Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
CONTRA TODA A ESPERANÇA
Este livro é meu testemunho de vinte e dois anos passados nas prisões políticas de Cuba, unicamente por manifestar meus critérios diferentes do regime de Fidel Castro.
Em meu país há algo que nem mesmo os mais fervorosos defensores da revolução cubana podem negar: o fato de que existe uma ditadura há mais de um quarto de século. E um ditador não pode manter-se no poder durante tanto tempo sem violar os Direitos Humanos, sem perseguições, sem presos políticos e prisões.
Em Cuba existem, neste momento, mais de duzentos estabelecimentos penitenciários, que vão desde as prisões de máxima segurança até os campos de concentração e as chamadas granjas e frentes abertas, onde os presos realizam trabalho forçado.
Em cada uma dessas duzentas prisões há história suficiente para escrever muitos livros. Por isso, os testemunhos que aqui aparecem são apenas um esboço da terrível realidade daqueles cárceres.
As situações de violência, a repressão, as surras, as torturas e incomunicabilidades são prática diária. Hoje, agora mesmo, centenas de presos políticos, por recusar a reabilitação política, estão nus há quatro anos, sem assistência médica, sem visitas, dormindo no chão e fechados em celas cujas portas e janelas foram emparedadas.
Jamais vêem a luz do sol ou a luz artificial. Eu sou um sobrevivente dessas terríveis celas emparedadas de Boniato.
Há fotografias de alguns dos personagens que aparecem no livro, para que se saiba que são pessoas que existem, que têm um rosto. Os vivos estão, atualmente, nos Estados Unidos, Venezuela e outros países. Devo dizer que naquele peregrinar pelas prisões conheci militares e funcionários com grande qualidade humana, que nos ajudaram na medida de suas possibilidades e com isso arriscaram-se a ir para a cadeia. Os nomes dessas pessoas, por motivos de segurança para elas, não podem ser revelados, assim como os favores que fizeram.
Não quero terminar sem evocar os que tornaram possível a minha liberdade e reiterar-lhes meu reconhecimento. Não escrevo nomes porque a lista seria muito longa e porque há pessoas que pensaram em mim, que fizeram muito por mim e eu nem sequer sei seus nomes. Para eles o melhor da minha lembrança e de meu coração.
Madri, 1985 - Armando Valladares
Detenção
O cano frio da submetralhadora em minha têmpora me acordou. Abri os olhos, assustado. Três homens armados estavam ao redor de minha cama... Um deles disse que eu tinha de acompanhá-los e que me vestisse. Na sala, um quarto policial vigiava minha mãe e minha irmã.
Tranqüilizei-as, disse-lhes que com toda certeza tratava-se de um erro, uma vez que eu não tinha cometido crime algum.
Eu era, então, funcionário do Governo Revolucionário na Caixa Econômica, anexa ao Ministério de Comunicação, e minha subida àquele departamento oficial havia sido rápida, motivada, em grande parte, por minha condição de estudante universitário.
Realizaram uma busca minuciosa, prolongada: levaram quase quatro horas revistando tudo. Não ficou um só centímetro da casa sem ser examinado. Abriram garrafas, verificaram livros, folha por folha, esvaziaram tubos de pasta dental, examinaram o motor da geladeira, os colchões...
Eu conversava com minha mãe, que era quem estava mais nervosa; enquanto isso, pensava em quem me teria denunciado. Pensei que a denúncia deveria ter saído de meu emprego. Eu sabia que tinha uns colegas que me eram hostis, devido às minhas idéias religiosas e minhas concepções idealistas do mundo, que esgrimia freqüentemente para discordar do comunismo como sistema.
Também sabia que eu estava marcado como anticomunista. Uma de minhas últimas discussões havia sido provocada por um lema que era repetido no país inteiro, lançado pelo aparelho propagandístico do Governo, e que tinha por objetivo ir preparando as massas, ir infiltrando nelas a idéia comunista. Castro já era acusado disso e, então, divulgaram a ordem:
"Se Fidel é comunista, que me ponham na lista: eu estou de acordo com ele".
O lema foi impresso em adesivos para serem colocados em automóveis, em placas de latão para serem fixadas às portas das casas, era diariamente publicado nos jornais, foram feitos cartazes e fixados ns paredes de escolas, quartéis, fábricas, oficinas e escritórios do Governo. O propósito era bem claro e simples: Castro era apresentado ao povo como um Messias, um salvador, o homem que devolveria a liberdade, a prosperidade e a felicidade a Cuba.
Os comunistas do Ministério apareceram para colocar um daqueles lemas na minha mesa de trabalho... "se Fidel é comunista...". Eu recusei. Ficaram surpresos e desorientados porque, se bem que soubessem de minha aversão ao marxismo, haviam achado que eu não iria recusar, uma vez que isso seria recusar Castro. Perguntaram-me se eu não estava de acordo com Fidel. Respondi que se ele era comunista, não, que não faria parte dessa lista.
Os policiais continuavam a revista. Terminaram nos dormitórios, banheiros, cozinha e passaram para a sala. Revistaram os quadros, as estatuetas de porcelana; uma delas chamou-lhes a atenção: tinham descoberto algo dentro. Com uma caneta esferográfica, um deles conseguiu tirar um papel: era um dos usados para embalar louças e cristais. Abriu-o e ao perceber que eu o observava com ar divertido, amassou- e atirou-o pela janela. Fizeram-nos levantar do sofá, viraram-no e o examinaram cuidadosamente. Terminou a revista e não apareceram armas, nem explosivos, nem propaganda, nem listas. Se bem que nada houvessem encontrado, eu tinha que responder a umas perguntas de rotina. Minha mãe argumentou que não havia motivo para me levarem. Eles responderam que não se preocupasse, que eu voltaria logo: eles mesmos me trariam de volta para casa. Só que a volta demorou mais de vinte anos.
Chegamos à esquina da 5a Avenida com a Rua 14, no Departamento Miramar. Era, então, a sede centra da Polícia Política, a Lubianka cubana. Várias residências, produtos do despojo, formavam o complexo do G-2, que era como, a princípio, chamavam a Segurança do Estado. Fui levado ao segundo andar, ao arquivo. Tiraram minhas impressões digitais e me fotografaram com um letreiro que dizia: "contra-revolucionário".
- Conhecemos suas declarações onde você trabalha; você andou atacando a revolução - afirmaram.
Defendi-me, dizendo-lhes que não havia atacado a revolução como instituição.
- Mas atacou o comunismo.
Isso eu não neguei. Não podia, nem queria fazê-lo.
- Sim, é verdade - disse-lhes, - considero o comunismo uma ditadura pior da que acabamos de padecer e se ele se estabelecer em Cuba, seria como na Rússia: passar do czarismo à ditadura do proletariado.
Naquela mesma tarde me levaram com os outros detidos - entre eles, uma mulher - a um pequeno salão. Mandaram que nos sentássemos em um banco de madeira. Havia refletores, que se acenderam; os fotógrafos e câmeras começaram a fotografar e a filmar. No dia seguinte, aparecemos nos jornais e televisão como um bando de terroristas, agentes da CIA, capturados pela Segurança do Estado.
Eu não conhecia nenhuma daquelas pessoas. Nunca as tinha visto. Foi lá que entrei em contato com Nestor Piñango, Alfredo Carrión e Carlos Alberto Montaner, três estudantes universitários. Também conheci Richard Heredia, que havia sido um dos chefes do Movimento 26 de Julho, na província de Oriente.
No dia seguinte houve o segundo interrogatório.
- Você estudou em um colégio de padres - disseram.
- Sim, nos Escolapios; mas o que importa isso?
- Importa, sim. Os padres são contra-revolucionários e o fato de ter estudado nessa escola é mais uma evidência contra você.
- Mas Fidel Castro estudou no Colégio Belém,dos padres jesuítas.
- Mas Fidel é um revolucionário e você é um contra-revolucionário, aliado aos padres e aos capitalistas; por isso vamos condená-lo.
- Não há nenhuma prova contra mim, não descobriram nada.
- É verdade que não temos prova alguma, concreta, contra você, mas temos a convicção de que é um inimigo em potencial da revolução. Para nós, é o suficiente.
À noite, cedo, tiraram Richard Heredia e eu da cela. Levaram-nos para um salão e exibiram-nos um filme feito para os noticiários de cinema e tevê. Um dos jornalistas, referindo-se a mim, comentou, a meia voz, que era uma pena me fuzilarem tão moço. A campanha organizada pelos comunista alcançou proporções tão vastas que me fez temer seriamente por minha vida.
Nessa madrugada fui levado para o último interrogatório. Foi como uma despedida.
- Sabemos que você conhece elementos que estão conspirando, que deve ter contato com alguns deles. Se cooperar conosco, podemos deixá-lo em liberdade e reintegrá-lo em seu trabalho.
- Não conheço nenhuma dessas pessoas, nem tenho contato com conspiradores.
- Esta é a última oportunidade que você tem de sair desta encrenca.
- Eu não sei de nada. Vocês não podem me condenar porque não fiz nada. Não há provas contra mim. Não podem demonstrar nada.
Nessa mesma noite, Carlos Alberto, Richard e eu, com um abridor de latas, começamos a fazer um buraco na parede posterior do banheiro. Íamos tentar fugir. Era tarefa difícil. Trataríamos de retirar o reboque da parede e arrancar o primeiro tijolo. Revezávamo-nos na perfuração. Sabíamos que nos arriscávamos a represálias. Mas nos dedicamos ao trabalho com afinco. No entanto, não conseguimos terminá-lo. Tiraram-nos de lá antes. Nunca soubemos se foi por casualidade ou se algum dos muitos que ali se encontravam era delator ou agente da Polícia Política.
Eram os primeiros dias do ano de 1961. Todo o litoral de Havana estava cheio de canhões que apontavam para o norte. Os Estados Unidos haviam rompido relações com Cuba e o Governo agitava a ameaça de invasão. O vento erguia grandes ondas que saltavam por cima da mureta da avenida que acompanha a costa da Capital. O carro corria a grande velocidade. Passou o túnel da baía e entrou na fortaleza de La Cabaña.
De repente, eu me vi no pátio, no meio daquela multidão de prisioneiros. Não conhecia ninguém. Designaram-me para o pavilhão 12 e me dirigi para lá. Na porta, um preso jovem, de óculos claros, ficou me olhando, sorriu, afável, e me estendeu a mão. Era Pedro Luis Boitel, dirigente estudantil universitário. Combateu Batista na clandestinidade, depois tinha conseguido fugir para a Venezuela, de onde voltou quando o ditador caiu. Havia me reconhecido pelas fotografias publicadas nos jornais. Foi a primeira pessoa que conheci lá e chegamos a ser grandes amigos, como irmãos.
A visita
A primeira visita foi de manhã. Homens não podiam visitar os presos. Só permitiam a entrada de mulheres. As revistas que faziam eram humilhantes. Deixavam-nas completamente nuas, sem respeitar sequer as velhas. Entre as mulheres que faziam as revistas havia duas que protagonizaram vários escândalos: "A China" e "Mirta", duas lésbicas que se aproveitavam da situação.
Por muito que minha mãe e minha irmã quisessem ocultar-me a vergonha e a indignação pela revista que tinham sofrido, não conseguiram. Eu as proibi de voltar.
Todas as noites havia fuzilamentos, no "paredão". Os gritos dos patriotas de "Viva Cristo Rei!", "Abaixo o comunismo!" estremeciam os fossos centenários daquela fortaleza. Quando escutava a descarga de fuzilaria, o horror apoderava-se de mim e me agarrava a Cristo com desespero. Compreendi, de repente, como numa revelação súbita, que Cristo não apenas servia para eu pedir-lhe que não me matassem, mas também para dar à minha vida e à minha morte, se chegasse a acontecer, um sentido ético que as dignificasse. Acredito que foi naquele momento, e não antes, quando o cristianismo, além de ser uma fé religiosa, transformou-se em uma forma de vida que em minha particular circunstância só podia se concretizar em resistir, mas com a alma cheia de amor e de esperança.
Aqueles gritos transformaram-se num símbolo. Já em 1963 os condenados a morte eram fuzilados no "paredão", amordaçados. Os carcereiros temiam esses gritos. Não toleravam naqueles que iam morrer nem sequer uma última exclamação viril. Aquele gesto de rebeldia, de desafio, nos instantes supremos; aquela demonstração de valor e integridade daqueles que morriam proclamando seus ideais, podia ser um mal exemplo para os soldados: podia fazê-los meditar.
Na prisão e em situações difíceis há uma necessidade de comunicação urgente com os outros. O amigo novo nos fala de sua vida, de seus filhos, na visita nos apresenta à família. Em apenas alguns dias forjam-se as grandes amizades, estabelece-se um afeto e simpatia muito profundos. Mas, uma tarde, chamam esse amigo para julgamento e ele não volta. E, à noite, é fuzilado. Compreendi muito bem, então, a atitude dos mais velhos, que não queriam conhecer os que ainda não tinham ido a julgamento.
Jesus Carreras era um dos chefes das guerrilhas contra a ditadura de Batista. Operava em Escambray, cordilheira montanhosa da zona central da ilha. Sua coragem pessoal nos combate o havia transformado em um herói lendário naqueles lugares. Mas o comandante Carreras tampouco havia combatido para a instauração de uma ditadura mil vezes mais feroz da que ajudou a derrubar. E Castro mandou-o para o cárcere, como a tantos outros oficiais; Mas contra os de alta graduação havia um ódio especial, como uma fúria. Carrera havia tido atritos com Che Guevara em plena guerra, porque não aceitava a imposição de Castro de situar um comunista como chefe da frente guerrilheira de Escambray. Quando Che Guevara penetrou na zona rebelde controlada por Carreras, este chegou quase a ponto de matá-lo. Che e Castro nunca esqueceram isso. Conversamos com freqüência porque vivíamos no mesmo grupo de liteiras e ele me disse que tinha certeza de que seria condenado à morte por causa daquilo.
Jesus Carreras foi fuzilado. Pelos constantes fuzilamentos, a prisão de La Cabaña havia se transformado no mais terrível de todos os cárceres. E para nos manter sob o terror, começaram as requisições de madrugada.Os pelotões, armados com barras de madeira, correntes, baionetas e tudo mais que servisse para bater, irrompiam nos pavilhões,gritando e batendo sem contemplação.
A ordem que nós, presos, tínhamos era a de sair como estivéssemos. Abriam-se as grades e a turba enfurecida de soldados entrava como uma tromba, distribuindo pancadas às cegas. Os presos, também como uma tromba, tratavam de sair para o pátio. Mas lá, uma fileira dupla de guardas armados de fuzis, com baioneta calada, encarregava-se de fazer com que ninguém ficasse sem sua ração de pancadas.
Muitos saíam meio despidos, de cuecas, ou nus, com sapatos ou descalços. Quando todos estávamos fora, arremetiam contra a gente e batiam com mais sanha. À medida que iam batendo e gritando, os soldados se empolgavam, seus rostos se descompunham. Em cima, no telhado, uma fileira de militares - mulheres, inclusive -, fuzil na mão, contemplava o espetáculo. Entre eles, um grupo de oficiais e civis da Polícia Política que jamais faltavam. O capitão Hernán F. Marks, um norte-americano, havia sido nomeado por Fidel Castro chefe da guarnição de La Cabaña e verdugo oficial. Era esse homem que disparava os tiros de misericórdia e quem dirigia as requisições.Quando se embebedava, coisa que fazia muito freqüentemente, Hernán mandava formar a guarnição e investia contra os presos em formação de combate. Ele mesmo chamava o presídio de seu "couto de caça". Outro de seus divertimentos era passear pelos pavilhões, chamar às grades aqueles para os quais se pedia pena de morte e perguntar-lhes atrás de qual dos ouvidos queria que atirassem. Anos mais tarde voltou para sua terra, os Estados Unidos.
Cada amanhecer La Cabaña despertava com nova interrogação: "Quem vão fuzilar hoje?"
Depois da chamada da manhã, abriam as grades e nos reuníamos no pátio, na interminável fila para tomar o café. O mais jovem do nosso grupo era Carlos Alberto, ainda menor de idade,se bem que em altura nos ultrapassasse a todos. Carlos Alberto havia se casado muito menino e sua esposa havia trazido, na última visita, Gina, filhinha de ambos, de apenas alguns meses. A família de Carlos Alberto estava tentando conseguir que, devido à idade dele, o transferissem para um presídio de menores. Uns dias depois do julgamento foi chamado à sala da chefia do presídio, com seus poucos pertences: ia ser mandado para uma prisão nos arredores de Havana. Algumas semanas depois, tendo conseguido uma lima, cortou os barrotes da cela e fugiu. Conseguiu entrar na Embaixada da Venezuela e, depois de meses de pressões, o governo cubano permitiu que saísse do país.
Carrión, Piñango, Boitel e eu festejamos com júbilo a fuga de Carlos Alberto. Um a menos naquele inferno!
Morte após morte
Treze dias tinham se passado desde a madrugada em que fui tirado de minha casa e levado à delegacia para que me fizessem umas perguntas. Nesse curto espaço de tempo a Polícia Política preparou todo o processo. Em doze ou treze dias era materialmente impossível realizar uma investigação, mas assim eram os julgamento. Não me foi possível conversar a sós com o advogado que atuou em minha defesa, nem permitiram a ele acesso ao sumário.
Sobre uma plataforma de madeira, uma grande mesa à qual os membros do tribunal conversavam entre si, riam e fumavam charutos que seguravam num canto da boca, mordendo-os, ao estilo dos valentões. Todos vestiam fartas militares. Era um desses tribunais típicos que se integravam de qualquer jeito, formado por operários e camponeses.
Ao começar o julgamento, o presidente do tribunal, Mário Taglé, colocou as pernas em cima da mesa, forçou para trás a cadeira reclinável e abriu uma revista em quadrinhos. DE vez em quando dirigia-se aos que estavam ao seu lado, mostrava-lhes alguma passagem da historieta que tinha despertado a hilaridade dele e riam juntos. Na verdade, demonstrar atenção e interesse, se bem que fosse cortês, não era necessário e eles sabiam disso. As sentenças já vinham decididas e redigidas da sede da Polícia Política. Dissesse o que se dissesse, fizesse o que se fizesse, a sentença não mudaria.
O promotor chamou o chefe do grupo que me deteve em minha casa.
- O senhor efetuou a prisão do acusado?
- Sim, senhor e fizemos uma revista na casa dele, mas não encontramos nada...
- Cale-se e só responda o que lhe for perguntado! - gritou o promotor, evidentemente incomodado por aquela declaração que era muito favorável para mim diante dos olhos dos poucos espectadores militares presentes; era proibido aos familiares assistirem aos julgamentos e eles nem sabiam quando teriam lugar.
O promotor não pode apresentar sequer uma prova contra mim. Fez-me duas ou três perguntas, principalmente ligadas à minha crença religiosa.
- Então você está de acordo com esses padres que redigem pastorais contra-revolucionárias.
- Eu nada tenho a ver com isso.
- Mas as investigações dizem que você tem muito relacionamento com os padres e que estudou em um colégio católico.
Voltou-se para o presidente do tribunal e lhe disse que eu era um inimigo da revolução e que havia cometido os crimes de estragos e sabotagem, depois recitou um número de artigos que supostamente referiam-se às sanções que eu merecia.
Nem então, nem depois, porque durante vinte anos continuei perguntando, nenhuma das autoridades pôde me dizer onde cometi um delito de estragos. Chama-se assim aos destroços que são ocasionados por uma bomba, um incêndio, um ato qualquer de sabotagem. São algo de concreto, visível, palpável. Perguntei ao promotor onde, em que fábrica, em que estabelecimento, em que data. Não pôde responder, porque nunca fiz nada parecido.
É como se alguém que estivesse sendo acusado de assassinato e perguntasse ao promotor a quem havia matado e este respondesse que não sabia; e se perguntasse pelo cadáver, respondesse que não havia cadáver. Algo assim como ter assassinado um fantasma. Nenhum tribunal em regime de direito teria podido me condenar. Não houve uma só testemunha que me acusasse, não houve quem me apontasse. Sem uma só prova, fui condenado pela equivocada convicção da Polícia Política.
Meu caso não foi uma exceção. Outro dos mais conhecidos foi o dr. Rivero Caro, advogado. Ele nunca esqueceu as palavras do interrogador da Polícia Política, Ildefonso Canales, que visivelmente zangado por não conseguir arrancar, nem com torturas, uma confissão do preso, disse-lhe claramente:
- Sabe o que acaba com você Sua mentalidade de advogado. Você está focalizando sua situação com mentalidade de advogado e se engana. Olhe, o que você declarar em juízo não importa; também pouco importam as provas que você puder apresentar; não importa o que diga, alegue ou proponha o seu advogado; não importa o que diga o promotor ou as provas que apresente; tampouco importa o que pense o presidente do tribunal. A única coisa que importa aqui é o que diga o G-2.
Em algumas ocasiões, os presos que tinham relacionamento com advogados muito próximos da direção da Polícia Política podiam saber, antes da realização do julgamento, a pena que receberiam no tribunal. Foi precisamente um contato como esse que permitiu à velha mãe do comandante Humberto Sorí Marín saber que seu filho, um dos homens próximos de Castro,ia ser fuzilado, acusado de conspiração.
Sorí Marín foi um dos mais estreitos colaboradores de Castro. Lutou ao lado deste nas montanhas e fez parte de seu Estado-Maior. Fez e assinou a lei da Reforma Agrária. Nos primeiros meses de triunfo revolucionário, esses laços apertaram-se mais ainda. Castro costumava almoçar de vez em quando na casa de Sorí Marín, atraído pela excelente cozinheira que era a mãe dele. Por isso, a senhora Marín, quando soube que seu filho ia ser fuzilado, transida de dor foi falar com Castro. O encontro foi dramático. A velha abraçou, chorando, o líder revolucionário que lhe acariciava a cabeça venerável.
- Fidel, eu te suplico.. que não matem meu filho, faz isso por mim...
- Acalme-se... Não vai acontecer nada com Humberto, eu prometo.
E a mãe de Sorí Marín, louca de alegria, ainda com os olhos cheios de lágrimas, beijou Fidel e foi correndo comunicar à família que tinha conseguido. Ela teve esperança que ele o perdoaria, tendo passado tantos perigos juntos, tendo partilhado tantos dissabores e angústias! Aquele passado comum não podia ser esquecido dessa maneira.
Na noite seguinte, por ordem expressa de Castro, Humberto Sorí Marín foi fuzilado.
Os homens que lutaram com Castro para estabelecer a democracia foram enganados; alguns fugiram do país, outros voltaram a empunhar armas ou participavam de planos conspiradores. Já os oficiais e policiais do regime deposto, acusados de crimes que em muitos casos não foram comprovados, haviam sido fuzilados. Aqueles eram dias em que um grupo de senhoras, vestidas de preto, penetrava nos pavilhões aguçando a vista, perscrutando rostos... bastava que uma daquelas mulheres levantasse o indicador para acusar alguém...
- Esse... foi esse que matou meu filho!
Aquele testemunho, sem qualquer comprovação, era o suficiente. O prezo era fuzilado. Essa situação prestou-se a vinganças pessoais, sem nenhum vínculo real com fatos criminosos. Nos primeiros dias de janeiro, 21, exatamente, em uma manifestação diante do palácio presidencial, Castro declarava:
- Os esbirros que estamos fuzilando não passarão de 400...
No entanto, muitos mais já haviam caído diante dos pelotões, naqueles dias de barbárie e morte.
O ano do paredão
A luta do povo cubano tratando para que o comunismo não se consolidasse incrementava-se dia a dia. Vorazes incêndios consumiam grandes depósitos e lojas da capital. Centenas de hectares de semeaduras de cana de açúcar eram pasto das chamas e as noites cubanas eram iluminadas por aquelas gigantescas fogueiras. As bombas demoliam redes telefônicas e elétricas, descarrilavam trens; os entrechoques armados entre os patriotas e as forças repressoras, na cidade e nas montanhas, eram constantes.
À medida que a resistência aumentava também aumentava o terror do Governo. Diante dos pelotões, caíam culpados e inocentes. Nas montanhas, quando as tropas do Governo prendiam os patriotas, estes eram fuzilados no local da captura e os médicos forenses abriam-lhes o abdômen para tentar localizar o restante da guerrilha, guiando-se pelos tipos de alimento que tivessem no estômago.
Em toda a ilha os pelotões de fuzilamento não cessavam de executar. Naqueles dias, o capitão Antonio Nuñez Jiménez declarou que, dali por diante, o ano de 1961, que havia sido cognominado como "Ano da Educação", iria chamar-se "Ano do Paredão". E sua predição foi correta.
Os condenados à morte, ao sair do julgamento, não voltavam para os pavilhões. Eram levados para celas pequeninas, situadas no final da galeria 22, onde se alojavam os militares do exército revolucionário acusados por roubo, drogas e outros crimes comuns. Esses presos ficavam separados dos outros pelo pequeno pátio rodeado por altas grades, que constituía o rastilho da fortaleza e evitava o contato físico com eles; mas podíamos vê-los do nosso pátio.
Os condenados à morte eram confinados naquelas celas individuais; para chegar-se a elas tinha-se que passar ao longo do pavilhão dos presos comuns militares. Durante esse percurso, acompanhados pelo escolta, com as mãos amarradas às costas, eram insultados e recebiam todo tipo de humilhações por parte daqueles criminosos comuns, que tentavam talvez ganhar méritos com a guarnição ou, que canalizavam realmente seu ódio contra os que enfrentavam a revolução que muitos deles apoiavam. Mas nem sempre eram apenas os poucos instantes de passagem pelo pavilhão que eram aproveitados pelos delinqüentes comuns para agredir e humilhar os condenados à morte. Havia os que se punham a segui-los até as celas, às quais tinham acesso, e lá continuavam a ofendê-los, negando-lhes nas últimas horas a paz e o recolhimento que lhes permitissem rezar, recordar a vida, meditar. As autoridades não ocultavam seu beneplácito nesse procedimento e, quando havia prisioneiros políticos nas celas da morte, distribuíam bebidas alcoólicas aos presos comuns para que entoassem a "Internacional" e festejassem o triunfo da revolução sobre os contra-revolucionários.
Muitos dos condenados à morte, longe de se sentirem derrubados ou amedrontados por tanta maldade, respondiam com arengas políticas e denunciavam o marxismo diante daquela chusma.
Quando o esquadrão de guardas os conduzia ao paredão de fuzilamento, ao passar pelo pavilhão 22, eram despedidos com gritos de "Viva Fidel Castro, viva a revolução!"
Desde que a caminhonete com os componentes do pelotão de fuzilamento passava a entrada que leva aos porões, escutava-se o inconfundível ruído do motor nos pavilhões e nas celas dos condenados, que percebiam o aproximar-se do momento decisivo. Um acúmulo de imagens e pensamentos confundia-se em nossas mentes naqueles instantes: seus filhos órfãos, a viúva, a mãe transida de dor. Também nos assaltava, fazendo-nos estremecer, a idéia de que aquele que aguardava o pelotão podia ser um de nós mesmos. E, de repente, víamo-nos com as mãos amarradas, amordaçadas, descendo aquelas escadas, levados ao porão... ao tablado, diante da parede de sacos de areia e os refletores iluminando tudo... uns oficiais me empurravam e me passavam uma corda pela cintura... levantavam os fuzis e um relâmpago ensurdecedor reboava por todos os porões... Assim acontecia com todos nós... eu acho. Cada noite eu fazia aquele caminho, via-o em minha mente, conhecia o percurso de memória, cada degrau, o tablado...
Depois do tiro de misericórdia alguém sempre soluçava. Houve noite de dez, doze fuzilados. Escutava-se o portão gradeado do pátio da fortaleza e alguém que se aproximava da porta para ver o amigo e gritar-lhe o último adeus. Não se podia dormir nos pavilhões. Foi então que Deus começou a se tornar um companheiro constante para mim e a perspectiva da morte, em uma porta para a verdadeira vida, um passo das trevas para a luz eterna.
Ilha de Pinos
O pátio do presídio tinha dois alto-falantes. Quando os militares queriam dirigir-se aos presos faziam-no através deles. Uma tarde, ao terminar a chamada, começaram a ler uma lista de prisioneiros que deveriam recolher imediatamente todos os seus pertences. Iam ser transferidos. Quando chamavam esses grupos, fazia-se total silêncio na prisão. Cada qual aguçava os ouvidos para perceber se pronunciavam seu nome. Nunca diziam para onde era a transferência, mas de La Cabaña, e tantos prisioneiros, só podiam ter um destino: Ilha de Pinos.
A transferência para aquela prisão, situada em uma ilha ao sul de Cuba, intimidava os ânimos. Comentava-se que lá aconteciam muitos horrores. Além disso, era o afastamento dos familiares, maior incomunicabilidade.
Os alto-falantes continuavam emitindo a litania de nomes e mais nomes: repetiam uma vez cada um. Escutei meu nome e saí da porta para ir arrumar minhas coisas. Diante de mim Pedro Luis Boitel e a meu lado Alfredo Carrión também preparavam sua equipagem. Aquela foi uma das maiores transferências que fizeram: mais de trezentos homens em uma só chamada. Todos nós sabíamos que lá as visitas eram proibidas e que imperava o terror.
- Vamos... apressem-se! - os guardas repetiam mecanicamente a ordem. Os primeiros que já haviam saído dos pavilhões 8, 9 e 10 amontoavam-se no pátio, carregados com seus sacos e sacolas de juta; do cinturão, pendiam o jarro de alumínio e a colher, no pescoço uma toalha e, assomando-se do bolsinho do camisão rústico, a escova e pasta dental.
Pedro Luis, de compleição frágil, quase não podia com seu saco e o arrastava. Usava um crucifixo grande - presente de um padre católico - que o acompanhou em sua candidatura a presidente da Federação Estudiantil Universitária, à qual teve que renunciar ameaçado por Castro pessoalmente, porque Boitel era um anticomunista ativo. Foi então que passou para a clandestinidade, na qual viveu durante meses, até que foi capturado.
Éramos quase duzentos presos no pátio, cada qual com seu saco. Saímos para a rua, aquela mesma que eu conhecera quando tinham me levado a julgamento; mas agora estava cheia de guardas que iam e vinham constantemente, com capacetes e fuzis com baioneta.
À saída da prisão os ônibus esperavam. Eram Leylands ingleses, pintados de branco, dos que compunham as linhas de Ônibus Modernos S.A., expropriados pelo Governo. O assento do fundo estava ocupado por uma escolta de seis soldados, com submetralhadoras. Quando todos os assentos ficaram ocupados, outros escoltas postaram-se nas portas e atrás do motorista. Um tenente ameaçou os que tentaram se pôr de pé e a comitiva de vários ônibus partiu, escoltada por patrulheiros da Polícia Nacional e carros da Polícia Política.
A caravana de ônibus deixou para trás a fortaleza, subiu a Via Monumental, virou à direita e entrou em um túnel, rumo ao acampamento militar de Colúmbia, lugar de onde sairiam os aviões carregados de prisioneiros, rumo à Ilha de Pinos.
Al aproximarmo-nos da escadinha do avião, os militares começaram a gritar; iam se aquecendo. O avião de transporte, que tinha sido usado para carregar gado, não tinha assentos e nem sequer o haviam limpado: o chão estava repleto de excremento de reses. Uma corda dividia o avião: de um lado nós, do outro a escolta.
- Todo mundo no chão... sentados!
Houve uma incerteza, porque era preciso atirar-se àquele chão cheio de merda de vacas... e os guardas começaram a empurrar e a gritar como malucos.
- E agora, escutem bem - era o tenente que falava - temos ordem de atirar em quem não obedecer. Não podem olhar pelas janelas e nem sequer levantar as cabeças. Quem não fizer isso, que agüente as conseqüências... Ah, outra cosa: vocês têm que fazer silêncio; não podem conversar durante a viagem.
Todas aquelas medidas repressoras tinham por finalidade desanimar qualquer tentativa de nos apoderamos do avião. Havia em nosso grupo homens de ação que haviam demonstrado coragem em muitas ocasiões, nas montanhas, lutando nas guerrilhas, ou na cidade, nos grupos clandestinos.
O piloto subiu com dois guardas escoltando-o, que se fecharam com ele na cabine. Essa medida foi adotada em Cuba não apenas para transferir presos. Já naquela época, todos os vôos nacionais saíam com dois soldados de escolta e, além disso, a porta da cabina era blindada, com um visor de cristal também blindado. Enquanto o avião não aterrissasse asse não se podia abrir a porta da cabina, houvesse o que houvesse. Assim é, ainda hoje.
Com as cabeças baixas, sem falar, passou a viagem. O avião desceu no pequeno aeroporto de Nova Gerona, capital da Ilha de Pinos.
Abriram a porta. Lá fora, o mato alto chegava acima dos joelhos e dezenas de guardas com fuzis e baionetas caladas rodeavam o aparelho.
Enquanto descíamos do avião, os militares começaram a gritar desaforos. A maioria dos que se agruparam diante da porta eram negros, não pareciam cubanos; do pescoço pendiam-lhes colares de sementes chamadas "olhos de boi" e contas coloridas; nas boinas, como distintivos, havia um raminho de milho.
- Subindo nos caminhões, vamos, depressa! - e cagavam em nossas mães -. Chegaram à ilha, seus filhos da puta! Vão ver o que é bom! Depressa!
Aquilo era horroroso. Os presos moviam-se como animais assustados; pelo menos eu me sentia assim. Esperava que de um momento para outro me dessem uma baionetada ou uma pancada com a culatra do fuzil. O medo havia se apoderado de mim. Sentia uma opressão no ventre, como se uma garra me apertasse o estômago e o puxasse lentamente. A partir de então, aquela sensação me acompanharia durante anos; eu já sabia o que era medo, pânico.
Muito havíamos ouvido falar dos horrores do presídio para onde nos levavam, dos trabalhos forçados nas pedreiras, das arrepiantes requisições nas quais sempre muitos prisioneiros acabavam mortos e centenas feridos a baioneta. Muito tínhamos ouvido falar dos pavilhões de castigo, de suas celas, onde se confinavam os presos que protestavam contra as injustiças e abusos que se cometiam diariamente contra eles; ou simplesmente porque os carcereiros gostavam de ver os presos lá, nus, com a porta da cela soldada, usando como cama o chão duro e frio. Lá passavam meses e era prática diária atirar neles cubos de gelo e excrementos. Quem conseguisse controlar a mente e não saía de lá com as faculdades mentais abaladas, quase sempre saía com os pulmões destruídos, tuberculoso...
O presídio dos fantasmas
Foram nos chamando um a um, até um balcão que nos separava dos guardas, onde se faria o inventário dos nossos pertences, do pouco que trazíamos: algumas latas de conserva, remédios, pasta dental, sabonete, roupa de baixo. E começou o saque. Tiraram-nos tudo que tinha valor ou que os agradava. Meu relógio chamou a atenção do tenente Paneque que quase destroncou meu pulso ao arrancá-lo. Eram abutres repartindo o botim. Com descaramento sem limites, discutiam pela posse de um par de meias, aparelho de barbear, uma caneta. Eu tinha um crucifixo, presente de um amigo; Paneque arrancou-o com fúria de meu pescoço, atirou-o ao chão, pisotearam-no. A cruz, em pedaços, ficou no chão. De repente, do outro lado soaram risadas, exclamações indignadas e o preso que protestava atacou a socos um guarda. Vários outros caíram em cima dele. O preso se debatia, mordi, arranhava, até que as pancadas o fizeram cair ao chão, a cabeça quebrada e o rosto empapado pelo sangue que lhe saía pelo nariz. Ao começar o tumulto, os demais guardas que nos rodeavam retrocederam imediatamente, manipulando fuzis e metralhadoras, ameaçando-nos com nervosismo.
- Ninguém se mova, mãos para cima e cuidado com o que fazem, senão atiramos!
Tinham medo, estavam nervosos, temerosos de homens desarmados e nus; senti que crescíamos diante daquela turba que mal podia segurar as armas, tanto lhes tremiam as mãos. Imediatamente levaram embora o que havia atacado o guarda. Depois soubemos que o guarda, ao virar as coisas do preso sobre o banco, durante a revista, pegara uma foto da mãe de nosso companheiro e,insolentemente, com a fotografia na mão, perguntou-lhe em que prostíbulo aquela mulher trabalhava. Aquilo esgotou-lhe a paciência. Cego de ira, com lágrimas de fúria nos olhos, saltou sobre o ofensor. Aquela mãe nem sequer podia imaginar que seu filho, muito longe do lar, era arrastado pelo chão, quase morto, por causa de uma surra que levara dos guardas, por tentar defendê-la! Senti uma profunda admiração por aquele homem e pensei nas mães que nunca mais veriam seus filhos, que nunca mais poderiam abraçá-los; pensei nas mães dos fuzilados e senti que enquanto houvesse em mim um sopro de vida tentaria ser digno dos meus seres queridos.
Uma vez terminada a revista, entregavam uma muda de roupa para cada recluso. Aos que usavam número pequeno ou médio, davam grande; aos grandes e gordos, um pequeno; e era preciso enviar as roupas, sair dali vestidos.
Ao sair, na parede de aquele sótão, um cartaz com um pensamento de Fidel Castro: "A revolução é mais verde do que as palmeiras".
Formamos uma fileira de dois a dois e começamos a andar. A porta de entrada do segundo alambrado abriu-se: erguia-se ali uma guarita de concreto com holofotes e uma metralhadora que apontava para os edifícios. Já estávamos dentro do presídio. Dali não se viam os jardins. Aquela porta abria-se para um mundo alienante do qual muitos dos que estavam entrando não sairiam. Passamos entre os edifícios 5 e 6, enormes, de cinco andares de altura e forma retangular, e diante de nós erguiam-se, impressionantes, as enormes edificações de ferro e concreto das circulares, com seus sete andares para alojar 930 presos em cada um.Chegariam a abrigar 1.300. Eram quatro e no centro, também circular, mas de dois andares apenas, ficava o refeitório, capaz de admitir 5.000 comensais ao mesmo tempo; a cozinha e as despensas também ficavam ali. As quatro circulares e o refeitório distribuíam-se como o número cinco de um dado: o ponto central era o refeitório. Rodeamos o refeitório por uma estradinha asfaltada e paramos diante da entrada da circular 4, nosso edifício de destino. Sobre a porta, um irônico cartaz: "Bem-vindos à circular 4".
A entrada era uma construção ampla, de blocos de concreto aparente e o teto de folhas onduladas de fibra e cimento. Através das janelas, os presos que tinham chegado no dia anterior gritavam para nós, chamando pelos nomes alguns, que tinham conhecido em La Cabaña. Atrevi-me a erguer a cabeça e olhar para cima, para as últimas janelinhas gradeadas do quinto e do sexto andares, onde mãos se agitavam, dando boas-vindas. Depois, fui descendo os olhos até as janelas do primeiro andar, que estavam muito perto. Os homens por trás daquelas grades pareciam cadáveres, os rostos embranquecidos pela falta de sol. Havia um tão magro que parecia irreal. Não falava, não se mexia, ficava ali, só olhando: parecia uma dessas figuras de museu de cera... No entanto, daqueles homens, o que mais tempo poderia ter de prisão não passava de dois anos e alguns dias. Só de pensar nisso um arrepio percorreu-me a espinha. Dois anos! Eu não resistiria. Pensava... como é que ainda estão vivos, por que não tinham morrido? Se, então, alguém me tivesse dito que eu ia passar vinte e dois anos no cárcere acho que teria começado a rir e consideraria essa pessoa o ser mais mentiroso do mundo.
Por fim, abriram a grade de entrada, depois de nos contar várias vezes. Uma multidão de presos esperava no andar térreo, em um pátio circular com uns setenta metros de circunferência. No centro erguia-se uma torre de concreto que chegava até a altura do quarto andar. No alto dela, um terraço, com parapeito, para as rondas do vigia. Uma portinha de metal e seteiras. O acesso à torre era por fora, por um túnel, que permitia aos guardas chegarem a ela sem ter que entrar no edifício.
Grudadas à parede da circular, como uma enorme colméia, as celas, alinhadas uma junto da outra. Havia 93 em cada andar. Diante delas, um beiral suspenso, com corrimão de ferro gradeado, na beirada, o que o transformava em um corredor onde se podia caminhar em segurança. Os andares comunicavam-se por escadas de mármore. Outras escadas menores, em número de 4, davam acesso do andar térreo ao primeiro andar de celas. No pátio, no térreo, ficavam os tanques e os chuveiros. As celas eram pequenas, com uma janela grande, quadrada, com barrotes de ferro. O sexto andar não tinha paredes, nem divisões. Antes era usado como área de castigo para os presos comuns. Existiam nele várias celas que tinham sido demolidas. Agora, e devido ao excesso de população penal, também era utilizado. Essa circular 4, excepcionalmente, tinha grades nas celas do primeiro andar. Mesmo assim foram usadas como lugares de castigo na época dos presos comuns. O resto das celas não tinha grades e podia-se perambular pelo beiral, subir ou descer de um andar para outro.
Aquilo parecia um circo romano. Todos falando e gritando ao mesmo tempo. Boitel, Carrrión e eu contemplávamos a cena atordoados, aquele mundo absurdo onde tudo tinha com que uma dimensão diferente.
A linguagem do desespero
- Senhores, senhores... façam silêncio, por favor.
Era a voz do major da circular, Lourenço, um mulato com mais de 1,80 m de altura e 90 quilos de peso, que tinha sido motociclista da polícia anterior. Os presos elegiam, mediante voto secreto, uma espécie de governo interno, que chamavam "mandança". O eleito tinha, por sua vez, a responsabilidade de escolher os que cuidariam da manutenção do edifício: limpeza, servir o rancho, etc. O major é que tratava com os militares e retransmitia o que eles quisessem comunicar.
- Bem, vamos subir - disse alguém do grupo.
Pegamos nossas coisas e começamos a andar para a escada. Era preciso avançar passando por cima de longas fileiras de baldes, latas, frascos. Tudo que era vasilha alinhava-se pelo pátio inteiro, formando meandros, como o curso de um estranho rio. Logo soubemos por quê: a água era racionada na prisão. Serviam cinco litros por preso a cada semana e essa era a única água para beber, lavar o rosto, tomar banho e lavar a roupa. Claro que não dava. O motivo desse racionamento era um conserto das instalações que abasteciam a colônia penal. Os caminhões pertenciam a outro departamento e nem sempre podiam ir até o presídio: naquela ocasião tinham ficado sem aparecer durante nove dias.
Subimos para o sexto andar. Os que haviam chegado no dia anterior tinham pegado celas vazias e levaram muitos de nós para elas. O tráfego pelas escadas era constante, mudavam-se liteiras de um andar para outro, de uma cela para outra. As celas tinham duas dessas camas que chamávamos de "aviões", na gíria carcerária. Nunca consegui saber por quê; talvez fosse por se dobrarem como asas, fechando-se. O caixilho era um tubo ao qual se costurava a lona ou saco de juta ou aniagem; fixava-se na parede com dois ganchos de ferro enfiados no concreto e tinham dois tirantes de correntes, que também eram presas na parede; podiam ser fechadas durante o dia e abrir no momento em que iam ser usadas. Ter um desses aviões de lona em bom estado era a aspiração máxima de um preso.
Estávamos cansadíssimos quando chegamos ao sexto andar, Carrión, Piñango, Boitel, Jorge Víctuor e mais alguns do nosso pequeno grupo. Na prisão tem-se centenas de amigos, mas sempre há um grupo reduzido com o qual passamos a maior parte do tempo, com o qual se partilham as horas e essa necessidade de se comunicar que para alguns é mais importante do que para outros. Jorge Víctor era calado; mal falava e dava a impressão de ser imutável. Realmente o era Havia estudado para padre e dava a impressão de andar de hábito. Tinha sido detido na mesma madrugada que nós. Jorge Víctor havia se sentado no chão, impassível, e nós fizemos a mesma coisa. Ajeitamo-nos naquele quadrado, pegamos os cobertores e tratamos de dormir o melhor possível. Como o esgotamento em que estávamos nos últimos dias, afundamos quase que imediatamente num sono profundo.
De madrugada, um barulho e gritaria infernais nos acordaram, sobressaltados. Levantamo-nos e nos aproximamos do parapeito do beiral. Dai via-se a grade de entrada: o espetáculo era alucinante. Tinha chegado um carro-tanque de água. Haviam enfiado a mangueira de quatro polegadas entre as grades e aberto as torneiras. O líquido precioso foi jogado fora até que os primeiros, meio adormecidos ainda, desceram ao grito de ÁGUA!
Os presos precipitavam-se para o térreo, frenéticos, com baldes, latas, jarros, enfim, tudo que servisse para armazenar água. Centenas de homens enchendo suas latas à medida que ia chegando sua vez, nas filas intermináveis. Corriam como demônios pelas escadas e gritavam. Acima daquele barulho a torrente de voz do major Lourenço fazia-se escutar:
- Calma, senhores, calma!
Ms aqueles já não eram homens civilizados; agiam como uma manada sedenta que, de repente, fareja água próxima e estoura em debandada. Corriam pelas escadas; alguns, mais ágeis, despencavam pelos beirais, descendo de andar para andar, com o risco de cair lá embaixo.
Fiquei olhando tudo aquilo como que hipnotizado, até que outro preso, com um balde de plástico, passou diante de nós.
- Hei, vocês! Andem logo, senão ficam sem água!
Suas palavras nos despertaram; era verdade e estávamos sedentos. Pegamos nossos baldes e saímos, velozes, escadas abaixo. Eu percebi, então, que era mais um daqueles homens.
O menu não era muito variado: no almoço, arroz e ervilhas; à tarde, farinha de milho e um caldo gorduroso. Em geral, a ervilha ou outros grãos eram destinados ao presídio quando estavam ruins, cheios de bichos. Então, flutuava nos caldeirões enormes uma camada de carunchos. No entanto, nas situações mais desagradáveis, o cubano, devido ao seu caráter, por idiossincrasia, leva as coisas na brincadeira: uma válvula de escape para diluir o drama das coisas graves. Então, quando vinham os cereais bichados, o gradeiro apregoava:
- Ervilha com proteína!
Vivi durante muitos dias quase que só de pão. Eu tinha certas frescuras para comer, mas a fome e o presídio se encarregariam de acabar com aquilo. Semanas depois, devorava aquela ervilha como se fosse o máximo. Quando alguém dizia que a comida estava estragada ou com gosto ruim, Carrión sempre respondia:
- Quem já viu preso comer por prazer? Come para sobreviver.
E era verdade. Era preciso comer qualquer coisa para sobreviver e fiz o firme propósito de pôr de lado todos os escrúpulos e engolir o que viesse.
Na circular 3, Macuran, um ex-militar do exército derrotado, tinha conseguido montar um rádio rudimentar que deixava os soldados da guarnição malucos. Faziam, inutilmente, uma revista após outra tentando encontrá-lo. Os presos tinham conseguido organizar uma linguagem por sinais, com as mãos, similar à dos surdos-mudos, porém muito mais simplificada, que permitia falar com rapidez assombrosa. Poderia parecer uma completa loucura a qualquer espectador alheio ao caso, ver um daqueles homens, por trás das grades, movimentando as mãos como um possuído pelo demônio, abrindo e fechando os dedos, de vez em quando tocando nas barras de ferro. Por exemplo, rodear uma das barras com a mão inteira, como quem agarra um bastão de beisebol, significava a letra D; colocar apenas dois dedos sobre o mesmo barrote correspondia à letra N; se fossem três dedos, era o M. Dessa maneira eram transmitidas notícias da circular 3, copiadas por nós, da 4. Ambas estavam separadas apenas pela estradinha de concreto. Para as circulares 1 e 2 era impossível a comunicação por meio da linguagem das mãos, então usava-se o código Morse. Entre nós havia muitos telegrafistas e outros aprenderam com eles. Uma régua de papelão ou uma tabuinha funcionavam como aparelho transmissor. Uma batida lateral com a régua ou a tabuinha equivalia ao ponto; a batida de frente significava o traço. Algum tempo depois as comunicações foram aperfeiçoadas e chegou-se a ter um "blinker", "made in home" (NT: Em inglês, no original - blinker: lanterna pisca-pisca; made in home: feita em casa), e apitos feitos com tubos vazios de pasta dental; assim nasceu a comunicação sonora.
Quando chegavam as notícias do rádio de Macuran, imediatamente faziam-se seis cópias, uma para cada andar, e eram dadas em círculos pequenos. As boas notícias erguiam as almas até as nuvens e quando os grupos se dissolviam notava-se em muitos um otimismo, uma alegria extraordinária. Havia quem acompanhasse os que liam as notícias só para escutá-las novamente. Era como uma droga, um vício.
Entra a massa de presos comuns que havia naquela época na Ilha de Pinos, muitos simpatizavam com os presos políticos, porque aborreciam o sistema. Esses homens nos proporcionaram valiosas ajudas e se arriscavam às represálias, fazendo-nos favores. A comunicação com eles não era fácil, pois eram absolutamente proibidos de falarem conosco. Se fossem apanhados, esse contato era considerado como uma identificação com o que representávamos e iriam para as celas de castigo.
Através da janela de uma das celas do primeiro andar, que dava para uma ruazinha, Boitel e eu conseguimos fazer contato com um daqueles presos comuns, nosso simpatizante. Foi um trabalho de dias e dias, sentados ali, junto da janela. Pedimos a ele que arranjasse jornal para nós e perguntamos sobre a possibilidade de, mais para adiante, fazer sair e entrar correspondência nossa, coisa que naquele tempo era fácil para os criminosos comuns.
Conseguimos convencê-lo. Aquele homem aceitou colaborar conosco, apsear de o advertirmos do risco que corria. E não fez isso por dinheiro; era o modo dele de se opor ao regime. Idealizamos, então, o modo de passar o jornal. A entrega devia ser feita uns metros antes de chegar à circular, não diante da cela, para que se alguém visse de longe não pudesse desconfiar de nada. Teríamos que tomar cuidado não só com os militares, mas também com outros presos comuns, delatores e colaboradores da guarnição, que poderiam denunciá-lo.
Recolhíamos o jornal usando um fio tingido de verde, com um pedaço de chumbo amarrado na ponta. Jogávamos o fio, enrolado em uma pedra, através dos barrotes da janela. Eu efetuei o lançamento que levou o fio até a beirada da estradinha. Depois desenrolamos o suficiente para que se mantivesse junto da parede, que era pintada de verde, de modo que não se distinguia o fio.
Nosso amigo já ia se aproximando, olhando dissimuladamente para a beira da estradinha. Boitel deu um puxão, de leve, que fez o mato se mexer; foi o suficiente para que o homem percebesse o fio. Agachou-se como quem amarra o cordão do sapato, tirou rapidamente da meia um pacotinho achatado, fez uma manipulação rapidíssima e continuou seu caminho. Esperamos cinco minutos demorados, longuíssimos, para dar tempo ao nosso amigo de chegar ao edifício. Então, Boitel puxou lenta, muito lentamente o fio...
Um jornal "Revolução", quase rasgado pelo fio, chegou às nossa mãos. Desde aquele dia recebemos jornais com alguma freqüência. Mas nada podíamos dizer; sabíamos que existiam delatores no meio daqueles mil e tantos homens. E decidimos, com Ulisses, redigir um boletim com as notícias mais importantes e distribui-las com as notícias enviadas por Macuran. Batizamos o novo jornalzinho de "Imprensa Livre".
Os livros eram proibidos. Só existiam dois que se haviam salvado, nem se sabia como, quando dois meses antes, em fins de 1960, antes que nosso grupo chegasse, a guarnição arrasou tudo. Os dois livros que restavam era uma biografia de Maria Antonieta, de Stephan Zweig e "O Homem Medíocre", de José Ingenieros. As solicitações para ler esses livros chegavam a várias centenas.
Suicídios e excrementos
Cajigas era um camponês da região montanhosa de Escambray, cenário de levantes contra Castro desde 1960. Vários dos filhos desse ancião somaram-se aos grupos de patriotas que combatiam o comunismo. Unicamente por essa causa, porque seus filhos estavam lá, nas montanhas, e não tinham conseguido apanhá-los, prenderam o velho Cajigas, pensando que assim os rapazes se entregariam. Depois de interrogá-lo, tentando conseguir informações sobre os contatos e os acampamentos dos revoltosos, Cajigas foi preso na Ilha de Pinos. Mas as tortura a que fora submetido e os interrogatórios perturbaram-lhe as faculdades mentais. Levaram-no para La Campana, lugar do Escambray utilizado durante muitos anos para fuzilar os que se opunham a Castro. E lá fingiram fuzilar o velho com balas de festim. A mente dele não suportou: ficou desequilibrado. Na loucura de Cajigas havia uma idéia fixa, obsessiva: ver os filhos. E constantemente aproximava-se das grades da entrada, chamando-os:
- Quero ver meus filhinhos... quero ver meus filhinhos!
Um dia, um dos guardas teve a idéia de dizer a ele que seus filhos tinham sido fuzilados:
- Ouviu, velho? Fuzilamos seus filhos, para de foder nossa paciência! Foram fuzilados... estão bem mortos!
Então, Cajigas agarrou-se aos barrotes, chorando. Chamaram o major para ir buscá-lo e levá-lo para a cela. O velho tinha as mãos crispadas ao redor dos barrotes e foi preciso arrancá-lo dali à força. O guarda informou ao oficial que Cajigas havia rompido o silêncio e alterado a ordem; não adiantaram explicações. Enfiaram-no na cela de castigo. Na manhã seguinte, quando passou o militar fazendo chamada, o cadáver de Cajigas balançava lúgubremente. Havia se enforcado com as calças.
Quando se construiu o conjunto carcerário da Ilha de Pinos, todas as celas tinham um vaso sanitário, uma pia e uma lâmpada elétrica. Tudo isso foi eliminado pela revolução e apenas duas celas por andar foram reformadas para funcionar como banheiros. Mas em quase todos os andares os vasos sanitários e pias foram arrancados à medida que o pessoal da guarnição ia precisando deles. Até os soquetes das lâmpadas desapareceram, assim como os interruptores de luz. Ficou apenas uma lâmpada de 500 ou 1.000 velas na torre, que à noite espalhava uma luz esmaecida sobre o local. A circular parecia, então, uma praça de touros à meia-luz.
