pagar-lhes, é por isso que eles têm que nos servir. Isso sempre me fez sentir inconfortável e envergonhada. A você não, Herbert?

— Sempre — disse Herbert, em eterna concordância com a mulher.

— Além disso, acho que cada um deve fazer seu próprio trabalho. Não se deve perder o contato com as pequenas e humildes realidades da vida. Sinto-me realmente mais feliz desde que comecei a fazer o trabalho de casa. Você não?

Herbert assentiu.

— E é tão bom para as crianças. Ensina-as a humildade e o dever.

Passar sem empregada economizava cento e cinquenta libras por ano. Mas as economias que ela fazia na comida logo eram contrabalançadas pelos resultados da escassez e da inflação. A cada aumento de preço, o entusiasmo de Martha pela espiritualidade ascética tornava-se mais férvido e profundo. Assim como a sua convicção de que as crianças seriam estragadas e transformadas em pessoas mundanas caso as mandassem para um colégio interno caro. “Herbert e eu acreditamos muito na educação no lar, não acreditamos, Herbert?” E Herbert concordava que acreditavam muito mesmo. Educação em casa, sem uma governanta, insistia Martha. Por que haveria necessidade de deixar um filho ser influenciado por desconhecidos? Talvez mal influenciado. De qualquer forma, não influenciado da maneira exata como os pais o influenciariam. As pessoas contratavam governantas porque não gostavam do trabalho difícil de educar seus filhos. E naturalmente o trabalho era mesmo difícil — tanto mais difícil quanto mais elevados fossem os ideais. Mas não valia a pena fazer sacrifícios pelos filhos? Com essa pergunta consoladora, o sorriso de Martha curvava-se em uma meia-lua de espiritualidade maior do que o normal. Claro que valia a pena. O trabalho era um contentamento incessante — não era, Herbert? Pois o que poderia ser mais delicioso, mais profundamente agradável à alma, do que ajudar os próprios filhos a crescerem belamente, guiá-los, moldar seu caráter em formas ideais, levar seus pensamentos e desejos para os canais mais nobres? Não por qualquer sistema compulsório, naturalmente; as crianças não deviam ser compelidas jamais; a arte da educação era convencer as crianças a moldarem-se nas formas mais ideais, era mostrar-lhes como serem os artífices de seus próprios eus superiores, era injetar-lhes entusiasmo pelo que Martha descrevia, apropriadamente, como “autoescultura”.

Em Sylvia, a mãe tinha de admitir, essa arte da educação era difícil de ser praticada. Sylvia não queria esculpir-se, pelo menos não nas formas que Martha e Herbert achavam as mais bonitas. Ela era, quase num nível desencorajador, desprovida daquele senso de beleza moral no qual os Claxton confiavam como meio de educação. Era feio, diziam-lhe, ser rude, desobedecer, dizer coisas feias e falar mentiras. Era bonito ser gentil e delicada, obediente e honesta. “Mas não me importo de ser feia”, retorquia Sylvia. Não havia resposta possível a não ser uma surra; e as surras eram contra os princípios dos Claxton.

Para Sylvia, a beleza estética e intelectual parecia significar tão pouco quanto a beleza moral. Que dificuldades tiveram para fazer com que ela se interessasse pelo piano! Isso era ainda mais extraordinário, considerava a mãe, porque Sylvia era obviamente musical; quando tinha dois anos e meio já sabia cantar Os três ratinhos sem desafinar. Mas não queria aprender as escalas. A mãe falou-lhe de um menininho maravilhoso chamado Mozart. Sylvia odiava Mozart. “Não, não!”, gritava, sempre que a mãe mencionava o nome detestado. “Não quero ouvir.” E para ter certeza de não ouvir ela levava os dedos ao ouvidos. Mesmo assim, aos nove anos ela conseguia tocar A camponesa alegre do início ao fim sem errar. Martha ainda tinha esperança de transformá-la na musicista da família. Paul, enquanto isso, era o futuro Giotto; tinha sido decidido que ele herdara os talentos do pai. Ele aceitou essa carreira tão docilmente quanto tinha consentido em aprender a ler. Sylvia, por outro lado, simplesmente recusava-se a ler.

— Mas pense como vai ser maravilhoso quando você puder abrir um livro e ler todas as coisas lindas que as pessoas escreveram! — dizia Martha em tom enlevado. Suas palavras, no entanto, não surtiram efeito.

— Gosto mais de brincar — dizia Sylvia, obstinada, com aquela expressão de mau humor que ameaçava tornar-se tão crônica quanto o sorriso da mãe. Fiéis a seus princípios, Herbert e Martha deixavam-na brincar; mas era uma dor para eles.

— Você deixa seu papai e sua mamãe tão tristes — diziam, tentando apelar para seus melhores sentimentos. — Tão tristes. Por que não tenta ler para fazer felizes seu papai e sua mamãe? — A criança enfrentava-os com uma expressão de infelicidade irada e teimosa, e sacudia a cabeça. — Só para nos agradar — pediam. — Você nos deixa tão tristes. — Sylvia olhava tristemente de um rosto clemente para o outro e explodia em lágrimas.

— Malvados — soluçava incoerentemente. — Malvados. Vão embora. — Ela os odiava por serem tristes, por fazerem-na triste. — Não, vão embora, vão embora — gritava, quando tentavam consolá-la. Ela chorava inconsolavelmente; mas não queria ler.

