Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CONVERSA NA CATEDRAL - P.2 / Mário Vargas Llosa
CONVERSA NA CATEDRAL - P.2 / Mário Vargas Llosa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CONVERSA NA CATEDRAL

Segunda Parte

 

No domingo seguinte, Ambrosio encontrou-se com ela às duas, foram a uma matinée, lancharam perto da Plaza de Armas e deram um longo passeio. É hoje, pensava Amalia, hoje é que vai ser. Ele ficava às vezes a olhar para ela e ela percebia que ele também estava a pensar vai ser hoje. Há um restaurante na Francisco Pizarro que é bom, disse Ambrosio quando escureceu. Era regional e chinês ao mesmo tempo, comeram e beberam tanto que mal conseguiam andar. Há um baile aqui perto, disse Ambrosio, vamos ver. Era uma barraca de circo armada atrás da linha do caminho-de-ferro. A orquestra estava em cima de um estrado e tinham posto esteiras na pista para as pessoas dançarem sem pisar a lama. A cada momento, Ambrosio deixava-a e voltava com cerveja nuns copinhos de papel. Estava lá muita gente, os pares davam saltinhos sem sair do lugar por falta de espaço; às vezes começava uma cena de pancada, mas nunca chegava a acabar porque havia dois fortalhaços que separavam os tipos e os levavam em peso. Estou-me a embebedar, pensava Amalia. Com o calorzinho, que aumentava, sentia-se melhor, mais livre, e de repente ela mesma empurrou Ambrosio para a pista. Misturaram-se com os outros pares, abraçados, e a música nunca parava. Ambrosio apertava-a muito, Ambrosio dava um empurrão a um bêbedo que tinha roçado por ela, Ambrosio beijava-lhe o pescoço: era como se tudo isto acontecesse longíssimo, Amalia ria-se às gargalhadas. Depois o chão começou a girar e ela agarrou-se a Ambrosio para não cair sinto-me mal. Sentiu que ele se ria, que a arrastava e de repente a rua. O friozinho na cara despertou-a um pouco. Ia de braço dado com ele, sentia a sua mão na cintura, dizia: bem sei porque é que me obrigaste a beber. Estava satisfeita, não se importava, para onde é que iam?, parecia que o passeio desaparecia, mesmo que não me digas eu sei para onde é. Reconheceu o quartinho de Ludovico entre sonhos. Estava a abraçar Ambrosio, unia o seu corpo ao de Ambrosio, com a boca procurava a boca de Ambrosio, dizia odeio-te, Ambrosio, portaste-te mal, e era como se fosse outra Amalia que estava a fazer aquelas coisas. Deixava-se despir, cair na cama e pensava porque é que choras, parva. Logo a cingiram uns braços duros, um peso que a vergava, uma sufocação que a abafava. Sentiu que já não ria nem chorava e viu a cara de Trinidad, passando ao longe. De repente, abanavam-na. Abriu os olhos: a luz do quartito estava acesa, despacha-te, dizia Ambrosio, abotoando a camisa. Que horas eram? Quatro da manhã. Tinha a cabeça pesada, o corpo dorido, que diria a senhora. Ambrosio ia-lhe passando a blusa, as meias, os sapatos, e ela vestia-se às pressas, sem lhe olhar para os olhos. A rua estava deserta, agora o ventinho desagradou-lhe. Deixou-se ir contra Ambrosio e ele abraçou-a. A tua tia sentiu-se doente e tiveste de ficar a fazer-lhe companhia, ou sentiste-te doente e a tua tia não te deixou sair. Ambrosio acariciava-lhe a cabeça de vez em quando, mas não falavam. O autocarro chegou quando despontava sobre os telhados uma luz mortiça; apearam-se na Plaza San Martin e era dia, ardinas com jornais debaixo do braço corriam pelas portas. Ambrosio acompanhou-a à paragem do eléctrico. Agora não ^seria como da outra vez, Ambrosio, portar-se-ia bem desta vez? És a minha mulher, disse Ambrosio, amo-te. Permaneceu abraçada a ele até chegar o eléctrico. Disse-lhe adeus da janela e ficou a olhar para ele, vendo-o diminuir à medida que o eléctrico o deixava para trás.

 

O automóvel desceu pelo Passeo Cólon contornou a Plaza Bolognesi, meteu pela Avenida Brasil. O trânsito e os semáforos demoraram-no meia hora até à Magdalena; a seguir, ao sair da avenida, avançou rapidamente por ruas solitárias e mal iluminadas e em poucos minutos chegou a San Miguel: dormir mais, deitar-se cedo hoje. Ao ver o carro, os guardas da esquina cumprimentaram. Entrou em casa e a rapariga estava a pôr a mesa. Da escada deitou uma olhadela à sala, à casa de jantar: tinham mudado as flores dos jarrões, os talheres e os copos da mesa cintilavam, estava tudo arrumado e limpo. Tirou o casaco, entrou no quarto sem bater. Hortênsia estava no toucador, a pintar-se.

 

- A Queta não queria vir quando soube que o convidado era o Landa - a sua cara sorria-lhe dos espelhos; ele atirou o casaco para cima da cama, fazendo pontaria à cabeça do dragão: ficou oculta. A desgraçada ouve o Landa e começa a bocejar. Sempre tem de aturar cada velhadas por tua causa... De vez em quando, devias convidar para ela um tipo jeitoso.

 

- Dêem de comer aos motoristas - disse ele, desapertando a gravata. - Vou tomar banho. És capaz de me trazer um copo de água?

 

Entrou no quarto de banho, abriu a água, despiu-se sem fechar a porta. Observava a banheira a encher, o cubículo a impregnar-se de vapor. Ouviu Hortênsia dar ordens, viu-a entrar com um copo de água. Tomou um comprimido.

 

- Queres uma bebida? - perguntou ela, da porta.

 

- Depois do banho. Arranja-me roupa lavada, faz favor.

 

Submergiu-se na banheira e permaneceu estendido, só com a cabeça de fora, absolutamente imóvel, até a água começar a arrefecer. Ensaboou-se, enxaguou-se no chuveiro com água fria, penteou-se e passou ao quarto. Sobre o lombo do dragão estava uma camisa lavada, roupa interior, meias. Vestiu-se devagar, dando fumaças num cigarro que fumegava no cinzeiro. Depois, no escritório, telefonou a Lozano, para o Palácio, para Chiclacayo. Quando desceu à sala, Queta tinha chegado. Trazia um vestido preto com um grande decote e tinha feito um penteado com carrapito que a envelhecia. Estavam ambas sentadas, com uísques nas mãos, e tinham posto discos.

 

Quando o Ludovico substituiu o Hinostroza, as coisas tinham começado a correr um bocado melhor. Porquê?, porque o Hinostroza era aborrecidíssimo e o Ludovico boa pessoa. O mais lixado de ser motorista de D. Cayo não eram esses trabalhinhos extra para o Sr. Lozano, nem não ter horário ou nunca saber qual seria o dia de saída, eram as más noites, senhor, aquelas em que era preciso levá-lo a San Miguel e esperá-lo, às vezes até à manhã seguinte. Que banhos de assento, senhor, que noitadas. Agora é que tu vais saber o que é uma pessoa aborrecer-se, tinha dito Ambrosio ao Ludovico no dia em que começou a trabalhar, e ele, olhando para a casita: então era aqui que o Sr. Bermúdez tinha o seu quartito, então é ali que ele molha o pincel. Corria melhor porque o Ludovico conversava, ao passo que o Hinostroza se encolhia no carro como uma múmia e dormia. Com o Ludovico sentavam-se no muro do jardim da casita, dali o Ludovico podia ver a rua toda para o caso de acontecer qualquer coisa. Viam D. Cayo entrar, ouviam as vozes lá dentro, o Ludovico entretinha Ambrosio adivinhando o que ia acontecendo: deviam estar a tomar as suas bebidas, quando se acendiam as luzes do andar de cima, Ludovico dizia começa a orgia. Às vezes aproximavam-se dos chuis da esquinha e punham-se os quatro a fumar e a conversar. Numa dada altura, um dos guardas era um ancashino cantor. Uma bela voz, senhor. Munequita, Linda era o forte dele, de que é que estás à espera para mudar de profissão, perguntavam-lhe. Por volta da meia-noite começava o tédio, o desespero por o tempo não passar mais depressa. Só o Ludovico continuava a falar. Um malicioso tremendo, passava a vida a puxar o Hipólito para lhe contar histórias picantes, mas afinal o mais tarado era ele, senhor. Lá devia estar D. Cayo a tomar banho em água rica, apontava para a varanda e chupava a boca, fecho os olhos e vejo isto e aquilo, e assim por diante até que, desculpe o senhor, acabavam os quatro com uma vontade tremenda de ir às pegas. Ficava doido quando falava da senhora: esta manhã que vim sozinho trazer D. Cayo.vi-a, negro. Invenções dele, claro. Em roupão, negro, um roupãozinho que parecia de gaze, cor-de-rosinha, transparente, com umas chinelinhas, os olhos dele deitavam faiscazinhas. Deita-te um olhar e morres, outro e sentes-te lázaro, ao terceiro torna-te a matar e ao quarto ressuscita-te: bem apanhado, senhor, boa pessoa. A senhora era a D. Hortênsia, claro, senhor.

 

À porta encontrou Carlota, que ia comprar pão: que é que te aconteceu, onde estiveste, que é que fizeste. Tinha ficado a dormir em casa da tia, em Limoncillo, a pobrezinha estava doente, a senhora tinha-se zangado? Dirigiam-se juntas à padaria: nem tinha dado por isso, tinha passado a noite em claro a ouvir as notícias de Arequipa. Amalia sentiu nascer-lhe uma alma nova. Não sabes que há revolução em Arequipa?, perguntava Carlota excitadíssima, a senhora estava tão nervosa que lhes tinha pegado os nervos e ela e Simula tinham ficado na copa até às duas a ouvir também o rádio. Mas que é que havia em Arequipa, doida? Greves, sarilhos, mortos, agora pediam que pusessem o senhor fora do Governo. D. Cayo? Sim, e a senhora não o conseguia encontrar em lado nenhum, tinha passado a noite a largar palavrões e a telefonar à Menina Queta. Comprem o dobro do costume para guardar, disse-lhes o rapaz da padaria, se amanhã houver revolução, não abro. Saíram a cochichar, que aconteceria, porque é que queriam correr com o senhor, Carlota? A senhora com a sua fúria de ontem dizia que era por ele ser tão manso, e de repente agarrou Amalia pelo braço e olhou-a nos olhos: não acredito nessa história da tua tia, estiveste com um homem, via-se-lhe na cara. Qual homem, pateta, a tia tinha adoecido. Amalia olhava muito séria Carlota e por dentro sentia cócegas e um calorzinho de felicidade. Entraram em casa e Simula estava a ouvir o rádio da sala, com uma cara ansiosa. Amalia dirigiu-se ao seu quarto, tomou um duche rápido, oxalá que não lhe perguntasse nada, e, quando subiu ao quarto com o pequeno-almoço, da escada ouviu o sinal dos minutos e a voz do locutor da Radio Reloj. A senhora estava sentada na cama, a fumar, e não respondeu aos bons-dias. O Governo tinha tido muita paciência com os que semeiam a intranquilidade e a subversão em Arequipa, dizia o rádio, os trabalhadores deviam voltar ao trabalho, os estudantes ao estudo, e encontrou-se com os olhos da senhora que a olhavam como se tivesse acabado de a descobrir: e os jornais, palerma? Vai a correr comprá-los. Sim, é um instantinho, saiu a correr do quarto, satisfeita, nem sequer tinha dado por nada. Pediu dinheiro a Simula e foi ao quiosque da esquina. Devia estar a acontecer qualquer coisa grave, para a senhora estar assim tão pálida. Ao vê-la entrar, saltou da cama, arrancou-lhe os jornais da mão e começou a folheá-los. Na cozinha perguntou a Simula acha que a revolução ganha, que vão correr com o Odría? Simula encolheu os ombros: quem iam correr do Ministério era o senhor, toda a gente o odeia. Daí a pouco sentiram a senhora descer e ela e Carlota correram à copa: está, está, Queta? Os jornais não diziam nada de novo, não preguei olho, e viram-na furiosa atirar La Prensa ao chão: também estes filhos da puta pedem a renúncia do Cayo, passaram anos a adulá-lo e agora também lhe viravam as costas, Quetita. Gritava palavrões, Amalia e Carlota olhavam uma para a outra. Não, Quetita, não tinha aparecido nem telefonado, o desgraçado devia estar ocupadíssimo com este sarilho, se calhar tinha ido a Arequipa. Ah, oxalá os corresse a tiro e lhes acabasse com as tolices duma vez por todas, Quetita.

 

- A velha Ivonne anda a dizer mal do Governo e até de ti - disse Hortênsia.

 

- Cuidadinho não lhe digam nada, se ela sabe que eu ando a contar o que ela diz, mata-me - disse Queta. - Não quero ter essa harpia por inimiga.

 

Passou pela frente delas, em direcção ao bar. Serviu a si próprio um uísque puro com dois cubos de gelo e sentou-se. As criadas, já fardadas, esvoaçavam em redor da mesa. Tinham dado de comer aos motoristas? Responderam que sim. O banho tinha-o deixado amodorrado, via Hortênsia e Queta através de uma ligeira neblina, mal as ouvia cochichar e rir. Bom, que é que a velha andava a dizer?

 

- É a primeira vez que a ouço falar mal de ti em público - disse Queta. - Até agora parecia mel quando mencionava o teu nome.

 

- Dizia ao Robertito que o Lozano reparte contigo o dinheiro que lhe saca - disse Hortênsia. - Ao boateiro número um de Lima, imagina.

 

- Que, se a continuam a sangrar assim, se retira para a vida séria - riu-se Queta.

 

Ele franziu a cara e abriu a boca: se fossem mudas, se uma pessoa se conseguisse entender com as mulheres só por gestos. Queta agachou-se para chegar aos biscoitos salgados, o decote alargou-se e apareceram os seios.

 

- Olha lá, não mo provoques - deu-lhe Hortênsia uma palmada.

 

- Guarda isso para quando o velhadas chegar.

 

- Ao Landa nem isso o desperta - devolveu-lhe Queta a palmada. - Também está para se retirar para a vida séria.

 

Riam-se e ele escutava-as, bebendo. Sempre os mesmos boatos, sabia a última?, os mesmos assuntos de conversa, a Ivonne e o Robertinho eram amantes!, o Landa devia estar agora a chegar e ao amanhecer teria também a sensação de ter repetido uma noite idêntica a outras noites. Hortênsia levantou-se para mudar os discos, Queta para encher outra vez os copos, a vida era uma decalcomania tão monótona. Beberam ainda outro uísque antes de ouvirem um carro travar à porta.

 

Graças às ideias do Ludovico a espera tornava-se-lhe menos aborrecida, senhor. Que a boquinha dela, que os lábios dela, que as estrelinhas dos dentes dela, que cheirava a rosas, que um corpo que dava vida a um morto: parecia que estava apaixonado pela senhora, senhor. Mas, quando estava em frente dela, nem se atrevia a olhar, com medo de D. Cayo. E a ele acontecia-lhe o mesmo? Não, Ambrosio ouvia as coisas do Ludovico e ria-se e mais nada, ele não dizia nada da senhora, também não lhe parecia que ela fosse assim uma coisa do outro mundo, ele só pensava que nunca mais era dia para se ir deitar. As outras, senhor? Se a Menina Queta também não lhe parecia grande coisa? Também não, senhor. Bom, lá bonita era, mas que disposição podia Ambrosio ter para pensar em mulheres com aquele ritmo de trabalho extenuante, a cabeça só lhe dava para sonhar com o dia de folga que passava na cama, a recuperar-se das noites mal dormidas. Õ Ludovico era diferente, desde que passou a tratar de D. Cayo, sentia-se importantíssimo, agora sim, agora é que havia de ingressar no quadro, negro, e então havia de foder os que o fodiam a ele por ser um simples eventual. A grande aspiração da vida dele, senhor. Nessas noites, quando não falava da senhora, era disso: passaria a ter salário fixo, chapa, férias, haviam de o respeitar em todo o lado, e quem não viria propor-lhe um negociozinho ? Não, Ambrosio nunca tinha querido fazer carreira na polícia, senhor, para ele até era chato, por causa do aborrecimento das esperas. Conversavam, fumavam, e por volta da uma ou duas estavam mortos de sono, no Inverno de frio, quando começava a amanhecer molhavam a cara na fonte do jardim, e viam as criadas saírem para ir comprar pão, os primeiros carros, o cheiro forte da relva entranhava-se-lhes no nariz e sentiam-se aliviados porque D. Cayo não devia tardar. Quando é que a sorte mudará e eu terei uma vida normal?, pensava Ambrosio. E graças ao senhor tinha mudado e agora por fim tinha-a, senhor.

 

A senhora passou a manhã de roupão,’ a fumar cigarros uns atrás dos outros, a ouvir as notícias. Não quis almoçar, bebeu só um café forte e saiu de táxi. Pouco depois saíram Carlota e Simula. Amalia deitou-se na cama vestida. Sentia um grande cansaço, pesavam-lhe as pálpebras e quando acordou era noite. Ergueu-se e, sentada, tentou recordar o que tinha sonhado: com ele, mas não se lembrava de quê, só se lembrava de que enquanto sonhava pensava: dura mais um bocado, não acabes. Portanto gostavas do sonho, parva. Estava a lavar a cara quando a porta do quarto de banho se abriu de chofre: Amalia, Amalia, há revolução. Carlota tinha os olhos fora das órbitas, que é que estava a acontecer, o que é que tinham visto? Polícias com espingardas e metralhadoras, Amalia, soldados por todos os lados. Amalia penteava-se, punha o avental e Carlota dava saltos, mas onde, mas o quê. No Parque Universitário, Amalia, Carlota e Simula vinham a descer do autocarro quando tinham visto a manifestação. Rapazes e raparigas, cartazes, Liberdade, Liberdade, A-re-qui-pa, A-re-qui-pa, Bermúdez que renuncie, e, completamente aparvalhadas, tinham ficado a ver. Centenas, milhares, e de repente apareceram os polícias, o camião da agulheta, camiões, jipes, e a Colmena tinha-se enchido de fumo, jactos de água, correrias, gritos, pedradas, e nisto aparece a cavalaria. E elas ali Amalia, elas no meio daquilo sem saberem o que fazer. Tinham-se espalmado contra um portão, abraçadas, a rezar, o fumo fazia-as espirrar e chorar, passavam tipos a gritar morra Odría e tinham visto espancarem os estudantes à paulada e apedrejarem os polícias. Que iria acontecer, que iria acontecer. Foram ouvir o rádio e Simula tinha os olhos inflamados e persignava-se: do que se tinham livrado, ai Jesus. A rádio não dizia nada, mudavam de estação e anúncios, música, perguntas e respostas, discos pedidos.

 

Por volta das onze, viram a senhora sair do carrinho branco da Menina Queta, que partiu logo. Vinha muito tranquila, que estavam elas a fazer acordadas, era tardíssimo. E Simula: estavam a ouvir o rádio, mas não diziam nada da revolução, minha senhora. Qual revolução nem qual carapuça, Amalia percebeu que estava com um grãozinho na asa, já estava tudo resolvido. Mas se elas tinham visto, minha senhora, dizia Carlota, a manifestação e os polícias e tudo, e a senhora tolas, não havia razão para sustos. Tinha falado pelo telefone com o senhor, iam castigar os Arequipenhos e amanhã já tudo estaria em paz. Tinha fome e Simula fez-lhe um churrasco: o senhor nunca perde a calma, dizia a senhora, nunca mais volto a preocupar-me assim com ele. Mal levantou a mesa, Amalia foi-se deitar. Pronto, tinha começado tudo outra vez, parva, tinha feito as pazes com ele. Sentia uma languidez suave, uma frouxidão morna. Como se dariam agora, zangar-se-iam de vez em quando?, nunca mais iria a casa do amigo dele, que alugasse um quartinho, poderiam passar lá os domingos. Arranja-la bonita, parva. Se pudesses conversar com a Carlota e contar-lhe. Não, tinha de resistir a esse desejo até voltar a ver a Gertrudis.

 

Landa vinha com os olhos a brilhar, muito falador e a cheirar a álcool, mas logo que entrou fez uma cara de enterro: só podia ficar um bocadinho, que tragédia. Inclinou-se para beijar a mão a Hortênsia, pediu a Queta um beijinho na cara amaricando a voz, e deixou-se cair na poltrona entre ambas, declamando: um espinho entre duas rosas, D. Cayo. Ali estava semicalvo, envolvido num fato cinzento de corte impecável que lhe disfarçava as curvas, com uma gravata escarlate, a dizer piropos a Hortênsia e a Queta e ele pensou a segurança, a desenvoltura que o dinheiro dá.

 

- A Comissão de Fomento reúne-se às nove da manhã, D. Cayo, imagine que hora - disse Landa, com uma careta tragicómica. E eu tenho de dormir oito horas por receita médica. Que maçada.

 

- Histórias, senador - disse Queta, estendendo-lhe um uísque.

- A verdade é que a tua mulher te traz à rédea curta.

 

O senador brindou às duas formosuras que me rodeiam e também a si, D. Cayo. Bebeu, tomando o gosto da bebida, e desatou a rir.

 

- Sou homem livre, nem as correntes do matrimónio suporto exclamou. - Filhinha, amo-te muito, mas quero conservar a minha liberdade de farra, que no fundo é a que conta. E ela compreendeu. Trinta anos de casados e nunca me pediu contas. Nem uma cena de ciúmes sequer, D. Cayo.

 

- E aproveitas-te bem dessa liberdade - disse Hortênsia. Conta-nos a tua última conquista, senador.

 

- Vou-lhes antes contar umas piadas contra o Governo que ouvi agora mesmo no clube - disse Landa. - Cheguem-se cá, para D. Cayo não ouvir.

 

Aplaudia-se a si mesmo com sonoras gargalhadas, que se misturavam com as de Queta e Hortênsia, e ela aplaudia também as piadas, com a boca entreaberta e a cara franzida. Bom, se o ilustre senador tinha de se ir embora daí a pouco, o melhor era começarem a comer. Hortênsia dirigiu-se à copa, seguida de Queta. À sua saúde, D. Cayo, à sua, senador.

 

- Cada vez mais elegante, esta Queta - disse Landa. - E da Hortênsia nem é bom falar, D. Cayo.

 

- Agradeço-lhe muito o parecer da sua comissão - disse ele. Dei a notícia ao Zavala, ao meio-dia. Sem o senhor, esses gringozitos não teriam ganho a licitação.

 

- Quem tem de agradecer sou eu, por causa da questão do Olave

- disse Landa, fazendo um gesto de não pense mais nisso. - Os amigos são para se servirem uns aos outros, não faltava mais nada.

 

E ele viu que o senador se distraía, o seu olhar desviava-se em direcção a Queta, que se aproximava, meneando-se: nada de falar de negócios nem de política aqui, era proibido. Sentou-se ao pé de Landa, que avançava a cara e pousava um instante os lábios no pescoço de Queta. Não iria embora, ficaria, inventaria uma mentira, embebedar-se-ia e só às três ou quatro da manhã iria levar Queta: aproximou os polegares sem vacilar e os olhos dela estalaram como duas uvas. Excitaste-o, ficou e por tua causa hoje também não dormi: paga. Passem para a mesa, disse Hortênsia, ele conseguiu ainda sepultar a barra ígnea entre as coxas de Queta e ouvir o estalido da carne chamuscada: paga. Durante todo o jantar, Landa assenhoreou-se da conversa, com uma versatilidade que aumentava a cada copo de vinho: boatos, piadas, anedotas, piropos. Queta e Hortênsia faziam-lhe perguntas, respondiam-lhe, elogiavam-no, e ele sorria. Quando se levantaram, Landa falava de uma maneira difusa e sobressaltada, queria

que Queta e Hortênsia dessem fumaças no seu charuto, ia ficar. Mas e repente olhou para o relógio e a alegria desvaneceu-se-lhe da cara: meia-noite e meia, partia-se-lhe o coração, mas tinha de se ir embora. Beijou a mão a Hortênsia, quis beijar Queta na boca, mas ela virou a cara e ofereceu-lhe a face. Ele acompanhou Landa à porta da rua.

 

Abanavam-na, está à tua espera, abriu os olhos, o motorista daquele senhor da outra vez, a cara zombeteira de Carlota: estava à tua espera ali à esquina. Vestiu-se à pressa, tinha estado com ele no domingo?, penteou-se, era por isso que não tinha vindo dormir?, e ouvia entontecida as risadas, as perguntas de Carlota. Pegou no cesto do pão, saiu e na esquina estava Ambrosio: não tinha acontecido nada aqui? Agarrou-a pelo braço, não queria que o vissem, obrigava-a a caminhar muito depressa, estava nervoso por tua causa, Amalia. Ela parou, olhou para ele, o que é que havia de acontecer, porque é que estava nervoso?, mas ele obrigou-a a continuar a andar: não sabes que D. Cayo já não é ministro? Estás a sonhar, disse Amalia, já se tinha resolvido tudo, a noite passada a senhora mas Ambrosio não, não, a noite passada tinham corrido com D. Cayo e com os outros ministros civis e formado um gabinete militar. À senhora não sabia de nada? Não, ainda não devia saber, devia estar a dormir, coitada, deitou-se julgando que tudo se estava a resolver. Agarrou Ambrosio pelo braço: e agora o que é que ia acontecer ao senhor? Não sabia o que lhe iria acontecer, mas com o deixar de ser ministro, já lhe tinha acontecido bastante, não? Amalia entrou sozinha na padaria, pensando tinha medo por, veio por, gosta de ti. Ao sair ela agarrou-o pelo braço, e como é que ele tinha vindo a San Miguel, que é que tinha dito a D. Fermín? D. Fermín tinha-se escondido, tinha medo de que o prendessem, a polícia tinha andado a vigiar-lhe a casa, estava no campo. E Ambrosio feliz, Amalia, enquanto estivesse escondido podiam ver-se mais vezes. Puxou-a para um canto numa garagem, ali não podiam vê-los lá de casa, juntou o corpo ao dela e abraçou-a. Amalia empinou-se para chegar ao ouvido dele: tinhas medo de que me acontecesse alguma coisa? Tinha, ouviu-o rir, agora ela ia ficar toda convencida. E Amalia: agora ia ser melhor que da outra vez, não?, já não se zangariam, não? E Ambrosio: não, agora não. Acompanhou-a até à esquina, ao despedir-se recomendou-lhe que se as raparigas me viram inventa uma mentira qualquer, que tinha vindo trazer um recado, que mal me conheces.

 

Esperou que o automóvel de Landa arrancasse e voltou para dentro de casa. Hortênsia tinha tirado os sapatos e cantarolava, encostada ao bar; graças a Deus que o velhadas se foi embora, disse Queta, da poltrona. Sentou-se, recuperou o seu copo de uísque e bebeu, devagar, olhando Hortênsia, que agora dançava no mesmo sítio. Bebeu o último gole, olhou para o relógio, e pôs-se de pé. Também tinha de se ir embora. Subiu ao quarto e, na escada, sentiu que Hortênsia deixava de cantar e vinha atrás dele. Queta riu-se. Não podia ficar?, aproximou-se Hortênsia por trás e sentiu a mão dela no braço, a sua voz amimada, já embriagada, esta semana não te vi uma única vez.

 

Para a casa, disse ele, pondo umas notas em cima do toucador: não podia, tinha que fazer logo de manhã. Voltou-se, os olhos quase líquidos de Hortênsia, a sua expressão carinhosa e idiota, e passou-lhe a mão pela face, sorrindo-lhe: estava muito ocupado com a viagem do presidente, talvez viesse amanhã. Pegou na maleta e desceu a escada, com Hortênsia suspensa no braço ouvindo-a ronronar como uma gata excitada, sentindo-a insegura, quase cambaleante. Estendida no sofá grande, Queta balouçava no ar o seu copo meio cheio, e viu os olhos dela voltarem-se para olhar para eles, zombeteiros. Hortênsia largou-o, correu atabalhoadamente, deixou-se cair no sofá.

 

- Quer sair cá de casa, Quetita - a sua voz melosa e cómica, os seus beicinhos teatrais. - Já não gosta de mim.

 

- Não te rales - Queta torceu-se na poltrona, abriu os braços, abraçou Hortênsia. - Ele que vá, filha, eu cá te consolo.

 

Ouviu o risinho desafiador de Hortênsia, viu-a estreitar-se contra Queta e pensou: sempre a mesma coisa. A rirem-se, a brincarem, a deixarem-se vencer pela brincadeira, abraçavam-se uma à outra, soldadas no sofá, do qual os seus corpos transbordavam, e ele via os lábios delas a debicarem-se, a afastarem-se e a unirem-se entre risos, os seus pés a entrelaçarem-se. Observava-as do último degrau, fumando, com um meio sorriso benévolo nos lábios, sentindo nos olhos uma súbita indecisão, no peito um princípio de cólera. Logo a seguir, com um gesto de derrota, deixou-se cair na poltrona, e largou a maleta que resvalou para o chão.

 

- Qual oito horas de sono, qual Comissão de Fomento - pensou, quase sem consciência de que, além de pensar, falava. - Deve estar agora no clube, a fazer apostas. Queria ficar, mas o vício foi mais forte.

 

Elas faziam cócegas uma à outra, davam gritos exagerados, diziam segredos, e os seus estremecimentos, palmadas e esforços aproximavam-nas da ponta do sofá. Não chegavam a cair: avançavam e retrocediam, empurrando-se, segurando-se, sempre a rir. Ele não lhes tirava a vista de cima, a cara franzida, os olhos meio fechados mas vigilantes. Sentiu a boca ressequida.

 

- É o único vício que não compreendo - pensou, em voz alta.

- O único que acaba por ser estúpido num homem com o dinheiro de Landa. Jogar para ter mais, para perder o que tem? Ninguém está satisfeito, há sempre qualquer coisa que falta ou que sobra.

 

- Olha para ele, a falar sozinho - Hortênsia levantou a cara do pescoço de Queta e apontou para ele. - Endoideceu. Já não se vai embora, olha para ele.

 

- Serve-me um copo - disse ele, resignado. - Vocês são a minha ruína.

 

Sorrindo, murmurando qualquer coisa entre dentes, Hortênsia dirigiu-se ao bar, tropeçando, e ele procurou os olhos de Queta e apontou-lhe a copa: fecha essa porta, as criadas deviam estar acordadas. Hortênsia trouxe-lhe o copo de uísque e sentou-se nos joelhos dele. Enquanto bebia, retendo o líquido na boca, saboreando-o de olhos fechados, sentia-lhe o braço nu em torno do pescoço, a mão dela a despenteá-lo, e ouvia a sua incoerente, terna voz: cayozinho merda, cayozinho merda. O fogo da garganta era suportável, agradável até. Suspirou, afastou Hortênsia, levantou-se e subiu as escadas sem olhar para elas. Um fantasma que de repente tomava corpo e saltava sobre uma pessoa pelas costas e a atirava ao chão: devia ser isso que tinha acontecido ao Landa, a todos. Entrou no quarto e não acendeu a luz. Avançou às apalpadelas até à poltrona do toucador, sentiu o seu próprio risinho magoado. Tirou a gravata, o casaco, e sentou-se. A Sr.a Heredia estava lá em baixo, ia subir. Rígido, imóvel, esperou que ela subisse.

 

- Andas angustiado? - pergunta Santiago. - Não te preocupes. Um amigo meu deu-me uma receita infalível contra isso, Ambrosio.

 

- O melhor é ficarmos aqui - disse o Chispas. - Ali só há bêbedos. Se saímos, dizem qualquer coisa à Teté e ternos trolha.

 

- Então chega o carro um bocadinho mais lá - disse a Teté. Quero ver os que andam a dançar.

 

O Chispas aproximou o carro do passeio e eles conseguiram ver, do banco, os ombros e as caras dos pares que dançavam no El Nacional; ouviam os timbales, as maracas, a trompeta, e o animador a anunciar a melhor orquestra tropical de Lima. Quando a música parava, ouviam o mar atrás dele e, se se voltavam, divisavam sobre o varandim do Malecón a espuma branca, a rebentação das ondas. Havia vários automóveis estacionados em frente dos restaurantes e bares de La Herradura. A noite estava fresca, estrelada.

 

- Encanta-me, vermo-nos às escondidas - disse a Teté, rindo-se.

 

- Parece-me que estamos a fazer uma coisa proibida. A vocês não?

 

- As vezes o velho vem dar as suas voltas por aqui, à noite disse o Chispas. - Tinha um piadão apanhar-nos os três aqui.

 

- Matava-nos, se soubesse que nos encontramos contigo - disse a Teté.

 

- Punha-se a chorar de emoção ao ver o filho pródigo - disse o Chispas.

 

- Vocês não acreditam, mas um dia destes apareço lá em casa disse Santiago. - Sem os avisar. Se calhar, para a semana.

 

- Claro que acredito, há meses que nos contas a mesma história

 

- e a cara da Teté iluminou-se: - Já sei, tive uma ideia. Vamos agora mesmo a casa, faz hoje as pazes com os pais.

 

- Agora não, noutra altura - disse Santiago. - Aliás, não quero ir com vocês, quero ir sozinho, para haver menos melodrama.

 

- Nunca hás-de ir lá a casa e vou-te dizer porquê - disse o Chispas. - Estás à espera que o velho vá à tua pensão, pedir-te desculpa sei lá do quê e implorar-te que voltes.

 

- Nem sequer quando o danado do Bermúdez o perseguia lá foste, nem sequer no dia dos anos dele lhe telefonaste - disse a Teté. És mesmo levado do diabo, sabichão.

 

- Se julgas que o velho se vai pôr a chorar que voltes, estás maluco - disse o Chispas. - Puseste-te a mexer como um doido e os velhos estão sentidos e com razão. Quem tem de lhes pedir desculpa és tu, vivaço.

 

- Vamos passar a vida a falar no mesmo? - disse Santiago. Mudem de assunto, façam favor. Quando é que casas com o Popeye, Teté?

 

- Que é que te deu, palerma? - disse a Teté. - Nem sequer ando com ele. Não passa dum amigo.

 

- Leite de magnésia e uma queca por semana, Zavalita - disse Carlitos. - Com o estômago limpo e a gaita em dia não há angústia que resista. Uma receita infalível, Zavalita.

 

Em casa, Carlota veio-lhe ao encontro, atordoadamente: o senhor Já não era ministro, estavam a dizer na rádio, tinham-no substituído por um militar. Ah, sim?, disfarçava Amalia, colocando os pães no cesto, e a senhora? Estava furiosa, Simula tinha acabado de lhe levar os jornais e ela tinha dito uns palavrões que até aqui se ouviram. Amalia levou-lhe a cafeteirinha de café, o sumo de laranja e as torradas, e da escada ouviu o tiquetaque da Radio Reloj. A senhora estava meio por vestir, os jornais espalhados pela cama desfeita, em vez de responder-lhe aos bons dias ordenou-lhe só café puro, com uma fúria. Estendeu-lhe a chávena, a senhora bebeu um golinho e pôs a chávena outra vez na bandeja. Amalia seguia-a do guarda-vestidos para o quarto de banho, do quarto de banho para o toucador, para ela beber o café enquanto se vestia, via a mão tremer-lhe imenso, o risco das sobrancelhas torcer-se-lhe, e ela tremia também, ouvindo-a: aqueles ingratos, se não fosse o senhor, o Odría e aqueles ladrões já há muito teriam ido para o caraças. Agora queria ver o que esses desavergonhados fariam sem ele, o hâton escapou-se-lhe das mãos, entornou o café duas vezes, sem ele não durariam nem um mês. Saiu do quarto sem acabar de se pintar, chamou um táxi e, enquanto esperava, mordia os lábios e de repente um palavrão. Assim que ela saiu, Simula ligou o rádio, estiveram todo o dia a ouvir. Falavam do gabinete militar, contavam a vida dos novos ministros, mas em nenhuma estação mencionavam o senhor. Ao anoitecer, a Radio Nacional disse que a greve de Arequipa tinha terminado, amanhã os colégios, a universidade e o comércio reabririam e Amalia lembrou-se do amigo de Ambrosio: tinha lá ido, se calhar, tinham-no morto. Simula e Carlota comentavam as notícias e ela ouvia-as, distraindo-se de vez em quando, a pensar em Ambrosio: assustou-se por, veio por, gosta. Se calhar, agora que já não estava no Governo, vem viver para aqui, dizia Carlota, e Simula era uma grande desgraça para nós, e Amalia pensou: se tivessem, tinha algum mal que o Ambrosio alugasse um quartinho para os dois? Tinha, era aproveitarem-se de uma desgraça. A senhora voltou tarde, com a Menina Queta e a Menina Lucy. Sentaram-se na sala e, enquanto Simula preparava o jantar, Amalia ouvia as meninas a consolarem a senhora: tinham-no corrido para acabar com a greve, mas ele continuaria a mandar de casa dele, era um homem forte, o Odría devia-lhe tudo. Mas nem sequer me telefonou, dizia a senhora, passeando de um lado para outro, e elas devia estar em reuniões, discussões, havia de telefonar, se calhar, viria esta noite mesmo. Bebiam os seus uisquezinhos e ao sentarem-se à mesa já se riam e diziam graças. Por volta da meia-noite, a Menina Lucy foi-se embora.

 

Chegou primeiro Hortênsia, sem barulho: viu a sua silhueta no umbral, vacilando como uma chama, e viu-a tactear na penumbra e acender o candeeiro de pé. Surgiu a colcha preta no espelho que tinha à frente, a cauda eriçada do dragão animou o espelho do toucador e ouviu Hortênsia começar a dizer qualquer coisa e enrolar-se-lhe a voz. Vá lá, vá lá. Dirigia-se a ele fazendo equilíbrios e a sua cara perdida numa expressão idiota desapareceu quando entrou na sombra do canto em que ele estava. Deteve-a com uma voz que ouviu difícil e ansiosa: e a doida já se tinha ido embora? Em vez de continuar em direcção a ele, a silhueta de Hortênsia desviou-se e avançou ziguezagueando até à cama, onde se deixou cair com suavidade. Ali a luz dava-lhe parcialmente, viu a mão dela erguer-se para lhe designar a porta, e olhou: Queta tinha chegado secretamente também. A sua comprida figura de formas cheias, a sua cabeleira avermelhada, a sua postura agressiva. E ouviu Hortênsia: não queria nada com ela, chamava-te a ti, Quetita, a ela desprezava-a e só pergunta por ti. Se fossem mudas, pensou, e empunhou decidido a tesoura, um só corte silencioso, zás, e viu as línguas caírem no chão. Tinha-as aos seus pés, dois animaizinhos chatos e vermelhos que agonizavam manchando a alcatifa. No seu escuro refúgio riu-se e Queta, que continuava no umbral como se esperasse uma ordem, também se riu: ela não queria nada com o cayozinho merda, querida, não se queria ir embora, não largava? Que se fosse embora e pronto, não precisavam dele, e ele com infinita angústia pensou: não está bêbeda, ela não. Falava como uma actriz medíocre que ainda por cima começou a perder a memória e recita devagar, com medo de se esquecer do papel. Entre, Sr.a Heredia, murmurou, sentindo uma invisível decepção, uma ira que lhe turvava a voz. Viu-a mover-se, avançar fingindo insegurança, e ouviu Hortênsia: ouviste o que ele disse, tu conheces essa mulher, Quetita? Queta tinha-se sentado ao lado de Hortênsia, nenhuma delas olhava para o seu canto e ele suspirou. Não precisavam dele, querida, que fosse ter com essa mulher: porque fingia, porque falava, zás. Não mexia a cara, só os seus olhos giravam da cama para o espelho do guarda-vestidos e para o da parede da cama e sentia o corpo retesado e todos os nervos alerta como se dos almofadões da poltrona pudessem nascer repentinamente pregos. Elas tinham começado a despir-se uma à outra e acariciavam-se à vez, mas os seus movimentos eram demasiado veementes para serem certos, os seus abraços demasiado rápidos ou lentos ou apertados, e demasiado súbita a fúria com que as suas bocas investiam uma contra a outra, e ele mato-as se, matava-as se. Mas não se riam: tinham-se estendido, entrelaçadas, ainda meio despidas, finalmente caladas, beijando-se, esfregando os corpos com demorada lentidão. Sentiu a sua fúria diminuir, as mãos molhadas de suor, a presença amarga da saliva na boca. Agora estavam quietas, presas no espelho do toucador, uma mão sobre os alfinetes de um soutien, uns dedos a esticarem-se sob uma combinação, um joelho encaixado entre as duas coxas. Esperava, tenso, com os cotovelos esborrachados contra os braços da poltrona. Não se riam, sim, tinham-se esquecido dele, não olhavam para o seu canto, e engoliu a saliva. Pareceu que despertavam, que de repente passavam a ser mais, e os seus olhos iam rapidamente de um espelho para o outro e para a cama, de modo a não perder nenhuma das figurinhas diligentes, livres, hábeis, que desabotoavam uma alça, enrolavam uma meia, faziam deslizar umas cuecas, e ajudavam-se e puxavam e não falavam. As peças de roupa iam caindo sobre a alcatifa e uma onda de impaciência e calor chegou até ao seu canto. Já estavam nuas e viu Queta, ajoelhada, deixar-se cair suavemente sobre Hortênsia até a cobrir quase completamente com o seu grande corpo moreno, mas saltando do tecto para a colcha e da colcha para o guarda-vestidos ainda conseguia divisá-la fragmentada debaixo da sólida sombra estendida sobre ela: um pedaço de nádega branca, um peito branco, um pé branquíssimo, uns calcanhares, e os seus cabelos negros entre os alvoroçados, avermelhados, de Queta, que tinha começado a mexer-se. Ouviu-as respirar, arquejar, sentia o suavíssimo ranger das molas, e viu as pernas de Hortênsia desprenderem-se das de Queta e erguerem-se e pousarem-se sobre elas, viu o brilho crescente das peles e agora podia também sentir-lhe o cheiro. Só as cinturas e as nádegas mexiam, num movimento profundo e circular, enquanto a parte superior dos corpos delas permanecia soldada e imóvel. Tinha as narinas muito abertas e mesmo assim faltava-lhe o ar; fechou e abriu os olhos, respirou pela boca profundamente e parecia-lhe que cheirava a sangue brotando, a pus, a carne em decomposição, e ouviu um ruído e olhou. Queta estava agora de costas e Hortênsia aparecia pequenina e branca, enrolada, com a cabeça inclinada e os lábios entreabertos e húmidos entre as pernas escuras viris que se abriam. Viu desaparecer a sua boca, os seus olhos fechados, que mal sobressaíam da mata de pêlos negros, e as suas mãos desabotoavam a camisa, arrancavam a camisola, despiam as calças, e puxavam o cinto com fúria. Aproximou-se da cama com o cinto ao alto, sem pensar, sem ver, com os olhos fixos na escuridão lá do fundo, mas só chegou a golpear uma vez: umas cabeças que se levantavam, umas mãos que agarravam no cinto, puxavam e arrastavam. Ouviu um palavrão, ouviu o seu próprio riso. Tentou separar os dois corpos, que se rebolavam na cama contra ele, e sentia-se empurrado, esmagado, suado, num remoinho cego e sufocante, e ouvia as pancadas do seu coração. Um instante depois sentiu a picada nas fontes e uma espécie de pancada no vazio. Ficou um momento imóvel, respirando fundo, e a seguir afastou-se delas, torcendo o corpo, com um desgosto que sentia crescer cancerosamente. Permaneceu estendido, com os olhos fechados, imerso numa modorra confusa, sentindo obscuramente que elas voltavam a mexer-se e a arquejar. Por fim levantou-se, tonto, e sem olhar para trás passou ao quarto de banho: dormir mais.

 

- E tu quando é que te casas, Chispas? - perguntou Santiago. O criado aproximou-se do automóvel, colocou a bandeja na janela.

 

O Chispas serviu a coca-cola da Teté, as cervejas deles.

 

- Gostava de casar já, mas agora é difícil, por causa do trabalho

 

- disse, soprando a espuma do copo. - O Bermúdez deixou-nos quase na falência. As coisas começaram agora a compor-se, e não posso deixar o velho sozinho. Há anos que trabalho sem ter férias. Gostava de viajar um bocado. Vou-me desforrar na lua-de-mel, hei-de conhecer pelo menos cinco países.

 

- Na lua-de-mel hás-de estar tão ocupado que não terás tempo de ver nada - disse Santiago.

 

- Deixa-te de vulgaridades diante da miúda - disse o Chispas.

 

- Conta-me que tal é a famosa Cary, Teté - disse Santiago.

 

- Nem carne nem peixe - disse a Teté, rindo-se. - É uma desenxabida lá da Punta, que não abre a boca.

 

- É uma rapariga formidável, entendemo-nos às mil maravilhas

 

- disse o Chispas. - Um dia destes apresento-ta, sabichão. Eu trazia-a uma destas vezes, mas, não sei, homem, não vês que nos crias problemas a todos com as tuas tolices?

 

- Ela sabe que eu não vivo lá em casa? - perguntou Santiago. O que é que lhe contaste?

 

- Que és meio maluco - disse o Chispas. - Que te zangaste com o velho e saíste de casa. Nem sequer lhe contei que eu e a Teté te vimos ver às escondidas, porque de repente ela pode descair-se com isso lá em casa.

 

- Estás-nos sempre a perguntar o que é que fazemos, mas nunca nos contas nada de ti - disse a Teté. - Assim não vale, sabichão.

 

- Gosta de armar em misterioso, más comigo estás tramado, sabichão - disse o Chispas. - Se não me quiseres contar o que fazes, isso é lá contigo. Eu não te pergunto nada.

 

- Mas eu morro de curiosidade - disse a Teté. - Anda, sabichão, conta lá qualquer coisa.

 

- Se a única coisa que fazes é andar da pensão para o jornal e do jornal para a pensão, a que horas é que vais a San Marcos? - perguntou o Chispas. - Pregas-nos cada mentirola! Tu não andas nada na universidade.

 

- Tens namorada? - perguntou a Teté. - Não me vais querer convencer de que não andas com raparigas.

 

- Só para demonstrar que não é como os outros, há-de acabar por casar com uma preta, ou chinesa, ou índia - riu-se o Chispas.

- Hás-de ver, Teté.

 

- Ao menos conta-nos que amigos tens, anda - disse a Teté. Continuam a ser comunistas?

 

- Passou dos comunistas aos crápulas - riu-se o Chispas. Tem um amigo em Chorrillos que parece saído do Frontón. Uma cara de bandido e um cheiro que tomba.

 

- Se não gostas do jornalismo, não sei de que é que estás à espera para fazeres as pazes com o pai e vires trabalhar com ele - disse a Teté.

 

- Ainda gosto menos dos negócios que do jornalismo - disse Santiago. - Isso está bem para o Chispas.

 

- Se não vais ser advogado, nem queres fazer negócios, nunca hás-de ter dinheiro - disse a Teté.

 

- O problema é que também não quero ter dinheiro - disse Santiago. - Aliás, para quê? O Chispas e tu hão-de ser milionários, vocês depois ajudam-me quando eu precisar.

 

- Estás na tua noite - disse o Chispas. - Pode-se saber o que é que tens contra as pessoas que querem ganhar dinheiro?

 

- Nada, simplesmente que não quero ganhar dinheiro - disse Santiago.

 

- Bom, isso é a coisa mais simples do mundo - disse o Chispas.

 

- Antes que se zanguem, vamos comer uns frangos - disse a Teté. - Estou a morrer de fome.

 

Na manhã seguinte acordou antes de Simula. Eram só seis horas no relógio da cozinha, mas o céu já estava claro e não fazia frio. Varreu o quarto e fez a cama com toda a calma, como sempre esteve um bom bocado a medir a temperatura da água do chuveiro com o pé e acabou por entrar aos bocadinhos; ensaboou-se sorrindo, lembrando-se da senhora: as patinhas, as maminhas, o cuzinho. Saiu e Simula, que estava a arranjar o pequeno-almoço, mandou-a acordar Carlota. Tomaram o pequeno-almoço e às sete e meia foi comprar os jornais. O rapaz do quiosque meteu-se com ela e em vez de lhe responder uma asneira brincou um bocado com ele. Sentia-se bem humorada, só faltavam três dias para domingo. Queriam que as acordassem cedo, vê lá se te despachas a levar-lhes o pequeno-almoço. Só na escada viu a fotografia do jornal. Bateu à porta várias vezes, a voz ensonada da senhora, sim?, e entrou a falar: vinha uma fotografia do senhor na Prensa, minha senhora. Na semiobscuridade um dos dois vultos da cama endireitou-se, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. A senhora atirou os cabelos para trás e enquanto ela pousava a bandeja na cadeira e a encostava à cama a senhora olhava para o jornal. Abria a cortina, minha senhora?, mas ela não respondeu: pestanejava, com os olhos cravados na fotografia. Por fim, sem mexer a cabeça, esticou uma mão e abanou a Menina Queta.

 

- Que é que queres? - queixaram-se os lençóis. - Deixa-me dormir, é meia-noite.

 

- Foi-se embora, Queta - abanava-a com fúna, olhava espantada para o jornal. - Desapareceu, pôs-se a mexer.

 

A Menina Queta endireitou-se para ver, e Amalia como sempre sentiu vergonha ao vê-las assim tão juntas, sem nada.

 

- Para o Brasil - repetia a senhora, com voz espantada. - Sem cá vir, sem telefonar. Pôs-se a mexer sem me dizer uma palavra, Queta.

 

Amalia enchia as chávenas, tentava ler, mas só via os cabelos negros da senhora, os louros da menina Queta, tinha-se ido embora, e agora?

 

- Bom, deve ter tido de partir de urgência - dizia a Menina Queta, tapando o peito com o lençol. - Não tarda a mandar-te a passagem. Deve ter-te deixado uma carta, com certeza.

 

A senhora estava desfigurada e Amalia via-lhe a boca tremer, a mão que segurava o jornal ia-o amachucando: aquele sacana, Queta, sem lhe telefonar, sem lhe deixar um centavo, e soluçou. Amalia deu meia volta e saiu do quarto: não te ponhas assim, querida, ouvia enquanto descia os degraus a correr para ir contar a Carlota e a Simula.

 

Enxaguou a boca, limpou o corpo com minúcia, friccionou a cabeça com uma toalha ensopada em água-de-colónia. Vestiu-se muito devagar, com o espírito vazio e um zumbido delicado nos ouvidos. Voltou ao quarto e elas tinham-se coberto com os lençóis. Distinguiu na penumbra as cabeleiras em desordem, as manchas de rouge e rimrnel nas caras saciadas, o sossego adormecido dos seus olhos. Queta tinha-se já encolhido para dormir, mas Hortênsia olhava para ele.

 

- Não ficas cá? - a sua voz era desinteressada e opaca.

 

- Não há lugar - disse ele, da porta, e sorriu-lhe antes de sair. Amanhã venho, se calhar.

 

Desceu a escada depressa, apanhou a maleta da alcatifa, saiu para a rua. Sentados no muro do jardim, Ludovico e Ambrosio conversavam com os guardas da esquina. Ao vê-lo, calaram-se e puseram-se de pé.

 

- Boa noite - murmurou, estendendo um par de libras aos guardas. - Bebam qualquer coisa contra o frio.

 

Mal entreviu os seus sorrisos, ouviu os seus agradecimentos e entrou no carro: para Chaclacayo. Apoiou a cabeça no espaldar do banco, puxou a gola do casaco para cima, ordenou que fechassem as janelas da frente. Ouvia, imóvel, o rumor da conversa de Ambrosio e Ludovico, e de quando em quando abria os olhos e reconhecia ruas, praças, a escura estrada: tudo lhe zumbia na cabeça, monotonamente. Dois projectores caíram sobre o automóvel quando este parou. Ouviu ordens e boas-noites, divisou as silhuetas dos guardas que abriam o portão. A que horas amanhã, D. Cayo?, perguntou Ambrosio. Às nove. As vozes de Ambrosio e Ludovico perderam-se nas suas costas, divisou silhuetas retirando a tranqueta da garagem. Esteve sentado à secretária uns minutos, anotando na agenda os assuntos do dia seguinte. Na sala de jantar agarrou num copo de água gelada e subiu para o quarto, a passos lentos, sentindo o copo tremer-lhe na mão. Os comprimidos para dormir estavam na prateleira do quarto de banho, ao pé da máquina de barbear. Tomou dois, com um grande gole de água. Às escuras deu corda ao relógio e pôs o despertador para as oito e meia. Puxou os lençóis até ao queixo. A criada tinha-se esquecido de correr as cortinas e o céu era um quadrado negro salpicado de brilhos diminutos. Os comprimidos demoravam dez a quinze minutos a trazer o sono. Tinha-se deitado às três e quarenta e os ponteiros fosforescentes do despertador marcavam quatro menos um quarto. Cinco minutos ainda de insónia.

 

Chegou à redacção pouco antes das cinco e estava a tirar o casaco quando o telefone tocou ao fundo da sala. Viu Arispe levantar o auscultador, mexer os lábios, deitar uma olhadela às secretárias vazias e descobri-lo: Zavalita, faça favor. Atravessou a redacção, parou defronte da mesa empilhada de beatas, papéis, fotografias e rolos de provas.

 

- Os palermas das criminais não vêm antes das sete - disse Arispe. - Vá você, tome as notas e depois passe-as ao Becerrita.

 

- General Garzón, trezentos e onze - leu Santiago no papel. É em Jesus Maria, não é?

 

- Vá descendo, eu depois passo palavra ao Periquito e ao Darío

 

- disse Arispe. - Deve haver fotografias dela no arquivo.

 

- A Musa, esfaqueada? - perguntou Periquito na camioneta, enquanto carregava a máquina fotográfica. - Bolas, uma notícia em cheio!

 

- Há uns anos cantava na Radio el Sol - disse Darío. - Quem é que a matou?

 

- Um crime passional, parece - disse Santiago. - Nunca ouvi falar dela.

 

- Tirai-lhe umas fotografias quando ela foi rainha da farândola, um pedação de mulher - disse Periquito. - Agora estás nas criminais, Zavalita?

 

- Só estava eu na redacção quando deram a informação ao Arispe

 

- disse Santiago. - Fica-me de emenda, ninguém me mandou chegar a horas.

 

A casa ficava junto a uma farmácia, estavam lá dois carros da polícia e havia gente aglomerada na rua, aí vem La. Crónica, gritou um miudito. Tiveram de mostrar os cartões do jornal a um polícia e Periquito fotografou a fachada, a escada e o primeiro patamar. Uma porta aberta, pensa, fumo de cigarros.

 

- A si não o conheço - disse um gordo com papada, vestido de azul, examinando o cartão. - Que é feito do Becerrita?

 

- Não estava no jornal quando nos telefonaram - e Santiago sentiu o cheiro esquisito, carne humana suada, pensa, fruta podre. Não me conhece porque eu trabalho noutra secção, inspector.

 

O flash de Periquito relampejou, o da papada pestanejou e chegou-se para o lado. Entre as pessoas que murmuravam, Santiago viu um fragmento de parede forrada a papel azul-claro, lajes sujas, uma mesa-de-cabeceira, uma colcha preta. Com licença, dois homens afastaram-se, os seus olhos subiram e desceram muito depressa, a silhueta tão branca, pensa, sem parar nos coágulos, nos lábios vermelho-escuros das feridas enrugadas, no emaranhado de cabelos que ocultava a cara dela, na mata de pêlos pretos acachapada entre as pernas. Não se mexeu, não disse nada. Os arco-íris de Periquito relampejavam à esquerda e à direita, podia-lhe fotografar a cara, inspector?, uma das mãos afastou a cabeleira revolta e apareceu um rosto azulado e intacto, com sombras por baixo das pestanas curvas. Obrigado inspector, disse Periquito, agora acocorado ao pé da cama, e o jorrozinho de luz branca brotou de novo. Dez anos a sonhar com ela, Zavalita, se a Anita soubesse, julgaria que estavas apaixonado pela Musa e teria ciúmes.

 

- Nota-se que o amigo jornalista é novo nestas lides - disse o da papada. - Veja lá não vá desmaiar, rapaz, já temos trabalho que chegue com esta senhora.

 

As caras veladas pelo fumo relaxaram-se em sorrisos, Santiago fez um esforço e sorriu também. Ao tocar na lapiseira, sentiu que a mão lhe suava; pegou no bloco, os seus olhos voltaram a dirigir-se para ela: mechas de cabelo, seios descaídos, mamilos escamosos e sombrios como verrugas. O cheiro entrava-lhe às golfadas pelo nariz e enjoava-o.

 

- Até o umbigo lhe abriram - Periquito mudava as lâmpadas com uma só mão, mordia a língua. - É preciso ser sádico.

 

- Também lhe abriram outra coisa - disse o da papada, com sobriedade. - Chega aqui, Periquito; você também, rapaz, vejam que barbaridade.

 

- Um buraco no buraco - murmurou uma voz delambida, e Santiago ouviu risinhos ténues e comentários ininteligíveis. Afastou os olhos da cama, deu um passo na direcção do homem de azul.

 

- Podia dar-me algumas informações, inspector?

 

- Para já, as apresentações - disse o da papada, cordialmente, e estendeu-lhe uma mão mole. - Adalmiro Peralta, chefe da Divisão de Homicídios, e este é o meu adjunto, o primeiro-oficial Ludovico Pantoja. Não se esqueça dele também.

 

Tentavas reanimar o sorriso, conservá-lo na cara à medida que tomavas notas no bloco, Zavalita, à medida que vias os traços histéricos da caneta a riscar o papel, resvalando sem destino.

 

- Favor por favor, o Becerrita há-de pô-lo ao corrente - à medida que ouvias a voz risonha e familiar do inspector Peralta. - Nós damos-lhes a notícia em primeira mão e vocês dão-nos um bocado de peliculina, que vem sempre a calhar.

 

Risos outra vez, os flashes de Periquito, o cheiro, o fumo em redor: nessa altura, Zavalita. Santiago anuía, com o bloco semidobrado, colado ao peito, garatujando agora traços, pontos, vendo surgir letras que pareciam hieróglifos.

 

- Quem nos avisou foi uma velha que vive sozinha no apartamento do lado - disse o inspector. - Ouviu gritos, veio ver e encontra a porta aberta. Foi preciso levá-la à Assistência Pública, um abalo nervoso. Imagine o susto que ela apanharia quando se lhe deparou isto.

 

- Oito facadas - disse o primeiro-oficial Ludovico Pantoja. Contadas pelo médico legista, meu rapaz.

 

- É provável que estivesse drogada - disse o inspector Peralta.

 

- Pelo cheiro e pelos olhos, parece. Ultimamente, andava quase sempre drogada. Tinha ficha disso na divisão. Enfim, a autópsia o dirá.

 

- Há um ano esteve implicada numa questão de drogas - disse o oficial Ludovico Pantoja. - Foi dentro, com uma drogada conhecida. Tinha caído muito baixo.

 

- Pode-se fotografar a navalha, inspector? - perguntou Periquito.

 

- Os peritos levaram-na - disse o inspector Peralta. - Uma vulgar, de quinze centímetros. Sim, impressões digitais para dar e vender.

 

- Ainda não o apanhámos, mas vai ser canja - disse o oficial Ludovico Pantoja. -- Deixou a casa cheia de impressões digitais, nem sequer levou A arma, fez isto em pleno dia. Não foi um profissional, nem pouco mais ou menos.

 

- Ainda o não identificámos porque esta senhora não tinha só um amante, tinha muitos - disse o inspector Peralta. - Ultimamente qualquer homem a comia. Tinha descido de categoria, coitada.

 

- E de que maneira, veja lá onde ela veio morrer - o oficial Ludovico Pantoja designou o quarto com comiseração. - Depois de ter vivido, tão à grande.

 

- Foi a rainha da comédia no ano em que eu entrei para a Crónica - disse Periquito. - Em quarenta e quatro. Já lá vão catorze anos, caramba.

 

- A vida é uma montanha russa, está cheia de altos e baixos sorriu o inspector Peralta. - Ponha esta frase no seu artigozinho, meu rapaz.

 

- Lembrava-me dela mais bonita - disse Periquito. - Na realidade, não era grande coisa.

 

- Os anos não perdoam, Periquito - disse o inspector Peralta.

 

- E, além disso, as facadas desfiguraram-na.

 

- Queres que te tire uma fotografia, Zavalita? - perguntou Periquito. - O Becerrita tira sempre uma ao pé do cadáver, para a sua colecção particular. Já tem uns bons milhares delas.

 

- Eu conheço a colecção do Becerrita - disse o inspector Peralta. - É de causar arrepios até a um tipo como eu, que já viu de tudo.

 

- Quando chegar à redacção, digo ao senhor Becerra que lhe telefone, inspector - disse Santiago. - Agora não o maço mais. Muito obrigado pela informação.

 

- Diga-lhe que passe pelo meu gabinete por volta das onze disse o inspector Peralta. - Muito prazer, meu rapaz.

 

Saíram e no patamar Periquito parou para fotografar a porta da vizinha que tinha descoberto o cadáver. Os curiosos continuavam no passeio, a espreitar a escada por cima do ombro do polícia que montava guarda à porta, e Darío estava a fumar, na camioneta: porque é que não o tinham levado?, ele gostava de ter visto aquilo. Subiram para a camioneta, arrancaram, um momento depois cruzaram-se com a camioneta da Última Hora.

 

- Lixaram-lhes a primeira-mão - disse Darío. - Lá vai o Norwin.

 

- Claro, homem - Periquito estalou os dedos e deu uma cotovelada a Santiago. - Foi amante do Cayo Bermúdez. Vi-a uma certa vez a entrar com ele num restaurante chinês da Calle Capón. Claro, homem.

 

- Nem vi nos jornais nem sabia nada disso - disse Ambrosio. Devia estar em Pucallpa quando isso aconteceu, menino.

 

- Amante do Cayo Bermúdez? - disse Darío. - Então é mesmo pestilenta - disse Carlitos. - Pagaste-o caro, Zavalita.

 

- Eras o motorista dele e não sabias que ele tinha uma amante?

- pergunta Santiago.

 

- Não sabia nem nunca a vi - diz Ambrosio. - É a primeira vez que o ouço falar disso, menino.

 

Uma ansiosa excitação substituíra a vertigem do primeiro momento, uma crua veemência à medida que a camioneta atravessava a baixa e tentavas decifrar os gatafunhos do bloco e reconstituir a conversa com o inspector Peralta, Zavalita. Apeou-se de um salto e subiu atabalhoadamente as escadas da Crónica. As luzes da redacção estavam acesas, as secretárias ocupadas, mas não parou para conversar com ninguém. Saiu-te a sorte grande?, perguntou-lhe Carlitos, e ele: uma notícia formidável, Carlitos. Instalou-se diante da máquina e esteve uma hora sem afastar os olhos do papel, a escrever, a corrigir e a fumar sem descanso. Depois, conversando com Carlitos, esperou a chegada de Becerrita. E por fim viu-o entrar, o atarracado, pensa, adiposo, mal-humorado, envelhecido Becerrita, com o seu cnapéu doutros tempos, a sua cara de jogador de boxe retirado, o seu ridículo bigodinho e os seus dedos manchados de nicotina. Que decepção, Zavalita. Não correspondeu ao seu cumprimento, quase nem leu os três linguados, ouviu sem um gesto o relato que Santiago lhe ia fazendo. O que seria um crime a mais ou a menos para o Becerrita,

que se levantava, vivia e deitava entre assassínios, Zavalita, roubos, esfalques, incêndios, assaltos, que há um quarto de século vivia de histórias de drogados, ladrões, putas, cabrões? Mas o desânimo foi breve, Zavalita. Pensa: nada o entusiasmava, mas sabia do seu ofício. Pensa: talvez lhe agradasse. Tirou o chapéu de fim de século, o casaco, arregaçou as mangas da camisa, que segurava nos cotovelos com umas ligas de caixeiro, pensa, e aliviou o nó da gravata tão coçada e suja como o fato e os sapatos, e, abúlico e avinagrado, avançou pela redacção, indiferente às vénias, fortalhaço e lento e direito até à secretária de Arispe. Santiago aproximou-se do canto de Carlitos para ouvir. Becerrita tinha dado um murrozinho com os nós dos dedos na máquina de escrever e Arispe levantava a cabeça: o que desejava, meu senhor?

 

- A página central só para mim - a sua voz áspera e achacosa, pensa, negligente, zombeteira. - E o Periquito à minha disposição, pelo menos por três ou quatro dias.

 

- E uma casa com piano à beira-mar, também não, meu senhor?

 

- perguntou Arispe.

 

- E mais um reforço, por exemplo o Zavalita, porque na minha secção há duas vagas - disse Becerrita, secamente. - Se queres que exploremos isto até ao fundo, é preciso atribuir-lhe um redactor dia e noite.

 

Arispe mordiscava pensativo o seu lápis vermelho, folheava as páginas; depois os seus olhos passearam pela redacção, procurando. Estás lixado, disse Carlitos, nega-te sob qualquer pretexto. Mas não inventaste nenhum, Zavalita, dirigiste-te feliz à secretária de Arispe, feliz à boca do lobo. Excitação, emoções, sangue: fodido havia pouco, Zavalita.

 

- Quer passar às criminais por uns dias? - perguntou Arispe. O Becerrita pediu-o.

 

- Agora pode-se escolher? - murmurou acidamente Becerrita.

 

- Quando eu entrei para a Crónica, ninguém pediu opinião. Vá correr os comissariados, vamos abrir uma secção criminal e você fica encarregado dela, há vinte e cinco anos que me mantêm no mesmo sítio e ainda não me perguntaram se gosto ou não.

 

- Um dia o mau-humor há-de fermentar-lhe aqui, meu senhor

 

- Arispe levou a mão ao coração com o seu lápis vermelho -, e isto há-de estalar como uma casca de ovo. Aliás, se te tirassem da página criminal, morrias de pena, Becerrita. És o ás da página vermelha no Peru.

 

- Não sei para quê, se todas as semanas me protestam uma letra

 

- grunhiu Becerrita, sem modéstia. - Preferia que me elogiassem menos e me pagassem mais.

 

- Vinte e cinco anos a comer de graça as putas mais caras, a embebedar-se de graça nas melhores casas de pegas e ainda se queixa, meu senhor - disse Arispe. - Que diremos nós, que ficamos a tinir de cada vez que tomamos uma bebida ou arranjamos uma gaja.

 

O batucar das máquinas parara, cabeças risonhas seguiam das secretárias o diálogo entre Arispe e Becerrita, que tinha começado a sorrir hibridamente, a soltar pequenos espasmos daquele riso rouco e antipático que se convertia em estrépito de soluços, arrotos e invectivas quando estava bêbedo, pensa.

 

- Já estou velho - disse, por fim. - Já não dou uma, já não gosto de mulheres.

 

- Mudaste de gostos com a velhice - disse Arispe, e olhou para Santiago. - Tenha cuidado, já estou a ver porque é que o pediu para a página dele.

 

- Que engraçados que são os chefes de redacção - grunhiu Becerrita. - E o outro? Dás-me a página central e o Periquito?

 

- Dou-tos, mas trata-mos bem - disse Arispe. - Quero que sacudas o público e me aumentes a tiragem. Isto é manjar de príncipe, meu senhor.

 

Becerrita anuiu, deu meia volta, as máquinas começaram a bater outra vez, e, seguido de Santiago, encaminhou-se para a sua secretária. Ficava ao fundo, dali observava as costas de todos, pensa, era um dos temas dele. Chegava bêbedo e postava-se no meio da redacção, abria o casaco e, com os punhos nas ancas rechonchudas: mandavam-me sempre para o eu de tudo! Os redactores encolhiam-se nas cadeiras, afundavam os narizes nas máquinas, nem o Arispe se atrevia a olhar para ele, pensa, enquanto o Becerrita passava revista com lentos olhos enfurecidos aos atarefados repórteres, desprezavam a página dele e desprezavam-no a ele, não era?, aos concentradíssimos revisores, era por isso que o tinham encafuado no eu da redacção?, ao aborto titulador Hernández, para ele ver o eu dos senhores das locais, o eu dos senhores dos telegramas?, a passear de um lado para o outro como um inquieto general antes da batalha, para apanhar nas trombas com os peidos dos senhores redactores?, e atirando para o tecto de quando em quando a sua gargalhada tempestuosa. Mas uma vez que Arispe lhe propôs mudar de secretária, indignou-se, pensa: só depois de morto é que me tiram do meu canto, caralho. A sua secretária era baixinha e um bocado aleijada, como ele, pensa, ensebada como o fato brilhante que costumava trazer adornado de nódoas de gordura. Tinha-se sentado, acendia um cigarro doentio, Santiago esperava de pé, emocionado por ele te ter pedido a ti, Zavalita, excitado já com os artigos que escreverias: para o matadouro como quem vai para uma festa, Carlitos.

 

- Bom, já a temos enfiada, e agora é preciso mexermo-nos. Becerrita levantou o telefone, marcou um número, falou com a azeda boca colada ao bocal; a sua mão sapuda, de unhas enegrecidas, garatujava uma folha.

 

- Andavas sempre à procura de emoções fortes - disse Carlitos.

- De certo modo, fizeram-te a vontade.

 

- Sim, no Porvenir, vá já andando com o Periquito - Becerrita desligou o telefone, pousou os olhinhos remelosos em Santiago. Foi lá que essa mulher cantou em tempos. A dona conhece-me. Peça-lhe informações, fotografias. As amigas, os amigos, direcções, a vida que ela fazia. O Periquito que fotografe a casa.

 

Santiago foi vestindo o casaco, à medida que descia a escada. Becerrita tinha avisado Darío, e a camioneta, estacionada à porta, obstruía o trânsito; os automobilistas tocavam a buzina. Um momento depois apareceu Periquito, furioso.

 

- Já tinha avisado o Arispe que nunca mais trabalharia com esse negreiro e agora oferece-me ao Becerrita por uma semana - ia carregando a máquina fotográfica, vociferando. - Vai-nos arrancar a pele e o coirão, Zavalita.

 

- Pode ser que ele tenha um humor de cão, mas bate-se como um leão pelos redactores dele - disse Darío. - Se não fosse ele, há muito que teriam despedido o bebedola do Carlitos. Não digas mal do Becerrita.

 

- Vou abandonar o jornalismo, estou farto - disse Periquito. Vou dedicar-me à fotografia comercial. Uma semana com o Becerrita é pior que apanhar um cancro.

 

A camioneta subiu pela Colmena até ao Parque Universitário, desceu pela Azángaro, passou aos pés pétreos e alvacentos do Palácio da Justiça, enfiou no entardecer chuvoso pela República e, ao aparecer, à direita, no meio do parque escuro, o edifício da Cabana, com as suas janelas iluminadas e o anúncio cintilante da fachada, Periquito desatou a rir, intempestivamente aplacado: nem queria olhar para aquela pocilga, Zavalita, ainda tinha o fígado em chaga da borracheira do domingo.

 

- Com um artigo na página dele consegue arruinar qualquer artista de cabaré, fechar qualquer casa de pegas, desprestigiar qualquer boite - disse Darío. - O Becerrita é um deus da Lima boémia. E nenhum chefe de página trata o pessoal como ele. Leva-os às pegas, oferece-lhes bebidas, arranja-lhes mulheres. Não sei que razão de queixa tens dele, Periquito

 

- Está bem - admitiu Periquito. - Façamos boa cara ao mau tempo. Se temos de trabalhar com ele, vamos tentar explorar-lhe o ponto fraco, em vez de nos lamentarmos.

 

As casas de pegas, as tabernas hediondas, os barezitos promíscuos de serradura vomitada, a fauna das três da manhã. Pensa: o ponto fraco dele. Ali tornava-se humano, pensa, ali fazia-se querido. Darío travou: uma massa sem feições circulava pelos passeios na penumbra da 28 de Júlio, sobre as silhuetas sombrias languescia a luz miúda, mortiça, dos candeeiros do Porvenir. Havia neblina, a noite estava muito húmida. A porta do Monmartre estava fechada.

 

- Vamos bater, a Paqueta deve cá estar - disse Periquito. - Este antro abre tardíssimo, é aqui que as hoites desaguam.

 

Bateram nos vidros da porta - um pianista na claridade rósea do balcão, pensa, a sua dentadura tão branca como o teclado do piano, duas bailarinas com plumas no rabo e na cabeça -, ouviram-se passos, veio abrir um rapaz esquálido, de colete branco e gravatinha de fantasia, que os olhou com apreensão: da Crónica, não era? Que entrassem, a senhora estava à espera deles. Um bar coalhado de garrafas, um céu baixo com estrelinhas de platina, uma minúscula pista de dança com um microfone de pé, mesinhas e cadeiras vazias. Abriu-se uma portinha disfarçada atrás do bar, boa noite disse Periquito, e ali estava a Paqueta, Zavalita: os seus olhos de compridas pestanas postiças e redondas auréolas protuberantes asfixiadas nas calças apertadas, os seus passinhos de equilibrista.

 

- O senhor Becerra falou consigo? - perguntou Santiago. - É acerca do crime de Jesus Maria.

 

- Prometeu-me que o meu nome não seria mencionado, jurou que não e espero que cumpra - a mão esponjosa, o sorriso estereotipado, a voz melosa com uma remota inflexão de alarme e ódio. Se houver escândalo, é o estabelecimento que fica prejudicado, está a compreender?

 

- Só precisamos de algumas informações - disse Santiago. - Saber quem ela era, o que fazia.

 

- Conheci-a mal, não sei quase nada - as rígidas pestanas que adejavam evasivamente, Zavalita, a grossa boca escarlate, que se encolhia como uma mimosa. - Há seis meses que deixou de cantar aqui. Mais, oito meses. Estava quase sem voz, contratei-a por dó, cantava três ou quatro canções e ia-se embora. Tinha estado anteriormente em La Laguna.

 

Calou-se quando o primeiro arco-íris relampejou e ficou a olhar, boquiaberta: Periquito, tranquilamente, fotografava o bar, a pista de dança, o microfone.

 

- Para que são essas fotografias? - disse, de mau modo, apontando. - O Becerrita jurou que não mencionavam o meu nome.

 

- Para mostrar um dos sítios onde ela cantou, não vamos falar em si - disse Santiago. - Gostava de saber alguma coisa da vida privada da Musa. Uma anedota, qualquer coisa.

 

- Não sei quase nada, já lhe disse - murmurou a Paqueta, seguindo Periquito com os olhos. - Além do que toda a gente sabe. Que há muitos anos foi muito conhecida, que cantou no Embassy, que mais tarde foi amante daquele que os senhores sabem. Mas suponho que não vão dizer isso.

 

- Porque não, minha senhora? - riu-se Periquito. - O Odría já não é o presidente, agora é o Manuel Prado, e a Crónica é dos Prado. Podemos dizer o que nos apetecer.

 

- E eu julguei que sim, que podíamos, e disse-o no primeiro artigo, Carlitos - riu-se Santiago. - Ex-amante de Cayo Bermúdez assassinada à facada.

 

- Tenho a impressão de que você não está muito bom da cabeça, Zavalita - rosnou Becerrita, contemplando as folhas com maldade.

 

- Enfim, vamos a ver o que pensa o manda-chuva.

 

- Estrela da comédia assassinada à facada causa maior impressão

 

- disse Arispe. - E, aliás, são ordens de cima, meu senhor.

 

- Foi ou não amante desse sacana? - perguntou Becerrita. - E se toi e o sacana já nem está no governo e nem sequer no pais, porque é que não se pode dizer?

 

- Porque a direcção marrou para esse lado e não quer que se diga, meu senhor - disse Arispe.

 

- Está bem, é um argumento que me convence sempre - disse Becerrita. - Corrija o artigo todo, Zavalita. Onde escreveu ex-amante de Cayo Bermúdez, ponha ex-rainha da farândola.

 

- E depois o Bermúdez deixou-a e saiu do país, nos últimos tempos do Odría - a Paqueta deu um safanão: acabava de relampejar outro flash. - Não se lembra, na altura dos sarilhos da Confederação em Arequipa? Ela começou a cantar outra vez, mas já não era quem tinha sido. Nem no físico, nem na voz. Bebia muito, uma vez tentou suicidar-se. Coitada, esteve muito mal.

 

- Durante todo o tempo que estiveste com ele não lhe conheceste nenhuma mulher? - pergunta Santiago. - Então devia ser maricas.

 

- Como é que ela vivia? - disse a Paqueta. - Mal, já lhe disse. Bebia, os amantes deixavam-na, andava sempre atrapalhada de dinheiro. Contratei-a por dó, e tive-a cá pouco tempo, uns dois meses, talvez nem tanto. Os clientes aborreciam-se. As canções dela tinham passado de moda. Tentou modernizar-se, mas não entrava nos novos ritmos.

 

- Não lhe conheci amantes, conheci-lhe foi mulheres - diz Ambrosio. - Pegas, quer dizer, menino.

 

- E como é que foi aquela embrulhada das drogas, minha senhora? - perguntou Santiago.

 

- Drogas -   repetiu a Paqueta, estupefacta. - Quais drogas?

 

- Ia às pegas, levei-o muitas vezes - diz Ambrosio. - Aquela casa de que o menino falou há bocado. À Ivonne, isso. Muitas vezes.

 

- Mas se também a implicaram a si, minha senhora, se a prenderam juntamente com ela - disse Santiago. - E graças ao senhor Becerra não apareceu nada nos jornais, não se lembra?

 

Um tremor rapidíssimo animou a cara carnuda, as inflexíveis pestanas vibraram de indignação, mas logo a seguir um sorriso porfiado, reminiscente, foi suavizando a expressão da Paqueta. Fechou os olhos, como se estivesse a olhar para dentro e a localizar entre as recordações aquele episódio perdido: ah, sim, ah, aquilo.

 

- E o Ludovico, aquele de que eu lhe falei, o que me embarretou dizendo-me que fosse para Pucallpa, o que me rendeu como motorista de D. Cayo, também passava a vida a levá-lo à casa de pegas diz Ambrosio. - Não, menino, não era maricas.

 

- Não houve drogas nem nada que se pareça, foi um engano que se esclareceu logo - disse a Paqueta. - À polícia prendeu um tipo que vinha aqui de vez em quando, parece que era traficante de cocaína, e chamaram-nos a mim e a ela como testemunhas. Não sabíamos nada e soltaram-nos.

 

- Com quem é que a Musa andava quando trabalhava cá? - perguntou Santiago.

 

- Quem era o amante dela? - os seus dentes encavalitados e irregulares, os seus olhos mexeriqueiros. - Não tinha um, tinha vários.

 

- Mesmo que não me dê os nomes deles - disse Santiago. - Pelo menos, que género de tipos eram.

 

- Tinha as suas aventuras, mas não sei pormenores, não era minha amiga - disse a Paqueta. - Sei o que toda a gente sabe, que tinha caído na má vida, e mais nada.

 

- Não sabe se ela tinha família cá? - perguntou Santiago. - Ou alguma amiga que nos pudesse dar mais informações sobre ela?

 

- Não creio que tivesse família - disse a Paqueta. - Ela dizia que era peruana, mas havia quem pensasse que era estrangeira. Diziam que quem lhe tinha arranjado o passaporte de peruana era aquele que os senhores sabem, quando era amante dela.

 

- O Becerra queria fotografias da Musa, quando cá cantava disse Santiago.

 

- Eu dou-lhas, mas, por favor, não me metam nisto, não me mencionem - disse a Paqueta. - Ajudo-os com essa condição. O Becerrita prometeu.

 

- E nós vamos cumprir, minha senhora - disse Santiago. - Não conhece ninguém que nos possa dar mais informações sobre ela? E só mais isso, depois deixamo-la em paz.

 

- Quando deixou de cantar aqui, nunca mais a tornei a ver - a Paqueta suspirou, bruscamente adoptou um ar misterioso e delator.

- Mas diziam-se coisas dela. Que tinha ido para uma casa dessas. Não sei. Só sei que viveu com uma mulher de má fama, uma que trabalha na francesa.

 

- A Musa vivia com uma das mulheres da casa da Ivonne? perguntou Santiago?

 

- A francesa podem os senhores mencionar - riu-se Paqueta, e a sua voz melosa tinha-se embaciado de ódio. - Mencionem-na, a polícia que a convoque para declarações. Essa gaja sabe muita coisa.

 

- Como é que se chamava essa amiga com quem ela viveu? perguntou Santiago.

 

- Queta? - pergunta Ambrosio, e uns segundos depois, apalermado: - Queta, menino?

 

- Se os senhores dizem que fui eu que lhes dei a informação, é a minha desgraça, não há pior inimiga que a francesa - a Paqueta adoçou a voz. - Não sei o nome verdadeiro. O nome de guerra dela é Queta.

 

- Nunca a viste? - pergunta Santiago. - Nunca ouviste o Bermúdez falar dela?

 

- Viviam juntas e dizia-se muita coisa delas - sussurrou a Paqueta, pestanejando. - Que eram mais do que amigas. Se calhar eram boatos, claro.

 

- Nunca ouvi, nunca a vi - diz Ambrosio. - D. Cayo não me ia falar das suas pegas, eu era o motorista dele, menino.

 

Saíram da neblina, da humidade do Porvenir; Darío cabeceava, recostado sobre o volante da camioneta. Ao ligar o motor, um cão ladrou no passeio, lugubremente.

 

- Tinha-se esquecido das drogas, de que tinha sido presa com a Musa - riu-se Periquito. - A armar em espertalhona, viste?

 

- Está satisfeitíssima por a terem morto, vê-se que a odiava disse Santiago. - Reparaste, Periquito? Que era bêbeda, que tinha perdido a voz, que era fressureira.

 

- Mas sacaste-lhe boas informações - disse Periquito. - Não tens razão de queixa.

 

- Tudo isto é palha - disse Becerrita. - É preciso escavar até rebentar o pus.

 

Tinham sido uns dias agitados e laboriosos, Zavalita, sentias-te interessado, desassossegado, pensa: outra vez vivo. Uma infatigável azáfama: subir e descer da camioneta, entrar e sair de cabarés, estações de rádio, pensões de má nota, casas de passe, um incessante vaivém entre a lânguida fauna noctívaga da cidade.

 

- Musa não soa muito bem, temos de a baptizar outra vez - disse Becerrita. - «Seguindo as Pegadas da Borboleta Nocturna!»

 

Redigias extensas crónicas, artigos soltos, quadrados, legendas para as fotografias, com uma excitação crescente, Zavalita. Becerrita relia as folhas com olhos ácidos, cortando, acrescentando frases de tremida letra vermelha, e colocava os cabeçalhos: «Novas Revelações sobre a Vida Dissipada da Borboleta Nocturna Assassinada em Jesus Maria». «Seria a Musa Uma Mulher de Passado Terrível?», «Repórteres da Crónica Esclarecem Nova Incógnita do Crime que Comove Lima», «Do Despertar Artístico ao Sangrento Fim da Outrora Rainha da Comédia», «A Borboleta Nocturna Esfaqueada Tinha Caído na mais Baixa Imoralidade declara Dona do Cabaré onde a Musa interpretou as Ultimas Canções», «Teria a Borboleta Nocturna Perdido a Voz Devido ao Uso de Estupefacientes?»

 

- Pusemos os da Última Hora fora de combate - disse Arispe.

- Continua a dar-lhe, Becerrita.

 

- Mais restos para os cães, Zavalita - dizia Carlitos. - São as ordens do manda-chuva.

 

- Você está-se a portar bem, Zavalita - dizia Becerrita. - Dentro de vinte anos será um redactor criminal sofrível.

 

- A acumular merda cheio de entusiasmo, hoje um montinho, amanhã outro bocadito, depois um bocadão - disse Santiago. Até dar uma montanha de merda. E agora toma, come-a até à última gota. Foi isso que me aconteceu, Carlitos.

 

- Já acabámos, senhor Becerra? - perguntou Periquito. - Posso-me ir deitar?

 

- Ainda nem começámos - disse Becerrita. - Vamos ter com a Madama para averiguar se aquilo das fressureiras é verdade.

 

Tinha vindo recebê-los Robertito, bem-vindos a esta vossa casa, como ia essa bizarria, Sr. Becerra, mas Becerrita arrebatou-lhe a alegria de chofre: vinham em serviço, podiam entrar na saleta? Entre, Sr. Becerra, entrem.

 

- Traz umas cervejinhas para os rapazes - disse Becerrita. - E a mim traz-me a Madama. É urgente.

