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CONTOS SURREALISTAS E SATÍRICOS / Alberto Moravia
CONTOS SURREALISTAS E SATÍRICOS / Alberto Moravia

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONTOS SURREALISTAS E SATÍRICOS

 

                 ÍNDICE

         SANDÁLIA DE BRONZE   

         FUROR ANTIGO      

         MAOMÉ   

         OS SONHOS DO PREGUIÇOSO       

         A VERDADE SOBRE O CASO DE ULISSES

         VIAGEM AO ALÉM AMERICANO       

         O CROCODILO         

         AS METAMORFOSES      

         O QUIROMANTE      

         PAÍS SEM MORTE   

         OS DOIS TESOUROS       

         O PERU DE NATAL 

         ESTÚPIDO COMO NAUROMU 

         O HOTEL ESPLÊNDIDO  

         A ROSA            

         O QUADRO      

         A JANELA ABERTA

         A VIDA É UM SONHO       

         A GUERRA PERPÉTUA   

         MAMAMEL E VUSLTEL    

         POLVOS EM POLÉMICA  

         A LINHA DE PRIMAVERA

         FELICIDADE NA MONTRA        

 

 

                   SANDÁLIA DE BRONZE

Desde muito cedo, gestos e palavras de Empédocles tinham--se revestido de solenidade ritual; tal como há quem, na adolescência, se torne por força da natureza gracioso ou lângui­do, assim Empédocles, ainda antes de tomar consciência disso, se sentira levado com toda a sua pessoa a celebrar o culto de um deus. Uma presença vigiava-o pelas costas e, como um demónio, não lhe permitia a mínima distracção. Ainda antes do poder a que se sentia predestinado, tinha surgido nele uma vocação pontual. Mais tarde, pelos caminhos ocultos de uma exaltação dura­doura e paciente, Empédocles chegara a desvendar com perfeita certeza segredos que não se deixam dizer por palavras humanas. Único no seu tempo, procurara a origem de todas as coisas; reco­nhecendo-a fora do homem e dos deuses, nem humana nem di­vina. Entre os seus concidadãos, preocupados em perguntar-se como e porquê haviam de agir, ele propusera a si próprio, com esforço desdenhoso e livre, abraçar o facto da existência no seu todo; tal como um rio que, ignorando as baixas onde a água se empantana, corre directamente para o mar. Mas dessas pesquisas voltara mudo; mais pelo sentimento da nova dignidade de que se sentia investido, do que por dificuldade de expressão; pensando poder, no máximo, dar um dia obscuras indicações disso com símbolos e rituais nunca vistos. Na verdade, para ele já não se tratava de saber como se havia de reger um Estado, como se devia comportar o cidadão, o soldado, a mulher, o escravo, qual era, em suma, a atitude a ter, mas sim de questões infinitamente mais simples, tais que escapavam mesmo à atenção mais exercitada, óbvias até, ao ponto de se terem tornado há muito tempo matéria de poesia e, numa palavra, de desatenção profunda e confiante. Bem via Empédocles que os homens aceitavam que o Sol nascesse de manhã, que as estações se sucedessem, que o mundo exis­tisse como coisas absolutamente normais; que aceitavam, em suma, um Olimpo prestável, na condição de poderem, com toda a tran­quilidade, dedicar-se aos seus grandes negócios políticos e mo­rais; mas ele recusava, em primeiro lugar, qualquer convenção e começava por se admirar precisamente com essas coisas tão óbvias, do Sol, da noite, do dia, do mar, da terra. Essa admiração tinha asas mais amplas e de voo mais seguro do que o de qualquer grande águia; e raptava-o de repente para fora dos conventículos humanos, para as reviradas profundezas do céu. Os homens da­vam importância à cidade, às instituições, à guerra e à paz; e imaginavam os deuses, de olhos virados para baixo, vigiando-os e perseguindo-os. Mas Empédocles pensava que eles, na verda­de, apenas se limitavam a arranhar o grande corpo da terra e a aninhar-se, em abrigos de lama, nessas fendas. Em volta de ou­tros eixos girava o mundo; sem a ajuda de divindade alguma; e não reparava nos homens, nem sequer quando, tremendo ou palpitando, os destruía aos milhares. Nada dizia Empédocles des­sas suas descobertas. Mas elas transpareciam igualmente das suas atitudes, às quais o contínuo contacto com forças não humanas conferia um ar de solenidade enlevada e ardente. Empédocles ardia da mesma chama que a terra escondia no seu seio; os homens apenas tinham as pequenas chamas domesticadas dos seus lares. No entanto, não tinham demorado a reconhecê-lo como seu superior; e antes que a sua vocação se declarasse completamente, foram várias vezes procurá-lo. Recorrer a ele era na verdade para os homens ensaiar a sua vontade de solidão e de independência, verificar se estava disposto a submeter-se com eles aos mesmos jugos. Admitiam a sua misteriosa supremacia; mas queriam que servisse tal como o general serve o exército que chefia, ou o almirante a frota que guia. Todas essas tentações tinham sido facilmente recusadas por Empédocles. Ao pedido de conselhos respondera que nada sabia acerca do bem ou do mal, do lícito ou do ilícito; pois a sua força não consistia em sabedoria premonitória, mas sim de divinação. À oferta de cargos opusera uma modéstia irónica: não tinha currículo algum, não possuía quaisquer competências, queriam eles cair em desgraça? Mas quando os concida­dãos, imaginando-o semelhante a eles, e pensando que se escu­sasse por avidez de honras maiores, tinham ido propor-lhe o comando supremo, Empédocles, dessa vez, não opusera uma re­cusa, mas apenas pedira que se modificassem conforme as suas indicações os atributos do poder que lhe ofereciam. Ele, dissera, não era um guia, mas sim uma força fechada em si mesma. Por isso, não lhe apresentassem tronos ou bastões de comando; er­guessem, sim, altares e sacrificassem diante da sua-efígie, rezando como perante o simulacro de um deus. Esta era a única forma de o honrar dignamente. Só deste modo poderia reger a cidade. Empédocles fizera esta proposta com perfeita naturalidade, como se falasse de uma coisa óbvia e devida. Não esperava que fosse aceite; pelo contrário, esperava que, depois de um tal pedido, já ninguém tivesse a ilusão de o fazer descer do lugar que secreta­mente lhe cabia.

Mas nessas palavras os concidadãos só viram impiedade e loucura. E como não era possível pensar efectivamente que Empédocles era de uma natureza diferente da humana (não se conheciam porventura o seu pai, a sua mãe, os seus irmãos?), a ideia de uma impostura prestigiosa, soberba e grifanha, começou a insinuar-se no conceito que se tinha dele. A sua solidão, o seu silêncio, o seu retraimento pareceram até, de repente, atitudes voluntárias, preparadas, reguladas propositadamente segundo um desenho secreto e interessado. Assim os homens reconheciam a desumanidade das aspirações de Empédocles só para o reduzir a uma humanidade inferior e enganosa.

Na verdade, Empédocles sentia crescer na sua alma a voca­ção de um culto; do qual, porém, ele não viria a ser o espectador ou o fiel; mas sim, tal como já declarara, o deus. Podia ser orgu­lho julgar-se divino unicamente pela sublimidade dos pensamen­tos; mas era justiça acreditar nisso ao sentir a sua própria pessoa desvincular-se dos limites humanos e entrar num contacto neces­sário com as forças superiores. Actor de uma tão ampla e harmo­niosa vicissitude, Empédocles sentia nascer dentro de si necessi­dades inelutáveis, às quais percebia que não poderia escapar. Ele era chamado a fornecer aos homens uma nova religião, fundada não já nos caprichos dos deuses, mas sim nas diversas leis que governam o mundo. Mas faltava-lhe cumprir o último acto de uma vida que mais tarde os homens haveriam de reencontrar e estudar em cada gesto e em cada palavra como sendo sagrada. Já se produzira nele a extrema purificação pela qual cada acto se espelha num reflexo transcendente. Agora cabia-lhe culminar essa obra de transmutação com o sacrifício da vida, fardo humano, como que para pôr entre si e a incredulidade o abismo da morte ultrapassado e vencido. Já era e já se sentia um semideus tal como Orfeu no fundo da sua descida, tal como Hércules no fim das suas fadigas, tal como Dionísio na sua louca viagem. Nada mais lhe faltava a não ser o encontro com a sua própria crença, a demonstração última do seu próprio ser, a vitória sobre a morte.

No dia em que os homens da costa viram elevar-se do cume envasado e aceso do vulcão o pinheiro altíssimo de fuligem relampejante e propagar-se molemente, segundo o vento, a tétrica cabeleira pelos campos aéreos do Sol, nesse dia, enquanto as vertentes fumegavam brancas sob o precipitar granuloso da lava, e as pessoas fugiam pelas ruelas tranquilas, perseguidas de perto pelos seixos ardentes que se desprendiam da frente da erupção, Empédocles viu que chegara o momento de cumprir o acto su­premo, que mais tarde se transformaria em mito pelo próprio excesso do seu significado. Ele sabia que nesse dia o fogo sairia das suas profundezas para entrar em conúbio com os outros elementos. Nesse casamento, ele teria parte. Na harmonia por ele originada, perder-se-ia.

À noite, entre as pálidas oliveiras que pareciam contorcer-se devido ao terror da fuga impossível, as pessoas que abandonavam as casas, com os ombros curvados sob o peso dos trastes, viram--no em vários lugares a subir para a invisível boca trovejante. Elas fugiam; ele, calmo, parecia vaguear pela noite cheia de pavor e de confusão, com um destino que o tornava melancólico e distante. Viram-no a olhar para o desmoronamento terroso e em chamas que arrebatava os muros de uma casa; ou a escutar o crepitar das oliveiras, às quais a terra subitamente raivosa mordia os troncos; ou a observar o branquear dos fumos nas encostas escuras. Os lapili e as cinzas choviam na sua cabeça nua; pedras ardentes caíam assobiando na lama aos seus pés. Os relâmpagos averme­lhados que raiavam na noite, iluminavam-no no fundo das trevas mais inesperadas, diante dos olhos incrédulos dos fugitivos. A sua presença, notada nos lugares mais perigosos, parecia confirmar o compromisso de toda a sua vida. Os prófugos, que fugiam da lava como da morte, percebiam que Empédocles procurava nela a vida. O que eles julgavam ser o fim, para ele era apenas o começo.

Ultrapassada ao longo da noite a zona onde ardiam os in­cêndios, Empédocles saiu para a chaminé tumefacta do vulcão no céu da alvorada. O pinheiro negro elevava-se com soberba majestade, solitário, até às alturas mais etéreas; as estrelas empali­deciam em volta, apagando-se; ao longe, o mar era um espelho, percorrido por brancas correntes preguiçosas até aos limites va­porosos do horizonte. Nunca tinha havido na terra tanta calma e tanto furor. Entrou Empédocles, entre os negros monstros mem­brudos da lava petrificada que de todos os lados ameaçavam o seu caminho com as suas engelhadas e entumecidas presenças. Num fluxo de cinza espessa, finalmente, enquanto o céu ribom­bava e uma chuva de fogo se espraiava para fora do turbilhão, desapareceu.

Mas, passados alguns dias, foi encontrada a sua sandália de bronze, que boiara em torrentes de chamas até às portas dos homens. A glória de Empédocles, imperecível, não foi ofuscada por isso. Mas a sua divindade, retida por essa âncora no porto dos falaciosos cálculos humanos, não conseguiu libertar-se. O culto, vislumbrado por um instante, desvaneceu-se numa lenda irónica. Entretanto as núpcias dos elementos tinham-se cumprido. O fogo regressara às suas cavernas, a terra parara, o ar calara-se e o mar, já sem sibilar, lambia com as ondas as torrentes esfriadas da lava.

 

                   FUROR ANTIGO

Lucrécio acabara por se enfastiar com todo o género humano. Quando ainda se acreditava nos deuses, os homens podiam pelo menos considerar-se o motivo de chacota desses ociosos e despreocupados imortais; consolação que, apesar de escassa, permitia a ilusão de que as vozes fracas e as pequenas estaturas deste mundo provocavam algum eco, projectavam alguma som­bra no universo mais amplo. Mas, desvanecida a crença nos deuses, dissolvidas as inocentes e vetustas superstições que faziam de toda a vida humana um único ritual, os homens, cheios de vontades e de soberba, tinham-se concentrado sobre si mesmos, e apenas restara a política. Ou seja, uma espécie de tragédia sem catarse, representada por personagens que, apesar dos altos coturnos e das vozes cavernosas, não sabiam ser trágicos; e as paixões e as fés que nesses contrastes se revelavam eram fortes e eficazes na mesma medida em que eram interessadas. Em suma, eram os interesses que acabavam por determinar as atitudes, até as mais ideais; quem tinha exercitado a usura, ou saqueado uma provín­cia, ou roubado ao erário, e possuía casas, escravos e terras, pro­clamava com boca sacrílega querer defender até à morte a liber­dade e o senado; por sua vez, quem até há pouco tempo tinha sido um servo fugitivo com as costas ainda negras pelas vergasta­das, um desesperado cheio de dívidas, um intriguista de baixo nível, invocava justiça, apontava a miséria dos plebeus, reclamava por reformas. Era uma luta turva, embora a aposta evidente e em muitos casos confessada fosse o poder. Bastava ser desinteressa­do, ter amor ao seu ofício e acima de tudo ter o sentido da vida e da morte para observar essas lutas com olhos de gelo, se não de desprezo; tal como os combates das formigas em volta das suas habitações de pó. Pois bem, Lucrécio era desinteressado, tinha amor infinito ao seu ofício de escritor, e acima de tudo possuía o sentido, ou melhor, o furor, da morte e da vida. O mundo, corrupto, violento e hipócrita como era, visto com olhos de moralista estóico ou de defensor do tempo passado, parecia-lhe insuportável. Por isso, era preciso reconduzir o homem ao seio das forças naturais, torná-lo inocente e insignificante como os animais que, quando matam, roubam, se sujam ou traem, ninguém pensa vituperar ou deduzir que a civilização se está a afundar; ou como as plantas, que apenas conhecem vida, crescimento e morte, enquanto tudo o mais é mistério. Os homens queriam elogios ou vitupérios, pretendiam que fossem levadas a sério as suas ambições, as suas vitórias, os seus falhanços e até as suas intenções. Mas Lucrécio, oprimido pelo grande tédio de toda essa agitação humana, estava firmemente decidido a não tomar partido, a não se deixar levar pelo frenesim deprecatório ou eulógico. Jã o suficiente tinham falado das coisas humanas historiadores, poetas, oradores, acto­res de teatro, escritores satíricos, filósofos; agora chegara o tempo grave e desiludido de se elevar até à luz perpétua do cosmo, lá onde já não há nem reinos nem repúblicas, nem ricos nem pobres, nem coisas boas nem coisas más, mas apenas leis de natureza, eternas e inquebráveis, de vida e de morte.

Em tudo isso pensava Lucrécio. Tudo isso e muito mais ia escrevendo no seu poema. Mas absolutamente contra a sua von­tade, a filosofia pacata de Epicuro na sua mente acesa não se exprimia em serenas formulações, mas antes num furor que parecia tirar a sua maior força precisamente do moralismo que Lucrécio detestava. Ele celebrava sim a natureza, mas como por ódio aos homens; procurava sim demonstrar a inexistência da alma e o triunfo total da morte, porém não sem um eco do terror antigo que pretendia afugentar. Mas onde mais se afastava da científica serenidade a que aspirava, era ao falar do amor. O seu desejo era tratá-lo com didáctica frieza, como os átomos ou as erupções do Etna; transformá-lo de paixão fatal em estímulo necessário e natural. Pelo contrário, não podia, quer ao descrever uma cópula quer ao falar da puberdade e dos sonhos, não deixar transparecer uns sentimentos de melancolia e reprovação, de ressentimento e furor, que tinham restado das experiências amargas da inquieta juventude; e dos quais esperara libertar-se através da filosofia de Epicuro.

Era preciso, agora, tirar qualquer tristeza humana ao amor; devolvê-lo à natureza; fazer com que a vida se tornasse, toda ela, um Verão incendiado e silencioso. No Verão, encontrando-se o Sol no ápice da sua exaltação, enquanto nos campos queimados e terrosos o ar ardente ecoa do canto ensurdecedor das cigarras e o sapo de barriga palpitante está parado nas argilas fitando com pupilas que não tremem o branco incêndio do Sol, na alma dos homens, no fundo das casas escuras e frescas, cada pensamento cala-se, ensonado, e só fica acordada e pura a chama dos sentidos. Ela queima todas as dúvidas e, depois de muitos cuidados estéreis, devolve finalmente aos amantes a antiga comunhão com a natureza. Tornar perpétuo esse estado feliz, nunca mais sair desse ardor, era isso que, entre o desprezo pelos homens e a aspiração insatisfeita para os mistérios naturais, Lucrécio visava. E para o obter, num dia de Verão em que o Sol queimava com força e o próprio silêncio parecia arder, bebeu uma poção amatória adqui­rida a uma mulher-, ela pertencia a uma tribo errante de nómadas que acampara com os seus carros entre os campos e o mar, nas margens do terreno onde se encontrava a vila de Lucrécio.

A vila surgia num litoral baixo e deserto, tinha à frente a curta praia negra de algas, seguida pelo turvo mar areado, atrás dela estendiam-se os campos já ceifados, hirtos de restolhos e espraiados de manchas. Uma vez bebida a poção, parecendo-lhe não sentir efeito algum, como que encandeado, Lucrécio saiu em direcção ao mar e andou ao longo do litoral à procura dos nómadas. Mas mal chegou ao lugar, descobriu que a tribo tinha partido. Viam-se ainda os espaços redondos e pisados onde tinham esta­do as tendas, ainda restavam os tições apagados e as cinzas das fogueiras, ainda frescos pareciam os sulcos profundos cavados na terra mole pelas rodas dos carros carregados de trastes e de crianças; esses sulcos emparceirados afastavam-se sinuosamente e desa­pareciam no pulular das manchas. A chama do Sol tremia no ar; as cigarras ensurdeciam; de vez em quando, sempre que uma onda se alongava até ao litoral, chegava a voz do mar, triste até à morte. Bruscamente, enquanto olhava para aqueles restos carbo­nizados dispostos em círculo, para aqueles sulcos que deles par­tiam, enquanto com a testa e os ouvidos na chama do Sol escutava o mar, de repente foi mordido por um desejo ardente, como os que se sentem só na adolescência, quando pela primeira vez a paixão doentia acorda. O desejo cresce desmedidamente, como um cego Lucrécio anda ao Sol de Agosto, tentando com os braços estendidos abraçar formas que não estão lá, finalmente, louco de furor insatisfeito, corre para casa. Aí, no fundo de um quarto

escuro começou a contorcer-se e a gritar incoerentemente. Dizia que era um deus e que Vénus, descida de propósito para ele do Olimpo, jazia na cama ao seu lado. Vénus, gritava, a própria Vénus, vestida dos seus cabelos, estava ao seu lado e prodigalizava-lhe as suas carícias. Era de Vénus que lhe vinha aquele desejo insaciá­vel, aquele zumbido de delícia; era de Vénus que procedia o seu êxtase. De pé no limiar da porta, sem ousar entrar no quarto, os serviçais pasmados olhavam para ele que se contorcia e gritava. Assim, ele variando e sempre invocando e abraçando Vénus, e os da casa olhando para ele da porta, passaram as horas da tarde. Depois de caírem as sombras da noite e de se acenderem os candeeiros, Lucrécio continuou a agitar-se, embora mais debilmente; agora parecia pasmado. Finalmente, por volta da meia--noite, pareceu pegar no sono. Mas os servos, recolhidos há menos de uma hora, ouviram-no queixar-se, desta vez com voz humana. Tendo acorrido, viram-no todo envolvido no lençol e, como se não suportasse o calor, caído da cama no chão. Mas, depois de o levantarem, descobriram que estava sujo de sangue já negro, devido a uma larga ferida que provocara a si mesmo ao deixar-se cair sobre a sua própria espada. Parecia ainda respirar. Mas, uma vez deitado de novo na cama, aperceberam-se com espanto de que estava morto.

 

                   MAOMÉ

Maomé julgava ter recebido da natureza o dom de um sexto sentido, o do pressentimento. Sentido das poucas coisas que poderiam ser de entre as infinitas que são; da iminência sem­pre possível da unidade na desordem dos contrastes; do princípio e do fim. Por força desse sentido, parecia-lhe ter permanente­mente na língua palavras que não sabia dizer, no olhar visões que não podia ver, na ponta dos dedos formas que não conseguia tocar. O sexto sentido extraviava os outros cinco com indícios delusórios, impedindo-lhes assim o acesso ao mundo real. Nada mais desejava ele, perdido para o mundo; mas o que pressentia escapava-lhe continuamente. Maomé sentia-se perpetuamente no limiar do mistério; mas sentia também que, para ultrapassar esse limiar, só as suas forças, humanas forças, nunca seriam suficientes. Ele queria que a sua alma se libertasse de todas as preocupações mundanas, tornando-se parecida com aqueles vales mortos do deserto, onde não cresce um único fio de erva, nem nunca corre água e que parecem conservar-se tão nus e vazios para melhor acolher o ribombar dos raios celestes; mas, prestes a repercutir as vozes supremas, a alma de Maomé calava-se e o eco pressentido não se decidia a ocupar a sua solidão preparada e ávida. Nesta aridez sequiosa, Maomé sentia-se secar, nesta ebriedade sedenta, morrer. Já não havia nem dias nem noites para ele, mas apenas expectativa.

Porém, tal como na linguagem daqueles que um susto tor­nou mudos, que sai entrecortada, desligada e incompreensível, de vez em quando, nas longas peregrinações pelo deserto, de repente começava a balbuciar. Via espalhados na face da terra povos que a falta de esperança tornava ferozes, como os bichos que são fechados no saco do parricida e atirados às águas com ele; esses povos estavam dispostos... mas a quê? Voltavam à sua memória gritos, distâncias, céus, músicas, noites, invocações. Mas se a alma, cansada de tocar em vão à porta encerrada do pressen­timento, desistia e deixava lugar à mente, tudo se tornava até demasiado claro. Os indícios multiplicavam-se e coincidiam to­dos: as nações tinham-se libertado dos seus vínculos naturais e aspiravam a um verbo comum que as reunisse; individualmente nunca tinham estado os homens tão perdidos e infelizes, nunca a vida humana fora tão desprezada e sem valor, nunca tão grande a impiedade. Nenhuma potência terrena parecia capaz de pôr cobro a um tão ingente conjunto de males; a.filosofia, aterrorizada, calava--se ou declarava a derrota da razão humana; os antigos ídolos pagãos revelavam-se a cada dia por aquilo que eram: simulacros de divindades criadas pelos homens para os homens. Mais, apa­reciam a Oriente e a Ocidente, com a tarefa de destruir, os con­quistadores, que consideram os homens forragem para os seus cavalos; desta forma a funesta igualdade que os vícios não tinham produzido, viria a ser alcançada com a morte. Tudo isto era bom, sussurrava-lhe a mente, era propício, era óptimo. Mas o que é a mente?, perguntava-se Maomé em desespero. Nada mais do que medida; e o incomensurável escapa-lhe. A própria natureza não era mais confiável. De facto, bastava uma bebedeira ou um sonho para ver o Sol cair e os bichos voar, para ouvir as pedras e as areias falar, para sentir os perfumes ecoar como músicas e as músicas cheirar como perfumes. Pior ainda acontecia quando, desdenhando o pensamento orgulhoso e afastando-se dos falsos mistérios naturais, se misturava com os homens. Então todos aqueles cuidados vãos davam-lhe a sensação de moinhos que moíam fumo e, quanto mais moíam, mais saía, negro, denso, su­focante.

Maomé invocava apenas uma frase, saída da sua boca mas dita por Deus; ao som dessa frase o mundo inteiro tornar-se-ia santo. Santos os casamentos, os nascimentos, as mortes, santas as guerras e os negócios, santas a riqueza e a pobreza, santos os homens e a natureza. Mas a frase não saía, e então Maomé deses­perava; e era tentado pelo pensamento ímpio que não era de Deus que poderia receber a palavra que procurava, mas sim de um homem. O mundo era imenso, com países, montanhas, ma­res e cidades além do horizonte; era possível que em toda esta imensidão não houvesse um homem, um único homem que co­nhecesse as coisas supremas? Maomé teria ido em peregrinação à procura de tal homem. Mas o pressentimento detinha-o, advertin­do-o de que esse homem só podia ser ele mesmo; se ele morresse, não haveria mais ninguém em todos os séculos vindouros.

A juventude já ia longe; mas o fervor de Maomé não dimi­nuía. Saía todos os dias de casa, deixava a cidade, seguia a pista das caravanas, antes de entrar pelo deserto adentro. Só o deserto conhecia os seus prantos, as suas orações, os seus gritos e os seus silêncios. E, caso não viesse a ser atendido, só o deserto acolhe­ria, juntamente com os seus ossos, a confissão da sua derrota. Para a cidade, morreria um austero e honrado mercador. Os amigos falariam dos seus olhos, da sua barba, do seu belo aspecto e das suas riquezas. Mas a Deus seria devolvida a alma da qual não se quisera servir conforme parecia ter prometido. Essa intimidade e esse segredo confortavam Maomé. Lutava contra os anjos, mas aos olhos dos homens não deviam ficar marcas, nele, desses combates. Ele fazia-se entre os homens tanto mais modesto e humano quanto mais lhe parecia aproximar-se o momento da revelação. E se no deserto pedia a Deus a morte, como libertadora de tamanha infelicidade, na sua casa, ao lado da mulher, continua­va a invocar a paz e o gozo tranquilo dos bens que desprezava. Bom Maomé, sábio Maomé, prudente Maomé, virtuoso Maomé, chamavam-lhe os amigos; mas no deserto ele já não era nem bom nem sábio, nem prudente nem virtuoso; mas apenas aquele que aguarda e espera. E ao fim dos longos dias de expectativa vã, o seu desejo era atirar-se ao chão e rasgar as roupas pelo deses­pero. Pois bondade, sabedoria, prudência e virtude, sem a luz de Deus, eram apenas nevoeiro e palavras de nevoeiro.

Ora aconteceu que uma noite Maomé, empurrado por uma inquietação insuportável, saiu de casa e a seguir, de rua em rua, deixou a cidade. As brancas muralhas ameadas durante algum tempo elevaram-se atrás dele que caminhava; durante algum tempo mais ouviu o ladrar dos cães nos quintais, cada vez mais fraco, depois as dunas, elevando-se até ao céu, engoliram as muralhas e o silêncio apagou o clamor canino. A noite estava excessivamen­te calma. No meio do céu a foice esverdeada da Lua estava suspensa numa auréola purulenta, como uma minhoca que as formigas devoram; e como uma minhoca, parecia visivelmente contorcer-se; a toda a volta as estrelas cintilavam desgrenhadas e furiosas; e o deserto desvendava-se até ao horizonte com o seu pulular de dunas, cinzento e gelado. Maomé inicialmente seguiu a pista das caravanas, depois encaminhou-se ao acaso por entre as dunas. Até que chegou a um planalto arenoso, levemente em subida, todo espraiado de blocos erráticos que expandiam sombras compridas no declive branqueado pelo luar. Um anfiteatro de penhascos negros, aqui e além polidos como o ferro, coroava a subida, que parecia convergir para o orifício escuro de uma gran­de caverna aberta sob aqueles penhascos. Uma vez chegado ao limiar da gruta, Maomé deitou-se e levantou os olhos para o céu. Então, de súbito, diante dos seus olhos, todo o céu desven­dou o seu fundo, tal como o mar o desvenda, quando as ondas se retraem. Não uma, mas nada mais nada menos que cinco Luas resplandeciam, semelhantes a corolas desfeitas e enfeitiçadas, as estrelas pareciam olhos pestanudos que rodavam as pupilas, as­tros nunca vistos zumbiam entre a miuçalha estrelar, uns compostos por anéis dourados, outros em forma de globos flamejantes, uns hexagonais, outros hirtos de bicos em chamas. Os cometas de soberba cabeleira lançavam-se em todas as direcções, os planetas turbilhavam como piões, as constelações ondulavam e contorci­am-se. Havia nessa visão uma certa ostentação, conforme com­preendeu Maomé: os céus eram-lhe desvendados para que pu­desse admirar a sua extraordinária complexidade e riqueza. Depois, levantou-se um crepitar terrível e Maomé viu todos estes astros retraírem-se, caindo uns em cima dos outros e todos juntos para Ocidente. Alguém os varria para longe, como se, apesar do seu fulgor e da sua beleza, estivessem a mais e tivessem que desem­baraçar o céu para dar lugar a uma aparição maior. Era uma mão, Maomé teve imediatamente a certeza disso, imensa e invisível, que, depois de lhe ter desvendado o céu até às galáxias mais longínquas, demonstrava agora a sua potência esvaziando-o de qualquer esplendor. Na verdade, essa mão no céu era parecida com a mão da dona de casa que limpa com um pano a mesa suja: a cada passada, o monte dos astros varridos para longe tornava--se maior, a escuridão mais ampla. Em pouco tempo todo o céu ficou vazio e negro, excepto a Ocidente onde o monte dos astros, juntamente com a Lua e as estrelas, se punha lentamente, apa­gando-se atrás da linha do horizonte. A seguir, eis que um ponto luminoso se acende, dando ao céu a forma de um funil; Maomé julgou vislumbrar nesse ponto um anjo lançado em voo que fen­dia o espaço; mal o vira, já estava por cima dele encandeando-o de luz. Ele caiu de costas contorcendo-se e espumando da boca. Parecia-lhe que uma mão poderosa lhe tivesse agarrado na língua pela raiz e a puxasse para si, tal como se costuma fazer a uma erva daninha que se quer arrancar. A mão furiosa, provocando--lhe uma dor intensa, arrancava-lhe a língua, finalmente; e com ela algo saía do seu corpo: a velha alma muda e impotente. Ele falava; e eram as palavras tão esperadas. Mas já a luz voltava a subir fulmínea, diminuía, desaparecia.

Um leão e uma leoa saíram da caverna e aproximaram-se lentamente do corpo estendido de Maomé. O leão sacudiu a juba hirsuta e deitou-se ao lado de Maomé observando-o com os olhos vermelhos e ardentes. A leoa lambeu Maomé caído, as mãos cra­vadas na areia. A Lua banhava Maomé com a sua luz e o seu rosto brilhava, apesar de manter os olhos fechados. A seguir a leoa afastou-se pelo planalto rodeando os blocos erráticos; e o macho foi atrás dela. As suas sombras vaguearam demoradamente pelo declive entre os blocos, silenciosas, lentas, vagabundas; fi­nalmente desapareceram.

Maomé, que ficara até então estendido como morto, levan­tou-se e foi com passada segura que desceu o declive afastando--se da caverna. Pensava que todos os povos que dormiam naque­le momento deviam conhecer o primeiro sono leve depois do pesadelo que durava desde o princípio dos tempos. Pois o prodígio acontecera; e ele aprestava-se a acender uma esperança que nun­ca mais se apagaria ao longo dos séculos.

 

                   OS SONHOS DO PREGUIÇOSO

Todas as manhãs, ao acordar, Talamone pensa na morte. O pensamento surge-lhe naturalmente, borra triste e incrível do cálice fundo bebido ao longo de toda a noite. Tal como os amantes depois do amor, assim Talamone pensa na morte depois do sono, seu único e máximo prazer. Intriga-o esse sono sem fim, de ossos e pó que um dia interromperá para sempre os breves sonos de carne, de sangue e de suor em que ele nunca deixaria de mergulhar. Pensa: «Um dia cessarei de viver», mas na verdade é como se dissesse: «Um dia cessarei de dormir e de sonhar.» Pois, se o sono é o maior prazer de Talamone, dentro desse prazer outro se esconde, mil vezes mais subtil e mais apetecido, que é o de sonhar. O que foi que aconteceu, por exemplo, naquela noite, enquanto dormia? Estando debaixo dos cobertores até ao queixo, Talamone tenta reencontrar um a um os sonhos que, como um comboio iluminado e cheio de gente num campo nocturno, lhe atravessaram a memória a grande velocidade, dirigidos sabe-se lá para onde com a sua carga de aventuras e de espantos. Ah, poder reencontrar o momento em que, num círculo de pessoas admira­das, ele librava com grande facilidade a toda a volta das paredes nuas de um quarto alto e despido. Talamone concentra-se nesse primeiro sonho, tentando pescar também os outros que se segui­ram, mas o sonho, tal como um peixe de grande profundidade, dá um esticão ao anzol, come o isco e foge. Já é tarde, é preciso levantar-se.

«Vou-me levantar», pensa Talamone. E, como se ao formular esse pensamento, já tivesse cumprido o acto, fica mais parado do que nunca; mais, tapa com os cobertores o braço que tinha esti­cado fora deles. É que, desvanecidos os sonhos nocturnos, come­çam aqueles a que Talamone se abandona em pleno dia. Constitucionalmente preguiçoso, ele nunca soube abandonar a idade pueril, dom generoso da natureza, para passar às sucessivas, fruto de experiências e de esforços demasiado fatigantes; de forma que, tendo ficado criança, continuam a apaixoná-lo pensamentos de violência, de actividades turbinosas, de determinações extremas, de aventuras. Pensamentos, não actos, já que no meio existe o grande mar da preguiça; pensamentos sem actos, que em outras pessoas se tornariam remorsos, veleidades, venenos da alma, mas que em Talamone, delicado e pueril, se transformam agradavel­mente em sonhos. Aliás, reflecte Talamone, é sobretudo nas ac­ções violentas, pouco usuais, grandiosas, que se pressente o de­licioso sabor do sonho. Não é por acaso que acerca de experiências pouco vulgares se diz: foi um sonho, parece-me estar a sonhar, é um pesadelo, e assim por diante. Agir, em suma, é sonhar de olhos abertos. Pelo contrário, ao deixar-se viver no fio sonolento dos dias todos iguais, chega-se inevitavelmente a uma clareza cruel e irracional. «Sonhemos, pois», pensa Talamone. Ele não precisa certamente dessas justificações e destes estímulos.

Talamone, ainda aninhado no quentinho da cama, pensa de repente em agarrar num revólver, metê-lo no bolso, correr pelas ruas, entrar numa casa, atirar, matar. Mas matar quem? Não interessa, matar. Uma vez entrada neste caminho, a fantasia de Talamone perde-se, com densidade decorativa, nos pormenores: uma mulher que ele ama ou que o ama, um crime por amor, a prisão, o julgamento, o cárcere... Nesse instante o despertador, prudentemente recarregado por Talamone, aquando do primeiro acordar, para meia hora depois, desencadeia o seu toque maldito. Talamone sai contrariado do cárcere imaginário, onde já se sentia muito bem, e levanta-se mesmo. Suspirando põe os pés no chão, passa com o seu corpo pingue através de todos os fios de luz que riscam a penumbra do quarto e vai-se vestir à casa de banho.

Grande, forte, majestoso e grave, com um rosto ponderado e esquisito de homem de ordem e de homem de bom gosto, quem não tomaria Talamone por um personagem importante e cheio de sabedoria, dos que, como se costuma dizer, constituem os alicerces da sociedade? Pelo contrário, nos sonhos, pelo menos, é um espírito de duende, um pequeno tirano, um malcriado, um facínora e não sei o que mais. Ei-lo no autocarro, apinhado na multidão dos outros empregados, parece acordado, mas na verdade dorme. E enquanto dorme, sonha. Imagina estar no lugar do condutor e de repente começar a acelerar desalmadamente, sal­tando as paragens de enfiada. Gritos e protestos das pessoas, tentativas de corajosos para o deter, nada vale. Acelera, acelera, abandona o centro, irrompe a toda a velocidade pelas ruas da periferia, avança para o campo aberto. Num lugar deserto onde se estendem prados belíssimos cheios de flores amarelas, pára o autocarro e liberta o seu carregamento de empregados furiosos. Mas, ao verem aqueles prados, aquele. Sol, aquele esplendor, acalmam-se como por magia, agarram cada um num pau com uma rede e desatam a apanhar borboletas. Grandes borboletas brancas que voam ondulando sobre aquele mar de ervas e flores; ao perseguirem-nas, cedo os empregados negros, a perder de vista, parecem um amplo e desarticulado bando de corvos vindos do céu: os mais próximos, grandes com as fraldas esvoaçando; a alguma distância, menos pormenorizados, os mais afastados, manchas pretas que vagueiam aqui e além pelo ar cheio de Sol nos prados floridos, seguindo o voo mole e brincalhão das bor­boletas brancas... Sonho delicioso, mas o autocarro pára mesmo, Talamone sai, entra pela porta cumprimentado por uma grande barretada do porteiro, sobe gravemente um lanço de escadas, entra no escritório.

Aqui Talamone trabalha um pouco, tal como durante a noite lhe aconteceu sonhar. Distante, fechado no casulo de uma irrealidade mágica, cumpre as numerosas tarefas com uma facili­dade que o espanta e parece um pesadelo; precisamente como no sonho, quando lhe parecia librar no ar, enquanto toda a gente em volta levantava o nariz para o admirar. De resto, a sua activi­dade, apesar de burocrática, não carece de pretextos para a sua fantasia distraída. Por exemplo, entra um subalterno que Talamone odeia por uma quantidade de motivos, todos justificados: rastejante, adulador, hipócrita, arrivista, pávido. «Cortar-lhe a cabeça», pensa Talamone com impiedosa frieza, mal o vê. E enquanto com voz pacata dá instruções e responde amavelmente às objecções, um patíbulo levanta-se no pátio do prédio e o jovem sobe até ele acompanhado por um frade consolador. Dessa imaginação nada transparece no rosto imóvel de Talamone, que continua a dar as suas ordens ao empregado obsequiente. E nada transparecerá nunca, pois Talamone, dada a sua preguiça, nem sequer toma em consideração a eventualidade de fazer com que o jovem sinta a sua antipatia; antes pelo contrário, por um escrúpulo esquisito da consciência, tratá-lo-á melhor do que os outros empregados. Bastante melhor do que aquele outro jovem de rosto aberto e inteli­gente cuja aparição leva imediatamente Talamone a pensar: «Di­zer-lhe que estou satisfeito com ele, promovê-lo, abraçá-lo.» Mas o jovem nunca se sentirá louvar; pelo menos no que depende de Talamone, nunca será promovido; muito menos será abraçado. A preguiça de Talamone satisfazer-se-á com uma preferência exclu­sivamente fantástica. Será mais provavelmente o odioso tartufo digno da guilhotina que, graças às suas más artes e à inércia de Talamone, obterá a promoção não merecida.

