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As Obras Completas de Hesse poderiam encher uma estante inteira: poesias, romances, novelas, ensaios, manifestos. Já no começo deste século conquistou Hesse larga popularidade com o romance Peter Camenzind, história de um sonhador romântico que passa pela vida boêmia dos artistas de Paris e encontra a paz da alma na paisagem de Assisi, santificada pela memória de São Francisco. Foi o primeiro grande best-seller do século XX. As tempestades da Primeira Guerra Mundial ajudaram-no a superar o romantismo inato: e o romance Demian tornou-se outro best-seller, o manifesto do expressionismo e de uma mocidade que esperava, depois da grande matança, a renovação religiosa e socialista do mundo. Desiludido, depois, Hesse evocou contra o demonismo do mundo moderno os demônios em sua própria alma.
Foi a hora de O Lobo da Estepe. Enfim, nos últimos anos de sua longa vida, escreveu Hesse, na paz das montanhas suíças, O Jogo das Contas de Vidro, sua obra-prima definitiva, o romance-resumo da nossa cultura e do nosso tempo.
Hesse, embora poeta por vocação, tornou-se grande romancista; e sua própria vida foi um grande romance.
O Poeta
Conta-se que o poeta chinês Han Fook, em sua juventude, era animado por um maravilhoso desejo de tudo aprender e de se aperfeiçoar em tudo que dissesse respeito à arte da poesia.
Naquele tempo, quando ainda habitava a sua terra no Rio Amarelo, por vontade própria, e com a ajuda de seus pais, que o amavam ternamente, apaixonara-se por uma moça de boa família, e o casamento deveria ser marcado brevemente para um dia de bom augúrio. Han Fook tinha, então, mais ou menos vinte anos e era um belo jovenzinho, modesto e de maneiras agradáveis, instruído nas ciências e, apesar de sua juventude, conhecido entre os literatos de sua terra graças a algumas primorosas poesias. Sem ser exatamente rico, deveria receber urna fortuna razoável, que ainda seria aumentada com o dote de sua noiva; e, como essa noiva além de tudo era muito bonita e virtuosa, nada mais parecia faltar à felicidade dos jovens. Entretanto ele não era completamente feliz, pois seu coração estava cheio de desejo de tornar-se um poeta perfeito.
Numa tarde em que se celebrava no rio, uma festa de lâmpadas, Han Fook ia caminhando pela margem oposta.
Encostou-se ao tronco de uma árvore que se inclinava sobre a água, e viu no espelho do rio mil luzes correndo e brilhando, e nos botes e jangadas homens, mulheres e mocinhas que se cumprimentavam e resplandeciam como lindas flores, em roupagens de festa, ouviu o suave murmúrio da água iluminada, o canto das cantoras, a vibração das cítaras e os sons doces dos flautistas, e acima de tudo viu pairar a noite azulada como a abóbada de um templo. O coração do jovenzinho apertou-se ao contemplar como espectador solitário, conforme seu temperamento, toda aquela beleza.
Desejava tanto ir para lá e estar ali no meio, gozar a festa junto de sua noiva e de seus amigos; entretanto, preferiu mais ainda assistir àquilo tudo como um espectador sensível e tornar a mostrá-lo numa poesia perfeita: o azulado da noite e o jogo de luzes na água, assim como a alegria dos convidados e a melancolia do espectador silencioso, que se apoia ao tronco da árvore sobre a margem. Sentiu que em meio a todas as festas e alegrias desta Terra, nunca seu coração poderia ficar tranquilo e sereno, que ele mesmo estaria sempre no meio da vida como um solitário e de certo modo como um espectador e um estranho, e sentiu que, entre tantas outras, apenas sua alma fora feita de tal maneira que precisava sentir ao mesmo tempo a beleza da Terra e a secreta nostalgia do desconhecido. Com isso ficou triste e ansiou por essas coisas, e terminou pensando que, para ele, uma verdadeira felicidade e uma profunda satisfação só poderiam existir, se algum dia lhe acontecesse refletir o mundo tão perfeitamente na poesia, que, nessa imagem, ele possuísse o próprio mundo, purificado e eternizado.
Han Fook mal sabia se ainda estava acordado ou se adormecera, quando percebeu um leve ruído e, junto ao tronco da árvore; viu parado um desconhecido, um velho num hábito roxo e com ar venerável. Endireitou-se e cumprimentou-o com a saudação que se deve aos velhos e aos nobres, o desconhecido porém sorriu e disse-lhe alguns versos, os quais continham tudo que o rapaz há pouco sentira, tão perfeitos e belos e expressos segundo as regras dos grandes poetas que o coração do jovenzinho parou de espanto.
- Oh, quem és tu - exclamou, inclinando-se profundamente - que podes ver em minh’alma e dizes versos mais belos do que jamais ouvi de todos os meus mestres?
O desconhecido sorriu novamente, com o sorriso dos Perfeitos e disse: - Se quiseres tornar-te um poeta, então vem até mim. Encontrarás minha cabana perto da nascente do grande rio, nas montanhas do noroeste. Meu nome é Mestre da Palavra Perfeita.
Dito isto o velho penetrou nas estreitas sombras da árvore e desapareceu em seguida, e Han Fook que debalde o procurou sem achar vestígio sequer acreditou então firmemente que tudo fora um sonho, de cansaço. Apressou-se na direção dos botes e presenciou a festa; mas, entre conversas e sons de flauta, ouvia continuamente a voz misteriosa do desconhecido, e sua alma parecia ter partido com ele, pois sentou-se distante e com olhos sonhadores entre a gente feliz, que zombava dele, supondo-o apaixonado.
Poucos dias depois, o pai de Han Fook quis encarregar os amigos e parentes de marcarem o dia do enlace. A isso opôs- se o noivo dizendo: - Desculpa-me se pareço ir contra as regras da obediência que o filho deve ao pai. Mas sabes quão grande é meu desejo de distinguir-me na arte dos poetas, e se alguns de meus amigos elogiam minhas poesias, apesar disso também sei que ainda sou um iniciante e ainda estou nos primeiros degraus do caminho. Por isso eu te peço, deixa- me mais algum tempo ficar na solidão e entregar-me aos meus estudos, pois parece-me que se tiver no momento uma mulher e uma casa para dirigir, essas coisas me impedirão àquelas.
Agora, porém, ainda sou jovem e sem outros deveres e gostaria de viver algum tempo apenas para a minha arte, da qual espero alegria e glória. A conversa espantou o pai, que disse: - Essa arte deve ser para ti o mais importante de tudo, já que por causa dela queres adiar até mesmo teu casamento. Ou se alguma coisa aconteceu entre ti e tua noiva, então dize-me, para que eu possa ajudar a reconciliá-la, ou conseguir uma outra para ti.
O filho porém jurou que não amava sua noiva menos que ontem e sempre, e que a sombra de nenhuma disputa caíra entre eles. E em seguida contou a seu pai que num sonho no dia da Festa das Lâmpadas um mestre se anunciara, e ele desejava tornar-se seu discípulo, mais ardentemente que a toda felicidade do mundo.
- Bem - falou o pai - então dou-te um ano. Nesse tempo podes seguir teu sonho; que talvez te tenha sido enviado por um Deus.
- Talvez também sejam precisos dois anos - disse Han Fook hesitante - quem pode saber?
Assim o pai deixou-o ir e ficou triste; o rapazinho escreveu uma carta para a noiva, despediu-se e partiu.
Depois de ter andado muito tempo, alcançou a nascente do rio e encontrou, dentro de grande solidão, uma cabana de bambu, e defronte à cabana, sentado sobre uma esteira trançada, o velho que vira no rio, perto do tronco da árvore. Estava sentado e tocava um alaúde, e quando viu o hóspede se aproximar temerosamente, não se levantou, nem o saudou; sorriu apenas e deixou os dedos macios correrem sobre as cordas, e uma música encantadora derramou-se como uma nuvem de prata pelo vale, fazendo o rapazinho parar maravilhado e num doce espanto esquecer-se de tudo, até que o Mestre da Palavra Perfeita pôs de lado seu pequeno alaúde e entrou na cabana. Ali o seguiu Han Fook com temor e deixou-se ficar a seu lado como seu servidor e discípulo.
Com o passar de um mês ele aprendeu a desdenhar todas as canções que compusera e apagou-as de sua memória. E novamente depois de meses apagou também da memória as canções que aprendera em casa com os professores. O mestre quase não lhe falava, ensinou-lhe silenciosamente a arte do alaúde, até que o espírito do aluno estivesse todo penetrado de música. Uma vez Han Fook compôs uma pequena poesia, onde descreveu o voo de dois pássaros no céu primaveril, e ela lhe agradou bastante. Não ousou mostrá-la ao mestre, mas uma tarde cantou-a, afastado da cabana, e o mestre ouviu-a bem. Entretanto não disse uma palavra. Apenas tocou baixinho o seu alaúde, e imediatamente o ar tornou-se mais fresco e o crepúsculo acelerou-se, um vento forte se ergueu, apesar de ser pleno verão, e no céu já escuro duas garças voaram, num poderoso desejo de emigração; tudo isso era tão mais belo e perfeito que os versos do aluno, que este se entristeceu e calou- se, sentindo-se incapacitado. E assim procedeu o velho todas as vezes, e quando um ano havia passado, Han Fook aprendera a tocar o alaúde quase perfeitamente, mas a arte da poesia parecia-lhe cada vez mais difícil e inatingível.
Quando dois anos se passaram, o jovenzinho sentiu uma forte saudade dos seus, da sua terra e da sua noiva, e pediu ao mestre para deixá-lo viajar.
O mestre sorriu e balançou a cabeça. - És livre - disse - e podes ir aonde quiseres. Podes voltar, podes ficar longe, como preferires.
Com isso o aluno partiu de viagem e andou sem descanso, até que uma manhã, na alvorada, parou na margem do rio de sua terra, e olhou, sobre a ponte enevoada, para a sua cidade natal. Penetrou furtivamente no jardim de seu pai e ouviu pela janela do quarto a respiração do pai, que ainda dormia, e insinuou-se no pomar da casa de sua noiva, e viu, de cima de uma pereira, onde trepou, sua noiva em pé no quarto, penteando os cabelos. E enquanto comparava tudo isso, tal como o via naquele momento, ao retrato que compusera na sua saudade, tornou-se-lhe claro que seria mesmo um poeta, e viu que nos sonhos dos poetas mora uma beleza e um encanto, que debalde se procura nas coisas da realidade. E desceu da árvore e fugiu do jardim, e pela ponte foi para longe de sua cidade natal, retornando ao alto vale, na montanha. Ali estava sentado, como da primeira vez, o velho mestre, diante da porta da cabana, sobre a esteira modesta, a tocava levemente o alaúde, e em lugar de saudação disse dois versos sobre as alegrias da arte, com tanta profundidade e euforia que os olhos do jovem se encheram de lágrimas.
Han Fook tornou a ficar com o Mestre da Palavra Perfeita, que, agora que ele já dominava o alaúde, passou a ensinar-lhe a citara, fazendo os meses desaparecerem como neve no vento oeste. Duas vezes ainda aconteceu de a saudade vencê-lo. Numa das vezes, à noite, fugiu dali as escondidas mas ainda nem tinha alcançado a última curva do vale, quando o vento noturno soprou sobre as cordas da citara, pendurada na porta da cabana, e os sons seguiram atrás dele, e chamaram-no de volta, de maneira que não pôde resistir. Da outra vez, porém, ele sonhou que plantava uma jovem árvore em seu jardim, e sua mulher estava ao seu lado, e seus filhos regavam a árvore com vinho e leite. Quando acordou, a lua brilhava no quarto, e ele ergueu-se perturbado e viu junto, o mestre ressonar e sua barba grisalha estremecer de leve; então apossou-se dele um ódio amargo contra esse homem que, conforme lhe parecia, perturbou sua vida e atrapalhou seu futuro. Quis atirar- se sobre ele e assassiná-lo, ai o ancião levantou os olhos e começou a rir com uma brandura fina, delicada que desarmou o aluno.
- Lembra-te, Han Fook - disse o velho, baixinho - tu és livre de fazer o que preferires. Podes ir para tua terra e plantar árvores, podes-me odiar e me assassinar, isso tem pouca importância.
- Ah, como poderia eu te odiar - exclamou o poeta numa profunda agitação. - É como se quisesse odiar o próprio céu.
E ficou e aprendeu a tocar citara e depois a flauta, e mais tarde, sob instrução do mestre, começou a fazer poesia, e aprendeu lentamente aquela arte secreta, que aparentemente só fala de coisas simples e despretensiosas, mas com o fim de revolver a alma dos que a escutam como o vento no espelho da água. Descreveu a chegada do sol, como ele hesita na orla da montanha, e o silencioso deslizar dos peixes, quando fogem como sombras sob a água, ou o balanço de um salgueiro novo no vento da primavera, e quando a gente ouve aquilo, já não era apenas o sol e o jogo dos peixes e o murmúrio do salgueiro, mas parecia que por um instante, o céu e o mundo de cada vez, combinavam-se numa música perfeita, e cada um ao escutar pensava ao mesmo tempo, com alegria ou dor, naquilo que amava ou odiava: o garoto, na brincadeira; o jovem, na amada; o velho, na morte.
Han Fook não sabia mais quanto tempo passara com o mestre, na nascente do grande rio; com frequência parecia-lhe ter chegado ontem à tarde naquele vale e ter sido recebido pela música do velho; com frequência parecia-lhe também terem caído atrás de si todas as gerações humanas e todos os tempos se terem tornado ilusórios.
Certa manhã acordou sozinho na cabana, e por onde procurou e chamou, o mestre desaparecera. No meio da noite o outono de repente pareceu ter chegado, um vento áspero sacudia a velha cabana, e sobre a crista da montanha voavam grandes bandos de aves de arribação, embora ainda não fosse seu tempo.
Assim Han Fook levou consigo o pequeno alaúde e partiu para a sua terra natal, e por onde encontrava pessoas, elas saudavam-no com o cumprimento que se deve aos velhos e aos nobres, e quando chegou a sua cidade, seu pai e sua noiva e seus parentes estavam mortos, e outras pessoas moravam nas casas deles. A tarde porém a Festa das Lâmpadas foi comemorada no rio e o poeta Han Fook parou do outro lado, na margem escura, apoiado sobre o tronco de uma velha árvore, e quando começou a tocar seu pequeno alaúde, as mulheres suspiraram e encantadas e angustiadas espiaram a noite, e os jovens rapazes chamaram pelo tocador de alaúde, que não puderam encontrar em nenhuma parte, e gritaram alto que nunca nenhum deles ouvira tais sons de um alaúde. Han Fook porém sorria. Mirou a água, onde nadava a imagem das mil lâmpadas; e como já não sabia mais distinguir a imagem da realidade, não encontrou em sua alma nenhuma diferença entre essa festa e aquela primeira, quando ainda jovem ele ali parou e escutou a palavra do mestre desconhecido.
Dentro e Fora
Era uma vez um homem chamado Friedrich, devotado às coisas do espírito e de vastos conhecimentos. Gostava, porém, de concentrar todo o seu saber num modo particular de pensar e menosprezava todos os demais. Tinha na mais alta estima a Lógica, essa tão magnífica disciplina, e os conhecimentos a que dava o nome geral de Ciência.
“Duas vezes dois são quatro” - costumava ele dizer. -“nisso que eu acredito e é partindo dessa verdade que um homem deve usar o raciocínio”.
Não ignorava, é claro, que existiam muitas outras maneiras de pensar e interpretar as coisas, mas não as considerava “ciência” e, portanto, não lhes dava importância. Conquanto fosse um livre-pensador, não era intolerante no que dizia respeito á religião. Nisso comportava-se de acordo com a atitude de tácita anuência dos cientistas. Há muitos séculos a Ciência ocupava-se de tudo o que existia no mundo, e estimulava o desejo de investigar e saber, com exceção de um único objeto: a alma humana. Deixava-a a cargo da religião e não tomava a sério as especulações que ela fazia sobre a alma mas, enfim, tolerava-as porque, com o decorrer dos séculos, tinham-se convertido num hábito. Assim, no tocante à religião, Friedrich mantinha uma atitude tolerante mas o que profundamente lhe repugnava e enfurecia era tudo o que envolvesse e fosse reconhecido como superstição. Somente admitia o pensamento místico e as explicações mágicas entre povos ignorantes e atrasados quer de uma antiguidade remota; quer da atualidade primitiva e inculta de certas regiões exóticas. Desde que existia uma Lógica e uma Ciência, deixara de fazer sentido recorrer a esses recursos obsoletos e duvidosos.
Assim pensava e assim argumentava Friedrich. Quando ao seu redor se manifestavam indícios de superstição, irritava-se e era como se tivesse sido tocado por algo hostil e pernicioso.
O que mais o aborrecia era encontrar tais indícios entre seus iguais, homens cultos que estavam tão familiarizados quanto ele com os princípios do raciocínio científico. E nada lhe era mais doloroso e insuportável do que ouvir certas ideias blasfemas como a que escutara, recentemente, de um homem de elevada cultura, que afirmara esta coisa absurda: - o raciocínio científico não é, provavelmente, a mais elevada, rigorosa e intemporal forma de pensamento mas, pelo contrário, a mais transitória, vulnerável e perecível entre todas as formas de pensar! - Essa irreverente e perniciosa opinião tinha seus adeptos, isso não podia Friedrich negar, mas era um reflexo da miséria gerada pelas guerras, pela subversão e pela fome que assolavam o mundo, e surgira como uma advertência, uma desculpa e um aviso fantasmagórico escrito sobre a parede branca.
Quanto mais Friedrich sofria com a existência dessa nefasta ideia, mais veementemente hostilizava os que a propagavam ou aqueles que supunha esposarem-na secretamente. Na verdade, só alguns raros homens de erudição tinham franca e abertamente confessado sua concordância com a nova corrente de pensamento que, se lograsse expandir-se e triunfar, destruiria provavelmente os alicerces da cultura e provocaria o caos no mundo.
Ora, até esse momento, ainda não se chegara a tal ponto e os cientistas que tinham defendido abertamente a nova ideia eram tão poucos que podiam perfeitamente passar por indivíduos excêntricos ou fanáticos. Porém, uma pequena gota do veneno, uma tênue irradiação desse pensamento, já era perceptível aqui e ali. Nas camadas do povo e entre as pessoas semicultas já se notava o florescimento de uma série de seitas, de escolas, de correntes com seus mestres e discípulos, pregando ensinamentos em que a Lógica e a Ciência não tinham vez. O mundo começava de novo se enchendo de superstições, artes ocultas, magia negra, misticismo, necromancia e outras manifestações que o racionalismo quase extinguira e que era urgente combater de novo. Mas a Ciência, talvez em virtude de um sentimento de íntima fraqueza e de mal compreendida tolerância, silenciava.
Um dia, Friedrich foi visitar um de seus amigos, com quem já realizara diversos estudos. Há muito tempo que não se viam e, enquanto subia as escadas, procurou lembrar-se de quando estivera pela última vez na casa desse amigo. Embora pudesse gabar-se, habitualmente, de uma excelente memória, desta vez não conseguia recordar esse pormenor. Insensivelmente, deixou-se possuir de uma certa irritação e desapontamento, ao bater à porta.
Quando saudou o amigo Erwin, Friedrich notou logo na fisionomia jovial que lhe retribuía o cumprimento um certo sorriso de afabilidade comedida que não lhe parecia ter visto nunca nos tempos de quase diária convivência mútua. Friedrich pressentiu imediatamente que, por detrás desse sorriso, havia algo de irônico ou hostil e, no mesmo instante, lembrou-se daquilo que ainda há pouco estivera inutilmente vasculhando na memória: o seu último encontro com Erwin. Sim, lembrava-se muito bem que, embora não tivessem discutido, separara-se dele com surda irritação, porquanto lhe parecia que Erwin não o apoiava como devia, nessa época, nos ataques que vinha desencadeando contra o pensamento místico e supersticioso. E também já se lembrava por que motivo não voltara a procurar Erwin durante largo tempo. Era estranho como poderia ter esquecido tudo isso! Na verdade, evitara o convívio do amigo unicamente por causa dessa divergência, fato que ele sabia o tempo todo, muito embora arranjasse sempre outros motivos para protelar uma nova visita a Erwin.
Eis que estavam agora frente a frente e parecia a Friedrich que a pequena brecha de outrora se ampliara de um modo assustador. Em seu íntimo, sentia que entre ele e Erwin faltava agora algo que sempre existira, aquela atmosfera de sólida cooperação, de imediata compreensão e, até, de mútua simpatia resultante de inclinações e propósitos comuns. Em vez disso, Friedrich encontrou na sua frente uma expressão de estranheza, como se através do próprio sorriso de Erwin pudesse espreitar para o vazio que havia lá dentro. Cumprimentaram-se, falaram do tempo, que era feito de fulano e sicrano, como iam de saúde... e Deus sabe como, a cada palavra proferida, Friedrich via aumentar a sensação angustiante de incompreensão recíproca, de estarem falando como dois desconhecidos perfeitamente alheados aos problemas um do outro e não encontrarem um motivo que os conduzisse a uma boa e agradável conversa. Erwin continuava com seu comedido sorriso afável, que Friedrich já começava a odiar.
Numa pausa do penoso diálogo que se arrastava havia alguns minutos, Friedrich viu na parede do tão conhecido gabinete de estudo de Erwin, uma folhinha de papel presa por um alfinete. Essa imagem tocou-o fortemente, despertando velhas lembranças: recordou que, durante os anos de estudante, Erwin tinha o costume de conservar assim, diante dos olhos, uma sentença de algum pensador ou os versos de algum poeta. Levantou-se e foi ler a folhinha na parede.
Nela estava escrito, com a disciplinada caligrafia do colega, a seguinte frase: “Nada está fora, nada está dentro. Pois o que está fora, está dentro”.
Friedrich empalideceu e manteve-se imóvel por instantes. Aí estava! Aí estava o que ele tanto temia! Em outra época, talvez tolerasse aquilo, talvez encarasse aquela frase com indulgência, como uma inofensiva e, em última análise, compreensível manifestação de sentimentalismo, digna de ser estudada. Mas agora era diferente. Tinha a certeza de que aquelas palavras não tinham sido anotadas por causa de uma fugaz disposição poética nem por um capricho que fizera Erwin retomar, após tantos anos, um hábito da juventude. O que ali estava escrito, naquela parede, era uma confissão do que ocupava atualmente o espírito do amigo: era uma prova de misticismo. Erwin era mais um renegado.
A passos lentos, dirigiu-se ao amigo, cujo sorriso resplandecia de novo.