Paul, por outro lado, era maravilhosamente ensinável e moldável. Lentamente (pois, com suas adenoides, ele não era um garoto muito inteligente), mas com toda a docilidade que se poderia desejar, ele aprendeu a ler sobre o gato de sapato no mato e assuntos do gênero. “Ouça como Paul lê bem”, Martha dizia, na esperança de despertar o espírito da emulação em Sylvia. Mas Sylvia apenas fazia um ar de desprezo e saía da sala. Por fim, ela aprendeu a ler secretamente, em poucas semanas. O orgulho dos pais com essa façanha diminuiu quando descobriram os motivos dela para fazer tamanho esforço.

— Mas que livrinho horrível é este? — perguntou Martha, erguendo um exemplar de Nick Carter e os assassinos do Boulevard Michigan, que ela descobrira cuidadosamente escondido sob as roupas de inverno de Sylvia. Na capa havia um desenho de um homem sendo jogado do teto de um arranha-céu por um gorila.

A criança arrancou o livro da mão dela.

— É um livro lindo — retorquiu, enrubescendo violentamente, com uma raiva que era intensificada por seu sentimento de culpa.

— Querida — disse Martha, sorrindo lindamente na superfície de seu aborrecimento —, você não deve se apoderar das coisas assim. É feio.

— Não me importo.

— Deixe-me dar uma olhada nele, por favor. — Martha estendeu a mão. Sorria, mas seu rosto pálido estava pesadamente decidido, seus olhos ordenavam.

Sylvia enfrentou-a, sacudiu teimosamente a cabeça.

— Não, não quero que você veja.

— Por favor — pediu a mãe, mais clemente e autoritária que nunca. — Por favor. — E finalmente, com uma explosão súbita de raiva lacrimosa, Sylvia entregou o livro e correu para o jardim.

— Sylvia, Sylvia! — chamou a mãe. Mas a criança não voltou. Assistir à mãe violando os segredos de seu mundo particular teria sido insuportável.

Devido às adenoides, Paul parecia, e era, quase um imbecil. Embora não fosse cientologista, Martha não acreditava nos médicos; mais particularmente ainda, não gostava dos cirurgiões, talvez por que fossem tão caros. Deixou as adenoides de Paul no lugar; elas cresceram e inflamaram a garganta. De novembro a maio ele nunca estava sem um resfriado, uma amigdalite, uma dor de ouvido. O inverno de 1921 foi particularmente ruim para Paul. Começou com gripe, que se transformou em pneumonia, pegou sarampo durante a convalescença e no Ano-Novo desenvolveu uma infecção no ouvido médio que ameaçava deixá-lo surdo para sempre. O médico recomendou categoricamente a operação, um tratamento, um período de convalescença na Suíça a certa altitude e ao sol. Martha hesitou em seguir o conselho dele. Acabara tão firmemente convencida de sua pobreza que não via como poderia fazer o que o médico mandara. Em sua perplexidade, escreveu para Judith. Dois dias depois, Judith em pessoa chegou.

— Mas você quer matar o menino? — perguntou ferozmente à irmã. — Por que não o tirou desse buraco imundo e úmido há várias semanas?

Em poucas horas ela arranjara tudo. Herbert e Martha viajariam imediatamente com o menino. Seguiriam sem paradas para Lausanne no trem-dormitório.

— Mas certamente um trem-dormitório não é necessário — objetou Martha. — Você esquece (ela sorria lindamente) que somos pessoas simples.

— Só me lembro que vocês têm uma criança doente consigo — disse Judith, e o trem foi reservado.

Em Lausanne ele seria operado. (Um caro telegrama para a clínica com resposta paga; a pobre Martha sofria.) E quando estivesse bastante bem ele iria para um sanatório em Leysin. (Outro telegrama, pelo qual, no entanto, Judith pagou. Martha esqueceu-se de lhe dar o dinheiro.) Martha e Herbert, enquanto isso, procurariam um bom hotel, onde Paul iria se juntar a eles tão logo seu tratamento terminasse. E eles ficariam pelo menos seis meses, de preferência um ano. Sylvia, enquanto isso, ficaria com a tia na Inglaterra; isso economizaria a Martha muito dinheiro. Judith tentaria encontrar um inquilino para a casa no bosque.

— E ainda falam dos selvagens! — comentou Judith com o marido. — Nunca vi uma canibalzinha como Sylvia.

— É o que dá ter pais vegetarianos, imagino.

— Pobre criaturinha! — continuou Judith, com indignada piedade. — Às vezes tenho vontade de afogar Martha, ela é uma imbecil, uma criminosa. Criar essas crianças sem nunca deixar que se aproximem de crianças da idade delas! É escandaloso! E falando com elas sobre espiritualidade e Jesus e ahimsa e beleza e Deus sabe mais o quê! E não querendo que tenham brincadeiras bobas, mas que sejam artísticas! E sempre boazinha, mesmo quando está furiosa! É horrível, realmente horrível! E tão estúpido. Será que ela não vê que a melhor maneira de transformar uma criança num demônio é tentar criá-la como um anjo? Ah, bem... — Suspirou e silenciou, pensativa; ela própria não tinha filhos e, se os médicos estivessem corretos, nunca os teria.

Passaram-se as semanas e gradualmente a pequena selvagem civilizou-se. Suas primeiras aulas eram sobre a arte da moderação. A comida, que na casa dos Bamborough era boa e abundante, a princípio constituía uma horrível tentação para uma criança acostumada às austeridades da vida espiritual.

— Amanhã tem mais — dizia Judith, quando a criança pedia mais uma porção de pudim. — Você não é uma cobra, sabia? Não pode armazenar o que come demais hoje para os jantares da próxima semana. A única coisa que pode fazer com tanta comida é ficar doente por causa dela.

