Biblio VT
O APARTAMENTO ERA PEQUENO, sem atrativos e tinha um cheiro de mofo que sugeria longo período de negligência. No entanto, os poucos móveis e os pertences pessoais estavam limpos e bem organizados; diversas das cadeiras e uma mesinha lateral eram, sem dúvida, antiguidades de alta qualidade. O que mais se destacava na minúscula sala de estar era uma estante de madeira de bordo com um meticuloso trabalho de artesanato. Era como se estivesse na lua, tão deslocada se encontrava naquele espaço modesto e sem outros destaques. A maioria dos livros cuidadosamente enfileirados em suas prateleiras tratava de finanças, em particular de assuntos tais como política monetária internacional e complexas teorias de investimento. A única luz na sala vinha de um abajur ao lado do sofá amarfanhado. Seu pequeno arco de luz delineava as feições do homem alto e de ombros estreitos ali sentado, olhos fechados como se estivesse dormindo. O relógio muito fino no seu pulso mostrava que eram quatro horas da manhã. As calças cinzas, de estilo clássico e com as bainhas dobradas, pairavam acima dos sapatos pretos e lustrosos. Os suspensórios verde-escuros desciam pela frente da camisa social branca. O colarinho da camisa estava aberto e a gravata, desfeita. A cabeça grande, calva, parecia um acréscimo posterior ao projeto original, pois o que chamava a atenção era a espessa barba grisalha que cobria o rosto largo e fundamente vincado. No entanto. quando o homem abriu subitamente os olhos, todas as outras características físicas tornaram-se secundárias; eram marrons, do tom da castanha, e penetrantes: deram a impressão de crescer até atingir o tamanho das órbitas quando ele percorreu a sala com o olhar. Subitamente a dor sobreveio e ele se encolheu, a mão no lado esquerdo do tórax; na verdade a dor agora era onipresente. Sua origem, contudo, era no ponto que ele comprimiu com ferocidade. numa vingança inútil. Respirou aos arrancos, o rosto contorcido.
A mão deslizou para baixo até o aparelho preso ao cinto. Mais ou menos da forma e tamanho de um Walkman, era na verdade uma bomba computadorizada presa a um cateter Groshong totalmente oculto sob a camisa, onde a outra extremidade estava implantada em seu peito. O dedo encontrou o botão correto e o computador embutido na bomba liberou imediatamente uma dose de medicação anestésica incrivelmente poderosa, muito acima da que era automaticamente liberada a intervalos regulares durante o dia. Quando a combinação de drogas entrou diretamente na corrente sanguínea, a dor terminou por serenar. Mas voltaria; sempre voltava. O homem recostou-se, exausto, o rosto molhado e frio pela transpiração, a camisa recémpassada encharcada de suor. Ainda bem que a bomba tinha a possibilidade de ser acionada manualmente. Ele tinha uma tolerância incrível para a dor, pois a força da sua mente podia facilmente vencer quaisquer desconfortos físicos, mas a fera que agora lhe devorava as entranhas o levara para um nível totalmente novo de angústia física. Perguntou-se rapidamente o que aconteceria primeiro: se a sua morte ou se a total e completa derrota das drogas nas mãos do inimigo. Rezava para que fosse o primeiro. Foi cambaleando até o banheiro e olhou-se no espelho. E foi neste momento que Arthur Lieberman começou a rir. Os uivos quase histéricos continuaram, sempre mais altos, ameaçando explodir as paredes finas do apartamento, até que o rompante incontrolável terminou em soluços e vômitos. Poucos minutos mais tarde, tendo trocado a camisa suja por uma limpa, Lieberman começou calmamente a acertar o laço da gravata, de olho na sua imagem no espelho do banheiro. As violentas mudanças de humor deviam ser esperadas, haviam lhe avisado. Sacudiu a cabeça. Sempre havia sido cuidadoso consigo próprio. Exercitava-se regularmente, nunca fumara, nunca bebera, seguia a dieta. Agora,aos sessenta e dois anos recém-completados, não viveria até os sessenta e três. Isto fora confirmado por um número tão grande de especialistas que finalmente a poderosa vontade de viver de Lieberman cedera. Mas não partiria em silêncio. Tinha uma última carta para jogar. Sorriu ao subitamente darse conta de que a morte próxima lhe conferia a mobilidade que lhe fora negada em vida. Seria, na verdade, uma ironia que uma carreira tão notável quanto a sua terminasse com um toque tão ignóbil. Mas as ondas de choque do terremoto que acompanharia a sua saída valeriam a pena. Que importância tinha? Entrou no pequeno quarto de dormir e durante um momento contemplou as fotos na escrivaninha. Lágrimas encheram seus olhos e ele rapidamente deixou o aposento. Precisamente às cinco e meia Lieberman deixou o apartamento e desceu no pequeno elevador até o nível da rua, onde um Crown Victoria, com o branco das placas oficiais reluzindo à luz dos postes, encontrava-se estacionado ao longo da calçada, o motor ligado. O motorista saltou bruscamente e abriu a porta para Lieberman. Respeitosamente, levou a mão ao boné saudando o estimado passageiro e, como sempre, não teve resposta. Em poucos minutos o carro havia descido a rua e desaparecido. Mais ou menos na mesma hora em que o carro de Lieberman entrou na Beltway, a rodovia que acompanhava o perímetro da área urbana, o jato comercial Mariner L500 foi retirado do hangar no Aeroporto Internacional Dulles para ser preparado para mais um voo direto até Los Angeles. Uma vez realizados os testes de manutenção, a aeronave de cerca de cinquenta metros de comprimento estava pronta para ser abastecida. A Western Airlines terceirizava suas operações de abastecimento. O caminhão-tanque, atarracado e pesadão, estacionou sob a asa de estibordo. O modelo padrão do L500 tinha os tanques de combustível localizados dentro de cada asa e na fuselagem. O painel que protegia o acesso aos tanques, localizado a cerca de um terço do comprimento da asa, contando a partir da fuselagem, foi aberto e a mangueira presa na válvula localizada no interior da asa. Uma só válvula servia para abastecer os três tanques, graças a uma série de conexões. O trabalho foi executado por um único homem, de luvas grossas e macacão sujo, atento à mangueira, à medida que a mistura altamente inflamável fluía. O homem avaliou as atividades que cercavam a aeronave; o embarque da correspondência e da carga e os carrinhos de bagagem seguindo para o terminal. Satisfeito por ver que não estava sendo observado, usou uma das mãos enluvadas para casualmente aspergir com uma substância que estava em um recipiente de plástico a parte exposta do tanque de combustível em torno da válvula. O metal do tanque brilhou nos locais atingidos pela aspersão. Um exame mais aproximado teria revelado um ligeiro umedecimento na superfície do metal, mas ficaria por isso mesmo — nenhum outro exame seria feito. Até mesmo quem fosse fazer a ronda da verificação que precede o voo jamais iria descobrir aquela pequenina surpresa escondida no interior da imponente máquina. O homem recolocou o recipiente de plástico no fundo de um dos bolsos do seu macacão. Do outro bolso extraiu um objeto fino de forma retangular e levantou a mão bem alto, no interior da asa. Quando a mão desceu, estava vazia. O abastecimento completado, a mangueira foi recolhida e o painel de combustível da asa recolocado. O caminhão saiu para abastecer outro jato. O homem virou-se para trás e olhou para o L500, e depois prosseguiu. Estava previsto que cumprisse sua tarefa às sete da manhã. Ele não tencionava permanecer um minuto a mais. O Mariner L500 de 100 toneladas levantou voo e com facilidade atingiu a cobertura de nuvens do início da manhã. Com um único corredor central, dois motores Rolls-Royce de alto desempenho, o L500 era a aeronave de tecnologia mais avançada em operação, excetuando-se as pilotadas pelos homens da Força Aérea americana. O voo 3223 levava 174 passageiros e uma tripulação de sete membros. A maioria dos passageiros se encontrava acomodada em seus lugares com jornais e revistas enquanto o avião ascendia rapidamente no céu sobre a paisagem do interior da Virgínia para alcançar uma altitude de trinta e cinco mil pés, cerca de dez mil e quinhentos metros. O computador que fazia a navegação de bordo estabelecera como tempo de voo cinco horas e cinco minutos até Los Angeles. Um dos passageiros da primeira classe lia o Wall Street Journal. Uma das mãos cofiava a barba cerrada, cinza-azulada, enquanto os olhos grandes e ativos esquadrinhavam as páginas de informações financeiras. Na classe econômica, depois do corredor estreito, outros passageiros estavam sentados em silêncio, alguns com as mãos cruzadas sobre o peito, outros com os olhos semicerrados e outros ainda lendo. Em uma das poltronas, uma senhora idosa rezava o terço, correndo as contas com a mão direita enquanto a boca ia recitando silenciosamente as palavras familiares. Quando o L500 alcançou os trinta e cinco mil pés e nivelou, o comandante pronunciou ao alto-falante os cumprimentos de praxe enquanto o pessoal de bordo seguia sua rotina normal -uma rotina prestes a ser interrompida. Todas as cabeças se viraram para o clarão vermelho que irrompeu no lado direito da aeronave. Os que estavam sentados nas poltronas junto das janelas daquele lado viram, apavorados, quando a asa da direita cedeu, o revestimento de metal começou a rasgar, os arrebites se soltando. Poucos segundos se passaram até que dois terços da asa caíram, levando o motor Rolls-Royce de estibordo. Como veias mutiladas, cabos e linhas hidráulicas cortadas chicoteavam para a frente e para trás no furioso vento de popa enquanto o combustível do tanque partido jorrava sobre a fuselagem. O L500 imediatamente guinou para a esquerda e ficou de cabeça para baixo, transformando a cabine num matadouro. No interior da fuselagem todos gritaram, presos de terror mortal enquanto o avião era lançado loucamente pelo céu, como uma folha arremessada pelo vento forte, completamente fora de controle. Passageiros mais à frente e mais atrás foram arrancados das poltronas com violência, o que, para a maioria, foi fatal. Gritos de dor foram ouvidos quando malas pesadas, ejetadas dos compartimentos abertos pelas ondas de choque causadas pela perda de pressão, chocaram-se violentamente com carne humana macia. A mão da senhora idosa abriu-se e as contas do rosário escorregaram e caíram no chão, que agora era o teto do avião de cabeça para baixo. Seus olhos se arregalaram, mas não de medo. Ela fora uma das pessoas afortunadas. Um ataque fatal do coração a salvara dos próximos minutos de puro terror. Jatos comerciais bimotores são autorizados a voar com um único motor. Nenhum jato, contudo, é capaz de voar com uma única asa. O voo 3223 tinha sido abortado de maneira irreversível. O aparelho mergulhou num voo em espiral com o destino certo da morte. Na cabine de voo, piloto e copiloto lutavam bravamente com os controles enquanto seu aparelho se projetava do céu como um estilete atravessando algodão. Inseguros quanto à natureza precisa da catástrofe, mesmo assim estavam bem conscientes de que a aeronave e a vida de todos a bordo estavam correndo gravíssimo perigo. Enquanto tentavam freneticamente recuperar o controle do avião, os dois pilotos rezavam em silêncio para que não colidissem com outro aparelho durante aquele mergulho. — Oh, meu Deus! — o piloto não acreditou no altímetro, em sua ininterrupta corrida para o zero. Nem o mais sofisticado dos sistemas desenvolvidos pela ciência aeronáutica nem os mais talentosos dos pilotos poderiam reverter a alarmante verdade com que se defrontava cada ser humano no interior daquele projétil fraturado; todos iam morrer e muito breve. Como acontece praticamente em todos os desastres aéreos, os dois pilotos seriam os primeiros a deixar este mundo, mas os outros a bordo do voo 3223 iriam apenas uma fração de segundo depois. A boca de Lieberman abriu-se quando ele agarrou os descansos para os braços em total descrença. Quando o nariz do avião tomou a posição das seis horas — direto para o solo — Lieberman fixou os olhos nas costas da poltrona à sua frente, como se estivesse numa montanha-russa absurda. Lamentavelmente para ele, Arthur Lieberman permaneceria consciente até o instante em que o aparelho encontrasse o objeto imóvel que agora parecia estar correndo para a frente. Sua saída do mundo dos vivos se daria alguns meses antes do previsto e de modo muito diferente do planejado. Quando o avião iniciou a queda final, uma palavra escapou dos lábios de Lieberman. Embora monossilábica, foi um grito continuado e agudo que se fez ouvir acima de todos os outros sons aterrorizados que tomavam por completo a cabine. — Nãããão!
......
CAPÍTULO DOIS WASHINGTON, D.C., ÁREA METROPOLITANA, UM MÊS ANTES JASON ARCHER, a camisa engomada suja, o nó da gravata desfeito, trabalhava com o conteúdo de pilhas e pilhas de caixas. Tinha um laptop ao lado. A intervalos de poucos minutos, pegava um pedaço de papel no meio da confusão que tinha diante de si, e usando um escaneador de mão, sugava o conteúdo do documento para a memória do laptop. Gotas de suor escorriam-lhe pelo nariz. O depósito era quente e sujo. De repente uma voz chamou por ele de algum lugar daquele vasto espaço. — Jason? — Passos se aproximaram. — Jason, você está aqui? Jason fechou rapidamente a caixa em que estava trabalhando, abaixou a tampa do laptop e o enfiou numa fresta que encontrou na pilha de caixas. Poucos segundos depois um homem apareceu. Quentin Rowe tinha pouco mais de um metro e setenta de altura, pesava talvez uns sessenta e oito quilos, com ombros estreitos; óculos ovais leves repousavam acima do rosto sem barba. O cabelo louro e fino era amarrado cuidadosamente atrás num rabo-de-cavalo. Vestia-se em estilo informal, com uma calça jeans desbotada e uma camisa branca de algodão. A antena de um telefone celular projetava-se do bolso da camisa. Suas mãos estavam enfiadas nos bolsos de trás. — Estava passando por perto e resolvi dar um pulo aqui — disse ele. — Como estão as coisas? Jason levantou-se e alongou o corpo comprido e musculoso. — A gente chega lá, Quentin. Pode deixar. — O negócio da CyberCom está ficando muito quente e eles querem a parte financeira resolvida o mais cedo possível. Quanto tempo mais você acha que vai precisar? — A despeito da aparência jovial, Rowe parecia ansioso. Jason avaliou a pilha de caixas. — Mais uma semana, dez dias no máximo. — Tem certeza? Jason fez que sim e esfregou as mãos metodicamente antes de descansar os olhos em Rowe. — Não vou deixar você mal, Quentin. Sei como a CyberCom é importante para você. Para todos nós. — Quentin sentiu uma pontada de culpa, mas suas feições continuaram imperscrutáveis. De alguma forma, Rowe relaxou. — Não nos esqueceremos dos seus esforços, Jason. Com isto e com o trabalho que você fez com aquelas cópias das fitas. Gamble ficou particularmente impressionado, até o ponto em que foi capaz de entender. — Acho que será lembrado por muito tempo — concordou Jason. Rowe avaliou o depósito com incredulidade. — Pensar que todo o conteúdo deste depósito pode caber confortavelmente em meia dúzia de disquetes. Que desperdício. Jason sorriu.
— Bem, Nathan Gamble não entende mesmo muito de computadores — comentou Rowe, em tom de desprezo. — Suas operações de investimento geravam um bocado de papel, Quentin — continuou Jason -, e não se pode discutir com o sucesso. O homem ganhou um bocado de dinheiro nos últimos anos. — Exatamente, Jason. Esta é a nossa única esperança. Gamble é um homem que entende de dinheiro. O negócio com a CyberCom fará todos os outros parecerem insignificantes. — Rowe lançou um olhar de admiração para Jason Archer. — Depois de todo este trabalho você tem um grande futuro à sua frente. Os olhos de Jason exibiram um brilho mais suave e ele sorriu para o colega: — Exatamente o que penso. Jason Archer acomodou-se no banco do carona do Ford Explorer, inclinou-se e beijou a mulher. Sidney Archer era alta e loura. Suas feições finamente cinzeladas tinham se suavizado um pouco após o nascimento da filha. Ela virou a cabeça para o banco de trás. Jason sorriu quando seus olhos encontraram Amy. dois anos de idade e dormindo a sono solto na sua cadeirinha de neném. — Dia comprido para ela — disse Jason, desamarrando a gravata. — Para nós todos — replicou Sidney. — Pensei que trabalhar meio expediente como advogada seria fácil. A impressão que tenho hoje é que faço a mesma semana de cinquenta horas em três dias. — Ela sacudiu a cabeça, fatigada, acelerou e entrou no trânsito. Deixaram para trás o gigantesco prédio da sede mundial da Triton Global, a empresa na qual trabalhava o seu marido e a líder absoluta em tecnologias que variavam das redes globais de computadores a softwares pedagógicos para crianças e praticamente tudo entre uma coisa e outra. Jason tomou uma das mãos dela entre as suas e a apertou ternamente. — Eu sei, Sid. Eu sei que é difícil, mas pode ser que eu tenha uma notícia que permitirá que deixe a advocacia para sempre. Ela o fitou, com um sorriso. — Você inventou um programa de computador que permitirá que escolha os números sorteados da Loto? — Talvez algo melhor. — Um sorriso iluminou as belas feições de Jason. — OK, agora você conquistou definitivamente a minha atenção. O que é? Ele sacudiu a cabeça. — Hum, hum. Não enquanto eu não tiver a confirmação. -Jason, não faz isso comigo. — A súplica falsamente dramática fez com que o sorriso dele se acentuasse. — Você sabe — disse, dando uma palmadinha carinhosa na mão dela — que minha especialidade é guardar segredos. E sei como você adora surpresas. Ela parou em um sinal vermelho e virou-se para ele. — Também gosto de abrir presentes na véspera do Natal. Assim, vamos, fale. — Não desta vez, desculpe, de jeito nenhum. Ei, que tal irmos comer fora hoje à noite? — Eu sou uma advogada muito obstinada, de modo que não tente mudar de assunto. Além do mais, comer fora está fora do orçamento do mês. Quero detalhes. — Bem-humorada, ela
deu uma cotovelada no marido ao arrancar na luz verde. — Muito, muito breve, Sid. Eu prometo. Mas agora não, tá bem? — Seu tom de voz de repente tornou-se mais sério, como se ele tivesse se arrependido de haver tocado no assunto. Um traço de preocupação surgiu na fisionomia dela. Jason virou-se, percebeu sua inquietude, acariciou-lhe o rosto e piscou um olho: — Quando nos casamos, eu lhe prometi o mundo, não foi? — Você me deu o mundo, Jason. — Ela olhou para Amy pelo retrovisor. — Mais que o mundo. Ele esfregou seu ombro. — Eu a amo, Sid, mais do que tudo. Você merece o melhor. Um dia eu lhe darei o melhor. Ela sorriu; mas quando virou o rosto para a frente de novo, o ar de preocupação retornou ao seu semblante. O homem estava debruçado sobre o computador, o rosto a poucos centímetros da tela do monitor. Os dedos golpeavam as teclas com tanta força que pareciam marteletes mecânicos. O teclado, já bastante danificado pelo uso, parecia prestes a se desintegrar sob o ataque impiedoso. Como água derramada, imagens digitais escorriam pela tela do monitor rápidas demais para o olho acompanhar. Lá fora, uma escuridão de breu. A luz fraca do teto proporcionava a iluminação para o homem trabalhar. Grossas gotas de suor escorriam pelo seu rosto, embora a temperatura ambiente pairasse em confortáveis vinte graus. Passou a mão com força no rosto molhado quando o líquido salgado escorreu por trás dos óculos e fez arder os olhos já doídos e congestionados. Tão concentrado estava que não notou que a porta do aposento se abriu lentamente. Tampouco ouviu os três pares de pernas caminhando na sua direção. atravessando o carpete grosso até se deterem atrás dele. Os movimentos que executavam não eram apressados; a superioridade numérica dos intrusos aparentemente lhes proporcionava absoluta confiança. Por fim o homem do computador virou-se. Suas pernas começaram a tremer incontrolavelmente como se ele tivesse previsto o que estava por lhe acontecer. Não teria tempo nem para gritar. Quando os gatilhos foram acionados simultaneamente e os percursores bateram nas espoletas das baias, as pistolas trovejaram em ensurdecedor uníssono. Jason Archer estremeceu e endireitou-se na mesma cadeira onde adormecera. Suor de verdade surgiu no seu rosto, enquanto a visão da morte violenta não saía de sua mente. O maldito sonho não o abandonava. Olhou rapidamente em torno. Sidney cochilava no sofá, a TV zumbindo ao fundo. Jason se levantou e cobriu a esposa com um cobertor. Em seguida foi ao quarto de Amy. Era quase meia-noite. Ao dar uma espiada na porta ouviu-a se virando no seu sono. Foi até a beirada da cama e observou o corpinho pequeno da filha se remexendo sem parar. Devia estar tendo um pesadelo, algo que seu pai conhecia muito bem. Ele passou a mão delicadamente na testa da menina e depois pegou-a no colo, balançando-a devagarinho de um lado para o outro na escuridão silenciosa. Aquilo
normalmente afastava os pesadelos e em poucos minutos Amy dormia tranquilamente de novo. Jason então foi até a cozinha, rabiscou um bilhete para a esposa, colocou em cima da mesa ao lado do sofá onde Sidney continuava a dormir, foi até a garagem e entrou no velho Cougar conversível. Quando saiu de ré, não notou que Sidney estava na janela da frente observando-o, o bilhete numa das mãos. Depois que as luzes da traseira desapareceram, ela virou-se e leu o bilhete de novo. O marido tinha ido dar um pulo no escritório para fazer um trabalho. Voltaria para casa quando pudesse. Sidney consultou o relógio que ficava em cima do consolo da lareira. Era quase meia-noite. Foi ver Amy e pôs uma chaleira no fogo. Baixou a cabeça subitamente sobre a bancada da cozinha quando uma suspeita profundamente oculta dentro dela explodiu na superfície. Aquela não era a primeira vez que acordava para ver o marido tirando o carro da garagem, deixando um bilhete em que afirmava ter ido trabalhar. Fez o chá e, num impulso, subiu a escada correndo até o banheiro. Lá examinou-se no espelho. O rosto estava um pouco mais cheio do que na época em que tinham se casado. Livrou-se, com gestos abruptos, da camisola e da roupa de baixo. Examinou a frente, os lados e, finalmente, a parte de trás, com o auxílio de um espelho de mão, a fim de examinar seu pior ângulo. A gravidez produzira certos danos; a barriga retornara praticamente ao que era, mas o traseiro definitivamente não era mais tão firme quanto antes. Os seios estariam caídos? Os quadris pareciam ligeiramente mais cheios. Nada de raro, após um parto. Com dedos nervosos, beliscou o milímetro de pele extra sob o queixo, enquanto uma depressão aguda se instalava. O corpo de Jason continuava tão musculoso quanto nos tempos em que tinham começado a sair. O físico assombroso do marido e sua beleza clássica eram apenas uma parte de um pacote muito atraente que incluía um intelecto notável. Um pacote que seria muitíssimo atraente para todas as mulheres que Sidney conhecia e certamente para a maioria das que não conhecia. Ao seguir com a ponta dos dedos na linha do queixo ela se deu conta, ofegante, do que na verdade estava fazendo. Uma advogada altamente respeitada e muito inteligente, examinava-se como um pedaço de carne, exatamente como gerações de homens tinham feito com as mulheres. Vestiu a camisola de novo. Ela era atraente. Jason a amava. Ele fora trabalhar para pôr em dia o serviço. Jason estava construindo rapidamente sua carreira. Em breve, os sonhos de ambos iam se realizar. O dele, de ter o próprio negócio; o dela, de ser uma mãe de tempo integral para Amy e os outros filhos que esperavam ter. Se isto mais parecia o enredo de uma comédia de situações dos anos 50, pois que parecesse, porque era exatamente o que os Archer queriam. E Jason, ela acreditava firmemente, estava naquele exato instante trabalhando furiosamente para chegar lá. Mais ou menos à mesma hora em que Sidney voltou para a cama, Jason Archer parou num telefone público e discou o número que memorizara muito tempo atrás. A ligação foi atendida imediatamente.
— Alô, Jason. — Liguei para dizer que isto tem de acabar logo, ou pode ser que eu não consiga. — Pesadelos de novo? — O tom era ao mesmo tempo compreensivo e condescendente. — Você fala como se eles fossem eventuais. Na verdade estão sempre comigo — replicou Jason laconicamente. — Falta pouco. — A voz agora era tranquilizadora. — Você tem certeza de que não estão atrás de mim? Tenho uma sensação estranha, como se todo mundo estivesse me olhando. — Isso é normal, Jason. Acontece o tempo todo. Se você estivesse em dificuldades nós saberíamos, acredite em mim. Já passamos por isto antes. — Confiei em você. Só espero que minha confiança não tenha sido colocada na pessoa errada. — A voz de Jason ficou mais tensa. — Não sou profissional. Droga, isto está me dando nos nervos. — Nós compreendemos. Mas não vá ficar com raiva da gente agora. Como falei, está quase acabado. Mais uns poucos itens e você se afasta oficialmente. — Olha, não compreendo por que não podemos sair com o que já temos. — Jason, não cabe a você pensar nessas coisas. Precisamos escavar um pouco mais fundo e você simplesmente vai ter que aceitar isto. Fique firme. Não somos inexperientes neste tipo de coisa; temos tudo planejado. Basta que você faça a sua parte e estaremos bem. Tudo estará bem. — Bem, vou terminar esta noite. Certeza absoluta. Usamos a mesma rotina de entrega? — Não. Desta vez haverá um encontro pessoal. O tom de voz de Jason registrou sua surpresa. — Por quê? — Estamos chegando ao fim e qualquer erro pode pôr em risco toda a operação. Embora não tenhamos razão para acreditar que o estejam seguindo, não podemos ter certeza absoluta de que nós não estamos sendo vigiados. Lembre-se, nós todos estamos correndo riscos aqui. As entregas impessoais segundo uma rotina combinada geralmente são seguras, mas há sempre uma margem de erro. Um encontro cara a cara com gente nova, de fora da área, elimina essa margem, o que é bastante simples. Também mantém você mais seguro. E a sua família. — Minha família? Que diabos tem minha família a ver com isso? — Não seja idiota, Jason. O que está em jogo vale muito dinheiro. Os riscos foram explicados a você desde o princípio. Este mundo é violento. Dá para entender? — Olha só... — Tudo vai dar certo. Você só tem de seguir as instruções ao pé da letra. — As últimas palavras foram ditas de maneira bastante enfática. — Você não contou a ninguém, contou? Particularmente à sua mulher. — Não. Por que haveria de contar? Quem ia acreditar em mim? — Surpresas existem. Basta que se lembre: a pessoa para quem contar vai correr tanto risco quanto você. — Agora me diz uma coisa que eu não saiba — retrucou Jason com ironia. — Então, quais
são os detalhes? — Agora não. Em breve. Os canais de costume. Aguenta firme, Jason. Estamos quase do outro lado do túnel. — É, mas vamos esperar que a maldita coisa não desabe em cima de mim antes disso. A resposta foi uma risadinha, antes de a ligação ser desfeita. Jason tirou o polegar da leitora ótica de impressões digitais, disse seu nome no pequeno microfone embutido na parede e aguardou pacientemente que o computador comparasse as impressões do seu polegar e da voz com as impressões armazenadas na memória gigantesca. Sorriu e balançou a cabeça para o segurança uniformizado sentado atrás de um consolo enorme no meio da área de recepção do oitavo andar. Atrás das costas largas do guarda, podia-se ver em letras prateadas de trinta centímetros de altura, as palavras TRITON GLOBAL. — Uma pena que não dêem a você autoridade para deixar que eu entre, Charlie. Sabe como é, de um ser humano para outro. Charlie, um sujeito muito grande com mais de sessenta anos, era preto, careca e de raciocínio rápido. — Com os diabos, Jason, pelo que sei você podia ser o Saddam Hussein disfarçado. Não se pode mais julgar ninguém pelas aparências. A propósito, bonito suéter, Saddam. — Charlie deu uma risadinha. — Além do mais, como é que uma empresa como esta, grande e sofisticada, poderia confiar no julgamento de um segurança velho como eu quando tem toda essa aparelhagem para dizer quem é quem? Os computadores são reis, Jason. A triste verdade é que os seres humanos não têm mais importância. — Não se sinta tão deprimido, Charlie. A tecnologia tem suas vantagens. Olha só, tenho uma proposta para você... por que não trocamos de função por uns tempos? Aí você poderia ver a parte boa. — Jason sorriu. — Feito, Jason. Vou brincar com esses brinquedos de milhões de dólares e você vai poder farejar os mictórios de meia em meia hora atrás de bandidos. Não vou nem cobrar o uso do uniforme. Mas é claro que se trocamos de emprego trocamos também de contracheques. Eu não ia querer fazer com que você perdesse uma nota preta de sete pratas a hora. Não seria justo. — Você é inteligente demais para o que faz, Charlie. Charlie riu e voltou a examinar os numerosos monitores de TV montados no console. Quando a pesada porta girou sobre as dobradiças silenciosas, o sorriso de Jason desapareceu abruptamente. Ele passou pela abertura. Ao avançar no corredor tirou qualquer coisa do bolso do paletó. Era do tamanho e da forma de um cartão de crédito e também feito de plástico. Parou em frente a uma porta. O cartão deslizou na fresta de uma caixa de metal aparafusada na porta. O microchip embutido no cartão comunicou-se silenciosamente com o seu correspondente preso no portal. O dedo indicador de Jason golpeou quatro vezes o pequeno teclado numérico adjacente. Houve um clique audível. Ele agarrou a maçaneta,
virou-a e a porta de oito centímetros de espessura girou para trás. Quando as luzes se acenderam, Jason foi iluminado por um instante. Ele apressou-se a fechar a porta; os dois ferrolhos voltaram ao seu lugar. Quando olhou em torno para o escritório muito bem arrumado, suas mãos tremiam e o coração batia com tanta força que ele teve certeza absoluta de que seria ouvido em todo o edifício. Não era a primeira vez. Estava longe de ser a primeira vez. Concedeu a si próprio a graça de um rápido sorriso quando se lembrou de que aquela seria a última vez. Independente do que acontecera antes, aquilo era o fim. Todo mundo tem um limite, e naquela noite Jason alcançara o seu. Foi até a escrivaninha, sentou-se e ligou o computador. Preso no monitor ficava um pequeno microfone montado em uma longa e flexível haste metálica, destinada a captar os comandos de voz. Impaciente, afastou-o para poder ter uma visão clara da tela do monitor. Costas impecavelmente eretas, olhos colados na tela, mãos pousadas sobre o teclado, prontas para atacar, ele agora estava claramente no seu elemento. Seus dedos, como os de um pianista, voaram sobre o teclado, numa velocidade incrível. Deu uma olhada na tela, onde apareceram instruções para ele, instruções tão familiares que tinham virado rotina. Jason teclou quatro dígitos no miniteclado preso na base da unidade de processamento e em seguida inclinou-se um pouco para a frente, fixando o olhar num canto situado na parte superior direita do monitor. Sabia que uma câmera de vídeo acabara de interrogar eletronicamente sua íris direita, transmitindo um elenco de informações ali contidas a uma base central de dados, onde a imagem dela seria comparada com outras trinta mil ali armazenadas eletronicamente. O processo todo não chegou a levar quatro segundos. Por mais acostumado que Jason Archer estivesse com a capacidade cada vez maior da tecnologia, de vez em quando ainda se espantava com o que via. Leitoras óticas de íris também eram usadas para monitorar a produtividade dos funcionários. Jason fez uma careta. Na verdade, Orwell subestimara as possibilidades. Concentrou-se de novo na máquina à sua frente. Nos vinte minutos seguintes Jason trabalhou direto no teclado, parando somente quando mais dados apareciam na tela, em resposta às suas indagações. O sistema era rápido, e mesmo assim tinha dificuldade em acompanhar a velocidade dos comandos de Jason. Subitamente a cabeça dele virou, quando um barulho vindo do corredor filtrou-se até o escritório. O maldito pesadelo de novo. Provavelmente era só Charles fazendo suas rondas. Olhou para a tela. Não estava fazendo grande progresso. Uma perda de tempo. Escreveu uma lista de nomes de arquivos num pedaço de papel. desligou o computador, levantou-se e dirigiu-se para a porta. Parou e encostou o ouvido na madeira. Satisfeito, fez com que os ferrolhos se recolhessem de novo, abriu a porta, apagou a luz na hora de fechá-la de novo. Segundos mais tarde tudo voltava ao normal, com a porta mais uma vez trancada. Seguiu a passos rápidos pelo corredor, detendo-se por fim na frente de uma porta que dava
acesso a um setor pouco usado do escritório. Esta porta tinha uma aparência comum, mas Jason a abriu com uma ferramenta especial e trancou-a às suas costas. Não acendeu a luz do teto. Em vez disso, pegou uma lanterninha no bolso. O console do computador ficava no outro canto, junto de um armário baixo, com uma pilha de cerca de um metro de altura de caixas de papelão. Jason afastou o computador da parede, expondo os cabos que ficaram pendurados, oscilantes, na parte de trás. Ajoelhou-se e pegou-os, ao mesmo tempo em que afastava com dificuldade o arquivo do lado da mesa de trabalho. Ao fazê-lo, surgiu na parede uma tomada com diversas conexões à rede de dados. Prendeu um cabo do computador numa dessas conexões, assegurando-se de que ficasse bem preso. Só então sentou-se diante do computador e o ligou. Quando o computador deu sinal de vida, Jason equilibrou a lanterninha em cima da pilha de caixas, de modo que o foco de luz atingisse diretamente o teclado. Desta vez não havia um miniteclado onde digitar um código de segurança. Tampouco teve que encostar o olho na parte superior direita da tela do monitor, esperando ser positivamente identificado. Na verdade, no que dizia respeito à rede de computadores da Triton, aquela estação de trabalho simplesmente não existia. Jason pegou o pedaço de papel no bolso e o colocou no raio de luz da lanterna, em cima do teclado. Subitamente percebeu um movimento do lado de fora da porta. Contendo a respiração, colocou a lanterna debaixo do braço, desligou-a e reduziu a luminosidade da tela do monitor até que a tela ficasse escura. Passaram-se alguns minutos, com Jason ali sentado, quieto, no escuro. Uma gota de suor formou-se na sua testa e, preguiçosamente, foi escorrendo pelo nariz, vindo a parar no lábio. Ele se sentia apavorado demais para enxugá-la. Após cinco minutos de silêncio, acendeu a lanterna, devolveu a luminosidade à tela e voltou a trabalhar. Sorriu quando um firewall — um sistema de segurança interno projetado para impedir acesso não autorizado aos bancos de dados — particularmente obstinado cedeu a seus esforços persistentes. Trabalhando depressa agora, abriu caminho até o último dos arquivos que listara no papel. Em seguida tirou do bolso do paletó um disquete e colocou-o no drive do computador. Alguns minutos depois, retirou o disquete, desligou o computador e foi embora. Refez silenciosamente o caminho por entre o labirinto das medidas de segurança, despediu-se de Charlie e saiu pela noite.
CAPÍTULO TRÊS O LUAR ENTRAVA PELA JANELA, dando forma a certos objetos no interior sombrio do quarto amplo. Sobre a cômoda de pinho, sólida e comprida, podia-se ver três fileiras de porta-retratos. Em uma foto, na fila de trás, via-se Sidney Archer, vestindo um sóbrio costume azul-escuro, encostada em um reluzente Jaguar prateado. Ao lado dela, Jason Archer ostentava os suspensórios, a camisa social e um sorriso, ao mesmo tempo em que fitava amorosamente Sidney. Outra foto mostrava o mesmo casal, em traje esporte, de pé diante da Torre Eiffel, os dedos apontando para cima, bocas abertas em risadas espontâneas. Na fila do meio, lá estava Sidney, alguns anos mais velha, o rosto inchado, cabelo molhado e preso dos lados da cabeça, reclinada em um leito de hospital. Tinha nos braços uma trouxinha minúscula com os olhos fechados bem contraídos. A foto seguinte era de Jason sozinho, olhos congestionados e barba por fazer, usando apenas uma camiseta e uma cueca Looney Tunes, deitado no chão. A pequenina, agora de olhos abertos a exibir o mais intenso dos azuis, aparecia, feliz da vida, deitadinha em cima do peito do pai. A foto do centro na fileira da frente tinha sido evidentemente tirada num Halloween. A trouxinha agora tinha dois anos de idade e estava vestida como uma princesa, com tudo a que tinha direito, da tiara às pantufas. Mãe e pai apareciam por trás, orgulhosos, olhos fixos na câmara, mãos carinhosamente sobre os ombros e costas da menina. Jason e Sidney estavam deitados na cama de quatro colunas. Jason se virava de um lado para o outro, insone. Fazia uma semana desde a última visita notuma ao escritório. Agora o clímax finalmente chegara, tornando impossível dormir. Do lado da porta do quarto estava uma mala de lona inteiramente cheia e particularmente feia, com listas azuis em X e as iniciais JWA, ao lado de um estojo de metal preto. O relógio em cima da mesinha-de-cabeceira arrastava-se rumo às duas horas. O braço comprido e fino de Sidney saiu de sob as cobertas e deslizou em torno da cabeça de Jason, empurrando vagarosamente o cabelo dele. Sidney apoiou-se sobre um cotovelo e continuou a brincar com o cabelo do marido, aproximando-se mais dele. Finalmente os rostos ficaram colados. A camisola transparente estava colada no corpo de Sidney. — Você está dormindo? — murmurou ela. Ao fundo, os rangidos da casa velha eram os únicos sons a quebrar o silêncio. Jason rolou de lado para encarar Sidney. — Na verdade, não. — Eu sabia, você estava se mexendo muito. Às vezes você faz isso quando dorme. Você e Amy. — Espero não ter falado durante o sono. Não quero revelar meus segredos. — Jason forçou um sorriso. A mão de Sidney deslizou para o rosto do marido, que ela acariciou gentilmente.
— Acho que todo mundo deve guardar bem os seus segredos, embora no nosso caso o combinado foi de que não teríamos segredos entre nós. — Ela riu, mas foi um riso oco. Jason entreabriu a boca, como se fosse dizer algo, mas fechou rapidamente, esticou os braços e olhou para o relógio. Resmungou ao ver as horas. — Nossa, tenho que levantar agora. O táxi estará aqui às cinco e meia. Sidney deu uma olhada nas malas perto da porta e franziu a testa. — Esta viagem foi realmente repentina, Jason. Em vez de olhar para ela, ele esfregou os olhos e bocejou. — Eu sei. Só tomei conhecimento dela no fim da tarde de ontem. Quando o chefe diz vai, eu vou. Sidney suspirou. — Eu sempre soube que chegaria o dia em que precisaríamos sair da cidade ao mesmo tempo. A voz de Jason denotava sua ansiedade quando ele perguntou, olhos fixos em Sidney: — Mas você acertou tudo com a creche, não acertou? — Tive que arranjar alguém para ficar o dia inteiro, mas tudo bem. Você não vai demorar mais que três dias, vai? — Três dias, Sid. Prometo. — Ele esfregou vigorosamente o couro cabeludo. — Não dava para você ser dispensada desta viagem a Nova York? Sidney sacudiu a cabeça. — Advogados não são dispensados de viagens de negócios. Não está no manual de como ser um advogado produtivo da firma Tyler e Stone. — Meu Deus, você produz mais em três dias do que a maioria em cinco. — Pois olha, queridinho, não preciso lhe dizer uma coisa dessas, mas no nosso ramo, o que interessa é o que você fez por mim hoje, e, mais importante, o que você vai fazer por mim amanhã, e depois de amanhã. Jason se sentou na cama. — Na Triton é a mesma coisa, só que, como trabalhamos com tecnologia avançada, as expectativas vão até o próximo milênio. Um dia a sorte vai bater na nossa porta, Sid. Talvez seja hoje. — Ele a fitou. Sidney sacudiu a cabeça. — Certo. Mas enquanto você fica no cais, esperando o navio que vai trazer a nossa sorte, eu continuo depositando nossos salários e pagando as dívidas. Certo? — OK. Mas às vezes a gente tem que ser otimista. Acreditar no futuro. — Por falar em futuro, já pensou em providenciar um novo bebê? — Estou mais que pronto. Se o outro for que nem a Amy, vai ser uma facilidade. Sidney comprimiu as coxas no corpo dele, silenciosamente feliz por Jason não ter se manifestado contrário à ampliação da família. Se ele estava tendo um caso...? — Fale por você mesmo, parte masculina desta pequena equação. — Ela o empurrou. — Desculpe, Sid. Foi uma típica afirmativa machista. Não acontecerá de novo, prometo.
Sidney deitou de costas, apoiada no travesseiro. e fixou os olhos no teto enquanto esfregava delicadamente o ombro dele. Três anos antes, a simples ideia de desistir de exercer a profissão não fazia parte de seus planos. Hoje em dia, trabalhar como advogada mesmo em regime de meio expediente parecia atrapalhar demais sua vida com Amy e Jason. Ansiava por total liberdade de estar com a filha. Liberdade de que não podia ainda desfrutar se tivesse que depender exclusivamente do salário de Jason, mesmo com todas as restrições que tinham se imposto, lutando constantemente contra a compulsão tipicamente americana de gastar tudo o que ganhavam. Mas se Jason fosse promovido na Triton, quem sabe? Sidney nunca desejara ser financeiramente dependente de ninguém. Olhou para Jason. Se ia vincular sua sobrevivência econômica a uma pessoa, quem melhor que o homem a quem amara desde que vira pela primeira vez? Enquanto continuava a fitá-lo, seus olhos ficaram úmidos de lágrimas. Sentou-se, apoiando-se nele. — Bem, pelo menos enquanto você estiver em Los Angeles poderá procurar alguns de nossos velhos amigos, esqueça as antigas namoradas, por favor. — Ela o despenteou. — Além do mais, você não poderia me deixar nunca. Meu pai o perseguiria. Os olhos dela percorreram vagarosamente o torso sem camisa de Jason, o abdome ondulado, os músculos sob a pele dos ombros, e mais uma vez pensou em como tivera sorte de conhecer Jason Archer. Tinha certeza absoluta de que o marido também acreditava que tivera muita sorte por encontrá-la. Ele não respondeu, continuou com o olhar perdido. — Você sabe — ela prosseguiu — que andou trabalhando demais nos últimos meses, Jason. No escritório o tempo todo, me deixando bilhetes no meio da noite. Sinto sua falta. — Ela tocou ligeiramente nele com o quadril. — Você se lembra de como é gostoso um aconchego de noite, não lembra? Em resposta, ele a beijou no rosto. — Além do mais, a Triton tem montes de funcionários. Você não precisa fazer tudo sozinho — acrescentou. Ele a fitou, com um cansaço dolorido nos olhos. — É o que você pensa. não é mesmo? Sidney suspirou. — Quando a aquisição da CyberCom estiver fechada, você provavelmente estará mais ocupado do que nunca. Talvez eu devesse sabotar a transação. Afinal de contas, lá na firma sou eu a principal advogada da Triton — ela sorriu. Jason deu uma risadinha forçada, o pensamento claramente longe. — De qualquer forma, a reunião em Nova York deverá ser interessante. Abruptamente ele concentrou a atenção em Sidney. — Por quê? — Porque vamos nos reunir para tratar da transação com a CyberCom. Nathan Gamble e o seu amiguinho Quentin Rowe estarão presentes. O sangue desapareceu lentamente do rosto de Jason, que gaguejou: — P-pensei que a reunião fosse por causa da proposta da BelTek.
— Não, me tiraram da proposta da BelTek um mês atrás para que pudesse me concentrar na aquisição da CyberCom pela Triton. Achei que tivesse lhe contado. — Por que a reunião vai ser em Nova York? — Porque Nathan Gamble está por lá esta semana. Ele tem uma cobertura com vista para o Central Park. Os bilionários sabem viver. E assim, lá vou eu para Nova York. Jason se sentou, o rosto tão lívido que Sidney pensou que estivesse se sentindo mal. — Jason, o que é que há? — Ela o segurou pelo ombro. Após um instante ele se recuperou e a encarou, sua expressão agudamente perturbadora para Sidney — dominada como estava pela culpa. — Sid, não estou exatamente indo a Los Angeles para tratar de negócios para a Triton. Sidney tirou a mão do ombro dele e o encarou, os olhos arregalados de espanto. Cada suspeita que combatera durante os últi mos meses voltava à superfície. Sentiu a garganta completamente seca. Como assim, Jason? Ele respirou fundo e agarrou uma das mãos dela. — É que esta viagem não é por causa da Triton. — Então exatamente para que ela é? — indagou, em tom de quem exigia resposta, o rosto congestionado. — Para mim, para nós! É para. nós, Sidney. Amuada, ela se recostou na cabeceira da cama e cruzou os braços. — Jason, você vai me contar o que está acontecendo e tem de ser agora. Ele baixou os olhos e ficou brincando com as cobertas. Sidney pegou no seu queixo e examinou-lhe o rosto. — Jason? — Fez uma pausa, sentindo sua luta interior. — Finja que é véspera de Natal, querido. Ele suspirou. — Vou a Los Angeles para uma entrevista com outra empresa. Sidney recolheu a mão. — O quê? Ele falou depressa. — A AllegraPort Technology, uma das maiores fabricantes de software do mundo. Eles me ofereceram, bem, me ofereceram uma vice-presidência e a promessa de me prepararem para a presidência um dia. O triplo do salário, uma fantástica bonificação de fim de ano, opção para compra de ações, excelente plano de aposentadoria, tudo em cima, Sid. Um gol de placa. O rosto de Sidney iluminou-se na mesma hora, e os ombros se arquearam, em alívio. — Era este o seu grande segredo? Jason, isto é uma maravilha. Por que não me contou? — Não queria colocá-la em uma posição delicada. Afinal, você trabalha como advogada para a Triton. Todo aquele tempo passado de noite no escritório? Eu estava tentando terminar meu trabalho. Não queria deixar ninguém mal. A Triton é uma empresa poderosa, eu não queria deixar ressentimentos. — Querido, não há lei que o proíba de se transferir para outra empresa. A Triton ficaria feliz
por você. — Com certeza! — O tom amargurado dele intrigou-a por um momento, mas Jason apressou-se em prosseguir antes que ela tivesse uma chance de perguntar qualquer coisa. — Também vão pagar nossas despesas de mudança. Na verdade, vamos ter dinheiro suficiente para acabar com todas as nossas dívidas. Ela ficou tensa. — Mudança? — A sede da Allegra fica em Los Angeles. Seria para lá que nos mudaríamos. Se você não quiser que eu aceite, respeitarei sua decisão. — Jason, você sabe que a minha firma tem uma filial em Los Angeles. Será perfeito. — Ela se recostou de novo na cabeceira da cama e olhou para o teto. Depois encarou Jason, os olhos brilhando. — E, vamos ver, com o triplo do seu salário atual, o lucro da venda desta casa e ainda por cima as ações, poderei passar a ser mãe em tempo integral mais cedo do que pensava. Ele sorriu quando Sidney lhe deu um abraço de parabéns. — Foi por isso que me surpreendi quando você falou que ia ter uma reunião com o pessoal da Triton. Sidney o fitou sem entender. — Eles pensam que tirei um tempo de folga para trabalhar em casa. — Oh. Bem, querido, não se preocupe. Guardarei o seu segredo. Você sabe que o relacionamento advogado-cliente baseia-se na confidencialidade e além do mais o vínculo é muito mais forte entre uma esposa com tesão e o marido lindo e maravilhoso. — Seus olhos ternos encontraram os dele e ela esfregou o nariz no seu rosto. Jason jogou as duas pernas para fora da cama. — Obrigado, neném, foi bom ter contado para você. — Ele deu de ombros. — Bem, é melhor eu tomar um banho logo. Talvez possa fazer umas coisinhas antes de partir. Antes que ele pudesse levantar-se, os braços dela o enlaçaram, pela cintura. — Eu adoraria ajudá-lo a fazer uma dessas coisinhas, Jason. Ele virou a cabeça. Sidney agora não vestia nada; a camisola ficara sobre o pé da cama. Comprimiu os seios grandes contra a parte de baixo das costas dele. Jason sorriu, deslizou a mão pelos seus quadris e apertou-lhe as nádegas macias com admiração. — Eu sempre disse que você tem a melhor bunda do mundo, Sid. Ela gemeu. — Se você quiser uma camadinha extra de carne, posso providenciar. Ele a pegou pelas axilas com as mãos fortes e levantou-a até que ficassem cara a cara. Fitoua profundamente nos olhos e sua boca formou uma linha solene quando falou. — Você está mais bonita agora que no dia em que a conheci, Sidney Archer, e eu a amo mais e mais a cada instante. — As palavras foram pronunciadas lenta e delicadamente, e a fizeram tremer, como sempre acontecia. Mas não eram as palavras em si que produziam esse efeito — elas poderiam ser encontradas em qualquer cartão da Hallmark.
Era o modo como as pronunciava. A profunda convicção, os olhos, a pressão dele contra a sua pele. Jason olhou outra vez para o relógio e deu um sorriso malicioso. — Tenho que sair dentro de três horas para pegar meu avião. Sidney enganchou o braço no pescoço dele e puxou-o para cima dela. — Bem, três horas podem ser toda uma vida. Duas horas mais tarde, o cabelo ainda molhado do banho de chuveiro, Jason Archer seguiu pelo corredor da sua casa e abriu uma porta que dava em um pequeno aposento. Arrumado como um escritório doméstico, tinha um computador, arquivo, uma mesa de madeira e duas pequenas estantes. O espaço era exíguo mas bem aproveitado. Do outro lado da janela pequena, a escuridão transformava os vidros em espelhos. Jason fechou a porta, pegou uma chave na gaveta da escrivaninha e destrancou a gaveta de cima do arquivo. Parou, atento para algum som. Aquilo se tornara habitual mesmo na sua própria casa. Tudo quieto. Sua mulher caíra no sono de novo. A pequenina Amy dormia duas portas depois. Abriu uma gaveta da cômoda e retirou cuidadosamente uma pasta de couro grande e antiquada. com fechos duplos, fivelas de metal e um acabamento lustroso que já denotava a passagem do tempo. Jason abriu a pasta e pegou um disquete em branco. As instruções que lhe tinham dado eram precisas. Colocar tudo que tinha num disquete, fazer uma cópia dos documentos e depois destruir o resto. Pôs o disquete no drive e copiou tudo o que coletara. Terminada a operação, seguindo ainda as instruções, apagou do disco rígido os arquivos que copiara ao pressionar a tecla "Delete". Porém seu dedo tremeu e ele resolveu seguir o que seu instinto mandava. Foram precisos apenas poucos minutos para fazer uma duplicata do disquete, após o que apagou os arquivos do disco rígido. Após examinar por alguns momentos na tela do monitor o conteúdo da duplicata, levou alguns minutos para realizar algumas funções adicionais. Enquanto observava, o texto que aparecia na tela transformou-se em algo totalmente sem sentido. Salvou as modificações, fechou o arquivo, tirou o disquete duplicata do computador e o colocou dentro de um pequeno envelope acolchoado que escondeu numa bolsa lateral da pasta de couro. Seguindo as instruções, imprimiu então uma cópia do conteúdo do disquete original e o colocou, juntamente com as páginas impressas, no compartimento principal. A seguir, pegou na carteira o cartão de plástico que usara antes para entrar no escritório da empresa. Não ia precisar mais. Jogou-o na gaveta da escrivaninha e a fechou. Examinou a pasta, os pensamentos vagando muito longe. Não gostara de ter mentido para sua mulher. Nunca fizera isso antes e o sentimento da própria falsidade lhe era particularmente repugnante. Mas estava quase terminado. Chegou a estremecer, quando pensou em todos os riscos que correra. Estremeceu de novo quando tornou a pensar que sua esposa não sabia absolutamente de nada do que fizera. Em silêncio, passou novamente
em revista o plano. A rota que seguiria, os passos evasivos que daria, os codinomes das pessoas com que se encontraria. A despeito de tudo, sua mente continuou a devanear. Olhou pela janela, parecendo contemplar o horizonte, mas seus olhos, por trás dos óculos, pareceram aumentar de tamanho à medida que as possibilidades iam sendo rapidamente avaliadas. Depois daquele dia poderia dizer pela primeira vez que o risco valera a pena. Só tinha que sobreviver.
CAPÍTULO QUATRO A ESCURIDÃO QUE ENVOLVIA o Aeroporto Internacional Dulles em pouco tempo seria dispersada pelo raiar do sol. Quando o novo dia começou a surgir, um táxi parou diante do terminal do aeroporto. A porta de trás abriu-se e Jason Archer saltou. Carregava a pasta de couro em uma das mãos e o estojo de metal preto do laptop na outra. Ele colocou na cabeça um chapéu verde-escuro de aba larga e uma faixa de couro em torno da copa. Jason sorriu quando a lembrança dos momentos de amor tomou conta dos seus pensamentos. Tinham ido para o chuveiro juntos, mas o perfume do sexo recente persistiu, e, caso houvesse tempo, ele teria feito amor com Sidney uma segunda vez. Deixou o laptop no chão por um instante, esticou o braço no interior do táxi e pegou a enorme mala de lona, cuja alça pendurou no ombro. No balcão da Western Airlines, Jason exibiu a carteira de motorista e pegou o número da poltrona e o talão de embarque. Levou um tempo para alisar a gola do sobretudo de pêlo de camelo, ajustou o chapéu na cabeça e acertou a gravata, onde se viam delicadas espirais em tons dourados, marrons e verdes. As calças baggy eram cinza. Não que alguém notasse, mas as meias eram brancas esportivas e os sapatos escuros na realidade não passavam de tênis. Poucos minutos depois comprou um exemplar do USA Today e tomou um café em uma das lojas do terminal. Em seguida passou pelo portão de segurança. O ônibus para o terminal do meio estava com três quartos da lotação. Jason viu-se entre homens e mulheres vestidos de modo muito semelhante ao seu: roupas escuras, toques coloridos no pescoço, carrinhos com pilhas de malas empurrados por mãos cansadas. A mão de Jason não abandonou nunca a pasta de couro: o laptop ficou entre suas pernas. De vez em quando dava uma olhada no interior do ônibus examinando seus sonolentos ocupantes. Depois seus olhos retornavam ao jornal enquanto o ônibus seguia viagem. Após chegarem no terminal. Jason sentou-se na ampla área de espera em frente ao Portão 11 e verificou as horas. Em pouco tempo estaria embarcando. Deu uma olhada pela janela imensa, e viu uma fileira de jatos da Western Airlines, exibindo as conhecidas listras marrons e amarelas, sendo preparados para os primeiros voos da manhã. Toques cor-derosa começaram a pintar o céu quando o sol se ergueu lentamente para iluminar a Costa Leste. O vento soprava com força de encontro ao vidro grosso; os funcionários da empresa aérea, do lado de fora, caminhavam com o corpo inclinado para vencer as invisíveis forças da natureza. Logo teria início o inverno com todos os seus rigores e os ventos e a precipitação glacial cobririam a área até o próximo mês de abril. Jason retirou o talão de embarque do bolso interno do paletó e examinou seu conteúdo: Western Airlines Voo 3223, direto, do Aeroporto Internacional Dulles de Washington para o Aeroporto Internacional de Los Angeles. Jason nascera e fora criado em Los Angeles, mas não voltava lá há mais de dois anos. Do outro lado do corredor no imenso terminal, um voo
da Western com destino a Seattle, após breve escala em Chicago, também iria partir, dentro de muito pouco tempo. Jason passou a língua nos lábios, uma ponta de apreensão perturbando seu sistema nervoso. Engoliu algumas vezes para ver se reduzia a secura da garganta. Quando terminou o café, leu, meio desanimado, algumas notícias relatando dor e sofrimento no mundo enquanto virava cada página colorida. Enquanto circulava os olhos pelas manchetes, Jason reparou em um homem atravessando a área do terminal com passo resoluto. Tinha cerca de um metro e oitenta. era magro e de cabelo louro. Vestia um sobretudo de pêlo de camelo e calças baggy cinzentas. Trazia ao pescoço uma gravata idêntica à de Jason. Como Jason, carregava uma pasta de couro e um laptop num estojo preto. Na mão que segurava o laptop trazia também um envelope branco. Jason levantou-se rapidamente e dirigiu-se ao toalete masculino, que tinha acabado de reabrir após mais uma limpeza. Entrando no último reservado, Jason trancou a porta, pendurou o sobretudo no gancho da porta, abriu a pasta de couro e retirou de dentro dela uma sacola de náilon grande. Retirou de lá um espelho de dez por vinte e fixou-o na parede divisória do reservado. A seguir, tirou da bolsa um par de grossos óculos escuros, para substituir os de aros metálicos, e um bigode preto. A peruca de cabelos curtos escuros combinou com o tom do bigode. Gravata e paletó foram tirados e enfiados na bolsa e substituídos por um blusão de moletom dos Washington Huskies. As calças baggy também saíram, revelando as calças de agasalho esportivo que estavam por baixo e que combinavam com a blusa dos Huskies. Os tênis não pareceram mais deslocados. O sobretudo era reversível e, em vez de cor de camelo, passou a ser azul-marinho. Jason verificou sua aparência de novo no espelho. A pasta de couro e o laptop desapareceram na sacola de náilon, juntamente com o espelho. Deixou o chapéu no gancho da porta, e saiu. Depois de lavar as mãos, estudou o novo rosto no espelho. O reflexo do homem louro alto que ele vira antes apareceu também, dirigindo-se para o reservado de onde Jason acabara de sair e fechando a porta. Jason levou um tempo para secar cuidadosamente as mãos e dar um jeito no cabelo novo. Quando terminou, o homem estava saindo do reservado, tendo na cabeça o chapéu que lá encontrara. Sem o disfarce de Jason, os dois homens podiam passar por gêmeos. Na hora em que saíram, esbarraram-se momentaneamente. Jason apressou-se a resmungar um pedido de desculpas, inaudível; o homem não chegou a olhar para ele e desapareceu rapidamente, a passagem de avião de Jason enfiada no bolso da sua camisa, enquanto Jason colocava o envelope branco no casaco. Estava prestes a sentar de novo quando reparou na bateria de telefones públicos. Hesitando por um instante, saiu correndo e discou um número. — Sid? — Jason? — Sidney estava ao mesmo tempo dando comida e vestindo uma revoltada Amy Archer e, entre uma coisa e outra, ia enfiando documentos e mais
documentos na sua pasta. — O que é que há de errado? O voo atrasou? — Não, não, sai dentro de alguns minutos. — Ele silenciou ao ver o reflexo de sua imagem na superfície lustrosa do telefone. Sentiu vergonha por estar disfarçado. Sidney lutou com o casaquinho de Amy. — Alguma coisa de errado? — Não, eu só quis saber como estão as coisas. Sidney deixou escapar um gemido exasperado. — Pois bem, deixa eu fazer um relatório rápido: estou atrasada, sua filha como sempre não está cooperando, e acabo de verificar que deixei minha passagem e alguns documentos de que preciso no trabalho, o que significa que em vez de ter trinta minutos sobrando, disponho talvez só de uns dez segundos. — Eu... Desculpe, Sid, eu... — A mão de Jason apertou com força a alça da sacola de náilon. Hoje era o último dia. O último dia, ele repetia a toda hora para si próprio. Se alguma coisa viesse a lhe acontecer — se, a despeito de todas as precauções não conseguisse voltar — ela jamais saberia, certo? Sidney estava quase explodindo agora. Amy acabara de derramar a tigela com sucrilhos no casaco e boa parte do leite fora parar na pasta da mãe, atulhada de documentos, tudo isso enquanto ela se esforçava para conservar o telefone equilibrado sob o queixo. — Tenho que ir, Jason. — Não, Sid, espere, preciso lhe contar uma coisa... Sidney levantou-se. Ao examinar os danos causados pela filha, que agora a encarava desafiadoramente, com o queixo vagamente parecido com o seu erguido, usou um tom de voz que serviu como excelente indicativo de que não faria mais concessões. — Jason, vai ter que esperar. Também tenho que pegar um avião. Adeus. — Ela desligou o telefone e carregou a filha, a espernear, debaixo do braço. Com sucrilhos e tudo as duas saíram porta afora. Jason recolocou o aparelho no gancho lentamente e virou-se. Deixou escapar um suspiro fundo e, pela centésima vez, rezou para que o dia terminasse como fora planejado. Não reparou que um homem olhara casualmente na sua direção e se virara. Mais cedo, o mesmo homem passara por Jason antes que ele fizesse a troca de identidade no banheiro. chegando perto o bastante para ler a etiqueta de identificação na mala. Foi um pequeno mas significativo descuido da parte de Jason, porque na etiqueta estavam escritos seus nome e endereço verdadeiros. Poucos minutos mais tarde Jason entrou na fila de embarque. Pegou o envelope branco que o homem lhe dera no banheiro e tirou o bilhete aéreo que havia dentro. Perguntou-se como seria Seattle. Deu uma olhada em torno a tempo de ver ainda seu "gêmeo" embarcar no voo para Los Angeles. Em seguida vislumbrou um outro homem na fila para o voo de Los Angeles. Alto e magro, a parte de cima da cabeça calva encimava um rosto quadrado parcialmente coberto pela barba densa. Suas feições expressivas lhe pareceram conhecidas, mas Jason não conseguiu lembrar o nome dele antes que
desaparecesse na porta, a caminho do avião. Jason deu de ombros, entregou a passagem e seguiu em frente. Pouco mais de meia hora depois, quando o jato em que Arthur Lieberman viajava caiu, e nuvens de fumaça negra se levantaram até as brancas nuvens, centenas de quilômetros ao norte, Jason Archer tomava um café fresco e abria o laptop. Sorrindo, olhou pela janela enquanto o avião seguia velozmente para Chicago. A primeira parte da sua viagem decorrera sem o menor problema, e o comandante anunciara tempo bom para o resto do voo.
CAPÍTULO CINCO SIDNEY ARCHER DEU UMA BUZINADA impaciente e o carro a sua frente saiu velozmente na luz verde. Deu uma olhada no painel. Atrasada, como sempre. Com um movimento reflexo, deu uma espiada pelo retrovisor do seu Ford Explorer. Amy, com o seu ursinho de pelúcia preso com força numa das pequeninas mãos, dormia a sono solto no seu banco de bebê. Amy tinha a mesma cabeleira loura e espessa da mãe, queixo forte e nariz fino. Os olhos azuis irrequietos e os dotes atléticos vinham do pai, embora Sidney Archer tivesse sido uma grande jogadora de basquete na equipe da universidade. Entrou no estacionamento asfaltado e parou diante do edifício baixo de tijolinhos. Saltou, abriu a porta traseira do Ford e, delicadamente, soltou a filha do banco, pegou o ursinho e a mochila de Amy. Sidney puxou para cima o capuz da jaqueta de Amy e protegeu o rosto da menina do vento cortante com o seu sobretudo. Um cartaz acima da porta dupla de vidro dizia CRECHE DO CONDADO DE JEFFERSON. Do lado de dentro, tirou o casaquinho de Amy, esfregando-o para remover os vestígios de sucrilhos, e verificou o que havia dentro da mochila antes de entregá-la a Karen, uma das funcionárias da creche. A frente do macacão branco de Karen já estava manchada de crayon vermelho, e, na manga direita, era visível uma mancha grande do que parecia ser geléia de uva. — Oi, Amy. Temos uns brinquedos novos que você provavelmente vai querer experimentar. — Karen ajoelhou-se diante dela. Amy, sempre agarrada no urso, tinha o polegar direito firmemente enfiado na boca. Sidney levantou a mochila de Amy. Ervilhas com salsichas, suco e uma banana. Ela já tomou o café da manhã. Batata frita e um brownie se ela se comportar muito bem. Deixe que durma um pouquinho mais na hora do descanso, Karen, ela teve uma noite difícil. Karen esticou um dedo para Amy pegar. — Está certo, Sra. Archer. Amy é sempre boazinha, não é, Amy? Sidney ajoelhou-se e deu um beijinho no rosto da filha. — Você tem razão. Ela é muito boazinha, a não ser quando não quer comer, dormir ou fazer o que a gente manda. Karen era mãe de um menininho da mesma idade que Amy. As duas mães trocaram um sorriso cúmplice. — Estarei aqui às sete e meia da noite, Karen. — Sim, senhora. — Tchau, mamãe. Eu amo você. Sidney virou-se para ver Amy acenando para ela. Os dedinhos flutuavam para cima e para baixo, o queixo acentuado sumira, transformado em uma linda bolinha, e com ele sumiu também a raiva de Sidney motivada pela batalha matinal. Sidney respondeu ao aceno.
— Eu amo você também. Vamos tomar sorvete hoje de noite, querida. Depois do jantar. E tenho certeza de que papai vai telefonar para falar com você, OK? — Um sorriso lindo iluminou as feições de Amy. Trinta minutos depois Sidney estacionou na garagem do prédio do seu escritório, pegou a pasta no banco ao seu lado e bateu a porta do carro ao mesmo tempo em que saía correndo para o elevador. O vento frio canalizado pela porta da garagem subterrânea clareou seus pensamentos. Em breve a velha lareira de pedra de sua sala estaria em uso. Aprendera a gostar do cheiro do fogo aceso; era reconfortante e fazia com que se sentisse segura. A chegada do inverno conduziu seus pensamentos para o Natal. Este seria o primeiro mês de dezembro em que Amy poderia realmente apreciar a beleza toda especial daquela festa. Sidney se sentia cada vez mais entusiasmada com os feriados que se aproximavam. Iam visitar os pais dela no dia de Ação de Graças, mas este ano ficariam em casa no Natal. Só os três. Na frente do fogo crepitando na lareira, ao lado de um pinheirinho de Natal e de uma montanha de presentes para a menininha deles. Embora Sidney tivesse se recriminado por estar atrasada, eram apenas sete e quarenta e cinco da manhã quando saltou do elevador. Mesmo que tecnicamente trabalhasse em horário reduzido, era uma das pessoas que mais trabalhavam na firma. Os sócios seniores da Tyler e Stone sorriam sempre que passavam pela sala de Sidney Archer e viam suas respectivas fatias da sociedade ficarem ainda mais gordas graças ao trabalho dela. Embora provavelmente acreditassem que a estavam usando, Sidney tinha seus próprios planos. A temporada de trabalho em regime de meio expediente era apenas um estágio intermediário. Sempre seria uma advogada; o que não podia adiar, contudo, era a oportunidade de ser mãe de Amy enquanto ela fosse pequena. A velha casa de tijolos e pedra tinha sido comprada mais ou menos pela metade do preço porque necessitava de reformas. Trabalho que Sidney, Jason e um grupo de empreiteiros realizaram a preços ferozmente negociados nos dois últimos anos. O Jaguar fora trocado por um desconjuntado Ford de seis anos. O último dos empréstimos de maior vulto estava quase pago e as despesas mensais tinham sido reduzidas em quase cinquenta por cento graças a muito bom senso e sacrifício. Em mais um ano os Archer se veriam quase que completamente livres de dívidas. Seus pensamentos voltaram às primeiras horas do dia. A novidade que Jason lhe contara tinha sido realmente espantosa. Sidney sorriu ao pensar nas consequências. Tinha orgulho de Jason. Ele merecia esse tipo de sucesso, mais do que ninguém. Aquele ano estava parecendo que seria excelente. Tantos serões, tarde da noite. Provavelmente ele estivera acertando os detalhes do seu trabalho. Tantas horas ela passara se preocupando inutilmente. Sentiu-se culpada por ter batido com o telefone quando ele ligara do aeroporto. Ia se desculpar quando voltasse. Abriu a porta, avançou depressa pelo corredor ricamente decorado e entrou na sua sala. Verificou o e-mail e o correio de voz; nenhum dos dois revelou qualquer emergência.
Colocou na pasta os documentos dos quais ia precisar na viagem, pegou as passagens aéreas de cima da cadeira, onde a secretária tinha deixado, e ajeitou o laptop numa sacola. Deixou uma série de instruções no correio de voz para a secretária e quatro outros advogados da firma que a ajudavam em vários assuntos. Bastante carregada, foi com algum esforço que voltou para pegar o elevador. Poucos minutos depois de se apresentar no balcão ela USAir no Aeroporto Nacional, ela estava se acomodando no seu lugar em um Boeing 737, confiante que o avião levantaria voo na hora certa para a viagem de cerca de cinquenta minutos até o Aeroporto La Guardia, em Nova York. Lamentavelmente levava-se quase o mesmo tempo de carro da cidade até o aeroporto que se levava para vencer os cerca de quatrocentos quilômetros que separavam a capital dos Estados Unidos da capital financeira do mundo. O voo, como sempre, estava lotado. Ao se acomodar na poltrona, reparou que sentado ao seu lado estava um senhor idoso envergando um antiquado terno escuro de risca de giz, de colete e tudo. A gravata vermelha de laço largo se destacava no fundo proporcionado pela camisa branca engomada, com a ponta do colarinho abotoada. Tinha no colo uma pasta de couro bastante usada. Mãos nervosas abriam e fechavam o fecho metálico, enquanto ele não tirava os olhos da janela. Eram visíveis tufos de cabelo branco em torno dos lóbulos de suas orelhas. O colarinho da camisa ficava afastado do pescoço magro, como paredes que tivessem se soltando de seus alicerces. Sidney notou gotículas de suor na sua têmpora esquerda e por cima dos lábios finos. O avião deslocou-se pesadamente até a pista principal. O barulho dos flaps das asas sendo acionados para a decolagem pareceu acalmar o velho, que aí se virou para Sidney. — Isso era tudo o que eu queria ouvir — disse ele, a voz grave e áspera misturada com o falar arrastado de uma vida inteira passada no sul. Sidney olhou para ele curiosamente. — Como? Ele apontou a janelinha. — Sempre me preocupo em verificar se eles colocaram os malditos flaps das asas em posição que permita que o avião saia do chão. Lembra daquele caso em Detroit? — ele pronunciou como se fossem duas palavras. — Os malditos pilotos esqueceram de verificar direito os flaps e mataram todo mundo que estava a bordo, exceto uma garotinha. Ela olhou por um momento na direção da janela. — Tenho certeza de que os pilotos estão perfeitamente a par disso — replicou, suspirando intimamente. A última coisa de que precisava era estar sentada ao lado de um passageiro apavorado. Retornou às anotações, fazendo uma rápida passagem do que seria sua apresentação, enquanto as comissárias se aproximavam para verificar tudo outra vez. Quando acabou, colocou os papéis de volta na pasta e a pôs debaixo do banco à sua frente. Contemplou, através da janela, as águas escuras e agitadas do Potomac. Bandos de gaivotas se dispersavam sobre o rio, parecendo, a distância, pedaços de papel esvoaçantes. Em tom decidido o comandante anunciou pelo interfone que o aparelho da USAir seria o primeiro a
levantar voo. Poucos segundos depois o avião afastava-se suavemente do solo e, após uma curva à esquerda para evitar voar sobre o espaço aéreo restrito acima do Capitólio e da Casa Branca, começou a ganhar altura. Diversos minutos depois o aparelho estabilizou sua rota em vinte e nove mil pés, cerca de dez mil metros, o carrinho das bebidas foi acionado, e Sidney pegou uma xícara de chá e o obrigatório pacote de amendoins salgados. O senhor idoso sentado ao seu lado sacudiu a cabeça quando lhe perguntaram o que desejava beber e continuou a olhar fixamente pela janela. Sidney abaixou-se e pegou a pasta, pensando em trabalhar um pouco na meia hora seguinte. Recostou-se e retirou uns papéis da pasta. Quando começou a examinar o conteúdo deles, notou que o velho continuava olhando pela janela, o corpo frágil visivelmente tenso, como se estivesse ajudando o avião a vencer as dificuldades, obviamente atento a qualquer som fora do normal que pudesse antecipar uma catástrofe. As veias do pescoço dele estavam esticadas, as mãos agarravam com força os braços da poltrona, deixando os nós dos dedos brancos. A expressão do rosto dela abrandou. Ter medo já é difícil. Acreditar que se está sentindo medo sozinho serve apenas para complicar as coisas. Adiantou-se, bateu de leve no braço dele e sorriu. Ele retribuiu o olhar com um sorriso envergonhado, o rosto ligeiramente ruborizado. — Eles fazem este voo tantas vezes — disse ela, com tranquilidade — que eu tenho certeza de que fizeram tudo o que tinha de ser feito. Ele sorriu de novo e esfregou as mãos para restaurar a circulação. — Está absolutamente certa... senhora. — É Sidney, Sidney Archer. — George Beard é como me chamam. Prazer em conhecê-la, Sidney. — Eles apertaram-se as mãos com firmeza. Abruptamente, Beard voltou a olhar pela janela para as nuvens gordas. A luz do sol era forte e penetrante. Ele abaixou a persiana da janela até a metade. — Já andei de avião tantas vezes em todos esses anos que era de se esperar que eu não sentisse mais medo. — Pode ser amedrontador para qualquer um, George, não importando o número de vezes que se tenha voado antes — respondeu Sidney, bondosamente. — Mas está longe de ser tão assustador quanto os táxis que temos de tomar para ir para a cidade. Os dois riram. Aí Beard se sobressaltou quando o avião passou por um trecho com baixa pressão e seu rosto ficou outra vez lívido. — Vai a Nova York com frequência, George? — Ela tentou fixar os olhos dele nos seus. Nunca se preocupara com nenhum meio de transporte. Mas desde que tivera Amy, passara a se preocupar um pouco quando entrava em um avião ou em um trem, ou até mesmo no seu carro. Examinou a fisionomia do velho quando o avião sacudiu e ele ficou
tenso de novo. — George, tudo bem. É só um pouco de turbulência. Ele respirou fundo e finalmente a encarou diretamente. — Eu faço parte do conselho administrativo de algumas empresas sediadas em Nova York. Tenho que ir lá duas vezes por ano. Sidney voltou a atenção para os seus documentos, lembrando-se subitamente de algo. Franziu a testa. Havia um erro na quarta página. Teria que ser corrigido quando chegasse em Nova York. George Beard tocou no braço dela. — Acho que estamos bem, pelo menos por hoje. Quer dizer. quantas vezes acontecem dois desastres no mesmo dia? Você sabe me responder isso? Preocupada com o seu trabalho, Sidney não respondeu de imediato. Ao cabo de alguns instantes, virou-se para ele, estreitando os olhos: — Como? Beard chegou mais perto dela, adotando um tom confidencial, falando baixo: — Peguei um jatinho em Richmond hoje de manhã e cheguei no Aeroporto Nacional mais ou menos às oito horas. Ouvi os dois pilotos conversando. Mal pude acreditar. Eles estavam nervosos, posso garantir. Puxa vida, eu também ficaria nervoso. O rosto de Sidney denotou sua confusão. — De que você está falando? Beard chegou ainda mais perto dela. — Não sei se já é do conhecimento público, mas meu aparelho de surdez está funcionando muito melhor agora com as pilhas novas, de modo que os dois rapazes devem ter pensado que eu não podia ouvi-los. Ele fez uma pausa dramática e deu uma espiada rápida em torno antes de se voltar de novo para Sidney: — Houve um desastre aéreo hoje de manhã bem cedo. Sem sobreviventes. — Beard encarou-a, as sobrancelhas brancas e hirsutas se retorcendo como a cauda de um gato. Por um instante, os órgãos vitais de Sidney pareceram deixar de funcionar todos ao mesmo tempo. — Onde? Beard sacudiu a cabeça. — Não ouvi essa parte. Foi um jato, e dos grandes, isso deu para perceber. Caiu assim sem mais aquela, parece. Acho que era por isso que aqueles dois sujeitos estavam tão nervosos. Quer dizer, quando a gente não sabe não é tão ruim, certo? — Sabe o nome da companhia? Ele sacudiu a cabeça de novo. — Acho que saberemos muito em breve. Estará na televisão quando chegarmos em Nova York, aposto. Já telefonei para minha esposa do aeroporto para dizer que eu estava bem. Claro que ela ainda não tinha sabido de nada, mas eu não queria que começasse a se preocupar se visse na televisão ou algo assim. Sidney concentrou o olhar na sua gravata vermelha, e subitamente formou-se na sua cabeça a imagem de um enorme ferimento no pescoço de Beard. As probabilidades — não. não era possível. Sacudiu a cabeça e olhou reto em frente. ao mesmo tempo em que
imaginava uma rápida solução para o que a preocupava. Inseriu o cartão de crédito na ranhura apropriada existente na poltrona à sua frente, retirou o telefone do avião do seu nicho e um momento depois estava discando o número do pager SkyWord de Jason. Não tinha o novo número do celular dele, mas de qualquer modo Jason desligava o telefone durante os voos. Jason tinha sido recriminado duas vezes pelo pessoal de bordo por receber chamados em pleno voo. Rezou para que ele tivesse lembrado de levar o pager. Verificou a hora. A esta altura ele estaria nos céus do Meio-Oeste, mas ao captar sinais diretamente de um satélite, o pager recebia com facilidade chamadas em aviões. Ele não poderia, contudo, ligar de volta para ela no telefone do avião; o 737 ainda não estava equipado com essa tecnologia. Assim, ela deixou o telefone do seu próprio escritório. Esperaria dez minutos e depois ligaria para sua secretária. Passaram-se dez minutos e ela ligou. A secretária atendeu no segundo toque. Não, o marido não telefonara. Por insistência de Sidney, ela verificou o correio de voz no computador. Nada ali também. A secretária também não ouvira falar de nenhum desastre. Sidney começou a se perguntar se George Beard não entendera mal a conversa dos dois pilotos. Provavelmente ele ficava o tempo todo imaginando catástrofes, mas tinha que se certificar. Tentou desesperadamente se lembrar do nome da companhia aérea em que o marido viajara. Ligou para o serviço de informações e pediu o número da United Airlines. Finalmente conseguiu falar com um ser humano de verdade que lhe disse que a companhia tinha realmente um voo de manhã bem cedo para Los Angeles saindo de Dulles, mas não havia informações de desastre. A mulher pareceu relutante em discutir o assunto pelo telefone e Sidney desligou mais apreensiva ainda. Em seguida ligou para a American e por fim para a Western Airlines. Não conseguiu falar com ninguém. As linhas estavam todas ocupadas. Tentou de novo, com o mesmo resultado. Uma dormência esquisita começou a se espalhar por todo o seu corpo. George Beard tocou no seu braço de novo. — Sidney... senhora, está tudo bem? Sidney não respondeu. Continuou a olhar diretamente para a frente, esquecida de tudo, com a única certeza de que sairia correndo daquele avião assim que aterrissasse.
CAPÍTULO SEIS JASON ARCHER CONSULTOU o seu pager SkyWord e viu o número que aparecia na telinha. Esfregou o queixo, tirou os óculos e limpou-os com o guardanapo do lanche. Aquele era o telefone direto do escritório de sua mulher. Como o avião em que ela viajava, o DC-10 que o levava também tinha telefones celulares nas costas de poltronas alternadas. Chegou a esticar a mão para pegar um deles mas se deteve. Sabia que Sidney se encontrava na filial de Nova York da firma onde trabalhava, motivo pelo qual o fato de ter transmitido pelo pager o número do telefone de Washington o assustou. Por um instante terrível chegou a pensar que podia ter acontecido algo com Amy. Verificou o pager de novo. A mensagem entrara às nove e meia da manhã, hora da Costa Leste. Sacudiu a cabeça. Nesta hora a esposa se encontraria em um avião a meio caminho de Nova York. Não tinha nada a ver com Amy. Amy estaria na creche desde bem antes das oito. Estaria telefonando para se desculpar por ter desligado o telefone na cara dele? Chegou rapidamente à conclusão de que isto dificilmente seria possível. O diálogo que tiveram não podia sequer ser classificado como discussão de segunda categoria. Não fazia sentido. Por que diabos ela iria ligar de um avião e deixar o número de um escritório onde não estaria presente? De repente, ele ficou pálido. A menos que não fosse sua mulher quem ligara. Dadas as estranhas circunstâncias, Jason Concluiu que não tinha sido Sidney quem ligara. Instintivamente examinou a cabine. Estava sendo exibido um filme na tela suspensa. Recostou-se de novo e mexeu o resto do café com uma colher de plástico. As comissárias recolhiam os pratos e ofereciam mantas e travesseiros. A mão de Jason 50 segurou firmemente a alça da pasta de couro. Deu uma espiada no laptop, enfiado sob a poltrona à frente da sua. Talvez a viagem dela tivesse sido cancelada; mas não. Gamble já se encontrava em Nova York e ninguém cancelava nada que dissesse respeito a Nathan Gamble e Jason sabia disso. Além do mais, a negociação com a CyberCom encontrava-se em um estágio crítico. Recostou-se mais, apalpando o pager SkyWord como se fosse uma bola de massa plástica. Se telefonasse para o escritório de sua mulher em Washington, o que aconteceria? Iriam transferir a ligação para Nova York? Devia ligar para casa e checar as mensagens? Qualquer opção escolhida para se comunicar àquela altura implicaria no uso do telefone celular. Ele carregava um modelo novo e altamente sofisticado na pasta, um aparelho que incorporava as últimas especificações de segurança, inclusive com misturador de vozes; seu uso, contudo, era proibido pelos regulamentos das empresas de transporte aéreo. Seria obrigado a usar o telefone fornecido pela companhia aérea, caso em que teria que usar também um cartão de crédito ou telefônico. E não era uma linha segura. O que significava abrir uma oportunidade, por mais remota que fosse, de sua localização ser rastreada. No mínimo, haveria um rastro discernível. Estava, supostamente, a caminho de Los Angeles; na verdade, encontrava-se a mais de dez mil metros de altitude acima de Denver, no
Colorado, a caminho da costa noroeste do Pacífico. Este inesperado acontecimento era perturbador, após um planejamento tão cuidadoso. Esperava que não fosse um indício de alguma alteração nos planos. Jason olhou para o pager de novo. O sistema SkyWord proporcionava um serviço de divulgação de notícias e os principais acontecimentos apareciam na telinha várias vezes por dia. Os assuntos políticos e financeiros que corriam ao longo da tela não despertaram seu interesse. Ficou analisando por que sua esposa estaria querendo se comunicar com ele e ao cabo de alguns minutos deletou a mensagem dela e recolocou os fones de ouvido com o som do filme que estava sendo exibido. Sua mente, contudo, estava muito longe das imagens que se sucediam na tela. Sidney disparou pelo terminal cheio de gente do La Guardia. as duas malas batendo nas pernas. Não viu o rapaz senão quando estava prestes a esbarrar nele. — Sidney Archer? — Ele devia ter uns vinte e poucos anos e vestia um terno preto e gravata, boné de motorista por cima dos cabelos castanhos encaracolados. Ela parou, fitando-o com uma expressão obtusa, o medo invadindo todo o seu corpo enquanto aguardava que ele lhe desse a notícia terrível. Só então reparou no cartaz com o seu nome que ele tinha nas mãos e todo o seu corpo relaxou, aliviado. A firma mandara um carro pegá-la para conduzi-la ao escritório em Manhattan. Tinha esquecido. Balançou a cabeça vagarosamente, o sangue começando a circular de novo. O rapaz pegou uma das malas e a conduziu na direção da saída. — Peguei uma descrição da senhora no seu escritório. Gosto de fazer isso para o caso de as pessoas não verem o cartaz com o nome. Todo mundo anda sempre muito depressa, preocupado, sabe como é. A gente precisa pensar em tudo. O carro está logo ali. Mas pode ser que a senhora vá querer abotoar o casaco, porque está um gelo aí fora. Quando passaram pelo check-in, Sidney hesitou. Nos balcões das companhias aéreas havia longas filas de agitados passageiros tentando bravamente se manter um passo à frente das exigências de um mundo que parecia cada vez mais exceder a capacidade humana. Tentou reconhecer alguém que parecesse ser funcionário de uma companhia aérea e que não estivesse fazendo nada, mas só conseguiu distinguir os bonés dos carregadores empurrando calmamente carrinhos cheios de malas em meio à histeria dos viajantes em pânico. Caótico, mas o caos normal. O que era bom, não era? O motorista olhou para ela. — Está tudo bem, Sra. Archer? A senhora não está se sentindo bem? — Ela ficara ainda mais pálida nos últimos minutos. — Tenho Tilenol na limusine. É bom para animar. Esses aviões me deixam enjoado também. Todo aquele ar recirculando na cabine. Mas eu lhe digo uma coisa, basta tomar um pouco de ar fresco e pronto, a pessoa fica logo boa. Isto é, se é que a gente pode chamar o ar de Nova York de fresco. — Ele sorriu. Seu sorriso desapareceu subitamente quando Sidney, de uma hora para outra, saiu correndo. — Sra. Archer? — Ele correu atrás dela.
Sidney conseguiu alcançar uma jovem uniformizada cujos distintivos e insígnias a classificavam como funcionária da American Airlines. Sidney levou alguns segundos para conseguir formular a pergunta. A moça arregalou os olhos, espantada. — Não soube de nada — disse ela, falando baixo para não alarmar os passantes. — Onde foi que ouviu isso? Quando Sidney respondeu, a moça da American sorriu. A esta altura, o motorista havia se reunido a elas. — Acabo de assistir a uma reunião, senhora. Se tivesse acontecido algo assim com uma de nossas aeronaves, nós teríamos sabido. Confie em mim. — Mas e se tiver acabado de acontecer? — A voz de Sidney ficou mais aguda. — Minha senhora, está tudo bem, OK? Sinceramente, não há motivo para se preocupar. O avião é o meio mais seguro para se viajar. — Ela apertou com firmeza uma das mãos de Sidney, olhou para o motorista com um sorriso tranquilizador, virou-se e foi embora. Sidney ficou parada alguns momentos mais, os olhos fixos na moça da American Airlines. Até que finalmente respirou fundo, olhou em torno e sacudiu a cabeça, desiludida. Recomeçou a caminhada na direção da saída e olhou para o motorista como se o estivesse vendo pela primeira vez. — Qual é o seu nome? — Tom, Tom Richards. O pessoal me chama de Tommy. — Tommy, você ficou no aeroporto muito tempo esta manhã? — Oh, mais ou menos meia hora. Gosto de chegar cedo. Problemas com o trânsito não são exatamente o que os homens de negócios e as pessoas precisam, não é? Chegaram na porta de saída e o vento cortante e frio atingiu Sidney bem no rosto. Ela cambaleou e Tommy segurou um dos seus braços para ampará-la. — Madame, a senhora não está passando bem. Quer que eu a leve a um médico ou algo assim? Sidney recuperou o equilíbrio. — Estou bem. vamos logo para o carro. Ele deu de ombros e a seguiu até um reluzente Lincoln Town Car. Segurou a porta para ela. Sidney recostou-se e respirou fundo diversas vezes. Tommy entrou pelo lado do motorista e ligou o motor. Olhou pelo espelho retrovisor. — Olha, não quero insistir, mas tem certeza de que está passando bem? Ela fez que sim e conseguiu abrir um rápido sorriso. — Estou muito bem, obrigada. — Respirou fundo outra vez, alisou a saia do vestido e cruzou as pernas. O interior do carro era muito quente e depois do choque frio que sentiu ao sair do terminal, descobriu que realmente não estava muito bem. Olhou para a nuca do motorista. — Tommy, você soube alguma coisa sobre um desastre aéreo hoje? Enquanto estava no aeroporto, ou no noticiário? As sobrancelhas de Tommy se ergueram. — Desastre? Não, não ouvi nada. E ouvi a manhã inteira a rádio que dá notícias vinte e quatro horas por dia. Quem disse que um avião caiu? Loucura. Tenho amigos em quase
todas as companhias aéreas. Eles teriam me contado. — Tommy dirigiu um olhar meio receoso a Sidney, como se de repente se sentisse inseguro quanto ao estado mental dela. Sidney não respondeu mas recostou-se, pegou o telefone celular fornecido também pela locadora de automóveis e discou o número do escritório da firma em Nova York. Consultou o relógio. Era cedo. A reunião não começaria antes das onze horas. Ela amaldiçoou em silêncio George Beard. Sidney sabia que era bastante remota a probabilidade de o marido estar em um desastre aéreo do qual apenas um velho aterrorizado tivera conhecimento até agora. Ela sacudiu a cabeça e finalmente sorriu. A coisa toda era absurda. A esta altura Jason estaria trabalhando como um louco no seu laptop, comendo qualquer coisinha e tomando uma segunda xícara de café ou, o que era mais provável, preparava-se para assistir o filme no avião. O pager do marido provavelmente estaria acumulando poeira na mesinha-de-cabeceira dele. Iria dizer-lhe poucas e boas quando ele voltasse. Jason ia rir dela quando lhe contasse essa história. Mas tudo bem. Neste exato momento ela adoraria ouvir essa risada. Falou ao telefone: — Aqui é Sidney. Diga a Paul e Harold que estou a caminho. — Deu uma olhada pela janela do carro para avaliar as condições do trânsito. — Trinta e cinco minutos no máximo. Desligou o telefone e mais uma vez olhou pela janela. As nuvens de chuva fechavam o céu e até mesmo o pesado Lincoln sentiu os efeitos dos fortes ventos quando seguiu pela ponte sobre o East River a caminho de Manhattan. Tommy deu outra olhada pelo retrovisor. — Segundo os meteorologistas vamos ter neve hoje. Muita neve. Pessoalmente, eu acho que esses caras mentem demais. Não me lembro da última vez em que acertaram uma previsão. Mas se acertarem desta vez, madame, a senhora pode ter problemas na hora de voltar. Hoje em dia eles fecham o La Guardia por qualquer coisa. Sidney continuou a olhar pelos vidros escuros das janelas da limusine, observando o conhecido exército de arranha-céus que enchiam o horizonte e que tornavam Manhattan famosa no mundo inteiro. Os edifícios sólidos e imponentes que buscavam alcançar o céu pareceram estimular seu estado de espírito. Tentou imaginar o pinheirinho de Natal num canto da sala, o calor acolhedor da lareira, o toque do braço do marido em torno dela, a cabeça dele no seu ombro. E, melhor que tudo, os olhinhos brilhantes e encantados da pequenina Amy. Pobre George Beard! O velho deveria aposentar-se dos tais conselhos de que fazia parte em Nova York. Evidentemente que o esforço era demasiado para ele. Disse a si própria que jamais teria dado atenção àquela história absurda se o marido não tivesse ido fazer uma viagem de avião hoje. Virou a cabeça para a frente e permitiu-se relaxar um pouco. — Na verdade, Tommy, estou pensando em voltar de trem.
CAPÍTULO SETE NA PRINCIPAL SALA DE REUNIÕES da Tyler e Stone na filial de Nova York, situada no centro de Manhattan, acabara de terminar a apresentação em vídeo em que foram destacadas as últimas decisões e estratégias legais visando a negociação com a CyberCom. Sidney parou a fita e a cor da tela voltou a um agradável azul. Ela examinou a sala ampla, onde quinze pessoas, a maioria brancas e do sexo masculino, com pouco mais de quarenta anos de idade, olhavam, ansiosas, para o homem sentado à cabeceira da mesa. O grupo todo estava confinado há horas naquela sala cheia de tensão. Nathan Gamble, o presidente da Triton Global, era um sujeito gorducho de estatura mediana, com cerca de cinquenta e poucos anos, o cabelo grisalho penteado para trás e mantido no lugar graças a uma quantidade substancial de gel. O terno caro com paletó de jaquetão era feito sob medida para acomodar seu corpo atarracado. Tinha o rosto profundamente enrugado, onde ainda se viam os resquícios de um bronzeado fora de estação. Sua voz era de barítono e autoritária; Sidney podia facilmente imaginá-lo berrando com trêmulos subalternos por cima de mesas de salas de reunião. Chefiando uma das corporações mais poderosas do mundo, certamente que ele não só parecia como agia de acordo. Por baixo das grossas sobrancelhas grisalhas, os olhos castanhos escuros de Gamble estavam colados nela. Sidney o encarou de volta. — Tem alguma pergunta, Nathan? — Só uma. Sidney preparou-se. Podia sentir que lá vinha bomba. E qual é? perguntou, em tom ameno. — Por que diabos estamos fazendo isso? Todos na sala, exceto Sidney Archer, tremeram como se tivessem, coletivamente, sentado em cima de uma agulha gigantesca. — Não sei se entendi sua pergunta. — Claro que entendeu, a menos que seja burra, e eu sei que não é. — Gamble falou baixinho e suas feições eram imperscrutáveis, não obstante a retórica agressiva. Sidney mordeu a língua com força. — Devo entender que você não gosta de se vender para comprar a CyberCom? Gamble olhou em torno. — Ofereci uma quantia exorbitante por essa empresa. Tudo indica que agora, não satisfeitos com o retorno de dez mil por cento sobre o investimento que fizeram, querem acesso aos meus registros. Correto? — Ele olhou para Sidney, esperando uma resposta. Ela balançou a cabeça afirmativamente e ele prosseguiu: — Já comprei uma porção de empresas antes e ninguém me pediu isso antes. Agora a CyberCom faz questão. O que me faz voltar à pergunta inicial: por que estamos fazendo isto? O que diabo há de tão especial na CyberCom? Ele avaliou com um olhar severo os demais espectadores e encarou Sidney de
novo. Um homem sentado à esquerda de Gamble se mexeu. inquieto. O laptop à sua frente atraíra a atenção dele o tempo todo. Quentin Rowe, embora muito jovem, era vicepresidente da Triton, subordinado apenas a Gamble. Enquanto todos os outros homens na sala envergavam ternos bem cortados, ele vestia calças cáqui, mocassins esportivos bastante usados, camisa de brim azul e um colete marrom abotoado na frente. Um visual mais condizente com a capa de um CD do que com uma reunião de diretoria. — Nathan, a CyberCom é especial — disse Rowe. — Sem ela é possível que a gente feche as portas em dois anos. A tecnologia da CyberCom irá reinventar completamente e depois dominar o modo como a informação é processada na Internet. E, no que diz respeito à alta tecnologia, é como Moisés descendo a montanha com os dez mandamentos: não há substituto. — O tom de voz de Rowe tentava ser paciente mas ocultava uma perceptível irritação. Gamble acendeu um charuto. apoiando casualmente o isqueiro caríssimo em uma plaquinha de bronze que estava em cima da mesa, com os dizeres: É PROIBIDO FUMAR. — Sabe de uma coisa. Rowe. esse é o problema dessa merda de alta tecnologia. Você é o rei da cocada preta de manhã e bosta seca de tarde. Aí está porque eu jamais entraria num negócio desses. — Bem, se você só se importa com o dinheiro, lembre-se de que a Triton é a empresa de tecnologia dominante no mundo e gera mais de dois bilhões de dólares em lucros por trimestre — disparou Rowe de volta. — E bosta seca amanhã de tarde. — Gamble dirigiu um olhar enviesado a Rowe, cheio de nojo e soprou a fumaça. Sidney Archer pigarreou. — Não se você adquirir a CyberCom, Nathan. Continuará no topo pelo menos por mais uma década e seus lucros poderão muito bem triplicar em cinco anos. — É mesmo? — Gamble não pareceu convencido. — Ela tem razão — acrescentou Rowe. — Você tem que compreender que ninguém, até agora, foi capaz de criar um programa de comunicação com os seus respectivos periféricos que permitissem aos usuários um completo aproveitamento da Internet. Todo mundo vem se esforçando, tentando imaginar como fazer tudo funcionar junto. A CyberCom conseguiu. É este o motivo pelo qual travou-se uma verdadeira guerra de ofertas por ela. Estamos agora em uma posição que nos permite dar essa guerra por encerrada. Temos que fazê-lo, a menos que queiramos ser perdedores. — Não gosto da ideia de que eles tenham acesso aos nossos arquivos. Ponto final. Somos uma empresa privada da qual eu sou, disparado, o maior acionista. E dinheiro é dinheiro. — Gamble deixou claro que estava se dirigindo a Sidney e a Rowe. — Eles vão ser seus sócios, Nathan — disse Sidney. — Não vão pegar o dinheiro e ir embora como nas outras aquisições realizadas por você. Querem saber em que estão se metendo. A
Triton não é uma empresa de capital aberto e por isso eles não podem ir à Comissão de Valores e Bolsas obter as informações que deseJam. O que querem é uma providência razoável. Exigiram a mesma coisa de todos os outros interessados. — Vocês apresentaram minha última oferta em dinheiro? Sidney balançou a cabeça. — Apresentamos. — E então? — Ficaram impressionados, claro, mas reiteraram o pedido de acesso aos registros financeiros e operacionais da empresa. Se consentirmos, se tornarmos um pouco mais atraente o preço da compra e dermos melhores incentivos, acho que fechamos o negócio. O rosto de Gamble ficou vermelho. — Não há uma empresa no ramo que chegue aos nossos pés e essa merdinha dessa CyberCom quer examinar a mim? Rowe suspirou fundo. — Nathan, trata-se de mera formalidade. Eles não vão ter problemas com a Triton, nós dois sabemos disso. Vamos fazer logo isso. Nossos arquivos não estão indisponíveis. Estão todos no esquema — disse ele, visivelmente frustrado. — Na verdade, Jason Archer completou recentemente a reorganização, e fez um trabalho magnífico. Um depósito entupido de papéis arrumados sem a menor lógica. Ainda não posso acreditar que ele tenha conseguido. — Rowe olhou para Gamble com desprezo. — Para o caso de você ter se esquecido, eu estava por demais ocupado em ganhar dinheiro para me incomodar com um monte de papel, Rowe. O único papel com que me incomodo é o verde. Rowe ignorou a resposta de Gamble. — Por causa do trabalho de Jason a diligência poderá ser completada em muito pouco tempo. — Ele abanou a fumaça do charuto de Gamble do seu rosto. Gamble olhou furioso, para Rowe. — É mesmo? — Em seguida virou-se para Sidney, ameaçador: — Bem, será que alguém poderia fazer a gentileza de me dizer por que Archer não está presente a esta reunião? Sidney ficou lívida e, pela primeira vez em todo aquele dia, ela não conseguiu pensar. — Hum... Rowe interveio: — Jason tirou uns dias de folga. Gamble esfregou as têmporas. — Vem, vamos telefonar para ele e ver em que pé ficamos. Talvez tenhamos que dar à CyberCom alguma coisa, talvez não tenhamos, mas o que eu não quero é entregar a eles o que não tivermos que entregar. E se o negócio não se realizar? Como é que vai ser? — Seus olhos furiosos varreram a mesa. O tom de voz de Sidney foi calmo. — Nathan, teremos uma equipe de advogados verificando cada documento antes de serem entregues à CyberCom.
— Ótimo, mas há alguém que conheça os arquivos melhor do que o seu marido? — Gamble olhou para Rowe aguardando uma resposta. O rapaz encolheu os ombros. — Não, neste exato momento não. — Então vamos ligar para ele agora... — Nathan... Gamble não deixou Rowe prosseguir. — Jesus Cristo, qualquer pessoa acredita que o presidente da empresa possa conseguir que um funcionário faça um relatório de situação, não é mesmo? E, de qualquer modo, por que ele está tirando folga com a transação da compra da CyberCom pegando fogo? — Ele sacudiu a cabeça na direção de Sidney. — Não posso dizer que me agrade a ideia de ter marido e mulher envolvidos na mesma aquisição, mas acontece que não há advogado melhor que você para acompanhar este tipo de negócio. — Muito obrigada. — Não me agradeça, porque o negócio ainda não está fechado. — Gamble sentou-se e tirou uma longa baforada do charuto. — Vamos ligar para o seu marido. Ele está em casa? Sidney piscou e sentou-se. — Bem, na verdade não está. Não agora. Gamble consultou o relógio. — Bem, quando então vai estar? Sidney esfregou a testa, perturbada. — Não estou exatamente certa. Quer dizer, tentei falar com ele durante o último intervalo e ele não estava. — Pois então vamos tentar de novo. Sidney encarou o homem. De repente teve a impressão de que estava completamente sozinha naquela sala imensa. Suspirou intimamente e passou o controle remoto da televisão para Paul Brophy, um sócio júnior baseado em Nova York. Que droga. Jason, espero que você tenha conseguido fechar esse novo emprego, porque parece que vamos realmente precisar, querido. A porta da sala de reuniões abriu-se e apareceu a cabeça de uma secretária. — Sra. Archer, odeio interromper, mas há algum problema com sua passagem? Sidney ficou intrigada. — Que eu saiba, não, Jan, por quê? — Bem, uma pessoa da companhia aérea quer falar com a senhora. Sidney abriu a pasta, pegou a passagem e deu uma espiada rápida. Olhou de novo para Jan. — É um bilhete da ponte aérea, de modo que a volta está em aberto. Por que a companhia iria me chamar para tratar disso? — Podemos continuar com a reunião? — berrou Gamble. Jan pigarreou, olhou ansiosamente para Nathan Gamble e continuou falando com Sidney. — Bem, quem quer que seja deseja falar com você. Talvez tenham que cancelar a ponte
aérea pelo resto do dia. Está nevando há três horas. Sidney pegou outra engenhoca e apertou um botão. As persianas automáticas que cobriam a parede de janelas recuaram lentamente. — Meu Deus! — exclamou Sidney, abismada. Caíra tanta neve que ela não conseguia ver os prédios do outro lado da rua. Paul Brophy olhou para ela. — A firma ainda tem aquele apartamento no Central Park. Sid, se você precisar dormir aqui. — Ele fez uma pausa. — A gente podia jantar... — Os olhos dele mostraram-se serenamente esperançosos. Impaciente, Sidney sentou-se sem olhar para ele. — Não posso. — Estava a ponto de dizer que Jason tinha viajado, mas calou-se a tempo. Pensou rapidamente, Gamble, claro, não ia deixar passar aquela. Podia telefonar para casa, con firmar o que já sabia — Jason não estava. Podiam ir jantar depois, todos juntos e na primeira chance sair e telefonar para Los Angeles, começando pelos escritórios da AllegraPort. O pessoal da AllegraPort poderia colocá-lo na linha, ele satisfaria a curiosidade de Gamble e, com um pouco de sorte, ela e o marido seriam capazes de escapar com pouco mais que um ego ferido e o início de uma úlcera. E, se os aeroportos estivessem fechados, poderia tomar o último trem para casa. Ela calculou rapidamente os tempos de viagem. Teria que telefonar para a creche. Karen teria que levar Amy para casa com ela. Na pior das hipóteses, Amy teria que dormir na casa de Karen. Este pesadelo logístico só servia para reforçar o desejo que Sidney tinha de uma existência mais simples. — Sra. Archer, quer que eu atenda o telefonema? Sidney retornou do seu devaneio. — Desculpe, Jan, transfira para cá. E, por favor, veja se consegue me reservar um lugar no último trem no caso de o La Guardia estar fechado. — Sim, senhora — Jan fechou a porta. Pouco depois uma luz vermelha piscou no telefone colocado sobre o pequeno aparador. Sidney atendeu. Paul Brophy ejetou a fita e a televisão reapareceu, as vozes saindo da tela enchendo a sala. Rapidamente ele retirou o som com o controle remoto e a sala ficou de novo em silêncio. Sidney ajeitou o aparelho no ouvido. — Aqui é Sidney Archer. Posso ajudá-la em alguma coisa? A voz de mulher do outro lado mostrou-se um pouco hesitante, mas também estranhamente tranquilizadora. — Meu nome é Linda Freeman. Trabalho na Western Airlines, Sra. Archer. Seu escritório em Washington me deu este número. — Western? Deve haver algum engano. Minha passagem é da USAir. Na ponte aérea Nova York-Washington. — Sidney sacudiu a cabeça. Um erro idiota. Não faltava lhe acontecer mais nada. — Sra. Archer, preciso que a senhora confirme ser a esposa de Jason W. Archer, residente no número 611 da Morgan Lane, condado de Jefferson, Virgínia. O tom de voz de Sidney traiu sua perturbação; a resposta que deu, contudo, foi automática.
— Sim. Assim que a palavra passou pelos seus lábios, Sidney ficou imóvel. — Oh, meu Deus! — A voz de Paul Brophy atravessou a sala de reuniões. Sidney virou-se para olhar para ele. Os olhos de todos ficaram grudados na televisão. Sidney virou-se devagar para o aparelho. Ela não notou as palavras "Plantão de Notícias" faiscando na parte de cima da tela, as legendas destinadas aos deficientes auditivos correndo na parte de baixo enquanto o correspondente relatava a trágica notícia. Os olhos dela se fixaram na massa de destroços de metal escuro e desprendendo fumaça daquilo que antes fora um orgulhoso integrante da frota da Western Airlines. Viu, mentalmente, o rosto de George Beard. Seu jeito confidencial de falar. Houve um desastre aéreo. A voz no telefone despertou-lhe novamente a atenção. — Sra. Archer, receio que tenha havido um incidente envolvendo uma de nossas aeronaves. Sidney Archer não ouviu mais nada. A mão dela desceu lentamente para o lado do corpo. Os dedos abriram-se involuntariamente e o aparelho tombou no chão recoberto por grosso carpete. Lá fora, a neve continuava a cair tão forte que chegava a parecer uma das famosas paradas em que Nova York saúda uma personagem importante com pedacinhos de papel. O vento frio se chocava contra os vidros das janelas, e Sidney Archer continuou a fixar os olhos em total descrença na cratera que continha os restos do voo 3223.
CAPÍTULO OITO UM HOMEM, DE CABELOS ESCUROS, fenda no queixo sob as bochechas gordas, vestindo um terno elegante e se apresentando como William, encontrou Jason Archer no portão do aeroporto de Seattle. Os dois trocaram algumas frases compostas, aparentemente, de palavras previamente combinadas. Enunciada a saudação em código com sucesso, saíram juntos. Quando William afastou-se para chamar o carro, Jason aproveitou a oportunidade para, discretamente, depositar um envelope acolchoado em uma caixa do correio localizada à direita da porta de saída. Dentro do envelope estava o disquete que ele fizera antes de viajar. Logo Jason foi acompanhado até a limusine que encostara no meio-fio a um sinal de William. No seu interior, William apresentou uma identificação a Jason que revelava que seu verdadeiro nome era Anthony DePazza. Umas poucas palavras de conversação inócua foram trocadas, mas foi só, e os dois homens se acomodaram no confortável banco forrado de couro. Outro homem, vestido em um sóbrio terno marrom, dirigia. Durante o percurso, por sugestão de DePazza, Jason aproveitou a oportunidade para remover a peruca e o bigode. Ocasionalmente o olhar de DePazza se desviava para a pasta de couro que ficara no colo de Jason voltando depois para a janela. Tivesse Jason observado com um pouco mais de atenção, teria notado a saliência e o ocasional brilho de metal sob o paletó de DePazza. A pistola de 9mm Glock M-17 era uma arma particularmente letal. O motorista estava equipado do mesmo modo. Ainda que Jason tivesse visto as armas, contudo não teria se surpreendido. Era por isso mesmo que esperava. A limusine seguia rumo leste, afastando-se de Puget Sound. Jason olhou através dos vidros escuros. O céu estava encoberto. e as gotas de chuva batiam nas janelas. Com base nos seus escassos conhecimentos meteorológicos, Jason sabia que aquele tempo aparentemente era o que se podia esperar em Seattle. Em meia hora a limusine tinha atingido o destino: uma série de galpões guardados por um portão elétrico com seguranças. Jason olhou em torno nervosamente, mas nada comentou. Tinham lhe dito para que esperasse um encontro realizado em condições pouco usuais. Entraram em um dos armazéns por uma porta de metal que subiu quando a limusine se aproximou. Ao saltar, Jason viu a porta se fechando. A única luz vinha de um par de luminárias no teto que precisavam de limpeza. No fim do vasto espaço havia uma escada. Os homens fizeram um sinal para que Jason os seguisse. Jason deu outra olhada em torno e sentiu-se invadido por uma sensação estranha. Com algum esforço, pôs de lado essa sensação, respirou fundo e caminhou na direção da escada. Depois de galgarem a escada, entraram em um corredor estreito e passaram para um quarto pequeno e sem janelas. O motorista esperou do lado de fora. DePazza acendeu a luz. Jason
viu que a mobília consistia em uma mesinha de jogo, duas cadeiras e um velho arquivo de metal onde a ferrugem abrira buracos. Sem que Jason percebesse, uma câmera oculta, ativada assim que a luz fora acesa, passou a registrar silenciosamente os eventos através de um dos buracos de ferrugem. DePazza sentou-se em uma das cadeiras e fez um gesto para que Jason fizesse a mesma coisa. — Não falta muito agora — disse ele, em tom amistoso. Ele sacudiu um cigarro para fora do maço e ofereceu a Jason, que sacudiu a cabeça. — Basta que se lembre, Jason, não fale nada. Eles só querem o que está na pasta. Não precisa complicar as coisas. OK? Jason aquiesceu. Antes que DePazza pudesse acender o cigarro mentolado. ouviram-se três rápidas batidas na porta. Jason levantou-se, assim como DePazza, que rapidamente se livrou do cigarro e abriu a porta. No portal estava um homem de baixa estatura, o cabelo grisalho, a pele bronzeada, muito enrugada. Atrás dele estavam dois homens vestindo ternos baratos e usando óculos de sol a despeito da luz escassa. Ambos pareciam ter quase quarenta anos. O mais velho deles olhou para DePazza, que por sua vez apontou para Jason. O homem o fitou com penetrantes olhos azuis. Jason de repente percebeu que estava encharcado de suor, embora o armazém não fosse aquecido e a temperatura ambiente devesse estar próxima dos cinco graus centígrados. Jason olhou para DePazza que balançou devagar a cabeça, em sinal afirmativo. Jason apressou-se a entregar a pasta de couro. O homem examinou seu interior, dando uma espiada rápida em tudo o que continha e levando um minuto ou mais para examinar um pedaço de papel em particular. Os outros dois fizeram a mesma coisa; sorrisos surgiram em seus lábios. O mais velho deu um sorriso largo e recolocou a página na pasta, que fechou e entregou a um de seus homens. O outro entregou-lhe então um estojo de metal prateado, que ele segurou por um instante e passou para Jason. O estojo era fechado por uma tranca eletrônica. O ronco súbito do motor de um avião fez com que todos olhassem para cima. A impressão que dava era de que o avião ia aterrissar no teto do armazém. Em poucos minutos passou e o silêncio se refez. O homem idoso sorriu, virou-se e a porta fechou-se sem barulho às costas dos três. Jason deixou escapar lentamente o ar dos pulmões. Esperou por um momento em silêncio e em seguida DePazza abriu a porta e fez um gesto para que saísse. DePazza e o motorista o seguiram. As luzes foram apagadas. A câmara oculta instantaneamente parou de funcionar quando a escuridão retornou. Jason entrou de novo na limusine, segurando com força o estojo prateado. Era bastante pesado. Virou-se para DePazza. — Eu não esperava que fosse ser exatamente assim. DePazza deu de ombros. — Fosse qual fosse sua expectativa, o certo é que foi um sucesso.
— Tudo bem, mas por que eu não pude dizer nada? DePazza olhou para ele, levemente irritado. — O que você teria dito, Jason? Jason finalmente deu de ombros. — Se eu fosse você, concentraria minha atenção no conteúdo disso aí. — DePazza apontou para a pasta. Jason tentou abri-la, inutilmente. Levantou as sobrancelhas para o homem. — Quando você chegar no local onde vai se hospedar, poderá abri-la. Eu lhe digo qual é o código quando chegarmos lá. Siga as instruções que encontrar — ele acrescentou. — Não vai se desapontar. — Mas por que Seattle? — Dificilmente você vai esbarrar em um conhecido aqui. Correto? — Os olhos calmos de DePazza repousaram no rosto de Jason. — E você não vai precisar mais de mim. Tem certeza? DePazza quase sorriu. — Nunca tive tanta certeza em toda a minha vida. — Ele apertou a mão de Jason. DePazza recostou-se. Archer pôs o cinto de segurança e sentiu algo pressionando o lado do seu corpo. Tirou o pager da cintura, sentindo-se culpado. E se tivesse sido sua mulher que telefonara antes? Olhou para a telinha e não acreditou no que viu. Correndo na extensão da largura da tela do aparelho, o noticiário relatava uma terrível tragédia: o avião que fazia o voo 3223 da Western Airlines de Washington para Los Angeles caíra na região rural do estado da Virgínia; não havia sobreviventes. Jason Archer não conseguiu recuperar o fôlego. Abriu de qualquer maneira o estojo preto de metal procurando freneticamente o telefone. A voz de DePazza foi incisiva. — Que diabos você está fazendo aí? Jason entregou o pager a ele. — Minha mulher pensa que morri. Oh, Cristo. É por isso que ela está telefonando. Oh, meu Deus. Os dedos de Jason lutaram para abrir o estojo do celular. DePazza pegou o pager, leu a mensagem que continuava sendo exibida repetidas vezes e a palavra "Merda!" passou silenciosamente por entre seus lábios. Bem, aquilo só ia servir para acelerar um pouco o processo. Não gostava de se desviar de um plano previamente formulado, mas era evidente que não tinha outra escolha senão fazer exatamente isto. Quando se virou de novo para Jason, seu olhar era frio e mortal. Esticou uma das mãos e arrancou o celular das mãos trêmulas de Jason. Enfiou a outra no paletó e quando ela reapareceu trazia a pistola apontada diretamente para a cabeça de Jason. Jason olhou para cima e viu a arma. — Receio que você não vá telefonar para ninguém. — Os olhos de DePazza não abandonaram o rosto de Jason por um segundo sequer. Imobilizado pelo terror, Jason observou DePazza levar a mão ao rosto e arrancar a pele. O disfarce requintado saiu, pedaço por pedaço. Em questão de segundos, Jason estava sentado ao lado de um homem louro, com pouco mais de trinta anos, nariz aquilino
comprido e pele clara. Os olhos, contudo, permaneceram com o mesmo tom de azul e tão assustadores como antes. Seu nome verdadeiro, embora raramente o usasse, era Kenneth Scales. Sociopata de carteirinha, sentia grande prazer em matar, sendo particularmente meticuloso nos detalhes que compunham o terrível processo. No entanto, nunca matava aleatoriamente. Da mesma forma que nunca matava de graça.
CAPÍTULO NOVE FORAM NECESSÁRIAS QUASE CINCO HORAS para conter o fogo, e no fim as chamas cederam por conta própria, após terem consumido todo o combustível ao seu alcance. As autoridades locais acharam que pelo menos tinha sido uma sorte o incêndio ficar limitado a um terreno isolado, sem nada em volta. Uma equipe de emergência do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes, vestida em seus trajes azuis destinados à proteção contra riscos biológicos, caminhava vagarosamente seguindo o perímetro externo da área onde o avião caíra, na qual ainda havia colunas de fumaça ganhando o céu e em que pequenos núcleos de teimosas labaredas eram atacados por diligentes equipes de bombeiros. Toda a área havia sido isolada com barricadas, atrás das quais inúmeros ansiosos moradores da região se detinham, a tudo assistindo com aquela típica mistura de apavorada descrença com mórbido interesse. Colunas de carros de bombeiros, carros da polícia, ambulâncias, caminhões verde-escuros da Guarda Nacional e outras viaturas de emergência eram vistos de ambos os lados do campo. O pessoal da emergência médica permanecia junto de seus veículos, mãos nos bolsos. Seus serviços não seriam necessários, a menos que houvesse necessidade de transportar restos humanos, se alguma coisa pudesse ser extraída daquele holocausto. O prefeito da cidadezinha mais próxima estava ao lado do fazendeiro em cujas terras o avião caíra. Atrás deles, duas picapes Ford exibiam placas com os dizeres "Eu sobrevivi a Pearl Harbor-. E agora, pela segunda vez em suas vidas, seus rostos demonstravam o horror que sentiam pela morte súbita, terrível e monstruosa. — Não é um local de desastre. É um maldito crematório. — veterano investigador do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes sacudiu a cabeça, fatigado, retirando o boné com a sigla do órgão a que pertencia e enxugando a testa vincada de rugas com a outra mão. George Kaplan tinha cinquenta e um anos de idade, o cabelo grisalho na cabeça grande já ia rareando; com um metro e setenta de altura, sua barriguinha era bem visível. Depois de ter sido piloto de combate no Vietnã, e piloto comercial por muitos anos, ingressara no Conselho depois que um amigo íntimo batera com um Piper de dois lugares na encosta de uma colina, após quase colidir com um 727 durante um denso nevoeiro. Foi quando Kaplan decidiu que devia voar menos e trabalhar mais no sentido de prevenir acidentes. George Kaplan foi designado como investigador do caso e aquele era o último lugar do mundo em que gostaria de estar; mas, lamentavelmente, o único lugar óbvio para o estudo de medidas preventivas de segurança é aquele em que ocorre um acidente aéreo. Todas as noites, os membros das equipes de emergência para a investigação de desastres do Conselho iam para a cama rezando para que ninguém fosse precisar de seus serviços, rezando para que não houvesse razão para viajar para lugares distantes a fim de recolher os destroços de mais uma catástrofe.
Ao esquadrinhar a área, Kaplan fez uma careta e sacudiu de novo a cabeça. Era de chamar atenção a total ausência da costumeira trilha de partes da aeronave e de corpos, bagagem, roupas, e os milhões de outros itens que rotineiramente têm de ser localizados, separados, catalogados, analisados e registrados até que se pudesse chegar a alguma conclusão do motivo pelo qual um avião de 100 toneladas caíra dos céus. Não tinham testemunhas oculares, porque o acidente ocorrera de manhã bem cedo e a cobertura das nuvens era baixa. Poucos segundos deviam ter se passado do momento em que o avião saíra das nuvens e batera no chão. No lugar em que o avião batera com o nariz, existia agora uma cratera que as escavações posteriores determinariam ter cerca de nove metros de fundura, ou mais ou menos um quinto do comprimento total da aeronave. Bastava isso para que se tivesse uma ideia da força terrível do impacto que matara todos que se encontravam a bordo com tanta facilidade. A fuselagem lembrou a Kaplan a imagem de um fole, com a parte da frente colada à parte de trás, e os fragmentos perdidos nas profundezas da cratera aberta pelo impacto. Nem mesmo a cauda era visível. Para complicar o problema, toneladas de terra e pedra jaziam sobre os restos do aparelho. O campo e as áreas circunvizinhas estavam cobertos de destroços, a maioria do tamanho da palma de uma mão, lançados na explosão quando o aparelho atingira a terra. A maior parte do avião e dos passageiros presos às poltronas pelos cintos de segurança tinha se desintegrado devido ao peso terrível e à velocidade do impacto, assim como à inflamação do combustível do jato, o que teria causado uma nova explosão alguns segundos mais tarde antes que os nove metros de terra e escombros se combinassem transformando-se na massa estanque de uma sepultura. O que sobrara na superfície era irreconhecível. Lembrou a Kaplan a queda inexplicável, em 1991, de um Boeing 737 da United em Colorado Springs. Ele tinha trabalhado nesse desastre também, como especialista em sistemas de aviação. Pela primeira vez na história do Conselho, desde a sua criação em 1967 como órgão federal autônomo, não foi possível encontrar uma causa para o acidente. Os "chutadores-de-lata", como os investigadores do Conselho se referiam a si próprios, jamais haviam se recuperado daquilo. A queda de outro Boeing 737 da USAir, em 1994, só serviu para aumentar o complexo de culpa deles. O que muitos pensaram foi que, se tivessem conseguido resolver Colorado Springs, Pittsburgh poderia ter sido prevenida. Agora vinha este. George Kaplan olhou para o céu, claro naquele momento, e sua perplexidade aumentou. Estava convencido de que o desastre de Colorado Springs havia sido causado, pelo menos em parte, por uma nuvem que atingira inesperadamente a aeronave na reta final da iminente aterrissagem, momento vulnerável para qualquer avião a jato. A nuvem provocara um violento deslocamento de ar ao redor do eixo longitudinal da aeronave ao ser impulsionada pelos ventos fortes que costumam ocorrer sobre terrenos irregulares. No caso do voo 585 da United Airlines, o terreno irregular foi a imponente
cadeia das Montanhas Rochosas. Mas ali era a Costa Leste. Não havia Montanhas Rochosas. Mesmo que uma nuvem anormalmente forte pudesse derrubar um avião tão grande quanto um L500, Kaplan não podia crer que algo de semelhante houvesse acontecido com voo 3223. De acordo com o controle do tráfego aéreo, o L500 começara a cair de uma altitude de cruzeiro de trinta e cinco mil pés — cerca de dez mil e quinhentos metros — e fora direto até o chão. Mas não há montanhas nos Estados Unidos capazes de causar a formação desse tipo de nuvens em altitude tão elevada. Pior ainda ali na Costa Leste. Na verdade, as únicas elevações nas proximidades eram as da Floresta Nacional de Shenandoah, que faziam parte das relativamente pequenas montanhas da cadeia conhecida como Blue Ridge. Onde tudo ficava mais ou menos na faixa dos mil metros de altura, sendo mais colinas que montanhas. E quanto ao fator altitude? Normalmente, o balanço rotacional experimentado por aviões que passam por fortes nuvens ou outras condições atmosféricas anormais pode ser controlado pela aplicação dos ailerons. A mais de dez mil metros de altura. os pilotos da Western Airlines teriam tido tempo para restabelecer o controle. Kaplan estava convicto de que o lado obscuro da Mãe Natureza não arrancara o jato dos confins pacíficos do céu. Mas era evidente que alguma outra coisa o fizera. A equipe dentro em pouco voltaria para o hotel, onde seria realizada uma reunião. Inicialmente, seriam formados grupos de investigação, visando estruturas, sistemas, fatores de sobrevivência, geradores de eletricidade, condições atmosféricas e controle do tráfego aéreo. Mais tarde seriam reunidas equipes para avaliar o desempenho da aeronave, analisar o registro de voz da cabine do piloto e o registro de dados do voo, o desempenho da tripulação, o espectro sonoro, registros de manutenção e exames metalúrgicos. Era um trabalho lento, tedioso e muitas vezes de cortar o coração, mas Kaplan não partiria dali enquanto não houvesse examinado cada partícula daquilo que até bem pouco tempo atrás era um avião a jato estado-da-arte transportando duzentos seres humanos. Jurou a si próprio que a causa provável não lhe escaparia desta vez. Kaplan encaminhou-se lentamente para seu carro alugado. Em pouco tempo mais seria como uma primavera precoce no terreno onde o avião caíra: bandeiras vermelhas florescendo por toda a parte, juntamente com pequenos fachos luminosos a balizar a localização dos restos do avião. A escuridão caía rapidamente. Ele soprou nas mãos geladas para ver se as esquentava. Uma garrafa térmica com café quente o esperava no carro. Esperava que a caixa com os registros dos dados do voo — conhecida popularmente como "caixa preta", embora na verdade fosse de cor laranja — fizesse jus à sua reputação de indestrutibilidade. A versão mais recente acabara de ser instalada no avião e os 121 parâmetros por ela aferidos diriam a eles muito sobre o que acontecera ao fatídico voo 3223. No L500 a caixa preta ficava localizada sob a cobertura do teto da cozinha de bordo, na cauda do avião. Como jamais acontecera de um L500 ter um acidente com perda de casco, aquele desastre
certamente serviria para testar a invulnerabilidade do registro de voo. Pena que os seres humanos não fossem também invulneráveis. Ao subir um montinho de terra, George Kaplan se deteve, imóvel. Na luz cada vez menos clara deu com um vulto alto a menos de um metro e meio de distância. Os óculos escuros escondiam um par de olhos azuis acinzentados; o porte de um metro e noventa de altura sustentava com naturalidade os ombros volumosos, os braços carnudos, a linha da cintura já meio grossa e um par de pernas que mais pareciam dois postes telefônicos; qualquer um se lembraria de descrevê-lo como um antigo jogador profissional de futebol americano. O homem tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça, e preso no cinto, havia um inconfundível escudo prateado. Kaplan estreitou os olhos na noite que já se anunciava. — Lee? O agente especial Lee Sawyer, do FBI, deu um passo à frente. — Olá, George. Os dois homens apertaram-se as mãos. — Que diabos você está fazendo aqui? Sawyer olhou em torno, para o local do acidente e voltou a encarar Kaplan. Em seu rosto anguloso destacavam-se os lábios, cheios e expressivos. O cabelo escuro, que começava a rarear, era fortemente salpicado de prata. A testa larga e o nariz fino — virado ligeiramente para a direita, lembrança de um caso que investigou no passado — combinavam com o seu tamanho para lhe dar uma presença muito intensa e dominadora. — Quando um avião americano é derrubado em solo americano pelo que parece ter sido um ato de sabotagem, o FBI fica um pouco nervoso, George. — O agente do FBI dirigiu um olhar penetrante a Kaplan. — Sabotagem? — repetiu Kaplan, cautelosamente. Sawyer contemplou toda a área do desastre. — Verifiquei os mapas da meteorologia. Nada que pudesse ter causado isto. E o aparelho era quase novo em folha. — Isto não quer dizer que tenha sido sabotagem, Lee. É cedo demais para se dizer ao certo. Você sabe disso. Ora, mesmo que as probabilidades sejam de um bilhão contra um, isso pode ter sido o resultado da abertura em pleno voo do reversor de uma turbina. — Há uma parte da aeronave na qual estou particularmente interessado, George. Gostaria que você a examinasse muito detidamente. — Bem — disse Kaplan suspirando -, vai ser preciso um bocado de tempo para escavar esta cratera. Quando estiver pronto, seremos capazes de colocar a maioria dos pedaços na sua mão. A resposta de Sawyer quase fez os joelhos de Kaplan cederem. — Essa parte não está dentro desta cratera. E é bastante grande: a asa direita e o motor. Encontramos há cerca de trinta minutos. Kaplan ficou imóvel por um tempo, os olhos arregalados fixos nas feições inexpressivas de
Sawyer. Por fim Sawyer indicou seu carro. O Buick alugado de Sawyer afastou-se velozmente quando as últimas labaredas do voo 3223 foram extintas. A escuridão em breve se adensaria em torno de um fosso de nove metros de profundidade que representava um tosco monumento ao fim abrupto de 181 vidas.