Talamone come sozinho, no seu quarto, a uma mesinha posta ao lado da sua querida cama. Come deitado à moda dos romanos, alternando as garfadas com longos devaneios, reflectindo pro­fundamente sobre questões do género: se estivesse cercado em casa, quanto tempo poderia resistir defendendo-se com uma boa metralhadora? Ou então: se um leão entrasse no seu apartamento, teria ele tempo de se pôr a salvo na varanda e daí, agarrando-se ao tubo do algeroz, descer à rua? Na altura da sobremesa, os olhos de Talamone toldam-se, as pálpebras tornam-se pesadas, de repente deita-se de costas na cama e adormece. Ou melhor, mais do que dormir, deixa que o sono, tal como a água baixa de um lago faz a um barco apodrecido, o invada devagar, sem porém o submergir completamente. Entre a vigília e o sono, os ruídos chegam voluptuosos e remotos: o roçar de seda dos carros no asfalto da rua, as longas vozes apaixonadas do vento, o zumbido de um avião perdido no céu. O sono envolve o corpo de Talamone, mas não a sua mente. «Um punhal», balbucia ele, imaginando as habituais violências. «Dêem-me um punhal»; e geme e contorce--se gozando a sua impotência.

Por volta das quatro, como que picado por uma tarântula, Talamone pula da cama e, vestindo-se com todo o cuidado, vai fazer uma visita a que atribui a máxima importância. Trata-se de uma viúva madura com quem o nosso cavalheiro há pelo menos um ano sonha casar-se. Essa visita, como aliás todas as anteriores, deveria ser decisiva. Talamone sai então de casa e, depois de ter sonhado comprar um ramo de violetas frescas, ainda embalado por esse sonho que não lhe foi possível transformar em realidade, sobe quatro lanços de escadas e toca a uma pequena porta. Quem abre é a própria viúva, que espiava há muito tempo a sua chegada por detrás das cortinas de uma janela. A casa da viúva é algo velha e nítida; a limpeza naqueles quartinhos baixos que cheiram a madeira seca, entre aqueles móveis polidos, tem algo de musi­cal. Talamone e a viúva sentam-se num sofá duro de repes, tendo à sua frente o tabuleiro com o café; com a chávena vazia, Talamone olha para a viúva e esta para Talamone. A viúva, uma loura enorme com cara de criança, tem a cabeça pequena com o cabelo curto, os ombros gordos, o busto volumoso e palpitante, os braços for­tes, as ancas majestosas. Envolvida em sedas e véus pretos vapo­rosos, parece duas vezes maior, mas isso não desagrada a Talamone, antes pelo contrário, ele aprecia formas amplas e classicamente desenvolvidas. Como em muitos casos acontece com as mulheres de constituição forte, tem os tornozelos e os pulsos delgados e uma vozinha doce que encanta Talamone. Ela queria criar uma atmosfera favorável de intimidade, mas, acanhada, apenas consegue dirigir ao hóspede perguntas insignificantes sobre o tempo, o trabalho, a saúde e outros tantos assuntos, às quais Talamone responde com monossílabos. Na verdade, já há muito tempo que tem na cabeça a conversa que queria ter com ela, mas com a sua preguiça galgou os limites do presente e começou a fantasiar sobre o futuro, como se já tivesse tido essa conversa, e o casamento já estivesse combinado. Ei-los casados, vivem juntos, comem juntos, passeiam juntos, dormem finalmente juntos, um ao lado do outro, com as cabeças mergulhadas em bonitos almofadões guarnecidos com rendas, os cobertores grossos pu­xados até ao queixo. E noutros quartos Talamõezinhos de ambos os sexos dormem também em camas bem aconchegadas... Talamone sonha de olhos abertos e não se apercebe de que mal está a responder à sua anfitriã, a qual, entre as suas simples e patéticas perguntas e o silêncio de pedra do visitante, vê aproxi­mar-se com desapontamento amargo o fim da visita. Finalmente Talamone levanta-se e despede-se daquela que ao longo de toda a visita foi a sua mulher e o será, embora num plano fantástico, sabe-se lá por quanto tempo ainda. No vestíbulo, ao agarrar-lhe a mão, Talamone pensa que o momento é agora ou nunca mais; e mentalmente ajoelha-se, com os lábios naquela pequena mão. Mas nada faz, e, cumprimentada a viúva quase bruscamente, vai--se embora.

Satisfeito com o seu dia, Talamone volta para casa, come e vai para a cama.

 

                   A VERDADE SOBRE O CASO DE ULISSES

... e comeu carne humana... Odisseia

Tendo chegado ao ouvido do governo da Majestade Ciclópica que um súbdito seu chamado Polifemo empreendera com êxito a criação de um animal nunca visto até então, animal esse, ao que se dizia, comestível e de grande rentabilidade, o referido governo, desejoso, como sempre, de aumentar os meios de sub­sistência do seu povo, deliberou enviar uma comissão de técni­cos com o fim de averiguar quanto de verdade continham os boatos que corriam. A comissão deslocou-se, pois, à longínqua localidade costeira onde morava o criador. Mas, depois de uma curta estada, regressou com a notícia surpreendente de que a criação deixara de existir. De qualquer forma, mesmo que se apresentasse a oportunidade de repetir a experiência, os técnicos desaconselhavam-no vivamente. Por mil e uma razões que enu­meravam num relatório. Do qual, omitindo os preâmbulos, extraí­mos os trechos seguintes.

«... e saiba antes de mais nada, Majestade, que o dito Polifemo tem em toda a região fama de criador habilíssimo. As suas col­meias racionais são conhecidas por todos os apicultores do Reino; afamados são os seus cruzamentos de carneiros lanígeros, graças aos quais, depois de muitos e pacientes estudos, obteve nada mais nada menos do que três espécies diferentes e completamente novas; dos suínos de Polifemo nem vale a pena falar, tendo talvez chegado também ao Vosso ouvido o eco dos louvores que granjeiam universalmente. Estes pormenores acerca da actividade de Polifemo talvez possam parecer inúteis, mas na verdade não o são. Com efeito, antes de avançar na narração dos acontecimen­tos, fazemos questão de deixar bem claro que Polifemo não é um camponês ignorante que se dedicou por acaso a uma empresa superior às suas forças, mas sim um criador experiente e muito atento. E que, é este o ponto importante, ele nada empreende nem nunca empreendeu a não ser racional e cientificamente. In­sistimos de propósito sobre essa qualidade racional das criações polifemianas. Ela explica os êxitos até agora alcançados, ao mes­mo tempo que torna ainda mais misterioso o falhanço da sua tentativa mais recente.

«Pois bem, diz Polifemo que, há algum tempo, costumava encontrar na praia, especialmente depois das tempestades, um ou outro exemplar daquela nova espécie a que ele chama olhu­dos, talvez pelo facto de, diferentemente de toda a fauna do Reino, possuírem não um mas dois olhos. Polifemo encontrava alguns desses olhudos mortos e esfrangalhados pelas ondas entre as algas e os detritos marinhos; outros vivos, aninhados nas cavi­dades das rochas. Diz que um dia, tendo apanhado um deles vivo, o comeu, regando-o com uma caneca de leite; e que o achou muito bom, de um sabor delicado entre o coelho e a rã e, segundo todas as aparências, dotado de altas qualidades nutri­tivas. Desde então ganhou o hábito de comer todos os que lhe vinham parar às mãos, quer mortos quer vivos, achando-os sem­pre óptimos e corroborantes. Mas, passados uns meses, aconteceu-lhe descobrir numa gruta nada mais nada menos do que quarenta exemplares, dos quais cinco eram fêmeas. Então, atraído pela esperança calejada por qualquer zootécnico, de enriquecer a nossa fauna com uma nova espécie doméstica, decidiu tentar a sua criação.

«Tomada esta decisão, ele julgou com razão que, se um mé­todo racional é sempre aconselhável na criação de qualquer ani­mal, neste caso, dada a novidade e a falta de noções certas, este método era indispensável. Portanto, nada de improvisações, nada de deixar actuar a natureza, que raramente actua bem, nada de abandono semi-selvagem, tal como é praticado por camponeses ignorantes com o único resultado de encher os bichos de doenças e de parasitas e de diminuir o seu valor comercial. Em vez disso, o mais rígido controlo, em particular sobre a alimentação e a habitação, de forma a favorecer os nascimentos e a permitir a recolha dos dados estatísticos necessários para o desenvolvimen­to futuro da criação. Polifemo, conforme já se disse, contara trinta e cinco machos e cinco fêmeas. Julgando na base da prolificidade dos outros pequenos mamíferos (o olhudo, ao que parece, não é maior do que uma toupeira vulgar), ele pensou que ao fim de pouco tempo a sua criação pelo menos dobraria...»

Nesta altura o relatório passa a descrever minuciosamente o animal, descrição essa da qual, diz o relatório, se pode deduzir que, exceptuando o estranho pormenor dos dois olhos e o facto de serem rosados e privados de pêlos como as minhocas, os olhudos são muito parecidos com os ciclopes, devendo-se por isso incluí-los na espécie dos ciciopóides. O relatório descreve também, com muita abundância de pormenores, as especiais caixas racionais inventa­das por Poiifemo para a habitação e o acasalamento dos olhudos. Sobre todas estas descrições, recheadas de termos técnicos, não nos vamos demorar excessivamente. Elas são sem dúvida interessantes para os estudiosos dessas questões e testemunham o alto grau de desenvolvimento científico alcançado pela nação ciclópica nos domínios da zootecnia, da etnologia, da ecologia, da bioquímica e, em geral, das ciências biológicas; mas correriam o risco de tomar ainda mais aborrecida a nossa já por si árida narração; aliás, não é propriamente esse o aspecto da questão que nos interessa. Basta dizer que o relatório insiste de novo sobre a racionalidade perfeita da criação encetada por Polifemo; chegando quase a insinuar nas entrelinhas que, se algum defeito houve, não deve ser imputado ao criador; o qual fez tudo quanto era ciclopícamente possível para que a experiência resultasse.

Quebrada esta lança em favor do método e dos meios polifemianos, o relatório prossegue da seguinte forma: «...dada a bondade das ideias e a rígida consequência da sua actuação, era de esperar que dentro de pouco tempo a criação florescesse. Mas assim não aconteceu. Antes de mais nada, embora Polifemo pro­curasse isolar as fêmeas em jaulas apropriadas, onde introduziria os machos nos momentos mais oportunos, nenhum acasalamento se realizou. Na maior parte dos casos, os dois olhavam-se com má cara. Ou então, ficavam inertes um ao lado do outro. A pro­pósito das fêmeas, Polifemo fornece um pormenor curioso: o de que nelas, mais do que o medo, actuava o desejo de se taparem. Com efeito, Polifemo agarrava-as com as mãos e, apesar de sentir claramente o coração bater furiosamente naqueles pequenos corpos, todavia os gestos não eram tanto de medo, como, por assim dizer, de pudor. Com aquilo que nos vemos obrigados a chamar braços, as estranhas criaturas procuravam tapar os mem­bros, ou puxavam para o corpo as cabeleiras compridas e finas, soltando umas estridulações débeis e agudas. Observa aqui Polifemo que os olhudos estão desprovidos de palavra, como convém, apesar de moverem continuamente a boca, como os coelhos e os outros roedores; de forma que essas estridulações são de considerar como os únicos sons que têm capacidade de emitir. Mas, além de não acasalarem, os olhudos pareciam visi­velmente enervar-se e mirrar. Cada um fechado na sua caixa, Polifemo via-os, uns agitarem-se furiosamente, outros, em particular as fêmeas, jazerem na palha do ninho, cansados e desmoralizados. Toda a criação, em suma, parecia vítima de uma epidemia de agitação e de tristeza. E a comida, que Polifemo renovava sem tréguas, mal era tocada.

«Nos dias seguintes os sintomas funéreos tornaram-se cada vez mais numerosos. Um dia de manhã, Polifemo encontrou duas das fêmeas mortas nas suas jaulas. A seguir foi a vez de nada mais nada menos do que seis machos, que encontrou mortos de uma forma estranha, isto é, três com o pescoço apertado por uma corda fina atada às barras da jaula, dois feridos no abdómen como por armas de corte e o sexto com a cabeça partida, parecendo ter batido contra as paredes da caixa até se desfazer. Polifemo confes­sa não saber ao que podia imputar este estado de coisas. Tudo quanto era necessário, ele fizera. As caixas estavam limpas, os comedouros cheios, os bebedouros extravasavam, a ventilação era perfeita, cada indivíduo estava separado dos outros, o que mais se podia fazer? Nestas condições, uma criação, de cães por exemplo, já estaria mais do que redobrada. Mas, apesar de todos os seus cuidados, a mortandade continuou nos dias que se segui­ram. Encontrou mais três mortos com a habitual corda em volta do pescoço. Dois, dos quais uma fêmea, teve Polifemo que os matar, julgando-os incuravelmente doentes e sabendo bem que em casos destes não vale a pena insistir com os cuidados e a morte imediata se impõe como única solução. Entretanto os outros continuavam a agitar-se; e Polifemo diz nesta altura que é incrível como animais de tão fracas forças são capazes de um frenesim tào incessante e persistente.

«Um dia de manhã, umas nuvens negras de fumo fizeram acorrer Polifemo, Verificou que a palha do ninho tinha pegado fogo em mais de dez jaulas. Resultado: sete indivíduos mortos sufocados, dois vitimados por asfixia, um moribundo que Polifemo teve que abater. O criador, considerando que, se continuasse as­sim, ao cabo de poucos dias toda a criação estaria morta, tomou uma decisão corajosa. Tirou todos os animais das caixas e fe­chou-os juntos numa grande jaula colectiva, também esta racional, que se tinha revelado de muita utilidade na criação dos castores. No início a novidade pareceu produzir um bom efeito. Os olhudos reagiram visivelmente, acalmando-se os agitados e reanimando--se os desmoralizados. Toda a criação monstrou sinais evidentes de nítidas melhoras. Nesta segunda fase Polifemo teve a possibili­dade de fazer algumas curiosas observações. Primeiro, os olhudos, dotados, ao que parece, de fortes instintos sociais, reuniam-se, ou pareciam reunir-se, em volta de uma espécie de elevação construída por eles com pedregulhos, e cumpriam gestos estranhos, como de prosternação e de oração. Em segundo lugar, pareciam obedecer todos a um deles, não mais robusto nem diferente, o qual evi­dentemente tinha o mesmo papel que entre as abelhas cabe à rainha. Este chefe parecia ter instituído uma espécie de disciplina, sendo ele quem distribuía a comida entre os companheiros, quem dormia atrás de uma pequena vedação engenhosamente construída com raminhos e palhinhas, levando atrás de si todos os outros nos seus incompreensíveis vaivéns pela jaula. Polifemo notou também que as fêmeas tinham deixado de ser descuidadas como dantes, sendo continuamente acompanhadas por dois machos a quem o chefe parecia tê-las entregado. Disso o criador deduziu que a tribo iria aumentar dentro em breve com alguns nascimen­tos. Mas aconteceu precisamente o contrário.

«Passados poucos dias, de facto, Polifemo descobriu que quatro machos, entre os quais os dois que pareciam mais agradar às fêmeas sobreviventes, tinham morrido. O sangue espalhado em volta dos seus pequenos corpos, os sinais incontestáveis de uma violência exterior, levaram Polifemo a supor que, tendo guerreado por rivalidade amorosa, se tivessem matado um ao outro. Mas enquanto examinava as marcas dessa espécie de bata­lha, aconteceu um facto ainda mais estranho. O chefe de que já se falou atirou-se, seguido por outros quatro machos, a um dos seus companheiros e, antes que o criador pudesse intervir, truci­dou-o arrancando-lhe a cabeça do corpo. A seguir, conforme re­lata Polifemo, a cabeça ensanguentada foi espetada num pau e levada, como que em triunfo, pela jaula. Tudo isto, é preciso frisar, foi executado com ordem e quase, dir-se-ia, com premeditação. Entretanto as fêmeas estavam mais desanimadas do que nunca e toda a tribo parecia ter voltado à agitação primitiva.

«Passada uma semana, houve uma nova surpresa. Mais sete indivíduos jaziam mortos, cada um na sua cela, evidentemente assassinados durante o sono. Polifemo atribui essa nova matança a uma rivalidade misteriosa, que, em seu entender, dividira a tri­bo em duas facções. Assim sendo, a criação estava já quase reduzida a metade, tendo os animais passado de quarenta, que eram ini­cialmente, para vinte e dois apenas. Mais quatro, de um modo absolutamente misterioso desta vez, morreram uns dias mais tar­de contorcendo-se e ficando a seguir enrijados em estranhas e funéreas posições, com os corpos inchados e espraiados de man­chas obscuras. Sobravam, pois, apenas dezoito.

«Acontece nesta altura o acidente mais misterioso de toda a história. Polifemo conta que, desesperado com o fraco resultado da criação, decidiu renunciar e comer de ânimo leve os animais que restavam.

«Entretanto, julgando que o ar livre, o espaço e a falta com­pleta de cuidados racionais talvez favorecessem a engorda dos olhudos mais do que tinham feito até então as suas aplicações científicas, tirou-os a todos das jaulas e pô-los em liberdade num amplo relvado cercado por uma vedação baixa, onde, à noite, costumava fechar o rebanho regressado da pastagem. Mais tarde, depois de ter comido as duas fêmeas sobreviventes e ter bebido numerosas crateras de vinho caloroso, foi-se deitar. Mas ao ama­nhecer foi acordado por uma dor muito aguda no olho. Tendo despertado completamente e tirado da órbita um pau aguçado que nela estava fincado, verificou que estava cego. Deste último acontecimento Polifemo dá uma explicação bastante complicada. Diz que não eram animais, mas sim ciclopes, embora pequenos e diferentes de nós; que todo o seu erro fora o de os considerar bichos; que o chefe deles se devia chamar Ulisses, pois tinha-lhe sido vaticinado que alguém, precisamente com esse nome, o ce­garia; que imaginara esse tal de Ulisses como um gigante desme­dido, sendo essa a origem do seu engano; e outros cem desvarios do mesmo género. Nós, pelo contrário, pensamos que ele, podre de bêbado, se tinha de alguma forma ferido durante o sono, in­ventando a seguir estas mentiras para justificar a sua desgraça e o falhanço da criação. Pois não se pode de forma alguma atribuir a bichos totalmente desprovidos de inteligência e de livre arbítrio, como o são evidentemente os olhudos, a invenção e execução de um acto tão difícil. De qualquer forma, exceptuando essa estra­nha mentira de Polifemo, todo o resto é verdade. Quanto aos olhudos, nessa mesma noite conseguiram fugir, agarrando-se, na opinião de Polifemo, às barrigas dos carneiros enquanto iam pastar; deles nunca mais se soube nada. Mas a sua existência é provada pelos pequenos ossos roídos que encontrámos na cozinha, entre os outros detritos do caixote do lixo. Ossos de todo diferentes dos de qualquer animal do Reino, os quais, oportunamente reconjuntados, nos pemitiram reconstruir um par de esqueletos que poderão ser expostos no Museu de História Natural da Capital.» Em jeito de conclusão, o relatório diz que o falhanço da criação pouco ou nada se explica. A experiência ensina que as espécies domésticas (e não há dúvida de que os olhudos são domésticos) são infinitamente plasmáveis, na condição de se terem ideias claras acerca dos fins a atingir e dos meios a utilizar. Não se pode certamente imputar a Polifemo a racionalidade dos seus métodos. Pelo contrário, o único reparo que se lhe pode fazer é o de ter abandonado a determinada altura os sistemas até então seguidos em favor de outros totalmente opostos. Se tivesse insis­tido sem se deixar abalar pelos primeiros insucessos, talvez três quartos da criação tivessem morrido, mas teria obtido do quarto restante os resultados a que se tinha proposto. Contudo, resta o facto de o olhudo se mostrar supremamente refractário a um tra­tamento racional e científico e que a sua criação nunca se poderá generalizar tal como a de bichos tão mais rentáveis como o são os ovinos, os frangos e as outras espécies domésticas.

 

                   VIAGEM AO ALÉM AMERICANO

Quando me encontrava nos Estados Unidos, correu na im­prensa, sob os títulos significativos de «Verdade ou fanta­sia?», «Efeitos de uma bebedeira», «Um novo Dante», «Pecadores, arrependei-vos: o Além existe», «Um caso de auto-sugestão», entre outros, a longa narração de um mineiro de cinquenta anos de Pittsburg, o qual pretendia ter estado no outro mundo. Essa nar­ração continha, misturados com tediosos moralismos de origem bíblica e alusões políticas ordinárias, pormenores bastante inte­ressantes; pelo que, achando que não seria de todo inútil guardar memória do caso, pelo menos para esclarecer a psicologia do povo americano, recortei de todos os jornais que me vieram parar às mãos os artigos que tratavam do assunto, conseguindo juntar um relato suficientemente ordenado e preciso. Antes de o trans­crever, quero todavia prevenir o leitor religioso de que não existe nem uma possibilidade em cem de o facto ter realmente aconteci­do. Com efeito, ninguém ignora que os Estados Unidos são um país fértil em escândalos e notícias extraordinárias; por isso, trata--se com toda a certeza da alucinação de um visionário; ou da fantasia de um vigarista desejoso de criar uma sua breve fama jornalística; ou, pior ainda, da invenção pouco espirituosa de um cronista à mingua de acontecimentos sensacionais. Mas vamos aos factos.

Ora bem, o mineiro diz que, encontrando-se um dia no fun­do da extrema ramificação de um túnel profundo da mina, empe­nhado em quebrar com a perfuradora o veio carbonífero, de re­pente a broca fez desmoronar uma espécie de subtil diafragma; e ele, tendo perdido o equilíbrio com o contragolpe do corpo, precipitou-se num abismo escuro, que se abria para além da pa­rede desabada da rocha. Deu, segundo os seus cálculos, uma queda de mais ou menos cem metros; depois bateu com a cabeça numa saliência daquela espécie de poço e desmaiou. Quanto tempo ficou inconsciente, não saberia dizer, mas, depois de ter finalmente reaberto os olhos, deu por si deitado no chão terroso de uma ampla caverna semi-iluminada por uma forte luz exterior. Levantou-se e, tendo constatado que não tinha sofrido na queda assustadora nem sequer um arranhão, dirigiu-se para aquela luz; pouco tempo depois, do limiar da caverna, descobriu o imenso deserto arenoso de uma região meridional, que pensou ser o Arizona ou o Novo México. No meio dessa solidão o mineiro viu uma construção baixa e quadrada, entre uma quinta e um lazareto, que à primeira vista, recordando as descrições lidas nos jornais, imaginou ser uma célebre prisão situada precisamente por aque­las bandas, das mais amplas e rigorosas dos Estados Unidos. Diz ter desatado a correr em direcção à cadeia com a intenção de pedir ajuda e informações. Mas à medida que se aproximava da parede baixa toda esburacada por janelões cinzentos, esta pare­cia tornar-se cada vez mais extensa, alongando-se para a direita e para a esquerda, desmedidamente. Até que, chegado ao pé da construção, de repente se abriu uma pequena porta e um homem vestido como um operário com o fato-macaco de algodão azul-turquesa lhe deu as boas-vindas, dizendo-lhe que aquilo era o Inferno e que tinha todo o gosto em acompanhá-lo na sua visita. O mineiro, surpreendido com uma proposta tão invulgar, não soube, no momento, o que dizer-, e seguindo sem abrir a boca o estranho indivíduo, entrou com ele na fábrica.

O Inferno, segundo o nosso viajante do Além, é muito pare­cido com uma qualquer fábrica moderna de objectos em série, a Ford ou a Vickers Armstrong. Uma galeria envidraçada, intermi­nável, cheia da luz clara, poeirenta, amarelada do deserto. Tecto baixo com vigas metálicas, paredes pintadas a cinzento, chão de betão. A única diferença era que ali, no lugar das máquinas todas iguais alinhadas com os seus operários a perder de vista ao longo da coxia, o mineiro viu um sem-número de danados, cada um empenhado a cumprir a sua pena.

O mineiro, assíduo ouvinte dos sermões dominicais na igreja da sua aldeia, confessa que diante da palavra Inferno esperara ver punições tão terríveis como convencionais, à base de pez, fogo, carvões ardentes, grelhas, demónios armados de tridente e outras tantas diabruras-, mas ficou surpreendido com um espectáculo completamente diferente e sobremodo inesperado. Aparentemente aqueles danados pareciam estar empenhados num trabalho in­dustrial; só que, e nisso consistia a pena, cada um deles tinha, para executar a sua eterna incumbência, utensílios antidiluvianos dos inícios do maquinismo, ou até nenhum outro meio a não ser as suas próprias mãos, primeira máquina, no dizer dos economistas, que o homem inventou. A consciência, conforme explicou o guia, de que existiam outros achados mais expeditos e modernos para executar o mesmo trabalho, além do contínuo avariar-se e encravar--se das suas engenhocas, constituía o maior tormento de todos aqueles miseráveis.

Assim, conta o mineiro, viam-se sapateiros penosamente em­penhados em coser sapatos que as fábricas produzem aos milha­res à hora; alfaiates que suavam com o giz e a tesoura sobre fatos que as máquinas cortam com rapidez prodigiosa; pintores que cegavam para pintar com pincéis e paletas, bem sabendo que o mesmo resultado é obtido num abrir e fechar de olhos com a máquina fotográfica; músicos que se encarniçavam sobre o piano com o pensamento tantalizado pelos comodíssimos gramofones; tecelões que perdiam a vista sobre os teares manuais com a lem­brança amarga das máquinas de tecelagem que realizam no mes­mo tempo um trabalho cem vezes maior; ferreiros que partiam os braços a forjar ferros que na indústria se produzem em ferro fundido com facilidade vertiginosa; tipógrafos que quebravam as costas para girar rudimentares tornos, tendo no ouvido o ruído álacre das incan­sáveis rotativas... e a listagem poderia continuar infinitamente.

Toda essa gente, embora sem interromper o seu eterno traba­lho, dirigia ao visitante rostos jorrantes de pranto e emitia altas exclamações de dor. De todos os lados chegavam frases como: «Ai de mim, como mudei: em vida fabricava mil pregos por minuto... Agora, para cada prego preciso de um quarto de hora.» «Ah, onde estará o meu torno eléctrico?» «Lá em cima no mundo achava lento o cilindro... o que dizer agora deste maço pesado?» «Puxar água com baldes... quando existem bombas a vapor.» «Oxalá pudesse voltar aos tempos felizes em que fotografava mulheres nuas, paisagens, naturezas mortas... mas pintar, pintar e pintar.» «Escrevia em vida prosas de jornal... agora sou obrigado a compor versos.»«Era bem bonito o tempo em que produzia às dezenas estatuetas de ferro fundido... mas esculpir, aí de mim, esculpir.» «Ah, a minha máquina de fazer rebuçados... agora vejo-me obrigado a amassar açúcar, tal como se usava outrora, no dia dos Reis, na Praça Navona.» «Quem me devolverá à fábrica de chapéus?... Quem me libertará da fadi­ga de entrelaçar palha de Florença?» «Ah, a minha querida cadeira eléctrica... mas cortar cabeças com o machado, que carnificina.» «Uma hora, só uma hora com a minha linda metralhadora de dois canos.» «Eis-me condenado aos remos e à vela... Ah, os piróscafos.» «Ai de mim, outrora andava de avião... agora ando a cavalo.»

O mineiro, a propósito destas duas últimas exclamações, que parecem subentender um movimento incompatível com a imobi­lidade dos danados, faz notar que tanto o cavalo como o barco estavam absolutamente parados, mas os dois danados tinham igualmente a ilusão do movimento. Da mesma forma, aliás, todos os vários sapateiros, doceiros, pintores, ferreiros, etc. julgavam progredir no seu trabalho, enquanto na verdade o que tinham na mão era sempre o mesmo sapato, o mesmo rebuçado, o mesmo quadro, o mesmo prego e assim por diante. Tal como na Terra, também no Inferno o que conta são os sentimentos, não os factos. E os sentimentos, acrescenta o mineiro, eram deveras dolorosos. A tal ponto que ele, embora caminhando atrás do seu guia entre aquelas duas sebes de tormentos, se sentia consumir pela piedade e quase já não via devido às lágrimas que lhe ofuscavam os olhos.

O tempo e o espaço no Além não existem, por isso, o nosso viajante não saberia dizer quanto tempo durou a sua visita nem qual era a extensão, mesmo aproximada, da fábrica desmedida do In­ferno. Diz que, depois de ter percorrido muitas milhas de galerias envidraçadas, o guia o informou de que já tinha ficado com uma ideia do Inferno e que era tempo de passarem ao Paraíso. Sobre o Purgatório, nem uma palavra, pelo que o mineiro supõe que não exista. Tendo respondido ao amável guia que com certeza, depois de tantos espectáculos infernais, um pouco de visão celeste o reconfortaria, este abriu uma pequena porta e, sem demora, intro­duziu-o no Paraíso.        

O Paraíso, no dizer do mineiro, parece ser muito menos ori­ginal do que o Inferno; mais não sendo do que uma exterminada feira comercial pemianente, sempre bem fornecida e sempre aberta. As construções efémeras e coloridas dessa feira estão dispostas ao longo de ruelas ou à volta de largos, de modo a formar uma espécie de cidade, a qual, por sua vez, está contida dentro do quadrilátero formado pelas quatro galerias do Inferno. Assim, o Além está concentrado num único corpo, onde os alegres pavilhões do Paraíso contrastam com as lúgubres galerias do Inferno e à imóvel fadiga dos danados corresponde o imparável e festivo fer­vilhar da multidão dos eleitos.

Pelas alamedas do Paraíso, de facto, movimenta-se, num barulho de rádios e altifalantes, uma multidão alegre e curiosa: a mesma que se regista nos primeiros dias das grandes feiras in­dustriais. Os eleitos só se preocupam em comprar; com uma moeda local especial, que se renova nos seus bolsos à medida que a vão gastando. Tal como a sua moeda se renova sem tréguas, assim a mercadoria não os estorva nem fica a faltar nos pavilhões de venda, já que, mal é comprada, por um prodígio de todo celestial, os buracos das montras e dos escaparates voltam a encher-se por si só, enquanto os objectos, mal o comprador se farta deles, desvanecem-se por magia, permitindo-lhe assim fazer novas compras, sem por isso ficar carregado. Desse comprar e possuir continua­mente renovado, o beato tira um prazer tão sublime, uma satisfação tão ampla, uma alegria tão intensa, que não só a eternidade não lhe pesa, como, pelo contrário, queria, por assim dizer, prolongá--la. Qualquer objecto adquirido nos pavilhões do Paraíso, umas meias, uma espuma de barbear, um pente, um travessão, um palito, provoca a beatitude, digamos assim, fundamental e mínima; mas existem diversos graus de beatitude, estritamente relacionados com os méritos e as consequentes possibilidades de compra. Por ou­tras palavras, as maiores virtudes de um eleito são premiadas com um maior valor da moeda que lhe é atribuída; assim, o homem que na vida foi apenas bom levará, em troca do seu dinheiro, uma quantidade de mercadoria inferior à de quem foi óptimo. Ao invés, o efeito de beatitude da mercadoria varia conforme o seu custo. Assim, por exemplo, uma caneta de tinta permanente de galalite verde com aparo de irídio provocará uma leve distensão optimística da fisionomia; a mesma caneta com o aparo de ouro fará santamente brilhar os olhos; sendo toda ela de ouro, estenderá esse brilho ao rosto do possuidor; sendo de ouro com pequenos brilhantes, envolvê-lo-á dos pés à cabeça, de uma inefável luz celestial. O mineiro cita muitos e diferentes graus de beatitude. Acerca de um tal beato que tivera a oportunidade de adquirir um magnífico casaco de pura lã, forrado a seda e com gola de peles diz que, de tanto resplandecer, mal se podia olhar para ele.

Também do Paraíso o mineiro não sabe dizer a extensão, nem o tempo de duração da visita. Conta apenas que, tendo manifestado ao seu guia o desejo de comprar uns suspensórios a um dólar e meio, expostos num dos pavilhões, não tanto por cobiça de beatitude, como por necessidade real, já que os seus estavam todos frouxos e rotos, se encontrou de novo, num abrir e fechar de olhos, ao fundo da mangueira tenebrosa da mina com a perfuradora nas mãos. Primeiro, estupefacto, procurou às apal­padelas na parede rochosa o buraco pelo qual se precipitara, mas nada encontrou. Depois tentou afincadamente com a perfurado­ra, mas conseguiu apenas formar um monte enorme de carvão. Então, à saída, desabafou contando a sua aventura. A qual, pas­sando de boca em boca, chegou por fim aos jornais. Foi daí que a recortei e que dela extraí para os leitores italianos este relato fiel.

 

                   O CROCODILO

A senhora Curto, por volta das cinco, pôs o chapéu e saiu de casa para ir visitar a senhora Longo.

A senhora Longo, esposa de um director de banco, morava num apartamento no rés-de-chão de um palacete bastante velho mas distinto, num bairro outrora elegante e agora em decadência. Para a senhora Curto, cujo marido era um subalterno do senhor Longo, a visita revestia-se de uma particular importância. Em pri­meiro lugar, ela era de condição muito inferior à da senhora Longo, morando num andar de poucos quartos, moderno mas humilde, num dos muitos prédios da periferia. Em segundo lugar, era a primeira vez que a senhora Longo, quase um ano após se terem conhecido, se dignava convidá-la para ir a sua casa.

A senhora Curto era muito parecida com uma galinha, meio atarefada meio misteriosa, empenhada em raspar antes de pôr o ovo: pequena, desengonçada, com uma cara cor-de-azeitona, dois olhos pretos e redondos, muito próximos um do outro, o nariz pontiagudo. A senhora Longo era uma grande mulher loura, ma­jestosa, estrábica, teatral, mamalhuda, adocicada, fingida, protec­tora e cheia de dignidade. A senhora Curto tinha cinco filhos pequenos, e não sabia falar noutra coisa. A senhora Longo não tinha filhos, mas em compensação ia às representações teatrais, protegia os músicos, pintava a aguarelas e recitava versos. A se­nhora Curto vestia-se preferencialmente de preto, calçando gran­des sapatos parecidos com chinelos e trazendo na cabeça compli­cados chapéus enfeitados com véus e missangas. A senhora Lon­go pode-se dizer que andava sempre vestida de noite, em tons violáceos ou verde-escuro. Todas estas diferenças faziam com que aos olhos da senhora Curto, chegada há pouco tempo da provín­cia, a senhora Longo aparecesse como uma espécie de símbolo e de personificação de todas as elegâncias citadinas; e a sua sala de visitas como um lugar mais sagrado do que um templo e mais misterioso do que a gruta de um oráculo.

Esta sujeição tímida e admirativa, todavia, não impedia a se­nhora Curto de ter o seu plano acerca da visita que se aprestava a fazer. Esse plano consistia na firme resolução de observar e, na medida do possível, gravar na memória tudo o que a senhora Longo iria fazer ou dizer, e todos os objectos que na casa da senhora Longo lhe parecessem dignos de atenção. Já dissemos que a senhora Curto era provinciana; acrescentamos agora que o seu berço fora humilde e a sua educação sumária. Daí, que hou­vesse nela uma contínua, penosa incerteza acerca das regras da vida mundana, que se tornam tão necessárias para a mulher de um empregado bancário, desejoso de subir na vida. Devia-se es­tender a mão a um homem, ou esperar que ele a estendesse? Assoar o nariz mantendo-se em posição erguida, ou inclinando--se de lado? Fumar ou não fumar? Cruzar as pernas? Tirar as luvas? Levantar-se a cada pessoa que chegava? Mergulhar os biscoitos no chá ou comê-los secos? E, num sentido mais amplo de elegância e polidez, como se servia o chá? Com bolos ou com biscoitos? Como se mobilava uma casa? Que género de cortinados se colocavam nas janelas da sala de visitas? E nas da sala de jantar? Como devia estar fardada a criada? Que vestido usar às cinco, ao receber as amigas? etc. etc. A senhora Curto esperava que durante a visita a anfitriã desse, só com a sua presença, uma muda resposta a todas estas perguntas, dissolvendo para sempre todas estas incer­tezas.

Outra esperança da senhora Curto, em cuja alma esta visita determinava o desfecho torrencial de todas as ambições até aí congeladas, era a de que a senhora Longo tivesse convidado nesse dia algumas das suas amigas, tão elegantes e mundanas como ela própria. É verdade que não era sexta-feira, dia em que a senhora Longo invariavelmente recebia. Mas igualmente, para homena­gear a senhora Curto, podia ter convidado algvimas daquelas suas amigas tão famosas no meio bancário: a senhora Sgroi, por exem­plo, a senhora Pedullo, a senhora Boffe. Se estas senhoras, cada uma das quais, por sua vez, tinha o seu dia de receber, estives­sem presentes, a senhora Curto tinha quase a certeza de que conseguiria pelo menos um par de convites. De forma que, de convite em convite...

Mas esta última esperança gorou-se. A senhora Longo rece­beu-a numa pequena sala bastante escura, cheia de armas, de tapetes pendurados nas paredes e de pequenos móveis entalhados que a senhora Curto julgou serem orientais. A sala de visitas em que se realizavam as famosas recepções aparecia, pelo contrário, fechada e escura através das duplas portas envidraçadas. Com-pletamente vestida de vermelho escuro, com uma rosa artificial no amplo decote, a dona da casa pareceu à senhora Curto amável e até protectora, mas distante. Sentaram-se uma diante da outra, na beira de um sofá, à luz velada de um candeeiro também este em estilo oriental; e logo começaram a conversar.

Tirando a desilusão da ausência das amigas, a senhora Lon­go não traiu as esperanças da visita. Embora sorvendo o chá e respondendo às formais e bastante indiferentes perguntas da se­nhora Longo sobre a casa, as crianças, o marido, as férias e outros tantos assuntos convencionais, a senhora Curto teve a possibilidade de fazer muitas observações úteis. A senhora Longo cruzava as pernas fortes sob o vestido de veludo cor de cereja; não mergulhava os biscoitos, mas mordia-os levantando bastante os lábios; não assoava o nariz (mas a verdade é que não parecia constipada); de vez em quando arranjava com a palma da mão languidamente aberta os cabelos louros e macios penteados de um modo anti­quado; ao perguntar à senhora Curto se desejava o chá fraco ou forte, pousava com à-vontade a mão nos seus joelhos, gesto con­fidencial e lisonjeiro; falava em voz baixa, soletrando as sílabas e apertando os dentes; ao levar a chávena aos lábios, levantava ligeiramente o dedo mindinho enfeitado com uma grande pedra verde; para cuspir o caroço de cereja contido num chocolate, tapava a boca com a mão; com o chá oferecia biscoitos doces e salgados, nada de bolos; aspirava continuamente por uma boquilha vermelha muito comprida (talvez para combinar com a cor do vestido) e expirava o fumo pelo nariz; utilizava, para dizer cinzeiro, a palavra evidentemente estrangeira sandrié...