A princípio Sylvia insistia, chorava e fazia manha, querendo mais. Mas por sorte, como Judith comentou com o marido, por sorte ela tinha o fígado delicado. As profecias da tia cumpriam-se pontualmente. Depois de três ou quatro ataques biliosos, Sylvia aprendeu a controlar a gula. Sua aula seguinte foi sobre obediência. A obediência que estava acostumada a dar aos pais era lenta e de má vontade. Herbert e Martha nunca ordenavam, por princípio, apenas sugeriam. Era um sistema que tinha quase forçado na criança o hábito de dizer um automático não a qualquer proposta que lhe fosse feita. “Não, não, não!”, ela começava, e então aos poucos deixava-se persuadir, convencer ou comover-se, pela expressão de tristeza dos pais, a uma obediência atrasada e geralmente ressentida. Assentindo finalmente, ela sentia um rancor obscuro contra aqueles que não a tinham obrigado a obedecer de pronto. Como a maioria das crianças, teria gostado de ser libertada compulsoriamente da responsabilidade por seus próprios atos; zangava-se com a mãe e o pai por forçarem-na a gastar tanta energia em resistir a eles, tanta quantidade de emoção dolorosa em deixar finalmente sua vontade ser dominada. Teria sido muito mais simples se eles tivessem insistido desde o princípio, tivessem-na obrigado a obedecer imediatamente, e assim lhe poupassem todo o esforço e a dor espiritual. Ressentia-se amargamente do incessante apelo que faziam a seus melhores sentimentos. Não era justo, não era justo. Eles não tinham o direito de sorrir e perdoar e fazê-la sentir-se um animal, de enchê-la de tristeza por eles próprios ficarem decepcionados. Sentia que estavam de algum modo se aproveitando cruelmente dela. E só porque odiava quando eles ficavam tristes, ela perversa e deliberadamente se esforçava para dizer e fazer as coisas que mais amargamente os entristeceria. Um de seus truques favoritos era ameaçar “sair e caminhar pela tábua sobre o açude”. Entre o lago calmo e o regato raso, as águas tranquilas tornavam-se por um momento terríveis. Represados em um canal estreito de alvenaria malfeita, dois metros de cachoeira caíam com um clamor incessante em um lago escuro e encrespado. Era um lugar horrível. Com que frequência os pais lhe imploraram para não brincar perto do açude! A ameaça dela fazia com que repetissem suas recomendações; eles imploravam que fosse razoável. “Não, eu não vou ser razoável”, Sylvia gritava e corria na direção do açude. Se, na verdade, ela nunca se aventurava a menos de três metros do abismo trovejante, era porque tinha muito mais medo do que os pais. Mas chegava o mais perto que ousava pelo prazer (o prazer que ela odiava) de ouvir a mãe expressar sua melancólica tristeza por ter uma filha tão desobediente, egoísta e selvagem. Ela tentou o mesmo truque com tia Judith.

— Vou entrar no bosque sozinha — ameaçou um dia, furiosa. Para sua surpresa, em vez de implorar-lhe que fosse razoável e não entristecesse os adultos correndo perigo por desobediência, Judith apenas deu de ombros.

— Pode ir, se quer mesmo bancar a boba — disse, sem erguer os olhos de sua carta.

Indignada, Sylvia foi; mas tinha medo de ficar sozinha no imenso bosque. Só o orgulho impediu-a de voltar imediatamente. Molhada, suja, lacrimosa e arranhada, ela foi trazida de volta duas horas depois por um empregado.

— Que sorte! — comentou Judith com o marido. — Que sorte enorme que a pequena idiota tenha se perdido.

O esquema das coisas foi organizado contra a delinquência da criança. Mas Judith não confiava inteiramente no esquema das coisas para dar força ao seu código; ela mesma providenciava suas próprias sanções. A obediência tinha de ser instantânea, de outro modo as consequências seriam instantâneas. Uma vez Sylvia conseguiu provocar raiva de verdade na tia. A cena causou-lhe uma profunda impressão. Uma hora mais tarde esgueirou-se hesitante e humildemente até onde a tia estava sentada.

— Desculpe, tia Judith — disse. — Desculpe. — E rompeu em lágrimas. Foi a primeira vez que ela pediu perdão espontaneamente.

As aulas que mais ajudavam Sylvia eram aquelas em que aprendia com outras crianças. Depois de algumas experiências malogradas e vez por outra dolorosas, aprendeu a brincar, a comportar-se como uma igual entre iguais. Até então ela vivera exclusivamente como uma inferior cronológica entre adultos, em estado de incessante rebelião e guerrilha. Sua vida fora um grande risorgimento contra austríacos clementes e gentis, Bourbons que sorriam lindamente. Com os pequenos Carter da casa no fim da rua, os pequenos Holmes da casa em frente, ela agora via-se subitamente obrigada a adaptar-se à democracia e ao governo parlamentarista. No princípio houve dificuldades; mas quando por fim a pequena delinquente desenvolveu a arte da civilidade, ficou extraordinariamente feliz. Os adultos exploravam a sociabilidade infantil para seus próprios fins educacionais. Judith montou um teatro amador; houve uma apresentação juvenil de Sonho de uma noite de verão. A sra. Holmes, que era musicista, organizou num coral o entusiasmo das crianças a respeito de fazer barulho. A sra. Carter ensinava-lhes danças folclóricas. Em poucos meses, Sylvia adquirira toda aquela paixão pela vida superior que sua mãe vinha tentando infundir-lhe havia anos, sempre em vão. Ela amava poesia, amava música, amava dança — um tanto platonicamente, era verdade; pois Sylvia era uma dessas criaturas congenitamente desajeitadas e esteticamente insensíveis cuja sincera paixão pelas artes está sempre destinada a não ser consumada. Ela amava ardentemente, mas em vão; mas não era infeliz, pois ainda não tinha, talvez, a consciência da impossibilidade. Amava até mesmo a aritmética e a geografia, a história inglesa e a gramática francesa, que Judith arranjara para que ela aprendesse, juntamente com os pequenos Carter e a formidável governanta deles.