CAPÍTULO DEZ O JATO GULFSTREAM RISCOU O CÉU. Sua cabine luxuosa parecia a sala de estar de um hotel elegante completa com lambris de madeira, cadeiras forradas de couro marrom e um bar bem suprido, com bartender e tudo. Sidney Archer estava encolhida em uma das cadeiras exageradamente grandes, os olhos fechados com firmeza. Tinha sobre a testa uma compressa de água fria. Quando finalmente abriu os olhos e removeu a compressa, parecia estar sedada, tão pesadas estavam suas pálpebras, tão lerdos seus movimentos. Na verdade nem tomara medicação nem se servira da fartura do bar. Sua cabeça é que tinha se fechado: hoje o seu marido tinha morrido num desastre de avião. Olhou em torno. Fora por sugestão de Quentin Rowe que ela resolvera seguir no jato da empresa com ele. No último minuto, e para agravar a dor de Sidney, Gamble resolvera acompanhá-los. Estavaagora em sua cabine particular, na parte de trás do aparelho. Esperava em Deus que ele ficasse por lá o resto da viagem. Quando levantou os olhos, deu com Richard Lucas, o chefe de segurança da Triton, observando-a atentamente. — Calma, Rich. — Quentin Rowe passou na frente do segurança e dirigiu-se a Sidney, para sentar-se ao lado dela. — Então, como se sente? — perguntou, delicado. — Temos Valium a bordo. Carregamos sempre um certo suprimento por causa do Nathan. — Ele usa Valium? — Sidney pareceu surpresa. Rowe encolheu os ombros. — Na verdade, é para as pessoas que viajam com Nathan. Sidney forçou um sorriso, que desapareceu repentinamente. — Oh, meu Deus, não posso acreditar. — Ela espiou pela janela, com os olhos vermelhos. Levou as mãos ao rosto, e falou sem olhar para Rowe. — Sei que a coisa está feia, Quentin. — Sua voz soou trêmula. — Ei, não há lei que proíba alguém de viajar em seus dias de folga — apressou-se a dizer Rowe. — Não sei o que dizer... Rowe levantou uma das mãos. — Olha, esta não é a hora ou o lugar. Tenho algumas coisas a fazer. Se precisar de algo, basta me dizer. Sidney dirigiu-lhe um olhar grato. Depois que Rowe desapareceu em outra parte da cabine, Sidney recostou-se e, mais uma vez fechou os olhos. As lágrimas voltaram a escorrer pelas faces inchadas. Na parte da frente, Richard Lucas continuava sua vigilância solitária. Sidney soluçava cada vez que recordava do último diálogo que tivera com Jason. Furiosa, tinha desligado o telefone na cara dele. Tratava-se, sem dúvida, de um episódio banal que nada significava, um episódio que se repetia milhares de vezes durante a vida em muitos casamentos bem-sucedidos, e, no entanto, ia ser a última lembrança da vida deles em comum? Ela estremeceu e agarrou com força o descanso para os braços. Todas as suspeitas
dos últimos meses — Deus! Jason trabalhando arduamente para conseguir um novo e maravilhoso emprego e a única coisa que lhe passava pela cabeça era ele na cama com mulheres mais atraentes. Sentia tanta culpa que doía. O resto da vida ia ser para sempre maculado por aquele terrível erro de julgamento do homem a quem amava. Teve outro choque quando abriu os olhos. Nathan Gamble estava sentado ao seu lado. Espantou-se por ver ternura no seu rosto, uma emoção que certamente jamais vira nele antes. Ofereceu-lhe um copo que tinha na mão. — Conhaque — disse Gamble, a voz rouca, olhando por cima dela para o céu escuro do outro lado da janela. Quando hesitou, ele pegou-lhe a mão e fez com que segurasse o copo. — Neste exato momento você não quer pensar com muita clareza — disse. — Beba. Sidney levou o copo aos lábios e o líquido quente desceu pela sua garganta. Gamble recostou-se, fez um gesto a Lucas para que fosse embora e esfregou distraidamente o encosto do braço enquanto avaliava com um olhar a cabine. Ele tinha tirado o paletó e as mangas da camisa arregaçadas revelavam antebraços surpreendentemente musculosos. Os motores do avião roncavam, graves, no fundo. Sidney quase podia sentir as correntes elétricas percorrendo freneticamente o seu corpo enquanto esperava que Gamble falasse. Já o vira arrasar completamente pessoas de todos os níveis de autoridade com impiedosa desconsideração pelos seus sentimentos. Agora, mesmo através do véu de uma dor infinita, sentia a presença ao seu lado de um homem diferente, com mais consideração. — Sinto muito pelo que aconteceu a seu marido. — Sidney percebia vagamente o quão contrafeito e pouco à vontade Gamble parecia estar. Suas mãos não paravam de se mexer, como se quisessem acompanhar as manobras de sua mente ativa. Sidney ficou olhando para ele enquanto tomava outro gole de conhaque. — Muito obrigada. — Ela conseguiu agradecer. — Na verdade não cheguei a conhecê-lo pessoalmente. Uma empresa tão grande quanto a Triton, puxa, terei sorte se chegar a conhecer dez por cento das pessoas que ocupam o nível gerencial. — Gamble suspirou e, como se percebesse o movimento incessante de suas mãos, cruzou-as sobre o colo. — Claro que tinha conhecimento da reputação dele e sabia que estava progredindo rapidamente. Pela maior parte dos relatos, teria dado um excelente executivo. Sidney estremeceu ao ouvir aquelas palavras. Pensou na notícia que Jason lhe dera ainda naquela manhã. Um novo emprego, uma vice-presidência, uma nova vida para todos. E agora? Terminou rapidamente o conhaque e conseguiu conter um soluço. Quando se virou de novo para Gamble, ele a estava fitando diretamente. — Eu podia muito bem desistir disso agora, embora não seja a melhor época para fazê-lo, eu sei. — Ele se deteve e estudou o rosto dela. Sidney procurou se fortalecer de novo; instintivamente os dedos agarraram o encosto do braço quando tentou não tremer. Engoliu em seco. O olhar do presidente da Triton perdera a ternura. — Seu marido estava em um avião para Los Angeles. — Ele passou, nervosamente, a língua
pelos lábios e chegou-se mais para perto dela. — E não em casa. — Sidney aquiesceu inconscientemente, sabendo muito bem qual seria a próxima pergunta. — Você sabia disso? Por um breve instante ela se sentiu como se estivesse flutuando através de densas nuvens sem a ajuda de um jato de 25 milhões de dólares. O tempo pareceu parar, mas na verdade se passaram apenas uns poucos segundos até que enunciasse a resposta: — Não. Sidney Archer jamais mentira para um cliente antes; a palavra escapou dos seus lábios antes que se desse conta. Podia garantir que ele não acreditara, mas agora era tarde demais para recuar. Gamble examinou suas feições por mais uns segundos e acomodou-se de novo na cadeira. Ficou imóvel por um momento, como se estivesse satisfeito por ter comprovado que tinha razão. Abruptamente, deu um tapinha no braço de Sidney e levantou-se. — Quando aterrissarmos, mandarei minha limusine levar você em casa. Tem filhos? — Uma menina. — Sidney olhou espantada para ele, sem entender como o interrogatório terminara tão subitamente. — Basta dizer ao motorista onde a menina se encontra que ele irá apanhá-la também. Ela está numa creche? — Sidney fez que sim, Gamble sacudiu a cabeça. — Hoje em dia toda criança está numa maldita creche. Sidney pensou nos seus planos de não trabalhar mais fora para criar Amy. Não tinha mais marido, estava sozinha agora. Esta revelação quase fez com que desmaiasse. Se Gamble não se encontrasse ao seu lado, ela teria deixado que seu corpo se desmanchasse até o chão, de pura agonia. Quando ergueu os olhos, deu com Gamble fitando-a, ao mesmo tempo em que esfregava a testa. — Precisa de mais alguma coisa? Ela conseguiu levantar o copo vazio. — Obrigada, isto ajudou um bocado. Ele pegou o copo. — Bebida geralmente ajuda. — Gamble começou a se afastar mas interrompeu-se. — A Triton cuida bem de seus funcionários, Sidney. Se precisar de qualquer coisa, dinheiro, providências para o funeral, ajuda com a casa ou a menina, coisas desse tipo, temos gente para resolver. Não tenha medo de ligar para nós. — Não terei. Muito obrigada. — E se quiser falar mais sobre... qualquer coisa — ele ergueu as sobrancelhas sugestivamente — sabe onde me encontrar. Nathan Gamble afastou-se e Richard Lucas, silenciosamente, reassumiu seu posto de sentinela. Ligeiramente trêmula, Sidney mais uma vez fechou os olhos. O avião prosseguiu, veloz. Tudo o que ela queria era abraçar a filha.
CAPÍTULO ONZE SENTADO NA BEIRADA DA CAMA, o homem tirou a roupa e ficou só de cuecas. Lá fora, o sol ainda não raiara. Seu corpo era extremamente musculoso. No bíceps esquerdo era possível ver uma tatuagem, com o desenho de uma cobra enrodilhada. Ao lado da porta do quarto, havia três bolsas de viagem arrumadas. Um passaporte americano, algumas passagens aéreas, dinheiro e documentos de identificação esperavam por ele, conforme prometido. Estava tudo em uma pequena bolsa de couro em cima das bolsas de viagem. Seu nome mudaria novamente, não pela primeira vez em sua vida carregada de crimes. Não iria mais abastecer aviões. Jamais teria que trabalhar de novo. O depósito eletrônico de dinheiro efetuado na sua conta no exterior fora confirmado. Tinha agora todo o dinheiro que a vida toda se esforçara para ganhar sem sucesso. Mesmo com sua longa experiência no crime, suas mãos ainda tremiam quando pegou a peruca, os óculos escuros ovais cor-deturquesa e as lentes de contato coloridas em uma bolsinha. Embora provavelmente ainda faltassem semanas para que alguém pudesse imaginar o que acontecera, no seu ramo era preciso sempre estar preparado para enfrentar a pior hipótese. E esta significaria ter de fugir imediatamente e para bem longe. Ele estava preparado para fazer ambas as coisas. Relembrou os últimos acontecimentos. Jogara o recipiente plástico no rio Potomac. depois de ter se livrado do seu conteúdo: ele jamais seria encontrado. Não havia impressões digitais a colher, nenhuma prova deixada para trás. Se encontrassem algo que o associasse à sabotagem. já teria ido embora há muito o tempo além do mais, o nome que usara nos últimos dois meses os levaria a um completo beco sem saída. Já tinha matado antes mas, certamente não em escala tão grande e impessoal... Sempre tinha uma razão para matar — se não uma razão pessoal pelo menos uma fornecida por quem quer que o tivesse contratado. Desta vez, contudo, a grande proporção e o completo anonimato das pessoas mortas conseguiram incomodar até mesmo sua consciência calejada. Não tinha ficado por perto para ver quem subia a bordo da aeronave. Fora pago para fazer um trabalho e fizera. Usaria as vastas somas postas à sua disposição para esquecer como ganhara o dinheiro. Achava que isso não ia levar muito tempo para acontecer. Sentou-se diante do pequeno espelho sobre a mesa do quarto. A peruca transformara seu cabelo crespo escuro em louro ondulado. O terno novo e elegante, tão diferente do que acabara de jogar fora, estava pendurado na maçaneta da porta. Abaixou a cabeça enquanto se concentrava para colocar as lentes de contato que transformariam o castanho claro dos seus olhos em azul. Levantou-se para verificar o efeito no espelho e sentiu o cano alongado da Sig P229 comprimindo diretamente a base do seu crânio. Com a percepção aguçada que acompanha o pânico, notou como o silenciador praticamente dobrava o comprimento do cano da compacta pistola de 9mm.
Seu choque absoluto mal durou um segundo, o tempo em que sentiu o frio do metal na pele, em que viu os olhos escuros olhando para ele na imagem do espelho, a boca fechada com um desenho firme. Sua própria aparência quase sempre era assim, antes de matar. Tirar a vida de outro ser humano sempre fora um negócio sério para ele. Viu agora no espelho, magnetizado, outro rosto seguindo o seu próprio ritual, a sua assinatura. Depois observou com crescente surpresa quando as feições do homem prestes a matá-lo passaram a traduzir raiva e logo ódio, emoções que jamais sentira durante uma execução. Os olhos da vítima se dilataram, quando se fixaram no dedo que ia apertar o gatilho. A boca moveu-se para dizer alguma coisa, provavelmente um palavrão: a palavra, contudo, não chegou a ser formada, pois o tiro explodiu no seu cérebro. O impacto o jogou para trás e ele desabou sobre a mesinha. O assassino lançou o corpo de cabeça para baixo na fresta entre a cama e a parede e esvaziou os outros onze tiros do carregador da Sig na parte superior do torso do homem morto. Embora o coração da vítima não estivesse mais bombeando, gotas de sangue escuro do tamanho de moedas de dez centavos apareceram em cada ponto de entrada, lembrando o jorro de minúsculos poços de petróleo. A pistola automática foi aterrissar ao lado do corpo. O atirador retirou-se calmamente do quarto, detendo-se apenas para executar duas tarefas. Primeira, recolher a bolsa de couro que continha a nova identidade do homem morto. Segunda, já no corredor, acionar o interruptor que controlava o aquecimento, ventilação e ar condicionado do apartamento e ligar o ar-condicionado no máximo de sua capacidade. Dez segundos depois a porta do apartamento foi aberta e fechada. O apartamento ficou em silêncio. No quarto, o carpete bege foi adquirindo rapidamente uma feia tonalidade de vermelho. A conta no banco situado no exterior teria o saldo reduzido a zero e seria fechada em menos de uma hora, já que o proprietário não mais necessitava dos fundos. Eram mais ou menos sete da manhã. Lá fora ainda reinava a escuridão. Sentada à mesa da cozinha, usando o velho robe, Sidney Archer fechou lentamente os olhos e mais uma vez tentou fazer de conta que aquilo tudo era um pesadelo e que o marido ainda estava vivo e a qualquer momento entraria pela porta da sala. Teria um sorriso no rosto, um presente debaixo do braço para a filha e um beijo longo e reconfortante para a mulher. Quando abriu os olhos, nada mudara. Sidney deu uma espiada no relógio. Amy acordaria em breve. Sidney acabara de ter uma conversa pelo telefone com os pais. Chegariam na casa da filha às nove horas a fim de levar Amy de carro para a casa deles, em Hanover, na Virgínia, onde ela ficaria por alguns dias enquanto Sidney tentava encontrar algum sentido no que acontecera. Estremeceu só de pensar em ter que explicar a catástrofe para a filha quando ela fosse mais velha, de ter que reviver, daqui a alguns anos, o horror que sentia agora. Como contar a uma filha que o pai morrera por nenhuma razão aparente que não a de um avião fazendo o impensável, ceifando as vidas de quase duzentas pessoas e matando o homem que ajudara a dar um significado a sua vida. Os pais de Jason tinham morrido anos antes. Como filho único, ele adotara a família de
Sidney como sua, e eles o tinham aceito muito felizes. Os dois irmãos mais velhos de Sidney já tinham telefonado com ofertas de ajuda, votos de pêsames e, finalmente, soluços silenciosos. A Western oferecera a Sidney levá-la até a cidadezinha que ficava perto do local do acidente, mas ela se recusara. Não ia suportar ficar ao lado de outros parentes das vítimas. Imaginava todos embarcando silenciosamente em compridos ônibus cinzentos, incapazes de se encarar, pernas exaustas, sistemas nervosos prestes a entrar em colapso devido ao choque esmagador. Lutar com os complicados sentimentos de negação, mágoa e tristeza já era bastante terrível sem se ver cercada de desconhecidos que passavam pela mesma provação. Naquele instante, não se sentia atraída pelo conforto que podiam representar as pessoas atingidas da mesma forma que ela. Subiu, entrou no corredor e parou diante do quarto. Ao adiantar-se um pouco, a porta abriu pela metade. Sidney deu uma olhada em todos aqueles objetos familiares, cada um com sua história própria; lembranças inextricavelmente vinculadas à vida com Jason. O olhar finalmente veio descansar na cama desfeita. Tanto prazer acontecera ali... Não podia acreditar que o encontro amoroso daquela manhã seria o último. Fechou a porta silenciosamente e prosseguiu pelo corredor até o quarto de Amy. A respiração regular da filha era reconfortante, especialmente agora. Sidney sentou na cadeira de balanço de vime ao lado da cama sobre rodinhas. Ela e Jason tinham há pouco tempo conseguido transferir a menina do berço para a cama. O esforço representara muitas noites dormindo no chão até Amy sentir-se bem com o novo arranjo. Enquanto se balançava vagarosamente na cadeira, Sidney continuou a observar a filha, o cabelinho louro despenteado, os pés protegidos por meias grossas, chutando as cobertas para se libertarem. As sete e meia escapou um gritinho dos lábios de Amy e ela se sentou abruptamente na cama, os olhinhos fechados com força, como um filhote de passarinho. No momento seguinte a mãe tinha a filha nos braços e a ninou por algum tempo, até que ela acordou inteiramente. Enquanto o sol se erguia no horizonte, Sidney deu um banho em Amy, secou seu cabelo. vestiu-a com roupas quentes e ajudou-a a descer a escada para ir à cozinha. Enquanto a mãe preparava o café da manhã. Amy andava de um lado para o outro na sala, onde Sidney podia ouvi-la brincando com a pilha de brinquedos que estava ali há um ano, crescendo sempre. Abriu o guarda-louças e, automaticamente, pegou duas canecas. Parou com a mão a meio caminho do pote de café, oscilando ligeiramente sobre as duas pernas. Mordeu os lábios até que a necessidade de gritar passasse. Sentiu-se como se alguém a tivesse cortado ao meio. Recolocou uma das canecas no armário e carregou seu café e uma tigela com mingau de aveia quente para a mesinha de pinho. Virou-se na direção da sala. — Amy, Amy, queridinha, está na hora de comer. — Ela mal conseguiu falar. A garganta doía terrivelmente; todo o corpo de Sidney parecia ter-se aberto numa imensa chaga
dolorida. Amy veio voando, sua velocidade normal era a velocidade máxima da maioria das outras crianças. Vinha carregando um tigre de camurça e um porta-retrato. Correu na direção da mãe com o rostinho brilhante, o cabelo ligeiramente úmido preso em cima e uns cachinhos soltos dos lados. Sidney perdeu a fala quando percebeu que Amy tinha nas mãos uma foto de Jason, tirada no mês passado. Ele estava no jardim, cuidando das plantas, e Amy o molhara todo com a mangueira, e tudo terminara com o pai jogado sobre uma pilha de folhas amarelas, vermelhas e alaranjadas. — Papai? — O rostinho de Amy denotava sua ansiedade. Jason deveria ficar fora da cidade por três dias, de modo que Sidney já antecipara ter que explicar a ausência dele à sua filha. Meu Deus! Três dias agora pareciam três segundos. Ela procurou fortalecer a própria resistência quando sorriu para o rostinho de Amy. — Papai agora está longe, queridinha — começou ela, incapaz de esconder o tremor na voz. — Somos só eu e você, certo? Está com fome? Quer comer? — Meu papai? Papai trabalhando? — persistiu Amy, os dedos gordinhos apontando para a foto. Sidney pegou a filha no colo. — Amy, sabe quem você vai ver hoje? O rostinho de Amy traduziu sua expectativa. — Vovô e vovó. A boquinha da menina formou um grande oval e abriu-se num largo sorriso. Balançou a cabeça entusiasticamente e soprou um beijo na direção da geladeira, onde havia uma foto dos seus avós presa com um ímã. — Vovô, vovó. Cuidadosamente, Sidney tirou a foto de Jason da mão de Amy enquanto empurrava a tigela com a aveia. — Agora você precisa comer antes de sair, está bem? Tem mel, que você gosta tanto. — Eu como. Eu como. — Amy saiu do colo da mãe e ajeitou-se na sua cadeira, manobrando com cuidado a colher que mergulhou gulosamente na comida. Sidney soluçou e cobriu os olhos. Tentou manter o corpo rígido, mas diversos soluços violentos conseguiram fugir do seu controle. Finalmente saiu correndo, carregando consigo a foto. Subiu a escada o mais depressa que pôde, enfiou a foto na gaveta de cima da cômoda e atirou-se na cama, abafando os soluços no travesseiro. Cinco minutos inteiros se passaram e o transbordamento de tristeza ainda não cessara. Geralmente Sidney era capaz de se ligar no paradeiro de Amy como se dispusesse de radar. Desta vez ela não ouviu a menina senão quando sentiu a mãozinha dela no ombro. Amy se deitou também, enfiando o rostinho no ombro da mãe. Amy viu as lágrimas e exclamou, ao tocar no travesseiro molhado: — Oh, bu-bu, bu-bu. — Depois pegou o rosto de Sidney entre as duas mãozinhas e começou também a chorar, ao mesmo tempo em que se esforçava para pronunciar as palavras: — Mamãe triste? — Os rostos das duas se tocaram, as lágrimas se misturaram. Após algum tempo Sidney se
levantou, pegou a filha no colo e a ninou sobre o colchão macio. Um pouco de aveia com leite ficou preso num canto da boca de Amy. Sidney se amaldiçoou silenciosamente por ter cedido, por ter feito a filha chorar, mas nunca tinha sentido uma emoção tão forte antes. Finalmente os espasmos cessaram. Sidney esfregou os olhos pela centésima vez e finalmente não havia mais lágrimas para substituir as derramadas. Alguns minutos depois, levou Amy para o banheiro. limpou seu rosto e beijou-a. — Tudo certo agora, neném, mamãe está bem agora. Nada mais de choro. Quando Amy finalmente se acalmou, Sidney reuniu alguns brinquedos da banheira para ela. Enquanto a menina se entretinha, Sidney tomou um banho rápido e vestiu uma saia longa com uma camisa de gola alta. Quando seus pais bateram na porta pontualmente às nove horas, a malinha de Amy estava arrumada e pronta. Saíram todos caminhando até o carro. O pai de Sidney carregou a mala e a mãe seguiu ao lado de Amy. Bill Patterson passou o braço robusto pelos ombros da filha, os olhos cavados e os ombros caídos ainda revelando o quão fortemente a tragédia o atingira. — Meu Deus, querida, ainda não consigo acreditar. Falei com Jason ainda dois dias atrás. Íamos fazer uma pescaria no gelo este ano. Lá em Minnesota. Só nós dois. — Eu sei, papai. Ele me contou. Estava entusiasmado com a ideia. Enquanto seu pai colocava no carro a mala de Amy, Sidney prendia a filha no assento infantil, entregava-lhe o ursinho de pelúcia, a apertava com força e por fim a beijava delicadamente. — Eu a verei de novo dentro de pouco tempo, boneca. Mamãe promete. Sidney fechou a porta. Sua mãe pegou a sua mão. — Sidney, minha filha, por favor, venha conosco. Você não deve ficar sozinha agora. Por favor. Sidney apertou a mão magrinha da mãe. — Não mamãe, eu preciso mesmo de algum tempo sozinha. Preciso pensar um pouco, organizar minha cabeça. Não será por muito tempo. Um dia ou dois, nada além. A mãe de Sidney olhou para a filha por alguns segundos mais e a abraçou com força, seu corpo franzino tremendo. Quando entrou no carro, tinha o rosto redondo molhado de lágrimas. Sidney ficou vendo o carro sair, os olhos fixos no banco de trás onde Amy ia agarrada ao seu ursinho bem-amado, o polegar firmemente enfiado na boca minúscula. Em poucos momentos o carro virou a esquina e eles desapareceram. Com os gestos lentos e inseguros de uma mulher cansada, Sidney voltou para casa. Uma ideia subitamente a assaltou. Com renovada energia, apertou o passo. De novo dentro de casa, discou para o serviço de informações de Los Angeles e conseguiu o número da AllegraPort Technology. Enquanto teclava o número, perguntou-se por que eles não teriam ligado para casa quando Jason não aparecera. Não havia mensagens para
ele na secretária eletrônica. O que a deveria ter preparado para a reação da AllegraPort, mas não preparou. Depois de falar com três pessoas diferentes na empresa, ela desligou o telefone e ficou olhando aturdida para a parede da cozinha. Não tinham oferecido uma vice-presidência a Jason na AllegraPort. Na verdade, nunca tinham ouvido falar nele. Sidney sentou no chão, puxou os joelhos para junto do peito e chorou incontrolavelmente. Todas as suspeitas de antes voltaram e com tal rapidez que ameaçaram dissolver os últimos vínculos que a prendiam à realidade. Obrigou-se a levantar e mergulhou a cabeça debaixo da torneira da pia. A água fria revigorou-a parcialmente. Sentou-se à mesa e cobriu o rosto com as duas mãos. Jason mentira para ela. Isto era inquestionável agora. Jason estava morto. O que também era inquestionável. E, ao que tudo indicava, ela jamais conheceria a verdade. Foi com este último pensamento que Sidney finalmente parou de chorar e deu uma olhada pela janela. Ela e Jason tinham plantado flores, arbustos e árvores nos últimos dois anos, ali no pátio dos fundos. Trabalhando juntos com um objetivo comum, eles tinham conduzido grande parte de sua vida de casado seguindo o mesmo tema. E, a despeito de toda a incerteza que sentia agora, uma verdade permanecia sagrada para ela. Jason a amava e amava Amy também. O que quer que o tivesse obrigado a mentir, a embarcar em um avião destinado a cair em vez de ficar tranquilamente em casa, sem fazer nada mais perigoso do que preparar as paredes da cozinha para pintar, ela haveria de descobrir o que tinha sido. Sabia que as razões de Jason tinham sido completamente inocentes. O homem a quem conhecia intimamente e a quem amava de todo o coração não teria sido capaz de proceder de outro modo. Já que ele tinha sido arrancado dela de maneira tão estúpida, o mínimo que lhe devia era descobrir o motivo pelo qual estava naquele avião. Assim que se sentisse mentalmente capaz de novo, iria trabalhar nisso com toda a energia que conseguisse reunir.
CAPÍTULO DOZE O HANGAR DO AEROPORTO REGIONAL era pequeno. Nas paredes viam-se inúmeras prateleiras cheias de ferramentas poderosas; pilhas de caixas se espalhavam pelo chão. A escuridão lá de fora se transformava em luz do dia ali dentro pelo teto cheio de lâmpadas. O vento sacudia as paredes de metal à medida que o granizo aumentava de intensidade, e o barulho era como o de uma saraivada de tiros com balas de chumbo grosso de encontro à estrutura do prédio. Podia-se sentir em todo o interior do hangar o cheiro acre e intenso dos derivados de petróleo ali armazenados. No piso de concreto em frente ao hangar via-se um enorme objeto de metal. Torta e grosseiramente retorcida, era o que restava da asa direita do voo 3223, com o motor de estibordo e o pilone intactos. Caíra no meio de uma área densamente arborizada, bem em cima de um carvalho centenário de cerca de trinta metros de altura que foi rachado ao meio pela força do impacto. Miraculosamente, o combustível do jato não pegara fogo. A maior parte da carga provavelmente fora perdida quando o tanque e as mangueiras foram perfurados e a árvore reduzira em parte a violência da queda. Os pedaços tinham sido removidos por helicóptero e levados para exame no hangar. Em torno dos restos do avião reunira-se um pequeno grupo de homens. O ar que exalavam formava nuvens no ar frio, mas as grossas jaquetas os conservavam aquecidos. Usavam lanternas poderosas para examinar a parte denteada da asa no lugar onde fora seccionada do corpo da malfadada aeronave. A nacela que acomodava o motor fora parcialmente esmagada e a carenagem do lado direito cedera. Os flaps da borda posterior da asa tinham sido arrancados com o impacto. mas foram encontrados nas proximidades. O exame do motor mostrara diversos danos causados às pás da turbina. uma clara evidência de uma grande perturbação no fluxo de ar enquanto o motor ainda estava com potência. A "perturbação" era fácil de determinar. Uma grande quantidade de destroços fora ingerida pelo motor, e teria destruído sua funcionalidade mesmo que tivesse permanecido presa na asa. A atenção dos homens reunidos em torno da asa, contudo, concentrava-se no lugar onde fora destacada do avião. As bordas irregulares estavam queimadas e escuras, além de, o que era mais importante, o metal ter sido dobrado para fora, para longe da superfície da asa, havendo claros sinais de mossas e fissuras na superfície do metal. Era curta a lista de coisas que podiam ter causado aquilo, e uma bomba, sem dúvida, fazia parte desta lista. Quando Lee Sawyer examinara a asa antes, seus olhos não tinham desgrudado daquela parte. George Kaplan sacudiu a cabeça, desgostoso. — Você está certo, Lee. As modificações que estou vendo no metal só podem ter sido causadas por uma onda de choque exercendo uma pressão imensa mas de curtíssima duração. Alguma coisa explodiu aqui, sem dúvida. É uma droga! A gente põe detectores nos aeroportos para que um maluco qualquer não possa contrabandear uma arma ou uma
bomba para dentro do avião e, agora, isto! Jesus! Lee Sawyer adiantou-se e ajoelhou-se ao lado da borda da asa. Ali estava ele, quase cinquenta anos de idade, metade dos quais trabalhando para o FBI, mais uma vez examinando os resultados catastróficos da poluição humana. Ele tinha trabalhado no desastre de Lockerbie, uma investigação de proporções gigantescas da qual resultara um caso quase sem falhas montado com indícios microscópicos desenterrados dos restos do voo da Pan Am. As bombas colocadas em aviões geralmente nunca deixavam "grandes" pistas. Pelo menos era o que o agente especial Sawyer pensara até agora. Seus olhos observadores examinaram os escombros antes de se deterem no homem do Conselho. — Qual a sua melhor lista de hipóteses possíveis, George? Kaplan esfregou o queixo, coçando distraidamente a barba que apontava. — Saberemos muito mais quando recuperarmos as caixas pretas, mas temos uma certeza absoluta por ora: a asa foi arrancada do avião. Sabemos, contudo, que essas coisas simplesmente não acontecem. Não sabemos exatamente quando foi que aconteceu, mas o radar indica que uma grande parte do aparelho — que agora sabemos ter sido a asa — caiu durante o voo. Ocorrendo isso, é claro, não havia possibilidade de recuperação. A primeira ideia que vem à cabeça é de uma falha estrutural qualquer, baseada em um projeto defeituoso. Mas o L500 é um modelo que representa a última palavra em inovação tecnológica na indústria aeronáutica, produzido por um fabricante de primeira linha, de modo que as chances de uma falha estrutural são tão remotas que eu não perderia muito tempo pensando nisso. Pode-se pensar então em fadiga de metal, mas este avião nem tinha dois mil ciclos — decolagens e aterrissagens; é praticamente novo em folha. Além do mais, os acidentes provocados por fadiga de metal que testemunhamos no passado envolviam a fuselagem, porque a constante contração e expansão causada pela pressurização e despressurização da cabine parecem contribuir para o problema. As asas não são pressurizadas. Assim, podemos deixar de lado a hipótese de metal. Um raio? Os aviões são atingidos por raios com muito mais frequência do que se imagina. Só que eles são equipados para lidar com isso e os raios têm que atingir a terra para causar real dano. O avião, em pleno voo, no máximo pode sofrer queimaduras na superfície externa. Além do mais, não há relatórios indicando a ocorrência de raios naquela área na manhã do acidente. Pássaros? Mostre-me uma ave que voe a trinta e cinco mil pés de altitude e que seja grande o bastante para arrancar a asa de um L500 e aí talvez a gente discuta o problema. E, com toda a certeza, não colidiu com outro avião. Com a mais absoluta certeza afirmo que não colidiu. A voz de Kaplan foi subindo a cada palavra. Ele fez uma pausa para recuperar o fôlego e para examinar mais uma vez os restos do avião. — E então, onde é que isso nos deixa, George? — perguntou Sawyer, calmamente.
Kaplan deixou escapar um suspiro. — A seguir, procuramos possíveis falhas mecânicas ou estruturais não causadas pelo projeto. Catástrofes com uma aeronave em geral derivam de uma ou mais falhas acontecendo quase que simultaneamente. Ouvi gravação do diálogo travado entre o piloto e a torre. O comandante da aeronave emitiu um pedido de socorro minutos antes do desastre, embora tenha ficado claro pelo pouco que disse que não sabiam ao certo o que acontecera. O transponder do avião respondeu aos sinais do radar até a hora do impacto, o que significa que pelo menos parte dos sistemas elétricos funcionou até o fim. Mas digamos que houvesse incêndio num dos motores ao mesmo tempo em que ocorreu um vazamento de combustível. A maioria das pessoas iria presumir que a combinação de incêndio com o vazamento só podia ter resultado numa explosão, e pronto, lá se foi a asa. Ou que pode não ter havido uma explosão de verdade, embora tudo indique que houve. O fogo podia ter prejudicado e finalmente feito a longarina e a asa caírem. Isso podia explicar o que pensamos que aconteceu ao voo 3223, pelo menos nesta fase inicial. — Kaplan silenciou, não parecendo muito convencido. — Mas? — Sawyer olhou para ele. Kaplan esfregou os olhos, a frustração evidente nas feições preocupadas. — Não há prova de que houvesse algo de errado com o maldito motor. Exceto pelo dano óbvio causado pelo seu impacto com o terreno e com a ingestão de destroços resultantes da explosão inicial, nada me leva a crer que um problema do motor tenha desempenhado papel relevante no acidente. Se foi um incêndio no motor, a norma padrão de procedimento mandaria cortar o fluxo do combustível para esse motor e depois desligar a força. Os motores do L500 são equipados com detecção automática de fogo e sistemas extintores de incêndio. E, o que é mais importante, eles são montados de forma que nenhuma labareda voe na direção das asas ou da fuselagem. Assim, mesmo que você tenha uma catástrofe dupla — incêndio no motor e vazamento de combustível — as características do projeto da aeronave e as condições ambientais predominantes a cerca de dez mil e quinhentos metros de altura e uma velocidade relativa — em relação ao ar — acima de oitocentos quilômetros por hora praticamente asseguram que as duas condições desfavoráveis não se encontrariam. Ele esfregou o pé na asa. — Acho que o que estou dizendo é que não apostaria nada na teoria de que um motor defeituoso jogou este pássaro no chão. — Ele fez uma pausa. — Há alguma outra coisa. Kaplan também se ajoelhou ao lado da borda da asa. — Como eu disse, há clara evidência de uma explosão. Quando examinei a asa pela primeira vez, estava pensando em um tipo qualquer de dispositivo explosivo improvisado. Você sabe, algo conectado a um relógio ou um altímetro. O avião atinge uma certa altitude, a bomba detona. A explosão fratura o casco, os arrebites se soltam ou partem quase que imediatamente. Ventos de centenas de quilômetros por hora atingindo a asa e ela abre justo
no ponto mais fraco, como quando se abre o fecho da calça. A longarina cede, e bam. Ora, o peso do motor nesta seção da asa teria garantido aquele resultado. — Ele fez uma pausa, aparentemente para estudar o interior da asa mais detidamente. — A questão é que não acho que tenha sido usado um dispositivo comum. — Por quê? — indagou Sawyer. Kaplan apontou, na parte interna da asa, para a seção exposta do tanque de combustível. Manteve o foco da lanterna sobre o ponto indicado. — Olha só isso. Era claramente visível um grande buraco. Em torno dele havia manchas castanhas, de tonalidade clara, e o metal estava recurvado e cheio de bolhas. — Eu já tinha visto isso antes — disse Sawyer. — Não há como um buraco como este ter sido provocado por causas naturais. De qualquer modo, teria sido localizado em uma inspeção de rotina antes de o avião levantar vôõ — afirmou Kaplan. Sawyer pôs as luvas antes de tocar na área. — Talvez tenha acontecido durante a explosão. — Neste caso, foi o único lugar em que aconteceu. Não há outras marcas como estas nesta seção da asa, embora você tivesse combustível por toda a parte. O que praticamente exclui a possibilidade de isto ter sido causado por uma explosão. Mas eu acredito que alguma coisa foi colocada na parede do tanque de gasolina. — Kaplan parou e esfregou os dedos nervosamente. — Acho que alguma coisa foi colocada deliberadamente. — Como um ácido corrosivo? — perguntou Sawyer. Kaplan fez que sim. — Aposto um jantar que é o que vamos encontrar, Lee. Os tanques de combustível são feitos de uma liga de alumínio e estruturados nas quatro longarinas das asas: frente, retaguarda, superior e inferior. A espessura das paredes em torno dessa estrutura varia e são muitos os ácidos que seriam capazes de corroer uma liga macia como essa. — Tudo bem, ácido; mas, dependendo da ocasião em que foi aplicado só pode ter sido de ação lenta, a fim de permitir que o avião pelo menos levantasse voo, correto? — Correto — respondeu Kaplan imediatamente. — O transponder envia continuamente a altitude do avião ao controle do tráfego aéreo, de modo que nós sabemos que o aparelho tinha atingido a altitude de cruzeiro poucos minutos antes da explosão. Sawyer continuou a expor sua linha de pensamento. — O tanque fura em algum ponto durante o voo. Você tem, claro, combustível derramando. Combustível altamente inflamável, altamente explosivo. O que foi então que ateou fogo nele? Talvez o motor não estivesse em chamas, mas que tal o calor normal gerado pelo motor? — De jeito nenhum. Você tem ideia do frio que faz a mais de dez mil metros de altura? Faz com que o Alasca pareça o Saara. Além do mais, a camisa do motor e os sistemas de resfriamento dissipam quase todo o calor gerado pelo funcionamento do motor. E, qualquer calor que seja, certamente que não vai terminar dentro da asa. Lembre
se de que você tem um maldito tanque de combustível ali. É um troço muito bem isolado. Além do mais, se você tem um vazamento de combustível, este irá para trás e não para a parte da frente e de baixo da asa, onde fica o motor. Não, se eu tivesse que derrubar um avião deste modo, de jeito nenhum que ia contar com o calor gerado pelo funcionamento do motor para detonar a minha explosão. Ia querer uma coisa mais confiável. Sawyer, de repente, teve uma ideia. — Se houve um vazamento, ele não teria sido contido? — Em algumas seções do tanque de combustível, a resposta a essa pergunta seria sim. Em outras áreas, incluindo esta em que temos esse buraco, a resposta é não. — Bem, neste caso, teremos que nos concentrar em todo mundo que teve acesso a essa aeronave pelo menos vinte e quatro horas antes do seu último voo. Só que temos que ir com calma. Parece que se trata de um serviço feito por gente de dentro, de modo que a última coisa que quero é assustá-lo. E, se alguém mais estiver envolvido, quero pegar todos até o último dos filhos da mãe. Sawyer e Kaplan voltaram para os seus carros. Kaplan olhou para o agente do FBI. — Você pareceu aceitar a minha teoria de sabotagem muito depressa, Lee. Sawyer tinha ciência de um fato que tornava a teoria da bomba infinitamente mais plausível. — Ela precisará ser substanciada — replicou, sem olhar para o homem do Conselho. — Mas, sim, eu acho que você tem razão. Tive certeza disso assim que a asa foi encontrada. -Por que diabos alguém faria uma coisa dessas? Quer dizer, sou capaz de entender terroristas derrubarem um voo internacional, mas este era um voo doméstico absolutamente comum. Simplesmente não dá para entender. Quando Kaplan estava prestes a entrar no seu carro, Sawyer apoiou-se na porta. — Pode fazer sentido se você quisesse matar uma determinada pessoa, de um modo espetacular. Kaplan arregalou os olhos para o agente do FBI. — Derrubar um avião inteiro para matar um cara? Quem diabos estava nesse voo? — O nome Arthur Lieberman faz você lembrar de alguma coisa? — perguntou Sawyer. Kaplan esforçou-se mas não conseguiu lembrar. — Soa muito familiar, mas não consigo situar. — Bem, se você fosse um banqueiro de investimentos ou um corretor da Bolsa, ou um congressista, você saberia. Na verdade, ele é o homem mais poderoso do país, talvez do mundo todo. — Pensei que a pessoa mais poderosa do país fosse o presidente. Sawyer sorriu melancolicamente. — Não, é Arthur Lieberman quem tem o grande S no peito. — Quem diabo era ele? — Arthur Lieberman era o presidente da Reserva Federal. Agora é uma vítima de homicídio juntamente com cento e oitenta pessoas. E o meu palpite é que
ele era o único a quem queriam matar.
CAPÍTULO TREZE JASON ARCHER NÃO TINHA IDEIA de onde se encontrava. A limusine parecia ter circulado horas a fio, ele não poderia saber com certeza, e DePazza, ou fosse qual fosse seu nome, o vendara. O quarto em que estava agora era pequeno e vazio. Em um canto pingava água e o ar era espesso com o cheiro de mofo. Estava sentado em uma cadeira frágil, em frente à única porta. Não havia janelas. A única luz era gerada por uma lâmpada incandescente no teto. Podia ouvir alguém do outro lado da porta. Haviam tirado seu relógio para que não controlasse as horas. Seus raptores lhe traziam comida em intervalos muito irregulares, o que tornava difícil a avaliação do tempo decorrido. Uma vez, quando lhe trouxeram comida, Jason notara que seu laptop e o telefone celular estavam em cima de uma mesinha do lado de fora da porta. A não ser por isso, o outro aposento assemelhava-se bastante ao quarto em que ele se encontrava. O estojo prateado lhe fora tirado. Não havia nada dentro dele, sentia-se razoavelmente seguro. Começava a ficar claro para ele o que estava acontecendo. Nossa, mas que idiota! Pensou na mulher e na filha, e em como queria desesperadamente voltar para junto delas. O que Sidney devia estar pensando que lhe acontecera... Não dava para entender as emoções que ela devia estar sentindo agora. Se ao menos tivesse lhe dito a verdade, agora ela estaria em condições de ajudá-lo. Jason suspirou. Mas o fator decisivo fora não contar a ela nada que pudesse pô-la em perigo. Isso era algo que ele jamais faria, mesmo que significasse nunca mais vê-la de novo. Enxugou as lágrimas dos olhos quando a imagem da eterna separação fixou-se na sua cabeça. Levantou-se e sacudiu-se. ainda não estava morto, embora a sinistra determinação dos seus raptores não garantisse que isto fosse um grande consolo. Eles tinham contudo, cometido um erro a despeito do seu cuidado evidente. Jason tirou os óculos, colocou-os no chão de concreto e cuidadosamente esmagou-os com o pé. Pegou um pedaço do vidro de bordas irregulares, escondeu na mão e dirigiu-se à porta. Bateu. — Ei, posso beber alguma coisa? — Cala a boca, você aí!! — A voz parecia aborrecida. Não era DePazza, provavelmente o outro homem. — Olha aí, cara. Tenho que tomar um remédio e preciso de alguma coisa para ajudar engolir. — Experimenta o cuspe — disse a voz do mesmo homem. Jason pôde ouvir uma risadinha. Os comprimidos são grandes demais — gritou Jason, na esperança de que alguém o ouvisse. — Que pena. Jason podia ouvir as folhas de uma revista sendo viradas preguiçosamente. — Maravilha, não tomo o remédio e caio morto aqui mesmo. É para pressão alta, e neste
instante minha pressão está quase batendo no teto. Jason ouviu o barulho de uma cadeira sendo arrastada e o tilintar de chaves. — Afaste-se da porta. Jason afastou-se um pouco. A porta girou. O homem tinha as chaves em uma das mãos e a arma na outra. — Onde estão os comprimidos? — perguntou ele, os olhos se estreitando. — Na minha mão. — Mostre para mim. Jason sacudiu a cabeça, revoltado. — Eu não acredito! — Quando deu um passo em frente, abriu a mão e esticou-a. O homem deu uma olhada. Jason levantou a perna e, com um pontapé, jogou longe a arma. — Merda — gritou o homem, lançando-se sobre Jason, que o recebeu com um murro. O caco de vidro da lente do óculos pegou o homem bem no meio da cara. Ele uivou de dor e deu um passo para trás, o sangue jorrando da ferida. O homem era grande, mas há muito tempo que seus músculos tinham começado a se transformar em gordura. Jason voou para cima dele como um aríete, esmagando o homem mais velho de encontro à parede. Lutaram brevemente, mas Jason, muito mais forte, conseguiu girar o adversário até ele ficar corn o rosto de encontro à parede. Uma cabeçada mais violenta na parede e dois socos fortes nos seus rins e o sujeito desabou no chão frio, inconsciente. Jason pegou a arma e saiu pela porta aberta. Com a mão livre apanhou o laptop e o telefone celular. Parando por um momento a fim de examinar onde se encontrava, localizou outra porta e, depois de fazer uma pausa, atento a qualquer barulho, saiu correndo por ela. Deteve-se, esperando os olhos se adaptarem à escuridão. Praguejou baixinho. Estava no mesmo armazém, ou pelo menos em um outro idêntico. Deviam ter andado em círculos. Desceu cuidadosamente para o primeiro andar. A limusine não podia ser vista em parte alguma. De repente ouviu um barulho vindo da mesma direção de onde viera. Correu para a porta à sua frente, procurando desesperadamente o trinco para abri-la. Girou a cabeça quando ouviu passos de alguém correndo. Correu para o lado contrário do armazém. Escondido em um canto atrás de diversos tambores de duzentos litros, colocou a arma cuidadosamente no chão e abriu o laptop. O laptop era um modelo sofisticado completo, dispondo de modem. Jason ligou o computador e usou um cabo curto acondicionado no estojo do laptop para ligar o modem ao telefone celular. O suor porejava da sua testa enquanto a máquina levava alguns segundos para ser inicializada. Usando o mouse, clicou as necessárias funções na tela e, no escuro, os dedos guiados pela forte familiaridade com as teclas, digitou a mensagem. Tão concentrado estava, que não ouviu os passos às suas costas. Digitou o endereço eletrônico do destinatário. Queria mandar a mensagem para o seu próprio endereço na America Online. Lamentavelmente, como as pessoas que são incapazes de lembrar do número do
próprio telefone porque nunca ligam para ele, Jason, que nunca mandava mensagens para si próprio, não tinha o seu endereço eletrônico previamente programado. Sabia de cor, só que a necessidade de digitá-lo lhe custou alguns segundos preciosos. Enquanto seus dedos voavam sobre as teclas, um braço forte o pegou pelo pescoço. Jason ainda conseguiu clicar o comando SEND. A mensagem foi lançada eletronicamente para fora da tela. Por um breve momento. Depois uma mão passou pela frente do rosto de Jason e puxou o laptop, fazendo com que o telefone celular ficasse oscilando precariamente no ar, preso pelo cabo de conexão. Jason viu os dedos gordos digitando as teclas numa tentativa de cancelar o e-mail. Jason deu um soco brutal que acertou bem no queixo do agressor. A mão do laptop afrouxou e Jason conseguiu recuperá-lo, e ao telefone. Meteu o pé na barriga do agressor e saiu correndo, deixando o homem de bruços, no chão. Infelizmente, deixou para trás também a pistola de 9mm. Dirigindo-se a um canto distante do armazém, Jason pôde ouvir barulhos de passos correndo, vindos de todas as direções. Não havia como fugir, claro. Mas ainda podia fazer alguma coisa. Parou atrás de umas escadas de metal, ajoelhou-se e começou a digitar. Um grito, soando ao lado, fez com que levantasse a cabeça. Seus dedos tão velozes e precisos desta vez falharam justo quando o indicador da mão direita tocou na tecla errada ao digitar o endereço do destinatário. Começou a digitar a mensagem, o suor escorrendo pelo rosto, ardendo os olhos. A respiração vinha aos arrancos, o pescoço doía por causa da chave de braço. Estava tão escuro que não conseguia nem ver o teclado. Seus olhos passaram a se alternar entre as pequenas imagens eletrônicas na tela e o exame do armazém, cada vez mais desesperado, à medida que o barulho dos gritos e dos passos ficava mais próximo. Ele não percebeu que a pouca luz emitida pela tela do laptop era como um show de laser no armazém escuro. O barulho de homens correndo na direção dele a pouco mais de três metros de distância o fez interromper a mensagem. Clicou a tecla SEND e aguardou o sinal de confirmação. Em seguida deletou tanto o arquivo que enviara quanto o nome do destinatário. Não olhou para o endereço do e-mail enquanto manteve comprimida a tecla DELETE. Em seguida empurrou o laptop e o celular pelo chão por baixo dos degraus, até que foram parar no canto. Não teve tempo de fazer mais nada quando vários fachos de luz de lanternas o atingiram diretamente no rosto. Levantou-se lentamente. respirando forte, mas com um olhar desafiador. Poucos minutos depois a limusine saiu do armazém. Jason foi jogado no banco de trás, com diversos ferimentos e cortes profundos no rosto. a respiração irregular. Kenneth Scales tinha o laptop aberto e praguejava aos berros, olhando para a tela do monitor, impotente para reverter o que havia acontecido minutos antes. Num acesso de raiva ele arrancou o celular de Jason do cabo e bateu o aparelho repetidamente contra a porta da limusine, até que o largou no chão, em pedaços. Em seguida, pegou no bolso interno do paletó um outro telefone celular, pequeno e de linha segura, e digitou um número. Scales falou lentamente.
Archer tinha entrado em contato com alguém, enviado alguma mensagem. Havia um certo número de destinatários possíveis e eles — todos eles — teriam que ser verificados e tratados de modo apropriado. Mas este problema teria que esperar. Outros assuntos exigiam agora sua atenção. Scales desligou e olhou para Jason. Quando este conseguiu olhar para cima, a boca da pistola de Scales estava quase encostada na sua testa. — Quem, Jason? Para quem você enviou aquela mensagem? Jason tomou fôlego, com as mãos sobre as costelas dolorosamente machucadas. — De jeito nenhum. Nem em um milhão de anos, meu chapa. Scales empurrou a cabeça de Jason com a boca do cano da arma. — Puxa o gatilho, seu panaca! — gritou Jason. O dedo de Scales começou a comprimir o gatilho da Glock, mas ele parou e empurrou Jason brutalmente de encontro ao encosto do banco. — Ainda não, Jason. Eu não lhe disse? Você ainda tem outro trabalhinho para fazer. Jason sem poder fazer nada, olhou para Scales, que sorria perversamente. Os olhos do agente especial Raymond Jackson vasculharam a área com eficiência. Ele entrou, fechando a porta atrás de si, e sacudiu a cabeça, em silencioso sinal de espanto. Arthur Lieberman tinha sido descrito a ele como um sujeito que construíra uma fortuna e que se dedicara a essa tarefa por décadas. Porém. aquele casebre não correspondia à descrição. Verificou o relógio. A equipe do laboratório chegaria em pouco tempo para realizar uma investigação em profundidade. Embora parecesse improvável que Arthur Lieberman conhecesse pessoalmente quem explodira seu avião no pacifico céu da Virgínia, em uma investigação daquela magnitude todas as possibilidades tinham que ser examinadas. Jackson entrou na cozinha minúscula e rapidamente concluiu que Arthur Lieberman não cozinhava ou comia ali. Não havia pratos ou panelas em nenhum dos armários. O único ocupante visível da geladeira era uma lâmpada. O fogão, embora velho, não mostrava sinais de uso recente. Jackson examinou as outras áreas da sala e passou para o pequeno banheiro. Com a mão enluvada abriu cuidadosamente a porta do armário de remédios. Continha os habituais artigos de toalete, nada importante. Já estava prestes a fechar a porta, quando seu olhar se deteve em um frasco colocado entre a pasta de dentes e o desodorante. No rótulo havia informações sobre a dosagem, os componentes e o nome do médico que prescrevera a receita. O agente Jackson não era familiarizado com o nome daquela droga. Ele tinha três filhos e era, em termos, especialista em receitas e remédios de venda controlada para uma série de enfermidades. Anotou o nome do remédio e só então fechou o armário. O quarto de dormir de Lieberman era pequeno, a cama sendo pouco mais que uma dessas camas portáteis, de lona. Encostada à parede mais próxima da janela havia uma escrivaninha pequena. Após examinar o armário, Jackson voltou para ela a sua atenção. Havia diversas fotos em cima da mesa, mostrando dois homens e uma mulher em idades
que variavam de dezoito, vinte anos, até uns vinte e cinco. Os filhos de Lieberman, concluiu Jackson rapidamente. Tinha diante de si três gavetas. Uma estava trancada. Jackson só precisou de alguns segundos para abri-la. Do lado de dentro havia um maço de cartas presas por um elástico. A caligrafia era cautelosa e precisa e, o conteúdo, decididamente romântico. A única coisa estranha era que todas as cartas não continham assinatura. Jackson, confuso, pensou um pouco e por fim recolocou-as na mesma gaveta. Levou mais alguns minutos para dar uma olhada no apartamento e por fim uma batida na porta anunciou a chegada do pessoal do laboratório.
CAPÍTULO QUATORZE DURANTE O TEMPO EM QUE SIDNEY ficou sozinha, explorou cada fresta da casa, impulsionada por uma força que esteve longe de conseguir identificar. Sentou-se durante horas num banco da cozinha, a cabeça examinando em ritmo veloz os anos em que estivera casada. Cada detalhe desses anos, mesmo os momentos relativamente insignificantes, surgiu das profundezas do subconsciente. Às vezes a boca chegava a se entreabrir num sorriso quando se lembrava de qualquer coisa particularmente engraçada. Eram breves, contudo, esses instantes, e sempre seguidos por soluços, quando ela se via esmagada pela consciência de que nunca mais haveria momentos felizes com Jason. Finalmente se levantou e subiu a escada, seguiu devagar pelo corredor e entrou no pequeno escritório de Jason. Deu uma olhada em geral, nas poucas coisas que havia ali, e sentou-se diante do computador. Deslizou a mão pela tela de vidro. Jason era apaixonado por computadores desde quando o conhecera. Ela sabia utilizá-los, mas à parte o processamento de textos e a utilização do correio eletrônico, o conhecimento que tinha tanto do equipamento físico quanto dos programas era extremamente limitado. Jason recebia um grande volume de correspondência por email e. normalmente, verificava a caixa de correio todos os dias. Sidney não a verificava desde o desastre. Decidiu que era hora de fazê-lo. Muitos dos amigos de Jason provavelmente devem ter enviado mensagens. Ligou o computador e ficou observando a passagem pela tela de uma série de números e nomes que, em grande parte, eram sem sentido para ela. A única que reconhecia era a memória disponível. E havia muita. O sistema fora personalizado para o seu marido e funcionava com velocidade impressionante. Lá estava o número relativo à memória disponível. Com um sobressalto ela percebeu que os últimos três dígitos, 7, 3 e 0, correspondiam ao aniversário de Jason, julho, 30. Respirou fundo para não cair no choro de novo. Abriu a gaveta da escrivaninha e remexeu, sem nenhum objetivo específico, nas coisas que havia em seu interior. Como advogada, sabia muito bem o monte de documentos e providências que a esperavam para acertar o inventário de Jason. Quase tudo o que possuíam era em comunhão de bens, mas havia muitos nós legais a desfazer. Todo mundo, mais dia ou menos dia, precisa se defrontar com essas coisas, mas ela não conseguia acreditar que teria que fazer isso tão cedo. Seus dedos esquadrinharam os papéis e a parafernália de escritório que havia na gaveta, fechando-se sobre um objeto que ela retirou. Embora não soubesse, era o cartão que Jason colocara ali antes de sair para o aeroporto. Examinou-o detidamente. Parecia um cartão de crédito, mas tinha estampado o nome "Triton Global" seguido por "Jason Archer" e, finalmente, as palavras "Classificação de Segurança — Nível 6". Franziu a testa. Nunca tinha visto aquilo antes. Devia ser algum tipo de passe de segurança, embora não tivesse a foto do marido. Enfiou o cartão no bolso. A empresa provavelmente ia querer aquilo de volta.
Acessou a America Online e ouviu a voz digitalizada anunciar que havia nova correspondência na sua caixa. Como imaginara, continha numerosas mensagens de amigos deles. Com as lágrimas escorrendo livremente, foi lendo até que perdeu toda a vontade de completar a tarefa e dispôs-se a sair do programa de correio para desligar o computador. Mas foi com um sobressalto que viu outro e-mail subitamente surgir na tela; destinava-se a ArchieJW2@aol.com, que era o endereço eletrônico do marido. No instante seguinte a mensagem desapareceu, como se fosse uma caprichosa inspiração que tivesse passado pela cabeça de uma pessoa antes de desaparecer. Sidney digitou algumas teclas e checou rapidamente a caixa de correio. Sua testa ficou franzida quando descobriu que estava totalmente vazia. Continuou a olhar fixamente para a tela. Sentiu-se arrepiada ao pensar que talvez tivesse imaginado todo o episódio. Acontecera depressa demais. Esfregou os olhos doloridos e permaneceu ali sentada por mais alguns minutos, esperando ansiosamente para ver se o acontecido se repetiria, embora não tivesse ideia do seu significado. A tela permaneceu em branco. Momentos depois de Jason Archer ter reenviado sua mensagem, outro e-mail foi anunciado pela voz digitalizada dizendo: "Você tem nova correspondência." Desta vez a mensagem foi devidamente arquivada. Só que a caixa de correio deste computador não ficava na velha casa de pedra e tijolos e tampouco na mesa de Sidney, nos escritórios da firma Tyler e Stone. E, naquele instante, não havia ninguém em casa para lê-la. Ela teria que ficar arquivada, esperando. Sidney finalmente se levantou e deixou o escritório. Por alguma razão, aquela mensagem surgindo como um relâmpago na tela do computador lhe dera uma esperança absurda, como se Jason de alguma forma estivesse se comunicando com ela, qualquer que fosse o lugar para onde tivesse ido depois que o avião caíra. Burra! Isso era impossível. . Uma hora mais tarde, após outro episódio de grande angústia e sofrimento, sem mais lágrimas para derramar, Sidney pegou uma foto de Amy. Tinha que se cuidar. Amy precisava dela. Abriu uma lata de sopa, acendeu o fogão e poucos minutos depois pegava a concha e servia uma pequena quantidade de sopa numa tigela, que levou para a mesa da cozinha. Conseguira tomar umas poucas colheres quando olhou para as paredes da cozinha que Jason concordara em pintar, depois de tê-lo atormentado muito. Para toda a parte para onde se virava, uma nova lembrança, uma pontada de culpa a empurravam para baixo. E como poderia ser diferente? Aquela casa tinha absorvido uma parte enorme deles, tanto de Sidney quanto de Jason. Podia sentir a sopa quente entrando no seu organismo, mas o corpo ainda dava sinais de que estava quase sem alimento. Pegou um Gatorade na geladeira e bebeu direto da garrafa até que cessou a tremedeira. Só que, mesmo que o lado físico tivesse começado a acalmar, podia sentir o tumulto interior ressurgindo. Pulou da mesa, entrou na sala e ligou a televisão. Saltando de canal em canal sem pensar,
deu com o inevitável: noticiário ao vivo diretamente do local do desastre. Sentiu-se culpada por ter curiosidade a respeito de um fato que lhe roubara o marido. Mesmo assim, não podia negar que ansiava por saber mais acerca do que acontecera, como se ao ver tudo aquilo pelo ângulo mais frio do noticiário da televisão pudesse, pelo menos temporariamente, reduzir a mágoa terrível que cortava seu coração. A apresentadora aparecia de pé, junto ao local do desastre. Ao fundo ia se desenvolvendo o processo da coleta dos destroços. Sidney notou que eles eram carregados e classificados em diversas pilhas. De repente quase caiu da cadeira. Um trabalhador passou imediatamente atrás da apresentadora, carregando uma mala de lona com a padronagem xadrez que ela conhecia tão bem. Apesar de um pouco chamuscada e suja nas beiradas parecia nada ter sofrido. Sidney teve inclusive a impressão de distinguir as iniciais em letras pretas grossas e grandes. A mala foi colocada em uma pilha de itens semelhantes. Por um momento horrível, Sidney Archer não conseguiu se mover. Seus membros ficaram completamente imobilizados. Mas no instante seguinte ela foi toda ação. Subiu correndo pela escada, enfiou uma calça jeans e uma suéter branca grossa, calçou um par de botas quentes de cano curto e arrumou uma mala de qualquer maneira. Em poucos minutos estava tirando o Ford da garagem. Deu uma olhada no Cougar conversível estacionado ao lado. Jason o mantivera funcionando por dez anos e sua aparência gasta e maltratada sempre fora agravada pela vívida lembrança que eles tinham da beleza clássica do Cougar. Até mesmo o Ford Explorer parecia novo em folha se comparado com o Cougar. O contraste sempre a divertira antes. Mas não aconteceu naquela noite, quando uma nova cascata de lágrimas embaçou sua visão e fez com que freasse. Bateu com as mãos no painel e a dor veio subindo dos dedos e atingiu os cotovelos. Finalmente apoiou a cabeça no volante e lutou para recuperar o fôlego. Achou que não conseguiria controlar a náusea, quando sentiu o gosto da sopa na boca. Respirou fundo e procurou controlar-se. Momentos depois seguia pela rua tranquila. Olhou rapidamente para a casa. Tinham morado ali quase três anos. Uma casa maravilhosa construída quase cem anos antes, com cômodos grandes e bem proporcionados, cornijas na parte superior, piso de tábua corrida de largura variada e aleatória e um número tão grande de lugarezinhos secretos que você não tinha que procurar muito um canto onde se esconder em uma melancólica tarde de domingo. Parecera a ambos uma casa formidável para criar filhos. Algo que tinham desejado tanto. Tanto. Sidney sentiu outra onda de soluços se aproximando, subindo diligentemente os caminhos que os levariam à superfície. Acelerou e virou na rua principal. Dez minutos depois tinha diante dos olhos o vermelho e o amarelo do McDonald's da vizinhança. Entrou no drivethrough e pediu um café grande. Depois de apertar o botão para baixar o vidro elétrico do carro, viu-se encarando o rosto sardento de uma adolescente dessas de braços e pernas desajeitadamente compridos, o cabelo castanho-avermelhado amarrado num rabo-de
cavalo. Com toda a certeza ia ser uma mulher linda em mais algum tempo, exatamente como aconteceria com Amy. Sidney pensou que seria bom se aquela garota ainda tivesse seu pai. Abalou-a de novo pensar que Amy agora era órfã de pai. Em menos de uma hora seguia rumo oeste pela Route 29, uma estreita estrada que cortava a zona rural suavemente ondulada da Virgínia num ângulo aproximado de quarenta e cinco graus, até a fronteira com a Carolina do Norte. Percorrera aquela estrada inúmeras vezes, na época em que cursara a escola de direito da Universidade de Virgínia, em Charlottesville. Era uma bela viagem ao longo dos agora silenciosos campos de batalha da Guerra da Secessão e das velhas — mas ainda em funcionamento — fazendas de famílias. No outono e na primavera as cores das folhagens das árvores rivalizavam com qualquer pintura. Nomes como Brightwood, Locust Dale, Madison e Montpelier eram vistos nas placas, e Sidney rememorou as muitas vezes em que ela e Jason tinham ido a uma festa em Charlottesville. Não era mais uma visão reconfortante olhar para aquela estrada tão conhecida ou os campos cortados por ela. A noite foi passando depressa. Sidney olhou para o relógio do painel e ficou surpresa ao ver que era quase uma hora da manhã. Acelerou mais e o Explorer disparou na estrada vazia. Do lado de fora a temperatura continuava a cair, à medida que o carro ia subindo. O céu ficara encoberto e o facho dos faróis do carro era a única coisa contrastante com a escuridão de breu. Aumentou o aquecimento interno e acionou os faróis altos. Uma hora mais tarde, deu uma olhada no mapa desdobrado ao seu lado, no banco da frente. Aproximava-se o ponto em que tinha de sair da Route 29. Sentiu o corpo mais tenso à medida que se aproximava do seu destino. Começou a contar os quilômetros no hodômetro. Em Ruckersville virou para oeste. Estava agora no condado de Greene, estado da Virgínia, uma região bastante rústica e afastada do ritmo de vida que Sidney conhecia e em que crescera. A sede do condado era Standardsville, cujo clima emocional agora de jeito nenhum podia se considerar como o normal, com a cratera do impacto e a terra calcinada aparecendo nas telas de televisão do mundo todo. Sidney finalmente saiu da estrada e deu uma olhada em torno para tentar descobrir sua localização. A escuridão da zona rural a envolveu. Acendeu a luz da cabine e ergueu o mapa para junto do rosto. Uma vez descoberto seu paradeiro, seguiu em frente mais um quilômetro e meio, aproximadamente. Até que contornou uma curva de olmos um tanto desfolhados, bordos nodosos de galhos emaranhados e carvalhos muito altos, após o que o campo visual abria-se para a terra plantada absolutamente plana e limpa. No final da estrada, viu um carro da polícia estacionado ao lado de uma caixa de correio torta e coberta de ferrugem. À direita da caixa de correio havia uma estrada de terra margeada de sempre-vivas cheias e bem cuidadas. À distância, era visível uma fraca luminosidade, como se ela estivesse olhando para uma imensa caverna fosforescente. Encontrara o lugar.
Nos fachos dos faróis do Explorer, Sidney notou que nevava ligeiramente. Quando chegou mais perto, a porta do carro-patrulha abriu-se e um policial, usando uma capa de plástico laranja-neon, saltou do carro. Encaminhou-se para o Ford Explorer, apontou o facho de luz da lanterna primeiro para a placa e depois para o exterior até que veio parar na janela lateral do lado do motorista. Sidney respirou fundo, acionou o botão do vidro elétrico e esperou. O rosto do policial apareceu junto ao seu ombro. O lábio superior dele era parcialmente coberto por um farto bigode grisalho, os cantos dos olhos cheios de rugas. Mesmo sob o impermeável laranja, o volume dos seus ombros e peito poderosos era evidente. Ele fez uma revista superficial no interior do Explorer e por fim concentrou o olhar em Sidney. — Posso ajudá-la, senhora? — a voz era cansada, e não só fisicamente. — Eu...eu vim... — Ela não conseguia concluir. Olhou para ele, sua boca se moveu mas as palavras não saíram. Os ombros do policial se recurvaram. — Minha senhora, isto aqui tem sido um verdadeiro inferno o dia todo, sabe? E eu tive muita gente passando por acaso e que na verdade não tinha nada a fazer aqui. — Ele fez uma pausa e examinou as feições dela. — A senhora está perdida? — O tom de voz do policial deixou bem claro que ele não acreditava que ela tivesse se desviado um centímetro da rota que tencionara seguir. Sidney conseguiu sacudir a cabeça. Ele deu uma olhada no relógio. — Os caminhões da televisão finalmente se mandaram para Charlottesville, cerca de uma hora atrás. Foram dormir um pouco. Sugiro que faça o mesmo. Vai ver e ler tudo o que quiser na televisão e nos jornais, pode acreditar em mim. — Ele endireitou as costas, assinalando que a conversa, na verdade um monólogo, terminara. — Sabe achar o caminho de volta? Sidney fez que sim, balançando a cabeça muito devagar, e o policial tocou ligeiramente com um dedo a aba do boné. Sidney virou o Explorer e começou a se afastar. Mas quando deu uma espiada no espelho retrovisor, parou abruptamente. O estranho fulgor a chamava. Saltou, abriu a porta traseira, pegou o sobretudo e o vestiu. O policial viu que se aproximava e também ele saltou do carro-patrulha. O impermeável dele estava molhado da neve. O cabelo louro de Sidney ficou coberto de flocos quando a tempestade de inverno aumentou de intensidade. Antes que o policial pudesse abrir a boca, ela levantou a mão. — Meu nome é Sidney Archer. Meu marido, Jason Archer... — A voz começou a fraquejar, como se o efeito total das palavras que estava prestes a enunciar a tivesse atingido. Ela mordeu o lábio com força e continuou: — Ele estava no avião. A companhia aérea ofereceu-se para me trazer para cá, mas... preferi vir sozinha. Realmente não sei dizer por que motivo, mas a verdade é que foi o que fiz. O policial a encarou. O olhar dele abrandou-se consideravelmente. O bigodão caiu, os
ombros eretos se curvaram. — Sinto muito, Sra. Archer. Sinceramente, sinto muito. Algumas das outras... famílias já chegaram. Não ficaram muito tempo. O pessoal da Agência Federal de Aviação não quer ninguém por lá agora. Ficaram de voltar amanhã para vasculhar a área... procurando... procurando... O policial não conseguiu continuar. Sua voz falhou e ele abaixou a cabeça. — Eu só vim ver... — A voz dela falhou também. Olhou para o policial, com os olhos vermelhos, o rosto fundo, a testa franzida numa coluna vertical de rugas. Embora alta, parecia um tanto infantil ali metida naquele sobretudo, os ombros recurvados para a frente, as mãos enterradas nos bolsos — como se também ela estivesse desaparecendo, junto com Jason. O policial deu a impressão de estar sem graça, evidentemente vacilando. Deu uma olhada na estrada de terra, depois para os seus sapatos e mais uma vez virou-se para ela. — Espere um minuto, Sra. Archer. — Ele se acomodou de novo no carro-patrulha e em seguida colocou a cabeça para fora da janela. — Madame, saia da neve e venha para cá, por favor, antes que pegue uma doença. Sidney entrou no carro da polícia. Cheirava a fumaça de cigarros e café derramado. Uma revista People estava enfiada em um nicho no banco da frente. Uma telinha de computador aparecia acima de uma pilha de equipamentos eletrônicos. O policial abaixou o vidro do seu lado e iluminou a traseira do Explorer com a lanterna. Logo depois fechava a janela de novo e digitava uma série de teclas no computador de bordo. Examinou a tela e depois olhou para Sidney. — Estou só dando uma conferida na placa. Tenho que confirmar sua identidade. Não que eu não acredite na senhora, quer dizer. ninguém vai pegar o carro e passear por aqui a esta hora. Eu sei disso. Mas tenho que cumprir o regulamento. — Eu compreendo. A tela encheu-se de informações que o policial leu rapidamente. Pegou uma prancheta no painel e examinou uma lista de nomes. Dirigiu um olhar rápido para Sidney, mostrando-se de novo visivelmente contrafeito. — A senhora disse que Jason Archer era seu marido? Ela balançou a cabeça devagar. Era? A palavra a atingiu em cheio. Sentiu as mãos começarem a tremer sem que pudesse controlá-las e a veia na têmpora esquerda pulsar espasmodicamente. — Só queria me certificar. Havia outro Archer no avião também. Um homem chamado Benjamin Archer. Por um momento as esperanças de Sidney alçaram voo, mas a realidade foi imediatamente restabelecida. Não tinha havido erro. Se tivesse, Jason telefonaria. Ele se encontrava no avião que caíra. Por mais que quisesse o contrário, era um dos passageiros mortos no desastre. Olhou para as luzes distantes. Ele estava lá. Ainda. Sidney limpou a garganta. — Tenho uma foto aqui, policial. — Abriu a carteira e apresentou-a.
O policial reparou primeiro na carteira de motorista e só depois seus olhos se concentraram na foto de Jason com Sidney e Amy, tirada há menos de um mês. Ele a examinou por diversos momentos, mas depois devolveu a carteira rapidamente. — Não preciso checar mais nada, Sra. Archer. — Ele olhou para fora da janela. — Há outra dupla de policiais estacionada ao longo da estrada, e um bom número de soldados da Guarda Nacional. Alguns dos caras de Washington ainda se encontram por lá, é isso o que explica todas aquelas luzes. Ele a encarou antes de continuar: — Realmente não posso deixar meu posto, Sra. Archer. — O policial abaixou a cabeça e olhou para as próprias mãos. Sidney seguiu o seu olhar e percebeu que ele usava aliança de casado, num dedo tão inchado pelo tempo que a aliança simples de ouro jamais sairia sem que tirassem o dedo junto. Os olhos do policial se estreitaram e a sombra de uma lágrima apareceu no seu rosto. Subitamente ele virou o rosto, a mão subindo e abaixando bem depressa. Ele ligou o motor e engrenou a marcha. Olhou para ela. — Posso entender por que a senhora veio até aqui. mas não recomendo que permaneça por muito tempo, Sra. Archer. Não é... não é um lugar para se ficar muito tempo. O carro-patrulha avançou aos solavancos na estrada de terra. O policial seguia olhando atentamente à frente na direção das luzes ofuscantes. — Há um demônio no inferno e um Senhor Deus acima, e, mesmo que o demônio tenha conseguido derrubar esse avião, todas as pessoas estão agora com o Senhor neste instante, Sra. Archer, cada uma delas. Acredite nisso, e não deixe que ninguém lhe diga que é diferente. Sidney deu-se conta de que balançava a cabeça ao acompanhar as palavras dele, desejando desesperadamente acreditar que fossem verdade. Ao se aproximarem das luzes, as lembranças de Sidney foram voltando. — Havia uma... mala, de lona, com um desenho de faixas azuis entrecruzadas. Era do meu marido. Tinha as iniciais de Jason. JWA. Comprei para ele fazer uma viagem alguns anos atrás. — Ela sorriu brevemente, quando a lembrança a invadiu. — Na verdade foi uma brincadeira. Tivemos uma discussão e aquela foi a mala mais feia que pude encontrar na época. Claro que ele a adorou. Sidney ergueu a cabeça abruptamente e surpreendeu a expressão de espanto do policial. — Eu vi na televisão. Não parecia nem danificada. Há algum jeito de eu vê-la? — Sinto muito, Sra Archer. Tudo o que foi recolhido já seguiu destino. O caminhão veio mais ou menos há uma hora para fazer o último transporte do dia. — Sabe para onde as coisas são levadas? O policial sacudiu a cabeça. — Não faria diferença se eu soubesse. Não deixariam a senhora chegar perto. Depois que a investigação acabar devem restituí-las para as famílias, eu espero. Mas pelo aspecto do avião, pode ser que leve anos. Mais uma vez. sinto muito. O carro-patrulha finalmente parou a poucos metros de outro policial uniformizado. O policial saltou e foi conferenciar brevemente com o colega, apontando duas vezes na
direção do carro onde deixara Sidney, incapaz de tirar os olhos das luzes. Sidney sobressaltou-se quando o policial que a levara até ali baixou a cabeça junto do carro. — Sra. Archer, a senhora pode vir aqui. Ela abriu a porta do carro, saltou e voltou-se rapidamente para o outro policial. Ele aproximou-se nervosamente, a dor visível nos seus olhos. O sofrimento, ao que parecia, estava disseminado por toda a parte. Aqueles homens preferiam estar em casa, com suas famílias. Ali havia morte e a morte estava em toda parte, parecia grudar na roupa das pessoas, como a neve que caía. — Sra. Archer, quando estiver pronta para ir embora, basta falar com o Billy que ele me avisa pelo rádio. Virei imediatamente apanhá-la. Quando ele começava a entrar de novo na viatura, ela o chamou: — Qual é o seu nome? O policial olhou para trás. — Eugene, madame. Policial Eugene McKenna. — Muito obrigada, Eugene. Ele balançou a cabeça e tocou na pala do boné. — Por favor, não fique muito tempo, Sra. Archer. Quando o carro se afastou, Billy a levou para junto das luzes. Ele mantinha-se olhando sempre em frente. Sidney não sabia o quanto o policial Eugene McKenna contara ao parceiro, mas podia sentir a ansiedade emanando do corpo dele. Era um fiapo de homem, jovem, que mal teria completado uns vinte e cinco anos e que parecia estar se sentindo meio enjoado e nervoso. Finalmente ele parou. Mais adiante Sidney podia ver pessoas se deslocando lentamente. Havia barricadas e fitas amarelas da polícia por toda a parte. Sob a luz do dia artificial, era possível ver a terrível devastação. Lembrava um campo de batalha, a superfície da terra cortada por uma ferida pavorosa. O jovem policial tocou no braço dela. — Madame, a senhora vai ter que ficar afastada. Esses caras de Washington são realmente cismados com qualquer pessoa que apareça por aqui. Têm medo de que alguém possa tropeçar e... sabe como é. alterar alguma coisa. Ele respirou fundo antes de prosseguir: — Há coisas por toda a parte, madame. Por toda a parte! Nunca vi nada assim e espero nunca mais ver enquanto viver. Seu olhar se perdeu novamente na distância. — Quando a senhora estiver pronta, estarei ali. — O policial apontou para a direção de onde tinham vindo e começou o trajeto de volta. Sidney ajeitou o sobretudo e afastou a neve grudada no cabelo. Inconscientemente adiantou-se um pouco, parou e começou a avançar de novo. Diretamente sob a luz, lá estavam os montes de terra. Ela vira aquilo nos noticiários um número incontável de vezes. A cratera aberta pelo impacto. Diziam que o avião estava todo ali, e embora ela soubesse que era verdade, não podia crer que fosse possível. A cratera do impacto. Jason estava lá dentro também. Esta percepção, esta ideia tinha se
tornado tão profunda, tão angustiante que agora, em vez de fazer com que tivesse um ataque histérico, deixou-a simplesmente incapacitada. Fechou os olhos com força e abriu novamente. Lágrimas grossas rolaram pelo seu rosto e ela não se deu ao trabalho de afastálas. Não achava que um dia voltasse a sorrir. Mesmo quando se obrigava a pensar em Amy, a filha maravilhosa que Jason lhe deixara, nem um só resquício de felicidade conseguia sobrepor-se ao seu sofrimento. Ficou olhando fixamente em frente enquanto o vento frio a fustigava, o cabelo longo esvoaçando em torno da cabeça. Enquanto observava, diversas máquinas de grande porte se dirigiam para a cratera, os motores roncando, expelindo fumaça negra de suas entranhas. Pás mecânicas escavavam o solo violentamente, levantando imensos montes de terra e depositando-os nos caminhões basculantes que aguardavam. Os caminhões seguiam por rotas especiais abertas em locais onde o terreno já tinha sido examinado. A preocupação maior era com a velocidade, tendo em vista o risco de danificar mais ainda o resto da aeronave. O que todo mundo queria desesperadamente era encontrar a caixa preta. Isso era muito mais importante do que transformar um fragmento de um centímetro em um fragmento ainda menor por causa do ritmo acelerado dos trabalhos de escavação. Sidney notou que a neve estava aderindo ao solo — uma óbvia preocupação para os investigadores, pois ela via inúmeros deles correndo de um lado para o outro com lanternas, parando apenas para cravar bandeirinhas no terreno que ia rapidamente ficando todo branco. Quando se aproximou mais, reconheceu os vultos dos homens da Guarda Nacional de uniforme verde, patrulhando seus setores, fuzis às costas, as cabeças virando constantemente na direção da cratera. Como um ímã onipotente, o local do acidente parecia exigir inexoravelmente a atenção de todas as pessoas. O preço a ser pago pelas inumeráveis alegrias da vida, ao que parece, é a ameaça constante da morte inexplicável e repentina. Quando Sidney se adiantou de novo, o pé prendeu em qualquer coisa coberta pela neve. Abaixou-se para ver o que era e as palavras do jovem policial voltaram à sua memória. Há coisas por toda a parte. Por toda a parte! Ela parou, ficou imóvel, mas logo continuou a procurar com a curiosidade inata do ser humano. No momento seguinte saía correndo pela estrada de terra, tropeçando e escorregando na neve, agitando os braços desajeitadamente à frente do corpo, soluços violentos explodindo, incontroláveis. Não chegou a ver o homem até que esbarrou nele com um choque violento, acertando-o em cheio nas pernas. Os dois caíram, ele tão espantado quanto ela, talvez mais. — Droga! — resmungou Lee Sawyer quando aterrissou em um monte de terra, sem fôlego. Sidney, contudo, pôs-se de pé num segundo e continuou em louca disparada pela trilha sinuosa. Sawyer seguiu correndo atrás dela até que seu joelho travou, um problema recorrente causado por uma antiga perseguição a um atlético ladrão de bancos que correu
por vinte quadras em piso duro para fugir dele. — Ei — gritou para Sidney, pulando desajeitadamente num só pé, esfregando o joelho. Dirigiu a lanterna na direção dela. Quando Sidney Archer virou a cabeça, ele pôde ver seu perfil no facho de luz. Um segundo mais tarde vislumbrou os olhos dela, cheios de pânico. Em seguida, desapareceu. Ele dirigiu-se cautelosamente ao local onde a vira pela primeira vez. Iluminou com a lanterna o chão. Quem diabos era ela e o que estaria fazendo ali? Mas deu de ombros. Provavelmente mais um dos moradores curiosos da área que tinha visto algo que preferia não ter visto. Um minuto mais tarde a luz da lanterna de Sawyer confirmou suas suspeitas. Ele abaixou-se e pegou um sapatinho, que parecia menor ainda na sua mão enorme. Olhou na direção em que Sidney Archer sumira e suspirou. Seu corpanzil começou a tremer de raiva, quase que incontrolavelmente, quando viu o terrível buraco na terra. Teve que lutar contra o ímpeto de gritar com toda a força dos pulmões. Houve inúmeras ocasiões em sua carreira no FBI em que Lee Sawyer desejara negar aos criminosos que prendera a oportunidade de se defender em um tribunal. Esta era uma delas. Rezou silenciosamente para que quando encontrasse os responsáveis por aquele horrendo ato de violência, eles tentassem alguma coisa, qualquer coisa que proporcionasse a ele uma oportunidade por menor que fosse de poupar ao país o custo e o circo da mídia que um julgamento desses implicaria. Colocou o sapatinho no bolso do casaco e, andando com todo o cuidado por causa do joelho machucado, foi procurar Kaplan. Em seguida voltaria para a cidade. Tinha um compromisso em Washington naquela tarde. A investigação de Arthur Lieberman, sob a sua responsabilidade, agora começaria de verdade. Poucos minutos mais tarde o policial McKenna olhou ansiosamente para Sidney ao ajudá-la a sair do carro-patrulha. Sra. Archer, tem certeza de que não quer que eu chame alguém para vir pegá-la? Sidney, branca como cera, os membros convulsos, mãos e roupas sujas do tombo, sacudiu a cabeça com força. — Não! Não! Eu estou bem! — Apoiou-se na viatura da polícia. Os braços e ombros ainda tremiam involuntariamente. Mas pelo menos o equilíbrio de certa forma se restabelecera. Ela fechou a porta do carro da polícia e começou a andar, passo inseguro, para o seu Ford Explorer. Hesitou e voltou-se para trás. O policial McKenna, ao lado do carro-patrulha. a observava cuidadosamente. — Eugene? — Sim, madame? — Você estava certo... Aquilo não é um lugar onde se deva ficar por muito tempo. — As palavras foram ditas no tom inexpressivo de um espírito totalmente alheio. Virou-se e lentamente dirigiu-se para o seu Ford. O policial Eugene McKenna balançou lentamente a cabeça, o pomo-de-adão saliente subindo e descendo depressa enquanto ele lutava contra as lágrimas que teimavam em cair dos seus olhos. Abriu a porta do carro-patrulha e se jogou no banco da frente. Fechou a porta para que os sons que estava prestes a fazer não fossem ouvidos.
Enquanto Sidney refazia seu caminho, o telefone celular no carro soou. O barulho tão inesperado fez com que estremecesse tanto que quase perdeu o controle do Explorer. Abaixou os olhos para o telefone, na mais absoluta descrença. Ninguém sabia onde estava. Olhou em torno, como se quisesse descobrir se haveria alguém escondido na escuridão, observando-a. As árvores cortadas foram as únicas testemunhas da sua viagem de volta para casa. Tanto quanto poderia analisar, era a única pessoa viva em todo o mundo. Sua mão deslizou lentamente para pegar o aparelho.
CAPÍTULO QUINZE — MEU DEUS, QUENTIN, são três horas da manhã. — Eu não estaria telefonando se não fosse realmente importante. — Não sei direito o que você quer que eu diga. — A mão de Sidney tremia ligeiramente ao empunhar o telefone celular. Ela reduziu a marcha; fora apertando constantemente o acelerador no decorrer da conversa até que se viu dirigindo em uma velocidade perigosa para aquela estrada estreita. — Conforme falei, ouvi você e Gamble conversando na viagem de volta de Nova York. Eu achava que você tinha que recorrer a mim, Sidney, não a Gamble. — A voz era suave mas continha um certo nervosismo. — Sinto muito, Quentin, mas ele fez perguntas. Você não. — Eu estava tentando lhe dar algum espaço. — Eu agradeço sua intenção, fico-lhe muito grata. É que Gamble foi direto. Quer dizer, ele foi legal, mas eu fui obrigada a dizer algo. — Que não sabia o motivo pelo qual Jason estava naquele avião? Foi essa sua resposta? Que você não tinha a menor ideia de que ele estava no avião? — Sidney pôde discernir certos pensamentos não expressos nas palavras dele. Como poderia dizer a Rowe algo diferente do que dissera a Gamble? E mesmo que revelasse a história de Jason para justificar sua ida a Los Angeles, como poderia dizer a Rowe que sabia agora que Jason não tinha ido para uma entrevista com outra empresa? Era o tipo da situação impossível e naquele instante parecia não haver saída. Decidiu mudar de assunto. — Como foi que você pensou em ligar para mim no carro, Quentin? — Sidney sentiu-se um tanto assustada com o fato de ele ter sido capaz de descobrir seu paradeiro. — Tentei a casa, depois o escritório. Só restava o carro — ele respondeu, com simplicidade. — Para dizer a verdade, eu estava meio preocupado com você. E... — A voz dele interrompeu-se abruptamente, como se tivesse decidido com um segundo de atraso não lhe comunicar o que pensava. — E o quê? Rowe mostrou-se hesitante, mas completou rapidamente a ideia. — Sidney, não é preciso ser nenhum gênio para imaginar a pergunta que todos nós queremos que seja respondida. Por que Jason estava indo a Los Angeles? O tom de voz de Rowe era bem claro. Ele queria uma resposta a essa pergunta. — Por que a Triton se importa com o que ele faz no seu tempo livre? Rowe deixou escapar um suspiro fundo. — Sid, tudo o que a Triton faz é altamente patenteado. Há um sem-número de empresas que passam os dias tentando roubar nossa tecnologia e nosso pessoal. Você sabe disso. Sidney corou. — Você está acusando Jason de vender a tecnologia da Triton? Isto é um absurdo e você sabe que é. — Seu marido não estava ali para se defender e Sidney tinha absoluta certeza
de que ele não deixaria nunca uma acusação daquelas passar sem resposta. Rowe pareceu magoado. — Eu não disse que eu estava pensando, mas outros aqui estão. — Jason nunca, jamais faria uma coisa dessas. Ele se matou de trabalhar pela empresa. Você foi amigo dele. Como pode falar uma coisa dessas? — Tudo bem, então me diga o que ele estava fazendo em um avião para Los Angeles em vez de estar pintando a cozinha, porque eu estou prestes a fazer uma aquisição que permitirá á Triton liderar o mundo na virada para o século vinte e um, e não posso permitir que nada ou ninguém destrua uma oportunidade que nunca se repetirá. O tom de sua voz foi o suficiente para enfurecer Sidney. — Não posso explicar. Não vou sequer tentar explicar. Não sei que diabos está acontecendo. Acabo de perder o meu marido, que droga! Não há corpo, não há roupas. Não restou nada dele e você fica aí me dizendo que ele estava roubando vocês? Vá se danar. — O Ford deslizou um pouco para fora da estrada e ela teve que se concentrar para trazê-lo de volta. Diminuiu a velocidade mais uma vez quando o carro passou por um sulco mais fundo. O choque sacudiu todo o seu corpo. Estava ficando cada vez mais difícil enxergar através de toda aquela neve. — Sid, por favor, acalme-se. — A voz de Rowe subitamente demonstrou pânico. — Escuta, eu não tive intenção de perturbá-la ainda mais. Desculpe. — Ele fez uma pausa e apressou-se a acrescentar: — Posso fazer alguma coisa por você? — Pode sim, pode muito bem dizer a esses filhos da mãe da Triton que eu quero que se danem! E por que você não vai se danar primeiro? — Ela clicou o botão que desligava o aparelho e o jogou de lado. As lágrimas escorriam com tanta intensidade que teve que parar fora da estrada. Tremendo como se tivesse mergulhado no gelo, Sidney acabou soltando o cinto de segurança e deitando no banco da frente, um dos braços cobrindo o rosto, por diversos minutos. Depois engrenou de novo e retornou à estrada mais uma vez. A despeito da evidente exaustão, seus pensamentos se sucediam tão depressa quanto o Explorer, com o seu potente motor V6. Jason ficara apavorado ao saber da reunião que ela ia ter com o pessoal da Triton. Provavelmente ele preparara a história da entrevista para uma emergência e classificara a reunião dela com Nathan Gamble e companhia como tal. Mas por quê? Em que poderia estar envolvido? Todos aqueles trabalhos noite adentro? Todas aquelas desculpas? O que ele andava fazendo? Deu uma espiada no relógio do painel e notou que o tempo avançava inexoravelmente na direção das quatro horas da manhã. Embora sua cabeça estivesse funcionando a toda velocidade, o resto do corpo não estava. Os olhos mal conseguiam ficar abertos e ela era obrigada a enfrentar a óbvia preocupação de onde passar o que restava daquela noite. Quando alcançou a Route 29, dobrou na direção sul, em vez de seguir para o norte, no caminho de volta para casa. Meia hora mais tarde atravessava as ruas desertas de Charlottesville. Passou pelo Holiday Inn e outras possibilidades de acomodações e finalmente saiu da Route 29 na Ivy Road. Em pouco tempo entrava no pátio de
estacionamento do Boar's Head Inn, um dos resorts mais conhecidos da região. Em menos de vinte minutos tinha se registrado e se acomodava entre as cobertas. Bem devagar, as pernas quase paralisadas de cansaço, em um quarto muito bem decorado com uma vista linda que no momento não lhe interessava nem um pouco. Que dia de pesadelos, todos absolutamente reais. Este foi seu último pensamento. Duas horas antes de o sol raiar, Sidney Archer finalmente caiu no sono.
CAPÍTULO DEZESSEIS ÀS TRÊS HORAS DA MANHÃ, hora de Seattle, nuvens grossas desaguaram ainda mais chuva na região. O guarda se encolheu na pequena guarita, pés e mãos próximos do aquecedor no chão. A um canto da estrutura um fio constante de água escorria pela parede, formando uma poça no carpete verde em péssimo estado. Ele verificou as horas, cansadamente. Quatro horas ainda para terminar seu turno. Serviu o que restava de café da garrafa térmica, ansiando por uma cama quente. Cada prédio era alugado por uma empresa diferente. Alguns simplesmente permaneciam vazios, mas em todos, independente do que pudessem conter, havia guardas armados vinte e quatro horas por dia. A alta cerca de metal tinha arame farpado no topo, embora não do tipo letalmente cortante usado pelas penitenciárias. Monitores de vídeo, instalados com discrição, vasculhavam toda a área. Um lugar que devia ser difícil entrar sem ser percebido. Difícil, mas longe de ser impossível. O vulto estava vestido de preto da cabeça aos pés. Precisou de menos que um minuto para galgar a cerca nos fundos do conjunto de armazéns, evitando habilmente o arame farpado. Uma vez transposta a cerca, ele foi entrando e saindo das sombras à medida que a chuva continuava a cair, abafando por completo os sons que seus pés ágeis faziam. Na manga esquerda tinha preso um dispositivo de tamanho reduzido destinado a impedir a clara transmissão de sinais eletrônicos. Passou por três câmaras de vídeo no caminho do seu destino; nenhuma delas captou sua imagem. Ao atingir a porta lateral do Armazém 22, puxou um arame fino da mochila e inseriu no cadeado robusto. Dez segundos mais tarde o cadeado estava aberto. Avançou pelos degraus de metal dois de cada vez, após esquadrinhar visualmente o interior do prédio com os óculos de visão notuma. Abriu a porta de um cômodo, iluminando o pequeno espaço com a lanterna elétrica. Abriu o armário que estava fechado à chave e removeu a câmera oculta. Guardou a fita de vídeo em uma divisão da mochila, recarregou a câmera e a recolocou no armário. Cinco minutos depois a área estava novamente tranquila. O guarda ainda não terminara a última xícara de café. Ao raiar do dia, um Gulfstream V levantou voo do aeroporto de Seattle. O vulto de preto agora vestia jeans e um blusão de manga comprida e dormia a sono solto em uma das luxuosas poltronas, o cabelo escuro caindo sobre o rosto jovem. Do outro lado do corredor, Frank Hardy, chefe da empresa especializada em segurança empresarial e contraespionagem industrial, lia atentamente cada página de um alentado relatório, enquanto o avião cortava o céu — agora claro — da manhã. Os últimos vestígios do assalto da noite anterior tinham finalmente sido anulados. Dentro de uma valise de metal ao alcance da sua mão estava a fita de vídeo que fora removida da câmera no armário. O comissário de bordo apareceu e serviu outra xícara de café para o único passageiro acordado. Os olhos de Hardy detiveram-se na valise de metal. Seguindo um antigo hábito, seus dedos
acompanharam o desenho das rugas de preocupação estampadas na testa. Até que deixou de lado o relatório, recostou-se e ficou olhando pela janela, enquanto a aeronave seguia no rumo leste. Tinha muito em que pensar. Naquele exato momento não podia dizer que fosse um homem feliz. O queixo e as vísceras se contraíam à medida que o cintilante jato prosseguia velozmente. O Gulfstream alcançou a altitude de cruzeiro do voo que terminaria na capital, Washington. Os raios do sol da manhã se refletiam no conhecido logotipo pintado na cauda. A águia planando nas alturas era o símbolo de uma organização sem concorrente. Mais conhecida em todo o mundo que a Coca-Cola, era mais temida que a maioria dos grandes conglomerados mundiais. Que por comparação, não passavam de velhos dinossauros aguardando que se concretizasse a constante ameaça da extinção. Assim, à medida que o século vinte e um se aproximava com brutal rapidez, a intrépida águia ia abrindo caminho nos quatro cantos do mundo. A Triton Global queria tudo. Não faria por menos.
CAPÍTULO DEZESSETE UM GUARDA UNIFORMIZADO escoltou Lee Sawyer na travessia do imponente saguão do edifício Marriner Eccles, na Constitution Avenue, onde fica a sede do Conselho da Reserva Federal. Sawyer ficou pensando que as instalações correspondiam à enorme importância do órgão que as ocupava. Após subirem pela escada até o segundo andar, os dois homens pararam diante de uma porta de madeira pesada em que o acompanhante de Sawyer bateu. As palavras "Pode entrar" foram ouvidas. Sawyer entrou e viu-se em um escritório acolhedor, grande e bem mobiliado. As estantes que iam do chão ao teto, a mobília escura e a ornamentação davam um ar de gravidade ao ambiente. As cortinas grossas estavam fechadas. Uma luminária verde brilhava sobre a mesa grande com o tampo forrado de couro. O cheiro dos charutos flutuava no ar, por toda a parte; Sawyer quase podia ver a fumaça, como aparições fantasmagóricas. Fez com que ele se lembrasse dos gabinetes de trabalho dos seus professores na universidade. Um fogo baixo ardia na lareira, proporcionando luz e calor ao aposento. Quando um homem corpulento girou na cadeira atrás da mesa, a atenção de Sawyer imediatamente fixou-se nele. O rosto volumoso muito corado abrigava olhos azuis-claros que pareciam duas fendas estreitas cercados de pele e das sobrancelhas mais grossas que Sawyer já vira. O cabelo era branco e farto e o nariz largo tinha a ponta ainda mais vermelha que o rosto. Por um breve momento, Sawyer, rindo intimamente, imaginou estar diante de Papai Noel. O homem se levantou e sua voz grave e refinada encheu a sala, envolvendo Lee Sawyer e afastando todos os pensamentos jocosos desse gênero. — Agente Sawyer, sou Walter Burns, vice-presidente do Conselho da Reserva Federal. Sawyer adiantou-se para apertar a mão flácida. Burns era alto como Sawyer, mas carregava cinquenta quilos a mais que o agente do FBI. Sawyer sentou-se na cadeira de couro indicada por Burns. Quando este também se sentou, Sawyer notou que se movia com uma elegância que não era incomum em homens grandalhões. — Agradeço por me receber — disse Sawyer. Burns o fitou com um olhar penetrante. — Posso considerar que o envolvimento do FBI nesta questão significa a possibilidade de não ter sido meramente um problema mecânico ou similar que provocou a queda do aparelho? — Estamos verificando todas as possibilidades. Até agora nada foi considerado como fora de propósito, senhor. — As feições de Sawyer não revelaram qualquer emoção. — Meu nome é Walter, agente Sawyer. Como ambos somos membros do por vezes desajeitado sistema conhecido como governo federal, penso que isso nos permite o prazer de nos tratarmos pelo primeiro nome. Sawyer sorriu. — Meu nome é Lee.
— O que posso fazer por você, Lee? O barulho da chuva gelada na janela aumentou e uma friagem repentina pareceu invadir a sala. Burns levantou e aproximou-se da lareira, fazendo um gesto para Sawyer o acompanhar. Enquanto Burns jogava no fogo pedacinhos de lenha tirados de um balde de metal, Sawyer folheou seu caderninho e estudou rapidamente algumas anotações. Quando Burns sentou-se, Sawyer estava pronto. — Creio que muita gente não tem ideia do que o Sistema da Reserva Federal faz. Isto é, gente de fora do mercado financeiro. Burns esfregou um olho e Sawyer quase ouviu uma risada escapar dos lábios dele. — Se eu fosse um homem que gostasse de apostar, estaria inclinado a colocar muito dinheiro no fato de que metade da população deste país não tem sequer ideia da existência do Sistema da Reserva Federal, e que nove entre dez pessoas nem desconfiam de qual seja a nossa real finalidade. Devo confessar que encaro esta anonimidade como muitíssimo reconfortante. Sawyer fez uma pausa e aproximou-se um pouco de Burns: — Quem se beneficiaria da morte de Arthur Lieberman? Não digo sob o ponto de vista pessoal, refiro-me ao lado profissional. Como presidente do Conselho da Reserva Federal. Os olhos de Burns arregalaram-se até que as fendas atingiram a forma de meias-luas, o que era mais ou menos o limite de suas possibilidades. — Você está sugerindo que alguém possa ter derrubado aquele avião a fim de matar Arthur? Se me permite, devo dizer que acho muito difícil acreditar numa coisa dessas. Não falei que fosse este o caso. Quer dizer, estamos examinando todas as possibilidades. — Sawyer falou baixo, como se temesse ser ouvido. — O fato é que estudei detidamente a relação de passageiros e o seu colega era a única pessoa muito importante a bordo. Se foi uma sabotagem deliberada, uma razão que salta aos olhos seria a de matar o presidente do Conselho. — Ou então foi um ataque terrorista planejado e Arthur simplesmente teve a falta de sorte de se encontrar a bordo. Sawyer sacudiu a cabeça. — Se estamos tratando de sabotagem, então não acredito que a presença de Lieberman no aparelho fosse uma coincidência. Burns recostou-se na cadeira e lentamente esticou os pés na direção do fogo. — Meu Deus! — disse ele, finalmente, os olhos fixos no fogo. Ele parecia bem à vontade no seu paletó esporte de pêlo de camelo, suéter azul-escuro deixando aparecer o colarinho abotoado da camisa branca, calças cinza e confortáveis mocassins pretos. Sawyer notou que os pés dele eram surpreendentemente pequenos para o seu tamanho. Nenhum dos dois homens falou por pelo menos um minuto. Sawyer finalmente quebrou o silêncio: — Sei que não preciso lembrar que tudo o que eu lhe disser hoje será absolutamente confidencial. A cabeça de Burns virou-se na direção do agente do FBI. — Segredos são uma coisa que sei guardar, Lee.
— Então, voltando à minha pergunta: quem se beneficia? Burns avaliou a indagação por alguns momentos e por fim respirou fundo. — A economia dos Estados Unidos é a maior do mundo. Assim sendo, para onde forem os Estados Unidos irá o mundo. Se um país hostil desejasse prejudicar a nossa economia ou abalar os mercados financeiros do mundo, conseguiria seus objetivos perpetrando uma atrocidade dessas. Não tenho dúvida de que será um tremendo golpe nas finanças mundiais caso seja descoberto que a morte de Lieberman foi premeditada. — O vicepresidente sacudiu a cabeça tristemente. — Nunca pensei que um dia veria uma coisa dessas acontecer. — E aqui dentro do país mesmo, quem poderia gostar de ver o presidente morto? — perguntou Sawyer. — Há muito tempo existem teorias conspiratórias contra o Sistema da Reserva Federal pintadas em cores tão vivas que tenho certeza de que é relativamente grande o número de pessoas que nelas acredita, por mais tolas que sejam. Os olhos de Sawyer se estreitaram. — Teorias conspiratórias? Burns tossiu e limpou a garganta sonoramente. — Há quem acredite que o Sistema da Reserva Federal é na verdade uma ferramenta para as famílias ricas de todo o mundo conservarem os pobres em seu devido lugar. Ou que recebemos ordens de um pequeno grupo de banqueiros internacionais. Já ouvi inclusive uma teoria de que somos títeres de estrangeiros infiltrados em todas as altas posições do governo. A propósito, minha certidão de nascimento assegura que nasci em Boston, Massachusetts. Sawyer sacudiu a cabeça. — Cristo, é muita maluquice. — Exatamente. Como se uma economia de sete trilhões de dólares empregando mais de cem milhões de pessoas pudesse ser administrada secretamente por um punhado de magnatas encasacados. — Quer dizer então que qualquer um desses grupos poderia ter tramado a morte do presidente em retaliação ao que consideram ser corrupção ou injustiça? — Bem, poucas instituições do governo são mais mal compreendidas e temidas que o Conselho da Reserva Federal. Quando você mencionou o problema pela primeira vez. eu disse que seria difícil de acreditar por ser altamente improvável. Após pensar no caso por alguns minutos devo dizer que minha primeira conclusão provavelmente não tenha sido correta. Mas explodir um avião... — Burns sacudiu a cabeça, cansado. Sawyer fez algumas anotações. — Eu gostaria de saber mais sobre o passado de Lieberman. — Arthur Lieberman era um homem imensamente popular nos círculos financeiros de maior importância. Durante anos foi um dos mais bem-sucedidos financistas de Wall Street, antes de passar para o serviço público. Arthur era muito objetivo e geralmente acertava em
seus julgamentos. Com uma série de manobras magistrais, sacudiu os mercados financeiros quase que desde o primeiro instante em que se tornou presidente do conselho. Mostrou quem mandava. — Burns fez uma pausa para colocar outro pedaço de lenha no fogo. — Na verdade ele presidia o Conselho como eu acho que dirigiria se me dessem a oportunidade. — Alguma ideia sobre quem será o substituto? Burns sacudiu a cabeça. Não. — Mais ou menos à mesma hora em que ele viajou para Los Angeles, tinha acontecido alguma coisa de diferente no Conselho? Burns deu de ombros. — Tivemos a reunião da Comissão no dia quinze de novembro, mas foi um evento comum, marcado com antecedência. Sawyer pareceu intrigado. — Comissão? — Comissão Federal do Mercado Aberto. É uma comissão de importância fundamental no Sistema da Reserva Federal, responsável pelo estabelecimento das políticas monetárias de curto prazo. — O que acontece nessas reuniões? — Bem, resumidamente, os sete membros do Conselho e os presidentes de cinco dos doze bancos da Reserva Federal examinam todos os dados financeiros pertinentes à economia e decidem quanto à necessidade de alguma ação relativa à oferta de moeda e taxas de juros. Sawyer aquiesceu. — Quando a Reserva Federal aumenta ou diminui as taxas de juros, por exemplo, isso afeta toda a economia do país. Contraindo-a ou expandindo-a. — Pelo menos é o que pensamos — replicou Burns, sarcástico. — Embora nossas ações nem sempre tenham o resultado que desejamos. — Houve alguma coisa de diferente nessa reunião? — Não. — Mesmo assim, você poderia me dar uma ideia exatamente do que foi dito e por quem? Pode parecer irrelevante, mas se dispusermos de um motivo teremos facilidade para descobrir quem quer que tenha feito isso. A voz de Burns subiu uma oitava. — Impossível. As deliberações tomadas nas reuniões da Comissão são absolutamente confidenciais e não podem ser divulgadas nem para você nem para nenhuma outra pessoa. — Walter, não quero forçar a barra agora, mas com o devido respeito, se alguma coisa discutida nessas reuniões for relevante para a investigação realizada pelo FBI, fique certo de que teremos acesso a ela. — Sawyer encarou Burns, sustentando seu olhar, até que Burns abaixou o rosto. — Um relatório sucinto com a minuta da reunião é liberado de seis a oito semanas após a sua realização — disse Burns vagarosamente. — Mas apenas após a ocorrência da reunião seguinte. Os resultados reais da reunião, quer alguma ação tenha sido tomada ou não, são divulgados no mesmo dia.
-Li no jornal que a Reserva Federal não mexeu nas taxas de juros. Burns contraiu os lábios e olhou para Sawyer. — Isto mesmo, não ajustamos as taxas de juros. — Como é exatamente que vocês ajustam os juros? — Na verdade há duas taxas de juros que são diretamente controladas pelo Conselho, Lee. A taxa de juros dos Fundos da Reserva Federal, ou taxa do mercado interbancário, é a taxa cobrada pelos bancos a outros bancos que necessitem de empréstimos para atender a exigências de reserva. Se os juros interbancários subirem ou descerem, as taxas de juros dos certificados de depósitos ou CDs, das letras do Tesouro, hipotecas e papéis de curto prazo logo também subirão ou descerão. A Reserva Federal estipula as taxas dos Fundos da Reserva Federal nas reuniões da Comissão Federal do Mercado Aberto. Depois o Banco da Reserva Federal de Nova York compra ou vende papéis do governo, o que, por sua vez, expande ou restringe a oferta da moeda de que, os bancos dispõem, a fim de que haja certeza de que a taxa de juros determinada seja mantida. Chamamos a isso de aumentar ou reduzir a liquidez. Foi como Arthur segurou o touro à unha ao assumir a presidência: ajustando a taxa de juros dos Fundos da Reserva Federal de um modo tal que o mercado não pôde antecipar nada. A segunda taxa de juros que pode ser afetada pela Reserva Federal é a taxa de desconto, que é a taxa cobrada aos bancos pelos empréstimos feitos pelo banco da Reserva Federal. São os chamados empréstimos de liquidez, que devem ser emergenciais e por isso são recebidos ou transacionados no que se chama de "guichê do último recurso". Os bancos que recorrem a este guichê com excessiva frequência serão inspecionados mais detalhadamente, já que isso é visto como sinal de fraqueza no setor bancário. Exatamente por este motivo a maioria dos bancos prefere levantar dinheiro com outros bancos, pagando uma taxa ligeiramente maior que a taxa de juros dos Fundos da Reserva Federal, já que não há estigma neste canal de crédito. Sawyer decidiu mudar de direção. — Tudo bem, Lieberman vinha se comportando estranhamente? Alguma coisa o aborrecia? Ameaças que sejam do seu conhecimento? Burns sacudiu a cabeça. — Esta viagem a Los Angeles de Lieberman era uma coisa comum? — Muito comum. Arthur ia se encontrar com Charles Tiedman, presidente do Banco da Reserva Federal de San Francisco. Arthur era muito bom nisso de se relacionar com os presidentes. e ele e Charles eram velhos amigos. — Espere um minuto. Se Tiedman preside o banco de San Francisco, por que Lieberman pegou um avião para Los Angeles? — Há uma filial do banco lá. E também porque Charles e a mulher moram em Los Angeles e Arthur ia se hospedar com eles. — Mas ele acabara de ver Tiedman. na reunião do dia quinze de novembro. — É verdade. Mas a viagem de Arthur a Los Angeles foi planejada com muita antecedência. Por acaso, ocorreu logo depois da reunião da Comissão. No entanto, eu sei que ele estava ansioso para conversar com Charles.
Sabe o motivo? Burns sacudiu a cabeça. — Você teria que perguntar a Charles. — Mais alguma coisa que possa me ajudar? Burns pensou na pergunta por um instante e sacudiu a cabeça de novo. — Não consigo pensar em nada do passado de Arthur que levasse a esta coisa abominável. Sawyer levantou-se e apertou a mão de Burns. — Agradeço a colaboração, Walter. Quando Sawyer virou-se para sair, Burns agarrou seu ombro. Agente Sawyer, a informação de que dispomos no banco é tão valiosa que o menor descuido pode render lucros inacreditáveis para os indivíduos errados. Acho que com o passar dos anos fui me tornando extremamente lacônico para impedir um vazamento indesejado. Eu entendo. Burns pôs uma mão flácida na porta enquanto Sawyer abotoava o casaco. — E então, vocês já têm algum suspeito? O agente virou-se para Burns. -Desculpe, Walter, mas temos os nossos segredos lá no FBI também. Henry Wharton estava sentado à sua mesa, batendo nervosamente com o pé no piso acarpetado. O sócio gerente da Tyler e Stone era pequeno em estatura, mas grande em sua capacidade Como advogado. Parcialmente calvo, com um bigode grisalho aparado, era o protótipo do sócio sênior de uma importante firma de advocacia. Depois de representar durante trinta e cinco anos a elite das empresas americanas, Wharton não se deixava intimidar facilmente. No entanto, se alguém chegara perto de conseguir tal resultado, era o homem sentado à sua frente. — Então isso foi tudo o que ela contou? Que não sabia que o marido se encontrava no avião? — perguntou Wharton. Os olhos de Nathan Gamble estavam semicerrados quando ele examinou as mãos. Logo em seguida encarou Wharton. O movimento fez o advogado estremecer ligeiramente. — Eu só perguntei isso a ela. Wharton sacudiu a cabeça tristemente. — Oh, eu entendo. Bem, eu sei que quando falei com ela, vi que estava arrasada. Pobrezinha. Que choque, uma notícia daquelas assim de repente. E... Wharton interrompeu-se quando Gamble se levantou e foi até a janela por trás da mesa do advogado. Observou a paisagem de Washington à luz do sol do fim da manhã. — Ocorreu-me, Henry, que seria melhor que as outras indagações fossem formuladas por você. — Gamble apoiou uma mão enorme sobre o ombro estreito de Wharton e apertou-o delicadamente. Wharton apressou-se a concordar, balançando a cabeça. — Sim, sim, posso entender por que você pensou desse modo. Gamble examinou lentamente os numerosos diplomas conferidos por universidades de prestígio que forravam uma das paredes do amplo escritório de Wharton.
— Impressionante — comentou. — Nunca cheguei a concluir o segundo grau. Não sei se você sabia disso. — Ele olhou por cima do ombro para o advogado. — Eu não sabia — disse Wharton, baixinho. — Acho que me saí bem para um cara que não chegou a se formar. — Gamble sacudiu os ombros grandes. — Mas que declaração modesta. O seu sucesso não tem paralelo — retrucou Wharton rapidamente. Droga, comecei do nada, provavelmente terminarei do mesmo modo. — Eu dificilmente pensaria assim. Gamble endireitou um dos diplomas. Depois se virou para Wharton. — Deixa eu lhe dizer uma coisa, é óbvio para mim que Sidney Archer sabia que o marido estava naquele avião. Wharton sobressaltou-se. — Está dizendo que pensa que Sidney mentiu para você? Com todo respeito, Nathan, não consigo acreditar nisso. Gamble voltou a sentar-se. Wharton estava prestes a falar de novo, mas o outro fixou nele um olhar que o congelou na cadeira. — Jason Archer trabalhava num projeto importantíssimo para mim. Organizava todos os registros financeiros da Triton para a transação com a CyberCom. O cara era um gênio da computação. Tinha acesso a tudo. A tudo! — Vagarosamente, Gamble apontou um dedo na direção da mesa. Wharton, nervoso, esfregou as mãos, mas ficou em silêncio. — Agora, Henry, você sabe que a CyberCom é um negócio que eu tenho de fazer... pelo menos é o que todo mundo vive me repetindo. — Uma empresa complementa a outra de forma absolutamente brilhante — arriscou Wharton. — Algo assim. — Gamble puxou um charuto que levou um minuto para acender. Soprou a fumaça na direção geral de Wharton. — De qualquer maneira, de um lado tenho Jason Archer tomando conhecimento de todas as minhas coisas e do outro lado tenho Sidney Archer comandando minha equipe para realizar o negócio com a CyberCom. Você está me entendendo? A expressão de Wharton era de total assombro. — Receio que não, não estou... — Há outras empresas por aí que desejam a CyberCom tanto quanto eu. Pagariam muito dinheiro para pôr as mãos nos termos da minha proposta. Assim teriam condições de me ferrar. Não gosto de ser ferrado, pelo menos não desse jeito. Você entende? — Sim, certamente, Nathan. Mas como... — E você sabe que uma das empresas que gostariam de pôr as mãos na CyberCom é a RTG. — Nathan, se você está sugerindo... — Sua firma também representa a RTG. — Nathan, você sabe que tomamos as providências devidas para cuidar disso. Esta firma
não está representando a RTG na aquisição da CyberCom, de qualquer modo ou maneira. — Philip Goldman ainda é sócio aqui, não é? E ainda é um dos chefões da RTG, não é? — Claro. Não poderíamos pedir para que saísse. Tratava-se meramente de um conflito de cliente, e um conflito pelo qual a compensação foi mais do que adequada. Philip Goldman não está trabalhando com a RTG na sua proposta de compra da CyberCom. — Você tem certeza? — Absoluta — respondeu Wharton rapidamente. Gamble alisou o peito da camisa. — Você mandou que seguissem Goldman e seus sócios vinte e quatro horas por dia, grampeassem seus telefones, lessem sua correspondência? — Não, claro que não! — Então você dificilmente pode ter certeza absoluta de que ele não está trabalhando em favor da RTG e contra mim, pode? — Tenho a palavra dele — disse Wharton laconicamente. — E temos certos controles instalados. Gamble brincou com um anel de desenho elegante em um dos dedos. — Mesmo assim, você não pode saber exatamente as intenções de seus outros sócios, inclusive de Sidney Archer, pode? — Ela é a pessoa mais íntegra que já conheci, para não falar que é extremamente capaz e inteligente. — Wharton, ofendido, agora reagia com fúria. — E no entanto ignorava por completo que o marido tinha tomado um avião para Los Angeles. onde, por acaso, a RTG fica sediada. É uma coincidência e tanto, não acha? — Você não pode culpar Sidney pelas ações do marido. Gamble tirou o charuto da boca e removeu cuidadosamente um fio de linha do paletó. — Quanto representa o total do faturamento anual da Triton para a sua firma, Henry? Vinte milhões? Quarenta? Posso conseguir o número exato quando voltar para o escritório. É mais ou menos nessa faixa, não concorda? — Gamble levantou-se. — Agora, já trabalhamos juntos há alguns anos. Você conhece o meu estilo. Quem pensa que leva vantagem comigo, está muito enganado. Posso levar tempo, mas a faca sempre volta e corta duas vezes mais fundo do que me cortou. — Gamble pôs o charuto em cima da mesa de Wharton, colocou as mãos com as palmas para baixo sobre o tampo de couro e inclinouse para a frente de modo a ficar a uns trinta centímetros do rosto de Wharton. — Se eu perder a CyberCom porque fui traído pelo meu próprio pessoal, quando revidar vai ser como o grande e velho Mississipi numa cheia. Uma porção de vítimas em potencial nas margens inundadas, a maioria de inocentes, só que não vou perder meu tempo separando inocentes de culpados. Está me entendendo? — O tom da voz de Gamble era baixo e calmo e no entanto atingiu Wharton como um soco. Wharton engoliu em seco, ao mesmo tempo em que encarava os intensos olhos castanhos do chefe da Triton. — Creio que sim, estou entendendo. Gamble vestiu o sobretudo e pegou o resto do charuto.
— Tenha um bom dia, Henry. Quando estiver com Sidney, diga a ela que mandei lembranças. Era uma da tarde quando Sidney tirou o Ford do estacionamento do Boar's Head e rapidamente voltou para a Route 29. Passou pelo velho ginásio — o Memorial Gymnasium — onde muito suara nos intervalos das rigorosas aulas da escola de direito. Parou no estacionamento coberto do Corner, um ponto do encontro favorito de seus colegas da universidade, com numerosas livrarias, restaurantes e bares. Entrou num dos bares e pediu uma caneca de café e um exemplar do Washington Post. Sentou-se a uma das pequenas mesas de madeira e deu uma olhada nas manchetes do jornal. Quase caiu da cadeira. As letras em negrito eram grossas e atravessavam a página com a urgência que seu conteúdo merecia. ARTHUR LIEBERMAN PRESIDENTE DO CONSELHO DA RESERVA FEDERAL MORTO EM DESASTRE DE AVIÃO. Ao lado da manchete havia um retrato do homem. Sidney viu-se atingida pelos olhos penetrantes dele. Leu rapidamente a história. Lieberman embarcara no voo 3223. Ele viajava mensalmente a Los Angeles a fim de se encontrar com o presidente do Banco da Reserva Federal de San Francisco, Charles Tiedman, e o malfadado voo da Western Airlines fora uma dessas excursões regulares. Sessenta e dois anos de idade e divorciado. Lieberman presidira o Conselho da Reserva Federal nos últimos quatro anos. O artigo devotava grande espaço à ilustre carreira de Lieberman como financista e o respeito que inspirava em todo o mundo. Na verdade, a notícia oficial de sua morte não fora dada senão agora, porque o governo estava se esforçando para impedir qualquer pânico na comunidade financeira. A despeito desse esforço, os mercados financeiros em todo o mundo começavam a sofrer. A matéria terminava com a notícia de uma cerimônia religiosa para Lieberman a ser realizada no domingo seguinte em Washington. Havia na primeira página outra matéria sobre o acidente. Nenhuma novidade, só que o Conselho Nacional de Segurança nos Transportes ainda estava investigando. Poderia se passar um ano antes que o mundo soubesse por que o voo 3223 terminara com o nariz do avião enterrado no milharal de um fazendeiro, em vez de aterrissar na pista asfaltada do aeroporto de Los Angeles. Condições atmosféricas, falha mecânica, sabotagem e tudo mais vinha sendo objeto de exame, mas por ora tudo não passava de especulação. Sidney terminou o café, livrou-se do jornal e pegou o celular na bolsa. Ligou para a casa dos pais e falou por algum tempo com Amy. Teve que insistir para arrancar algumas palavras dela, porque a filha ainda era tímida ao telefone. Em seguida levou alguns minutos conversando com a mãe e o pai. Em seguida ligou para sua própria secretária eletrônica. Acionou o dispositivo para reprodução das mensagens, e ouviu um bom número delas. Uma, contudo, se destacava claramente do resto: a de Henry Wharton. A firma tinha generosamente lhe concedido todo o tempo de que precisasse para lidar com sua tragédia pessoal. Por ora Sidney estava convencida de que nem todo o resto de sua vida seria
suficiente. Na gravação Henry pareceu-lhe preocupado, nervoso mesmo. Ela sabia o que aquilo significava: Nathan Gamble fizera-lhe uma visita. Discou rapidamente o número tão conhecido e em um instante estava falando com o escritório de Wharton. Esforçou-se ao máximo para acalmar os nervos enquanto aguardava. Wharton era capaz de mostrar-se um inquisidor ou um mentor afável, dependendo de quem caía ou não nas suas graças. Sempre dera muito apoio a Sidney. Mas agora? Respirou fundo quando ele pegou o aparelho. — Olá, Henry. — Sid, como é que você está se sentindo? — Ainda estou confusa diante de tudo, para falar a verdade. — É assim mesmo. Você vai resistir. Pode não parecer, mas vai sim. Você é forte. — Obrigada pela força, Henry. Sinto-me péssima por deixar você numa posição difícil. Com esse negócio da CyberCom e tudo. — Eu sei, Sidney. Não se preocupe com isso. — Quem está liderando o grupo? — Ela quis evitar entrar direto no assunto de Gamble. Wharton não respondeu prontamente. Quando falou, sua voz estava mais contida, mais baixa. — Sid, o que é que você acha do Paul Brophy? A pergunta pegou-a de surpresa, mas trouxe um alívio bem-vindo. Talvez tivesse se enganado sobre Gamble ter falado com Wharton. — Eu gosto do Paul, Henry. — Sim, sim, eu sei. Ele é um rapaz agradável e talentoso, capaz de conseguir excelentes resultados em tudo o que faz, é articulado, sabe negociar. Sidney falou lentamente. — Você quer saber se ele pode liderar a equipe na aquisição da CyberCom? — Como você sabe, ele esteve envolvido até agora. Mas a negociação já está adiantada. Quero manter o círculo de advogados com acesso tão limitado quanto possível. Você sabe por quê. Não é segredo o nosso problema potencial com Goldman por causa da RTG. Não quero que haja nem sinal de impropriedade. Também só quero gente habilidosa naquela equipe, gente que possa contribuir com real substância para o processo. Gostaria de sua opinião sobre ele nessas circunstâncias. — Esta conversa é confidencial? — Totalmente. Sidney falou com autoridade, grata por estar analisando, pelo menos naquele instante, alguma outra coisa que não a sua perda pessoal. — Henry, você sabe tão bem quanto eu que negócios tão complexos quanto este são como jogos de xadrez. Você tem que ver cinco ou seis lances na frente. E não há segunda chance. Paul tem um futuro brilhante. Mas não possui a amplitude de visão para o negócio, ou a atenção para o detalhe. Não tem lugar para ele na equipe da negociação final da aquisição da CyberCom.
— Muito obrigado, Sidney, esta é exatamente a minha opinião. — Henry, não creio que meus comentários sejam exatamente uma grande novidade para você. Por que ele estava sendo considerado? — Digamos que tenha manifestado um interesse muito forte em liderar a transação. Não é difícil entender o motivo; seria uma realização extremamente lucrativa para qualquer um. — Eu entendo. — Vou pôr Roger Egert como encarregado. — Ele é um advogado de primeira linha. — E só teve elogios para o seu trabalho até agora. "Perfeitamente posicionado", acho que foram estas as palavras dele. — Wharton fez uma pausa rápida. — Odeio pedir isto a você, Sidney, palavra de honra. — O quê, Henry? Ela ouviu ele deixar escapar um longo suspiro. — Bem, prometi a mim mesmo que não faria isso, só que se tornou absolutamente indispensável. — Ele fez nova pausa. — Henry, por favor, o que é? — Será que você podia tirar um tempo para dar uma palavrinha com Egert? Ele está quase pronto para agir, mas uns poucos minutos tratando com você dos aspectos estratégicos e táticos seriam de valor incalculável. Tenho certeza disso. Certamente que eu não lhe faria esse pedido, Sidney, se não fosse tão importante. De qualquer maneira, você terá que dar a ele o código de acesso do arquivo mestre do computador. Sidney cobriu o fone e suspirou. Sabia que Henry tinha boas intenções, mas com ele os negócios sempre vinham em primeiro lugar. — Eu ligo para Egert hoje, Henry. — Não me esquecerei, Sidney. A estática aumentou tanto que Sidney saiu do café para ter melhor recepção. Do lado de fora o tom de voz de Henry Wharton tinha mudado ligeiramente. — Recebi uma visita de Nathan Gamble hoje de manhã. Sidney parou de caminhar e apoiou-se na mureta de tijolinhos do bar. Fechou os olhos e trincou os dentes até que doessem. — Espanta-me que ele tenha esperado tanto tempo, Henry. — Ele estava um pouco agitado, Sid, para dizer o mínimo. Acredita firmemente que você mentiu para ele. — Henry, eu sei que parece chato. — Ela hesitou e acabou por resolver falar a verdade. — Jason me disse que tinha uma entrevista em Los Angeles. Obviamente não queria que a Triton soubesse. Fez com que eu jurasse segredo. Foi por isto que não contei a Gamble. — Sid, você é advogada da Triton. Não há segredos... — Ora vamos, Henry, estamos falando a respeito do meu marido. Ele se transferindo para outro emprego não ia prejudicar a Triton. E no contrato de Jason não havia uma cláusula de quarentena.
— Ainda assim, Sidney, me magoa ter que dizer isto, mas não estou seguro de que você tenha exercido seu melhor julgamento quanto a este assunto. Gamble afirmou muito enfaticamente que suspeitava que Jason estivesse roubando segredos da Triton. — Jason jamais faria uma coisa dessas! — Não é este o problema, e sim como o cliente vê o que se passa. Você ter mentido para Nathan Gamble não ajuda nada. Sabe o que aconteceria com a nossa firma se ele nos tirasse a conta da Triton? E não pense que ele não seja capaz. — A voz de Wharton ia subindo sempre de volume. — Henry, quando Gamble me perguntou de Jason na reunião, eu só tive talvez uns dois segundos para pensar. — Bem, pelo amor de Deus, por que não disse a Gamble a verdade? Como você mesma disse, ele não ia se importar. — Porque poucos segundos depois descobri que meu marido estava morto! Nenhum dos dois disse uma palavra por um instante; mesmo assim, era clara a presença de imenso atrito entre os dois. — Já se passou algum tempo — relembrou Wharton. — Se não queria contar ao pessoal da Triton, podia ter confiado em mim. Eu cuidaria de tudo para você. Agora, acredito que ainda possa emendar o acontecido. Gamble não pode responsabilizar a nós pelo fato do seu marido querer mudar de emprego. Não sei se Gamble se sentirá muito feliz em ter você tratando dos negócios dele no futuro, Sidney. Talvez o melhor seja tirar uma licença. Mas passará, contudo. Vou telefonar para ele agora mesmo. Quando Sidney falou, quase não foi possível ouvir sua voz. — Você não pode falar com Gamble a respeito da entrevista de Jason com uma outra empresa, Henry. — Como? — Você não pode. — Você se incomodaria em me dizer por quê? — Porque eu descobri que Jason não ia ter nenhuma entrevista com outra empresa. Tudo indica que... — Ela fez uma pausa e reprimiu um soluço. — Tudo indica que ele mentiu para mim. Quando Wharton falou de novo, mal conseguiu conter a raiva. — Não sei como lhe dizer o dano irreparável que esta situação pode causar e que pode muito bem já ter causado. — Henry, eu não sei o que está acontecendo. Estou lhe contando tudo o que sei, o que não é muito. — O que é exatamente o que devo dizer a Gamble? Ele está esperando uma resposta. — Ponha a culpa em mim, Henry. Diga a ele que não conseguiu falar comigo. Que não estou atendendo o telefone. Você está trabalhando nisso e que eu não voltarei ao escritório da firma enquanto você não esclarecer tudo. Wharton avaliou a sugestão por um momento. — Acho que pode funcionar. Pelo menos temporariamente. Agradeço por assumir responsabilidade pela situação, Sidney. Sei que você não é a culpada, mas a firma
certamente não deve sofrer. Esta é a minha principal preocupação. — Eu compreendo, Henry. Nesse meio tempo, vou me esforçar ao máximo para descobrir o que está acontecendo. — Tem certeza de que é isso o que quer? — Tendo em vista as circunstâncias, Wharton sentiu-se compelido a fazer a pergunta, embora estivesse certo da resposta. — Eu tenho escolha, Henry? — Nossas orações estarão com você, Sidney. Ligue se precisar de alguma coisa. Somos uma família aqui na firma. Cuidamos uns dos outros. Sidney desligou e guardou o telefone. As palavras de Wharton a tinham ferido profundamente, mas talvez estivesse sendo ingênua. Ela e Henry eram amigos e colegas de profissão até determinado ponto. Aquela conversa servira para destacar a superficialidade da maior parte dos relacionamentos profissionais. Se você é produtivo, não causa problemas, ajuda a fazer o bolo crescer, não tem com que se preocupar. Agora, quando se vira transformada de repente em uma viúva com uma filha para criar, tinha que ter cuidado para que sua carreira de advogada não acabasse de uma hora para outra. Precisava incluir este problema a todos os outros com que tinha que se defrontar. Pegou o calçamento de tijolos, cortou a Ivy Road e dirigiu-se para o famoso prédio da Rotunda. Tinha aberto seu caminho através do igualmente famoso gramado do campus, onde a elite dos estudantes da universidade vivia em pequenos alojamentos que pouco haviam mudado desde os tempos de Thomas Jefferson, tendo lareiras como única fonte de aquecimento. A beleza simples do campus a cativava sempre que o visitava. Agora, não chegou a notar a bela paisagem emoldurada por uma perfeita manhã de final de outono. Tinha muitas perguntas a fazer e era hora de começar a conseguir algumas respostas. Sentou-se na escadaria da Rotunda e mais uma vez pegou o telefone na bolsa. Digitou um número. O sinal tocou duas vezes. — Triton Global. — Kay? perguntou Sidney. Sid? — Kay Vincent era a secretária de Jason. Gorda, com cerca de cinquenta anos, adorava Jason e chegara inclusive a tomar conta de Amy em diversas ocasiões. Sidney gostara dela desde o princípio, as duas compartilhando pontos de vista comuns sobre maternidade, trabalho e homens. — Kay, como vai? Desculpe não ter telefonado antes. — Como é que eu estou? Oh, meu Deus, Sid... Sinto muito. Sinto demais. Sidney podia ouvir as lágrimas na voz da outra mulher. — Eu sei, Kay. Eu sei. Foi tudo tão de repente. Tão... — Sidney não conseguiu continuar falando. Teve que fazer um esforço enorme para se controlar. Precisava de saber algumas coisas e Kay Vincent era a fonte de informação mais honesta possível. — Kay, você sabe que Jason tirou uns dias de folga. — Certo, ele ia pintar a cozinha e arrumar a garagem. Andou falando nisso a semana inteira.
— Ele nunca chegou a falar na viagem a Los Angeles com você? — Não. eu fiquei chocada ao saber que estava naquele avião. — Apareceu alguém aí para falar com você sobre o Jason? — Muita gente. Todo mundo ficou abaladíssimo. — O que me diz de Quentin Rowe? — Apareceu diversas vezes. — Kay fez uma pausa e perguntou: Sid, por que tantas perguntas? — Kay, isto tem que ficar só entre nós, OK? — Está certo. — Ela pareceu relutante. — Eu achava que Jason estava indo a Los Angeles para uma entrevista de trabalho com outra empresa porque foi o que ele me disse. Recentemente descobri que não era verdade. — Meu Deus! Enquanto Kay digeria lentamente a notícia, Sidney arriscou outra pergunta. — Kay, você é capaz de pensar em alguma razão que possa explicar o motivo de Jason ter mentido para mim a esse respeito? Ele estava agindo de forma estranha no trabalho? A pausa desta vez foi considerável. — Kay? — Sidney agitou-se um pouco, irrequieta. O frio que vinha dos tijolos do chão começava a incomodar. Levantou-se abruptamente. — Sid, nós aqui temos regras muito rígidas sobre discutir quaisquer dos negócios da empresa. Não quero me meter em confusão. — Eu sei disso, Kay. Trabalho como advogada para a Triton, lembra? — Bem, isto é um pouco diferente. — A voz de Kay silenciou. Sidney começou a imaginar se não teria desligado, mas ela fez-se ouvir de novo. — Pode ligar para mim de noite? Eu realmente não quero usar minhas horas de trabalho falando a este respeito. Estarei em casa por volta das oito da noite. Você ainda tem o meu número de casa? — Tenho, Kay. Obrigada. Kay Vincent desligou sem dizer mais uma palavra. Jason raramente discutia os negócios da Triton com Sidney, embora, como advogada da firma Tyler e Stone, vivesse imersa em numerosos assuntos da empresa. Seu marido encarava as responsabilidades éticas de sua posição muito seriamente. Sempre tomara muito cuidado para não colocar a mulher em situação difícil. Pelo menos até agora. Sidney foi caminhando vagarosamente de volta para o estacionamento onde deixara o carro. Depois de pagar ao funcionário, dirigiu-se para o carro. Teve a impressão de ver aquele homem de novo, mas ao se virar de repente, ele tinha desaparecido na esquina. Apressou o passo até a rua mais próxima do estacionamento e deu uma espiada. Ninguém à vista. Havia, contudo, numerosas lojas. O homem podia ter desaparecido em qualquer uma delas em questão de segundos. Ela o vira pela primeira vez quando se sentara na escada da Rotunda. Ele estava atrás de uma das muitas árvores espalhadas pela área gramada. Preocupada com a conversa que estava tendo com Kay, não se importara, achando que ele a estivesse olhando pela razão óbvia, por ser mulher. Era um homem alto, um metro e oitenta no mínimo, magro e vestia um sobretudo escuro. Tinha o rosto parcialmente coberto pelos óculos escuros e a gola do sobretudo virada para cima, o que escondia ainda mais suas feições. Um chapéu marrom cobria-lhe os cabelos, mas ela conseguiu notar que era claro, louro-avermelhado talvez. Por um breve momento perguntou-se se não teria acrescentado
à sua lista crescente de problemas mais um: a paranóia. Não ia se preocupar com isso agora. Tinha que ir para casa. Amanhã pegaria a filha. Só então lembrou que sua mãe mencionara uma cerimônia fúnebre para Jason. Os detalhes teriam que ser repetidos depois. Em meio ao mistério que cercava o último dia de vida do marido, a lembrança de um serviço fúnebre trouxe de volta a consciência esmagadora de que Jason estava mesmo morto. Não importava como a enganara ou por que razão o fizera, ele estava morto. Sidney voltou para casa.