Quanto à casa, além dos já referidos móveis entalhados, que a visitante achou demasiado exóticos e perfeitamente adaptados a uma dama algo excêntrica como o era a senhora Longo, a senhora Curto notou que as cortinas das janelas eram vermelhas e todas plissadas, chegando até meio dos vidros, com duas baixinhas de latão em cima e em baixo; que igualmente vermelho era o damasco das paredes; que havia uns cinzeiros atados com fitas aos braços das poltronas; que uma boneca vestida à moda turca estava sentada no fundo do sofá, sobre um monte de almofadas de várias cores; que a mesinha do chá tinha rodízios, de forma a poder empurrá-la para onde se quisesse; e cem outros pormenores in­significantes do mesmo género.

Mas a maior novidade da visita, e ao mesmo tempo a mais discutível, pareceu à senhora Curto a presença do crocodilo. Mal se tinham sentado, quando o bicho, tendo empurrado com o focinho a porta que dava para o corredor, avançou para a sala. Inicialmente, a senhora Curto teve o impulso de apontar à dona da casa aquele animal horrível. Mas a senhora Longo estava sen­tada mesmo em frente da porta e não podia não ter visto o réptil; tanto mais que, com dois passos desengonçados, o bicho chegara a aflorar com o focinho levantado o pé da senhora Longo. Deduziu, pois, a senhora Curto, que o crocodilo era de casa e, parecendo--lhe que não seria educado fazer notar à anfitriã algo que a mes­ma mostrava querer ignorar, calou-se e continuou a sorver, como se nada fosse, o seu chá. Entretanto o crocodilo, sempre com o seu jeito vacilante e dificultoso de avançar, contornava a senhora Longo e levantava-se na vertical atrás dela, apoiando-se na cauda e nas patas traseiras. Então a senhora Curto viu a senhora Longo, com o mesmo gesto casual e indiferente com que, embora con­tinuando a conversar, se puxam as fraldas de um casaco de peles abandonado no encosto da poltrona, esticar para trás as duas mãos e ajudar o crocodilo a aderir com a barriga ao seu dorso, deixando que lhe agarrasse com as quatro patas os ombros e as ancas. Tudo isso foi executado precisamente com aquelas sacu­didelas do corpo e com aqueles gestos cómodos e satisfeitos com que se aconchega nos ombros uma peça de vestuário quente e protectora. Depois, evidentemente certa de que, agarrando-se desta forma, o crocodilo já não cairia de cima dela, a senhora Longo dirigiu-se amavalmente à visita, perguntando se desejava mais chá. Ora bem, a senhora Curto sem dúvida esperava alguma extrava­gância de uma mulher notoriamente excêntrica como o era a se­nhora Longo; mas esta do crocodilo ultrapassava largamente qualquer antecipação. Por um instante ela ficou, por assim dizer, mentalmente de boca aberta. Mas a pergunta da senhora Longo, fazendo-a acordar do seu espanto, fez com que tivesse vergonha de uma atitude tão ingénua e provinciana. Se a senhora Longo, com o ar de fazer uma coisa absolutamente normal, punha para cima de si um crocodilo vivo, por que razão ela devia ser tão rústica ao ponto de ficar espantada? Toda corada, inclinou-se para a frente e apressou-se a responder que certamente desejava outra chávena daquele óptimo chá. E, com o fim de esconder a sua confusão, acrescentou mais alguns elogios à bebida, perguntando à senhora Longo onde a podia encontrar e se era possível arranjar um pacote também para ela.

A seguir, durante todo o tempo da visita, o crocodilo não se mexeu, ficando, como se disse, erguido sobre a cauda maciça, com as quatro patas agarradas às ancas e aos ombros da senhora Longo e a cabeça triangular sobrestante à cabeça dela. A senhora Longo levantou-se uma ou duas vezes para servir chá, e o crocodilo foi atrás, estranho de se ver, até porque era um exemplar muito grande, que da ponta do focinho até à da cauda sem dúvida não tinha menos de três metros de comprimento; de forma que, en­quanto com a cabeça quase roçava o tecto, com a cauda, atrás dos calcanhares da senhora Longo, varria amplamente o chão. Mas a senhora Longo, sempre majestosa, andava pela salinha com o grande animal agarrado às costas seminuas, sem deixar transparecer qualquer fadiga. A senhora Curto já estava cada vez mais convencida de que essa do crocodilo devia ser uma moda tão recente como bizarra, de que ela, limitada ao seu prédio su­burbano, não tivera notícia; e, pensando bem, parecia-lhe que nessa novidade houvesse muito de bom: apesar do seu ar pesado, o crocodilo, aplicado desta forma, como se costuma dizer, condizia nomeadamente com pessoas altas e grandes como a senhora Longo; além disso, protegia as costas das correntes de ar, o que representava uma vantagem nada pequena. Aliás, não se costu­mavam fazer sapatos de crocodilo? Dos sapatos ao bicho vivo e inteiro era só um passo. Única dificuldade, talvez, o custo. Com o preço corrente do crocodilo, pensou a senhora Curto, não devia ter sido pequena a despesa para a senhora Longo entrar na posse de um exemplar daquele tamanho. Além disso, era preciso pen­sar na alimentação do bicho, notoriamente muito voraz. A senhora Curto surpreendeu-se a suspirar, ao pensar que ela, com o magro ordenado do marido, nunca poderia dar-se ao luxo de ter nem sequer um grande lagarto, quanto mais um crocodilo.

A senhora Longo, tendo constatado a falta de limão, tocou a campainha para chamar a criada; e a visita, num último impulso de cepticismo, esperou não sem ansiedade que a rapariga asso­masse à porta: queria ver como encararia a presença do crocodi­lo. Mas a criada, uma rapariga forte do Friúl, cujo vestidinho preto mal continha as formas compactas e musculosas, tinha também o seu belo crocodilo agarrado às costas; assim, a senhora Curto teve que se render à evidência: sem dúvida, era a moda mais recente. Porém, não pode evitar pensar que a senhora Longo exagerava; havia uma verdadeira ostentação de mau gosto no facto de permitir a uma criada usar os mesmos enfeites dos donos. O crocodilo da rapariga do Friúl era muito mais pequeno do que o da senhora Longo; tão pequeno que, estando a mulher de frente, não se via, revelando-se apenas quando ela virava as costas. Um crocodilo pouco mais comprido do que um lagarto de tamanho invulgar, embora muito mais largo e maciço. Um crocodilo criança, dir-se--ia. Agarrava-se como que com ternura ao dorso delgado da rapa­riga, inserindo a cauda escamosa entre as nádegas, e enfiando o focinho pontiagudo na nuca, debaixo do carrapito. Talvez fosse um crocodilo posto de lado, pensou a senhora Curto, de que a patroa, depois de o ter usado algum tempo, se cansara, e que oferecera à criada. Mas as suas proporções, parecidas com as do minúsculo e provocante avental atado às ancas vigorosas da ra­pariga do Friúl, levavam mais a deduzir que a senhora Longo o tivesse comprado de propósito para a criada. «Esbanjamentos de grande senhora», pensou a senhora Curto, com algum despeito invejoso.

Quando a criada saiu, a senhora Longo elogiou-a. Mas a se­nhora Curto quis dar-lhe a entender que desaprovava excessivas e prejudiciais indulgências do género das do crocodilo; e respondeu que era preciso tomar muito cuidado para não se ser demasiado tolerantes com os serviçais; de outro modo, acabam por se iludir e, o que é pior, já não fazem mais nada. Em particular com as ofertas, concluiu a senhora Curto, era preciso ter cuidado, muito cuidado. A senhora Longo respondeu que o seu sistema era o de tratar as criadas como se fossem pessoas de família.

A senhora Curto certamente não estava à espera de ter alguma vez posses para comprar um crocodilo, muito menos daquele tamanho. Apesar disso, quis observá-lo muito bem, para depois poder relatar ao marido e às amigas. O crocodilo estava imóvel, com a enorme cabeça triangular dirigida para o tecto, como se quisesse, da sua bocarra gengival, exalar um canto patético. A sua garganta branca levemente palpitante fazia de pano de fundo aos cabelos da senhora Longo, de um louro quase cinzento, e não se podia negar que o efeito era agradável. Pelo contrário, o que devia ser incomodativo era a pressão das quatro patas com as quais o bicho se agarrava aos ombros e às ancas da senhora Lon­go. Viam-se perfeitamente as grandes unhas córneas daquelas patas de rã mergulhar no corpo macio e maduro da mulher; daí, o puxar de algumas pregas no veludo vermelho escuro do vestido, alguns inchaços da carne demasiado comprimida, de efeito pou­co gracioso. À parte as nódoas negras, pensou a senhora Curto, que desastre para os vestidos. Mas reflectiu que durante décadas se tinham usado os espartilhos com as barbas de baleia, muito apertados e pouco saudáveis; e que, apesar de tudo, valia a pena, para acompanhar a moda, sofrer algum inconveniente. De belo efeito era, pelo contrário, a cauda hirta de escamas cuspidadas de um verde-matizado e sarapintado de preto, maciça e triangular, languidamente apoiada e arrastada pelo chão com movimentos serpentinos. Mas a beleza da nova moda via-se acima de tudo quando a senhora Longo se movimentava pela sala. Com aquele crocodilo, cujo dorso erguido e couraçado lhe redobrava e mais que redobrava a espessura do corpo, a senhora Longo fazia lem­brar um dragão, obtendo assim, com grande simplicidade, uma linha muito moderna e, ao mesmo tempo, rica de imprevista e caprichosa fantasia. A senhora Curto, desconfiada, perguntou à senhora Longo se tinha estado recentemente em Paris e, tendo esta respondido que acabava de regressar de lá, ficou convencida de que era de lá que vinha esta novidade extraordinária e no fundo bastante ousada. Assim sim, pensou a senhora Curto num impulso de inveja, é sabido que em Paris todos os dias inventam algo de novo, assim sim, é fácil acompanhar a moda quando se tem a possibilidade de viajar de propósito para a capital francesa.

Outra curiosidade que mordia a senhora Curto, era a de saber como a senhora Longo agia quando saía. Tal como alguns chapéus muito altos, o crocodilo devia ser um estorvo não pequeno nos autocarros, nos eléctricos e, em geral, em todos os ambientes apertados e concorridos. É verdade que a senhora Longo tinha carro, e é sabido que quando se possui um carro, é possível permitir-se muitas coisas que são proibidas aos coitadinhos que andam a pé. Todavia, mesmo com o carro, o crocodilo continuava a ser uma moda algo embaraçosa. Para carregar o crocodilo, era preciso, ou ficar em pé ou estar sentado num banco sem encosto, para permi­tir ao bicho agarrar muito bem o corpo e apoiar com toda a como­didade a cauda no chão. Mas no carro? Ter-se-á a senhora Longo sentado sobre o crocodilo, puxando a grande cauda entre as per­nas? E o crocodilo não sufocava? A senhora Curto acabou por concluir que, ou a senhora Longo só usava o crocodilo em casa, ou então, ao sair, entregava-o ao motorista, limitando-se a vesti-lo todas as vezes que saía do automóvel. Aliás, ninguém, pensou a senhora Curto, sonharia apanhar o eléctrico ou ir ao cinema em vestido de noite, com diadema, decote e cauda. Evidentemente, o crocodilo só se usava à noite, em ocasiões extraordinárias, na ópera ou nos bailes. Mas não se podia negar que, mesmo de manhã, nos parques ou no hipódromo, um crocodilo de tamanho menor, parecido, por exemplo, com o da criada, usado com à-vontade no casaco de um conjunto cor-de-folha-morta, resultasse porventura num verdadeiro mimo. Todas estas coisas remoeu a senhora Curto, sem porém se abrir com a senhora Longo, pois não sentia ainda bastante intimi­dade com ela para tocar no assunto. Mas prometeu a si mesma que, caso se tornassem amigas, satisfaria completamente a sua curiosi­dade. E, quem sabe, talvez a senhora Longo, que parecia generosa, se disponibilizasse para lhe arranjar a um preço baixo, por intermédio do seu fornecedor, um crocodilo, porventura de segun­da mão.

O único verdadeiro inconveniente da moda pareceu à se­nhora Curto o facto de o crocodilo, de vez em quando, embora continuando agarrado com as patas, bocejar escancarando a boca desmedida e cheia de dentes e voltando a fechá-la de repente, com um ruído seco bastante desagradável. Sem contar que, a cada bocejo, toda a pessoa da senhora Longo oscilava: um verda­deiro tremor de terra. Talvez o crocodilo tivesse fome, pensou a senhora Curto, ou simplesmente estivesse aborrecido. De resto, o inconveniente não era muito grave. Bastava, com efeito, pôr ao bicho um açaime parecido com o dos cães. Embora na verdade a beleza do crocodilo resultasse bastante diminuída.

Já passara quase uma hora e a senhora Curto, que se van­gloriava de respeitar as regras da boa educação, levantou-se para se despedir. Tinha vontade de pedir à senhora Longo alguma informação sobre o crocodilo, mas não teve coragem. Majestosa­mente, sempre arrastando atrás de si o enorme réptil, cuja cauda rastejava perto dos seus calcanhares por um bom meio metro, a senhora Longo precedeu-a no corredor que levava à entrada. A senhora Curto, ao passar, não resistiu a uma tentação muito des­culpável e, debruçando-se bastante, apalpou o dorso do grande bicho. Esperava que não se desse por isso, mas tropeçou na maldita cauda e caiu para a frente com o nariz entre as escamas, ficando quase sufocada pelo cheiro azedo e pantanoso que exalavam. «Cuidado», preveniu a senhora Longo sem se virar, «não há muita luz neste corredor.»

Despediram-se no vestíbulo. A criada, com o seu crocodilo agarrado às costas, abriu a porta. Mas a senhora Longo não convi­dou a senhora Curto para outra visita. E esta, ao retirar-se, não pôde não atribuir essa frieza à modéstia do seu guarda-roupa. «Mas se o meu marido conseguir uma promoção», pensou diri­gindo-se a pé para a paragem do autocarro, «também eu terei o meu belo crocodilo... então, vai-se haver comigo, querida senhora Longo...»

 

                   AS METAMORFOSES

Um amigo meu de nome Cesare, mas que todos nós tratáva­mos por Cesarino, jovem, como se costuma dizer, cheio de talento, mas por demais vaidoso e preocupado consigo mesmo, confidenciou-me uma noite um caso singular que lhe tinha acon­tecido há pouco tempo. Disse que há muitos anos estava obcecado por uma espécie de fantasia, a qual (isto ele não disse, mas foi o que eu pensei) tinha as suas origens precisamente na sua vaidade e no seu excessivo conceito de si próprio. Essa fantasia, em poucas palavras, consistia em imaginar que aspecto teriam as pessoas conhecidas se, abandonando as habituais aparências humanas, assumissem de repente figuras de animais; cada uma segundo o seu específico valor moral e intelectual e as suas mais secretas tendências. Como se concretizaria esse sonho, por que magia ou milagre, Cesarino não saberia dizer; limitando-se a imaginá-lo e a gozá-lo em segredo, como se se tratasse de uma utopia irrealizável e, talvez por isso mesmo, profundamente agradável. Ele via-se, por exemplo, numa sala de visitas no momento em que aceitava uma chávena de chá das mãos da dona da casa. Eis que de re­pente todos os presentes se transformavam em animais; e só ele, entre muitos bichos de menor importância, se revelava aos olhos pasmados de todos com a aparência do leão ou da águia. Daí, surpresa, arrependimento, frases como: «Quem diria?» «Com aque­la cara»; «Enganou-nos a todos», e assim por diante. Era um sonho vaidoso, Cesarino reconhecia-o francamente; mas em parte justifi­cado pela injustiça de que habitualmente era vítima, pois é preci­so dizer que as pessoas pouco o estimavam e ainda menos o tomavam a sério, tratando-o levianamente como um rapaz algo ridículo e presunçoso, embora amável e perfeitamente inofensi­vo. Aliás, a propósito das apreciações dos amigos acerca do autoconvencido Cesarino, recordo-me de uma brincadeira que o nosso grupo costumava fazer durante aquele Inverno; brincadeira maldosa e cruel que consistia em mandar sair um de nós e a seguir, numa folha de papel, sob os itens de inteligência, coragem, bondade, sensibilidade, perspicácia e assim por diante, marcar de comum acordo uma pontuação qualitativa, à semelhança dos exames escolares, de zero a dez. A determinada altura saiu Cesarino, cheio de confiança arrogante. Que, porém, se transfor­mou em áspero e dissimulado desapontamento ao ouvir que os companheiros maliciosos lhe tinham oferecido a pior pontuação do serão: inteligência três, perspicácia dois, genialidade zero, co­ragem um e assim por diante; reconhecendo-lhe apenas um risí­vel oito em bondade, qualidade, como é sabido, bastante pouco apreciada e atribuída habitualmente por consolo ou por desespe­ro a quem não é tido como digno de qualquer outro elogio. Relato este pormenor, pois penso que o sonho dos animais deve ter tirado as suas origens precisamente da desilusão daquele serão. Mas voltemos ao caso contado por Cesarino.

Ele disse-me, pois, que, há algum tempo atrás, tinha recebi­do com muita antecedência, conforme era hábito, um convite para uma noite na casa da senhora D. É preciso saber que esta viúva, já não jovem nem bonita, mas desmedidamente rica e mui­to ambiciosa, possui um dos maiores palácios da cidade; e, em­bora não possa vangloriar-se de um nome ou parentesco ilustres, conseguiu em pouco tempo, unicamente pela força do dinheiro, fazer com que nas suas festas se juntem todas as pessoas mais representativas da nossa sociedade. Acrescento que habitualmen­te se fala muito mal dessa senhora, que, de facto, não demonstra excessivo critério nos seus convites, misturando levianamente (ou talvez de propósito) pessoas de todo diferentes, que noutros lugares não só nunca têm contactos, como até evitam com todo o cuidado encontrar-se. Fala-se mal dela, mas como sempre acontece nestes casos, os seus convites são ardentemente cobiçados. Cesarino, que entre outros defeitos possui também o do snobismo, disse--me que, inicialmente, pensou em não ir. Eu acredito mais no contrário; até porque o tinha ouvido frequentemente queixar-se de que a senhora D., tão desejosa de reunir à sua volta as inteligências da cidade, se esquecia sempre dele, que já tinha escrito em vários jornais e tinha pronto na gaveta um dos mais pujantes e profundos romances da época. De qualquer modo, na noite da festa Cesarino vestiu o fraque e foi dos primeiros, como ele pró­prio me deu a entender, a ultrapassar o limiar do palácio D.

Sentiu-se imediatamente pouco à vontade. No vastíssimo sa­lão das festas, famoso em todo o mundo pelo magnífico tecto de caixotões, pelos frescos das paredes e pelos preciosos mosaicos do pavimento, as diferenças das profissões, das riquezas e da importância social pareciam estar claramente indicadas por uma quantidade de grupos hostis entre si e firmemente decididos, conforme parecia, a ignorarem-se mutuamente até ao fim do se­rão. Não queriam saber de se misturar, os convidados da senhora D., e faziam questão de o demonstrar. Apenas a dona da casa e o numeroso exército dos serviçais em libré com as bandejas das bebidas vagueavam desajeitadamente de um grupo para outro, cimento escasso e insuficiente para aquelas pedras tão rebeldes do trabalhoso edifício da festa. Cesarino reconheceu imediatamente num grupo todos os seus amigos jornalistas, que encontrava todas as noites no café; mas, pensando que não valia a pena ter-se deslocado àquele lugar para ter que passar o serão da maneira habitual e com as pessoas habituais, fingiu não os ver, tentando, pelo contrário, aproximar-se de alguns outros grupos, dos que mais ostentavam um ar importante. Esperava, conforme ele próprio me confessou ingenuamente, alinhavar uma aventura; ou abordar, nunca se sabe, algum personagem influente, que lhe poderia vir a ser útil. Mas encontrou em toda a parte silêncios gelados, discrição capaz de fazer corar um negro, atitudes muito reservadas. Até que, humilhado e desanimado, bateu em retirada para a mesa do buffet e, tendo pedido um simples copo de sumo de laranja, foi bebê-lo no vão de uma janela. Aí, meio tapado por um cortinado, mergulhou nas mais amargas reflexões sobre a inviolabilidade das barreiras sociais e sobre a fundamental inutilidade dos valores, tão glorificados pelas palavras, da inteligência e da aite. Esses pensamentos, disse-me, distraíram-no a tal ponto que criaram à sua volta uma densa e muda solidão; de forma que durante algum tempo, não determinável, não viu nem entendeu nada do que acontecia na sala. Imagine-se qual não foi o seu espanto quando, ao levantar finalmente os olhos, se apercebeu de que o seu sonho da transformação em animais se tinha verificado; e no salão, lá onde um momento antes estivera uma multidão de convidados em traje de noite, agora agitava-se... o quê?... um ajuntamento de monstros.

O relato de Cesarino tornou-se aqui bastante impreciso. Ele insistiu muito no facto de que, ao lado de animais muito conheci­dos, havia outros para ele totalmente ignotos. Pedi que mos des­crevesse com a maior exactidão possível e, ajudando-me com as lembranças da história natural que estudara na escola, compreen­di que esses animais nunca vistos mais não eram do que insectos, que Cesarino, muito ignorante, no momento não soubera classificar. Em suma, ao que parece, alguns dos convidados tinham sido transformados em mamíferos, outros em aves, outros em répteis, outros ainda naquilo a que os naturalistas chamam invertebrados ou artrópodes. A descrição de Cesarino, como já disse, não foi muito clara; mas parece certo que as espécies marinhas não estavam representadas. Além da ignorância em entomologia, Cesarino derivou a sua confusão do facto de, apesar da metamorfose, as proporções humanas se terem mantido; de forma que muitos dos mamíferos pareciam insectos aumentados. O facto, assim relata­do, não parece estranho nem confuso. Mas imaginem-se, senta­das em poltronas, uma ao lado da outra, com um copo de sumo de laranja na mão, duas pessoas, uma das quais tem cabeça de elefante e a outra a da pulga comum, muito mais assustadora e invulgar, pelo menos nessas proporções; ter-se-á assim uma ideia do terror que acometeu Cesarino quando, do vão da janela onde se encontrava, levantou os olhos para a sala. Será útil também notar, como já se referiu ao falar da cabeça de elefante ou de pulga, que a metamorfose se limitava à cabeça dos convidados. Quanto ao resto do corpo, esses personagens mantinham roupa e, pelo que deixavam entrever os vestidos com cauda das mulheres e as calças pretas dos homens, corpos humanos. Este último fac­to, juntamente com a memória que Cesarino tinha da disposição dos grupos e de cada pessoa que os compunha, permitiu-lhe aliás identificar com suficiente exactidão cada um daqueles monstros; e formar uma ideia bastante correcta dos defeitos e das qualidades que tinham determinado a espécie da transformação.

Passado o primeiro momento de espanto, Cesarino disse-me que se esforçou para observar, com a maior perspicácia e atenção possível, aquele espectáculo extraordinário, para guardar memó­ria dele. Imediatamente viu que algumas espécies de animais eram representadas por numerosos exemplares; outras por um só; fi­nalmente, outras faltavam por completo. Por exemplo, dois ca­valheiros que conversavam seriamente e bebiam junto da mesa do buffet tinham ambos a cabeça rosada e hirsuta do porco; mais alguns suínos notavam-se aqui e ali na sala. Numerosos também os burros e os coelhos. Mas o que mais divertiu Cesarino foi a diferença entre aquelas cabeças animalescas e a dignidade e qualidade dos personagens que as envergavam. Num grupo no­tavam-se as seguintes metamorfoses: um grande velho patriarcal, universalmente honrado e respeitado, tinha a cabeça obscena e feroz, meio de cão meio de macaco, do mandril gigante; um grande banqueiro esticava para fora do colarinho engomado o pedúnculo azulado e serrilhado do moscardo azul, insecto pouco atraente que põe os ovos nas carcaças e nas chagas em supuração; outro, estróina conhecido, mundano e sociável como ninguém, erguia inesperadamente, da gola do fraque, o focinho afuselado entre acúleos hirtos pretos e brancos do insociável porco-espinho; um quarto, magistrado insigne, era ornamentado com a pequena ca­beça atarracada, peluda, negra e de olhos fechados da toupeira; finalmente, um escritor de romances psicológicos de grande pe­netração, em vez da cabeça sagaz de olhos investigativos, osten­tava a excrescência triangular e amarelada e as antenas filiformes da barata comum.

Cesarino confessou-me que nem todas as transformações lhe pareceram claras e justificadas. Certo rapaz rosado, louro, ainda cheio da amável candura da adolescência, o que tinha a ver com a enorme e carrancuda caraça preta de gorila que lhe tinha sido atribuída? E porquê um dos criados que levavam as bandejas da recepção erguia acima dos ombros de carregador o elegante e afectado focinho preto e húmido, de grandes olhos pestanudos, da gazela? Por outro lado, que nexo podia existir entre os sem­blantes ressequidos, espirituosos e cépticos de um velho diplomata estrangeiro e a feroz cabeça estriada do tigre siberiano? Igualmente, entre o perfil não muito inteligente, na verdade, mas enérgico e vigoroso, de um cavalheiro desportista, famoso corredor auto­mobilista, e o perfil cornudo e ondulante do caracol. Ou entre a cara comprida e melancólica de um conhecido e fecundo poeta e a placa preto-violeta que protege a boca de um escaravelho da espécie mais vulgar. Mas, tendo pedido que me descrevesse mi­nuciosamente esta última metamorfose, informei Cesarino de que sem dúvida devia tratar-se de um cópride, pequeno bicho intrigante que não é raro ver nas veredas do campo fazendo rebolar paci­entemente no pó grandes bolas de esterco; e Cesarino, com uma ponta de malícia, concordou que, tendo em conta os versos desse poeta, a coisa, até certo ponto, se explicava.

Naturalmente a curiosidade de Cesarino, jovem bastante galanteador e tão atrevido quanto azarado, dirigira-se desde o início para as mulheres. Na sala havia muitas, algumas das quais bastantes jovens e bonitas, e todas elegantíssimas. Cesarino confidenciou-me que, dado o tratamento sofrido pelos homens, esperava ver muitas delas transformadas em bezerras ou pior; já que, embora admirando-as e não sendo de forma alguma misógino, não tinha uma opinião muito positiva acerca da sua virtude, tanto das jovens como das idosas. Mas ficou desiludido; aqueles animais cujo nome impudico os homens costumam atirar como uma injúria contra as mulheres que desprezam, só em pouquíssimos casos vestiam trajos femininos e na sua maioria ornamentavam com as suas aparências homens de nível, em que nada deixaria imaginar uma tão singular transformação. A mais vulgar meta­morfose das mulheres era, pelo contrário, em patos, gansos, galinholas e outros tantos habitantes dos nossos charcos. E Cesarino disse-me que era admirável ver nos brancos e redondos ombros femininos erguerem-se pescoços compridos e vaidosos rematados por pequenas cabeças circunspectas com um bico amarelo e linguarudo. Esses pescoços cândidos ou irisados erguiam-se com ar de grande dignidade, tal como se nota precisamente e da mesma forma nas mulheres e nos gansos; e o efeito geral era o de um estranho e alarmante ridículo.

Outras mulheres inchavam fora do decote plumas espessas de galinha poedeira, erguendo a estúpida cabeça cristada de vermelho, com o olho redondo e o bico entreaberto. Outras ain­da tinham sido transformadas em rãs, meio verdes e meio brancas, com o focinho no ar e a boca rasgada até aos ombros; e ostentavam, enfiados por cima dos olhos estrábicos, os diademas de brilhantes com que enfeitavam os seus cabelos de mulheres. Por sua vez, uma grande dama, conhecida pelas suas obras de beneficência, trazia sobre o pescoço rugoso a cabeça preta e amarela do moscardo; e outra, jovem beldade pálida de olhos sonhadores e de cabelos romanticamente penteados em duas madeixas pretas reunidas num carrapito no pescoço branco e redondo, mostrava,. no lugar dessa doce fisionomia, a extremidade viscosa e mole, terminando numa pequena boca dentada, da sanguessuga. Cesarino, ao que me disse, lamentou em particular esta última transformação; aquela dama tinha-o impressionado como sendo uma das criaturas mais airosas que jamais encontrara na vida. Ficou menos espantado com a transformação de uma severa bea­ta em crocodilo; com a de três raparigas muito jovens e engraça­das em três gafanhotos com a cabeça reflexiva e inclinada, os olhos lenticulares e a mandíbula voraz; e com a da dona da casa em formiga-leão, grande insecto que, como toda a gente sabe, no estado de larva fica achatado no fundo de um funil de pó finíssimo, à espera de que alguma formiga role pela descida farinhenta abaixo até às suas pinças à espreita. O que dizer, pois, de uma lourinha franzina, não transformada, conforme se podia esperar, em vespa ou libélula, mas, do peito para cima carregada com as formidáveis placas e o focinho obtuso unicórneo do rinoceronte? ou de uma rapariga feiosa e modesta, transformada, por sua vez, em cantárida verde como erva? ou, pior de todas, de uma jovem senhora de rosto sereno e pensativo que estava completamente sozinha a um canto: até ao pescoço mulher atraente de uma graça preguiçosa e formosa, do pescoço para cima insecto amarelado, habitador de colchões, da espécie a que os entomologistas chamam no seu latim transparente «cimex lectularia»? Cesarino disse-me que esta e outras tantas transformações do género tinham chegado a aterrorizá-lo. «Coitado de mim», não pudera deixar de exclamar para consigo mesmo, «onde me encontro... em que companhia...» Perguntei-lhe então se, entre tantas metamorfoses desanimadoras, não tinha notado algumas em animais dos que habi­tualmente são julgados nobres ou engraçados, tal como o leão, a águia, o cavalo, o cisne, o rouxinol ou outros parecidos. Respon­deu-me que não tinha dado por nenhum leão; é verdade que de longe julgara ver o pescoço raso de uma leoa, mas, olhando melhor, tinha verificado tratar-se de um puma, espécie de grande gato americano. Cavalos, sim, havia; mas da raça mais vulgar, dos acostumados a avançar entre as estacas de um carro; em compa­ração, Rocinante era um Bucéfalo. De rouxinóis, nem sombra; cisnes, um ou dois. Quanto à águia, havia, sim, um magnífico exemplar; e, embora pareça incrível, erguia a cabeça cheia de solitária e carrancuda majestade sobre os ombros franzinos do violinista maltrapilho da pequena orquestra situada ao fundo da sala. Estranho, acrescentou Cesarino a este respeito, ver aquela cabeça real, aquele bico adunco, aquela expressão remota erguer--se ao lado do instrumento delicado durante a execução, bastante sentimental, da romança de Madame Butterfly.

Além da águia, a orquestra revelava aos olhos pasmados de Cesarino um focinho de facoquero, munido de presas, ao piano, um mosquito muito franzino no bombo e, o mais simpático dos quatro, um bonito coelhinho cândido, de olhos vermelhos como rubis, ao saxofone. A orquestra, depois de executar com muita perícia trechos de ópera escolhidos, atacou com força numa dança moderna, uma rumba mexicana. Então, comentou Cesarino, co­meçou o mais louco e incrível baile de máscaras «en tête» que ele jamais tinha visto em todos os carnavais da sua vida. No pavimento espelhado, entre aquelas altas paredes pintadas a fresco com ce­nas heróicas, era deveras admirável ver voltear todos aqueles bichos, felinos com insectos, aves com répteis, ruminantes com anfíbios. Que elegância de movimentos. Que expressões galanteadoras, absortas, insinuantes. Que alegria. Mas Cesarino admirara de mais a dama da bonita cabeça romântica; vê-la transformada em sanguessuga fora para ele uma desilusão demasiado grande. E preferiu não tomar parte nas danças, ficando no seu canto de observação, no vão da janela.

Nos intervalos os pares, tal como costuma acontecer nos bai­les, desfaziam-se, os instrumentos harpeavam ao serem afinados, as conversas fervilhavam. A palavra conversa intrigou-me e per­guntei a Cesarino como conseguiam comunicar todos aqueles bichos tão diferentes entre si. Cesarino respondeu-me que, de facto, o resultado era uma cacofonia assustadora de barridos, mugidos, latidos, rugidos, coaxos, ganidos, chilreios, grasnidos, assobios, gorjeios, zurros, relinchos, zunidos, mios, apupos, ca-carejos e outros tantos ruídos animalescos. Mesmo assim, os es­tranhos bichos pareciam entender-se. Cesarino, que se gaba de ser também algo moralista, acrescentou, a esse respeito, que todas aquelas vozes, tão discordantes, representavam bem a solidão impenetrável em que está fechada cada alma humana.

O que me parecia mais singular em todo o relato de Cesarino era o facto de não falar absolutamente de si próprio ou melhor, da sua própria transformação, que certamente acontecera. Depre­endi que não devia ter sido tão lisonjeira como ele queria e bombardeei-o com perguntas. De início obstinou-se a responder--me evasivamente. Mas, colocado entre a espada e a parede, aca­bou por confessar-me, com uma certa curiosa vergonha, que ele naquele bestiário fora o único a conservar aparências humanas. A resposta, na altura, espantou-me e quase a julguei uma mentira com a qual o pobre Cesarino tinha querido esconder-me a sua humilhante transformação, sei lá, em pulga ou em rato ou, mais adequadamente, num pavão sarapintado. Mas, tendo reflectido, cheguei à conclusão de que havia demasiada ingenuidade na sua resposta para ser falsa. Evidentemente tinha sido transformado também ele em bicho segundo os seus dominantes e mais secretos defeitos; mas era igualmente claro que não tinha tido consciência disso, como, de resto, todos os outros convidados daquela festa invulgar. Assim, cada um deles continuara a julgar-se homem ou mulher, enquanto na verdade se encontrava transformado em bicho. Mas só Cesarino, por um favor extraordinário da sorte, tivera o privilégio de se aperceber, se não da sua própria, pelo menos da metamorfose dos outros.

E como acabou a festa? Cesarino disse-me que a altas horas da noite os salões se esvaziaram, e todos, mamíferos, répteis, in­sectos, anfíbios, aves, saíram em massa pelas grandes escadarias de parada para o largo onde esperavam os automóveis. Será que nessa passagem os convidados voltaram à sua aparência habitual? Cesarino não soube responder com certeza a esta pergunta. Já que, um pouco para se consolar da desilusão provocada pela mulher sanguessuga, um pouco para se subtrair ao pesadelo de todos aqueles monstros, tinha bebido além de qualquer limite. E à saída, não só não via os companheiros, como não enxergava nada a um palmo do seu nariz. Perante esta resposta não pude deixar de manifestar a minha incredulidade contida por demasiado tempo. Disse a Cesarino que era um bêbado. Que não acreditava numa palavra do que me contara. Tinha sido um sonho do seu cérebro, arrebatado pelos vapores do vinho. Que de futuro devia mas era manter-se sóbrio, de forma a não correr o risco de trocar a mulher que amava por uma sanguessuga nojenta. Mas Cesarino defendeu com as juras mais terríveis que tinha a certeza de não ter sonhado. Repliquei que, nesse caso, era um mentiroso. Ele respondeu-me no mesmo tom. Desde então, deixámos de nos falar.

 

                   O QUIROMANTE

O quiromante instalou-se em três quartinhos no último andar de uma casinha vermelha, no bairro antigo da cidade. Os clientes sobem os cinco lanços de uma escada com tecto aboba­dado, que parece ter sido cavada na pedra, de tão gelada, íngre­me e estreita que é, empurram uma portinha preta como alcatrão, despertando o som estrídulo de uma campainha, entram num vestíbulo minúsculo, por entre quatro cortinados pretos. Imedia­tamente uma mão branca levanta um daqueles cortinados funéreos e uma criada loura e engraçada, mas como que precocemente murchada no rosto sombrio e sofredor, introdu-los sem uma pa­lavra na sala de espera, de que o vestíbulo mínimo é apenas uma subdivisão obtida precisamente através do resguardo daqueles cortinados. A sala de espera, um pouco mais ampla, mas igual­mente escura, tem o tecto baixo e oblíquo, com as traves pintadas, cor de nogueira, e entre as traves uns miseráveis caixotões azuis enfeitados com florões dourados. As pessoas sentam-se encosta­das às paredes sombriamente forradas a papel vermelho-pompeiano, em brilhantes e incómodas cadeiras racionais, e es­peram no silêncio e na sombra, olhando de esguelha umas para as outras. De vez em quando o quiromante assoma, levantando um cortinado, e faz sinal a uma das pessoas sentadas para que entre no gabinete. Este, nada tem do aparelho tradicional dos adivinhos. Nada de mochos empalhados, sapos de vidro, caveiras a servirem de pisa-papéis, nada de livrões com fechos e bolas de cristal. Pelo contrário, é um local em tudo parecido com a sala de espera, com o mesmo papel vermelho e as mesmas cortinas pretas; só que, em vez das numerosas cadeiras, tem uma secretária, ou melhor, um cubo de madeira polida e dois bancos, O cliente senta-se diante do cubo e oferece a mão; ou então olha para o quiromante enquanto este distribui as cartas no plano espelhado da mesa.

Também o quiromante nada tem do adivinho profissional. É um homem jovem, pálido, com o cabelo compacto reluzente de brilhantina, os olhos pretos sem olhar como os dos cegos, o rosto regular e triste; de uma urbanidade e cortesia de caixa ou de bailarino profissional. Está vestido de escuro, com o casaco preto e as calças às riscas; debaixo do colarinho de bicos para cima, tem uma gravata de peitilho, das que se usam nos funerais e nas cerimónias. A pobreza, mais do que ver-se, sente-se na roupa. Leva a pensar que, à noite, tirada aquela espécie de farda, o qui­romante se transforma de repente num jovenzinho indigente e assustado, um pouco como acontece aos criados de mesa quan­do, despida a libré, ficam mais pequenos e mais maltrapilhos do que tinham parecido até então. Ele é rigoroso na linguagem da profissão, recheada de termos científicos, com uma ponta de de­ferência glacial, que parece afastar qualquer familiaridade. Ao ler a mão, não toca na palma que lhe é oferecida, mas, depois de a ter examinado através de uma grande lupa, com ar de enjoo, aponta as linhas fatais com o bico de um lápis; ao ler as cartas, distribui-as na mesa com um gesto elegante e desdenhoso de jogador. Nem deixa de franzir as sobrancelhas e de emitir sufocadas exclamações de espanto; mas percebe-se que tudo isso não passa de uma exibição profissional em que ele não participa de forma alguma. Quanto mais emocionados, palpitantes, esperançados estão os clientes, mais ele se fecha na sua urbanidade charlatã como numa couraça. No fim da consulta, atira sem olhar para uma gaveta o dinheiro cobrado, acompanha o cliente a uma por­ta diferente daquela por onde entrou, e, com uma bela vénia, assoma à sala de espera para chamar o seguinte. Tudo isto dura duas, três, ou até quatro horas, conforme a afluência de pessoas. No fim, nem um cabelo da cabeça untada do quiromante está fora do lugar; o nó da gravata de peitilho não se desfez; apenas duas unhadas pretas, nada sentimentais, sombreiam os seus olhos, conferindo um ar convulso ao rosto pálido.