Como não havia água corrente, como já não existiam instalações sanitárias nas celas, era preciso ir, necessariamente, aos banheiros dos andares. Em cada um havia dois vasos sanitários; mas usar um desses vasos era algo de incrivelmente repugnante Os excrementos transbordavam. Os banheiros não tinham porta, cortinas, nem nada que isolasse ou separasse, mesmo que parcialmente, quem tivesse necessidade de usá-los. Diante deles sempre havia uma fila de espera. Era preciso defecar assim, como se o fizéssemos em plena rua, ao meio-dia. Além disso, só o fato de colocar os pés na beirada do vaso sanitário era perigoso; mil vezes a gente escorregava e afundava até a metade da perna naquela poça de merda. Quando os vasos estavam assim, transbordando, havia os que subiam à janela, agarravam-se nos barrotes e colocavam a bunda para trás, de modo que ficasse em cima do vaso; davam a impressão de macacos. Quando vi aquilo, disse a mim mesmo que jamais poderia defecar ali. Fiquei vários dias sem ir ao banheiro. Tive a idéia de esperar pela madrugada, mas vi que muitos outros haviam pensado a mesma coisa. Para ir àquela privada era preciso tomar medidas especiais de prevenção contra acidentes. Íamos nus, com uma toalha ao redor da cintura e descalços, pois se escorregasse e o pé se enfiasse no vaso era quase certo o sapato ficar por lá. A única vantagem era que à noite as milhares de moscas não incomodavam.
Quando os excrementos começavam a transbordar, era preciso retirá-los com baldes e pás. Sempre, em toda sociedade ou agrupamento humano, há os que são capazes de se encarregar das tarefas mais desagradáveis. Os que se dedicavam à retirada dos excrementos eram homens que mereciam uma enorme admiração e agradecimento. Mas o que fazer com o excremento? Era jogado, de todos os andares, para o térreo e ali acumulava-se uma pilha de quatro ou cinco metros de diâmetro, sobre a qual pululavam milhares de moscas. Quando se olhava de cima, a asquerosa montanha dava a impressão de se movimentar: era a camada de moscas que a cobria constantemente. Quando alguém se aproximava, o enxame se erguia com uma nuvem escura. A peste, a hediondez, eram insuportáveis; toda a circular fedia. A gente, então, se deslocava para o lado de onde soprava o vento, procurando um pouco de ar puro, respirável. À noite ou quando se estava comendo e a brisa trazia ondas daquela fetidez, nossas entranhas se revolviam.
Uma vez por semana passava o caminhão de lixo. Então, passava-se a merda, com pás, para caçambas de uns vinte mil litros. Se em repouso empestava o ar, quando era revolvida sua fetidez se tornava intolerável. O risco de doenças e epidemias era enorme e por isso tomávamos medidas de precaução, principalmente contra as moscas, devido à hepatite. Os pratos e colheres eram guardados em sacos de náilon e tratava-se de não deixar nenhum jarro ou alimento ao alcance desses insetos. Mesmo assim houve epidemias, com mortos de febre tifóide. Os casos de diarréia, vômitos e infecções estomacais eram muitos e constantes.
As revistas, surras e saques
Eram freqüentes as revistas na circular 3, em busca constante, porém inútil, do rádio que escondíamos. Os guardas se amontoavam na saída e distribuíam baionetadas e correntadas às mãos cheias; as vítimas saíam sob uma chuva de golpes, protegendo a cabeça com as mãos.
Os guardas gritavam, sempre o faziam, era um mecanismo para se aquecer, excitar-se. Provavelmente, nem mesmo para os mais desalmados, não é fácil surrar outros homens sem uma causa, um motivo. Aqueles guardas eram homens com esposas, filhos. O que sentiriam quando os primeiros prisioneiros assomavam pela grade, assustados, e tinham que erguer a baioneta e bater neles? Penso que para uma atitude dessas um ser humano precisa justificar sua ação, descobrir uma motivação interior; como não a tinham, procuravam-na nos gritos, nos insultos.
Lembro-me de uma revista na circular 2. As escadas estavam tomadas pelos guardas, que batiam selvagemente nos presos que iam descendo. Já estávamos quase todos no térreo, restavam apenas alguns retardatários. Entre eles o dr. Velazco, um preso alto, negro, vestido com uniforme completo. Usava óculos redondos, pequeno, de lentes transparentes. Como sempre, ele andava, da mesma maneira que falava, com parcimônia, desenhando cada sílaba, cada letra, imutável, imperturbável, lentamente. Do térreo, nós, seus amigos, pedíamo-lhe que se apressasse, para evitar que batessem nele. Ao chegar no último lance de escada, com seu inseparável leque de papelão, com que se abanava tranqüilamente, os guardas descarregaram uma série de pancadas furiosas nas costas dele. O dr. Velazco não movia um só músculo, como se as costas que recebiam o castigo não fossem suas. Ergueu-se um rugido de indignação:
- É o médico... não batam mais nele! - gritávamos; mas que importava à guarnição que ele era um médico?
O dr. Velazco desceu os últimos degraus e apesar das pancadas não cessarem, não se apressou, em absoluto. Um dos guardas, que estava no segundo andar, jogou-se para trás, projetou metade do corpo fora do corrimão, segurando-se com uma das mãos e com a outra, com a qual brandia um facão, deu-lhe uma última pancada, com a lâmina de prancha. Nós, que esperávamos o dr. Velazco no térreo, aproximamo-nos dele, preocupados. Com seu falar parcimonioso, disse-nos que não tinha importância... e procurou um lugar junto da torre, colocou ali seu banquinho e sentou-se abanando-se. Eu tinha certeza de que suas costas ardiam, queimadas como deveriam estar a pele e a carne pelas pancadas. Mas ele se mantinha imperturbável.
Em princípios de 1961 começaram a afluir ao presídio modelo prisioneiros pertencentes aos rebeldes que, em numerosos focos de guerrilheiros, operavam em Escambray. Através deles ficamos conhecendo detalhes da gigantesca operação que o Governo havia desencadeado: mais de 60 mil efetivos, na maioria milicianos, participavam do que se chamou "limpeza do Escambray".
A repressão à guerrilha custou caro para Castro. No jornal Granma -órgão oficial do Partido- de maio de 1970, Raúl Castro, fazendo o balanço do que foram aqueles anos de luta contra os camponeses sublevados, admitiu que as perdas de vidas no exército tinham passado de 500 e que custou uns 800 milhões de pesos. Houve 179 guerrilhas integradas por 3.591 homens, confessou o irmão de Fidel.
Para ocultar o fato de que havia uma forte repulsa ao Governo comunista por parte dos camponeses, chamaram-nos de "bandidos" e criaram uma força especial contra os insurretos, à qual batizaram com o nome de "Batalhões de Luta contra Bandidos", mais conhecida pela sigla LCB.
É interessante assinalar que pela primeira vez surgiu em Cuba um verdadeiro levante camponês, com chefes e tropas camponesas.
Procurando seu extermínio, fuzilavam não apenas os guerrilheiros, mas também os camponeses que atuavam como guias, correios e contatos.Os camponeses da região já discordavam em grande número do regime de Castro e os que não integravam as guerrilhas cooperavam com elas de muitas maneiras. Aquelas terras são muito férteis e os camponeses plantavam bananeiras, tubérculos e todo tipo de frutos menores; criavam porcos e aves em seus pequenos sítios e o Governo considerava que era dessas fontes que os rebeldes se abasteciam. Para tirar-lhes esse apoio, o Governo idealizou um plano de reconcentração. Todas as famílias estabelecidas no Escambray e seus arredores foram desalojadas.
No dia em que começaram o desalojamento, caminhões do Instituto Nacional da Reforma Agrária (INRA) e do exército, cheios de tropas, pararam diante das casas humildes. Só lhes permitiram levar algumas roupas e objetos pessoais. As frutas, aves, porcos e algum gado foram confiscados pelo INRA. Destruíram as plantações, puseram fogo nas casas e a água dos poços foi envenenada. A política da terra arrasada para eliminar as fontes de abastecimento aos guerrilheiros foi meticulosamente levada a cabo. As mulheres e crianças foram separadas dos homens e levadas para Havana Os destinaram às residências do luxuoso bairro de Miramar, mas foram presos lá, como em cárceres. As famílias amontoavam-se naquelas casas. Como se não bastasse, informaram às mulheres que teriam de ir para o campo, trabalhar na roça. As velhas ficariam cuidando das crianças.
Essa situação durou anos e em todo esse tempo jamais viram seus maridos, seus irmãos. As crianças em idade escolar foram separadas das mães e "colocadas" em escolas do Governo para serem "reeducadas", de modo a anular a influência "daninha" dos mais velhos.
Os homens foram levados até a península de Guanahacabibes, a região mais ocidental de Cuba e uma das mais inóspitas, a centenas de quilômetros do teatro da guerra e de seus familiares. Esses camponeses jamais compareceram diante de um tribunal, não foram a julgamento, mas estavam presos. Foram ameaçados de fuzilamento, se tentassem escapar do lugar onde haviam sido colocados e foram informados de que seriam tomadas represálias contra seus parentes, que os infelizes nem sequer sabiam onde se encontravam. Foram obrigados a realizar trabalhos agrícolas e a construir os Campos de Concentração Sandino 1, 2 e 3, que ainda existem.
Quando terminaram esses três campos de concentração, disseram a eles que iam construir uma cidadezinha e que quando ela estivesse pronta morariam lá com suas famílias.
Com essa ilusão, aqueles homens trabalharam dia e noite, erguendo blocos de edifícios. Ao terminá-la, as mulheres e as crianças foram levadas para lá. Desse modo, muito antes de existirem as aldeias estratégicas do Vietnã, Castro já as havia posto em prática em Cuba. Essa primeira chamou-se Cidade Sandino e ainda existe.
O estrangeiro sabe muito pouco dessas cidadezinhas e da terrível tragédia daquelas famílias. Os homens estiveram presos,obrigados a trabalhos forçados. No entanto, não há um papel, um documento, nada, para pelo menos cobrir a forma daquele despojo e do que aconteceu nos anos que se seguiram.
Sobre um barril de pólvora
Carrión dormia no avião de cima: tinha sono pesado e era preciso sacudi-lo para que acordasse. Quando ouvi o matraquear de metralhadoras e o troar dos canhões cheguei à janela de um salto. Acima das colinas fulguravam as línguas de fogo avermelhadas e alaranjadas das baterias lá instaladas. As balas destruidoras sulcavam o céu azulado, em busca de um alvo invisível para mim.
O alarme era geral na circular, e a confusão, tremenda.
- Estão nos atacando! - gritavam alguns
- Atiram em nós! - diziam outros.
Mas, sem dúvida, o objetivo daqueles projéteis não era a circular.
Cheguei ao sexto andar. Muitos olhavam pelas janelas, trepados em latas, catres ou erguidos nas pontas dos pés, segurando-se nos barrotes.
A leste do presídio, quase em cima de nós, explodiam obuses antiaéreos, fazendo subir uns cogumelos de fumaça preta, e entre eles passeava lentamente um avião de bombardeio B-26. Sua fuselagem prateada brilhava ao sol da manhã e as explosões continuavam pontilhando o caminho dele.
Vi o avião afastar-se rumo à desembocadura do rio Las Casas. Dali começaram a atirar nele, de uma unidade da Marinha cubana. Era atacado pela fragata Baire.
O piloto descobriu-a e lançou-se sobre ela num mergulho, as metralhadoras disparando.
A fragata começou a movimentar-se para não ser atingida pelo avião; este disparou o primeiro foguete e uma coluna de água, altíssima, ergueu-se diante da proa do barco, que começou a se afastar a toda máquina.
Então, o B-26 desviou-se para a esquerda. Começaram a atirar nele, de novo, ds colinas, e de novo ele passou olimpicamente entre os obuses da artilharia, que o procuravam enraivecidos.
Aquele piloto fazia uma exibição de sangue frio. Dirigiu-se novamente rumo ao navio que disparava contra ele e desta vez não errou o alvo. O foguete rebentou a popa da fragata, que foi envolvida por um torvelinho de fumaça preta.
Então, o avião afastou-se rumo a noroeste.
Iniciava-se a invasão de Cuba pela Baía dos Porcos. Era dia 17 de abril de 1961.
Aquele fato produziu uma excitação extraordinária entre os presos. Imediatamente pegamos nosso rádio rudimentar, que mantínhamos escondido, e o ligamos.
Nesse dia, logo depois do almoço, chegou um caminhão, escoltado por dois veículos, coberto com uma lona, com vários soldados armados em cima. Estacionou com a traseira voltada para a casinha de entrada e alguém, querendo fazer piada, gritou:
- Sánchez... os pacotes!
Mas não eram os pacotes; pelo menos, não eram os pacotes com coisas destinadas ao nosso consumo, se bem que fossem a nós dedicados.
Eram caixas com cartuchos de dinamite, de fabricação canadense.
Os militares, dirigidos pelo comandante William Gálvez, começaram a descarregar a temível mercadoria.
A dinamite foi depositada no sótão.
Aquele acontecimento modificou completamente o clima da circular. Muitos especulavam sobre o porquê daqueles explosivos. Alguns achavam que os haviam levado para lá a fim de que ficassem num lugar seguro, ao abrigo de ataques como o daquela manhã, pois os aviões não bombardeariam as circulares, sabendo que nós estávamos nelas.
Ao entardecer chegaram as primeiras informações através do radinho clandestino. Combatia-se no lodaçal de Zapata, na Baía dos Porcos, desde muito cedo. As notícias eram muito otimistas e a euforia dos presidiários não teve limites. Houve os que gritavam de pleno peito, pulavam e abraçavam os amigos, invadidos por uma alegria que só podem imaginar os homens que estiveram em uma situação como a nossa.
Os comunicados da imprensa internacional continuavam chegando até nós. Os companheiros que manipulavam o radinho não descansavam: quase não dormiram durante dois dias.
De madrugada a Rádio Swan, emissora que transmitia para Cuba, lançou uma mensagem pedindo a ajuda da resistência interna em apoio à invasão.
"Povo de Havana: atenção, povo de Havana. Devem cooperar com os valentes patriotas do exército de libertação. As usinas elétricas não devem fornecer energia para as poucas indústrias que o regime tenta manter funcionando. Hoje, às 7h45min, quando dermos o sinal por esta emissora,todas as luzes de todas as casas devem ser acesas, todos os aparelhos elétricos devem ser ligados para que haja uma sobrecarga nos geradores da usina elétrica".
Outras notícias diziam que as forças invasoras, arrasando tudo à sua passagem, aproximavam-se triunfantes de Havana. Era mentira e a invasão tinha sido derrotada. Castro, o mesmo homem que declarara mil vezes que não era comunista, que a revolução era mais verde do que as palmeiras, arrancava a máscara com que havia enganado a todos e proclamava a verdadeira natureza da revolução, que ela sempre tivera.
- Esta é uma revolução socialista... - disse - e nós a defenderemos com estes fuzis - e terminava com uma linguagem inconfundivelmente comunista: - Viva a classe operária! Vivam os camponeses! Vivam os humildes! Viva a revolução socialista! Pátria ou morte, venceremos!
Durante seu discurso, a claque o interrompia para gritar as palavras de ordem fornecidas pelo Partido: "Fidel, Kruschov, estamos com os dois!"
Era 16 de abril de 1961, no cemitério de Colombo, na cidade de Havana, e enquanto Castro despachava o féretro dos mortos nos bombardeios do dia 15, pela porta dos fundos, em silêncio, sem flores, coroas, familiares ou amigos para pronunciar palavras de despedida, seis cadáveres de cubanos, fuzilados na prisão de La Cabaña, chegaram e foram enterrados em vala comum.
Desde o primeiro ataque, no dia 15, quando os B-26 bombardearam aeroportos em diversos lugares da ilha, o Governo desencadeou uma feroz repressão contra todos que eram considerados não-simpatizantes do regime. Cerca de quinhentas mil pessoas foram detidas em todo o país. Padres, operários, velhos e mulheres, militares e estudantes foram confinados em teatros, estádios, edifícios públicos, quartéis, escolas, etc., porque os presídios estavam abarrotados.
No pátio de La Cabaña, à intempérie, chacinaram centenas de pessoas, inclusive algumas mulheres com crianças. Também nos porões, que rodearam de metralhadoras; deixaram livre apenas o porão onde havia o paredão para os fuzilamentos.
Aquela redada às cegas levou à prisão centenas de cubanos que conspiravam, alguns infiltrados e que, uma vez identificados, foram imediatamente fuzilados, sem qualquer julgamento; e também a funcionários do Governo, como a vários diretores do Banco Nacional, elite marxista, que foram detidos enquanto comiam num restaurante e passaram dois dias presos.
Nos porões do Castelo do Morro milhares de pessoas passaram dois dias sem água, nem alimento. Ao fim desse tempo, encharcaram-nos com uma mangueira, para que acalmassem a sede.
Dezenas de pessoas morreram naquelas chacinas; houve mulheres grávidas que abortaram e outras que deram à luz ali mesmo, no chão, assistidas pelas outras mulheres. Os guardas ameaçavam todo mundo com metralhamento, se a invasão triunfasse.
O teatro Blanquita, o maior de Cuba, transformou-se em um gigantesco presídio que abrigou oito mil pessoas. Durante cinco dias, os que estavam concentrados lá receberam alimento apenas em quatro ocasiões.
O Palácio dos Esportes alojou outros milhares. Uma noite, os milicianos começaram a gritar que todos se deitassem no chão e, para se divertirem, dispararam as submetralhadoras, com um saldo de vários feridos.
A perseguição e a repressão desencadearam-se de forma aniquilante. Todo cidadão era um inimigo em potencial. Se não estivesse nas forças armadas ou na milícia, ou se não pudesse provar sua militância revolucionária, era detido.
Jorge Rodriguez e Jesus Casais, jovens revolucionários que haviam lutado por uma verdadeira democracia, caíram abatidos por membros da Polícia Política, em plena rua, diante de várias testemunhas que certificaram que seus agressores nem sequer demonstraram intenção de prendê-los.
Marcial Arufe e sua esposa Digna, recém-casados, passavam a lua-de-mel em um apartamento no bairro de Luyanó, em Havana. A Polícia Política bateu à porta e, quando a abriram, metralharam-nos.
Não há dados de quantos foram fuzilados naqueles dias em toda a ilha; mas os pelotões de execução funcionaram no regimento de Pinar del Ría; na base de San Antonio de los Baños; no Morro; em La Cabaña; no castelo de San Severino, em Matanzas; em La Campana; em Camaguey e no Oriente. Desta vez nem sequer puseram os cadáveres em caixões: despiam-nos e enfiavam-nos em sacos de náilon, enterrando-os assim.
No cemitério de Colombo, em Havana, um oficial da Polícia Política e dois soldados, em uma perua VW branca, recebiam os cadáveres e transportavam-nos para uma área sob controle militar,onde eram atirados em uma vala comum. Juan Hernández, um daqueles militares, depois foi preso, acusado de conspiração e contou-nos tudo com detalhes.
Encorajados pelo triunfo, os "chefes" da prisão caíram em cima de nós; a repressão tornou-se mais violenta e nos comunicaram oficialmente que a dinamite ficaria colocada nos alicerces para nos fazer voar pelos ares se houvesse outra tentativa de invasão.
Preparativos de fuga
Logo depois do fracasso da Baía dos Porcos, Boitel, Ulisses e eu analisamos a situação política e concluímos que, por muitos e longos anos, a revolução iria permanecer no poder. Diante dessa perspectiva só havia uma saída: tentar fugir.
Desde que concebemos a idéia de fugir, nossos cérebros ocuparam-se com esse tema durante quase todas as horas do dia. Cada um por seu lado pensava, analisava, considerava como devíamos fazer.
Na fase dos estudos, eu fui o encarregado de levantar um mapa dos arredores. Devia situar nele, com a máxima exatidão possível, os caminhos, elevações, postos, enfim, tudo quanto pudesse interessar no momento da fuga. Apesar de que no quinto andar cobria-se com a vista muitos quilômetros ao redor, conseguimos com Tasi, um preso que tinha sido o acompanhante dos filhos de Batista quando viajavam para o estrangeiro, um pequeno binóculo fabricado ali mesmo com umas lentes entradas clandestinamente. Com sua ajuda, os objetos ficavam um pouco mais próximos e eu passava muitas horas do dia e da noite em atenta observação. Aos poucos o mapa ia adquirindo novos detalhes: os pequenos acampamentos de milicianos a noroeste, a guarda cossaca do outro lado do cordão, entre os pinheiros, e que só pudemos descobrir pelos cigarros que acendiam à noite.
Além disso, ia me familiarizando com todo o movimento da guarnição. Conseguimos que o gradeiro, autorizado a usar relógio, nos emprestasse o dele. Foi uma grande ajuda. Podia, então, calcular quanto um soldado demorava para ir do quartelzinho até o último posto que se via, ou até uma casa, situada a leste, além do pequeno bosque de pinheiros, onde se escondia outra cabaninha de guardas. Essa casa foi importante; tanto que, graças a ela, pudemos escapar da prisão. Era lá que lavavam e passavam os uniformes dos guardas. Podia-se ver as roupas verde-oliva agitando-se ao vento. À essa altura, a Direção-Geral dos Cárceres e Presídios, como um ato de "generosidade", decidiu conceder-nos duas visitas por ano, uma no mês de junho e outra em setembro. Aquilo foi um verdadeiro acontecimento no presídio. Para nós e para os planos de fuga, principalmente, uma bênção.
Tínhamos decidido fugir disfarçados de milicianos: calça verde-oliva, camisa azul, boina preta, cinturão militar também verde-oliva e botas pretas. Por que de milicianos? Porque eram os que entravam e saíam constantemente, porque eram numerosos nos acampamentos de milícias e era mais fácil confundir-se com eles do que com os soldados da guarnição regular.
A informação de que precisávamos ia chegando por intermédio dos presos comuns. Boitel era quem cuidava desses contatos.Ulisses, dos uniformes. Eu, da vigilância e de outros detalhes.
Conosco iria um quarto homem, Benjamin Brito, que seria o guia e o prático. Brito era marinheiro, experiente em tudo que diz respeito ao mar, e conhecia os mangues da ilha, já que tinha se dedicado à caça de jacarés naquela região.
Os presos comuns conseguiram para nós um mapa da Ilha de Pinos, com bastante detalhes: curvas de nível, rios, riachos e também as regiões pantanosas.
Os alambrados tinham uma vigilância impossível de burlar. A cada cinqüenta metros havia uma guarita provida de holofotes e um sentinela armado com fuzil. As dos extremos, na frente e no fundo, eram mais altas e tinham metralhadoras. As cercas de tela de aço foram restauradas em 1960. Erigiam-se sobre profundos alicerces de concreto, onde estavam chumbadas, rematadas por peças de metal em forma de V pelas quais passavam dez ou dize linhas de arame farpado. Depois das seis da tarde, um jipe dava voltas ininterruptamente ao redor do presídio, andando perto do alambrado, enquanto outro jipe fazia a mesma coisa por dentro dele
Neste ínterim, conseguimos lentes para fazer um binóculo mais potente. Fabricamos os tubos com papelão, que colamos com uma pasta feita de macarrão. Tingimos os tubos por dentro com fuligem e fumaça, proporcionados pelo querosene que de vez em quando os gradeiros conseguiam com os guardas para matar percevejos.
O binóculo era desmontável e eu tinha o cuidado de mantê-lo sempre desmontado quando não estava em uso. Suas lentes eram mais poderosas e permitiam uma visão muito mais ampla. Esconder as lentes era fácil: cada vez que terminava de usar o binóculo, jogava-as no balde de água: mesmo que houvesse uma revista, por mais que os guardas olhassem não as veriam.
Precisávamos de camisas de milicianos e boinas. As calças cáqui, cor do antigo exército, que eram do nosso uniforme de presos,podiam ser tingidas de verde-oliva. Muitas dessas calças, pelo uso e lavagem constantes, já não tinham mais a letra P. Os cintos militares também faziam parte do nosso uniforme. Tínhamos as botas. Precisávamos, também, de folhas de serra para cortar os barrotes, dinheiro cubano e americano, instrumental de primeiros socorros, facas de mato, tabletes para purificar água e mil coisas mais.
Por fim, chegou o dia da visita. Mil e duzentos prisioneiros que éramos, receberíamos nossos familiares ao mesmo tempo e no mesmo lugar: no "curral" de mil metros quadrados, com a alta cerca de alambrado.
Boitel, Ulisses e eu preparamos três bilhetes minúsculos, os três iguais, para tentar que pelo menos um escapasse da revista. Nesses bilhetes, pedíamos aos contatos de fora o que precisávamos para a fuga e explicávamos de que modo mandar as coisas; além disso, pedíamos que providenciassem para que um barco nos apanhasse no mar em lugar,hora e dia marcados, coisa que poderíamos confirmar na visita seguinte. Pedíamos resposta. Os bilhetes estavam em código e diríamos o modo de decifrá-lo pessoalmente,durante a visita, à pessoa encarregada deles. Era apenas uma palavra de cinco letras, que no esqueci porque era o sobrenome do Mestre, do Apóstolo da Independência cubana: MARTI.
Às sete da manhã o pelotão de guardas que nos revistaria para sairmos e recebermos a visita chegou ao pátio. Era preciso ficar completamente nu. Então, os guardas revistavam as roupas, costura por costura,assim como as barras das calças, os forros duplos das braguilhas... Enfiavam a mão nos sapatos,procurando um bilhete, um papelzinho qualquer. Faziam o mesmo com as meias. Ordenavam que levantássemos os braços para revistarem as axilas. Como nos chamavam por ordem alfabética, além de pelo número de preso, Boitel havia sido um dos primeiros e tinha passado sem problemas. Quando o guarda entregou-me as roupas de volta, senti um enorme alívio. A revista, mas não o suficiente: os bilhetes tinham sido presos com esparadrapo atrás dos testículos.
Quando todos os presos estavam no curral, situaram guardas em cada canto, por fora, armados de fuzis. Todos olhávamos para o portão por onde iam entrar nossos familiares, que desde a noite anterior esperavam diante do presídio, à intempérie, atirados na beira da estrada, debaixo de árvores,fazendo suas necessidades fisiológicas entre os arbustos que cresciam dos lados.
Abriram a porta e nos amontoamos, esperando a entrada de nossos parentes. Os que já haviam percebido os seus, gritavam e agitavam as mãos. Ao entrar, as cenas foram dolorosas,dramáticas: as mulheres abraçava-se aos presos, chorando, as crianças também. Minha mãe e minha irmã chegaram nos primeiros grupos. Era proibido os homens entrarem no curra, tinham que ficar do lado de fora, por trás da cerca. Lá estava meu pai, sob o sol implacável que no mês de junho, em pleno trópico, esgota até a extenuação.
A visita terminou às três da tarde. As famílias não podiam ir embora imediatamente; ficavam retidas dentro da prisão até que nos contassem e tivessem certeza de que ninguém tinha fugido.
Depois de todos saírem contara-nos e, de volta à circular, novamente tivemos que ficar nus. No começo a maioria tinha um ar de nostalgia, estávamos cabisbaixos. No entanto, depois que estávamos lá dentro, reuníamo-nos, em grupo de amigos, comentando a visita, os acontecimentos familiares e políticos, os boatos. Falávamos das últimas notícias, que chegaram com as visitas, sobre a situação das prisões da ilha.
De repente, e vindo de cima, um vulto passou diante de nós, muito perto. Com estrépito, chocou-se contra o chão, no térreo. Jamais esquecerei o barulho feito pela cabeça, ao rebentar contra o cimento. O homem caiu de barriga para baixo. Estava com o rosto de lado e uma perna encolhida. A massa encefálica fluía lentamente de seu nariz. Jesús López Cuevas tinha se matado atirando-se do quarto andar. Sabíamos que, se falhássemos na tentativa de fuga, a conseqüência seria a morte, mas continuamos os preparativos. Tínhamos dado instruções aos nossos familiares para que enviassem dinheiro a um endereço que tínhamos combinado com nosso contato, o preso comum que nos ajudava. Pedimos também fotos para documentos. Duas semanas depois da visita, nosso amigo fazia chegar às nossas mãos, pela via estabelecida, através da janela, quatro flamantes carteirinhas de milicianos, com nossas fotos. Segundo aqueles documentos, cada um de nós pertencia a uma das companhias de milicianos próximas do presídio. E os nomes nas carteirinhas não eram inventados: existiam de verdade. Eu me chamava Braulio Barceló e pertencia ao batalhão 830, acantonado em "Los Mangos", um acampamento próximo. Assim, caso fosse detido em algum lugar da ilha e se comunicassem com "meu batalhão" perguntando pelo nome da carteirinha, de fato esse miliciano pertencia àquela unidade militar.
Um amigo muito habilidoso na fabricação de facas fez quatro para nós, com cabos de madeira, muito bem-acabadas; fabricou-as com a lâmina de um facão. Pouco a pouco íamos conseguindo o que era necessário.
Continuava minhas observações com o binóculo. Cheguei até a me familiarizar com as caras dos soldados das guaritas e dos que montavam guarda diante do quartel, que via como se estivessem a um palmo dos meus olhos.
Para escolher a cela da qual deveríamos fugir, fizemos um estudo da localização ideal e verificamos que a 64 era a que nos oferecia maior segurança de não sermos vistos. Era justamente a nossa, só que estava no segundo andar, e precisávamos estar no primeiro. No devia ser nenhuma outra, uma vez que tanto da 63 quanto da 65 seríamos vistos da guarita do fundo, ao oeste, e pelo posto situado diante do quartelzinho.
Em meados de agosto chegou um grosso colchão para Boitel. Um colchão inofensivo, aparentemente bem revistado. Os colchões,em Cuba, tinham todos ao redor uma borda de uns três centímetros de diâmetro: dentro dela estavam quatro camisas de milicianos. Haviam-nas preparado esticando-as, torcendo-as e enrolando sobre elas um fio de barbante, de maneira que ficassem como um tubo. Colocaram-na na borda do colchão, enroladas em uma fina camada de algodão, duas em cima, duas embaixo. Carmem Jiménez, a namorada de Boitel, havia ido à ilha a fim de observar que tipo de revista faziam nos colchões, pois a verificação era feita diante dos familiares, para responsabilizá-los, caso tentassem fazer passar algo proibido. Ela presenciou três ou quatro revistas. Assim, notou que havia apenas um local que não o revistavam: a grossa beirada do colchão. Com essa informação, voltou para Havana e preparou o colchão em casa de amigos. Ela mesma levou-o ao presídio. Se tivessem descoberto, Carmen acabaria na cadeia.
Só faltava tingir as calças e os cintos. As boinas e as serrilhas tinham entrado do mesmo modo. Tivemos sorte, pois aquela foi a última vez que permitiram a entrada de colchões.
Começamos um treinamento de marcha, para adquirir resistência. Calculamos a circunferência dos andares e todos os dias andávamos por eles dezenas de vezes, do quinto ao primeiro, do primeiro ao quinto, aumentando a cada três dias o número de voltas e a velocidade. Muitos presos faziam isso como exercício, de maneira que não despertávamos suspeitas. Chegamos a caminhar vinte e cinco quilômetros por dia.
Outro detalhe que poderia chamar a atenção era a falta de sol na nossa pele, pálida pelos meses de prisão. Precisávamos adquirir o tom moreno dos milicianos Essa foi uma tarefa tremenda. Caçando o sol pelas janelas das celas e expondo nossos rostos aos raios que entravam pelas grades, fomos nos amorenando um pouco.
Em um saquinho plástico, costurado dentro de um saquinho de náilon maior, cheio de farinha de milho, escondemos os comprimidos para esterilizar água.
Martha debaixo da chuva
Todas as noites, nesses minutos que antecedem ao sono, pensava em minha família e me recomendava a Deus, pedindo-lhe que fortalecesse minha fé e me permitisse manter o firme propósito que fizera de não deixar que os carcereiros me esmagassem espiritualmente, que não envilecessem minha alma semeando nela o ódio e o rancor. Minha preocupação, em todo momento,era não afundar no desalento, nem no desespero, que tanto mal faziam a todos que estavam ali. Em minhas conversas com Deus, na solidão daqueles minutos, ia encontrando o cimento de uma fé que com o passar dos anos seria submetida a titânicas provas de resistência, das quais sairia vitoriosa. Uma atitude de confiança diante de toda circunstância difícil transformou-se, em mim, num instrumento de combate. Mais de vinte anos depois, os coronéis da Polícia Política teriam que comentar,com odiosa inveja, que eu sempre estava rindo. Tiraram-me o espaço, a luz, o ar, mas não puderam me tirar o sorriso. Eu considerava isso um triunfo do amor sobre o ódio.
Os dias passavam lentos para minha ansiedade. As revistas eram freqüentes e as medidas repressivas iam aumentando. O tenente Julio Tarrau, diretor do presídio, estabeleceu um regime de terror. Esse homem, mestiço, militante nas fileiras do Partido Comunista desde os anos quarenta, não perdia ocasião de exercer seu ódio sobre os prisioneiros políticos. Foi Tarrau que nomeou chefe da Ordem Interior o tenente Bernardo Diaz, um velho camarada do Partido.
O 5 de setembro amanheceu cinzento e chuvoso. Uma das típicas perturbações ciclônicas do Caribe aproximava-se de Cuba; nos dias anteriores à sua chegada as chuvaradas e o vento tinham sido freqüentes. Para nós a visita desse dia seria transcendental; para mim muito mais, pois se bem que ainda não soubesse, era nela que viria a conhecer minha futura esposa. E precisamente esse contato, mais do que o outro que esperávamos, seria o que me tiraria do cárcere, vinte anos depois...
Mais ou menos às nove horas avistaram-se os primeiros grupos de visitantes Duas horas mais tarde a maior parte dos familiares já estava dentro do curral; mas os meus e os de outros prisioneiros não apareciam. Saberíamos depois que dois dias antes, quando estavam a bordo do barco que os levaria do porto de Batabanó, na costa sul de Cuba, até a ilha, foram obrigados a descer para que o barco transportasse um contingente de milicianos e armamentos.
Assaltava-me o pressentimento de que não iria ter visita. Perambulava pelo curra com essa preocupação quando Benito Lopez, um comerciante detido unicamente por ter se manifestado contra o comunismo, chamou-me para apresentar-me à família dele:
- Olhem, este é Armando. Ele agiu com um filho, comigo.
Agradeceram-me com emoção. Tinham vindo vê-lo a esposa e a filha mais nova, Martha. Diante de meus olhos estava uma linda garota de uns quinze anos, alta, elegante, de maneiras finas, com rosto infantil e meigo. Seus olhos refletiam uma vontade firme, misto de ternura e coragem. Acho que foi isso que mais me impressionou nela.
Perguntei-lhes se sabiam alguma coisa dos familiares descidos do barco, dois dias antes. Responderam-me que haviam dito que eles seriam trazidos de qualquer maneira e me convidaram para ficar com eles até que meus pais e minha irmã chegassem.
O céu escureceu a leste e apareceram grandes nuvens. Começou a chover com um ímpeto tremendo. Cerca de seis mil pessoas debaixo da chuva. Coloquei-me de frente para Martha, de costas para o vento, para que as rajadas frias e molhadas não a atingissem diretamente; era tudo que podia fazer. Em alguns minutos estávamos todos empapados até os ossos. Depois de mil pedidos e argumentações conseguimos que a direção permitisse às mulheres atravessarem a rua para ir abrigar-se no refeitório, que tinha capacidade par quase seis mil comensais. Abriram o curral e os visitantes começaram a sair. A chuva não parava. A caravana de familiares, tentando proteger os pacotinhos em que levavam algo para almoçar, foi entrando no refeitório.
Fui com Benito e sua família. Martha e eu nos sentamos um diante do outro, em uma mesa estreita. Tirei as botas, virei-as e a água saiu delas aos borbotões. Ela estava com os cabelos escorrendo, usava um vestidinho claro que, molhado, grudava-se ao corpo. Eu a achava radiantemente bela; não se maquilava e era a primeira vez que a tinham deixado arrumar as sobrancelhas. Convidaram-me a comer. Quando mastigava a comida, soltava água.
Minha conversa com Martha naquele dia do nosso primeiro encontro foi trivial, mas inesquecível para os dois. Uma simpatia mútua fez com que em algumas horas nos sentíssemos como se tivéssemos sido amigos a vida toda. Ela estava com quatorze anos e eu, com vinte e quatro; justamente me atraia sua juventude quase infantil. Iniciamos uma conversa com assuntos gerais, eu procurando informações sobre suas atividades, gostos. Lembro que cruzou os braços sobre a mesa e inclinou a cabeça sobre eles. Assim ficava mais cômoda e o cansaço da viagem, as quarenta e oito horas sem dormir fizeram o resto; adormeceu enquanto seu admirador e futuro marido falava com ela... Levantei-me com cuidado e me aproximei de uma das janelas com grades, pelas quais o ar entrava, para tentar secar um pouco a roupa. Mas acabei tiritando de frio. Voltei para a mesa. Minha linda amiga ainda dormia e fiquei a contemplá-la. Senti uma grande ternura enquanto o fazia, uma ternura que jamais tinha experimentado. Deus é sábio em seus desígnios e às vezes emprega os meios mais insuspeitados para que dois seres se encontrem e unam suas almas. Se minha família tivesse chegado com os primeiros visitantes, se não tivesse sido obrigada a sair do barco, talvez Martha e eu não nos tivéssemos conhecido. Se então alguém nos tivesse dito, a Martha, à minha família, a mim, que anos depois todos nos alegraríamos com o que havia acontecido, simplesmente não o teríamos entendido.
Quando Martha acordou ficou sem jeito e pediu-me desculpas Rimos juntos e nossa nascente amizade também sorriu, feliz.
Meia hora antes de terminar a visita, minha mãe e minha irmã,com outros parentes, chegaram ao refeitório. Não lhes permitiram passar com o pacote que me traziam. Eles as haviam feito descer do barco, eles as tinham impedido de chegar cedo e, agora, diziam-lhe que estavam atrasadas demais para a visita. Tivemos apenas alguns minutos para conversar. Fizeram, também, uma viagem terrível, na coberta do barco o tempo todo, debaixo da chuva.
Quando aquele militar subiu a uma das mesas e começou a gritar que todos fizessem silêncio, eu sabia o que isso significava:
- Acabou-se a visita! Saindoooo!
A fuga
De volta, Ulisses, Boitel e eu reunimo-nos na minha cela. Tudo estava correndo bem. Um homem, mandado pelos que enviariam o barco, havia entrado com os visitantes. Boitel falara com ele por alguns minutos, através da cerca. Queria saber como pensávamos sair dali, porque eles achavam impossível. Boitel disse-lhe que tínhamos um plano e que tentaríamos realizá-lo, mas que não podia dar os detalhes.
Ficou combinado que uma embarcação nos apanharia na embocadura do rio Júcaro, muitos quilômetros a sudeste do presídio, no dia 21 de outubro, à uma da madrugada. Nós a esperaríamos dois dias seguidos. Combinamos os sinais para identificar o barco.
Saber que nossos planos de fuga iam se firmando encheu-nos de alegria. Agora não nos interessavam as dezenas de notícias e boatos que os visitantes tinham trazido. Em menos de dois meses iríamos tentar recuperar nossa liberdade por meios próprios. Esse pensamento já me fazia sentir fora daquelas grades. Enquanto um homem pensa em sua liberdade e luta para consegui-la, mesmo que tenha correntes nos pés e nos braços, não se sente escravo. Claro que não.
Jamais abandonamos a observação. Nós quatro devíamos nos familiarizar com os arredores. Tínhamos que conhecer a movimentação do quartelzinho, os postos, o percurso das patrulhas. Graças à contínua observação, semanas depois seríamos capazes de fazer o caminho escolhido até de olhos fechados.
O caminho que levava até o barracão onde eram lavados e passados os uniformes dos soldados, ia ser nosso primeiro lance. Para chamar o menos possível a atenção, nosso destino seria o barracão. Não despertaríamos suspeitas porque todo mundo ia a ele. Ao lado do quartelzinho, onde começava o caminho da terra avermelhada, batida, havia uma porta pequena; o guarda de sentinela à entrada do quartel mantinha-se a uns dez metros dela. Jamais passavam veículos por essa entrada: servia apenas para a passagem de militares e milicianos. Na verdade, aquela saída era muito útil..
Um dia, a ausência total de milicianos no penal chamou a atenção de Ulisses. De fato, não se viu um só naquele dia, nem no seguinte. Não demoramos a saber o motivo: eles tinham sido proibidos de entrar no presídio. A ordem de não permitir a entrada dos milicianos na circular obedecia a motivos de segurança. A Polícia Política sabia perfeitamente que nem todos os milicianos simpatizavam com o regime e que em suas fileiras, além dos não-simpatizantes, havia contra-revolucionários. A entrada maciça de milicianos no presídio podia prestar-se ao estabelecimento de contato como os presos, para que recebessem informações e até para facilitar possíveis evasões.
A notícia foi um impacto para nós. Fazer as quatro camisas e boinas de milicianos entrarem no cárcere, para nos disfarçarmos, tinha sido um trabalho colossal. Que fazer agora? Restava apenas uma solução: tingir também as camisas de verde-oliva e tentarmos passar por soldados. Para isso era preciso fabricar imediatamente os quatro quepes, coisa que não era muito difícil, porque o exército usava quepes de campanha. Tínhamos entre nós alfaiates, seleiros, enfim, homens de todos os ofícios que existem. Os quepes, indispensáveis, não seriam problema.
Nosso ânimo e espírito de luta não decaíram por isso. Desfeito o plano de fugir como milicianos, concentramos todos os nossos esforços em evadir-nos disfarçados de guardas. Por sorte as pastilhas de tinta eram o suficiente.
Um dia eu estava de vigia quando vi algo que fez minha alma cair até os pés: a portinha por onde pensávamos fugir estava sendo selada. Abriram uns buracos, colocaram umas barras de metal e uma tela de aço, como a que cercava o terreno ao redor do presídio. A porta desapareceu e, com ela, nossa possibilidade de fuga.
Chamei os outros para comunicar a terrível notícia. Agora, sim, o desafio era mais do que difícil. Apesar disso, decidimos continuar observando, em busca de alguma solução.
O quartelzinho tinha ao seu redor uma cerca com mourões de um metro e meio de altura e vários fios de arame. Os soldados estendiam roupas de baixo e meias nesses arames, para que secassem. Continuavam levando os uniformes para o barracão. E não se importaram por terem selado a portinha. Simplesmente inauguraram outro caminho: levantavam os arames da cerca e passavam para o outro lado. Assim eles estabeleceram nossa nova rota.Se quiséssemos fugir, teríamos que fazer como eles.
Acho que nenhum plano de fuga teve mais inconvenientes para vencer, nem mais interrupções, do que o nosso. Os militares continuavam reforçando seu sistema de defesa. Limparam o terreno atrás do quartel; com patrolas, arrancaram árvores e arbustos, deixando mais de cem metros tão lisos quanto uma pista para pouso de aviões. Ao mesmo tempo, ergueram mais um alambrado com mais de três metros de altura para reforçar a fraca cerca interior. Colocaram na nova cerca um fio de arame farpado a cada dez centímetro. Se o quartel fosse atacado pelo exterior, sua tomada seria muito difícil. Aquele alambrado pareceu sepultar definitivamente nossas esperanças de escapar.
Agora sim, estávamos desolados. Esquadrinhamos com ansiedade tudo que ficava ao alcance dos nossos olhos procurando um lugar, um canto, uma possibilidade de fuga. E não podia ser depois da data marcada para nos apanharem na costa.
Na manhã sem que vários guardas, com picaretas e pás, começaram uma escavação junto do alambrado, eu estava de vigia. O que seria aquilo? Não os perdi de vista, com o binóculo, nem um segundo. Já tinham feito um buraco em que cabiam até os joelhos, mas continuavam cavando; a terra retirada amontoava-se devagar. Tratava-se de uma trincheira que passava por baixo do alambrado. Quando o trabalho terminou, trouxeram uma metralhadora e colocaram-na na trincheira; puseram também, sobre o telhado do quartel, um holofote fixo, que podia ser aceso de baixo e que iluminava o terreno limpo, ao fundo.
O guarda que cuidava da metralhadora fazia-o da parte de trás do quartelzinho, a uns cinco metros, sentado em um tamborete encostado à parede.
De novo aquele barracão de camponeses, ao qual os guardas levavam os uniformes para lavar e passar, ajudou-nos. A trincheira passou a ser usada com porta de saída e entrada. Sentimos uma enorme alegria quando vimos que os soldados iam e vinham através dela, para levar ou trazer seus uniformes.
Restavam-nos poucos dias, por isso apressamos os preparativos. Boitel tirou do colchão os pedaços de serrinha para cortar os barrotes. Ulisses tratou de tingir os quepes que,entre parênteses, ficaram melhores do que os usados pelos guardas. Como Carrión não ia conosco, fizemos com que mudasse de lugar com Brito, porque se ele ficasse na cela onde se desse a fuga, as represálias que cairiam sobre ele seriam terríveis.
Para cortar as barras da janela Boitel e eu tínhamos que tomar muito cuidado.Naquela época permitiam que se pendurasse roupas nas grades, para secarem, até às cinco da tarde. Colocando uma toalha para secar, ficávamos protegidos dos olhares do exterior. Quando alguém se aproximava, parávamos de serrar. Para nos precavermos da eventual subida de algum guarda à torre, baixávamos as camas e estendíamos uma toalha presa pelas pontas, enquanto Carrión ficava no estreito corredor, não apenas para obstruir a visão dos guardas, mas também de indiscretos da circular, pois sabíamos que existiam delatores que se vissem alguma coisa iriam denunciar à guarnição.
Precisávamos cortar três barrotes. Não terminávamos de serrá-los completamente; deixávamos dois pontos de união que, quando chegasse a hora, eliminaríamos em alguns minutos.
Fabricamos seis peças, com pratos de alumínio, que seriam usadas, depois da fuga, para tornar a firmar os barrotes no lugar. Eram umas plaquinhas que uniriam os ferros cortados, aos que ficavam chumbados ao cimento. Seriam presos com arame e como as plaquinhas haviam sido pintadas da mesma cor das grades, não se perceberia nada lá de baixo. Não podíamos deixar o buraco na janela, pois a sentinela perceberia, daria o alarme e não teríamos tempo nem de chegar ao quartelzinho.
Incluímos em nossa equipagem mosquiteiros verde-oliva para cobrirmos a cabeça, porque os mosquitos das regiões pantanosas são capazes de enlouquecer qualquer um, luvas pretas e, embaixo da camisa, coletes com vários bolsinhos, onde levaríamos os comprimidos para esterilizar água, barras de chocolate, remédios de urgência, navalha para barba, fósforos em embalagens seladas, à prova de água, um espelhinho para sinais, etc. Não iríamos ter dificuldades com a orientação, pois tínhamos estudado os mapas, e embora a fuga fosse ocorrer durante a noite, achávamos que não iríamos nos perder, se bem que para nos guiar tivéssemos apenas uma dessas bússolas pequeninas, que são enfeites de chaveiros. Mas eu conhecia bastante sobre constelações e Brito também, que de nós era quem tinha melhor senso de orientação, por ter passado a vida toda navegando.
Boitel continuava obcecado pela idéia de chegar à Conferência de Punta del Este.
Destruir um mito
Tínhamos um grupo valioso de amigos cuja colaboração foi utilíssima; sem ela não teríamos podido fugir. Era preciso colocar vigias na hora de fugirmos a fim de termos certeza de que nenhum veículo estava se aproximando da circular. Portanto, três dos nossos companheiros, espalhados pelos andares, iam se encarregar dessa observação.
Ulisses mandou preparar uma corda pela qual deslizaríamos da janela até o chão. Fabricávamos cordas com os fios de aniagem de sacos desmanchados. Uniam-se dez ou doze desses fios para conseguir uma fibra grossa. Depois, fazia-se a corda trançando quatro ou cinco fibras.
Os uniformes já estavam tingidos e passados,os quepes eram impecáveis. Amanheceu nosso dia: 21 de outubro de 1961. Houve visita na circular 3.
Logo depois da chamada da tarde, começamos os preparativos. Se tudo desse certo, teríamos tempo até a chamada do dia seguinte, ao amanhecer, quando seria descoberta nossa fuga.
A partir do momento em que nós quatro entramos na cela, tudo foi feito com rigor cronométrico. Vestimo-nos: os coletes, as tiras de borracha com as facas, cigarros, fósforos nos bolsos, dinheiro cubano e dólares, que eu levava numa carteira velha, as carteirinhas de identificação... Começa a entardecer, a sentinela que dava voltas ao redor da circular já havia chegado e tinha feito uma ronda; fumava e o cachorro andava a seu lado.
Com um pedaço de pano umedecido em querosene esfregamos as axilas e os genitais, a fim de desorientar os cães. Os primeiros a saltar seriam Brito e Ulisses.
Brito saiu pela janela e deslizou com rapidez; atrás dele seguiu Ulisses, depois Boitel. Mas nesse momento apagaram-se as luzes; falta de energia geral. Eu não sabia, mas a corda se havia destrançado na vez de Boitel, o que o obrigou a se deixar cair; bateu no chão com força, fraturando os ossos do calcanhar. Quando saltei, a corda não tinha espessura suficiente; fui dar uma braçada, rápida, e fiquei com fiapos nas mãos. Precipitei-me no vazio e caí sobre um monte de escombros. Senti uma dor horrível no pé direito, mas me levantei instantaneamente. Nos momentos de perigo o homem é capaz de fazer coisas incríveis, de superar dores e limitações físicas. É como se a mente, ocupada apenas com um objetivo, bloqueasse todas as outras sensações.
Depois, eu saberia que na queda tinha fraturado o calcanhar, o escafóide, o primeiro cuneiforme e que o astrágalo, pressionado pelos outros ossos, havia se deslocado de seu lugar. No entanto, andei normalmente, sem mancar, e me uni a Boitel que, acendendo um cigarro, esperava-me junto da estradinha. Saímos andando.
Não tínhamos tido tempo de dizer sequer uma palavra, quando saiu do hospital o sargento Pitanguilla,o que fazia as chamadas; tinha pendurada ao ombro uma submetralhadora tcheca. Brito e Ulisses, que andavam uns quarenta metros adiante, iam cruzar com ele. Quando passaram, o sargento parou, virou a cabeça com ar perplexo, como se não se lembrasse daquelas caras. Foram momentos de tensão indescritível. Boitel e eu, que nos aproximávamos do sargento, erguemos a voz, conversando:
- Olha só a pressa do gordo, nem espera a gente! Está louco para voltar a Havana. Se o capitão Kindelán estivesse aqui, podíamos ir amanhã cedinho.
O sargento escutou minhas palavras, que respondiam perfeitamente às perguntas que devia estar fazendo a si mesmo. Não os conhecia porque eram de Havana e estavam ali para falar com o capitão Kindelán, chefe da guarnição. Sem dúvida sua mente simplista estava satisfeita com minhas justificações. Quando passamos ao lado dele, Boitel e eu conversávamos com naturalidade. Quando estávamos lado a lado eu cumprimentei:
Como é que é, sargento?
Tudo bem, filho...
A noite chegou de repente, sem qualquer outro aviso senão aquela penumbra que dá lugar à escuridão total. Enquanto andávamos na direção do quartel, acenderam-se os holofotes de rastreio. Nosso plano era rodear o edifício militar pelos pátios laterais, como faziam os guardas que iam buscar roupas de baixo e meias na cerca ou se dirigiam à casinha que lhes servia de tinturaria. Tínhamos que sair pela trincheira, onde estava a metralhadora, avançar para a direita, rumo aos arbustos junto ao terreno roçado. Aqueles minutos seriam decisivos, pois bastaria que o guarda da metralhadora acendesse o holofote fixo no telhado para que descobrisse nossa fuga; mas em nossas observações havíamos comprovado que ele só fazia isso com a noite bem adiantada.
Vimos Ulisses e Brito entrarem no jardim do quartelizinho como se fosse a casa deles. A sentinela estava à esquerda. Eles dobraram à direita e nós os perdemos de vista; já havia sombras e obscuridade. O pé me doía horrivelmente, mas eu sabia que não podia mancar em um passo sequer: isso seria fatal.
Boitel e eu já estávamos diante do pequeno jardim, sempre conversando em tom normal, tentando dar a maior naturalidade possível às nossas presenças. O guarda, que ultrapassamos uns quinze metros, não notou nada de estranho: éramos mais dois entre os muitos guardas que entravam e saíam.
Também viramos à direita. Uma porta aberta, ampla, dava para os chuveiros. Um guarda ao qual os companheiros tinham apelidado de El Chino, e que costumava fazer sentinela em nossa circular, estava tomando banho. Boite gritou para ele:
- Ei, Chino, lave bem as costas!
Aquele grito diminuiu nossa tensão. Foi como um alívio, uma válvula de escape.
Chegamos ao patiozinho dos fundos. Um guarda alto, loiro,sentado num tamborete, recostado contra a parede, cantava décimas, a música típica do interior cubano. Lá o mato crescido ia até quase o meio das pernas. Não vimos nem rastro de Brito e Ulisses, que já haviam passado. Boitel e eu procuramos a trincheira, mas devido à obscuridade e ao mato não a divisamos. Foram momentos angustiosos. Eu disse a Boitel que esperasse um pouco, que ia urinar junto da cerca. Virei de costas para o guarda que estava empolgado pela canção e fingi que urinava.Isso deu tempo a Boitel para deslizar junto da cerca e chegar à trincheira. Quando o vi agachar-se no escuro, fui atrás dele. Tropecei em algo duro e percebi entre o mato umas rodas denteadas de ferro; estavam umas sobre as outras e quase tropeço de novo em outro monte delas. A operação de passar pela trincheira fez meu pé doer a ponto de eu ter vontade de gritar; suei frio, em grande quantidade. Boitel me esperava do outro lado. Viramos à direita, passando por perto da casa do tenente Antônio "La Somba", como o chamavam aludindo com esse apelido à sua sinistra natureza repressiva. Ulisses e Brito estavam nos esperando ali. Os cães do tenente Antônio ladraram, mas não eram eles que nos preocupavam, mas sim os sabujos do Ministério do Interior.
Fomos avançando junto a uma fileira de arbustos que a patrola havia poupado. Mesmo que acendesse, o holofote do quartel já não podia nos delatar. Caminhamos mais de cem metros paralelos ao terreno limpo; afinal, viramo-nos para dar uma olhada nas silhuetas imponentes das circulares. A nossa, mais próxima de todas, era impressionante com as janelas iluminadas mortiçamente pelas lampadinhas da torre central. Foi um momento muito emocionante, inesquecível, nenhum preso tinha podido ver as circulares daquela perspectiva. O mito da fuga impossível acabava de fenecer, morto por nós, que havíamos demonstrado que a fortaleza era vulnerável.