CAPÍTULO DEZOITO SOB A MASSA DE NUVENS que rapidamente ia cobrindo o céu muito azul, o vento frio fustigava o local do acidente. Exércitos de pessoas caminhavam pelo terreno, marcando os destroços com bandeiras vermelhas, formando uma massa escarlate no milharal. Perto da cratera havia um guindaste com uma caçamba grande o bastante para caber dois homens. Um outro guindaste igual podia ser visto acima da cratera, o cabo comprido com a caçamba sumidos nas profundezas daquele inferno de destroços. Outros cabos presos a guinchos motorizados instalados em caminhões plataformas desciam como cobras, sinuosos, no buraco. Havia outras máquinas pesadas em torno, prontas para a escavação final da cratera aberta pelo impacto. A parte mais crítica, a caixa preta, ainda não tinha sido desenterrada. Do lado de fora das barricadas inúmeras barracas haviam sido montadas. Serviam como depósitos das provas recolhidas para uma análise no local. Em uma delas George Kaplan colocava o café quente de sua garrafa térmica em duas canecas. Deu uma rápida olhada na área. Por sorte a neve havia parado com a mesma rapidez com que começara. A temperatura, contudo, permanecera fria e a previsão do tempo falava em mais neve. Ele sabia que não era uma boa coisa. A neve tornaria o que já era um pesadelo logístico em algo ainda mais desencorajador. Kaplan passou uma das canecas fumegantes a Lee Sawyer, que o acompanhara na avaliação do local do acidente. — Foi uma boa aposta, aquela do tanque de combustível, George. Era uma evidência muito pequena, mas o exame de laboratório demonstra que usaram um velho conhecido extremamente confiável: o ácido clorídrico. Os testes indicam que deve ter corroído a liga de alumínio em duas ou quatro horas. Mais rápido ainda se o ácido fosse aquecido antes. Não parece ser acidental. Kaplan resmungou. — É, não dá para imaginar um mecânico andando pela pista e derramando acidentalmente um pouco de ácido clorídrico no tanque de combustível. — Nunca pensei que fosse acidente, George. Kaplan ergueu as mãos num pedido de desculpas. — E se pode carregar o ácido clorídrico dentro de um recipiente plástico, pode até usar um conta-gotas para determinar o quanto você está aplicando. O plástico não aciona o detector de metais. Foi uma boa ideia. — O rosto de Kaplan exprimia sua revolta. Ele ficou olhando para o local do impacto por mais alguns segundos e se virou para Sawyer. — Definir com precisão o tempo que a coisa levou para ocorrer é útil. Reduz o tamanho da lista de possíveis suspeitos que teriam acesso ao aparelho. Sawyer fez que sim. — Estamos trabalhando nisso neste exato momento. — Ele tomou um longo gole de café. — Você acha mesmo que alguém ia explodir um avião cheio de gente só para liquidar um
cara? — Pode ser. — Meu Deus do céu, não quero parecer insensível, mas se você quer matar um sujeito, por que simplesmente não o pega na rua e enfia uma bala na sua cabeça? Por que isto aqui? — Ele apontou para a cratera e depois arriou na cadeira, os olhos semicerrados, uma das mãos esfregando a têmpora esquerda. Sawyer sentou-se em uma das cadeiras de dobrar. — Não estamos certos de que seja este o caso, mas Lieberman era o único passageiro no avião capaz de atrair esse tipo de atenção especial. — Por que tanto trabalho para matar o presidente do Conselho da Reserva Federal? Sawyer ajeitou o casaco quando o vento frio penetrou no interior da barraca. — Bem. o mercado financeiro sofreu um baque tremendo quando foi divulgada a notícia da morte de Lieberman. O índice Dow Jones caiu quase mil e duzentos pontos, ou vinte e cinco por cento do seu total. Em dois dias. Isto faz o crack de 1929 parecer um soluço. No exterior o desastre foi semelhante. — Sawyer ficou encarando Kaplan. — E espere até que vaze a versão de sabotagem sofrida pelo avião, que Lieberman pode ter sido morto deliberadamente. Quem diabo sabe o que isso irá detonar? Kaplan arregalou os olhos. — Puxa! E tudo só por um cara? Como eu mesmo disse, alguém matou o Super-homem. — Você tem então um monte de suspeitos: governos estrangeiros, terroristas internacionais, certo? — Kaplan sacudiu a cabeça ao avaliar o número de bandidos existentes na esfera cada vez menor que é o planeta. Sawyer deu de ombros. — Vamos dizer apenas que não será um criminoso comum. Os dois homens silenciaram e mais uma vez fixaram os olhos no local do desastre. O cabo do guindaste reverteu a direção e em menos de dois minutos a caçamba carregando dois homens apareceu acima do fosso. O braço do guindaste girou e delicadamente pousou a caçamba no chão. Os dois homens saltaram, com alguma dificuldade. Sawyer e Kaplan observaram, com ansiedade crescente, a dupla correr na direção deles. O primeiro a chegar foi um rapaz cujo cabelo louro muito claro escondia parcialmente as feições angelicais. Trazia numa das mãos um saco plástico. Dentro do qual havia um pequeno objeto metálico, retangular, bastante calcinado. O outro homem seguia com dificuldade atrás dele. Era mais velho, e seu rosto vermelho e a respiração difícil denunciavam com clareza como era raro para ele estar correndo através de amplos milharais. — Não pude acreditar — disse o homem mais moço, quase gritando. — A asa de estibordo, ou o que restou dela, estava direitinha, quase intacta. Acho que foi o lado esquerdo que aguentou o impacto da explosão com o tanque cheio. A impressão que dá é que quando o nariz penetrou no chão criou uma abertura ligeiramente maior que a fuselagem. Quando as asas colidiram com as laterais do buraco, dobraram para trás e por cima da fuselagem. Um
milagre, na minha opinião. Kaplan pegou o saco plástico e o colocou em cima da mesa. — Onde encontrou? — Preso no interior da lateral da asa, junto do painel de acesso ao tanque de combustível. Deve ter sido colocado dentro da asa no lado interno, ou seja, entre o motor e a fuselagem, do lado direito. Não estou bem seguro do que se trata, mas tenho certeza absoluta de que não pertence ao avião. — Quer dizer então que foi colocada à esquerda do ponto onde a asa foi cortada? — Quis saber Kaplan. — Exato, chefe. Mais alguns centímetros e teria sumido também. Foi a vez do homem mais velho falar. — Pelo que está parecendo, a fuselagem protegeu a asa direita de quase todos os efeitos da explosão que se seguiu ao impacto. Quando os lados da cratera ruíram, a terra deve ter apagado o fogo quase que imediatamente. — Ele parou e acrescentou com ar solene: — Mas a seção dianteira da cabina dos passageiros se foi. Quer dizer, não resta nada, é como se nunca tivesse existido. Kaplan passou o saco plástico para Sawyer. — Você sabe que diabos é isto aqui? Sawyer fechou a cara, antes de responder: — Sim, eu sei.
CAPÍTULO DEZENOVE SIDNEY ARCHER ESTAVA SENTADA à mesa de seu escritório. A porta estava fechada e trancada à chave. Passava um pouco das oito horas da noite, mas ela podia ouvir ao longe o zumbido muito fraco de um aparelho de fax. Pegou o telefone e discou o número da casa de Kay Vincent. Um homem atendeu. — Kay Vincent, por favor. Aqui é Sidney Archer. — Espere um minuto. Enquanto esperava, Sidney deu uma olhada na sala. Um lugar normalmente muito confortável, hoje lhe parecia estranhamente fora de foco. Os diplomas na parede eram seus, sim, mas naquele momento não se lembrava de como ou quando os obtivera. Tornarase puramente reativa, atingida por um choque após o outro. Perguntou-se que nova surpresa a aguardaria do outro lado da linha. — Sidney? — Olá, Kay. A voz parecia envergonhada. — Sinto-me péssima. Nem cheguei a lhe perguntar hoje de manhã por Amy. Como vai ela? Está na casa dos meus pais. — Sidney engoliu em seco e acrescentou: — Ela não sabe, é claro. — Desculpe pelo modo como agi no trabalho. Você sabe como é aquilo lá. Eles ficam todos nervosinhos se acham que você está dando telefonemas pessoais no horário de trabalho. — Eu sei, Kay. É que eu não sabia com quem falar na Triton. -Ela não acrescentou, mas pensou, em quem pudesse confiar. — Eu entendo, Sid. Sidney respirou fundo. Era melhor ir logo ao ponto. Tivesse levantado os olhos, podia ter notado a maçaneta da sua porta girar lentamente e parar, como se o mecanismo da tranca impedisse que o movimento se completasse. Kay, há alguma coisa que você queria me contar? Sobre Jason? Houve uma pausa perceptível na outra extremidade da linha antes de Kay responder. — Eu não podia querer um chefe melhor. Ele trabalhava muito, estava progredindo muito depressa. Mas ainda dedicava um pouco do seu tempo para falar com todo mundo, para estar com as pessoas. — Kay parou de falar, talvez tentando organizar os pensamentos antes de prosseguir, Sidney não poderia dizer ao certo. Vendo que Kay nada dizia, Sidney arriscou uma pergunta: — Bem, e isso mudou? Jason estava agindo de modo diferente? — Sim. — A palavra foi pronunciada tão rapidamente que Sidney quase não entendeu. — Como assim? — Era uma porção de detalhes, na verdade. Comecei a ficar preocupada quando Jason mandou que colocassem uma tranca na sua porta. — Uma tranca na porta do escritório não é de espantar, Kay. Eu mesma tenho uma na
minha sala. — Sidney deu uma olhada na sua porta. A maçaneta agora estava imóvel. — Eu sei, Sid. O caso é que ele já tinha uma tranca na porta. — Não compreendo, Kay. Se ele já tinha uma, por que mandou colocar outra? — A que ele tinha era muito simples, dessas que têm um pino que você empurra na maçaneta. A sua provavelmente é assim. Sidney deu outra olhada na porta. — Certo, é isso mesmo. Todas as portas de escritórios não são iguais? — Hoje em dia não é mais assim, Sid. Jason mandou instalar uma tranca computadorizada, dessas que só abrem com um cartão inteligente. — Cartão inteligente? — Um cartão magnético com um microchip embutido. Não sei exatamente como funciona, mas você precisa de um se quiser entrar no nosso prédio e em certas áreas restritas. Sidney remexeu na bolsa e extraiu de lá o cartão de plástico que tinha apanhado em casa na mesa de Jason. — Alguém mais na Triton tem esse tipo de tranca? — Uma meia dúzia. Mas quase todos do setor financeiro. — Jason lhe contou por que quis reforçar a segurança do escritório dele? — Eu lhe perguntei, com medo de que tivesse havido algum roubo e ninguém tivesse nos falado. Mas Jason me disse que assumira algumas novas responsabilidades para a empresa e tinha alguns assuntos sob seus cuidados para os quais queria proteção extra. Cansada de ficar sentada, Sidney levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Do outro lado da rua as luzes do Spencers, um novo e requintado restaurante, piscavam intensamente. Uma fileira de táxis e carros de luxo ia largando grupos de pessoas elegantemente vestidas que ali vinham em busca de boa comida, boa bebida e os últimos mexericos da cidade. Sidney abaixou a persiana. Respirou fundo e sentou-se no aparador, livrando-se dos sapatos e massageando distraidamente os pés cansados. — Por que Jason não quis que você falasse com ninguém sobre o fato de ele ter assumido novas responsabilidades? — Não sei. E eu realmente não queria me intrometer. — Você contou a alguém o que Jason lhe disse? — A ninguém — respondeu Kay, firmemente. Sidney inclinou-se a acreditar nela. Sacudiu a cabeça. — Com que mais você se preocupou? — Bem, Jason ultimamente andava muito isolado. Inventava desculpas para faltar às reuniões de trabalho, coisas desse tipo. A coisa já vinha assim pelo menos há um mês. Sidney parou de massagear nervosamente os pés. — Jason nunca mencionou entrevistas com outras empresas? — Nunca. — Sidney quase pôde sentir a firme sacudidela da cabeça de Kay pelo telefone. — Alguma vez você perguntou a Jason o que a estava preocupando? — Perguntei uma vez, mas ele não se mostrou receptivo. Jason era um bom amigo, mas também era meu chefe. Não quis forçar nada.
— Eu compreendo, Kay. — Sid deslizou para fora do aparador e calçou os sapatos. Notou uma sombra passar por baixo da sua porta e parar. Esperou alguns segundos, mas a sombra não se moveu. Clicou o botão do telefone para uso portátil e desconectou o fio. Ocorreu-lhe uma ideia. — Kay, alguém já esteve no escritório de Jason? — Bem... — A hesitação de Kay permitiu que Sidney emendasse outra pergunta. — Mas como isso seria possível, com todas as medidas de segurança extra na porta? — É justamente este o problema, Sid. Ninguém tinha o código ou o cartão de Jason. A porta tem mais de cinco centímetros de madeira sólida montada em estrutura de aço. O Sr. Gamble e o Sr. Rowe não foram ao escritório nesta semana e eu acho que ninguém mais sabia realmente o que fazer. — Quer dizer então que ninguém esteve na sala de Jason desde o que... aconteceu? — Sidney abaixou os olhos para o cartão de Jason. — Ninguém. O Sr. Rowe esteve lá hoje, no fim do dia. Vai mandar a empresa que instalou a tranca ir amanhã para abri-la. — Quem mais tem aparecido? Sidney ouviu Kay suspirar. — O pessoal da SecurTech. — SecurTech? — Sidney mudou o telefone de ouvido enquanto continuava com o olhar fixo na sombra sob a porta. Adiantou-se um pouco. Não se preocupou com a possibilidade de ser um intruso. Havia muita gente ainda trabalhando na firma. — É a empresa que faz assessoria de segurança para a Triton, não é? — É. Não entendi por que foram chamados. Dizem que é o comportamento padrão quando acontece algo assim. Sidney agora se encontrava bem junto da porta, a mão livre se aproximando da maçaneta pouco a pouco. — Sidney, tenho umas coisas de Jason no escritório. Fotos, uma suéter que ele me emprestou uma vez, uns livros. Ele tentou me interessar na literatura dos séculos dezoito e dezenove, mas receio nunca ter conseguido. — Ele fez a mesma coisa com a Amy até que eu lembrei a ele que provavelmente seria melhor ajudá-la a aprender a ler antes de querer que mergulhasse em Voltaire. As duas mulheres riram, o que foi muito bom naquelas circunstâncias dolorosas. — Você pode aparecer quando quiser para pegar. — Vou sim, Kay, a gente pode almoçar juntas... e conversar mais um pouco. — Eu gostaria disso. Gostaria muito. — Agradeço muito as informações que me deu, Kay. Você me deu uma grande ajuda. — Ora, eu gostava muito de Jason. Era um homem bom e decente. Sidney sentiu que as lágrimas iam começar a correr de novo, mas quando olhou de novo para a sombra na fresta da porta, endureceu os nervos. — Era sim — concordou, em tom conclusivo. — Sid, você precisando de alguma coisa, qualquer coisa, basta telefonar, está ouvindo?
Sidney sorriu. — Muito obrigada, Kay. Pode deixar. — Assim que desligou o telefone e o deixou de lado, ela abriu a porta com um forte puxão. Philip Goldman pareceu não se assustar. Ficou olhando para Sidney, sem se abalar. Era calvo, tinha as feições expressivas, olhos salientes, ombros finos e arredondados e o início de uma barriga.Vestia-se com roupas caras. — Sidney, eu estava passando e vi a luz acesa. Não tinha ideia de que você estivesse aqui. — Olá, Philip. — Sidney o avaliou detidamente. Goldman era um ponto abaixo de Henry Wharton na sociedade. Tinha uma base substancial de clientes e sua vida era dedicada à carreira. — Devo dizer que estou surpreso por vê-la aqui, Sidney. — Voltar para casa agora deixou de ser uma ideia atraente, Philip. Ele balançou lentamente a cabeça. — Sim, sim, posso compreender bem isso. — Olhou por cima do ombro dela para o receptor do telefone que Sidney largara em uma das prateleiras. — Falando com alguém? — Pessoal. Há uma porção de detalhes de que preciso cuidar agora. — Naturalmente. A morte já é uma coisa terrível para a gente lidar. Morte súbita pior ainda. — Ele continuou a encará-la. Sidney sentiu que começava a ruborizar. Virou-se, pegou a bolsa no sofá e o casaco que tinha pendurado atrás da porta, quase fechando-a na cara de Goldman, que teve que recuar depressa para não ser atingido. Ela vestiu o casaco e colocou a mão em cima do interruptor. — Tenho um encontro e já estou atrasada. Goldman recuou. Sidney deixou bem claro que ia deixar trancada a porta antes de fechá-la. — A ocasião não é apropriada, Sidney, mas eu queria me congratular com você pelo modo como conduziu a transação da CyberCom. Ela virou a cabeça num movimento brusco. — Tenho certeza de que não deveríamos discutir este assunto, Philip. — Eu sei, Sidney — disse ele. — Acontece que eu leio o Wall Street Joumal e seu nome está lá, mencionado diversas vezes. Nathan Gamble deve ter ficado muito satisfeito. — Muito obrigada, Philip. — Ela se virou para encará-lo. — Tenho que ir agora. — Não deixe de me avisar se houver alguma coisa que eu possa fazer por você. Sidney fez que sim e afastou-se de Goldman. Desceu o corredor na direção da porta principal da firma e desapareceu. Goldman saiu atrás e apressou o passo a tempo de ver Sidney entrar no elevador. Em seguida voltou caminhando com despreocupação até a sala de Sidney. Depois de olhar nas duas direções, pegou uma chave, inseriu-a na fechadura e entrou. A tranca produziu um estalo ao fechar de novo e depois tudo foi silêncio.
CAPÍTULO VINTE SIDNEY ESTACIONOU O FORD no amplo estacionamento da Triton e saltou. Abotoou o casaco para se proteger do vento glacial, verificou mais uma vez a bolsa para ver se o cartão de plástico estava lá e foi caminhando com toda a naturalidade possível até o prédio de quinze andares da sede mundial da Triton. Identificou-se no microfone localizado junto da entrada. Uma câmera de vídeo montada sobre a porta apontava diretamente para a sua cabeça. Um compartimento situado ao lado do microfone abriu-se e ela foi orientada a inserir o polegar na leitora de impressões digitais ali colocada. Ela avaliou que as medidas de segurança fora do horário de expediente da Triton provavelmente equivaliam às da CIA. A porta de vidro e aço cromado deslizou sem fazer ruído e ela entrou no átrio, com uma suave cascata, teto muito alto e mármore suficiente para ter dado cabo de uma jazida de bom tamanho. Ao encaminhar-se para o elevador, as lâmpadas se acenderam, iluminando o caminho. Foi seguida também por uma música suave, e as portas do elevador abriram-se automaticamente quando se aproximou delas. A sede da Triton recebera todos os benefícios do imenso poderio tecnológico da empresa. Sidney saltou no oitavo andar. O segurança de serviço levantou-se e dirigiu-se para ela, apertando-lhe a mão. Havia dor nos olhos do homem. — Olá, Charlie. — Sra. Archer. Lamento muito. — Muito obrigada, Charlie. Ele sacudiu a cabeça. — E ele estava progredindo tanto... Trabalhava mais que qualquer outra pessoa aqui. Muitas e muitas vezes éramos só nós dois, ele e eu aqui no prédio. Sempre me trazia café e qualquer coisa para comer da lanchonete. Nunca pedi, ele é que trazia. Não era como alguns desses mandachuvas que têm por aí que pensam que são melhores que você. — Você tem razão. Jason não era desses. — Não, senhora. Não era. Agora, o que posso fazer pela senhora? Precisa de alguma coisa? Basta dizer ao velho Charlie o que é. — Bem, eu estava imaginando se Kay Vincent ainda estaria por aí. Charlie lançou um olhar inexpressivo para Sidney. — Kay? Eu acho que não. Eu pego às nove. Ela geralmente sai às sete. Não a vi saindo. Deixa eu verificar. Charlie foi até o console. O coldre do revólver ia batendo na sua perna e as chaves penduradas no cinturão da arma tilintavam quando ele andava. Pôs um fone de ouvido e apertou um botão do console. Após alguns segundos, sacudiu a cabeça. — Só estou ouvindo o correio de voz, Sidney. — Oh. Bem, ela estava com... com umas coisas de Jason que eu queria pegar. — Sidney
olhou para o chão, aparentemente incapaz de continuar falando. Charlie aproximou-se e tocou no seu braço. — Bem, pode ser que tenha deixado as coisas na mesa. Sidney levantou os olhos para ele. — Acho que sim, deve ter deixado. Charlie hesitou. Sabia que aquilo era contra todos os regulamentos. Mas também nem sempre se deve aplicar os regulamentos. Voltou para o console, comprimiu uns dois botões e Sidney observou quando a luz vermelha junto da porta que dava para o corredor de escritórios se transformou em verde. Ele avançou, tirou as chaves do cinturão e abriu a porta. — Sabe como eles são fanáticos por segurança aqui, mas acho que esta situação é um pouco diferente. De qualquer modo não tem ninguém. Geralmente isto fica fervilhando de gente até mais ou menos as dez horas, mas esta é a semana do feriado e tudo mais. Tenho que fazer uma ronda agora no quarto andar. A senhora sabe aonde é, não sabe? — Sei sim, Charlie. Eu fico muito agradecida a você por isto. Ele apertou a mão de Sidney. — Como já disse seu marido era um bom homem. Sidney deslocou-se pelo corredor suavemente iluminado. O cubículo de Kay ficava mais ou menos no meio do corredor, com o escritório de Jason diagonalmente em frente. Enquanto andava, ia olhando para tudo com cuidado: silêncio absoluto. De repente avistou o cubículo de Kay, às escuras. Em uma caixa colocada junto da cadeira dela havia um suéter e alguns porta-retratos. Retirou de lá um livro finamente encadernado, com a lombada dourada. David Copperfield. Era um dos favoritos de Jason. Pôs as coisas de volta na caixa e colocou-a junto da cadeira. Olhou à sua volta mais uma vez. O corredor também estava vazio. Charlie dissera que todo mundo tinha ido embora, mas na verdade ele não se mostrara seguro a respeito de Kay. Concluindo que estava sozinha pelo menos naquele instante, Sidney aproximou-se da porta da sala do marido. Suas esperanças murcharam quando viu o pequeno teclado numérico. Kay não o mencionara. Pensou por um momento, tirou do bolso o cartão de plástico, mais uma vez olhou em torno e passou o cartão na fresta. Acendeu uma luz no teclado, e junto à luz Sidney leu a palavra "SENHA". Pensou rapidamente e teclou alguns números; a luz, contudo, não mudou de posição. Ela ficou frustrada. Não sabia quantos números deveria digitar, muito menos que números seriam. Tentou outras combinações sem sucesso. Estava quase desistindo quando reparou que ao lado do teclado havia uma tela que registrava a contagem regressiva do tempo oito segundos. A luz no teclado começou a brilhar com um vermelho cada vez mais intenso. — Droga! — murmurou. Um alarme! O relógio estava marcando cinco segundos. Ficou imóvel. Passaram por sua mente, como clarões, as consequências que poderiam advir caso fosse encontrada tentando se infiltrar no escritório do marido. Um desastre completo! Quando seus olhos voltaram a se concentrar no relógio, que agora mostrava a marca dos três segundos, ela rompeu a inércia. Uma
combinação possível passou como um foguete pelo seu cérebro. Formulando uma prece silenciosa, seus dedos teclaram os números 0-6-1-6. Comprimiu o último número na hora exata em que o relógio atingiu o zero. Na expectativa de ouvir soar o alarme, Sidney conteve a respiração por um longo instante. A luz do alarme apagou e o trinco da porta abriu, com um estalo. Sidney amparou-se na parede, ao mesmo tempo em que, devagar, voltava a respirar normalmente. Dezesseis de junho era o dia do aniversário de Amy. A Triton provavelmente tinha uma diretriz com a orientação para que não fossem usados números pessoais como códigos de segurança, por serem fáceis demais para decifrar. Para Sidney, isso foi uma prova positiva de que a menina na realidade nunca saía dos pensamentos do pai. Retirou o cartão da ranhura. Antes de segurar na maçaneta, pegou um lenço na bolsa e envolveu a mão para não deixar impressões digitais. Representar o papel de intrusa era algo que ao mesmo tempo a animava tremendamente e a aterrorizava. Sentiu o sangue latejando nos ouvidos. Entrou no escritório e rapidamente fechou a porta. A lanterna de pilha que tirou da bolsa era pequena mas eficiente. Antes de acendê-la, verificou se as persianas estavam abaixadas e completamente cerradas. O estreito feixe de luz varreu a sala. Já estivera ali antes, diversas vezes na verdade, para almoçar com Jason, embora não tivessem permanecido na sala dele. Geralmente só dava para roubar um beijinho por detrás da porta fechada. A luz passou para as estantes cheias de livros técnicos, muito além da sua capacidade de compreensão. Os tecnocratas realmente mandavam, devaneou por um instante, nem que fossem por ser as únicas pessoas capazes de consertar as malditas coisas quando quebravam. A luz caiu sobre o computador e ela rapidamente foi vê-lo de perto. Estava desligado, mas a presença de outro pequeno teclado fez com que ela decidisse não tentar a sorte e arriscar ligá-lo. Estaria completamente perdida mesmo que tivesse sorte bastante para conseguir ter acesso ao provedor de Jason, já que não tinha ideia do que estava procurando ou onde procurar. Não valia a pena correr o risco. Notou que havia um microfone preso ao monitor. Quase todas as gavetas estavam trancadas. As poucas que não estavam nada revelavam de interesse. Em agudo contraste com a sala dela na firma de advocacia, não havia diplomas nas paredes, ou outros toques pessoais no escritório do marido. Notou, contudo, com os olhos úmidos, que uma foto de Jason com a família tinha uma posição de destaque. Quando olhou em torno, ocorreu-lhe que se arriscara enornicmente para nada. Girou o corpo quando ouviu um barulho súbito vindo de algum lugar do escritório. A lanterna esbarrou no microfone, que, para seu horror, dobrou-se ao meio. Ficou imóvel. tentando ouvir a repetição do barulho. Finalmente, após um minuto de puro terror, voltou sua atenção para o microfone, um instrumento fino que lembrava uma caneta. Levou alguns minutos tentando reconstituir sua antiga forma, sem muito sucesso. Finalmente desistiu, limpou suas impressões digitais, foi até a porta e desligou a lanterna. Usando o lenço para girar a
maçaneta, ficou ouvindo por um momento junto à porta e depois saiu. Ouviu os passos se aproximando assim que chegou na mesa de Kay. Por um instante pensou que pudesse ser Charlie, mas não havia o tilintar das chaves. Deu uma espiada rápida para determinar de que direção o som estava vindo. Sem dúvida nenhuma a pessoa estava mais ao fundo do corredor. Passou para o cubículo de Kay e ajoelhou-se atrás da mesa dela. Tentando respirar o mais silenciosamente possível, aguardou, enquanto o som dos passos se aproximava mais. Até que parou. Passou-se um minuto e o silêncio continuava. Sidney ouviu então um leve clique, como se algo estivesse sendo girado para trás e para a frente dentro de um raio limitado. Incapaz de se conter, deu uma espiada por trás do canto do cubículo de Kay. As costas de um homem estavam a menos de dois metros de distância. Ele girava a maçaneta da porta da sala de Jason, para a frente e para trás, lentamente. O homem pegou um cartão no bolso da camisa e começou a inseri-lo na ranhura, mas hesitou ao ver o miniteclado, como se decidindo se valia a pena arriscar ou não. Até que por fim desistiu, e ele pôs o cartão no bolso e foi embora. Quentin Rowe não parecia nada satisfeito. Recuou pelo corredor, refazendo o caminho pelo qual viera. Sidney esgueirou-se para fora do esconderijo e saiu andando na direção oposta. Deslocavase rapidamente quando, ao virar o corredor, sua bolsa bateu na parede. Embora não tivesse feito muito barulho, ecoou como uma explosão nos corredores silenciosos. Ela não conseguiu sequer respirar quando percebeu que o barulho dos passos que se afastavam cessou e Quentin Rowe se virou e veio rapidamente na sua direção. Sidney saiu correndo o mais depressa que conseguiu pelo corredor, atingiu a porta principal, passou por ela e viu-se de novo na área da recepção, olhar fixo em Charlie, que também a fitava ansiosamente. — Sidney, você está bem? Está mais branca que um fantasma. Os passos se aproximavam da porta. Sidney levou um dedo aos lábios, apontou na direção da porta e fez um gesto para que Charlie se sentasse diante do seu console. Ele entendeu rapidamente tanto o barulho dos passos que se aproximavam quanto o sentido do gesto dela e seguiu as instruções. Sidney então entrou no banheiro que ficava à direita da entrada do saguão. Abriu a bolsa, colocou-se junto à porta do toalete das senhoras, que manteve parcialmente aberta com uma das mãos, e ficou de olho na porta do corredor. Assim que esta se abriu e Rowe apareceu, fingiu sair do toalete, mexendo em qualquer coisa no interior da bolsa. Quando ergueu os olhos, deu de cara com Rowe. Ele manteve aberta a porta da área restrita com uma das mãos. — Quentin? — exclamou Sidney, fingindo surpresa. O olhar de Rowe foi de Sidney para Charlie, cheio de suspeita. — O que é que você está fazendo aqui? — Ele não tentou esconder seu desagrado. — Vim ver Kay. Tínhamos falado antes. Ela estava com umas coisas de Jason. Alguns
objetos pessoais que queria que eu pegasse. — Nada pode deixar nossas instalações sem autorização prévia. E muito menos algo que tenha a ver com Jason. Sidney o encarou diretamente. — Eu sei disso, Quentin. A reação dela o surpreendeu. Ela olhou para Charlie, que fitava Rowe com olhos inamistosos. — Charlie já me informou disso, embora de uma maneira muito menos agressiva que você. E de qualquer forma ele não ia me deixar entrar na área restrita porque todos nós sabemos que é contra as regras de segurança da empresa. — Desculpe se fui um pouco agressivo. Tenho andado sob muita pressão ultimamente. A voz de Charlie ergueu-se, tensa, com uma mistura de raiva e incredulidade. — E ela não? Sidney acaba de perder o marido, pelo amor de Deus. Antes que Rowe pudesse responder, Sidney interveio. — Quentin e eu já tratamos deste assunto, Charlie, em uma conversa que tivemos. Não foi, Quentin? Rowe deu a impressão de que ia se desmanchar sob o olhar dela e decidiu que era melhor mudar de assunto. — Pensei ter ouvido um ruído — disse, com um olhar acusador para Sidney. — Eu também — contrapôs ela prontamente. — Nós também. Pouco antes de eu entrar no toalete, Charlie foi verificar. Acho que ele ouviu você e você o ouviu. Charlie achou que não havia mais ninguém na empresa. Mas você estava. — O tom de voz dela emparelhava com o dele em implicações acusatórias. Rowe se irritou. — Eu sou o presidente da empresa. Posso estar aqui a qualquer hora do dia ou da noite e ninguém tem nada a ver com isso. Sidney o fulminou com um olhar. — Tenho certeza de que pode. No entanto, eu seria levada a pensar que você estaria trabalhando até tarde em benefício da empresa e não tratando de negócios pessoais, muito embora o horário do expediente já tenha se encerrado há bastante tempo. Estou falando apenas na condição de representante legal da empresa, Quentin. — Em circunstâncias normais, ela jamais teria pronunciado essas palavras a um executivo sênior de uma empresa cliente da firma em que trabalhava. Rowe começou a gaguejar. — Bem, é claro, eu quis dizer que estava trabalhando para a empresa. Conheço muito bem todas as... — Ele se deteve abruptamente quando Sidney aproximou-se de Charlie e pegou a mão dele. — Muito obrigada, Charlie. Eu entendo que regras são regras. — Rowe não pôde ver o olhar que ela deu ao idoso guarda de segurança, mas viu a fisionomia dele abrir-se num sorriso de gratidão. Quando se virou para ir embora, Rowe disse: — Boa noite, Sidney.
Ela não respondeu, nem sequer olhou para ele. Depois que desapareceu dentro do elevador, Rowe olhou furiosamente para Charlie, que estava se dirigindo para a porta. — Onde é que você vai? A expressão de Charlie foi calma. — Tenho que fazer minhas rondas. Faz parte do meu trabalho. — Ele se abaixou um pouco para falar com Rowe, muito mais baixo. Depois voltou a encaminhar-se para a porta, deu alguns passos e se virou: — Oh, no futuro pode evitar confusão se me avisar que ficou trabalhando fora do expediente. — Ele tocou na arma. — Não queremos acidentes por aqui, queremos? — Rowe ficou pálido ao ver a arma. — Se ouvir algum barulho, me avise, certo, Sr. Rowe? — Depois que se afastou, Charlie deu um largo sorriso. Rowe permaneceu junto à porta por mais um minuto, pensativo. Depois se virou e entrou no escritório.
CAPÍTULO VINTE E UM LEE SAWYER DEU UMA OLHADA no pequeno edifício de apartamentos de três andares, localizado a cerca de oito quilômetros do Aeroporto Internacional Dulles. Os moradores dispunham de um completo centro de condicionamento físico, piscina olímpica e um imenso salão de festas. Ali moravam principalmente jovens profissionais liberais que tinham que se levantar cedo para enfrentar o trânsito na sufocante jornada até o centro da cidade. O estacionamento estava cheio de BMWs, Saabs e um ou outro Porsche. Apenas um dos integrantes daquela comunidade interessava a Sawyer e não se tratava de um jovem advogado, executivo de marketing ou mestre em administração de empresas. Sawyer falou laconicamente no interfone. Havia três outros agentes no carro com ele e mais cinco outras equipes de agentes do FBI estacionadas em torno da área. Um grupo de elite da Equipe de Resgate de Reféns do FBI também se aproximava do alvo de Sawyer. Um verdadeiro batalhão de autoridades locais proporcionava apoio aos federais. Havia muitos inocentes nas proximidades, e estava sendo feito um enorme esforço para que se alguém tivesse que ser ferido fosse unicamente o homem que Sawyer acreditava ter matado quase duzentas pessoas. O plano de ataque de Sawyer constava dos manuais do FBI. Cercar com uma força esmagadora um alvo que de nada desconfia, uma força tão esmagadora, em uma situação tão totalmente controlada, que a resistência passa a ser inútil. O controle total de uma situação significa que você pode controlar também o resultado. Ou pelo menos é o que diz a teoria. Cada agente portava uma pistola 9mm semiautomática com pentes extras. Um dos membros de cada equipe trazia uma escopeta Franchi Law 12 semiautomática e outro, um fuzil de assalto Colt. Todo o pessoal da Equipe de Resgate de Reféns carregava armas automáticas de grosso calibre, a maioria com aparelhos de pontaria eletrônicos a laser. Sawyer fez o sinal para avançar e os homens se adiantaram. Em menos de um minuto os membros da equipe de resgate tinham chegado na porta do apartamento 321. Dois outros grupos cobriam a única outra rota de fuga possível, as duas janelas de trás do apartamento que davam para a área da piscina. Atiradores de elite já estavam instalados lá, as miras de laser fixas nas aberturas gêmeas. Depois de ouvir atentamente na porta do 321 por alguns segundos, os membros da equipe de resgate irromperam através da abertura. Nenhum tiro perturbou a calma da noite. Em menos de um minuto Sawyer recebeu o sinal de tudo limpo. Ele e seus homens subiram correndo a escada. Sawyer foi recebido pelo líder da equipe de resgate. — Esconderijo vazio? — perguntou Sawyer. O homem sacudiu a cabeça. — Talvez fosse melhor que estivesse. Alguém nos passou a perna. — Ele sacudiu a cabeça na direção do pequeno quarto nos fundos do apartamento.
Sawyer apressou o passo. Quando entrou, foi como se tivesse entrado em uma câmara frigorífica. A luz do teto estava acesa. Três membros da equipe de resgate olharam para o pequeno espaço entre a cama e a parede. Sawyer seguiu o olhar deles e desanimou. O homem estava deitado de bruços. Ferimentos múltiplos de arma de fogo nas costas e na cabeça eram claramente visíveis, da mesma forma que a arma e os doze pedaços de metal que juncavam o chão. Sawyer, com a ajuda de dois homens, ergueu cuidadosamente o corpo, virando-o de lado, antes de retorná-lo exatamente ao ponto onde se encontrava antes. Ele se levantou logo, sacudindo a cabeça e berrando no walkie-talkie: — Diga aos caras da estadual para mandarem um médico-legista aqui e vou querer o pessoal do laboratório agora! Abaixou os olhos para o corpo. Bem, pelo menos o cara não ia sabotar mais aviões. Embora um pente de balas inteiro no seu corpo não parecesse ser nem de perto castigo suficiente para o que o filho da mãe fizera. Mas, por outro lado, os mortos não falam. Sawyer saiu segurando firmemente o walkie-talkie numa das mãos. No corredor vazio notou que o ar-condicionado fora ligado ao máximo de sua capacidade. A temperatura do apartamento devia estar em torno de zero grau. Anotou rapidamente e com precisão os detalhes de como encontrou os comandos da temperatura e depois, usando a ponta do lápis para não destruir possíveis impressões digitais, ligou o aquecimento. Não desejava que seus homens morressem congelados enquanto investigavam a cena do crime. Sawyer encostou-se na parede, momentaneamente deprimido. Embora soubesse desde o princípio que seria muito pouco provável encontrar o suspeito no seu apartamento, o fato de o terem encontrado morto, assassinado, indicava claramente que havia alguém à frente do FBI. Haveria um vazamento em alguma parte, ou aquele crime tinha sido apenas parte de algum plano maior? Pensativo, voltou para o quarto.
CAPÍTULO VINTE E DOIS SIDNEY SAIU DO PRÉDIO DA TRITON e começou a atravessar o estacionamento, tão imersa em seus pensamentos que não viu a limusine preta senão quando ela parou bem na sua frente. A porta de trás abriu-se e Richard Lucas saltou. Ele vestia um sóbrio terno azulmarinho. Seu rosto caracterizava-se pelo nariz chato de pugilista e um par de olhos tão grudados um no outro que não deviam ser separados por mais que três centímetros de distância. A largura dos seus ombros e o volume sempre presente sob o paletó do terno faziam dele uma presença imponente. — O Sr. Gamble gostaria de vê-la. — O tom de voz era natural. Ele manteve a porta aberta e Sidney pôde ver a pistola no coldre debaixo do casaco. Ela ficou imóvel, engoliu em seco mas no fim reagiu e seus olhos faiscaram. — Não sei se isso está nos meus planos. Lucas deu de ombros. — Como queira. Só que o Sr. Gamble achou que seria melhor falar diretamente com a senhora, para ver a sua versão dos fatos antes de decidir qual linha de ação tomar. Na opinião dele, quanto mais cedo a reunião acontecer, melhor será para todos os interessados. Sidney respirou fundo e olhou para os vidros escuros da limusine. — Onde será a reunião? — Na propriedade do Sr. Gamble, em Middleburg. — Ele consultou o relógio. — Hora estimada de pouso lá em trinta e cinco minutos. É claro que nós a levaremos de volta para o seu carro depois que a reunião acabar. Ela encarou Lucas com um olhar penetrante. — Tenho mesmo alguma alternativa? — As pessoas sempre têm alternativas, Sra. Archer. Sidney ajeitou o casaco e entrou. Não fez mais perguntas e ele nada mais disse. Seus olhos, contudo, permaneceram fixos nela. Sidney mal tomou conhecimento da enorme casa de pedra cercada por um terreno meticulosamente tratado e arborizado. Você pode se safar, pensava ela. Interrogatórios quase sempre são uma via de mão dupla. Se Gamble queria respostas, faria tudo o que pudesse para conseguir também algumas respostas dele. Seguiu Lucas por uma entrada de portas duplas, percorreu um corredor gigantesco e entrou em um aposento amplo de mogno polido e poltronas confortáveis. Pinturas a óleo originais mostrando temas nitidamente masculinos cobriam as paredes. O fogo crepitava discretamente na lareira. Em uma mesa situada no canto do aposento, um jantar estava servido para dois. Embora sem fome, Sidney sentiu-se atraída pelo cheiro da comida. No centro da mesa uma garrafa de vinho gelava. A porta fechou-se às suas costas com um clique. Ela foi até lá e confirmou que estava fechada mesmo. Virou-se quando ouviu um ligeiro movimento às suas costas. Nathan Gamble, vestindo traje esporte, camisa de colarinho aberto e calças com bainha, saiu de trás de uma cadeira de espaldar alto que estava de frente para a parede mais distante. Seu olhar penetrante fez com que ela ajeitasse o casaco mais cuidadosamente. Ele
se adiantou para a mesa. — Está com fome? — Na verdade, não, obrigada. — Bem, se mudar de ideia, há bastante comida. Espero que não se incomode se eu comer. — A casa é sua. Gamble sentou-se à mesa e começou a fazer seu prato e serviu dois copos de vinho. — Quando comprei esta casa, ela veio com uma adega e duas mil garrafas de vinho empoeiradas. Não sei absolutamente nada a respeito de vinhos. mas o meu pessoal me disse que é uma coleção de primeira, não que eu tencione colecionar. De onde eu venho, as pessoas colecionam selos. Este troço a gente bebe. — Ele passou um copo para ela. — Eu realmente não pretendo... — Detesto beber sozinho. Faz com que eu pense que sou o único que estou me divertindo. Além do mais, fez bem para você no avião, não foi? Finalmente ela aquiesceu, com gestos vagarosos tirou o casaco e pegou o copo. A temperatura do ambiente era confortavelmente amena, mas Sidney permaneceu em guarda; era o procedimento padrão na presença de vulcões ativos e de pessoas como Nathan Gamble. Ela sentou-se à mesa e ficou olhando enquanto ele começava a comer. Nathan percebeu e fez um gesto na direção da comida. — Tem certeza de que não quer? Sidney levantou o copo de vinho. — Estou satisfeita, obrigada. Ele deu de ombros, tomou um gole de vinho e passou a cortar o bife grosso. — Falei com Henry Wharton outro dia. Bom sujeito, sempre cuidando do pessoal dele. Gosto disso num chefe. Eu também cuido dos meus funcionários. — Ele encharcou um pãozinho no molho e deu uma mordida. — Henry tem sido um mentor maravilhoso. — Interessante. Nunca tive um mentor... talvez tivesse sido legal. — Ele deu uma risadinha. Sidney olhou em torno, admirando a sala elegante. — Não parece que lhe tenha feito a menor falta. Gamble ergueu o copo, bateu no dela e voltou a comer. — Você tem passado bem? Parece que perdeu peso desde a última vez em que a vi. — Estou bem. Obrigada por perguntar. — Ela deu uma ajeitada no cabelo ao mesmo tempo em que o observava com cuidado, tentando controlar o nervosismo. Aguardava a chegada do momento inevitável em que o papo furado cessaria abruptamente. Preferia que ele tivesse ido direto ao assunto. Gamble estava simplesmente jogando com ela. Já o vira fazer a mesma coisa com dezenas de pessoas. Gamble serviu-se de mais vinho e, a despeito dos protestos dela, recompletou o copo de Sidney. Vinte minutos de inócua conversação subsequente, Gamble secou a boca com o guardanapo. levantou-se e convidou Sidney para sentar-se em um grande sofá de couro diante da lareira. Ela sentou-se, cruzou as pernas e, sem que Gamble percebesse, respirou
fundo. Ele permaneceu de pé ao lado da lareira, olhando para ela por entre as pálpebras semicerradas. Sidney contemplou o fogo por um momento, tomou um gole de vinho e encarou Gamble. Se ele não ia começar, decidiu, ela ia. — Falei com Henry também, ao que parece logo depois de você. Gamble balançou a cabeça, distraído. — Achei que Henry podia dar uma palavrinha com você após a nossa conversa. — Sob sua calma aparente, Sidney sentiu que começava a se enfurecer com o modo pelo qual Gamble manipulava e assustava as pessoas para conseguir o que desejava. Ele pegou um charuto num humidor em cima do console da lareira. — Se incomoda? — Como já falei, a casa é sua. — Há quem diga que os charutos não formam hábito. Não tenho certeza disso. Você tem que morrer de alguma coisa, certo? Ela tomou outro gole de vinho. — Lucas disse que você queria me ver. Como não tenho acesso a sua pauta de assuntos, não prefere começar? Gamble deu diversas baforadas antes de responder: — Você mentiu para mim no avião, não mentiu? — O tom de voz dele não era de raiva, o que a surpreendeu. Por tudo quanto sabia, um homem como Nathan Gamble exibiria uma fúria descontrolada ante tal ofensa. — Não falei totalmente a verdade, concordo. Uma sombra de sorriso passou pelas feições de Gamble. — Você é tão bonita que sempre me esqueço de que é advogada. Acho que há mesmo uma diferença entre mentir e não falar totalmente a verdade, embora tenha que lhe dizer que, para ser franco, não estou nem um pouco interessado nessa diferença. Você mentiu para mim, é tudo de que vou me lembrar. — Posso entender isso. — Por que o seu marido estava naquele avião? — A pergunta foi disparada pela boca de Gamble, como um tiro. mas suas feições permaneceram impassíveis enquanto ele fixava os olhos em Sidney. Ela hesitou e depois decidiu dar uma resposta completa. Ele ia saber da verdade em algum momento. — Jason me disse que haviam oferecido a ele um cargo executivo em outra empresa de tecnologia sediada em Los Angeles. Disse que ia lá para uma última rodada de reuniões. — Que empresa? A RTG? — Não era a RTG. Não era uma concorrente direta sua. Foi por este motivo que não considerei importante lhe dizer a verdade. Mas tendo em vista o que houve, realmente não importa que empresa era. — Por que não? — Gamble pareceu surpreso. — Porque o que Jason me disse não era a verdade. Não havia oferta de emprego nem reuniões. Acabo de descobrir isso. — Ela deu a informação com toda a calma de que foi capaz.
Gamble terminou o vinho e deu várias baforadas no charuto antes de falar de novo. Sidney notara esta característica em outros clientes que possuíam vasta fortuna. Nada os apressava. O seu tempo pertence a eles. — Assim o seu marido mentiu para você e você mentiu para mim. E agora devo aceitar o que você está me dizendo como um texto do Evangelho? — O tom da voz dele permaneceu controlado, mas sua incredulidade era inequívoca. Sidney permaneceu em silêncio. Na verdade não podia culpá-lo por não acreditar nela. — Você é minha advogada; aconselhe-me sobre como devo lidar nesta situação, Sidney. Devo aceitar o que a testemunha está dizendo ou não? — Não estou lhe pedindo para aceitar nada — falou Sidney. — Se não acredita em mim, e provavelmente não há razão para acreditar, não há nada que eu possa fazer. Gamble balançou a cabeça pensativamente. — OK. O que mais? — Não há mais nada. Eu lhe disse tudo o que sabia. Gamble atirou o charuto no fogo. — Ora vamos! Os meus três divórcios serviram para eu descobrir, para meu espanto, que a conversa de noite na cama acontece mesmo. Por que com você deveria ser diferente? — Jason não discute... não discutia os negócios da Triton comigo. O que ele fazia na sua empresa era confidencial, no que dizia respeito a mim. Não sei de nada. Eu mesma tenho uma porção de perguntas a fazer e nenhuma resposta. O tom de voz de Sidney ficou subitamente amargo, mas ela conseguiu se acalmar logo. — Aconteceu alguma coisa na Triton? Algo que envolvesse Jason? — Gamble nada disse. — Eu gostaria realmente de ter uma resposta para isso. — Não estou inclinado a lhe dizer nada. Não sei de que lado você está, mas certamente que não é o meu. — Gamble dirigiu-lhe um olhar tão severo que ela sentiu o rosto ficar vermelho. Descruzou as pernas e o encarou. — Sei que você está desconfiado... Gamble interrompeu-a acaloradamente. — Você tem toda a razão quando diz que estou desconfiado. Com a RTG respirando na minha nuca. Com todo mundo dizendo que minha empresa ficará obsoleta se eu não fizer o negócio com a CyberCom. Como acha que me sinto?... Gamble não deu tempo para Sidney responder. Sentou-se ao seu lado e pegou uma de suas mãos. — Agora, eu realmente sinto muito que seu marido tenha morrido e fossem outras as circunstâncias, o fato de ele ter viajado não seria da minha conta. Mas quando todo mundo começa a mentir para mim ao mesmo tempo, é o futuro da empresa que está em jogo e aí tudo passa a ser da minha conta. — Ele deixou a mão dela cair. As lágrimas transbordavam dos cantos dos olhos de Sidney quando ela se pôs de pé de um pulo e pegou o casaco. — Neste exato momento não dou a mínima para a sua empresa ou para você, mas posso
lhe afirmar que nem o meu marido nem eu fizemos nada de errado. Entendeu? — Ofegante, ela lançou um olhar furioso a Gamble. — E quero ir embora. Nathan Gamble examinou-a por um longo momento e depois dirigiu-se a uma mesinha do outro lado da sala e pegou o telefone. Sidney não pôde ouvir o que foi dito. Em um momento a porta se abriu e Lucas apareceu. — Por aqui, Sra. Archer. Ao sair, ela virou-se e olhou para Nathan Gamble. Ele ergueu o copo de vinho à guisa de saudação. — Vamos manter contato — disse, falando baixo. Mas o modo como pronunciou as três palavras fez com que o corpo de Sidney estremecesse de alto a baixo. A limusine, deu início à jornada em sentido inverso e em menos de quarenta e cinco minutos Sidney foi deixada na frente do seu Ford Explorer. Pouco tempo depois, já se deslocando, digitou um número no seu telefone celular. Uma voz sonolenta atendeu. — Henry, aqui é Sidney. Desculpe por tê-lo acordado. — Sid, que horas... Onde é que você está? — Eu queria que você soubesse que acabo de ter uma reunião com Nathan Gamble. Henry Wharton estava agora totalmente acordado. — Como foi que isso veio a acontecer? — Digamos que se deveu a uma sugestão de Nathan. — Tentei proteger você. — Eu sei, Henry, e lhe agradeço muito. — E como é que foi o encontro? — Bem, provavelmente tão bem quanto seria possível, considerando-se as circunstâncias. Na verdade ele foi muito educado. — Bem, isso é ótimo. — Pode até não durar, contudo, mas eu queria que soubesse. Acabo de deixá-lo. — Talvez tudo isso venha logo a ser esquecido, acabe. — Ele acrescentou rapidamente. — Claro, não me refiro à morte de Jason. Não quero de maneira alguma minimizar essa tragédia horrível... Sidney interrompeu-o rapidamente. — Eu sei, eu sei, Henry. Não me considero ofendida. — E como ficou a coisa com o Nathan? Ela respirou fundo. — Nós concordamos em seguir mantendo contato. O Hay-Adams Hotel ficava apenas a umas poucas quadras do escritório da Tyler e Stone. Sidney acordou cedo. O relógio mostrou que eram cinco horas da manhã. Avaliou rapidamente os acontecimentos da noite anterior. A visita ao escritório do marido não resultara em nada de útil e o encontro com Nathan Gamble a deixara apavorada. Esperava que houvesse acalmado Henry Wharton. Por ora. Depois de tomar um banho rápido, ligou para o serviço de quarto e pediu um bule de café. Tinha que estar na estrada às sete horas para pegar Amy. Discutiria então os serviços religiosos do funeral de Jason com os pais. Estava vestida e pronta às seis e meia. Seus pais costumavam levantar cedo e Amy geralmente não dormia depois das seis horas. Foi o pai de Sidney quem atendeu ao telefone. — Como vai Amy? — Sua mãe está com ela. Acaba de tomar banho. Ainda há pouco entrou marchando no nosso quarto, muito lindinha, completamente à vontade. — Sidney
pôde sentir na voz do pai o profundo orgulho que sentia de Amy. — Como é que você vai, querida? Está parecendo um pouco mais animada. — Vou levando, papai. Vou levando. Finalmente consegui dormir um pouco. Não sei direito como, mas dormi. — Bem, sua mãe e eu vamos voltar com você e não aceitamos um não como resposta. Podemos cuidar da casa, fazer compras, ajudar com Amy. — Obrigada, papai. Estarei aí dentro de mais ou menos duas horas. — Aqui está a Amy, mais parecendo um pinto molhado. Vou passar para ela. Sidney pôde ouvir o aparelho sendo transferido para as mãozinhas da menina. Seguiram-se umas risadinhas. — Amy, queridinha, aqui é a mamãe. — Ao fundo, Sidney podia ouvir o pai e a mãe estimulando delicadamente a menina a falar. — Alô, mamãe? — Isso mesmo, meu amor, é a mamãe. — Você falando comigo? — A garota riu incontrolavelmente por um instante. Atualmente aquela era sua frase favorita. Amy sempre dava pulos de alegria quando dizia isso. Depois a menina pôs-se a tagarelar, contando a sua versão da vida, em uma linguagem que Sidney conseguia decifrar facilmente. Nesta manhã eram panquecas, bacon e um passarinho que voara atrás de um carro na rua. Sidney sorriu. Mas seu sorriso desvaneceu-se abruptamente com as palavras seguintes de Amy: — Papai. Quero o papai. Sidney fechou os olhos. Com uma das mãos tirou uma mecha de cabelos que caíra sobre a testa. Sentiu que ia soluçar e pôs a mão no telefone para que Amy não ouvisse. Recuperada, falou de novo. — Amo você, Amy. Mamãe ama você mais do que tudo. Eu a vejo daqui a pouco, certo? — Amo você. Meu papai? Vem, vem logo! Sidney ouviu o pai dizer a Amy para dizer bye-bye. — Bye-bye, neném, vejo você daqui a pouco. — As lágrimas escorriam livremente agora, seu gosto salgado tão conhecido. — Querida? — Olá, mamãe. — Sidney esfregou a manga no rosto. As lágrimas voltaram imediatamente, como uma teimosa camada de tinta velha que insistisse em surgir através da nova demão. — Sinto muito, querida. Acho que ela não consegue falar com você sem pensar em Jason. — Eu sei. — Ela está dormindo bem, pelo menos. — Até breve, mãe. — Sidney desligou o telefone e ficou sentada com a cabeça entre as mãos por alguns instantes. Depois dirigiu-se à janela, onde abriu um pouco as cortinas e deu uma espiada do lado de fora. A lua quase cheia e as lâmpadas dos inúmeros postes iluminavam a área. Assim mesmo, Sidney não viu o homem de pé na viela do outro lado, com um par de pequenos binóculos nas mãos, apontados na direção dela. Ele vestia o mesmo casaco e chapéu que usara em Charlottesville. Manteve o olhar fixo em Sidney
enquanto ela esquadrinhava distraidamente as ruas lá embaixo. Quando ela se afastou da janela, ele abaixou os binóculos. Graças aos muitos anos em que realizava aquele tipo de serviço, os olhos do homem registraram cada detalhe. O rosto dela, os olhos em particular, denotavam muito cansaço. O pescoço era longo e flexível como o de uma modelo, mas, assim como os ombros, estava arqueado, evidentemente devido à tensão. Uma mulher muito perturbada, concluiu. Depois de ter observado as ações suspeitas de Jason Archer no aeroporto na manhã do desastre aéreo, o homem teve certeza de que Sidney Archer tinha todos os motivos para se sentir preocupada, nervosa, talvez mesmo amedrontada. Ele encostou-se na parede e continuou sua vigília.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS LEE SAWYER OLHAVA PELA JANELA do seu pequeno apartamento na região sudeste do distrito de Columbia. A luz do dia dava para ver a cúpula da Union Station da janela do quarto. Mas ainda faltava pelo menos meia hora para o sol nascer. Depois de investigar a morte do homem que abastecera o avião, Sawyer só chegara em casa às quatro e meia da manhã. Concedera a si próprio dez minutos sob um chuveiro quente para se livrar das dores no corpo e da tonteira causada pelo cansaço. Depois se vestiu rapidamente, ligou a cafeteira, cozinhou um par de ovos e uma fatia de presunto que provavelmente teria desdenhado uma semana atrás e torrou duas fatias de pão. Fez a refeição simples na sala, usando uma bandeja, a única luz acesa a do abajur na mesinha. A semi-escuridão, tranquilizadora, permitiu que ficasse sentado quieto, pensando. Com o vento fustigando as janelas, virou a cabeça para estudar a arrumação simples da sua casa. Sua casa? Podia até ser, mas não era seu lar. Já morava ali há um ano, mas o seu verdadeiro lar ficava nos subúrbios arborizados da Virgínia: era uma casa de vários níveis, com uma fachada de tábuas de madeira, garagem para dois carros e uma churrasqueira de tijolos no quintal. Aquele apartamento era onde fazia suas refeições e ocasionalmente dormia, principalmente porque, depois do divórcio, não podia, na verdade, pagar outra coisa. Mas jamais seria o seu lar, a despeito dos objetos de uso pessoal que trouxera, onde se destacavam as fotos dos quatro filhos, que olhavam para ele de toda a parte. Pecou uma das fotos. Lá estava sua mais moça. Meg — Meggie, como quase todo mundo a chamava. Loura e bonita, herdara a altura do pai, o nariz fino e os lábios cheios. Sua carreira como agente do FBI decorrera durante os anos de formação de Meg e ele estivera fora de casa grande parte da sua adolescência. As consequências, contudo. foram terríveis. Um verdadeiro inferno. Eles não estavam se falando. Pelo menos ela não falava com ele. E Sawyer. já naquela idade, fazendo o que fazia para viver, sentia-se apavorado demais para fazer outra tentativa. Além do mais, quantos modos diferentes há para se pedir desculpas? Lavou a louça, limpou a pia e jogou umas roupas num saco de malha para levar para a lavanderia. Olhou em torno para ver se havia alguma coisa a ser feita. Nada. Sorriu, sem graça. Estava só matando tempo. Deu uma olhada no relógio. Quase sete. Em pouco tempo sairia para o trabalho. Embora tivesse turnos regulares, comparecia tipicamente em todos os horários, inclusive aqueles para os quais não estava escalado. O que não era difícil de compreender, já que ser agente do FBI era a única coisa que lhe restara. Sempre haveria um outro caso para resolver. Não fora isso que sua mulher lhe dissera naquela noite? A noite em que o casamento se desintegrara. Ela estava certa, sempre haveria um outro caso. No fim, o que podia realmente querer mais? Cansado de esperar, pôs o chapéu na cabeça, enfiou a arma no coldre e desceu a escada para pegar o carro. A pouco mais de cinco minutos do apartamento, na Pennsylvania Avenue entre as ruas Nove e Dez, noroeste, ficava a sede do FBI, onde trabalhavam aproximadamente sete mil e
quinhentos funcionários do efetivo total de vinte e quatro mil. Dos sete mil e quinhentos, apenas cerca de mil eram agentes especiais; o resto era pessoal de apoio e técnicos. No prédio, um agente especial estava sentado à uma enorme mesa de reuniões. Os outros se espalhavam ao redor da mesa examinando pilhas de documentos ou de olho nas telas dos seus laptops. Sawyer levou um tempo para olhar em torno e esticar as pernas. Trabalhavam no Centro de Operações de Informações Estratégicas, ou SIOC. Uma área de acesso restrito composta de um conjunto de aposentos separados por paredes de vidro e à prova de todos os tipos conhecidos de vigilância eletrônica, o SIOC era usado como posto de comando para as operações mais importantes do FBI. Em uma das paredes havia uma série de relógios mostrando os diferentes fusos horários. Aparelhos de televisão forravam outra parede. O SIOC tinha ligação direta e segura com a Casa Branca. a CIA e uma intimidade de agências federais destinadas a impor o cumprimento da lei. Sem janelas externas e com um carpete grosso, era um lugar tranquilo, usado para organizar investigações de grande vulto. Uma pequena copa mantinha o pessoal ligado por horas e horas de trabalho exaustivo. Naquele instante, estava sendo feito café. Cafeína e brainstorming pareciam combinar muito bem. Sawyer olhou para o outro lado da mesa onde David Long, antigo membro do Esquadrão de Bombas do FBI, examinava uma pasta de documentos. À esquerda de Long estava Herb Barracks, que trabalhava em Charlottesville, o escritório do FBI mais próximo do local do desastre. Ao lado de Barracks havia um agente sediado em Richmond. Além destes, havia dois agentes de campo de Washington, locados em Buzzard Point. O diretor do FBI, Lawrence Malone, saíra uma hora antes, depois de ter recebido as informações sobre o assassinato de um tal Robert Sinclair, operador responsável pelo abastecimento de aeronaves que trabalhava para a Vector Fueling Systems e que agora ocupava uma vaga em um necrotério da Virgínia. Sawyer tinha certeza de que uma pesquisa no Sistema Automatizado de Identificação de Impressões Digitais do FBI, o AFIS, daria um outro nome ao falecido Sr. Sinclair. Conspiradores em um esquema tão grande como o que Sawyer imaginava que este era, raramente usam seus nomes verdadeiros quando arranjam os empregos que vão lhes permitir mais tarde derrubar um avião cheio de gente. Mais de duzentos e cinquenta agentes tinham sido designados para o atentado do voo 3223. Eles seguiam pistas, entrevistavam parentes das vítimas e levavam a cabo uma investigação incrivelmente detalhada de todas as pessoas com motivo e oportunidade para sabotar o jato da Western Airlines. Sawyer imaginava que Sinclair tinha feito o trabalho sujo, mas não ia correr o risco de deixar passar um possível cúmplice. Embora tivessem surgido alguns boatos na imprensa já há algum tempo, a primeira matéria declarando que o avião da Western fora derrubado por uma bomba apareceria na edição da manhã seguinte do Washington Post. A opinião pública exigiria respostas prontas, o que parecia ótimo para Sawyer, só que os resultados nem sempre eram obtidos com a pressa desejada — na verdade, quase nunca.
O FBI seguira a pista da Vector logo depois que os membros da equipe do Conselho Nacional de Segurança nos Transportes encontraram um indício muito especial na cratera. Aí então tudo passou a ser uma simples questão de confirmar que Sinclair tinha sido a pessoa que abastecera o voo 3223. Agora Sinclair também estava morto. Alguém se assegurara de que ele jamais teria oportunidade de contar o motivo pelo qual sabotara o avião. Long olhou para Sawyer. — Você tinha razão, Lee. Era uma versão bastante modificada de um desses novos elementos portáteis de aquecimento. A última moda em isqueiros. Acender o cigarro sem chama, só com o calor intenso de uma resistência de platina, algo praticamente invisível. — Eu sabia que já tinha visto isso antes. Lembra do caso do incêndio criminoso no prédio da Receita, no ano passado? — indagou Sawyer. — Exato. De qualquer forma, esta coisa é capaz de atingir cerca de mil e quinhentos graus Fahrenheit, cerca de oitocentos graus centígrados. E não seria afetada pelo vento ou pelo frio, mesmo que fosse molhada pelo combustível do jato ou algo assim. Combustível para cinco horas de voo, o dispositivo configurado de forma que se desligasse por qualquer motivo seria religado automaticamente. Um lado foi preso com uma placa magnética, o que é um modo simples mas perfeito de fazer isso. O combustível se espalha quando o tanque é atingido. Mais cedo ou mais tarde passa ao alcance da chama e aí, bum. — Ele sacudiu a cabeça. — Um bocado engenhoso. Carregue a engenhoca no bolso; mesmo se for detectada, aparentemente não passa de um maldito isqueiro. — Ele consultou mais algumas páginas enquanto os outros agentes o observavam de perto. Ele arriscou um adendo à sua análise. — E nem precisaram de um cronômetro ou de um altímetro. Podiam avaliar o tempo pela capacidade de corrosão do ácido. Sabiam que quando acontecesse, o avião estaria no ar. Cinco horas de voo, um bocado de tempo. Sawyer concordou. — Kaplan e a equipe dele encontraram as caixas pretas. A caixa abriu, mas a fita estava relativamente intacta. As conclusões preliminares indicam que o motor do lado direito, assim como os controles que passavam por aquela seção da asa, foram danificados segundos depois do registro de um barulho estranho, que estão analisando agora. A caixa preta não revela uma mudança drástica na pressão da cabine, de modo que é possível afirmar em caráter definitivo que não houve explosão dentro da fuselagem, o que faz sentido, já que sabemos agora que a sabotagem ocorreu na asa. Antes, tudo estava funcionando perfeitamente: sem problemas no motor, altitude do voo e tudo mais. Mas, uma vez que as coisas complicaram, ninguém teve uma chance. — A gravação dos pilotos não dá nenhuma pista? — indagou Long. Sawyer sacudiu a cabeça. — Os diálogos de sempre. O pedido de socorro que transmitiram. O avião mergulhou em
noventa graus por quase nove mil metros, o motor esquerdo trabalhando com a potência máxima. Como saber se conseguiram permanecer conscientes em tais condições? — Sawyer fez uma pausa. — Tomara que nenhum deles estivesse — acrescentou ele, solene. Agora que estava claro que o avião fora sabotado, o FBI assumira oficialmente a investigação. Tendo em vista a complexidade do caso, os seus graves desafios organizacionais, tudo seria investigado na sede do FBI e Sawyer, devido ao trabalho perfeito que realizara no caso Lockerbie, ainda recente na memória dos chefões do FBI, seria o encarregado da investigação. Esta bomba, contudo, era um pouco diferente: explodira no espaço aéreo americano, abrira uma cratera em solo americano. Ele deixaria que os outros agentes cuidassem das respostas para a imprensa e preparassem as declarações a serem divulgadas. Preferia fazer o seu trabalho em segundo plano. O FBI dedicava uma grande quantidade de recursos em pessoal e dinheiro para infiltrar agentes em organizações terroristas que operavam nos Estados Unidos, para descobrir de antemão planos e estratégias visando a destruição em nome de alguma causa política ou religiosa. Mas o desastre do voo 3223 fora uma coisa totalmente surpreendente. Nenhuma informação, por menor que fosse, proveniente da vasta rede de informantes do FBI dera conta de que algo daquela magnitude estivesse sendo preparado. Tendo sido incapaz de prever o desastre, Sawyer agora dedicaria cada momento de sua vida, o que provavelmente seria um pesadelo, para levar os culpados às barras dos tribunais. — Bem, nós sabemos o que aconteceu com aquele avião. Agora só temos que descobrir o motivo e quem estava envolvido. Vamos começar pelo motivo. O que mais você conseguiu descobrir sobre Arthur Lieberman, Ray? Raymond Jackson era o jovem parceiro de Sawyer. Fora jogador de futebol na universidade em Michigan antes de pendurar as chuteiras e trocar sua carreira de jogador profissional por outra de agente da lei no FBI. Com um metro e oitenta de altura, negro e de ombros fortes e largos, Ray tinha olhos inteligentes e fala suave. Puxou um bloquinho de anotações. — Uma porção de informações aqui e ali. Para começo de conversa, o cara era doente terminal. Câncer no pâncreas. Tinha, talvez, seis meses de vida. Talvez. Todo o tratamento fora suspenso. Ele, no entanto, consumia quantidades maciças de analgésicos. Tomava a Solução de Schlesinger, uma mistura de morfina com um estimulante, provavelmente cocaína, um dos poucos remédios liberados neste país. Lieberman tinha uma dessas unidades portáteis que injetam a droga direto na corrente sanguínea. O rosto de Sawyer traiu seu assombro. Walter Burns e seus segredos. O presidente do Conselho da Reserva Federal tem seis meses de vida e ninguém sabe? — Onde foi que você conseguiu essa informação? — Encontrei um frasco de uma droga usada em quimioterapia no armarinho de remédios do apartamento dele. Aí fui direto na fonte. O médico do homem. Disse a ele que estávamos só fazendo uma investigação de rotina. A agenda pessoal de Lieberman registrava uma porção de visitas a médicos. Algumas na Johns
Hopkins, outras na Clínica Mayo. Aí mencionei o remédio que tinha encontrado. O doutor ficou nervoso quando o interroguei a esse respeito. Sugeri sutilmente que não contar toda a verdade ao FBI podia ser arriscado e quando mencionei um mandado, ele cedeu. Provavelmente imaginou que uma vez que o paciente estava morto mesmo, não teria importância nenhuma. — E a Casa Branca? Lá eles tinham que saber. — Se estão jogando limpo conosco, também não sabiam de nada. Falei com o chefe do pessoal sobre o segredinho do Lieberman. Não creio que no princípio tenha acreditado em mim. Tive que lembrar a ele que as letras FBI significam também Fidelidade. Bravura e Integridade. Mandei também uma cópia dos relatórios médicos para ele ler. Consta que o presidente ficou uma fera quando viu aquilo. — Uma interessante e inesperada mudança no curso dos acontecimentos — comentou Sawyer. — Sempre vi Lieberman como sendo uma espécie de Deus no mundo das finanças. Sólido como uma rocha. E no entanto ele se esquece de mencionar que está às portas da morte com um câncer no pâncreas e deixa o país na pior. Não faz sentido. Jackson sorriu. — Só estou relatando os fatos. Você está certo a respeito da capacidade do cara. Ele chega a ser lendário como um sujeito legal, honesto, sincero. No entanto, no plano pessoal, suas finanças não estavam em grande forma. — Como assim? — quis saber Sawyer. Jackson virou mais umas páginas do seu gordo bloco de anotações e passou para Sawyer. Este leu a informação de olhos arregalados enquanto Jackson continuava seu relatório. — Lieberman divorciou-se cerca de cinco anos atrás, após vinte e cinco anos de casamento. Tudo indica que foi apanhado pulando a cerca. A época não poderia ter sido pior. Ele estava prestes a ser submetido ao interrogatório do Senado destinado a confirmá-lo na posição de presidente do Conselho. A mulher ameaçou destruí-lo na imprensa. Ele poderia despedir-se rapidinho da presidência do Conselho, que, segundo fui informado, era algo com que sonhava. Para se livrar do problema, Lieberman deu praticamente tudo o que tinha à ex. Ela morreu há uns dois anos. Para complicar as coisas, os boatos dão conta de que sua namorada de vinte e poucos anos tem gostos muito dispendiosos. O emprego na Reserva Federal dá prestígio, mas não banca as extravagâncias de Wall Street, longe disso. O fato é que Lieberman estava atolado em dívidas. Vivia num apartamento modesto perto do Capitólio, enquanto tentava engatinhar para fora de um buraco financeiro do tamanho do Grand Canyon. A pilha de cartas de amor que encontramos no apartamento aparentemente foi escrita por ela. — O que aconteceu com a namorada? — perguntou Sawyer. — Não sei direito. Não me surpreenderia saber que deu o fora quando descobriu que seu cofrinho de ouro estava com câncer. — Alguma ideia de onde ela se encontra agora? Jackson sacudiu a cabeça.
— Por tudo quanto ouvi, está fora de cena há algum tempo. Falei com diversos colegas de Lieberman em Nova York. De acordo com eles a mulher era lindíssima mas não tinha miolos. — Provavelmente será perda de tempo, mas insista mais um pouco nela, Ray. Jackson fez que sim. Sawyer olhou para Barracks. — Alguma palavra do Congresso sobre quem vai assumir o lugar de Lieberman? Quando Barracks respondeu, Sawyer sentiu-se fortemente abalado pela segunda vez em menos de um minuto. — Consenso geral: Walter Burns. Sawyer ficou encarando Barracks por alguns momentos e depois escreveu o nome "Walter Burns" no seu caderninho. Ao lado acrescentou a palavra "panaca" e em seguida "suspeito" com um ponto de interrogação. Sawyer levantou a cabeça. — Parece que o nosso Sr. Lieberman estava em uma maré de péssima sorte. Para que matálo? — Uma porção de razões. — Foi Barracks quem respondeu. — O presidente do Conselho da Reserva Federal é o símbolo da política monetária americana. Um excelente alvo para um bosta qualquer do Terceiro Mundo ativista de um dos mais de dez grupos de terroristas em atividade e que são especializados em derrubar aviões com bombas. Sawyer sacudiu a cabeça. — Nenhum grupo assumiu a responsabilidade pelo atentado até agora. Barracks resmungou. — Dá um tempo a eles. Agora que confirmamos que foi um atentado a bomba, quem quer que tenha sido vai telefonar. Explodir americanos dentro de um avião em pleno voo, é para isso que esses filhos da mãe vivem. — Droga! — Sawyer deu um soco vigoroso com o punho na mesa, levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, o rosto muito vermelho. A impressão que tinha era de que a cada dez segundos a imagem da cratera invadia seus pensamentos. Imagem a que agora se acrescentava a do sapatinho de criança que tivera nas mãos. Tinha posto no colo cada um dos seus filhos ao nascerem. Aquele sapatinho podia ter sido de qualquer um deles. Qualquer um! Sabia que aquela visão jamais abandonaria totalmente seus pensamentos enquanto vivesse. Os homens olhavam para ele cheios de ansiedade. Sawyer desfrutava da merecida reputação de ser um dos mais argutos agentes entre uma legião deles no FBI. Depois de vinte e cinco anos vendo outros seres humanos pintarem uma trilha de sangue pelo país, continuava a lidar com cada investigação com o mesmo zelo e rigor que demonstrara no primeiro dia de trabalho. Normalmente Sawyer preferia análises cuidadosas a exageros descontrolados; no entanto, os agentes que trabalharam com ele todos aqueles anos sabiam exatamente como era difícil controlar o seu temperamento forte.
Ele parou de andar e encarou Barracks. — Há um problema nesta teoria, Herb. — Sua voz estava calma de novo. — Qual é? Sawyer recostou-se numa das grossas paredes de vidro, cruzou os braços e os colocou sobre o peito largo. — Se você é um terrorista querendo fazer um grande escândalo, leva uma bomba para dentro de um avião — o que, confessemos, não é tão difícil assim de fazer nos nossos voos domésticos — e explode o aparelho em milhões de pedaços. Os corpos caem lá de cima, abrem rombos nos nossos telhados, interrompem o café da manhã do país inteiro. Você não deixa espaço para que duvidem de ter sido uma bomba — Sawyer fez uma pausa e dirigiu um olhar intenso para o rosto de cada agente. — Não foi isto que aconteceu aqui, senhores. Sawyer voltou a andar de um lado para o outro. — O jato caiu praticamente intacto. Se a asa direita não tivesse caído antes, o avião estaria inteiro naquela cratera. Prestem atenção a este ponto. O sujeito que abasteceu o avião, fingindo ser um funcionário comum da Vector. presumivelmente foi pago para sabotar o aparelho. Trabalho feito em segredo por um americano que não é, pelo menos tanto quanto sabemos até agora, vinculado a qualquer grupo terrorista. Seria difícil acreditar que grupos terroristas do Oriente Médio tivessem começado a admitir americanos em suas fileiras a fim de realizar o trabalho sujo para eles. — Temos o dano causado no tanque de combustível, mas isso poderia ter sido facilmente causado pela explosão e pelo fogo. O ácido tinha queimado quase todo. Um pouco mais de calor e talvez não tivéssemos encontrado nada. E Kaplan confirmou que a asa não tinha que se desprender da fuselagem para derrubar o aparelho. O motor do lado direito foi destruído pela ingestão de resíduos, importantíssimas conexões hidráulicas de controle do voo foram destruídas pelo fogo e pela explosão, e a aerodinâmica da asa, mesmo que ela tivesse permanecido intacta, foi destruída. Assim, se não tivéssemos encontrado o material explosivo na cratera, esta coisa toda podia passar como uma horrível falha mecânica. E, não se enganem, foi um milagre e tanto esse maldito material ter sido encontrado. Sawyer deu uma olhada através de uma das paredes de vidro e prosseguiu: — Muito bem, se somarem tudo, vão ter o quê? Pode-se considerar a possibilidade de que uma pessoa que decida explodir um avião não queira que pareça ter sido proposital. Mas é a maneira de operar do terrorista típico. E o quadro geral fica muito mais obscuro. A lógica começa a favorecer o outro lado. Primeiro, o nosso homem do combustível termina com um pente de balas inteiro disparado contra ele. As malas estavam feitas, o disfarce quase completo, mas quem o contratou presumivelmente muda de planos a seu respeito. Segundo, nós temos Arthur Lieberman no mesmo voo. — Sawyer olhou para Jackson. — O homem ia a Los Angeles todos os meses, religiosamente, como um relógio, mesma empresa aérea, mesmo voo todos os meses, certo? Jackson, os olhos semicerrados não passando de fendas horizontais no seu rosto, balançou a cabeça devagar. Todos os agentes estavam, inconscientemente, inclinados para a frente, acompanhando atentos a lógica de Sawyer.
— Assim, a probabilidade de o sujeito estar no voo por acaso é tão remota que nem vale a pena discutir. Lieberman tinha que ser o alvo, a menos que a gente tenha deixado passar algo realmente importante. Agora vamos colocar as duas peças no lugar. Inicialmente, é possível que os nossos terroristas tenham tentado fazer com que o atentado parecesse um acidente. Mas depois o homem do combustível aparece morto. Por quê? — Sawyer lançou um olhar penetrante a todos os presentes. David Long finalmente resolveu falar. — Não podiam correr o risco. Talvez parecesse um acidente. talvez não parecesse. Não podem esperar que a imprensa apresente uma das duas versões. Têm que liquidar o cara logo. Além do mais, se o plano original era de o sujeito dar o fora, o fato de ele não aparecer para trabalhar despertaria suspeitas. Mesmo que não pensássemos em sabotagem, o cara fugindo da cidade com toda a certeza chamaria a nossa atenção. — Concordo — replicou Sawyer. — Mas se você quer que as pistas terminem ali, por que não fazer com que o cara do combustível parecesse um fanático? Enfiar uma bala na sua têmpora, deixar a arma e um bilhete de suicídio cheio desse papo furado de euodeio-aAmérica para convencer todo mundo de que o cara age por conta própria. Mas não, você o enche de buracos, deixa provas de que o cara estava se preparando para fugir e agora nós sabemos que há mais gente envolvida. Por que diabos se dar a esse tipo de trabalho? — Sawyer esfregou o queixo. Os outros agentes se recostaram nas cadeiras, parecendo confusos. Sawyer por fim olhou para Jackson. — Alguma palavra do legista sobre o nosso defunto? — Prometeram prioridade máxima. Logo saberemos. — Alguma outra coisa no apartamento do cara? — Uma coisa que não foi encontrada, Lee. — Não foram encontrados documentos de identidade — respondeu Sawyer, antecipando o que seu parceiro ia dizer. — Exato — confirmou Jackson. — O cara que se prepara para fugir depois de ter explodido um avião não vai viajar com sua identidade verdadeira. Do jeito que isto provavelmente foi planejado, ele tinha que ter documentos falsos, bons documentos falsos prontos. — Verdade, Ray, mas ele poderia tê-los escondido em outro lugar. — Se é que não foram levados por quem matou o cara — arriscou Barracks. — Não há como discutir isso — replicou Sawyer. Neste exato momento a porta se abriu e entrou Marsha Reid. Baixinha e de aspecto maternal, com o cabelo grisalho cortado curto e óculos pendurados por uma corrente sobre o vestido preto, era uma das mais competentes especialistas em impressões digitais do FBI. Reid acompanhara a trilha de alguns dos mais perigosos criminosos do planeta através do estranho mundo de curvas, círculos e estrias das impressões digitais. Marsha cumprimentou com um gesto de cabeça os outros agentes na sala, sentou-se e abriu a pasta que trouxera.
— Resultados do exame das impressões digitais, quentinhos ainda do forno — disse ela, o tom profissional mesclado com um toque de humor. — Robert Sinclair na verdade se chamava Joseph Philip Riker, procurado nos estados do Texas e Arkansas por homicídio e assaltos à mão armada. Sua ficha tem três páginas. Primeira prisão por assalto à mão armada aos dezesseis anos. Última por homicídio de segundo grau. Cumpriu sete anos de prisão. Foi libertado cinco anos atrás. Desde então andou envolvido em inúmeros crimes, inclusive em dois assassinatos por encomenda. Um homem extremamente perigoso. Perderam-no de vista há cerca de dezoito meses. Nenhum sinal dele desde então. Até agora. Todos os agentes ficaram atônitos. — Como é que um sujeito assim consegue um emprego para abastecer aviões? — O tom de voz de Sawyer revelava sua incredulidade. Foi Jackson quem respondeu à sua pergunta. — Falei com representantes da Vector. É uma empresa de excelente reputação. Sinclair — aliás, Riker, trabalhava com eles apenas há um mês, mais ou menos. Tinha excelentes referências. Trabalhara em diversas empresas do ramo no noroeste e no sul da Califórnia. Fizeram uma investigação, sob o nome Sinclair, claro. Tudo certo. Ficaram tão assombrados como qualquer outra pessoa. — E as impressões digitais? Eles tinham que verificar as impressões do cara. Teriam sabido quem ele era realmente. Reid olhou para Sawyer e falou com autoridade. — Depende de quem tira as digitais, Lee. Um técnico não muito competente pode ser enganado, você sabe disso. Tem material sintético por aí que você jura que é pele. Pode-se comprar digitais na rua. Hoje em dia um criminoso se transforma em um cidadão respeitável. Barracks interveio: — E se o sujeito era procurado por esses crimes todos, provavelmente estava de cara nova também. Aposto cinco contra dez como o rosto no necrotério não é o mesmo que aparece nos cartazes de PROCURA-SE. Sawyer dirigiu-se a Jackson. — Como foi que Riker conseguiu abastecer o voo 3223? — Cerca de uma semana atrás ele pediu para ser trocado para o turno que chamam de turno do cemitério, da meia-noite às sete. O voo 3223 sai às seis e quarenta e cinco da manhã. A mesma hora todos os dias. O registro mostra que o avião foi abastecido às cinco e quinze. O que o coloca nas mãos de Riker. As pessoas não costumam ser voluntárias para esse turno, de modo que Riker conseguiu o que queria por falta de concorrência. Outra pergunta ocorreu a Sawyer. — Mas onde estará o verdadeiro Robert Sinclair? — Provavelmente morto — respondeu Barracks. — E Riker assumiu sua identidade. Ninguém comentou essa teoria até que Sawyer insistiu, fazendo uma pergunta surpreendente. — E se Robert Sinclair não existir? — Nem mesmo Marsha Reid pareceu intrigada. Sawyer
parecia imerso profundamente nos seus pensamentos quando falou: — É complicado assumir a identidade de uma pessoa real. Fotos antigas, colegas ou amigos que aparecem inesperadamente e acabam com o seu disfarce. Há outro modo de fazer a coisa. — Sawyer contraiu os lábios e ergueu as sobrancelhas enquanto repassava essa ideia. — Tem algo me dizendo que precisamos refazer tudo o que a Vector fez quando verificou o passado de Riker. Prossiga com isso, Ray, como ontem. Jackson fez que sim e fez algumas anotações. Reid olhou para Sawyer. — Você está pensando o que estou pensando que está? Sawyer sorriu. — Não seria a primeira vez que uma pessoa foi inventada a partir do nada. Número do Seguro Social, histórico profissional. residências anteriores, identificação fotográfica, contas bancárias, certificados de cursos. falsos números telefônicos, referencias fictícias. — Ele encarou Reid. — Inclusive falsas digitais, Marsha. — Estamos falando então de uns caras bastante sofisticados – replicou ela. — Nunca duvidei disso, Sra. Reid — replicou Sawyer. Ele olhou em torno da mesa. — Não quero me afastar das normas operacionais do Bureau, de modo que continuaremos a entrevistar os parentes das vítimas, mas não quero perder tempo demais nisso. Lieberman é a chave para tudo. — Subitamente ele mudou de assunto. — A operação Partida Rápida está funcionando bem? — Perguntou a Ray Jackson. — Muito bem. A operação Partida Rápida era como o FBI denominava o início de uma investigação, coisa que Sawyer usara com sucesso no passado. A premissa em que se apoiava a operação era a precisão do funil eletrônico por onde passavam todas as informações, pistas ou denúncias anônimas referentes à investigação, as quais, não fosse isso, permaneceriam desorganizadas e confusas. Com uma investigação integrada dispondo de acesso em tempo real às informações, as chances de sucesso, assim acreditava o Bureau, eram imensamente maiores. No caso do voo 3223 a operação foi instalada em um armazém abandonado nas cercanias de Standardsville. Em lugar de folhas de tabaco do chão ao teto, o galpão agora alojava a última palavra em computadores e equipamento de telecomunicações, onde dezenas de agentes trabalhando por turnos acrescentavam as informações que iam chegando aos imensos bancos de dados, vinte e quatro horas por dia. — Precisamos de um milagre, e mesmo assim pode não ser o bastante. — Sawyer ficou em silêncio por um momento para finalizar. incisivo: — Ao trabalho.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO — QUENTIN? — ERA EVIDENTE a surpresa no rosto de Sidney quando foi atender a porta da frente. Quentin Rowe a encarou através dos óculos ovais. — Posso entrar? Os pais de Sidney tinham saído para fazer compras. Enquanto Sidney e Quentin se dirigiam para a sala, apareceu Amy, sonolenta e arrastando o ursinho. — Oi, Amy — disse Rowe. Ele se ajoelhou e esticou a mão para ela, mas a garotinha recuou. — Eu também era tímido quando tinha a sua idade. — Rowe levantou os olhos para Sidney. — Provavelmente foi por isso que me dediquei aos computadores. Eles não brigam nem tentam tocar em você. — Ele fez uma pausa, aparentemente imerso em seus pensamentos. Sobressaltou-se e olhou para ela. — Você tem tempo para conversar? Sidney hesitou. — Por favor, Sidney. — Deixa eu pôr esta garotinha para tirar uma soneca da qual está muito necessitada. Volto num instante. Enquanto Sidney se afastava, Rowe caminhou lentamente pela sala, estudando as muitas fotos da família Archer espalhadas pelas paredes e tampos dos móveis. Voltou-se para Sidney quando ela regressou. — Linda garotinha. — Ela é uma coisa. Uma coisinha muito fofa. — Especialmente agora, certo? Sidney fez que sim. Rowe não tirou os olhos dela. — Perdi meus pais em um desastre de avião quando tinha quatorze anos. — Lamento, Quentin. Ele deu de ombros. — Foi há muito tempo. Mas acho que posso compreender um pouco melhor que a maioria como você está se sentindo. Eu era apenas uma criança. Fiquei sem ninguém. — Acho que neste aspecto eu tive sorte. — Nunca se esqueça disso, Sidney. Ela respirou fundo. — Quer beber alguma coisa? Chá, se tiver. Poucos minutos depois eles estavam acomodados no sofá da sala. Rowe equilibrava o pires no joelho enquanto bebericava delicadamente seu chá. Em dado instante descansou a xícara e olhou para ela, evidentemente contrafeito. — Primeiro quero me desculpar com você. — Quentin... Ele ergueu uma das mãos. — Sei o que é que você vai dizer, mas eu saí da linha. As coisas que eu disse, o modo como
tratei você. Eu... às vezes não penso antes de falar. Na verdade, é assim que sou quase sempre. Não sei muito bem me relacionar com os outros. Sei que pareço estranho, excêntrico e egoísta, mas na verdade não sou assim. — Eu sei, Quentin. Sempre tivemos um bom relacionamento. Todo mundo na Triton acha você o máximo. Sei que Jason pensava assim. Se isso faz com que se sinta melhor, acho mais fácil me relacionar com você do que com Nathan Gamble. — Você e o resto do mundo. — Apressou-se a dizer Quentin. — O que quero explicar a você é que eu estava sendo submetido a uma enorme pressão, com Gamble berrando para acabarmos logo com a aquisição da CyberCom e falando no risco que corríamos de perder tudo. — Bem, acho que Nathan entende o que está em jogo. Rowe fez que sim, distraído. — A segunda coisa que eu queria lhe dizer é como estou sinceramente penalizado com o que aconteceu com Jason. Simplesmente não deveria ter acontecido. Jason provavelmente era a única pessoa com quem eu era capaz de me entender na empresa. Era tão talentoso quanto eu na parte tecnológica mas também era capaz de se relacionar bem com os outros, uma área em que, como já falei, deixo a desejar. — Acho que você se sai muito bem. Rowe animou-se. — É mesmo? — Ele suspirou. — Ao lado do Gamble acho que a maior parte das pessoas fica parecendo sem sal, tipo garota que toma chá-de-cadeira. — Concordo, mas também não recomendo que você o imite. Rowe descansou o chá. — Eu diria que eu e ele formamos uma aliança muito estranha. — É difícil contestar o sucesso que vocês dois tiveram. O tom de voz dele ficou subitamente amargo. — Exatamente. O grande padrão de se medir as pessoas: o dinheiro. Quando comecei, eu tinha ideias. Ideias maravilhosas, mas nenhum capital. Foi aí que apareceu Nathan. — A expressão de Quentin não era agradável. — Não é só isso, Quentin. Você tem uma visão do futuro. Eu compreendo a sua visão, na medida em que isto seja possível a uma pessoa neófita em tecnologia. Sei que esta sua visão é que está tocando a transação da CyberCom. Rowe deu um soco na palma da mão. — Exatamente, Sidney. Exatamente. As apostas são inacreditavelmente altas. A tecnologia da CyberCom é tão drasticamente superior, tão monumental, que é como se Graham Bell tivesse voltado. — Ele parecia tremer de entusiasmo quando olhou para Sidney. — Você entende que a única coisa que restringe o potencial ilimitado da Internet é o fato de ela ser tão grande e tão cansativa que navegar com eficiência quase sempre é um horrendo exercício de futilidade até mesmo para os mais proficientes usuários de computador? — Mas com a CyberCom isso mudará? — Sim, sim! Claro. — Tenho que confessar, Quentin, que a despeito de ter trabalhado neste negócio por tantos meses, eu realmente não sei ao certo com o que a CyberCom vai entrar. Advogados
raramente tratam dessas nuanças, particularmente os que nunca se destacaram no aspecto científico, assim como eu. — Ela sorriu. Rowe recostou-se. o corpo franzino assumindo uma posição mais confortável agora que a conversa seguia por rumos mais técnicos. — Em termos leigos a CyberCom conseguiu, nada mais, nada menos que criar uma inteligência artificial — os chamados agentes inteligentes — que será usada inicialmente para navegar sem esforço pelas milhões e milhões de redes que deságuam umas nas outras e compõem a Internet. — Inteligência artificial? Pensei que isso só existisse no cinema. — Em absoluto. Há diversos graus de inteligência artificial, claro. A da CyberCom é de longe a mais sofisticada que já vi. — Como é exatamente que funciona? — Digamos que você queira tomar conhecimento de todos os artigos escritos sobre algum assunto controverso e queira também um resumo desses artigos, listando os favoráveis e os contrários, os arrazoados, as análises e assim por diante. Agora, se você tentasse fazer isso sozinha, através do pesado labirinto em que se transformou a Internet, ia levar a vida inteira. Como já falei, a quantidade esmagadora de informações contidas na Internet é sua maior limitação. Os seres humanos são mal equipados para lidar com algo em semelhante escala. Se você contornar esse obstáculo, será como se a superfície de Plutão de repente ganhasse vida, iluminada pelo sol. — E foi isso o que a CyberCom fez? — Com a CyberCom em nosso grupo, daremos início a uma rede sem fio, baseada em satélite, que será coordenada sem falhas com um software patenteado que em pouco tempo estará instalado em todos os computadores do país, e, um pouco mais adiante, do mundo. Esse software é disparado o de uso mais fácil que já vi. Ele pergunta ao usuário precisamente que informação é necessária. E continua fazendo perguntas adicionais sempre que for preciso. Depois, usando a nossa rede baseada em satélite, irá explorar cada molécula do conglomerado de computadores que chamamos de Internet até que monte, de forma absolutamente perfeita, a resposta a cada pergunta que você fez, além de inúmeras outras que você não foi capaz de formular. Melhor que tudo, é um software capaz de se adaptar e se comunicar com qualquer servidor de rede que exista. Esta é outra desvantagem da Internet: a incapacidade dos sistemas de se comunicar uns com os outros. E realizará esta tarefa um bilhão de vezes mais rapidamente que qualquer ser humano seria capaz. Será como examinar cada gota de água do rio Nilo em poucos minutos. Mais depressa até. Finalmente, as enormes fontes de conhecimento que estão espalhadas por aí poderão ser ligadas com eficiência à única entidade que realmente precisa deles. — Ele a fitou com um olhar penetrante antes de prosseguir. -A humanidade. E não pára aqui. A interface da rede com a Internet é apenas uma parte do quebra-cabeça todo. Também eleva o padrão de codificação a níveis nunca atingidos. Imagine só a pronta resposta a tentativas de decodificação ilegal das transmissões eletrônicas. Resposta que pode não só ajustar-se para a defesa de ataques múltiplos de um hacker como também
perseguir agressivamente o invasor e capturá-lo. Acha que uma coisa dessas seria popular com as autoridades policiais? Isso será o próximo grande marco da revolução tecnológica. Vai determinar como os dados serão transmitidos e usados no próximo século. O modo como vamos construir, ensinar, pensar. Imagine só computadores que não sejam apenas máquinas burras reagindo a instruções precisas dadas pelos humanos nos seus teclados. Visualize os computadores usando sua enorme capacidade intelectual para pensar por conta própria, para resolver problemas por nós de uma maneira inconcebível nos dias de hoje. Tornará muita coisa obsoleta, inclusive grande parte da atual linha de produção da Triton. Muda tudo. Como o motor de combustão interna fez à era das carruagens puxadas a cavalo, só que mais profundamente. — Meu Deus — exclamou Sidney. — E eu acho que os lucros potenciais... — Sim, sim, ganharemos bilhões de dólares com a venda do software, as tarifas da rede... todas as empresas do mundo vão querer estar on-line conosco. E isso é apenas o princípio. — Rowe parecia não se interessar por este lado da equação. — E mesmo assim, com tudo isso, Gamble não quer ver, é incapaz de compreender... — Em sua ansiedade, ele se levantou, balançando os braços. Logo em seguida conteve-se e, ruborizado, sentou-se novamente. — Desculpe... Desculpe, às vezes eu me deixo émpolgar. — Tudo bem, Quentin. Eu compreendo. Jason compartilhava do seu entusiasmo quanto ao negócio da CyberCom, eu sei. — Tivemos muitas conversas fantásticas a esse respeito. — E Gamble está bastante consciente das consequências de outra empresa adquirindo a CyberCom. Tenho que acreditar que ele voltará a ser razoável no que diz respeito à questão dos arquivos. Rowe fez que sim. — É o que se pode esperar — disse, rapidamente. Sidney deu uma olhada nos brinquinhos de diamantes no lobo da sua orelha. Pareciam ser a única extravagância naquele homem. Possuidor de várias centenas de milhões de dólares, Rowe vivia praticamente como o estudante pobre que fora dez anos antes. Finalmente Rowe quebrou o silêncio. — Na verdade, Jason e eu conversamos muito sobre o futuro. Ele era uma pessoa muito especial. — Quentin parecia compartilhar o sofrimento de Sidney toda vez que o nome de Jason era mencionado. — Acho que você não vai trabalhar mais no caso da aquisição da CyberCom, vai? — O advogado que vai me substituir é muito competente. Vocês nem vão notar a troca. — Oh, excelente. — Ele pareceu não acreditar. Sidney se levantou e pegou no ombro dele. — Quentin, este negócio será feito. — Notou que a xícara dele estava vazia. — Quer mais um pouco de chá? — O quê? Oh. Não, obrigado. — Ele voltou a mergulhar em seus pensamentos, esfregando nervosamente as mãos magras. Quando arriscou um olhar para ela, Sidney achou que sabia o que ele tinha em mente.
— Tive uma reunião improvisada com Nathan recentemente. Rowe balançou a cabeça. — Ele me falou qualquer coisa a esse respeito. — Então você está sabendo da "viagem" de Jason? — Que ele contou a você que ia fazer uma entrevista para ver um emprego? — Sim. — Que empresa? — A pergunta foi feita com naturalidade. Sidney hesitou e decidiu responder. — AllegraPort Technology. Rowe deu uma risada. — Eu poderia ter dito a você que era uma piada. A Allegra-Port estará fora do negócio em menos de dois anos. Fizeram parte da elite, mas depois se deixaram ficar para trás. Neste ramo. ou você inova ou morre. Jason jamais teria considerado seriamente a possibilidade de trabalhar para eles. — Como descobri depois, não pensou mesmo nisso. Nunca ouviram falar dele na AllegraPort. Rowe obviamente fora privado desta informação. — Poderia ter sido alguma outra coisa... Não sei direito como dizer... — Algo pessoal? Outra mulher? Envergonhado como uma criança, Rowe resmungou. — Eu não devia ter falado isso. Não é da minha conta. — Não, tudo bem. Não vou lhe dizer que essa ideia também não passou pela minha cabeça. No entanto, o nosso relacionamento nunca foi melhor que nos últimos tempos. — Então ele nunca deu qualquer indicação de que alguma coisa ocorria em sua vida? Algo que o tivesse feito... tomar um avião para Los Angeles sem lhe contar a verdade? Sidney armou-se de cautela. Aquela visita seria uma expedição investigativa? Será que Gamble mandara talvez o seu vice-presidente para ver se ele conseguia garimpar alguma informação? Mas ao ver a expressão perturbada de Rowe, Sidney rapidamente concluiu que ele tinha vindo por conta própria, numa tentativa de descobrir o que acontecera a seu funcionário e amigo. — Nada. Na verdade Jason nunca me falava sobre trabalho. Não tenho ideia do que andava fazendo, quisera Deus que eu tivesse! É exatamente o fato de não saber que me mata. — Ela questionou-se intimamente se deveria perguntar a Rowe se ele sabia do caso da tranca nova na porta de Jason e outras preocupações de Kay Vincent, mas por fim decidiu que não devia falar nada. Após um silêncio contrafeito, Rowe se mexeu na cadeira. — Eu trouxe as coisas de Jason que você foi buscar no escritório. Depois de ter sido tão rude, achei que o melhor era vir trazê-las pessoalmente. — Muito obrigada, Quentin. Pode crer em mim quando digo que não guardo ressentimentos. Os tempos estão difíceis para nós todos. Rowe agradeceu com um sorriso quando se levantou. — Tenho que ir. Vou apanhar a caixa. Se precisar de alguma coisa, fale comigo. — Depois
de trazer os objetos de Jason, Rowe se despediu e virou-se para ir embora. Sidney tocou no ombro dele. — Nathan Gamble não o tratará com superioridade o resto da vida. Todo mundo sabe quem está realmente por trás do sucesso da Triton Global. Ele pareceu surpreso. — Você acha mesmo? — É difícil esconder um gênio. Quentin Rowe respirou fundo. — Não sei não. Gamble me surpreende o tempo todo. Com esta, ele se virou e saiu caminhando lentamente de volta para o carro.
CAPÍTULO VINTE E CINCO JÁ ERA QUASE MEIA-NOITE quando Lee Sawyer encostou a cabeça no travesseiro, após um jantar engolido às pressas. Seus olhos, contudo, não conseguiram fechar, embora ele estivesse literalmente exausto. Olhou em torno do quarto e, abruptamente, decidiu levantar. Saiu pelo corredor descalço, de cueca e camiseta, e desabou numa espreguiçadeira velha que tinha na sala. A carreira típica de um agente do FBI não é muito propícia a longos períodos de tranquilidade doméstica. Muitos aniversários de casamento, feriados e aniversários perdidos. Meses fora de casa de cada vez, sem saber quando voltar. Fora gravemente ferido no cumprimento do dever, uma situação traumática para qualquer esposa. Suportara ameaças à sua família provenientes da escória humana a cuja erradicação ele dedicara a vida. Tudo pela causa da justiça, para tornar o mundo, se não melhor, pelo menos momentaneamente mais seguro. Um objetivo nobre que não soava tão especial quando se pega o telefone para explicar ao filho de oito anos por que papai vai perder outro jogo de beisebol, recital ou peça na escola. Sabia disso desde o começo, e Peg também. Estando tão apaixonados, acreditaram verdadeiramente que podiam vencer as dificuldades, o que conseguiram durante longo tempo. Ironicamente, o relacionamento dele com Peg agora era melhor do que tinha sido por muitos anos. As crianças, contudo, eram outro papo. Ele assumira toda a culpa pelo rompimento e talvez a merecesse. Somente agora é que os três mais velhos começavam a falar com ele de forma mais consistente. Meggie, contudo, afastara-se por completo. Ele não sabia o que estava acontecendo na vida dela e era isso o que mais doía. O não saber. Todo mundo tem que fazer escolhas na vida e ele fizera as suas. Construíra uma carreira de êxitos no Bureau, mas o sucesso teve o seu preço. Foi até a cozinha, pegou uma cerveja gelada e se acomodou de novo na espreguiçadeira. O elixir mágico do sono. Pelo menos ainda não apelava para bebida forte. Ainda. Terminou a cerveja em alguns goles e fechou os olhos. Uma hora mais tarde a campainha do telefone o despertou do sono profundo. Ainda estava na espreguiçadeira. Pegou o aparelho na mesa ao lado. — Alô? — Lee? Ele pestanejou e logo abriu os olhos. — Frank? — Sawyer consultou o relógio. — Você não trabalha mais no Bureau, Frank. Pensei que a iniciativa privada deixasse você cumprir um horário mais regular. Do outro lado da linha Frank Hardy estava completamente vestido em uma sala lindamente mobiliada. Pendurados na parede atrás dele viam-se numerosos diplomas relembrando uma longa e distinta carreira no FBI. Hardy sorriu. — A concorrência aqui fora é feroz, Lee. O dia precisava ter mais de vinte e quatro horas. — Bem, não me envergonho de admitir que esse é o meu limite. Mas o que é que há? — O seu avião derrubado por uma bomba — respondeu Hardy, com simplicidade.
Sawyer sentou-se reto, totalmente desperto agora. Os olhos começaram a entrar em foco. — O quê? — Tenho uma coisa aqui que você precisa ver, Lee. Ainda não sei exatamente do que se trata. Vou fazer um café. Quanto tempo vai levar para chegar aqui? — Me dá trinta minutos. — Exatamente como nos velhos tempos. Em cinco minutos Sawyer estava totalmente vestido. Enfiou a pistola 10mm no coldre e desceu para pegar o carro na rua. No trajeto telefonou para a sede do FBI para comunicar as novidades. Frank Hardy fora um dos melhores agentes que passaram pelo Bureau. Quando saiu para montar sua própria empresa de segurança, todos sentiram muito a perda mas ninguém o invejara ou lhe negara o direito a uma oportunidade após tantos anos de serviço. Ele e Sawyer tinham sido parceiros por dez anos antes da saída de Hardy. Formaram uma equipe produtiva, resolvendo inúmeros casos difíceis de grande notoriedade, levando aos tribunais criminosos descobertos por eles, muitos dos quais cumpriam agora sentenças de prisão perpétua em uma das várias prisões federais de segurança máxima existentes no país. Entre os criminosos presos pela dupla, inclusive alguns assassinos seriais, muitos haviam sido condenados à morte e executados. Se Hardy achava que tinha algo sobre o atentado que derrubara o avião, é porque tinha. Sawyer acelerou e em menos de vinte minutos estava deixando o carro num amplo estacionamento. O edifício de quatorze andares em Tysons Corner sediava inúmeras empresas, nenhuma das quais envolvida em algo tão emocionante quanto o ramo de Hardy. Sawyer foi liberado pela segurança depois de mostrar as credenciais do FBI e pegou o elevador até o décimo quarto andar. Quando saltou, viu-se em uma área de recepção de aspecto bem moderno. A iluminação indireta suave era a única fonte de luz no ambiente. Atrás da mesa da recepcionista letras brancas de quinze centímetros de altura proclamavam o nome do estabelecimento: SECURTECH.
CAPÍTULO VINTE E SEIS SIDNEY ARCHER FICOU OBSERVANDO a metódica expansão e contração do pequenino tórax. Seus pais dormiam a sono solto no quarto de hóspedes, no fim do corredor, enquanto Sidney estava na cadeira de balanço do quarto de Amy. Finalmente levantou-se e foi até a janela. Nunca fora uma pessoa muito notuma. Dias de intensa agitação exigiam que quando chegasse a hora de dormir, ela dormisse. Agora a escuridão da noite lhe parecia poderosamente tranquilizadora, como uma suave cascata de águas mornas. Tornava os acontecimentos recentes menos reais, menos aterrorizadores do que ela sabia que eram. Quando a luz do sol despontava, contudo, a serenidade da noite a abandonava novamente. No dia seguinte seria realizado o serviço religioso em memória de Jason. A casa ficaria cheia de gente que viria apresentar suas condolências e relembrar o homem bom que seu marido sempre fora. Sidney não sabia se era isso que desejava, mas esta era uma preocupação com que não se incomodaria durante mais algumas horas. Deu um beijinho no rosto de Amy, retirou-se silenciosamente e foi para o pequeno escritório de Jason. Passou a mão por cima do batente e pegou um grampo de cabelo, que inseriu na fechadura da porta. Aos dois anos de idade Amy Archer era capaz de mexer em qualquer coisa: pintura de olho, meia-calça, jóias, gravatas de Jason, sapatos, carteiras e bolsas. Uma vez encontraram o certificado de propriedade do Cougar de Jason enfiado na caixa da mistura para fazer panquecas juntamente com as chaves da casa que haviam procurado desesperadamente. De outra vez, quando ela e Jason acordaram, viram que Amy tinha enrolado toda uma caixa de fio dental em torno da cama dos pais, de quatro colunas. Girar maçanetas era uma coisa simples para a caçula da família Archer, motivo pelo qual a maioria das portas tinha um grampo de cabelo ou um clipe de papel esticado escondidos por perto. Sidney entrou e sentou-se à mesa. Olhou fixamente para a tela do computador, a superfície plana escura e silenciosa. Uma parte dela teve a louca esperança de que outro e-mail irrompesse na tela, esperança que não se concretizou. Olhou em torno. Sendo um recanto inteiramente de Jason, continuava atraindo-a. Tocava em certos itens favoritos dele como se fossem revelar os segredos que seu marido deixara. O toque da campainha do telefone interrompeu o devaneio. Tocou de novo e ela atendeu rapidamente, sem saber o que esperar. Por um momento não reconheceu a voz. — Paul? — Desculpe estar ligando tão tarde. Tentei antes, deixei recados. Ela hesitou. — Eu sei, Paul, mas tem sido tão... — Jesus, Sid. Não falei isso para fazer com que você se sentisse culpada. Só estava preocupado. Descobrindo o que aconteceu com Jason daquele jeito, não sei como você está se segurando. Você é mais forte do que eu.
Ela sorriu, um sorriso tímido. — Não me sinto tão forte neste instante. — Você tem muita gente da firma ao seu lado — disse Paul Brophy, ardorosamente. E em particular um sócio baseado em Nova York, disponível vinte e quatro horas por dia para ajudar. — O apoio de vocês é comovente, sem dúvida. — Estarei aí amanhã no serviço religioso. — Não precisa, Paul, você deve estar atolado de tanto trabalho. — Na verdade, não. Não sei se você soube, mas me ofereci para assumir a transação da CyberCom. — É mesmo? — Sidney esforçou-se ao máximo para controlar a voz. — só que não consegui. Wharton foi um tanto grosseiro ao rejeitar minha oferta. Sinto muito, Paul. — Sidney sentiu-se momentaneamente culpada. — Mas haverá outras transações. — Eu sei. mas eu realmente achei que podia me encarregar dessa. — Ele fez uma pausa. Sidney rezou para que ele não perguntasse se Wharton pedira sua opinião a esse respeito. Quando ele finalmente falou, ela sentiu-se ainda mais culpada. — Vou para aí amanhã, Sid. Não consigo imaginar um outro lugar onde eu preferisse estar. — Muito obrigada. — Sidney puxou o robe para se proteger do frio. — Está bem para você se eu for para sua casa diretamente do aeroporto? — Está ótimo. — Vá dormir um pouco, Sid. Vejo você amanhã bem cedo. Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, de dia ou de noite, basta ligar para mim, OK? — Muito obrigada, Paul. Boa noite. — Sidney descansou o telefone. Sempre se dera bem com Brophy, mas não tinha a menor dúvida de que sob sua aparência delicada escondia-se um oportunista. Dissera a Henry Wharton que Paul não era indicado para assumir as negociações com a CyberCom e agora ele vinha lhe prestar solidariedade numa hora de sofrimento. Bem, ela podia estar sofrendo, mas não acreditava em coincidências tão grandes. Gostaria de saber qual seria o verdadeiro motivo dele. Quando desligou, Paul Brophy contemplou a vasta área do seu luxuoso apartamento. Quando se tem trinta e quatro anos, se é solteiro, bem-apessoado e com uma renda de seis dígitos, a cidade de Nova York é um grande lugar para se morar. Ele sorriu e passou a mão pelo cabelo grosso. Seis dígitos que, com um pouco de sorte, logo se transformariam em sete. Na vida muita coisa depende de com quem você se alia. Ele pegou o telefone e discou. Atenderam no primeiro toque. A voz mostrou-se brusca e profissional depois que Brophy se identificou. — Olá, Paul. Eu estava mesmo esperando que você ligasse hoje — disse Philip Goldman.
CAPÍTULO VINTE E SETE FRANK HARDY COLOCOU A FITA DE VÍDEO no aparelho que ficava sob a televisão de tela grande, a um canto da sala de reuniões. Eram quase duas horas da manhã. Lee Sawyer sentou em uma das cadeiras luxuosas, com uma xícara de café nas mãos, admirando o ambiente. — Puxa vida, os negócios devem ir mesmo muito bem, Frank. Sempre me esqueço do quanto você subiu na vida. Hardy riu. — Se você tivesse aceito minha oferta para se juntar a mim, não ia esquecer nunca. — Sou muito apegado a meus hábitos, Frank. Hardy riu. — Renée e eu estamos pensando em passar o Natal no Caribe. Você podia ir conosco. Talvez levar alguém. — Hardy olhou para o parceiro, na expectativa. — Sinto muito, Frank, mas realmente não há ninguém. — Já faz dois anos. Eu só pensei... Depois que a Sally saiu de cena, achei que eu fosse morrer. Não queria passar pelo processo de paquerar e namorar de novo. Mas apareceu a Renée e eu sou a mais feliz das criaturas. — Vendo que a Renée pode passar por irmã gêmea da Michelle Pfeiffer, posso entender que você deve ser mesmo um homem muito feliz. Hardy deu uma risada. — Você pode querer reconsiderar. Renée tem algumas amigas que acompanham rigorosamente os padrões estéticos dela. E as mulheres ficam loucas com tipos como você, altos e fortes, estou lhe dizendo. — Certo — resmungou Sawyer. — Não é para fazer pouco de sua beleza, meu velho, mas não tenho uma conta bancária do tamanho da sua. Consequentemente, meu nível de atração vem diminuindo todos esses anos. Além do mais, ainda sou apenas um funcionário do governo. Classe econômica e lojas de departamentos são o meu limite e não acho que você circule mais por esses continentes. Hardy sentou-se, pegou uma caneca de café com uma das mãos e o controle remoto do vídeo com a outra. — Eu estava planejando pagar a conta sozinho, Lee — disse, contido. — Tipo presente de Natal antecipado. É difícil comprar as coisas para você. — Muito obrigado, de qualquer maneira. Na verdade, estou pensando em passar algum tempo com as crianças este ano. Se elas quiserem ficar comigo. Frank balançou a cabeça. — Estou ouvindo. — Agora, o que é que você tem para mim? — Nos últimos anos — disse Hardy — tenho trabalhado como consultor-chefe de segurança para a Triton Global.
Sawyer pegou sua xícara de café. — Triton Global? Computadores, telecomunicações. É uma das 500 empresas mais bemsucedidas da lista da revista Fortune, não é? — Tecnicamente não se qualifica para a lista. — Por quê? — Porque não é uma empresa aberta. Domina o campo onde atua, se expande loucamente e faz tudo isso sem subscrição de capital no mercado. — Impressionante. Qual a relação disso com um avião que mergulhou de cabeça nos campos da Virgínia? — Há alguns meses a Triton suspeitou que certa informação patenteada estava vazando para um concorrente. Fomos chamados para verificar se era verdade e, se fosse, descobrir o vazamento. — E conseguiram? Hardy fez que sim. — Primeiro reduzimos a lista dos concorrentes com maior probabilidade de participar de um esquema desses. Em seguida, partimos para a vigilância. — Deve ter sido muito difícil. Empresas grandes, milhares de funcionários, centenas de escritórios. — Foi um desafio desanimador, a princípio. No entanto, a nossa informação nos levou a acreditar que o vazamento vinha de cima, de modo que ficamos de olho no pessoal de alto nível da Triton. Lee Sawyer recostou-se na cadeira e tomou um gole do café. — E aí você identificou alguns outros lugares "não-oficiais" onde a troca podia ter lugar e armou seu circo de espionagem? Hardy sorriu. — Tem certeza de que não quer trabalhar comigo? Sawyer fez um gesto impaciente. — O que foi que aconteceu? — Identificamos várias dessas locações "não-oficiais", de propriedade de empresas de quem suspeitávamos e que pareciam não ter um objetivo operacional legítimo. Em cada uma delas instalamos equipamento de vigilância. — Hardy riu sarcasticamente do seu ex-colega. — Não me venha citar as leis que proíbem isso, Lee. As vezes os fins justificam os meios. — Não estou falando nada. Quisera eu que às vezes pudéssemos tomar um atalho. Só que aí teríamos uma centena de advogados berrando "inconstitucional" e eu acabaria perdendo as vantagens da minha aposentadoria. — Seja como for, dois dias atrás foi feita uma inspeção de rotina em uma câmera de vídeo oculta instalada no interior de um armazém localizado nas proximidades de Seattle. — O que levou você a vigiar esse armazém? — Processamos uma informação que nos levou a crer que o prédio era de propriedade, através de uma série de subsidiárias e sociedades, do grupo RTG. O grupo RTG é o maior concorrente da Triton. — Qual era a natureza da informação que a Triton acreditava que estava vazando? Tecnológica? — Não. A Triton estava envolvida em negociações para aquisição de uma empresa de software muito valiosa, chamada CyberCom. Acreditamos que informações a este respeito estavam sendo vazadas para a RTG, informações que a RTG podia usar para comprar — ela própria — a CyberCom, já que conheceria os termos da Triton e sua posição
nas negociações. Com base no vídeo que você vai ver, emitimos uns sinais sutis para a RTG. Eles negaram tudo. claro. Alegaram que o armazém fora alugado um ano antes para uma empresa não afiliada. Verificamos esta empresa. Não existe. O que significa que ou a RTG está mentindo ou temos outro jogador em cena. Sawyer balançou a cabeça. — OK. Agora me fala sobre a ligação com o meu caso. Hardy respondeu apertando um botão do controle remoto. A tela grande da televisão ganhou vida. Sawyer e Hardy ficaram atentos, observando enquanto a cena no cubículo do armazém se desenrolava. Quando o jovem alto aceitou o estojo de prata dos homens mais velhos, Hardy conseguiu a imagem e deu uma espiada em Sawyer, que estava visivelmente intrigado. Hardy puxou do bolso uma lanterna a laser e destacou o rapaz. Este homem é funcionário da Triton Global. Não o tínhamos na lista de vigilância porque não era do nível sênior e não estava envolvido diretamente nas negociações para a aquisição da CyberCom. — A despeito disso, ele obviamente é o responsável pelo vazamento. Reconhece mais alguém? Hardy sacudiu a cabeça. — Ainda não. O nome dele, a propósito, é Jason W. Archer, mora no número 611, Morgan Lane no condado de Jefferson, Virgínia. Soa familiar? Sawyer concentrou-se. O nome era mesmo familiar. Quando conseguiu se lembrar, atingiu-o como um caminhão de meia tonelada. — Jesus Cristo! — Ele meio que se levantou da cadeira, os olhos arregalados e fixos na tela enquanto relembrava o nome que estava na lista de passageiros que lera mais de cem vezes. Na parte de baixo da tela lia-se a data e hora: NOVEMBRO 17,1995 11:15 AM PST. Sawyer assimilou a informação de uma só vez e calculou rapidamente. Sete horas depois de o avião ter caído na Virgínia, o cara estava vivo e bem vivo em Seattle. — Jesus Cristo! — ele exclamou de novo. Hardy aquiesceu. — Isso mesmo. Jason Archer estava listado como passageiro do voo 3223. Mas obviamente não se encontrava a bordo. Hardy deixou a fita correr. Quando o ronco do avião apareceu na trilha sonora, Sawyer virou a cabeça para a janela. O barulho parecia estar vindo diretamente em cima deles. Quando olhou para Hardy, seu amigo estava sorrindo. — Fiz o mesmo quando ouvi pela primeira vez. Sawyer viu os homens que apareciam na televisão olharem para o céu até que desapareceu o barulho do avião ao fundo. Sawyer contraiu os olhos, fixos na tela. Estranhara alguma coisa; só não sabia definir exatamente o que era. Hardy o observava atentamente. — Vê alguma coisa? Sawyer finalmente sacudiu a cabeça.
— OK, o que Archer estava fazendo em Seattle na manhã do acidente na Virgínia se ele deveria estar em um avião para Los Angeles? Negócios da empresa? — A Triton não sabia que Archer estava indo para Los Angeles, o que dirá para Seattle. Pensavam que tivesse tirado uns dias de folga para passar em casa com a família. Sawyer cerrou os olhos, tentando, inutilmente, se lembrar do que sabia a respeito da família de Jason Archer. — Me ajuda com essa aí, Frank. A resposta de Frank foi instantânea. — Archer tem mulher e filha pequena. A mulher, de nome Sidney, advogada, trabalha na principal firma de consultoria jurídica da Triton. Atua em inúmeros negócios da Triton, inclusive na aquisição da CyberCom. — O que é muito interessante, e talvez conveniente, para ela e para o marido. — Tenho que admitir que isso foi a primeira coisa que me veio à cabeça, Lee. — Se Archer estava em Seattle digamos, às dez e meia da manhã, hora do Pacífico, deve ter pego um voo bem cedo em Washington. — A Western Airlines tinha um saindo praticamente na mesma hora do voo de Los Angeles. Sawyer levantou-se e foi até a televisão. Voltou a fita e congelou a imagem. Examinou cada detalhe do rosto de Jason Archer, gravando-o na sua memória, e depois virou-se para Hardy. — Sabemos que o nome de Archer constava da lista de passageiros do voo 3223, mas você diz que o patrão dele não sabia da viagem. Como foi que descobriram que estava no avião? Isto é. que devia estar no avião — corrigiu-se Sawyer. Hardy serviu um pouco mais de café, levantou-se e foi até a janela. Tanto ele quanto Lee pareciam precisar de se movimentar enquanto pensavam. — A empresa aérea se comunica com a esposa enquanto ela se encontra em uma viagem de negócios em Nova York e lhe dá a má notícia. Um bando de gente da Triton está presente a essa reunião, inclusive o presidente. Foi quando souberam. Logo depois todo mundo sabia. Esta fita de vídeo foi mostrada apenas a duas pessoas: Nathan Gamble, o presidente da Triton, e Quentin Rowe, o segundo homem da empresa. Sawyer passou a mão em um ponto dolorido do pescoço e tomou um gole do café que Hardy acabara de servir. — A Western confirmou que ele se apresentou no balcão e que seu cartão de embarque foi recolhido. Não fosse assim, não teriam informado à família. — Você sabe tão bem quanto eu que pode ter sido qualquer um que se apresentou no balcão usando identidade falsa. A passagem aérea deve ter sido paga antecipadamente. Ele entrega uma mala, passa pela segurança. Mesmo com as recentes medidas para aumentar as exigências de segurança nos aeroportos, não é preciso identificação fotográfica para embarcar, só no balcão quando a pessoa se apresenta ou com os carregadores de malas. — Mas alguém entrou no avião no lugar de Archer. A empresa aérea tinha sua etiqueta de
embarque, e uma vez lá dentro, você não sai mais. — Quem quer que fosse, era um sujeito muito burro ou um filho da mãe muito azarado. Provavelmente ambos. — Ele podia ter se apresentado no balcão da empresa aérea duas vezes, uma para cada voo. Pode ter usado nome e identidade falsas para o voo de Seattle. — É verdade. — Sawyer ponderou as possibilidades. — Ou pode ter simplesmente trocado de passagem com o sujeito que tomou o seu lugar. — Qualquer que seja a verdade, você certamente vai acabar descobrindo. Sawyer passou os dedos na caneca de café. — Alguém falou com a mulher? Em resposta, Hardy abriu a pasta que tinha em mãos. — Nathan Gamble falou, em duas ocasiões. Quentin Rowe também falou com ela. — E qual é a sua história? — Inicialmente disse que não sabia que o marido estava no avião. — Inicialmente? Quer dizer que a história dela mudou? Hardy fez que sim. — Depois disse a Nathan Gamble que o marido tinha mentido. Falou que ele afirmara que estava indo a Los Angeles para uma entrevista em outra empresa. Só que não havia entrevista nenhuma. — Quem disse? — Sidney Archer. Acho que ela deve ter ligado para lá, provavelmente para avisar que o marido não ia poder comparecer. — Você verificou? — Quis saber Sawyer, Hardy fez que sim e ele prosseguiu: — E então, algum progresso na sua investigação? O rosto de Hardy assumiu uma expressão quase de mágoa. — Quase nada faz sentido agora. Nathan Gamble está longe de ser um homem satisfeito. Ele paga as contas e quer resultados. Mas toma tempo, você sabe disso. Ainda assim... — Hardy fez uma pausa, os olhos fixos no carpete grosso. Era fácil ver que o homem não gostava de se defrontar com algo que o deixasse intrigado. — De qualquer modo, segundo Gamble e Rowe, a Sra. Archer acha que o marido está morto. — Se ela estiver falando a verdade, neste instante tudo para mim começa com um enorme se — disse Sawyer, acaloradamente. Hardy percebeu uma certa irritação em Sawyer e olhou para ele, intrigado. Sawyer notou o olhar do amigo e arriou os ombros. — Só entre mim e você, Frank — confidenciou. — Estou me sentindo meio burro neste caso. — Por quê? — Eu tinha como certo de que Arthur Lieberman era o alvo. Estruturei toda a investigação em torno dessa teoria, tratando todos os outros ângulos de modo automático. — A investigação ainda está começando. Lee. Nenhum mal foi causado ainda. Além disso, pode ser que Lieberman fosse mesmo o alvo, de certo modo. Sawyer virou a cabeça bruscamente para trás. — Pense nisso. Você mesmo já respondeu à sua pergunta. Sawyer de repente percebeu aonde Hardy queria chegar.
— Você está querendo dizer que esse tal de Archer armou para explodir o avião porque íamos pensar que Lieberman era o alvo? Ora, Frank, isso é querer forçar a barra demais. — Se não tivéssemos tido a sorte excepcional de descobrir este vídeo, seria exatamente isso que você ainda estaria pensando, não é mesmo? Lembre-se de que há uma característica única em um desastre como este, quando o avião colide com o solo relativamente intacto, como aconteceu aqui. Sawyer ficou branco, quando atinou com o significado daquelas palavras. — Nenhum corpo. Nada para identificar, nada de restos mortais. — Exatamente. Agora, se o avião tivesse convencionalmente explodido no ar, você teria uma porção de corpos para identificar. Sawyer continuou a avaliar, atônito, a revelação de Hardy. — Se Archer vendeu o que tinha para vender, recebeu a grana e estava planejando fugir, sabia que em dado momento a polícia se lançaria na sua pista. Hardy prosseguiu: — Aí então, para não deixar pista, ele providencia um desastre que faz com que o avião termine num buraco de quase dez metros. Se a sabotagem fosse descoberta, você logicamente ia pensar que Lieberman era o alvo. Caso contrário, ninguém ia procurar um homem morto. Todo mundo pára de procurar Jason Archer. Fim de caso. — Mas meu Deus do céu, Frank, por que não pegar o dinheiro e sumir? Desaparecer não é tão difícil assim. E há uma outra coisa: o sujeito que praticamente temos certeza de que sabotou o 3223 morreu com o corpo cheio de buracos de bala. — Tendo em vista a hora da morte seria possível que Archer tivesse voltado e matado esse homem? — Ainda não temos os resultados da autópsia, mas com base no que vi do cadáver, sim, é possível. Hardy brincou com a pasta que tinha em mãos enquanto meditava sobre a nova informação. — O que é isso, Frank, quanto imagina que Archer recebeu pela tal informação? O bastante para pagar a um sabotador para derrubar o aparelho e depois contratar um pistoleiro para liquida-lo? O mesmo cara que até alguns dias atrás levava uma vida respeitável com família? E agora é um criminoso perigoso explodindo crianças e avós dentro de um avião em pleno voo? Frank Hardy olhou para o velho amigo, os lábios contraídos numa linha fina. — Ele não explodiu o avião com as próprias mãos, Lee. Além do mais, não me diga que agora você começou a analisar a fundo a consciência das pessoas. Se a memória não me falha, alguns dos piores criminosos que pegamos pareciam cidadãos de grandes virtudes. Sawyer não pareceu convencido. — Quanto? — Archer pode ter recebido facilmente alguns milhões pela informação. — Pode parecer muito, mas você acha que um cara vai matar duzentas pessoas para ocultar as pistas de um roubo de alguns milhões? De jeito nenhum! — Tem mais um detalhe em tudo isso. Um detalhe que me faz pensar que, a despeito das aparências, Jason Archer é um cérebro a serviço do crime, ou pelo menos estava trabalhando para uma
organização criminosa. — E qual é o detalhe? Hardy de repente pareceu envergonhado. — Há dinheiro faltando numa das contas da Triton. — Dinheiro? Quanto? Hardy encarou Sawyer. — O que é que você me diz de um quarto de bilhão de dólares? Sawyer quase cuspiu o café. O quê? — Parece que Archer não estava apenas vendendo segredos. Dedicava-se também em saquear contas bancárias. — Como? Quer dizer, uma empresa desse porte tem que ter alguma espécie de controle. — A Triton tinha, só que esse controle se baseava no recebimento de informações corretas do banco onde o dinheiro se encontra depositado. — Não estou entendendo — disse Sawyer, impaciente. Hardy suspirou e apoiou os cotovelos na mesa. — No mundo de hoje, transferir dinheiro do local A para o local B envolve o uso de um computador. O mundo dos bancos e das finanças de um modo geral é totalmente dependente do computador, dependência esta que implica em correr riscos. — Tipo acontecer alguma pane, o sistema cair, coisas assim?— Ou então os computadores do banco podem ser invalidados e manipulados com propósitos ilegais. Não é nada de novo. Bolas, você sabe que o Bureau criou uma seção só para tratar de crimes de computador. — Foi isto que aconteceu aqui?Hardy sentou-se, abriu de novo sua pasta e mexeu em alguns papéis até encontrar o que queria. — Uma conta operacional em nome da Triton Global Investments, Corporation, era mantida em uma filial do Consolidated Bank Trust aqui no norte da Virgínia. Essa Triton Global Investments é a empresa de investimentos subsidiária da Triton em Wall Street. A conta foi suprida de recursos até que o saldo total atingiu duzentos e cinquenta milhões. Sawyer interrompeu. — Archer esteve envolvido com a abertura dessa conta? — Não, na verdade nem tinha acesso a ela. — Era uma conta muito movimentada? — A princípio, sim. No entanto, com o passar do tempo, a Triton não mexeu mais nela. Manteve-a como uma espécie de reserva para o caso de ela própria ou uma de suas afiliadas precisarem de recursos. — O que aconteceu depois?— Ocorre que dois meses atrás uma nova conta foi aberta no mesmo banco em nome de Triton Global Investments, Limited. — A Triton abriu outra conta? Hardy já estava sacudindo a cabeça. — Não, o truque é justamente esse. Tratava-se de uma conta totalmente desvinculada da Triton, em nome de uma empresa fictícia, sem endereço, diretores, funcionários, nada. — Você sabe quem abriu esta conta? — Havia apenas um responsável. O nome fornecido ao banco foi Alfred Rhone, diretor financeiro. Nossa investigação do nome de Rhone deu
em nada. Mas descobrimos algo bem interessante. — O que foi? — Sawyer inclinou-se para a frente na sua cadeira. — Inúmeras transações vinham sendo realizadas a partir da conta falsa. Transferências, depósitos e coisas do gênero. A assinatura de Alfred Rhone aparecia em todos esses documentos. Cotejamos esta assinatura com todas as assinaturas dos funcionários da Triton. Encontramos uma letra igual. Adivinha de quem? A resposta de Sawyer foi imediata. — Jason Archer. Hardy balançou a cabeça. — E o que aconteceu com o dinheiro? — Alguém infiltrou-se no sistema de computadores do BankTrust e fez um rearranjo muito cuidadoso das contas. Para resumir, a conta legítima da Triton e a falsa acabaram com o mesmo número. — Cristo! Você pode passar um caminhão de dinheiro por um buraco desses. — Exatamente. Um dia antes do desaparecimento de Archer, foi feita uma autorização para transferir os duzentos e cinquenta milhões da conta da Triton para uma outra conta aberta pela falsa Triton num importante banco de Nova York. O departamento do BankTrust que tratava das transferências de dinheiro por computador já tinha uma autorização prévia do nosso amigo Alfred Rhone. O dinheiro foi transferido no mesmo dia, numa boa, sem problema nenhum. — A expressão de Sawyer era de incredulidade. -O pessoal do banco aceita o que o computador diz, Lee, não há razão para não acreditar. Além do mais, os departamentos dos bancos não falam uns com os outros. Desde que estejam certos de que não poderão ser acusados de nada, limitam-se a cumprir ordens. Quem quer que estivesse envolvido nisso aí, tinha que conhecer muito bem os procedimentos bancários. Cheguei a comentar com você que Jason Archer trabalhou em um banco, no departamento de transferências, alguns anos antes de ir trabalhar para a Triton? Sawyer sacudiu a cabeça cansadamente. — Eu sabia que tinha de haver uma razão pela qual não gosto de computadores. Ainda não consigo compreender como é que foi feito. — Tente encarar as coisas assim: é como se tivessem clonado um cara rico e depois entrado pela porta da frente do banco com o cara falso, retirado todo o dinheiro do rico e ido embora. A única diferença é que o banco achava que os dois sujeitos eram ricos; o banco via o mesmo extrato para ambos, e contava a grana duas vezes. — Algum sinal do dinheiro? Hardy sacudiu a cabeça. — Eu não ia esperar que houvesse. O dinheiro sumiu. Já falamos com o pessoal da Unidade de Fraudes em Instituições Financeiras do Bureau. Eles deram início a uma investigação. Sawyer tomou um gole do café e teve uma inspiração súbita. — Você acha que a RTG possa estar envolvida em ambos os esquemas? A não ser por isso, me parece meio estranho Jason Archer correr o risco de fazer as duas coisas; a fraude bancária e a venda dos segredos. — Na verdade, Lee, Archer pode ter apenas iniciado o roubo dos segredos da empresa e aí
a RTG o encarregou de realizar a fraude bancária a fim de prejudicar ainda mais a Triton. Ele estava em uma posição perfeita para fazer isso. — Mas o banco é o responsável pela perda. A Triton na verdade não é prejudicada. — Não, você está enganado. A Triton teve sua conta bloqueada enquanto o banco esclarece tudo e a investigação prossegue. O incidente foi levado ao conselho de diretores. Pode levar meses para ser solucionado, pelo menos é o que disseram à Triton hoje de manhã. Como você pode imaginar, Nathan Gamble é um homem muito infeliz. — A Triton precisa do dinheiro para alguma coisa? — Pode apostar que sim. A Triton precisa desses recursos para efetuar o depósito inicial relativo à aquisição da CyberCom, a empresa de que lhe falei. — Quer dizer então que a compra da CyberCom foi por água abaixo? — Ainda não. Pela última informação que tive, pode ser que Nathan Gamble entre com recursos próprios. — Nossa, o cara pode emitir um cheque dessa quantia? — Gamble é algumas vezes bilionário. Não quer dizer, contudo, que vá gostar de fazê-lo. Significa a imobilização do dinheiro dele, para não falar na perda dos duzentos e cinquenta milhões da Triton. Para ele é um rombo de quinhentos milhões, o que, mesmo no caso de Nathan Gamble, é um bocado de dinheiro. — Hardy estremeceu ligeiramente, como se estivesse lembrando do seu último encontro com o bilionário. — Como já falei, o homem não está nada feliz. O que o preocupa mais são os segredos que Archer vendeu à RTG. Se a RTG ficar com a CyberCom, a Triton vai acabar perdendo muito mais que o quarto de bilhão. — Mas agora que a RTG sabe que você está de olho, não vai querer usar as informações obtidas através de Archer. — Não é tão simples assim, Lee. A RTG nega qualquer envolvimento e, embora tenhamos a fita, ela está longe de ser uma prova aceita sem questionamentos no tribunal. A RTG já apresentou uma proposta pela CyberCom, e, se sair ganhando, quem vai dizer como foi que aconteceu? — É, realmente é complicado, eu acho. — Sawyer examinou, fatigado, o resto do café. Hardy levantou ambas as mãos abertas para o seu antigo parceiro e sorriu: — Bem, esta é a minha história. — Eu bem que achava que você não ia me tirar da cama por causa do roubo de uma bolsa — Sawyer fez uma pausa. — Esse tal de Archer deve ser realmente um gênio, Frank. — Sem dúvida. Sawyer de repente animou-se. — Só que todo mundo erra e às vezes você tem sorte, como no caso dessa sua fita de vídeo. Além do mais são os casos difíceis que tornam nosso trabalho gratificante. Certo? — Um sorriso iluminou o rosto dele. Hardy fez que sim, achando graça. — E então, para onde é que você vai quando sair daqui? Sawyer terminou o café e pegou o bule para se servir de mais. Parecia reenergizado quando viu surgirem inúmeras
possibilidades para o caso. — Primeiro vou usar seu telefone para emitir um alerta geral para Jason Archer. A seguir vou esvaziar o cérebro durante a próxima hora. Amanhã de manhã vou mandar uma equipe de agentes ao Aeroporto Dulles para descobrir tudo o que puderem a respeito de Jason Archer. Enquanto eles estiverem por lá, vou me dedicar a uma entrevista pessoal com uma pessoa que talvez se torne essencial a este caso. — E quem é? — Sidney Archer.