Depois de sair a última cliente, uma professora primária ma­dura (a sua linha do coração é boa, mas a cabeça sofre as influências do coração; a senhora é ciumenta; a linha da sorte é óptima...), a criada, que na verdade é a mulher do quiromante, tranca com a corrente a porta da rua, tira o avental e a touca, escancara as janelas da sala de espera e do gabinete. A luz rasante e pura do crepúsculo primaveril entra nos dois quartos, afugentando as trevas sugestivas; o ar quente e impuro dissolve-se, empurrado por uma leve brisa nocturna. Nesta luz, os dois quartinhos revelam-se por aquilo que são: duas armadilhas forradas a papel vermelho mal colado. Os telhados de telhas erbosas sobre as quais se abrem as duas janelas, as chaminés recortadas no céu pálido, o estridular das andorinhas que nas suas voltas roçam os peitoris, aumentam, por contraste com a sua rústica serenidade, esta esqualidez de cenografia pobre. Depois de escancaradas as janelas, a mulher senta-se de lado à mesa; enquanto o marido, cabisbaixo, conta as notas e as moedas do ganho do dia. A mulher aflora com os lábios a nuca do quiromante. Mas este, acabada a contagem, le­vanta-se e vai para o quarto contíguo, para vestir um fato claro, matinal. Finalmente, saem juntos de casa.

É esta a melhor hora do dia do quiromante. Lentamente, en­quanto anda ao lado da mulher pelas ruas excitadas e concorridas do fim da tarde, a cinza da vida passada, presente e futura de tanta gente que desfilou pelo seu gabinete, cai em cima dele: impureza triste e incomodativa, de que, no momento da saída, se sente todo enlameado. Uma ténue felicidade sorri-lhe, ao subir as ruas api­nhadas, e o estímulo do desgosto que lhe aperta a garganta ao examinar cartas e mãos, dissolve-se no habitual, resignado cansa­ço. Pois o quiromante, não só não acredita no seu ofício, como até tem convicções opostas. O futuro, depois de lhe ter parecido nos primeiros anos da juventude um caminho seguro iluminado pela sensualidade, agora perdeu qualquer atractivo; pode-se até dizer que não existe. O quiromante pensa que os dias se seguirão para ele todos iguais até à morte; e que, como nas adições, se poderia inverter a sua ordem sem por isso modificar de forma alguma o resultado. A pretensão das pessoas de terem cada uma o seu próprio destino, outrora fazia silenciosamente enfurecer o quiromante; agora, mais indulgente, atribui-a a um vício humano, entre a vaidade e o instinto de conservação. Aliás o quiromante tornou-se tão céptico acerca de si mesmo e dos outros, que às vezes lhe acontece pensar que, uma vez que tudo está perdido, talvez também as cartas e as linhas das mãos afinal tenham algum significado.

Amanhã, amanhã e amanhã; o quiromante, que pelo seu ofício conhece o eco que estas sílabas despertam no coração de cada homem, mesmo o mais disparatado e ingénuo, pergunta-se às ve­zes se porventura haverá um dia para esta palavra. O amanhã afasta-se com as suas cores alegres e as suas promessas deliciosas, pensa, à medida que o tempo passa; e é sempre hoje, para toda a gente, numa imobilidade funérea de hábitos, num progressivo crescer de inércia. Quando o cansaço do dia de adivinho não é excessivo, ele ainda especula ironicamente com a mulher acerca da ilusão tenaz que cada homem guarda no fundo da sua alma sobre o seu futuro. Velhos, diz, que têm escrito na testa que não conseguirão ultrapassar o ano, são mais curiosos e ardentes do que os jovens, e não se apercebem de que, mesmo que aquelas linhas das suas palmas tivessem alguma vez tido algum significado, agora já não são linhas de futuro, mas sim de passado, e testemunham não já esperanças, mas apenas erros. Outros, por sua vez, jovens a quem deveria ser suficiente um espelho para desvendar o destino mesquinho, exaltam-se com um futuro não merecido que deveria cair do céu com o seu património de gloriosas fortunas, de aventuras nunca vistas, de poder e de riqueza. As mulheres, mesmo as mais velhas, iludem-se de ser fatais; e o quiromante, chegado a este ponto, re­conhece que a delas é, em tanta loucura, a pretensão menos in­fundada. Já que, acrescenta, é mais verosímil que a sorte se deixe conquistar pela beleza do que se deixe persuadir pela virtude e pelo valor. O quiromante, embora desiludido, todavia continua a sentir uma espécie de áspera e cruel complacência ao enumerar as ilusões que a cada dia desfilam à sua frente. Ele não é um confessor, que em tão grande monotonia pode vislumbrar a unidade de uma or­dem transcendente. Mais lhe parece encontrar nelas um sentido de vaidade intriguista e tétrico, de azeda comédia dos enganos; onde cada personagem se equivoca sobre si mesmo e os outros, sem fim; sustentando-se cada um no equívoco do outro. O quiromante sabe que só o tempo afrouxa, aplana, e finalmente dissolve todos esses enredos infinitos e sempre iguais.

Mas a mulher do quiromante, que o ama sem conseguir ser amada por ele, protesta contra esses desabafos do marido. Ela acredita, antes de mais nada, nele; a seguir, nas linhas da mão, nas cartas, nas estrelas, e em cada mais absurda prática ocultística. Ela repreende-o e tenta animá-lo, lembrando-lhe que não foi só a necessidade que o levou a escolher esse ofício, mas, na longínqua adolescência, também a vocação. Mas o quiromante, calmo, res­ponde-lhe que então ele sentia nos dias futuros uma promessa inesgotável de coisas extraordinárias, deliciosas, poderosas; por isso, atraíam-no as linhas da mão, as cartas, as estrelas, os prog­nósticos e os augúrios como chaves para descerrar a porta fechada que lhe barrava a posse de tantos tesouros. Mas nunca teria ima­ginado que um dia, dissolvidas as curiosidades e a fome de futuro, aqueles conhecimentos de amador se transformariam em ofício; e que ele passaria a viver dos seus deleitosos erros.

Porém, o futuro existe, pensa o quiromante caminhando ao lado da mulher, em direcção ao centro da cidade. Não para si, que faz dele comércio e dele vive; nem para os seus clientes, coitadinhos, à espera que lhes chova do céu como um aerólito; nem para alguém individualmente, a bem ver; mas para todos juntos, enquanto vivem. Rasteja como a fissura de um desabamento nesta paz enganadora da existência material. É o pressentimento nos dias calmos, o ponto negro no céu azul, o grito das aves migratórias. Assim pensando, o quiromante quase se acalma, e se reconcilia com o seu ofício.

Entretanto chegaram ao centro da cidade, na hora quase nocturna em que, ao pé dos prédios iluminados, os ardinas anun­ciam em voz alta as notícias da tarde. O quiromante compra um desses jornais e abre-o com curiosidade. Assim, ele com o seu jornal, ela com a sua pena, entram num café à espera da hora do jantar.

 

                   PAÍS SEM MORTE

Naquele país reina, eterna e imóvel, a vida. Numa época imemorável, graças ao enorme progresso científico, os ho­mens de lá deixaram completamente de morrer e, talvez por compensação, também de nascer. Os cemitérios ficaram como ficam os monumentos de uma idade bárbara. Mais tarde os mu­ros ruíram, os ciprestes foram arrasados pelos raios e a terra en­goliu, depois dos esqueletos, também as lápides e as cruzes, até aos mais altivos monumentos. Naquele país os habitantes esque­ceram o que é a morte; embora, por uma contradição só aparente, seja precisamente o terror da morte a dar o seu carácter à estra­nha nação. A ciência, que a bem ver é, toda ela, um esforço para suprimir, depois dos incómodos, os sofrimentos, as doenças e até a morte, venceu finalmente a sua inimiga secular. Chegados mais ou menos aos sessenta anos, os habitantes daquele país deixam de envelhecer. Aliás, não chegam a essa idade por graus insensí­veis de horas, dias, meses, anos, mas sim em três saltos bruscos da infância à adolescência, desta à virilidade e da virilidade à velhice. Mas, quando chegam a velhos, através de processos ci­entíficos, voltam a ser crianças. Assim, o círculo fecha-se e o ciclo vital recomeça. É sempre o mesmo sangue e, até certo ponto, são sempre os mesmos indivíduos que nascem, que se tornam ado­lescentes, homens maduros e velhos para depois renascerem de novo. Tal como a água de certos fontanários que, depois de es­guichar pelas máscaras, mergulha nas condutas subterrâneas e a seguir, por outras condutas, volta a esguichar para fora sem que, no percurso, uma única gota se perca.

O país inteiro é regido pelos velhos e por eles mantido na ordem que referimos. Foram eles que, em época pré-histórica, empurrados pelo terror da morte que então grassava, consegui­ram fixar e dividir a vida humana em quatro idades; foram eles que encontraram os meios para passar da velhice à infância; são eles, finalmente, que, no momento dessa passagem, a mais im­portante e difícil de todas, cuidam que, ao mesmo tempo, se dêem as outras para as outras idades. Pois por cada velho que se torna criança, é preciso que uma criança se torne adolescente, um ado­lescente homem e um homem velho. De outro modo, formar-se--iam desequilíbrios que em pouco tempo provocariam a extinção da estirpe. Dizem que nesse contínuo circular de uma idade para outra, a massa do sangue de que a nação dispõe se degrada pro­gressivamente. Mas calcula-se que, mesmo sendo verdade, a extinção da estirpe não se poderia dar antes de um milhão de anos. O que, em termos humanos, equivale a dizer que a estirpe é eterna.

De resto, para dar uma ideia precisa da nação, melhor do que qualquer raciocínio, será útil uma descrição fiel das várias idades que a compõem; as quais, talvez devido à sua imobilidade e separação, não são tão indefinidas como entre nós, mas apre­sentam-se aos olhos do espectador com aspectos inconfundíveis e definitivos. Isto explica, aliás, o facto de ninguém desejar passar de uma idade para outra. Com excepção, naturalmente, dos velhos, nos quais este desejo se manifesta como carácter exclusivo. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que as três primeiras idades não têm qualquer sentido do passado ou histórico. Enquanto os velhos, incapazes de viver uma sua vida original, têm apenas esse. As crianças, como outrora Hércules, Gargântua e outros ho­mens prodigiosos do mesmo género, podem, sem dúvida, ser definidas como pequenos monstros dotados de voracidade e fe­rocidade extraordinárias. Elas não moram em brancos quartinhos ou em bonitas salas cheias de brinquedos, mas sim em jaulas sujas munidas de grandes barras de ferro, espalhadas por bosques que as escondem aos olhos do visitante. Este, ao aproximar-se, ouvirá, vindos daquela verdura, um ranger de dentes que se afiam, um ruído de correntes, um desarticulado e ferino vozear. Julgará tratar-se de um zoo; mas, ao penetrar por entre as árvores, des­cobrirá no fundo das jaulas sujas e escuras algo de rosado, gor­ducho e enorme, torcendo-se no chão como um verme entre as imundície e as ossadas. Observando melhor, descobrirá tratar-se de um menino de estatura quase dupla da de um homem normal, capaz, em suma, de ensombrar os colossais meninos de mármore que sustentam as pias de São Pedro em Roma, o qual se entretém, à espera da refeição, agarrando com as mãozinhas rechonchudas as barcas da jaula e sacudindo-as fragorosamente; ou então roendo, com olhos tortos e dentes de lobo, uma costela, sobra de um quarto de vitela já devorado. O visitante ficará espantado ao ver aquele tenro corpão revolver-se na sombra sórdida da jaula, pondo os pés na boca, ou esbracejando com os braços gorduchos, fa­zendo, em suma, todos os gestos engraçados dos recém-nascidos com alguma ferocidade inocente, digna de um tigre; mas o seu espanto transformar-se-á em estupefacção quando, ao levantar-se de uma porta de correr, será empurrada para a jaula uma ovelha viva para a refeição diária. Verá então, enquanto o ovino se retrai para um canto e bale piedosamente, o menino enorme rastejar sobre o ventre e os cotovelos até à sua presa, agarrá-la pelas orelhas e, fazendo-lhe dobrar os joelhos que resistem, torcer-lhe a cabeça até lhe quebrar a nuca. O sangue escuro brota fumegando da boca da ovelha, suja a cara do menino e o seu cheiro adocicado mistura-se com o cheiro ferino da jaula. Rangem as vértebras esmiuçadas pelos dentes famintos. Aqui e além mexe-se na sombra o corpo exânime, mole e lanoso, estraçalhado e rasgado pelos maxilares impiedosos. O visitante não resiste à visão de tão grande chacina e afasta-se.

Bem diferente é o espectáculo oferecido pelos adolescentes, que representam a idade sucessiva à das crianças. Estes ocupam nas cidades uns bairros especiais construídos em moldes de labi­rintos. Trata-se de uma rede muito cerrada de muros brancos e espessos, que formam milhares de celas ligadas entre si por uma infinidade de corredores, passagens, pátios. Em cada uma das celas, como nas casas do jogo do ganso, encontra-se um objecto, para cuja procura e posse os adolescentes, eternamente empurrados por um seu próprio furioso instinto, vagueiam sem descanso como possessos. Andam nus, os adolescentes, como os corredores das antigas Olimpíadas, e correm freneticamente, gritando o nome do objecto cobiçado, tropeçando nas passagens estreitas nos seus companheiros de aventura, sem nunca parar. Assim, todo o labi­rinto é um cruzar-se contínuo de corridas disparatadas e veementes, um fervilhar de buscas, um chocar de gritos e gestos furiosos. Quanto aos objectivos de tanta agitação e curiosidade, imagine­mos por um momento estarmos no encalço de um daqueles in­cansáveis exploradores. Ei-lo a correr por um corredor estreito e, retendo o ímpeto do corpo com as mãos agarradas às grades, debruçar-se sobre a primeira cela: ali está uma estátua de mármo­re; na segunda: um monte de moedas de ouro; na terceira: um pão; na quarta: um esquadro; na quinta: uma cama; na sexta: um baralho de cartas; na sétima: um livro; na oitava: um bastão de comando; na nona: uma espada; na décima: uma caneca de vinho; na décima primeira: um espelho... mas para quê continuar? Cada labirinto compreende milhares de celas; por isso mesmo, a listagem arriscar-se-ia a tornar-se aborrecida. Basta dizer que o pesquisador não irá parar até encontrar, entre todos aqueles compartimentos, o que procura. Depois de encontrado, a sua paixão esmorecerá e uma nova curiosidade o empurrará para fora da cela à procura de novos objectos. São, pois, a curiosidade e o prazer da descoberta que estão na origem dessa corrida sem fim pelas galerias do la­birinto. Entretanto um sol canicular brilha a pique sobre os muros brancos e doura os corpos nus que aparecem e desaparecem a correr pelos pátios.

Quanto aos adultos, abstêm-se com todo o cuidado de se­cundar os apetites ferozes das crianças, as curiosidades sensuais dos adolescentes. Actuar desta forma seria para eles não apenas errar, mas até cometer um crime. Estão em relvados amplos cer­cados por um altíssimo muro branco, com uma única pequena porta preta como a pez. Apinhados em multidão em volta dessa pequena porta, que se abre só raramente e para engolir apenas um deles, o medo do que pode haver para lá do muro mantém--nos parados, apertados um contra o outro, inactivos, com a alma suspensa e cheia de previsões, remorsos e apreensões. Para pas­sar o tempo, confidenciam uns aos outros, em voz baixa, o que imaginam estar para além do muro. Alguns, desolados, dizem que o que os espera é um abismo escuro lambido por súbitas e tácitas labaredas; outros, esperançados, que é um jardim cor-de-rosa e azulado, com canteiros esmaltados e riachos verdes a cor­rerem entre as neves, de florescimentos eternos. Mas estes últi­mos são a minoria; a maioria treme e tem medo. Entretanto, atrás deles, um campo fértil corrompe-se e arruina-se. Nos campos o trigo crescido passou de louro a vermelho, acamado em vários pontos, em todo o lado misturado com a grama. As bonitas quin­tas têm os telhados gretados e desmoronados, e pelos buracos vêem-se nas amplas cozinhas as mesas ainda postas com pratos de porcelana e canecas, sobre os quais caíram telhas e reboco. Através dos vidros partidos das janelas entrevêem-se as camas desfeitas, onde o mocho grifenho faz o seu ninho e a aranha tece a sua teia. No quintal jazem abandonadas as alfaias, a madressilva transformou o poço num monte de folhagem brava, a erva dani­nha cresce diante das portas. Os estábulos estão escancarados e vazios, os cavalos fugiram a galope para os bosques longínquos, os bois deitam-se ociosos nos campos sem sulcos. Mas o medo mantém o seu domínio absoluto sobre a multidão apinhada ao pé do muro, de forma que por nada desse mundo eles se vira­riam, para olhar o seu belo campo assolado. Esperam a todo o momento ver sair do lado oposto do muro e obscurece o céu sereno o sombrio e rangente exército voador dos diabos e dos esqueletos chefiados pela morte ceiferia, sua capita. Qualquer som remoto de corno de caça que ecoa pelo plácido campo é para eles o toque de trompa do juízo universal. Entretanto o Sol põe-se no horizonte, num vermelho de bom agouro, iluminando os dor­sos da negra multidão em silêncio e à espera.

Se o mundo das crianças está sob o signo da fome, se no dos adolescentes reina a curiosidade, se o medo governa o dos adultos, por sua vez no céu apagado dos velhos brilha apenas a negra estrela do tédio. Os velhos estão perfeitamente conscientes de que são o extremo resultado de um longo desenvolvimento cujos pormenores conhecem na perfeição; e o tédio dessa consciência, juntamente com a incapacidade de viverem uma vida própria, como acontece com as outras idades, leva-os a tornarem-se cri­anças, determinando assim aquele movimento circular de passa­gens de uma idade para outra, sem o qual a estirpe rapidamente se extinguiria. Moram, os velhos, em vastos hospitais situados na periferia das cidades, onde não são tratadas doenças, mas onde, sob a vigilância de outros velhos cuja vez de rejuvenescimento ainda não chegou, se cuida da transformação dos pacientes senis em recém-nascidos. Parecidos com vasos compridos de vidro e cimento, esses hospitais têm camaratas muito compridas, onde os enfermos impossibilitados de andar jazem imóveis, completamente envolvidos em ligaduras enormes e disformes, debaixo dos co­bertores de caminhas brancas. Os outros, que ainda se encontram num estádio inicial do tratamento, passeiam-se por galerias envidraçadas de onde se goza a vista da terra prometida das jau­las, dos labirintos e do muro. Quanto aos tratamentos através dos quais regressam à infância, não são nem simples nem curtos. Di­videm-se em tratamentos psíquicos e tratamentos físicos.

Os primeiros consistem principalmente em aplicações electro­magnéticas, graças às quais, passado um certo prazo, as noções de que os velhos estão carregados, as lembranças que lhes ocupam a memória, os escrúpulos que lhes embaraçam a consciência, dissolvem-se como as sombras de uma película exposta à luz do sol. Numa palavra, o velho deve, acima de tudo, tornar-se ignorante, obtuso, inculto. A seguir, com os mesmos sistemas, trata-se de obliterar nele o sentido dos valores. Assim, além de ignorante, torna-se de certa forma animalesco. Esta primeira parte do trata­mento é a mais curta. Pois é surpreendente como tudo o que a civilização acrescenta à natureza pode ser destruído com extrema facilidade, sem deixar rasto.

Terminado o tratamento psíquico, ou seja, transformado o paciente num pedaço de carne incapaz não só de pensar como de falar a não ser com grunhidos e vozes desarticuladas, enfrenta--se o rejuvenescimento físico. Aqui a cirurgia e as ciências bioló­gicas dão as mãos. O que não se obtém com os tratamentos glan­dulares, é conseguido pelo bisturi. Descrever os vários graus desta espécie de metamorfose ao contrário, de borboleta para verme, seria abandonar-se à descrição de verdadeiras monstruosidades. Bastará dizer que a determinada altura o paciente é fechado numa espécie de casulo de ligaduras, que só serão soltas no fim, quando a transformação estiver completa. Então, as ligaduras cairão e lá onde outrora havia um Nestor encanecido e rugoso, chorará agora, feroz, um infante. Imeditamente, no maior secretismo, os velhos de turno na governação do país providenciarão a transferência do recém-nascido para uma jaula e a actuação, através de simples enxertos, das passagens consequentes às outras idades.

Assim, o círculo fecha-se e o ciclo recomeça.

 

                   OS DOIS TESOUROS

Vittorino, velho tão rico como avarento, ouvia continuamente a jovem mulher Fotide lembrar-lhe que não devia guardar em casa a sua riqueza, composta por um grande número de títulos in­dustriais, de notas bancárias e de jóias de todos os géneros, se não queria alguma vez ser vítima de roubo por parte dos serviçais; sem contar com incêndios e outras desgraças que podiam acontecer. Fotide, bonita e vistosa, além de jovem, fora, até ao dia anterior, a criada de Vittorino; foi isso que convenceu finalmente o velho a levar para o banco o seu património. Ele não tinha ilusões acerca do amor de Fotide, que sabia ser venal e insaciavelmente ávida de dinheiro; aquela alusão ao serviçal que o podia roubar, parecia-lhe quase uma ameaça. Embora fosse sua mulher, Fotide continuava criada; sabia onde ele escondia as suas riquezas; Vittorino nos sonhos da sua avareza via frequentemente os seus esconderijos violados e vazios e a cama da mulher deserta. Ou então, ele próprio morto, num lago de sangue, ao lado das gavetas sagradas, defendidas em vão contra a fúria de Fotide e de um cúmplice. Assim era o amor de Vittorino, sem ilusões, medroso e suspeitoso. Aliás, Fotide tudo fazia para justificar essas suspeitas. «Desculpa, Vittorino», dizia-lhe às vezes tornando-se humilde e insinuante, «mas tu és velho... claro que eu desejo que vivas mais cem anos... mas uma desgraça pode sempre acontecer... já pensaste em fazer testamento?» Vittorino, mal--humorado, respondia-lhe que isso não lhe dizia respeito: mas que não duvidasse, não a deixaria desamparada. Ou então Fotide apresentava-se de manhã no quarto de Vittorino, sentava-se na cama com um robe que descobria mais do que velava a pujança do corpo formoso, e prodigalizava-lhe, séria e cuidadosamente, uma tem­pestade de beijos, de mordidelas e de carícias. Mas no auge Vittorino ouvia-a murmurar: «Aquele dinheiro... não seria melhor que tu me pusesses a par do montante daquele dinheiro... afinal sou tua mu­lher. ..»Um dia ele levantou-se da cama com raiva. «Aquele dinhei­ro, vou levá-lo hoje mesmo para o banco», disse correndo descal­ço pelo quarto, «mas é bom que saibas que já fiz testamento... se morrer de repente, irá para o meu sobrinho.» «Quero lá saber» dis­se Fotide levantando-se e dirigindo-se para a porta com a majesta­de que lhe era própria, com o robe meio a cair no corpo nu, «fica com o teu dinheiro... faço-o por ti... para que não sejas roubado... velho forreta...»Vittorino nem lhe respondeu. Ofegante, acometido por uma ânsia raivosa, puxava com as duas mãos o antigo, pesadíssimo cofre de ferro do tamanho da cama. Depois de o ter trazido à luz do sol, abriu-o e por um momento ficou a olhar, debruçado: misturados e confundidos numa desordem atractiva, viam-se lá dentro pacotes de títulos, dobrados ou embailhados, atados com fitas de cores suaves, saquinhos cheios de moedas, vários molhos de notas bancárias de grande valor com arabescos sensuais e coloridos e até, envolvidas num pano de flanela verde, umas quantas barras de ouro. Sobre tudo isso, uma chuva de moedas de ouro e de prata, de cunhos variados, que, caso fosse necessá­rio, confirmariam o carácter precioso daquelas notas historiadas. O cofre parecia ter sido tirado não já de debaixo da cama, mas sim de algum fosso profundo onde o tivesse enterrado um temor criminoso; e aquela desordem não fazia pensar numa poupança, mas sim no despojo colorido de uma vida inteira de pirata.

Vittorino pegou em duas malas de viagem, abriu-as no chão e depôs nelas, sucessivamente, pacotes, sacos, molhos de notas, barras de ouro e moedas. Eram duas malas de grandeza média, mas no fim estavam cheias, a abarrotar. Vittorino fechou com dificuldade a primeira, sentando-se em cima dela e fazendo pressão com toda a força do magro corpo ossudo; mas para a outra teve que pedir ajuda à mulher. Ela, porém, quis primeiro ver o conteúdo, ficando encandeada com o fulgor das barras de ouro que apare­ciam por entre a flanela verde. Depois, sentou-se com o bonito corpo gorducho sobre a mala, que facilmente se fechou.

Uma vez fechadas as malas, Vittorino tirou do roupeiro que cheirava a naftalina um velho fato preto com lapela de seda, o fato do seu casamento. Parecia-lhe que para uma cerimónia num certo sentido tão importante e solene como a mudança para o banco do seu património, aquele fato ficasse a rigor. Fechou o magro pescoço rugoso num colarinho alto e engomado, atou ao peito um peitilho branco que devia simular a presença de uma camisa engomada, colocou sobre este uma gravata preta com o nó já feito. A seguir, enfiou as pernas ossudas nas calças às riscas, que caíram vazias, dobrando-se em fole sobre os sapatos brilhantes. Finalmente, vestiu o casaco preto, de tecido grosso e muito acol­choado. «Pareço um morto», não pôde evitar de pensar, ao ver-se no espelho vestido a rigor. Mas depois de vestido o velho casaco de peles roído pelas traças, cambaleando, obstinado e erguido, com uma mala em cada mão, dirigiu-se para a porta. Fotide já lá estava, à sua espera. Ofereceu-lhe a face para que a beijasse, inocentemente, e Vittorino entre si não pôde não pensar que talvez a tivesse caluniado. «Peço-te» disse-lhe com invulgar atenção, «que estejas arranjada no meu regresso... vamos dar um passeio juntos.» Fotide respondeu que podia estar descansado. Vittorino beijou a mulher e saiu.

Vittorino, para esta sua excursão ao banco, alugara uma car­ruagem, despesa extraordinária, justificada pelo acontecimento extraordinário. A carruagem, uma velha vitória desengonçada, já estava à porta, à espera. Mas no momento em que, arrumadas as malas, punha o pé no estribo, um grito dilacerante, um só, ecoou na área deserta. Vittorino, embora sentindo o sangue gelar e pa­recendo-lhe que o grito viesse precisamente da sua casa, não quis investigar o motivo e a origem. O céu estava cheio de uma ampla multidão de nuvenzinhas miúdas e espessas, parecidas com os inchaços de um colchão bem pesponteado. «O céu promete chuva», pensou Vittorino para mudar de pensamento. E deu ordem ao cocheiro para o levar directamente ao banco principal da cidade.

O banco, edifício alto de granito escuro e brilhante construído em forma de tronco de pirâmide, surgia no meio da área principal; a toda a volta deste edifício solene, as outras construções mais pequenas pareciam reagrupar-se, atemorizadas e desejosas de protecção, tal como outrora as casas das cidades antigas em volta da catedral.

Depois de a carruagem parar, Vittorino viu, através das ar­cadas, além das portas giratórias de mogno e cristal, a sala principal do banco, já iluminada, apesar de ser manhã, cheia de uma luz quente, rosada, cordial. O próprio director do banco, avisado pelos contínuos, veio à porta receber Vittorino e, antes de mais nada, fez-lhe uma vénia profunda de pés juntos. «Sabíamos que mais dia menos dia o senhor viria bater à nossa porta» disse com parti­cular satisfação, a mesma com que um padre acolheria um herege vindo para se converter. «A sua presença é uma honra para nós, Vittorino.» Vittorino fingiu não ter ouvido, entregou as malas a dois carregadores e entrou no banco. Na sala principal muitos dos clientes e empregados que conheciam Vittorino de vista, viraram-se a olhar para ele. Ele seguiu o director e os dois carrega­dores descendo por uma escada com balaustrada em espiral onde, entre as flores e os ramos de uma folhagem de bronze, se repetiam as siglas conhecidas do banco. A escada penetrava debaixo da terra como uma broca, girando sobre si própria entre paredes de mármore amarelo brilhante; mas, embora girando e descendo cada vez mais, não se modificava o ar quente, sensual, levemente perfumado do cheiro gordo das notas bancárias; nem a luz discreta, rosada, persuasiva como a de uma alcova. Desembocaram final­mente numa sala redonda, com o pavimento de mosaico. Nos quatro cantos desse mosaico estavam representadas quatro figuras severas cada uma segurando um escudo, também este com a sigla do banco gravada; outra sigla, maior, estava no meio, entre os símbolos do zodíaco. O brilho do mosaico reflectia, ao contrário, as colunas com os brancos fustes canelados, que suportavam a abóbada deste pequeno templo subterrâneo.

Com muitas vénias e quase executando um jogo de ilusionis­mo, o director tirou do bolso uma chave, mostrou-a a Vittorino sussurrando: «É sua» e descerrou uma das grades de ferro que sobressaíam, tetricamente negras, entre as belas colunas. Desceram por outra escada, desta vez de ferro, uma verdadeira escada de caracol, e depois de muitas reviravoltas, durante as quais Vittorino não perdeu de vista as três cabeças dos que o precediam, calva e brilhante a do director, hirsutas e desgrenhadas as dos dois carre­gadores, chegaram a outra salinha mais funda, com pavimento e paredes de aço. Nas paredes, um sem-número de portinholas grandes e pequenas revelavam os cofres. Não parecia estar nin­guém naquele lugar segregado e subterrâneo que cheirava a metal besuntado e a dinheiro; mas pouco depois, ao voltar-se, Vittorino viu um pequeno homem calvo e negro que, acocorado de viés no chão, diante da portinhola aberta de um dos muitos cofres, remexia lá dentro com fúria desdenhosa, tirando molhos de títu­los, pacotes de notas bancárias, moedas e outros papéis preciosos, que ia atirando para uma mala aberta. Vittorino, nesta sala, possuía há tempo imemorável um cofre particular, enorme, do qual há anos pagava o aluguer, embora sem o utilizar. O director aproxi­mou-se da abertura do cofre, grande como uma porta vulgar, e, tirando do bolso uma pequena chave, abriu uma portinhola mais pequena, cravada na abertura. Apareceu um painel cheio de bo­tões. Olhando para o ar, como relembrando, o director girou com elegância e rapidez crescente, quase tomando gosto, os botões, um após outro; finalmente, agarrando com as duas mãos e puxando para si com grande fadiga a esquina da porta, abriu-a lentamente. Deveras enorme era o volume da porta, que trazia consigo um bloco inteiro de aço maciço com a espessura de um pedaço de muralha. Uma vez aberta a porta, apareceu outra grade com barras de ferro espessas e brilhantes. O director escancarou também essa grade; depois, com uma dupla vénia: «Vittorino, deixo-o só», disse, «estas são as chaves... se precisar de mim, toque a cam­painha. .. mas tenho a certeza de que saberá fazer tudo sozinho.» Uma vez sozinho, Vittorino, depois de ter olhado à sua volta, despiu o casaco de peles, que deixou cair no chão, abriu as malas e começou a transportar para o lóculo os preciosos embrulhos de papéis, os títulos, os sacos de moedas, as barras de ouro. Agora ficara só na salinha subterrânea de ferro, também o homem do cofre se tinha retirado; e, enquanto cumpria esta espécie de trabalho, não podia evitar pensar com deleite que quarenta ou cin­quenta metros mais acima, sobre a sua cabeça, se passeava muita gente que daria dez anos da sua vida para possuir aqueles papéis e aqueles sacos que ele ia amontoando no cofre. Vittorino colocou os saquinhos a um canto, alinhou numa prateleira as barras de ouro, noutra os pacotes de bilhetes e de títulos. Final­mente, apareceu o fundo sujo das duas velhas malas. Vittorino suspirou de satisfação, atirou as malas para um canto do lóculo, com a intenção de se servir delas caso quisesse transportar o seu tesouro para outro lugar; a seguir, fechou cuidadosamente a gra­de. Mas no momento em que se preparava para abraçar a maciça porta blindada e empurrá-la para os alvéolos, eis de repente algo branquear além das grades da cancela, na negra escuridão do lóculo. Inicialmente ficou desorientado e esfregou os olhos com a mão, julgando não ter visto bem, depois, olhando melhor e habi­tuando os olhos à escuridão, vislumbrou claramente um dorso branco e gordo, profundamente sulcado, molemente delgado, com ancas largas e compactas, pernas bonitas, levemente curtas e ma­ciças. A mulher, pois era de uma mulher que se tratava, virava-lhe as costas, ou melhor, talvez devido ao acanhamento do lugar, comprimia com força a sua carne viçosa contra as grades da can­cela, assim, entre uma e outra grade, o que aparecia era como que a brancura de um rosto ansioso por se debruçar. Naquela escuridão, a mulher parecia uma estátua exumada da terra que a encobria. Depois, por um gesto que ela fez e pelo robe que tinha sobre um ombro em jeito de lençol, Vittorino reconheceu a sua mulher. Vittorino era irascível e suspeitoso, isso já o dissemos. Pensou: «Ela seguiu-me até aqui, fez com que a fechassem no lóculo para me roubar» e imediatamente fechou, com toda a força de que era capaz, a porta blindada. Recolheu o casaco de peles, com o rosto a arder pelo furor e indignação, e subiu para as salas superiores do banco.

«Vou mantê-la presa por uma ou duas horas» pensou já na rua, «assim vai aprender para o futuro». Vittorino, que tinha dis­pensado a carruagem, fez a pé o longo caminho entre o banco e a sua casa. Mas, mal entrou na rua, notou um facto singular. Todo preto, naquela rua solitária de fachadas brancas e cinzentas, um carro funerário enorme estava parado diante de uma porta. Era um carro funerário, como se costuma dizer, de primeira, com o féretro preto ornamentado por galões dourados, as pequenas colunas pretas com capitéis dourados, os anjos pretos segurando archotes dourados, as rodas pretas de raios dourados, os cavalos gordos e pretos com as orelhas enfeitadas com rosas douradas e as cabeças encimadas por penachos pretos. Dois cocheiros em libré preta e dourada estavam a postos. Havia uma única coroa pendurada num dos cantos, uma coroa de rosas brancas. Numa fita preta debruada a ouro, Vittorino leu: «À querida Fotide do seu Vittorino.» Já o caixão tinha sido introduzido no carro; mal Vittorino apareceu, logo um dos cocheiros baixou o breque e estalou o chicote, o outro esticou as rédeas e os cavalos arrancaram. A Vittorino só restou seguir o carro. Felizmente que o dia estava ameno, pensou Vittorino, abrindo as fraldas do casaco pesado, ou melhor, quente. Da chuva esperada algumas horas antes, nem sombra; embora as nuvenzinhas da manhã se tivessem fundido num único nimbo, de um branco opaco orlado de cinzento mais escuro, que, porém, continuava alto e afastado. A pé, atrás do carro lento e cambaleante, Vittorino dirigiu-se para a igreja, situa­da um pouco mais abaixo, numa praceta onde a rua desemboca­va. Ao andar, não podia evitar pensar, com um sentimento em que se misturavam surpresa e uma obscura satisfação, que Fotide tinha tido a certeza de lhe sobreviver e de herdar as suas rique­zas, mas acabara por morrer primeiro. Este pensamento distraía Vittorino, impedindo-o de chorar pela mulher, como queria. Ali­ás, apercebia-se agora que a amava muito menos do que julgava e compreendia que, se Fotide, em vez de morrer, tivesse fugido com alguém, a teria realmente perdido, ao saber que estava nos braços de outrem. Assim, pelo contrário, estava simplesmente morta; ninguém poderia vir a desfrutála, a não ser os vermes que a iriam devorar; não proporcionava carícias e luxúrias a ninguém; tesouro de carne, os mármores da sepultura iriam guardá-la, tal como, lá no banco, o cofre guardava o outro seu tesouro de metal e papel. Assim Vittorino, que tinha quase setenta anos, consolava--se da morte da mulher de vinte.

Nestes pensamentos, passou a cerimónia religiosa; depois, o velho deu por si na rua, desta vez numa carruagem, a única que seguia o carro funerário. Começara a chover e o cocheiro baixara a capota de fole, puxara um resguardo de couro sobre as pernas de Vittorino e abrira o grande guarda-chuva de oleado, de forma a impedir totalmente ao velho a vista do carro. Aninhado no fundo da capota da carruagem, Vittorino não via mais nada, ouvia ape­nas os barulhos. O tilintar dos eléctricos, as buzinas dos automóveis, o vozear da multidão. A chuva tamborilava tranquilamente na capota esticada, coma pelo resguardo de couro, gotejava dos bi­cos do guarda-chuva. Os cascos dos cavalos ecoavam, as rodas rolavam nos pisos mais variados. Finalmente os ruídos cessaram, encontravam-se na zona mais quieta e periférica do cemitério.

O cemitério: sob a chuva que caía a cântaros, as veredas pedregosas tinham-se tornado lamacentas, os túmulos, em parti­cular os de mármore, brilhavam como espelhos. Aqui e além umas estátuas funerárias, mulheres seminuas envolvidas em véus, jovens encostados numa atitude triste a colunas quebradas, recebi­am com imobilidade pouco natural o tépido dilúvio. A um canto húmido da cerca, onde os túmulos enegrecidos e bolorentos pa­reciam mais antigos, um homem corcunda, minúsculo e vestido com um oleado amarelo, remexia na lama dentro de um túmulo, de onde extraía e atirava sem cuidado para um carrinho ali ao lado ossos quebrados, mãos-cheias de lama, caveiras e detritos. Vittorino não pôde evitar compará-lo, talvez pela atitude seme­lhante, com aquele outro homem que esvaziava o cofre no sub­terrâneo do banco. Abriu o guarda-chuva e seguiu pela vereda o caixão levado aos ombros pelos coveiros.

A chuva começou de repente a cair com violência, tal como Vittorino receara durante todo o tempo do funeral: sabia bem como corriam estas coisas. A chuva tinha algo de humano na sua implicância e inoportunidade. Sob a chuva irritante, o funeral perdia até aquele resto de compunção e de religiosidade que tivera até ao momento. Os coveiros, sob o peso do caixão, escorregavam e blasfemavam em voz alta, que o ruído da chuva não conseguia encobrir, as suas botarras chapinhavam na lama, as veredas es­treitas, frequentemente interrompidas por degraus, tornavam sobremodo difícil avançar com o caixão às costas.

