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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONTOS INACABADOS / J. R. R. Tolkien
CONTOS INACABADOS / J. R. R. Tolkien

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTOS INACABADOS

 

                     De Tuor e sua chegada a Gondolin

     Rían, esposa de Huor, morava com o povo da Casa de Hador; mas quando chegaram a Dor-lómin rumores das Nirnaeth Arnoediad, e ainda assim ela não recebia notícias do seu senhor, ficou desnorteada e saiu sozinha a vagar nos ermos. Lá teria perecido, não fosse pelos elfos-cinzentos que vieram em seu socorro. Pois havia uma habitação desse povo nas montanhas a oeste do Lago Mithrim; e para lá a conduziram, e lá deu à luz um filho antes do fim do Ano da Lamentação.

     E Rían disse aos elfos: – Que se chame Tuor, pois esse nome seu pai escolheu antes que a guerra se colocasse entre nós. E peço-lhes que o criem e que o mantenham oculto a seus cuidados; pois pressinto que um grande bem, para os elfos e para os homens, dele há de vir. Mas preciso partir em busca de Huor, meu senhor.

     Então os elfos se apiedaram dela; mas um certo Annael, o único daquele povo que fora à guerra e retornara das Nirnaeth, disse-lhe: – Ai, senhora, sabe-se agora que Huor tombou ao lado de seu irmão Húrin; e jaz, creio eu, no grande monte de mortos que os orcs ergueram no campo da batalha.

     Assim, Rían ergueu-se e deixou a morada dos elfos, passou pela terra de Mithrim e finalmente chegou ao Haudh-en-Ndengin no deserto de Anfauglith, e lá se deitou e morreu. Mas os elfos cuidaram do filhinho de Huor, e Tuor cresceu entre eles; e era belo de rosto, e tinha cabelos dourados à maneira da família de seu pai, e se tornou forte, alto e valente; e, sendo criado pelos elfos, não tinha menos saber e habilidade que os príncipes dos edain, antes que a ruína se abatesse sobre o norte.

    

     Com o passar dos anos, porém, a vida do antigo povo de Hithlum, os que ainda permaneciam, elfos ou homens, tornou-se cada vez mais dura e perigosa. Pois, como se relatou em outra parte, Morgoth quebrou os juramentos que fizera aos Orientais que o serviram, negou-lhes as ricas terras de Beleriand que desejavam e expulsou esse povo perverso para Hithlum, com ordens de que lá morassem. E, embora não mais amassem a Morgoth, eles ainda o serviam com temor e odiavam todo o povo dos elfos. Desprezavam o remanescente da Casa de Hador (os velhos, as mulheres e as crianças, em sua maioria), e os oprimiam; casavam-se à força com suas mulheres, tomavam suas terras e seus bens, e escravizavam seus filhos. Os orcs iam e vinham pela terra como queriam, perseguindo os elfos que restavam até os refúgios nas montanhas e levando muitos prisioneiros às minas de Angband, para trabalharem como servos de Morgoth.

     Annael, pois, conduziu seu minguado povo até as cavernas de Androth, e lá levavam uma vida difícil e vigilante, até que Tuor atingiu a idade de dezesseis anos, tendo-se tornado forte e capaz de empunhar armas, o machado e o arco dos elfos-cinzentos; e seu coração inflamou-se ao ouvir a história dos pesares de seu povo, e ele quis partir para vingá-los atacando os orcs e os Orientais. Mas Annael proibiu-o.

     – Creio que muito longe daqui está seu destino, Tuor, filho de Huor – disse. – E esta terra não há de ser libertada da sombra de Morgoth antes que a própria Thangorodrim seja derrubada. Portanto, resolvemos abandoná-la por fim e partir para o sul; e você virá conosco.

     – Mas como havemos de escapar à rede de nossos inimigos? – perguntou Tuor. – Pois a marcha de tanta gente junta certamente será percebida.

     – Nossa marcha não atravessará a terra abertamente – disse Annael – e, se tivermos sorte, chegaremos ao caminho secreto que chamamos Annon-in-Gelydh, o Portão dos Noldor; pois foi feito pela habilidade dessa gente, muito tempo atrás, nos dias de Turgon.

     Ao ouvir esse nome, Tuor agitou-se, apesar de não saber por que; e questionou Annael a respeito de Turgon. – É um filho de Fingolfin – disse Annael – e agora considerado Rei Supremo dos Noldor, desde a queda de Fingon. Pois vive, ainda, o mais temido dos inimigos de Morgoth, e escapou da ruína das Nirnaeth, quando Húrin de Dor-lómin e Huor, seu pai, defenderiam as passagens de Sirion atrás dele.

     – Então irei à busca de Turgon – disse Tuor –, pois não é certo que ele me auxiliará em consideração a meu pai?

     – Isso você não pode fazer – disse Annael. – Pois sua fortaleza está oculta dos olhos dos elfos e dos homens, e não sabemos onde ela se encontra. Alguns dentre os noldor, talvez, saibam o caminho para lá, mas não falam sobre isso com ninguém. Porém, se quiser conversar com eles, venha comigo como lhe peço; pois nos distantes portos do sul poderá encontrar errantes vindos do Reino Oculto.

     Assim foi que os elfos abandonaram as cavernas de Androth, e Tuor seguiu com eles. Mas seus inimigos vigiavam suas habitações, e logo estavam cientes da marcha. Não haviam os elfos avançado muito, das colinas para a planície, quando foram assaltados por grande número de orcs e Orientais, fugindo em debandada na noite que caía. O coração de Tuor inflamou-se com o fogo da batalha, e não quis fugir, mas menino que era empunhou o machado como seu pai fizera antes, e ele por muito tempo manteve seu posto, matando muitos que o atacaram; mas por fim foi dominado e feito prisioneiro, sendo conduzido à presença de Lorgan, o Oriental. Esse Lorgan era considerado chefe dos Orientais e afirmava ter sob seu jugo Dor-lómin inteira como feudo sob as ordens de Morgoth; e tomou Tuor por escravo. Dura e amarga foi sua vida então; pois aprazia a Lorgan dar a Tuor o tratamento mais cruel por pertencer ele à família dos antigos senhores. E Logan buscava quebrar, se possível, o orgulho da Casa de Hador. Mas Tuor agia com sabedoria, e suportava todas as dores e provocações com paciência vigilante. Assim, após algum tempo sua carga foi reduzida um pouco, e ele pelo menos não passava fome como muitos dos infelizes servos de Lorgan. Pois era forte e hábil, e Lorgan alimentava bem suas bestas de carga enquanto eram jovens e conseguiam trabalhar.

     No entanto, após três anos de servidão, Tuor finalmente viu uma chance de escapar. Já havia chegado quase à sua plena estatura, sendo mais alto e mais veloz que qualquer Oriental. E, tendo sido enviado com outros servos a trabalhar na floresta, voltou-se de repente contra os guardas e os matou com um machado antes de fugir para as colinas. Os Orientais o caçaram com cães, mas em vão; pois praticamente todos os sabujos de Lorgan eram seus amigos e o adulavam ao alcançá-lo, voltando depois correndo para casa ao seu comando. Assim ele finalmente voltou às cavernas de Androth e lá viveu sozinho. E durante quatro anos foi um proscrito na terra de seus pais, implacável e solitário; e seu nome era temido, pois costumava sair ao largo e matava muitos dos Orientais com que topava. Então ofereceram um grande prêmio por sua cabeça; mas não ousavam vir a seu esconderijo, mesmo com grande número de homens, pois temiam o povo élfico e evitavam as cavernas onde ele havia morado. Diz-se, porém, que as viagens de Tuor não tinham o propósito de vingança; em verdade buscava ele sempre o Portão dos Noldor, do qual falara Annael. Mas não o encontrava, pois não sabia onde buscá-lo, e os poucos elfos que ainda permaneciam nas montanhas não haviam ouvido falar dele.

     Mas Tuor sabia que, embora ainda favorecido pela sorte, no final os dias de um proscrito estão contados e sempre são poucos e sem esperança. Nem estava ele disposto a viver sempre desse modo, um selvagem nas colinas inóspitas; e seu coração o impelia sempre a grandes feitos. Nisso, diz-se, mostrou-se o poder de Ulmo. Pois ele recolhia notícias de tudo que ocorria em Beleriand, e cada torrente que corria da Terra-média para o Grande Mar era um seu mensageiro, para levar e trazer; e mantinha também a amizade, como outrora, com Círdan e os Armadores nas Fozes do Sirion1. E nessa época Ulmo atentava mais do que tudo para os destinos da Casa de Hador, pois em suas profundas deliberações pretendia que desempenhassem um importante papel em seus desígnios para o auxílio aos Exilados; e bem conhecia ele os apuros de Tuor, pois Annael e muitos de seu povo de fato haviam escapado de Dor-lómin e chegado por fim até Círdan no extremo sul.

    

     Assim aconteceu que, certo dia no início do ano (vinte e três desde as Nirnaeth), Tuor estava sentado junto a uma nascente que brotava perto da entrada da caverna onde habitava; e observava no oeste o pôr-do-sol coberto de nuvens. Sentiu então de repente no coração o desejo de não mais esperar, mas de erguer-se e partir. – Deixarei agora a cinzenta terra de minha família que não mais existe – exclamou – e irei à busca de meu destino! Mas para onde me voltarei? Há muito tempo procuro o Portão sem encontrá-lo.

     Tomou então a harpa que sempre carregava consigo, pois era hábil em tanger suas cordas, e, sem se importar com o perigo de sua clara voz sozinha nos ermos, entoou uma canção élfica do norte destinada a animar os corações. E, à medida que cantava, a nascente a seus pés começou a borbulhar com grande volume de água, transbordou e um regato passou a descer ruidoso pela encosta rochosa à sua frente. E, considerando que ela era um sinal, Tuor ergueu-se de pronto e a seguiu. Assim desceu das altas colinas de Mithrim e saiu para a planície de Dor-lómin ao norte. E a torrente crescia sempre enquanto ele a seguia para o oeste, até que ao final de três dias ele pôde descortinar no Ocidente as longas cristas cinzentas de Ered Lómin, que naquela região avançavam para o norte e para o sul, cercando as distantes costas das Praias Ocidentais. Em todas as suas viagens Tuor jamais chegara àquelas colinas.

     O terreno voltava agora a se tornar mais irregular e pedregoso, à medida que se aproximava das colinas, e logo começou a subir diante dos pés de Tuor, enquanto a torrente seguia por um leito escavado. No entanto, exatamente quando caía o entardecer sombrio no terceiro dia da viagem, Tuor viu diante de si uma parede de rocha, e nela havia uma abertura semelhante a um grande arco; e a torrente por ali entrava e se perdia. Tuor afligiu-se então.

     – E assim sou traído pela minha esperança! O sinal nas colinas só me conduziu a um obscuro fim no meio da terra de meus inimigos. – E, em desalento, sentou-se entre os rochedos na alta margem da torrente, vigilante por toda a noite, amarga e sem fogo; pois era ainda o mês de Súlimë, não chegara nenhum sinal da primavera àquela distante terra setentrional, e soprava um ruidoso vento do leste.

    

     Mas, com a própria luz do sol que se avizinhava brilhando pálida nas distantes névoas de Mithrim, Tuor ouviu vozes, e baixando o olhar, espantado, viu dois elfos que vadeavam a água rasa; e, quando subiram por degraus escavados na margem, Tuor pôs-se de pé e os chamou. Imediatamente sacaram as espadas brilhantes e saltaram em direção a ele. Viu então que portavam mantos cinzentos, mas por baixo usavam cotas de malha; e ficou maravilhado, pois eram mais belos e mais ferozes de aparência, em virtude da luz de seus olhos, do que quaisquer outros que já conhecera do povo élfico. Ergueu-se em toda a sua estatura e esperou por eles; porém, quando viram que ele não empunhara arma mas estava só e os saudava na língua élfica, embainharam as espadas e lhe falaram com cortesia.

     – Gelmir e Arminas somos nós, do povo de Finarfin – disse um deles. – Você não é um dos edain de outrora, que moravam nestas terras antes das Nirnaeth? E de fato creio que seja da família de Hador e Húrin; pois assim o declara o ouro de sua cabeça.

     – Sim, sou Tuor, filho de Huor, filho de Galdor, filho de Hador; mas agora desejo por fim deixar esta terra onde sou proscrito e sem família.

     – Então – disse Gelmir – se quiser escapar e buscar os portos do sul, seus pés já foram dirigidos para o caminho certo.