- Explica-me aquilo - intimou Friedrich.
- Não conhecias essa sentença? indagou Erwin, amavelmente, erguendo a cabeça.
- Sim, claro que conheço! ~ uma sentença mística, puro gnosticismo! Talvez tenha alguma poesia, não discuto. Mas o que eu desejo que me expliques é por que a tens pendurada na parede.
- Com todo o prazer - replicou Erwin. - Essa sentença é uma espécie de introdução à nova epistemologia, a cujo estudo me dedico atualmente e à qual devo algumas felizes realizações.
Friedrich mal podia esconder seu desgosto.
- Dizes que é então uma nova ciência do conhecimento? E acaso isso existe? Que nome tem?
- Oh, na verdade, só é nova para mim. De um ponto de vista histórico, é uma ciência bem antiga e respeitável, embora a conhecessem sob outro nome: Magia.
A negregada palavra! Eis que ela fora pronunciada! Friedrich, profundamente surpreendido, quase assustado, diante de uma confissão tão clara, via-se frente a frente com seu inimigo supremo, na pessoa do amigo. Sentiu arrepios e permaneceu calado. Não sabia se estava mais próximo da cólera ou se da compaixão e das lágrimas. De qualquer modo, foi assaltado por uma terrível sensação de perda irremediável. A amargura não o deixava encontrar palavras. Depois, com uma ironia forçada na voz, indagou:
- Abandonaste, então, a carreira de cientista para te tornares um... um feiticeiro, é isso?
- Exatamente - retorquiu Erwin sem hesitai..
- Aprendiz de feiticeiro, eh?
- Correto.
Friedrich calou-se de novo, literalmente perplexo. Ouvia-se o tique-taque de um relógio no quarto vizinho, tal o silêncio que reinava no gabinete.
- Sabes que, com isso, deixaste de ter qualquer coisa em comum com a Ciência, que essa tua epistemologia não tem nenhuma relação com a verdadeira teoria do conhecimento, enfim, que nenhuma seriedade pode haver num estudo que se baseia em falsas premissas? E também deves saber, sem dúvida, que não pode haver qualquer relação entre nós dois?
- Eu esperava que sim - respondeu Erwin. - Mas se colocas as coisas nesse plano... que posso eu fazer?
- O que podes fazer? - interrompeu Friedrich, quase gritando. - Não sabes o que podes fazer? Acabar com essa brincadeira de mau gosto, com essa triste crença em artes sobrenaturais, indigna de um homem de saber! Romper completamente e para sempre com tudo isso! É tudo o que te resta a fazer, se acaso queres conservar a minha amizade e o meu respeito.
Erwin sorria, embora já não parecesse tão jovial quanto antes.
- Falas assim - disse ele em tom baixo, de maneira que a voz irritada de Friedrich ainda parecia ressoar no gabinete - falas assim como se tudo dependesse da minha vontade, como se estivesse em meu arbítrio escolher um ou outro rumo, Friedrich. Mas não e assim. Não me compete optar. Não fui eu que escolhi a magia. Foi ela que me escolheu. Friedrich soltou um profundo suspiro.
- Então passa bem. - E levantou-se, sem estender a mão ao amigo.
- Assim não! - exclamou Erwin, agora mais agitado. - Não, assim não quero que me deixes. Imagina que um de nós estivesse moribundo. Seria assim... seria desta maneira que nos despediríamos?
- Qual de nós, Erwin, é o moribundo?
- Creio ser eu, Friedrich. Quem quer renascer deve estar disposto a morrer primeiro.
Friedrich acercou-se novamente da folhinha na parede e releu a sentença sobre o que está dentro e fora.
- Bom - disse ele, por fim. - Tens razão, nada adianta separarmo-nos zangados. Seja como tu dizes e vamos supor que um de nós está moribundo. Eu também poderia ser o moribundo. Porém, antes de partir, quero fazer-te um pedido.
- Isso me agrada ouvir - disse Erwin. - Que poderei fazer por ti, como despedida?
- Vou repetir a minha pergunta inicial, que foi ao mesmo tempo uma intimação: explica-me essa sentença e trata de fazê-lo o melhor que possas - disse Friedrich, apontando para a folhinha.
Erwin refletiu por momentos e disse:
- Nada está fora, nada está dentro. O significado teológico tu o conheces tão bem quanto eu. Deus está em toda a parte. Ele está nos espíritos e na natureza. Tudo é divino porque Deus está em tudo e para Ele não existe fora nem dentro. Está identificado com todas as coisas. A isso chamavam outrora Panteísmo. Vamos agora ao conceito filosófico: a separação de dentro e fora é um hábito mental mas não é forçosamente necessária. Existe para o nosso espírito a possibilidade de transcender as fronteiras que lhe foram traçadas e atingir o Além. E é para além dos limites do nosso mundo e da sua estrutura de pares opostos e antagônicos, como o Bem e o Mal, o Belo e o Feio e tantos outros, que se abrem novos e diversos conhecimentos. Ah, meu caro amigo, devo te confessar: desde que se operou essa mudança em meu pensamento, nunca mais houve para mim palavras e frases, enunciados e sentenças de um só sentido, senão que cada palavra, cada frase, passou a revestir-se de dezenas, centenas de significados. E é nesse ponto que começa aquilo que tu mais temes e detestas: a Magia.
Friedrich franziu o cenho e quis interrompê-lo mas Erwin olhou-o, tranquilizador, e prosseguiu:
- Permiti-me que te dê um exemplo. Leva daqui uma coisa que me pertence, algum objeto e, de vez em quando, observa-o. Verificarás que, ao contemplá-lo, o objeto em si, com suas características próprias e limitadas, suscitará no teu Intimo muitos outros significados, por exemplo, a nossa antiga amizade, este encontro e uma infinidade de outros pensamentos que nada têm a ver com esse insignificante objeto.
Erwin olhou ao seu redor, levantou-se e retirou de uma prateleira uma estatueta de porcelana vidrada, entregando-a a Friedrich. E então disse:
- Aceita isto como presente de despedida. Quando este objeto, que ora entrego em tuas mãos, estiver dentro e fora de ti, volta a visitar-me. Porém, se continuar sempre fora de ti, como está agora, isso significará que a nossa despedida de hoje foi para sempre!
Friedrich ainda tentou dizer alguma coisa mas Erwin já lhe estendia a mão, apertando-a e dizendo “adeus” com uma expressão que não dava lugar a mais palavras.
Friedrich desceu a escada (há quanto tempo subira ele aquela escada?), caminhou vagarosamente rumo a casa, a pequena estatueta apertada na mão, perplexo e, muito no seu íntimo, desolado. Parou diante da porta, sacudiu por instantes o punho onde se encontrava a estatueta e, irritado, sentiu vontade de espatifar no chão aquela coisa ridícula. Não o fez e, mordendo os lábios, entrou em casa. Nunca se sentira tão conturbado, tão atormentado por sentimentos contraditórios.
Procurou um lugar onde pôr a estatueta do amigo e colocou-a na última prateleira de uma estante de livros. Ali ficaria por enquanto.
Durante o dia, Friedrich olhava uma vez ou outra para a estatueta, meditando sobre sua procedência e sobre o significado que tão inofensivo objeto poderia ter em sua vida. Era uma pequena imagem humana, de um deus ou ídolo antigo, não muito humana, de fato, pois tinha dois rostos, como o deus romano Janus, Era de porcelana grosseira e muito mal-acabada. O seu vidrado tinha rachado, talvez por excesso de calor. Certamente não era um trabalho saído das mãos dos artífices gregos ou romanos. Mais parecia ter sido moldada por algum povo primitivo da África ou das ilhas do Pacífico. Sobre as duas faces, que eram réplica uma da outra, esboçava-se um sorriso apático, inerte e descorado: era até chocante como o pequeno duende podia desperdiçar seu tempo com um sorriso tão tolo.
Friedrich não conseguia habituar-se àquela imagem. Era-lhe inteiramente repugnante, desagradável, embaraçava-o, incomodava-o. Tirou-a da estante e colocou-a sobre a estufa. Dias depois, retirou-a da estufa e levou-a para o armário. Mas a estatueta de duas caras constantemente lhe surgia diante dos olhos, sorrindo-lhe fria e estupidamente, impunha-se-lhe à vista, exigia atenção. Duas ou três semanas depois, Friedrich retirou-a de seu gabinete e colocou-a na antessala, entre algumas fotos da Itália e diversas recordações que de lá trouxera, mas tão insignificantes que ninguém olhava para elas. Agora, pelo menos, Friedrich só veria o ídolo primitivo nos momentos em que saía ou entrava em casa, passando rapidamente por ele e sem sequer o olhar de perto. Mas a verdade é que, mesmo sem querer admiti-lo, a estatueta também ali o incomodava.
Como esse mostrengo de duas caras, esse pedaço de barro mal-acabado, tinha penetrado em sua vida e o atormentava!
Meses depois, Friedrich regressou de uma curta viagem - de vez em quando, empreendia essas excursões como se algo o impelisse a fazê-lo, movido por uma súbita intranquilidade entrou em casa, passou pela antessala, foi saudado pela sua governanta e leu a correspondência que o aguardava. Estava, porém, inquieto e distraído, como se tivesse esquecido algo importante; nenhum livro lhe apetecia ler, em nenhuma cadeira se sentia confortável. Decidiu examinar seus próprios sentimentos: o que lhe estava acontecendo, de repente? Teria esquecido alguma coisa importante? Sofrera algum contratempo? Comera algo prejudicial? Tentava lembrar-se. Refletia e procurava concluir se essa incômoda sensação o acometera antes de entrar em casa, ou depois, na antessala, ou... Teve um brusco sobressalto e correu para a antessala, procurando instintivamente com o olhar a estatueta de porcelana.
Uma estranha sensação lhe percorreu o corpo quando não viu em seu lugar o ídolo de duas caras. Como poderia ter desaparecido? Teria fugido em suas pequenas pernas de barro? Voado? Algum estranho feitiço o chamara para as longínquas paragens donde viera?
Friedrich reagiu, sacudindo a cabeça e repreendendo-se, sorridente, pelo despropósito de sua angústia. Deveria, em primeiro lugar, descobrir a estatueta em algum outro ponto, procurando-a calmamente na casa. Talvez, distraído, a tivesse mudado de lugar. Depois, não a encontrando, chamou a governanta. Embaraçada, confessou que aquela estatueta lhe escorregara das mãos, quando arrumava a antessala.
- E onde está?
- Não existe mais. Tive-a várias vezes na mão, parecia-me uma coisa tão forte e resistente. Mas ao cair desfez-se em mil pedaços. Ficou irrecuperável, doutor. Joguei-a no lixo.
Friedrich mandou a governanta retirar-se. Sorriu. Não ficara contrariado. Por Deus, que não sentia pena alguma pela perda do feio manipanso. Estava livre dele. Agora teria sossego. Era o que deveria ter feito logo no primeiro dia: espatifado aquela coisa em mil pedaços! Agora se apercebia do que sofrera todo esse tempo! Como o ídolo lhe sorria com sua dupla cara indolente, maliciosa, velhaca, diabólica! Já que a estatueta não mais existia, podia confessar: sim, ele temia, sinceramente temia aquele pedaço de barro cozido. Não era, afinal, um símbolo de tudo o que para Friedrich era hostil e insuportável, tudo o que ele tinha na conta de pernicioso, degradante e a ser implacavelmente combatido superstição, obscurantismo, forças inimigas da clareza de consciência e de espírito? Não representava aquela brutal força telúrica, aquele distante terremoto que ameaçava, por vezes, destruir a verdadeira cultura sob um caos de trevas? Aquela mísera imagem não lhe roubara o seu melhor amigo - não só o roubara como o convertera em adversário? Bom, a coisa tinha desaparecido. Quebrada. Morta. Era bom assim, muito melhor do que se ele próprio a tivesse quebrado.
Friedrich continuou dedicado a seus estudos e tarefas.
Mas parecia uma maldição. Agora, quando já se habituara mais ou menos à presença da ridícula estatueta e a vê-la no seu lugar da antessala; quando, com o decorrer do tempo, já se lhe tornara familiar e indiferente... começava a sentir sua falta! Sim, sentia falta dela. Toda a vez que passava pela antessala e via o lugar vazio que a estatueta costumava ocupar, uma estranha angústia se apossava de Friedrich. O vazio ampliava-se em toda a antessala, penetrava no seu gabinete de estudo, nos quartos, um vazio estranho e cruel por toda a casa, como a súbita ausência fria de um parente muito querido.
Dias horríveis e piores noites vieram torturar Friedrich. A falta do ídolo de duas caras obcecava-o e dominava seus pensamentos. Já não era apenas quando passava pela antessala e via o lugar vazio, oh não, Fiedrich sentia-se impelido a pensar nele a qualquer momento, desalojando de seu espírito tudo o mais. Era como se a própria estatueta tivesse fisicamente se instalado em sua mente e, de modo implacável, fosse roendo, devorando. tudo o mais que lá dentro encontrara, gerando em seu íntimo um vazio semelhante ao que criara no resto da casa.
Como se quisesse convencer-se do absurdo que era lamentar a perda do insignificante objeto, recordava-o mentalmente em todos os seus pormenores. Revia-o em toda sua tosca fealdade, com seu sorriso velhaco e... sim, chegava mesmo a tentar, com a boca torcida, imitar aquele sorriso! Assediava-o a pergunta: as duas caras seriam realmente iguais? Uma delas, talvez a causa de uma pequena rachadura no vidrado, não teria uma expressão ligeiramente diferente da outra? Uma expressão algo interrogativa? Como o sorriso da Esfinge? Ah, e como era pavorosa a cor da pintura! Era verde... não, também tinha azul. Ou era cinza? Tinha a certeza de que também havia um pouco de vermelho. Era um vidrado que Friedrich encontrava agora em muitos outros objetos: via-o no faiscar de um raio de sol, batendo na vidraça de uma janela, nos reflexos da chuva que batia nas pedras da calçada...
Sobre o vidrado da estatueta também pensara muito durante a noite. Dava-se conta de que “vidrado” era uma palavra esquisita, desagradável, falsa, petulante. Analisava-a, decompunha-a com raiva, soletrava-a furioso. Só o diabo saberia dizer a que soava, de fato, essa palavra ruim, cheia de duplos sentidos. Finalmente, lembrou-se de ter lido há muitos anos, durante uma viagem, um livro que simultaneamente o espantara, torturara e, de modo secreto o fascinara. Chamava-se A Princesa Vidrada. Era uma verdadeira maldição! Tudo o que se relacionava com a estatueta - a cor, o vidrado, o sorriso - significava hostilidade, veneno, feitiço. A Princesa também fora transformada por um inimigo que escondera sua maldade sob o artifício de um sorriso. E recordou então o estranho sorriso do seu ex-amigo Erwin, quando lhe entregou a estatueta! Tão estranho, tão veladamente hostil.
Friedrich lutava corajosa e virilmente contra essa obsessão que lhe torturava o espírito e não se pode dizer que era mal sucedido em sua batalha. Pressentia nitidamente o perigo e não queria enlouquecer. Preferia mil vezes morrer. A lucidez mental era imprescindível, a vida não. E admitiu que talvez isso fosse o resultado de uma obra de magia, que Erwin, com a ajuda dessa estatueta, o tivesse enfeitiçado de algum modo - fazendo com que ele, o defensor implacável da inteligência esclarecida e da ciência, caísse em poder dessas forças ocultas. Mas... se isso fosse verdade, se ele era capaz de admitir essa possibilidade... então existia, sim, então a magia era uma realidade! Não, era preferível morrer a admitir semelhante coisa!
Um médico receitou-lhe passeios e abluções. À noite, procurou algumas vezes distrair-se nas tavernas movimentadas. Mas pouco adiantava. Amaldiçoou Erwin e amaldiçoou-se a si próprio.
Certa noite, estava ele deitado em sua cama e, como ocorria com frequência nessa época, desperto antes do tempo, sem conseguir conciliar de novo o sono. Sentia-se indisposto e assustado. Perdera a antiga confiança nos poderes absolutos de sua inteligência. Queria raciocinar, procurar conforto em algumas frases lúcidas, tranquilizantes, algo como “dois e dois são quatro”. Mas nada lhe acudia à mente, ficava balbuciando frases indistintas e confusas, articulando palavras sem sentido exato. Por vezes, seus lábios moviam-se instintivamente para proferir aquela frase que vira escrita algures, que já tivera diante dos olhos, não sabia bem onde. E balbuciava-a entre dentes, como se quisesse narcotizar-se, como se tentasse voltar do caminho estreito à beira de um abismo insondável para as delícias do sono perdido.
De súbito, ao falar mais alto, as palavras apenas balbuciadas penetraram, de chofre, em seu consciente. Friedrich as conhecia agora. Ouvira-as nitidamente. Sua própria voz clamava: “Sim, agora estás dentro de mim!” Compreendeu imediatamente o que isso significava. Sabia que essas palavras se referiam à estatueta de porcelana e que, nessa hora da noite, com um rigor implacável, a profecia de Erwin estava se cumprindo: aquela figura grotesca que ele tivera em suas mãos e olhara com desprezo, já não estava mais fora dele, estava dentro! “Pois o que está fora, está dentro.”
Levantou-se de um salto, como se gelo e fogo percorressem seu corpo a um só tempo. O mundo girava vertiginosamente à sua volta. Friedrich vestiu-se às pressas, saiu de casa e correu, envolto pela noite da cidade adormecida, à casa de Erwin. Viu luz acesa no conhecido gabinete de estudos do velho amigo. O portão estava aberto. Tudo parecia indicar que era esperado. Trêmulo, empurrou a porta do gabinete de Erwin e apoiou-se, quase desfalecido, na escrivaninha. Com o rosto iluminado pela suave luz do abajur, Erwin sorria. Levantou-se de sua poltrona e, afavelmente, disse:
- Então vieste. Sim, foi bom que viesses.
- Tu... estavas à minha espera? - murmurou Friedrich.
- Espero-te, como sabes, desde o instante em que saíste de minha casa, levando o meu pequeno presente. Aconteceu, por acaso, aquilo que te disse aquela vez?
- Aconteceu - sussurrou Friedrich. - O teu ídolo está agora dentro de mim. Não o suporto mais.
- Posso ajudar-te? - indagou Erwin.
- Não sei, não sei. Faz o que quiseres. Fala-me de tua magia. Explica-me como o ídolo poderá sair novamente de mim.
Erwin colocou a mão no ombro do amigo. Levou-o até uma poltrona e convidou-o a sentar-se. Depois, dirigiu-se carinhosamente a Friedrich, num tom quase paternal.
- O ídolo sairá novamente de ti. Confia em mim. Confia sobretudo em ti mesmo. Com ele aprendeste a crer. Agora terás de aprender a amá-lo. Sim, ele está dentro de ti mas já sabes que não morreu. Por enquanto, tampouco é algo com vida. Circula em ti como um espectro, um fantasma sem vida própria. Acorda-o, fala com ele, indaga-o, insufla-lhe vida. Friedrich, ele é tu mesmo! Não o odeies, não o temas, não o tortures... como tens torturado aquele pobre ídolo que és tu! Meu pobre amigo, como te amarguraste a ti próprio!
- É esse o caminho da magia? - perguntou Friedrich, afundado na poltrona, a expressão envelhecida. Sua voz era suave.
- Esse é o caminho - respondeu Erwin. - E o passo mais difícil já deste. Poderás negar a tua própria experiência? Que o fora pode tornar-se dentro? Tens vivido além das fronteiras dos pares opostos. Pareceu-te um inferno? Pois acredita, amigo, que é o céu. ~ o céu que te espera. E que nome se poderá dar, se não o de magia, a algo que troca o fora por dentro, não por coação, não com sofrimento, como até agora aconteceu contigo, mas livremente, por uma imposição da nossa própria vontade? Assim poderás invocar o teu passado e o teu futuro, pois ambos se encontram dentro de ti. Até hoje, Friedrich, tens sido escravo do teu íntimo. Aprende a ser o seu senhor. Isso é magia!
Sonho de Uma Flauta
- Toma - disse meu pai, e entregou-me uma pequena flauta de osso - leva isso e não esqueças teu velho pai, quando alegrares com tua música as pessoas nas terras distantes. Já é tempo de agora veres o mundo e aprenderes alguma coisa.
Mandei fazer a flauta para ti, porque não sabes nenhum outro ofício e só gostas de cantar. Mas pensa também em só tocar sempre canções bonitas e agradáveis, senão seria pena pelo dom que Deus te concedeu.
Meu querido pai entendia pouco de música, não era um sábio; pensava que eu tinha apenas de soprar a linda flautinha e tudo estaria bem. Eu não queria decepcioná-lo, por isso agradeci, botei a flauta no bolso e me despedi.
Nosso vale era conhecido até o grande moinho; depois então começava o mundo, e ele me agradou bastante. Uma abelha cansada do voo pousou na minha manga, e eu a levei comigo, afim de que no meu primeiro descanso tivesse um mensageiro para mandar de volta, como um cumprimento à minha terra.
Bosques e prados acompanhavam meu caminho, e o rio corria junto, vigorosamente; eu vi, o mundo deferia pouco da minha terra. As árvores e flores, as espigas de trigo e as moitas de avelã falavam comigo, cantei com elas suas canções e elas me compreendiam, exatamente como lá em casa; com isso minha abelha também despertou, subiu devagar até meus ombros, voou e tornou a cruzar duas vezes comigo, com seu zumbido profundo e doce, e então voltou para minha terra.
Aí apareceu diante do bosque uma mocinha, que carregava uma cesta no braço e um largo e sombrio chapéu de palha na cabeça loura.
- Bom dia - disse-lhe eu - aonde vais?
- Devo levar a comida aos ceifeiros - disse ela, e caminhou ao meu lado. - E para onde queres ir ainda hoje?
- Vou para o mundo, meu pai me mandou. Ele acha que devo tocar flauta para as pessoas, mas isso ainda não sei direito, preciso primeiro aprender.
- Bem, bem. E que sabes então direito? Alguma coisa é preciso saber.
- Nada de especial. Sei cantar canções.
- Que canções?
- Canções de todo o tipo, sabes, para a manhã e para a tarde e para todas as árvores e bichos e flores. Agora, por exemplo, eu poderia cantar uma bonita canção de uma mocinha que vem saindo do bosque e traz comida para os ceifeiros.
- Podes fazer isso? Então canta um pouco!
- Sim, mas como te chamas mesmo?
- Brigite.