Um dos coveiros, numa curva da vereda, escorregou e o caixão mal seguro bateu com força num túmulo de pórfido em forma de ara. Imediatamente o homem levantou-se e, resmungando em voz baixa com o colega, agarrou no caixão com mãos mais firmes. Ora bem, Vittorino foi o único a aperceber-se de que, com a pancada, o caixão, talvez mal fabricado, se tinha despregado. O fundo abrira-se, mostrando uma espécie de sorriso negro onde se viam ranger como dentes, pregos saídos, compridos e afiados.

Vittorino levantou uma mão e estava prestes a gritar «Cuidado, o caixão está aberto.» Mas espicaçava-o não sabia bem que curiosidade de ver aparecer por aquela fresta uma madeixa de cabelos pretos, ou uma fralda do lençol, ou pelo menos branquear no fundo daquela escuridão, um ombro redondo; e calou-se. Olhava, mas o caixão, que era sustentado na extremidade poste­rior por um homem mais baixo do que aquele que segurava a parte anterior, não deixava ver nada. A seguir, o homem à cabeça subiu dois ou três degraus e o caixão encontrou-se virado para o lado de Vittorino sob a chuva que batia e escorria com violência na tampa.

Eis então como que uma língua clara a aparecer hesitando na fresta; depois, devido a um solavanco, Vittorino viu surgir algo de muito parecido com uma folha. Isso mesmo, era uma folha, percebeu finalmente, era uma nota de grande valor, que, talvez impossibilitada de deslizar completamente para fora do caixão por outras notas a que estava atada, aparecia, mesmo assim, por mais de metade.

Quando o caixão deu outro solavanco, pela fresta apareceu de lado o canto de um papel azul e historiado; um título industrial, não pôde evitar pensar Vittorino. A seguir, deslizando da folha, uma moeda saltitou e caiu na lama. Vittorino baixou-se com a máxima rapidez para a apanhar. Quando se levantou, já os coveiros desciam com precaução o caixão para a cova.

De repente, Vittorino sentiu todos os sentimentos que se costumam atribuir convencionalmente aos viúvos. «Não...não» queria gritar a cada pazada de terra que caía na tampa do caixão. Pensava que no caixão estava o seu tesouro, enquanto no banco estava fechada a sua mulher; e percebia que perdera ambos. As pazadas caíram, primeiro espaçadas e quase por acaso, em esgui­chos de terra molhada, na tampa polida do caixão. A seguir, as partes vazias foram encobertas por mais terra. Agora, do caixão no fundo da fossa apenas um canto emergia da terra. Vittorino, incapaz de se conter, começou a chorar. A terra continuava a amontoar-se sob as pazadas vigorosas dos coveiros. Vittorino atirou--se subitamente para a cova e desatou a raspar a terra com as mãos. Sentiu-se agarrar e levar para longe. Deu por si fora do cemitério, diante de um quiosque cheio de crisântemos podres.

Desde então, Vittorino vive numa dúvida angustiante. O que é que está no cofre do banco, o quê no fundo da cova, sob a lápide do túmulo? Na sua imaginação o dinheiro e a mulher confundem-se, pensa ir a correr ao cemitério, exumar o caixão e pegar no seu ouro, ir ao cofre, e tirar de lá a mulher. Mas nestas operações, por uma nova troca, do cofre sai dinheiro, do caixão ossos e podridão. Por outro lado, receia revelar um crime ao abrir o cofre, uma profanação ao exumar o caixão. Entretanto paga regularmente a importância do aluguer quer do cofre quer da cova. E os juros do capital permitem-lhe viver, tal como no passado, desafogadamente.

 

                   O PERU DE NATAL

Quando, no dia de Natal, o comerciante Policarpi-Curcio ouviu a mulher dizer pelo telefone que regressasse a casa a horas porque havia peru, alegrou-se muito, visto que, com o passar dos anos, exceptuando a gula, não lhe tinham sobrado outras pai­xões. Porém, ficou muito admirado quando, ao chegar a casa por volta do meio-dia, encontrou o peru não já na cozinha, enfiado no espeto e a girar lentamente sobre um fogo de carvão, mas na sala de estar. O peru, vestido com uma elegância algo antiquada, de casaco preto com lapelas de seda, calças aos quadradinhos sal-e-pimenta e colete de pano cinzento com botões de osso, conversava com a filha de Curcio. Tão grande foi a surpresa de Curcio ao encontrá-lo numa atitude e num lugar tão insólitos, que, depois das apresentações, colhendo um momento de silên­cio, não pôde evitar debruçar-se para a frente e proferir com cor­tesia mas também com firmeza: «O senhor desculpe... não queria estar errado... mas... mas parece-me que o seu lugar não deveria ser este... repito... não queria estar errado... mas o seu lugar deveria ser...» Ia acrescentar «no tacho», quando a mulher que, conforme ela mesma se exprimia, «o conhecia de ginjeira», lhe Pisou um pé; e Curcio, que sabia por antiga experiência o que significava esse acto, calou-se. A mulher mais tarde fez-lhe sinal e, arrastando-o para fora da sala, disse-lhe em voz baixa e conci­tada que, por amor de Deus, não estragasse tudo. O peai era nobre, rico e influente; um bom partido, em suma; e já mostrava um interesse particular e sobremodo visível por Rosetta; queria ele porventura, com as suas estúpidas observações, deitar a per­der o casamento que já parecia adivinhar-se? Curcio pediu des­culpa à mulher e jurou que não voltaria a abrir a boca. Quanto ao peru, a pergunta do anfitrião pouco cauteloso não provocara ou­tro efeito além de fazer com que pegasse no monóculo e obser­vasse o coitado dos pés à cabeça. A seguir, voltara imediatamente a conversar com a filha de Curcio.

«Diga-se o que se disser» pensava pouco depois Curcio à mesa, enquanto a mulher se desdobrava em atenções para com o peru, «mas um tipo destes, mais do que desejar que se case com a nossa filha, dá vontade de se lhe torcer o pescoço.» Curcio estava irritado sobretudo pelo ar de superioridade e de condescendência que o peru assumia sempre que lhe dirigia a palavra. Bem sabia Curcio que vinha, conforme se costuma dizer, do nada, e que os seus jeitos não eram tão polidos como a mulher e a filha teriam desejado. Mas trabalhara a vida inteira e ganhara uns bons tostões, sendo esse o motivo pelo qual não pudera cuidar da sua educação. O peru, por sua vez, com toda a sua bazófia, não poderia dizer o mesmo. Boas maneiras, sem dúvida, ar de grande lorde, mas no fim de contas, Curcio jurá-lo-ia, pouca substância. Outro facto que enervava Curcio era o jeito com que, depois de ter dito algo espirituoso ou profundo, o peru atirava a cabeça para trás, enfiando o bico e os barbilhos na gravata preta de peitilho e inchando o peito sob o colete. Finalmente, o peru falava com a mulher com a mesma escolha cuidada de pa­lavras e a mesma modulada preciosidade de tom que teria usado ao dirigir-se a uma duquesa. Mas Curcio enfurecia-se, pois parecia--lhe vislumbrar uma certa ironia nesse respeito excessivo. «No tacho», pensava, «no tacho...»

Mas esta antipatia de Curcio estava mais do que compensada pelo entusiasmo das duas mulheres, mãe e filha, com o peru. A mulher de Curcio e Rosetta bebiam as palavras dos lábios, ou melhor, dos barbilhos do peru; o qual as fascinava com relatos nunca ouvidos de festas, de lazeres, de viagens, de sucessos mundanos. A familiaridade respeitosa de um peru como este, que frequentara a alta sociedade, lisonjeava a mãe. Quanto a Rosetta, corava, empalidecia, tremia e dirigia ao peru olhares, ora supli­cantes, ora ardentes, ora lânguidos, ora assustados. O facto é que, desde o início do convívio, o pé do peru, calçado com uma botinha, antiquada mas elegante, de camurça cinzenta com botões de madrepérola, não cessara um único instante de roçar no sapatinho da rapariga.

Quando o peru se retirou, houve uma discussão muito vio­lenta entre Curcio e a mulher. Curcio dizia que estava na hora de acabar com esses dândis sofisticados e snobs, os quais, é sabido, escondem sob a sua bazófia uma quantidade de achaques. Ele trabalhara a vida inteira e não se sentia em nada inferior a todos os perus deste mundo. A mulher respondia que esse seu furor era inútil; o peru nunca afirmara ser superior a ele; que bicho o mor­dera? Quanto a Rosetta, que fora dormir a sesta, como todos os dias depois do almoço, já sonhava com o peru. Via-o debruçado sobre ela, que jazia de costas, com as asas em volta dos seus ombros, o bico nos seus lábios entreabertos. O peru olha para ela sisudo, e incha, incha, enchendo o quarto com as suas penas cinzentas; mas, apesar de imenso, parece leve, ao peito de Rosetta. A qual suspira no sono e murmura «Querido peru.»

Nos dias seguintes, apesar da antipatia crescente e visível de Curcio, o peru chegou a instalar-se lá em casa. Vinha almoçar; depois, passando para a sala de estar com a filha, lá ficava até à hora do jantar. Os dois, disse a mulher a Curcio, já estavam noivos. Embora, por motivos de família, o peru se opussesse a que, por enquanto, fosse dado o anúncio oficial. «Belo genro», resmungava Curcio, «quem me dera um bom homem trabalhador, simples, de bom coração, mas um peru...» Curcio, ao voltar a casa, podia ver, através da porta envidraçada da sala de visitas, a cabeça engraçada da filha encostada àquela fútil, feroz e estúpida do peru. Ao pen­sar que aquelas mãozinhas tão brancas e pequenas podiam acariciar aqueles barbilhos vermelhos e rugosos, a sua antipatia aumentava.

Entretanto, apesar de continuar a namorar Rosetta, o peru não se decidia a pedir a sua mão. Mesmo a mãe começava a ficar inquieta. Se era um peru sério, disse finalmente à filha, devia apresentar-se aos pais e pedi-la em casamento. Rosetta, confron­tada com estas palavras, olhou assustada para a mãe e não disse nada. Na verdade o peru conseguira desde os primeiros dias ga­nhar os máximos favores da coitadinha. A qual agora, não menos do que a mãe, ansiava que o peru regularizasse, como se costu­ma dizer, a sua situação.

Por esses dias Rosetta recebeu o peru na sala de visitas des­feita em lágrimas. Já não aguentava viver assim, balbuciava entre os soluços, mentindo a si própria e aos pais. O peru andava a passos largos pela sala, com as penas todas eriçadas fora do co­larinho, o bico entreaberto e enfurecido, os olhos injectados de sangue. Finalmente disse-lhe que podia tirar da cabeça que casasse com ela. Em vez disso, se quisesse, podia fugir com ele para o estrangeiro. Naquela mesma noite ou nunca mais. Rosetta, depois de muitas hesitações, acabou por concordar.

Naquela noite Curcio, que tinha insónias, levantou-se para apanhar ar à janela. Era uma noite de Verão, com a Lua no seu máximo esplendor. Os Curcio moravam numa vivenda. Tendo-se debruçado à janela sem fazer barulho e sem acender a luz para não acordar a mulher, a primeira coisa que Curcio viu foi a sombra do peru, com a cabeça erguida sobre o pescoço inchado, o bico verrugoso virado para cima, reflectida claramente na parede da vivenda inundada pelo luar branco. Baixou os olhos e mal teve tempo de entrever a filha cair de uma janela do primeiro andar nos braços do peru. O qual, carregada a rapariga aos ombros como um fardo, com uma força que ninguém suspeitaria, a levava em direcção ao portão. Curcio acordou a mulher e foi a correr buscar uma velha caçadeira. Mas quando desceu, já não encontrou rasto dos dois fugitivos.

No dia seguinte Curcio foi participar o rapto. Mas nas es­quadras de polícia ninguém acreditou nele. Um peru, diziam, como é possível que um peru tenha raptado a sua filha? Os perus estão nas capoeiras. Aliás, a filha era maior de idade e não havia nada a fazer.

Mas revelaram-se na mesma os senãos do peai. Descobriu --se que era casado e tinha filhos. Descobriu-se também que não era nem nobre nem rico, mas apenas um antigo criado despedido de vários empregos por roubo. Curcio triunfava, apesar de estar cheio de raiva. A mulher não parava de chorar e invocava a filha.

Acabou com a chantagem habitual; Curcio teve que desem­bolsar muitos dos seus «belos tostões» tão fadigosamente ganhos para voltar a ter em casa a filha desonrada. Isto aconteceu em Dezembro. No dia de Natal a mulher telefonou a Curcio para que não se atrasasse no regresso a casa, pois havia peru; acrescentou, para evitar equívocos, que se tratava de pessoa muito séria, que demonstrava uma visível inclinação por Rosetta. Não era, em suma, um peru como o do ano anterior, neste podiam confiar. «Assim são as mulheres», pensou Curcio. Mas desta vez prometeu a si próprio manter os olhos bem abertos. E não se deixar enganar pelas falsas aparências e pelas conversas fúteis de qualquer, mesmo bem colocado, peru ou galináceo.

 

                   ESTÚPIDO COMO NAUROMU

Naquele país tão longínquo, talvez pela primeira vez na mi­nha vida, senti-me quase feliz. Acontece que certas viagens, como que por uma propícia vontade superior, se desenrolam num ar de perpétuo encantamento. Foi precisamente esse milagre que se verificou durante a minha visita àquele país. A salubridade do lugar, a amenidade das paisagens, a beleza dos habitantes, a or­dem, a limpeza, o decoro da cidade, tudo, numa palavra, contri­buiu desde o início para me colocar num estado de graça. De forma que decidi prolongar a minha estada por mais um mês além da data marcada. Não esperava com certeza poder entender a fundo aquele povo no breve prazo de quatro semanas; mas queria ao menos gozar o mais possível todas as qualidades acima referidas. Entretanto, para não perder tempo, decidi estudar a sua língua, muito doce e sobremodo musical. Num par de meses, graças à minha disposição natural, ganhara uma discreta habilida­de, de forma a poder manter sozinho as simples conversações necessárias para desempenhar as habituais tarefas diárias. Foi en­tão que, entre as conversas vulgares que todos os dias me calhava surpreender na boca dos habitantes, me impressionou uma frase proferida nas ocasiões mais variadas, de cor e tom proverbial, que rezava mais ou menos assim: estúpido como Nauromu. Fre­quentemente ouvia naqueles dias as mães dizerem aos filhos des­cuidados: «És pior do que Nauromu»; os patrões repreenderem os serviçais argumentando que nem o próprio Nauromu seria capaz de tão grande estupidez; as mulheres, ao discutirem com os ma­ridos, atirarem-lhes à cara como injúria suprema que eram ainda mais estúpidos do que Nauromu. «Estúpido como Nauromu», era um dito aplicável a qualquer acção cerebral, tresloucada, privada de sentido, parva, absurda. Em suma, esse tal Nauromu era o símbolo da estupidez, alguém como Bertoldo entre nós e outros parvos famosos nos outros países da Europa. Acometeu-me uma curiosidade justificada de descobrir quem era afinal esse Nauromu de que toda a gente falava, e foi então que, ao interrogar as pes­soas aqui e ali, me apercebi de que ninguém sabia quem ele era nem quando tinha vivido. Havia quem opinasse que o dito re­montava ao século XIV, século para o qual, também ali, são relegadas as coisas que são ou parecem antigas; outros, pelo contrário, pensavam que o facto fosse recente, visto que tanto se falava nele; uma menina, com a férvida fantasia própria da infância, afirmou conhecer Nauromu muito bem e para o provar foi buscar um seu boneco que, numa figura grotesca e desajeitada, procura­va retratar precisamente Nauromu; por fim, um polícia a quem dirigi a mesma pergunta, não sabendo como se esquivar airosa­mente, respondeu que não fazia investigações desse género, a não ser por ordem expressa dos seus superiores. Finalmente, no dia anterior à minha partida, tendo que fazer uma visita de despedida ao príncipe S., um dos membros mais influentes e mais anciãos do conselho da Coroa, decidi perguntar-lhe, no decorrer da visita, quem era o misterioso Nauromu. O príncipe recebeu-me com a habitual cortesia requintada e, depois de algumas conversas sem importância, perguntou-me se podia fazer alguma coisa por mim nas poucas horas que faltavam para a minha partida. Respondi--lhe que estava a par da sua bondade e que essa oferta lisonjeava o meu amor-próprio; por isso, atrevia-me a pedir-lhe um último favor, depois dos muitos que já me fizera. O príncipe garantiu-me que, no que estava ao seu alcance, muito lhe agradaria satisfazer--me; então eu disse: -Alteza, o favor que queria de vós é simples... queria que me dissésseis quem era Nauromu.»

Diante desta pergunta vi o príncipe, cuja amabilidade é igual à gentileza e requinte dos modos, desatar a rir. -Vejo», disse ele, «que durante a vossa breve estada tendes aprendido perfeitamen­te a nossa língua ao ponto de vir a conhecer mesmo um dos ditados mais populares... pois bem, tivestes sorte... fizestes a vossa pergunta a um dos poucos capazes de vos responder... pois, talvez não soubésseis, na minha juventude estudei filologia e fol­clore comparado... Nauromu foi, é e sempre será o homem mais estúpido que alguma vez nasceu neste Reino...»

Perguntei-lhe em que consistia essa estupidez. O príncipe alisou a barba e a seguir começou: «Nauromu, ao que parece, nunca existiu... é um personagem mítico, o símbolo e a encarnação de uma certa estupidez que felizmente sempre pouco vingou no nosso país... há, é verdade, quem julgue que Nauromu viveu realmente nos tempos mais bárbaros do país... e, na verdade, o feito que lhe deu fama testemunha uma certa barbaridade... seja como for, eis o que, depois de pesquisas demoradas, pude con­firmar. .. Este tal Nauromu era um pobre pescador e guardião de farol da costa ocidental do nosso país. Uma noite desencadeia-se uma tempestade. Relâmpagos, raios, trovões, mar tempestuoso com vagas que parecem chegar até ao céu, trevas, fragor da res­saca, estais a ver o quadro. Eis que um barco rasgado, desarvorado, reduzido apenas à quilha, transportado pelas ondas, se desfaz contra as rochas, mesmo debaixo do farol de Nauromu. O que aconteceu nunca ficou esclarecido. Com certeza sabe-se que al­gumas pessoas, quatro ao todo, se salvaram numa chalupa antes de o barco naufragar e conseguiram arribar a uma praia não muito afastada do farol. Repare bem que este barco, conforme o próprio Nauromu sabia por ter sido avisado pelos vigias, trazia a bordo o rei de Sercâmbia, um dos homens mais ricos do mundo. O rei encontrava-se entre os que estavam a salvo juntamente com três cortesãos. O rei tinha também conseguido trazer consigo uma pequena caixa cheia de jóias e de dobrões de ouro. Sem falar nas roupas do rei e dos três dignitários, todas em brocado, tal como se usava na época, e pespontadas com pérolas e pedras precio­sas. Nem vou falar dos punhos das espadas dos quatro persona­gens, de ouro e crivadas de brilhantes. Em suma, apesar do nau­frágio, estava ali um valor ingente, em particular para a época, uma riqueza de espantar. Vejamos agora o nosso Nauromu, que assistiu ao desembarque do alto da sua torre. Era um homem, ao que parece, ainda na flor dos anos e tinha sete filhos varões, note-se o número sete, que consta sempre nos contos e nas lendas, sete filhos varões já crescidos e todos muito fortes. É também de relevar que, para a protecção do farol, Nauromu dispunha de uma certa quantidade de machados, punhais, sabres, numa palavra, as armas da época. Ora, o que teríeis feito vós no lugar de Nauromu, no momento em que, saído da sua torre, viu o barco aproximar-se na crista das ondas e ganhar a terra não longe dali? O que teríeis feito a não ser matar os quatro personagens e apo­derar-vos das riquezas que traziam consigo?»

O príncipe, nessa altura, olhou para mim com um ar tão cheio de ironia e de convicção profunda que, no momento, não soube dar resposta. «Pois», repeti como um papagaio, «o que teria feito eu?»

«Teríeis matado o rei e os seus dignitários», continuou o prín­cipe. «Notai de novo o número três mais um, também este típico dos contos... teríeis, repito, matado o rei e os cortesãos... mas o parvalhão do Nauromu chega com toda a calma à praia com os seus sete filhos imbecis e pergunta primeiramente o que aconte­ceu. É-lhe respondido que se trata do rei de Sercâmbia e dos seus três dignitários, que o barco que os transportava naufragou e que, pormenor este de extrema importância, o rei foi derrubado e pôde com dificuldade salvar a vida do usurpador embarcando com o seu tesouro num dos seus barcos. Disse que este pormenor é importante e explico porquê. Esse rei ainda podia atemorizar Nauromu com a ameaça de represálias. Mas estando o rei sem reino, foragido e desprotegido, nem sequer havia esse perigo, aliás bastante fictício, pois o nosso país não é atacável por mar, mas, mesmo assim, ainda válido para um homem redondamente estúpido como devia ser Nauromu. Ele podia, pois, com toda a tranquilidade, cumprir o seu dever. Ou seja, como já disse, matar o rei e os três dignitários e apoderar-se do tesouro. Pelo contrário, o nosso parvalhão põe o rei à vontade, convida-o a ir à torre onde vive com a família. O rei naturalmente não se faz rogado. Estais a ver a pequena comitiva, primeiro o rei com a capa toda salpicada de água marinha, depois os seus cortesãos e finalmente Nauromu e os seus filhos encaminharem-se em direcção à torre. Pormenor significativo e importante para entender plenamente a estupidez de Nauromu: os filhos carregavam nos braços a pesadíssima caixa do tesouro e o rei e os conselheiros iam à frente. Não há quem não veja como teria sido fácil nesse momen­to matá-los e apoderar-se da caixa. Mas não é só. Eis, pois, o rei dentro da torre. Nauromu, o parvalhão, ordena à mulher que prepare o jantar e manda os filhos fazerem as camas. Custa a acreditar, mas toda aquela gente, quero dizer, os náufragos, dor­miram nessa noite muito bem, nas camas de Nauromu e dos filhos; esses parvos, em vez de trucidarem os hóspedes no sono, tal como vós e eu e qualquer outro teria feito, limitaram-se a velar sentados à lareira... Vejo que este relato vos faz sorrir. Na verdade, há na estupidez de Naviromu uma certa bárbara e rude comicidade. De qualquer forma, nasce o dia, o mar continua tempestuoso, o rei está inquieto porque sabe que, mal se souber da sua presença, o que não fez Nauromu, outros conterrâneos menos simples do que ele irão fazer. O que é que então decide o nosso super--estúpido? Durante dez dias, digo dez dias, esconde o rei e o seu séquito num sobrado do farol onde costumava guardar os apetre­chos do barco. Vou abreviar, vou abreviar, porque vejo que já estais farto da estupidez de Nauromu. Depois de o mar ter acal­mado, o rei despede-se de Nauromu e quer oferecer-lhe em jeito de compensação um diamante do tamanho, digamos, de uma avelã. É então que se chega ao cúmulo, ao bouquet da estupidez de Nauromu: recusa o diamante. O rei, naturalmente, vai-se em­bora muito satisfeito por ter encontrado um parvo tão grande. Mas posso dizer-vos que a sua satisfação foi de pouca dura; pois, passados poucos dias, tendo-se feito ao mar com a chalupa, uma nova tempestade o atirou para outro lugar da costa, onde encontrou alguém menos estúpido do que Nauromu, que fez o que cada um de nós teria feito...»

«Isto é?» perguntei com um sorriso forçado e, mesmo assim, temperado por não sei que esperança.

«Isto é», disse o príncipe desatando a rir, «matou-o e ficou com a caixa... porém, conforme já avisei, estamos a falar de há sete séculos atrás... e isto explica a barbárie extraordinária que transparece dos pormenores... quanto a mim, acredito que se trate de um mito no qual o nosso povo, profundamente sadio, concretizou um juízo moral claríssimo sobre todos aqueles que agem como Nauromu... aliás, na minha juventude cheguei até a escrever um breve ensaio, agora esgotado, sobre o assunto... quero oferecer--vo-lo.. .esperai...»O príncipe chamou o seu secretário e pediu-lhe para lhe entregar um pequeno fascículo de poucas páginas intitulado «Nauromu existiu realmente?» «Examinei aqui a questão», disse o príncipe «de um ponto de vista quadrúplice: filológico, moral, histórico e folclórico. E concluo, como já vos disse, com a opinião de que se trata apenas de um mito.» O príncipe a seguir teve a bondade de pôr a sua assinatura no rosto do fascículo. «Assim estais satisfeito» acrescentou ele levantando-se, como que para significar que a nossa conversa devia considerar-se acabada. Agradeci-lhe as informações e a oferta e, depois de uma vénia, comecei a dirigir--me para a saída. Mas à porta a voz do príncipe fez-me parar. «Re­comendo-vos,» disse, «sei que vós jornalistas dificilmente resistis à tentação de escrever uma página bonita, mesmo que não corresponda totalmente à verdade... de regresso ao vosso país, tende o cuidado de não falar em Nauromu como de um persona­gem representativo do nosso povo... ele não representa nada de nada... no máximo um lado cómico e parvo da humanidade, fe­lizmente muito mais raro do que parece...»

Respondi-lhe com uma segunda vénia que não tivesse re­ceio, nunca cometeria tal leviandade. No dia seguinte, como tinha planeado, deixei aquele país.

 

                   O HOTEL ESPLÊNDIDO

Para o copo-de-água das núpcias, depois de muitas discus­sões, escolheu-se o Hotel Esplêndido. A família da noiva, gente recém enriquecida, teria preferido o Excelsior, por ser mais luxuoso. Mas a família do noivo, de antiga nobreza, fez com que prevalecesse o Esplêndido, mais velho e menos sumptuoso do que o Excelsior, mas muito mais elegante. Também quanto ao banquete acabou por se impor a mãe do noivo. No dia das núp­cias, os dois recém-casados, depois de terem passado sob o arco cintilante das espadas desembainhadas dos companheiros de ar­mas do noivo, entraram no primeiro dos numerosos carros ali­nhados diante da igreja; e todo o cortejo avançou lentamente.

Durante o trajecto a noiva disse ao marido que se sentia invadida por um mal-estar ansioso. Era mesmo verdade, pergun­tou ela, que iam para o Esplêndido? Ou não estariam por acaso a fugir, ao longo dos plátanos despidos pelo Inverno e avermelhados pelo Sol entorpercido, a fugir para salvar a vida? «Estou aqui eu» respondeu-lhe o jovem, apertando-a contra si, «não tenhas medo, querida.» A noiva, a quem já tremiam duas lágrimas nos olhos, não disse nada. Recomeçou a olhar através da janela para os plátanos que desfilavam em corrida.

Mal alcançaram o hotel, os carros, ao chegarem um após outro, encheram rapidamente todo o espaço diante do portão. Os arrumadores atarefavam-se dando ordens e apitando; os carros, entre a admiração dos transeuntes e as blasfémias dos motoristas, encastravam-se e embrulhavam-se; sem tréguas embrenhavam-se no pátio do Esplêndido os convidados de renome reunidos pelas duas famílias: nomes ilustres, altos cargos, grandes industriais, celebridades da arte e da vida social, amigos influentes, parentes.

Era preciso reconhecer, disse a mãe da noiva ao marido, mal se sentaram todos à volta da mesa em forma de ferradura, na sala dos banquetes do hotel, que era uma bonita vista. Aquela mesa grande com todos aqueles brilhantes convidados, os homens fardados ou de fato preto, as mulheres cheias de jóias, nos seus vestidos de cerimónia mais elegantes. E a filha nunca estivera tão bonita: algo pálida talvez, sob o véu, mas tão engraçada com os seus grandes olhos pretos. Quanto a ele, podia considerar-se um dos jovens mais atraentes da cidade. A mãe da noiva ficara muito impressionada com o arco de espadas que os colegas do noivo tinham levantado à saída da igreja por cima das cabeças do casal. O comprazimento profundo que este hábito tão cavalheiresco despertou nela, até lhe fizera esquecer o desgosto por não ter podido oferecer o copo-de-água no Excelsior.

Aliás, acrescentou a mãe da noiva, também este hotel tinha as suas qualidades. A sala, por exemplo, era mais ampla e, so­bretudo, muito mais alta do que a do Excelsior. Única objecção: não era absolutamente em estilo Império, conforme tinham dito. O estilo Império, explicou a mãe, que se gabava de entender de decoração, é branco e dourado, com decorações de águias, es­finges, grifos, grinaldas, trofeus de armas, liras e assim por diante. Acontece que neste hotel nada havia de branco e dourado. Os muros, em grandes blocos quadrados de cor fusca, faziam pensar mais numa construção gótica. Quanto a decoração, simplesmente não havia. A não ser que se tomassem por decorativas as corren­tes de ferro que a toda a volta das muralhas pendiam presas em grandes arpões curvados.

De resto, continuou a mãe, este era um dia demasiado boni­to para ligar a tais pormenores sem importância. O hotel era ape­nas uma passagem; a seguir, começaria para os dois noivos uma vida completamente nova. Mas não restava dúvida de que o hotel não era tão alegre como o Excelsior. O jardim de Inverno do Excelsior era conhecido pelos seus falsos caramanchões, todos entrelaçados com trepadeiras. Aqui, pelo contrário, a sala, de fac­to muito grande, perdia-se em direcção ao alto numa abóbada que até jorrava trevas. E as numerosas escadas nuas e sem corri­mão que subiam em linha quebrada pelas muralhas, pareciam realmente as escadas de acesso de um subterrâneo, das por onde se desce com pé hesitante e se volta a subir com alegria. Também estas compostas por blocos pretos, devido à escuridão, não se percebia onde acabavam.

Aqui a mãe da noiva, que a alegria tornava mais volúvel do que o habitual, voltou a repetir ao marido que, dissessem o que dissessem, dos dois, era o jovem quem lucrava com o negócio. A filha era bonita, era boa, era, não se podia esquecer, rica. En­quanto ele: um título, muita bazófia e nenhum dinheiro. Mas ao ver que o marido dava a estas conversas, já ouvidas mil vezes, apenas um ouvido distraído, a mãe voltou a preocupar-se com o lugar e com a festa. Deixara que a mãe do noivo fizesse tudo. Agora, porém, não podia evitar tecer algumas críticas. Em primei­ro lugar, podia bem ser a última moda, mas aquela mesa sem toalha, toda de ferro, não lhe agradava absolutamente. Mais, o que significavam aquelas correntes que pendiam das trevas sobre a cabeça de cada convidado?

Pelo contrário, a iluminação, continuou a mãe, estava acertadíssima. Fazia tempo que estavam na moda as luzes indi­rectas que não encandeiam nem descobrem cruelmente as rugas e os artifícios nos rostos das pessoas maduras. Ora bem, a luz da sala tinha todos estes requisitos. Partia, esta luz, de um ponto impreciso, mesmo sob o tecto, e parecia, lá em cima, a chama compacta de uma ampla fornalha aberta. Mas, ao difundir-se para baixo, tingia com raios sanguíneos as muralhas pretas e punha nas caras de cada convidado um alegre, embora algo irreal, refle­xo purpúreo. A mãe não juraria, mas parecia-lhe que, desde que entrara na sala, aquele fulgor vermelho tivesse aumentado pouco a pouco o seu esplendor. Inicialmente, de facto, a abóbada não se via. Agora, pelo contrário, dissipadas as trevas pelo fulgor da chama, vislumbravam-se as arcadas excelsas onde se curvavam as muralhas e uma balaustrada, também esta de ferro, que girava a toda a volta da sala, mesmo sob o tecto. As numerosas escadas sem parapeito levavam a esta balaustrada, onde umas figuras pre­tas e delgadas se debruçavam aqui e ali, olhando para baixo. Do tecto, por sua vez, pendia um complicado entrelaçado de corren­tes, arpões e roldanas às quais, agora podia-se ver, estavam pre­sas as correntes que pendiam por cima das cabeças dos convidados. A mãe pensou que aquelas figuras debruçadas à balaustrada, lá em cima, eram hóspedes do hotel que queriam gozar a vista da mesa posta. Por um lado, a mãe sentia-se lisonjeada com esta curiosida­de. Mas, por outro lado, não podia não censurar que a direcção do Esplêndido tivesse deixado entrar estranhos. Era uma festa íntima, pensou, não um espectáculo.

Mas a grande curiosidade da mãe estava virada para o almo­ço. Ela sentia que aqui, como se costuma dizer, a porca iria torcer o rabo; e não se enganava. Com efeito, quem alguma vez ouviu dizer que toda a comida de um almoço de núpcias tem que ser impregnada de rum flamejante? E o que pensar da enorme serpente preta enrolada, provavelmente uma grande enguia, servida em lugar do peixe? Almoço indigesto, em suma, pesado, para não dizer grosseiro, pouco indicado para uma festa de núpcias. O vinho, por seu lado, era bom, mas com uma graduação tão alta, que a mãe, desde o primeiro sorvo, sentiu-se arder e previu que, continuando assim, bem cedo todos estariam bêbados.

Não estava errada nas suas previsões. A determinada altura o almoço tomou um andamento que não agradava, não agradava mesmo, à mãe da noiva. Além dos convidados, deviam ter bebi­do também os criados. Os quais, pretos e silenciosos, quase se diria nus, tinham caras muito pouco tranquilizadoras. É isso mesmo, pensou a mãe, há por aí tanta ralé e, é sabido, os hotéis não são demasiado exigentes na escolha. Cada convidado tinha um destes criados, o que era bom e demonstrava que não se tinha poupado nas despesas. Mas por que razão estes criados se colocavam tão próximos dos convidados? Até subiam às cavalitas para os seus ombros? Está bem a alegria, mas isto era ordinarice. Além do mais, as coxas desses criados, peludas e ásperas, eram muito de­sagradáveis no pescoço e corriam o risco de tirar o pó-de-arroz todo. Mais, esses criados agarravam nas garrafas e bebiam pelo gargalo. Acontecia assim que o vinho caía na cabeça e é sabido que não há nada pior do que o cheiro a vinho no cabelo. Mas mesmo o cheiro dos criados, azedo e intenso, não era brincadei­ra: essa gente, é sabido, nunca se lava. A mãe, que tinha um desses criados acocorado no ombro, tomou a decisão de fingir ignorá-lo. Quem sabe se ele, compreendendo a lição, não acaba­ria com a sua atitude vergonhosa.

A mãe sabia que no fim dos banquetes nupciais correm gracinhas, brincadeiras, que, numa palavra, se gera um certo ba­rulho. Mas determinadas coisas é preciso deixá-las para os cam­poneses, que, como se sabe, desconhecem a boa educação. Bo­fetadas, beliscões, cadeiras tiradas de debaixo das pessoas, pal-.madas, apalpadelas, vestidos levantados, braços em volta da cin­tura e outras sem-vergonhices do mesmo género, a que agora os criados se abandonavam, corriam o risco de transformar o almo­ço numa orgia grosseira. Um tinha uma velha senhora sentada nos joelhos, outro levantava a saia até à cabeça a uma jovem e bonita dama, outro ainda tirava a cabeleira a uma baronesa. A mãe notou horrorizada que um desses rústicos, tendo-se sentado nada mais nada menos que na mesa, diante da filha, a apalpava, não já com as mãos, mas sim com os pés, curiosamente preênseis, apertando o pescoço dela entre os tornozelos pretos. O convívio estava mesmo a degenerar.

Não faz mal, pensou a mãe, afinal, uma vez por ano, podemos até conceder a nós próprios um pouco de liberdade. Por isso, a mãe não teve nada a objectar quando todos os criados, como que obedecendo a uma palavra de ordem, introduziram um tornozelo de cada convidado no último elo daquelas correntes que pendiam por cima das cadeiras. Devia ser, pensou a mãe, que começava a sentir os efeitos do vinho, um pormenor previsto pelo programa da festa. Entretanto, porém, o aquecimento da sala tornara-se realmente excessivo. Acontecia sempre isso, pensou a mãe, nunca se sabe como regular os radiadores. A mãe notou também, nas escadas que levavam à balaustrada, um vaivém de criados muito ágeis, a cor­rerem para cima e para baixo no clarão avermelhado que relampejava do tecto. Ouviu-se a seguir um ranger estrídulo de roldanas; a mãe viu que os da balaustrada puxavam como marinheiros que retiram a âncora em seco; a seguir, uma trouxa branca levantou-se de repente do fundo da sala e passou agitando-se sobre as duas filas de cabeças dos convidados. Era a senhora C, mulher do comendador, uma das melhores amigas da mãe que sobrevoava dessa forma a mesa, suspensa por um pé, com os vestidos revira­dos sobre a cabeça. A senhora C, chegada à extremidade da mesa, deu um grande pulo para cima, volteou uma ou duas vezes nas trevas do tecto, depois, como que atirada, desapareceu em direcção ao clarão avermelhado. Entretanto, outros ruídos de roldanas sur­giam na sala. Outros convidados batiam bruscamente com a cabeça na mesa e, suspensos por um pé, passavam agitando-se pelo ar. As mulheres pareciam pássaros brancos, com a cabeça mais baixa do que as asas, os homens morcegos nocturnos devido às caudas pretas do fraque. A mãe, no momento, não compreendeu o porquê dos acontecimentos. Depois pensou que, como o almoço tinha acaba­do, esta era uma forma nova e divertida de sair do hotel. Em vez de andar, voava-se, só isso.

Agora a sala ecoava de rangidos e ruídos férreos, um após outro os convidados sobrevoavam a grande velocidade a mesa, volteavam duas ou três vezes no espaço escuro e mergulhavam com violência na chama. A mãe viu partir assim mulheres bonitas e feias, jovens e cavalheiros barrigudos, rapariguinhas de vestido curto e avós, dignitários, aristocratas, industriais. Todos os convidados iam-se embora de cabeça para baixo e pés para cima, da mesma forma que, nos grandes matadouros americanos, os porcos vão para o cutelo. Entretanto o calor tornara-se intolerável e a mãe disse a si mesma que ainda bem que o almoço tinha acaba­do. Estava desejosa de respirar uma lufada de ar fresco.    

A noiva, puxada pela corrente, bateu com o rosto na mesa, ficou suspensa por um pé, pendeu por um momento, branco fantasma, depois, deslizando rapidamente sobre a mesa e varren­do a superfície com os véus, chegou ao fundo da sala, levantou--se no ar com duas ou três voltas vertiginosas e acabou, como os outros, atirada para o clarão vermelho da chama. Pareceu à mãe, no momento em que a filha passava sobre a sua cabeça, ouvir uma voz, «mãezinha», que a invocava. «Sabe-se como é, coitadinha da minha filha, está emocionada», pensou a mãe, «mas agora já não me cabe a mim consolá-la, mas sim ao marido.» A mesa agora estava vazia, ou quase. Quando a mãe se sentiu, por sua vez, puxada pelo pé, pensou que, feitas as contas, o almoço fora agradável. Mas a fotografia para enviar aos jornais tinha sido es­quecida.