     – Assim pensei – disse Tuor. – Pois segui uma súbita nascente d’água nas colinas, até que se juntasse a esta torrente traiçoeira. Mas agora não sei para onde me voltar, pois ela desapareceu nas trevas.

     – Pelas trevas pode-se chegar à luz – disse Gelmir.

     – Porém andar-se-á ao sol enquanto for possível – disse Tuor. – Mas, como vocês pertencem a esse povo, digam-me, se puderem, onde fica o Portão dos Noldor. Pois durante muito tempo o busquei, desde que meu pai adotivo Annael, dos elfos-cinzentos, dele me falou.

     Riram-se então os elfos.

     – Sua busca terminou; pois nós mesmos acabamos de passar por esse Portão. Lá está à sua frente! – e apontaram para o arco aonde fluía a água. – Venha agora! Pelas trevas chegará à luz. Nós lhe mostraremos o caminho, mas não podemos guiá-lo longe; pois fomos enviados de volta às terras de onde fugimos, com missão urgente.

     – Mas não tema – disse Gelmir –: um grande destino está escrito sobre sua fronte, e ele o conduzirá para longe destas terras, na verdade para longe da Terra-média, segundo creio.

     Tuor então seguiu os noldor, descendo os degraus e vadeando na água fria, até chegarem às sombras do outro lado do arco de pedra. E então Gelmir tirou uma daquelas lanternas pelas quais eram renomados os noldor; pois haviam sido feitas outrora em Valinor, nem o vento nem a água podiam apagá-las e, quando se removia sua capa, emitiam uma clara luz azul, vinda de uma chama aprisionada em cristal branco2. Agora, à luz que Gelmir suspendia sobre a cabeça, Tuor viu que o rio começava repentinamente a descer por um suave declive, entrando em um grande túnel, mas ao lado de seu curso escavado na rocha havia longas escadarias, que se estendiam em descida para uma treva profunda fora do alcance do facho da lanterna.

    Quando haviam alcançado a base da corredeira, encontravam-se sob uma grande cúpula de pedra, e ali o rio se precipitava em íngreme cascata, com intenso ruído que ecoava na abóbada, para depois mais uma vez passar por um grande arco e entrar em outro túnel. Os noldor se detiveram ao lado da cascata e disseram adeus a Tuor.

     – Agora devemos retornar e seguir nossos caminhos a toda a pressa – disse Gelmir –; pois questões de grande perigo estão em avanço em Beleriand.

     – Chegou então a hora em que Turgon há de se mostrar? – perguntou Tuor.

     Os elfos então olharam para ele com espanto.

     – Esse é um assunto que diz respeito aos noldor, e não aos filhos dos homens – disse Arminas. – O que sabe de Turgon?

     – Pouco – disse Tuor –; exceto que meu pai o ajudou a escapar das Nirnaeth, e que reside em sua fortaleza oculta a esperança dos noldor. Porém, não sei por quê, seu nome sempre agita meu coração e me vem aos lábios. E, se eu pudesse fazer o que desejo, iria em sua busca, em vez de trilhar este escuro caminho de terror. A não ser que, talvez, esta estrada secreta seja o caminho até sua morada?

     – Quem há de dizer? – respondeu o elfo. – Pois, uma vez que a morada de Turgon está escondida, também os caminhos até lá são secretos. Não os conheço, apesar de tê-los buscado por muito tempo. Mas, se os conhecesse, não os revelaria a você, nem a nenhum dentre os homens.

     – No entanto – disse Gelmir –, ouvi dizer que sua Casa tem o favor do Senhor das Águas. E, se o conselho dele o conduzir a Turgon, então certamente a ele você há de chegar, não importa para onde se volte. Siga agora a estrada à qual a água o trouxe, desde as colinas, e não tema! Você não há de caminhar nas trevas por muito tempo. Adeus! E não pense que nosso encontro foi por acaso; pois o Habitante das Profundezas ainda movimenta muitas coisas nesta terra. Anar kaluva tielyanna!

 

     Com essas palavras os noldor deram a volta e retornaram, subindo pela longa escadaria; mas Tuor se manteve imóvel, até que a luz de sua lanterna se perdesse, e ficou sozinho em trevas mais profundas que a noite, em meio aos bramidos da cascata. Então, armando-se de coragem, encostou a mão esquerda na parede de pedra, e avançou tateando, devagar no começo, e depois mais depressa, à medida que se acostumava mais à escuridão e nada encontrava que o impedisse. E depois de muito tempo, conforme lhe pareceu, sentindo-se exausto e no entanto sem querer descansar no negro túnel, enxergou uma luz longínqua à sua frente. Apressando-se chegou a uma fenda alta e estreita e seguiu a ruidosa torrente entre as paredes inclinadas, saindo para um entardecer dourado. Pois havia chegado a uma profunda ravina com paredes altas e escarpadas, que se estendia em linha reta para oeste; e diante dele o sol poente, descendo por um céu límpido, iluminava a ravina e inflamava suas paredes com um fogo amarelo, e as águas do rio reluziam como ouro, quebrando e espumando sobre muitas pedras brilhantes.

     Naquele lugar profundo Tuor foi avançando, maravilhado e com grande esperança, tendo encontrado uma trilha por baixo da parede meridional, onde havia uma praia longa e estreita. E, quando chegou a noite e o rio prosseguiu invisível, a não ser por um brilho de altas estrelas refletidas em poças escuras, ele descansou e dormiu; pois não sentia medo ao lado daquela água onde corria o poder de Ulmo.

     Ao chegar o dia, voltou a avançar sem pressa. O sol erguia-se às suas costas e se punha diante do seu rosto; e lá onde a água espumava entre os rochedos ou se precipitava em súbitas cascatas, pela manhã e ao entardecer teciam-se arco-íris de um lado a outro da torrente. Por esse motivo, chamou aquela ravina de Cirith Ninniach.

     Assim Tuor viajou lentamente por três dias, bebendo a água fria, mas sem desejar comida, embora houvesse muitos peixes que brilhavam como ouro e prata, ou reluziam com cores semelhantes às dos arco-íris na névoa acima. E no quarto dia o canal tornou-se mais largo, e suas paredes mais baixas e menos íngremes; mas o rio corria mais profundo e caudaloso, pois agora altas colinas o acompanhavam de ambos os lados, e delas se derramavam águas frescas no Cirith Ninniach em cascatas cintilantes. Ali Tuor sentou-se por muito tempo, observando a turbulência da torrente e escutando sua voz infindável, até que voltou a noite e as estrelas brilharam frias e brancas na escura faixa de céu lá no alto. Então ele ergueu a voz e tangeu as cordas de sua harpa. E mais alto que o ruído da água o som de sua canção e os doces acordes da harpa ecoavam na pedra e se multiplicavam, saindo a soar nas colinas envoltas no manto da noite, até que toda a região deserta se encontrou repleta de música sob as estrelas. Pois, apesar de não sabê-lo, Tuor havia chegado às Montanhas Ressoantes de Lammoth em torno do Estuário de Drengist. Lá, certa vez no passado distante, Fëanor aportara vindo do mar, e as vozes de seu povo cresceram em poderoso clamor nas costas do norte, antes que a Lua se erguesse.

 

     Com isso Tuor encheu-se de espanto e interrompeu a canção. E aos poucos a música morreu nas colinas, e se fez silêncio. Então, em meio ao silêncio, ele ouviu no ar lá no alto um estranho grito; e não sabia de que criatura provinha tal grito. Ora dizia: – É a voz de um espírito – ora: – Não, é um pequeno animal que geme de dor nos ermos – e depois, escutando-o de novo, disse: – Certamente é o grito de alguma ave noturna que não conheço. – Pareceu-lhe um som triste e, no entanto, desejava escutá-lo e segui-lo, pois ele o chamava não sabia para onde.

     Na manhã seguinte escutou a mesma voz sobre sua cabeça, e erguendo o olhar viu três grandes aves brancas descendo pela ravina contra o vento oeste; e suas fortes asas reluziam ao sol que acabara de nascer. E, ao passarem acima dele, gritavam alto. Assim Tuor divisou pela primeira vez as grandes gaivotas, amadas pelos Teleri. Então ergueu-se para segui-las; e, para melhor perceber aonde voavam, escalou um penhasco à sua esquerda, pôs-se de pé no cimo e sentiu um forte vento vindo do oeste que lhe batia no rosto e fazia seu cabelo tremular. E respirou fundo aquele ar novo, e disse: – Isso eleva o coração como beber vinho fresco! – Mas não sabia ele que o vento vinha direto do Grande Mar.

    

     Tuor então seguiu caminho mais uma vez, buscando as gaivotas, altas sobre o rio; e, à medida que andava, as margens da ravina voltaram a se aproximar, e ele chegou a um canal estreito, e este estava repleto de grande ruído d’água. E baixando os olhos Tuor viu algo que lhe pareceu um extremo assombro; pois uma maré incontrolável subia pelo estreito e lutava contra o rio que ainda desejava prosseguir; e uma onda se ergueu como uma parede, chegando quase ao topo do penhasco, coroada de cristas de espuma voando ao vento. O rio foi então forçado a recuar, e a maré entrou, subindo o canal com um rugido, afogando-o em águas profundas, e o rolar das pedras era como trovão à medida que ela passava. Assim, pelo chamado das aves marinhas, Tuor foi salvo da morte na maré enchente; e esta era imensa por causa da estação do ano e do forte vento vindo do mar.

     Mas Tuor agora estava amedrontado com a fúria das águas estranhas, mudou de direção desfiando-se para o sul e assim não chegou às longas praias do Estuário de Drengist, mas passou ainda alguns dias vagando em uma região acidentada, desprovida de árvores. Era varrida por um vento do mar, e tudo que lá crescia, capim ou touceira, inclinava-se sempre para o nascente por causa da preponderância daquele vento oeste. Dessa forma Tuor cruzou as fronteiras de Nevrast, onde outrora habitara Turgon; e por fim, desprevenido (pois os topos dos penhascos na beira daquela região eram mais altos que as encostas que levavam a eles), chegou de repente à negra borda da Terra-média, e divisou o Grande Mar, Belegaer, o Sem Margens. E naquela hora o sol se pôs além da beirada do mundo, como um fogo poderoso; e Tuor estava de pé, sozinho sobre o penhasco, de braços abertos, e um grande anseio lhe encheu o coração. Diz-se que foi o primeiro dos homens a alcançar o Grande Mar, e que ninguém exceto os eldar chegou a sentir mais a fundo a saudade que ele traz.

    

     Tuor demorou-se muitos dias em Nevrast, e isso lhe pareceu bom, pois aquela terra, protegida do norte e do leste por montanhas e próxima ao mar, era mais amena e benfazeja que as planícies de Hithlum. Acostumara-se a viver como caçador, sozinho em regiões inóspitas, e não encontrou ali escassez de alimento; pois a primavera estava em curso em Nevrast, e o ar estava pleno do barulho das aves, tanto as que viviam em multidões nas praias quanto as que apinhavam os pântanos de Linaewen nas partes baixas da região; mas naqueles tempos não se escutava voz de elfos ou homens em todo aquele ermo.

     Tuor chegou às margens do grande lago, mas as águas estavam fora do seu alcance, em virtude dos vastos charcos e dos bosques de caniços, sem qualquer trilha, que existiam a toda a volta; e logo virou-se e retornou à costa, pois o Mar o atraía e Tuor não desejava permanecer muito tempo onde não pudesse ouvir o som de suas ondas. E foi nas terras costeiras que Tuor primeiro encontrou vestígios dos noldor de outrora. Pois entre os altos penhascos escavados pelo mar, ao sul de Drengist, havia muitas baías e enseadas protegidas, com praias de areia branca entre as negras rochas reluzentes, e Tuor muitas vezes encontrou escadas tortuosas, esculpidas na própria pedra, que desciam a esses lugares; e na margem da água havia cais em ruínas, construídos com grandes blocos retirados dos penhascos, onde outrora navios élficos haviam atracado. Naquelas partes Tuor muito se demorou, observando o mar sempre cambiante, enquanto o ano se estendia preguiçoso pela primavera e pelo verão, as trevas se aprofundavam em Beleriand, e o outono do destino de Nargothrond se aproximava.

     E talvez as aves tenham visto de longe o cruel inverno que estava por vir5; pois aquelas que costumavam ir para o sul se agruparam para partir cedo, e outras, que normalmente viviam no norte, vieram de seus lares para Nevrast. E certo dia, quando Tuor estava sentado à praia, ouviu a batida e o uivo de grandes asas, e, erguendo os olhos, viu sete cisnes brancos voando velozes para o sul, em formação de cunha. Quando passaram acima dele, porém, fizeram uma curva e mergulharam repentinamente, pousando com grande impacto e redemoinho na água.