Então cantei a canção da linda Brigite com o chapéu de palha, o que ela traz na cesta, e como as flores olham para ela, e a trepadeira azul da grade do jardim sente saudades dela, e tudo o que se podia dizer. Ela prestou atenção seriamente e disse que estava bom. E quando lhe contei que estava com fome, ela levantou a tampa de sua cesta e apanhou para mim um pedaço de pão. Como mordi um pedaço e continuei firmemente a andar, ela disse:
- Não se deve comer andando. Uma coisa depois da outra.
Nos sentamos na grama e eu comi meu pão e ela cruzou as mãos morenas em volta da perna e ficou me olhando.
- Queres cantar ainda coisa para mim? - perguntou então, quando terminei.
- Quero, sim. Que deve ser?
- Sobre uma moça que está triste porque o amado partiu.
- Não, isso não posso. Não sei como é isso, e a gente também não deve ficar tão triste. Eu só devo cantar canções gentis e alegres, disse meu pai. Vou cantar para ti sobre o cuco ou a borboleta.
- E do amor não sabes nada? - perguntou ela, então.
- Do amor? Ora, claro, isso é o mais bonito de tudo.
Imediatamente comecei a cantar sobre o raio de sol que ama as papoulas vermelhas e como ele brinca com elas e fica cheio de alegria. E sobre a fêmea do tentilhão, quando espera por ele e quando ele vem, ela voa para longe e parece amedrontada. E continuei a cantar sobre a menina dos olhos castanhos e sobre o rapaz que chega, canta e por isso recebe um pão de presente; mas agora ele não quer mais pão, ele quer um beijo da donzela e quer olhar os seus olhos castanhos, e continua a cantar tanto tempo e não termina, até que ela começa a rir e lhe fecha a boca com seus lábios.
Aí Brigite debruçou-se e fechou-me a boca com os lábios e fechou os olhos e tornou a abri-los e eu olhei as estrelas castanho-douradas bem perto, eu próprio refletido ali dentro e um par de brancas flores do prado também.
- O mundo é muito bonito - disse eu - meu pai tinha razão.
Mas agora quero te ajudar a carregar isso para que cheguemos até tua gente.
Tomei-lhe a cesta e continuamos a andar, seu passo combinava com o meu e sua alegria com a minha, e o bosque suave e fresco falava da montanha em volta; eu nunca havia caminhado com um prazer tão grande. Durante longo tempo cantei alegremente, até que tive de parar de tanta satisfação; eram coisas demais que rumorejavam e contavam-se sobre o vale e a montanha e a grama e a folhagem e o rio e a floresta.
Aí pensei: se pudesse compreender e cantar ao mesmo tempo essas mil canções do mundo, das gramas e flores e gente e nuvens e tudo, da floresta velha e do pinheiral e também de todos os bichos, e além disso ainda canções dos mares longínquos e montanhas, e as das estrelas e luas, e se tudo isso pudesse ressoar e cantar em mim ao mesmo tempo, então eu seria o querido Deus, e cada nova canção deveria ficar no céu como uma estrela.
Mas enquanto eu assim pensava, estava silencioso e maravilhado, porque aquilo antes nunca me ocorrera, Brigite parou e segurou a alça da cesta.
- Agora devo ir lá em cima - disse ela - lá no campo está nossa gente. E tu, para onde vais? Vens comigo?
- Não, ir contigo não posso. Preciso ir pelo mundo.
Obrigado pelo pão, Brigite, e pelo beijo; vou pensar em ti.
Ela segurou a cesta de comida, e sobre a cesta seus olhos novamente se inclinaram para mim em sombras castanhas, e seus lábios prenderam-se aos meus e seu beijo foi tão bom e carinhoso, que quase fiquei triste de tanto prazer. Então gritei rápido:
- Vai com Deus - e marchei apressadamente pela estrada acima.
A moça subiu devagar a montanha, e sob as folhas de faia pendurada na orla do bosque, parou e olhou na minha direção, e quando lhe acenei com o chapéu, ela tornou a balançar a cabeça e desapareceu silenciosamente, como uma miragem, para dentro da sombra do bosque.
Eu, porém, continuei tranquilamente meu caminho, e estava imerso em meus pensamentos, quando a estrada dobrou num curva.
Lá havia um moinho e, perto, um barco na água; dentro estava sentado um homem sozinho e parecia apenas esperar por mim, pois quando tirei o chapéu e entrei no barco, este, em seguida, começou a andar e deslizou rio abaixo. Eu estava sentado no meio do barco, e o homem atrás, no leme, e quando lhe perguntei para onde íamos, ele levantou os olhos cinzentos e encarou-me com um olhar velado.
- Para onde quiseres - disse, com uma voz abafada. - Rio abaixo e para o mar, ou para as grandes cidades, podes escolher. Tudo me pertence.
- Tudo te pertence? Então és o rei?
- Talvez - disse ele. - E, ao que me parece, tu és um poeta, não? Então canta-me uma canção de viagem!
Fiz um esforço, estava com medo do homem grisalho e sério, e nosso barco deslizava rápido e silencioso pelo rio.
Cantei sobre o rio, que carrega o barco e reflete o Sol e rumoreja mais forte nas margens dos rochedos e completa alegremente seu passeio.
O rosto do homem continuou impassível, e quando prestei atenção, ele balançava a cabeça como um sonhador. Então, para meu espanto, ele próprio começou a cantar, e também cantava sobre o rio, e sobre a viagem do rio através dos vales, e sua canção era mais bela e poderosa que a minha, mas tudo soava diferente.
O rio, tal como ele cantava, vinha como um destruidor vacilante montanha abaixo, escuro e selvagem; furioso, ele se sentia dominado pelos moinhos, coberto pelas pontes, detestava cada navio que precisava carregar, e, em suas ondas e nas longas e verdes plantas aquáticas, rindo, balançava os corpos brancos dos afogados.
Isso tudo não me agradou, e entretanto era tão belo e cheio de um acento invisível, que fiquei completamente desorientado e angustiado e me calei. Se era certo o que esse velho, sensível e inteligente cantor, cantou com sua voz velada, então todas as minhas cantigas não passavam de tolices e brincadeiras bobas de criança. Então o mundo, por causa delas, não era bom e luminoso como o coração de Deus, e sim escuro e triste, mau e sombrio, e quando os bosques murmuravam, não era de alegria, e sim de martírio.
Seguimos adiante, e as sombras foram longas, e de cada vez que comecei a cantar, meu canto sova menos claro, e minha voz tornava-se mais baixa, e de cada vez o cantor desconhecido respondia com uma canção que tornava o mundo ainda mais enigmático e penoso, e me tornava ainda mais tímido e triste.
Minha alma doía e eu me arrependia de não ter ficado em terra, perto das flores ou da linda Brigite, e para sentir-me seguro no crepúsculo que crescia, recomecei a cantar e cantei na luz vermelha da tarde a canção de Brigite e de seu beijo.
Aí o crepúsculo começou, e eu emudeci, e o homem no leme cantou, e ele também cantava sobre o amor e a alegria do amor, sobre os lábios vermelhos e úmidos, e era lindo o que ele cantava, cheio de dor, sobre o rio escurecido, mas em sua canção também o amor se tornara sombrio e temível, e um segredo mortal, no qual os homens aflitos e feridos tocavam com seu desejo e sua saudade, e com o qual se martirizavam e se matavam uns aos outros.
Escutei e fiquei tão cansado e aflito, como se estivesse viajando desde muito tempo e houvesse passado por grande miséria e desgraça. Vinda do estranho, sentia cair sobre mim uma torrente silenciosa e fria de tristeza e receio, a penetrar no meu coração.
- Pois bem, a vida não é o que há de mais elevado e mais belo - gritei afinal amargamente - e sim a morte. Então te peço, rei triste, canta-me uma canção da morte!
O homem do leme cantou somente sobre a morte, e cantou melhor do que eu jamais ouvira cantar. Mas a morte também não era o que havia de mais elevado e mais belo, nela também não se encontrava consolo. A morte era vida e a vida era morte, e elas estavam entrelaçadas numa perpétua e furiosa luta de amor, e isso era a última coisa e o sentido do mundo, e dali vinha um clarão, que parecia querer valorizar toda a miséria, e de outro lado vinha uma sombra que perturbava toda a alegria e beleza e as envolvia na escuridão.
Mas para além da escuridão, a alegria ardia mais íntima e bela, e o amor queimava mais profundamente nessa noite.
Escutei e fiquei bem quieto, não tinha mais nenhuma vontade dentro de mim além da vontade do estranho. Seu olhar repousou sobre mim, tranquilo e com uma certa bondade triste, e seus olhos cinzentos estavam cheios da dor e da beleza do mundo. Ele me sorriu, e então achei nele um coração, e pedi na minha dor:
- Ah, vamos voltar! Sinto medo aqui na noite e queria retornar para onde posso encontrar Brigite, ou para a casa de meu pai.
O homem levantou-se e espiou a noite, e sua lanterna iluminou claramente seu rosto magro e firma.
- Para trás não há caminho - disse sério e amável. - A gente precisa ir sempre para a frente, quando quer penetrar no mundo. E da garota dos olhos castanhos já tiveste o melhor e o mais belo, e quanto mais longe estiveres dela, melhor e mais lindo isso vai se tornar. Ainda assim, segue sempre para onde quiseres, vou te ceder meu lugar no leme!
Eu estava triste demais, e, entretanto, vi que ele tinha razão. Cheio de saudade pensei em Brigite e na minha terra e em tudo que me fora próximo e luminoso e que pertencera, e que eu agora havia perdido. Mas queria tomar o lugar do desconhecido e dirigir o leme. Assim devia ser.
Por isso levantei-me em silêncio e fui andando pelo barco até o lugar do leme, e o homem veio em silêncio ao meu encontro, e quando já estávamos perto um do outro, olhou-me firmemente no rosto e entregou-me sua lanterna.
Entretanto, quando me sentei ao leme com a lanterna do meu lado, estava sozinho no barco; percebi isso com profunda estranheza, o homem desaparecera, e, contudo, eu não estava amedrontado, já pressentira isso. Pareceu-me que o lindo dia da caminhada e Brigite e meu pai e minha terra tinham sido apenas um sonho, e que eu era velho e aflito, e que desde sempre e sempre viajava sobre esse rio noturno.
Compreendi que não devia chamar pelo homem e a percepção da verdade atingiu-me como a geada.
Para certificar-me do que imaginava, debrucei-me sobre a água e ergui a lanterna, e do escuro espelho de água um rosto duro e sério me olhou com olhos cinzentos, um rosto velho, sábio, e vi que aquele era eu.
E como nenhum caminho voltava atrás, continuei seguindo sobre a água escura dentro da noite.
Caminhada
CASA CAMPESTRE
Aqui, nesta casa, eu me despeço. Durante muito tempo não verei mais uma casa assim, pois aproximo-me do desfiladeiro dos Alpes onde termina o estilo nórdico do camponês alemão, com toda sua paisagem e língua alemã.
Como é belo transpor tais fronteiras! Sob muitos aspectos o andarilho é um ser primitivo, assim como o nômade é mais primitivo do que o camponês, mas é o desdém pelas fronteiras e pela vida sedentária que torna os seres como eu os guias do futuro. Se existissem muitas pessoas nas quais moraria um tão profundo desprezo pelas fronteiras, como em mim, então não existiriam mais guerras, nem bloqueios. Não há nada mais detestável do que fronteiras, nada mais estúpido, são como canhões e generais: enquanto reina paz, humanismo e sensatez, é como se não existissem. Até zombamos deles, mas quando irrompe a guerra e a loucura, tornam-se santos e importantes. Que cárceres e que sofrimento representaram para nós, andarilhos, durante os anos de guerra! Que o diabo os carregue.
Em meu livro de apontamentos, eu desenho a casa, e os meus olhos vão se despedindo desse teto alemão, desse vigamento, dessa cumeeira, desse algo aconchegante, familiar e pátrio. Uma vez mais amo esse pátrio com maior intensidade ainda, pois é para a despedida. Amanhã, amarei outros tetos, outras choupanas. Não permitirei, como dizem em cartas de amor, que meu coração fique para trás. Ah! não. Eu o levarei comigo, precisarei dele a qualquer hora lá do outro lado das montanhas. Eu sou um nômade e não um camponês, sou um admirador da infidelidade, da mudança e da fantasia. Não penso em deixar o meu amor em parte alguma do mundo, pois para mim o que amamos vejo sempre como uma comparação. Para mim, o amor que se prende e se transforma em fidelidade e virtude é suspeito.
Um viva ao camponês, ao proprietário estabelecido, fiel e virtuoso! Sei amá-lo, respeitá-lo, só não consigo invejá-lo. A metade da minha vida já desperdicei, querendo imitar suas virtudes, queria ser o que não era. Pensava ser um poeta, mas era ao mesmo tempo um burguês, queria ser um artista cheio de fantasias e ao mesmo tempo ter virtudes e desfrutar o pátrio. Precisei de muito tempo até descobrir que é impossível possuir ambos, que eu sou um nômade e nenhum camponês, que procuro, mas não conservo. Durante longo tempo me mortifiquei perante deuses e leis que para mim nada mais eram do que ídolos. Com esse meu engano, meu sofrimento, minha culpa, colaborei na miséria do mundo. Usando dessa autoviolência para comigo mesmo, não me arriscando em seguir o caminho da redenção, aumentei a culpa e o sofrimento no mundo. Esse caminho não segue nem para a direita, nem para a esquerda, leva ao próprio coração onde, e só lá, está Deus e existe paz.
Das montanhas chega até a mim o sopro de um vento leste, de lá me espreitam ilhas do céu azul de outras terras debaixo do qual muitas vezes serei feliz, mas inúmeras serão também as minhas saudades, O ser perfeito da minha espécie, o verdadeiro andarilho, nunca deveria nem conhecer a saudade. Eu, porém, a conheço. Não sou perfeito, nem tento ser. Quero desfrutar minhas nostalgias da mesma forma que desfruto minhas alegrias.
Galgando vou ao encontro desse vento com esse perfume maravilhoso de distância, do além, de limites d'água e de línguas, de montanha e do sul. Vem repleto de promessas.
Adeus, pequena casinha campestre e paisagem pátrias! Despeço-me de você corno o jovem de sua mãe: ele sabe que chegou a hora de separar-se dela, mas sabe que nunca, mesmo que se quisesse, poderia abandoná-la para sempre.
O DESFILADEIRO
O vento sopra nesse pequeno e corajoso caminho. Já não existem árvores ou arbustos, só o musgo e a rocha crescem aqui. Por aqui ninguém tem nada para. procurar, ninguém tem propriedade. Aqui no alto, o camponês não tem nem feno, nem madeira. É o longínquo que atrai, a saudade que queima, foi ela que entre as rochas formou esse pequeno caminho, entre pântano e neve, levando para outros vales, outras casas, outras línguas e outra gente.
Bem no alto do desfiladeiro, eu paro. O caminho aqui desce para os dois lados, a água corre para ambos os lados e o que aqui em cima se une, palmo a palmo, leva seu rumo para dois mundos. Essa pequena poça, aqui junto do meu pé, corre para o norte. Sua água desce a longínquos, frios oceanos, mas logo ali, esse pequeno resto de neve vai pingando para o sul. Sua água, descendo pelas costas da Ligúria ou do Adriático, chega até o mar que se delimita com a África. Mas, na verdade todas as águas do mundo se encontram e é no úmido voo de uma nuvem que o Ártico e o Nilo se fundem. A bela e antiga parábola santifica meu instante. Também a nós, viajantes, qualquer caminho conduz para casa. Meu olhar ainda tem opção: tanto o norte, como o sul, lhe pertencem, a cinquenta passos, porém, só me restará aberto o sul. Como respira cheio de segredos, com seus vales azulados! Como é forte o bater do meu coração a ele me entregando! É o prenuncio de lagos e de jardins, e o olor de vinho e amêndoa sobe até aqui em cima. Antigo e santo mito de saudade e peregrinação a Roma!
Recordações da juventude ressoam em mim como o repicar de sinos em vales distantes: o ?êxtase da primeira viagem ao sul, o inspirar inebriante do generoso ar dos jardins às margens dos lagos azulados, ao entardecer espreitar até a longínqua pátria através dos picos nevados das montanhas que empalideciam! A primeira prece defronte às santas colunas da antiguidade! A primeira e fabulosa visão do mar espumante batendo-se contra as rochas escuras!
O êxtase já não sinto, nem mais o desejo de mostrar a todos os meus entes queridos esse maravilhoso desconhecido e toda a minha felicidade. Em meu coração não habita mais a primavera, já é verão. É diferente o tom da saudação do estranho que chega até a mim, em meu peito o seu eco ressoa bem mais baixinho. Já não jogo o meu chapéu para o alto, nem canto nenhuma canção, mas sorrio, não só com a boca, mas com a alma, com os olhos, com todo o meu ser e ofereço para essa terra, cujo perfume sobe até a mim, sentimentos bem diversos dos de outrora, mais sensíveis, mais perspicazes e experientes, porém mais calmos e mais agradecidos. Hoje, tudo isso me pertence muito mais do que antes, chega a mim com muito maior riqueza e colorido. A minha saudade já não falsifica as cores do desconhecido, meus
olhos se satisfazem com aquilo que aí está, pois já aprenderam a ver e o mundo ficou mais belo do que outrora.
Sim, o mundo está mais belo e eu estou só, mas não sofro em ser só. Não desejo nada diferente. Estou disposto a deixar-me assar pelo sol, estou ansioso em amadurecer. Estou pronto para a morte, pronto para renascer, pois o mundo ficou mais belo.
A ALDEIA
Essa é a primeira aldeia ao sul das montanhas. É aqui que principia realmente a vida de peregrino que tanto amo: esse vaguear sem rumo, o descansar ao sol, a liberdade da vagabundagem. Eu gosto de viver da mochila e com as calças esfarrapadas.
Enquanto espero que tragam meu vinho da taberna até aqui fora, de repente me lembro de Ferrucio Busoni. "O senhor me parece um tanto rústico", disse-me o prezado homem com um leve toque de ironia, por ocasião do nosso último encontro em Zurique, não faz tanto tempo assim. Andréa regera uma sinfonia de Mahler e, juntos, estávamos reunidos no restaurante habitual. Eu me alegrava em rever o rosto pálido, lívido de Busoni, na despreocupada consciência desse brilhante anti-filisteu que ainda temos hoje. Mas, como chegou até aqui essa lembrança?
Eu bem que sei! Pois, não é em Busoni, nem em Zurique, nem em Mahler que penso. É assim que a nossa memória nos ilude quando algo incômodo vai surgindo, então facilmente leva as imagens inocentes ao primeiro plano. Agora já sei! Naquele restaurante encontrava-se também uma jovem senhora, loiríssima e de faces rosadas, com quem não troquei uma só palavra. Oh! Anjo. Vê-la era prazer e tortura, como a amei durante toda aquela hora! Sentia-me como aos dezoito anos!
De repente vejo tudo claramente. Bela, alegre e loura dama! Já não sei como te chamas, te amei durante uma hora e hoje, aqui nessa ruela ensolarada de aldeia, te amo, novamente, durante uma hora. Ninguém nunca te amou mais do que eu, nunca ninguém se entregou tanto para ti como eu, mas eu estou condenado à infidelidade, pertenço aos sonhos que não são amados por uma mulher, senão pelo próprio amor.
Nós, andarilhos, somos todos feitos assim. Nossa ânsia de peregrinar, de vagabundear se constitui na maior parte de amor e erotismo. A metade desse romantismo não é nada mais do que a esperança por uma aventura. A outra metade, porém, é um instinto inconsciente em transformar e aniquilar o erótico. Nós, os peregrinos, já estamos acostumados em acalentar amores impossíveis por serem impossíveis, e aquele amor que deveria pertencer a uma mulher facilmente dividimos entre a aldeia e a montanha, o lago e o precipício, as crianças pelo caminho, o mendigo na ponte, o gado no pasto, o pássaro e a borboleta. Nós separamos o amor da matéria amada, o amor em si nos satisfaz da mesma forma como não buscamos no caminhar a meta, senão só o próprio prazer do caminhar, de estar a caminho.
Jovem dama com o rosto cheio de frescor, eu não quero saber teu nome, não penso em alimentar nem acalentar meu amor por ti, pois não és a meta do
meu amor, senão seu impulso. Darei esse amor de presente às flores do caminho, ao reflexo do sol no copo de vinho, à redonda e vermelha torre da igreja. És tu que fazes com que me apaixone pelo mundo.
Ah! Bobagem pura o que digo! Hoje à noite no albergue, lá na montanha, sonhei com a jovem loura. Eu estava loucamente apaixonado por ela. Teria dado o resto da minha vida, com todos os seus prazeres de andarilho em troca, se ela estivesse estado comigo. É nela que penso o dia todo, é para ela que bebo vinho e como pão, é para ela que desenho em meu livrinho a aldeia e a torre. Por ela bendigo a Deus, que ela existe e que pude vê-la. Para ela comporei uma canção e a mim me emborrascarei nesse vinho tinto. Era assim que estava previsto para mim, que meu primeiro descanso no alegre sul pertenceria à saudade de uma jovem loura além das montanhas. Como era belo o frescor de sua boca! Como é bela, estúpida e fantástica essa pobre vida!
A PONTE
Pela ponte o caminho passa sobre um riacho de montanha, ao longo de uma cachoeira. Certa vez já andei por esse caminho, já muitas e muitas vezes, mas especialmente uma vez durante a guerra quando minhas férias terminaram e eu precisava, novamente, partir. Tinha que apressar-me pelos caminhos e vias férreas para chegar em tempo ao serviço. Guerra e serviço, férias e convocação, cartão vermelho e cartão verde, excelências, ministros, generais e escritórios, quão irreal era aquele mundo sombrio, mas vivo e cheio de poder para envenenar o mundo, e a mim, simples andarilho e pintor de aquarelas, tirar-me de meu refúgio. Lá estavam o prado e o vinhedo, e debaixo da ponte era noite, no escuro o riacho soluçava e os úmidos arbustos tremiam. Sobre tudo se estendia um céu rosado que se apagava, breve já seria hora dos pirilampos. Aqui não havia nenhuma pedra que eu não amasse, nenhuma gota na cachoeira pela qual eu não fosse grato e que não descia direta da casa de Deus. Porém, tudo isso não era nada e meu amor por esses tortos e úmidos arbustos era puro sentimentalismo. A realidade era bem outra e se chamava guerra, emanava da boca de sargentos e generais e eu tinha que correr, e de todos os outros vales do mundo mil outros tinham que correr. Era uma nova era que começara e nós, pobres animais, corríamos rapidamente, e o tempo se prolongava ainda mais. Durante toda a viagem a água soluçante sob a ponte cantou em mim, o cálido cansaço do anoitecer ressoava em mim e tudo parecia ridículo demais e confuso.