 

Robertito abanou as pestanas frisadas, anuiu com um risinho desamigável, saiu dando um saltinho de bailarino. Periquito deixou-se cair num sofá com as pernas abertas, que bem que se estava aqui, que elegante, e Santiago sentou-se ao lado dele. A saleta alcatifada, pensa, as luzes indirectas, os três quadrinhos das paredes. No primeiro, um jovem de cabelos ruivos e máscara perseguia por uma vereda emaranhada uma rapariga muito branca, com uma cintura de vespa, que corria nas pontas dos pés; no segundo, tinha-a capturado e submergiam-se abraçados debaixo de uma cascata de salgueiros; no terceiro, a rapariga jazia deitada na relva, com o peito nu, o jovem beijava-lhe ternamente os ombros redondos e ela tinha uma expressão entre alarmada e lânguida. Estavam na margem de um lago ou de um rio e ao longe desfilava um grupo de cisnes de longos pescoços.

 

- Vocês são a juventude mais podre da história - disse Becerrita, com satisfação. - Que interesse têm vocês além da bebida e das pegas?

 

Tinha a boca torcida numa careta quase risonha, coçava o bigodinho com os dedos cor de mostarda, tinha atirado o chapéu para a nuca e passeava ao longo da saleta com uma das mãos no bolso, como um mau de filme mexicano, pensa. Robertito entrou com uma bandeja.

 

- A senhora vem já, senhor Becerra - fez uma reverência. Perguntou-me se o senhor não preferia um uisquezinho.

 

- Não posso, por causa da úlcera - rosnou Becerrita. - Quando bebo, no dia seguinte cago sangue.

 

Robertito saiu e lá vinha a Ivonne, Zavalita. O comprido nariz tão empoado, pensa, o vestido de gazes e lantejoulas barulhentas. Madura, experiente, sorridente, beijou Becerrita na face, estendeu uma mão mundana a Periquito e a Santiago. Olhou para a bandeja, o Robertito não os tinha servido?, fez um trejeito de censura, inclinou-se e encheu os copos com destreza, até meio e sem muita espuma, estendeu-lhos. Sentou-se na borda do sofá, esticou o pescoço, a pele recolheu-se em pequenas pregas debaixo dos olhos, cruzou as pernas.

 

- Não me venhas com essa cara de espanto - disse Becerrita. Já sabes porque é que cá viemos, Madama.

 

- Não posso acreditar que não queiras beber nada - o seu sota-

 

que estrangeiro, Zavalita, os seus gestos afectados, a sua desenvoltura e matriarca suficiente. - Tu, um borrachola inveterado, Becerrita.

 

- Era, antes de a úlcera dar cabo do estômago - disse Becerrita.

- Agora só posso beber leite. De vaca.

 

- Sempre o mesmo - Ivonne voltou-se para Santiago e Periquito. - Este velho e eu somos irmãos, há séculos.

 

- Um bocado incestuosos, em cena altura - riu-se Becerrita, e encadeando, com o mesmo tom de voz íntimo: - Faz de conta que eu sou um padre e que te estás a confessar. Quanto tempo cá tiveste a Musa?

 

- A Musa, aqui? - sorriu Ivonne. - Davas um padre com muita piada, Becerrita.

 

- Com que então, agora não tens confiança em mim - Becerrita sentou-se no braço do sofá de Ivonne. - Com que então, agora mentes-me.

 

- O senhor está doido, Padre - sorriu Ivonne, e deu um murrozinho no joelho a Becerrita. - Se ela tivesse trabalhado aqui, dizia-te.

 

Tirou um lenço da manga, limpou os olhos, deixou de sorrir. Conhecia-a, claro, tinha vindo aqui algumas vezes quando era amante do, bem, Becerrita sabia de quem. Ele tinha-a trazido algumas vezes, para se divertir, para espiar por aquela janelinha que dava para o bar. Mas, que Ivonne soubesse, ela nunca tinha trabalhado em nenhuma casa. Tornou a rir-se, com elegância. As suas rugazinhas nos olhos, no pescoço, pensa, o seu ódio: coitada, trabalhava na rua, como as cadelinhas.

 

- Nota-se que gostavas muito dela, Madama - rosnou Becerrita.

 

- Quando era amante do Bermúdez, olhava toda a gente por cima do ombro - suspirou Ivonne. - Até a mim me proibiu de ir lá a casa. Foi por isso que ninguém a ajudou quando ela perdeu tudo. E perdeu tudo por culpa dela. Por causa da bebida e das drogas.

 

- Ficaste encantada por a terem enterrado - sorriu Becerrita. Que sentimentos, Madama.

 

- Quando li os jornais, fez-me pena, esses crimes fazem sempre pena - disse Ivonne. - Sobretudo as fotografias, ver como ela vivia. Se quiseres dizer que ela trabalhou aqui, encantada da vida. Propaganda para o estabelecimento.

 

- Sentes-te seguríssima, Madama - disse Becerrita, com um sorriso incolor. - Deves ter encontrado um protector tão bom como o Cayo Bermúdez.

 

- Calúnias, o Bermúdez nunca teve nada a ver com a casa - disse Ivonne. - Era um cliente como outro qualquer.

 

- Vamos voltar ao bacio, que já estamos a sujar o chão - disse Becerrita. - Não trabalhou aqui, okay. Chama-me lá a que vivia com ela. Ela que nos dê algumas informações e depois deixo-te em paz.

 

- A que vivia com ela? - mudou de cara, Carlitos, perdeu o à-vontade todo, ficou lívida. - Uma das raparigas vivia com ela?

 

- Ah, a polícia ainda não descobriu - Becerrita coçou o bigodinho e passou a língua pelos lábios, com avidez. - Mas mais tarde ou mais cedo há-de descobrir e vêm interrogar-vos, a ti e à tal Queta. Prepara-te, Madama.

 

- Com a Queta? - caiu-lhe a alma aos pés, Carlitos. - Mas que me dizes tu, Becerrita?

 

- Mudam de nome todos os dias e a gente confunde-as, qual é?

 

- murmurou Becerrita. - Não te preocupes, nós não somos polícias. Chama-a lá. Uma conversa confidencial, mais nada.

 

- Quem é que te disse que a Queta vivia com ela? - balbuciou Ivonne: fazia esforços para recuperar o sorriso, a naturalidade.

 

- Eu, por mim, tenho confiança em ti, Madama, eu, por mim, sou teu amigo - sussurrou Becerrita, com uma inflexão despeitada.

 

- Foi a Paqueta que nos disse.

 

- A pior filha da puta que uma puta alguma vez pariu - primeiro uma arara com ares de grande senhora, Carlitos, depois uma velhinha assustada e, quando ouviu mencionar a Paqueta, uma pantera.

 

- Aquela que foi criada a gargarejar com a menstruação da mãe.

 

- Como eu gosto dessa língua, Madama - Becerrita passou-lhe o braço por cima do ombro, feliz. - Descansa que nós vingamos-te, nas notícias de amanhã vamos dizer que o Monmartre é o antro mais mal afamado de Lima.

 

- Não vês que lhe vais dar cabo da vida? - perguntou Ivonne, agarrando no joelho de Becerrita, esmagando-lho. - Não vês que a polícia a vai prender, para a interrogar?

 

- Ela viu alguma coisa? - perguntou Becerrita, baixando a voz.

 

- Sabe alguma coisa?

 

- Claro que não, só quer que não a metam em sarilhos - disse Ivonne. - Vais tramá-la. Porque é que vais fazer uma maldade dessas?

 

- Não quero que lhe aconteça nada, só quero que ela me conte certas coisas íntimas da Musa - disse Becerrita. - Não diremos que elas viviam juntas, não a mencionaremos. Acreditas na minha palavra ou não?

 

- Claro que não - disse Ivonne. - Tu és um filho da puta como a Paqueta.

 

- Assim é que eu gosto de ti, Madama - Becerrita olhou Santiago e Periquito com um sorriso furtivo. - No teu código.

 

- A Queta é boa rapariga, Becerrita - disse Ivonne, a meia voz.

 

- Não lhe dês cabo da vida. Aliás, podia sair-te caro. Ela tem muito bons amigos, aviso-te.

 

- Vê lá se a chamas e deixa-te de dramatismos - sorriu Becerrita.

 

- Juro-te que não lhe vai acontecer nada.

 

- Achas que ela tem disposição para vir trabalhar depois do que aconteceu à amiga? - perguntou Ivonne.

 

- Muito bem, procura-a e arranja-me um encontro com ela disse Becerrita. - Só quero algumas informações. Se não tiver vontade de falar comigo, publico o nome dela na primeira página e acaba por ter de falar com os chuis.

 

- Juras que, se eu te arranjar uma entrevista com a Queta, não fazes uso do nome dela? - perguntou Ivonne.

 

Becerrita anuiu. A cara foi-se-lhe enchendo aos poucos de satisfação, os olhinhos tornaram-se-lhe brilhantes. Pôs-se de pé, aproximou-se da mesa, pegou no copo de Santiago com um gesto resoluto e esvaziou-o de um trago. Um círculo de espuma tingiu-lhe a boca de branco.

 

- Juro, Madama, procura-a e telefona-me - disse, solene. - Já sabes o meu telefone.

 

- Acredita que ela lhe telefone, senhor Becerra? - perguntou Periquito, na camioneta. - Eu cá acho que ela vai dizer à tal Queta que os da Crónica sabem que ela vivia com a Musa e que desapareça.

 

- Mas qual é a Queta? - perguntou Arispe. - Com certeza que a conhecemos, Becerrita.

 

- Deve ser uma das exclusivas, das que trabalham a domicílio disse Becerrita. - Se calhar, conhecemo-la mas com outro nome.

 

- Essa mulher vale ouro, meu senhor - disse Arispe. - Tens de a encontrar, nem que tenhas de remover todas as pedras de Lima.

 

- Eu não lhes dizia que a Madama me telefonava? - Becerra olhou-os sem vaidade, zombeteiro. - Hoje, às sete. Reserva-me a página central inteirinha, manda-chuva.

 

- Entrem, entrem - disse Robertito. - Sim, para a saleta. Sentem-se.

 

Assim, com a luz do entardecer que entrava pela única janela, a saleta tinha perdido o mistério e o encanto. Os forros coçados dos móveis, pensa, o papel desbotado das paredes, as queimaduras de beatas e os rasgões na alcatifa. A rapariga dos quadrinhos não tinha feições, os cisnes eram disformes.

 

- Olá, Becerrita - Ivonne não o beijou, não lhe estendeu a mão.

 

- Jurei à Queta que vais cumprir o prometido. Porque é que eles vieram contigo?

 

- O Robertito que nos traga umas cervejas - disse Becerrita, sem se levantar do sofá, sem olhar para a mulher que tinha entrado com Ivonne. - Estas pago-as eu, Madama.

 

- Alta, pernas bem feitas, uma mulata de cabelos avermelhados

 

- disse Santiago. - Nunca a tinha visto lá na Ivonne, Carlitos.

 

- Sentem-se - disse Becerrita, com ar de dona de casa. - Não querem tomar nada, vocês?

 

Robertito deitou cerveja nos copos, as mãos tremiam-lhe ao estendê-los a Becerrita, a Periquito e a Santiago, as pestanas adejavam-lhe rapidamente, o seu olhar era medroso. Saiu quase a correr, fechou a porta atrás de si. Queta sentou-se num sofá, séria, nada assustada, pensa, e os olhos de Ivonne faiscavam.

 

- Sim, és das exclusivas, porque é raro ver-te por aqui - disse Becerrita, bebendo um gole de cerveja. - Trabalhas só na rua, com clientes escolhidos?

 

- O senhor não tem nada que ver com o sítio onde eu trabalho

- disse Queta. - E quem é que o autorizou a tratar-me por tu?

 

- Acalma-te, não te ponhas assim - disse Ivonne. - É um abusador e mais nada. Só te vai fazer umas perguntas.

 

- O senhor não podia ser meu cliente, mesmo que quisesse, contente-se com isso - disse Queta. - Nunca há-de ter dinheiro que chegue para pagar o preço que eu levo.

 

- Já não sou cliente, já me reformei - disse Becerrita, com um riso divertido, e limpou o bigodinho. - Há quanto tempo vivias com a Musa em Jesus Maria?

 

- Eu não vivia com ela, é uma mentira dessa desgraçada - gritou Queta, mas Ivonne agarrou-lhe no braço e ela baixou a voz. A mim não me vai o senhor envolver nisto. Aviso-o de que...

 

- Nós não somos polícias, somos jornalistas - disse Becerrita, com um gesto amistoso. - Não se trata de ti, mas sim da Musa. Contas-nos o que sabes dela e nós vamo-nos embora e esquecemo-nos de ti. Não há razão para zangas, Queta.

 

- E então para que é que são essas ameaças? - gritou Queta. Porque é que veio dizer à senhora que avisava a polícia? Acha que eu tenho alguma coisa a esconder?

 

- Se não tens nada a esconder, não há razão para teres medo da polícia - disse Becerrita, e bebeu outro gole de cerveja. - Vim cá como amigo, para conversar. Não há razão para zangas.

 

- Ele tem palavra, há-de cumprir, Queta - disse Ivonne. - Não mencionará o teu nome. Responde às perguntas dele.

 

- Está bem, minha senhora, eu bem sei - disse Queta. - Que perguntas ?

 

- Isto é uma conversa entre amigos - disse Becerrita. - Eu sou um homem de palavra, Queta. Há quanto tempo vivias com a Musa?

 

- Eu não vivia com ela - fazia esforços para se dominar, Carlitos, procurava não olhar para Becerrita, quando os seus olhos se cruzavam com os dele, alterava-se-lhe a voz. - Éramos amigas, às vezes ficava a dormir em casa dela. Ela tinha-se mudado para Jesus Maria deve haver pouco mais de um ano.

 

, - Provocou-lhe uma crise e quebrou-a? - perguntou Carlitos. E o método do Becerrita. Dar cabo dos nervos ao paciente para ele largar tudo cá para fora. Um método de chui, não de jornalista. Santiago e Periquito não tinham tocado nas cervejas: seguiam o diálogo da borda das suas cadeiras, mudos. Tinha-a quebrado, Zavalita, agora respondia a tudo, sim. Elevava e baixava a voz, pensa, Ivonne dava-lhe palmadinhas no braço, encorajando-a. Coitada, andava muito mal, muito mal, sobretudo desde que perdera o emprego no Monmartre, sobretudo porque a Paqueta se tinha portado como uma canalha. Tinha-a posto na rua sabendo que ela estava a morrer de fome, coitada. Tinha as suas aventuras, mas já não arranjava amante, alguém que lhe desse uma mensalidade e lhe pagasse a casa. E de repente desatara a chorar, Carlitos, não por causa das perguntas do Becerrita, mas sim pela Musa. Quer dizer que a lealdade ainda existia, pelo menos entre algumas putas, Zavalita.

 

- Coitada, já devia estar completamente escavacada - entristeceu-se Becerrita, com a mão no bigodinho, os olhos titilantes fixos em Queta. - Por causa da bebida, da droga, quero dizer.

 

- Também vai pôr isso? - soluçou Queta. - Depois dos horrores que todos os dias publicam sobre ela, isso também?

 

- Que andava tramada, que era meio pega, que bebia e se drogava já o disseram os jornais todos - suspirou Becerrita. - Nós somos os únicos que pusemos em relevo a parte boa. Que foi uma cantora famosa, que foi eleita rainha da comédia, que era uma das mulheres mais bonitas de Lima.

 

- Em vez de remexerem tanto na vida dela, deviam preocupar-se mais com o que a matou, o que a mandou matar - soluçou Queta, e tapou a cara com as mãos. - Deles não falam, deles não têm coragem.

 

Nesse momento, Zavalita? Pensa: sim, nessa altura. A cara petrificada da Ivonne, pensa, o receio e a perturbação dos seus olhos, os dedos do Becerrita imobilizados no bigode, o cotovelo do Periquito na tua cadeira, Zavalita, a alertar-te. Tinham ficado os quatro quietos, olhando para Queta, que soluçava muito alto. Pensa: os olhos do Becerrita a perfurarem os cabelos avermelhados, a flamejarem.

 

- Eu não tenho medo, eu escrevo tudo, o papel aguenta tudo sussurrou por fim Becerrita, com doçura. - Se tu tens coragem, eu também tenho. Quem foi? Quem é que tu achas que foi?

 

- Se és tão estúpida que te queiras meter num sarilho, é lá contigo - a cara de espanto de Ivonne, Carlitos, o seu terror, o grito que deu. - Se essas patetices que te passam pela cabeça, se essa patetice que tu inventaste...

 

- Tu não percebes, Madama - a vozinha quase chorosa do Becerrita, Carlitos. - Ela não quer que a morte da amiga fique assim, em nada. Se a Queta tem coragem, também eu tenho coragem. Quem é que achas que foi, Queta?

 

- Não são patetices, a senhora sabe que não é invenção - soluçou Queta, e ergueu a cara e largou-o, Carlitos. - A senhora bem sabe que foi o gorila do Cayo Merda que a matou.

 

Todos os poros a suar, pensa, todos os ossos a estalar. Não perder um único gesto, uma única sílaba, não se mexer, não respirar, e na boca do estômago o bichinho a crescer, a cobra, as facas, como daquela vez, pensa, pior que daquela vez. Ai, Zavalita.

 

- Agora vai desatar a chorar? - pergunta Ambrosio. - Não beba mais, menino.

 

- Se quiseres, eu publico-o, se quiseres, digo tudo tal e qual, se não quiseres, não escrevo nada - murmurou Becerrita. - O Cayo Merda é o Cayo Bermúdez? Tens a certeza de que ele a mandou matar? Esse sacana vive longe do Peru, Queta.

 

Ali estava a cara deformada .pelo pranto, Zavalita, os olhos inchados avermelhados, a boca torcida de angústia, ali estavam a cabeça e as mãos a negar: o Bermúdez não.

 

- Qual gorila? - insistiu Becerrita. - Viste-o, estavas lá?

 

- A Queta estava em Huacachina - interrompeu-o Ivonne, ameaçando-o com o indicador. - Com um senador, para tua informação.

 

- Não via a Hortênsia há três dias - soluçou Queta. - Soube-o pelos jornais. Mas eu sei, não estou a mentir.

 

- Donde é que saiu esse gorila? - repetiu Becerrita, com os olhinhos pregados em Queta, tranquilizando Ivonne com uma mão impaciente. - Não vou publicar nada, Madama, só o que a Queta quiser que eu diga. Se ela não tem coragem, claro que eu também não tenho.

 

- A Hortênsia sabia muitas coisas dum tipo de dinheiro, ela estava a morrer de fome, só queria sair do país - soluçou Queta. Não era por maldade, era para se ir embora e começar de novo, onde ninguém a conhecesse. Já estava meio morta quando a mataram. Pela maneira como se portou o cão do Bermúdez, pela maneira como se portaram todos quando a viram caída.

 

- Extorquia-lhe o dinheiro e o tipo mandou-a matar para lhe acabar com a chantagem - recitou, suavemente, Becerrita. - Quem foi o tipo que contratou o gorila?

 

- Não o contratou, deve é ter-lhe falado - disse Queta, olhando Becerrita nos olhos. - Deve-lhe ter falado e tê-lo convencido. Dominava-o, era uma espécie de escravo que ele ali tinha. Fazia o que queria dele.

 

- Eu tenho coragem, eu publico-o - repetiu Becerrita, a meia voz. - Que caralho, eu acredito em ti, Queta.

 

- Foi o Bola de Ouro que a mandou matar - disse Queta. O gorila é o guarda-costas dele. Chama-se Ambrosio.

 

- Bola de Ouro? - levantou-se de um salto, Carlitos, pestanejava, olhou para o Periquito, olhou para mim, arrependeu-se e olhou para a Queta, para o chão, e repetiu como um idiota: - Bola de Ouro, Bola de Ouro?

 

- O Fermín Zavala, já vês que está doida - estoirou Ivonne, levantando-se também, gritando. - Estás a ver como é uma patetice, Becerrita? Inclusivamente, se fosse verdade, era uma patetice. Ela não sabe nada, é tudo invenção.

 

- A Hortênsia extorquiu-lhe dinheiro, ameaçava-o com a mulher, que havia de ir contar a toda a gente a história do motorista dele rugiu Queta. - Não é mentira nenhuma, em vez de lhe pagar a passagem para o México, mandou o guarda-costas matá-la. Vai dizer isto, vai publicar isto?

 

- Vamo-nos todos salpicar de merda - e deixou-se cair no sofá, Carlitos, sem olhar para mim, resfolgando, de repente pôs o chapéu, para ter as mãos ocupadas em qualquer coisa. - Que provas tens, onde é que foste desencantar semelhante coisa? Não tem pés nem cabeça. Não gosto que gozem comigo, Queta.

 

- Eu bem lhe disse que era um disparate, disse-lho mais de cem vezes - disse Ivonne. - Não tem provas nenhumas, ela estava em Huacachina, não sabe nada. E mesmo que tivesse, quem é que lhe ia dar atenção, quem é que acreditava nela. O Fermín Zavala, com aqueles milhões todos. Explica-lhe tu, Becerrita. Diz-lhe o que é que lhe pode acontecer se continua a repetir essa história.

 

- Estás-te a salpicar de merda, Queta, e estás-nos a salpicar a todos - rugia, Carlitos, fazia caretas, ajeitava o chapéu. - Queres que isso seja publicado para nos enfiarem a todos no manicómio, Queta?

 

- Incrível tratando-se dele - disse Carlitos. - Para alguma coisa serviu toda essa porcaria. Pelo menos para descobrir que o Becerrita também é humano, que conseguia portar-se decentemente.

 

- Você tinha qualquer coisa a fazer, não tinha? - rugiu Becerrita, olhando para o relógio, com uma voz angustiosamente natural. Pode-se ir embora, Zavalita.

 

- Cobarde, desgraçado - disse Queta, surdamente. - Já sabia que isto não ia dar a nada, já sabia que não terias coragem.

 

- Ainda bem que conseguiste levantar-te e sair dali sem desatar a chorar - disse Carlitos. - A única coisa que me preocupava era que as putas tivessem dado conta e não pudesses voltar nunca mais a essa casa de pegas. No fim de contas, é a melhor de todas, Zavalita.

 

- Diz antes que ainda bem que te encontrei - disse Santiago. Não sei o que teria feito nessa noite se não fosses tu, Carlitos.

 

Sim, tinha sido uma sorte encontrá-lo, uma sorte ir parar à Plaza San Martin e não à pensão de Barranco, uma sorte não ir chorar com a boca encostada à almofada na solidão do quartito, sentindo que era o fim do mundo e pensando em matares-te ou em matar o pobre do velhote, Zavalita. Tinha-se levantado, dito até logo, saído da saleta, chocado no corredor com Robertito, caminhado até à Plaza Dos de Mayo sem encontrar nenhum táxi. Respiravas o ar frio com a boca aberta, Zavalita, sentias o coração a bater e de vez em quando corrias. Tinhas apanhado um colectivo, parado na Colmena, andado aturdido sob o Portal e de repente tinha aparecido a silhueta dissipada do Carlitos a levantar-se de uma mesa do bar Zela, a mão dele a chamar-te. Já tinham voltado da Ivonne, Zavalita, a tal Queta tinha aparecido? E o Periquito e o Becerrita? Mas, quando chegou ao pé de Santiago, mudou de voz: que foi, Zavalita?

 

- Sinto-me mal - tinhas-lhe agarrado no braço, Zavalita. Muito mal, meu velho.

 

Lá estava o Carlitos a olhar desconcertado para ti, vacilando, lá estava a pancadinha que te deu no ombro: o melhor era irem beber qualquer coisa, Zavalita. Deixou-se arrastar, desceu como um sonâmbulo a escadinha do Negro-Negro, atravessou cego e tropeçando as trevas semivazias do local, a mesa do costume estava livre, duas cervejas alemãs, disse Carlitos ao criado, e recostou-se contra as capas do New Yorker.

 

- É sempre aqui que naufragamos, Zavalita - a sua cabeça crespa, pensa, a amizade dos olhos dele, a cara por barbear, a pele amarela. - Este antro enfeitiça-nos.

 

- Se fosse para a pensão, endoidecia, Carlitos - disse Santiago.

 

- Julguei que era choro de bêbedo, mas agora vejo que não disse Carlitos. - Toda a gente acaba por arranjar sarilhos com o Becerrita. Embebedou-se e encheu-te de caralhos na casa de pegas? Não faças caso, homem.

 

Lá estavam as capas brilhantes, sardónicas e multicores, o barulho das conversas das pessoas invisíveis. O criado trouxe as cervejas, beberam ao mesmo tempo. Carlitos olhou-o por cima do copo, ofereceu-lhe um cigarro e acendeu-lho.

 

- Foi aqui que tivemos a nossa primeira conversa de masochistas, Zavalita - disse. - Foi aqui que confessámos um ao outro que éramos um poeta e um comunista fracassados. Agora não passamos de dois jornalistas. Foi aqui que nos tornámos amigos, Zavalita.

 

- Tenho de desabafar com alguém, senão rebento, Carlitos disse Santiago.

 

- Se achas que te ficas a sentir melhor, okay - disse Carlitos. Mas pensa bem. Às vezes ponho-me a fazer confidências nas minhas crises e depois arrependo-me e odeio as pessoas que conhecem os meus pontos fracos. Vê lá não me vás odiar amanhã, Zavalita.

 

Mas Santiago desatara a chorar outra vez. Dobrado sobre a mesa, abafava os soluços apertando o lenço contra a boca, e sentia a mão de Carlitos no ombro: calma, homem.

 

- Bom, não pode deixar de ser isso - suave, pensa, tímida, compadecidamente. - O Becerrita emborrachou-se e atirou-te à cara aquilo do teu pai diante de toda a casa de pegas?

 

Não na altura em que o soubeste, Zavalita, mas sim nesse momento. Pensa: mas sim no momento em que soube que toda a Lima sabia que ele era maricas, menos eu. O pianista tinha começado a tocar, um risinho de mulher, de vez em quando, na escuridão, o sabor ácido da cerveja, o criado vinha com a sua lanterna levar as garrafas e trazer outras. Falavas apertando o lenço, Zavalita, enxugando a boca e os olhos. Pensa: não era o fim do mundo, não ias enlouquecer, não te ias matar.

 

- Tu bem sabes como é a língua das pessoas, a língua das putas

- avançando e retrocedendo na cadeira, pensa, espantado, assustado também. - Largou essa história para abaixar a proa ao Becerrita, para lhe tapar a boca pelo mau bocado que ele a fez passar.

 

- Falavam dele como se o tratassem por tu - disse Santiago. E eu ali.

 

- O que é fodido não é essa história do assassínio, isso é mentira com certeza, Zavalita - tartamudeando também, pensa, contradizendo-se também. - É mas é teres sabido lá da outra coisa, e da boca de quem foi. Eu julgava que tu já sabias, Zavalita.

 

- O Bola de Ouro, o guarda-costas dele, o motorista dele - disse Santiago. - Como se o conhecessem desde que nasceu. No meio daquela porcaria toda, Carlitos. E eu ali.

 

Não podia ser e fumavas, Zavalita, com certeza era mentira e bebias um gole e engasgavas-te, e fugia-lhe a voz e continuava a repetir não podia ser. E Carlitos, com a cara dissolvida em fumo, diante das capas indiferentes: parecia-te terrível, mas não era, Zavalita, havia coisas mais terríveis. Acostumar-te-ias, havias de ligar tanto a isso como ao caralho e pedia mais cerveja.

 

- Vou-te embebedar - disse, fazendo uma careta -, hás-de ficar com o corpo tão fodido que não conseguirás pensar noutra coisa. Mais uns goles e vais ver que não valia a pena amargurares-te tanto, Zavalita.

 

Mas tinha-se embebedado era a ele, pensa, como tu agora. Carlitos levantou-se, desapareceu nas sombras, o risinho da mulher que morria e ressuscitava e o piano monótono: queria embebedar-te a ti e quem se embebedou fui eu, Ambrosio. Lá estava outra vez o Carlitos: tinha urinado um litro de cerveja, Zavalita, mas que raio de maneira de gastar o dinheiro, não era?

 

- E para que é que me queria embebedar? - disse Ambrosio. -- Eu nunca me embebedo, menino.

 

- Todos os da redacção sabiam - disse Santiago. - Quando eu não estou, falam do filho do Bola de Ouro, do filho do paneleiro?

 

- Falas como se o problema fosse teu e não dele - disse Carlitos.

 

- Não sejas pateta, Zavalita.

 

- Nunca ouvi nada, nem no colégio, nem no bairro, nem na universidade - disse Santiago. - Se fosse verdade, teria ouvido alguma coisa, suspeitado de qualquer coisa. Nunca, Carlitos.

 

- Pode ser um daqueles boatos que correm neste país - disse Carlitos. - Daqueles que duram tanto que se transformam em verdades. Não penses mais nisso.

 

- Ou pode ser que eu não tenha querido saber - disse Santiago.

 

- Que não quisesse aperceber-me.

 

- Não te estou a consolar, não há razão para isso, não és tu que estás na berlinda - disse Carlitos, arrotando. - A ele, sim, é que era preciso consolar. Se é mentira, por lhe terem posto essa fama, e, se é verdade, porque a vida dele deve ser bastante fodida. Não penses mais nisso.

 

- Mas o resto não pode ser verdade, Carlitos - disse Santiago.

 

- O resto tem de ser calúnia. Isso é impossível, Carlitos.

 

- A puta deve odiá-lo por qualquer coisa, inventou aquela história para se vingar dele por qualquer coisa - disse Carlitos. - Qualquer problema de alcova, alguma chantagem para lhe apanhar dinheiro, talvez. Não sei como é que o hás-de avisar. Sobretudo quando há anos que não o vês, não é?

 

- Avisá-lo, eu? Achas que eu consigo encarar com ele depois disto? - perguntou Santiago. - Morria de vergonha, Carlitos.

 

- Ninguém morre de vergonha - sorriu Carlitos, e arrotou outra vez. - Enfim, tu lá sabes o que fazes. Seja como for, a história fica enterrada, duma maneira ou doutra.

 

- Tu bem conheces o Becerrita - disse Santiago. - Não está enterrada. Sabes muito bem o que ele vai fazer.

 

- Consultar o Arispe e o Arispe a direcção, claro que sei - disse Carlitos. - Achas que o Becerrita é parvo, que o Arispe é parvo? A gente bem nunca aparece na página criminal. Era isso que te preocupava, o escândalo? Continuas a ser um burguês, Zavalita.

 

Arrotou e desatou a rir e continuou a falar, delirando cada vez mais: esta noite, ou te fizeste homem, Zavalita, ou nunca mais na vida. Sim, tinha sido uma sorte: vê-lo embebedar-se, pensa, ouvi-lo arrotar, delirar, ter de o levar de rastos do Negro-Negro, segurá-lo no Portal, enquanto um miúdo chamava um táxi. Uma sorte ter tido de o levar até Chorrillos, arrastá-lo pelos ombros, pela velhíssima escada da casa dele acima, e despi-lo e deitá-lo, Zavalita. Sabendo que não estava bêbedo, que fingia para te distrair e te manter ocupado, para que pensasses nele em vez de pensares em ti. Pensa: levo-te um livro, vou lá amanhã. Apesar do mau gosto na boca, da bruma no cérebro e da indisposição do corpo, na manhã seguinte tinha-se sentido melhor. Dorido e ao mesmo tempo mais forte, pensa, com os músculos intumescidos por causa do incómodo cadeirão onde dormira vestido, mais tranquilo, transformado por causa do pesadelo, maior. Lá estava o pequeno chuveiro apertado entre o lavatório e a retrete do quarto do Carlitos, a água fria que te fez estremecer e acabou de te acordar. Vestiu-se, devagar. Carlitos continuava a dormir de barriga para baixo, com a cabeça suspensa de fora da cama, de cuecas e meias. Lá estava a rua e a luz do sol, que a neblina da manhã não conseguia esconder, só estropiar, lá estava o cafezito daquela esquina e o grupo de ferroviários, com boinas azuis, a falarem de futebol junto ao balcão. Pediu um café com leite, perguntou as horas, eram dez, já devia estar no escritório, não te sentias nervoso nem comovido, Zavalita. Para chegar ao telefone teve de passar por baixo do balcão, atravessar um corredor com fardos e caixas, ao marcar o número, viu uma fila de formigas a subirem por uma viga acima. As mãos humedeceram-se-lhe de chofre ao reconhecer a voz do Chispas: sim, está?

 

- Olá, Chispas - nessa altura as cócegas ao longo de todo o corpo, a impressão de que o chão amolecia. - Sim, sou eu, o Santiago.

 

- Os tectos estão baixos - lá estava a voz sussurrante e quase inaudível do Chispas, o seu tom cúmplice. - Telefona mais tarde, está aqui o velho.

 

- Quero falar com ele - disse Santiago. - Sim, com o velho. Passa-mo, que é urgente.

 

Lá estava o longo silêncio estupefacto ou consternado ou maravilhado, o batucar longínquo de uma máquina de escrever, e a tossezinha desconcertada do Chispas, que devia estar a comer o telefone com os olhos e não devia saber o que dizer, e lá estava o seu alarido teatral: mas sim o magricela, era o sabichão, e a máquina de escrever que imediatamente se calava. Onde é que te tinhas metido, magricela, donde é que tinhas ressuscitado, sabichão, de que é que estavas à espera para voltar a casa? Sim, papá, o magricela, papá, queria falar contigo, papá. Vozes que se sobrepunham à do Chispas e a abafavam e lá estava a onda de calor na cara, Zavalita.

 

- Está, está, magricela? - lá estava a voz idêntica de anos atrás que falhava, Zavalita, cheia de angústia, de alegria, a sua voz atarantada, que gritava. - Filhinho? Magricela? Estás lá?

 

- Viva, papá - ali, ao fundo do corredor, por trás do balcão, os ferroviários a rirem-se, e ao teu lado uma fileira de garrafas de Pasteurina e as formigas que desapareciam entre latas de bolachas. Sim, cá estou, papá. Como está a mamã, como estão todos, papá?

 

- Zangados contigo, magricela, todos os dias à tua espera, magricela - a voz tremendamente esperançada, Zavalita, perturbada, precipitada. - E tu, estás bem? Donde é que estás a telefonar, magricela?

 

- De Chorrillos, papá - pensando mentira, não era, calúnias, não podia ser. - Quero falar contigo sobre uma coisa, papá. Não estás ocupado agora, posso encontrar-me contigo de manhã?

 

- Sim, agora mesmo, vou para aí - e de repente alarmada, ansiosa. - Não tens nada, pois não, magricela? Não te meteste em nenhum sarilho, não?

 

- Não, papá, não há sarilho nenhum. Se quiseres, espero-te à porta do Regatas. Estou aqui perto.

 

- Agora mesmo, magricela. Meia hora, se tanto. Vou já sair. Vou-te passar ao Chispas, magricela.

 

Lá estavam os ruídos adivinháveis de cadeiras, portas, e outra vez a máquina de escrever, e ao longe buzinas e motores de automóveis.

 

- O velho rejuvenesceu vinte anos num segundo - disse o Chispas, eufórico. - Saiu como se tivesse o diabo atrás. E eu que não sabia como é que havia de disfarçar, homem. Que é que tens, estás metido nalgum sarilho?

 

- Não, nada - disse Santiago. - Já passou muito tempo. Vou fazer as pazes com ele.

 

- Já era tempo, já era tempo - repetia o Chispas, feliz, ainda incrédulo. - Espera, vou telefonar à mamã. Não vás a casa antes de eu a prevenir. Para não lhe dar uma síncope quando te vir.

 

- Não vou lá a casa agora, Chispas - lá estava a voz dele que começava a protestar, mas homem, não podes. - Domingo, diz-lhe que vou lá almoçar no domingo.

 

- Está bem, no domingo, a Teté e eu preparamo-la - disse o Chispas. - Está bem, criança caprichosa. Digo-lhe que te faça ensopado de camarão.

 

- Lembras-te da última vez que nos vimos? - pergunta Santiago.

- Vai para dez anos, à porta do Regatas.

 

Saiu do cafezito, desceu a avenida até ao Malecón, e, em vez de seguir pela escada que descia para o Regatas, foi pela rua, devagar, distraído, pensa, espantado com o que tinha feito. Via lá em baixo as duas praiazinhas vazias do clube. Estava maré cheia, o mar tinha comido a areia, as ondazinhas rebentavam de encontro à muralha, algumas línguas de espuma lambiam a plataforma, agora deserta, onde, no Verão, havia tantos guarda-sóis e banhistas. Há quantos anos não tomavas banho no Regatas, Zavalita? Desde antes de entrar em San Marcos, cinco ou seis anos que já nessa altura pareciam cem. Pensa: agora mil.

 

- Claro que me lembro, menino - diz Ambrosio. - O dia em que o menino fez as pazes com o seu paizinho.

 

Estavam a construir uma piscina? No campo de basquete, dois homens de fato de treino azul atiravam ao cesto: o lago onde os remadores se treinavam parecia seco, o Chispas ainda praticaria remo nessa época? Já eras um estranho para a família, Zavalita, já não sabias como eram os teus irmãos, que faziam, em quê e quanto tinha mudado. Chegou à entrada do clube, sentou-se no banco de pedra a que estava fixada a corrente, também a guarita do guarda estava vazia. Conseguia ver dali Agua Dulce, a praia sem barracas, os quiosques fechados, a neblina que ocultava as escarpas de Barranco e de Miraflores. Na praiazinha rochosa que separava Agua Dulce do Regatas, o zé-povinho das pessoas como diria a mamã, pensa, havia uns botes varados, um deles com o costado completamente esburacado. Fazia frio, o vento revolvia-lhe os cabelos e sentia um sabor salgado nos lábios. Deu uns passos pela praiazinha, sentou-se num bote, acendeu um cigarro: se não tivesse saído de casa, nunca teria sabido, papá. As gaivotas voavam em círculos, pousavam por momentos nas rochas e largavam, os patinhos mergulhavam e às vezes emergiam com um peixinho quase invisível a retorcer-se no bico. A cor verde-plúmbea do mar, pensa, a espuma terrosa das ondazinhas que se despedaçavam nas rochas, às vezes avistava uma colónia brilhante de alforrecas, madeixas de algas, nunca devia ter ido para San Marcos, papá. Não choravas, Zavalita, não te tremiam as pernas, quando ele chegasse portar-te-ias como um homem, não correrias para os braços dele, diz-me que é mentira, papá, diz-me que não é verdade, papá. O automóvel apareceu lá ao fundo, ziguezagueando para evitar as covas de Agua Dulce, levantando poeira, e ele levantou-se e foi ao seu encontro. Tenho de disfarçar, para não se notar nada em mim, não devo chorar? Não, pensa, é melhor, viria ele a guiar, veria a cara dele? Sim, lá estava o grande sorriso do Ambrosio na janela, a sua voz, como está, Menino Santiago, e lá estava a figura do velho. Tantas brancas a mais, pensa, tantas rugas, e tinha emagrecido tanto, lá estava a sua voz rachada: magricela. Não disse mais nada, pensa, tinha aberto os braços, teve-o durante um grande bocado apertado de encontro a ele, lá estava a boca dele na tua face, Zavalita, o cheiro a água-de-colónia, lá estava a tua voz entrecortada, olá, papá, como estás, papá: mentiras, calúnias, não era verdade.

 

- O menino nem calcula que satisfeito que o senhor ficou - diz Ambrosio. - Não faz ideia do que foi para ele terem por fim feito as pazes.

 

- Deves estar morto de frio, aqui à espera, com um dia tão mau

- a mão dele no teu ombro, Zavalita, falava com aquela lentidão para não se notar a sua emoção, empurrava-te para o Regatas. - Anda, vamos entrar, tens de tomar qualquer coisa quente.

 

Atravessaram os campos de basquete, caminhando lentamente e silenciosos, entraram no edifício do clube por uma porta lateral. Não havia ninguém na sala de jantar, as mesas não estavam postas. D. Fermín bateu as palmas e daí a pouco apareceu um criado, pressuroso, a abotoar o casaco. Pediram cafés.

 

- Daí a pouco tempo deixaste de trabalhar lá em casa, não foi? pergunta Santiago.

 

- Não sei para que é que continuo a ser sócio disto, nunca cá venho - falava com a boca de uma coisa, pensa, e com os olhos como estás, como tens passado, passei os dias, os meses, os anos, à espera, magricela. - Parece-me que já nem os teus irmãos cá vêm. Um dia destes vendo a minha acção. Agora valem trinta mil soles. A mim, custou-me só três mil.

 

- Não me lembro bem - diz Ambrosio. - Sim, julgo que foi pouco depois.

 

- Estás magro e olheirento, a tua mãe vai ficar assustada quando te vir - queria repreender-te e não conseguia, Zavalita, o seu sorriso era comovido e triste. - Trabalhar de noite não é para ti. E viver sozinho também não é para ti, magricela.

 

- Pelo contrário, até engordei, papá. Em compensação, tu emagreceste muito.

 

- Já julgava que nunca mais me telefonavas, deste-me uma destas alegrias, magricela - bastaria que abrisse um bocadinho mais os olhos, Carlitos. - Fosse pelo que fosse. Que é que tens?

 

- Eu nada, papá - que tivesse fechado as mãos de repente, Carlitos, ou mudado de cara um segundo. - Há um assunto que, não sei, de repente podia trazer-te qualquer complicação, não sei. Queria-te prevenir.

 

O criado trouxe os cafés; D. Fermín ofereceu cigarros a Santiago; pelos vidros viam-se os dois homens de fato de treino a fazerem passes, a atirarem a bola ao cesto, e D. Fermín esperava, com uma expressão muito ligeiramente intrigada.

 

- Não sei se viste nos jornais, papá, aquele crime - mas não, nada, Carlitos, olhava para mim, examinava-me a roupa, o corpo, ia fingir daquela maneira, Carlitos? - Aquela cantora que mataram em Jesus Maria, aquela que foi amante do Cayo Bermúdez no tempo do Odría.

 

- Ah, sim - D. Fermín fez um gesto vago, tinha a mesma expressão afectuosa, ligeiramente curiosa, de antes. - Aquela, a Musa.

 

- Na Crónica estão a averiguar tudo o que podem da vida dela então era tudo invenção, Zavalita, estás a ver, eu tinha razão, disse Carlitos, não havia razão para te amargurares tanto. - Estão a explorar a fundo essa notícia.

 

- Estás a tremer, nem sequer puseste uma camisola, com um frio destes - quase aborrecido com a minha história, Carlitos, atento só à minha cara, repreendendo-me com os olhos por viver sozinho, por não lhe ter telefonado antes. - Bom, isso não tem nada de estranho, a Crónica é um jornal um bocado sensacionalista. Mas que há acerca desse assunto?

 

- A noite passada recebemos uma carta anónima no jornal, papá.

 

- Havia de fazer aquele teatro todo, se gostava tanto de ti, Zavalita?

 

- A dizer que quem matou essa mulher foi um ex-gorila do Cayo Bermúdez, um que agora é motorista de, e estava lá o teu nome papá. Podem ter mandado a mesma carta anónima à polícia, e dum momento para o outro - sim, pensa, precisamente por gostar tanto de ti -, enfim, queria-te prevenir, papá.

 

- O Ambrosio, é dele que estás a falar? - lá estava o seu sorrisinho admirado, Zavalita, o seu sorrisinho tão natural, tão seguro, como se só agora se interessasse, como se só agora percebesse alguma coisa. - O Ambrosio, gorila do Bermúdez?

 

- Não é que eu acredite nessa carta anónima, de modo nenhum, papá - disse Santiago. - Enfim, queria-te só prevenir.

 

- O pobre negro, gorila? - lá estava o seu riso tão franco, Zavalita, tão alegre, lá estava aquela espécie de alívio na sua cara, e os seus olhos diziam ainda bem que era uma patetice daquelas, ainda bem que não era nada que te tivesse acontecido, magricela. - Coitado, não seria capaz de matar uma mosca mesmo que quisesse. O Bermúdez passou-mo porque queria um motorista que fosse também polícia.

 

- Eu queria que tu soubesses, papá - disse Santiago. - Se os jornalistas e a polícia se põem a fazer averiguações, são capazes de te ir maçar lá a casa.

 

- Fizeste muito bem, magricela - anuía, Zavalita, sorria, bebia goles de café. - Há alguém que me quer dar cabo da paciência. Não é a primeira vez nem há-de ser a última. As pessoas são assim mesmo. Se o pobre negro soubesse que o julgam capaz duma coisa dessas...

 

Riu-se outra vez, bebeu o último golinho de café, limpou a boca: se tu soubesses a quantidade de cartas anónimas que o teu pai já recebeu durante a vida, magricela. Olhou Santiago com ternura e inclinou-se para o agarrar pelo braço.

 

- Mas há uma coisa que não me agrada nem um bocadinho, magricela. Obrigam-te a trabalhar nisso, na Crónica? Tens de te ocupar de crimes?

 

- Não, papá, eu não tenho nada que ver com isso. Estou na secção de notícias locais.

 

- Mas o trabalho de noite não é para ti, se continuas a emagrecer dessa maneira, podes ficar doente dos pulmões. Já chega de jornalismo, magricela. Vamos procurar uma coisa que te convenha mais. Um trabalho de dia.

 

- O trabalho da Crónica não é quase nenhum, papá, são só umas horas por dia. É menos que em qualquer outro emprego. E fico com o dia livre para a universidade.

 

- Tens ido às aulas, a sério? O Clodomiro diz-me que vais, que passas nos exames, mas nunca sei se hei-de acreditar nele. É verdade, magricela?

 

- Claro que é, papá - sem corar, sem vacilar, se calhar, herdei isto de ti, papá. - Posso-te mostrar as notas. Já estou no terceiro de Direito. Hei-de formar-me, vais ver.

 

- Ainda não deste o braço a torcer? - perguntou D. Fermín, devagar.

 

- Agora vai ser diferente, domingo vou almoçar lá a casa, papá. Pergunta ao Chispas, eu disse-lhe que prevenisse a mamã. Vou vê-los com frequência, prometo.

 

Lá estava a sombra que lhe embaciou os olhos, Zavalita. Endireitou-se na cadeira, largou o braço de Santiago e tentou sorrir, mas a cara continuou abatida, a boca contristada.

 

- Não te exijo nada, mas pelo menos pensa nisso e não digas que não antes de me ouvires - murmurou. - Continua na Crónica, se é essa a tua vontade. Terás chave de casa, arranjamos-te o quartinho ao pé do escritório. Ficas completamente independente, tanto como agora. Mas assim a tua mãe sentir-se-á mais sossegada.

 

- A tua mãe sofre, a tua mãe chora, a tua mãe reza - disse Santiago. - Mas ela habituou-se desde o primeiro dia, Carlitos, eu conheço-a. Ele é que vive a contar os dias, ele é que não se habitua.

 

- Já mostraste que és capaz de viver sozinho e de te sustentares

- insistia D. Fermín. - Já é tempo de voltares para casa, magricela.

 

- Deixa-me continuar assim mais uns tempos, papá. Eu vou lá a casa todas as semanas, já disse ao Chispas, pergunta-lhe. Prometo, papá.

 

- Além de estares magro, nem sequer tens que vestir, estás a passar dificuldades. Porque és tão orgulhoso, Santiago? Para que serve o teu pai senão para te ajudar?

 

- Não preciso de dinheiro, papá. O que ganho dá-me à vontade.

 

- Ganhas mil e quinhentos soles e andas morto de fome - baixando os olhos, Zavalita, envergonhando-se de saberes que ele sabia.

- Não te estou a repreender, magricela. Mas não percebo, que não queiras que eu te ajude não percebo.

 

- Se precisasse de dinheiro pedia-to, papá. Mas chega-me, não sou perdulário. A pensão é muito barata. Não passo dificuldades, juro-te que não.

 

- Já não tens de que te envergonhar de o teu pai ser capitalista sorriu D. Fermín, sem vontade. - O patifório do Bermúdez pôs-nos à beira da falência. Cancelou-nos as ordens de pagamento, vários contratos, mandou-nos auditores para nos espiolharem os livros à lupa e arruinarem-nos com impostos. E agora, com o Prado, o Governo tornou-se uma Mafia tremenda. Voltaram a tirar-nos os contratos que recuperámos quando o Bermúdez saiu para os darem a pradistas. Por este andar, ainda me faço comunista, como tu.

 

- E ainda me queres dar dinheiro - tentou gracejar Santiago. De um momento para o outro quem te vai ajudar sou eu.

 

- Toda a gente se queixava do Odría porque se roubava - disse D. Fermín. - Agora rouba-se tanto ou mais que dantes, e todos estão satisfeitos.

 

- E que agora rouba-se guardando certas formas, papá. As pessoas não notam tanto.

 

- E então como é que podes trabalhar num jornal dos Prado? humilhava-se, Carlitos, se eu lhe tivesse dito, pede-me de joelhos para voltar que eu volto, punha-se de joelhos. - Não são mais capitalistas que o teu pai? Podes ser um empregadote deles e não podes trabalhar comigo nuns pequenos negócios que estão a ir por água abaixo ?

 

- Estávamos a conversar tão bem e de repente zangas-te, papá humilhava-se, mas tinha razão, Zavalita, disse Carlitos. - Ó melhor é não falarmos mais nisso.

 

- Eu não estou zangado, magricela - assustando-se, Zavalita, pensando não vai lá no domingo, nunca mais me telefona, hão-de passar mais anos sem o ver. - Entristece-me que continues a desprezar o teu pai, mais nada.

 

- Não digas isso, papá, sabes que não é verdade, papá.

 

- Está bem, não vamos discutir, eu não estou zangado - chamava o criado, puxava da carteira, tentava disfarçar a decepção, tornava a sorrir. - Então lá te esperamos no domingo. Como a tua mãe vai ficar contente!

 

Voltaram a passar pelos campos de basquete e os jogadores já lá não estavam. A neblina diluíra-se e conseguiam-se ver as escarpas, longínquas e pardacentas, e os telhados das casas do Malecón. Pararam a alguns metros do carro. Ambrosio tinha-se apeado para abrir a porta.

 

- Não consigo perceber, magricela - sem olhar para ti, Zavalita, cabisbaixo, como se estivesse a falar com a terra húmida ou aos pedregulhos cobertos de musgo. - Julguei que tinhas saído de casa por causa das tuas ideias, porque eras comunista e querias viver como um pobre, para lutar pelos pobres. Mas para isto, magricela? Para ter um empregozito medíocre, um futuro medíocre?

 

- Por favor, papá. Não vamos discutir isso, peço-te, papá.

 

- Eu digo isto porque gosto de ti, magricela - os olhos dilatados, a voz feita em pedaços. - Tu podes ir longe, podes ser alguém, fazer grandes coisas. Porque é que estás a arruinar a tua vida desta maneira, Santiago?

 

- Eu fico mesmo aqui, papá - Santiago beijou-o, afastou-se dele.

- Vemo-nos no domingo, por volta do meio-dia.

 

Afastou-se na direcção da praiazinha dando grandes tropeções, virou pela estrada para o Malecón, quando começava a subir a encosta ouviu o automóvel arrancar: viu-o afastar-se por Agua Dulce, saltar nas covas, desaparecer na poeira. Nunca se conformara, Zavalita. Pensa: se estivesses vivo, havias de continuar a inventar coisas para me obrigares a voltar para casa, papá.

 

- Viste, leste o jornal? Nem uma palavra da tal Queta - disse Carlitos. - E até fizeste as pazes com o teu pai e vais fazê-las com a tua mãe. Faço ideia da maneira como eles te hão-de receber no domingo, Zavalita.

 

Com risos, piadas e choro, pensa. Não tinha sido assim tão difícil, o gelo quebrara-se um momento depois de a porta se abrir e ouviu o grito da Teté, já tinha chegado, mami! Tinham acabado de regar o jardim, pensa, a relva estava húmida, o laguito seco. Ingrato, querido, filhinho, lá estavam os braços da mamã no teu pescoço, Zavalita. Abraçava-o, soluçava, beijava-o, o velho e o Chispas e a Teté sorriam, as criadas andavam numa roda viva à volta deles, quando é que acabavas com essas patetices, filhinho, não tinhas remorsos de fazeres a tua mãe passar este calvário, filhinho? Mas ele não estava ali: não era mentira papá.

 

- Apercebi-me do mal-estar que o Becerrita sentiu quando entraste na redacção - disse Carlitos. - Assim que te viu, ia engolindo a beata. Incrível.

 

- Não há nada de novo, fora as patetices daquela puta, o melhor é esquecermo-nos de tudo - rosnou Becerrita, revolvendo uns papéis com desespero. - Faça uma página de palha, Zavalita. A investigação prossegue, examinam-se novas pistas. Uma coisa qualquer, uma página.

 

- Ele é humano, essa é que é a parte formidável do assunto, Zavalita - disse Carlitos. - Ter descoberto o coração do Becerrita.

 

Estás magro, andas olheirento, tinham entrado para a sala, quem é que te lavava a roupa, tinha-se sentado entre a D. Zoila e a Teté, a comida da pensão era boa?, era, mamã, e nos olhos do velho não havia qualquer mal-estar, ias às aulas?, nem qualquer cumplicidade ou turbação na voz. Sorria, gracejava, esperançado e feliz, devia estar a pensar ele vai voltar, tudo se havia de compor, e a Teté diz lá a sério, aldrabão, não posso acreditar que não tenhas namorada. Era verdade, Teté.

 

- Sabes que o Ambrosio se foi embora? - perguntou o Chispas.

 

- Pôs-se a mexer de repente, de um dia para o outro.

 

- O Periquito foge de ti, o Arispe fica atrapalhado quando fala contigo, o Hernández olha para ti a gozar? - pergunta Carlitos. Não querias mais nada, masochista. Eles têm problemas de mais para perderem tempo a lamentar-te. E, aliás, lamentar-te porquê? Porquê a ti, ora que caralho?

 

- Foi para a terra, diz que quer comprar um carrito e ser motorista de praça - sorriu D. Fermín. - Pobre negro. Oxalá que as coisas lhe corram bem.

 

- Não querias mais nada - riu-se Carlitos. - Que a redacção em peso falasse de ti, que bisbilhotassem, que dissessem mal de ti. Mas ou não sabem de nada ou ficaram tão espantados que nem abrem a boca. Lixaram-te, Zavalita.

 

- Agora começou o pai a guiar, não quer meter outro motorista - riu-se a Teté. - Se o visses ao volante, dava-te um ataque. Não passa dos dez à hora e não há esquina em que não trave.

 

- Todos muito cordiais contigo, todos te fazem sentir mal com os seus sorrisinhos e amabilidades? - perguntou Carlitos. - Não querias mais nada. A verdade é que não sabem de nada ou estão-se cagando, Zavalita.

 

- Mentira, chego mais depressa daqui ao escritório que o Chis-

 

Eas - riu-se D. Fermín. - Além disso, poupo dinheiro, e descobri que gosto de guiar. Vieram-me as bexigas com a velhice. Caramba, que bom aspecto que tem este ensopado.

 

Está delicioso, mamã, claro que queria mais, querias que ela te descascasse os camarões?, sim, mamã. Um actor, Zavalita, um maquiavel, um cínico? Pois sim, mamã, traria as roupas para as raparigas a lavarem. Um tipo que se desdobrava em tantos que era impossível saber qual deles na realidade era ele? Viria almoçar todos os domingos, sim, mamã. Mais uma vítima ou vitimário a lutar com unhas e dentes para devorar e não ser devorado, mais um burguês peruano? Sim, telefonaria todos os dias para dizer como estava e se precisava de alguma coisa, mamã. Bom em casa com os filhos, imoral nos negócios, oportunista na política, nem mais nem menos que os outros? Acabaria o curso, sim, mamã. Impotente com a mulher, insaciável com as amantes, a arriar as calças diante do motorista? Não perderia noites, não, agasalhar-se-ia, sim, não fumaria, teria cuidado consigo, mamã. Pondo vaselina, pensa, ofegando e babando-se como uma parturiente por baixo dele?

 

- Sim, eu ensinei o Menino Chispas a guiar - diz Ambrosio. As escondidas do seu paizinho, claro.

 

- Nunca ouvi o Becerrita ou o Periquito dizerem uma palavra aos outros - disse Carlitos. - Talvez quando eu não estivesse, eles sabem que somos amigos. Talvez tivesse falado durante uns dias, umas semanas. Depois devem-se ter acostumado todos, devem-se ter esquecido. Não foi o que aconteceu com a Musa, não é o que acontece com tudo neste país, Zavalita?

 

Anos que se confundem, Zavalita, mediocridade diurna e monotonia nocturna, cervejas e casas de passe. Reportagens, artigos: papel que chegava para uma pessoa se limpar durante toda a vida, pensa. Conversas no Negro-Negro, domingos com ensopado de camarão, vales na cantina da Crónica, um punhado de livros para recordar. Bebedeiras sem convicção, Zavalita, coitos sem convicção, jornalismo sem convicção. Dívidas no fim de todos os meses, uma purgação, lenta, inexorável imersão na invisível porcaria. Ela tinha sido a única coisa diferente, pensa. Fez-te sofrer, Zavalita, perder noites, chorar. Pensa: os teus bichinhos sacudiram-me um bocado, Musa, fizeram-me viver um bocado. Carlitos moveu as costas da mão, levantou um pouco o polegar e fez uma inspiração; lá estava a cabeça dele lançada para trás, metade da cara iluminada pelo reflector, metade sumida em qualquer coisa secreta e profunda.

 

- A índia anda a dormir com um músico do Embassy - lá estavam os seus vítreos olhos errantes. - Também tenho direito a ter o meu problema, Zavalita.

 

- Está bem, já vejo que vamos passar toda a noite aqui - disse Santiago. - Que vou ter de te deixar.

 

- Es bom e fracassado como eu, tens o que é preciso ter - soletrou Carlitos. - Mas falta-te qualquer coisa. Não dizes que queres viver? Apaixona-te por uma puta e verás.

 

Tinha inclinado ligeiramente a cabeça e com voz densa, insegura e demorada, começara a recitar. Repetia um mesmo verso, calava-se, tornava, de vez em quando ria-se quase sem barulho. Eram já perto de três horas quando Norwin e Rojas entraram no Negro-Negro e havia pouco que Carlitos delirava.

 

- Acabou-se o campeonato, vamo-nos retirar - disse Norwin.

 

- Deixamos o campo livre ao Becerrita e a ti, Zavalita.

 

- Nem mais uma palavra acerca do jornal, senão vou-me embora

 

- disse Rojas. - São três da manhã, Norwin. Esquece-te da Ultima Hora, esquece-te da Musa, senão vou-me embora.

 

- Sensacionalista de merda - disse Carlitos. - Pareces um jornalista, Norwin.

 

- Já não estou nas criminais - disse Santiago. - Esta semana voltei para as locais.

 

- Cobrimos a Musa de terra, deixamos o campo livre ao Becerrita

 

- disse Norwin. - Acabou-se, não dá para mais. Convence-te, Zavalita, não hão-de descobrir nada. Já não é notícia.

 

- Em vez de explorares os instintos baixos dos Peruanos, oferece-me uma cerveja - disse Carlitos. - Sensacionalista de merda.

 

- Eu sei que o Becerrita vai continuar a malhar no ferro frio disse Norwin. - Nós não. Não dá para mais, convence-te. Tens de reconhecer que até aqui estamos empatados nas notícias em primeira mão, Zavalita..

 

- E um mulato com o cabelo desfrisado e uns músculos assim disse Carlitos. - Toca bongo.

 

- Os chuis já enterraram o assunto, passo-te a informação - disse Norwin. - Foi o Pantoja que mo confessou, esta tarde. Estamos a marcar passo, é preciso esperar por um acaso. Já se fartaram, não vão descobrir mais nada. Diz isto ao Becerrita.

 

Não conseguiram ou não quiseram descobrir nada?, pensa. Pensa: não souberam ou mataram-te duas vezes, Musa? Tinha havido conversas a meia voz, salões acolchoados, idas e vindas, portas misteriosas a abrirem-se e fecharem-se, Zavalita? Visitas, murmúrios, confidências, ordens?

 

- Fui vê-lo esta tarde, ao Embassy - disse Carlitos. - Vens para armar zaragata? Não, compadre, venho conversar. Conta-me como é que a índia se porta contigo, que eu depois conto-te como é comigo e comparamos. Fizemo-nos amigos.

 

Teria sido a negligência, a abulia limenha, a estupidez dos chuis, Zavalita? Pensa: que ninguém exigisse, insistisse, que ninguém se mexesse por tua causa. Esqueçam este assunto ou esqueceram-se mesmo, pensa, ponham uma pedra sobre o assunto ou puseram-na por si mesmos? Foram os mesmos que te mataram outra vez, Musa, ou desta segunda vez foi todo o Peru que te matou?

 

- Ah, já sei porque é que estás assim - disse Norwin. - Zangaste-te outra vez com a índia, Carlitos.

 

Iam ao Negro-Negro duas ou três vezes por semana, enquanto o jornal continuou no velho sítio da Calle Pando. Quando a Crónica mudou para o edifício novo da Avenida Tacna, reuniam-se em barezinhos e cafezitos da Colmena. O Jaialai, pensa, o Hawai, o América. Nos primeiros dias de cada mês, Norwin, Rojas, Milton, apareciam nessas cavernas cheias de fumo e iam às casas de passe. As vezes encontravam Becerrita, rodeado de dois ou três redactores, fazendo saúdes e conversando tu cá tu lá com os cabrões e os maricas e era sempre ele que pagava a conta. Levantar-se ao meio-dia, almoçar na pensão, uma entrevista, uma informação, sentar-se à secretária e redigir, descer à cantina, voltar à máquina, sair, voltar à pensão ao amanhecer, despir-se vendo o dia a crescer sobre o mar. Também os almoços de domingo se confundiam, as jantaradas no Rinconcito Cajamarquino, para comemorar os aniversários de Carlitos, Norwin ou Hernández, também a reunião semanal com o papá, a mamã, o Chispas e a Teté.

 

- Outro café, D. Cayo?- perguntou o comandante Paredes.

 

- Para o senhor também, meu general?

 

- Os senhores arrancaram-me a aprovação, mas não me convenceram, continuo a achar estúpido falar com ele - o general Llerena atirou os telegramas para cima da secretária. - Porque é que não se lhe manda um telegrama ordenando-lhe que venha a Lima? Ou, então, o que propôs ontem o Paredes. Tirá-lo de Tumbes por terra, metê-lo num avião em Talara e trazê-lo.

 

- Porque o Chamorro é traidor mas não é parvo, senhor General

 

- disse ele. - Se o senhor lhe mandar um telegrama, ele atravessa a fronteira. Se a polícia lhe aparece em casa, ele recebe-a a tiro. E não sabemos qual será a reacção dos oficiais dele.

 

- Eu respondo pelos oficiais de Tumbes - disse o general Llerena, levantando a voz. - O coronel Quijano tem-nos dado informações desde o princípio e pode assumir o comando. Não se negoceia com conspiradores, e muito menos quando a conspiração está sufocada. Isto é um disparate, Bermúdez.

 

-- O Chamorro é muito querido pelos oficiais, meu general disse o comandante Paredes. - Eu sugeri que prendessem os quatro cabecilhas ao mesmo tempo. Mas já que três fizeram marcha atrás, penso que a ideia do Cayo é a melhor.

 

- Deve tudo ao presidente, deve-me tudo a mim - o general Llerena deu um murro no braço da poltrona. - Podia-se esperar uma coisa destas doutro qualquer, mas dele não. O Chamorro há-de pagar-mas.

 

- Não se trata de si, senhor general - admoestou-o ele, afectuosamente. - O presidente quer que isto se resolva sem complicações. Deixe-me agir à minha maneira, garanto-lhe que é o melhor.

 

- Chiclayo ao telefone, meu general - disse uma cabeça com bivaque, da porta. - Sim, podem usar os três telefones, meu general.

 

- É o senhor comandante Paredes? - gritou uma voz abafada entre zumbidos e vibrações acústicas. - E o Camino, senhor comandante. Não consigo encontrar o senhor Bermúdez, para o informar. Já temos aqui o senador Landa. Sim, na herdade dele. A protestar, sim. Quer telefonar para o Palácio. Seguimos as instruções à risca, senhor comandante.

 

- Muito bem, Camino - disse ele. - Sou eu, sim. O senador está aí perto? Passe-mo lá, vou falar com ele.

 

- Está no quarto ao lado, D. Cayo - os zumbidos aumentavam, a voz parecia sumir-se e ressuscitava. - Incomunicável, como o senhor disse. Vou mandá-lo buscar agora mesmo, D. Cayo.

 

- Está, está? - reconheceu a voz de Landa, tentou imaginar a cara dele e não conseguiu. - Está, está?

 

- Lamento muito as maçadas que lhe estamos a dar, senador disse, com amabilidade. - Precisávamos de o encontrar.

 

- Que significa tudo isto? - estoirou a iracunda voz de Landa.

- Porque é que me foram buscar a casa com soldados? E a imunidade parlamentar? Quem é que ordenou este abuso, Bermúdez?

 

- Queria informá-lo de que o general Espina está preso - disse ele, com calma. - E o general está empenhado em implicá-lo num assunto muito turvo. Sim, Espina, o general Espina. Garante que o senhor está comprometido numa conspiração contra o regime. Precisamos que venha a Lima para esclarecer isto, senador.

 

- Eu, numa conspiração contra o regime? - não havia qualquer vacilação na voz de Landa, só a mesma fúria ressonante. - Mas se eu sou do regime, se eu sou o regime. Que estupidez é essa, Bermúdez, que é que lhe passou pela cabeça?

 

- Ã mim não me passou nada pela cabeça, ao general Espina é que sim - desculpou-se ele. - Diz que tem provas. É por isso que precisamos cá de si, senador. Falaremos amanhã e espero que tudo se esclareça.

 

- Arranjem-me um avião para Lima imediatamente - rugiu o senador. - Eu alugo um avião, eu pago-o. Isto é completamente absurdo, Bermúdez.

 

- Muito bem, senador - disse ele. - Passe-me o Camino, eu vou-lhe dar instruções.

 

- Fui tratado como um delinquente pelos seus polícias - gritou o senador. - Apesar da minha condição de parlamentar, apesar de ser amigo do presidente. O senhor é responsável por tudo isto, Bermúdez.

 

- Guarde-me o Landa aí toda a noite, Camino - disse ele. Despache-o de manhã para cá. Não, nada de avião especial. No voo normal da Faucett, sim. É tudo, Camino.

 

- Eu alugo um avião, eu pago - disse o comandante Paredes, desligando o telefone. - Uma noite na prisão há-de fazer bem a esse grande senhor.

 

- Houve uma filha do Landa que foi eleita Miss Peru no ano passado, não foi? - disse ele, e viu-a, diluída contra a cortina de sombras da janela, a despir um casaco de peles, a descalçar-se. - Cristina ou coisa parecida, não era? Pelas fotografias parecia uma linda rapariga.

 

- A mim os seus métodos não me convencem - disse o general Llerena, olhando para a alcatifa com mau humor. - As coisas resolvem-se melhor e mais depressa com pulso de ferro, Bermúdez.

 

- Um telefonema para o senhor Bermúdez da prefeitura, meu general - disse um tenente, assomando à porta. - Do senhor Lozano.

 

- O sujeito acaba de sair de casa, D. Cayo - disse Lozano. Sim, vai um carro a segui-lo. Para Chaclacayo, sim.

 

- Está bem - disse ele. - Telefone para Chaclacayo e diga-lhes que o Zavala está a chegar. Que o mandem entrar e ele que espere por mim. Que não o deixem sair até eu chegar. Até logo, Lozano.

 

- O peixe graúdo vai a sua casa? - perguntou o general Llerena.

 

- Que significa isso, Bermúdez?

 

- Que já se apercebeu de que a conspiração foi por água abaixo, senhor general - disse ele.

 

- E para o Zavala tudo se vai resolver assim tão simplesmente? murmurou o comandante Paredes. - Ele e o Landa são os autores intelectuais de tudo isto, foram eles que empurraram o Serrano para esta aventura.

 

- O general Chamorro ao telefone, meu general - disse um capitão, da porta. - Sim, estão os três telefones ligados para Tumbes, meu general.

 

- Fala Cayo Bermúdez, general - pelo rabo do olho viu a cara cansada pela vigília do general Llerena e a ansiedade de Paredes, que mordia os lábios. - Lamento acordá-lo a uma hora destas, mas é um assunto urgente.

 

- General Chamorro, muito prazer - uma voz enérgica, sem idade, dona de si mesma. - Diga, em que é que o posso servir, senhor Bermúdez?

 

- O general Espina foi detido esta noite, general - disse ele. As guarnições de Arequipa, de Iquitos e de Cajamarca reafirmaram a sua lealdade ao Governo. Todos os civis comprometidos na conspiração, do senador Landa até Fermín Zavala, estão presos. Vou-lhe ler uns telegramas, general.

 

- Uma conspiração? - murmurou, entre ruídos vários, o general Chamorro. - Contra o Governo, diz o senhor?

 

- Uma conspiração sufocada antes de nascer - disse ele. O presidente está disposto a passar uma esponja sobre o assunto, general. O Espina sairá do país, os oficiais implicados não serão afectados se agirem razoavelmente. Sabemos que o senhor prometeu apoiar o general Espina, mas o presidente está disposto a esquecê-lo, general.

 

- Eu só dou satisfações dos meus actos aos meus superiores, ao ministro da Guerra ou ao chefe do Estado-Maior - disse a voz de Chamorro com altivez, a seguir a uma pausa de arrotos eléctricos.

 

- Quem se julga o senhor? Eu não dou explicações a um subalterno civil.

 

- Está, Alberto? - o general Llerena tossiu, falou com mais energia. - Fala-te o ministro da Guerra, não o companheiro de armas. Só quero confirmar-te o que ouviste. Também deves saber que é graças ao presidente que te é dada esta oportunidade. Eu propus levarem-te a conselho de guerra e julgarem-te por alta traição.

 

- Eu assumo a responsabilidade dos meus actos - replicou, com indignação, a voz de Chamorro; mas qualquer coisa tinha começado a ceder nela, qualquer coisa que transparecia no seu próprio ímpeto.

 

- É falso que eu tenha cometido qualquer traição. Respondo diante de qualquer tribunal. Sempre respondi, e tu bem o sabes.

 

- O presidente sabe que o senhor é um oficial distinto e é por isso que o quer dissociar desta aventura sem pés nem cabeça - disse ele - Sim, é Bermúdez. O presidente aprecia-o e considera-o um patriota. Não quer tomar nenhuma medida contra si, general.

 

- Eu sou um homem honrado e não permitirei que o meu nome seja manchado - afirmou o general Chamorro, com violência. - Isto é uma intriga forjada nas minhas costas. Não o permitirei. Não tenho nada que falar com o senhor, passe-me o general Llerena.

 

- Todos os chefes do exército reafirmaram a sua lealdade ao regime, general - disse ele. - Só falta o senhor fazer o mesmo. O presidente espera isso de si, general Chamorro.

 

- Não permitirei que o meu nome seja caluniado, não permito que se ponha em dúvida a minha honra - repetia com veemência a voz de Chamorro. - Isto é uma intriga cobarde e canalha contra mim. Ordeno-lhe que me passe o general Llerena.

 

- Reafirma inquebrantável lealdade Governo constituído e chefe de Estado empenhado patriótica restauração nacional, assinado general Pedro Solano, comandante-chefe primeira região militar - leu eíe- -. Comandante-chefe quarta região e oficiais confirmam adesão simpatia patriótico regime restauração nacional stop Cumpriremos constituição leis. Assinado general António Quispe Bulnes. Reitero adesão patriótico regime stop Reafirmo decisão cumprir sagrados deveres pátria constituição leis. Assinado general Manuel Obando Coloma, comandante-chefe segunda região.

 

- Ouviste, Alberto? - rugiu o general Llerena. - Ouviste ou queres que eu te leia outra vez os telegramas?

 

- O presidente espera o telegrama de si, general Chamorro disse ele. - Pediu-me para lho dizer pessoalmente.

 

- A não ser que queiras cometer a loucura de te revoltares sozinho - rugiu o general Llerena. - E nesse caso dou-te a minha palavra de honra que me basta um par de horas para te demonstrar que o exército permanece totalmente fiel ao regime, apesar de tudo o que o Espina te tenha metido na cabeça. Se não mandas o telegrama antes do amanhecer, considero que entraste em rebelião.

 

- O presidente confia em si, general Chamorro - disse ele.

 

- Escuso de te lembrar que estás a comandar uma guarnição da fronteira - disse o general Llerena. - Escuso de te dizer a responsabilidade que cairá sobre ti se provocares uma guerra civil mesmo às portas do Equador.

 

- O senhor pode consultar pela rádio os generais Quispe, Obando e Solano - disse ele. - O presidente espera que o senhor se porte com o mesmo patriotismo que eles. É tudo o que queríamos dizer-lhe. Boa noite, general Chamorro.

 

- Nesta altura, o Chamorro tem a cabeça em água - murmurou o general Llerena, passando o lenço pela cara ensopada de suor. Ainda faz algum disparate.

 

- Nesta altura, está a praguejar contra o Espina, o Solano, o Quispe e o Obando - disse o comandante Paredes. - Pode ser que se escape para o Equador. Mas não creio que vá arruinar assim a carreira.

 

- Há-de mandar um telegrama antes do amanhecer - disse ele.

 

- É um homem inteligente.

 

- Se lhe dá um ataque de loucura e se subleva,pode resistir vários dias - disse o general Llerena, surdamente. - Tenho-o cercado de tropas, mas não confio muito na aviação. Quando se considerou a possibilidade de bombardear o quartel, o ministro disse que a ideia não agradaria a muitos pilotos.

 

- Não há-de ser preciso nada disso, a conspiração morreu sem apelo nem agravo - disse ele. - Resultado, um par de dias sem dormir, senhor general. Vou a Chaclacayo agora, dar o remate. Depois vou ao Palácio. Qualquer novidade que haja, estou em minha casa.

 

- Telefonema do Palácio para o senhor Bermúdez, meu general

 

- disse um tenente, sem entrar. - O telefone branco, meu general.

 

- Major Tijero, D. Cayo - no caixilho da janela despontava ao fundo da massa sombria uma irisação azul: o casaco de peles escorregava até aos pés dela, que eram rosados. - Acaba de chegar um telegrama de Tumbes. Em código, estão a decifrá-lo. Mas já nos apercebemos do sentido. Nada mal, não acha, D. Cayo?

 

- Fico muito satisfeito, Tijero - disse ele, sem alegria, e entreviu as caras estupefactas^de Paredes e de Llerena. - Não demorou nem meia hora a pensar. É o que se chama um homem de acção. Até logo, Tijero, vou aí daqui a umas duas horas.

 

- O melhor é irmos já para o Palácio, meu general - disse o comandante Paredes. - Este é o ponto final.

 

- Desculpe, D. Cayo - disse Ludovico. - Deu-nos o cansaço. Acorda, Hipólito.

 

- Que é que foi, caralho, porque é que me estás a empurrar? tartamudeou Hipólito. - Ai, desculpe, D. Cayo, deixei-me dormir.

 

- Para Chaclacayo - disse ele. - Quero chegar lá daqui a vinte minutos.

 

- As luzes da sala estão acesas, tem visitas, D. Cayo - disse Ludovico. - Olha quem ali está, Hipólito, no carro. É o Ambrosio.

 

- Desculpe tê-lo feito esperar, D. Fermín - disse ele, sorrindo, observando o rosto violáceo, os olhos cansados pela derrota e pela longa vigília, estendendo a mão. - Vou mandar arranjarem-nos uns cafés, oxalá que a Anatolia esteja acordada.

 

- Puro, muito forte e sem açúcar - disse D. Fermín. - Obrigado, D. Cayo.

 

- Dois cafés puros, Anatolia - disse ele. - Trá-los para a sala e depois podes-te ir deitar outra vez?

 

- Tentei falar com o presidente e não consegui, foi por isso que vim cá - disse maquinalmente D. Fermín. - Coisa grave, D. Cayo. Sim, uma conspiração.

 

- Outra? - estendeu um cinzeiro a D. Fermín, sentou-se ao lado dele no sofá. - Não passa uma semana sem se descobrir uma, ultimamente.

 

- Militares pelo meio, várias guarnições implicadas - recitava desgostoso D. Fermín. - E à cabeça as pessoas que menos se pudesse imaginar.

 

- Tem fósforos? - inclinou-se para o isqueiro de D. Fermín, puxou uma grande fumaça, expeliu uma nuvem de fumo e tossiu. Ah, aí vêm os cafés. Deixa-os aqui, Anatolia. Sim, fecha a porta.

 

- O Serrano Espina - D. Fermín bebeu um gole com uma careta de desagrado, calou-se enquanto deitava o açúcar, mexeu o café com a colherinha, devagar - é apoiado por Arequipa, Cajamarca, Iquitos e Tumbes. O Espina vai hoje de manhã a Arequipa. Queriam o meu apoio e pareceu-me prudente não os desenganar, responder com evasivas, assistir a algumas reuniões. Por causa da minha amizade pelo Espina, principalmente.

 

- Bem sei que são muito amigos - disse ele, provando o café.

- Foi por intermédio do Serrano que nos conhecemos, como deve estar recordado.

 

- Ao princípio, parecia insensato - disse D. Fermín, contemplando fixamente a sua chávena de café. - Depois, já não tanto. Muita gente do regime, muitos políticos. A Embaixada norte-americana estava ao corrente, sugeriu que se convocassem eleições passados seis meses da instauração do novo regime.

 

- Tipo desleal, o Serrano - disse ele, anuindo. - Tenho pena, porque também somos velhos amigos. É a ele que devo o meu cargo, como sabe.

 

- Considerava-se o braço direito do Odría e de um dia para o outro tiraram-lhe o Ministério - disse D. Fermín, com um gesto de cansaço. - Nunca se conformou.

 

- Tinha confundido as coisas, começou a trabalhar para ele do Ministério, a nomear gente da confiança dele para as prefeituras, a exigir que os amigos dele tivessem os postos-chaves do exército disse ele. - Demasiadas ambições políticas, D. Fermín.

 

- E claro que as minhas notícias de modo algum o surpreendem - disse D. Fermín, com um súbito aborrecimento, e ele pensou sabe comportar-se, tem classe, tem experiência.

 

- Os oficiais devem muito ao presidente, e, claro, mantinham-nos informados - disse ele. - Inclusivamente acerca das conversas entre o senhor, o Espina e o senador Landa.

 

- O Espina queria usar o meu nome para convencer uns tantos imbecis - disse D. Fermín, com um sorrisinho apático e fugaz.

- Mas só os militares conheciam os planos em pormenor. A mim e ao Landa deixavam-nos na ignorância. Só ontem tive informações suficientes.

 

- Então, tudo se esclarece - disse ele. - Metade dos conspiradores eram amigos do regime, todas as guarnições implicadas manifestaram a sua adesão ao presidente. O Espina está preso. Só resta esclarecer a situação de alguns civis. A sua começa a esclarecer-se, D. Fermín.

 

- Também sabia que eu estava aqui à sua espera? - perguntou D. Fermín, sem ironia. Aparecera-lhe na testa um brilho de suor.

 

- E o meu trabalho, pagam-me para saber o que interessa ao regime - admitiu ele. - Não é fácil, a verdade é que cada vez se vai tornando mais difícil. As conspirações dos universitários são brincadeiras. Quando os generais se põem a conspirar, já é mais sério. E muito mais se conspiram com sócios do Club Nacional.

 

- Bom, as cartas estão na mesa - disse D. Fermín. Fez uma breve pausa e olhou para ele: - Prefiro saber já com o que é que conto, D. Cayo.

 

- Vou-lhe falar com franqueza - disse ele, anuindo. - Não queremos barulho. Prejudicaria o regime, não convém que se saiba que há divisões. Estamos dispostos a não fazer represálias. Desde que exista a mesma compreensão da parte contrária.

 

- O Espina é orgulhoso e não fará nenhum acto de contrição afirmou D. Fermín, pensativo. - Imagino como ele se sentirá depois de saber que os companheiros o enganaram.

 

- Não fará nenhum acto de contrição, mas, em vez de brincar aos mártires, há-de preferir partir para o estrangeiro com um bom ordenado em dólares - disse ele, encolhendo os ombros. - Continuará a conspirar de lá para levantar o moral e tirar o amargo da boca. Mas ele sabe que já não tem a mais pequena possibilidade.

 

- Então, está tudo resolvido pelo lado dos militares - disse D. Fermín. - E os civis?

 

- Depende de quais civis - disse ele. - O melhor é esquecermos o doutorzinho Ferro e os outros pequenos arrivistas. Não existem.

 

- No entanto, existem - suspirou D. Fermín. - Que é que lhes vai acontecer?

 

- Uns tempos à sombra e depois irão sendo despachados para o estrangeiro, aos poucos - disse ele. - Não vale a pena pensar neles. Os únicos civis que contam são o senhor e Landa, por razões óbvias.

 

- Por razões óbvias - repetiu, lentamente, D. Fermín. - Isto é?

 

- Os senhores serviram o regime desde a primeira hora e têm relações e influências em meios que temos de tratar com luva de pelica

- disse ele. - Espero que o presidente tenha para com os senhores a mesma consideração que teve para com o Espina. Esta é a minha opinião pessoal. Mas a decisão final é o presidente que a tomará, D. Fermín.

 

- Vão propor-me também uma viagem ao estrangeiro? - perguntou D. Fermín.

 

- Como as coisas se resolveram tão depressa e, digamos, tão bem, vou aconselhar o presidente no sentido de os senhores não serem maçados - disse ele. - Para além de lhes pedir que abandonem toda a actividade política, claro.

 

- Eu não sou o cérebro desta conspiração e o senhor bem o sabe

- disse D. Fermín. - Desde o princípio tive dúvidas. Apresentaram-me tudo feito, não me consultaram.

 

- O Espina garante que o senhor e Landa tinham reunido muito dinheiro para o golpe - disse ele.

 

- Eu não costumo investir dinheiro em maus negócios e isso também o senhor sabe - disse D. Fermín. - Dei dinheiro e fui o primeiro a remover céus e terra para convencer as pessoas a apoiarem o Odría em quarenta e oito, porque tinha fé nele. Suponho que o presidente não se tenha esquecido.

 

- O presidente é serrano - disse ele. - E os serranos têm muito boa memória.

 

- Se eu me tivesse metido a conspirar de verdade, as coisas não teriam corrido tão mal ao Espina, se o Landa e eu tivéssemos sido os autores disto, as guarnições implicadas não teriam sido quatro e sim dez. - D. Fermín falava sem arrogância, sem pressa, com uma segurança tranquila e ele pensou como se tudo o que ele está a dizer fosse escusado, como se eu tivesse a obrigação de ter sabido isso desde sempre. - Com dez milhões de soles não há golpe de Estado que falhe no Peru, D. Cayo.

 

- Vou ao Palácio falar com o presidente - disse ele. - Farei todos os possíveis para que ele se mostre compreensivo e tudo se arranje da melhor maneira, pelo menos no que lhe diz respeito a si. E tudo o que lhe posso oferecer por agora, D. Fermín.

 

- Vão-me prender? - perguntou D. Fermín.

 

- Evidentemente que não; no pior dos casos, pedir-lhe-ão que vá para o estrangeiro por uns tempos - disse ele. - Mas não me parece que seja necessário.

 

- Vão ser tomadas represálias contra mim? - perguntou D. Fermín. - Económicas, quero eu dizer. Como o senhor sabe, grande parte dos meus negócios depende do Estado.

 

- Farei o que me for possível para o evitar - disse ele. - O presidente não é rancoroso, e espero que dentro duns tempos aceite uma reconciliação consigo. É tudo o que posso adiantar, D. Fermín.

 

- Suponho que teremos de esquecer as coisas que eu e o senhor tínhamos pendentes - disse D. Fermín.

 

- Enterrá-las definitivamente - esclareceu ele. - Bem vê, sou sincero consigo. Antes de tudo, sou um homem do regime, D. Fermín. - Fez uma pausa, baixou um pouco a voz, e usou um tom menos impessoal, mais íntimo. - Sei que está a passar um mau bocado. Não, não me refiro a isto. Ao seu filho, ao que fugiu de casa.