     Acontece que Tuor amava os cisnes, que conhecera nos lagos cinzentos de Mithrim; e ademais o cisne fora o emblema de Annael e de seu povo adotivo. Ergueu-se portanto para saudar as aves, e chamou-as, espantando-se em ver que eram maiores e mais altivas que quaisquer outras da mesma espécie que jamais vira; mas elas bateram as asas e emitiram gritos roucos, como se estivessem irritadas com ele e quisessem expulsá-lo da praia. Então, com grande ruído, ergueram-se de novo da água e voaram acima dele, de modo que o ar das suas asas o atingisse como um vento uivante; e, descrevendo um amplo círculo, subiram às alturas e se foram para o sul.

     – Eis que me chega outro sinal de que me demorei demasiado! – exclamou, então, em voz alta. E imediatamente subiu ao topo do penhasco, e lá divisou os cisnes, ainda girando na altitude. No entanto, quando se voltou para o sul e se pôs a segui-los, eles se afastaram voando velozes.

    

     Tuor, pois, viajou para o sul pelo litoral ao longo de sete dias inteiros, e a cada manhã era despertado pelo bater de asas lá no alto, no amanhecer, e a cada dia os cisnes continuavam voando enquanto ele os seguia. E, à medida que avançava, os grandes penhascos tornaram-se mais baixos, e seus cimos se cobriam com espessa relva florida; e mais para leste havia florestas que amarelavam enquanto findava o ano. Mas diante dele, aproximando-se mais e mais, viu uma linha de grandes morros que lhe barravam o caminho, estendendo-se para oeste até terminarem em um alto monte: uma torre escura e coroada de nuvens, erguida sobre faldas vigorosas acima de um grande cabo verde que entrava mar adentro.

     Esses morros cinzentos eram de fato os contrafortes ocidentais de Ered Wethrin, o muro setentrional de Beleriand, e a montanha era o Monte Taras, a mais ocidental de todas as torres daquela região, cujo topo um marujo divisaria primeiro por sobre as milhas do mar, à medida que se aproximasse das praias mortais. Sob suas longas encostas, em dias passados, Turgon habitara nos salões de Vinyamar, a mais antiga de todas as obras de pedra que os noldor construíram nas terras de seu exílio. Lá se erguia ainda, desolada mas resistente, alta sobre os grandes terraços que se voltavam para o mar. Os anos não a tinham abalado, e os servos de Morgoth a haviam deixado de lado; mas o vento, a chuva e a geada deixaram-lhe marcas, e sobre a cimalha de seus muros e as grandes telhas de seu teto haviam crescido abundantes plantas verdes-acinzentadas que, alimentando-se do ar salgado, se multiplicavam até mesmo nas fendas da pedra nua.

    

     Tuor, pois, chegou às ruínas de uma estrada perdida, passou por morros verdes e pedras inclinadas, e assim chegou, quando o dia terminava, ao antigo palácio e seus pátios altos e varridos pelo vento. Lá não espreitava sombra de medo ou malefício, mas um temor se abateu sobre ele, enquanto pensava nos que lá haviam vivido e desaparecido, sem que ninguém soubesse para onde: a gente altiva, imortal mas condenada, de muito além do Mar. E se voltou e dirigiu o olhar, assim como muitas vezes aquele povo havia voltado os olhos para o rebrilhar das águas inquietas até onde a visão não mais alcançava. Então virou-se outra vez e viu que os cisnes haviam pousado no mais alto terraço e estavam diante da porta oeste da construção. Batiam as asas, e lhe pareceu que o convidavam a entrar. Tuor então subiu a ampla escadaria, agora meio oculta em ervas e plantas, e passou sob o majestoso portal e entrou nas sombras da casa de Turgon, chegando por fim a um salão de altas colunas. Se por fora seu tamanho era impressionante, por dentro agora o palácio parecia a Tuor vasto e maravilhoso, e ele, cheio de reverência, não desejava despertar os ecos do seu vazio. Nada conseguia ver ali, a não ser um alto assento sobre uma plataforma, no extremo leste, e caminhou naquela direção com o maior cuidado possível; mas o som de seus pés ressoava no revestimento do piso como os passos do destino, e os ecos seguiam à sua frente pelos corredores de colunas.

     Quando se pôs diante do grande assento na penumbra, e viu que era esculpido de uma só pedra e trazia inscrições de estranhos sinais, o sol poente alinhou-se com uma alta janela sob a cumeeira oeste, e um facho de luz atingiu a parede à sua frente, rebrilhando como em metal polido. Então Tuor, maravilhado, viu que na parede atrás do trono estavam suspensos um escudo e uma grande cota de malha, um elmo e um montante em sua bainha. A cota reluzia como se fosse feita de prata sem mancha, e o raio do sol a guarnecia de faíscas de ouro. Mas o escudo era de uma forma estranha aos olhos de Tuor, pois era comprido e afilado; e seu campo era azul, em cujo meio estava aplicado um emblema de uma asa branca de cisne. Então Tuor falou, e sua voz ressoou no teto como um desafio.

     – Por este sinal tomo estas armas para mim, e aceito qualquer destino que possam carregar6. – E arriou o escudo, descobrindo-o muito mais leve e manejável do que cria; pois parecia fabricado de madeira, mas guarnecido pela arte dos ferreiros élficos com chapas de metal, fortes e no entanto finas como folhas, que o haviam preservado dos insetos e do tempo.

     Tuor então armou-se com a cota de malha, colocou o elmo sobre a cabeça e cingiu a espada. Negros eram a bainha e o cinto, com fivelas de prata. Armado desta maneira, saiu do salão de Turgon e parou nos altos terraços de Taras à luz vermelha do sol. Ninguém lá havia para vê-lo, a contemplar o oeste, reluzente de prata e ouro, e ele não sabia que naquela hora sua aparência era a de um dos Poderosos do Oeste, apto para ser o pai dos reis dos Reis dos Homens além do Mar, como de fato era seu destino tornar-se7; mas quando Tuor, filho de Huor, se apossou daquelas armas, uma mudança dominou-o e o coração cresceu em seu peito. E, quando desceu das portas, os cisnes lhe fizeram reverência, cada um arrancou uma grande pena das asas e a ofereceu a Tuor deitando os longos pescoços sobre a pedra a seus pés. E ele tomou as sete penas e as pôs no cimo do elmo; e imediatamente os cisnes se ergueram e voaram para o norte ao pôr-do-sol, e Tuor não os viu mais.

    

     Agora Tuor sentia os pés atraídos pela beira-mar, e desceu por longas escadas até uma ampla praia do lado norte de Taras-ness; e, enquanto caminhava, viu que o sol mergulhava em uma grande nuvem negra que se erguia da borda do mar que se escurecia. E fazia frio, e havia uma agitação e um murmúrio como de uma tempestade chegando. E Tuor se deteve na praia, e o sol era como um fogo fumacento por trás da ameaça dos céus; e pareceu-lhe que uma grande onda se levantava ao longe e rolava para a terra, mas o espanto o paralisou e ele lá ficou imóvel. E a onda veio em sua direção, e sobre ela havia uma névoa de sombra. Então subitamente, ao se aproximar, ela se enrolou, arrebentou e se precipitou para a frente em longos braços de espuma; mas onde ela arrebentara achava-se de pé, escuro em contraste com a tempestade nascente, um vulto vivo de grande estatura e majestade.

     Tuor então curvou-se em reverência, pois lhe parecia que contemplava um poderoso rei. Ele usava uma alta coroa como de prata, da qual caíam seus longos cabelos como espuma brilhando no ocaso; e, quando lançou para trás o manto cinzento que pendia sobre ele como uma névoa, eis que trajava uma cota reluzente, justa como as escamas de um peixe enorme, e uma túnica de um verde-escuro que brilhava e tremeluzia com fogo do mar, à medida que ele caminhava devagar em direção à terra. Dessa maneira o Habitante das Profundezas, que os noldor chamam de Ulmo, Senhor das Águas, mostrou-se a Tuor, filho de Huor, da Casa de Hador, defronte de Vinyamar.

     Não pisou na praia, mas falou a Tuor de pé, até os joelhos, no mar sombrio, e então, pela luz de seus olhos e pelo som de sua profunda voz que vinha, segundo parecia, dos fundamentos do mundo, o temor se apoderou de Tuor, e ele se prostrou na areia.

     – Ergue-te, Tuor, filho de Huor! – disse Ulmo. – Não temas minha ira embora eu muito tenha te chamado sem ser escutado; e por fim, partindo, ainda te demoraste na viagem para cá. Na Primavera devias ter estado de pé aqui; mas agora um inverno cruel logo chegará da terra do Inimigo. Precisas aprender a te apressares, e a estrada agradável que te projetei precisa ser mudada. Pois meus conselhos foram desprezados8, um grande mal se arrasta sobre o Vale do Sirion, e já se interpôs uma hoste de adversários entre ti e tua meta.

     – Mas qual é minha meta, Senhor? – perguntou Tuor.

     – Aquilo que teu coração sempre buscou – respondeu Ulmo –: encontrar Turgon e contemplar a cidade oculta. Pois estás assim armado para seres meu mensageiro, nas próprias armas que outrora decretei para ti. Agora, porém, terás de atravessar o perigo sob a sombra. Envolve-te portanto nesta capa, e jamais a ponhas de lado até chegares ao fim da jornada.

     Pareceu então a Tuor que Ulmo partiu seu manto cinzento, e dele lhe lançou um pedaço, que, ao cair sobre ele, era como uma grande capa na qual podia enrolar-se totalmente, dos pés à cabeça.

     – Assim caminharás sob minha sombra – disse Ulmo. – Mas não te detenhas mais; pois nas terras de Anar e nos fogos de Melkor ela não resistirá. Assumirás minha missão?

     – Assumirei, Senhor – disse Tuor.

     – Então porei palavras em tua boca para serem ditas a Turgon – disse Ulmo. – Mas primeiro te instruirei, e ouvirás algumas coisas que nenhum outro homem ouviu, nem mesmo os poderosos entre os eldar. – E Ulmo falou a Tuor de Valinor e seu ocaso, e do Exílio dos noldor, e da Condenação de Mandos, e da ocultação do Reino Abençoado. – Mas vê! – disse – na armadura do Destino (como os Filhos da Terra o chamam) há sempre uma fenda, e nas da Condenação uma brecha, até a plenitude que chamais de Fim. Assim há de ser enquanto eu durar, uma voz secreta que contradiz, e uma luz onde a escuridão foi decretada. Portanto, embora nestes dias de trevas eu pareça me opor à vontade de meus irmãos, os Senhores do Oeste, esse é meu papel entre eles, ao qual fui designado antes que fosse feito o Mundo. No entanto o Destino é forte, e a sombra do Inimigo cresce; e eu diminuo, até que agora na Terra-média me tornei nada mais que um sussurro secreto. As águas que correm para o oeste fenecem, suas fontes estão envenenadas, e meu poder se retrai da terra; pois os elfos e os homens se tornam cegos e surdos para mim por causa do poderio de Melkor. E agora a Maldição de Mandos corre para seu cumprimento, e todas as obras dos noldor hão de perecer, e todas as esperanças que eles construírem hão de se esboroar. Resta apenas a última esperança, a esperança que não buscaram e não prepararam. E essa esperança jaz em ti; pois assim decidi.

     – Então Turgon não há de se opor a Morgoth, como todos os eldar ainda esperam? – perguntou Tuor. – E o que desejas de mim, Senhor, se agora eu chegar até Turgon? Pois apesar de eu querer de fato fazer como fez meu pai, e auxiliar esse rei no que necessitar, ainda assim de pouca valia serei, um homem mortal sozinho, entre tantos e tão valorosos do Alto Povo do Oeste.

     – Se decidi enviar-te, Tuor, filho de Huor, então não creias que tua única espada não vale o envio. Pois o valor dos edain sempre será lembrado pelos elfos à medida que as eras se estenderem, com o assombro de terem dado com tanta generosidade aquela vida da qual tiveram tão pouco na terra. Mas não é apenas por teu valor que te envio, mas sim para trazeres ao mundo uma esperança além da tua visão e uma luz que há de penetrar as trevas.

     E, enquanto Ulmo falava, o murmúrio da tempestade se alçou em grande grito, o vento cresceu, e o céu enegreceu; e o manto do Senhor das Águas drapejava como uma nuvem em vôo.