Agora, todos seguimos, cada qual em seu caminho, ao longo de seu rio, e fitamos o velho mundo, os arbustos e as colinas de prado, com os olhos mais quietos, mais cansados. Recordamos os amigos que jazem enterrados, sabemos que foi preciso, tristes e conformados.
Porém a água, mais bela ainda, desce azul e branca pela colina parda, cantando a velha canção, e o arbusto continua cheio de melros. Nenhuma trompetada ressoa mais ao longe e a maior parte do tempo passa entre dias e noites cheias de mágicas, entre o amanhecer e o anoitecer. Assim, o paciente coração do mundo continua a bater. Se deitarmos na relva e ouvirmos a terra, ou reclinados sobre a ponte ouvirmos a água, ou se longamente olharmos o céu claro, então, ouviríamos o grande e compassado coração. É esse o coração da mãe cujos filhos todos nós somos.
Hoje, passando pelo meu caminho de despedida, me lembro daquela noite, o seu pesar já ressoa em mim de longe, seu perfume e o seu azul nada mais sabem de lutas e gritos.
E o dia há de chegar em que nada disso existirá mais, nada daquilo que tanto angustiou e deformou a minha vida me apavorando. Certo dia chegará a
paz com o último cansaço e a terra mãe me tomará em si. Isso não será o fim, mas a ressurreição, será um banho e um adormecer na qual desaparecerão o velho e o murcho, o jovem e o novo começarão a reviver. Então quero caminhar estradas assim, com outros pensamentos, escutar os riachos, espreitar os crepúsculos sempre mais e mais.
A CASA DO PASTOR
Passar por essa bela casa desperta em mim uma áurea de saudade e de nostalgia. Saudade de silêncio, calma e burguesia, nostalgia de camas confortáveis, bancos de jardim e olores de cozinha saborosa. Mais ainda, saudade de uma biblioteca, de tabaco e de velhos livros. E na minha juventude, como desprezei e zombei a teologia! Hoje sei que ela é uma erudição cheia de garbo e de magia. Não lida com mesquinharias de metros e de quilogramas, nem com aborrecidas histórias da civilização, onde só se guerreia, aclama e atraiçoa. Com delicadeza e finura ela trata das coisas íntimas, amadas e etéreas, com misericórdia e salvação, com anjos e sacramentos.
Para pessoas como eu, seria maravilhoso viver aqui e ser um pastor. Especialmente para alguém como eu. Será que eu não conseguiria ser aquele homem de paletó preto, subindo e descendo por aí, amando intimamente suas alamedas de pereiras, mas só com o espírito, como em parábolas a consolar os moribundos da aldeia, lendo os velhos livros em latim, com discrição dando as ordens à cozinheira e, aos domingos, com um belo sermão na mente, descer pela alameda ladrilhada até a igreja?
Se fizesse tempo ruim, eu aqueceria intensamente a casa, e debruçado numa dessas lareiras azuis ou esverdeadas, de vez em quando, chegaria até a janela, balançando a cabeça comovido pelo tempo.
Mas, pelo contrário, se o tempo fosse bom, eu permaneceria longamente no jardim cortando e amarrando minhas videiras, ou chegaria até a janela escancarada e, de pé, ficaria olhando as montanhas cinzas e escuras retomarem sua cor rosada e brilhante. Ah! E com que simpatia olharia para qualquer andarilho que passasse por minha porta. Eu o seguiria com pensamentos benevolentes e ternos, com saudade também, pois ele havia escolhido o melhor, ele sim era um verdadeiro e sincero hóspede e peregrino desse mundo e não eu, que representava aqui o senhor, o sedentário.
Um pastor como esse eu talvez pudesse ser, mas talvez também um outro, diferente. No escritório sombrio, lutando com mil demônios, tentaria fazer passar as minhas noites com um pesado tinto da Borgonha, ou angustiado por terríveis pesadelos despertaria, acordado pelo peso da minha consciência dos pecados clandestinos com as minhas fiéis do confessionário. Ou deixaria o portão verde do jardim sempre trancado e o sacristão trabalhar por mim, pouco me importando com a minha posição, a minha aldeia, o diabo e o mundo, sobre um confortável canapé ficaria deitado, fumando e preguiçando, à noite, preguiçoso demais para despir-me, pela manhã preguiçoso demais para me levantar.
Abreviando: nessa casa eu não seria nenhum pastor senão o mesmo, inofensivo e instável peregrino de agora. Não seria nunca um padre, mas, ora um teólogo fantástico, ora um gourmet tremendamente preguiçoso perseguindo as garrafas de vinho e as jovens damas, ora um poeta e um mímico, ora nostálgico com o pobre coração cheio de medos e amargura. É por isso que não faz diferença, se olho o portão verde, as alamedas, o belo jardim e a casa do pastor por dentro ou por fora. Se a minha saudade chega da rua pela janela até o quieto e espiritual senhor, ou, se cheia de inveja, acompanha o peregrino. Dá no mesmo, se eu fosse padre aqui ou vagabundo na rua, é tudo igual com exceção de algumas poucas coisas com as quais eu me importo muito. É sentir que a vida palpita em mim, quer seja na ponta da língua ou na planta do pé, quer seja no prazer ou na tortura, que meu espírito seja vivaz, que possa transformar-se em inúmeras fantasias e formas, em pastor e em peregrino, em cozinheira e em assassino, em crianças e em animais, principalmente em pássaros e árvores também. Isso é muito importante, isso eu quero e preciso para a vida, e se um dia não puder ser mais assim e eu tiver que viver na chamada "realidade", então preferirei morrer.
Recostei-me sobre a fonte e desenhei a casa do pastor com esse seu portão verde que tanto amei, e com o campanário ao fundo. É possível que pintasse o portão bem mais verde do que o é na realidade, e na altura do campanário também tenha exagerado um pouco, mas o mais importante é que durante um quarto de hora encontrei nessa casa a minha pátria. Sentirei saudades dessa casa que só vi por fora e na qual não conheço ninguém, a mesma nostalgia que sinto de uma verdadeira pátria, de lugares onde fui criança e feliz, pois também aqui, por quinze minutos, fui criança e feliz.
UMA QUINTA
Quando revejo essa abençoada região ao sul dos Alpes, então tenho a impressão de retornar de um exílio para a minha casa, é como se finalmente me encontrasse novamente no lado certo das montanhas. Aqui, o sol brilha mais intensamente, as montanhas são mais avermelhadas, aqui brotam castanhas e vinho, amêndoas e figos, as pessoas são boas, educadas e gentis, apesar de serem pobres. Tudo que criam parece ser tão bom, tão certo e gentil, como se fosse feito pela natureza: as casas, os muros, as videiras, os caminhos, as plantações e os terraços. Nada é novo, nem velho, é como se tivesse sido feito como uma rocha, uma árvore, um musgo, habilmente copiado da natureza. O muro da videira, a casa, o telhado, tudo foi feito com o mesmo material, tudo combina fraternalmente, nada parece ser estranho, hostil e violento, tudo parece ser familiar, alegre e vizinho.
Você pode sentar-se onde quer que seja, sobre um muro, uma rocha ou um toco de árvore, sobre a relva ou no chão. Em qualquer parte você se verá rodeado por um quadro, por uma poesia, a sua volta o mundo ressoará belo e feliz.
Aqui, nessa quinta, vivem camponeses pobres que não têm gado, só porcos, cabras e aves. Eles plantam videiras, milho, frutas e verduras. A casa é toda de pedra, os tetos e as escadas também, ao pátio leva uma escada esculpida entre duas pilastras de pedra, e por toda a parte, entre pedras e canteiros, desponta o azul do lago.
Os pensamentos e os problemas parece que ficaram para atrás dos picos nevados. Entre pessoas sofridas e coisas feias a gente pensa e sofre tanto. Lá é muito difícil, e desesperadamente importante, achar uma justificativa para a vida, pois, senão, como é que se viveria? Com tanta infelicidade à sua volta a gente se torna melancólico.
Aqui, porém, não existem problemas, a vida não precisa de justificativa, os pensamentos parecem jogos, a gente sente que o mundo é belo e a vida tão curta, mas nem todos os sentidos descansam. Eu gostaria de ter agora mais um par de olhos e mais um pulmão. Estendo minhas pernas sobre a relva, gostaria que fossem mais longas.
Eu desejaria ser um gigante: a minha cabeça ficaria junto da neve sobre um pasto nos Alpes entre as cabras, e meus artelhos, lá embaixo, brincariam com as águas do lago profundo. Assim, ficaria deitado e não me levantaria nunca mais. Entre meus dedos cresceriam arbustos, em meus cabelos as rosas dos Alpes, meus joelhos seriam colinas, sobre meu peito ficariam os vinhedos, as casas e as capelas. Assim, ficaria deitado milhares e milhares de anos, piscando ora para o céu ora para o lago, se espirrasse então choveria, meu
hálito faria a neve derreter-se e dançarem as cachoeiras. Se eu morresse, morreria o mundo inteiro e, então, através dos oceanos, buscaria um novo sol.
Onde pernoitarei hoje? Isso pouco me importa! E o mundo o que faz? Será que criaram novos deuses, novas leis, novas liberdades? Tanto faz! Mas, que aqui ainda flori uma prímula e suas folhas ainda estão aveludadas, que entre os choupos sopra um vento suave e doce, que entre meus olhos e o sol zumbe e esvoaça uma abelha dourada, isso não me é indiferente. Ela zumbe a canção da felicidade, da eternidade, sua canção é a minha história sobre o mundo.
ÁRVORES
As árvores sempre foram para mim os oradores mais convincentes. Eu as venero entre suas famílias e povos, as florestas e os bosques, mas, ainda mais as adoro quando estão a sós. Então são como os seres solitários, mas não como eremitas que por causa de alguma fraqueza se isolaram, mas como os grandes homens solitários: como Beethoven e Nietzsche. Em suas copas cicia o mundo, suas raízes jazem no infinito. Solitárias, elas não se perdem, senão com toda a força de seu ser procuram a única meta, preencher a sua própria lei desenvolvendo suas formas e se autorrepresentando. Não existe nada mais santo, mais exemplar do que uma bela e forte árvore. Quando uma árvore é cortada e seu ferimento mortal fica exposto ao sol, então é possível ler-se em seu toco, que ao mesmo tempo lhe serve como lápide, toda a sua história. No cerne e nas ramificações encontra-se fielmente descrita toda a luta, todo o sofrimento, todas as doenças, toda a felicidade e todo seu desenvolvimento nos anos ruins e nos anos fortes, nas agressões e nas tempestades sobrevividas. Todo jovem camponês conhece a madeira mais forte e nobre pelos seus anéis de vida mais unidos, e que é lá no alto das montanhas, desafiando os mais constantes perigos, que crescem os troncos mais exemplares, mais fortes e resistentes. Árvores são relíquias. Quem sabe como falar-lhes, ouvi-las, esse conhece a verdade. Elas não pregam ensinamentos e receitas, pregam isoladamente a primária lei da vida.
Uma árvore diz: eu trago em mim uma luz, um pensamento, um âmago, pois eu sou a vida da vida eterna. Soberba e única foi a jogada que a eterna mãe ousou comigo em minhas formas, na constituição da minha pele, na mais leve cicatriz em minha casca ou no mais leve movimento de minhas folhas. Nada sei sobre meus pais, nem dos milhares de filhos que ano a ano brotam de mim. Vivo o segredo da minha semente até o fim, além disso nada mais me preocupa. Eu tenho a certeza de ter Deus em mim e que a minha missão é santa e dessa confiança vivo.
Quando estamos tristes, sem mais nenhuma vontade de aturar a vida, então uma árvore pode falar conosco. Ela dirá: Calma, calma! Olhe-me! Viver não é fácil, mas nem tão difícil, pensamentos assim são criancice, cale, deixe que Deus fale em você. Você treme porque seu caminho lhe afasta da mãe e da pátria, mas cada passo e cada dia o levarão novamente ao seu reencontro. A pátria não está lá, nem cá, está em você ou em lugar algum.
A nostalgia de um viajante corta o meu coração quando à noite ouço as árvores sussurrarem. Escutando longamente e, quieto, descubro a essência dessa saudade, que como poderia parecer não é uma fuga do sofrimento, senão a nostalgia por uma pátria, a saudade de uma mãe ou a procura de novos símbolos para a vida. É a saudade que nos guia para casa. Todo
caminho leva para casa, qualquer passo é um nascer, um morrer, qualquer sepultura uma mãe.
É assim, quando à noite sentimos medo de nossos pensamentos infantis, que a árvore cicia. As árvores têm pensamentos extensos, calmos e de fôlego comprido, da mesma forma que sua vida é muito mais longa que a nossa.
Enquanto não aprendemos a ouvi-las, são mais sábias que nós, mas quando conseguimos, então, especialmente essa pressa e rapidez infantil em nossos pensamentos se enche de uma alegria sem igual. Quem já aprendeu a ouvir uma árvore não deseja mais ser uma, não desejará ser nada mais do que é e isso é a pátria, a felicidade.
TEMPO INSTÁVEL
Sobre o lago paira um ar morno, cinza e amedrontado, parece que vai chover. Vou até a praia que fica aqui perto de minha hospedaria. Há uma espécie de chuva que é alegre, que refresca, a de hoje não é assim. O tempo todo a umidade desse ar parado sobe e desce, formando pesadas nuvens que caem. Dúvida e mau humor pairam no céu.
E eu, que havia imaginado essa noite tão mais bela: jantar e pernoitar na taberna dos pescadores, um passeio na praia, um banho no lago ou até talvez nadar à luz do luar. Em lugar disso um céu escuro, desconfiado, jorra nervoso suas trombas-d'água caprichosas, e eu, não menos nervoso, vou me esgueirando pela paisagem descomposta. Talvez ontem à noite eu tenha bebido vinho demais ou tido algum pesadelo. Só Deus sabe o que há, só sei que meu humor foi para o inferno, que o ar está morno e pesado, meus pensamentos obscuros e o mundo opaco.
Hoje à noite pedirei para fritarem uns peixes e os comerei, bebendo bastante vinho tinto da região, assim faremos o mundo brilhar novamente e acharemos a vida mais suportável. Para não mais ver e ouvir essa chuva morna, acenderemos o fogo na lareira da taberna, fumarei um longo charuto Brissago e olharei meu copo de vinho contra as chamas fazendo-o brilhar como sangue, certamente faremos isso e então a noite há de passar, conseguirei dormir e amanhã será tudo diferente.
Os pingos da chuva caem sobre a água da praia, um vento frio e úmido agita as árvores molhadas que reluzem como peixes mortos. O diabo entornara o caldo, nada mais está certo e afinado, nada mais alegra e aquece, tudo parece vazio e triste, estragado, os tons desafinados e as cores falsas.
Bem que sei por que tudo está assim. Não é por causa do vinho que eu bebi ontem, nem da cama incômoda em que dormi, nem por causa do tempo chuvoso. Foram os diabos que passaram por aqui e desafinaram corda por corda em meu ser. O medo esteve novamente presente, esse medo dos sonhos de criança, de contos de fada e de desventuras de garoto de escola. Esse medo de estar cercado pelo imutável, essa melancolia, esse nojo. Como é insípido esse mundo! E como é horrível amanhã ter que levantar novamente, comer e viver! Afinal, para que se vive? Por que somos tão idiotamente bondosos? Por que não jazemos há muito no lago? Contra isso não há remédio algum. É impossível ser artista e vagabundo, e ao mesmo tempo um burguês honesto e são. Você quer a embriaguez, então suporte a ressaca! Você procura o brilho do sol e abençoadas fantasias, terá que aceitar a sujeira e o nojo! Isso tudo está dentro de você: ouro e sujeira, vontade e dor, riso de criança e medo da morte. Diga SIM a tudo, não fuja de nada, não se iluda com mentiras. Você não é
nenhum grego, nenhum burguês equilibrado e dono de si, você é um pássaro na tempestade. Deixe que caia a tempestade, deixe-se levar! Quanto você já não mentiu, milhares de vezes representou o sábio e o equilibrado, o feliz e esclarecido em seus livros e poesias! Era assim que lutavam os heróis no ataque enquanto os experientes tremiam! Meu Deus, que pobre macaco é o homem, que parceiro, principalmente o artista, o poeta e principalmente eu!
Farei com que fritem para mim uns peixes e o Nostrano beberei num copo grosso, meu longo charuto sorverei cuspindo no fogo da lareira, e pensarei em minha mãe tentando espremer do meu medo e da minha tristeza alguma gota adocicada. Depois numa cama desconfortável, deitado junto a uma parede fina, ouvirei o vento e a chuva, lutarei contra as batidas de meu coração desejando a morte, mas temendo-a e chamando a Deus, até que tudo passe, até que a dúvida se canse, até que algo como consolo e sono acenem em mim. Era assim quando eu tinha vinte anos, e assim é até hoje e assim será até que chegue o fim. Minha vida bela de vez em quando terei que pagar com esses dias, eles retornarão sempre, esses dias e essas noites, o medo, o nojo e o desespero, mas apesar de tudo continuarei vivendo e amando a vida. Quão sórdidas e falsas são essas nuvens sobre as montanhas! Como é falso e metálico o reflexo da luz sobre o lago! Como é idiota e sem sentido tudo o que me vem à mente!
A CAPELA
Essa capela cor-de-rosa, com esse pequeno alpendre, deve ter sido construída por alguém muito sensível, bom e fervoroso também. Já me disseram muitas vezes que hoje não existem mais homens fervorosos. Seria o mesmo que dizer que hoje não há mais música alguma, nem céu azul algum, pois eu tenho certeza de que existem muitos homens fervorosos, eu mesmo, também, sou apesar de nem sempre ter sido.
O caminho para o fervor deve ser para cada um diferente. O meu passou por muitos erros e sofrimentos, martírios e imensas burrices, verdadeiras selvas de burrice. Eu era um livre-pensador e considerava o fervor como uma doença do espírito, era um asceta que rasgava as carnes com as unhas, desconhecendo que fervor significava saúde e alegria.
O fervor nada mais é que confiança. O homem primitivo, inocente e saudável, a criança e o selvagem têm confiança. Nós, que já não somos nem simples nem inocentes, temos de encontrá-la através de desvios. O começo está na autoconfiança, não se chega à fé através de complexos de culpa, privações, consciência pesada, reservas e sacrifícios, essas formas nos levam a um Deus que não se encontra em nós. O verdadeiro Deus em que devemos crer mora em nós. Quem se lamenta não é capaz de receber Deus.
Oh! Querida e íntima capela dessa terra, você conduz dentro de si símbolos e escritos de um Deus que não é o meu, seus fiéis rezam orações que desconheço, mas mesmo assim sei rezar dentro de vós da mesma forma que rezo numa floresta de carvalhos, ou na relva de uma montanha. Amarelas, brancas ou cor-de-rosa surgem no verde como brotam de dentro dos jovens as canções primaveris. Dentro de vós qualquer oração é permitida e santa.
A oração é tão santa que cura tanto como uma canção. A oração é confiança, é confirmação. Quem ora realmente não pede, só fala de suas aflições, suas necessidades, vai cantando para si mesmo seu sofrimento, sua gratidão, assim como fazem as criancinhas. Era assim que rezaram os santos eremitas que estão retratados no pátio da igreja de Pisa. É o quadro mais bonito do mundo. É assim também que rezam as árvores e os animais. Nos quadros dos verdadeiros pintores cada árvore, cada montanha reza.
Quem descender de uma fervorosa família de protestantes terá que trilhar um longo caminho até descobrir essa oração, pois conhece os infernos da consciência, o mortal espinho da decadência, e já sentiu toda a espécie de divisão, sofrimento e de dúvida. No longínquo final de seu caminho verá, com surpresa, como é simples, infantil e natural a eternidade que procurara por caminhos tão tortuosos, apesar de não terem sido em vão. O filho pródigo é sempre diferente daquele que sempre ficara em casa, ama mais intensamente e
é isento de justiças e ilusões. A justiça é a virtude dos pátrios, virtude muito antiga, pré-histórica. Nós os mais jovens não podemos usá-la porque só conhecemos uma felicidade: o amor, e somente uma virtude: a confiança.
Capelas, eu vos invejo por vossos fiéis, pelas vossas paróquias. Centenas de fervorosos vos queixam suas lamentações, centenas de crianças enfeitam com coroas de flores as vossas portas trazendo suas velas. A nossa fé, porém, a crença dos peregrinos é solitária. Os outros com as suas crenças antigas não desejam ser nossos camaradas e é por isso que as correntes do mundo passam ao largo de nossas ilhas.
Ali no prado bem próximo colho flores: prímulas, trevo e ranúnculos, e as deposito na capela. Debaixo do alpendre, sobre uma muralha, me sento, cantarolando a minha fervorosa canção no silêncio da manhã. Meu chapéu deixei em cima do muro marrom e uma borboleta azul acaba de pousar sobre ele. No vale distante ressoa o apito fino de um trem, sobre os arbustos, aqui e acolá, ainda brilha o orvalho.
O DESCANSO
O céu está sorrindo novamente, u m excesso de ar paira sobre tudo. Essa estranha e longínqua terra me pertence de novo, o estrangeiro tornou-se nativo. Debaixo da árvore que fica além do lago será hoje o meu lugar. Já desenhei uma cabana com gado e algumas nuvens também, já escrevi uma carta que não enviarei para ninguém e agora tirarei meu lanche da mochila: o pão, a salsicha, nozes e chocolate.
Aqui bem perto há um bosque de bétulas, eu reparara que o chão estava coberto de gravetos. Sinto ímpetos de fazer uma pequena fogueira, pois gostaria de tê-la como uma companheira para poder sentar-me junto dela. Vou até o bosque e junto uma boa braçada de chamiços, coloco papel por baixo e acendo. A fina fumaça vai subindo, leve e alegre, a chama avermelhada brilha estranhamente à luz do sol de meio-dia.
A salsicha está deliciosa, amanhã vou comprar uma outra igual. Sabe Deus como seria ótimo se eu tivesse aqui comigo algumas castanhas para assá-las ao fogo! Depois do lanche estendo meu casaco sobre a relva, deito a minha cabeça em cima e fico observando como a fumaça do meu pequeno sacrifício vai subindo pelo claro céu adentro. Ainda faltam um pouco de música e festividade no ambiente, então tento relembrar algumas canções de Eichendorff que conheço de cor. Não consigo lembrar-me de muitas, em algumas não me ocorrem certas estrofes, mas baixinho as cantarolo com as melodias de Hugo Wolf e Othmar Schoeck. As mais belas são: Quem Procura pelo Desconhecido e Querido e Fiel Alaúde. Essas canções são cheias de melancolia, mas só como se fossem nuvens passageiras que escondem atrás de si todo o sol e a confiança, e isso é Eichendorff, e é nisso que consegue ultrapassar bem além Moerike e Lenau.