Começamos a subir o morro. Fizemos uma breve parada a fim de não deixar "pistas" para os cães; três pedaços de pano sobre os quais colocamos cuidadosamente pimenta-do-reino em pó. Quando os cães se aproximassem, farejando, daquele modo característico que os faz aspirar o ar com força, ficariam com os narizes cheios de pimenta, começariam a espirrar e seu faro seria anulado. Colocamos os panos separados.
Chegamos a um desnível muito abrupto do terreno. Meu tornozelo doía terrivelmente e a pressão que a inflamação estava fazendo tornava o andar ainda mais doloroso. Paramos um instante, o tempo necessário para pegar a faca e cortar a bota, que me oprimia até quase as pontas dos dedos. A lua derramava sua luz prateada sobre o chão amarelado. Estávamos em um descampado e, se bem que não houvesse casas por perto, sem a proteção dos arbustos sentíamo-nos mais expostos ao perigo, pois qualquer camponês ou miliciano poderia passar por aqueles lados e nos ver.
Deitamo-nos no chão, examinando os arredores. Foi Brito que disse que devíamos atravessar aquele trecho correndo. Como eu não podia correr, Brito carregou-me nas costas e com uma agilidade incrível, com uma força que não sei de onde tirou, correu quase duzentos metros comigo.
A primeira estrada atravessou-se diante de nós. Larga, com duas valetas nuas dos lados, e cercas de arame para o gado não fugir. A travessia tinha que ser feita com o maior cuidado, para evitar que um veículo nos viesse em cima. Escutamos um motor ao longe e achatamo-nos ainda mais no chão, escondendo-nos entre o mato. Aproximava-se. Um caminhão soviético Zil passou como um bólido, erguendo uma imensa nuvem de pó amarelo.
- Vamos, agora!
Assim dizendo e fazendo, Boitel deslizou, de barriga para cima, por baixo do último arame da cerca. Depois eu, Ulisses e Brito na retaguarda. Passamos para o outro lado da estrada rolando sobre nossos corpos, já que se o fizéssemos de pé poderíamos ser vistos de longe. Antes de entrarmos no bosquinho de pinheiros, colocamos outros pedaços de pano com pimenta-do-reino para os sabujos. Já não se ouviam latidos. A noite deslizava tranqüila, silenciosa.
Apareceu outra estrada. Estávamos no rumo e nosso mapa assinalava com exatidão todos os detalhes de que precisávamos para nos orientar. Deixamos à direita um barracão rústico, com telhado de folhas de palmeira. Os cães da casa nos farejaram e latiram.
A vegetação começou a mudar e apareceram os mosquitos, em nuvens, agressivos.Aproximávamo-nos dos pântanos do Júcaro, na desembocadura do mesmo rio. Era esse o nosso objetivo e a embarcação deveria estar lá à uma da madrugada.
Tudo parecia em calma. Os ruídos naturais da noite, os barulhos de insetos, o coachar de alguma rã... A água do pântano chegava aos nossos tornozelos. Fazia frio e um ventinho noroeste começava a soprar com certa força.
Dez minutos e Brito não voltava. Começamos a nos impacientar. Por que estava demorando tanto? Ulisses ofereceu-se para ir procurá-lo, mas Boitel propôs que esperássemos mais cinco minutos. Afinal, Brito apareceu e nos informou. Estivera observando uma embarcação, mas tinha entrado pelo rio. Estávamos exatamente em frente do local do encontro. Boitel olhou o relógio que o gradeiro havia nos dado. Tínhamos chegado meia hora antes. Mais meia hora, pensávamos, e nossa embarcação estaria ali, ao amanhecer estaríamos a muitos quilômetro da ilha, em alto-mar, proa na direção de Grand Caimán, o rumo do qual menos podiam desconfiar os nossos inimigos, que imaginariam que teríamos ido para o norte, rumo a Cuba, ou para o oeste, rumo ao México.
Mas nosso barco não chegava Uma hora... uma e meia... duas... Às três da madrugada o desânimo começou a tomar conta de nossas almas. O que podia ter acontecido? Estávamos no lugar exato, no dia e hora combinados. Não compreendíamos. O pessoal que devia vir nos apanhar sabia a que nos expúnhamos, se fôssemos capturados. À morte, quase certamente.
Às seis da manhã, quando surgiram os primeiros albores e o ruído dos milicianos do outro lado do rio chegava até nós como um murmúrio distante, retiramo-nos da praia. O pessoal do barco havia ficado de vir dois dias ao encontro. Chegariam naquela noite, com certeza. Pelo menos, queríamos acreditar nisso. Teríamos que estar de novo, dentro de dezoito horas, no mesmo lugar. Deus nos ajudaria e confiei-me a Ele de novo, enquanto o sol tingia de vermelhão as nuvens altíssimas e algumas gaivotas cortavam o ar.
A caçada
Foi o sargento Pinguilla,o mesmo que cruzou conosco na noite anterior que, ao terminar a chamada nos pavilhões, deu o alarme.
- Fuga! Fuga!
O estado de alerta foi dado na ilha inteira. Milhares de milicianos e tropas regulares saíram em nossa perseguição. Pensavam que estávamos armados e, por isso, sempre que chegavam a um bosque em que achavam que podíamos estar ocultos, a tropa jogava-se ao chão, apontavam as metralhadoras B-Z tchecas e abriam fogo.
As pensões e hotéis próximos foram invadidos pela Polícia Política. Em um deles detiveram Carmen, a namorada de Boitel. O comandante William Gálvez interrogou-a pessoalmente, ameaçou-a e disse que seria presa se seu namorado chegasse a sair do país.
Já quase de tarde, Brito avistou militares que se aproximavam do local onde estávamos; à nossa frente estendia-se a amplidão do mangue, cuja água nos chegava à cintura e, no final dele, o bosquinho no qual estávamos escondidos. Quando os guardas começaram a atirar nesse bosquinho, uma chuva de folhas e raminhos caiu sobre nós, despedaçados pelos projéteis. As rajadas passavam alto, mas nos inclinávamos, procurando proteção. Apagamos as marcas que nossos corpos haviam deixado no local e fomos embora, deslocando-os para a direita do cerco. O firme do lodaçal, onde começava a vegetação, dilatava-se em forma semicircular. Os militares, quando continuassem a marcha, desembocariam forçosamente no terreno despovoado de árvores, onde só cresciam as taboas.
Quando os primeiros guardas apareceram, já íamos avançando pela beirada da vegetação. Eles se deslocavam em leque. Sabiam que do outro lado daquela franja pantanosa estava o acampamento de Júcaro e, por isso, não atiravam. Talvez a proximidade do acampamento militar fez com que pensassem na impossibilidade de termos nos escondido exatamente ali. E isso levou-os a serem menos minuciosos, quando revistaram o terreno. Entre o último militar e a beirada da vegetação, à nossa direita, ficaram uns trinta metros sem guardas para fechar a revista. Por esse lado íamos nós, protegidos pelas folhagens, rastreando algumas trilhas. Tínhamos a vantagem de ver sem sermos vistos. O verdadeiro perigo teria sido se eles realizassem uma "operação pente-fino", como se esperava, com soldados dentro do lodaçal. Mas não o fizeram.
No entanto, o último guarda desviou-se um pouco para o lado onde estávamos; escutamos o barulho de suas botas pisando as taboas e afundando no solo pantanoso. Ms retificou o rumo e avançou de novo à frente, passando a poucos metros de nós. Estávamos salvos. Pelo menos desta vez tínhamos escapado... Os guardas nem sequer entraram no local de onde tínhamos saído. Movimentaram-se para o sul, para a estradinha de terra e a pequena ponte de madeira que atravessava o rio. Ficamos onde estávamos por uma meia hora. Depois,voltamos ao nosso acampamento original. Não viriam mais nos procurar por ali, pois acabavam de fazê-lo... mal, porém diriam que bem feito, e os superiores dariam a zona por verificada.
Não sabíamos, mas diante do porto de Gerona um barco canadense pegava um carregamento de cidras. As autoridades consideraram a possibilidade de termos abordado o cargueiro e trataram de revistá-lo. O capitão do navio negou terminantemente sua permissão. Naquela época o Canadá mantinha excelente comércio com Cuba e o governo cubano interessava-se muito em não alterar esse relacionamento.
A negativa do capitão canadense em deixar revistar o navio foi interpretada pela Polícia Política como prova de que estávamos a bordo.
Desde as onze e meia da noite estávamos novamente no local marcado, esperando que nos apanhassem. Minha perna doía terrivelmente, a inflamação era tremenda e os esforços a que eu a submetera haviam piorado muito seu estado. A pele estava com uma cor violácea na região do tornozelo, onde o golpe produzido pela queda tinha sido mais violento. Tinha tomado aspirina o dia inteiro, mas a dor não cedia.
Chegou uma hora, uma e meia, duas, três da madrugada e o barco não aparecia de canto algum. Examinávamos o horizonte, aguçando a vista, mas nada. Não tinham ido nos apanhar.
Ao amanhecer, quando nos dispúnhamos a voltar para o esconderijo, escutamos gritos distantes, depois uns tiros e, em seguida, rajadas de metralhadoras pesadas provenientes da desembocadura do rio. Depois, silêncio... Alguns minutos depois ouvimos vozes, mas não podíamos entender o que diziam.
Permanecemos ali até que o céu começou a clarear. Tínhamos dormido em turnos, estávamos esgotados pelo cansaço e, agora, a tensão era maior.
À uma da tarde, o cargueiro canadense cheio de cidras levantou âncora e se enfiou pelo canal, rumo ao mar aberto. A Polícia Política achou que estávamos escondidos em seu porão. Uma hora depois ordenaram que se pusesse fim às buscas em toda a ilha e transmitiram essa decisão a todos os comandos, para que suas tropas voltassem aos quartéis e acampamentos.
O sol iniciava sua descida quando Brito nos avisou que uma tropa numerosa vinha para cima de nós.
Escondemo-nos atrás dos troncos de umas palmeiras espinhosas. O mais próximo da tropa era Ulisses, Brito estava à minha direita, Boitel estava mais atrás, um pouco.
- Vamos virar à direita e passar pela pontinha! - gritou um dos guardas.
Rezei para que fizessem isso, pois se continuassem em frente era inevitável que nos encontrassem. Com frenesi, eu cavava a terra pantanosa para esconder o mapa e a carteirinha que tinha comigo. Os outros deviam estar fazendo a mesma coisa, porque era o que havíamos combinado para o caso de acontecer uma situação como aquela.
- Não. Pela ponte a gente se desvia. Vamos seguir em frente.
E entraram pelo sarçal, na nossa direção. Mais alguns metros e estaríamos cara a cara. Achei que aqueles eram os últimos minutos da minha existência. Recomendei-me a Deus, pensei na minha família e uma porção de coisas vieram-me atropeladamente à cabeça. Pensei que ia morrer ali, naquele pântano imundo e fétido; senti um medo atroz, aquela garra invisível que sempre envolve meu estômago e o vai apertando até a dor e o espasmo.
- Não atirem! Estamos desarmados!
Ulisses, com o aviso, desencadeou os acontecimentos. Escutou-se o rascar metálico dos ferrolhos dos fuzis e a gritaria dos guardas, pedindo ao que abria a marcha que se afastasse, para que pudessem atirar.
- Não atirem, estamos desarmados! - tornou a gritar Ulisses.
O guarda grisalho que abria a marcha voltou-se para a tropa e ordenou que não abrissem fogo.
Ulisses foi o primeiro a sair...
- Outro!
Boitel seguiu-o. Depois Brito:
- Um de nós está com uma perna machucada - disse-lhes Boitel.
Eu saí coxeando. Lá estávamos os quatro, as mãos atrás da cabeça. Com desalento e cansaço enormes. Uma tropa de uns cem homens nos rodeava.
Pavilhão de castigo
Talvez nos momentos em que os guardas se aproximavam de nós no pântano, nas circulares deveria estar acontecendo a revista de represália. Cheios de raiva pela nossa fuga, os militares encarniçaram-se contra os presos. Colocaram sacos de areia e metralhadoras apontando para as portas das circulares e entraram brandindo os fuzis com as baionetas caladas. Feriram dezenas de homens.
Sérgio Bravo tinha apenas trinta anos. De compleição atlética, muito ágil e entusiasmado, dedicava-se a pregar a palavra de Deus.
Sérgio ficava no quinto andar da circular 3. Havia algum tempo, e valendo-se das mais inimagináveis argúcias, tinha conseguido fazer entrar, folhinha por folhinha, e armar, com cuidadoso amor, uma Bíblia pequenina, dessas que não ultrapassam o tamanho de um maço de cigarros. Num esconderijo em sua cela, bem dissimulado na parede, tinha conseguido proteger o livro das revistas.
Quando começou o vozerio dos guardas e a pancadaria, Sérgio, que descansava em seu beliche, pôs-se de pé, num salto, no meio da cela, olhou para baixo e o espetáculo o deixou horrorizado: estavam cometendo uma carnificina. Lançou-se escada abaixo, de três em três degraus. Ao chegar no quarto andar lembrou-se da Bíblia: havia deixando embaixo do travesseiro, fora do esconderijo. Com certeza os guardas iam tira-la. Sabia que as pancadas que levaria por chegar lá embaixo atrasado seriam mais, no entanto não se importou e voltou para escondê-la. Entrou precipitadamente na cela, com o coração na boca; finalmente conseguiu esconder a Bíblia. Saiu novamente para o beiral e deu, veloz, a última corrida de sua vida. Os guardas já tinham começado a atirar e a bala de um fuzil rebentou os ossos de uma de suas pernas, abaixo do joelho. O impacto foi como o de uma machadada brutal.
Enquanto eu caminhava, apoiado nos saibros de Ulisses e Brito, amputavam a perna de Sérgio Bravo.
Fizeram-nos entrar na sala do tenente Tarrau. Sobre a mesa dele vimos quatro colunas de fotografias nossas; haviam sobrado das que tinham distribuído pela ilha inteira para nossa identificação. Indicaram-nos um sofá e nós quatro nos sentamos nele.
Um tumulto de militares entrou na sala frente vinha o comandante William Gálvez, chefe territorial da Ilha de Pinos, que também conhecia Boitel. Gálvez era famoso por suas excentricidades, como aquela de andar patinando pelas ruas da cidade de Matanzas de farda completa e aparecer assim nos Tribunais Revolucionários, nos quais tomava parte como fiscal.
Estava muito interessado nos detalhes da evasão. Aventureiro por natureza, Gálvez não podia dissimular sua admiração pela nossa fuga. Houve um momento em que disse que eles sabiam que um submarino da Agência Central de Inteligência viria nos apanhar.
Boitel negou. Mas Gálvez não acreditou e houve uma acareação. Boitel continuou negando que qualquer submarino iria nos buscar.
— Então, como iam sair da ilha?
— Pensávamos em ir num barco.
— Mas quem vocês pensam que são? — quase gritou aquele insólito comandante, considerando impossível que fôssemos capazes de fazer isso.
— Pense, comandante, se é mais difícil dirigir um barco do que fazer o que fizemos.
William Gálvez ficou em silêncio. Ficou olhando Boitel fixamente. Voltou-se e murmurou, em voa baixa:
— Sim... é verdade.
Não obstante, a Polícia Política encarregou-se de difundir a história do submarino da CIA e a primeira versão foi dada a Marcha González, uma exilada que voltou dos Estados Unidos para Cuba com o compromisso de escrever um livro cheio de falsidades e mentiras, intitulado Sob palavra, com matéria fornecida pela própria Polícia Política.
Quando o diretor Tarrau entrou na sala, fez-se silêncio total. Olhou-nos com um ódio que saía aos borbotões pelos olhos. Bufava. As aletas do nariz estavam lívidas e notava-se que fazia um grande esforço para se conter.
O diretor Tarrau não ameaçava pelo gosto de fazê-lo; tinha tudo que era necessário para cumprir suas ameaças.
Começou, também, um interrogatório. O único conhecido do grupo era Boitel. Os outros, não. E era para ele que iam todas as acusações, dele é que exigiam as responsabilidades. E para ele havia um ódio especial, expresso pessoalmente por Castro em muitas ocasiões.
Parecia-me que a responsabilidade daquele fato devia ser partilhada, como havíamos partilhado da esperança de conseguir nosso objetivo. Por isso tomei a palavra e disse a Tarrau e Gálvez que Boitel não era o único responsável, que a fuga fora feita pela minha cela e que eu tinha cerrado os barrotes da janela. Brito e Ulisses também se responsabilizaram pela tentativa de evasão.
— Aqui todos vão ter que assumir as responsabilidades. Os quatro vão apodrecer nas celas de castigo. Jamais sairão de lá e vão se arrepender do que fizeram comigo.
— Preciso de um médico — eu disse.
O comandante Gálvez fitou-me, indignado: — Ainda tem o cinismo de nos pedir assistência médica?
Levaram-nos para o primeiro salão, onde ficavam as celas de castigo. Aquela área tinha sido desocupada para nós. Eram onze celas, construídas dentro de um salão que não tinha sido feito para essa finalidade. O pé direito muito alto da antiga construção permitiu construir celas de uns dois metros e pouco de altura. O teto era uma malha de aço, de buracos grandes, como as telas usadas na cerca do presidiu. Dessas malhas até o teto do salão havia espaço para que os guardas pudessem andar em cima e manter, assim, vigilância total sobre os castigados. As portas eram cobertas por placas de ferro soldadas aos barrotes. Só na parte inferior da grade, muito perto do chão e em um dos lados, ficava uma estreita fenda: era por ali que enfiavam o prato com a comida.
Num dos cantos, no centro de uma leve com cavidade, um buraco fazia as vezes de latrina. E um pedaço de tubo dobrado, em cima, era a ducha. A torneira ficava fora da cela e era manejada pelos guardas. A cela era totalmente vazia: a cama era o chão de granito. Media uns dois metros e meio de largura por dois de comprimento. Anos depois eu iria conhecer muitas celas de castigo, mas nenhuma individual maior do que as da Ilha de Pinos.
Fui destinado à número um, Boitel à três, Ulisses à cinco e Brito à sete, com uma cela vazia entre cada um de nós.
Nem sequer a roupa de baixo me deixaram conservar. Completamente nu, fiquei ali, na obscuridade da cela. Fazia frio e eu o sentia. Minha perna doía muito e continuava inflamada do mesmo jeito. Uma hora depois trouxeram-nos o prato com o rancho. Nunca vou esquecer. Arroz branco e carne em conserva com batatas. Em seguida, apareceram vários oficiais trazendo uniformes para cada um de nós. Mandaram que nos vestíssemos porque iam nos tirar dali. Apoiando-me em Brito e na parede, dando saltos sobre um pé só, atravessei o pátio interior e chegamos ao salão.
Ali estavam grandes mesas com máquinas de escrever.
Uma senhora de meia-idade estava diante de uma das máquinas. Era a juíza de Nova Gerona que ia fazer a instrução do nosso julgamento. A um observador desprevenido tudo pareceria estar acontecendo conforme a lei. Claro, a instrução foi feita, mas nós NUNCA comparecemos a julgamento. Um dia, chegou a sentença do tribunal. Tinham nos condenado a mais dez anos de cadeia pelo crime de "quebra de condenação e danos à propriedade do Estado" cometidos ao cortarmos os barrotes da janela.
Soubemos, depois, que o tenente, chefe da revista, apelidado Tareco, elemento repressivo e abusador, tinha sido enviado para uma granja, condenado a dez anos de cárcere por "infidelidade na custódia da revista". Consideraram-no responsável por termos feito entrar o necessário para a fuga. Nunca souberam de que meios nos valemos. Só agora, depois de vinte anos, eles estão revelados neste livro.
Levaram-nos de volta às celas e nos deixaram nus de novo. Não fecharam a grade e aquele detalhe chamou-me a atenção. Estava sentado no chão. Lá fora soaram vozes de vários militares, que se aproximavam. Três ou quatro deles (ou cinco, eu não saberia dizer exatamente quantos) apareceram diante da cela aberta. Terminados os interrogatórios e a papelada, iam acertar contas com a gente, iam nos cobrar por termos tentado fugir. Como a lâmpada do corredor ficava às costas deles, não percebi que estavam armados com cacetes grossos e fios elétricos trançados.
— Levante-se, pois vamos tirar sua vontade de fugir, para sempre!
Senti meu estômago se contrair mais do que nunca, que me faltava o ar e que uma opressão apertavam-me o peito. Eu conhecia bem essas reações de meu corpo: era medo, terror. Em uns segundos a visão do que ia acontecer passou por minha mente e compreendi, com horror, a realidade.
Já estavam batendo nos meus companheiros. Escutei os impactos secos das pancadas nos corpos nus, os gritos e as ofensas dos guardas.
— Levanta daí, maricas! — tornou a gritar o guarda, erguendo o braço armado.
E tudo foi como uma vertigem repentina. Minha cabeça começou a girar. Bateram em mim no chão. Um deles agarrou-me por um braço, para virar-me de maneira a apresentar as costas, em posição mais cômoda para que fosse atingida pelos fios.
As pancadas me davam a sensação de que estavam batendo em mim com ferros em brasa. De repente, senti a dor mais intensa, mais indescritível e brutal da minha vida. Um dos guardas saltou com todo peso do corpo sobre minha perna quebrada e inflamada.
As dores da surra não me deixaram dormir naquela noite.
As costas ardiam-me como se estivessem em, fogo e a dor na perna era quase insuportável. Cumpria-se, assim, a ameaça do tenente Tarrau, feita apenas algumas horas antes, em sua sala de diretoria.
A vara Ho Chi-Minh
Na manhã seguinte soldaram as portas. O tenente Cruz, da Polícia Política, disse-nos que era uma ordem pessoal de Castro e que ficássemos sabendo que íamos permanecer anos naquelas celas.
O médico militar era um comunista que tentava parecer-se com Lênin, usando o mesmo tipo de barbicha. Alto — mais de um metro e oitenta e dois de altura —, de pele muito branca e corpulento. Chamava-se Lamar, usava uniforme de médico e era um sádico. Quando lhe pedi assistência médica, assomou-se pela fenda, olhou minha perna e disse:
— Espero que isso seja uma boa gangrena... Eu mesmo entrarei aí para cortá-la.
E conseguiu me angustiar, porque realmente tive medo que me acontecesse uma infecção irremediável. A perna continuava muito inflamada ao redor do tornozelo e o pé do derrame estava com uma cor escura, a pele brilhante, de tão inchado.
Não podia ficar de pé e me locomovia sentado, arrastando-me sobre as nádegas. A situação se tornou mais difícil quando nomearam nossos guardiões os soldados que estavam de sentinela no quartel na noite da fuga. Os que cuidavam das celas eram os guardas castigados. Impossível descrever a sanha daqueles homens. Principalmente o loiro alto, da metralhadora, que nos considerava culpados de sua desgraça.
Esse guarda arranjou uma lata de cinco galões, das que eram usadas para lavar o chão, e levou-a aos presos comuns para que urinassem e defecassem nelas. Quando estava até a metade dessas imundícies, juntou água e subiu ao teto de malha das celas.
Foi a sensação de frialdade que me acordou. Estava molhado de cima a baixo, sentado em um charco fétido, pestilento. Pedaços de excremento deslizavam por minha cabeça e minha cara. Com a surpresa, não pude evitar que me caíssem dentro da boca.
Com o dedo indicador, empurrei uns restos de excrementos dos ombros e das coxas, depois me arrastei até o chuveiro, para me lavar. A água estava fechada. Chamei o guarda. Não respondeu. Então, chamei Boitel e os outros; contei-lhes o que tinha acontecido. Todos começaram a gritar :
— Água! Água!
O guarda loiro, o mesmo que tinha jogado urina e excrementos em mim, entrou no corredor e mandou-nos fazer silêncio. Depois disse que havia recebido ordens para nos dar água só para beber e na hora da comida.
Um instante mais tarde chegou outro militar com uma chave inglesa e apertou fortemente os registros situados no corredor e fora do nosso alcance. Durante mais de três meses ficaram de guarda ali. Em todo esse tempo não nos deixaram tomar um banho sequer. Só tínhamos aqueles banhos de urina e fezes, que eles nos davam de cima do teto de malha.
A porcaria secou nos pêlos do nosso corpo. O mau cheiro enchia a cela.
Quando alguém lê ou ouve falar sobre um prisioneiro confinado numa cela, nas condições que nós estávamos, nunca pensa em certas coisas, porque é impossível concebê-las fora de um cárcere. Entre elas, como satisfazer as necessidades fisiológicas com um mínimo de higiene. Tínhamos que fazê-lo ali, naquele buraco, em um dos cantos; mas ao terminar não havia nada para nos higienizarmos: nem água, nem sabão, nem papel, nem um pedaço de pano. Como papel higiênico tínhamos que usar os dedos. Não havia outro jeito.
Boitel estava gritando e discutindo com um guarda. Eu não sabia do que se tratava:
— Isso é covardia. Vocês são uns miseráveis e fazem tudo isto amparando-se na força da farda!
— O que há, Boitel? — perguntou Ulisses.
— Boitel nos explicou que o haviam fincado com um pau. Na realidade, não entendi bem o que ele estava querendo dizer até que o guarda, caminhando pelo teto, chegou à minha cela. Estava com uma comprida vara de madeira, com a ponta afinada, e logo percebi o que tinha acontecido.
Boitel estava dormindo e o guarda, silencioso, enfiara a vara pelas malhas da rede e o aguilhoara, acordando-o.
Desde então, as varas de Ho Chi-Minh iriam nos torturar e levar à beira da loucura. Não havia possibilidade de escapar, pois o guarda, lá de cima, dominava a cela e podia cutucar à vontade. A ponta da vara era meio rombuda e não furava, mas machucava, não nos deixando dormir. Era justamente isso que eles queriam.
Só havia uma sentinela que não nos aguilhoava e a cada três dias, quando ele entrava de serviço naquela área, dormíamos seis horas seguidas. Quando seu substituto chegava, subia ao teto, vara na mão, e nos aguilhoava. Depois, descia. Daí a uma hora tornava a subir e de novo o despertar sobressaltado.
Eu estava esgotadíssimo. A falta de sono e a tensão afetavam-me seriamente e eu notava. Recorria, então, a Deus. Minhas conversas com Ele terminavam em um fortalecimento espiritual que, eu sentia, dava-me novas energias. Nunca lhe pedi que me tirasse dali. Não achava que se devesse usar Deus para esse tipo de pedido; só que me permitisse resistir, que me desse fé e fortaleza de espírito necessárias para suportar aquela situação sem adoecer de ódio. Unicamente lhe rogava que me acompanhasse. E sua presença, que eu sentia, fez da minha fé uma arma indestrutível.
Continuaram jogando baldes de urina e excremento em nós. Nas madrugadas daquele frio inverno, jogavam também água gelada. Era desagradável, mas nos permitia limpar um pouco os restos de excremento do piso da cela.
Aos poucos a latrina, sem água para levar as fezes, foi se enchendo. Ao anoitecer, baratas andavam pelas paredes, pelo chão, subiam-me pelo corpo e suas patas, provocando cócegas, faziam-me acordar subitamente.
As semanas sem banho fizeram com que meu corpo se cobrisse de uma camada gordurosa, escura, que provocava irritação nas axilas, nos genitais e na cabeça. Uma erupção de pequeninos caroços invadia-me todo o couro cabeludo.
Fungos também começaram a aparecer na sujeira de meu corpo, que é o ambiente ideal para sua proliferação. Primeiro nos pés, nas virilhas, pernas; depois no pescoço. Quando me invadiram os testículos a coceira era insuportável. Serviam-nos água em uma lata de conserva, na hora do almoço e na do jantar. Para conseguir água entre as refeições ou em outras horas, era preciso chamar mil vezes o guarda, gritar, armar um escândalo. Assim, às vezes, conseguíamos mais um pouquinho.
Minha grande preocupação era não pegar uma hepatite. Conhecia os perigos da falta de higiene, das fezes acumuladas no canto da cela, na latrina, sobre a qual pululavam centenas de vermezinhos viscosos, que subiam pelas paredes e arrastavam-se pelo chão.
Eu jamais punha a mão nos alimentos. Era preciso devolver a colher com o prato. Ulisses tentou ficar com a dele, pensando que ninguém entraria na cela a fim de pegá-la. De fato, não entraram; simplesmente disseram-lhe que não ia mais receber comida até devolvê-la. Na refeição seguinte não deram colher a nenhum de nós: tivemos que comer com as mãos.
Como pegar macarrão, farinha ou pão com as mãos sujas, cheias de excrementos? Era coisa que eu não queria fazer; pegava então o prato pela fenda, colocava os lábios na borda e, com curtas sacudidelas, ia fazendo a comida cair dentro da boca. Comia assim ou do mesmo jeito que um cachorro, enfiando a boca no prato. Materialmente, estava reduzido a uma condição subumana. Era mais animal do que homem e só me salvava daquele estado animalesco inventando mundos interiores, que eu enriquecia com o estranho processo de fechar os olhos e imaginar a luz, o ar, sóis perenes, horizontes nos quais não se podia pôr cercas nem alambrados, céus, estrelas, flores e mil sons agradáveis tirados do fundo das lembranças: o canto dos pássaros, o estrondo das ondas do mar batendo nas pedras, o sussurro do vento passando entre os ramos das árvores. Bastava-me, na escuridão daquele canto imundo, cerrar os olhos para que o milagre bíblico do fazer a luz se repetisse dentro de mim. Lá, nos meus mundos, estava fora do alcance de meus carcereiros, sentia-me livre, podia vagar por prados e ribeiros, habitando um universo secreto no qual a fé religiosa conjugava-se com a imaginação e as lembranças.
A primeira vitória
A inflamação da perna havia cedido muito. Mas os ossos fraturados e deslocados do lugar tinham soldado mal e meu pé estava torcido para dentro, com uma visível deformidade. Nunca deixamos, meus companheiros e eu, de pedir assistência médica. A negativa sempre foi total.
As colônias de fungos continuavam invadindo meu corpo e meu grande temor era que chegassem aos olhos.
Adquiri, então, uma infecção intestinal, com febre muito alta. As diarréias eram constantes e me desidrataram. A restrição de água persistia e não tínhamos conseguido um banho sequer, durante meses. Meu corpo estava cada vez mais escuro e ensebado. Quase já não tinha forças para falar, mas meus companheiros continuaram exigindo que tratassem de mim. Por fim concordaram em me levar para o hospital.
Naquela época os médicos prisioneiros é que dirigiam as salinhas do hospital. Se não fossem eles, não teríamos tido a mínima assistência.
O dr. Armando Zaldívar era o chefe da Balinha a que fui destinado. Zaldívar era uni médico jovem, formado na Espanha. Católico praticante, regressou a Cuba com o triunfo da revolução. Logo compreendeu que o país estava sendo dirigido para o comunismo e não vacilou em deixar de lado o estetoscópio para empunhar um fuzil e subir para as montanhas do Escambray para combater contra Castro. Capturado e condenado a trinta anos, já estava há vários meses no presídio da Ilha de Pinos.
Meu aspecto impressionou a todos os que estavam lá. A primeira coisa que Zaldívar fez foi mandar que cortassem minha cabeleira de meses, que já cobria as orelhas e estava chegando aos ombros. Também me barbearam.
Enquanto isso, prepararam um banho. Lembro que com uma tampa de lata de conserva, que dividi ao meio para servir de colher, raspei a crosta de sujeira que tinha no corpo. Ela saía enroscando-se como cortiça, como uma casca. Uma coisa inaudita, incrível.
Foram necessárias várias latas de água de cinco galões para aquele primeiro banho. De cabelo cortado, banho tomado e barbeado, era outro homem; depois, deitado em uma cama limpa. Eu me sentia como se me tivessem posto em liberdade. A saída dos pavilhões de castigo para o hospital ou para as circulares era como a liberdade.
Com soro e antibióticos eliminou-se a infecção intestinal. Zaldívar mandou que me fizessem umas muletas de madeira, para me apoiar nelas. Andar sem esse apoio era impossível, pois eu não podia firmar o pé machucado. Enquanto as muletas não ficavam prontas, apoiava-me em dois paus à guisa de bengalas.
Com Raul Lopez, um dos pilotos do exército anterior, consegui fazer sair um recado para minha família. A acolhida que todos me ofereceram foi cálida, carinhosa. Faziam tudo para me cobrir de atenções, por mínimas que fossem.
Zaldívar conseguiu que fizessem uma radiografia do meu pé. Foi assim que soube o estrago que sofrera com a queda e, talvez, com os pulos do guarda sobre minha perna. Os ossos fraturados haviam soldado fora do lugar, formando uma confusão. Além disso, estava com uma artrite pós-traumática e trocas artrósicas. Não se podia fazer mais nada.
Então, para me reter uns dias no hospital, pois a diretoria estava pressionando para que me levassem de volta aos calabouços de castigo, Zaldívar resolveu engessar-me a perna e erguê-la, acima da cama, com umas polias de ferro. Ele mesmo colocou o gesso desde a barriga da perna até as pontas dos dedos. Assim que o gesso secou, cortou-o por baixo, com uma tesoura, de ponta a ponta e retirou-o. Eu podia pôr e tirar essa bota de gesso com rapidez. Quando os oficiais entravam na sala para nos contar, viam-me na cama com a bota de gesso e a perna erguida pelas polias. Assim que saíam, eu me livrava de tudo.
O tratamento contra os fungos, várias vezes por dia, estava dando resultado. Pele nova, limpa, ia aparecendo nos lugares antes infectados. Pela primeira vez em longos meses, pude limpar a boca com escova de dentes.
A repressão contra nossa sala tornava-se mais intensa, até chegar ao ponto da diretoria ordenar que me devolvessem à cela de castigo.
Os meses passavam, lentos; a prisão ia embotando meus sentidos. A cela onde me encontrava, a número 9, ficava no final do corredor. Na parede, um preso havia desenhado um Cristo na cruz, com mosquitos. O original artista havia esmagado esses insetos, cheios de sangue, contra a parede, onde tinham ficado grudados. A cruz escura, com tons preto-vermelhos, tinha mais ou menos um metro e vinte de altura e me causou profunda impressão quando a vi.
Parecia que a profecia do tenente Tarrau de que passaríamos anos naquele calabouço ia se realizar. Decidimos, então, fazer uma greve de fome exigindo que nos devolvessem às circulares. Eu achava que com cinco ou seis dias sem comer era possível morrer. Só bebíamos água. Não me mexia e permanecia o tempo todo deitado no chão para economizar energia. Passou o primeiro dia, o segundo .
No terceiro, o tenente Cruz, chefe da Polícia Política da Ilha de Pinos, foi nos visitar. Eu disse a ele que a medida do castigo tinha excedido todos os precedentes e que não íamos continuar lá.
Bem cedo, no dia seguinte, o médico Lamar, aquele de barba estilo Lênin, apareceu no pavilhão. A ordem de nos tirar dali já havia sido dada, nós sabíamos, mas o médico parecia ignorar que estávamos a par da decisão tomada. Minha negativa em suspender a greve foi decidida. Disse-lhe que só voltaríamos a comer quando estivéssemos fora dali. Informei-o, além disso, que Boitel estava em péssima situação física e que precisava imediatamente de assistência médica.
Poucas horas depois levaram-no também para o hospital.
Quando o militar que foi nos buscar me deu uma muda de roupa e me disse que ia para a circular, senti uma das maiores alegrias da minha vida. Sair dali era como sair do próprio inferno.
Greve geral
Senti-me ligeiramente enjoado quando chegamos à estradinha. Dois guardas andavam a meu lado. Depois de tantos meses fechado, sem poder olhar para longe, alguma coisa se havia alterado em mim, pois tinha a impressão de que as duas moles enormes das circulares e as montanhas, à minha esquerda, caíam por cima de mim, em um movimento constante, como o de ondas.
No ano anterior, vestido de militar, eu tinha percorrido aquele caminho tentando fugir. Agora, a viagem de volta amontoava em meu cérebro muitas lembranças e emoções daquela tarde memorável, próxima no tempo, porém inexplicavelmente remota na memória.
O térreo estava cheio. Quando entrei, uma atroadora ovação e vivas reboaram para me receber. Foi tão emocionante vê-los me aplaudindo de maneira tão sincera que não pude evitar, entre abraços e cumprimentos, que meus olhos se enchessem de lágrimas.
Nos dias posteriores ao regresso, informei-me de tudo que havia acontecido durante a ausência. Havia um clima de muito descontentamento mesmo entre os prisioneiros mais resignados.
Sempre, em todo grupo humano, há os que suportam tudo, os que calam e que em épocas de violência deixam-se matar lentamente, sem ter sequer o desabafo do protesto ou a coragem da rebeldia. Mas até esses estavam fartos. Chega o momento em que até mesmo o mais manso dos homens sente que sua paciência se esgotou.
A situação era muito propícia para declarar uma greve de fome geral em demanda de tratamento humano, assistência médica, cartas, sol, alimentação adequada, etc. Assim, mandei um recado para o major da circular, que já não era o Lourenço, e me reuni com amigos para explicar-lhes a conclusão que Boitel e eu tínhamos tirado do êxito da nossa greve nas celas de castigo. Os comunistas, acostumados a ser sempre os que faziam greves de fome, ainda não sabiam como combatê-las e, antes que reagissem, podíamos ganhar a primeira grande batalha do presídio político.
Desde minha chegada dediquei todo tempo a convencer meus companheiros que o momento era oportuníssimo, que não devíamos deixá-lo passar. Pouco a pouco, o grupo mais combativo foi simpatizando com a idéia.
A comida piorava dia a dia. Sentíamos fraqueza pela carência de alimentação. E naquele meio-dia, quando entraram os panelões do almoço, os encarregados de servir as rações mexeram o caldo, achando que no fundo deveria haver alguma coisa; mas nada encontraram: era apenas água quente com uma camada de gordura na superfície.
E começaram os gritos para que devolvessem a "comida". Os ânimos estavam dispostos e estourou a greve.
Nesse momento era dia de visita em uma das circulares e os familiares dos presos estavam no refeitório.
Subi com toda rapidez que minha perna permitia — pois continuava usando muletas — até o quinto andar. Fui para minha cela e lá, com René, Chaguito e outros, procuramos e costuramos rapidamente quatro lençóis. Ainda faltavam algumas horas para a visita terminar. Como uma mistura de mercurocromo, merthiolate e água, pintei um letreiro no pano:
ESTAMOS EM GREVE DE FOME!
Colocamos o letreiro para fora da janela, com cordas. Quando os familiares começaram a sair, viram-nos e através deles a notícia percorreu Cuba, no dia seguinte.
A circular 1 juntou-se à greve, a circular 2 também e apenas uma parte da 3, pois um grupo de presos que estava lá desde 1959 não quis aderir ao movimento.
No outro dia levaram os panelões com um almoço que parecia apetitoso. Como não o aceitamos, deixaram-no à entrada da circular: os latões continham arroz e via-se por cima carne e pimentão em abundância. Pretendiam, com uma comida como aquela, antes nunca vista no presídio, enfraquecer nossa decisão e, assim, romper a greve. Nenhuma circular aceitou a comida, a não ser a 3.
Os comissários políticos andavam irritando os guardas contra nós. Soubemos por um deles, que contou ao gradeiro.
Então, para neutralizar aquela campanha, pintei outro lençol, desta vez dirigido aos guardas, que dizia:
SOLDADO MILICIANO
NADA TEMOS CONTRA VOCÊS
PEDIMOS TRATAMENTO HUMANO!
Esse lençol foi posto para fora do lado que dava para o quartel, a fim de que fosse visto pelos guardas.
A diretoria do cárcere chamou os majores das circulares para uma entrevista com Tarrau e outros funcionários.
Ao voltarem, comunicaram-nos que a direção havia dito que não cederia em nada. Que interrompêssemos a greve incondicionalmente e, então, eles os chamariam de novo, mais adiante, para que os majores apresentassem as necessidades que tínhamos.
A resposta foi nos concentrar no térreo. Descemos com colchas, lençóis, catres e acomodamos à frente os que estavam mal de saúde, doentes crônicos, velhos. Pintei outro lençol dirigido à direção e à circular 1:
NOSSA RESPOSTA
HOMENS DISPOSTOS A MORRER
O protesto coletivo foi bem além das circulares. Uma tarde, vários oficiais chamaram à diretoria o dr. Valdes Rodriguez, o neurocirurgião. Uma menininha, gravemente ferida, estava no hospital civil de Nova Gerona. Era preciso uma intervenção cirúrgica cerebral para salvá-la: Valdes Rodriguez não hesitou. Quando chegaram ao hospital, levaram-no a uma saleta, em companhia do diretor, de médicos e oficiais que o escoltavam, Lá estava servido um jantar suculento, para que ele comesse antes de passar à sala de cirurgia. Valdes Rodriguez não aceitou. Insistiram, mas a negativa dele foi inabalável. A operação levou duas horas. A menininha se salvou e Valdes Rodriguez regressou para a cela, faminto.
Enquanto isso, na circular 1, Tony Lamas, com risco da própria vida, subiu pelas vigas do edifício até o ponto mais alto do teto cônico. Era uma proeza que exigia serenidade e nervos de aço. A uma altura de mais de trinta metros, teve que andar por vigas estreitas para alcançar o local para onde convergiam todas as demais, distribuídas como se fossem os raios de uma roda de bicicleta. Ele se dirigiu para aquele centro. Embaixo, o vazio, a morte. E estava em greve de fome. A mais leve tontura significaria cair e estourar-se contra o chão. Quando chegou àquele ponto, teve que gatinhar até outro, mais alto, onde se abriam uma janela à guisa de clarabóias, e por elas colocou para fora uma bandeira cubana, cumprindo, assim, a missão que impusera a si mesmo.
A greve continuava. A falta de preparo mental afetava tanto quanto a dos próprios alimentos. Os quinze ou vinte frascos de soro que havia no hospitalzinho foram colocados nos mais velhos e fracos, e nos que estavam vomitando e se desidratando, porque não retinham água no estômago.
No dia seguinte ao que tinha sido dito que não cederiamos, a direção mandou chamar novamente os majores. Eles entrevistaram-se com Sanjurjo, então diretor dos Cárceres e Prisões de Cuba. Vindo de Havana com urgência, Sanjurjo escutou as explicações sobre a medida por nós adotada. Não obstante, tentou negociar apenas com promessas.
A atitude firme dos nossos representantes fez com que compreendesse que não íamos transigir, e então eles tiveram que ceder.
Ganhamos a greve.
A alegria foi tremenda. Aquela vitória nos deu vida nova. Depois de tanto sofrimento, tanta ignomínia e miséria, o triunfo serviu para fortalecer nosso espírito combativo e de resistência.
A alimentação melhorou em todos os aspectos. Além disso, entregavam-nos correspondência uma vez por semana e nos permitiam escrever uma carta a cada quinze dias. Também abriam a entrada de água por mais tempo. Deram-nos um pouco mais de medicamentos e as visitas passaram a ser trimestrais. Conseguir aquilo da Direção dos Cárceres e Prisões constituiu um êxito sem precedentes.
Mas os comunistas não se sentem obrigados a cumprir o que prometem. Assim, depois de poucas semanas, começaram os problemas. Por exemplo, não entregavam a correspondência e nós, para pressionar, recusávamo-nos a responder à chamada até nos darem as cartas.
O ano de 1962 foi de grandes acontecimentos em Cuba; deve-se recordar a crise dos foguetes soviéticos na ilha, que levou o mundo ao umbral da guerra atômica. Além disso, a Polícia Política abortou uma conspiração militar a nível nacional, que tinha como objetivo a derrubada do Governo.
O Exército, a Marinha e a Polícia estavam implicados naquele complô. A reação do Governo, depois de descobertos os conspiradores, foi uma verdadeira orgia de sangue. Dezenas de militares detidos entravam para o presídio La Cabaña, para o Castelo do Morro e eram imediatamente fuzilados, sem julgamento prévio, unicamente por decisão do Alto Comando da Polícia Política.
Nesta conspiração, conhecida com a de 30 de agosto, fuzilaram 460 militares nos presídios da ilha inteira.
Apesar de tudo, tivemos vários meses de relativa tranqüilidade, até que chegou o mês de setembro. Estavam fazendo revistas em todas as circulares e na número dois descobriram cortados os barrotes da cela de Hector Gonzalez e de Domingo Sanchez, "O Machado", como nós, amigos, o chamávamos.
Quando os levaram para as celas de castigo, os guardas começaram a bater neles. Os dois se revoltaram, retribuíram a agressão e uma turba de guardas caiu em cima deles; foram batendo nos presos durante todo o trajeto.
Imediatamente os presos de todas as circulares começaram a gritar. Uma parte dos detentos da circular 2 havia entrado, mas um grupo negou-se a entrar. Fizeram isso em solidariedade aos presos que tinham sido surrados. Exigiam que os tirassem das celas de castigo.
A guarnição foi reforçada e os soldados entraram no curral para fazer entrar à força os que protestavam. Houve, então, um entrechoque de presos e guardas. Estes batiam com selvageria. Impotentes, atrás das grades, nós só podíamos gritar à guarnição, tentando fazer com que parassem a agressão.
Da circular 2 começaram a atirar pratos, garrafas e qualquer objeto que tivessem à mão, em cima dos guardas. A resposta foi atirar. Metralharam as janelas e houve vários feridos, dois deles graves, mas ninguém morreu.
Nessa mesma tarde, e como protesto contra a bárbara agressão, a circular resolveu devolver a comida. A princípio não se pensou realmente em uma greve de fome, mas sim em provocar a presença de um funcionário da direção penal, a fim de expor a ele a situação dos surrados que estavam nas celas de castigo e pedir seu regresso à circular. No entanto, na manhã seguinte, alentados pelo triunfo fácil do movimento anterior, amanhecemos em greve de fome.
O dia passou sem qualquer novidade. Ainda não havia amanhecido quando Samuel me acordou, sacudindo-me. Estava visivelmente assustado e trazia a bandeira na mão, dobrada.
— Estamos cercados! — disse e apontou para a janela.
Desci da cama e quando olhei para a estradinha o vulto metálico de um tanque russo Stalin, com o canhão apontado para a nossa circular, deixou-me atônito. Perto do refeitório, outro... e logo eu veria mais. Um cordão de guardas rodeava cada circular; estavam tão perto um do outro que poderiam dar-se as mãos. A cada dezoito ou vinte metros colocaram um tripé alto e ajeitaram em cada um uma metralhadora. Patrulhas com cães pastores iam e vinham. Passavam caminhões e jipes, em uma atividade tremenda.
Quando as quatro circulares estavam rodeadas, chegaram o comandante William Gálvez, Curbelo, Tarrau e vários oficiais de alto nível da Polícia Política. Chamaram os majores para dizer-lhes que iam fazer uma revista "pacífica".
Foi por esta sádica ironia que batizamos aquela revista de "A Pacífica".
Primeiro, entraram nas circulares 1 e 2. A revista durou desde o começo da manhã até a noite. Vimos encherem caminhões e caminhões com pertences nossos.
Os tanques passaram a noite inteira patrulhando e o sol ainda não tinha nascido quando um grupo de militares com capacetes e fuzis R-2, de baioneta calada, tomaram posição junto da parede do térreo, de ambos os lados da grade de entrada. Outro grupo sem armas longas, mas com baionetas, formou fila em frente dos soldados. Na torre apareceram vários guardas portando lança-gás lacrimogêneo.
Um pelotão de oficiais entrou, então, vociferando. Com um megafone, começaram a gritar ordens e ameaças. Exigiram que ficássemos nus e colocássemos as mãos atrás da cabeça, depois que descêssemos, assim, para o térreo.
Foram nos amontoando no canto dos tanques de lavar roupa. Estávamos tão apertados que éramos como uma massa compacta. Os que ficaram atrás não podiam tirar as mãos da nuca. Eu estava no centro e por isso a multidão me colocava longe do alcance direto dos militares. Com as mãos, tapávamos os genitais, para não encostá-los nos companheiros da frente.
Assim ficamos mais de doze horas. Jogaram todas as nossas coisas para o térreo, menos as camas. Os livros, alimentos, sabonetes, colheres, meias, roupa de baixo ... Arrancaram os saltos dos sapatos. Quebraram os espelhinhos que encontraram nas celas. Os copos, jarros e escovas dentais tiveram o mesmo destino.
Jamais houve, nos vinte e cinco anos de existência que já tem o presídio político cubano, uma revista como aquela — e eu estive, até 1982, presente às piores. Massacres e surras maiores, sim, com mortos e feridos gravemente a bala e baioneta, mas não uma destruição organizada, nem tão impiedosa, como "A Pacífica". Além disso, tinham tudo preparado para nos massacrar, se nos rebelássemos.
Levaram ou destruíram mais de noventa por cento dos nossos pertences. As lonas ou sacos de aniagem das liteiras foram cortados com as baionetas.
Nunca vou esquecer a comida que nos deram, quase às nove da noite: arroz com feijão preto. Tínhamos passado o dia inteiro sem comer nada, sem sequer beber água. A única que havíamos recebido foi a água asquerosa que caiu em cima de nós quando os guardas, lá de cima, nos andares, derramaram a que estava nos baldes de limpeza.
Tive que usar como prato um pedaço de papelão, pois tinham levado o meu embora.
A importância de viver?
Primeiro, a derrota da invasão da Baía dos Porcos, depois, a revista e a constante ameaça de voarmos com os explosivos foram as causas do desencanto, da frustração de muitos prisioneiros. As guerrilhas nas montanhas haviam sido esmagadas e apenas pequenos focos de valentes camponeses sobreviviam; mas não constituíam uma promessa real da derrocada do regime. Todos esses acontecimentos gravitavam sobre o presídio e determinaram que certos prisioneiros optassem por se voltarem para os planos de reabilitação política.
A situação familiar também influiu na decisão de muitos daqueles homens. Lançaram-se à luta sacrificando família e lar, sem se importarem com as próprias vidas, tentando, com sua contribuição pessoal, impedir que o comunismo se apoderasse do país. Mas, ao serem detidos, a Polícia Política se encarniçava contra seus parentes, saqueava suas casas, em muitos casos despojavam-nas até mesmo dos móveis e, se tinham uma moradia bonita, expulsavam-nos dela, como aconteceu com a de minha esposa Martha, quando o pai dela foi preso. Como todos os móveis estavam em seu nome, tiraram-lhe o televisor, a geladeira e o toca-discos, pois esses aparelhos escasseavam no país. Também confiscaram o dinheiro que a família tinha na poupança, em um banco.
A revolução ditou uma resolução mediante a qual todos os bens de quem atentasse contra o Estado seriam confiscados. Logo, as turbas reuniam-se diante dos lares dos presos, como fizeram diante do meu lar. Agentes da Gestapo cubana, vestidos de civis, lideravam as manifestações "espontâneas" de repúdio da população contra os familiares dos contra-revolucionários. E a família ficava marcada para sempre, como se seus componentes estivessem empestados. A esposa e os filhos de um "traidor" à revolução eram expulsos do trabalho.
Até aos filhos pequenos, na escola, chegava a maré de ódio. As crianças chegavam em casa chorando, por causa dos insultos que os coleguinhas lhes gritavam.
A repressão aos familiares condenava-os também à miséria e à perpétua flagelação. À minha família, que morava em um segundo andar, fechavam o registro de água geral e minha mãe e irmã tinham que ir à casa da família de outro preso, que morava em frente, buscá-la nos baldes. Sofriam todo tipo de humilhação e diariamente recebiam pressões. Por exemplo, minha mãe entrava em uma longa fila, com o cartão de racionamento, diante do armazém que lhe correspondia. Quando chegava a vez dela, o miliciano que distribuía o produto, em companhia da presidente do Comitê de Defesa, dizia-lhe que tinha acabado. Minha mãe sabia que não era verdade, mas não podia reclamar. Saía da fila e via que imediatamente continuavam a distribuição do produto que lhe haviam negado e que lhe pertencia.
Esse suplício dos familiares dos presos políticos agravava-se à medida que a revolução ia se radicalizando. Repressão, humilhações de todo tipo, perseguição, fome, terror: esse era o quadro familiar. No cárcere, os comissários políticos exploravam essa situação, criada pela própria revolução, para coagir o prisioneiro. Chamavam-no para entrevistas e pintavam-lhe o panorama em seu lar.
— Quem ajuda a sua família? — dizia o comissário. — Os yankees lhe mandaram algum dinheiro? Sua família está abandonada à própria sorte. Usaram você para atentar contra a revolução e está vendo que é justamente a revolução que se preocupa com seus familiares e com você mesmo.
Esse tipo de trabalho foi planejado e executado pela Direção Geral de Reabilitação Política dos Cárceres e Presídios.
Cada um dos que aceitaram tinha uma circunstância muito especial e por isso nunca julguei a decisão de aceitar a reabilitação política. Sabia que muitos deles jamais mudariam de ideal e que sofriam de terríveis conflitos interiores ao dar aquele passo que me separou, mas apenas fisicamente, de grande amigos, aos quais continuo querendo bem como a irmãos.
Em outubro de 1962, ainda na prisão, soubemos de imediato da presença de foguetes soviéticos em Cuba. A informação nos foi dada pelo radinho.
Deu começo a uma grande atividade entre os militares porque, sem dúvida, o país estava em perigo de ser invadido pelos Estados Unidos.
Todos os terrenos ao redor das circulares foram semeados de compridas e afiadas estacas de madeira contra a descida de pára-quedistas que pudessem ser lançados para tomar o presídio. Várias baterias instaladas apontavam para nós e os técnicos que cuidavam do TNT ativaram explosivos para nos fazerem em pedacinhos.
Foram dias angustiosos. Como íamos sabendo dos acontecimentos, sabíamos que poderia estourar uma guerra nuclear. É sabido que nunca o mundo correu maior perigo que naquela ocasião. Se acontecesse, nós seríamos os primeiros mortos.
Quando terminou a crise, em fins de outubro, Castro, com a promessa de Kennedy a Moscou de que Cuba não seria invadida, mandou que desativassem as cargas de TNT. Meses mais tarde, os explosivos que nos ameaçavam desde abril de 1961 seriam retirados.
Depois de "A Pacífica", o peso do pequeno pacote familiar que podíamos receber baixou para sete quilos e só podiam chegar a cada dois meses. Além disso, não podiam conter leite em pó. A nova disposição duraria pouco tempo.