 

- Que há com o Santiago? - a cara de D. Fermín voltara-se rapidamente para ele.- Continua a perseguir o rapaz?

 

- Mandámo-lo vigiar uns dias, agora já não - tranquilizou-o ele.

- Parece que aquela experiência amarga o decepcionou da política. Não tornou a reunir-se com os antigos amigos e, ao que sei, faz uma vida muito regrada.

 

- O senhor sabe mais do Santiago que eu, há seis meses que não o vejo - murmurou D. Fermín, pondo-se de pé. - Bem, estou cansadíssimo e vou deixá-lo. Até depois, D. Cayo.

 

- Para o Palácio, Ludovico - disse ele. - Esse fraquitolas do Hipólito tornou a deixar-se dormir. Deixa-o lá, não o acordes.

 

- Cá estamos - disse Ludovico, rindo. - Agora quem se deixou dormir foi o senhor. Veio todo o caminho a ressonar, D. Cayo.

 

- Bom dia, até que enfim que o senhor chega - disse o major Tijero. - O presidente retirou-se para descansar. Mas estão aí à sua espera o comandante Paredes e o doutor Arbeláez, D. Cayo.

 

- Pediu para não ser acordado, a não ser que se trate de qualquer coisa muito urgente - disse o comandante Paredes.

 

- Não há nada urgente, virei vê-lo mais tarde - disse ele. - Sim, saio convosco. Bom dia, doutor.

 

- Tenho de lhe dar os parabéns, D. Cayo - disse o Dr. Arbeláez, com velhacaria. - Sem barulho, sem verter uma gota de sangue, sem ninguém o aconselhar nem ajudar. Um êxito total, D. Cayo.

 

- Ia-lhe propor que almoçássemos juntos, para lhe explicar tudo em pormenor - disse ele. - Até ao último momento, os indícios eram vagos. As coisas precipitaram-se esta noite e não tive tempo de o pôr ao corrente.

 

- Não estou livre ao meio-dia, mas agradeço-lhe, de qualquer maneira - disse o Dr. Arbeláez. - Já não precisa de me pôr ao corrente. O presidente informou-me de tudo, D. Cayo.

 

- Em certas circunstâncias, não há outro remédio senão passar por alto as hierarquias, doutor - murmurou ele. - Esta noite era mais importante agir do que informá-lo.

 

- Com certeza - disse o Dr. Arbeláez. - Desta vez, o presidente aceitou a minha demissão e, pode crer, estou muito satisfeito. Acabaram-se os nossos incómodos. O presidente vai reorganizar o Gabinete; agora não, nas Fiestas Pátrias. Mas, enfim, já está combinado.

 

- Pedirei ao presidente que reconsidere a decisão e que não o deixe sair - disse ele. - Mesmo que não acredite, gosto de trabalhar sob as suas ordens, doutor.

 

- Sob as minhas ordens? - largou uma gargalhada o Dr. Arbeláez. - Enfim. Até logo, D. Cayo. Adeus, comandante.

 

- Vamos tomar qualquer coisa, Cayo - disse o comandante Paredes. - Sim, anda no meu carro. O teu motorista que nos siga até ao Círculo Militar. O Camino telefonou a avisar que o avião da Faucett chega às onze e meia. Vais esperar o Landa?

 

- Que remédio tenho eu - disse ele. - Se não morrer de sono, primeiro. Faltam três horas, não é?

 

- Que tal a conversa com o peixe graúdo? - perguntou o comandante Paredes.

 

- O Zavala é um bom jogador, sabe perder - disse ele. - Preocupa-me mais o Landa. Tem mais dinheiro e por isso mais orgulho. Ver-se-á.

 

- A verdade é que a coisa esteve séria - bocejou Paredes. - Se não fosse o coronel Quijano, apanhávamos um bom susto.

 

- O regime deve-lhe a vida, ou quase - anuiu ele. - É preciso fazer que o Congresso o promova quanto antes.

 

- Dois sumos de laranja e dois cafés bem fortes - disse o comandante Paredes. - E depressa, que estamos quase a dormir.

 

- O que é que te preocupa? - perguntou ele. - Desembucha lá.

 

- E o Zavala - disse o comandante Paredes. - Os teus negócios com ele. Deve-te ter seguro por aí, creio eu.

 

- Ainda não há ninguém que me tenha seguro - disse ele, espreguiçando-se. - Tentou uma data de vezes, claro. Queria fazer-me sócio dele, encher-me de acções, mil e uma coisas. Mas não conseguiu.

 

- Não é isso - disse o comandante Paredes. - O presidente...

 

- Sabe tudo, tintim por tintim - disse ele. - Há isto e aquilo, mas ninguém pode provar que esses contratos se conseguiram graças a mim. As minhas comissões eram de tanto, sempre em numerário. A minha conta está no estrangeiro e é tanto. Devo demitir-me, deixar o país? Não. Então que faço? Foder o Zavala. Está bem, eu obedeço.

 

- Foder esse tipo é a coisa mais fácil deste mundo - sorriu Paredes. - Pelo lado do vício.

 

- Por esse lado, não - disse ele, e olhou para Paredes, bocejando outra vez. - Por todos menos por esse.

 

- Bem sei, já mo disseste - sorriu Paredes. - O vício é a única coisa que respeitas nas pessoas.

 

- A fortuna dele é um castelo na areia - disse ele. - O laboratório dele vive do abastecimento dos Institutos Armados. Acabaram-se os abastecimentos. A empresa de construção, graças às estradas e às Unidades Escolares. Acabou-se, não voltará a receber um contrato. A Fazenda mandará espiolhar-lhe os livros e terá de pagar os impostos roubados, as multas. Não conseguiremos arruiná-lo de todo, mas algum prejuízo lhe causaremos.

 

- Não me parece, esses sacanas conseguem sempre arranjar maneira de vir à superfície - disse Paredes.

 

- Aquilo da mudança de Gabinete é verdade? - perguntou ele.

- É preciso aguentar o Arbeláez no Ministério. É resmungão, mas consegue-se trabalhar com ele.

 

- Uma remodelação ministerial nas Fiestas Pátrias é normal, não fará confusão a ninguém - disse Paredes. - Por outro lado, o pobre Arbeláez tem razão. Com qualquer outro surgiria o mesmo problema. Não há ninguém que esteja disposto a ser um simples figurante.

 

- Não podia arriscar-me a tê-lo ao corrente disto, conhecendo as suas mil e uma negociatas com o Landa - disse ele.

 

- Bem sei, não te estou a criticar - disse Paredes. - Por isso mesmo, para evitares essas coisas, é que tens de aceitar o Ministério. Agora não podes recusar. O Llerena insistiu para que substituas o Arbeláez. Para os outros ministros, também é incómodo haver um ministro do Governo fictício e outro real.

 

- Por enquanto sou invisível e ninguém pode torpedear o meu trabalho - disse ele. - O ministro está exposto e é vulnerável. Se os inimigos do regime me vissem em ministro, esfregavam as mãos de contentes.

 

- Os inimigos já não contam muito, depois deste fracasso disse Paredes. - Há-de passar muito tempo antes de levantarem a cabeça.

 

- Quando estamos só os dois, devíamos ser mais francos - riu ele. - A força do regime era o apoio dos grupos que contam. E isso mudou. Agora nem o Club Nacional, nem o exército, nem os gringos morrem de amores por nós. Estão divididos entre si, mas, se chegarem a unir-se contra nós, teremos de fazer as malas. Se o teu tio não age rapidamente, as coisas irão de mal a pior.

 

- Que mais querem que ele faça? - perguntou Paredes. - Não limpou o país de apristas e comunistas? Não deu aos militares o que eles nunca tiveram? Não chamou os grandes senhores do Club Nacional para os ministérios, para as embaixadas, não os deixou decidir tudo e mais alguma coisa na Fazenda? Não se fazem todas as vontades aos gringos? Que mais querem esses patifes?

 

- Não querem que mude de política, eles farão a mesma quando tomarem conta do Poder - disse ele. - Querem que ele se vá embora. Chamaram-no para enxotar as baratas de casa. Ele já o fez e agora querem que lhes devolva a casa, que, no fim de contas, é deles, não?

 

- Não - disse Paredes. - O presidente conquistou o povo. Construiu-lhes hospitais, colégios, fez a lei do seguro operário. Se reformar a Constituição e quiser ser reeleito, há-de ganhar limpamente as eleições. Basta ver as manifestações cada vez que vai de viagem.

 

- Sou eu quem as organiza há anos - bocejou ele. - Dá-me dinheiro e eu organizo-te as mesmas manifestações a ti. Não, a única coisa popular no país é a Apra. Se lhes fossem oferecidas umas tantas coisas, os apristas concordariam em entrar em negociações com o regime.

 

- Estás doido? - perguntou Paredes.

 

- A Apra mudou, é mais anticomunista que tu, e os Estados Unidos já não a vetam - disse ele. - Com a massa da Apra, o aparelho do Estado e os grupos dirigentes leais, assim é que o Odría conseguiria ser reeleito.

 

- Estás a delirar - disse Paredes. - O Odría e a Apra unidos. Por amor de Deus, Cayo.

 

- Os líderes apristas estão velhos e tornaram-se baratos - disse ele. - Aceitavam, a troco da legalidade e de umas tantas migalhas.

 

- As forças armadas nunca aceitariam qualquer acordo com a Apra - disse Paredes.

 

- Porque a direita as educou assim, fazendo-as crer que era ela o inimigo - disse ele. - Mas podem-se educar de novo, fazendo-lhes ver que a Apra já mudou. Os apristas darão aos militares todas as garantias que eles quiserem.

 

- Em vez de ires ao aeroporto esperar o Landa, vai mas é a um psiquiatra - disse Paredes. - Estes dois dias sem dormir fizeram-te mal, Cayo.

 

- Então, em cinquenta e seis há-de subir à presidência um grande senhor qualquer - disse ele, bocejando. - E tu e eu iremos descansar destas lides. Bom, aliás, a ideia não me desagrada. Não sei para que é que estamos a falar disto. Os problemas políticos não são da nossa conta. O teu tio tem os seus conselheiros. Tu e eu temos os nossos sapatos. A propósito, que horas são?

 

- Tens tempo - disse Paredes. - Eu vou dormir, estou extenuado com a tensão destes dias. E esta noite, se o corpo me aguentar, vou-me desforrar com uma farra. A ti, não te apetece, não?

 

- Não, não acordou, D. Cayo, vem assim desde Chaclacayo disse Ludovico, apontando Hipólito. - Desculpe-me ir tão devagar, mas é que eu também estou bêbado de sono e não quero ter um desastre. Havemos de chegar ao aeroporto antes das onze, não se preocupe.

 

- O avião chega daqui a dez minutos, D. Cayo - disse Lozano, com voz rouca e extenuada. - Trouxe dois carros da polícia e alguns homens. Como vem num avião de passageiros, não sabia a maneira de...

 

- O Landa não está preso - disse ele. - Vou esperá-lo sozinho e levo-o a casa dele. Não quero que o senador veja esta formação de polícia, leve os homens. O resto, tudo em ordem?

 

- Todas as detenções sem problemas - disse Lozano, coçando a cara por escanhoar, bocejando. - Só um pequeno incidente em Arequipa. O Dr. Velarde, esse apristão. Alguém lhe passou palavra e ele escapuliu-se. Deve ter tentado fugir para a Bolívia. A fronteira está prevenida.

 

- Está bem, pode-se ir embora, Lozano - disse ele. - Olhe para o Ludovico e para o Hipólito. Já estão a ressonar outra vez.

 

- Esses dois pediram transferência, D. Cayo - disse Lozano. O senhor dirá.

 

- Não admira, estão fartos de noites mal dormidas - sorriu ele.

 

- Está bem, arranje-me outros dois, que sejam menos dorminhocos. Até logo, Lozano.

 

- Quer entrar para o posto e sentar-se, senhor Bermúdez? perguntou um tenente, cumprimentando.

 

- Não, obrigado, tenente, prefiro apanhar ar - disse ele. Aliás, já aí vem o avião. Acorde-me antes esses dois, e que tragam o carro para aqui. Eu vou avançar. Por aqui, senador, tenho aqui o carro. Entre, faça favor. Para San Isidro, Ludovico, para casa do senador Landa.

 

- Ainda bem que vamos para minha casa e não para a prisão - murmurou o senador, sem olhar para ele. - Espero que possa mudar de roupa e tomar banho, pelo menos.

 

- Com certeza - disse ele. - Desculpe todas estas maçadas. Não tive outro remédio, senador.

 

- Como se se tratasse de assaltar uma fortaleza, com metralhadoras e sereias - sussurrou Landa, com a boca colada à janela. - Pouco faltou para a minha mulher ter uma síncope quando apareceram no Olave. Também deu ordens para me fazerem passar a noite numa cadeira, apesar dos meus sessenta anos, Bermúdez?

 

- É esta casa grande, a do jardim, não é, senhor? - perguntou Ludovico.

 

- Primeiro o senhor, senador - disse ele, designando o amplo, frondoso jardim, e, por um instante, conseguiu vê-las: brancas, nuas, às correrias por entre os loureiros, a rirem-se, os calcanhares brancos e rápidos sobre a relva húmida. - Siga, siga, senador.

 

- Papá, papazinho! - gritou a rapariga, abrindo os braços, e ele viu a sua cara de porcelana, os seus olhos grandes e espantados, os seus cabelos curtos, castanhos. - Falei ainda agora ao telefone com a mamã e está morta de medo. Que aconteceu, que foi, papá?

 

- Bom dia - murmurou ele e rapidamente despiu-a e empurrou-a de encontro aos lençóis, onde duas formas femininas a receberam, ávidas.

 

- Já te explico, querida - Landa desprendeu-se da filha, voltou-se para ele. - Entre, Bermúdez. Telefona para Chiclayo e sossega a tua mãe, Cristina, diz-lhe que estou bem. Não queremos ser incomodados por ninguém. Sente-se Bermúdez.

 

- Vou-lhe falar com toda a sinceridade, senador - disse ele. Faça o senhor o mesmo e assim ambos pouparemos tempo.

 

- É escusada a recomendação - disse Landa. - Eu nunca minto.

 

- O general Espina foi preso, todos os oficiais que lhe tinham prometido ajuda se reconciliaram com o regime - disse ele. - Não queremos que isto vá mais longe, senador. Concretamente, venho propor-lhe que reafirme a sua lealdade ao regime e que mantenha a sua posição de líder parlamentar. Em duas palavras, que esqueça o sucedido.

 

- Primeiro tenho de saber o que aconteceu - disse Landa; tinha as mãos nos joelhos, permanecia absolutamente imóvel.

 

- O senhor está cansado, eu estou cansado - murmurou ele. Não podemos ganhar tempo, senador?

 

- Saber de que me acusam, primeiro - repetiu Landa, secamente.

 

- De ter servido de ligação entre o Espina e as guarnições comprometidas - disse ele, com uma inflexão resignada. - De ter arranjado dinheiro e de ter investido dinheiro seu neste assunto. De ter reunido, nesta casa e no Olave, uma vintena de conspiradores civis que agora estão presos. Temos declarações assinadas, fitas gravadas, todas as provas que o senhor queira. Mas já não é isso que está em causa, não queremos explicações. O presidente está disposto a esquecer tudo isto.

 

- Trata-se de não ter no Senado um inimigo que conhece o regime de corpo e alma - murmurou Landa, olhando-o fixamente nos olhos.

 

- Trata-se de não desfazer a maioria parlamentar - disse ele. Aliás, o seu prestígio, o seu nome e as suas influências são necessários ao regime. Só é preciso que o senhor aceite, senador, e nada aconteceu.

 

- E se eu me recusar a colaborar daqui para diante? - murmurou Landa, em voz quase inaudível.

 

- Teria de deixar o país - disse ele, com um gesto contrariado. - Escusado será também lembrar-lhe que o senhor tem muitos interesses relacionados com o Estado, senador.

 

- Primeiro o abuso de autoridade, depois a chantagem - disse Landa. - Reconheço-lhe os métodos, Bermúdez.

 

- O senhor é um político experiente e um bom jogador, sabe muito bem o que mais lhe convém - disse ele, com calma. - Não percamos tempo, senador.

 

- Qual vai ser a situação dos detidos? - murmurou Landa. Não dos militares, que, pelos vistos, se arranjaram bem. Dos outros.

 

- O regime tem considerações especiais para consigo, porque lhe devemos favores - disse ele. - O Ferro e os outros devem ao regime tudo o que são. Estudar-se-ão os antecedentes de cada um e tomar-se-ão medidas de acordo com eles.

 

- Que espécie de medidas? - perguntou o senador. - Essas pessoas confiaram em mim como eu confiei nesses generais.

 

- Medidas preventivas, não queremos encarniçar-nos contra ninguém - disse ele. - Ficarão presos por uns tempos, alguns serão desterrados. Nada de muito grave, como vê. Tudo dependerá, evidentemente, da sua atitude.

 

- Ainda outra coisa - vacilou ligeiramente o senador. - Quer dizer...

 

- O Zavala? - perguntou ele, e viu Landa pestanejar, várias vezes. - Não está detido e, se o senhor se resolver a colaborar, deixá-lo-emos também em paz. Esta manhã conversei com ele e está ansioso por se reconciliar com o regime. Deve estar em casa, a esta hora. Fale com ele, senador.

 

- Não posso dar-lhe já uma resposta - disse Landa, passados uns segundos. - Dê-me umas horas, para reflectir.

 

- Tantas quantas queira - disse ele, levantando-se. - Telefono-Lhe à noite, ou amanhã, se preferir.

 

- Os seus polícias vão-me deixar em paz até essa altura? - perguntou Landa, abrindo a porta do jardim.

 

- O senhor não está preso, nem sequer vigiado; pode ir onde lhe apetecer, falar com quem quiser. Até depois, senador. - Saiu e atravessou o jardim, sentindo-as à sua volta, elásticas e fragrantes, indo e vindo e voltando entre os cachos de flores, rápidas e húmidas sob os arbustos. - Ludovico, Hipólito, acordem; para a prefeitura, depressa. Lozano, quero que me controle os telefonemas do Landa.

 

- Não se preocupe, D. Cayo - disse Lozano, puxando-lhe uma cadeira. - Tenho lá um carro e três agentes. O telefone está interceptado há duas semanas.

 

- Arranje-me um copo de água, faça favor - disse ele. - Tenho de tomar uma pastilha.

 

- O prefeito preparou-lhe este resumo sobre a situação em Lima - disse Lozano. - Não, não há notícias de Velarde. Deve ter atravessado a fronteira. O único entre quarenta e seis, D. Cayo. Todos os outros foram detidos, e sem incidentes.

 

- É preciso mante-los incomunicáveis, aqui e na província - disse ele. - De um momento para o outro, começam as chamadas dos padrinhos. Ministros, deputados.

 

- Já começaram, D. Cayo - disse Lozano. - Telefonou agora mesmo o senador Arévalo. Queria ver o Dr. Ferro. Disse-lhe que ninguém o podia ver sem autorização sua.

 

- Sim, deixe-os comigo - bocejou ele. - O Ferro tem muita gente amarrada e vão remover céus e terra para o soltarem.

 

- A mulher dele apareceu aqui esta manhã - disse Lozano. Em pé de guerra. A ameaçar com o presidente, com os ministros. Uma senhora muito bonita, D. Cayo.

 

- Nem sabia que o Ferrito era casado - disse ele. - Ah, sim, muito bonita? Por isso é que ele a devia ter escondida.

 

- Nota-se que está exausto, D. Cayo - disse Lozano. - Por

 

Jue é que não vai descansar um bocado? Não me parece que haja nada de importante, hoje.

 

- Lembra-se dos boatos sobre o levantamento em Juliaca, há três anos? - perguntou ele. - Passámos quatro noites sem dormir e foi como se nada fosse. Estou a ficar velho, Lozano.

 

- Posso-lhe fazer uma pergunta? - e o rosto desembaraçado e diligente de Lozano adoçou-se. - Acerca dos boatos que correm. Que vai haver uma remodelação do Gabinete, que o senhor vai para o Governo. Escusado será dizer-lhe como essa notícia foi bem recebida na polícia, D. Cayo.

 

- Não me parece que convenha ao presidente eu ser ministro. - disse ele. - Vou tentar dissuadi-lo. Mas se ele fizer empenho, não tenho remédio senão aceitar.

 

- Seria estupendo - sorriu Lozano. - O senhor sabe a falta de coordenação que havia por vezes devido à pouca experiência dos ministros. Com o general Espina, com o doutor Arbeláez. Com o senhor vai ser diferente, D. Cayo.

 

- Bom, vou descansar um bocado a San Miguel - disse ele. É capaz de telefonar ao Alcibíades e dizer-lhe? Ele que me acorde só se houver alguma coisa muito urgente.

 

- Desculpe, deixei-me dormir outra vez - balbuciou Ludovico, sacudindo Hipólito. - Para San Miguel? Pois sim, D. Cayo.

 

- Vão descansar e venham-me buscar às sete da noite - disse ele. - A senhora está na casa de banho? Sim, arranja-me de comer, Simula. Olá, riqueza. Vou dormir um bocado. Há vinte e quatro horas que não durmo.

 

- Estás com uma cara impressionante - riu-se Hortênsia. Portaste-te bem esta noite?

 

- Enganei-te com o ministro da Guerra - murmurou ele, escutando nos ouvidos um zumbido tenaz e secreto, contando as pancadas desiguais do coração. - Quando é que me trazem de comer, estou a morrer de sono.

 

- Deixa-me fazer-te a cama - Hortênsia sacudia os lençóis, corria a cortina e ele sentiu-se como se fosse a deslizar por uma vertente e, ao longe, divisava vultos a mexerem-se na escuridão; continuou a resvalar, a mergulhar, e de repente sentiu-se agredido, brutalmente extraído desse refúgio cego e denso. - Estou a gritar por ti há cinco minutos, Cayo. É da prefeitura. Dizem que é urgente.

 

- O senador Landa está na Embaixada argentina há meia hora, D. Cayo - sentia agulhas nas pupilas, a voz de Lozano martelava-lhe cruelmente nos ouvidos. - Entrou por uma porta de serviço. Os agentes não sabiam que dava para a embaixada. Lamento muito, D. Cayo.

 

- Quer escândalo, quer-se vingar da humilhação - lentamente recuperava a noção dos sentidos, dos membros, mas a voz parecia-lhe a de outro. - Os seus homens que se mantenham lá, Lozano. Se ele sair, prendam-no e levem-no para a prefeitura. Se o Zavala sair de casa, prenda-o também. Está, Alcibíades? Telefone o mais depressa possível ao doutor Lora, doutorzinho, preciso de o ver agora mesmo. Diga-lhe que chegarei ao gabinete dele daqui a meia hora.

 

- A esposa do doutor Ferro está a sua espera, D. Cayo -- disse o doutor Alcibíades. - Disse-lhe que o senhor não vinha cá, mas ela não arreda.

 

- Livre-se dela e telefone imediatamente ao doutor Lora - disse ele. - Simula, vai depressa dizer aos guardas da esquina que preciso do carro da polícia imediatamente.

 

- Que foi, que pressa é esta? - perguntou Hortênsia, levantando o pijama que ele acabara de atirar para o chão.

 

- Problemas - disse ele, calçando as meias. - Quanto tempo dormi?

 

- Uma hora, mais ou menos - disse Hortênsia. - Deves estar a morrer de fome. Queres que te mande aquecer o almoço?

 

- Não tenho tempo - disse ele. - Sim, para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, sargento, e a toda a velocidade. Não pare no sinal, homem, estou cheio de pressa. O ministro está à minha espera, avisei-o da minha chegada.

 

- O senhor Ministro está em reunião, não creio que o possa receber - o jovem de óculos, vestido de cinzento, examinou-o dos pés à cabeça, com desconfiança. - Da parte de quem?

 

- Cayo Bermúdez - disse ele, e viu o jovem levantar-se de um salto e desaparecer atrás de uma porta envernizada. - Desculpe invadir-lhe o gabinete desta maneira, senhor doutor Lora. É muito importante, trata-se do Landa.

 

- Do Landa? - estendeu-lhe a mão o homenzinho careca, baixinho, sorridente. - Não me diga que...

 

- Sim, está na Embaixada argentina há uma hora - disse ele. Provavelmente a pedir asilo. Quer fazer barulho e criar-nos problemas.

 

- Bom, o melhor é dar-lhe imediatamente o salvo-conduto - disse o Dr. Lora. - Ao inimigo que foge, ponte de prata, D. Cayo.

 

- De modo nenhum - disse ele. - Fale o senhor com o embaixador, doutor. Esclareça bem que ele não é perseguido, assegure-lhe que o Landa pode sair do país com o seu passaporte quando quiser.

 

- Só posso empenhar a minha palavra se essa promessa vier a ser cumprida, D. Cayo - disse o doutor Lora, sorrindo reticente. Imagine a situação em que o Governo ficaria se...

 

- Cumprir-se-á - disse ele, rapidamente, e viu que o observava, duvidando. Por fim, deixou de sorrir, suspirou, e tocou uma campainha.

 

- O embaixador está precisamente ao telefone - o jovem de cinzento atravessou o gabinete com um sorriso imberbe, fez uma espécie de genuflexão. - Que coincidência, senhor Ministro.

 

- Bom, já sabemos que pediu asilo - disse o Dr. Lora. - Sim, enquanto eu falo com o embaixador, o senhor pode telefonar da secretaria, D. Cayo.

 

- Posso usar o seu telefone por um momento? Queria falar a sós, se faz favor - disse ele, e viu o jovem de cinzento corar violentamente, viu-o anuir com olhos ofendidos e sair. - É possível que o Landa saia da embaixada de um momento para o outro, Lozano. Deixem-no em paz. Mantenham-me informado dos movimentos dele. Estarei no meu gabinete, sim.

 

- Entendido, D. Cayo - o jovem passeava-se pelo corredor, esbelto, comprido, cinzento. - Ao Zavala também não, se sair de casa? Muito bem, D. Cayo.

 

- Com efeito, tinha pedido asilo - disse o Dr. Lora. - O embaixador estava estupefacto. O Landa, um dos líderes parlamentares, não podia acreditar. Conformou-se com a promessa de que não será detido e que poderá sair do país quando quiser.

 

- Tirou-me um grande peso de cima, senhor doutor - disse ele. - Agora vou tentar rematar o assunto. Muito obrigado, senhor doutor.

 

- Embora o momento não seja o melhor, quero ser o primeiro a felicitá-lo - disse o Dr. Lora, sorrindo. - Fiquei muito satisfeito por saber que o senhor vai passar a fazer parte do Gabinete nas Fiestas Pátrias, D. Cayo.

 

- São apenas boatos - disse ele. - Ainda não está nada decidido. O presidente ainda não me falou, e nem sequer sei se vou aceitar.

 

- Está tudo decidido e sentimo-nos todos muito satisfeitos

 

- disse o Dr. Lora, agarrando-lhe no braço. - O senhor tem de se sacrificar e aceitar. O presidente confia em si, e com razão. Até breve, D. Cayo.

 

- Até depois, senhor - disse o jovem de cinzento, com uma vénia.

 

- Até depois - disse ele, e, dando-lhe um violento empurrão, com as próprias mãos o castrou e atirou o vulto gelatinoso a Hortênsia:

 

- Come-o. Para o Ministério do Governo, sargento. As secretárias já se foram embora? Que foi, doutorzinho? O senhor está lívido.

 

- A France Presse, a Associated Press, a United Press, dão todas a notícia, D. Cayo, veja os telegramas - disse o Dr. Alcibíades. Falam de dezenas de prisões. Donde, D. Cayo?

 

- Estão datados da Bolívia, foi esse advogadote do Velarde

- disse ele. - Também pode ter sido o Landa. A que horas começaram as agências a receber esses telegramas?

 

- Há coisa de meia hora - disse o Dr. Alcibíades. - Os correspondentes já começaram a telefonar para cá. Vão aparecer aqui, de um momento para o outro. Não, ainda não mandaram esses telegramas para as estações de rádio.

 

- Já não é possível manter segredo sobre isto, é preciso mandar um comunicado oficial - disse ele. - Telefone para as agências, que não distribuam esses telegramas, que esperem pelo comunicado. Ligue-me ao Lozano e ao Paredes, faça favor.

 

- Sim senhor, D. Cayo - disse Lozano. - O senador Landa entrou agora mesmo em casa.

 

- Não o deixem sair de lá - disse ele. - De certeza que não falou com nenhum correspondente estrangeiro pelo telefone? Sim, vou para o Palácio, telefone-me para lá.

 

- O comandante Paredes ao outro telefone, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades.

 

- Precipitaste-te um bocado, a farra desta noite tem de esperar

 

- disse ele. - Viste os telegramas? Sim, já sei donde. Velarde, um arequipenho que se escapou. Não mencionam ninguém, só o Espina.

 

- Acabámos de lê-los com o general Llerena e vamos agora para o Palácio - disse o comandante Paredes. - Isto é grave. O presidente queria evitar a todo o custo que o assunto fosse divulgado.

 

- É preciso arranjar um comunicado a desmentir tudo - disse ele. - Ainda não é tarde, se chegarmos a acordo com o Espina e com o Landa. Há alguma coisa sobre o Serrano?

 

- Está renitente, o general Pinto já falou duas vezes com ele

 

- disse Paredes. - Se o presidente estiver de acordo, o general Llerena vai também falar com ele. Bom, então encontramo-nos no Palácio.

 

- Vai-se já embora, D. Cayo? - perguntou o Dr. Alcibíades. Já me esquecia. A mulher do doutor Ferro. Esteve cá toda a tarde. Disse que havia de voltar e, se fosse preciso, passava cá a noite.

 

- Se ela voltar, mande os guardas porem-na na rua - disse ele. - E não saia daqui, doutorzmho.

 

- O senhor não tem carro? - perguntou o Dr. Alcibíades. Quer levar o meu?

 

- Não sei conduzir, vou de táxi - disse ele. - Sim, chefe, para o Palácio.

 

- Entre, D. Cayo - disse o major Tijero. - O general Llerena, o doutor Arbeláez e o comandante Paredes estão à sua espera.

 

- Falei há pouco com o general Pinto, a conversa dele com o Espina foi bastante positiva - disse o comandante Paredes. - O presidente está com o chanceler.

 

- As estações de rádio estrangeiras estão a dar a notícia de uma revolução abortada - disse o general Llerena. - Está a ver, Bermúdez, tantas contemplações com os patifes, para guardar o segredo, e não serviu de nada.

 

- Se o general Pinto chegar a acordo com o Espina, a notícia fica automaticamente desmentida - disse o comandante Paredes. O problema agora é só com o Landa.

 

- O senhor é amigo do senador, doutor Arbeláez - disse ele. O Landa tem confiança em si.

 

- Telefonei-lhe há pouco - disse o Dr. Arbeláez. - É um homem orgulhoso e não me quis ouvir. Não há nada a fazer com ele, D. Cayo.

 

- Oferecem-lhe uma saída que o favorece e ele não quer aceitar?

 

- perguntou o general Llerena. - Então, é preciso prendê-lo, antes que ele arme escândalo.

 

- Comprometi-me a conseguir que isto não transpire e hei-de cumprir - disse ele. - Ocupe-se o senhor do Espina, general, e deixe o Landa comigo.

 

- Chamam-no ao telefone, D. Cayo - disse o major Tijero. -- Sim, por aqui.

 

- O sujeito falou há bocado com o doutor Arbeláez - disse Lozano. - Vai ficar admirado, D. Cayo. Sim, vou pôr a fita a correr para o senhor ouvir.

 

- Por agora a única coisa que posso fazer é esperar - disse o Dr. Arbeláez. - Mas, se pões como condição, para te reconciliares com o presidente, despedirem o chacal do Bermúdez, tenho a certeza de que ele concorda.

 

- Não deixe entrar ninguém em casa do Landa, excepto o Zavala, Lozano - disse ele. - Estava a dormir, D. Fermín? Desculpe tê-lo acordado, mas é urgente. O Landa não quer chegar a acordo connosco e está a criar dificuldades. Precisamos de convencer o senador a calar a boca. Tem consciência do que lhe vou pedir, D. Fermín?

 

- Claro que tenho - disse D. Fermín.

 

- Começaram a correr boatos no estrangeiro e não queremos que alastrem - disse ele. - Chegámos a acordo com o Espina, só falta chamar o senador à razão. O senhor pode-nos ajudar, D. Fermín.

 

- O Landa pode dar-se ao luxo de ter ousadias - disse D. Fermín. - O dinheiro dele não depende do Governo.

 

- Mas depende o seu - disse ele. - Bem vê, a coisa é urgente, tenho de lhe falar assim mesmo. Basta-lhe que eu me comprometa a que todos os seus contratos com o Estado sejam respeitados?

 

- Que garantias tenho eu de que essa promessa vai ser cumprida?

- perguntou D. Fermín.

 

- Neste momento, só a minha palavra - disse ele. - Por enquanto não lhe posso dar mais garantias.

 

- Está bem, aceito a sua palavra - disse D. Fermín. - Vou falar com o Landa. Se os seus polícias me deixarem sair de casa.

 

- Chegou o general Pinto, D. Cayo - disse o major Tijero.

 

- O Espina mostrou-se bastante razoável, Cayo - disse Paredes. - Mas o preço é elevado. Duvido que o presidente aceite.

 

- A embaixada em Espanha - disse o general Pinto. - Diz que, na sua condição de general e de ex-ministro, o cargo de adido militar em Londres seria rebaixá-lo de categoria.

 

- Mais nada? - disse o general Llerena. - A embaixada em Espanha.

 

- Está vaga, e quem melhor que o Espina para a ocupar? - disse ele. - Fará uma excelente figura. Estou certo de que o doutor Lora estará de acordo.

 

- Rico prémio por ter tentado pôr o país a ferro e fogo - disse o general Llerena.

 

- Haverá melhor desmentido para as notícias que correm do que publicar amanhã a nomeação do Espina para embaixador em Espanha? - perguntou ele.

 

- Se o meu general me dá licença, sou da mesma opinião - disse o general Pinto. - O Espina pôs essa condição e não aceita outra. A alternativa seria julgá-lo ou desterrá-lo. E qualquer medida disciplinar contra ele teria um efeito negativo entre muitos oficiais.

 

- Embora nem sempre concordemos, D. Cayo, desta vez estou de acordo consigo - disse o Dr. Arbeláez. - Eu vejo o problema desta maneira. Decidiu-se não aplicar sanções e tentar a reconciliação, o melhor é dar ao general Espina uma missão compatível com o seu posto.

 

- Seja como for, o assunto Espina está resolvido - disse Paredes. - E quanto ao Landa? Se não se lhe tapa a boca, terá sido em vão.

 

- Vão premiá-lo também com uma embaixada? - perguntou o general Llerena.

 

- Não me parece que ele esteja interessado - disse o Dr. Arbeláez. - Já foi embaixador várias vezes.

 

- Não vejo como é que vamos publicar um desmentido aos telegramas, se o Landa amanhã vai desmentir o desmentido - disse Paredes.

 

- Sim, major, queria telefonar a sós - disse ele. - Está, Lozano? Suspenda o controlo telefónico do senador. Vou falar com ele e esta conversa não é para ser gravada.

 

- O senador Landa não está, fala a filha - disse a inquieta voz da rapariga e ele atou-a apressadamente com atabalhoados nós cegos que lhe incharam os pulsos e os pés. - Quem fala?

 

- Passe-mo imediatamente, menina, é do Palácio, é muito urgente - Hortênsia tinha o cinto pronto. Queta também e ele também. - Quero informá-lo de que o Espina foi nomeado embaixador em Espanha, senador. Espero que isto dissipe as suas dúvidas e que mude de atitude. Continuamos a considerá-lo um amigo.

 

- Não é costume prender os amigos - disse Landa. - Porque é que a minha casa está cercada? Porque é que não me deixam sair? E as promessas do Lora ao embaixador? O chanceler não tem palavra?

 

- Estão a correr rumores no estrangeiro sobre o sucedido e queremos desmenti-los - disse ele. - Suponho que o Zavala estará consigo e que já lhe terá explicado que tudo depende de si. Diga-me quais são as suas condições, senador.

 

- Liberdade incondicional para todos os meus amigos - disse Landa. - Promessa formal de que não serão incomodados nem destituídos dos cargos que ocupam.

 

- Com a condição de ingressarem no Partido Restaurador os que não estiverem inscritos - disse ele. - Bem vê, o que queremos não é uma reconciliação aparente, mas real. O senhor é um dos líderes do partido governamental, os seus amigos que passem a fazer pane dele. Concorda?

 

- Quem é que me garante que, assim que eu tiver dado um passo para restabelecer relações com o regime, não se utilizarão disso para me prejudicar politicamente? - perguntou Landa. - Que não querem fazer outra vez chantagem comigo?

 

- Durante as Fiestas Pátrias devem renovar-se as direcções de ambas as Câmaras - disse ele. - Ofereço-lhe a presidência do Senado. Quer mais provas de que não vai haver quaisquer represálias?

 

- A presidência do Senado não me interessa - disse Landa, e ele respirou: todo o rancor se tinha eclipsado da voz dele. - Em todo o caso, tenho de pensar no assunto.

 

- Comprometo-me a conseguir que o presidente apoie a sua candidatura - disse ele. - Dou-lhe a minha palavra de honra que a maioria o elegerá.

 

- Está bem, os polícias que me estão a cercar a casa que desapareçam - disse Landa. - Que devo fazer?

 

- Vir imediatamente ao Palácio, os líderes parlamentares estão em reunião com o presidente e só faltava o senhor - disse ele. - Evidentemente, será recebido com a amizade de sempre, senador.

 

- Sim, os parlamentares estão já a chegar, D. Cavo - disse o major Tijero.

 

- Leve este papel ao presidente, major - disse ele. - O senador Landa assistirá à reunião. Sim, ele mesmo. Arranjou-se tudo, sim, felizmente.

 

- A sério? - perguntou Paredes, pestanejando. - Vem cá?

 

- Como homem do regime que é, como líder da maioria que é murmurou ele. - Sim, deve estar a chegar. Para ganhar tempo, o melhor era ir redigindo o comunicado. Não houve tal conspiração, citar os telegramas de adesão dos chefes do exército. O senhor é a pessoa mais indicada para redigir o comunicado, doutor.

 

- Fá-lo-ei, com muito gosto - disse o Dr. Arbeláez. - Mas, como o senhor já é praticamente meu sucessor, devia ir-se treinando a redigir comunicados, D. Cayo.

 

- Temos andado a levá-lo às correrias dum lado para outro, D. Cayo - disse Ludovico. - De San Miguel para a Plaza Itália, da Plaza Itália para aqui.

 

- O senhor deve estar a morrer de cansaço, D. Cayo - disse Hipólito. - Nós, ao menos, dormimos umas horinhas, à tarde.

 

- Agora é a minha vez - disse ele. - Diga-se em verdade que o mereci. Vamos ao Ministério um instante, e depois a Chaclacayo.

 

- Boa noite, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. - Aqui a senhora Ferro não quer...

 

- Entregou o comunicado à imprensa e às estações de rádio? perguntou ele.

 

- Estou à sua espera desde as oito da manhã e são nove da noite

 

- disse a mulher. - Tem de me receber nem que sejam dez minutos, senhor Bermúdez.

 

- Já expliquei à senhora Ferro que o senhor está muito ocupado

 

- disse o Dr. Alcibíades. - Mas ela não...

 

- Está bem, dez minutos, minha senhora - disse ele. - É capaz de vir uns instantes ao meu gabinete, doutorzinho?

 

- Esteve no corredor durante umas quatro horas - disse o Dr. Alcibíades. - Nem a bem nem a mal, D. Cayo, não houve maneira.

 

- Eu disse-lhe para mandar os guardas porem-na na rua - disse ele.

 

- Era o que eu ia fazer, mas, como chegou o comunicado a anunciar a nomeação do general Espina, julguei que a situação tinha mudado - disse o Dr. Alcibíades. - Que, se calhar, o doutor Ferro era posto em liberdade.

 

- Pois mudou, e temos de soltar também o Ferrito - disse ele.

- Fez circular o comunicado?

 

- Mandei-o a todos os jornais, agências e estações de rádio disse o Dr. Alcibíades. - A Rádio Nacional já o leu. Digo à senhora que o marido vai ser posto em liberdade e despacho-a?

 

- Eu lhe darei a boa nova - disse ele. - Bom, desta vez é que o assunto está arrumado. Deve estar estoirado, doutorzinho.

 

- Realmente estou, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. - Há quase três dias que não durmo.

 

- Nós, os que velamos pela segurança, somos os únicos que realmente trabalham neste Governo - disse ele.

 

- É verdade que o senador Landa assistiu à reunião dos parlamentares no Palácio? - perguntou o Dr. Alcibíades.

 

- Esteve cinco horas no Palácio e amanhã vai aparecer uma foto-

 

  • rafia dele a cumprimentar o presidente - disse ele. - Deu trabalho, mas, enfim, conseguimos. Mande entrar essa senhora e vá descansar, doutorzinho.

 

- Quero saber o que se passa com o meu marido - disse resolutamente a mulher e ele pensou não vem pedir nem choramingar, vem fazer zaragata. - Porque é que o mandou prender, senhor Bermúdez?

 

- Se os olhares matassem, a esta hora eu já era um cadáver - sorriu ele. - Calma, minha senhora. Sente-se. Não sabia que o amigo Ferro era casado. E muito menos tão bem casado.

 

- Responda-me: porque é que o mandou prender? - repetiu com veemência a mulher, e ele: que é isto? - Porque é que não me deixaram vê-lo?

 

- Vai ficar admirada, mas, com todo o respeito, vou-lhe fazer uma pergunta - um revólver na mala?, saberá alguma coisa que eu não sei? - Como é que uma mulher como a senhora se casou com o amigo Ferro?

 

- Tenha cuidado, senhor Bermúdez, não se iluda comigo - levantou a voz a mulher; não devia estar habituada, se calhar, era a primeira vez. - Não permito que me falte ao respeito, nem que diga mal do meu marido.

 

- Não estou a dizer mal dele, estou é a dizer bem da senhora disse ele e pensou está aqui quase à força, repugnada por ter vindo, alguém a mandou. - Desculpe, não queria ofendê-la.

 

- Porque é que ele está preso, quando é que o põem em liberdade? - repetiu a mulher. - Diga-me o que é que vão fazer ao meu marido.

 

- A este gabinete só vêm polícias e funcionários - disse ele. É raro vir uma mulher, e nunca uma como a senhora. É por isso que estou tão impressionado com a sua visita, minha senhora.

 

- Vai continuar a divertir-se à minha custa? - murmurou, trémula, a mulher. - Não seja prepotente, não abuse, senhor Bermúdez.

 

- Está bem, minha senhora, o seu marido lhe explicará porque é que foi preso - que é que ela queria, no fundo, a que é que não se atrevia? - Não se preocupe com ele. Está a ser tratado com toda a consideração, nada lhe falta. Bem, falta-lhe a senhora, e isso é que nós não podemos substituir desgraçadamente.

 

- Basta de grosserias, lembre-se de que está a falar com uma senhora - disse a mulher e ele decidiu-se, agora é que ela o vai dizer, fazer. - Veja se se porta como um cavalheiro.

 

- Não sou nenhum cavalheiro, e a senhora não veio ensinar-me boas maneiras, mas sim outra coisa - murmurou ele. - Está farta de saber porque é que o seu marido foi preso. Diga de uma vez por todas o que é que cá veio fazer.

 

- Vim propor-lhe um negócio - balbuciou a mulher. - O meu marido tem de sair do país amanhã. Quero saber as suas condições.

 

- Agora já é mais claro - anuiu ele. - As minhas condições para libertar o Ferrito? Quer dizer quanto dinheiro?

 

- Trouxe-lhe dois bilhetes para o senhor ver - disse ela, com ímpeto. - No avião para Nova Iorque das dez horas de amanhã. Tem de o libertar esta mesma noite. Já sei que o senhor não aceita cheques. Isto é tudo o que consegui reunir.

 

- Nada mal, minha senhora - estás-me a matar a fogo lento, a cravar-me alfinetes nos olhos, a esfolar-me a pele com as unhas: despiu-a, amarrou-a, acocorou-a e pediu o chicote. - E, ainda por cima, em dólares. Quanto está aqui? Mil, dois mil?

 

- Não tenho mais em dinheiro, não temos mais - disse a mulher. - Podemos assinar-lhe um documento, o que o senhor quiser.

 

- Diga-me francamente o que há e assim poderemos entender-nos - disse ele. - Conheço o Ferrito há anos, minha senhora. A senhora não está a fazer isto por causa do assunto do Espina. Fale-me com franqueza. Qual é o problema?

 

- Tem de sair do Peru, tem de tomar esse avião amanhã e o senhor sabe muito bem porquê - disse rapidamente a mulher. - Está entre a espada e a parede e o senhor bem o sabe. Não é um favor, senhor Bermúdez, é um negócio. Quais são as suas condições, que mais devemos fazer?

 

- Não foi comprar esses bilhetes para o caso de a revolução falhar, não é uma viagem de turismo - disse ele. - Estou a perceber, está metido em qualquer coisa muito pior. Nem é o contrabando, isso está arrumado, eu ajudei-o a encobrir a coisa. Estou a começar a perceber, minha senhora.

 

- Abusaram da boa-fé dele, emprestou o nome dele e agora recai-lhe tudo em cima - disse a mulher. - Custa-me imenso fazer isto, senhor Bermúdez. Ele tem de sair do país, o senhor está farto de o saber.

 

- As Urbanizaciones dei Sur Chico - disse ele. - Claro, minha senhora, agora sim. Agora é que eu vejo porque é que o Ferrito se meteu a conspirar com o Espina. O Espina prometeu tirá-lo de apuros se ele o ajudasse?

 

- Já fizeram as denúncias, os miseráveis que o meteram nisto puseram-se a mexer - disse a mulher, com a voz embargada. - São milhões de soles, senhor Bermúdez.

 

- Eu sabia, minha senhora, mas não que a catástrofe estava tão próxima - anuiu ele. - Os argentinos que eram sócios dele safaram-se? E o Ferrito ficava também a rir, deixando enterrados as centenas de tipos que compraram essas casas que não existem. Milhões de soles, claro. Agora percebo porque é que ele se meteu na conspiração, agora percebo porque é que a senhora cá veio.

 

- Ele não pode aguentar com a responsabilidade de tudo, ele também foi enganado - disse a mulher, e ele pensou vai-se pôr a chorar. - Se ele não apanhar o avião...

 

- Fica dentro durante muito tempo, e não como conspirador, mas sim como vigarista - apiedou-se ele, anuindo. - E todo o dinheiro que ele ganhou ficará a apodrecer no estrangeiro.

 

- Não ganhou um centavo - levantou a voz a mulher. - Abusaram da boa-fé dele. Este negócio arruinou-o.

 

- Agora percebo porque é que se atreveu a vir - repetiu ele, suavemente. - Uma senhora assim a vir ter comigo, a rebaixar-se desta maneira. Para não estar no país quando o escândalo rebentar, para não ver o seu apelido nas páginas criminais.

 

- Não é por mim, é pelos meus filhos - rugiu a mulher; mas respirou fundo e baixou a voz. - Não consegui reunir mais. Aceite isto como um adiantamento, então. Assinamo-lhe um documento, tudo o que o senhor quiser.

 

- Guarde esses dólares para a viagem, o Ferrito e a senhora precisam mais deles do que eu - disse ele, muito lentamente, e viu a mulher imobilizar-se, e viu os olhos dela, os dentes dela. - Além disso, a senhora vale muito mais do que todo esse dinheiro. Está bem, é um negócio. Não grite, não chore, diga-me só sim ou não. Passamos um bocado juntos, vamos libertar o Ferro e amanhã tomam o avião.

 

- Como se atreve, seu canalha - e viu o nariz dela, as mãos dela, os ombros dela e pensou não grita, não chora, não se espanta, não se vai embora. - Mestiço, miserável, cobarde.

 

- Não sou um cavalheiro e o meu preço é esse, a senhora também estava farta de saber isso - murmurou ele. - Posso garantir-lhe a mais absoluta discrição, evidentemente. Não é uma conquista, é um negócio, veja as coisas por esse lado. E decida-se de uma vez por todas, já passaram os dez minutos, minha senhora.

 

- Para Chaclacayo? - perguntou Ludovico. - Muito bem, D. Cayo, para San Miguel.

 

- Sim, fico cá - disse ele. - Vão dormir e venham-me buscar às sete. Por aqui, minha senhora. Se continua no jardim, vai ficar gelada. Entre um instante, quando se quiser ir embora, eu chamo um táxi e acompanho-a a casa.

 

- Boa noite, senhor, desculpe o meu aspecto, estava-me a deitar

 

- disse Carlota. - A senhora não está, saiu cedo com a Menina Queta.

 

- Tira um bocado de gelo e vai-te deitar, Carlota - disse ele. Entre, não fique à porta, sente-se, vou-lhe arranjar uma bebida. Com água, com soda? Então puro, como eu.

 

- Que quer isto dizer? - articulou por fim a mulher, rígida. Onde me trouxe?

 

- Não gosta da casa? - sorriu ele. - Bem, a senhora deve estar habituada a sítios mais elegantes.

 

- Quem é essa mulher por quem o senhor perguntou? - sussurrou a mulher, engasgando-se.

 

- É a minha amante, chama-se Hortênsia - disse ele. - Um cubo de gelo, dois? À sua saúde, minha senhora. Bolas, a senhora não queria beber e esvaziou o copo de um gole. Vou-lhe arranjar outro, nesse caso.

 

- Eu sabia, já me tinham prevenido, é a pessoa mais vil e canalha deste mundo - disse a mulher, a meia voz. - Que é que quer? Humilhar-me? Foi para isso que me trouxe aqui?

 

- Para tomarmos umas bebidas e conversarmos - disse ele. A Hortênsia não é uma mestiça grosseira, como eu. Não é tão fina e distinta como a senhora, mas é bastante apresentável.

 

- Continue, que mais? - perguntou a mulher. - Até onde vai chegar? Continue.

 

- Isto repugna-lhe por se tratar de mim, principalmente - disse ele. - Se eu fosse da sua laia, talvez não sentisse tanta repugnância, pois não?

 

- E verdade - os dentes da mulher deixaram de bater um segundo, e os seus lábios de tremer. - Mas um homem de bem não faria uma canalhice destas.

 

- Não é a ideia de dormir com outro que lhe dá náuseas, é a ideia de dormir com um mestiço - disse ele, bebendo. - Espere, vou-lhe encher o copo.

 

- De que é que está à espera? Já chega, onde é que tem a cama onde cobra as suas chantagens? - perguntou a mulher. - Acha que, se eu continuar a beber, sinto menos nojo?

 

- Aí vem a Hortênsia - disse ele. - Não se levante, não é preciso. Olá, querida. Apresento-te a dama sem nome. Esta é a Hortênsia, minha senhora. Um bocadinho bêbeda, mas, como vê, bastante apresentável.

 

- Um bocadinho? Diz antes que estou a cair - riu-se Hortênsia.

 

- Muito prazer, dama sem nome. Chegaram há muito tempo?

 

- Há um bocado - disse ele. - Senta-te, vou-te arranjar uma bebida.

 

- Não julgues que estou a perguntar por ciúmes, dama sem nome, é só por curiosidade - riu-se Hortênsia. - Nunca tenho ciúmes de mulheres bonitas. Uf, estou estoirada. Queres fumar?

 

- Toma, para te recompores - disse ele, estendendo-lhe o copo.

 

- Onde estiveste?

 

- Na festa da Lucy - disse Hortênsia. - Pedi à Queta para me trazei porque já estavam todos malucos. A doida da Lucy fez um strip-tea.se completíssimo, palavra. À tua saúde, dama sem nome.

 

- Quando o amigo Ferro souber, prega uma sova à Lucy - disse ele, sorrindo. - A Lucy é uma amiga da Hortênsia, minha senhora, a amante de um sujeito chamado Ferro.

 

- Mata, mata, não haja dúvida - disse Hortênsia, com uma gargalhada, virando-se para a mulher. - Fica encantado quando a Lucy faz loucuras, é um depravado. Não te lembras, querido, do dia em que o Ferrito fez a Lucy dançar nua, aqui, na mesa da casa de jantar? Ena, como tu escorropichas os copos, dama sem nome. Serve outro copo à tua convidada, anda, miserável.

 

- Um tipo simpático, o amigo Ferro - disse ele. - Incansável quando se trata da farra.

 

- Principalmente quando se trata de mulheres - disse Hortênsia.

 

- Não foi à festa, a Lucy estava furiosa e dizia que, se ele não chegasse até à meia-noite, lhe telefonava para casa e razia um escândalo. Isto está muito aborrecido, vamos pôr música.

 

- Tenho de me ir embora - balbuciou a mulher, sem se levantar da cadeira, sem olhar para nenhum dos dois. - Arranje-me um táxi, faça favor.

 

- Sozinha num táxi, a esta hora? - perguntou Hortênsia. - Não tens medo? Os motoristas são todos uns bandidos.

 

- Primeiro vou fazer um telefonema - disse ele. - Está, Lozano? Quero que às sete da manhã me ponha o doutor Ferro em liberdade. Sim, encarregue-se você mesmo disso, Lozano. Às sete em ponto. É tudo, Lozano, boa noite.

 

- O Ferro, o Ferrito? - perguntou Hortênsia. - O Ferrito está preso?

 

- Chama um táxi para a dama sem nome e cala a boca, Hortênsia

 

- disse ele. - Não se preocupe por causa do motorista, minha senhora. Vou mandá-la acompanhar pelo polícia da esquina. A dívida já está paga.

 

Se a senhora gostava de D. Cayo? Não muito. Não tinha chorado por ele, mas sim por ele ter desaparecido sem lhe deixar um centavo: desgraçado, miserável. A culpa é tua, dizia a Menina Queta, tantas vezes ela lhe tinha dito ao menos que te compre um carro, ao menos uma casa em teu nome. Mas durante as primeiras semanas a vida quase não mudou em San Miguel, a despensa e o frigorífico cheios como sempre, a Simula continuava a enganar a senhora nas contas, no fim do mês receberam o ordenado inteirinho. Nesse domingo, logo que se encontraram no Bertoloto, puseram-se a falar da senhora. Que seria dela agora, dizia Amalia, quem é que a ajudaria. E ele: era uma espertalhona, havia de arranjar outro ricaço antes que o Diabo esfregasse um olho. Não fales assim dela, disse Amalia, não gosto. Foram ver um filme argentino e Ambrosio saiu a dizer «pipe»1, «cbé»2, e a pronunciar os eles como is3; és doido, ria-se Amalia, e de repente apareceu-lhe a cara de Trinidad. Estavam no quartinho da Calle Chiclayo, a despirem-se, quando uma quarentona de pestanas postiças veio perguntar por Ludovico. Ficou com cara de enterro quando Ambrosio lhe disse que tinha ido a Arequipa e ainda não voltara. A mulher foi-se embora e Amalia divertia-se à custa das pestanas postiças dela e Ambrosio dizia ele gosta delas entradotas. E, a propósito, que seria feito do Ludovico? Oxalá não lhe tivesse acontecido nada, coitado, ele que tinha tão pouca vontade de ir. Lancharam na baixa e passearam até ao escurecer. Sentados num banco do Passeo de Ia República, conversaram, a ver passar os carros. Corria uma aragenzita, Amalia aninhou-se nele e Ambrosio abraçou-a: gostavas de ter uma casinha tua e que eu fosse teu marido, Amalia? Ela olhou para ele, espantada. Qualquer dia poderiam casar-se e ter filhos, Amalia, andava a juntar dinheiro para isso. Seria verdade? Viriam a ter uma casa, filhos? Parecia uma coisa tão remota, tão difícil, e, deitada de costas na sua cama, Amalia tentava imaginar-se a viver com ele, a fazer-lhe a comida e a lavar-lhe a roupa. Não podia. Mas porquê, parva? Não se casava tanta gente todos os dias, porque não tu com ele?

 

Havia coisa de um mês que o senhor se tinha ido embora quando, um dia, a senhora entrou em casa como um furacão: pronto, Quetita, a partir da próxima semana na casa do gordo, começaria a ensaiar hoje mesmo. Tinha de cuidar da silhueta, exercícios, banhos turcos. Era verdade que ia cantar para uma boíte, minha senhora? Claro que sim, como antigamente. Ela tinha sido famosa, Amalia, abandonei a minha carreira por aquele desgraçado, agora ia começar outra vez. Anda cá, para eu te mostrar, agarrou-a pelo braço, subiram a correr e tirou da secretária um álbum de recortes, cá está por fim aquilo que tanto querias ver pensava Amalia, olha, olha. Ia-lhos mostrando, orgulhosa: de vestido comprido, de fato de banho, com penteados altíssimos, no palco, de rainha, a atirar beijos. E ouve o que os jornais

 

1 Regionalismo argentino: rapaz. (N. do T.)

2 Regionalismo argentino, interjeição de chamamento. (N. do T.)

3 Trata-se do l dobrado, que em castelhano se lê «Ih». (N. do T.)

 

diziam, Amalia: era linda, tinha uma voz tropical, coleccionava êxitos. A casa tornou-se uma barafunda, a senhora só falava dos ensaios e pôs-se a fazer dieta, ao meio-dia um suminho de toranja e um bife grelhado, à noite uma saladinha sem tempero, morro de fome mas quero lá saber, fechem as janelas, as portas, se me constipo antes da estreia, mato-me, ia deixar de fumar, o cigarro era veneno para uma artista. Um dia Amalia ouviu-a a fazer queixas à menina: nem dava para a renda da casa, o gordo era um miserável. Enfim, Quetita, o principal era a oportunidade, recuperaria o seu público e poria condições. Ia para a boíte do gordo por volta das nove, de calças e turbante, com uma maleta, e voltava ao amanhecer, pintadíssima. A preocupação dela era a gordura, agora mais do que a limpeza. Revia os jornais à lupa, ouve o que dizem de mim, Amalia!; e davam-Lhe raivinhas se diziam bem de outra: esta paga-lhes, comprou-os.

 

Daí a pouco tempo recomeçaram as festarolas. Amalia reconhecia às vezes entre os convidados alguns velhadas elegantes que iam lá a casa no tempo do senhor, mas a maioria das pessoas era agora diferente: mais novos, não tão bem vestidos, sem carro, mas tão alegres, que gravatas, que cores berrantes, artistas troçava Carlota. A senhora divertia-se à grande, esta noite temos festa crioula, Amalia! Mandava Simula fazer frango de piripiri ou arroz de pato, para entrada sehichito ou causa1 e encomendava cervejas à taberna. Já não fechava a porta da copa, já não as mandava deitar. Amalia via os despropósitos, as loucuras, a senhora passava dos braços de um para os de outro como as amigas, deixava-se beijar e era quem mais se embebedava. Mas, apesar disso, uma vez que surpreendeu um senhor a sair da casa de banho no dia seguinte a uma festarola, Amalia sentiu vergonha e até uma certa raiva. Ambrosio tinha razão, era uma vivaça. Daí a um mês pescou outro, um mês depois outro. Vivaça, sim, mas para ela muito boa, e quando nos dias de saída Ambrosio lhe perguntava que diz a senhora, ela mentia-lhe dizendo muito triste desde que o senhor se foi embora, para ele não pensar mal dela.

 

Quem é que achas que ela vai escolher?, faiscava Carlota. Era verdade, a senhora tinha por onde escolher: todos os dias choviam os telefonemas, às vezes traziam flores com cartõezinhos que a senhora lia pelo telefone à Menina Queta. Que pena, um velho, dizia Carlota. Mas ricaço, alto e de boa figura. A sua cara rosada e os seus cabelos brancos não davam vontade de lhe chamar Sr. Urioste, mas sim avozinho, papá, ria-se Carlota. Muito educado, mas os copinhos subiam-lhe à cabeça e saltavam-lhe os olhos fora das órbitas e atirava-se para cima das mulheres. Ficou para dormir uma vez, duas, três, e desde então madrugava frequentemente na casinha de San Miguel e saía por volta das dez, no seu carrão cor de tijolo. O velhinho

 

1 Prato típico peruano: puré de batata com alface, queijo fresco, azeitonas, milho verde e alho, que se come frio. (N. do T.)

 

trocou-te por mim, dizia a senhora a rir, e a Menina Queta a rir: este, espreme-o, queridinha. Fartavam-se de fazer troça do homem, coitado. Ainda te responde, querida? Não, mas ainda bem, é da maneira que te engano menos. Não havia dúvida, andava com ele unicamente por interesse. O Sr. Urioste não inspirava antipatia e medo como D. Cayo, mas sim respeito, e até carinho, quando descia as escadas com as bochechas pendentes e os olhos cansados, e metia uns soles no avental a Amalia. Era mais generoso que D. Cayo, mais fino. Por isso, quando, poucos meses depois, deixou de ir lá a casa, Amalia, pensando, deu-lhe razão: lá porque era tão velhinho havia de se deixar enganar? Soube do Pichón, deu-lhe um ataque de ciúmes e pôs-se a mexer, disse a senhora à menina, não tarda nada volta manso que nem um cordeiro. Mas não voltou.

 

A senhora ainda anda muito triste?, perguntou-lhe Ambrosio um domingo. Amalia contou-lhe a verdade: já se tinha consolado, tinha tido um amante e zangara-se com ele, e agora dormia com homens diferentes. Pensou que ele iria dizer estás a ver, eu não dizia?, e que talvez lhe dissesse para nunca mais trabalhar lá. Mas limitou-se a encolher os ombros: estava a ganhar o seu, isso era lá com ela. Teve vontade de lhe perguntar e se eu fizesse o mesmo importavas-te?, mas dominou-se. Viam-se todos os domingos, iam ao quartinho de Ludovico, às vezes encontravam-no e ele convidava-os para lanchar ou beber umas cervejitas. Teve algum desastre?, perguntou-lhe Amalia no primeiro dia que o viu com ligaduras. Foram os Arequipenhos que me desastraram, riu-se ele, agora não é nada, já estive pior. Parece satisfeito, comentou Amalia para Ambrosio, e ele: porque graças a essa tareia o tinham metido no quadro, Amalia, agora ganhava mais na polícia e era importante.

 

Como a senhora mal parava em casa, a vida era mais descansada do que nunca. À tarde, com Carlota e Simula, sentava-se a ouvir os folhetins, discos. Uma manhã, ao levar o pequeno-almoço à senhora, encontrou no corredor uma cara que a fez perder a respiração. Carlota, desceu a correr, excitadíssima, Carlota, um rapaz novo, lindo, e quando o viu Carlota disse agarra-me que me derreto. A senhora e ele desceram tarde, Amalia e Carlota olhavam para ele apatetadas, sufocadas, tinha uma cara que até fazia impressões no estômago. A senhora também parecia hipnotizada. Toda lânguida, toda carinhosa, toda desvanecimento e coqueterias, dava-lhe a comida à boca com o seu garfo, fazia-se pequenina e despenteava-o, segredava-lhe ao ouvido amorzinho, queridinho, riqueza. Amalia nem a reconhecia, assim tão mansinha, com aqueles olhares e aquela vozinha.

 

O Sr. Lucas era tão novo que ao pé dele a senhora até parecia velha, tão esbelto que Amalia sentia calores quando ele olhava para ela. Cabelo preto, dentes branquíssimos, olhos grandes, um andar de senhor do mundo. Com ele não era por interesse, contou Amalia a Ambrosio, o Sr. Lucas não tinha um centavo. Era espanhol, cantava no mesmo sítio que a senhora. Mal nos conhecemos, apaixonámo-nos, confessou a senhora a Amalia, baixando os olhos. Gostava dele, gosta dele. Às vezes, o senhor e a senhora, de brincadeira, cantavam em dueto e Amalia e Carlota que se casassem, que tivessem filhos, a senhora andava tão feliz.

 

Mas o Sr. Lucas veio viver para San Miguel e deitou as unhas de fora. Quase nunca saía antes do anoitecer, e passava a vida estirado no sofá, a pedir bebidas, café. Não gostava de nenhuma comida, punha defeitos a tudo e a senhora ralhava com Simula. Pedia pratos esquisitíssimos, que caralho será gaspacho ouviu Amalia rugir Simula, era a primeira asneira que lhe ouvia. A boa impressão do primeiro dia foi-se diluindo e até Carlota começou a detestá-lo. Além de caprichoso, começou a ser abusador. Dispunha do dinheiro da senhora às mãos-cheias, mandava comprar coisas e dizia pede à Hortênsia, ela é que é o meu banco. Além disso, organizava festarolas todas as semanas, adorava-as. Uma noite Amalia viu-o a beijar a Menina Queta na boca. Como podia ela fazer aquilo sendo tão amiga da senhora, que teria feito a senhora se o apanhasse? Nada, ter-lhe-ia perdoado. Estava apaixonadíssima, suportava-lhe tudo, uma palavrinha de carinho dele e desaparecia-lhe o mau humor, rejuvenescia. E ele aproveitava-se à grande e à francesa. Os cobradores vinham apresentar contas de coisas que o Sr. Lucas comprava e a senhora pagava ou contava-lhes histórias fantásticas para voltarem mais tarde. Foi então que Amalia percebeu pela primeira vez que a senhora estava mal de finanças. Mas o Sr. Lucas não percebia, cada dia pedia mais. Andava muito elegante, gravatas de todas as cores, fatos feitos por medida, sapatos de camurça. A vida é curta, amor, é preciso vivê-la, amor, e abria os braços. És um bebé, querido, dizia ela. Como ela anda, pensava Amalia, o Sr. Lucas tinha-a transformado numa gatinha de pelúcia. Vi-a aproximar-se cheia de mimo do senhor, ajoelhar-se aos pés dele, e não acreditava. Ouvia-a liga-me, querido, a pedir-lhe com tanta doçura, uma festa à tu velhinha, que gosta tanto de ti, e não acreditava, não podia acreditar.

 

Nos seis meses que o Sr. Lucas passou em San Miguel, os géneros foram desaparecendo. A despensa esvaziou-se, o frigorífico ficou com o leite e os legumes do dia, as encomendas à mercearia acabaram. O uísque passou à história e agora nas festarolas bebia-se pisco com ginger ale e aperitivos em vez de pratos crioulos. Amalia contava a Ambrosio e ele sorria: um bom chuleco, esse tal Lucas. Pela primeira vez a senhora encarregava-se das contas, Amalia ria-se por dentro ao ver a cara de Simula quando ela lhe reclamava os trocos. E um belo dia Simula anunciou que ela e Carlota se iam embora. Para Huacho, minha senhora, iam abrir uma tabernazita. Mas, na noite anterior à partida, vendo Amalia tão desgostosa, Carlota consolou-a: mentira, não iam nada para Huacho, continuaremos a ver-nos. Simula tinha arranjado casa na baixa, ela ia para cozinheira e Carlota para criada de fora. Tu também tens de te ir embora, Amalita, a mamã diz que esta casa vai ficar arruinada. Iria? Não, a senhora era tão boa. Ficou e até se deixou convencer a fazer cozinha, ganharia mais cinquenta soles. Daí em diante os senhores quase nunca comiam em casa, é melhor irmos jantar fora, querido. Como eu não sei cozinhar, a minha comida fica-lhes atravessada na garganta, contava Amalia a Ambrosio, é bem feito. Mas o trabalho triplicou: arrumar, sacudir, fazer as camas, lavar pratos, varrer, cozinhar. A casinha já não andava arrumada e flamante. Amalia via nos olhos da senhora como ela sofria quando passava uma semana sem baldear o pátio, três e quatro dias sem passar o espanador na sala. Tinha despedido o jardineiro e os gerânios murcharam e a relva secou. Desde que o Sr. Lucas fora lá para casa, a Menina Queta nunca mais ficara para dormir, mas ia lá sempre, algumas vezes com aquela gringa, a D. Ivonne, que brincava com a senhora e o Sr. Lucas: como estão os pombinhos, os noivos? Um dia que o senhor tinha saído, Amalia ouviu a Menina Queta a repreender a senhora: está-te a arruinar, é um chupista, tens de o deixar. Correu à copa; a senhora escutava, encolhida na poltrona, e de repente levantou a cara e estava a chorar. Ela sabia tudo isso, Quetita, e Amalia sentiu que ia também chorar, mas que havia de fazer, Quetita, gostava dele, era a primeira vez na vida que gostava a valer de alguém. Amalia saiu da copa, entrou no quarto e fechou-se à chave. Lá estava a cara de Trinidad, quando adoeceu, quando o prenderam, quando morreu. Não sairia nunca lá de casa, acompanharia sempre a senhora.

 

A casa caminhava para a ruína, sim, e o Sr. Lucas alimentava-se dessas ruínas, como uma ave de rapina se alimenta de restos. Os vasos e as floreiras partidas já não se substituíam, mas ele estreava fatos. A senhora contava tragédias aos cobradores da mercearia e da lavandaria, mas ele apareceu com um anel no dia dos anos e no Natal o Menino Jesus deu-lhe um relógio. Nunca estava triste nem zangado: abriu um restaurante na Magdalena, vamos lá, amor? Levantava-se tarde e instalava-se na sala a ler o jornal. Amalia via-o, bem parecido, risonho, no seu roupão cor de vinho, com os pés em cima do sofá, a cantarolar, e odiava-o: cuspia no pequeno-almoço dele, deitava-lhe cabelos na sopa, sonhava que ele era esmagado por comboios.

 

Uma manhã, ao regressar da mercearia, encontrou a senhora e a menina a saírem de casa, de calças, com sacos. Iam aos banhos turcos, não viriam almoçar, que ao meio-dia fosse comprar uma cerveja para o senhor. Saíram e daí a pouco Amalia sentiu passos; já acordou, queria o pequeno-almoço. Subiu ao quarto e o Sr. Lucas, de casaco e gravata, estava a meter as coisas numa mala, à pressa. Ia à província de viagem, Amalia, ia cantar em teatros, voltaria na próxima segunda-feira, e falava como se já estivesse de viagem e a cantar. Entrega esta carta à Hortênsia, Amalia, e agora chama um táxi. Amalia fitava-o boquiaberta. Por fim saiu do quarto, sem dizer nada. Arranjou um táxi, levou a mala do senhor para baixo, adeus Amalia, até segunda-feira. Entrou em casa e sentou-se na sala, agitada. Se ao menos cá estivessem a Sr.” Simula .e a Carlota quando fosse dar a notícia à senhora. Não conseguiu fazer nada durante toda a manhã, sempre a olhar para o relógio e a pensar. Eram cinco horas quando o carrinho da Menina Queta parou à porta. Com a cara colada à cortina, viu-as chegar, muito frescas, muito jovens, como se nos banhos turcos tivessem perdido anos em vez de peso, e abriu a porta e começaram a tremer-lhe as pernas. Entra, querida, disse a senhora, toma um cafezinho, entraram e atiraram os sacos para cima do sofá. Que foi, Amalia? O senhor tinha ido de viagem, minha senhora, e o coração bateu-lhe desordenadamente, tinha-lhe deixado uma cartinha lá em cima. Não mudou de cor, não se mexeu. Olhava-a muito quieta, muito séria, por fim tremeu-lhe um bocadinho a boca. De viagem?, o Lucas, de viagem?, e antes que Amalia respondesse deu meia volta e subiu as escadas, seguida pela Menina Queta. Amalia tentava ouvir. Não desatara a chorar, ou se calhar chorava em silêncio. Ouviu um ruído, uma azáfama, a voz da menina: Amalia! O guarda-vestidos estava aberto de par em par, a senhora sentada na cama. Não é verdade que ele disse que voltava, Amalia?, fulminou-a a menina com os olhos. É sim, menina, e não se atrevia a olhar para a senhora, voltaria na segunda-feira, e apercebeu-se de que gaguejava. Quis dar alguma escapada com outra, disse a menina, sentia-se amarrado com os teus ciúmes, querida, voltaria na segunda-feira a pedir desculpa. Por favor, Queta, disse a senhora, não te faças parva. É mil vezes melhor que tenha ido de vez, gritou a menina, livras-te dum vampiro, e a senhora acalmou-a com a mão: a cómoda Quetita, ela nem se atrevia a olhar. Soluçou e tapou a cara, e a Menina Queta ia se tinha precipitado e abria gavetas, revolvia-as, atirava cartas, ai Jesus, ai menina, não viste se ele levava as jóias da senhora? Isso é que não podia ser, chamava-se a polícia, não havia de te roubar, filha, haviam de o meter na cadeia, ele tinha de as devolver. A senhora chorava aos gritos e a menina mandou Amalia arranjar um café bem quente. Ao voltar com a bandeja, tremendo, a menina estava a falar ao telefone: a senhora conhece tanta gente, D. Ivonne, que o procurassem, que o apanhassem. A senhora passou toda a tarde no quarto, a conversar com a menina, e ao anoitecer veio a D. Ivonne. No dia seguinte apareceram dois tipos da polícia e um deles era Ludovico. Fez de contas que não conhecia Amalia. Ambos lhe faziam perguntas e mais perguntas sobre o Sr. Lucas e no fim tranquilizaram a senhora: havia de recuperar as suas jóias, era uma questão de dias.

 

Foram uns dias tristes. Antes as coisas iam mal, mas a partir daí tudo foi pior, pensaria depois Amalia. A senhora estava de cama, pálida, despenteada, e só comia caldinhos. Ao terceiro dia, a Menina Queta foi-se embora. Quer que leve o meu colchão para o seu quarto, minha senhora? Não, Amalia, continua a dormir no teu. Mas Amalia ficou no sofá da sala, envolvida no seu cobertor. Na escuridão, sentia a cara húmida. Odiava Trinidad, Ambrosio, todos. Cabeceava e acordava, tinha pena, tinha medo, e às tantas viu luz no corredor. Subiu, colou o ouvido à porta, não se ouvia coisa nenhuma, e abriu. A senhora estava deitada na cama, destapada, com os olhos abertos: a senhora chamou? Aproximou-se, viu o copo caído no chão, os olhos em alvo da senhora. Correu para a rua, aos gritos. Tinha-se matado, e tocava a campainha da casa do lado, tinha-se matado, e dava pontapés na porta. Veio abrir um homem em roupão, uma mulher, davam bofetadas à senhora, carregavam-lhe no estômago, queriam que ela vomitasse, telefonavam. A ambulância chegou já quase de dia.

 

A senhora esteve uma semana no Hospital Loayza. No dia em que foi visitá-la, Amalia encontrou-a com a Menina Queta, a Menina Lucy e a D. Ivonne. Pálida e magrinha, mas mais resignada. Aí vem a minha salvadora, brincou a senhora. Como é que lhe vou dizer que não há dinheiro nem para comer?, pensava ela. Felizmente, a senhora lembrou-se: dá-lhe qualquer coisa para as despesas dela, Queta. Nesse domingo, foi-se encontrar com Ambrosio na paragem e levou-o lá para casa. Já sabia que a senhora se tentou matar, Amalia. Como é que sabia? Porque D. Fermín lhe estava a pagar o hospital. D. Fermín? Sim, ela tinha-o chamado e ele, tão cavalheiro, tinha-se compadecido e estava a ajudá-la. Amalia arranjou-lhe de comer e depois estiveram a ouvir rádio. Deitaram-se no quarto da senhora e Amalia teve um ataque de riso que não conseguia fazer parar. Então era para aquilo que os espelhos serviam, era para aquilo, a marota da senhora, e Ambrosio teve de a sacudir pelos ombros e ralhar-lhe, aborrecido com as gargalhadas dela. Não tinha voltado a falar da casinha nem de casamento, mas davam-se bem um com o outro, nunca discutiam. Faziam sempre a mesma coisa: o eléctrico, o quartinho de Ludovico, o cinema, uma vez por outra um baile qualquer. Um domingo, Ambrosio teve uma complicação num restaurante crioulo dos Bairros Altos porque uns bêbedos entraram a gritar viva a Apra!, e ele Morra! As eleições estavam próximas e havia manifestações na Plaza San Martin. A baixa estava cheia de cartazes, carros com altifalantes, Vota por Prado, tu conhece-lo!, diziam na rádio, folhetos, cantavam Lavalle é o homem que o Peru quer!, com música de valsa, fotografias e a Amalia entrou-lhe no ouvido a polcazinha Para a. frente com Belaúnde! Os apristas tinham voltado, os jornais traziam fotografias de Haya de la Torre e ela lembrava-se de Trinidad. Gostava de Ambrosio? Sim, mas com ele não era como com Trinidad, com ele não havia aqueles sofrimentos, aquelas alegrias, aquele calor que havia com Trinidad. Porque é que queres que ganhe o Lavalle?, perguntava-lhe, e ele porque D. Fermín era por ele. Com Ambrosio era tudo sossegado, somos dois amigos, que além disso dormem juntos lembrou-se uma vez de dizer. Passavam-se meses sem ir visitar D. Rosário, meses sem ver Gertrudis Lama nem a tia. Durante a semana ia guardando na cabeça tudo o que acontecia e no domingo contava-o a Ambrosio, mas ele era tão reservado que às vezes ela ficava danada. Como estava a Menina Teté?, bem, e a D. Zoila?, bem, o Menino Santiago tinha voltado para casa?, não, tinham muitas saudades dele?, sim, sobretudo D. Fermín. E que mais, e que mais? Mais nada. Às vezes, de brincadeira, ela assustava-o: vou visitar a D. Zoila, vou contar tudo sobre nós à D. Hortênsia. Ele espumava: se fores, arrependes-te, se lhe contares, nunca mais nos vemos. A que propósito tanto segredo, tanto mistério, tanta vergonha? Era esquisito, era doido, tinha manias. Se o Ambrosio morresse, terias tanto desgosto como pelo Trinidad?, perguntou-lhe uma vez Gertrudis. Não, havia de chorar, mas não lhe pareceria que o mundo acabava. Talvez seja porque nunca vivemos juntos, pensava. É possível que, se lhe tivesse lavado a roupa e cozinhado para ele e tratado dele, se ele adoecesse, fosse diferente.

 

A D. Hortênsia voltou a San Miguel na espinha. A roupa ficava-lhe a dançar, tinha a cara chupada, os olhos já não brilhavam como dantes. A polícia não encontrou as jóias, minha senhora? A senhora riu-se sem vontade, nunca as encontrariam, e os olhos humedeceram-se-lhe, o Lucas era mais esperto que a polícia. Ainda gostava dele, coitada. A verdade é que já não havia muitas, Amalia, ela tinha-as ido vendendo por causa dele, para ele. Os homens eram tão patetas, ele não precisava de as roubar, Amalia, bastava ter-mas pedido. A senhora modificou-se. As desgraças caíam-lhe em cima umas atrás das outras e ela indiferente, séria, calada. Ganhou o Prado, minha senhora, a Apra virou as costas ao Lavalle e votou pelo Prado e o Prado ganhou, foi o que disseram na rádio. Mas a senhora nem a ouvia: perdi o emprego, Amalia, o gordo não me renovou o contrato. Dizia-o sem raiva, como se fosse a coisa mais natural deste mundo. E uns dias depois, à Menina Queta, vou ficar sepultada em dívidas. Não parecia assustada nem preocupada. Amalia já não sabia o que havia de inventar quando o Sr. Poncio vinha receber a renda: não está, saiu, amanhã, na segunda-feira. Antes, o Sr. Poncio desfazia-se em piropos e amabilidades; agora era um chacal: enrubescia, tossia, engasgava-se. Qual não está, qual carapuça! Deu um empurrão a Amalia e ladrou D. Hortênsia, basta de aldrabices! Do alto da escada, a senhora fitou-o como se ele fosse uma pulgazinha: com que direito é que o senhor entra por aqui aos gritos? Diga ao Paredes que depois lhe pago. A senhora não paga e o coronel Paredes descompõe-me a mim, ladrou o Sr. Poncio, vamos pô-la fora judicialmente. Hei-de sair quando muito bem me apetecer, disse a senhora sem gritar e ele, a ladrar, se até segunda-feira não pagar, vamos para tribunal. Amalia subiu depois ao quarto a pensar deve estar furiosa. Mas não, estava tranquila, a olhar para o tecto com os olhos gelatinosos. No tempo do Cayo, o Paredes nem queria receber a renda, Amalia, em compensação olha-o agora. Falava com uma fraqueza tremenda, como se estivesse longíssimo ou a adormecer. Tinham de se mudar, não havia outro remédio, Amalia. Foram uns dias agitados. A senhora saía cedo, voltava tarde, vi uma data de casas, todas caríssimas, telefonava a um e outro senhor, pedia-lhes uma assinaturazinha, um empréstimo, e desligava o telefone e torcia a boca: mal agradecidos, ingratos. No dia da mudança foi lá o Sr. Poncio e fechou-se com a senhora no quarto que era de D. Cayo. Por fim, a senhora desceu e disse aos homens do camião que tornassem a pôr em casa os móveis da salmha e o bar.

 

A falta daqueles móveis nem se notou no apartamento da Magdalena Vieja, era mais pequeno que a casinha de San Miguel. Até sobraram coisas e a senhora vendeu a secretária, as poltronas, os espelhos e o aparador. O apartamento ficava no segundo andar de um prédio verde, tinha sala de jantar, quarto de dormir, casa de banho, cozinha, varanda e um quarto de criada com uma casinha de banho. Era novo, e depois de arranjado ficou bonito.

 

No primeiro domingo que se encontrou com Ambrosio na Avenida Brasil, na paragem do Hospital Militar, tiveram uma questão. Coitada da senhora, contava-lhe Amalia, os apertos por que ela passou, tiraram-lhe os móveis, as grosserias do Sr. Poncio, e Ambrosio disse é bem feito. O quê? Sim, era uma rica prenda. O quê? Andava sempre a cravar as pessoas, passava a vida a pedir dinheiro a D. Fermín, que a tinha ajudado tanto, uma abusadora. Deixa-a, Amalia, arranja outra casa. Mais depressa te deixo a ti, disse Amalia. Discutiram durante coisa de uma hora e só se reconciliaram em parte. Está bem, não se fala mais nela, Amalia, não valia a pena brigarmos por causa dessa doida.

 

Com os empréstimos e o que vendera, a senhora ia vivendo menos mal, enquanto procurava emprego. Encontrou-o finalmente numa casa de Barranco, La Laguna. Começou outra vez a falar em deixar de fumar e a pôr muitos cosméticos logo de manhã. Nunca mencionava o Sr. Lucas, só a Menina Queta a vinha ver. Já não era a mesma pessoa. Não dizia piadas, não tinha a malícia, a graça, aqueles modos tão despreocupados de antigamente. O Quinoncito anda doido por ti, filha, e ela não queria nem vê-lo, Quetita, não tem um chavo. Tempos depois começou a andar com homens, mas nunca os mandava entrar, fazia-os esperar à porta ou na rua enquanto se arranjava. Tem vergonha de que vejam como ela vive agora, pensava Amalia. Levantava-se e tomava o seu pisco com ginger ale. Ouvia rádio, lia o jornal, telefonava à Menina Queta, e bebia dois, três. Já não parecia tão bonita nem tão elegante.

 

Assim se passavam os dias, as semanas. Quando a senhora deixou de cantar em La Laguna, Amalia só veio a saber dois dias depois. Uma segunda e uma terça-feira a senhora ficou em casa, também não ia cantar esta noite, minha senhora? Nunca mais voltava a La Laguna, Amalia, só a exploravam, ia procurar um sítio melhor. Mas nos dias seguintes não a viu muito ansiosa por arranjar outro emprego. Ficava na cama, com as cortinas corridas, a ouvir rádio na penumbra. Levantava-se pesadamente para arranjar um pisco com ginger ale e quando Amalia entrava no quarto via-a imóvel, com o olhar perdido no fumo, a voz fraca e os gestos cansados. Por volta das sete começava a pintar os lábios e as unhas, a pentear-se, e lá pelas oito a Menina Queta vinha buscá-la no carrinho. Voltava ao amanhecer feita um farrapo, bebedíssima, com semelhante cansaço que às vezes acordava Amalia para a ajudar a despir-se. Olhe como ela está a emagrecer, disse Amalia à Menina Queta, diga-lhe que coma, ainda adoece. A menina dizia-lhe, mas ela não fazia caso. Passava a vida a levar a roupa a uma costureira da Avenida Brasil para a apertar. Todos os dias dava a Amalia o dinheiro para as compras e pagava-lhe pontualmente o ordenado, onde é que ela ia buscar o dinheiro? Ainda nenhum homem tinha ficado para dormir no apartamento da Magdalena. Se calhar, tinha os seus casos na rua. Quando a senhora começou a trabalhar no Monmartre, nunca mais falou em deixar de fumar nem em correntes de ar. Agora nem do canto queria saber. O descuido com que ela se pintava! Nem a arrumação e limpeza da casa lhe interessavam, ela que ficava histérica quando passava um dedo pela mesa e encontrava pó. Nem reparava que os cinzeiros ficavam cheios de beatas e nunca mais lhe tinha perguntado de manhã tomaste banho, puseste o desodorizante? O apartamento andava desarrumado, mas Amalia não tinha tempo para tudo. Para mais, a limpeza da casa exigia-lhe agora muito mais esforço. A senhora pegou-me a fraqueza, contava ela a Ambrosio. Não sei o que me faz ver a senhora assim, tão desanimada, menina, seria por não se conformar do Sr. Lucas. Sim, disse a Menina Queta, e também porque a bebida e os comprimidos para os nervos a deixavam meio aparvalhada.