Se a minha mãe agora ainda estivesse viva eu pensaria nela, e tentaria dizer-lhe, confessar-lhe tudo que gostaria de saber sobre mim.
Em vez disso chega para perto de mim uma menina de uns dez anos. Ela tem cabelos pretos, fica observando a minha fogueira, pega uma noz e um pedaço de chocolate e senta-se ao meu lado. Com a seriedade e a dignidade comum nas crianças, conta-me de suas cabras e de seu irmão mais velho. Como somos banais, nós os velhos! Aí, ela precisa partir, ir para casa. Ela tinha vindo aqui trazer a comida para o pai. Obediente e séria se despede e com suas meias de lã vermelhas em seus tamancos segue por seu caminho. Seu nome é Anunziata.
O fogo já se apagou, o sol já se adiantou um bocado, e eu ainda quero hoje andar um bom pedaço. Arrumando e fechando a minha trouxa lembro-me de mais um Eichendorff e de joelhos canto:
Breve e quão breve chegará a paz Então descansarei, sobre mim A bela solidão da floresta há de sussurrar E ninguém mais, nem aqui, me conhecerá.
Pela primeira vez noto que até nessa querida estrofe a melancolia é só a sombra de uma nuvem. Não é nada mais do que a leve música do efêmero, sem a qual o belo não nos comoveria. Ela não é sofrida e eu vou levando-a comigo em minha marcha. Satisfeito vou galgando pela serra acima, lá embaixo o lago profundo, junto de mim um riacho de moinho com suas rodas adormecidas e os castanheiros, e assim vou seguindo pelo sossegado dia adentro.
O LAGO, A ÁRVORE, A MONTANHA
Era uma vez um lago azul sobre o qual, céu azul adentro, erguia-se verde e amarela uma árvore na primavera e além das ondulantes montanhas o céu descansava quieto.
Um viajante estava sentado ao pé da árvore e pétalas amarelas caiam-lhe sobre os ombros. Ele estava cansado e fechara seus olhos, a árvore amarela cobria-o de sonhos.
O viajante retornara á infância, era de novo um menino que ouvia, atrás de sua casa, a mãe a cantar e fitava uma borboleta amarela esvoaçar docemente, era de um amarelo alegre contra aquele céu azul. Então, começou a correr atrás dela pelos prados, pelo riacho até o lago onde em seu voo alto passou por sobre a límpida água. Aí o menino voou atrás dela com um flutuar leve, fácil, novo e feliz dentro daquele espaço azul. O sol brilhava em suas asas e ele sobre o lago, acima das montanhas continuava a voar atrás do amarelo. Lá no alto, pousado numa nuvem, estava Deus rodeado pelos anjos cantando. Um dos anjos lembrava muito sua mãe. Ele segurava um regador, inclinando-o sobre um canteiro de tulipas, para que todos pudessem beber. Foi para junto dele que o menino-anjo voou, abraçando-o.
O viajante esfregara os olhos fechando-os novamente. O menino-anjo trazia uma tulipa vermelha e prendeu-a sobre o busto da mãe, uma outra colocou em seus cabelos, então voaram todos, anjos, borboletas, animais, pássaros e peixes que lá estavam. Quem o menino chamasse para junto de si vinha voando até suas mãos e ficava pertencendo-lhe, deixando acarinhar-se, interrogar e ser mandado embora.
O viajante despertara e pensava nos anjos. Ouvia o leve murmúrio das folhas da árvore e a calma e quieta vida subir e descer em douradas correntes pelo seu caule. A montanha o fitava e lá, coberto num manto marrom, debruçara-se Deus e cantava. Suas canções era possível ouvir por todo lado cristalino do lago, eram singelas, e em surdina misturavam-se ao leve som do correr da seiva da árvore, ao sangue que corria em seu coração, às correntes douradas que o sonho fazia correr pelo seu ser.
Então ele mesmo principiara a cantar, devagar, longamente. Sua canção não tinha arte, era como o próprio ar, como o bater de ondas, soava como o zumbido de uma abelha, mas era a resposta para o Deus distante que cantava, para a seiva que corria pela árvore e para a canção que corria em suas veias.
Longamente, o viajante ficou assim a cantarolar, como o som da campânula ao vento da primavera e do gafanhoto entoando sua música na grama. Talvez tenha cantado toda uma hora ou todo um ano. Cantava
divinamente, com singeleza. Cantava a borboleta, a mãe, a tulipa, o lago, seu sangue e a seiva da árvore.
Quando, distraído, seguiu seu caminho pela quente terra adentro, aos poucos foi se lembrando de sua meta, de seu nome, que era uma terça-feira e que lá, do outro lado, o trem corria para Milão. Agora ele só ouvia ainda um cantar que chegava de longe, do outro lado do lago, era Deus que em seu manto marrom continuava a cantar, mas pouco a pouco o som foi-se perdendo do seu alcance.
CÉU ENCOBERTO
Entre as rochas florescem pequenas ervas anãs. Deitado, olho o crepúsculo e vejo como o céu vai sendo lentamente tomado por pequenas, quietas e confusas nuvens. Lá em cima deve haver ventos que nem sentimos aqui. Vão tecendo as nuvens como se fossem fios.
Como o evaporar e o condensar d'água da terra ocorre dentro de um certo ritmo, da mesma forma que as marés e as estações do ano obedecem seus períodos certos ocasionando suas consequências exatas, assim também transcorre tudo em nosso íntimo segundo certas leis e certo ritmo. Um certo Professor Fliess chegou até a calcular uma certa sequência numérica para determinar a repetição periódica de acontecimentos na vida, parece até Kabbahla, provavelmente é uma ciência Kabbahla. O fato de ser desdenhada pelos professores germânicos pesa bastante a seu favor.
As ondas depressivas em minha vida, que tanto temo, também retornam com certa regularidade. Não me recordo de datas ou de números, pois nunca obedeci a um diário cronológico. Não sei, nem quero saber se o número 23 ou o 27, ou qualquer outro que seja, tenha algo a ver com isso. Só sei que de tempos em tempos, sem motivo plausível, a minha alma é tomada pela depressão. Então aparece uma sombra sobre o mundo como a sombra de uma nuvem. A alegria soa falsa e a música insípida. A tristeza domina e morrer é melhor que viver. De vez em quando, de repente, essa melancolia me domina. Não sei em que intervalos, mas lentamente, cobre meu céu de nuvens. Principia com uma intranquilidade interior antecipada por pressentimentos, medos e provavelmente pesadelos. As pessoas, casas, cores, os tons de que sempre gosto tornam-se duvidosos, parecendo falsos. A música me causa cefaleias, cartas, todas me parecem desgostosas, como se viessem cheias de subentendidos. Nessas horas ser obrigado a conversar com alguém torna-se um suplício e inevitavelmente leva a mal-entendidos. Por causa dessas horas é que não se possui armas de fogo,mas são nessas que mais se sente a falta de uma. Contra tudo sentimos raiva, sofrimento e queixa. Contra os homens, contra os animais, contra o tempo, contra Deus, contra o papel do livro que lemos, contra o tecido da roupa que vestimos. Mas, todo esse ódio, essa impaciência, essa raiva e essa acusação não se dirigem às coisas, são um reflexo de mim mesmo. Sou eu que mereço o ódio, sou eu que trago discórdia e feiura ao mundo. Hoje, descanso de um desses dias. Eu sei que agora posso contar com uma pequena pausa. Hoje sei quão belo é o mundo, que para mim durante horas é infinitamente mais belo do que para qualquer outro, que as cores parecem mais doces, que o ar corre mais alegre e a luz flutua com maior leveza. Também sei que tudo isso pago, exatamente, com esses dias quando a vida é insuportável para mim. Existem bons remédios contra a depressão: a fé,
a canção, fazer música, poesias, beber vinho e andar a pé. É desses remédios que eu vivo, como o eremita que vive de seu breviário. Às vezes tenho a impressão que a balança se desequilibra, que as minhas horas boas tornam-se ainda mais raras, menos boas para poderem compensar as más, porém, às vezes, sinto o contrário, sinto ter feito progressos, que as horas más diminuíram, aumentando-se as boas. O que, porém, não desejo nunca, nem nos piores momentos, é o tolerável e santo equilíbrio, aquele eterno intermediário entre o bom e o ruim. Não e não. De preferência uma curva ainda mais acentuada - o sofrimento ainda maior, mas, em contrapartida, os momentos felizes ainda mais brilhantes!
Aos poucos essa má-vontade vai me deixando e a vida é novamente bela, o céu novamente claro e andar tem novamente sentido. Nesses dias de retorno sinto algo como se fosse um bálsamo, o cansaço sem dor, a resignação sem amargura, o agradecimento sem autocomplacência. Aos poucos, devagar, novamente ascende a linha da vida. Já se entoa o verso de uma canção, colhe-se uma flor, brinca-se com a bengala, em suma ainda se vive, vencemos de novo e venceremos outras e outras vezes mais, talvez ainda muitas vezes. Seria impossível para mim descrever se esse anuviado e pesado céu é que se reflete em minha alma, ou se é vice-versa, que leio nesse céu somente o reflexo do íntimo do meu ser. Às vezes tudo isso me parece confundir-se! Há dias em que tenho certeza de que ninguém consegue perceber com tanta exatidão, fidelidade e precisão as mudanças na atmosfera, nas nuvens, nos tons das cores, nos olores e variações da umidade como eu com essa minha velha e nervosa sensibilidade de poeta e andarilho. Outras vezes, como hoje, duvido que jamais tenha reparado, ouvido ou sentido alguma coisa, que tudo que penso e percebo é só um reflexo do íntimo do meu ser.
CASA VERMELHA
Casa vermelha! De seu pequeno jardim e vinhedo exala todo o sul dos Alpes. Muitas vezes já passei por ti e fizeste tremer essa ânsia de andarilho em meu ser fazendo que se lembrasse do seu oposto. Uma vez mais brinco com as velhas melodias: ter uma pátria, uma pequena casa num verde jardim, silêncio ao redor e mais além a pequena aldeia. No quartinho a minha cama olharia para o amanhecer, a minha própria cama, para o sul olharia a minha mesa e lá eu penduraria a pequena e antiga Virgem Santa que comprara em Bréscia em outra viagem.
Como o dia que fica entre a noite e o amanhecer, assim entre o sonho por uma pátria e essa ânsia de viajante, transcorre a minha vida. Talvez um dia eu chegue até o ponto quando a viagem e a distância se encontrarão em minha alma e então levarei em mim as suas imagens sem ter que realizá-las. Também talvez chegue o dia em que possuirei pátria em mim, então não mais terei que namorar casinhas vermelhas e jardins. Ter uma pátria dentro de si mesmo!
Como seria então outra a vida! Ela teria um epicentro da qual emanariam todas as forças.
Dessa forma, porém, a minha vida não possui epicentro algum, esvoaça trêmula entre diversos polos e contrapelos. Saudade de um lar aqui, saudade de estar a caminho lá, uma ânsia por solidão e retiro aqui, ânsia por amor e comunidade lá! Já fui colecionador de livros e quadros e já me desfiz de tudo. Já cultivei o vício e a volúpia que me levou à castidade e ao ascetismo, cônscio venerei a vida como matéria o que me fez descobri-la só como uma função e poder amá-la.
Bem, mas minha função não é transformar-me, isso é a função do milagre, quem porém o procurar, tentar atraí-lo para junto de si, tentar forçá-lo, desse ele só fugirá. O meu propósito é ficar flutuando entre muitas tensões contraditórias, mas estar pronto para quando o milagre chegar a mim. Meu propósito é estar sempre insatisfeito e sofrer sempre inquietação.
Casa vermelha dentro desse jardim verdejante! Eu já te vivi, não devo desejar viver-te de novo. Já tive pátria uma vez, já construí uma casa, medi tetos e paredes e fiz os caminhos pelo jardim. As paredes enfeitei com os meus próprios quadros. Todo homem possui esse instinto, feliz sou eu de já ter podido viver isso! Muitos dos meus desejos já se realizaram em minha vida: queria ser poeta e consegui, quis possuir uma casa e construí uma, quis ter mulher e filhos e os tive, quis falar aos homens e impressioná-los e consegui, mas cada desejo, rapidamente, transformara-se em saturação e ficar enfastiado eu nunca suportei. Compor poemas ficou para mim suspeito, a minha casa me
tolhia, nenhuma meta alcançada era uma meta, todo caminho era um desvio e todo descanso despertava uma nova nostalgia.
Ainda terei que trilhar muitos desvios e muitas satisfações me decepcionarão, mas algum dia tudo terá um sentido, pois é lá onde os contrastes se apagam que está o Nirvana, dentro de mim porém ainda brilham claras as amadas estrelas da saudade.
O Estudante de Humanidades
DO MEIO das velhas construções muito juntas e das estreitas ruelas da antiga e pequena cidade destacava-se um casarão imenso, com suas numerosas janelas e sua escadaria de degraus já gastos pelo tempo e as botas de várias gerações. Tinha um ar simultaneamente digno e medíocre - e era exatamente isso o que também sentia, a seu próprio respeito, o jovem Karl Bauer, que todas as manhãs e todas as tardes entrava nesse casarão, com a sacola de livros. Aí encontrava ele os prazeres do claro e puro Latim e dos poetas clássicos alemães; aí se debatia com as complexidades do Grego e sofria as humilhantes derrotas da Álgebra, de que no terceiro ano gostava tão pouco quanto no primeiro; além disso, era sempre com deleite que escutava alguns dos velhos e simpáticos professores, de barbas grisalhas, ao passo que sofria, não poucas vezes, nas mãos dos professores mais jovens e impacientes.
Não muito longe do prédio do colégio estava localizada uma antiga mercearia, onde continuamente se via entrar e sair gente que subia e descia os encardidos e úmidos degraus da porta sempre aberta e se espalhava no escuro corredor do armazém, que cheirava a álcool, sebo, petróleo e queijo. Por aí tinha Karl de passar diariamente, pois seu quarto ficava na mansarda dessa casa; como pensionista da mãe do merceeiro, obtivera cama, mesa e roupa lavada a dois passos do colégio.
Assim como era escura e feia a loja, tudo era luminoso e agradável lá em cima; no quarto de Karl brilhava o sol o tempo todo em que permanecesse no céu, e, da janela, avistava-se mais de metade da cidade, cujos telhados ele conhecia como as palmas das mãos e seria capaz de mencionar um por um.
Das muitas coisas boas que com abundância havia na loja, raras eram as que subiam pela íngreme escada ou, pelo menos, nunca chegavam ao prato de Karl Bauer; a mesa da velha Sra. Kusterer não era o que se pudesse chamar farta e o moço nunca conseguiu se levantar satisfeito da mesa. Apesar disso, Karl e a patroa conviviam amigavelmente e o quarto dele pertencia-lhe tanto como a um nobre príncipe o seu castelo. Ninguém o incomodava lá em cima e podia fazer tudo o que quisesse - e Karl fazia muita coisa. Além dos dois abelheiros, de vistosas plumagens, que ele tinha numa gaiola, Karl instalara uma oficina de marceneiro e um forno em que fundia chumbo e estanho; no verão, juntava num caixote, com a abertura vedada com tela de arame, cobras cegas, lagartixas, cobrelos, osgas, que sumiam regularmente, de tempos em tempos, através dos buracos da rede. Karl possuía também um violino e, quando não ha nem trabalhava de marceneiro, que era seu passatempo favorito, então tocava violino a qualquer hora do dia ou da noite.
Assim organizara o jovem estudante seus prazeres domésticos e era difícil que tivesse algum dia aborrecido. Além do mais, não lhe faltavam livros, que ele tomava de empréstimo onde quer que visse algum de interesse. Lia sobre os mais variados assuntos, mas, naturalmente, tinha mais inclinação por uns do que por outros; seus temas prediletos eram as lendas e sagas antigas e os dramas históricos em verso.
Tudo isso, tão nutritivo para o espírito, não era capaz de saciar, porém, a eterna fome de Karl. Por isso, quando ela apertava, descia furtivamente, silencioso e lépido como um jaguapé, os escuros e decrépitos degraus até ao armazém, onde se derramava uma pálida réstia de luz. Não era raro encontrar, sobre os caixotes, um naco de bom queijo, ou uma barrica de arenques cheia até a metade, ou um par de linguiças. Nos dias bons, ou quando Karl, sob o pretexto de dar uma ajuda, entrava decididamente na loja, chegavam aos seus bolsos mãos cheias de ameixas secas, pedaços de pera cristalizada e guloseimas semelhantes. Essas incursões, porém, não as fazia por cupidez gulosa nem com a consciência pesada, mas, em boa parte, com a inocência do faminto e, também em parte, com os sentimentos do bom ladrão, que não sabe o que é ter medo da gente e enfrenta o perigo com o secreto orgulho e a fria generosidade de um Robin Hood. Só que o beneficiário dessas incursões justiceiras era ele próprio. Parecia a Karl estar perfeitamente de acordo com as decentes leis da ordem universal que o que a velha patroa avaramente lhe subtraía às refeições fosse retirado da superabundante câmara de tesouros do filho dela.
Esses hábitos, ocupações e passatempos deviam, ao lado da escola toda-poderosa, bastar, de fato, para encher as horas e os pensamentos do jovem Karl. Entretanto, ele estava muito longe de se considerar satisfeito. Em parte para enciumar e irritar os colegas, em parte como fruto de suas leituras estéticas e ainda em parte porque, nessa época, sentindo pela primeira vez os inebriantes anseios de um coração adolescente, decidiu pisar os sedutores mas ardilosos terrenos das paixões amorosas. E, como já sabia de antemão que, sem esforço concreto e iniciativa, não teria grandes probabilidades de atingir sua meta, abandonou qualquer pretensão de modéstia e dedicou logo suas atenções à mais bela moça da cidade, filha de uma abastada família e que, só pela elegância e finura do trajar, deslumbrava até as demais donzelas de sua idade. Resolvido a cortejá-la, nosso estudante passeava diariamente diante da casa dela e quando a encontrava à janela ou se cruzavam na rua, Karl tirava o chapéu numa vênia tão profunda e respeitosa como nunca fizera ao reitor.
Assim corriam as coisas quando, por mera casualidade, um acontecimento fortuito veio dar novas cores à existência de Karl e abriu um novo portão para sua vida.
Uma noite, no fim do outono, Karl, insatisfeito com a xícara rala de café com leite que lhe coubera como jantar, foi impelido pela fome para mais uma de suas incursões. Deslizou silenciosamente pela escada e passou em revista o armazém. Depois de uma exploração meticulosa, viu um prato de barro com uma grossa fatia de queijo holandês, em sua casca vermelha, um pão escuro cortado ao meio e duas peras-d'água, de tamanho e cor muito sugestivos.
O faminto poderia, com um pequeno esforço, ter adivinhado que essa merenda se destinava ao patrão e ali fora deixada, por instantes, pela criada, chamada a executar alguma tarefa urgente. Mas, no fascínio da inesperada visão, Karl preferiu aceitar a ideia de que com a inocência do faminto e, também em parte, com os sentimentos do bom ladrão, que não sabe o que é ter medo da gente e enfrenta o perigo com o secreto orgulho e a fria generosidade de um Robin Hood. Só que o beneficiário dessas incursões justiceiras era ele próprio. Parecia a Karl estar perfeitamente de acordo com as decentes leis da ordem universal que o que a velha patroa avaramente lhe subtraía às refeições fosse retirado da superabundante câmara de tesouros do filho dela.
Esses hábitos, ocupações e passatempos deviam, ao lado da escola toda-poderosa, bastar, de fato, para encher as horas e os pensamentos do jovem Karl. Entretanto, ele estava muito longe de se considerar satisfeito. Em parte para enciumar e irritar os colegas, em parte como fruto de suas leituras estéticas e ainda em parte porque, nessa época, sentindo pela primeira vez os inebriantes anseios de um coração adolescente, decidiu pisar os sedutores mas ardilosos terrenos das paixões amorosas. E, como já sabia de antemão que, sem esforço concreto e iniciativa, não teria grandes probabilidades de atingir sua meta, abandonou qualquer pretensão de modéstia e dedicou logo suas atenções à mais bela moça da cidade, filha de uma abastada família e que, só pela elegância e finura do trajar, deslumbrava até as demais donzelas de sua idade. Resolvido a cortejá-la, nosso estudante passeava diariamente diante da casa dela e quando a encontrava à janela ou se cruzavam na rua, Karl tirava o chapéu numa vênia tão profunda e respeitosa como nunca fizera ao reitor.
Assim corriam as coisas quando, por mera casualidade, um acontecimento fortuito veio dar novas cores à existência de Karl e abriu um novo portão para sua vida.
Uma noite, no fim do outono, Karl, insatisfeito com a xícara rala de café com leite que lhe coubera como jantar, foi impelido pela fome para mais uma de suas incursões. Deslizou silenciosamente pela escada e passou em revista o armazém. Depois de uma exploração meticulosa, viu um prato de barro com uma grossa fatia de queijo holandês, em sua casca vermelha, um pão escuro cortado ao meio e duas peras-d'água, de tamanho e cor muito sugestivos.
O faminto poderia, com um pequeno esforço, ter adivinhado que essa merenda se destinava ao patrão e ali fora deixada, por instantes, pela criada, chamada a executar alguma tarefa urgente. Mas, no fascínio da inesperada visão, Karl preferiu aceitar a ideia de que um ser benfazejo e caridoso lhe enviara o maná; e, com sentimentos de gratidão, preparou-se para devorá-lo.
Antes de Karl terminar de comer os últimos pedaços, surgiu à porta do armazém a criada Babett, com suas pantufas silenciosas e uma vela na mão, surpreendendo, com olhos arregalados de espanto, o nefando delito. O jovem gatuno ainda tinha o último pedaço de queijo entre a mão e a boca e ficou paralisado, enquanto sentia que tudo desmoronava à sua volta e ele afundava num abismo de vergonha. Assim permaneceram dois imóveis, por alguns minutos, iluminados pela vela bruxuleante. A vida por certo ofereceria ainda ao audacioso estudante muitos momentos dolorosos mas nenhum, com certeza, mais embaraçoso do que esse.