     – Agora vai – disse Ulmo – para que não te devore o Mar! Pois Ossë obedece à vontade de Mandos, e está irado, sendo servo da Condenação.

     – Conforme comandares – disse Tuor. – Mas, se eu escapar à Condenação, que palavras hei de dizer a Turgon?

     – Se chegares até ele – respondeu Ulmo –, então as palavras hão de surgir em tua mente, e tua boca há de falar como eu falaria. Fala e não temas! E depois faze conforme teu coração e valor te conduzirem. Não te apartes de meu manto, pois assim hás de estar protegido. E te enviarei alguém, a partir da ira de Ossë, e assim hás de ser guiado: sim, o último marujo do último navio que há de buscar o oeste até que se erga a Estrela. Agora retorna à terra!

     Então ouviu-se um estrondo de trovão, e raios iluminaram o mar; e Tuor contemplou Ulmo de pé entre as ondas, como uma torre de prata reluzindo com chamas dardejantes; e exclamou contra o vento:

     – Eu me vou, Senhor! Porém agora meu coração na verdade anseia pelo Mar.

     A estas palavras Ulmo ergueu uma enorme trompa, e nela tocou uma única e poderosa nota, diante da qual o rugido da tempestade era tão-somente um arrepio na superfície de um lago. E ao ouvir aquela nota, sendo envolto e preenchido por ela, pareceu a Tuor que a costa da Terra-média desaparecia, e que ele divisava todas as águas do mundo em uma grande visão: dos veios das terras até as fozes dos rios, e das praias e dos estuários até as profundezas. Enxergou o Grande Mar através de suas regiões inquietas pululando de formas estranhas, até seus abismos sem luz, onde em meio à treva eterna ecoavam vozes terríveis aos ouvidos mortais. Divisou suas planícies imensas com a veloz visão dos Valar, jazendo sem vento sob o olho de Anar, ou rebrilhando sob a Lua com seus cornos, ou erguidas em colinas de ira que arrebentavam nas Ilhas Sombrias9, até que, no limite remoto da visão, e além da contagem das léguas, entreviu uma montanha, erguendo-se além do alcance da sua mente para uma nuvem luminosa, e no seu sopé uma longa arrebentação bruxuleante. E, enquanto se esforçava por escutar o som daquelas ondas longínquas, e por ver mais claramente aquela luz distante, a nota chegou ao fim, e ele estava de pé sob o trovão da tempestade, e raios multifurcados rasgavam o céu lá no alto. E Ulmo se fora, e o mar estava em tumulto, e as selvagens ondas de Ossë quebravam contra as muralhas de Nevrast.

     Tuor então fugiu da fúria do mar e com esforço encaminhou-se de volta aos altos terraços; pois o vento o impelia contra o penhasco, e o pôs de joelhos quando ele saiu no topo. Portanto, para abrigar-se, entrou de novo, no salão escuro e vazio, e passou a noite sentado no assento de pedra de Turgon. As próprias colunas tremiam na violência da tempestade, e pareceu a Tuor que o vento estava pleno de lamentos e gritos selvagens. No entanto, como estava exausto, cochilou algumas vezes, e seu sono foi perturbado por muitos sonhos, dos quais ao despertar nenhum permaneceu na memória, exceto um: uma visão de uma ilha, e em seu meio havia uma montanha escarpada, e atrás dela o sol se punha, e sombras saltavam para o céu; mas acima dela brilhava uma única estrela ofuscante.

     Após esse sonho, Tuor caiu em sono profundo pois, antes que a noite terminasse, a tempestade passou, impelindo as nuvens negras para o leste do mundo. Despertou por fim na luz cinzenta, levantou-se, deixou o alto assento e, ao percorrer o salão sombrio, viu que este estava cheio de aves marinhas que a tempestade espantara para lá. E saiu quando as últimas estrelas desapareciam no oeste diante do dia que chegava. Viu então que as grandes ondas tinham durante a noite subido alto pela terra, e haviam lançado suas cristas sobre os cimos dos penhascos; e algas e pedregulhos haviam sido lançados mesmo sobre os terraços diante das portas. E Tuor olhou para baixo, do terraço inferior, e viu, encostado ao seu muro entre as pedras e os destroços marinhos, um elfo trajando um manto cinza ensopado de água do mar. Estava sentado em silêncio, olhando além da ruína das praias, por sobre os longos dorsos das ondas. Tudo estava quieto, e não se ouvia som algum, exceto o rugido das vagas lá embaixo.

     Enquanto estava ali de pé, fitando o silencioso vulto cinzento, Tuor lembrou-se das palavras de Ulmo, um nome que não aprendera veio-lhe aos lábios, e exclamou em voz alta: – Bem-vindo, Voronwë! Eu o aguardo.

 

     Voltou-se então o elfo, erguendo o olhar, e Tuor enfrentou a visão penetrante dos seus olhos cinza-marinhos, e soube que esse pertencia ao alto povo dos noldor. Mas o temor e o espanto cresceram em seu olhar quando ele viu Tuor de pé, alto sobre a muralha mais acima, trajando seu grande manto como uma sombra de dentro da qual a malha élfica reluzia em seu peito.

     Ficaram assim por um momento, cada um examinando o rosto do outro, e então o elfo se levantou e se inclinou profundamente diante dos pés de Tuor.

     – Quem é você, senhor? – perguntou. – Por muito tempo labutei no mar implacável. Diga-me: ocorreram grandes novas desde que eu pisava a terra firme? A Sombra foi derrotada? O Povo Oculto saiu de seu esconderijo?

     – Não – respondeu Tuor. – A Sombra cresce, e os Ocultos permanecem escondidos.

     Então, por muito tempo, Voronwë o fitou em silêncio – Mas quem é você? – perguntou de novo. – Pois muitos anos atrás minha gente abandonou esta terra, e desde então ninguém morou aqui. E agora percebo que, a despeito dos seus trajes, você não é um deles, como eu cria, e sim da espécie dos homens.

     – Sou – disse Tuor. – E não é você o último marujo do último navio que buscou o oeste desde os Portos de Círdan?

     – Sou – disse o elfo. – Voronwë, filho de Aranwë, eu sou. Mas não compreendo como você conhece meu nome e meu destino.

     – Eu sei, pois o Senhor das Águas falou comigo na tarde passada – respondeu Tuor – e ele disse que o salvaria da ira de Ossë e o enviaria para cá para ser meu guia.

     – Você falou com Ulmo, o Poderoso? – exclamou, então Voronwë com temor e espanto. – Então devem ser grandiosos de fato seu valor e seu destino! Mas aonde haveria de guiá-lo, senhor? Pois em verdade você deve ser um rei dos homens, e muitos devem obedecer à sua palavra.

– Não, sou um servo fugido – disse Tuor – e sou um proscrito sozinho numa terra deserta. Mas tenho um mandado para Turgon, o Rei Oculto. Sabe por qual estrada posso encontrá-lo?

     – Muitos que são proscritos e servos, nestes dias perversos, não nasceram assim – respondeu Voronwë. – Um senhor dos homens, creio, você é por direito. Mas, mesmo que fosse o mais nobre de todo o seu povo, não teria o direito de buscar Turgon, e vã seria sua demanda. Pois, ainda que eu o conduzisse aos seus portões, você não poderia entrar.

     – Não lhe peço para me conduzir além do portão – disse Tuor. – Lá a Condenação há de competir com o Conselho de Ulmo. E, se Turgon não me receber, então minha missão estará encerrada, e a Condenação há de prevalecer. Mas no que tange ao meu direito de buscar Turgon: sou Tuor, filho de Huor, e parente de Húrin, cujos nomes Turgon não esquecerá. E busco também pelo comando de Ulmo. Turgon esquecerá o que ele lhe disse outrora: Lembre-se de que a última esperança dos noldor vem do Mar? Ou, ainda: Quando o perigo estiver próximo, virá alguém de Nevrast para alertá-lo?11 Eu sou aquele que haveria de vir e assim estou portando o traje que foi preparado para mim.

     Tuor espantou-se de se ouvir falar desse modo, pois as palavras de Ulmo a Turgon, quando este partiu de Nevrast, nem ele nem ninguém as conhecia antes, a não ser o Povo Oculto. Portanto Voronwë assombrou-se ainda mais; mas virou-lhe as costas, contemplou o Mar e deu um suspiro.

     – Ai! – disse. – Desejo nunca mais voltar. E muitas vezes jurei, nas profundezas do mar, que se alguma vez voltasse a pôr os pés em terra firme habitaria em tranqüilidade longe da Sombra no norte, perto dos Portos de Círdan ou quem sabe nos belos campos de Nan-tathren, onde a primavera é mais doce do que se pode desejar. Mas se o mal cresceu enquanto eu viajava, e o último perigo se aproxima deles, então tenho de ir ter com meu povo. – Virou-se de volta para Tuor. – Vou conduzi-lo aos portões ocultos – disse –; pois os sábios não contradizem os conselhos de Ulmo.

     – Então iremos juntos, como nos foi aconselhado – disse Tuor. – Mas não se lamente, Voronwë! Pois meu coração lhe diz que sua longa estrada há de conduzi-lo para longe da Sombra, e sua esperança há de retornar ao Mar12.

     – E a sua também – disse Voronwë. – Mas agora devemos afastar-nos dele, e partir com pressa.

     – Sim – disse Tuor. – Mas aonde me conduzirá, e até que distância? Não deveríamos primeiro refletir como viveremos nos ermos, ou, se o caminho for longo, como passaremos o inverno que não oferece abrigo?

     Mas Voronwë nada quis dizer com clareza acerca do caminho.

     – Você conhece a força dos homens – disse. – Quanto a mim, sou um dos noldor, e terá de ser longa a fome e frio o inverno que abaterão um parente daqueles que atravessaram o Gelo Excruciante. Mas como pensa que conseguimos labutar por dias intermináveis nos ermos salgados do mar? Ou você não ouviu falar do pão-de-viagem dos elfos? E ainda conservo aquilo que todos os marujos mantêm até o fim. – Mostrou então, debaixo do manto, uma bolsa selada presa ao cinto. – Nem a água nem as intempéries lhe farão mal enquanto estiver selada. Mas precisamos guardá-la até que a necessidade seja premente; e sem dúvida um proscrito e caçador conseguirá encontrar outros alimentos antes que o ano piore.

     – Talvez – disse Tuor. – Mas não é em todas as terras que se pode caçar com segurança, por muito que a caça seja abundante. E os caçadores se demoram no caminho.

    

     Assim Tuor e Voronwë se aprontaram para partir. Tuor levou consigo o pequeno arco e as flechas que trouxera, além das armas que tirara do salão; mas sua lança, na qual seu nome estava escrito nas runas élficas do norte, ele afixou na parede como sinal de que passara por ali. Voronwë não tinha outra arma além de uma espada curta.

     Antes que o dia tivesse avançado, deixaram a antiga morada de Turgon, e Voronwë conduziu Tuor para longe, a oeste das íngremes encostas de Taras para atravessar o grande cabo. Lá outrora passara a estrada de Nevrast para Brithombar, que agora se tornara uma trilha verde entre antigos diques cobertos de relva. Assim entraram em Beleriand, e na região setentrional do Falas; e voltando-se para o leste buscaram as fraldas escuras de Ered Wethrin, e lá se mantiveram ocultos, descansando até que o dia tivesse terminado no ocaso. Pois, embora Brithombar e Eglarest, as antigas moradias dos Falathrim, ainda estivessem muito distantes, agora lá viviam orcs e toda a terra estava infestada pelos espiões de Morgoth: ele temia os navios de Círdan que às vezes vinham atacar a costa e se uniam às incursões enviadas de Nargothrond.

     Agora, sentados ocultos em seus mantos, como sombras sob as colinas, Tuor e Voronwë muito falaram entre si. E Tuor questionou Voronwë a respeito de Turgon, mas Voronwë pouco contava de tais assuntos, e preferia falar das habitações na Ilha de Balar, e do Lisgardh, a terra dos juncos nas Fozes do Sirion.