CAPÍTULO VINTE E OITO — PAUL BROPHY. SOU COLEGA de trabalho de Sidney, Sr.... Brophy ficou parado no vestíbulo, a valise em uma das mãos. — Bill Patterson. Sou o pai de Sidney. — Ela fala sempre de você, Bill. Uma pena que não tivéssemos tido uma chance de nos conhecer antes. Terrível o que aconteceu. Tive que vir por causa da sua filha. Ela é uma das minhas colegas mais chegadas. Uma mulher verdadeiramente notável. Bill Patterson olhou para a mala que Brophy deixou num canto. Vestido com um jaquetão azul-marinho, uma gravata da moda, lustrosos sapatos pretos e meias exibindo desenhos decorativos, Brophy, alto e magro, era uma figura e tanto. Alguma coisa no seu jeito elegante contudo, no modo como se movia despreocupadamente na casa abatida pela tragédia, deixou Patterson desconfiado. Tinha passado a maior parte da vida com seu radar ligado, e o alarme estava soando agora. — Toda a família está aqui com ela... Paul, é este o seu nome? — O pai de Sidney pôs uma ênfase toda particular na palavra família. Brophy olhou para ele, avaliando-o rapidamente. — Sim, não há nada mais importante do que a família numa hora destas. Espero que não ache que eu esteja me intrometendo, seria a última coisa que eu ia querer. Falei com Sidney ontem à noite. Ela concordou. Trabalhei com sua filha durante muitos anos. Enfrentamos alguns problemas capazes de causar uma úlcera em qualquer um. Mas não tenho que lhe dizer isso. Você praticamente dirigiu a Bristol-Aluminum nos últimos cinco anos em que esteve lá. Li muito a seu respeito nos jornais. E teve aquela matéria enorme na Forbes há alguns anos quando você se aposentou. — A coisa é dura no mundo dos negócios — concordou o velho, relaxando enquanto rememorava brevemente os sucessos da carreira. — Bem, eu sei que isso era o que o seu concorrente devia pensar — Brophy exibiu o mais amistoso dos sorrisos. Patterson retribuiu o sorriso. O sujeito provavelmente era boa gente; afinal de contas, tinha se dado ao trabalho de vir até ali. Além do mais, não era hora de inventar novos problemas. — Quer alguma coisa para beber, ou comer? Você veio de avião de Nova York, foi isso? — Primeiro voo da ponte aérea. Se tiver café, seria ótimo... Sidney? — Os olhos de Brophy se fixaram nervosamente na figura alta que acabava de entrar na sala. Vestida de preto, com a mãe ao lado também de preto, Sidney Archer adiantou-se ao encontro de Brophy. — Olá, Paul. Brophy caminhou rapidamente em direção a ela, deu-lhe um abraço apertado e um beijo no rosto que pareceu demorar alguns segundos. Um pouco ruborizada, Sidney fez as apresentações.
— Então. Como a pequena Amy está aceitando? — perguntou Brophy ansiosamente. — Está na casa de uma amiga. Não entende o que aconteceu. — A mãe de Sidney dirigiu um olhar inamistoso para ele. — Certo, certo, é isso mesmo. — Brophy recuou. Nunca tivera filhos, mas aquela fora uma pergunta idiota. Inadvertidamente, Sidney o ajudou. Virou-se para a mãe: — Paul chegou hoje cedo no avião de Nova York. A mãe aquiesceu distraidamente e saiu para preparar um café na cozinha. Brophy olhou para Sidney. O cabelo dela era sedoso, brilhante, a cor clara realçada pelo vestido preto. Ele achava seu jeito anguloso particularmente atrativo. Muito embora tivesse seus próprios interesses, Brophy sentiu-se desconcertado. A mulher era linda. — Todo mundo vai diretamente para a capela. Depois do serviço religioso é que virão para cá. — Ela parecia arrasada ante a perspectiva do que ia acontecer. Brophy percebeu a ansiedade dela. — Basta que você tenha calma e quando quiser sair de cena, entro em ação com meu papo furado e enchendo o prato de todo mundo. Se tem uma coisa que aprendi trabalhando como advogado é como falar sem dizer absolutamente nada. — Você não tem que voltar para Nova York? Brophy sacudiu a cabeça, com um sorriso triunfante. — Vou ficar no escritório de Washington por algum tempo. Ele puxou um minigravador do bolso de dentro do paletó. — Estou preparado. Já ditei três cartas e um discurso que vou fazer em uma reunião de levantamento de fundos para a campanha política no mês que vem. Tudo isso significa que vou poder ficar enquanto você precisar de mim. — Ele sorriu ternamente, guardou o gravador e segurou a mão dela. Sidney sorriu também, um tanto envergonhada, ao mesmo tempo em que puxava a mão. — Preciso acabar de me preparar antes de sairmos. — Ótimo, então vou atrapalhar seus pais na cozinha. Ela saiu pelo corredor rumo a seu quarto. Brophy ficou apreciando, e um sorriso apareceu no seu rosto quando pensou no futuro que o aguardava. No momento seguinte entrou na cozinha ampla, onde a mãe de Sidney atarefava-se na preparação de ovos, torradas e bacon, enquanto Bill Patterson pairava ao fundo, atrapalhando-se com a cafeteira. O telefone tocou. Patterson retirou os óculos e atendeu no segundo toque. — Alô? — Ele passou o receptor para a outra mão. — É sim. O quê? Oh, hum, olha, pode esperar um pouco? Oh, bem, um momento. A Sra. Patterson olhou para o marido. — Quem é? — Henry Wharton. — Patterson olhou para Brophy. — É o cara que dirige a sua firma, não é? Brophy fez que sim. Muito embora o fato de ele ser um seguidor de Goldman fosse um segredo bem guardado, Brophy não era um dos favoritos de Wharton e ansiava pelo dia em que este fosse rudemente defenestrado da sua posição de diretor da
Tyler e Stone. — Um homem maravilhoso, muito preocupado com os colegas — disse Brophy. — Pode até ser, mas seu senso de oportunidade é péssimo — disse Patterson. Deixou o fone em cima da mesa e saiu da cozinha. Com um sorriso conciliador, Brophy aproximou-se para ajudar a Sra. Patterson. O pai dela bateu delicadamente na porta. — Querida? Sidney abriu a porta do quarto. Patterson pôde ver as numerosas fotos de Jason e do resto da família espalhadas em cima da cama. Respirou fundo e engoliu em seco antes de falar. — Minha querida, tem um sujeito da sua firma no telefone. Diz que quer falar com você e que é muito importante. — Ele deu o nome? — Henry Wharton. Sidney franziu a testa, preocupada, mas de repente atinou com o que Wharton devia estar querendo. — Provavelmente ele ligou para dizer que não pôde vir para o serviço fúnebre. Não estou mesmo na lista dos dez mais dele. Atendo aqui, papai. Diga para me dar um minuto. Quando Patterson começou a se deslocar, atentou de novo nas fotos e ao levantar a cabeça surpreendeu Sidney olhando para ele, uma expressão quase envergonhada no rosto, como uma adolescente surpreendida fumando no quarto. Adiantou-se, deu um beijo no rosto da filha e abraçou-a longamente. Na cozinha, Patterson pegou o telefone de novo. — Ela vai atender num minuto — disse, com a voz embargada. Já estava prestes a voltar a dedicar-se às complexidades da cafeteira elétrica quando foi interrompido por uma batida na porta. Os três ocupantes da cozinha pararam o que estavam fazendo. Patterson olhou para a mulher. — Esperando alguém tão cedo? Ela sacudiu a cabeça. — Provavelmente é só um vizinho com mais comida ou algo assim. Vá atender, Bill. Patterson dirigiu-se obedientemente para a porta da frente. Brophy seguiu-o até o vestíbulo. Patterson abriu a porta. Eram dois cavalheiros de terno. — Pois não? Lee Sawyer exibiu as credenciais e o homem ao seu lado fez o mesmo. — Sou o agente especial do FBI, Lee Sawyer. Meu parceiro, Raymond Jackson. A confusão de Bill Patterson era visível quando levantou os olhos das credenciais do FBI para os homens que as seguravam, e que o encaravam firmemente. Sidney guardou rapidamente as fotos, demorando-se apenas a olhar para uma: tirada no dia em que Amy nascera. Jason, trajando um macacão do hospital, segurava a filha nascida minutos antes. O olhar de orgulho do pai era maravilhoso de se ver. Pôs a foto dentro da bolsa. Tinha certeza de que ia precisar dela no decurso do dia, quando tudo começasse a parecer excessivo, como sabia que ia acontecer. Alisou o vestido, foi até a mesinha-decabeceira, sentou-se na cama e pegou o telefone.
— Alô, Henry. — Sid. Se não estivesse sentada, Sidney teria, sem a menor dúvida, caído no chão. Seu corpo arriou na cama e a impressão que teve foi de que seu cérebro tinha sido esmagado. — Sid — repetiu a voz, mais ansiosa. Um passo de cada vez, Sidney conseguiu controlar-se. Era como se estivesse lutando para emergir, vindo de terríveis profundezas onde seres humanos não podiam sobreviver. Seu cérebro subitamente começou a funcionar e ela se esforçou para subir cada centímetro. Enquanto lutava contra uma vontade irresistível de desmaiar, conseguiu pronunciar a palavra que imaginara que nunca mais fosse dizer, com os lábios trêmulos. — Jason?
CAPÍTULO VINTE E NOVE QUANDO A MÃE DE SIDNEY atravessou a sala para juntar-se ao marido, Paul Brophy, discretamente, foi recuando até ver-se de novo na cozinha. FBI? Aquilo estava ficando interessante. Enquanto debatia intimamente se era o caso de entrar em contato com Goldman, Brophy viu o telefone solto em cima da bancada onde Bill Patterson o deixara. Henry Wharton estava ao telefone. Brophy gostaria de saber do que ele e Sidney estariam tratando. Certamente que marcaria alguns pontos bem significativos com Goldman se descobrisse do que se tratava. Brophy adiantou-se até a porta da cozinha. O grupo ainda se encontrava reunido no vestíbulo. Correu de volta até a bancada, tapou com a mão o bocal e levou o telefone ao ouvido. Ficou boquiaberto e seus olhos se arregalaram quando reconheceu duas vozes muito familiares. Enfiou a mão no bolso, levou o gravador até a altura do receptor e gravou a conversa entre marido e mulher. Cinco minutos depois Bill Patterson voltou ao quarto da filha. Quando Sidney finalmente abriu a porta, ele ficou surpreso ao ver sua aparência. Os olhos ainda estavam vermelhos e fatigados, mas pareciam ter um brilho que ele não via desde a morte de Jason. Espantou-se também com o que viu em cima da cama: uma valise cheia pela metade. Sem tirar os olhos da valise, Patterson disse: — Queridinha, não sei o que querem, mas os homens do FBI estão aí. Querem falar com você. — FBI? — Subitamente ela perdeu o equilíbrio e o pai teve que ampará-la pelo braço. O rosto de Patterson exprimia toda a sua preocupação. — Minha filha, o que é que está havendo? Por que está arrumando as malas? Sidney conseguiu recuperar o controle. — Estou bem, papai. É... é só que tenho que ir a um lugar depois da cerimônia. — Ir? Ir aonde? De que é que você está falando? — Papai, agora não. Não posso explicar agora. — Mas Sid... Por favor, papai. Ante o olhar súplice da filha, Patterson finalmente desistiu, desapontado e meio temeroso, desviando o rosto. — Está bem, Sidney. — Onde estão os agentes, papai? — Na sala. Disseram que querem falar com você em particular. Tentei me livrar deles, mas, com os diabos, eles são do FBI, entende? — Tudo bem, papai. Vou falar com eles. — Sidney pensou por um momento. Deu uma olhada no telefone que acabara de desligar e consultou o relógio. — Leve-os para o escritório e diga que estarei lá em dois minutos. Sidney, adiantou-se, fechou a mala e a empurrou para debaixo da cama. Seu pai acompanhou os movimentos, ergueu uma das sobrancelhas grossas e perguntou:
— Você tem certeza que sabe o que está fazendo? A resposta dela foi imediata. — Tenho certeza. Jason Archer estava algemado à cadeira. Kenneth Scales, sorridente, apontava a Glock contra a sua cabeça. Outro homem conservava-se ao fundo. — Bom trabalho ao telefone, Jason — disse Scales. — Você podia ter futuro no cinema. Pena que não tenha mais futuro. Jason dirigiu-lhe um olhar furioso. — Seu filho da mãe! Se machucar minha mulher ou minha filha, darei cabo de você, juro por Deus. O sorriso de Scales ficou mais aberto. — É mesmo?... Ora, me diga como é que você vai fazer isso? — Ele golpeou Jason na mandíbula com a pistola. A porta do cubículo em que os dois homens se encontravam abriu-se ligeiramente. Quando Jason recuperou-se do golpe e fixou os olhos na fresta da porta, um ronco escapou dos seus lábios. Com um arranco. ele atirou-se para a frente, cadeira e tudo. Conseguiu chegar aos pés do homem antes que Scales e seu parceiro o subjugassem, arrastando-o de volta para o mesmo lugar. — Eu mato você, eu mato você! — gritou Jason para o visitante. O homem entrou, fechou a porta e sorriu enquanto Jason era arrastado e tinha a boca coberta por uma forte fita adesiva. — Tendo pesadelos de novo, Jason? Depois que Bill Patterson acompanhou os dois agentes do FBI até o escritório, pequeno mas confortavelmente mobiliado, retornou para encontrar sua mulher e Paul Brophy na cozinha. Lançou um olhar para o telefone, intrigado. O receptor fora recolocado na parede. — Ah, sim, Bill — disse Paul Brophy, percebendo que o pai de Sidney tinha notado a diferença — fui eu que desliguei — explicou. — Achei que você devia ter outras coisas para fazer. — Obrigado, Paul. — De nada. — Brophy tomou um gole de café, sentindo-se altamente satisfeito consigo próprio ao apalpar a pequena fita cassete escondida em segurança no bolso da calça. — Meu Deus. — Ele olhou para os pais de Sidney. — O FBI. O que será que eles querem? O velho Patterson deu de ombros. — Não sei e sei que Sidney não sabe. — Ele sempre defendia intensamente a filha. Sua testa estava vincada de rugas de preocupação. — Se quer saber, hoje aqui em casa tudo que aconteceu foi desagradavelmente inoportuno — resmungou, ao sentar-se à mesa para dar uma olhada no jornal. Ia dizer mais alguma coisa quando viu a manchete na primeira página.
CAPÍTULO TRINTA OS AGENTES SAWYER E JACKSON levantaram-se quando Sidney entrou. Sawyer estremeceu visivelmente quando a viu. Fez um esforço consciente para encolher a barriga e uma das mãos voou até o cabelo numa frágil tentativa de abaixar um rodamoinho teimoso. Quando abaixou a mão, ficou olhando por um momento para ela como se não fizesse parte do seu corpo, perguntando-se por que diabo teria feito aquilo. Os dois agentes se identificaram e mais uma vez exibiram as credenciais. Sawyer percebeu que Sidney o encarou intensamente antes de sentar-se na frente deles. Ele a avaliou rapidamente. Uma mulher fascinante, cheia de vida e com cérebro. Mas havia alguma coisa mais. Sawyer era capaz de jurar que já tinham se encontrado antes. Seus olhos demoraram-se, avaliando sua longa silhueta. O vestido preto era de bom gosto e apropriado para uma ocasião tão solene; no entanto, também ajustava-se ao seu corpo em diversos pontos provocantes. As pernas bem torneadas também, envoltas em meias pretas, eram igualmente inspiradoras. O rosto era lindo, no seu desespero. — Sra. Archer, por acaso já nos vimos antes? A surpresa dela foi genuína. — Acho que não, Sr. Sawyer. Ele a estudou por mais um momento, deu de ombros e rapidamente iniciou a entrevista. — Conforme comentei com o seu pai, Sra. Archer, sabemos que o momento não podia ser pior, mas precisávamos vê-la o mais cedo possível. — Posso perguntar de que se trata? — Sidney formulou a pergunta em um tom de voz inexpressivo. Seus olhos deslocaram-se rapidamente pelo aposento até virem a descansar no rosto de Sawyer. O que ela viu foi um homem grande e forte que parecia ser sincero. Em circunstâncias normais teria cooperado integralmente com ele. As circunstâncias, contudo, estavam longe de ser normais. Os olhos de Sidney cintilavam, e Sawyer teve que fazer um enorme esforço para pensar quando se viu transfixado por eles. Ao tentar ler o que se passava bem no fundo daqueles olhos verdes, Sawyer viu que se aventurava em águas perigosas. — Tem a ver com o seu marido, Sra. Archer. — Por favor, chame-me de Sidney. O que é que tem o meu marido? É por causa do acidente?Sawyer não respondeu de pronto. Mesmo que não parecesse, ele a estudava novamente. Cada palavra, cada expressão, cada pausa era muito importante. Esta era uma tarefa sempre cansativa, com frequência frustrante, mas algumas vezes inacreditavelmente produtiva. — Não foi acidente, Sidney — disse, por fim. Os olhos dela piscaram por um breve instante, como as luzes de uma casa quando há tempestade de raios. A boca entreabriu-se ligeiramente, mas nenhuma palavra foi pronunciada. — O avião foi sabotado. Todas as pessoas a bordo, sem exceção, foram deliberadamente
assassinadas. — Enquanto Sawyer continuava a observar, Sidney como que saiu do ar completamente por cerca de um minuto. Suas feições exibiram pavor genuíno. Seus olhos subitamente perderam a centelha febril. Após um minuto, Sawyer disse delicadamente: — Sidney? Sidney?Sidney voltou com um sobressalto, mas foi por pouco tempo. Ela perdeu o fôlego e, por um instante, teve certeza de que ia vomitar. Reclinou a cabeça para a frente, apoiando-a sobre os joelhos, agarrando a barriga das pernas. Ironicamente, seus movimentos imitavam os de um passageiro em posição de segurança para uma colisão em uma aeronave. Quando começou a gemer e o resto do corpo passou a sacudir incontrolavelmente, Sawyer levantou e sentou-se ao seu lado. Passou um braço pelos seus ombros e com a outra mão apertou-lhe as mãos com força. Sawyer levantou os olhos para Jackson. — Agua, chá, alguma coisa, Ray. Rápido! Jackson saiu correndo. Com as mãos nervosas a mãe de Sidney serviu um copo de água para Jackson. Quando ele já ia voltar, Bill Patterson levantou o jornal. É isto aqui, certo? — A manchete do jornal era escrita em letras grandes, pretas e letais. ACIDENTE DA WESTERN AIRLINES FOI SABOTAGEM. GOVERNO FEDERAL OFERECE RECOMPENSA DE DOIS MILHÕES. — Jason e todos os demais foram vítimas de um terrorista. É por isto que vocês estão aqui, não é? — Ao fundo, a Sra. Patterson cobriu o rosto com as mãos e seu choro quase silencioso espalhou-se pela casa quando ela se sentou à mesa. — Senhor, agora não, está certo? — O tom de voz de Jackson não admitia oposição e ele saiu com o copo d'água. Paul Brophy, enquanto isso, fora para o jardim, ostensivamente para fumar um cigarro, a despeito do frio. Se alguém tivesse olhado pela janela da sala, teria visto o pequeno telefone celular comprimido contra o lado do seu rosto. Sawyer praticamente teve que obrigar Sidney a engolir a água, mas ela finalmente conseguiu endireitar-se na cadeira. Depois que Sidney se recompôs e devolveu o copo com um olhar de gratidão, Sawyer fez uma breve pausa para reorganizar seus pensamentos. Sidney pareceu aliviada quando ele fez algumas perguntas aparentemente inócuas a respeito do trabalho de Jason na Triton Global. Respondeu com bastante calma, mesmo que evidentemente intrigada. Ele olhou em torno. Tinham uma bela casa. — Algum problema financeiro? — perguntou. — Onde está querendo chegar, Sr. Sawyer? — O rosto de Sidney recuperou um pouco da rigidez anterior. De repente, suas feições se abrandaram; acabava de se lembrar de Jason dizendo que queria lhe dar o mundo. — Onde quer que isto nos leve, senhora — respondeu Sawyer, os olhos dele encontrando os dela sem hesitação. Foi como se conseguissem perfurar, incandescentes, a muralha exterior que protegia Sidney, ler claramente seus pensamentos, descobrir quais eram as dúvidas implacáveis escondidas bem lá no fundo.
Sidney percebeu que teria que ser muito cuidadosa com aquele homem. — Estamos conversando com todas as famílias dos passageiros daquele avião. Se o avião foi sabotado por causa de um dos passageiros. precisamos descobrir quais foram as razões. — Eu compreendo — Sidney respirou fundo. — Para responder à sua pergunta, estamos agora em melhor condição financeira do que estivemos nos últimos anos. — A senhora é advogada da Triton, certo? — Entre outros cinquenta clientes. E daí? Sawyer mudou de tática. — Tudo bem, a senhora sabia que seu marido tinha tirado uns dias de folga? — Sou a mulher dele. — Ótimo, então talvez possa nos explicar por que então ele estava a bordo de um avião que se destinava a Los Angeles — Sawyer quase disse "supostamente" a bordo, mas por sorte se conteve a tempo. Sidney respondeu em tom de quem falava de negócios. — Olha, tenho que presumir que vocês já falaram com a Triton. Talvez também tenham falado com Henry Wharton. Jason me disse que ia a Los Angeles a negócios para a Triton. Na manhã em que saiu, lembrei a ele que eu tinha uma reunião em Nova York com a Triton. Foi quando me contou que na verdade estava indo a Los Angeles pois tinha em vista a possibilidade de arranjar outro emprego. Não queria que eu deixasse escapar isso para o pessoal da Triton. Fiz o que ele queria. Sei que não foi exatamente a coisa mais apropriada a fazer, mas foi o que fiz. — Mas não havia outro emprego. Sidney recostou-se na cadeira. — Não. — E então, como sua mulher e tudo mais, tem alguma ideia do que ele foi realmente fazer em Los Angeles? Alguma suspeita? Ela sacudiu a cabeça. — Só isso. Nada mais? Tem certeza de que não tinha nada a ver com a Triton? — Jason raramente falava de negócios da empresa comigo. — Por quê? — Sawyer ansiava por uma xícara de café. Seu corpo começava a ceder ao cansaço depois de ter ficado acordado com Hardy até tarde na noite anterior. — Minha firma representa algumas outras empresas que podem ser vistas como tendo interesses concorrentes aos da Triton. No entanto, qualquer conflito potencial foi desconsiderado pelos respectivos clientes, inclusive a Triton, e nós construímos muralhas da China de tempos em tempos quando necessário... — Como é que é? — A pergunta partiu de Ray Jackson. — Muralhas da China? Sidney olhou para ele. — É assim que chamamos quando cortamos as comunicações de qualquer espécie, acesso a arquivos, comentários comuns de colegas de trabalho, conversas de corredor sobre os assuntos de um determinado cliente, tudo, enfim, caso um advogado da firma represente um outro cliente com um possível conflito. Mantemos inclusive bancos de dados
computadorizados com a segurança apropriada, ao que se refere aos negócios pendentes que estejamos conduzindo em nome de clientes. Fazemos isso também para nos assegurar de que os termos das negociações sejam mantidos minuto a minuto com o máximo de precisão. As mudanças ocorrem com grande rapidez e não queremos que os clientes se surpreendam com os termos dos documentos. A memória das pessoas é falha, a dos computadores é muito melhor. O acesso aos arquivos fica restrito apenas aos principais advogados do caso. A teoria é que a firma de advogados pode e deve ser dividida em compartimentos estanques de acordo com a necessidade, a fim de evitar problemas. Daí a expressão. Sawyer inclinou-se um pouco para a frente. — Que outros clientes sua firma representa que poderiam ter um conflito com a Triton? Sidney pensou por um momento. Veio um nome à sua cabeça, mas não sabia ao certo se devia dizê-lo ou não. Se dissesse, a entrevista poderia terminar mais depressa. — O Grupo RTG. Sawyer e Jackson trocaram rápidos olhares. Foi Sawyer quem falou: — Quem na sua firma representa a RTG? Sawyer teve certeza de que surpreendeu um brilho diferente nos olhos de Sidney Archer antes que ela respondesse. — Philip Goldman. No jardim da casa dos Archer, o frio começava a penetrar através das luvas caríssimas de Paul Brophy. — Não, eu não tenho nenhuma pista do que está acontecendo — disse Brophy no telefone celular. Ele sacudiu a cabeça para longe do telefone quando seu interlocutor no outro lado passou-lhe uma descompostura. — Espera um minuto, Philip. É o FBI. Os caras andam armados, lembra? Se você não estava esperando que isso acontecesse, por que eu deveria esperar?Esta deferência à inteligência superior de Philip Goldman aparentemente acalmou o homem, porque Brophy passou a segurar o telefone normalmente. — Sim, tenho certeza de que era ele. Conheço a voz e ela o chamou pelo nome. Tenho tudo gravado. Muito inteligente da minha parte, concorda? O quê? Claro, pode apostar como meu plano é ir ficando para ver o que consigo descobrir. Certo, entro em contato de novo com você dentro de algumas horas. — Brophy desligou, dobrou e guardou o telefone e, esfregando os dedos duros de frio, voltou para dentro da casa. Sawyer observava Sidney Archer cuidadosamente enquanto ela deslizava a mão para cima e para baixo no braço do sofá. Debatia consigo mesmo se devia ou não deixar cair a bomba e dizer que Jason Archer com toda a certeza não estava enterrado em uma cratera na Virgínia. Finalmente, após muito conflito interno, as emoções predominaram. Ele se levantou e ofereceu a mão a Sidney. — Muito obrigado pela cooperação, Sra. Archer. Se lembrar de alguma coisa que possa nos ajudar, pode entrar em contato comigo em qualquer destes números. — Sawyer passou-lhe um cartão. — Nas costas tem o telefone da minha casa. A senhora tem um cartão com os
telefones onde possa ser encontrada? — Sidney pegou a bolsa na mesa, vasculhou seu conteúdo e descobriu um dos seus cartões de visita. — Mais uma vez, sinto muito pelo seu marido. — Ele foi sincero ao dizer isto. Se Hardy estivesse certo, o que aquela mulher ia sofrer agora pareceria um dia no parque comparado com o que o futuro guardava para ela. Ray saiu e Sawyer estava prestes a juntar-se a ele quando Sidney colocou uma das mãos no seu ombro. — Sr. Sawyer... — Pode me chamar de Lee. — Lee, eu teria de ser uma completa idiota se não percebesse que tudo isto está cheirando muito mal. — E nem por um instante penso que você seja idiota, Sidney. — Eles trocaram olhares de respeito mútuo; a afirmativa de Sawyer, contudo, não era inteiramente indicativa de que a apoiava. — Você tem algum motivo para suspeitar que meu marido estivesse envolvido em alguma coisa — ela parou e engoliu em seco, preparando-se para dizer aquilo que era impensável — em alguma coisa ilegal? Ele a encarou, e a sensação inequívoca de que tinha visto aquela mulher em algum lugar começou a incomodá-lo de novo até que se transformou em uma certeza. — Sidney, digamos apenas que as atividades do seu marido imediatamente antes de embarcar estão nos causando alguns problemas. Sidney pensou em todas aquelas noites em que Jason saíra de casa para ir ao escritório. — Há algo de errado com a Triton? Sawyer viu que ela retorcia as mãos. Sendo normalmente o mais discreto dos agentes do FBI, por alguma razão Sawyer teve ímpetos de contar a ela tudo quanto sabia. Resistiu à tentação. — Há uma investigação do Bureau em andamento, Sidney. Realmente não posso dizer. Ela recuou um pouco. — Eu entendo, claro. — Estaremos em contato. Depois que Sawyer saiu, Sidney sentiu uma pontada de apreensão ao recordar que Nathan dissera a mesma coisa ao se despedir dela. Sentiu de repente muito medo. Cruzou os braços, como se estivesse se abraçando e aproximou-se mais do fogo. O telefonema de Jason inicialmente a levara aos níveis mais altos de euforia. Nunca na vida sentira tanta felicidade, e, no entanto, os pouquíssimos detalhes que ele dera acabaram fazendo com que mergulhasse de volta à depressão anterior. Via-se agora em um estado de completa confusão, impotência e irrestrita lealdade ao marido; uma combinação de emoções complicada para se carregar por aí. Perguntou-se que surpresas o amanhã lhe traria. Ao sair da casa, os dois agentes foram seguidos por um loquaz Paul Brophy. — E assim sendo, a minha firma obviamente estaria ansiosa para saber de qualquer possível
malfeito envolvendo Jason Archer e a Triton Global. — Ele finalmente parou de falar e ficou olhando. esperançoso. Sawyer limitou-se a continuar andando. É o que ouvi dizer. — O agente do FBI parou atrás do Cadillac de Bill Patterson, que estava estacionado na entrada. Quando colocou o pé no pára-choque traseiro para amarrar os sapatos, viu um adesivo que dizia: MAINE, O ESTADO ONDE TODOS PASSAM AS FÉRIAS. Quando foi a última vez que tive férias? — pensou. Você sabe que está com problemas quando não consegue nem se lembrar. Terminada a operação, virou-se para o advogado, que o observava da calçada. — Como foi mesmo que você disse que se chamava? Brophy deu uma olhada para a porta da frente e aproximou-se, apressado. — Brophy, Paul Brophy — ele acrescentou rapidamente: -Como falei, sou advogado mas trabalho em Nova York, de modo que na verdade mal conheço Sidney Archer. Sawyer examinou-o detidamente. — E mesmo assim pegou um avião e veio para o serviço religioso. Foi o que você disse, não foi?Brophy olhou para os dois homens. Os olhos de Ray Jackson estreitaram-se quando ele encarou Brophy. Dinheiro desonesto e mentira eram claramente visíveis em Paul Brophy. — Na verdade estou aqui como um representante da firma. Mais ou menos por acaso. Sidney Archer trabalha apenas meio expediente para a firma e eu estava na cidade a negócios, de qualquer forma. Sawyer olhou para uma nuvem acima da casa. — É mesmo? Sabe, tive uma oportunidade de me informar sobre a Sra. Archer. Segundo as pessoas com quem falei, ela é uma das melhores profissionais da Tyler e Stone. Meio expediente ou não. Na verdade, pedi uma lista dos cinco advogados mais importantes da sua firma e sabe de uma coisa? O nome dela apareceu em todas as listas. — Ele olhou para Brophy e acrescentou: — Engraçado, o seu nome não apareceu em nenhuma. Brophy gaguejou por um instante, mas Sawyer fez questão de prosseguir de qualquer maneira. — Já está aqui há algum tempo. Sr. Brophy? — perguntou, indicando com um gesto a casa dos Archer. — Mais ou menos uma hora. Por quê? — O tom lacrimoso de Brophy denotava seu ressentimento. — Alguma coisa diferente do normal aconteceu enquanto esteve aqui? Brophy ardia de vontade de contar aos agentes que tinha as palavras de um homem morto captadas e presas numa fita magnética, mas a informação era por demais preciosa para simplesmente dá-la de graça. — Na verdade, não. Quer dizer, ela está cansada, deprimida, ou pelo menos parece que está. — Como assim? — perguntou Jackson, tirando os óculos escuros e encarando Brophy.
— Nada. Quer dizer, como expliquei, não conheço Sidney tão bem assim. Assim, não sei se ela e o marido realmente se davam bem. — Hum. — Jackson contraiu os lábios e recolocou os óculos escuros. Olhou para o parceiro. — Está pronto, Lee? Este homem aqui parece estar com frio. Tem que entrar e se aquecer — disse, agora olhando para Brophy. — Vá apresentar seus respeitos à pessoa que você mal conhece e que mora naquela casa. Jackson e Sawyer viraram-se e seguiram para o carro deles. Brophy ficou vermelho de raiva. Olhou para a casa mais uma vez e chamou os dois agentes. — Oh, sim, teve o telefonema que ela recebeu. Os dois homens do FBI giraram num movimento absolutamente sincronizado. — Como é que é? — perguntou Sawyer. Suas têmporas latejavam da falta de cafeína e ele estava cansado de escutar aquele idiota. — Que telefonema? Brophy aproximou-se e falou baixo, olhando de vez em quando para a casa. — Foi mais ou menos dois minutos antes de vocês chegarem. A pessoa que ligou identificou-se como Henry Wharton quando o pai de Sidney atendeu o telefone. — Os agentes ficaram intrigados. — É o diretor administrativo da firma Tyler e Stone. — E daí? O homem podia estar querendo saber se ela estava bem. — É o que eu também teria pensado. mas... O estopim de Sawyer estava praticamente no fim. — Mas o quê? — perguntou, furioso. — Não sei ao certo se devo dizer. A voz de Sawyer baixou, voltando ao normal, mas suas palavras assumiram um tom ainda mais ameaçador. — Está um pouco frio aqui fora para vir com papo furado, Sr. Brophy, de modo que eu vou lhe pedir com toda a delicadeza para que me dê a informação e esta será a única ocasião em que usarei de delicadeza para fazer perguntas. — Sawyer chegou para mais perto do rosto agora amedrontado de Brophy, enquanto o corpulento Jackson se aproximava por trás. — Liguei para Henry Wharton no escritório enquanto Sidney estava falando com vocês — despejou Brophy, que neste ponto fez uma pausa dramática. — Quando perguntei sobre a conversa que tivera com Sidney, ele ficou completamente surpreso. Não tinha telefonado para ela. E quando Sidney saiu do quarto depois do telefonema, estava branca como uma folha de papel. Pensei até que fosse desmaiar. O pai também notou e ficou muito preocupado. — Bem, se o FBI aparecesse batendo na minha porta no dia da cerimônia fúnebre da minha esposa, eu provavelmente também teria uma péssima aparência — respondeu Jackson, fechando e abrindo uma das mãos enormes, como se estivesse muito tentado a esmurrar Brophy. — Bem, sim, de acordo com o pai, a aparência dela já era essa antes que ele lhe dissesse que vocês estavam aí. — Brophy inventou esta parte, mas e daí? Não fora o aparecimento do
FBI que abalara Sidney Archer. Sawyer endireitou-se e olhou para a casa. Em seguida encarou Jackson, cujas sobrancelhas estavam erguidas. Estudou o rosto de Brophy. Se aquele cara os estivesse enganando... Mas não, era óbvio que dizia a verdade, ou pelo menos basicamente a verdade. Era evidente que sua intenção fora lhes contar algo capaz de detonar Sidney Archer. Sawyer não tinha nada a ver com uma possível vingança pessoal de Paul Brophy. Preocupava-se apenas com o tal telefonema. — Obrigado pela informação, Sr. Brophy. Se lembrar de mais alguma coisa, aqui está meu número. — Ele entregou um cartão ao advogado e foi embora. No caminho de volta para a cidade, Sawyer comunicou ao seu parceiro. — Quero Sidney Archer vigiada dia e noite. E quero que sejam verificados todos os telefonemas destinados à sua casa nas últimas vinte e quatro horas, começando com esse sobre o qual o nosso amigo bestinha falou. Jackson contemplava a paisagem pela janela do carro. — Você acha que foi o marido dela que telefonou? — Acho que ela está passando por um inferno tal que seria preciso uma coisa muito grande para abalá-la daquele jeito. Inclusive enquanto falávamos com ela, dava para ver que havia alguma coisa de anormal. Muito anormal. — Então ela pensava mesmo que ele estava morto? Sawyer deu de ombros. — Neste exato momento não estou tirando conclusões apressadas. Vamos observá-la e ver o que acontece. Meu instinto me diz que Sidney Archer vai se tornar uma peça muito interessante deste quebra-cabeça. — Por falar de instinto, será que não podíamos dar uma parada e comer qualquer coisa? Estou morrendo de fome. — Jackson contemplou a longa fila de restaurantes de todos os tipos pela qual passavam naquele instante. — Ora, Ray, eu vou até pagar. Nada é bom demais para o meu parceiro. — Sawyer sorriu e virou no estacionamento do McDonald's. Jackson olhou para ele, fingindo-se enojado. Depois sacudindo a cabeça, pegou o telefone do carro e começou a teclar uns números.
CAPÍTULO TRINTA E UM O LEARJET CORTAVA OS CÉUS com potência de sobra. No interior da cabine luxuosa Philip Goldman recostou-se e tomou um gole de chá quente enquanto os restos da refeição eram retirados pelo comissário de bordo. Em frente a Goldman estava sentado Alan Porcher, presidente e diretor-executivo do Grupo RTG, o consórcio sediado na Europa Ocidental. Porcher, esbelto e bronzeado, segurou o copo de vinho e examinou atentamente o advogado antes de falar. — Você sabia que a Triton Global afirma que tem provas concretas de que um dos seus funcionários nos passou um documento de natureza extremamente delicada em um de nossos galpões em Seattle? Podemos esperar notícias dos advogados deles muito em breve, imagino. — Porcher fez uma pausa. — Integrantes da sua firma, claro, a Tyler e Stone. Irônico, não é? Goldman descansou a xícara de chá e cruzou as mãos no colo. — E isto perturba você? Porcher pareceu surpreso. — E por que não deveria me perturbar? A resposta de Goldman foi simples. — Porque, com respeito a essa acusação, você não é culpado. Irônico, não é? — Ainda assim, tenho ouvido algumas coisas a respeito da negociação com a CyberCom que me preocupam, Philip. Goldman suspirou e chegou para a frente na poltrona. — Tais como? — Que talvez a aquisição da CyberCom aconteça mais depressa do que pensamos. Que talvez não tenhamos conhecimento da última oferta a ser feita pela Triton. Quando fizermos a nossa oferta, preciso ter certeza de que será aceita. Não me permitirão apresentar outro lance. A tendência da CyberCom é favorecer os americanos. Goldman inclinou a cabeça e absorveu as palavras do presidente do Grupo RTG. — Não tenho certeza disso. A Internet não conhece fronteiras políticas. Assim, quem vai dizer que a dominação não possa ocorrer vinda do outro lado do Atlântico? Porcher tomou outro gole de vinho antes de responder. — Não, não havendo mudanças, o negócio vai ficar no hemisfério ocidental. Assim sendo, devemos nos assegurar de que as condições sejam decididamente desiguais. — Havia agora um brilho glacial nos olhos de Porcher. Goldman deteve-se um instante a enxugar metodicamente a boca com o guardanapo antes de responder: — Diga-me, quais são as suas fontes? Porcher fez um gesto largo com a mão. — Vêm com o vento. — Não acredito em ventos. Acredito em fatos. E os fatos dizem que conhecemos a última posição da Triton no negócio. Até o último detalhe. — Sim, mas agora Brophy está fora do círculo das pessoas influentes. Não posso ficar limitado a notícias velhas. — E não ficará. Como já lhe falei, estou neste instante muito próximo de resolver o
problema. Quando resolver, e certamente o farei, você poderá suplantar a Triton com facilidade e realizar a aquisição que irá lhe assegurar o domínio da estrada da informação pelo futuro previsível. Porcher dirigiu um olhar penetrante ao advogado. — Sabe de uma coisa, Philip, às vezes fico curioso de saber qual a sua motivação neste assunto. Se, como eu espero e você continua prometendo, conseguirmos comprar a CyberCom, a Triton com certeza se sentirá muito infeliz com a sua firma de advogados. Poderão procurar outra. — Tomara que isto aconteça. — Uma expressão distante apareceu na fisionomia de Goldman quando ele pensou na possibilidade. — Receio que você não tenha me entendido. Goldman assumiu um tom pedante. — A Triton Global é a maior cliente da Tyler e Stone. A Triton Global é cliente de Henry Wharton. Esta é a principal razão pela qual Henry é quem dirige a firma. Se a Triton não contar mais com a assessoria jurídica da firma, quem você acha que vai se tornar o maior mandachuva da Tyler e Stone e, assim sendo, o provável sucessor de Wharton como diretor administrativo? Porcher apontou para Goldman. — E eu esperaria que, neste caso, os assuntos da RTG receberiam a mais alta prioridade na firma. — Acho que posso prometer isto com toda a segurança. Porcher descansou o copo de vinho e acendeu um cigarro. — Agora me conte como exatamente você planeja resolver o problema. — Você se interessa mesmo pelo método, ou lhe bastam os resultados? — Favoreça-me com o brilho da sua inteligência. Você adora fazer isso. Só lhe peço que não adote um tom tão professoral ao falar. Já faz muitos anos que saí da universidade. Goldman levantou uma sobrancelha ao ouvir o comentário de Porcher. — Parece que você me conhece muito bem. — Você é um dos poucos advogados que conheço que pensa como um homem de negócios. Ganhar é tudo, que se foda a lei! Goldman aceitou um dos cigarros de Porcher e levou um momento para acendê-lo. — Ocorreu um fato novo muito recentemente que nos deu uma oportunidade de ouro para conseguir informações em primeira mão, quase que ao mesmo tempo em que as coisas acontecem, a respeito da proposta da Triton para a compra da CyberCom. Saberemos qual é a última e melhor oferta da Triton antes mesmo que seja enviada para a CyberCom. Aí entramos com a nossa proposta umas poucas horas antes e aguardamos a da Triton. A CyberCom a rejeita e você se torna o orgulhoso proprietário de mais uma jóia no seu vasto império. Porcher retirou lentamente o cigarro de entre os lábios e encarou o outro homem com os olhos arregalados.
— Você pode fazer isso? — Posso.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS — LEE, DEIXA EU AVISAR A VOCÊ, ele pode ser cáustico às vezes, mas é só a personalidade do homem. — Frank Hardy e Lee Sawyer seguiam por um corredor comprido, depois de terem saltado de um elevador privativo no último andar do prédio da Triton Global. — Luvas de pelica, prometo, Frank. Não costumo usar meu soco inglês nas vítimas, você sabe. Enquanto andavam, Sawyer pensou nos resultados das investigações realizadas no aeroporto sobre Jason Archer. Seus homens tinham conseguido encontrar dois funcionários do aeroporto que reconheceram o retrato de Jason Archer. Um deles era o funcionário da Western Airlines que recebera a mala de Jason na manhã do dia dezessete. O outro, um zelador que notara Jason sentado, lendo um jornal. Lembrava-se dele porque Jason em nenhum instante largou a pasta de couro, mesmo enquanto lia o jornal ou bebia café. Jason entrara no toalete, mas o zelador se afastara e não vira quando ele saíra. Os agentes do FBI não puderam interrogar a jovem que recolhera os cartões de embarque dos passageiros porque ela própria fora uma das comissárias de bordo do malfadado voo 3223. Muita gente se lembrava de ter visto Arthur Lieberman. Ele era frequentador regular do Dulles há muitos anos. Tudo somado, nenhuma informação útil. Sawyer voltou a concentrar atenção nas costas de Hardy, que ia se deslocando rapidamente pelo luxuoso corredor acarpetado. O acesso à sede da gigante da tecnologia não era fácil. A segurança da Triton fora tão exigente que chegou inclusive a querer telefonar para o Bureau a fim de verificar o número de série da credencial de Sawyer. desistindo apenas quando Hardy informou asperamente que isso não era necessário e que o veterano agente do FBI merecia ser tratado com mais deferência. Nada disso jamais acontecera a Sawyer em todos os anos em que trabalhava para o Bureau, e, rindo, ele disse isso a um envergonhado Hardy. — Ei, Frank, esses caras guardam aqui ouro em barra ou urânio 235? — Digamos apenas que são ligeiramente paranóicos. — Estou impressionado. Geralmente nós do FBI assustamos todo mundo. Aposto como eles fazem pouco inclusive dos caras da Receita. — Na verdade, um ex-diretor da Receita Federal é o guru dos impostos deles. — Nossa, eles se defendem de todos os lados. Uma sensação desagradável invadiu Sawyer quando ele pensou na profissão que escolhera. A informação era tudo atualmente. O acesso à informação era comandado por computadores. O setor privado estava tão à frente que não havia como o setor público alcançar o mesmo nível. Mesmo o FBI, que em alguns departamentos contava com tecnologia de ponta, ficava muito aquém do nível de sofisticação tecnológica que a Triton Global exibia. Para Sawyer a revelação não foi agradável. Era preciso ser imbecil para não
perceber que os crimes de computador muito em breve suplantariam em muito todas as outras manifestações da perversidade humana, pelo menos no aspecto financeiro. Mas o aspecto financeiro significa muito. Traduz-se em empregos e casas e famílias, felizes ou infelizes. Sawyer parou de andar. — Você se importa de me dizer quanto a Triton lhe paga por ano? Hardy virou-se e sorriu. — Por quê? Está pensando em abrir uma empresa e tentar roubar meus clientes? — Só me informando para o caso de um dia vir a aceitar a sua oferta de emprego. Hardy dirigiu um olhar penetrante a Sawyer. — Está falando sério? — Na minha idade a gente aprende a nunca dizer nunca. O rosto de Hardy readquiriu a expressão séria enquánto ele ponderava sobre as palavras do ex-parceiro. — Prefiro não entrar em detalhes, mas a Triton é uma cliente com uma conta bem acima dos 7 algarismos, sem contar o substancial honorário que nos paga. Sawyer assobiou silenciosamente. — Deus do céu, suponho que você fique com uma boa fatia disso aí no final do mês, Frank. Hardy balançou ligeiramente a cabeça. — Eu fico. E você poderia também receber, se tivesse tido a sabedoria de se associar a mim. — Tudo bem, admito que não consigo adivinhar. De que nível de salário estamos falando se eu for trabalhar para você? Refiro-me aos limites esperados? — De quinhentos a seiscentos mil dólares no primeiro ano. A boca de Sawyer quase caiu no chão. — Você deve estar brincando comigo, Frank. — Nunca brinco com dinheiro, Lee. Enquanto houver crime, jamais teremos um ano ruim. — Os dois homens voltaram a andar e Hardy acrescentou: — De qualquer modo, pense na minha oferta, sim? Sawyer esfregou o queixo e pensou na sua dívida sempre crescente, nas intermináveis horas de trabalho e na saleta minúscula no edifício Hoover. — Pensarei, Frank. — Decidiu mudar de assunto. — Quer dizer então que esse tal de Gamble toca tudo sozinho. — De maneira nenhuma. Oh, ele é o inquestionável líder da Triton. No entanto, quem é fera mesmo em tecnologia aqui é o Quentin Rowe. — Como ele é? Um cara excêntrico? — Mais ou menos — explicou Hardy. — Quentin Rowe diplomou-se com mérito pela Universidade de Colúmbia. Ganhou um monte de prêmios na área de tecnologia enquanto trabalhava para a Bell Laboratories e depois para a Intel. Abriu sua própria empresa de computação aos vinte e oito anos. Esta empresa tinha as ações mais bem cotadas do mercado e foi uma das aquisições mais desejadas da década quando Nathan Gamble a comprou. Foi uma combinação brilhante. Quentin é o verdadeiro visionário da empresa. É quem está pressionando para a aquisição da CyberCom. Ele e Gamble não são os melhores amigos deste mundo, mas se dão inacreditavelmente bem e Gamble tende a ouvi-lo, se é que o dinheiro serve como prova. De qualquer forma é indiscutível o sucesso que tiveram
até agora. Sawyer fez que sim. — A propósito, estamos vigiando Sidney Archer dia e noite. — Imagino que a sua entrevista com ela despertou algumas suspeitas. — Seria possível dizer isso. E houve algo que a deixou balançada justo quando estávamos lá. — E o que foi isso? — Um telefonema. — De quem? — Não sei. Levantamos a origem da chamada. Veio de uma cabine telefônica em Los Angeles. Quem quer que tenha ligado, poderia estar na Austrália, a esta altura. — Acha que foi o marido dela? Sawyer deu de ombros. — Nossa fonte diz que a pessoa mentiu sobre quem era ao pai de Sidney Archer quando ele atendeu o telefone. E nossa fonte diz que Sidney Archer parece ter revivido depois desse telefonema. Usando um cartão eletrônico, Hardy ganhou acesso ao elevador privativo. Enquanto eram levados ao último andar, ele ajustou a gravata da moda e deu um jeito no cabelo, aproveitando o espelho do elevador. O terno de mil dólares caía bem no seu corpo esguio. Abotoaduras de ouro faiscavam nos punhos da camisa. Sawyer comparou a imagem do exparceiro com o seu próprio reflexo. A camisa, embora limpa, estava meio puída no colarinho, a gravata era uma relíquia da década passada. Acima de tudo, o perpétuo rodamoinho, eternamente de pé, mais parecia um minúsculo periscópio. Sawyer assumiu um ar ironicamente sério quando olhou para o requintado Hardy. — Sabe de uma coisa, Frank, foi uma boa coisa que você tivesse deixado o FBI. — O quê? — perguntou Hardy, abalado. — Você agora é bonito demais para ser agente — Sawyer sorriu. Hardy deu uma risada. — Por falar de beleza, almocei com Meggie um dia desses. Excelente cabeça tem aquela menina. Entrar para a escola de direito de Stanford não é fácil. Ela vai ter um vidão. — Apesar do pai dela, você provavelmente ia querer acrescentar. O elevador parou e eles saltaram. Não tenho o melhor currículo do mundo com meus filhos, Lee, você sabe disso. Você não foi o único que perdeu todas aquelas festinhas de aniversário. — Acho que depois você se acertou com seus filhos muito melhor do que eu. — É mesmo? Bem, Stanford não sai barato. Pense na minha oferta. Poderia acelerar a reconciliação de vocês. Pronto, chegamos. — As portas de vidro, muito elegantes com uma gravação na forma de uma águia, deslizaram silenciosamente quando os dois homens se aproximaram. A secretária executiva, uma mulher bonita com um jeito eficiente e firme, anunciou a chegada deles usando o fone de cabeça. Apertou um botão em um painel de madeira e metal que mais parecia uma peça de arte moderna que uma mesa de trabalho e com um gesto mandou que Hardy e Sawyer se adiantassem na direção de uma parede maciça de ébano de Macássar envernizado. Uma seção da parede abriu-se quando se
aproximaram. Sawyer balançou a cabeça, assombrado, como já fizera muitas vezes desde que entrara no prédio da Triton. Em poucos minutos estavam diante de uma mesa, cuja descrição mais fiel talvez fosse um centro de comando, com sua parede de monitores de televisão, telefones e outras engenhocas eletrônicas embutidas em mesas brilhantes ou instaladas em gigantescas unidades de parede. O homem atrás de tudo aquilo estava desligando um telefone. Virouse para eles. Hardy fez as apresentações: — Agente especial Lee Sawyer, do FBI, Nathan Gamble, presidente da Triton Global. Sawyer pôde sentir a força do aperto de mão de Nathan, enquanto os dois homens trocavam cumprimentos superficiais, — Já pegaram Archer? Sawyer estava a meio caminho da cadeira quando a pergunta o atingiu. O tom era claramente de um superior falando com um subordinado e foi mais que suficiente para levantar cada fio de cabelo no pescoço grosso do agente. Sawyer terminou de sentar e levou um momento para estudar o homem antes de responder. Com o canto do olho, viu o olhar apreensivo do ex-parceiro, que permanecera rigidamente de pé junto da porta. Sawyer levou outro momento para desabotoar um botão do paletó e abrir o bloco de anotações antes de descansar os olhos com firmeza em Gamble. — Preciso lhe fazer algumas perguntas, Sr. Gamble. Espero que não leve muito tempo. — Você não respondeu minha pergunta. — A voz do presidente da Triton ficou um pouquinho mais grave. — Não, não respondi e não tenciono responder. — Os dois homens se encararam fixamente até que Gamble terminou por desviar os olhos na direção de Hardy. — Sr. Gamble, há uma investigação em andamento no Bureau. O Bureau geralmente não comenta... Gamble cortou Hardy com um gesto abrupto da mão. — Então vamos acabar logo com isso. Tenho que sair para pegar um avião dentro de uma hora. Sawyer não sabia em quem ele gostaria mais de dar um murro — Gamble ou Hardy, por aceitar aquele tratamento. — Sr. Gamble, talvez Quentin e Richard Lucas devessem estar presentes a esta conversa. — Talvez você devesse ter pensado nisso antes de marcar esta reunião, Hardy. — Gamble comprimiu um botão no console. — Ache Rowe e Lucas, imediatamente — ordenou. Hardy tocou no ombro de Sawyer. — Quentin chefia o departamento onde Archer trabalhava. Lucas é o chefe da segurança interna. — Então você está certo, Frank. Vou querer falar com eles. Poucos minutos depois a porta larga se abriu e dois homens ingressaram no domínio privativo de Nathan Gamble. Sawyer lhes dirigiu um olhar penetrante e rapidamente
distinguiu quem era quem. O jeitão sério, o olhar de recriminação competitiva que dirigiu a Hardy e a leve corcunda definiram quem era Richard Lucas, o chefe de segurança da Triton Global. Sawyer classificou Quentin Rowe como tendo pouco mais de trinta anos. Seu rosto mostrava um sorriso fácil sob um par de grandes olhos cor de avelã que eram mais sonhadores que intensos. Sawyer concluiu que Nathan Gamble não podia ter um companheiro de diretoria mais improvável. O grupo, assim ampliado, transferiu-se para a mesa de reuniões enorme a um canto do gigantesco escritório de Gamble. Gamble consultou o relógio e olhou para Sawyer. — Você tem cinquenta minutos e a contagem já começou, Sawyer. Eu tinha esperança de que você tivesse algo importante para mim. Sinto, no entanto, que começo a me desapontar. Por que não prova que estou enganado? Sawyer mordeu o lábio e enrijeceu os ombros, mas acabou decidindo não morder a isca. Olhou para Lucas: — Quando começou a suspeitar de Archer? Lucas remexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Obvio que o homem da segurança sentia-se particularmente humilhado pelos acontecimentos recentes. — O primeiro acontecimento definitivo foi a fita de video de Archer fazendo a troca em Seattle. — A fita obtida pelo pessoal do Frank? — Sawyer olhou para Lucas em busca de confirmação. A expressão emburrada de Lucas era bastante significativa. — Exatamente. Embora eu tivesse minhas suspeitas de Archer antes de o vídeo ser feito. Gamble reagiu: — É mesmo? Não me lembro de você ter comentado nada. Eu não pago um dinheirão para você ficar de boca fechada. Sawyer observou Lucas detidamente. O sujeito falara demais, provavelmente sem ter nada para sustentar suas palavras. Mas o dever fez Sawyer insistir: — Que tipo de suspeitas? Lucas continuava olhando fixamente para o patrão, a reprimenda furiosa ainda ressoando. Virou-se, desanimado, para Sawyer. — Bem, talvez fossem mais palpites que qualquer outra coisa. Nada de concreto para investigar. Só palpite. Às vezes é mais importante, entende o que quero dizer? — Entendo. — Ele trabalhava muito. Tinha um horário irregular. Seu computador era conectado em horários extremamente interessantes, posso lhe garantir. Gamble remexeu-se. — Só contrato quem trabalhe muito. Oitenta por cento dos funcionários da Triton trabalham de setenta e cinco a noventa horas por semana, todas as semanas do ano. — Vejo que não acredita em mãos ociosas — comentou Sawyer. — Faço com que meu pessoal trabalhe duro, mas todos são bem recompensados. Todo gerente de nível sênior na minha empresa é um milionário. E a maior parte são homens com menos de quarenta anos. — Ele indicou Quentin Rowe com um aceno de cabeça. — Não vou dizer para vocês quanto paguei para contar com Quentin aqui, mas se ele quisesse
comprar uma ilha em qualquer lugar, construir uma mansão, importar um harém em um jato particular poderia fazer sem pedir um centavo emprestado e sobrando dinheiro bastante para pagar as melhores universidades do país e limusines para seus netos. Claro que espero que um burocrata do governo compreenda as nuanças da livre iniciativa. Você tem agora quarenta e sete minutos. Sawyer prometeu a si mesmo que não permitiria a Gamble outra digressão tamanha. — Confirmou os fatos da fraude da conta bancária? — Sawyer encarou Hardy. Seu amigo fez que sim. — Vou pôr você em contato com os agentes do Bureau que estão tratando disso. Gamble explodiu, dando um soco na mesa e olhando para Sawyer como se ele tivesse roubado pessoalmente o presidente da Triton Global. — Duzentos e cinquenta milhões de dólares! — Gamble tremia de ódio. O momento de silêncio constrangido foi quebrado por Sawyer. — Estou sabendo que Archer tomou algumas medidas de proteção adicionais na porta da sala dele. Lucas respondeu um pouco mais pálido do que já estava: — É verdade, ele fez isso sim. — Vou precisar dar uma olhada mais tarde. Que tipo de coisas ele instalou? Todos na sala olharam para Richard Lucas. Sawyer quase podia ver o suor brilhando nas palmas das mãos do chefe de segurança. — Poucos meses atrás ele encomendou um sistema acionado por cartão inteligente e com alarme. — Isso era raro ou necessário? — Quis saber Sawyer. Não era capaz de imaginar a possível necessidade de uma coisa dessas, considerando a série de barreiras que a pessoa tinha de ultrapassar para poder entrar na sede da Triton. — Eu não achava que fosse preciso. Temos as instalações mais seguras do setor. — Lucas encolheu-se quando Gamble reagiu com um resmungo ao ouvir sua resposta. — Mas não sei se poderia dizer que foi uma coisa rara; outras pessoas têm dispositivos semelhantes nas portas de suas salas. Quentin Rowe quis dar sua contribuição. — Sei que não deve ter deixado de reparar, Sr. Sawyer, mas todo mundo aqui na Triton é terrivelmente cônscio da importância da segurança. Martela-se na cabeça de cada funcionário que o estado de espírito mais adequado para a proteção de tecnologia patenteada é a paranóia. Na verdade, Frank a cada trimestre faz palestras sobre este assunto. Se um funcionário tiver um problema ou uma preocupação relativa à segurança, deve procurar Richard, alguém da diretoria ou Frank, cuja destacada carreira no FBI é do conhecimento de todos. Tenho certeza de que qualquer pessoa preocupada com segurança não teria hesitado em nos procurar. A propósito, os funcionários tiveram uma participação importantíssima na descoberta de problemas potencialmente graves. Sawyer olhou para Hardy, que balançou a cabeça, concordando.
— Mas você teve problemas para entrar na sala dele, depois que Archer desapareceu. Você devia ter um sistema que levasse em conta funcionários que ficam doentes, morrem ou se demitem. — Há um sistema — proclamou Lucas. — Ao que tudo indica Jason passou a perna nesse sistema — disse Rowe, com um tom de admiração. — Como? Rowe olhou para Lucas e suspirou. — De acordo com as normas da empresa, o código de qualquer sistema de segurança individual tem que ser entregue ao chefe da segurança — explicou Quentin — ou seja, a Rich. Além disso, todo o pessoal da segurança e os principais gerentes têm cartões mestres que garantem o acesso a qualquer área do escritório. — Archer revelou seu código? — Deu um código para Rich e em seguida reprogramou a unidade de leitura da porta da sua sala com um código diferente. — E essa alteração não foi descoberta antes? — Sawyer olhou, incrédulo, para Lucas. — Não havia razão para pensar que ele tivesse mudado o código — disse Rowe. — Durante as horas em que trabalhava a porta da sala de Jason ficava em geral aberta. Nenhuma outra pessoa exceto o próprio Jason tinha motivo para entrar lá fora das horas normais. — Certo. As informações que Archer supostamente vazou para a RTG, como foi que ele se apoderou delas? Ele tinha autorização para tomar conhecimento delas? — Em parte. — Quentin Rowe remexeu-se desconfortavelmente e alisou o rabo-de-cavalo com uma das mãos. — Jason fazia parte da equipe que trabalhava no projeto. Havia certas partes, contudo, nos níveis mais altos da negociação, das quais ele não tinha conhecimento. Ficavam restritas a Nathan, eu e três outros executivos seniores da empresa. E a assessoria jurídica externa, claro. — Onde ficavam guardadas estas informações? Arquivo comum? Cofre? — perguntou Sawyer. Rowe e Lucas trocaram sorrisos. Foi Rowe quem respondeu. — Nós temos, em um grau bastante significativo, um escritório sem papel. Todos os documentos mais importantes são guardados em arquivos digitais. — Presumo que houvesse algum tipo de segurança nesses arquivos, então? Tipo um código, uma senha. Lucas corrigiu, em tom condescendente: — Bem mais complexo que uma simples senha. — E ainda assim Archer quebrou o segredo, ao que parece — contragolpeou Sawyer. Lucas contraiu a boca como se tivesse acabado de engolir um limão. Quentin Rowe limpou os óculos. — É verdade. Quer saber como foi que ele fez? O grupo de homens lotou o pequeno depósito. Richard Lucas afastou as caixas de junto da parede enquanto Rowe, Hardy e Sawyer olhavam. Nathan Gamble recusara-se a acompanhá-los. Depois que as caixas
saíram, ficaram expostas as conexões dos cabos. Quentin Rowe aproximou-se do computador e segurou os cabos. — Jason fez uma conexão com a nossa rede local através deste computador. — Por que não usar o da sala dele? Rowe começou a sacudir a cabeça antes mesmo que Sawyer terminasse de formular a pergunta. — Quando ele faz a conexão através do seu computador, tem que passar por uma série de medidas de segurança. Elas não se limitam a verificar quem é o usuário, elas confirmam a identidade do usuário. Cada estação de trabalho aqui na Triton tem uma leitora de íris, que faz uma imagem em vídeo da íris do usuário e depois prossegue fazendo varreduras periódicas do operador a fim de confirmar continuamente a identidade dele. Se Archer tivesse deixado sua mesa ou alguém tivesse se sentado no seu lugar, o sistema teria automaticamente sido bloqueado para aquele computador. Rowe encarou Sawyer com firmeza. — O que interessa é que se Archer tivesse acessado qualquer arquivo a partir do computador dele, nós teríamos sabido. — Como? — Quis saber Sawyer. — Nossa rede, como a maioria dos sistemas, registra o acesso de qualquer usuário. Ao usar esta máquina aqui — Quentin indicou o velho computador — que não deveria estar conectada à rede e que não é identificada por um número no administrador da rede, ele contornava esse risco. Este computador aqui é, praticamente, um fantasma na nossa rede. Ele pode tê-lo usado na sua sala a fim de estabelecer a localização de certos arquivos sem acessá-los. Podia fazer isso quando tivesse tempo livre. Isso reduziria bastante o tempo em que precisava ficar aqui, onde corria o risco de ser apanhado. Sawyer sacudiu a cabeça. -Espera um minuto. Se Archer não usou o seu próprio computador para acessar os arquivos porque isso poderia identificá-lo de maneira definitiva e usou este aqui exatamente para não ser identificado, como foi que vocês concluíram que tinha sido ele? Hardy apontou para o teclado. — Um método velho mas confiável. Conseguimos levantar numerosas impressões digitais aqui. Todas conferem com as de Archer. Sawyer finalmente fez a pergunta mais óbvia. — Tudo bem, mas como é que você sabe que este computador foi usado para acessar qualquer arquivo? Lucas sentou-se sobre uma das caixas. — Por um período de tempo tivemos entradas não autorizadas no sistema. Embora Archer não precisasse passar por todo o processo de identificação a fim de se conectar ao usar esta unidade, ainda assim deixaria uma trilha se acessasse os arquivos com ela, a menos que apagasse eletronicamente essa trilha quando saísse. O que é possível de se fazer, embora difícil. Penso que foi o que ele fez. Inicialmente, pelo menos. Depois ficou com preguiça e acabamos por pegar a trilha e, embora tenha levado um bocado de tempo, filtramos as
possibilidades até que terminamos exatamente aqui. Hardy cruzou os braços no peito. — Sabe de uma coisa, chega a ser irônico. Você dedica um bocado de tempo, esforço e dinheiro para tornar suas redes seguras contra quaisquer brechas. Portais de aço, guardas de segurança, engenhocas eletrônicas para monitorar as instalações, cartões inteligentes — o que você quiser, a Triton tem. E no entanto... — ele olhou para o teto — e no entanto você também tem alçapões no teto com cabos que conectam toda a sua rede, fáceis de serem atingidos. — Ele sacudiu a cabeça, desiludido, e olhou para Lucas. — Eu adverti você desse risco. — Ele era um cara que trabalhava aqui — retrucou Lucas, acaloradamente. — Conhecia o sistema e usou o seu conhecimento para dar uma de hacker. — Lucas fez uma pausa, pensando e terminou: — E depois derrubou um avião cheio de gente no processo. Não esqueçamos deste pequeno fato. Dez minutos depois os homens estavam mais uma vez na sala de Gamble, que nem levantou a cabeça quando eles reapareceram. Sawyer sentou-se. — OK, mais alguma informação do lado da RTG? — perguntou. O rosto de Gamble ficou vermelho à menção do nome do concorrente. — Ninguém me rouba e sai impune. — O envolvimento de Jason Archer com a RTG ainda não foi provado — disse Sawyer, sem se alterar. — Até aqui é tudo especulação. Gamble rolou os olhos dramaticamente para cima. — Certo! Bem, vou deixar vocês às voltas com seus pequenos truques burocráticos para poderem conservar os empreguinhos enquanto eu cuido do que interessa. Sawyer fechou o bloco de anotações e levantou-se. Hardy também se pôs de pé e esticou a mão para pegar o paletó de Sawyer, mas o ex-parceiro o imobilizou com um olhar que ele conhecia muito bem dos tempos de FBI. Sawyer virou-se para Gamble. — Dez minutos, Sawyer. Já que parece que você não tem nada a reportar, vou pegar meu avião um pouco antes. Quando Gamble passou pelo corpulento agente do FBI, este o agarrou firmemente pelo braço e levou-o para a sala de recepção do lado de fora. Lá ele se dirigiu para a secretáriaexecutiva de Gamble. — Com licença um instante, senhora. — A mulher hesitou, olhando para Gamble. — Eu disse com licença! — A voz de sargento-instrutor de Sawyer catapultou a mulher para fora da cadeira e ela saiu correndo. Sawyer virou-se para o presidente da Triton Global. — Vamos acertar umas coisinhas, Gamble. Primeiro, não tenho que dar satisfações a você ou a ninguém mais aqui neste lugar. Segundo, uma vez que parece que um dos seus funcionários conspirou para explodir um avião, vou lhe fazer tantas perguntas quantas
quiser e estou cagando para o seu cronograma de viagem. E tem mais, se você me disser de novo quantos minutos me restam, vou arrancar essa porra desse relógio do seu pulso e enfiar na sua boca. Não sou um dos seus lacaios, de modo que você nunca, mas nunca mais, vai falar comigo desse jeito. Sou um agente do FBI e sou um agente bastante competente. Já levei bala, facada e já fui chutado e mordido por alguns idiotas tão malucos que fariam com que você parecesse o maior babaca do mundo. Assim, se pensa que bancando o durão para cima de mim vai me fazer urinar nas calças, está desperdiçando o tempo de todo mundo, inclusive o seu próprio. Agora volta para lá e senta de novo a porra do seu rabo na cadeira. Duas horas mais tarde Sawyer terminou de entrevistar Gamble e companhia e de passar trinta minutos examinando a sala de Jason Archer, proibindo o acesso a ela e chamando uma equipe para vasculhar metodicamente cada centímetro. Verificou inclusive o computador de Archer, mas não tinha como saber se havia algo faltando. A única coisa que sobrara do microfone era um plug pequeno, prateado. Sawyer dirigiu-se ao saguão dos elevadores ao lado de Hardy. — Está vendo só, Frank, eu disse a você que não havia nada com que se preocupar. Gamble e eu nos demos muito bem. Hardy deu uma risada. — Acho que nunca vi a cara dele branca daquele jeito. Que diabos você disse para o homem? — Só falei que eu achava que ele era um grande sujeito. Provavelmente ficou embaraçado com a minha franca admiração. Diante dos elevadores, Sawyer disse: — Sabe, não consegui muita coisa útil lá dentro. É claro que Archer fazendo o roubo do século pode até dar uma história fascinante, mas eu preferia vê-lo na prisão. — Bem, esses caras acabaram de sofrer uma limpa e certamente que não estão acostumados com esse tipo de coisa. Sabem o que aconteceu e têm uma noção bastante boa de como foi que aconteceu, mas tudo depois do fato consumado. Sawyer encostou-se na parede e esfregou a testa. — Você sabe que não há nenhum indício ligando Archer ao atentado. Hardy aquiesceu. — Eu falei que Archer podia ter usado Lieberman para cobrir seu rastro, mas também não há prova disso. Se não houver ligação, o Archer é um cara danado de sortudo por não ter embarcado naquele avião. — Bem, se for esse o caso, havia então uma outra pessoa lá que embarcou no lugar dele. Sawyer estava prestes a pressionar o botão para chamar o elevador quando Hardy tocou na manga do seu paletó. — Ei, Lee, se quer minha modesta opinião, não creio que o seu maior problema seja provar que Archer estava envolvido na sabotagem do avião. — Então qual é o meu maior problema, Frank? — Encontrá-lo. Hardy afastou-se. Enquanto Sawyer esperava o elevador, uma voz chamou seu nome. — Sr. Sawyer? Tem um minuto? Sawyer virou-se para dar com Quentin Rowe
caminhando na sua direção. — Pois não, Sr. Rowe? — Por favor, me chame de Quentin. — Rowe parou e deu uma olhada nos corredores. — Gostaria de dar um giro rápido pelas nossas instalações, setor de produção? Sawyer entendeu rapidamente o que ele queria. — Tudo bem. Claro.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS O PRÉDIO DE QUINZE ANDARES da Triton era ligado a uma estrutura de três andares que se espalhava por um terreno de vinte mil metros quadrados, mais ou menos. Sawyer pegou um crachá de visitante à entrada principal das instalações e seguiu Rowe por um número interminável de postos de controle da segurança. Rowe era obviamente bastante conhecido e muito querido, e recebeu inúmeros cumprimentos cordiais do pessoal da Triton. Em um dado ponto, através de uma parede de vidro, os dois homens viram técnicos de laboratório de aventais brancos, luvas e máscaras cirúrgicas trabalhando em um amplo salão. Sawyer olhou para Rowe. — Jesus, parece mais uma sala de cirurgia do que uma fábrica. Rowe sorriu. — Na verdade, essa sala é muito mais limpa que o centro cirúrgico de qualquer hospital. Ele observou a surpresa de Sawyer com um sorriso. — Aqueles técnicos estão testando uma nova geração de chips de computador. O ambiente tem que ser completamente estéril, absolutamente livre de poeira. Uma vez que sejam totalmente funcionais, esses protótipos serão capazes de executar dois TIPS. — Nossa! — disse Sawyer, distraidamente, sem ter a menor ideia do significado do acrônimo. — Isso significa dois trilhões de instruções por segundo. Sawyer ficou boquiaberto. — O que diabo precisa andar tão depressa? — Você ficaria surpreso. Uma série de aplicações no campo da engenharia. Carros, aeronaves, Onihus espaciais, prédios, processos de fabricação de todos os tipos. Mercados financeiros. Operações de grande vulto entre corporações. Vejamos, por exemplo, uma empresa como a General Motors: milhões de peças estocadas, milhares de funcionários, milhares de locações. Tudo soma. Nós ajudamos toda essa gente a trabalhar com mais eficiência. — Ele apontou para outra área de produção. — Uma nova linha de unidades de disco rígido está sendo testada. Serão os mais poderosos e eficientes discos rígidos do setor quando chegarem ao mercado no ano que vem. No entanto, um ano depois serão obsoletos. — Ele olhou para Sawyer. — Que sistema você usa no trabalho? Sawyer enfiou as mãos nos bolsos. — Você talvez nunca tenha ouvido falar: Smith Corona? Rowe ficou boquiaberto. — Você está brincando. — Acabei de colocar uma fita nova nela, está correndo que é uma beleza — Sawyer pareceu muito defensivo. Rowe sacudiu a cabeça. — Um aviso de amigo. Quem não souber operar um computador nos próximos anos não será capaz de funcionar na sociedade. Não se deixe intimidar. Os sistemas hoje em dia são fáceis de ser operados pelos usuários, até mesmo se o usuário for um idiota, sem querer
ofender. Sawyer suspirou. — Os computadores progridem em ritmo cada vez mais acelerado o tempo todo, esta tal de Internet, seja o que for na realidade, crescendo como louca, redes, pagers, telefones celulares, faxes. Cristo, onde é que isso vai parar? — Já que é o meu ramo de negócio, espero que nunca pare. — Às vezes as mudanças podem acontecer depressa demais. Rowe sorriu com benevolência. — As mudanças a que testemunhamos hoje não serão nada comparadas com o que acontecerá nos próximos cinco anos. Estamos conseguindo inovações tecnológicas que teriam parecido impensáveis dez anos atrás. Os olhos de Rowe brilharam quando ele pensou no próximo século. — O que conhecemos como Internet hoje — ele prosseguiu -parecerá chato e banal muito em breve. A Triton Global desempenhará um papel importantíssimo no processo. Na verdade, se tudo der certo, vamos liderar o caminho. Educação, medicina, o local de trabalho, viagem, entretenimento, alimentação, como nos relacionamos, consumimos, produzimos — tudo o que cada ser humano faz ou de que se beneficia será transformado. Pobreza, preconceito, crime, injustiça, doença, tudo vai desmoronar sob o peso da informação, da descoberta. A ignorância simplesmente desaparecerá. O conhecimento contido em milhares de bibliotecas, a soma dos pensamentos dos maiores cérebros do mundo, tudo será prontamente acessível a qualquer pessoa. No fim, o mundo dos computadores, tal como o conhecemos hoje, será transformado em um mundo só, totalmente conectado por um link global interativo de potencial ilimitado. — Ele avaliou a reação de Sawyer através das lentes dos óculos. — Todo o conhecimento do mundo, as soluções de todos os problemas, acessíveis a nós pelo digitar de uma tecla. É a sequência natural. — Uma pessoa será capaz de conseguir tudo de um computador. — O tom de voz de Sawyer foi cético. — Não é uma visão emocionante? — Me apavora. Rowe ficou espantado. — Como é que isso pode assustar você? — Talvez eu seja um pouco cético após vinte e cinco anos fazendo o que faço para viver. Quando você me diz que vai ser possível obter toda a informação que se quiser na ponta dos dedos, sabe qual é a primeira ideia que vem à minha cabeça? — Não, o quê? — E se o cara for um bandido? — Rowe não reagiu. — E se ao acionar uma tecla o sujeito destruir todo o conhecimento do mundo? — Sawyer estalou os dedos. — Ou simplesmente confundir tudo? O que diabo fazemos então? Rowe sorriu. — Os benefícios da tecnologia ultrapassam em muito quaisquer perigos potenciais. Você pode não concordar comigo, mas os próximos anos vão provar como estou certo. Sawyer coçou o alto da cabeça. — Você provavelmente é muito jovem para saber disso, mas nos anos 50 ninguém pensava
que as drogas ilegais viriam a ser um grande problema. Vamos em frente. Os dois homens continuaram o giro. — Temos cinco destas instalações em todo o país — disse Rowe. — Deve ser um bocado dispendioso. — Tem razão. Gastamos mais de dez bilhões por ano com pesquisa e desenvolvimento. Sawyer assobiou. — Você cita números que nem consigo imaginar. Claro que sou apenas um burocrata que anda por aí se metendo onde não é chamado. Rowe sorriu. — Nathan Gamble adora intimidar os outros. Mas acho que ele encontrou um antagonista à altura em você. Por motivos óbvios não aplaudi seu desempenho, mas estive seriamente inclinado a bater palmas de pé. — Hardy me disse que você tinha a sua própria empresa com ações muito valorizadas. Se não se importa, posso perguntar como veio a se meter com Gamble? — Dinheiro. — Rowe fez um gesto abrangendo as instalações em que se encontravam. — Tudo isso custa bilhões de dólares. Minha empresa estava indo bem, mas havia também muitas outras empresas de alta tecnologia com bons resultados no mercado de ações. O que parece que as pessoas não compreendem é que, embora as ações da empresa tenham subido de dezenove dólares cada, no dia em que foram oferecidas ao mercado, para cento e sessenta menos de seis meses depois, não vimos nenhum centavo desse enorme aumento. Tudo estava no bolso das pessoas que compraram as ações. — Mas você tinha que conservar uma boa quantidade das ações. — Eu conservei, mas não podia vender nada, tendo em vista as leis que regulam os investimentos, assim como as exigências para a subscrição de ações. Eu tinha uma fortuna só no papel. Na vida real minha empresa ainda lutava. A parte de pesquisa e desenvolvimento nos consumia tudo, e não tínhamos lucros — disse ele, amargurado. — Aí Nathan Gamble entrou em cena? -Na verdade ele investiu maciçamente em nós, antes mesmo de abrirmos o capital. Entrou com uma contribuição inicial. Ele nos deu também algo que não tínhamos e de que precisávamos desesperadamente: respeitabilidade em Wall Street, com o mercado de capitais. Um bom e sólido passado como empresário. Talento inato para fazer dinheiro. Quando minha empresa abriu o capital, ele também conservou suas ações. Mais tarde, quando discutimos o futuro, decidimos fechar de novo o capital da empresa. — Em retrospecto, foi uma boa decisão? — Numa perspectiva financeira, uma decisão incrivelmente boa. — Mas dinheiro não é tudo, certo, Quentin? — Às vezes tenho dúvidas. Sawyer encostou na parede, cruzou os braços musculosos no peito e encarou Rowe diretamente nos olhos. — O giro está verdadeiramente interessante, mas acho que não era só isso que você tinha
em mente. — E não era. — Rowe passou o cartão por uma leitora de uma porta próxima e fez um gesto para que Sawyer o seguisse. Sentaram-se a uma mesinha, e ele levou algum tempo organizando os pensamentos antes de começar a falar. — Sabe, se você tivesse me perguntado antes disso tudo acontecer quem eu suspeitaria que estava nos roubando, o nome de Jason Archer nem passaria pela minha cabeça. — Rowe tirou os óculos e os esfregou com um lenço que tirou do bolso da camisa. — Você então confiava nele? — Absolutamente. — E agora? — E agora penso que eu estava enganado, e, na verdade, me sinto traído. — Dá para entender. Acha que alguém mais na empresa possa estar envolvido? — Meu Deus, eu espero que não. — Rowe pareceu abalado com a sugestão. — Eu certamente preferia acreditar que Jason estivesse agindo por conta própria ou para um concorrente. Para mim faria muito mais sentido. Além do mais, Jason teria sido perfeitamente capaz de se infiltrar no sistema do BankTrust sozinho. Não é realmente tão difícil assim. — Você fala como quem já experimentou. Rowe encabulou. — Digamos que eu tenha uma curiosidade insaciável. Entrar em bancos de dados era um dos meus passatempos favoritos nos tempos da universidade. Meus colegas e eu nos divertíamos um bocado fazendo isso, embora as autoridades locais, em mais de uma ocasião, tenham manifestado seu desprazer. No entanto, nunca roubamos nada. Na verdade ajudei a treinar alguns técnicos da polícia em métodos de detecção e prevenção de crimes relacionados com computadores. — Alguma dessas pessoas trabalha hoje na sua equipe de segurança? — Você se refere a Richard Lucas? Não, ele trabalha com Gamble desde sempre. É muito bom no que faz, mas não é a pessoa mais agradável de se ter por perto. Sei, contudo, que não faz parte de seu trabalho ser simpático. — Mas Archer passou a perna nele. — Ele tapeou a todos nós. Certamente que não estou em posição de culpar ninguém. — Notou alguma coisa em Archer que, vista agora, parecia estranha? — Depois do caso passado, a maioria das coisas parece diferente. Sei disso melhor que a maioria. Pensei nisso e hoje eu acho que Jason realmente pareceu se interessar demais pela negociação com a CyberCom. — Ele trabalhava nisso. — Não me refiro apenas a isso. Até mesmo nos segmentos em que não estava envolvido ele fazia muitas perguntas. — Como por exemplo? — Como se eu achava os termos justos. Se eu acreditava que a negociação daria certo. Qual seria o papel dele uma vez que estivesse tudo terminado. Esse tipo de coisa. — Ele alguma vez lhe fez perguntas sobre quaisquer dos arquivos confidenciais que vocês
mantinham referentes à transação? — Não, diretamente, não. — Então conseguiu tudo o que queria no sistema de computadores da empresa? — Parece que sim. Os dois homens ficaram por um instante com os olhares perdidos no espaço. — Tem algum palpite de onde Archer possa estar? Rowe sacudiu a cabeça. — Visitei a mulher dele, Sidney. — Nós nos conhecemos. — É difícil acreditar que ele fosse simplesmente sair de casa e deixá-la assim sem mais aquela. Jason tem uma filha também. Uma garotinha linda. — Talvez ele não planejasse abandoná-las. — Como assim? — Ele talvez pretenda voltar para pegá-las. — Ele agora é um fugitivo da justiça. Por que voltaria? Além do mais, Sidney não iria com ele. — Por que não? — Porque ele é um criminoso. Ela é advogada. — Pode ser uma grande surpresa para você, Quentin, mas alguns advogados não são honestos. — Você está querendo dizer... que suspeita que Sidney Archer está envolvida nessa coisa toda? — O que estou dizendo é que não a declarei nem a qualquer outra pessoa livre de suspeitas. Ela é uma advogada que trabalha para a Triton. Fazia parte da equipe que tratava da transação com a CyberCom. Parece uma posição perfeita para selecionar segredos e vender à RTG. Quem pode saber? Pretendo descobrir. Rowe recolocou os óculos e esfregou a mão nervosamente no tampo de vidro da mesa. — É difícil acreditar que Sidney possa estar envolvida nisso. — O tom de voz de Rowe revelava inconscientemente a convicção de suas palavras. Sawyer analisou-o detidamente. — Rowe, você quer me contar alguma coisa? Talvez a respeito de Sidney Archer? Rowe finalmente suspirou e olhou para Sawyer. — Estou convencido de que Sidney foi ao escritório de Jason na Triton após o desastre. Os olhos de Sawyer estreitaram-se. — Que provas você tem? — Na noite anterior à suposta viagem de Jason para Los Angeles, ele e eu ficamos trabalhando até tarde num projeto no escritório dele. Saímos juntos. Ele trancou a porta atrás de mim. Sua sala permaneceu trancada até chamarmos alguém para desativar o alarme e remover a porta. — E então? — Quando entramos na sala dele, notei imediatamente o microfone do computador dobrado quase ao meio. Como se tivessem batido com ele em alguma coisa e depois tentado endireitar. — Por que você iria pensar que a pessoa que entrou lá e fez isso pode ter sido Sidney Archer? Talvez o próprio Jason tivesse voltado lá mais tarde. — Neste caso teria havido um registro, tanto eletrônico quanto na planilha do segurança.
— Rowe fez uma pausa, relembrando a noite da visita de Sidney. Finalmente levantou as mãos, palmas para cima. — Não sei dizer de outro jeito. Ela estava se esgueirando por lá. Alegou que não se encontrava na área restrita, e no entanto tenho certeza do contrário. Acho que o segurança fez o jogo dela. E Sidney me contou uma mentira qualquer sobre um encontro que marcara com a secretária de Jason para apanhar artigos de uso pessoal dele. — Isso não lhe parece plausível? — Poderia parecer, exceto que por acaso eu perguntei a Kay Vincent, a secretária de Jason, se tinha falado recentemente com Sidney. Ela falara, mas da sua casa, na própria noite em que Sidney foi ao escritório. Sidney sabia que Kay não se encontrava lá. Sawyer recostou-se na cadeira e Rowe continuou. — Você precisa de um cartão especial com um chip para dar início ao processo de abertura da porta da sala de Jason. E, além do cartão, tem que conhecer uma senha de quatro dígitos para que o alarme não dispare. Chegou a acontecer isso, de fato, quando tentamos inicialmente entrar. Foi quando descobrimos que ele mudara a senha. Cheguei inclusive a pensar em fazer outra tentativa na própria noite em que Sidney foi lá, mas desisti, sabendo que seria inútil. Eu tinha um cartão mestre, mas sem a senha o alarme iria disparar de novo. — Ele parou para respirar. — Sidney pode ter tido acesso ao cartão de Jason e ele pode ter lhe contado qual era a senha. Não posso acreditar que eu esteja fazendo isso, mas ela está envolvida em alguma coisa, só não sei em quê. — Acabei de examinar a sala de Archer e não vi nenhum microfone. Que aparência tinha? — Cerca de dez centímetros de comprimento, fino como um lápis, com um fone na ponta. Montado diretamente na CPU do computador, embaixo, à esquerda. Ativado por voz. Um dia substituirá inteiramente o teclado. Um presente dos deuses para as pessoas que não são boas digitadoras. — Não vi nada assim por lá. — Provavelmente não. Tenho certeza de que foi removido por estar muito danificado. Sawyer levou uns minutos fazendo anotações e fez a Rowe mais algumas perguntas. Em seguida Rowe acompanhou-o até a saída. — Se lembrar de mais alguma coisa, Quentin, fale comigo. — Entregou a Rowe um cartão. — Queria eu saber que diabos está acontecendo, agente Sawyer. Estou muito ocupado com a aquisição da CyberCom, e agora isto. — Estou fazendo o que posso, Quentin. Aguente firme. Rowe lentamente voltou para o lado de dentro, o cartão de Sawyer amassado na mão. Sawyer dirigiu-se para o seu carro, podia ouvir o celular tocando. A voz de Ray Jackson estava agitada. — Você tinha razão. — A respeito de quê? — Sidney Archer viajou.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO OS DOIS CARROS DO FBI seguiam o táxi do aeroporto a meia quadra de distância. Dois outros automóveis seguiam por ruas paralelas e trocavam de posição em pontos estratégicos a fim de assumir a caçada e assim não alertar a pessoa que estava sendo seguida. Esta pessoa afastou o cabelo dos olhos, respirou fundo e olhou pela janela do táxi. Sidney Archer repassou rapidamente os detalhes da sua viagem mais uma vez e perguntou-se se não teria apenas trocado um pesadelo por outro. — Ela voltou para casa após o serviço religioso, ficou um pouco e depois o táxi veio pegá-la. Pela direção que estão indo, meu palpite é que o destino é o Aeroporto Dulles — disse Ray Jackson, ao fone do carro. — Fez uma parada. Em um banco. Provavelmente para fazer uma retirada. Lee Sawyer comprimiu o fone contra a orelha e lutou contra o trânsito da hora do rush. — Onde você está agora? Jackson relatou sua posição. — Você não deverá ter problema, Lee, estamos nos arrastando neste trânsito. Sawyer começou a prestar atenção nas transversais. — Posso alcançar você em uns dez minutos. Quantas malas ela está carregando? — Uma, tamanho médio. — Viagem curta então. — Provavelmente. — Jackson concentrou-se no táxi. — Puxa vida, que droga! — O quê? — Sawyer quase gritou dentro do telefone. Jackson viu, surpreso, o táxi desviarse abruptamente e parar na estação Vienna do metrô. — Parece que a nossa amiga acaba de fazer uma mudança em seus planos de viagem. Está saltando no metrô — Jackson viu Sidney Archer saltar do táxi. — Arranje uns dois caras para entrar lá, agora, Ray. — Afirmativo. Sawyer acendeu as luzes de emergência e saiu cortando o transito praticamente parado. Logo o telefone tocava de novo. — Fala comigo, Ray, mas só boas notícias. Seu parceiro respirava agora com mais calma. — OK, temos dois caras com ela. — Estou a um minuto da estação. Em que direção ela seguiu? Espera um minuto, Vienna é o fim da linha laranja. Deve ter ido para o centro da cidade. — Pode ser, Lee, a menos que ela nos dê o golpe e pegue outro táxi quando sair do metrô. Dulles é do outro lado. E temos um problema potencial com as linhas de comunicação. Os walkie-talkies não funcionam bem no metrô. Se ela mudar de trem lá embaixo e os nossos caras a perderem, nada feito. Sawyer pensou por um momento. — Ela levou a mala, Ray? — O quê? Merda, não! Não levou. — Mande dois carros grudarem no táxi, Ray. Duvido que a Sra. Archer vá viajar deixando para trás sua roupa de baixo limpa e o estojo de maquiagem.
— Eu mesmo vou nessa. Quer fazer dupla comigo? Sawyer ia concordar, mas mudou repentinamente de ideia. Passou um sinal vermelho. — Vai você, Ray, decidi cobrir outra possibilidade. Entre em contato de cinco em cinco minutos e vamos rezar para que ela não escape. Sawyer fez uma curva de cento e oitenta graus e acelerou na direção contrária. Sidney trocou de trem na subestação de Rosslyn e embarcou em um trem da linha azul que seguia no rumo sul. Na estação do Pentágono as portas do trem se abriram e aproximadamente mil pessoas saltaram. Sidney carregava o casaco branco que vestia. Não queria se destacar da multidão. O suéter azul que usava por baixo desapareceu rapidamente em meio à multidão cada vez maior de pessoal militar vestido de modo semelhante. Os dois agentes do FBI abriram caminho por entre a massa de gente, tentando desesperadamente relocalizar Sidney Archer. Nenhum dos dois notou que ela tomou o mesmo trem alguns carros mais à frente, e continuou na direção do Aeroporto Nacional. Sidney olhou para trás diversas vezes, mas o trem agora não tinha mais perseguidores óbvios. Sawyer parou em frente ao terminal principal do Aeroporto Nacional, exibiu rapidamente as credenciais para o espantado funcionário do estacionamento e entrou correndo no prédio. Segundos depois parou e seus ombros se recurvaram, denotando sua frustração, ao ver a multidão compacta. — Droga! — Mas em seguida virou-se contra a parede, para que Sidney Archer, passando três metros à sua frente, não o visse. Assim que a avistou à sua frente, Sawyer começou a segui-la. O curto trajeto terminou na fila do balcão de venda de passagens da United Airlines, que tinha umas vinte pessoas. Fora das vistas tanto de Sawyer quanto de Sidney, Paul Brophy empurrava o carrinho com a bagagem na direção de um portão de embarque da American Airlines. No bolso de dentro do paletó levava todo o itinerário de viagem de Sidney extraído da conversa que ela tivera com Jason Archer. Prosseguiu sem pressa. Podia se dar a esse luxo, enquanto o caos envolvia tudo à sua volta. Teria tempo inclusive de falar com Goldman. Após quarenta e cinco minutos Sidney finalmente recebeu seu bilhete e o cartão de embarque. Sawyer observou à distância e reparou no grosso maço de notas que ela usou para pagar. Assim que desapareceu de vista, Sawyer rapidamente cortou a fila, o crachá do FBI ostensivamente exibido quando a primeira onda de viajantes furiosos rapidamente abriu caminho. A mulher que vendia os bilhetes olhou primeiro para o crachá e depois para Sawyer. — A mulher para quem você acabou de vender uma passagem. Sidney Archer. Alta. bonita, vestida de azul. com um casaco branco nos braços — acrescentou Sawyer, para o caso de ela ter usado outro nome. — Para que voo foi? Rápido. Ela ficou imóvel por um instante e depois começou a digitar, — Voo 715 para Nova
Orleans. Parte em vinte minutos. — Nova Orleans? — repetiu Sawyer, mais para si próprio que para a mulher. Por um momento lamentou ter entrevistado Sidney pessoalmente. Ela o reconheceria de imediato. Mas não havia tempo para chamar outro agente. — Qual é o portão de embarque? — Onze. Sawyer inclinou-se e falou mais baixo: — Tudo bem, qual é a poltrona dela? A mulher consultou a tela do monitor. — Vinte e sete C. — Algum problema aqui? — A pergunta foi feita pela supervisora, que viera ver o que estava acontecendo. Sawyer mostrou-lhe as credenciais do FBI e rapidamente explicou a situação. A supervisora pegou um telefone e avisou tanto ao portão de embarque quanto à segurança, que, por sua vez, informaria à tripulação. A última coisa de que Sawyer precisava era um comissário de bordo descobrindo sua arma durante o voo, fazendo com que a polícia de Nova Orleans esperasse por ele na pista do aeroporto quando o avião aterrissasse. Poucos minutos depois, tendo na cabeça um velho chapéu arranjado apressadamente pelo pessoal da segurança e com a gola do paletó levantada, Sawyer, escoltado por um vigilante da empresa aérea, contornava os detetores de metal ao mesmo tempo em que examinava a multidão para descobrir Sidney Archer. Viu-a no portão de embarque, já na fila para entrar. Alguns minutos depois que o último grupo de pessoas embarcou, Sawyer pisou na rampa de acesso à aeronave. Acomodaram-no na primeira classe, em um dos poucos lugares disponíveis no avião lotado, e ele se permitiu um rápido sorriso. Era a primeira vez em que viajava no luxo da primeira classe. Pegou a carteira e retirou de lá seu cartão telefônico. Viu o cartão de Sidney Archer — com os números da linha direta do escritório, pager, fax e telefone celular. Sawyer sacudiu a cabeça. Assim era o setor privado. Os caras têm que saber onde é que você está a cada minuto. Puxou o telefone de bordo e passou o cartão na ranhura apropriada. O voo era direto e duas horas e meia mais tarde o avião estava descendo no Aeroporto Internacional de Nova Orleans. Sidney Archer permaneceu em sua poltrona durante toda a viagem, pelo que Lee Sawyer ficou imensamente grato. Sawyer deu inúmeros telefonemas do avião e sua equipe estava em posição no aeroporto. Quando a porta do jato foi aberta, ele saiu em primeiro lugar. Quando Sidney deixou o aeroporto na noite úmida de Nova Orleans, não reparou no sedã preto de janelas de vidros escuros estacionado na pista estreita usada para pegar ou deixar passageiros. Uma vez sentada no velho Cadillac cinza com os dizeres CAJUN CAB COMPANY gravados nas portas, Sidney afrouxou a gola e secou a testa suada. — LaFitte Guest House, por favor. Rua Bourbon. Quando o táxi afastou-se do meio-fio, o sedã esperou um momento e depois seguiu. No seu interior, Lee Sawyer punha os outros agentes a par da situação, os olhos fixos o tempo todo
no velho Cadillac. Sidney observava ansiosamente a paisagem. Deixaram a rodovia e dirigiram-se para o Vieux Carré. Ao fundo, na linha do horizonte de Nova Orleans, destacava-se, reluzente a majestosa estrutura do Superdome. A rua Bourbon era estreita e nela alinhavam-se, em ambos os lados, os prédios excessivamente ornados, pelo menos para os padrões americanos, que constituíam o "antigo" bairro francês. Naquela época do ano seus sessenta e seis quarteirões eram relativamente tranquilos, embora o cheiro de cerveja fosse forte nas calçadas, onde turistas, vestidos informalmente, cambaleavam de um lado para o outro carregando copos imensos. Sidney saltou em frente ao LaFitte Guest House e deu uma rápida olhada para os dois lados da rua. Nenhum carro à vista. Subiu os degraus e empurrou a pesada porta da frente. No lado de dentro, o cheiro reconfortante dos objetos antigos a envolveu. A sua esquerda havia uma sala de recepção grande e decorada com classe. O funcionário do hotel, sentado à uma pequena mesa, ergueu ligeiramente as sobrancelhas, estranhando a falta de bagagem, mas sorriu e balançou a cabeça em sinal de aprovação quando ela explicou que a bagagem chegaria depois. Podia ter ido pelo pequeno elevador até o terceiro andar, mas ela preferiu a larga escadaria. Chave na mão, subiu dois lances de escadas até o seu quarto, onde encontrou uma cama de quatro colunas. Uma escrivaninha, três paredes de estantes de livros e uma espreguiçadeira em estilo vitoriano. Do lado de fora, o sedã preto parou em uma viela a meia quadra de distância. Um homem de jeans e jaqueta contornou o carro por trás, desceu a rua com ar despreocupado e entrou no prédio. Cinco minutos mais tarde estava de volta ao carro. Lee Sawyer inclinou-se sobre o banco da frente, ansioso. — O que é que está havendo lá dentro? O homem abriu o zíper da jaqueta, revelando a pistola na cintura. — Sidney Archer registrou-se para ficar dois dias hospedada aí. O quarto é no terceiro andar bem na frente do patamar da escada. Disse que a bagagem vinha depois. O motorista olhou para Sawyer. — Acha que ela vai se encontrar com Jason Archer? — Vamos colocar da seguinte maneira: eu ficaria muito espantado se ela tivesse vindo até aqui para descansar e se divertir um pouco — replicou Sawyer. — O que pretende fazer? — Cercar discretamente o lugar. Jason Archer aparecendo, a gente o prende. Nesse meio tempo, vamos ver se conseguimos instalar algum equipamento de escuta no quarto ao lado do dela. Depois vê se consegue autorização para um grampo na linha telefônica dela. Use uma equipe mista, homens e mulheres, para que os Archer não desconfiem. Sidney Archer não é uma pessoa que se possa subestimar. — O tom de voz de Sawyer revelava relutante admiração. Ele deu uma olhada pela janela do carro. — Vamos embora daqui. Não quero dar a Jason Archer nenhuma razão para não aparecer. — O sedã afastou-se lentamente.
Sidney Archer sentou-se na cadeira ao lado da cama, olhando pela janela do quarto na sacada lateral do LaFitte Guest House e esperando pelo marido. Levantou e começou a andar nervosamente de um lado para o outro. Estava razoavelmente segura de que conseguira se livrar dos agentes do FBI no metrô, mas não podia ter certeza absoluta. E se eles tivessem conseguido segui-la? Desde que o telefonema de Jason lançara pela segunda vez sua vida em um cataclismo, Sidney sentia-se como se paredes invisíveis se fechassem à sua volta. As instruções de Jason, contudo, tinham sido explícitas e ela tencionava segui-las. Agarrava-se com todas as suas forças à crença de que o marido não fizera nada de errado, e que o que ele lhe assegurara era o correto. Ele precisava de sua ajuda; por este motivo tomara aquele avião e estava agora andando para cá e para lá em um pitoresco quarto da mais famosa cidade da Louisiana. Ainda tinha fé no marido, a despeito de acontecimentos que, tinha de admitir, haviam abalado essa fé, e nada senão a morte a impediria de ajudálo. Morte? Jason escapara de seus complicados tentáculos já uma vez. Pelo som da sua voz, tinha sérias dúvidas sobre a segurança dele no momento presente. Ele não pudera lhe dar muitos detalhes. Não pelo telefone. Só pessoalmente, dissera. Ela queria tanto vê-lo, tocar nele, confirmar que não se tratava de uma aparição. Ela se sentou de novo e ficou olhando pela janela aberta. A brisa refrescante ajudava a aliviar a umidade. Não ouviu quando um casal de trinta e poucos anos, cortesia do FBI de Nova Orleans, entrou no quarto ao lado do seu. Com a linha do telefone grampeada e equipamentos de escuta instalados no quarto do FBI, Sidney Archer acabou cochilando na cadeira por volta da uma hora da manhã. Jason Archer ainda não aparecera. A casa estava às escuras. A neve que caíra brilhava sob o olhar radiante da lua cheia. O vulto saiu do bosque próximo e se aproximou da casa, por trás. Poucos momentos de trabalho na porta dos fundos e a velha fechadura sucumbiu às hábeis manipulações do intruso vestido de preto. As botas de neve foram removidas e deixadas do lado de fora. Alguns minutos mais tarde um arco de luz iluminava a casa deserta. Os pais de Sidney Archer e Amy tinham voltado para casa logo depois que Sidney saíra em sua viagem para Nova Orleans. O intruso foi direto ao escritório que Jason Archer mantinha em casa. Ali a janela dava para o quintal e não para a rua, o que tornou possível acender a luz do abajur. Diversos minutos foram gastos explorando minuciosamente a mesa e as pilhas de disquetes de computador. Em seguida o computador de Jason Archer foi ligado e realizada uma busca de todos os arquivos existentes no banco de dados. Cada disquete foi examinado detalhadamente. Tudo feito, o vulto enfiou a mão no bolso do casaco e retirou um disquete, que inseriu no drive do computador. Após alguns minutos, a tarefa estava realizada. O software "farejador" agora instalado no computador de Jason iria capturar eficazmente qualquer alteração que ocorresse. Em menos de cinco minutos a casa estava novamente vazia e as pegadas do bosque até a porta dos fundos apagadas.
Sem que o visitante noturno dos Archer soubesse, Bill Patterson, o pai de Sidney, realizara — ainda que inocentemente — uma tarefa importante antes de voltar para sua casa em Hanover. Quando recuava com o carro, vira o conhecido caminhão vermelho, branco e azul dos Correios, parando na frente da casa da filha. Depois que o caminhão foi embora, Patterson hesitou um pouco mas chegou a uma conclusão. Poupar Sidney do trabalho. Deu uma olhada em alguns dos itens, antes de guardar a pilha de correspondência num saco plástico. Depois virou-se para a casa e só então se lembrou de que já a trancara e que as chaves estavam na bolsa da mulher. A garagem, no entanto, estava destrancada. Patterson foi até lá, abriu a porta do Explorer e colocou o saco plástico em cima do banco da frente. Trancou a porta do carro e depois abaixou a porta da garagem e também trancou-a. No meio da pilha de correspondência passara despercebida aos olhos de Patterson um envelope com forro acolchoado, indicado para a remessa de itens frágeis através do sistema postal. A caligrafia do remetente teria sido reconhecida por Sidney Archer até mesmo num rápido olhar. Jason Archer tinha enviado o disquete do computador para si próprio.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO DO OUTRO LADO DA RUA, em frente ao hotel LaFitte Guest House, Lee Sawyer vigiava através do vidro escuro do quarto que ocupava. O FBI montara o quartel-general da equipe de vigilância num prédio abandonado cujo proprietário tencionava recuperar em um ou dois anos. Sawyer tomou um gole de café quente e deu uma espiada no relógio. Seis e meia da manhã. Os pingos da chuva fria batiam na vidraça. Ao lado dele havia uma câmera montada sobre um tripé. A teleobjetiva tinha um pouco mais de trinta centímetros de comprimento. As únicas fotos tiradas até agora tinham sido da entrada do hotel, e isso mesmo apenas para medir foco, distância e luz. Sawyer foi dar uma olhada nas fotos espalhadas em cima da mesa. Não faziam justiça nem ao rosto nem aos olhos de esmeralda de Sidney Archer. Ela fora fotografada pelo pessoal do escritório do FBI em Nova Orleans quando saía do aeroporto. A despeito de não saber de nada, parecia que Sidney tinha posado para a câmera. Sua expressão facial era linda, o cabelo farto. Sawyer traçou o contorno do nariz fino, até os lábios cheios. Com um sobressalto, afastou a mão da foto e olhou em torno, envergonhado. Por sorte, nenhum dos outros agentes prestara atenção no que ele estava fazendo. Examinou o resto da sala. A mesa comprida tinha sido colocada no meio do espaço grande e praticamente vazio de paredes nuas, teto com vigas de madeira escura e chão imundo. Dois computadores ocupavam o espaço mais proeminente na mesa, com um gravador ao lado. Diversos agentes do escritório local do FBI comandavam as máquinas. Um deles, um rapaz bem jovem, notou o olhar de Sawyer e retirou os fones de ouvido. — Nosso pessoal está todo em posição. Tudo indica que ela ainda esteja dormindo. Sawyer balançou a cabeça lentamente e voltou-se para olhar de novo para a janela. Seus homens tinham apurado que havia cinco outros quartos ocupados no pequeno hotel. Todos por casais. Nenhum dos homens combinava com a descrição de Jason Archer. As horas seguintes se passaram lentamente. Acostumado a longas vigilâncias em que se conseguia pouca coisa exceto acidez no estômago e dor nas costas, Sawyer não se perturbava com o tédio. O agente jovem estava ouvindo atentamente. — Ela está saindo do quarto agora. Sawyer levantou, espreguiçou-se e olhou de novo para o relógio. — Onze horas. Talvez vá pegar um café atrasado. — Como você vai querer segui-la? Sawyer pensou um momento. — Como combinamos. Duas equipes. Use a mulher do quarto vizinho como uma e um casal como outra. Podem alternar. Diga para ficarem de olho vivo. Sidney Archer vai tomar todo cuidado. Que se mantenham em comunicação pelo rádio o tempo todo. Lembre-se de que ela não tem qualquer bagagem no hotel. Avise para que se preparem para qualquer tipo de transporte, inclusive para a possibilidade de Sidney Archer se enfiar em outro avião.
Que se assegurem da existência de viaturas à disposição por perto o tempo todo. — Certo. Sawyer olhou de novo pela janela enquanto suas instruções eram retransmitidas para as equipes de agentes. Tinha uma impressão a respeito de tudo aquilo que não era capaz de definir. Por que Nova Orleans? Por que, no mesmo dia em que o FBI a interrogara, ia arriscar-se a uma coisa dessas? Parou abruptamente de devanear quando Sidney Archer apareceu na escadaria da frente do LaFitte Guest House. Ela virou-se para trás, os olhos cheios de medo mal disfarçado, e sua expressão foi prontamente reconhecida pelo agente do FBI. Sawyer sentiu um calafrio na espinha quando se deu conta de onde vira Sidney Archer antes —no local do acidente com o avião. Atravessou a sala correndo e pegou o telefone. Sidney estava usando o casaco branco, uma prova de como a temperatura caíra. Conseguira dar uma espiada no registro de hóspedes sem que o funcionário da recepção a visse. Depois dela chegara apenas um casal de Ames, Iowa, para se hospedar no quarto ao lado. Tinham chegado perto da meia-noite, ou pouco depois. Não considerou normal que um casal vindo do Meio-Oeste se registrasse em um hotel de Nova Orleans na hora em que deveria normalmente estar caindo no sono. O fato de não os ter ouvido chegar despertou ainda mais suas suspeitas. Viajantes cansados chegando à meia-noite não costumam ser tão compreensivos com os vizinhos de quarto. Assim, só lhe restava presumir que o FBI estivesse hospedado ao seu lado e provavelmente vigiando toda a área. A despeito de suas precauções, eles a tinham encontrado. O que não podia ser considerado surpreendente, ponderou, enquanto caminhava pelas ruas quase desertas. O FBI fazia isso para viver. Ela não. E se o FBI fechasse o cerco? Bem, já decidira, desde o momento em que soubera que o marido estava vivo, que as chances de ele continuar vivo seriam consideravelmente ampliadas caso se colocasse nas mãos das autoridades. Sawyer andou pelo aposento, mãos enfiadas nos bolsos. Bebera tanto café que podia sentir a bexiga começando a dar desagradáveis sinais de alerta. O telefone tocou. O agente jovem atendeu, identificou a pessoa que chamava como sendo Ray Jackson e passou o aparelho a Sawyer, que retirou os fones de ouvido. — Sim? — A voz de Sawyer vibrava de antecipação. Esfregou os olhos congestionados; um quarto de século realizando aquele tipo de serviço não facilitava em nada as coisas para o seu corpo. — E então, como está Nova Orleans? Sawyer deu uma olhada na sala em que se encontrava. — Bem, do meu ponto de vista, extremamente necessitada de uma vassoura e um pouco de tinta. Jackson deu uma risada. — Bem, a história de como você seguiu Sidney Archer no aeroporto está sendo muito comentada aqui. Ainda não sei como foi que você foi capaz dessa proeza.
— É, mas receio que gastei toda a minha reserva de sorte com aquilo, Ray. Diga que tem algo para mim. — Sawyer passou o telefone para o ouvido direito e esticou o braço esquerdo para amenizar uma cãibra. — Pode apostar como tenho. Quer adivinhar? — Ray, eu adoro você, cara, palavra de honra, mas passei esta noite dentro de um saco de dormir no chão frio e não tem uma única parte do meu corpo que não esteja doendo. O pior é que não tenho roupa de baixo limpa, de modo que, a menos que você queira que eu o abata a tiros assim que o vir na volta, comece a falar. — Fica frio, grandalhão. OK, você estava absolutamente certo. Sidney Archer realmente esteve no local do acidente no meio da noite. — Tem certeza? — Sawyer estava convencido de que o parceiro falara a verdade, mas anos de ofício exigiam a confirmação dos fatos. — Um dos elementos da polícia local... — Sawyer ouviu o barulho de papéis sendo manuseados ao lado do telefone. — Um sujeito chamado Eugene McKenna está de serviço na noite em que Sidney Archer aparece. McKenna pensa que é apenas curiosidade mórbida e diz para dar o fora, mas aí ela conta que o marido estava no avião. Só quer dar uma olhada, está abaladíssima. McKenna sente pena, você sabe, a pobrezinha dirigindo a noite toda para chegar lá e tudo. Ele verifica sua história, confirma a identidade dela e a leva na viatura até o local do acidente, para que pelo menos possa ver o que está acontecendo. — Jackson fez uma pausa. Sawyer estava irritado. — E daí, como é que isto nos ajuda? — Cara, você está estressado. Já vou chegar lá. No trajeto, Sidney Archer pergunta sobre uma mala de lona com as iniciais do marido. Ela vira na televisão. Acho que tinha sido projetada para fora do avião no desastre e foi encontrada e guardada junto com o resto. Resumindo, ela queria a tal mala. Sawyer sentou-se, olhou pela janela e retornou a atenção para o telefone. — O que foi que McKenna disse a ela? — Que a mala era uma das provas legais e não se encontrava mais no local do acidente. Que provavelmente ela lhe seria devolvida quando a investigação terminasse, e que isso poderia acontecer dentro de algum tempo, talvez anos. Sawyer levantou-se e, distraidamente, serviu-se de outra xícara de café enquanto pensava na última informação. A bexiga ia ter que se ver com mais um pouco de líquido. — Ray, exatamente o que McKenna falou sobre a aparência de Sidney Archer naquela noite? — Sei o que você está pensando. Se ela realmente acreditava que o marido estava no avião? McKenna afirmou que se estivesse fingindo, faria com que Katharine Hepburn parecesse a pior atriz do mundo. — OK, vamos deixar isso de lado por enquanto. Voltando à mala, você a pegou? — Claro, está aqui na minha frente, em cima da mesa. — E? — Os ombros de Sawyer ficaram tensos, mas se recurvaram com a mesma rapidez
ante a reação do parceiro. — Nada. Pelo menos nada que tivéssemos conseguido encontrar. O laboratório já examinou tudo três vezes. Só algumas roupas, uns livros de viagem. Bloco de anotações mas nada escrito. Sem surpresas, Lee. — Por que ela haveria de dirigir até lá no meio da noite por causa disso? — Bem, talvez devesse haver qualquer coisa na mala, só que não havia. — Isso seria lógico se o marido a estivesse traindo. — Como é que é? Sawyer tomou um gole de café e se levantou. — Se Archer tivesse fugido, era de se esperar que planejava pegar a família mais tarde ou então abandoná-la. Certo? — OK, estou acompanhando o seu raciocínio. — E se a mulher pensasse que ele estava no avião, talvez cumprindo a primeira fase do seu itinerário de fuga, aí faz sentido o desespero dela por causa do desastre. Pensa realmente que ele está morto. — Mas e o dinheiro? — Certo. Se Sidney Archer soubesse o que o marido tinha feito, podendo ser inclusive que o tivesse ajudado de alguma forma, ela ia querer meter a mão no dinheiro. Ajudaria a se recuperar do abalo, penso eu. Aí ela vê a mala na televisão. — Mas o que podia estar dentro da mala? Não podia ser o dinheiro. — Não, mas podia ser algo que apontasse na direção do dinheiro. Archer era fera em computadores. Talvez um disquete com um arquivo em que estivessem armazenadas todas as informações sobre a localização do dinheiro. Uma conta numerada de um banco suíço. Um cartão eletrônico para abrir um armário de aeroporto. Podia ser qualquer coisa, Ray. — Bem, não encontramos nada sequer remotamente parecido. — Não precisava estar obrigatoriamente nessa mala. Sidney Archer a viu na televisão e achou que podia pôr as mãos nela. — Então você acha que ela está envolvida nisso? Sawyer recostou-se, fatigado. — Não sei, Ray. Meus instintos não me dizem nada em qualquer sentido. — O que não era exatamente verdade, mas Sawyer não tinha vontade de discutir certos pensamentos perturbadores com o parceiro. — E o acidente? Como se encaixa? — Quem sabe? — retrucou Sawyer abruptamente. — As duas coisas podem não ter relação entre si. E também pode ser que ele tenha pago para sabotarem o aparelho a fim de eliminar as pistas que deixara. É o que Frank Hardy acha que aconteceu. — Sawyer aproximou-se da janela enquanto falava. O que viu na rua o fez querer desligar rapidamente. — Alguma coisa mais, Ray? — Nada, nada. — Ótimo, porque tenho de sair correndo. — Sawyer desligou, ajustou a câmera do tripé e começou a clicar. Depois voltou para junto da janela e observou Paul Brophy, depois de olhar para os dois lados da rua, subir os degraus da entrada do LaFitte Guest House e entrar.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS O BURBURINHO E A ALEGRIA característicos geralmente associados à Jackson Square contrastavam vivamente com o ambiente mais modesto e tranquilo àquela hora da manhã. Músicos, malabaristas, ciclistas, leitores de tarô, desenhistas e pintores geniais e medíocres no talento competiam pela atenção e o dinheiro dos poucos turistas que tinham resolvido enfrentar a inclemência do tempo. Sidney Archer passou em frente à catedral de St. Louis com suas três torres, à procura de um lugar para comer. Seguia também as instruções do marido: se ele não entrasse em contato com ela até as onze da manhã, ela devia ir à Jackson Square. A estátua de bronze de Andrew Jackson, que nos últimos 140 anos emprestava dignidade à praça, surgiu gigantesca ao seu lado quando seguiu para o mercado francês na rua Decatur. Ela visitara a cidade diversas vezes antes, na época de estudante, quando era jovem o bastante para sobreviver ao Mardi Gras e até mesmo para desfrutar e participar de sua atmosfera de extravagância etílica. Minutos mais tarde estava sentada perto da margem do rio. bebendo café quente e mordiscando sem entusiasmo um croissant macio e cheio de manteiga, a observar as barcaças e rebocadores seguindo, vagarosos, ao longo do poderoso Mississipi, na direção da ponte enorme e relativamente próxima. A uma distância de cem metros de Sidney, de ambos os lados, estavam posicionadas equipes de agentes do FBI. Equipamento de escuta discretamente apontado na sua direção era capaz de captar praticamente cada palavra falada por ou para ela. Durante alguns minutos Sidney Archer permaneceu sozinha. Terminou o café e examinou o rio grandioso, engrossado pelas chuvas. com suas ondas de cristas espumosas. — Três dólares e cinquenta centavos se eu disser onde você comprou esses sapatos. Sidney, uma vez interrompido o devaneio, encarou o rosto do seu interlocutor. Atrás dela, os agentes do FBI ficaram tensos, ligeiramente inclinados para a frente. Teriam se aproximado correndo quando o homem começou a se aproximar de Sidney se ele não fosse baixinho, preto e com uns setenta anos de idade. Não era Jason Archer. Mas ainda assim podia ser qualquer coisa. — O quê? — Seus sapatos. Sei onde você comprou esses sapatos. Três dólares e cinquenta se eu estiver certo. Uma escovadela gratuita se eu estiver errado. — O bigode dele, branco como a neve, caía sobre uma boca em grande parte desprovida de dentes. Suas roupas eram mais trapos que qualquer outra coisa. No banco, ao lado dela, ele colocara uma velha caixa de engraxate, de madeira. — Desculpe. Sinceramente, não estou interessada. — Vamos, senhora. Eu posso até dar um lustro se estiver certo, mas ainda assim vai ter que comparecer com o dinheiro. O que tem a perder? Vai ganhar um lustro de primeira por um
preço muito razoável. Sidney estava prestes a recusar de novo quando viu as costelas espetadas por trás da camisa velha e muito fina. Seus olhos deslizaram até os sapatos dele, onde os dedos calosos apareciam em diversos pontos. Sorriu e pegou dinheiro na bolsa. — Hum, hum, assim não, senhora. Desculpe. Tem que aceitar a brincadeira ou então não fazemos negócio. — Havia mais que uma pequena reserva de orgulho nas suas palavras. Ele começou a pegar sua velha caixa de madeira. — Espere aí. Tudo bem — concordou Sidney. — OK, você não acha que eu seja capaz de dizer onde comprou seus sapatos, acha? Sidney Archer sacudiu a cabeça. Tinha comprado aqueles sapatos em uma lojinha ao sul do estado do Maine, um pouco mais de dois anos atrás. A lojinha depois fechara. Não havia como. — Desculpe, mas acho que não. — Pois bem, eu vou lhe dizer onde foi que você conseguiu esses sapatos. — O homem fez uma pausa dramática e depois caiu na risada quando falou: — Você comprou numa sapataria! Sidney também caiu na risada. Ao fundo, os dois agentes que operavam os instrumentos de escuta não puderam também deixar de sorrir. Após uma reverência gaiata para sua platéia de uma só pessoa, o velho ajoelhou-se em frente a Sidney e preparou-se para engraxar seus sapatos. E foi tagarelando amigavelmente enquanto, com as mãos habilidosas, em pouco tempo transformava os sapatos pretos baços em ébano lustroso. — Boa qualidade, senhora. Vão durar muito se cuidar deles. Belos tornozelos também, para combinar. Ela sorriu, ao ouvir o elogio, ao mesmo tempo em que ele se levantava e arrumava a caixa de engraxate. Sidney pegou três dólares e tentou encontrar um trocado na bolsa. Ele a encarou. — Tudo bem, madame, tenho bastante troco — disse, rapidamente. Em resposta, ela lhe deu uma nota de cinco e disse para ficar com o troco. Ele sacudiu a cabeça. — De jeito nenhum. Três e cinquenta foi o combinado e três e cinquenta é o que vai ser pago. A despeito dos protestos dela, ele enfiou na sua mão uma nota de um dólar toda amarrotada e uma moeda de 50 centavos. Quando a mão de Sidney fechou-se em torno da moeda, sentiu o pedacinho de papel colado com uma fita pelo lado de dentro. Arregalou os olhos, mas o velho limitou-se a sorrir e a levar um dedo à pala do gorro esfarrapado, na sua versão amável de uma continência. — Foi um prazer fazer negócio com a senhora, madame. Lembre-se, cuide bem desses sapatos.
Depois que ele se afastou, Sidney guardou depressa o dinheiro na bolsa, esperou alguns minutos e só então se levantou e saiu andando, o mais naturalmente que foi capaz. Seguiu para o mercado francês, onde entrou no toalete feminino. Em um dos reservados, suas mãos trêmulas desdobraram o papel. A mensagem era curta e escrita em letras de fôrma. Leu e releu diversas vezes e jogou dentro do vaso. Subindo a rua Dumaine na direção da Bourbon, ela parou e abriu a bolsa por um momento. Consultou ostensivamente o relógio. Depois olhou em torno e viu o telefone público na parede externa de um dos maiores bares do quarteirão francês. Atravessou a rua, pegou o telefone e, cartão na mão, teclou uma série de números. O número que chamava era o seu próprio número particular na Tyler e Stone. Não conseguia entender, mas era o que estava escrito no pedaço de papel e não tinha escolha senão seguir as instruções. A voz que respondeu depois de dois toques não era de ninguém da firma, assim como a gravação anunciando sua ausência. Não poderia saber que a ligação fora desviada do seu escritório para um outro número localizado perto de Washington, D.C. Tentou permanecer calma enquanto a voz de Jason Archer ia se fazendo ouvir, baixinho, através da linha telefônica. A polícia a estava vigiando. Ela não devia dizer nada, não devia especialmente mencionar o nome dele. Teriam que tentar de novo. Ela devia ir para casa. Ele estabeleceria contato de novo. As palavras foram pronunciadas com supremo cansaço, ela quase podia sentir a incrível tensão no timbre. Ele terminou dizendo que a amava. E amava Amy. E que tudo acabaria por dar certo. Um dia. Assaltada por mil perguntas que não estava em condições de formular, Sidney Archer desligou o telefone e saiu andando, agora no rumo do LaFitte Guest House, abatida por profunda depressão. Com um esforço supremo para se controlar, levantou a cabeça e tentou caminhar normalmente. Era importantíssimo não refletir na aparência física o terror absoluto que sentia intimamente. O medo óbvio das autoridades que seu marido evidenciara minara a crença dela na sua inocência. A despeito da intensa alegria por saber que ele estava vivo, perguntava-se qual seria o preço dessa alegria. A esta altura, precisava seguir em frente. A secretária eletrônica foi desligada e o receptor do telefone foi removido do receptáculo especial nela existente. Em seguida, Kenneth Scales rebobinou a fita digital. Comprimiu o botão do START e ouviu mais uma vez a voz de Jason Archer ressoando na sala. Com um sorriso malévolo, desligou o aparelho, tirou a fita e saiu. — Ele entrou pela janela. — Sawyer foi informado pelo agente que, de cima de um telhado, vigiava o quarto onde Sidney Archer se hospedara. — Ainda está lá — sussurrou o agente através do rádio. — Quer que eu o pegue? — Não — respondeu Sawyer, espiando a rua por entre as persianas. O equipamento de escuta que tinham instalado no quarto ao lado do de Sidney definira as intenções de Paul Brophy. Ele estava revistando o quarto dela. A primeira ideia de Sawyer, de que podia haver uma ligação entre os dois colegas de trabalho, obviamente não tinha fundamento.
— Ele está saindo agora. Refazendo o caminho por onde entrou — relatou, repentinamente, o homem do telhado. — Ótimo — replicou Sawyer, quando vislumbrou Sidney Archer descendo a rua. Depois que ela entrou no hotel, Sawyer mandou que uma equipe de agentes seguisse o desapontado Paul Brophy que saiu andando pela rua Bourbon na outra direção. Dez minutos mais tarde Sawyer foi informado de que Sidney Archer tinha dado um telefonema durante sua caminhada matinal. Ligara para a firma onde trabalhava. Depois de cinco horas em que nada aconteceu, a atenção de Sawyer foi despertada pelo aparecimento de Sidney Archer, saindo do LaFitte Guest House. Um táxi branco parou em frente ao prédio e ela entrou. O táxi saiu rapidamente. Sawyer despencou escadas abaixo e no minuto seguinte estava no banco ao lado do motorista no mesmo sedã preto em que seguira Sidney a partir do aeroporto. Não se surpreendeu ao ver o táxi entrar na Interstate 10 e muito menos parar diante do aeroporto cerca de meia hora mais tarde. — Ela está indo para casa — murmurou Sawyer, para ninguém em particular. — Não achou o que quer que tenha vindo buscar aqui, sem dúvida nenhuma. A menos que Jason Archer tenha se tornado o homem invisível. — O veterano homem do FBI recostou-se quando uma nova e particularmente perturbadora revelação atravessou sua mente. — Ela está sabendo de nós. O motorista sacudiu a cabeça na direção de Sawyer. — Não é possível, Lee. — Absoluta certeza de que está — insistiu Sawyer. — Ela pega um avião, vem para cá, anda um pouco. dá um telefonema e pronto, volta para casa. — Eu sei que ela não reconheceu nossas equipes de vigilância. — Eu não disse que reconheceu. Seu marido e quem mais que esteja envolvido nisso reconheceu. A dica foi passada para ela e está voltando para casa. — Mas nós checamos. O telefonema foi para o escritório onde ela trabalha. Sawyer sacudiu a cabeça, impaciente. — Telefonemas podem ser desviados. — Mas como ela sabia que tinha de telefonar? Alguma coisa pré-arranjada? — Quem sabe? O único encontro que teve foi com aquele engraxate. Você tem certeza? — Sem dúvida. Fez aquele número de sempre para turistas e depois engraxou os sapatos dela. Ele era um homem das ruas, um sem-teto, com toda a certeza. Deu o troco para ela e acabou. Sawyer olhou abruptamente para o homem. — Troco? — É, foi uma engraxada de três dólares e meio. Ela deu cinco. Ele deu o troco, um dólar e meio. Não quis ficar com a gorjeta. Sawyer agarrou o painel do carro com tanta força que deixou marcas. — Droga, foi isso. O motorista pareceu perplexo. — Ele só deu o troco. Vi com clareza pela minha lente. Ouvimos cada palavra que
disseram. — Deixa eu adivinhar. Ele deu uma moeda de 50 centavos, em vez de duas de 25 centavos, certo? O homem espantou-se. — Como é que você sabe? Sawyer suspirou. — Quantas pessoas que moram na rua você conhece que recusariam uma gorjeta de um dólar e meio e depois teriam por acaso uma moeda de 50 centavos pronta para dar de troco? Além disso, não chama a sua atenção, antes de mais nada, que a engraxada custasse três dólares e meio em vez de três ou quatro dólares? Por que três e meio? — Para ter que fazer troco. — O motorista parecia deprimido. agora que começava a enxergar a verdade. Mensagem presa na moeda com uma fita adesiva. — Sawyer fixou os olhos deprimidos na traseira do táxi de Sidney Archer. — Agora é pegar o nosso generoso engraxate. Pode ser que ele consiga descrever quem o contratou. — Sawyer não tinha muita esperança nesta possibilidade. Os carros seguiram até o aeroporto. Sawyer aguentou o curto trajeto em silêncio, admirando os jatos pintados com cores brilhantes, que passavam a todo instante, os motores roncando. Uma hora mais tarde embarcava em um jato particular do FBI, para a viagem de volta a Washington. O voo direto de Sidney já partira, sem levar nenhum agente do FBI. Sawyer e seus homens examinaram atentamente a relação dos passageiros e estudaram cada pessoa que subiu a bordo. Jason Archer não estava entre elas. Os homens do FBI confiavam que nada poderia acontecer no voo de volta. Não queriam revelar ainda mais seus planos para uma Sidney já desconfiada. Pegariam a trilha dela novamente no Aeroporto Nacional. O jato que levava Sawyer e diversos outros agentes do FBI acelerou na pista e levantou voo no céu escuro de Nova Orleans. Sawyer começou a especular sobre o que acabara de acontecer. Por que aquela viagem? Não fazia o menor sentido. Até que ele se deu conta, boquiaberto. O caos subitamente começou a se desfazer, as coisas se tornaram um pouco mais claras. Ele tinha cometido um erro, talvez um erro bem grande.