- Mas que coisa! - conseguiu Babett exclamar, por fim, olhando para o malfeitor, murcho como um condenado à forca, - Mas que coisa! - repetiu Babett.
- Tu não sabes que isso é roubo?
- Sei, sim. Claro que sei.
- Meu Deus do Céu! E mesmo assim o fizeste? Como pudeste?
- Estava por aí, Babett, e pensei que...
- Pensaste o que, rapaz?
- Pois como eu estava com fome...
Quando a criada ouviu essas palavras, abriu a boca e encarou o coitado com uma expressão de infinita surpresa e compaixão.
- Passas fome? Então, lá em cima, não te dão bastante de comer?
- Pouco, Babett, muito pouco. E na minha idade, sabes como é...
- Ah, essa não! Pois está bem. Come o resto do queijo, vá! E as peras, já comeste as peras?
- Ainda não. Estão aqui no bolso para comê-las lá em cima.
- Podes levá-las e comê-las. Na cozinha tem mais de tudo, não te preocupes. Mas agora é melhor que subas depressa, antes que apareça alguém e estrague tudo.
Com estranha sensação na garganta, Karl voltou rapidamente ao seu quarto e comeu pensativamente as peras. Depois, sentiu o coração mais leve, respirou aliviado, espreguiçou-se e foi buscar o violino, executando uma balada de agradecimento a que imprimiu um andamento alegro muito vivo. Mal terminava quando alguém bateu à porta, muito de leve. Karl foi abrir e viu diante da porta a boa Babett, que lhe estendia uma enorme fatia de pão branco, generosamente forrada de manteiga.
Apesar de muito o alegrar aquela visão cheirosa e loura, ele quis recusar, gentilmente, mas Babett não permitiu que o cavalheirismo chegasse a tais extremos.
- Toma, rapaz, e não banques agora o virtuoso. Lá embaixo não estavas com essas cerimônias.
Diante de um tão poderoso argumento, Karl aceitou, agradecido.
- Sabes que tocas muito bem o violino? - disse Babett. - Já te ouvi muitas vezes. Quanto à comida, vou me encarregar disso. De noite, poderei sempre trazer alguma coisa, ninguém precisa saber. Ela poderia te alimentar muito melhor, pois sei que teu pai lhe paga uma gorda pensão. Não está certo.
Mais uma vez Karl, timidamente, tentou recusar a ajuda, mas a velha criada não lhe deu ouvidos e ele facilmente se conformou. Por fim, foi estabelecido um acordo: nos dias em que estivesse passando fome, Karl deveria, ao chegar a casa, assoviar na escada a canção Guldne Abendsonne (Poente Dourado) e ela lhe traria comida. Se ele nada assoviasse ou fosse qualquer outra cantiga, era porque estava satisfeito. Comovido e grato, Karl colocou sua mão na dela, áspera e grande, e um aperto de mão selou a santa aliança.
Daí em diante, o jovem estudante desfrutou com emoção e deleite dos cuidados e desveles de um coração feminino como não acontecia desde seus tempos de criança, pois seus pais viviam no campo e muito cedo o haviam colocado numa pensão. Agora revivia esses tempos em casa, pois Babett velava por ele como uma verdadeira mãe, o que, pela sua idade, poderia muito bem ter sido. Ela andava pela casa dos quarenta e era dotada de uma natureza férrea e enérgica; mas a ocasião faz o ladrão e como Babett tinha encontrado, tão inesperadamente, um amigo sensível e agradecido no rapaz, a brandura e desinteressada benevolência despertaram e impuseram-se ao coração inflexível da mulher.
6
Tais sentimentos favoreciam Karl Bauer, que depressa se habituou aos mimos e, como todos os jovens que, em geral, aceitam as coisas que se lhe oferecem como se fossem uma prerrogativa e legítimo direito, o episódio humilhante do armazém depressa foi esquecido e todas as noites se ouvia a Guldne Abendsonne com a maior naturalidade deste mundo.
Apesar de toda a gratidão, talvez a ligação de Karl e Babett não tivesse permanecido tão indestrutivelmente viva se seus benefícios se houvessem limitado apenas às coisas de comer. A mocidade é faminta, mas não é menos apaixonada e as relações com jovens não podem conservar por muito tempo seu calor afetivo na base do queijo e presunto, das frutas e do vinho retirados de um armazém. Outros motivos de interesse tinham de existir para que a volubilidade juvenil não acabassem sobrepujando a dedicação afetiva de Karl pela boa e dedicada Babett.
Ora, a velha Babett não era apenas muito respeitada e indispensável na casa Kusterer, mas também gozava de grande popularidade em toda a vizinhança pela sua imaculada honestidade. Onde ela estivesse presente, tudo se passava de maneira correta e alegre. As vizinhas sabiam disso e gostavam que suas próprias criadas, sobretudo as jovens mais impetuosas, se relacionassem com Babett. A quem esta recomendasse, por gozar de sua amizade mais íntima, era acolhida sem preocupações nas casas de família, pois era opinião geral que Babett vigiava as jovens amigas melhor do que se elas estivessem num pensionato de moças.
Depois das lides diárias e nos domingos à tarde, era raro ver-se Babett sozinha. Estava sempre cercada de uma roda animada de criadinhas mais jovens, para quem ela descobria meios de passar o tempo e, simultaneamente, cumulava de sábios e prudentes conselhos. Organizavam-se jogos, torneios de adivinhação e charadas, cantava-se e quem tivesse noivo ou irmão podia levá-lo. Naturalmente, os noivos apareciam uma vez ou duas, mas logo desertavam, pois não podiam brincar com as moças como queriam na presença de Babett. Aventuras amorosas sem intenções sérias ela não tolerava; se uma de suas protegidas enveredava por esse caminho e não escutava suas sérias advertências, era prontamente excluída do círculo e riscada da lista de recomendações.
Nesse animado grupo foi aceito o estudante de latim e talvez tenha aprendido mais aí do que no colégio. Jamais esqueceria a noite em que teve lugar seu ingresso. Foi no pátio do fundo da casa. As moças estavam sentadas nos degraus e em caixotes vazios; começara a escurecer e, por cima do pátio, via-se um retângulo de céu azul-escuro, donde se desprendia ainda uma claridade suave. Babett sentara-se diante do portão, sobre um pequeno barril, e Karl mantinha-se, timidamente, ao lado dela, encostado a um dos batentes do portão; nada dizia e limitava-se a olhar, na penumbra, os rostos das moças. Ao mesmo tempo, pensava, um tanto inquieto, no que seus colegas diriam se soubessem daquelas reuniões noturnas.
Ah, aqueles rostos de meninas! A quase todas ele já conhecia de vista, mas nunca as vira assim juntas, a meia-luz, completamente diferentes do que eram durante as lides diárias e pousando nele olhares repletos de enigmas. Ainda hoje se lembra do nome de todas, dos traços do rosto fresco e corado, e da história de muitas delas. Que histórias! Quantos golpes do destino, quantos passos impetuosos e, também, quanta inocência encantadora nessa humilde vida de criada!
Ali estava a Anna, que trabalhava na Grunen Baum. Muito novinha ainda, roubara no primeiro emprego e estivera presa um mês num reformatório. Mas, agora, era tida na conta de moça dedicada e honesta e seus amos consideravam-na um verdadeiro tesouro. Era uma das prediletas de Babett. Tinha grandes olhos castanhos, a boca firme e enérgica, e ficava silenciosa em seu lugar, olhando para Karl com uma curiosidade fria. Seu amor que, na época do caso de polícia, a abandonara, tinha casado com outra e já enviuvara. Agora corria atrás de Anna como um desvairado, queria a todo o custo que ela lhe pertencesse, mas a moça resistia, comportava-se como se não quisesse saber mais dele, embora -no íntimo - gostasse tanto do homem viúvo como gostara do solteiro.
Margret, a que trabalhava na oficina do encadernador, estava sempre alegre, cantava e brincava muito, e tinha reflexos de sol nos cabelos ruivos e crespos. Vestia com cores alegres, arranjava um enfeite bonito para acrescentar um toque de graça feminina a suas roupas vistosas, mas modestas, pois nunca lhe sobrava dinheiro para maiores gastos; tudo o que ganhava era enviado ao padrasto, que o gastava em bebida e não tinha sequer uma palavra de agradecimento. Mais tarde, Margret enfrentara uma vida difícil, com um casamento infeliz, terminando por abandonar o marido, mas o infortúnio não lhe quebrou o ânimo de luta e continuava a ser a mesma moça graciosa e bonita, sempre limpa e arrumada. Sorria menos vezes, mas, quando o fazia, seu rosto ficava mais atraente do que nunca.
E assim era a vida de quase todas. Poucas alegrias duradouras, pouco dinheiro e outras coisas agradáveis, em troca de muito trabalho, muitas canseiras e aborrecimentos, mas todas elas, com raras exceções, tinham sabido se defender e permanecer à superfície, corajosas e indestrutíveis lutadoras. E como riam nessas poucas horas de folga, como se alegravam com ninharias, uma piada, uma canção, um punhado de guloseimas, uma fitinha vermelha para os cabelos! Como tremiam emocionadas se lhes contavam uma triste história de amores torturados, ou se alguém cantava uma balada nostálgica de amores infelizes! Todas elas eram suspiros e ais e grandes lágrimas nos olhos bondosos.
Algumas delas eram menos simpáticas e comunicativas. Estavam sempre dispostas a criticar e a fazer mexericos, mas, quando passavam da conta, Babett as repreendia com severidade. Tinham também carregado seu fardo de amarguras e desilusões mas não se conformavam tão facilmente. A Gret, que trabalhava na residência do Bispo, era amais desconsoladamente infeliz. Sofria muito com as injustiças da vida e ainda mais com a sua virtude. Até a associação das moças não lhe parecia suficientemente austera e pura e, se ouvia alguma palavra mais forte, corava, mordia os lábios e dizia: "Ah, o justo tem de sofrer muito neste mundo de pecados!" O sofrimento de Gret mantinha-se inalterado de ano para ano e, embora não dispensasse a companhia de Babett e seu alegre bando, tampouco a convivência a contagiava para encarar a vida com melhores olhos. Bastava que se pusesse a contar as moedas guardadas, a duras penas, em seu mealheiro, para ficar sentimental e chorar como uma Madalena. Duas vezes tivera oportunidade de casar com mestres artesãos que a cortejavam assiduamente, mas em ambas rechaçou os pretendentes: um deles era leviano e mulherengo, o outro tão virtuoso e tão austero que, ao lado dele, Gret, apesar de todos os castos suspiros e do horror ao pecado, quase se sentia uma cortesã indigna, tão santo era o homem.
Ali estavam todas sentadas no pátio escuro, contando umas às outras seus acontecimentos do dia e esperando que a noite lhes trouxesse alguns momentos de sã alegria e divertimento. As palavras e gestos delas não pareceram a Karl, no princípio, inteligentes e espontâneos, mas, assim que o acanhamento desapareceu, sentiram-se mais desembaraçadas e audazes, e o estudante observava o curioso grupo como um quadro insólito, mas rico de substância humana.
- Este aqui - disse Babett - é o senhor estudante de Humanidades que está hospedado lá em casa.
Ela queria logo passar a contar a história da fome de Karl, mas este puxou-lhe a manga, consternado, e Babett emudeceu.
- Então o senhor deve estudar terrivelmente, não é? -perguntou a ruiva Margret. - Em que é que pretende se diplomar?
- Bom, isso ainda não está decidido. Talvez eu siga a carreira de médico.
A resposta provocou um silêncio respeitoso e todas o observaram, muito atentas.
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- Para isso vai ter de deixar crescer primeiro o bigode -comentou Lene, a que trabalhava na casa do farmacêutico.
E todas elas riram, umas discretamente, outras gargalhando, e foi um tiroteio de piadas e gozações, das quais Karl a custo poderia se defender sem a pronta ajuda de Babett para metê-las na ordem. Finalmente, pediram-lhe que contasse uma história. Com tanta coisa que ele tinha lido, não se lembrou senão do conto daquele jovem que saiu de casa para aprender a sentir arrepios. Mal começou, porém, houve nova explosão de risos e piadas.
- Essa já conhecemos há muito tempo! - exclamaram quase em uníssono. E Gret, a que trabalhava na casa do Bispo, acrescentou com desprezo: - Isso é história para crianças.
Karl calou-se, muito encabulado, e Babett falou em seu lugar:
- Da próxima vez ele conta outra. Se vocês vissem como ele tem livros em casa!
Com isso estava ele de acordo e prometeu satisfazê-las completamente no próximo serão.
Enquanto isso, o céu escurecera completamente e, no negrume que cobria o pátio como um dossel, brilhava uma solitária estrela.
- E agora está na hora de se recolherem às suas casas - advertiu Babett.
Elas levantaram-se, sacudiram-se, arrumando as trancas e os aventais, acenaram umas às outras e foram saindo pela porta do fundo do pátio, ou atravessando o corredor e passando pela porta da frente.
Karl Bauer também disse boa-noite e subiu para seu quarto, satisfeito, mas, ao mesmo tempo, dominado por uma estranha sensação de insegurança. Pois, apesar de toda sua prosápia de estudante de Humanidades, não deixara de notar que, naquele grupo, se levava uma vida muito diferente da sua, que quase todas as moças estavam amarradas à vida cotidiana por fortes correntes de amor e desamor, de luta pela sobrevivência num mundo que as tolerava mas não as acolhia como semelhantes; e por detrás dos risos e superficialidades, pressentia em todas uma experiência de vida, um conhecimento de coisas de que ele mal suspeitava e lhe pareciam tão fantásticas como um conto de fadas. E concluiu que valeria a pena investigar, o mais profundamente possível, aquelas criaturas ingênuas, mas às quais a vida cedo impusera um contato com seu lado mais áspero, que Karl apenas vislumbrava em certas poesias primitivas, nos montai e nas canções de soldados. Apesar de tudo, pressentia também que, em muitas coisas, aquele mundo era terrivelmente superior ao seu e temia acabar cedendo à tirania dos
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encantos de alguma daquelas moças, levado pela curiosidade e as inevitáveis inclinações masculinas.
Por enquanto, nada transparecera que o fizesse antever a iminência de semelhante perigo. Aliás, os serões com as criadinhas estavam encurtando cada vez mais, pois o inverno já se anunciava e, embora ainda estivesse ameno, esperava-se de um dia para o outro a primeira nevada. Apesar disso, Karl ainda teve oportunidade de contar a história de Henrique "Pirilampo" e Frederico "Pirilampo" - dois amigos que tinham por missão acender os lampiões de gás das ruas da cidade -que ele lera no Schatzkastlein. A história foi um sucesso e, embora Karl achasse conveniente omitir a moral do conto, Babett adicionou-a por sua conta e risco, fazendo-o com a habilidade e argúcia que as circunstâncias aconselhavam. Com exceção de Gret, todas as moças elogiaram o narrador pelos seus talentos, passando o resto do serão a comentar os episódios principais. No fim, fizeram-no prometer que voltaria a contar a história num futuro próximo. Karl prometeu mas, nos dias seguintes, fez muito frio e era impossível pensar em reuniões ao ar livre. Entrementes, aproximava-se o Natal e, com isso, surgiram outras ideias e motivos de alegria.
De noite, Karl dedicara-se a entalhar uma bonita caixa de tabaco para seu pai, gravando na tampa um pequeno poema em latim, de sua autoria. Mas os versos não queriam sair com aquela nobreza clássica sem a qual um dístico em latim não pode verdadeiramente existir e, desanimado, gravou apenas Bom Proveito, em grandes letras floreadas, e poliu a caixa com cera e pedra-pomes. Dias depois, iniciava ele sua viagem de férias.
Janeiro estava frio e claro, e Karl ia, sempre que tinha uma hora disponível, patinar na pista de gelo. Foi a ocasião em que, um dia, perdeu sua paixão imaginária por aquela bonita moça de família. Seus colegas cortejavam-na assiduamente, aprestando-se a fazer-lhe inúmeros e pequenos serviços de chevalier sewant; e ele bem se apercebia de que a donzela a todos tratava com a mesma altivez, uma delicadeza fria e algo zombeteira, cheia de coquetismo. Karl atreveu-se um dia a convidá-la a patinarem juntos; não corou nem se engasgou, mas, enquanto fazia o convite, seu coração palpitava de incontida ansiedade. Ela colocou sua pequenina mão esquerda, enluvada de pelica macia, na mão direita e vermelha de frio do rapaz, e ambos deslizaram eufóricos pela pista, num divertimento que só era toldado pelas desajeitadas arremetidas de Karl para iniciar uma conversação galante. Finalmente, ela soltou-se, com um leve aceno de cabeça, e, pouco depois, ouviu-a com as amigas, algumas das quais o olhavam maliciosamente pelo canto dos olhos, rindo tão alto e num tom de tanto escárnio, como só o sabem fazer as moças bonitas e muito mimadas, que Karl ficou furioso. Aquela atitude era demais para ele e decidiu, indignado, alhear-se da sua "paixão". Passou a sentir um imenso prazer quando, na pista de gelo ou na rua, se encontrava com a "manhosa", como ele agora a chamava, sem cumprimentá-la.
Com certo exagero, é claro, Karl procurava demonstrar a alegria por ver-se livre dessas algemas indignas saindo de noite com alguns colegas, em busca de aventuras mais inconsequentes. Enquanto estas não aconteciam, entretinham-se a praticar as mais ofensivas molecagens, demonstrando que, apesar de todas suas presunções de pequenos homens, ainda havia neles muito de crianças grandes. Troçavam dos policiais, batiam nas janelas iluminadas dos andares térreos, puxavam sinetas ou prendiam palitos de fósforos nas campainhas elétricas, açulavam os cães de guarda atrás das grades dos jardins particulares, até os animais ficarem exasperados e perturbarem a tranquilidade da noite com um coro de uivos e latidos, e assustavam as moças e senhoras, nas ruas menos movimentadas da cidade, com fogos juninos, estalidos, busca-pés e outros fogos de artifício.
Durante algum tempo, Karl Bauer sentiu-se deliciado com tais aventuras, vividas sob a capa protetora das noites invernais; uma exuberância impulsiva e, simultaneamente, uma ansiosa febre de riscos inéditos traziam-no excitado e insuflavam em seu coração as mais audaciosas esperanças. Embora a ninguém confiasse seus sentimentos, viveu essa época numa espécie de delírio. Quando voltava à sua mansarda, tocava longamente violino ou embebia-se na leitura de fascinantes livros de aventuras, sentindo-se ele próprio um nobre pirata que, regressando de uma de suas arriscadas pilhagens, pendurava a espada, depois de limpa, na parede e repousava numa caverna suavemente iluminada por alguns cavacos de pinho.
Entretanto, como essas incursões noturnas se resumiram, com o decorrer do tempo, à repetição das mesmas travessuras, nunca acontecendo nada das tão esperadas e autênticas aventuras, Karl começou a perder o interesse em tais divertimentos e, aos poucos, foi se afastando da turma, desapontado e até algo envergonhado por participar daquilo que agora rotulava de criancices. Naquela noite em que ele decidira acompanhar pela última vez os colegas e participava das distrações com muito pouca disposição, aconteceu-lhe, porém, um pequeno incidente que muito o chocou e de consequências ainda imprevisíveis.
Os rapazes, que nessa altura eram quatro, passeavam pela Bruhelgasse, fazendo planos para aquela noite. Um deles levava um pincenê de latão sobreposto no nariz e todos tinham o chapéu ou o boné displicentemente jogado para a nuca, numa ostentação de atrevida boêmia. Á€s tantas, passou por eles uma criadinha, caminhando apressada, que levava uma grande cesta pendente do braço pela alça. Pela tampa da cesta saía um pedaço de fita de seda preta, que flutuava alegremente ao sabor do vento. Num gesto impulsivo, Karl Bauer pegou na ponta da fita e segurou-a. Enquanto a moça seguia seu caminho, despreocupadamente, a fita foi-se desenrolando, desenrolando, e os rapazes riam da travessura. Em dado momento, a moça apercebeu-se do fato, voltou a cabeça e, percebendo que riam dela, precipitou-se como um relâmpago na direção dos rapazes que, desprevenidos, continuavam a rir e troçar. Era jovem, muito bonita e loura. Parou diante de Bauer, deu-lhe um tapa sonoro na cara e, apanhando a fita que caíra no chão, afastou-se rapidamente.
Os rapazes passaram a gozar o punido, mas Karl manteve-se calado e na esquina seguinte despediu-se deles e seguiu para casa.
Sentia uma estranha sensação em seu íntimo. A moça, cujo rosto ele só entrevira de relance, na rua meio escura, parecera-lhe muito bonita e meiga, e a bofetada, apesar do vexame, fora mais agradável do que dolorosa. E quando pensava que praticara uma tola molecagem com a frágil e doce criatura, e que esta o consideraria, irritada, um mero palhaço desocupado, então sim, Karl sentia muita vergonha e remorso.
Caminhou vagarosamente para casa e, desta vez, não assobiou na escada a usual canção. Subiu em silêncio e entrou deprimido em seu quarto. Uma boa meia hora ficou ele sentado na escura e fria água-furtada, com a testa encostada à vidraça da janela. Depois, foi buscar o violino e executou uma série de antigas e plangentes canções de sua infância, muitas das quais não tocava havia mais de cinco anos. Pensou em sua irmã, no jardim de sua casa, no velho castanheiro e na roxa três-marias da varanda, e em sua mãe. E quando se deitou, cansado e confuso, Karl, apesar de todo o heroísmo de ma e da busca audaciosa de aventuras intrépidas, começou a chorar baixinho. E continuou a chorar, um pranto suave e silencioso, até adormecer.
Karl granjeara agora, entre os antigos companheiros de digressões noturnas, a fama de medroso e desertor, que nunca mais tomara parte nas aventuras do bando. Em vez disso, preferia passar as noites lendo o Don Carlos, os poemas de Emmanuel Geibel e a Hallig de Biematzki; começou um diário e agora só raramente aceitava os caridosos suprimentos,alimentares da boa Babett.
Babett desconfiou de que alguma coisa estava se passando com o jovem e, como já o tomara sob sua asa protetora, apareceu um dia à porta de seu quarto, para averiguar pessoalmente se havia novidade. Não chegou com as mãos vazias; trouxe um apetitoso pedaço de linguiça e insistiu com Karl para que o comesse imediatamente, à sua vista.
- Ah, deixa para mais tarde, Babett - disse ele. - Logo como, agora não tenho fome.