     – Lá se multiplicam agora os eldar – disse –, pois um número cada vez maior de ambas as famílias foge para lá por temor de Morgoth, exaustos da guerra. Mas não foi por escolha própria que abandonei minha gente. Pois após a Bragollach e o rompimento do Cerco de Angband, Turgon começou a crer em seu coração que o poderio de Morgoth haveria de se revelar forte demais. Naquele ano enviou os primeiros do seu povo que chegaram a sair por seus portões: apenas alguns, com uma missão secreta. Desceram o Sirion até a costa acima das Fozes, e lá construíram navios. Mas isso de nada lhes valeu, exceto para alcançarem a grande Ilha de Balar e lá estabelecerem moradias solitárias, longe do alcance de Morgoth. Pois os noldor não possuem a arte de construir navios que suportem por muito tempo as ondas de Belegaer, o Grande.13

     “Porém mais tarde, quando ouviu falar da destruição do Falas e do saque dos antigos Portos dos Armadores que estão lá longe à nossa frente, e se disse que Círdan havia salvo um remanescente de seu povo e navegado para o sul até a Baía de Balar, então Turgon voltou a enviar mensageiros. Isso foi há pouco tempo apenas, porém na lembrança parece a porção mais longa de minha vida. Pois eu fui um dos que ele enviou, visto que era jovem em anos entre os eldar. Nasci aqui na Terra-média, na região de Nevrast. Minha mãe pertencia aos elfos-cinzentos do Falas, e era parenta do próprio Círdan – havia muitas uniões entre os povos de Nevrast nos primeiros dias do reinado de Turgon – e tenho o coração marinho da gente de minha mãe. Portanto, fui um dos escolhidos, visto que nossa missão era chegar a Círdan, para buscar seu auxílio na construção de nossos navios, para que alguma mensagem e pedido de ajuda pudesse chegar aos Senhores do Oeste antes que estivesse tudo perdido. Mas me demorei no caminho. Pois eu pouco vira das regiões da Terra-média, e chegamos a Nan-tathren na primavera do ano. Aquela terra é aprazível de encantar o coração, Tuor, como você descobrirá se alguma vez seus pés pisarem as estradas que vão para o sul, descendo o Sirion. Lá está a cura para todos os anseios pelo mar, exceto para aqueles a quem a Condenação não liberta. Lá, Ulmo é apenas servo de Yavanna, e a terra deu vida a uma infinidade de coisas belas que ultrapassa o pensamento dos corações nas duras colinas do norte. Naquela terra o Narog se une ao Sirion, e os dois não mais se apressam, mas seguem largos e silenciosos através de prados cheios de vida; e em toda a volta do rio reluzente há lírios como um bosque em flor, e a relva é repleta de flores, como pedras preciosas, como sinos, como chamas de vermelho e ouro, como uma extensão de estrelas multicoloridas em um firmamento verde. Porém o mais belo de tudo são os salgueiros de Nan-tathren, de um verde-pálido, ou prateados ao vento, e o farfalhar de suas inúmeras folhas é um encanto de música: o dia e a noite passavam palpitando, sem conta, enquanto eu ainda me detinha, submerso em relva até os joelhos, a escutar. Lá fui encantado, e esqueci o Mar em meu coração. Lá vagava, dando nomes a flores novas, ou me deitava sonhando entre os cantos dos pássaros, e o zumbido das abelhas e das moscas; e lá poderia ainda estar deliciado, abandonando toda a minha gente, fossem os navios dos Teleri, fossem as espadas dos noldor, mas meu destino não quis assim. Ou o próprio Senhor das Águas, talvez; pois ele era forte naquela terra.

     “Assim veio ao meu coração a idéia de fazer uma jangada de ramos de salgueiro para navegar no luminoso seio do Sirion. Assim o fiz, e assim fui levado. Pois certo dia, quando estava no meio do rio, veio um vento repentino que me apanhou e me levou da Terra dos Salgueiros, descendo até o Mar. Assim cheguei, último dos mensageiros a Círdan; e, dos sete navios que ele construiu a pedido de Turgon, todos estavam prontos então, exceto um. E, um a um, partiram para o oeste, sem que nenhum tenha voltado desde então, nem qualquer notícia deles tenha sido ouvida.

     “Mas o ar salgado do mar voltou então a reavivar dentro de mim o coração da família de minha mãe; e eu me comprazia nas ondas, aprendendo toda a sabedoria dos navios, como se já estivesse guardada em minha mente. Assim, quando o último navio, o maior de todos, foi concluído, eu estava ansioso por partir, dizendo em pensamento: ‘Se forem verdadeiras as palavras dos noldor, então há no oeste prados aos quais a Terra dos Salgueiros não se pode comparar. Lá nada fenece, nem a Primavera tem fim. E quem sabe até eu, Voronwë, possa chegar lá. E em último caso vagar sobre as águas é muito melhor que a Sombra no norte.’ E eu não sentia medo, pois não existe água que afunde os navios dos Teleri.

     “Mas o Grande Mar é terrível, Tuor, filho de Huor; e odeia os noldor, pois é instrumento da Condenação dos Valar. Reserva coisas piores do que afundar no abismo e assim perecer: abominação, solidão e loucura; terror do vento e tumulto, silêncio e sombras onde toda a esperança se perde e todas as formas vivas desaparecem. E banha muitas costas perversas e estranhas, e muitas ilhas de perigo e medo o infestam. Não entristecerei seu coração, filho da Terra-média, com a história de meus sete anos de labuta no Grande Mar, do norte até o sul, mas nunca ao oeste. Pois este nos está barrado.

     “Por fim, em negro desespero, cansados de todo o mundo, voltamo-nos e fugimos do destino que nos poupara por tanto tempo só para nos golpear com crueldade ainda maior. Pois, no instante em que divisávamos uma montanha de longe, e eu exclamava: ‘Eis que surge Taras, e minha terra natal’, o vento despertou, e grandes nuvens carregadas de trovões subiram do oeste. As ondas então nos caçaram como se tivessem vida, repletas de malignidade, e os raios se abateram sobre nós; e, quando havíamos sido reduzidos a um casco indefeso, as ondas saltaram sobre nós com fúria. Mas, como vê, fui poupado; pois pareceu-me que veio uma onda, maior e no entanto mais tranqüila que todas as demais, que me levou e me ergueu do navio, conduziu-me alto sobre seus ombros e, rolando em direção à terra, lançou-me sobre a relva para então recolher-se, derramando-se de volta penhasco abaixo como uma grande cascata. Não fazia mais de uma hora que eu lá estava sentado quando você topou comigo, ainda atordoado do mar. E ainda sinto o medo dele, e a amarga perda de todos os meus amigos que por tanto tempo e tão longe me acompanharam, além da visão das terras mortais.”

     Voronwë suspirou, e então falou baixinho, como que para si mesmo.

     – Mas eram muito brilhantes as estrelas na margem do mundo, quando às vezes se afastavam as nuvens em torno do oeste. Porém, se vimos apenas nuvens ainda mais remotas, ou divisamos de fato, como afirmaram alguns, as Montanhas dos Pelóri perto das praias perdidas de nosso lar ancestral, isso não sei. Estão longe, muito longe, e ninguém mais das terras mortais há de voltar para lá, segundo creio. – Então Voronwë silenciou; pois chegara a noite e as estrelas brilhavam brancas e frias.

    

     Logo depois Tuor e Voronwë se ergueram, deram as costas ao mar e partiram em sua longa jornada nas trevas; pouco há que contar dela, pois a sombra de Ulmo estava sobre Tuor, e ninguém os viu passar, pelos bosques ou pelas pedras, pelos campos ou pântanos, entre o pôr-do-sol e o amanhecer. Mas iam sempre com cuidado, evitando os caçadores de olhos noturnos de Morgoth, e desistindo dos caminhos trilhados por elfos e homens. Voronwë escolhia a trilha, e Tuor o seguia. Não fazia perguntas vãs, mas reparou muito bem que iam sempre para o leste ao longo da linha das montanhas que cresciam, e nunca se voltavam para o sul, o que lhe causou espanto, pois cria, como quase todos os elfos e homens, que Turgon morava longe das batalhas do norte.

     Lenta foi sua caminhada, na penumbra ou de noite nos ermos sem trilha, e o inverno cruel desceu depressa do reino de Morgoth. A despeito da proteção das colinas, os ventos eram fortes e implacáveis, e logo a neve estava funda sobre os morros, ou rodopiava através das passagens, e caía sobre os bosques de Núath antes que estes perdessem todas as suas folhas murchas. Assim, apesar de terem partido antes de meados de Narquelië, Hísimë chegou com frio cortante forte quando se aproximavam das Fontes do Narog.

     Lá se detiveram no amanhecer cinzento, ao final de uma noite exaustiva; e Voronwë se desesperou, olhando em volta com tristeza e temor. Onde estivera outrora o belo lago de Ivrin em sua grande bacia de pedra escavada pelas águas que caíam, e onde fora em toda a volta uma grota repleta de árvores sob as colinas, ele via agora uma terra profanada e desolada. As árvores estavam queimadas ou desenraizadas; e as margens de pedra do lago estavam rompidas, de modo que as águas de Ivrin se espalhavam e formavam um grande pântano estéril em meio à ruína. Agora tudo era apenas uma confusão de charco congelado, e um odor de decomposição pairava sobre o chão como uma névoa imunda.

     – Ai! O mal chegou mesmo até aqui? – exclamou Voronwë. – Outrora este lugar era distante da ameaça de Angband; mas os dedos de Morgoth tateiam cada vez mais longe.

     – É exatamente como Ulmo me falou – disse Tuor: – As fontes estão envenenadas, e meu poder se retrai das águas da terra.

     – No entanto – disse Voronwë –, aqui esteve uma malignidade com força maior que a dos orcs. O temor permanece neste lugar. – E buscou em torno das bordas do charco, até que subitamente se deteve e exclamou de novo: – Sim, um grande mal! – E acenou para Tuor, e Tuor ao chegar viu uma fenda, como um enorme sulco que se estendia para o sul, e de ambos os lados, ora indistintos, ora solidificados com nitidez pela geada, havia sinais de grandes pés com garras. – Veja! – disse Voronwë, e tinha o rosto pálido de pavor e repugnância. – Não faz muito tempo que esteve aqui o Grande Lagarto de Angband, a mais feroz de todas as criaturas do Inimigo! Já tarda nossa missão para Turgon. Precisamos nos apressar.

    

     Enquanto dizia isto, ouviram um grito no bosque e pararam imóveis como pedras cinzentas, escutando. Mas a voz era uma voz bela, embora repleta de tristeza, e parecia que chamava sempre um nome, como alguém que busca outro que está perdido. E enquanto esperavam veio alguém através das árvores, e viram que era um homem alto, armado, trajado de negro, com uma longa espada desembainhada; e se espantaram, pois a lâmina da espada era também negra, mas as bordas brilhavam luminosas e frias. O pesar estava gravado em seu rosto; e, quando contemplou a ruína de Ivrin, exclamou triste, em alta voz, dizendo: – Ivrin, Faelivrin! Gwindor e Beleg! Aqui certa vez fui curado. Mas agora nunca mais hei de beber o gole da paz.

     Então partiu célere para o norte, como alguém em perseguição, ou em missão de grande pressa, e o ouviram gritar Faelivrin, Finduilas! até que sua voz se perdesse no bosque. Mas não sabiam que Nargothrond havia caído, e que esse era Túrin, filho de Húrin, o Espada-Negra. Assim, apenas por um momento e nunca mais, juntaram-se os caminhos desses parentes, Túrin e Tuor.

   Quando se fora o Espada-Negra, Tuor e Voronwë continuaram um pouco em seu caminho, apesar de ter chegado o dia; pois a lembrança de sua tristeza lhes pesava muito, e não podiam suportar ficar ao lado da profanação de Ivrin. Mas logo procuraram um esconderijo, pois agora toda a região estava plena de um presságio maligno. Dormiram pouco e inquietos; e, com o passar do dia, escureceu e caiu uma grande nevasca; e a noite trouxe um gelo esmagador. Depois disso a neve e o gelo não deram mais descanso, e por cinco meses o Inverno Mortal, lembrado por muito tempo, manteve o norte em seus grilhões. Agora Tuor e Voronwë eram atormentados pelo frio, e temiam ser revelados pela neve aos inimigos caçadores, ou cair em perigos ocultos de modo traiçoeiro. Por nove dias persistiram, de forma cada vez mais lenta e dolorosa, e Voronwë se voltou um pouco para o norte, até que tivessem atravessado as três nascentes do Teiglin; e depois seguiu novamente para o leste, deixando as montanhas, e avançou cauteloso, até passarem o Glithui e chegarem à torrente do Malduin, e ela estava congelada e negra.

     – Cruel é este gelo, e a morte se aproxima de mim, se não de você – disse Tuor então a Voronwë. Pois estavam agora em má situação: fazia tempo que não encontravam alimento nos ermos, e o pão-de-viagem chegava ao fim; e estavam enregelados e exaustos.