 

Um dia bateram à porta, Amalia abriu e era D. Fermín. Tornou a não a reconhecer: a senhora está à minha espera. Como ele tinha envelhecido desde a última vez, tantas brancas, que olhos tão encovados. A senhora mandou-a comprar cigarros, e no domingo, quando Amalia perguntou a Ambrosio o que tinha ido lá fazer D. Fermín, ele fez uma careta de repulsa: levar-lhe dinheiro, essa desgraçada tinha-o sugado. Que mal te fez a senhora, porque é que a odeias? A Ambrosio nada, mas andava a sangrar D. Fermín, a abusar da bondade dele, qualquer outro a teria mandado para o diabo. Amalia enfurecia-se: que tens tu com isso, que é que te importa? Arranja outra casa, insistia ele, não vês que ela anda a morrer de fome?, deixa-a.

 

Às vezes a senhora desaparecia por dois ou três dias, e quando voltava estive de viagem, Amalia. Paracas, Cuzco, Chimbote. Da janela, Amalia via-a a entrar em carros de homens com a mala. A alguns conhecia-lhes a voz, pelo telefone, e tentava adivinhar o aspecto, a idade deles. Uma madrugada ouviu vozes, foi espreitar e viu a senhora na salinha com um homem, a rir e a beber. Depois pôs-se a escutar à porta e pensou enfiaram-se no quarto. Mas não, o senhor tinha-se ido embora e a senhora, quando ela lhe foi perguntar se queria já o pequeno-almoço, estava deitada na cama vestida, com um olhar estranhíssimo. Ficou a olhar para ela com um sorrisinho silencioso e Amalia sentia-se mal? Nada, quieta, como se todo o corpo tivesse morrido menos os olhos, que vagueavam, a olhar. Correu ao telefone e esperou a tremer a voz da Menina Queta: matou-se outra vez, estava para ali deitada na cama, não ouvia, não falava, e a Menina Queta gritou cala-te, não te assustes, ouve bem. Café bem forte, não chames o médico, ela ia já. Beba isto para ficar melhor, minha senhora, choramingava Amalia, a Menina Queta vinha já. Nada, muda, surda, a olhar, de maneira que lhe levantou a cabeça e levou-lhe a chávena à boca. Bebia obedientemente, escorriam-lhe dois fiozinhos pelo pescoço. Isso, minha senhora, todo, e fazia-lhe festas na cabeça e beijava-lhe as mãos. Mas, quando a Menina Queta chegou, em vez de se apiedar começou a dizer palavrões. Mandou comprar álcool, obrigou a senhora a beber mais café, ela e Amalia deitaram a senhora, esfregaram-lhe a testa e as fontes. À medida que a menina a descompunha, doida, tarada, inconsciente, a senhora foi voltando a si. Sorria, porque era toda aquela confusão, mexia-se, e a menina que estava fana, não sou tua ama seca, arranjas um sarilho, se te quiseres matar, mata-te, mas não aos bocadinhos. Nessa noite, a senhora não foi ao Monmartre, mas no dia seguinte levantou-se já boa.

 

Uma manhã depois surgiu a complicação, Amalia voltava da mercearia e viu um carro da polícia à porta do prédio. Um polícia e um paisano discutiam com a senhora no passeio. Deixem-me telefonar, dizia a senhora, mas agarraram-na pelos braços, meteram-na no carro e arrancaram. Ficou um bocado na rua, tão assustada que nem tinha coragem de entrar em casa. Telefonou à menina, mas ela não estava; passou toda a tarde a telefonar, mas não respondia. Se calhar, tinham-na levado para a esquadra, se calhar vinham buscá-la a ela também. As criadas dos vizinhos vinham averiguar: que aconteceu, para onde é que a levaram? Nessa noite, não conseguiu pregar olho: vão aparecer, vão-te levar. No dia seguinte apareceu lá a Menina Queta e fez uns olhos terríveis quando Amalia lhe contou. Correu ao telefone: faça qualquer coisa, D. Ivonne, não podiam prendê-la, a culpa era toda da Paqueta, a menina também atabalhoada, assustada. Deu uma libra a Amalia: tinham implicado a senhora num assunto pouco limpo, se calhar, iam aparecer polícias e jornalistas, vai para o pé da tua família por uns dias. Tinha os olhos cheios de lágrimas e ouviu-a murmurar pobre Hortênsia. Para onde é que havia de ir, para onde ia? Foi para casa da tia, que agora tinha uma pensãozinha em Chacra Colorada. A senhora foi de viagem, tia, deu-me férias. A tia repreendeu-a por ela não ter aparecido todo aquele tempo, e ficou a olhar e olhar para ela. Por fim pegou-lhe na cara e examinou-lhe os olhos: estás a mentir, ela pôs-te na rua porque descobriu que estás grávida. Ela negou, não estava, protestou, de quem é que havia de estar grávida? Mas, e se a tia tivesse razão, se fosse por isso que não lhe aparecia sangue? Esqueceu-se da senhora, da polícia, que diria a Ambrosio, que diria ele. No domingo foi à paragem do Hospital Militar, rezando entre dentes. Começou a contar-lhe da senhora, mas ele já sabia. Ela já estava em casa, Amalia, D. Fermín falou com uns amigos e pô-la em liberdade. E porque é que tinham prendido a senhora? Deve ter feito alguma coisa pouco limpa, deve ter feito qualquer asneira, e mudou de assunto: Ludovico tinha-lhe emprestado o quarto por toda a noite. Agora viam Ludovico poucas vezes, Ambrosio contava-lhe que parecia que ele ia casar e que falava em comprar uma casinha na Urbanización de Villacampa, o que o Ludovico tinha subido, não era, Amalia? Foram a um restaurantezinho do Rímac e ele perguntou-lhe: porque é que não comes? Não tinha fome, tinha almoçado muito bem. Porque é que não falava? Estava a pensar na senhora, amanhã vou vê-la cedinho. Mal entraram no quarto encheu-se de coragem: a minha tia diz que estou grávida. Ele sentou-se na cama de um salto. Merda para o que a tua tia julgava, sacudiu-a por um braço, estava ou não estava? Sim, parecia-lhe que sim, e desatou a chorar. Em vez de a consolar, Ambrosio pôs-se a olhar para ela como se tivesse lepra e o pudesse contagiar. Não podia ser, repetia, não pode ser, embargava-se-lhe a voz. Ela saiu do quartinho a correr. Ambrosio alcançou-a na rua. Acalma-te, não chores, apatetado, acompanhou-a até à paragem e dizia não estava nada à espera, não penses que fiquei zangado, deixaste-me aparvalhado. Na Avenida Brasil despediu-se dela até domingo. Amalia pensou: nunca mais aparece.

 

A D. Hortênsia não estava furiosa: viva, Amalia. Abraçou-a satisfeita, julgava que te tinhas assustado e não voltavas. Que ideia, minha senhora. Eu bem sei, disse a senhora, tu és mesmo amiga, Amalia, és uma amiga a sério. Tinham querido implicá-la numa coisa que não tinha feito, as pessoas eram assim, a sacana da Paqueta era assim, eram todos assim. Os dias, as semanas, voltaram a ser os de sempre, cada dia um pouco pior por causa dos apertos de dinheiro. Um dia bateu à porta um homem fardado. Quem procurava? Mas a senhora veio recebê-lo, olá, Richard, e Amalia reconheceu-o. Era o mesmo que tinha entrado em casa naquela madrugada, simplesmente agora estava com boné de aviador e casaco azul de botões dourados. O Sr. Richard era piloto da Panagra, passava a vida a viajar, patilhas grisalhas, uma mecha loura sobre a testa, gordinho, sardento, um espanhol misturado com inglês que dava vontade de rir. Amalia simpatizou com ele. Foi o primeiro a entrar no apartamento, o primeiro a ficar para dormir. Chegava a Lima às quintas-feiras, vinha do aeroporto de azul-marinho, tomava banho, descansava um bocado, e saíam, voltavam de madrugada a fazer barulho e dormiam até ao meio-dia. Às vezes o Sr. Richard ficava dois dias em Lima. Gostava de se enfiar na cozinha, pôr um avental de Amalia e cozinhar. Ela e a senhora, a rir, viam-no estrelar ovos, preparar talharins, pizzas. Era brincalhão, prazenteiro e a senhora dava-se bem com ele. Porque é que não casava com o Sr. Richard, minha senhora?, ele é tão bom. Ã D. Hortênsia riu-se: era casado e tinha quatro filhos, Amalia.

 

Tinham passado dois meses e uma vez o Sr. Richard chegou quarta-feira em vez de quinta-feira. A senhora estava fechada às escuras, com o seu pisco com ginger ale na mesa-de-cabeceira. O Sr. Richard assustou-se e chamou Amalia. Não fique assim, acalmava-o ela, não era nada, já lhe passava, era dos remédios. Mas o Sr. Richard falava em inglês afogueado do susto e dava umas bofetadas de morte à senhora, e a senhora olhava para eles como se não estivessem ali. O Sr. Richard ia à sala, voltava, telefonava e por fim saiu e trouxe um médico que deu uma injecção à senhora. Quando o médico se foi embora, o Sr. Richard entrou na cozinha e parecia um camarão: vermelhíssimo, danado, começava a falar em espanhol e passava para o inglês. Que é que o senhor tem, porque é que estava a gritar, porque é que me insulta? Ele esbracejava e Amalia pensava vai-me bater, endoideceu. E nisto apareceu a senhora: com que direito levantava a voz, com que direito gritas com a Amalia? Começou a ralhar por ele ter chamado o médico, ela gritava com ele e ele com ela, e na sala continuaram aos gritos, gringo da merda, metediço da merda, barulhos, uma bofetada, e Amalia, apatetada, pegou na frigideira e saiu pensando vai-nos matar às duas. O Sr. Richard tinha-se ido embora e a senhora continuava a insultá-lo à porta. Então não aguentou mais, ainda conseguiu levantar o avental, mas foi em vão, o vomitado caiu todo no chão. Ao ouvir os vómitos, a senhora veio a correr. Vai à casa de banho, não te assustes, não é nada. Amalia lavou a boca, voltou à sala com um pano molhado e uma vassoura, e, enquanto limpava, ouvia a senhora a rir. Não havia razão para sustos, pateta, já há uns tempos que andava para se separar deste idiota, e Amalia morta de vergonha. Mas de repente a senhora calou-se. Ouve lá, ouve lá, apareceu-lhe um sorrisinho daqueles de outros tempos, mesquinha morta, anda cá, anda. Sentiu que corava, não estarás grávida, tu?, que lhe davam tonturas, não, minha senhora, que ideia. Mas a senhora agarrou-a por um braço: palerma, claro que estás. Não zangada, mas antes admirada, a rir. Não, minha senhora, estava lá agora, e sentiu os joelhos a tremer. Desatou a chorar, ai, minha senhora. Mosquinha morta, dizia a senhora com carinho. Trouxe-lhe um copito de água, fê-la sentar, quem havia de dizer. Estava, sim, minha senhora, tinha-se sentido tão mal todo este tempo: sede, enjoos, aquela sensação de lhe estarem a puxar pelo estômago. Chorava aos gritos e a senhora consolava-a, porque é que não me contaste, pateta, tinha algum mal?, eu levava-te ao médico, não terias trabalhado tanto. Ela continuava a chorar e de repente: por causa dele, minha senhora, não queria que ela lhe contasse, dizia olha que ela despede-te. Mas tu não me conheces, pateta, sorriu a D. Hortênsia, alguma vez te passou pela cabeça que eu te despedisse? E Amalia: aquele motorista, o Ambrosio, a senhora conhece, o que ia levar recados a San Miguel. Não queria que ninguém soubesse, tem lá as suas manias. Chorava aos gritos e contava-lhe portou-se mal uma vez, minha senhora, e agora ainda pior. Desde que soube da criança anda esquisitíssimo, não queria falar dela, Amalia dizia-lhe tenho vómitos e ele muda de conversa, Amalia já mexe e ele hoje não posso ficar contigo, tenho que fazer. Já só a via um bocadinho aos domingos, só por dizer que estava com ela, e a senhora abria os olhos. O Ambrosio? Sim, não tinha voltado a ir ao quarto com ela, o motorista do Fermín Zavala?, sim, convidava-a para lanchar e despedia-se, há anos que te encontras com ele?, e olhava para ela abanava a cabeça e dizia quem iria dizer. Era doido, um maníaco, sempre com os seus segredos, minha senhora, envergonhava-se dela e desta vez ia deixá-la como da outra. A senhora desatou a rir e abanava a cabeça, quem iria dizer. E depois, já séria, tu gostas dele, Amalia? Sim, era o marido dela, se ele agora sabe que eu lhe contei tudo, abandonava-a, minha senhora, até me pode matar. Chorava, e a senhora trouxe-lhe outro copinho de água e abraçou-a: ele não saberá que tu me contaste, não a abandonaria. Ficaram a conversar e a senhora tranquilizava-a, nunca saberia, pateta. Tinha sido vista por algum médico? Não, ai que palerma que tu és, Amalia. De quantos meses estava? De quatro, minha senhora. No dia seguinte ela própria a levou a um médico que a examinou e disse que a gravidez estava a correr muito bem. Nessa noite, a Menina Queta foi lá a casa e a senhora, diante de Amalia, esta mulher está grávida, imagina. Ai sim?, disse a Menina Queta, como se não estranhasse. E se tu soubesses de quem, riu-se a senhora, mas ao ver a cara de Amalia pôs um dedo na boca: não se podia dizer, filha, era segredo.

 

Que aconteceria agora? Nada, não a ia despedir. A senhora tinha-a levado ao médico e queria que ela tivesse cuidado, não te agaches, não enceres, não levantes isso. Era boa, a senhora, e ela sentia-se tão aliviada por ter contado tudo a alguém. E se Ambrosio descobria? Que importância tem se, de qualquer maneira, te abandona, parva? Mas não a abandonava, aparecia todos os domingos. Conversavam, lanchavam e Amalia pensava: que falso, que mentiroso tudo aquilo que dizemos. Porque falavam de tudo menos disso. Não tinham voltado ao quartinho, iam passear ou ao cinema e à noite ele acompanhava-a até ao Hospital Militar. Parecia preocupado, perdia-se-lhe o olhar por momentos, e ela pensava mas porque é que tu te pões assim?, alguma vez lhe tinha pedido que casasse com ela, alguma vez dinheiro? Um domingo, ao sair do cinema, ouviu-lhe a voz entrecortada: como te sentes, Amalia? Sinto-me bem, disse ela, e, olhando para o chão, perguntava isso por causa da criança? Quando ela nascer, vais ter de deixar de trabalhar, ouviu-o dizer. E porquê?, perguntou Amalia, que julgas tu que eu vou fazer, de que é que vou viver? E Ambrosio: disso terei eu de me encarregar. Não disse mais nada até se despedirem. Encarregar-me-ei eu?, pensava ela às escuras, coçando a barriga, ele? Queria dizer viverem juntos, a casinha?

 

O quinto, o sexto mês. Sentia-se já muito pesada, tinha de interromper a lida da casa para recuperar o fôlego, a cozinha, até lhe passarem os afrontamentos. E um dia a senhora disse vamo-nos mudar, este apartamento saía muito caro. Vieram uns homens examinar os móveis e discutir preços, voltaram com uma camioneta e levaram as cadeiras, a mesa da casa de jantar, a alcatifa, o gira-discos, o frigorífico, o fogão. Amalia sentiu uma opressão no peito no dia seguinte, quando viu as três malas e os dez embrulhinhos que continham todas as coisas da senhora. Porque é que tens pena, se ela não se importa?, não sejas parva. Mas tinha pena, mas era. Não a entristece ficar assim quase sem nada, minha senhora? Não, Amalia, sabes porquê? Porque daqui a uns tempos iria para o estrangeiro. Se quiseres, levo-te comigo, Amalia, e ria-se. Que tinha ela? A que propósito vinha aquele bom humor repentino, aqueles projectos, aquela vontade de fazer coisas? Amalia ficou gelada ao ver o apartamento da General Garzón. Não era por ser tão pequeno, mas tão velho, tão feio! A casa de jantar era minúscula, como o quarto, a cozinha e o quarto de banho pareciam de bonecas. O quarto de criada era tão apertado que só lá cabia o colchão. Quase não tinha móveis, e os que tinha estavam num estado que metia dó. Era aqui que a Menina Queta vivia, minha senhora? Era, e Amalia não podia acreditar, com o carrinho branco que ela tinha e pela maneira como vestia, ela tinha pensado que a menina vivesse muito melhor. E para onde é que a menina tinha ido agora? Para um apartamento em Pueblo Libre, Amalia.

 

Depois de se mudarem para Jesus Maria, a senhora melhorou de estado de espírito, de hábitos. Levantava-se cedo, comia melhor, passava grande parte do dia na rua, conversava. E falava da viagem: para o México, iria para o México, Amalia, e nunca mais voltaria. A Menina Queta vinha visitá-la e, da sufocante cozinha, Amalia ouvia-as, a falarem noite e dia da mesma coisa: ia-se embora, ia partir. Era a sério, pensava Amalia, vai-se embora, e sentiu pena. Por tua causa estou a ficar não sei como, dizia ela tocando a barriga, choro por tudo e por nada, tudo me faz pena, que parva que tu me puseste. E quando é que se ia embora, minha senhora? Não tardava, Amalia. Mas a Menina Queta não a levava muito a sério, Amalia bem a ouvia: não tenhas ilusões, Hortênsia, não julgues que vai ser tudo assim tão fácil, estás-te a meter numa aventura. Havia qualquer coisa estranha, mas o quê, o que era? Perguntou à Menina Queta e ela disse-lhe as mulheres são umas parvas, Amalia: ele anda a chamá-la porque precisa de dinheiro, e a parva da Hortênsia vai-lho levar, e ele, quando apanhar o dinheiro na mão, deixa-a outra vez. O Sr. Lucas, menina? Claro, quem é que havia de ser? Amalia pensou que ia desmaiar. Ia ter com ele? Ele tinha-a abandonado, tinha-a roubado e ela ia ter com ele? Mas já não conseguia pensar muito tempo na senhora nem em nada, sentia-se demasiado mal. Da primeira vez não tinha sentido aquele cansaço, aquela fadiga tão grande: sono de manhã à tarde, e ao voltar das compras tinha de se ir deitar. Levara um banquito para a cozinha e cozinhava sentada. O que tu engordaste, pensava.

 

Era Verão, Ambrosio tinha de levar os Zavala a Ancón e Amalia só o via domingo sim, domingo não. Aquilo de Ancón não seria uma mentira, um pretexto para se ir afastando dela aos poucos? Amalia ia encontrar-se com ele na Avenida Arenales, com mil e uma coisas para lhe contar, e que banho de água fria! Com que então a senhora queria ir para o México?, ai sim?, para ir ter com aquele chulo?, ah, bom, então a casinha de agora era muito pequena?, imagina! Não me estás a ouvir, estou, estou, em que é que estás a pensar?, em nada. Não faz mal, pensava Amalia, já não gosto dele. A tia tinha-lhe dito: quando a senhora se for embora, vens para aqui, a D. Rosário tinha-lhe dito: se ficares sem casa, esta casa é tua, e Gertrudis a mesma coisa. Se estás arrependido do que me prometeste, o melhor é esqueceres-te disso e pores outra cara, disse-lhe ela um dia, eu não te pedi nada. E ele, admirado: que é que eu te prometi? Vivermos juntos, disse ela. E ele: ah, isso, não te preocupes, Amalia. Como é que tinha feito as pazes com ele, como é que se tinha juntado outra vez com ele? Uma vez contou todas as palavras que Ambrosio tinha dito nesse domingo e não chegavam a cem. Estava à espera de que ela tivesse a criança para a deixar? Não, Amalia deixá-lo-ia a ele antes disso. Procuraria casa, não o veria nunca mais, que doce seria a vingança quando ele viesse a chorar pedir-lhe perdão: rua, não preciso de ti, some-te.

 

Continuava a engordar, e a senhora passava a vida a falar da viagem; mas quando é que partia? Não sabia exactamente quando, mas em breve, Amalia. Uma noite ouviu-a a discutir em altos gritos com a Menina Queta. Estava com tantas dores que não se levantou para espreitar: sofri muito, todos lhe tinham dado pontapés, não tenho razões para ter consideração por ninguém. Vais-te tramar, dizia a menina, o verdadeiro pontapé é agora que o vais apanhar, doida. Uma manhã, ao voltar do mercado, viu um carro à porta, era Ambrosio. Aproximou-se dele pensando: que virá ele dizer-me? Mas ele recebeu-a levando um dedo à boca: chiu, não entres, vai-te embora. D. Fermín estava lá em casa com a senhora. Ela foi-se sentar na praceta da esquina: nunca mudaria, continuaria toda a vida com as suas cobardias. Odiava-o, sentia repulsa por ele, Trinidad era mil vezes melhor. Quando viu o carro partir, entrou em casa e a senhora parecia uma fera. Dizia palavrões, fumava, empurrava as cadeiras e, ao ver Amalia, que é que estás para aí a fazer a olhar para mim como uma idiota, vai para a cozinha. Foi-se fechar no seu quarto, ressentida. Nunca me tinha insultado, pensava. Adormeceu. Quando saiu para a salinha, a senhora não estava. Voltou ao anoitecer, arrependida por ter gritado com ela. Estava nervosa, Amalia, um filho da puta tinha-a feito perder as estribeiras. Que se fosse já deitar, não te preocupes com o jantar.

 

Nessa semana sentiu-se pior. A senhora passava o dia na rua, ou no quarto a falar sozinha, com um mau humor terrível. Quinta-feira de manhã estava a agachar-se para apanhar um secador quando sentiu que os ossos se lhe partiam e caiu no chão. Tentava levantar-se e não conseguia. Foi-se arrastando até ao telefone: é agora, é agora, menina, e a senhora não estava em casa, as dores, as pernas molhadas, estou a morrer. Mil anos depois a senhora e a menina entraram em casa e viu-as como se fosse em sonhos. Fizeram-na descer as escadas quase em peso, meteram-na no carrinho e levaram-na para a maternidade: não tenhas medo, ainda não ia nascer, viriam visitá-la, voltariam, sossega, Amalia. As dores vinham-lhe muito seguidas, havia um cheiro a terebintina que fazia náuseas. Queria rezar e não conseguia, ia morrer. Tinham-na posto numa cama e uma velha com pêlos no pescoço tirava-lhe a roupa e ralhava com ela. Pensou em Trinidad à medida que sentia que lhe rasgavam os músculos e lhe enfiavam uma faca entre a cintura e as costas.

 

Quando acordou, sentia o corpo em chaga e uma fogueira no estômago. Não tinha forças para gritar, pensava já morri. Umas bolas tépidas fechavam-lhe a garganta e não conseguia vomitar. Pouco a pouco foi reconhecendo o quarto cheio de camas, as caras das mulheres, o tecto altíssimo e sujo. Estás a dormir há três dias, disse-lhe a vizinha da direita, e a da esquerda: davam-te comida por uns tubos. Salvaste-te por milagre, disse-lhe uma enfermeira, e a tua filhinha também. O médico que a veio ver: cuidadinho não tivesse mais filhos, só faço milagres uma vez por cada doente. Depois uma Irmã que era uma jóia trouxe-lhe um vultozinho que mexia: pequenina, cabeluda, ainda não tinha aberto os olhos. Passou-lhe a sede, a dor, e sentou-se na cama a dar-lhe de mamar. Sentiu cócegas no mamilo e desatou a rir como doida. Não tens família?, perguntou-lhe a da esquerda, e a da direita: vá lá que tu salvaste-te, às que não tinham família atiravam-nas para a vala comum. Não tinha vindo ninguém visitá-la? Não. Uma senhora muito branca, de cabelos pretos e olhos grandes, não tinha vindo? Não. Nem uma menina alta, bem feita, de cabelos ruivos? Não, ninguém. Mas porquê, mas como? Nem tinham telefonado a perguntar por ela? Tinham-se portado assim, tinham-na deixado para ali sem a virem ver, sem perguntarem por ela? Mas não se enfureceu nem se lamentou. As cócegas subiam e desciam-lhe pelo corpo todo e o vultozinho continuava atarefado, queria mais. Aquelas não tinham aparecido?, e morria de riso: que é que tu estavas a chupar tanto se já não havia mais, pateta.

 

Ao sexto dia, o médico disse-lhe: já estás boa, vou-te dar alta. Toma cuidado contigo, tinha ficado muito fraca com a operação, descansa pelo menos um mês. E filhos, nunca mais, já sabia. Levantou-se e deu-lhe uma tontura. Tinha emagrecido, estava pálida e com os olhos encovados. Despediu-se das vizinhas de cama, da Irmãzinha, pé ante pé saiu para a rua e à porta um polícia mandou parar um táxi para ela. A tia ficou com a boca a tremer quando a viu aparecer em Chacra Colorada com a menina nos braços. Abraçaram-se, choraram juntas. A senhora tinha sido tão ingrata que nem telefonou a perguntar por ti nem te foi ver? Pois foi, e ela tão parva que sempre a tinha ajudado e não tinha querido deixá-la. E o tipo também não apareceu? Também não, tia. Quando estiveres boa, vamos à polícia, disse a tia, hão-de fazer com que ele a perfilhe e te dê dinheiro. A casinha tinha três quartos, num dormia a tia e nos outros os hóspedes, que eram quatro. Um casal de velhinhos, que passavam o dia a ouvir rádio e a cozinhar num fogareiro que enchia a casa de fumo; ele tinha sido empregado dos correios e tinha-se reformado há pouco. Os outros eram dois ayacuchanos, um vendia gelados D’Onofrio e o outro era alfaiate. Não comiam na pensão, à noite punham-se a cantar em quíchua. A tia pôs-lhe um colchão no quarto, e Amalita dormia com ela. Esteve uma semana quase sem sair da cama, com vómitos sempre que se levantava. Não se aborrecia. Brincava com Amalita, punha-se a observá-la, falava-lhe ao ouvido: iam pedir o ordenado àquela ingrata e dizer-lhe que não ia trabalhar mais para casa da senhora, e, se o desgraçado aparecesse um dia, põe-te a mexer, adeuzinho, não precisamos de ti. Se calhar, arranjo-te emprego numa merceariazinha de umas amigas de Brena, dizia a tia.

 

Oito dias depois tinham-lhe voltado as forças e a tia emprestou-lhe dinheiro para o autocarro: pede-lhe o dinheiro até ao último centavo, Amalia. Quando me vir arrepende-se,,pensava, há-de pedir-me que fique. Não sejas parva outra vez. Chegou à General Garzón com a menina ao colo e à porta do prédio encontrou-se com Rita, a criada coxa do primeiro andar. Sorriu-lhe e pensou: que tenho eu de especial, que é que lhe deu? Olhava-a de boca aberta, como se estivesse a pontos de desatar a correr. Mudei assim tanto que já não me conheces?, riu-se Amalia, sou a do segundo andar, era a Amalia. Puseram-te em liberdade?, perguntou Rita, tinham-na apanhado? A polícia, apanharam-me? Se me vêem contigo, não me vão levar também? Porque só faltava isso, tinham gritado com ela, tinham-lhe perguntado a vida toda, e a mesma coisa à da frente e à do terceiro e à do quarto, com maus modos, onde está, onde foi, onde é que se escondeu, porque é que desapareceu a tal Amalia. Com maus modos, com palavrões, a ameaçar, confessa senão vais dentro. Como se nós soubéssemos alguma coisa, disse Rita. Deu um passo em direcção a Amalia e baixou a voz: onde é que te encontraram, que te disseram, Amalia confessou-lhes quem a tinha morto? Mas Amalia tinha-se apoiado à parede e balbuciava segura-a, segura-a. Rita pegou em Amalita, que foi, que tinha, que te fizeram? Mandou-a entrar para a cozinha do primeiro andar. Ainda bem que os senhores não estão, senta-te, bebe água. Morta?, repetia Amalia, e Rita, com Amalita ao colo, não grites assim, não te ponhas a tremer assim, tinham morto a D. Hortênsia? Rita corria à janela, tinha fechado a porta à chave, por fim devolveu-lhe a criança, cala-te, olha que os vizinhos ouvem tudo. Mas onde é que tinha estado, como é que não tinha sabido, pois se tinha vindo nos jornais, se apareciam tantas fotografias da senhora; na maternidade não falavam, não tinha ouvido na rádio? E Amalia, sentindo os dentes a entrechocarem-se, uma coisa quente, Rita, um chá, qualquer coisa. Rita arranjou-lhe uma chávena de café. Safaste-te, que mais queres?, dizia, vinham os polícias, os jornalistas e batiam à porta e perguntavam, iam-se embora e vinham outros, todos queriam saber onde estavas, alguém há-de saber quando é que ela se foi embora, deve ter feito alguma coisa para se esconder, vá lá, que não te encontraram, Amalia. Ela bebia o café, aos golinhos, dizia sim, muito obrigada, Rita, e embalava Amalita, que estava a chorar. Iria embora, esconder-se-ia, sim, nunca mais voltaria, e Rita: se te apanham, tratam-te pior do que a nós, a ela sabe Deus o que fariam. Amalia levantou-se, muito obrigada mais uma vez, e saiu. Julgou que ia desmaiar, mas, ao chegar à esquina, tinha-lhe passado o enjoo, e caminhava depressa, esmagando Amalita contra o peito para não lhe ouvir o choro. Um táxi que não parou, outro, ela continuava a trotar, eram polícias, aquele é que era, aquele ia apanhá-la ao passar ao lado dela, e por fim parou um. A tia ralhou-lhe quando ela lhe pediu dinheiro para o táxi. Podias vir de autocarro, ela não era rica. Foi-se fechar no quarto. Tinha tanto frio que se abrigou com os cobertores da tia e só ao entardecer deixou de fingir que dormia e respondeu às perguntas: não, a senhora não estava, tia, tinha ido de viagem. Sim, claro que voltaria lá para receber; está visto que não se deixava roubar, tia. E pensava: tenho de telefonar. Abriu a mala da tia, tirou um sol e foi à mercearia da esquina. Não se tinha esquecido do número, lembrava-se perfeitamente dele. Mas respondeu-lhe uma voz de menina que não conhecia: não, aqui não vivia nenhuma menina Queta. Voltou a telefonar e veio um homem: não era ali, não a conheciam, tinham mudado há pouco tempo para ali, talvez fosse a antiga inquilina. Apoiou-se a uma árvore, para recobrar o fôlego. Sentia-se tão assustada, pensava o mundo está doido. Por isso é que ela não tinha ido à maternidade, era aquele o crime de que falavam na rádio, e andavam à procura dela. Levá-la-iam, far-lhe-iam perguntas, bater-lhe-iam, matá-la-iam como a Trinidad.

 

Passou uns dias sem sair de casa, a ajudar a tia na lida da casa. Não abria a boca, pensava mataram-na, morreu. O coração parava-lhe quando batiam à porta. Ao terceiro dia, foi com a tia à igreja baptizar Amalita, e quando o padre perguntou como se chama?, ela respondeu: Amalita Hortênsia. Passava as noites em claro, abraçada a Amalita, sentindo-se vazia, culpada, desculpe-me por ter pensado mal da senhora, como podia ela saber, minha senhora, pensando que seria feito da Menina Queta. Mas ao quarto dia reagiu: estás a fazer uma tempestade num copo de água, tanto medo para quê, parva? Iria à polícia, estive na maternidade, averiguem, veriam que era verdade e deixá-la-iam em paz. Não: insultá-la-iam, não acreditariam. Ao entardecer, a tia mandou-a comprar açúcar e quando virava a esquina uma figura afastou-se do poste e cortou-lhe o caminho, Amalia deu um grito: há horas que estou à tua espera, disse Ambrosio. Deixou-se ir contra ele, incapaz de falar. Esteve assim, a engolir as lágrimas e o ranho, com a cara no peito dele, e Ambrosio consolava-a. As pessoas olhavam para eles, não chores, havia três semanas que a procurava, e o filhinho, Amalia? A filhinha, soluçava ela, sim, tinha nascido bem. Ambrosio puxou de um lenço, limpou-lhe a cara, fê-la espirrar, levou-a a um café. Sentaram-se numa mesinha do fundo. Ele tinha-lhe passado o braço por cima do ombro, deixava-a chorar dando-lhe palmadinhas. Está bem, estava bem, Amalia, já chega. Chorava pela D. Hortênsia? Sim, e por se sentir tão sozinha, tão assustada. A polícia anda à minha procura, como se ela soubesse alguma coisa, Ambrosio. E porque julgava ela que ele a tinha abandonado? E como é que eu te havia de ir ver à maternidade, tonta, pois eu sabia alguma coisa, havia de adivinhar? Tinha ido esperá-la à Arenales e não apareceste, quando apareceu no jornal aquilo da senhora, andei à tua procura como doido, Amalia. Tinha ido à casa onde vivia a tua tia antigamente, em Surquillo, e dali mandaram-no a Balconcillo, e dali a Chacra Colorada, mas só sabiam a rua, o número não. Tinha ido lá, tinha perguntado por toda a pane, todos os dias, pensando ela há-de vir à rua, hei-de encontrá-la. Até que enfim, valha-nos isso, Amalia. E a polícia?, perguntou Amalia. Não vás, disse ele. Tinha perguntado a Ludovico e ele achava que te iam meter na cadeia pelo menos um mês, a fazer-lhe perguntas, a fazer averiguações. O melhor é nem lhe porem a vista em cima, o melhor é ela sair de Lima por uns tempos até nos esquecermos dela. E como é que ia, fazia beicinho Amalia, para onde é que havia de ir? E ele: comigo, os dois. Ela olhou-o nos olhos: sim, Amalia. Parecia a sério, parecia que ele já tinha decidido aquilo. Olhava muito sério: julgas que vou deixar que te prendam nem que seja um dia?, com uma voz muito grave, amanhã partiriam. E o teu emprego? Isso era o menos, trabalharia por conta própria, ir-se-iam embora. Ela não tirava os olhos dele, tentando acreditar, mas não conseguia. Viver juntos? Amanhã? Para a montanha, disse Ambrosio, e aproximou a cara dela: por uns tempos, voltariam quando já não se lembrarem de ti. Ela sentiu que tudo ruía outra vez: Ludovico tinha-lhe dito? Mas porque é que andavam à procura dela, que tinha ela feito, que é que ela sabia? Ambrosio abraçou-a: correria tudo bem, partiriam amanhã no comboio, depois tomariam um autocarro. Na montanha, ninguém a encontraria. Âninhou-se contra ele: fazia tudo isto por gostar dela, Ambrosio? Claro, pateta, que julgas tu? Na montanha havia um parente de Ludovico, ia trabalhar com ele, ele ajudá-los-ia. Ela sentia-se apatetada de susto e de espanto. Não digas nada à tua tia, não diria nada, que ninguém soubesse, ninguém saberia. Não fosse às vezes, e ela não, claro, com certeza. Conhecia Desamparados? Conhecia, sim. Acompanhou-a até à esquina, deu-lhe dinheiro para o táxi, sais à rua com um pretexto qualquer e vens ter comigo sossegadinha. Passou a noite toda de olhos abertos, a ouvir a respiração da tia e os roncos cansados que saíam do quarto dos velhos. Vou outra vez à senhora receber, disse no dia seguinte à tia. Tomou um táxi e, quando chegou a Desamparados, Ambrosio mal olhou para Amalita Hortênsia. Era esta? Era. Fê-la entrar na estação, esperar sentada num banco entre serranos com embrulhos. Ele trouxera duas grandes malas e eu nem um lenço, pensava Amalia. Não se sentia satisfeita por partir, por ir viver com ele; sentia-se estranha.

 

- Já não era sem tempo, Ambrosio - disse Ludovico. - Basta um tipo estar fodido para os amigos lhe virarem as costas.

 

- Julgas que não teria vindo ver-te antes? - perguntou Ambrosio. - Só soube hoje de manhã, Ludovico, porque encontrei o Hipólito na rua.

 

- Esse filho da puta contou-te? - perguntou Ludovico. - Mas não te deve ter contado tudo.

 

- Que é feito do Ludovico, que é que aconteceu? - perguntou Ambrosio. - Já faz um mês que foi a Arequipa e até agora nem uma palavra.

 

- Está coberto de ligaduras dos pés à cabeça no Hospital da Polícia - disse Hipólito. - Os Arequipenhos puseram-no em papas.

 

Ainda era de madrugada quando o que dava as ordens deu um pontapé na porta do barracão e gritou: vamos embora. Havia estrelas no céu, a cardadora ainda não estava a funcionar, fazia um certo frio. Trifulcio soergueu-se na tarimba, gritou estou pronto e insultou mentalmente a mãe do que dava as ordens. Dormia vestido, só tinha de vestir a camisola, o casaco e os sapatos. Saiu e foi ao cano molhar a cara, mas a brisa desencorajou-o e só molhou a boca. Alisou os cabelos crespos, limpou a remela com os dedos. Voltou ao barracão e Téllez, Urondo e o capataz Martínez já estavam levantados, a protestar por causa da madrugada. Havia luzes na casa da herdade e a camioneta estava à porta. As criadas da cozinha estenderam-lhes umas chávenas almoçadeiras de café quente, que beberam rodeados de cães rosnadores. D. Emilio veio despedir-se deles, de roupão e chinelos: bom, rapazes, que se portassem bem por lá. Não se preocupe, D. Emílio, portar-se-iam bem, senador. Entrem, disse o que dava as ordens. Téleez sentou-se à frente e atrás Trifulcio, Urondo e o capataz Martínez. Querias ir à janela, mas eu entrei pela outra porta e apanhei-ta, Urondo, pensou Trifulcio. Não se sentia bem, doía-lhe o corpo. Depressa, para Arequipa, disse o que dava as ordens. E arrancou.

 

- Luxações, contusões, derrames - disse Ludovico. - Quando me vem ver, o médico dá-me umas destas séries de remédios, Ambrosio. Que filho da puta de mau bocado que eu estou a passar.

 

- Eu e Amalia estávamos precisamente a lembrar-nos, no domingo - disse Ambrosio -, da pouca vontade que tinhas de ir a Arequipa.

 

- Agora pelo menos consigo dormir - disse Ludovico. - Nos primeiros dias até as unhas me doíam, Ambrosio.

 

- Mas habilitaste-te, consola-te com isso - disse Ambrosio. Foste espancado em serviço e agora têm de te recompensar.

 

- E quem são esses tipos da Confederação? - perguntou Téllez.

 

- Foi em serviço e não foi - disse Ludovico. - Mandaram-nos mas não nos mandaram. Sabes lá a balbina em que aquilo deu, Ambrosio.

 

- Contenta-te em saber que são uns sacanas - riu-se o que dava as ordens. - E que lhes vamos foder a manifestação.

 

- Eu só perguntei para arranjar assunto e animar um bocado a viagem - disse Téllez. - Isto está aborrecidíssimo.

 

Sim, pensou Trifulcio, aborrecidíssimo. Tentava dormir, mas a camioneta dava saltos e ela batia com a cabeça no tejadilho e com o ombro na porta. Tinha de ir agachado, preso ao encosto da frente. Tinha-se sentado ao meio, para foder Urondo, e quem se tinha fodido era ele. Porque Urondo, encaixado entre Trifulcio e o capataz Martínez, que lhe amorteciam os solavancos, ressonava. Trifulcio olhou pela janela: areais, a serpentina preta a perder-se entre nuvens de poeira, o mar e as gaivotas que se escondiam. Estás a ficar velho, pensou, uma simples madrugada enferruja-te logo o corpo todo.

 

- Uns milionários que dantes andavam a lamber as botas ao Odría e que agora lhe querem lixar a paciência - disse o que dava ordens. - A Confederação é isso.

 

- E porque é que o Odría permite que façam manifestações contra ele? - perguntou Téllez. - Anda muito brando. Dantes, aos que abriam a boca, calabouço e trancada. Porque é que agora já não faz isso?

 

- O Odría deu-lhes o pé e eles tomaram logo a mão - disse o que dava as ordens. - Mas não vão mais longe. Em Arequipa vão ver como é.

 

Sabujo, pensou Trifulcio, olhando para a nuca rapada de Téllez. Que sabia ele de política, que é que lhe interessava a política? Fazia-lhe perguntas só para o adular. Puxou de um cigarro e para o acender teve de empurrar Urondo. Abriu os olhos sobressaltados: que é, já chegámos? Qual chegámos, ainda agora tinham passado por Chala, Urondo.

 

- É uma história sem ponta por onde se lhe pegue, porque era tudo mentira - disse Ludovico. - Saiu tudo ao contrário. Toda a gente nos enganou, até D. Cayo.

 

- Também não exageres - disse Ambrosio. - Se houve alguém que se lixasse com aquilo de Arequipa, foi ele. Perdeu o Ministério e teve de fugir do Peru.

 

- O teu chefe deve estar satisfeito com o que aconteceu, não? perguntou Ludovico.

 

- Claro que está, D. Fermín mais que ninguém - disse Ambrosio. - A ele não lhe importava tanto lixar o Odría como lixar D. Cayo. Teve de se esconder durante uns dias, julgava que o iam prender.

 

A camioneta entrou em Camaná por volta das sete. Começava a escurecer e havia pouca gente na rua. O que dava as ordens levou-os para defronte de um restaurante. Apearam-se, espreguiçaram-se. Trifulcio sentia cãibras e arrepios. O que dava as ordens escolheu a ementa, pediu cervejas e disse: vou fazer averiguações. Que é que tens, pensou Trifulcio, nenhum destes ficou tão cansado como tu. Téllez, Urondo e o capataz Martínez comiam dizendo piadas. Ele não tinha fome, apenas sede. Bebeu um copos de cerveja sem respirar e lembrou-se de Tomasa, de Chincha. Passamos a noite aqui?, perguntava Téllez, e Urondo: haveria casa de pegas em Camaná? Com certeza, disse o capataz Martínez, igrejas e casas de pegas era coisa que nunca faltava em lado nenhum. Por fim perguntaram-lhe: que tens, Trifulcio? Nada, estou um bocado constipado. O que ele tem é que está velho, disso Urondo. Trifulcio riu-se, mas lá por dentro odiou-o. Quando estavam a comer o doce, tornou o que dava as ordens, de mau humor: que confusão era esta, havia alguém que percebesse esta balbúrdia?

 

- Não há confusão nenhuma - disse o subprefeito. - Foi o ministro Bermúdez em pessoa que mo explicou perfeitamente pelo telefone.

 

- Há-de aparecer aí um camião com pessoal do senador Arévalo, subprefeito - disse Cayo Bermúdez. - Atenda-os em tudo o que for preciso, faça favor.

 

- Mas o senhor Lozano só pediu quatro ou cinco a D. Emílio disse o que dava as ordens. - Qual camião? O ministro endoideceu?

 

- Cinco homens para dispersar uma manifestação - perguntou o subprefeito. - Há alguém que está doido, mas não o senhor Bermúdez. Disse-me um camião, vinte ou trinta tipos. Eu, pelo sim, pelo não, arranjei camas para quarenta.

 

- Tentei falar com D. Emílio e já não está na herdade, foi para Lima - disse o que dava as ordens. - E com o senhor Lozano e já não está na prefeitura. Ah, caralho.

 

- Não se preocupe, nós os cinco chegamos e sobramos - riu-se Téllez. - Beba uma cervejinha, senhor.

 

- O senhor não nos pode arranjar reforços? - perguntou o que dava as ordens.

 

- Isso também eu queria - disse o subprefeito. - Os Camanejos são uns preguiçosos. Aqui o Partido Restaurador sou eu sozinho.

 

- Bom, veremos como é que se há-de resolver este sarilho - disse o que dava as ordens. - Nada de pegas, nada de continuar a beberricar. Vamos dormir. Têm de estar fresquinhos amanhã.

 

O subprefeito tinha-lhes arranjado alojamento no comissariado e, logo que chegaram, Trifulcio atirou-se para o beliche e tapou-se com um cobertor. Téllez, Urondo e o capataz Martínez tinham trazido uma garrafa às escondidas e passavam-na de cama em cama, conversando. Ele escutava-os: se tinham pedido um camião, é porque a coisa havia de ser séria, dizia Urondo. Ora, o senador Arévalo disse um trabalho fácil, rapazes e até agora nunca nos enganou, dizia o capataz Martínez. Aliás, se qualquer coisa corresse mal, lá estavam os chuis, dizia Téllez. Sessenta, sessenta e cinco?, pensava Trifulcio, quantos é que já terei?

 

- As coisas começaram-me a correr mal logo que apanhámos o avião - disse Ludovico. - Dava tantos solavancos que fiquei mal disposto e vomitei para cima do Hipólito. Cheguei a Arequipa numa miséria. Tive de me recompor com uns piscozinhos.

 

- Quando os jornais contavam aquilo do teatro, que havia mortos, ai o caraças, pensava eu - disse Ambrosio. - Mas o teu nome não aparecia entre as vítimas.

 

- Mandaram-nos para o matadouro sabendo-o perfeitamente disse Ludovico. - Mal ouço falar em teatro, sinto logo os murros. E o aperto, Ambrosio, aquele aperto tremendo.

 

- Como é que foi possível aquele sarilho todo - disse Ambrosio.

- Porque toda a cidade se revoltou contra o Governo, não foi, Ludovico?

 

- Sim - disse o senador Landa. - Atiraram granadas no teatro e há mortos. O Bermúdez está perdido, Fermín.

 

- Se o Lozano queria um camião, porque é que disse a D. Emilio que bastavam quatro ou cinco? - maldisse, pela décima vez, o que dava ordens. - E onde estão o Lozano e D. Emílio, porque é que não se pode falar pelo telefone com ninguém?

 

Tinham saído de Camaná ainda com noite, sem tomar o pequeno-almoço, e o que dava ordens não fazia outra coisa que não fosse praguejar. Passaste a noite a tentar telefonar e estás a morrer de sono, pensava Trifulcio. Ele também não tinha conseguido dormir. O frio aumentava à medida que a camioneta avançava pela serra acima. Trifulcio cabeceava de vez em quando e ouvia Téllez, Urondo e o capataz Martínez passando cigarros uns aos outros. Estás velho, pensava, qualquer dia morres. Chegaram a Arequipa às dez. O que dava as ordens levou-os a uma casa que tinha um cartaz com letras vermelhas : Partido Restaurador. A porta estava fechada. Murros, toques de campainha, ninguém abria. Na estreita ruela, as pessoas entravam nas lojas, o sol não aquecia, havia ardinas a apregoarem jornais. O ar estava muito limpo, o céu via-se muito longe. Por fim veio abrir um rapazito descalço, a bocejar. Porque é que a sede do partido estava fechada, repreendeu-o o que dava as ordens, se já eram dez horas? O rapazinho olhou-o espantado: estava sempre fechada, só abria às quintas-feiras à noite, quando vinham o Dr. Lama e os outros senhores. Porque é que chamavam «a cidade branca» a Arequipa se não havia nenhuma casa branca?, pensava Trifulcio. Entraram. Secretárias sem papéis, cadeiras velhas, fotografias de Odría, cartazes, Viva a Revolução Restauradora, Saúde, Educação, Trabalho. Odría é Pátria. O que dava as ordens precipitou-se para o telefone: que é que tinha acontecido, onde é que estavam as pessoas, porque é que não estava ninguém à espera deles. Téllez, Urondo e o capataz Martínez tinham fome: podiam ir tomar o pequeno-almoço, senhor? Voltem daqui a cinco minutos, disse o que dava as ordens. Deu-lhes uma libra e arrancou na camioneta. Encontraram um café com mesinhas e toalhas brancas, pediram café com leite e sanduíches. Olhem, disse Urondo, Todos ao Teatro Municipal Hoje à Noite, Todos Com a Confederação, tinham feito a sua propagandazinha. Terei o mal das montanhas?, pensava Trifulcio. Respirava e era como se o ar não lhe entrasse no corpo.

 

- Arequipa é bonita, limpa - disse Ludovico. - Umas sapas na rua nada más. Coradotas, claro.

 

- Que te fez o Hipólito? - perguntou Ambrosio. - A mim não me contou nada. Disse só isto correu mal, irmão, e foi-se embora.

 

- Pesa-lhe a consciência da mariquice - disse Ludovico. - Mas que grande cobardola, Ambrosio.

 

- E pensar que eu podia ter lá estado, Ludovico - disse Ambrosio. - Ainda bem que D. Fermín não foi.

 

- Sabes quem é que encontrámos como chefão do posto de Arequipa? - perguntou Ludovico. - O Molina.

 

- O índio Molina? - perguntou Ambrosio. - Mas ele não estava em Chiclayo?

 

- Lembras-te dos ares que ele se dava com os que não eram do quadro, como nós? - perguntou Ludovico. - Agora já não é a mesma pessoa. Recebeu-nos como se tivéssemos sido amigos íntimos.

 

- Sejam bem-vindos, colegas, entrem - disse Molina. - Os outros ficaram na Plaza a perseguir as Arequipenhas?

 

- Quais outros? - perguntou Hipólito. - Só viemos nós, o Ludovico e eu.

 

- Quais outros, o quê? - disse Molina. - Os outros vinte e cinco que o senhor Lozano me prometeu.

 

- Ah, sim, ele disse que, se calhar, vinha também pessoal de Puno e de Cuzco - disse Ludovico. - Ainda não chegaram?

 

- Falei ainda agora para Cuzco e o Cabrejitos não me disse nada

 

- disse Molina. - Não percebo. Aliás, não temos muito tempo. A reunião da Confederação é às sete.

 

- Os enganos, as mentiras, Ambrosio - disse Ludovico. - As confusões, as mariquices.

 

- Estou a perceber, é uma emboscada - disse D. Fermín. O Bermúdez esteve à espera de que a Confederação crescesse e agora quer dar-nos o pontapé. Mas porque é que escolheu Arequipa, D. Emílio?

 

- Porque há-de ser um bom golpe de publicidade - disse D. Emílio Arévalo. - A revolução do Odría foi em Arequipa, Fermín.

 

- Quer mostrar ao país que Arequipa é odriista - disse o senador Landa. - O povo arequipenho impede a reunião da Confederação. A oposição cai no ridículo e o Partido Restaurador fica com o campo livre para as eleições de cinquenta e seis.

 

- Vai mandar vinte e cinco agentes de Lima - disse D. Emílio Arévalo. - E a mim pediu-me uma camião de mestiços bons para a tareia.

 

- Preparou a bomba com todo o cuidado - disse o senador Landa. - Mas desta vez não vai ser como foi com o Espina. - Desta vez a bomba vai-lhe rebentar nas mãos.

 

- O Molina queria falar com o senhor Lozano e ele tinha levado sumiço - disse Ludovico. - E D. Cayo a mesma coisa. O secretário dele respondia não está, não está.

 

- Mandar-te reforços, índio? - perguntou Cabrejitos. - Deves estar a sonhar. Ninguém me avisou, e, mesmo que quisesse, não podia. O meu pessoal anda afogado em trabalho.

 

- O índio Molina arrancava os cabelos - disse Ludovico.

 

- Vá lá que o senador Arévalo nos manda ajuda - disse Molina.

 

- Cinquenta, parece, e dos bons. Com eles, com vocês e com o pessoal da corporação vamos fazer o que for possível.

 

- Gostava de provar aqueles pimentões recheados de Arequipa, Ludovico - disse Hipólito. - Aproveitando estarmos cá.

 

Depois de tomarem o pequeno-almoço, sem obedecer às ordens, foram dar um pequeno passeio pela cidade: ruazinhas, solzinho frio, casinhas com persianas e portões, paralelepípedos que brilhavam, padres, igrejas. As portas da Plaza de Armas pareciam os muros de uma fortaleza. Trifulcio aspirava o ar com a boca aberta e Téllez apontava para as paredes: que grande propaganda, aqueles da Confederação. Sentaram-se num banco da praça, defronte da fachada cinzenta da Catedral, e passou um carro com altifalante: Todos ao Teatro Municipal às Sete, Todos a Ouvir os Líderes da Oposição. Pelas janelas do carro atiravam panfletos que as pessoas apanhavam, folheavam e deitavam fora. A altitude, pensava Trifulcio. Tinham-lho dito: o coração parece um tambor e falta-te a respiração. Sentia-se como se tivesse estado a correr ou andado à pancada: o pulso acelerado, as narinas escancaradas, as veias duras. Ou, se calhar, a velhice, pensava Trifulcio. Não se lembravam do caminho para regressar e tiveram de perguntar. O Partido Restaurador?, perguntavam as pessoas, isso é de comer? Que grande partido o do Odría, ria-se o capataz Martínez, que nem sabem onde fica. Chegaram e o que dava as ordens repreendeu-os: julgavam que tinham vindo fazer turismo? Estavam dois tipos com ele. Um baixinho, de óculos e gravatinha, e outro amestiçado e fortalhaço, em manga de camisa, e o baixinho estava a descompor o que dava as ordens: tinham-lhe prometido cinquenta e mandavam cinco. Fossem lá brincar com outro.

 

- Telefone para Lima, doutor Lama, tente comunicar com D. Emílio, ou com o Lozano, ou com o senhor Bermúdez - disse o que dava as ordens. - Eu passei a noite a tentar e não consegui. Não sei, eu ainda percebo menos que o senhor. O senhor Lozano disse cinco a D. Emílio e cá estamos, doutor. Eles que lhe expliquem de quem foi o engano.

 

- Não é que tenhamos falta de gente, precisávamos era de especialistas, de tipos batidos - disse o Dr. Lama. - E, aliás, protesto por uma questão de princípios. Mentiram-me.

 

- Que é que importa que não tenham vindo mais, doutor? - disse o mestiçóide fortalhaço. - Vamos ao mercado, levantamos trezentos e deitamo-lhes o teatro abaixo mesmo assim.

 

- Tens confiança no pessoal do mercado ? - perguntou o que dava as ordens. - Não acredito muito em ti, Ruperto.

 

- Mais que confiança - disse Ruperto. - Eu tenho experiência. Levantamos o mercado em peso e caímos no Teatro Municipal como uma avalanche.

 

- Vamos ter com o Molina - disse o Dr. Lama. - O pessoal dele já deve ter chegado.

 

- E na prefeitura damos com os famosos gorilas do senador Arévalo - disse Ludovico. - Os cinquenta eram cinco, Ambrosio.

 

- Aqui há alguém que está a gozar com alguém - disse Molina.

- Isto não pode ser, senhor Prefeito.

 

- Estou a tentar falar com o ministro para lhe pedir instruções disse o prefeito. - Mas até parece que o secretário não me quer deixar falar com ele. Não está, já se foi embora, ainda não chegou. O Alcibíades, aquele efeminadozinho.

 

- Isto não é um mal-entendido, é uma sabotagem - disse o Dr. Lama. - São estes os seus reforços, Molina? Dois em vez de vinte e cinco? Ah, não, isso é que não.

 

- O Alcibíades é dos meus - disse D. Emílio Arévalo. - Mas a chave é o Lozano. É bastante compreensivo e odeia o Bermúdez. A esse é que vai ser preciso untar as mãos.

 

- Cinco pobres diabos, ainda por cima um deles velho e com falta de ar - disse Ludovico. - O senhor acha que nós e esses cinco vamos desfazer uma reunião? Nem que fôssemos super-homens, senhor Prefeito.

 

- Dar-lhe-emos o que for preciso - disse D. Fermín. - Eu falo com o Lozano.

 

- Vai ser preciso recorrer ao seu pessoal, Molina - disse o prefeito. - Não estava no programa, o senhor Bermúdez não queria que o pessoal de cá entrasse na dança. Mas não há outro remédio.

 

- Você não, Fermín - disse o senador Arévalo. - Você é da Confederação, oficialmente um inimigo do Governo. Eu sou do regime, em mim o Lozano tem mais confiança. Eu encarrego-me disso.

 

- Com quantos homens dos seus podemos contar, Molina? perguntou o Dr. Lama.

 

- Entre oficiais e ajudantes, uns vinte - disse Molina. - Mas são do quadro e, sem mais nem menos, não vão aceitar. Hão-de querer subsídio de risco, gratificações.

 

- Prometa-lhes o que eles quiserem, é preciso deitar essa reunião abaixo seja como for - disse o Dr. Lama. - Prometi isso e hei-de cumprir, Molina.

 

- A verdade é que nos estamos a preocupar sem razão - disse o prefeito. - Nem sequer hão-de encher o teatro. Quem é que conhece cá os senhores da Confederação?

 

- Nós bem sabemos que só lá hão-de ir curiosos e que os curiosos, ao primeiro incidente, desatam a fugir - disse o Dr. Lama. Mas é uma questão de princípios. Enganaram-nos, prefeito.

 

- Vou continuar a tentar comunicar com o ministro - disse o comissário. - Se calhar, o senhor Bermúdez mudou de ideias e é preciso deixá-los fazerem a reunião.

 

- Não se pode arranjar um comprimido ou qualquer coisa para um dos meus homens? - perguntou o que dava as ordens. O mestiço, doutor. Está quase a desmaiar com o mal das montanhas.

 

- E se não tinham gente porque é que se meteram no teatro? perguntou Ambrosio. - Sendo tão poucos, era uma loucura, Ludovico.

 

- Porque nos contaram uma história da carochinha e nós a engolimos - disse Ludovico. - Estávamos tão fiados que até fomos comer os pimentões recheados que o Hipólito queria.

 

- À Tiabaya, que é onde os fazem melhor - disse Molina. Molhem-nos em chicha de milho vermelho, e voltem lá para as quatro para os levarmos à sede do Partido Restaurador. É o local da reunião.

 

- A razão? - perguntou D. Emilio Arévalo. - Você sabe-a muito bem, Lozano. Enterrar o Bermúdez, é claro.

 

- Diga antes dar uma ajuda à Confederação, senador - disse Lozano. - Desta vez não lhe posso ser útil. Não posso fazer uma coisa dessas a D. Cayo, o senhor compreende. É o ministro, o meu superior imediato.

 

- Claro que pode, Lozano - disse D. Emilio Arévalo. - Você e eu, podemos. Tudo depende de nós os dois. O pessoal não chega a Arequipa e o plano de Bermúdez vai por água abaixo.

 

- E depois, senador? - perguntou Lozano. - Não é a si que D. Cayo vai pedir contas. É mas é a mim. Eu sou subordinado dele.

 

- Você julga que eu quero servir a Confederação e aí é que está enganado, Lozano - disse D. Emilio Arévalo. - Não, eu quero é servir o Governo. Sou homem do regime, inimigo da Confederação. O regime tem problemas porque lhe cresceram ramos podres, e o pior deles é o Bermúdez. Está a perceber, Lozano? Trata-se de servir o presidente, não é a Confederação.

 

- O presidente tem conhecimento? - perguntou Lozano. Nesse caso, tudo muda de figura, senador.

 

- Oficialmente, o presidente não pode ter conhecimento - disse D. Emilio Arévalo. - É para isso que nós, os amigos do presidente, cá estamos, Lozano.

 

A chicha fez-me pior, pensou Trifulcio. O sangue tinha-lhe parado, tinha-se posto a ferver. Mas disfarçava, estendendo a mão para o enorme copo e sorrindo a Téllez, Urondo, Ruperto e ao capataz Martínez: à vossa. Eles já estavam alegretes. O mestiçóide fortalhaço armava em pessoa culta, na casa do lado tinha dormido Bolívar, as lojas de chicha de Yanahuara eram as melhores do mundo, e ria-se com suficiência: em Lima não havia disso, pois não? Tinham-lhe explicado que vinham de Iça, mas ele não percebia. Trifulcio pensou: se em vez de um, tivesse tomado dois comprimidos, não me teria voltado a falta de ar. Olhava para as paredes tisnadas, para as mulheres a corrupiarem com travessas de pratos picantes do fogão para a mesa, e tomava o pulso. Não tinha parado, continuava a circular, mas devagarinho. E fervia, isso é que fervia, lá estavam as ondas quentes a baterem-lhe contra o peito. Que a noite chegasse, que acabasse o trabalhinho do teatro, regressar a Iça de uma vez. Não está na hora de ir ao mercado?, perguntou o capataz Martínez. Ruperto olhou para o relógio: tinham tempo, ainda não eram quatro. Pelas portas abertas da taberna, Trifulcio via a praceta, os bancos e as árvores, uns miudinhos a jogar ao pião, os muros brancos da igrejinha. Não era a altitude, era a velhice. Passou um carro com altifalantes, Todos ao Municipal, Todos com a Confederação, e Ruperto largou um caralho: já vão ver. Quieto, serrano, guarda isso para logo. Como vai essa falta de ar, avôzinho?, perguntou Ruperto. Melhor, neto, sorriu Trifulcio. E odiou-o.

 

- Tudo bem, senador, só que tomei as minhas precauções - disse Lozano. - Irão, mas menos. E os outros vão chegar muito tarde. Conto consigo para o caso...

 

- Conte comigo para tudo, Lozano - disse D. Emilio Arévalo.

- E, além disso, conte com os agradecimentos da Confederação. Esses cavalheiros julgam que é um favor que lhes fazemos. Pois que julguem, tanto melhor para si.

 

- Ainda não se pode comunicar com Arequipa? - perguntou Cayo Bermúdez. - É o cúmulo, doutorzinho.

 

- Não gostei nada dos famosos pimentões - disse Hipólito. Estou todo a arder, Ludovico.

 

- Só consegui convencer dez - disse Molina. - Os outros, nicles, nem pensar em metermo-nos lá vestidos à civil, por mais subsídios de risco, que nos dêem. Que acha, prefeito?

 

- Dez, mais os dois de Lima e os cinco do senador são dezassete - disse o prefeito. - Se for verdade que o Lama levanta o mercado, a coisa pode resultar. Dezassete tipos com tomates podem armar barafunda lá dentro, porque é que não hão-de poder? Acho que sim, Molina.

 

- Eu sou tolo, mas não tão tolo como esses cavalheiros julgam, senador - disse Lozano. - Eu nunca aceito cheques.

 

- Está, Arequipa? - disse Cayo Bermúdez. - Molina? Que é que houve, Molina, onde diabo se meteu você?

 

- Eles também não são assim tão tolos - disse D. Emilio Arévalo. - É um cheque ao portador, Lozano.

 

- Mas quem tem estado a tentar falar consigo todo o dia sou eu, D. Cayo - disse Molina. - E o prefeito, o doutor Lama, a mesma coisa. Quem não estava em lado nenhum era o senhor, D. Cayo.

 

- Algum problema em Arequipa, D. Cayo? - perguntou o Dr. Alcibíades.

 

- Um não, milhares de problemas - disse Molina. - Vai-nos faltar pessoal, D. Cayo. Não sei se a coisa resultará com tão poucos.

 

- Ò pessoal do Lozano não chegou? - perguntou Cayo Bermúdez. - O camião de Arévalo não chegou? Que diz você, Molina?

 

- Preparámos dez da corporação, mas, mesmo assim, dezassete não são muitos, D. Cayo - disse Molina. - Aqui para nós, não tenho muita confiança no doutor Lama. Promete quinhentos, mil. Mas ele fantasia muito, o senhor bem sabe.

 

- Só dois de Lima, só dois de Iça? - perguntou Cayo Bermúdez. - Isto pode sair-lhe caro, Molina. Onde estão os outros?

 

- Se lhe estou a dizer que não vieram, D. Cayo - disse Molina. Pois se sou eu que pergunto onde é que estão, porque é que não vieram todos os que disse.

 

- E, muito inocentes, depois dos pimentões fomos passear pela praça - disse Ludovico. - Muitos inocentes, dar uma vista de olhos ao Teatro Municipal, para reconhecer o terreno.

 

- Eu sou de opinião que apesar dos percalços a coisa pode resultar, D. Cayo - disse o prefeito. - A Confederação aqui não existe. Fizeram publicidade, mas nem sequer vão encher o Municipal. Uma centena de curiosos, quando muito. Mas como é que é possível que o senhor julgasse que tinham vindo todos, D. Cayo?

 

- Houve alguém que meteu água, já se vai esclarecer isso - disse Cayo Bermúdez. - O Lama está aí?

 

- Está, senhor Ministro? - disse o Dr. Lama - Quero protestar com a maior energia. Prometeu-nos oitenta homens e mandou-nos sete. Prometemos ao presidente converter a reunião da Confederação num grande acto popular a favor do Governo e estão-nos a sabotar. Mas advirto-o de que não mudamos de ideias.

 

- Deixe-se de discursos, nesta altura, Lama - disse Cayo Bermúdez. - Preciso de saber uma coisa, e que seja absolutamente sincero. Pode reforçar o pessoal do Molina com uns vinte ou trinta homens? Não importa o preço. Vinte ou trinta que valham a pena. Pode?

 

- Até cinquenta ou mais - disse o Dr. Lama. - Não é uma questão de número, senhor Ministro. Gente temos nós a mais. O que acontece é que nos prometeu tipos batidos neste género de assuntos.

 

- Está bem, arranje uns trinta que entrem no Municipal com o pessoal do Molina - disse Cayo Bermúdez. - Como vai a contramanif estação?

 

- O pessoal do Partido Restaurador está repartido pelos bairros a fazer propaganda - disse o Dr. Lama. - Vamos deixá-lo à porta do Municipal. E convocámos outra manifestação no mercado, às cinco. Vamos reunir milhares de homens. A Confederação vai morrer aqui, senhor Ministro.

 

- Está bem, Molina, vamos levar a coisa por diante - disse Cayo Bermúdez. - Bem sei que o Lama exagera, mas não há outro remédio senão confiar nele. Sim, vou falar com o comandante para duplicar as forças na baixa, pelo sim pelo não.

 

Que doença tão esquisita, pensou Trifulcio, aparece e desaparece. Sentia-se morrer, ressuscitar, morrer outra vez. Ruperto desafiava-o com o copo ao alto. À sua, sorriu Trifulcio, e bebeu. Urondo, Téllez e o capataz Martínez cantarolavam desafinados e a taberna tinha-se enchido. Ruperto consultou o relógio: agora é que sim, estava na hora, as camionetas já deviam estar no mercado. Mas o capataz Martínez disse: outra para o caminho. Pediu um jarro de chicha e beberam de pé. Vamos começar aqui mesmo, disse Ruperto, e subiu para uma cadeira: arequipenhos, irmãos, escutem um momento. Trifulcio apoiou-se contra a parede e fechou os olhos: ia morrer aqui? Pouco a pouco, o mundo deixou de dar voltas, o sangue começou a correr outra vez. Todos ao Municipal para mostrar àqueles limenhos como eram os Arequipenhos, rugia Ruperto, cambaleando. As pessoas continuavam a comer, a beber, e um ou outro ria. À vossa saúde e à de Odría, disse Ruperto, erguendo o copo, ficamos à vossa espera à porta do Municipal. Téllez, Urondo e o capataz Martínez puxaram Ruperto para a rua, em braços, o melhor era despacharem-se, serrano, estava-se a fazer tarde. Trifulcio saiu cerrando os dentes e os punhos. Não se mexia, fervia. Mandaram parar um táxi, para o mercado.

 

- Inocentes por duas coisas - disse Ludovico. - Julgávamos que os restauradores de Arequipa eram mais. E não sabíamos que a Confederação tinha contratado tantos gorilas.

 

- Os jornais diziam que aquilo se armou por a polícia ter entrado no teatro - disse Ambrosio. - Por ter disparado e atirado granadas.

 

- Ainda bem que entrou, ainda bem que atirou granadas - disse Ludovico. - Senão, lá tinha eu ficado. Posso estar fodido, mas pelo menos estou vivo, Ambrosio.

 

- Sim, vá dar uma vista de olhos ao mercado, Molina - disse Cayo Bermúdez. - E telefone-me imediatamente.

 

- Passei agora mesmo pelo Municipal, D. Cayo - disse o prefeito. - Ainda está vazio. A polícia de choque já está instalada nos arredores.

 

O táxi deixou-os a uma esquina do mercado, e Ruperto: vêem?, lá estava já a sua gente. As duas camionetas com altifalantes, estacionadas entre os postos, faziam uma barulheira infernal. Duma saía música, da outra uma voz retumbante, e Trifulcio teve de se agarrar a Urondo. Que tinha, negro, continuava com falta de ar? Não, murmurou Trifulcio, já passou. Uns tipos distribuíam panfletos, outros chamavam as pessoas com porta-vozes, pouco a pouco o grupo em redor das camionetas ia engrossando. Mas a maioria dos homens e das mulheres continuavam a vender e a comprar nas bancadas de hortaliça, de frutas e de roupa. Que êxito, Trifulcio, disse o capataz Martínez, só olham para ti. E Téllez: vantagens de ser feio, Trifulcio. Ruperto trepou a uma camioneta, abraçou os tipos que lá estavam, e agarrou no microfone. Aproximem-se, arequipenhos, ouçam. Urondo, Téllez, o capataz Martínez, misturaram-se com as vendedoras, os compradores, os mendigos e incitavam-nos: aproximem-se, venham cá, ouçam. Umas cinco horas até terminar isto do teatro, pensava Trifulcio, e a noite mais umas oito horas, e se calhar não partiam antes do meio-dia: não ia aguentar tanto. Entardecia, o frio aumentava, entre as bancadas de mercadorias havia mesinhas iluminadas com velas, onde as pessoas comiam. Tremiam-lhe as pernas, sentia as costas molhadas, fogo nas têmperas. Deixou-se cair sobre um caixote e levou a mão ao peito: latejava. A mulher que vendia tecidos olhou-o do balcão e soltou uma gargalhada: o senhor é o primeiro que eu vejo, até agora só em filmes. E verdade, pensou Trifulcio, em Arequipa não há mulatos. Está doente?, perguntou a mulher, quer um copo de água? Sim, obrigado. Não estava doente, era a altitude. A água fez-lhe bem e foi ajudar os outros. Preparem-se para mostrar àqueles, rugia Ruperto, com um punho no ar, e estavam já muitos a ouvi-lo. Obstruíam a rua, e Téllez, Urondo, o capataz Martínez e os tipos das camionetas andavam de um lado para o outro a aplaudir, a incitar os curiosos. Ao Municipal mostrar-lhes, e Ruperto batia no peito. Está bêbedo, pensou Trifulcio, sorvendo ar afanosamente.

 

- E quem é que os convenceu de que havia tantos odriistas em Arequipa? - perguntou Ambrosio.

 

- A contramanifestação do Partido Restaurador no mercado disse Ludovico. - Fomos lá ver e a coisa estava que fervia.

 

- Que lhe disse eu, Molina? - o Dr. Lama apontou para a multidão. - Que pena o Bermúdez não poder ver isto.

 

- Fale-lhes lá depressa, doutor Lama - disse Molina. - Preciso de levar o meu pessoal rapidamente, para lhe dar instruções.

 

- Está bem, vou-lhes dizer umas palavras - disse o Dr. Lama. Abram-me caminho até às camionetas.

 

- O plano era encurralar os da Confederação? - perguntou Ambrosio.

 

- Nós entrávamos no teatro e armávamos sarilho lá dentro disse Ludovico. - E quando saíssem iam dar de trombas com a contramanifestação. Como ideia estava bem, o problema é que não deu resultado.

 

Esmagado contra as pessoas que escutavam, riam e aplaudiam, Trifulcio fechou a boca. Não morria, não parecia que os ossos se lhe iam rachar de frio, já não sentia que o coração lhe ia parar. E tinham desaparecido as pontadas na cabeça. Escutava os alaridos de Ruperto e via as pessoas a empurrarem-se para chegar à camioneta em que tinham começado a distribuir bebidas e presentes. Na meia luz, reconhecia as caras de Téllez, de Urondo, do capataz Martínez, salpicadas entre os ouvintes, e imaginava-os a aplaudir, a incitar. Ele não fazia nada; respirava devagar, tomava o pulso, pensava: se não me mexer, aguento. E nisto houve movimentos, encontrões, o mar de cabeças ondulou, aproximou-se um grupo de homens da camioneta e os de cima ajudaram-nos a subir para a plataforma. Três hurras pelo secretário-geral do Partido Restaurador!, gritou Ruperto, e Trifulcio reconheceu-o: o que lhe tinha dado o remédio para o mal das montanhas, o doutor. Silêncio, o Dr. Lama ia falar-lhes, gritava Ruperto. O que dava as ordens tinha subido também para a camioneta.

 

- Com estes todos a coisa é de caras - disse Ludovico.

 

- Há gente que chegue, há - disse Molina. - Tenham é cuidado, não os embebedem de mais.

 

- Vamos colocar uns quantos guardas no teatro, D. Cayo - disse o prefeito. - Fardados e armados, sim. Preveni a Confederação disso. Não, não se opuseram. É uma precaução com que não se perde nada, D. Cayo.

 

- Quanta gente arranjou o Lama no mercado? - perguntou Cayo Bermúdez. - Diga-me o que comprovou com os seus próprios olhos, Molina.

 

- Não sei calcular, mas bastante - disse Molina. - Umas mil pessoas, talvez. A coisa está, com bom aspecto. Os que vão entrar já estão na sede do partido. É donde lhe estou a falar, D. Cayo.

 

Estava a escurecer rapidamente e Trifulcio já não conseguia ver a cara ao Dr. Lama, só ouvi-lo. Não era o Ruperto, sabia falar. Caro e com elegância, a favor de Odría e do povo, contra a Confederação. Bem, embora não tanto como o senador Arévalo, pensava Trifulcio. Téllez agarrou-o pelo braço: íamos, negro. Abriram caminho às cotoveladas, à esquina estava uma camioneta e dentro dela Urondo, o capataz Martínez, o que dava as ordens, e dois limenhos, a falarem de pimentões recheados. Como ia a falta de ar, Trifulcio? Já ia melhor. A camioneta atravessou ruas escuras, parou em frente do Partido Restaurador. As luzes acesas, os quartos cheios de gente, e outra vez as palpitações, o frio, a sufocação. O que dava as ordens e o índio Molina faziam as apresentações: olhem bem para as caras uns dos outros, vocês são os que vão entrar na pancadaria. Tinham-lhes trazido bebida, cigarros e sanduíches. Os dois limenhos estavam alegres, os arequipenhos a cair de bêbedos. Não se mexer, respirar fundo, aguentar.

 

- Dividiram-nos em grupos de dois - disse Ludovico. - Ao Hipólito e a mim separaram-nos.

 

- O Ludovico Pantoja com o preto - disse Molina. - Trifulcio, não é?

 

- Deram-me como par aquele que estava deitado abaixo com a falta de ar - disse Ludovico. - Um dos que mataram no teatro. Vê lá se não me passou perto, Ambrosio.

 

- São vinte e dois, onze parezinhos - disse Molina. - Familiarizem-se bem, não vão confundir-se.

 

- Mataram-nos três e catorze foram parar ao hospital - disse Ludovico. - E o cobarde do Hipólito ileso, diz-me lá se é justo.

 

- Quero ver se perceberam - disse Molina. - Vamos a ver, tu, repete lá o que vais fazer.

 

O que ia ser par dele passou-lhe a garrafa e Trifulcio bebeu um gole: bichinhos a correrem-lhe pelo corpo e calor. Trifulcio estendeu-lhe a mão: muito prazer, a ele, sendo de Lima, a altitude não lhe tinha feito nada? Nada, disse Ludovico, e sorriram um ao outro. Tu, dizia Molina, e levantava-se um: eu para a plateia, à esquerda, e atrás, com este. E Molina: e tu? Levantava-se outro: para o balcão, ao meio, com aquele. Todos se levantaram para responder, mas quando chegou a vez de Trifulcio, continuou sentado: para a plateia, ao pé do palco, com este senhor. Porque é que os pretos não vão para o galinheiro?, perguntou Urondo, e houve risinhos.

 

- Portanto já sabem - disse Molina. - Não fazem nada até ouvirem o apito e a voz de ordem. Isto é, Viva o general Odría! Quem é que dá a voz?

 

- Dou-a eu - disse o que dava as ordens. - Fico na primeira fila do balcão, mesmo ao meio.

 

- Mas há uma coisa que eu queria esclarecer, senhor inspector Molina - disse uma voz envergonhada. - Eles vieram preparados.

 

Vi o pessoal deles, nos automóveis, a fazer propaganda. Meliantes conhecidos, senhor inspector. O Arguelles, por exemplo. Um velho faquista, senhor inspector.

 

- Também trouxeram gorilas de Lima - disse outra voz. - Pelo menos quinze, senhor inspector.

 

- Aqueles guardas que o Molina convenceu não tinham experiência, iam com o moral baixo - disse Ludovico. - Começou-me a cheirar que,, se a coisa se pusesse feia, desatavam a fugir.

 

- Se alguma coisa falhar, é para isso que lá está a polícia de cho-

 

que - disse Molina. - Tem ordens explícitas. Portanto, deixem-se e mariquices.

 

- Se julga que era por medo, está enganado, senhor inspector disse a voz envergonhada. - Só queria esclarecer-lhe as coisas.

 

- Bom, já mas esclareceste - disse Molina. - Aqui este senhor dá o sinal e vocês organizam o terramoto. Empurram as pessoas para a rua e a contramanifestação já lá há-de estar. Juntam-se aos do Partido Restaurador e depois da reunião na Plaza concentração aqui outra vez.

 

Distribuíram mais bebida e cigarros, depois jornais para embrulhar as correntes, os boxes, os casse-têtes. Molina e o que dava as ordens passaram revista, escondam-nas bem, abotoa o casaco, e quando chegaram ao pé de Trifulcio o que dava as ordens animou-o: vê-se que já estás bom, negro. Sim, disse Trifulcio, já estou bom, e pensou: a cona da tua mãe. Cuidado não disparem à sorte, disse Molina. Na rua, os táxis esperavam. Tu e eu aqui, disse Ludovico Pantoja, e Trifulcio seguiu-o. Chegaram ao teatro antes dos outros. Havia gente à entrada, a distribuir panfletos, mas a plateia estava quase vazia. Instalaram-se na terceira fila e Trifulcio fechou os olhos: agora sim, ia rebentar, o sangue havia de salpicar o teatro. Sentes-te muito mal?, perguntou o limenho. E Trifulcio: não, óptimo. Estavam já a chegar os outros pares e iam-se instalando nos seus lugares. Uns rapazinhos tinham-se posto a gritar Li-ber-da-de, Li-ber-da-de. Continuava a entrar gente e a plateia ia-se enchendo.

 

- Ainda bem que viemos cedo - disse Trifulcio. - Não me agradava nada passar todo o tempo de pé.

 

- Sim, D. Cayo, já começou - disse o prefeito. - Encheram o teatro, mais ou menos. A contramanifestação deve estar a sair do mercado.

 

A plateia tinha-se enchido, depois o balcão, depois as coxias, e agora em frente do palco havia gente apinhada que lutava para romper a barreira de homens com braçadeiras vermelhas do serviço de ordem. No palco, umas vinte cadeiras, um microfone, uma bandeira peruana, cartazes que diziam Confederação Nacional, Liberdade. Quando não me mexo, estou perfeitamente, pensava Trifulcio. As pessoas continuavam a gritar em coro Li-ber-da-de, e um grupo tinha começado com outro estribilho, ao fundo da plateia: Legalida de, Le-ga-li-da-de. Ouviam-se palmas, vivas, e todos falavam aos gritos. Começaram a aparecer várias pessoas no palco, a ocupar as cadeiras. Foram recebidos com uma salva de palmas e os gritos recrudesceram.

 

- Não percebo essa da legalidade - disse Trifulcio.

 

- Para os partidos políticos ilegais - disse Ludovico. - Além de milionários, também se juntaram aqui apristas e comunistas.

 

- Já estive em muitas manifestações - disse Trifulcio. - Em cinquenta, em Iça, a acompanhar o senador Arévalo. Mas eram ao ar livre. Esta é a primeira que as vejo num teatro.

 

- Lá está o Hipólito, ali ao fundo - disse Ludovico. - É meu colega. Há uns dez anos que trabalhamos juntos.

 

- Que sorte não lhe ter dado o mal das montanhas, nunca vi doença mais estranha - disse Trifulcio. - Ouça, e porque é que o senhor está também a gritar Liberdade?

 

- Grita tu também - disse Ludovico. - Queres que vejam quem tu és?

 

- Deram-me ordem para subir ao palco e desligar-lhes o microfone, não para gritar - disse Trifulcio.;- Aquele que vai dar o sinal é o meu chefe e deve estar a ver-nos. É um espirra-canivetes, castiga-nos por tudo e mais alguma coisa.

 

- Não sejas parvo, negro - disse Ludovico. - Grita, homem, dá palmas.

 

Sinto-me tão bem que até julgo que é mentira, pensou Trifulcio. Um tipo baixinho, de lacinho e óculos, fazia o público gritar Liberdade e anunciava os oradores. Dizia os nomes deles, designava-os, e as pessoas, cada vez mais excitadas e barulhentas, davam palmas. Os da Liberdade e os da Legalidade gritavam ao desafio. Trifulcio voltava-se para ver os outros pares, mas, com tanta gente em pé, muitos já nem se viam. O que dava as ordens, em compensação, estava ali, com os cotovelos apoiados no varandim do balcão, rodeado por outros quatro, a ouvir e a olhar para todos os lados.

 

- Só a tomar conta do palco há quinze - disse Ludovico. E olha a quantidade de tipos com braçadeiras vermelhas espalhados pelo teatro. Sem contar com os espontâneos, que hão-de aparecer quando se armar a zaragata. Acho que não conseguimos.

 

- Porque é que não havemos de conseguir? - perguntou Trifulcio. - Esse tal Molina não explicou tudo direitinho?

 

- Teríamos de ser uns cinquenta, e bem preparados - disse Ludovico. - Esses arequipenhos são bandidos, já dei por isso. Não conseguimos.

 

- Temos de conseguir - Trifulcio apontou na direcção do balcão. - Senão, quem é que atura aquele?

 

- A contramanifestação já devia estar a chegar - disse Ludovico. - Ouves alguma coisa, na rua?

 

Trifulcio não lhe respondeu, escutava o senhor de azul em pé diante do microfone: Odría era um ditador, a Lei de Segurança Interna era anticonstitucional, o homem comum, do povo, queria liberdade. E adulava os Arequipenhos: a cidade rebelde, a cidade mártir, a tirania de Odría tinha ensanguentado Arequipa em cinquenta, mas não tinha conseguido matar o seu amor à liberdade.

 

- Fala bem, não acha? - perguntou Trifulcio. - O senador Arévalo também, até melhor que este Fulano. Até faz chorar as pessoas. Nunca o ouviu?

 

- Já não cabe uma mosca e continua a entrar gente - disse Ludovico. - Espero que o sacana do teu chefe não se lembre de dar o sinal.

 

- Mas este ganhou ao doutor Lama - disse Trifulcio. - É tão elegante como ele, mas fala menos caro. Percebe-se tudo o que ele diz.

 

- O quê? - perguntou Cayo Bermúdez. - A contramanifestação um fracasso total, Molina?

 

- Não chegou a duzentas pessoas, D. Cayo - disse Molina. Devem-lhes ter dado muito álcool. Eu preveni o doutor Lama, mas o senhor sabe como ele é. Devem-se ter embebedado, devem ter ficado no mercado. Uns duzentos, quando muito. Que fazemos, D. Cayo?

 

- Está-me a vir outra vez - disse Trifulcio. - Por causa desses filhos da puta que estão a fumar. Outra vez, maldita seja.

 

- Só se fosse doido é que dava o sinal - disse Ludovico. - Onde está o Hipólito? Viste por onde anda o meu colega?