CAPÍTULO TRINTA E SETE SIDNEY ARCHER TOMOU um gole do seu café enquanto o carrinho com as bebidas seguia para atender o resto dos passageiros. Já ia pegar o sanduíche na bandeja quando as marcas azuis no guardanapo chamaram sua atenção. Concentrou-se para ler o que estava escrito, e o choque que sentiu foi tamanho que ela quase derramou o café. O FBI não está no avião. Precisamos conversar. O guardanapo estava do lado direito da bandeja e seu olhar automaticamente procurou essa direção. Por um momento não conseguiu nem pensar. Depois, aos poucos, ela se lembrou. O homem bebia com naturalidade um refrigerante, enquanto fazia sua refeição. O cabelo louro avermelhado já bem fino encimava um rosto comprido e bem barbeado, onde se podia ver uma cota exagerada de rugas de preocupação. Parecia ter uns quarenta e poucos anos e vestia calças de algodão grosso cáqui e camisa branca. Com mais de um metro e oitenta de altura, tinha as pernas compridas parcialmente no corredor. Finalmente ele descansou o copo, enxugou os lábios com o guardanapo de papel e virou-se para ela. — Você me seguiu — disse Sidney, a voz pouco mais que um sussurro. — Em Charlottesville. — Receio que não tenha sido apenas lá. Na verdade, eu a tenho mantido sob vigilância desde o acidente que derrubou O avião. A mão de Sidney voou até o botão que chamava os comissários de bordo. — Eu não faria isso. A mão parou a milímetros do pedido de ajuda. — Por que não? — perguntou friamente. — Porque estou aqui para ajudá-la a encontrar seu marido disse ele, com simplicidade. Ela finalmente conseguiu responder, deixando evidente sua desconfiança. — Meu marido está morto. — Eu não sou do FBI e não estou tentando pegar você numa armadilha. No entanto, não posso provar o contrário, de modo que nem vou tentar. O que vou fazer é lhe dar um número de telefone onde você poderá entrarem contato comigo dia e noite. — Ele lhe passou um cartão onde havia apenas um número de telefone da Virgínia. A não ser por isto, o resto estava em branco. Sidney olhou para o cartão. — Por que motivo eu haveria de ligar para você? Não sei quem você é ou o que faz. Só sei que está me seguindo. O que não lhe garante uma boa pontuação no que diz respeito à minha confiança — disse ela, furiosa, sentindo agora menos medo. Ele não podia representar uma ameaça dentro de um avião lotado. O homem deu de ombros. — Não tenho uma boa resposta para isso. Mas eu sei que o seu marido não está morto e você também sabe. — Ele fez uma pausa. Sidney limitou-se a encará-lo, incapaz de dizer
qualquer coisa. — Embora não tenha motivo para acreditar em mim, estou aqui para ajudála e a Jason, se já não for tarde demais. — Como assim, "tarde demais"? O homem recostou-se e fechou os olhos. Quando os reabriu, a dor evidente neles começou a fazer as suspeitas dela desaparecerem. — Sra. Archer, não sei exatamente em que o seu marido está envolvido. Mas sei o bastante para ter certeza de que, onde quer que ele se encontre, é bem possível que esteja correndo grave perigo. Ele fechou os olhos de novo, enquanto o coração de Sidney mergulhava a uma profundidade que ela jamais imaginara existir no seu íntimo. Um instante depois fitou-a de novo. — O FBI a está vigiando dia e noite — disse, mas foram suas próximas palavras que a deixaram gelada de medo: — Devia se sentir muito agradecida por isso, Sra. Archer. Quando Sidney finalmente falou, as palavras foram escassamente audíveis para o homem, que teve que inclinar-se para poder ouvir. — Sabe onde Jason se encontra: O homem sacudiu a cabeça. — Se eu soubesse, não estaria neste avião ao seu lado. — Ele avaliou a expressão de desespero dela. — Tudo o que posso dizer, Sra. Archer, é que não tenho certeza de nada. — Ele deixou escapar um suspiro e passou a mão na testa. Pela primeira vez Sidney percebeu como sua mão tremia. — Eu estava no Aeroporto Dulles na manhã em que seu marido teria embarcado para Los Angeles. Os olhos de Sidney ficaram arregalados e a mão dela agarrou com força o descanso do braço. — Estava seguindo o meu marido? Por quê? — Eu não disse que estava seguindo seu marido. Ele tomou um gole da sua bebida para umedecer a garganta que de repente ficara seca. — Jason estava sentado esperando a hora do embarque no voo de Los Angeles. Parecia nervoso e agitado. Foi o que começou a atrair minha atenção. Ele se levantou e foi ao toalete masculino. Outro homem foi atrás dele minutos depois. — Por que isso seria tão incomum? — O segundo homem tinha um envelope branco na mão quando entrou na área destinada ao pessoal que ia embarcar. O envelope era claramente visível, quase como uma lanterna, do jeito como o sujeito o segurava. Acredito que se tratava de um sinal para o seu marido. Já vi essa técnica usada antes. — Um sinal. Sinal para quê? — A respiração de Sidney se acelerou de tal modo que ela teve que fazer um esforço consciente para reduzir o ritmo. — Para seu marido agir. Que foi o que ele fez. Entrou no toalete masculino. O outro homem saiu logo depois. Esqueci de mencionar que ele estava vestido quase que identicamente a seu marido e carregando o mesmo tipo de bagagem. Seu marido nunca saiu do toalete. — Como assim, meu marido não ter saído nunca? Ele tinha que sair. — O que estou querendo dizer é que ele não saiu como Jason Archer. Sidney pareceu inteiramente confusa.
Ele prosseguiu, depressa. — A primeira coisa que notei no seu marido foram os sapatos. Ele estava de terno, mas de tênis, um par de tênis pretos. Você se lembra dele calçando tênis naquela manhã? — Estava dormindo quando ele saiu. — Bem, quando saiu do toalete sua aparência tinha sido modificada por completo. Ele parecia um estudante universitário, com um moletom, cabelo diferente, tudo. — Como soube então que era ele? — Duas razões. Primeira, o toalete acabara de ser aberto após ter sido limpo quando seu marido entrou. Tomei conta daquela porta como um gavião. Não entrou ninguém lá nem mesmo remotamente parecido com o sujeito que saiu depois. Em segundo lugar, os tênis pretos se destacavam muito. Ele provavelmente deveria ter usado um par mais discreto. Era seu marido, sim. E quer saber mais uma coisa? Sidney mal conseguiu responder. — Pode falar. — O outro sujeito saiu usando o chapéu do seu marido. Com o chapéu na cabeça, podia ter passado por gêmeo do seu marido. Ela respirou fundo, enquanto pensava na revelação. — Seu marido entrou na fila para o voo de Seattle. Tirou do bolso o mesmo envelope branco que o outro sujeito carregava. Era a passagem e o passe de embarque para o voo de Seattle. O outro foi no voo de Los Angeles. — Quer dizer então que fizeram uma troca de bilhetes no toalete. O outro homem estava vestido como Jason para o caso de alguém estar observando. — Exatamente — ele aquiesceu, devagar. — O seu marido queria que alguém pensasse que ele se encontrava no voo de Los Angeles. — Mas por quê? — Sidney fez a pergunta mais para si própria que para ele. O homem deu de ombros. — Não sei. O que sei é que o avião em que o seu marido supostamente se encontrava caiu. O que me fez ficar ainda mais desconfiado. — Você foi à polícia? O homem sacudiu a cabeça. — E dizer o quê? Não é como se eu tivesse visto uma bomba ser colocada naquele voo. Além do mais, eu tinha meus próprios motivos para ficar quieto. — Que tipo de razões? O homem levantou uma das mãos e sacudiu a cabeça. — Vamos deixar como está por enquanto. — Como foi que você descobriu a identidade do meu marido? Estou presumindo que não o conhecia pessoalmente, certo? -Nunca pus os olhos nele antes. Mas passara por perto duas vezes antes de ele entrar no toalete. Ele tinha um nome e uma etiqueta com o endereço na mala. Sou realmente bom em ler as coisas de cabeça para baixo. Não precisei muito tempo para saber onde ele trabalhava, em que trabalhava, mais informações do que eu precisaria saber. Descobri também as mesmas coisas a seu respeito. Foi quando comecei a segui-la. Para dizer a verdade eu não sabia se você estava em perigo ou não — ele falou com naturalidade. Sidney, contudo, sentiu o sangue gelar nas veias ante aquela inesperada
intrusão na sua vida. Acontece que, enquanto eu conversava com um amigo da polícia de Fairfax, ele recebeu um boletim ordenando a prisão do seu marido com foto e tudo. Foi quando resolvi segui-la. Achei que poderia me levar a ele. Oh — Sidney recostou-se, abatida. Um pensamento a assaltou: -Como foi que você me seguiu até Nova Orleans?A primeira coisa que fiz foi grampear seu telefone. — Ele ignorou sua expressão de espanto. — Precisava saber rapidamente onde você iria. Ouvi a conversa que teve com seu marido. Ele me pareceu particularmente evasivo. O avião prosseguiu cortando o céu escuro, e Sidney Archer tocou na manga do paletó do homem. Você disse que não era do FBI. Quem é, então? Por que está envolvido nisto? O homem deixou-se ficar com o olhar perdido no corredor por alguns segundos antes de responder. Quando olhou de novo para ela, suspirou. — Sou um investigador particular, Sra. Archer. O caso que agora me ocupa em tempo quase integral é o do seu marido. — Quem contratou você? — Ninguém. — Ele olhou em torno antes de prosseguir. -Achei que seu marido ia tentar entrar em contato com você. O que acabou acontecendo. É por isto que estou aqui. Mas parece que Nova Orleans foi um fracasso. Era ele, no telefone público, não era? O engraxate lhe passou um bilhete, certo? Sidney Archer hesitou, mas acabou por balançar a cabeça. concordando. — O seu marido lhe deu alguma pista de onde ele poderia se encontrar? Sidney sacudiu a cabeça. — Disse que entrava em contato comigo mais tarde. Quando fosse mais seguro. O homem quase riu. — Isso pode significar muito tempo. Verdadeiramente muito tempo, Sra. Archer. Quando o avião começou a aterrissar no aeroporto de Washington, o homem virou-se de novo para Sidney. — Duas coisas mais, Sra. Archer. Quando ouvi a fita da sua conversa com o seu marido ao telefone, percebi um certo barulho ao fundo. Como água correndo. Não posso garantir, mas penso que havia alguém ouvindo em outra linha. — O rosto de Sidney ficou imóvel, e ele terminou: — Sra. Archer, é melhor presumir que os federais também saibam que Jason está vivo. Pouco tempo depois o avião tocou o solo e a cabine, com as novas atividades, tornou-se cheia de vida. — Você disse que queria me dizer duas coisas. Qual é a outra? O homem inclinou-se e pegou uma valise de sob a poltrona à sua frente. Quando se sentou direito novamente, fitou-a nos olhos. Gente capaz de derrubar um jato de passageiros é capaz de fazer qualquer coisa. Não confie em ninguém, Sra. Archer. E seja mais cuidadosa do que já foi em toda a sua vida. E mesmo isso talvez não seja o bastante. Sinto muito se isto parece um conselho bobo, mas é
tudo o que tenho para lhe dar. Cinco minutos depois o homem tinha desaparecido. Sidney foi um dos últimos passageiros a descer do avião. O aeroporto não estava cheio de gente naquela hora. Ela foi até o balcão dos táxis. Lembrando do conselho do homem, olhou cuidadosamente em torno, tentando não ser óbvia demais. Seu único conforto era o fato de que, em meio a toda aquela gente que provavelmente a estava seguindo, alguns, pelo menos, eram do FBI. Após deixar Sidney Archer, o homem embarcou em um ônibus do aeroporto que o deixou no estacionamento. Eram quase dez horas. A área estava deserta. Levava um saco plástico que pegara ao desembarcar do voo de Nova Orleans, lacrado por uma fita laranja que proclamava que continha uma arma de fogo descarregada. Ao chegar no seu carro, um modelo recente de Grand Marquis, abriu o saco para tirar a pistola com a intenção de recarregar a arma e colocá-la no coldre de ombro. A lâmina do punhal atingiu primeiro seu pulmão direito, foi retirada e depois o processo selvagem repetiu-se no pulmão esquerdo, arruinando ambos e impossibilitando qualquer grito de socorro que pudesse ter tentado. O terceiro golpe cortou com precisão o lado direito do seu pescoço. O saco plástico caiu no piso de concreto, a pistola agora inútil para seu proprietário moribundo. No momento seguinte ele estava caído no chão, os olhos já ficando baços, encarando seu assassino. Uma van parou do lado e Kenneth Scales embarcou nela. O homem morto ficou sozinho.
CAPÍTULO TRINTA E OITO LEE SAWYER SENTOU-SE À MESA de reuniões do prédio do FBI examinando numerosos relatórios. Passou a mão nos cabelos despenteados, inclinou a cadeira para trás e pôs os pés em cima da mesa enquanto mentalmente ordenava e classificava os fatos novos. A autópsia realizada em Riker indicava que ele morrera cerca de quarenta e oito horas antes de o corpo ser descoberto. Tendo em vista a baixíssima temperatura do quarto, Sawyer sabia, contudo, que a determinação da hora da morte não podia ser tão precisa quanto em condições normais. Deu uma olhada nas fotos da pistola automática Sig P229 encontrada na cena do crime. O número de série fora riscado. Em seguida examinou as fotos das balas retiradas do corpo. Riker recebera onze projéteis a mais do que seria necessário para matá-lo. Aquela barragem de chumbo incomodava demais o agente do FBI. O assassinato de Riker tinha quase todas as características de uma execução profissional. Assassinos profissionais raramente precisam de mais de uma bala. Neste caso o primeiro tiro fora fatal, segundo o relatório do legista. O coração não mais bombeava sangue quando as outras balas entraram no corpo. Os respingos de sangue na mesa, cadeira e espelho indicavam que Riker estava sentado quando fora baleado pelas costas. Aparentemente o assassino arrastara Riker para fora da cadeira, o jogara de cabeça para baixo no canto do quarto, esvaziando em seguida o pente de balas no corpo, de um ponto diretamente acima, a mais ou menos um metro de distância. Mas por quê? Impossível responder a esta pergunta agora. Sawyer desviou os pensamentos para outras questões. A despeito das numerosas inquirições e dos possíveis indícios, nada fora descoberto a partir dos movimentos de Riker nos últimos dezoito meses. Nada de endereços, amigos, empregos. cartões de crédito. Nada. Embora a operação Partida Rápida estivesse processando toneladas de dados por dia relativos à queda do avião. eles não conseguiam obter uma pista sólida de coisa alguma. Sabiam como fora feita a sabotagem, tinham o corpo do maldito sabotador e no entanto não conseguiam ir além do seu cadáver. Frustrado, Sawyer sentou e folheou outro relatório. Riker tinha se submetido a um grande número de cirurgias plásticas. As fotos feitas na sua última prisão não guardavam absolutamente a menor semelhança com o homem que encontrara um fim sangrento em um tranquilo prédio de apartamentos na Virgínia. Sawyer fez uma careta. Acertara o palpite sobre a identidade de Sinclair. Riker não tomara o lugar de uma outra pessoa. Sua identidade como Sinclair fora criada a partir de registros computadorizados, de modo que Robert Sinclair fora contratado como uma pessoa viva, real, com excelentes referências para trabalhar para a Vector, empresa com boa reputação e contratos para abastecer diversas das maiores companhias aéreas que operavam no Aeroporto Internacional Dulles, entre elas a Western. A Vector, contudo, cometera alguns erros na hora de verificar as informações. Não tinham verificado os números telefônicos
dos ex-empregadores de Sinclair, limitando-se a usar os números dados por Riker, ou Sinclair. Todas as referências dadas pelo morto eram de pequenas distribuidoras de combustível no estado de Washington, sul da Califórnia e uma no Alasca. Nenhuma das quais realmente existia. Quando os homens de Sawyer verificaram, descobriram que os telefones tinham sido desligados. Os endereços dos empregos fornecidos por Riker ao preencher o formulário também eram falsos. O número do Seguro Social, contudo, fora pesquisado no sistema e dado como válido. As digitais dele também foram verificadas com a polícia do estado da Virgínia. Riker cumprira pena em uma prisão da Virgínia e suas impressões deviam estar arquivadas lá. Só que não estavam. O que podia significar apenas uma coisa. Que os bancos de dados da administração do Seguro Social e da polícia do Estado da Virgínia estavam comprometidos. Todo o sistema não era confiável. Como é que se podia ter certeza de alguma coisa agora? Sem que se pudesse confiar integralmente neles, os sistemas eram praticamente inúteis. E se alguém tinha sido capaz de fazer isso ao estado da Virgínia e à administração do Seguro Social, quem estava seguro? Sawyer, furioso, empurrou para um lado os relatórios, serviu-se de outra caneca de café e pôs-se a andar de um lado para o outro na ampla sala do Centro de Operações de Informações Estratégicas. Jason Archer antecipara-se bastante a eles. Só podia haver uma razão para fazer com que Sidney viajasse a Nova Orleans. Na verdade, podia ter sido para qualquer lugar. O que interessava era que saísse da cidade. Quando ela saiu, o FBI foi junto. A casa ficara desprotegida. Sawyer soubera, graças a discretos interrogatórios dos vizinhos, que os pais e a filha de Sidney Archer tinham saído logo depois dela. Sawyer fechou e abriu a mão várias vezes. Fora um estratagema, claro. E ele caíra, como se fosse o agente mais inexperiente do mundo. Não tinha provas concretas para confirmar sua teoria, mas tinha tanta certeza quanto se chamava Lee de que alguém entrara na casa dos Archer e tirara alguma coisa de lá de dentro, Correr todo esse risco só podia significar que alguma coisa incrivelmente importante escorregara por entre os dedos de Sawyer. Aquela não fora uma boa manhã e prometia piorar rapidamente. Sawyer não estava acostumado a ser passado para trás. Pusera Frank Hardy a par dos resultados obtidos até agora e o ex-parceiro, que estava investigando o passado de Paul Brophy e Philip Goldman, ficara compreensivelmente intrigado ao saber da excursão clandestina de Brophy ao quarto de hotel de Sidney Archer em Nova Orleans. Sawyer abriu o jornal e leu a manchete. Sidney Archer devia estar entrando em pânico, pensou. Como Jason Archer indubitavelmente estava ciente da perseguição, o Bureau decidira tornar públicos os crimes de que era acusado: espionagem industrial e desvio de fundos da Triton. Não foi feita, contudo, alusão ao seu envolvimento direto com o desastre aéreo, mencionando-se apenas que o nome dele constava da lista de passageiros do malfadado voo, embora não estivesse a bordo. As pessoas poderiam ler-nas imensas entrelinhas desta história, concluiu Sawyer. As recentes atividades de Sidney Archer
também eram mencionadas com destaque. Sawyer consultou o relógio. Ia fazer uma segunda visita a Sidney Archer. E, a despeito da sua simpatia pessoal por ela, desta vez não ia sair sem obter algumas respostas. Henry Wharton, o queixo mergulhado no peito, contemplava melancolicamente o céu nublado pela janela da sala. Um exemplar do Post podia ser visto em cima da mesa, com a primeira página para baixo: assim pelo menos a manchete tão perturbadora ficava fora do seu campo de visão. Sentado em uma cadeira na frente da sua mesa estava Philip Goldman, com os olhos focalizados nas costas de Wharton. — Eu realmente acho que não temos outra alternativa, Henry. — Goldman fez uma pausa, um ligeiro ar de satisfação escapando do rosto, a não ser por isso imperscrutável. — Compreendo que Nathan Gamble estivesse particularmente irritado quando telefonou hoje de manhã. Quem poderia realmente culpá-lo? Fala-se que ele pode retirar toda a conta. Wharton estremeceu ao ouvir aquilo. Quando se virou para Goldman, seus olhos permaneceram baixos. Wharton estava claramente cedendo. Goldman inclinou-se um pouco para a frente, ansioso por aproveitar aquela vantagem evidente. — É para o bem da firma, Henry. Será doloroso para muita gente, e a despeito das minhas diferenças com ela no passado, eu teria que me incluir neste grupo que vai sofrer, até porque ela é um trunfo particularmente forte para esta firma. Desta vez Goldman conseguiu conter o sorriso. — Mas o futuro da firma, o futuro de centenas de pessoas, não pode ser sacrificado em benefício de uma pessoa, Henry, você sabe disso. Goldman recostou-se na cadeira, as mãos no colo, uma expressão plácida no rosto. Ele forçou um suspiro. — Posso cuidar disso, Henry, se você preferir. Sei como vocês dois são íntimos. Wharton finalmente levantou os olhos. Quando balançou a cabeça, o movimento foi rápido, curto, como a queda abrupta do machado que aquele movimento claramente significava. Goldman deixou a sala em silêncio. Sidney Archer estava pegando o jornal na calçada da frente quando o telefone tocou. Correu de volta para dentro de casa, o Post ainda fechado na mão. Estava bastante certa de que não fora seu marido, mas naquele instante não podia estar absolutament certa de nada. Jogou o jornal em cima dos outros exemplares que ainda não lera. A voz do pai ressoou nos seus ouvidos. Ela havia lido o jornal? De que diabos se tratava tudo aquilo? Aquelas acusações. Ele ia recorrer à justiça, proclamou, furioso. Ia processar todos os envolvidos, inclusive a Triton e o FBI. Quando finalmente conseguiu acalmá-lo um pouco, Sidney abriu o jornal. A manchete tirou-lhe o fôlego, como se alguém tivesse lhe dado um soco no peito. Arriou na cadeira, na semi-obscuridade da cozinha. Leu rapidamente a reportagem, que implicava o marido no furto de segredos imensamente valiosos e de centenas de milhões de dólares da empresa onde trabalhava. Para culminar,
insinuava que Jason Archer ainda era suspeito de ser o responsável pela explosão do voo 3223, presumivelmente com a finalidade de convencer às autoridades de que estava morto. Agora o mundo sabia que ele estava vivo e foragido, segundo o FBI. Quando leu seu próprio nome mais ou menos no meio da matéria, Sidney Archer sentiu-se nauseada. Tinha viajado para Nova Orleans, dizia a matéria, logo após o serviço religioso do marido, o que tornava a história altamente suspeita. Claro que era suspeita. Todo mundo, inclusive a própria Sidney, iria achar uma tal viagem suspeita. Toda uma vida de escrupulosa honestidade irreversivelmente destruída. No seu desespero ela desligou o telefone na cara do pai. Mal conseguiu chegar na pia da cozinha. A náusea deixou-a tonta. Despejou água fria na nuca e na testa. Conseguiu voltar tropeçando para a mesa da cozinha, onde soluçou por alguns minutos. Nunca havia se sentido tão desesperançada. De repente uma emoção súbita invadiu seu corpo. Raiva. Correu para o quarto, colocou uma roupa e dois minutos mais tarde abria a porta do Ford Explorer. "Droga." A correspondência caiu e ela, automaticamente, abaixouse para pegar. Suas mãos rapidamente foram recolhendo tudo até que, abruptamente, ela parou quando seus dedos se fecharam em torno de uma embalagem especial endereçada a Jason Archer. A caligrafia do próprio Jason a deixou de pernas bambas. Podia sentir um objeto delgado no interior da embalagem. Examinou o carimbo do correio. Fora enviada de Seattle no mesmo dia em que Jason pegara o avião. Ela estremeceu, involuntariamente. Seu marido tinha muitos envelopes especiais daqueles no escritório. Eram especificamente destinados a enviar disquetes de computador em segurança pelo correio. Não tinha tempo para pensar nisso agora. Jogou a correspondência de volta no cano, acomodou-se atrás do volante e saiu, ruidosamente. Trinta minutos depois, uma descabelada Sidney Archer, escoltada por Richard Lucas, entrou no escritório de Nathan Gamble. Imediatamente atrás deles veio, assombrado, Quentin Rowe. Sidney avançou direto até a mesa de Gamble e jogou o Post no seu colo. — Tomara que você tenha um bom advogado para um processo por difamação. — Sua fúria intensa fez com que Lucas se adiantasse, até que Gamble fez um gesto para que ele se retirasse. O chefe da Triton pegou rapidamente o jornal e deu uma olhada na matéria. Depois a encarou. — Não fui eu que escrevi isso. — Uma ova que não foi. Gamble apagou o cigarro e se levantou. — Desculpe, mas acho que quem deve estar furioso sou eu. — Meu marido explodindo aviões, vendendo segredos, roubando o seu dinheiro. É um monte de mentiras e você sabe disso. Gamble contornou a mesa para encará-la. — Deixa eu lhe dizer o que sei, mocinha. Fui aliviado de uma montanha de dinheiro, e isto é um fato. E o seu marido deu à RTG tudo o que a RTG precisa para enterrar minha empresa. E isto também é um fato. O que acha que eu devo fazer, condecorá-la com uma
maldita medalha? — Não é verdade. — Mas é claro que é verdade! — Gamble empurrou uma cadeira sobre rodinhas. — Sentese! Gamble abriu uma gaveta da sua mesa, pegou uma fita de vídeo e jogou-a para Lucas. Em seguida comprimiu um botão no console da mesa e parte da parede recuou, revelando uma unidade que combinava um aparelho de vídeo com uma televisão de tela grande. Enquanto Lucas colocava a fita no aparelho, Sidney, as pernas trêmulas, arriava na cadeira. Deu uma olhada em Quentin Rowe, imóvel num canto, os olhos arregalados colados nela. Sidney, nervosa, passou a língua nos lábios secos e desviou a atenção para a televisão. O coração quase parou quando viu o marido. Tendo ouvido apenas a sua voz desde aquele dia horrível, sentia como se ele tivesse desaparecido para sempre. A princípio fixou-se nos seus movimentos fluidos, suaves, que lhe eram tão familiares. Em seguida focalizou a atenção no rosto dele e levou um susto. Nunca o vira tão nervoso, sob tanta tensão. A pasta sendo entregue, o barulho do motor do avião, os sorrisos dos homens, os papéis examinados, tudo limitou-se a formar tão-somente o pano de fundo para Jason. Sidney ficou com os olhos fixos nele. Seu olhar desviou-se para o canto da tela que trazia a data e a hora da gravação e o coração levou outro choque quando o significado desses números a atingiu. Quando a tela escureceu, ela se virou para enfrentar os olhares de todos. — Essa troca teve lugar em uma instalação da RTG em Seattle, muito tempo depois de aquele avião ter caído. — Gamble ficou de pé atrás dela. — Agora, se ainda quiser me processar por difamação, vá em frente. É evidente que se perdermos, a CyberCom vai ter um sério problema — acrescentou ele, sinistro. Sidney levantou-se. Gamble pegou o jornal que ficara na mesa e jogou-o para ela. — Aqui está seu jornal. Embora mal conseguisse ficar em pé direito, Sidney conseguiu pegar o jornal. No momento seguinte saiu correndo da sala. Sidney entrou na garagem da casa e ficou parada, ouvindo a porta arriar. Braços e pernas trêmulas e os pulmões expelindo o ar entremeado de soluços a cada poucos segundos, pegou o jornal. Quando ele caiu, revelando a metade inferior da primeira página. Sidney Archer levou mais um choque, este agora contendo um elemento nítido de pavor incontrolável. A foto do homem fora tirada há alguns anos, mas não havia como confundir seu rosto. O nome dele agora lhe foi revelado: Edward Page. Trabalhava como detetive particular há cinco anos depois de ter passado dez anos na cidade de Nova York como oficial de polícia. Trabalhava sozinho, e sua firma se chamava Private Solutions, segundo a matéria do jornal. Page fora vítima de um assalto à mão armada em um dos estacionamentos do Aeroporto Nacional. Divorciado, deixara órfãos dois filhos adolescentes, dizia o jornal. Os olhos que conhecera tão bem olhavam para ela das profundezas da página e um calafrio atravessou o seu corpo. Era mais óbvio para ela do que para qualquer outra pessoa, exceto o próprio assassino, que a
morte de Page não resultara de uma tentativa de assalto. Alguns instantes depois de falar com ela o homem morria. Teria que ser muito idiota se considerasse a morte dele como mera coincidência. Saltou do Explorer e entrou correndo em casa. Pegou a reluzente pistola Smith&Wesson metálica que mantinha trancada em uma caixa de aço no armário do quarto e rapidamente carregou-a. A munição Hydra-Shok seria altamente eficaz contra quem quer que tentasse perpetrar um ataque mortal. Verificou a carteira. A permissão para porte de arma ainda era válida. Quando se esticou para recolocar a caixa de aço no alto do armário, a pistola caiu do seu bolso e bateu na mesinha-de-cabeceira antes de parar no chão acarpetado. Ainda bem que acionara a trava de segurança. Quando pegou a arma, notou que uma parte do plástico duro que revestia o cabo tinha rachado com o impacto, mas, a não ser por isso, o resto estava intacto. Pistola na mão, voltou para a garagem e entrou de novo no Ford. De repente ficou imóvel. Ouviu um barulho vindo de dentro da casa. Destravou a pistola, com os olhos e o cano da arma apontados para a porta que dava acesso à casa. Com a mão livre, lutou com as chaves do carro. Uma delas bateu com força em um dos seus dedos, fazendo um corte. Acionou o controle remoto que abria a porta da garagem e que ficava preso por um clipe no retrovisor. Seu coração disparou enquanto esperava que a maldita porta terminasse sua subida agonizantemente lenta. Conservava o tempo todo os olhos grudados na outra porta, a que dava acesso à casa, esperando que abrisse a qualquer momento. Sua mente se descontrolara com a notícia da morte de Edward Page. Dois adolescentes sem pai... Ela não ia deixar Amy sozinha. Empunhou com mais força a pistola. Apertou um botão e o vidro elétrico da porta do passageiro desceu. Teria agora um campo de visão melhor. Nunca usara aquela arma em nada que não os alvos do estande de tiro. Mas ia se esforçar ao máximo para matar quem quer que aparecesse naquela porta. Não notou o homem que se abaixava para passar sob a porta da garagem. Ele avançou rapidamente até a porta do lado do motorista, brandindo uma pistola. No mesmo instante, a porta que dava acesso da casa para a garagem começou a abrir. Sidney empunhou a arma com tanta força que as veias da mão saltaram. Seu dedo começou a comprimir o gatilho. — Jesus Cristo, abaixe essa arma. Agora! — gritou o homem ao lado do carro, a pistola apontada para a janela e através dela direto na têmpora esquerda de Sidney. Sidney girou dentro do carro e viu-se cara a cara com o agente Ray Jackson. Quase que ao mesmo tempo, a porta da casa foi aberta com força, batendo na parede. Sidney sacudiu a cabeça naquela direção e viu o corpanzil de Sawyer se precipitar através da abertura, a pistola de lOmm fazendo amplos arcos na direção dos veículos. Sidney afundou no banco, o suor escorrendo da testa. Ray Jackson, ainda empunhando a arma, abriu a porta do Explorer e olhou ao mesmo tempo para Sidney Archer e para a pistola que por pouco não abrira um orifício de tamanho considerável no seu parceiro.
— Você está maluca? — Ele esticou o braço e pegou a pistola no colo dela. Sidney não fez um gesto para impedi-lo mas de repente a fúria que sentia tornou-se evidente na expressão do seu rosto. — O que é que vocês estão fazendo, invadindo a minha casa? Eu podia ter atirado. Lee Sawyer guardou a pistola no coldre do cinto e aproximou-se do Ford. — A porta da frente estava aberta, Sra. Archer. Pensamos que podia haver algo de errado quando a senhora não atendeu. — A franqueza dele fez a fúria de Sidney desaparecer tão rapidamente quanto surgira. Ela deixara a porta da frente aberta quando correra para atender o telefonema do pai. Abaixou a cabeça, apoiando-a no volante. Esforçou-se para não enjoar. Seu corpo estava inteiramente encharcado de suor. Tremeu quando um vento frio invadiu a garagem pela porta aberta. — Indo a algum lugar? — Sawyer deu uma olhada no Ford e depois ficou observando a mulher, recostada no banco, desanimada. — Só para dar uma volta — respondeu ela, num fio de voz. Não olhou para Sawyer. Correu as palmas das mãos pelo volante, deixando o suor brilhando na superfície acolchoada. Sawyer viu a pilha de cartas no banco do passageiro. — Sempre carrega a correspondência no carro? Sidney acompanhou o olhar dele. — Não sei como veio parar aqui. Talvez meu pai tenha posto, antes de ir embora. — Exatamente. Logo depois de você ter saído. A propósito, como estava Nova Orleans? Divertiu-se? Sidney olhou para ele, apática. Sawyer colocou uma das mãos firmemente sob o seu cotovelo. — Vamos ter uma conversinha, Sra. Archer.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE ANTES DE SAIR DO CARRO, Sidney reuniu cuidadosamente a correspondência e colocou o Post debaixo do braço. Sem que os agentes do FBI vissem, pôs o disquete dentro do bolso do casaco. Ao saltar do carro, olhou ostensivamente para a pistola que Jackson confiscara. — Tenho autorização para porte de arma. — Entregou a ele o documento. — Tem algo contra eu descarregar antes de devolver? — Se assim você se sentir mais seguro — disse ela, apertando o botão do controle remoto da porta da garagem, fechando a porta do Ford e dirigindo-se para a casa. — Só faço questão que deixe as balas. Jackson encarou-a, o espanto estampado nas suas feições. Os dois agentes a seguiram dentro da casa. — Querem tomar um café? Alguma coisa para comer? É muito cedo ainda — Sidney pronunciou a última frase em tom acusatório. — Café seria ótimo — respondeu Sawyer, ignorando o tom de voz dela. Jackson balançou a cabeça para sinalizar seu assentimento. Enquanto Sidney servia três xícaras de café, Sawyer examinou-a metodicamente. O cabelo louro, precisando ser lavado, caía, escorrido, em torno do rosto sem maquiagem e ainda mais abatido e desfigurado que da última vez em que ele estivera ali. As roupas sobravam no corpo alto. Os olhos verdes, contudo, eram fascinantes como sempre. Ele percebeu que suas mãos tremiam um pouco quando ela segurou o bule de café. Estava claramente no limite. Ele tinha que admirar, ainda que relutantemente, o modo como Sidney estava suportando aquele pesadelo que parecia aumentar mais a cada dia. Só que todo mundo tem limites. Sawyer esperava descobrir o limite de Sidney Archer antes que tudo acabasse. Sidney colocou as canecas de café em uma bandeja, junto com açúcar e creme. Colocou em um prato um sortimento de pães e pedaços de bolo. Depois levou a bandeja e colocou no centro da mesa da cozinha. Enquanto os agentes se serviam, ela pegou uns biscoitos e começou vagarosamente a mordiscá-los. — O bolo está gostoso. Obrigado. A propósito, costuma andar armada? — Sawyer dirigiu-lhe um olhar de expectativa. — Houve alguns arrombamentos na vizinhança. Recebi orientação profissional para usar a arma. Além disso, armas não são propriamente uma novidade para mim. Meu pai e meu irmão mais velho, Kenny, foram fuzileiros. Também são caçadores fanáticos. Kenny tem uma enorme coleção de armas de fogo. Papai costumava me levar para fazer tiro ao alvo. Já atirei praticamente com todos os tipos de arma e sou excelente atiradora. Ray Jackson disse: — Você estava manejando a pistola bem direitinho lá na garagem. — Ele notou a rachadura no cabo. — Espero que não a tenha deixado cair carregada. — Sou muito cuidadosa com armas de fogo, Sr. Jackson, mas agradeço a sua preocupação. Jackson examinou a pistola mais uma vez antes de empurrá-la, juntamente com o pente
carregado, para ela. — Bela arma. Peso leve. Também uso munição Hydra-Shok, excelente força de impacto. Tem uma bala no pente — ele lembrou. — Ela é equipada com trava de segurança. Sem destravar não há tiro. — Sidney tocou cuidadosamente na arma. — Mas não gosto de tê-la aqui em casa, especialmente por causa de Amy, embora seja guardada descarregada e dentro de uma caixa trancada. — Não será muito útil então em caso de assalto — comentou Sawyer, entre uma mordida no bolo e um gole de café quente. — Só se você for surpreendido. Eu tento nunca ser. — Depois dos eventos daquela manhã, ela teve que se esforçar muito para não estremecer perceptivelmente com aquela observação. Afastando o prato para o lado, Sawyer perguntou: — Incomoda-se se nos contar por que fez essa pequena viagem a Nova Orleans? Sidney levantou o jornal de modo que a manchete ficasse totalmente à vista. — Por quê? Você está fazendo um bico como jornalista e precisa escrever a próxima matéria? A propósito, obrigada por arruinar minha vida. — Ela atirou o jornal, furiosa, em cima da mesa e virou o rosto. Sentiu de repente uma coceira no olho esquerdo. Agarrou-se na beirada da mesa quando sentiu que começava a tremer. Sawyer passou os olhos na reportagem. — Não vejo nada aí que não seja verdade. Seu marido é suspeito de estar envolvido em um roubo de segredos da empresa onde trabalhava. Além do mais, ele não se encontrava dentro do avião em que deveria estar. Avião este que termina a viagem com o bico enterrado num milharal. E o seu marido está vivo e cheio de saúde. — Quando ela não respondeu, Sawyer esticou o braço e tocou no seu cotovelo. — Eu disse que o seu marido está vivo, Sra. Archer. E isto não pareceu surpreendê-la. Quer me falar sobre Nova Orleans agora? Bem devagar, ela se virou para ele, as feições surpreendentemente calmas. — Você diz que ele está vivo? Sawyer fez que sim. — Então por que não me diz onde ele se encontra? — Eu ia lhe fazer justamente esta pergunta. Sidney enterrou os dedos na coxa. — Não vejo o meu marido desde aquela manhã. Sawyer chegou um pouco mais perto. — Olha, Sra. Archer, vamos parar com o papo-furado. A senhora recebe um telefonema misterioso e pega um avião para Nova Orleans, depois de um serviço religioso glacial para o seu querido e finado marido, que mais tarde veio a se descobrir que não era tão finado assim. Salta de um táxi e se enfia no metrô, deixando a mala para trás. Tapeia os meus homens e se manda para o sul. Hospeda-se em um hotel, onde eu apostava que ia esperar pelo encontro com o seu marido. — Sidney Archer, para crédito dela, nem sequer pestanejou. Sawyer prosseguiu: — Aí sai para dar uma caminhada e engraxar o
sapato com um velhinho muito simpático que, segundo minha experiência, é a única pessoa que trabalha nas ruas que recusa uma gorjeta. Dá um telefonema e zás, pega um avião de volta para Washington. O que diz de tudo isso? Sidney respirou fundo e olhou firme para Sawyer. — Você disse que eu recebi um telefonema misterioso. Quem lhe contou isso? Os dois agentes trocaram olhares. — Temos nossas fontes, Sra. Archer. E também checamos o seu registro telefônico — respondeu Sawyer. Sidney cruzou as pernas e inclinou-se para a frente. — Refere-se ao telefonema que recebi de Henry Wharton? Sawyer a fitou calmamente. — A senhora está dizendo que falou com Wharton? — Ele não esperava que ela caísse tão facilmente numa armadilha tão óbvia e não ficou desapontado. — Não. O que estou dizendo é que uma pessoa telefonou para cá identificando-se como Henry Wharton. — Mas você falou com alguém. — Não. Sawyer suspirou. — Temos um registro do telefonema. A ligação durou cerca de cinco minutos. A senhora ficou esse tempo todo escutando alguém respirando fundo ou o quê? — Não sou obrigada a ficar aqui sentada sendo insultada por você ou por qualquer outra pessoa. Você compreende isso? — Está certo, minhas desculpas. Então, quem foi? — Eu não sei. Sawyer endireitou-se na cadeira e deu um murro na mesa. Sidney quase caiu da cadeira. — Jesus Cristo, será que... — Estou lhe dizendo que não sei — interrompeu, furiosa. — Pensei que fosse Henry, mas não era. A pessoa não disse nada. Desliguei o telefone após uns poucos segundos. — O coração dela disparou quando se deu conta de que acabara de mentir para o FBI. Sawyer olhou para ela, fatigado. — Os computadores não mentem. Sra. Archer. — Ele involuntariamente estremeceu ao se lembrar do fiasco do caso Riker . O registro telefônico diz cinco minutos. — Meu pai atendeu o telefone na cozinha e largou o aparelho em cima da bancada para ir me chamar. Vocês dois apareceram quase que ao mesmo tempo. Considera inteiramente impossível que ele tenha esquecido de desligar? E isto não explicaria os cinco minutos? Talvez você queira ligar e perguntar a ele. Pode usar esse telefone aí. — Sidney apontou para a parede da cozinha, perto da porta. Sawyer olhou para o telefone e levou um momento pensando. Tinha certeza de que ela estava mentindo, mas o que dissera era plausível. Tinha esquecido de que estava falando com uma advogada que, por sinal, era extremamente competente. — Quer falar com ele? — repetiu Sidney. — Sei, por acaso, que ele está em casa porque me telefonou há pouco tempo. A última coisa que o ouvi gritando no telefone foi que
planejava processar o FBI e a Triton. — Talvez eu fale com ele mais tarde. — Ótimo. Eu só pensei que você ia querer ligar agora para não poder me acusar mais tarde de dar um jeito para fazer meu pai mentir. — Os olhos dela cravaram-se nas feições perturbadas do agente. — E, aproveitando que estamos tratando disso, vamos responder às suas outras acusações. Você disse que de algum modo consegui fugir de seus homens. Já que eu não sabia que estava sendo seguida, seria impossível fugir de quem quer que fosse. Meu táxi ficou preso no trânsito. Fiquei com medo de perder o avião, e por isso peguei o metrô. Há anos que não ando de metrô, de modo que saltei na estação do Pentágono porque não fui capaz de me lembrar se tinha de trocar de trem ali para ir para o aeroporto. Quando percebi meu erro, simplesmente peguei de novo o mesmo trem. Não levei a mala porque não queria que ela me atrapalhasse no metrô, especialmente se eu tivesse que correr para pegar o avião. Se eu tivesse permanecido em Nova Orleans ia providenciar para que ela me fosse remetida mais tarde. Estive em Nova Orleans uma porção de vezes. Sempre me diverti muito lá. Parecia-me um local lógico, não que eu venha pensando com muita lógica nos últimos tempos. Tive meus sapatos engraxados. Isto é ilegal? — Ela olhou para os dois homens. — Espero que nenhum de vocês tenha que passar por esse inferno de perder alguém sem sequer ter um corpo para enterrar. Ela atirou furiosamente o jornal no chão. — O culpado nessa história não é o meu marido. Vocês sabem qual era a nossa ideia de fazer uma loucura? Preparar um churrasco no quintal no frio do inverno. A coisa mais imprudente que vi Jason fazer foi, de vez em quando, dirigir depressa demais sem o cinto de segurança. Ele não pode estar envolvido na explosão daquele avião. Sei que vocês não acreditam em mim, mas neste exato instante não ligo a mínima. Ela se levantou e encostou-se na geladeira antes de continuar. — Eu precisava sair. Tenho realmente que lhes contar por quê? Tenho realmente que fazer isso? — Sua voz subiu até quase se transformar num grito, ficar muito aguda e silenciar. Sawyer começou a replicar mas fechou abruptamente a boca quando Sidney ergueu a mão e continuou a falar, agora em tom mais calmo. — Fiquei em Nova Orleans um dia. Subitamente me veio à cabeça que eu não podia fugir do pesadelo em que minha vida se transformou. Tenho uma filha pequena que precisa de mim. E ela precisa de mim. Ela é tudo o que me restou. Dá para entender isso? Vocês conseguem entender alguma coisa? — As lágrimas começaram a escorrer. Ela abriu e fechou as mãos, ofegante. De repente, arriou na cadeira. Ray Jackson brincou nervosamente com sua xícara de café, olhando para Sawyer. — Sra. Archer, tanto eu quanto Lee temos família. Realmente, não conseguimos imaginar o que a senhora está passando agora. Mas é preciso que entenda que estamos apenas tentando fazer nosso trabalho. Muitas coisas não estão fazendo sentido agora. Mas há certeza absoluta quanto a um detalhe: um avião caiu matando todos os passageiros que
carregava e quem quer que seja o responsável por isso vai pagar. Sidney levantou-se de novo, as pernas trêmulas, as lágrimas agora escorrendo. — E você acha que não sei disso! — A voz dela saiu aguda, quase histérica, os olhos cintilando. — Eu fui até lá... Aquele... inferno! A voz ficou ainda mais aguda, as lágrimas começaram a cair na blusa, os olhos arregalados. — Eu vi. — Ela os encarou, furiosa. — Eu vi tudo... o sapatinho... um sapatinho de bebê. Gemendo, Sidney sentou-se de novo, sacudida por soluços, parecendo um vulcão, prestes a expelir muito mais sofrimento do que os seres humanos têm capacidade de aguentar. Jackson levantou-se para pegar uma toalha de papel. Suspirando baixinho, Sawyer pôs a mão sobre a de Sidney e apertou com delicadeza. O sapatinho de bebê. O mesmo que ele pegara e sobre o qual também ele derramara lágrimas. Pela primeira vez notou o anel de noivado e a aliança de Sidney, um conjunto bonito, mesmo que pequeno, que ela devia ter usado todos aqueles anos com orgulho, ele tinha certeza disso. Quer Jason Archer tivesse feito ou não nada de errado, tinha uma mulher que o amava, que acreditava nele. Sawyer sentiu que começava a esperar que Jason viesse a conseguir comprovar sua inocência, a despeito de todos os indícios em contrário. Não queria que Sidney tivesse que se defrontar com a realidade da traição. Passou o braço enorme pelo seu ombro. Seu corpo parecia querer refletir cada convulsão que sacudia o corpo dela. Murmurou palavras tranquilizadoras em seu ouvido, tentando desesperadamente fazer com que recuperasse a consciência. Por um breve instante sua memória desviou-se para a última vez em que tivera nos braços outra mulher jovem como aquela. Tinha sido num baile escolar de fim de ano em que tudo dera errado, uma verdadeira catástrofe. Uma das poucas vezes em que conseguira estar presente a uma festa a pedido de um de seus filhos. Tinha sido maravilhoso envolver nos braços vigorosos o corpo pequeno e soluçante, deixando que a sua dor, a sua vergonha escoassem para dentro dele. A atenção de Sawyer voltou a se concentrar em Sidney Archer. Ela fora muito magoada, pensou. Tanta dor não podia ser forjada. Independente de qualquer outra coisa, Sidney Archer estava dizendo a verdade, ou pelo menos quase toda a verdade. Como se estivesse sentindo os pensamentos dele, ela apertou mais sua mão. Jackson passou-lhe a toalha de papel úmido. Sawyer não viu sua expressão preocupada enquanto observava o jeito delicado como ele lentamente ia procurando ajudar Sidney a recuperar o controle. As coisas que Sawyer disse para acalmá-la. o modo como conservou os braços protetoramente à sua volta. Ray Jackson não estava visivelmente, feliz com o parceiro naquele instante. Poucos minutos depois Sidney estava sentada diante de um fogo que Jackson rapidamente preparara na lareira da sala. O calor foi reconfortante, agradável. Olhando pela janela ampla. Sawyer viu que recomeçara a nevar. Examinou a sala e se deteve no console da lareira, onde havia uma coleção de porta-retratos: Jason Archer, parecendo qualquer coisa, menos um implicado em um dos crimes mais horrendos já cometidos; Amy Archer, a
garotinha mais bonita que já vira, e Sidney Archer, linda e encantadora. A família perfeita, pelo menos na aparência. Sawyer tinha passado vinte e cinco anos de sua vida sondando constantemente sob a superfície da vida das pessoas. Aguardava, ansioso, a chegada do dia em que não teria mais que fazer isso. Em que tratar dos motivos e circunstâncias que transformam seres humanos em monstros seria obrigação de outros. Hoje, contudo, o dever era seu. Desviou o olhar da foto para a realidade. — Sinto muito. Parece que eu me descontrolo toda vez que vocês dois aparecem — Sidney falou devagar, os olhos cerrados com força. Parecia menor do que a lembrança que Sawyer tinha dela, como se as crises seguidas a estivessem fazendo encolher. — Onde está sua garotinha? — perguntou ele. — Com meus pais. Sawyer balançou a cabeça, vagarosamente. Os olhos de Sidney se abriram, trêmulos, e fecharam de novo. — Ela só não pergunta pelo pai quando está dormindo -acrescentou num murmúrio, os lábios trêmulos. Sawyer esfregou os olhos cansados e chegou para mais perto do fogo. — Sidney? — Ela por fim abriu os olhos e fitou-o, ajeitando sobre os ombros a manta que pegara no divã, ergueu os joelhos na direção do peito e recostou-se. — Sidney, você disse que fui ao local do acidente. Acontece que eu sei que é verdade. Lembra de ter esbarrado numa pessoa lá? O meu joelho ainda dói. Sidney levou um susto, os olhos deram a impressão de se dilatar totalmente e depois voltaram a se estreitar. Sawyer sustentou o olhar fixo nela. — Também temos o relatório do policial de serviço naquela noite, o McKenna. — Sim, ele foi muito atencioso comigo. — Por que você foi lá, Sidney? Ela não respondeu. Passou os braços com mais força em torno das pernas. Finalmente, levantou os olhos. Mas fixou-os na parede em frente e não nos dois agentes. Parecia estar muito longe, como se estivesse voltando às dolorosas profundezas de um grande buraco na terra; à caverna sinistra que antes pensara que tivesse engolido seu marido. — Eu tive que ir. — Ela fechou a boca abruptamente. Jackson começou a dizer qualquer coisa, mas Sawyer o interrompeu. Eu tive que ir — repetiu Sidney. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto outra vez, mas a voz permaneceu firme. — Eu vi na televisão. — O quê? — Sawyer inclinou o corpo para a frente ansiosamente. — O que foi que você viu? Vi a mala dele. A mala de Jason. — Sua boca tremeu quando ela pronunciou o nome do marido. Levou a mão trêmula à boca como se quisesse confinar imensa mágoa ali concentrada. Ao cabo de algum tempo a mão caiu. — Pude ver as iniciais na lateral da mala. — Ela parou de novo e enxugou as lágrimas com as costas das mãos. — Subitamente me ocorreu que provavelmente era a única coisa... a única coisa que restara dele. Assim fui
pegá-la. O policial McKenna me disse que eu não poderia ter a mala de volta senão quando a investigação terminasse. Assim, voltei para casa sem nada. Nada — ela pronunciou a palavra lentamente, como se resumisse a condição desolada em que se encontrava. Sawyer recostou-se na cadeira e olhou para o parceiro. A mala era um beco sem saída. Ele deixou o silêncio persistir por um minuto antes de começar a falar de novo. — Quando eu disse que seu marido está vivo, você não pareceu espantar-se. — O tom de voz de Sawyer era baixo e tranquilizador, mas havia uma inequívoca hostilidade oculta nela. A resposta de Sidney foi cáustica, mas a voz estava cansada. Era evidente que seu gás estava acabando. — Acabo de ler o artigo no jornal. Se queria ver surpresa, tinha que ter vindo antes do jornaleiro. Sawyer ficou firme. Tinha esperado aquela resposta bastante lógica, mas ainda assim sentiase gratificado por ouvi-la dos lábios dela. Os mentirosos com frequência optam por histórias complicadas, em seu esforço para não ser apanhados. — OK, está certo. Não quero arrastar esta conversa a vida toda, de modo que só vou lhe fazer umas perguntas e quero respostas diretas. Mais nada. Se não souber a resposta, não faz mal. São estas as regras do jogo. Aceita? Sidney não respondeu. Seus olhos cansados oscilaram entre os dois agentes. Sawyer inclinou-se para a frente mais um pouco. — Não fui eu que inventei essas acusações contra o seu marido. Mas, com toda a franqueza, os indícios que descobrimos até agora não traçam um quadro favorável dele. — Que indícios? — perguntou Sidney incisivamente. Sawyer sacudiu a cabeça. — Sinto muito, mas não estou autorizado a falar. Mas posso garantir que são fortes o bastante para justificar a emissão de um mandado de prisão. Se não sabia, fique sabendo que neste momento todos os policiais deste país estão procurando por ele. Os olhos de Sidney encheram-se de lágrimas enquanto ela assimilava aquelas palavras inacreditáveis. Seu marido era um fugitivo procurado em todo o mundo. Encarou Sawyer: — Você sabia de tudo isso quando esteve aqui a primeira vez? Sawyer finalmente respondeu, penalizado: — Um pouco. Ele ficou meio sem graça e Jackson assumiu pelo parceiro: — Se seu marido não fez o que está sendo acusado de ter feito, não terá nada com que se preocupar no que diz respeito a nós. Mas não podemos nos responsabilizar pelas outras pessoas. Sidney fixou o olhar nele. — Como assim? Jackson sacudiu os ombros largos. — Digamos que ele não tenha feito nada de errado. Sabemos com absoluta certeza que não se encontrava no avião. Onde estará, então? Se tivesse perdido o avião por acaso, teria posto a boca no trombone imediatamente para que a família soubesse que estava bem. Mas não foi o que aconteceu. Por quê? A resposta parcial é que estava envolvido em algo não exatamente legítimo. Além do mais, o tipo de planejamento e execução com que nos
defrontamos neste caso nos leva a crer que se trata de algo muito mais complexo e que exige outros protagonistas. — Jackson parou e olhou para Sawyer, que aquiesceu com um movimento discreto da cabeça. Jackson prosseguiu: — Sra. Archer, o homem que suspeitamos que sabotou o avião foi encontrado assassinado em seu apartamento. Tudo indica que se preparava para abandonar o país mas alguém mudou os planos que tinha para ele. Sidney enunciou a palavra lentamente. — Assassinado. — Ela pensou em Edward Page mergulhado numa imensa poça do próprio sangue. Morrendo logo depois de ter falado com ela. Puxou mais a manta, com frio. Hesitou, debatendo intimamente se devia ou não contar aos agentes a conversa que tivera com Page. Até que, por uma razão que não seria capaz de definir com precisão, decidiu não contar. Respirou fundo. — Quais são as suas perguntas? — Primeiro, vou lhe dar conhecimento de uma pequena teoria. — Sawyer fez uma pausa rápida, organizando as ideias. — Por ora aceitaremos sua história de que foi a Nova Orleans por um capricho. Nós a seguimos até lá. Sabemos também que seus pais e a sua filha deixaram esta casa pouco tempo depois da sua saída. — E daí? Por que deveriam ficar aqui? — Sidney olhou em torno, para o interior da sua casa antes tão amada. O que resta aqui senão sofrimento? — Certo. Mas veja bem, você saiu, nós saímos e seus pais saíram. — Ele fez uma pausa. — Se está querendo dar a entender alguma coisa, receio que eu não esteja percebendo do que se trata. Sawyer levantou-se abruptamente e ficou com as costas largas viradas para o fogo enquanto fixava os olhos em Sidney. Levantou os braços. — Não havia ninguém aqui, Sidney. O lugar ficou completamente vulnerável. Seja qual for o motivo pelo qual você foi a Nova Orleans, teve o efeito de fazer com que a seguíssemos, e não ficou ninguém tomando conta da casa. Entende agora? A despeito do calor do fogo da lareira, um calafrio repentino percorreu o corpo de Sidney. Sua viagem a Nova Orleans fora uma tática para desviar a atenção. Jason sabia que as autoridades a vigiavam e a usara, com a finalidade de pegar alguma coisa que ficara na casa. Sawyer e Jackson observavam Sidney atentamente. Quase podiam ver a vigorosa ginástica mental que se passava em sua cabeça. Sidney voltou-se para a janela. Seus olhos registraram o casaco caído perto da cadeira de balanço, com o disquete num dos bolsos. Subitamente quis acelerar o fim daquela conversa. — Não há nada aqui que alguém pudesse querer. — Nada? — contestou Jackson, ceticamente. — Seu marido não guardava arquivos ou registros em casa? Nada desse gênero? — Nada do trabalho. A Triton é paranóica no que diz respeito a essas coisas. Sawyer balançou a cabeça lentamente, concordando. Baseado em sua própria experiência
com a Triton, aquela era uma declaração em que podia acreditar facilmente. — Mesmo assim, Sidney, pode ser que você queira pensar mais um pouco nisso. Deu pela falta de alguma coisa? Algo fora do lugar? Sidney fez que não. — Na verdade não procurei. — Bem, se você não tem nada contra, poderíamos revistar a casa agora. — Ele olhou para o parceiro, que tinha erguido as sobrancelhas ao ouvir a sugestão, e virou-se para Sidney, aguardando uma resposta. Quando Sidney nada respondeu, Jackson deu um passo adiante. — Sempre podemos conseguir um mandado. Muitas causas prováveis. Só que a senhora poderia nos poupar muito tempo e trabalho. E se é como diz, que não há nada, não haveria qualquer problema, correto? — Sou advogada, Sr. Jackson — disse Sidney friamente. — Conheço os procedimentos corretos. Está bem, fiquem à vontade. Por favor, desculpem a bagunça, não tenho tido tempo para cumprir minhas obrigações de dona-de-casa. — Ela se levantou, afastou a manta, pegou o casaco e o vestiu. — Enquanto estiverem fazendo isso, vou tomar um pouco de ar fresco. De quanto tempo vão precisar? Os dois agentes se entreolharam. — Algumas horas. — Tudo bem, sirvam-se do que encontrarem na geladeira. Revistar é um trabalho que pode dar muita fome. Depois que ela saiu, Jackson virou-se para o companheiro. — Puxa vida, ela dá trabalho, não dá? Sawyer acompanhou com o olhar o vulto esguio que se dirigia para a garagem. — Sem dúvida. Horas mais tarde Sidney Archer retornou. — Nada? — perguntou ela aos dois homens visivelmente exaustos. — Nada que pudéssemos encontrar, pelo menos. — O tom da voz de Jackson era de reprovação. Sidney o fulminou com um olhar. — Isso não é problema meu, é? Os dois olharam um para o outro por alguns momentos. — Vocês têm alguma pergunta para fazer? — disse Sidney, finalmente. Quando os dois agentes do FBI estavam saindo, mais ou menos uma hora mais tarde, Sidney tocou no braço de Sawyer. — Vocês obviamente não conheceram meu marido. Se o tivessem conhecido, não teriam a menor dúvida de que ele não poderia... — Os lábios se moveram mas as palavras não saíram por um momento. — Não poderia ter nada a ver com aquele desastre de avião... — Ela fechou os olhos e apoiou-se na porta da frente. As feições de Sawyer revelaram sua perturbação. Como podia alguém imaginar que a pessoa a quem amara, com quem tivera um filho, podia ser capaz de uma barbaridade daquelas? Só que os seres humanos cometem atrocidades a cada minuto do dia; são os únicos seres vivos que matam por pura maldade.
— Compreendo como se sente, Sidney — disse o agente, em voz contida. Jackson chutou uma pedrinha no trajeto até o carro e olhou para o parceiro. — Não sei, não. Lee, as coisas simplesmente não se encaixam no que diz respeito a essa mulher. Ela definitivamente está escondendo alguma coisa. Sawyer deu de ombros. — Bolas, se eu estivesse no lugar dela faria a mesma coisa. Jackson ficou surpreso. — Mentiria para o FBI? — Ela foi apanhada no meio, não sabe para onde se virar. Nessas circunstâncias eu também evitaria riscos desnecessários. — Acho que vou concordar com você neste caso. — As palavras de Jackson não soaram muito confiantes quando ele entrou no carro.
CAPÍTULO QUARENTA SIDNEY CORREU PARA O TELEFONE mas interrompeu-se de repente. Olhou para o receptor como se fosse uma cobra, prestes a instilar-lhe o veneno. Se o finado Edward Page grampeara seu telefone, qual a probabilidade de que outras pessoas tivessem feito o mesmo? Descansou o telefone e olhou para o celular, que estava em cima da bancada da cozinha, recarregando a pilha. Qual seria o grau de segurança dele? Frustrada, deu um soco na parede ao imaginar centenas de pares de olhos eletrônicos monitorando e registrando cada um de seus atos. Colocou o pager alfanumérico na bolsa, imaginando que esse tipo de comunicação fosse razoavelmente seguro. De qualquer modo, teria que servir. Guardou a pistola carregada na bolsa e correu para o Explorer. O disquete estava no seu bolso, em segurança. Por ora, teria que esperar. Tinha outra coisa a fazer naquele momento que era ainda mais importante. O Ford Explorer estacionou no McDonald's. Sidney entrou, pediu um lanche para viagem e seguiu pelo corredor na direção do toalete, parando no telefone público. Após discar, examinou o estacionamento procurando sinais do FBI. Não viu nada fora do comum, o que era bom — o FBI devia ser invisível. Porém um calafrio percorreu-lhe a coluna quando se lembrou de quem mais estava lá fora. Atenderam e ela levou alguns minutos para acalmar o pai. Quando disse o que queria, ele começou a explodir de novo. — Por que diabos você quer que eu faça isso? — Por favor. papai. Quero que você e mamãe saiam daí. E que levem Amy. — Você sabe que nunca vamos para o Maine depois do feriado do Dia do Trabalho. Sidney afastou o aparelho da boca e respirou fundo. — Eu sei, papai. Mas olha só, você leu o jornal. Ele explodiu de novo. — Aquilo é o maior monte de mentiras que já ouvi. Sid... — Papai, só quero que você me ouça. Não tenho tempo para discutir. — Ela nunca havia erguido antes a voz para o pai daquele modo. Os dois ficaram quietos por um momento. Quando ela quebrou o silêncio, sua voz estava firme. — O FBI acaba de sair da minha casa. Jason estava envolvido... em alguma coisa. Ainda não sei exatamente o que era. Mas mesmo que só metade do que o jornal diz for verdade... — Ela estremeceu. — No voo de volta de Nova Orleans um homem conversou comigo. Seu nome era Edward Page. Era um investigador particular. Trabalhava em qualquer coisa que tinha a ver com Jason. Bill Patterson contestou, incrédulo: — Para que ele estava investigando Jason? — Não sei. Ele não quis me dizer. — Pois bem, eu lhe digo uma coisa: vamos perguntar a ele e não aceitamos um não como resposta.
— Não podemos interrogá-lo: ele foi assassinado cinco minutos depois de ter falado comigo, papai. Assombrado, Bill Patterson não conseguiu mais achar sua voz. — Você vai para a casa no Maine, papai? Por favor. Assim que for possível. Patterson não respondeu por alguns segundos. Quando finalmente falou, sua voz estava fraca. — Sairemos depois do almoço. Por via das dúvidas, levo minha espingarda. Os ombros de Sidney, até então contraídos, relaxaram, aliviados. — Sidney? — Sim, papai? — Quero que você vá conosco. Sidney sacudiu a cabeça. — Não posso, papai. — Por que não? — explodiu o pai. — Você está sozinha. É a mulher de Jason. Pode, com toda a certeza, ser um alvo em tudo isso. — O FBI está cuidando de mim. — Você acha que eles são invulneráveis? Pensa que não cometem erros? Não se iluda, querida. — Não posso, papai. Provavelmente não é só o FBI que está me vigiando. E quem estiver me vigiando me acompanhará, se eu for com vocês. — Todo o corpo de Sidney tremeu quando ela pronunciou essas palavras. — Puxa vida, filhinha. — Sidney pôde ouvir perfeitamente o pai engolindo em seco no outro lado da linha. — Olha, por que então não mando sua mãe e Amy para a casa no Maine e vou para aí ficar com você? Não quero que elas ou você se envolvam nisso. Basta eu. E quero você do lado de Amy e de mamãe. Quero que você as proteja. Sei cuidar de mim. Sempre tive confiança em você, filhinha. Mas... mas isto é um pouco diferente. Se essas pessoas já foram mortas... — Bill Patterson não conseguiu terminar a frase. Ficara abalado com a perspectiva de perder a filha caçula de morte violenta. Papai, vou ficar bem. Tenho a minha pistola. O FBI está de guarda o tempo todo. Telefono para você diariamente. — Sid... — Papai, eu ficarei bem. Patterson não respondeu nada. Finalmente disse, resignado: — Tudo bem, mas me ligue duas vezes por dia. — Tudo bem, duas vezes por dia. Diga para mamãe que eu a amo. Sei que o jornal deve têla perturbado. Mas não comente nossa conversa. — Sid, sua mãe não é boba. Vai querer saber por que vamos de repente para o Maine nesta época do ano.
— Por favor, papai. Invente qualquer coisa. Bill Patterson finalmente suspirou. — Algo mais? — Diga a Amy que eu a amo. Que sua mamãe e seu papai gostam mais dela do que qualquer outra coisa neste mundo. — Os olhos de Sidney foram se enchendo de lágrimas, vendo a única coisa que desejava desesperadamente, estar com a filha, ficar cada vez mais fora do seu alcance. Para conservar Amy em segurança, Sidney tinha que ficar longe, bem longe. — Eu digo para ela, querida — prometeu Bill Patterson, baixinho. Sidney devorou o lanche no caminho de volta. Entrou em casa desabalada e em um minuto estava sentada diante do computador do marido. Tomou a precaução de trancar a porta e levar consigo o celular para o caso de ter que ligar para a polícia. Tirou o disquete do bolso, puxou a pistola e colocou ambos em cima da mesa ao seu lado. Ligou o computador e ficou observando a tela durante a inicialização. Quando estava prestes a inserir o disquete no drive, levou um susto e seu olhar cravou-se na tela. Algo estava errado no que dizia respeito aos dados relativos à memória disponível no disco rígido. Digitou algumas teclas e o número foi confirmado na tela. Sidney leu com cuidado: a disponibilidade era de 1.356.600 kilobytes ou cerca de 1,3 gigabyte. Ela fixou o olhar nos três últimos dígitos, lembrando da última vez em que estivera sentada diante daquele monitor. Os três últimos dígitos, por coincidência, correspondiam exatamente ao aniversário de Jason — sete, zero, seis, um fato que fizera com que ela chorasse. Preparara-se agora para passar pelo mesmo sofrimento, só que a memória disponível diminuíra. Mas como podia ser uma coisa dessas? Ela não tocara no computador desde... Oh, Cristo! Sentiu um nó no estômago ao mesmo tempo em que saltou da cadeira, pegou a pistola e pôs o disquete de novo no bolso do casaco. Teve ímpetos de meter uma bala na tela do maldito computador. Sawyer acertara e errara ao mesmo tempo. Acertara dizendo que alguém devia ter entrado na casa enquanto ela estava em Nova Orleans. Errara ao afirmar que tinham tirado alguma coisa, quando na verdade tinham deixado algo. Haviam implantado alguma coisa no computador do seu marido e da qual ia fugir o mais depressa que pudesse. Levou dez minutos para retornar ao McDonald's e ao telefone público. O tom de voz da sua secretária não foi nada natural. — Alô. Sra. Archer. Sra. Archer? Sua secretária estava com ela há seis anos e não a chamava de Sra. Archer desde o segundo dia de trabalho. Sidney ignorou isso por ora. — Sarah, Jeff está na casa hoje? — Jeff Fisher era o gum de computadores da firma. — Não sei ao certo. Gostaria que eu transferisse a ligação para o assistente dele, Sra. Archer? Sidney finalmente explodiu. — Sarah, que negócio é esse de me chamar agora de Sra. Archer? Sarah não respondeu de
pronto, mas ao cabo de alguns instantes começou a cochichar dentro do telefone. Sid, aquela história que saiu no jornal foi espalhada por toda a firma. Eles a mandaram via fax para todas as filiais. O pessoal da Triton ameaçou tirar toda a conta. O Sr. Wharton está furioso. E não é segredo para ninguém que todos os figurões estão culpando você. — Estou tão no escuro quanto qualquer outra pessoa. — Bem, aquela história faz parecer... você sabe. Sidney suspirou fundo. — Você quer me transferir para o Henry? Vou acertar tudo isso agora. A resposta de Sarah abalou sua chefe. — O comitê administrativo teve uma reunião esta manhã. Fizeram uma teleconferência com os outros sócios. Consta que estão preparando uma carta para enviar a você. — Uma carta? Que tipo de carta? — O assombro ia rapidamente se expandindo no rosto de Sidney. Ao fundo, Sidney podia ouvir o barulho de algumas pessoas passando pelo cubículo de Sarah. Quando o barulho passou, Sarah prosseguiu, falando ainda mais baixo. — Eu... eu não sei como lhe dizer isto, mas ouvi dizer que é uma carta de demissão. — Demissão? — Sidney pôs a mão na parede para se amparar. Eu não fui acusada de nada e já me julgaram e condenaram e agora estão me sentenciando? Tudo por causa de uma matéria no jornal? — Acho que todo mundo aqui está preocupado com a sobrevivência da firma. Quase todo mundo acusa você — Sarah acrescentou rapidamente. — E o seu marido. Descobrir que Jason ainda está vivo... As pessoas se sentiram traídas, sinceramente. Sidney respirou fundo e deixou os ombros caírem. Subitamente sentia-se exausta. — Meu Deus, Sarah, como você pensa que eu me sinto? — Sarah não disse nada. Sidney apalpou o disquete no bolso. A pistola fazia uma protuberância desconfortável sob a parte da frente do paletó. Teria que se acostumar com isso. — Sarah, eu gostaria de ser capaz de lhe explicar, mas não posso. Tudo o que posso dizer é que não fiz nada de errado e que não sei o que diabo aconteceu à minha vida. Mas não tenho muito tempo. Você poderia discretamente descobrir se Jeff está na casa? Por favor, Sarah. Sarah fez uma pausa e respondeu: — Espera aí, Sid. Acabou que Jeff tirara uns dias de folga. Sarah deu a Sidney o número da casa dele, e lá pelas três da tarde, depois de torcer muito para que não tivesse viajado, finalmente conseguiu achá-lo. Seu plano original tinha sido encontrar-se com ele no escritório. Isto contudo, agora estava fora de questão. Combinou de encontrá-lo em sua casa, em Alexandria. Como ele não estivera no escritório nos dois últimos dias, não podia saber de todos os boatos que a envolviam. Quando Sidney disse que tinha um problema com o computador, ele mostrou-se ansioso por ajudar. Tinha um compromisso mas estaria em casa por volta das oito horas. Ela só teria que esperar. Duas horas mais tarde uma batida na porta assustou Sidney, que andava nervosamente de um lado para outro na sala. Espiou pelo olho mágico e abriu a porta, moderadamente
surpresa. Lee Sawyer não esperou ser convidado para entrar. Avançou em passos largos pelo vestíbulo e sentou-se em uma das cadeiras perto da lareira. O fogo tinha se apagado há muito tempo. — Onde está seu parceiro? Sawyer ignorou a pergunta. — Verifiquei na Triton — disse. — Você não me contou que tinha ido lá hoje de manhã. Ela parou diante dele, braços cruzados. Tinha tomado banho e vestido uma saia pregueada preta com um suéter branco de gola em V. O cabelo, penteado para trás, ainda estava úmido. Estava descalça, só de meias; os sapatos podiam ser vistos do lado do sofá. E então — resmungou Sawyer -, o que foi que achou do video do seu marido? — Para ser sincera não pensei muito nele. — Uma ova que não. Sidney foi para o sofá, sentando em cima das pernas. — O que é exatamente que você deseja? — perguntou, em tom formal. — A verdade não seria má ideia, para começar. Com base na verdade poderíamos partir para algumas soluções. Como pôr meu marido na prisão pelo resto da vida? Esta é a solução que você quer, não é? — Ela atirou as palavras contra ele, como se fossem pedras. Sawyer brincou distraidamente com o crachá que trazia pendurado no cinto. Quando olhou para ela, sua expressão estava fragilizada, o corpo grandalhão pendia para um lado. — Olha só, Sidney, como falei, eu estive no local do acidente naquela noite... E tive aquele sapatinho de criança em minhas mãos também. — A voz dele começou a fraquejar. Apareceram lágrimas nos olhos de Sidney, mas ela continuou a encará-lo, mesmo quando seu corpo começou a tremer. Sawyer voltou a falar, a voz baixa mas clara. — Vejo fotos espalhadas em toda a sua casa de uma família muito feliz. Um marido bonitão, uma das menininhas mais lindas que já vi e... — ele fez uma pausa. — E uma esposa e mãe muito bonita. Sidney ficou ruborizada com as palavras de Sawyer que, também envergonhado, prosseguiu: — Não faz sentido para mim que o seu marido, mesmo que tenha roubado o dono da Triton, seja cúmplice na sabotagem daquele avião. — Uma lágrima pingou do queixo de Sidney e caiu no sofá enquanto ela ouvia. — Agora, eu não vou mentir e dizer que acho que seu marido seja completamente inocente. Pelo seu bem, espero em Deus que seja e que toda esta trapalhada possa ser explicada de algum modo. Mas meu trabalho é descobrir quem quer que tenha derrubado aquele avião e matado todas aquelas pessoas. — Ele respirou fundo. — Inclusive a dona daquele sapatinho — ele fez uma nova pausa. — E vou fazer o meu trabalho. — Pois faça — encorajou Sidney, uma das mãos agarrando nervosamente a barra da saia. — A melhor pista que tenho agora é o seu marido. E o único modo que conheço para explorar essa pista neste instante é através de você.
— Quer dizer então que você quer que eu o ajude a entregar meu marido? — Quero que você me diga qualquer coisa que me ajude a descobrir o real significado de tudo isso. Você não quer isso também? Sidney precisou de um minuto inteiro para responder. Quando a palavra finalmente saiu, veio escondida entre os soluços: — Sim — ela nada mais disse por diversos momentos, e finalmente olhou para ele. — Mas a minha filhinha precisa de mim. Não sei onde Jason está e se eu tiver que me afastar também... -A voz dela falhou e não completou a frase. Sawyer ficou confuso por um momento, até que percebeu o que ela estava dizendo. Esticou o braço e segurou gentilmente uma de suas mãos. — Sidney, não acredito que você tenha algo a ver com isso tudo. Com toda a certeza não vou prendê-la e afastá-la da sua filha. Talvez você não tenha me contado a história toda antes, mas meu Deus, você é humana. Não consigo sequer imaginar a pressão a que tem sido submetida. Por favor, acredite em mim. E confie em mim. — Ele largou a mão dela e recostou-se. Sidney esfregou os olhos, conseguiu forçar um rápido sorriso e se recompôs. Por uma última vez ela respirou fundo antes de dar o passo arriscado. — Era meu marido no telefone, no dia em que vocês vieram. Depois que falou, lançou um olhar penetrante para Sawyer, como se ainda receasse que ele fosse algemá-la. Ele limitou-se a se inclinar um pouco para a frente, o rosto uma massa de rugas. — O que foi que ele disse? Conte-me tudo tão precisamente quanto possível. — Ele disse que sabia que as coisas pareciam ruins, mas que explicaria tudo assim que nos encontrássemos. Fiquei tão entusiasmada em saber que ele estava vivo que nem fiz muitas perguntas. Ele também ligou para mim do aeroporto antes de pegar o avião no dia do desastre. — Sawyer animou-se. — Mas eu não tinha tempo para falar com ele. Sidney procurou revestir-se de coragem para resistir a crise de culpa quando a recordação a invadiu. Falou então a Sawyer sobre as muitas vezes em que Jason tinha trabalhado tarde da noite no escritório e também sobre a conversa que tinham tido na manhã do dia em que ele fora para o aeroporto. — E ele sugeriu a viagem a Nova Orleans? Quis saber Sawyer. Ela balançou a cabeça. Disse que se não entrasse em contato comigo no hotel, eu devia ir a Jackson Square que ele mandaria um recado para mim lá. O engraxate, correto? Sidney balançou a cabeça de novo. Sawyer suspirou. — Então foi para Jason que você ligou do telefone público? — Na verdade a mensagem dizia para eu ligar para o meu próprio escritório, só que foi Jason quem atendeu. Disse para não falar nada, que a polícia estava vigiando. Mandou eu ir para casa e disse que entraria em contato comigo assim que fosse seguro.
Mas ele ainda não ligou? Ela sacudiu a cabeça bem devagar. — Não tive notícias. Sawyer procurou escolher as palavras com todo o cuidado. — Sabe, Sidney, a sua lealdade é admirável, realmente. Não creio que nem mesmo Deus pudesse ter imaginado estes dias de infelicidade. Mas... — Mas? — interveio ela, ansiosa. — Mas chega uma hora em que é preciso ver além da devoção, além dos sentimentos e considerar pura e simplesmente os fatos. Não sou muito eloquente, mas se o seu marido fez algo errado — e não estou afirmando que fez — você não tem que cair com ele. De acordo com suas próprias palavras, sua filha precisa de seus cuidados. Eu tenho quatro filhos: não sou o melhor pai do mundo, mas ainda consigo me relacionar com eles. — O que você propõe então? — A voz dela saiu abafada. — Cooperação. Nada mais que cooperação. Você me dá informações, eu lhe dou informações. Eis uma primeira remessa. Considere um depósito feito em boa-fé. O que o jornal publicou pode-se dizer que corresponda quase que exatamente ao que nós sabemos. Você viu a fita de video. Seu marido se encontrou com alguém e fizeram uma troca. A Triton está convencida de que era informação destinada a prejudicar suas possibilidades de adquirir a CyberCom. Eles também têm fortíssimas evidências vinculando Jason à fraude do banco. — Sei que os indícios parecem incontestáveis, mas não posso acreditar. Realmente, não posso. — Bem, às vezes os sinais mais claros apontam na direção errada. O meu trabalho é descobrir em qual direção deveriam estar apontando. Tenho que admitir que não creio que seu marido seja completamente inocente, mas, por outro lado, não penso que seja o único envolvido. — Você acha que ele está trabalhando para a RTG, não acha? — É possível — admitiu Sawyer francamente. — Estamos seguindo esta pista juntamente com todas as demais. Parece ser a mais direta, mas como já falei, nunca se sabe. — Ele fez uma pausa. — Alguma coisa mais que você queira me contar? Sidney hesitou por um momento, enquanto pensava na conversa que tivera com Edward Page pouco antes de ele ser assassinado. Quando seu olhar, sem querer, se deteve no paletó de tweed que deixara em cima de uma cadeira, quase teve um ataque. Foi invadida pela lembrança do disquete e do encontro que planejara ter com Jeff Fisher. Engoliu em seco e ficou ruborizada. — Não, não me lembro de nada. Não. Sawyer continuou olhando para ela por um longo momento e finalmente pôs-se de pé, bem devagar. — Já que estamos trocando informações, achei que podia querer saber que seu coleguinha Paul Brophy a seguiu até a Louisiana.
Sidney gelou ao ouvir essas palavras. — Ele revistou o seu quarto no hotel enquanto você saiu para tomar café. Esteja à vontade para usar esta informação do jeito que julgar mais conveniente. — Sawyer começou a dirigir-se para a porta, mas parou e se virou. — E para que não haja erros, teremos você sob vigilância durante vinte e quatro horas. — Não planejo fazer outras viagens, se é isto que o preocupa. A resposta dele a espantou. — Não guarde aquela pistola travada, Sidney. Mantenha ao seu alcance e sempre carregada. Na verdade... — Sawyer abriu o paletó, soltou o coldre que ficava preso no cinto, removeu a pistola e entregou o coldre a Sidney. — Na minha experiência, armas em bolsas não são eficazes. Por favor, tenha cuidado. Ele deixou Sidney na entrada da casa, os pensamentos dela centrados no destino brutal do último homem que lhe dera aquele mesmo conselho.
CAPÍTULO QUARENTA E UM LEE SAWYER CONTEMPLOU AS PAREDES e os pisos de mármore preto e branco. As pedras eram cortadas em padrões triangulares assimétricos. Presumiu que deveriam expressar uma sofisticada mensagem artística. Na verdade, serviram apenas para dar ao agente do FBI uma forte dor de cabeça. Através das linhas graciosamente trabalhadas de uma porta dupla de bétula com painéis de vidro jateado, apoiada em um par de falsas colunas coríntias, o barulho dos pratos e talheres chegava até ele, vindo do salão de refeições. Tirou o sobretudo, removeu o chapéu e entregou a uma jovem de saia preta curta e blusa apertada que conseguiam realçar as formas de um corpo que não precisava de muito realce. Em troca recebeu um tíquete numerado, acompanhado de um sorriso muito caloroso. Uma das unhas dela deslizara delicadamente pela palma da sua mão quando o tíquete foi entregue, comprimindo a pele com a profundidade exata para fazer seu corpo reagir em certas partes discretas. Sawyer imaginou que a jovem devia ganhar um bom dinheiro de gorjeta. O maitre apareceu e olhou para o agente do FBI. — Vim me encontrar com Frank Hardy. O homem mais uma vez avaliou a aparência desalinhada de Sawyer. A severa revista não foi em vão, porque Sawyer aproveitou para levantar as calças até a cintura, algo repetido muitas vezes por dia por gente do tamanho dele. — Que tal os hambúrgueres daqui, meu chapa? — perguntou. Pegou uma barra de goma de mascar, amassou numa bolinha e enfiou na boca. — Hambúrgueres? — O homem deu a impressão de que ia cair duro com a simples ideia. — Aqui nós servimos cozinha francesa, senhor. A melhor da cidade. — Sua voz de forte sotaque fervia de indignação. — Francesa? Ótimo, aposto então como suas batatas fritas são ótimas. Girando nos calcanhares, o maitre conduziu Sawyer através do imenso salão de refeições, onde fileiras de candelabros cintilavam acima de uma clientela que tinha quase o mesmo brilho das peças de cristal finamente lavradas. O sempre elegantemente vestido Frank Hardy levantou-se de um reservado situado a um canto e inclinou a cabeça para o ex-parceiro. A garçonete apareceu momentos depois da chegada de Sawyer. — O que é que você vai beber, Lee? Sawyer acomodou o corpanzil no reservado. — Bourbon e cuspe — resmungou, sem levantar a cabeça. A garçonete olhou para ele sem entender. — Como? Hardy riu. — No seu jeito tosco o meu amigo diz que quer um bourbon puro. Quanto a mim, vou tomar outro martini. A garçonete se afastou, com os olhos virados para cima, como se pedisse paciência aos céus.
Sawyer assoou o nariz no lenço e passou a examinar o salão. — Puxa, Frank, ainda bem que foi você que escolheu o local. — Posso saber por quê? — Porque se tivesse sido eu, estaríamos no Shoneys. Mas talvez aqui seja melhor. Ouvi dizer que é difícil como o diabo conseguir uma mesa nesta época do ano. Hardy deu uma risada e engoliu o resto da bebida. — Você simplesmente não pode aceitar nem uma amostra da boa vida, pode? — Bolas, posso aceitar sim, desde que não tenha que pagar. Estou imaginando que um jantar para dois aqui deve custar o que tenho guardado na poupança para a aposentadoria. Os dois homens conversaram por alguns minutos enquanto a garçonete voltava, deixava nos respectivos lugares as bebidas pedidas e depois permanecia junto da mesa, aguardando o pedido do jantar. Sawyer deu uma olhada no cardápio, que era escrito com muita clareza, mas, lamentavelmente, apenas em francês. Desistiu e perguntou: — Qual o prato mais caro da casa? — A garçonete matraqueou um nome em francês. — Isso é comida de verdade? Não são caracóis, lesmas, ou outra porcaria? Com as sobrancelhas erguidas e uma expressão severa, ela assegurou que havia escargots no menu e eram excelentes, mas o prato que ela sugerira não eram escargots. Com um sorriso para Hardy, ele disse: — Então vou querer isso. Depois que a moça se afastou, Sawyer engoliu a goma de mascar, pegou um pedaço de pão na cesta colocada no centro da mesa e deu uma mordida. — Como é, descobriu alguma coisa sobre a RTG? Hardy pôs ambas as mãos em cima da mesa, alisando a toalha de linho. — Philip Goldman é o principal consultor jurídico do grupo RTG, posição que ocupa já há muitos anos. — Você não acha isso meio estranho? — O quê? — Que a RTG use os mesmos advogados que a Triton, e vice-versa. Quer dizer, não sou advogado, mas isso não é uma espécie de convite para grandes problemas? — Não é tão simples assim, Lee. — Por que será que não me espanto de saber que não é simples? Hardy ignorou o comentário. — Goldman tem uma reputação nacional e já há muito tempo que é o advogado número um da RTG. A Triton é, relativamente, recente na relação de clientes da Tyler e Stone. Foi Henry Wharton quem levou a conta da Triton para lá. Na época as duas empresas não tinham conflitos diretos. De lá para cá, tem havido algumas questões difíceis, à medida que os negócios das duas organizações se expandiram. No entanto, eles sempre conseguiram resolver tudo — transparência de interesses, cessão de direitos, tudo adequadamente colocado no papel. A Tyler e Stone é uma firma do mais alto nível e eu acho que nenhuma das duas empresas queria deixar de contar com a capacidade de seus advogados. É preciso tempo para se chegar a ter continuidade e confiança. — Confiança. Olha, esta é uma palavra bem estranha para se usar num caso como este. —
Sawyer ficou brincando com as migalhas de pão na sua frente enquanto escutava. — De qualquer forma, com o negócio da CyberCom, houve um conflito direto — continuou Hardy. — Tanto a RTG quanto a Triton querem a CyberCom. A firma foi impedida pelo código de ética de representar ambos os clientes. — E por isso optaram por representar a Triton. Como? Hardy deu de ombros. Wharton é o sócio administrativo. A Triton é cliente dele. Basta ou quer que eu explique mais? Com toda a certeza eles não iam deixar que ambas as empresas fossem representadas por alguém mais nesta transação. Tentador demais para outra firma entrar no jogo e levar tudo. Imagino que Goldman ficou um tanto irritado quando a firma fez pouco do seu cliente assim. — Pelo que pude averiguar, seria mais adequado dizer que ele teve ímpetos homicidas. — Mas quem pode afirmar que ele não trabalha por baixo dos panos para beneficiar a RTG? — Ninguém. Nathan Gamble não é idiota e está bem ciente disso. E se a RTG levar a melhor sobre a Triton, você sabe o que é bem possível que aconteça, não sabe? — Deixa eu adivinhar. Gamble troca de advogados? Hardy concordou. — Além disso, você leu as manchetes. Eles estão furiosos com Sidney Archer. Acho que a segurança do emprego dela talvez esteja seriamente abalada. — Bem, a moça também não está muito entusiasmada neste exato momento. — Você falou com ela? Sawyer fez que sim e terminou seu bourbon. Debateu intimamente e acabou por decidir não contar a Hardy a confissão que Sidney Archer lhe fizera. Hardy trabalhava para Gamble e Sawyer tinha praticamente certeza do que Gamble faria com essa informação: destruir a moça. E assim preferiu fornecer um fato como uma teoria. — Talvez ela tenha ido a Nova Orleans se encontrar com o marido. Hardy coçou o queixo. — Acho que faz sentido. — É justamente este o problema Frank, não faz o menor sentido. — Como assim? — perguntou Hardy, espantado. Sawyer apoiou os cotovelos na mesa. — Procure ver assim. O FBI aparece na porta da casa dela fazendo uma porção de perguntas. Ora, você tem que ser um zumbi para não ficar nervoso quando isso acontece. Mas no mesmo dia ela pega um avião e vai encontrar o marido! — É possível que ela não soubesse que estava sendo seguida. Sawyer sacudiu a cabeça. — Hum, hum. A moça é esperta, e tem a inteligência mais aguçada que essas facas que anunciam na televisão. Pensei que a tivesse apanhado com a mão na massa por causa do telefonema que recebeu na manhã do serviço religioso do marido, mas ela tirou o corpo fora com uma explicação perfeitamente plausível que provavelmente inventou ali na hora. E depois fez o mesmo quando a acusei de ter enganado os meus homens. Ela sabia que a
estavam seguindo. E mesmo assim pegou o avião. — Talvez Jason Archer não soubesse que vocês estavam vigiando. — Se foi mesmo Jason que armou toda essa confusão, você não acha que ele seria inteligente o bastante para achar que a polícia talvez estivesse de olho na sua mulher? Ora, Hardy, deixa disso. — Mas ela foi a Nova Orleans, Lee. Você não pode contornar esse fato. — Nem estou tentando fazer isso. Penso que o marido realmente entrou em contato com ela e lhe disse para ir depressa para Nova Orleans a despeito de nossa presença. — Por que diabos ele faria uma coisa dessas? Sawyer brincou com o guardanapo e não respondeu. Neste momento a comida chegou. — Parece bom. — Sawyer apreciou seu prato meticulosamente arrumado. — E é. Vai elevar o seu nível de colesterol para uma altura nunca dantes atingida, mas você vai morrer feliz. Hardy esticou a mão e bateu com a faca no prato de Sawyer. — Você não respondeu à minha pergunta: por que Jason teria feito uma coisa dessas? Sawyer meteu uma garfada de bom tamanho na boca. — Você não estava brincando a respeito deste troço, Frank. E pensar que eu já ia esquentar uns enlatados quando você telefonou para me convidar. — Que droga, Lee, deixa disso. Sawyer descansou o garfo. — Quando Sidney Archer foi para Nova Orleans, dispersamos todos os agentes porque tínhamos inúmeras rotas para cobrir. Ela ainda quase se livrou de nós. Verdade. Não fosse eu ter tido uma sorte incrível no aeroporto, nem teríamos sabido onde diabos ela fora. E agora acho que sei a razão pela qual ela foi: uma ação diversionária. Hardy fez um ar incrédulo. Como assim? Para desviar atenção de quem? — Quando eu disse que dispersei todos os nossos agentes, quis dizer que foram todos mesmo, Frank. Não havia ninguém vigiando a casa dos Archer enquanto estávamos fora. Hardy sugou o ar e arriou na cadeira. — Merda! Sawyer olhou para ele, abatido. — Eu sei, uma grande cagada da minha parte, mas agora é tarde demais para ficar remoendo e chorando. — Então você acha... — Eu acho que alguém fez uma visita à casa enquanto faziam a moça esperar por um encontro que não houve lá em Nova Orleans. — Espera aí, você não está pensando que... — Vamos colocar do seguinte modo: Jason Archer estaria na minha lista dos cinco mais. O que ele estaria querendo? — Não sei. Ray e eu revistamos a casa e não encontramos nada.
— Você acha que a mulher dele está envolvida? Sawyer deu outra garfada na comida antes de responder. — Se você tivesse feito essa pergunta há uma semana. eu provavelmente teria respondido que sim. Agora? Agora eu acho que ela não tem a menor ideia do que está acontecendo. Hardy recostou-se de novo. — Acredita mesmo nisso? — O jornal acabou com ela. Está mais do que ferrada na firma onde trabalha. O marido não apareceu e ela voltou para casa de mãos vazias. O que foi que ganhou, exceto uma dor de cabeça ainda maior? Hardy recomeçou a comer mas não perdeu o ar pensativo. Sawyer sacudiu a cabeça. — Cristo, este caso parece um doce de geléia. A cada mordida a geléia vai derramando e grudando mais na roupa do sujeito. — Sawyer enfiou uma garfada muito generosa na boca. Hardy riu e percorreu com o olhar o restaurante. Seus olhos de repente se fixaram em alguma coisa. — Pensei que ele estivesse fora da cidade. Sawyer seguiu o olhar dele. — Quem? — Quentin Rowe. — Ele apontou discretamente. — Ali. Rowe estava praticamente escondido em um reservado situado num canto bem isolado. A luz suave da vela conferia à mesa um toque íntimo naquela área imensa do restaurante lotado. Vestia um blazer de seda caríssimo, uma camisa sem colarinho abotoada no pescoço e uma calça de seda combinando. O rabo-de-cavalo balançava de um lado para o outro enquanto ele conversava animadamente com o companheiro de mesa, um rapaz com pouco mais de vinte anos trajando um terno muito elegante. Os dois jovens estavam sentados lado a lado, olho no olho, falando baixo. Por um breve momento Rowe colocou a mão sobre a do companheiro. Sawyer ergueu uma sobrancelha e olhou para Hardy. — Formam um belo casal. — Cuidado. Você está começando a parecer politicamente incorreto. — Ei, viva e deixe viver. É o meu lema. O cara pode sair com quem quiser. Hardy continuou a observar o par. Bem, Quentin Rowe vale cerca de trezentos milhões de dólares e do modo como vão as coisas será um bilionário hem antes dos quarenta anos. Eu diria que isso o torna um excelente partido. — Tenho certeza de que há um verdadeiro exército de mocinhas se matando por causa desse aí. — Pode crer. Mas o cara é absolutamente brilhante. Merece o sucesso. — É, ele me levou para um giro pela empresa. Não compreendi metade do que falou, mas ainda assim sei que eram coisas bem interessantes. Não posso dizer, contudo, que goste de todo esse exagero em torno da tecnologia.
— Não se pode deter o progresso, Lee. — Não quero deter o progresso, Frank. Só quero ser capaz de escolher o nível de minha participação nele. Segundo Rowe, não parece que eu venha a ter essa oportunidade. É um pouco assustador. Mas com toda a certeza é lucrativo. Sawyer espiou de novo na direção de Rowe. Por falar em casais, Rowe e Gamble certamente que formam uma dupla bem estranha. — Mesmo? O que faz você dizer isso? — Hardy sorriu. — Sério, eles simplesmente se conheceram no momento oportuno. O resto é história. — É como entendo: Gamble tinha as malas cheias de dinheiro e Rowe entrou com o cérebro? Hardy sacudiu a cabeça. — Não faça pouco de Nathan Gamble. Não é fácil ganhar a grana que ele ganhou em Wall Street. Ele é um cara inteligente e um homem de negócios incrível. Sawyer enxugou a boca com o guardanapo. Ainda bem, porque ele não iria conseguir sobreviver com o seu encanto pessoal.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS ERAM OITO HORAS DA NOITE quando Sidney chegou na casa de Jeff Fisher, uma casa geminada restaurada nas cercanias da área residencial da elite, na cidade velha de Alexandria. Com um blusão do MIT, tênis velho e maltratado e um boné dos Red Sox cobrindo a cabeça quase careca, Fisher, baixinho e gordote, deu as boas-vindas a ela e levou-a para uma sala grande entupida até o teto com equipamento de computação de todos os tipos, cabos correndo pelo piso de madeira e filtros de linhas com várias tomadas usadas ao máximo da capacidade. Sidney, ao ver aquilo, teve a impressão de que aquela sala parecia mais a Sala de Operações de Guerra do Pentágono do que qualquer outra coisa. Fisher observou com orgulho o assombro estampado no rosto de Sidney. — Na verdade, eu tive que reduzir alguma coisa aqui. Achei que podia estar perdendo um pouco o controle. — Ele deu um sorriso largo. Sidney tirou o disquete do bolso. — Jeff, você podia colocar isso no seu computador e ler o que tem escrito? Fisher pegou o disquete, desapontado. — É só isso de que você precisa? Seu computador no trabalho é capaz de ler este disquete, Sidney. — Eu sei, mas tive medo de estragar tudo de algum modo. Veio pelo correio e pode estar com defeito. Não sou craque no que diz respeito a computadores, Jeff. Quis procurar o melhor. Fisher ficou radiante com a massagem no ego. — OK. Só vai levar um segundinho. Ele começou a inserir o disquete no computador. Sidney cobriu a mão dele com a sua, fazendo com que parasse. — Jeff. Este computador está em rede? Ele olhou para o computador e depois para ela. — Está. Tenho três diferentes serviços que uso, mais meu próprio acesso à Internet usando o MIT como provedor. Por quê? — Será que você poderia usar um computador que não esteja conectado em rede? Quer dizer, as outras pessoas não podem pegar coisas que estejam no seu banco de dados se você estiver on-line? — Sim, mas é uma via de mão dupla. Você envia o que quiser mas qualquer um pode ter acesso ao que enviou. Você não precisa estar on-line para ser invadido. Como assim? — Quis saber Sidney. — Ouviu falar da radiação de Van Eck? — perguntou Fisher. Sidney sacudiu a cabeça. — Na verdade é uma escuta eletromagnética. A expressão de Sidney traduzia seu desconhecimento. — O que é isso? Fisher girou a cadeira e olhou para a advogada perplexa. Toda corrente elétrica produz um campo magnético. Os computadores emitem campos magnéticos relativamente fortes. Os campos que eles emitem podem ser facilmente
captados e gravados. Acima de tudo, os computadores também emitem impulsos digitais. Este CRT — Fisher apontou para o monitor do seu computador — emite claras imagens de vídeo se você dispuser do equipamento adequado para a recepção, o que é facilmente disponível. Eu poderia sair num carro pelas ruas do centro da cidade de Washington, com uma antena direcional, uma TV preto-e-branca e alguns dólares de componentes eletrônicos e roubar informações de cada rede de computadores de todas as empresas privadas e órgãos governamentais da cidade. Fácil. Sidney mostrou-se incrédula. — Você está dizendo que se estiver na tela de alguém, você vai conseguir ver também? Como é possível? — Simples. As formas e linhas que aparecem na tela de um computador são compostas por milhares de pontinhos minúsculos chamados pixels, uma abreviatura de picture elements, elementos de imagem. Quando você digita um comando, são disparados elétrons no ponto específico da tela onde irão iluminar os pixels apropriados — como se você estivesse pintando um quadro. A tela do computador precisa estar sendo constantemente renovada com elétrons para manter os pixels iluminados. Quer você esteja se divertindo com um game, trabalhando com o processador de textos ou o que seja, é assim que você pode ver as coisas que aparecem na tela. Deu para entender até agora? Sidney fez que sim e ele prosseguiu. — OK, cada vez que os elétrons são disparados na tela, desprendem pulsos de emissão eletromagnética de alta voltagem. Um monitor de televisão pode receber esses pulsos pixel por pixel. No entanto, como um monitor comum não é capaz de organizar adequadamente os pixels a fim de reconstruir o que está na sua tela, um sinal de sincronização artificial é usado para que a imagem possa ser reproduzida exatamente. Fisher parou para dar uma olhada no seu computador e continuou. — Impressora? Fax? A mesma coisa. Telefone celular? Só preciso de um minuto com um scanner para dizer o seu número de série eletrônico interno, ou ESN, o número do seu celular, os dados da sua estação e o nome do fabricante do aparelho. Depois programo esses dados em outro telefone celular com alguns chips reconfigurados e começo a vender serviço interurbano e cobrar de você. Qualquer informação que passe por um computador, seja pela linha telefônica, seja pelo ar, é vulnerável. E o que não é atualmente? Absolutamente nada é seguro. — Sabe qual é a minha teoria? Muito em breve vamos parar de usar computadores por causa dos problemas de segurança. Voltar às velhas máquinas de escrever e ao correio tradicional. Uma ideia veio de repente à cabeça de Sidney. — Jeff, e quanto ao telefone comum? Como é possível eu ligar para um número, digamos, do meu trabalho, e atender alguém que sei, com certeza absoluta, que não pode estar lá? — Alguém alterou a programação da central — respondeu Fisher imediatamente. — Da central? — Sidney sentiu-se completamente confusa.
Todas as comunicações no país, dos telefones públicos aos celulares, operam com base em uma rede de centrais de comutação. Se um hacker conseguir penetrar numa delas, vai poder se comunicar impunemente. — Fisher voltou a atenção de novo para o seu computador. — No entanto, a despeito de tudo o que falei, tenho realmente um bom sistema de segurança instalado na minha máquina, Sid. — Infalível? Ninguém pode grampear? Jeff riu. — Não conheço ninguém que em seu juízo perfeito possa afirmar ter feito isso, Sidney. Sidney olhou para o disquete; gostaria que fosse possível arrancar páginas de texto de dentro dele para ler. — Desculpe se pareço paranóica. Sem problema. Com todo o respeito, a maior parte dos advogados que conheço é de gente à beira da paranóia. Deviam estudar isso na universidade, ou algo assim. Mas podemos fazer pelo menos isto. — Ele desligou a linha do telefone do computador. — Agora estamos oficialmente desconectados. Tenho um programa antivirus de primeira neste sistema, para o caso de alguma coisa introduzida anteriormente. Acabei de passar um cheque, de modo que acho que estamos seguros. Ele fez um gesto para que Sidney se sentasse. Ela puxou uma cadeira e os dois estudaram a tela. Fisher digitou uma série de teclas e apareceu um diretório com vários arquivos. Ele olhou para Sidney. — Cerca de doze arquivos — a partir do número de bytes eu diria que são quatrocentas e tantas páginas, se for um texto padrão. Mas não há como avaliar isso, porque pode haver, por exemplo, uma porção de gráficos. — Fisher digitou mais algumas teclas. Quando a tela se encheu de imagens, os olhos dele brilharam. Sidney ficou desolada quando viu o que aparecera na tela. Era tudo uma linguagem confusa e ininteligível, verdadeiros hieróglifos high-tech. Ela olhou para Fisher. — Há alguma coisa de errado com o seu computador? Fisher girou rapidamente uma série de comandos. A tela ficou em branco e depois voltou a mostrar a mesma confusão de imagens digitais. Depois, na parte inferior da tela, apareceu uma janela com uma linha de comando pedindo a senha. — Não, e tampouco há algo de errado com o seu disquete. Onde o conseguiu? — Foi mandado para mim. Por um cliente — respondeu ela. em um tom nada convincente. Por sorte, Fisher estava tão concentrado na sua charada tecnológica que não fez mais perguntas sobre a origem do disquete. Os dedos dele voaram sobre o teclado por diversos minutos mais enquanto ele tentou todos os outros arquivos. A linguagem ininteligível sempre reaparecia. Da mesma forma a mensagem pedindo a senha. Até que por fim ele se virou, um sorriso nos lábios. — Está criptografado — disse, lacônico. — Criptografado? Fisher não tirou os olhos da tela.
— Criptografar é o processo através do qual você pega um texto legível e lhe dá uma forma ilegível antes de enviá-lo. — De que adianta se a pessoa que recebe não é capaz de ler? — Ah, mas pode, desde que tenha a chave que lhe permita descodificar o texto. — Como se consegue a chave? — Quem envia a mensagem cifrada tem que enviá-la para você, se você já não a tiver. Sidney arriou na cadeira. Jason tinha que ter a maldita chave. — Eu não tenho. — Isso não faz sentido. — Alguém enviaria uma mensagem cifrada para si próprio? — perguntou ela. Fisher olhou para ela. -Não. Quer dizer, normalmente, não. Tendo a mensagem em mão, você não vai codificá-la e depois mandar através da Internet para si próprio em outro local. Só iria dar a alguém a oportunidade de interceptá-la e talvez decifrá-la. Mas eu pensei que tivesse dito que havia sido um cliente que remeteu o disquete para você. Sidney subitamente sentiu um calafrio. — Jeff, você tem café aí? — Na verdade, acabo de fazer um bule. Mantenho este cômo do um pouco mais frio que o resto da casa por causa do calor gerado pelo equipamento. Vou pegar e já volto. — Obrigada. Quando Fisher voltou com duas xícaras de café, encontrou Sidney olhando fixamente para a tela do monitor. Fisher tomou um gole do líquido quente enquanto Sidney recostava e fechava os olhos. Ele se debruçou e estudou a tela mais de perto. Voltou ao raciocínio que começara a formular. — É, ninguém cifraria uma mensagem que pretendesse enviar para si próprio. — Tomou outro gole de café. — Só faria isso se fosse enviá-la para alguma outra pessoa. Os olhos de Sidney abriram-se de repente e ela endireitou-se na cadeira com um movimento brusco. Voltou à sua memória o lampejo da imagem do e-mail surgindo na tela do computador de Jason, como um fantasma eletrônico. Aparecera e no instante seguinte desaparecera. A chave. Seria a chave? Ele a estaria enviando para ela? Agarrou o braço de Fisher. — Jeff, como é possível um e-mail aparecer na tela do seu computador e depois desaparecer? Não está na sua caixa de correio. Não está em parte alguma do sistema. Como pode acontecer uma coisa dessas? — Muito fácil. A pessoa que enviou tem uma janela de oportunidade para cancelar a transmissão. Quer dizer, ela não poderia cancelar depois que a correspondência fosse aberta e lida. Mas em alguns sistemas, dependendo da configuração que tenham, é possível recuperar uma mensagem até o momento em que for aberta pelo destinatário. Neste aspecto é melhor do que o correio. — Fisher sorriu. — Sabe como é, você ficou furiosa com alguém, escreve uma carta, envia, mas se arrepende. No
correio comum, uma vez que a carta estiver na caixa de ferro, não tem jeito. Com o correio eletrônico, você pode. Até um certo ponto. E se você estiver fora de uma rede? Pela Internet? Fisher coçou o queixo. É mais difícil por causa da viagem que a mensagem faz até chegar ao destino final. É como se usássemos um cipó. Sidney olhou para ele sem entender. — Você sabe, você se pendura de um lado, vai se balançando até o outro lado e faz a travessia. Uma analogia, grosso modo, de como as mensagens viajam pela Internet. As partes são fluidas em si mesmas, mas não formam obrigatoriamente uma unidade coesa. O resultado é que às vezes a informação enviada não pode ser recuperada. — Mas é possível? — Se o e-mail foi enviado todo por um serviço on-line, como, por exemplo, o da America Online, você consegue recuperar. Sidney pensou rapidamente. Eles se utilizavam da America Online em casa. Mas por que Jason teria lhe enviado a chave e depois tirado? Ela estremeceu. A menos que não tivesse sido ele quem cancelara a transmissão. — Jeff, se você estivesse enviando um e-mail e uma outra pessoa não quisesse que ele seguisse, ela conseguiria impedir? Cancelar a transmissão como você disse, mesmo contrariando a vontade do remetente? — Que pergunta mais esquisita... Mas a resposta é sim. Você só precisa ter acesso ao teclado. Por que pergunta? — Estou só pensando em voz alta. Fisher dirigiu-lhe um olhar intrigado. — Alguma coisa errada, Sidney? Ela ignorou a pergunta. — É possível ler a mensagem sem a chave? Fisher deu uma espiada na tela e depois virouse lentamente para Sidney. — Há alguns métodos que se pode empregar. — Seu tom de voz era hesitante, muito mais formal. — Você poderia tentar, Jeff? Ele abaixou a cabeça. — Olha, Sidney, logo depois que você telefonou hoje eu liguei para o escritório a fim de verificar o andamento de uns projetos. Eles me falaram... — Jeff fez uma pausa e fitou-a com os olhos perturbados. — Eles me falaram a seu respeito. Sidney levantou-se, olhando para o chão. — Acontece que também li o jornal antes de você chegar. O que você quer saber tem ligação com tudo isso? Não quero me meter em confusão. Sidney sentou-se e encarou Fisher diretamente nos olhos, segurando sua mão. — Jeff, apareceu um e-mail no meu computador em casa e desapareceu em seguida. Acho que pode ter sido a chave da mensagem, porque Jason enviou o disquete para si próprio. Seja o que for que haja nesse disquete, tenho que ler. Não fiz nada de errado, a despeito do que minha firma, o jornal ou qualquer pessoa digam. Não tenho como provar isso. Ainda. Tudo o que você pode ter é a minha palavra. Fisher olhou para ela por um longo instante e finalmente aquiesceu.
— OK, acredito em você. Por acaso, entre os advogados da firma, você é uma das poucas pessoas de quem gosto. — Pode ser que vá querer mais café. Se estiver com fome, na geladeira tem uns troços para fazer sanduíche. Isto aqui pode levar algum tempo.
CAPÍTULO QUARENTA E TRÊS O JANTAR COM FRANK HARDY fora cedo e eram apenas cerca de oito horas quando Sawyer estacionou diante do seu prédio. Quando saltou do carro, sentiu o estômago imensamente confortável. O cérebro, contudo, não compartilhava sensação tão confortável. Aquela investigação parecia ter tantos ângulos que não se sentia bem seguro sobre onde começar. Quando bateu a porta do carro, notou um Rolls-Royce Silver Cloud subindo vagarosamente a rua na sua direção. Raramente seu bairro iria testemunhar, se é que isso viria a acontecer, aquele tipo tão espetacular de riqueza. Através do pára-brisa dava para ver um motorista de boné preto ao volante. Sawyer teve que olhar duas vezes para perceber a diferença — o motorista se sentava do lado direito — era um carro fabricado na Grã-Bretanha. Reduziu a marcha e parou junto dele. Sawyer não podia ver quem ia na parte de trás por causa dos vidros escuros. Perguntou-se se aquilo seria um item original ou se fora alterado mais tarde. Mas não teve tempo de devanear além desse ponto. O vidro de trás baixou e Sawyer deu de cara com Nathan Gamble. Nesse meio tempo o motorista tinha saltado e se colocado junto da porta do passageiro. Os olhos de Sawyer percorreram a enorme carroceria antes de virem a repousar no presidente da Triton mais uma vez. — Belo carro. Que tal o consumo de gasolina? — Como eu gosto. Você acompanha o basquete? — Gamble cortou a ponta do charuto com um cortador metálico e levou alguns segundos para acendê-lo. — Como é que é? — NBA. Uns pretos muito altos correndo de calção de um lado para o outro, em troca de montanhas de dinheiro. Assisto pela televisão quando tenho uma chance. — Bem, então pula aqui dentro. — Por quê? — Você vai ver. Prometo que não vai se entediar. Sawyer olhou para os dois lados da rua e deu de ombros. Jogou as chaves do próprio carro no bolso e olhou para o motorista. — Vamos nessa, meu chapa — disse, abrindo a porta e entrando. Quando se acomodou no banco forrado de couro, notou que Richard Lucas estava sentado na cadeira virada para trás. Inclinou ligeiramente a cabeça. O chefe da segurança da Triton retribuiu. O Rolls arrancou, afastando-se rapidamente. — Quer um? — Gamble mostrou um charuto. — Cubano. É contra a lei importar charutos cubanos, mas deve ser por isso que eu gosto tanto deles. Sawyer pegou o charuto e cortou a ponta com o cortador que Gamble lhe passou. Ficou surpreso quando Lucas estendeu um isqueiro aceso, mas aceitou a oferta. Deu três puxadas rápidas e uma longa. — Nada mau. Acho que vou ter que lhe dar uma chance nessa coisa de charutos ilegais.
— Agradeço de coração. A propósito, como sabia onde eu morava? Tomara que não tenha me seguido. Fico realmente muito nervoso quando fazem isso comigo. — Tenho coisas melhores para fazer do que seguir você, pode crer. — E então? — Então o quê? — Gamble o encarou. — Então como sabia onde eu morava? — E isso tem importância? — Na verdade tem muitíssima importância. Na minha linha de trabalho você não divulga abertamente o lugar que chama de casa. — OK, vamos ver então. O que foi que fizemos? Procuramos seu nome no catálogo telefônico? — Gamble sacudiu abruptamente a cabeça e seus olhos brilharam, alegres, fixos em Sawyer. Não, não foi isso. — Ainda bem, já que por acaso meu número não consta da lista. — Certo. Bem, acho então que simplesmente sabíamos. — Gamble soprou um par de círculos perfeitos de fumaça na direção do teto. — Você sabe como é, toda a nossa tecnologia de computadores... Somos o Grande Irmão, sabemos de tudo. — Gamble deu uma risada. Enquanto soprava a fumaça do seu charuto olhava para Lucas. Lucas dirigiu-se a Sawyer. — Na verdade foi Frank Hardy quem nos disse. Em confiança, claro. Não tencionamos espalhar essa informação por aí. Compreendo sua preocupação. — Richard Lucas fez uma pausa. — Aqui entre nós, trabalhei na CIA durante dez anos. — Ah, Rich, eu tinha conseguido convencê-lo. — O cheiro de bebida no hálito de Gamble se espalhava por todo o carro. Ele esticou o braço e abriu uma portinha na forração de madeira do Rolls. Dali se avistava um bar bem sortido. — Você me parece um homem de uísque e soda. — Já bebi minha cota no jantar. Gamble encheu um copo de porcelana gravada com o conteúdo de uma garrafa de Johnnie Walker. Sawyer deu uma olhada em Lucas que não se abalou. Aparentemente tudo aquilo era rotina. — Na verdade eu não achava que ia ter notícias suas depois daquela nossa conversinha do outro dia — disse Sawyer. — A resposta é simples: você me fez abaixar a crista e provavelmente eu mereci. Na verdade, eu o estava testando, com aquela ceninha idiota de grande empresário, e você teve um sucesso esmagador. Como você pode imaginar, não esbarro em muita gente com coragem suficiente para fazer aquilo. E quando aparece um, gosto de conhecer melhor essa pessoa. Além do mais, à luz dos acontecimentos recentes, quero conversar com você sobre o caso. — Acontecimentos recentes? Gamble tomou um gole da sua bebida. — Você sabe do que estou falando. Sidney Archer? Nova Orleans? RTG? Acabo de falar
com Hardy pelo telefone. — Você trabalha depressa. Estive com Hardy vinte minutos atrás. Gamble pegou um minúsculo telefone portátil de um receptáculo no console do Rolls. — Lembre-se, Sawyer, de que atuo no setor privado. Se você não andar depressa, não anda, entende? Sawyer deu uma tragada no charuto antes de responder. — Estou começando a entender. A propósito, você não chegou a dizer aonde estávamos indo. — Eu não disse? Pois bem. Ajeite-se no seu banco. Chegaremos lá em breve. E aí poderemos ter uma boa conversinha. A USAir Arena era a sede dos Washington Bullets, da NBA, e dos Washington Capitals, da NHL, pelo menos enquanto o novo estádio do centro da cidade não ficasse pronto. O estádio estava lotado para o jogo entre os Bullets e os Knicks. Nathan Gamble, Lucas e Sawyer tomaram o elevador privativo para o segundo andar, onde ficavam os luxuosos camarotes. Quando Sawyer atravessou o corredor e entrou pela porta onde se lia TRITON GLOBAL, sentiu-se como se tivesse embarcado em um transatlântico de luxo. Uma jovem atendia no bar e um bufê quente e frio estava servido sobre uma mesa lateral comprida. Havia um banheiro privativo, closet, sofás e poltronas, além de uma televisão de tela gigantesca a um canto, onde se podia ver o jogo de basquete que estava sendo disputado na quadra. Sawyer podia ouvir o barulho da multidão torcendo. Deu uma olhada na televisão. O time da casa, os Bullets, tinham uma vantagem de sete pontos sobre os favoritos Knicks. Sawyer tirou o chapéu e o casaco e acompanhou Gamble até a área do bar. — Você vai ter que beber qualquer coisa agora. Não se pode assistir a um jogo sem um drinque na mão. Sawyer fez um gesto com a cabeça na direção da moça do bar. — Uma Budweiser, se tiver. Ela apanhou a cerveja na geladeira, abriu a lata e começou a servir num copo. — Pode deixar na lata mesmo. Obrigado. Sawyer avaliou o espaçoso salão mais uma vez. Não havia mais ninguém. Ele foi dar uma olhada no bufê. Ainda estava com a barriga cheia do jantar, mas umas batatinhas com sabor picante o tentaram. — Isto aqui geralmente fica tão vazio assim? — perguntou a Gamble, enquanto apanhava um punhado. Lucas, encostado na parede, era uma presença que parecia pairar sobre tudo. — Geralmente está entupido de gente — respondeu Gamble. -É muito bom para os funcionários. Com isto eu os mantenho felizes e trabalhando duro. — A moça do bar deu a Gamble a sua bebida. Em resposta, ele puxou um maço de notas de cem dólares do bolso, pegou um copo em cima do bar e enfiou as notas no copo. — Olha aqui, quem trabalha no bar tem que ter uma jarra para as gorjetas. Vá comprar umas ações. — A mocinha quase
desmaiou de alegria, enquanto Gamble ia para junto de Sawyer. Sawyer apontou com a lata de cerveja na direção da TV. — O jogo parece ótimo. Estou surpreso de não ver isto aqui apinhado de gente da Triton. — Pois eu ficaria muito mais surpreso se houvesse alguém da Triton aqui, já que dei ordens para que não fossem distribuídos ingressos para o jogo de hoje. — Por que fez isso? — Sawyer tomou um gole da cerveja. Gamble agarrou o braço de Sawyer com a mão que estava livre. — Por que eu queria falar com você em particular. Sawyer foi conduzido pelo lance de escada até a área onde se assistia ao jogo e de onde a visão era quase direta sobre a quadra. Sawyer lançou um olhar com uma pontada de inveja para os dois grupos de jovens senhores altos, musculosos e muito ricos que corriam de um lado para o outro. A área em que se encontrava era fechada em três lados por Plexiglas. À direita e à esquerda ficavam os ocupantes dos outros camarotes de luxo. No entanto. tendo em vista a proteção do escudo de vidro, era possível conduzir uma conversa particular em meio a uma multidão de quinze mil pessoas. Os dois homens se acomodaram. Sawyer virou a cabeça para o local de onde tinham vindo. — Rich não gosta de basquete? — perguntou. — Lucas está de serviço. — Ele sai do serviço alguma hora? — Quando dorme. Eu ocasionalmente permito que durma. Gamble recostou-se na confortável poltrona e tomou um gole da sua bebida. Sawyer olhou em torno com curiosidade. Nunca estivera antes em um lugar daqueles e depois do jantar sofisticado com Hardy sentia-se um pouco fora do seu elemento natural. Como se estivesse se aventurando em águas demasiado profundas. Pelo menos teria algumas histórias para contar para Ray. Quando seu olhar voltou a se fixar em Gamble, este parou de sorrir. Nada na vida é de graça. Tudo tem seu custo. Ele decidiu que era hora de verificar a etiqueta do preço. — E então, sobre o que você quer conversar? Gamble tinha os olhos fixos no jogo sem realmente ver nada. — O fato é que precisamos da CyberCom. Precisamos tremendamente da CyberCom. Olha, Gamble, não sou consultor de negócios, sou policial. E não ligo a mínima se você conseguir comprar a CyberCom ou não. Gamble chupou um cubo de gelo. Deu a impressão de não ter escutado. — A gente dá um duro danado para construir uma coisa e nunca é o bastante, sabe? Sempre tem alguém tentando tirar alguma coisa de você. Sempre tem alguém tentando te sacanear. Se você está procurando compaixão, procure em outro lugar. Você é um cara que tem tanto dinheiro que não é capaz de gastar tudo o que tem. Por que diabos se importa? Gamble explodiu.
— Porque a verdade é que você se acostuma, porra! — Ele se acalmou rapidamente. — Você se acostuma em estar por cima. Em ver que todo mundo se avalia usando você como parâmetro. Mas é basicamente por causa de dinheiro. — Ele olhou de novo para Sawyer. — Você quer saber quanto eu ganho por ano? A despeito de si próprio, Sawyer sentiu curiosidade. — Se eu disser que não, por que será que acho que você vai me dizer de qualquer maneira? — Um bilhão de dólares. — Gamble, sem cerimônia, largou o cubo de gelo diretamente da boca no copo. Sawyer engoliu um pouco de cerveja enquanto absorvia aquela informação espantosa. — Só o meu imposto de renda deste ano chegará a cerca de quatrocentos milhões de dólares. Com isso a gente pensa que deve merecer um pouco de compreensão e carinho da parte de vocês, federais. Sawyer o fulminou com um olhar. — Se você está querendo carinho e compreensão, tente as piranhas da rua Quatorze. Sai muito mais barato. Gamble fixou os olhos nele. — Que droga, vocês não são capazes de enxergar o quadro geral, são? — Por que você não me esclarece o que vem a ser exatamente este quadro geral? Gamble arriou o copo. — Você trata todo mundo do mesmo modo. — O tom de voz dele era de descrença. — Ora, por favor, você está querendo dizer que isso é errado? — Não só é errado, como burro. — Acho que você nunca se deu ao trabalho de ler a Declaração da Independência, aquela parte meio confusa e sentimental que diz que todos os homens são iguais. — Estou falando da realidade. Estou falando de negócios. — Não faço distinções. — Vê se eu vou tratar o presidente do Citicorp do mesmo modo que o faxineiro do meu prédio. Um pode me emprestar bilhões de dólares, e o outro pode lavar minha privada. — Meu trabalho é caçar criminosos, ricos, pobres, remediados. E não faz a menor diferença para mim. — Tudo bem, só que não sou criminoso. Sou um contribuinte, um cidadão que paga impostos, provavelmente aquele que paga mais impostos em todo o país, e tudo o que estou pedindo é um pequeno favor que no setor privado eu obtenho até mesmo sem pedir. — Viva o setor público. — Não tem graça. — E não era para ter, nem por um segundo. — Sawyer fez com que ele baixasse os olhos. Quando Gamble finalmente virou a cabeça, Sawyer deu uma espiada nas mãos e tomou outro gole de cerveja. Toda vez que estava por perto daquele homem seus batimentos cardíacos pareciam dobrar. Na quadra, uma enterrada a favor do time da casa levou a multidão ao delírio. — A propósito, algum dia você já se perguntou se não havia algo de errado em ser mais rico
que Deus? Gamble riu. Que nem esses caras lá embaixo? — Ele apontou para a quadra de basquete. — Na verdade, com base nas atuais condições do mundo, acho que tive um ano melhor do que Deus. — Ele esfregou os olhos. — Mas, como falei, não se trata mais de dinheiro. Você está certo, tenho mais do que preciso e do que algum dia virei a precisar. Mas gosto do respeito que o fato de se estar por cima traz. Todo mundo espera para ver o que você fará. Não confunda respeito com medo. — No meu dicionário as duas palavras vêm juntas. Olha, cheguei até aqui sendo um filho da mãe de um cara durão. Você me prejudica, eu prejudico você em dobro. Fui criado na pobreza, tomei um ônibus para Nova York quando tinha quinze anos, comecei em Wall Street como office-boy, ganhando alguns dólares por dia, trabalhei duro até chegar em cima e nunca olhei para trás. Fiz fortunas, perdi fortunas e tornei a ganhar. Bolas, tenho meia dúzia de condecorações das mais importantes universidades e nunca cheguei a concluir o secundário. Só se precisa fazer uma coisa: doações. — Ele arqueou as sobrancelhas e riu. Parabéns. — Sawyer preparou-se para se levantar. — Acho que vou andando, então. Gamble agarrou-o pelo braço e soltou imediatamente. — Olha, eu li o jornal. Falei com Hardy. E posso sentir o bafo da RTG na minha nuca. — Conforme já falei, o problema não é meu. — Não me incomodo de entrar numa briga limpa, mas macacos me mordam se vou perder tudo porque um funcionário me traiu. — Um funcionário talvez o tenha traído. Não temos nada comprovado ainda. E, quer você goste ou não, isso é tudo o que interessa numa corte de justiça. — Você viu a fita de video. Que outra prova é preciso? Que inferno, tudo o que estou pedindo é para você cumprir sua obrigação. O que é que há de errado nisso? — Vi Jason Archer dando alguns documentos para algumas pessoas. Não tenho ideia de que documentos eram ou de quem eram aquelas pessoas. Gamble endireitou-se na cadeira. — Olha só, o problema aqui é que se a RTG tiver conhecimento da minha proposta e fizer uma proposta melhor para comprar a CyberCom, estou ferrado. Preciso que você prove que eles me lesaram. Uma vez que consigam ficar com a CyberCom, não vai interessar mais como foi que a obtiveram, é deles. Será que você entende a razão pela qual me sinto dessa maneira?— Estou trabalhando tanto quanto posso, Gamble. Mas não há absolutamente uma maneira que me faça orientar minha investigação pela sua agenda de negócios. O assassinato de 181 pessoas inocentes significa muito mais para mim do que quanto você paga de imposto de renda. Será que você entende a razão pela qual me sinto dessa maneira? Gamble deu de ombros ao cabo de algum tempo e Sawyer prosseguiu: — Se for descoberto que a RTG estava por trás disso, você pode ficar descansado que dedicarei todo o meu tempo a meter os responsáveis na cadeia.
— Mas você não pode dar um aperto neles desde já? Bastaria o FBI investigar a RTG para tirá-la da concorrência pela CyberCom. — Estamos investigando o caso, Gamble. Essas coisas tomam tempo. Burocracia, com um B maiúsculo, lembra? — Tempo é algo de que não disponho em muita quantidade — resmungou. — Sinto muito, a resposta ainda é não. Agora, há mais alguma coisa que eu não possa fazer por você? Os dois homens assistiram ao jogo em silêncio por alguns minutos. Sawyer pegou um binóculo em cima da mesa à sua frente. Enquanto observava a ação mais de perto, disse: — O que é que há com a Tyler e Stone? Gamble fez uma careta. — Se não estivéssemos tão adiantados na negociação com a CyberCom, eu dispensaria aquela gente agora mesmo. Mas o fato é que preciso da competente assessoria jurídica deles e de sua tradição institucional. Pelo menos por ora. — Mas isso não inclui Sidney Archer. Gamble sacudiu a cabeça. — Nunca imaginei que aquela moça fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Uma advogada incrível. E além de tudo um doce de pessoa. Que desperdício. Como assim? Gamble olhou para ele, espantado. — Desculpa, mas será que lemos o mesmo jornal? Ela está metida nisso até o belo rabo. Acha mesmo? Você não acha? Sawyer deu de ombros e terminou a cerveja. — A moça viaja imediatamente depois da cerimônia fúnebre do marido — continuou Gamble. — Hardy me diz que ela tentou se livrar da perseguição de vocês. Você a seguiu até Nova Orleans. Ela age de modo suspeito, volta direto para casa após dar um telefonema. Hardy disse também que você pensou que podiam ter entrado na casa, aproveitando que ela arrastara todo mundo para longe. Por falar nisso, foi brilhante o modo como vocês deixaram que isso acontecesse. Vou ser cuidadoso com o que disser a Frank no futuro. — Pago a ele uma montanha de dinheiro. É melhor que ele me mantenha bem informado. — Tenho certeza de que ele vale cada centavo. — Centavo! Só pode ser piada. Sawyer olhou de lado para Gamble. Apesar de tudo o que ele já fez em seu benefício, você não parece ter Frank em alta estima. Gamble deu uma risada. — Acredite se quiser, os meus padrões são realmente altos. — Frank foi um dos melhores agentes que já saíram do FBI. — Tenho memória curta para bom trabalho. Você tem que mostrar serviço o tempo todo. — O sorriso de Gamble transformou-se rápido em uma expressão rancorosa. — Por outro lado, nunca esqueço quem me ferra. Eles continuaram a assistir o jogo em silêncio. Finalmente Sawyer perguntou: — Quentin algum dia ferrou você? Gamble pareceu espantar-se com a indagação.
— Por que pergunta isso?— Porque o cara é sua galinha dos ovos de ouro e segundo o que todo mundo diz você o trata como um bosta. — Quem disse que ele é a minha galinha dos ovos de ouro? — Você diz que ele não é? — Sawyer recostou-se e cruzou os braços. Gamble não respondeu de pronto. Ficou em silêncio, pensativo, olhando para o copo. — Tive uma porção de galinhas de ovos de ouro na minha carreira. Não se chega aonde estou só com um cavalo. — Mas Rowe é valioso para você. — Se não fosse, eu não teria o que fazer com a empresa dele. — Então você o tolera? — Enquanto os dólares continuarem entrando. — Você é que é feliz. O olhar de Gamble foi feroz. — Peguei um maluco que vivia isolado numa torre de marfim e que era incapaz de ganhar um único centavo e o transformei num dos trinta homens mais ricos deste país. Agora, quem você acha que é o felizardo? Sawyer inclinou a cabeça na direção do homem. — Não estou tirando a razão de você, Gamble. Você correu atrás de um sonho e conseguiu realizá-lo. Acho que isso traduz o sonho americano. — Vindo de um federal, terei realmente que me contentar com isso. — Gamble mais uma vez concentrou-se no jogo de basquete. Sawyer levantou-se e amassou a lata de cerveja. — Onde é que você vai? — Para casa. Foi um dia longo. — Ele ergueu a lata amassada. — Obrigado pela cerveja. Vou mandar meu motorista levar você em casa. Vou ficar aqui mais um pouco. Sawyer avaliou com um olhar o luxuoso camarote. — Acho que já tive o suficiente da boa vida por hoje. Vou pegar o ônibus. Mas obrigado pelo convite. É, também gostei — disse Gamble, com o mais pesado dos sarcasmos. O agente do FBI começara a galgar a escada, mas o chamado de Gamble: — Ei, Sawyer! — fez com que se voltasse. Gamble o fitou diretamente nos olhos e deixou escapar um suspiro. — Eu entendo as suas razões, OK? Sawyer sustentou o olhar dele antes de responder. — OK. Não fui sempre rico assim. Lembro muito bem do que é não ter dinheiro nem poder. Talvez seja esta a razão pela qual sou do jeito que sou quando se trata de negócios, tenho pavor de voltar aos tempos de pobreza. Sawyer considerou por um momento as palavras de Gamble. — Aproveite bem o resto do jogo. — Deixou Gamble com o olhar fixo no vidro, imerso em seus pensamentos. Quando Sawyer desceu a escada, quase tropeçou em Richard Lucas, que assumira uma posição ali. Perguntou-se se Lucas teria ouvido qualquer parte da conversa que tivera com
Gamble. Balançou a cabeça para ele e chegou à área do bar, onde, com um belo gancho, arremessou a lata de cerveja, acertando com perfeição na lata de lixo. A moça do bar olhou para ele com admiração. — Ei, talvez os Bulletts devam contratar você — disse, com um sorriso lindo. É, posso servir de símbolo: o cara branco e velho do time. Sawyer virou-se antes de retirarse. — Continue sorrindo, Rich.
CAPÍTULO QUARENTA E QUATRO JEFF FISHER TINHA OS OLHOS fixos na tela, com devoção. Sidney Archer, exausta, estava ao seu lado. Dera a ele todas as informações pessoais a respeito de Jason que pudera imaginar, na tentativa de descobrir a senha. Nada funcionara. Fisher sacudiu a cabeça. — Bem, já testamos todas as possibilidades mais fáceis e variações resultantes. Já desencadeei um assalto na base da força bruta e não consegui nada. Tentei uma abordagem parcial aleatória na base de letras e números, mas há tantas possibilidades que iríamos levar a vida inteira. — Ele se voltou para Sidney. — Acho que o seu marido realmente sabia o que estava fazendo. O que imagino é que ele provavelmente usou uma combinação aleatória com cerca de vinte ou trinta caracteres. Não vamos conseguir quebrar esse código. As esperanças de Sidney ruíram. Era enlouquecedor, ter em mãos um disquete cheio de informações — que tudo indicava serem informações que explicariam muita coisa a respeito do destino do seu marido — e ser absolutamente incapaz de lê-las. Levantou-se e andou pela sala, enquanto Fisher continuava a tentar qualquer coisa no teclado. Atravessou a sala e se deteve em frente à janela. Em cima de uma mesa junto da janela havia uma pilha de correspondência. Encimando a pilha, uma revista Field & Stream. Sidney deu uma espiada desatenta nos envelopes, olhou a revista e em seguida olhou para Fisher. Ele estava longe de parecer um tipo habituado à vida ao ar livre, interessado na leitura de uma revista especializada na vida no campo. Em seguida leu a etiqueta de endereçamento na capa. A Field & Stream era destinada a um tal Fred Smithers, mas tinha o endereço da casa em que se encontrava. Pegou a revista. Fisher olhou para ela enquanto terminava sua Coca-Cola. Quando viu a revista nas mãos dela, fez uma careta. — Recebo sempre a correspondência desse cara. Um bando de empresas, não sei como, têm o meu endereço no nome desse sujeito. O meu endereço é Thorndike 6215 e o dele é Thorndrivc 6251, que, é claro, fica no condado de Fairfax. Essa pilha toda aí é dele. E isto é só o que chegou esta semana. Já falei com o carteiro encarregado desta rota, liguei para o Serviço Postal um milhão de vezes e telefonei para todas as empresas que vêm mandando a correspondência erradamente para cá. Não adiantou nada. Continua vindo. Sidney virou-se lentamente para Fisher. Uma ideia improvável começava a tomar forma na sua cabeça. — Jeff, um endereço eletrônico é como qualquer outro endereço ou um número de telefone, certo? Você digita o endereço errado e sua mensagem pode ir para alguém que você nem conhece. Como esta revista. — Ela levantou a Field & Stream. — Certo? — Oh, sem dúvida — respondeu Fisher. — Acontece o tempo todo. Eu tenho a maioria dos endereços que uso com mais frequência programados de tal modo que só tenho de apontar para o que desejo e clicar. Isso reduz ao mínimo minha margem de erro.