— Você se lembra de como ela era quando chegou? — perguntou Judith ao marido um dia.

Ele assentiu, comparando mentalmente a pequena selvagem mal-humorada de nove meses antes com a criança séria e de ardente entusiasmo que acabava de sair da sala.

— Sinto-me como uma domadora de leões — continuou Judith com um risinho que encobria um grande amor e um grande orgulho. — Mas o que se faz, Jack, quando o leão se volta para o Alto Anglicanismo? Dolly Carter está sendo preparada para a confirmação, e Sylvia foi contagiada. — Judith suspirou. — Acho que ela já está pensando que nós dois estamos condenados.

— Ela também estaria condenada, se não o fizesse — respondeu Jack filosoficamente. — Muito mais seriamente condenada, porque seria condenada neste mundo. Seria uma terrível falha em seu caráter se nessa idade ela não acreditasse em uma caraminhola qualquer.

— Mas e se ela continuar acreditando nisso? — perguntou Judith.

Martha, enquanto isso, não estava gostando da Suíça, talvez porque fisicamente lhe fizesse bem demais. Havia algo, sentia, meio indecente em ter uma saúde tão perfeita como ela tinha em Leysin. Era difícil, quando a pessoa se sentia tão cheia de espírito animal, pensar com muita solicitude sobre a humanidade sofredora e Deus, sobre Buda e a vida superior etc. Ela se indignava com o jovial egoísmo livre e despreocupado de seu próprio corpo sadio. Periodicamente despertada por percepções culpadas de que passara horas e mesmo dias sem pensar em outra coisa senão no prazer de sentar-se ao sol, de respirar o ar aromático sob os pinheiros, de caminhar nas campinas altas, colhendo flores e contemplando a paisagem, ela embarcaria numa campanha de espiritualidade intensiva; mas, depois de pouco tempo, o sol e o ar brilhante eram demais para ela, e ela recaía mais uma vez no estado vergonhosamente irresponsável do mero bem-estar.

— Vou ficar contente quando Paul ficar bom e pudermos voltar para a Inglaterra — vivia dizendo.

E Herbert concordava com ela, em parte por princípio, porque, resignado à sua inferioridade econômica e moral, sempre concordava com ela, e em parte porque ele também, embora saudável como nunca, achava a Suíça espiritualmente insatisfatória. Em um país onde todos usavam calças curtas, camisa aberta e mochila, não havia superioridade, não havia diferença em vestir-se assim. O escândalo da cartola teria sido o equivalente em Leysin ao escândalo da cruz; ele se sentia indistintamente ortodoxo.

Quinze meses depois de sua partida, os Claxton estavam de volta à casa no bosque. Martha estava resfriada e sofria de um pouco de lumbago; privado do exercício na montanha, Herbert já estava sucumbindo aos ataques de sua velha inimiga crônica, a prisão de ventre. Eles transbordavam de espiritualidade.

Sylvia também voltou para a casa no bosque, e, nas primeiras semanas, era tia Judith para cá e tia Judith para lá, na casa de tia Judith fazíamos assim, tia Judith nunca me fez fazer isso. Com um lindo sorriso, mas um ressentimento não percebido no coração, Martha dizia: “Minha querida, eu não sou a tia Judith”. Realmente odiava a irmã por ter tido sucesso onde ela falhara. “Você fez maravilhas com Sylvia”, ela escreveu a Judith, “e Herbert e eu nunca seremos suficientemente gratos.” E dizia a mesma coisa em conversa com os amigos. “Nunca seremos suficientemente gratos, seremos, Herbert?” E Herbert de pronto concordava que nunca seriam suficientemente gratos. Mas quanto mais grata era, devida e até exageradamente à irmã, mais Martha a odiava, mais raiva tinha do sucesso e da influência de Judith sobre a criança. Era inegável que a influência tinha sido boa; mas era precisamente por isso que Martha se ressentia dela. Era-lhe insuportável que a frívola e pouco espiritual Judith conseguisse influenciar a criança com mais facilidade do que ela jamais conseguira. Despedira-se de uma Sylvia emburrada, mal-educada e desobediente, cheia de ódio e rebelde por todas as coisas que os pais admiravam; voltara e encontrara Sylvia bem-comportada, gentil, apaixonadamente interessada em música e poesia, sinceramente preocupada com os problemas recém-descobertos da religião. Era insuportável. Com paciência, Martha pôs-se ao trabalho para solapar a influência da irmã na criança. A própria obra de Judith tornou sua tarefa mais fácil. Pois, graças a Judith, Sylvia agora era maleável. O contato com crianças da sua idade tinha aquecido, suavizado e sensibilizado a criança, mitigado seu egoísmo selvagem e feito com que ela se abrisse para influências externas. O apelo a seus melhores sentimentos podia agora ser feito com a certeza de evocar uma resposta positiva, em vez de uma rebeldemente negativa. Martha fazia a todo momento esse apelo, e com habilidade. Discorria (com uma linda resignação, é lógico) sobre a pobreza da família. Se tia Judith permitira muitas coisas que não eram feitas e permitidas na casa no bosque, isso era porque tia Judith era muito mais rica. Podia se permitir muitos luxos que os Claxton não podiam ter. “Não que seu pai e eu nos importemos de passar sem tais regalias”, Martha insistia. “Pelo contrário. É realmente uma bênção não ser rico. Você se lembra do que Jesus disse sobre os ricos.” Sylvia lembrava-se, e ficava pensativa. Martha desenvolvia o assunto; o fato de uma pessoa poder se permitir certos luxos tinha certo efeito embrutecedor e desespiritualizante. Era muito fácil tornar-se frívolo. A insinuação era, naturalmente, que tia Judith e tio Jack tivessem sido corrompidos pela frivolidade. A pobreza preservara os Claxton desse perigo — a pobreza e também, Martha insistia, sua própria meritória vontade. Pois poderiam ter mantido pelo menos uma empregada, mesmo nos tempos difíceis; mas preferiam passar sem ela, “porque, sabe, servir é melhor que ser servido”. Jesus tinha dito que o caminho de Maria era melhor do que o de Marta. “Mas eu sou uma Marta”, dizia Martha Claxton, “que tenta ser Maria também. Marta e Maria — é o melhor caminho de todos. Serviço prático e contemplação. Seu pai não é um desses artistas que egoisticamente se afasta do contato com os fatos humildes da vida. É um criador, mas não é orgulhoso demais para fazer o serviço mais humilde.” Pobre Herbert! Ele não poderia recusar o serviço mais humilde, quando Martha ordenava. Alguns artistas, Martha continuou, só pensavam no sucesso imediato, só trabalhavam de olho nos lucros e nos aplausos. Mas o pai de Sylvia, pelo contrário, era um que criava sem pensar no público, apenas o fazia em nome da verdade e da beleza.