 

O aperto, os gritos, os cigarros, tinham posto a sala num forno e via-se orilho de suor nas caras; alguns tinham tirado o casaco, desapertado a gravata, e todo o teatro gritava: Li-ber-da-de, Li-ber-da-de. Angustiado, Trifulcio pensou: outra vez. Fechou os olhos, abaixou a cabeça, respirou fundo. Levou a mão ao peito: com força, outra vez com muita força. O senhor de azul tinha acabado de falar, ouvia-se um estribilho, o do lacinho gesticulava como um maestro.

 

- Está bem, ganharam eles - disse Cayo Bermúdez. - Nessas condições, o melhor é você anular a coisa, Molina.

 

- Vou tentar, mas não sei se será possível, D. Cayo - disse Molina. - O pessoal está lá dentro, duvido que recebam a contra-ordem a tempo. Vou desligar e telefono-lhe depois, D. Cayo.

 

Agora estava a falar um gordo alto, vestido de cinzento, e devia ser arequipenho, porque todos diziam o nome dele em coro e o saudavam com as mãos. Rápido, depressa, pensou Trifulcio, não ia aguentar, porque é que não lhe dava duma vez por todas? Encolhido na cadeira, com os olhos semicerrados, contava as pulsações, um-dois, um-dois. O gordo erguia os braços, gesticulava e tinha-lhe enrouquecido a voz.

 

- Sinto-me mal, agora é que sinto - disse Trifulcio. - Preciso de mais ar, senhor.

 

- Espero que não seja tão burro, que não o dê - sussurrou Ludovico. - E, se o der, tu e eu não nos mexemos. Nós quietinhos, ouviste, negro?

 

- Cala-te, milionário - irrompeu, lá em cima, a voz do que dava as ordens. - Não enganes o povo! Viva Odría!

 

- Até que enfim, já estava a sufocar. E aí está o apito - disse Trifulcio, pondo-se de pé. - Viva o general Odría.

 

- Toda a gente ficou aparvalhada, até o tipo que estava a discursar

- disse Ludovico. - Todos olhavam para o balcão.

 

Soaram outros Viva Odría em diferentes postos da sala, e agora o gordo guinchava provocadores, provocadores, com a cara rubra de fúria, enquanto exclamações, empurrões e protestos lhe submergiam a voz e uma tempestade de desordem revolvia o teatro. Todos se tinham posto de pé, ao fundo da plateia havia movimentos e encontrões, ouviam-se insultos, e já havia gente à pancada. De pé, com o peito a subir e descer, Trifulcio voltou a gritar Viva Odría! Houve alguém da fila de trás que o agarrou pelo ombro: provocador! Ele libertou-se com uma cotovelada e olhou para o limenho: agora, vamos. Mas Ludovico Pantoja estava aninhado como uma múmia, olhando-o com os olhos desorbitados. Trifulcio agarrou-o pelas bandas do casaco, fê-lo levantar-se: mexa-se, homem.

 

- Que mais podia eu fazer, já estavam todos misturados - disse Ludovico. - O preto puxou da corrente e precipitou-se para o palco aos empurrões. Puxei da pistola e fui atrás dele. Juntamente com dois outros tipos, conseguimos chegar à primeira fila. Ali esperavam-nos os das braçadeiras.

 

Alguns do palco corriam para as saídas, outros olhavam para os tipos do serviço de ordem, que tinham formado uma muralha e esperavam, com os casse-têtes no ar, o pretaço e os outros dois que avançavam volteando as correntes por cima das cabeças deles. Manda-lhes, Urondo, gritou Trifulcio, manda-lhes, Téllez. Fez estalar a corrente como o chicote de um domador, e o de braçadeira que estava mais perto deixou cair o casse-tête e tombou no chão agarrado à cara. Sobe, preto, gritou Urondo, e Téllez: nós aguentamo-los, preto! Trifulcio viu-os a atirarem-se contra o grupinho que defendia a escadinha para o palco e, fazendo a corrente girar, atirou-se também.

 

- Fiquei separado do meu par e dos outros - disse Ludovico. Formou-se uma parede de gorilas entre mim e eles. Havia aí uns dez à pancada e pelo menos cinco à minha volta. Mantinha-os quietos com a pistola, e gritava Hipólito, Hipólito. E nisto foi o fim do mundo, camarada.

 

As granadas caíram do balcão como um punhado de pedras negras, ressaltaram com pancadas secas sobre as cadeiras da plateia e as tábuas do palco, e num instante começaram a elevar-se espirais de fumo. Em poucos segundos a atmosfera embranqueceu, endureceu, e um vapor espesso e picante foi confundindo e dissipando os corpos. A gritaria aumentou, ruído de corpos que caíam, de cadeiras que se partiam, tosses, e Trifulcio deixou de lutar. Sentia que os braços lhe escorregavam, a corrente’ desprendeu-se-lhe das mãos, as pernas vergaram-se-lhe e os olhos, entre as nuvens ardentes, conseguiram distinguir as silhuetas do palco a fugir com as bocas tapadas com lenços, e os tipos de braçadeira que se tinham reunido e, tapando o nariz, se aproximavam dele como se viessem a nadar. Não conseguiu endireitar-se, batia com o punho no peito, abria a boca o mais que podia. Não sentia as pauladas que lhe tinham começado a dar. Ar, como um peixe, Tomasa, conseguiu ainda pensar.

 

- Fiquei cego - disse Ludovico. - E o pior era o aperto, camarada. Comecei a disparar à sorte. Não percebia que eram granadas, julguei que me tinham ferido pelas costas.

 

- Gases lacrimogéneos num espaço fechado, vários mortos, dezenas de feridos - disse o senador Landa. - Não se pode pedir mais, pois não, Fermín? Mesmo que tenha nove vidas, o Bermúdez não sobrevive a isto.

 

- Acabaram-se-me as balas num ápice - disse Ludovico. - Não conseguia abrir os olhos. Senti que me rachavam a cabeça e caí desmaiado. Quantos não me teriam caído em cima, Ambrosio.

 

- Alguns incidentes, D. Cayo - disse o prefeito. - Parece que lhes destroçaram a reunião, isso conseguiram. As pessoas estão a sair espavoridas do Municipal.

 

- A polícia de choque começou a entrar no teatro - disse Molina. - Houve tiros lá dentro. Não, ainda não sei se há mortos, D. Cayo.

 

- Não sei quanto tempo passou, mas abri os olhos e o fumo continuava - disse Ludovico. - Sentia-me pior que morto. A deitar sangue por todos os lados, Ambrosio. E nisto vejo o cão do Hipólito.

 

- Às patadas ao teu par, ele também? - riu-se Ambrosio. Quer dizer que os levou bem levados. Saiu menos parvo do que julgávamos.

 

- Ajuda-me, ajuda-me - gritou Ludovico. - Nada, era como se não me conhecesse. Continuou a dar patadas ao preto, e de repente os outros que estavam com ele viram-me e caíram-me em cima. Outra vez as patadas, as pauladas. Nessa altura tornei a desmaiar, Ambrosio.

 

- A polícia que esvazie as ruas todas, prefeito - disse Cayo Bermúdez. - Não permita qualquer manifestação, prenda todos os líderes da Confederação. Já tem a lista das vítimas? Há mortos?

 

- Foi como se acordasse e continuasse a ver o pesadelo - disse Ludovico. - O teatro já estava quase vazio. Todo partido, salpicado de sangue, o meu par no meio dum charco. Não deixaram nem um bocadinho da cara ao velhote. E havia tipos caídos, a tossir.

 

- Sim, uma grande manifestação na Plaza de Armas, D. Cayo disse Molina. - O prefeito está agora com o comandante. Não me parece que seja conveniente, D. Cayo. São milhares de pessoas.

 

- Que a dissolvam imediatamente, idiota - disse Cayo Bermúdez. - Não percebe que a coisa vai crescer com o que aconteceu? Ponha-me em contacto com o comandante. Que esvaziem as ruas imediatamente, Molina.

 

- Depois entraram os guardas e um ainda me deu um pontapé, vendo-me naquele estado - disse Ludovico. - Sou investigador, sou da corporação. Por fim vi a cara do índio Molina. Tiraram-me de lá por uma porta falsa. Depois voltei a desmaiar e só acordei no hospital. Já toda a cidade estava em greve.

 

- As coisas estão a piorar, D. Cayo - disse Molina. - Desempedraram as ruas, há barricadas por toda a baixa. A polícia de choque não consegue dispersar uma manifestação destas.

 

- Tem de intervir o exército, D. Cayo - disse o prefeito. - Mas o general Alvarado diz que só manda as tropas se o ministro da Guerra der a ordem.

 

- O meu companheiro de quarto era um dos tipos do senador disse Ludovico. - Uma perna partida. Dava-me notícias do que ia acontecendo em Arequipa e acalmava-me os nervos. Tinha um destes medos, camarada!

 

- Está bem - disse Cayo Bermúdez. - Vou fazer que o general Llerena dê a ordem.

 

- Vou-me safar, a rua é mais segura que o hospital - disse Téllez. - Não quero que me aconteça o mesmo que ao Martínez, o mesmo que ao preto. Conheço um tipo chamado Urquiza. Vou-lhe pedir para me esconder lá em casa.

 

- Não há-de acontecer nada, eles não entram aqui - disse Ludovico. - E que tem que haja greve geral? O exército corre-os a tiro.

 

- E onde é que está o exército, que ninguém o vê? - perguntou Téllez. - Se lhes dá na cabeça lincharem-nos, podem entrar aqui como se fosse em casa deles. Nem sequer há um guarda no hospital.

 

- Ninguém sabe que estamos cá - disse Ludovico. - E mesmo que soubessem. Julgarão que somos da Confederação, que somos vítimas.

 

- Não, porque aqui ninguém nos conhece - disse Téllez. - Perceberão que somos de fora. Esta noite vou a casa do Urquiza. Ainda posso andar, apesar do gesso.

 

- Estava meio atordoado do susto, por lhe terem morto os dois colegas no teatro - disse Ludovico. - Pedem a demissão do ministro do Governo, dizia ele, hão-de entrar por aqui dentro e penduram-nos num candeeiro. Mas que é que está a acontecer, caralho?

 

- O que está a acontecer é quase uma revolução - disse Molina.

- O povo tomou conta das ruas, D. Cayo. Até os polícias de trânsito tivemos de retirar para não serem apedrejados. Porque é que não chega a ordem para o exército actuar, D. Cayo?

 

- E eles, senhor? - perguntou Téllez. - Que fizeram ao Martínez, ao velhote?

 

- Não te preocupes, já os enterrámos - disse Molina. - Tu és o Téllez, não és? O teu chefe deixou-te dinheiro na prefeitura para voltares a Iça de autocarro, assim que puderes andar.

 

- E porque é que os enterraram aqui, senhor? - perguntou Téllez. - O Martínez tem mulher e filhos em Iça, o Trifulcio tem parentes em Chincha. Porque é que não os mandaram para lá, para as famílias os enterrarem? Porquê aqui, como cães? Ninguém há-de vir visitá-los nunca, senhor.

 

- O Hipólito? - disse Molina. - Tomou um colectivo para Lima, apesar das minhas ordens. Pedi para ele ficar a ajudar-nos e pôs-se a cavar. Sim, já sei que se portou mal no teatro, Ludovico. Mas vou dar parte ao Lozano e vou fodê-lo.

 

- Acalme-se, Molina - disse Cayo Bermúdez. - Com calma, com pormenores, vamos por partes. Qual é a situação, exactamente?

 

- A situação é que a polícia já não está em condições de restabelecer a ordem, D. Cayo - disse o prefeito. - Volto a dizer-lhe mais uma vez. Se o exército não intervém, vai acontecer aqui alguma coisa.

 

- A situação? - disse o general Llerena. - Muito simples, Paredes. A estupidez do Bermúdez pôs-nos entre a espada e a parede. Enterrou-se e agora quer que o exército arranje as coisas com uma demonstração de força.

 

- Demonstração de força? - disse o general Alvarado. - Não, meu general. Se mandar a tropa, vai haver mais mortos que em cinquenta. Há barricadas, gente armada, e os grevistas são a cidade em peso. Aviso-o de que havia de correr muito sangue.

 

- O Cayo garante que não, meu general - disse o comandante Paredes. - Só aderiram à greve uns vinte por cento. Quem originou o sarilho foi um pequeno grupo de agitadores contratados pela Confederação.

 

- A greve está a ser seguida cem por cento, meu general - disse o general Alvarado. - O povo é rei e senhor das ruas. Formaram uma comissão em que há advogados, operários, médicos, estudantes. O prefeito insiste para a tropa sair já esta noite, mas eu quero que seja o senhor a tomar a decisão.

 

- Diga-me a sua opinião, Alvarado - disse o general Llerena. Francamente.

 

- Assim que virem os tanques, os revoltosos metem-se em casa, general Llerena - disse Cayo Bermúdez. - É uma tolice continuar a perder tempo. Cada minuto que passa dá maior força aos agitadores e o Governo desprestigia-se. Dê de vez essa ordem.

 

- Sinceramente, parece-me que o exército não tem nada que sujar as mãos por causa do senhor Bermúdez, meu general - disse o general Alvarado. - Não é o presidente, nem o exército nem o regime, que estão em causa. Os senhores da Confederação vieram ter comigo e garantiram-me isso. Comprometem-se a tranquilizar as pessoas se o Bermúdez se demitir.

 

- O senhor conhece bem os dirigentes da Confederação, general Llerena - disse o senador Arévalo. - O Bacacorzo, o Zavala, o López Landa. O senhor não imagina que esses cavalheiros estejam aliados com apristas ou comunistas, não é assim?

 

- Têm o maior respeito pelo exército, e sobretudo por si, general Llerena - insistiu o senador Landa. - Só pedem a demissão do Bermúdez. Já não é a primeira vez que o Bermúdez mete água, general, o senhor bem sabe. É uma boa ocasião para libertar o regime dum indivíduo que nos está a prejudicar a todos, general.

 

- Arequipa está indignada com o que aconteceu no Municipal disse o general Alvarado. - Foi um erro de cálculo do senhor Bermúdez, meu general. Os líderes da Confederação orientaram muito bem a indignação. Deitam as culpas ao Bermúdez, não ao regime. Se o meu general der ordens para mandar a tropa, eu mando-a. Mas pense bem, meu general. Se o Bermúdez sair do Ministério, isto resolve-se pacificamente.

 

- Estamos a perder numas horas o que custou anos a conseguir, Paredes - disse Cayo Bermúdez. - Ô Llerena responde-me com evasivas, os outros ministros não aparecem. É uma emboscada em regra contra mim. Falaste com o Llerena, tu?

 

- Está bem, mantenha a tropa aquartelada, Alvarado - disse o general Llerena. - O exército que não se meta nisto, a não ser que seja atacado.

 

- Parece-me a medida mais inteligente - disse o general Alvarado. - O Bacacorzo e o López Landa, da Confederação, vieram outra vez ter comigo. Sugerem um gabinete militar. O Bermúdez saía e o Governo não daria a impressão de ceder. Podia ser uma solução, não acha, meu general?

 

- O general Alvarado portou-se muito bem, Fermín - disse o senador Landa.

 

- O país está cansado dos abusos do Bermúdez, general Llerena - disse o senador Arévalo. - Isto de Arequipa é só uma amostra do que poderia acontecer em todo o Peru se não nos livrarmos desse sujeito. É a ocasião de o exército conquistar a simpatia da nação, general.

 

- Aquilo de Arequipa não me assusta absolutamente nada, doutor Lora - disse o Dr. Arbeláez, o Bermúdez é o menino bonito dele. Há-de preferir que o exército ponha Arequipa a ferro e fogo.

 

- O presidente não é muito esperto, mas também não é muito pateta - disse o Dr. Arbeláez. - Vamos-lhe explicar e ele há-de compreender. O ódio ao regime concentrou-se no Bermúdez. Atira-Lhes com esse osso e os cães ficarão calmos.

 

- Se o exército não intervier, não posso continuar na cidade, D. Cayo - disse o prefeito. - O comissariado está só defendido por uns vinte guardas.

 

- Se o senhor puser os pés fora de Arequipa, é destituído - disse Bermúdez. - Domine os nervos. O general Llerena deve estar a dar a ordem de um momento para o outro.

 

- Estou encurralado aqui, D. Cayo - disse Molina. - Estamos a ouvir a manifestação da Plaza de Armas. Podem atacar o posto. Porque é que não vem a tropa, D. Cayo?

 

- Escute, Paredes, o exército não vai enlamear-se para salvar o ministério ao .Bermúdez - disse o general Llerena. - Não, de maneira nenhuma. Isso está bem, é preciso pôr cobro a esta situação. Nós, os chefes militares, e um grupo de senadores do regime vamos propor ao presidente a formação dum gabinete militar.

 

- E a maneira mais simples de liquidar o Bermúdez sem que o Governo pareça derrotado pelos Arequipenhos - disse o Dr. Arbeláez. - Demissão dos ministros civis, gabinete militar e está o problema resolvido, general.

 

- Que é que se passa? - perguntou Cayo Bermúdez. - Estou há quatro horas à espera e o presidente não me recebe. Que significa isto, Paredes?

 

- O exército sai imaculado com esta solução, general Llerena disse o senador Arévalo. - E o senhor ganha um enorme capital político. Nós, todos os que o apreciamos, estamos muito satisfeitos, general.

 

- Tu podes entrar no Palácio sem que os secretários te impeçam - disse Cayo Bermúdez. - Anda, corre, Paredes. Explica ao presidente que há uma conspiração de alto nível, que nesta altura tudo depende dele. Que faça o Llerena perceber as coisas. Eu já não confio em ninguém. Até o Lozano e o Alcibíades se venderam.

 

- Nada de prisões nem de tolices, Molina - disse Lozano. Você mantém-se aí no posto com o pessoal e não atira a não ser em caso de vida ou de morte.

 

- Não percebo, senhor Lozano - disse Molina. - O senhor ordena-me uma coisa e o ministro do Governo outra.

 

- Esqueça-se das ordens do D. Cayo - disse Lozano. - Está de quarentena e não me parece que continue ministro por muito tempo. E acerca dos feridos?

 

- Os mais graves estão no hospital, senhor Lozano - disse Molina. - Uns vinte, mais ou menos.

 

- Enterraram os dois tipos do Arévalo? - perguntou Lozano.

 

- Com a maior discrição, como D. Cayo mandou - disse Molina. - Outros dois voltaram a Iça. Só está um no hospital. Um tal Téllez.

 

- Mande-o embora de Arequipa o mais depressa possível - disse Lozano. - E o par que eu lhe mandei, a mesma coisa. Essa malta não deve continuar aí.

 

- O Hipólito já foi, apesar das minhas ordens - disse Molina. Mas o Pantoja está na clínica, em estado grave. Não poderá mexer-se durante uns tempos, senhor.

 

- Ah, já percebo - disse Cayo Bermúdez. - Bom, nas actuais circunstâncias, compreendo perfeitamente. É uma solução, sim, de acordo, onde é que assino?

 

- Não pareces muito triste, Cayo - disse o comandante Paredes.

- Sinto muito, mas não te pude apoiar. Em questões políticas, às vezes é preciso pôr a amizade de lado.

 

- Escusas de me dar explicações, eu percebo muito bem - disse Cayo Bermúdez. - Aliás, há bastante tempo que me queria safar, como sabes. Sim, parto amanhã cedo, de avião.

 

- Não sei como é que me vou sentir em ministro do Governo disse o comandante Paredes. - É pena que não fiques cá para me dares conselhos, com a experiência que tens.

 

- Vou-te dar um bom conselho - sorriu Cayo Bermúdez. Não te fies nem na tua mãe.

 

- Os erros em política pagam-se muito caro - disse o comandante Paredes. - E como na guerra, Cayo.

 

- E verdade - disse Cayo Bermúdez. - Não quero que se saiba que parto amanhã. Guarda-me o segredo, faz favor.

 

- Arranjámos-te um táxi que te vai levar até Camaná, podes lá descansar um par de dias antes de seguires para Iça, se quiseres disse Molina. - E o melhor é não abrires a boca sobre o que te aconteceu em Arequipa.

 

- Está bem - disse Téllez. - Eu só quero é sair daqui quanto antes.

 

- E eu? - perguntou Ludovico. - Quando é que me despacham a mim?

 

- Assim que te aguentares de pé - disse Molina. - Não te assustes, já não há razão para isso. D. Cayo já saiu do Governo, e a greve vai terminar.

 

- Não me guarde rancor, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. As pressões eram muito fortes. Não me deram oportunidade para proceder doutra maneira.

 

- Com certeza, doutorzinho - disse Cayo Bermúdez. - Não lhe guardo rancor. Pelo contrário, estou admirado com a maneira como o senhor foi hábil. Entenda-se bem com o meu sucessor, o comandante Paredes. Vai nomeá-lo a si director do Governo. Pediu a minha opinião e eu disse-lhe que o senhor tinha queda para o cargo.

 

- Cá estarei sempre ao seu dispor, D. Cayo - disse o Dr. Alcibíades. - Aqui tem os seus bilhetes, o passaporte. Tudo em ordem. E, se não o vir mais, boa viagem, D. Cayo.

 

- Entra, camarada, tenho grandes notícias para ti - disse Ludovico. - Adivinha, Ambrosio.

 

- Não foi para a roubar, Ludovico - disse Ambrosio. - Não, também não foi para isso. Não me perguntes porque é que o fiz, amigo, eu não te digo. Ajudas-me?

 

- Meteram-me no quadro! - disse Ludovico. - Vai depressa comprar uma garrafa de qualquer coisa e trá-la às escondidas, Ambrosio.

 

- Não, não foi ele que me mandou, ele nem sabia - disse Ambrosio. - Contenta-te com isso, fui eu que a matei. Fui eu sozinho que tive a ideia, fui. Ele ia-lhe dar dinheiro para ela cavar para o México, e ele ia deixar que essa mulher o continuasse a sangrar toda a vida. Ajudas-me?

 

- Terceiro-oficial, Ambrosio, Divisão de Homicídios - disse Ludovico. - E sabes quem é que me veio dar a grande novidade, Ambrosio?

 

- Sim, para lhe fazer bem a ele, para o salvar a ele - disse Ambrosio. - Para lhe demonstrar a minha gratidão, sim. E agora quer que eu me vá embora. Não, não é ingratidão, não é maldade. É por causa da família dele, não quer que isto lhe manche a reputação. Ele é boa pessoa. O teu amigo Ludovico que te aconselhe e eu dou-lhe uma gratificação, diz ele, percebes? Ajudas-me?

 

- O senhor Lozano em pessoa, imagina - disse Ludovico. - De repente apareceu-me no quarto e eu pasmado, Ambrosio, já calculas.

 

- Ele oferece-te dez mil e eu outros dez mil, das minhas economias - disse Ambrosio. - Sim, está bem, saio de Lima e nunca mais te apareço à frente. Está bem, levo a Amalia também. Não voltamos a pôr os pés nesta cidade, amigo, de acordo.

 

- O ordenado é de dois mil e oitocentos, mas o senhor Lozano vai arranjar maneira de considerarem a minha antiguidade na corporação - disse Ludovico. - Até vou ter as minhas gratificações, Ambrosio.

 

- Para Pucallpa? - perguntou Ambrosio. - Mas que vou eu fazer para lá, Ludovico?

 

- Já sei que o Hipólito se portou muito mal - disse o Sr. Lozano. - Vamos dar-lhe um postozinho para ele apodrecer em vida.

 

- E sabes para onde é que o vão mandar? - riu-se Ludovico. Para Celendín!

 

- Mas isso quer dizer que também vão meter o Hipólito no quadro - disse Ambrosio.

 

- E que interessa isso, se tem de viver em Celendín - disse Ludovico. - Ah, amigalhaço, estou tão contente! E devo-o também a ti, Ambrosio. Se não tivesse passado a trabalhar com D. Cayo, continuaria eventual. Fico-te a dever isso, amigo.

 

- Com a alegria curaste-te, até já te mexes - disse Ambrosio. Quando é que te dão alta?

 

- Não é pressa, Ludovico - disse o Sr. Lozano. - Cura-te com calma, faz de conta que esta temporadazinha no hospital são umas férias. Não tens razão de queixa. Dormes todo o dia, trazem-te a comida à cama.

 

- A coisa não é assim tão cor-de-rosa, senhor - disse Ludovico. - Não vê que enquanto aqui estou não ganho nada?

 

- Vais receber o ordenado por inteiro durante todo o tempo que estiveres aqui - disse o Sr. Lozano. - Ganhaste-o bem, Ludovico.

 

- Nós, os eventuais, só ganhamos por trabalhinho, senhor Lozano

- disse Ludovico. - Eu não pertenço ao quadro, não se esqueça.

 

- Já pertences - disse o Sr. Lozano. - Ludovico Pantoja, terceiro-oficial, Divisão de Homicídios. Como é que te soa isto?

 

- Por pouco não salto a beijar-lhe as mãos, Ambrosio - disse Ludovico. - A sério, a sério que me meteram no quadro, senhor Lozano?

 

- Falei de ti ao novo ministro, e o comandante sabe reconhecer os serviços - disse o Sr. Lozano. - Conseguimos a tua nomeação em vinte e quatro horas. Vim dar-te os parabéns.

 

- Desculpe, senhor - disse Ludovico. - Que vergonha, senhor Lozano. É que a notícia comoveu-me tanto, senhor.

 

- Chora à vontade, não te envergonhes - disse o Sr. Lozano. Vejo que tens carinho pela corporação e isso só te fica bem, Ludovico.

 

- Tens razão, temos de comemorar isso, amigo - disse Ambrosio. - Vou trazer uma garrafa. Oxalá que as enfermeiras não me topem.

 

- Que furioso que o senador Arévalo deve estar, não acha, senhor? - perguntou Ludovico. - O pessoal dele foi o que mais sofreu. Mataram dois e deram a sério noutro.

 

- O melhor é esqueceres-te disso tudo, Ludovico - disse o Sr. Lozano.

 

- Como é que me hei-de esquecer, senhor? - disse Ludovico. Não vê como me deixaram? Uma sova destas não se esquece em toda a vida.

 

- Pois se não te esqueces, não sei para que é que tive tanto trabalho por tua causa - disse o Sr. Lozano. - Não percebeste nada, Ludovico.

 

- O senhor está-me a assustar - disse Ludovico. - O que é que eu tenho de perceber?

 

- Que és um oficial de Investigações a valer, igual aos que saem da escola - disse o Sr. Lozano. - E um oficial não pode ter feito trabalhos de gorila contratado, Ludovico.

 

- Voltar ao trabalho? - disse D. Emílio Arévalo. - O que tu vais fazer agora é recompor-te, Téllez. Umas semaninhas com a família, a ganhar a jorna completa. Só quando estiveres inteirinho é que voltas a trabalhar.

 

- Esses trabalhos são os eventuais, os pobres diabos sem preparação, que os fazem - disse o Sr. Lozano. - Tu nunca foste gorila, fizeste sempre operações de categoria. É o que diz a tua folha de serviços. Ou queres que apague tudo isso e ponha lá foi eventual?

 

- Não tens nada que agradecer, filho - disse D. Emílio Arévalo. - Porto-me bem com quem se porta bem comigo, Téllez.

 

- Agora já percebo, sim, senhor Lozano - disse Ludovico. Desculpe, não estava a reparar. Nunca fui eventual, nunca fui a Arequipa.

 

- Porque alguém podia protestar, dizer que não tens direito a estar no quadro - disse o Sr. Lozano. - Portanto esquece-te disso, Ludovico.

 

- Já me esqueci, D. Emílio. Nunca saí de Iça, parti a perna por ter caído duma mula abaixo. Nem imagina o jeito que me faz essa gratificação, D. Emílio.

 

- Pucallpa por duas razões, Ambrosio - disse Ludovico. É onde fica o pior posto de polícia do Peru. E, segundo, porque tenho lá um parente que te pode arranjar trabalho. Tem uma empresa de autocarros. Já vês que melhor só de encomenda, amigo.

 

- As Binbambún? - pergunta Ambrosio. - Nunca as vi. Porque é que pergunta, menino?

 

Pensa: Ana, as apostas de cavalos, as Binbambún, os amores de tigre do Carlitos e da índia, a morte do velhote, o primeiro cabelo branco: dois, três, dez anos, Zavalita. Teriam sido os cabrões da Última Hora os primeiros a explorar as apostas de cavalos como notícia? Não, tinham sido os da Prensa. Era um novo tipo de apostas e ao princípio os entusiastas das corridas continuavam fiéis às duplas. Mas um tipógrafo acertou num domingo em nove dos dez cavalos vencedores e obteve os cem mil soles do prémio. A Prensa entrevistou-o: sorria entre os familiares, fazia uma saúde à roda de uma mesa repleta de garrafas, ajoelhava-se diante da imagem do Senhor dos Milagres. Na semana seguinte, o prémio duplicou e a Última Hora fotografou em primeiro plano dois comerciantes de Iça arvorando eufóricos a caderneta premiada, e na seguinte quem ganhou os quatrocentos mil soles, sozinho, foi um pescador do Callao que em novo tinha perdido um olho numa rixa de bar. O prémio continuou a aumentar e nos jornais começou a caça aos vencedores. Arispe destacou Carlitos para cobrir a informação das apostas de cavalos e ao fim de três semanas a Crónica tinha perdido todas as primeiras mãos: Zavalita, terá de encarregar-se você disto, o Carlitos não faz coisa com coisa. Pensa: se não fossem as apostas de cavalos, não teria havido nenhum acidente e se calhar continuarias solteiro, Zavalita. Mas estava satisfeito com aquela missão: não havia muito que fazer e, graças ao carácter invertebrado do trabalho, podia roubar muitas horas ao jornal. Aos sábados à noite devia montar guarda na agência central do Jockey Club para averiguar a quanto ascendiam as apostas, e na madrugada de segunda-feira já se sabia se o vencedor era um ou vários e em que agência tinha sido vendida a caderneta premiada. Começava então a busca do feliz contemplado. Às segundas e às terças-feiras choviam as chamadas para a redacção de informadores oficiais e era preciso andar de um lado para o outro na camioneta, com o Periquito, a verificar os boatos.

 

- Por causa dessa pintalgada que aí está - disse Santiago. É parecida com uma das Binbambún que se chamava Ada Rosa.

 

Com o pretexto de seguir a pista de presumíveis vencedores das apostas de cavalos, podias ausentar-te do jornal, Zavalita, meter-te num cinema qualquer, ir ao Pátio e ao Bransa tomar um café com malta doutros jornais, ou acompanhar o Carlitos aos ensaios da companhia de bailarinas de cabaré que o empresário Pedrito Aguirre estava a formar e em que a índia dançava. Pensa: as Binbambún. Até essa altura só tinha estado apaixonado, pensa, mas a partir daí infectado, intoxicado pela índia. Por ela fazia publicidade às Binbambún escrevendo espontâneas crónicas artístico-patrióticas, que alinhava na página de espectáculos: porque é que tínhamos de contentar-nos com aquelas bailarinas cubanas e chilenas que eram artistas de segunda, havendo no Peru raparigas tão capazes de se converterem em estrelas? Por ela cobria-se resolutamente de ridículo: só lhes faltava a oportunidade e o apoio do público, era uma questão de prestígio nacional, todos à estreia das Binbambún. Com Norwin, com Solórzano, com Periquito, ia ao Teatro Monumental ver os ensaios e lá estava a índia, Zavalita, o seu corpo mate de nádegas ferozes, a sua atraente cara picara, os seus olhos malvados, a sua voz rouca. Da deserta plateia empoeirada e pulgenta, viam-na discutir com Tabarín, o coreógrafo maricas, e perseguiam-na no remoinho de silhuetas do cenário, aturdidos de mambo, de rumba, de huaracha e de subi: é a melhor de todas, Carlitos, bravo, Carlitos. Quando as Binbambún começaram a apresentar-se em teatros e cabarés, a fotografia da índia aparecia no mínimo uma vez por semana na coluna dos espectáculos, com legendas que a punham nos píncaros da Lua. Às vezes, a seguir às sessões, Santiago ia com Carlitos e a índia comer ao Parral, beber um copo a qualquer bar de aspecto lúgubre. Durante essa época, o par tinha-se dado muito bem, e uma noite no Negro-Negro Carlitos

 

E os a mão no braço de Santiago. Já passámos a prova máxima, Zavala, três meses sem questões, qualquer dia caso com ela. E outra noite, bêbedo: durante estes meses tenho sido feliz, Zavalita. Mas os sarilhos começaram quando a companhia das Binbambún se dissolveu e a índia começou a dançar no El Pinguino, uma boíte que Pedrito Aguirre abrira na baixa. A noite, ao sair de La Crónica, Carlitos arrastava Santiago pelos portais da Plaza San Martin, por Ocona, até ao viscoso recinto tetricamente decorado do El Pinguino. Pedrito Aguirre não lhes cobrava consumo mínimo, fazia-lhes abatimento nas cervejas e aceitava-lhes vales. Do bar, observavam os experientes piratas da noite limenha tomar de abordagem as bailarinas. Mandavam-lhes papelinhos pelos criados, sentavam-nas às suas mesas. Algumas vezes, quando chegavam, a índia já tinha saído e Pedrito Aguirre dava uma palmada fraternal a Carlitos: tinha-se sentido mal, foi com a Ada Rosa, mandaram-lhe dizer que a mãe está no hospital. Outras, encontravam-na numa velada mesa do fundo, a escutar as gargalhadas de qualquer príncipe da boémia, encolhida ao pé de qualquer elegante maduro de patilhas grisalhas, a dançar apertada nos braços de um jovem apolíneo. E lá vinha a cara alterada de Carlitos: o contrato obriga-a a atender os clientes, Zavalita, ou em vista das circunstâncias vamos às pegas, Zavalita, ou só continuo com ela por masochismo, Zavalita. Desde essa altura, os amores de Carlitos com a índia tinham voltado ao carniceiro ritmo anterior de reconciliações e rupturas, de escândalos e pugilatos públicos. Nos interregnos do seu romance com Carlitos, a índia exibia-se com advogados milionários, adolescentes de boas famílias e semblante rufianesco e comerciantes cirroses. Tudo o que vem à rede é peixe desde que sejam pais de família, dizia venenosamente Becerrita, não tem vocação para puta, tem é vocação para adúltera. Mas essas aventuras duravam poucos dias, a índia acabava sempre por telefonar para La. Crónica. Lá apareciam os sorrisos irónicos da redacção, as piscadelas pérfidas por cima das máquinas de escrever, enquanto Carlitos, com a cara olheirenta^ a beijar o telefone, movia os lábios com humildade e esperança. A índia tinha-o levado à bancarrota total, andava a pedir dinheiro emprestado a toda a gente e na redacção apareciam cobradores com vales dele. No Negro-Negro cancelaram-lhe o crédito, pensa, a ti devia-te estar a dever pelo menos mil soles, Zavalita. Pensa: vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco anos. Recordações que rebentavam como aqueles balões de pastilha elástica que a Teté fazia, efémeros como as reportagens das apostas de cavalos, cuja tinta o tempo já devia ter sumido, Zavalita, inúteis como os linguados todas as noites arremessados ao cesto de vime.

 

- Qual artista nem meio artista - diz Ambrosio. - Chama-se Margot e é uma pega mais conhecida que sei lá o quê. Todos os dias aparece pela Catedral.

 

Queta estava a fazer o gringo beber que era uma maravilha: uísque atrás de uísque para ele, e para ela copinhos de vermute (que eram água chalada). Arranjaste uma mina de ouro, dissera-lhe Robertito, já vais em doze fichas. Queta só percebia bocados confusos da história que o gringo lhe estava a contar com gargalhadas e mímica. Um assalto a um banco ou a uma loja ou a um comboio que ele tinha visto na vida real ou no cinema ou lido numa revista e que, ela não percebia porquê, lhe provocava uma sequiosa hilaridade. Com um sorriso na cara, uma das mãos passada pelo pescoço sardento. Queta pensava, à medida que dançavam, doze fichas, só? E nisto Ivonne assomou por trás da cortina do bar, flamante de rimmel e de rouge. Piscou-me o olho e chamou-a com a mão de garras prateadas. Queta aproximou a boca do ouvido de pêlos louros: já venno, amor, espera por mim, não te vás embora com ninguém. What, quê, did you say?, perguntou ele, risonho, e Queta apertou-lhe o braço com afecto: era um instante, voltava num instante. Ivonne esperava-a na coxia, com a cara das grandes ocasiões: um importantíssimo, Quetita.

 

- Está ali na saleta com a Malvina - examinava-lhe o penteado, a pintura, o vestido, os sapatos. - Quer que vás tu também.

 

- Mas eu já estou ocupada - disse Queta, apontando para o bar. - Aquele...

 

- Viu-te da saleta, gostou de ti - reverberaram os olhos de Ivonne. - Nem sabes a sorte que tens.

 

- E aquele, minha senhora? - insistiu Queta. - Está a fazer uma grande despesa e...

 

- Com luva de pelica, como a um rei - sussurrou avidamente Ivonne. - Que saia de cá satisfeito, contente contigo. Espera, deixa-me ajeitar-te, estás despenteada.

 

Que pena, pensou Queta, enquanto os dedos de Ivonne lhe esvoaçavam pela cabeça. E depois, à medida que avançava pelo corredor, um político, um militar, um diplomata? A porta da saleta estava aberta e ao entrar viu Malvina a atirar a combinação para a alcatifa. Fechou a porta, mas, daí a pouco, esta voltou a abrir-se e Robertito entrou com uma bandeja; deslizou pela alcatifa dobrado em dois, com o rosto imberbe desfigurado numa careta servil, boa noite. Pôs a bandeja na mesinha, saiu sem se endireitar, e nessa altura Queta ouviu-o :

 

- Tu também, jeitosa, tu também. Não tens calor?

 

Uma voz sem emoção, ressequida, ligeiramente despótica e bêbeda.

 

- Que pressa, amorzinho - disse, procurando-lhe os olhos, mas não lhos viu. Estava sentado no cadeirão sem braços, por baixo dos três quadrinhos, parcialmente oculto pela sombra daquela esquina da dependência onde não chegava luz do candeeiro em forma de dente de elefante.

 

- Não lhe chega uma, gosta delas aos pares - riu-se Malvina. És um esfomeado, não és, amorzinho? Um caprichozinho.

 

- Despacha-te - ordenou ele, veemente e no entanto glacial. Tu também, despacha-te. Não estás a morrer de calor?

 

Não, pensou Queta, e recordou com nostalgia o gringo do bar. À medida que desabotoava a saia, via Malvina, já nua: um losango tostado e carnudo a espreguiçar-se numa pose que queria ser provocante debaixo do cone de luz da lâmpada e a falar sozinha. Parecia alegrota e Queta pensou: está mais gorda. Não lhe ficava bem, os seios caíam-lhe, não tardava que a velha a mandasse tomar banhos turcos ao Virrey.

 

- Avia-te, Quetita - batia as palmas Malvina, a rir. - O caprichozinho não aguenta mais.

 

- Diz antes o malcríadinho - murmurou Queta, enrolando as meias devagar. - Nem sequer sabe dar as boas-noites, o teu amigo.

 

Mas ele não estava para brincadeiras nem para falar. Continuou calado, a balançar-se no cadeirão com um mesmo movimento obsessivo e idêntico, até Queta acabar de se despir. Como Malvina, tinha tirado a saia e o soutien, mas não as cuecas. Dobrou a roupa sem pressa e arrumou-a numa cadeira.

 

- Assim estão melhor, mais frescas - disse ele, com o seu desagradável tom de frio aborrecimento impaciente. - Venham, as bebidas estão a ficar chocas.

 

Dirigiram-se juntas ao cadeirão e, enquanto Malvina se deixava cair com um risinho forçado nos joelhos do homem, Queta conseguiu observar-lhe a cara magra e ossuda, a boca enfastiada, os minuciosos olhos gelados. Cinquenta anos, pensou. Aninhada contra ele, Malvina ronronava comicamente: tinha frio, aquece-me com umas meiguicezinhas. Um impotente cheio de ódio, pensou Queta, um punheteiro cheio de ódio. Ele tinha passado um braço pelos ombros de Malvina, mas os seus olhos, com aquele incomovível tédio, percorriam-na a ela, que aguardava de pé junto à mesinha. Por fim inclinou-se, agarrou em ,dois copos e estendeu-os ao homem e a Malvina. A seguir pegou no seu e bebeu, pensando um deputado, talvez um prefeito.

 

- Também há lugar para ti - ordenou ele, enquanto bebia. Um joelho para cada uma, para não discutirem.

 

Sentiu que a puxava pelo braço, e, ao deixar-se ir contra eles, ouviu Malvina guinchar ai, deste-me no osso, Quetita. Agora estavam muito apertados, o cadeirão movia-se como um pêndulo, e Queta sentiu repugnância: a mão dele estava a suar. Era esquelética, minúscula, e enquanto Malvina, já muito à vontade ou disfarçando muito bem, ria, dizia piadas e tentava beijar o homem na boca, Queta sentia os dedinhos rápidos, molhados, pegajosos, a fazerem-lhe cócegas nos seios, nas costas, na barriga e nas pernas. Desatou a rir e começou a odiá-lo. Ele acariciava-as com método e obstinação, com uma mão no corpo de cada uma, mas nem sequer sorria, e olhava-as alternadamente, mudo, com uma expressão desinteressada e pensativa.

 

- Que pouco alegre que está o senhor malcriadinho - disse Queta.

 

- Vamos para a cama de vez - guinchou Malvina, rindo. - Aqui ainda apanhamos uma pneumonia, amorzinho.

 

- Não me atrevo com as duas, é muita coisa para um homem só - murmurou ele, apartando-as suavemente do cadeirão. E ordenou: - Primeiro temos de animar um bocado. Dancem qualquer coisa.

 

Vai-nos fazer passar a noite nisto, pensou Queta, mandá-lo à merda, voltar para o pé do gringo. Malvina tinha-se afastado e, de joelhos de encontro à parede, ligava o gira-discos. Queta sentiu a fria mãozinha ossuda atraí-la de novo e inclinou-se, avançou a cabeça e separou os lábios: pastosa, incisiva, uma forma que fedia a tabaco picante e álcool passeou-lhe pelos dentes, pelas gengivas, esmagou-lhe a língua e retirou-se deixando-lhe uma massa de saliva amarga na boca. A seguir, a mãozinha afastou-a do cadeirão com delicadeza: vejamos se danças melhor do que beijas. Queta sentiu que a cólera a ia dominando, mas o seu sorriso, em lugar de diminuir, alargou-se. Malvina veio para o pé deles, agarrou Queta pela mão, arrastou-a para a alcatifa. Dançaram uma huaracba, fazendo figuras e cantando, mal se tocando com as pontas dos dedos. Depois, um bolero, soldadas uma contra a outra. Quem é?, murmurou Queta ao ouvido de Malvina. Sabe-se lá, Quetita, um filho da puta qualquer.

 

- Um bocadinho mais carinhosas - sussurrou ele, lentíssimo, e a sua voz era outra: tinha-se tornado mais quente e parecia ter-se humanizado. - Um bocadinho mais de alma.

 

Malvina soltou a sua risadinha aguda e artificial e começou a dizer em voz alta riqueza, mãezinha, e a roçar-se empenhadamente contra Queta que a tinha agarrado pela cintura e a fazia bambolear. O movimento do cadeirão recomeçou, agora mais rápido que antes, desigual e com um misterioso ruído de molas, e Queta pensou pronto, já se vai embora. Procurou a boca de Malvina e enquanto se beijavam fechou os olhos para não lhe dar o riso. E nisto o guinchar trepidante das rodas de um automóvel que travava emudeceu a música. Soltaram-se, Malvina tapava os ouvidos, disse bêbedos escandalosos. Mas não houve choque, só o bater de uma porta, depois da travagem seca e sibilante, e, por fim, a campainha da casa. Tocava como se tivesse ficado presa.

 

- Não é nada, que é que lhes aconteceu - disse ele, com raiva surda. - Continuem a dançar.

 

Mas o disco tinha acabado e Malvina foi mudá-lo. Tornaram a abraçar-se, a dançar, e de repente a porta bateu contra a parede como se a tivessem aberto à patada. Queta viu-o: mulato, grande, musculoso, brilhante como o rato azul que vestia, uma pele a meio caminho entre o alcatrão e o chocolate, uns cabelos furiosamente alisados. Especado no umbral, com uma manápula colada ao puxador, os seus olhos brancos e enormes, deslumbrados, fitavam-na. Nem sequer quando o homem saltou do cadeirão e atravessou a alcatifa com dois sacões deixaram de fitá-la.

 

- Que raio de merda fazes tu aqui? - disse o homem, plantado diante do mulato, com os punhozinhos cerrados como se fosse esmurrá-lo. - Não se pede licença para entrar?

 

- O general Espina está à porta, D. Cayo - parecia encolher-se, tinha largado o puxador, olhava acobardado o homem, as palavras atabalhoavam-se-lhe. - No carro dele. Que venha, que é muito urgente.

 

Malvina vestia pressurosamente a saia, a blusa, os sapatos, e Queta, enquanto se vestia, olhou outra vez para a porta. Por cima do homenzinho de costas, encontrou por um segundo os olhos do mulato: atemorizados, deslumbrados.

 

- Diz-lhe que vou já - murmurou o homem. - Não voltes a entrar dessa maneira em lado nenhum, se não queres que qualquer dia te recebam a tiro.

 

- Desculpe, D. Cayo - anuiu o mulato, retrocedendo. - Não pensei, disseram-me está ali. Desculpe.

 

Desapareceu no corredor e o homem fechou a porta. Voltou-se para elas e a luz da lâmpada iluminou-o dos pés à cabeça. Tinha a cara enrugada e nos olhinhos havia um brilho apagado e frustrado. Tirou umas notas da carteira e pô-las em cima de um cadeirão. Aproximou-se delas, ajeitando a gravata.

 

- Para se consolarem da minha partida - murmurou de mau modo, apontando as notas com um dedo. E ordenou a Queta: Mando-te buscar amanhã. Por volta das nove.

 

- A essa hora não posso sair - disse Queta, rapidamente, deitando um olhar a Malvina.

 

- Vais ver que podes - disse ele, secamente. - Por volta das nove, já sabes.

 

- Com que então a mim desprezas-me, amorzinho? - riu-se Malvina, empinando-se para observar as notas do cadeirão. - Com que então chamas-te Cayo. Cayo quê?

 

- Cayo Merda - disse ele, a caminho da porta, sem se virar. Saiu e bateu com a porta.

 

- Telefonaram-te agora mesmo de casa, Zavalita - disse Solórzano ao vê-lo entrar na redacção. - É urgente. Sim, o teu pai, parece-me.

 

Correu à primeira secretária, marcou o número, longos sinais de chamada que feriam, uma desconhecida voz provinciana: o senhor não estava, não estava ninguém em casa. Tinham mudado outra vez de mordomo e este nem sabia quem tu eras, Zavalita.

 

- Sou Santiago, o filho do senhor - repetiu, elevando a voz. Que tem o meu pai? Onde está?

 

- Doente - disse o mordomo. - Está na clínica. Não se sabe em qual, senhor.

 

Pediu uma libra a Solórzano e tomou um táxi. Ao entrar na Clínica Americana viu a Teté, a telefonar da administração; um rapaz que não era o Chispas tinha o braço por cima do ombro e só quando estava muito perto reconheceu Popeye. Viram-no, a Teté desligou.

 

- Já está melhor, já está melhor - tinha os olhos chorosos, a voz alterada. - Mas julgámos que ia morrer, Santiago.

 

- Há uma hora que estamos a ligar para ti, magricela - disse Popeye. - Para a pensão, para a Crónica. Já te ia buscar de carro.

 

- Mas não foi dessa vez - disse Santiago. - Morreu ao segundo ataque, Ambrosio. Um ano e meio depois.

 

Tinha sido à hora do chá. D. Fermín tinha voltado para casa mais cedo que o costume; não se sentia bem, receava uma gripe. Tinha bebido um chá bem quente, um gole de conhaque, e estava a ler as Selecções, bem agasalhado no seu cadeirão do escritório, quando a Teté e Popeye, que estavam a ouvir discos na sala, deram pelo baque. Santiago fecha os olhos: o maciço corpo de bruços na alcatifa, o rosto imobilizado numa careta de dor ou de espanto, a manta e a revista caídas no chão. Os gritos que a mamã devia ter dado, a confusão que teria sido. Tinham-no envolvido em cobertores, levado para o automóvel de Popeye, trazido para a clínica. Apesar da barbaridade que vocês fizeram, mexendo-o, resistiu muito bem ao enfarte, tinha dito o médico. Precisava de manter um repouso absoluto, mas já não havia nada a recear. No corredor, junto ao quarto, estava a D. Zoila, e o tio Clodomiro e o Chispas acalmavam-na. A mãe estendeu-lhe a face para ele a beijar, mas não disse uma palavra e olhou para Santiago como se lhe reprovasse qualquer coisa.

 

- Já recuperou o conhecimento - disse o tio Clodomiro. Quando a enfermeira sair, podes ir vê-lo.

 

- Só um bocadinho - disse o Chispas. - O médico não quer que ele fale.

 

Lá estava o amplo quarto de parede de cor verde-limão, a antecâmara de cortinas às flores, e ele, Zavalita, com um pijama de seda escarlate. O candeeiro da mesa-de-cabeceira iluminava a cama com uma escassa luz de igreja. Ali, a palidez da cara dele, os seus cabelos grisalhos revoltos nas fontes, o reflexo de terror animal nos olhos. Mas quando Santiago se inclinou para o beijar, sorriu: até que enfim te tinham encontrado, magricela, já julgava que não te voltava a ver.

 

- Deixaram-me entrar com a condição de não te obrigar a falar, papá.

 

- Já passou o susto, felizmente - sussurrou D. Fermín; a sua mão tinha deslizado para fora dos lençóis, tinha apanhado o braço de Santiago. - Tudo bem, magricela? À pensão, o emprego?

 

- Tudo óptimo, papá - disse ele. - Mas não fales, por favor.

 

- Sinto aqui um nó, menino - diz Ambrosio. - Um homem como ele não devia morrer.

 

Permaneceu no quarto um grande bocado, sentado na borda da cama, observando a mão grossa, de pêlos ralos, que repousava no seu joelho. D. Fermín tinha fechado os olhos, respirava profundamente. Não tinha almofada, a cabeça estava de lado sobre o colchão e ele podia ver-lhe o pescoço sulcado de rugas e os pontinhos cinzentos da barba. Pouco depois entrou uma enfermeira de sapatos brancos e fez-lhe um gesto para sair. A D. Zoila, o tio Clodomiro e o Chispas tinham-se sentado na antecâmara; a Teté e o Popeye cochichavam de pé, junto à porta.

 

- Dantes era a política, agora o laboratório e o escritório - disse o tio Clodomiro. - Trabalhava de mais, não podia ser.

 

- Quer ser ele a dirigir tudo, não faz caso do que eu lhe digo disse o Chispas. - Pedi-lhe até ao desespero que me deixe ser eu a tomar conta das coisas, mas não há maneira. Agora vai ter de descansar à força.

 

- Está mal dos nervos - a D. Zoila olhou para Santiago com rancor. - Não é só o escritório, é também este miúdo. Tira-lhe anos de vida não ter notícias tuas e tu cada vez te fazes mais rogado para vires a casa.

 

- Não dês esses gritos de doida, mamã - disse a Teté. - Ele está a ouvir.

 

- Não o deixas viver em paz com as fúrias que o fazes ter - soluçou a D. Zoila. - Fizeste a vida do teu pai um inferno, miúdo.

 

A enfermeira saiu do quarto e sussurrou ao passar não falem tão alto. A D. Zoila limpou os olhos com o lenço e o tio Clodomiro inclinou-se para ela, compungido e solícito. Estiveram calados, a olhar uns para os outros. Depois a Teté e Popeye começaram outra vez a cochichar. Como estavam todos mudados, Zavalita, como o tio Clodomiro tinha envelhecido. Sorriu-lhe e o tio devolveu-lhe um contristado sorriso de circunstância. Encolhera, tinha mais rugas, quase não tinha cabelo, só uns fiapozinhos brancos salpicados pela cabeça. O Chispas era já um homem; nos movimentos, na maneira de se sentar, na voz dele havia uma segurança adulta, uma desenvoltura que parecia corporal e espiritual ao mesmo tempo, e o seu olhar era tranquilamente resoluto. Ali estava, Zavalita: forte, bronzeado, de casaco cinzento, sapatos e meias pretas, os punhos alvos da camisa, a gravata verde-escura, com um discreto alfinete, o rectângulo do lencinho branco a assomar no bolso do casaco. E ali a Teté, a falar em voz baixa com Popeye. Tinham as mãos dadas, olhavam-se nos olhos. O vestido cor-de-rosa dela, pensa, o grande laço que lhe envolvia o pescoço e caía até à cintura. Notavam-se-lhe os seios, a curva das ancas começava a desenhar-se, as pernas eram compridas e esbeltas, os tornozelos finos, as mãos brancas. Já não eras como eles, Zavalita, já eras um rústico: já sei porque é que te dava essa fúria mal me vias, mamã. Não se sentia vitorioso nem contente, apenas impaciente por ir-se embora. Secretamente, a enfermeira veio dizer que tinha acabado a hora das visitas. A D. Zoila ficava a dormir na clínica, o Chispas levou a Teté. Popeye ofereceu-se para levar o tio Clodomiro mas ele tomava o colectivo, deixava-o mesmo à porta de casa, não valia a pena, obrigadíssimo.

 

- O teu tio é sempre assim - disse Popeye; caminhavam devagar, na noite recém-caída, em direcção à baixa. - Nunca quer que eu o leve nem que o vá buscar.

 

- Não gosta de incomodar nem de pedir favores - disse Santiago. - É um tipo muito simples.

 

- Sim, uma jóia de pessoa - disse Popeye. - Conhece o Peru de lês a lês, não?

 

Lá estava o Popeye, Zavalita: sardento, corado, com os cabelos ruivos eriçados, o mesmo olhar amistoso e são de antigamente. Mas mais gordo, mais alto, mais senhor do seu corpo e do mundo. A camisa aos quadrados, pensa, o casaco de flanela com bandas e cotovelos de couro, as calças de bombazina, as mocassinas.

 

- Apanhámos um susto tremendo com o teu velho - guiava com uma mão, com a outra sintonizava o rádio. - Foi uma sorte não lhe ter dado aquilo na rua.

 

- Já falas como membro da família - interrompeu-o Santiago, sorrindo. - Nem sabia que andavas com a Teté, sardento.

 

- Ela não te disse nada? - exclamou Popeye. - Há pelo menos dois meses, magricela. Tu andas na lua.

 

- Há muito tempo que não ia a casa - disse Santiago. - Enfim, fico muito satisfeito pelos dois.

 

- Fez-me passar as passas do Algarve, a tua irmã - riu-se Popeye. - Desde o colégio, lembras-te? Quem porfia mata caça, como vês.

 

Pararam no Tambo da Avenida Arequipa, pediram dois cafés, conversaram sem sair do automóvel. Escavavam as recordações comuns, resumiram as suas vidas. Acabava de se formar em Arquitectura, pensa, tinha começado a trabalhar numa empresa importante, ansiava por formar a sua própria companhia com outros colegas. E tu, magricela, como vai isso, quais são os teus projectos?

 

- Vai bastante bem - disse Santiago. - Não tenho projectos nenhuns. Apenas continuar na Crónica.

 

- Quando é que te formas em advocacia? - perguntou Popeye. Tens queda para isso.

 

- Acho que nunca - disse Santiago. - Não gosto de advocacia.

 

- Aqui para nós, é uma coisa que entristece muito o teu velho disse Popeye. - Anda sempre a dizer-me a mim e à Teté entusiasmem-no para acabar a carreira. Sim, conta-me tudo. Dou-me muito bem com o teu velho, magricela. Fizemo-nos camaradões. É uma óptima pessoa.

 

- Não me apetece ser doutor - troçou Santiago. - Neste país, toda a gente é doutor.

 

- E tu sempre quiseste ser diferente de toda a gente - riu-se Popeye. - Exactamente como em miúdo, magricela. Estás na mesma.

 

Saíram no Tambo, mas ainda conversaram um bocado na Avenida Tacna, em frente do edifício leitoso de La Crónica, antes de Santiago se apear. Tinham de ver-se mais vezes, magricela, sobretudo agora, que somos meio cunhados. Popeye tinha-te procurado uma data de vezes mas tu eras invisível, pá. Passaria palavra a alguns’lá do bairro que andavam sempre a perguntar por ti, magricela, e um dia destes podiam almoçar juntos. Não tinhas voltado a ver ninguém do nosso curso, magricela? Pensa: o curso. Os cachorros que eram já tigres e leões, Zavalita. Os engenheiros, os advogados, os gerentes. Alguns já teriam casado, pensa, já teriam amantes.

 

- Não vejo muita gente porque levo vida de mocho, sardento, por causa do jornal. Deito-me ao amanhecer e levanto-me para ir para o trabalho.

 

- Uma vida boémia como tudo, magricela - disse Popeye. Deve ser bestial, não? Sobretudo para um intelectual como tu.

 

- De que é que se está a rir? - pergunta Ambrosio. - O que lhe disse do seu paizmho é o que realmente penso, menino.

 

- Não é disso - diz Santiago. - Estou-me a rir da minha cara de intelectual.

 

No dia seguinte encontrou D. Fermín sentado na cama, a ler os jornais. Estava animado, respirava sem dificuldade, tinham-lhe voltado as cores. Esteve uma semana na clínica e tinha ido vê-lo todos os dias, mas sempre com gente. Parentes que não via há anos e que o examinavam com uma espécie de desconfiança. A ovelha ronhosa, o que fugiu de casa, o que ralava a Zoilita, o que tinha um empregozinho num jornal? Impossível lembrar-se dos nomes desses tios e tias, Zavalita, das caras desses primos e primas; talvez te tivesses cruzado muitas vezes com eles sem os reconheceres. Era Novembro e começava a fazer um bocado de calor quando a D. Zoila e o Chispas levaram D. Fermín a Nova Iorque para ser examinado. Regressaram daí a dez dias e a família foi passar o Verão a Ancón. Quase não os tinhas visto durante três meses, Zavalita, mas todas as semanas falavas ao telefone com o velhote. Em fins de Março voltaram a Miraflores e D. Fermín tinha-se recomposto e vinha com uma cara bronzeada e saudável. No primeiro domingo que almoçou novamente em casa, viu que Popeye beijava a D. Zoila e D. Fermín. A Teté tinha licença para ir dançar com ele, todos os sábados, ao Grill dei Bolívar. No teu aniversário, a Teté e o Chispas e o Popeye tinham ido acordar-te à pensão, e em casa estava toda a família à tua espera, com embrulhos. Dois fatos, Zavalita, camisas, sapatos, uns botões de punho, num envelope um cheque de mil soles, que gastaste com Carlitos nas pegas. Que importava que valesse a pena, Zavalita, que importava que sobrevivesse?

 

- Ao princípio andei por aí - diz Ambrosio. - Depois fui motorista, e, esta é para rir, menino, até meio dono de uma agência funerária.

 

As primeiras semanas em Pucallpa tinham sido um tormento. Não tanto pela desconsolada tristeza de Ambrosio como pelos pesadelos. O corpo branco, jovem e belo dos primeiros tempos em San Miguel aproximava-se, vindo de escuridões remotas, cintilando, e ela, de joelhos no seu acanhado quartinho de Jesus Maria, começava a tremer. Flutuava, crescia, pairava no ar cercado de um halo dourado e ela conseguia ver a grande ferida roxa no pescoço da senhora e os seus olhos acusadores: mataste-me. Acordava aterrada, abraçava-se ao corpo adormecido de Ambrosio, ficava acordada até ao amanhecer. Outras vezes era perseguida por polícias de fardas verdes e ouvia os seus apitos, o barulho dos seus sapatões: mataste-a. Não a agarravam, passavam toda a noite a estender as mãos para ela, que se encolhia e suava.

 

- Não me tornes a falar da senhora - tinha-lhe dito Ambrosio, com cara de cão encurralado, no dia da chegada. - Proíbo-to.

 

Aliás, tinha sentido desde o princípio uma certa desconfiança contra esta cidade abafada e decepcionante. Tinham vivido primeiro numa casa infestada de aranhas e baratas - o Hotel Pucallpa -, nas proximidades da praça meio feita, meio por fazer, de cujas janelas se avistava o embarcadouro com as suas canoas, lanchas e barcaças a balouçarem nas águas sujas do rio. Que feio era tudo aquilo, que pobre era tudo aquilo. Ambrosio olhava para Pucallpa com indiferença, como se estivessem lá de passagem, e só um dia em que ela se estava a queixar do calor sufocante tinha feito um comentário vago: este calorzinho parecia o de Chincha, Amalia. Tinham passado uma semana no hotel. Depois tinham alugado uma barraca com telhado de palha, perto do hospital. Em redor havia muitas agências funerárias, inclusivamente uma especializada em caixõezinhos brancos de criança, que se chamava Ataúdes Limbo.

 

- Desgraçados dos doentes do hospital - tinha dito Amalia. Com tantas agências funerárias à volta, devem passar o tempo a pensar que vão morrer.

 

- É o que mais lá há - diz Ambrosio. - Igrejas e agências funerárias. Até enjoa, nunca vi tantas religiões como em Pucallpa, menino.

 

A morgue também ficava em frente do hospital, a poucos passos da barraca. Amalia tinha sentido um estremecimento no primeiro dia, ao ver a tenebrosa construção de cimento com a sua crista de aves de rapina no telhado. A barraca era grande e tinha atrás um terrenozinho coberto de ervas daninhas. Podem semear qualquer coisa, tinha-lhes dito Alejandro Pozo, o proprietário, no dia em que se mudaram, fazer uma hortazinha. Ó chão dos quatro quartos era de terra e as paredes estavam desbotadas. Não tinham sequer um colchão, onde é que iam dormir? Sobretudo Amalita Hortênsia, os bichos haviam de a picar. Ambrosio tinha apalpado o fundilho: comprariam o que fosse preciso. Nessa mesma tarde tinham ido à baixa e comprado um divã, um colchão, um berço, panelas, pratos, um fogareiro, umas cortininhas, e Amalia, ao ver que Ambrosio continuava a escolher coisas, tinha ficado alarmada: pronto, já chega, olha que se te acaba o dinheiro. Mas ele, sem lhe responder, tinha continuado a pedir ao encantado vendedor dos Armazéns Wong: mais isto, mais aquilo, o oleado.

 

- Onde é que foste arranjar tanto dinheiro? - tinha-lhe perguntado Amalia nessa noite.

 

- Tinha passado todos aqueles anos a amealhar - diz Ambrosio. - Para me estabelecer e trabalhar por conta própria, menino.

 

- Então devias estar satisfeito - tinha dito Amalia. - Mas não estás. Estás arrependido de ter saído de Lima.

 

- Deixei de ter patrão, agora vou ser eu o patrão de mim mesmo - tinha dito Ambrosio. - Claro que estou satisfeito, pateta.

 

Mentira, só depois começava a andar satisfeito. Tinha passado aquelas primeiras semanas em Pucallpa muito sério, quase sem falar, com uma cara desoladíssima. Mas, apesar disso, tinha sido muito bom para ela e para a Amalita Hortênsia desde o primeiro momento. No dia seguinte à chegada, tinha saído sozinho do hotel e voltado com um embrulho. Que era? Roupa para as duas Amalias. O vestido dela era enorme, mas Ambrosio nem tinha sorrido ao vê-la perdida dentro daquela túnica florida que lhe pingava nos ombros e lhe tocava os tornozelos. Tinha ido à Empresa Morales de Transportes, S. A., pouco depois de chegar a Pucallpa, mas D. Hilário estava em Tingo Maria e só voltaria daí a dez dias. Que fariam entretanto, Ambrosio? Procurariam casa, e, até chegar a hora de se pôr a suar, divertir-se-iam um bocado, Amalia. Não se tinham divertido muito, ela por causa dos pesadelos e ele porque tinha saudades de Lima, embora tivessem tentado, gastando montes de dinheiro. Tinham ido ver os índios shipihos, tinham apanhado barrigadas de arroz de chau-chau, camarões de refogado e wantan frito nos restaurantes chineses da Calle Comercio, tinham passeado de bote pelo Ucayali, feito uma excursão a Yarinacocha, e várias noites tinham-se metido no Cinema Pucallpa. Os filmes eram decrépitos, e às vezes Amalita Hortênsia desatava a chorar na escuridão e as pessoas gritavam levem-na lá para fora. Passa-ma cá, dizia Ambrosio, e fazia-a calar dando-lhe o dedo para ela chupar.

 

Pouco a pouco, Amalia tinha-se ido acostumando, pouco a pouco, a cara de Ambrosio fora-se alegrando. Tinham trabalhado a valer na barraca. Ambrosio tinha comprado tinta e caiado a fachada e as paredes e ela tinha raspado a porcaria do chão. Todas as manhãs tinham ido ao mercadinho juntos, comprar comida, e aprendido a diferençar os locais das igrejas por que passavam: baptista, adventistas do sétimo dia, católica, evangelista, pentecostal. Tinham começado outra vez a conversar um com o outro: andavas tão esquisito, às vezes penso que houve outro Ambrosio que se meteu no teu corpo, que o verdadeiro ficou em Lima. Mas porquê, Amalia? Pela tristeza dele, pela sua cara concentradíssima e os seus olhares, que de repente se apagavam e desviavam como os de um animal. Estavas doida, Amalia, quem tinha ficado em Lima é que era o falso Ambrosio. Aqui sentia-se bem, contente com este sol, Amalia, o céu nublado de lá baixava-Lhe o moral. Oxalá fosse verdade, Ambrosio. À noite, como tinham visto as pessoas lá do sítio fazerem, também eles tinham vindo sentar-se na rua a apanhar o fresco que vinha do rio, e conversar, embalados pelos sapos e pelos grilos acachapados na relva. Uma manhã, Ambrosio tinha entrado com um guarda-chuva: aí tinha, Amalia, para nunca mais resmungar por causa do sol. Assim só lhe faltava sair à rua com rolos na cabeça para pareceres uma montanhesa, Amalia. Os pesadelos tinham vindo a espaçar-se, a desaparecer, e também o medo que sentia cada vez que via um polícia. O remédio tinha sido passar todo o tempo ocupada, a cozinhar, a lavar a roupa de Ambrosio, a atender Amalita Hortênsia, enquanto ele tentava converter o descampado em horta. Descalço, desde muito cedo, Ambrosio tinha passado as horas a desbastar a erva, mas ela reaparecia veloz e mais forte que antes. Frente à sua, havia uma barraca pintada de azul e branco, com uma horta cheia de árvores de fruto. Uma manhã, Amalia tinha ido pedir conselho à vizinha, e a Sr.a Lupe, companheira dum fulano que tinha uma quinta lá para cima do rio e que raras vezes aparecia, tinha-a recebido com afecto. Fora a primeira e a melhor amiga que tinham tido em Pucallpa, menino. A Sr.” Lupe tinha ensinado Ambrosio a limpar o mato e ir semeando ao mesmo tempo, aqui batata-doce, ali mandioca, acolá batatas. Tinha-lhes oferecido sementes e ensinara Amalia a fazer o prato de bananas fritas com arroz, mandioca e peixe que toda a gente comia em Pucallpa.

 

- Como é isso de ter casado por acidente, menino? - Ambrosio. - Quer dizer que o obrigaram?

 

Tinha começado numa daquelas noites brancas e estúpidas, que, por uma espécie de milagre, se transformou em festa. Norwin tinha telefonado para La Crónica, a dizer que os esperava no El Pátio, e, acabado o trabalho, Santiago e Carlitos tinham ido ter com ele. Norwin queria ir às pegas, Carlitos ao Pingúino, atiraram uma moeda ao ar e ganhou Carlitos. Era alguma festa de convites? A boíte estava morta e sem clientes, Pedrito Aguirre sentou-se com eles e ofereceu-Lhes cervejas. Ao terminar o segundo sbow, saíram os últimos clientes, e então, súbita, inesperadamente, as raparigas do show e os rapazes da orquestra e os empregados do bar acabaram reunidos numa roda de mesas risonhas. Tinham começado com piadas, saúdes, anedotas e intrigas, e de repente a vida parecia alegre, espertada, espontânea e simpática. Bebiam, cantavam, começaram a dançar, e ao lado de Santiago, a índia e Carlitos, mudos e apertados, olhavam-se nos olhos como se acabassem de descobrir o amor. Às três da manhã ainda ali estavam, bebidos e amigos, generosos e loquazes, e Santiago sentia-se apaixonado por Ada Rosa. Lá estava, Zavalita: baixinha, rabuda, mulatinha. As suas pernas de cepo, pensa, o seu dente de ouro, o seu mau hálito, as suas grosserias.

 

- Um acidente propriamente dito - diz Santiago. - Um acidente de automóvel.

 

Norwin foi o primeiro a desaparecer, com uma bailarina quarentona de penteado flamejante. A índia e Carlitos convenceram Ada Rosa a ir com eles. Meteram-se num táxi e foram para o apartamento da índia em Santa Beatriz. Sentado ao lado do motorista, Santiago tinha uma mão distraída entre os joelhos de Ada Rosa, que ia atrás, adormecida junto da índia e de Carlitos, que se beijavam com fúria. No apartamento beberam todas as cervejas do frigorífico e ouviram discos e dançaram. Quando a luz do dia surgiu na janela, a índia e Carlitos fecharam-se no quarto e Santiago e Ada Rosa ficaram sozinhos na sala. No El Pingúino tinham-se beijado, e aqui acariciado, e ela tinha-se sentado nos joelhos dele, mas agora, quando ele tentou despi-la, Ada Rosa encabritou-se e começou a vociferar e a insultá-lo. Estava bem, Ada Rosa, nada de bulhas, vamos dormir. Pôs as almofadas da poltrona sobre a alcatifa, deitou-se e adormeceu. Ao acordar, viu entre névoas azuladas Ada Rosa encolhida como um feto no sofá, a dormir vestida. Foi aos tropeções até ao quarto de banho, aturdido pela biliosa fadiga e pelo ressentimento dos ossos, e meteu a cabeça na água fria. Saiu de casa: o sol feriu-lhe os olhos e fê-lo lacrimejar. Bebeu um café numa taberna de Petit Thouars, e depois, com umas vagas náuseas itinerantes, tomou um colectivo para Miraflores e outro para Barranco. A D. Lúcia tinha-lhe deixado um papel em cima da cama: telefone para La Crónica, com muita urgência. O Arispe não devia estar bom da cabeça para julgar que lhe ias telefonar, Zavalita. Mas, no momento de entrar na cama, pensou que a curiosidade não o deixaria dormir e desceu em pijama para fazer o telefonema.

 

- Não está satisfeito com o seu casamento? - pergunta Ambrosio.

 

- Bolas - disse Arispe. - Parece uma voz do outro mundo, meu senhor.

 

- Tive uma festa e estou com a cabeça em água - disse Santiago. - Não dormi nada.

 

- Dormes na viagem - disse Arispe. - Põe-te a mexer para aqui num táxi. Vais a Trujillo com o Periquito e o Darío, Zavalita.

 

- A Trujillo? - viajar, pensa, viajar por fim, ainda que fosse a Trujillo. - Não posso partir daqui a...?

 

- A falar verdade, já partiste - disse Arispe. - Uma informação fixe, o vencedor do milhão e meio das apostas de cavalos, Zavalita.

 

- Está bem, vou tomar um duche e sigo para aí - disse Santiago.

 

- Podes passar-me a reportagem por telefone esta noite - disse Arispe. - Não tomes duche e despacha-te, a água é para os porcos como o Becerrita.

 

- Estou, estou - diz Santiago. - O problema é que nem isso fui eu realmente quem decidiu. Impôs-se-me por si, como o emprego, como tudo o que me tem acontecido. Não fiz as coisas por mim. Foram mais as coisas que me fizeram a mim.

 

Vestiu-se apressadamente, tornou a molhar a cabeça, desceu a escada aos baldões. O motorista do táxi teve de o acordar ao chegar à Crónica. Estava uma manhã de sol, fazia um calorzinho que entrava deliciosamente pelos poros e adormecia os músculos e a vontade. Arispe tinha deixado instruções e dinheiro para a gasolina, comida e hotel. Apesar do mal-estar e do sono, sentias-te satisfeito com a ideia da viagem, Zavalita. Periquito sentou-se ao lado de Darío e Santiago estendeu-se no banco de trás e adormeceu quase instantaneamente. Acordou quando estavam a entrar em Pasamayo. À direita, dunas e pálidos cerros empinados, à esquerda, o mar azul resplandecente e o precipício que crescia, em frente, a estrada a trepar penosamente o flanco pelado do monte. Endireitou-se e acendeu um cigarro, Periquito fitava alarmado o abismo.

 

- As curvas de Pasamayo tiraram-vos a verga, seus maricas riu-se Darío.

 

- Vai mais devagar - disse Periquito. - E, como não tens olhos na nuca, o melhor é não te virares para conversar.

 

Darío conduzia depressa, mas era seguro. Quase não encontraram automóveis em Pasamayo, em Chancay pararam para almoçar, num restaurante de camionistas à beira da estrada. Reiniciaram a viagem e Santiago, tentando dormir apesar dos solavancos, ouvi-os conversar.

 

- Se calhar esta história de Trujillo é mentira - disse Periquito. - Há sacanas que passam a vida a dar informações falsas aos jornais.

 

- Um milhão e meio de soles para um homem só - disse Darío. Eu não acreditava nas apostas de cavalos, mas vou passar a jogar.

 

- Converte um milhão e meio em gajas e depois conta-me - disse Periquito.

 

Povoações agonizantes, cães agressivos que saíam ao encontro da camioneta com as mandíbulas ao léu, camiões estacionados à beira da estrada, canaviais esporádicos. Estavam a entrar no quilómetro 83 quando Santiago se endireitou e fumou outro cigarro. Era uma recta, com areais de um lado e doutro. O camião não os surpreendeu; viram-no cintilar ao longe, no topo de uma colina, e viram-no aproximar-se, lento, pesado, corpulento, com o seu carregamento de latas presas com cordas na caixa. Um dinossauro, disse Periquito, no momento em que Darío travava de repente e torcia o volante porque, precisamente no ponto em que se iam cruzar com o camião, um buraco devorava metade da estrada. As rodas da camioneta caíram na areia, qualquer coisa estalou debaixo do veículo, endireita!, gritou Periquito, e Darío tentou e foi então que nos iodemos, pensa. As rodas afundaram-se, em vez de escalar a borda patinaram e a camioneta avançou ainda, monstruosamente inclinada, até que o próprio peso a venceu e rolou como uma bola. Um acidente em câmara lenta, Zavalita. Ouviu ou deu um grito, um mundo torcido e enviesado, uma força que o arremessava violentamente para a frente, uma escuridão com estrelinhas. Por um tempo indefinido ficou tudo quieto, em trevas, doloroso e quente. Sentiu primeiro um sabor acre, e, embora tivesse aberto os olhos, levou tempo a descobrir que tinha sido projectado para fora do veículo e estava estendido na terra e que o sabor áspero era a areia que se lhe metia na boca. Tentou pôr-se de pé, a tontura cegou-o e caiu outra vez. A seguir sentiu-se agarrado de pés e mãos, levantado, e lá estavam, ao fundo de um longo sonho esfumado, aqueles rostos estranhos e remotos, aquela sensação de infinita e lúcida paz. Seria assim, Zavalita? Seria aquele silêncio sem perguntas, aquela serenidade sem dúvidas nem remorsos? Tudo era frouxo, vago e alheio, e sentiu-se instalado em qualquer coisa mole que se mexia. Estava num automóvel, estendido no banco de trás, e reconheceu as vozes de Periquito e Darío e viu um homem vestido de castanho.

 

- Como estás, Zavalita? - perguntou a voz de Periquito.

 

- Bêbedo - disse Santiago. - Dói-me a cabeça.

 

- Tiveste sorte - disse Periquito. - Se desse outra volta, esmagava-te, sem apelo nem agravo.

 

- É uma das poucas coisas importantes que me aconteceram, Ambrosio - diz Santiago. - Aliás, foi assim que conheci aquela que agora é minha mulher.

 

Tinha frio, não lhe doía nada, mas continuava entontecido. Ouvia diálogos e murmúrios, o barulho do motor, doutros motores, e, quando abriu os olhos, estavam a colocá-lo numa maca. Viu a rua, o céu que começava a escurecer, leu La Maison de Santé na fachada do edifício onde entravam. Levaram-no para um quarto do segundo andar. Periquito e Darío ajudaram a despi-lo. Quando se viu coberto por lençóis e cobertores, pensou vou dormir horas a fio. Respondia entre sonhos às perguntas de um homem de bata branca.

 

- Diz ao Arispe que não publique nada, Periquito - mal reconheceu a própria voz. - O meu pai não deve saber do que aconteceu.

 

- Um encontro romântico - diz Ambrosio. - Ganhou o seu carinho tratando-o?

 

- Não, dando-me de fumar às escondidas, isso sim - diz Santiago.

 

- Estás na tua noite, Quetita - disse Malvina. - Estás magnífica.

 

- Mandam-te buscar com motorista e tudo - pestanejou Robertito. - Como a uma rainha, Quetita.

 

- É verdade, saiu-te a sorte grande - disse Malvina.

 

- E a mim também, e a todas nós - disse Ivonne, despedindo-se dela com um sorriso malicioso. -Já sabes, com luva de pelica, Quetita.

 

Antes, quando Queta se estava a arranjar, Ivonne tinha vindo ajudá-la a pentear-se e vigiar pessoalmente o seu vestuário; até lhe tinha emprestado um colar que fazia jogo com a pulseira dela. Saiu-me a sorte grande?, pensava Queta, admirada de não estar contente nem sequer curiosa. Saiu e à porta teve um pequeno sobressalto: os mesmos olhos atrevidos e assustados de ontem. Mas o mulato olhou-a de frente só uns segundos; baixou a cabeça, murmurou boa noite, apressou-se a abrir-lhe a porta do automóvel, que era preto, grande e severo como uma carreta funerária. Entrou sem corresponder às boas-noites dele e viu outro tipo lá à frente. Também alto, também forte, também vestido de azul.

 

- Veja lá se tem frio e quer que feche a janela - murmurou o mulato, já sentado ao volante, e ela viu por um instante o branco dos olhos dele.

 

O automóvel arrancou em direcção à Plaza Dos de Mayo, virou pela Alfonso Urgarte até à Bolognesi, enfiou pela Avenida Brasil e, quando passavam por baixo dos postes de iluminação, Queta descobria sempre os codiciosos animaizinhos no espelho retrovisor, a procurarem-na. O outro tipo tinha-se posto a fumar, depois de lhe perguntar se o fumo não a incomodava, e não se voltou para olhá-la nem a espiou pelo espelho durante todo o trajecto. Já perto do Malecón, entraram em Magdalena Nueva por uma transversal, seguiram a linha do eléctrico até San Miguel, e, cada vez que olhava para o espelho retrovisor, Queta via-os: a brilharem, a rugirem.

 

- Tenho alguma coisa de especial na cara? - perguntou pensando este idiota ainda se estampa. - Porque é que estás a olhar tanto para mim?

 

As cabeças da frente rodaram e voltaram-se para ela, a voz do mulato surgiu insuportavelmente confundida, ele?, desculpe?, era com ele que estava a falar?, e Queta pensou mas que medo que tu tens do Cayo Merda. O carro ia e vinha pelas escuras ruelas silenciosas de San Miguel e por fim parou. Viu um jardim, uma casinha de dois andares, uma janela com cortinas que deixavam passar a luz. O mulato tinha-se apeado para lhe abrir a porta. Estava ali, com a mão cor de cinza no fecho, cabisbaixo e acobardado, tentando abrir a boca. É aqui?, murmurou Queta. As casinhas sucediam-se idênticas na luz mortiça, por trás das alinhadas arvorezinhas sombrias dos passeios. Dois polícias olhavam para o carro, da esquina, e o tipo de dentro fez-lhes um sinal como quem diz somos nós. Não era uma grande casa, não devia ser a casa dele, pensou Queta: deve ser a casa onde ele faz as suas porcarias.

 

- Eu não queria incomodá-la - balbuciou o mulato, com voz oblíqua e humilhada. - Não estava a olhar para si. Mas, se julga que sim, peco-lhe imensa desculpa.

 

- Não tenhas medo que eu não conto nada ao Cayo Merda riu-se Queta. - O que acontece é que não gosto de atrevidos.

 

Atravessou o perfumado jardim de flores húmidas e, ao tocar a campainha, ouviu do outro lado da porta vozes, música. A luz de dentro fê-la pestanejar. Reconheceu a encolhida silhueta miúda do homem, a cara estragada, o tédio da sua boca e os olhos sem vida: entra, bons olhos te vejam. Obrigado por me ter mandado o, disse ela, e calou-se: estava ali uma mulher, a olhá-la com um sorriso curioso, diante de um bar coalhado de garrafas. Ficou imóvel com as mãos caídas ao longo do corpo, subitamente desconcertada.

 

- Esta é a famosa Queta - Cayo Merda tinha fechado a porta, tinha-se sentado, e agora ele e a mulher observavam-na. - Entra, famosa Queta. Esta é Hortênsia, a dona da casa.

 

- Eu julgava que eram todas velhas, feias e saloias - guinchou liquidamente a mulher e Queta conseguiu ainda pensar, aturdida, que bêbeda que ela está. - Quer dizer que me mentiste, Cayo.

 

Tornou a rir-se, exagerada e sem graça, e o homem, com um meio sorriso abúlico, apontou a poltrona: senta-te, ia-se cansar se ficasse de pé. Avançou, como se caminhasse sobre gelo ou cera, com medo de escorregar, cair e precipitar-se numa confusão ainda pior, e sentou-se na borda da poltrona, rígida. Voltou a ouvir a música que tinha esquecido ou parado; era um tango de Gardel e o gira-discos estava ali, embutido num móvel de acaju. Viu a mulher levantar-se, oscilando, e viu os seus entorpecidos dedos, indecisos, a manipularem uma garrafa e copos, a uma esquina do bar. Observou o seu vestido justo de seda opalina, a brancura dos seus ombros e braços, os cabelos cor de carvão, a mão que cintilava, o seu perfil e, sempre perplexa, pensou que parecida, que parecidas que eram. A mulher dirigia-se a ela com dois copos nas mãos, caminhando como se não tivesse ossos, e Queta afastou a olhar.

 

- O Cayo disse-me que eras linda e eu julgava que era mentira via-a de pé e a vacilar, contemplando-a de cima, com uns olhos vidradamente risonhos de gata convencida, e, quando ela se inclinou para lhe estender o copo, sentiu-lhe o perfume beligerante e incisivo.

- Mas é verdade, a famosa Queta é linda.

 

- À tua saúde, famosa Queta - ordenou Cayo Merda, sem afecto. - Vamos lá a ver se uma bebida te levanta os ânimos.

 

Maquinalmente, levou o copo à boca, fechou os olhos e bebeu. Uma espiral de calor, cócegas nas pupilas, e pensou uísque puro. Mas bebeu outro longo gole e tirou um cigarro da caixinha que o homem lhe oferecia. Ele acendeu-lho e Queta descobriu a mulher, sentada agora ao lado dela, a sorrir-lhe com familiaridade. Fazendo um esforço, sorriu-lhe também.

 

- A senhora é igualzinha à - atreveu-se a dizer e invadiu-a um receio de falsidade, uma viscosa sensação de ridículo. - Igualzinha a uma artista.

 

-• A que artista? - encorajou-a a mulher, sorrindo a Cayo Merda de soslaio, voltando a olhar para ela. - À?

 

- Sim - disse Queta, bebeu outro gole e respirou fundo. À Musa, àquela que cantava no Embassy. Eu vi-a várias vezes e...

 

Calou-se, porque a mulher estava a rir. Os olhos brilhavam-lhe, vidrados e encantados.

 

- Uma péssima cantora, essa Musa - ordenou Cayo Merda, anuindo. - Não é?

 

- Não acho - disse Queta. - Canta bem, sobretudo os boleros.

 

- Vês? Ora toma! - prorrompeu a mulher, apontando para Queta, fazendo uma careta de desdém a Cayo Merda. - Estás a ver como ando a perder o meu tempo contigo? Vês como estou a arruinar a minha carreira?