 

                   A ROSA

Em Maio, no jardim daquela vivenda suburbana, ao lado dos roseirais alinhavam-se couves. O proprietário da vivenda, um velho reformado que vivia só com a cozinheira, todos os dias ao pôr-do-sol tirava o casaco, punha um avental às risquinhas e, durante uma hora, enquanto o jantar não estava pronto, sachava, podava, regava. As mulheres do bairro, ao voltar ao fim da tarde do parque com as crianças, podiam vê-lo através das grades do portão enquanto, segurando uma mangueira, dirigia o esguicho de água para os canteiros. De vez em quando o reformado cortava uma couve e entregava-a à cozinheira. Ou então, com a tesoura, cortava algumas daquelas rosas e punha-as num jarro no meio da mesa, na sala de jantar. Quando uma rosa estava particularmente bonita, o reformado levava-a para o quarto, enchia um copo com água, metia a flor lá dentro e colocava o copo na mesinha de cabeceira. A rosa ficava na água a olhar para a cabeceira do velho até desabrochar abrindo como dedos todas as suas pétalas e des­vendando o coração louro e peludo. Mas o reformado não deita­va fora a rosa até encontrar as pétalas espalhadas no mármore da mesinha, e na água morna e cheia de bolhinhas, apenas o caule espinhoso.

Numa daquelas manhãs de Maio, uma grande cetónia dou­rada seguida pela filha ainda adolescente, depois de ter voado em vão pelos jardins do bairro sem encontrar rosas de qualquer género, tendo avistado ao longe os canteiros do reformado, des­ceu zumbindo até à larga e dura folha de uma nespereira e aí, depois de ter recuperado o fôlego, disse à filha: «Chegámos final­mente ao fim das nossas peregrinações. Se te debruçares desta folha e olhares para baixo, vais ver bastantes rosas à espera ape­nas da tua chegada. Até agora quis, dada a tua juventude, acompanhar-te e aconselhar-te na escolha e nas relações com as rosas... receava que a novidade e a violência das sensações, juntamente com a intemperança própria da tua idade, pudessem pôr em risco a tua saúde física e moral. Mas vi que és uma cetónia ajuizada, como aliás todas as da nossa família, e decidi que já é tempo de voares sozinha para as rosas que preferires. Por isso, convém que nos deixemos por um dia inteiro, findo o qual voltaremos a en­contrar-nos aqui, nesta mesma folha de nespereira. Mas antes de nos separarmos, quero fazer-te algumas recomendações. Lembra-te pois que a cetónia nasceu para devorar rosas. E, inversamente, que Deus criou as rosas para que as cetónias se alimentassem delas. De outro modo, não se veria para que serviriam essas flo­res. Mas se não encontrares rosas, abstém-te, é melhor passares fome do que tocares numa comida indigna da tua linhagem. E não acredites nos sofismas das lagartas e de outras espécies pare­cidas que dizem que todas as flores são boas. Assim parece, no início; mas mais tarde certas coisas vêem-se e, passados os anos da juventude, a cetónia que se transviou revela todas as maleitas de uma vergonhosa decadência: banida pela sua nação, é obriga­da a lidar com os besouros, as vespas, os zangãos e outra ralé do mesmo género. Pois a rosa, minha filha, é comida espiritual, ainda antes que material. E da sua beldade origina-se a beldade da cetónia. São coisas misteriosas e mais não te sei dizer. Só sei que determinadas leis, que com razão são chamadas divinas, nunca foram infringidas impunemente. Mas tu não precisas destas ad­vertências, és uma cetónia sã e direita e sabes certas coisas instin­tivamente. Por isso, até logo à noite, minha filha.» Ditas estas pala­vras, a boa mãe levantou voo, pois já a tentava uma enorme rosa púrpura com as pétalas que acabavam de se abrir; e receava que outra cetónia, ou até a própria filha, a precedesse na conquista. A jovem ficou por mais uns minutos na nespereira, meditando sobre o verbo maternal. Depois voou também.

Quem não é cetónia não pode imaginar o que é, para a cetónia, a rosa. Imaginem um ar azul de Maio, todo percorrido por lentas ondas solares, num jardim florido. À cetónia em voo, eis que de repente aparece diante dos olhos uma superfície inchada e branca, cuja sombra acaricia o relevo majestoso e a luz coroa as bordas resplandecentes; uma superfície de carne ampla e doce, parecida com a de um seio imenso carregado de leite. É a pétala exterior de uma rosa branca, ainda fechada mas já prestes a abrir as suas orlas e reveladora de outras pétalas cerradamente envolvidas uma na outra. À cetónia, esta brancura imensa e intacta que su­bitamente invade o céu dos seus olhos, infunde um furor de avidez arrebatadora e espasmódica; o primeiro impulso seria o de se atirar cabisbaixo àquela carne soberba e indefesa e mordê-la e dilacerá-la como que para garantir com a ofensa a posse antecipada. Mas o instinto sugere-lhe uma maneira mais delicada de penetrar na flor; por isso, agarra-se às orlas da pétala desmedida e insinua--se na rosa. Por um momento pode-se ver, entre uma pétala e outra, semelhante a uma mão que se introduz entre linhos bran­cos, o corpo verde-ouro da cetónia agitar-se com vigor no esforço de entrar; a seguir, desaparece; e a rosa, erguida sobre o seu caule, volta ao aspecto habitual. Tal como uma adolescente que, sob a candura aparentemente ainda intacta, guarda o segredo ardente de um primeiro amplexo de amor. Mas acompanhemos a cetónia na intimidade da rosa. Tudo em seu redor é treva, mas uma treva fresca, perfumada, macia; uma treva que vive e palpita nas suas pregas secretas, como a de uma boca desejada. A cetónia está atordoada pelo perfume da rosa, cegada pela brancura que os seus olhos adivinham entre as conexões das pétalas, atiçada pela macieza daquela carne. Toda ela é desejo, tal como a rosa é, toda ela, amor; e num furor instintivo desata a devorar as pétalas. Não é a fome, como erradamente se julga, que a empurra a dila­cerar e furar as pétalas, mas sim a ansiedade de alcançar o mais brevemente possível o coração tremente da rosa. A cetónia rom­pe com as garras, rasga, quebra, despedaça, dilacera. Desta sua furiosa penetração, lá fora nada se pressente; a rosa, erguida e intacta na luz do Sol, guarda sem vergonha o seu segredo. Com fúria crescente entretanto a cetónia rompeu o primeiro, o segun­do, o terceiro invólucro da rosa. À medida que vai mergulhando, as pétalas tornam-se mais delicadas, mais cheirosas, mais brancas. A cetónia quase se sente desfalecer pela delícia, as forças quase lhe faltam, vibra um último golpe de garras, abrindo no emara­nhado escuro das pétalas o último furo, finalmente mergulha a cabeça na penugem loura, inebriante do pólen. E ali ficará, enturdecida, perdida, exausta, como morta, naquela treva fresca e bem cheirosa; dali não arredará pé, exânime, por horas, por dias a fio. Mas lá fora nem o mais pequeno tremor das pétalas trairá, na luz inocente de Maio, a perturbação secreta da rosa.

É este o destino da cetónia. Mas a adolescente a quem a mãe, apesar de as julgar supérfluas, fizera aquelas recomendações, sentia-se irremediavelmente diferente das companheiras da sua espé­cie. Embora pareça incrível, as rosas não lhe diziam nada; e aque­les atávicos, ardentes sentimentos que há tempos imemoriais as cetónias sentem pelas bonitas rosas perfumadas, a nossa cetónia tresloucada sentia-se invencivelmente levada a dirigi-los para as couves frias e rugosas. Bem cedo a cetónia se tinha dado conta desses seus gostos; e, num primeiro momento, até pensara abrir--se com a mãe; mas depois, como sempre acontece, assustada com a dificuldade de uma tal confidência e ao mesmo tempo céptica acerca dos remédios maternais, renunciara; e, confiando nas suas próprias forças, esforçara-se para se emendar sozinha. Assim, de rosa em rosa, sob o olhar benevolente da mãe, tentara adquirir com a vontade aqueles gostos que o instinto lhe recusava. Esforço inútil. Mal mergulhava entre as pétalas, logo ficava parada, como que paralisada, não apenas indiferente, mas até invadida por uma inultrapassável repugnância. Aquela carne macia parecia-lhe encharcada de sensualidade mole e piegas; aqueles perfumes pa­reciam-lhe cheiros promíscuos; aquela brancura, impura tinta lisonjeadora. E, embora ficando imóvel e cheia de nojo, sonhava com as couves verdes, frescas, comestíveis. As couves não se en­feitavam com falsas cores de postal ilustrado, não se perfumavam com cheiros infames e sujos, não ostentavam, quase com com­placência, maciezas repugnantes. A couve era apetitosa, com o seu caule branco que se torce serpenteando na terra, era saudável com o seu cheiro a erva e a orvalho, era genuína com a sua cor verde. A cetónia maldizia dentro de si a natureza que a fizera diferente das outras da sua raça; ou melhor, que fizera todas as cetónias diferen­tes dela. Finalmente, ao ver que a vontade não dava qualquer re­sultado e que ela, embora esforçando-se, não conseguia amar as rosas, decidiu deixar de contrariar as suas inclinações e abandonar-se a elas francamente. «Aliás», pensava às vezes, tentando com um sofisma justificar-se e acalmar a sua consciência, «o que é a couve? uma rosa verde... então porquê não amar as couves...?»

Depois do que se disse, é fácil imaginar quais eram as refle­xões da cetónia adolescente na folha de nespereira onde a mãe a abandonara para levantar voo em direcção à rosa dos seus dese­jos. Para melhor clarificar o drama daquela alma, vamos referir algumas: «É mau nascer diferente da multidão. Não se sabe por­quê, não se sabe como, a diversidade torna-se, de repente, inferio­ridade, pecado, crime. Porém, entre mim e a multidão existe apenas uma relação numérica. Acontece por acaso que as cetónias na sua grande maioria amam as rosas, portanto, é bom amar as rosas. Bonita forma de raciocinar. Eu, por exemplo, amo as couves e apenas as couves. Sou assim e não posso mudar.»

Aliás, é inútil referir todos os pensamentos da desgraçada cetónia. Será suficiente dizer que, no fim do seu longo raciocínio, levantou voo da nespereira e, depois de algumas evoluções perlustrativas, foi pousar na folha verde-azulada cheia de bolhas, nervuras e caracóis de uma das couves maiores. Mas para não dar nas vistas, fingiu ter pousado na hortaliça para descansar, assumindo, consequentemente, uma atitude relaxada, pondo-se de lado e apoiando a cabeça numa pata. Foi decisão acertada, pois dentro de poucos momentos duas cetónias galdérias esvoaçaram próximo dela todas contentes: «Não vens, vamos às rosas», gritaram-lhe inebriadas. Foi bom para elas não terem o cuidado, com a pressa, de observar o acolhimento feito pela cetónia à sua proposta. Lamentamos dizê-lo, mas a cetónia, embora tivesse sido educada com todo o cuida­do pela mãe, teve para com elas um gesto mal educado e plebeu; depois, tendo dado uma olhadela rápida em volta e constatado que não se viam cetónias, fingiu tropeçar numa nervura da folha de couve e deixou-se rolar para baixo, em direcção ao coração da hortaliça. Um segundo mais tarde, tendo aberto com golpes es­pasmódicos de garras um furo na folha gorda e membranosa, já tinha desaparecido dentro do olho encaracolado.

O que mais dizer? Demorar-se a descrever o furor com que a cetónia, finalmente livre de satisfazer os seus instintos tresloucados, abriu caminho no interior da couve? A forma como, uma vez chegada ao centro de toda aquela folhagem fria e escorregadia, se inebriou com o cheiro forte a vegetal emanado pelo caule polposo? E como ficou o dia inteiro lá dentro, desfalecida, um verdadeiro dia de orgias? Acho melhor omitir esses pormenores. À noite, tal como combinado, a cetónia retirou-se contrariada do túnel que cavara no coração da couve e voou para a nespereira, lugar marcado pela mãe para o reencontro. Encontrou-a a debruçar-se olhando em redor, inquieta por não a ver aparecer. A boa mãe perguntou imediata­mente à filha como tinha corrido o dia; e esta respondeu com franqueza que tinha corrido muito bem: rosas em quantidade. A mãe perscrutava o rosto da filha; mas ficou completamente tranquila ao vê-lo sereno e inocente como nunca. «Imagina», disse-lhe então; «aconteceu um escândalo... foi vista uma cetónia a entrar sob as folhas, fico horrorizada só de dizê-lo, de uma couve.» «Que horror,» disse a filha, mas o seu coração desatou a bater furiosamente. «Quem era?» «Isso não foi possível descobrir», respondeu a mãe. «Viram-na quando já tinha mergulhado nas folhas escondendo a cabeça... mas pelos élitros acham que deve ser muito jovem. Coitada da mãe que teve a desgraça de dar à luz uma tal filha. Confesso-te que se eu soubesse que a minha filha tem gostos desses, morria de dor.» «Tens razão», disse a outra, «são coisas em que a mente até se recusa pen­sar.» «Vamos», disse a mãe. No crepúsculo tépido levantaram voo para outros jardins, as duas cetónias, conversando.

 

                   O QUADRO

Um tal Martinati, comerciante de licores, encontrando-se com uma grande abundância de dinheiro, como se costuma di­zer, líquido, depois de se ter aconselhado com um sobrinho frequentador de meios artísticos, decidiu investir parte das suas poupanças na compra de quadros. Martinati, que era leigo na matéria, deixou tudo na mão do sobrinho, o qual rapidamente juntou para ele uma pequena colecção de obras de todos os nos­sos melhores pintores contemporâneos.

Martinati outrora não teria dado um tostão pelas telas que o sobrinho lhe fazia comprar a preços altos. Tendo-se ele ficado pelos dois conceitos do belo na natureza e da imitação do real, se tivesse obedecido aos seus gostos, teria adquirido aquelas paisa­gens sugestivas, aqueles personagens estereotipados, camponesas, pastores, meninos de rua, aquelas naturezas mortas comestíveis que enchem as salas douradas dos mercadores de arte mais baixos e comerciais. Todavia, Martinati, homem ignorante, não tinha coragem de contradizer abertamente o sobrinho; e, suspirando, continuava a apinhar a sua casa com aquelas telas, que a ele, mais do que pintadas, pareciam mal borradas.

Mas existia entre ele e o sobrinho uma guerra surda, uma polémica subterrânea. Embora continuando a desembolsar dinheiro para adquirir supostas obras-primas, Martinati meditava desforrar--se de surpresa do parente presunçoso. Queria comprar um qua­dro em segredo e apresentá-lo ao sobrinho de repente. Pouco importava que este barafustasse, fizesse troça dele. Pelo menos, entre tantas manchas de cores que deturpavam as paredes da sua casa, Martinati saberia onde pousar o olhar.

Martinati, que se tornara frequentador assíduo de leilões e de antiquários, julgou finalmente ter encontrado o que queria. Trata­va-se de um quadro de amplas proporções representando, con­forme lhe disse o mercador, Marco António, o grande general, e a rainha Cleópatra. Nele via-se a rainha, em ricas vestes, sentada no trono e o general acocorado ao seus pés, como para significar a sua dependência sentimental. No fundo vislumbrava-se uma grande sala com colunas de mármore e abóbadas pintadas a fresco. Martinati gostava muito do quadro porque, além da nobreza do tema, conforme disse à mulher, as duas figuras eram realmente vivas, só lhes faltava a palavra. Martinati, ainda à revelia do sobri­nho, pagou o quadro e mandou-o levar para sua casa.

Uma vez pendurado o quadro no lugar de honra da sala de jantar, Martinati convidou o sobrinho e, com uma certa trepidação, mostrou-lhe a sua aquisição. O sobrinho lançou apenas uma olhadela ao quadro, perguntando em seguida a Martinati quanto dera por ele e por fim declarou friamente que o quadro era um velho borrão e valia menos do que a moldura em que estava encastoado. Irritado, Martinati respondeu que estava convencido do contrário. Se não fosse por mais nada, pelo menos pela verdade das duas fi­guras que pareciam vivas. Se aquele quadro, com aquelas duas figuras tão parecidas com pessoas reais, nada valia, o que valiam então as telas borradas e incompreensíveis que o sobrinho lhe fizera comprar? O sobrinho encolheu os ombros e disse que já lho explicara muitas vezes: na pintura o que conta é a arte, não o ob­jecto representado. Martinati respondeu que na sua opinião a qua­lidade principal de um quadro era a de representar coisas que se podiam compreender e admirar. De outra forma, mais valia man­ter as paredes vazias. Em suma, a discussão degenerava. Depois de ter tentado pela última vez explicar ao tio o que era a boa pintura, o sobrinho chamou-lhe teimoso e ignorante e foi-se embora batendo a porta.

Naquela mesma noite, à mesa, Martinati disse à mulher: «É escusado... nunca me deixarei convencer de que são preferíveis umas manchas insignificantes de cores a duas figuras como aque­las, tão vivas e reais que parecem sair para fora do quadro.» Ao dizer isto, levantou involuntariamente os olhos e lançou um olhar sobre o quadro. Então a colher que levava à boca recaiu no prato da sopa, ao ver que aquelas duas figuras, tão vivas e tão reais, tinham até mudado de atitude. Antes estavam uma aos pés da outra. Agora, pelo contrário, visão incrível, Marco António, sentado por sua vez no trono, tinha Cleópatra nos joelhos. A atitude era confidencial, mas as duas figuras conservavam toda a sua majes­tade.

Martinati, não acreditando no que via, pediu à mulher que olhasse também. A mulher olhou e admitiu que, efectivamente, as duas figuras tinham mudado de atitude. Mas a mulher não ficou espantada como Martinati. Com muito bom senso fez observar ao marido que, conforme ele próprio dizia, as duas figuras eram mesmo vivas. Sendo assim, não era de estranhar se elas, cansadas de estar sempre na mesma atitude, tinham decidido mudá-la. Martinati, após uma reflexão, teve que admitir que a observação não carecia de fundamento. Acabaram assim de comer comentando o facto e de vez em quando olhando furtivamente para os dois abraçados, lá em cima, no quadro.

No dia seguinte, uma nova surpresa: Marco António, talvez por ciúme, invectivava de pé, com os braços levantados, contra Cleópatra; a qual, por seu lado, parecia responder-lhe à letra. A mulher disse que, pelo menos a julgar pelas aparências, Marco António tinha todas as razões para agir daquela forma. Cleópatra era uma mulher reconhecidamente provocadora. Mas Martinati defendeu Cleópatra, e com tanta convicção que a mulher, picada por sua vez pelo ciúme, atirou-lhe à cara que acalentava uma inclinação secreta pela luxuriosa rainha. Os dois cônjuges foram--se deitar amuados.

Naquela noite, além da capacidade de se movimentarem, parece que os dois personagens adquiriram de repente também a de falar. Martinati, acordado por um vozear concitado que chegava da sala de jantar, levantou-se em camisa de dormir e, em bicos dos pés, foi escutar. A voz da rainha reconhecia-se pelos tons flautados e pérfidos; a de Marco António, por sua vez, era rude e violenta. Mas não se entendiam as palavras. Talvez falassem latim, talvez grego, talvez alguma língua oriental. Martinati, escondido atrás da porta, ficou um bom bocado a escutar as duas vozes que discutiam; fascinado, como disse mais tarde à mulher, por aquele diálogo na escuridão numa língua desconhecida, de som pedroso e arcaico, que parecia evocar todo um mundo perdido. Finalmente, sentindo o frio subir dos pés nus para o corpo todo, debruçando--se bastante, atreveu-se a mandá-los calar discretamente. Mas os dois fizeram de conta não ter ouvido. Desanimado, Martinati voltou para a cama. Toda a noite, no seu sono leve, ouviu aqueles dois discutirem no escuro, na sala de jantar contígua.

Depois dessa noite os dois personagens multiplicaram os sinais de vida. Ora falavam, ora assumiam as atitudes mais estra­nhas e mais livres, ora até saíam por uma porta pintada no fundo da tela, deixando o quadro vazio. Era acima de tudo o facto da saída que incomodava Martinati. Discutirem à noite está bem, dizia, abraçarem-se, acariciarem-se e assim por diante, passa, mas desaparecerem era excessivo. Não tinha desembolsado o dinheiro para ter um quadro vazio. A mulher respondia-lhe que, com essas palavras, ele demonstrava, como de costume, o seu espírito rude e interesseiro. Aqueles dois não eram uns coitadinhos que possu­íam um único quarto. Eram uma rainha e um general romano. Sabe-se lá quantas outras salas havia no seu palácio. Era demasia­do justo que, cansados de estarem sempre ali em exposição, de vez em quando desaparecessem. Martinati opunha que tinham sido pintados para ficar na moldura, não para ir aonde muito bem entendiam.

O máximo inconveniente daquelas figuras tão vivas continua­va porém a ser a indiscreta e barulhenta natureza das suas rela­ções. Já não passava dia nem noite sem discutirem por algum motivo. Estas suas contínuas discussões produziam muitas pertur­bações. Antes de mais nada, provocavam entre Martinati e a mu­lher discussões afins, pois a mulher estava do lado do pobre Marco António, vítima' em seu dizer, de uma mulher sem pudor nem escrúpulos, enquanto Martinati defendia galantemente a linda ra­inha. Além disso, com o ruído gutural e quebrado das suas vozes, impediam os dois cônjuges quer de comer em paz de dia, quer de dormir à noite. Não restava dúvida, agora as duas figuras estavam vivas, vivíssimas; mas Martinati começou a desejar que, que pelo menos de noite e à hora das refeições, fossem um pouco menos vivas.

Por fim, Martinati começou a considerar com olhar de todo diferente as telas já tanto desprezadas que o sobrinho lhe fizera comprar. Era verdade que as mulheres nuas com pés enormes e caras tortas e os homens estrábicos e contrafeitos que povoavam aquelas telas não se mexiam nem falavam; mas agora aquela sua irrealidade parecia de longe preferível à viveza dos dois amantes reais. Aqueles nus, aqueles retratos, em suma, cumpriam o seu dever, que não era senão ficarem imóveis na moldura. Martinati disse à mulher que, a bem ver, talvez tivessem razão os pintores modernos ao pintarem daquele modo, fora de qualquer realidade e de qualquer verosimilhança. Com o passar do tempo uma viva­cidade como a do quadro antigo tornava-se insuportável.

Martinati, depois de muito hesitar, numa noite em que as duas vozes discutiam com mais dureza do que o habitual, decidiu--se finalmente. Foi à sala de jantar, tirou o quadro da parede e, sem ligar ao diálogo que nele se desenrolava, transportou-o para o sótão, pousando-o no chão, apoiado a uma velha poltrona sem fundo. Depois fechou a porta à chave e voltou para a cama.

 

                     A JANELA ABERTA

Aquelas duas irmãs, Oringia e Sofia, todas as noites discutiam sobre a questão da janela aberta. A casa era pequena, as duas irmãs eram obrigadas a dormir no mesmo quarto. Acontece que Sofia, prática e amante das suas comodidades, queria que de noite a janela ficasse fechada, enquanto que Oringia, mais desportiva, mais fantasiosa, a preferia aberta. Sofia objectava com a humidade, os ruídos, as luzes. Oringia enaltecia os benefícios do ar puro, a poesia da noite. Acontecia frequentemente que as duas irmãs, lindas raparigas vigorosas, passassem das palavras aos actos e, saindo ambas da cama, se enfrentassem na escuridão; ou então que uma delas, aproximando-se à socapa, acordasse a outra bruscamente aos socos. Pelo barulho das vozes e dos gemi­dos, toda a casa acordava. A porta abria-se, aparecia o pai em camisa de dormir comprida, consternado, suplicando com voz sonolenta: «Oringia, Sofia...» O pobre homem, depois de muitas tentativas para acalmar aquela discórdia, acabou emitindo uma sentença salomónica. Nos dias pares a janela ficaria fechada, nos ímpares aberta. As duas irmãs, ambas insatisfeitas, tiveram por fim que aceitar essa solução ambígua.

Numa noite de fim de Outono, o vento uivava com uma

fúria tão melancólica que Sofia, segura da sua razão, ao deitar-se, perguntou à irmã se mesmo naquela noite tencionava donnir com a janela aberta. Oringia respondeu logo que sobretudo naquela noite iria escancarar as persianas. A voz do vento, acrescentou, exaltava-a, os seus sopros inebriavam-na. Sofia, desiludida, disse--lhe que raciocinava daquela forma por mero despeito. A irmã rematou que ela não era capaz de entender certas coisas. Assim, amuadas, as duas raparigas foram-se deitar.

Uma vez apagada a luz, a ventania revelou-se ao ouvido deliciado e atento de Oringia em toda a sua amplitude e o seu estranho furor. Ela tinha a cama, por assim dizer, fora da janela, isto é, encastoada no vão e separada do vazio unicamente por uma subtil grade de ferro e ali o vento não só se fazia ouvir, bem como penetrava intervaladamente com sopros possantes. Enquanto se enovelava debaixo dos cobertores, Oringia gostava de escutar o protrair-se quase incrível das rajadas: quando pareciam prestes a extinguir-se, eis que um novo ímpeto chegava do céu e a voz triste e sibilante retomava vigor. O vento era tépido, robusto, in­chado; sob os empurrões cegos daquelas vagas de ar, toda a casa rangia como se de repente tivesse que se desprender do solo e, tal como um enorme pião, transvoar rolando sobre a crista fluo­rescente das nuvens. O vento rosnava e raspava em volta da casa como um cão à procura de um buraco; sempre que conseguia entrar pela janela, Oringia sentia com delícia o sopro poderoso inchar os cobertores, soprar no seu rosto e levantar, com uma respiração mais ampla e mais forte do que a sua própria respira­ção, o peitilho de renda da camisa. Todo o quarto se animava, as cortinas esvoaçavam estalando, os vidros do lustre tilintavam, os móveis empurrados gemiam com as suas velhas fibras secas. O vento corria pelos cantos do quarto com a fúria desajeitada de um passarão habituado aos grandes voos, o vento procurava uma saída. Um redemoinho forte anunciava por fim que o vento se tinha ido embora por onde viera. Uma última rude carícia ao corpo enovelado da rapariga e já o vento uivava no canto mais afastado da casa; já implorava voltar a entrar. Da sua cama Oringia podia ver a capa escura das nuvens tempestuosas dilacerar-se de vez em quando de forma desigual e pela fresta resplandecer ma­ligno o rosto amarelo de uma Lua furtiva. Escutando o vento, espiando o vaivém das nuvens sobre a cara da Lua, Oringia final­mente adormeceu.

Dormiu talvez um par de horas, depois um choque violento acordou-a de sobressalto e logo se deu conta do que acontecera-, num redemoinho mais forte do vento, a cama, puxada para o exterior, escancarara a grade de ferro, ficando metade de fora do parapeito. Oringia encontrava-se assim num equilíbrio instável, com metade do corpo suspenso no vazio. Compreendendo o perigo, tentou sentar-se na cama. Mas este movimento desequili­brou a cama, e de repente, deslizando fora do colchão, sentiu-se cair para o lado. O vento fazia esvoaçar fora da janela uma cortina comprida, branca e vaporosa. Oringia agarrou a cortina com as duas mãos. Mas o tecido não resistiu, com uma laceração brusca como que de roupa seca e poeirenta, a cortina desprendeu-se dos pregos que a seguravam à arquitrave. Envolvida na cortina, com os cabelos agitados na noite como um archote furioso, Oringia caiu no vazio.

E não só caiu, como também ficou seminua, com o peito rebentando para fora das rendas e as fraldas inferiores da camisa reviradas no ventre; naquele mesmo instante, um traseunte en­capotado, com a aba do chapéu a encobrir os olhos, corria curva­do, rente aos muros, para o lugar provável onde ela iria cair.

«Deus queira que não me veja», pensou Oringia cheia de vergo­nha. A rua, entre as altas casas cerradas, estava deserta e o vento movimentava grandes círculos de luz ao fazer oscilar com força os raros candeeiros. O transeunte, curvado, com os braços cruzados no peito para segurar as fraldas da capa, vinha ao seu encontro. Oringia queria, pelo menos, cobrir o peito com os cabelos. Mas eis que, precisamente no momento em que os bicos dos seus pés nus roçavam o chapéu do desconhecido, eis que uma rajada mi­sericordiosa a levou de baixo para cima, a fez pular para o céu. «Que sorte», não pôde evitar de pensar Oringia, aliviada.

Tendo-a arrancado da rua, o vento agora puxava-a pelos cabelos, sujeitando o seu corpo a uma torção análoga àquela a que a serpente obriga o coelho ou o frango que engoliu. Ela sentia-se enrolar e puxar como por duas mãos desejosas de a alongar e torná-la numa espécie de fuso. Como uma seta atirada por um arco muito tenso, ela voava na diagonal através do céu, no vórtice do vento. A Lua parecia abanar a cabeça e piscar o olho do seu buraco, entre as nuvens escuras. Tudo, à sua volta, assobiava e mugia. Depois, uma nuvem negra encobriu a Lua e só sobraram as trevas. Sentiu-se de repente revirar e precipitar loucamente para o chão.

Uma escadaria sórdida e regular de granito negro, uma esfinge de pedra negra olhando para o vazio com olhos cavados, uma água negra lambendo sem espuma os últimos degraus, pássaros pretos parecendo saltitar e esvoaçar pesadamente na escadaria, uma lanterna iluminando fracamente escadaria, esfinge, água e pássaros, foi tudo isto que apareceu de repente aos olhos de Oringia enquanto se precipitava, com os pés para cima e a cabeça virada para o solo. «O cais... o mar... as gaivotas», pensou ela aterrorizada. Mas quando já parecia que iria esfacelar a cabeça naqueles degraus, o vento levava-a para longe com a velocidade de um foguetão, sobre a crista das ondas.

O mar estava tempestuoso, com pesadas massas de água em amplo reboliço sob o raio triste da Lua. Um veleiro corria ao longe, na tira mais clara do horizonte, com as árvores inclinadas, furtivo como um rato ao fundo de um quarto deserto. «Oh, se a Sofia me visse», pensou Oríngia; e logo a seguir eis que vem ao seu encontro o olho enorme, jorrando água a cântaros, da proa do veleiro que pesadamente se levantava e baixava entre um massacre de espumas, enquanto o navio avançava. A vontade de Oringia seria a de agarrar-se ao gurupés e ali ficar, nua e estendida, tal como uma figura viva de proa, gozando as chicotadas das ondas e as rajadas do vento; mas, sorvida por um redemoinho, girou em volta das árvores carregadas de velas e de cordoarias, baixou para a popa e por um momento, como uma alma-de--mestre, librou-se para cima da cabeça do timoneiro. Este estava em pé, com as mãos no leme, os olhos fixos no mar, completa-mente coberto por um oleado gotejante. «O que se pode fazer por ele?» pensou Oringia cheia de pena. Mas o navio já se afastava.

Oringia pensava que se iria afundar no mar num último ca­prichoso redemoinhno do vento; pelo contrário, reapareceram subitamente os molhes compridos e escuros da cidade e, debaixo dela, propagou-se o fragor das árvores do parque público. Por entre essa massa de ramos e folhas havia um furo para onde o vento a atirava com umas quedas interrompidas e uns solavancos repentinos que agradavam a Oringia. A seguir, numa queda mais profunda, uma baforada de cheiro ferino atingiu as suas narinas e o furo evidenciou-se de repente aos seus olhos como sendo a grande jaula de espessas barras de ferro abertas na parte superior onde se guardava, para divertimento de toda a cidade, uma numerosa tribo de ferozes ursos castanhos. Tenra, seminua Oringia, sacrificada às feras pelo vento! O vento fazia-a andar aos solavan­cos no ar resistente e elástico como sobre um cobertor enquanto, mesmo debaixo dela que se enovelava pelo susto, os ursos se dispunham em círculo com as garoupas, levantavam as cabeças maciças, descobriam esperançados os dentes ferinos. Oringia já sentia esses dentes na carne, quando o vento, mais uma vez ca­prichoso, a empurrou para cima e, envolvendo a sua cabeça com os cabelos, a atirou como uma trouxa cega para uma nova direcção, desconhecida. De repente Oringia sentiu-se cair em algo de ma­cio, libertou-se dos cabelos e reconheceu a sua cama. Mais um sopro poderoso e eis que a cama volta a entrar no quarto, eis que o corrimão, que tinha sido arrancado e ficara pendente, volta a encaixar-se na posição primitiva. Oringia, ainda cheia de terror, mais não pôde fazer do que aninhar-se sob os cobertores.

Jurou a si mesma que, a partir dessa noite, iria dormir com a janela fechada. Mas o transeunte encapotado, a escadaria, o navio e os ursos, todas as coisas que vira, agora, passado o perigo, voltavam à sua memória com uma estranha, voluptuosa delícia. Assim, apesar de todas as suas juras, passadas duas noites ela reabriu a janela e deitou-se numa ansiosa expectativa. Mas o ven­to, enquanto ela dormia, amainou e, tendo acordado pela madru­gada devido a uma desagradável sensação de humidade, Oringia deu por si completamente encharcada por uma chuva silenciosa que o céu de pez vertia a cântaros sobre a cidade. Assim, reflectiu ela desiludida, começava o Inverno.

 

                   A VIDA É UM SONHO

No vigésimo dia de navegação avistámos ao longe a Ilha dos Sonhos. Ou, melhor dizendo, ouvimo-la. Já que, antes ain­da que se recortassem no horizonte as montanhas da ilha, ouvi­mos, amplo como o céu e tal como este infinito, o roncar do estranho monstro que governava a ilha, Chruuurrr de seu nome. Este nome talvez possa parecer, à primeira vista, bizarro e de etimologia misteriosa. Na verdade, não passa de uma expressão onomatopaica que imita perfeitamente o forte barulho provocado pelo monstro enquanto dorme no fundo do seu palácio. Poderá até parecer cómico, como um bramido; mas posso garantir que na boca dos habitantes da ilha, os quais não o pronunciam sem um tom misturado de terror e ao mesmo tempo de reverência, o mesmo assume um aspecto particularmente tétrico.

À medida que nos aproximávamos da ilha e descobríamos as suas numerosas cidades, os campos e as montanhas, o roncar au­mentava. Enchia os espaços com o seu som grave e vibrante, parecia formar um todo com a luz do Sol e, apesar da pureza do céu azul, do esplendor calmo do mar e da formosura da paisagem, parecia acarretar uma tetricidade obsessiva. Os habitantes, como logo ve­rificámos, estão acostumados e já não ligam; aliás, têm muitos outros motivos de preocupação, tal como se verá a seguir. Mas o viajante não avisado, primeiro fica espantado, depois revolta-se, finalmente, não podendo mais suportar aquele ronco desmedido e ameaçador, tenta por todos os meios subtrair-se. A maioria tapa os ouvidos com cera; outros esforçam-se por abafar aquele ruído tétrico com sons mais alegres: músicas, cantos, barulhos conviviais; aliás, todos procuram permanecer na ilha o menor tempo possível, o suficiente para os seus negócios; e não descansam enquanto o roncar, ate­nuando-se cada vez mais no fundo do horizonte, não se perde fi­nalmente na imensidão do mar.

Nós tínhamos que nos reabastecer de água doce; por isso, só ficámos na ilha por poucas horas. Mas neste curto prazo apren­demos, sobre Chruuurrr e os seus súbditos infelizes, muitas coisas curiosas e insólitas. São essas coisas que agora, o melhor que puder, tentarei contar.

Ora bem, Chruuurrr, tal como o antigo Minotauro de Creta, é um monstro nascido, ao que parece, do conúbio contra a natureza da filha do rei com uma toupeira. Cabe-me aqui lembrar que as toupeiras destes países são muito maiores do que as nossas e alcançam em muitos casos a estatura humana; mas, quanto ao resto, são cegas e caem periodicamente em letargia como as nossas. Há quem defenda que outrora a ilha fosse dominada por essas toupeiras e que os actuais habitantes, ao emigrar, as tenham escorraçado das suas antigas sedes. Mas trata-se mais de um boato sugerido pelas origens do actual dominador do que de uma ver­dade histórica comprovada. Quanto ao conúbio, a princesa, va­gueando por essas colinas num dia a meio do Verão, entrou por acaso na galeria subterrânea de uma dessas toupeiras e enrabichou--se monstruosamente pelo toupeirão que se encontrava no fundo do buraco, enroscado em si mesmo, com o focinho entre as patas e os olhos fechados. Dizem que, para enganar o animal, que é cego só à luz do dia, mas que no escuro vê muito bem, ela se fez coser nua na pele esfolada de uma toupeira; assim, transformada em toupeira fêmea, na época do cio das toupeiras, penetrou às arrecuas na galeria e ali, às escuras e debaixo da terra, tal como Pasífae em plena luz do dia com o seu touro, conseguiu que o toupeirão a possuísse. Foi assim que Chruuurrr foi concebido, no fundo de uma toca tenebrosa e malcheirosa, por uma toupeira negra, grande, gorda e repugnante e uma mulher libidinosa de sangue real. Ele nasceu completamente coberto de pelagem es­pessa, já barrigudo, bem provido de garras, com uma grande ca­beça ensonada de pálpebras enormes, pálidas e rugosas. Nasceu dormindo, ou melhor, roncando; e do ruído que fazia tirou o seu nome.

Ao nascer, Chruuurrr provocou a morte da mãe; pouco depois o pai da princesa, rei da ilha, consumido pela vergonha e pelos pressentimentos funéreos, juntou-se à filha no túmulo. Toda a gente acreditava que a sucessão caberia a algum parente colateral, parecendo impossível que Chruuurrr, que acabara de nascer e ainda por cima estava sempre mergulhado no sono, pudesse to­mar as rédeas do governo. Pelo contrário, aconteceu precisamente o que ninguém esperava. Chruuurrr, apesar de infante e sempre ensonado, apoderou-se do poder. A maneira é hábil e merece ser contada.

Ora bem, parece que existia, como ainda existe, no sono eterno de Chruuurrr uma capacidade, como dizer?, de coacção e de domínio, muito superior à dos outros governos que não dor­mem, com todas as suas polícias, os seus burocratas e os seus exércitos. Falei em sono, ter-me-ia expressado melhor se tivesse dito sonhos. De facto, são os sonhos que Chruuurrr tem continuamente enquanto dorme, que lhe dão um domínio incontrastado e, como veremos, incontrastável, sobre os habitantes da ilha. So­nhos tão poderosos como nefastos e absurdos; sonhos que, por uma estranha influência até hoje inexplicada, no preciso momen­to em que passam sob as pálpebras cerradas de Chruuurrr, se tornam realidade para o infeliz povo da ilha; sonhos, numa palavra, a que ninguém se pode subtrair; tal como ninguém, noutras re­giões, se pode subtrair ao calor do Verão e ao frio do Inverno.