— Mas e se você tivesse de digitar todo o endereço? Bem, neste caso aumenta muito a probabilidade de erro. Os endereços às vezes são muito extensos. Sidney olhou para ele, intrigada. — O que é que você faz quando isso acontece? — Bem, o que acontece na maioria das vezes é muito simples. Mando uma mensagem padrão dizendo que eles erraram de endereço e envio a correspondência que recebi de volta para que saibam do que estou falando. Desse modo não preciso saber o verdadeiro endereço. Ela é enviada automaticamente de volta para onde foi originada. — Jeff, você quer dizer que se o meu marido enviou um email para a localização errada, a pessoa que recebeu o e-mail por engano pode simplesmente devolvê-lo para o endereço de Jason a fim de que ele tome conhecimento do engano? — Certo. Quer dizer, se os dois forem atendidos pelo mesmo servidor, digamos a America Online, será relativamente simples. — E se a pessoa devolveu a mensagem, ela agora estaria na caixa de correio eletrônica de Jason, certo? Fisher levantou os olhos para ela, uma expressão ligeiramente temerosa por causa do tom da voz dela. — Certo. Sidney pegou a bolsa. Fisher olhou para ela. — Onde é que você vai? — Vou verificar o nosso computador de casa para me certificar se há algum e-mail. Se a senha estiver na mensagem, vou conseguir ler o disquete. — Sidney fez o disquete saltar do drive e colocou-o no bolso. — Sidney, se você me der o nome de usuário do seu marido e a senha, posso acessar a correspondência daqui de casa mesmo. — Eu sei, Jeff. Mas o seu acesso à correspondência de Jason não poderia ser rastreado daqui? Os olhos de Fisher se estreitaram. — É possível. Se quem procurasse soubesse o que estava fazendo. — Acho que temos que presumir que toda essa gente sabe muito bem o que faz, Jeff. E seria muito mais seguro para você se ninguém soubesse que o tal e-mail foi rastreado a partir do seu computador. Fisher ficou mais pálido ainda. E quando falou, falou nervosamente, o nervosismo evidente no seu tom de voz e nas suas feições. — Em que foi que você se envolveu, Sidney? Ela deu as costas para ele. — Manterei contato. Depois que ela saiu, Fisher permaneceu sentado diante da tela por mais alguns minutos e depois plugou a linha telefônica no seu computador. Sawyer, sentado na poltrona, dava mais uma espiada na matéria do Post que falava de Jason Archer. Dobrou o jornal e quando seus olhos deram com a outra manchete, quase engasgou.
Levantou-se de um pulo, pegou o telefone e fez uma série de ligações. Em seguida, desceu voando a escada. Sidney estacionou o Ford na entrada da garagem, entrou correndo em casa, livrou-se do casaco e foi direto para o escritório do marido. Já ia acessar a sua caixa de correio da AOL quando interrompeu a operação, com um sobressalto. — Oh, meu Deus! — Não podia acessar a AOL dali, não com o que quer que fosse que haviam instalado ali. Pensou depressa. A Tyler e Stone tinha o software da AOL nos seus computadores: podia acessar de lá. Pegou o casaco, correu para a porta da frente e a abriu. O grito que deu foi ouvido facilmente dos dois lados da rua. Lee Sawyer estava lá, não parecendo nada satisfeito. Ela recuperou o fôlego e puxou o casaco. — O que é que você está fazendo aqui? Em resposta, Sawyer levantou o jornal. — Por acaso você leu esta matéria aqui? — Sidney olhou espantada a foto de Ed Page, o rosto dela traduzindo o reconhecimento que não foi capaz de ocultar. — Eu... Eu não, é que... — gaguejou. Sawyer entrou e bateu com a porta. Sidney recuou para a sala de estar. — Pensei que tivéssemos um trato. Lembra? Troca de informações? Bem, vamos conversar. Agora! — gritou ele. Ela o empurrou na direção da porta. Ele segurou-a pelo braço e a atirou no sofá. Ela procurou se levantar de novo, gritando: — Fora daqui! Ele sacudiu a cabeça e ergueu o jornal. — Quer agir sozinha? Então é melhor sua filhinha arranjar uma outra mãe. Ela se adiantou, deu-lhe uma bofetada no rosto e já ia se preparando para dar outra quando ele pegou-a com ambos os braços e a abraçou com força. Sidney lutou furiosamente. — Sidney, não estou aqui para brigar com você. Quer o seu marido tenha feito algo de errado ou não, eu vou ajudar você. Mas que droga, você tem que jogar limpo comigo. Eles atravessaram a sala lutando e caíram desajeitadamente no sofá, Sidney no colo de Sawyer, tentando esbofeteá-lo de novo. Ele continuou segurando-a com força até que a tensão nos seus braços finalmente desapareceu. Aí então soltou-a e ela foi imediatamente para a outra ponta do sofá, com a cabeça baixa, o rosto no colo. Ele recostou-se e ficou aguardando. Ao cabo de algum tempo Sidney se sentou de novo e enxugou as lágrimas com a manga. Com os lábios ressequidos, olhou para o jornal no chão. A foto de Ed Page parecia atrair sua atenção. — Você conversou com ele no avião que veio de Nova Orleans, não foi? — Sawyer fez a pergunta serenamente. Ele vira Page embarcar no avião em Nova Orleans. A lista de passageiros revelara que ele se sentara do lado de Sidney. O fato não fora considerado importante, até agora. — Não conversou, Sidney? — Ela aquiesceu, balançando a cabeça devagar. — Fale-me sobre isso. E desta vez eu quero saber tudo. E ela contou, inclusive a história contada por Page da troca efetuada por Jason no
aeroporto e que Page a seguira e grampeara o seu telefone. — Falei com o legista que fez a autópsia de Page — disse Sawyer, quando ela terminou. — Page foi morto por alguém que sabia exatamente o que estava fazendo. Uma perfuração em cada pulmão. Um corte de precisão secionando a artéria carótida e a veia jugular. Page morreu em menos de um minuto. Quem quer que tenha feito isso, não foi um bandido qualquer de rua. Sidney respirou fundo. — Foi por isso que eu quase dei um tiro em você na garagem. Pensei que tivessem vindo me pegar. — Você não tem ideia de quem são essas pessoas que estariam querendo pegá-la? Sidney sacudiu a cabeça e esfregou o rosto de novo. Depois endireitou o corpo e olhou para ele. — Eu na verdade não sei nada além do fato de que minha vida se transformou num verdadeiro inferno. Sawyer segurou uma das mãos dela. — Bem, vamos ver se podemos ajudá-la a sair desse inferno. — Ele se levantou e pegou o casaco dela que caíra no chão. — O escritório de investigações particulares de Page fica em Arlington. em frente ao tribunal. Vou passar lá. E neste exato momento prefiro que você esteja onde eu possa ficar de olho. Combinado? Sidney engoliu em seco quando, cheia de culpa, apalpou o disquete que estava no seu bolso. Aquele era um segredo que não conseguira revelar, ainda. — Combinado. O escritório de Edward Page ficava em um prédio comercial baixo e sem nada que o distinguisse dos demais, localizado diante do edifício onde ficava o Tribunal Itinerante do Condado de Arlington. O segurança de serviço não poderia ter sido mais solícito depois de ter visto as credenciais de Lee Sawyer. Levou-os até o elevador e, em momentos, saltavam no terceiro andar, percorriam o corredor iluminado por uma luz mortiça e iam parar diante de uma porta de carvalho, sólida, e com o nome PRIVATE SOLUTIONS gravado em uma placa ao lado. O guarda puxou a chave e tentou abrir a porta. — Que droga! — O que é? — perguntou Sawyer. — A chave não vira. — A sua chave mestra não deveria abrir qualquer porta do prédio? — indagou Sidney. — Devia, claro. Já tivemos um problema com esse cara antes. — Como assim? — Quis saber Sawyer. O guarda os encarou. Ele mudou o segredo. A administração ficou uma fera e por isso ele entregou outra chave que disse se ajustar ao novo segredo. Pois bera, posso garantir a vocês neste exato momento que não é verdade. Sawyer olhou para os dois lados do corredor. — Algum outro modo de entrar? O guarda sacudiu a cabeça.
De jeito nenhum, Posso tentar telefonar para a casa do Sr. Page. Dizer a ele para dar um pulo aqui e abrir a porta. E também dizer-lhe poucas e boas por isso. E se houvesse algum problema e eu tivesse que entrar lá dentro? — O guarda bateu no coldre, fazendo-se de importante. — Entendem o que quero dizer?— Não creio que chamar Page fosse adiantar alguma coisa — disse Sawyer tranquilamente. — Ele está morto. Assassinado. O sangue fugiu do rosto do rapaz. — Jesus Cristo! Oh, meu Deus! — A polícia ainda não veio aqui, veio? — perguntou Sawyer. O guarda sacudiu a cabeça. — Como é que vamos entrar? — perguntou o segurança. Como resposta, Sawyer arremessou o corpanzil contra a porta, que estilhaçou-se sob o impacto. Mais uma arremetida e a fechadura cedeu e a porta abriu-se, batendo na parede interna da sala. Sawyer, ao mesmo tempo em que espanava o sobretudo com a mão, olhou para o jovem guarda, assombrado. — Falamos com você quando sairmos. Muito obrigado. O guarda ficou boquiaberto por alguns segundos enquanto os dois entravam na sala. Depois retornou lentamente para o elevador, sacudindo a cabeça. Sidney olhou para a porta quebrada e depois para Sawyer. — Eu não acredito que ele nem sequer tenha pedido a você um mandado. A propósito, você tem um? Sawyer encarou-a. — O que isso significaria para você? — Como advogada, eu teria perguntado. Ele encolheu os ombros largos. — Faço um trato com você então, na qualidade de advogada. Se encontrarmos alguma coisa, você fica de posse do objeto achado e eu vou buscar o mandado. — Em outras circunstâncias Sidney Archer teria caído na risada, mas do jeito como as coisas andavam, a resposta de Sawyer só lhe arrancou um sorriso. O que serviu também para animá-lo um pouco. O escritório pequeno era comum mas arrumado meticulosa e eficientemente. Durante a meia hora seguinte eles revistaram tudo, sem encontrar nada fora do lugar nem extraordinário. Papel timbrado com o endereço residencial de Page — um apartamento em Georgetown. Sentado na beira da mesa, Sawyer comentou: — Eu gostaria que a minha sala fosse assim tão arrumada. Mas não vejo nada aqui que possa nos ajudar. — Ele olhou em torno com a expressão melancólica. — Eu me sentiria melhor se tivesse sido saqueado. Aí então saberíamos pelo menos que havia mais alguém interessado em Ed Page. Enquanto ele falava, Sidney fez mais uma inspeção. Voltou abruptamente para o canto onde havia uma fileira de arquivos de metal cinza-escuro. Ela olhou para o chão, acarpetado em bege. — Estranho — comentou, ajoelhando-se e quase encostando o rosto no carpete. Examinava uma pequena brecha entre os dois arquivos mais próximos. Os outros estavam totalmente encostados, os fundos colados um no outro. Ela encostou o ombro num dos arquivos e empurrou. O móvel, pesadão, nem se abalou. Pode me dar uma mãozinha aqui? — pediu a
Sawyer. Ele se aproximou, fez um gesto para que ela saísse da frente e empurrou o arquivo. — Agora acende a luz nesse canto — disse Sidney, agitada. Sawyer acendeu e foi se colocar ao lado dela. — O que é? Ela se afastou para que o agente do FBI pudesse ver. No chão, justo onde o armário estava antes, havia uma mancha de ferrugem, não muito grande mas claramente visível. Perplexo, Sawyer olhou para ela. — E daí? Posso lhe mostrar uma dúzia dessas na minha sala. O metal enferruja, acaba manchando o carpete. Só isso! Manchas de ferrugem. Os olhos de Sidney brilhavam. — É mesmo? — Ela apontou triunfantemente: havia leves mas discerníveis marcas no carpete, mostrando que o arquivo originalmente tivera a parte de trás colada em outro. Não havia separação entre eles. Ela indicou com um gesto o arquivo que Sawyer acabara de empurrar. Vira para ver o fundo. Sawyer examinou o fundo. — Sem ferrugem — disse, olhando para ela. — Então alguém empurrou este arquivo para cobrir uma marca de ferrugem. Por quê? — Porque a marca de ferrugem veio de outro arquivo. Um armário de aço que não mais se encontra aqui. Quem o levou passou aspirador o melhor que pôde para apagar as marcas deixadas pelo outro armário nos pêlos do carpete mas não conseguiu tirar a mancha. Por isso fizeram a melhor alternativa que lhes restava. Cobriram a mancha com outro arquivo e torceram para que ninguém percebesse a brecha. Mas acontece que você percebeu — disse Sawyer, com algo mais que admiração na voz. — Não consigo entender como um sujeito tão arrumadinho como o nosso Sr. Page ia tolerar uma brecha entre seus arquivos. Resposta: foi outra pessoa que fez isso, e não ele. — O que significa uma pessoa interessada em Edward Page e no que ele tinha dentro do tal arquivo. — Sawyer pegou o telefone em cima da mesa de Page e, em poucas palavras, mandou que Ray Jackson descobrisse tudo o que pudesse a respeito de Edward Page. Quando desligou, virou-se para Sidney. — Já que o escritório dele não rendeu grande coisa, o que é que você me diz de fazermos uma visita ao modesto domicílio do falecido Edward Page?
CAPÍTULO QUARENTA E CINCO A RESIDÊNCIA DE PAGE EM GEORGETOWN ficava no andar térreo de um casarão da virada do século transformado em um conjunto de atraentes apartamentos. O sonolento proprietário não questionou a intenção de Sawyer. Lera a notícia da morte no jornal e ficara profundamente consternado. Também havia recebido um telefonema da filha de Page em Nova York. O investigador particular era um inquilino padrão. Seu horário era de certa forma irregular, e às vezes ele passava dias seguidos fora, mas pagava o aluguel sempre no primeiro dia do mês e era um homem tranquilo e ordeiro. Não tinha amigos íntimos. Usando uma chave cedida pelo proprietário, que residia no mesmo prédio, Sawyer abriu a porta da frente do apartamento e entrou com Sidney; acendeu a luz e fechou a porta. Tinham verificado o registro da segurança do prédio antes de deixar o escritório de Page. O arquivo fora removido dois dias antes por dois sujeitos com o uniforme de uma transportadora que tinham não só uma ordem de serviço aparentemente legal como também a chave do escritório. Sawyer imaginou que a transportadora certamente devia ser fictícia e o conteúdo do arquivo de Page, muito provavelmente um tesouro de informações interessantes, àquela altura provavelmente não passava de uma pilha de cinzas no fundo de algum incinerador. O interior da residência lembrava o escritório, em simplicidade e ordem. Sawyer e Sidney passaram pelos diversos cômodos, examinando a planta básica do apartamento. Uma bela lareira com um enorme console em estilo vitoriano dominava a sala de estar. Uma das paredes era coberta de estantes. Edward Page foraum leitor voraz e eclético, se a sua coleção de livros servia de indicativo. Não havia, contudo diários. registros ou recibos que pudessem mostrar onde estivera ultimamente ou quem poderia estar seguindo além de Sidney e Jason Archer. Depois de vasculharem metodicamente as salas de estar e de jantar, Sawyer e Sidney prosseguiram pelo resto da casa. A cozinha e o banheiro não apresentaram nada de interesse. Sawyer tentou os lugares de sempre, como a caixa d'água da descarga em cima do vaso e a geladeira, onde examinou latas de Coca e pés de alface para se certificar de que eram reais e não esconderijos contendo indícios dos motivos pelos quais Ed Page fora assassinado. Sidney entrou no quarto de dormir, onde realizou uma revista completa, começando por baixo da cama e colchão e terminando com o armário. As poucas malas não tinham etiquetas velhas de companhias aéreas. As cestas de papel estavam vazias. Ela e Sawyer se sentaram na cama e vasculharam o quarto com os olhos. Ele viu um pequeno conjunto de porta-retratos sobre a mesa-de-cabeceira. Edward Page e família, obviamente em tempos mais felizes. Sidney pegou uma das fotos. — Bela família. — Seus pensamentos subitamente se desviaram para as fotos que tinha em casa. Parecia fazer muito tempo que aquela frase ainda podia ser aplicada à sua família. Passou a foto para Sawyer.
A mulher era bonita de verdade, pensou ele, e o filho uma miniatura do pai. A filha era linda. Ruiva, com as pernas longas, devia ter uns quatorze anos na época da foto. A data estampada na foto mostrava que fora tirada cinco anos antes. Devia ser uma bela mulher agora, pensou Sawyer. E no entanto, de acordo com o proprietário do apartamento, estavam todos em Nova York. menos Page. Por quê? Quando Sawyer começou a repor a foto da família de Page no lugar, sentiu uma saliência na parte de trás do porta-retratos. Abriu e caíram diversas fotos da metade do tamanho da que estava emoldurada. Pegou-as no chão e viu que eram todas da mesma pessoa. Um homem jovem, não mais que vinte e cinco anos. Boa aparência, bonito demais para o gosto de Sawyer — um menino bonito, foi o primeiro pensamento que passou na cabeça do agente do FBI. Roupas demasiado elegantes, cabelo perfeito demais, Sawyer imaginou reconhecer um traço de semelhança com Ed Page na linha do queixo e em torno dos olhos castanhos profundos. Todas estavam em branco, exceto uma, na qual haviam escrito "Stevie". Possivelmente o irmão de Page. Neste caso, por que motivo as fotos estavam escondidas? Sidney olhou para ele. — O que é que você acha? Ele deu de ombros. — Às vezes eu penso que este caso vai requerer muito mais raciocínio de que sou capaz. — Sawyer recolocou todas as fotos no mesmo lugar, exceto a que tinha o nome escrito atrás. Esta ele guardou no bolso do paletó. Deram mais uma olhada no quarto, se levantaram e foram embora, deixando a porta seguramente trancada. Sawyer levou Sidney até em casa e, por excesso de precaução, conduziu uma revista cuidadosa em tudo, assegurando-se de que a casa estava vazia, com todas as janelas e portas funcionando normalmente. — Dia e noite, se ouvir alguma coisa, se tiver qualquer problema, se apenas quiser conversar, só tem que me chamar. Entende? — Sidney fez que sim. — Tenho dois homens lá fora. Eles podem estar aqui em segundos. — Ele caminhou até a porta. — Vou tomar umas providências e voltarei pela manhã. — Ele virou-se para fitá-la. — Você vai ficar bem? Vou. — Sidney cruzou os braços, como se quisesse se agasalhar. Sawyer suspirou e encostou-se na porta. — Espero que um dia possa entregar este caso resolvido a você, com tudo no devido lugar, Sidney. Palavra que é o que eu quero. — Você... você ainda acredita que Jason seja culpado, não é? Acho que não posso culpá-lo. Tudo... aponta para isso, eu sei. — Os olhos dela examinaram a expressão apreensiva de Sawyer. O homem grande suspirou e desviou o rosto por um momento. Quando voltou a fitá-la, ela viu um certo brilho nos seus olhos. Vamos colocar desse modo, Sidney — disse ele. — Estou começando a ter certas dúvidas. Ela não entendeu. — Sobre Jason? — Não, sobre tudo o mais. Posso lhe prometer isto: minha prioridade máxima é encontrar seu marido são e salvo. Depois podemos tratar do resto. OK? Sidney estremeceu ligeiramente e acenou com a cabeça para ele. Quando Sawyer se virou para ir
embora, ela tocou no seu braço. — Muito obrigada, Lee. Da janela ela observou Sawyer. Ele caminhou até o sedã preto com os dois agentes do FBI, olhou para a casa, localizou-a e acenou. Sidney fez uma débil tentativa de responder ao aceno. Sentia-se culpada pelo que estava prestes a fazer. Saiu da janela, apagou todas as luzes, pegou o casaco cinza e a bolsa e saiu correndo pela porta dos fundos segundos antes de um dos homens de Sawyer aparecer para guardar a área. Atravessando a vegetação que demarcava o pátio dos fundos, saiu na rua no quarteirão seguinte. Após cinco minutos de caminhada em ritmo acelerado chegou num telefone público. O táxi pegou-a ali em vinte minutos. Trinta minutos depois passava sua chave no entalhe da segurança do prédio onde trabalhava e a pesada porta de vidro abriu. Sidney correu até o hall dos elevadores e momentos depois saltava no seu andar. Dentro do espaço sombrio da Tyler e Stone, avançou silenciosamente pelo corredor. A biblioteca ficava no fim do corredor do seu andar. A porta dupla de vidro fosco estava aberta. Através dela Sidney podia ver prateleira após prateleira dos livros que compunham a impressionante biblioteca da firma. A área compreendia um imenso espaço aberto com uma série de cubículos e áreas de trabalho fechadas adjacentes. Por detrás de uma divisória, havia uma fileira de terminais de computador, que os advogados e demais funcionários e interessados usavam para fazer suas pesquisas. Sidney deu uma espiada na biblioteca antes de se aventurar em seu interior escuro. Não viu nenhum movimento, e tampouco ouviu qualquer som. Por sorte nenhum dos associados juniores tinha resolvido passar a noite em claro. As janelas nas paredes dos dois lados adjacentes da biblioteca davam para as ruas da cidade; as persianas, contudo, estavam abaixadas. Ninguém podia ver o que se passava ali dentro. Sidney sentou-se na frente de um dos terminais às escuras e arriscou-se a acender um pequeno abajur ao lado do teclado. Tirou o disquete da bolsa e colocou em cima da mesa. Um minu to depois de ligar o computador foi capaz de digitar os comandos necessários para estabelecer o contato com a America Online. Estremeceu ligeiramente quando ouviu o ruído desagradável causado pelo modem, ruído que só cessou quando a conexão foi estabelecida. Só então digitou o nome de usuário e a senha do marido, agradecendo silenciosamente a ele por tê-la feito memorizar ambos quando se associaram à AOL, dois anos atrás. Cheia de ansiedade, respiração curta, feições tensas e sentindo-se meio enjoada, ficou olhando para a tela como se fosse uma advogada de defesa aguardando o veredicto do júri. A voz digitalizada a assustou um pouco, mas era o que esperava: Você tem correspondência — disse. No corredor, dois pares de pernas avançavam rapidamente na direção da biblioteca. Sawyer levantou os olhos para Jackson. Os dois estavam na sala de reuniões do FBI. — Então, o que foi que descobriu sobre o Sr. Page, Ray? Jackson sentou-se e abriu o bloco de
anotações. Tive um excelente papo com a polícia de Nova York. Page trabalhou lá. Falei também com a ex-esposa dele. Tirei-a da cama, mas você tinha dito que era muito importante. Ela ainda mora em Nova York. Não teve muito contato com ele desde o divórcio. Page, contudo, era muito ligado aos filhos. Falei com a filha. Tem dezoito anos, está no primeiro ano da universidade e agora vai ter que enterrar o pai. — O que ela tem a dizer? — Muita coisa. Como, por exemplo, o nervosismo do pai nas últimas semanas. Não queria que o visitassem. Passara a andar armado, coisa que não fazia mais há anos. Na verdade levou uma arma para Nova Orleans, Lee. Foi encontrada em uma mala perto do corpo. O pobre coitado não teve chance de usá-la. — Por que a mudança para cá, com a família permanecendo em Nova York? Jackson balançou a cabeça. — Isto é bem interessante. A mulher não quis dizer nada. de um jeito ou de outro. Só falou que o casamento acabou e pronto. Mas a filha foi bem diferente. — Ela deu alguma razão? — O irmão mais moço de Ed Page também morava em Nova York. Cometeu suicídio há cerca de cinco anos. Era diabético. Tomou uma overdose de insulina após uma bebedeira. Page era muito ligado ao irmão mais moço. A filha disse que o pai nunca mais foi o mesmo depois disso. — E por isso ele preferiu afastar-se? Jackson sacudiu a cabeça. — O que deduzi da conversa com a filha foi que Ed Page estava convencido de que a morte do irmão não foi suicídio ou acidente — disse Jackson. — Ele achava que o irmão tinha sido assassinado? Jackson fez que sim. — Por quê? — Requisitei uma cópia do arquivo do caso à polícia de Nova York. Pode ser que haja algumas respostas lá, embora eu tenha conversado com o detetive que tratou do caso e ele tenha me dito que todos os indícios apontavam ou para suicídio ou acidente. O sujeito estava embriagado. — Se ele se matou, alguém sabe qual terá sido o motivo? Jackson recostou-se na cadeira. — Steven Page era diabético, como eu falei, de modo que sua saúde não era a coisa mais maravilhosa deste mundo. De acordo com a filha de Page, o tio não conseguia regular direito a quantidade de insulina aplicada. Embora tivesse só vinte e oito anos quando morreu, seus órgãos internos provavelmente eram muito mais velhos. — Jackson parou de falar e consultou as anotações. — Além de tudo, Steve Page tinha feito recentemente um exame em que descobriu que era HIV positivo. — Que droga. Isso explica a bebedeira — disse Sawyer. — Provavelmente. — E talvez o suicídio. — É o que a polícia de Nova York pensa. — Como ele contraiu? Jackson sacudiu a cabeça. Ninguém sabe. Oficialmente, pelo menos. Quer dizer, o relatório do legista não seria capaz
de determinar a origem da contaminação. Perguntei à ex-mulher de Page. Não adiantou nada. A filha, contudo, diz que o tio era gay. Não abertamente, mas ela mostrou-se bastante segura a este respeito e acha que foi assim que contraiu o vírus. Sawyer esfregou a cabeça e bufou. Será que pode haver uma conexão entre o possível assassinato de um gay em Nova York há cinco anos, Jason Archer roubando seu patrão e um avião derrubado na Virgínia? Jackson mordeu o lábio. — Talvez, por alguma razão que não conhecemos, Page soubesse que Archer não se encontrava naquele avião. Sawyer sentiu-se culpado por um instante. Graças à sua conversa com Sidney — uma conversa que não relatara ao parceiro -Sawyer sabia que Page tinha consciência de que Jason não estava no avião. — Assim, quando Jason Archer desaparece, Page vai ver se encontra a pista dele através da mulher. — Faz sentido, por ora. Ei, talvez tenha sido a Triton que contratou Page para verificar vazamentos e ele deu com a pista de Archer. Sawyer sacudiu a cabeça. — Somando o pessoal da casa e a firma de Frank Hardy, eles têm gente mais do que suficiente para fazer um trabalho desses. Uma mulher entrou na sala carregando uma pasta. Ray, acaba de chegar pelo fax, enviado pela polícia de Nova York. Jackson pegou o documento. — Obrigado, Jennie. — Depois que ela saiu ele estudou o papel que chegara, ao mesmo tempo em que Sawyer dava uns telefonemas. — Steven Page? — indagou Sawyer, apontando para o fax. — Exato. Um troço realmente interessante. Sawyer serviu-se de outra xícara de café e sentou-se ao lado do parceiro. — Steven Page era funcionário da Fidelity Mutual, em Manhattan — disse Jackson. — Um dos maiores bancos de investimentos do país. Morava em um belo apartamento: cheio de antiguidades, pinturas a óleo originais, o armário cheio de roupas da Brooks Brothers; um Jaguar na garagem situada mais abaixo na mesma rua. Tinha também uma carteira de investimentos hem extensa; ações, títulos, fundos mútuos, o diabo. Algo valendo acima de um milhão de dólares. — Muito bom para um sujeito de vinte e oito anos de idade. Mas acho que esses banqueiros de investimentos têm lucros muito altos. Você ouve o tempo todo histórias dessa gente ganhando fortunas para fazer o que só Deus sabe o que será. Provavelmente ferrando gente como eu e você. — Só que Steven Page não era banqueiro de investimentos. Era analista financeiro, observador do mercado. Posição estritamente assalariada.
A testa de Sawyer franziu. — Então, de onde vieram os recursos para o portfolio do cara? Fraude cometida contra a Fidelity? Jackson sacudiu a cabeça. — A polícia de Nova York examinou esta possibilidade. Não havia nada faltando na Fidelity. — E qual foi a conclusão a que os nossos amigos de Nova York chegaram? — Não creio que tenham chegado a concluir alguma coisa. Page foi encontrado sozinho no apartamento, portas e janelas trancadas por dentro. E uma vez que o relatório do legista falava em um provável suicídio consumado por uma overdose de insulina, perderam praticamente todo o interesse. Para o caso de você não saber, eles têm um bocado de homicídios para resolver lá na Big Apple, Lee. — Muito obrigado por me esclarecer, Ray, quanto ao problema do número de cadáveres da cidade de Nova York. E então, quem foi que herdou? Jackson deu uma espiada no relatório. — Steven Page não deixou testamento. Seus pais estavam mortos. Ele não tinha filhos. O irmão, Edward Page, como único parente vivo, recebeu tudo. Sawyer tomou um gole de café. — Interessante. — Mas eu não acho que Ed Page tenha acabado com o irmão mais moço para custear educação universitária dos filhos. Pelo que pude apurar, ele ficou tão espantado quanto todo mundo com o fato de o irmão ser milionário. — Alguma coisa na autópsia chamou a sua atenção? Jackson pegou duas folhas e passou-as a Sawyer. — Como falei, uma overdose maciça de insulina matou Steven Page. Ele injetou em si próprio, na coxa. É uma área típica de administração de insulina para diabéticos. Outros pontos com marcas de agulha em torno da coxa mostraram que era também para ele sua área normal de aplicação de injeções. O laudo da toxicologia apontou um nível de álcool no sangue de zero ponto dezoito. O que não o ajudou em nada quando ele tomou a overdose. O algor mortis indicou que estava morto há cerca de 12 horas quando foi encontrado; a temperatura do corpo era de mais ou menos 27 graus. O corpo estava rígido, o que corrobora a hora da morte indicada pela temperatura do corpo e a coloca em um ponto qualquer entre três e quatro horas da manhã. A lividez post-mortem tinha se fixado. O sujeito morreu ali mesmo onde o encontraram. — Quem o encontrou? — A proprietária do apartamento — respondeu Jackson. Provavelmente não foi uma visão bonita. — A morte raramente é. Deixou algum bilhete? Jackson sacudiu a cabeça. Ele deu algum telefonema antes de bater as botas? — O último telefonema que Steven Page deu do seu apartamento foi às sete e meia daquela noite. Ligou para quem? — O irmão.
— A polícia falou com Ed Page? Pode apostar que sim. Especialmente depois de descobrirem a grana que ele deixou. — Ed Page tinha um álibi? — Um excelente. Como você sabe, naquele tempo ele era policial. Pois o homem estava atuando em uma operação antidrogas com um grupo de policiais na hora em que o irmão mais moço morria. — A polícia interrogou Ed Page sobre a conversa telefônica que tiveram? — Ele contou que o irmão estava profundamente agitado. Steven lhe contou que estava com o vírus HIV. Ed falou que teve a impressão que o irmão havia bebido. — Não tentou ir vê-lo pessoalmente? — Disse que foi esta sua intenção, mas que o irmão não quis nem ouvir falar. E terminou por bater com o telefone na sua cara. Ed tentou ligar de novo, mas não houve resposta. Como tinha que entrar de serviço às 21 horas, Ed Page desistiu, resolvendo deixar o irmão em paz naquela noite e tentar falar com ele no dia seguinte. Não saiu do serviço senão às dez horas. Dormiu algumas horas e em seguida foi ao escritório do irmão no centro da cidade, por volta das três. Quando descobriu que o irmão não aparecera lá, foi diretamente ao apartamento. Chegou mais ou menos na mesma hora que a polícia. — Jesus. Aposto como o nosso amigo teve uma baita de uma sensação de culpa. — Se tivesse sido com o meu irmão mais moço... — disse Jackson. — Maldição. De qualquer modo, declararam que foi um suicídio. Todos os fatos certamente apontam nessa direção. Sawyer levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. — E mesmo com tudo isso, ainda assim Ed Page acha que não foi suicídio. Eu gostaria de saber o motivo. Jackson deu de ombros. — Pensamento desejoso. Pode ser que realmente se sentisse culpado e se sentisse melhor pensando assim. Quem sabe? A polícia de Nova York não achou qualquer indício de ilícito, e, examinando este relatório, nem eu tampouco. Sawyer não respondeu, imerso em profundos pensamentos. Jackson pegou o relatório sobre Steven Page e o recolocou no arquivo. Olhou para Sawyer. — Encontrou alguma coisa no escritório de Page? Sawyer olhou distraidamente para o parceiro. — Não. Mas na verdade encontrei alguma coisa interessante na casa dele. — Sawyer enfiou a mão no bolso do paletó, retirou a foto onde havia sido escrito "Stevie" e entregou a Jackson. — O interessante é que estava mais ou menos escondida por detrás de outra foto. Tenho quase certeza absoluta de que é uma foto de Steven Page. Assim que os olhos de Jackson viram a foto, seu queixo caiu. — Oh, meu Deus! — Ele se levantou da cadeira. — Oh, meu Deus! — repetiu, a voz se levantando, as mãos tremendo violentamente ao segurarem a foto. — Não pode ser, não é possível.
Sawyer agarrou-o pelo ombro. — Ray, Ray? Que negócio é esse? Jackson correu para outra mesa na mesma sala, onde foi pegando freneticamente pasta após pasta, examinando uma a uma, jogando de lado e pegando outra, em movimentação cada vez mais frenética. Até que por fim ele parou, uma pasta aberta na mão, os olhos fixos em alguma coisa que estava no seu interior. Sawyer colocou-se ao seu lado num instante. — Que droga, Ray, o que é? — indagou, energicamente. Como resposta, Jackson entregou ao parceiro uma foto, que Sawyer olhou sem acreditar no que via. Lá estava, em pose diferente, o rosto demasiado bonito de Steve Page. Sawyer pegou a foto que ele tinha retirado do apartamento de Ed Page e que Jackson deixara em cima da mesa e examinou de novo. Não havia dúvida, era o mesmo homem em ambas. Olhos arregalados, Sawyer virou-se para Jackson. — Onde foi que você pegou essa foto, Ray? — perguntou, falando muito devagar a voz pouco mais que um murmúrio. Jackson lambeu os lábios ressecados nervosamente, sua cabeça oscilando de um lado para o outro. — Não posso acreditar nisso. — Onde foi Ray, onde? — No apartamento de Arthur Lieberman.
CAPÍTULO QUARENTA E SEIS ASSUNTO: REENVIO de Mensagem: Não sou eu. Data: 95-11-26 08:41:52 EST De: ArchieKW2 Para: ArchieJW2 Caro Outro Archie: Tome cuidado com a sua datilografia. A propósito, você costuma enviar correspondência para si mesmo? Mensagem um tanto melodramática mas, mesmo assim, uma senha legal. Talvez possamos conversar sobre técnicas de criptografia. Ouvi dizer que uma das melhores é a racal-milgo do Serviço Secreto. Vejo você no ciberespaço. Ciao. Mensagem Reenviada: Assunto: Não sou eu Data: 95-11-19 10:30:06 PST De: ArchieJW2 Para: ArchieKW2 Sid tudo errado tudo ao contrário/disquete no correio 1099121.19822.29629.295111.39614 armazemseattle-consiga socorrorapidoeu SIDNEY FICOU OLHANDO para a tela do computador, sua mente oscilando entre as alternativas de disparar, descontrolada, ou apagar. De qualquer modo, sua hipótese estava certa, Jason errara na hora de digitar, acionando a letra k em vez da j. Muito obrigada, ArchieKW2, quem quer que você seja. Fisher também acertara quanto à senha, quase trinta caracteres de comprimento. Ela presumiu que fosse isso que os números representavam: a senha. Sentiu o coração pequeno ao ver a data da mensagem original. Seu marido lhe implorara para andar depressa. Não havia nada que pudesse ter feito por ele, mas mesmo assim, ainda se sentia esmagada pela sensação de tê-lo abandonado. Imprimiu aquela página e guardou a folha de papel no bolso. Até que enfim seria capaz de ler o que estava no disquete e esta simples ideia fez a dosagem de adrenalina no seu sangue aumentar. E aumentou mais ainda quando o barulho feito por alguém entrando na biblioteca chegou aos seus ouvidos. Saiu cuidadosamente do programa de correio eletrônico que acabara de usar e desligou o computador. As mãos tremiam quando guardou o disquete na bolsa. Esperou para ver se ouvia mais alguma coisa, empunhando a pistola, a respiração curta e acelerada. Quando ouviu um barulho vindo da sua direita, escorregou para fora da cadeira, agachouse e começou a deslocar-se silenciosamente para a esquerda. Contornou uma curva e parou. Tinha diante do rosto uma prateleira de F.2d, compêndios que passara estudando a maior parte do tempo da universidade e nos primeiros anos de prática legal. Através de uma fresta entre dois volumes conseguiu ver o homem nas sombras. Não foi possível, contudo, ver seu rosto. Sidney não se arriscou a prosseguir, com medo de fazer barulho. Aí então o homem começou a se dirigir diretamente para ela. Seus dedos apertaram com mais força o punho da Smith & Wesson; com o indicador destravou a arma. Tirou a pistola do coldre e foi recuando. Bem abaixada, esgueirou-se por trás de uma divisória, os ouvidos atentos para qualquer barulho, tentando desesperadamente imaginar uma saída. O problema é que havia apenas um único acesso à biblioteca. Sua única chance era circular, tentando manter-se à frente de quem quer que a estivesse perseguindo, até chegar na porta e sair correndo em louca disparada. O saguão dos elevadores ficava logo no fundo do
corredor. Se pudesse chegar lá. Conseguiu deslocar-se mais um pouco e esperou, depois repetiu o processo. Devia estar fazendo barulho suficiente para o homem ouvir, mas não de um modo que ele pudesse antecipar sua estratégia. O barulho dos seus passos era sincronizado quase que perfeitamente com as manobras dela. O que deveria ter feito com que desconfiasse de alguma coisa. Sidney estava quase chegando junto da porta e já podia ver o vidro fosco. Reuniu força e coragem para mais uns passos e depois então sairia correndo. Mais um metro e meio. Agora estava quase na saída. Imprensada contra a parede, começou a contar lentamente até três. Não conseguiu passar de um. As luzes brilhantes a ofuscaram. Quando deu pela coisa, o homem estava bem do lado dela. Pupilas dilatadas, ela instintivamente girou a pistola na direção dele. — Meu Deus, você perdeu a cabeça? — Philip Goldman piscou para se ajustar ao novo nível de luminosidade. Sidney o encarou, boquiaberta. — Que diabo você pretende, esgueirando-se aqui dentro? E com uma arma? Sidney parou de tremer e se endireitou. — Sou sócia desta firma, Philip. Tenho todo o direito do mundo de estar aqui. — A voz era trêmula mas ela sustentou com firmeza o olhar dele. O tom de voz de Goldman era sarcástico. — Não por muito tempo. — Ele retirou do bolso interno do paletó um envelope. — Na verdade, isto economizará à firma o preço do correio. — Ele entregou o envelope a Sidney. — Sua exoneração. Se fizer a gentileza de assinar agora, pouparia a todo mundo muito aborrecimento e à firma uma enorme vergonha. Sidney não pegou o envelope e conservou os olhos e a pistola apontados para Goldman. Goldman apalpou o envelope antes de desviar os olhos para a pistola. — Você se incomodaria de largar essa arma antes de acrescentar mais uns crimes ao seu currículo? — Não fiz absolutamente nada e você sabe disso — retrucou Sidney, cuspindo as palavras. Goldman rolou os olhos para cima. — Claro. Tenho certeza de que você estava inteiramente alheia aos esquemas infames do seu querido esposo. — Jason também não fez nada de errado. — Bem, eu não vou discutir com você enquanto essa pistola estiver apontada contra mim. Quer fazer o favor de guardar essa arma? Finalmente Sidney começou a abaixar a 9mm. Aí então uma ideia lhe ocorreu. Quem tinha acendido as luzes? Goldman nem chegara perto do interruptor. Sem que tivesse tempo para reagir, agarraram com força seu braço e a pistola foi arrancada violentamente da sua mão. Alguma coisa bateu com força em Sidney, que foi atirada de
encontro a uma parede. Ela caiu no chão, a cabeça rachando de dor com o impacto. Quando levantou os olhos, um homem corpulento vestindo um uniforme preto de motorista estava ao seu lado, apontando contra ela a sua própria pistola. Saindo de trás do pistoleiro, apareceu um outro homem. — Olá, Sid. Tem recebido mais telefonemas do marido morto ultimamente? — Paul Brophy deu uma risada. Trêmula, Sidney conseguiu levantar-se e escorar-se na parede, enquanto tentava recuperar o fôlego. Goldman olhou para o homem corpulento. — Bom trabalho, Parker. Pode ir pegar o carro. Desceremos num minuto. Parker fez que sim e pôs a pistola de Sidney no bolso do paletó. Ela pôde ver que ele trazia a própria arma num coldre. Para desespero de Sidney, Parker abaixou-se e pegou sua bolsa, que caíra no chão durante a breve luta, e saiu com largas passadas. — Você me seguiu! — Gosto de tomar conhecimento das idas e vindas na firma, por isso mantenho um controle eletrônico no sistema de acesso ao prédio. Fiquei bastante satisfeito quando vi seu nome aparecer na listagem como tendo entrado à uma e meia da madrugada. Fazendo pesquisa ou, quem sabe, seguindo o exemplo do marido e tentando roubar alguns segredos? — Sidney teria dado um murro na cara de Goldman se Paul Brophy não tivesse sido mais ligeiro. Goldman não se abalou. — Talvez agora possamos tratar de negócios. — Sidney fez um gesto para se lançar pela porta, mas Brophy bloqueou-lhe o caminho, empurrando-a de volta para dentro da biblioteca. — De sócio em uma importante firma de advocacia para invasão de um quarto de hotel em Nova Orleans é uma grande mudança, Paul. -O sorriso de Brophy desapareceu. Sidney encarou Goldman. — Se eu gritar agora. pode ser que alguém me ouça. Goldman respondeu friamente. — Na verdade, Sidney, pode ser que você tenha esquecido. mas todos os advogados e assistentes saíram mais cedo hoje para a conferência anual da firma na Flórida. Só voltarão daqui a alguns dias. Lamentavelmente, fui chamado para atender a um compromisso inesperado e agora vou ter que pegar um avião de manhã cedo. Paul está no mesmo caso. Todos os demais se encontram lá. — Ele deu uma espiada no relógio. — Assim sendo, pode gritar tanto quanto queira. Mesmo que você na verdade tenha todos os motivos para colaborar conosco. Ela semicerrou os olhos e fitou ambos os homens. — Do que é que você está falando? — Será melhor se tivermos esta conversa na minha sala. — Goldman fez um gesto, indicando a porta, e sacou um revólver de pequeno calibre para reforçar o convite. Brophy fechou e trancou à chave a porta do escritório. Goldman entregou-lhe a arma e
sentou-se atrás da sua escrivaninha. Fez um gesto para que Sidney se sentasse diante dele. — Sem dúvida nenhuma que esse foi um mês cheio de emoções para você, Sidney. — Ele pegou a carta de demissão de novo. — Receio, contudo, que os seus recentes excessos fizeram com que o prazo do seu contrato com a firma chegasse ao fim. Eu não ficaria surpreendido se a firma e a Triton Global entrassem com um processo civil contra você. Muito possivelmente com um processo criminal também. Sidney fitou Goldman com um olhar penetrante. — Você está me detendo contra a minha vontade, me apontando uma arma e ainda quer me convencer de que sou eu que tenho de me preocupar com uma ação criminal? — Paul e eu, ambos sócios da firma, constatamos a presença de um intruso na biblioteca, fazendo Deus sabe o quê. Tentamos deter o referido suspeito, você, e o que você faz? Puxa uma arma para nós. Conseguimos desarmá-la, por sorte, antes que alguém fosse ferido, e agora a estamos mantendo sob custódia até que a polícia chegue. — Polícia? — Oh, sim, ainda não chamei a polícia, não é mesmo? Goldman estendeu a mão, pegou o telefone e recostou-se sem discar. — Oh, agora me lembro por que não chamei a polícia. — O tom de voz dele era irritante. — Você gostaria de saber a razão? — Sidney não respondeu. — Você é uma advogada especializada em negociações, Sidney. Bem, e se eu propuser uma negociação a você? Um jeito de você não só continuar em liberdade como também de auferir um certo lucro financeiro, já que agora você, por acaso, está desempregada. — A Tyler e Stone não é a única firma na cidade, Phil. Goldman estremeceu ao ouvir a abreviatura do seu nome. — Bem, no seu caso, não é bem assim. Veja bem, no que lhe diz respeito, não há mais nem uma firma. Nem aqui, nem em parte alguma deste país, talvez do mundo. A expressão do rosto de Sidney denotava sua confusão. — Sejamos racionais, Sid. — Os olhos de Goldman brilharam momentaneamente quando ele retornou à competição verbal. — Seu marido é suspeito de haver sabotado um avião, o que resultou na morte de quase duzentas pessoas. Acima de tudo está claro que ele roubou dinheiro e segredos que valiam milhões de dólares de um cliente desta firma. Obviamente tais crimes foram planejados durante um largo período de tempo. — Não ouvi ainda meu nome ser mencionado em nenhum ponto desta história ridícula. — Você tinha acesso de alto nível aos mais importantes registros da Triton Global, registros dos quais nem sequer seu marido tinha conhecimento. — Fazia parte de minhas obrigações, não era crime algum. — Como gostam de dizer nos círculos jurídicos e está no Cânon da Ética, até mesmo a "a aparência de impropriedade deve ser evitada". Acho que você ultrapassou esta fronteira há muito tempo. — Como? Perdendo o meu marido? Sendo posta para fora do meu emprego sem uma
única prova contra mim? Por que não falamos de ações legais por um minuto? Tipo Sidney Archer versus Tyler e Stone, por demissão injusta? Goldman olhou para Brophy e fez um sinal com a cabeça quase imperceptível. Sidney virou-se para olhar para Brophy. Seuqueixo começou a tremer quando viu o minigravador sair do seu bolso. — Essas coisas são muito úteis, Sid — disse Brophy. — A gravação é tão clara como se você estivesse na mesma sala. — Ele ligou o gravador. Após um minuto de ouvir a conversa que tivera com o marido, Sidney virou-se para se defrontar com Goldman. — Afinal de contas, que diabos você quer? — Bem, vejamos. Suponho que primeiro tenhamos que estabelecer o preço da mercadoria. Quanto vale essa fita? Ela comprova que você mentiu para o FBI. Por si só uma violação da lei. Depois vem ajudar e proteger um criminoso. Cumplicidade. Outra falta grave. E não acaba aí. Nenhum de nós é criminalista, mas acho que dá para se ter uma ideia geral do quadro. Pai morto, mãe na cadeia. Quantos anos tem sua filhinha? É trágico. — Ele balançou a cabeça, fingindo-se muito compadecido. Sidney pulou da cadeira. — Vá se foder, Goldman! Vão se foder vocês dois. — Sidney gritou as palavras tomada por uma fúria incontrolável, debruçou-se em cima da mesa, agarrou o pescoço de Goldman com as duas mãos e teria lhe causado sérios danos se Brophy não tivesse corrido em socorro do velho. Goldman, tossindo e engasgado, olhou furioso para Sidney, enquanto ela era puxada para longe. — Se encostar a mão em mim de novo, vai apodrecer na cadeia — disparou. Respirando fundo, Sidney encarou Goldman, furiosa. Livrou-se com um gesto brusco da mão de Brophy, mas ficou quieta quando ele permaneceu apontando-lhe a arma. Goldman alisou a gravata e a camisa amarrotada e retomou seu tom confiante. — A despeito de sua reação brutal, estou realmente preparado para ser bastante generoso com você. Se avaliar a questão racionalmente, vai se sentir compelida a aceitar a oferta que estou prestes a lhe fazer. — Ele meneou a cabeça para ela e com o olhar indicou a cadeira. Tremendo e respirando irregularmente, Sidney finalmente sentou-se. — Ótimo. Agora, tão sucintamente quanto possível, eis a situação: sei que você falou com Roger Egert, que agora é o encarregado da transação com a CyberCom. E que você está ciente da última proposta da Triton. Também sei que isto é um fato. Agora, você também ainda está de posse da senha que permite o acesso ao arquivo mestre da transação. — Sidney permaneceu olhando para Goldman, enquanto os seus pensamentos disparavam muito na frente das palavras dele. — Quero as duas coisas: tanto os últimos termos da proposta quanto a senha do arquivo, só para o caso de haver alguma modificação de última hora na posição da Triton. O tom de voz de Sidney foi lento e deliberado, a respiração dela tendo voltado ao normal. — A RTG deve realmente querer muito a CyberCom, se é que estão lhe pagando alguma
coisa além do preço da sua hora de trabalho para violar o relacionamento privilegiado advogado-cliente, para não falar no furto de segredos dos clientes. Goldman meramente continuou. — Em troca, estamos preparados para lhe pagar dez milhões de dólares, livres de impostos, claro. — Assegurando minha estabilidade econômica agora que ninguém mais me empregaria? E o meu silêncio? — Mais ou menos isso. Você desaparece no exterior, em algum belo e pequeno país, cria sua filha com luxo. O negócio com a CyberCom será consumado. A Triton Global continuará em frente. A Tyler e Stone continuará sendo uma firma viável. Ninguém vai piorar. A alternativa? Bem, é algo consideravelmente menos agradável. Para você. No entanto, o tempo é a essência de tudo. Preciso de sua resposta em um minuto. — Ele olhou para o relógio, contando a passagem dos segundos. Sidney recostou-se na cadeira, os ombros caídos enquanto rapidamente examinava as poucas possibilidades que tinha diante de si. Se concordasse, seria rica. Caso contrário, podia e muito provavelmente iria para a cadeia. E Amy? Pensou em Jason e em todos os terríveis acontecimentos do último mês. Mais do que o necessário para diversas vidas. Subitamente retesou-se ao observar as feições triunfantes de Goldman e sentiu a presença pegajosa de Paul Brophy às suas costas. Sabia que linha de ação ia adotar. Aceitaria os termos deles e depois passaria a seguir suas próprias regras. Daria a Goldman a informação que ele desejava e em seguida ia direto a Lee Sawyer e lhe contava tudo, inclusive a existência do disquete. Tentaria conseguir o melhor acordo que conseguisse e denunciaria Goldman e seu cliente pelo que tinham feito. Não ficaria rica e talvez tivesse que se afastar de sua filhinha, caso tivesse que cumprir pena, mas não ia criar Amy com o dinheiro da chantagem de Goldman. E, mais importante que tudo, poderia conviver consigo própria. — Tempo esgotado — anunciou Goldman. Sidney nada falou. Goldman sacudiu a cabeça lentamente e mais uma vez levantou o telefone do gancho. Até que por fim, quase que imperceptivelmente, balançou a cabeça. Goldman levantou-se de detrás da sua mesa, um largo sorriso no rosto. — Excelente. Quais são os termos da proposta e qual é a senha? Sidney sacudiu a cabeça. — Minha posição na barganha é um tanto frágil. Primeiro o dinheiro, depois a informação. Ou então vá em frente e chame a polícia. Goldman hesitou por um momento. — Bem, como você mesma disse, sua posição é precária. No entanto, precisamente por causa deste fato, podemos ser um pouco flexíveis. Vamos? — Ele se levantou e indicou a porta com um gesto. Sidney ficou confusa. — Agora que chegamos a um acordo — explicou
Goldman — quero implementar totalmente o trato antes de deixá-la ir. Você pode ser difícil de se achar mais tarde. Quando Sidney se levantou e virou, Brophy enfiou o revólver no cinto preso às costas, e, intencionalmente, encostou-se nela ao passar, os lábios perto da orelha dela. — Depois que você estiver adaptada à nova vida, pode ser que queira companhia. Desde já sei que vou ter muito mais tempo livre e dinheiro do que saberei como gastá-los. Pense nisso. A joelhada que Sidney deu na genitália de Brophy o jogou no chão. — Já pensei, Paul, e estou me esforçando muito para não me sentir enjoada. Fique longe de mim se não quer perder o pouco de virilidade que lhe resta. Sidney desceu o corredor, seguida bem de perto por Goldman. Brophy finalmente conseguiu se pôr de pé e, segurando as partes pudendas, o rosto pálido, saiu cambaleando atrás deles. A limusine os esperava na garagem, junto aos elevadores, motor funcionando. Goldman segurou a porta para Sidney entrar. Brophy, ainda ofegante e todo encolhido, entrou por último e sentou-se de frente para Goldman e Sidney; a divisória de vidro escuro estava totalmente erguida às costas dele. — Não vai levar muito tempo para que todas as providências estejam tomadas. Você pode achar que sirva melhor aos seus interesses manter o atual domicílio até que as coisas esfriem. Posteriormente nós a embarcaremos para um local provisório. Aí poderá mandar buscar sua filha e viver feliz para sempre. — O tom de voz de Goldman era abertamente jovial. A resposta de Sidney foi totalmente profissional. — E a Triton e a firma? Você mencionou ações judiciais? — Acho que isso pode ser arranjado. Por que a firma haveria de querer meter-se num litígio tão embaraçoso? E na verdade a Triton nada pode provar, pode? — Então por que eu deveria aceitar a sua proposta? Brophy puxou o gravador minicassete, o rosto ainda congestionado. — Por causa disto aqui, sua vaca. A menos que queira passar o resto da vida na cadeia. Sidney manteve a calma. — Vou querer essa fita. Goldman deu de ombros. — Impossível, por ora. Talvez mais tarde, quando as coisas voltarem ao normal. Goldman olhou para a divisória de vidro escuro. — Parker? A divisória arriou silenciosamente. — Parker, podemos ir agora. O braço que passou pelo espaço agora aberto entre a frente e a parte de trás da limusine empunhava uma arma. A cabeça de Brophy explodiu e ele caiu de cara no chão da limusine. Goldman e Sidney ficaram emplastrados de sangue e outras coisas. Goldman ficou boquiaberto e deu um grito, incrédulo, quando a pistola virou na sua direção.
— Oh, meu Deus. Não! Parker! A bala o atingiu na testa, e a longa carreira de Philip Goldman como advogado extremamente arrogante chegou ao fim. Foi jogado para trás de encontro ao encosto do banco, com o impacto da bala, o sangue cobrindo não só o rosto mas o vidro de trás da limusine. Em seguida desabou em cima de Sidney, que gritou quando a arma agora passou a ser apontada contra ela. No pânico, cravou as unhas no couro macio da forração. Por um instante fitou o rosto encoberto por uma máscara de esqui preta e depois seus olhos se fixaram na reluzente boca do cano da arma, a no máximo um metro e meio de distância. Cada detalhe da pistola ficou gravado na sua memória enquanto esperava pela morte. A pistola foi apontada então para a porta do lado direito da limusine. Como Sidney permanecesse imóvel, a arma repetiu o movimento, com mais firmeza. Trêmula e incapaz de entender o que estava acontecendo, além do fato de que aparentemente não ia morrer, Sidney conseguiu afastar o corpo de Goldman de cima dela e começou a passar por cima do cadáver de Brophy. Mas a mão escorregou numa poça de sangue e ela caiu em cima dele. Prontamente jogou-se para trás. Procurando um ponto sólido onde pudesse se apoiar, sentiu um objeto duro sob o ombro de Brophy. Instintivamente, seus dedos se fecharam em torno do metal. De costas para o pistoleiro, conseguiu enfiar o revólver de Brophy no bolso do casaco sem ser observada. Quando abriu a porta, alguma coisa bateu nas suas costas. Mesmo apavorada, conseguiu se virar e ver que sua bolsa caíra em cima do corpo de Brophy, depois de bater nela. Seus olhos perceberam então o disquete de computador que Jason lhe enviara, justo quando a mão que o segurava desapareceu através da divisória. Com as mãos trêmulas, pegou a bolsa, empurrou a porta pesada até o fim e caiu do lado de fora do carro. Pôs-se de pé com dificuldade e, reunindo todo o resto de energia de que ainda dispunha, saiu correndo. Na limusine, o homem debruçou-se através da divisória. Ao lado dele, no banco da frente, Parker estava caído com um buraco de bala na têmpora direita. O homem pegou cuidadosamente o gravador minicassete, que caíra em cima do banco, e fez tocar por alguns segundos. Balançou a cabeça ao ouvir as vozes, deslocou o corpo de Brophy ligeiramente para o lado, enfiou o gravador alguns centímetros sob seu corpo e deixou que voltasse à posição original. O disquete foi colocado na bolsinha que o homem trazia à cintura. Seu último ato foi recolher cuidadosamente os três cartuchos ejetados pela pistola. Não podia facilitar demais para os policiais. Depois saltou da limusine, carregando a arma que usara para matar três pessoas em uma sacola de plástico a ser guardada em um lugar remoto, mas não tanto que a polícia não conseguisse encontrar. Kenneth Scales tirou a máscara de esqui. Sob as luzes brilhantes da garagem vazia os olhos azuis mortíferos cintilaram com profunda satisfação. Mais uma noite de trabalho completada com sucesso. Sidney comprimiu o botão repetidas vezes até que as portas do elevador se abriram. Encostou o corpo na lateral do carro. Estava coberta de sangue. Podia sentir sangue no
rosto, nas mãos. O máximo que conseguiu fazer foi se controlar para não gritar com toda a força dos pulmões. Só queria limpar aquele sangue. Foi com a mão insegura que comprimiu o botão do oitavo andar. Ao entrar no toalete feminino e ver sua imagem sangrenta no espelho, vomitou na pia e deixou-se cair no chão, onde ficou gemendo, as náuseas secas sacudindo-lhe impiedosamente o corpo. Finalmente conseguiu se levantar e lavar-se da melhor maneira que conseguiu. Continuou a jogar água quente no rosto até conseguir acalmar a tremedeira, passando também os dedos trêmulos pelo cabelo, para se certificar de que tudo estava no lugar. Deixando o toalete, saiu correndo pelo corredor até a sua sala, onde pegou uma capa de chuva sobressalente que guardava lá. A capa cobriu os restos de sangue que tinham se recusado a sair. Em seguida pegou o telefone e preparou-se para discar para a polícia, enquanto segurava o revólver com a outra mão. Não conseguia se livrar da sensação de que a qualquer momento aquela pistola reluzente ia ser apontada de novo contra ela. Que o homem com o rosto escondido pela máscara preta de esqui não a deixaria viver uma segunda vez. Digitou os dois primeiros algarismos, mas sua mão imobilizou-se quando teve a visão. Acontecera na limusine: o cano da arma apontado para o seu rosto. A imagem da arma ao apontar a porta. Foi nesta hora que viu. A coronha, a coronha rachada da arma. Rachara quando deixara a arma cair no chão, em casa. O homem usara sua arma. Dois homens tinham acabado de ser assassinados com a sua 9mm. Teve outra visão terrível, como se tivesse sido gravada a fogo na sua memória. A fita da conversa que tivera com Jason. Ficara para trás também, com os dois corpos. A razão pela qual fora deixada viva tornou-se absolutamente clara para Sidney Archer: permitiram que vivesse para que apodrecesse na cadeia, condenada por homicídio. Como uma criança amedrontada, foi para o canto mais distante da sua sala e desabou no chão, o corpo tremendo incontrolavelmente, chorando e gemendo como se nunca mais fosse parar.
CAPÍTULO QUARENTA E SETE SAWYER AINDA ESTAVA OLHANDO para o retrato de Steven Page, o rosto do morto ficando cada vez maior em sua mente até que largou a foto antes que ela o dominasse por completo. — Eu simplesmente presumi que fosse de um dos filhos de Lieberman. Estava tudo junto na mesa dele. Não me dei conta de que ele tinha dois, não três filhos. — Jackson deu um tapa na testa. — E também não parecia nem um pouco importante. Depois, quando a investigação desviou-se de Lieberman para Archer. — Jackson sacudiu a cabeça em evidente desespero. Sawyer sentou-se na beira da mesa. Só as pessoas mais chegadas perceberiam que o veterano agente do FBI nunca estivera tão desorientado em sua vida profissional. — Desculpe, Lee. — Jackson deu outra olhada na foto e abaixou a cabeça. Sawyer deu um tapinha nas costas do parceiro. — A culpa não foi sua, Ray. Nas atuais circunstâncias também não me teria parecido importante. — Sawyer levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. — Mas agora, não há a menor dúvida de que é. Precisamos verificar se é mesmo Steven Page, embora na verdade eu não tenha a menor dúvida. — Ele parou abruptamente de andar. — Ei, Ray, a polícia de Nova York nunca conseguiu descobrir onde foi que Steven Page conseguiu todo aquele dinheiro, não foi? A cabeça de Jackson começou a funcionar em alta velocidade. — Talvez Page estivesse chantageando Lieberman. Talvez em função da amante dele. Ambos trabalhavam com finanças, frequentavam os mesmos círculos profissionais. Isto explicaria o dinheiro de Page. Sawyer sacudiu a cabeça. — Parece que muita gente sabia da amante, não seria grande a oportunidade para chantagem aqui. Além do mais, as pessoas não costumam colocar fotos dos seus chantagistas em exposição, Ray. — Jackson pareceu embaraçado. — Não, eu acho que a coisa vai mais fundo que isso. — Sawyer encostou-se na parede da sala de reuniões, cruzou os braços e enfiou a cabeça no peito. — A propósito, o que foi que você conseguiu descobrir sobre a nossa furtiva amante? Jackson levou um minuto para consultar uma pasta. — Quase nada. Encontrei inúmeras pessoas que tinham ouvido boatos. Coisas sem substância, apressavam-se a enfatizar. Sentiam-se verdadeiramente apavoradas de serem citadas ou envolvidas. Tive que gastar um bocado de saliva para acalmá-las. Foi muito complicado, contudo todos tinham ouvido falar a respeito dela, podiam descrevê-la muito bem, embora cada descrição que eu obtivesse fosse diferente da anterior. Mas... — Ninguém foi capaz de assegurar definitivamente a você ter realmente conhecido a dama misteriosa. O rosto de Jackson se contraiu todo. — É isso mesmo. Como é que soube? Sawyer respirou fundo.
— Você já brincou Ray, de uma brincadeira em que alguém diz qualquer coisa a você, que transmite para outra pessoa e assim por diante? No final, a informação é totalmente diferente de como quando começou. Ou como um boato começa e se espalha e todo mundo acredita que é como o evangelho, é capaz de jurar ter visto pessoalmente seja o que for e nada, absolutamente nada do que foi dito, é verdade. — Sei como é. Minha avó lê o Star. Acredita em tudo o que é publicado ali e fala como se tivesse realmente visto Liz Taylor entrando no ônibus espacial com Elvis. — Certo. Não é verdade, nada daquilo é verdade, mas as pessoas contarão a você como se fosse, elas acreditam ardorosamente que seja, só porque leram ou ouviram a respeito, em especial se foi de mais de uma pessoa. — Você está dizendo... — Estou dizendo que não creio que a amante loura tenha existido algum dia, Ray. Ou seja, mais objetivamente, acho que ela foi criada com um propósito específico. — Tipo o quê? Sawyer respirou fundo antes de responder. -Para ocultar o fato de que Arthur Lieberman e Steven Page eram amantes. Jackson arriou o corpo numa cadeira e encarou Sawyer. — Está falando sério? — A foto de Page no apartamento, ao lado das fotos dos filhos? Aquelas cartas de amor que você encontrou no apartamento? Por que não assiná-las? Aposto meu salário de uma semana como a caligrafia é a de Steven Page. E, em último lugar, mas não menos importante, como explica Page ser um milionário tendo um salário normal de funcionário? Fácil, se por acaso você dorme com o sujeito capaz de fazer tantos milionários. — É, mas por que inventar uma história sobre uma amante? Poderia ter acabado com a candidatura de Lieberman à presidência do Conselho da Reserva Federal. Sawyer sacudiu a cabeça. — Nos dias de hoje, Ray, quem sabe? Se fosse esse o critério, um bom número de liderança política deste país teria que fazer as malas e voltar para casa. E o fato é que não o impediu de conseguir o posto mais alto do Conselho. No entanto, você acha que o resultado teria sido o mesmo se descobrissem que Lieberman era homossexual e tinha um amante com menos da metade da sua idade? Não se esqueça de que a comunidade financeira deste país é uma das mais conservadoras que você encontrará em qualquer parte do mundo. — Oh, ele teria se ferrado, sem dúvida nenhuma. Mas é o tipo da moralidade ambígua. Tudo bem que se cometa adultério, desde que seja com alguém do sexo oposto. — Exatamente, e aí você inventa um falso romance heterossexual para disfarçar o verdadeiro, que é homossexual. Antigamente eles faziam isso em Hollywood com os galãs que não eram atraídos pelo sexo oposto. Os estúdios montavam falsos casamentos. Uma complicação danada visando preservar uma carreira lucrativa. Não se pode dizer que o esquema de Lieberman fosse perfeito, mas ele conseguiu o que queria. Sua esposa pode ou não conhecer a verdade. Mas ela saiu no lucro, financeiramente falando, de modo que não
ia abrir a boca. Agora está morta. Não pode mais falar nem que queira. Jackson enxugou o suor da testa. — Jesus. — Ele olhou para Sawyer, intrigado. — Se foi esse o caso, então a morte de Steven Page foi mesmo suicídio, não haveria razão para matá-lo. — Pelo contrário, Ray — retrucou Lee, sacudindo a cabeça. — Haveria todas as razões do mundo para matá-lo. — Por quê? Sawyer parou por um momento, olhou para suas mãos e falou baixo: — Como você supõe que Steven Page contraiu o vírus HIV? Jackson arregalou os olhos. — Lieberman? — Estou realmente interessado em descobrir se Lieberman era soropositivo. A confusão de Jackson de repente se desfez. — Se Page soubesse que seu estado de saúde era terminal, não teria motivo para se conservar em silêncio. — Certo. Contrair uma doença terminal de um amante normalmente não inspira lealdade. Steven Page tinha o futuro profissional de Arthur Lieberman nas mãos, o que, na minha cabeça, é motivo mais que suficiente para servir de causa de homicídio. — Conclui-se então que precisamos abordar este caso de um ângulo inteiramente novo. — Positivo. Neste exato momento temos uma porção de especulações, mas nada que possamos levar à Promotoria. Jackson levantou-se e começou a organizar as pastas. — Então você acha que Lieberman encomendou a morte de Page? Quando Sawyer não respondeu, Jackson virou-se para encontrá-lo com o olhar perdido no espaço. — Lee? — Sawyer finalmente olhou para ele. — Eu nunca disse isso, Ray. — Mas... — Vejo você de manhã. Vá dormir um pouco, você vai precisar. — Sawyer levantou-se e caminhou até a porta da sala de reuniões. — Preciso falar com alguém — disse Sawyer. — Com quem? — Charles Tiedman, presidente do Banco da Reserva Federal de San Francisco — respondeu Sawyer virando-se por um instante. — Lieberman não chegou a ter uma chance de falar com ele. Acho que já está na hora de que alguém fale. Sawyer deixou Jackson debruçado sobre as pilhas de pastas, a cabeça funcionando a toda.
CAPÍTULO QUARENTA E OITO SIDNEY ARCHER CONSEGUIU se levantar do chão. À medida que o duplo sentimento de impotência e medo ia desaparecendo, foi sendo lentamente substituído por um impulso ainda mais forte: o instinto de sobrevivência. Destrancou uma das gavetas da escrivaninha e retirou seu passaporte. Tinha sido chamada ao exterior mais de uma vez em sua carreira jurídica. Mas agora a razão não poderia ser mais pessoal: sua vida. Em seguida foi para a sala ao lado da sua. Pertencia a um jovem associado que, por acaso, era fã entusiasmado do time de beisebol dos Atlanta Braves, e uma boa porção de suas gavetas e prateleiras espelhava essa lealdade. Pegou um boné em uma das estantes, prendeu o cabelo comprido e enfiou o boné na cabeça. Começou a verificar sua bolsa. Era espantoso, mas a carteira ainda estava cheia das notas de cem dólares que tinham sobrado da viagem a Nova Orleans. O assassino não encostara a mão em nenhuma. Saindo do prédio, fez sinal para um táxi, disse o destino para o motorista, acomodou-se no banco de trás e, com cuidado, tirou do bolso o 32 do falecido Brophy e o colocou no coldre que Sawyer lhe dera, abotoando a capa de chuva. O táxi parou em frente à Union Station e ela saltou. Armada daquele jeito, jamais passaria pela segurança do aeroporto, mas não precisava se preocupar com isso viajando pela Amtrak. Seu plano era bastante simples: fugir para um lugar seguro e tentar organizar o raciocínio. Planejava entrar em contato com Lee Sawyer, mas não queria estar no mesmo país que o agente do FBI quando falasse com ele. O problema era que realmente tentara ajudar o marido. E mentira para o FBI. O que, visto em retrospecto, fora uma burrice, mas que na ocasião lhe parecera a única coisa que podia fazer. Vira-se diante de uma necessidade imperiosa: ajudar Jason, acorrer em seu socorro. E agora? Agora sua arma fazia parte da cena de dois crimes de morte. Assim também como a fita com a gravação de sua conversa com Jason. A despeito de ter se saído razoavelmente bem com Sawyer, o que pensaria ele agora? Tinha certeza de que iria algemá-la. Começou a mergulhar em denso desespero de novo, mas reuniu o que lhe restava de coragem, virou a gola da capa para enfrentar o vento glacial e entrou no terminal ferroviário. Comprou um bilhete para o próximo Metroliner para a cidade de Nova York. O trem sairia em cerca de vinte minutos e a deixaria na Penn Station, não muito longe do centro da cidade, por volta das cinco e meia da manhã. Um táxi a levaria para o aeroporto JFK onde poderia comprar um bilhete de ida em um voo para um país que ainda não sabia ao certo qual seria. Foi até um caixa automático no nível inferior da estação e retirou um pouco mais de dinheiro. Assim que fosse distribuído um alerta geral com instruções para que a prendessem, os cartões seriam inúteis. Subitamente ocorreu-lhe que não tinha outras roupas e que teria de viajar incógnita. O problema era que nenhuma das inumeráveis lojas de roupas da terminal estava aberta àquela hora da noite. Teria de esperar até chegar em Nova York.
Entrou numa cabine telefônica e consultou seu caderninho; o cartão de Lee Sawyer caiu no chão. Ficou olhando para ele por um longo momento. Droga! Tinha que ligar, tinha uma dívida para com o homem. Discou o telefone da casa dele. Depois de quatro toques a secretária eletrônica atendeu. Ela hesitou e bateu com o telefone. Discou outro número. Teve a impressão de que tocava indefinidamente até que uma voz sonolenta atendeu. — Jeff? — Quem fala? — Sidney Archer. Sidney pôde ouvir Fisher repuxando as cobertas, provavelmente procurando o relógio. — Fiquei acordado, esperando notícias suas. Devo ter caído no sono. — Jeff, não tenho muito tempo. Aconteceu uma coisa terrível. — O quê? O que foi que aconteceu? — Quanto menos você souber, melhor. — Ela fez uma pausa, lutando para organizar seus pensamentos. — Jeff, vou lhe dar o número do telefone onde posso ser alcançada neste instante. Quero que você vá a um telefone público e ligue para mim. — Nossa, são... são duas e tanto da manhã. — Jeff, por favor, faça o que estou dizendo. Depois de resmungar um pouco, Jeff concordou. — Me dá uns cinco minutos. Qual é o número? Pouco mais de seis minutos depois, o telefone tocou. Sidney pegou o aparelho com um gesto brusco. — Você está em um telefone público jura? — Juro. E juro também que estou congelando o meu rabo. Agora me fala o que é. — Jeff, consegui a senha. Estava no e-mail de Jason. Eu estava certa. Foi remetida para o endereço errado. — Isso é fantástico. Agora podemos ler o arquivo. — Não, não podemos. — Por que não? — Porque perdi o disquete. — O quê? Como foi que você fez isso? — Não importa. Está perdido. Não posso recuperálo. — O sofrimento de Sidney era evidente em sua voz. Procurou se controlar. Ia dizer a Jeff Fisher para deixar a cidade por um tempo. Ele podia estar em perigo, em sério perigo, se a experiência que vivera na garagem servia de indicador. Gelou ao ouvir as palavras de Fisher. — Bem, você está com sorte, mocinha. — Do que é que você está falando? — Não sou apenas maníaco por segurança. Sou um colecionador compulsivo, guardo tudo. Perdi muitos arquivos em todos estes anos por não ter tirado cópia de segurança, Sid. — Você está dizendo o que eu acho que você está dizendo, Jeff? — Enquanto você estava na cozinha quando trabalhávamos para decifrar o arquivo... — ele fez uma pausa um tanto dramática — fiz duas cópias dos arquivos que haviam no disquete. Uma está no meu disco rígido e outra em outro disquete. A princípio Sidney não conseguiu falar. Quando o fez, sua resposta fez Fisher corar.
— Eu amo você, Jeff. — Quando você quer vir para que possamos finalmente ver o que está gravado naquela criança? — Não posso, Jeff. — Por que não? -Tenho que sair da cidade. Quero que você mande o disquete para o endereço que vou lhe dar. Quero que o envie pela FedEx. Envie amanhã, primeira coisa do dia. Primeira coisa, Jeff. — Não entendo, Sidney. — Jeff, você tem ajudado demais, mas não quero que entenda nada. Não o quero mais envolvido do que já está. Quero que você vá para casa, pegue o disquete e que depois vá se hospedar em um hotel. Tem um Holiday Inn perto de onde você mora. Mande a conta para mim. — Sid... — Assim que o escritório da FedEx em Old Town abrir, quero que você despache o pacote — ela repetiu. — Em seguida ligue para o escritório e diga que vai estender suas férias por mais um dia ou dois. Onde mora sua família? — Boston. — Ótimo. Vá para Boston e fique com eles. Mande-me a conta pelo transporte. Primeira classe, se quiser. Mas vá. — Sid! — Jeff, eu tenho que partir dentro de um minuto, de modo que não discuta comigo. Você tem que fazer tudo o que eu disse. É o único modo pelo qual ficará razoavelmente seguro. — Você não está brincando, está? — Tem qualquer coisa aí para escrever? — Tenho. Ela folheou o caderninho. — Escreva aí este endereço. Mande o pacote para lá. — Ela deu o endereço postal dos pais e o número do telefone em Bell Harbor, Maine. — Estou profundamente sentida por tê-lo envolvido em tudo isso, mas você era o único que podia me ajudar. Muito obrigada. — Sidney desligou. Fisher recolocou o telefone no descanso, lançou um olhartemeroso à área escura onde se encontrava, correu para o carro e voltou para casa. Já ia encostar no meio-fio quando notou uma van preta mais ou menos um quarteirão à sua retaguarda. Com grande esforço. Fisher foi capaz de distinguir dois vultos no banco da frente da van. Na mesma hora seu coração acelerou. Fez uma volta completa no meio da rua, vagarosamente, e seguiu na direção da parte antiga da cidade, a Old Town. Não olhou para o motorista quando passou pela van. Quando verificou o retrovisor, viu que estava sendo seguido de novo. Fisher parou diante de um prédio de dois andares, onde um cartaz dizia: CYBER@CHAT. Ele era amigo do dono e tinha inclusive ajudado a configurar os sistemas vendidos ali. O Cyber@Chat era, em essência, um bar, que ficava aberto a noite toda, e com bons motivos. Até mesmo àquela hora estava com três quartos da capacidade tomada, em sua maioria garotos com cara de universitários, gente que não teria que se preocupar em
acordar cedo e ir trabalhar na manhã seguinte. Só que, em vez de música ensurdecedora, fregueses desordeiros e atmosfera enfumaçada (por causa da sensibilidade do equipamento, não era permitido fumar), seu interior era tomado de sons de jogos de computadores e discussões em voz baixa, embora intensas, sobre o que quer que estivesse atrapalhando o uso de um dos inúmeros computadores à disposição do público. A antiga arte da sedução e da conquista ainda se aplicava, e homens e mulheres vagavam pela sala em busca de companhia, mesmo que por pouco tempo. Fisher encontrou o amigo. o proprietário, um rapaz com seus vinte anos, atrás do balcão do bar e entabulou uma conversa amistosa. Explicando o bastante da sua situação para que o amigo fosse capaz de ajudá-lo, Fisher passou-lhe discretamente o pedaço de papel contendo o endereço no Maine que Sidney lhe dera. O rapaz desapareceu na sala dos fundos. Dentro de cinco minutos Fisher estava posicionado atrás de um dos computadores. Quando deu uma espiada rápida pelo vidro da janela do bar, viu a van preta parar em uma viela do outro lado da rua. Voltou a atenção de novo para o computador. Uma garçonete apareceu com uma garrafa de cerveja e um copo com um prato de tiragostos. Ao colocar o prato do lado do computador, pôs um guardanapo de pano junto dele. Dentro do guardanapo cuidadosamente dobrado veio um disquete novo de três e meia polegadas. Bancando o indiferente, Fisher desembrulhou o disquete e rapidamente o inseriu no drive. Digitou uma série de caracteres e logo pôde ser ouvido o sinal do modem sendo ligado. Em menos de um minuto Fisher estava conectado com seu computador em casa. Foram necessários apenas trinta segundos para ele baixar os arquivos que copiara do disquete de Sidney e gravá-los no disquete novo. Olhou novamente para a rua. A van não saíra do lugar. A garçonete aproximou-se da mesa dele. Evidentemente que sabedora do plano de Fisher, perguntou se precisava de mais alguma coisa. Na sua bandeja havia um envelope acolchoado da FedEx com o endereço de Bell Harbor datilografado na etiqueta. Fisher olhou pela janela de novo. Desta vez notou dois policiais de pé junto a seus carros patrulha, batendo papo. Quando a garçonete estendeu a mão para pegar o disquete, o que era parte do plano apressadamente elaborado com o proprietário, Fisher sacudiu a cabeça. Acabava de lembrar da advertência de Sidney. Ele também não queria envolver seus amigos desnecessariamente naquilo e talvez não tivesse que fazê-lo. Murmurou qualquer coisa para a garçonete. Ela acenou afirmativamente e levou o envelope da FedEx para a sala dos fundos, retornando um minuto depois. Entregou outro envelope acolchoado para Fisher que o examinou e sorriu quando viu o valor da postagem na etiqueta. Seu amigo fora muito liberal na estimativa de quanto seria a tarifa para enviar o pequeno pacote pelo correio, mesmo que registrado e com aviso de recebimento. Com toda a certeza não voltaria por falta de selo. Não era tão rápido quanto a FedEx, mas teria que servir, dadas as circunstâncias, concluiu Fisher. Colocou o disquete no envelope, fechou e colocou no bolso do paletó. Em seguida pagou a conta, deixando uma bela de uma gorjeta para a garçonete.
Jogou um pouco de cerveja no rosto e nas roupas e tomou o resto de um gole. Quando saiu do bar e foi andando na direção do seu carro, os faróis da van se acenderam e Fisher pôde ouvir o motor dela sendo ligado. A van adiantou-se na direção dele. Fisher começou a cambalear e depois a cantar em voz alta. Os dois policiais interromperam o papo e viraram a cabeça na direção dele. Fisher os cumprimentou com uma continência exagerada e uma reverência antes de arriar dentro do seu carro, dar a partida e sair na direção deles, do lado errado da rua. Quando passou velozmente pelos policiais, com os pneus cantando e no mínimo trinta quilômetros além da velocidade limite, os dois policiais pularam dentro dos respectivos carros. A van seguiu a uma distância prudente mas saiu fora quando os carros da polícia emparelharam com o de Fisher, cuja maneira perigosa de dirigir e hálito de cerveja renderam-lhe um par de algemas e uma rápida ida à delegacia. — Espero que você conheça um bom advogado, meu chapa — vociferou o policial sentado no banco da frente. A resposta de Fisher foi totalmente lúcida e colorida por um toque de humor. — Para falar a verdade, conheço um bom número deles, seu guarda. Na delegacia tiraram suas impressões digitais e fizeram um inventário de tudo quanto possuía. Permitiram que desse um telefonema, mas antes, polidamente, ele pediu ao sargento de plantão que lhe fizesse um favor. Um minuto mais tarde observava, exultante, o envelope acolchoado ser colocado na caixa do correio da delegacia. O velho e lento correio. Imagine se seus amigos micreiros o vissem agora. A caminho da cela, Jeff Fisher pôsse a assobiar animadamente. Não era aconselhável se meter com um homem formado pelo MIT. Para sua agradável surpresa, Lee Sawyer não teve que ir até a Califórnia para falar com Charles Tiedman. Ao telefonar para o banco, soube que Tiedman se encontrava em Washington, para uma conferência. Embora fossem quase três horas da manhã, Tiedman, ainda funcionando segundo a hora da Costa Oeste, rapidamente concordou em falar com o agente do FBI. Na verdade, pareceu a Sawyer que o presidente do Banco da Reserva Federal de San Francisco estava muito ansioso para falar com ele. No Hotel Four Seasons, em Georgetown, onde Tiedman estava hospedado, Sawyer e ele sentaram-se um de frente para o outro em um aposento privativo adjacente ao restaurante do hotel, que fechara diversas horas antes. Tiedman era um homem baixo, de rosto escanhoado. sessenta e poucos anos. com o hábito de abrir e fechar nervosamente as mãos. Mesmo àquela hora da noite vestia um terno cinza riscado, colete e gravata-borboleta. Uma corrente de ouro de muito bom gosto atravessava o colete. Sawyer podia imaginar o ativo homenzinho usando um boné de feltro e dirigindo um conversível com a capota arriada. Sua aparência clássica indicava muito mais ser um habitante da Costa Leste do que da Oeste, e Sawyer descobriu rapidamente na conversa preliminar que Tiedman tinha passado muitos anos em Nova York antes de ir para a Califórnia. Durante os primeiros
minutos do encontro ele evitou o contato direto dos olhos do agente, procurando manter a cabeça baixa e os olhos claros, escondidos pelos óculos frágeis de armação metálica, fixos no chão acarpetado. — Imagino que conhecesse Arthur Lieberman muito bem — disse Sawyer. — Cursamos juntos Harvard. Começamos juntos a trabalhar no mesmo banco. Fui padrinho no casamento dele e ele no meu. Era um dos meus mais antigos e queridos amigos. Sawyer aproveitou a vantagem dada por esta abertura. — O casamento dele terminou em divórcio, certo? Tiedman encarou o agente. — Certo. Sawyer consultou o caderninho de anotações. — Na verdade, isso foi mais ou menos na mesma época em que ele estava sendo considerado para presidir o Conselho da Reserva Federal? Tiedman fez que sim. — A época não podia ter sido pior. — Seria possível dizer isso. — Tiedman serviu um copo de água da garrafa que estava em cima da mesa ao lado da sua cadeira e bebeu um longo gole. Seus lábios finos estavam secos e irritados. — Segundo o que sei — disse Sawyer — o divórcio começou realmente como algo muito desagradável mas foi resolvido em pouco tempo e acabou por não afetar a nomeação dele. Acho que no final das contas Lieberman teve sorte. Os olhos de Tiedman faiscaram. — Você chama aquilo de sorte? — Tudo o que quis dizer foi que ele conseguiu a nomeação para o Conselho. Presumo que como amigo pessoal de Arthur você provavelmente sabe mais a este respeito do que qualquer outra pessoa. — Sawyer dirigiu a Tiedman um olhar franco e indagador. Tiedman nada falou por todo um minuto, e finalmente deixou escapar um suspiro fundo, tirou os óculos e acomodou-se na cadeira. Olhou diretamente para Sawyer. — Embora seja verdade que ele tenha sido nomeado presidente do Conselho, Arthur gastou praticamente tudo que ganhou em tantos anos de trabalho para resolver seu divórcio "desagradável", Sr. Sawyer. Não foi justo após uma carreira como a dele. — Mas a presidência do Conselho pagava um bom dinheiro, cento e trinta e três mil e seiscentos dólares por ano. Ganhava muito mais que a maioria. Tiedman riu. — Isso pode ser verdade, mas antes de trabalhar lá Arthur ganhava centenas de milhões de dólares por ano. Consequentemente, tinha gostos dispendiosos e algumas dívidas. — Muitas dívidas? Os olhos de Tiedman concentravam-se outra vez no chão. — Digamos apenas que sua dívida era de certa forma maior do que ele podia fazer frente com seu salário de presidente do Conselho, a despeito deste salário ser relativamente grande.
Sawyer assimilou esta informação enquanto fazia outra pergunta. — O que pode me dizer a respeito de Walter Burns? Tiedman dirigiu um olhar penetrante a Sawyer. — O que é que você quer saber? — Um quadro geral — replicou Sawyer, inocentemente. Tiedman esfregou o lábio, perturbado, e olhou para o caderno de anotações de Sawyer. Sawyer percebeu o olhar e fechou abruptamente o caderno. — Confidencialmente — afirmou. Tiedman olhou resignadamente para Sawyer. — Não tenho dúvida de que Burns sucederá Arthur como presidente. Ele era um seguidor de Arthur. Votava sempre com ele, fosse qual fosse o voto de Arthur. — E isso era ruim? — De um modo geral, não. — Como assim? A expressão de Tiedman tornou-se muito astuciosa quando ele focalizou o olhar no rosto do agente do FBI. — Significa que nunca é sábio seguir placidamente a opinião dos outros quando o bom senso aconselha a agir de outra forma. Sawyer recostou-se na cadeira. — Quer dizer então que você não concordava com Lieberman sempre. Tiedman não estava mais olhando para o agente. Era evidente que ele estava agora profundamente arrependido por ter consentido em dar aquela entrevista. — O que eu quero dizer é que os outros membros do Conselho foram colocados lá para exercitar suas próprias ideias e capacidade de julgamento e não para sucumbir cegamente a argumentos que têm pouca base na realidade e que podem resultar em consequências desastrosas. — É uma declaração importante. — Temos um emprego muito importante. Sawyer utilizou as anotações que fizera da conversa com Walter Burns. — Burns disse que Lieberman segurou o touro pelos chifres logo que assumiu a presidência, a fim de sacudir e chamar a atenção do mercado. Acredito que o senhor não considerou que isso tenha sido uma boa ideia. — Ridícula seria uma palavra mais adequada. — Se é uma coisa tão ruim assim, por que a maioria concordou? — Há uma frase que os críticos de previsões econômicas gostam de usar: dê a um economista um resultado que você deseja, e ele encontrará os números que justificam esse resultado. Esta cidade está cheia de especialistas em números que, ao verem os mesmos dados, os interpretam de maneira inteiramente disparatada — desde o déficit do orçamento federal até o superávit da seguridade social. — Quer dizer então que os dados podem ser manipulados. — Claro que podem, dependendo de quem paga a coleta deles e de quem está sendo beneficiado politicamente — respondeu Tiedman, com aspereza. — Sem dúvida você ouviu falar daquele princípio de que para cada ação há uma reação de igual intensidade
em sentido contrário? — Sawyer fez que sim. — Pois bem — continuou Tiedman -, estou convencido de que sua gênese é mais política que científica. — Com o devido respeito, seria possível que eles pensassem que as ideias de Lieberman estavam erradas? — Não sou onisciente, agente Sawyer. No entanto, estive intimamente envolvido com o mercado financeiro nos últimos quarenta anos. Vi mercados subindo e caindo. Vi o colapso de economias robustas e de outras nem tanto. Vi presidentes do Conselho agirem prontamente, com medidas eficazes, quando confrontados com crises e vi outros cometerem erros terríveis. Um aumento irrefletido de meio por cento na taxa de juros dos fundos da reserva federal pode custar centenas de milhares de empregos e devastar totalmente setores inteiros da economia. É um poder enorme que não pode ser exercido de forma leviana. A forma como Arthur fez oscilar o valor desses juros colocou o futuro econômico de cada cidadão americano em sério perigo. Eu não estava errado. — Pensei que você e Lieberman fossem íntimos. Ele não lhe pedia conselho? Tiedman apertou um botão do paletó nervosamente. — Antigamente Arthur pedia conselhos a mim. Com frequência. Mas há cerca de três anos que parou. — Foi durante esse período que ele brincou de montanha russa com os juros? Tiedman fez que sim. — Finalmente concluí, assim como outros membros do Conselho, que Arthur procurava sacudir o mercado financeiro, apático e desmotivado. Mas esta não é a nossa missão, e o que ele fazia era perigoso demais. Acompanhei os últimos estágios da Grande Depressão. Não desejo viver aquilo de novo. — Acho que nunca me passou pela cabeça o imenso poder que o Conselho da Reserva Federal tem. Tiedman dirigiu-lhe um olhar severo. — Você sabe que quando decidimos elevar os juros podemos dizer, com razoável precisão, quantas falências haverá, quantas pessoas perderão seus empregos, quantas hipotecas serão executadas? Dispomos de todos esses dados. Meticulosamente classificados, cuidadosamente estudados. Para nós são apenas números. Oficialmente nunca vamos além desses números. Se fôssemos, não sei se teríamos estômago para fazer o trabalho. Eu sei que eu não conseguiria. Pode ser que se atentássemos para as estatísticas de suicídios, homicídios e outros crimes, compreenderíamos melhor os vastos poderes de que desfrutamos sobre os nossos concidadãos. — Homicídios? Suicídios? — Sawyer olhou para ele com uma certa cautela. — Certamente que você seria o primeiro a admitir que o dinheiro está na raiz de todo o mal. Ou talvez, formulando-se a frase com mais precisão, a falta de dinheiro. — Jesus, eu realmente nunca pensei assim. É como se vocês tivessem poderes... — Divinos? — Os olhos de Tiedman cintilaram. — Você sabe quanto dinheiro o banco da Reserva Federal transfere para assegurar o cumprimento de suas políticas e ter certeza de
que o sistema bancário comercial opera normalmente? — Sawyer sacudiu a cabeça. — Um trilhão de dólares por dia. Sawyer recuou na cadeira, atônito. — É um bocado de dinheiro, Charles. — Não, é um bocado de poder, agente Sawyer. Somos um dos segredos mais bem guardados desse país. Na verdade, se os cidadãos comuns tivessem plena consciência do que somos capazes de fazer e do que com frequência fizemos no passado, acredito que invadiriam à força o local onde trabalhamos e nos jogariam em masmorras, se não fosse pior. E talvez tivessem razão. Sawyer consultou suas anotações. — Sabe as datas dessas mudanças no valor das taxas de juros? Tiedman saiu de seu devaneio. — De cabeça assim, não. Uma afirmação surpreendente para um banqueiro, mas minha memória para números não é mais a mesma. Posso lhe conseguir a resposta, contudo. — Eu gostaria muito. Poderia haver alguma outra razão pela qual Lieberman enlouquecesse as taxas de juros? — Ao formular a pergunta, Sawyer viu claramente a ansiedade misturada com o medo nas feições do seu interlocutor. — Como assim? Sawyer recostou-se na cadeira. — O senhor disse que se tratava de uma coisa que não combinava com ele. Mas que depois ele voltava abruptamente ao normal. Isto não lhe parece misterioso? — Acho que nunca pensei nisto deste modo. Receio que ainda não consegui entender aonde o senhor quer chegar. — Deixe eu formular o meu pensamento tão claramente quanto posso. Talvez Lieberman estivesse manipulando as taxas contra a própria vontade. As sobrancelhas de Tiedman ergueram-se. — Como alguém poderia obrigar Arthur a fazer uma coisa dessas? — Chantagem — disse Sawyer, sem rodeios. — Alguma teoria? Tiedman reorganizou os pensamentos e começou a falar nervosamente. — Eu soube de um boato de que Arthur estava tendo um caso, anos atrás. Uma mulher... Sawyer interveio. — Não acredito nisso, nem você tampouco. Lieberman pagou à mulher para evitar um escândalo e para que ele pudesse presidir o banco, mas a causa não foi uma mulher. — Sawyer debruçou-se para a frente de modo que seu rosto ficou a poucos centímetros do de Tiedman. — O que pode me dizer de Steven Page? O rosto de Tiedman imobilizou-se, mas só por um instante. — Quem? — Pode ser que isto ajude sua memória. — Sawyer colocou a mão no bolso e puxou a foto que Ray Jackson encontrara no apartamento de Lieberman. Segurou a foto diante de Tiedman. Tiedman pegou-a com as mãos trêmulas. Abaixou a cabeça, a testa foi transformada num
mar de rugas. Mas assim mesmo Sawyer conseguiu ver o reconhecimento nos olhos do homem. — Há quanto tempo você sabe disso? — perguntou Sawyer, falando baixo. A boca de Tiedman se mexeu, mas nenhuma palavra foi pronunciada. Finalmente ele devolveu a foto a Sawyer e tomou outro gole de água. Não olhou para Sawyer ao falar, o que pareceu fazer com que as palavras saíssem com mais facilidade. — Na verdade fui eu que os apresentei — foi a surpreendente resposta de Tiedman. — Steven trabalhava na Fidelity Mutual como analista financeiro. Arthur ainda era presidente do banco de Nova York nesse tempo. Fui apresentado a Steven em um simpósio. Muitos colegas a quem eu respeitava não pouparam elogios a ele. Era um rapaz excepcionalmente inteligente com algumas ideias muito interessantes sobre os mercados financeiros e sobre o papel do banco de Reserva na economia global. Era bem-apessoado, culto e atraente; graduou-se como um dos primeiros da classe na universidade. Eu sabia que Arthur iria achar que se tratava de um acréscimo bem-vindo ao círculo de intelectuais com que convivia. Ele e Arthur rapidamente iniciaram uma amizade. -Tiedman gaguejou e fez uma pausa. — Amizade esta que acabou por se transformar em outra coisa? — instou Sawyer. Tiedman fez que sim. — Você sabia na época que Lieberman era homossexual ou pelo menos bissexual? — Eu sabia que o casamento dele estava indo mal. O que não sabia é que os problemas derivavam da... confusão sexual de Arthur. — Parece que ele resolveu a confusão. Divorciou-se da esposa. — Não creio que tenha sido ideia de Arthur. Acredito que ele teria sido perfeitamente feliz mantendo intacta pelo menos a fachada de um bem-sucedido casamento heterossexual. Sei que cada vez mais as pessoas tornam pública sua opção sexual, mas Arthur era um homem que valorizava acima de tudo sua vida privada e a comunidade financeira é muito conservadora. — Então foi a esposa que quis o divórcio. Ela sabia a respeito de Page? — A identidade específica dele? Não, acho que não. Mas acredito que soubesse que Arthur estava tendo um caso e que não era com uma mulher. Acredito que por isto o divórcio foi tão amargurado e injusto. Arthur teve que agir depressa, para que sua mulher não contasse aos advogados dela suas suspeitas. Custou-lhe até o último centavo. Arthur só me fez esta revelação como o segredo mais pessoal que um amigo pudesse contar a outro. E só lhe conto isso nas mesmas condições, estritamente confidenciais. — Eu lhe agradeço muito, Charles — disse Sawyer. — Só quero que você compreenda que se Lieberman foi o motivo pelo qual o avião foi derrubado, tenho que investigar todas as possibilidades para resolver esse crime. Posso, contudo, prometer que não usarei a informação que acaba de me dar se repercutir diretamente sobre minha investigação. Acha justo? — Acho — disse Tiedman, finalmente. — Muito obrigado. Sawyer percebeu a
exaustão de Tiedman e decidiu avançar mais depressa. — Está familiarizado com as circunstâncias da morte de Steven Page? — Li no jornal. — Sabia que ele era soropositivo? Tiedman sacudiu a cabeça. Sawyer recostou-se. — Mais duas perguntas. Você sabia que Lieberman tinha câncer pancreático terminal? — Tiedman balançou a cabeça afirmativamente. — Como foi que ele se sentiu a esse respeito? Arrasado? Magoado? Tiedman não respondeu imediatamente. Deixou-se ficar sentado em silêncio, as mãos cerradas com força sobre o colo até que por fim olhou para Sawyer. — Para falar a verdade, Arthur parecia feliz. — O sujeito estava com um câncer terminal e parecia feliz? — Sei que pode parecer estranho, mas é o único modo que posso descrevê-lo. Feliz e aliviado. Sawyer, intrigado, despediu-se de Tiedman e foi embora, a cabeça fervendo com um conjunto de perguntas inteiramente novo e nenhum modo, até agora, de vir a respondêlas.
CAPÍTULO QUARENTA E NOVE SIDNEY SENTOU-SE SOZINHA no carro-restaurante à medida que o trem avançava ruidosamente cortando a noite no caminho para Nova York. Enquanto as imagens escuras voavam do outro lado das janelas, ela ia distraidamente tomando café e mordiscando um bolinho aquecido no microondas. O barulho constante das rodas do trem e a gentil oscilação do carro a acalmaram. Por uma boa parte da viagem seus pensamentos concentraram-se em Amy. Tinha a impressão de que havia decorrido uma eternidade desde que abraçara sua filhinha pela última vez. Não tinha ideia de quando poderia vê-la de novo. A única coisa que a mantinha afastada era a certeza de que se tentasse aproximar-se, prejudicaria a menina. E jamais faria isso, mesmo que significasse nunca mais vê-la de novo. Ia telefonar, contudo, assim que chegasse a Nova York. Não sabia como poderia explicar a seus pais o pesadelo que os aguardava: as manchetes proclamando sua filha, tão bem-dotada intelectualmente e tão querida, uma assassina em fuga. Nada podia fazer para protegê-los do ataque furioso da opinião pública de que seriam alvo. A imprensa encontraria um meio de chegar a Bell Harbor, Maine, Sidney tinha certeza, mas talvez a viagem dos seus pais lhes garantisse um tempo precioso longe da revoltante luz dos refletores. Sidney sabia que tinha apenas uma única possibilidade para resolver o que quer que fosse que transformara sua vida num inferno. E esta oportunidade jazia na informação contida em um estojo de plástico que voava para o norte tão rapidamente quanto a Federal Express era capaz. O disquete era tudo o que tinha. Jason parecia considerá-lo vitalmente importante. E se estivesse errado? Ela estremeceu e obrigou-se a desviar os pensamentos desse pesadelo em potencial. Tinha que confiar no marido em relação a isso. Deu uma espiada pela janela quando um conjunto indistinto de árvores, casas modestas, com antenas de televisão tortas e galpões de negócios abandonados passaram velozmente. Agasalhou-se melhor e recostou-se. Quando o trem deslizou para dentro das escuras cavernas da Penn Station, Sidney pôs-se de pé junto à porta. Seu relógio marcava cinco e meia da manhã. Ela esperou um pouco na fila do táxi mas decidiu dar um telefonema rápido antes de seguir para o aeroporto JFK. Planejava livrar-se da arma antes de seguir para o aeroporto. O frio metal, contudo, davalhe uma sensação de segurança da qual precisava desesperadamente naquele instante. Ainda não decidira para onde iria, mas pelo menos o trajeto de táxi até o aeroporto lhe daria tempo para pensar num destino. No caminho para o telefone público, pegou um exemplar do Washington Post e examinou as manchetes. Ainda não havia nada sobre os assassinatos; os corpos, no entanto, podiam ter sido encontrados sem que os repórteres tivessem tempo para preparar suas matérias. Se seus dois ex-sócios ainda não tinham sido encontrados, não ia demorar muito. A garagem onde tudo acontecera abria para o público às sete horas da manhã, mas podia ser usada a
qualquer hora pelos locatários do prédio. Discou o número da casa dos pais em Bell Harbor. Uma mensagem automática cumprimentou-a e avisou que o número não estava em operação. Sidney gemeu, lembrando-se subitamente do motivo. Seus pais sempre mandavam desligar o telefone no inverno. O pai provavelmente esquecera de suspender a ordem. Certamente que faria isso quando chegassem lá. Como o telefone continuava desligado, eles provavelmente ainda não tinham chegado. Sidney calculou rapidamente os tempos de viagem. Quando criança, seu pai dirigia todo o percurso, cerca de treze horas, parando apenas para comer e abastecer o carro. Com a idade contudo, ficara mais paciente. Desde que se aposentara, dormia na estrada, dividindo a viagem em dois dias. Se tivessem saído no início da tarde da véspera, como planejaram, chegariam a Bell Harbor no meio da tarde daquele dia. Se tivessem saído na hora planejada. Subitamente ocorreu-lhe que ainda não verificara se seus pais tinham saído. Decidiu corrigir o esquecimento naquele instante. O telefone tocou três vezes e a secretária eletrônica atendeu. Deixou gravada a mensagem de que era ela que estava ligando. Os pais frequentemente filtravam os telefonemas recebidos. Desta vez, contudo, ninguém atendeu. Ela desligou. Tentaria de novo do aeroporto. Consultou as horas e decidiu dar mais um telefonema. Agora que sabia do envolvimento de Paul Brophy com a RTG, havia algo que não fazia sentido. Havia apenas uma única pessoa a quem poderia indagar a respeito. Tinha que formular a pergunta antes que a notícia dos assassinatos fosse divulgada. — Kay? É Sidney Archer. A voz do outro lado da linha estava sonolenta a princípio e depois mostrou-se inteiramente desperta quando Kay Vincent sentou-se na cama. — Sidney? — Desculpe ligar tão cedo. Mas preciso realmente de sua ajuda numa coisa. — Kay nada disse. — Kay, eu sei o que todos os jornais estão dizendo sobre Jason. A voz de Kay a interrompeu. — Não acredito em nem uma só palavra, Sidney. Jason nunca poderia estar envolvido em nada disso. Sidney deixou escapar um suspiro de alívio. — Muito obrigada por dizer isso, Kay. Eu estava começando a pensar que eu era a única que não tinha perdido a fé. — De jeito nenhum, Sidney. Como posso ajudá-la? Sidney levou um momento para acalmar os nervos, para não deixar que a voz tremesse tanto. Viu um policial descendo o corredor da estação ferroviária. Virou de costas para ele e encolheu-se de encontro à parede. — Kay, você sabe que Jason na verdade nunca falava muito comigo acerca do seu trabalho. Kay riu, com ironia. — Não é de admirar. Martelam na nossa cabeça o tempo todo que tudo é um enorme
segredo. — Certo. Só que agora os segredos não me fazem nenhum bem. Preciso saber em que Jason estava trabalhando nos últimos meses. Havia algum grande projeto no qual ele estivesse envolvido? Kay passou o telefone para a outra orelha. O marido roncava do outro lado da cama. — Bem, você sabe, ele estava organizando os registros financeiros para o negócio da aquisição da CyberCom. Isso tomava um bocado do tempo dele. — Sim, eu sabia alguma coisa a este respeito. Kay deu uma risada. — Ele voltava do tal depósito parecendo que tinha lutado com um jacaré na lama, imundo da cabeça aos pés. Mas ele se dedicou e fez um grande trabalho. Na verdade, parecia gostar do que fazia. A outra coisa em que gastava um bocado de tempo era na integração do sistema de cópias de segurança da empresa. — A ideia era fazer o sistema de computadores armazenar automaticamente cópias de mensagens eletrônicas e quaisquer documentos? — Exatamente. — Por que haveriam eles de precisar de um sistema integrado? — Bem, como você provavelmente deve ter adivinhado, a empresa de Quentin Rowe tinha um sistema excelente antes de ser comprada pela Triton. Mas Nathan Gamble e a Triton não tinham. Aqui entre nós, não creio que Nathan Gamble saiba o que seja uma cópia de segurança. De qualquer modo, o trabalho de Jason era integrar o sistema antigo da Triton ao sistema mais sofisticado de Quentin. — O que exatamente essa integração significava em termos de trabalho? — Passarem revista todos os arquivos de segurança da Triton e formatá-los de tal maneira que passassem a ser compatíveis com o novo sistema. E-mails, documentos, relatórios, gráficos — qualquer coisa criada dentro do sistema da empresa. Ele terminou tudo isso. O sistema agora é totalmente integrado. — Onde ficam os arquivos velhos? No escritório? — Oh, não. No galpão de depósito em Reston. Caixas armazenadas em pilhas de dez. Mesmo lugar onde ficavam guardados os documentos financeiros. Jason passou um bocado de tempo lá. — Quem autorizou esses projetos? — Quentin Rowe. — Não foi Nathan Gamble? — Não creio que ele sequer tenha tomado conhecimento inicialmente. Mas agora sabe. — Como você pode ter tanta certeza? — Porque Jason recebeu uma mensagem eletrônica de Nathan Gamble cumprimentando-o pelo serviço feito. — É mesmo? Pois não combina nada com Nathan Gamble. — É, me surpreendeu também. Mas ele mandou. — Suponho que você não se lembre da data dessa mensagem, lembra? — Na verdade, eu me lembro, e por uma razão terrível. — Como assim? Kay Vincent deixou escapar um suspiro fundo.
— Foi o dia do desastre do avião. Sidney deu um pulo para a frente. — Tem certeza? — Não havia como poder esquecer isso, Sid. — Mas Nathan Gamble se encontrava em Nova York nesse dia. Eu estava lá com ele. — Oh, isso não tem importância, ele faz a secretária enviar suas mensagens eletrônicas dentro de um cronograma prefixado independente da presença dele no escritório. Aquilo não fez sentido para Sidney. — Kay, suponho que não houve mais notícias sobre a transação com a CyberCom, houve? A questão dos registros ainda está emperrando o andamento da negociação? — Que questão dos registros? — Gamble não queria entregar os registros financeiros da Triton para a CyberCom. — Não sei de nada disso. Só sei, com absoluta certeza, que os registros financeiros já foram entregues à CyberCom. — O quê? — Sidney quase gritou. — Algum dos advogados da Tyler e Stone examinou os registros primeiro? — Não sei nada quanto a isto. — Quando eles foram entregues? — Ironicamente no mesmo dia em que Nathan Gamble mandou aquela mensagem eletrônica para Jason. A cabeça de Sidney girava. — O dia do acidente do avião? Tem certeza absoluta disso? — Sou muito amiga de um dos funcionários da sala da expedição da correspondência. Ele foi escalado para levar tudo para o departamento de cópias e de lá ajudou na remessa para a CyberCom. Por quê? É importante por algum motivo? Sidney finalmente falou. — Ainda não sei ao certo se é ou não. — Oh, bem, você precisa saber de mais alguma coisa? — Não, Kay, obrigada, você já me proporcionou muita coisa em que pensar. — Sidney agradeceu mais uma vez, despediu-se, desligou e dirigiu-se para os estandes dos táxis. Kenneth Scales olhou para a mensagem que tinha em mãos, os olhos semicerrados. A informação existente no disquete fora criptografada. Seria necessário uma senha. Deu uma olhada na única pessoa que sabiam agora que tinha de ser a destinatária da preciosa mensagem. Jason não teria enviado o disquete para a mulher sem ter enviado também a senha. E a senha só podia ser a mensagem que Jason mandara do armazém. A senha. Sidney estava na fila do táxi em frente à Penn Station. Devia ter acabado com ela na limusine. Não tinha o hábito nem gostava de deixar ninguém vivo. Mas ordens eram ordens. Pelo menos ela havia sido mantida em rédea curta enquanto não sabiam para onde a mensagem eletrônica fora enviada. Agora tinha instruções autorizando-o a enfiar a faca nela. Ele adiantou-se. Quando o táxi de Sidney encostou no meio-fio, ela viu um reflexo no vidro do veículo. O homem focalizou os olhos nela por um instante, mas no estado de nervos em que estava, foi o bastante. Quando se virou, eles se encararam por um momento terrível. Eram os mesmos
olhos demoníacos da limusine. Scales praguejou e saiu correndo. Sidney pulou dentro do táxi que saiu acelerando forte. Scales empurrou para o lado diversas pessoas que estavam na fila na sua frente, jogou no chão o funcionário do estande que protestava e entrou no primeiro táxi disponível. Saiu atrás de Sidney velozmente. Sidney olhou para trás. Não dava para ver muita coisa, com a escuridão e a chuva acompanhada de neve. No entanto, o trânsito estava relativamente fácil àquela hora da manhã e dava para perceber que havia um par de faróis se aproximando velozmente. Ela se virou para a frente de novo. — Sei que vai parecer maluquice da minha parte. mas estamos sendo seguidos. — Ela deu outro endereço ao motorista. Ele fez uma curva brusca para a esquerda, depois para a direita, fez o motor roncar numa ruela vazia e voltou para a Quinta Avenida. O táxi parou diante de um prédio. Sidney saltou de um pulo e correu para o portão, tirando no percurso algo de dentro da bolsa. Inseriu o cartão de acesso na fresta que havia na parede, a porta se abriu com um clique, ela entrou e puxou-a para fechá-la de novo. O segurança no console de granito no saguão ergueu a cabeça, sonolento. Mais uma vez Sidney colocou a mão na bolsa e agora puxou seu cartão de identidade da Tyler e Stone. O segurança balançou a cabeça, em sinal de aprovação, e arriou na cadeira de novo. Sidney olhou para trás mais uma vez quando acionou o botão de chamada do elevador. Só um dos carros funcionava aquela hora da manhã. O segundo táxi freou ruidosamente em frente ao prédio, um homem saltou, correu para a porta de vidro e começou a socá-la. Sidney viu que o segurança se levantava. Ela o chamou. — Acho que esse homem está me seguindo. Deve ser maluco. Por favor, tenha cuidado. O segurança a encarou por um instante e balançou a cabeça. Depois olhou para a entrada. Uma das mãos deslizou até a pistola no coldre, enquanto se encaminhava para a entrada. Sidney olhou para trás mais uma vez antes de entrar no elevador. O segurança estava olhando para um lado e para outro da rua. Suspirou aliviada, entrou no elevador e apertou o botão do vigésimo terceiro andar. Momentos depois ingressava no conjunto de salas da Tyler e Stone às escuras e entrava correndo em um escritório. Acendeu uma luz, puxou o caderninho de endereços, consultou um número e discou. Estava ligando para uma antiga vizinha de seus pais e amiga da família, Ruth Childs, uma senhora de setenta anos de idade. Ruth atendeu o telefone no primeiro toque, e pelo tom vivo da sua voz, a despeito de ser apenas um pouco mais que seis horas da manhã, era claro que já estava acordada há algum tempo. Ruth declarou ternamente seus sentimentos à Sidney pela perda recente e depois, em resposta à indagação dela, disse que os Patterson e Amy tinham viajado na véspera, por volta das duas horas, depois de prepararem correndo as malas. Sabia que o destino deles era Bell Harbor, mas era só. — Vi seu pai colocar a espingarda na mala, Sidney — disse Ruth provocadoramente. — Não tenho ideia da razão. — Foi a fraca resposta de Sidney. Já ia se despedir quando
Ruth disse algo que fez seu coração falhar uma batida. — Tenho que admitir que fiquei meio preocupada na noite anterior à da partida deles. Havia um carro passando aqui em frente o tempo todo. Não durmo muito, e quando durmo qualquer coisa me acorda. O bairro aqui é tranquilo, você sabe. Ninguém sai, a menos que a pessoa vá fazer uma visita. O carro voltou ontem de manhã. — Você viu alguém no carro? — A voz de Sidney tremia. — Não, os meus olhos não são mais como antigamente, mesmo com trifocais. — O carro ainda está aí? — Oh, não. Partiu logo que seus pais saíram. Ainda bem! De qualquer maneira, meu taco de beisebol está atrás da porta. Só queria que alguém tentasse arrombar minha casa. Ia se arrepender. Antes de desligar, Sidney disse a Ruth para ter cuidado e chamar a polícia se o carro aparecesse de novo, o que tinha certeza de que não aconteceria. A esta altura o carro estava longe de Hanover, Virgínia. Podia afirmar quase que com certeza absoluta, que se encontrava a caminho de Bell Harbor, Maine. E agora, ela também tomaria o mesmo rumo. Desligou o telefone e virou-se para ir embora. Foi quando ouviu o sinal do elevador parando no mesmo andar onde se encontrava. Não se deteve a imaginar quem poderia estar chegando tão cedo para o trabalho. Optou imediatamente pela pior hipótese. Puxou o revólver e saiu correndo do escritório na direção contrária à do elevador. Pelo menos tinha a vantagem de conhecer bem a disposição das salas. O barulho dos pés de um homem correndo atrás dela confirmou suas piores suspeitas. Correu o máximo que pôde, a bolsa batendo do lado do corpo. Podia ouvir a respiração do homem quando ele virou no mesmo corredor em que se encontrava. Ele se aproximou mais. Ela correu como nunca desde seus tempos de jogadora de basquete na universidade, mas era evidente que não ia bastar. Teria que experimentar uma tática diferente. Fez uma curva, parou, girou e se ajoelhou em posição de tiro, o revólver apontado direto em frente. O homem virou na mesma curva a toda velocidade e parou a não mais de cinquenta centímetros dela. Sidney deu uma espiada na faca que ele tinha na mão, o sangue ainda pingando da lâmina. O corpo parecia tenso para um ataque final, usando todos os seus recursos. Como que pressentindo isso, Sidney deu um tiro que passou raspando sua têmpora esquerda. — A próxima perfura seu cérebro. — Ela se levantou, os olhos colados no rosto dele, e fez um gesto para que ele deixasse a faca cair no chão, o que ele fez. — Mexa-se — berrou, apontando para um ponto qualquer às costas dele com o revólver. Fez com que recuasse pelo corredor até que chegaram a uma porta de metal. — Abra. Os olhos dele como que perfuravam o rosto dela. Sidney, mesmo com uma arma apontada para a cabeça dele, sentia-se como uma criança com uma varinha frágil enfrentando um cão raivoso. Ele abriu a porta e deu uma olhada. As luzes se acenderam automaticamente. Era a sala das fotocopiadoras, uma coleção de máquinas volumosas, pilhas de papel e todos
os demais itens necessários a uma firma de advocacia movimentada. Ela fez um gesto indicando, através da porta aberta, uma segunda porta do outro lado da sala das copiadoras. — Entre. — Ele se deslocou, passando pelo batente. Sidney sustentou a porta aberta enquanto o observava atravessando a sala. Ele a encarou quando abriu a outra porta. Era um depósito de materiais de escritório. — Se abrir a porta, você é um homem morto. — Mantendo o revólver sempre apontado diretamente para ele, esticou o braço por cima de um balcão logo no interior da sala e pegou um telefone, de modo ostensivo. Assim que o homem fechou a porta, ela colocou o telefone no suporte, fechou silenciosamente a sala das copiadoras e correu até os elevadores. Acionou o botão e a porta se abriu imediatamente. Graças a Deus ele ficara no vigésimo terceiro andar. Entrou e apertou o botão do primeiro andar, o tempo todo atenta para ver se o homem vinha atrás dela. Manteve o revólver apontado para a abertura da porta, mas o escritório permaneceu em silêncio. Assim que chegou, apertou todos os botões até o vigésimo terceiro andar e saltou. Só então liberou o ar que retivera nos pulmões e permitiuse um pequeno sorriso, que se transformou rapidamente em uma expressão de horror quando dobrou uma curva e quase caiu em cima do corpo do segurança. Controlando-se para não gritar, saiu correndo do prédio e ganhou a rua. Eram sete e quinze da manhã e Lee Sawyer acabara de fechar os olhos quando o telefone tocou. Ele deixou a mão enorme cair em cima do aparelho e o ergueu. — Hein? — Lee? O cérebro sonolento de Sawyer engrenou uma primeira e ele se sentou. — Sidney? — Não tenho muito tempo. — Onde você está? — Só quero que me escute. — Mais uma vez ela estava em uma cabine de telefone público na Penn Station. Ele passou o telefone para a outra orelha ao mesmo tempo em que se livrava das cobertas. — OK. Estou escutando. — Um homem acaba de tentar me matar. — Quem? Onde? — Sawyer pegou uma calça do lado da cama e começou a se vestir. — Não sei quem é ele. — Você está bem? — perguntou Sawyer, ansioso. Sidney olhou em torno para a estação apinhada de gente. Um bom número de policiais podia ser visto. O problema é que a polícia agora era a inimiga. — Estou. Sawyer, aliviado, soltou o ar. — Tudo bem, o que é que está acontecendo? — Jason mandou um e-mail para a nossa casa depois do desastre. E havia uma senha nesse e-mail. — O quê? — Sawyer começou a falar atabalhoadamente de novo. — Jesus Cristo, um email, foi o que você disse? — Com o rosto rubro, ele saiu trotando pelo quarto, vestindo uma camisa, e calçando as meias e os sapatos ao mesmo tempo em que equilibrava o
telefone sem fio. — Não tenho tempo para lhe contar como acabei recebendo o e-mail, só que agora está comigo. Com um esforço enorme, Sawyer conseguiu se acalmar. — Bem, o que diabos ele dizia? Sidney tirou do bolso do casaco a folha de papel onde a mensagem eletrônica fora impressa. — Você tem alguma coisa com que escrever? — Espera aí. Sawyer foi correndo até a cozinha e pegou numa gaveta um pedaço de papel e uma caneta. — Pode ditar. Mas leia exatamente como aparece. Foi o que Sidney fez, incluindo a ausência de espaço entre certas palavras e os pontos separando pedaços da senha exatamente como apareciam na página impressa que segurava. Ele repassou o que escrevera para se assegurar de que não houvesse erro. — Tem alguma ideia do que significa esta mensagem, Sidney? — Não tive muito tempo para pensar nisso. Sei que Jason disse que estava tudo errado, e acredito nele. Está tudo errado. — Mas e o disquete? Você sabe o que tem nele? — Ele leu rapidamente a mensagem de novo. — Você o recebeu pelo correio? Ela hesitou um instante. — Ainda não — respondeu. — Isto aqui é a senha para o disquete? O que é... um arquivo cifrado? — Eu não sabia que você era tão entendido em computadores. — Sou um homem cheio de surpresas. — É, acredito que seja. — Quando espera receber o disquete? — Não sei ao certo. Olha, tenho que ir. — Espera um minuto. O sujeito que tentou matá-la. Qual era a aparência dele? Ela lhe deu uma descrição. Estremeceu só de pensar nos olhos azuis enlouquecidos. Sawyer anotou tudo. — Vou procurar no sistema e ver o que aparece. — Ele deu um pulo para a frente. — Espera um minuto, estou com você sob vigilância. O que diabo aconteceu com os meus homens? Você não está na sua casa? Sidney engoliu em seco. — Não estou exatamente sob vigilância agora. Pelo menos não do seu pessoal. E não, não estou em casa. — Então você se incomodaria em dizer onde se encontra? — Tenho que ir. — Uma ova que você tem de ir. Um maluco qualquer acaba de tentar acabar com você, meus homens não estão em cena. Quero saber o que está acontecendo — exclamou ele, furioso. — Lee? Ele se acalmou um pouco. — O quê? — resmungou. — Seja o que for que aconteça, seja o que for que você venha a encontrar, quero que saiba
que não fiz nada de errado. Nada. — Ela engoliu umas lágrimas e acrescentou, em tom suave: — Por favor, acredite nisso. — Ei, que negócio é esse? O que significam estas suas palavras? — Adeus. — Não! Espera! — O telefone clicou no seu ouvido e ele desligou, furioso. Olhou para a mensagem e a colocou sobre a mesinha, ao lado do telefone. Dobrou o corpo. Os joelhos estavam trêmulos, o estômago mais indisposto que o normal. Foi até o banheiro e tomou um gole de Maalox. Limpando a boca com as costas da mão, retornou para a cozinha, foi buscar o pedaço de papel em que escrevera o e-mail e sentou-se à mesinha. Articulou em silêncio as palavras enquanto lia. Tome cuidado com a sua datilografia. A primeira parte da mensagem parecia indicar que Archer mandara a mensagem para a pessoa errada. Sawyer leu o nome do destinatário e do remetente. Sidney dissera que Jason tinha enviado o e-mail para a casa deles. ArchieJW2. Este tinha que ser o endereço de Jason Archer para mensagens eletrônicas, seu sobrenome e iniciais. ArchieKW2 então era a pessoa para quem a mensagem fora enviada inicialmente. Jason Archer digitara o K em vez do J, isto parecia bastante claro. ArchieKW2 mandara então a mensagem de volta para o destinatário, com um texto comentando o engano, e, ao fazer isto, acabara fazendo com que ela chegasse ao destinatário desejado por Jason: Sidney Archer, sua esposa. A referência ao armazém de Seattle fazia sentido. Jason evidentemente se metera em um sério problema com quem quer que tivesse se encontrado. Alguma coisa não dera certo. Tudo errado Obviamente, Sidney se agarrara àquilo como prova da inocência do marido. Sawyer não se sentia tão seguro quanto a isto. Tudo ao contrário? Estranha expressão, parecia deslocada aí. A seguir Sawyer se concentrou na senha. Jesus, Jason tinha que ser mesmo um crânio se, conseguia puxar uma senha comprida daquelas de um canto da memória. Sawyer não conseguiu encontrar sentido nela. Semicerrou os olhos e aproximou o rosto do papel. Jason obviamente não tivera tempo de terminar a mensagem. Sawyer esticou o pescoço doído para um lado e para outro e recostou-se na cadeira. O disquete. Tinham que pôr as mãos no disquete. Ou, para ser mais preciso, Sidney Archer tinha que receber o tal disquete. Seus pensamentos foram interrompidos pela campainha do telefone. — Pois não? — Lee, aqui é o Frank. — Puxa vida, Frank, não dá para você telefonar no horário do expediente normal? — É sério, Lee. Sério mesmo. Uma firma de advogados, chamada Tyler e Stone. A garagem subterrânea. — O quê? — Um triplo homicídio. É melhor você vir. Sawyer desligou o telefone. As últimas palavras de Sidney, afirmando nada ter feito de errado, ganharam seu real significado. Filha da mãe! A rua que dava na garagem era um mar de luzes azuis e vermelhas, com carros da polícia e viaturas de emergência paradas por toda a parte. Sawyer e Jackson exibiram os crachás na faixa de segurança. Com a fisionomia preocupada, Frank Hardy os encontrou do lado de dentro e os conduziu até o nível mais
baixo da garagem, quatro andares sob o térreo, onde a temperatura era hem abaixo de zero. — Parece que os homicídios tiveram lugar hoje de manhã bem cedo, de modo que os indícios estão relativamente frescos. Os corpos também se encontram em boa forma, exceto pelos orifícios das balas — disse Hardy. — Como foi que você soube, Frank? — O sócio administrativo da firma, Henry Wharton, foi notificado pela polícia da Flórida, onde está a trabalho. Ele telefonou para Nathan Gamble e Gamble, por sua vez, ligou para mim. — Posso concluir então que as vítimas tinham relação com a firma? — perguntou Sawyer. — Você pode ver por si só, Lee. Todos ainda estão aí. Mas digamos que a Triton tem um interesse particular nesses homicídios. Foi este o motivo pelo qual Wharton telefonou para Gamble tão depressa. Acabamos de saber também que o guarda de segurança do escritório da Tyler e Stone em Nova York foi morto esta manhã bem cedo. Sawyer o encarou: — Nova York? Hardy confirmou, balançando a cabeça. — Alguma coisa mais? — Ainda não. Mas houve testemunhas que viram uma mulher sair correndo do edifício uma hora antes de o corpo ser descoberto. Sawyer foi digerindo a novidade na evolução dos acontecimentos enquanto seguia, com Hardy, em meio à multidão de policiais e pessoal do laboratório, até o lado do motorista da limusine. Ambas as portas estavam abertas. Sawyer viu os técnicos em digitais acabarem de polvilhar o exterior-do carro. O fotógrafo da cena do crime já ia se afastando, enquanto outro técnico filmava a área com uma câmera de vídeo. O legista, um homem de meiaidade com uma camisa branca de mangas dobradas e gravata enfiada para dentro da camisa, tudo complementado pelas luvas plásticas e uma máscara cirúrgica, conferenciava com dois homens usando aventais azuis-escuros. Os dois homens depois foram se juntar a Hardy e aos dois agentes do FBI. Hardy apresentou Sawyer e Jackson a Royce e Holman, dois detetives da divisão de homicídios da polícia de Washington. — Informei a eles que o FBI tem interesse no caso, Lee. — Quem encontrou os corpos? — perguntou Jackson a Royce. — Um contador que trabalha no prédio. Chegou um pouco antes das seis. A vaga dele é aqui. Achou estranho ver uma limusine àquela hora, particularmente por estar bloqueando tantas vagas. Todos os vidros da limusine são escuros, como vocês podem ver. Ele bateu na porta, e como não houve resposta, abriu a porta do lado do motorista. Má decisão. Acho que a esta altura ainda está lá em cima, vomitando. Mas pelo menos conseguiu telefonar. Os homens aproximaram-se mais da limusine. Hardy fez um gesto para que os agentes do FBI dessem uma olhada. Depois de espiar no interior, parte da frente e de trás, Sawyer virou-se para Hardy. — O cara no chão me parece familiar. — Deve parecer mesmo, é Paul Brophy. Sawyer trocou um olhar com Jackson. — O cavalheiro de óculos no banco de trás é Philip Goldman — declarou Hardy.
— Advogado da RTG — lembrou Jackson. Hardy fez que sim. — A vítima no banco da frente é James Parker, um funcionário da subsidiária local da RTG. A propósito, a limusine está registrada em nome da RTG. — O que explica o interesse da Triton no caso — sugeriu Sawyer. — Na mosca — assentiu Hardy. Sawyer passou a estudar o ferimento na testa de Goldman antes de examinar o corpo de Brophy. As suas costas, Hardy continuou a falar, seu tom de voz calmo e metódico. Ele e Sawyer haviam trabalhado em inúmeros casos de homicídio juntos. Ali pelo menos todas as partes dos corpos estavam intactas, o que na maioria das vezes não acontece. — Todos os três morreram de ferimentos de arma de fogo. Tudo indica ser uma arma de calibre pesado, atirando de perto. O ferimento de Parker, o motorista, resultava, evidentemente, de um tiro disparado à queima-roupa. O de Brophy parece quase tão aproximado quanto o de Parker, pelo pouco que fui capaz de ver. A bala de Goldman provavelmente percorreu uma distância de uns cinquenta centímetros, talvez mais, considerando o padrão da queimadura na testa. Sawyer balançou a cabeça, concordando. — Assim, o atirador talvez estivesse no banco da frente. Abateu o motorista em primeiro lugar, depois Brophy e por fim Goldman — arriscou. Hardy não pareceu convencido. — Pode ser, embora o atirador pudesse estar sentado ao lado de Brophy, de frente para Goldman. Atirou em Parker através da divisória, atirou em Brophy e depois em Goldman, ou vice-versa. Temos que esperar pela autópsia para saber a exata trajetória das balas. Pode ser que nos dê uma melhor ideia da sequência. — Ele fez uma pausa e acrescentou. — Juntamente com algum outro resíduo. — O interior da limusine era na verdade uma visão horrível. — Já deram uma hora aproximada do óbito? — Quis saber Jackson. Royce verificou as anotações. — O rigor mortis ainda não atingiu o máximo — longe disso, na verdade. A lividez tampouco se fixou. Os três se encontram em estágios similares do postmortem, de modo que parece que morreram mais ou menos à mesma hora. Associando isso à temperatura do corpo, o legista acabou de me dar uma primeira avaliação de quatro a seis horas. Sawyer deu uma olhada no relógio. — Oito e meia agora. Aconteceu então entre duas e quatro horas desta manhã. Royce concordou. Jackson estremeceu quando uma rajada de vento frio soprou sobre eles no instante em que a porta do elevador se abriu para deixar sair mais policiais. Sawyer fez uma careta quando viu as nuvens formadas pela respiração dos homens. Hardy sorriu. — Sei o que você está pensando, Lee. Ninguém mexeu no ar condicionado como fizeram com o seu último cadáver, mas frio do jeito que está...