Tinha havido uma mudança interior em fevereiro, enquanto estávamos nas celas de castigo. Benito, meu futuro sogro, foi levado para a circular 3. Carrión e outros amigos íntimos foram mudados para a 1.
Comecei a escrever clandestinamente para Martha. Para isso, utilizava amigos que tinham passado para o Plano de Reabilitação: eles recebiam visitas freqüentes e tinham muitos contatos com civis que colaboravam conosco.
Chegaram as mudanças entre as circulares. Lênin dizia que o preso devia ser constantemente movido e cumpriam suas orientações ao pé da letra. O objetivo disso era desestabilizar o prisioneiro. A mudança força-o a dissolver os planos de qualquer tipo que tenha elaborado, a romper o círculo de amigos ... Isso o desorienta, afeta-o psiquicamente e, então, gasta suas energias na nova adaptação. Com as mudanças freqüentes, os planos de fuga eram desmantelados.
Saí sem saber para que circular iam me mandar. Aconteceu ser a número um. Boitel e Carrión estavam lá. O encontro com eles foi uma grande alegria. Boitel estava no segundo andar com Perez Medina, amigo desde o tempo em que éramos livres. Primo de Neno, o que me deu um rosário e lançou um caminhão cheio de soldados em um desfiladeiro.
Consegui lugar na cela 53, no segundo andar, com Wilfredo Noda, um dos melhores poetas do presídio, amigo leal e extraordinário.
Aquela circular, que jocosamente chamávamos a dos Generais e Doutores, parodiando o título da conhecida novela de Carlos Loveira, era formada por um pessoal cuidadosamente selecionado pela direção penal. Concentraram ali todos os profissionais, universitários, estudantes, dirigentes de organizações anticastristas, políticos, ex-oficiais de alta patente do exército de Batista e de Castro, funcionários importantes dos governos e elementos considerados como perigosos pelo regime.
Essa seleção tinha por objetivo distanciar os milhares de presos que estavam nas três outras circulares dos que o Governo chamava de cabeças ou ideólogos.
Do ponto de vista intelectual, aquele tempo na circular 1 foi para mim a Idade do Óuro no presídio da Ilha de Pinos. A astúcia de nossos familiares para passar nas revistas os livros que nos traziam proporcionou-nos uma grande quantidade de textos sobre toda a sabedoria humana.
As atividades culturais, com todos aqueles livros, intensificaram-se. Conseguimos introduzir uns cursos de idiomas e em uma semana fizemos dezenas de cópias manuscritas deles. As cadernetas não davam e, quando terminávamos uma, apagávamos a escrita com a sola do tênis. Com esse método, uma caderneta podia ser usada até cinco vezes.
A alimentação reduziu-se à mínima expressão, principalmente depois do ciclone Flora, que açoitou Cuba de maneira terrível, em 1963, deixando cerca de mil mortos e uma província do Oriente arrasada.
A direção da penal apresentou-se nas circulares solicitando nossa ajuda: pediram-nos que doássemos roupas, lençóis... porque muitos familiares nossos viviam nas regiões flageladas e, além disso, por solidariedade humana, ajudamos com a maior boa vontade. Foi impressionante ver presos, que não tinham nem o suficiente para satisfazer às suas necessidades mais elementares, dar o pouco que tinham : lençóis, camisetas, meias, para ajudar as vítimas do ciclone. Vários caminhões com nossa doação saíram carregados do presídio. Naquele inverno passei um frio intenso. Tinha doado, como quase todos, meu único cobertor. Depois consegui um saco de juta e costurei nele uns pedaços de náilon, tecido que protege muito porque não deixa escapar o calor, e me cobria com ele à noite.
Incrivelmente, a direção da penal nos comunicou que tínhamos doado durante três meses nosso almoço para as vítimas do ciclone. Que tipo de Governo é esse que tem de recorrer a presos para que o ajudem em uma calamidade?
A fome nunca foi maior. Houve quem se dedicasse à caça de pardais, que eram abundantes por ali. Gatos costumavam entrar nas circulares à noite. Logo fizeram-se armadilhas para apanhá-los. E um gato transformou-se em cobiçado quitute. Na primeira vez que comi gato, apreciei sua carne como a mais exótica que provei na vida. Se a gente tinha sorte de um amigo apanhar um gato, podia comer um pedaço.
Martha e eu continuávamos, com mil esforços, trocando cartas. Idealizamos um método de escrita invisível, muito elementar, mas que deu resultado. Como era permitida a entrada de cadernos escolares, Martha, seguindo minhas instruções, preparou uma tinta invisível muito fácil de fazer: coloca-se um pouco de goma de mandioca em um pouco de água fervendo, até que se forme uma pasta de consistência leve. Depois, ela me escrevia usando essa mistura como se fosse tinta; a pena traçava as letras que se viam pelo suave brilho do líquido, que desaparecia rapidamente, absorvido pelo papel.
Quando eu recebia os cadernos, para revelar o que estava escrito, passava sobre as folhas um pedaço de algodão embebido em água com umas gotas de tintura de iodo. Então, iam aparecendo as letras, precisas, claras, facilmente legíveis.
A cada dois meses eu recebia um caderno inteirinho escrito por ela. Era uma grande alegria para mim ir descobrindo página por página. Quando, por motivos de segurança, eu precisava dizer algo a ela, usava o mesmo método. Inclusive, às vezes mandava cartas pelas vias normais. Tinha uma tática que não falhava: usava uma folha de papel grande, com linhas; escrevia a mensagem invisível e, depois, nas mesmas linhas, redigia uma carta elogiando o "bom trato" que recebia das autoridades. Isso era o bastante: minha carta chegava sem falta às mãos de Martha.
Ela devia usar dois processos para revelar: o mesmo empregado por mim ou o calor, porque nem sempre eu podia conseguir o amido de mandioca. Quando isso acontecia, usava uma aspirina dissolvida em água para escrever, pois o ácido acetilsalicílico reage com o calor. A mesma coisa acontecia com o medicamento chamado Pahomín, um antiespasmódico que havia na farmacinha, ou com suco de limão. Quando não tinha nada disso, usava algo que jamais faltava: urina.
Aquela correspondência com Martha era a coisa mais importante a que me dedicava então. Graças às cartas íamos nos conhecendo um ao outro. Martha já não era a adolescente de quinze primaveras. Agora estava com dezessete anos e nós dois íamos edificando, em nosso mundo de letras, um futuro muito lindo, que partilhávamos com fervor e esperança.
Aquela amizade encheu de ternura e fé as nossas vidas. Começamos a nos sentir como amigos de sempre, como dois seres queridos que há muito tempo não se encontravam. Para mim foi um doce apoio, um sustentáculo firme que muito me ajudava. Não lhe havia declarado meus sentimentos, mas mesmo sem essas palavras, sentia que havia alguém pensando em mim, que me esperava, além da minha família.
Trabalhos forçados
Depois de vários anos, um dia nos deram carne de cabrito. Era uma carne em conserva, hedionda, que enchia a circular com seu odor penetrante. Para mim, que a devorei com deleite, foi um prato inesquecível
Depois incluíram um ovo cozido, três vezes por semana. Apareceram pepinos em rodelas e iniciou-se uma melhora nos alimentos. Não podíamos estar fracos e anêmicos para o que haviam preparado e de que nós nem de longe desconfiávamos.
O começo do trabalho forçado foi precedido por uma onda de terror e pressão que tinha como objetivo nos amedrontar. E a diretoria do Ministério do Interior havia calculado que teriam que matar muitos de nós.
Deram ao plano o nome de Camilo Cienfuegos, que era como se chamava um dos comandantes que lutou com Castro ria guerrilha e era militante da Juventude do Partido Socialista Popular, denominação que o Partido Comunista usava desde 1944. Camilo Cienfuegos desapareceu misteriosamente em um vôo da cidade de Camaguey a Havana.
A 9 de agosto de 1964 iniciou-se a formação dos primeiros grupos de trabalhos forçados nos edifícios que então hospedavam presos políticos plantados, isto é, que não aceitavam o Plano de Reabilitação.
Eu fui chamado e designado para o bloco 20, no qual estava a maioria dos meus amigos, com exceção de Boitel, que foi incluído no bloco dos estudantes. Carrión, Pruna, Gustavo Rodriguez, os pilotos e outros duzentos mais compunham nosso batalhão de trabalho.
Alfredo Izaguirre — que tinha sido membro da Sociedade Interamericana de Imprensa e diretor do jornal mais jovem da América, El Crisol, de Havana, antes de ser nacionalizado pelo Governo — foi o primeiro que decidiu não trabalhar.
Alfredo havia participado de diversas ações contra o regime de Castro. Entrou e saiu muitas vezes de Cuba, clandestinamente; planejava um atentado contra Raul Castro. Depois, um ataque à base naval norte-americana de Guantánamo, encravada ao sul da província de Oriente, que se interpretaria como uma ação de vingança de Castro. A manobra tinha a finalidade de provocar uma intervenção armada dos Estados Unidos, que acabaria com o governo revolucionário. Mas os órgãos da segurança do Estado descobriram o complô e Alfredo foi detido. Passou muitas semanas condenado à morte, esperando todas as noites ser levado ao paredão de fuzilamento. O fato de ser membro da SIP — Sociedad Interamericana de Prensa (Sociedade lnteramericana de Imprensa) influiu de maneira decisiva para Castro mudar a pena máxima para trinta anos de reclusão. Alfredo Izaguirre tinha decidido serenamente, depois de uma análise que comentou comigo, não trabalhar nunca. Sabia que se arriscava a ficar mutilado ou até a que o matassem de pancada, mas sua decisão era irrevogável.
Quando o puseram na cela de castigo, deixaram-no sossegado por dois ou três dias. Depois desse tempo, foram buscá-lo. Da circular, vimos Alfredo escoltado por um pelotão que o levou para o fundo do quartel, por onde passava uma vala que era percorrida pela água servida dos banheiros e latrinas. Queriam que Alfredo movimentasse para a frente, com uma lata, os excrementos que se acumulavam nas beiradas da escavação. Alfredo negou-se até mesmo a tocar na lata.
O tenente Porfirio Garcia, chefe da Ordem Interior, explicou que a única coisa que ele tinha a fazer era agachar-se e movimentar um pouco a lata; isso seria o suficiente. Para os militares era uma questão de princípio: tratava-se de quebrar a resistência de Alfredo, de fazê-lo abaixar a cabeça, submeter-se, obrigá-lo a renunciar, a se contradizer. Mas Alfredo — nós o víamos da circular — sem sequer dar-se ao trabalho de falar, movimentava a cabeça dizendo NÃO.
A primeira coisa que fizeram foi rebentar a lata na cabeça dele, ferindo-o. E começou uma surra brutal. A lâmina de uma baioneta soltou-se ao bater-lhe contra a testa. Depois da primeira sessão de pancadas, o tenente Porfirio tornou a insistir, tentando convencê-lo que era melhor para ele concordar em trabalhar, nem que fosse por um minuto apenas.
A atitude de Alfredo tornou-se mais teimosa ainda e tornaram a surrá-lo. Pararam de bater e ofereceram até levá-lo para Cuba, o que para um detento da Ilha de Pinos era uma das perspectivas mais ansiadas. Mas Alfredo, com o rosto ensangüentado, continuou dizendo que não. Continuaram a bater, interrompendo a surra de vez em quando, para ver se ele cedia. Mas foi inútil. Irritados, furiosos, cutucaram-no com as baionetas e bateram nele com a culatra dos fuzis até que Alfredo perdeu os sentidos.
Desmaiado, sangrando, agarraram-no pelos pés e pelas mãos, jogando-o na parte traseira de um jipe.
Das circulares 3 e 4, dezenas de olhos acompanhavam o que estava acontecendo.
Quando o estavam retirando do jipe, ele começou a voltar a si. Jogaram-no ao chão da cela e poucos minutos depois apareceu o dr. Agramonte, novo médico militar do presídio, acompanhado por outro médico, de pequena estatura. Foi este que se agachou junto de Alfredo, que jazia no chão, de bruços. Levantou-o com esforço e apoiou-lhe as costas em um dos joelhos, para poder examiná-lo. Verificou as baionetadas. A pressão arterial estava muito baixa. Tiraram-lhe toda roupa, deixando-o apenas com as botinas. Alfredo escutava-os, mas não tinha forças para falar.
— Precisamos levá-lo já! — disse o médico baixinho ao dr. Agramonte, preto alto e corpulento. Em uma maca, completamente coberto por um lençol, levaram-no para o hospital. Só aparecia um pouco das botinas. Quem o viu chegar, pensou que estava morto. Examinaram-no outra vez. Estava com o osso do nariz quebrado, tinha vários ferimentos e contusões no corpo inteiro. Uma das baionetadas havia pegado na dobra da nádega, logo no nascimento da coxa, e quando estava deitado de barriga para baixo não se percebia, uma vez que o ferimento se mantinha fechado pela posição do corpo. Por isso escapou ao exame médico.
Administraram-lhe soro. Quando foi deitado de costas, o ferimento da dobra da nádega abriu-se e começou a sangrar. O sangue empapou o colchonete e atravessou-o, gotejando no chão. Quando descobriram o que estava acontecendo, Alfredo já agonizava, em estado de coma, nos umbrais da morte. Transfusões urgentes para devolver-lhe os litros de sangue perdido, salvaram-no.
Quinze dias depois Alfredo ainda não podia se levantar. A surra bárbara o deixara com hematomas enormes no corpo inteiro. A inflamação do rosto e o derrame pela pancada que lhe fraturou o nariz formaram olheiras completas, violáceas. Nessas condições, tornaram a colocá-lo na cela de castigo, sem nenhum tipo de assistência médica.
Alfredo Izaguirre foi o único preso que não prestou trabalhos forçados nem por um minuto, nem um segundo. E seu nome passou para a História da Rebeldia do presídio político cubano.
A pedreira
Ao amanhecer, um gradeiro mandou todo mundo se levantar para a chamada. O céu ainda estava escuro e uma débil claridade assomava-se a leste. Depois de nos contar, nos mandaram para o térreo, para o café da manhã: um pouco de água quente com açúcar e um pãozinho pouco maior do que um ovo, mas não muito.
Quase todos estavam na expectativa. Aquilo de ir trabalhar longe dos arredores do presídio significava, sem dúvida, um verdadeiro acontecimento. Os grupos da circular 3, que haviam começado a sair antes de nós, contavam-nos que os presos eram levados pela ilha inteira, plantando e colhendo frutas cítricas, fertilizando pastos, limpando pastos.
O cabo fez a chamada e nos dirigimos para a entrada principal. Lá esperavam os caminhões que nos levariam para a área de trabalho e a guarnição que nos escoltaria. Centenas de guardas, alguns com matilhas de cães policiais, ao estilo dos nazis. O comboio saiu escoltado por um caminhão cheio de guardas. Sobre a cabina desse caminhão havia um fuzil metralhadora B-Z, fabricado na Tchecoslováquia, que apontava para nós.
Os caminhões entraram por um caminho de terra vermelha, ladeado de árvores medianas. Lá esperava um civil encarregado da propriedade estatal. Os guardas desceram e atravessaram a linha de arbustos, formando um círculo que nos envolveu completamente.
O trabalho que nos tinham destinado era fertilizar — à mão, é claro — os quadradões semeados de pangola, um capim para gado pastar. Tinham preparado uns sacos de aniagem com um tirante para pendurá-los ao ombro. Em Cuba, chamamos esse saco de "jabaco", uma palavra indígena. Os sacos de adubo se amontoavam ao longo do campo.
À medida que avançávamos, o cordão de guardas também o fazia. Movimentávamo-nos dentro de ampla circunferência de fuzis, baionetas e cães. Caminhávamos sempre em terreno plano, sem árvores. Qualquer tentativa de fuga seria suicida.
Desde o primeiro dia tivemos consciência de resistir e sabotar o que nos mandassem fazer. Lembro que a maneira de distribuir o adubo foi incrível. Tinha chovido nos dias anteriores e o terreno estava cheio de charcos. Neles esvaziamos, às escondidas dos guardas, muitos sacos de adubo, que a água engolia sem deixar sinais. Fizemos desaparecer uma caixa de facões por uma fenda no solo. Com os fertilizantes que gastamos naquela seção de trabalho seria possível adubar vinte ou trinta vezes mais terrenos.
No dia seguinte levaram-nos mais longe, a um lugar que chamavam "El Bobo", perto da costa norte da ilha. A tarefa consistia em limpar, com enxadão, ao redor das mangueiras, também, plantadas naquela região, e rastelar a terra, formando um montículo ao redor do tronco.
Uma das formas de resistência era não se apressar, fazer tudo com lentidão. Tinham designado dois presos para trabalhar em cada árvore. Gustavo Rodriguez e eu tínhamos ficado atrás. O cabo Malvadeza exigia que nos apressássemos, mas continuávamos no mesmo ritmo. Então, tiraram-nos do grupo e nos puseram de lado.
Tínhamos ficado quase a manhã inteira na mesma árvore. O chefe do grupo tinha sido avisado e veio para junto de nós. Já estava de baioneta em punho e se dispunha a nos bater com ela. Quem estava mais perto dele era Gustavo, que o viu e o enfrentou, assumindo posição de defesa, com o enxadão seguro com as duas mãos, como se emprega uma arma longa para se defender, na esgrima de fuzil.
O chefe percebeu e parou:
— Largue o enxadão!
Gustavo não se mexeu.
— Largue!
— Não vou largar, cabo.
Foram minutos de tensão. Todos ficaram em silêncio. Por que o cabo não sacou a pistola e deu um tiro em Gustavo? Sempre me perguntei isso.
No terceiro dia, destinaram-nos à pedreira. Lá o chefe da guarnição era um militar muito alto e magro, negro como azeviche, chamado Holé, filho de haitianos.
O tenente Pompônio me tirou da fila e me levou diante do cabo Holé:
— Este é um dos que fugiu com Boitel. Dê a ele, portanto, a maior picareta que tiver. E diga aos guardas que atirem para matar, se ele se aproximar da cerca.
Holé olhou-me com curiosidade.
— Venha comigo — disse.
Fomos até a casa das ferramentas, ele procurou e me deu uma picareta de uns onze quilos. Quase não podia com ela. Coloquei-a no ombro e tomei o caminho de terra que levava ao campo de trabalho.
Uma picareta é ferramenta. que, como todas as outras, é preciso saber manejar. Nenhum dos que estava ali havia sequer pegado em uma, na vida. Um dos cabos que pertencia ao pessoal de guarda da pedreira, aproximou-se. Coxeava visivelmente.
— Você nunca quebrou pedra?
— Não, cabo, nunca.
— Então, é bom aprender. Olhem — indicou. — A primeira coisa que têm que ver é o veio da pedra. E sobre ele que devem bater.
E levantou a picareta. Depois que ele bateu duas ou três vezes, a pedra abriu-se ao longo do veio. Continuou batendo e quebrou as duas partes da pedra em pedaços menores.
Ele se afastou e tentei imitá-lo. Era melhor aprender, pois assim me esgotaria menos. No começo eu não conseguia fazer a picareta saltar e quando a deixava cair sobre a pedra, como segurava-a com força pelo cabo, a vibração do choque passava pelos meus braços como uma corrente elétrica. Fui percebendo que precisava abrir um pouquinho as mãos quando a picareta batia na pedra. Aí, ela saltava, tornando a erguer-se um pouco, com pequeno impulso.
Não tínhamos a proteção que requerem os trabalhadores que quebram pedras em pedreiras. Nem botas, nem óculos. As lascas de pedra varavam as calças como verdadeiros projéteis e enterravam-se nas pernas. O brilho enceguecedor do sol nas pedras foi comendo nossas vistas. Sabe-se que é preciso usar lentes especiais para este trabalho.
Dias depois consegui dar um jeito de boicotar também o trabalho com a picareta. Gustavo e eu estávamos de parceria novamente e, quando o cabo passava por perto, trabalhávamos; quando se afastava, parávamos. Mas à medida que o tempo passava, eles iam criando novos processos para nos obrigar a render mais.
Maçãzinha, o cabo que nos ensinou a usar a picareta, e outro, que apelidaram Cachorro Preto, começaram a nos surrar sistematicamente. O objetivo era nos aterrorizar. Desde cedo começavam as surras. A baionetadas. E exigiam que quebrássemos mais pedras; que os areieiros extraíssem mais areia e que os carregadores de pedras enchessem os caminhões com mais rapidez.
Eloy Gutierrez Menoyo tinha nascido na Espanha e se criado em Barcelona. Seu pai tinha sido um dos fundadores do Partido Socialista Espanhol (PSOE). Seus dois irmãos tinham morrido. Um, na Guerra Civil espanhola e o outro, Carlos, em Cuba, na mais heróica das ações de todo o processo revolucionário: o assalto ao Palácio Presidencial, que tinha com o objetivo matar o ditador Batista. Castro e seu movimento nada tiveram a ver com aquela ação..
A família de Eloy fugiu da Espanha durante a Guerra Civil e se refugiou em Cuba. Contrário ao regime ditatorial, Eloy subiu para a região montanhosa do Escambray, no centro da ilha, e lá fundou a Segunda Frente Nacional de que foi comandante em chefe. Travou cruentos combates contra o e exército e desceu, vitorioso, quando Batista fugiu.
Naquela região era chefe indiscutível e desfrutava das simpatias de todos os camponeses.
Mas Eloy lutou para estabelecer em Cuba um regime realmente democrático e não, outra ditadura. Por isso, quando compreendeu que Castro ia se arvorar em tirano, fugiu do país. Tempos depois voltou com um pequeno grupo de homens armados que trataram de ir para as montanhas e continuar a luta. Mas foi capturado.
Condenaram-no a trinta anos de prisão.
Estava conosco no grupo da pedreira. Os militares tinham recebido instruções de Curbelo, o delegado da Polícia Política na Ilha de Pinos. Todos vimos, naquela manhã, o jipe de Curbelo entrar na pedreira e ele entrevistar-se com o comissário político e o cabo Luis. Nossa intuição, aguçada em farejar tragédia e horror, avisou-nos que alguma coisa ia acontecer.
No meio da tarde chamaram Eloy. Estava carregando pedras e amontoando-as como haviam indicado os militares. O cabo Luis e outro guarda que estava lá há poucos dias, como encarregado da pedreira, ladearam-no, enquanto ia em direção do portão de saída, pelo caminho empoeirado de terra amarelenta. Pararam quase diante das guaritas de entrada. Lá, o cabo Luis pegou a baioneta, às costas de Eloy, alheio à agressão, e descarregou-lhe uma pancada com a lâmina de lado. Eloy voltou-se como vento, furioso. cabo deu várias estocadas em Eloy, tentando feri-lo com a ponta da baioneta e foi então que o outro militar, que não tinha batido em ninguém até aquele momento, empunhou a baioneta e começou a bater nele. Eloy não tinha mais possibilidades de evitar os golpes. Com um gesto instintivo de proteção, ergueu os braços para aparar as pancadas.
De longe, assistimos ao bárbaro espancamento. Alguns presos gritaram e os guardas das guaritas destravaram a segurança dos fuzilmetralhadoras, prontos para usá-los em nós.
Eloy cambaleava. Além das pancadas com as baionetas, davam-lhe socos. Caiu, sem forças e continuaram, dando-lhe pontapés.
O cabo Luis chamou o caminhão do moinho de pedras, que era dirigido por um preso do Plano de Reabilitação. Com Luís e outro militar, ergueu o corpo de Eloy inconsciente. Agarraram-no pelos braços e pelas pernas, balançaram-no para dar impulso e atiraram-no dentro do caminhão. Subiram imediatamente e disseram para o motorista tocar. Este arrancou tão bruscamente que foi um milagre dois dos guardas não caírem.
O motorista pensou que fossem para o hospital, mas o cabo Luis gritou-lhe que virasse para baixo, na direção do grupo que estava quebrando pedras na área sul da pedreira. Lá estava o terrível Cachorro Preto, assim chamado por sua ferocidade. Tiraram Eloy do caminhão e deixaram-no com Cachorro Preto.
Quando vimos que em lugar de seguir com Eloy para o hospital haviam-no tirado do caminhão ali, ficamos desconcertados. Não podíamos compreender por quê. Mas logo soubemos. Eloy começou a voltar a si. O próprio Cachorro Preto ajudou-o a levantar-se e, quando ficou de pé, o cabo desembainhou a baioneta e começou a espancá-lo com sanha até que Eloy desmaiou de novo e caiu.
Então, Cachorro Preto sentou-se em cima dele, acendeu um cigarro, aspirou a fumaça com força e, depois, erguendo a cabeça para o céu, soltou-a muito lentamente...
Havia um silêncio absoluto. Não se escutava um só dos gritos que haviam soltado no começo, quando Eloy levara a primeira surra. O terror flutuava no ar, ameaçador, ocupando todos os minutos.
Eloy tornou a recuperar os sentidos um instante depois, e Cachorro Preto tornou a surrá-lo. Assim, a cena se repetiu várias vezes.
Daquela surra, que rebentou-lhe um ouvido, Eloy ficou tonto para sempre, atacado por vertigens e enjôo. Sua convalescença demorou semanas. Estava irreconhecível. O rosto dele era um hematoma só, inchado, roxo. Nas costas, os ferimentos provocados pelas baionetas deixaram marcas que anos depois ainda não haviam sumido. A retina de um dos olhos ficou lesada, mas não se pôde saber no momento qual o grau exato da lesão, pois para isso seria preciso um exame feito por especialistas com aparelhamento adequado. No momento em que esta narração é escrita, Eloy, juntamente com dezenas de prisioneiros, estava há três anos em cela murada, sem roupa, totalmente incomunicável, sem correspondência e com absoluta proibição de receber assistência médica. Para conseguir isso, teria que aceitar a reabilitação política.
O Irmão da Fé
O Plano de Trabalhos Forçados teve uma conseqüência que escapou aos "especialistas" em conduta humana do Ministério do Interior. O presídio uniu-se de maneira monolítica. Diante da agressão e de um inimigo comum que batia, fustigava, torturava, produziu-se uma sensibilização e identificação total e cada vez que batiam em alguém era como se batessem em todos; cada vez que assassinavam um de nós nos campos era um irmão que matavam e nos doía a alma, o sangue. A angústia e o horror foram nos unindo mais e mais.
Naquele sábado os grupos de prisioneiros regressavam às circulares ao entardecer. Homens rodeados de fuzis e baionetas iam chegando, silenciosos, dos campos de trabalhos forçados, formando apertadas filas de fome, suor, cansaço. Sujos, descalços alguns e outros com as roupas em trapos. Tinham os ombros caídos e as costas curvadas, como se suportassem sobre si todas as amarguras e misérias humanas.
O grupo 26, com suas quatro quadrilhas, avançava devagar pela estrada que corria paralela ao nosso edifício. Estavam cansados, extenuados. Mais do que andar, arrastavam-se, quase
sem forças para erguer as pernas. Os guardas exigiam mais rapidez na marcha e ameaçavam, agitando no ar facões e baionetas. Os prisioneiros fizeram um esforço, mas os guardas queriam mais e começaram as pancadas com as lâminas de lado... "Andem logo, filhos da puta!", gritavam, enquanto descarregavam a raiva. Lâminas de facões e de baioneta cantavam nas costas dos presos. De repente, um preso de cabelos brancos, enquanto descarregavam em suas costas pancadas de lâmina de facão, ergueu os braços para o céu e gritou, olhando para cima: "Perdoai-os, Senhor, eles não sabem o que fazem!".
Todos chamávamos Gerardo, simplesmente, de "Irmão da Fé". Pregador protestante, havia dedicado sua vida a propagar a palavra de Deus. Ajudou muitos a enfrentar a morte com coragem e serenidade. E ia e vinha constantemente entre os grupos, infundindo fé, tranqüilizando os ânimos, dando apoio. Auxiliou a muitos, a muitos consolou.
Tirava-nos da cama para participar do culto. "Levanta-te, que o Senhor te chama!". Não se podia dizer não ao Irmão da Fé. Se percebia alguém pensativo e triste, dizia: "Quero ver você no culto, hoje à tarde"... E era preciso ir. Seus sermões eram de uma beleza primitiva e ele tinha um magnetismo extraordinário. Desde o púlpito, que improvisava cobrindo velhos caixotes de bacalhau com um lençol e com uma cruz simples, a voz atroadora do Irmão da Fé nos dava seus sermões diariamente. Depois, cantava-se em coro hinos de louvor a Deus, que ele escrevia em maços de cigarros e distribuía entre os presentes. Muitas vezes a guarnição acabava com esses minutos de oração com pancadas de baionetas e de culatras de fuzil, mas não conseguiam atemorizá-lo.
Quando o levaram para o campo de trabalhos forçados da Ilha de Pinos, organizou leituras bíblicas e coros religiosos. Ter uma Bíblia era ato subversivo. Ele tinha, não sabíamos como, uma pequenina que o acompanhava sempre.
Se algum companheiro, fatigado ou doente, se atrasava na semeadura ou não tinha acumulado o número de pedras que tinha que quebrar com a picareta, o Irmão da Fé aparecia ali. Magro, musculoso, tinha uma resistência incrível para o esforço físico e adiantava o trabalho do outro, salvando-o de uma surra. Quando algum dos vigilantes passava por trás dele e descarregava-lhe uma baionetada, o Irmão da Fé erguia-se como uma mola, olhava o soldado nos olhos e dizia: "Que o Senhor te perdoe!".
A diretoria da penal comunicou, uma noite, que receberíamos as visitas no refeitório, sem as odiosas cercas de arame. E, além disso, que os visitantes seriam autorizados a nos levar um pacote de ajuda familiar, com os alimentos que quisessem. A visita seria a cada quarenta e cinco dias, mais ou menos.
Foi extraordinário o júbilo em toda a circular. Depois de anos sem ver nossos familiares aquela possibilidade nos encheu de ilusões.
Pensei em meus pais, em minha irmã e em Martha, que por fim iria ver. Depois de anos de correspondência clandestina, nossa identificação havia sido tão profunda que tudo em nós pedia um encontro.
Por fim chegou o dia de visita, a primeira nos últimos dois anos e alguns meses. Tiraram-nos do refeitório para nos revistar. Vários pelotões de guardas esperavam. A revista foi vexaminosa. Tivemos que ficar completamente nus, deixando a roupa ao nosso lado, para que a revistassem costura por costura. Tínhamos que abrir a boca para que olhassem dentro e se notavam que o preso tinha dentadura postiça, obrigavam-no a tirá-la. Também podiam nos mandar levantar os testículos. Um guarda se agachava e olhava, para comprovar que não havia nenhum papel escondido.
Era uma obsessão: tinham que impedir que saísse qualquer denúncia, uma carta que tivesse valor de testemunho. Não era permitido levar nada às visitas, a não ser o jarro de alumínio.
Às dez da manhã, aproximadamente, apareceu na estrada o contingente de familiares. Os encontros foram dramáticos, carregados de emoção. Os abraços, as lágrimas e a alegria, tudo misturado naquele momento ansiado durante anos.
Chegou a minha família. Meu pai foi o único que deixou escapar uma lágrima. Minha mãe e minha irmã, mais fortes nesses instantes, expressavam sua alegria beijando-me e abraçando-me, as duas ao mesmo tempo.
Só podiam entrar três familiares por preso. Martha conseguiu entrar com uma família amiga. Sua presença foi inesquecível para mim. Mais de três anos tinham se passado desde que nos víramos pela primeira vez. A adolescente que tanto me impressionara então, havia se transformado em uma moça já quase com dezoito anos, mais alta, mais mulher, mais bonita e elegante.
Quando chegou, olhamo-nos nos olhos, sem dizer uma palavra. Ela corou. Por dentro, não tínhamos deixado de estar juntos desde aquele 5 de setembro. Sabíamos que estávamos unidos para sempre. As palavras não são necessárias quando as almas dizem tudo.
Nossa conversa foi como dar-nos as mãos e entrarmos em um mundo maravilhoso, criado pelo amor que sentíamos e compartilhávamos. Tudo desapareceu ao nosso redor, as pessoas, o lugar, e éramos como o primeiro casal de namorados debaixo de um céu aberto e azul, inundado de uma luz que jamais nos faltaria. Sob ele nos encontramos sempre, deixando para trás celas e ferrolhos, angústias e tristezas.
Os sapatos que eu havia recebido abriram-se, desgastados pelas pedras. Mas eu acelerei o processo de desgaste esfregando-os na parede da cela; um trabalho paciente, de preso. E certa manhã comuniquei ao chefe do meu grupo que meus sapatos tinham acabado e os mostrei. Foi assim que passei a fazer parte do grupo que ficava na circular, sem sair para trabalhar.
As águas negras
Era o começo dos trabalhos forçados e ainda não tinham tido a idéia de nos mandar trabalhar sem sapatos, mesmo. Pelo menos era o que eu pensava naquela madrugada, quando fomos chamados ao térreo.
Chegou um pelotão de guardas, diante do qual vinha Juan Rivero, aquele que era escolta e cuidava de nós nas celas de castigo. Ficou uns minutos olhando-nos e sorriu dissimuladamente quando terminou a inspeção. Mandaram-nos formar filas de dois no fundo. A partir desse instante já se notava a hostilidade em relação a nós. Começamos a andar na direção da saída da prisão; os guardas que nos escoltavam dos dois lados tinham sacado as baionetas e agitavam-nas, com gritos e ameaças. Passamos diante das guaritas dos militares, dos edifícios da diretoria, transpusemos o alambrado pelo portão principal e viramos à direita, para o leste. A violência de vez em quando aumentava. A caminhada se tornava dificultosa porque a maioria de nós estava descalço. Espinhos e pedras não nos permitiam um caminhar seguro como o dos guardas que calçavam botas. Naquela zona encontrava-se uma valeta na qual desembocavam todas as águas servidas do presídio; não apenas dos presos, mas também das instalações da diretoria, dos alojamentos dos militares, das oficinas, do hospital, do quartel, etc. Lá desembocavam os excrementos de umas oito a nove mil pessoas.
O solo era rochoso, com pedras cheias de arestas cortantes, formadas por milhões de minúsculas carapaças de foraminíferos, que em Cuba se chamam "dentes de cão". Chegamos a uma cerca de arame farpado. Os primeiros que tentaram passar por ela levantando com cuidado os fios de arame, para passar entre eles, apanharam de imediato. Mandaram que saltassem a cerca. Era proibido passar entre os arames: tinha-se que pular e cair do outro lado, de pés descalços sobre as rochas afiadas.
Agarrei-me a um dos mourões da cerca, dei impulso e pulei, sempre agarrado à madeira, para amortecer a queda. Não calculei que isso me faria cair muito perto do arame farpado e ao falhar-me o tornozelo direito, devido aos ossos fora de lugar que tinha desde que o havia quebrado ao tentar a fuga, meu joelho esquerdo dobrou, girei e caí sobre os arames. As farpas cravaram-se nele, rasgando a calça e a pele, deixando-me cicatrizes para sempre.
Diante de nós estava a valeta de águas negras e na superfície, flutuando, ilhotas de excrementos; por cima deles nuvens de moscas verdes. A fetidez típica de águas podres, daqueles miasmas asquerosos, enchia o ar.
Os cabos, aos empurrões, usando os fuzis, obrigaram-nos a entrar na valeta imunda. Caí na água negra, empurrado pelas costas, e não pude evitar que me enchesse a boca e inundasse
os olhos. O pretexto para aquela tortura era que precisávamos limpar o fundo para evitar que o canal entupisse. Em alguns lugares a água batia-nos no peito ou à altura do queixo, dependendo da estatura do preso; o fundo, irregular e com bruscos declives, fazia a gente afundar de repente, quando se pisava em falso. Tínhamos que tirar alguma coisa do fundo, uma pedra, um pouco de lixo, qualquer coisa, nem que fosse um pouco de lodo, e levar à margem, quando então os guardas aproveitavam para nos bater com as baionetas.
Aquele espetáculo era indescritível. Se algum de nós não submergia o suficiente, era retirado da valeta e surrado. Enquanto estávamos no centro da valeta não era fácil então nos atingir com as baionetas. Arranjaram umas varas compridas para poderem nos surrar de longe. Outros guardas, desejosos de participar do castigo, atiravam-nos pedras. Mandaram que avançássemos para o trecho mais estreito da valeta. Justamente naquela parte uma camada espessa de excrementos cobria toda a superfície, estancando a água, que fluía apenas por um pequeno canal. Íamos avançando naquele mar de merda. Cada vez que mergulhávamos, afastávamos os excrementos com as mãos, para afundar a cabeça. Os cabelos estavam grudados, os ouvidos e os ferimentos dos pés e os das pernas, causados pelas baionetas da guarnição, eram como portas abertas para a infecção. Os guardas, embriagados pela morbidez, desfrutavam aquela tortura: deleitavam-se ao nos ver afundar a cabeça na água podre. Não perdiam ocasião de espetar com as baionetas ou a apoiar o pé na cabeça de um de nós e forçar, a fim de nos obrigar a afundá-la. Nada pode ser pior do que isto, pensava eu naqueles instantes angustiosos, enquanto pedia a Deus que me desse forças para resistir. Já tinham me batido várias vezes e os ferimentos do joelho ardiam, irritados pela ação da água fétida.
Continuamos por mais umas duas horas enfiados na merda. Voltamos andando. Não me lembro de viagem ou caminhada mais penosa do que essa, nem de regresso mais desejado. Só pensava em tomar um banho e desinfetar os ferimentos; sabia o perigo que significavam, pelo alto índice de contaminação de águas servidas e excrementos.
A circular esperava nossa volta. Os corredores encheram-se. Quando o grupo de homens alquebrados, arrastando os pés, exaustos, que formávamos, entrou no térreo, nossos companheiros entoaram a melodia do hino nacional. Uma parte dos oitenta homens, no entanto, ainda não tinha passado pelo portão: a guarnição, indignada com a recepção, presenteou-os com uma dose extra de pancadas, como despedida. Eu era um dos últimos e a ponta de uma baioneta feriu-me no pulso esquerdo, quando levantei o braço, tentando me proteger da estocada. A represália por terem cantado o hino nacional não se fez esperar: fecharam a água até o dia seguinte e não pudemos tomar banho.
Assassinatos e novos planos de fuga
Os prognósticos do Ministério do Interior de que não resistiríamos um ano sem pedir a reabilitação política se esfumavam. Eles tinham confiado, achando que o terror nos dobraria. O fracasso os fez descambar para uma violência desesperada. Mas, paralelamente à vesânia dos militares tinha ido nascendo em nós uma consciência profunda, uma determinação inflexível de resistir, de não ceder. íamos vencendo o terror, íamos nos endurecendo, convencidos de que éramos o símbolo da resistência. Não podiam nos fazer renunciar aos princípios que nos deixavam orgulhosos, que nos definiam. Continuávamos resistindo, mas com tranqüilidade. Não era uma resistência fanática e obscura, mas sim clara, pensada, produto da nossa própria essência, da fé e do amor por Deus, pela liberdade.
A 9 de janeiro de 1966 os chefes de grupos reuniram-se na diretoria da penal. A reunião durou apenas alguns minutos. Foi uma análise rápida do porquê os presos contra-revolucionários não aceitavam a reabilitação. O método que combinaram para conseguir isso foi uma verdadeira operação de terror. Os chefes receberam instruções sanguinárias e deixaram-nos com as mãos livres para matar prisioneiros em cada bloco e generalizar o terror.
Quando os presos protestavam por alguma agressão, os escoltas começavam a atirar. Assim mataram, no bloco 31, Eddy Alvarez e Dany Crespo.
O cabo Areia, chefe do grupo de Júlio Tan, quis humilhá-lo, obrigando-o a arrancar mato com as mãos. Tan negou-se. O cabo, baioneta na mão, foi em cima dele, agredindo-o. O preso, tentando esquivar-se das estocadas, caiu. Por trás, outro guarda atingiu-o com um enxadão. Foi o momento esperado por Areia para enterrar a baioneta na coxa de Júlio Tan e revirá-la, em círculos, para alargar o ferimento. Júlio Tan morreu de hemorragia em alguns minutos.
Deudado Aquit tinha pegado seu prato e estava na fila diante dos caminhões, como se fazia todas as tardes. O cordão de escoltas encontrava-se muito perto e pronto para subir nos seus caminhões, depois que os presos, uma vez contados, subissem no deles. Soprava um vento forte. O chapéu de Aquit saiu voando e caiu a alguns metros. O preso pediu autorização ao chefe do grupo para sair da fila a fim de pegá-lo e o militar respondeu-lhe que esperasse um pouco, que ia contar os presos. Quando terminasse, ele poderia pegar o chapéu. O cabo começou a contagem, chegou ao final, voltou-se e fez-lhe sinal que já podia ir pegar o chapéu. Aquit saiu, deu dois passos, inclinou-se e nunca mais tornou a se erguer. Do fim da fila, um dos escoltas disparou uma descarga de fuzil AK nas costas dele.
— Isso é para ele não tornar a sair da fila sem permissão — comentou, apontando Aquit com o cano fumegante.
Diante do presídio, de um lado dos escritórios da penal, havia um grupo de casas ocupadas por funcionários do presídio e seus familiares. Uma delas era do dr. Condi, diretor do hospital. Morava lá com a esposa, jovem e muito imaginativa. Essa moça tinha o costume de nos oferecer sessões noturnas a respeito das quais foi preciso fazer uma campanha entre os presos, para que não assistissem ao espetáculo.
Quase todas as noites, quando o marido saía para as reuniões e assembléias, ela apagava as luzes da casa inteira, menos a do quarto, cuja janela, aberta de par em par, dava para o presídio. Então, colocava-se diante do espelho, de costas para nós, e começava a tirar a roupa, lentamente, como se fosse uma dessas profissionais de strip-tease.
Completamente nua, contemplava-se no espelho. Depois, começava a pentear-se: os cabelos compridos caíam-lhe até a metade das costas e ela os alisava com gestos provocantes. Com o pente, erguia os cabelos, sacudia a cabeça, e os deixava cair. Passava, então, a posar diante do espelho. Colocava as mãos na cintura ou deslizava-as pelos seios e quadris, acariciando-os voluptuosamente, enquanto se movimentava ritmicamente em uma dança lúbrica.
O que passava pela cabeça daquela mulher? Sabia que centenas de olhos a devoravam das janelas do presídio, que olhares carregados de desejo atravessavam o espaço. Olhares de homens que estavam há anos sem contato sexual.
Talvez em seus sonhos de luxúria, ela se visse possuída por nós, em uma orgia indescritível.
Logo, a guarnição descobriu a coisa e nunca mais aquela janela se abriu. Dias depois, o médico e sua mulher exibicionista foram transferidos.
Celestino e Buria convidaram-me para planejar uma fuga. Conheciam minha tentativa anterior e queriam que tentássemos de novo. A fuga seria dos campos de trabalho. Nada fácil, mas não impossível. O plano teria uma variante que, pensávamos, aumentaria a possibilidade de escaparmos. Não tentaríamos sair da ilha imediatamente, porque o maior risco estava justamente nisso. Fingiríamos tê-lo feito, mas permaneceríamos escondidos. Depois, já com a vigilância diminuída, acreditando que tínhamos ido embora, seria mais fácil sair da ilha.
Era sabido que os presos comuns que há anos fugiam dos estábulos, ou de outros centros de trabalho, e se internavam nos pinheirais ou nos pântanos, entregavam-se por falta de alimento.
A vigilância e o terror dos camponeses tornava impossível bater a qualquer porta para pedir comida ou ajuda. As autoridades confiavam nesta circunstância.
Disse aos meus companheiros que a única maneira de subsistir não era com reserva de alimentos previamente enterrados em alguns lugares, mas sim comendo o que aparecesse: grilos, lagartos, rãs, répteis e os vegetais que conhecíamos, que sabíamos que eram comestíveis. Propus que treinássemos, começando desde logo a comer insetos. A idéia, a princípio, pareceu muito violenta, mas acabou sendo aceita, se bem que Celestino e Buria não começassem imediatamente. Eu comecei.
Tinha lido que em algumas regiões da Ásia comiam grilos e achavam-nos excelentes. Os da ilha eram grandes e sumarentos. Fui me preparando mentalmente. E certa manhã decidi comer o primeiro grilo cru. Antes de colocá-lo na boca, esmaguei-lhe a cabeça para evitar que pudesse me morder a língua. Por ser o primeiro, até que o sabor não me desagradou.
Uma semana depois, já comia trinta ou quarenta desses insetos por dia. Todos os amigos do bloco caçavam grilos para mim.
Há algumas semanas, desde que tínhamos começado a trabalhar no campo de capim pangola, Obregón e eu vínhamos comendo dessa erva. Escolhíamos os talhinhos sumarentos e mastigávamos longamente. Parecíamos ruminantes, o dia inteiro extraindo o suco do capim. Eu tinha lido um artigo sobre o valor nutritivo do capim pangola em um texto sobre criação de gado, que meu vizinho de cela, Alfredo Sanchez, tinha. Como brincadeira, Obregón e eu dizíamos aos outros que se quisessem ficar fortes como um touro não era preciso que comessem o touro, mas sim o que o touro come. E muitos se convenceram e uniram-se a essa prática.
Do grilo passei a comer lagartixas e rãs; depois, pequenas cobras, pois já a majá, um réptil da ordem dos boídeos, parente da boa, que em Cuba chega a medir vários metros, era considerado um prato muito apreciado pela carne limpa e deliciosa. Também comia, entre outras coisas, tubérculos crus, ovos de pássaros e os brotos da erva-de-elefante. Tudo o que andasse, voasse ou nadasse era comestível para mim. Nos campos, onde as reses pastavam, disputava com elas o mel de purga que punham nos cochos; era caloria e eu precisava disso. Meu estomago de ferro suportava isso tudo muito bem, às mil maravilhas.
Na manhã seguinte, o guarda desdentado, de luvas vermelhas, estava nos esperando. No caminho, deu uma baionetada, de prancha, em cada um de nós e desde que chegamos começou a ameaçar que nos surraria se não trabalhássemos mais depressa. Continuou provocando Socarrás e até chegou a empurrá-lo com a submetralhadora. Eu gritei para nossos companheiros saberem o que estava acontecendo e isso o acalmou um pouco.
Seriam umas dez da manhã. Tínhamos cinco minutos para comer um pouco de farinha grossa de trigo, mandada pelos nossos familiares. Nas savanas cubanas há uma variedade de serpente pequena chamada jubo. Capturei uma de mais ou menos meio metro; eu a segurava com força e apenas sua cabeça sobressaía de minha mão fechada; o restante do corpo enroscava-se em meu braço, em movimentos frenéticos. Sacudi a luva da mão direita e agarrei-a com as duas mãos.
— Vamos merendar!
— Você vai comer a jubo?
Socarrás perguntou isso com ar de gozação, por minha decisão de comer tudo quanto fosse animal que passasse ao meu alcance. Eu respondi, firme:
— Sim!
O guarda me observava com curiosidade. E viu o que menos imaginava: com rápido movimento, enfiei a cabeça da jubo na boca e cravei-lhe os dentes com força. Foi uma dentada feroz, que lhe quebrou a espinha dorsal e rasgou a carne. Depois, cortei com os incisivos e com um puxão separei a cabeça do corpo, do qual o sangue, que brotava em pequenos jorros, salpicou-me o rosto.
O guarda saiu correndo, gritando pelo chefe do bloco e eu cuspi a cabeça e joguei a cobra fora, enquanto ainda se retorcia.
Outra vez La Cabaña
Quando o gradeiro, com uma lista na mão, mandou que toda a circular fizesse silêncio, não tive a mais remota idéia do que ia acontecer. Escutei meu nome e o de muitos dos amigos mais próximos — Pruna, Celestino — e, depois, a ordem de recolhermos todos os nossos pertences, menos as camas. Íamos ser transferidos.
Havia alguma coisa anormal naquela transferência. O pessoal que havia aparecido com as listas não se formava de oficiais conhecidos e pela hora não parecia se tratar de transferência interna. Talvez fossem nos levar para o campo de concentração do Vale dos índios, ao sul da ilha, pensamos muitos de nós, pois corria o rumar de que os presos que causavam maior complicações para eles iriam para aquele campo.
Saímos entre adeuses e demonstrações de afeto dos amigos. Buria não tinha sido chamado, Outra vez uma transferência atrapalhava os planos de fuga. Levaram-nos a um local perto da instalação elétrica. Lá fizeram uma revista que nos deixou apenas com uma fração mínima do que tínhamos.
E chegaram os caminhões. Tiraram Boitel do hospital e alguns detidos das celas de castigo, entre eles Izaguirre, Rivero e Nerín.
Mas não nos levavam para os campos de concentração do sul da ilha. As especulações a respeito da nossa transferência deram um salto para o otimismo: o presidente Johnson tinha pedido a Castro que permitisse a saída de prisioneiros políticos quando do êxodo por Camarioca, aquele porto da costa norte da província de Matanzas, por onde os exilados cubanos em Miami foram procurar seus familiares.
Os caminhões saíram pela estradinha que rodeia os alambrados do leste. Das janelas do presídio, lenços, mãos dizendo adeus e gritos de júbilo despediam-se de nós. Éramos uns cento e cinqüenta homens, especialmente selecionados. Só uma vez tinha acontecido uma saída como aquela: a dos invasores da Baía dos Porcos, quando foram permutados.
Ao chegar à ponte sobre o rio Las Casas, o comboio virou para a direita e desembocou no cais. Este estava militarmente tomado, com severas medidas de segurança. As entradas estavam bloqueadas por carros de patrulha e nos tetos víamos soldados armados com fuzilmetralhadoras.
Entramos num barco e nos fizeram sentar no salão. Do meu lugar, perto da popa, eu via a metralhadora apontada para nós. Toda a coberta estava tomada por militares e agentes da Polícia Política à paisana.
A tarde estava de uma beleza imponente. Atrás, as cordilheiras da Ilha de Pinos pareciam lombos azulados de grandes dinossauros. E entre elas viam-se as pequenas luzes do presídio. Uma névoa cinzenta ia envolvendo os vultos cilíndricos, enormes, das circulares.
Para nós, a visão do presídio ao longe, ao entardecer, surpreendia. O sol afundou no mar e nós, em íntimos pensamentos. Escutava-se o barulho da água cortada pelo barco, da esteira que o deslocamento formava atrás, o que de meu lugar não podia ver. Não se ouvia uma só voz.
Pensava, também, que podíamos ser permutados, porque sabia que havia gente agindo nesse sentido. Rumores constantes fortaleciam essa esperança, que se manteve por mais de vinte anos, às vezes alimentada pelas próprias autoridades. Eles usavam esse método para erguer o ânimo do preso: alimentavam-no espiritualmente, para depois deixá-lo cair. Essas mudanças bruscas provocavam crises de depressão que iam minando o prisioneiro, desgastando suas reservas psíquicas. Os altos e baixos repentinos deixavam marcas de desorientação e angústia.
Mas agora estava acontecendo uma coisa fora de qualquer cálculo: estávamos saindo da Ilha de Pinos.
No mesmo banco estávamos Pruna, Luis Pozo e eu; um pouco mais adiante, Boitel, que eu não via há mais de um ano. Estava rodeado de vários amigos. Quando ficou só, aproximei-me dele e comentamos as coisas mais importantes que tinham acontecido desde a última vez que nos víramos. Boitel estava muito magro, mas sempre com aquela energia e entusiasmo que contagiava a todos.
A viagem levou umas doze horas. Estava amanhecendo o dia 29 de maio de 1966 quando chegamos a Batabanó. Lá, as medidas de segurança eram maiores ainda. Os tetos dos armazéns e as esquinas das ruas estavam transformados em ninhos de metralhadoras.
Ônibus ingleses Leyland esperavam-nos. Fomos entrando. O último banco estava completamente ocupado por seis guardas armados com submetralhadoras tchecas. Quando estávamos sentados, quatro ou cinco militares postaram-se perto do motorista, apontando-nos suas armas. Cinco ou seis ônibus formavam o comboio, que partiu lentamente entre um corre-corre de jipes com militares que berravam ordens aos motoristas.
Em nós continuava firme a idéia da troca, que dentro de uma hora, mais ou menos, seria confirmada ou descartada.
Quando os ônibus, sempre escoltados por muitos patrulheiros das polícias Metropolitana e Política, entraram pela Rua Monumental, rumo ao presídio de La Cabaña, as ações da troca começaram a baixar. E ao dobrar, de maneira inequívoca, para a tétrica fortaleza, outras análises e preocupações irromperam em nosso cérebro.
No entanto, regressar da Ilha de Pinos era algo assim como a maior ilusão que tínhamos todos ao sairmos para os campos de trabalhos forçados, de onde não sabíamos se sairíamos vivos.
A guarnição de La Cabaña, sob o comando de um oficial de raça negra, esperava-nos com uma agressividade tremenda.
Atravessamos a pé o fosso onde se erguia o poste carcomido com a parede de sacos ao fundo.
O "Matadouro de Castro", como o povo o chama. O fatídico paredão. Amarrados àquele poste, milhares de cubanos foram executados.
Quando entramos no pátio do cárcere, aplaudiram-nos. Todos que voltavam da ilha eram recebidos com admiração. Sabia-se em todos os presídios o que acontecia por lá e da heróica resistência que os presos faziam diante dos bárbaros planos do Governo.
Destinaram-nos a galé 7, a última, a menor, a mais lôbrega, a mais isolada, a mais escura e pior de todas. Onde cabiam apenas 80 homens apertados, enfiaram 225. As torres de quatro a cinco camas de ferro quase esbarravam no teto. O centro era um corredor tão estreito que mal cabia uma pessoa. No espaço que ficava entre uma torre de cama e outra só se podia passar de lado.
A fome que reinava então na prisão de La Cabaña nem sequer podia ser comparada à do presídio da Ilha de Pinos.
Às duas horas da tarde mandaram-nos para o refeitório. Nunca esqueci aquela comida: eram três colheres de arroz com uns ossos de frango. sem absolutamente nada de carne. Quando digo três colheres, não exagero: eram exatamente três... eu as contei. E mais um pão. Era tudo. Nunca vi ração como aquela. Um guarda, de olho no relógio, contava dois minutos. Passado esse tempo, era preciso levantar-se, tivesse o preso terminado de comer ou não. Mas para aquele arroz até sobrava tempo.
Era proibido levar pão para a galé. Os que não sabiam e o deixaram à mostra, na mão, ficaram sem ele: os guardas tiraram. Tudo estava dirigido para nos fazer sentir a pressão da fome, pois que lhes podia importar se levássemos o pão para comer mais tarde?