O primeiro sonho que revelou o poder funesto do monstro, ao mesmo tempo que estabeleceu o seu domínio, foi que todos os notáveis da ilha, sem excepção, tinham que subir para uma determinada torre da capital e atirar-se dali abaixo. O sonho é dos mais comuns: com efeito, quem não sonhou, pelo menos uma vez na vida, subir para o telhado de um edifício altíssimo e atirar--se para o vazio? Mas Chruuurrr, e nisso reside a sua originalida­de, sonhou esse voo não para si próprio, mas sim para os outros; provocando desta forma a morte de todos os patrícios da ilha. Arrastados por um magnetismo irresistível, esses infelizes subiram para o alto da torre e, um após outro, atiraram-se para o vazio, acabando esmagados como ovos podres na praça lá em baixo. Este suicídio colectivo talvez tivesse ficado incompreensível se, logo a seguir, o monstro não tivesse tido mais dois sonhos igual­mente significativos. O primeiro foi que as famílias dos mortos, não só não deveriam vestir-se de luto, bem como deveriam alegrar-se como se de sorte se tratasse, pelo fim dos seus familiares. O segundo, foi que os ministros, que se tinham reunido de urgência para decidir as providências a tomar diante de acontecimentos tão lutuosos e obscuros, tinham que se colocar, sem mais nem menos, com a cabeça para baixo e os pés para cima, esquecendo a dignidade dos seus cargos e a gravidade das suas pessoas. Ao serem interrogados, tanto os ministros como as mulheres e os filhos dos mortos admitiram que esse seu modo estranho de actu­ar lhes fora, por assim dizer, sugerido e imposto pelo roncar grave que enchia o céu da ilha. Quando a seguir o monstro teve um quarto sonho, que consistia em fazer com que todos os habitan­tes da ilha, como antes os ministros, começassem a andar nas palmas das mãos, a verdade resplandeceu de repente nas mentes dos súbditos de Chmuurrr. O monstro sonhava e eles estavam, sem remédio, à mercê dos seus sonhos.

Desde então, o monstro continua a dormir e a ilha vive na preocupação do que ele pode vir a sonhar. Os sonhos do monstro, será preciso dizê-lo?, não são sempre tão tétricos e absurdos como os que acabamos de relatar. Logo após a tomada do poder por parte de Chruuurrr, por exemplo, aconteceu que todas as lojas da ilha ofereceram de repente as mercadorias a preços muito baixos. Os habitantes compreenderam que Chruuurrr estava a sonhar com a abundância e apressaram-se a ir ter com os comerciantes deso­lados para adquirir tudo o que se lhes proporcionava. Como é natural, a esse sonho seguiu-se, forçosamente, uma carestia terrí­vel. Mas a experiência não serviu; e todas as vezes que Chruuurrr sonha a abundância, os habitantes vão às compras a correr.

Vezes há em que Chruuurrr sonha que todos os homens da ilha, sem distinção, uma bela manhã tiram as calças e vão às suas tarefas com as pernas e as nádegas nuas. Dizem que se trata de um espectáculo curioso e algo cómico ver as ruas apinhadas de tantos homens sem calças. Mas, mal Chruuurrr muda de sonho, todos aqueles desgraçados dão por si atordoados e cheios de vergonha, cercados por bandos de mulheres que riem e fazem troça deles. Não é raro, porém, esse sonho ser logo seguido por outro, que obriga aquelas mesmas mulheres tão trocistas a levantar descaradamente os vestidos para cima da cabeça, mostrando à luz do dia aquelas partes do corpo que o pudor costuma mandar esconder. Então, é a vez de os homens troçarem das mulheres, ou pior ainda, abusarem desse seu involuntário descaramento. Inútil será acrescentar que esses estranhos e cruéis sonhos do déspota prejudicam a moralidade da população.

Um sonho de Chruuurrr que ocorre com alguma periodici­dade é o assim chamado sonho da falta de respeito: um belo dia os habitantes da ilha acordam animados por uma espécie de furor insolente e profanador: os filhos fazem caretas aos pais, as mulheres respondem com gestos obscenos de escárnio às ordens dos maridos, os alunos atiram caroços e excrementos aos profes­sores, os serviçais injuriam os patrões, em suma, não há autori­dade ou dignidade que não sofra algum desaforo sangrento. Ao mesmo tempo, templos, tribunais, palácios da cidade e todos os outros edifícios sagrados e invioláveis são sujos, contaminados, ofendidos. Não escapam à dissolução ímpia e iconoclasta as cãs dos velhos, a inocência das crianças, as efígies dos deuses, os símbo­los da nação. Mais tarde quando porventura Chruuurrr no sono se vira para o outro lado, o sonho desaparece e toda a ilha durante vários dias fica ocupada a limpar-se e a regressar à ordem do cos­tume.

Outro sonho frequente de Chruuuurrr é o dos prémios e das punições. Um belo dia, eis que os habitantes correm para as ca­deias, escancaram as suas portas, libertam todos os ladrões e as­sassinos prisioneiros e atribuem-lhes as mais importantes dignidades da ilha, nomeando-os magistrados, directores, chefes, gover­nadores. Ao mesmo tempo, os verdadeiros magistrados, chefes, directores, governadores são presos nas cadeias e acorrentados. A mesma inversão nota-se nesses dias nas restantes actividades da ilha. Todos os crimes são adequadamente premiados, todas as boas acções punidas. As prostitutas, os ladrões, os assassinos, os ímpios, os ignorantes, os incompetentes, os estúpidos triunfam, honrados e bajulados, trazidos nas palmas da mão, as mulheres e os homens honestos, os pios, os cultos, os sábios, os inteligentes vêem-se perseguidos, desprezados, odiados. Por um estranho fenómeno de reviravolta moral, parece justo honrar o mal e vili­pendiar o bem. Mas, uma vez acabado o sonho de Chruuurrr, não é sem extrema dificuldade e suma confusão que a ilha faz regressar às cadeias os hóspedes habituais e devolve os antigos dignitários às suas sedes. Entretanto Chruuurrr dorme.

Singular entre todos, é o sonho dos trabalhos. Acontece de repente que os habitantes de uma cidade à beira-mar decidem construir um molhe enorme, muito comprido, que não faz falta a ninguém. Dito e feito: os créditos são votados, os trabalhos co­meçam, centenas de operários trazem os blocos de pedra, descem--nos ao mar, o molhe cresce. Mas precisamente quando o molhe absorveu toda a riqueza da cidade, Chruuurrr muda de sonho e os habitantes descobrem terem-se arruinado por aquele bastião de pedras completamente inútil. Às vezes, logo após a construção do molhe, Chruuurrr sonha que aqueles mesmos habitantes pegam fogo à sua cidade. Assim os habitantes acabam por ficar sem casa, mas com um molhe enorme.

Notável também o sonho do assim chamado intercalar. Esse sonho consiste em mandar repetir a cada passo um determinado grupo de palavras, todas elas referentes a um mesmo significado, que varia conforme os sonhos. Às vezes essas palavras exprimem todas um optimismo insensato, outras vezes pessimismo e triste­za, ou então são palavras obscenas, ou ainda, caso bastante fre­quente, não têm sentido algum. De qualquer forma, enquanto o sonho dura, os súbditos de Chruuurrr não param de repetir como papagaios, em molde de lengalenga, os vocábulos escolhidos. Dizem que o efeito é por demais deprimente.

Sonho cómico foi o do alfabeto, que ficou famoso na história atribulada da ilha. Os habitantes de uma das cidades principais imaginaram de repente que houvesse algo de prejudicial e de infame nas letras do alfabeto, onde quer que fosse que se en­contrassem impressas, escritas, gravadas, esculpidas, pintadas. Ei--los então todos empenhados em queimar livros, apagar escritas, destruir lápides. O sonho durou um dia ou dois. Tendo eles acordado, ou melhor, tendo Chruuurrr acordado do sonho para passar a outro, aqueles desgraçados ficaram com todas as biblio­tecas destruídas, sem mais nomes nas ruas nem letreiros de lojas.

O sonho mais receado de Chruuurrr, que felizmente se veri­ficou só uma vez, é o sonho antropófago. Pais, mães, irmãos, irmãs, parentes e amigos, arrebatados por um furioso e nefasto apetite, tentam ferrar-se, devorar-se uns aos outros. No meio dessa balbúrdia faminta, Chruuurrr muda de sonho e todos eles se en­contram com os dentes ferrados nas coxas, nos braços, no peito das pessoas de que mais gostam.

Nesta altura, é preciso distinguir os sonhos de Chruuurrr em sonhos propriamente ditos e em pesadelos. Os sonhos parecem ter um carácter relativamente mais racional sendo, ao mesmo tempo, mais articulados, prolongados e suportáveis. Os pesadelos, pelo contrário, que de vez em quando, talvez por alguma dificul­dade do estômago, assaltam Chruuurrr, são extremamente obscu­ros, misteriosos e compensam a sua menor duração com uma angústia maior. Por outras palavras, o sonho de Chruuurrr com­porta uma acção determinada; ao contrário do pesadelo, que pa­rece mais sugerir um estado de espírito.

Frequentemente Chruuurrr tem o pesadelo de que alguém desata a gritar na rua, correndo e agitando os braços; depois ou­tros o seguem, também gritando e gesticulando; finalmente toda uma multidão grita e corre. Não será preciso descrever a confusão funesta dessa multidão que se precipita em todas as direcções bradando e levantando as mãos ao céu.

Outro pesadelo: o medo. Quase aplicando as palavras do Apocalipse sobre os ricos e os poderosos da Terra, que querem subtrair-se ao rosto de Deus e dizem às montanhas e às rochas: «Caiam sobre nós e escondam-nos...», Chruuurrr sonha que todos os habitantes da ilha ficam de repente enregelados por um susto enorme. Ao longo desse sonho só se vêem caras brancas de medo, cabelos eriçados, olhos esbugalhados, pessoas que tentam proteger--se, esconder-se, encontrar um refúgio qualquer. As cidades ficam desertas, os habitante refugiam-se nas cavernas, entre as montanhas, no seio das florestas. Entretanto, tudo é acalmia e serenidade na­quela ilha de clima abençoado. O Sol brilha no céu liberto de nuvens, o mar está calmo, os ventos brincalhões e leves. Mas o roncar de Chruuurrr, enquanto o pesadelo dura, mantém as populações aterrorizadas.

Pesadelo frequente é o do remorso: dominados por este so­bremodo penoso entre todos os sentimentos, os súbditos de Chruuurrr mordem as mãos, choram, arrancam o cabelo, descui­dam qualquer tarefa e procuram em vão um alívio, confessando uns aos outros crimes imaginários ou acções de todo inocentes às quais atribuem, no momento, valência de crimes. Mas acima de tudo o remorso não parece ter objecto algum, é o remorso e basta, desligado de qualquer causa e de qualquer efeito. Muitos não aguentam essa tortura e matam-se. Este sonho deixa os habi­tantes esgotados e como que aparvalhados durante vários dias.

Os pesadelos de Chruuurrr, aliás, ensinam que mesmo os sentimentos agradáveis podem ser motivo de sofrimento e de obsessão. Com efeito, é suficiente Chruuurrr sonhar que os seus súbditos têm que se alegrar, para que os desgraçados experimen­tem todo o horror de uma alegria tão injustificada como paro-xísmica. Ei-los então a rir, rir, rir sem parar. E a seguir, a dançar em roda, bater palmas, cantar, gritar, congratular-se mutuamente, em suma, alegrar-se. Mas porquê? ninguém sabe. Alegram-se apesar de não quererem, alegram-se com sofrimento inenarrável, alegram--se até caírem no chão desmaiados. Note-se que esse pesadelo, tal como todos aqueles que sugerem sentimentos positivos, é acompanhado pela consciência clara de estarem a fazer algo de absurdo e inconveniente; e é precisamente essa consciência que determina o seu carácter opressivo.

O pesadelo por excelência que traz a marca inconfundível de Chruuurrr, é o que se costuma chamar da apatia. Consiste em fazer com que uma universal indiferença, languidez, inércia, em suma, falta de qualquer sentimento, se apodere de repente da alma dos habitantes da ilha. Eles deixam de sentir amor e ódio, desejo e repugnância, esperança e desespero. Tal como outras tantas velas, a que de repente falta o vento e murcham no meio de um amplo mar inerte, sentem-se de repente completamente esvaziados de sentimento, desapaixonados, insensíveis. As suas acções tornam--se, por assim dizer, mecânicas, a sua conduta forçadamente hipó­crita. Tal como velhos a quem a vida retirou as suas linfas, procu­ram em vão espremer de dentro de si uma migalha de sensibilida­de. Em suma, é a morte dentro da vida; ou melhor, a morte que imita e adultera a vida. Dizem que este pesadelo é dos mais insuportá­veis, por infundir a persuasão de ser perpétuo. Mas felizmente tudo tem um fim, até mesmo os pesadelos de Chruuurrr.

Perguntámos por que razão toda a ilha se submetia tão do­cilmente a uma tirania como aquela. Responderam-nos que, ape­sar de toda a gente estar de acordo em reconhecer que o domínio de Chruuurrr era nefasto, mesmo assim, ninguém nunca teria a coragem de o abater. Ele é filho de rei; e a religião, que na ilha é muito forte, proíbe até pensar que poderia ser removido.

Os habitantes estão sempre esperançados que Chruuurrr durma sem ter nem sonhos nem pesadelos, num sono negro e igual. São de facto esses os raros momentos em que, ao inter­romper-se a saraivada fatal dos sonhos absurdos, insensatos, cruéis, a ilha respira e a vida volta a tomar o seu curso normal. Nesses momentos, toda a gente se dedica às suas tarefas, os negócios recomeçam, as artes florescem, reinam a paz, a serenidade, a se­gurança. Às vezes acontece que esses períodos afortunados durante os quais Chruuurrr se desinteressa do governo da ilha e se con­tenta em dormir sem qualquer género de sonhos, sejam longos, durando até dois, três, cinco anos. Os habitantes falam dessas épocas como de momentos raros e privilegiados da sua existência atribulada. E dizem «quando Chruuurrr não sonhava...»como entre nós se diz «no tempo do arroz de quinze...» e outras semelhantes frases expressivas de uma mítica idade do ouro.

Tentou-se várias vezes influenciar de algum modo o sono de Chruuurrr, para fazer com que pelo menos os sonhos fossem agradáveis. A Chruuurrr, que se alimenta sem parar de dormir, foram ministradas dietas especiais formadas por alimentos leves e de fácil digestão. Mais, tentou-se pô-lo a dormir da maneira mais voluptuosa possível, em colchões de penas, sob cobertores de seda, num ar perfumado, lentamente ventilado por flabelos. Ulti­mamente, prestando ouvido às teorias sobre sexo de algum cien­tista mais moderno, várias raparigas escolhidas entre as mais bonitas da ilha foram introduzidas no tálamo de Chruuurrr. Pensava--se que os sonhos dependessem de instintos eróticos, como se costuma dizer, reprimidos e que, uma vez satisfeita a libido, esses sonhos ou cessariam completamente ou perderiam vigor e dei­xariam de exercer a sua influência sobre os habitantes da ilha. Mas Chruuurrr engoliu os alimentos, envolveu-se nas penas, fi­nalmente possuiu as raparigas, sem que a qualidade angustiante dos seus sonhos se modificasse minimamente. Pelo contrário, nomeadamente por ocasião do sacrifício de tantas raparigas ino­centes, que os magistrados arrancavam às famílias e obrigavam a entrar na cama do monstro, de vários lados avançou-se com a ideia de que essa iniciativa mais não era do que um sonho de Chruuurrr, sonho luxurioso a que os habitantes da ilha se sub­metiam no próprio momento em que se iludiam de estar livres dele. O que, a ser verdade, demonstraria que na ilha tudo é sonho de Chruuurrr; até aqueles períodos pacíficos em que se diz que Chruuurrr dorme sem sonhar; até, conforme se atreveram a avançar alguns brincalhões, a própria existência da ilha, com as suas montanhas, as suas cidades, os seus campos, o Sol, a Lua, as estrelas e tudo o mais. Mas trata-se, evidentemente, de fanta­sias que até agora não encontraram qualquer confirmação na rea­lidade.

Por sua vez, aparece mais séria a hipótese de toda uma esco­la, a qual estabelece um nexo entre o sonhar contínuo de Chruuurrr e o facto, bastante singular, que desde o momento da subida do monstro ao trono, todos os habitantes da ilha, sem excepção, tenham completamente deixado de sonhar. Pensa-se que no dia em que os habitantes recomeçarem a sonhar, os seus sonhos, de certa forma, poderão contrastar e vencer os de Chruuurrr. Mas possivelmente estamos diante de uma utopia mais que de uma teoria realmente científica. Aliás, até ao momento, não parece que o facto possa vir a verificar-se.

Ao lado dessa escola, existe outra, muito mais exígua, a qual defende que Chruuurrr poderia ser substituído por alguém capaz de sonhar mais poderosa e eficazmente do que ele. Era preciso, argumentam, outro Chruuurrr, mais forte e com sonhos mais abrangentes, que conseguisse incorporar e absorver, por assim dizer, nos seus sonhos, não apenas os habitantes da ilha, mas o próprio Chruuurrr. Até agora, todavia, esse sonhador tão poderoso não foi encontrado. Aliás, valia mesmo a pena, dizem muitos, substituir o monstro por um monstro até pior, cujos sonhos pro­duziriam um prejuízo ainda maior.

Talvez não seja inútil lembrar que foi das fileiras desses in­telectuais teóricos que saíram os sete jovens que dois anos antes da nossa abordagem à ilha, conspiraram, ou melhor, julgaram conspirar contra Chruuurrr. Uma noite, esses corajosos entraram disfarçados de guardas no paço de Chruuurrr e, de armas na mão, chegaram até ao quarto secreto onde dorme o monstro. Já dis­tinguiam no fundo da cama a enorme massa obesa e peluda do déspota adormecido, já desembainhavam as espadas, quando a sua conspiração se evidenciou de repente, miseravelmente, por aquilo que era: um sonho de Chruuurrr. Um dos conjurados cra­vou a espada nos rins de um companheiro. Outro prosternou-se chorando aos pés da cama. Um terceiro chegou até a ajoelhar-se e a abraçar-se perdidamente ao penico real. Os outros improvisa­ram pelo quarto uma espécie de roda louca. Entretanto, com a cabeça mergulhada em muitas almofadas, Chruuurrr continuava a dormir, mostrando, no rosto inchado e peludo, sabe-se lá que delicado prazer. Mas o povo que é, como em todos os lugares, são e simples e não se preocupa com teorias mais ou menos científicas, aceita, tal como dissemos, o regimento do monstro e todos os males que dele derivam com resignação e sem investigar as causas nem procurar os remédios. Para essa passividade, sem dúvida muito contribuem os sacerdotes, que se dedicaram à in­terpretação e à exegese dos sonhos e dos pesadelos do monstro. Eles reafirmam o seu domínio explicando que os sonhos de Chruuurrr foram causados por algum pecado ou erro cometido pela nação; da mesma forma, a falta de sonhos constitui um prémio para o bom comportamento dos súbditos.

A única esperança, pois, que resta para a ilha é a de que o tempo passe e Chruuurrr envelheça; e, ao envelhecer, a força dos sonhos, de alguma forma, enfraqueça. Também os médicos são da opinião que, chegando a uma certa idade, os sonhos de Chruuurrr irão perder o seu poder e só chegarão à consciência dos súbditos enfraquecidos e atenuados. Entretanto, à espera dessa velhice, a ilha passa de sonho em sonho, de pesadelo em pesadelo.

 

                   A GUERRA PERPÉTUA

Durante uma das nossas viagens chegámos a uma grande ilha, dividida de forma desigual entre duas nações. Desde o primeiro momento apercebemo-nos de que o modo de vida des­sas duas nações se diferenciava profundamente do dos nossos países.

Entre aquelas duas nações a guerra, depois de se ter arrasta­do ao longo de séculos com vicissitudes alternadas, tornou-se perpétua. A paz, que durante muito tempo tinha sido a regra, com raras e funestas excepções de parênteses de guerra, tornou--se, por sua vez, excepcional. Até que o ideal pacífico, tornando--se cada vez mais fraco e cada vez menos luminoso, como uma lamparina à qual vem a faltar o óleo, se apagou por completo. A paz desapareceu e foi guerra para sempre. Não uma guerra en­tendida como um facto censurável e contrário à natureza humana, mas sim como estado normal e, seja-nos permitido o contraste, pacífico da humanidade. Os homens das duas nações, ao que parece, um belo dia passaram a considerar a guerra como um modo de vida de todo natural e, por isso mesmo, automático. Da mesma maneira que nós não nos apercebemos de respirar, assim esses dois povos deixaram de se dar conta que estavam em guerra.

Como sempre acontece, escritores, pensadores, estadistas, encar­regaram-se de fornecer leis, livros, ensaios filosóficos que confir­maram e deram uma sistematização definitiva a esse estado de coisas. A própria linguagem modificou-se, em muitos aspectos, profundamente. Mil provérbios e expressões populares que se referiam à guerra com horror, passaram a ter o sentido contrário. A palavra paz, por sua vez, desapareceu até do uso corrente.

Mas na prática, o primeiro efeito, e o principal, foi o de que, se antes a cidade se desenvolvia e florescia em função da paz, a partir de então passou a fazê-lo em função da guerra. Haverá quem pense em situações análogas que se verificam entre popu­lações belicistas do género dos árabes de Marrocos ou dos papuas da Polinésia. Mas, em primeiro lugar, aquelas duas populações bastante selvagens nada têm a ver com as nossas duas nações,'as quais, como mais tarde se verá, alcançaram, pelo contrário, um grau muito elevado de civilização; em segundo lugar, a vida em Marrocos e na Polinésia, apesar de todas as aparências contrárias, é como a nossa, igualmente organizada em função da paz. Que­remos dizer que, apesar de toda a sua ferocidade, aquelas tribos africanas e polinésias preferem de longe a paz à guerra, conside­rando esta última, na pior das hipóteses, como um mal inevitável. Velho conceito, diriam os filósofos das nossas duas nações, que, conforme cada um pode ver, já foi completamente ultrapassado tanto na prática como na teoria.

Expliquemos melhor. A guerra perpétua traz como conse­quência lógica a destruição perpétua. Ora, é sabido que as guer­ras não acabam na maioria dos casos por acordo mútuo, mas sim porque a determinada altura um dos dois adversários, já não dis­pondo dos meios suficientes para continuar a luta, se declara ven­cido. Em outras palavras, a destruição junto de um dos dois adversários ultrapassa a produção. Ora bem, o problema da guerra perpétua não é senão o problema da produção perpétua. Uma produção que se deve manter sempre ao mesmo nível da destruição. Uma produção não apenas de armas, não apenas de gé­neros, mas também de homens. Os quais, como toda a gente sabe, em tempo de guerra são consumidos com a mesma rapidez e da mesma forma do que balas de canhão ou pólvora.

Haverá quem oponha que o problema da produção perpétua em função da guerra perpétua, por si só, não tem solução; visto que é próprio da guerra trazer destruições maiores do que qualquer produção; e isso com o fim de alcançar a vitória, objectivo final visado por ambos os adversários. É fatal, em suma, que em tem­po de guerra os produtores de um dos dois campos adversários fiquem muito atrás dos destruidores do outro; ou seja, que as famílias forneçam menos homens, as fábricas menos armas, os campos menos trigo, do que as exigências bélicas impõem: esse desequilíbrio é suficiente para acabar com a guerra. Mas esta ob­jecção, sobremodo justa tratando-se de uma civilização como a nossa, não tem em conta o facto, absolutamente novo, que se verifica junto dessas duas nações, de que ambos os adversários têm interesse, por algum motivo próprio, não já em vencer, bem como em prolongar indefinidamente a guerra. Ou seja, e em ou­tras palavras, a servir-se da guerra não já como fim, mas sim como meio. Então, o que é que acontece? Que, em vez de lutarem para derrotar o outro, os dois adversários entrarão num acordo para regulamentar produção e destruição em função uma da outra, alimentando a guerra em modo uniforme e constante, ou seja, evitando tanto as carestias de géneros, como a superprodução, que levariam fatalmente à supremacia absoluta de uma das duas partes e, por consequência, ao fim da própria guerra. Ambas as nossas duas nações queriam que a guerra durasse eternamente; uma vez estabelecida esta premissa, não lhes foi difícil entrar num acordo.

Tudo isto não aconteceu num dia; e, mais do que de uma vontade clara, tratou-se de uma transmutação lenta de todos os valores da paz em valores de guerra. Mas, substancialmente, as duas nações raciocinaram mais ou menos da seguinte forma: se, conforme está demonstrado, a guerra não é senão destruição e, consequentemente, produção de géneros e de vidas humanas, procuremos dar a este processo um andamento racional, intro­duzindo nele os mesmos mecanismos e as mesmas providências que até hoje adoptámos nas trocas comerciais e nas operações financeiras. Tiremos à guerra o seu carácter furioso, irracional, desordenado. Estabeleçamos uma média da nossa capacidade de destruição e uma da nossa capacidade de produção, vejamos se a média da produção de um coincide com a média da destruição do outro e vice-versa; reduzamos uma média em correlação com a outra; finalmente comprometamo-nos solenemente a manter--nos dentro dos limites assim estabelecidos. Concordemos, de qualquer forma, que, se por algum motivo imprevisível, a deter­minada altura nos apercebermos de estar em situação de super­produção de armas, as poremos de lado, à espera de as poder usar nos moldes previamente fixados; e que faremos o mesmo, caso a superprodução seja de géneros e de vidas humanas. Assim, tudo correrá pelo melhor. Deixará de haver vencedores e venci­dos. E a guerra, finalmente, será perpétua.

Como se vê, estamos muito longe da primitividade dos marroquinos ou dos papuas; estamos, pelo contrário, num plano muito alto de civilização. Aquela civilização, em suma, em que os homens já não actuam seguindo o impulso das paixões, mas sim seguindo as regras de uma alta e firme razão, que se exprime em planos muito claros e bem meditados. Civilização, numa palavra, exemplar, frente à qual todas as outras que floresceram no passado não podem deixar de aparecer como grosseiras e mal dissimula­das barbaridades.

Tudo isso está bem, dirão os opositores habituais; ou melhor, tudo isso está bem até de mais; isto é, é bonito até de mais para ser verdade. O senhor afirma ter estado nesses dois países. E podemos até acreditar. Mas quando nos quer dar a entender que assistiu realmente a guerras semelhantes, não acreditamos. Os seus relatos têm todo o ar de ter sido inventados. São mais bri­lhantes e lógicos paradoxos do que descrições quentes de coisas realmente vistas. O seu rigor trai-o. Infelizmente sabemos que uma coisa são os ideiais e outra a realidade. O senhor descreveu--nos um mundo tal como queria, e nós todos queríamos que fosse; mas já é tempo de pôr de lado as utopias e de no-lo descre­ver tal como é efectivamente.

Nós tínhamos previsto essa objecção. Por isso, antes de partir, tínhamos pedido e obtido o relato estenográfico de um diálogo entre dois ministros de uma dessas nações: o ministro da guerra e o da produção. Esse diálogo, além de comprovar a verdade das       nossas afirmações, servirá também para fornecer uma imagem, por assim dizer, palpitante da vida naqueles países. Por isso, transcrevemo-lo integralmente Ministro da guerra: Meu amigo, está tudo mal, lamento dizer-vos...

Ministro da produção: Porquê?

Ministro da guerra: Porque ficámos atrás, muito atrás dos nossos valentes adversários. Eles, é claro, fingem não se aperce­ber. Mesmo assim, correm boatos bastante inquietantes.

Ministro da produção: Aí está, os boatos, mas que boatos?

Ministro da guerra: Coisas absurdas, monstruosas, coisas que nem se podem repetir, seja claro, mas importantes enquanto símbolo de um estado de espírito generalizado: que nós tencio­naríamos voltar aos velhos sistemas de guerra, que nós pensaría­mos, é horrível de se dizer, na paz, e finalmente que estaríamos a ponderar a hipótese de nos declararmos vencidos. Repito, nem vo-las referiria se, infelizmente, não encontrassem confirmação em alguns aspectos da realidade...

Ministro da produção: O que pretendeis dizer?

Ministro da guerra: Tomemos um caso entre muitos: o das atrocidades da guerra...

Ministro da produção.- Então?

Ministro da guerra: O que é que vemos? Que os nossos ad­versários têm sido muito pontuais. Eis os números dos forneci­mentos deste mês: mulheres fuziladas pela nossa polícia: cento e sessenta e três; crianças com menos de nove anos mortas de formas diferentes: cinquenta; velhos: trinta; massacres generalizados de povoações inteiras de aldeias: sete, dos quais dois com dinamite e dois com lança-chamas. Ora bem, o que temos nós para contrapor a tudo isto? Mulheres em número absolutamente insuficiente: quarenta, quatro crianças e trinta velhos. Reparai que as atrocidades de guerra são, por assim dizer, o termómetro da própria guerra; mesmo nos tempos bárbaros, nos tempos pré-históricos, quando se travava a guerra para se obter a paz, estava tacitamente enten­dido que não havia guerras sem atrocidades. Em suma, a atroci­dade é o primeiro e o mais importante sinal de que a guerra está a ser combatida com valor, com teimosia, sem reservas mentais de cunho mais ou menos pacifista. Aliás, vós sabeis que não bas­ta multiplicar as torturas e as sevícias no material humano fornecido pelo adversário; é preciso também proporcionar outro tanto material humano para as suas torturas e para as suas sevícias; de outra forma, cai-se num pacifismo de produção sobremodo depreciável. O que tendes a dizer a este respeito?

Ministro da produção: Rejeito veementemente a acusação de pacifismo; mas quanto ao resto, admito que podeis ter razão. Tendes, porém, que considerar que uma coisa é produzir casas, manufacturas e bens destinados aos meios de destruição do ad­versário, outra coisa é produzir homens. É difícil influenciar a prolificidade de uma nação. Tudo o que se podia fazer neste domínio, já foi feito não apenas há anos, mas sim há séculos. Há séculos que foram abolidos casamento e família e fixadas cópulas em datas marcadas para todas as mulheres e todos os homens sem excepções. Há séculos que as nossas mulheres não param de procriar filhos para a guerra, a partir dos primeiros anos da puberdade até à velhice. Finalmente, há séculos que se providencia o afastamento da produção anual de material humano dos machos e das fêmeas não destinados às exigências destrutivas, mas sim à procriação. Todavia, apesar destas providências, o nosso nível de prolificidade é mais baixo do que o dos nossos adversários; daí a necessidade de destinar um número cada vez maior de mulheres para a produção, tirando-as dos variados domínios da destruição, incluindo o das atrocidades. Mas cabe-me fazer notar a Vossa Excelência que, embora atrasados no plano da quantidade, em compensação estamos em muito adiantados no da qualidade.

Ministro da guerra: O que pretendeis dizer?

Ministro da produção: Pretendo dizer que o nosso povo colmata com o engenho as deficiências da natureza. É verdade, por exemplo, que o adversário nos ultrapassa em número quanto às atrocidades, mas nós vencemo-lo em muito quanto a requinte e originalidade das torturas que infligimos ao seu abundante ma­terial humano. Eles só sabem fuzilar, enforcar ou queimar com os lança-chamas, ou enterrar pessoas vivas; nós, pelo contrário, en­forcamos, fuzilamos, queimamos, ou enterramos apenas em últi­mo caso, quando já não resta nada a fazer, depois de dias e semanas durante as quais damos larga à inteligência, fantasia, bom gosto... Pois é... nem todos podem ser artistas.

Ministro da guerra: Mas já vos disse que o requinte das tortu­ras por nós infligidas não pode compensar o escasso número dos torturáveis por nós fornecidos. Arrancar unhas, tirar olhos, queimar pés, cortar membros aos bocados, castrar, queimar, esfolar e assim por diante, são todas coisas respeitáveis, todas coisas sérias... mas é um facto que, quanto ao número, não cumprimos os nossos compromissos.

Ministro da produção: Falei em artistas: o domínio da arte, eis mais um sector onde a nossa superioridade é indiscutível. Ouvi os números: só este mês fornecemos aos meios de destruição do adversário cinco igrejas, uma pinacoteca, vinte palácios e seis monumentos. Das igrejas, três eram muito amplas e ricamente decoradas com esculturas, mosaicos, frescos; a pinacoteca continha coisas estupendas, entre as quais uma colecção completa de auto-retratos; dos palácios, nem falo: vós sabeis que os nossos arqui­tectos são os primeiros do mundo; quanto aos monumentos, quatro eram equestres. Eles, por sua vez, o que nos deram como material artístico a destruir com os nossos meios de guerra? Três igrejas muito medíocres e muito nuas, uma biblioteca que, a rigor, não se pode incluir entre as obras de arte, nenhum palácio e apenas dois monumentos de feitura bastante ordinária. A comparação, permiti que vos diga, é arrasadora.

Ministro da guerra: Mas, homem de Deus, quantas vezes vos hei-de dizer? As vantagens de um determinado sector da produ­ção não compensam de modo algum as desvantagens em outro sector. O que quer isto dizer? Que nós estamos adiantados na produção artística, isso sim, mas nem por isso menos atrasados no das atrocidades.

Ministro da produção: Vós sabeis que por esse caminho nunca vos hei-de seguir. A guerra é única, não plúrima. É justo que um povo compense as suas subproduções com as superproduções. Nós somos, como dizer?, uma nação mais aristocrática, mais re­quintada do que os nossos adversários...

Ministro da guerra: Tretas. A discussão foi feita muitas vezes e já vos disse o que penso. Pelo contrário, em minha opinião, não se faz no domínio demográfico o que se poderia e deveria fazer. Os nossos sistemas de produção humana são antiquados. Concede-se excessivamente pouco ao gosto pessoal tanto dos homens como das mulheres. Exagera-se no sentido de uma racionalidade exces­siva. Mais concessões ao amor conjugal, ao afecto materno e paterno permitir-nos-iam porventura uma maior produção de ma­terial humano.

Ministro da produção: Vós conheceis a principal objecção às tais concessões de que falais: se deixardes que mães e pais ganhem afeição aos filhos, mais tarde eles não verão com bons olhos a morte certa e precoce desses mesmos filhos nos diversos sectores da destruição. E deixarão na mesma de procriar.

Ministro da guerra: Está bem, mas, acreditai, mesmo nesse domínio, os nossos antepassados, com toda a sua barbaridade, tinham algo de bom. Deixavam que os pais se afeiçoassem aos filhos, ou melhor, favoreciam essa afeição; mas ao mesmo tempo colocavam nas cabeças dos pais não sei que ideias de glória e de dever, pelas quais não só não lamentavam a morte dos seus fi­lhos, mas chegavam quase a alegrar-se com ela.

Ministro da produção: Na História não se volta atrás. Vós certamente não ignorais que precisamente dessas ideias de glória e de dever, que os nossos antepassados justamente inculcavam nas cabeças dos pais e, acidentalmente, também dos filhos, deri­va em grande parte o conceito básico da nossa civilização: o da guerra perpétua. Vós queríeis que recomeçássemos do princípio. É impossível. Além do mais, o hábito de fazer filhos que sabem estar destinados a morrer na guerra tornou-se nas nossas mulhe­res uma espécie de segunda natureza. Poder-se-ia dizer que, mal dão à luz um filho, já o vêem cair em algum campo de batalha. Por isso, modificar o actual sistema de produção do material hu­mano significaria despoletar uma revolução na psicologia, ou me­lhor, na fisiologia feminina.

Ministro da guerra: Não interessa: era uma ideia, mas não faço questão de a defender por aí além. Mas vejamos, vós requisitais demasiadas crianças para a criação artística e outros sectores de qualidade. Estou certo de que a produção artística não sofreria se uma boa metade das crianças destinadas a tornarem-se artistas fosse, pelo contrário, utilizada para satisfazer, por exemplo, as necessidades das bolsas e dos cercos, onde não vale sequer a pena dizer que estamos gravemente deficitários. Vós sabeis cer­tamente que para a nossa última bolsa o inimigo nos forneceu nada mais nada menos que quarenta mil soldados, todos jovens e robustos, todos de primeira escolha. Quarenta mil soldados que tivemos dificuldade em abater com as metralhadoras em dez dias. Quatro mil por dia, vá lá, não está mal, não está nada mal. E nós, pelo contrário? Dez mil territoriais que em poucas horas estavam mais do que arrumados.

Ministro da produção: Em compensação, porém, temos uma nítida superioridade no domínio dos espiões. Este mês fornece­mos aos seus pelotões de execução nada mais nada menos do que cento e dezoito espiões, dos quais pelo menos setenta e dois eram mulheres jovens e lindíssimas. Vós sabeis que é muito im­portante que as espias sejam mulheres e sejam bonitas. Sabeis igualmente que para formar um espião são precisos anos de aprendizagem e de treino. O que nos deram os nossos adversários? Sete espiões ao todo, entre os quais nenhuma mulher.

Ministro da guerra: Bagatelas. A espionagem é coisa de pouca conta. Admira-se acima de tudo a astúcia, a beleza e outras coisas do mesmo género. Numa palavra, a qualidade. Pelo contrário, a guerra é uma questão de quantidade. Também Napoleão, que percebia do assunto, dizia isso: são os grandes batalhões que fazem durar a guerra.

Ministro da produção: Quantidade, muito bem, tomo-vos à letra. Sabeis vós quantas vilas construídas à perfeição, com esgo­tos, edifícios públicos, luz eléctrica, gás, fontanários, jardins, ofe­recemos aos bombardeamentos aéreos do inimigo, este mês? Trinta e seis, nem uma a menos. Ide ver e dizei se não temos que nos orgulhar da nossa produção. Os próprios escombros revelam a beleza das instalações, a completeza dos edifícios. Pelo contrário, eles forneceram-nos apenas uma dezena de aldeias, das quais algumas muito pequenas.

Ministro da guerra: Pequenas, sim, mas povoadas. Eu mes­mo vi os seus mortos civis. Mulheres, homens, crianças aos mon­tes, aos molhos pelas ruas, debaixo dos escombros daquelas tais aldeias que vós tanto desprezais. Povoações inteiras destruídas integralmente enquanto dormiam ou cuidavam das tarefas do­mésticas. Um espectáculo soberbo, testemunho vivo, por assim dizer, do alto nível alcançado no domínio da produção de mate­rial humano pelos nossos adversários. Por sua vez, as nossas vilas tão perfeitas estavam vazias, pela simples razão que vós próprio tínheis providenciado a evacuação dos habitantes.

Ministro da produção: Isso não invalida que se tratasse de vilas modelo e que os seus próprios aviadores tenham declarado que era um verdadeiro prazer destruí-las.