Na mente de Sylvia, esses discursos e outros semelhantes, constantemente repetidos com variações em todos os tons emocionais, tinham um efeito profundo. Com todo o entusiasmo da puberdade ela desejava ser boa, espiritual e desinteressada, ansiava por sacrificar-se, não importava a quê, contanto que fosse a uma causa nobre. A mãe agora lhe fornecia uma causa. Entregou-se a ela com toda a teimosa energia de sua natureza. Com que ferocidade ela estudava piano! Com que determinação lia inteiros os livros mais enfadonhos! Tinha um caderno onde copiava as passagens mais inspiradoras de sua leitura diária; e outro no qual registrava suas boas resoluções, e com elas, num diário torturado e cronicamente cheio de remorsos, os fracassos em cumprir certas resoluções, suas quedas da graça. “Gula. Prometi que ia comer só uma ameixa. Comi quatro no almoço. Nenhuma amanhã. o.d.m.a.a.s.b.”

— O que é que significa o.d.m.a.a.s.b.? — perguntou Paul com malícia, certo dia.

Sylvia enrubesceu violentamente.

— Você andou lendo o meu diário! — exclamou. — Ah, seu animal, seu animalzinho. — E de repente lançou-se sobre o irmão como uma Fúria. O nariz dele sangrava quando conseguiu afastar-se dela. — Se fizer isso de novo, eu mato você. — E, parada ali, com os dentes rilhando e as narinas trêmulas, os cabelos despenteados, ela parecia estar falando sério. — Eu mato! — repetiu. Sua raiva era justificada; o.d.m.a.a.s.b. significava “Oh, Deus, me ajude a ser boa”.

Naquela noite ela procurou Paul e pediu perdão.

Tia Judith e tio Jack tinham ficado quase um ano na América.

— Vá, é claro — disse Martha, quando chegou a carta de Judith convidando Sylvia para passar alguns dias com eles em Londres. — Você não deve perder a oportunidade de ir à ópera e àqueles maravilhosos concertos.

— Mas é justo, mamãe? — perguntou Sylvia, hesitante. — Quero dizer, não quero ir me divertir sozinha. Parece, de certa forma...

— Mas você deve ir — Martha interrompeu-a. Tinha tanta certeza de Sylvia agora que não tinha medo de Judith. — Para uma musicista como você, é uma necessidade ouvir Parsifal e A flauta mágica. Pretendia levá-la eu mesma no ano que vem; mas, agora que a oportunidade surgiu este ano, você tem de aceitar. Com gratidão — acrescentou, adoçando o sorriso.

Sylvia foi. Parsifal era como ir à igreja, só que muito mais solene. Sylvia escutava com uma excitação respeitosa que era, no entanto, interrompida de vez em quando pela consciência irrelevante, até mesmo ignóbil — mas tão dolorosa! —, de que seu vestido, suas meias e seus sapatos eram horrivelmente diferentes dos que usava aquela menina de sua própria idade, que ela notara na fila atrás da sua, quando entrou. E a menina, parecia-lhe, tinha retribuído seu olhar com desprezo. Em volta do Santo Graal houve uma explosão de sinos e rugidos harmoniosos. Ela sentiu vergonha de si mesma por pensar em coisas indignas na presença do mistério. E quando, no intervalo, tia Judith ofereceu-lhe um sorvete, ela recusou quase com indignação.

Tia Judith ficou surpresa.

— Mas você adorava sorvete.

— Mas agora não, tia Judith. Agora não. — Sorvete na igreja — que sacrilégio! Ela tentou pensar no Graal. Uma visão de sapatos de cetim verde e uma linda flor artificial lilás flutuou diante de sua visão interior.