Durante a volta à cela estive pensando naquela situação. Muitos se indignaram com a restrição dos alimentos. Era isso mesmo que os guardas queriam: que os presos se alterassem. Compreendi que com aquela medida pretendiam nos manipular, nos humilhar, nos reduzir a nada por meio da fome. E decidi, no dia seguinte, impor-me uma medida de autodisciplina que exercitasse e fortalecesse minha vontade.
Quando me sentei diante das três colheradas de arroz, separei uma e comi imediatamente as outras duas. Celestino e Pruna diziam que eu estava louco. Respondi que era um modo de pôr à prova a vontade e o caráter. Se no dia seguinte me dessem duas colheradas, deixaria uma.
Para mim, aquele modo de proceder foi como uma vitória. Desde então sempre me sobrou comida.
Nos dias que davam farinha de milho a comida era mais do que uma tortura. Serviam esse alimento fervendo e quando mal tínhamos conseguido pôr uma colherada na boca, terminavam os dois minutos, tínhamos que ficar de pé e sair do refeitório com o estomago vazio.
Como podíamos levar o jarro de água, logo resolvi esse problema. Simplesmente, derramava água na farinha fervente, mexia um pouco e bebia aquele caldo.
A luta contra o uniforme azul
Os presos que tiravam da Ilha de Pinos eram espalhados por todo o país, em campos de concentração e presídios fechados de grande segurança. Situavam-nos o mais longe possível de suas famílias, em regiões distantes. Essa operação tinha como objetivo a desestabilização emocional do preso já que, para a nova etapa que iniciariam, tentavam romper os pontos mais firmes de resistência.
Ao chegar aos seus lugares de destino, entregavam-lhes um novo uniforme, azul, o mesmo que era usado pelos presos por crimes comuns e os reabilitados. Os que se negavam a vesti-los eram surrados por especialistas em luta corpo-a-corpo do Ministério do Interior.
Em Pinar del Rio, nos três campos de concentração Sandino, os métodos que usaram foram mais brutais do que em qualquer outro presídio. Encapuzavam e afundavam em poços, amarrados com cordas por. baixo dos braços, os que não aceitavam o uniforme; queimavam-nos com charutos acesos, agarravam-nos pelos cabelos e batiam-lhes as cabeças contra a parede até que caíam ao chão, sem sentidos. Depois de dois dias, sem dar-lhes água nem alimento, desamarravam-nos e se o preso tirasse o uniforme levava outra surra. Não respeitaram sequer os velhos e doentes.
Os que resistiram a todas as torturas e não vestiram o uniforme azul foram levados sem roupas para o presídio provincial, .localizado no quilometro 5,5 da estrada que vai para o povoado de Luiz Lazo, na província de Pinar del Rio. Lá, em um pavilhão especial, com celas dos dois lados, aglomeraram todos os que iam chegando dos diferentes campos de concentração da província: Taco-Taco, Sandino 1, 2 e 3, O Bruxo, etc. Foi por isso que essa prisão foi chamada "a cidade nua".
No presídio de La Cabaña a troca de uniformes aconteceu sem apelação para a violência. Nós que não aceitamos o uniforme fomos despojados de todos os nossos pertences e da roupa que tínhamos usado até aquele momento — um uniforme cáqui — e levados para as galés completamente vazias.
Éramos mais de trezentos em cada galé. Na hora de dormir, não cabíamos deitados no chão. Tínhamos que deitar um colado ao outro. Ainda assim tínhamos que nos dividir em turnos; um grupo de uns trinta homens sempre tinha que ficar de pé, a entrada da cela.
À medida que os dias passavam, muitos que não viam outra saída para a situação resolveram aceitar a roupa azul. Quando isso acontecia, eram retirados imediatamente da galé e os levavam embora de La Cabaña. Depois, insistiam em que falassem com os amigos e tentassem convencê-los da inutilidade da recusa do uniforme. Nem todos se prestaram a esse trabalho de proselitismo em favor do uniforme do preso comum.
Pouco a pouco o número dos que estavam sem roupa se foi consolidando.
Naquele ano as frentes frias chegaram mais cedo do que nunca. Rajadas de vento, gelado para nossa falta de roupas, varriam as galés.
— Vamos ver o que farão quando o frio chegar — diziam-nos.
Não se podia dormir. O vento soprava a noite inteira. Lembro que consegui um rolo de papel higiênico com um amigo do andar de reabilitação, que trabalhava na farmacinha. Então, eu dormia o mais perto possível da parede. Tive a idéia de enrolar o papel sanitário no corpo, como se fosse a bandagem de uma múmia. E incrível o agradável bem-estar que uma coisa tão leve como esse papel me dava. Era como se eu tivesse vestido uma calça de lã. Mas durou apenas duas noites. Descobriram, e me tiraram o papel higiênico.
Os militares chamavam os presos ao acaso para propor-lhes que se vestissem. Argumentavam, falsamente, que o uniforme cáqui se esgotara no almoxarifado, que não ia mais ser fabricado e que esse era o motivo pelo qual tinham que nos dar o uniforme azul. Diziam que aceitá-lo não tinha implicações políticas. Mas nem eles acreditavam nisso.
Os nus
Tiraram-nos da galé e em um canto do pátio os barbeiros fizeram-nos um ridículo corte de cabelo, raspando tudo a zero, menos um chumaço de cabelos sobre a testa. Sem roupa, o ar gelado me arrepiava inteiro. Passava o tempo todo com a pele eriçada. Saímos do pátio escoltados por guardas armados com fuzis AK e baioneta calada. Enfiaram-nos no curral onde eram feitas as visitas. Poucos minutos depois, fizeram-nos sinais para que começássemos a andar.
Naquela manhã de 5 de outubro de 1967 tudo era cinzento, o céu, o ar.
Já nos aproximávamos das instalações da diretoria quando uma porta se abriu e o diretor saiu. Ele disse a um dos guardas que me fizessem entrar em um local à direita. Escutei vozes e de repente a porta se abriu. Minha mãe e Martha foram literalmente empurradas para dentro da sala. Eu queria que a terra se abrisse embaixo de meus pés e me engolisse. Minha primeira reação foi abraçar-me à minha mãe para ocultar minha nudez. Martha era minha namorada. Tínhamos um idílio maravilhoso, mas aquela canalhice dos militares, fazendo-a entrar eu estando sem roupa, era uma atitude inqualificável.
Imediatamente entraram o diretor, o então tenente Lemus, chefe dos Cárceres e Presídios, e um capitão da Política Política, alto, de cabelos brancos, chamado Ayala. Ofereceram-me um uniforme azul, dizendo-me que se o vestisse me dariam uma licença de quarenta e oito horas para ir para casa, com minha família. Queriam explorar aquela situação, o pudor e a vergonha de me encontrar naquela circunstância tão deprimente.
Minha resposta, irada, foi que eram um imorais e uns chantagistas, que não ia me vestir de azul. Disse a minha mãe e à Martha que fossem embora e avisassem aos demais familiares que não viessem, que não se prestassem a essa manobra dos nossos carcereiros. Elas tinham sido chamadas por um telegrama no qual diziam que se fossem ao presídio dariam autorização para visita.
Dei um beijo em cada uma e foram embora. Tinham sido muito curtos os minutos da presença de minha mãe e de minha namorada ali, mas me pareceram eternos. Então, o tenente Lemus gritou-me, indignado, que conseqüências eu esperava da atitude rebelde que vinha mantendo.
— Eu não espero nada, tenente. Simplesmente ajo da maneira que considero certa.
Pouco depois, os que continuavam sem aceitar o uniforme azul foram enviados para o presídio de Boniato, na província de Oriente, no extremo de Cuba. Lá era muito mais frio do que em Havana, talvez porque o presídio estava no fundo de um vale. Tínhamos que dormir no chão, pois as celas não tinham camas, nem "aviões".
Bernardo Alvarez e eu partilhamos um daqueles calabouços.
Soubemos que outro grupo de prisioneiros políticos estava isolado no hospitalzinho. Como nós, eles também recusavam o uniforme militar. Eram cerca de uns vinte e os mantinham fechados nos cubículos onde estavam os tuberculosos e outros doentes que sofriam de males infecciosos, o que era como condená-los a morte. As celas eram espaçosas, mas estavam com as entradas seladas por placas metálicas e tinham apenas uma janela gradeada ao fundo. As autoridades tinham prometido que lhes dariam roupas de baixo para cobrir a nudez e cobertas para o frio. Mas não passara de promessa. Já estavam há meses dormindo no chão de granito.
No dia 13 de novembro, quando o frio entrava em rajadas geladas pela abertura gradeada do fundo, o chefe do Ordem Interna, tenente Jauto, apresentou-se para responder às constantes demandas dos prisioneiros para que lhes dessem roupas de baixo e as cobertas de inverno prometidas.
— Se não quiserem passar frio, vão ter que aceitar o uniforme azul e se não gostarem, podem fazer uma greve de fome — disse e foi embora.
No dia seguinte, os prisioneiros aceitaram o desafio: devolveram a água açucarada do café da manhã e declararam-se em greve de fome.
Depois de cinco dias de greve de fome, um médico que inspecionava os calabouços informou ao oficial Castillo, chefe militar do hospitalzinho, que a partir daquele momento uma complicação poderia acarretar a morte de qualquer um deles.
Nessa mesma noite vários guardas entraram nas celas e levaram os presos, à força, ao salão da farmacinha. Amarraram-nos a umas macas e aplicaram soro em seus braços. Todos os dias hidratavam os grevistas do mesmo modo.
Uma mudança na diretoria da prisão levou o tenente Garcia, velho militante do Partido Comunista, à chefia. Visitou os grevistas e prometeu-lhes que, se comessem no dia seguinte, receberiam roupas e cobertas. Já se haviam passado dezessete dias. Eles aceitaram, com a condição de reiniciar a greve, se a promessa não fosse cumprida.
Mas, cumpriram-na.
Uma tarde, Jauto, o chefe dos comissários políticos, me chamou para comunicar que meu pai tinha sido preso, condenado a vinte anos de prisão e que se eu vestisse o uniforme azul me levaria para vê-lo no campo de concentração de Manacas, na província de Las Villas.
Aquela notícia me transtornou. Era uma coisa que eu jamais tinha esperado. Mas respondi que seu oferecimento não me interessava. Não pretendia me vestir por motivo algum, absolutamente.
Fiquei muito preocupado com a notícia da prisão de meu pai. Um novo sofrimento acrescentava-se a minha existência, talvez o mais preocupante de todos, porque significava necessidades, miséria e perseguição para minha família. Minha mãe e irmã tinham ficado sozinhas, desamparadas e mais marcadas ainda porque, além de mim, também meu pai, agora, era um preso político.
Aquela foi a pior notícia de todas as que eu havia recebido naqueles anos de prisão. Também sentia por meu pai, já entrado em anos e doente. Mas nada podia fazer, a não ser assimilar o duro golpe e fortalecer ainda mais a minha fé diante do contratempo. Mais uma provação, mais um desafio à minha resistência. No entanto, meditei, analisei minha posição : valia a pena minha conduta rebelde? Bastava que eu dissesse que aceitava o uniforme azul e no dia seguinte partiria para Havana; no outro, estaria junto com minha família. Isso, sem dúvida, mitigaria o efeito da prisão de meu pai. Para minha mãe e minha irmã seria um alívio enorme. E para Martha? Ela seria capaz de compreender meu modo de agir, de aceitá-lo? Tinha certeza de que sim, que materialmente o aceitaria, mas compreenderia interiormente? Eu a havia preparado desde o primeiro dia, havia demonstrado claramente que não pensava em modificar minha conduta. Sempre lhe explicava o que fazia e por quê. Agora. uma mudança em meu comportamento poderia parecer inconseqüente.
Não acredito que o homem deva ser dogmático, mas sim que, ao contrário, seus critérios devem evoluir. Mas há algo em que ele não pode ceder: suas convicções ou valores éticos, que são como pilares que o sustentam interiormente. Se apenas um deles quebrasse, o edifício íntegro de sua vida poderia vir abaixo.
Quando analisava meu modo de proceder, eu sentia que minhas estruturas interiores correriam perigo se mudasse, como queriam meus carcereiros. Duvidava, mas então recorria a Deus, pois Dele, sim, nunca duvidei, e encontrava novamente o caminho; minhas análises tornavam-se diáfanas e eu reiniciava a marcha com nova provisão de fé e esperança.
Nós, dos grupos que recusaram os uniformes azuis, fomos dispersados por todos os presídios e campos de concentração do país: o cárcere de Camagüey, o de Holguín, o de Manzanillo, em Pinar del Rio, em Guanajay, no Castelo do Príncipe, em La Cabaña e outros.
Em muitos presídios empregaram-se surras sistemáticas para obrigar-nos a nos vestir. Também o confinamento em calabouços com paredes e solo cobertos com asfalto derretido, pegajoso, que deixou para sempre suas marcas na pele dos prisioneiros.
O chefe de Cárceres e Prisões, capitão Medardo Lemus, participou pessoalmente, com um nutrido grupo de guardas, de espancamentos de prisioneiros no castelo de San Severino e no campo de concentração de Agüica, na província de Matanzas. Foi lá que Garcia Plasencia, um prisioneiro que estava morrendo de pancadas, deu um soco no meio da cara do capitão Lemus. Por isso, caíram em cima dele a pontapés. Quando escrevo estas linhas, Garcia Plasencia continua preso, há mais de vinte anos.
A existência dos prisioneiros políticos nus foi denunciada diante de governos e organizações internacionais, mas estes não se preocuparam em se manifestar. A Anistia Internacional manteve-se em silêncio. Seu diretor era, nessa época, Sam McBride, que recebeu o Prêmio Lênin da Paz, concedido, como se sabe, pelo Soviet Supremo da URSS aos que defendem os interesses da União Soviética, sua política exterior e suas concepções ideológicas. Esse mesmo Sam McBride, dez anos depois, em julho de 1978, presidia uma conferência sobre Direitos Humanos, realizada na Venezuela, para denunciar as violações que estavam acontecendo na América Latina. Correto e gentil, cumprimentou minha esposa, que participava da conferência, sem saber quem era ela. Quando Martha começou seu discurso e o sr. McBride escutou-a dizer que em Cuba os Direitos Humanos eram violados, perdeu toda a compostura, gritou, histérico, e proibiu-a de continuar falando. Martha tentou continuar a exposição e o sr. McBride começou a bater fortemente sobre sua mesa, gritando, ao microfone, para os tradutores, que faziam tradução simultânea, não traduzirem as palavras dela, impedindo, dessa maneira, e diante da consternação de todos os presentes, que ela continuasse falando. No dia seguinte, na primeira página do jornal venezuelano Últimas Notícias, havia esta manchete, ocupando toda largura do jornal:
"VIOLAM-SE OS DIREITOS HUMANOS
EM CONFERÊNCIA
SOBRE DIREITOS HUMANOS"
Os demais órgãos da imprensa também comentavam o incidente com duras críticas.
O sr. McBride não queria ouvir nada sobre a violação dos Direitos Humanos em Cuba. O que teria pensado o Soviet Supremo se ele o tivesse permitido? Talvez lhe retirassem a medalha Lênin da Paz e seus comparecimentos a Rádio Moscou.
Passaram-se vários meses. O governo de Castro convenceu-se de que nossa posição, depois de terem ido embora os que não estavam completamente convencidos para sustentá-la, se havia consolidado. É verdade que o resultado tinha sido favorável ao regime. A maioria havia aceitado o uniforme azul.
Foi então que nos chamaram e partimos outra vez rumo a Havana. O Ministério havia dado ordem de nos reconcentrarem, todos, na prisão de La Cabaña.
Momentos antes de partir do presídio de Boniato, um soldado aproximou-se de nós, olhou receioso para todos os lados, e quando se convenceu de que não seria ouvido pelos outros guardas, disse, num sussurro, que iam nos dar o que queríamos: o uniforme que usávamos antes.
A viagem de volta a Havana, se bem que significassem mais de doze horas de falta de comodidade, era-nos agradável, pois queria dizer a volta para a capital, para a informação, a proximidade dos nossos familiares que, mesmo não podendo ver, sabíamos que estavam próximos, do outro lado da baia.
Em Camagüey, outro veículo cheio de presos nus uniu-se ao nosso. Procediam de outro presídio.
Quando chegamos a La Cabaña, no pátio, deram-nos cuecas e uma toalha. A maioria estava concentrada ali; só faltávamos nós e um grupo do campo de concentração San Ramón. O tratamento dos militares foi pouco agressivo, o reencontro de velhos companheiros nos dava grande alegria. Designaram-nos o pavilhão 13. E anunciaram a visita do Ministro do Interior, o comandante Sergio del Valle, um dos homens de confiança de Castro.
Assim que entrou, rodeado por meia dúzia de guarda-costas, começou a falar. Disse que o caso do uniforme havia terminado, que nos dariam o que usávamos antes. Acrescentou que não seriam tomadas medidas contra os que não quisessem aceitá-lo, que inclusive dariam a eles os mesmos direitos que aos vestidos.
A muitos de nós aquelas palavras pareceram falsas, hipócritas, enganadoras. Perguntávamos a nós mesmos por que — se haviam nos mantido mais de um ano sem roupas, batendo na gente, torturando-nos — tinham, de repente, tanto interesse em que tornássemos a aceitar o uniforme que nos tinham tirado. Valeu a pena estudar, analisar isso. Além disso, havia outras questões a serem tratadas: por exemplo, o regime de visitas, correspondência, assistência médica, condições de vida, etc. Devíamos esperar antes de aceitar a roupa. Muitas coisas tinham acontecido.
Boitel era um dos promotores desse planejamento. Mas a maioria se vestiu e apenas uns 250 de nós permaneceram nus, esperando para ver como se desenrolava a estratégia dos comunistas.
No começo, o próprio Ministro do Interior tinha dito que nós todos podíamos ficar juntos no mesmo pavilhão, os que tinham aceito o uniforme e os que não. Mas, poucos dias depois, houve uma separação e nós, os sem roupa, fomos levados para os pavilhões 12 e 13.
Marcaram os dias de visita. E autorizaram a confecção de bermudas ou shorts e a entrada de camisetas brancas, sem gola, para que fossemos ao encontro dos nossos familiares.
Colocaram uns tabiques e fizeram dez ou doze separações no enorme salão de visita, de maneira a podermos ficar ao lado dos nossos familiares.
O encontro com eles foi de uma alegria imensa, inefável.
Minha mãe, minha irmã e Martha contaram-me o que havia acontecido nos últimos tempos. Aquelas visitas, depois de meses e meses sem nos vermos, e a angústia de querer saber tudo em alguns minutos, produziam uma perturbação tremenda. Eu já havia passado por isso antes, e estava com uma lista, feita com tranqüilidade, dos assuntos que me interessavam com prioridade. Naqueles visitas usei como bolso secreto o forro duplo que os calções de ginástica têm. Logo ficaria na moda o seu uso para entrada e saída clandestina de correspondência. A vigilância das autoridades havia diminuído.
Permitiam que ficássemos várias horas no pátio, tomando sol, e o modo da guarnição nos tratar suavizou-se. Tudo fazia parte de uma estratégia: a de que os nus não vissem diferença algumas com os uniformizados e acabassem aceitando a roupa, coisa que eles precisavam para poder iniciar o novo plano de destruição do presídio político.
Logo ficaria provado que tínhamos, razão em ter desconfiado.
Martha detida: nosso casamento
As condições de vida começaram a se deteriorar. Não se cumpriam as promessas de assistência médica adequada, não se passava os loucos para um local apropriado e não entregavam a correspondência. Foi proposta uma greve de fome, da qual participariam os vestidos, com uniformes amarelos, e nós, os nus.
Houve passagens dignas de serem lembradas, como o que aconteceu com o dr. Micó Urrutia, um velho beirando os setenta anos. Seu aspecto, depois de três semanas sem comer, era cadavérico como o dos sobreviventes dos campos de concentração nazis. Foram dizer a ele que se desistisse imediatamente da greve lhe dariam a liberdade.
— Eu não abandono meus companheiros em uma situação difícil — respondeu-lhes.
Nem um só dos doentes — e havia alguns em estado grave — desistiram da greve. Aldo Cabrera havia tido enfartes, Fernandez Gámez ficou com o corpo coberto por crostas escamosas, Luis Lara não retinha água no estômago, vomitava o tempo todo; como ele, havia mais alguns para os quais a greve de fome se transformava em tortura dupla.
Martha foi a primeira a saber o que estava acontecendo, por uma carta que consegui lhe mandar, e avisou muitos familiares dos demais presos que, dois dias depois, apresentaram-se no primeiro posto da entrada e ficaram esperando lá até que lhes deram notícias nossas, da situação em que nos encontrávamos
Outras mulheres dirigiam-se às dependências do Ministério do Interior, mas sempre recebiam a mesma resposta por parte dos funcionários: enquanto não depuséssemos nossa atitude de força, não havia solução.
Na segunda semana, patrulhas de militares impediram o acesso à porta do presídio e nossas mães, esposas e irmãs ficaram em um caminho de terra que une La Gabaria ao Castelo do Morro. Passaram o dia inteiro ao sol e à chuva.
Em meados de outubro, a tensão e a incerteza levaram os familiares à secretária de Castro, Celia Sánchez, para pedir-lhe que intercedesse em nosso favor. Do presídio, foram à rua onde ela morava. Não era uma manifestação clássica, com cartazes ou com palavras de ordem. Simplesmente, um grupo de numerosas mulheres caminhando juntas, em silêncio.
De repente, carros de patrulha, com as sirenes ululando, apareceram na rua inteira, bloqueando-a. Os policiais saíram dos veículos como se fossem caçar criminosos perigosos. As senhoras idosas foram arrastadas sem misericórdia, aos arrancos, e enfiadas, aos empurrões, em automóveis; nas mais moças chegaram a bater, dando-lhes bofetadas.
Martha, junto com outra senhora, tinha conseguido escapar, mas olhou para trás e viu sua amiga Inês, a esposa de Raul del Valle, debatendo-se nas mãos de um policial que a havia agarrado pelos pulsos e a arrastava para um carro de patrulha. Correu até ela. Enfiaram-nas no mesmo automóvel, levaram-nas para a Chefatura Central da Polícia Nacional Revolucionária.
Apareceu o chefe dos carros de patrulha, capitão Justo Hernández, o mesmo que, sendo diretor de La Cabaña, ameaçou Martha de prendê-la. Estava histérico, guinchava e dava gritos, dizendo que eram todas agentes da CIA.
Inês, que sabia da ojeriza que o capitão Hernández tinha de Martha, tratou de escondê-la, colocando-se na frente dela. Mas quando puxaram Inês para enfiá-la num dos carros, ele a viu.
— Olhem só quem caiu na rede! Agora, sim, você vai apodrecer na prisão.
Um tenente foi pegar Martha e levou-a para um dos tantos escritórios daquele labirinto. Lá a esperava, sentado atrás de uma escrivaninha, um oficial mestiço, de uns cinqüenta anos, que começou a interrogá-la. Queria saber quem havía organizado a manifestação.
Martha respondeu que os familiares daquelas mulheres iam morrer em uma greve de fome que eles haviam provocado não fornecendo aos presos o mínimo necessário para subsistir.
O oficial disse então a Martha que elas eram dirigidas e pagas pela CIA. Depois, perguntou se ela havia proposto ao pai dela e a mim que passássemos para o Plano de Reabilitação, pois era a solução ideal, já que a revolução, humana e justa, dava aos que a haviam tentado destruir a sociedade socialista a oportunidade de se reintegrar nela. Martha respondeu que nem para nós, nem para ela, a reabilitação era uma solução, que não íamos negar a Deus, quaisquer que fossem as conseqüências.
— Pois vai ter muito tempo para pensar nisso. — Foram as últimas palavras daquele oficial e Martha achou que ia passar muitos anos na prisão.
Tornaram a chamá-la. Novamente corredores e escadas desertas. Chegaram a um salão onde estavam as outras. Lá tiveram que escutar uma longa exposição de ameaças e acusações, até que, finalmente, disseram que daquela vez iam passar por alto sobre o que tinham feito.
A Polícia Política chamou Josefa, a mãe de Martha, e lhe disse para ficar em uma esquina que lhe indicaram, e que não saísse dali. De madrugada, disseram a Martha e a Inês que andassem até onde Josefa estava. Encontraram-se e se abraçaram, chorando.
No dia seguinte a greve terminou.
Depois de vinte e um dias, nossa firme decisão obrigou as autoridades a ceder diante da justeza dos pedidos.
Alguns de nós solicitamos à direção do Ministério autorização para nos casarmos; acreditávamos que era o momento propício para fazê-lo, dada a suposta política conciliadora que estavam desenvolvendo. O pai de Martha e eu queríamos que ela fosse embora de Cuba, morar com seus irmãos no exterior. Isso era necessário para sua segurança, depois de ter sido detida e fichada pela Polícia Política.
Martha, depois de mil argumentações do pai e minhas, mudou a decisão de permanecer em Cuba e concordou em ir embora do país. A dela era uma das poucas famílias que tinham ficado para trás, quando as solicitações para sair de Cuba foram aprovadas. Naquela ocasião, dezenas de milhares de pessoas foram embora para os Estados Unidos nos chamados Vôos da Liberdade, em 1965. Ela também teria podido ir.
Certa manhã, no escritório dos militares, assinamos os documentos legais e, assim, nos casamos. Aquele ato não tinha para nós o menor valor espiritual. Só nos sentiríamos realmente casados quando nos uníssemos diante de Deus.
Como uma especial concessão para os dois pares que se haviam casado, concederam-nos quinze minutos no salão de visitas. Quando Martha saísse de Cuba, faria isso como minha esposa. Tínhamos conversado o quanto seria útil seu trabalho fora do país, em favor da minha libertação. Planejamos toda uma série de atividades com o objetivo de criar uma campanha de opinião pública que obrigasse Castro a me libertar. Ela não teria dificuldades para levar essa campanha a cabo, pois era uma verdadeira ativista.
Martha respondeu com juros às esperanças que depositei nela.
Uma prisão nazi no Caribe
De todas as prisões e campos de concentração de Cuba a mais repressiva é o cárcere de Boniato, no extremo leste da ilha. Ainda atualmente, quando se quer processar um grupo de prisioneiros, quando se quer fazer experiências biológicas e psíquicas com eles, quando se quer deixá-los incomunicáveis, surrá-los e torturá-los, o presídio de Boniato é a instalação favorita dos comunistas cubanos. Enterrada no fundo de um vale, rodeada de acampamentos militares, afastada de povoados e de estradas, é o lugar ideal para isso. Os gritos dos torturados e as rajadas de metralhadoras não são ouvidos por ninguém; afogam-se na solidão do local, perdem-se entre colinas e morros.
A viagem que fizemos a Boniato foi a pior de todas. A capacidade dos carros-celas era de vinte e dois prisioneiros apertados e incômodos, mas a cacetadas de culatras de fuzil e empurrões enfiaram vinte e seis.
Íamos quatro em uma cela rolante para três. Como não cabíamos sentados, enfiei-me debaixo do banco de madeira, encurvado e entre as pernas dos outros. Dormi com o sacolejar do veículo, até que Piloto, enjoado com o cheiro da gasolina e as sacudidas, começou a vomitar. O único recipiente que tínhamos era meu jarro de alumínio e eu o ofereci.
Trezentos quilômetros depois, na cidade de Santa Clara, deram a cada cela uma lata para urinar. Tornei a me enfiar debaixo do banco. A lata de urina, com a freadas bruscas e as sacudidelas, salpicava e molhava as pernas.
Um dos carros encrencou, quando chegamos a Camagüey. A viagem demorou mais de vinte e cinco horas. Por fim, a caravana se deteve à entrada do presídio de Boniato. Quando a porta se abriu, consegui ver uma enorme estrutura com um gigantesco letreiro que estava muito em voga: "Cuba, primeiro território livre da América".
Nesse dia iniciou-se o plano de extermínio e de experiências biológicas e psíquicas mais desumano, brutal e impiedoso que o mundo ocidental conheceu, depois dos nazis. Foram pródigos em maldades, sanha e torturas.
Boniato e suas celas muradas serão sempre uma acusação, uma prova de como se torturou, enlouqueceu e assassinou presos políticos em Cuba. Se não tivessem acontecido todas as outras violações dos Direitos Humanos, o que aconteceu em Boniato bastaria para condenar o regime cubano como o mais cruel e degradante que o continente americano conheceu.
Permanecíamos encarcerados em 40 celas. Ao amanhecer, a guarnição invadiu os corredores: chegaram gritando e cagando em nossas mães. A coisa de sempre: precisavam se aquecer, se entusiasmar. Batiam nas paredes e nas grades com a arma que empunhavam: canos de ferro enfiados em mangueiras de borracha para não romper a pele, cacetes de madeira, grossos fios elétricos trançados, correntes enroladas nas mãos e baionetas.
Não houve nenhuma justificativa, nenhum pretexto.
Simplesmente, começaram a abrir as celas, uma a uma, e a bater nos presos. A primeira foi a de Martín Perez. Lembro-me dele por seu vozeirão amaldiçoando os comunistas, mas sem dizer um só palavrão. Tentei olhar, aproximando-me da grade, e um golpe de corrente me fez afastar. Tive sorte da corrente não atingir meu rosto, para onde o golpe foi dirigido. Abriram a cela três, a quatro, a cinco... À medida que iam se aproximando, eu me sentia tremer todo por dentro, tinha os músculos contraídos, como num espasmo, minha respiração se tornava difícil e o medo, a impotência e a ira misturavam-se em mim enquanto escutava as pancadas sobre as costas nuas, as cabeças, o ofegar da curta luta e o corpo que caía. Aquela espera era alienante, destruidora, aniquilante. Alguns, esgotada a resistência psíquica, sem poder se conter e antes que os soldados que surravam entrassem em sua cela, começavam a gritar histericamente. Aqueles gritos duplicavam o horror.
O primeiro que abriu a porta do nosso calabouço estava armado com baioneta; atrás dele, outros três bloquearam a entrada. Só atinei ver que outro guarda tinha uma corrente. Empurraram-nos para o fundo da cela, a fim de terem espaço para erguer os braços e nos surrar porque, junto de nós, no forcejar da luta, era-lhes difícil movimentar correntes e baionetas.
Tratamos de nos separar, pois sabíamos que era o momento mais perigoso. Então, davam pontapés e joelhadas. Caí no chão e me espezinharam; romperam meu lábio inferior com um pontapé, causando-me profundo ferimento. Quando voltei a mim, estava com o rosto em uma poça de sangue. Meu companheiro de cela sangrava pelo nariz e tinha urna das mãos fraturada perto do pulso.
Houve vários feridos graves. Um dos irmãos Graiño, a quem o sargento Boa Gente fraturou a maça do rosto, cuspiu dentes quebrados. Foi uma pancada brutal que provocou um derrame daquele lado inteiro de seu rosto. Abriram a cabeça de Pechuguita, um camponês de Pinar del Rio, pequeno e sossegado. Foi tão grande o ferimento que deram doze pontos para suturá-lo.
Cela por cela, apanhamos todos, sem exceção.
Depois da surra, os oficiais e um médico passaram para nos examinar. Tiravam os feridos e, ali mesmo, um enfermeiro, com um carrinho de medicamentos, costurava e punha curativo nos feridos. Quando terminavam de nos tratar, diziam:
— Depois, não vão dizer que não lhes damos assistência médica.
E de novo para a cela, esperar nova surra.
Eu estava em mau estado, tinha o rosto sanguinolento e inflamado. Quase não podia ficar de pé, porque meu corpo inteiro doía: tinham me dilacerado, me moído de pancada. No entanto, o que mais me afetava era esperar que chegassem à minha cela para bater em mim. Aquilo me fazia mais mal do que a surra em si. Invejei mil vezes não estar na primeira cela: assim eles entrariam, bateriam em mim e eu não passaria por aquela tortura de esperar... esperar... Sentir que iam se aproximando de mim, cela por cela, rebentava-me os nervos.
Um dos feridos mais graves daquela primeira onda de violência foi Odilo Alonso, um espanhol que em fins da década de 50 emigrou para Cuba. Aconselharam Odilo a voltar para a Espanha quando Castro confiscou a fazenda onde ele trabalhava. Podia tê-lo feito, mas disse que se Cuba o havia acolhido como um filho, seu dever era lutar pela liberdade dela. E pegou um fuzil e foi para as montanhas do Escambray, unindo-se às guerrilhas que lutavam contra o comunismo. Foi feito prisioneiro e condenado a vinte anos de prisão. Rebelde e cristão, idealista e corajoso, recusou os planos de reabilitação e manteve, até o último dia, uma atitude intransigente para com seus carcereiros.
Regressaram à tarde, quase ao escurecer, e repetiu-se o pesadelo da manhã: espancamento cela por cela, com mais feridos.
Comunicávamo-nos aos gritos com as outras seções do edifício para informar e ficar sabendo quais eram os mais gravemente atingidos.
Odilo Alonso amanheceu com a cabeça monstruosamente inchada. Nunca pensei que uma cabeça pudesse ficar tão inflamada. O inchaço abaixava-lhe as orelhas, de tal modo que dava a impressão de estar usando um gorro.
Depois de três dias daquelas surras, duas diárias, alguns já não conseguiam ficar de pé. Martín Perez urinava sangue, outros tinham os olhos roxos e quase fechados por causa das pancadas. Mas os soldados não se importavam com isso; tornavam a bater, mesmo naquelas condições.
O sargento Boa Gente, cujo verdadeiro nome era Ismael, pertencia ao Partido Comunista; usava espesso bigode caído, ao estilo de Pancho Villa. Quando a guarnição entrava para nos surrar, ele dava desaforados vivas ao comunismo. Era algo assim como seu grito de guerra. Pedia aos outros militares que lhe deixassem os feridos para bater neles nos locais de curativo, assim não poderiam dizer que os haviam machucado duas vezes.
Outro sargento fazia ao contrário, batia nos feridos e dizia:
— Para costurarem você de novo.
Odilo foi ficando pior, devido às pancadas recebidas na cabeça. Seus ouvidos supuravam uma água sanguinolenta e seu rosto estava se inflamando. Não podia ficar de pé. Só então levaram-no para o hospital do presídio.
Nem aos gravemente feridos davam sequer uma aspirina. Não tiravam preso algum da seção, a não ser que estivesse em perigo de morte. Não tentavam nos matar com rapidez: seria generoso demais esperar um tal gesto de nossos verdugos. O objetivo era nos levar, por meio do terror e das torturas, aos planos de reabilitação política. Essa era a meta deles e, para alcançá-la, estavam decididos. A conduzir-nos até os próprios umbrais da morte e manter-nos ali, sem atravessá-los. Tudo tinha sido preparado com meticuloso sadismo, a tal ponto que, antes de sair de Havana, haviam nos vacinado contra o vírus do tétano. Assim podiam nos ferir com baionetas e facadas, rachar nossas cabeças com ferros, com a certeza de que esse mal não iríamos contrair.
Muitos não puderam resistir às surras diárias, ao terror, às torturas psíquicas e se vestiram. Aquelas deserções causavam grande dor: era como se arrancassem pedaços de nós. Eu me sentia diminuído cada vez que um dos nossos ia embora. Uniam-me a eles anos de terror, de penúria e o mesmo sonho de liberdade.
A capacidade de resistência é algo muito difícil de medir no ser humano. Homens que haviam enfrentado a ditadura castrista em combates a tiros limpos, nas montanhas ou nas cidades, que tinham entrado ou saído de Cuba clandestinamente em missões de guerra, que tinham dado demonstrações de coragem e de heroísmo, não podiam, desarmados, enfrentar o terror, a incomunicabilidade, o confinamento por muito tempo. E cediam. Mas foi preferível assim, porque, então, nossa posição se consolidou.
A cada dia os corpos emagreciam, as forças fugiam, as pernas fraquejavam, mas nossos cimentos interiores se solidificavam e urna força indestrutível ia se erguendo dos cantos mais remotos da alma e do cérebro: a fé, que com cada baionetada, com cada ignomínia, com cada vexame, com cada surra, firmava-se mais ainda.
Trataram de impedir nossas práticas religiosas, de interromper, de desbaratar, de calar as orações e isso custou-nos rações extras de espancamentos.
Uma noite, em um descuido, abstraído pela leitura, surpreenderam o irmão Rivero, outro pregador protestante, lendo uma pequena Bíblia que tinha entrado burlando a vigilância dos guardas.
Descobri-la foi, para os comunistas, como achar um depósito de armas. Em cinco minutos o diretor do presídio, o chefe da Polícia Política e um grupo de oficiais amontoavam-se diante da cela de Rivero, um negro velho, todo bondade, carinhoso e suave para conosco, mas rebelde e ácido para com os inimigos. Entraram, bateram nele com um sabre da cavalaria — em todo o corredor ouvia-se o som da lâmina de aço contra as veneráveis costas do irmão Rivero. Não lembro quantas pancadas lhe deram; podem ter sido quinze, vinte, talvez mais, não sei ... Ali mesmo, com ódio e raiva, despedaçaram a Bíblia e o deixaram com as costas em carne viva.
No edifício número quatro estavam reformando as celas e transformando-as nos calabouços mais desumanos e repressivos que já existiram, com exceção das "celas-gavetas" dos campos de concentração Três Macios e San Ramon.
De dia víamos, com horror, como a construção se adiantava. Experimentávamos e sofríamos antecipadamente aquelas celas. Entre nós, evitávamos mencioná-las; olhávamos para elas com angústia, mas nada comentávamos.
As celas tinham uns três metros de comprimento por um metro e meio de largura; em um canto, um buraco fazia as vezes de latrina e sobre ela, quase grudado no teto, um pedaço de tubo dobrado: o "chuveiro". De fora, o guarda de serviço, no corredor, com duas chaves mestras, abria ou fechava todos os chuveiros de um ou do outro lado do corredor, quando bem entendesse.
Quando os militares terminaram de fazer as celas muradas do presídio Boniato, quiseram experimentar seu efeito em presos comuns. E enfiaram lá os mais "valentes" e os mais "ferozes", que viviam percorrendo cárceres há anos. E estes, para que os tirassem de lá, cortavam veias, engoliam pregos, pedaços de colher, lâminas de barbear; preferiam que lhe abrissem as barrigas a permanecerem ali. O que mais agüentou resistiu apenas três meses.
Essas celas foram feitas especialmente para os presos políticos cubanos. A elas confiavam o que não tinham podido conseguir todas as tentativas anteriores, o que não puderam conseguir com os trabalhos forçados da Ilha de Pinos, com seus lodaçais, pedreiras e plantações, com suas torturas, mutilações e assassinatos.
Quando, dia 6 de janeiro, íamos entrar nas celas, uns oficiais nos disseram que os presos comuns mais "bravos" não tinham conseguido resistir às celas muradas e que antes de seis meses nós estaríamos pedindo perdão, de joelhos... Empurraram-nos para dentro das celas e o barulho dos cadeados e ferrolhos foi abafado pelo estrondo das pesadas portas metálicas que se fechavam às nossas costas, não sabíamos por quanto tempo. Alguns não sairiam vivos dali.
De manhã, o sol aquecia a placa de ferro da minha janela, que dava para o leste. A cela transformava-se em um forno. Suava-se, então, aos jorros. A transpiração e a gordura que com ela se expulsava adquiriam, naquele espaço fechado e na obscuridade, uma fetidez peculiar.
A tarde, aqueciam-se as placas da frente, à medida que o sol avançava. Passávamos semanas inteiras sem tomar banho. Quando lhes dava gana ou recebiam ordens, os guardas, sentados no corredor, abriam os "chuveiros" com algumas voltas dos registros. Faziam isso a qualquer hora. No verão, abriam-nos quando as placas de ferro estavam em brasa. No inverno, de madrugada. Então, chegavam no comprido corredor e gritavam que tínhamos cinco minutos para o banho. Quando calculavam que estávamos ensaboados, fechavam a água. Então, começava uma gritaria infernal. Aí, os guardas iam tranqüilamente para a cozinha, conversar com as guarnições dos outros edifícios. O sabão secava em nossos corpos e sentíamos como a pele empastada ia se esticando; os cabelos ficavam duros. Isto alterava muito os nervos e os gritos pedindo água eram uma tortura a mais. E todo aquele inferno ia minando aos poucos o equilíbrio de nossas mentes. Era exatamente esse o objetivo dos nossos carcereiros.
Não podíamos ter recipientes para guardar água, era proibido. Apenas uma latinha de um quarto de litro. O oco-latrina da minha cela entupiu em poucos dias. Ao redor dele havia uma pequena cavidade de cimento que logo se encheu de urina e excrementos. Pepin e eu fizemos o possível para desentupi-lo. Enfiávamos o braço no buraco, usávamos as colheres, mas todos os nossos esforços foram inúteis. Os pedidos para que consertassem a latrina não davam resultado. Quando abriam a ducha, tínhamos que ficar de pé ali, onde havia vermes. O jorro de água caía exatamente no centro do charco, salpicando as paredes. Vivíamos dentro de uma latrina. O cheiro era insuportável, grudava-se nas fossas nasais. Era como se tivéssemos constantemente tampões de merda no nariz.
Quando vinha a comida pegávamos a latinha como sempre se fazia em situações semelhantes — na palma da mão e, fazendo o possível para não tocar no que íamos comer, sem usar a colher, íamos jogando a comida diretamente na boca, como se fosse um líquido. Afinal, era sempre a mesma coisa! Macarrão cozido, pão... pão, macarrão cozido...
As experiências biológicas e suas primeiras vítimas
A dieta era organizada de maneira a provocar doenças carenciais e problemas de metabolismo. Farinha de milho e, às vezes, uma mistura de arroz e macarrão cozidos compunham basicamente a nossa alimentação.
Calculamos que não chegava a mil calorias diárias. Logo começaram a aparecer os resultados da alimentação insuficiente, carente de proteínas e vitaminas. Emagrecíamos dia a dia, hora a hora. A fome roia-nos o estômago.
O escorbuto é uma doença carencial pouco freqüente. É produzido pela falta da vitamina C e manifesta-se por meio de uma espécie de grãozinhos escuros que vão aparecendo nas pernas e coxas; também começam a aparecer manchas arroxeadas, como se a gente tivesse levado uma pancada violenta. As gengivas ficam inflamadas e se avermelham, sangrando facilmente ao mais leve contato. Os dentes afrouxam, amolecem, e aparecem outros transtornos, até que, afinal, o doente morre.
Os guardas andavam nas pontas dos pés, deslizando junto da parede, para ouvir nossas conversas. Faziam isto continuamente. As vezes, o pessoal da Polícia Política é que desempenhava esse trabalho. Como sabíamos disso, para conversarmos de uma cela para outra, usávamos uma gíria mista de inglês, francês e espanhol, e palavras criadas por nós. Era uma linguagem impossível deles entenderem.
Nunca sabíamos quem andava pelos corredores. Apenas ouvíamos o barulho dos passos ou víamos sombras fugazes passarem diante da ranhura entre a porta e o umbral.
Já não nos surravam em horas determinadas. As vezes, passavam vários dias sem bater na gente para, de repente, irromper a qualquer momento do dia ou da noite. Por isso não havia descanso; ao menor ruído o preso acordava sobressaltado, pensando que a guarnição estava lá fora. Em algumas ocasiões chegavam fazendo a maior confusão, correndo pelas escadas; batiam nas portas com as armas que levavam para nos agredir, sacudiam os cadeados e gritavam ao carcereiro militar :
— Ei, me abra esta cela!
Mas não entravam. Todos iam embora e ficávamos numa grande tensão, pois a adrenalina e todos os mecanismos que se desencadeiam quando se espera uma agressão física já agiam em nosso organismo. Faziam isto com freqüência e, como algumas vezes voltavam e batiam em nós, eu sempre ficava à espera deles, com a conseqüente ansiedade que provocavam aquelas tensões.
Os guardas, que eram simples instrumentos, não conseguiam compreender esses métodos e protestavam pelo que consideravam pura perda de tempo, uma ordem que os tirava do quartel para nada, porque o que queriam era que abrissem as celas para acabar conosco de pancada.
Os que sabiam perfeitamente o que estavam fazendo e qual seriam as conseqüências eram os psicólogos do Departamento de Avaliação Psíquica da Polícia Política, diretores da mais ambiciosa e criminosa experiência da qual éramos cobaias e no qual as autoridades depositavam suas esperanças de nos dobrar e nos levar à aceitação da doutrina marxista, nos planos de reabilitação política.
Se não conseguissem a finalidade com aquele processo, só lhes restaria, depois do uso de tanta violência física e psíquica, a alternativa de nos assassinar.
A capacidade de resistência tem um limite e nos levavam para ele dia a dia, hora a hora. Iam nos minando, lenta e inexoravelmente.
Periodicamente nos submetiam a interrogatórios para ir avaliando a experiência e seus resultados. Insistiam em que lhes disséssemos as horas em que nos sentíamos melhor ou pior, o que mais nos incomodava, o que sonhávamos, se pensávamos em nossa família com freqüência ...
Os homens que nos entrevistavam não usavam farda, mas sim aventais brancos, de médicos, e mostravam-se corteses, amáveis, dizendo-se dispostos a melhorar um pouco a nossa situação. Por isso interessavam-se pelas nossas respostas, que anotavam cuidadosamente em fichas e cadernos.
Durante várias semanas colocaram nos alimentos uma quantidade excessiva de sal, tanto que ao comer nossa garganta ficava em brasa. Depois, tiraram o sal completamente. Com esse sistema, o metabolismo dos detentos foi alterado. Aqueles que sofriam de problemas renais e de tensão arterial pioraram.
A ausência de proteínas fez aparecer os chamados edemas de fome ou de nutrição. Primeiro, inchavam os tornozelos e as pernas; depois, as coxas, os testículos, o abdômen e o rosto. Os casos dos que ficavam inflamados da cintura para cima eram observados por eles. Sabiam que se o edema atingisse os pulmões, o cérebro e as vísceras a complicação seria mortal. Por isso, retiravam os que eram considerados em perigo de morte e levavam-nos para o hospitalzinho, um local especial, também murado com placas de ferro e incomunicável. Lá, vários psicólogos e médicos esperavam o preso; pesavam-no e desse instante em diante exerciam sobre ele uma estrita vigilância. Imediatamente começavam as perguntas. Interessavam-se mais pela deterioração mental do que pela física. Interessavam-se em saber até que ponto e como as mentes eram afetadas.
Lá faziam todo tipo de análises, mediam e pesavam os alimentos, assim como excrementos e urina. Tomavam a temperatura e pressão arterial mais ou menos de quatro em quatro horas. As observações duravam uns quatro ou cinco dias, findos os quais administravam doses maciças de diuréticos. Os doentes não podiam, então, dormir porque tinham que se levantar constantemente para urinar. Desinchávamos como balões de borracha. Um dos casos mais graves foi o de Jose Carreño, cujo trabalho consistia em ler as notícias dos órgãos oficiais do Partido da Juventude Comunista, e comentá-las, assinalando onde se encontrava a propaganda, a mentira e a doutrinação, dando uma explicação. Essa tarefa abnegada e diária de Carreño, verdadeiro profissional apaixonado por seu trabalho, foi tremendamente útil, porque entre nós havia camponeses, operários, gente pouco politizada que poderiam ser alterados ou confundidos com a propaganda, em alguns aspectos. Graças a Carreño isso não aconteceu. Quando ele apresentou edema excessivo, generalizado, tiraram-no da cela e tiveram que levá-lo para o hospitalzinho completamente nu, porque as coxas não entravam nem mesmo no maior número de cueca. No momento em que os guardas o levaram estavam me servindo o almoço, por isso a porta da minha cela estava aberta e eu o vi passar. Quase não o reconheci, tão monstruosamente inchada estava a cara dele, assim como as pernas e os testículos.
Quando deram diurético a Carreño e ele urinou todo aquele líquido que tinha retido nos tecidos — processo que levou uns cinco dias —perdeu quase vinte e cinco quilos de peso.
Em mim, os edemas começaram pelos tornozelos, subindo para as coxas e os genitais. Também me levaram para o hospitalzinho quando minha barriga começou a inflamar. Ao chegar eu pesava sessenta e um quilos. Depois de passar pelo processo todo de exames e perguntas, deram-me diuréticos e, ao eliminar o líquido, fiquei pesando cinqüenta e dois. Tinha perdido nove quilos em cinco dias. Meu peso, quando fui preso, era sessenta e oito quilos.
Faltava-me a memória e eu sofria de enorme confusão mental. Perdi a coordenação de alguns movimentos e não encontrava as palavras necessárias para me expressar.
Caí em profundo estado de depressão. O menor ruído me alarmava e isso provocava uma taquicardia muito forte, que me fazia ouvir as batidas do coração como um martelar incessante. Sentia um medo inexplicável e não podia encontrar a causa daquele temor. Não sabia exatamente o que temia. Não era a surra, era um medo que ia além disso. Sentia-me muito fraco e não conseguia dormir bem. Então, quando pensava que a angústia ia me esmagar, recorria a Deus. Sempre recorri a Ele em busca de apoio e paz. E sempre os encontrei.
As semanas continuavam passando e cada dia intensificavam mais o rigor daquele aprisionamento. Tinha náuseas e diarréias freqüentes. O cabelo caía em quantidade. Apareceram em minha boca umas chagas que ardiam, os lábios ficaram ressecados. Quem ficou em estado mais grave com essas afecções foi Jorge Portuondo. Devido ao meio favorável para sua proliferação, apareceram os fungos; quase todos nós os tínhamos nos locais mais úmidos e escondidos do corpo.
Eu quase não podia engolir, tão doloroso era tentar fazê-lo.
Alguns já tinham enlouquecido completamente e gemiam, chamando seus familiares, ou explodiam em ataques de choro ou de riso. Outros gritavam, como se os comunistas estivessem ali para nos surrar, mas eles existiam apenas em suas mentes perturbadas. Não obstante, cada vez que ouvíamos aqueles gritos de alarme, acordávamos angustiados, porque nosso terror apresentava a pergunta: será verdade?
Comecei a ter crises de asma. Asfixiavam-me, mas não me davam medicação; nem sequer permitiam o uso de nebulizador para acalmar o ataque. Quando eu era presa desses ataques, tentava me manter calmo e respirava lentamente; assim mesmo era horrível a sensação, que me atazanava, de morrer por falta de ar. Hoje penso em todo aquele espanto como em um pesadelo. Mas não foi. Meus pulmões têm enfisemas, estão fibrosos, sem elasticidade. A negativa de assistência médica foi total e foram inúteis os pedidos dos demais presos para que tratassem de nós, os asmáticos, quando sobrevinham as crises.
Outro método de tortura usado com muitos de nós foi o de nos levar ao hospitalzinho e fazer-nos eletrocardiogramas, informando-nos mais tarde, com toda seriedade, que sofríamos de perigosa e grave afecção cardíaca, Com isso atemorizavam a gente e depois ofereciam assistência médica, a salvação, a saída daquele buraco "onde a qualquer momento iríamos morrer" durante um ataque, desde que, em troca, aceitássemos a reabilitação política.
O propósito de nos transformar em farrapos ia sendo cumprido com meticuloso rigor. Éramos como espectros. Esqueléticos, como aqueles sobreviventes dos campos de concentração nazis, depois de termos perdido treze, dezoito e até vinte e sete quilos de peso. Outros continuavam inchados.
A 7 de fevereiro de 1972 morria Ibrahim Torres, nosso querido Pire, como nós todos o chamávamos. Seu corpo não pôde resistir àquelas experiências. Depois, os que dirigiam aquele plano de extermínio compreenderam que os mais afetados poderiam morrer e o objetivo não era nos matar. Resolveram, então, não correr o risco de acontecerem outros óbitos.
Por fim, Martha conseguiu sair do país com seus pais. Ela daria minha situação a conhecer no estrangeiro, assim como a de todos os prisioneiros políticos. Talvez com isso conseguíssemos sensibilizar a opinião pública mundial diante dos horrores dos cárceres castristas.
Castro, como Stalin fez na União Soviética, negava a existência de campos de concentração, de prisioneiros políticos e de crimes em cárceres em Cuba.
Martha tinha todas as qualidades necessárias para nos ajudar, para revelar a verdade, e o faria.
A morte de Boitel
No presídio do Castelo do Príncipe, Pedro Luis Boitel agonizava em conseqüência de uma greve de fome que mantinha como protesto ao tratamento desumano que recebia. A notícia foi divulgada no estrangeiro. A 7 de maio, quando já fazia mais de um mês que Boitel se encontrava em greve, o dr. Humberto Medrano publicava um artigo no Diario Las Americas denunciando o que estava acontecendo. No dia seguinte, personalidades e organizações do exílio enviavam telegramas à Comissão dos Direitos Humanos da ONU e à Cruz Vermelha Internacional, implorando-lhes que interviessem com urgência, a fim de salvar a vida de Boitel. A ONU guardou silêncio. Um silêncio cúmplice.
Sempre fraco e muito magro, o estado físico dele não tardou a entrar em crise. Mesmo assim, sua decisão de que não se comunicasse às autoridades que estava em greve foi firme, até que, quando já agonizava, seus companheiros avisaram a chefia da penal que, claro, já sabia.
O primeiro a aparecer foi um sargento, ajudante do tenente Valdés, chefe da Polícia Política naquele presídio. Quando o sargento ergueu o lençol e viu o que restava de Boitel arregalou os olhos, deu um passo para trás e saiu correndo, para informar seus superiores.
Na verdade, era impressionante aquele esqueleto coberto de pele, que emitia apenas uns fracos gemidos.
Pouco depois chegou o tenente Valdés. Também ergueu o lençol e, apesar de tentar dissimular, seu rosto se contraiu. Pediram-lhe que retirasse Boitel imediatamente dali, para que lhe dessem assistência médica e impedissem, assim, a sua morte. Valdés olhou para os que lhe pediam aquilo, depois voltou os olhos para Boitel, no catre, e disse:
— Isso eu não posso fazer. Vou informar ao Ministério o estado em que ele se encontra e que os superiores decidam. Mas podem estar certos de que não vamos ceder a nenhuma imposição pela força. Boitel já nos cansou com suas greves. Se fosse por mim, ele morria, mesmo. E acho que vai ser esse o critério do Ministério.
Passaram-se horas e não davam cuidados médicos a Boitel. Ele se queixava continuamente. Seus companheiros mantinham-se silenciosos o tempo todo, conscientes de que estavam presenciando a morte de um companheiro e que nada podiam fazer para evitá-la.