Ministro da guerra: Para falar de outras coisas. Há uma coisa pela qual tenho que vos felicitar: trata-se da produção de géneros para a destruição aérea, naval e terrestre. Vós sois insuperável na criação mais exaustiva de armazéns, depósitos de víveres, arsenais, paióis, entrepostos, parques automobilísticos, navios. Nesse do­mínio, estamos em superprodução, visto que o inimigo destrói muito menos do que nós produzimos. E o que destrói é sempre de primeira qualidade, facto este que, embora não tenha impor­tância no domínio da produção humana, pelo contrário, tem-na, e bastante relevante, no da produção de géneros, porquanto os géneros custam dinheiro. Nomeadamente no que diz respeito aos navios, a nossa supremacia é indiscutível. Os vinte navios que fornecemos este mês aos nossos adversários estavam todos com-pletamente carregados e tinham uma tonelagem relevante. Per­demos em trinta dias, por obra dos seus torpedos, uma quantidade de víveres e de manufacturas diversas suficiente para aprovisionar uma cidade de três milhões de habitantes por um prazo igual. As nossas praias estão cobertas por destroços infinitos. Em compen­sação, as deles estão espraiadas de inúmeros cadáveres de solda­dos afogados. Refiro-me aos três grandes transportes carregados de tropas que eles puseram à disposição dos nossos submarinos. Trinta mil afogados: um bom número. Tão bom que compensa por si só os vinte navios de carga fornecidos por nós.

Ministro da produção: Não os compensa. É preciso muito mais trabalho para produzir mercadorias do que homens. Um abraço, uma cópula e o homem está feito. Pelo contrário... Não o digais nem a brincar: num só daqueles navios encontravam-se setenta e sete caixas de instrumentos científicos: meses, ou melhor, anos de trabalho. Carne para canhão: eis a vantagem dos nossos adversários sobre nós.

Ministro da guerra-. Consolai-vos à vontade com as palavras. Vós esqueceis sempre que a guerra é destruição e, consequente-mente, produção antes de mais de homens e só depois de géneros.

Ministro da produção: Assim seja, produção de homens. E os reféns que fornecemos este mês? Tudo pessoas de qualidade, vede, tudo pessoas de certo modo preciosas, médicos, advogados, ci­entistas, artistas. Aliás, eis os números: duzentos entre fuzilados e metralhados, cem queimados com os lança-chamas, setenta en­forcados, trinta enterrados vivos; e dos reféns, o que dizeis? Eles têm carência de reféns. Com efeito, que reféns se podem receber de uma nação de ignorantes e de incultos? Será que aceitaríamos como reféns camponeses, operários? Belos reféns, na verdade.

Ministro da guerra: Não vos agiteis, acalmai-vos. Tendes razão quanto aos reféns, precisamente porque a nossa nação ultrapassa o adversário em qualidade, pode também vencê-lo em quantidade. Mas, como se costuma dizer, nem um dedo faz mão, nem uma andorinha Verão. Aliás, eles têm sobre nós a vantagem não pe­quena dos campos de concentração para prisioneiros: um milhão de prisioneiros continuamente renovados à medida que vão mor­rendo, e só Deus sabe quantos morrem. Nós, pelo nosso lado, apenas temos meio milhão.

Ministro da produção: O número, sempre o número.

Ministro da guerra: Não vos preocupeis, já disse. Se eu faço estas observações, vós tendes que as tomar por aquilo que real­mente são: nada mais do que exortações e conselhos para esti­mular a produção, manter alto o nosso bom nome e honrar os nossos compromissos. Os nossos adversários são leais e pontua-líssimos, nós temos que os imitar. De resto, vós também, em par­te, tendes razão. Sou o primeiro a admiti-lo. Consta, com efeito, que entre o ministro da guerra e o ministro da produção dos inimigos teve lugar recentemente uma discussão muito parecida com a nossa. Só que o meu colega acusava o vosso de não fazer o suficiente, não para aumentar a quantidade, mas sim para me­lhorar a qualidade da produção de guerra.

Ministro da produção: Pois bem, vede...

Ministro da guerra.- Não vejo nada. Ou melhor, só vejo que nós temos que aumentar a quantidade e que os nossos adversári­os têm que melhorar a qualidade. Mas entre os dois factos não pode haver relação alguma, não pode haver compensação de qualquer espécie. Ponhamos o caso, por exemplo, que o inimigo queime com o lança-chamas ou enterre vivo um dos nossos mais ilustres poetas. Ora bem, quem poderá definir se esse poeta valia mais ou menos do que dez mil soldados adversários mortos por nós com gases asfixiantes em alguma valeta da frente? Quem?

Ministro da produção: Eu. Eu defendo, como sempre tenho defendido, que a morte de um poeta pesa muito, mesmo muito mais no balanço da guerra do que a de dez mil soldados. Um poeta é único, dez mil soldados não; um poeta é para o espírito fonte de alegrias inextinguíveis, dez mil soldados nada dizem ao espírito; é preciso um trabalho infinito para criar um poeta, não é preciso nada para dar à luz dez mil soldados...

Ministro da guerra: Reparai, segundo esse raciocínio, chegareis a defender que a guerra se faz com os poetas e não com os soldados.

Ministro da produção: Com os poetas e com os soldados. E os poetas, no plano da produção, valem infinitamente mais do que os soldados.

Ministro da guerra: Infinitamente... Não vedes que mesmo vós sois incapaz de dar uma definição exacta do valor de um poeta? e, numa palavra, de todos os produtos de qualidade de que tanto vos orgulhais? Infinitamente.,, a guerra não é uma questão de advérbios mais ou menos genéricos, mas sim de nú­meros. O que quer dizer infinitamente'? Dez mil, vinte mil, cem mil, um milhão de soldados? Ora bem, suponhamos por um momento, por absurdo, que a guerra se faça segundo as vossas ideias; isto é, que nós e os nossos adversários entramos num acordo para fixar uma equivalência entre quantidade e qualidade. Dizei vós como vamos fazer, como conseguiremos descobrir quantos homens os nossos adversários têm que nos fornecer em troca, sei lá, de uma estátua, ou de um quadro, ou de um palácio; dizei, se puderdes.

Ministro da produção: A coisa não é afinal tão difícil. Eu, por exemplo, propunha...

O relatório acaba com a palavra «propunha» do ministro da produção. Pois, ao que parece, naquele mesmo instante desen­cadeou-se um bombardeamento aéreo previsto e combinado de acordo com os adversários, durante o qual precisamente o minis­tério da guerra devia ser destruído. Os dois ministros e a estenógrafa encontraram a morte juntamente com todo o pessoal no desabamento do magnífico edifício. Pensar-se-á que o ministro da produção cometeu suicídio, ao determinar que o bombardeamento acontecesse precisamente no momento em que se encontrava no ministério. Mas é preciso ter consciência de que o que nós chamamos dever e que cumprimos na maioria dos casos com dificuldade e contra os nossos instintos mais enraizados, neles é uma segunda natureza e que o fazem automaticamente. Com toda a probabilidade o ministro da produção pensou que a sua própria morte e a do ministro da guerra, pessoas de qualidade, compen­saria de alguma forma a deficiência de quantidade. Daí à decisão de morrer sob os escombros juntamente com o colega, o passo foi porventura curto e fácil. Nos nossos países, essa dedicação seria chamada heroísmo; mas podemos garantir que ninguém naquela nação sonhou encontrar algo admirável ou de alguma forma extraordinário na morte dos dois ministros. Isso entrava, como nos disseram, no quadro da produção. Aliás, morto um ministro, era sobremodo fácil fazer outro.

Quanto ao relatório, encontrámo-lo por acaso entre os es­combros, logo após o desabamento. Ao relatório, nada temos a acrescentar. A não ser os votos de que os países do nosso conti­nente, ainda embrenhados em sistemas antiquados e bárbaros de guerra, imitem e, oxalá, superem com os mesmos métodos aquelas duas nações, ao mesmo tempo tão civilizadas e tão guerreiras.

 

                   MAMAMEL E VUSITEL

Há quem queira que o significado dos nomes destes dois países limítrofes, Mamamel e Vusitel, seja respectivamente país do pôr-do-sol e país da alvorada. É um erro. Estando claro que o sufixo «el» quer dizer país, foi acertado que Mama significa galinha e Vusi ovo. Será, pois, país da galinha e país do ovo.

Seria inútil descrever os países no seu aspecto físico, sendo a natureza mais ou menos igual em todo o lado. Mas os ordena­mentos são diferentes. Por alto, diremos que em Mamamel o passado conta mais do que o futuro. Em Vusitel, pelo contrário, o futuro conta mais do que o passado. Quanto ao presente, não conta nada em nenhum dos dois países.

Em Mamamel reinam os mortos; em Vusitel, por sua vez, mandam os que ainda não nasceram. Os sacrifícios que os dois povos fazem por esses seus antepassados e sucessores são ina­creditáveis; e, embora pareça estranho, produzem efeitos iguais. Imaginem que em Mamamel chegam a este ponto: as cidades são necrópoles, onde os mortos, devidamente mumificados, habitam casas bonitas e limpas, providas de todas as comodidades, en­quanto os habitantes vivos se acomodam fora das muralhas em barracas, grutas, cabanas e tendas.

Eles dedicam toda a sua vida a manter arrumadas as casas dos mortos e, para o fazerem, têm que aceitar deixar as suas desarrumadas. Mas, como já dissemos, não se trata de casas, mas sim de tugúrios abomináveis. Os habitantes de Mamamel estão vestidos de trapos, enquanto as múmias dos mortos estão enfeita­das com brocados. Quanto à comida, é escassa e grosseira. Os bocados melhores são para os mortos, em forma de oferendas propiciatórias.

Em Vusitel, pelo contrário, constroem-se cidades lindíssimas, não já para os vivos e nem sequer para os mortos, mas sim para os que ainda não nasceram. Naturalmente essas cidades numero­sas, espalhadas por todo o país, estão vazias. A população de Vusitel passa o seu tempo primeiro a construir, depois a manter limpas, arrumadas, eficientes essas cidades desertas; mas ninguém teria a ideia de ir lá morar; estão reservadas para as gerações futuras. Entretanto, precisamente como em Mamamel, a população vive em casebres e cavernas, pobre, maltrapilha e esfomeada. Visto que, não só não se constróem casas para os vivos, bem como se poupa o mais possível na sua comida, roupa e manu­facturas. Tudo isso com a finalidade de construir, nos subterrâneos das cidades futuras, reservas imponentes para os que irão nascer. Os armazéns, os frigoríficos, os depósitos estão cheios a abarrotar; mas a população definha na indigência.

Em Mamamel, para cumprimentar, dizem: «Como estão os vossos mortos?» Ao que se responde: «Melhor do que nós, obri­gado.»

Em Vusitel, por sua vez, cumprimenta-se assim: «Como estão os vossos pósteros?» Ao que se responde: «Estarão melhor do que nós, obrigado.»

Em Mamamel todos os altos cargos do Estado estão preenchidos por múmias de homens excelentes do passado. Trata-se de múmias constitucionais, que reinam sem governar nem poder vir a governar, todavia, nada se faz sem elas, ou melhor, sem perguntar o que elas teriam feito em vida nesta ou naquela cir­cunstância. A resposta às questões mais variadas é dada pelos historiadores, que em número muito elevado cercam essas múmias e conhecem à perfeição a sua vida e as suas acções. Por isso, em Mamamel seria estúpido perguntar-se: «Quem sabe o que teriam feito Cavour ou Bismarck nesta situação?», já que Cavour e Bismarck estão lá, à sua mesa de trabalho, cheios de estopa, é verdade, mas nem por isso menos eficientes, menos actuantes, menos impor­tantes, graças aos cuidados dos historiadores encarregados de perpetuar os seus ensinamentos.

No trono de Mamamel está sentada a múmia de um Emir que há dois mil anos mandou, por algum motivo esquecido, tirar a letra «S» do alfabeto. Pois bem, é inacreditável, mas ainda hoje os habitantes de Mamamel são obrigados a fingir-se blesos.

Em Vusitel, pelo contrário, tratando-se de um país, por assim dizer, projectado para o futuro, os altos cargos do Estado estão nas mãos (se assim se pode dizer, tratando-se de pessoas que ainda não nasceram) de personagens que os numerosos adivinhos que prosperam no país foram procurar ao fundo dos seus livrões ou entre as estrelas. Trata-se de personalidades inexistentes, pelo menos por enquanto, mas, talvez por isso mesmo, terrivelmente exigentes.

Os adivinhos atribuem a esses futuros governantes uma ta­manha ânsia de perfeição que a desgraçada população de Vusitel nunca chega ao fim dos seus trabalhos. Ela tem que labutar de manhã à noite para preparar um mundo digno para esse futuros Catões. É preciso ver como os adivinhos, interrogados os astros, abanam a cabeça com ar negativo diante de alguma fábrica ou de algum monumento e impõem a sua destruição e reconstrução, por­que a um determinado ministro, que irá nascer dentro de dois mil anos, o edifício não agradaria. É preciso ver, em suma, como os homens do futuro são impiedosos, duros e inflexíveis com os do presente. A estes últimos não resta senão baixar a cabeça e obedecer.

Naturalmente, tanto em Mamamel como em Vusitel, não existe crime pior do que o de tentar melhorar as condições dos vivos, sobremodo miseráveis, conforme dissemos. Dos que arriscaram fazê-lo, guardam-se escassas memórias. Na maioria dos casos, tratou-se de pobres mentecaptos, que de repente começaram a gritar pelas praças de Mamamel: «Basta de mortos... Queremos que se cuide dos vivos», e pelas ruas de Vusitel: «Basta de futu­ro... Viva o presente.» Esses loucos, como é justo, foram imedia­tamente agarrados e aprisionados, aplicando-se-lhes duches frios e camisas de força. Mas houve dois ou três casos de pessoas sábias que defenderam nos dois países o presente contra o futuro e o passado e, embora pareça estranho, sempre o fizeram com a mesma argumentação: porquê cuidar do que foi ou do que será, em vez de gozar simplesmente a vida?

Entre nós, uma tal proposição seria encarada como mero bom senso. Pelo contrário, não se faz ideia do furor que reflexões desse género atiçaram nos dois países. Os iconoclastas, presos e julgados, foram todos condenados à pena capital.

Ao mesmo tempo, para evitar semelhantes inconvenientes para o futuro, os dois países, de acordo, votaram uma lei, intitulada precisamente «lei contra o gozo do presente», na qual se ameaçavam penas muito severas para todos aqueles que ousassem extraviar para sua própria vantagem o que é devido aos mortos e aos nascituros.

É inútil dizer que entre Mamamel e Vusitel as relações são péssimas; pode-se até afirmar sem sombra de dúvida que os dois países estão em estado de guerra perpétua. Os de Mamamel queriam entrar de armas na mão em Vusitel, ocupar as lindíssimas cidades dedicadas ao futuro e enchê-las de múmias; os de Vusitel, por seu lado, desejariam invadir pela força Mamamel, atirar as múmias para o lixo e transfomiar as necrópoles em cidades-modelo para as gerações futuras. Mas as forças dos dois Estados estão tão bem equilibradas que nenhum desses dois sonhos até agora se realizou; e o único efeito do contraste, tão grave e tão significati­vo, foi o de provocar a morte de um côngruo número de pobres coitados de ambas as partes. Essas vítimas da guerrilha que arde continuamente entre as duas nações são enterradas com todas as honras, sendo chamadas respectivamente: «Heróis do passado» e «Heróis do futuro».

«Mas o passado já não volta e o futuro nunca chega», diz uma antiga e triste cantiga de autor anónimo difundida em ambos os países. Nestas palavras, melhor do que em qualquer estudo pro­fundo, está representada a sorte, amarga mas tão humana, dos habitantes de Mamamel e Vusitel.

 

                   POLVOS EM POLÊMICA

Pescado e atirado para o fundo do barco, o polvo ali ficou, imóvel, durante muitas horas. Mas quando chegou a terra firme, mergulhado numa tina de água salgada, reanimado, veio à tona da água e gritou: «Um momento!»

Perguntei-lhe o que queria. Ele respondeu: «Conhecer a mi­nha sorte.»

Eu disse: «Vais ser fervido, temperado com azeite, sal, limão e salsa e, finalmente, comido.»

O polvo pareceu desconcertado e abanou o saco, repetindo: «Fervido, temperado com azeite, sal, limão e salsa e comido... não percebo, não percebo mesmo...»

Cheio de curiosidade, perguntei o que previam, no fundo do mar. Inchou-se de prosápia e respondeu: «Não é pouco o que me perguntas, isto é, uma história completa das nossas crenças... nem todos os polvos estariam em condições de satisfazer a tua curiosidade... tens a sorte de te ter calhado um polvo culto... previno-te que é uma longa história.»

Incitei-o a falar e ele, com um tom algo doutrinal, começou:

«Ora bem, as coisas, muito, mas muito por alto, passaram-se, no mar, da seguinte forma. Durante séculos, os polvos acreditaram que por cima do mar estivesse um lugar chamado Terra, para onde iam depois do fim da vida, que eles chamam Pesca. Depois de pescados, os polvos que em vida se tinham portado bem iam para um lugar chamado Viveiro. Esse Viveiro era um depósito de água profundo, com a largura e o comprimento de mil milhas, completamente recheado daqueles pequenos e óptimos peixinhos dos quais precisamente os polvos se alimentam. Sentados nas bordas do Viveiro, aos polvos bons bastava estender os tentácu-los e escolher o peixe que queriam. A isto chamava-se a beatitude do Viveiro. Pelo contrário, os polvos maus acabavam, depois de pescados, num fosso não menos grande do que o Viveiro, mas cheio de tubarões muito cruéis que os dilaceravam eternamente.»

«Bem pensado», disse eu, «ainda se acredita nisso entre os polvos?»

«Já não», respondeu o polvo. «Uma geração de polvos, não sei se audaciosa ou ímpia, há não muitos anos atacou essa crença e conseguiu demonstrar que o sonho de um mundo melhor, feliz e livre, não era originado pelas péssimas condições em que vivi­am e sempre viveram na realidade os polvos no fundo do mar. Não podendo nunca comer à vontade, sendo obrigados a ganhar o peixe com o suor do corpo, sempre insidiados pela miséria, pelos tubarões, pela fome e pelas doenças, os polvos, segundo esses cépticos, tinham acabado por construir uma espécie de mundo ideal no além, como para compensar as muitas insuficiên­cias do mundo real aquém.»

«E o que é que esses cépticos punham no lugar do Viveiro?» perguntei.

«Essa é a questão», respondeu o polvo, «não punham nada... diziam que os polvos tinham que se portar bem sem esperanças de prémio ou receio de castigo... unicamente pelos critérios da inteligência e da consciência moral.»

«Que polvos mais atinados.»

«Devagar...»preveniu o polvo, «eu disse: tinham... na verdade as coisas passaram-se de maneira muito diferente... os polvos, tendo descoberto que no além não havia nem prémio nem castigo, mas sim nada de nada, decidiram que então tudo era permitido... os polvos abandonaram-se assim aos seus instintos e tens que saber que os instintos dos polvos são tudo menos bons... come­çaram a roubar-se uns aos outros, a matar-se, a perseguir-se mu­tuamente... os grandes oprimiram os pequenos, os pequenos reuniram-se para combater os grandes... uma balbúrdia.»

«Que ainda dura?»

«Não», disse o polvo. «Não se podia continuar assim, por isso, tudo mudou mais uma vez... com efeito, seguiu-se outra geração de polvos, a qual, vista a insofrível anarquia em que caíra a nossa nação, inventou uma nova teoria ou crença apta precisamente a remover a anarquia... essa teoria, aliás, reúne alguns dos elementos da antiga crença do Viveiro e algumas afirmações da escola cép­tica. .. enquanto defende, também ela, que no além não há nada, promete na mesma o Viveiro, não na terra e depois da Pesca, mas sim no mar e depois de um determinado tempo.»

«Explica-te.»

«Explico-me: estes polvos novos, depois de estudada com atenção a antiga crença, chegaram à conclusão que ela tivera pelo menos o valor enorme de manter calmos os polvos e fazer com que trabalhassem... mas agora a ilusão tinha acabado e já não havia nada a fazer; nenhum polvo voltaria alguma vez a acreditar na lenda do Viveiro... o que inventaram então estes polvos no­vos? Declararam que, do ponto de vista técnico, O Viveiro da antiga crença era, afinal, realizável, bastava que os polvos quises­sem. Tratava-se, em suma, de construir no fundo do mar um de­pósito de água quadrado, com mil milhas de comprimento, largura e profundidade, e de colocar lá dentro todo o género de peixes e de fazer com que os peixes, à medida que eram comidos, proliferassem e se multiplicassem... Depois de construído esse depósito, disseram, os polvos iriam viver realmente na beatitude maravilhosa do peixe abundante e fácil... e todas as suas misérias acabariam para sempre. Acreditas? Embora o Viveiro fosse sempre o mesmo, com os mesmos efeitos e com as mesmas propriedades, e embora as diferenças entre a antiga crença e a nova se reduzissem no fundo apenas ao facto de que a aparição do Viveiro seria adiada já não para depois da Pesca, mas sim para um futuro indeterminado, a teoria conquistou os polvos num abrir e fechar de olhos. Da anarquia passaram como por milagre à ordem mais rigorosa e dedicaram-se à construção do Viveiro...»

«Um momento», disse eu, «não se tratava, afinal, do mesmo Viveiro... o primeiro era um sonho, como disseste, o segundo uma realidade.»

«Uma realidade passados muitos séculos», disse o polvo, «ou seja, quase um sonho... Com efeito, a construção de um Viveiro como aquele, com uma profundidade, largura e comprimento de mil milhas, ultrapassa em muito a vida do polvo... Mas o que mais importava era criar uma nova esperança... Não sei como é entre os homens, mas os polvos não podem viver sem esperan­ça... Antigamente esperavam o Viveiro em terra, depois da Pesca, e portavam-se bem, agora esperam o Viveiro no mar e portam-se bem... Em suma, para se portarem bem e não se devorarem mutuamente, precisam de um Viveiro qualquer... não é significa­tivo tudo isto?»

Perguntei por que tinha adoptado aquele tom melancólico. Respondeu: «Talvez já tenhas percebido... eu pertenço à escola céptica... pensava, e continuo a pensar que teria sido desejável que os polvos se portassem bem sem esperar qualquer Viveiro... mas ao que parece isto não é mesmo possível. E todavia o polvo deveria esperar dentro da medida do polvo. Sempre que essa esperança ultrapassa demasiado as possibilidades efectivas do polvo, cheira-me a engano.»

«Em outras palavras?»

«Em outras palavras», disse o polvo, «o polvo pode esperar estar menos mal, ou no máximo estar melhor; mas não pode de forma alguma esperar estar bem e muito menos impor a outros polvos que o esperem. Se fizer isso, então não hesito em declarar que está a enganar-se a si próprio ou aos outros... ou, como acontece amiúde, engana-se a si próprio e aos outros todos.»

«Polvinho céptico», gritei, «pode-se saber afinal no que é que acreditas?»

«Eu acredito», respondeu o polvo numa mistura de veemên­cia e melancolia, «no polvo.»

«E esse polvo?»

«Esse polvo terá sempre que fadigar para capturar os peixes e sempre os tubarões o insidiarão e nunca haverá peixe suficiente e as necessidades e a dor constituirão sempre a vida do polvo.»

«Pois bem, lamento mas já ouvi o suficiente... a panela já não pode esperar... se não tiveres mais para dizer.

«Nada mais», disse o polvo, «Mas quem poderia prever?... fer­vido, temperado com azeite, sal, salsa e limão e comido... eu não percebo nada, não é o Viveiro, não é o nada... é algo diferente.»

«Isso mesmo», disse eu agarrando-o e mergulhando-o na água a ferver.

 

                   A UNHA DE PRIMAVERA

Entre os cônjuges Indelicato poder-se-ia dizer que o acordo era total, se não fosse pela questão da moda. A senhora Indelicato, engraçada e exigente, vinte anos mais jovem do que o marido, queria a todo o custo acompanhar a par e passo os ditames da moda feminina. O senhor Indelicato, homem sério e à antiga, encontrava objecções quer quanto à despesas a que era obrigado por esta ambição da mulher quer quanto ao ridículo e não raro artifício da própria moda.

Assim, ora se recusava a oferecer à mulher o dinheiro que ela lhe pedia, argumentando que os vestidos do ano anterior po­diam muito bem servir também para o ano seguinte; ora protesta­va com violência contra um chapéu demasiado excêntrico ou uma saia demasiado enfeitada.

«Simplicidade, diabo!» exclamava. «Aliás, que história é essa das estações? Deveria bastar-te um vestidinho leve para o Verão e um quente para o Inverno... e deverias usá-los não por uma estação, mas sim durante anos!»

«Pois sim...» respondia a mulher, «ou até virá-los do avesso, como tu fazes.»

«Qual é o mal?» retorquia o marido. «Na Idade Média, os ves­tidos passavam de pai para filho.»

«Outros tempos, outros hábitos», dizia a senhora. «Aliás, na Idade Média havia obscurantismo.»

«Chega», atalhava o marido. «Não te vou dar o dinheiro para esse vestido.»

No início de Março, a senhora Indelicato comprou o número de Primavera de uma célebre revista de moda estrangeira e levou--o para casa com a intenção de estudar um modelo para mandar reproduzir pela sua costureira. Desta vez — como disse ao mari­do, folheando a revista depois do almoço — a linha da moda era deveras nova, de uma novidade elegantíssima, que podia à primeira vista desorientar e até escandalizar as mentes vulgares e grosseiras.

«Trata-se sem dúvida», acrescentou observando avidamente as largas páginas de papel couché, «da maior revolução jamais verificada no domínio da moda. Mas quem tiver bom gosto», con­tinuou, «quem tiver sensibilidade, não pode deixar de admitir que esta revolução não só é necessária, como até altamente benéfica. É inútil», concluiu a senhora quase com desdém, «é inútil, pode­mos esforçar-nos quanto quisermos, mas quanto à moda os es­trangeiros estão muito mais adiantados do que nós.»

O senhor Indelicato, desconfiado com este preâmbulo, es­tendeu a mão para pegar na revista. Mas a mulher repeliu-o e continuou a folhear entusiasmada, saindo-se de vez em quando com exclamações de admiração como: «Que torrão de açúcar... Que tesouro... Que maravilha... Que jóia...»

Finalmente, quase forçada pelo êxtase no qual a mergulha­vam aqueles modelos, exclamando: «Meu Deus, este é mesmo uma obra-prima... onde já se viu uma coisa tão bonita?», esten­deu-lhe o fascículo.

O senhor Indelicato pôs os óculos e olhou. O desenhador, para ilustrar o figurino, pensara representar uma cena da vida real. Via-se, pois, uma magra e delicada figura de mulher, vestida com um casaco às riscas direito e uma saia igualmente às riscas, de pé, junto de um panelão onde um estranho cozinheiro, também ele vestido às riscas, parecia remexer não se percebia que caldaça com uma colher de pau comprida. O figurino não trazia meias e tinha os pés enfiados em dois grandes sapatos de soldado. Na manga via-se um bracelete com um número. A cabeça do figuri­no, sorridente e requintada, estava completamente privada de cabelo, sem ser calva: um ponteado espesso sugeria que tivesse sido rapada. O figurino segurava na mão uma marmita do tipo militar e com a outra, com um gesto afectado, levava à boca uma grande colher. No fundo, o desenhador esboçara com traço mais leve e quase evanescente, um arame farpado, uma torre de vigia e um soldado de guarda com o capacete sobre os olhos e a me­tralhadora a tiracolo. A toda a volta da página, em jeito de moldura, desenvolvia-se um arame farpado. Por baixo da ilustração, por sua vez, lia-se, escrito em itálico:

"A nova linha não é outra linha: é a linha. Direita, ela não faz concessões a convexidades provocantes. Casta, descobre apenas o indispensável. Simples, vai ao encontro das necessidades da vida moderna. Na nova linha, o corpo, durante tanto tempo martiri­zado, retoma os seus direitos. O peito respira, as ancas libertam-se, aspemos desenvolvem o seu jogo. Uma pulseira com o número progressivo, de uma simplicidade encantadora apesar da sua só­bria elegância, constitui o único enfeite deste precioso modelo. A gola, fechada debaixo da garganta, tem revers, tal como as mangas. O tecido é daquele algodão de trama grossa, chamado algodão de carcerado. Para integrar este modelo de Ypsilon, o cabeleireiro Zé propõe um penteado sedutor e original como nunca, obtido pela total aplicação da máquina zero na cútis do crânio. Repare-se como no novo penteado, chamado precisamente penteado zero, a pele, durante demasiado tempo sufocada por massas pouco saudáveis e sujas de cabelos, respira finalmente com total à-vonta-de. O sapaterio Eme, por sua vez, lança estes fascinantes sapatos cuja grosseria bem calculada e sápida se harmoniza à perfeição com a simplicidade clássica do modelo. Trata-se de uma botinha de tipo militar, de vaqueta grosseira com bico reforçado, tachas tricúspides, atacadores de couro. Com estes sapatos, não se usam meias. O modelo é próprio para a manhã, para o habitual passeio higiénico pelo campo de concentração, na hora de distribuição do rancho."

«Então», perguntou a senhora Indelicato, com os olhos a brilhar de alegria, «o que achas? Não é simplesmente encantador?»

«O quê?» proferiu finalmente o marido, «este horror?»

«Horror?!» gritou a mulher. «Horror este modelo tão feliz? Vê--se mesmo que já estás velho e que não percebes a vida moderna!»

«E esses sapatos de soldado», perguntou o marido, «como os justificas?»

«Sapatos sóbrios, práticos», respondeu a mulher. -Já estava na hora de acabar com os sapatinhos dengosos que além do mais estragam os pés...»

«E a cabeça rapada?»

«Estava mesmo à espera», exclamou a senhora Indelicato, «a cabeça, como tu dizes de uma forma tão ordinária, rapada, é a grande novidade da época... Todos os grandes cabeleireiros a adoptaram... Mas como podes não te aperceber de que os cabe­los são feios? Onde tens os olhos?»

«Será», disse o senhor Indelicato tirando os óculos, «será...»

«É... é», gritou a mulher e a seguir, com uma passagem re­pentina para uma coquetice acariciante e felina, saltando para os seus joelhos e cercando-lhe o pescoço com os braços: «Então, dás-me o vestido?»

«Nunca!»

Seguiu-se uma longa discussão que não vale a pena relatar. A mulher insistia, ameaçava, lisonjeava, implorava, insultava; o marido não se demovia daquele -nunca» definitivo. Finalmente, em jeito de justificação, o senhor Indelicato fez observar à mulher que aquele vestido talvez pudesse até ser encantador, como ela afirmava, mas para oVestir faltava a primeira condição, a conditio sine qua non. a existência dos campos de concentração, com o panelão, a marmita, a distribuição do rancho, os arames-farpados a torre de vigia, a sentinela. Seria como vestir um fato de esqui em pleno Verão.

A mulher, que não tinha pensado nisso, bateu com a mão na cabeça:

«É verdade», gritou. «Mas isso é tudo culpa vossa, de vocês os homens... nós, as mulheres, estamos sempre à vossa frente quanto a modernidade... do que estão à espera para os criar, esses ben­ditos campos de concentração, digam-me, do quê? Bem sei, o que vocês querem é que nós nos vistamos como as avós... É isso que querem...»

«Oxalá!» disse o senhor Indelicato. «Mas não tenhas receio... dentro de um ou dois anos, três no máximo, poderás vestir aquele vestido... vais ver.»

«Pois sim, como sempre quando a moda tiver passado», disse a mulher.

«Mais vale tarde do que nunca!» respondeu o senhor Indelicato com sarcasmo.

A mulher, amuada, saiu batendo com a porta; o senhor Inde­licato agarrou no chapéu e foi para o escritório.

 

                   FELICIDADE NA MONTRA

Todos os dias, a meio da tarde, aquele velho funcionário apo­sentado chamado Milone saía de casa na companhia da mu­lher Erminia e da filha Giovanna. A mulher era robusta e idosa, a filha, já madura, tinha um aspecto frágil e como que atónito. Os três Milone, que moravam na Piazza delia Liberta, subiam lenta­mente, acompanhando o passo da robusta Erminia, por todo o comprimento da Via Cola di Rienzo, observando uma por uma as montras das lojas. Na Piazza Risorgimento mudavam de passeio e, sempre observando as lojas com a mesma atenção, voltavam para a Piazza delia Liberta.

Esse vaivém durava cerca de duas horas, o tempo de chegar à hora do jantar. Os três Milone, muito pobres, há muito tempo que não entravam num cinema ou num café. Passear era o único divertimento da sua vida.

Um dia, tendo saído à hora do costume e subido a Via Cola di Rienzo até quase a Piazza Risorgimento, a atenção dos três Milone foi atraída por uma loja nova, que abrira como por magia no lugar onde até ao dia anterior existira um tapume poeirento. O brilho dos vidros não deixava ver a mercadoria. Os três caminha­ram até à loja e em seguida, sem pronunciar uma palavra sequer, descreveram um semicírculo no passeio e alinharam-se frente às montras.

Agora viam claramente a mercadoria: felicidade. Os três Milone, como todas as pessoas deste mundo, tinham sempre ou­vido falar dessa mercadoria, mas nunca a tinham visto. Falava-se dela como de algo muito raro, de uma raridade lendária até, qua­se duvidando que existisse realmente. É verdade que as revistas ilustradas publicavam de vez em quando uns longos artigos, acompanhados por fotografias, onde se dizia que a felicidade, nos Estados Unidos, era, se não comum, pelo menos acessível; mas é sabido, a América fica longe e os jornalistas inventam cada uma. Também nos tempos antigos, ao que constava, tinha havido abundância de felicidade; mas o próprio Milone, embora já fosse muito velho, não se lembrava de a ter visto algum dia.

E agora, como se nada fosse, como se de sapatos ou artigos de cozinha se tratasse, uma loja oferecia até essa mercadoria para venda a qualquer um que a quisesse adquirir. Tudo isso explica o espanto dos três Milone, empertigados e imóveis frente à loja tão insólita.

É preciso dizer que a loja tinha bom aspecto. Com as montras grandes, emolduradas com travertino polido, com o letreiro em estilo novecentos, com todos os acabamentos e os enfeites de metal ni­quelado. Dentro da loja, também os balcões eram de estilo moderno, e dois ou três empregados jovens, espertos e bem vestidos enco­rajavam com o seu aspecto até o cliente mais indeciso. Nas mon­tras, por sua vez, as felicidades, como muitos ovos de Páscoa, apresentavam-se em ordem decrescente, para todos os bolsos. Havia pequenas, médias, e havia gigantescas, talvez artificiais, colocadas ali para publicidade. Cada felicidade tinha o seu respectivo cartão-zinho com o preço escrito em itálico elegante.

O velho Milone, exprimindo com autoridade o pensamento comum, disse finalmente: «Disto é que não estava mesmo à es­pera. ..»

«Porquê, pai?» perguntou a filha inocentemente.

«Bom, porque», disse o velho irritado, «depois de anos a fio que nos dizem que em Itália não existe a felicidade, que não a temos, que é demasiado cara para a importarmos... eis que de repente abrem até uma loja onde não se vende outra coisa.»

«Se calhar descobriram alguma mina», disse a filha.

«Mas onde, mas como?» Milone agora acalorava-se. «Não se têm fartado de nos dizer desde sempre que o subsolo italiano não a tinha?... nem petróleo, nem ferro, nem carvão, nem felicidade... aliás, são coisas que se acaba por saber... imagina... estou mes­mo a ver os nossos jornais: ontem fulano tal, ao passear nas montanhas do Cadore, descobriu um jazigo de felicidade de óp­tima qualidade... com n metros de comprimento, n metros de profundidade, n de riqueza... estou mesmo a vê-los... não, não... essa mercadoria vem de fora.»

«Então?», disse a mãe placidamente, «qual é o mal?. Lá têm felicidade até de sobra, aqui não há: exportam-na... o que é que tem de extraordinário?»

O velho encolheu os ombros com furor: «Conversas de mu­lher. .. sabes lá o que significa importar. Significa gastar moedas fortes... aquelas moedas que nos poderiam servir para comprar trigo... o país está a morrer à fome... precisamos de trigo... não senhor... os poucos dólares que conseguimos juntar, gastamo-los para comprar essa mercadoria, essa felicidade!»

«Mas a felicidade também faz falta», observou a filha.

«É uma coisa supérflua», respondeu o velho. «Antes de mais nada, é preciso pensar em comer... primeiro o pão, depois a felicidade... mas já se vê, este é o país do contra-senso: primeiro a felicidade, depois o pão...»

«Estás a levar isso demasiado a sério», observou amavelmen­te a mulher. «De acordo, tu não precisas de felicidade... mas nem toda a gente é como tu.»

«Eu, por exemplo...» arriscou-se a filha.

«Tu, por exemplo...» retorquiu o pai em tom de ameaça.

«Eu, por exemplo», acabou a rapariga quase desesperadamente, «só para saber como é, uma felicidade, uma das pequenas, até gostava de a comprar.

«Vamos embora», disse o velho tétrico e peremptório, «vamos embora.»

As duas mulheres deixaram-se levar docilmente. Mas o velho agora estava irritado. «Não esperava isso de ti, Giovanna.»

«Porquê, pai?»

«Porque aquela mercadoria é coisa de contrabandistas, de ricaços, de milionários... um funcionário do Estado não pode nem deve desejar a felicidade... tu, ao dizer que gostarias de a comprar, estás a dar prova pelo menos de inconsciência... Como é?... Alugamos quartos... a reforma mal chega aos primeiros dias do mês e tu... estás-me a decepcionar, estás mesmo.»

A filha tinha os olhos cheios de lágrimas. A mãe disse: «Vês como és, só a sabes magoar. Afinal, não tem nada na vida, é jovem, o que há de estranho no facto de desejar a felicidade?»

«Nada... o seu pai dispensou-a, pode dispensá-la ela tam­bém.»

Já tinham chegado à Piazza Risorgimento. Mas, contrariamente ao habitual, o velho desta vez quis voltar pelo mesmo passeio. Quando chegou diante da loja, parou, olhou demoradamente para a montra e a seguir disse:

«Sabem o que acho? Que se trata de mercadoria falsificada.»

«Como falsificada?»

«Pois bem, ainda ontem li no jornal que uma felicidade pequenininha, na América que é a América, custa muitas centenas de dólares... como é possível que aqui a ofereçam a este preço? Só o transporte custa mais do que isso... essa é mercadoria falsa, fabricada aqui... não há dúvida.»

«Mas as pessoas compram-na», atreveu-se a mãe.

«O que é que as pessoas não comprariam... vão ver em casa, dentro de poucos dias... vigaristas!»

O passeio continuou. Mas Giovanna bebia as suas lágrimas e pensava que, mesmo falsificada, teria gostado da felicidade.

 

                                                                                Alberto Moravia  

 

                      

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