No dia seguinte foram fazer compras. Era uma manhã brilhante e sem nuvens, de início de verão. As vitrines das lojas de armarinhos na rua Oxford tinham desabrochado em cores claras e brilhantes. Os manequins de cera estavam todos preparados para ir para Ascot, para Henley, já estavam pensando no jogo entre Eton e Harrow. As calçadas estavam cheias de gente, um imenso ruído abafado enchia o ar como uma névoa. Os ônibus escarlates e dourados pareciam majestosos, e a luz do sol cintilava com um brilho rico e oleoso nos flancos encerados das limusines que passavam. Uma pequena procissão de desempregados passou relaxadamente, com uma charanga à frente, tocando músicas alegres, como se eles estivessem felizes por estarem desempregados, como se fosse um prazer real ter fome.

Sylvia não vinha a Londres havia quase dois anos, e essas multidões, esse ruído, esse número infinito de coisas curiosas e lindas em cada vitrine brilhante subiram-lhe à cabeça. Ela sentia-se ainda mais excitada do que se sentira em Parsifal.

Durante uma hora andaram por dentro da Selfridge’s.

— E agora, Sylvia, agora você pode escolher o vestido de que gostar — disse tia Judith, quando finalmente tinha terminado com todos os itens de sua lista. Ela fez um gesto com a mão. Uma exposição de Moda de Verão para Senhoritas rodeava-as por todos os lados. Lilases e escarlates, rosados e verdes, azuis e roxos, brancos, floridos, com pintas, uma espécie de canteiro de vestidos jovens. — O que você quiser — repetiu tia Judith. — Ou, se você preferir um vestido para a noite...

Sapatos de cetim verde e uma grande flor lilás. A menina tinha olhado com desprezo. Era indigno, indigno.

— Não, não, tia Judith. — Ela enrubesceu, gaguejou. — Realmente, não preciso de um vestido. Realmente.

— Mais uma razão para ganhar, se você não precisa. Qual deles?

— Não, realmente. Não quero, não posso... — E de repente, para o espanto e a incompreensão de tia Judith, ela se pôs a chorar.

O ano era 1924. A casinha no bosque aquecia-se ao sol suave do fim de abril. Pelas janelas abertas da sala veio o som do estudo de Sylvia. Teimosamente, com uma espécie de fúria fixa e decidida, ela estava tentando dominar a Valsa em ré bemol de Chopin. Sob seus dedos esforçados e insensíveis, a cadência e o langor do ritmo de dança eram afanosamente sentimentais, como a execução no piano de um solo de cornetim do lado de fora de um bar e o tremular rápido de semicolcheias nas passagens contrastantes eram um tremular, quando Sylvia tocava, de borboletas mecânicas, o bater de asas de lata. E ela tocava de novo, de novo e de novo. No pequeno bosque do outro lado do regato nos fundos do jardim os passarinhos continuavam sua atividade, imperturbáveis. Nas árvores, as novas folhinhas eram como os espíritos das folhas, quase imateriais, mas vívidas como pequenas chamas, na ponta de cada ramo. Herbert estava sentado num toco de árvore no meio do bosque fazendo aqueles exercícios de respiração ioga, acompanhados de autossugestão, que ele achava tão bons para sua prisão de ventre. Fechando a narina direita com um longo indicador, ele inspirava profundamente pela esquerda, enquanto contava quatro batidas do coração. Depois, durante dezesseis batidas, prendia a respiração e entre cada batida dizia a si mesmo muito depressa: “Não tenho prisão de ventre, não tenho prisão de ventre”. Depois de fazer essa afirmação dezesseis vezes, ele fechava a narina esquerda e expirava, enquanto contava até oito, através da narina direita. Depois disso, recomeçava. A narina esquerda era a mais favorecida, pois ela inspirava, juntamente com o ar, uma doçura vaga e doce de prímulas, de folhas e de terra úmida. Perto dele, num banquinho, Paul fazia o desenho de um carvalho. Arte a todo custo; Arte bela, que eleva, Arte desinteressada. Paul estava entediado. Uma árvore velha e pobre — que sentido havia em desenhá-la? A sua volta as lanças verdes e agudas dos jacintos silvestres assomavam das moitas escuras. Uma delas perfurara uma folha morta e a erguera, transfixada, no ar. Mais alguns dias de sol e todas as lanças desabrochariam em flores azuis. Quando sua mãe o mandasse de novo fazer compras em sua bicicleta, Paul estava pensando, ele ia ver se não conseguia cobrar dois xelins a mais pelas compras em vez de um, como tinha feito da última vez. Então poderia comprar chocolate e também ir ao cinema; e talvez até mesmo alguns cigarros, embora isso pudesse ser perigoso.

— Bem, Paul, como está se saindo? — perguntou o pai, que tinha tomado uma dose suficiente de seu equivalente místico do laxativo. Levantou-se do toco e atravessou a clareira, indo para onde o garoto estava sentado. A passagem do tempo modificara Herbert muito pouco; sua barba explosiva ainda era loura como sempre fora, ele era magro como sempre, a cabeça não mostrava sinais de calvície. Apenas os dentes tinham envelhecido visivelmente; seu sorriso era desbotado e quebrado.

— Mas ele devia mesmo ir ao dentista — Judith tinha insistido com a irmã, na última vez em que se encontraram.

— Ele não quer — Martha tinha respondido. — Realmente não acredita neles. — Mas talvez sua própria relutância em separar-se do número de guinéus necessário tivesse algo a ver com a falta de fé de Herbert nos dentistas. — Além disso, Herbert mal percebe essas coisas meramente materiais e físicas. Vive tão mergulhado no mundo numênico que mal percebe o mundo fenomenal. Realmente não percebe.

— Bem, ele devia perceber — respondeu Judith. — É só o que eu posso dizer. — Ela estava indignada.