No dia seguinte, chamaram insistentemente, porém só algumas horas mais tarde tiraram-no dali. Tinham esvaziado uma salinha lá mesmo, no presídio, no fundo da sala de Fajardo. A porta esperavam o chefe dos Cárceres e Prisões, Medardo Lemus, o tenente Valdés, O'Farrill e outros oficiais.
No alto das janelas da outra sala vários detentos observavam a cena.
Quando depositaram Boitel lá dentro, colocaram um biombo diante das grades e um sargento ficou de guarda. Todos escutaram claramente quando disse ao tenente Lemus:
— Quando ele parar de respirar, avise. Antes, não.
E foi embora com toda a comitiva.
Os presos da outra sala revezaram-se durante a noite inteira para não perderem o que acontecia. De madrugada, escutaram a voz agonizante de Boitel pedindo água. Viram o sargento remexer-se, inquieto, diante das grades... Passaram-se horas e Boitel não tornou a se queixar. Tinha morrido depois de cinqüenta e três dias de greve de fome. Era 24 de maio de 1972.
Dias depois, o tenente da Polícia Política, Abad, de ascendência libanesa, apresentou-se na casa da sra. Clara Abraham, mãe de Boitel. Ela estava lendo a Bíblia. A porta entreaberta foi empurrada pelo grupo de militares, entre os quais estava um médico.
Clara, ao vê-los, foi assaltada por uma dessas premonições que nunca enganam o coração de mãe.
— Meu filho morreu!
— Quem lhe disse isso? — perguntou, estranhando, o tenente Abad, pensando que talvez a notícia houvesse transpirado. — Está enganada...
— Mas o que aconteceu com meu filho? —insistia a mãe.
Um primo de Boitel estava na casa e as autoridades chamaram-no de lado, para que desse a notícia a ela. Mas Clara não esperou. Saiu para a rua e dirigiu-se, alucinada, para a prisão do Príncipe. Mas os guardas, que a conheciam e que sabiam que Boitel havia morrido, não a deixaram passar nem pelas primeiras - guaritas de vigilância.
Clara negou-se a sair dali e foi enfiada à força em um carro de patrulha e levada à sede da Polícia Política, a Lubianka cubana, Vila Maristas. Uma amiga que a acompanhava, Noemí, recusou-se a abandoná-la, se bem que Clara insistisse para que não ficasse com ela.
O libanês Abad apareceu de novo na sala.
— De qualquer modo, vamos ter que lhe dar a notícia, Clara — disse-lhe.
.Ela estava sentada, mas quando escutou aquelas palavras, ergueu-se de um salto e agarrou o tenente pelos ombros, sacudindo-o:
— Que notícia? Diga que notícia é essa!
O oficial empurrou-a com violência. Clara caiu num sofá e ia se levantar quando Abad cortou-a, seco:
— Seu filho está morto e enterrado. Não grite, pois não está em sua casa e sim, na Segurança do Estado.
Clara tentou pôr-se de pé, mas o tenente Abad jogou-a de novo no sofá. Ela, em crise nervosa, adquiriu forças e Abad esbofeteou-lhe o rosto. Depois, puseram-na a força em um calabouço. Já noite avançada levaram-na de volta para casa, num carro de patrulha. Havia guardas à paisana lá. Haviam cortado o telefone, para impedir que ela comunicasse a notícia a outras pessoas, e membros do Comitê de Defesa da Revolução, orientados pela polícia, ameaçaram-na, dizendo-lhe que não podia perturbar a ordem pública com gritos.
No dia seguinte, oficiais da Polícia Política visitaram-na de novo, para informar o local onde o cadáver de seu filho estava enterrado.
No dia 30 de maio, acompanhada por outras mães e familiares de presos, Clara tentou chegar, com flores, ao túmulo onde estava sepultado Pedro Luis. Com rosários apertados nas mãos, avançaram pelas alamedas do cemitério, rumo ao local das valas comuns, o mesmo lugar onde se enterravam os fuzilados. Mas antes de chegar foram interceptadas, insultadas e agredidas por um grupo de mulheres armadas com bastões de madeira envolvidos em jornal. Não lhes permitiram nem sequer fazer uma oração.
Algumas das agressoras, se bem que estivessem à paisana, pertenciam à guarnição do cárcere de mulheres.
A notícia da morte de Boitel, o mais rebelde dos presos políticos cubanos, chegou até nós pelo dr. Gallardo, um médico preso que nos visitava e que, mais tarde, soubemos que era um infiltrado da Polícia Política.
Algumas semanas mais tarde, na casa do oficial do Ministério do Interior, Alfredo Mesa, situada no bairro do Cassino Esportivo, nos arredores da Capital, e enquanto preparavam espingardas para ir caçar patos no pântano de Zapata, o chefe dos Cárceres e Prisões, Medardo Lemus, comentou que Fidel deu a ordem de "liquidarem Boitel para que não fodesse mais".
Uma greve imposta
Através das visitas estabeleci um correio clandestino com Martha. Assim, recebi sua primeira carta, escrita em pregas de um papel finíssimo, com letra miudinha, microscópica, que eu devorava com ansiedade.
Sentia-me muito mal. Ela tinha ido embora pressionada por mim e com a idéia — que então se negava a aceitar — de que podia me tirar da prisão. Confessava-me que se sentia inútil, que quando estava em Cuba pelo menos podia, do outro lado dos muros e fossos, partilhar comigo o mesmo céu, o mesmo sol .
Eu a compreendia e também sofria com sua distância, mas estava tranqüilo porque pelo menos sabia que ela estava a salvo da repressão dos comunistas. Outra de minhas denúncias tinha conseguido burlar todas as dificuldades e censuras do Governo: estava sendo publicada no estrangeiro, dando a conhecer o que acontecia nos cárceres.
Em pedacinhos de papel de seda, que entravam clandestinamente, eu escrevia a Martha várias vezes por semana. Para que saíssem, eu os dobrava cuidadosamente em preguinhas, como as de uma sanfona, pois desse modo é que o papel
tem menos volume. Envolvia-os em náilon e os escondia no forro duplo do calção que usava. Jamais me separava daquelas cartinhas. Dormia com elas e as levava comigo mesmo quando ia tomar banho, porque os militares costumavam revistar as celas de surpresa e poderiam encontrá-las.
Quando enviava a Martha algumas informações, denúncias ou instruções, fazia muitas cópias para, assim, aumentar as possibilidades de que uma chegasse às mãos dela, pois se era difícil burlar a revista no presídio, muito mais difícil era fazer a correspondência sair do país. Usávamos endereços de pessoas amigas em nações da Europa ou da América Latina. Sabendo que a maior concentração de exilados encontrava-se nos Estados Unidos, a correspondência que saía de Cuba dirigida a esse país algumas vezes era destruída. A que chegava da América do Norte tinha o mesmo destino.
Nós, presos, tínhamos duas alternativas: guardar esses papéis em esconderijos considerados seguros, tais como buracos nas paredes, forros duplos de travesseiros, calção, etc., ou carregá-los constantemente. Eu sempre preferi a última alternativa. Assim, podia defender meus papéis até o último instante.
Escrevia com frenesi, dando instruções a Martha de como denunciar a nossa situação perante as organizações internacionais, governos e imprensa.
A propaganda de Castro e de seus porta-vozes no mundo abafava os gritos dos torturados e o clamor de suas vítimas. Cuba era, para a maioria das pessoas no exterior, uma espécie de paraíso terreno conseguido graças à revolução.
A grande imprensa apoiava, com suas informações distorcidas sobre a realidade cubana, o tirano Castro, e os governos de países capitalistas da Europa ofereciam-lhe apoio diplomático, comercial e generosas ajudas financeiras gratuitas, como é o caso da Suécia.
A Internacional Socialista oferecia, então, seu respaldo moral e político ao tirano. Vinte e cinco anos depois continuaria fazendo isso.
As denúncias a organizações internacionais, especialmente à Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, eram boicotadas e freadas pelos que apoiavam Cuba e, por isso, as centenas de informações e documentos que provavam de maneira irrefutável as torturas, crimes e violações dos Direitos Humanos cometidos pelo regime de Castro eram atirados aos cestos de lixo.
Tanto no Velho como no Novo continentes mantinha-se um silêncio cúmplice. Era comunista a bota que nos esmagava o pescoço, mas capitalista o pé que a calçava.
Causava-nos profunda tristeza ver aquela indiferença por parte dos que deveriam sentir-se solidários a nós, pelo nosso sacrifício. Era indigno, deprimente e doloroso o manto de silêncio que as mãos, que supostamente deveriam levantá-lo, lançavam sobre a barbárie e os crimes perpetrados no presídio político cubano.
Eu tinha compreendido, com resignação, que nada podíamos esperar da indolência e insensibilidade do mundo livre, que apenas deixava ouvir vozes indignadas e denunciadoras quando maltratavam prisioneiros das ditaduras de direita. Por esse motivo, sabia que não seria tarefa
fácil criar um estado de opinião pública o suficientemente forte para que se fizesse algo concreto em favor da nossa liberdade. Mas confiava em Martha, em meus amigos no exterior e em que Deus nos ajudaria. Com eles poderia conseguir. Também pensava em denunciar minha prisão injusta, se bem que houvesse um perigo para mim: poderiam me matar. Mas precisava correr esse risco.
Quando abriam as galés para os presos saírem ao pátio, alguns de nos conseguíamos burlar a vigilância e nos misturávamos com os demais prisioneiros.
Foi assim que conheci Pierre Golendorf, um intelectual marxista francês, que tinha viajado para Cuba e trabalhado para o governo cubano. Mas Pierre comprovou a falsidade dos cacarejados "logros" da revolução e compreendeu que a ilha era uma grande fazenda em que Castro mandava como um maioral escravagista. E disse isso. E escreveu isso. E revelou em suas cartas a mentira que era a revolução, sem desconfiar que a Polícia Política censurava sua correspondência.
Acusaram-no, como a todos os que discordam, de agente da CIA e mantiveram-no incomunicável para interrogatório.
O promotor pediu vinte e cinco anos de prisão para ele, mas um oficial investigador informou-o que não se preocupasse, que receberia uma condenação menor, que também não precisaria cumprir. Recebeu dez anos. Mas o oficial da Polícia Política não o enganou: cumpriu apenas três anos e dois meses. Eles o sabiam, porque assim haviam decidido na sede da Lubianka cubana, que é onde há um quarto de século impõem-se os anos de condenação que são dados nos "julgamentos" de réus políticos. Os tribunais não fazem mais do que comunicar as sentenças.
Meus companheiros tinham um pouco de hostilidade contra Pierre por seus antecedentes políticos. Era membro do Partido Comunista francês. Eu nunca me irritei por alguém pensar de maneira diferente da minha e tinha verdadeiro interesse em conversar com ele. E daquelas grades para dentro, todos nós éramos prisioneiros — pensava.
Naquela tarde Pierre lavava um de seus uniformes nos tanques do pátio. Sentei-me ao lado dele, cumprimentei-o e perguntei-lhe que motivos o haviam levado para a prisão. Para mim, seus critérios, seus enfoques da realidade cubana, eram muito importantes e interessantes, por serem analisados de outra perspectiva.
— Você viu, Pierre, o que o comunismo fez com o nosso país — disse-lhe. — A ditadura de Batista foi substituída por outra mais feroz, mais cruel e repressiva, em todos os aspectos. Você, só por ter escrito o que viu, foi acusado de ser agente da CIA e condenado a dez anos de cadeia. A nova tirania é mais implacável do que a anterior.
Eu o fiz saber que, com Batista, os comunistas tinham até podido participar do Governo. Carlos Rafael Rodriguez, o atual vice-presidente de Castro, tinha sido um dos ministros do gabinete do ditador anterior. E Blas Roca e Lázaro Pena, também comunistas, haviam desfrutado dos benefícios da ditadura de Batista, mesmo exilados.
Pierre mostrou-se surpreso.
— Comprovei, amargamente, que muitas coisas aqui não são como eu imaginava. Achei que a revolução cubana era o ideal socialista, que devolveria a liberdade ao povo. Vim para cá como um entusiasta admirador desse processo. disposto a dar-lhe o melhor de mim, mas encontrei uma burocracia implacável, com uma nova classe poderosa que eliminou todas as liberdades e com uma desorganização que é quase um dogma. O país é governado, como se fosse um quartel, por um ditador implacável, que o faz debaixo de uma fraseologia revolucionária com a qual conseguiu enganar muitos, como a mim.
— E o mais dramático é que esse engano não permite aos cubanos conhecerem a verdade destes cárceres e campos de concentração, das torturas e crimes.
— É verdade, Valladares. A maioria da esquerda européia é benevolente com Castro e parece-lhes aceitável que ocorram fatos reprováveis, que eles qualificam como legítimos atos de defesa da revolução.
— As ditaduras boas não existem. Se terríveis e injustificáveis são as de direita — continuei, — muito mais sanguinárias são as totalitárias de esquerda. A primeira corta um braço do homem. A segunda, as quatro extremidades e, além disso, tritura-lhe o cérebro. Stalin e Mao aniquilaram juntos mais de cento e vinte milhões de pessoas. E seus seguidores, como Castro, continuarão fazendo isso, porque de outro modo não podem se manter no poder.
Pierre e eu nos tornamos grandes amigos. E, quando não podíamos nos encontrar no pátio, escrevíamos um para o outro.
No mês de junho de 1974 todos nós, prisioneiros, fomos transferidos para o pátio 1, de onde tinham tirado os jovens recrutas detidos por supostos crimes militares.
A galé destinada a nós era a menor e mais lôbrega de todas, infestada de percevejos e piolhos. Do teto pendiam pequenas estalactites provocadas pela infiltração, que naquela masmorra empapava o teto ovalado. As grades do fundo tinham sido cruzadas por dezenas de barras de ferro. Soldadas transversalmente, formavam uma verdadeira rede e nos espaços entre uma barra e outra cabiam apenas as pontas dos dedos. As portas dos banheiros tinham sido arrancadas.
Aquela transferência dava início a outro plano para romper a nossa resistência. As oito da noite não havíamos sequer provado um bocado, nem mesmo água, e ordenaram que deveríamos ir para o refeitório aceitando novas medidas de disciplina e disposições, tais como não poder levar comida aos doentes impossibilitados de levantar ou aos machucados, e outras mais difíceis para o meu grupo, por estarmos vestidos somente com cuecas. Eles acharam que à essa altura, esgotados pela mudança, pela fome e a sede, íamos ceder; mas todos os prisioneiros negaram-se a ir para o refeitório.
Assim passamos dois dias, sem comer. No terceiro, a guarnição, de capacetes e fuzis, tomou os terraços, localizaram metralhadoras e o chefe dos Cárceres e Prisões, Lemus, entrou no pátio.
Passeou de um lado para outro e disse que se no dia seguinte não fôssemos comer declararia todo o pátio em greve de fome e levaria sua decisão até as últimas conseqüências.
Como queríamos comer, nossos amigos, burlando a vigilância dos militares no refeitório, pegavam alimentos às ocultas e jogavam-nos pelas janelas. Durante quinze dias ficamos assim, repartindo quinze ovos e dez pães entre quarenta homens. Até que colocaram vigias junto das janelas.
No quarto dia a guarnição apresentou-se em nossa galé e nos mudaram para outra, fora da zona dos presos. Tiraram-nos tudo: escovas para dentes, jarros, sabonete, medicamentos e até os nebulizadores contra asma. Na galé ao lado estavam confinados Huber Matos, Eloy, César Páez, Lauro Blanco e outros. Comunicamo-nos imediatamente com eles e explicamos a situação. Tony Lamas começou a perfurar a parede de blocos que tinha quase dois metros de espessura. Na área, por ser militar, aqueles golpes secos não chamavam atenção. Nos os amortecíamos enrolando um lençol ao redor da barra. Assim o ruído ficava abafado.
Terminaram no dia seguinte e, com uma borrachinha para soro, nos passavam água com açúcar e leite em pó. Os guardas levaram apenas dois dias para descobrir a abertura. E novamente nos transferiram, desta vez sem possibilidade de contatos.
Paco Arenal foi designado para falar com a guarnição. Todos os dias, no início da manhã, chamava o oficial de guarda:
— Por favor, queremos o café da manhã. — Vão aceitar nossas condições?
— Queremos comer sem condições políticas.
Na hora do almoço e do jantar repetia-se o pedido para que nos dessem comida. Nem um só dia deixamos de fazê-lo. Em outras ocasiões havíamos entrado em greve de fome por decisão nossa; agora, era diferente: eram os militares que se negavam a nos dar alimentos.
Depois de duas semanas daquele jejum obrigatório eu já não podia andar. Os anos de maus tratos e desnutrição, as doenças por carências alimentares e a polineurite de que sofria agravaram com rapidez minha depauperação física.
Depois de trinta dias negando-nos alimentos, os militares começaram a dar parte, aos nossos familiares, de supostas mortes, sem citar nomes. Não me lembro de medida mais cruel do que essa. Provocavam cenas patéticas, cada vez que anunciavam que outro dos grevistas havia falecido. Algumas mães, transidas de dor, decidiram declarar-se em greve de fome, alegando que se seus filhos não comiam, elas tampouco o fariam. Entre as primeiras estava Josefina, a mãe de Nacer. Também minha mãe deixou de comer. E muitas outras.
Outra tentativa para quebrar nossa resistência foi o de insistir com nossos familiares para que nos escrevessem, pedindo-nos que desistíssemos da nossa atitude.
A carta de minha mãe me aniquilou. Seu organismo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos e o terror, não poderia resistir muito. "E se minha mãe morrer?", perguntei-me.
Avisaram vários de meus companheiros quando suas mães agonizavam ou já haviam morrido. Ofereciam-se para levá-los por alguns minutos junto ao leito da moribunda ou ao enterro, mas só em troca de que claudicassem politicamente, de que abandonassem a atitude de rebeldia e aceitassem a reabilitação. Muitos, não todos, negaram-se, transidos de dor.
Passei dois dias sem dormir. Pensava na minha mãe em estado grave. Foram dias angustiosos. Valia a pena sacrificá-la, também? A ela, que apenas vivia sonhando com o dia da minha volta? Como seria a minha vida futura se eu me salvasse, mas minha mãe morresse por isso? Poderia, seria capaz de assimilar esse golpe espantoso? Que tortura horrível foram aqueles dias!
Era só chamar o comissário político e dizer que queria ir embora, para que tudo mudasse no mesmo instante. Mas isso significava rendição incondicional. No entanto, salvaria minha mãe. me salvaria e tudo seria mais agradável. Mas, depois, poderia escapar da minha consciência, do meu próprio juiz, do ser íntimo que me reprovaria sempre por ter agido de maneira contrária às minhas idéias e critérios, mesmo tendo sido sobrepujado pela dor e a angústia?
Novamente recorri a Deus e me confiei a Ele, à sua infinita sabedoria, pedindo-Lhe que me escutasse. E, como sempre, me escutou.
Devia continuar pelo caminho escolhido, porque um homem só pode viver sossegado quando o está consigo mesmo.
Todos os dias pedíamos comida e dizíamos a eles que queríamos comer. Tinham começado a nos negar alimentos no dia 24 de junho; julho já havia passado e estávamos em principio de agosto.
Compreenderam que nossa decisão culminaria com a morte maciça. A qualquer momento poderíamos começar a morrer; só então, sob essa pressão, decidiram pôr fim à mais impiedosa medida que haviam tomado até esse momento nos cárceres políticos cubanos. Quer dizer, isso era o que nós pensávamos, porque aquilo não era mais do que uma manobra dos comunistas.
Em cadeira de rodas
A maioria de nós teve que ser levada de volta à galé em macas. Imediatamente vários médicos foram nos examinar. O diagnóstico que fizeram do meu caso, junto com o de outros cinco, foi alarmante. Os reflexos haviam desaparecido e o médico constatou uma paraplegia flácido-carencial. Os exíguos músculos das extremidades inferiores eram como uma pequena porção de massa gelatinosa e os superiores estavam com limitações funcionais.
Os médicos disseram que os outros cinco casos e eu deviam ingressar o quanto antes em um hospital de reabilitação física.
Aplicaram-me soro com alguma dificuldade: o sangue estava pastoso.
A alimentação reiniciou-se com pequenas doses de água com açúcar e soro. No terceiro dia deram-nos leite frio. No quarto, quente. Mas sem retirarem o soro.
Eu pensava que dentro de poucos dias poderia recomeçar a sentir, a movimentar as pernas; mas não foi assim.
E começou a luta por assistência médica. Trouxeram uma comissão de médicos do Instituto Neurológico de Havana. Aqueles neurologistas nos examinaram com rigor e seu diagnóstico para nós seis foi paraplegia flácido-nutricional. Recomendaram nossa internação em um hospital especializado. Mas a Polícia Política se opôs. E comecei uma luta, que duraria anos, para que me dessem tratamento médico. Escrevi para o Ministério, para os chefes da revolução, para o Comitê Central do Partido e para outros mil departamentos.
Não tínhamos cadeiras de rodas e nos arrastávamos sobre uns caixotes de madeira. Estava duplamente preso. No meu beliche, pegava as pernas com as mãos e movimentava todas as articulações para evitar que ficassem ancilosadas. Eu não podia ficar inválido para sempre. Meus amigos me ajudaram, aplicando-me movimentos passivos e massagens. Mas não era o bastante. Napoleãozinho, que também não podia andar, foi se recuperando. De Vera e eu continuávamos prostrados, assim como os outros quatro. Na semana seguinte — 19 de agosto —comunicaram-nos que acabavam-se os caldos e purês, de novo íamos comer macarrão cozido e spam... Esse prato era o "manjar" do presídio: os presos haviam-no batizado com o nome de "vômito de cachorro". Vinha da Holanda e era uma pasta suave de carne com grande quantidade de gordura e amido, acondicionada em latas grandes, de 1,8kg, pela firma HOMBURG.
No presídio de La Cabaña estava preso, acusado de agente da CIA, um holandês, funcionário de seu país em Havana, chamado Paul Redeker. Ele nos informou que aquele produto não era apto para o consumo humano, que era fabricado com refugos e que tinha sido pedido, dessa maneira, pelo governo cubano. Ele conhecia bem os detalhes porque participara das negociações. Contou-nos que eles tinham pensado que seria usado para misturar com outras rações, para animais. No mercado não existia aquele produto, pois não era para ser vendido ao público. Foi comprado especialmente para os mais de cem mil presos cubanos.
Enquanto isso, o dr. Humberto Medrano, presidente do "Comitê para a Divulgação dos Maus Tratos aos Presos Políticos Cubanos", conseguia, graças à SIP — Sociedad Interamericana de Prensa (Sociedade Interamericana de Imprensa) — que lhe cedeu sua vez, apresentar-se à Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, para denunciar o que homens e mulheres sofriam nos cárceres castristas. Lá entregou à Secretaria da Subcomissão a documentação que provava os horrores do presídio político cubano. Listas imensas de torturados, mutilados e assassinados, assim como cartas de prisioneiros, saídas clandestinamente, e a relação dos campos de concentração com sua exata localização na ilha.
O dr. Medrano, em sua exposição, se apoiou nas informações da Comissão Internacional de Juristas, da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA, da Liga dos Direitos do Homem, da Cruz Vermelha Internacional e da Anistia Internacional, assim como em outras investigações de prestigiadas organizações que comprovaram a violação dos Direitos Humanos em Cuba e o tratamento degradante que recebíamos, os presos políticos. As surras, as negações de alimentos, visitas e correspondência, a reimposição das penas foram também denunciadas pelo dr. Medrano.
Enquanto lia uma lista dos assassinados nos campos de trabalhos forçados da Ilha de Pinos, Sergei Smirnov, o delegado soviético interrompeu-o, gritando que aquilo tudo era mentira. O dr. Medrano respondeu-lhe que eram fatos comprovados. O soviético Smirnov insistiu em que se tirasse a palavra do dr. Medrano e propôs que a informação nem sequer aparecesse nas atas. Gerou-se uma polêmica entre os delegados, que debateram se nosso compatriota tinha direito ou não de continuar falando.
Quando lhe restituíram a palavra, o dr. Medrano, evitando a lista dos assassinados, continuou, falando do presídio político das mulheres, mais cruel e desumano do que o dos homens.
E de novo desatou-se a tempestade; o soviético Smirnov continuava berrando:
— Camarada presidente... camarada presidente... este não é o lugar para esse tipo de expressões políticas e essa intervenção tem que terminar.
Uniu-se a Smirnov o delegado cubano Hernán Santa Cruz, que pediu que cassassem a palavra do dr. Medrano.
Alguns delegados eram de opinião que deviam conceder-lhe cinco minutos; outros, dois: Foi então que a voz do dr. Medrano ressoou naquela sala:
— Presidente, pedimos que sejam, pelo menos, quinze minutos mais, um para cada ano de selvagem perseguição que se comete contra o povo e os presos políticos em Cuba!
O presidente, um romeno, concedeu-lhe cinco minutos.
O dr. Medrano pediu que a documentação apresentada circulasse oficialmente e que se nomeasse uma comissão especial que investigasse e analisasse o acúmulo de provas que demonstravam as constantes violações dos Direitos Humanos em Cuba, o genocídio ideológico e as torturas.
Como a 12 de maio de 1972, quando foi solicitado que salvassem a vida de Boitel, a ONU manteve silêncio. A comissão de investigação requerida não foi nomeada, a documentação não circulou e, semanas mais tarde, desaparecia misteriosamente. Isso aconteceu no mês de agosto de 1974. Enquanto isso, Castro continuava fuzilando seus opositores, nos cárceres continuava a tortura e Cuba aspirava à secretaria da Comissão dos Direitos Humanos da ONU, precisamente.
Continuei escrevendo para o ministro do Interior, ao vice, ao diretor da Cruz Vermelha, pedindo-lhes assistência médica. Soube que o tenente Homero, um dos comissários políticos, que todos chamavam de Cadernetinha, porque estava sempre com uma caderneta debaixo do braço e nela anotava tudo, era o secretário do núcleo do Partido na prisão.
Chamei-o e disse-lhe que queria entregar a ele, como autoridade máxima do Partido na prisão, uma carta para a Direção da Província. Assustou-se. Aquilo de um preso contra-revolucionário dirigir-se ao Partido escapava de seu entendimento e prometeu que ia cuidar do assunto. Nem por isso deixei de continuar escrevendo.
Todos os dias, quando o oficial da chamada entrava, eu já estava com três ou quatro cartas.
Por fim, a 4 de novembro, levaram-me a um neurologista. O dr. Joaquim Garcia, depois de demorado exame que incluiu teste muscular, expediu certificado de internação em um hospital de reabilitação física e diagnosticou: "polineuropatia carencial aguda; síndrome carencial e paraplegia flácida", sublinhando que somente um tratamento intensivo poderia me recuperar.
Mas a Policia Política não se satisfez com aquele diagnóstico e chamou um de seus médicos, de confiança, o dr. Luis Díaz Cuesta, Chefe dos Serviços de Medicina Física de Havana. 0 diagnóstico foi o mesmo, só que, além disso, constatou atrofia dos músculos das pernas e deficiência nos dos braços. A 3 de janeiro de 1975 esse médico recomendou minha internação em um hospital, sem mais demora, ou havia o risco das lesões se tornarem irreversíveis.
Pessoas amigas, dentro do presídio, facilitaram-me fotocópias de todos esses diagnósticos e consegui fazê-los chegar às mãos de Martha, no estrangeiro. Anos mais tarde, serviriam para desmentir redondamente o governo cubano.
Nós, os inválidos, continuávamos nos arrastando em caixotes de madeira, com a ajuda dos companheiros. Na verdade, aquela impotência era deprimente. Conseguir uma cadeira de rodas requeria uma tramitação burocrática que poderia durar anos. Mas nós não podíamos esperar tanto.
Uma tarde falei com Menchaca. Era comunista, mas falava com clareza e não prometia o que não podia cumprir. Era um desses raros personagens, dentro do aparelho repressivo, que mantinha atitude de respeito em relação ao preso. Comigo sempre agiu de maneira correta, sem encarniçamento nem abusos. Havia calor humano nele, coisa que pouquíssimas vezes encontrei em um funcionário do governo cubano.
Desempenhava o cargo de administrador dos serviços de medicina da prisão. Disse-lhe que precisávamos de cadeiras de rodas, que eu tinha amigos que poderiam mandá-las, do estrangeiro, coisa que eles não ignoravam. Comuniquei que se em uma semana todos nós não as tivéssemos, eu iria pedi-las aos meus amigos da Anistia Nacional.
Poucos dias depois entregaram cadeiras de rodas a nós seis. Isso significou livrar-nos de ficarmos prostrados na cama o tempo todo. Começava para mim um grande desafio à força de vontade, ao meu caráter hipercinético, que necessitava de atividade constante. Estava, então, amarrado à cadeira, que logo incorporei ao meu corpo e tornou-se como um prolongamento de mim mesmo.
Em fevereiro daquele ano, 1975, chamaram minha mãe ao escritório do presídio. Foi recebida pelo dr. Torres Prieto e o tenente Ginebra, chefe dos comissários políticos. Disseram-lhe que eu poderia morrer a qualquer momento e que nunca mais voltaria a andar, porque as lesões eram irreversíveis. Depois, trataram de convencê-la para me escrever, pedindo-me que aceitasse a reabilitação política. Prometeram-lhe que me poriam em liberdade em alguns meses.
Essa era a resposta aos requerimentos e cartas de minha mãe aos dirigentes da revolução, solicitando assistência médica para mim.
Na hora da comida, o tenente Mauricio, acompanhado por meia dúzia de guardas, entrou no pátio, passeou de um lado para outro com ar de desafio, olhando agressivamente os presos que formavam fila diante do refeitório.
Os militares do refeitório negaram-se a servir comida para quatro ou cinco detentos, por estarem com o primeiro botão da camisa desabotoado, e quiseram mandá-los de volta à galé. Mas eles se negaram e o tenente Mauricio deu ordem para que os atacassem. Ele foi o primeiro a erguer a baioneta e descarregá-la sobre os presos.
Eduardo Capote era professor. Lutou contra a ditadura de Batista, nas montanhas, ao lado de Fidel Castro. Mas não o fez para instaurar o marxismo: estava na cadeia por ter se oposto a ele e encontrava-se no final da fila onde estavam surrando seus companheiros.
Um guarda chamado Borroto, empunhando um facão, atacou Capote, que por instinto de conservação tratou .de cobrir a cabeça com o prato. A primeira facãozada, dada de fio e não de prancha, cortou-lhe músculos e tendões, chegando até o osso de sua mão esquerda.
Apesar disso, Capote tentou se proteger de novo, erguendo os braços, e outra facãozada atingiu-lhe a mão direita. Os dedos caíram no chão, cortados perfeitamente. Sem se importar com os ferimentos e o sangue que brotava da mão mutilada, o guarda Borroto continuou golpeando com sanha, atingindo-lhe a cabeça, os ombros, os braços...
Da galé, contemplávamos, horrorizados, o crime que estava sendo cometido contra Capote e começamos a sacudir as grades, tentando inutilmente arrancá-las. Aquela cena me aterrorizou de tal maneira que em meu cérebro acumularam-se imagens de outras carnificinas que tinha presenciado nos campos de trabalhos forçados, na Ilha de Pinos, nas muradas de Boniato.
Dos terraços, os guardas de turno deram vários tiros e logo o pátio encheu-se de oficiais. Levaram Capote, que se esvaía em sangue. Não havia ambulância e na farmacinha não havia o necessário para tratá-lo. Afinal, conseguiram um veículo e levaram-no. Os demais feridos foram atendidos lá mesmo, na enfermaria. Anoitecia quando voltaram para as celas. Não manhã seguinte, enquanto varriam o pátio, entre papéis e lixo apareceu, enegrecido, um dos dedos de Capote.
Dias depois, quando um familiar soube do que tinha acontecido com Capote, comentou o fato, consternado, com um primo dele, René Anillo Capote, vice-primeiro-ministro das Relações Exteriores do governo de Castro, que pulou, indignado, dizendo que aquilo era uma calúnia para desacreditar a revolução, que nos cárceres cubanos não maltratavam os prisioneiros.
Sim, sabem o que fazem
O calor no sul da província de Oriente é o mais intenso de toda ilha. E como o presídio de Boniato fica no fundo de um vale, durante o verão é um verdadeiro forno. A prisão estava cheia de cartazes saudando o primeiro congresso do Partido Comunista, que seria realizado em setembro.
Terminava o mês de agosto e Laureano vinha padecendo há muitos dias de desesperante dor de dente. Uma cárie enorme tinha comido o dente quase inteiro, do qual restava apenas a "casca". Laureano passava as noites sufocantes sem dormir. O tormento da dor ia se acumulando em sua mente, desesperando-o. Mandamos buscar o tenente-chefe dos comissários políticos para explicar-lhe o que estava acontecendo. Respondeu que, para que lhe arrancassem o dente, Laureano teria que renegar sua atitude. Acrescentou que sabíamos que enquanto estivéssemos em estado de rebeldia não tínhamos direito de receber ajuda médica.
Desesperado, Laureano arrancou o dente com uma colher e um prego enferrujado. Foi uma operação bárbara. Retalhou as gengivas, mas só conseguiu desprender pedaços do dente. Depois, sobreveio uma infecção que lhe tomou todo o maxilar.
Passaram-se horas e não vinham retirar Laureano, que então já estava com febre alta e corria o perigo de morrer de septicemia.
Quando levaram o almoço, os presos recusaram-no. O tenente Elio, chefe do edifício, apresentou-se para perguntar por que não queríamos almoçar e, então, perguntamos-lhe por que não tinham ido retirar Laureano, que estava em estado grave.
— Vocês conhecem as condições estabelecidas. Enquanto mantiverem sua atitude, não podemos dar-lhe a assistência. São ordens superiores.
A resposta que lhe demos foi a única que estava ao alcance de prisioneiros: bater nas placas de ferro que muravam as portas com as colheres de calamina, os jarros e os pratos. Uma resposta de impotência e dor.
A guarnição, equipada para combate, marchou contra o nosso edifício. Quando os guardas subiram a escadinha que ia desembocar no pátio, os presos, entrincheirados atrás dos tanques, atiraram-lhe frascos de vidro; a guarnição respondeu com rajadas de metralhadora. Dois caíram atingidos pelos tiros.
Então, os soldados entraram no corredor das celas muradas e começaram a abrir as portas. A medida que saíam, os presos eram empurrados a pancadas de culatra de fuzil, até o fim do corredor.
Faltavam apenas cinco ou seis celas para serem abertas. A chuva de golpes sobre eles, com paus, baionetas, correntes, não parava um instante; mas, de repente, como que para protegê-los, entre eles e os agressores se interpôs um homem esquelético, de cabelos brancos e olhos fulgurantes, que abrindo os braços em cruz levantou a cabeça para o céu invisível...
— Perdoai-os, Senhor, eles não sabem o que fazem!
O Irmão da Fé quase não conseguiu completar a frase, porque o tenente Raúl Pérez de la Rosa, ao vê-lo interpor-se, ordenou aos guardas que retrocedessem e disparou seu fuzil metralhadora AK. A rajada subiu pelo peito do Irmão da Fé até o pescoço, que ficou quase solto, como que cortado por brutal machadada. Morreu instantaneamente. Enrique Diaz Correa, que estava ao lado dele, tentou amparar o corpo ensangüentado, mas o tenente Raúl Pérez tornou a atirar, até terminar a carga.
Enrique recebeu nove impactos de bala no corpo.
Então, desencadeou-se uma verdadeira carnificina organizada, sistemática.
Segurando os fuzis pelo cano, como se fossem tacos de beisebol, batiam nos presos que, completamente nus, eram evacuados para o andar térreo. Nem um só prisioneiro deixou de apanhar naquela orgia de sangue e horror.
Nus, acuados como animais aterrorizados e rodeados por um círculo de baionetas, agruparam-se mais de vinte feridos a bala e por outras armas contundentes e cortantes.
Lá em cima, nas celas, os guardas estavam destruindo tudo, até as roupas.
Passou-se mais de uma hora antes de trazerem as macas.
Desceram o Irmão da Fé e Enrique Diaz Correa e colocaram-nos no corredor que une os edifícios e que é fechado por rede de ago.
Os olhos claros do Irmão da Fé são agora como de um cristal duro, opaco, abertos de assombro. A boca também não estava fechada. A seu lado Enrique emite um gemido quase inaudível. Está vivo, com nove projéteis no corpo, mas se salvará, depois de lhe extirparem vários órgãos e parte dos intestinos.
Era 1o de setembro de 1975, ano do Primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba.
A morte do Irmão da Fé logo foi sabida em todos os presídios de Cuba e no exterior. Antes de morrer, ele repetiu as palavras de Cristo na cruz: "Perdoai-os, Senhor, eles não sabem o que fazem!".
Uma carta minha, denunciado o que havia acontecido em Boniato, conseguiu chegar às mãos de Martha. O dr. Medrano e um grupo de exilados apresentaram-na diante da ONU, mas essa prestigiosa instituição nem sequer deu-se ao trabalho de acusar recebimento. Continuava surda e cega quando se tratava dos crimes que a ditadura castrista cometia com presos políticos cubanos.
Eu continuava escrevendo ao Ministério do Interior, solicitando assistência médica. Como resposta, levaram-me para um hospital, a fim de me extrair líquido da espinha dorsal e analisá-lo. Estando lá, apareceu o tenente Ramiro Abreu, delegado do então ministro do Interior. Aquilo fora preparado. Ele falou com os escoltas e eles se afastaram. Disse-me, então, que a revolução sabia que eu não podia trabalhar, mas que em setenta e duas horas me poriam em liberdade se eu lhes dissesse, apenas de palavra, sem assinar qualquer documento, que aceitava minha reabilitação política:
— Ninguém vai ficar sabendo, pois sabemos que se criam compromissos com os companheiros... — disse.
— Mas eu vou saber, tenente. Isso é o bastante.
Insistiu nos oferecimentos, com cortesia.
— A liberdade com condições não me interessa, tenente. Obrigado por seu interesse.
Então, levaram-me para a sala que a Polícia Política tem no Hospital Militar. Nessa instalação prolongam-se os métodos de tortura psíquica e isolamento de Vila Marista. Mantém os doentes que estão sob investigações em condições de repressão excepcionais. Foi lá que um capitão informou-me que eu não seria internado em um hospital civil porque sabiam que meus amigos tentariam me resgatar; algo completamente absurdo.
Os neurologistas me examinaram e diagnosticaram a mesma coisa que os outros médicos e como ali não podiam me dar o tratamento necessário, devolveram-me ao presídio La Cabaña. Então, o tenente Ginebra me comunicou que estavam dispostos a me internar imediatamente em um hospital especializado, mas para isso teria que aceitar a reabilitação, que o Ministério me garantia que em um prazo não maior do que noventa dias seria posto em liberdade.
— Eu não penso em aceitar essa reabilitação, tenente, e como ser humano tenho direito a receber assistência médica sem nenhuma condição — foi a minha resposta.
— Esta é a nossa última palavra, Valladares, pense nisso.
Aquele viver em uma cadeira de rodas deu uma nova perspectiva à minha vida. Minhas impressões, meus estados de ânimo e minha impotência diante de uma excrescência de cimento, que qualquer criança podia saltar e eu não, fui descrevendo-os em versos, que logo formaram uma coleção.
Um dia, mostrei-os ao meu amigo Alfredo Izaguirre e disse-lhe que ia tentar fazer com que saíssem do presídio, para serem publicados.
— Se você publicar isso, os comunistas o fuzilam pelas costas, na cadeira de rodas mesmo — foi o comentário dele.
— Bem, se o fizerem, tanto faz que seja pelas costas ou pela frente.
E me empenhei para que os poemas chegassem ao estrangeiro. Escrevi vinte e uma cópias e apenas uma, através de meu bom amigo Agustín Piñera, chegou às mãos de Martha.
De minha cadeira de rodas foi publicado e traduzido para vários idiomas.
Foi esse livro que me tornou conhecido em muitos países do mundo e contribuiu para que a parede de silêncio e indiferença que existia em relação aos presos políticos cubanos começasse a rachar. Martha conseguiu publicar a primeira edição com a ajuda de amigos no estrangeiro.
Sabia que me expunha à morte com a publicação do livro, mas era preciso dar um exemplo. Outros tinham morrido em condições similares e não haviam podido deixar outra mensagem a não ser sua morte inesquecível; se eu morresse, meus versos seriam uma constante acusação à barbárie criminosa do presídio político cubano. Algo que duraria mais do que a simples e humana lembrança, tão passível de ser desbotada pelo tempo.
Meu livro quis ser unia chamada de consciência para os homens livres do mundo para que, mediante meus poemas e prosas, soubessem o que estava acontecendo com os prisioneiros de Castro, a aqueles seres — ainda há centenas deles nos cárceres de Cuba — esquecidos por todos. Os únicos no mundo ocidental que, por mais de vinte anos de torturas, foram experimentados em sua fé na democracia e no amor a Deus, à liberdade, e à justiça. Homens do povo, simples, humildes.
Assim, a poesia transformou-se em arma de combate. Os tiranos não toleram e odeiam os poetas porque são as vozes deles que se erguem e denunciam suas infâmias.
Um dia, sonhei que cresceriam asas em minha cadeira de rodas e meu sonho estava se tornando realidade.
Então, uma série de circunstâncias concorreram em meu favor. Depois das investigações meticulosas que sempre faz, a Anistia Internacional me adotou como preso de consciência e nomeou vários grupos na Alemanha Ocidental, Holanda e Suécia para trabalharem em prol da minha liberdade.
Por minha correspondência clandestina com Martha, eu conhecia a atividade dos membros da Anistia a meu favor. Também por um militar da prisão, que colaborou comigo, sabia da chegada de centenas de cartões que me enviavam. Uma ou outra vez, quando não tinham distintivo e estavam escritos em idiomas entregavam-me alguns. Posso dizer que isso contribuiu enormemente para que as autoridades cubanas não me eliminassem fisicamente, de forma violenta. Ter sido adotado pela Anistia Internacional constituía uma espécie de proteção. Eles já sabiam que no mundo inteiro havia pessoas a par da minha situação.
O grupo número cento e dez, da Suécia, realizou um trabalho extraordinário e a ele agradeço em boa parte por ter conseguido a liberdade.
Dia a dia, Martha ia fazendo meu caso e os de meus companheiros irem sendo conhecidos, por meio de artigos publicados pela imprensa.
O Combinado do Leste
Em janeiro de 1977, o governo cubano estreou um grande presídio, o Combinado do Leste, que podia hospedar até 13.500 detentos. Todos nós fomos transferidos para lá.
No hospital desse presídio, com mais dois de meus companheiros inválidos, Israel e Pedro, fecharam-me em um calabouço no final de uma sala. Mal podíamos movimentar as cadeiras de rodas, tão pequeno era o espaço que tínhamos.
Um dia de abril, às três da tarde, avisaram-me que uns médicos iam me examinar e me tiraram da sala. Esperavam-me cinco ou seis médicos de várias especialidades. Toda a equipe principal estava lá. O dr. Campos, diretor do hospital, achou que aquilo era para me libertar e congratulou-se comigo. O exame geral durou dois dias. Levaram-me para a sala de medicina dos Hospital Naval para me submeter a um eletromiograma, com equipamento moderníssimo, como não existe outro em Cuba, e para uso exclusivo dos militares.
Mais tarde saberia que um comandante ajudante do ministro do Interior esperava aqueles resultados e que tudo se devia a uma comissão de parlamentares europeus que chegara a Havana convidada pelo governo cubano. Alguns deles pertenciam à Anistia Internacional e ao colocar os pés em terra, a primeira coisa que fizeram foi perguntar por mim. Pediram para me ver e se interessaram por meu estado de saúde.
O governo cubano, pela primeira vez, viu-se forçado a dar uma resposta a respeito do meu caso. Os parlamentares estavam aí e era difícil não lhes dar resposta.
Aquele foi um interessante relatório médico que, em lugar de meu estado de saúde, dizia: "Foi condenado a trinta anos por ter feito, em união com outros indivíduos, planos de revolta armada contra o Estado e realizado atos de sabotagem, atentados pessoais a dirigentes da revolução, ações terroristas ..." e outros mil fatos, todos gravíssimos. Continuava dizendo, o "relatório médico", que eu mantinha uma "posição recalcitrante dentro da prisão havia dezesseis anos" e que incitava os demais detentos a seguir meu mau exemplo.
Depois, dizia que "participou de várias greves de fome e devido a isso padece de paresia recuperável dos membros inferiores e superiores, como conseqüência de uma polineuropatia por deficiência nutritiva. Essa doença — continuava o relatório — aparentemente limita totalmente os movimentos de suas extremidades inferiores".
Admitiam a doença, mas acrescentavam que não era tão grave quanto se dizia, porque tinham informação de que essa gravidade era simulada e que eu podia andar. Quando o relatório do governo cubano chegou ao estrangeiro, a resposta de minha esposa foi contundente, irrefutável, comprovada pelas fotocópias dos diagnósticos dos especialistas cubanos, aqueles que eu havia conseguido fazer sair, sabendo que teríamos que usar, um dia.
Quando minha esposa apresentou as fotocópias dos diagnósticos, a Polícia Política viu-se desmascarada em sua mentira e ao sentir-se ridicularizada, reagiu impulsivamente. Foram ao Hospital Calixto García, interrogaram as enfermeiras, a todos que tiveram contato comigo e levaram dos arquivos todas as provas médicas, expediente, etc. Fizeram o mesmo no hospital do presídio. Desde então meu expediente de doente ficou sob custódia.
Sem dúvida as providências da Anistia Internacional, meu livro — que já estava na segunda edição — e o interesse de políticos e intelectuais do mundo inteiro começavam a preocupar as autoridades cubanas. Eu tinha escapado das garras deles; não podiam me matar, porque começava a ficar conhecido. Eu soube interpretar bem a situação e multiplicava as denúncias, os escritos e preparava um novo livro.
Então, uma amiga da minha família, Sandra Estévez, foi recrutada pela Polícia Política. Ela recolhia cartas clandestinas para minha mãe em vários lugares da cidade.
Em uma ocasião, o capitão Adrián, que não conseguia guardar nada, para bancar o bem-informado, anunciou-me que possivelmente me levariam para um hospital de reabilitação, mas que não poderia receber visitas, nem sequer de Alicia e, ao me dizer isso, ficou me olhando, sorridente. Alicia era um codinome que eu mencionara para minha mãe, em minha última carta. Ao mencioná-lo, o capitão Mentira, por ser vaidoso, revelava sua informante.
Imediatamente alertei minha família de que Sandra estava trabalhando para a Polícia Política. Disse-lhes o que deviam fazer e desde aquele momento utilizei-a para desinformar seus patrões. Preparei uma "grande operação" de um amigo imaginário, que viajaria para Cuba a fim de entregar a Sandra uma máquina fotográfica Minolta. Com ela, deveria tirar fotos do presídio e de documentos, além de realizar outras tarefas que eu iria lhe dando.
Eram tão torpes, que o próprio capitão Mentira, em um Toyota amarelo, levava-a para apanhar minhas cartas. Se eu já não a tivesse descoberto, iria fazê-lo semanas mais tarde, quando um dos familiares que iam apanhar meus bilhetes, e que conheciam o capitão pelo apelido El Chino, reconheceu-o quando foi com Sandra pegar as cartas.
Depois, fiz acreditarem que o outro livro que terminara estava guardado em determinada casa e que ela iria pegá-lo quando meu amigo chegasse do exterior. Mandava-os apanhar cartas em endereços que não existiam ou com pessoas cujos nomes eu lia nos jornais, como apoios da revolução. Assim os levei durante seis meses, correndo pela Capital inteira. Divertiam-me as cartas de Sandra aconselhando-me a dizer onde estava o livro, pois ficaria mais seguro se ela o guardasse até a chegada do meu amigo.
No dia que resolvi que a expulsassem de minha casa, preparamos-lhe uma armadilha. Minha irmã a fez pensar que atrás de um quadro da sala estava escondida uma carta minha para Martha. Na mesma tarde, o capitão Mentira apareceu na minha casa, foi diretamente até o quadro e o retirou, revistando-o. Dois dias depois, quando Sandra apareceu, minha família a pressionou e, desmoralizada, numa crise de choro, pedindo perdão, confessou que o capitão Mentira a ameaçara, dizendo que ia enfiá-la na cadeia e mandar Gianni, seu filhinho, para a escola de "Camilitos", um internato militar, se não colaborasse com eles.
Minha casa era vigiada e por isso eu não podia enviar ninguém do hospital ou familiar de presos, pois essa pessoa iria parar na cadeia. Então, eu fazia minha correspondência chegar até uma senhora que não tinha vínculos com prisioneiros e ela, que era amiga de minha família há muitos anos, levava-a à minha casa.
Entretanto, no mês de junho, Martha chegava a Caracas, no início de uma peregrinação que a levaria pelo mundo inteiro, pedindo ajuda para minha libertação. Lá a esperava o dr. Rebelio Rodriguez, que a apresentaria no famoso programa de televisão de Carlos e Sofia Rangel e a faria conhecer o deputado José Rodriguez Iturbe, um dos mais importantes lutadores pela minha liberdade. Ele já havia redigido uma carta para Castro, pedindo-lhe minha libertação, conseguindo a assinatura da maioria dos membros do Congresso.
O ex-presidente da Venezuela Rómulo Betancourt uniu-se à campanha e ofereceu a Martha sua valiosa cooperação. A mesma coisa fizeram todos os partidos democráticos, imprensa e instituições venezuelanas.
De lá, Martha passou para a Costa Rica, onde continuou o trabalho para me tirar da prisão.
Os grupos da Anistia Internacional continuavam trabalhando e, de maneira muito especial e dinâmica, o grupo cento e dez de Per Rasmussen, na Suécia.
Parlamentares do Canadá somaram-se às petições pela minha liberdade.
Dia a dia a campanha em meu favor era uma bola de neve ladeira abaixo. Castro jurava e perjurava que enquanto essa campanha existisse eu não seria libertado e os recadeiros da Polícia Política levavam-me essas mensagens com as ameaças veladas de sempre. Dei minha resposta publicamente em uma carta dirigida à Martha, que dizia: "Não pode parar a ofensiva. Se disserem a você que vão me fuzilar e que só não farão isso se você se retirar e deixar de denunciar, não pare por nada, por ninguém".
O calor naquele cubículo era infernal, pois as paredes pré-fabricadas tinham por dentro uma armação de ferros que o sol aquecia durante muitas horas. Não se podia encostar nas paredes: eram como as de um forno.
Suávamos copiosamente e para mitigar o calor infernal afastávamo-nos das grades ou nos enfiávamos no banheiro. Quando lavávamos a roupa de baixo, era só colocá-la na parte da cama que estava perto da parede para que secasse em poucos minutos. Sabia que aquele encarniçamento era comigo, mas meus dois companheiros de cela também sofriam e isso me dava pena. Eles partilhavam estoicamente do meu castigo.
Uma denúncia minha deu a conhecer no exterior a situação em que nos mantinham e o governo cubano recebeu centenas de cartas pedindo que me dessem tratamento humano. Tal foi o clamor que, uma tarde, o chefe militar do hospital deu ordem que abrissem nossas grades. Tínhamos ganho outra batalha da prepotente Polícia Política. E fortalecia-se meu critério de que se conseguisse elevar a campanha de opinião internacional ao nível adequado, Castro teria que me pôr em liberdade, mesmo que não quisesse. O tempo me daria razão.
Uma noite, vários coronéis foram até meu cubículo para me comunicar que seria transferido para um hospital especializado.
E assim foi. Levaram-me ao Ortopédico de Vedado. Tinham preparado um quarto selando a janela com tábuas. A porta permanecia sempre fechada, como que murada, e era bloqueada por um militar com metralhadora. Só uma enfermeira, a chefe de sala, foi autorizada a entrar, por ser de absoluta confiança. O marido era um comandante do Ministério do Interior. No entanto, ao contrário do que eles pensavam, essa enfermeira sensibilizou-se com a minha situação e, quando eles descobriram, transferiram-me no ato.
Fui parar no hospital Frank País. Enquanto isso, o governo cubano libertava vinte e oito presos políticos doentes e feridos, que estavam há vinte anos na prisão. Aquele era o momento de me libertar, como fizeram com os outros que estavam inválidos. Então, eu teria sido um entre os milhares que saíram, meu caso não teria alcançado a notoriedade que alcançou e eu estaria em qualquer lugar do mundo, com minha esposa Martha, tratando de organizar minha vida. Os coronéis da Polícia Política foram os grandes promotores da campanha de opinião a meu favor. Cegos de ódio, não puderam ver que muitas pessoas no mundo estavam a par da minha situação. Eles tinham sido meus melhores agentes publicitários, os mais úteis, os que demonstravam, dia-a-dia, a veracidade das minhas denúncias.
No novo hospital tudo mudou completamente. Deram-me um cubículo com mesas de fisioterapia e basculante, tanques para hidromassagens. Designaram um dos terapeutas de confiança, Luis Manuel, militante da Juventude, para me aplicar o tratamento. Atendiam-me o diretor, dr. Alvarez Cambra, e a enfermeira-chefe do hospital, Esperanza Ortiz, ambos membros do Comité Central do Partido.
Permitiam-me falar com todos, ir para o jardim tomar sol e, semanas depois, visitas de minha mãe e de minha irmã. Naquelas condições, acreditei sinceramente que seria libertado. Da mesma maneira que quando estava em situação difícil escrevia para os amigos da Anistia Internacional e os outros, contando meu caso, escrevi contando a mudança.
Um dia, o coronel Carlos, um dos chefes, disse-me, satisfeito, que meu nome já não estava na lista da Anistia Internacional e não me negava que ao governo cubano afetava o que essa prestigiosa organização dizia.
Sentia-me bem e minha cura progredia. Quis verificar se meu terapeuta era informante da Polícia e comentei, só com ele, quando o escolta estava fora, que tinham dado em uma rádio estrangeira a notícia de que minha esposa iria entrevistar-se com Manley, o Premier da Jamaica.
No dia seguinte, o capitão Mentira apareceu para dizer que minha esposa não ia conseguir nada falando com Manley e comprovei, assim, que o terapeuta era um informante. Depois, dei-lhe uma carta para que pusesse no correio e ele entregou-a ao capitão Mentira.
Enquanto isso, publicava-se a terceira edição do meu livro. A bola de neve não parava. O PEN Club francês interessou-se por mim e nomeou-me seu membro de honra.