— Não sei ao certo o quanto vai ser precisa a avaliação da hora das mortes — completou Sawyer por ele. — E estou convicto de que cada minuto de diferença terá enorme importância. — Na verdade, temos a hora exata da entrada da limusine na garagem, agente Sawyer — adiantou Royce. — O acesso é limitado para os que têm cartão de permissão. O sistema de segurança da garagem registra quem entra pelo cartão individual usado para acessar as dependências. O cartão de Goldman deu entrada à uma e quarenta e cinco da manhã. — Quer dizer então que ele não devia estar aqui há muito tempo quando foi vitimado — arriscou Jackson. — Pelo menos isso nos dá uma referência. Sawyer nada disse. Esfregou o queixo enquanto seus olhos continuavam a vasculhar a cena do crime. — Arma? O detetive Holman puxou um objeto encerrado em um saco plástico lacrado. — Um dos policiais uniformizados encontrou isto em um bueiro próximo. Por sorte ficou preso em alguns detritos, caso contrário nunca teríamos encontrado. — Ele passou o saco plástico para Sawyer. — Smith & Wesson, 9mm. Munição Hydra-Shok. Número de série intacto. Não deve dar muito trabalho para descobrir o proprietário. Três tiros faltando no pente. E preliminarmente registramos três orifícios de bala nas vítimas. Os três homens podiam ver facilmente os vestígios de sangue na pistola, o que era natural para uma arma que tivesse sido usada para atirar à queima-roupa. — Com toda a certeza parece ser a arma do crime — continuou Holman. — O atirador recolheu os cartuchos, mas as balas parecem estar ainda em todas as vítimas, de modo que teremos um laudo definitivo da balística dependendo da deformidade dos projéteis. Mesmo antes de lhe entregarem a pistola, Sawyer já notara um detalhe. O mesmo acontecera com Jackson. Os dois se entreolharam, abalados — a rachadura no cabo. Hardy notou a troca de olhares. — Alguma coisa? Sawyer suspirou. — Merda. — Foi tudo o que pôde dizer no momento. Enfiou as mãos no fundo dos bolsos, olhou para a limusine e depois de novo para a arma do crime. — Tenho noventa e nove por cento de certeza de que esta arma pertence a Sidney Archer, Frank. — Como é mesmo esse nome? — Os dois detetives da divisão de homicídios fizeram a mesma pergunta quase simultaneamente. Sawyer passou as informações sobre a identidade de Sidney e sua ligação com a firma de advogados. — Certo, o jornal publicou um artigo sobre ela e o marido. Eu sabia que o nome era familiar. Isso explica um mundo de coisas... — Como assim? — indagou Jackson. Royce consultou o caderninho de anotações. — A entrada principal do prédio também controla quem entra e sai fora de hora. Uma e
vinte e um da manhã de hoje, adivinha de quem foi o cartão que ficou registrado? — O de Sidney Archer — respondeu Sawyer, impaciente. — Na mosca. Nossa, marido e mulher. Belo casal. Mas nós vamos pegá-la. Os corpos estão frescos, a vantagem dela não pode ser tão grande. — Royce parecia confiante. — Já levantamos um monte de impressões, é verdade que parciais, na limusine. Primeiro vamos comparar com as dos homens mortos e depois vamos nos concentrar nas que restarem. — Eu não me surpreenderia se as impressões digitais da Sra. Archer aparecerem espalhadas por toda a parte — disse Holman, indicando a limusine com um gesto de cabeça. — Particularmente com todo aquele sangue. Sawyer virou-se para o detetive. — Conseguiu encontrar um motivo? Royce mostrou o gravador. — Encontrei debaixo de Brophy. Já levantaram as impressões — explicou, acionando o aparelho. Todos ouviram a gravação até que a fita parou poucos minutos depois. O sangue subiu ao rosto de Sawyer. — Era a voz de Jason Archer — disse Hardy. — Conheço bem. — Ele sacudiu a cabeça. — Se pelo menos a gente tivesse o corpo que acompanha a voz! — E a voz da mulher é de Sidney Archer — acrescentou Jackson. Ele deu uma olhada no seu parceiro, que estava encostado a uma pilastra, com cara de desespero. Sawyer assimilou a nova informação e conectou-a à paisagem caótica em que aquele caso se transformara. Brophy gravara a conversa na manhã que eles tinham ido entrevistar Sidney. Por isso que o filho da mãe parecia tão satisfeito consigo próprio. Aquilo explicava também a viagem dele a Nova Orleans e sua pequena incursão ao quarto de hotel de Sidney. Ele nunca teria revelado voluntariamente o que Sidney lhe dissera sobre o telefonema. Só agora o segredo fora revelado. Ela mentira ao FBI. Mesmo que Sawyer testemunhasse — o que faria em um minuto — que depois ela lhe revelara os detalhes do telefonema, ainda assim Sidney tinha feito planos para ajudar e acobertar um fugitivo. Agora estava encarando uma sentença de muitos anos de cadeia. O rostinho de Amy Archer introduziu-se nos pensamentos de Sawyer, e os ombros dele caíram ainda mais. Quando Royce e Holman se afastaram para continuar a investigação, Hardy aproximou-se de Sawyer. — Quer meu palpite? Sawyer fez que sim. Jackson juntou-se a eles. — Provavelmente sei de umas coisas que você não sabe. Uma delas é que Tyler e Stone estava demitindo Sidney Archer — disse Hardy. — OK. — Os olhos de Sawyer permaneceram fixos em Hardy. — Ironicamente, a carta de demissão foi encontrada no corpo de Goldman. Pode ser que tenha acontecido desse jeito: Archer vai ao escritório sozinha por alguma razão. Talvez seja inocente, talvez não. Encontra-se com Goldman e Brophy, ou por acidente ou por
encontro arranjado. Goldman provavelmente tornou Sidney Archer muito familiarizada com os termos da carta de demissão e depois tocaram a fita para ela ouvir. Que é um belo material de chantagem. — Concordo que a fita seja muito prejudicial, mas por que razão eles iriam chantageá-la? — Os olhos de Sawyer ainda estavam fixos em Hardy. — Como já lhe falei, até o desastre do avião, Sidney Archer era a principal advogada na compra da CyberCom. Tinha conhecimento de muitas informações confidenciais. informações que a RTG daria tudo para pôr as mãos em cima. O preço da informação é a fita. Ou ela lhes dá a informação ou vai para a prisão. A firma a demitirá de qualquer maneira. Por que diabos ela haveria de se importar? Sawyer pareceu confuso. — Mas eu pensei que o marido dela já tivesse entregue a informação à RTG. A cena que aparece na fita de vídeo. — As transações mudam, Lee. Sei, por exemplo, que desde o desaparecimento de Jason Archer, os termos da oferta da Triton mudaram. O que Jason deu, portanto, era notícia velha. Eles precisavam de coisa nova. Ironicamente, o que o marido não pôde dar, a mulher pôde. — Assim sendo, eles teriam negociado. Como explicar então a parte dos assassinatos, Frank? Só porque a pistola era dela não significa que a tenha disparado. Sawyer estava evidentemente puxando discussão, mas Hardy ignorou seu tom de voz e continuou com a análise. — Talvez não tenham conseguido chegar a um acordo. Talvez as coisas tenham ficado feias. Talvez tenham decidido que a melhor forma de conseguirem a informação de que precisavam era acabando com ela. Talvez tenha sido por isto que todos terminaram no interior da limusine. Parker, o motorista, estava armado; o revólver ficou no coldre dele, sem ter sido disparado. Pode ter havido uma briga. Ela saca a arma, dispara e mata um deles em autodefesa. Horrorizada, decide não deixar testemunhas. Sawyer sacudiu a cabeça vigorosamente. — Três homens vigorosos contra uma mulher? Não faz sentido que tenham perdido o controle da situação. Supondo que ela estivesse na limusine, não posso crer que tivesse sido capaz de matar todos os três, saindo incólume. Talvez ela não tenha saído incólume, Lee. Pelo que sabemos, pode ser que tenha ido embora ferida. Sawyer deu uma olhada para o chão de concreto ao lado do carro. Havia diversas manchas de sangue, mas nenhuma visivelmente mais distante. Sem ser decisiva, a teoria de Hardy era plausível. — Então, ela mata os três e sai sem a fita. Por quê? Frank Hardy deu de ombros. — O gravador foi encontrado debaixo de Brophy. O cara era grande, pelo menos cem quilos de peso literalmente morto. Foram necessários dois guardas peso-pesados para mover o corpo quando estavam tentando identificá-lo. Foi quando descobriram o gravador com a fita. A resposta pode ser que ela simplesmente não teve capacidade física para fazer isso.
Ou quem sabe não sabia que estava debaixo dele. Pelo que parece, caiu do bolso quando ele foi abatido pelo tiro. Aí ela entrou em pânico e saiu correndo. Joga a arma no esgoto e dá o fora do cenário da matança. Quantas vezes já vimos isso ocorrer? Jackson olhou para Sawyer. — Faz sentido, Lee. Sawyer, todavia, continuou em dúvida. Dirigiu-se para perto do detetive Royce, que assinava uns documentos. — Você se incomoda se eu chamar uns técnicos do nosso laboratório para verificar umas coisas? — Esteja à vontade. Raramente declino da ajuda do FBI. Vocês recebem todos aqueles dólares federais. Nós? Com sorte teremos gasolina nos nossos carros. — Eu gostaria de realizar alguns testes no interior da limusine. Minha equipe estará aqui em vinte minutos. Eu gostaria que eles fizessem os exames com os corpos ainda nos respectivos lugares. Depois faríamos um exame mais minucioso — exceto os corpos, é claro — no laboratório. O reboque fica por nossa conta. Royce considerou o perito por um instante. — Vou providenciar a papelada necessária. — Ele lançou um olhar desconfiado para Sawyer. — Olha, sempre fico satisfeito com a ajuda do Bureau, mas isto aqui é nossa jurisdição. Vou ficar muito furioso de ver neguinho recebendo crédito pelo que não fez. Está ouvindo o que estou falando? — Alto e claro, detetive Royce. O caso é seu. Seja o que for que descobrirmos será seu para solucionar o crime. Espero sinceramente que resulte em uma promoção e um belo de um aumento para você. — Você e minha mulher. — Posso pedir um favor? — Sempre se pode pedir — replicou Royce. — Você se incomoda de mandar um dos seus técnicos recolher resíduos de disparos em cada um dos três corpos? Estamos ficando sem tempo. Posso fazer com que o meu pessoal analise as amostras. — Acha que um deles possa ter disparado a arma? — Royce parecia altamente duvidoso. — Talvez sim, talvez não. Podemos, de qualquer modo, definir se isso aconteceu ou não. Royce deu de ombros e fez um gesto para que um dos seus técnicos se aproximasse. Era uma moça, e depois de instruí-la sobre o que era desejado, observaram quando ela trouxe uma maleta já bem usada e volumosa, abriu-a e começou os preparativos para realizar um teste de resíduos. Só que amostras desse tipo devem ser colhidas em um prazo de seis horas após o disparo do tiro, e Sawyer receava que não fosse dar tempo. A técnica mergulhou um certo número de cotonetes em uma solução de ácido nítrico. Depois passou-os na parte da frente e de trás das mãos de todos os corpos. Se algum deles tivesse disparado uma arma recentemente, o teste revelaria depósitos de bário e antimônio, componentes usados na fabricação de praticamente todos os tipos de munição. Mas não era um teste conclusivo. Se o resultado fosse positivo, não queria dizer que qualquer um deles tivesse disparado a arma do crime, apenas uma arma de fogo qualquer nas últimas
seis horas. Além do mais, era possível que a pessoa tivesse meramente manuseado a arma do crime depois do tiro ser dado — por exemplo, em uma briga — tendo então a mão contaminada pelos resíduos do exterior dessa arma. Mas um teste positivo ajudaria muito a causa de Sidney Archer. Muito embora todos os indícios parecessem apontar seu envolvimento nos homicídios, Sawyer tinha certeza absoluta de que ela não havia puxado o gatilho. — Mais um favor? — perguntou Sawyer ao detetive Royce. Ele ergueu as sobrancelhas. — Eu gostaria de uma cópia da fita. — Claro. Pode pedir o que quiser. Sawyer pegou o elevador de volta para o andar térreo, dirigiu-se até o seu carro e pediu pelo telefone uma equipe do laboratório do FBI. Enquanto esperava que chegassem, seu cérebro repetiu incessantemente uma pergunta: Onde diabo estava Sidney Archer?
CAPÍTULO CINQUENTA SIDNEY, QUE DE UM MODO GERAL praticamente não se pintava, esforçou-se ao máximo para maquiar-se com exagero considerável, usando o estojo de pó compacto no interior de um reservado do banheiro das mulheres na Penn Station. Chegara à conclusão de que o homem que a perseguia não ia imaginar que ela fosse voltar à estação. Colocou na cabeça um chapéu de caubói bege, ajeitando-o de modo a quase tapar-lhe a testa. Com o rosto coberto de pintura, o suficiente para ser enquadrada na categoria das piranhas, e as roupas manchadas de sangue enfiadas numa sacola de compras destinada a um latão de lixo, saiu do toalete envergando as roupas que gastara a maior parte do dia comprando: calças jeans bem justas e desbotadas, botas de caubói bege e pontudas, camisa de algodão grosso branca e uma jaqueta de couro preto tipo aviador, forrada. Nada em comum com a sóbria advogada de Washington D.C. que fora até agora e a quem a polícia ia começar a procurar por homicídio muito em breve. Assegurou-se de que a arma, um 32, estivesse cuidadosamente escondida em um dos bolsos internos. As leis que regulam o porte de armas em Nova York são das mais rígidas do país. Meia hora na direção nordeste a bordo de um trem suburbano a deixou em Stamford, Connecticut, uma entre uma série de cidades-dormitório que atendiam aos trabalhadores nova-iorquinos no seu desejo de morar longe da metrópole hipermovimentada. Uma corrida de táxi de vinte minutos a levou até uma linda casa de tijolinhos brancos e persianas pretas em um bairro tranquilo de residências de preço similarmente alto. O nome PATTERSON estava pintado na caixa do correio. Sidney pagou ao motorista, mas em vez de dirigir-se à porta da frente, contornou a casa. Perto da porta da garagem, havia um grande e ornamentado comedouro de passarinhos. Sidney olhou para todos os lados e enfiou a mão dentro do comedouro, afastando as partículas da ração até chegar ao fundo. Puxou o conjunto de chaves ali escondido, foi até a porta de trás, enfiou a chave na fechadura e a porta se abriu. Seu irmão Kenny e a família estavam na França. Ele tinha uma inteligência notável e dirigia uma editora independente, sendo muito bem-sucedido. Mas também era distraído como o diabo. Já se trancara do lado de fora de todas as casas que tivera, o que explicava as chaves no meio da ração de passarinhos, fato bem conhecido de todos os outros membros da família. A casa era antiga, solidamente construída e lindamente decorada, com aposentos amplos e mobília confortável. Sidney não tinha tempo para apreciar o ambiente. Entrou em um pequeno estúdio. Numa das paredes havia um grande armário de carvalho embutido. Usando outra chave do conjunto apanhado no meio da ração dos passarinhos, abriu a pesada porta dupla e contemplou o conteúdo do armário: um impressionante conjunto de espingardas e pistolas. Decidiu-se por uma Winchester 1300 Defender. A espingarda, de calibre 12, era relativamente leve, não ultrapassando três quilos e meio. Com capacidade para cartuchos Magnum de três polegadas capazes de deter qualquer
coisa de duas pernas, tinha, o que talvez fosse mais importante, um depósito com capacidade para oito cartuchos. Colocou diversas caixas de munição Magnum em uma das bolsas de munição do irmão que tirou de uma gaveta e em seguida foi examinar as pistolas pendentes de ganchos especiais montados na parede do armário ao lado da coleção de espingardas. Sidney tinha pouca confiança na força de impacto do calibre 32. Pegou diversas pistolas, testando-as para verificar o peso e o conforto. Sorriu quando pegou uma que conhecia há muito tempo: uma Smith & Wesson Slim Nine, completa, com uma empunhadura perfeita. Pegou a pistola e uma caixa de munição 9mm. Colocou na mesma bolsa da munição da espingarda e trancou o armário de novo. Pegando um binóculo em outra prateleira, deixou o cômodo. Subiu correndo a escada até o quarto de dormir principal e levou alguns minutos examinando as roupas da cunhada. Em pouco tempo conseguiu arrumar uma mala cheia de roupa quente e sapatos. De repente, uma ideia lhe ocorreu. Ligou a televisão pequena do quarto e saiu trocando os canais até achar uma emissora só de notícias. A principal notícia do dia estava sendo reapresentada e, embora estivesse esperando por aquilo, sentiu um aperto no coração ao ver seu rosto ao lado de uma foto da limusine. A matéria foi breve mas devastadora ao retratar a culpa indiscutível. Teve outro choque quando a tela foi dividida ao meio e sua foto ficou ao lado de uma de Jason. Ela imediatamente reconheceu, pela aparência cansada, como sendo a mesma foto estampada no crachá da Triton. Tudo indicava que a imprensa estava achando muito interessante aquela história do casal criminoso. Sidney estudou seu rosto na tela da televisão. Ela também parecia cansada, o cabelo emplastrado na cabeça. Ela e Jason pareciam... culpados, concluiu. Mesmo que não fossem. Mas naquele instante, a maior parte da opinião pública acreditava que fossem dois vilãos, uma versão moderna de Bonnie e Clyde. Levantou-se, com as pernas trêmulas, e cedendo a um impulso súbito entrou no banheiro, onde tirou toda a roupa e entrou no chuveiro. A imagem da limusine fez com que se lembrasse de que ainda trazia consigo vestígios daqueles momentos horríveis. Ela se trancou no banheiro, e, mantendo a cortina do box bem aberta, ficou de frente para a porta. Deixou o 32 carregado ao alcance da mão. A água quente acabou com o frio que lhe gelava os ossos. Vislumbrou seu rosto em um espelho pequeno pregado na parede do boxe e estremeceu com o que viu. Sentia-se velha e cansada. Emocional e mentalmente exausta, seu corpo estava cedendo. Podia sentir o declínio físico centímetro por centímetro. Neste instante cerrou os dentes e esbofeteou-se no rosto. Não ia desistir agora. Era um exército de uma só pessoa, mas de uma pessoa extraordinariamente decidida. Tinha Amy. Que era algo que ninguém jamais lhe tiraria. Terminado o banho, ela vestiu uma roupa quente e correu para o vestíbulo da casa. Lá pegou uma lanterna grande e resistente pendurada em um gancho. Ocorreu-lhe subitamente que a polícia poderia estar procurando pistas suas com toda a sua família e amigos. Carregou tudo para a garagem, onde deu uma olhada no Land Rover Discovery
azul-escuro, um dos veículos mais robustos já fabricado. Colocou a mão por baixo do párachoque esquerdo e tirou um conjunto de chaves de carro. Seu irmão realmente era uma coisa. Desligou o sofisticado sistema de segurança apertando o botão minúsculo na chave e levou um susto com o estranho pio de ave que pontuou a desativação do sistema. Teve o cuidado de colocar a espingarda no chão na parte de trás do carro, sob um cobertor grosso. As pistolas foram postas na sacola de munição, que foi colocada debaixo do banco da frente. O motor V-8 voltou à vida com um ronco. Sidney acionou o controle remoto que estava preso no retrovisor e recuou com o Land Rover para fora da garagem. Verificando cuidadosamente se não havia na rua pessoas ou veículos, retirou o utilitário de duas toneladas da entrada da garagem e pegou a rua, ganhando velocidade rapidamente à medida que ia deixando o tranquilo bairro. Em vinte minutos tinha alcançado a rodovia interestadual. O trânsito pesado fez com que levasse algum tempo para deixar Connecticut para trás. Cortou caminho através de Rhode Island e fez o balão em torno de Boston lá pela uma da manhã. O Land Rover era equipado com um telefone celular; no entanto, após sua esclarecedora conversa com Jeff Fisher, Sidney relutou em usá-lo. Além do mais, para quem iria ligar? Parou uma vez, em New Hampshire, para pegar um café, uma barra de chocolate e encher o tanque de gasolina. A neve passou a cair com mais intensidade, mas o Land Rover seguiu em frente com facilidade e o barulho dos limpadores de pára-brisa pelo menos servia para mantê-la acordada. Por volta das três da manhã, contudo, passou a cochilar ao volante com tanta frequência que finalmente teve que parar em uma parada de caminhões. Estacionou o Land Rover entre duas carretas Peterbilt OTR, trancou as portas, deitou no banco de trás, empunhou a 9mm e caiu no sono. O sol já estava bem alto quando acordou. Fez um rápido desjejum ali mesmo na parada de caminhões e poucas horas depois já tinha passado de Portsmouth, no Maine. Duas horas mais tarde avistou a saída que procurava e saiu da rodovia, pegando a U.S. Route 1. Àquela época do ano, a estrada estava praticamente vazia. Em meio à pesada neve, passou pelo pequeno cartaz anunciando a cidade de Bell Harbor, população 1.650 habitantes. Quando era criança, sua família passara muitos Verões maravilhosos naquela pacífica cidadezinha: amplas praias particulares, sundaes e sanduíches suculentos nas inúmeras lanchonetes da cidade — que era mais uma estância de férias — e shows, longos passeios de bicicleta e caminhadas ao longo da Ponta de Granito, de onde se podia observar, bem de perto, o assustador poder do Atlântico em uma tarde ventosa. Ela e Jason tinham planejado um dia comprar uma casa de praia perto da de seus pais. Ambos ansiavam pelo dia em que pudessem passar os verões ali, vendo Amy correr pela praia e fazer buracos na areia molhada, da mesma forma que Sidney fizera vinte e cinco anos antes. Era um belo sonho. Esperava que ainda pudesse transformá-lo em realidade. Naquele instante não parecia ser, mesmo que remotamente, possível.
Sidney seguiu no caminho do mar, finalmente virando para o sul na rua da praia, onde reduziu a marcha. A casa de seus pais era grande, de dois andares, forrada com tábuas cinzentas descoradas pela ação do tempo, águas-furtadas e uma varanda em toda a extensão da frente tanto no andar térreo, ao nível da rua, quanto no andar de cima, de frente para o mar. Uma garagem ocupava o nível do porão. O vento canalizado pelos espaços entre as casas soprava com tanta força que conseguia balançar até mesmo o verdadeiro tanque que era o Land Rover. Sidney não se lembrava de já ter estado no Maine naquela época do ano. O céu pareceu-lhe particularmente inamistoso. Quando vislumbrou a interminável escuridão do Atlântico, ocorreu-lhe que nunca vira a neve cair no mar. Reduziu ligeiramente a marcha quando a casa dos pais entrou no seu campo de visão. Todas as outras casas de praia da rua estavam vazias. No inverno, Bell Harbor era uma cidade-fantasma. Além disso, o Departamento de Polícia contava apenas com um oficial nos meses fora de estação. Se o assassino que matara calmamente três pessoas em uma limusine na cidade de Washington e a seguira até Nova York decidisse vir atrás dela de novo, não teria a menor dificuldade em se livrar da força policial de um único homem de Bell Harbor. Ela pegou a sacola de munição embaixo do banco e pôs um pente na 9mm. Virou na entrada da casa dos pais, coberta de neve, e saltou. Não havia sinal de que eles tivessem chegado. Deviam ter parado no caminho por causa do tempo. Colocou o Land Rover dentro da garagem e fechou a porta. Tirou as coisas que trouxera e carregou para dentro, usando a escada interna que ligava a garagem à casa. Sidney não tinha como saber que a forte nevada cobrira marcas de pneus muito recentes junto da casa. E tampouco se arriscou a entrar no quarto de dormir dos fundos onde havia diversas malas cuidadosamente empilhadas. Quando entrou na cozinha, não pôde ver o carro passando lentamente pela casa e seguindo em frente. No interior do laboratório do FBI a atividade era muito intensa. A técnica que conduzia Sawyer e Jackson, com seu avental branco, contornou a limusine fazendo um gesto para que a seguissem. A porta de trás do lado esquerdo estava aberta. Por sorte, os mais recentes ocupantes do veículo já haviam sido transportados para o necrotério. Junto da limusine havia um computador com um monitor de vinte e uma polegadas. Liz Martin, a técnica que fazia as honras da casa para os dois agentes, parou em frente à máquina e começou a digitar alguns comandos, à medida que ia falando. Larga de quadris, com uma linda pele azeitonada e a boca marcada pelo sorriso constante, era considerada não só como uma das pessoas mais dedicadas do Bureau, como também das tecnicamente mais capazes. — Antes de removermos fisicamente tudo o que servisse de prova, examinamos todo o interior da limusine, traseira e dianteira, tal como você pediu, Lee. Encontramos algumas coisas de interesse. Também filmamos o interior do veículo enquanto conduzíamos o exame. Ficará mais fácil para vocês acompanharem o trabalho realizado. — Ela entregou a cada um dos agentes os óculos de proteção que seriam necessários para assistir à demonstração. — Sejam bem-vindos ao nosso cinema. Os óculos são para aumentar o
prazer de assistir ao espetáculo — disse, com um sorriso. — Na verdade essas lentes bloqueiam diferentes comprimentos de ondas que podem ter ocorrido durante o exame, e que, sem elas, poderiam obscurecer o que foi captado. Enquanto Liz Martin falava, a tela encheu-se de vida. Eles estavam olhando o interior escuro da limusine. Usando um poderoso raio laser de potência particularmente alta, o teste destinava-se a tornar visíveis inúmeros itens ocultos na cena do crime e que de outra forma não poderiam ser vistos. Liz manipulou o mouse e os dois agentes observaram uma grande seta branca atravessar a tela. Começamos usando uma única fonte luminosa, sem aplicar agentes químicos. Procurávamos uma fluorescência inerente, para depois começarmos a usar uma série de tinturas e pós. — Você disse que encontrou alguns itens de interesse, Liz? -O tom de voz de Sawyer traduzia uma certa impaciência, seus olhos fixos na tela enquanto fazia a pergunta. — Seria difícil não encontrar, em um espaço restrito desses, considerando o que aconteceu. — Os olhos dela desviaram-se por um rápido momento para a limusine. Novamente concentrada na tela do monitor, ela comandou com perícia o mouse e a seta branca veio a parar no que parecia ser o banco de trás. Digitou mais algumas teclas e a área foi isolada por uma série de retículas e em seguida amplificada até tornar-se facilmente visível. Só que ser facilmente visível e facilmente identificável não são a mesma coisa. Sawyer virou-se para Liz: — O que diabo é isso aí? — Parecia ser um fio qualquer, mas ampliado daquela maneira ganhara a grossura de um lápis. — Simplificando, é uma fibra. — Liz apertou outra tecla e a fibra tomou uma forma tridimensional. — Pela aparência, eu diria ser lã, de origem animal, nada de sintético, cor cinza. Parece familiar a algum de vocês? Jackson estalou os dedos. — Sidney Archer usava um blazer naquela manhã. Cinzento. Sawyer já estava balançando a cabeça. — Certo. Liz olhou de novo para a tela, também balançando a cabeça, pensativa. — Blazer de lã. Isso liquidaria a fatura. — Onde foi exatamente que você encontrou isso, Liz? — Quis saber Sawyer. — Banco traseiro do lado esquerdo, na verdade um pouco para o centro. — Usando o mouse, Liz traçou uma linha na tela medindo a distância do ponto onde a fibra fora encontrada até a extremidade esquerda do banco de trás. — Setenta centímetros da lateral esquerda, vinte centímetros da beirada. Em tal lugar seria lógico que viesse de um casaco. Pegamos também algumas fibras de tecido sintético perto da porta do lado esquerdo. Idênticas às da roupa do corpo de homem encontrado sentado nessa posição. Ela se voltou para a tela. — Não precisamos do laser para descobrir as amostras seguintes. Eram facilmente visíveis.
— A tela mudou e Liz usou a seta para apontar diversos conjuntos de fios de cabelo. — Deixa que eu adivinho — adiantou-se Sawyer. — Longos e louros. Naturais, não descorados. Encontrados bem perto da fibra. — Muito bem, Lee, ainda faremos de você um cientista. — Liz sorriu, satisfeita. — Em seguida usamos cristal branco de violeta para procurar sangue. Achamos uma tonelada, vocês podem imaginar. Os padrões de espargimento são bastante evidentes e, na verdade, muito demonstrativos neste caso, o que, mais uma vez, provavelmente se deve aos parâmetros restritos da cena do crime. Todos ficaram olhando para a tela, onde o interior da limusine agora rebrilhava intensamente em numerosos lugares. Por um momento pareceu que estavam no interior de uma mina vendo as pepitas de ouro cintilarem em cada canto. Liz marcou diversos pontos com o apontador. — Minha conclusão é de que o cavalheiro encontrado no chão do banco de trás ou estava sentado virado para a retaguarda ou tinha o rosto parcialmente voltado para a janela lateral direita. O ferimento de bala foi perto da têmpora direita. Sangue, osso e tecido cerebral foram espalhados em volume considerável. Podem ver que o banco de trás está coberto de detritos. — É, mas há uma evidente falha aqui. — Sawyer apontou para o lado esquerdo do banco traseiro. — Boa observação, você está absolutamente certo — disse Liz. Ela usou o dispositivo de medida mais uma vez. — Encontramos amostras distribuídas com bastante uniformidade sobre o banco de trás. É o que me faz pensar que a vítima — Liz deu uma espiada em algumas anotações deixadas ao lado do computador — Brophy, tinha se virado para o seu lado esquerdo. O que deixaria a área por onde entrou a bala, a têmpora direita, diretamente de frente para o banco de trás, o que explica a considerável extensão de resíduos no banco de trás. — Uma espécie de tiro de canhão. — Não chega a ser exatamente uma descrição técnica, mas nada mal para um leigo, Lee. — Liz arqueou as sobrancelhas e prosseguiu. — No entanto, a metade esquerda do banco de trás apresenta praticamente ausência total de quaisquer vestígios de sangue, tecido ou fragmentos de osso por mais de um metro, quase cento e quinze centímetros, para ser mais precisa. Por que isto? — Ela olhou para os dois agentes como se fosse a professora aguardando que os alunos levantassem as mãos. Foi Sawyer quem respondeu. — Sabemos que uma das vítimas estava sentada na extrema esquerda, Philip Goldman. Ele foi encontrado lá. Mas ele era um sujeito de porte mediano. Não há como responsabilizá-lo por uma largura tão grande. Pelo tamanho da superfície sem nada, pelo cabelo e a fibra encontrada, havia outra pessoa sentada bem do lado direito de Goldman. — É assim que vejo isso também — confirmou Liz. — O ferimento de Goldman também deveria ter projetado um bocado de resíduos. Mas não havia nada no lugar ao seu lado, o
que reforça a conclusão de que havia uma pessoa sentada ali e que recebeu toda a chuva de resíduos causados pelo tiro. Não deve ter sido um negócio agradável, para dizer o mínimo. Eu ficaria de molho numa banheira por uma semana, caso tivesse acontecido comigo, deixa eu bater na madeira. — Casaco de lã, cabelo louro — começou Jackson. — E isto aqui — interrompeu Liz, apontando para a tela. Todos ficaram atentos, quando a cena mais uma vez mudou. Era de novo o banco de trás. O couro fora rasgado em diversos pontos. Três linhas paralelas irregulares corriam de trás para a frente em um local bem próximo de onde Goldman fora encontrado. No meio da região danificada destacava-se um objeto solitário. Os agentes do FBI olharam para Liz. — É um pedaço de unha. Não tivemos ainda tempo de fazer um exame de DNA, é claro, mas é definitivamente de mulher. — Como pode saber? — indagou Jackson. — Nem sempre as coisas são complicadas, Ray. Unha comprida, profissionalmente manicurada, esmalte. Os homens raramente se submetem a isso. — Oh. — As linhas paralelas no couro... — Arranhões — adiantou-se Sawyer. — Ela arranhou o couro do banco e quebrou a unha. — Certo. Deve ter entrado realmente em pânico. — O que não é de espantar — comentou Jackson. — Alguma coisa mais, Liz? — indagou Sawyer. — Oh, sim. Montes de impressões digitais. Usamos MDB, um composto que é muito bom para fazer com que as digitais brilhem sob luz de laser. Os resultados foram realmente muito bons. Eliminamos as impressões das três vítimas, espalhadas por toda a parte. Encontramos também inúmeras outras digitais fragmentadas, incluindo uma que coincidia com os arranhões, o que me parece bastante natural. Descobrimos uma também que foi de particular interesse. — Qual? — O nariz de Sawyer quase tremia de ansiedade. — As roupas de Brophy receberam uma quantidade enorme de sangue e outros resíduos humanos, resultantes do próprio ferimento. O ombro direito, em particular, estava coberto de sangue. Faz sentido, já que a têmpora direita dele deveria estar sangrando abundantemente. Pois foi no sangue do ombro direito que encontramos inúmeras digitais, polegar, indicador, dedo médio, na verdade a mão inteira. — Como você explicaria uma coisa dessas? Alguém tentando virar o corpo? — Sawyer parecia intrigado. — Não, eu não diria isso, embora não tenha provas concretas para respaldar minha teoria. Meu palpite, com base na impressão palmar que consegui coletar — sei que isto pode parecer um tanto estranho, dadas as circunstâncias — é de que alguém tenha tentado passar por cima dele, ou que pelo menos tenha montado em cima do cara. Tendo em vista
a proximidade dos dedos, o ângulo da palma e outros detalhes, tudo sugere fortemente que tenha sido isso que aconteceu. Sawyer pareceu altamente cético. — Passar por cima do cara? Isso é esticar um pouco demais a imaginação, não é, Liz? Não é possível realmente afirmar isto a partir de impressões digitais, é? — Não estou me baseando apenas no que falei. Também encontramos isto. — Ela apontou para a tela de novo. Apareceu um estranho objeto. Um formato difícil de reconhecer. Na verdade eram duas marcas. O fundo escuro à volta não permitia compreender o que realmente observavam. — Trata-se de uma foto feita do corpo de Brophy — explicou Liz. De cara virada para o chão. Estamos olhando para as costas dele. O desenho que vocês estão vendo se encontra no meio das costas. Repito que isto só foi tornado possível por causa de uma poça de sangue. Jackson e Sawyer forçaram a vista e se aproximaram da tela do monitor, tentando discernir o que viam. Finalmente desistiram e olharam para Liz. — Um joelho. — Ela ampliou a imagem até que ocupasse toda a extensão da tela. — O joelho humano realmente denota uma forma única, especialmente quando você tem uma base maleável como o sangue. — Ela clicou outro botão e uma nova imagem ganhou vida. — Temos isto também. Sawyer e Jackson olharam de novo para a tela. Desta vez o desenho foi prontamente identificável. — A impressão de um sapato, o calcanhar — disse Jackson. Sawyer não pareceu convencido. — É, mas por que passar por cima do sujeito morto, se cobrir de sangue, e quem sabe mais de que, e deixar rastros, quando seria muito mais simples abrir a porta do lado esquerdo e sair? Quer dizer, a pessoa de quem estamos falando provavelmente se encontrava sentada junto de Goldman, do lado esquerdo dele. Jackson e Liz se entreolharam. Nenhum dos dois tinha uma resposta pronta para aquela pergunta. Liz deu de ombros e sorriu. — Este é o motivo pelo qual pagam bons salários a vocês, caras. Eu não passo de um rato de laboratório. Jackson sorriu. — Eu adoraria ter mais cinquenta como você, Liz. Ela ficou radiante com o cumprimento. — Terei um relatório escrito ainda hoje, mais para o fim do dia. Todos tiraram os óculos de proteção. — Estou presumindo que você já fez a comparação das impressões digitais? — Sawyer olhou para ela. — Jesus. desculpe ter deixado de lado o principal. Todas as impressões — a que vimos na tela, da provável arma do crime e todas as encontradas na limusine, e de lá até o oitavo
andar, ida e volta — pertenciam a uma só pessoa. — Sidney Archer — adiantou Jackson. — Exato — concordou Liz. — A sala onde a trilha de sangue nos levou também era dela. Sawyer foi até a limusine e deu uma espiada no seu interior. Fez um gesto para que Liz e Jackson se aproximassem. — Muito bem, baseado no que sabemos, podemos presumir que Sidney Archer estivesse sentada por ali? — Ele apontou para um local ligeiramente à esquerda da metade do banco traseiro. — Parece bastante razoável, com base nos indícios descobertos até agora. Os padrões do sangue aspergido, a fibra e as digitais certamente dão respaldo a essa conclusão — respondeu Liz. — Pois então, podemos praticamente assegurar que Brophy estivesse sentado voltado para trás. Ele deve ter virado a cabeça, o que justifica a densa quantidade de resíduos nos bancos de trás. Certo? — Certo. — Liz ia balançando a cabeça à medida que seguia a reconstituição de Sawyer. — Agora, o ferimento de Brophy foi à queima-roupa, há poucas dúvidas a este respeito. Quanto vocês diriam que mede aquilo ali? — Sawyer apontava para o espaço entre os bancos da frente e de trás da área destinada aos passageiros. — Não precisamos adivinhar — respondeu Liz. Ela foi até sua mesa, pegou uma fita métrica e voltou. Com a ajuda de Jackson, mediu o espaço. Conferiu o resultado da medida e franziu a testa ao se dar conta de onde Sawyer queria chegar com sua análise. — Praticamente dois metros da metade de um banco à metade do outro. — OK, com base na ausência de resíduos no banco de trás, podemos dizer que era lá que Archer e Goldman estavam sentados, as costas de ambos no mesmo plano dos encostos, vocês concordam? — Liz fez que sim, e Jackson também. — Muito bem, é possível então que Sidney Archer, caso estivesse sentada com as costas no mesmo plano do banco de trás, conseguisse dar um tiro à queima-roupa na têmpora direita de Brophy? Não — Liz respondeu primeiro — a menos que os braços dela fossem tão grandes que arrastassem no chão quando andasse. Sawyer fixou o olhar cuidadosamente em Liz. — Que tal imaginarmos Brophy debruçado na direção de Sidney. muito perto dela. Sidney puxa a arma e atira. O corpo dele cai em cima dela, digamos, mas ela o empurra e ele cai no chão da limusine. O que há de errado com esta hipótese? Liz pensou por um momento. — Se ele estivesse inclinado para a frente — e teria que estar a ponto de quase estar fora do assento, tendo em vista a distância — o atirador teria que estar fazendo a mesma coisa: os dois se encontrariam no meio do caminho, por assim dizer, para que o ferimento à queimaroupa fosse possível. Mas se o atirador estivesse inclinado para a frente, os padrões de espargimento de resíduos seriam diferentes, com toda a certeza. Suas costas não estariam contíguas ao encosto do banco. Mesmo que o corpo do atirador — Sidney? — pegasse a
maior parte dos resíduos, seria altamente improvável que alguma coisa não terminasse no banco, atrás dela. E para que ela permanecesse com as costas coladas no encosto do banco quando disparou, Brophy teria que estar praticamente no seu colo. O que não parece muito provável, parece? — Exato — concordou Sawyer. — Falemos agora sobre o ferimento de Goldman por um minuto. Ela está sentada do lado de Goldman, à esquerda dele, certo? Vocês não pensariam que o ferimento de entrada da bala teria sido na têmpora direita e não no meio da testa? — Ele podia ter se virado para encará-la — começou a dizer Liz, mas se deteve. — Só que aí os padrões de espargimento de sangue não fariam sentido. Goldman estava com toda a certeza olhando para a frente do veículo quando a bala o alcançou. Mas ainda poderia ser possível, Lee. — É mesmo? — Sawyer puxou uma cadeira, sentou, empunhou uma pistola imaginária com a mão direita, recurvou o braço apontando para trás, como se estivesse prestes a atirar na testa de alguém sentado à sua esquerda. Olhou para Liz e Jackson. — Um bocado desajeitado, não acham? — Muito — concordou Jackson, sacudindo a cabeça. — Pois pode ser pior ainda, meus amigos. Sidney Archer é canhota. Lembra Ray, dela bebendo café, segurando a pistola? Canhota. — Sawyer repetiu o desempenho anterior, desta vez empunhando a arma imaginária com a mão esquerda. Sendo um homem tão corpulento, o resultado foi ridículo. — Impossível — disse Jackson. — Ela teria que se virar e encará-lo para lhe infligir um ferimento daqueles. Ou isso ou arrancava o braço do ombro. Ninguém atira assim. — Deste modo. se foi Archer quem atirou. ela dá um jeito de balear o motorista no banco da frente, pula para trás, apaga Brophy, o que já demonstramos que não podia ter feito e depois, supostamente, liquida Goldman usando um ângulo de tiro completamente artificial, na verdade, impossível. — Sawyer levantou da cadeira e sacudiu a cabeça. — Boa argumentação, Lee, mas ainda assim há uma porção de indícios ligando indiscutivelmente Sidney Archer à cena do crime retorquiu Liz. — Mas estar presente na cena de um crime e ser o criminoso são duas coisas diferentes, Liz — contrapôs Sawyer acaloradamente. Liz deu a impressão de ficar um pouco ressentida com o jeito brusco do agente do FBI. Ao saírem do laboratório, Sawyer tinha uma última pergunta. — Você já tem o resultado do teste de resíduos de pólvora? — Espero que você saiba que a seção de armas de fogo do Bureau na verdade não mais executa esse teste, já que as descobertas não costumam apresentar nada de importante. No entanto, como foi você quem pediu o teste, claro que ninguém reclamou. Só um minuto, agente Sawyer, e vou verificar. — O tom de voz de Liz foi glacial. Sawyer aparentemente não percebeu nada, enquanto continuou a examinar o chão, mal-humorado. Liz voltou para sua mesa e pegou um telefone. Sawyer desviou o olhar para a limusine, dando a impressão de que adoraria que ela desaparecesse. Jackson observou o parceiro cuidadosamente, um traço de preocupação transparecendo no seu olhar.
Liz voltou. — Negativo. Nenhuma das vítimas tinha atirado ou manuseado, de mãos nuas, uma arma de fogo que houvesse disparado até seis horas antes da sua morte. — Tem certeza? Sem enganos? — perguntou Sawyer. com a testa vincada de rugas. A fisionomia normalmente amável de Liz fechou-se. — Meu pessoal sabe trabalhar, Lee. O teste de resíduos não é complicado, embora, como falei, não seja mais feito rotineiramente, pois uma resposta positiva nem sempre é precisa; há muitas substâncias que, na prática, podem gerar um falso positivo. Mesmo assim, aquela 9mm com certeza teria produzido uma enorme quantidade de resíduos, e o teste deu negativo. Eu diria que o nível de confiança deste resultado é bem alto. No entanto, para o caso de você não ter percebido, eu fiz uma ressalva a respeito de mãos nuas. É claro que eles podem ter usado luvas. — Mas não foi encontrada nenhuma nos homens mortos -ressaltou Jackson. — Exatamente — confirmou Liz, dirigindo um olhar triunfante a Sawyer. Sawyer ignorou o olhar dela. — Foram encontradas outras digitais na 9mm? — Um polegar, parcialmente obscurecido. Pertencia a Parker, o motorista. — De mais ninguém? — Quis saber Sawyer. Liz nada disse. Sua expressão respondia cabalmente a pergunta. — OK, você disse que a digital de Parker está parcialmente obscura. O que me diz das de Archer? Qual o grau de nitidez delas? — Pelo que me recordo, razoavelmente nítidas. Um pouco borradas. Estou falando do punho, gatilho e protetor do gatilho. As impressões dela no cano eram muito claras. — O cano? — Sawyer dirigiu-se mais a si próprio. Olhou para Liz. — Já temos o relatório da balística? Estou realmente interessado nas trajetórias. — As autópsias estão sendo realizadas agora, enquanto conversamos. Saberemos logo. Pedi que me avisassem. Provavelmente vão entrar em contato com você primeiro, mas caso não o façam, assim que eu souber ligo para você — ela acrescentou, com um traço de sarcasmo. — Você vai querer se certificar de que não cometeram erros, claro. Sawyer olhou para ela por um momento. — Obrigado, Liz. Você ajudou demais. — O tom sarcástico dele não passou despercebido nem a Jackson nem a Liz. Imerso em seus pensamentos, os ombros vigorosos curvados, Sawyer afastou-se lentamente. Jackson ficou atrás por um instante com Liz. Ela observou Sawyer afastar-se e voltou-se para Jackson. — Que diabo está acontecendo com ele, Ray? Nunca me tratou assim antes. Jackson não respondeu de pronto. Por fim encolheu os ombros e se virou para ir embora. — Não sei se tenho condições de responder agora, Liz. Acho que não. — Em silêncio, ele saiu atrás do parceiro.
CAPÍTULO CINQUENTA E UM JACKSON SUBIU NO CARRO e deu uma olhada no parceiro. Sawyer estava sentado, as mãos no volante, os olhos perdidos na escuridão. Jackson consultou o relógio. — Ei, Lee, que tal comer qualquer coisa? — Quando Sawyer não respondeu, ele acrescentou: — Por minha conta? Não rejeite a oferta. Pode ser a única oportunidade. — Jackson agarrou o ombro de Sawyer e apertou afetuosamente. Sawyer finalmente olhou para ele. Por um rápido instante apareceu um sorriso nos seus lábios. — Pagando, hein? Você está achando que estou completamente perdido neste caso, não está, Raymond? — Só não quero que você fique magro demais — respondeu Jackson. Sawyer riu e engrenou o carro. Jackson atacou sua refeição com vontade, enquanto Sawyer limitava-se a ficar brincando com a caneca de café. O restaurante ficava bem próximo ao prédio da sede do FBI e, por isso, era o preferido do pessoal do Bureau. Os dois cumprimentaram inúmeros colegas que comiam qualquer coisa antes de ir para casa ou forravam o estômago antes de entrar de serviço. Jackson olhou para Sawyer. — Foi um belo trabalho que você fez lá no laboratório. Mas podia ter dado uma colher de chá à Liz. Ela só estava fazendo seu trabalho. Sawyer dirigiu um olhar penetrante ao seu parceiro. — Você dá colher de chá a um filho quando chega em casa depois da hora ou amassa o carro. Se alguém quer colher de chá, recomendo enfaticamente que não se empregue no FBI. — Você sabe o que quero dizer. Liz é excelente no que faz. A fisionomia de Sawyer abrandou-se. — Eu sei, Ray. Mandarei umas flores para ela. OK? -Sawyer desviou o olhar de novo. Jackson perguntou, entre uma garfada e outra: — Então, o que fazemos agora? Sawyer encarou-o. — Não sei ao certo. Já passei antes por mudanças nos casos em que trabalhei, mas não a este ponto. — Você não acredita que Sidney Archer matou aqueles sujeitos, acredita? — À parte o fato de as provas físicas dizerem que ela não poderia tê-lo feito, não, não acredito. — Mas ela mentiu para nós, Lee. A fita? Ela estava ajudando o marido. Você não pode contestar isto. Sawyer sentiu o aguilhão da culpa de novo. Nunca tinha ocultado informação de um parceiro. Olhou para Jackson e decidiu contar o que Sidney revelara. Cinco minutos mais tarde, Jackson recostou-se na cadeira, atônito. Sawyer olhava ansiosamente para ele. Ela estava apavorada. Não sabia o que fazer. Tenho certeza de que queria nos contar desde
o princípio. Droga, se ao menos soubéssemos por onde anda. Pode se encontrar em perigo, Ray. Ele deu um soco na palma da mão. — Se ela nos procurasse, para trabalharmos juntos, podíamos resolver este caso, tenho certeza. Jackson inclinou-se para a frente, uma expressão determinada na fisionomia. — Olha só, Lee, já trabalhamos em um monte de casos juntos. A despeito de tudo, você evitava se envolver. Via as coisas pelo que elas realmente significavam. — E você acha que este caso agora é diferente? — O tom de voz de Sawyer permaneceu firme. — Eu sei que é diferente. Você está arrastando a asa para essa moça desde o princípio. Não tenho a menor dúvida de que a vem tratando de modo diferente do que normalmente trataria um suspeito importante em um caso destes. Agora me diz que ela lhe confidenciou a verdade sobre a fita e que falou com o marido pelo telefone. E você não me conta nada, Lee! Jesus Cristo, uma coisa dessas justifica você ser posto para fora do Bureau. — Se você achar que tem que participar o ocorrido, não sou eu que vou detê-lo. Jackson resmungou e sacudiu a cabeça. — Não vou acabar com a sua carreira. Você está fazendo um bom trabalho sozinho. — Este caso não é diferente. — Papo-furado! — Jackson debruçou-se para a frente ainda mais. — Você sabe que é e que está confundindo por completo a sua cabeça. Todos os indícios asseguram que, no mínimo, Sidney Archer está envolvida em crimes graves e, mesmo assim, sempre que há uma oportunidade, você tenta dar uma versão positiva dos fatos. Fez isso com Frank Hardy e com Liz e agora está tentando fazer comigo. Você não é político, Lee, você é um agente da lei. Pode ser que ela não esteja envolvida em tudo, mas também não é nenhum anjo. Certeza absoluta. — Você discorda das minhas conclusões sobre o homicídio triplo? — retrucou Sawyer, bruscamente. Jackson sacudiu a cabeça. — Não. Acho que você provavelmente está certo. Mas se espera que eu acredite que a Archer é apenas um bebezinho inocente presa em um pesadelo kafkiano, está falando com a pessoa errada. Lembra da nossa conversa sobre tolerância? Pois não há tolerância que me faça pensar que mesmo sendo bela e inteligente do jeito que é, Sidney Archer não deva passar uma parte considerável dos anos de vida que lhe restam numa prisão! — Então é isso que você acha: jovem linda e inteligente transforma agente veterano em um molengão? — Jackson não respondeu, mas a resposta estava claramente impressa no seu rosto. — Agente veterano do FBI, velho, divorciado e babaca quer pular em cima da linda suspeita, Ray? E não posso fazer isso se ela for culpada. É isso que você pensa? — O tom de voz de Sawyer elevou-se.
— Por que você não me diz o que acha, Lee? — Talvez fosse preferível jogar você pela janela! — Talvez você devesse tentar! — retrucou Jackson. — Seu filho da mãe. — A voz de Sawyer tremeu. Jackson adiantou-se e o segurou pelo ombro. — Quero que você ponha a cabeça no lugar, Lee. Se quer dormir com ela, tudo bem. Espere até o caso terminar e que ela prove ser inocente! — Como é que você se atreve! berrou Sawyer, afastando a mão de Jackson. Em seguida deu um pulo e armou um soco, soco que foi interrompido no meio do caminho quando ele percebeu o que estava prestes a fazer. Diversos dos outros frequentadores do restaurante contemplaram a cena chocados. Sawyer e Jackson continuaram se encarando até que, ao cabo de algum tempo, Sawyer, o peito arfando e o lábio inferior trêmulo, abaixou a mão e sentou-se de novo. Nenhum dos dois falou por alguns minutos. Finalmente Sawyer suspirou, envergonhado. — Que bosta! Eu sabia que ainda ia me arrepender de ter deixado de fumar. Ele fechou os olhos, e quando os abriu de novo, encarava Jackson. — Lee, sinto muito. Eu só estava preocupado com... — Jackson interrompeu-se abruptamente quando Sawyer ergueu a mão. Sawyer começou a falar lenta e suavemente. — Sabe, Ray, trabalho no Bureau há metade da minha vida. Quando comecei, era fácil distinguir os mocinhos dos bandidos. Naquele tempo, a garotada não andava por aí matando gente assim sem mais aquela. E você não tinha impérios de drogas no valor de centenas de bilhões de dólares, dinheiro suficiente para que qualquer pessoa seja capaz de tudo. Eles tinham revólveres, nós tínhamos revólveres. Dentro em breve essa gente vai dispor de mísseis como equipamento de rotina. Enquanto eu estiver no supermercado decidindo que droga de comida congelada vou comer e procurando uma cerveja em promoção, cerca de vinte novos cadáveres surgirão, sem outro motivo que não o do sujeito ter dobrado na esquina errada ou um bando de garotos desempregados, com mais poder de fogo que um batalhão do exército, se pegando por causa de um pedaço não maior que um quarteirão do território da droga. Fazemos um esforço danado para nos equipararmos, mas jamais conseguimos ganhar terreno. — Deixa disso, Lee, a tênue linha de separação ainda está no lugar. e sempre estará, enquanto houver bandidos. — Essa linha é como a camada de ozônio, Ray. Está toda cheia de buracos do tamanho de crateras. Há muito tempo que venho andando nessa linha. O que tenho para mostrar em troca? Sou divorciado. Meus filhos me consideram um péssimo pai, acham que prefiro passar o tempo correndo atrás de um cara que explodiu um avião ou rebocando um carniceiro de sorriso cínico que gosta de encher sua vitrina de troféus com espécimes humanos, em vez de ajudá-los a soprar as velinhas do bolo de aniversário. E sabe de uma coisa? Eles estão certos. Fui um péssimo pai. Especialmente para Meggie. Trabalhei dia e noite, nunca estive disponível, e quando ia para casa, ou era para dormir ou estava tão concentrado em uma investigação que provavelmente não ouvia a metade do
que tentavam me dizer. Vivo agora sozinho em um apartamento vagabundo e não vejo a cor da maior parte do meu salário. A impressão que tenho é que dentro do meu estômago há um monte de facas, embora eu tenha certeza de ser apenas fruto da minha imaginação. Na verdade eu tenho diversos pedaços de chumbo permanentemente encravados em mim. Para culminar, descobri nos últimos tempos que é muito difícil cair no sono sem antes esvaziar seis latas de cerveja. — Meu Deus, Lee, você sempre foi uma rocha no trabalho. Todo mundo respeita você demais. Você entra numa investigação e vê coisas que eu nunca vejo. Formula uma ideia geral do que aconteceu enquanto eu ainda estou tirando meu caderno de anotações do bolso. Você tem o melhor instinto de policial que já vi em minha vida. — Ótimo, Ray. Principalmente levando em conta que é a única coisa que me restou. Mas não se menospreze. Tenho mais vinte anos que você. Sabe o que é instinto? Ver a mesma coisa tantas vezes que você começa a ter uma certa intuição. Algo extra. Você está bem à frente do ponto em que eu me encontrava com meia dúzia de anos menos. — Obrigado, Lee. — Mas não interprete erradamente este pequeno desabafo. Não sinto pena de mim e tenho certeza absoluta de que não estou querendo a piedade de ninguém. Tive minhas alternativas e fiz minhas escolhas. Eu sozinho. Se minha vida está uma merda, é porque eu quis assim. mais ninguém. Sawyer levantou-se, foi até o balcão e trocou umas palavras com uma garçonete, uma senhora magrinha e enrugada. Minutos depois, voltava com as mãos em concha, de onde subia uma tênue linha de fumaça. Ele se sentou de novo e ergueu o cigarro. — Em homenagem aos velhos tempos — disse, esmagando lentamente o fósforo no cinzeiro. Depois recostou-se e deu uma tragada demorada, deixando escapar dos lábios um estalido quase inaudível. — Entrei neste caso, Ray, pensando que tinha resolvido muita coisa. Lieberman era o alvo. Descobrimos como foi que o avião caiu. Tínhamos uma porção de motivos, mas não tantos que não pudéssemos segui-los e analisar cada um até pegar o filho da mãe responsável. Porra, o cara que derrubou o avião nos foi entregue numa bandeja, mesmo que não respirasse mais. A impressão que dava era que as coisas corriam otimamente. Aí tudo começou a desabar. Descobrimos que Jason Archer cometeu um roubo incrível e que apareceu em Seattle vendendo informações sigilosas em vez de estar morto dentro de um buraco na Virgínia. Seria ele o autor do plano? Parece muito provável. — Só que o terrorista acaba sendo um sujeito que de alguma forma conseguiu escorregar por entre o sistema de computadores da polícia do estado da Virgínia. Sou tapeado e me fazem ir a Nova Orleans, enquanto acontece algo na casa dos Archer que ainda não sei direito o que foi. Depois, quando menos se espera, Lieberman retorna à cena, principalmente por causa do aparente suicídio de Steven Page cinco anos atrás, suicídio este que não parece se ajustar no quebra-cabeças, a não ser pelo fato de o irmão mais velho
dele, o detetive particular Ed Page, que provavelmente poderia nos contar muita coisa, ter sido liquidado em um estacionamento. Falo com Charles Tiedman e talvez, apenas talvez, Lieberman estivesse sendo chantageado. Se isso for verdade, como diabos esta informação se vincula a Jason Archer? Será que temos dois casos desvinculados que parecem ter ligação um com o outro por causa de uma coincidência, ou seja, porque Lieberman tomou o avião que Jason pagara a alguém para explodir? Ou é tudo um caso só? Ou tudo não passa de um único caso? Se for. qual será a conexão? Porque se houver uma, com toda a certeza nos escapou totalmente. Sawyer sacudiu a cabeça em indisfarçada frustração e puxou outra tragada do cigarro. Exalou a fumaça até o teto imundo, colocou os cotovelos em cima da mesa e olhou para Jackson. — Dois outros sujeitos que supomos que estavam tentando roubar a Triton Global entram em cena depois. E o denominador comum em quase tudo é Sidney Archer. — Sawyer esfregou um dedo lentamente no rosto. — Sidney Archer... Sei que respeito a mulher. Mas talvez meu julgamento esteja ficando um tanto embaçado. Você provavelmente está certo ao me chutar o rabo desse jeito. Mas eu vou contar a você um segredinho, meu amigo. — Sawyer bateu o cigarro no cinzeiro. — Qual? — Sidney Archer estava na limusine. E quem quer que tenha matado aqueles três sujeitos, deixou que ela fosse embora. A pistola dela termina nas mãos da polícia. — Sawyer simulou uma arma imaginária com a mão esquerda, apontou para ela em diversos pontos com o cigarro e continuou a falar. — Impressões borradas na parte em que ela teria segurado caso tivesse atirado. Impressões nítidas apenas no cano. O que você conclui disso? Jackson pensou rapidamente. — Nós sabemos que ela manuseou a arma. — De repente ele se deu conta da verdade. — Se alguma outra pessoa atirou, e se essa pessoa usava luvas, as impressões digitais de Sidney Archer teriam ficado borradas nas partes em que a mão enluvada do assassino segurou, mas não no cano. — Exatamente. A fita com a gravação acaba ficando para trás. Eles provavelmente a usaram para chantagear Sidney, não vou discutir com você. Ela podia saber que eles tinham a fita, e eles, por sua vez, devem ter reproduzido o que havia ali gravado para provar que a ameaça era real. Seja como for, você acha que ela teria deixado para trás algo assim tão valioso? A gravação contém provas de crimes mais que suficientes para ela mofar numa prisão até os cem anos. Estou lhe dizendo que ela ou qualquer outra pessoa na sua situação teria feito qualquer coisa para pegar aquela fita. Não, deixaram a moça ir embora por um único motivo. — Inculpá-la pelas mortes na limusine. — Jackson descansou a caneca de café lentamente. — E talvez para não deixar que nossa atenção se desvie de novo. — Então foi por isso que você quis que fizessem o teste de resíduos. Sawyer fez que sim.
— Eu precisava me certificar de que não tinha sido nenhum dos três homens o atirador. Você sabe, poderia ter havido uma briga. Pela aparência, os ferimentos foram instantaneamente fatais, mas quem diabos pode ter certeza de alguma coisa? Ou um deles podia ter matado os outros e depois cometido suicídio. Apavorado com o que acabara de fazer o cara explode os miolos. Aí então, Sidney, em pânico, pega a arma e joga no bueiro. Mas isso não aconteceu. Nenhum dos mortos disparou aquela arma. Os dois homens permaneceram sentados em prolongado silêncio até que Sawyer prosseguiu: — Vou lhe contar outro segredo, Ray. Eu vou resolver este mistério nem que leve mais vinte e cinco anos andando na tal tênue linha que separa o certo do errado, os bandidos dos mocinhos. E quando esse dia chegar, você vai descobrir algo realmente esclarecedor. — O quê? — Que Sidney Archer sabe tanto o que está acontecendo quanto eu ou você neste instante. Perdeu o marido, perdeu a carreira, tem uma chance muito grande de vir a ser julgada e condenada por homicídio e por mais uma dúzia de crimes, vindo a passar o resto da vida na prisão. Neste exato momento ela está apavorada e foge para salvar a vida, sem saber em quem confiar ou em quem acreditar. Sidney Archer é, na verdade, algo que, se você examinar os indícios superficialmente, concluirá que ela não pode ser... — O quê? — Inocente. — Você realmente acha isso? — Não, eu sei disso. Eu queria apenas saber uma outra coisa. O quê? Sawyer apagou o cigarro e deixou escapar a fumaça da última tragada. — Eu queria saber quem foi que realmente matou aqueles três sujeitos. — O pensamento dele vagueou ao pronunciar essas palavras. Sidney Archer deve saber Mas onde diabos ela está? Quando os dois se levantaram para ir embora, Jackson pôs a mão sobre o ombro de Sawyer. Ei, Lee, não me importo por quanto tempo vai continuar essa dificuldade de definir mocinhos e bandidos. Desde que você esteja disposto a se arriscar, eu estarei também.
CAPÍTULO CINQUENTA E DOIS USANDO O BINÓCULO, Sidney observou a rua em frente à casa dos seus pais e depois consultou o relógio. Escurecia rapidamente. Ela sacudiu a cabeça, descrente. Será que a entrega da FedEx se atrasara por causa do tempo? Geralmente neva muito na orla litorânea do Maine, e, por causa da proximidade do mar, a neve em geral é parcialmente derretida, o que muitas vezes torna perigosas as condições de trânsito quando a neve derretida se transforma em gelo. E onde se encontravam seus pais? O problema era que não tinha como se comunicar com eles enquanto estivessem viajando. Sidney correu até o Land Rover, discou para o serviço de informações no telefone celular e conseguiu o número de discagem direta gratuita da Federal Express. Deu à pessoa que atendeu os nomes e endereços do remetente e do destinatário do pacote. Após uns segundos em que só foram ouvidas as teclas do computador sendo digitadas, veio a resposta assombrosa. — Quer dizer então que vocês não têm registro do pacote? — Não, senhora, quer dizer, de acordo com os nossos registros não recebemos o pacote. — Mas é impossível. Vocês têm que ter recebido. Deve haver algum engano. Por favor, verifique de novo. — Sidney ouviu com impaciência cada vez maior o barulho do teclado. A resposta foi a mesma. — Senhora, talvez seja melhor verificar com o remetente para se certificar de que o pacote realmente foi enviado. Sidney desligou, pegou o número do telefone de, Fisher na bolsa que estava dentro da casa, voltou para o Land Rover e discou. Havia pouca chance de que Fisher estivesse lá — indubitavelmente ele levara a sério as advertências de Sidney embora quase certamente fosse ligar para casa a fim de verificar as mensagens deixadas na secretária eletrônica. As mãos dela tremiam. E se Jeff não tivesse conseguido enviar o pacote? Veio-lhe à cabeça a visão da arma apontada para ela na limusine. Brophy e Goldman. As cabeças dos dois explodindo. Tudo aquilo caindo em cima dela. Por um momento, em seu desespero, encostou a cabeça no volante. Depois pegou o telefone e discou. O telefone tocou e Sidney preparava-se para deixar um recado, imaginando que estaria ligado na secretária eletrônica, quando uma voz disse alô. Mesmo assim Sidney começou a falar, até que percebeu que era a voz de uma pessoa, e não uma gravação. — Alô? — disse a voz de novo. Sidney hesitou e acabou por resolver ir em frente. — Jeff Fisher, por favor. — Quem está falando? — É... é uma amiga dele. — Sabe onde ele se encontra? Eu realmente preciso achá-lo. Sidney sentiu um arrepio na nuca. — Quem está falando? — O sargento Rogers, do departamento de polícia da cidade de Alexandria.
Rapidamente, Sidney cortou a ligação. O interior da casa de Jeff Fisher vira mudanças drásticas desde que Sidney Archer lá estivera. A principal delas era que não havia mais uma única peça do equipamento. Ao meio-dia, mais ou menos, os vizinhos tinham visto o caminhão de mudança, um deles chegando inclusive a falar com um dos homens que trabalharam na remoção dos computadores e do resto. Acharam que parecia legítimo. Fisher não comentara que ia se mudar, mas os funcionários da empresa de mudança se mostraram tão abertos a respeito de tudo, sem se apressarem, embalando tudo direitinho em caixas, tratando da burocracia com um papel preso a uma prancheta, chegando inclusive a fazer uma pausa para fumar um cigarro no meio do trabalho. Só depois que foram embora é que os vizinhos ficaram desconfiados. Quando o vizinho que morava na casa ao lado entrou para dar uma olhada, verificou que nenhuma peça da mobília saíra, só o enorme sistema de computadores de Fisher. Nesta hora é que a polícia foi chamada. O sargento Rogers coçou a cabeça. O problema era que ninguém conseguia encontrar Jeff Fisher. Tinham verificado no trabalho, com a família em Boston e com os amigos. Ninguém o vira nos últimos dois dias. Outra surpresa durante a investigação. Fisher havia sido preso por direção perigosa. Pagara a fiança, recebera uma data para julgamento e fora libertado. Aparentemente fora a última vez em que alguém vira Jeff Fisher. Rogers terminou de redigir seu relatório e foi embora. Sidney subiu correndo a escada e trancou a porta. Pegou a espingarda que estava em cima da cama, armou-a, meteu-se no canto mais afastado e sentou-se no chão, apontando para a porta. As lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto sacudia a cabeça, descrente. Oh, meu Deus! Nunca devia ter envolvido Jeff naquilo. Sawyer estava sentado à sua mesa no edifício Hoover quando Frank Hardy ligou. Pôs Hardy rapidamente a par dos acontecimentos, o principal dos quais foi a conclusão dele, Sawyer, com base no exame que fizera das provas de laboratório, de que Sidney Archer não matara Goldman e Brophy. — Você acha que pode ter sido Jason Archer? — Quis saber Hardy. — Não faria o menor sentido. — Tem razão. De qualquer modo, voltar aqui seria um risco grande demais. — Além do que não acredito que ele fosse tramar contra a mulher fazendo-a parecer culpada pelos assassinatos. — Sawyer fez uma pausa, meditando sobre a pergunta que ia formular. — Alguma notícia da RTG? — Eu ia justamente lhe contar. O presidente, Alan Porcher, não comenta o assunto. O que era de se esperar, claro. O relações-públicas fez a declaração padrão, negando vigorosamente as acusações. — E a transação da CyberCom? — Bem, aqui temos finalmente boas notícias. Os últimos eventos com a RTG jogaram a CyberCom firmemente no campo da Triton. Na verdade, foi programada uma entrevista coletiva para hoje à tarde, anunciando o negócio. Quer ir? — Talvez. Nathan Gamble deve estar feliz da vida. — Com certeza. Vou deixar
dois crachás de visitante para a entrevista coletiva, se você e Ray quiserem ir. É na sede da Triton. Sawyer considerou o pedido por um momento. — Acho que você nos verá lá, Frank. Sawyer e Jackson, os crachás amarelos de visitante reluzindo brilhantemente nas lapelas, entraram na sala do tamanho de um auditório. — Puxa, isto aqui é um grande evento — exclamou Jackson, vendo o mar de repórteres, profissionais de negócios, analistas financeiros e outros profissionais do setor de investimentos. — Dinheiro sempre é um grande evento, Ray. — Sawyer pegou dois cafés na mesa da recepção e deu um para o companheiro. Depois esticou ao máximo seus um metro e noventa de altura para olhar por cima da multidão. — Procurando alguém? — Frank Hardy apareceu atrás da dupla. Jackson sorriu. — Sim, estávamos querendo ver se tinha gente pobre aí. Mas acho que entramos no lugar errado. — É isso aí. Mas você tem que admitir que dá para sentir a excitação, não dá? Jackson fez que sim e apontou para o exército de repórteres. — Será que o fato de uma empresa comprar outra é algo que mereça realmente tanto destaque? — Ray, é um pouco mais que isso. Eu teria dificuldade em apontar uma empresa neste país cujo potencial exceda o da CyberCom. — Mas se a CyberCom é tão especial, por que precisa da Triton? — Quis saber Jackson. — Com a Triton eles terão parceria com uma líder mundial e, ainda por cima, disporão dos bilhões de dólares necessários para produzir, comercializar e ampliar sua base de produtos. O resultado será que, em poucos anos, a Triton irá dominar como a GM e a IBM um dia dominaram — mais ainda, na verdade. O fluxo de 90 por cento da informação do mundo se fará através de hardware. software e outras tecnologias criadas pela empresa que está sendo formada hoje. Sawyer sacudiu a cabeça engolindo o café. — Puxa, Frank — disse — assim não sobra muito espaço para os outros. O que acontecerá com eles? Hardy sorriu timidamente. — Bem, é o capitalismo. A sobrevivência dos mais aptos vem da lei da selva. Você provavelmente já viu esses programas da National Geographic. Animais devorando uns aos outros, lutando para sobreviver. Não é um belo quadro. Hardy desviou os olhos para o pequeno palco elevado onde fora armada uma tribuna. — Já vai começar. Reservei lugares para nós lá na frente. Vamos. — Hardy os liderou por entre a multidão, entrando em um trecho isolado por cordas constituído pelas três primeiras filas. Sawyer examinou os ocupantes de uma pequena fila de cadeiras ao lado esquerdo da tribuna. Quentin Rowe estava sentado ali, vestido hoje com um pouco mais de capricho, mas, a despeito dos milhões de dólares guardados no banco, o cara não parecia ter
uma única gravata. Ele estava entretido em animada conversa com três homens de ternos discretos e que Sawyer imaginou serem da CyberCom. Hardy pareceu ler seu pensamento. — Da esquerda para a direita, diretor-executivo, diretor financeiro e diretor de operações da CyberCom. — Quem não estiver sentado ali é porque é um fodido — ironizou Sawyer. Hardy apontou para o palco. Vindo do lado direito, Nathan Gamble, impecavelmente trajado e sorridente, avançou com passos firmes e instalou-se na tribuna. A multidão tomou seus lugares depressa e silenciou abruptamente, como se ele fosse Moisés acabando de descer do Monte Sinai com as tábuas da lei. Puxou do discurso e passou a lê-lo com considerável vigor. Sawyer não ouviu praticamente nada, concentrado em Quentin Rowe, que, por sua vez, tinha os olhos fixos em Gamble. Quer ele estivesse consciente disso ou não, sua expressão não era amável. Do pouco que Sawyer ouviu das palavras de Gamble, ele pôde perceber que o que importava mesmo era o dinheiro, muito dinheiro, que viria com o domínio de mercado. Depois que Gamble concluiu com um floreio — ele era o vendedor típico de fala fácil, Sawyer tinha que admitir — recebeu uma tremenda ovação. Depois foi a vez de Quentin Rowe tomar posição na tribuna. Quando Gamble passou por ele para sentar-se, os dois homens trocaram sorrisos tão falsos como os que Sawyer só vira em filmes B. Em comparação com Gamble, a ênfase de Rowe foi no ilimitado potencial que as duas empresas, Triton e CyberCom, combinadas, tinham a oferecer ao planeta. Rowe não tocou na questão do dinheiro. Do ponto de vista de Sawyer, Gamble cobrira totalmente o assunto. Sawyer desviou a atenção para Gamble, que não estava olhando para Rowe. Gamble preferia conversar com os diretores da CyberCom. Rowe aparentemente notou a conversa, a ponto de dar uma olhada e interromper o fio do pensamento por um minuto, antes de prosseguir. Na opinião de Sawyer, o fim do discurso dele foi saudado por uma polida salva de palmas. O bem do mundo assumia uma posição secundária em relação ao dinheiro todopoderoso. Pelo menos com aquela gente ali. Quando o pessoal da CyberCom terminou a apresentação, todos os homens aproveitaram a oportunidade para uma sessão de fotos apertando-se as mãos e dando-se os braços. Sawyer notou que Gamble e Rowe nunca estabeleciam contato direto. Talvez fosse por isso que estavam tão satisfeitos com a transação; tinham agora os homens da CyberCom como anteparo. Todos que estavam no palco se misturaram à multidão, sendo instantaneamente assaltados por perguntas. Gamble, muito sorridente, gracejava e brincava, aproveitando ao máximo o momento. O pessoal da CyberCom seguia na sua esteira. Sawyer viu que Rowe abria caminho até a mesa da recepção, onde serviu-se de uma xícara de chá e deslocou-se rapidamente para um canto isolado. Sawyer puxou a manga do paletó de Jackson e os dois seguiram na direção de Rowe.
Hardy seguiu em frente para ouvir Gamble pontificando. — Belo discurso. Rowe levantou a cabeça e deu com a dupla de agentes do FBI na sua frente. — Como? Oh, muito obrigado. — Meu parceiro, Ray Jackson. Rowe e Jackson trocaram cumprimentos. Sawyer deu uma olhada no grupo grande que cercava Gamble. — Ele parece gostar da luz dos refletores. Rowe tomou um gole de chá e enxugou a boca delicadamente com o guardanapo. — Sua maneira de ser, exageradamente objetiva, e seu limitado conhecimento do que realmente fazemos, ajudam na construção de boas frases de efeito — comentou, desdenhosamente. Jackson sentou-se ao lado de Rowe. — Pessoalmente, eu gostei do que você falou sobre o futuro. Meus filhos são realmente dedicados aos computadores. É verdade o que disse: maiores oportunidades educacionais para todos, especialmente para os pobres, geram mais empregos, menos crimes, um mundo melhor. Eu realmente acredito nisso. — Muito obrigado. Eu também acredito. — Rowe levantou o rosto para Sawyer e sorriu. — Embora seu parceiro não comungue deste ponto de vista. Sawyer, que examinava a multidão, baixou os olhos para ele com uma expressão magoada no rosto. — Ei, cara, sou favorável a todo esse papo positivo. Só quero que não me tirem o que é básico, meu papel e meu lápis. É só isso que estou dizendo. — Sawyer apontou com a xícara de café para um grupo de gente da CyberCom. — Você parece se dar bem com o pessoal da CyberCom. Os olhos de Rowe brilharam. — É verdade. Eles não são tão liberais quanto eu, mas estão muito longe da visão de Gamble de que o dinheiro é tudo. Acho que podem trazer um belo equilíbrio à casa. Mesmo que tenhamos agora de aguentar dois meses no mínimo os advogados levando seu quinhão enquanto os documentos finais são negociados. — Tyler e Stone? — perguntou Sawyer. Rowe o encarou. — Exato. — Vai conservá-los como seus advogados depois que a transação terminar? — Vai ter que repetir a pergunta para o Gamble. É da competência dele. Ele é o presidente da empresa. Com licença, cavalheiros, mas tenho que ir andando. — Rowe levantou-se rapidamente e dei xou-os. — Que será que deu nele? — Jackson perguntou a Sawyer. Sawyer sacudiu os ombros largos. — Com certeza um problema enorme. Se você fosse sócio de Nathan Gamble,
provavelmente saberia. — E agora? — Por que não pega outro café e se mistura por aí, Ray? Quero conversar mais um pouco com o Rowe. — Sawyer desapareceu no meio da multidão. Jackson olhou em torno e se dirigiu à mesa do café. Quando Sawyer conseguiu chegar do outro lado da sala, Rowe estava saindo pela porta. Ia segui-lo quando sentiu que puxavam sua manga. — Desde quando um burocrata do governo se importa pelos acontecimentos do setor que só se interessa em ter lucro? — perguntou Nathan Gamble. — Sou favorável a ganhar uma grana. Bom discurso o seu, por falar nisso. Fico emocionado. Nathan deu uma gargalhada. — Uma ova que fica. Não prefere algo mais forte? — ele apontou para o copinho de plástico com café que Sawyer segurava. — Desculpe, mas estou de serviço. Além do mais, ainda é um pouco cedo para mim. — Estamos celebrando, cara. Acabo de fazer o maior negócio da minha vida. Vale a pena até tomar um porre, não vale? — Se você quiser... O negócio não é meu. — Nunca se sabe — retrucou Gamble, em tom provocador. — Vamos dar uma volta. Os dois homens atravessaram o palco, percorreram um pequeno corredor e entraram numa saleta, onde Gamble sentou-se numa poltrona e puxou um charuto do bolso. — Já que não quer tomar um porre, pelo menos fume um charuto comigo. Sawyer estendeu a mão e os dois homens acenderam seus charutos. Gamble sacudiu vagarosamente o fósforo aceso para a frente e para trás, como uma bandeirola, antes de apagá-lo com o pé. Examinou Sawyer atentamente por entre as muralhas gêmeas de fumaça. — Hardy me disse que você está pensando em trabalhar com ele. — Para falar a verdade, não tenho pensado nisso. — Você podia melhorar um bocado. — Francamente, Gamble, não acho que eu esteja indo tão mal onde estou agora. Gamble riu. — Essa não! Quanto você ganha por ano? — Não é da sua conta. — Ora, eu lhe disse o quanto eu ganhava. Vamos lá, em números aproximados. Sawyer prendeu o charuto entre os dentes. O brilho que tinha nos olhos era de quem estava achando graça naquilo. — OK, é menos do que você ganha. Já dá para ter uma ideia? Gamble riu. — Por que está preocupado com o meu contracheque? — Na verdade, não estou. Mas pelo que tenho visto de você e sabendo como o governo faz negócio, tenho que acreditar que não é o suficiente. — E daí? Mesmo que não seja, o problema não é seu. — Eu sou um homem que trabalha resolvendo problemas, é isso o que os presidentes de empresas fazem, Sawyer. Eles enxergam o quadro geral, pelo menos é o que devem fazer. O
que é então que você acha? — Acha sobre o quê? Gamble soprou a fumaça do charuto, um leve brilho nos olhos. Finalmente Sawyer se deu conta de onde o homem estava querendo chegar. — Você está me oferecendo um emprego? — Hardy diz que você é o melhor. Só contrato os melhores. — Qual é exatamente o cargo que você quer preencher? — Chefe de segurança, o que mais poderia ser? — Pensei que esse emprego já fosse do Lucas. Gamble deu de ombros. — Eu cuido dele. De qualquer forma, ele é mais meu guarda-costas pessoal. Por falar nisso, eu quadrupliquei o que ele recebia como funcionário do governo. Farei melhor que isso por você. — Acho que você culpa Lucas pelo que aconteceu com Jason Archer. É responsabilidade de alguém. Então, o que é que você me diz — E o Hardy? — Ele já está bem crescidinho. Se estou querendo contratar você, não preciso tanto dele. — Frank é um bom amigo meu. Não vou fazer coisa alguma que ferre um amigo meu. Não é assim que procedo. — Até parece que o cara vai passar a remover latas de lixo. Ele já ganhou um dinheirão. A maior parte à minha custa. Gamble deu de ombros. — Mas faça como preferir. Sawyer levantou-se. — Para dizer a verdade, não estou seguro de que poderíamos sobreviver um ao outro, você e eu. Gamble o encarou com um olhar firme. — Sabe de uma coisa, você provavelmente tem razão. Sawyer deixou Gamble ali sentado, e quando saiu deu de cara com Richard Lucas, que estava de pé do lado de fora da porta. — Ei, Rich, você sabe circular. — Faz parte do meu trabalho — retrucou ele bruscamente. — Pois olha, na minha maneira de ver as coisas, você devia ser canonizado. — Sawyer indicou com a cabeça a saleta onde Nathan Gamble fumava seu charuto e foi embora. Sawyer acabara de chegar de volta à sua sala quando o telefone tocou. — Sim? — É o Sr. Charles Tiedman, Lee. — Com toda a certeza que vou atender esta ligação. — Sawyer acionou o botão em que piscava uma luz vermelha. — Alô, Charles. O jeito de Tiedman falar foi brusco e estritamente impessoal. — Lee, estou retornando com a resposta à sua pergunta. Sawyer folheou o caderno de anotações até encontrar o trecho onde registrara os tópicos principais da sua conversa anterior com Tiedman. — Sim, você ia verificar as datas em que Lieberman levantou as taxas de juros. — Não quis mandar pelo correio ou por fax. Muito embora sejam tecnicamente do conhecimento público... bem, eu não sabia quem ia ter acesso a esta informação, além de
você. Não é preciso chamar a atenção de ninguém para essas coisas. — Eu compreendo. — Meu Deus, esses caras da Reserva Federal têm mania de sigilo! — Por que não me diz agora? Tiedman pigarreou e deu início à sequência. — Houve cinco desses casos. A primeira modificação foi no dia 19 de dezembro de 1990. As outras ocorreram a 28 de fevereiro do ano seguinte, 26 de setembro de 1992, 15 de novembro do mesmo ano e, finalmente, 16 de abril de 1993. Sawyer anotou tudo. — Qual foi, em essência, o efeito final, após as cinco mudanças? — O aumento de meio ponto percentual da taxa de juros dos fundos da Reserva Federal. A primeira redução, contudo, foi de um ponto percentual. As últimas de três quartos. — Parece-me muito de uma só vez. — Se estivéssemos no exército discutindo armamentos, um ponto percentual equivaleria facilmente a uma bomba nuclear. — Sei que se houvesse um vazamento muito antes de se concretizar uma decisão do banco da Reserva concernente a taxas de juros, algumas pessoas poderiam lucrar enormemente. — Na verdade — contestou Tiedman — uma notícia que antecipasse a ação do banco sobre as taxas de juros, seria, para todos os fins, inócua. Mãe de Deus! Sawyer fechou os olhos, deu um tapa na testa e reclinou-se tanto para trás que quase caiu da cadeira. Talvez fosse melhor encostar o cano da sua 10mm na têmpora e atirar para não continuar sofrendo daquele jeito. — Desculpe o palavrão, mas por que então tanto sigilo, porra? — Não me entenda mal. Pessoas inescrupulosas certamente lucrariam de inúmeras maneiras se tivessem acesso a informações privilegiadas sobre as deliberações da Reserva Federal. No entanto. não lucrariam com informações antecipadas sobre as decisões do banco. O mercado tem um exército de observadores do banco tão eficientes no que fazem que a comunidade financeira sabe muito antes se o banco vai elevar ou baixar as taxas e quanto. Na verdade, o mercado sempre sabe o que vamos fazer. Ficou claro o bastante para você? — Muito. — Sawyer expirou audivelmente e endireitouse na cadeira. — O que acontece se o mercado se enganar? O tom de voz de Tiedman demonstrou que a pergunta o deixou muito satisfeito. — Ah, aí tem-se uma questão completamente diferente. Se o mercado se enganar, você pode ter enormes variações na paisagem financeira. — Quer dizer então que se alguém soubesse antecipadamente uma dessas mudanças inesperadas, poderia conseguir um lucro enorme? — Dizer "lucro enorme" é usar de extrema modéstia para descrever os bilhões de dólares que essa pessoa poderia ganhar segundos depois de a medida tomada pelo banco ser anunciada. A resposta de Tiedman deixou Sawyer temporariamente sem fala. Ele esfregou a testa e assobiou baixinho. Tiedman prosseguiu. — Há inúmeros modos para se conseguir ter esses lucros, Lee, o mais lucrativo dos quais
sendo os contratos comerciais em eurodólar no Mercado Monetário Internacional de Chicago. A alavancagem é de milhares para um. Ou o mercado de ações, claro. As taxas sobem, o mercado cai, e vice-versa, é simples assim. Você pode ganhar bilhões se estiver certo e perder bilhões se estiver errado. Sawyer permaneceu em silêncio. — Lee, acredito que haja mais uma pergunta que você queira me fazer — prosseguiu Tiedman. — Só uma? — disse Sawyer, enfiando o telefone sob o queixo para fazer umas rápidas anotações. — Ainda estou no aquecimento. — Penso que essa pergunta talvez tire a importância de qualquer outra coisa que você queira saber. — Embora Tiedman parecesse, a superfície, estar brincando com ele, Sawyer sentiu uma genuína severidade por trás do seu tom de voz. E quase gritou no telefone, quando se deu conta do que deveria perguntar. — As datas que você acaba de me passar, em que ocorreram as mudanças no valor das taxas, todas foram uma "surpresa" para o mercado? Tiedman fez uma pausa antes de responder. — Sim. — Sawyer quase podia sentir a eletricidade vindo pela linha telefônica. — Na verdade, representaram o pior tipo de surpresa para os mercados financeiros, porque não aconteceram como resultado de encontros regulares do Conselho da Reserva Federal e sim de atos unilaterais de Arthur, como presidente do Conselho. — Mas ele podia elevar as taxas sozinho? — Sim, o Conselho pode conceder esse poder a seu presidente. Tem acontecido com frequência através dos anos. Arthur pressionou muito para conseguir e teve. Desculpe não lhe ter contado antes. Não me pareceu importante. — Esquece. Quer dizer então que com essas mudanças é possível que alguém tenha ganho mais dinheiro do que o número de estrelas que há no céu, certo? — É possível — respondeu Tiedman baixinho. — É possível — repetiu. — Há também a possibilidade de que outros perderam pelo menos uma quantidade equivalente de dinheiro. — Como assim? — Bem, se você estiver certo ao dizer que Arthur podia estar sendo chantageado para manipular as taxas, as medidas extremas que ele adotou — elevar tanto assim as taxas — faz com que eu conclua que a intenção era prejudicar terceiros. — Por quê? — Quis saber Sawyer. — Porque se seu objetivo fosse meramente lucrar com o ajuste das taxas, não ia precisar de uma variação tão grande, desde que o sentido da variação, para cima ou para baixo, fosse uma surpresa para o mercado. No entanto, para os investimentos de quem antecipou uma mudança na outra direção, um ajuste de um ponto no sentido contrário é catastrófico. — Jesus. Algum modo de descobrir quem levou vantagem? Tiedman sorriu. — Lee, com a complexidade do movimento da moeda hoje em dia, nem eu nem você teríamos anos de vida suficientes para isso. Tiedman ficou sem falar pelo menos um outro minuto e Sawyer realmente não pôde
pensar em outra coisa para dizer. Quando por fim Tiedman rompeu o silêncio, a voz dele de repente pareceu a de um homem absolutamente exausto. — Até o dia em que conversamos pela primeira vez, eu não tinha considerado jamais a possibilidade de que o relacionamento de Arthur com Steven Page pudesse ter sido usado para forçá-lo a fazer aquilo. Agora parece óbvio. — Você entende, contudo, que não temos nenhuma prova de que ele tivesse sido chantageado? — Receio que provavelmente nunca saberemos a resposta a isso — disse Tiedman. — Não com Steven Page morto. — Sabe se Lieberman alguma vez se encontrou com Page no seu apartamento? — Acredito que não. Arthur me contou uma vez que havia alugado um bangalô em Connecticut. E me pediu para não mencionar isso na frente da mulher dele. — Acha que talvez fosse o local onde ele e Page se encontravam? — Pode ser. — Vou lhe dizer algo que tem tudo a ver com isso. Steven Page deixou uma fortuna considerável quando morreu. Megadólares. O tom de voz de Tiedman foi de completo choque. — Não compreendo. Lembro de Arthur falando mais de uma vez que Steven estava sempre se queixando da falta de dinheiro. — Mesmo assim, é indiscutível que tenha morrido muito rico. Gostaria de saber se Lieberman poderia ser a origem dessa fortuna. — Altamente improvável. Como acabei de dizer, pelas minhas conversas com Arthur, ele acreditava que Steven estava longe de ser rico. Além do mais, acho impossível que Arthur pudesse ter transferido esse tipo de dinheiro para Steven Page sem que sua mulher soubesse. — Então, por que correr o risco de alugar uma casa? Eles não poderiam se encontrar no apartamento de Page? — Tudo o que posso dizer é que ele nunca me falou ter visitado o apartamento de Page. — Bem, pode ser que o bangalô de Connecticut tenha sido ideia de Page. — Por que diz isso? Bem, se não foi Lieberman quem deu o dinheiro a Page, foi uma outra pessoa. Não acha que Lieberman teria ficado desconfiado se tivesse entrado no apartamento de Page e visto um Picasso na parede? Não ia querer saber de onde tinha vindo o dinheiro? — Com toda a certeza. — Por outro lado, tenho certeza de que Page não estava chantageando Lieberman. Não diretamente. — Como pode ter certeza? — Lieberman guardava uma foto de Page no seu apartamento. Não penso que ele fosse guardar a foto de um chantagista. Além disso, encontramos um maço de cartas no apartamento. Sem assinatura e românticas. É claro que Lieberman as valorizava altamente. — Acha que as cartas são de Page? — Conheço um modo de acabar com essa dúvida. Você era amigo de Page. Tem uma amostra da caligrafia dele? — Na verdade tenho diversas
cartas dele, escritas a mão, do tempo em que trabalhava em Nova York. Posso enviá-las para você. — Tiedman fez uma pausa. Sawyer ouviu-o anotando qualquer coisa. — Lee, você provou que Page não poderia ter tirado o dinheiro de Lieberman. Onde foi então que ele conseguiu sua fortuna? — Pense só nisso. Se Page e Lieberman estavam tendo um romance, havia muita munição para chantageá-lo, concorda? — Certamente. — OK, e se alguém. uma terceira pessoa, houvesse encorajado Page a ter um romance com Lieberman? — Mas fui eu que os apresentei. Espero que você não esteja me acusando dessa conspiração revoltante. — Você pode tê-los apresentado, mas isto não significa que Page e quem quer que o estivesse financiando não possam ter ajudado a que ocorresse a apresentação. Fazendo Page deslocar-se nos círculos certos, ajudando a divulgar sua inteligência em finanças para as pessoas adequadas. Continue. — Page e Lieberman ficam amigos. A terceira pessoa poderia acreditar que um dia Lieberman talvez viesse a presidir o banco. Assim, Page e seu financiador aguardam o desenrolar dos acontecimentos. O tal financiador de Page paga para que ele mantenha o romance. O relacionamento deve ter sido documentado de todas as maneiras possíveis e imagináveis — grampos telefônicos, câmeras de vídeo, fotos comuns — pode acreditar no que estou dizendo. — Quer dizer então que Steven Page foi parte de uma armação. Na verdade nunca se importou com Arthur. Eu... eu não posso acreditar nisso. — A voz do homenzinho ao telefone não podia parecer mais deprimida. — Aí então Page pega AIDS e supostamente se mata. — Supostamente? Você tem dúvidas sobre a morte dele? — Sou policial, Charles. Tenho dúvidas até quanto ao papa. Page morreu, mas seu cúmplice ainda anda por aí. Lieberman torna-se presidente do Conselho da Reserva Federal e começa a chantagem. — Mas e a morte de Arthur? — Bem, seu comentário a respeito dele parecer quase feliz ao descobrir que tinha câncer me diz uma coisa. — O quê? — Que ele estava prestes a mandar o chantagista para o inferno e que ia tornar público todo o esquema. Tiedman esfregou a testa nervosamente. — Faz sentido, faz todo o sentido do mundo. Sawyer abaixou a voz. — Você não comentou com ninguém nada do que conversamos, comentou? — Não, não comentei. — Bem, continue assim e não baixe a guarda nunca. — O que é exatamente que você está sugerindo? — De repente era possível detectar um nó na garganta de Tiedman. — Eu só estou recomendando enfaticamente que você seja muito cuidadoso e não fale com
ninguém — seus colegas do Conselho, inclusive Walter Burns, sua secretária, seus assistentes, sua esposa, amigos — não fale nada a respeito desta nossa conversa. Você está querendo dizer que eu estou em perigo? Acho difícil de acreditar. Sawyer retrucou, o tom de voz ainda mais sinistro. — Tenho certeza de que Arthur Lieberman também pensava assim. Charles Tiedman pegou um lápis em cima da mesa com tanta força que o partiu em duas metades. — Certamente que seguirei seu conselho ao pé da letra. — Absolutamente apavorado, Tiedman desligou. Sawyer recostou-se na cadeira e pensou em como seria bom fumar um outro cigarro, enquanto o motor de sua mente seguia funcionando com mais atividade e concentração. Alguém obviamente estivera dando dinheiro para Steven Page. Por quê? Sawyer pensava que tinha uma possível resposta: para colocar Lieberman numa posição insustentável. A pergunta que o perseguia agora era quem? E a maior de todas indagações — quem matara Steven Page? O agente do FBI estava convencido, não obstante todas as provas em contrário, de que Steven Page fora executado. Ele pegou o telefone. — Ray? Aqui é o Lee. Quero que você ligue de novo para o médico particular de Lieberman.
CAPÍTULO CINQUENTA E TRÊS O PAI DE SIDNEY OLHOU para o relógio do painel e esticou o corpo enorme. Eles se encontravam ao norte de Bell Harbor, viajando rumo sul há cerca de duas horas. Ao lado dele, sua mulher dormia a sono solto. A ida ao supermercado demorara muito mais do que o previsto. Sidney não calculara bem a viagem dos pais. Eles não tinham parado no caminho de Bell Harbor, e por isso conseguiram chegar na casa de praia pouco antes de a nevasca cair. Tendo empilhado a bagagem no quarto dos fundos, saíram em seguida para comprar comida antes que a tempestade piorasse. O supermercado de Bell Harbor não tinha absolutamente nada para vender, de modo que foram obrigados a seguir para o norte, procurando o comércio melhor de Port Vista. No caminho de volta a estrada estava bloqueada pois um caminhão tanque havia tombado. Tiveram de passar a noite muito desconfortavelmente em um motel. Patterson verificou o banco de trás. Amy também cochilava, sua boquinha aberta formando um círculo perfeito. Ele contemplou a neve caindo fortemente e fez uma careta. Por sorte não tomara conhecimento das últimas notícias que revelavam sua filha uma fugitiva da lei. Já se sentia doente de preocupação com o que sabia. Na ansiedade roera as unhas até sangrarem, e sentia o estômago queimando. Sua vontade era proteger Sidney, como nos tempos em que ela era uma garotinha. Quando os piores inimigos dela eram fantasmas e bichos-papões. Tinha que reconhecer que os inimigos de hoje em dia eram muito mais perigosos. Pelo menos Amy estava com ele. Que Deus ajudasse a pessoa que quisesse fazer mal a sua neta. E que Deus esteja com você, Sidney. Ray Jackson deteve-se silenciosamente na porta da sala entulhada de móveis de Sawyer. Atrás da mesa, ele estava imerso na leitura do conteúdo de uma pasta. Uma jarra cheia de café jazia sobre um aquecedor elétrico na sua frente, tendo ao lado uma refeição pela metade. Jackson sabia que Sawyer raramente falhava no seu trabalho. Mesmo assim, vinha sendo alvo de um número cada vez maior de recriminações — internamente, do diretor do FBI para baixo, e fora, na imprensa, e na Casa Branca e no Congresso. Jackson fez uma careta. Tudo bem, se achavam que era tão fácil, por que não iam para as ruas e tentavam resolver o caso? — Ei, Lee? Sawyer estremeceu e levantou os olhos para o parceiro. — Oi, Ray. Café fresco na jarra, sirva-se. Jackson serviu-se de uma xícara e sentou-se. — Fala-se que você anda aborrecendo muito o pessoal de cima com este caso. Sawyer deu de ombros. — Ossos do ofício. — Quer falar a este respeito? — Jackson acomodou-se numa cadeira ao lado dele. — O que há para falar? Certo, todo mundo quer saber quem estava por trás do atentado
que derrubou o avião. Eu também. Também quero saber um monte de coisas mais. Quero saber quem foi que usou Joe Riker para exercício de tiro ao alvo. Quero saber quem matou Steve e Ed Page. Quero saber quem apagou aqueles caras na limusine. Quero saber onde se encontra Jason Archer. — E Sidney Archer? — Claro, e Sidney Archer também. E não vou descobrir nada disso ouvindo toda essa gente que só tem um monte de perguntas para fazer e nenhuma resposta para dar. E por falar nisso, tem alguma coisa para mim? Respostas, ouviu bem? Jackson levantou-se e fechou a porta da sala de Sawyer. — De acordo com o médico dele, Arthur Lieberman não tinha o vírus HIV. Sawyer explodiu. — Impossível! O cara está mentindo para salvar o rabo. — Acho que não, Lee. — Por que não? Porque ele me mostrou o prontuário médico de Lieberman — Sawyer recostou-se, atônito e Jackson continuou. — Quando interroguei o cara, pensei que fosse ser como eu e você tínhamos falado — seria preciso descobrir pela expressão do seu rosto. Porque o homem com toda a certeza não ia me mostrar coisíssima alguma se eu não tivesse um mandado judicial na mão. Mas ele mostrou, Lee. Claro, não havia mal algum no médico de Lieberman provar que ele não tinha o vírus do HIV. Lieberman, de certa forma, era um fanático por saúde. Fazia exames médicos anualmente, com todo o tipo de medidas preventivas e testes. Como parte dos exames a que se submetia, Lieberman era rotineiramente submetido ao teste de AIDS. O médico me mostrou os resultados desde 1990 até o ano passado. Todos negativos, Lee. Vi com meus próprios olhos. Sidney fechou por um momento os olhos injetados, recostou o corpo na cama dos seus pais e respirou fundo. Fatigada, tomou uma decisão. Tirou o cartão da bolsa e o contemplou por alguns minutos. Sentia uma necessidade esmagadora de falar com alguém. Por um semnúmero de razões, decidiu que tinha de ser ele. Desceu até o Land Rover e discou cuidadosamente o número. Sawyer acabara de abrir a porta do apartamento quando ouviu o telefone começar a tocar. Pegou o aparelho, ao mesmo tempo em que tirava o sobretudo. — Alô? A linha ficou em silêncio por um momento e Sawyer já estava prestes a desligar. Aí então ele ouviu uma voz. Sawyer agarrou o telefone com ambas as mãos e deixou o casaco cair no chão. Ele ficou parado rigidamente no meio da sala. — Sidney? — Alô. — A resposta veio baixa, mas em voz firme. — Onde você está? — A pergunta de Sawyer foi automática, mas na mesma hora ele se arrependeu de tê-la formulado. — Desculpe, Lee, mas isto não é uma aula de geografia. — Tudo bem — Sawyer sentou-se na velha poltrona de reclinar. — Não preciso saber onde você está. Mas você está segura? Sidney quase riu. — Razoavelmente, mas não posso afirmar. Na base do palpite, a resposta é sim. Estou
fortemente armada, se é que isto faz diferença. — Ela fez uma pequena pausa. — Vi o noticiário da televisão. — Sei que você não matou aqueles três, Sidney. — Como... — Basta confiar em mim. Sidney deixou escapar um suspiro quando a lembrança daquela noite horrível retornou. — Desculpe não ter contado quando telefonei antes. Eu... eu simplesmente não consegui. Diga-me o que aconteceu naquela noite, Sidney. Ela permaneceu em silêncio, debatendo intimamente se devia desligar ou não. Sawyer percebeu o que se passava e interveio. — Sidney, não estou no edifício Hoover, estou em casa. Não posso rastrear o seu telefonema. E acontece que estou do seu lado. Pode falar tanto quanto quiser. Sidney levou cerca de cinco minutos para contar os eventos daquela noite. — Você não viu o atirador? — Ele usava uma máscara de esqui cobrindo o rosto. Acho que é o mesmo sujeito que tentou me matar mais tarde. Pelo menos espero que não haja dois sujeitos andando por aí com aqueles olhos. — Em Nova York? — Como sabe? — O segurança do prédio, Sidney. Ele foi assassinado. Ela esfregou a testa. — Sim, em Nova York. — Mas você tem certeza absoluta de que se tratava de um homem? — Sim, claro, pelo corpo e pelo que se podia ver de suas características faciais através da máscara. E a parte de baixo do pescoço estava exposta. Pude ver a barba dele um pouco crescida. Sawyer ficou impressionado com as observações dela e lhe disse. — Você tende a relembrar os menores detalhes quando pensa que está prestes a morrer. — Sei o que você quer dizer. Eu mesmo já estive nesse tipo de situação. Olha, encontramos a fita, Sidney. Da sua conversa com Jason. Sidney olhou para o interior às escuras do Land Rover e para a garagem. — Quer dizer então que todo mundo sabe... — Não se preocupe com isso. Na fita seu marido parecia sobressaltado, nervoso. Respondeu algumas de suas perguntas, mas não todas. — É, ele estava agitado. Em pânico. — E o que me diz de quando falou com ele pelo telefone público de Nova Orleans? Como estava então? Diferente ou igual? Sidney semicerrou os olhos enquanto pensava. — Diferente — disse, finalmente. — Como? Conte-me com toda a exatidão de que for capaz. — Bem, ele não parecia nervoso. Na verdade falou quase que em tom monótono. Ele me disse que não podia dizer nada, que a polícia estava vigiando. Só me deu as instruções e desligou. Foi mais um monólogo que uma conversa. Eu nada falei. Sawyer suspirou.
— Quentin Rowe está convencido de que você esteve na sala de Jason na Triton depois da queda do avião. Esteve? Sidney permaneceu em silêncio. — Sidney, sinceramente eu não dou a mínima se você esteve lá. Mas se esteve, eu só quero lhe fazer uma pergunta sobre algo que pode ser que tenha feito enquanto esteve lá. Ela permaneceu em silêncio. — Sidney? Olha, foi você que ligou para mim. Disse que confiava em mim, embora a esta altura dos acontecimentos eu possa entender que não queira confiar em mais ninguém. Não recomendo, mas você pode desligar agora, tentar ficar sozinha. — Eu estive lá — disse ela, baixinho. — OK. Rowe falou de um microfone do computador de Jason. Sidney suspirou. — Bati nele acidentalmente. Não consegui endireitá-lo. Sawyer recostou-se na cadeira. fazendo com que ela reclinasse para trás. — Jason alguma vez usou o microfone de computador? Ele tinha um, por exemplo, em casa? — Não. Ele era capaz de digitar muito mais depressa do que falar. Por quê? — Por que tinha então um microfone no trabalho? Sidney pensou um momento. — Não sei. Acho que era bastante recente, nada além de uns poucos meses. Notei que havia microfones em outras salas da Triton, não sei se ajuda. Por quê? -Já chego lá. Tenha um pouco de paciência com um policial velho e cansado. — Sawyer puxou o lábio superior. — Quando você falou com ele, nas duas vezes, teve certeza de que era mesmo Jason Archer? — Claro que sim. Eu conheço a voz do meu marido. O tom de voz de Sawyer era deliberado e firme, como se estivesse querendo transferir essas características para Sidney. — Eu não perguntei se você tinha certeza de que era a voz do seu marido. — Ele parou por um momento, respirou fundo e continuou. — Perguntei se você tinha certeza de que era seu marido nas duas vezes. Sidney gelou de medo. Quando finalmente reencontrou a voz, ela saiu em um sussurro furioso. — O que você está querendo sugerir? — Ouvi sua primeira conversa com Jason. Você tem razão, ele parecia em pânico, respirando com dificuldade, essas coisas. Vocês tiveram uma conversa de verdade. Ele falou, você ouviu. Agora, nós sabemos da existência desse microfone na sala dele, algo que nunca usa. Se não usa, por que, na verdade, está lá? — Eu... Que outra razão poderia ser? — Um microfone, Sidney, é para gravar coisas. Sons... Vozes. Ela agarrou o telefone celular com tanta força que sua mão ficou vermelha. — Você está querendo dizer... — O que estou dizendo é que acredito que você ouviu a voz do seu marido ao telefone nas duas vezes. Mas acho que o que ouviu na segunda vez foi uma compilação de palavras pronunciadas pelo seu marido originadas de gravações captadas pelo microfone, porque era para isto que ele estava lá, estou certo. Um gravador. — Não pode ser. Por quê? — Não sei ainda. Mas me parece bastante claro. Com isso fica
explicado por que sua segunda conversa com ele foi tão diferente. Imagino que da segunda vez o vocabulário foi bastante comum? — Sidney não respondeu. — Sidney? — Sawyer ouviu um soluço. — Quer dizer então que você pensa... você acredita que Jason... que Jason esteja morto? — Sidney lutou para conter as lágrimas. Já vivera um período acreditando o marido morto, só para encontrá-lo de repente vivo mais adiante. Ou assim pensava. As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, ao pensar em ter de sofrer de novo por Jason. — Não tenho meios de saber, Sidney. O fato de eu achar que era a voz gravada de Jason e não a voz dele ao vivo me leva a pensar que não estava lá para falar, ele próprio. Por quê, eu não sei. Vamos deixar assim por ora. Sidney largou o telefone e abaixou a cabeça. Cada membro seu tremia como se fosse um arbusto franzino em uma ventania. Alarmado, Sawyer chamou-lhe o nome nervosamente. — Sidney? Sidney? Não desligue. Por favor! Sidney? A ligação foi interrompida. Sawyer bateu com o telefone. — Droga! Filha da mãe! Passou-se um minuto. Sawyer andou de um lado para o outro na sala pequena, com passadas fortes. Culminando o ataque de raiva, deu um soco na parede, atravessando com o punho a placa de gesso. Pulou para o telefone quando ele tocou de novo. — Alô? — A voz dele tremia de ansiedade. — Não vamos falar mais sobre se Jason está... está vivo, certo? — A voz de Sidney estava despida de qualquer emoção. — Está bem — respondeu Sawyer falando baixinho. Ele sentou-se e pensou na linha de raciocínio que devia adotar. — Lee, por que motivo alguém na Triton ia querer gravar a voz de Jason e depois usá-la para se comunicar comigo? — Sidney, se eu soubesse a resposta a esta pergunta, estaria plantando bananeiras no corredor. Você disse que inúmeros escritórios tinham instalado um microfone recentemente. Isso significa que pode ter sido qualquer um da empresa que poderia ter adaptado seu microfone em um aparelho de gravação. Ou pode ter sido um dos concorrentes da Triton. O que eu quero dizer é que, se você sabia que ele não usava o microfone, outras pessoas também sabiam. O que sei é que não se encontra mais no escritório dele. Talvez tenha algo a ver com as informações que ele vendeu à RTG. — Sawyer esfregou a cabeça enquanto se decidia pelas outras perguntas que queria fazer a ela. Sidney foi mais rápida. — Só que Jason vendendo informações sigilosas à RTG não faz o menor sentido agora. Espantado, Sawyer levantou-se. — Por que não? — Porque Paul Brophy estava trabalhando na compra da CyberCom também. Esteve presente em todas as reuniões de estratégia. Fez inclusive uma tentativa para assumir a liderança da transação. Brophy, eu sei agora, associara-se a Goldman e à
RTG para saber da posição final da negociação e dar uma cartada decisiva, sobrepujando a Triton. Ele saberia muito mais sobre a posição da Triton do que Jason. Os termos precisos da transação eram fisicamente mantidos na Tyler e Stone, e não na Triton. Sawyer arregalou os olhos. — Você está dizendo... — Estou simplesmente dizendo que já que Brophy trabalhava para a RTG, eles não iam precisar de Jason. Sawyer sentou e praguejou baixinho. Jamais pensara naquilo. — Sidney, nós dois vimos uma fita do seu marido passando informações a um grupo de homens em um armazém de Seattle no dia do desastre do avião. Se as informações não eram sobre a transação com a CyberCom, sobre que diabos haveriam de ser? Sidney sacudiu a cabeça, frustrada. — Eu não sei! O que sei é que quando Brophy teve impedida sua presença nas rodadas finais da negociação, tentaram me chantagear. Fingi ceder. Meu plano verdadeiro era procurar as autoridades. Só que entramos na limusine. — Sidney estremeceu. — Você sabe o resto. Sawyer enfiou a mão no bolso e puxou um cigarro. Prendeu o telefone no queixo para acendê-lo. — Descobriu mais alguma coisa? — Falei com a secretária de Jason, Kay Vincent. Ela disse que o outro projeto importante em que ele estava trabalhando era a integração dos arquivos de cópias de reserva da Triton. Isso é importante? — indagou Sawyer. — Não sei, mas a Kay também me disse que a Triton havia enviado registros financeiros para a CyberCom. No mesmo dia em que o avião caiu. — Sidney parecia exasperada, quando prosseguiu. — No mesmo dia, em Nova York, Nathan Gamble me deu um esporro colossal porque não queria entregar esses mesmos arquivos para a CyberCom. Sawyer esfregou a testa. — Não faz o menor sentido. Você acha que Gamble sabia que esses arquivos tinham sido entregues? — Não sei, quer dizer, não posso ter certeza a este respeito. — Sidney fez uma pausa. O frio úmido começava a se tornar doloroso. — Na verdade, eu achei que o negócio com a CyberCom pudesse ir para o espaço por causa da recusa de Gamble. — Bem, eu posso lhe garantir que não atrapalhou em nada. Fui a uma entrevista coletiva hoje em que a transação foi anunciada. Gamble sorria mais do que o gato de Alice. — Bem, com a CyberCom ao lado eu posso entender que ele estivesse muito feliz. — Não posso dizer o mesmo de Quentin Rowe. — Eles certamente formam um par estranho. — Exatamente. Como Al Capone e Ghandi. Sidney respirou fundo, mas nada disse. — Sidney, sei que você não vai gostar do que vou dizer, mas vou dizer assim mesmo. Você
estaria em condições muito melhores se se entregasse. Nós podemos protegê-la. — Você quer dizer me prender, não é? — retrucou ela, um tom amargurado na voz. — Sidney, eu sei que você não matou ninguém. — É capaz de provar? — Acho que sou. — Você acha? Sinto muito, Lee, fico muito grata pelo seu voto de confiança, mas receio que não baste. Sei como as provas vão se empilhando. E como a opinião pública vê as coisas. O povo percebe as coisas. Eles jogariam fora a chave da cadeia. — Pode ser que você esteja realmente em perigo aí fora. — Sawyer apalpou devagar o escudo do FBI preso no seu cinto. — Olha só, me diz aonde você está e eu vou para aí sozinho. Sem parceiro, sem ninguém. Só eu. Para pegar você, vão ter que me pegar primeiro. A gente pode tentar resolver isso juntos. — Lee, você é um agente do FBI. Há um mandado de prisão contra mim. O seu dever é me prender assim que puser os olhos em cima de mim. Além do mais, você já me protegeu uma vez. Sawyer engoliu em seco. Em sua cabeça um par de cativantes olhos cor de esmeralda se misturavam à luz de um trem que avançava bem em cima dele. — Digamos então que isso faria parte do meu dever não-oficial. — E se for descoberto, sua carreira está acabada. Além do mais, você podia ir para a prisão. — Já sou bem grandinho. O risco fica por minha conta. Eu lhe dou minha palavra de que vou sozinho. — A voz dele tremeu com a excitação contida. Sidney não conseguiu falar. — Sidney, estou no mesmo barco que você... quero sinceramente que você fique bem, está certo? A voz dela saiu embargada. — Acredito em você, Lee. E não sei como dizer o quanto isto significa para mim. Mas não vou deixar que estrague sua vida. Não quero ter isso também na consciência. — Sidney... — Tenho que ir agora, Lee. — Espera! Não vá! — Tentarei ligar de novo. — Quando? Sidney olhou direto para a frente, através do pára-brisa, o rosto subitamente rígido, os olhos arregalados. — Eu... não sei ao certo — respondeu, vagamente. E desligou. Sawyer bateu com o telefone, enfiou a mão nos bolsos da calça procurando o maço de Marlboro e acendeu outro cigarro. Usando uma das mãos em concha como cinzeiro, pôs-se a andar de um lado para o outro na sala. Parou e apalpou o buraco do tamanho de um punho na parede e pensou seriamente em dar outro soco ao lado. Mas em vez de descarregar sua raiva e frustração em uma nova explosão de força, foi até a janela e ficou contemplando, em total desespero, uma noite muito fria de inverno. Assim que Sidney voltou para dentro da casa, o homem saiu das sombras escuras da garagem. Sua respiração era visível por causa da baixíssima temperatura ambiente. Ele abriu a porta do Land Rover e quando a luz do teto acendeu, os letais olhos azuis
cintilaram como gemas horrendas à luz suave. As mãos enluvadas de Kenneth Scales examinaram com perícia o carro mas nada encontraram de interesse. Ele pegou então o telefone celular e pressionou a tecla REDIAL. Houve um único toque de campainha antes de a voz de Lee Sawyer, excitada, atender. Sorriu ao perceber o tom de urgência na voz do agente do FBI, que evidentemente pensara que fosse Sidney Archer ligando de novo. Desligou em seguida, fechou silenciosamente a porta do carro e seguiu até a escada que dava dentro de casa. De uma bainha de couro presa ao cinto, retirou o punhal que usara para matar Edward Page. Teria liquidado Sidney Archer assim que ela saíra do Land Rover, mas não sabia se estava armada. Já vira a habilidade dela com uma arma. Além do mais, seu método de matar baseava-se na surpresa total da vítima. Ele avançou pelo primeiro andar procurando, inutilmente, a jaqueta de couro que Sidney estava usando. A bolsa dela ficara em cima da bancada, mas não continha o que ele queria. Prosseguiu na escada que dava no segundo andar. Parou neste ponto, inclinando a cabeça para um lado, procurando ouvir melhor. Por cima do barulho do vento, o som que chegou a seus ouvidos vindo do segundo andar fez com que sorrisse mais uma vez. Água enchendo uma banheira. Naquela noite de inverno cortante, característica do rústico estado do Maine, a única ocupante da casa preparava-se para tomar um relaxante banho quente. Ele subiu silenciosamente a escada. A porta do quarto no alto da escada estava fechada, mas era possível ouvir claramente a água correndo no banheiro do lado. A água foi fechada. Ele esperou mais alguns segundos, nos quais visualizou Sidney Archer entrando na banheira, mergulhando na água quente, deixando que ela reconfortasse todo o seu corpo cansado. Scales adiantou-se para a porta do quarto. A ideia era pegar primeiro a senha e depois ocupar-se com a dona da casa. Se não pudesse encontrar o que queria, prometeria a ela deixar que vivesse em troca do segredo e depois a mataria. Imaginou por um breve instante como seria a atraente advogada nua. Pelo que tinha visto dela, devia ser ótima sem roupa. E, afinal, ele não estava com pressa. Fora uma viagem longa e cansativa da Costa Leste até o Maine. Ele merecia um pouco de descanso e diversão, pensou, a antecipar mentalmente o próximo evento. Scales ficou ao lado da porta, as costas de encontro à parede, segurando o punhal, e colocou uma das mãos na maçaneta, que girou praticamente sem fazer barulho. O tiro de espingarda que desintegrou a porta e cravou diversos estilhaços da carga Magnum da arma no seu antebraço, ao contrário, fez um barulhão enorme. Ele gritou, jogou-se escada abaixo, rolando atleticamente, e aterrissou praticamente de pé, segurando o braço que sangrava. Ela armou a espingarda de novo e Scales mal teve tempo de se lançar para longe da trajetória do tiro, que veio a atingir exatamente o ponto onde se encontrava. A casa estava quase que totalmente às escuras, mas se ele se movesse de novo, ela seria capaz de ajustar o tiro com perfeição. Ele se agachou atrás do sofá, sabendo que a inferioridade da sua situação era evidente. Em dado momento Sidney Archer se arriscaria a
acender a luz e o poder mortal daquela espingarda devastaria tudo naquela sala pequena, inclusive ele. Procurando respirar em silêncio, segurou o punhal com a mão boa, avaliou os limites da sala e aguardou. O braço doía terrivelmente; Scales estava muito mais acostumado a infligir dor do que a sofrer. Ouviu os passos de Sidney quando ela começou a descer cautelosamente a escada. Ele tinha certeza de que a espingarda devia estar fazendo semicírculos, procurando abranger em seu campo de tiro toda a área. Aproveitando a escuridão, ele levantou a cabeça cautelosamente uns dois centímetros sobre a parte de cima do sofá. Seus olhos fixaram-se nela. Estava no meio da escada. Tão atenta na tentativa de localizar sua presa que não reparou num fragmento da porta do quarto que caíra em um dos degraus. Quando inadvertidamente colocou todo o peso sobre ele, o pedacinho de madeira deslizou e ela perdeu o equilíbrio, com os dois pés perdendo o contato com o chão. Com um grito, Sidney rolou pela escada, a espingarda batendo com força na balaustrada. Em um instante, ele saltou sobre ela. Os dois rolaram e Scales bateu com a cabeça dela no chão. Sidney chutou furiosamente o peito e as costelas dele com suas botas pesadas, depois retorceu-se toda no momento exato em que ele atacou selvagemente com o punhal, escapando por pouco — a ponta da lâmina cortou a parte de dentro do casaco, em vez de cortar a sua carne. Um objeto branco que estava no bolso de Sidney foi desalojado com a violência do impacto e voou para o chão. Sidney conseguiu agarrar a espingarda e desfechou um golpe terrível no rosto de Scales com a coronha da sólida Winchester, quebrando-lhe o nariz e diversos dentes da frente. Chocado, Scales largou o punhal e caiu para trás por um instante. Depois, furioso, arrancou a Winchester das mãos de Sidney, virando-a contra ela. Apavorada, ela jogou o corpo para bem longe, mas mesmo assim continuou facilmente no limite de ação da arma. Ele puxou o gatilho mas a espingarda continuou muda. A queda pela escada e a luta que se seguiu tinham travado a arma. Sidney, a cabeça explodindo de dor por causa da pancada contra o assoalho, afastou-se rastejando, desesperada. Rosnando ameaçadoramente, Scales jogou fora a espingarda inútil e se levantou, o sangue da boca ferida e do nariz quebrado escorrendo pela camisa. Ele pegou o punhal no chão e avançou com olhar assassino para Sidney. Quando ergueu a lâmina para golpeá-la, ela virou-se, a 9mm apontada direto para ele. Uma fração de segundo antes do tiro, contudo, Scales explodiu em um salto acrobático que o levou para cima da mesa de jantar. Ela manteve o gatilho pressionado, fazendo com que a arma disparasse automaticamente. Os projéteis de Hydra-Shok traçando um desenho explosivo na parede enquanto tentava desesperadamente seguir a trilha do seu voo inesperado. Scales bateu no piso de madeira polida com força e o impulso o levou de cabeça na direção da parede. Com o forte impacto o seu torso recuou de lado e ele se meteu por entre as pernas de um aparador de mogno. As delgadas pernas de mogno se partiram como palitos de fósforo e a pesada peça caiu direto em cima dele, espalhando seu conteúdo pela sala quando as gavetas se abriram totalmente com a queda. Scales não se moveu depois
disso. Sidney deu um pulo, atravessou a cozinha correndo, pegou a bolsa em cima da bancada e desceu voando a escada para a garagem. Um minuto depois o Land Rover saía pelo buraco que abriu na porta da garagem, fazia uma curva de 180 graus e desaparecia por entre a nevasca. Quando Sidney olhou pelo espelho retrovisor, viu um par de faróis. Seu coração chegou a falhar quando viu o grande Cadillac entrar na casa de que acabara de sair. O sangue fugiu do seu rosto. Oh meu Deus! Seus pais finalmente chegavam e não podia ter sido em pior hora. Fez uma curva em U com o Land Rover, passando por cima de um monte de neve, e acelerou de volta à casa de seus pais. De repente o problema foi agravado, quando ela percebeu outro par de faróis vindo da mesma direção que o Cadillac viera. Foi com medo crescente que ela viu o sedã preto descer a rua, seus pneus esmagando lentamente a trilha de neve deixada pelo Cadillac. Tinham seguido seus pais desde a Virgínia. Com tantas outras coisas acontecendo, se esquecera deles. Sidney meteu o pé no acelerador até o fundo. Escorregando na neve por um momento, o sistema de tração nas quatro rodas foi acionado e o poderoso motor V-8 jogou o pequeno tanque para a frente como uma bala de canhão. Seguindo reto na direção do sedã, Sidney viu o motorista reagir — ele enfiou a mão por dentro do paletó. Mas com uma fração de segundo de atraso. Ela passou voando pela casa dos pais, deu um golpe de direção e, com um barulhão do choque de metal com metal, bateu no sedã, empurrando-o na estrada escorregadia até cair em uma vala funda. O air bag do Land Rover inflou. Com um esforço furioso, Sidney o arrancou da coluna da direção e engrenou a ré. O barulho de metal se libertando foi claramente ouvido quando os dois veículos se desengancharam. Sidney virou o Land Rover e deu uma espiada, incrédula. Seu ataque rápido acabara com quem quer que estivesse seguindo seus pais. E também produzira outro resultado. Ela observou, desolada, o Cadillac sair da rua da praia e seguir de volta para a Route 1. Sidney meteu de novo o pé no acelerador e saiu atrás dele. O motorista do sedã finalmente conseguiu sair do carro e, em estado de choque, acompanhou o desaparecimento rápido do Land Rover. Sidney via as luzes da retaguarda do Cadillac logo à frente. Naquela altura, a Route I era apenas uma estrada de duas pistas. Ela encostou e buzinou repetidamente. O Cadillac imediatamente acelerou. Seus pais estavam provavelmente tão assustados que não iam parar nem para um policial dentro de um carro-patrulha, muito menos para uma lunática buzinando atrás deles de dentre de um utilitário todo amassado. Sidney conteve a respiração por um instante, meteu o pé no acelerador até embaixo e emparelhou com o carro dos pais pela esquerda. Viu a reação do pai quando o Land Rover surgiu ao seu lado. O Cadillac dançou de um lado para o outro quando ele acelerou e Sidney teve que manter o pé na tábua para acompanhá-lo, já que o danificado Land Rover não reagia mais com a presteza de antes. Quando viu que Sidney ganhava terreno constantemente, Bill Patterson
plantou o Cadillac, com toda a sua largura, bem no meio da estrada estreita, desafiando o Land Rover a ultrapassar. Sidney abaixou o vidro e desviou o Land Rover para ficar com duas rodas no acostamento de cascalho e terra. Graças a Deus que a neve das estradas ainda não tinha sido limpa, caso contrário não seria possível andar no acostamento. Quando se aproximou mais um pouco do lado direito do Cadillac, seu pai deu um golpe de direção para a direita, obrigando-a a sair inteiramente da estrada. Quando o Land Rover foi sacudindo e se inclinando para um lado e para o outro no terreno irregular, Sidney deu uma espiada no velocímetro — estava além de cento e vinte quilômetros por hora. O medo se apoderou de cada nervo do seu corpo. Olhou para a frente. Aproximavam-se de uma curva fechada. Ela ia sair mesmo da estrada. Apertou o acelerador com força. Só dispunha de alguns segundos. — Mãe! — gritou, procurando vencer a fúria do vento e a muralha de neve que caía. — Mãe! Sidney meteu a cabeça para fora tanto quanto foi possível sem perder o controle do carro. Aí respirou fundo e gritou mais alto que jamais gritara em toda a sua vida. — MMMÃÃÃEEEE! A mãe tentou enxergar através da neve, os olhos arregalados de terror e por fim Sidney viu reconhecimento e alívio neles. Sua mãe virou-se para o marido. O Cadillac diminuiu a marcha imediatamente e permitiu que Sidney o ultrapassasse. Com o rosto e o cabelo cobertos de neve, Sidney fez um gesto com uma das mãos para que seguisse. No turbilhão de neve ofuscante, os dois carros seguiram velozes pela estrada. Cerca de uma hora mais tarde eles tomaram uma saída. Em menos de vinte minutos o Land Rover e o Cadillac pararam no estacionamento de um motel. A primeira coisa que Sidney Archer fez foi saltar, correr até o carro dos pais, abrir a porta de trás e abraçar a filha. As lágrimas escorriam pelo seu rosto tão intensamente quanto a neve. Pegou no colo a filha sonolenta, prometendo a si mesma nunca mais deixá-la de novo. Amy não tinha como saber o quão perto estivera de perder a mãe naquela noite. Se a lâmina do punhal tivesse passado um centímetro mais perto? Se a mãe de Sidney tivesse reconhecido a filha um segundo mais tarde? Mas a menina jamais saberia disso. Sidney Archer, contudo, certamente sabia e isso a fez apertar a filha de encontro ao peito com tanta força quanto foi capaz, enquanto seu próprio corpo se agitava dolorosamente. Bill Patterson contornou o carro e abraçou a filha com toda a força. Com todo o seu tamanho ele também tremia muito depois daquele pesadelo. Sua mulher também se aproximou e eles ficaram ali em um pequeno círculo, se abraçando uns aos outros, todos em silêncio. Embora a neve logo lhes cobrisse a roupa, eles não se moveram. Abraçados, celebravam a alegria da sobrevivência. O homem conseguiu libertar o veículo da vala e correu para a casa dos Patterson, onde tudo estava calmo. Um minuto depois acabou o silêncio quando o aparador foi lentamente erguido do chão e jogado longe com barulho e violência. Ajudado pelo colega, Scales levantou-se com dificuldade. Pela aparência do seu rosto, era muita sorte para Sidney Archer que ela não estivesse ali ao alcance de suas mãos assassinas. Quando ele foi pegar a faca, deu com o papel que Sidney deixara cair — a mensagem eletrônica de Jason.
Recolheu-a e a estudou por um momento. Em mais cinco minutos ele e o parceiro estavam de volta ao sedã danificado. Scales pegou o telefone celular e digitou um número. Estava na hora de convocar reforços.
CAPÍTULO CINQUENTA E QUATRO ÀS DUAS E MEIA DA MANHÃ, um agitado Lee Sawyer dirigiu até o escritório debaixo de uma tempestade de neve que ameaçava transformar-se em nevasca ainda naquela tarde. Toda a Costa Leste estava sendo vítima de constantes tempestades que ameaçavam durar até o Natal. Sawyer foi diretamente para a sala de reuniões, onde passou as cinco horas seguintes estudando cada um dos aspectos do caso, com base nos arquivos, em suas anotações e na memória. O objetivo principal era montar a investigação de acordo com o seu entendimento atual, dentro de um esquema lógico. O problema era que não fazia muito sentido, principalmente porque não estava certo se tinha diante de si um ou dois casos: Lieberman e Archer juntos ou separadamente. No fim era nisso que a coisa se resumia. Registrou algumas novas perspectivas que lhe ocorreram, mas nada parecia muito prometedor. Depois pegou o telefone e ligou para o laboratório, pedindo para falar com Liz Martin, a técnica que realizara o exame na limusine. — Liz, eu lhe devo um pedido de desculpas. Deixei esse caso me perturbar um pouco além do que devia e acabei descontando em você. Saí da linha e sinto muito. Liz sorriu. — Desculpas aceitas. Nós todos estamos sob pressão. O que há de novo? — Preciso dos serviços do seu perito em informática. O que é que você sabe sobre sistemas de cópias de segurança em fita? — Engraçado que você pergunte. Meu namorado é advogado e ainda outro dia me disse que este é o tema mais quente na área dele atualmente. — Por quê? — Bem, porque essas cópias podem ser usadas em litígios. Por exemplo: um funcionário escreve um memorando ou mensagem eletrônica que contenha informações prejudiciais sobre a empresa. Mais tarde esse mesmo funcionário apaga a mensagem eletrônica e destrói todas as cópias em papel do memorando. Você imaginaria que estava terminado, certo? Nada disso, porque com a cópia de segurança em fita, o sistema pode muito bem ter registrado tudo antes. E segundo as regras de descoberta de provas, o tal memorando ou mensagem acaba tendo que ser entregue ao outro lado. A firma do meu namorado adverte a seus clientes que com documentos gerados por computador, se você não quiser que outra pessoa os leia é melhor então não criá-los. — Hum. — Sawyer folheou os papéis que tinha diante de si. — Ainda bem que eu prefiro usar tinta invisível. — Você é uma peça rara, Lee, mas pelo menos é uma peça rara simpática. — OK, professora Liz, tenho outra pergunta para você. — Sawyer leu a senha para ela. — É uma senha muito boa, não é, Liz? — Na verdade, não. — O quê? — Aquela era a última resposta que Sawyer esperara ouvir. — É tão comprida que se torna fácil esquecer uma parte ou então reproduzi-la de forma incorreta. Ou no caso de você querer comunicá-la oralmente para alguém, pode facilmente
cometer um engano na transmissão, pular um número, esse tipo de coisa. — Mas sendo tão comprida, um curioso não poderia descobri-la, certo? Pensei que aí é que residisse sua beleza. — Certamente. No entanto, você não tem que usar todos esses números para conseguir o mesmo resultado. Dez dígitos já seriam suficientes para a maioria das finalidades. Com quinze dígitos você seria praticamente invulnerável. — Mas hoje em dia você tem computadores capazes de testar todas essas combinações. — Com quinze dígitos teríamos mais de um trilhão de combinações e a maioria dos pacotes de codificação vem com um dispositivo que encerra a operação se muitas combinações forem tentadas ao mesmo tempo. Mesmo sem esse dispositivo. nem o mais rápido computador do mundo daria conta da tarefa de descobrir uma senha de quinze dígitos, já que o número de combinações possíveis seria excessivamente alto, tendo em vista a presença e disposição dos pontos decimais. — Você está querendo dizer então... — O que estou dizendo é que quem quer que tenha criado esta senha exagerou. Os aspectos negativos ultrapassam em muito a segurança desejada. Sawyer sacudiu a cabeça. — Eu acho que a pessoa sabia exatamente o que estava fazendo. — Bem, então não foi apenas com finalidade de proteção. — O que mais poderia ser? — Eu não saberia dizer ao certo, Lee. Nunca vi uma senha dessas antes. Sawyer nada disse. — Alguma coisa mais? — O quê? Oh, não, Liz, é só isso. — O tom de voz de Sawyer estava visivelmente deprimido. — Sinto não ter podido ajudar mais. — Não, você ajudou muito. Me deu um monte de coisas em que pensar. Obrigado, Liz. — Ele animou-se. — Ei, fico lhe devendo um almoço, certo? — Não vou deixar você esquecer e desta vez sou eu que escolho o lugar. — Ótimo, só quero que aceitem o cartão Exxon. É o único dinheiro de plástico que tenho. — Você realmente sabe como fazer uma garota se divertir, Lee. Sawyer desligou e examinou de novo a senha. Se metade do que ouvira acerca da inteligência brilhante de Jason Archer fosse verdade, a complexidade da senha não fora acidental. Olhou para os números de novo. Aquilo o estava levando à loucura, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que os números eram de certa forma familiares. Serviuse de outra xícara de café, pegou um pedaço de papel e começou a rabiscar, um costume que o ajudava a pensar. Tinha a impressão de que trabalhava naquele caso há anos. Com um sobressalto. viu a data da mensagem eletrônica que Jason mandara à sua esposa: 95-1119. Escreveu os números na folha do bloco: 95-11-19. Sorriu. Um computador não levaria uma fração de segundo para chegar a um número desses. Aí ele prestou mais atenção. O sorriso desapareceu. Escreveu os mesmos números rapidamente de outra maneira: 95/11/19
e, finalmente, 951119. Continuou rabiscando, errou, anulou e continuou, até chegar ao produto final: 599111. O rosto de Sawyer ficou mais branco que a folha de papel em que escrevia. Ao contrario. Leu a mensagem de Jason de novo. Tudo ao contrário, dissera ele. Mas por quê? Se Archer estava sob tanta pressão que digitara errado o próprio endereço e não terminara a mensagem, por que perder tempo com duas frases — "tudo errado" e "tudo ao contrário" — que queriam dizer praticamente a mesma coisa? De repente ele teve um estalo: a menos que as duas frases tivessem significado inteiramente diferentes, ambos literais. Olhou para os números que compunham a senha mais uma vez e começou a escrever furiosamente. Após diversas tentativas erradas ele finalmente terminou. Engoliu o resto do café, meio tonto, ao mesmo tempo em que lia os números em sua ordem verdadeira (e direta): 12-1990, 2-28-91, 9-26-92, 11-1592 e 4-16-93. Archer fora bem preciso na seleção da senha. Na realidade plantara uma pista dentro da senha propriamente dita. Sawyer não precisou consultar suas anotações. Sabia o que aqueles números representavam. Respirou fundo. Eram as datas das cinco vezes em que Arthur Lieberman alterara as taxas de juros sozinho. Nas cinco vezes alguém ganhara dinheiro bastante para comprar um país ou talvez perdera o equivalente. Sua pergunta finalmente fora respondida. Tinha um só caso, não dois. Havia uma conexão entre Jason e Lieberman. Mas qual? Outro pensamento lhe ocorreu. Edward Page dissera a Sidney que não estava seguindo Jason Archer no aeroporto. A outra pessoa que ele poderia estar seguindo era Lieberman. Page podia estar atrás do presidente do Conselho da Reserva Federal e esbarrara na troca de identidade de Archer. Mas por que seguir Lieberman? Com uma careta de contrariedade ele pôs a mensagem de lado e foi assistir à fita de Archer no armazém, que se encontrava em cima da sua mesa. Se Sidney tinha razão quanto a Brophy saber mais do que Jason Archer, o que diabos tinha se passado realmente naquele armazém? Já fazia algum tempo que não via a fita. Decidiu corrigir esta falha naquele instante. Inseriu a fita em um videocassete que ficava sob uma televisão de tela grande em um canto da sala. Serviu-se de mais café e acionou o controle remoto; a fita começou a rodar. Assistiu à cena duas vezes. Na terceira vez ele assistiu em câmara lenta. Franziu a testa, estranhando qualquer coisa. Quando a assistira pela primeira vez, no escritório de Hardy, alguma coisa o deixara desconfiado também. Que diabo seria? Rebobinou e acionou novamente o controle. Jason e o outro homem estão esperando, a pasta de Jason é visível. Batida na porta, outros homens entram. O sujeito velho, os outros dois com óculos escuros. Tudo certinho. Ele observou os dois homens corpulentos outra vez. Pareciam estranhamente familiares, mas ele não conseguia... Sacudiu a cabeça e continuou a assistir. A troca, com Jason parecendo extremamente nervoso. Depois o avião passando. O armazém ficava sob a rota do aeroporto, haviam dito a ele. Todo mundo no aposento levantou a cabeça na hora do barulho ensurdecedor. Sawyer fez um movimento tão brusco
que derramou a maior parte do café na camisa. Só que desta vez não foi pelo barulho do avião. — Meu Deus! — Ele congelou a imagem. Em seguida plantou o rosto a no máximo dois centímetros da tela e agarrou o telefone. — Liz, preciso de sua mágica, e desta vez, professora, vale mesmo um jantar! — Em seguida explicou rapidamente o que queria. Sawyer precisou de dois minutos, correndo à toda, para chegar no laboratório. O equipamento estava todo montado, com uma sorridente Liz de pé ao lado. Sawyer, bufando com o esforço, entregou a fita a ela, que a colocou em outro aparelho de vídeo. Liz sentou-se diante de um painel de controle e a fita começou a correr. A tela do aparelho devia ter umas boas sessenta polegadas. — Atenção, atenção, Liz, é agora! Já! — Sawyer quase deu um pulo de pura excitação. Liz congelou a imagem e comprimiu alguns botões no seu painel. As figuras humanas cresceram até ocupar toda a extensão da tela. Sawyer concentrou sua atenção em apenas uma delas. — Liz. dá para ampliar esta parte aqui? — Liz fez o que ele pediu. Sawyer sacudiu a cabeça em mudo espanto. Liz aproximou-se, a fim de observar a cena surpreendente. Ela levantou os olhos para ele. — Você estava certo, Lee. O que isto significa? Sawyer continuou olhando fixamente para o homem que se apresentara a Jason Archer como Anthony DePazza, naquela fatídica manhã de novembro, debaixo de garoa, em Seattle. Mais especificamente, a atenção de Sawyer concentrou-se no pescoço de DePazza, claramente visível porque ele levantara a cabeça quando o avião passara. Na verdade, o que Sawyer e Liz examinavam era uma falha evidente no pescoço, separando a pele verdadeira da pele falsa. — Não sei, Liz. Por que diabos o sujeito estaria usando um disfarce? Liz ficou contemplando, pensativa, a tela. — Andei mexendo com esse tipo de coisa no grupo de teatro da universidade. — Com o quê, exatamente? — Sabe como é, fantasias, maquiagem, máscaras. Para quando tínhamos que representar uma peça, fazer uma encenação qualquer. É bom que você saiba que já fui uma pérfida Lady Macbeth. Sawyer continuou olhando para a tela, de boca aberta, enquanto a palavra que acabara de pronunciar ressoava em sua cabeça: encenação? Ruminando a nova informação, Sawyer voltou apressadamente para a sala de reuniões. Encontrou Ray Jackson sentado lá, tendo na mão diversos documentos com que acenou para o parceiro. — Chegou via fax, enviados por Charles Tiedman. Amostras da caligrafia de Page. Tenho cópias das cartas que encontrei no apartamento de Lieberman. Não sou grafologista, mas acho que são da mesma pessoa. Sawyer sentou-se e deu uma olhada nas cartas, comparando a letra. — Concordo com você, Ray, mas envie para o laboratório para termos uma opinião inquestionável.