 

Não pode ser, pensou Queta, e a sensação de ridículo novamente se apoderou dela. Ardiam-lhe as faces, sentia vontade de desaparecer dali, de partir qualquer coisa. Esvaziou o copo de um gole e sentiu chamas na garganta e um vislumbre de ebulição no ventre. A seguir, uma hospitaleira tepidez visceral que lhe devolveu um pouco de controlo sobre si mesma.

 

- Eu bem sabia que era a senhora, reconhecia-a - disse, tentando sorrir. - Só que.

 

- Só que já tens o copo vazio - disse a mulher, amistosamente. Levantou-se como uma onda, cambaleante e vagarosamente, e olhou-a feliz, eufórica, com gratidão. - Adoro-te pelo que disseste. Dá-me o teu copo. Vês, vês, Cayo?

 

Enquanto a mulher, delizando, se dirigia ao bar, Queta voltou-se para Cayo Merda. Bebia, sisudo, relanceava os olhos pela sala de jantar, parecia absorto em meditações íntimas e graves, longíssimo dali, e ela pensou é absurdo, pensou odeio-te. Quando a mulher lhe estendeu o copo de uísque, inclinou-se e falou-lhe em voz baixa: podia-lhe dizer onde era o? Sim, com certeza, anda, ela indicava-lhe onde era. Ele não olhou para elas. Queta subia a escada atrás da mulher, que se segurava ao carrimão e tacteava os degraus com desconfiança, antes de pisar, e foi assaltada pela ideia de que ia insultá-la, agora que estavam sozinhas ia pô-la na rua. E pensou: vai oferecer-te dinheiro para te ires embora. A Musa abriu uma porta, apontou-lhe o interior já sem rir e Queta murmurou um rápido obrigado. Mas não era o quarto de banho, e sim o quarto de dormir, um de filme ou de sonho: espelhos, uma fofa alcatifa, espelhos, um biombo, uma colcha preta com um animal amarelo bordado que cuspia fogo, mais espelhos.

 

- E ali ao fundo - disse atrás dela, sem hostilidade, a insegura voz alcoólica da mulher. - Aquela porta.

 

Entrou no quarto de banho, fechou-se à chave, respirou com ansiedade. Que era isto, que brincadeira era esta, qual era a ideia destes? Olhava-se no espelho do lavatório; a cara, muito pintada, tinha ainda impressa a perplexidade, a perturbação, o susto. Pôs a água a correr para disfarçar, sentou-se na borda da banheira. A Musa e ele seriam, tinha-a mandado buscar para, a Musa saberia que? Imaginou que a estavam a espreitar pelo buraco da fechadura e dirigiu-se à porta, ajoelhou-se e olhou pelo pequeno orifício: um círculo de alcatifa, sombras. Cayo Merda, tinha de se ir embora, queria ir-se embora. Musa Merda. Sentia cólera, confusão, humilhação, vontade de rir. Esteve fechada mais um bocado, caminhando em bicos de pés pelos mosaicos brancos, envolvida pela luz azulada do tubo fluorescente, tentando pôr em ordem a confusão que tinha na cabeça, mas só conseguiu ficar mais confusa. Puxou a corrente do autoclismo, arranjou o cabelo diante do espelho, tomou fôlego e abriu a porta. A mulher tmha-se estendido atravessada na cama, e Queta sentiu por um instante que se distraía, observando a reclinada figurinha imóvel, de pele tão branca, a contrastar com a colcha preta retinta reluzente. Mas já a mulher levantara os olhos para ela. Olhava demoradamente, inspeccionava-a com uma lenta, vagarosa moleza, sem sorrir, sem zanga. Um olhar interessado e ao mesmo tempo cerebral, debaixo do azougue bêbedo das pupilas.

 

- Pode-se saber o que estou eu a fazer aqui? - disse, com ímpeto, dando uns passos resolutos em direcção à cama.

 

- Bolas, só me faltava que agora te pusesses furiosa - a Musa perdeu a seriedade, os titilantes olhos dela fitavam-na, divertidos.

 

- Não estou furiosa, o que não estou é a perceber nada - Queta sentia-se reflectida de costas, arremessada ao alto, devolvida, atacada por todos aqueles espelhos. - Diga lá para que é que me mandaram vir cá.

 

- Deixa-te de patetices e trata-me por tu - sussurrou a mulher; mexeu-se um pouco na cama, contraindo e esticando o corpo como uma lombriga, e Queta viu que ela tinha tirado os sapatos e, por um segundo, por baixo das meias, viu as unhas pintadas dos pés dela. Já sabes o meu nome, Hortênsia. Anda, senta-te aqui, deixa-te de patetices.

 

Falava-lhe sem ódio, sem amizade, com voz ligeiramente evasiva e acalmada pelo álcool, e continuava a fitá-la, agora fixamente. Como se me estivesse a avaliar, pensou Queta, como se. Hesitou um momento e sentou-se na borda da cama, com todos os poros do corpo alerta. Hortênsia tinha a cabeça apoiada numa mão, a sua postura era abandonada e mole.

 

- Sabes muito bem para quê - disse, sem cólera, sem amargura, com uma lasciva inflexão de troça na lenta cadência da voz, com um intempestivo brilho novo nos olhos que tentava esconder, e Queta pensou para quê? Tinha uns olhos grandes, verdes, umas pestanas que pareciam postiças e que lhe sombreavam as pálpebras, grossos lábios húmidos, o pescoço era liso e tenso e as veias pressentiam-se, delgadas e azuis. Não sabia o que pensar, o que dizer, para quê? Hortênsia atirou-se para trás, riu-se de modo contrafeito, tapou a cara com o braço, espreguiçou-se com uma espécie de avidez e de repente estendeu a mão e puxou Queta pelo pulso: Sabes muito bem para quê. Como um cliente, pensou, espantada e sem se mexer, como se, vendo os brancos dedos de unhas sangrentas sobre a sua pele morena, e agora Hortênsia olhava-a intensamente, já sem disfarçar, já desafiadora.

 

- O melhor é ir-me embora - ouviu-se dizer, tartamudeando, quieta e pasmada. - A senhora há-de querer que eu me vá embora, não?

 

- Vou-te dizer uma coisa - continuava a agarrá-la, tinha-se aproximado um pouco dela, a voz tinha-se-lhe tornado espessa e Queta sentia-lhe o hálito. - Estava cheia de medo de que fosses velha, feia, de que fosses porca.

 

- Quer que eu me vá embora? - balbuciou Queta, estupidamente, respirando com força, lembrando-se dos espelhos. - Mandou-me cá vir para?

 

- Mas não és - sussurrou Hortênsia e aproximou mais ainda a cara e Queta viu a exasperada alegria dos olhos dela, or movimento da boca, que parecia fumegar. - És bonita e nova. És limpinha.

 

Estendeu a outra mão e pegou no outro braço de Queta. Ornava-a com descaramento, com zombaria, torcia ligeiramente o corpo para se endireitar, murmurava vais ter que me ensinar, deixava-se cair de costas e, de baixo, olhava-a com os olhos abertos, exultantes, sorria e desvairava trata-me por tu duma vez por todas, se iam dormir uma com a outra não a ia tratar por senhora, pois não?, sem a largar, obrigando-a com uma suave pressão a inclinar-se, a deixar-se ir contra ela. Ensinar-te?, pensou Queta, ensinar-te eu a ti?, cedendo, sentido a confusão desaparecer, rindo-se.

 

- Ora aí está - ordenou nas suas costas uma voz que começava a sair da apatia. - Já se fizeram amigas.

 

Acordou com uma fome atroz; já não lhe doía a cabeça, mas sentia pontadas nas costas e cãibras. O quarto era pequeno, frio e despido, com janelas que davam para uma galeria de colunas pela qual passavam freiras e enfermeiras. Trouxeram-lhe o pequeno-almoço e comeu vorazmente.

 

- Olhe que o prato pode-lhe fazer mal - disse a enfermeira. Se quiser, trago-lhe outro pãozinho.

 

- E também outro café com leite, se puder - disse Santiago. Não como desde ontem ao meio-dia.

 

A enfermeira trouxe-lhe outro pequeno-almoço e ficou no quarto, observando-o a comer. Lá estava, Zavalita: tão morena, tão asseada e tão jovem no seu alvo uniforme sem vincos, com as suas meias brancas, os seus cabelos curtos à rapaz, e a sua touca engomada, de pé junto à cama, com as suas pernas bem feitas e o seu corpo filiforme de manequim, sorrindo com os seus dentinhos vorazes.

 

- Então é jornalista? - tinha uns olhos vivos e impertinentes e uma trocista vozinha superficial. - Como é que se viraram?

 

- Ana - diz Santiago. - Sim, muito nova. Cinco anos mais nova do que eu.

 

-- Essas pancadas, embora não lhe tenham partido nada, às vezes deixam uma pessoa doida - riu-se a enfermeira. - Foi por isso que o puseram em observação.

 

- Não me baixe o moral dessa maneira - disse Santiago. - Veja mas é se me anima.

 

- E porque é que o lixa a ideia de ser pai? - pergunta Ambrosio. - Se toda a gente pensasse assim, o Peru ficava sem gente, menino.

 

- Então trabalha na Crónica? - repetiu ela: tinha uma mão na porta, como se fosse a sair, mas havia cinco minutos que não se mexia dali. - O jornalismo deve ser uma coisa interessantíssima, não?

 

- Se bem que confesso: quando soube que ia ser pai, também eu fiquei aterrado - diz Ambrosio. - Só que depois uma pessoa habitua-se, menino.

 

- Lá isso é, mas tem as suas desvantagens, está-se arriscado a partir a cabeça de um momento para o outro - disse Santiago. - Faça-me um grande favor. Não poderia mandar alguém comprar cigarros?

 

- Os doentes não podem fumar, é proibido - disse ela. - Terá de se aguentar enquanto aqui estiver. É da maneira que se desintoxica.

 

- Estou com uma vontade de fumar que não aguento - disse Santiago. - Não seja má. Arranje-me ao menos um.

 

- E a sua senhora, que é que ela acha? - pergunta Ambrosio. Porque ela há-de querer ter filhos, com certeza. As mulheres gostam de ser mamãs.

 

- O que é que me dá em troca? - perguntou ela. - Publica a minha fotografia no jornal?

 

- Suponho que sim- diz Santiago. - Mas a Ana é boa pessoa e faz-me a vontade.

 

- Se o Sr. Doutor descobre, mata-me - disse a enfermeira, com um gesto cúmplice. - Fume-o às escondidas e deite a ponta no bacio.

 

- Que horror, é um Country - disse Santiago, tossindo. - Você fuma desta porcaria?

 

- Caramba, que presunçoso - disse ela, rindo. - Eu não fumo. Fui roubá-lo para lhe alimentar o vício.

 

- Para a outra vez roube um Nacional Presidente e palavra que publico a sua fotografia nas sociais - disse Santiago.

 

- Roubei-o ao Dr. Franco - disse ela, fazendo uma careta. Deus o livre de cair nas mãos dele. É o mais antipático de todos, e, além disso, é bruto como as casas. Só receita supositórios.

 

- Que é que lhe fez esse pobre Dr. Franco? - perguntou Santiago. - Andou a namorá-la?

 

- Que ideia, o velhinho já deu o que tinha a dar - apareciam-lhe duas covinhas nas faces e o seu riso era rápido e agudo, sem complicações. - Tem alguns cem anos.

 

Passaram a manhã a levá-lo de uma sala para outra, a tirarem-lhe radiografias e a fazerem-lhe análises; o nebuloso médico da noite anterior submeteu-o a um interrogatório quase policial. Não havia nenhum osso partido, aparentemente, mas não estava a gostar daquelas pontadas, rapaz, vamos a ver o que dizem as radiografias. Ao meio-dia veio Arispe e disse-lhe piadas: tinha tapado os ouvidos e tinha-se feito de novas ao inteirar-se do acidente, Zavalita, calculava os insultos que lhe teriam caído em cima. Cumprimentos do director, que ficasse na clínica todo o tempo que fosse necessário, o jornal entraria também com as despesas extra contanto que não encomendasses banquetes do Hotel Bolívar. A sério que não querias que avisassem a tua família, Zavalita? Não, o velho havia de se assustar e não valia a pena; não tinha nada. À tarde vieram Periquito e Darío; só tinham nódoas negras e estavam satisfeitos. Tinham-lhes dado dois dias de descanso e essa noite iam os dois a uma festa. Pouco depois chegaram Solórzano, Milton e Norwin, e, quando todos se foram embora, apareceram, como náufragos acabados de pescar, cadavéricos e melosos, a índia e Carlitos.

 

- Mas que caras - disse Santiago. - Nem que tivessem continuado até agora a farra daquela noite.

 

- Continuámos - disse a índia, bocejando aparatosamente; deixou-se cair ao pés da cama e tirou os sapatos. - Já nem sei a quantos estamos nem que horas são.

 

- Há dois dias que não ponho os pés na Crónica. - disse Carlitos, pálido, com o nariz encarnado, os olhos gelatinosos e felizes. Telefonei ao Arispe para inventar que estava com um ataque de úlcera e ele contou-me do acidente. Não vim antes para não encontrar ninguém da redacção.

 

- Cumprimentos da Ada Rosa - gargalhou a índia. - Ela não veio ver-te?

 

- Não me fales da Ada Rosa - disse Santiago. - Naquela noite transformou-se numa pantera.

 

Mas a índia interrompeu-o com a sua torrencial gargalhada fluvial: já sabiam, ela tinha-lhes contado o que acontecera. A Ada Rosa era assim, excitava e à última hora arrependia-se, uma provocadora, uma doida. A índia ria-se com contorções, batendo as palmas como uma foca. Tinha os lábios pintados em forma de coração, um altíssimo penteado barroco que lhe dava à cara uma soberba agressividade, e tudo nela parecia esta noite mais excessivo que nunca: os seus gestos, as suas curvas, os seus sinais. E Carlitos sofria e gozava por causa daquilo, pensa, daquilo dependiam as suas angústias, a sua serenidade.

 

- Obrigou-me a dormir na alcatifa - disse Santiago. - Não me dói o corpo do desastre, dói-me é da dureza do chão da tua casa.

 

Carlitos e a índia ficaram a conversar cerca de uma hora e, logo que saíram, entrou a enfermeira. Trazia um sorriso malicioso a flutuar nos lábios e um olhar diabólico.

 

- Sim, senhor, que amiguinhas - disse, enquanto ajeitava as almofadas. - Aquela Maria Antonieta Pons qUe cá esteve não era uma das Binbambún?

 

- Não me diga que você também foi ver as Binbambún - disse Santiago.

 

- Vi fotografias delas - disse ela; e soltou uma gargalhadinha repentina. - Aquela Ada Rosa é outra das Binbambún?

 

- Ah, esteve a espiar-nos - riu-se Santiago. - Não dissemos muitos palavrões?

 

- Imensos, sobretudo a Maria Antonieta Pons, tive de tapar os ouvidos - disse a enfermeira. - E a sua amiguinha, aquela que o obrigou a dormir no chão, tem a mesma língua de carroceiro?

 

- Ainda é pior que esta - disse Santiago. - Minha é que ela não é, não me deu saída nenhuma.

 

- Com essa cara de anjinho ninguém diria que é um malandro disse ela, morta de riso.

 

- Dão-me alta amanhã? - perguntou Santiago. -- Não me apetece nada passar cá o sábado e o domingo.

 

- Não gosta da minha companhia? - perguntou ela. - Eu fico consigo, que mais quer? Estou de serviço este fim-de-semana. Mas agora, que sei que anda com bailarinas, já não tenho confiança em si.

 

- E que tem você contra as bailarinas? - perguntou Santiago. Não são mulheres como outras quaisquer?

 

- São? - perguntou ela, com os olhos faiscantes. - Como é que elas são, que fazem as bailarinas? Conte-me lá, você que as conhece tão bem.

 

Tinha começado assim, continuado assim, Zavalita: piadinhas, brincadeirinhas. Pensavas que garrida que ela é, é uma sorte ela estar cá, ajudava a matar o tempo, pensavas que pena não ser mais bonita. Porquê com ela, Zavalita? Aparecia a cada momento no quarto, trazia as refeições e ficava a pairar até entrar a enfermeira-chefe ou a freira e então punha-se a ajeitar os lençóis ou enfiava-te o termómetro na boca e adoptava uma cómica expressão profissional. Ria-se, não se cansava de entrar contigo, Zavalita. Era impossível saber se a sua terrível, universal curiosidade - como é que se chegava a jornalista, o que era ser jornalista, como é que se escreviam artigos -, era sincera ou estratégica, se a sua garridice era desinteressada e desportiva ou se realmente tinha um fraquinho por ti ou se tu, como ela a ti, só a ajudavas a matar o tempo. Tinha nascido em Iça, vivia perto da Plaza Bolognesi, tinha acabado o curso da Escola de Enfermagem havia uns meses, estava a fazer o seu ano de estágio na La Maison de Santé. Era faladora e prestável, trazia-lhe cigarros às escondidas e emprestava-lhe os jornais. Na sexta-feira, o médico disse-lhe que os exames eram satisfatórios e que o especialista ia vê-lo. O especialista chamava-se Mascare e mal deitou uma olhadela apática às radiografias disse não servem, tirem-lhe outras. No sábado, ao anoitecer, apareceu Carlitos, com um embrulho debaixo do braço, sóbrio e tristíssimo: sim, tinham-se zangado, desta vez para sempre. Tinha trazido comida crioula, Zavalita, não o punham fora, pois não? A enfermeira arranjou-lhes pratos e talheres, conversou com eles e até provou um bocadinho de arroz de chau-chau. Quando acabou a hora de visitas, deixou Carlitos ficar mais um bocado e ofereceu-se para o fazer sair às escondidas. Carlitos tinha também trazido licor, numa garrafinha sem rótulo, e ao segundo gole começou a maldizer La Crónica, a índia, Lima e o mundo, e Ana olhava-o escandalizada. As dez da noite obrigou-o a ir-se embora. Mas voltou para levar os talheres e, ao sair, à porta, piscou-lhe o olho: sonha comigo. Saiu e Santiago ouviu-a rir no corredor. Na segunda-feira, o especialista examinou as novas radiografias e disse, desiludido, você está mais fino que eu. Era o dia de folga de Ana. Tinhas-lhe deixado um bilhetinho na entrada, Zavalita. Muitíssimo obrigado por tudo, pensa, telefono-te um dia destes.

 

- Mas quem era esse D. Hilário? - pergunta Santiago. - Além de ladrão, quero eu dizer.

 

Ambrosio tinha voltado um tanto excitado da sua primeira conversa com D. Hilário Morales. Ao princípio o tipo dava-se muito ares, tinha contado a Amalia, viu-me mulato e convenceu-se que eu não tinha um tostão. Não lhe passava pela cabeça que Ambrosio lhe ia propor um negócio de igual para igual, mas sim que lhe ia mendigar um empregozinho. Mas se calhar, o senhor tinha vindo cansado de Tingo^María, Ambrosio, se calhar, foi por isso que não te recebeu bem. É possível, Amalia: a primeira coisa que fizera ao ver Ambrosio tinha sido contar-lhe, ofegando como um sapo e largando caralhos, que o camião que trazia de Tingo Maria tinha ficado imobilizado oito vezes por desmoronamentos provocados pelo aguaceiro, e que a viagem, que chatice, tinha demorado trinta e cinco horas. Qualquer outra pessoa teria tomado a iniciativa e dito venha daí beber uma cerveja, mas D. Hilário não, Amalia; pelo menos nisso, Ambrosio, tinha-o lixado. Se calhar, o senhor não gostava de beber, tinha-o consolado Amalia.

 

- Um cinquentão, menino - diz Ambrosio. - Passava o tempo a tirar coisas dos dentes.

 

  1. Hilário tinha-o recebido no seu vetusto escritório da Plaza de Armas, sem sequer lhe dizer para se sentar. Tinha-o deixado à espera de pé enquanto lia a carta de Ludovico que Ambrosio lhe estendera, e só ao terminar a leitura lhe tinha designado uma cadeira, sem simpatia, com resignação. Tinha-o observado de alto a baixo e por fim tinha-se dignado abrir a boca: como ia esse desgraçado do Ludovico?

 

- Agora muito bem, senhor - tinha-lhe dito Ambrosio. - Depois de sonhar durante tantos anos com a passagem a efectivo, por fim meteram-no no quadro. Foi subindo e agora está como subchefe da Divisão de Homicídios.

 

Mas a notícia não tinha parecido entusiasmar D. Hilário nem um bocadinho, Amalia. Tinha encolhido os ombros, escarafunchado um dente preto com a unha do dedo mínimo, que usava compridíssima, cuspido e murmurado vá lá a gente percebê-lo. Porque Ludovico, embora fosse sobrinho dele, tinha nascido estúpido e fracassado.

 

- E um garanhão, menino - diz Ambrosio. - Três casas em Pucallpa, cada uma com a sua mulher e uma ranchada de filhos.

 

- Bom, diga lá o que deseja - tinha murmurado por fim D. Hilário. - Que é que veio fazer para Pucallpa?

 

- Trabalhar, como lhe diz o Ludovico na carta - tinha dito Ambrosio.

 

  1. Hilário tinha-se rido com uns cacarejes de papagaio, todo ele a estremecer.

 

- Está doido ? - tinha perguntado, escarafunchando furiosamente o dente. - Isto é o pior sítio do mundo para vir trabalhar. Não viu esses tipos a andarem para cá e para lá nas ruas, de mãos nos bolsos? Aqui, oitenta por cento das pessoas estão desempregadas, não há trabalho. A menos que queira trabalhar de enxada nalguma quinta ou empregar-se como trabalhador dos militares que andam a construir a estrada. Mas nem isso é fácil e são trabalhos miseráveis. Aqui não há futuro. Se eu fosse a si, voltava a correr para Lima.

 

Ambrosio tinha sentido vontade de o mandar para o caralho, Amalia, mas tinha-se dominado, sorrindo amavelmente, e nessa altura é que o tinha lixado: podia-lhe oferecer uma cervejinha em qualquer sítio, senhor? Estava calor, o melhor era conversarem a tomar qualquer coisa fresca, senhor. Tinha-o deixado espantado com esse convite, Amalia, tinha descoberto que Ambrosio não era o que ele pensava. Tinham ido à Calle Comercio, ocupado uma mesinha do El Gálio de Oro e pedido duas cervejas bem geladas.

 

- Não venho pedir-lhe emprego, senhor - tinha dito Ambrosio, depois do primeiro gole. - Venho é propor-lhe uma negociata.

 

  1. Hilário tinha bebido devagar, olhando-o com atenção. Tinha pousado o copo na mesa, tinha coçado o pescoço, de sulcos sebosos, cuspido para a rua, observado a terra sedenta a engolir a saliva.

 

- Ah, sim - tinha dito devagar, anuindo, e como se estivesse a falar para a auréola de moscas que zumbiam. - Mas para fazer negociata é preciso capital, meu amigo.

 

- Bem sei, senhor - tinha dito Ambrosio. - Tenho uns cobrezinhos de parte. Queria ver se o senhor me ajudava a investi-los bem. O Ludovico disse-me o meu tio Hilário tem um grande faro para os negócios.

 

- Aí lixaste-o outra vez - tinha dito Amalia, a rir.

 

- Parecia outro - tinha dito Ambrosio. - Começou a tratar-me como um ser humano.

 

- Ah, aquele Ludovico - tinha pigarreado D. Hilário, com um ar repentinamente bonacheirão. - E a pura verdade. Uns nascem com queda para aviadores, outros para cantores. Eu nasci para os negócios.

 

Tinha sorrido a Ambrosio com malícia: tinha feito muito bem em vir ter com ele, guiá-lo-ia. Haviam de encontrar alguma coisa que lhes desse uns tostões. E intempestivamente: vamos a um restaurantezeco, já eram horas de comer, não? De repente pôs-se macio como veludo, vês como as pessoas eram, Amalia?

 

- Vivia nas três ao mesmo tempo e era preciso andar a correr duma casa para a outra - diz Ambrosio. - E mais tarde descobri que em Tingo Maria também tinha mulher e filhos, imagine, menino.

 

- Mas ainda não me disseste quanto é que tens de parte - tinha-se Amalia atrevido a perguntar.

 

- Vinte mil soles - tinha dito D. Fermín. - Sim, teus, para ti.

 

Hão-de ajudar-te a começar de novo, a desaparecer, pobre desgraçado. Nada de choradeiras, Ambrosio. Vai-te embora, anda. Vai com Deus, Ambrosio.

 

- Pagou-me uma almoçarada e bebemos meia dúzia de cervejas

- tinha dito Ambrosio. - Foi ele que pagou tudo, Amalia.

 

- Nos negócios, a primeira coisa a saber é com quanto se pode contar - tinha dito D. Hilário. - Como na guerra. E preciso saber quais são as forças que se vão lançar ao ataque.

 

- As minhas forças para já são quinze mil soles - tinha dito Ambrosio. - Em Lima tenho mais alguma coisa, e, se o negócio me convier, posso trazer esse dinheiro mais tarde.

 

- Não é grande coisa - tinha reflectido D. Hilário, com os dedos afanosos dentro da boca. - Mas alguma coisa se há-de arranjar.

 

- Com tanta família, não admira que fosse ladrão - diz Santiago. Ambrosio gostaria de qualquer coisa relacionada com a Empresa

 

de Transportes Morales, senhor, porque tinha sido motorista, era o ramo dele. D. Hilário tinha sorrido, Amalia, a animá-lo. Tinha-lhe explicado que a empresa nascera cinco anos atrás, com duas camionetas, e que agora tinha dois camiõezitos e três camionetas, os primeiros para carga e as segundas de passageiros, que faziam o serviço Tingo María-Pucallpa. Um trabalhinho pesado, Ambrosio: a estrada, uma porcaria, dava cabo dos pneus e dos motores. Mas, bem via, ele tinha levantado a empresa.

 

- Eu pensava num camiãozito velho - tinha dito Ambrosio. O que tenho dá para a cota inicial. O resto ir-se-ia pagando com o trabalho.

 

- Isso está fora de causa, porque era fazer-me concorrência - tinha-se rido D. Hilário, com uns cacarejes carinhosos.

 

- Por enquanto ficámos na mesma - tinha dito Ambrosio. Ele disse que tínhamos estabelecido os primeiros contactos. Amanhã voltamos a conversar.

 

Tinham-se encontrado no dia seguinte, e no outro e no outro ainda, e de todas as vezes Ambrosio tinha voltado à barraca irritado e a tresandar a cerveja, assegurando: este D. Hilário saiu-me uma gralha de alto lá com ela! Ao fim de uma semana, tinham chegado a um acordo, Amalia: Ambrosio conduziria uma das camionetas dos Transportes Morales, com um ordenado base de quinhentos mais dez por cento dos bilhetes, e entraria para sócio de D. Hilário numa negociata que era coisa garantida. E Amalia, ao vê-lo hesitar, que negociata?

 

- Os Ataúdes Limbo - tinha dito Ambrosio, um bocado desanimado. - Compramo-los por trinta mil, D. Hilário diz que esse trespasse é uma pechincha. Nem sequer terei que ver os mortos, ele vai administrar a agência funerária e de seis em seis meses entrega-me os meus lucros. Porque é que estás com essa cara, que mal tem?

 

- Talvez não tenha mal nenhum mas faz-me cá não sei o quê tinha dito Amalia. - Sobretudo porque são mortos pequenitos.

 

- Vamos fazer também caixões para velhos - tinha dito Ambrosio. - D. Hilário diz que é o mais seguro, porque as pessoas acabam todas por morrer. Os lucros divididos igualmente pelos dois. Ele encarrega-se da administração e não me leva nada por isso. Que mais quero eu, não é verdade?

 

- Quer dizer que agora vais passar a vida a ir a Tingo Maria tinha dito Amalia.

 

- Pois é, e não posso controlar o negócio - tinha respondido Ambrosio. - Tens de ter os olhos bem abertos, contar todos os caixões que saírem. Para alguma coisa é aqui tão perto. Podes vigiá-la sem saíres de casa.

 

- Está bem - tinha repetido Amalia. - Mas faz-me cá não sei o quê.

 

- Resultado, durante meses passei a vida a arrancar, a travar e a acelerar - diz Ambrosio. - Era condutor do chaço mais velho do mundo, menino. Chamava-se O Raio da Montanha.

 

- Quer dizer que o menino foi o primeiro a casar - diz Ambrosio. - Deu o exemplo aos seus manos.

 

Da La Maison de Santé dirigiu-se à pensão de Barranco para fazer a barba e mudar de roupa, e a seguir a Miraflores. Eram só três da tarde, mas viu o automóvel de D. Fermín estacionado à porta. O mordomo recebeu-o com cara séria: os senhçres tinham ficado preocupados por não ter vindo almoçar no domingo, menino. A Teté e o Chispas não estavam. Encontrou a D. Zoila a ver televisão no quartinho que tinha mandado arranjar debaixo da escada para a canasta das quintas-feiras.

 

- Já não era sem tempo - murmurou, estendendo-lhe a cara franzida. - Vieste ver se ainda éramos vivos?

 

Tentou fazer-lhe passar a má disposição com piadas - estavas de bom humor, Zavalita, liberto da prisão da clínica -, mas ela, à medida que deitava contínuas olhadelas involuntárias ao seu teleteatro, continuou a admoestá-lo: no domingo tinham posto lugar para ti à mesa, a Teté e o Popeye e o Chispas e a Cary tinham ficado até às três à tua espera, devias ter mais consideração pelo teu pai, que está doente. Sabendo que ele conta os dias para te ver, pensa, sabendo como ele fica ressentido quando não apareces. Pensa: tinha seguido o conselho dos médicos, não ia ao escritório, descansava, julgavas que estava completamente restabelecido. E no entanto nessa tarde viste que não, Zavalita. Estava no escritório, sozinho, com uma manta nos joelhos, sentado na poltrona do costume. Folheava uma revista e quando viu entrar Santiago sorriu-lhe com rancor afectuoso. A pele ainda bronzeada do Verão tinha envelhecido, aparecera-lhe na cara um ricto estranho e parecia em poucos dias ter perdido dez quilos. Estava sem gravata, com um casaco de roupão aberto e umas pontas de pêlo grisalho assomavam pelo colarinho da camisa. Santiago sentou-se ao lado dele.

 

- Estás com muito boa cara, papá - disse, beijando-o. - Que tal te sentes?

 

- Melhor, mas a tua mãe e o Chispas fazem-me sentir um inútil

 

- queixou-se D. Fermín. - Só me deixam dar um saltinho ao escritório e obrigam-me a fazer sestas e a passar o tempo aqui, como um inválido.

 

- É só até te restabeleceres completamente - disse Santiago. -- Depois podes-te desforrar, papá.

 

- Já os avisei de que só aguento este regime de fóssil até ao fim do mês - disse D. Fermín. - No primeiro dia do mês que vem, retomo a vida normal. Agora nem sei como andam as coisas.

 

- Deixa o Chispas tomar conta disso, papá - disse Santiago. Ele não dá tão boa conta do recado?

 

- Sim, isso dá - sorriu D. Fermín, anuindo. - Agora é ele que dirige tudo, praticamente. É ponderado, tem bom senso. O que acontece é que eu não me resigno a ser uma múmia.

 

- Quem diria que o Chispas sairia um homem de negócios feito

 

- riu-se Santiago. - No fim de contas, foi uma sorte terem-no expulsado da Escola Naval.

 

- Quem não está a dar boa conta do recado és tu, magricela disse D. Fermín, com o mesmo tom carinhoso e uma inflexão de cansaço. - Ontem fui à tua pensão e a D. Lúcia disse-me que há vários dias que não ias dormir.

 

- Estive em Trujillo, papá - tinha baixado a voz, pensa, feito um gesto como quem diz isto é aqui entre nós, a tua mãe não sabe de nada. - Mandaram-me fazer uma reportagem. Foram-me buscar à pressa e não tive tempo de vos avisar.

 

- Já és suficientemente crescido para eu não te chamar à ordem nem te dar conselhos - disse D. Fermín, com suavidade sempre afectuosa e um tanto contristada. - Aliás, eu bem sei que não serviria de nada.

 

- Com certeza não julgas que eu me tenha dedicado à má vida, papá - sorriu Santiago.

 

- Já há algum tempo que me andam a dar umas notícias alarmantes - disse D. Fermín, sem mudar de expressão. - Que te vêem em bares, em boítes. E não propriamente nos melhores sítios de Lima. Mas como és tão susceptível, já nem me atrevo a perguntar-te nada, magricela.

 

- Vou uma vez por outra, como toda a gente - disse Santiago.

 

- Bem sabes que não sou farrista, papá. Não te lembras do que era preciso a mamã insistir para eu ir às festas quando era miúdo?

 

- Miúdo - riu-se D. Fermín. - Já te sentes velho?

 

- Não ligues ao que as pessoas dizem, papá - disse Santiago. Posso ser muitas coisas, mas isso não, papá.

 

- Eu julgava que não, magricela- disse D. Fermín, depois de uma longa pausa. - Ao princípio pensei pois que se divirta um bocado, até lhe faz bem. Mas já são muitas vezes que me vêm dizer vimo-lo aqui, acolá, nos copos, com gente do pior.

 

- Não tenho tempo nem dinheiro para andar na farra - disse Santiago. - Não tem pés nem cabeça, papá.

 

- Não sei o que pensar, magricela - tinha ficado sério, Zavalita, a voz tornara-se-lhe grave. - Passas dum extremo a outro, é difícil perceber-te. Olha, acho que preferia que desses em comunista em vez de bebedola e vagabundo.

 

- Nem uma coisa nem outra, papá, podes estar descansado disse Santiago. - Há anos que não sei o que é a política. Leio o jornal todo menos as notícias políticas. Não sei quem são os ministros nem os senadores. Eu próprio pedi para não me mandarem redigir notícias políticas.

 

- Dizes isso com um ressentimento tremendo - murmurou D. Fermín. - Estás assim tão arrependido de não te teres dedicado a atirar bombas? Não mo reproves a mim. Eu dei-te um conselho, mais nada, e lembra-te de que passaste a vida a contrariar-me. Se não te fizeste comunista, se calhar foi porque no fundo não estavas assim tão seguro disso.

 

- Tens razão, papá - disse Santiago. - Não estou nada arrependido, nunca penso nisso. Estava-te só a sossegar. Nem comunista nem vagabundo, não te preocupes.

 

Conversaram de outras coisas, na cálida atmosfera de livros e madeiras do escritório, vendo o sol cair rarefeito pelas primeiras neblinas do Inverno, ouvindo ao longe as vozes da peça de teatro da televisão, e pouco a pouco D. Fermín tinha ido ganhando coragem para abordar o eterno tema e repetir a cerimónia tantas vezes celebrada, Zavalita: volta para casa, acaba o curso, anda trabalhar comigo.

 

- Já sei que não gostas de que eu te fale nisso - foi a última vez

 

que tentou, Zavalita. - Já sei que me arrisco a espantar-te outra vez e casa se falar nisso.

 

- Não digas tolices, papá - disse Santiago.

 

- Quatro anos não chegam, magricela? - tinha-se resignado a partir daí, Zavalita? - Não achas já suficiente o mal que fizeste a ti próprio, não achas já suficiente o mal que nos fizeste?

 

- Mas eu matriculei-me, papá - disse Santiago. - Este ano...

 

- Este ano vais-me meter os dedos pelos olhos dentro como nos anteriores - ou tinha ruminado até ao fim, secretamente, a esperança de que voltasses, Zavalita? -Já não acredito em ti, magricela. Matriculas-te, mas não pões os pés na universidade nem fazes exames.

 

- Nos anos anteriores tive muito trabalho - insistiu Santiago. Mas agora vou passar a ir às aulas. Arranjei um horário que me permite deitar-me cedo e...

 

- Acostumaste-te a tresnoitar, ao teu ordenadozinho, aos teus amigos farristas do jornal, e é essa a tua vida - sem cólera, sem amargura, Zavalita, com um terno desgosto. - Como é que eu não te hei-de repetir que não pode ser, magncela? Tu não és aquilo que queres mostrar que és. Não podes continuar a ser medíocre, filho.

 

- Tens de acreditar em mim, papá - disse Santiago. - Juro-te que desta vez é a sério. Vou passar a ir às aulas, a fazer exames.

 

- Já não to peço por ti, é por mim - D. Fermín inclinou-se, pôs-Lhe a mão no braço. - Arranjamos um horário que te dê para estudares e passas a ganhar mais que na Crónica.. Já é tempo de te pores ao corrente de tudo. Dum momento para o outro eu morro e nessa altura tu e o Chispas é que têm de levantar o escritório. O teu pai precisa de ti, Santiago.

 

Não estava enfurecido, nem esperançado nem ansioso como das outras vezes, Zavalita. Estava deprimido, pensa, repetia as frases de sempre por rotina ou teimosia, como quem joga as últimas cartadas de uma só mão sabendo que também desta vez vai perder. Tinha um brilho desanimado nos olhos e as mãos juntas sobre a manta.

 

- Só te estorvava no escritório, papá -- disse Santiago. - Seria um verdadeiro problema para ti e para o Chispas. Havia de sentir que me estavam a pagar um ordenado por favor. Aliás, não fales em morrer. Tu próprio me acabaste de dizer que te sentes muito melhor.

 

  1. Fermín manteve-se cabisbaixo uns segundos, depois levantou a cara e sorriu, empenhadamente: estava bem, não queria continuar a dar-te cabo da paciência com a mesma coisa, magricela. Pensa: apenas dizer-te que me darias a maior alegria da vida se um dia entrares por aquela porta e disseres renunciei ao jornal, papá. Mas calou-se, porque tinha chegado a D. Zoila, a empurrar um carrinho com torradas e chávenas de chá. Ora até que enfim que a peça de teatro tinha acabado, e começou a falar de Popeye e da Teté. Estava preocupada, pensa, o Popeye queria casar-se no próximo ano, mas a Teté era uma criança, ela aconselhava-os a esperarem mais uns tempos. A velhota da tua mãe ainda não quer ser avó, gracejava D. Fermín. E o Chispas e a namorada, mamã? Ah, a Cary era uma rapariga às direitas, encantadora, vivia na Punta, falava inglês. E tão seriazinha, tão ajuizadinha. Falavam em casar no próximo ano, também.

 

- Vá lá, que apesar das tuas loucuras, ainda não te deu para aí disse cautelosamente a D. Zoila. - Suponho que não estás a pensar em casar, não?

 

- Mas hás-de ter namorada - disse D. Fermín. - Quem é ela, conta lá. Nós não dizemos nada à Teté, para ela não te irritar.

 

- Não tenho, papá - disse Santiago. - Palavra que não.

 

- Pois devias ter, de que é que estás à espera? - disse D. Fermín.

 

- Não hás-de querer ficar solteirão como o desgraçado do Clodomiro.

 

- A Teté casou uns meses depois de mim - diz Santiago. O Chispas um ano e tal depois.

 

Já sabia que havia de vir, pensou Queta. Mas pareceu-lhe inacreditável que ele tivesse tido coragem. Já passava da meia-noite, não se conseguia dar um passo, Malvina estava bêbeda e Robertito suava. Esfumados na meia luz envenenada de fumo e chachachá, os pares oscilavam sem sair do mesmo sítio. De vez em quando, Queta distinguia, em diferentes pontos do bar ou na saleta ou nos quartos lá de cima, os despropositados guinchos de Malvina. Ele continuava à porta, grande e assustado, com o seu flamante fato castanho às riscas e gravata vermelha, com os olhos a moverem-se para cá e para lá. A tua procura, pensou Queta, divertida.

 

- A senhora não autoriza cá pretos - disse Martha, ao seu lado.

 

- Põe-no fora, Robertito.

 

- É o gorila do Bermúdez - disse Robertito. - Vou ver. A senhora dirá.

 

- Põe-no fora, seja quem for - disse Martha. - Desprestigia a casa. Põe-no fora.

 

O rapazinho com uma sombra de bigode e colete de fantasia, que a tinha convidado para dançar três vezes seguidas sem lhe dirigir a palavra, voltou a aproximar-se de Queta e articulou com angústia: vamos lá para cima? Vamos, dá-me dinheiro para o quarto e vai subindo, era o doze, ela ia pedir a chave. Abriu caminho por entre os pares que dançavam, chegou ao pé do mestiço e viu-lhe os olhos: ígneos, assustados. Que queria, quem é que o tinha cá mandado? Afastou a vista, tornou a olhar para ela e ouviu a custo boa-noite.

 

- A D. Hortênsia - sussurrou ele, com voz envergonhada, desviando o olhar. - Que esteve à espera que lhe telefonasse.

 

- Tenho estado ocupada - não foi nada ela que te mandou, não sabias mentir, vieste por minha causa. - Diz-lhe que telefono amanhã.

 

Deu meia volta, subiu e, enquanto pedia a chave do doze a Ivonne, pensava vai-se embora mas há-de voltar. Esperá-la-ia na rua, um dia havia de a seguir, por fim atrever-se-ia e aproximar-se-ia tremendo. Desceu meia hora mais tarde e viu-o sentado no bar, de costas para os pares do salão. Bebia, contemplando as silhuetas de seios protuberantes que Robertito tinha desenhado nas paredes; os seus olhos brancos rebolavam na penumbra, brilhantes e intimidados, e as unhas da mão que apertava o copo pareciam fosforescentes. Atreveu-se, pensou Queta. Não se sentiu surpreendida, não ligou. Mas ligou Martha, que estava a dançar e rosnou viste?, quando Queta passou ao lado dela, agora deixavam entrar pretos. Despediu-se à entrada do rapazinho de colete, voltou ao bar e Robertito estava a servir outra cerveja ao mestiço. Havia muitos homens sem par, encostados aos cantos e de pé, a olhar, e já não se ouvia Malvina. Atravessou a pista, uma mão beliscou-a na anca e ela sorriu sem se deter, mas antes de chegar ao balcão interpôs-se-lhe uma cara cheia, de olhos gastos e sobrancelhas hirsutas: anda dançar.

 

- A menina está comigo, senhor - segredou a voz sumida do mestiço; estava junto ao candeeiro e o quebra-luz de reflexos verdes dava-lhe no ombro.

 

- Eu cheguei primeiro - vacilou o outro, considerando o comprido corpo imóvel. - Mas está bem, não vale a pena zangarmo-nos.

 

- Não estou nada com ele, estou é contigo - disse Queta, pegando no homem pela mão. - Anda, vamos dançar.

 

Puxou-o para a pista, rindo-se lá por dentro, pensando quantas cervejas para ganhar coragem?, pensando eu já te digo, já vais ver, hás-de ver. Dançava e sentia o seu par tropeçar, incapaz de seguir a música, e via os olhos avelhentados a espiarem descontrolados o mestiço, que, ainda de pé, fitava agora parcimoniosamente as figuras da parede e as pessoas que estavam pelos cantos. A música acabou e o homem quis sair. Não estava com medo do morenaço, pois não?, podiam dançar outra. Larga-me, já era tarde, tinha de se ir embora. Queta riu-se, largou-o e foi sentar-se num dos bancos do bar e um instante depois o mestiço estava ao lado dela. Sem o olhar, adivinhou a sua cara desfigurada pela confusão, os seus grossos lábios a abrirem-se.

 

- Já chegou a minha vez? - perguntou, espessamente. - Já se poderá dançar?

 

Olhou-o nos olhos, séria, e viu-o baixar imediatamente a cabeça.

 

- E se eu fosse contar ao Cayo Merda? - perguntou Queta.

 

- Não está cá - balbuciou ele, sem levantar a cabeça, sem se mexer. - Foi de viagem ao Sul.

 

- E se, quando ele vier, eu lhe disser que vieste cá e te quiseste meter comigo? - insistiu Queta, com paciência.

 

- Não sei - disse o mestiço, suavemente. - Se calhar, nada. Ou então despede-me. Ou manda-me prender ou coisa pior.

 

Levantou a vista um momento, como se me estivesse a pedir se quiser cuspa-me mas não lhe conte nada pensou Queta, e desviou-a. Então era mentira que a doida o tivesse cá mandado dar o recado?

 

- Era verdade - disse o mestiço; hesitou um instante e acrescentou, cabisbaixo ainda: - Mas não me mandou ficar.

 

Queta desatou a rir e o mestiço levantou a vista: ígneos, brancos, esperançados, assustados. Robertito tinha-se aproximado e interrogou mudamente Queta comprimindo os lábios; ela indicou-lhe com um gesto que não havia novidade.

 

- Se quiseres conversar comigo, tens de pedir qualquer coisa disse, e ordenou: - Para mim, vermute.

 

- Traga um vermute à menina - repetiu o mestiço. - Para mim, o mesmo que há bocado.

 

Queta viu o meio sorriso irónico de Robertito ao afastar-se, e descobriu Martha ao fundo da pista, a olhá-la indignada por cima do ombro do par, e viu as pupilas excitadas e reprovadoras dos solitários dos cantos, cravadas nela e no mestiço. Robertito trouxe a cerveja e o copinho de chá aguado e ao afastar-se piscou-lhe o olho como quem diz tenho muita pena ou a culpa não é minha.

 

- Eu bem percebo - murmurou o mestiço. - Não simpatiza nada comigo.

 

- Não é por seres preto, isso a mim é que me há-de dar um abalo

- disse Queta. - É por seres criado desse nojento do Cayo Merda.

 

- Não sou criado de ninguém - disse o mestiço, tranquilo. Sou só motorista dele.

 

- Motorista não, gorila - disse Queta. - O outro que anda contigo no automóvel é da polícia? Tu também és da polícia?

 

- O Hinostroza é que é da polícia - disse o mestiço. - Eu sou apenas motorista dele.

 

- Se quiseres, podes ir dizer ao Cayo Merda que eu digo que ele é um nojento - sorriu Queta.

 

- Não havia de gostar - disse ele, lentamente, com humor respeitoso. - D. Cayo é muito orgulhoso. Não lho direi, não lhe diga também que eu vim cá e assim ficamos quites.

 

Queta largou uma gargalhada: ígneos, brancos, codiciosos, animados, mas ainda inseguros e medrosos. Como se chamava? Ambrosio Pardo^e já sabia que ela se chamava Queta.

 

- E verdade que o Cayo Merda e a velha Ivonne agora são sócios? - perguntou Queta. - Que o teu dono agora também é dono disto ?

 

- Sei lá disso - murmurou ele; e insistiu, com suave firmeza: Não é meu dono, é meu patrão.

 

Queta bebeu um trago de chá frio, o que lhe provocou um trejeito de tédio, e de seguida despejou no chão o conteúdo do copinho, pegou na caneca de cerveja e, enquanto os olhos de Ambrosio a envolviam, surpreendidos, ingeriu um pequeno gole.

 

- Vou-te dizer uma coisa - disse Queta. - Estou-me cagando no teu dono. Não tenho medo dele. Estou-me cagando no Cayo Merda.

 

- Nem que estivesse de diarreia - atreveu-se ele a sussurrar. O melhor é não falarmos de D. Cayo, a conversa está-se a tornar perigosa.

 

- Já foste para a cama com a doida da Hortênsia? - perguntou Queta, e viu o terror a aflorar violentamente aos olhos do mestiço.

 

- Que ideia é essa? - balbuciou, estupefacto. - Não torne a dizer isso nem a brincar.

 

- Então como é que te atreves a querer ir para a cama comigo? perguntou Queta, procurando-lhe os olhos.

 

- Porque você - balbuciou Ambrosio, e falhou-lhe a voz; baixou a cabeça, confundido. - Quer outro vermute?

 

- Quantas cervejas bebeste para ganhares coragem? - perguntou Queta, divertida.

 

- Muitas, já perdi a conta. - Queta ouviu-o sorrir, falar com voz mais íntima. - E não foram só cervejas, até capitanes1. Ontem à noite também vim aqui, mas não entrei. Hoje sim, porque a senhora me deu esse recado.

 

- Está bem - disse Queta. - Manda-me vir outro vermute e vais-te embora. E se eu fosse a ti não voltava cá.

 

Ambrosio revolveu os olhos para Robertito: outro vermute, senhor. Queta viu Robertito conter o riso e, ao longe, as caras de Ivonne e Malvina a olharem-na intrigadas.

 

- Os pretos são bons dançarinos, espero que tu também o sejas

- disse Queta. - Ao menos uma vez na vida, dá-te ao luxo de dançares comigo.

 

Ele ajudou-a a descer do banco. Olhava agora nos olhos com uma gratidão canina e quase chorona. Mal a enlaçou e não tentou apertar. Não, não sabia dançar ou não conseguia, movia-se a custo e sem ritmo. Queta sentia-lhe as educadas pontas dos dedos nas costas, o braço que a segurava com temeroso cuidado.

 

- Não te encostes tanto - troçou, divertida. - Dança como toda a gente.

 

Mas ele não percebeu e, em vez de se aproximar, afastou-se ainda uns milímetros, murmurando qualquer coisa. Que medroso que ele é, pensou Queta, quase comovida. Enquanto ela rodava, cantarolava, mexia as mãos no ar e mudava de passo, ele, mexendo-se sem garbo no mesmo sítio, tinha uma expressão tão engraçada como as das caretas de Carnaval que Robertito tinha pendurado no tecto. Voltaram ao bar e ela pediu outro vermute.

 

- Fizeste uma estupidez em vir - disse Queta, amavelmente. A Ivonne ou o Robertito ou qualquer pessoa há-de contar ao Cayo Merda e, se calhar, metes-te em sarilhos.

 

- Acha? - sussurrou ele, olhando em redor, com uma careta estúpida. O idiota fez todos os cálculos menos esse, pensou Queta, estragaste-lhe a noite.

 

- Com certeza - disse. - Não vês que todos têm tanto medo dele como tu? Não vês que agora parece que ele é sócio da Ivonne? Es tão estúpido que não te passou isso pela cabeça?

 

- Gostava de ir lá para cima consigo - tartamudeou ele: ígneos, a rutilar na cara cor de chumbo, por cima do largo nariz de narinas muito abertas, os lábios separados, os dentes branquíssimos a brilhar, a voz trespassada de medo. - Seria possível? - E assustando-se ainda mais: - Quanto custaria?

 

- Terias de trabalhar meses para ires para a cama comigo - sorriu Queta, e fitou-o com compaixão.

 

Cocktail de vermute e pisco. (N. do T)

 

- Mesmo que tivesse - insistiu ele. - Mesmo que fosse uma vez na vida. Seria possível?

 

- Com quinhentos soles era possível - disse Queta, examinando-o, fazendo-o baixar os olhos, sorrindo. - Fora o quarto, que são cinquenta. Já vês que não está ao alcance da tua bolsa.

 

As bolas brancas dos olhos rolaram um instante, os lábios soldaram-se, enevoados. Mas a manápula ergueu-se e apontou lastimosamente para Robertito, que estava no outro extremo do balcão: aquele tinha dito que a tarifa eram duzentos.

 

- A das outras, eu tenho a minha própria tarifa - disse Queta. Mas, se tens duzentos, podes ir com qualquer dessas. Menos a Martha, aquela de amarelo. Não gosta de pretos. Bom, paga a conta e vai-te embora, anda.

 

Viu-o tirar umas notas da carteira e pagar a Robertito e guardar o troco com uma cara compungida e meditabunda.

 

- Diz à doida que eu depois lhe telefono - disse Queta, amistosamente. - Anda, vai para a cama com uma dessas, levam duzentos. Não tenhas medo, eu falo com a Ivonne e ela não diz nada ao Cayo Merda.

 

- Não quero ir para a cama com nenhuma dessas - murmurou ele. - Prefiro ir-me embora.

 

Acompanhou-o até ao jardinzinho da entrada e aí ele parou de chofre, virou-se, e, à luz avermelhada do candeeiro, Queta viu-o hesitar, levantar e baixar os olhos, lutar com a língua até conseguir balbuciar: ainda tinha duzentos soles.

 

- Se começas a teimar, zango-me - disse Queta. - Vai-te lá embora, anda.

 

- Por um beijo? - engasgou-se ele, desorbitado. - Seria possível?

 

Balançou os braços compridos como se fosse suspender-se da árvore, meteu uma mão no bolso, traçou uma circunferência veloz e Queta viu as notas. Viu-as descer até à mão dela e sem saber como já ali estavam, amarfanhadas e apertadas entre os seus próprios dedos. Ele deitou uma olhadela ao interior da casa e ela viu-o inclinar a pesada cabeça e sentiu no pescoço uma ventosa ardente. Abraçou-a com fúria, mas não tentou beijá-la na boca e, mal a sentiu resistir, afastou-se.

 

- Está bem, valia a pena - ouviu-o dizer, risonho e reconhecido, com as duas brasas brancas a bailarem nas órbitas. - Qualquer dia hei-de trazer esses quinhentos.

 

Abriu a porta e saiu, e Queta ficou um momento a olhar apalermada para as duas notas azuis, que rodopiavam entre os seus dedos.

 

Linguados rabiscados e atirados para o cesto dos papéis, pensa, semanas e meses rabiscados e atirados para o. Lá estavam, Zavalita: a estática redacção com as suas piadas e maledicências retomadas, as conversas giratórias com Carlitos no Negro-Negro, as visitas de ladrão aos balcões das boites. Quantas vezes tinham feito as pazes, discutido e voltado a reconciliar-se Carlitos e índia? Quando é que as bebedeiras de Carlitos se tinham transformado numa única bebedeira crónica? Naquela gelatina de dias, naqueles meses alforrecas, naqueles anos líquidos que fugiam da memória, apenas um delgadíssimo fio ao qual agarrar-se. Pensa: Ana. Tinham saído juntos uma semana depois de Santiago deixar La Maison de Santé e viram no cinema San Martin um filme com Columba Domínguez e Pedro Armendáriz e comeram enchidos num restaurante alemão da Colmena; na quarta-feira seguinte, chili con carne1 no Cream Rica da Calle de Ia Union e um de toureiros no Excélsior. Depois tudo se atomizava e confundia, Zavalita, chás nas vizinhanças do Palácio da Justiça, passeios pelo Parque de Ia Exposición, até que, de repente, no Inverno de cacimba miúda e neblina pertinaz, aquela anódina relação feita de ementas baratas e melodramas mexicanos e jogos de palavras tinha adquirido uma vaga estabilidade. Lá estava o Neptuno, Zavalita: a obscura casa de ritmos sonâmbulos, os seus pares ominosos a dançarem nas trevas, as estrelinhas fosforescentes, o seu cheiro a bebida e adultério. Estavas preocupado com a conta, fazias o copo durar avaramente, fazias contas de cabeça. Foi lá que se beijaram pela primeira vez, pensa, a música e as silhuetas que se apalpavam na sombra: estou apaixonado por ti, Anita. Lá estava a tua surpresa ao sentir o corpo que se abandonava contra o teu, também eu por ti, Santiago, a avidez juvenil da sua boca e o desejo que te inundou. Beijaram-se longamente enquanto dançavam, continuaram a beijar-se na mesa, e, no táxi que a levava a casa, Ana deixou-o acariciar-lhe os seios sem protestar. Não disse uma piada durante toda a noite, pensa. Tinha sido um romance apático e semiclandestino, Zavalita. Ana fazia empenho em que fosses almoçar a casa dela e tu nunca podias, tinhas uma reportagem, um compromisso, para a semana, noutro dia. Uma tarde Carlitos encontrou-os no Haiti da Plaza de Armas e fez uma cara de espanto ao vê-los de mãos dadas e Ana recostada no ombro de Santiago. Tinha sido a primeira zanga, Zavalita. Porque é que não a tinhas apresentado à tua família, porque é que não queres conhecer a minha, porque é que nem sequer ao teu amigo íntimo tinhas contado, tens vergonha de andar comigo? Estavam à porta da La Maison de Santé e fazia frio e sentias-te aborrecido: já sei porque é que gostas tanto dos melodramas mexicanos, Anita. Ela deu meia volta e entrou na clínica, sem se despedir.

 

Durante os primeiros dias a seguir a essa zanga, tinha sentido um delicado mal-estar, uma tranquila nostalgia. Amor, Zavalita? Então nunca tinhas estado apaixonado pela Aída, pensa. Ou o amor seria aquele bichinho nas tripas que sentias anos atrás? Pensa: então nunca

 

1 Prato típico sul-americano. (N. do T.)

 


pela Ana, Zavalita. Voltou a sair com Carlitos e Milton e Solórzano e Norwin; uma noite contou-lhes a gozar os seus namoros com Ana e inventou que dormiam um com o outro. Depois, um dia, antes de ir para o jornal desceu na paragem do Palácio da Justiça e foi à clínica. Sem premeditação, pensa, quase por acaso. Reconciliaram-se no átrio da entrada, entre pessoas que entravam e saíam, sem se tocarem sequer nas mãos, falando em segredo, olhando-se nos olhos. Portei-me mal Anita, e eu chorei todas as noites, Santiago. Encontraram-se novamente ao anoitecer, num cafezito de índios frequentado por bebedolas e de lajes cobertas de serradura, e falaram durante horas, sem desligarem as mãos, diante de duas chávenas de café com leite intactas. Mas tu devias-lhe ter contado há mais tempo, Santiago, como é que ela havia de adivinhar que te davas mal com a família?, e ele contava outra vez, a universidade, a Fracção, La Crónica, a tensa cordialidade com os seus pais e irmãos. Tudo menos da Aída, Zavalita, menos do Ambrosio, da Musa. Porque é que lhe tinhas contado a tua vida? Desde então viam-se quase todos os dias e tinham feito amor uma semana ou mês depois, uma noite, numa pensão de má nota da Urbanización Lãs Margaritas. Lá estava o seu corpo tão magro que se lhe contavam os ossos das costas, os seus olhos assustados, a sua vergonha e a tua confusão ao saber que era virgem. Nunca mais te trazia cá, Anita, amo-te, Anita. A partir dessa altura tinham feito amor na pensão de Barranco, uma vez por semana, na tarde em que a D. Lúcia ia fazer visitas. Lá estavam aqueles ansiosos amores sobressaltados das quartas-feiras, os remorsos de Ana todas as vezes e o seu choro quando limpava a cama, Zavalita.

 

  1. Fermín já ia outra vez ao escritório de manhã e à tarde e Santiago almoçava com eles aos domingos. A D. Zoila tinha consentido que Popeye e a Teté anunciassem o noivado e Santiago prometeu assistir à festa. Era sábado, o seu dia de folga em La Crónica, Ana estava de serviço. Mandou passar a ferro o fato mais apresentável, engraxou ele próprio os sapatos, vestiu uma camisa lavada e às oito e meia meteu-se num táxi para Miraflores. Barulho de vozes e música sobrevoava o muro do jardim e chegava à rua, criadas com guarda-pós espiavam das varandas vizinhas o interior da casa. Havia carros estacionados de ambos os lados da rua, alguns nos passeios, e caminhavas cosido com o muro, afastando-se da porta, subitamente indeciso, sem te encorajares nem a tocar a campainha. Através da cerca da garagem, viu de enviesado o jardim: uma mesinha com uma toalha branca, um mordomo a montar guarda, pares a conversar em torno do lago. Mas o grosso dos convidados estava na sala e na casa de jantar e nos cortinados das janelas desenhavam-se as silhuetas. Era lá de dentro que vinham a música e as vozes. Reconheceu a cara daquela tia, o perfil daquele primo, e rostos que pareciam fantasmagóricos. De repente apareceu o tio Clodomiro e foi-se sentar na cadeira de balouço do jardim, sozinho. Lá estava, com as mãos e os joelhos unidos, a olhar para as raparigas de saltos altos, para os rapazes de gravata que começavam a rodear a mesa de toalha branca. Passavam pela frente dele e sorria-lhes afanosamente. Que estavas lá a fazer, tio Clodomiro, porque é que vinhas para onde ninguém te conhecia, para onde os que te conheciam não gostavam de ti?, pensa. Pensa: apesar de tudo, ligavas à família, gostavas da família que não gostava de ti? Ou será que a solidão era pior ainda que a humilhação, tio? Estava já decidido a não entrar, mas não se ia embora. Parou um carro à porta e viu apearem-se duas raparigas, que, segurando o penteado, esperavam que o que ia a conduzir arrumasse o carro e saísse. A ele conhecia-lo, pensa: o Tony, a mesma mecha de cabelo bailarina sobre a testa, o mesmo riso de papagaiozinho. Entraram os três em casa a rir e nessa altura a absurda impressão de que se estavam a rir de ti, Zavalita. Nessa altura, aqueles súbitos selvagens desejos de ver Ana. Da mercearia da esquina explicou à Teté pelo telefone que não podia sair de La Crónica.: aparecia lá um bocadinho amanhã e dá um abraço ao meu cunhado, Teté. Sempre eras um destes desmancha-prazeres, sabichão, então pregavas-lhes uma partida destas? Telefonou a Ana, foi-se encontrar com ela e conversaram um bocado à porta da La Maison de Santé.

 

Uns dias depois ela tinha-lhe telefonado para La. Crónica com voz insegura: tinha uma má notícia para ti, Santiago. Esperou-a no cafezinho dos índios e viu-a chegar toda sufocada, com o casaco por cima da bata, cara de caso: iam para Iça, amor. O pai tinha sido nomeado director de uma Unidade Escolar, ela ia trabalhar provavelmente para o Hospital Operário de lá. Não te tinha parecido assim tão grave, Zavalita, e tinha-la consolado: irias vê-la todas as semanas, ela também poderia cá vir, Iça era tão perto.

 

No primeiro dia em que trabalhou como motorista nos Transportes Morales, antes de partir para Tingo Maria, Ambrosio tinha levado Amalia e Amalita Hortênsia a espanejarem-se um bocado pelas desniveladas ruas de Pucallpa na desconjuntada camioneta azul cheia de remendos, cujos guarda-lamas e pára-choques estavam amarrados com cordas para não saírem disparados nas covas.

 

- Comparada com os carros que tinha conduzido cá, até dava vontade de chorar - diz Ambrosio. - E no entanto digo-lhe que os meses que tive o Raio da Montanha foram felizes, menino.

 

O Raio da Montanha tinha sido equipada com bancos de madeira e cabiam lá, bem apertados, doze passageiros. A vida ociosa das primeiras semanas transformara-se desde então numa activa rotina: Amalia preparava-lhe comida, arrumava o farnel no porta-luvas da carripana e Ambrosio, de camisola, com um bonezito de pala, umas calças esfarrapadas e sapatilhas de borracha, partia para Tingo Maria às oito da manhã. Desde que ele tinha começado a viajar, Amalia, depois de tantos anos, voltara a lembrar-se da religião, um pouco empurrada pela Sr.a Lupe, que lhe tinha oferecido santinhos para pôr nas paredes e a tinha arrastado à missa de domingo. Quando não havia inundações nem a carripana se avariava, Ambrosio chegava a Tingo Maria às seis da tarde; dormia num colchão, debaixo do balcão dos Transportes Morales, e no dia seguinte regressava a Pucallpa às oito. Mas este horário raras vezes se tinha cumprido, ficava sempre empanado no caminho e havia viagens que levavam um dia. O motor estava cansado, Amalia, parava a toda a hora para ganhar forças. Chegava a casa coberto de terra dos pés à cabeça e mortalmente extenuado. Deixava-se cair na cama e, enquanto ela lhe preparava a comida, ele, fumando, com um braço a servir de almofada, sossegado, exausto, contava-lhe as suas manhas para reparar as avarias, os passageiros que tinha tido, as contas que faria com D. Hilário. E, o que mais o divertia, Amalia, as apostas com o Pantaleón. Graças a essas apostas, as viagens tornavam-se menos aborrecidas, embora os passageiros se urinassem de medo. Pantaleón conduzia o Super-Homem das Estradas, uma campana que pertencia aos Transportes Pucallpa, a empresa rival dos Transportes Morales. Saíam à mesma hora e iam a fazer corridas, não só para ganhar a meia libra que apostavam, como, principalmente, para se adiantarem na recolha dos passageiros que iam de um povoado para outro, de uma propriedade para outra, no caminho.

 

- Aqueles passageiros que não compram bilhete - tinha dito a Amalia -, aqueles que não são passageiros dos Transportes Morales, mas sim dos Transportes Ambrosio Pardo.

 

- E se um dia D. Hilário descobre? - tinha-lhe perguntado Amalia.

 

- Os patrões sabem muito bem como as coisas são - tinha-lhe explicado o Pantaleón -, Amalia. E fazem-se de novas porque se desforram pagando-nos ordenados miseráveis. Ladrão que rouba a ladrão, amigo, sabes como é.

 

Em Tingo Maria, Pantaleón tinha arranjado uma viúva que não savia que ele tinha mulher e três filhos em Pucallpa, mas às vezes não ia a casa da viúva, ia era comer com Ambrosio a um restaurantezinho barato, La Luz dei Dia, e às vezes, depois, a uma casa de pegas esqueléticas que levavam três soles. Ambrosio fazia-lhe companhia por amizade, não conseguia perceber como é que o Pantaleón gostava daquelas mulheres, ele não era capaz de se meter com elas nem que lhe pagassem. A sério, Ambrosio? A sério, Amalia: atarracadas, feíssimas. E, além disso, chegava tão cansado que, mesmo que te quisesse enganar, o corpo não me respondia, Amalia.

 

Nos primeiros dias, Amalia tinha levado muito a sério a espionagem dos Ataúdes Limbo. Nada se modificara desde que a agência tinha mudado de dono. D. Hilário nunca lá ia; o empregado de antigamente continuava lá, um rapaz de cara adoentada que passava o dia sentado à varanda a olhar estupidamente para as auras que apanhavam o sol nos telhados do hospital e da morgue. O único quartinho da agência estava cheio de caixões, a maioria pequeninos e brancos. Eram toscos, rústicos, apenas um ou outro polido e encerado. Na primeira semana, tinha-se vendido um caixão. Um homem descalço e sem casaco, mas de gravata preta e rosto compungido, entrou nos Ataúdes Limbo e saiu daí a pouco acarretando um caixãozinho ao ombro. Passou em frente de Amalia, e ela tinha-se persignado. Na segunda semana, não tinha havido nenhuma compra; na terceira, um par: um de criança e outro de adulto. Não parecia um negócio por aí além, Amalia, começara Ambrosio a inquietar-se.

 

Ao fim de um mês, Amalia tinha começado a descurar a vigilância. Não ia passar a vida à porta da barraca, com Amalia Hortênsia ao colo, sobretudo quando era tão raro levarem caixões. Tinha-se feito amiga da Sr.a Lupe, passavam horas a conversar, almoçavam e jantavam juntas, davam voltas pela Plaza, pela Calle Comercio, pelo embarcadouro. Nos dias mais quentes, iam ao rio tomar banho de combinação e depois iam comer gelados na Casa Wong. Ambrosio descansava aos domingos; dormia toda a manhã e depois de almoçar ia com Pantaléon aos desafios de futebol no estádio da saída para Yarinacocha. À tarde, deixavam Amalita Hortênsia com a Sr.a Lupe e iam ao cinema. Já os conheciam na rua, as pessoas cumprimentavam-nos. A Sr.a Lupe entrava na barraca como se fosse dela; uma vez tinha apanhado Ambrosio nu, a lavar-se com um balde na horta, e Amalia tinha-se fartado de rir. Eles também entravam em casa da Sr.” Lupe quando lhes apetecia, pediam-lhe coisas emprestadas. Quando vinha a Pucallpa, o marido da Sr.a Lupe ia sentar-se com eles na rua, à noite, a tomar o fresco. Era um velho que só abria a boca para falar da sua quintarola e das suas dívidas ao Banco Agropecuario.

 

- Parece-me que já estou satisfeita - tinha dito Amalia um dia a Ambrosio. - Já me acostumei ao sítio. E tu já não andas tão antipático como ao princípio.

 

- Nota-se que já te acostumaste - tinha respondido Ambrosio.

 

- Andas descalça e com o guarda-chuva, já és uma montanhesa. Sim, eu também estou satisfeito.

 

- Satisfeita porque já pouco penso em Lima - tinha dito Amalia.

 

- Já quase não sonho com a senhora, já quase nunca penso na polícia.

 

- Quando cá chegaste, pensei como pode ela viver com ele - tinha dito a Sr.1 Lupe, um dia. - Agora digo-te que tiveste sorte em apanhá-lo. Todas as vizinhas o queriam para marido, preto e tudo.

 

Amalia tinha-se rido: era verdade, ele tratava-a muito bem, muitíssimo melhor que em Lima, e até a Amalita Hortênsia fazia as suas festas. Andava muito mais alegre ultimamente e até agora nunca tinha discutido com ele em Pucallpa.

 

- Felizes mas não por aí além - diz Ambrosio. - O que falhava era a questão de dinheiro, menino.

 

Ambrosio tinha julgado que, graças aos extras que arranjava sem D. Hilário saber, o dinheiro lhe chegaria para o mês. Mas não, em primeiro lugar, havia poucos passageiros, e, em segundo, D. Hilário tinha resolvido que as reparações fossem pagas a meias pela empresa e pelo motorista. D. Hilário não estava bom da cabeça, Amalia, se concordasse com aquilo ficava sem ordenado. Tinham discutido e assentado que Ambrosio pagaria 10% das reparações. Mas no segundo mês D. Hilário tinha-lhe descontado quinze, e, quando tinham roubado o pneu sobressalente, tinha querido que Ambrosio pagasse o novo. Mas que exagero, D. Hilário, que ideia é essa. D. Hilário tinha-o olhado fixamente: se eu fosse a ti, não protestava, ele tinha muito por onde lhe pegassem, não andava a ganhar uns soles às escondidas dele? Ambrosio tinha ficado sem saber o que dizer, mas D. Hilário tinha-lhe estendido a mão: continuamos amigos. Tinham começado a arredondar o ordenado com empréstimos e adiantamentos que o próprio D. Hillario lhe fazia a contragosto. Pantaleón, vendo-os em apuros, tinha-os aconselhado: deixem de pagar renda e venham para o bairro da lata e façam uma barraquita ao pé da minha.

 

- Não, Amalia - tinha dito Ambrosio. - Não quero que fiques sozinha quando eu vou de viagem, com tanta vaga que há no bairro da lata. Além disso, de lá não poderias vigiar os Ataúdes Limbo.

 

- A sabedoria das mulheres - disse Carlitos. - Se a Ana o tivesse pensado, não lhe teria saído tão bem. Mas não pensou, as mulheres nunca premeditam essas coisas. Deixam-se guiar pelo instinto e nunca falham, Zavalita.

 

Era aquele benigno, intermitente mal-estar que reapareceu quando a Ana foi viver para Iça, Zavalita, aquela branda inquietação que te surpreendia nos colectivos calculando quanto tempo falta para domingo? Teve de mudar para os sábados o almoço em casa dos pais. Aos domingos partia muito cedo num colectivo que o vinha buscar à pensão. Dormia durante toda a viagem, estava com Ana até ao anoitecer e regressava. Andavas na penúria com aquelas viagens semanais, pensa, agora quem pagava as cervejas no Negro-Negro era o Carlitos. Aquilo é que era o amor, Zavalita?

 

- Isso é lá contigo, isso é lá contigo - disse Carlitos. - Isso é lá com vocês, Zavalita.

 

Tinha conhecido por fim os pais de Ana. Ele era um huancaíno gordo, loquaz, que passara a vida a dar aulas de História e Língua Espanhola nos Colégios Nacionais, e a mãe uma mulata agressivamente amável. Tinham uma casa próxima dos lascados pátios da Unidade Escolar e recebiam-no com uma hospitalidade barulhenta e delambida. Lá estavam os abundantes almoços que te infligiam aos domingos, os angustiosos olhares que trocavas com a Ana a pensar a que horas acabará o desfile dos pratos. Quando acabavam, ele e Ana iam passear por ruas direitas e sempre ensolaradas, entravam nalgum cinema para se acariciarem, bebiam refrescos na Plaza, voltavam a casa para conversar e beijavam-se à pressa numa saleta atulhada de huacos1. Às vezes Ana vinha passar o fim-de-semana a casa de uns parentes e podiam dormir um com o outro em qualquer hotelzeco da baixa.

 

- Bem sei que não me estás a pedir conselho - disse Carlitos.- É por isso que não to dou.

 

Tinha sido numa dessas rápidas vindas de Ana a Lima, uma tardinha, ao encontrarem-se à porta do cinema Roxy. Mordia os lábios, pensa, o nariz palpitava-lhe, havia medo nos olhos dela, balbuciava: já sei que tens tido cuidado, amor, eu também sempre, amor, não sabia o que tinha acontecido. Santiago deu-lhe o braço e, em vez do cinema, foram a um café. Tinham conversado com calma e Ana tinha concordado que não podia nascer. Mas saltaram-lhe as lágrimas e falou muito do medo que tinha dos pais e despediu-se magoada e com rancor.

 

- Não to peço porque já sei qual seria - disse Santiago. - Não te cases.

 

Dois dias depois, Carlitos tinha averiguado a direcção de uma mulher e Santiago foi ter com ela, a uma arruinada casa de tijolos dos Barrios Altos. Era alentada, suja e desconfiada e despediu-se dele com maus modos: estava muito enganado, rapazinho, ela não cometia crimes. Tinha sido uma semana de exasperantes idas e vindas, de conversas afanosas com Carlitos e madrugadas de insónia na pensão: era enfermeira, conhecia tantas parteiras, tantos médicos, não queria, era uma trafulhice que te cabia a ti. Por fim, Norwin tinha encontrado um médico com pouca clientela que, depois de tortuosas evasivas, aceitara. Pedia mil e quinhentos soles, e entre Santiago, Carlitos e Norwin tinham levado três dias a reuni-los. Telefonou a Ana: pronto, tudo tratado, que viesse a Lima quanto antes. Fazendo-lhe notar pelo tom de voz que lhe deitavas as culpas, pensa, e que não lhe perdoavas.

 

- Sim, seria esse, mas por puro egoísmo - disse Carlitos. - Não tanto por ti como por mim. Vou deixar de ter a quem contar as minhas mágoas, com quem passar a noite no antro. Isso é lá contigo, Zavalita.

 

Na quinta-feira, alguém que vinha de Iça deixou a carta de Ana na pensão de Barranco: já podias dormir descansado amor. Uma profunda tristeza asfixiada de sopeirismo, pensa, tinha convencido um médico e já passou tudo, os filmes mexicanos, tudo muito doloroso e

 

1 Huacos ou guacos: objectos de cerâmica dos antigos túmulos ameríndios. (N. do T.)

 

muito triste e agora estava de cama e tinha tido de inventar uma porção de mentiras para os meus pais não darem por nada, mas até os erros de ortografia te tinham comovido tanto, Zavalita! Pensa: o que a alegrava no meio do seu desgosto era ter-te aliviado dessa preocupação tão grande, amor. Tinhas descoberto que não gostavas dela, era um divertimento para ti, não podia suportar a ideia porque ela gostava de ti a valer, não te veria mais, o tempo a ajudaria a esquecer-te. Nessa sexta-feira e nesse sábado tinhas-te sentido aliviado mas não satisfeito, Zavalita, e à noite vinha o mal-estar acompanhado de remorsos tranquilos. Não o bichinho, pensa, não as facas. No domingo, no colectivo para Iça, não tinha pregado olho.

 

- Decidiste-o ao receber a carta, masochista - disse Carlitos. Da Plaza até lá, caminhou tão depressa que chegou sem fôlego.

 

Veio abrir a mãe dela e tinha os olhos a pestanejar e sentidos: a Anita estava doente, umas cólicas tremendas, tinha-lhes pregado um destes sustos. Fê-lo passar à sala e teve de esperar um bom bocado antes que a mãe voltasse e lhe dissesse suba. Aquela vertigem de ternura ao vê-la com o pijama amarelo, pensa, pálida e a pentear-se apressadamente quando ele entrou. Largou o pente, o espelho: desatou a chorar.

 

- Não foi na altura da carta, foi naquele momento - disse Santiago. - Chamámos a mãe dela, demos-lhe a notícia e celebrámos o noivado entre os três com café com leite e biscoitos.

 

Casaram em Iça, sem convidados nem cerimónia, viriam para Lima e até arranjarem um apartamento barato viveriam na pensão. Talvez Ana arranjasse emprego num hospital, o ordenado dos dois devia chegar à justa: nessa altura, Zavalita?

 

- Vamos-te organizar uma despedida que há-de fazer história no jornalismo limenho - disse Norwin.

 

Subiu ao quarto de Malvina para se pintar, desceu, e ao passar ao pé da sala de estar deu com Martha furiosa: agora qualquer pessoa cá entrava, isto tinha-se tornado um chiqueiro. Entrava cá quem pudesse pagar, dizia Flora, pergunta à velha Ivonne e veria, Martha. Da porta do bar, Queta viu-o, de costas como da primeira vez, alto no banco, enfronhado num fato escuro, com os crespos cabelos brilhantes, os cotovelos apoiados no balcão. Robertito servia-lhe uma cerveja. Era o primeiro a chegar apesar de já passar das nove e havia quatro mulheres a conversar ao pé do gira-discos, fazendo de contas que ele não existia. Aproximou-se do balcão ainda sem saber se a incomodava vê-lo ali.

 

- O senhor estava a perguntar por ti - disse Robertito, com um sorrisinho sarcástico. - Disse-lhe que te encontrava por milagre, Quetita.

 

Robertito deslizou felinamente para o outro extremo do balcão e Queta virou-se para olhar para ele. Não ígneos, nem atemorizados nem caninos; antes impacientes. Tinha a boca fechada e a mexer-se como se estivesse a morder um freio; a sua expressão não era servil nem respeitosa nem sequer cordial, apenas veemente.

 

- Com que então ressuscitaste - disse Queta. - Julguei que nunca mais cá aparecias.

 

- Tenho-os na carteira - murmurou ele, rapidamente. - Subimos?

 

- Na carteira? - Queta começou a sorrir, mas ele continuava muito sério, com as apertadas mandíbulas a latejar. - Que mosca te mordeu?

 

- A tarifa subiu nestes meses? - perguntou ele, sem ironia, com um tom impessoal, sempre apressado. - Quando é que subiu?

 

- Estás mal disposto - disse Queta, admirada com ele e por não se zangar com as mudanças que nele via. Tinha uma gravata vermelha, camisa branca, um pulôver com botões; as faces e o queixo eram mais claros que as mãos quietas pousadas no balcão. - Que modos são esses? Que é que te aconteceu durante todo este tempo?

 

- Quero saber se vai lá para cima comigo - disse ele, agora com uma calma mortal na voz. Mas nos seus olhos permanecia a mesma urgência selvagem. - Se é sim, subimos. Se é não, vou-me embora.

 

O que tinha mudado tanto em tão pouco tempo? Não que estivesse mais gordo nem mais magro, não que se tivesse tornado insolente. Parece furioso, pensou Queta, não comigo nem com ninguém, mas com ele.

 

- Ou estás assustado? - disse, troçando. - Já não és criado do Cayo Merda, agora podes cá vir quando te der na cabeça. Ou o Bola de Ouro proibiu-te de sair à noite?

 

Não se encolerizou, não se perturbou. Pestanejou uma única vez, e esteve uns segundos sem responder, ruminando vagarosamente, procurando as palavras.

 

- Se vim para nada, o melhor é ir-me embora - disse por fim, olhando-a nos olhos sem receio. - Diga-me duma vez por todas.

 

- Oferece-me uma bebida - Queta encarrapitou-se num dos bancos e apoiou-se à parede, já irritada. - Posso pedir um uísque, suponho.

 

- Pode pedir o que quiser, mas lá em cima - disse ele, suavemente, muito sério. - Vamos subir ou quer que me vá embora?

 

- Aprendeste más maneiras com o Bola de Ouro - disse Queta, secamente.

 

- Quer dizer que é não - murmurou ele, levantando-se do banco. - Então, boa noite.

 

Mas a mão de Queta reteve-o quando já estava a dar meia volta. Viu-o imobilizar-se, voltar-se e olhá-la calado com os seus olhos urgentes. Porquê?, pensou, admirada e furiosa, era por curiosidade, era por? Ele esperava como uma estátua. Quinhentos, mais sessenta para o quarto e por uma vez só, e ouvia-se e mal reconhecia a própria voz, era por?, percebia? E ele, movendo ligeiramente a cabeça: percebia. Pediu-lhe o dinheiro para o quarto, ordenou-lhe que subisse e que a esperasse no doze, e, quando ele desapareceu na escada, lá estava Robertito, com um maléfico sorriso agridoce na cara imberbe, fazendo tilintar a chavinha contra o balcão. Queta atirou-lhe o dinheiro para as mãos.

 

- Bolas, Quetita, não posso acreditar - soletrou ele, com requintado prazer, semicerrando os olhos. - Vais atender o mulatinho.

 

- Dá-me a chave - disse Queta. - E não fales comigo, paneleiro, bem sabes que nem te posso ver à frente.

 

- Que grosseira que tu andas desde que te juntas com a família Bermúdez - disse Robertito, a rir. - Poucas vezes cá vens e quando vens tratas-nos como cães, Quetita.

 

Ela arrancou-lhe a chave das mãos. A meio da escada deparou-se-Lhe Malvina, que vinha a descer morta de riso: estava ali o mulatinho do ano passado, Queta. Apontava para cima e de repente iluminaram-se-lhe os olhos, ah, tinha vindo à tua procura, e deu-lhe uma palmada. Mas que é que tinhas, Quetita.

 

- É aquele sacana do Robertito - disse Queta. - Não suporto mais as insolências dele.

 

- É inveja, não ligues - riu-se Malvina. - Agora toda a gente anda com inveja de ti, Quetita. Melhor para ti, pateta.

 

Ele estava à espera dela à porta do doze. Queta abriu e ele entrou e sentou-se na borda da cama. Fechou a porta à chave, passou ao quartinho do lavabo, correu a cortina, acendeu a luz, e meteu então a cabeça no quarto. Viu-o, quieto, sério, debaixo do candeeiro de quebra-luz abaulado, escuro sobre a colcha cor-de-rosa.

 

- Estás à espera de que eu te dispa? - perguntou, de mau modo.

- Anda cá, para eu te lavar.

 

Viu-o levantar-se e aproximar-se sem afastar o olhar, tinha perdido o aprumo e a pressa e recuperado a docilidade da primeira vez. Quando chegou diante dela, levou a mão ao bolso num movimento rápido e quase aturdido, como se tivesse recordado uma coisa essencial. Estendeu-lhe as notas esticando uma mão lenta e um pouco envergonhada, pagava-se adiantado, não?, como se estivesse a entregar-Lhe uma carta com más notícias: ali as tinha, podia contá-las.

 

- Como vês, este capricho sai-te caro - disse Queta, encolhendo os ombros. - Bom, tu lá sabes o que fazes. Tira as calças, deixa-me lá lavar-te.

 

Ele pareceu indeciso uns segundos. Aproximou-se de uma cadeira com uma prudência que traía o seu embaraço e Queta, do lavabo, viu-o sentar-se, tirar os sapatos, o casaco, o pulôver, as calças e dobrá-las com extrema lentidão. Tirou a gravata. Dirigiu-se a ela, caminhando com a mesma cautela de antes, com as longas pernas tensas a mexerem-se a compasso debaixo da camisa branca. Quando chegou ao pé dela, despiu as cuecas e depois de as ter nas mãos um instante atirou-as para a cadeira, sem acertar. Enquanto ela lhe apertava o sexo com força e o ensaboava e lavava, não tentou tocá-la. Sentia-o rígido ao seu lado, com a anca a roçar nela, respirando fundo e regularmente. Estendeu-lhe o papel higiénico para ele se secar e ele fê-lo de uma maneira meticulosa e como quem quer ganhar tempo.

 

- Agora é a minha vez - disse Queta. - Vai andando e espera por mim.

 

Ele anuiu e ela viu-lhe nos olhos uma reticente serenidade, uma vergonha fugidia. Correu a cortina e, enquanto enchia o bidé de água quente, ouviu os seus compridos passos pausados nas tábuas do soalho e o ranger da cama ao recebê-lo. O sacana pegou-me a tristeza, pensou. Lavou-se, limpou-se, entrou no quarto e, ao passar ao pé da cama e vê-lo estirado de barriga para cima, com os braços cruzados por cima dos olhos, ainda de camisa, meio corpo nu debaixo do feixe de luz, pensou numa sala de operações, num corpo que espera o bisturi. Tirou a saia e a blusa e aproximou-se da cama com os sapatos calçados; ele permaneceu imóvel. Olhou-lhe para o ventre: sob a mata de pêlos cuja negrura sobressaía pouco da pele, com o brilho da água ainda recente, jazia o sexo pendente e flácido entre as pernas. Foi apagar a luz. Voltou e estendeu-se ao lado dele.