Ela, porém, era de opinião de que para um jovem toda a hora é hora de comer e não desistiu enquanto Karl não comeu a linguiça. Certa vez ouvira falar da sobrecarga de estudo a que obrigam os alunos do colégio e não sabia se atribuía o ar desalentado do seu protegido ao excesso de trabalho ou a algum outro motivo. De qualquer modo, via nesse extraordinário declínio de apetite um mau presságio de doença e metralhou Karl com uma série de perguntas pormenorizadas sobre sua saúde, se respirava bem, se tinha alguma dor, se estaria com lombrigas e, após alguns conselhos e advertências, quis obrigá-lo a tomar um purgante muito popular e de comprovada eficácia. Neste ponto, Karl teve de rir e explicar que estava em perfeita saúde, que a diminuição do apetite provinha, unicamente, de um desgosto recente. Babett compreendeu imediatamente essa possibilidade, em que não pensara antes.
- Por isso nunca mais te escutei assobiar - disse ela, tentando animá-lo. - Bobagem. Acaso te morreu alguém da família? Acho que andas apaixonado, rapaz!
Karl não pôde evitar um súbito rubor, mas rejeitou com veemência a sugestão, afirmando que necessitava apenas de um pouco de divertimento para espairecer e esquecer tudo.
- Ah, se é só isso - exclamou Babett - tenho aquilo que te convém!
Karl olhou-a, intrigado.
- Como é que sabes o que me convém?
- Amanhã casa a pequena Lies - disse ela, animadamente. -Sabes quem é, não? Aquela lourinha de olhos verdes que trabalha na casa da esquina de baixo. Ela já está comprometida há muito tempo com um operário. Pensando bem, poderia ter arranjado coisa melhor, mas o homem é direito e apenas dinheiro não é o que traz felicidade a ninguém.
- Babett - interrompeu Karl, pacientemente - em que é que o casamento da Lies com o seu operário pode resolver o meu caso, podes me explicar?
- Tens de ir à festa! A Lies já te conhece e todos ficarão contentes se apareceres na boda e demonstrares que não és nenhum moço vaidoso, com vergonha de lidar com pessoas de classe inferior.
- Claro que não sou! - protestou Karl.
- Então vem conosco. A Anna, da Grunen Baum, e a Gret também vêm. De resto, é uma festa íntima, com pouca gente. A Lies e o noivo não têm dinheiro para grandes coisas e vão dar apenas um jantar em casa. Isso não é motivo para que a gente não fique animada, eh?
- Mas eu não fui convidado - respondeu Karl, hesitante, pois as perspectivas não lhe pareciam muito tentadoras.
- Disso me encarrego eu, fica tranquilo. E agora me lembrei de uma coisa. Isso, assim ainda será melhor! Tu levas o violino. Por que não? Ora deixe de desculpas tolas. Levas, sim. Vai animar bastante e todos te ficarão gratos pela ideia.
Não tardou muito para que ele estivesse convencido.
No dia seguinte, ao entardecer, Babett foi apanhá-lo. Trajava um vestido de cerimônia que conservava desde os tempos de moça; estava-lhe muito apertado e obrigava a que seus movimentos fossem forçados, mas a boa mulher mostrava-se nervosa e afogueada de alegria festiva. Não consentiu, porém, que Karl mudasse de roupa; somente um colarinho duro e as botas engraxadas, o que ela mesma se encarregou de fazer, apesar do seu vestido de ir à missa. Depois caminharam juntos para a modesta casa do subúrbio, onde o casal de noivos alugara um quarto com cozinha e despensa. Karl levava o violino.
Andavam devagar e com cuidado, pois na véspera começara o degelo e eles queriam chegar pelo menos sem os pés enlameados. Babett carregava um imenso e sólido guarda-chuva enganchado no braço e suspendia com ambas as mãos a saia do vestido, o que não causava a Karl nenhum prazer especial, pois estava um tanto envergonhado de ser visto na rua na companhia dela.
Na modestíssima sala, caiada de branco, estavam sentadas umas sete ou oito pessoas, além dos recém-casados, em redor de uma mesa de pinho dignamente arrumada e dois colegas do noivo e umas primas e amigas da noiva. A ceia festiva consistia num porco assado com salada e um bolo; no chão, ao lado da mesa, havia dois pequenos barris de cerveja. Quando Babett chegou, escoltada por Karl Bauer, todos se levantaram; o dono da casa fez uma vênia tímida e desgraciosa de quem não está habituado a tais protocolos e a sua jovem esposa, mais desembaraçada, encarregou-se das apresentações e de pôr todo mundo à vontade.
- Sirvam-se, sirvam-se... - disse ela, enquanto o noivo colocava dois copos limpos diante de Babett e Karl, enchendo-os de cerveja.
Como não tivessem acendido ainda a luz, Karl, durante as apresentações, não reconheceu qualquer dos convivas, além de Gret.
Durante as felicitações, e após um sinal de Babett, ele entregou ao noivo uma moeda, embrulhada em papel de seda, ao mesmo tempo em que o cumprimentava. Depois empurraram-lhe uma cadeira e Karl sentou-se diante do seu copo de cerveja.
Nesse instante, notou ele, com um sobressalto de espanto, que tinha a seu lado aquela jovem de quem recebera uma bofetada na Bruhelgasse. A moça, porém, não parecia tê-lo reconhecido e, pelo menos, olhou-o impassível quando ergueu para ele, gentilmente, o seu copo, em resposta à sugestão do noivo para que se fizesse um brinde. Isso acalmou os temores de Karl fazendo-o atrever-se a olhar para a bonita companheira mais abertamente. A verdade é que, ultimamente, o nosso estudante pensava com muita frequência naquele rosto, que vislumbrara apenas por breves instantes e nunca mais voltara a ver, e admirava-se por encontrá-lo diferente da imagem que carregara consigo todo aquele tempo: era mais suave e delicado, um pouco mais magro do que supunha, mas, se possível, ainda mais belo e encantador. E, aparentemente, devia ser da idade dele.
Enquanto os outros, sobretudo Babett e Anna, conversavam alegremente, Karl não sabia o que dizer e mantinha-se calado, girando o copo de cerveja entre os dedos. Mas não tirava os olhos da jovem loura a seu lado. Quando pensava nas vezes em que, na solidão do seu quarto, ansiara por beijar aquela boca e estreitar em seus braços aquele corpo esbelto e flexível, quase se assustava, temendo que seu olhar pudesse trair os sentimentos arrebatados que lhe iam no íntimo. E quanto mais a contemplava, mais difícil e absurdo lhe parecia que pudesse alguma vez concretizar seus anseios.
Deixou-se ficar sentado, silencioso e triste, sem participar da tagarelice geral. Então Babett pediu-lhe que tocasse alguma coisa. Karl fez-se rogar um pouco, mas, depois, retirou o violino da caixa, deu algumas arcadas de ensaio e apertou as cravelhas para afinar o instrumento, e tocou uma conhecida canção que, apesar de num tom alto demais, foi logo acompanhada com brio por todos os presentes.
Com isso foi quebrado o gelo e gerou-se uma alegria barulhenta e comunicativa em torno da mesa. Foi trazido um abajur de pé alto, novinho em folha, com pavio de azeite, que projetou no ambiente da pequena sala uma luz mais reconfortante e íntima. As canções eram agora entoadas umas após outras, veio mais um barril de cerveja e quando Karl Bauer tocou uma das poucas cantigas para dançar que sabia, três pares se enlaçaram imediatamente, começando a rodopiar no acanhado recinto.
Perto das nove horas, os convidados começaram a se retirar. A loura faria o mesmo percurso de Karl e Babett e os três seguiram juntos pela rua. Karl atreveu-se então a encetar conversa com a moça.
- Onde é que está servindo? - perguntou ele, timidamente.
- Na casa do comerciante Kolderer, na Salzgasse. Á‰ a casa da esquina para a praça.
- Ah, é lá?
- Pois é...
- Sim, naturalmente.
Nova e prolongada pausa. Mas Karl ganhou ânimo outra vez.
- Já trabalha há muito tempo aqui?
- Há meio ano.
- Acho que já a vi uma vez...
- Mas eu nunca tinha visto o senhor.
- Uma vez, à noite, na Bruhelgasse. Não se recorda?
- Não. Meu Deus, é impossível lembrar todas as caras com que encontramos na rua! Aliviado, Karl viu confirmado que ela não reconhecera o mole que daquela noite, caso contrário, estava até decidido a rogar-lhe perdão.
Chegaram à esquina da rua onde a moça morava e pararam para as despedidas. Estendeu a mão a Babett e, voltando-se para Karl, disse:
- Boa-noite, senhor estudante. E muito obrigada.
- Obrigada por quê?
- Pela música, foi uma beleza. Então, boa noite. Adeus.
Karl estendeu-lhe a mão quando ela já ia fazer meia-volta e a moça colocou rapidamente a sua na dele. Depois desapareceu.
Quando, ao chegar em casa, se despediu também de Babett, esta perguntou:
- Então, esteve alegre ou não?
- Ah, sim, foi uma festa muito alegre. Achei tudo maravilhoso -respondeu ele, muito feliz.
E estava contente por se despedirem no escuro, pois não gostaria que Babett tivesse visto o sangue quente afluir-lhe ao rosto.
Os dias começaram a ficar mais longos. Dentro em pouco, estariam mais quentes e mais azuis. Nas valas dos caminhos e nas cisternas dos quintais e chácaras, o velho gelo cinzento já rachava e se derretia; e, nas tardes claras, já pairava nos ares um prenuncio inebriante de primavera.
Não tardou que Babett reiniciasse os seus serões no pátio, com as amigas e protegidas, sempre que o tempo permitia. Karl, porém, mantinha-se distante, envolto na sonhadora nuvem de sua paixão secreta. Deixara morrer ao abandono os espécimes de seu viveiro e nunca mais fizera trabalhos de entalhador. Em compensação, adquirira um jogo de halteres, de tamanho e peso exagerados, e com eles fazia ginástica em seu quarto até ficar extenuado. O violino também andava um tanto abandonado.
Três ou quatro vezes encontrou na rua a loura e esbelta criadinha, achando-a cada vez mais bonita e sedutora. Mas não voltara a falar-lhe nem encontrava um motivo plausível para isso.
Então, num domingo à tarde, o primeiro domingo de março, quando ia sair de casa, ouviu no pátio as vozes animadas das criadas reunidas. Com repentina e excitada curiosidade, caminhou até ao portão, que estava apenas encostado, e espreitou por uma fresta. Viu sentadas Gret e a alegre Margret, da oficina de encadernação, e por detrás delas uma cabeça muito loura que, nesse instante, se voltava para o lado onde Karl espiava. Ele reconheceu a moça, a loura Tine, e teve primeiro de recobrar o fôlego, em seu jubiloso sobressalto, antes de poder abrir a porta e acercar-se do grupo, com aparente calma.
- Nós já tínhamos pensado que você talvez achasse agora a nossa companhia indigna demais para um futuro doutor! - exclamou Margret, rindo e estendendo a mão ao recém-chegado. Babett ameaçou-a com o dedo, enquanto cedia o lugar para que o rapaz se sentasse. Elas continuaram tagarelando e Karl, assim que pôde, abandonou o lugar onde estava e pôs-se a caminhar, displicentemente, de um lado para o outro... até parar ao lado de Tine.
- Ah, você também veio? - perguntou ele, baixinho.
- Sim. Por que não haveria de vir? - respondeu Tine. - E pensei que uma vez ou outra você apareceria. Mas por certo os estudos lhe tomam o tempo quase todo.
- Oh, sempre se pode dar um jeito. Juro-lhe que se soubesse que você frequentava agora a roda da Babett não teria faltado um dia sequer!
- Ora, ora... Deixe de gentilezas...
- Mas e pura verdade! Sabe, aquele dia, no casamento, foi maravilhoso e nunca mais pude esquecê-lo.
- Sim, estava muito agradável...
- Porque você estava lá, somente por isso.
- Você está brincando. Não devia me dizer essas coisas.
- Juro que não estou brincando. E não quero que fique zangada comigo.
- Zangada por quê? Você não me ofendeu nem me fez mal algum!
- Tem razão. Mas eu tinha tanto medo de não voltar a vê-la!
- E se isso acontecesse?
- Nem quero pensar A Seria até capaz de me jogar no rio...
- Meu Deus, seria uma pena. Com o tempo frio que tem feito, poderia pegar um resfriado...
- Sim, para você, talvez isso fosse um motivo de riso.
- Não, eu não iria rir, com certeza. Mas você diz coisas que põem a gente de cabeça tonta. Cuidado, senão sou capaz de acreditar.
- Acho que deveria fazê-lo, Tine. Á‰ assim tão difícil?
Nisto, a voz de Gret sobrepôs-se à dele. Contava ela, num tom indignado e estridente, uma longa historia de horrores sobre uma família que tratava a criada miseravelmente, dando-lhe pouca e péssima comida, e quando a pobre moça adoeceu puseram-na na rua, sem mais nem menos. Quando terminou a narrativa, as outras irromperam num coro de protesto, dizendo que tais abusos não podiam mais acontecer e que as autoridades deviam tomar providências para tais desaforos. Outras afirmavam que ninguém faria caso do que acontecera ou deixara de acontecer a uma pobre criada. Até que Babett pediu calma. No calor da discussão, a vizinha mais próxima de Tine colocara-lhe um braço em torno da cintura e Karl Bauer percebeu que teria de desistir por ora de continuar o diálogo.
Até ao final do serão não conseguiu nova abordagem mas aguardou o momento em que, duas horas mais tarde, Margret deu o sinal para a retirada. Já escurecia e a tarde esfriara muito. Ele disse um adeus breve e saiu apressado.
Quando, um quarto de hora depois, próximo de sua casa, Tine se despediu da sua última acompanhante e caminhou um pequeno trecho sozinha, Karl surgiu-lhe pela frente, aparecendo de súbito de trás de um olmeiro, e saudou-a cordialmente.
Ela assustou-se e olhou-o um tanto irritada.
- Credo! O que é que há com você, senhor estudante?
Karl gaguejou e não disse nada que se entendesse. Ela, porém, compreendeu nesse instante o que o atarantado moço queria dizer e também entendeu que as intenções dele eram sérias; viu à sua frente um jovem perdidamente enamorado e condoeu-se, sem que por isso deixasse, naturalmente, de sentir orgulho e alegria pelo triunfo.
- Não faça tolices - aconselhou Tine, meigamente. E quando percebeu que havia lágrimas reprimidas na voz dele, acrescentou: -Conversaremos outra vez, agora preciso voltar para casa. Você não deve ficar assim tão excitado, está bem? Então, até breve!
Dito isso, Tine deu uma corridinha até à porta de casa, acenando alegremente para trás. E Karl afastou-se devagar, devagar, enquanto a penumbra se adensava e convertia em noite fechada. Caminhou por ruas e praças, passou por jardins, muros, fontes sussurrantes, ultrapassou os limites da cidade e penetrou no campo, voltou para a cidade, cruzou a praça maior, seguiu sob as arcadas da Prefeitura e contornou a construção cinzenta da catedral, mas tudo estava mudado a seus olhos, tudo se convertera em paisagem de um desconhecido país de fábula. Estava enamorado! Estava enamorado de uma jovem e dissera-lhe, e ela não só o entendera mas despedira-se com um promissor "até breve"!
Caminhou horas sem rumo, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças para resguardá-las do frio penetrante. E quando virou na esquina da sua rua, levantou a vista e reconheceu o lugar, despertou do sonho e, sem se preocupar com o adiantado da hora, subiu a escada assobiando forte. Só quando entrou na escura água-furtada da casa da viúva Kusterer parou de assobiar e jogou-se, cansado do passeio e das emoções, sobre a cama dura. E adormeceu logo.
Tine, entrementes, ficara refletindo sobre o possível desfecho do caso. Pelo menos, refletia mais no acontecido do que seu apaixonado, que na febre da expectativa e na excitação do momento, não teria com certeza muito tempo nem ânimo para pensar a frio. Quanto mais meditava, mais a moça achava Karl Bauer um belo rapaz e, por mais que procurasse, não lhe encontrava defeitos que o tornassem antipático ou menos digno de confiança. Também para ela era uma deliciosa sensação saber-se amada por um rapaz tão fino e inteligente - e ainda por cima tão puro que se engasgava e ruborizava ao falar com uma moça. Porém, Tine não admitia, em circunstância alguma, que esse devaneio amoroso viesse a converter-se em algo duradouro e sério, o que só poderia acarretar dificuldades para ambos e, em última análise, estaria fadado a não conduzir a uma solução concreta. Onde já se vira um futuro doutor casar com uma simples e modesta criadinha? Os pais jamais consentiriam. E, quem sabe, poderia ela vir ser a causa do rapaz abandonar os estudos e destruir sua carreira? Não, ela teria de arranjar um modo de fazê-lo mudar de ideia, enquanto ainda era tempo.
Entretanto, desagradava-lhe profundamente a ideia de magoar o pobre moço com uma resposta cruel ou, ainda pior, deixá-lo preso de uma dúvida, não lhe dando resposta alguma. Teria preferido aconselhá-lo, meio fraternal ou maternalmente, com bondade e humor. As moças, nessa idade, são mais maduras q sensatas do que os rapazes; e uma criada, então, que tem de lutar na vida pelo seu próprio pão e tomar conhecimento, mesmo contra sua vontade, de tantos dramas e conflitos cotidianos, está bem mais adiantada, em experiência, do que qualquer acadêmico, sobretudo quando ele se apaixona e entrega, rendido, à iniciativa de seus próprios atos e ao critério bastante suspeito do coração.
Durante dois dias, os pensamentos e decisões de Tine oscilaram de um extremo ao outro. Várias vezes chegou à conclusão de que uma recusa clara e seca seria a melhor solução, outras, o seu coração se opunha a isso, embora reconhecesse que não estava apaixonada pelo rapaz mas apenas benevolamente inclinada para ele. Se essa simpatia poderia redundar em algo mais sério, isso ela ainda não sabia e esforçar-se-ia por nunca o saber.
Enfim, aconteceu com a moça o mesmo que, em situações semelhantes, ocorre a muita gente boa: pensou tantas vezes as suas resoluções, comparou tanto umas com as outras, que todas acabaram ficando igualmente gastas e, tudo somado, havia as mesmas dúvidas e hesitações do primeiro dia. Quando chegava o momento de agir, não era capaz de fazer nem dizer uma palavra do que antes meditara e resolvera, e entregava-se inteiramente ao sabor dos acontecimentos, tal qual o próprio Karl Bauer fazia.
Karl encontrou Tine na terceira noite após aquela do esperançoso "até breve". Á€ tarde, a moça fora fazer um serviço nas proximidades da casa, e ao vê-la, Karl perguntou:
- Posso ir contigo?
- Não! Nem pense nisso! Sai na frente e vai para casa. Não quero que nos vejam juntos. Já pensaste no que diriam? Vai, sai.
- Então boa-noite, Tine.
- Boa-noite, senhor estudante - disse já, entre séria e jocosa. - E agora vai!
Karl ainda queria perguntar e pedir muitas coisas, mas, cavalheirescamente, abandonou o portal e seguiu seu caminho, radiante da vida, percorrendo a rua com passo leve, como se o empedrado fosse um gramado macio, e olhos cegos para o que se passava à sua volta. Sua visão era toda interior e a paisagem que via era deslumbrante como a de um luminoso e exótico país nunca sonhado. Quase não tinham falado, é certo, mas ele tivera na sua a mão de Tine e ela acariciara-lhe os cabelos. Isso lhe parecia, por ora, mais do que suficiente e, mesmo anos depois, sempre que pensava nesses breves instantes, a alma enchia-se-lhe de uma felicidade que nenhum outro acontecimento lhe provocava.
Tine, é claro, quando mais tarde refletiu sobre o episódio, não pôde entender como aquilo acontecera. Contudo, sabia bem que Karl estaria nessa noite vivendo sozinho momentos de arrebatada ventura e esperança; tampouco esquecia a timidez quase infantil do rapaz e, finalmente, não achou nada de grave naquele breve encontro. Pelo contrário, tudo se passara com uma pureza de irmãos. Apesar disso, a moça sentia-se responsável, doravante, pela conduta do apaixonado Karl e tencionava deslindar o fio da meada com a maior moderação e segurança possíveis, até conseguir o desfecho certo. Pois a primeira paixão de uma pessoa, por mais deliciosa e sincera que seja, não passa de um rodeio, antes de se descobrir o verdadeiro rumo. Disso tivera ela a experiência, não fazia ainda muito tempo, sofrendo-a no próprio corpo -e com dores. Agora esperava poder ajudar o rapaz a passar o transe sem danos nem sofrimentos desnecessários.
O reencontro seguinte só ocorreria no domingo, na reunião das amigas de Babett. Tine cumprimentou-o amavelmente, acenou-lhe do seu lugar uma ou duas vezes, sorridente, e incluiu-o amiúde em sua conversa com as companheiras. Enfim, de um modo geral, não parecia comportar-se diferentemente das outras vezes. Para Karl, porém, cada sorriso dela era um presente inestimável, cada olhar era uma chama que lhe aquecia a alma, que o envolvia num arrebatamento quase doloroso.
Alguns dias depois chegou, finalmente, a oportunidade de Tine conversar claramente com o rapaz. Era um fim de tarde, após a saída do colégio, e Karl tinha ficado a rondar as vizinhanças da casa dela, o que não agradava a Tine. Ela levou-o então por um pequeno jardim até um depósito de madeiras, atrás da casa, que cheirava a serradura e faia seca. E falou seriamente com ele, proibindo-o, sobretudo, de perseguí-la e ficar! espreitando; e deixou bem claro o que, em sua opinião, devia fazer um jovem apaixonado da classe dele.
- Podes me ver sempre que quiseres na casa de Babett e de lá poderás sempre me acompanhar, se isso te agrada, mas só até onde as outras também forem comigo, não o caminho todo. Andar sozinho comigo não podes e se não te cuidas, se não prestas atenção aos outros e não te dominas, então tudo sairá errado. Essa gente tem os olhos em toda a parte e onde vê fumaça logo grita fogo.
- Sim, Tine, mas eu não sou o teu amor? - disse Karl, num tom choroso.
Ela riu.
- Meu amor! Que quer dizer com isso? Dize isso a Babett, ou ao teu pai, lá em casa, ou aos teus professores, e verás o que te respondem. Gosto muito de ti e não quero parecer injusta, mas antes de seres o meu amor terás de ser o senhor de ti mesmo e comeres teu próprio pão. E até lá ainda vai demorar muito. Por enquanto, és simplesmente um estudante apaixonado e se eu não fosse bem-intencionada contigo nem sequer estaria aqui falando no assunto. Mas não deves ficar triste, que não resolve nada.