O novo presidente da Venezuela, Herrera Campins, incluiu a minha liberdade nas tratativas com Havana. E deu instruções ao seu embaixador em Cuba de entrar em contato com a minha família. Já tinham pedido minha libertação a Castro, mas ele respondeu ao deputado venezuelano José Rodriguez Iturbe que eu não sairia de Cuba enquanto não voltasse a andar, que eu era o único que não podia sair do país em cadeira de rodas.
A organização "Of Humans Rights", em Washington, conseguiu que dezenas de representantes norte-americanos assinassem uma carta pedindo minha liberdade a Castro e fundaram na Europa comissões de luta com a mesma finalidade.
Castro se encolerizou. Disse a um grupo de parlamentares venezuelanos que não tolerava atitudes de força e que eu não seria libertado se não cessasse a campanha a meu favor. No entanto, o governo cubano tentou negociar e a embaixada de Cuba na Venezuela mandou um recado a Martha dizendo-lhe que, se ela solicitasse, o Governo me poria em liberdade. Martha viajou para Caracas mas não foi sozinha ao encontro marcado com o cônsul geral de Cuba, Amado Soto; foi acompanhada pela nosso grande amigo o deputado José Rodriguez Iturbe, na época presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado venezuelano.
Então, as relações entre Caracas e Havana iam aos tropeções e foi por isso que o embaixador cubano Norberto Hernández, ao ver o dr. Rodriguez Iturbe, adiantou-se de mão estendida, com amplo sorriso. Quem sabe que ilusões teve com a presença do prestigiado deputado?
— A que devemos a honra da sua visita?
— Minha visita não é oficial, mas sim oficiosa. Vim acompanhando a sra. Valladares.
O sorriso do embaixador cubano desapareceu.
A conversa entre Martha e o cônsul Soto foi breve: Ele lhe propôs que publicasse uma carta desmentindo tudo que se havia dito sobre mim e que proibisse organizações internacionais, jornalistas e intelectuais de falarem no meu caso. Em troca disso, o governo cubano prometia me libertar em algumas semanas.
Martha recusou rotundamente.
Minha melhora ia de vento em popa. Já conseguia ficar de pé com uma armação que impede os joelhos de se dobrarem e podia me sustentar entre barras paralelas.
À tarde, sempre com o escolta, ia para o jardim, podia conversar com outros doentes e assim conheci duas moças com seqüelas de pólio, Alicia e Maria Luisa, que deram alegria e ternura àquela minha estada no hospital. Fiz para elas um presente subversivo em Cuba: uma arvorezinha de Natal, em miniatura, e entreguei-a em uma caixinha que abriram às escondidas, no cubículo delas.
Eu recebia atenções especiais. Mantinham-me no mesmo salão reservado aos estrangeiros e esportistas. Havia ali sandinistas recuperando-se de operações, angolanos, iemenitas, etc. Unicamente os esportistas e estrangeiros tinham direito a receber iogurte e outros alimentos, como manteiga, ao passo que nas outras salas, onde ficava o povo, não havia merenda. Só os estrangeiros e esportistas têm ar-condicionado, o restante dos doentes não, a não ser no pavilhão das crianças.
Um ataque de asma me asfixiava há dois dias. Aquele hospital não tinha sala de urgência e, em gravíssimo estado, fui remetido para o Hospital Militar. Acompanhavam-me o escolta e a enfermeira, que durante todo o trajeto ia me ajudando a respirar, manipulando-me o tórax. Quase asfixiado, tiraram-me, com o rosto arroxeado. Foi preciso aplicar-me um ressuscitador Mark 8, com oxigênio em pressão positiva, e aplicar-me injeções na veia, urgentemente. Quando voltamos ao Frank País, a enfermeira foi repreendida por me acompanhar. Não adiantou ela se justificar, dizendo que o havia feito por motivos humanitários, porque era a enfermeira de plantão e o médico a mandara ir, uma vez que meu estado o requeria. O dr. Humberto Barrera, secretário do Núcleo do Partido, disse-lhe:
— Afinal, se ele tivesse morrido não se perdia grande coisa!
Contra o que eles tinham calculado — enganados por sua própria propaganda de vinte anos —, que as pessoas não iam se aproximar do "preso", aos poucos foram-no fazendo. Criou-se ao meu redor um círculo de admiração e simpatia por parte das enfermeiras, pacientes, funcionários e as crianças, para as quais eu desenhava.
O anti-herói transformava-se em herói. Para impedir aquela perigosa situação, isolaram-me em um cubículo anexo à sala do diretor. Partilhávamos o mesmo banheiro. Assim, mantinham-me bem controlado e incomunicável. Daquele segundo andar, cujas janelas davam para o jardim, as enfermeiras continuaram a me cumprimentar, os funcionários também e as crianças gritavam, chamando-me pelo nome.
A 2 de março de 1978, no teatro do hospital, convocaram uma assembléia geral em que Enrique Otero, dirigente do Partido, arremeteu contra os que me cumprimentavam e, com ameaças, proibiu-os de continuarem a fazê-lo.
Mas Alicia, minha linda amiguinha peruana, todas as tardes erguia a mão e me acenava, de sua cadeira de rodas. Então, Esperanza Ortiz, a chefe das enfermeiras, quis proibi-la de fazer isso, dizendo-lhe que eu era um criminoso.
— Nunca conheci ninguém mais bondoso do que ele — respondeu-lhe Alicia — e vou continuar a cumprimentá-lo.
No dia seguinte foi notificada que devia deixar o hospital e avisar sua família, no Peru. Acusaram-na de ser mal-agradecida para com a revolução.
O diretor Alvazez Cambra visitou-a em seu quarto, para ameaçá-la se dissesse algo de mim no estrangeiro.
Na alfândega ela era esperada pela Polícia Política que quis fichá-la. Mas ela, que tinha instruções minhas, recusou-se e exigiu a presença de um funcionário de sua embaixada. Alicia levava uma carta para Martha, que conseguiu fazer passar.
As enfermeiras não podiam subir onde eu estava confinado. Todos os dias davam ao escolta, para que me entregasse, uns envelopes com comprimidos e um cartão com os horários de tomá-los. Colocaram um balão de oxigênio e me deram ampolas com liquido: quando tinha crise de asma, entre estertores e esforços para respirar, eu tinha que quebrar as ampolas, preparar os vaporizadores e manipular as chaves dos relógios.
As pessoas que eles mesmos tinham autorizado a me visitar foram detidas pela Policia Política, interrogadas, aterrorizadas.
Durante meses proibiram a visita de minha mãe. Eu continuava o tratamento. Colocaram barras paralelas e a mesa no quarto. Tinham mudado o terapeuta. Agora, era uma moça bonita, militante da Juventude Comunista. Também mudaram o capitão Mentira.
Disseram que permitiriam que minha família saísse do país, mas quando já tinham malas preparadas e vôo marcado, comunicaram-lhes a suspensão do visto de saída. Dias depois, o coronel Carlos e o substituto do capitão Mentira disseram-me que só os deixariam sair de Cuba se eu escrevesse uma carta renegando meus amigos do
exterior e proibindo a eles, assim como qualquer pessoa, jornais e organizações que falassem de meu caso ou publicassem meus trabalhos literários. E que eu desmentisse tudo quanto havia dito em minha defesa.
Respondi, tranqüilamente, que jamais escreveria essa carta.
— Então sua família jamais sairá — respondeu-me o coronel.
Depois de vários meses autorizaram de novo as visitas de minha mãe e minha irmã.
Eu tinha um escolta que se gabava das surras que havia dado em prisioneiros nos campos de trabalhos forçados. Naquela manhã, quando minha família chegou, avisaram-no. Ele desceu ao saguão do hospital e disse-lhes que não podiam subir. Minha irmã argumentou que tinham autorização e que era hora de visita. Sem que existisse motivos, sem respeitar duas mulheres, uma delas anciã, tratou-as com grosseria, empurrou-as e gritou que sumissem dali ou chamaria um patrulheiro da polícia para prendê-las.
Por acaso aquela cena foi presenciada por uma delegação estrangeira presidida pela filipina Stefania Abdaba Lim, subsecretária-geral das Nações Unidas, que estava lá como representante da Comissão para o Ano Internacional da Criança. Se algum dos integrantes daquela delegação ler este livro, na certa irá se lembrar daquele incidente, em que uma anciã e uma moça eram destratadas por um policial. Foi no dia 9 de maio de 1979, no saguão do hospital Frank País, em Havana.
O governo cubano já havia libertado mais de dois mil prisioneiros políticos, com centenas de prisioneiros comuns misturados com eles. E declarava, falsamente, que o restante não estava incluído no indulto porque eram terroristas. Fechada a vitrina de exibição, voltamos aos métodos habituais: iniciou-se nova onda de repressão em todos os presídios do país. Transferiram cem prisioneiros políticos para as celas muradas da prisão de Boniato, despojando-os de todos os pertences.
Acontece então que, animados por uma estação de rádio clandestina e um locutor que se identificava como o comandante David, dezenas de jovens lançaram-se à luta ativa. Apareciam em Havana letreiros contra o comunismo e contra Castro.
Na província de Pinar del Rio incendiaram nove armazéns de tabaco. Em Havana, algumas fábricas e cinemas eram pasto de lhamas; nas ruas apareciam pichações contra a ditadura. Isso provocou centenas de detenções. Poucos meses depois, ao voltar para a prisão, eu iria conhecer muitos dos autores desses feitos.
No presídio de Pinar del Rio e na prisão de Kilo 7, em Camagüey, deram surras brutais nos presos políticos e os colocaram incomunicáveis, deixando os feridos sem assistência médica. Entretanto, os pelotões de execução, em uma só noite, ceifaram a vida de seis jovens, no paredão de fuzilamento de La Cabaña.
Um congresso de intelectuais em Paris nomeou-me presidente de honra e meu bom amigo francês Pierre Golendorf fundou na França uma comissão para minha libertação, à qual aderiram prestigiosos intelectuais como Fernando Arrabal, Henri Levy, Eugene Ionesco, o ator Yves Montand e muitos outros.
Meus amigos venezuelanos continuaram insistindo com o governo cubano em minha libertação. Uma comissão de alto nível chegada desse país visitou minha casa. O dr. Rodriguez Iturbe, Leopoldo Castillo e outros funcionários comprovaram a vigilância e a pressão a que minha família estava submetida pela Polícia Política.
As petições que fizeram para que lhes permitissem ver-me foram recusadas. Nas conversas mantidas com a finalidade de melhorar o relacionamento de ambos países, a parte venezuelana mantinha a minha liberdade como uma constante. Isso motivou que, meses depois, quando o embaixador venezuelano em Havana César Rondon Lovera comunicava a Carlos Rafael Rodriguez, antes ministro do ditador Batista e agora de Castro, a chegada de outra comissão de alto nível de seu país, este perguntasse:
— O dr. Rodriguez Iturbe virá com essa comissão?
— Com toda certeza — respondeu o embaixador. — Por quê?
— Porque esse homem, em lugar de tratar dos assuntos que interessam aos nossos países, desde que chega a única coisa que faz é perguntar: "E o poeta Valladares? E o poeta Valladares?". Já estou vendo Valladares até na sopa!
O embaixador Rondon Lovera sorriu e lembrou a Carlos Rafael Rodriguez que eu era um dos interesses da Venezuela:
— Por que não o colocam em liberdade e acabam com essa situação desagradável? — acrescentou.
Carlos Rafael Rodriguez moveu a cabeça de forma negativa:
— Valladares é prisioneiro de Fidel; Fidel é o único que pode tomar decisões a esse respeito.
Enquanto isso, eu não deixava de fazer exercícios todos os dias. O tratamento de fisioterapia ia dando seus frutos. Já tinha deixado os aparelhos longos e usava uns curtos, que chegavam apenas até abaixo dos joelhos. Andava dentro das paralelas e fazia quase todos os movimentos com meus músculos. Com mais três ou quatro meses não iria mais precisar de aparelhos para andar.
Em março de 1980 saiu meu segundo livro O coração com que vivo, um volume de depoimentos, relatos, poemas e documentos, que provocou verdadeira histeria entre os coronéis da Polícia Política. Foi um bocado que as autoridades não conseguiram engolir. Uma noite, o coronel Maño, com um ataque de raiva, irrompeu em meu cubículo acompanhado por seis ou oito oficiais. Um deles tirava fotografias.
— Vai para a cadeia de novo!
Estava frenético, o lábio inferior, pendurado, tremia de ira. Eu compreendia: sua vontade era me bater, mas, com certeza, tinha instruções para não fazer isso. Era a única coisa que poderia contê-lo.
Tentei me aproximar da mesinha e pegar minhas coisas, mas o coronel se interpôs: — Não pode mexer em nada.
— E meus pertences? — perguntei, referindo-me a meias, roupas de baixo e outras coisas que tinha.
— Vamos entregar à sua família.
Não me permitiram levar sequer a escova de dentes.
Rodeado pelos oficiais que o acompanhavam, que não estavam absolutamente ligando para nada, fui tirado do quartinho. Dois deles, com muito cuidado, carregaram a cadeira de rodas e descemos a escada, enquanto o da máquina não parava de tirar fotos. Assim, levaram-me até o fundo do hospital, onde vários carros de patrulha esperavam.
O coronel Mello e o capitão Léster ficaram para revistar o quartinho e apoderar-se do butim de guerra, formado por artigos muito cobiçados: lâminas de barbear marca Gillette, meias, roupas de baixo, pulôveres — alguns novos —, água de colônia, lenços, canetas, etc., que Martha tinha feito chegar até minha mãe por meio dos amigos diplomatas.
Os oficiais que me levaram de volta à prisão foram atenciosos, ofereceram-me cigarros, mas não disseram uma só palavra durante todo o trajeto. Ficamos fazendo rodeios por quase uma hora, coisa que eu não conseguia compreender, até que receberam uma mensagem pelo rádio e nos dirigimos, a toda velocidade, para o cárcere do Combinado do Leste.
Lá esperava o fotógrafo que estivera manejando a câmera no hospital. Levaram-me ao cubículo no final do corredor da ala C. Tinham posto lá dentro barras paralelas, uma mesa de fisioterapia e o que eu jamais teria esperado: a cadeira de rodas enviada pela Anistia Internacional da Holanda. Fotografaram-me ao lado dela. Sem dúvida, minhas denúncias constantes obrigaram-nos a entregá-la, depois de anos de litígio.
Quando foram embora e fecharam a grade que me cortava a passagem para o corredor, meus companheiros que tinham entrado na salinha se aproximaram para me cumprimentar. Conversamos durante muito tempo. Depois, tentei mudar de cadeira, para usar a nova, e verifiquei que os pneus estavam vazios e que não havia bomba pneumática para enchê-los. Entregaram-me a cadeira, fizeram fotos, mas eu não podia usá-la.
No dia seguinte falei com o diretor do hospital, tenente Odisio Fernández, pedindo-lhe que mandasse um terapeuta para continuar os exercícios. Estava entusiasmado e alegre por estar entre minha gente e, além disso, com todos os equipamentos, podia continuar o tratamento, o que era meu maior interesse. Por isso surpreendeu-me o diretor médico informar que tinha ordens do coronel Blanco Fernández de não me dar o tratamento de fisioterapia. Partiam para uma nova ofensiva e com as fotos dos equipamentos na minha cela tratariam de respaldar suas mentiras, dizendo que eu não queria fazer os exercícios. Voltavam às represálias, com a segurança e a impunidade que proporcionavam o poder absoluto.
Foi então que Castro, cheio de soberba porque um grupo de cubanos asilava-se, à força, na Embaixada do Peru, anunciou que retiraria a forte guarnição que a guardava e que faria o mesmo com as demais embaixadas de países livres sediadas em Havana. Em seus delírios paranóicos, que o fizeram declarar que a CIA dirige ciclones domesticados para Cuba ou que a bombardeiam com fungos que atacam as plantações de fumo e cana, chegou a crer que apenas uns poucos corruptos iriam asilar-se na Embaixada do Peru quando a guarda fosse retirada. Seu equívoco foi enorme, porque em apenas algumas horas mais de dez mil havaneses entraram na Embaixada: estudantes, operários, militares, profissionais liberais. E cerca de cinco mil foram detidos nos arredores, entre eles humildes camponeses que, vindos dos povoados próximos, com uma trouxa no ombro, seguidos da esposa e filhos, indagavam como se chegava à Embaixada do Peru.
Depois, quando Castro convidou os exilados cubanos que estavam nos Estados Unidos para irem a Cuba buscar os familiares que quisessem emigrar, iniciou-se o êxodo pelo porto de Mariel, por onde saíram umas 14.000 pessoas, ficando 600.000 na lista de espera.
Entre os primeiros deportados encontravam-se os presos comuns, porque Castro quis dar a imagem que apenas os criminosos discrepavam do marxismo e não as pessoas decentes. Para isso, forneceram documentos aos presos, que ainda estavam na cadeia, como se estivessem estado na Embaixada peruana e enviaram-nos para os Estados Unidos.
Da minha janela eu via o pátio do edifício 2. Tiraram os presos comuns e escutei os tenentes Calzada e Salcines gritarem que quem quisesse sair do país formasse fila. Muitos formaram, outros renunciavam a isso por motivos sentimentais, para não deixar os familiares, os filhos que, sabiam, teriam que abandonar para sempre, ou por temor de que aquilo fosse uma armadilha. Quando mais ninguém saiu, a guarnição, debaixo de pancadas, fez todos passarem para a fila dos que iam embora. Muitos dos obrigados a ir voltaram, meses mais tarde, em frágeis embarcações, para buscar seus filhos e esposas. Eu conheci vários, internados no hospital. Um ano depois, o governo cubano levou-os para alto-mar e lá os abandonaram, em botes escangalhados, com umas latas de água, para que voltassem aos Estados Unidos. Por isso, uns vinte deles se afogaram; apenas alguns felizardos chegaram a terra, nas costas da Flórida; suas famílias ficaram em Cuba, talvez para sempre.
Em um hospital da Califórnia, Thomas White convalesce de uma operação de câncer no estômago. Quando está só, levanta, segura o frasco de soro e anda pelo quarto. Está treinando.
Pede alta, mas os médicos negam. Ainda não pode sair do hospital, mas Thomas White sabe que se aproxima o dia de sua última missão sobre Cuba. Já realizou muitas outras e quer fazer também esta. E foge do hospital. Com seu piloto, Melvin Lee, um veterano do Vietnã, voa para Cuba a fim de deixar cair sua carga, não de bombas, mas sim de textos cristãos. É a pregação do amor, a palavra do Senhor, que Tom White lança do céu, aos milhares, para os camponeses cubanos.
Uma tempestade os obriga a descer em um povoado ao sul da província do Oriente e são capturados pelas autoridades, Alguns folhetos presos à fuselagem e caídos dentro do avião os delatam.
Depois de longos interrogatórios são condenados a vinte e quatro anos de prisão, acusados do crime de propaganda religiosa.
Quando soube que eles estavam ali, no presídio do Combinado do Leste, escrevi para Tom, cumprimentando-o e agradecendo seu sacrifício, de verdadeiro cristão. Tom pertence à organização "Cristo ao mundo comunista", que não se detém diante de qualquer perigo em sua tarefa de evangelização.
Tom me conhecia, além de através de outros prisioneiros, pela imprensa dos Estados Unidos. Quando recebeu minha carta, fez solicitações e acabou conseguindo que o levassem ao pavilhão onde eu estava fechado num cubículo.
Eu estava dormindo quando alguém me acordou, chamando-me, de junto à grade. Era Tom White.
Disse que me havia imaginado como um velho curvado, de cabelos brancos; por minha vez, eu contei que também o imaginara velho e encanecido. Tom é o típico jovem norte-americano, alto, magro, loiro, com olhos claros e vivos. Tinha trinta e um anos e era casado com uma costarriquense, pai de dois meninos lindos.
Tom White é uma das pessoas que mais me impressionou, entre as muitas que conheci; por sua simplicidade, por seu modo de viver cristão, pela grandeza e bondade de seu coração, pela sua honestidade nos momentos difíceis.
Em poucos dias fizemos uma grande e profunda amizade. Passávamos todo o tempo conversando. Tinha uma habilidade e um sangue-frio extraordinários para escorregar até o primeiro andar, onde examinavam doentes de outros presídios, levando e trazendo correspondência clandestina.
— Não se esqueça de que meu trabalho é justamente esse: infiltrar-me — dizia-me, com um sorriso brincalhão.
Quando consegui uma máquina fotográfica para retratar o local onde me mantinha, Tom é que tirou as fotos. A delação de um preso comum, que o viu fotografando, fez oficiais da Polícia Política invadirem meu cubículo, procurando a máquina. Remexeram tudo e pegaram dois rolos de filmes sem usar. Mas não encontraram a máquina fotográfica. Um dos muitos médicos estava com ela e, terminada a revista, devolveu-a a mim, pois corria o risco de ser revistado. Pessoas amigas esconderam-na, então, no banheiro dos militares. Declararam o hospital em estado de sítio, reforçaram as sentinelas e tudo que entrava ou saía era minuciosamente revistado. A Polícia Política andava de um lado para outro com pares de cães, mas nada puderam descobrir.
Poucos dias depois, um preso comum chamado Hernán, em colaboração com a guarnição, subiu na cumieira e, procurando no oco do respiradouro, encontrou a máquina, que estava pendurada para fora, pela janela do banheiro.
Na revista, tentando localizar o rolo de filme, tomaram medidas excepcionais, e fizeram homens e mulheres ficarem nus. Mais uma vez Tom White conseguiu burlar a revista, fazer o rolo sair e depois chegar às mãos de Martha. Então, foram publicadas minhas primeiras fotografias em cadeira de rodas.
Assim, apliquei um bom golpe na Polícia Política, que logo iria me cobrar com juros. Eu sabia. Mas estava contente por ter conseguido demonstrar que não eram infalíveis.
Robertico
Novamente consegui romper a incomunicabilidade. Colaboradores amigos fizeram sair uma carta minha denunciando a nova situação e Martha a fez chegar aos grupos da Anistia Internacional que trabalhavam pela minha liberdade.
Na França, o escritor Eduardo Manet conseguiu que recitassem, num espetáculo teatral, um dos poemas do meu primeiro livro. O PEN Club francês me outorgou, então, o prêmio "Liberdade". Enquanto isso, na Suécia, Britt Arenander, secretária do PEN Club nesse país, e cuja ajuda foi valiosíssima para mim, deu meu caso a conhecer, com detalhes, em um livro que intitulou O caso Valladares (Fallet Valladares). Com a publicação desse livro e a ação pessoal de Britt no PEN Club sueco, fui nomeado membro de honra do mesmo.
Os coronéis da Polícia Política, loucos de ódio, tornaram a cometer um erro ao redobrar as medidas de represálias contra mim, dando-me motivos para continuar a. denunciá-los.
Como aquele era o Hospital Nacional para detentos, havia prisioneiros de todos os cárceres. No presídio La Cabaña mantinham os novos presos políticos: os que pichavam paredes, os que faziam sabotagens e os acusados de diversionismo ideológico, quase todos professores universitários que se opuseram às violações dos Direitos Humanos. Entre estes, o professor Ricardo Bofill, que dois anos depois seria protagonista e vítima de acontecimentos conhecidos no mundo inteiro. Quando cumpriu a condenação foi posto em liberdade, mas não o autorizaram a sair de Cuba. A Universidade de Sorbonne, em Paris, convidou-o para dar cursos de Sociologia, mas a Polícia Política continuou negando-lhe a saída. Em certa ocasião, a polícia recebeu uma informação de que Bofill tinha se asilado na Embaixada da França e cercou essa sede diplomática. Mas ele já estava lá dentro. Só saiu de lá porque o embaixador Pierre Decamps garantiu-lhe que o vice-presidente de Cuba, Carlos Rafael Rodriguez, havia prometido que lhe dariam autorização para sair do país e que não haveria represálias contra ele. Não cumpriram a promessa.
Meses mais tarde, os jornalistas franceses Renaud Delourme e Dominique Nasplèzes chegaram a Cuba e foram à casa de Bofill, visitá-lo. A Polícia Política, que vigia o dissidente, os deteve. Foram submetidos a interrogatórios durante nove dias e, depois, expulsos do país. Bofill desapareceu e, tempos depois, ficou-se sabendo que foi condenado em um julgamento secreto a doze anos de prisão por conversar com jornalistas capitalistas sem autorização do Governo.
Nem sequer os estrangeiros ficaram a salvo da onda repressiva. Terence Stanley Child era inglês e estava preso em Cuba há alguns meses.
Quando soube que Edward Heath, o ex-primeiro ministro e líder do Partido Conservador de seu país, ia visitar Havana para se confraternizar com Castro, mandou-lhe uma carta denunciando os maus tratos e torturas a que estava sendo submetido e entregou-a ao tenente Salcines.
Levaram-no para as celas de castigo e Sardiñas deu-lhe uma surra de advertência. Stanley estava aterrorizado. Quando o levaram de volta ao edifício, sofria de febre muito alta causada por desconhecida infecção pulmonar. Eu o conheci no hospital.
O chefe da seção dele, tenente Calzada, também muito corpulento, tornou a surrá-lo; chutou-o enquanto estava no chão e, depois, ameaçava-o constantemente com outra surra. Depois, confiscou-lhe livros e fotografias de sua esposa e dos familiares. O embaixador inglês — dizia Stanley — era surdo e mudo diante das denúncias que ele lhe fazia.
Dia após dia o tenente Calzada o foi aterrorizando e Stanley mergulhou em profundo estado de depressão. O tenente Calzada disse que ia dar-lhe outra surra e então Stanley, presa de um terror insuperável, decidiu matar-se. Escreveu duas cartas; pôs uma dentro de um livro de um amigo de outra cela — ele estava sozinho —' e deixou a outra no catre, para despistar os guardas, a fim de que não procurassem a carta que, em geral, os suicidas deixam. As duas diziam a mesma coisa: que não conseguia mais suportar as torturas.
Quando os militares o encontraram pendurado na grade e leram a carta, imediatamente trouxeram para a cela os livros e os retratos dos familiares do morto. Colocaram tudo ali, como se sempre estivessem estado com ele, e tiraram fotografias.
Levaram o cadáver, no meio da manhã, no carro do padeiro. Era o dia 28 de fevereiro de 1981, aniversário do nascimento do apóstolo de Cuba, José Marti, o mesmo que tinha dito: "Contemplar um crime em silêncio é a mesma coisa que cometê-lo". Talvez o sr. Edward Heath não soubesse disso.
Por absurdo que pareça, no dia seguinte o tenente Calzada reuniu os estrangeiros e ameaçou-os dizendo que o preso que fosse surpreendido enforcando-se seria condenado a mais cinco anos de prisão.
A 5 de fevereiro do mesmo ano um grupo de oficiais irrompeu em meu cubículo exigindo que os acompanhasse para uma suposta conversa com o diretor do hospital. Assim que saí da salinha, cinegrafistas da Polícia Política, escondidos em determinados lugares, começaram a me filmar. Descobri-os quando voltei.
Dois dias depois, sábado, dia 7, já sem se esconder, voltaram com câmeras e fortes refletores, que não haviam usado antes, pelo que deduzi que a falta de luz tinha estragado a filmagem anterior. Tinham me tirado para o corredor e tratei de voltar ao cubículo. Eles já estavam focalizando as câmeras. Então, o tenente Calzada me perseguiu e deteve a cadeira de rodas pelos punhos que servem para empurrá-la; eu quis me virar para afastar as mãos dele e ele me atingiu no pescoço com a quina da mão. Perdi os sentidos.
Depois, meus companheiros me contaram que os médicos tinham me examinado e dito que eu estava com 160 pulsações por minuto, em conseqüência da pancada na nuca. Desmaiado como estava, ao invés de me colocarem na cama, levaram-me para o salão. Aplicaram-me máscara de oxigênio e uma injeção na veia.
Um dos oficiais da Polícia Política, quando viu que eu estava me recuperando, apressou-me para que abrisse os olhos e erguesse a cabeça. Mas eu estava tão aturdido que caí para um lado da cadeira. Então ele empunhou um dos refletores, arrancou a toalha que estava no meu pescoço e disse aos outros:
— Vão ver como agora ele levanta a cabeça!
E foi aproximando o refletor de mim, lentamente, calculando que eu não resistiria. Aquele calor insuportável estava me queimando.
"Ajudai-me, meu Deus!", foi a única coisa que eu disse, em pensamento. E comecei a pensar que o que se aproximava de mim não era quente, mas sim frio; um pedaço de gelo. "E frio... frio ..." repetia para mim mesmo, num esforço sobre-humano para enganar meus sentidos. Não sei quantos minutos aquilo durou, mas para mim foram séculos de um esgotamento psíquico inimaginável, até que o torturador, indignado por não conseguir o que queria, encostou o refletor no meu pescoço. Não me mexi. Na beirada de metal, em alta temperatura, minha pele ficou grudada.
— Levem esse filho da puta daqui!
Isso foi a última coisa que escutei e as botas dos militares, a única coisa que vi, porque continuei com a cabeça caída até que me deixaram em meu cubículo e percebi que estava só. No dia seguinte, a bolha de queimadura de primeiro grau era verificada pelo diretor médico.
A 14 de março o novo diretor, coronel Edmígio Castillo, com aparatosa exibição de força, despojou o resto dos prisioneiros políticos do uniforme amarelo para obrigá-los a aceitar a reabilitação. Todos estávamos sem roupa. Mas a repressão continuava e a nós, que já estávamos desde 1967 sem uniforme, tiraram-nos camisetas e lençóis, deixando-nos apenas de cueca. Proibiram os medicamentos de urgência dos doentes crônicos e bateram em Roberto Montenegro, na cela de castigo, machucando-lhe o nariz e um olho. A guarnição também bateu brutalmente e atirou na cela de castigo o ex-comandante Mario Chanes, que assaltara com Castro o quartel Moncada, estivera na prisão com ele e o acompanhara no desembarque do "Granma".
Uma tarde, entraram violentamente em minha cela. Aquela revista foi para se apoderarem de todas as minhas coisas, principalmente meus trabalhos literários.
Cinco dias depois me confinaram em uma cela do pavilhão de castigo. Sem dúvida, a escalada de represálias contra mim ia aumentando.
O edifício tinha três corredores. Só havia celas. de um lado e para chegar a elas, primeiro era preciso abrir uma porta de madeira que dava para uma espécie de pequeno vestíbulo e este, às grades da cela. Sobre o teto desse vestíbulo, muito alta, abria-se uma clarabóia. Dentro, uma meseta de concreto para dormir. O único espaço livre era ocupado pela cadeira de rodas. No fundo, ao nível do piso, a latrina. Dias depois me deram uma caixa de madeira, com um buraco, como móvel sanitário. A noite, a escuridão era total e ao entardecer nuvens de mosquitos entravam pela clarabóia. Era impossível dormir.
Destinaram-me o corredor onde se encontravam quase todos os condenados à morte. Quando cheguei, havia 67 esperando para serem fuzilados, acusados de crimes comuns e políticos. Meses depois, quando me tiraram dali, só restavam 13 com vida, que também executaram.
Em geral, entre os presos que punham para trabalhar nas celas de castigo havia informantes da guarnição, por isso eu nem quis tentar qualquer contato, até que me enviaram um. O contato deve sempre vir de fora e o preso incomunicável deve evitar desesperar-se, porque pode acabar confiando num alcagüete. O que se aproximou de mim era mandado por Eduardo Delgado, um estudante de Medicina que, com Raudel Rodriguez, da Faculdade de Matemática, tinha decidido fundar uma organização para mudar a ordem política e social de Cuba. Os dois tinham nascido quando Castro já estava no poder, formaram-se nos valores marxistas, eram membros da Juventude Comunista e tinham vinte e um anos. Foram condenados à morte. Estavam no mesmo corredor, esperando o resultado da apelação. Quer dizer, suas vidas estavam nas mãos do presidente do Conselho de Estado de Castro, que mandaria fuzilá-los.
Eles me deram lápis e papel e, assim, começamos nossa correspondência clandestina. Soube que um hispano-sueco estava preso ali, acusado de agente da CIA. Era Ramón Ramudo, para quem escrevi imediatamente; ela já me conhecia, através da imprensa européia.
Os dias passavam idênticos e apenas a transferência de réus para o paredão quebrava a monotonia.
A violência naquele pavilhão era uma aberração. Havia sessões diárias de surras. Tiravam os detentos dos calabouços e levavam-nos para a salinha de entrada. Da minha cela, apenas a quatro metros de distância, eu ouvia, estremecendo, o barulho rascante das baionetas e facões batente nos corpos.
Num entardecer, ouvi uns gemidos em cela muito próxima da minha e uma vozinha infantil que dizia:
— Me tirem daqui... me tirem daqui... Eu quero ver minha mãe!
Achei que meus sentidos estavam me pregando uma peça, pois era inconcebível que houvesse uma criança naqueles calabouços.
— Me tirem daqui... me tirem daqui... Eu quero ver minha mãe! — continuava repetindo, num lamento.
Aqueles queixumes me doíam na alma. Não havia dúvida: era um menino que estava ali. Dias mais tarde conheci a história de Robertico.
Tinha doze anos. Um dia, havia três ou quatro meses, ia andando pela rua. Viu um automóvel estacionado junto da guia. Estava aberto e sobre o assento havia uma pistola. Pegou-a e, brincando, apontou-a para o céu, para alvos imaginários. Estava carregada e o tiro explodiu. Um comandante do Ministério do Interior, o imprudente que deixou a pistola abandonada e o carro aberto, saiu quando ouviu o estampido; viu Robertico, que tinha ficado paralisado com o susto, e tirou-lhe a arma. Esbofeteou-o e levou-o para a Delegacia de Polícia.
Condenaram-no até a maioridade e mandaram-no para o presídio do Combinado do Leste. Destinaram-no ao pavilhão onde estavam os piores criminosos. Em Cuba não existe classificação de presos e misturam todo tipo de sentenciados. Em poucos dias vários daqueles desalmados estupraram Robertico, que teve de ser internado no hospital, com graves rompimentos e hemorragia. Quando lhe deram alta, haviam posto em sua ficha um carimbo que dizia "homossexual" e o levaram para o pavilhão destinado a eles, que existe em todos os presídios.
Acho que há muito poucos exemplos na história da repressão aos homossexuais como a desencadeada pelo governo cubano. Os homossexuais foram perseguidos, acossados. A revolução encarniçou-se contra eles. Detinham-nos nas ruas apenas pelo modo de andar, por usar calças justas ou por usar pó-de-arroz.
Assim, foram levados aos milhares para a província de Camagüey, onde instalaram campos de concentração que chamaram UMAP, sigla de Unidades Militares de Ajuda à Produção. Lá reuniram os desafetos à revolução, os Testemunhas de Jeová, os Adventistas do Sétimo Dia, padres católicos, como o monsenhor Alfredo Petit Vergel, atual reitor do Seminário San Carlos y San Ambrosio, na cidade de Havana. Também o atual arcebispo de Havana, monsenhor Jaime Ortega Alamino, foi levado aos campos de trabalhos forçados. Todos os sacerdotes católicos iam passar por esses campos. O Governo já havia pedido a lista deles e comunicado aos bispos a decisão do Governo de que, em grupos de cinco, teriam que se submeter ao trabalho obrigatório.
Todo cidadão que por sua conduta não se encaixava na nova sociedade foi levado para aqueles horríveis campos da UMAP. Muitos foram os torturados, os mutilados, os assassinados. Conheci uns Testemunhas de Jeová que foram despidos, amarrados a postes e açoitados. Ainda estavam com as costas marcadas pelas chicotadas quando foram transferidos para a Ilha de Pinos.
Uma campanha de pressões no exterior, da qual participaram Jean-Paul Sartre, Gian Giacomo Feltrinelli, Carlos Franqui e outros, obrigou Castro a desmantelar os campos de trabalhos forçados da UMAP.
Os homossexuais foram, então, dispersados por todos os cárceres do país, nos quais abriram-se seções especiais para eles. Eu vi essas seções na prisão do Castelo do Príncipe, no cárcere de Boniato, no presídio do Combinado do Leste. Atualmente, existem em todos os cárceres porque a repressão aos homossexuais nunca cessou.
Robertico, sem o ser, foi parar numa dessas seções, onde a repressão, a humilhação, as piadas em relação à condição sexual e os castigos corporais são horríveis.
Robertico era tão pequeno e miúdo de corpo que passava entre os barrotes das grades. Uma noite, saiu da cela para ver um programa de desenhos animados no televisor dos militares. Descobriram-no e o atiraram nas celas de castigo. Tiravam-no três vezes por semana para dar-lhe injeção, porque sofria de blenorragia, uma doença venérea. Um militar me contou que ele nem sequer tinha pêlos no púbis.
Todos os dias, quando anoitecia, ele se assustava com a escuridão e suplicava que o tirassem dali, que o levassem para ver a mãe. Então, em todo pavilhão fazia-se um silêncio impressionante. Estou certo de que o coração de todos os homens que se encontravam naquelas celas, homens endurecidos pela violência, abrandavam-se pensando, talvez, em suas mães, nos próprios filhos que, como Robertico, poderiam ir parar ali.
Semanas depois, comunicaram-me que um tribunal tinha me julgado à revelia e me condenado por meus escritos e poesias: teria que permanecer na cela de castigo por tempo indeterminado.
Eu tinha conseguido organizar uma rede de comunicação com meus companheiros, através de um grupo de presos comuns. Não existia nenhum contato entre o edifício de castigo e o restante da penal. Enviei as instruções com um preso que terminava seu tempo de isolamento.
Era preciso um ponto para deixar e apanhar a correspondência e escolhemos a lixeira geral do presídio como caixa de correio. Desse modo, todas as tardes, quando levavam as latas de lixo podia haver troca de correspondência.
Continuavam fuzilando presos, comuns e políticos. Foram fuzilados os três irmãos García Marin, que ocuparam a sede do Vaticano, em Havana, em dezembro de 1980, pedindo para sair do país. Os sobreviventes dessa causa me contaram que a hierarquia católica autorizou e colaborou em um plano para que forças especiais da Polícia Política, fazendo-se passar por uma delegação chegada do Vaticano, disfarçados de padres, entrassem na sede diplomática e reduzissem pela força os refugiados, dois dos quais estavam armados. Eles de nada desconfiaram, pois haviam lhes anunciado a visita dessa delegação; contaram-me que os viram descer de um automóvel da Nunciatura e confiaram.
Como se não tivesse sido castigo suficiente fuzilar-lhes os três filhos, a atribulada mãe dos García Marin foi condenada a vinte e cinco anos de prisão, que está descontando atualmente, com mais onze familiares.
Sardiñas, o militar torto, estava surrando um daqueles que teve a infelicidade de ir parar nas celas. Estava quase anoitecendo. Os gritos da vítima pedindo perdão eram arrepiantes. Por isso, Rodolfo Alonso, que tinha apenas vinte e um anos e estava condenado à morte por uma tentativa de sabotagem, não pôde ficar impassível e pediu ao militar que parasse de bater. O companheiro de causa de Rodolfo, outro jovem como ele, era Abilio González. Tinham sido apanhados quando tentavam pôr fogo em uns ônibus. Em represália contra a família, a esposa de Abilio e seus dois filhos pequenos foram tirados de casa e jogados na rua.
A 13 de junho de 1981 ouvi que me chamavam da salinha de saída. Era Rodolfo:
— Irmão Valladares, estamos indo...
— Para onde? — perguntei, estranhando aquilo.
— Para o paredão, já vieram nos buscar.
Fiquei com um nó na garganta. Achava que nunca mais, depois de vinte anos em presídios, teria que passar pelo transe doloroso de me despedir de companheiros que iam para a morte.
A voz de Rodolfo era serena e firme.
Repetiu uma frase que eu escrevia em minhas cartas, quando tentava prepará-los para aquele momento.
— Deixamos as páginas da vida para entrar nas da história — e me encarregou de cumprimentar vários companheiros que tinha conhecido quando haviam passado, de castigo, pelas celas.
Eu não sabia o que dizer.
— Bem, Rodolfo, Deus te acompanhe, nada tema e aja com firmeza até o fim!
Com eles levaram Emilio Reloba. Foram fuzilados naquela mesma noite.
Uma madrugada levaram um preso comum que havia gritado "Abaixo Fidel!". Assim que ele chegou, rodearam-no e começaram a bater nele, exigindo-lhe que gritasse "!Viva Fídel Castro!".
No entanto, quanto mais o infeliz gritava, mais batiam nele. Os quatro ou cinco guardas que o surravam se inflamaram; quase não se ouvia a voz do preso dando "vivas" a Fidel Castro; ele ofegava sob a chuva de pranchadas de aço.
— Mais alto, escroto, mais alto! Grite "Viva Fidel Castro" mais alto!
E descarregavam as baionetas sobre o prisioneiro, até que ele caiu ao chão, sem sentidos. Ouvi o barulho do corpo sendo arrastado pelo longo corredor, até uma cela.
Na manhã seguinte, tornaram a tirá-la da cela, antes do almoço.
— Então, foi você que gritou "abaixo Fidel", ontem à noite? — ouvi o novo verdugo perguntar-lhe. — Pois, agora, grite "que viva".
E outra vez encheram o homem de pancada, enquanto ele dava vivas ao ditador. Alguns anos atrás, em 1959, muitos militares foram fuzilados por terem feito a mesma coisa, só que mandavam os revolucionários gritar "viva Batista".
Todos os dias davam oito a dez surras. E, por isso, batizaram aquele pavilhão de "Palácio dos Gritos".
Quando Juan Serrano, um guarda do povoado de Guane, na província de Pinar del Rio, entrava de sentinela, o silêncio naquele pavilhão podia ser cortado com uma faca.
— Abro de cima a baixo, como um bacalhau, o primeiro que respirar — era a ameaça dele para todos os castigados.
E não se ouvia nem o respirar dos presos. Mas Juan Serrano não podia ficar sem bater, alucinado, ele mesmo, por aquele mundo demente. Para ele, bater era como para o drogado receber sua dose de heroína. Quando o corpo pedia, abria qualquer cela e tirava uni preso. Levava-o para a salinha onde estavam, num grande mural, as normas disciplinares do pavilhão de castigo.
— Leia isso bem alto — dizia ele ao infeliz, que já sabia o que o esperava.
E o preso começava a leitura.
— Mais alto... eu disse pra você ler mais alto! — e ia se aquecendo, se motivando com seus próprios gritos; o preso se esgoelava, mas era inútil. — Mais alto, escroto ... mais alto!
E começava, então, a descarregar pancadas na vítima que, em geral, implorava-lhe que não batesse mais.
Como Serrano havia outros, verdadeiros doentes, que não podiam ficar sem bater.
Eu recebia cartas de Eduardo e Raudel; eram, realmente, dois rapazes extraordinários. Cada vez que fuzilavam condenados à morte, eles sentiam que sua hora se aproximava, inexoravelmente.
"Morrer pela pátria só é comparável a viver por ela", escrevia-me, um dia, Eduardo. E era verdade; para eles, viver era uma tortura, sempre à espera de que os fuzilassem no dia seguinte. Viviam pela pátria, para morrer por ela. Eduardo havia me pedido que escrevesse para a mãe dele, quando me tirassem da cela de castigo, para contar-lhe corno tinham sido seus últimos instantes. Talvez as últimas cartas que Eduardo escreveu foram as que Raimundo fez sair e levou para a Suécia.
A rede para me comunicar com meus companheiros, formada por presos comuns, funcionava muito bem. Quando Martha fazia alguma declaração, ouviam-na pelo rádio clandestino e me avisavam.
Um dia, tomaram medidas sem precedentes. Entraram na minha cela, revistaram-na, confiscaram papel e lápis. Depois, levaram um carpinteiro que colocou um ferrolho com cadeado na porta de madeira do corredor. Nunca haviam feito isso. E designaram uma sentinela especial para mim, que mantinha as chaves penduradas ao pescoço, com um barbante.
Eu tinha conseguido salvar da revista uma lâmina de barbear e uma dessas folhas de receitas médicas. Cortei uma lasca da tábua que me servia de assento, na cadeira de rodas, apontei-a e dei um corte em um dos dedos; espremi, gota a gota, o que seria a minha tinta. Escrevi, assim, com meu próprio sangue, uma poesia. Apesar da incomunicabilidade e das medidas extraordinárias adotadas, alguém atreveu-se a tirá-la da prisão. Chegou até Martha, foi traduzida e publicada em vários idiomas. Foi a última coisa que escrevi na prisão. Eis o poema:
Tiraram-me tudo
as canetas
os lápis as tintas,
porque eles não querem
que eu escreva
e me afundaram
nesta cela de castigo,
mas nem assim
sufocarão minha rebeldia.
Tiraram-me tudo
— bem, quase tudo —
porque me resta o sorriso
o orgulho de me sentir
um homem livre e na alma um jardim
eternamente florido.
Tiraram-me tudo
as canetas
os lápis
mas me resta a tinta da vida
— meu próprio sangue —
e com ela ainda escrevo versos.
Quando o major Guido, gordo, barrigudo, com aspecto de lutador de sumô e outros oficiais apresentaram-se em minha cela e me disseram' que pegasse minhas coisas, que ia ser transferido, pensei que o castigo tivesse terminado. Mas quando Guido me disse, com ostensiva hostilidade:
— Agora, vamos ver se você escreve de novo...
Desconfiei que o castigo não tinha terminado. E estava com a razão.
A última incomunicabilidade
Ao chegar ao hospital notei que não havia ninguém. Sem dúvida tinham prendido todos, inclusive enfermeiras e funcionários. Os corredores do andar térreo estavam desertos. O buraco onde devia haver o elevador estava vedado com uma grade. Há cinco anos esperavam que a maquinaria burocrática atendesse à solicitação do elevador, feita em 1976, mas que tinham esquecido de incluir nos orçamentos. Tinham que subir e descer os doentes recém-operados em macas, pelas escadas, o que era feito com mil dificuldades. Assim, os militares que me acompanhavam carregaram-me escada acima, na cadeira de rodas. Quando chegamos ao segundo andar, viraram à esquerda, para a sala F. Haviam-na esvaziado. Avançamos por ela até o fundo, um cubículo de uns quatro metros quadrados. As paredes e o teto tinham sido pintados de um branco brilhante e tinham instalado dez grandes tubos de luz de néon, com mais de um metro de comprimento cada um. Uma cama e uma mesinha de cabeceira compunham o mobiliário.
O gorducho Guido sorria, os olhinhos brilhando, como se gozasse de antemão com o que os cérebros repressores tinham idealizado. Eu passaria mais de um ano ali, em torturas psíquicas; os piores meses da minha detenção. Mas, curiosamente, foi aquele tipo de prisão desumana que acelerou a bola de neve da campanha a meu favor. O encarniçamento, a aberração, o ódio dos meus carcereiros transformaram-se em grande ajuda para mim.
A Polícia Política tinha iniciado uma feroz campanha de descrédito destinada a destruir meu prestígio, fazendo-me passar por assassino e torturador da polícia secreta de Batista, ocultando o fato de que ao ser detido eu era funcionário do Governo revolucionário. Na imprensa da época não havia nenhuma referência à minha suposta condição de feroz torturador. Se aquilo fosse verdade, Castro me teria fuzilado, como tantos outros que tinham sido mortos apenas por suspeitas.
A campanha de difamação, típica de todos os regimes marxistas, contra os que discordam da ditadura, foi coordenada pelo Instituto Cubano de Amizade com os Povos (ICAP), uma das agências da Segurança do Estado, dirigida pelo comandante René Rodriguez, pessoa atualmente acusada, nos tribunais dos Estados Unidos, como um dos responsáveis pela introdução de drogas naquele país.
A operação começou com algo surpreendente: deixaram um jornalista chegar até minha cela de prisioneiro incomunicável. Assim que o vi, acompanhado por oficiais da repressão, sabia que tudo obedecia a um plano contra mim. Daí minha negativa, no início, de falar com ele, de deixar que tirassem fotos minhas. Ficaram mais de uma hora tentando me convencer. Durante esse tempo, meu cérebro trabalhava com toda a capacidade. Sabia que se tratava de uma canalhice e que podiam me atribuir declarações que eu não tinha feito. Então, ofereci-me para escrever uma carta e uns versos. Todos aceitaram. Os que lessem minha carta perceberiam, no ato, minha desconfiança naquele jornalista, porque começava dizendo: "O senhor pediu-me uma entrevista para sua revista. Preferi escrever; qualquer critério, comentário ou interpretação do que se conversou será, fora desta carta, um enfoque do jornalista. Esta carta não tem uma só rasura ou borrão e deve ser publicada na íntegra".
Estava certo de que a publicação de alguma infâmia contra mim teria, imediatamente, uma resposta contundente de meus amigos do exterior. E assim foi, exatamente, porque a publicação incluía uma identificação da polícia de Batista, torpemente falsificada, na qual se afirmava que meus olhos eram castanhos, quando na verdade são negros, e dava-se uma data de nascimento que não era a minha. Por último, para cúmulo da palhaçada, minhas medidas estavam anotadas no sistema métrico decimal, quando antes da revolução os cubanos usavam pés e polegadas para medidas e libras para pesos.
Pouco depois, em 1981, no boletim de informação que tem o número três, o ICAP distribuiu (e ainda distribui) um folheto feito por um tal de Luis Adrián Betancourt, do Serviço de Informação do Instituto Cubano de Amizade com os Povos, intitulado "Da Cadeira da Mentira", escrito com o objetivo de "informar devidamente os amigos de Cuba no exterior" sobre o caso Valladares. No folheto se contradiz a informação que aparece na identidade falsificada. Esta diz claramente que ingressei na polícia secreta de Batista em maio de 1958 e o folheto, na página três, diz que foi em outubro de 1957, coisa, aliás, impossível por eu não ter na época a idade requerida. Em publicações posteriores, depois que saí da prisão e pude denunciar a mentira, a identidade aparece cortada do lado direito, para que não se veja a data falsa.
Quando digo que os grandes promotores da campanha de opinião a meu favor foram — sem querer, é claro — os coronéis, da Polícia Política, não exagero. A propaganda contra mim transformou-se em um bumerangue para eles. A Polícia Política, insensível e ignorante do comportamento humano, acostumada a desprezar seu próprio povo, que amordaçado pelo terror não pode replicar diante de uma injustiça, esquecia que nos países onde há liberdade isso não acontece e que existem pessoas que sentem o impacto de um fato como o que eles apresentavam, caluniando um prisioneiro que, com vinte anos de prisão, somente por um crime de opinião, em cadeira de rodas, era mantido em condições desumanas e degradantes, completamente incomunicável, não tinha oportunidade de se defender das acusações de ser um torturador e criminoso feroz, agente da CIA e outras mil falsidades.
A Polícia Política jamais calculou a reação que seu artigo difamador iria desencadear. Por solidariedade, iniciou-se na Europa uma campanha para me apoiar. O Comitê Pró-Defesa de Valladares, da França, por iniciativa de Fernando Arrabal, deu a conhecer um manifesto assinado por Andrés de Wass (Prêmio Nobel), Jorge Semprún, Ionesco, Bernard Henry Levi, Ives Montand, Pierre Golendorf, os poetas Philippe Sollers e Pierre Enmanuel e muitas outras personalidades.
Como conseqüência desse gesto, o Diário 16, de Madri, em seu suplemento "Dissidências", solicitou que todos que quisessem aderir ao protesto contra as difamações do governo cubano fizessem-no enviando suas assinaturas a essa publicação. Isto originou um movimento de apoio ao qual somaram-se centenas de pessoas e intelectuais do mundo inteiro, tais como Octavio Paz, Camilo José Cela, Mario Vargas Llosa, Ernesto Sábato e muitíssimos mais, que formam uma longuíssima lista. Durante semanas chegaram cartas para o Diário 16, cuja participação foi muito importante para a minha liberdade.
O PEN Club francês entregou pessoalmente uma carta ao embaixador de Castro em Paris, na qual, depois de afirmar que tinha informações de que eu era vítima de torturas, notificava-o: "Esperamos sua resposta antes de informar à opinião pública, à Anistia Internacional, à Comissão de Direitos Humanos do Conselho da Europa e a todas as organizações internacionais com as quais estamos relacionados".
Enquanto isso, os efeitos da reação internacional chegavam aos Estados Unidos e a embaixadora norte-americana, diante da Assembléia das Nações Unidas, a inigualável e extraordinária Jeanne Kirkpatrick, denunciava com detalhes, no seio da organização mundial das nações, a situação em que eu me encontrava. Eu não podia responder, estava completamente indefeso, nem sequer conhecia os documentos falsos que o governo cubano publicava, mas havia quem, indignado pela evidente calúnia, assumisse a defesa de meu caso.
Todos, no Ocidente, sabem que é uma prática habitual da Polícia Política dos países comunistas a falsificação de documentos. Isso foi explicado detalhadamente pelo major Stanislav Levchenko, da KGB, que coordenava atividades de espionagem no Japão, durante os anos 19751979, ocultando sua verdadeira identidade sob a cobertura de um jornalista da revista Tempos Novos, quando fugiu para o oeste. Mais de uma dúzia de falsificações de documentos e cartas oficiais do governo norte-americano foi descoberta, entre elas uma missiva apócrifa de Alexander Haig — que era comandante supremo das forças aliadas na Europa —, supostamente dirigida a Joseph Luns, Secretário-Geral da OTAN. Também falsificaram uma carta em nome do rei da Espanha. Outros exemplos são os denunciados pelo Secretário de Estado da R.F.A., Carl-Dieter Sprayer, que põem a descoberto a campanha de difamação dos adversários do comunismo. Um dos mais conhecidos foi o do então presidente federal, Heinrich Lubke. A televisão alemã, no telejornal de maior audiência, disse que o sr. Lubke tinha colaborado com os nazis, construindo campos de concentração. A campanha era dirigida e organizada pela Alemanha comunista.
Um dos mais recentes exemplos, em fins do ano de 1984, foi o envio de uma carta a firmas alemãs, em papel e envelopes oficiais do Ministério do Comércio norte-americano, com sobrescritos e tudo. Nela exigia-se uma informação detalhada dos produtos exportados para os países do Leste e deixava flutuando uma suspeita de que colaboravam com os comunistas. Essa carta era falsa e seu objetivo foi criar desconfiança e hostilidade contra os Estados Unidos.
Os comunistas chamam essa prática de "AKTIVNYYE MEROPRIYATIVA" (medidas ativas) que inclui uma variada gama de ações, entre elas a promoção de campanhas nos meios de informação, com documentos falsificados. Isso foi o que fez a Polícia Política cubana, mas com uma avaliação errônea do resultado, que deixou um saldo muito positivo para mim ao despertar a curiosidade sobre o meu caso e chamar a atenção de muitos que não o conheciam ou que o -conheciam pouco. Novamente o ódio era derrotado.