 

- Tanta pressa para subir, para me pagares o que não tens - disse, ao ver que ele não fazia nenhum movimento. - Para isto?

 

- É que você trata-me mal - disse a voz dele, espessa e acobardada. - Nem sequer disfarça. Eu não sou um animal, tenho o meu orgulho.

 

- Tira a camisa e deixa-te de palermices - disse Queta. - Julgas que sinto nojo de ti? Contigo ou com o rei de Roma, para mim é a mesma coisa, pretinho.

 

Sentiu-o endireitar-se, adivinhou na escuridão os seus movimentos obedientes, viu no ar a mancha branca da camisa, que ele atirava para a cadeira visível nas réstias de luz da janela. O corpo nu deitou-se outra vez ao lado dela. Ouviu-lhe a respiração, mais agitada, pressentiu o desejo dele, sentiu que ele a tocava. Deitou-se de costas, abriu os braços, e um momento depois recebia sobre o corpo a sua carne esmagadora e suada. Respirava com ansiedade junto ao seu ouvido, as mãos dele percorriam-lhe humidamente a pele, e sentiu-lhe o sexo a entrar suavemente. Tentava tirar-lhe o soutien e ela ajudou-o virando-se um pouco. Sentiu-lhe a boca molhada no pescoço e nos ombros e ouvia-o arquejar e mexer-se; enlaçou-o com as pernas e acariciou-lhe as costas, as nádegas, que transpiravam. Deixou-o beijá-la na boca, mas manteve os dentes cerrados. Sentiu-o acabar com uns curtos gemidos arquejantes. Inclinou-o para o lado e sentiu-o rodar sobre si próprio como um morto. Calçou-se às escuras, foi ao lavabo, e, ao voltar ao quarto e acender a luz, viu-o outra vez de barriga para cima, com os braços cruzados sobre a cara.

 

- Há uma data de tempo que andava a sonhar com isto - ouviu-o dizer, à medida que punha o soutien.

 

- Agora deves estar arrependido dos teus quinhentos soles - disse Queta.

 

- Porque é que me havia de arrepender? - ouviu-o rir, sempre oculto por trás dos braços. - Nunca vi dinheiro tão bem gasto.

 

Enquanto vestia a saia, ouviu-o rir novamente, e surpreendeu-a a sinceridade do riso dele.

 

- Tratei-te mal, a sério? - perguntou Queta. - Não era por tua causa, era por causa do Robertito. Passa a vida a dar-me cabo dos nervos.

 

- Posso fumar um cigarro, assim como estou? - perguntou ele. Ou tenho de me ir embora já?

 

- Podes fumar três, se quiseres - disse Queta. - Mas vai-te lavar primeiro.

 

Uma despedida que ficaria na história: começaria ao meio-dia no El Rinconcito Cajamarquino, com um almoço crioulo a que assistiriam só Carlitos, Norwin, Solórzano, Periquito, Milton e Darío; arrastar-se-ia à tarde por diversos bares, e às sete haveria um cocktailzinho com borboletas nocturnas e jornalistas de outros jornais no apartamento da índia (ela e Carlitos, na altura, estavam reconciliados): rematariam o dia Carlitos, Norwin e Santiago, sozinhos, na casa de passe. Mas na véspera do dia fixado para a despedida, ao anoitecer, quando Carlitos e Santiago voltavam à redacção, depois de terem jantado na cantina de La, Crónica, viram Becerrita baldar sobre a sua secretária com um desesperado caralho. Lá estava o seu quadrado corpo carnoso a desmoronar-se, os redactores a correr. Levantaram-no: tinha a cara contraída numa careta de infinito desgosto e a pele arroxeada. Deitaram-lhe álcool, aliviavam-lhe a gravata, abanavam-no para lhe dar ar. Ele jazia congestionado e inânime e exalava um ronco intermitente. Arispe e dois redactores da página criminal levaram-no ao hospital na camioneta; um par de horas depois telefonaram a dizer que tinha morrido de uma congestão cerebral. Arispe escreveu a notícia necrológica que apareceu num rectângulo tarjado de luto: «Com as botas calçadas», pensa. Os redactores das criminais tinham feito esboços biográficos e apologias: o seu espírito inquieto, a sua contribuição para o desenvolvimento do jornalismo nacional, pioneiro da crónica e da reportagem criminal, um quarto de século nas trincheiras do jornalismo.

 

Em vez de despedida de solteiro tiveste um velório, pensa. Passaram a noite do dia seguinte em casa de Becerrita, numa escarpa dos Barrios Altos, a velá-lo. Lá estava essa noite tragicómica, Zavalita, essa farsa barata. Os repórteres da página criminal estavam contristados e havia mulheres que suspiravam junto ao caixão, naquela salinha de móveis miseráveis e velhas fotografias ovais que tinham escurecido com crepes. Depois da meia-noite, uma senhora de luto e um rapaz entraram lá em casa como um arrepio, por entre murmúrios alarmados: ah, caraças, a outra mulher do Becerrita; ah, caraças, o outro filho do Becerrita. Tinha havido um ameaço de discussão, impropérios misturados com choro, entre a família da casa e os recém-chegados. Os assistentes tiveram de intervir, mediar, aplacar as famílias rivais. As duas mulheres pareciam da mesma idade, pensa, tinham a mesma cara, e o rapaz era idêntico aos varões da casa. Ambas as famílias tinham ficado a montar guarda de ambos os lados do féretro, trocando olhares de ódio por cima do cadáver. Durante toda a noite circularam pela casa guedelhudos jornalistas de outros tempos, indivíduos estranhos de fatos coçados e lenços de pescoço, e no dia seguinte, no enterro, houve uma disparatada concentração de parentes comovidos e caras rufianescas e noctívagas, de polícias e agentes da secreta e velhas putas reformadas de olhos pintalgados e chorosos. Arispe leu um discurso e logo a seguir um funcionário das Investigações, e nessa altura descobriu-se que Becerrita tinha andado a trabalhar para a polícia desde há vinte anos. Ao sair do cemitério, a bocejar e com os ossos doridos, Carlitos, Norwin e Santiago almoçaram numa cantina do Santo Cristo, perto da Escola da Polícia, umas empadas toldadas pelo fantasma de Becerrita, que a cada momento reaparecia na conversa.

 

- O Arispe prometeu-me que não publicava nada, mas eu não me fio - disse Santiago. - Toma conta disso, Carlitos. Que nenhum engraçado se lembre de fazer um suelto.

 

- Mais tarde ou mais cedo, em tua casa hão-de saber que casaste

- disse Carlitos. - Mas está bem, eu tomo conta disso.

 

- Prefiro que o saibam por mim, não pelo jornal - disse Santiago. - Faiarei com os velhos quando voltar de Iça. Não quero ter complicações antes da lua-de-mel.

 

Nessa noite da véspera do casamento, Carlitos e Santiago tinham conversado uns momentos no Negro-Negro, depois do trabalho. Brincavam, recordavam as vezes que tinham ali ido, àquelas mesmas heras, àquela mesma mesa, e ele estava um bocado tristonho, Zavalita, como se fosses de viagem para sempre. Pensa: nessa noite não se embebedou, não se drogou. Na pensão passaste as horas que faltavam para o amanhecer, Zavalita, a fumar, a recordar a cara de espanto de D. Lúcia quando lhe tinhas dado a notícia, tentando imaginar como seria a vida no quartinho com outra pessoa, se não acabaria por ser demasiadamente promíscuo e asfixiante, qual seria a reacção dos velhos. Quando o Sol nasceu, preparou cuidadosamente a mala. Examinou pensativo o quartinho, a cama, a pequena estante com livros. O colectivo veio buscá-lo às oito. A Lúcia veio despedir-se dele de roupão, ainda apatetada de surpresa, sim, jurava que não dizia nada ao seu paizinho, e tinha-lhe dado um abraço e um beijo na testa. Chegou a Iça às onze da manhã, telefonou para o Hotel de Huacachina a confirmar a reserva. O fato escuro que tinha ido buscar à lavandaria no dia anterior tinha-se enchido de vincos na mala e a mãe de Ana passou-o a ferro. A contragosto, os pais de Ana tinham cumprido o que ele pedira: nenhum convidado. Só com essa condição aceitavas casar-te pela igreja, tinha-os prevenido a Ana, pensa. Foram os quatro ao registo civil, depois à igreja. E uma hora depois estavam a almoçar no Hotel de Turistas. A mãe cochichava com Ana, o pai desencantava anedotas e bebia, constristadíssimo. E lá estava a Ana, Zavalita; o seu vestido branco, a sua cara de felicidade. Quando iam a entrar para o táxi que os levaria a Huacachina, a mãe desatou a chorar. Lá estavam os três dias de lua-de-mel em redor das esverdeadas águas pestilentas da lagoa, Zavalita. Caminhadas entre as dunas, pensa, conversas parvas com os outros pares de noivos, longas sestas, as partidas de pingue-pongue, que a Ana ganhava sempre.

 

- Eu andava a contar os dias para se completarem os seis meses - diz Ambrosio. - E assim que fez seis meses fui ter com ele.

 

Um dia, no rio, Amalia tinha-se apercebido de que ainda estava mais habituada a Pucallpa do que pensava. Tinha tomado banho com a Sr.a Lupe e, enquanto Amalita Hortênsia dormia debaixo do guarda-chuva espetado na areia, tinham-se aproximado dois homens. Um era sobrinho do marido da Sr.a Lupe, o outro um caixeiro-viajante que tinha chegado de Huánuco no dia anterior. Chamava-se Leoncio Paniagua e tinha-se sentado ao pé de Amalia. Tinha estado a contar-Lhe o muito que viajava pelo Peru devido ao seu trabalho e dizia-lhe em que se pareciam e se diferençavam Huancayo, Cerro de Pasco, Ayacucho. Quer-me impressionar com as suas viagens, pensava Amalia, rindo com os seus botões. Tinha-o deixado armar em conhecedor do mundo durante um bom bocado e no fim tinha-lhe dito: eu sou de Lima. De Lima? Leoncio Paniagua não queria acreditar: mas falava exactamente como as pessoas de cá, tinha a voz cantada e as expressões e tudo.

 

- Estás doido ou quê? - tinha-o fitado atónito D. Hilário. O negócio corre bem, mas, como é lógico, até agora é pura perda. Achas que em seis meses pode dar lucros?

 

Ao voltar a casa, Amalia tinha perguntado à Sr.a Lupe se o que tinha dito Leoncio Paniagua era verdade: é, claro que é, já falava exactamente como uma montanhesa, orgulha-te. Amalia tinha pensado como as suas conhecidas de Lima ficariam espantadas se a ouvissem: a tia, a Sr.” Rosário, Carlota e Simula. Mas ela não notava que tivesse mudado de pronúncia, Sr.” Lupe, e a Sr.” Lupe, sorrindo com malícia: o huanuquenho tinha-te estado a namorar, Amalia. Pois foi, Sr.” Lupe, imagine que até a tinha convidado para ir ao cinema, mas claro que Amalia tinha recusado. Em vez de se escandalizar, a Sr.” Lupe tinha-a repreendido: ah, parva. Devia ter aceitado, Amalia era nova, tens o direito de te divertires, se calhar, julgava que Ambrosio não se aproveitava à grande nas noites que passava em Tingo Maria. Amalia é que se tinha escandalizado, afinal.

 

- Fez as contas com papéis na mão - disse Ambrosio. - Deixou-me tonto com tantos números.

 

- Impostos, selos, comissão para o notário que fez o trespasse D. Hilário cheirava os recibos e ia-mos passando, Amalia. - Tudo aqui escarrapachado. Estás satisfeito?

 

- A verdade é que não estou muito, D. Hilário - tinha dito Ambrosio. - Ando um bocado apertado e esperava receber qualquer coisa, senhor.

 

- E, aqui, os recibozinhos do idiota - tinha concluído D. Hilário. - Eu não levo nada por administrar o negócio, mas não queres que seja eu próprio a vender os caixões, não? E suponho que não hás-de dizer que lhe pago muito. Cem por mês é uma miséria até para um idiota.

 

- Então o negócio não está a sair tão bom como o senhor julgava

- tinha dito Ambrosio.

 

- Está a sair melhor - D. Hilário tinha abanado a cabeça como quem diz faz um esforço, tenta perceber. - Ao princípio, qualquer negócio dá prejuízo. Depois vai-se levantando e vem a desforra.

 

Não muito tempo depois, numa noite em que Ambrosio acabava de chegar de Tingo Maria e estava a lavar a cara no quarto do fundo, onde tinham posto um lavatório em cima de um cavalete, Amalia tinha visto Leoncio Paniagua aparecer à esquina da barraca, penteado e engravatado: vinha direitinho lá a casa. Tinha estado a pontos de deixar cair Amalita Hortênsia. Apalermada, tinha corrido para a horta e tinha-se aninhado na erva, com a menina bem apertada contra o peito. Ia entrar, ia-se encontrar com o Ambrosio, o Ambrosio matava-o. Mas não tinha ouvido nada de alarmante: só o assobio de Ambrosio, o chapinhar da água, os grilos a cantarem na escuridão. Por fim tinha ouvido Ambrosio pedir-lhe a comida. Tinha ido fazer a comida, a tremer, e muito tempo depois ainda as coisas lhe escorregavam das mãos.

 

- E quando passaram outros seis, quer dizer, um ano, fui logo ter com ele - diz Ambrosio. - E agora, D. Hilário? Não me diga que agora também não há lucros.

 

- Como é que há-de haver, o negócio não anda nem desanda tinha dito D. Hilário. - Queria precisamente falar contigo por causa disso.

 

No dia seguinte, Amalia tinha ido furiosa a casa da Sr.* Lupe, para lhe contar: veja lá o atrevimento. Imagine o que seria se o Ambrosio. A Sr.a Lupe tinha-lhe tapado a boca dizendo eu sei tudo. O huanuquenho tinha-se metido em casa dela e tinha-lhe aberto o coração, Sr.1 Lupe: desde que conheci a Amalia sou outra pessoa, a sua amiga é única. Não fazia tenção de entrar em tua casa, Amalia, não era assim tão parvo, só queria vê-la de longe. Tinhas feito uma conquista, Amalia, o huanuquenho estava doidinho por ti, Amalia. Tinha-se sentido esquisitíssima: continuava furiosa, mas agora também desvanecida. Nessa tarde tinha ido à praiazinha pensando se ele me diz alguma coisa digo-lhe as últimas. Mas Leoncio Paniagua não tinha feito a menor insinuação; educadíssimo, limpava a areia para ela se sentar, tinha-lhe oferecido um sorvete e, quando ela o olhava nos olhos, baixava os dele, envergonhado e suspirando.

 

- Sim, é como ouves, tenho a coisa toda estudada - tinha dito D. Hilário. - O dinheiro está lá metido, à espera de o retirarmos. Só é preciso uma pequena injecção de capital.

 

Leoncio Paniagua vinha a Pucallpa todos os meses, só por um par de dias, e Amalia tinha chegado a ganhar-lhe simpatia, pela maneira como a tratava, pela sua terrível timidez. Tinha-se habituado a encontrar-se com ele na praiazinha de quatro em quatro semanas, com a sua camisa de colarinhos, os seus sapatões, cerimonioso e sufocado, a enxugar a cara com um lenço colorido. Ele nunca tomava banho, sentava-se entre a Sr.a Lupe e ela e conversavam, e, quando elas se metiam na água, ficava a tomar conta de Amalita Hortênsia. Nunca tinha acontecido nada, nunca lhe tinha dito nada; olhava-a, suspirava, e o mais que se atrevia era a dizer-lhe que pena ir-me embora amanhã ou porque será que gosto tanto de vir a Pucallpa. Era tão envergonhado, não era, Sr.” Lupe? E a Sr.a Lupe: não, o que ele era, era um romântico.

 

- O grande negócio que se lhe meteu na cabeça foi comprar outra agência funerária, Amalia - tinha dito Ambrosio. - A Modelo.

 

- A mais acreditada, a que nos rouba a clientela toda - tinha dito D. Hilário. - Nem mais uma palavra. Traz esse dinheiro que tens em Lima e fazemos um monopólio, Ambrosio.

 

O mais longe que fora, ao fim de meses, e mais para fazer a vontade à Sr.1 Lupe que a ele, tinha sido ir uma vez jantar ao restaurante chinês e depois ao cinema com Leoncio Paniagua. Tinham ido à noite, por ruas desertas, ao restaurante chinês menos concorrido e entrado quando a sessão já tinha começado e tinham saído antes do fim. Leoncio Paniagua tinha sido mais correcto que nunca, além de não ter tentado abusar ao apanhar-se sozinho com ela, quase não tinha falado durante toda noite. Diz que foi por estar tão emocionado, Amalia, diz que perdeu a voz de felicidade. Mas a sério que gostava assim tanto dela, Sr.a Lupe? A sério, Amalia: nas noites em que estava em Pucallpa, ia à barraca da Sr.” Lupe e falava-lhe durante horas de ti e até chorava. Mas então como é que ele nunca lhe dizia nada, Sr.a Lupe? Porque era um romântico, Amalia.

 

- O dinheiro mal me chega para comer e o senhor ainda me pede quinze mil soles -- D. Hilário tinha acreditado na mentira que eu lhe contei, Amalia. - Nem que eu fosse doido para me meter noutro negócio de agências funerárias, senhor.

 

- Não é outro, é o mesmo mas em grande e reforçado - tinha insistido D. Hilário. - Pensa bem nisso e vais ver que eu tenho razão.

 

E uma vez tinham passado dois meses sem o huanuquenho aparecer em Pucallpa. Amalia quase o tinha esquecido, na tarde em que o encontrou, sentado na praiazinha do rio, com o casaco e a gravata cuidadosamente dobrados em cima de um jornal e um brinquedo para Amalita Hortênsia na mão. Que tinha sido feito dele? E ele a tremer como se estivesse com sezões: não voltaria a Pucallpa, podia falar um bocadinho contigo a sós? A Sr.a Lupe tinha-se afastado com Amalita Hortênsia e eles tinham conversado cerca de duas horas. Já não era caixeiro-viajante, tinha herdado uma lojeca de um tio, era disso que lhe queria falar. Tinha-o visto tão assustado, com tantos rodeios e a gaguejar de tal maneira para lhe pedir que fosse com ele, que casasse com ele, que até lhe tinha metido um bocado de dó perguntar-lhe se não estava bom da cabeça, Sr.a Lupe. Já vês que gostava de ti a valer e não como uma aventurazinha de passagem, Amalia. Leoncio Paniagua não tinha insistido, tinha ficado mudo e meio imbecilizado e, quando Amalia o tinha aconselhado a esquecê-la e procurar outra mulher lá em Huánuco, ele abanava a cabeça contristado e murmurava nunca. Aquele palerma até a tinha feito sentir-se má, Sr.” Lupe. Tinha-o visto pela última vez nessa tarde, a atravessar a praça em direcção ao hotelzinho onde estava hospedado e aos esses como um bêbedo.

 

- E na altura em que estávamos mais atrapalhados de dinheiro. A Amalia descobre que estava grávida - diz Ambrosio. - Bem se diz que uma desgraça nunca vem só, menino.

 

Mas a notícia tinha-o alegrado: um companheirozinho para a Amalita Hortênsia, um filhinho montanhês. Pantaleón e a Sr.a Lupe tinham vindo à barraca nessa noite e tinham estado a beber cerveja até tarde: Amalia estava grávida, vejam lá. Tinham-se divertido bastante, e Amalia tinha ficado tonta e feito tolices: dançava sozinha, cantava, dizia palavrões. No dia seguinte acordara fraca e com vómitos, e Ambrosio tinha-a feito envergonhar: a criança havia de nascer bêbeda com o banho que lhe deste ontem à noite, Amalia.

 

- Se o médico tivesse dito que ela podia morrer, eu fazia-a abortar - diz Ambrosio. - Lá é fácil, há uma porção de velhas que sabem preparar ervas para isso. Mas não, sentia-se muito bem e por isso não nos preocupámos com nada.

 

Um sábado, no primeiro mês de gravidez, Amalia tinha ido com a Sr.1 Lupe passar o dia a Yarinacocha. Tinham passado toda a manhã sentadas debaixo de umas árvores, a observar a lagoa onde as pessoas tomavam banho, o olho redondo do Sol, que refulgia no céu limpíssimo. Ao meio-dia tinham desembrulhado os seus pacotes e comido debaixo de uma árvore, e então tinham ouvido duas mulheres que estavam a beber refrescos a dizerem as piores coisas de Hilário Morales: era isto, era aquilo, tinha enganado, roubado, se houvesse justiça, já estaria preso ou morto. Deve ser conversa fiada, tinha dito a Sr.a Lupe, mas nessa noite Amalia tinha contado aquilo a Ambrosio.

 

- Piores coisas já eu ouvi dele, e não só aqui, também em Tingo Maria - tinha-lhe dito Ambrosio. - Não percebo é como é que ele não faz uma malandrice dessas para o nosso negócio dar lucros.

 

- Porque te deve estar a fazer as malandrices a ti pateta - dissera Amalia.

 

- Ela meteu-me a pulga na orelha - diz Ambrosio. - A pobrezinha tinha um faro de cão perdigueiro, menino.

 

Desde essa altura, todas as noites, ao regressar a Pucallpa, antes mesmo de sacudir a poeira avermelhada do caminho, perguntara a Amalia, ansioso: quantos grandes, quantos pequenos? Tinha apontado tudo o que se vendia num livrinho e voltado todos os dias com novas malandrices de D. Hilário que tinha averiguado em Tingo Maria e Pucallpa.

 

- Se desconfias tanto dele, tenho uma ideia - tinha-lhe dito Partaleón. - Diz-lhe que te devolva o dinheiro e vamos fazer qualquer coisa juntos.

 

Desde esse sábado em Yarinacocha, ela tinha voltado a vigiar escrupulosamente os clientes dos Ataúdes Limbo. Esta gravidez não tinha sido nem por sombras como a anterior, nem sequer como a primeira, Sr.a Lupe: nem tonturas nem vómitos, quase nem sede. Não tinha perdido as forças, poderia perfeitamente fazer a lida da casa. Uma manhã tinha ido com Ambrosio ao hospital e tivera de esperar numa bicha compridíssima. Tinham ocupado o tempo de espera divertindo-se a contar as auras que viam a apanhar o sol nos telhados vizinhos e, quando chegou a vez deles, Amalia estava meio adormecida. O médico tinha-a observado num instante e disse veste-te, está tudo bem, que voltasse daí a dois meses. Amalia tinha-se vestido e só quando ia a sair se tinha lembrado:

 

- Na maternidade de Lima disseram-me que se tivesse outro filho podia morrer, senhor doutor.

 

- Então devias ter feito caso e tinhas cuidado - tinha resmungado o médico; mas, logo a seguir, como a tinha visto assustada, tinha-Lhe sorrido, contra vontade. - Não te assustes, tem cuidado contigo e não há-de ser nada.

 

Pouco depois tinham passado outros seis meses e Ambrosio, antes de ir ao escritório de D. Hilário, tinha-a chamado de uma maneira maliciosa: anda cá, vou-te dizer um segredo. Que segredo? Ia dizer-Lhe que não queria continuar a ser sócio dele, nem sequer motorista dele, Amalia, que metesse O Raio da Montanha e os Ataúdes Limbo onde quisesse. Amalia olhara-o espantada, e ele: era uma surpresa que tinha para ti, Amalia. Ele e Pantaléon tinham passado este tempo a fazer projectos, tinham decidido um genial. Haviam de encher os bolsos à custa de D. Hilário, Amalia, aí é que estava a piada toda. Estava uma camionetazinha usada à venda e ele e Pantaléon tinham-na desmontado e examinado a fundo: servia. O preço que faziam era oitenta mil e aceitavam trinta mil de quota inicial e o resto em letrás. Pantaleón pediria as suas indemnizações e moveria céus e terra para arranjar os seus quinze mil e conduzi-la-iam a meias e levariam mais barato e tirariam a clientela à Morales e à Pucallpa.

 

- Sonhos - diz Ambrosio. - Quis acabar por onde devia ter começado ao chegar a Pucallpa.

 

Regressaram directamente de Huacachina a Lima, no carro de um par de recém-casados. A D. Lúcia recebeu-os com suspiros à porta da pensão, e, depois de abraçar Ana, levou a bainha do avental aos olhos. Tinha posto flores no quartinho, lavado as cortinas e mudado os lençóis, e comprado uma garrafinha de porto para brindar à felicidade deles. Quando Ana estava a começar a desfazer as malas, chamou Santiago de parte e entregou-lhe um envelope com um sorrisinho misterioso: tinha-o trazido anteontem a sua mana. A letra miraflorina da Teté, Zavalita, malandro, descobrimos que te casaste!, a sua sintaxe gótica, e ainda por cima pelo jornal! Estavam furiosos contigo (não acredites, sabichão) e doidos por conhecer a minha cunhada. Que fossem lá a casa depressa, iam procurar-te de manhã e à tarde porque estavam monos por conhecê-la. Eras mesmo doido, sabichão, e um milhão de beijos da Teté.

 

- Não fiques tão pálido - riu-se Ana. - Que mal tem terem sabido, se calhar havíamos de estar casados em segredo?

 

- Não é isso - disse Santiago. - É que, bem, tens razão, estou a ser parvo.

 

- Claro que estás - voltou Ana a rir-se. - Telefona-lhes lá, ou, se quiseres, vamos vê-los pessoalmente. Também não são nenhuns ogres, amor.

 

Com umas cócegas de lombrigas no corpo, desceu para telefonar e, mal disse está?, ouviu o grito vitorioso da Teté: era o sabichão, papá! Lá estava a sua voz transbordante, mas, como é que tinhas feito uma coisa dessas, maluco!, a sua euforia, a sério que te tinhas casado?, a sua curiosidade, com quem, maluco?, a sua impaciência, quando e como e onde, o seu risinho, mas porque é que nem lhes disseste que tinhas namorada, as suas perguntas, tinhas raptado a minha cunhada, tinham-se casado às escondidas, ela era menor? Conta, conta, homem.

 

- Deixa-me falar primeiro - disse Santiago. - Não posso responder a tudo isso ao mesmo tempo.

 

- Chama-se Ana? - irrompeu outra vez a Teté. - Como é ela, donde é, qual é o apelido dela, eu conheço-a, que idade tem?

 

- Olha, o melhor é perguntares-lhe tudo isso a ela - disse Santiago. - Estão em casa à noite?

 

- Porquê à noite, idiota - gritou a Teté. - Venham agora mesmo. Não vês que estamos mortos de curiosidade?

 

- Aparecemos por volta das sete - disse Santiago. - Para jantar, okay. Chau, Teté.

 

Tinha-se arranjado mais para aquela visita do que para o casamento, Zavalita. Tinha ido ao cabeleireiro, pedido à D. Lúcia que a ajudasse a passar uma blusa a ferro, tinha provado todos os vestidos e sapatos e tinha-se mirado e remirado ao espelho e demorado uma hora a pintar os lábios e as unhas. Pensa: pobre magricelazinha. Tinha passado toda a tarde muito segura de si, à medida que comparava e decidia o vestuário, muito risonha a fazer-te perguntas sobre D. Fermín e a D. Zoila e o Chispas e a Teté, mas, à tardinha, quando estava a passear em frente de Santiago, como é que lhe ficava isto, amor, aquele ficava-lhe bem, amor?, já a sua loquacidade era excessiva, a sua desenvoltura demasiado artificial e havia aquelas faiscazinhas de angústia nos seus olhos. No táxi, a caminho de Miraflores, tinha estado muda e séria, com a inquietação estampada na boca.

 

- Vão olhar para mim como se eu fosse um marciano, não? perguntou de repente.

 

- Como se fosses uma marciana, melhor - disse Santiago. Que te importa?

 

Importou-lhe, sim, Zavalita. Ao tocar a campainha de casa, sentiu-a procurar-lhe o braço, viu-a proteger o penteado com a mão livre. Era absurdo, que vinham ali fazer, porque é que tinham de submeter-se àquele exame: tinhas sentido raiva, Zavalita. Lá estava a Teté, vestida de festa, no umbral, aos saltos. Beijou Santiago, abraçou e beijou Ana, dizia coisas, dava gritinhos, e lá estavam os olhinhos da Teté, como um minuto depois os olhinhos do Chispas e os olhos dos pais, a procurá-la, a escalarem-na, a autopsiarem-na. Entre os risos, guinchos e abraços da Teté, lá estava aquele par de olhos. A Teté deu o braço a ambos, atravessou com eles o jardim sem se calar um segundo, arrastando-os no seu remoinho, de exclamações e perguntas e felicidades, e lançando sempre os inevitáveis, velozes olhares de soslaio a Ana, que tropeçava. Toda a família estava reunida na sala. O tribunal, Zavalita. Lá estava: até o Popeye, até a Cary, a noiva do Chispas, todos de ponto em branco. Cinco pares de espingardas, pensa, apontando e disparando ao mesmo tempo contra Ana. Pensa: a cara da mamã. Não conhecias bem a mamã, Zavalita, julgavas que tinha mais domínio de si própria, que se controlava melhor. Mas não dissimulou nem a sua contrariedade nem o seu espanto nem a sua desilusão; só a sua cólera, ao princípio e em parte. Foi a última a aproximar-se deles, como uma penitente a arrastar correntes, lívida. Beijou Santiago, murmurando qualquer coisa que não percebeste tremia-lhe o lábio, pensa, tinha os olhos dilatados -, e depois e com esforço voltou-se para Ana, que estava a abrir os braços. Mas ela não a abraçou nem lhe sorriu; mal se inclinou, roçou a face pela de Ana e afastou-se imediatamente: viva, Ana. Endureceu ainda mais a cara, voltou-se para Santiago e Santiago olhou para Ana: tinha corado de chofre e agora D. Fermín tentava compor as coisas. Tinha-se precipitado para Ana, então esta é que era a nora dele, tinha-a abraçado outra vez, este é que era o segredo que o magricela tinha guardado. O Chispas abraçou Ana com um sorriso de orelha a orelha e deu uma palmada a Santiago exclamando com voz difícil que segredo tão bem guardado. Também nele aparecia de vez em quando a mesma expressão embaraçada e fúnebre que D. Fermín punha quando deixava de se preocupar com a cara um segundo e se esquecia de sorrir. Só Popeye parecia divertido e à vontade. Miudinha, lourinha, com a sua voz esganiçada e o seu vestido preto de crepone, Cary tinha começado a fazer perguntas antes de se sentarem, com um alarmante risinho inocente. Mas a Teté tinha-se portado bem, Zavalita, feito o impossível para preencher os agudos vazios da conversa, por adoçar o sabor amargo que a mamã, de propósito ou sem querer, deixou na Ana nessas duas horas. Não lhe tinha dirigido a palavra uma única vez e, quando D. Fermín, angustiosamente jocoso, abriu uma garrafa de champanhe e trouxeram aperitivos, esqueceu-se de passar a Ana a travessa de palitos de queijo. E tinha permanecido tensa e desinteressada - o lábio sempre a tremer, as pupilas dilatadas e fixas -, quando Ana, acossada por Cary e pela Teté, explicou, entre enganos e contradições, como e onde tinham casado. Privadamente, sem participações, sem festa, que malucos, dizia a Teté, e Cary que simplicidade, que lindo, e olhava para o Chispas. De vez em quando, como se recordasse que o devia fazer, D. Fermín saía do seu mutismo com um pequeno sobressalto e avançava na cadeira e dizia qualquer coisa carinhosa a Ana. Via-se que estava terrivelmente embaraçado, Zavalita, o esforço que lhe custava aquela naturalidade, aquela familiaridade. Tinham trazido mais aperitivos, D. Fermín serviu uma segunda taça de champanhe, e durante os segundos em que estavam a beber havia uma fugaz alívio na tensão. Pelo canto do olho, Santiago via o empenho de Ana em engolir os aperitivos que a Teté lhe passava, e respondia conforme podia às brincadeiras - cada vez mais tímidas, mais falsas - de Popeye. Parecia que o ar se ia inflamar, pensa, que ia aparecer uma fogueira no meio do grupo. Imperturbável, com tenacidade, com saúde, Cary passava o tempo a meter água. Abria a boca, em que colégio estudaste, Ana?, e condensava a atmosfera, o Maria Parado de Bellido era um colégio oficial, não era?, e acrescentava tiques e estremecimentos, ah, tinha estudado enfermagem!, à cara da mamã, mas não para voluntária da Cruz Vermelha, como profissão? Então sabias dar injecções, Ana, então tinhas trabalhado em La Maison de Santé e no Hospital Operário de Iça. E a mamã, Zavalita, a pestanejar, a morder o lábio, a remexer-se na cadeira como se fosse um formigueiro. E o papá, a olhar para a biqueira do sapato, ouvindo, levantando a cabeça e persistindo em sorrir para ti e para a Ana. Encolhida na cadeira, com uma tapa de anchovas a dançar-lhe nos dedos, Ana olhava para Cary como um aluno atemorizado para o examinador. Um momento depois levantou-se, dirigiu-se à Teté e falou-lhe ao ouvido, no meio de um silêncio carregado de electricidade. Com certeza, disse a Teté, anda comigo. Afastaram-se, desapareceram na escada, e Santiago olhou para a D. Zoila. Não dizia nada, Zavalita. Tinha o sobrollho franzido, o lábio tremia-lhe, olhava para ti. Pensavas não se vai ralar com o facto de o Popeye e a Cary estarem aqui, pensa, é mais forte que ela, não se vai conter.

 

- Não tens vergonha? - a voz dela era dura e profunda, os olhos tingiam-se-lhe de vermelho, falava retorcendo as mãos. - De casares dessa maneira, às escondidas, assim? De fazeres os teus pais, os teus irmãos, passarem por esta vergonha?

 

  1. Fermín continuava cabisbaixo, absorto nos sapatos, e Popeye, com o sorriso cristalizado, parecia idiota. Cary olhava de um para outro, descobrindo que estava a acontecer qualquer coisa, perguntando com os olhos que foi, e o Chispas tinha cruzado os braços e observava Santiago com severidade.

 

- Não é a altura indicada, mamã - disse Santiago. - Se soubesse que ias ficar assim, não vinha cá.

 

- Preferia mil vezes que não tivesses vindo - disse a D. Zoila, levantando a voz. - Estás a ouvir, estás a ouvir? Mil vezes nunca mais te ver a ver-te casado assim, pedaço de asno.

 

- Cala-te, Zoila - D. Fermín tinha-lhe agarrado o braço, Popeye e o Chispas olhavam assustados para a escada, Cary tinha aberto a boca. - Filha, por favor.

 

- Não vês com quem ele casou? - soluçou a D. Zoila. - Não dás por nada, não vês? Como é que eu me hei-de conformar, como é que eu hei-de ver o meu filho casado com uma pessoa que podia ser criada dele?

 

- Zoila, não sejas parva - pálido também, Zavalita, aterrorizado também. - As asneiras que tu dizes, filha. Olha que a pequena ouve. É a mulher do Santiago, Zoila.

 

A voz rouca e apatetada do papá, Zavalita, os esforços dele e do Chispas para acalmarem, calarem a mamã, que soluçava aos gritos. A cara de Popeye estava sardenta e escarlate, Cary tinha-se aninhado na cadeira como se fizesse um frio polar.

 

- Nunca mais a tornas ver, mas agora cala-te, mamã - disse Santiago, por fim. - Não te permito que a insultes. Ela não te fez nenhum mal e...

 

- Não me fez nenhum mal, nenhum mal? - rugiu a D. Zoila, tentando libertar-se do Chispas e de D. Fermín. - Seduziu-te, deu-te volta à cabeça e dizes que essa sopeirita não me fez nenhum mal?

 

Um mexicano, pensa, um daqueles de que tu gostas. Pensa: só faltaram maríacbis1 e charros,2 amor. O Chispas e D. Fermín tinham

 

1 Mariachi: Membro de orquestra popular que interpreta a música do mesmo nome. (N. do T.)

2 Churro: Cavaleiros mexicanos, que usam chapéu de abas largas e fato bordado. (N. do T.)

 

por fim levado a D. Zoila quase de rastos para o escritório e Santiago estava de pé. Olhavas para a escada, Zavalita, localizavas o quarto de banho, calculavas a distância: sim, tinha ouvido: lá estava aquela indignação que não sentias havia anos, aquele ódio sagrado dos tempos da Cahuide e da revolução, Zavalita. Lá dentro ouviam-se os gemidos da mamã, a desolada voz recriminatória do papá. O Chispas tinha voltado à sala um momento depois, congestionado, incrivelmente furioso:

 

- Fizeste a mamã ter um desmaio - ele furioso, pensa, o Chispas furioso, o pobre Chispas furioso. - Não se pode cá viver em paz com as tuas loucuras, parece que não tens mais nada que fazer do que enfurecer os velhos.

 

- Chispas, por favor - piou Cary, levantando-se. - Por favor, por favor, Chispas.

 

- Não é nada, amor - disse o Chispas. - É só este maluco que faz sempre tudo mal. O papá tão delicado e este...

 

- À mamã consigo suportar certas coisas, mas a ti não - disse Santiago. - A ti não, Chispas, previno-te.

 

- Prevines-me a mim? - perguntou o Chispas, mas já Cary e Popeye o tinham agarrado e o obrigavam a recuar: de que é que se está a rir, menino?, pergunta Ambrosio. Não estavas a rir, Zavalita, olhavas para a escada e ouvias atrás de ti a estrangulada voz de Popeye: não se excite homem, já passou homem. Estava a chorar e era por isso que não descia, subias a procurá-la ou esperavas? Apareceram, por fim, no cimo da escada e a Teté olhava como se houvesse fantasmas ou diabos na sala, mas tu tinhas-te portado de uma maneira extraordinária, querida, melhor que a Maria Feliz naquele, que a Libertad Lamarque naquele outro. Desceu a escada devagar, agarrada ao corrimão, olhando só para Santiago, e, ao chegar, disse, com voz firme:

 

- Já é tarde, não? Está na hora de irmos andando, não, amor?

 

- Sim - disse Santiago. - Aqui no largo devemos arranjar táxi.

 

- Nós levamo-los - disse Popeye, quase a gritar. - Levamo-los, não, Teté?

 

- Claro - balbuciou a Teté. - Até nos serve de passeio. Ana disse até depois, passou junto ao Chispas e a Cary sem lhes estender a mão, e caminhou rapidamente para o jardim, seguida de Santiago, que não se despediu. Popeye adiantou-se-lhes aos saltos para abrir a porta da rua e deixar Ana passar; depois desatou a correr como se o perseguissem e trouxe o carro e apeou-se de um pulo para abrir a porta a Ana: pobre sardento. Ao princípio não falaram. Santiago pôs-se a fumar, Popeye a fumar; muito direita no banco, Ana olhava pela janela.

 

- Já sabes, Ana, telefona-me - disse a Teté, com a voz ainda alterada, quando se despediram à porta da pensão. - Para eu te ajudar a arranjares casa, para qualquer coisa.

 

- Com certeza - disse Ana. - Para me ajudares a arranjar casa, combinado.

 

- Temos de sair os quatro juntos, magricela - disse Popeye, sorrindo com a boca toda e a pestanejar com fúria. •- Para jantar, para ir ao cinema. Quando vocês quiserem, pá.

 

- Claro, com certeza - disse Santiago. - Telefono-te um dia destes, sardento.

 

No quarto, Ana pôs-se a chorar tão alto que a D. Lúcia veio perguntar o que era. Santiago acalmava-a, fazia-lhe festas, explicava-lhe, e Ana por fim tinha enxugado os olhos. Então começou a protestar e a insultá-los: nunca mais iria visitá-los, detestava-os, odiava-os. Santiago dava-lhe razão: sim, querida, claro, amor. Não sabia como é que não tinha vindo cá abaixo e pregado uma bofetada àquela velha estúpida: sim, querida. Mesmo sendo tua mãe, mesmo sendo crescida, para aprender a não lhe chamar sopeira, para aprender: claro, amor.

 

- Está bem - disse Ambrosio. - Já me lavei, já estou seco.

 

- Está bem - disse Queta. - Que é que aconteceu? Eu não estava nessa festarola?

 

- Não - disse Ambrosio. - Era para ser uma festarola e não foi. Aconteceu qualquer coisa e muitos dos convidados não apareceram. Só três ou quatro, e entre eles, ele. A senhora estava furiosa, fizeram-me esta desfeita, dizia ela.

 

- A doida julga que o Cayç Merda faz essas festarolas para ela se divertir - disse Queta. - É mas é para manter os parceiros satisfeitos.

 

Estava deitada na cama, de barriga para o ar como ele, os dois já vestidos, os dois a fumarem. Deitavam a cinza numa caixinha de fósforos vazia que ele tinha em cima do peito: o feixe de luz dava-lhes nos pés, tinham as caras na sombra. Não se ouvia música nem conversas; apenas, de quando em quando, o remoto gemido de uma fechadura ou a passagem roncadora de um veículo pela rua.

 

- Já tinha percebido que aquelas festarolas são interesseiras

- disse Ambrosio. - Acha que ele só está com a senhora por causa disso? Para ela receber os amigos dele?

 

- Não é só por isso - riu-se Queta, com um risinho pausado e irónico, olhando para o fumo que expelia. - É também porque a doida é bonita e lhe atura os vícios. O que é que aconteceu?

 

- Também você lhos atura - disse ele, respeitosamente, sem se virar para olhá-la.

 

- Eu aturo-lhos? - perguntou Queta, devagar: esperou uns segundos, enquanto apagava o cigarro, e tornou a rir-se, com o mesmo riso lento e zombeteiro. - E os teus também, não? Sai-te caro vires aqui passar um par de horas, não?

 

- Mais cara me saía a casa de pegas - disse Ambrosio; e acrescentou, à guisa de segredo. - Você não me leva nada pelo quarto.

 

- Pois a ele sai-lhe muito mais caro do que a ti, estás a ver?

- disse Queta. - Eu não sou como ela. A doida não o faz por dinheiro. Nem porque queira, claro. Faz aquilo porque é inocente. Eu sou uma espécie de segunda dama do Peru, Quetita. A esta casa vêm embaixadores, ministros. Pobre doida. Parece que não percebe que vão a San Miguel como quem vai a uma casa de passe. Julga que são amigos dela, que lá vão por causa dela.

 

- D. Cayo, esse percebe - murmurou Ambrosio. - Estes filhos da puta não me consideram igual, diz ele. Disse-mo uma porção de vezes, quando eu trabalhava para ele. E que o adulam porque precisam dele.

 

- Quem os adula é ele - disse Queta, e sem transição: - O que foi, como é que aconteceu? Nessa noite, nessa festarola.

 

- Eu tinha-o visto lá várias vezes - disse Ambrosio, e houve uma mudança muito ligeira na sua voz: uma espécie de fugitivo movimento retráctil. - Sabia que ele tratava a senhora por tu, por exemplo. Conhecia aquela cara desde que comecei a trabalhar para D. Cayo. Tinha-o visto vinte vezes, talvez. Mas acho que ele nunca me tinha visto a mim. Até essa festarola, essa vez.

 

- E porque é que te mandaram entrar? - distraiu-se Queta. Alguma vez te tinham mandado entrar numa festarola?

 

- Só uma vez, essa vez - disse Ambrosio. - O Ludovico estava doente e D. Cayo tinha-o mandado deitar-se. Eu estava no carro, sabendo que ia apanhar um banho de assento a noite inteira, e nisto saiu a senhora e disse-me para ir ajudar.

 

- A doida? - perguntou Queta, a rir. - Ajudar?

 

- Ajudar a sério, tinham despedido a criada, ou tinha-se ido embora ou qualquer coisa - disse Ambrosio. - Ajudar a servir pratos, a abrir garrafas, a tirar mais gelo. Eu nunca tinha feito isso, imagine.

 

- Calou-se, riu-se. - Ajudei, mas mal. Parti dois copos.

 

- Quem é que lá estava? - perguntou Queta. - A índia, a Lucy, a Carmincha? Como é que nenhuma delas deu por isso?

 

- Não sei os nomes deles - disse Ambrosio. - Não, não havia mulheres. Só três ou quatro homens. E a ele eu tinha estado a vê-lo, naquelas entradas com o gelo ou com os pratos. Bebia os seus copos, mas não perdia as estribeiras, como os outros. Não se embebedou. Pelo menos não parecia.

 

- E elegante, os cabelos brancos ficam-lhe bem - disse Queta. - Deve ter sido bonito em novo. Mas tem qualquer coisa que irrita. Julga-se um imperador.

 

- Não - insistiu Ambrosio, com firmeza. - Não fazia nenhuma tolice, não disparatava. Bebia os seus copos e mais nada. Eu estava a vê-lo. Não, não se julga coisa nenhuma. Eu conheço-o, eu sei.

 

- Mas- o que é que te chamou a atenção? - perguntou Queta. Que é que tinha de estranho ele olhar para ti?

 

- Nada de estranho - murmurou Ambrosio, em jeito de desculpa. A voz tinha-se-lhe apagado e era íntima e densa. Explicou devagar: - Já devia ter olhado para mim uma data de vezes, mas de repente pareceu-me que se apercebeu de que estava a olhar para mim. Já não como se eu fosse uma parede. Está a perceber?

 

- A doida devia estar a cair de bêbeda, não deu por isso - distraiu-se Queta. - Ficou espantada quando soube que ias trabalhar para ele. Estava a cair de bêbeda?

 

- Eu entrava na sala e sabia que ele se punha logo a olhar para mim - sussurrou Ambrosio. - Tinha os olhos meio a rir, meio a brilhar. Como se me estivesse a dizer qualquer coisa. Está a perceber?

 

- E, mesmo nessa altura, não deste por nada? - perguntou Queta. - Aposto que o Cayo Merda percebeu.

 

- Percebi que aquela maneira de olhar era esquisita - murmurou Ambrosio. - Por ser tão disfarçada. Erguia o copo, para D. Cayo julgar que ia beber um gole, e eu percebi que não era para isso. Punha os olhos em mim e não mós tirava de cima até eu sair da sala.

 

Queta desatou a rir e ele calou-se repentinamente. Esperou imóvel

 

que ela acabasse de rir. Agora estavam os dois novamente a fumar, eitados de costas, e ele tinha pousado a mão no joelho dela. Não a acariciava, deixava-a descansar ali, tranquila. Não estava calor, mas no segmento de pele nua em que os braços de ambos se tocavam tinha aparecido suor. Ouviu-se uma voz no corredor, a afastar-se. Depois um automóvel de motor lamuriento. Queta olhou para o relógio da mesa-de-cabeceira: eram duas horas.

 

- Numa dessas vezes perguntei-lhe se queria mais gelo - murmurou Ambrosio. - Os outros convidados já tinham saído, a festa estava a acabar, só lá estava ele. Não me respondeu. Fechou e abriu os olhos duma maneira difícil de explicar. Meio desafiadora, meio zombeteira. Está a perceber?

 

- E não tinhas dado por nada? - insistiu Queta. - És parvo.

 

- Pois sou - disse Ambrosio. - Pensei que se estava a fazer bêbedo, pensei que, se calhar, estava e se queria divertir à minha custa. Eu tinha estado a beber uns copos na cozinha e pensei se calhar sou eu que estou bêbedo e é impressão. Mas quando tornava a entrar dizia não, que mosca lhe mordeu. Deviam ser duas, três horas, sei lá. Entrei para mudar um cinzeiro, parece-me. Foi nessa altura que ele me falou.

 

- Senta-te aqui um bocado - disse D. Fermín. - Toma uma bebida connosco.

 

- Não era um convite, era quase uma ordem - murmurou Ambrosio. - Não sabia o meu nome. Embora o devesse ter ouvido a D. Cayo uma porção de vezes, não sabia. Contou-me depois.

 

Queta desatou a rir, e ele calou-se e esperou. Um halo de luz chegava à cadeira e iluminava as roupas misturadas de ambos. O fumo planava sobre eles, expandindo-se, desfazendo-se em secretos ritmos curvos. Passaram dois automóveis seguidos e velozes como se estivessem a fazer corridas.

 

- E ela? - disse Queta, já quase séria. - E a Hortênsia?

 

Os olhos de Ambrosio revolveram-se num mar de confusão: D. Cayo não parecia contrariado nem admirado. Olhou-o sério por um instante e a seguir acenou-lhe com a cabeça que sim, faz o que ele diz, senta-te. O cinzeiro dançava doidamente na mão erguida de Ambrosio.

 

- Tinha adormecido - disse Ambrosio. - Deitada na poltrona. Devia ter bebido imenso. Senti-me mal ali, sentado na borda da cadeira. Esquisito, envergonhado, mal.

 

Esfregou as mãos e, por fim, com uma solenidade cerimoniosa, disse à vossa saúde sem olhar para ninguém e bebeu. Queta tinha-se virado para lhe ver a cara: tinha os olhos fechados, os lábios cerrados e transpirava.

 

- Por este andar, ainda ficas tonto - desatou a rir D. Fermín. Anda, bebe outro copo.

 

- A brincar ao gato e ao rato contigo - murmurou Queta, com desprezo. - Tu gostas disso, já percebi. De ser o rato. Que te pisem, que te tratem mal. Se eu não te tivesse tratado mal, não passavas a vida a juntar dinheiro para vires para aqui contar-me as tuas mágoas. As tuas mágoas? Ao princípio julgava que sim, agora já não. Tu gostas de tudo o que te acontece.

 

- Ali sentado, como se eu fosse igual a ele, a oferecer-me de beber - disse ele, com o mesmo tom de voz, opaco, abafado, sumido. - D. Cayo parecia que não se importava ou fingia que não. E ele não me deixava ir embora. Está a perceber?

 

- Onde é que tu vais, aí sossegado - troçou, ordenou pela décima vez D. Fermín. - Aí sossegado, onde é que tu vais?

 

- Estava diferente de todas as vezes que eu o tinha visto - disse Ambrosio. - Aquelas em que ele não me tinha visto a mim. Pela maneira de olhar e também de falar. Falava sem parar, de qualquer coisa, e de repente dizia um palavrão. Ele que era tão bem educado e com aquele aspecto de...

 

Hesitou e Queta virou um pouco a cabeça para o observar; aspecto de quê?

 

- De um grande senhor - disse Ambrosio muito depressa. De presidente, de sei lá o quê.

 

Queta largou uma gargalhadinha curiosa e impertinente, regozijada, espreguiçou-se e, ao fazê-lo, roçou a anca na dele: sentiu a mão de Ambrosio animar-se imediatamente no seu joelho, avançar por baixo da saia e apalpar-lhe com ansiedade a coxa, explorá-la de cima a baixo, de baixo a cima, em toda a extensão que o braço lhe permitia. Não o repreendeu, não o deteve, e escutou novamente o seu próprio risinho regozijado.

 

- Estava-te a amolecer com a bebida - disse. - E   a doida, e ela?

 

Ela levantava a cabeça de vez em quando como se saísse da água, olhava para a sala com perdidos olhos húmidos e sonâmbulos, agarrava no copo e levava-o à boca e bebia, murmurava qualquer coisa incompreensível e afundava-se outra vez. E o Cayo Merda, e ele? Ele bebia com regularidade, participava com monossílabos na conversa e portava-se como se Ambrosio estar ali sentado a beber com eles fosse a coisa mais natural deste mundo.

 

- E assim ia passando o tempo -disse Ambrosio: a sua mão aquietou-se, voltou ao joelho dela. - Os copos tiraram-me a vergonha e já lhe aguentava o olhar e respondia às piadas. Gosto de uísque, gosto sim senhor, claro que não é a primeira vez que tomo uísque, não senhor.

 

Mas agora D. Fermín não o ouvia ou parecia que não: tinha-o retratado nos olhos, Ambrosio, fitava-os e via-se, estava a perceber? Queta anuiu, e de repente D. Fermín esvaziou rapidamente o copo e pôs-se de pé: estava cansado, D. Cayo, já eram horas de se ir embora. Cayo Bermúdez levantou-se também:

 

- O Ambrosio leva-o, D. Fermín - disse, abafando um bocejo com o punho cerrado. - Não preciso do carro até amanhã.

 

- Quer dizer que não só sabia - disse Queta, mexendo-se. Claro, claro. Quer dizer que foi o Cayo Merda que preparou tudo aquilo.

 

- Não sei - interrompeu-a Ambrosio, virando-se, com a voz repentinamente agitada, a olhar para ela. Fez uma pausa, voltou a deitar-se de costas. - Não sei se sabia, se o preparou. Gostava de saber. Ele diz que também não sabe. A si não lhe?

 

- Agora sabe, é a única coisa que eu sei - riu-se Queta. - Mas nem eu nem a doida lhe conseguimos arrancar se o tinha preparado. Quando quer, é um túmulo.

 

- Não sei - repetiu Ambrosio. A voz caiu-lhe num^ poço e ressuscitou, debilitada e turva. - Ele também não sabe. Às vezes diz que sim, que tem de saber; outras que não, que pode ser que não saiba. Eu estive bastantes vezes com D. Cayo e ele não me deu a entender que soubesse.

 

- Estás completamente doido - disse Queta. - Claro que agora sabe. Agora não há quem não saiba.

 

Acompanhou-os até à rua, ordenou a Ambrosio amanhã às dez, estendeu a mão a D. Fermín e voltou a casa atravessando o jardim. Já estava quase a amanhecer, havia umas risquinhas azuis a espreitar no céu e os polícias da esquina murmuravam boa noite com vozes estropiadas pela insónia e pelos cigarros.

 

- E nessa altura ainda foi mais estranho - sussurrou Ambrosio. - Não se sentou no banco de trás, como lhe competia, mas sim ao meu lado. Aí comecei a desconfiar, mas não podia acreditar que fosse verdade. Não podia ser, tratando-se dele.

 

- Tratando-se dele - soletrou Queta, com desprezo. Virou-se de lado. - Porque é que tu és tão servil, tão?

 

- Pensei é para me demonstrar um pouco de amizade - sussurrou Ambrosio. - Lá dentro tratei-te como igual, agora continuo a tratar-te na mesma. Pensei que de vez em quando lhe devia dar para o crioulismo, para tratar o povo por tu. Não, não sei o que pensei.

 

- Sim - disse D. Fermín, fechando a porta com cuidado e sem olhar para ele. - Vamos a Ancón.

 

- Via-lhe a cara e parecia o mesmo de sempre, tão elegante, tão fino - disse lamentosamente Ambrosio. - Fiquei enervadíssimo, está a perceber? Disse a Ancón, senhor?

 

- Sim, a Ancón - anuiu D. Fermín, olhando pela janela o bocadinho de luz do céu. - Tens gasolina que chegue?

 

- Eu sabia onde ele vivia, tinha-o levado lá uma vez do gabinete de D. Cayo - queixou-se Ambrosio. - Arranquei e na Avenida Brasil arranjei coragem para lhe perguntar. Não vai para a sua casa de Miraflores, senhor?

 

- Não, vou a Ancón - disse D. Fermín, olhando agora em frente; mas um instante depois voltou-se para olhar para ele e era outra pessoa, percebe? - Tens medo de ir sozinho comigo a Ancón? Tens medo que aconteça alguma coisa na estrada?

 

- E desatou a rir - sussurrou Ambrosio. - E eu também, mas não me saía. Não podia, estava muito nervoso, já tinha percebido.

 

Queta não se riu: tinha-se virado, apoiado no braço e olhava para ele. Ele continuava de costas, imóvel, tinha deixado de fumar e a mão dele jazia inerte sobre o seu joelho nu. Passou um carro, um cão ladrou. Ambrosio tinha fechado os olhos e respirava com as narinas muito abertas. O peito subia e descia-lhe lentamente.

 

- Era a primeira vez? - perguntou Queta. - Anteriormente ninguém te tinha?

 

- Sim, estava com medo - queixou-se ele. - Subi pela Brasil, pela Alfonso Ugarte, atravessei a Puente dei Ejército e ambos calados. Sim, era a primeira vez. Não havia vivalma nas ruas. Na estrada tive de pôr os máximos porque havia neblina. Estava tão nervoso que comecei a acelerar. De repente vi o ponteiro nos noventa, nos cem, está a perceber? Foi nessa altura. Mas não me estampei.

 

- Já apagaram as luzes da rua - distraiu-se um instante Queta, e tornou. - Que é que sentiste?

 

- Mas não me estampei, não me estampei - repetiu ele com fúria, apertando-lhe o joelho. - Senti que acordava, senti que, mas consegui travar.

 

De chofre, como se na estrada molhada tivesse surgido um intempestivo camião, um burro, uma árvore, um homem, o automóvel patinou com um guincho selvagem e derrapou para a esquerda e para a direita e ziguezagueou, mas sem sair da estrada. Saltando, rangendo, recuperou o equilíbrio quando parecia que se ia virar e então Ambrosio diminuiu a velocidade, a tremer.

 

- Julga que com a travagem, com a derrapagem, me largou? - lamentou-se Ambrosio, vacilando. - A mão dele continuava aqui, assim.

 

- Quem é que te mandou parar? - disse a voz de D. Fermín. Eu disse para Ancón.

 

- E a mão dele ali, aqui - sussurrou Ambrosio. - Eu não conseguia pensar e arranquei outra vez e não sei. Não sei, percebe? De repente outra vez o ponteiro nos noventa, nos cem. Não me tinha largado. A mão dele continuava assim.

 

- Calou-te logo que te viu - murmurou Queta, deitando-se de costas. - Uma olhadela e viu que ficas como um cordeiro quando te tratam mal. Olhou para ti e percebeu logo que, quando te baixam o moral, ficas um farrapo.

 

- Pensava vou-me estampar e aumentava a velocidade - queixou-se Ambrosio, ofegando. - Aumentava-a, percebe?

 

- Percebeu que devias estar morto de medo - disse Queta com secura, sem compaixão. - Que não havias de fazer nada, que podia fazer de ti o que lhe apetecesse.

 

- Vou-me estampar, vou-me estampar - arquejou Ambrosio. E metia o pé até ao fundo. Sim, tinha medo, percebe?

 

- Tinhas medo porque és um servil - disse Queta com desprezo: - Porque ele é branco e tu não, porque ele é rico e tu não. Porque estás habituado a que façam de ti o que querem.

 

- A cabeça só me dava para aquilo - sussurrou Ambrosio, mais agitado. - Se não me larga, vou-me estampar. E a mão dele aqui, assim. Está a perceber? Assim até Ancón.

 

Ambrosio tinha voltado dos Transportes Morales com uma destas caras que Amalia imediatamente tinha pensado deu para o torto. Não lhe tinha perguntado nada. Tinha-o visto passar por ela silencioso e sem a olhar, sair para a horta, sentar-se na cadeirinha sem fundo, tirar os sapatos, acender um cigarro, riscando o fósforo com fúria, pôr-se a olhar para a erva com olhos assassinos.

 

- Dessa vez não houve restaurantezinho nem cervejinhas - diz Ambrosio. - Entrei no escritório dele e mandou-me logo parar com um gesto que queria dizer estás tramado, negro.

 

Além disso tinha levado o indicador direito à nuca e serrado, e a seguir a uma das têmporas e disparado: pum, Ambrosio. Mas sem deixar de sorrir com a sua cara larga e os seus saltitantes olhos experientes. Abanava-se com um jornal: mal, negro, pura perda. Quase não se tinham vendido caixões e nestes dois últimos meses ele tivera de pagar do seu bolso o aluguer da loja, o ordenadozinho do idiota e o que se devia aos carpinteiros: ali estavam os recibozinhos. Ambrosio tinha-os folheado sem os ver, Amalia, e tinha-se sentado em frente da secretária: mas que más notícias que lhe estava a dar, D. Hilário.

 

- Péssimas - tinha ele reconhecido. - A época está tão má para os negócios que as pessoas não têm dinheiro nem para morrer.

 

- Vou-lhe dizer uma coisa, D. Hilário - tinha dito Ambrosio, depois de um momento, com todo o respeito. - Olhe, o senhor com certeza tem razão. Com certeza, dentro de pouco tempo, o negócio vai começar a dar lucros.

 

- Absoluta - tinha dito D. Hilário. - O mundo é dos pacientes.

 

- Mas eu ando mal de finanças e a minha mulher está à espera doutro filho - tinha continuado Ambrosio. - Portanto, mesmo que queira ter paciência, não posso.

 

Um sorrisinho intrigado e surpreendido tinha arredondado a cara de D. Hilário, que continuava a abanar-se com uma mão e tinha começado a escarafunchar o dente com a outra: dois filhos não era nada, era de homem o chegar à dúzia, como ele, Ambrosio.

 

- Portanto, vou-lhe deixar os Ataúdes Limbo só para o senhor tinha-lhe explicado Ambrosio. - Prefiro que me devolva a minha parte. Para a aplicar por minha conta, senhor. Vamos a ver se tenho mais sorte.

 

Nessa altura tinha começado com os seus carcarejos, Amalia, e Ambrosio tinha-se calado, como para se concentrar melhor na matança de tudo o que estava perto: a erva, as árvores, Amalita Hortênsia, o céu. Não se tinha rido. Tinha observado D. Hilário, que estremecia na cadeira, a abanar-se rapidamente, e esperado com parcimoniosa seriedade que ele acabasse de rir.

 

- Com que então julgavas que isto era uma caixa de depósitos? tinha trovejado por fim, enxugando o suor da testa, e o riso tinha-o vencido outra vez. - Que uma pessoa punha e tirava o dinheiro quando queria?

 

- Cocorocó, quiquiriqui - diz Ambrosio. - Chorou a rir, ficou corado de tanto rir, riu até mais não poder. £ eu à espera, quieto.

 

- Não é estupidez nem malandrice mas não sei o que é - tinha esmurrado a mesa D. Hilário, congestionado e húmido. - Diz-me lá o que é que julgas que eu sou. Pateta, imbecil, o que é que eu sou?

 

- Primeiro ri-se, depois zanga-se - tinha dito Ambrosio. - Não sei o que é que lhe deu, senhor.

 

- Se eu te digo que o negócio está a ir por água abaixo, o que é que está a ir por água abaixo? - tinha-se posto a fazer enigmas, Amalia, e tinha olhado para Ambrosio com dó. - Se tu e eu pomos quinze mil soles cada um num bote e o bote se afunda no rio, o que é que vai para o fundo com o bote?

 

- A Ataúdes Limbo não foi ao fundo - tinha afirmado Ambrosio. - Continua ali inteirinha defronte da minha casa.

 

- Queres vendê-la, trespassá-la? - tinha perguntado D. Hilário. - Encantado da vida, é para já. Só tens de encontrar um trouxa que queira carregar com o morto. Não alguém que te dê os trinta mil que lá metemos, isso nem um maluco. Alguém que a aceite de graça e se queira encarregar do idiota e do que se deve aos carpinteiros.

 

- Quer dizer que nunca mais volto a ver nem um sol dos quinze mil que lhe dei? - tinha perguntado Ambrosio.

 

- Alguém que ao menos te devolva o dinheiro extra que eu te adiantei - tinha dito D. Hilário. - Mil e duzentos, já, estão aqui os recibozinhos. Ou já não te lembravas?

 

- Faz queixa à polícia, vai denunciá-lo - tinha dito Amalia Que o obriguem a devolver-te o dinheiro.

 

Nessa tarde, enquanto Ambrosio fumava cigarros atrás de cigarros, sentado na cadeira sem fundo, Amalia tinha sentido aquele ardor ilocalizável, aqueles vazios ácidos na boca do estômago dos piores momentos com Trinidad: iam começar outra vez as desgraças aqui? Tinham comido mudos e a seguir viera a Sr.” Lupe conversar, mas ao vê-los tão sérios não tardou em despedir-se. À noite, deitados, Amalia tinha-lhe perguntado que vais fazer. Ainda não sabia, Amalia, estava a pensar. No dia seguinte, Ambrosio tinha saído cedinho, sem levar o farnel para a viagem. Amalia sentira náuseas, e quando a Sr.a Lupe entrou, por volta das dez, tinha-a encontrado a vomitar. Estava a contar-lhe o que se passava quando Ambrosio tinha chegado: mas então, não tinha ido a Tingo? Não, O Raio da Montanha estava em reparação na garagem. Tinha ido sentar-se na horta, passado lá toda a manhã, a pensar. Ao meio-dia, Amalia chamara-o para almoçar e estavam a comer quando o homem tinha entrado quase a correr. Parara diante de Ambrosio, que nem conseguira pôr-se de pé: D. Hilário.

 

- Esta manhã andaste a espalhar insolências pela vila - roxo de cólera, Sr.” Lupe, levantando tanto a voz que Amalita Hortênsia tinha acordado a chorar. - A dizer na praça que Hilário Morales te roubou dinheiro.

 

Amalia sentira voltarem-lhe as náuseas do pequeno-almoço. Ambrosio não se tinha mexido: porque é que não se levantava, porque é que não lhe respondia? Nada, tinha continuado sentado, a olhar para o homem gordinho, que rugia.

 

- Além de parvo, és desconfiado e desbocado - aos gritos. Com que então disseste às pessoas que me vais apertar com a polícia? Está bem, vamos esclarecer as coisas. Levanta-te, vamos lá embora.

 

- Estou a comer - tinha murmurado Ambrosio. - Onde é que quer que eu vá, senhor?

 

- Ã polícia - bramara D. Hilário - Fazer as contas diante do major. Para ver quem é que deve dinheiro a quem, mal-agradecido.

 

- Não fique assim, D. Hilário - tinha-lhe pedido Ambrosio. Foram-lhe contar aldrabices. Então o senhor acreditou nesses boateiros? Sente-se, senhor, deixe-me oferecer-lhe uma cervejinha.

 

Amalia olhara para Ambrosio, estupefacta: sorria-lhe, oferecia-lhe a cadeira. Tinha-se levantado de um salto, corrido à horta e vomitado em cima da mandioca. Dali, ouvira D. Hilário: não estava para cervejinhas, tinha vindo pôr os pontos nos is, que se levantasse, vamos ter com o major. E a voz de Ambrosio a rebaixar-se, a adulá-lo cada vez mais: como é que podia desconfiar dele, senhor, a única coisa que tinha feito era queixar-se do seu azar, senhor.

 

- Então, daqui para o futuro, nada de ameaças nem falatórios dissera D. Hilário, um bocado mais calmo. - Cuidadinho com isso de andar por aí a manchar-me o nome.

 

Amalia tinha-o visto dar meia volta, dirigir-se à porta, virar-se e dar mais um grito: não queria tornar a vê-lo na empresa, não queria ter como motorista um mal-agradecido como tu, podia passar por lá na segunda-feira para receber. Sim, já tinham recomeçado. Mas sentira mais raiva contra Ambrosio do que contra D. Hilário e entrara no quarto a correr:

 

- Porque é que te deixaste tratar daquela maneira, porque é que te rebaixaste daquela maneira? Porque é que não foste à polícia acusá-lo?

 

- Por tua causa - tinha dito Ambrosio, olhando-a com desgosto.

- A pensar em ti. Já te esqueceste? Já não te lembras porque é que estamos em Pucallpa? Não fui à polícia por tua causa, rebaixei-me por tua causa.

 

Ela pusera-se a chorar, pedira-lhe desculpa e à noite tornara a vomitar.

 

- Deu-me seiscentos soles de indemnização - diz Ambrosio. Com isso aguentámo-nos não sei como durante um mês. Passei o tempo à procura de trabalho. Em Pucallpa é mais fácil encontrar ouro que trabalho. Por fim consegui um trabalhinho miserável, como motorista de colectivos para Yarinacocha. E daí a pouco veio o pontapé, menino.

 

Nesses primeiros meses de casado, sem ver os velhos nem os teus irmãos, quase sem saber deles, tinhas sido feliz, Zavalita? Meses de privações e dívidas, mas esqueceste-os e os maus períodos nunca se esquecem, pensa. Pensa: se calhar tinhas sido, Zavalita. Se calhar, aquela monotonia com intimidades era a felicidade, aquela discreta falta de convicção e de exaltação e de ambição, se calhar era aquela suave mediocridade em tudo. Até na cama, pensa. A pensão revelou-se incómoda logo a princípio. A Sr.” Lúcia tinha permitido a Ana utilizar a cozinha com a condição de não interferir com os horários, de modo que Ana e Santiago tinham de almoçar e jantar muito cedo ou tardíssimo. Depois Ana e a Sr.” Lúcia começaram a discutir por causa do quarto de banho e da tábua de engomar, do uso de espanadores, vassouras e da velhice das cortinas e lençóis. Ana tinha tentado voltar à La Maison de Santé, mas não havia vagas e teve de esperar dois ou três meses até encontrar um emprego a meio tempo na Clínica Delgado. Começaram então a procurar apartamento. Ao regressar de La, Crónica, Santiago encontrava Ana acordada, a rebuscar os anúncios classificados, e, epquanto ele se despia, ela contava-lhe as suas diligências e andanças. Era a felicidade dela, Zavalita: marcar os anúncios, telefonar, perguntar e regatear, ir ver cinco ou seis ao sair da clínica. E, no entanto, tinha sido Santiago que acidentalmente encontrara a Quinta dos Duendes de Porta. Fora entrevistar alguém que vivia na Benevides, e ao subir em direcção à Diagonal descobriu-o. Lá estava: a fachada avermelhada, as casitas anãs alinhadas em torno do pequeno rectângulo de cascalho, as janelinhas com persianas e as paredes salientes e as moitas de gerânios. Havia um anúncio: alugam-se apartamentos. Tinha hesitado, oitocentos era muito. Mas já estavam fartos da incomodidade da pensão e das discussões com a Sra Lúcia e alugaram-no. Tinham ido povoando a pouco e pouco os dois quartinhos vazios com móveis baratos, que pagavam a prestações.

 

Quando o turno de Ana na Clínica Delgado era de manhã, Santiago, ao acordar ao meio-dia, encontrava o pequeno-almoço pronto a aquecer. Ficava a ler até à hora de ir para o jornal ou ia fazer algum recado e Ana regressava por volta das três. Almoçavam, ele ia para o trabalho às cinco e voltava às duas da manhã. Ana estava a folhear uma revista, a ouvir rádio ou a jogar cartas com a vizinha, uma alemã de profissões mitómanas (um dia era agente da Interpol, outro exilada política, outro representante de consórcios europeus, enviada para o Peru em misteriosas missões) que vivia sozinha e nos dias de sol ia aquecer-se no rectângulo em fato de banho. E lá estava o ritual dos sábados, Zavalita, o teu dia de folga. Levantavam-se tarde, almoçavam em casa, iam à matinée de um cinema de bairro, davam um passeio a pé pelos Malecones ou pelo Parque Necochea ou pela Avenida Pardo (de que é que falávamos?, pensa, de que é que falamos?), sempre por locais previsivelmente solitários para não se encontrarem com o Chispas ou com os velhos ou com a Teté, ao anoitecer jantavam em qualquer restaurante barato (o Colinita, pensa, aos fins de mês no Gambrinus), à noite voltavam a encafuar-se num cinema, um de estreia, se o dinheiro chegasse. Ao princípio, escolhiam os filmes com equidade: um mexicano à tarde, um policial ou um western à noite. Agora quase unicamente mexicanos, pensa. Tinhas começado a ceder para viveres em paz com a Ana ou porque já nem sequer isso. te importava, Zavalita? Um sábado por outro iam a Iça passar o dia com os pais de Ana. Não faziam nem recebiam visitas, não tinham amigos.

 

Não tinhas voltado ao Negro-Negro com Carlitos, Zavalita, não tinhas voltado a ir com eles de borla aos shows das boites nem às casas de passe. Não lho pediam, não insistiam, e um dia começaram a meter-se com ele: estavas-te a tornar sossegado, Zavalita, estavas-te a aburguesar, Zavalita. Ana tinha sido feliz, era, és, Anita? Lá

estava a sua voz na escuridão, uma dessas noites em que faziam amor: não bebes, não és mulherengo, claro que sou, amor. Uma vez Carlitos tinha chegado à redacção mais bêbedo que o costume; foi sentar-se na secretária de Santiago e ficou a olhá-lo em silêncio, com expressão rancorosa: já só se viam e falavam neste sepulcro, Zavalita. Uns dias depois, Santiago convidou-o para almoçar na Quinta dos Duendes. Leva a índia, Carlitos, pensando que irá dizer, que fará a Ana: não, ele e a índia estavam zangados. Foi sozinho e tinha sido um almoço tenso e áspero, exameado de mentiras. Ana fitava-o com desconfiança e os temas de conversa morriam à nascença. Desde então Carlitos não tinha voltado lá a casa. Pensa: juro que te vou ver. O mundo era pequeno mas Lima grande e Miraflores infinito, Zavalita: seis, oito meses a viver no mesmo bairro sem se encontrar com os velhos nem com Chispas nem com a Teté. Uma noite na redacção, Santiago estava a acabar um artigo quando lhe tocaram no ombro: olá, sardento. Foram beber um café à Colmena.

 

- A Teté e eu casamos no sábado, magricela - disse Popeye.

 

- Foi por isso que te vim ver.

 

- Já sabia, vi no jornal - disse Santiago. - Felicidades, sardento.

 

- A Teté quer que sejas testemunha no registo - disse Popeye.

 

- Vais dizer-lhe que sim, não é verdade? E tu e a Ana têm de vir ao casamento.

 

- Lembra-te daquela cena lá em casa - disse Santiago. - Suponho que sabes que nunca mais vi a família desde essa altura.

 

- Já está tudo arranjado, já convencemos a tua velha - a cara avermelhada de Popeye iluminou-se num sorriso optimista e fraternal. - Ela também quer que vão. E o teu velho, nem é bom falar. Todos querem ver-vos e reconciliarem-se duma vez por todas. Vão tratar a Ana com o maior carinho, vais ver.

 

Já a tinham perdoado, Zavalita. O velho devia ter-se lamentado todos os dias daqueles meses por o magricela não aparecer, pelo que estaria zangado e ressentido, e devia ter admoestado e responsabilizado cem vezes a mamã, e algumas noites teria vindo postar-se no automóvel na Avenida Tacna para te ver sair da Crónica. Deviam ter falado, discutido, e a mamã chorado até que se habituaram à ideia de estares casado e com quem. Pensa: até que nos, te perdoaram, Anita. Perdoamos-lhe ter seduzido e roubado o magricela, perdoamos-lhe que seja do povo: que viesse.

 

- Faz lá isso pela Teté e sobretudo pelo velho - insistia Popeye.

 

- Tu sabes como ele gosta de ti, magricela. E até o Chispas, homem. Ainda esta tarde me disse o sabichão que se deixe de mariquices e venha.

 

- Tenho muito prazer em ser testemunha da Teté, sardento. O Chispas também te tinha perdoado, Anita: obrigado, Chispas. Tens de me dizer o que tenho de assinar, onde.

 

- E espero que venham sempre a nossa casa, não? - disse Popeye. - Não tens nada que estar zangado connosco, eu e a Teté não te fizemos nada, pois não? Nós achamos a Ana simpatiquíssima.

 

- Mas ao casamento não vamos, sardento - disse Santiago. Não estou zangado com os velhos nem com o Chispas. Simplesmente não estou para outra cena como aquela.

 

- Não sejas teimoso, homem - disse Popeye. - A tua velha tem lá os seus preconceitos, como toda a gente, mas no fundo é uma jóia de pessoa. Faz lá a vontade à Teté, magricela, venham ao casamento.

 

Popeye tinha já deixado a empresa em que trabalhava quando acabara o curso, a companhia que tinha formado com três colegas ia mais ou menos, magricela, já tinham alguns clientes. Mas andava muito ocupado, não tanto pela arquitectura, nem sequer pela noiva

 

- dera-te uma cotovelada jovial, Zavalita -, mas sim por causa da política: que maneira de perder tempo, não era, magricela?

 

- A política? - perguntou Santiago, pestanejando. - Andas metido na política, sardento?

 

- Belaúnde para todo o mundo - riu-se Popeye, mostrando um emblema na lapela do casaco. - Não sabias? Até pertenço à Comissão Departamental de Acção Popular. Até parece que não lês os jornais.

 

- Nunca leio as notícias políticas - disse Santiago. - Não sabia de nada.

 

- O Belaúnde foi meu professor na faculdade - disse Popeye.

 

- Nas próximas eleições vamos limpar todos. É um tipo formidável, pá.

 

- E que diz o teu pai? - sorriu Santiago. - Continua a ser senador odriista, não?

 

- Somos uma família democrática - riu-se Popeye. - Às vezes discutimos, eu e o velho, mas como amigos. Tu não simpatizas com o Belaúnde? Já viste que nos acusam de esquerdistas, quanto mais não fosse, por isso devias estar com o arquitecto. Ou continuas a ser comunista?

 

- Já não - disse Santiago. - Não sou coisa nenhuma nem quero saber de política. Aborrece-me.

 

- Fazes mal, magricela - repreendeu-o Popeye, cordialmente. Se todos pensassem assim, o país nunca mudaria.

 

Nessa noite, na Quinta dos Duendes, enquanto Santiago lhe contava, Ana tinha escutado muito atentamente, com os olhos a faiscar de curiosidade: claro que não iriam ao casamento, Anita. Ela claro que não, mas ele devia ir, amor, era a tua irmã. Além disso diriam foi a Ana que não o deixou vir, odiá-la-iam ainda mais, tinha de ir. Na manhã seguinte, quando Santiago ainda estava na cama, apareceu a Teté na Quinta dos Duendes: a cabeça cheia de rolos, que assumavam por baixo do lenço de seda branca, espigada e de calças e satisfeita. Parecia que todos os dias tinha estado contigo, Zavalita: desatava a rir ao ver-te acender o lume para aquecer o pequeno-almoço, examinava à lupa os dois quartinhos, até puxou o autoclismo da casa de banho para ver como funcionava. Gostava de tudo: a quinta parecia de bonecas, as casas coloridas tão iguaizinhas, tudo tão pequenino, tão bonito.

 

- Deixa-te lá de remexer as coisas, que a tua cunhada ainda se zanga comigo - disse Santiago. - Senta-te e vamos conversar um bocadinho.

 

A Teté sentou-se na pequena estante de livros, mas continuou a observar em redor com voracidade. Estava apaixonada pelo Popeye? Claro, idiota, achas que casava com ele se não estivesse? Iam viver com os pais do Popeye uns tempos, até acabarem o prédio em que os pais do sardento tinham arranjado um apartamento. A lua-de-mel! Iriam primeiro ao México e depois aos Estados Unidos.

 

- Espero que me mandes postais - disse Santiago. - Passei a vida a sonhar com viagens e até agora o mais longe que fui foi a Iça.

 

- Nem sequer telefonaste à mãe quando ela fez anos, fizeste-a chorar que nem uma Madalena - disse a Teté. - Mas suponho que domingo vais lá a casa com a Ana.

 

- Contenta-te com eu ser tua testemunha - disse Santiago. Não vamos à igreja nem lá a casa.

 

- Deixa-te de idiotices, sabichão - disse a Teté, a rir. - Eu vou convencer a Ana e hei-de tramar-te, ah, ah. E hei-de arranjar maneira de a Ana ir à minha despedida de solteira e tudo, vais ver.

 

E, efectivamente, a Teté voltou essa tarde e Santiago deixou-as a ela e a Ana, ao ir para La, Crónica, a conversarem como se fossem amigas de infância. À noite, Ana recebeu-o muito risonha: tinham passado toda a tarde juntas, a Teté era simpatiquíssima, até a tinha convencido. Não era melhor reconciliarem-se duma vez para sempre com a tua família, amor?

 

- Não - disse Santiago. - É melhor não. Não se fala mais nisso.

 

Mas todo o resto da semana tinham discutido de manhã à noite sobre o mesmo assunto, já te decidiste, amor, vamos? Ana tinha prometido à Teté que iam, amor, e sábado à noite tinham-se deitado zangados. No domingo, cedinho, Santiago foi telefonar à farmácia da esquina da Porta com San Martin.

 

- De que estão à espera? - perguntou a Teté. - A Ana ficou de vir às oito para me ajudar. Queres que o Chispas vos vá buscar?

 

- Nós não vamos - disse Santiago. - Telefonei-te para te dar um abraço e lembrar-te os postais, Teté.

 

- Julgas que te vou pedir de joelhos, idiota? - perguntou a Teté. - Tu és é um complexado. Deixa-te de tolices e anda daí senão não te falo mais, sabichão.

 

- Se te zangas, ficas feia e tens de estar bonita para as fotografias - disse Santiago. - Muitos beijos e vem cá a casa quando voltares da viagem, Teté.

 

- Não te armes em menina bonita que amua por tudo e por nada

- conseguiu ainda dizer a Teté. - Anda lá, traz a Ana. Fizeram-te ensopado de camarão, idiota.

 

Antes de regressar à Quinta dos Duendes, foi a uma florista da Larco e mandou um ramo de rosas à Teté. Muitas felicidades para ambos dos irmãos Ana e Santiago, pensa. Ana estava ressentida e não lhe dirigiu palavra até à noite.

 

- Não é por interesse? - perguntou Queta. - Então porque é? Por medo?

 

- As vezes - disse Ambrosio. - Às vezes é antes por pena. Por gratidão, por respeito. Até amizade, guardando as distâncias. Já sei que não acredita, mas é a verdade. Palavra.

 

- Nunca sentes vergonha? - perguntou Queta. - Das pessoas, dos teus amigos. Ou contas-lhes como a mim?

 

Viu-o sorrir com certa amargura na semiobscuridade; a janela da rua estava aberta mas não havia brisa, e na atmosfera imóvel e carregada de vapor do quarto o corpo nu dele começava a suar. Queta afastou-se uns milímetros para ele não a roçar.

 

- Amigos como os que tive na aldeia, aqui nem um - disse Ambrosio. - Só conhecidos, como aquele que agora é motorista de D. Cayo, ou o Hipólito, o outro que trata dele. Não sabem. E mesmo que soubessem não teria. Não lhes pareceria mal, percebe? Já lhe contei o que acontecia ao Hipólito com os presos, não se lembra? Porque é que eu havia de ter vergonha com eles?

 

- E nunca tens vergonha de mim? - perguntou Queta.

 

- De si, não - disse Ambrosio. - Você não vai andar a espalhar coisas por aí.

 

- E porque não? - disse Queta. - Não me pagas para eu te guardar os segredos.

 

- Porque você não quer que saibam que eu venho cá - disse Ambrosio. - Por isso é que não vai andar a espalhar estas coisas por aí.

 

- E se eu fosse contar à doida o que tu me contas? - perguntou Queta. - Que fazias tu se eu fosse contar a toda a gente?

 

Ele riu-se baixinho e cortesmente na semiobscuridade. Estava de costas, a fumar, e Queta via as nuvenzinhas de fumo a misturarem-se no ar parado. Não se ouvia nenhuma voz, não passava nenhum automóvel, de vez em quando, o tiquetaque do relógio de mesa-de-cabeceira fazia-se presente e logo se perdia e reaparecia um momento depois.

 

- Nunca mais cá voltava - disse Ambrosio. - E você perdia um bom cliente.

 

- Já quase o perdi - riu-se Queta. - Antigamente vinhas de mês a mês, de dois em dois. E agora há quanto tempo? Cinco meses? Mais? Que aconteceu? É por causa do Bola de Ouro?

 

- Passar um bocado consigo são para mim duas semanas de trabalho - explicou Ambrosio. - Nem sempre me posso permitir esse luxo. E, além disso, você também não aparece muitas vezes. Este mês vim cá três vezes e nunca a encontrei.

 

- Que é que ele te fazia se soubesse que vinhas cá? - perguntou Queta. - O Bola de Ouro.

 

-- Ele não é como você julga - disse Ambrosio muito depressa, com voz grave. - Não é um malandro, não é um déspota. É um verdadeiro senhor, já lhe disse.

 

- Que é que ele te fazia? - insistiu Queta. - Se um dia eu o encontrasse em San Miguel e lhe dissesse o Ambrosio gasta o dinheiro dele comigo.

 

- Você só lhe conhece uma cara, é por isso que está tão enganada a respeito dele - disse Ambrosio. - Ele tem outra. Não é um déspota. E bom, é um senhor. Faz as pessoas terem-lhe respeito.

 

Queta riu-se mais alto e olhou para Ambrosio: acendia outro cigarro e a chamazinha instantânea do fósforo mostrou-lhe os olhos saciados e a expressão séria, tranquila, e o brilho da transpiração da testa.