- Então, que vou fazer, não me dirás? Não gostas de mim, é isso que queres dizer?
- Oh, pequeno tonto! Não é isso que estamos falando. Só quero que sejas compreensivo e não peças coisas que ainda não se pode ter na sua idade. Podemos ser bons amigos, claro, e dar tempo ao tempo, que tudo se resolve como deve ser.
- Achas que será assim?
- Não é o que eu acho. Á‰ o que te dirão todas as pessoas sensatas. Karl baixou a cabeça, tentando arrumar as ideias.
- Tine... - murmurou por fim. - Eu ainda queria te dizer uma coisa...
- O que é?
- Pois, eu queria... Bom, eu gostaria...
- Então fala!
- Não me queres dar um beijo?
Ela observava o rosto ruborizado, a bonita e fresca boca do rapaz, o ar vacilante com que fizera a pergunta. Por um breve instante, esteve quase prestes a fazer-lhe a vontade. Mas reprimiu-se e sacudiu energicamente a cabeça loura:
- Um beijo? Para quê?
- Para nada. Um beijo é um beijo. Não deves ficar zangada por isso.
- Não estou zangada. Mas tu também não deves ficar folgado. Mal me conheces e já queres me beijar! Com essas coisas não se brinca.
Acaso já estamos comprometidos? Mais tarde voltaremos a falar nisso. Agora fica bonzinho. Domingo nos veremos outra vez e podes levar o teu violino, está bem?
— Sim, com prazer.
Ela o despediu e ficou olhando enquanto ele se afastava, caminhando pensativo e algo desanimado. E Tine disse para si mesma que Karl era um bom rapaz e não merecia ser magoado demais.
Embora os conselhos de Tine fossem para Karl uma dose amarga, ele empenhou-se em respeitá-la e não se deu mal com isso. Se bem que tivesse ideias muito diferentes sobre o que era o amor e ficasse, no princípio, bastante desolado, logo resolveu adotar como sua a velha filosofia de que dar é melhor que receber e amar dá mais felicidade do que ser amado.
Não precisava envergonhar-se disso nem esconder seus sentimentos; ao contrário, estava pronto a reconhecer que, se por enquanto não desfrutava das delícias de uma recompensa, a situação de amor unilateral lhe causava uma sensação de prazer e liberdade que o arrancara ao círculo estreito de sua até então insignificante existência, atirando-o para o mundo superior dos ideais e sentimentos sublimes.
Durante as reuniões de Babett, ele aparecia sempre com o violino e tocava algumas canções.
- Como sabes, Tine, isto é unicamente para ti - dizia-lhe Karl, antes de começar a tocar - pois outra coisa não te posso dar nem fazer por ti...
A primavera chegou, salpicando de pétalas vermelhas e amarelas o tapete dos campos, fazendo regressar a seus antigos ninhos as aves de arribação e coroando o azul profundo das montanhas distantes com o verde-claro das novas folhagens. As donas-de-casa colocavam os vasos com jacintos e geramos nas jardineiras pintadas de verde e de azul, diante das janelas. Depois do almoço os homens dos bairros modestos, em mangas de camisa, vinham sentar-se diante da porta de suas casas, para fazer digestão, e à noite voltavam a jogar boliche ao ar livre. Os jovens, mais inquietos, mais alvoroçados e ruidosos, apaixonavam-se.
Num domingo, que amanhecera num azul suave e ridente, Tine passeava com uma amiga pelo verdejante vale, à beira do rio. Pretendiam ir a passeio até Emanuelsburg, às ruínas de um velho castelo escondido no bosque, distante uma hora da cidade. Mas, quando ainda caminhavam pelos arrabaldes, ouviram música alegre numa chácara e, acercando-se, viram um baile campestre sobre um extenso gramado. Resistindo à tentação, prosseguiram seu caminho, em passo mais vagaroso e hesitante;
e, quando a rua fazia uma curva, escutaram de novo, como um sedutor apelo a seus sentidos, o ritmo embalador da música e a agitação dos dançarinos. Mais alguns passos, ainda mais vagarosos, e, finalmente, encostaram-se na cerca, à beira da rua, incapazes de arredar pé, com os ouvidos e os olhos voltados para a alegre festa.
- Ora - disse a amiga de Tine - o velho Emanuelsburg não irá embora tão cedo!
Com isso se consolaram as duas amigas e, ligeiramente ruborizadas, os olhos no chão, passaram a cerca e entraram no jardim onde, através dos galhos reverdecentes e dos resinosos botões floridos dos castanheiros, o céu parecia ainda mais azul.
Foi uma tarde maravilhosa e quando Tine regressou à cidade, no lusco-fusco, não estava mais sozinha com a amiga. Foi acompanhada por um homem forte e bonito, que a tratava respeitosamente.
Desta vez, a loura Tine encontrara o homem certo. Era um mestre-carpinteiro que não precisava perder tempo à espera de um diploma para se casar. Ela, com algumas hesitações, insinuara a existência de um namoro, mas deu claramente a perceber qual era seu ponto de vista sobre a situação e as vagas perspectivas. O carpinteiro confessou que já a vira algumas vezes, antes desse domingo, que a achava muito desejável para companheira e que, no seu caso, não se tratava de um divertimento amoroso passageiro. Durante uma semana encontraram-se diariamente e, a cada dia que passava, a bela Tine gostava cada vez mais daquele homem; não tardou que discutissem tudo o necessário para o casamento e, daí em diante, consideraram-se e a todos os amigos se anunciaram como noivos.
Depois de alguns dias de excitação, que ela viveu como num sonho, sobre veio-lhe uma alegria calma, quase solene. E nesse tempo esqueceu tudo o que não dizia respeito à sua felicidade futura, inclusive a existência de um pobre estudante chamado Karl Bauer que, nesse ínterim, ficara esperando por Tine em vão.
Quando ela se lembrou do rapaz que desprezara, sentiu tanta pena dele que, no primeiro impulso, pensou esconder-lhe a novidade ainda por mais algum tempo. Mas, por outro lado, não lhe parecia correta essa atitude e quanto mais pensava no assunto mais este lhe parecia difícil. Temia falar francamente com Karl, pois ignorava a reação de que ele seria capaz, mas não via outro caminho senão esse, custasse o que custasse. E só então se apercebia de como fora perigoso o seu bem-intencionado jogo com o pobre moço. Em todo o caso, era preciso tomar uma decisão rápida, antes que, por portas travessas, Karl viesse a tomar conhecimento da nova situação. Tine sabia muito bem que despertara em Karl Bauer, através de uma prelibação de amor, ideias e esperanças infundadas, e que o sentimento de burla poderia causar nele uma decepção capaz de envenenar, no futuro, um prazer de que não conhecera ainda o gosto.
Finalmente, em sua exasperação, Tine decidiu procurar Babett que, velha solteirona, não era a juíza mais indicada para julgar casos de amor. Mas a moça sabia que Babett gostava do estudante de Humanidades e se preocupava com seu bem-estar, e, assim, preferia mu vezes ouvir uma repreensão dela, a ter de se defrontar com o jovem apaixonado e seu ar de desamparado, seus lamentos e choros.
A repreensão veio, é claro. Após ouvir, atenta e calada, toda a história da moça, Babett franziu o cenho e bateu o pé, irritada, recriminando a faltosa com veemente indignação.
- Não me venhas agora com palavras bonitas! - exclamou Babett. - Fizeste dele simplesmente um bobo! - Para ti, Bauer não passou de divertimento, mais nada.
- Brigarmos agora não adianta, Babett. Se fosse apenas por divertimento não teria vindo à tua procura, nem estaria aqui confessando o que fiz. Olha que para mim não tem sido fácil.
- Ah, sim? E agora, o que é que estás imaginando? Quem tem de pagar por isso, hem? Eu, talvez? E quem vai sofrer mais é o rapaz, coitado.
- Eu também sinto muita pena dele. Mas tens razão. Vou falar com ele neste momento e contar-lhe tudo. Não penses que estou querendo me poupar. Quis apenas que ficasse sabendo de tudo para que pudesses ajudá-lo, no caso de vir a sofrer demais, nos próximos dias. Acho que isso podes fazer, não?
- Acaso poderia agir de outro modo? Mocinha tola, talvez aprendas alguma coisa com isso. Quando, por vaidade, se brinca com o destino de outras pessoas, o próprio destino se encarrega de nos dar um merecido castigo. Isso não te faria mal algum...
Desta conversa resultou que Babett ainda nesse mesmo dia promovesse um encontro dos dois jovens, no quintal, sem que Karl soubesse da sua cumplicidade. Foi à tardinha e o retalho de céu sobre o pequeno pátio ardia como uma tênue chama dourada. Mas no recanto junto ao portão já estava escuro e ninguém poderia ver os dois jovens.
- Tenho de te dizer uma coisa - começou Tine. - Tudo chega ao seu fim e hoje teremos de dizer adeus um ao outro.
- Mas... que houve? Por que me dizes isso?
- Porque tenho um noivo.
- Um... noivo?
- Fica calmo e primeiro me escuta, Karl. Gostaste de mim e eu não queria te rejeitar assim sem mais nem menos. Á‰s um bom rapaz e me penalizava a ideia de te causar uma decepção amarga. Mas sempre te disse, bem sabes, que não de vias me considerar o teu amor, não foi? Que ainda era muito cedo para pensarmos nessas coisas.
Karl ficou em silêncio.
- Não foi o que eu disse? - insistiu Tine.
- Sim, foi. E depois?
- Bom, agora temos de acabar e não deves levar o caso muito a sério. A cidade está cheia de moças, eu não sou a única nem a mais certa para ti. Estás acabando os teus estudos, em breve serás um cavalheiro e talvez um doutor.
- Não, Tine, não digas uma coisa dessas!
- Mas é a realidade e não pode ser diferente. Digo-te ainda mais: raramente encontramos o caminho certo quando nos apaixonamos pela primeira vez. Sei o que estou dizendo, Karl. Quando se é muito jovem, não se sabe ao certo o que se quer. Nunca sai coisa boa e, mais tarde, vê-se tudo diferente e reconhece-se o erro.
Karl queria responder, tinha muita coisa para argumentar, mas a emoção embargava-lhe a voz e não conseguia pronunciar palavra.
- Queres dizer alguma coisa? - perguntou Tine.
- Oh, tu nem sabes! Tu nem sabes...
- O que, Karl? O que é que não sei?
- Oh, nada. Tine! E o que farei agora?
- Nada. Vais ficar calmo. Isso não demora muito e depois estarás alegre de novo, te apaixonarás outra vez e ficarás contente por que tudo tenha acontecido assim.
- Tu podes falar, sim, tu falas...
- Eu apenas falo o que está certo e ainda verás que tenho toda a razão, mesmo que, no momento, não queiras acreditar. Sinto muito, Karl, realmente sinto muito.
- Sentes?... Tine... eu não quero dizer nada, pode ser que tenhas razão... mas que tudo tenha de terminar assim, tão de repente... tudo...
Karl não pôde continuar e ela colocou a mão sobre o ombro que tremia, convulsivamente, esperando em silêncio que o choro diminuísse.
- Ouça-me, Karl - voltou ela a falar, decidida. - Agora vais me prometer que te portarás como um rapazinho sensato...
- Eu não quero ser sensato! Eu quero é morrer, preferia estar morto a...
- Karl, não exageres assim! - disse Tine, já um pouco impaciente. - Escuta... não me pediste uma vez um beijo, te lembras?
- Eu sei.
- Então, se ficares agora bonzinho... Karl, eu não quero que no futuro penses mal de mim. Quero me despedir de ti sem mágoas. Se ficares bonzinho, hoje te darei um beijo. Queres?
Ele limitou-se a acenar afirmativamente, olhando-a desesperado. Tine acercou-se dele e deu-lhe um beijo calmo, sem avidez apaixonada, um beijo puro - dado e recebido com pureza. Ao mesmo tempo, pegou na mão do rapaz e apertou-a de leve. Depois, afastou-se rapidamente do portão e saiu.
Karl Bauer ouviu os passos dela pelo corredor até deixarem a casa e soarem na calçada. Ouviu mas pensava em outras coisas.
Pensava naquela noite em que uma loura e bonita criadinha lhe dera um tapa na cara. Pensava naquela noite, no começo da primavera, quando à sombra de um vão de escada, uma mão feminina lhe acariciara os cabelos, e o mundo lhe parecera encantado, e as ruas da cidade haviam ganho formas e cores de um reino fabuloso. Pensava nas melodias que tocara no violino para ela, naquela noite do casamento no subúrbio, com bolo de noiva e cerveja. Até que lhe parecia uma combinação grotesca, mas isso que importava agora? Tinha perdido o seu amor, fora enganado e abandonado. Ela lhe dera um beijo... um beijo! Ah, Tine, Tine!
Cansado, sentou-se num dos muitos caixotes vazios que estavam espalhados pelo pátio. O pequeno retalho de céu pôs-se vermelho, depois cinzento-prateado e, finalmente, apagou-se. Durante muito tempo ficou morto e escuro. Depois, uma tênue claridade anunciou a proximidade da lua. Karl Bauer continuava sentado no caixote, sua sombra alongava-se, negra e deformada, diante dele, sobre o empedrado irregular.
Bauer não chegara a penetrar no reino do amor. Limitara-se a dar-lhe uma espiada rápida, como um espectador que fica do lado de fora da cerca e tenta, na ponta dos pés, ver o que está acontecendo do lado de dentro. Mas isso tinha sido o bastante para que a vida lhe parecesse triste e sem valor, sem o consolo do amor de uma mulher. Seus dias decorriam agora vazios e melancólicos, mantinha-se arredio dos deveres e acontecimentos da vida cotidiana, sem interesse por alguém ou coisa alguma, como se pertencesse a um outro mundo. O professor de Grego desperdiçou com ele algumas sensatas e úteis recomendações, a que ele ficou inteiramente alheio. Os quitutes da dedicada Babett tampouco adiantaram, e suas palavras de consolo e bem-intencionado estímulo passavam por ele sem causar efeito algum.
Uma repreensão muito severa do reitor, acompanhada de uma humilhante pena de reclusão no colégio, foi necessária para reencaminhar o desnorteado rapaz para o trabalho e o são juízo. Reconheceu que seria uma tolice sem nome ser reprovado logo no último ano de colégio, com a universidade a dois passos, depois de ter feito um curso distinto. Assustado, embrenhou-se nos estudos com redobrada fúria, ficando agarrado aos livros até altas horas da noite, cada vez mais curta com a chegada do verão. A exaustão mental foi o começo da cura.
Por vezes, Karl Bauer ainda passava pela Salzgasse, onde Tine vivera e não compreendia por que não a encontrava uma só vez que fosse. Mas havia uma boa razão para essa ausência. Pouco depois de sua última conversa com Karl, ela embarcara para sua terra natal, a fim de preparar o enxoval de noivado. Mas ele acreditava que Tine ainda ali estivesse e apenas fugia dele. Não queria perguntar por ela a ninguém, nem mesmo a Babett. Depois desses passeios, voltava para casa e, segundo estivesse mais irritado ou mais triste, tocava furiosamente violino ou colava a testa no vidro da pequena janela da mansarda e olhava, demoradamente, os telhados que se estendiam, fumegantes, além da cidade.
Apesar de tudo, fazia progressos em sua convalescença, que só Babett percebia. Quando se dava conta de que o rapaz tivera um dia ruim, ela subia e batia à sua porta. Sentava-se demoradamente, sem deixar transparecer que conhecia os motivos de seu sofrimento, e procurava distraí-lo. Jamais mencionava o nome de Tine e tratava de contar-lhe casos engraçados, pedia-lhe que tocasse o violino ou lesse algum conto, e nunca deixava de levar meia garrafa de vinho. Assim passavam uma noite tranquila e, quando se fazia tarde, Babett levantava-se, dizia um maternal "Boa-noite, Bauer" e ainda lhe agradecia a bonita e distraída noite. Ele deitava-se então, mais sossegado, e podia dormir sem sonhos desagradáveis.
Assim, lentamente, ia o doente de amor recobrando seu antigo estado de espírito e alegria juvenil, ignorando que Tine, em suas cartas a Babett, perguntava frequentemente por ele. Karl mostrava-se agora mais másculo e de ideias mais maduras; tinha recuperado nos estudos o tempo perdido e levava quase a mesma vida de um ano antes, só que não reiniciou sua coleção de lagartixas nem a criação de pássaros. As maravilhas da vida universitária absorviam boa parte de seu entusiasmo, sobretudo quando pensava que estava bem próximo de alcançá-las se tudo corresse bem nos exames finais. E já antevia com prazer as próximas férias de verão. Soube por Babett que Tine abandonara a cidade havia muitos meses para tratar do enxoval e se a ferida ainda estava sensível, causando um leve ardor, no fundo já sarara e estava perto de cicatrizar totalmente.
Se nada mais tivesse acontecido, Karl conservaria uma grata recordação do seu primeiro amor e decerto nunca o esqueceria. Mas ainda haveria um breve epílogo, de que ele muito menos poderia se esquecer.
Oito dias antes das férias de verão, a alegre impaciência pela chegada desses meses de ócio e liberdade tinha dominado completamente seu espírito e liquidado as últimas chamas da antiga e incendiaria paixão. Já começara a preparar as malas e a queimar os antigos cadernos escolares. A perspectiva de longas caminhadas pelos bosques, dos banhos no rio e dos passeios de barco, das excursões despreocupadas, colhendo maçãs e framboesas pelos caminhos, descansando à sombra de uma árvore quando o apetecesse, causava-lhe uma excitação alegre como havia muito não sentia. Feliz, percorria as ruas quentes numa euforia inusitada e uma semana já transcorrera sem pensar em Tine. Qual não foi seu espanto quando, ao voltar uma tarde da aula de ginástica, deparou-se de súbito com Tine na Salzgasse. Estacou, estendeu-lhe embaraçado a mão e disse um "Boa-tarde" aflito. Mas, apesar da própria confusão, notou que a moça tinha um semblante perturbado e triste.
- Como vai, Tine? - perguntou Karl, sem saber se deveria dizer tu ou você.
- Nada bem - respondeu ela. - Queres me acompanhar um pouco?
Karl fez meia-volta e pôs-se a caminhar vagarosamente a seu lado, percorrendo a mesma rua onde, outrora, Tine se opusera vivamente a que os vissem juntos. Agora já não tem importância, pensou ele, visto que é uma moça comprometida e eu poderei ser considerado amigo dos noivos. Apenas para puxar assunto, perguntou como ia o noivo dela. Tine fez uma expressão tão dolorosa que Karl também ficou consternado, sem atinar com o que poderia ter havido de errado na inocente pergunta.
- Então ainda não sabes? - disse ela a custo. - Ele está no hospital e ainda não sabemos se poderá ser salvo... Caiu anteontem de um prédio em construção e ainda não recuperou os sentidos.
Continuaram a caminhar em silêncio. Karl procurou em vão alguma palavra consoladora. Parecia-lhe um angustiante pesadelo que, agora, tivesse de caminhar pelas ruas, ao lado de Tine, e de sentir pena dela.
- Onde vais agora? - perguntou ele, por fim, já sem poder suportar mais o pesado silêncio.
- Vou outra vez para o hospital. Esta manhã mandaram-me embora porque não havia autorização para vê-lo. E eu não me senti bem... Talvez agora tenha mais sorte...
Karl acompanhou-a até ao imenso e silencioso hospital, que ficava entre jardins e altas árvores, e entrou com ela no apavorante edifício, cujos cheiros de remédio e desinfetantes o deixaram atemorizado e aflito.
Depois de falar com um enfermeiro, Tine dirigiu-se a uma porta numerada e entrou sozinha. Karl esperou no corredor. Era a sua primeira visita ao hospital e a ideia das inúmeras coisas pavorosas e dos sofrimentos insuportáveis que se escondiam atrás de todas aquelas portas numeradas e pintadas de cinza-claro encheu sua alma de pavor. Mal se atreveu a dar um passo, até a volta de Tine.
- Está um pouco melhor, dizem os médicos, e talvez recupere a consciência ainda hoje - informou ela, num murmúrio. - Agora voltarei lá para dentro. Adeus, Karl, e te agradeço por tudo.
Entrou de novo, suavemente, e fechou a porta, onde Karl leu, distraidamente, pela centésima vez, o número dezessete. Estranhamente excitado, saiu da lúgubre casa. A euforia anterior se apagara nessas poucas horas. Mas o que ele agora sentia não era mais o sofrimento de um antigo amor. Esse foi envolto e abafado por uma sensação muito mais ampla e profunda. Percebeu que seu sofrimento de renúncia era pequeno e ridículo, ao lado da desgraça cuja visão acabara de surpreender, ainda que de relance. E reconheceu também que as suas provações nada tinham de especial nem eram uma exceção dolorosa e insuportável, comparadas com as daqueles que considerara criaturas felizes. O destino se encarrega de desmentir os nossos juízos falsamente seguros.
Mas Karl ainda teria oportunidade de aprender outras e mais importantes coisas. Quando, nos dias seguintes, passou a visitar assiduamente Tine no hospital e, mais tarde, pôde também ver o paciente, imobilizado em seu leito mas já no caminho da recuperação, Karl teve mais uma experiência completamente nova.
Aprendeu ele que também o destino mais inexorável não é o poder máximo e definitivo e que as frágeis, doloridas almas humanas, mesmo sangrando de amargura, podem dominá-lo e vencer. Embora a vida do ferido estivesse salva, ainda os médicos não sabiam se sua sobrevivência seria feita à custa de uma vida condenada à paralisia e à impotência. Mas, apesar dessa terrível ameaça, Karl Bauer via os dois infelizes consolarem-se na riqueza de seu amor, via a moça, cansada e consumida de dolorosas apreensões, permanecer de pé, irradiando luz e alegria à sua volta, e via o rosto emaciado do homem, apesar das dores, transfigurado num brilho de gratidão carinhosa. A visão daquela heroica luta contra o destino deixava Karl profundamente comovido.
As férias já tinham começado havia alguns dias, mas Karl permaneceu ainda na cidade, ate que a própria Tine o obrigou a embarcar.
No corredor do hospital, despediu-se da moça de um modo diferente e mais bonito do que aquela vez, no pátio da loja dos Kusterer. Karl pegou na mão dela e agradeceu-lhe, sem palavras. E Tine acenou-lhe um adeus, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Ele desejava-lhe tudo de bom na vida e, no seu íntimo, não desejava para si mesmo outra coisa do que, um dia, poder amar a ser amado daquela maneira sacrossanta pela qual a pobre moça e seu noivo haviam se unido.
Hermann Hesse
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