     – É terrível ser apanhado entre a Condenação dos Valar e a Malícia do Inimigo – disse Voronwë. – Escapei às bocas do mar apenas para jazer debaixo da neve?

     – Que distância ainda temos que percorrer? – perguntou Tuor. – Pois finalmente, Voronwë, você precisa renunciar ao segredo diante mim. Você está me conduzindo em linha reta, e para onde? Pois, se eu tiver de gastar minhas últimas forças, gostaria de saber para quê.

     – Eu o conduzi tão direto quanto a segurança me permitiu – respondeu Voronwë. – Agora saiba, pois, que Turgon ainda habita no norte da terra dos eldar, apesar de poucos acreditarem nisso. Já estamos nos aproximando dele. No entanto, ainda resta percorrer muitas léguas, mesmo a vôo de pássaro; e ainda precisamos atravessar o Sirion, e quem sabe se não encontraremos um grande mal daqui até lá? Pois logo devemos chegar à Estrada que outrora descia do Minas do Rei Finrod até Nargothrond. Lá sem dúvida os servos do Inimigo caminham e espreitam.

     – Eu me considerava o mais resistente dos homens – disse Tuor – e resisti ao tormento de muitos invernos nas montanhas; mas então eu tinha uma caverna às costas e fogo, e agora duvido que tenha forças para avançar muito mais, assim faminto, em meio a esse tempo feroz. Mas vamos prosseguir até onde conseguirmos antes que a esperança se desfaça.

     – Só nos resta essa escolha – disse Voronwë –, a não ser que nos deitemos aqui e busquemos o sono da neve.

     Portanto, foram em frente, com dificuldade, durante todo aquele dia cruel, considerando menor o perigo dos inimigos que o do inverno; mas, ao prosseguirem, encontraram menos neve, pois agora iam de novo para o sul, descendo ao Vale do Sirion, e as Montanhas de Dor-lómin já estavam muito atrás. Na penumbra cada vez mais densa do anoitecer chegaram à Estrada, no sopé de uma alta encosta coberta de árvores. De repente perceberam vozes e, espreitando cautelosos pelas árvores, viram lá embaixo uma luz vermelha. Uma companhia de orcs estava acampada no meio da estrada, encolhida em torno de uma grande fogueira.

     – Gurth an Glamhoth! – murmurou Tuor. – Agora a espada há de surgir de baixo do manto. Arriscarei a morte para conseguir aquele fogo, e até mesmo a carne dos orcs seria boa presa.

     – Não! – disse Voronwë. – Nesta busca só o manto servirá. Você deve desistir do fogo, ou então de Turgon. Esse bando não está sozinho no ermo: sua visão mortal não consegue enxergar a chama distante de outros postos ao norte e ao sul? Um tumulto trará um exército sobre nós. Escute-me, Tuor! É contra a lei do Reino Oculto que qualquer um se aproxime dos portões com inimigos em seu encalço; e não desrespeitarei essa lei, nem a pedido de Ulmo, nem para escapar à morte. Alvoroce os orcs e eu o abandonarei.

     – Então vamos deixá-los – disse Tuor. – Mas tomara que eu viva para ver o dia em que não tenha de me esgueirar diante de um punhado de orcs como um cão assustado.

     – Venha então! – disse Voronwë. – Não discuta mais, ou nos farejarão. Siga-me!

     Partiu então, sorrateiro, entre as árvores, para o sul, seguindo o vento, até que estivessem a meio caminho entre aquela fogueira dos orcs e a próxima na estrada. Lá ficou imóvel por muito tempo, escutando.

     – Não ouço nenhum movimento na estrada – disse – mas não sabemos o que pode estar à espreita nas sombras. – Espiou para diante, na escuridão, e tremeu. – O ar é maligno – murmurou. – Ai! Lá adiante está a terra de nossa busca e da esperança de vida, mas a morte caminha no meio.

     – A morte está em toda a nossa volta – disse Tuor. – Mas me restam forças apenas para o caminho mais curto. Aqui preciso atravessar ou perecer. Confiarei no manto de Ulmo, e também a você ele há de cobrir. Agora irei conduzir!

     Assim dizendo, aproximou-se furtivo da até a beira da estrada. Então, segurando Voronwë junto a si, lançou sobre ambos as pregas do manto cinzento do Senhor das Águas, e avançou.

    

     Tudo estava em silêncio. O vento frio gemia ao descer veloz pela antiga estrada. Então, de repente, também ele se calou. Na pausa, Tuor sentiu uma mudança no ar, como se o hálito da terra de Morgoth tivesse se interrompido um instante; e, débil como uma lembrança do Mar, veio uma brisa do oeste. Como uma névoa cinzenta ao vento, os dois passaram sobre o caminho de pedras e entraram em um capão na sua borda leste.

     Subitamente, bem de perto ouviu-se um grito selvagem, e muitos outros ao longo das margens da estrada lhe responderam. Uma trompa rouca tocou, e soaram pés a correr. Mas Tuor manteve-se firme. Aprendera o bastante da língua dos orcs, no cativeiro, para saber o significado daqueles gritos: os vigias os haviam farejado e escutado, mas eles não haviam sido vistos. A caça começara. Em desespero, esgueirou-se, trôpego, em frente, com Voronwë ao seu lado, subindo uma longa encosta com urzes e arandos espessos entre tufos de sorvas e bétulas baixas. No topo da colina pararam, escutando os gritos lá atrás e o barulho dos orcs nas moitas embaixo.

     Ao lado deles havia um rochedo que erguia a cabeça a partir de um emaranhado de urzes e sarças, e debaixo dele havia um covil que um animal selvagem poderia procurar para lá ter esperança de escapar à perseguição, ou pelo menos vender caro sua vida com a pedra às costas. Ali para baixo Tuor puxou Voronwë, entrando na sombra profunda; e, lado a lado, sob o manto cinzento, deitaram-se ofegantes como raposas exaustas. Não disseram palavra; toda a sua atenção estava nos ouvidos.

     Os gritos dos caçadores enfraqueceram, pois os orcs não penetravam muito nas terras selvagens de cada lado, mas percorriam a estrada para cima e para baixo. Pouco se importavam com fugitivos desgarrados, mas temiam espiões e batedores de inimigos armados, pois Morgoth havia posto uma guarda na estrada, não para aprisionar Tuor e Voronwë (dos quais ainda nada sabia), nem ninguém que viesse do oeste, mas para espreitar o Espada-Negra, para que não escapasse e perseguisse os cativos de Nargothrond, trazendo auxílio, talvez, vindo de Doriath.

     A noite passou, e o silêncio soturno se abateu de novo sobre as terras vazias. Exausto e esgotado, Tuor dormiu sob o manto de Ulmo; mas Voronwë saiu sorrateiro e parou de pé como uma pedra, silencioso, imóvel, penetrando as sombras com seus olhos élficos. Ao romper do dia, ele despertou Tuor, que se arrastou para sair e viu que o tempo de fato melhorara um pouco, e que as nuvens negras haviam se afastado. A aurora era vermelha, e longe à sua frente ele conseguia ver os cimos de estranhas montanhas, reluzindo diante do fogo do leste.

     – Alae! Ered en Echoriath, ered e·mbar nín! – disse então Voronwë em voz baixa. Pois sabia que divisava as Montanhas Circundantes e as muralhas do reino de Turgon. Abaixo deles, a leste, corria em um vale fundo e sombrio o belo Sirion, renomado em canções; e mais além, envolta em névoa, erguia-se uma terra cinzenta do rio até as colinas escarpadas no sopé das montanhas. – Lá longe fica Dimbar – disse Voronwë. – Oxalá estivéssemos lá! Pois lá nossos inimigos raramente ousam caminhar. Ou assim era enquanto o poder de Ulmo tinha força no Sirion. Mas agora tudo pode estar mudado – exceto o perigo do rio: ele já é profundo e caudaloso, e perigoso de atravessar mesmo para os eldar. Mas eu o conduzi bem; pois ali brilha o Vau de Brithiach, ainda um pouco ao sul, onde a Estrada Leste, que antigamente vinha desde Taras no oeste, fazia a passagem do rio. Agora ninguém ousa usá-lo, salvo em necessidade desesperada, nem elfo, nem homem, nem orc, pois essa estrada conduz a Dungortheb e à região do terror entre Gorgoroth e o Cinturão de Melian; e há muito desapareceu na mata, ou se reduziu a uma trilha entre ervas daninhas e espinhos rastejantes.

     Então Tuor olhou para onde Voronwë apontava, e muito longe divisou um brilho, como de águas abertas sob a breve luz da aurora; mas além assomava uma escuridão, lá onde a grande floresta de Brethil subia para um distante planalto ao sul. Cautelosos, então, seguiram caminho descendo pelo lado do vale, até que finalmente chegaram à antiga estrada que descia do encontro dos caminhos nas fronteiras de Brethil, onde ela cruzava a estrada vinda de Nargothrond. Tuor viu então que haviam chegado perto do Sirion. As margens de seu profundo canal tornavam-se mais baixas naquele lugar, e suas águas, estranguladas por grande profusão de pedras22, espalhavam-se em amplos baixios, cheios do murmúrio de impacientes riachos. Pouco diante dali, o rio voltava a se estreitar e, escavando um novo leito, corria em direção à floresta para desaparecer ao longe numa névoa espessa que seus olhos não conseguiam penetrar; pois lá ficava, sem que ele o soubesse, o limite norte de Doriath dentro da sombra do Cinturão de Melian.

     Tuor teria corrido logo para o vau, mas Voronwë o reteve.

     – Sobre o Brithiach não podemos passar à luz do dia, nem enquanto restar qualquer suspeita de perseguição.

     – Então temos de sentar aqui e apodrecer? – perguntou Tuor. – Pois tal suspeita restará enquanto durar o reino de Morgoth. Venha! Sob a sombra do manto de Ulmo teremos de avançar.

     Voronwë ainda hesitava e voltou o olhar na direção do oeste; mas a trilha atrás deles estava deserta, e tudo era silencioso em volta, a não ser pelo barulho da água. Ergueu os olhos, e o céu estava cinzento e vazio, pois nem mesmo uma ave se movia. Então de repente seu rosto se iluminou de alegria, e ele exclamou em alta voz:

     – Está bem! O Brithiach ainda é vigiado pelos inimigos do Inimigo. Os orcs não nos seguirão aqui; e sob a proteção do manto poderemos agora passar sem mais dúvidas.

     – O que você viu de diferente? – perguntou Tuor.

     – Curta é a visão dos Homens Mortais! – disse Voronwë. – Vejo as Águias do Crissaegrim; e estão vindo para cá. Observe um pouco!

     Tuor então pôs-se a observar; e logo, alto no ar, viu três vultos batendo fortes asas, descendo dos distantes picos das montanhas que agora estavam novamente envoltos em nuvens. Lentamente desceram, em grandes círculos, e então mergulharam de repente sobre os viandantes; mas, antes que Voronwë pudesse chamá-los, fizeram a volta, em uma ampla curva precipitada, e voaram para o norte ao longo da linha do rio.

     – Agora vamos – disse Voronwë. – Se houver algum orc por perto, ficará deitado encolhido, com o nariz no chão, até que as águias estejam bem longe.

     Desceram rápido por uma longa encosta, e passaram sobre o Brithiach, muitas vezes caminhando a seco sobre plataformas de seixos, ou vadeando nos baixios, com água não além dos joelhos. A água era límpida e muito fria, e aqui havia gelo sobre as poças rasas, onde os riachos errantes haviam se perdido entre as pedras; mas nunca, nem mesmo no Inverno Mortal da Queda de Nargothrond, o hálito fatal do norte conseguiu congelar a correnteza principal do Sirion.

     Do outro lado do vau, chegaram a uma ravina, como se fosse o leito de um antigo rio, onde já não corria água; porém outrora uma torrente havia escavado seu fundo canal, descendo do norte, vinda das montanhas de Echoriath, e trazendo de lá todas as pedras do Brithiach para o Sirion.

     – Finalmente o encontramos quando não havia mais esperança! – exclamou Voronwë. – Veja! Aqui está a foz do Rio Seco, e aquele é o caminho que temos de trilhar24. – Então seguiram pela ravina e, à medida que esta se voltava para o norte e as encostas da região subiam íngremes, também suas margens se erguiam de ambos os lados, e Tuor seguia trôpego na luz débil entre as pedras que atulhavam seu leito irregular.

     – Se isto é um caminho – disse –, é um péssimo caminho para os exaustos.

     – No entanto é o caminho para Turgon – disse Voronwë.