 

- Virou-te a ti também - disse, suavemente. - Não é por te pagar bem nem por medo. Gostas de estar com ele.

 

- Gosto de ser motorista dele - disse Ambrosio. - Tenho o meu quarto, ganho mais que dantes e todos me tratam com consideração.

 

- E quando ele arria as calças e te diz cumpre a tua obrigação ? riu-se Queta. - Também gostas?

 

- Não é como você julga - repetiu Ambrosio, devagar. - Eu sei o que você imagina. Engana-se, não é assim.

 

- E quando te faz nojo? - perguntou Queta. - Às vezes a mim faz-me, mas quero lá saber, abro as pernas e vem a dar ao mesmo. Mas tu?

 

- É uma coisa que faz dó - sussurrou Ambrosio. - A mim faz-me, a ele também. Você julga que isso acontece todos os dias. Não, nem sequer todos os meses. E quando alguma coisa lhe correu mal. Eu fico logo a saber, vejo-o entrar no carro e penso houve qualquer coisa que lhe correu mal. Fica pálido, com os olhos encovados, a voz sai-lhe esquisita. Leva-me a Ancón, diz ele. Ou vamos a Ancón, ou para Ancón. Eu fico logo a saber. Passa a viagem calado. Se visse a cara dele, julgaria que lhe morreu alguém ou que lhe disseram que morria nessa noite.

 

- E a ti que é que te acontece, que é que sentes? - perguntou Queta. - Quando ele te diz leva-me a Ancón.

 

- Você sente nojo quando D. Cayo lhe diz vem esta noite a San Miguel? - perguntou Ambrosio, em voz muito baixa. - Quando a senhora a manda chamar?

 

- Claro que não - riu-se Queta. - A doida é minha amiga, somos amigas. Até nos rimos dele. Pensas lá começa o martírio, sentes que o odeias?

 

- Penso no que vai acontecer quando chegarmos a Ancón e sinto-me mal - queixou-se Ambrosio e Queta viu-o apalpar o estômago.

- Aqui, começa-me às voltas. Faz-me medo, faz-me pena, faz-me raiva. Penso oxalá que hoje seja só para conversar.

 

- Conversar? - riu-se Queta. - As vezes leva-te só para conversar?

 

- Entra com a sua cara de enterro, corre as cortinas e toma uma bebida - disse Ambrosio, com voz densa. - Eu sei que há qualquer coisa que o rói por dentro, que lhe morde. Ele contou-me, percebe? Eu até já o vi chorar, está a perceber?

 

- Despacha-te, toma banho, veste isto? - recitou Queta olhando para ele. - Que é que ele faz, que é que ele te obriga a fazer?

 

- Fica cada vez mais pálido e engasga-se-lhe a voz - murmurou Ambrosio. - Senta-se, diz senta-te. Pergunta-me coisas, conversa comigo. Obriga-me a conversar com ele.

 

- Fala-te de mulheres, conta-te porcarias, mostra-te fotografias, revistas? - insistiu Queta. - Eu é só abrir as pernas. Mas tu?

 

- Conto-lhe coisas de mim - queixou-se Ambrosio. - De Chincha, de quando era miúdo, da minha mãe. De D. Cayo, ele obriga-me a contar-lhe, pergunta-me tudo. Faz-me sentir amigo dele, percebe?

 

- Tira-te o medo, faz-te sentir à vontade - disse Queta. O gato e o rato. Mas tu?

 

- Põe-se a falar das coisas dele, das preocupações que tem murmurou Ambrosio. - Sempre a beber. Eu também. E vejo sempre que há qualquer coisa que lhe morde, que o está a roer.

 

- Nessas alturas trata-lo por tu? - pergunta Queta. - Nesses momentos atreves-te?

 

- A si não a trato por tu apesar de vir a esta cama há-de ir para dois anos, não? - lamentou-se Ambrosio. - Deita cá para fora tudo o que o preocupa, os negócios, a política, os filhos. Fala, fala, e eu sei como ele sofre lá por dentro. Diz que lhe faz vergonha, ele contou-me, está a perceber?

 

- Porque é que ele se põe a chorar? - perguntou Queta. - Por tu?

 

- Às vezes são horas e horas assim - queixou-se Ambrosio. Ele a falar e eu a ouvir, eu a falar e ele a ouvir. E a beber até sentir que não suporto mais uma gota.

 

- Por tu não te excitares? - perguntou Queta. - Excita-te só com a bebida?

 

- Com o que deita nas bebidas - sussurrou Ambrosio; a voz adelgaçou-se-lhe até quase se perder e Queta olhou para ele: tinha posto o braço sobre a cara, como um homem a tomar banho de sol na praia de barriga para o ar. - A primeira vez que o apanhei deu por eu o ter apanhado. Deu por eu ter ficado assustado. Que é isso que deitou lá dentro?

 

- Nada, chama-se ioimbina - disse D. Fermín. - Olha, eu também ponho no meu. Nada, à tua saúde, bebe.

 

- Às vezes nem a bebida, nem a ioimbina, nem nada - queixou-se Ambrosio. - Ele apercebe-se, eu vejo que sim. Faz uns olhos que metem dó, uma voz. A beber, sempre a beber. Vi-o desatar a chorar, está a perceber? Diz vai-te embora, anda, e fecha-se no quarto. Ouço-o a falar sozinho, a gritar consigo mesmo. Fica doido de vergonha, está a perceber?

 

- Zanga-se contigo, faz-te cenas de ciúmes? - pergunta Queta.

- Julga que?

 

- A culpa não é tua, a culpa não é tua - gemeu D. Fermín. Nem minha. Um homem não se pode excitar com outro homem, eu sei.

 

- Põe-se de joelhos, está a perceber? - gemeu Ambrosio. A lamentar-se, às vezes quase a chorar. Deixa-me ser o que sou, diz ele, deixa-me ser uma puta, Ambrosio. Está a perceber, está a perceber? Humilha-se, sofre. Deixa-me apalpá-la, beijá-la, de joelhos, ele a mim, percebe? Pior que uma puta, percebe?

 

Queta riu-se, devagarinho, tornou a deitar-se de costas, e suspirou.

 

- Tu tens pena dele por causa disso - murmurou com uma raiva surda. - Eu tenho pena é por ti.

 

- Às vezes nem assim, nem com isso - gemeu Ambrosio, baixinho. - Eu penso vai-se enfurecer, vai endoidecer, vai. Mas não, não. Vai-te embora, anda, diz ele, tens razão, deixa-me sozinho. Volta daqui a duas horas, daqui a uma hora.

 

- E quando lhe consegues fazer o favor? - perguntou Queta. Fica feliz, puxa da carteira e?

 

- Fica com vergonha, também - gemeu Ambrosio. - Vai à casa de banho, fecha-se e nunca mais sai. Eu vou ao outro quartinho de banho, tomo chuveiro, ensaboo-me. Tem água quente e tudo. Volto e ele ainda não saiu. Passa horas a lavar-se, a pôr águas-de-colónia. Sai pálido, não fala. Vai para o carro, diz ele, eu vou já. Deixa-me na baixa, diz ele, não quer que cheguemos juntos a casa. Tem vergonha, está a perceber?

 

- E os ciúmes? - pergunta Queta.- Julga que tu nunca andas com mulheres?

 

- Nunca me pergunta nada disso - disse Ambrosio, afastando o braço da cara. - Nem o que eu faço no dia de folga nem nada, só o que eu lhe conto. Mas eu sei o que ele havia de sentir se soubesse que eu ando com mulheres. Não por ciúmes, está a perceber? Por vergonha, medo que se saiba. Não me faria nada, não se zangaria. Diria vai-te embora, anda, mais nada. Eu sei como ele é. Não é dos que insultam, não é capaz de tratar mal as pessoas. Diria não faz mal, tens razão, mas vai-te embora, anda. Sofreria e só faria isso, percebe? É um senhor, não é o que você julga.

 

- O Bola de Ouro mete-me mais nojo que o Cayo Merda - disse Queta.

 

Nessa noite, ao entrar no oitavo mês, tinha sentido dores nas costas, e Ambrosio, semiadormecido e de má vontade, tinha-lhe dado umas massagens. Tinha acordado a arder e com uma fraqueza tão grande que, quando Amalita Hortênsia se começava a queixar, ela tinha desatado a chorar, angustiada pela ideia de ter de se levantar. Quando se tinha sentado na cama, vira umas manchas cor de chocolate no colchão.

 

- Julgou.que a criança lhe tinha morrido na barriga - diz Ambrosio. - Desconfiou de qualquer coisa, porque se pôs a chorar e obrigou-me a levá-la ao hospital. Não te assustes, porque é que te assustas.

 

Tinham feito a bicha do costume, contemplando as auras do telhado da morgue, e o médico tinha dito a Amalia vais ser internada agora mesmo. Tinham de te provocar o parto, rapariga, explica o médico. Que é isso de provocar, Sr. Doutor?, e ele nada, rapariga, nada de grave.

 

- Lá ficou - diz Ambrosio. - Trouxe-lhe as coisas dela, deixei a Amalita Hortênsia com a Sr.1 Lupe e fui guiar a campana. À tarde voltei para a ver. Tinham-lhe deixado o braço e a nádega roxas de tanta injecção.

 

Tinham-na posto na sala comum: beliches e camas tão juntas que as visitas tinham de estar de pé aos pés da cama porque não havia espaço para se aproximarem dos doentes. Amalia tinha passado a manhã a ver, por uma comprida janela de rede de arame, as novas barracas do bairro de lata novo que estava a crescer por trás da morgue. A Sr.a Lupe tinha vindo vê-la com Amalita Hortênsia, mas uma enfermeira dissera-lhe não torne a trazer a menina. Ela tinha pedido à Sr.a Lupe que fosse à barraca ver se Ambrosio precisava de alguma coisa, e a Sr.1 Lupe com certeza, e faço-lhe também a comida.

 

- Uma enfermeira avisou-me parece que vão ter de a operar diz Ambrosio. - E é grave? Não, não é. Enganaram-me, está a perceber, menino?

 

Com as injecções, as dores tinham desaparecido e a febre baixado, mas continuaria todo o dia a sujar a cama com minúsculas manchinhas cor de chocolate e a enfermeira tinha-lhe mudado três vezes os lençóis. Parece que te vão operar, tinha-lhe dito Ambrosio. Ela tinha-se assustado: não, não queria. Era para bem dela, tonta. Ela desatara a chorar e todos os doentes tinham olhado para ela.

 

- Vi-a tão preocupada que comecei a contar-lhe mentiras - diz Ambrosio. - Vamos comprar aquela camioneta, eu e o Panta, decidimos tudo hoje. Nem me ouvia. Tinha os olhos assim e inchados.

 

Tinha passado a noite em claro por causa dos acessos de tosse de um dos doentes, e assustada com outro que, a mexer-se no beliche ao lado dela, gritava obscenidades contra uma mulher. Deve-lhe ter pedido, deve ter chorado e o médico deve tê-la atendido: mais injecções, mais remédios, tudo o que quiser menos operar-me, tinha sofrido tanto da outra vez, Sr. Doutor. De manhã tinham trazido uma lata de café a cada um dos doentes da sala, menos a ela. Viera uma enfermeira e sem dizer palavra tinha-lhe dado uma injecção. Ela começara a suplicar-lhe chame o Sr. Doutor, tinha de lhe falar, ia convencê-lo, mas a enfermeira não ligara: achava que a iam operar se não fosse preciso, tonta? Depois, ajudada por outra enfermeira, tinha-lhe puxado a cama para a entrada da sala e passara-a para uma maca, e, quando tinham começado a arrastá-la, ela sentara-se a chamar pelo marido aos gritos. As enfermeiras tinham-se ido embora, viera o médico, irritado: que escândalo era aquele, o que é que tinha acontecido? Ela suplicara-lhe, contara-lhe da maternidade, o que tinha sofrido, e o doutor abanara a cabeça: bom, está bem, calma. Isto até ter entrado a enfermeira da manhã: já ali estava o teu marido, acaba lá com a choradeira.

 

- Agarrou-se a mim - diz Ambrosio. - Não deixes operarem-me, não quero. Até que o médico perdeu a paciência. Ou autorizas ou a levas daqui para fora. Que havia eu de fazer, menino?

 

Tinham-na estado a convencer, Ambrosio e uma enfermeira mais velha e melhor que a primeira, uma que lhe falara com carinho e lhe dizia é para teu bem e da criança. Por fim, ela tinha dito está bem e que se ia portar bem. Então tinham-na arrastado na maca. Ambrosio seguira-a até à porta da outra sala, dizendo-lhe qualquer coisa que ela mal tinha ouvido.

 

- Ela já desconfiava, menino - diz Ambrosio. - Senão porque é que estava tão desesperada, tão assustada?

 

A cara de Ambrosio tinha desaparecido e tinham fechado uma porta. Vira o médico pôr uma bata e conversar com outro homem vestido de branco e com uma touca e uma máscara. As duas enfermeiras tinham-na tirado da maca e deitado numa mesa. Ela pedira-Lhes para levantarem a cabeça, assim sufocava, mas, em vez de lhe prestarem atenção, tinham-lhe dito sim, já vai, caladinha, está bem. Os dois homens de branco continuariam a falar e as enfermeiras a dar voltas em torno dela. Tinham acendido uma luz por cima da cara dela, tão forte que tinha sido obrigada a fechar os olhos, e um momento depois sentira darem-lhe outra injecção. Depois tinha visto a cara do médico muito perto da sua e ouvido ele dizer conta um, dois, três. À medida que ia contando, sentia a voz sumir-se-lhe.

 

- Eu tinha de trabalhar, ainda por cima - diz Ambrosio. - Meteram-na na sala e eu saí do hospital, mas entrei em casa da senhora Lupe e ela disse-me coitadinha, porque é que não ficaste até acabar a operação. De maneira que voltei ao hospital, menino.

 

Tinha-lhe parecido que tudo se mexia devagarinho e ela também, como se estivesse a flutuar na água, e mal reconhecera a seu lado as caras de enterro de Ambrosio e da Sr.” Lupe. Quisera perguntar-lhes: já acabou a operação?, dizer-lhes que não lhe doía nada, mas não tinha tido forças para falar.

 

- Nem sítio para uma pessoa se sentar - diz Ambrosio. - Para ali em pé, a fumar todos os cigarros que tinha. Depois chegou a senhora Lupe e também se pôs à espera e nunca mais a traziam da sala.

 

Não se tinha mexido, convencera-se de que ao menor movimento uma série de agulhas a começariam a picar. Não tinha sentido dor, mas sim uma pesada, suada ameaça de dor e ao mesmo tempo uma grande fraqueza, e tinha conseguido ouvir, como se estivessem a segredar longíssimo, as vozes de Ambrosio, da Sr.” Lupe, e até a voz da D. Hortênsia: já tinha nascido, era rapaz ou rapariga?

 

- Por fim saiu uma enfermeira a empurrar, deixem passar - diz Ambrosio. - Afastou-se e voltou com qualquer coisa. Que é que foi? Deu-me outro empurrão e daí a pouco saiu a outra. A criança perdeu-se, mas que a mãe se podia salvar.

 

Parecia que Ambrosio chorava, que a Sr.a Lupe chorava, que havia gente às voltas em redor dela e a dizer-lhe coisas. Alguém se agachara sobre ela e tinha sentido o seu hálito contra a boca e os lábios na cara dela. Julgam que vais morrer, tinha pensado, julgam que estás morta. Sentira um grande espanto e muita pena de todos.

 

- Que se podia salvar queria dizer que também podia morrer diz Ambrosio. - A senhora Lupe pôs-se a rezar de joelhos. Eu fui-me amparar à parede, menino.

 

Não tinha conseguido perceber quanto tempo passava entre uma coisa e outra e continuara a ouvir falarem, mas agora também longos silêncios que se ouviam, que soavam. Tinha continuado a sentir-se a flutuar, a mergulhar um bocadinho na água e a sair e a mergulhar outra vez e tinha visto repentinamente a cara de Amalita Hortênsia. Tinha ouvido: limpa bem os pés antes de entrares em casa.

 

- Depois saiu o médico e pôs-me aqui uma das mãos - diz Ambrosio. - Fizemos todos os possíveis para salvar a tua mulher, que Deus não tinha querido e sei lá que mais, menino.

 

Tinha-se convencido de que a iam puxar, que se ia agofar e pensara não vou olhar, não vou falar, não se ia mexer e assim havia de flutuar. Tinha pensado: como é que podes estar a ouvir coisas já passadas, parva?, e assustara-se e tinha sentido outra vez muita pena.

 

- Velámo-la no hospital - diz Ambrosio. - Vieram todos os motoristas da Morales e da Pucallpa, e até o sacana do D. Hilário veio dar os pêsames.

 

Tinha tido cada vez mais pena à medida que se afogava e sentia que descia e caía vertiginosamente e sabia que as coisas que ouvia iam ficando para lá e que só podia, à medida que se afogava, à medida que caía, levar consigo aquela terrível pena.

 

- Enterrámo-la num dos caixões da Limbo - diz Ambrosio. Foi preciso pagar sei lá quanto no cemitério. Eu não tinha. Os motoristas fizeram uma subscrição e até o sacana do D. Hilário deu qualquer coisa. E no mesmo dia em que a enterrei, o hospital mandou a conta. Morta ou não, era preciso pagar a conta. Com quê, menino?

 

- Como é que foi, menino? - pergunta Ambrosio. - Sofreu muito antes de?

 

Tinha sido uns tempos depois da primeira crise de diabos azuis do Carlitos, Zavalita. Uma noite tinha anunciado na redacção, com ar resoluto: vou deixar de beber durante um mês. Ninguém tinha acreditado, mas Carlitos cumpriu escrupulosamente a cura de desintoxicação voluntária e esteve quatro semanas sem cheirar uma gota de álcool. Todos os dias punha um número na agenda da sua secretária e arvorava-o desafiante: e iam dez, e vão dezasseis. No fim do mês anunciou: agora a desforra. Tinha começado a beber nessa noite ao sair do trabalho, primeiro com Norwin e com Solórzano nas tabernas da baixa, depois com uns redactores desportivos que encontraram numa tasca a festejar um aniversário, e tinha passado a noite a beber na Parada, contou depois ele próprio, com desconhecidos que lhe tinham roubado a carteira e o relógio. Nessa manhã viram-no nas redacções da Última Hora, e de La, Prensa, a pedir dinheiro emprestado, e ao entardecer Arispe encontrou-o sentado no Portal, a uma mesinha do Bar Zela, com o nariz vermelho como um tomate e os olhos líquidos, a beber sozinho. Sentou-se a seu lado mas não conseguiu falar com ele. Não estava bêbedo, contou Arispe, estava era macerado em álcool. Nessa noite apareceu na redacção caminhando com cuidados infinitos e olhando através das coisas. Cheirava a insónia, a misturas indizíveis, e havia na sua cara uma inquietação vibrante, uma efervescência da pele nas faces, nas têmporas, na testa e no queixo: tudo latejava. Sem responder às piadas, flutuou até à sua secretária e permaneceu de pé, olhando para a máquina de escrever com ansiedade. De repente, levantou-a com grande esforço sobre a cabeça e, sem dizer uma palavra, largou-a: lá estava o estrondo, Zavalita, a chuva de teclas e porcas. Quando o foram agarrar, desatou a correr, aos grunhidos: dava palmadas nos linguados, fazia voar os cestos de papéis a pontapé, atirava-se contra as cadeiras. No dia seguinte tinha sido internado na clínica pela primeira vez. Quantas a partir de então, Zavalita? Pensa: três.

 

- Parece que não - diz Santiago. - Parece que morreu a dormir.

 

Tinha sido um mês depois do casamento do Chispas e da Cary, Zavalita. Ana e Santiago receberam participação e convite mas não foram nem telefonaram nem mandaram flores. Popeye e a Teté nem sequer tinham tentado convencê-los. Tinham aparecido na Quinta dos Duendes, umas semanas depois de voltarem da lua-de-mel, e não estavam ressentidos. Contaram-lhes com abundância de pormenores a viagem pelo México e pelos Estados Unidos e depois foram dar uma volta no automóvel de Popeye e tomaram uns batidos em La Herradura. Tinham continuado a encontrar-se esse ano de quando em quando, na Quinta e uma vez em San Isidro, quando Popeye e a Teté estrearam o apartamento. Era através deles que tomavas conhecimento das novidades, Zavalita: o noivado do Chispas, os preparativos para o casamento, a futura viagem dos pais à Europa. Popeye andava absorvido pela política, acompanhava Belaúnde nas suas viagens pela província e a Teté estava à espera de bebé.

 

- O Chispas casou em Fevereiro e o velho morreu em Março diz Santiago. - Ele e a mamã estavam para ir à Europa quando aquilo aconteceu.

 

- Então morreu em Ancón? - pergunta Ambrosio.

 

- Em Miraflores - diz Santiago. - Nesse Verão não tinham ido para Ancón nos fins-de-semana, parece-me.

 

Tinha sido pouco depois da adopção do Batuque, Zavalita. Uma tarde, Ana voltou da Clínica Delgado com uma caixinha de sapatos que se mexia; abriu-a e Santiago viu saltar uma coisinha branca: o jardineiro tinha-lho oferecido com tanto carinho que não tinha conseguido dizer que não, amor. Ao princípio foi um aborrecimento, um motivo de discussões. Urinava na salinha, nas camas, no quarto de banho, e quando Ana, para lhe ensinar a fazer as necessidades lá fora, lhe dava uma palmada no traseiro e lhe mergulhava o focinho no charco de caquinna e urina, Santiago acorria em defesa dele e zangava-se, e, quando começava a mordiscar qualquer livro e Santiago lhe batia, Ana acorria em defesa dele e zangava-se. Ao fim de pouco tempo aprendeu: arranhava a porta da rua quando queria urinar e olhava para a estante como se estivesse electrizado. Nos primeiros dias dormiu na cozinha, em cima de uma serapilheira, mas à noite gania e punha-se a uivar em frente da porta do quarto, de modo que acabaram por instalá-lo a um caminho, ao pé dos sapatos. Pouco a pouco, foi conquistando o direito de subir para a cama. Nessa manhã, tinha-se metido na gaveta da roupa suja e estava a tentar sair, Zavalita, e tu estavas a olhar para ele. Tinha-se encarrapitado, pusera as patas na borda, estava a apoiar todo o seu peso daquele lado e a gaveta começou a oscilar e por fim virou-se. Depois de uns segundos de imobilidade, agitou o rabito, avançou para a liberdade e nisto as pancadas na janela e a cara de Popeye.

 

- O teu pai, magricela - estava sufocado, Zavalita, congestionado, devia ter vindo a toda a velocidade do carro até ali. - O Chispas telefonou-me agora mesmo.

 

Estavas de pijama, não encontravas as cuecas, ensarilhavam-se-te as calças, e, quando estavas a escrever um papelinho à Ana, começou-te a tremer a mão, Zavalita.

 

- Depressa - dizia Popeye, em pé, à porta. - Depressa, magricela.

 

Chegaram à Clínica Americana ao mesmo tempo que a Teté. Não estava em casa quando Popeye recebera a chamada do Chispas, estava na igreja, e tinha numa mão a mensagem de Popeye e na outra um véu e um livro de missa. Perderam vários minutos a andar para trás. e para diante nos corredores até que, ao virar por um corredor, viram o Chispas. Mascarado, pensa: o casaco encarnado e branco do pijama, umas calças desabotoadas, um casaco de outra cor e sapatos sem meias. Abraçava a mulher, Cary chorava e havia um médico que mexia a boca com um olhar lúgubre. Estendeu-te a mão, Zavalita, e a Teté começou a chorar aos gritos. Tinha falecido antes de o trazerem para a clínica, disseram os médicos, provavelmente já estava morto essa manhã, quando a mamã, ao acordar, o encontrou imóvel e rígido, com a boca aberta. Surpreendeu-o no sono, diziam, não sofreu nada. Mas o Chispas garantia que quando ele, Cary e o mordomo o meteram no carro ainda vivia, que lhe tinham sentido o pulso. A mamã estava na sala de emergência e quando entraste estavam a dar-lhe uma injecção para os nervos: delirava e, quando a abraçaste, uivou. Adormeceu pouco depois e os gritos mais altos eram os da Teté. Depois tinham começado a chegar parentes, depois a Ana, e tu, o Popeye e o Chispas tinham passado a tarde a tratar de coisas, Zavalita. A carreta, pensa, as diligências do cemitério, os anúncios no jornal. Nessa altura reconciliaste-te outra vez com a família, Zavalita, desde então não tinhas voltado a zangar-te com eles. Entre uma diligência e outra o Chispas dava um soluço, pensa, tinha uns calmantes no bolso e chupava-os como se fossem caramelos. Chegaram a casa ao entardecer e o jardim, as salas e o escritório já estavam cheios de gente. A mamã tinha-se levantado e vigiava a preparação da câmara-ardente. Não chorava, estava por pintar e com um aspecto velhíssimo, e à volta dela estavam a Teté e a Cary e a tia Eliana e a tia Rosa e também a Ana, Zavalita. Pensa: a Ana também. Continuava a chegar gente, toda a noite houve gente a entrar e a sair, murmúrios, fumo e as primeiras coroas. O tio Clodomiro tinha passado a noite sentado ao pé do caixão, mudo, empertigado, com uma cara de cera, e, quando por fim te tinhas aproximado para o ver, já amanhecia. O vidro estava embaciado e não se lhe via a cara, pensa: viam-se-lhe as mãos sobre o peito, o fato mais elegante, e tinham-no penteado.

 

- Não o via há perto de dois anos - diz Santiago. - Desde que me casei. O que me entristeceu mais não foi ele ter morrido. Todos nós morremos, não é, Ambrosio? Foi ter morrido a julgar que eu estava zangado com ele.

 

O enterro foi no dia seguinte, às três da tarde. Durante toda a manhã tinham chegado telegramas, cartões de visita, recibos de missas, ofertas, coroas, e os jornais tinham publicado a notícia enquadrada. Tinham ido muitíssimas pessoas, sim, Ambrosio, até um ajudante-de-campo da Presidência, e ao entrar no cemitério tinham pegado à borla durante um bocado um ministro pradista, um senador odriista, um dirigente aprista e outro belaundista. O tio Clodomiro, o Chispas e tu tinham ficado de pé à porta do cemitério, a receber os pêsames, mais de uma hora, Zavalita. No dia seguinte, Ana e Santiago passaram todo o dia lá em casa. A mamã continuava no quarto, rodeada de parentes, e ao vê-los entrar tinha abraçado e beijado Ana e Ana tinha-a abraçado e beijado e tinham chorado as duas. Pensa: o mundo era assim, Zavalita. Pensa: era assim? À tardinha veio o tio Clodomiro e esteve sentado na sala com Popeye e Santiago: parecia distraído, ensimesmado, e respondia com monossílabos quase inaudíveis quando lhe perguntavam alguma coisa. No dia seguinte, a tia Eliana tinha levado a mamã à sua casa de Chosica para lhe evitar o cortejo de visitas.

 

- Desde que ele morreu, nunca mais me zanguei com a família diz Santiago. - É muito raro vê-los, mas assim, embora de longe, damo-nos bem.

 

- Não - repetiu Ambrosio. - Não vim armar zaragata.

 

- Ainda bem, porque senão chamo o Robertito, que é o único daqui que sabe lutar - disse Queta. - Diz-me que diabo vieste cá fazer duma vez por todas ou então vai-te embora, anda.

 

Não estavam nus, não estavam deitados na cama, a luz do quarto não estava apagada. Lá de baixo vinha sempre o mesmo confuso ruído de música e de vozes do bar e as gargalhadas da saleta. Ambrosio tinha-se sentado na cama e Queta via-o envolvido pelo feixe de luz, quieto e maciço no seu fato azul, e os seus sapatos pretos bicudos e o colarinho alvo da camisa engomada. Via a sua desesperada imobilidade, a enlouquecida cólera estagnada nos seus olhos.

 

- Você sabe muito bem que vim por causa dela - Ambrosio olhava-a de frente, sem pestanejar. - Você podia ter feito alguma coisa e não fez nada. Você é amiga dela.

 

- Olha, eu já tenho preocupações que cheguem - disse Queta.

- Não quero falar disso, eu venho aqui para ganhar dinheiro. Vai-te embora, anda, e sobretudo não voltes. Nem aqui nem ao meu apartamento.

 

- Você devia ter feito qualquer coisa - repetiu a voz obstinada, dura e diferente de Ambrosio. - Para seu bem.

 

- Para meu bem? - perguntou Queta; estava apoiada de costas na porta, o corpo ligeiramente arqueado, as mãos nas ancas.

 

- Para bem dela, quero eu dizer - murmurou Ambrosio. - Não me disse que era amiga dela, que apesar das loucuras dela a estimava?

 

Queta deu uns passos, sentou-se na única cadeira do quarto, defronte dele. Cruzou as pernas, observou-o detidamente, e ele resistiu ao olhar dela, sem baixar os olhos, pela primeira vez.

 

- Foi o Bola de Ouro que te mandou cá - disse Queta devagar.

 

- Porque é que ele não te mandou a casa da doida? Eu não tenho nada a ver com isso. Diz ao Bola de Ouro que não me meta nos sarilhos dele. A doida é a doida e eu sou eu.

 

- Ninguém me mandou, ele nem sequer sabe que eu a conheço disse Ambrosio, com extrema lentidão, olhando para ela. - Vim cá para conversarmos. Como amigos.

 

- Como amigos? - perguntou Queta. - Quem é que te disse que eras meu amigo?

 

- Fale com ela, chame-a à razão - murmurou Ambrosio. - Faça-lhe ver que se portou muito mal. Diga-lhe que ele não tem dinheiro, que os negócios lhe andam a correr mal. Aconselhe-a a esquecer-se dele para sempre.

 

- O Bola de Ouro vai mandá-la prender outra vez? - perguntou Queta. - Que mais lhe vai fazer o sacana?

 

- Ele não a mandou prender, até a foi tirar da prefeitura - disse Ambrosio, sem levantar a voz, sem se mexer. - Ele ajudou-a, pagou-lhe o hospital, deu-lhe dinheiro. Sem ter obrigação nenhuma, por pura compaixão. Não lhe vai dar mais. Diga-lhe que se portou muito mal. Que não o ameace mais.

 

- Vai-te embora, anda - disse Queta. - O Bola de Ouro e a doida que resolvam os sarilhos deles sozinhos. Não é nada comigo. E nem contigo, não te metas nisso.

 

- Aconselhe-a - repetiu a voz teimosa, tensa, de Ambrosio. Se ela continua a ameaçá-lo, acaba mal.

 

Queta riu-se e sentiu o seu risinho forçado e nervoso. Ele olhava-a com tranquila determinação, com aquele calmo fervor frenético nos olhos. Ficaram calados, a observarem-se, com as caras a meio metro uma da outra.

 

- Tens a certeza de que não foi ele que te mandou? - perguntou Queta, por fim. - O Bola de Ouro está com medo da desgraçada da doida? E tão parvo que tenha medo da desgraçada? Ele viu-a, ele sabe o estado em que ela está. Tu também sabes como ela está. Tu também lá tens a tua espia, não?

 

- Isso também - rouquejou Ambrosio. Queta viu-o unir os joelhos e encolher-se, viu-o enclavinhar os dedos nas pernas. A voz tinha-lhe enfraquecido. -- Eu não lhe tinha feito nada, não era nada comigo. E a Amalia tem estado a ajudá-la, a acompanhá-la em tudo o que aconteceu. Ela não tinha razão para contar isso.

 

- Que é que aconteceu? - perguntou Queta; inclinou-se um pouco para ele. - Ela contou ao Bola de Ouro de ti e da Amalia?

 

- Que é minha mulher, que nos vemos todos os domingos desde há anos, que está grávida de mim - summ-se a voz de Ambrosio, e Queta pensou vai chorar. Mas não: era só a voz que chorava, tinha os olhos secos e opacos muito abertos.

 

- Bom - disse Queta, endireitando-se. - Por isso é que estás assim, por isso é que estás com essa fúria. Agora já sei porque é que vieste.

 

- Mas porquê? - continuou a atormentar-se a voz de Ambrosio. - Julgando que com isso o convencia? Julgando que com isso lhe ia apanhar mais dinheiro? Porque é que ela fez uma maldade daquelas?

 

- Porque a desgraçada da doida está mesmo meio doida - sussurrou Queta. - Se calhar, não sabes? Porque quer ir para fora, porque precisa de se ir embora. Não foi por maldade. Ela já nem sabe o que faz.

 

- Pensando se eu lhe contar aquilo ele há-de sofrer - disse Ambrosio. Anuiu, fechou os olhos um momento. Abriu-os: - Vai-lhe doer, vai dar cabo dele. Pensando isso.

 

- Por causa daquele filho da puta do Lucas, aquele por quem ela se apaixonou, um tipo que está no México - disse Queta. - Tu não sabes. Escreve-lhe a dizer vem, traz dinheiro, vamo-nos casar. Ela acredita nele, está doida. Já nem sabe o que faz. Não foi por maldade.

 

- Sim - disse Ambrosio; levantou as mãos uns milímetros e tornou a enfiá-las nas pernas com ferocidade, as calças amachucaram-se-Lhe. - Magoou-o, fê-lo sofrer.

 

- O Bola de Ouro há-de compreender - disse Queta. - Foram todos uns filhos da puta para ela. O Cayo Merda, o Lucas, todos os que ela recebeu lá em casa, todos os que atendeu e...

 

- Ele, ele? - rouquejou Ambrosio e Queta calou-se; tinha as pernas prontas para se levantar e desatar a correr, mas ele não se mexeu. - Ele tratou-a mal? Pode-se saber que culpa tem ele? Ele deve-Lhe alguma coisa? Tinha alguma obrigação de a ajudar? Não lhe tem estado a dar dinheiro que chegue? E ao único que foi bom para ela faz-lhe uma maldade destas? Mas agora já não, agora acabou-se. Quero que lho diga.

 

- Já lho disse - murmurou Queta. - Não te metas nisso, quem há-de ficar a perder és tu. Quando soube que a Amalia lhe tinha contado que estava à espera dum filho teu, avisei-a. Cuidado não digas à rapariga que o Ambrosio. Cuidado não digas ao Bola de Ouro que a Amalia. Não te metas em sarilhos, não metas o nariz onde não és chamada. É assim mesmo, não é por maldade, quer levar dinheiro ao tal Lucas. Está doida.

 

- Sem ele lhe ter feito nada, só porque ele foi bom e a ajudou

- murmurou Ambrosio. - A mim não me importava assim tanto que ela tivesse contado à Amalia o que sabia de mim. Mas fazer-lhe aquilo, a ele, não. Isso era pura maldade, pura maldade.

 

- Não te importava que ela contasse à tua mulher - disse Queta, fitando-o. - Só te importa o Bola de Ouro, só te importa o paneleiro. És pior que ele. Vai-te embora daqui, anda.

 

- Mandou uma carta à esposa dele - rouquejou Ambrosio e Queta viu-o baixar a cabeça, envergonhar-se. - À senhora dele. O teu marido é isto e aquilo, o teu marido e o motorista, pergunta-lhe o que ele sente quando o preto e duas páginas assim. Â esposa dele. Diga-me cá porque é que ela fez isso.

 

- Porque está meio doida - disse Queta. - Porque se quer ir para o México e não sabe o que há-de fazer para...

 

- Telefonou-lhe para casa - rouquejou Ambrosio, e levantou a cabeça, e olhou Queta, e ela viu a demência estagnada nos olhos dele, a silenciosa ebulição. - Os teus parentes, os teus amigos, os teus filhos, vão receber a mesma carta. A mesma que a tua mulher. Os teus empregados. À única pessoa que a tratou bem, ao único que a ajudou sem ter nada que o fazer.

 

- Porque está desesperada - repetiu Queta, levantando a voz. Quer a passagem para se ir embora e. Ele que lha dê, que...

 

- Deu-lha ontem - rouquejou Ambrosio. - Toda a gente se há-de rir de ti, vou dar cabo de ti, vou-te lixar. Foi ele mesmo que lho foi levar. Não é só a passagem. Está doida, quer também cem mil soles. Está a ver? Fale você com ela. Que o deixe em paz. Diga-lhe que é a última vez.

 

- Não lhe digo nem mais uma palavra - murmurou Queta. Não me importa, não quero saber mais nada. Ela e o Bola de Ouro que se matem, se quiserem. Não me quero meter em sarilhos. Ficaste assim por o Bola de Ouro te ter despedido? Essas ameaças são para o paneleiro te perdoar aquilo da Amaha?

 

- Não faça que não percebe - disse Amalia. - Não vim para zaragatas, vim foi para conversarmos. Ele não me despediu, não foi ele que me mandou cá.

 

- Devias ter-mo dito logo ao princípio - disse D. Fermín. Tenho uma mulher, vamos ter um filho, quero casar com ela. Devias ter-me contado tudo, Ambrosio.

 

- Então, melhor para ti - disse Queta. - Não a andaste a ver tanto tempo às escondidas por medo do Bola de Ouro? Bom, pronto. Já sabe e não te despediu. A doida não fez aquilo por maldade. Não te metas mais neste assunto, eles que se arranjem.

 

- Não me pôs fora, não se encolerizou, não me ralhou - rouquejou Ambrosio. - Teve pena de mim, perdoou-me. Não vê que ela não pode fazer maldades destas a uma pessoa como ele? Não vê?

 

- Que maus bocados deves ter passado, Ambrosio, como me deves ter odiado - disse D. Fermín. - Tendo de disfarçar daquela maneira que tinhas mulher, durante tantos anos. Quantos, Ambrosio?

 

- Fazendo-me sentir um farrapo, fazendo-me sentir sei lá o quê - gemeu Ambrosio, batendo na cama com força, e Queta pôs-se de pé de um salto.

 

- Julgavas que eu ia ficar sentido contigo, pobre infeliz? - disse D. Fermín. - Não, Ambrosio. Tira a tua mulher dessa casa, tem lá os teus filhos. Podes trabalhar cá todo o tempo que quiseres. E esquece-te de Ancón e de tudo isso, Ambrosio.

 

- Ele sabe lidar contigo - murmurou Queta, dirigindo-se apressadamente para a porta. - Ele sabe o que tu és. Não vou dizer nada à Hortênsia. Diz-lhe tu. E ai de ti se tornas a pôr os pés aqui ou em minha casa.

 

- Está bem, eu vou já e não se preocupe, não faço tenção de voltar - murmurou Ambrosio, endireitando-se; Queta tinha aberto a porta e o barulho do bar entrava muito forte. - Mas peco-lhe pela última vez. Aconselhe-a, chame-a à razão. Ela que o deixe em paz para sempre, está a perceber?

 

Apenas se tinha mantido como motorista de colectivos mais três semanas, o tempo que a carripana durou. Parou de todo uma manhã, à entrada de Yarinacocha, depois de fumegar e estremecer numa brevíssima e sibilante agonia de latas e arrotos mecânicos. Levantaram a tampa do motor; tinha-se derretido. Daqui já não passa, coitada, disse D. Calixto, o dono. E a Ambrosio: logo que tenha falta dum motorista, chamo-te. Dois dias depois tinha aparecido na barraca D. Alandro Pozo, o proprietário, em som de paz: sim, já sabia, perdeste o emprego, morreu-te a mulher, andavas em maré de azar. Lamentava imenso, Ambrosio, mas ele não era a assistência, tens de te ir embora. D. Alandro prontificou-se a ficar com a cama, o berço, a mesa e o fogareiro em paga das rendas atrasadas, e Ambrosio meteu o resto das coisas numas caixas e levou-as para casa da Sr.a Lupe. Ao vê-lo tão abatido, ela arranjou-lhe café: ao menos não te preocupes com a Amalita Hortênsia, ficaria com ela entretanto. Ambrosio foi ao bairro de lata de Pantaleón e este ainda não voltara de Tingo. Chegou ao anoitecer e encontrou Ambrosio, sentado à porta da casa dele, com os pés enterrados no chão lamacento. Tentou animá-lo: claro que podia viver com ele até arranjar trabalho. Arranjaria, Panta? Bom, a verdade é que aqui era difícil, Ambrosio, porque é que não experimentava noutro sítio? Aconselhou-o a ir para Tingo ou Huánuco. Mas fazia-lhe impressão partir estando ainda tão próxima a morte de Amalia, menino, e além disso como é que ia carregar sozinho por esse mundo fora com a Amalita Hortênsia? De maneira que tinha decidido ficar em Pucallpa. Um dia ajudava a descarregar as lanchas, noutro limpava as teias de aranha e matava os ratos dos Armazéns Wong e até tinha baldeado a morgue com desinfectante, mas tudo isso apenas chegava para os cigarros. Se não fossem o Panta e a Sr.a Lupe, não comia. De maneira que, fazendo das tripas coração, um dia tinha aparecido no escritório de D. Hilário: não para armar zaragata, menino? para lhe suplicar. Estava fodido, senhor, que fizesse alguma coisa por ele.

 

- Já tenho os motoristas todos - disse D. Hilário, com um sorriso contristado. - Não posso despedir um para te contratar.

 

- Despeça o idiota da Limbo, então, senhor - pediu-lhe Ambrosio. - Quanto mais não seja, ponha-me a mim como guarda.

 

- Ao idiota não lhe pago, deixo-o só dormir lá - explicou D. Hilário. - Só se fosse maluco é que o despedia. De hoje para amanhã consegues trabalho e onde é que eu vou arranjar outro idiota que não me custe um tostão?

 

- Caiu por si só, está a perceber? - diz Ambrosio. - E aqueles recibozinhos de cem por mês que ele me mostrava, onde é que ia parar esse dinheiro?

 

Mas não lhe disse nada: escutou, anuiu, murmurou que pena. D. Hilário consolou-o com umas palmadinhas e, ao despedir-se, deu-lhe meia libra para um copo, Ambrosio. Foi comer a uma adega da Calle Comercio e comprou uma chupeta para Amalita Hortênsia. Em casa da Sr.a Lupe, esperava-o outra má notícia: do hospital tinham vindo outra vez, Ambrosio. Se não fosse pelo menos lá falar, mandavam a polícia. Foi ao hospital e a senhora da administração repreendeu-o por ter andado escondido. Mostrou-lhe os recibos e foi-Lhe explicando de que eram.

 

- Parecia que estavam a gozar comigo - diz Ambrosio. - Dois mil soles, imagine. Dois mil pelo assassínio que cometeram?

 

Mas também não disse nada: escutou com a cara muito séria, anuindo. E então?, abriu as mãos a senhora. Então ele contou-lhe as aflições em que estava, aumentando-as para a comover. A senhora perguntou-lhe: tens caixa de previdência? Ambrosio não sabia. Em que é que tinha trabalhado antes? Uns tempos como motorista de colectivos, e antes motorista dos Transportes Morales.

 

- Então, tens - disse a senhora. - Pergunta a D. Hilário o teu número de beneficiário. Com isso vais à repartição do ministério para te darem o cartão e voltas aqui com ele. Assim só terás de pagar uma parte.

 

Ele já sabia o que ia acontecer, mas tinha ido para verificar outra malandrice de D. Hilário: tinha soltado uns cacarejes, tinha olhado para ele como quem pensa és mais parvo do que pareces.

 

- Qual previdência - disse D. Hilário. - Isso é para os empregados fixos.

 

- Eu não fui motorista fixo? - perguntou Ambrosio. - Então que é que eu fui, senhor?

 

- Como é que havias de ser motorista fixo se não tens carta de profissional? - explicou-lhe D. Hilário.

 

- Claro que tenho - disse Ambrosio. - Então o que é isto aqui?

 

- Ah, mas não me disseste e a culpa não é minha - retorquiu D. Hilário. - Aliás não te declarei para te fazer um favor. Pagando-te por trabalho em vez de te incluir na lista de empregados, livrava-te dos descontos.

 

- Mas se o senhor todos os meses me descontava qualquer coisa - disse Ambrosio. - Não era para a previdência?

 

- Era para a reforma - disse D. Hilário. - Mas como já saíste da empresa, já perdeste os direitos. A lei é assim, complicadíssima.

 

- O que mais me irritava não eram as mentiras, era ele dizer-me aldrabices tão estúpidas como a da carta de profissional - diz Ambrosio. - Qual era a coisa que lhe podia doer mais? O dinheiro, claro. Aí é que eu me podia vingar dele.

 

Era terça-feira e, para a coisa dar resultado, tinha de esperar até domingo. Passava as tardes em casa da Sr.” Lupe e as noites com Pantaleón. Que seria da Amalita Hortênsia se lhe acontecesse alguma coisa, Sr.a Lupe, por exemplo, se morresse? Nada, Ambrosio, continuaria a viver com ela, já era como se fosse sua filha, aquela com que sempre sonhara. De manhã ia à praia do embarcadouro ou dava voltas pela praça, conversando com os vagabundos. No sábado à tarde viu O Raio da Montanha entrar em Pucallpa: roncando, coberta de pó, a bambolear as suas arcas e malas presas por cordas, a camioneta atravessou a Calle Comercio levantando uma nuvem de pó e parou defronte do escritório dos Transportes Morales. O motorista apeou-se, os passageiros apearam-se, descarregaram a bagagem, e, dando pontapés às pedrinhas na esquina, Ambrosio esperou que o motorista tornasse a entrar n’O Raio da Montanha e arrancasse: levava-a para a garagem do López, sim. Foi a casa da Sr.a Lupe e esteve até ao anoitecer a brincar com Amalita Hortênsia, que se tinha desabituado tanto dele que quando lhe pegava ao colo desatava a chorar. Chegou à garagem antes das oito e só estava a mulher de López: vinha buscar a camioneta, minha senhora, D. Hilário precisava dela. Ela nem se lembrou de lhe perguntar quando é que voltaste para a Morales? Apontou para um canto do terreiro: estava ali. E com gasolina e óleo e tudo o que era preciso, sim.

 

- Eu tinha pensado em atirá-la por uma ribanceira abaixo - diz Ambrosio. - Mas vi que era uma estupidez e fui com ela até Tingo. Arranjei um par de passageiros pelo caminho e isso deu-me para a gasolina.

 

Ao entrar em Tingo Maria, na manhã seguinte, hesitou um momento e depois dirigiu-se à garagem de Itipaya: o quê, voltaste para D. Hilário, negro?

 

- Roubei-a - disse Ambrosio. - Para me desforrar do que ele me roubou a mim. Venho vender-ta.

 

Itipaya tinha ficado primeiro espantado e depois desatou a rir: estás doido, amigo.

 

- Pois estou - disse Ambrosio. - Compras-ma?

 

- Uma camioneta roubada? - riu-se Itipaya. -- Para que é que a quero. Toda a gente conhece O Raio da Montanha., D. Hilário já deve ter apresentado queixa.

 

- Bom - disse Ambrosio. - Então vou atirá-la por uma ribanceira abaixo. Pelo menos vingo-me.

 

Itipaya coçou a cabeça: que tolices. Tinham discutido durante cerca de meia hora. Se a ia atirar por uma ribanceira abaixo, era preferível que servisse para qualquer coisa melhor, negro. Mas não podia dar muito por ela: tinha de a desmontar toda, vendê-la aos bocadinhos, pintar a carroçaria e mais uma data de coisas. Quanto, Itipaya, vamos lá? E, além disso o risco, negro. Quanto, anda lá?

 

- Quatrocentos soles - diz Ambrosio. - Menos que aquilo que dão por uma bicicleta usada. Mesmo à conta para chegar a Lima, menino.

 

- Eu não queria incomodar - diz Ambrosio. - Mas olhe que já é tardíssimo, menino.

 

Que mais, Zavalita, que mais? A conversa com o Chispas, pensa, mais nada. Depois da morte de D. Fermín, Ana e Santiago começavam a ir almoçar aos domingos com a D. Zoila e encontravam lá também o Chispas e Cary, Popeye e a Teté, mas depois, quando a D. Zoila se entusiasmou com a ideia de ir à Europa com a tia Eliana, que ia internar a filha mais velha num colégio da Suíça e dar uma volta de dois meses por Espanha, Itália e França, os almoços familiares acabaram, e mais tarde não recomeçaram nem recomeçaram nunca mais, pensa: que importância tinham as horas, Ambrosio, à tua saúde, Ambrosio. A D. Zoila regressou menos abatida, bronzeada pelo Verão da Europa, rejuvenescida, com as mãos cheias de presentes e a boca de anedotas. Em menos de um ano, tinha-se refeito completamente, Zavalita, retomado a sua agitada vida social, as suas canastas, as suas visitas, ou seus teleteatros e os seus chás. Ana e Santiago iam vê-la pelo menos uma vez por mês e ela obrigava-os a ficar para jantar e suas relações eram desde então distantes mas corteses, mais amistosas que familiares, e agora a D. Zoila tratava Ana com uma simpatia discreta, com um afecto resignado e leviano. Não a tinha esquecido na distribuição de lembranças europeias, Zavalita, ela também tinha tido a sua parte: uma mantilha espanhola, pensa, uma blusa de seda italiana. Nos aniversários, Ana e Santiago passavam por lá cedo e rapidamente para lhe dar um abraço, antes de chegarem as visitas, e algumas noites Popeye e Teté apareciam na Quinta dos Duendes para conversar ou para os levarem a dar uma volta de carro. O Chispas e a Cary nunca, Zavalita, mas no campeonato sul-americano de futebol tinha-te mandado de presente uma assinatura de bancada principal. Andavas atrapalhado de dinheiro e revendeste-o por metade do preço, pensa. Pensa: acabámos por encontrar a fórmula para nos darmos bem. De longe, Zavalita, com sorrisinhos, com piadinhas: a ele importava-lhe, sim senhor, menino, com sua licença. Já era tardíssimo.

 

A conversa tinha sido bastante tempo depois da morte de D. Fermín, uma semana depois de ter passado da secção de locais à página editorial da Crónica, Zavalita, uns dias antes de a Ana perder o seu emprego na clínica. Tinham-te aumentado o ordenado quinhentos soles, mudado o horário da noite para a manhã, agora é que já quase nunca verias o Carlitos, Zavalita, quando encontrara o Chispas à saída de casa da D. Zoila. Tinham conversado um momento de pé, no passeio: podiam almoçar amanhã os dois, sabichão? Com certeza, Chispas. Nessa tarde tinhas pensado, sem curiosidade, desde quando, que quereria ele. E no dia seguinte o Chispas foi buscar Santiago à Quinta dos Duendes pouco depois do meio-dia. Era a primeira vez que vinha e lá estava a entrar, Zavalita, ali o vias da janela, a hesitar, a bater à porta da alemã, vestido de café com leite com colete e com aquela camisa amarelo-canário de colarinho muito alto. E lá estava o olhar voraz da alemã a percorrer o Chispas dos pés à cabeça à medida que lhe designava a tua porta: aquela, a letra «C». E lá estava o Chispas a pisar pela primeira e última vez a casinha de Duendes, Zavalita. Deu-lhe uma palmada, viva sabichão, e tomou posse com risonha desenvoltura dos dois quartinhos.

 

- Encontraste a cavernazinha ideal, magncela - olhava para a mesinha, para a estante dos livros, para a serapilheira onde o Batuque dormia. - Um apartamento feito por medida para uns boémios como tu e a Ana.

 

Foram almoçar ao Restaurante Suizo de La Herradura. Os criados e o chefe de mesa conheciam o Chispas pelo nome, disseram-lhe umas piadas e esvoaçavam em redor dele, efusivos e diligentes, e o Chispas tinha-te obrigado a provar o cocktail de morango, a especialidade da casa, magricela, cheio de calda de açúcar e explosivo. Sentaram-se a uma mesa que dava para o molhe: viam o mar bravo, o céu coberto de nuvens de Inverno, e o Chispas sugeria-lhe ensopado à limenha para começar e para segundo prato o frango de piripiri ou o arroz de pato.

 

- A sobremesa escolho-a eu - disse o Chispas, quando o criado se afastava com a ementa escolhida. - Filhoses com manjar-branco. Cai que nem sopa no mel depois de falar de negócios.

 

- Ai vamos ralar de negócios? - perguntou Santiago.- Suponho que não me vais propor que vá trabalhar contigo. Não me estragues o almoço.

 

- Já sei que basta ouvires a palavra negócios para ficares logo com borbulhas, boémio - riu-se o Chispas. - Mas desta vez não te livras, nem que seja só um bocadinho. Trouxe-te aqui para ver se com pratos picantes e cerveja gelada engoles melhor a pílula.

 

Tornou a rir-se, agora um tanto artificialmente, e enquanto ria tinha-lhe brotado aquele fulgor de embaraço nos olhos, Zavalita, aqueles pontinhos brilhantes e inquietos: ah, magricela boémio, tinha dito duas vezes, ah, magricela boémio. Agora já não era amalucado, desclassificado, complexado e comunista, pensa. Pensa: uma coisa mais afectuosa, mais vaga, uma coisa que podia ser tudo. Magricela, boémio, Zavalita.

 

- Dá-me lá a pílula duma vez por todas, então - disse Santiago. - Antes do ensopado.

 

- Tu estás-te nas tinhas para tudo, boémio - disse o Chispas, deixando de rir, conservando um halo de sorriso na cara escanhoada; mas no fundo dos seus olhos continuava, aumentava a indisposição e aparecia o alarme, Zavalita. - Há tanto tempo que o velho morreu e nem te passou pela cabeça perguntar pelos negócios que ele deixou.

 

- Tenho confiança em ti - disse Santiago. - Sei que hás-de deixar ficar bem o nome comercial da família.

 

- Bom, vamos falar a sério - o Chispas apoiou os cotovelos na mesa, a queixada no punho e lá estava o brilho azougado, o seu pestanejar contínuo, Zavalita.

 

- Despacha-te - disse Santiago. - Previno-te que quando o ensopado chegar acabam-se os negócios.

 

- Ficaram muitos assuntos pendentes, como é lógico - disse o Chispas, baixando um pouco a voz. Olhou para as mesas vazias em redor, tossiu e falou com pausas, escolhendo as palavras com uma espécie de receio. - O testamento, por exemplo. Foi muito complicado, foi preciso seguir muitos trâmites para o tornar efectivo. Terás de ir ao notário assinar uma data de papéis. Neste país, não há nada que se faça sem burocracias, papelada, sabes como é.

 

O desgraçado não estava só confundido, pouco à vontade, pensa, estava assustado. Teria preparado com todo o cuidado aquela conversa, imaginado o que pedirias e exigirias, previsto que o ameaçarias? Teria um arsenal de explicações e demonstrações? Pensa: estavas tão envergonhado, Chispas. De vez em quando calava-se e punha-se a olhar pela janela. Era Novembro e ainha não tinham armado as barracas nem se viam banhistas na praia; alguns automóveis circulavam pelo molhe, e grupos esparsos de pessoas caminhavam em frente do mar cinzento-esverdeado e agitado. Ondas altas e barulhentas rebentavam ao longe e varriam toda a praia e havia patos brancos a planar silenciosamente sobre a espuma.

 

- Bom, o problema é este - disse o Chispas. - O velho queria deixar tudo arrumado, tinha medo que o ataque da outra vez se repetisse. Estávamos a começar, quando ele morreu. Só a começar. A ideia era evitar o imposto sucessório, a maldita papelada. Fomos dando um aspecto legal ao assunto, pondo as firmas em meu nome, com contratos simulados e trespasses, etc. Tu és suficientemente inteligente para perceberes. A ideia do velho não era deixar-me todos os negócios, de modo nenhum. Era só evitar as complicações, íamos fazer todos os trespasses e ao mesmo tempo deixar bem definidos os teus direitos e os da Teté. E os da mamã, claro.

 

O Chispas sorriu e Santiago sorriu também. Tinham acabado de trazer o ensopado, Zavalita, os pratos fumegavam e o vapor misturava-se com aquela súbita, invisível tensão, com aquela atmosfera susceptível e sobrecarregada que se instalara na mesa.

 

- O velho teve uma boa ideia - disse Santiago. - O mais lógico era pôr tudo em teu nome para evitar complicações.

 

- Tudo não - disse o Chispas, muito depressa, sorrindo, levantando um pouco as mãos. - Só o laboratório, a companhia. Só os negócios. A casa não, nem o apartamento de Ancón. Aliás, compreendes, o trespasse é mais ou menos fictício. O facto de as firmas estarem em meu nome não quer dizer que eu fique com aquilo tudo. Já está resolvida a parte da mamã, a da Teté.

 

- Então está tudo perfeito - disse Santiago. - Acabaram-se os negócios e agora vamos ao ensopado. Olha que boa cara que ele tem, Chispas.

 

Lá estava a cara dele, Zavalita, o seu pestanejar, a sua reticente incredulidade, o seu incómodo alívio e a vivacidade das suas mãos a chegar-te o pão, a manteiga, e a encher-te o copo de cerveja.

 

- Eu sei que te estou a aborrecer com isto - disse o Chispas. Mas não se pode deixar passar mais tempo. Temos de resolver também a tua situação.

 

- Que é que tem a minha situação? - perguntou Santiago. Passa-me também o piripiri.

 

- A casa e o apartamento ficariam em nome da mamã, como é lógico - disse o Chispas. - Mas ela não quer nada com o apartamento, diz que não volta a pôr os pés em Ancón. Deu-lhe para ali. Chegámos a um acordo com a Teté. Eu comprei-lhe as acções que lhe caberiam no laboratório, nas outras firmas. É como se tivesse recebido a herança, estás a perceber?

 

- Estou - disse Santiago. - Mas isso é que me aborrece extraordinariamente, Chispas.

 

- Só faltas tu - riu-se o Chipas, sem o ouvir, e pestanejou. Também entras na dança, por muito que te aborreça. E disso que temos de falar. Eu pensei que podíamos chegar a um acordo como o que fizemos com a Teté. Calculamos o que te cabe e, já que detestas os negócios, compro-te a tua parte.

 

- Mete a minha parte no eu e deixa-me comer o ensopado - disse Santiago, a rir, mas o Chispas olhava-te muito sério, Zavalita, e tiveste de te pôr sério também. - Eu fiz saber ao velho que nunca meteria a mão nos negócios dele, portanto esquece-te da minha situação e da minha parte. Eu deserdei-me a mim próprio quando saí lá de casa, Chispas. Portanto, nem acções, nem compra e acabou-se o assunto para sempre, okay?

 

Lá estava o seu pestanejar feroz, Zavalita, a sua confusão agressiva, bestial: tinha a colher no ar e um fiozinho de caldo avermelhado escorria para o prato e umas gotas salpicavam a toalha. Olhava-te entre assustado e desconsolado, Zavalita.

 

- Deixa-te de patetices - disse por fim. - Saíste lá de casa, mas continuas a ser filho do velho, não? Estou em crer que estás doido.

 

- Estou doido - disse Santiago. - Não me cabe parte nenhuma, e mesmo que me caiba não me apetece receber um centavo do velho. Okay, Chispas?

 

- Não queres acções? - disse o Chispas. - Okay. Há outra possibilidade. Discuti o assunto com a mamã e a Teté e estão de acordo. Vamos pôr o apartamento de Ancón em teu nome.

 

Santiago desatou a rir e deu uma palmada na mesa. Um criado veio perguntar o que queriam, ah, desculpe. O Chispas estava sério e parecia outra vez senhor de si mesmo, o mal-estar dos seus olhos tinha-se desvanecido e olhava-te agora com afecto e superioridade, Zavalita.

 

- Visto que não queres acções, é o mais sensato - disse o Chispas. - Elas estão de acordo. A mamã não vai lá pôr os pés, meteu-se-lhe na cabeça que odeia Ancón. A Teté e o Popeye estão a fazer uma casita em Santa Maria. Ao Popeye correm-lhe bem os negócios, agora com o Belaúnde na presidência, como sabes. Eu estou tão cheio de trabalho que não me posso dar ao luxo de veranear. De maneira que...

 

- Dá-se aos pobres - disse Santiago. - Ponto final, Chispas.

 

- Não precisas de o habitar, se Ancón te chateia - disse o Cnispas. - Vende-lo e compras um em Lima e assim viverás melhor.

 

- Não quero viver melhor - disse Santiago. - Se não acabas com a conversa, zangamo-nos, Chispas.

 

- Deixa de te portar como uma criança - insistiu o Chispas, com sinceridade, pensa. - Já és um homem, és casado, tens obrigações. Acaba lá com essa atitude ridícula.

 

Já se sentia tranquilo e seguro, Zavalita, já tinha passado o mau bocado, o susto, já te podia aconselhar e ajudar-te e dormir sossegado. Santiago sorriu-lhe e deu-lhe uma palmadinha no braço: ponto final, Chispas. O chefe de mesa veio, afanoso e desanimado, perguntar qual era o defeito do ensopado: nada, estava estupendo, e tinham comido umas colheradas para o convencer de que era verdade.

 

- Vamos acabar com a discussão - disse Santiago. - Passámos a vida à bulha e agora damo-nos bem, não é verdade, Chispas? Bom, continuemos assim. Mas nunca mais toques neste assunto, okay?

 

A sua cara aborrecida, desconcertada, arrependida, tinha sorrido lastimosamente, Zavalita, e tinha encolhido os ombros, feito uma careta de espanto ou comiseração final e tinha-se calado por momentos. Mal provaram o arroz de pato e o Chispas esqueceu-se das filhoses com manjar-branco. Trouxeram a conta, o Chispas pagou, antes de entrarem no automóvel, encheram os pulmões de ar húmido e salgado, trocando frases banais acerca das ondas e de umas raparigas que iam a passar e de um carro de corrida que atravessou a rua a roncar. No caminho para Miraflores, não trocaram uma palavra. Ao chegar à Quinta dos Duendes, quando Santiago tinha já tirado uma perna do automóvel, o Chispas agarrou-lhe no braço:

 

- Nunca te hei-de perceber, sabichão - e pela primeira vez nesse dia a sua voz era tão sincera, pensa, tão emocionada. - Que diabo queres tu ser na vida? Porque é que fazes todos os possíveis por te lixares a ti próprio?

 

- Porque sou um masochista - sorriu-lhe Santiago. - Chau, Chispas, cumprimentos à velha e à Cary.

 

- Tu lá sabes das tuas maluqueiras - disse o Chispas, sorrindo-Lhe também. - Só quero que saibas que, se alguma vez precisares...

 

- Eu sei, eu sei - disse Santiago. - Agora põe-te a mexer, anda, que eu vou dormir uma sesta. Chau, Chispas.

 

Se não tivesses contado à Ana, terias poupado muitas questões, pensa. Cem, Zavalita, duzentas. Era a vaidade que te tinha fodido?, pensa. Pensa: olha como o teu marido é orgulhoso, amor, recusou-Lhes tudo, amor, mandou-os para o caralho mais as acções e as casas, amor. Julgavas que ela te ia admirar, Zavalita, querias? la-to atirar à cara, pensa, ia-to reprovar cada vez que o ordenado se acabasse antes do fim do mês, cada vez que fosse preciso ficar a dever na mercearia ou pedir dinheiro emprestado à alemã. Pobre Anita, pensa, pobre Zavalita.

 

- Já se fez tardíssimo, menino - insiste Ambrosio uma vez mais.

 

- Um bocadinho mais adiante, estamos quase a chegar - disse Queta, e pensou: tantos operários. Seria a saída das fábricas? Sim, tinha escolhido a pior hora. As sereias tocavam e uma tumultuosa maré humana cobria a avenida. O táxi seguia devagar, toureando as silhuetas, muitas caras colavam-se às janelas e olhavam para ela. Assobiavam-lhe, diziam-lhe que boa, senhores, faziam caretas obscenas. As fábricas sucediam-se às travessas, as travessas às fábricas, e por cima das cabeças Queta via as fachadas de pedra, os telhados de zinco, as colunas de fumo das chaminés. De vez em quando e ao longe, as árvores das quintas que a avenida rompia: é aqui. O táxi parou e ela apeou-se. O motorista olhava-a nos olhos, com um sorriso irónico nos lábios.

 

- O que é que tem tanta piada? - perguntou Queta. - Tenho duas bocas, quatro narizes?

 

- Não te armes em princesa ofendida - disse o motorista. - São dez soles, por ser para ti.

 

Queta deu-lhe o dinheiro e virou-lhe as costas. Ao empurrar a pequena porta embutida na descorada parede cor-de-rosa, ouviu o motor do táxi que se afastava. Na poltrona de couro do corredor encontrou Robertito, a limpar as unhas. Olhou-a com os seus olhos pretíssimos:

 

- Olá, Quetita - disse, com uma entoação zombeteira. - Já sabia que vinhas hoje. A senhora está à tua espera.

 

Nem sequer como te sentes ou já estás boa, pensou Queta, nem sequer um aperto de mão. Entrou no bar e antes da cara viu os dedos de afiladas unhas prateadas da D. Ivonne, o anel que espalhava cintilações e a lapiseira com que estava a escrever a direcção num envelope.

 

- Boa tarde - disse Queta. - Muito prazer em voltar a vê-la. A D. Ivonne sorriu-lhe sem afecto, à medida que a examinava em silêncio dos pés à cabeça.

 

- Ora até que enfim que voltaste - disse, por fim. - Imagino os maus bocados que deves ter passado.

 

- Mais ou menos - disse Queta, e calou-se e sentiu as picadas das injecções nos braços, o frio da sonda entre as pernas, ouviu a sórdida discussão das vizinhas de cama e viu o enfermeiro de pêlos eriçados a agachar-se para recolher o bacio.

 

- Foste ao doutor Zegarra? - perguntou a D. Ivonne. - Deu-te o certificado?

 

Queta anuiu. Tirou da carteira um papel dobrado e estendeu-lho. Num mês puseste-te um cavaco, pensou, pintas-te o triplo e já nem vês. A D. Ivonne lia o papel com atenção e muito esforço, mantendo-o quase junto aos olhinhos franzidos.

 

- Bem, já estás boa - a D. Ivonne voltou a examiná-la de cima a baixo e fez um gesto desanimado. - Mas magra que nem um cão. Tens de engordar, têm de te voltar as cores. Para já, tira a roupa que tens vestida. Põe-na de molho. Não trouxeste nenhuma para mudar? A Malvina que te empreste qualquer coisa. Imediatamente, não vás estar cheia de micróbios. Os hospitais estão cheios de micróbios.

 

- O meu quarto é o mesmo de antigamente, minha senhora? perguntou Queta e pensou: não me vou zangar, não te dou esse prazer.

 

- Não, é o do fundo - disse a D. Ivonne. - E toma um banho de água quente. Ensaboa-te bem, pelo sim pelo não.

 

Queta anuiu. Subiu ao segundo andar com os dentes cerrados, olhando sem ver a mesma alcatifa escarlate com as mesmas nódoas e as mesmas queimaduras de fósforos e cigarros. No sofá viu Malvin.T, que lhe abria os braços: Quetita! Abraçaram-se, beijaram-se nas faces.

 

- Que bom já estares curada, Quetita - disse Malvina. - Eu quis ir visitar-te, mas a velha assustou-me. É perigoso, é contagioso, ainda apanhas uma doença, assustou-me. Telefonei-te uma data de vezes, mas diziam-me que só as que pagam é que têm telefone. Recebeste os embrulhinhos?

 

- Obrigadíssima, Malvina - disse Queta. - O que mais te agradeço são as coisas de comer. A comida de lá era uma porcaria.

 

- Estou tão satisfeita por teres vindo - repetiu Malvina, sorrindo-lhe. - Fiquei com uma raiva quando te pegaram essa porcaria, Quetita! O mundo está cheio de sacanas. Há tanto tempo que não nos víamos, Quetita.

 

- Um mês - suspirou Queta. - Para mim é como se fossem dez, Malvina.

 

Despiu-se no quarto de Malvina, foi ao quarto de banho, encheu a banheira e meteu-se na água. Estava a ensaboar-se quando viu a porta abrir-se e assomar o perfil, a silhueta de Robertito: podia-se entrar, Quetita?

 

- Não podes - disse Queta, de mau modo. - Vai-te embora, anda, sai.

 

- Importas-te que eu te veja nua? - riu-se Robertito. - Importas-te?

 

- Importo - disse Queta. - Não te dei licença. Fecha a porta. Ele desatou a rir, entrou e fechou a porta: então ficava, Quetita,

 

ele era do contra. Queta mergulhou na banheira até ao pescoço. A água estava escura e cheia de espuma.

 

- Que suja que tu estavas, deixaste a água preta - disse Robertito. - Há quanto tempo é que não tomavas banho?

 

Queta riu-se: desde que tinha entrado no hospital, um mês! Robertito tapou o nariz e fez uma careta de nojo: pff, porca. Depois sorriu-lhe com amabilidade e deu uns passos em direcção à banheira: estava contente por estar de volta? Queta acenou com a cabeça: claro que sim. A água agitou-se e os seus ombros ossudos vieram à superfície.

 

- Queres que te conte um segredo? - perguntou, apontando para a porta.

 

- Conta, conta - disse Robertito. - Gosto imenso de intrigas.

 

- Estava com medo de que a velha me pusesse fora - disse Quetita. - Por causa daquela mania dos micróbios.

 

- Terias de ir para uma casa de segunda, terias baixado de categoria - disse Robertito. - Que fazias tu se ela te pusesse fora?

 

- Estava tramada - disse Queta. - Uma de segunda ou terceira ou sabe Deus o quê.

 

- A senhora é ooa pessoa - disse Robertito. - Cuida do negócio contra ventos e marés e tem razão. A ti tratou-te bem, tu bem sabes que às que se esquentam da maneira como tu te esquentaste nunca mais as aceita.

 

- Porque eu a fiz ganhar bom dinheiro - disse Queta. - Porque ela também me deve muito a mim.

 

Tinha-se sentado e estava a ensaboar os seios. Robertito apontou-os com o dedo: livra, que caídos que estavam, Quetita, estavas tão magra. Ela concordou: tinha perdido quinze quilos no hospital, Robertito. Então tinhas de engordar, Quetita, se não nunca mais fazias uma boa conquista.

 

- A velha disse-me que pareço um cão - disse Queta. - Lá no hospital não comia quase nada, só quando recebia os embrulhinhos da Malvina.

 

- Agora podes-te desforrar - riu-se Robertito. - Comendo como uma loba.

 

- Devo ter o estômago contraído - disse Queta, fechando os olhos e mergulhando na banheira. - Ah, que maravilha, a água quente.

 

Robertito aproximou-se, limpou a borda da banheira com a toalha e sentou-se. Pôs-se a olhar para Queta com uma picardia maliciosa e risonha.

 

- Queres que eu também te conte um segredo? - perguntou baixando a voz e abrindo os olhos escandalizados dp seu próprio atrevimento. - Queres?

 

- Sim, conta-me os mexericos da casa - disse Queta. - Qual é o último?

 

- A semana passada fui com a senhora visitar o teu ex - Robertito tinha levado um dedo aos lábios, as pestanas adejavam-lhe. O ex da tua ex, quero eu dizer. Só te digo que se portou como um patifório, como aquilo que é.

 

Queta abriu os olhos e endireitou-se na banheira: Robertito limpava umas gotas que lhe tinham salpicado as calças.

 

- O Cayo Merda? - perguntou Queta. - Não acredito. Está cá em Lima?

 

- Voltou ao Peru - disse Robertito. - O caso é que tem uma casa em Chaclacayo com piscina e tudo. E uns canzarrões que parecem tigres.

 

- Mentira - disse Queta, mas baixou a voz porque Robertito lhe fazia sinais para não falar tão alto. - Voltou, a sério?

 

- Uma casa lindíssima, no meio dum jardim enorme - disse Robertito. - Eu não queria ir. Disse à senhora que não íamos lá fazer nada, que ia ter uma decepção, mas ela não me deu atenção. Sempre a pensar no negócio, aquela. Ele tem capital, ele sabe que eu não deixo os meus sócios ficarem mal, fomos amigos. Mas tratou-nos como se fôssemos dois mendigos e pôs-nos fora. O teu ex, Quetita, o ex da tua ex. Que patifório que ele me saiu.

 

- Ele vai ficar no Peru? - perguntou Queta: - Voltou para se tornar a meter na política?

 

- Disse que vinha só de passeio - Robertito encolheu os ombros. - Imagina como ele deve andar recheado. Uma casa daquelas para vir de passeio. Vive nos Estados Unidos. Só te digo que está igualzinho. Velho, feio e antipático.

 

- Não lhes perguntou nada da? - perguntou Queta. - Deve-Lhes ter dito alguma coisa, não?

 

- Da Musa? - perguntou Robertito. - Um patifório, só te digo isto, Quetita. A senhora falou-lhe dela, fez-nos muita pena o que lhe aconteceu, coitada, já deve saber. E ele nem se alterou. A mim nem por isso, disse ele, eu já sabia que ela havia de acabar mal. E então perguntou-nos por ti, Quetita. Sim, sim. Coitada, está no hospital, imagine. E sabes tu o que ele disse?

 

- Se disse isso da Hortênsia, imagino o que teria dito de mim disse Queta. - Anda, não me deixes curiosa.

 

- Pelo sim, pelo não, digam-lhe que não lhe dou um tostão, que já lhe dei o suficiente - riu-se Robertito. - Que se fosses lá cravá-Io, os cães para alguma coisa haviam de servir. Por estas palavras, Quetita, pergunta à senhora e verás. Mas não, nem lhe fales nele. Ficou tão fora de si, com a maneira como ele a tratou, que nem quer ouvir falar no seu nome.

 

- Um dia ele há-de pagá-las - disse Queta. - Não se pode ser tão sacana e viver tão feliz.

 

- Pois ele pode, para alguma coisa lhe há-de servir o dinheiro disse Robertito; desatou outra vez a rir e inclinou-se ligeiramente para Queta. Baixou a voz: - Sabes o que ele disse quando a senhora lhe propôs um negociozinho? Riu-se-lhe na cara. Você julga que os negócios de putas me podem interessar, Ivonne? Que agora só lhe interessavam os negócios decentes. E logo a seguir disse-nos já sabem onde é a porta, não quero tornar a ver-lhes a cara por aqui. Por estas palavras, juro-te. Estás doida, de que é que estás a rir?

 

- De nada - disse Queta. - Passa-me a toalha, a água já esfriou e estou a gelar.

 

- Se quiseres também te posso limpar - disse Robertito. - Sempre às ordens, Quetita. Sobretudo agora, que estás mais simpática. Já não tens as vaidades de antigamente.

 

Queta levantou-se, saiu da banheira e caminhou em pontas dos pés, escorrendo gotas para cima dos mosaicos esborcelados. Pôs uma toalha à cintura e outra pelos ombros.

 

- Nada de barriga e as pernas sempre bem feitas - riu-se Robertito. - Vais procurar o ex da tua ex?

 

- Não, mas se alguma vez o encontrar, arrepende-se - disse Queta. - Do que lhes disse da Hortênsia.

 

- Como é que o hás-de encontrar? - riu-se Robertito. - Está muito alto para ti.

 

- Porque é que me vieste contar isso? - perguntou subitamente Queta, deixando de se limpar. - Vai-te embora, anda, sai daqui.

 

- Para ver com tu ficavas - riu-se Robertito. - Não te zangues, para veres como eu sou teu amigo vou-te dizer outro segredo. Sabes porque é que entrei? Porque a senhora me disse que viesse ver se tomavas mesmo banho.

 

Tinha vindo desde Tingo Maria em lanços curtos, pelo sim, pelo não: de camião até Huánuco, onde passara uma noite fechado num quartinho de hotel, depois de autocarro até Huancayo, e dali para Lima de comboio. Ao atravessar a cordilheira, a altitude tinha-lhe provocado enjoos e palpitações, menino.

 

- Fazia só dois anos e picos que tinha saído de Lima quando voltei - diz Ambrosio. - Mas que diferença! A última pessoa a quem podia pedir ajuda era o Ludovico. Era ele que me tinha mandado para Pucallpa, era ele que me tinha recomendado ao seu parente D. Hilário, está a perceber? E, se não lhe pedisse a ele, a quem é que havia de pedir?

 

- Ao meu pai - diz Santiago. - Porque é que não foste ter com ele, como é que não te lembraste disso?

 

- Quer dizer, não é que não me tivesse lembrado - diz Ambrosio. - O menino deve compreender.

 

- Não compreendo, não - diz Santiago. - Não dizes que o admiravas tanto, não dizes que ele te estimava tanto? Ele ter-te-ia ajudado. Não te lembraste disso?

 

- Eu não ia meter o seu paizinho em complicações, precisamente porque o admirava tanto - diz Ambrosio. - O menino veja quem ele era e quem eu era. Ia-lhe contar que andava fugido, que era ladrão, que a polícia andava à minha procura por eu ter vendido um camião que não era meu?

 

- Tinhas mais confiança com ele do que comigo, não é verdade? - pergunta Santiago.

 

- Um homem, por mais lixado que esteja, tem o seu orgulho diz Ambrosio. - D. Fermín tinha boa impressão de mim. Eu estava arruinado, feito um farrapo, está a perceber?

 

- E porquê a mim? - pergunta Santiago. - Porque é que não tiveste vergonha de me contar a história do camião?

 

- Talvez seja porque já nem orgulho me resta - diz Ambrosio.

 

- Mas, nessa altura, ainda o tinha. Além disso, o menino não é o seu paizinho.

 

Os quatrocentos soles de Itipaya tinham voado com a viagem e durante os três primeiros dias em Lima não tinha comido. Vagabundeara sem parar, afastando-se das ruas da baixa, sentindo os ossos gelados cada vez que divisava um polícia e lembrando-se de nomes e eliminando-os: Ludovico nem pensar, Hipólito devia estar ainda na província ou, se tivesse voltado, devia estar a trabalhar com Ludovico, Hipólito nem pensar, ele nem pensar. Não tinha pensado em Amalia, nem em Amalita Hortênsia nem em Pucallpa: só na polícia, só em comer, só em fumar.

 

- Imagine que nunca teria tido coragem para pedir esmola para comer - diz Ambrosio. - Mas para fumar sim.

 

Quando não podia mais, abeirava-se de um tipo qualquer na rua e pedia-lhe um cigarro. Tinha feito de tudo um pouco, contanto que não fosse trabalho fixo e não lhe pedissem papéis: descarregar camiões no Porvenir, queimar lixo, arranjar gatos e cães vadios para as feras do Circo Cairoli, desentupir esgotos, e até tinha sido ajudante de um amolador. Às vezes, nos molhes do Callao, substituía por umas horas qualquer estivador contratado, e, embora a comissão fosse alta, dava-lhe para comer dois ou três dias e pronto. Um dia tinham-lhe passado palavra: os odriistas precisavam de tipos para colar cartazes. Tinha lá ido, passara uma noite inteira a besuntar as ruas da baixa, mas só lhes tinham pago com comida e bebida. Nesses meses de vadiagem, de fome, de caminhadas e biscates que duravam um dia ou dois, tinha conhecido o Pancras. Ao princípio tinha dormido na Parada, debaixo dos camiões, em valas, em cima dos fardos dos armazéns, sentindo-se protegido, escondido entre tantos mendigos e vadios que lá dormiam, mas uma noite tinha ouvido dizer que de vez em quando apareciam rondas da polícia a pedir papéis. Começara então a internar-se no mundo dos bairros de lata. Tinha-os conhecido todos, dormido hoje num, amanhã noutro, até que naquele da Perla tinha encontrado o Pancras e por lá se ficara. O Pancras vivia sozinho e arranjou-lhe lugar na barraca.

 

- A primeira pessoa que me tratou bem desde sei lá quando diz Ambrosio. - Sem me conhecer nem ter obrigação nenhuma. Um coração de ouro, aquele mulato, é só o que lhe digo.

 

O Pancras trabalhava no canil havia anos, e quando se tornaram amigos tinha-o levado um dia ao administrador: não, não havia vagas. Mas uns tempos depois mandou-o chamar. O problema era que lhe tinha pedido papéis: caderneta eleitoral, militar, certidão de nascimento? Tinha sido obrigado a mentir: perdi-as. Ah, então nicles, sem papéis não há emprego. Ora, não sejas parvo, tinha-lhe dito o Pancras, quem é que se vai lembrar daquele camião, vai lá mostrar -Lhe os papéis. Ele tinha tido medo, é melhor não ir, Pancras, e continuara com aqueles trabalhinhos às escondidas. Por essa altura tinha voltado à terra, Chincha, menino, pela última vez. Para quê? Com a intenção de arranjar outros papéis, de arranjar algum padreco que o baptizasse outra vez e com outro nome, e também por curiosidade, para ver como a terra estava. Tinha-se arrependido de ter lá ido, afinal. Saíra cedo da Perla com o Pancras e tinham-se despedido na Dos de Mayo. Ambrosio tinha seguido pela Colmena até ao Parque Universitário. Foi perguntar os preços dos autocarros, comprou bilhete E ara um que saía às dez, de maneira que teve tempo de beber um ca: com leite e dar uma voltinha. Andou a ver as montras da Avenida Iquitos, a pensar se havia de comprar uma camisa para voltar a Chincha mais apresentável do que tinha saído, quinze anos atrás. Mas já só tinha cem soles e não teve coragem. Comprou um tubo de pastilhas de mentol e durante toda a viagem sentiu aquela frescura perfumada nas gengivas, no nariz e no palato. Mas no estômago sentia cócegas: que diriam aqueles que o reconhecessem ao vê-lo assim? Deviam todos ter mudado muito, alguns teriam morrido, outros teriam saído da terra, se calhar, a cidade tinha mudado tanto que nem a reconheceria. Mas assim que o autocarro parou na Plaza de Armas, embora tudo se tivesse tornado mais pequeno e mais acachapado, reconheceu tudo: o cheiro do ar, a cor dos bancos e dos telhados, as lajes triangulares do adro da igreja. Tinha-se sentido triste, tonto, envergonhado. O tempo não passara, ele não tinha saído de Chincha, ali, ao virar da esquina, devia estar o escritoriozinho dos Transportes Chincha, onde começara a sua carreira de motorista. Sentado num banco, tinha fumado, observado. Sim, alguma coisa mudara: as caras. Observava ansiosamente homens e mulheres e tinha sentido o peito a latejar com força ao ver aproximar-se uma figura cansada e descalça, com um chapéu de palha e uma bengala, a tactear o caminho: o cego Rojas! Mas não era ele, era um cego albino e ainda novo que se foi aninhar debaixo de uma palmeira. Levantou-se, começou a andar, e, quando chegou ao bairro de lata, viu que tinham pavimentado algumas ruas e construído casinhas com pequenos jardins que tinham a relva murcha. Ao fundo, onde começavam as quintas do caminho para Grocio Prado, havia agora um mar de barracas. Andara para trás e para diante nos poeirentos corredores do bairro de lata sem reconhecer nenhuma cara. Depois tinha ido ao cemitério, pensando que o túmulo da negra devia estar junto ao do Perpetuo. Mas não estava e não tivera coragem para perguntar ao guarda onde a tinham enterrado. Tinha regressado ao centro da cidade ao entardecer, desiludido, esquecido do novo baptismo e dos papéis e com fome. No café-restaurante Mi Pátria, que agora se chamava Victoria e tinha duas mulheres a atender em vez de D. Rómulo, comera um churrasco de cebola, sentado ao pé da porta, tentando reconhecer alguma cara: todas diferentes. Tinha-se lembrado de uma coisa que Trifulcio lhe dissera naquela noite, na véspera da sua partida para Lima, enquanto caminhavam às escuras: estou em Chincha e sinto que não estou, reconheço tudo e não reconheço coisa nenhuma. Agora percebia o que ele queria dizer. Tinha vadiado ainda por outros bairros: o Colégio José Pardo, o Hospital San José, o Teatro Municipal, tinham modernizado um bocadinho o mercado. Tudo igualzinho, mas mais pequenino, tudo igualzinho, mas mais acachapado, só as pessoas é que eram diferentes: tinha-se arrependido de ter lá ido, menino, tinha regressado à noite jurando que não voltaria. Já se sentia bastante lixado aqui, menino; ali, naquele dia, além de lixado, tinha-se sentido velhíssimo. E quando a raiva acabasse, acabava-se também o teu trabalho no canil, Ambrosio? Pois era, menino. E que faria depois? O que fazia antes de o administrador o ter mandado chamar pelo Pancras e lhe ter dito okay, dá-nos uma ajuda por uns dias, mesmo sem papéis. Trabalharia aqui e além, se calhar, qualquer dia havia outra epidemia de raiva e chamavam-no outra vez, e depois, bem, depois acabaria por morrer, não era, menino?

 

                                                                                Mário Vargas Llosa  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Voltar à Página do Autor