— Certo. — Jackson começou a cumprir a determinação de Sawyer, mas este o interrompeu abruptamente. — Ei, deixa eu dar uma olhada nessas cartas mais uma vez. Jackson entregou-as. Sawyer na realidade só queria olhar uma delas. O timbre no alto da página impressionava: Associação dos Ex-alunos da Universidade de Colúmbia. Tiedman não comentara que Steven Page estudara em Colúmbia. Page tinha, evidentemente, sido membro ativo da associação dos ex-alunos. Sawyer fez umas contas rápidas de cabeça. Steven Page tinha vinte e oito anos quando morrera, cinco anos atrás. Teria, portanto, trinta e três ou trinta e quatro hoje em dia, dependendo da data exata em que nascera. Assim sendo, provavelmente se formara em 1984. Outra ideia surgiu na cabeça de Sawyer. — Vá em frente, Ray. Tenho que dar uns telefonemas. Depois que Jackson saiu com os documentos, Sawyer discou para o serviço de informações e conseguiu o número da Universidade de Colúmbia. Em dois minutos era informado que Steven Page havia se formado em 1984, e, na verdade, com altas honras acadêmicas, ou seja, com um magna cum laude. Sawyer baixou a cabeça e ficou olhando para as mãos enquanto se preparava para formular a próxima pergunta. Todos os seus dedos tremiam. Esforçou-se ao máximo para conservar as emoções sob controle enquanto esperava que a mulher do outro lado da linha consultasse os arquivos. Sim, ela confirmou. O outro aluno também se formara em 1984, sendo que este recebera as mais altas honras acadêmicas possíveis, summa cum laude. Impressionante, foi o comentário da pessoa que prestava as informações a Sawyer, conseguir tal distinção em Colúmbia. Quando ele fez a outra pergunta, soube que só poderia ter uma resposta se telefonasse para a divisão que cuidava dos alojamentos dos estudantes. Sawyer esperou, os nervos mal aguentando tanta ansiedade. Quando finalmente conseguiu falar com alguém, a pergunta foi respondida em um minuto. Sawyer agradeceu, procurando falar com calma, e depois bateu com o telefone. O veterano agente do FBI deu um pulo da cadeira, socando o ar e gritando para a sala vazia: — Na mosca, porra! Tendo em vista as circunstâncias, a animação de Sawyer era plenamente justificável. Quentin Rowe também se formara em 1984 na Universidade de Colúmbia. E, muito mais importante, Steven Page e Quentin Rowe tinham compartilhado a mesma residência durante os dois últimos anos de universidade. Quando ocorreu a Sawyer, poucos segundos depois, por que os dois sujeitos de óculos escuros na fita pareciam tão familiares, a felicidade que sentia desapareceu rapidamente, transformada em completa descrença. Mas não havia outra possibilidade. E sim, claro que fazia sentido. Particularmente quando se olhava a coisa pelo que era — uma representação, um ardil. Pegou o telefone. Tinha que achar Sidney Archer tão depressa quanto fosse possível e sabia onde queria começar a procurá-la. Meu Deus, este caso acaba de sofrer uma grande reviravolta, pensou ele.
CAPÍTULO CINQUENTA E CINCO VIAJANDO EM UM CARRO ALUGADO, a Sra. Patterson e Amy estavam a caminho de Boston, onde permaneceriam alguns dias. A despeito da discussão que durou até as primeiras horas da madrugada, Sidney não conseguira persuadir o pai a acompanhá-las. Ele passou a noite toda sentado no quarto de motel limpando cada grão de poeira e cisco de sua Remington calibre 12, o queixo cerrado com força e os olhos fixos em frente enquanto a filha andava de um lado para o outro tentando convencê-lo. — Você é uma pessoa extremamente difícil! — disse ela, no caminho de volta a Bell Harbor no carro do pai; o Land Rover fora rebocado para uma oficina. Mesmo assim, deixou escapar — silenciosamente — um suspiro de alívio, quando se recostou no banco. Naquele instante não queria estar sozinha. Bill Patterson olhava obstinadamente pela janela. Quem quer que estivesse perseguindo a filha teria que matá-lo primeiro. Fantasmas e bichos-papões, cuidado: papai estava de volta. A van branca que os seguia estava a mais de quinhentos metros de distância e assim mesmo não tinha dificuldade em seguir os movimentos do Cadillac. Um dos oito homens na van não estava particularmente de muito bom humor. Primeiro você deixa Archer enviar uma mensagem e depois permite que a mulher dele fuja. Não dá para acreditar. — Richard Lucas sacudiu a cabeça e olhou furiosamente para Kenneth Scales, sentado ao seu lado. A boca e o antebraço de Scales estavam envoltos em ataduras, e o nariz, embora recolocado no lugar pelas suas próprias mãos, estava vermelho escarlate e inchado. Scales olhou para Lucas. — Pois acredite. — A voz baixa saindo daquela boca seriamente danificada continha tanta ameaça que até mesmo um cara durão como Lucas piscou e rapidamente mudou de abordagem. O chefe da segurança interna da Triton inclinou-se um pouco para frente no banco. Está bem — apressou-se a dizer — não adianta falar sobre o que já passou. — Jeff Fisher, o cara dos computadores lá da firma de advogados, tinha uma cópia do conteúdo do disquete no seu disco rígido. O diretório de arquivos do computador dele mostra que foi acessado em uma hora em que se encontrava no bar. Deve ter conseguido fazer outra cópia assim. Filho da mãe esperto. Tivemos uma palavrinha com a garçonete do bar ontem à noite. Ela deu a Fisher um envelope selado endereçado a Bill Patterson, Bell Harbor, Maine. Bill Patterson é o pai de Sidney. Está a caminho, disto eu tenho certeza, e, acima de tudo mais, temos que conseguir esse envelope. Entendido? — Os seis outros homens de cara fechada no interior da van aquiesceram, balançando a cabeça. Cada um deles exibia a tatuagem de uma estrela no dorso da mão, símbolo de um veterano grupo de
mercenários a que todos haviam pertencido — um grupo formado a partir da escória da funesta Guerra Fria. Como ex-agente da CIA, Lucas tivera facilidade em reatar os antigos laços, havia o atrativo do dinheiro. — Vamos deixar Patterson pegar o pacote, esperar que cheguem a um local isolado e aí então liquidá-los com uma ação rápida e vigorosa. — Ele fez uma pausa, olhando em torno. — Uma bonificação de um milhão de dólares por homem quando o objetivo for cumprido. Neste ponto Lucas olhou para o sétimo homem. — Você entendeu, Scales? Kenneth Scales não olhou para ele. Puxou seu punhal, apontou para a frente da van e falou devagar, por causa do ferimento da boca. — Você pode ficar com o disquete. Eu me encarrego da moça. E ainda dou cabo do velho sem cobrar taxa extra. — Primeiro o pacote. Depois você pode fazer o que lhe der na cabeça — retrucou Lucas, furioso. Scales não respondeu. Continuou olhando para a frente. Lucas chegou a abrir a boca mas desistiu. Recostou-se e passou uma das mãos nervosamente pelo cabelo escasso. Durante os vinte minutos que levou o percurso até Alexandria, Jackson tentou o número de Fisher três vezes pelo telefone do carro, mas não houve resposta. — Então você acha que esse cara ajudou Sidney com a senha? — Jackson apreciava os meandros do rio Potomac enquanto seguiam velozmente pela rodovia George Washington. Sawyer virou-se rapidamente. — De acordo com o registro da segurança, Sidney Archer veio aqui na noite dos assassinatos. Verifiquei com eles. Fisher é o responsável pela parte de informática na firma em que ela trabalhava. — É, mas parece que o cavalheiro não está em casa. — Tem uma porção de coisas numa casa que podem nos ajudar, Ray. — Não me lembro de a gente ter pedido um mandado de busca, Lee. Sawyer saiu da Washington e disparou pelo coração da parte velha da cidade de Alexandria. — Detalhes, Ray, você sempre se prende a detalhes. — Jackson bufou, sabendo que não adiantava insistir e caiu em silêncio. Passaram na frente da casa de Fisher, saltaram e subiram os degraus rapidamente. Uma jovem, o cabelo negro contrastando com a neve que caía, gritou ao saltar do carro em que chegara, imediatamente depois. — Ele não está em casa. Sawyer a encarou. — Você não saberia dizer onde ele se encontra, saberia? — Sawyer desceu a escada e se aproximou dela, que arrastava dois sacos de compras de supermercado. Primeiro ajudou-a e depois mostrou as credenciais. Jackson fez o mesmo. Ela pareceu confusa. — FBI? Eu achava que não se chamava o FBI por causa de roubo. — Roubo, Srta...? — Oh, sinto muito, Amanda, Amanda Reynolds. Vivemos aqui há cerca
de dois anos e é a primeira vez em que tivemos a policia no nosso quarteirão. Roubaram o equipamento de computação do Jeff. — Você já participou à polícia, certo? Ela ficou envergonhada. — Nós viemos da cidade de Nova York. Lá se você não acorrentar o carro em uma âncora não acha mais na manhã seguinte. Você fica sempre em guarda. Mas aqui? — Ela sacudiu a cabeça. — Ainda assim, me sinto feito uma idiota. Pensei que tudo era sério e honesto. Acho que uma coisa dessas nunca aconteceu em um bairro como o nosso. — Viu o Sr. Fisher recentemente? A mulher franziu a testa. — Oh, três ou quatro dias atrás, no mínimo. Com o tempo horroroso que faz nesta época do ano, todo mundo fica dentro de casa. Eles agradeceram e se dirigiram à polícia. Quando perguntaram sobre o roubo na casa de Jeff Fisher, o sargento de plantão digitou algumas teclas do computador. — É, é isso mesmo. Na verdade, eu estava de serviço na noite em que o trouxeram para cá. — O sargento leu atentamente a tela, fazendo rolar parte do texto com os dedos magros enquanto Sawyer e Jackson trocavam olhares intrigados. — Foi trazido para cá por dirigir perigosamente, falando sem parar sobre uns caras que o seguiam. Achamos que ele tinha bebido umas e outras. Fizemos o teste de embriaguez, ele não estava bêbado mas cheirava a cerveja. Fizemos com que passasse a noite aqui, por via das dúvidas. No dia seguinte pagou a fiança, recebeu uma data para se apresentar no tribunal e se mandou. Sawyer encarou fixamente o sargento. — Você está dizendo que Jeff Fisher foi preso? — Isso mesmo. — E no dia seguinte a casa dele foi assaltada? O sargento balançou a cabeça e debruçou-se sobre o balcão. — Um bocado de falta de sorte, na minha opinião. — Ele descreveu as pessoas que o seguiam? — Quis saber Sawyer. O sargento olhou para o agente do FBI como se quisesse submetê-lo também ao teste de embriaguez. — Não havia ninguém o seguindo. — Tem certeza? O sargento rolou os olhos para o céu e sorriu. Tudo bem, você disse que ele não estava embriagado e assim mesmo fez com que passasse a noite na cadeia? — Sawyer pôs as duas mãos sobre o balcão. — Bem, você sabe como é com alguns desses caras, os testes não funcionam com eles. Esvaziam um engradado de cerveja e o bafômetro acusa zero vírgula zero um. Fisher estava dirigindo feito maluco e agindo como bêbado, de qualquer maneira. Achamos melhor prendê-lo por uma noite. Se estivesse mesmo de porre, assim pelo menos podia curtir a bebedeira em segurança. — E ele não se opôs? — Não, disse que nunca tinha passado antes uma noite na cadeia. Achava que podia ser uma experiência interessante. — O sargento sacudiu a cabeça calva. — Essa não é a maior? Interessante uma ova! — Você não tem ideia de onde ele se
encontra agora? — Não conseguimos nem sequer encontrá-lo para avisar de que a casa tinha sido roubada. Como falei, ele pagou a fiança e recebeu a data do julgamento. Só passa a me preocupar se não aparecer na data marcada. — Lembra de mais alguma coisa? — O rosto de Sawyer exprimia todo o seu desapontamento. O sargento ficou tamborilando com os dedos no balcão, o olhar perdido no espaço. Até que por fim Sawyer olhou para Jackson e os dois se prepararam para ir embora. — Bem, obrigado pela ajuda. Estavam a meio caminho da porta quando o homem despertou do seu transe. — O sujeito me deu um pacote para eu pôr no correio para ele, dá para acreditar numa coisa dessas? Quer dizer, sei que uso uniforme, mas será que pareço ser um carteiro? — Um pacote? — Sawyer e Jackson voltaram correndo. O sargento sacudiu a cabeça enquanto rememorava o acontecido. — Eu digo a ele que pode dar um telefonema e ele responde, antes de dar o telefonema, será que, por favor, eu podia largar aquilo numa caixa do correio para ele? Já está selado, ele disse. Ficaria realmente muito agradecido. — O sargento deu uma risada. Sawyer olhava para o homem com os olhos arregalados. — O pacote, você o colocou no correio? O sargento parou de rir e olhou para Sawyer, piscando repetidamente. — O quê? Ah, sim, coloquei naquela caixa ali perto. Quer dizer, não me deu trabalho nenhum. Achei que não tinha nada de mais ajudar o cara. — Como é que era? O pacote? — Bem, não era uma carta. Era um desses pacotes de papel pardo fofos, você sabe. — Uns que são forrados com um plástico de bolhas — sugeriu Jackson. O sargento apontou para ele. — É isso aí, eu podia sentir pelo lado de fora. — Era grande? — Oh. Bem, na verdade não era grande, mais ou menos assim. — O sargento fez com as mãos ossudas o desenho de algo que teria uns vinte centímetros por quinze. Mais uma vez Sawyer pôs ambas as mãos sobre o balcão e olhou direto para ele, o coração disparado febrilmente. — Você se lembra do endereço escrito no pacote? O destinatário ou o remetente? O homem voltou a tamborilar os dedos em cima do balcão. — Não me lembro do remetente, achei que era o Fisher e pronto. Mas foi enviado para, deixa eu ver, Maine, sim, Maine. Sei porque a patroa e eu fomos ao Maine no outono passado. Se algum dia você tiver uma chance, não deixe de ir. É de tirar o fôlego, de tão bonito. Você vai se cansar de tanto fotografar, isso eu lhe garanto. — Onde no Maine? — Sawyer tentava ser paciente. O homem sacudiu a cabeça. — Qualquer coisa Harbor, eu acho — respondeu, ao cabo de algum tempo.
As esperanças de Sawyer dissolveram-se. Sem se esforçar muito era capaz de citar pelo menos dez cidades do Maine com a palavra Harbor no nome. — Vamos, pense! Os olhos do sargento se arregalaram. — Havia drogas no pacote? O tal Fisher era um traficante? Achei que havia algo de esquisito. É por isto que vocês federais estão assim tão interessados? Sawyer sacudiu a cabeça, fatigado. — Não. não, não é nada disso. Olha, pelo menos você se lembra para quem o pacote foi enviado? O homem pensou por mais um minuto e sacudiu a cabeça negativamente. — Desculpem, amigos. Eu simplesmente não consigo. Jackson perguntou: — Que tal Archer? Foi destinado a alguém com esse sobrenome? — De jeito nenhum. Archer eu me lembraria, porque é o nome de um dos policiais aqui. Jackson deu seu cartão a ele. — Bem se lembrar de alguma coisa, nos dê imediatamente um telefonema. É muito importante. — Pode deixar. Eu ligo para vocês, na mesma hora em que me lembrar. Confiem em mim. Jackson tocou na manga de Sawyer. — Vamos, Lee. Eles se viraram para a saída. O sargento voltou a trabalhar. De repente Sawyer girou nos calcanhares, o dedo enorme apontando para o sargento como uma pistola, a visão das palavras MAINE, O ESTADO ONDE TODOS PASSAM AS FÉRIAS, em um adesivo no pára-choque de um Cadillac. — Patterson! — sargento levantou a cabeça, assustado. — Foi enviado para alguém chamado Patterson, no Maine? O sargento ficou radiante e estalou os dedos. — É isso aí. Bill Patterson. — Seu sorriso desapareceu quando ele viu os dois agentes do FBI saírem correndo da delegacia.
CAPÍTULO CINQUENTA E SEIS BILL PATTERSON OLHOU PARA A FILHA enquanto seguiam pelas ruas cobertas de neve, que agora caía com muito mais intensidade. — Então você está dizendo que esse sujeito do seu escritório devia mandar um pacote para você no meu nome? Cópia de uma coisa que Jason mandou para você num disquete? — Sidney fez que sim. — Mas você não sabe o que é? — Está em código, papai. Tenho a senha, mas preciso esperar pelo pacote. — Você tem certeza de que o pacote não chegou? Sidney perdeu a paciência. — Telefonei para a FedEx, eles não tinham o registro do pacote. Depois liguei para a casa dele e foi a polícia que atendeu. Oh, meu Deus! — Sidney estremeceu ao pensar no possível destino de Jeff Fisher. — Se aconteceu alguma coisa a Jeff... — Olha, você tentou a secretária eletrônica da sua casa? Ele pode ter ligado e deixado um recado. Sidney ficou boquiaberta ante a brilhante simplicidade da sugestão do pai. — Cristo! Por que não pensei nisso? — Porque você vem correndo para salvar a própria vida nos dois últimos dias, aí está o porquê. — A emoção enrouqueceu a voz do pai, que se inclinou e pegou a espingarda que repousava no chão do carro. Sidney entrou com o Cadillac num posto de gasolina e parou junto a uma cabine telefônica. Correu para o telefone, debaixo de uma neve que caía com tanta força que não notou a van branca que passou pelo posto, entrou numa transversal, fez uma volta completa e esperou que ela retornasse à rodovia. Sidney digitou o número do seu cartão de crédito e o do próprio telefone. Pareceu decorrer uma eternidade até que a secretária eletrônica atendeu. Havia um monte de mensagens. De seus irmãos. de outros membros da família, amigos que tinham assistido aos noticiários e que telefonavam com perguntas, ultrajados ou para prestar apoio. Esperou com impaciência cada vez maior à medida que as mensagens iam sendo reproduzidas. Até que prendeu a respiração quando uma voz familiar chegou a seus ouvidos. — Alô, Sidney, aqui é o seu tio George. Martha e eu estamos passando a semana no Canadá. Aproveitando muito, mesmo com o frio que faz. Mandei os presentes de Natal para você e para Amy um tanto mais cedo, como falei que faria. Mas foi pelo correio, porque perdemos o horário da droga do Federal Express e não queríamos perder mais tempo esperando. Fica de olho. Mandamos registrado, de modo que você vai ter que assinar um recibo para receber. Nós a amamos muito e estamos ansiosos para vê-la em breve. Beije a Amy por nós. Sidney desligou lentamente. Não tinha nenhum tio George ou tia Martha, mas não havia mistério naquele telefonema. Jeff Fisher imitara muito bem a voz de um velho. Sidney correu de volta para o carro. Seu pai a esperava com um olhar penetrante.
— Ele ligou? Ela fez que sim, acelerou e saiu fazendo os pneus rangerem e lançando o pai de encontro ao encosto do banco. — Onde diabos vamos tão depressa, droga? — Ao correio. O correio de Bell Harbor ficava no centro da cidade e logo foi avistado, com a bandeira dos Estados Unidos açoitada pelo forte vento. Sidney encostou no meio-fio e o pai saltou. Ele voltou minutos depois, abaixando a cabeça para entrar no carro. Tinha as mãos vazias. — O carregamento de hoje ainda não chegou. — Tem certeza? Ele fez que sim. — Jerome é o agente postal aqui desde que conheço esta cidade. Disse para passarmos de novo lá pelas seis horas. Ele ficará aberto para nós. Você sabe que pode não estar no carregamento de hoje se Fisher só conseguiu enviá-la dois dias atrás. Sidney bateu fortemente com ambas as mãos no volante onde depois repousou a cabeça, fatigada. O pai pôs a mão enorme delicadamente sobre o seu ombro. — Sidney, vai acabar chegando, mais cedo ou mais tarde. Só espero que o que está no disquete sirva para resolver este pesadelo. Ela levantou os olhos para ele, muito pálida, sobressaltada. — Tem que resolver, papai. Tem que resolver. — Não conseguiu continuar falando, a voz embargada. E se não resolvesse? Não, não podia pensar assim. Tirando o cabelo do rosto, engrenou o carro e seguiu em frente. A van branca esperou dois minutos, saiu da rua transversal e seguiu o Cadillac. — Eu simplesmente não posso acreditar nisso — urrou Sawyer. Jackson dirigiu-lhe um olhar de clara frustração. — O que posso lhe dizer, Lee, é que está caindo uma nevasca. Os aeroportos Nacional, Dulles e BWI estão fechados. Kennedy, La Guardia e Logan também. Da mesma forma Newark e Philly. Os voos estão atrasados ou suspensos em todo o país. Toda a Costa Leste parece a Sibéria. E o FBI não vai liberar um avião para voar com este tempo. — Ray, temos que ir para Bell Harbor. Já deveríamos estar lá agora. E o trem? — A Amtrak ainda está limpando a via férrea. Além disso eu verifiquei — o trem não vai até lá. A última conexão teria que ser feita de ônibus. E com este tempo a rodovia interestadual deve estar bloqueada. Como se não bastasse, não é via expressa o tempo todo. Teríamos que seguir por estradas secundárias. Estamos falando no mínimo de quinze horas. Sawyer deu a impressão de que ia explodir. — Eles podem estar mortos dentro de uma hora, que dirá quinze. — Não precisa me dizer. Se eu pudesse bater asas e voar já teria feito, mas não posso, droga! — retorquiu Jackson, furioso. Sawyer acalmou-se rapidamente. — OK, sinto muito, Ray. — Ele sentou-se. — Alguma sorte com os agentes locais? — Dei telefonemas. Nossa agência mais próxima é em Boston. Mais de cinco horas de distância. E com esta nevada? Quem sabe? Há pequenas agências em Portland e Augusta. Deixei recados, mas ainda não tive respostas. A polícia estadual talvez seja uma
possibilidade, embora deva estar assoberbada com os acidentes nas estradas. — Que merda! — Sawyer sacudiu a cabeça em desespero e tamborilou impacientemente no tampo da mesa. — O único jeito é um avião. Tem que haver alguém disposto a voar com esta tempestade. Ray sacudiu a cabeça. — Talvez um piloto de combate. Conhece algum? — perguntou, sarcasticamente. Sawyer deu um pulo da cadeira. — Claro que conheço! A van preta parou junto de um pequeno hangar do aeroporto do condado de Manassas. Era tanta a neve que caía que só se podia ver a alguns centímetros de distância. Meia dúzia de membros da fortemente armada Equipe de Resgate de Reféns, todos vestidos de preto e carregando rifles de assalto, seguidos por Sawyer e Jackson, saltaram depressa e correram para o avião que os esperava na pista, com os motores ligados. Os agentes rapidamente subiram a bordo do turbojato Saab. Sawyer sentou-se ao lado do piloto enquanto Jackson e os membros da equipe de resgate prendiam os cintos de segurança. — Eu esperava ver você de novo antes que isto acabasse, Lee — gritou George Kaplan por cima do barulho dos motores, sorrindo para o homem grande. — George, não me esqueço dos amigos, cara. Além do mais, você é o único filho da mãe que eu conheço maluco o bastante para levantar voo com um tempo desses. — Sawyer deu uma espiada no pára-brisa do Saab — era um cobertor de neve olhando de volta para ele, como um espelho. Olhou de novo para Kaplan, que manobrava os controles enquanto o avião taxiava. Um trator acabara de limpar a curta pista de asfalto, mas a neve voltava a cobri-la rapidamente. Não havia outros aviões operando, porque oficialmente o aeroporto estava fechado. Todas as pessoas sensatas obedeciam a essa ordem. Atrás deles, Ray Jackson rolou os olhos para cima e agarrou-se no banco ao ver as condições de quase invisibilidade do lado de fora. Ele olhou para um dos membros da equipe de resgate. — Nós somos todos malucos. Você sabe disso, não sabe? Sawyer virou para trás, sorrindo: — Ei. Ray, você sabe que pode ficar aqui. Posso lhe contar como foi divertido quando eu voltar. — Quem diabos iria cuidar de você? Sawyer conseguiu forçar um sorriso sem graça, mas ele também notou como Kaplan estava concentrado nos controles, e como não tirava o olho da neve que caía sem parar. Sawyer deixou escapar o ar dos pulmões, prendeu o cinto de segurança firme e segurou-se no banco com ambas as mãos quando Kaplan empurrou o acelerador. O avião ganhou velocidade rapidamente, não obstante os buracos na pista e o fato de balançar de um lado para o outro. Sawyer fixou os olhos na frente. Os faróis do avião iluminaram um campo de terra que sinalizava o fim da pista; o campo parecia correr de encontro a eles. Enquanto o avião lutava com a neve e o vento, Sawyer virou-se de novo para Kaplan. Os olhos do piloto
vasculhavam a frente do aparelho e depois consultavam rapidamente o painel de instrumentos. Quando Sawyer olhou para a frente de novo, seu estômago foi parar na garganta. Tinham chegado ao fim da pista. Os dois motores do Saab chegaram ao giro máximo, mas a impressão que se tinha era de que não ia ser suficiente. Ray Jackson e todos os membros da equipe de resgate fecharam simultaneamente os olhos. Uma prece silenciosa esca pou dos lábios de Ray quando ele pensou no outro campo de terra onde um avião encerrara sua existência juntamente com todo mundo que estava a bordo. De repente o nariz do avião empinou e o aparelho saiu do chão. Kaplan, sorridente, virou-se para Sawyer, que estava duas vezes mais pálido que um minuto antes. — Está vendo só, eu disse a você que seria fácil. Enquanto ganhavam altura constantemente, Sawyer tocou na manga de Kaplan. — Pode ser que esta pergunta seja um tanto prematura, mas quando chegarmos no Maine teremos um lugar para aterrissar esta coisa? Kaplan fez que sim. — Há um aeroporto regional em Portsmouth, mas fica a diversas horas de Bell Harbor, indo de carro. Isso com bom tempo. Estudei os mapas quando apresentei meu plano de voo. Há um campo de aviação militar abandonado a dez minutos de Bell Harbor. Assegurei-me com a polícia estadual para que tenham transporte à nossa espera. — Você disse "abandonado"? — Ainda dá para usar, Lee. A vantagem é que não tem tráfego aéreo para nos preocupar por causa do tempo. É praticamente uma linha reta até lá. — Você quer dizer que ninguém mais é tão maluco quanto nós? Kaplan sorriu, fazendo uma careta. — De qualquer forma, a desvantagem é que não vamos ter uma torre de comando operando. Estaremos sozinhos, no que diz respeito à manobra aérea, embora eles tenham me garantido que irão acender as luzes que cercam a pista. Tudo bem, já aterrissei sozinho uma porção de vezes. — Num tempo como este? — Ei, há uma primeira vez para tudo. Este avião é sólido como uma rocha e os instrumentos dele são excelentes. Nós vamos nos sair bem. — Se é você quem diz... O avião foi jogando e balançando, agredido pela neve e pelo vento. Um golpe súbito pareceu deter o Saab no ar. Todos a bordo prenderam a respiração ao mesmo tempo quando o avião se sacudiu todo e, de repente, caiu uns cento e cinquenta metros até ser atingido por outra lufada. Aí ele virou de lado, perdendo velocidade e altura de novo. Sawyer olhou pela janela. Tudo que via era branco: neve e nuvens, não era capaz de distinguir uma das outras. Perdera por completo o sentido de direção e a noção de altitude. Por tudo quanto sabia, a terra firme estava a uns dois metros de distância e vindo na direção deles demasiado depressa. Kaplan deu uma olhada para Sawyer. — OK, admito que está meio ruim. Se segurem aí, caras, vou subir uns três mil metros. Esta tempestade está realmente forte mas não se estende por uma faixa tão larga quanto possa
parecer. Vamos ver se consigo dar um jeito de a gente ter um voo mais tranquilo. Os minutos seguintes continuaram mais ou menos na mesma, com o avião sacudindo para cima e para baixo e ocasionalmente para o lado. Finalmente conseguiram furar a coberta de nuvens e emergiram num céu que escurecia rapidamente, mas sem nuvens. Em menos de um minuto o avião estava seguindo uma rota calma e nivelada rumo ao norte. De um campo de pouso particular a sessenta quilômetros a oeste de Washington, D.C., um jato particular tinha levantado voo cerca de vinte minutos antes de Sawyer e seus homens. Voando a cerca de dez mil metros de altitude, e com mais do dobro da velocidade do Saab, chegaria a Bell Harbor na metade do tempo do FBI. Alguns minutos depois das seis horas Sidney e o pai pararam o carro em frente ao correio de Bell Harbor. Bill Patterson entrou e desta vez saiu com um pacote. O Cadillac saiu, disparado. Patterson abriu o pacote e deu uma espiada. Acendeu a luz interna do carro para enxergar melhor. Sidney virou-se para ele. — E então? — É um disquete de computador. Sidney relaxou um pouco e procurou no bolso o papel com a senha. Ficou pálida quando o dedo passou pelo buraco enorme no bolso e, pela primeira vez, notou que o lado de dentro da jaqueta, inclusive o bolso, estava cortado. Parou o carro e procurou freneticamente nos outros bolsos. — Oh, meu Deus! Não acredito! — Ela socou o banco. — Que droga! — O que é que está havendo, Sid? — Seu pai agarrou uma de suas mãos. Ela arriou no banco, a cabeça para trás. — Eu tinha a senha na minha jaqueta. Agora não está mais. Devo ter perdido lá em casa, quando aquele sujeito estava se esforçando para me esfaquear. — Não consegue se lembrar? — É muito grande, papai. Um monte de números. — E ninguém mais tem? Sidney, nervosa, umedeceu os lábios. — Lee Sawyer. — Ela automaticamente verificou o espelho retrovisor quanto engrenou o carro. — Posso tentar ver com ele. — Sawyer. Não é aquele sujeito grandalhão que esteve lá em casa? — Exatamente. — Mas o FBI está procurando você. Não vai poder fazer contato com ele. — Papai, tudo bem. Ele está do nosso lado. Espera aí. — Ela entrou num posto de gasolina e parou perto de uma cabine telefônica. Deixando o pai de sentinela no carro com a espingarda, Sidney discou o número da casa de Sawyer. Enquanto esperava, viu a van branca entrando também no posto. Tinha placas de Rhode Island. Olhou para a van desconfiadamente por um instante e depois a esqueceu por completo quando entrou um carro com dois policiais do estado do Maine. Um deles saltou. Sidney ficou imóvel quando ele olhou na sua direção. Mas ele entrou na lojinha do posto, onde vendiam bebidas e lanches. Sidney rapidamente deu as costas para o patrulheiro que ficara no carro e levantou a gola do casaco. Um minuto mais tarde estava de volta ao carro.
— Deus do céu, pensei que fosse ter um enfarte quando vi a polícia chegar — disse Patterson, ofegante. Sidney engrenou o carro e saiu muito devagar do estacionamento. O policial ainda estava dentro do posto. Ela imaginou que ele estivesse tomando um café. — Conseguiu falar com Sawyer? Sidney sacudiu a cabeça. — Meu Deus, não dá para acreditar. Primeiro eu tinha o disquete, e não tinha senha. Depois arranjei a senha e perdi o disquete. Agora recuperei o disquete e perdi a senha outra vez. Estou enlouquecendo! — Ela puxou os cabelos. — Onde foi que você conseguiu a senha? — Na caixa de correio eletrônica de Jason na America Online. Oh meu Deus! — Ela se sentou direito no banco. — O quê? — Posso acessar a mensagem de novo na caixa de correio de Jason. — Sidney arriou mais uma vez no banco. — Não, eu precisaria de um computador. Um sorriso iluminou o rosto do seu pai. — Temos um. Ela sacudiu a cabeça na direção dele. — O quê? — Eu trouxe meu laptop. Você sabe como Jason me contaminou com a febre por computadores. Passei para ele meu caderno de endereços, carteira de investimentos, jogos. receitas e até mesmo informações médicas. Também me utilizo da AOL. Meu laptop está equipado com um modem. — Papai, você é lindo! — Ela lhe deu um beijo na bochecha. — Só tem um problema. — Qual? — Está na casa de praia com o resto das coisas. Sidney deu um tapa na testa. — Droga! — Bem, vamos lá pegar. Ela sacudiu a cabeça violentamente. — Nada disso, papai. É arriscado demais. — Por quê? Estamos armados até os dentes. Conseguimos nos livrar de quem a estava seguindo. Provavelmente pensam que estamos longe. Só vou precisar de um minuto para apanhá-lo. Depois a gente vai para o motel, liga e consegue a senha. Sidney estava cedendo. — Não sei não, papai. — Olha, não sei quanto a você, mas estou louco para saber o que tem dentro desse troço. — Ele apontou para o pacote. — O que me diz? Sidney olhou para o pacote, mordeu o lábio. Por fim, ligou a seta indicando que ia virar e seguiu de volta para a casa de praia. O jato atravessou a baixa camada de nuvens e aterrissou no campo de pouso particular. Aquela imensa estância de férias no litoral do Maine já fora o refúgio de verão de um dos grandes magnatas do século passado. Hoje em dia ficava aberta para o público endinheirado. Agora em dezembro, tudo estava deserto, a não ser pelas visitas semanais de manutenção realizadas por uma firma local. Uma vez que não havia nada em um raio de
quilômetros, a privacidade que oferecia era um dos seus principais atributos. A menos de trezentos metros de distância da pista o Atlântico se agitava e bramia. Um grupo de pessoas de fisionomia fechada saltou do avião e foi recebido por um carro e transportado para o hotel, localizado a cerca de um minuto. O jato virou-se e taxiou para a extremidade oposta da pista, onde sua porta foi reaberta e outro homem saltou e caminhou rapidamente para o prédio do hotel. Sidney, lutando com o Cadillac, seguia em frente como se estivesse escavando um túnel, pois a estrada — numa prova de que a natureza claramente levava vantagem — continuava coberta de neve, mesmo que os tratores de limpeza já tivessem feito diversas passagens. Até mesmo o Cadillac, que era um carro grande, oscilava e balançava na superfície desigual. Sidney virou-se para o pai. — Papai, não estou gostando disso. Vamos direto para Boston. Podemos estar lá em quatro ou cinco horas. Nós nos reunimos a mamãe e Amy e podemos encontrar outro computador amanhã de manhã. O rosto de Bill Patterson assumiu uma expressão muito obstinada. — Com este tempo? A rodovia provavelmente está fechada. Praticamente todo o estado do Maine fecha a esta época do ano. Já estamos quase lá. Você fica no carro, deixa o motor ligado e eu voltarei antes que consiga contar até dez. — Mas, papai... — Sidney, não tem ninguém. Estamos sozinhos. Eu levo minha espingarda. Acha que alguém ia querer tentar alguma coisa? Espere na rua. Não pegue a entrada da garagem, pois pode ficar atolada na neve. Sidney finalmente desistiu e fez o que lhe era ordenado. Seu pai saltou do carro, abaixou o rosto junto da sua janela, e, com um sorriso no rosto, disse: — Comece a contar até dez. — Corra, papai! Cheia de ansiedade, ela observou o pai atravessar a neve com dificuldade, espingarda à mão. Depois pôs-se a examinar a rua. Ele provavelmente estava certo. Quando deu uma olhada no pacote que continha o disquete, pegou-o e colocou-o dentro da bolsa. Não ia perder de novo. Estremeceu subitamente quando uma luz foi acesa dentro da casa. Conteve a respiração. Seu pai precisava ver por onde andava. Estavam quase conseguindo. Um minuto mais tarde olhou para a casa, para a porta da frente trancada e ouviu passos se aproximando do carro. O pai conseguira andar bem depressa. — Sidney! — Ela virou a cabeça num movimento brusco para cima e viu o pai irromper na varanda do segundo andar. — Fuja! Mesmo ofuscada pela brancura da neve, ela podia ver as mãos que agarraram seu pai, puxando-o violentamente para baixo. Ouviu-o gritar mais uma vez e depois não ouviu mais nada. Faróis a atingiram no rosto. Quando se virou para a frente, a van branca estava quase em cima dela. Devia ter se aproximado com as luzes apagadas. Aí então viu o vulto sombrio perto do Cadillac e percebeu, com horror, que o cano de uma metralhadora começava a subir na direção da sua cabeça. Num único movimento acionou o botão que trancava as quatro portas, engrenou a ré e pisou no acelerador. Quando se
abaixou de lado no banco, uma rajada da metralhadora foi disparada contra a frente do Cadillac pegando a janela do lado do passageiro e despedaçando metade do pára-brisa. A frente do pesado veículo deslizou abruptamente de lado com o súbito arranco, bateu em carne humana e lançou o pistoleiro voando em cima de um monte de neve. As rodas do Cadillac finalmente venceram as camadas de neve, atingiram o asfalto e o carro pulou para trás. Coberta de estilhaços de vidro, Sidney ajeitou-se no banco, tentando recuperar o controle do carro que girava, ao mesmo tempo em que cuidava da van, cada vez mais próxima. Seguiu de ré até alcançar um cruzamento. Trocou de marcha, meteu o pé no acelerador e atravessou o cruzamento com a traseira do carro rabeando. O Cadillac voou, espalhando neve, sal e cascalho na sua esteira. No segundo seguinte estava à toda velocidade; a neve e o vento agora entravam pelas múltiplas aberturas do carro. Consultou o retrovisor. Nada. Por que não a estariam seguindo? Ela própria respondeu a pergunta quando seu cérebro começou a funcionar também. Porque agora tinham ficado com o seu pai.
CAPÍTULO CINQUENTA E SETE — E LÁ VAMOS NÓS, CARAS, SE SEGUREM! — Kaplan cortou a velocidade aerodinâmica, manejou os controles do avião, balançando e se sacudindo, e atravessou de repente a baixa camada de nuvens. Poucos quilômetros adiante uma série de bastões acesos, enterrados no solo duro, assinalavam os limites da pista. Kaplan viu as luzes indicando o caminho da segurança e sorriu, orgulhoso. Puxa vida, eu sou muito bom. O Saab aterrissou mais ou menos um minuto depois, em meio a um turbilhão de neve. Sawyer abriu a porta antes mesmo que o avião parasse. Sorveu largas quantidades de ar gelado e a náusea passou rapidamente. Os membros da equipe de resgate saíram tropeçando, com vários deles indo se sentar na pista coberta de gelo, respirando fundo. Jackson foi o último, recebido por Sawyer já recuperado: — Puxa, Ray, você está parecendo quase branco. Jackson começou a dizer qualquer coisa, apontou um dedo trêmulo para o parceiro mas cobriu a boca com a outra mão e, silenciosamente, acompanhou a equipe de resgate até a viatura que esperava por perto; do lado dela um patrulheiro rodoviário acenava com a lanterna, balizando a posição. Sawyer aproximou-se da porta do Saab. — Obrigado pela carona, George. Você vai ficar por aqui? Não sei quanto tempo isto vai durar. Kaplan não pôde conter o riso. — Você está brincando? Acha que vou perder a oportunidade de levar vocês para casa? Vou esperá-los aqui mesmo neste aeroporto. Sawyer grunhiu qualquer coisa à maneira de resposta, fechou a porta e correu para a viatura. Os outros já estavam lá à sua espera. Quando viu qual era a viatura que ia levá-los, deteve-se e ficou imóvel. Todos olharam para o carro de presos. O patrulheiro rodoviário olhou para eles. — Desculpem, mas foi o que conseguimos arranjar de uma hora para outra com capacidade de carregar oito de vocês. Os agentes do FBI entraram pela porta traseira do camburão. No interior da viatura havia uma janelinha de tela e vidro para a comunicação com a parte da frente. Jackson abriu-a para que o policial pudesse ouvi-lo. — Dá para jogar um pouco do aquecimento aqui para nós? — Desculpe, mas um prisioneiro que estávamos transportando ficou maluco e inutilizou os orifícios de ventilação. Ainda não foram consertados. Encolhido no banco, Sawyer viu que as nuvens da respiração dos homens eram tão densas que parecia que tinha sido acesa uma fogueira. Deixou o rifle no chão e esfregou os dedos. Um golpe de vento gelado que passava por alguma fresta invisível no corpo da carroceria pegou-o bem entre as omoplatas. Sawyer estremeceu. Cristo, pensou, é como se tivessem
ligado o ar-condicionado a toda. Não sentia tanto frio assim desde a investigação das mortes de Brophy e Goldman na garagem. Naquele instante, rememorou também seu outro encontro recente com os efeitos glaciais de um aparelho de ar-condicionado funcionando ao máximo da capacidade — o apartamento onde fora assassinado o homem que abastecera o avião. A expressão do seu rosto foi de total descrença quando ele fez a associação mental. — Oh, meu Deus! Sidney se deu conta de que só havia uma maneira de os homens que raptaram seu pai entrarem em contato com ela. Parou numa loja de conveniência, saltou e correu para o telefone. Discou o número de sua casa na Virgínia. Quando a secretária reproduziu os recados, esforçou-se ao máximo para reconhecer a voz, mas não conseguiu. Deram-lhe um número para ligar, que ela achou que só podia ser de um celular. Respirou fundo e discou. Atenderam prontamente. Era uma voz diferente da que deixara o recado gravado na secretária eletrônica, mas ainda assim não conseguiu reconhecê-la. Deveria seguir por vinte minutos pela Rota 1 e pegar a saída para Port Haven. Em seguida deramlhe instruções detalhadas que a levariam a um trecho isolado de terra entre Port Haven e a cidade de Bath. — Quero falar com meu pai. — O pedido foi negado. — Então não vou. Pelo que sei ele já está morto. Silêncio do outro lado, um silêncio assustador. Ela sentia o coração batendo de encontro à caixa torácica. Soltou o ar que prendera nos pulmões ao ouvir a voz do pai. — Sidney, querida. — Papai, você está bem? — Sid, dá o fora daqui... — Papai? Papai? — Sidney gritou no telefone. Um homem saindo da loja de conveniência carregando um copo de café olhou espantado para ela, deu uma espiada no Cadillac avariado e depois retornou a atenção para Sidney. Ela o encarou, sustentando seu olhar, ao mesmo tempo em que enfiava a mão no bolso onde estava a 9mm. O homem correu na direção da sua picape e foi embora. A voz voltou. Sidney tinha trinta minutos para chegar ao seu destino. — Como posso saber que vão soltá-lo se eu entregar o que vocês querem? — Não pode saber. — O tom de voz não tolerava oposição. A advogada que existia em Sidney, contudo, emergiu. — Não basta. Vocês querem tanto este disquete que vamos ter que chegar a um acordo. — Você só pode estar brincando. Quer o seu velho de volta dentro de um saco plástico? — Quer dizer então que nos encontramos no meio de um lugar isolado, eu entrego o disquete e vocês nos deixam ir embora só porque são bonzinhos? Ótimo! Segundo esta proposta vocês ficam com o disquete e meu pai e eu vamos parar em um ponto qualquer do Atlântico servindo de comida para tubarões. Vão ter que propor coisa muito melhor se querem mesmo o que eu tenho. Embora seu interlocutor tivesse coberto o fone com a mão, Sidney ouviu vozes, duas delas bem furiosas.
— É do nosso jeito ou nada. — Ótimo, estou a caminho da polícia estadual. Não deixem de assistir ao noticiário da noite. Estou certa de que não vão querer perder nada. Adeus. — Espera! Sidney não disse mais nada por um minuto. Quando abriu a boca, falou com muito mais confiança do que na realidade sentia. — Estarei no cruzamento da Chaplain com a Merchant, bem no centro de Bell Harbor, em trinta minutos. Estarei no meu carro. É fácil de reconhecer, é o que está reforçado com um monte de buracos de bala. Vocês piscam os faróis duas vezes. Soltam meu pai. Há um restaurante do outro lado da rua, bem em frente. Eu vejo meu pai entrar lá, abro a porta do carro, coloco o disquete na calçada, acelero e sigo em frente. Por favor, lembrem-se de que estou fortemente armada e mais do que preparada para mandar tantos de vocês quanto puder direto para o inferno. — Como podemos saber que se trata do disquete certo? — Eu quero meu pai de volta. Será o disquete certo. Espero que engasguem com ele. Estamos combinados? — Agora era o tom de voz dela que não permitia oposição. Sidney esperou ansiosamente pela resposta. Por favor, meu Deus, não deixe que eles percebam que estou blefando. Deixou escapar um suspiro de alívio quando finalmente veio a resposta: — Trinta minutos. — O telefone foi desligado. Sidney voltou para o carro e agarrou-se no painel, frustrada. Como diabos a tinham seguido e a seu pai? O tipo da coisa impossível. Era como se os tivessem observado o tempo todo. A van branca também estava no posto de gasolina. O ataque provavelmente teria se dado lá, não fosse a oportuna aparição do carro da polícia estadual. Ela se deitou no banco enquanto se esforçava para controlar os nervos. Afastou a bolsa e depois abriu-a, só para se assegurar de que o disquete ainda estava ali. O disquete em troca do seu pai. Mas uma vez que não mais tivesse o disquete, teria que passar o resto da vida fugindo da polícia. Ou pelo menos até que a prendessem. Que escolha... Na verdade não tinha escolha alguma. Quando se sentou direito novamente, começou a fechar a bolsa. Interrompeu-se logo, os pensamentos voltando para aquela noite, a noite na limusine. Tanta coisa acontecera desde sua fuga. Só que na verdade não tinha sido uma fuga, tinha? O assassino a deixara ir e também deixara, cortesmente, que levasse a bolsa. Na verdade a teria esquecido se ele não a tivesse jogado para ela. Sentira-se tão feliz por sair viva daquela loucura que nunca chegara a meditar seriamente no motivo pelo qual o sujeito fizera uma coisa tão digna de nota... Começou a remexer no conteúdo da bolsa. Levou uns dois minutos, mas finalmente encontrou, bem no fundo. Havia sido colocado por um corte feito no forro. Levantou a mão para enxergar melhor. Um minúsculo dispositivo de rastreamento. Olhou para trás, sentindo um calafrio na espinha. Engrenou o carro de novo e acelerou fundo. Mais à frente, um caminhão de lixo estava parado no meio-fio. Olhou pelo espelho e viu que não havia ninguém por perto. Abaixou o vidro do seu lado e preparou a mão para atirar o dispositivo de rastreamento na parte de trás do caminhão.
Depois, com a mesma presteza, reteve o movimento do braço e fechou o vidro. Segurava ainda o pequeno aparelho. Acelerou ainda mais, deixando o caminhão rapidamente para trás. Olhou para o minúsculo objeto que lhe fizera companhia nos últimos dias. O que tinha a perder? Tomou o destino da cidade. Tinha que chegar ao ponto de encontro o mais cedo possível. Mas primeiro precisava comprar umas coisas na mercearia. O restaurante que Sidney mencionara na conversa telefônica estava cheio de fregueses famintos. A dois quarteirões do ponto de encontro combinado, o Cadillac, luzes apagadas, estava parado ao longo do meio-fio ao lado de um pinheiro imenso em torno do qual havia uma cerca de ferro batido da altura de um bezerro. O interior do Cadillac estava escuro, e a silhueta da pessoa no banco do motorista era quase impossível de se ver. Dois homens caminhavam rapidamente pela calçada, enquanto outros dois, do outro lado da rua, acompanhavam seus movimentos. Um deles examinou um pequeno instrumento que tinha nas mãos; na tela âmbar havia uma grade reticulada. Uma luz vermelha, brilhando intensamente, apontava para o Cadillac. Os homens apertaram o passo. Uma arma foi apontada onde antes era o vidro da porta do lado do carona. No mesmo instante a porta do lado do motorista foi escancarada. Os pistoleiros olharam espantados para o motorista: um esfregão com uma jaqueta por cima e um boné de beisebol empoleirado no topo. A van branca estava parada no cruzamento da Chaplain com a Merchant, motor ligado. O motorista verificou as horas, vasculhou a rua com o olhar e acendeu os faróis por duas vezes. Na parte de trás da van, Bill Patterson estava deitado no chão, pés e mãos amarrados firmemente e a boca tapada com fita adesiva. O motorista virou a cabeça num movimento brusco quando a porta do lado do carona foi aberta e uma pistola 9mm apontada para a sua cabeça. Sidney entrou e deu uma rápida olhada para se assegurar de que o pai estava bem. Já o tinha visto pela janela de trás quando localizara a van um minuto antes. Acertara ao imaginar que eles estariam preparados para realmente devolver seu pai. — Ponha a arma no chão do carro. Segure pelo cano. Se seus dedos chegarem perto do gatilho, eu esvazio todo o pente na sua cabeça. Vamos ! O motorista fez rapidamente o que foi mandado. — Agora dá o fora! — O quê? Ela empurrou o cano da pistola no pescoço do motorista, bem em cima de uma veia que latejava, o que deve ter doído bastante. — Fora! Quando ele abriu a porta e virou as costas para ela, Sidney levantou as pernas por cima do banco, encolheu-as e o empurrou para fora com toda a força. O homem se esparramou no pavimento. Ela fechou a porta, passou para o lugar do motorista e afundou o pé no acelerador. Os pneus pintaram a neve de preto e a van saiu como um foguete. Dez minutos depois de terem saído da cidade, Sidney parou, pulou para a parte de trás e desamarrou o pai. Os dois ficaram sentados por alguns minutos se abraçando, trêmulos de medo e alívio. — Precisamos arranjar outro carro. Eu não os consideraria incapazes de grampear este aqui.
E de qualquer modo a van será procurada — disse Sidney quando pegara a estrada de novo. — Há uma locadora a cerca de cinco minutos de distância. Mas por que você não vai simplesmente procurar a polícia, Sid? — Seu pai esfregou os pulsos. Os olhos inchados e os nós dos dedos machucados denotavam a resistência que o velho oferecera. Ela respirou fundo e olhou para ele. — Papai, eu não sei o que está no disquete. Se não for o suficiente... Seu pai fitou-a, percebendo aos poucos que afinal ainda podia perder sua filhinha. — Será suficiente, Sidney. Se Jason teve tanto trabalho para enviá-lo para você, tem que ser suficiente. Ela sorriu mas em seguida a expressão do seu rosto tornou-se sombria. — Vamos ter que nos separar, papai. — Não há como eu me separar de você agora. — O fato de estar comigo o transforma em cúmplice. Eu lhe digo uma coisa: nós dois não vamos juntos para a cadeia. — Não ligo a mínima. — OK, mas o que é que me diz da mamãe? O que aconteceria a mamãe? E Amy? Quem iria olhar por elas? Patterson começou a dizer qualquer coisa mas interrompeu-se. Com a testa franzida, olhou pela janela. Finalmente encarou a filha. — Vamos a Boston juntos e lá a gente conversa. Se você ainda quiser se separar de mim, tudo bem. Enquanto Sidney ficava sentada na van, Patterson entrou para alugar o carro. Voltou poucos minutos depois e a filha abaixou o vidro. — Conseguiu alugar? — perguntou ela. Patterson fez que sim. — Vão entregar em cinco minutos. Aluguei um carro espaçoso, quatro portas. Você vai poder dormir no banco de trás, eu dirijo. — Você é um amor, papai. — Sidney abaixou o vidro, acelerou e saiu. O pai, espantado, ainda correu atrás, mas em um instante ela desaparecia. — Cristo! — Sawyer deu uma espiada pela janela para confirmar a visibilidade quase nenhuma. — Não podemos ir mais depressa? — ele gritou através da janela para o policial. Já tinham visto a devastação na casa de praia dos Patterson e agora procuravam desesperadamente por Sidney Archer e sua família. O patrulheiro gritou de volta: — Se andarmos mais depressa, vamos terminar encontrando a morte numa vala. Morte. Será que Sidney Archer tinha encontrado a morte? Sawyer consultou o relógio. Enfiou a mão no bolso atrás de um cigarro. Jackson estava de olho nele. — Que droga, Lee, não vai querer fumar aqui dentro. Já quase não está dando para respirar
sem cigarro aceso. Sawyer ficou boquiaberto quando apalpou o objeto que tinha no bolso, e foi bem lentamente, que o retirou. Era um cartão. Ao sair da cidade, Sidney tomou a decisão de conter suas emoções e deixar-se levar por hábitos antigos. Por um período de tempo que parecia interminável, vinha meramente reagindo a uma série de crises, sem oportunidade para analisar os fatos. Era advogada de profissão, ensinada a ver os fatos logicamente, inteirar-se dos detalhes e depois inseri-los no quadro geral. Sem dúvida nenhuma que dispunha de um bom número de informações. Jason trabalhara nos registros da Triton visando a transação com a CyberCom. Isto ela sabia. Jason desaparecera em circunstâncias misteriosas e lhe enviara um disquete contendo informações. Isto também era um fato. Jason não estava vendendo segredos para a RTG, não com Brophy por perto. O que também era bastante claro para ela. E depois havia os registros financeiros. Tudo indicava que a Triton simplesmente os entregara. Por que então a grande cena na reunião de Nova York? Por que Gamble fizera questão de falar com Jason sobre o trabalho deste nos registros, particularmente depois de ter enviado uma mensagem eletrônica congratulando Jason pelo trabalho bem-feito? Por que exigir que Jason se comunicasse pelo telefone? Por que colocá-la numa situação difícil daquelas? Ela reduziu a marcha e parou no acostamento. A menos que a intenção fosse exatamente colocá-la numa situação difícil. Fazer parecer que mentira. Passara a ser alvo de suspeitas a partir daquele momento. O que exatamente havia naqueles registros que apareciam na cena gravada no armazém? O que havia no disquete? Alguma coisa que Jason descobrira? Na noite em que a limusine de Gamble a levara à propriedade dele, era óbvio que ele queria algumas respostas. Será possível que estivesse tentando descobrir se Jason lhe contara algo? A Triton Global era cliente da Tyler e Stone há muitos anos. Uma empresa poderosa e de grande porte, com uma história muito sigilosa. Mas como isto se vinculava ao resto? As mortes dos irmãos Page. Triton vencendo a RTG na disputa pelo controle da CyberCom. Quando Sidney pensou mais uma vez naquele dia horrível em Nova York, teve uma espécie de estalo. Ironicamente, veio-lhe à cabeça a mesma ideia de Lee Sawyer, por um motivo diferente: uma encenação. Meu Deus! Tinha que entrar em contato com Sawyer. Engrenou a van e voltou para a estrada. Uma campainha aguda interrompeu seus pensamentos. Procurou no interior do veículo a fonte do barulho até que seus olhos deram com o telefone celular preso a uma placa magnetizada na parte inferior do painel. Não notara que estava ali até aquele momento. Estava tocando? Sua mão adiantou-se instintivamente, mas ela recuou. Até que por fim atendeu. — Sim? — Achei que você não estava de armação. — A voz estava furiosa. — Exato. Mas você se esqueceu de mencionar que tinha posto um grampo na minha bolsa e só estava esperando para me pegar. — Tudo bem, vamos então falar do futuro. Queremos o disquete e você vai trazê-lo para
nós. Agora! — O que vou fazer é desligar. Agora! — Se eu fosse você, não desligava. — Olha, se vocês estão querendo me prender no telefone para conseguir rastrear minha localização, não vai colar. — A voz de Sidney interrompeu-se e ela teve a impressão de que todo seu corpo se transformava em geléia ao ouvir a voz infantil do outro lado da linha. — Mamãe? Mamãe? A voz embargada, Sidney não conseguiu responder. Tirou o pé do acelerador; seus braços não tinham mais força para dirigir a van. O veículo foi parar no meio de um monte de neve no acostamento. — Mamãe? Papai? Vocês vêm? — A vozinha parecia amedrontada, sofrida. Sentindo-se subitamente nauseada, o corpo todo tremendo sem controle, Sidney conseguiu falar: — AA-my. Neném. — Mamãe? — Neném, é a mamãe. Estou aqui. — Uma avalanche de lágrimas escorreu pelo rosto de Sidney. Sidney ouviu o telefone sendo tirado da menina. — Dez minutos. Aqui está a orientação. — Deixa eu falar com ela de novo. Por favor! — Você tem agora nove minutos e cinquenta e cinco segundos. Um súbito pensamento ocorreu a Sidney. E se fosse uma fita? — Como posso saber que era ela mesmo? Que não era uma gravação? — Ótimo. Se quiser se arriscar, não venha. — A voz era cheia de confiança. Não havia nada na face da terra que fizesse Sidney correr aquele risco. A pessoa do outro lado da linha sabia disto também. — Se a machucarem... — Não estamos interessados na menina. Ela não é capaz de nos identificar. Depois que terminar, nós a deixaremos num lugar seguro. — Ele fez uma pausa. — A senhora, no entanto, não a acompanhará, Sra. Archer. A senhora não dispõe mais de lugares seguros. — Soltem Amy. Por favor, soltem minha filha. Ela não passa de um bebê. — Sidney tremia tanto que mal conseguia conservar o telefone junto à boca. — É melhor anotar as instruções que vou lhe dar. Não vai querer se perder. Se não aparecer, o que sobrar de sua filha não será suficiente para identificá-la. — Eu vou — disse ela, num fio de voz e a ligação foi cortada. Voltou para a estrada. De repente se lembrou — e a mãe? Onde estava sua mãe? Agarrando com força o volante, a impressão que tinha era de que seu sangue parecia estar acumulando em suas veias. Outro toque de campainha invadiu o interior da van. Com a mão trêmula, Sidney pegou o telefone, mas estava mudo. Na verdade, o toque era diferente. Saiu da estrada de novo e procurou desesperadamente por toda a parte. Seus olhos finalmente detiveram-se no banco ao seu lado onde se encontrava a bolsa. Devagar, colocou a mão dentro da bolsa e tirou o aparelho. Estava escrito na telinha do pager um número de telefone que ela não reconheceu. Desligou a campainha do pager. Provavelmente era engano. Não dava nem para imaginar que fosse alguém da firma ou um cliente tentando falar com ela. Já ia apagar a mensagem quando interrompeu-se. Seria Jason? Se fosse ele, aquela ligação podia ser classificada como a mais inoportuna da história do mundo. Seu dedo parou em cima do
botão destinado a apagar mensagens. Finalmente colocou o pager no colo, pegou o celular e discou o número que aparecia na tela do pager. Ao ouvir a voz que atendeu, não conseguiu respirar. Aparentemente, acontecem milagres. A casa principal do hotel estava escura e seu isolamento era reforçado ainda mais pelo paredão de imponentes pinheiros diante dela. Quando a van virou na longa entrada de carros, apareceram dois guardas armados para ir ao seu encontro. A nevasca diminuíra consideravelmente nos últimos minutos. Atrás da casa, sinistras, as águas do Atlântico atacavam a terra. Um dos guardas pulou para trás quando a van não deu qualquer sinal de que fosse parar. "Porra!" ele gritou, e ambos os homens pularam para salvar a pele. A van passou zunindo por eles, espatifou a porta principal e parou abruptamente, as rodas ainda girando, ao bater numa parede interna com mais de um metro de largura. Um minuto depois diversos homens fortemente armados cercaram o veículo e, com dificuldade, abriram a porta danificada pelo impacto. Não havia ninguém. Os olhos dos homens se detiveram no receptáculo onde o telefone celular ficava normalmente. O aparelho estava completamente enfiado sob o banco e o fio praticamente invisível sob a precária iluminação do teto da van. Acreditaram que o telefone provavelmente teria sido desalojado com o impacto, nem chegando a pensar que fora deliberadamente colocado ali. Sidney entrou na casa pelos fundos. Quando o homem lhe dera as instruções para chegar ao lugar onde deveria efetuar a entrega do disquete, ela reconhecera prontamente do que se tratava. Hospedara-se com Jason naquele hotel diversas vezes e conhecia bem o local. Tomara um atalho e chegara na metade do tempo que os raptores da filha tinham lhe dado. Usara o precioso tempo extra para prender o volante e o acelerador com a corda que encontrou na parte de trás da própria van. Empunhava a pistola, o dedo repousando levemente no gatilho, ao penetrar nos aposentos escuros do hotel. Tinha noventa por cento de certeza de que Amy não se encontrava ali. Os dez por cento de dúvida a levaram a usar a van para distrair a atenção dos bandidos permitindo que tentasse o resgate, mesmo que improvável, da filha. Não tinha a ilusão de achar que aqueles homens fossem soltá-la. Bem mais adiante ouviu o som de vozes exaltadas e de gente correndo na frente da casa. Inclinou a cabeça para a esquerda quando ouviu passos ecoando no corredor. Esta pessoa não corria; seu caminhar era lento e metódico. Encolheu-se nas sombras e esperou que a pessoa passasse. Assim que isto aconteceu, pressionou-lhe o pescoço com a boca da arma. — Qualquer barulho e será um homem morto — disse, com fria determinação. — Mãos acima da cabeça. Seu prisioneiro obedeceu. Era alto, ombros largos. Sidney o revistou e encontrou sua arma em um coldre no ombro. Enfiou a pistola dele no bolso da jaqueta e obrigou-o a seguir adiante. O salão à frente estava bem iluminado. Sidney não ouvia nenhum barulho, mas não achou que aquele silêncio fosse demorar muito tempo. Logo descobririam a sua trama, se já não tivessem descoberto. Empurrou o homem para fora da luz, forçando-o a seguir por
um corredor às escuras. Chegaram diante de uma porta. — Abra e entre — ordenou ela. Ele abriu a porta e ela o empurrou para dentro. Passou uma das mãos na parede até achar o interruptor. Quando a luz foi acesa, Sidney fechou a porta e encarou o homem. Richard Lucas a encarou também. — Você não parece surpresa — disse Lucas, a voz controlada e calma. — Digamos apenas que nada mais me surpreende — replicou Sidney. — Sente-se. — Ela apontou com a pistola para uma cadeira de espaldar reto. — Onde estão os outros? Lucas deu de ombros. — Aqui, ali, em toda a parte. Há muita gente, Sidney. — Onde está minha filha? E minha mãe? — Lucas se conservou em silêncio. Sidney empunhou a arma com as duas mãos e a apontou diretamente para o seu peito. — Não estou brincando com você. Onde estão elas? — Quando eu era agente da CIA, fui capturado e torturado pela KGB por dois meses antes de fugir. Nunca disse nada a eles, e não vou dizer agora — retrucou Lucas calmamente. — E se você está pensando que vai me usar para me trocar por sua filha, pode ir esquecendo. Assim sendo, é bem melhor puxar logo o gatilho, Sidney. O dedo de Sidney tremeu no gatilho enquanto ela e Lucas se encaravam. Por fim praguejou baixinho e abaixou a arma. Um sorriso apareceu nos lábios de Lucas. Sidney pensou rapidamente. Está bem, seu filho da mãe. — Que cor era o chapéu que minha filha estava usando, Rich? Se você está com ela, tem que saber disso. O sorriso desapareceu dos lábios de Lucas. Ele parou um segundo antes de responder. — Mais ou menos bege. — Boa resposta. Neutra, pode servir para uma série de cores. — Ela fez uma pausa, sentindo-se invadir por uma enorme onda de alívio. — Só que Amy não estava de chapéu. Lucas preparou-se para saltar da cadeira mas Sidney, um segundo mais rápida, bateu com a pistola na sua cabeça. Lucas arriou, inconsciente. Ela adiantou-se um pouco, olhou para o vulto ali prostrado e disse: — Você é um idiota, Richard Lucas. Sidney saiu e esgueirou-se pelo corredor. Da direção por onde entrara na casa, ouviu o barulho de homens se aproximando. Mudou de rumo e mais uma vez seguiu na direção do cômodo iluminado que vira antes. Deu uma espiada protegida pelo canto da parede. A luz era suficiente para consultar o relógio. Fez uma prece silenciosa e entrou, abaixada, escondida atrás de um sofá comprido de madeira entalhada. Olhou em torno. Tinha diante de si uma parede de portas de vidro que dava para o mar. Era um salão amplo, com um pédireito de pelo menos seis metros. Um mezanino atravessava de um lado a outro uma das paredes. Outra parede exibia uma coleção de livros finamente encadernados. Poltronas confortáveis tinham sido espalhadas por toda a extensão da sala.
Sidney se encolheu quando um grupo de homens, todos vestindo uniformes pretos, entrou no salão por uma outra porta. Um deles berrava coisas num rádio. Ao ouvir o que diziam, percebeu que estavam cientes de sua presença. Encontrá-la seria apenas uma questão de tempo. Com o coração acelerado, esgueirou-se para fora do salão, mantendo-se escondida atrás do sofá. Uma vez no corredor, caminhou rapidamente de volta para o aposento onde deixara Lucas, com a intenção de usá-lo como refém. Podia ser que não se incomodassem em matar Lucas para pegá-la, mas por ora era a única opção que tinha. Seu plano esbarrou num problema sério quando descobriu que Lucas não estava mais lá. Ela o golpeara com muita força e, por um segundo, maravilhou-se com a sua capacidade de recuperação. Tudo indicava que ele não mentira quando falara da tortura que aguentara na KGB. Saiu correndo e tomou a direção da porta que usara para entrar na casa. Lucas com toda a certeza daria o alarme. Provavelmente ela só dispunha de alguns segundos para fugir. Estava a poucos metros da porta quando ouviu: — Mamãe, mamãe. Sidney girou nos calcanhares. O chorinho de Amy continuou, vindo do fundo do corredor. — Oh, meu Deus! — Sidney virou-se e correu para a direção de onde vinha o som. — Amy? Amy! — As portas do salão grande onde estivera antes estavam fechadas. Empurrou-as com força e irrompeu dentro do salão, ofegante, os olhos procurando a filha. Nathan Gamble a encarou, tendo às suas costas a figura de Richard Lucas, muito sério, com um lado do rosto bastante inchado. Sidney foi rapidamente desarmada e contida pelos homens de Gamble. O disquete foi retirado de sua bolsa e entregue a Gamble. Gamble levantou um aparelho sofisticado de gravação e a voz de Amy foi ouvida de novo: — Mamãe? Mamãe? — Assim que eu soube que seu marido estava querendo me pegar — explicou Gamble — mandei encher sua casa de grampos eletrônicos. Consegue-se muita coisa boa desse jeito. — Seu filho da puta! — Sidney olhou furiosa para ele. — Eu sabia que era um truque. — Você devia confiar no seu primeiro instinto, Sidney. É o que eu sempre faço. — Gamble desligou o gravador e encaminhou-se para uma mesa encostada na parede. Pela primeira vez Sidney notou que em cima dela havia um laptop. Gamble pegou o disquete e o inseriu no laptop. Em seguida pegou um pedaço de papel no bolso e olhou para ela. — Um toque genial, este do seu marido na senha. Tudo de trás para a frente. Você é inteligente, mas aposto como não percebeu essa, percebeu? — Seu rosto ficou todo enrugado quando ele tirou os olhos do papel e dirigiu-os para Sidney. — Eu sempre soube que Jason era um cara inteligente. Usando um dedo só, Gamble digitou diversas teclas e estudou a tela. Fez tudo isso ao mesmo tempo em que acendeu um charuto. Satisfeito com o conteúdo do disquete, recostou-se, cruzou os braços sobre o peito e balançou o charuto para derrubar sua cinza no chão. Ela conservou os olhos fixos nele. — A família toda é inteligente. Sei de tudo, Gamble.
— Acho que você não sabe merda nenhuma — replicou ele calmamente. — O que é que você me diz dos bilhões de dólares que ganhou tirando vantagem das alterações nas taxas de juros dos fundos da Reserva Federal? Os mesmos bilhões de que se valeu para erguer a Triton Global. — Interessante. E como foi que eu fiz isso? — Você sabia quais eram as respostas antes que as provas fossem distribuídas. Chantageou Arthur Lieberman. O poderoso empresário na verdade nunca foi capaz de ganhar um centavo sem trapacear. — Ela praticamente cuspiu as últimas palavras. Gamble dirigiu-lhe um olhar ameaçador. — Depois Lieberman ameaçou denunciá-lo e o avião dele caiu. Gamble levantou e encaminhou-se lentamente na direção de Sidney. Tinha a mão crispada de ódio. — Ganhei bilhões sozinho. Depois, alguns concorrentes invejosos subornaram alguns dos meus traders para me derrubar secretamente. Não pude provar nada, mas eles terminaram com excelentes empregos em outras empresas e eu perdi tudo o que tinha. Você acha que isso foi justo? — Ele parou de andar e respirou fundo. — Mas você tem razão. Eu me aproveitei da vidinha secreta de Lieberman. Raspei todo o dinheiro que pude para instalar meu agente secreto numa vida de luxo e aguardei o desenrolar dos acontecimentos. Mas não foi tão simples assim. — Seus lábios se torceram num sorriso perverso. — Esperei até que as pessoas que tinham me sacaneado fizessem seus investimentos com base nas taxas de juros e tomava a posição oposta, dizendo a Lieberman como ele deveria fazer as alterações. Quando terminou, eu estava de novo no topo e os caras não tinham um puto de um centavo. Tudo limpo e bem-feito, sem força bruta. O rosto de Gamble chegou a brilhar quando relembrou seu triunfo pessoal. — As pessoas me prejudicam, eu vou à forra. Com força redobrada. Como no caso do Lieberman. Um cara legal como eu, paguei ao filho da mãe mais de cem milhões para fazer aquele negócio com as taxas de juros. Como demonstrou sua gratidão? Tentando me derrubar. A culpa foi minha se ele teve câncer? Pensou que podia me passar a perna, o grande gênio das finanças! Pensou que eu não sabia que estava morrendo. Quando faço negócio com uma pessoa, descubro tudo o que há para descobrir sobre essa pessoa. Tudo! — O rosto de Gamble ficou congestionado por um instante e depois se abriu num sorriso hipócrita. — A única coisa que lamento é não ter uma foto da cara dele quando o avião caiu. — Não sabia que você tinha apelado para o genocídio, Nathan. Homens, mulheres, crianças. Gamble pareceu subitamente perturbado e deu uma baforada nervosa no charuto. — Você pensa que eu queria aquilo? Meu negócio é ganhar dinheiro, e não matar gente. Se eu tivesse podido optar por outra saída, claro que teria optado. Eu estava com dois problemas: Lieberman e o seu marido. Os dois sabiam a verdade, de modo que eu tinha que me livrar de ambos. O avião era a única maneira de ligá-los: matar Lieberman e culpar seu
marido. Se eu pudesse ter comprado todos os lugares do avião menos o de Lieberman, eu o teria feito. — Ele fez uma pausa e olhou para ela. — Se isso a faz sentir-se melhor, minha fundação de caridade já doou dez milhões de dólares às famílias das vítimas. — Maravilha, você marca pontos de relações-públicas com o seu trabalho sujo. Acha que dinheiro é a resposta para tudo? Gamble soprou a fumaça. — Você ficaria surpresa em saber a frequência com que é. E o fato é que eu não tinha que fazer nada por aquela gente. É como eu disse a seu amigo Wharton: quando me vingo de alguém que me sacaneou, não me importo com quem está no caminho. Uma pena. O rosto de Sidney endureceu de repente. — Como Jason? Onde ele está? Onde está meu marido, seu filho da mãe? — ela gritou, completamente furiosa e descontrolada. Teria se lançado sobre Gamble se os homens dele não a tivessem segurado. Gamble aproximou-se e parou diretamente em frente a ela. Deu-lhe um forte tapa no queixo. Sidney recuperou-se rapidamente, levantou o braço livre e meteu as unhas na cara dele. Chocado, ele recuou, segurando a pele arranhada. "Maldita!" gritou. Gamble pressionou o lenço contra o rosto, fuzilando-a com o olhar. Sidney sustentou seu olhar, o corpo tremendo de raiva, a maior raiva que sentira em toda a sua vida. Gamble finalmente fez um gesto para Lucas. Lucas saiu por um momento e quando voltou, não estava mais sozinho. Sidney instintivamente recuou quando Kenneth Scales entrou. Ele lhe dirigiu um olhar de intenso ódio. Ela olhou para Gamble, que baixou a cabeça enquanto guardava o lenço e passava cuidadosamente a mão no rosto. — Acho que eu mereci isso. Sabe, eu não tinha intenção de matá-la, mas acontece que você não podia fingir que não sabia de nada, não é mesmo? — Ele passou a mão pelo cabelo. — Não se preocupe, vou destinar um donativo vultoso para a sua filha. Você devia ser grata por eu pensar em tudo. — Ele acenou para que Scales se adiantasse. Sidney gritou com Gamble. — Ah, é? Você acha que assim como eu fui capaz de imaginar o que aconteceu. Sawyer também não poderá fazer o mesmo? — Gamble fitou-a inexpressivamente. — Como o fato de você ter chantageado Arthur Lieberman fazendo com que se envolvesse com Steven Page. Mas justo quando Lieberman ia concorrer à presidência do banco da Reserva, Page contraiu HIV e ameaçou revelar tudo. O que foi que você fez? O mesmo que fez com Lieberman. Mandou que matassem Page. A resposta de Gamble a deixou atônita. — Por que diabos iria eu matá-lo? Ele trabalhava para mim! — Ele está dizendo a verdade, Sidney. — Ela virou a cabeça bruscamente e olhou espantada para quem pronunciara aquelas palavras. Quentin Rowe entrou na sala. Gamble também arregalou os olhos para o recém-chegado. — Como diabos você veio para cá? Rowe mal se dignou a fitar Nathan Gamble.
— Acho que você se esqueceu de que tenho acomodações próprias no jato da empresa. Além do mais, gosto de acompanhar os projetos até que realmente terminem. — Ela está falando a verdade? Você mandou matar seu amante? Rowe fitou-o calmamente. — Não é da sua conta. — É a minha empresa. Tudo é da minha conta. — Sua empresa? Acho que não. Agora que temos a CyberCom, não preciso de você. Meu pesadelo finalmente terminou. O rosto de Gamble ficou vermelho. Fez um gesto na direção de Richard Lucas. — Acho que precisamos ensinar esse panaca a ter respeito pelos seus superiores. Richard Lucas sacou a arma. Gamble sacudiu a cabeça. — Basta dar uma prensa no idiota — disse, os olhos brilhando maliciosamente. O brilho desapareceu prontamente quando Lucas apontou a arma na sua direção. O charuto caiu da boca do chefão da Triton. — Que diabos. Seu filho da puta traidor... — Cala a boca! — berrou Lucas. — Cala a boca senão estouro seus miolos aqui mesmo e agora. Juro por Deus que estouro. — O olhar penetrante de Lucas fez com que Gamble rapidamente fechasse a boca. — Por quê, Quentin? — As palavras flutuaram suavemente pela sala. — Por quê? Rowe virou-se para dar de cara com os olhos curiosos de Sidney. Ele respirou fundo. — Quando comprou a minha empresa, Gamble preparou a documentação legal de um jeito tal que passou a controlar tecnicamente minhas ideias, tudo. Em essência, passou a ser meu proprietário. — Por um momento ele se voltou, com náusea mal disfarçada, para o agora dócil Gamble. Depois dirigiu-se de novo para Sidney, lendo seus pensamentos. — A dupla mais estranha deste mundo, eu sei. Ele se sentou à mesa, diante do computador. Fixou os olhos na tela enquanto continuava falando. A proximidade de uma peça de equipamento de alta tecnologia pareceu acalmar Quentin Rowe. — Mas depois Gamble perdeu todo o dinheiro. Minha empresa não tinha mais futuro. Implorei que me deixasse desfazer o negócio, mas ele disse que não e que me arrastaria aos tribunais por anos a fio. Fiquei paralisado. Aí então Steven conheceu Lieberman e a trama foi planejada. — Mas você mandou matar Page. Por quê? Rowe não respondeu. — Você tentou descobrir quem o contaminou com o vírus? Rowe não respondeu. As lágrimas caíram em cima do lap— top. — Quentin? — Fui eu que o contaminei. Fui eu! — Rowe levantou de um pulo, cambaleou e arriou de novo. Foi numa voz dolorida que continuou. — Quando Steven me disse que o resultado do seu teste fora positivo, eu não pude acreditar. Sempre fui fiel a ele e ele jurou o mesmo para mim. Pensamos que pudesse ter sido Lieberman. Conseguimos uma cópia
dos exames médicos dele, nada. Submeti-me então ao exame. — Os lábios dele começaram a tremer. — E foi quando me disseram que eu era soropositivo. A única coisa em que pude pensar foi numa maldita transfusão de sangue que recebi quando sofri um sério acidente de automóvel. Verifiquei com o hospital e descobri que diversos outros pacientes submetidos à cirurgia na mesma época também haviam contraído o vírus. Contei tudo a Steven. Eu me preocupava tanto com ele... Nunca me senti tão culpado em toda a minha vida. Achei que ele ia compreender. — Rowe respirou fundo. — Só que não compreendeu. — Ameaçou denunciar você? — perguntou Sidney. Tínhamos ido longe demais, trabalhado duro. Steven não estava pensando com clareza, ele... — Rowe sacudiu a cabeça mergulhado em profunda depressão. — Ele foi ao meu apartamento uma noite. Estava bêbado. Disse o que ia fazer, que denunciaria tudo sobre Lieberman. O esquema da chantagem. Todos nós iríamos para a cadeia. Eu disse que ele fizesse o que achava que era certo. Rowe fez uma pausa, a voz trêmula. — Com frequência eu aplicava nele suas doses diárias de insulina, de modo que eu mantinha um suprimento de insulina em casa. Ele vivia se esquecendo. — Rowe olhou para as lágrimas que caíam sobre suas mãos. — Steven desmaiou no sofá. Enquanto dormia, dei-lhe uma overdose de insulina. Depois o acordei e o coloquei num táxi de volta para a sua casa. Mais uma pausa e Rowe acrescentou, falando baixinho: — Ele morreu. Nós mantivemos em segredo o nosso relacionamento desde os tempos da universidade. A polícia sequer chegou a me interrogar. Rowe olhou para Sidney. — Você entende, não? Tive que fazer aquilo. Meus sonhos, minha visão do futuro. — A voz dele era quase de súplica. Sidney não respondeu. Finalmente Rowe se levantou e enxugou as lágrimas. — A CyberCom era a última peça de que eu precisava. Mas tudo na vida tem um preço. Com tantos segredos em comum, Gamble e eu estávamos amarrados para o resto da vida. — Rowe fez uma careta e sorriu subitamente quando olhou para Gamble. — Por sorte, vou sobreviver a ele. — Seu filho da puta traidor! — Gamble esforçou-se ao máximo para agredir Rowe, mas Lucas o conteve. — Só que Jason descobriu tudo quando foi trabalhar com os registros guardados no depósito, não foi? — perguntou Sidney. Rowe explodiu de novo e dirigiu-se a Gamble. — Seu idiota! Você nunca respeitou a tecnologia e a culpa foi sua. Você nunca percebeu que os e-mails secretos que enviou para o Lieberman podiam ser recuperados na fita da cópia de segurança mesmo que tivessem sido deletados. Mas você tinha um problema de retenção anal tão grande em relação a dinheiro que teve que guardar os livros documentando os lucros obtidos com as alterações nas taxas de juros ordenadas por Lieberman. Assim também como os prejuízos dos seus inimigos. Tudo lá, enterrado no
depósito. Seu idiota! — exclamou Rowe de novo, voltando a dirigir-se para Sidney. — Eu nunca desejei que nada disso acontecesse, por favor, acredite em mim. — Quentin, se você cooperar com a polícia — começou Sidney. Rowe explodiu numa risada e as esperanças de Sidney desvaneceram-se por completo. Ele aproximou-se do laptop e extraiu o disquete. — Eu sou agora o chefe da Triton Global. Acabo de adquirir o que me faltava para me capacitar a preparar um futuro melhor para todos nós. Não tenciono realizar o meu sonho de dentro de uma cela de prisão. — Quentin... — Ela ficou imóvel quando ele se virou para Kenneth Scales. — Quero que seja rápido. Ela não deve sofrer, e estou falando sério. — Ele acenou com a cabeça na direção de Gamble. -Corpos jogados no mar, tão longe quanto for possível. Um desaparecimento misterioso. Dentro de seis meses ninguém mais se lembrará de que você existiu — ele disse para Gamble. Os olhos de Rowe brilharam só de imaginar. Gamble foi levado embora vagarosamente, lutando com toda a força e praguejando. — Quentin! — gritou Sidney quando Scales se aproximou. Quentin Rowe não se virou. — Quentin, por favor! — Finalmente ele olhou para ela. -Sidney, sinto muito. Sinceramente, eu sinto muito. — Segurando o disquete, ele começou a sair. Quando passou, deu uma palmadinha carinhosa no ombro dela. Com o coração e a mente amortecidos, a cabeça de Sidney pendeu sobre o peito. Quando se esticou de novo, os olhos azuis e gélidos pareciam flutuar, aproximando-se dela, o rosto completamente despido de emoção. Sidney olhou em torno. Todos no salão observavam atentamente o metódico avanço de Scales. esperando para ver como ele a mataria. Sidney cerrou os dentes e recuou até esbarrar na parede. Fechou os olhos e fez o melhor que pôde para fixar a imagem da filha na sua mente. Amy estava em segurança. Seus pais também. Nas atuais circunstâncias aquilo era, sem dúvida nenhuma, o melhor que podia fazer. Adeus, querida. Mamãe ama você. As lágrimas rolavam pelo seu rosto. Por favor, não me esqueça, Amy. Por favor. Scales levantou o punhal e foi com um sorriso no rosto que olhou para a lâmina reluzente. A luz refletida no metal o tingiu de um tom de vermelho extremamente desagradável, uma cor que exibira muitas vezes no passado. O sorriso de Scales, no entanto, desvaneceuse quando ele olhou para a fonte daquela luz colorida e viu um minúsculo ponto de laser vermelho no seu peito, e o raio praticamente invisível, da grossura de um lápis, que dele emanava. Scales recuou e seus olhos espantados fixaram-se então em Lee Sawyer, que apontava diretamente contra ele o fuzil de assalto dotado de mira a laser. Desorientados, os bandidos observaram o arsenal apontado contra eles por Sawyer, Jackson, a equipe de resgate de reféns do FBI e um contingente da polícia estadual do Maine. — Abaixem as armas, cavalheiros. Ou vão começar a procurar seus miolos no chão — berrou Sawyer, empunhando com mais força sua arma. — Agora! — Sawyer deu mais
alguns passos para dentro da sala, o dedo sobre o gatilho. Os homens começaram a colocar as armas no chão. Com o canto do olho, ele viu Quentin Rowe tentando desaparecer discretamente. Sawyer balançou a arma na direção do homem dos computadores. — Nem pensar, Sr. Rowe, nem pensar. Senta aí! Um Quentin Rowe totalmente apavorado sentou numa cadeira, o disquete grudado no peito. Sawyer olhou para Ray Jackson. — Vamos dar início aos trabalhos — disse, encaminhando-se para junto de Sidney. Neste exato momento soou um tiro e um dos agentes do FBI caiu. Irrompeu então um tiroteio quando os homens de Rowe aproveitaram a oportunidade para pegar de novo as armas e responder ao fogo. Os clarões letais produzidos pelas bocas dos canos das armas se sucediam por toda a parte, vindos de mais de uma dúzia de pontos. Foram precisos apenas alguns segundos para todas as lâmpadas da sala serem apagadas à bala por homens de ambos os lados, fazendo o aposento mergulhar em total escuridão. Em meio ao fogo cruzado, Sidney atirou-se ao chão, ambas as mãos nas orelhas, enquanto as balas zuniam por cima. Sawyer caiu de joelhos e arrastou-se na direção dela. Vindo de outra direção, Scales, punhal entre os dentes, rastejava também para onde estava Sidney. Sawyer chegou primeiro e pegou-a pela mão para levá-la para um local seguro. Sidney gritou quando viu o lampejo da lâmina do punhal de Scales cortando o ar. Sawyer levantou o braço e recebeu todo o impacto do golpe, a lâmina penetrando na jaqueta grossa e cortando seu antebraço. Grunhindo de dor, ele chutou Scales, perdeu o equilíbrio e caiu de costas. Scales deu um bote em cima do agente do FBI e golpeou-o duas vezes no peito. A lâmina, contudo, esbarrou na resistente tela de Teflon do colete que protegia Sawyer. Scales pagou por isto o alto preço de receber em cheio na boca um poderoso soco de um dos imensos punhos do agente do FBI, quase que ao mesmo tempo em que Sidney lhe aplicava uma cotovelada na nuca. O homem uivou de dor quando a boca já machucada e o nariz quebrado receberam aquele castigo extra. Furioso, Scales empurrou Sidney com violência e ela, depois de deslizar pelo chão, foi se chocar de encontro à parede. O punho de Scales atingiu repetidamente o rosto de Sawyer e depois ele ergueu o punhal, tendo como alvo o centro da larga testa do agente. Sawyer agarrou o punho de Scales e lenta mas constantemente o foi levantando. Scales sentiu aquela força assombrosa, uma força contra a qual ele, muito menor que Sawyer, não podia nem pensar em se contrapor. De repente era como descobrir que tinha fisgado um Grande Tubarão Branco cheio de vida. Sawyer esmagou a mão de Scales contra o chão até que o punhal se perdeu, voando, na escuridão. Neste instante Sawyer recuou o braço e aplicou um murro violento no rosto de Scales, arremessando-o de costas para trás, gritando de agonia, com o nariz agora achatado de encontro à face esquerda. Ray Jackson se encontrava em um canto do salão trocando tiros com dois homens. Três dos membros da equipe de resgate tinham conseguido alcançar o mezanino e com esta vantagem tática, estavam ganhando rapidamente a troca de tiros. Dois bandidos já tinham
sido abatidos. Outro se encontrava prestes a expirar, com a artéria femoral atingida por uma bala. Dois policiais haviam sido atingidos, um deles gravemente. Dois membros da equipe de resgate de reféns do FBI tinham sido baleados mas continuavam a participar da batalha. Parando para recarregar a arma, Jackson deu uma olhada no salão e viu Scales se levantar, punhal erguido, e correr na direção das costas largas de Lee Sawyer, enquanto o agente do FBI procurava arrastar Sidney para um local seguro. Não havia tempo para Jackson recarregar seu rifle, a 9mm estava vazia e ele não tinha pentes com balas. Se tentasse gritar, Sawyer não conseguiria ouvir por causa do tiroteio. Jackson pôs-se de pé de um pulo. Como ex-jogador de futebol americano da Universidade de Michigan, ele sabia imprimir velocidade a uma corrida. Agora ia fazer a corrida de sua vida. Numa incrível demonstração de explosão muscular, com balas cortando o ar em todas as direções, as musculosas pernas de Jackson lhe possibilitaram atingir a velocidade máxima a três passos do ponto de partida. Scales era um homem de constituição sólida, só músculos e ossos, mas tinha cerca de vinte e cinco quilos a menos que os cem do agente do FBI que disparava em direção a ele. E, a despeito de ser um indivíduo muito perigoso, Kenneth Scales nunca se expusera ao mundo brutalmente violento do futebol americano. A lâmina de Scales estava a menos de trinta centímetros das costas de Sawyer quando o ombro de ferro de Jackson veio de encontro ao seu esterno. O estalo resultante quase pôde ser ouvido acima dos tiros. O corpo de Scales voou do chão e não parou de se deslocar até bater na sólida parede forrada de carvalho a mais ou menos um metro e meio de distância. O segundo estalo, embora não tão alto quanto o primeiro, anunciou a saída definitiva de Scales do mundo dos vivos, quando seu pescoço rachou bem ao meio. Jackson pagou o preço do seu heroísmo ao levar uma bala no braço e outra na perna antes de Sawyer poder derrubar o atirador com rajadas múltiplas da sua 10mm. Sawyer agarrou o braço de Sidney e a rebocou até um canto por detrás de uma mesa pesada que ele derrubara para ficar de lado. Em seguida correu para Jackson, que estava caído contra uma parede, respirando com dificuldade e pôs-se a arrastá-lo para uma zona de segurança. Um tiro acertou a parede a uns dois centímetros da cabeça de Sawyer. E logo em seguida outro tiro o pegou em cheio na caixa torácica. A pistola voou de sua mão e deslizou pelo chão, enquanto ele era jogado contra a parede, cuspindo sangue. O colete à prova de balas fizera seu trabalho de novo, mas ele ouvira o estalo de algumas costelas com o impacto do tiro. Começou a se esforçar para ficar de pé, mas sabia que agora passara a ser um alvo muito fácil. De repente irrompeu uma rajada de balas de perto da mesa tombada. Um grito agudo vindo da direção de onde partira o tiro que atingira Sawyer seguiu-se à rajada. Sawyer deu uma espiada na mesa e seus olhos se arregalaram de espanto quando viu Sidney Archer enfiar a pistola de 10mm, ainda fumegante, no cinto. Ela saiu correndo e, junto com
Sawyer, puxou Jackson para trás da mesma mesa onde se protegera. Colocaram Jackson encostado na parede. — Puxa, Ray, você não devia ter feito aquilo, cara. — Os olhos de Sawyer rapidamente examinaram seu parceiro, confirmando que eram apenas dois ferimentos. — Certo, e ia deixar você reclamando de mim na sua sepultura pelo resto da minha vida? De jeito nenhum, Lee. — Jackson mordeu o lábio com força quando Sawyer arrancou a gravata e, usando a lâmina do punhal de Scales, fez um torniquete improvisado acima do ferimento na perna de Jackson. — Conserve a mão aí em cima, Ray. — Sawyer conduziu a mão dele até o cabo do punhal, pressionando os dedos de Ray com força. Em seguida tirou o paletó, embolou-o e enxugou o sangue do ferimento do braço de Jackson. — A bala passou de raspão, Ray. Você vai ficar bem. — Eu sei, eu senti quando ela zuniu. — O suor porejava na testa de Jackson. — Você levou um tiro, não levou? — Não, o colete segurou, eu estou bem. — Quando Sawyer se jogou para trás, o antebraço cortado começou a sangrar de novo. — Oh, meu Deus, Lee. — Sidney fixou os olhos na torrente de sangue. — Seu braço. — Sidney tirou o cachecol e envolveu o ferimento do braço de Sawyer. Ele lhe dirigiu um olhar agradecido. — Obrigado. E não estou me referindo ao cachecol. Sidney encostou na parede. — Graças a Deus foi possível completar o que faltava naquilo que sabíamos. Distraí Gamble com minhas brilhantes deduções, para conseguir um pouco mais de tempo para você e seus homens. Mesmo assim, achei que não seria suficiente. Sawyer sentou-se ao lado dela. — Por alguns minutos, perdemos o sinal do telefone celular. Graças a Deus que conseguimos recuperá-lo. — Ele sentou-se abruptamente, o que agravou a dor causada pela costela quebrada. Olhou para o rosto exausto de Sidney. — Você está bem, não está? Jesus, nem me lembrei de perguntar. Sidney esfregou cuidadosamente o queixo inchado. — Nada que o tempo e uma boa maquiagem não resolvam. — Ela tocou na bochecha, também inchada. — E você? Sawyer teve outro sobressalto. — Oh meu Deus! Amy! Sua mãe! Ela explicou rapidamente o truque da gravação. — Aqueles filhos da mãe — rosnou Sawyer. Sidney olhou melancolicamente para Sawyer. — Não sei o que teria acontecido se eu não tivesse atendido ao seu chamado pelo pager. — O que interessa é que atendeu. Foi ótimo eu ter um dos seus cartões. — Ele sorriu. — Talvez essas engenhocas de alta tecnologia tenham utilidade, afinal. Em doses moderadas. Em outro canto da sala, Quentin Rowe estava encolhido atrás da mesa. Tinha os olhos fechados e as mãos tapando os ouvidos como se quisesse se proteger do barulho que o
cercava. Não notou o homem que apareceu atrás dele senão no último momento. O rabode-cavalo de Quentin foi puxado violentamente para trás, forçando o seu queixo a subir ao máximo. Em seguida a cabeça dele foi girada violentamente e pouco antes de ouvir o estalo da própria coluna quebrando, viu-se encarando o rosto maligno e sorridente de Nathan Gamble. O chefe da Triton soltou as mãos e o corpo de Quentin Rowe caiu no chão, morto. Tinha experimentado sua última visão. Gamble pegou o laptop em cima da mesa e bateu com ele tão fortemente no corpo de Rowe que o partiu em dois. Gamble ficou por mais um momento ao lado do corpo de Rowe, depois virou-se para fugir. As balas o pegaram em cheio no peito. Ele virou os olhos arregalados e incrédulos para seu assassino mas logo a raiva substituiu a incredulidade. Gamble ainda conseguiu puxar a manga do paletó do homem por um instante, antes de desabar. O assassino pegou o disquete onde ele havia caído, ao lado de Quentin Rowe, e saiu. Rowe caíra deitado de lado, com o corpo apoiado nas costas e a cabeça virada para Gamble. Ironicamente, ele e Gamble estavam apenas a alguns centímetros de distância um do outro, muito mais próximos do que jamais haviam estado em vida. Sawyer levantou um pouco a cabeça e examinou o salão. Os atiradores remanescentes haviam largado as armas e saíam dos esconderijos, com as mãos erguidas. Os integrantes do esquadrão de resgate entraram e em questão de minutos os homens estavam deitados no chão e algemados. Sawyer notou os corpos imóveis de Rowe e Gamble. Do lado de fora, além das portas de vidro, ouviu passos de uma pessoa correndo. Sawyer virou-se para Sidney. — Tome conta do Ray. O show ainda não terminou — disse, saindo correndo.
CAPÍTULO CINQUENTA E OITO O VENTO, A NEVE E A MARESIA atacaram Lee Sawyer por todos os lados quando ele correu pela areia. Tinha o rosto ensanguentado e inchado, o braço cortado. Além disso as costelas doíam como o diabo e a respiração se fazia aos arrancos. Levou um minuto para se livrar do pesado colete para o corpo e depois seguiu adiante, pressionando firmemente com uma das mãos as costelas quebradas para mantê-las no lugar. Seus pés se torciam e escorregavam na superfície solta, reduzindo sua velocidade. Tropeçou e caiu duas vezes. Mas imaginou que a pessoa a quem perseguia enfrentava o mesmo problema. Sawyer tinha uma lanterna, mas não queria usá-la, pelo menos ainda não. Por duas vezes atravessou a água gelada quando se aproximou demais do mar. Mantinha os olhos retos em frente, seguindo as pegadas fundas deixadas pelo fugitivo. Aí então Sawyer defrontou-se com uma maciça formação rochosa, algo bastante comum na costa do Maine. Por um momento refletiu em como contornar o obstáculo, até que viu uma trilha que passava pelo meio da montanha em miniatura. Seguiu por ela e sacou a arma, sendo atingido pela parede de espuma formada pelas ondas que quebravam incansavelmente na pedra. A roupa de Sawyer grudou no corpo como plástico; ainda assim ele seguiu em frente; era difícil respirar, à medida que a trilha ia ficando cada vez mais vertical. Por um momento ele olhou para o lado do mar. Negro e sem fim. Sawyer contornou uma curva na trilha e parou. Acendeu a lanterna, iluminando o ponto onde a rocha desaparecia nas águas do Atlântico, adiante e mais abaixo. A luz pegou o homem de alto abaixo. Ele semicerrou os olhos e se protegeu com uma das mãos do inesperado facho luminoso. Sawyer respirou fundo. O outro homem também teve que respirar fundo, após a longa perseguição. Sawyer pôs uma das mãos no joelho para se firmar, enquanto se inclinava para a frente, nauseado. — O que você está fazendo aqui? — perguntou Sawyer, a voz cansada mas clara. Frank Hardy o encarou, a respiração também ofegante a denunciar seus pulmões cansados. Tal como a roupa de Sawyer, a dele estava suja e encharcada e o cabelo completamente despenteado pelo vento. — Lee? E você? — perguntou Hardy. — Posso lhe garantir que não é o Papai Noel, Frank — retrucou Sawyer. — Responda minha pergunta. Hardy respirou fundo, lentamente. — Vim com Gamble para uma reunião. Bem no meio dela me disse para subir, explicando que tinha que tratar de uns negócios pessoais. Quando dei por mim, irrompeu um tiroteio. Dei o fora de lá o mais depressa que pude. Você se incomoda de me dizer o que está acontecendo? Sawyer sacudiu a cabeça em sinal de admiração. — Você sempre foi um homem de raciocínio muito rápido. Por isto foi um grande agente do FBI. A propósito, você matou Gamble e Rowe, ou Gamble se antecipou a você matando
o Rowe? Hardy fitou-o com uma expressão sinistra, os olhos semicerrados. — Frank, pegue a pistola e jogue por cima do penhasco. — Que pistola, Lee? Não estou armado. — A pistola que você usou para matar um dos meus homens e começar aquela pequena batalha lá dentro. — Sawyer fez uma pausa e empunhou com mais força a própria arma. — Não vou repetir o que falei, Frank. Hardy pegou a pistola vagarosamente e jogou-a por cima do penhasco. Sawyer pescou um cigarro no bolso e prendeu-o entre os dentes. Pegou um isqueiro e o acendeu. — Já viu um desses, Frank? Acendem e ficam acesos até em meio a um tornado. Igual ao que usaram para derrubar o avião. — Não sei nada sobre o avião — retrucou Hardy, irritado. Sawyer parou para acender o cigarro e tirar uma longa baforada. — Você não sabia nada sobre o avião. Isso é certo. Mas esteve metido em todo o resto. Na verdade, aposto como cobrou do Nathan Gamble uma polpuda bonificação. Recebeu uma parcela do quarto de bilhão que acusou Jason Archer de ter roubado, não é mesmo? Reproduziu a assinatura dele e tudo mais. Belo trabalho. Você está maluco! Por que Gamble ia roubar dele mesmo? — Não roubou. O dinheiro provavelmente foi espalhado em centenas de contas bancárias que ele tem pelo mundo todo. Quem ia suspeitar de Gamble? Tenho certeza de que Quentin Rowe se encarregou do BankTrust e também de entrar no sistema de impressões digitais da polícia da Virgínia para mexer nas digitais de Riker. Jason Archer tinha provas de todo o esquema de chantagem usado contra Lieberman. Precisava contar a alguém. Quem? Richard Lucas? Acho que não. Lucas era homem de Gamble, pura e simplesmente homem de Gamble. O sujeito que tinha acesso a informações sigilosas dentro do grupo. — A quem foi então que ele contou? — Os olhos de Hardy agora eram dois pontinhos. Sawyer puxou uma tragada funda do cigarro antes de responder: A você, Frank. — Certo, agora prove. — Ele o procurou. O ex-agente do FBI com uma lista de condecorações do tamanho do braço. — Esta última frase foi praticamente cuspida por Sawyer, enojado. — Ele o procurou para que você o ajudasse a revelar toda a trama. Só que você não podia deixar que isso acontecesse. A Triton Global era sua fonte de dinheiro fácil. Desistir de jatinhos, belas mulheres e boas roupas não era uma opção aceitável, era? Sawyer prosseguiu. — Depois você me pegou e me fez assistir ao seu espetáculo de circo, onde transformou Jason no bandido, culpado de tudo. Vocês devem ter rolado de rir quando me tapearam. Ou quando pensaram que tapearam. No entanto, quando você viu que eu não estava aceitando tudo, começou a ficar meio nervoso. Foi ideia sua fazer com que Gamble me oferecesse emprego? Aqui entre nós, nunca me senti tão popular. — Hardy permaneceu em silêncio. -Mas esta não foi sua única performance, Frank.
Sawyer enfiou a mão no bolso e apanhou um par de óculos de sol que colocou no rosto, o que, na escuridão, ficou absolutamente ridículo. — Lembra, Frank? Os dois caras na fita gravada no armazém de Seattle? Usavam óculos de sol em ambiente fechado, dentro de um aposento bastante escuro. Por que alguém faria uma coisa dessas? — Não sei. — A voz de Hardy não passava agora de um mero sussurro. — Claro que sabe. Jason pensava que estava entregando a prova que conseguia ao... FBI. Pelo menos nos filmes todos os agentes federais usam óculos escuros e os caras que vocês contrataram para bancar os agentes do FBI deviam ir com frequência ao cinema. Você não podia simplesmente matar Jason. Tinha que conquistar a confiança dele, assegurar-se de que ele não contara a ninguém. A prioridade máxima era recuperar todas as provas físicas que ele tivesse conseguido obter. A fita tinha que estar em condições perfeitas, porque você sabia que estaria nos entregando a prova da culpa de Jason. E você só tinha uma oportunidade para fazer tudo dar certo. Archer, contudo, ainda estava desconfiado. Por este motivo manteve uma cópia das informações que obteve em um outro disquete que mais tarde enviou para a mulher. Você disse a ele que receberia uma enorme recompensa do governo? Foi isso? Provavelmente disse também que foi o mais brilhante golpe articulado contra um bandido em toda a história do FBI. Hardy permaneceu em silêncio. Sawyer olhou para o seu antigo parceiro. — No entanto, sem que fosse do seu conhecimento, Frank, Gamble estava às voltas com um problemão. Ou seja, Arthur Lieberman estava prestes a abrir a boca e contar tudo o que sabia. Por isto ele contratou Riker a fim de sabotar o avião de Lieberman. Estou certo de que você não conhecia esta parte do plano. Obedecendo às ordens de Gamble, você providencia para que Jason tivesse reservas no voo para Los Angeles, mas fez com que ele trocasse de avião e fosse para Seattle, permitindo assim que você o filmasse no armazém. Rich Lucas trabalhou na CIA e provavelmente tem ligação com inúmeros ex-agentes da Europa Oriental, gente sem família e sem passado. O sujeito destinado a estar dentro do avião que ia cair no lugar de Archer não podia ter família nem passado, e ninguém sentiria sua falta. Você não tinha ideia de que Lieberman se encontrava no voo para Los Angeles e nem de que Gamble ia matá-lo. Gamble, contudo, sabia que era a única maneira de poder lançar a culpa pela morte de Lieberman nas costas de Jason Archer. Com isso, matava dois coelhos de uma só cajadada: Archer e Lieberman. Você me traz a fita e eu concentro todos os meus esforços para pegar Jason e me esqueço por completo do pobre Arthur Lieberman. Se não fosse por Ed Page ter entrado em cena, acho que você jamais pegaria de novo a pista de Lieberman. — E não nos esqueçamos da velha e querida RTG que levou a culpa por tudo, com a Triton muito convenientemente terminando como proprietária da CyberCom. Eu falei com você sobre Brophy ter estado em Nova Orleans. Você então descobriu que ele na verdade era ligado à RTG e que muito possivelmente era culpado daquilo de que você acusou Jason
Archer — trabalhar para a RTG. Assim sendo, mandou que seguissem Brophy e Goldman e quando a oportunidade surgiu liquidou os dois e incriminou Sidney Archer. Por que não? Já tinha feito a mesma coisa com o marido dela. — Sawyer fez uma pausa. — Puxa, Frank, trata-se de uma mudança e tanto, de agente do FBI a participante de uma conspiração criminal gigantesca. Talvez eu deva levar você ao local onde o avião caiu. Quer ir até lá? — Eu não tive nada a ver com a sabotagem do avião, juro — gritou Hardy. — Eu sei, mas esteve envolvido em outra coisa. — Sawyer tirou os óculos escuros. — Você matou o sabotador. — Você se incomodaria de provar isso? — Os olhos de Hardy dardejaram de cólera. — Você me disse, Frank. — O rosto de Frank Hardy não moveu um músculo. — Lá na garagem onde Goldman e Brophy foram encontrados. Fazia muito frio. Eu estava preocupado com a decomposição dos corpos, achando que a temperatura baixa podia impossibilitar a avaliação correta da hora da morte. Lembra o que você disse, Frank? Que o caso do sabotador foi igual. Que o ar-condicionado tinha feito o apartamento gelar da mesma forma que o ar da rua fizera com a garagem. — E daí? — Eu nunca disse que o ar-condicionado estava ligado no apartamento de Riker. Na verdade, liguei de novo o aquecimento assim que encontramos o corpo. Não havia menção ao ar-condicionado nos relatórios do FBI. Hardy ficou muito pálido e Sawyer continuou. — Você sabia, Frank, porque você ligou o ar-condicionado. Quando tomou conhecimento da sabotagem, viu que Gamble o usara. Ora, talvez eles planejassem matar Riker desde o princípio. Mas você fez questão absoluta de liquidar o sujeito. Só percebi quando me vi sentado dentro de um camburão gelado da polícia vindo para cá. Sawyer adiantou-se um pouco. — Doze tiros, Frank. Admito que este detalhe realmente me deixou intrigado. Você devia estar tão furioso com Riker que passou das medidas. Esvaziou um pente inteiro nele. Acho que isso talvez se deva a algum restinho de policial que ficou perdido dentro de você. Mas agora está acabado. Hardy engoliu em seco, lutando para conservar os nervos sob controle. — Olha, Lee, todo mundo que sabe do meu envolvimento está morto. — E Jason Archer? Hardy riu. — Jason Archer era um bobalhão. Queria dinheiro, como todos nós. Só que não tinha coragem, sabe, que nem você e eu. O tempo todo tinha pesadelos. — Hardy adiantou-se um pouco. — Veja a coisa por outro lado, Lee. É só o que estou pedindo. Você começa a trabalhar para mim no mês que vem. Um milhão de dólares por ano. Opção sobre ações, tudo. Você estará feito para o resto da vida. Sawyer jogou o cigarro fora. — Frank, deixa eu esclarecer tudo direitinho para você. Não gosto de pedir minha comida em língua estrangeira e não seria capaz de reconhecer uma ação nem que ela pulasse em
cima de mim e acertasse bem nas minhas bolas. — Sawyer levantou a arma. — Para onde você vai, em matéria de opção a única vai ser o leito de baixo ou o de cima. Hardy passou a falar ameaçadoramente. — De jeito nenhum, meu chapa. — Ele pegou o disquete no bolso. — Se quer isto aqui, abaixe a arma. — Você só pode estar brincando... — Abaixe a arma — gritou Hardy. — Se não eu jogo a sua prova no oceano Atlântico. Se me deixar ir embora, mando o disquete depois para você de um lugar desconhecido. Hardy começou a sorrir quando viu a pistola de Sawyer baixando. Mas Sawyer, ao ver a reação do outro, retornou abruptamente a pistola à posição anterior. — Primeiro quero que você me responda uma pergunta, e agora. — O que é? Sawyer adiantou-se, o dedo no gatilho. — O que aconteceu a Jason Archer? — Olha, Lee, que importância tem... — Onde está Jason Archer? — berrou Sawyer, sobrepujando o barulho das ondas. — Porque é exatamente isto que aquela moça lá atrás quer saber, e você vai me dizer, Frank. A propósito, pode jogar esse disquete tão longe quanto queira. Rich Lucas está vivo — mentiu Sawyer. Vira Lucas morto no meio do campo de batalha em que o saguão do hotel se transformara. O sentinela silencioso agora estava em silêncio para sempre. — Quer apostar como ele está ansioso para acabar com você? O rosto de Hardy refletiu todo o seu desalento quando ele percebeu que sua única opção de fuga acabara de se evaporar. — Leve-me de volta para a casa, Lee. Quero telefonar para o meu advogado. — Hardy começou a se adiantar mas interrompeu-se subitamente quando Sawyer assumiu uma posição de tiro clássica. — Agora, Frank. Quero que você me diga agora. — Vá para o inferno! Leia os meus direitos, se quiser, mas saia da minha frente! A resposta de Sawyer foi desviar a pontaria ligeiramente para a esquerda e disparar um tiro. Hardy gritou quando a bala arrancou a pele e a parte superior da sua orelha direita. O sangue escorreu pelo lado do rosto. Ele caiu no chão. — Está maluco? — Sawyer agora apontava a arma diretamente para a cabeça de Hardy. — Vou tirar o seu crachá e sua pensão e botar você na cadeia por mais tempo que os anos de vida que lhe restam, seu filho da puta — gritou Hardy. — Você vai perder tudo! — Não, não vou. Você não é a única pessoa que sabe adulterar uma cena de crime, meu chapa. — Hardy, cada vez mais assombrado, viu Sawyer abrir o coldre preso no cinto e puxar outra pistola de 10mm. — Esta será a arma que você vai tirar de mim durante a luta. Vai ser encontrada firmemente presa na sua mão. Você terá dado diversos tiros com ela, evidenciando sua intenção homicida. — Ele apontou para o mar imenso. — Vai ser meio difícil encontrar as balas aí. — Sawyer ergueu a outra pistola. — Você era um investigador de primeira, Frank. Importa-se de deduzir que papel esta arma aqui irá desempenhar? — Que droga, Lee, não faça isso! Sawyer continuou, calmamente.
— Esta será a pistola com que matarei você. — Jesus, Lee! — Onde está Archer? — Por favor, Lee. Não! — protestou Hardy. Sawyer aproximou a boca da arma até ficar a uns poucos centímetros da cabeça de Hardy. Quando este cobriu o rosto com as mãos, Sawyer arrancou o disquete dos seus dedos trêmulos e olhou para ele. — Pensando bem, pode ser que isto venha a ser útil. — Sawyer guardou o disquete no bolso. — Adeus, Frank. — Ele pôs o dedo no gatilho. — Espera, espera, por favor, eu digo. Eu digo. — Hardy ficou engasgado por um momento e depois levantou os olhos para o rosto severo de Sawyer. — Jason está morto — gritou, desesperado. As três palavras atingiram Lee Sawyer como raios. Os ombros enormes se abateram e ele sentiu os últimos vestígios de energia deixarem seu corpo. Era como se simplesmente tivesse morrido. Tinha quase certeza de que a resposta seria aquela, mas esperara um milagre, para o bem de Sidney e de sua filhinha. Alguma coisa fez com que se virasse e olhasse para trás. Sidney estava de pé no alto da trilha, a não mais que um metro e meio de distância, encharcada e trêmula. Os olhos deles se encontraram sob o clarão suave de uma lua cheia repentinamente revelada entre as nuvens. Não foi preciso falarem nada. Ela ouvira a terrível verdade: seu marido não mais ia voltar. Um grito veio da beira do penhasco. Empunhando a arma, Sawyer virou-se justo quando Hardy acabava de transpor a rocha e saiu correndo, a tempo ainda de ver o ex-amigo bater nas rochas escarpadas lá embaixo e desaparecer nas águas violentas. Sawyer ficou olhando para o abismo e, num gesto de fúria, arremessou a pistola o mais longe que pôde no mar. O movimento o obrigou a mexer com as costelas quebradas, mas ele não ligou para a dor. Fechou os olhos e os abriu para o selvagem contorno do Atlântico. "Droga!" O corpanzil de Sawyer pendeu acentuadamente para um lado quando lutou para imobilizar as costelas fraturadas e manter os pulmões cansados funcionando. O braço cortado e o rosto cheio de escoriações começaram a sangrar de novo. Levou um susto quando sentiu o braço no seu ombro. Naquelas circunstâncias, não teria se espantado se Sidney Archer tivesse saído correndo o mais depressa que pudesse para longe daquele lugar — quem a teria culpado? Ao contrário, ela passou um braço em torno da cintura dele e um braço dele sobre seu ombro, e assim ajudou o agente do FBI a voltar para a trilha.
CAPÍTULO CINQUENTA E NOVE O FUNERAL QUE PERMITIU a Jason Archer finalmente descansar em paz ocorreu em um dia claro de dezembro, numa colina suave e tranquila a cerca de vinte minutos de sua casa de pedra e tijolo. Durante o serviço religioso ao lado da sepultura, Sawyer ficara ao fundo, enquanto a família e os amigos íntimos acompanhavam Sidney, sofrendo de novo a viuvez. O agente do FBI permanecera ao lado do túmulo depois que todos tinham ido embora. Com os olhos fixos na lápide onde as inscrições haviam sido gravadas recentemente, Sawyer sentou-se em uma das cadeiras de dobrar que tinham sido usadas no ritual simples e breve. Jason Archer ocupara a mente de Lee Sawyer por mais de um mês, em todos os seus momentos de vigília, e no entanto os dois homens nunca tinham chegado a se conhecer. Acontecia isso com frequência no seu trabalho; desta vez, contudo, as emoções que tomavam conta do veterano agente eram muito diferentes. Sawyer sabia que não pudera impedir a morte do homem. E, no entanto, ainda se sentia arrasado por não ter podido ajudar a mulher e a filhinha dele, por ter permitido que a família Archer fosse irremediavelmente destruída por causa da sua incapacidade de chegar à verdade a tempo. Lee Sawyer cobriu o rosto com ambas as mãos. Quando as removeu, alguns minutos mais tarde, as lágrimas ainda brilhavam nos seus olhos. Tinha encerrado com sucesso o caso mais importante de sua vida, e no entanto sentia-se como se tivesse fracassado. Levantou-se, pôs o chapéu e dirigiu-se lentamente para o carro. Mas se deteve. A comprida limusine preta estava parada junto ao meio-fio. Ela voltara. Sawyer viu o rosto de Sidney najanela de trás, olhando para o monte de terra fresca. Depois virou a cabeça na direção de Sawyer, que ficara ali parado, incapaz de se mover. o coração batendo forte, ofegante e querendo acima de tudo neste mundo ser capaz de enfiar os braços naquela terra fria e devolver Jason Archer para ela. Com o vidro novamente levantado, a limusine foi embora. Na véspera do Natal, Lee Sawyer avançava lentamente com o seu sedã pela Morgan Lane. As casas estavam lindamente enfeitadas com luzes, festões, papais-noéis e renas. Um pouco mais adiante um grupo de cantores se apresentava entoando melodias de Natal. Tudo muito festivo, a não ser por uma única casa às escuras, onde havia só uma luz na sala da frente. Sawyer virou na entrada dos Archer e saltou. Vestia um terno novo e o rodamoinho estava o mais domesticado que fora possível conseguir. Ele pegou uma caixa embrulhada para presente no carro e dirigiu-se para a casa. Seu andar era um pouco rígido: as costelas ainda não tinham soldado por inteiro. Sidney Archer veio atender quando ele bateu. Trajava calças pretas e uma blusa branca, o cabelo caía sobre os ombros. Recuperara um pouco de peso, mas o rosto ainda estava emaciado. Não havia, contudo, sinal dos cortes e equimoses.
Sentaram-se na sala, diante da lareira. Sawyer aceitou a oferta de sidra e deu uma olhada na sala enquanto ela se afastava para buscar a bebida. Na mesinha ao lado do sofá havia uma caixa de disquetes de computador com uma fita vermelha em cima. Ele deixou a caixa que trouxera em cima da mesa de centro, já que não havia uma árvore de Natal. — Vai passar os feriados fora? — perguntou ele depois que Sidney se sentou à sua frente. Os dois tomaram um gole da sidra quente. — Casa dos meus pais. Eles prepararam tudo para o Natal. Árvore grande, enfeites. Meu pai vai se vestir de Papai Noel. Meus irmãos estarão lá, com as famílias. Será bom para Amy. Sawyer olhou para a caixa de disquetes. — Espero que seja uma brincadeira. Sidney seguiu o olhar dele e sorriu. — Jeff Fisher. Ele me agradeceu pela noite mais excitante de sua vida e me ofereceu assessoria de computação grátis. Para sempre. Sawyer reparou na toalhinha úmida que Sidney trouxera e deixara na mesinha de centro. Empurrou o presente na sua direção. — Coloque na árvore para Amy, sim? É meu e do Ray. Quem escolheu foi a mulher dele. É uma boneca que faz uma porção de coisas: fala, faz xixi. — Ele interrompeu-se abruptamente, parecendo envergonhado. Tomou outro gole de sidra. Sidney sorriu. — Muito obrigada, Lee. Ela vai adorar. Eu daria agora, se não estivesse dormindo. — De qualquer maneira é melhor abrir os presentes no dia de Natal. — Como está o Ray? — Bem, não se consegue machucar aquele sujeito. Já largou as muletas... Sidney de repente ficou verde e pegou rapidamente a toalhinha. Segurou-a de encontro à boca, levantou-se e saiu correndo. Sawyer pôs-se de pé mas ficou no mesmo lugar. Sentou de novo. Em mais alguns minutos ela estava de volta. — Desculpe, devo ter pego um vírus. — Há quanto tempo você sabe que está grávida? — perguntou Sawyer. Atônita, ela se sentou. — Tenho quatro filhos, Sidney. Pode crer, conheço enjôo de grávida quando vejo um. — Cerca de duas semanas — respondeu ela, a voz tensa. Na manhã que Jason viajou... — Ela começou a balançar para a frente e para trás, uma das mãos no rosto. — Meu Deus, não posso acreditar. Por que ele fez aquilo? Por que não me contou? Ele não devia estar morto, droga! Não devia! Sawyer olhou para a caneca que tinha entre as mãos. Ele tentou fazer o que era certo, Sidney. Podia simplesmente ter ignorado o que descobriu, como teria feito a maioria das pessoas. Mas decidiu fazer algo. Um verdadeiro herói. Arriscou-se um bocado, mas sei que fez isso por você e pela Amy. Nunca tive a oportunidade de conhecê-lo, mas sei que a amava. — Sawyer não ia revelar que a esperança de uma recompensa do governo desempenhara papel proeminente na decisão
de Jason Archer de colher provas contra a Triton. Ela o fitou com os olhos marejados de lágrimas. — Se ele nos amava tanto, por que decidiu fazer algo que era tão perigoso? Não faz sentido. Meu Deus, é como se eu o tivesse perdido duas vezes. Você sabe como pode ser uma coisa dessas? Sawyer pensou por um instante, pigarreou e começou a falar muito baixinho. — Eu tenho um amigo que é um tipo contraditório. Amava tanto sua mulher e filhos que teria sido capaz de fazer qualquer coisa por eles. Qualquer coisa mesmo. — Lee... Ele levantou a mão. — Por favor, Sidney, deixa eu terminar. Acredite, foi muito difícil chegar até aqui. — Ela recostou-se na poltrona e Sawyer prosseguiu. — Ele os amava tanto que gastava todo o tempo tentando fazer deste mundo um lugar mais seguro para eles. Tanto tempo ele gastou que na verdade acabou por magoar terrivelmente as pessoas a quem mais amava. E não percebeu nada, só viu isso quando era tarde demais. — Sawyer tomou um gole de sidra para se livrar do nó na garganta. — Assim, você pode ver que as pessoas às vezes fazem as coisas mais burras pelas melhores razões. — Os olhos dele brilhavam. — Jason a amava. Sidney. Puxa vida, no fim é isso o que realmente importa. A única lembrança que você tem que guardar. Nenhum dos dois quebrou o silêncio por alguns minutos, olhando fixamente para as chamas da lareira. Até que por fim Sawyer olhou para ela. — O que é que você vai fazer agora? Sidney deu de ombros. — A Tyler e Stone, a firma onde eu trabalhava, perdeu seus dois maiores clientes, a Triton e a RTG. Henry Wharton, contudo, foi muito delicado: disse que eu podia voltar, mas não sei se estou a fim. — Ela cobriu a boca com a toalha e depois sua mão caiu sobre o colo. — Provavelmente não tenho escolha. O seguro de vida de Jason não era grande coisa. Tínhamos gasto um bocado da nossa poupança. Com um bebê a caminho... — Ela sacudiu a cabeça, desesperada. Sawyer esperou um momento para meter a mão no bolso do paletó e puxar um envelope. — Talvez isto ajude. Ela enxugou os olhos. O que é? — Abra. Ela pegou o pedaço de papel que vinha dentro e depois olhou para Sawyer. — O que é isso? — É um cheque para você no valor de dois milhões de dólares. Deve ter fundos, considerando que foi expedido pelo Tesouro dos Estados Unidos. — Não estou entendendo, Lee. — Havia uma recompensa de dois milhões de dólares pela informação que levasse à captura da pessoa ou pessoas responsáveis pela sabotagem do avião. — Mas eu não fiz nada. Não fiz absolutamente nada para merecer isso.
— Na verdade, eu é que estou absolutamente certo de que será a única vez na vida em que darei um cheque desse valor para uma pessoa a quem direi o que estou prestes a lhe dizer. Eoqueé? — Que não chega nem perto de ser o bastante. Que nem todo o dinheiro do mundo seria o bastante. — Lee, não posso aceitar isso. — Já aceitou. O cheque em si é pro forma. O dinheiro já foi depositado em uma conta especial aberta em seu nome. Charles Tiedman — o presidente do Banco da Reserva Federal de San Francisco — já organizou uma equipe de assessores financeiros de primeira linha para investir o dinheiro para você. Tudo grátis. Tied-man era o amigo mais íntimo de Lieberman. Ele me pediu para transmitir a você suas sinceras condolências e agradecimentos. O governo dos Estados Unidos inicialmente relutara em conceder a recompensa a Sidney Archer. Custara a Lee Sawyer um dia inteiro com representantes do Congresso e da Casa Branca para fazer com que mudassem de ideia. Todos, no entanto, eram inflexíveis em relação a um ponto: os detalhes da manipulação deliberada dos mercados financeiros do país não deviam ser divulgados. A sugestão nada sutil de Sawyer de que se associaria a Sidney Archer para leiloar o disquete que tirara de Frank Hardy em cima de um penhasco no Maine, fez com que mudassem abruptamente de ideia quanto à recompensa. Isso mais o fato de ele ter jogado uma cadeira de encontro à parede da sala do secretário de Justiça. — O dinheiro é livre de impostos — acrescentou Sawyer. — Você está garantida para o resto da vida. Sidney enxugou os olhos e guardou o cheque no envelope. Nenhum dos dois disse qualquer coisa durante alguns minutos. O fogo estalava na lareira. Finalmente Sawyer deu uma olhada no relógio e pôs de lado o resto de sidra. — Está ficando tarde. Tenho certeza de que você tem o que fazer. E eu tenho um trabalho atrasado no escritório. — Ele se levantou. — Você nunca tira folga? — Não, se depender de mim. Além do mais, que outra coisa eu teria para fazer? Ela se levantou e antes que ele pudesse dizer adeus, passou os braços em torno dos seus ombros largos e abraçou-se a ele. — Muito obrigada. — Ele mal podia ouvir as palavras, mas também não precisava. Os sentimentos emanavam de Sidney Archer como o calor que se desprendia da lareira. Ele a envolveu com os seus braços, e por alguns instantes eles ficaram assim diante do fogo, abraçados, enquanto o som dos cantores de Natal se aproximava. Quando finalmente se separaram, Sawyer pegou gentilmente a mão dela. — Pode contar sempre comigo, Sidney. Sempre. — Eu sei — disse ela, num fio de voz. Quando ele se dirigiu para a porta, ela acrescentou: — Esse seu amigo, Lee... diga a ele que nunca é tarde demais.
Descendo a rua, Lee Sawyer ergueu os olhos e viu a lua cheia, brilhante, contrastando com o céu escuro e sem nuvens. Pôs-se a cantarolar baixinho uma canção de Natal inventada por ele mesmo, naquele instante. Não ia voltar para o escritório. Ia atormentar um pouco Ray Jackson, brincar com os filhos dele e talvez tomar uns drinques com seu parceiro e a mulher. No dia seguinte compraria alguns presentes de última hora. Era só uma questão de esticar ao máximo o cartão de crédito e surpreender os filhos. Que diabos, era Natal. Desprendeu o crachá do FBI do cinto e tirou a pistola do coldre. Colocou os dois em cima do banco, ao seu lado, e permitiu-se um sorriso enquanto o carro seguia em frente. O próximo caso ia ter que esperar.
NOTA DO AUTOR
A AERONAVE DESCRITA NESTE LIVRO, o Mariner L500, é fictícia, embora algumas das especificações gerais que aparecem no livro sejam baseadas em aviões comerciais existentes. Isto posto, entusiastas de assuntos de aeronáutica podem afirmar que a sabotagem do voo 3223 é um tanto improvável. Meu objetivo não foi preparar um manual que servisse a pessoas mentalmente insanas. Com respeito ao Conselho da Reserva Federal, basta dizer que a ideia de o destino econômico desta nação ser, em larga escala, controlado por um grupo de pessoas que se reúnem secretamente para mim foi irresistível, segundo o ponto de vista de um narrador de histórias. A verdade é que provavelmente pintei com cores amenas o punho de ferro do banco da Reserva Federal sobre as vidas de nós todos. Para ser justo, no entanto, em todos esses anos o banco da Reserva tem conduzido a economia desta nação com extrema competência, mesmo quando foi necessário atravessar mares turbulentos. O trabalho do Conselho não é fácil, e está longe de ser uma ciência exata. Embora os resultados das suas ações talvez sejam dolorosos para muitos de nós, podemos estar razoavelmente seguros de que tudo o que ele faz é com o pensamento no bem da nação. Como um todo. Mesmo assim, com um poder tão grande concentrado em um grupo tão pequeno e isolado, a tentação de ganhar fortunas imensas de modo ilegal talvez nunca esteja longe da superfície. E que histórias seria possível escrever! No tocante aos aspectos da tecnologia computacional, todos eles são, segundo minhas pesquisas, perfeitamente plausíveis e pode até ser que já estejam sendo utilizados em escala integral, Isto se não forem, acreditem ou não, obsoletos. Os inúmeros benefícios da tecnologia de computadores, contudo, são inegavelmente significativos: no entanto, com benefícios em tal escala, há inevitavelmente um lado negativo. À medida que os computadores de todo o mundo tornam-se cada vez mais interconectados numa rede global, o risco de que uma pessoa possa um dia exercer "controle total" sobre certos aspectos de nossa vida aumenta proporcionalmente. E, como Lee Sawyer questionou neste livro, "E se o cara for um bandido?" DAVID BALDACCI, Washington, D.C.
David Baldacci
Voltar à “Página do Autor"
O melhor da literatura para todos os gostos e idades