— Como está se saindo? — repetiu Herbert, colocando a mão sobre o ombro do garoto.

— A casca é a coisa mais difícil de fazer — respondeu Paul em voz queixosa e zangada.

— Isso torna ainda mais meritório você conseguir — disse Herbert. — Paciência e trabalho são tudo na vida. Sabe como um grande homem certa vez definiu o gênio? — Paul sabia muito bem como um grande homem certa vez tinha definido o gênio; mas a definição parecia-lhe tão estúpida e um insulto tão pessoal a si mesmo que ele não respondeu, apenas grunhiu. — O gênio — continuou Herbert, respondendo sua própria pergunta — é uma capacidade infinita de se esforçar. — Naquele momento Paul odiou o pai.

— Um-e-dois-e-três-e-um-e-dois-e-três-e... — Sob os dedos de Sylvia as borboletas mecânicas continuavam a bater suas asas de metal. O rosto dela estava tenso, determinado, irritado; o grande homem de Herbert teria achado gênio nela. Atrás de suas costas rígidas e determinadas, a mãe ia e vinha com um espanador na mão, espanando. O tempo a engrossara e tornara vulgar; ela caminhava pesadamente. Os cabelos começavam a ficar grisalhos. Quando terminou de espanar, ou melhor, quando se cansou disso, sentou-se. Sylvia, laboriosa, estava fazendo seu solo de cornetim através do ritmo de dança. Martha fechou os olhos.

— Lindo, lindo! — disse, e sorriu seu mais belo sorriso. — Você toca maravilhosamente, minha querida. — Tinha orgulho da filha. Não apenas como musicista; como ser humano também, quando pensava no trabalho que tinha tido com Sylvia anos antes... — Maravilhosamente. — Levantou-se finalmente e subiu para seu quarto. Destrancando um armário, tirou uma caixa de frutas cristalizadas e comeu várias cerejas, um pêssego e três abricós. Herbert tinha voltado para seu estúdio e para o quadro inacabado de “Europa e América aos pés da mãe Índia”. Paul tirou um estilingue do bolso, colocou uma pedra e apontou para um pica-pau que corria como um rato no tronco de um carvalho do outro lado da clareira. “Droga!”, exclamou, ao ver o pássaro voar para longe, ileso. Mas o tiro seguinte foi mais feliz. Houve uma explosão de penas esvoaçando, dois ou três pios. Correndo até lá, Paul encontrou um tentilhão fêmea caído na relva. Havia sangue nas penas. Com uma espécie de excitação cheia de nojo, Paul pegou o pequeno corpo. Como estava quente! Era a primeira vez que ele tinha matado alguma coisa. Que tiro perfeito! Mas não havia pessoa alguma com quem ele pudesse conversar sobre isso. Sylvia não servia: era quase pior que a mãe a respeito de certas coisas. Com um galho caído ele abriu um buraco e enterrou o pequeno cadáver, com medo de que alguém pudesse encontrá-lo e querer saber como ele tinha sido morto. Ficariam furiosos se soubessem! Ele foi para o almoço tremendamente satisfeito consigo mesmo. Mas seu rosto anuviou-se quando olhou para a mesa.

— Só essa comida fria e ruim?

— Paul, Paul — disse o pai em tom de censura.

— Onde está mamãe?

— Ela hoje não vai comer — respondeu Herbert.

— Mesmo assim, ela podia ter se dado o trabalho de fazer alguma coisa quente para nós — resmungou Paul baixinho.

Enquanto isso, Sylvia estava sentada, sem erguer os olhos de seu prato de salada de batata, comendo em silêncio.

 

 