     – Então espanta-me ainda mais – disse Tuor – que sua entrada esteja aberta e sem vigia. Esperava encontrar um portão imponente e forte guarda.

     – Isso você há de ver ainda – disse Voronwë. – Este é apenas o acesso. Chamei-o de caminho; mas por ele ninguém passa há mais de trezentos anos, exceto raros e secretos mensageiros; e toda a arte dos noldor foi gasta em escondê-lo, desde que o Povo Oculto entrou. Está aberto? Você o conheceria, se não tivesse alguém do Reino Oculto por guia? Ou teria imaginado que era apenas obra das intempéries e das águas do ermo? E ainda não há as Águias, como você viu? São o povo de Thorondor, que outrora habitava nos próprios Thangorodrim antes que Morgoth se tornasse tão poderoso, e que agora mora nas Montanhas de Turgon desde a queda de Fingolfin. Apenas elas, além dos noldor, conhecem o Reino Oculto e guardam os céus acima dele, se bem que até agora nenhum servo do Inimigo tenha ousado voar nas alturas do ar; e trazem muitas notícias ao Rei sobre tudo que se move nas terras de fora. Se fôssemos orcs, não duvide de que teríamos sido agarrados e lançados de grande altura sobre os rochedos impiedosos.

     – Não duvido – disse Tuor. – Mas o que gostaria de saber é se as notícias de nossa aproximação agora não chegarão a Turgon mais depressa que nós. E se isso é bom ou mau, apenas você pode dizer.

     – Nem bom nem mau – disse Voronwë. – Pois não podemos passar pelo Portão Vigiado sem sermos percebidos, quer nos procurem, quer não; e, se lá chegarmos, os Guardas não precisarão de relatórios de que não somos orcs. Mas, para passarmos, necessitaremos de um apelo maior que esse. Pois você não imagina, Tuor, o perigo que havemos de enfrentar nessa hora. Não me culpe, como se não tivesse sido alertado, pelo que poderá acontecer então. Tomara que o poderio do Senhor das Águas se mostre de fato! Pois foi apenas com essa esperança que me dispus a guiá-lo; e, se ela falhar, é mais certo que encontremos a morte que por todos os perigos dos ermos e do inverno.

     – Chega de agouros – disse Tuor. – A morte nos ermos é certa; e a morte no Portão ainda me é duvidosa, apesar de todas as suas palavras. Conduza-me ainda em frente!

    

     Por muitas milhas avançaram penosamente nas pedras do Rio Seco, até que não conseguiram mais prosseguir, e a tardinha trouxe as trevas à profunda fissura. Aí saíram, escalando a margem leste, e haviam então chegado às colinas desordenadas que ficavam no sopé das montanhas. E, erguendo os olhos, Tuor viu que elas se erguiam de modo diverso de quaisquer outras montanhas que vira; pois seus flancos eram como muralhas escarpadas, cada um empilhado acima e atrás do mais baixo, como se fossem grandes torres de precipícios com muitos andares. Mas o dia se fora, enquanto todas as terras estavam cinzentas e nebulosas, e o Vale do Sirion estava envolto em sombras. Então Voronwë o levou a uma caverna rasa em uma encosta que dava para as solitárias vertentes de Dimbar. Ali entraram, sorrateiros, e permaneceram escondidos. Comeram suas últimas migalhas, e sentiam frio e cansaço extremo, mas não dormiram. Assim Tuor e Voronwë chegaram, ao escurecer do décimo oitavo dia de Hísimë, o trigésimo sétimo da sua jornada, às torres dos Echoriath e à soleira de Turgon, tendo pelo poderio de Ulmo escapado tanto à Condenação quanto à Malícia.

     Quando o primeiro brilho do dia se infiltrou, cinzento, pelas névoas de Dimbar, esgueiraram-se de volta para o Rio Seco, que logo depois voltou seu curso para o leste, subindo tortuoso até as próprias muralhas das montanhas; e bem defronte deles assomou um enorme paredão, erguendo-se escarpado e repentino de uma encosta íngreme na qual crescia uma emaranhada moita de espinheiros. Nessa moita entrava o canal pedregoso, e lá ainda estava escuro como a noite. E os dois pararam, pois os espinhos se estendiam muito descendo pelos lados da ravina, e seus galhos entrelaçados formavam um teto denso por cima, tão baixo que muitas vezes Tuor e Voronwë tinham de se arrastar para passar por baixo, como animais voltando furtivamente ao covil.

     Mas por fim, tendo chegado com grande esforço ao próprio sopé do penhasco, encontraram uma abertura, como se fosse a boca de um túnel escavado na dura rocha por águas que tivessem fluído do coração das montanhas. Entraram, e lá dentro não havia luz, mas Voronwë avançava com constância, enquanto Tuor seguia com a mão em seu ombro, um pouco encurvado, pois o teto era baixo. Assim, durante algum tempo prosseguiram às cegas, passo a passo, até que finalmente sentiram o chão sob seus pés tornar-se plano e livre de pedras soltas. Detiveram-se então e respiraram fundo, parados a escutar. O ar parecia fresco e saudável, e eles se deram conta de um grande espaço à sua volta e acima deles. Mas o silêncio era total, e nem mesmo o pingar da água se podia ouvir. Pareceu a Tuor que Voronwë estava inquieto e inseguro.

     – Então onde está o Portão Vigiado? – sussurrou. Ou será que agora já passamos por ele?

     – Não – disse Voronwë. – Porém me espanto, pois é estranho que qualquer intruso consiga se esgueirar tão longe sem ser interpelado. Temo um golpe no escuro.

     Mas seus sussurros despertaram os ecos adormecidos, e aumentaram e se multiplicaram, percorrendo o teto e as paredes invisíveis, aos silvos e murmúrios como o som de muitas vozes furtivas. E, justamente quando os ecos morriam na pedra, Tuor escutou, do coração das trevas, uma voz falando nas línguas élficas: primeiro na Alta Fala dos noldor, que ele não conhecia; e depois na língua de Beleriand, porém de maneira um tanto estranha a seus ouvidos, como de um povo há muito separado dos seus parentes.

     – Parem! – disse. – Não se movam! Ou morrerão, sejam inimigos ou amigos.

     – Somos amigos – disse Voronwë.

     – Então façam o que mandamos – disse a voz.

     O eco das suas vozes desfez-se em silêncio. Voronwë e Tuor ficaram imóveis, e pareceu a Tuor que muitos longos minutos se passaram, enquanto um temor penetrava seu coração como nenhum outro perigo de seu caminho lhe trouxera. Ouviu-se, então, o ruído de passos, crescendo para um tropel alto como a marcha de trolls naquele lugar oco. De repente uma lanterna élfica foi destapada, e seu raio luminoso se voltou sobre Voronwë diante dele, mas Tuor nada conseguia ver senão uma estrela ofuscante na escuridão; e sabia que, enquanto aquele facho estivesse sobre ele, não poderia se mexer, nem para fugir nem para correr adiante.

     Por um momento ficaram assim retidos no olho da luz, e então a voz falou outra vez.

     – Mostrem seus rostos! – E Voronwë afastou o manto, e seu rosto brilhou no raio, duro e claro, como se fosse esculpido em pedra; e Tuor se maravilhou de ver sua beleza.

     – Não sabem a quem vêem? – perguntou Voronwë, altivo. – Sou Voronwë, filho de Aranwë, da Casa de Fingolfin. Ou estou esquecido em minha própria terra depois de alguns anos? Vaguei muito além de onde alcança o pensamento da Terra-média, no entanto me recordo de sua voz, Elemmakil.

     – Então Voronwë se recordará também das leis da sua terra – disse a voz. – Já que partiu sob comando, tem o direito a retornar. Mas não a trazer nenhum estranho para cá. Por esse feito, seu direito é nulo, e deve ser conduzido como prisioneiro ao julgamento do rei. Quanto ao estrangeiro, há de ser morto ou mantido em cativeiro conforme o julgamento da Guarda. Traga-o aqui para que eu possa julgar.

     Então Voronwë conduziu Tuor até a luz; e, ao se aproximarem, muitos noldor, trajando cota de malha e armados, saíram da escuridão e os cercaram com espadas desembainhadas. E Elemmakil, capitão da Guarda, que trazia a lanterna luminosa, os olhou longamente e de perto.

     – É estranha sua atitude, Voronwë – disse. – Fomos amigos por muito tempo. Então por que me coloca de modo tão cruel entre a lei e a amizade? Se tivesse trazido para cá, sem autorização, alguém das outras casas dos noldor, já seria bastante. Mas trouxe ao conhecimento do Caminho um homem mortal – pois pelos seus olhos detecto sua espécie. Ele, porém, nunca mais poderá seguir livre, conhecendo o segredo; e, por ser alguém de espécie alheia que ousou entrar, eu deveria matá-lo por muito que seja seu amigo, e lhe seja caro.

     – Na vastidão do mundo lá fora, Elemmakil, podem acontecer-nos muitas coisas estranhas, e podemos ser incumbidos de tarefas inesperadas – respondeu Voronwë. – O viandante retorna diverso do que partiu. O que fiz foi feito sob um comando maior que a lei da Guarda. Só o Rei deveria julgar a mim e àquele que vem comigo.

     Então Tuor falou, e não temeu mais.

     – Venho com Voronwë, filho de Aranwë, porque ele foi designado pelo Senhor das Águas para ser meu guia. Com esse fim, foi salvo da ira do Mar e da Condenação dos Valar. Pois trago um mandado de Ulmo para o filho de Fingolfin, e a ele o direi.

     A essas palavras Elemmakil fitou Tuor com espanto.

     – Então quem é você? – perguntou. – E de onde vem?

     – Sou Tuor, filho de Huor da Casa de Hador e da família de Húrin, e estes nomes, segundo me dizem, não são desconhecidos no Reino Oculto. De Nevrast eu vim, e muitos perigos atravessei para buscá-lo.

     – De Nevrast? – perguntou Elemmakil. – Dizem que ninguém mora lá desde que nossa gente partiu.

     – Dizem a verdade – respondeu Tuor. – Desertos e frios estão os pátios de Vinyamar. No entanto, é de lá que venho. Leve-me agora ao que outrora construiu aqueles salões.

     – Em assuntos de tal magnitude, o julgamento não é meu – disse Elemmakil. – Portanto vou levá-los à luz onde mais poderá ser revelado, e os entregarei ao Guardião do Grande Portão.

     Deu então um comando, e Tuor e Voronwë foram postos entre altos guardas, dois à frente e três atrás deles; e seu capitão os levou da caverna da Guarda Externa. E pareceu que entraram em um corredor estreito, e nele caminharam muito tempo sobre um chão plano, até que uma luz pálida reluziu à frente. Assim chegaram finalmente a um amplo arco, com colunas altas de ambos os lados, esculpidas na rocha, e entre elas estava suspenso um grande portão corrediço de barras de madeira cruzadas, maravilhosamente entalhado e guarnecido de pregos de ferro.

     Quando Elemmakil o tocou, ele se ergueu sem ruído, e a comitiva passou. Tuor viu que estavam na extremidade de uma ravina, tal como nunca antes contemplara nem imaginara, embora muito tivesse caminhado nas montanhas selvagens do norte; pois, comparado com o Orfalch Echor, o Cirith Ninniach era apenas um sulco na rocha. Aqui as mãos dos próprios Valar, nas antigas guerras do princípio do mundo, haviam apartado à força os grandes montes, e as laterais da fenda eram escarpadas como se cortadas a machado, e se erguiam a alturas inimagináveis. No alto, bem longe, corria uma faixa de firmamento, e com seu azul profundo contrastavam picos negros e píncaros recortados, remotos mas duros, cruéis como lanças. Aquelas muralhas enormes eram demasiado altas para que o sol do inverno lhes espiasse por cima, e, embora já fosse dia claro, estrelas brilhavam pálidas sobre os cimos das montanhas, e lá embaixo tudo era penumbra, a não ser pela luz fraca das lanternas colocadas ao longo da estrada ascendente. Pois o piso da ravina apresentava um aclive pronunciado, na direção leste, e à esquerda Tuor viu, ao lado do leito do rio, um caminho largo, calçado e pavimentado com pedras, subindo sinuoso até se perder na sombra.

   – Acabam de passar pelo Primeiro Portão, o Portão de Madeira – disse Elemmakil. – Lá está o caminho. Precisamos nos apressar.

     Tuor não conseguia imaginar a que distância aquela estrada profunda levava, e, enquanto olhava à frente, uma grande exaustão se abateu sobre ele como uma nuvem. Um vento gélido assobiava sobre as faces das pedras, e ele se enrolou mais no manto. – Sopra frio o vento do Reino Oculto! – disse.