Mas, como represália, já que não podiam me matar de maneira escandalosa, iam se encarniçar torturando-me com os meios mais sofisticados de que dispunham. Minha família também seria vítima de seu rancor.
Quando fiquei só naquele quarto, não era sequer capaz de desconfiar o tempo que passaria nele e nas condições de vida que meus carcereiros me tinham reservado.
A grade de entrada dava para um corredor cujas janelas tinham sido seladas com tábuas, impedindo que eu visse até mesmo a claridade do dia. A sala, completamente vazia, eliminava toda possibilidade de me comunicar com outros presos. Além disso, não existia uma só janela e o banheiro ficava no mesmo aposento. Quando abri a torneira para beber água, não saiu nenhuma gota; chamei a sentinela e pedi que abrisse o registro do corredor; conhecia o hospital, seu funcionamento e sabia que se podia fechar a água por seções. Respondeu-me que não podia fazer nada, apenas informar o oficial da guarda especial. Soube, assim, que os que me vigiavam pertenciam a uma guarnição especial.
Por ordem da Polícia Política nenhum dos militares que normalmente faziam guarda no hospital deviam ter contato comigo. Os que me vigiariam a seguir seriam selecionados por eles e todos teriam que ser membros do Partido.
Observando a parede, descobri que tinham retirado os interruptores de luz. Chamei de novo o militar e disse-lhe que fizesse o favor de apagar a luz, que eu ia dormir.
— Não se pode apagar — respondeu. Insisti que não era possível dormir com dez lâmpadas acesas sobre a cabeça.
— Sinto, mas são ordens superiores e não posso apagá-las.
Compreendi, então, que nunca se apagariam. Só se consegue um sono reparador em um quarto às escuras ou na penumbra. Sabe-se que se pode dormir sob luzes brilhantes, mas não se descansa. Era justamente esse o objetivo deles: não me deixar descansar.
O calor daquele lugar era insuportável, porque além da parede do fundo ser aquecida pelo sol, exatamente embaixo ficava a cozinha do hospital onde, ao amanhecer, acendiam grandes fornos a gás que esquentavam o soalho e transformavam o cubículo num verdadeiro inferno. E era pleno verão.
Se bem que as janelas do corredor, à minha frente, estivessem seladas com tábuas, pelas da sala, que ficavam abertas, entravam nuvens de mosquitos. Houve noites em que matei mais de duzentos.
Passei minha primeira noite dormitando a intervalos. Pensei que ia dormir a sono solto num colchão, mas as luzes não deixavam. Deitado na cama, não podia abrir os olhos porque os dez tubos de néon feriam-me as pupilas. Também não podia olhar para as paredes, porque a brancura resplandecente também me feria a vista.
No outro dia não me levaram o café da manhã. Reclamei para o militar e ele explicou que não podia sair da sala, que precisava esperar que alguém aparecesse. Eu lhe disse que não havia água, nem recipiente de qualquer tipo e que precisava de artigos de asseio pessoal: sabonete, papel higiênico, pasta e escova de dentes.
Pelos barulhos provenientes da cozinha eu soube, naquele primeiro amanhecer, que eram aproximadamente quatro horas da madrugada, pois lembrava que a essa hora os cozinheiros chegavam para iniciar a rotina. No quarto havia um dia perpétuo, artificial, infinito. Carecia de qualquer indício que me indicasse se lá fora era dia ou não.
Davam-me água somente à hora das refeições. Não adiantavam meus pedidos de um recipiente para guardar um pouco. Suava mais do que em qualquer outro presídio anterior; logo, o lençol e o colchão ficaram encharcados. Não me davam sabonete, nem abriam a água do chuveiro para eu tomar banho. Também não me davam papel higiênico.
Permaneci duas semanas nessas condições humilhantes, ao fim das quais o major Guido foi me visitar. Claro que ele sabia o que estava acontecendo, mas parte do jogo consistia em que eu o informasse e assim fiz. Com um gesto magnânimo, então, ordenou à sentinela que me trouxesse sabonete, pasta dental, um recipiente para guardar um litro de água e prometeu que daria instruções ao chefe da guarda especial para abrirem o chuveiro uma vez por dia. Invariavelmente eles sempre eram portadores das boas notícias, os únicos que podiam conceder desde um simples sabonete até a autorização para tomar um banho. Os donos absolutos de vidas e bens.
— Como vê, Valladares, tudo vai se resolvendo — disse-me, com dissimulada ironia.
— Parece que sim, major, mas eu gostaria de saber qual é o motivo desta prisão excepcional, própria de recém-detentos sujeitos a interrogatórios.
— Você sabe, Valladares, temos que tomar medidas drásticas para que não continue a mandar falsas denúncias para o exterior, de que estamos dando a você tratamento desumano. Aqui não vai poder continuar escrevendo. Esse é o motivo e você é o único culpado da situação em que se encontra.
— Então, eu sou o culpado de andar numa cadeira de rodas e de estar aqui?
— Sim, porque você se nega a aceitar as medidas disciplinares que regem todo o estabelecimento penitenciário; não apenas aqui, mas também nos cárceres dos países capitalistas elas existem; e lá sim, são realmente desumanos, porque têm como único objetivo castigar o homem.
— Mas as normas de disciplina nos cárceres dos países livres não têm como objetivo obrigar o prisioneiro a renunciar às suas idéias e crenças para adotar as de seus carcereiros, como acontece em Cuba, major. Além disso, nos países livres não há prisioneiros políticos, porque não se persegue ninguém por suas idéias, nem se prende quem discorda do Governo, como aconteceu aqui com tantos, eu entre eles.
— Você está enganado, Valladares, nos países capitalistas há milhares de prisioneiros. Nos Estados Unidos, os cárceres estão cheios de porto-riquenhos, latinos e negros que se vêm obrigados a cometer crimes, pressionados por uma sociedade desumana e exploradora que os marginaliza, discrimina e viola seus direitos sistematicamente. Esses homens são verdadeiros presos políticos, porque discordam de uma sociedade injusta que gostariam de mudar. Vocês, não. Vocês tentaram impedir as conquistas do proletariado e suas aspirações.
— Parece que as aspirações desse proletariado não concordam com as da ditadura marxista, porque a enorme maioria dos presos é integrada por operários e camponeses, homens de classes humildes. Foram eles que conspiraram, eles que empunharam armas, nas montanhas.
— Sim, mas enganados pela propaganda e as mentiras do imperialismo, que os usou como instrumento de sua política agressiva contra a revolução.
Na realidade, o major Guido emitia seus argumentos com tanto entusiasmo que qualquer um poderia pensar que acreditava neles. Claro que eu, não.
Depois de duas semanas iniciaram uma nova política. Certa manhã me trouxeram o almoço apenas uma hora depois do café da manhã e o jantar duas horas depois.
Quando perguntei a hora ao guarda, disse-me que eram oito horas da noite. Eu não sabia a hora exata, mas tinha certeza de que não eram oito. Lá embaixo, na cozinha, a lida com louças e panelas terminava às cinco da tarde e ainda a escutava. Compreendi que pretendiam fazer com que me perdesse no tempo e, então, dediquei-me a evitar que o conseguissem. Sabia que nas celas da Polícia Política usavam esses métodos. Além de prender o detento em um porão onde jamais chega qualquer barulho do exterior e privá-lo de qualquer ponto de referência, punham drogas nos alimentos para mantê-lo adormecido um dia inteiro. Depois, quando realmente era noite, levavam-lhe o café da manhã.
No lugar em que me mantinham isso seria muito difícil; eu não podia ver nada, mas ouvia os ruídos de fora, que logo passaram a ter significado concreto como assinaladores do tempo. Quando estava internado lá, antes de ser levado para as celas de castigo, dediquei toda a atenção a observar o movimento do hospital e isso me serviu de ajuda.
Também descobri que ali pelas dez da manhã, todos os dias, menos aos domingos, o caminhão do armazém central trazia mantimentos para o dia seguinte; ele parava bem embaixo das janelas seladas de meu calabouço e o motorista, assim que chegava, tocava a buzina para os presos irem descarregar os sacos de víveres.
Também não podiam calar os alto-falantes situados em todas as torrinhas e edifícios da penal, que davam ordem para se fazer silêncio às dez da noite e de levantar, às cinco e meia da madrugada. Eu vivia atento às conversas que os presos e os militares mantinham no térreo do edifício. Os presos sabiam que eu estava lá em cima, mas nunca puderam me dizer nada, porque o preso comum, chefe da cozinha, que o pessoal conhecia como Pury, era colaborador e informante da Polícia Política, que o havia colocado ali para estar a par de tudo o que acontecia. Ele até dormia lá.
Os alimentos eram levados pelo oficial de guarda, os meus e os da sentinela. Entregava-os a ele, que fechava de novo a grade de entrada e ia até o fundo da sala, para me dar a bandeja. Desde o primeiro dia eu tinha o hábito de lhes perguntar as horas. Então, apareceram alguns dias sem relógio. Apesar disso, eu continuava perguntando e eles respondiam que não sabiam. Como aquilo era um tanto grosseiro, parece que receberam outras ordens: as de entrar com a hora do relógio alterada. Eu olhava para eles e percebia, depois perguntava e fazendo-me de bobo, quando a hora que me davam era muito adiantada, comentava:
— Como o tempo voou! Pensei que fosse mais cedo.
E eles ficavam certos de que haviam me enganado.
Pouco a pouco foram se tornando mais repressivos em todos os aspectos. Não mudavam a roupa de cama, suada e malcheirosa de gordura do corpo, e eu não tinha a menor possibilidade de conseguir outra limpa. O colchão dava nojo. A água para o banho durava apenas alguns minutos. O cubículo não era varrido durante semanas. Eu me sentia embotado. Toda manhã, ao acordar, estava cansado pelo efeito das luzes. Não podia deixar de franzir a testa para entrecerrar um pouco os olhos, constantemente. Não havia jeito de escapar ao brilho das lâmpadas. Então, tive a idéia de enrolar a meia na testa, logo acima das sobrancelhas, formando assim uma viseira que me protegia um pouco os olhos. Se escutava os passos do guarda, tirava-a imediatamente. Pela situação das lâmpadas no corredor, eu podia ver a sombra das pessoas, antes que chegassem.
Todas as manhãs, quando abria os olhos, dedicava um longo momento a repetir o dia, o mês e o ano em que estávamos. Há presos que costumam fazer risquinhos nas paredes ou outro tipo de marca. Mas se forem mudados de cela perdem as anotações. Eu as tinha onde não poderiam tirá-las: na mente. À noite me preparava para o dia seguinte, anunciando a mim mesmo: "Amanhã será dia tal, do mês tal", sem esquecer o dia da chegada ao hospital.
Então, recebi a visita do dr. Roberto Puente, subdiretor do hospital e tenente do Ministério do Interior que, sem nenhum recato, disse que tinha estado em uma missão internacionalista em El Salvador. Eu sabia que outros oficiais lotados no presídio tinham sido enviados a El Salvador, mas, na verdade, Puente o dizia com alarde e não acreditei muito: ele gostava de se dar importância.
Esse homem é um dos torturadores mais sádicos que conheci no cárcere, cheio de complexos e de maldade. Sua falta de humanidade e de ética profissional é inconcebível. Para economizar remédios para a revolução, suprimiu o tratamento de centenas de doentes crônicos e a pacientes que vomitavam sangue, devido a um estranho vírus que varreu a prisão, deu-lhes alta mandando-os de volta aos insalubres calabouços. Mandou embora do hospital Eugenio Silva e Juan Gonzáles, que eram doentes que requeriam cuidados —Silva sofria de uma úlcera gravíssima —, porque se negaram á aceitar os planos de reabilitação do Governo.
A finalidade da visita dele era verificar meu estado de ânimo e o efeito do "tratamento". Lembro-me de que lhe perguntei a data — eu a sabia com exatidão —, mas notei que ele tirara o relógio e o guardara no bolso da frente da calça, pois a fivelinha da pulseira ficara para fora.
— Você não sabe que dia é hoje?
— Não, doutor. Há muitos dias que não sei. Sorriu, satisfeito, então me disse a data, só que com quatro dias de adiantamento.
Depois, falei das luzes e de seu efeito, que ele conhecia bem como médico. Respondeu-me que não faziam mal algum, que ele sempre dormia de luz acesa.
— Doutor, o senhor sabe que há uma campanha da revolução para economizar eletricidade e que se deve acender a menor quantidade de luzes possível. Tenha cuidado para não o acusarem de contra-revolucionário por causa deste desperdício de luz.
A um cínico como o dr. Puente só se podia responder com caçoada e ironia.
As semanas passaram. As revistas da Polícia Política eram periódicas, para o caso de que eu pudesse conseguir, não se sabe de que jeito, papel ou algo que servisse para escrever. Apesar dos policiais que me vigiavam serem escolhidos com cuidado, eram substituídos com freqüência para impedir que com o contato diário pudessem estabelecer relações comigo. Muitos passaram por lá e um deles, que se sensibilizou com a minha situação ao me ver preso naquelas condições, sentiu curiosidade e uma noite perguntou por que me mantinham assim. Estava havendo um fenômeno interessante. O militar de sentinela, que devia permanecer vinte e quatro horas em um cubículo anexo ao meu, do qual não podia sair um minuto, aborrecia-se e houve algum, falador, que se aproximou para conversar. Este foi um deles. Quando terminei de lhe contar minha história, que escutou com interesse, pude notar uma expressão mista de admiração e pena em seu rosto.
— Disseram-me que você era um criminoso, que tinha planos para dinamitar os círculos infantis e matar crianças.
— É isso que sempre dizem, para evitar que vocês se aproximem de mim.
— A Segurança disse que é terminantemente proibido falar com você.
— Claro, porque acontece o que está acontecendo agora: eu posso explicar minha verdade e vocês, tendo as duas versões, podem analisar e tirar suas próprias conclusões. A Segurança não quer que vocês saibam a verdade, por isso diz que sou um assassino.
Aquele era um homem bom, não como tantos outros que conheci ao longo de meus anos de cárcere, mas limitado pelo terror. A partir daquela noite foram muitas as que aquele militar e eu conversamos.
O que menos o gorducho Guido podia imaginar é que a cada três dias eu lia jornal. Mas esse privilégio durou apenas um mês.
Na manhã em que começaram a reforma na sala eu escutava as marretadas e o som de ladrilhos e tijolos quebrados. Não podia ver nada, mas soube que haviam levantado duas paredes que dividiram a sala, deixando meu cubículo e outro anterior ao meu separados. Em dois dias tinham terminado o trabalho e eu me encontrei mais isolado do que qualquer outro preso isolado. Vários dias depois, escutei um ruído de ferros, porcas, parafusos e pranchas de metal do outro lado da parede. Tinham feito subir aparelhos de ginástica, barras paralelas, mesa, aparelhos para andar, lâmpadas de calor e todo o necessário para um tratamento de fisioterapia.
Apareceram à porta o dr. Roberto Puente e um oficial da Polícia Política, ajudante do major Guido. Este era ao contrário: magro como um espaguete, de testa abaulada, desproporcional. Dizia chamar-se Beltrán. Era jovem, muito correto e amável no trato. Tinha doze anos quando fui preso.
— Já está pronta sua sala de fisioterapia particular, com tudo que é preciso. Isso é para você ver que a revolução, sem considerações políticas, contempla o homem como um ser humano, acima de todas as diferenças.
— Sim, doutor ... minhas condições de vida e isolamento, as luzes perpétuas, a humilhação diária, a negação das coisas mais elementares de que um ser humano precisa, são uma confirmação do que o senhor acaba de dizer ...
Ele ficou vermelho. O tenente saiu em sua ajuda, falando suavamente:
— Não, Valladares, esta situação atual não foi gerada por nós, mas sim por você mesmo, que nos obrigou a tomar essas medidas preventivas. E tem sorte de estar num presídio comunista, onde se respeita a integridade física do detento. Se isto fosse em um dos cárceres dos países capitalistas já o teriam matado ou surrariam você.
— E as surras que me deram, tenente?- Não sabe as histórias dos campos de trabalhos forçados e da prisão de Boniato? E não é exatamente um cárcere capitalista... — e ri com gosto.
Esse tipo de resposta os exasperava. O comunista prefere a contestação exaltada, sem controle, o ex-abrupto; mas a verdade, dita tranqüilamente em suas caras os tirava de si. Como não podia refutar o que eu dizia, foram embora.
Pareceu-me esquisito terem resolvido me dar assistência. Mas me alegrava; eu não recebia tratamento porque o coronel Blanco Fernández havia proibido o diretor do hospital de continuá-lo, se bem que tinha certeza de que ele dizia aos seus chefes que eu recusava o tratamento.
Eles eram os todo-poderosos, tinham o domínio absoluto e dispunham a vontade dos prisioneiros, com o também do povo cubano inteiro, de suas vidas e suas vontades.
No dia seguinte, o major Guido, seu ajudante Beltrán e outro oficial me visitaram. Estavam estreando novos uniformes, exclusivos da Polícia Política. Tecido da mais alta qualidade e um modelo que os diferenciava dos outros uniformizados. Em apenas uma semana o povo iria ter horror daquela farda.
— Bem, Valladares, como já ninguém fala de você, como sua esposa Martha não aparece nos jornais e ninguém oferece a ela um microfone para que faça declarações — Guido dava uma entonação especial às suas palavras, — decidimos continuar a fisioterapia. Demorou porque não cedemos a pressão de ninguém. A revolução desafiou o imperialismo ianque e, falando vulgarmente, fizemos a política que nos saiu das calças.
— Sim — aprovou o tenente Beltrán. — Tudo passa e sabíamos que o interesse da imprensa capitalista dura pouco. Já se cansaram de utilizar você como instrumento para desacreditar a revolução. Seus amigos o esqueceram, Valladares, e agora nós é que vimos em sua ajuda, para dar a atenção médica de que precisa.
Eu sabia que aquela decisão não era espontânea: a Polícia Política é alheia a todo sentimento humanos, são robôs para reprimir e sua atitude era determinada pela única coisa que faz os comunistas conceder algo aos seus presos rebeldes: pressões internacionais. O fato de Guido e Beltrán afirmarem que ninguém falava em mim, que a campanha a meu favor havia terminado e que meus amigos tinham me esquecido foram as notícias mais alegres, e que mais me confortaram, desde que me enfiaram naquela caverna com velas perpétuas. Eu as interpretei ao contrário. E não me enganei.
Não sabia de nada, de um fato sequer concreto, nem de detalhes, mas tinha certeza de que a campanha a meu favor ia ladeira abaixo, como uma bola de neve. O fato deles cederem da obstinação de não me dar fisioterapia era uma prova definitiva.
Na UNESCO, um dos testas-de-ferro da tirania castrista, o diretor do escritório de Normas Internacionais sr. Karel Vesak, na sessão de 4 a 12 de maio de 1981, declarava inadmissível que meu caso fosse tratado naquela organização e me acusava de não ter sido pintor nem poeta antes de ser preso e de ter sido julgado por crimes comuns. Para dar uma imagem de veracidade às suas calúnias e falsidades, ocultava que era o governo cubano que lhe havia fornecido aquela mendaz informação. A carta, datada de 18 de junho de 1981 e mandada a Martha pela UNESCO, continuava dizendo que eu estava submetido a um regime penitenciário normal e que recebia atendimento médico adequado. Naqueles momentos, e desde há muitos meses, eu me encontrava jogado em uma lôbrega cela de castigo, asfixiando-me com crises de asma e dormindo sobre uma placa de concreto. O sr. Vesak, digníssimo representante da UNESCO e servidor da ditadura cubana, prestava um magnífico serviço a ela. Mas, com exceção dos delegados comunistas, mais ninguém acreditou no sr. Vesak. Depois de ser solto, reuni-me, privadamente, na sede da UNESCO, em Paris, com as delegações da França, Inglaterra, Alemanha Ocidental, Estados Unidos, Espanha e outras; expliquei-lhes detalhadamente o acontecido.
O meu primeiro tratamento foi assistido pelo major Guido, o tenente Beltrán e o dr. Puente, que desde então seria quem dirigiria os exercícios pessoalmente, seguindo um plano do dr. Alvarez Cambra. Fizeram uma cerimônia daquela minha primeira saída do cubículo. As janelas do cubículo onde estava a aparelhagem estavam fechadas, mas não seladas. O tenente colocou-se diante dela e a sentinela também. Guido ficou perto de Puente, observando o tratamento.
Calor, massagens, movimentos e, depois, a colocação dos aparelhos de ferro, presos com correias, às pernas, para andar entre as barras paralelas.
Ao término daquela primeira sessão, que durou quase a manhã inteira, senti-me esgotado. Mas estava contente e coloquei todas as minhas forças físicas e psíquicas no propósito de me recuperar o quanto antes.
Poucos dias depois, um coronel foi me informar que a alimentação melhoraria, como parte do tratamento. Sua visita foi só para isso. E no dia seguinte aconteceu algo portentoso, inconcebível: levaram-me um litro de leite, meio frango, frutas e salada. O menu milagroso repetiu-se à noite.
Sem dúvida estavam decididos a me reabilitar fisicamente. Eu desconfiava que tudo era para neutralizar a campanha para que me dessem assistência. Mas era mais do que isso. Como já tinham decidido minha liberdade, toda aquela manipulação tinha a finalidade de apagar as marcas das torturas às quais me condenaram a
dupla prisão de um cárcere e de uma cadeira de rodas. Não havia qualquer preocupação humana ou profissional neles ao me dar o tratamento que durante anos organizações internacionais, meus amigos e eu tínhamos solicitado com insistência e inutilmente. Obedecia a um interesse malvado. E naquele ano e meio ninguém pôde saber de mim, nem do que estava acontecendo naquela dependência fechada por paredes e janelas seladas. Não queria que se soubesse que estavam me dando fisioterapia e mantinham tudo em segredo. Porque se soubessem que estavam me devolvendo a faculdade de andar, ninguém na Europa iria supreender-se vendo-me descer do avião pelas minhas próprias pernas e não numa cadeira de rodas, como esperavam.
Havana diria que eu não era um inválido. Seus porta-vozes e agentes no exterior repetiriam a mesma coisa. E o repetiriam como se tivessem dito que haviam me amputado um braço e todos me vissem com os dois em seus lugares. Sempre se dissera que minha doença era recuperável e assim foi. Por trás de minha recuperada capacidade de andar não havia nenhum milagre, nem mistério, mas sim, manipulação. Os mesmos que me adoeceram, me curaram.
Castro tinha dito ao dr. Rodriguez Iturbe, deputado venezuelano e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado de seu país, que eu jamais sairia de Cuba em uma cadeira de rodas. E me preparavam para que assim fosse.
Apesar da qualidade dos alimentos, as luzes continuavam acesas, as revistas eram feitas. Um dia me pegaram com a tampinha de papelão do litro de leite; o chefe militar do hospital apareceu e me perguntou para que a queria. Fizeram um registro.
Dia a dia minhas pernas iam se fortalecendo; o tratamento intensivo prosseguia; às vezes era aplicado até nos domingos. Outro médico da Polícia Política, cujo nome jamais soube, juntou-se à equipe de fisioterapia. Massagens, calor, exercícios, equilíbrio, andar entre as paralelas. Um à minha frente e outro atrás de mim empurravam-me pelo peito e pelas costas. Eu ia adquirindo mais e mais domínio de meus movimentos.
O tratamento realizou-se em um clima de tensão e quase em silêncio. Os médicos só falavam se tinham que dar alguma indicação e da maneira mais seca possível.
Logo pude voltar a usar os aparelhos curtos. Haviam passado vários meses e eu andava entre as barras paralelas, cada vez com mais desenvoltura, apoiando-me muito pouco nelas.
Quando terminavam as sessões de fisioterapia, voltava para meu cubículo.
Rumo a Paris
Para manter a mente treinada e a faculdade de falar, eu organizava conferências para um imaginário auditório. Também repetia meus conhecimentos de matérias universitárias e improvisava aulas de História, Geologia, etc. Tudo isso em voz alta. O que fez as sentinelas se aproximar mais de uma vez; eles não chegavam até a grade, mas me espiavam, talvez achando que eu tinha enlouquecido.
Naquela época eu tinha necessidade de escrever, mas isso era impossível. Então, tive a idéia de compor poesias de memória. E, assim, iniciei uma nova experiência. Quando tinha repetido, até saber de cor, o primeiro verso, ia em busca do segundo. Depois de aprendidos os dois, compunha o terceiro e assim até completar a estrofe, depois o poema, que eu repetia diariamente muitas vezes, para gravá-lo na memória. Todas essas poesias, quando as disse para Fernando Arrabal, na casa dele em Paris, noites depois da minha saída de Cuba, ele me pediu que gravasse em fita e que as escrevesse, com medo que se perdessem. Como Arrabal tinha razão! Eu o fiz e algumas semanas depois era incapaz de repeti-las. Esses poemas apareceram em um volume intitulado Cavernas do Silêncio, editado por Playor, em Madri.
Existia uma situação que hoje posso compreender porque analiso os seus motivos. O pessoal da Polícia Política sabia que eu ia embora e não estava de acordo: a vítima escapava e trataram de me torturar o mais que puderam. As luzes e os mosquitos me agoniavam. Na noite que cheguei a Paris, mostrei as costas a Fernando Arrabal: estava toda picada pelos insetos e cheia de pústulas nas picadas que infeccionaram.
Não só derramaram seu ódio doentio sobre mim, como também sobre meus familiares. Sob a ameaça de encarcerar minha irmã, obrigaram minha mãe a escrever-me uma carta dizendo que eu era um inimigo do povo, que merecia a incomunicabilidade e que devia agradecer à revolução o que fazia por mim. Quando o major Guido me entregou a carta e terminei de lê-la, eu sabia que a tinham conseguido com ameaças. Em várias partes do texto ela repetia como era bom o comandante Blanco Fernández. Fizeram isso para se deliciar vendo minha mãe elogiar o coronel que ordenava o tratamento repressivo que eu recebia. Sabiam que me dilacerava minha mãe me escrever defendendo um dos meus verdugos.
Eles chamavam minha irmã à sede da Polícia Política freqüentemente, e se aproveitavam do fato de minha mãe estar só para aterrorizá-la. Um dia, no meio do caminho, minha irmã encheu-se de coragem e voltou. Disse a si mesma que se queriam interrogá-la e ameaçá-la teriam que ir buscá-la em casa. E, quando entrou, surpreendeu um dos oficiais da Polícia Política ditando uma carta à minha mãe, dirigida à Anistia Internacional. Ao me reunir com minha família nos Estados Unidos, minha mãe me contou que a obrigaram a redigir e assinar muitas outras cartas, a fazer declarações — a pessoas estrangeiras que eles levavam à minha casa — desmentindo o que eu denunciava.
Quando minha irmã negou-se a ir à sede da Polícia Política, o coronel Blanco Fernández foi buscá-la. Mostrou-lhe uma sentença em que era condenada a doze anos de cadeia, sem jamais ter sido julgada. Ela teve que pegar seus objetos pessoais e levaram-na para o presídio de mulheres. Mantiveram-na esperando até o anoitecer, com o pretexto de que faltavam uns trâmites, depois a mandaram para casa, dizendo que no dia seguinte iriam buscá-la. Fizeram isso várias vezes. Devido a essa pressão, minha irmã acabou num psiquiatra: ainda hoje está em tratamento.
Em uma ocasião, para lhe revistarem a bolsa, foi maltratada fisicamente pelo coronel Blanco Fernández e pelo capitão Mentira. Minha velha mãe sofreu muitas ameaças. Um dia, o capitão Mentira apresentou-se em casa e disse-lhes que renunciassem a sair do país, que para eles só havia três possibilidades:
1) Transformarem-se em comunistas.
2) Conspirar contra a revolução.
3) Sair de Cuba clandestinamente, em um bote.
Toda essa perseguição contra pessoas indefesas.
O tratamento avançava, as pernas se fortaleciam, já conseguia dobrar os joelhos e levantar-me um pouco, se bem que ainda com a ajuda dos braços. Passava horas andando entre as paralelas.
Uma de minhas sentinelas, Mariano Corrales, conversador ao extremo, costumava falar muito comigo. Procurava minha conversa para mitigar a solidão, mas em alguns detalhes eu notava seu ódio por mim. Tinha estado em Angola e me contou como seu batalhão participou da invasão do Zaire e a maneira como penetraram no território daquele país, o primeiro choque com tropas belgas e as setenta baixas que estas lhes ocasionaram, enquanto Castro jurava que seus soldados não estavam lá. Era mestiço e um dia pegou a carteira para me mostrar o retrato da esposa, uma mulher branca.
— Agora, com a revolução, somos todos iguais — disse-me, sorridente.
Coisa falsa, porque em Cuba o casamento entre pretos e brancos existiu desde o começo do século como prática normal. Aquela mulher branca e um jogo de móveis de sala, que ele mesmo tinha construído com madeira velha, eram seu grande orgulho.
Em algumas ocasiões eu sentia que entravam pessoas na sala e escutava, muito apagado, o ruído de passos no cubículo contíguo ao meu. A parede, quase perto do teto, estava cheia de furos produzidos pela deficiência da construção. Qualquer deles poderia servir para me vigiar. Foi o sargento Corrales que me convenceu disso, pois um dia, quando fui falar com ele, respondeu-me de jeito agressivo, dizendo coisas que, compreendi no ato, eram dirigidas a terceiras pessoas que estavam nos vendo e ouvindo. Ele, que passava horas conversando comigo, agora nem sequer me olhava; entregou-me a bandeja apressadamente e saiu do cubículo como alma perseguida pelo diabo.
Os meses passavam lentos, arrastando-se. Eu continuava repetindo minhas poesias de memória. Tinha quase vinte e passava o tempo com isso.
Uma tarde, o major Guido e seu ajudante falaram-me da Legalidade Socialista. Respondi-lhes que por essas leis eu devia ser libertado depois de vinte anos de cadeia. O tenente Beltrán disse-me que a Segurança do Estado tinha sua própria interpretação das leis, que ele conhecia bem o assunto porque estava estudando Direito na Universidade de Havana. Aquilo pareceu-me tão incongruente que lhe disse:
— Para mim, o fato dos senhores estarem estudando leis é como se alguém passasse longos anos aprendendo cirurgia e ao formar-se fosse trabalhar num açougue, esquartejando reses.
Quando lhes disse isso, enfureceram-se, disseram-me que era falta de respeito.
— Não, não é falta de respeito. É isso que os senhores fazem com as leis: esquartejam-nas.
Eu não soube, até sair, que Martha tinha feito uma viagem por países da Europa, em busca de apoio para minha libertação.
Políticos, jornalistas e intelectuais receberam-na na Espanha e também na França, onde Fernando Arrabal escreveu uma carta ao presidente Mitterrand. A essa carta juntou-se outra de Martha, pedindo-lhe audiência. Na Suécia foi atendida pelo grupo 110 da Anistia Internacional. Per Rasmussen tinha conseguido, desde há mais de um ano, que a coalizão não-socialista no Governo solicitasse minha libertação, oferecendo-me ao mesmo tempo asilo político e trabalho naquele país.
Funcionários do governo sueco receberam Martha com verdadeira solidariedade.
Per Rasmussen conseguiu, além disso, depois de mil peripécias, que Pierr Schori, secretário internacional do Partido Social Democrata, e atualmente subsecretário de Relações Exteriores da Suécia, aceitasse falar com Martha por alguns minutos.
A entrevista teve lugar de manhã, muito cedo, no Hotel Continental, de Estocolmo. Pierr Schori não estava muito interessado que o vissem com a esposa de um prisioneiro político de Castro. Não permitiu que Per e Humberto estivessem presentes. Não queria testemunhas. Tudo foi às escondidas, clandestinamente.
— Senhora, se quer fazer algo por seu marido, aconselho-a a não continuar com a campanha de publicidade e denúncias. Assim nunca irá tirá-lo da prisão — Schori aconselhava exatamente a mesma coisa que as autoridades cubanas; "conselho" igual lhe havia sido dado por Regis Debray, na França, através de uma terceira pessoa. — Essas coisas devem ser feitas em muito silêncio.
— No entanto, sr. Schori — replicou Martha, — quando um prisioneiro das ditaduras do Chile ou Argentina é maltratado, os senhores fazem denúncias e escândalos. Ainda acham que Cuba é um paraíso?
— Não, é claro que não. Poucos na Europa acham que Cuba é um paraíso — disse, olhando seus dois relógios, um em cada pulso.
— Se sabem o que está acontecendo e que a ditadura cubana é implacável, que acabou com toda liberdade, por que não o dizem?
— Porque seria dar armas aos norte-americanos.
Martha não respondeu, mas pensou que aquela era uma conduta imoral, carente de honestidade e de toda ética. Apegou-se ao meu caso:
— Não é inteligente continuar mantendo meu marido preso, porque a cada dia aumenta mais os que se unem à campanha pela liberdade dele e isso prejudica a imagem que Castro quer manter dele e de seu regime no exterior.
— Senhora, em Castro chocam-se a inteligência e a soberba — olhava ao redor enquanto falava. — E a soberba sempre triunfa — terminou.
Martha levantou-se; compreendeu que a insistência de Schori em olhar para o relógio tentava terminar a entrevista-relâmpago e quis adiantar-se. Antes de se separarem, Pierr Schori avisou-a de que a conversa com ele não devia se tornar conhecida pela imprensa. Talvez não quisesse provocar a soberba de Castro.
Ramón Ramudo, o hispano-sueco, foi libertado logo que a Polícia Política cubana mudou a acusação original que lhe havia feito, de agente da CIA, pela de contrabandista de lenços de seda, crime muito perseguido em Cuba. Ramudo conseguiu fazer sair as cartas que eu tinha escrito na cela de castigo, em pedacinhos de jornais, e chegou com elas a Estocolmo.
Foi a última pessoa que teve contato comigo e por uma dessas estranhas coincidências que Deus prepara. Martha ainda estava na capital da Suécia quando Ramudo, magro e amarelo, ainda com a marca da prisão e das torturas no olhar, soube de sua presença lá. O encontro dos dois e o testemunho de Ramudo na televisão sueca, em que mostrou minhas cartas, foi de valor extraordinário porque a imprensa do mundo inteiro recolheu suas declarações.
Da Suécia, Martha seguiu para a Noruega, onde a maravilhosa atriz Liv Ullmann, com um grupo de jornalistas e intelectuais, sensibilizados pelo que Martha lhes contou, fundaram um comitê para trabalhar pela minha liberdade, em Oslo, e da Europa nórdica, de gelos perpétuos, a bola de neve, já impossível de se deter, esmagará a soberba de Castro que, pelo menos desta vez, apesar dos augúrios de Pierr Schori, não triunfaria; ao contrário, teria que ceder.
Meu tratamento continuou. Foram passando meses de exercícios diários; já podia andar entre as barras paralelas sem a ajuda de aparelhos ortopédicos, ficar de cócoras e dar pequenos saltos no mesmo lugar, como se estivesse correndo. Para mim, os primeiros passos no caminhos do restabelecimento tiveram um valor indescritível: voltava a me sustentar sobre as pernas, voltava a vencer outro obstáculo! Tenho vários ossos do pé direito fora do lugar, aqueles que fraturei em 1961, durante a fuga do presídio e que se soldaram errado. Os médicos, quando vêem as radiografias, dizem que é impossível andar com essas lesões sem coxear gravemente. Mas eu não coxeava. Obriguei-me a não fazê-lo e, torcendo o pé no sentido contrário, fui exercitando novos músculos, até conseguir compensar a deficiência.
Curiosamente, apesar de já estar com as pernas fortalecidas, poder fazer trote suave e ficar de cócoras no mesmo lugar, entre as paralelas ou no banheiro antes da ducha diária, não podia andar pelo cubículo sem me apoiar em alguma coisa. Era impossível por causa da perda da linha de marcha, aquele mesmo descontrole que nos fazia andar em ziguezague, no presídio de Boniato. Por isso tinha que continuar usando a cadeira de rodas.
Se tentasse ir da minha cama ao banheiro, atravessando o cubículo, meu andar era errante e a primeira vez que o fiz não consegui manter a linha e fui parar na parede do fundo. Precisava, para concluir aquela etapa do tratamento, de espaço aberto para que o cérebro voltasse a ter a perspectiva de profundidade de que carecia entre aquelas quatro paredes. Mas o segredo de minha recuperação física tinha que ser guardado até o último minuto.
Uma tarde, outro especialista veio me examinar; fez um teste muscular, observou-me fazendo exercícios e me explicou que com apenas uns dias de espaço aberto eu recuperaria a linha de marcha.
Dias depois, o dr. Puente subiu uma bicicleta de ginástica e comecei a fazer exercícios nela.
Os médicos intensificaram o tratamento, de manhã e à tarde. Aproximava-se a minha saída, da qual eu nem sequer suspeitava. No entanto, a tortura continuava. Aquela dualidade carcerária era grotesca, uma loucura. A comida continuava sendo abundante e de qualidade, mas não me davam nenhum comprimido. Algo me provocava alergia e meu corpo estava ficando cheio de vergões, além de coçar de modo desesperador, mas não me davam remédio. Uma aspirina era tão difícil de conseguir quanto ver o sol.
Uma madrugada, um grupo de coronéis apareceu no meu cubículo. Ordenaram-me que recolhesse tudo o que tinha.
— O general quer vê-lo — disse o chefe do grupo.
A caravana, composta de três carros, saiu da prisão. Chegamos à Vila Marista, sede da Lubianka cubana, um enorme conjunto de edifícios.
Deixaram-me em uma cela dos longuíssimos corredores. Por aqueles corredores passaram dezenas de milhares de cubanos que foram submetidos a interrogatórios alienantes para arrancar-lhes confissões sob pressão de torturas. Muitos não puderam resistir e morreram. Logo a Polícia Política informava que haviam se suicidado.
O expediente do "suicídio" naqueles tétricos calabouços serviu para desvirtuar o assassinato de Eurípedes Nuñes, um dirigente operário que foi Secretário-Geral do Sindicato dos Trabalhadores da conhecida fábrica de tabacos H. Uppmann. Também foi liquidado desta maneira o professor de Filosofia da Universidade de Havana, Javier de Varona; o médico e ativista pelos Direitos Humanos, dr. José Janet; o comandante do Diretório Revolucionário e ex-ministro do Comércio Exterior de Cuba, Alberto Mora; só para citar casos de pessoas conhecidas, pois a lista de vítimas anônimas, de homens e mulheres simples, cujos nomes não transcendem, e que desapareceram naqueles calabouços, é interminável. Não há listas, nem detalhes, jamais alguém é testemunha das detenções. O terror fecha olhos e lábios.
Os cidadãos podem ser presos por simples suspeitas e ser mantidos sob processo de investigação e interrogatórios durante anos, como aconteceu com o dissidente marxista e professor universitário de Economia, Elizardo Sánchez Santa Cruz, a quem por dois anos mantiveram naqueles calabouços, submetido a todo tipo de pressões. na tentativa de arrancar-lhe uma confissão que envolvesse outras pessoas, assim como sua auto-acusação.
Um dos casos típicos de tortura física e mental que conheci é o do médico Mario Zaldivar, que foi clínico no Hospital Militar de Havana. Foi submetido a câmaras de congelamento e aquecimento alternados, assim como a surras. Depois, ameaçaram-no de tomarem represálias contra a família dele, se contasse o que tinha acontecido. A última vez que o vi estava aterrorizado.
Manuel del Valle, depois de interrogatórios massacrantes e torturas, foi retirado uma madrugada, com os pés e as mãos amarrados; levaram-no para o tétrico "matadouro de Castro", onde o amordaçaram com esparadrapo, prenderam-lhe os braços para trás, passados por uma tábua, e fuzilaram-no com tiros de festim. Essa prática de falsos fuzilamentos era usada constantemente.
Orlando Garcia Plasencia e muitos outros de seus companheiros foram detidos por uma conspiração abortada que tinha, entre outros planos, o de atentar contra a vida de Castro. Projetavam atirar nele com uma bazuca. Um dos conspiradores, uma moça chamada Dalia Jorge, não pôde resistir aos interrogatórios. Colocaram-na completamente nua diante de um grupo de oficiais. Se para um homem é humilhante ficar nu diante de seus verdugos, para uma mulher o é infinitamente mais. Aos poucos, com aquelas técnicas de interrogatório, a cela fria e o terror, obrigada a se exibir nua, a resistência de Dalia Jorge desmoronou. Delatou então todos os seus antigos companheiros e informou tudo que sabia. Enquanto Garcia Plasencia e outros grupos sofriam torturas, ela perambulava pelo presídio, porque lhe haviam concedido liberdade dentro daquela zona. Quando sentiu a formação de um novo ser em suas entranhas, não pôde saber qual daqueles oficiais que a haviam possuído era o pai.
Para arrancar de Garcia Plasencia uma confissão que implicasse outros supostos conspiradores, torturaram-no durante semanas. Completamente nu, amarravam-lhe as mãos às costas e obrigavam-no a subir sobre os depósitos de gelo, diante de um aparelho de ar-condicionado ligado no máximo de frio. Se, dolorido pelo contato do gelo nas solas dos pés Garcia Plasencia se abaixava, o guarda jogava um jarro de água gelada nele.
Depois de semanas dessas torturas, passaram a amarrá-lo com cordas, em posição fetal, cabeça enfiada entre os joelhos; quando urinava empapava a cabeça com a própria urina. Também amarravam-no pelos ombros e, com a cabeça coberta por um capuz, mergulhavam-no em água quase até a asfixia. Uma vez disseram-lhe que iam imergi-lo no poço dos crocodilos. Garcia Plasencia me contou que, enquanto iam-no descendo, ele calculou a distância que o separava da água e encolheu os pés. Mas, assim mesmo, sentiu o lombo viscoso e áspero dos crocodilos, que não eram mais do que as carapaças de inofensivas tartarugas.
Uma madrugada, o próprio Castro apareceu. Por que não atirou em mim? — disse-lhe. — Você é um covarde.
O prisioneiro não respondeu e Castro o esbofeteou. Garcia Plasencia estava manietado e completamente nu.
Hoje, mais de vinte anos depois, continua no presídio do Combinado do Leste.
O calabouço que me destinaram na sede da Polícia Política tinha uma abertura pela qual o guarda do corredor assomava-se constantemente. Isso tinha a finalidade de fazer o preso se sentir constantemente vigiado.
Poucas horas depois, uma verdadeira corte de coronéis e ajudantes foi me buscar. Esperava-me um homem de uns quarenta e oito anos, em um escritório luxuosíssimo, com tapetes e cortinas vermelhas. Era o general, chefe da Lubianka.
— Valladares, trouxemos você para cá porque vamos pô-lo em liberdade... e possivelmente iremos deixá-lo sair do país.
A notícia não teve o efeito que esperavam e o general percebeu. Eu havia conhecido casos de prisioneiros que tinham sido manipulados, iludidos por essa idéia.
A notícia não o agrada, Valladares?
— Por que vão me libertar, general? — perguntei, sem acreditar muito.
Desde há muitos anos mantinha a conduta de não me iludir com nada do que eles dissessem.
— Porque a revolução irá dando solução a casos como o seu, apesar da sua hostilidade na prisão e sua recusa aos planos de reeducação política — e olhou seu relógio, um Rolex dos que Castro dá e que se tornaram em Cuba provas das simpatias pessoais do ditador. — Já é muito tarde, você precisa descansar ... — levantou-se e acrescentou: — Sabemos que precisa de um pouco de exercício ao ar livre e deve tomar um pouco de sol, porque está muito pálido. Amanhã o companheiro Alvarez Cambra, seu médico, virá vê-lo. Ele orientou o seu tratamento e está a par de como evoluiu.
Eu não pude dormir pelo que restava da madrugada. A notícia que iam me dar a liberdade era algo que já não esperava e em que não podia acreditar; temia que fosse outra jogada da Polícia Política e tentava adivinhar que maquinação ocultava. Talvez quisessem me iludir com a idéia da libertação para mais tarde apresentar-me alguma condição, como assinar que aceitava minha reabilitação ou algo do estilo. Minha experiência com inimigos capazes de tudo dizia-me que devia suspeitar até o último instante e que eles não iriam me libertar em troca de nada. Eu nem sequer podia desconfiar que o nível de opinião pública mundial, tão ansiado por mim, tinha chegado à altura necessária para obrigar Castro a me libertar, apesar de sua soberba e do juramento que não o faria enquanto houvesse uma campanha a meu favor.
Na tarde seguinte, o dr. Alvarez Cambra me visitou; muito gentilmente, disse-me que eu seria levado ao ginásio e que me deixariam andar na quadra de esportes.
Primeiro, fizeram-me percorrer os corredores, apoiado em uns oficiais. Depois, levaram-me ao ginásio, onde o general me esperava. Nos dias seguintes, faziam-me subir e descer escadas, primeiro devagar, depois mais depressa. Dia a dia fui adquirindo a habilidade. Certa manhã, acompanhado pelo dr. Alvarez Cambra, saí ao polígono esportivo. Os primeiros passos ainda eram titubeantes; entre ele e o general, fui avançando. Do outro lado me filmavam.
O dr. Alvarez Cambra explicou-me que o cerebelo se readaptaria logo e assim foi. Através do general, eu soube que não apenas teria a liberdade, mas que também me permitiriam sair do país.
Respondi-lhe que aceitava, desde que minha família também pudesse ir embora de Cuba. Disse-me que sobre isso teria que consultar o nível superior.
Quando me levaram ao polígono, comecei a dar voltas nele, primeiro devagar, depois mais depressa, a trote curto.
— Quando puder correr bem, irá embora —dizia-me o general.
Perguntei pela minha família e ele disse que haviam respondido que ela não podia ser incluída.
— Então, general, não aceito a saída. Sem minha família eu não irei. Vocês hostilizaram minha gente durante anos, mantiveram-nos como reféns, para tomar represálias contra mim; agora, não vou embora deixando-os aqui. Eles estão com tudo pronto; passaportes, vistos, passagens. Não é justo que continuem sofrendo em um país que os hostiliza e fustiga.
— Você está louco, não sabe o que diz. Sua família irá depois.
— Não, general. Não aceito isso.
— Olhe, amanhã virá uma pessoa que vai falar com você e fazê-lo mudar de idéia.
No dia seguinte, eu estava na quadra fazendo exercícios, quando o general chegou acompanhado por um senhor de bigodes, alto e claro. Era Pierre Charasse, o embaixador interino da França. Foi na conversa com ele que soube, enfim, o porquê da minha libertação. O presidente Mitterrand a havia pedido a Castro e este tinha cedido. Mostrou-me a cópia de um telegrama da presidência francesa: esperava-se minha chegada a Paris nos próximos dias e a imprensa mundial já estava dando a notícia.
Deus me iluminou. Compreendi em segundos que o jogo tinha mudado, que minha posição era forte.
Expliquei ao sr. Charasse a situação da minha família e tudo o que tinham feito contra ela. Pedi-lhe que transmitisse meus agradecimentos ao presidente da França e acrescentei:
— Prefiro continuar num calabouço, comendo farinha de milho, mas com a consciência tranqüila, do que comer um pato com laranja no "Maxim's" de Paris, sabendo-me traidor da minha família.
O embaixador foi muito gentil. Tentou me fazer raciocinar. Certamente para ele, que sabia que eu estava preso há vinte e dois anos, minha negativa de ir para Paris, para a liberdade, tinha que parecer loucura.
Quando ele foi embora uma grande tranqüilidade me envolveu. Eu sabia que o mais importante era viver em harmonia com a própria consciência, agindo como se acha certo, sem levar em conta as conseqüências. Minha verdadeira liberdade era essa, a que Deus dá interiormente aos homens. Eu não podia deixar a minha família para trás. Nos regimes marxistas elas são tomadas como reféns — essa prática é bem conhecida no mundo inteiro — para impor silêncio aos que estão no exterior.
No entanto, a reação do general foi de indignação. Quando mandou me buscar, a ira congestionava-lhe o rosto. Repetiu-me — coisa que tinha me dito durante anos — que eles não aceitavam imposições e que Castro, quando soube da minha exigência, respondera que eu apodrecesse na prisão.
— Vamos lhe dar uma última oportunidade, Valladares.
— Agradeço, mas sem minha família eu não irei, general.
Nessa noite, com grande hostilidade, levaram-me de volta à prisão. O clima era tenso. Os mesmos coronéis que dias antes se desfaziam em atenções e gentilezas para comigo, como que para apagar em algumas horas os anos de torturas e ignomínias, não me dirigiam a palavra. Um silêncio total reinou entre eles e eu, durante todo o trajeto.
Dois dias depois, as autoridades trouxeram minha família, acompanhada pelo sr. Charasse. Minha mãe e eu nos abraçamos, depois de longos anos sem nos vermos; minha irmã me beijava, emocionada. Estavam felizes por me ver andando. Não sabiam do tratamento que me tinham dado em segredo, para não poder informar a respeito. Quando, meses atrás, perguntavam por mim, os oficiais diziam que eu me negava a ser tratado.
Soube, então, que em conversas entre Castro e o governo francês, tinham resolvido incluir minha família na negociação. Ainda assim, respondi que não acreditava nas palavras de Castro.
— Martha esperou vinte e um anos por você; nenhum dos dois merece que esse encontro demore mais — disse-me minha irmã, me abraçando. — Vá, meu irmão, que pelo menos nós estamos lá fora, ao passo que você sofreu muito e merece um pouco de felicidade... Vá e seja o que Deus quiser...
— Não tenha pena — disse-me minha mãe. — Nosso sonho era ver você livre e já posso morrer tranqüila.
Novamente levaram-me para a sede da Polícia Política. Outra vez os coronéis estavam sorridentes e atenciosos.
No dia da partida tornaram a me filmar no campo esportivo, enquanto eu corria ao redor dele.
Quando me tiravam da cela, o oficial que me acompanhava assobiava para avisar que ia levando um preso, sinal que usavam para avisar um ao outro e evitar que eu cruzasse com outros detidos. Lá ninguém deve se ver. Outras vezes, colocam um capuz no preso.
Um preso enlouquecido, no corredor lateral, empurrou o guarda e saiu correndo; ao chegar à escada, soltou um grito e se atirou de cabeça por ela abaixo. Quem seria aquele infeliz? Que torturas teria sofrido para chegar àquele ponto?
Deram-me um terno, um capote e uma maleta.
Na última conversa com o general, este me fez uma velada ameaça : minha família ficava e dependia de mim que a deixassem sair ou não, insinuando que se eu fizesse declarações contra Cuba nunca sairia.
— Os braços da revolução são longos, Valladares, não se esqueça disso... — e ficava implícita uma sinistra ameaça contra mim.
Nada respondi. Minha mente estava fora daquela sala, longe... muito longe, em Paris, onde Martha me esperava, minha Penélope real. Em 1979 eu havia escrito um poema para ela que terminava com uma premonição, um canto à esperança, à sua angustiante espera...
Chegarei a ti
desta vez não duvide
já está decidido nosso encontro
apesar do ódio e dos abismos.
Chegou a hora da partida. A comitiva de vários carros enfiou-se pela Avenida de Rancho Boyeros, rumo ao Aeroporto Internacional José Marti. O avião partiria às 7 da noite. Um sol vermelho como sangue tingia a tarde de escarlate e em meu coração elevei uma prece agradecida a Deus por ter me ajudado a esperar contra toda esperança, e roguei-Lhe pela minha família, de quem não tinham permitido que eu me despedisse, por meus companheiros que ficavam para trás, na noite interminável dos cárceres políticos cubanos.
Os carros corriam, velozes, e uma mistura de melancólica tristeza e alegria foi me afundando nas lembranças de vinte e dois anos ... Lembrava-me dos sargentos Porfirio e Matanzas, afundando as baionetas no corpo de Ernesto Diaz Madruga; de Roberto Lopez Chavez agonizando em uma cela, implorando como louco por um pouco de água e dos guardas que lhe urinavam na cara, na boca; de Boitel a quem, também depois dos cinqüenta e tantos dias de greve de fome, negaram água, porque o próprio Castro tinha dado ordem de matá-lo; depois de Clara, sua atribulada e velha mãe, agredida pelo tenente Abad nas dependências da Polícia Política, só porque queria saber onde haviam enterrado seu filho; lembrava-me de Carrión com um tiro na perna, pedindo ao miliciano Jagüey que não atirasse mais e este, sem compaixão, metralhando-o pelas costas; e pensava que outros oficiais, semelhantes aos que me rodeavam, haviam proibido aos familiares que chorassem na funerária, sob ameaça de levar o cadáver.
Lembrei de Estebita, de Pire, que amanheceram mortos nas celas muradas, vítimas de experiências biológicas. De Diosdado Aquit, do Chino Tan, de Eddy Molina e tantos outros assassinados nos campos de trabalhos forçados.
Uma legião de espectros nus, aleijados, passou pela minha mente, do mesmo jeito que nas revistas horrorosas com centenas de feridos, os mutilados, a dinamite para nos fazer em pedaços, os celas de confinamento com seu regime de surras, as mãos decepadas a facão de Eduardo Capote. Campos de concentração, torturas, mulheres surradas no cárcere, o militar que me jogava excrementos e urina no rosto, as surras que deram em Eloy, em Izaguirre. Martin Perez com os testículos feridos a tiros. O pranto de Robertico chamando pela mãe.
E no meio da visão apocalíptica de minhas terríveis experiências passadas, entre a fumaça acinzentada da pólvora e da orgia de pancadas, de prisioneiros abatidos a tiros, um homem famélico, esquelético, com cabelos brancos, olhos azuis fulgurantes e coração cheio de amor, erguendo os braços para o céu invisível e pedindo demência para seus verdugos ...
"Perdoai-os, Senhor, eles não sabem o que fazem!", enquanto uma rajada de metralhadora' perfurava o peito do Irmão da Fé.
"Do nosso ponto de vista, não temos problema algum com os Direitos Humanos: aqui não há desaparecidos, aqui não há torturados, aqui não há assassinados. Em vinte e cinco anos de revolução, apesar das dificuldades e dos perigos pelos quais passamos, jamais se cometeu uma tortura, jamais se cometeu um crime." (Declarações de Fidel Castro a jornalistas franceses e norte-americanos, no Palácio da Revolução, em Havana, a 28 de julho de 1983, publicadas no jornal Granma, na edição de 10 de agosto do mesmo ano).
Armando Valladares
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