[1]. Shakespeare, As You Like It. (n.t.)
[2]. Cob: raça de cavalos baixos e corpulentos. (n.t.)
[3]. Em inglês: “Hoary Tory, oh! Judas! Make a bee-house”. (n.t.)
[4]. Tempestade, de Shakespeare, ato 1, cena 2. (n.t.)
[5]. Relativa ao reinado das quatro gerações de reis de nome George que governaram a Inglaterra entre o fim do século xviii e o fim do século xix. (n.t.)
[6]. Conhece-te a ti mesmo. (n.t.)
[7]. Low Church: designação interna da igreja anglicana, relacionada aos adeptos do anglicanismo que no século xviii defendiam em geral um posicionamento evangélico à maneira puritana em oposição à noção de uma autoridade institucional da Igreja, esta defendida pela High Church. Broad Church: posição intermediária entre a defesa da High Church Anglicana e o evangelismo da Low Church, a Broad Church defende a tolerância entre múltiplas formas de conformidade com a autoridade eclesiástica. (n.t.)
[8]. Referente a George Meredith, poeta e escritor inglês, autor de uma prosa de elementos aforísticos e fina precisão. (n.t.)
[9]. Boião: pequeno frasco para pomadas. (n.t.)
[10]. Nardo: tipo de bálsamo. (n.t.)
[11]. Abistradas: pintadas com bistre, mistura de cola e fuligem usada em pintura. (n.t.)
[12]. Micênico: relativo à civilização que existiu na Grécia, em Creta, na Ásia Menor etc., de 1500 a 1100 a.C. (n.t.)
[13]. Quincôncio (ou Quincunce): plantação de árvores em forma de xadrez, uma em cada canto e uma no centro. (n.t.)
[14]. “Fonte da deidade”, ou Deus, segundo estudiosos trinitarianistas (que a compreendem pela figura do Pai). (n.t.)
[15]. Sino da Tom Tower, em Oxford. (n.t.)
[16]. “Em louvor de Thomas / Faço soar bim-bom fielmente.” (n.t.)
[17]. Príapo, deus grego da fertilidade, era cultuado principalmente no campo, sendo protetor do gado, das plantações e da genitália masculina. Por vezes era figurado com patas de bode, assimilado à figura dos sátiros. Sua imagem era colocada em jardins e pomares. (n.t.)
[18]. Pastor que foi amado por Selene (a deusa Diana, na mitologia latina), que aparece como Cynthia (a Lua) em mais de uma versão literária do mito. Sobre Endimião existe um célebre poema narrativo de John Keats, autor romântico inglês. (n.t.)
[19]. Referência a Príapo (cf. nota 3, p. 78) (n.t.)
[20]. Francis Quarles (1592-1644), poeta inglês e autor de um livro de emblemas parafraseando passagens das Escrituras em linguagem metafórica, Emblemas (1635), bastante popular em sua época. (n.t.)
[21]. Robert le diable, ópera em cinco atos de Giacomo Meyerbeer. (n.t.)
[22]. Versos de Mustapha, tragédia do elisabetano Fulke Greville (1554-1668). (n.t.)
[23]. Bispo Guilherme de Occam, grande pensador inglês da Idade Média. (n.t.)
[24]. “Capricho da natureza”, expressão que designa uma monstruosidade. (n.t.)
[25]. No original, destaca-se o efeito das rimas emparelhadas. (n.t.)
[26]. Cockney: próprio do conhecido dialeto de um bairro do extremo leste de Londres. (n.t.)
[27]. Bûchers et tombeaux, de Theophile Gautier (1811-1872). (n.t.)
[28]. Comediante inglês (1869-1954). (n.t.)
[29]. “Distraining for rent”, tela de sir David Wilkie, pintor escocês do século xix (1815); Fanny Kemble, atriz consagrada do teatro inglês, atuou no papel de Belvidera na tragédia “Venice preserved”, de Thomas Otway. Embora do século xvii, a peça fez sucesso nos palcos ingleses na década de 1830. (n.t)
[30]. Bode sobre cuja cabeça os antigos judeus confessavam os pecados do povo no Dia da Expiação. (n.t.)
[31]. “There lives more faith in honest doubt, believe me, than in half the creeds.” A passagem referida é de lorde Alfred Tennyson, o Poeta Laureado (1850-1892) em questão. O Poeta Laureado da casa real é encarregado de escrever poemas para ocasiões públicas. (n.t.)
[32]. Loja de departamentos londrina. (n.t.)
[33]. Ou seja, “o meu coração arrotou”. (n.t.)
[34]. Andrew Marvell, “To His Coy Mistress”.
[35]. Conto do poeta francês Francis Jammes publicado em 1899. Tradução brasileira de Mario Quintana, in O albergue das dores (Biblioteca Azul, 2014, 2a edição). (n.t.)
[36]. Estritamente proibido. (n.t.)
[37]. Afamado geólogo. (n.t.)
[38]. Vida sexual. (n.t.)
[39]. Longo poema romântico de Alfred de Vigny, cujos versos iniciais são citados a seguir. (n.t.)
[40]. Referente ao estilo do arquiteto renascentista Andrea Palladio. (n.t.)
[41]. Referência ao Wandervogel, movimento popular de jovens alemães, cuja ideia era escapar às convenções da vida social e viver em natureza e liberdade. (n.t.)
[42]. “O êxtase”. (n.t.)
[43]. “São da proprietária. Não gosto, roubou meu livro, não quero mais tocar, quero voltar para casa, venha rápido Guido.” (n.t.)
[44]. Abreviação de verbum sapienti, sat est — para o sábio uma palavra é suficiente. (n.t.)
[45]. Marie Stopes, militante inglesa pelos direitos da mulher e pioneira na ideia de controle de natalidade. (n.t.)
[46]. “And all our yesterdays have lighted fools the way to dusty death [...]”, Macbeth (Ato 5, Cena 5, 22-23). (n.t.)
[47]. Mallarmé, L’après-midi d’un faune. (n.t.)
[48]. Espécie de árvore. (n.t.)
[49]. Rastignac: personagem criado por Balzac, presente em diversos romances de A comédia humana. A cena se refere ao final de O pai Goriot (n.t.)
[50]. Referência à fábula de Esopo, segundo a qual das montanhas nascem (Parturiunt montes) ratos, designando o resultado menor das ações envoltas em exageros. (n.t.)
[51]. Referência à ode de Horácio iii-30 (Exegi monumentum aere perennius), na qual se anuncia a construção de “um monumento” — a obra — “mais perene que o bronze”. (n.t.)
[52]. Post hoc ergo propter hoc: “depois disso, logo por causa disso”. Uma falácia lógica, referente à falsa identidade entre relações de consecução e causalidade. (n.t.)
[53]. Lucas, 18:16. “Mas Jesus chamou a si as crianças e disse: ‘Deixai vir a mim as criancinhas e não as impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se parecem com elas.” (n.t.)
[54]. Referente à família de atores do romance Nicholas Nickleby, de Charles Dickens. (n.t.)
[55]. John Philip Kemble (1757-1823), célebre ator inglês.
[56]. Sarah Siddons (1755-1831), também atriz e irmã de J. P. Kemble, famosa por sua atuação como Lady Macbeth.
[57]. Raça de cão canadense, assemelhada ao terra nova e de grande força, usado como animal de carga. (n.t.)
[58]. Montanha nos alpes suíços. A referência que se faz aqui é a Frankenstein, cuja ação se passa na Suíça, tendo por vezes tal montanha como cenário. (n.t.)

 

 

                                                                  Aldous Huxley

 

 

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