     – Sim, de fato – disse Voronwë – a um estrangeiro poderia parecer que o orgulho tornou impiedosos os servos de Turgon. Longas e árduas parecem as léguas dos Sete Portões aos famintos e extenuados.

     – Se nossa lei fosse menos rigorosa, há muito a astúcia e o ódio teriam entrado e nos destruído. Isso você sabe bem – disse Elemmakil. – Mas não somos impiedosos. Aqui não há comida, e o desconhecido não pode voltar por um portão que tenha atravessado. Suporte um pouco, pois, e no Segundo Portão receberá alimento.

     – Está bem – disse Tuor, e prosseguiu conforme lhe mandaram. Pouco depois virou-se e viu que Elemmakil seguia sozinho com Voronwë.

     – Não há mais necessidade de guardas – disse Elemmakil, lendo seus pensamentos. – Do Orfalch não há como elfo ou homem escapar, e não há retorno.

     Assim continuaram subindo o caminho íngreme, às vezes por longas escadarias, às vezes por aclives sinuosos, sob a sombra intimidante do penhasco, até que, a cerca de meia légua do Portão de Madeira, Tuor viu que o caminho estava barrado por um grande muro construído de lado a lado da ravina, com robustas torres de pedra de ambos os flancos. No muro havia um grande arco sobre a estrada, mas parecia que pedreiros o haviam bloqueado com uma única pedra enorme. À medida que se aproximavam, sua superfície escura e polida reluzia à luz de uma lâmpada branca suspensa sobre o meio do arco.

     – Aqui está o Segundo Portão, o Portão de Pedra – disse Elemmakil; e, aproximando-se dele, empurrou-o de leve. Ele girou sobre um eixo invisível até passar com a borda voltada para eles, e o caminho se abriu de ambos os lados. Passaram, entrando em um pátio onde estavam de pé muitos guardas armados, trajados de cinza. Nenhuma palavra se pronunciou, mas Elemmakil levou os que vigiava até uma câmara debaixo da torre setentrional; e lá lhes trouxeram comida e vinho, e lhes permitiram descansar um pouco.

     – O alimento pode parecer escasso – disse Elemmakil a Tuor. – Mas, se for provado o que afirma, no futuro há de ser ricamente compensado.

     – É suficiente – disse Tuor. – Fraco seria o coração que necessitasse de melhor cura. – E de fato a bebida e comida dos noldor o restauraram de tal modo que logo estava ansioso por prosseguir.

    

     Pouco adiante chegaram a uma muralha ainda mais alta e forte do que antes, e nela estava instalado o Terceiro Portão, o Portão de Bronze: uma grande porta dupla adornada com escudos e placas de bronze, nos quais havia gravados muitas figuras e sinais estranhos. Na muralha acima da verga existiam três torres quadradas, com telhados e revestimentos de cobre, que através de algum estratagema da arte de forjar estavam sempre brilhantes e reluziam como fogo aos raios das lâmpadas vermelhas alinhadas como tochas ao longo da muralha. Mais uma vez passaram pelo portão em silêncio e viram no pátio do outro lado uma companhia ainda maior de guardas, em cota de malha que refulgia pálida como fogo baço; e as lâminas de seus machados eram vermelhas. Os que vigiavam este portão eram em sua maior parte do povo dos Sindar de Nevrast.

     Chegaram então ao caminho mais cansativo, pois no meio do Orfalch o aclive era o mais íngreme; e, enquanto subiam, Tuor viu a maior de todas as muralhas assomando sombria acima dele. Assim aproximaram-se por fim do Quarto Portão, o Portão de Ferro Forjado. Alta e negra era a muralha, e nenhuma lâmpada a iluminava. Quatro torres de ferro estavam assentadas sobre ela, e entre as duas torres internas estava colocada a figura de uma grande águia, trabalhada em ferro, a própria imagem do Rei Thorondor, como pousaria em uma montanha vindo das alturas. Mas quando Tuor parou diante do portão, pareceu a seus olhos maravilhados que olhava, através de ramos e troncos de árvores imperecíveis, para dentro de uma pálida clareira da Lua. Pois passava uma luz pelas filigranas do portão, que eram forjadas e marteladas em forma de árvores com raízes contorcidas e ramos entrelaçados carregados de folhas e flores. E, ao atravessar, viu como isso podia acontecer; pois a muralha era de grande espessura, e não havia uma grade, e sim três alinhadas, dispostas de forma que, para quem se aproximasse no meio do caminho, cada uma formasse parte do desenho; mas a luz do outro lado era a luz do dia.

     Pois agora haviam subido a grande altura acima das terras baixas de onde haviam partido, e para além do Portão de Ferro a estrada seguia quase nivelada. Ademais, tinham passado pelo cimo e coração dos Echoriath, e as torres das montanhas agora desciam rapidamente em direção das colinas internas, enquanto a ravina se abria mais, e suas paredes se tornavam menos íngremes. Suas longas margens estavam recobertas de neve branca, e a luz do firmamento, espelhada pela neve, passava branca como o luar através de uma névoa tremeluzente que enchia o ar.

     Passaram então pelas fileiras dos Guardas de Ferro que estavam atrás do Portão; negros eram seus mantos bem como sua malha e seus longos escudos, e seu rosto mascarado por viseiras que ostentavam cada uma um bico de águia. Então Elemmakil andou à sua frente e eles o seguiram, entrando na luz pálida; e Tuor viu ao lado do caminho um gramado, onde cresciam como estrelas as flores brancas de uilos, a Sempre-em-Mente que não conhece estação e não murcha; e assim, maravilhado e de coração leve, foi conduzido ao Portão de Prata.

     O muro do Quinto Portão era construído de mármore branco, e era baixo e largo; seu parapeito era uma treliça de prata entre cinco grandes globos de mármore; e lá estavam postados muitos arqueiros de vestes brancas. O portão tinha a forma de três quartos de círculo, e era trabalhado em prata e pérolas de Nevrast com imagens da Lua; mas acima do Portão, sobre o globo central, havia uma imagem da Árvore Branca Telperion, lavrada em prata e malaquita, com flores feitas de grandes pérolas de Balar28. E além do Portão, em um amplo pátio calçado de mármore, verde e branco, estavam parados arqueiros em cota de malha de prata e elmos de cristas brancas, cem de cada flanco. Então Elemmakil conduziu Tuor e Voronwë por suas fileiras silenciosas, e os três entraram numa longa estrada branca que seguia reto para o Sexto Portão; e, à medida que avançavam, o gramado se tornava mais largo, e entre as estrelas brancas de uilos abriam-se muitas florezinhas como olhos de ouro.

     Assim chegaram ao Portão Dourado, o último dos antigos portões de Turgon que foram feitos antes das Nirnaeth; e era muito semelhante ao Portão de Prata, exceto que o muro era construído de mármore amarelo, e os globos e o parapeito eram de ouro vermelho. Eram seis globos e, no meio, sobre uma pirâmide dourada, estava fixada uma imagem de Laurelin, a Árvore do Sol, com flores feitas de topázio, em longos cachos em correntes de ouro. E o próprio Portão era adornado com discos de ouro, de muitos raios, à semelhança do Sol, engastados entre desenhos de granadas, topázios e diamantes amarelos. No pátio do outro lado estavam perfilados trezentos arqueiros com arcos longos e sua malha era coberta de ouro; altas plumas douradas erguiam-se de seus elmos, e seus grandes escudos redondos eram vermelhos como chamas.

     Agora caía a luz do sol sobre o restante da estrada pois as muralhas das colinas eram baixas de ambos os lados e verdes, exceto pela neve nos cimos; e Elemmakil apressou-se em prosseguir, pois era curto o caminho até o Sétimo Portão, chamado o Grande, o Portão de Aço atravessado na ampla entrada do Orfalch Echor que Maeglin construiu após o retorno das Nirnaeth.

     Lá não havia muro, mas dos dois lados havia torres redondas de grande altura, com muitas janelas, que, em sete andares, se afilavam em torreões de aço brilhante; e entre as torres erguia-se uma enorme cerca de aço que não enferrujava, mas rebrilhava fria e branca. Sete grandes colunas de aço lá havia, esguias, da altura e diâmetro de árvores jovens e fortes, mas encimadas por pontas acres que subiam aguçadas como agulhas; e entre as colunas havia sete barras transversais de aço, e em cada espaço sete vezes sete hastes de aço verticais, com cabeças como as lâminas largas de lanças. Mas no centro, sobre a coluna do meio, a maior, erguia-se uma enorme imagem do elmo real de Turgon, a Coroa do Reino Oculto, cravejada de diamantes.

     Tuor não conseguia ver portão ou porta naquela enorme sebe de aço, mas, à medida que se aproximava, parecia-lhe que saía pelos espaços entre as barras uma luz ofuscante; e cobriu os olhos, permanecendo imóvel de temor e espanto. Mas Elemmakil avançou, e nenhum portão se abriu ao seu toque; ele tangeu uma barra, e a cerca ressoou como uma harpa de muitas cordas, emitindo notas nítidas em harmonia, que correram de uma torre à outra.

     De pronto saíram cavaleiros das torres, mas à frente dos da torre norte vinha um montado num cavalo branco. Apeou e veio caminhando em direção deles. Por alto e nobre que fosse Elemmakil, maior e mais soberbo era Ecthelion, Senhor das Fontes, naquela época Guardião do Grande Portão. Estava trajado todo de prata, e em seu elmo brilhante estava fixada uma ponta de aço encimada por um diamante; e, quando seu escudeiro lhe tomou o escudo, este cintilou como se estivesse orvalhado de gotas de chuva, que eram na verdade mil pinos de cristal.

     – Trago aqui Voronwë Aranwion, de retorno de Balar – disse Elemmakil depois de saudá-lo –, e eis o estrangeiro que ele conduziu para cá, que exige ver o Rei.

     Então Ecthelion se voltou para Tuor, mas este se enrolou no manto e permaneceu em silêncio, encarando-o. Pareceu a Voronwë que uma névoa envolvia Tuor e que sua estatura aumentava, de modo que o cimo do seu alto capuz sobrepujou o elmo do senhor élfico, como se fosse a crista de uma onda cinzenta do mar, rolando para terra. Mas Ecthelion voltou seu olhar luzidio para Tuor, e depois de uma pausa falou com gravidade:

     – Você chegou ao Último Portão. Saiba, pois, que qualquer estranho que o atravesse jamais há de sair outra vez, exceto pela porta da morte.

     – Não pronuncie maus agouros! Se o mensageiro do Senhor das Águas passar por essa porta, então todos os que aqui habitam o seguirão. Senhor das Fontes, não impeça o mensageiro do Senhor das Águas!

     Então Voronwë e todos os que estavam por perto outra vez fitaram Tuor com assombro, maravilhando-se com suas palavras e sua voz. E pareceu a Voronwë que ouvia uma alta voz, mas como se fosse de alguém que chamasse de muito longe. Mas a Tuor parecia que ouvia a si próprio falando como se outro falasse por sua boca.

     Por algum tempo, Ecthelion quedou-se em silêncio, olhando para Tuor, e lentamente seu rosto se encheu de pasmo, como se na sombra cinzenta do manto de Tuor enxergasse visões de muito longe. Então fez uma reverência, foi à cerca e pôs as mãos sobre ela; e se abriram portões para dentro, de ambos os lados da coluna da Coroa. Tuor passou então e, chegando a um alto gramado de onde se divisava o vale mais além, contemplou uma visão de Gondolin em meio à branca neve. E ficou tão encantado que por muito tempo não conseguiu olhar para nada mais; pois diante de si via afinal a visão do seu desejo, saída de sonhos de aspiração.

     Assim ficou parado e não disse palavra. Em silêncio, de ambos os lados, estava postada uma hoste do exército de Gondolin; lá estavam representados todos os sete grupos dos Sete Portões; mas seus capitães e comandantes montavam cavalos, brancos e cinzentos. Então, enquanto fitavam Tuor com espanto, seu manto caiu e lá estava ele diante deles na possante farda de Nevrast. E muitos que estavam ali haviam visto o próprio Turgon pendurar aqueles objetos na parede por trás do Alto Assento de Vinyamar.

     – Agora não é necessária mais nenhuma prova – disse Erthelion por fim –, e mesmo o nome que afirma ter, como filho de Huor, importa menos que a clara verdade de que ele vem do próprio Ulmo.

 

                                                                                J. R. R. Tolkien  

 

                      

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