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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Convulsão / Robin Cook
Convulsão / Robin Cook

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Convulsão

                   

 

Segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2001, foi um daqueles dias de Inverno surpreendentemente quentes que profetizam falsamente a chegada da Primavera aos habitantes da costa Atlântica. O sol esteve brilhante desde o Maine até Florida Keys, com uma variação de temperatura espantosamente inferior a seis graus centígrados. Seria um dia normal, feliz para a grande maioria das pessoas que viviam neste extenso litoral, embora para dois indivíduos em particular, este dia fosse o início de uma série de acontecimentos que fariam com que as suas vidas se cruzassem tragicamente.

 

13.35

Cambridge, Massachusetts

Daniel Lowell ergueu o olhar da mensagem telefónica cor-de-rosa, que segurava na mão. Duas coisas tornavam-na única: em primeiro lugar, a pessoa que telefonara era o Dr. Heinrich Wortheim, presidente do Departamento de Química de Harvard, dizendo que queria falar com o Dr. Lowell no seu gabinete, e, em segundo lugar, o pequeno quadrado ao lado da palavra URGENTE estava marcado com um grande x. O Dr. Wortheim comunicava sempre por carta e esperava uma carta em resposta. Como um dos mais importantes químicos do mundo inteiro, que ocupava a cátedra grandiosa e muito poderosa, era excentricamente napoleónico. Era raro misturar-se directamente com a gentalha que incluía Daniel, embora este fosse chefe de um departamento que estava sob a tutela de Wortheim.

 

Hei, Stephanie! chamou Daniel do outro lado do laboratório. Viste esta mensagem telefónica na minha secretária? É do imperador. Quer falar comigo no gabinete dele.

 

Stephanie levantou os olhos do microscópio electrónico de dissecação, onde estava a trabalhar e olhou de relance para ele.

 

Isso não me parece nada bom disse ela.

 

Não lhe disseste nada, pois não?

 

Como é que eu teria a oportunidade de lhe dizer alguma coisa? Só o vi duas vezes durante toda a minha tese de doutoramento... quando a defendi e quando ele me entregou o diploma.

 

Ele deve ter alguma ideia dos nossos planos reconheceu Daniel. Suponho que não será assim tão surpreendente, tendo em conta toda a gente que convidei para fazer parte do nosso conselho consultivo.

 

Vais?

 

Não perdia isto por nada deste mundo.

 

A distância que separava o laboratório do edifício onde se situavam os gabinetes administrativos do departamento, era curta. Daniel sabia que o esperava uma espécie de confronto, mas não importava. Na verdade, aguardava-o com ansiedade.

 

No momento em que Daniel apareceu, a secretária do departamento fez-lhe sinal para que entrasse directamente no santuário de Wortheim. Encontrou o idoso laureado com o Prémio Nobel sentado à sua secretária antiga. Com cabelos brancos e rosto magro, Wortheim parecia mais velho do que os seus setenta e dois anos. Mas a sua aparência não diminuía a personalidade dominadora, que irradiava dele como um campo magnético.

 

Por favor, sente-se, Dr. Lowell convidou Wortheim, observando o recém-chegado por cima dos seus óculos de leitura de aros metálicos. A sua voz tinha um toque de sotaque alemão, apesar de ter vivido nos Estados Unidos a maior parte da vida.

 

Daniel obedeceu. Sabia que lhe pairava no rosto um sorriso leve e despreocupado, que com certeza não passaria despercebido ao director do departamento. Embora Wortheim tivesse mais de setenta anos, as suas faculdades eram tão agudas como sempre e estavam atentas a qualquer desrespeito. E o facto de ser suposto fazer uma vénia a este dinossauro, era parte do motivo por que Daniel estava tão seguro da sua decisão em abandonar a vida académica. Wortheim era inteligente, e ganhara um Prémio Nobel, mas continuava centrado na química inorgânica sintética do século passado. A química orgânica sob a forma de proteínas e os seus respectivos genes era o presente e o futuro do ramo.

 

Foi Wortheim quem quebrou o silêncio, depois de os dois homens terem olhado um para o outro.

 

Pela sua expressão, presumo que os rumores são verdadeiros.

 

Não pode ser mais específico? replicou Daniel. Queria ter a certeza de que as suas suspeitas estavam correctas. Só planeara fazer um anúncio oficial dali a um mês.

 

Tem estado a formar um conselho científico consultivo disse Wortheim. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. Um conselho consultivo só pode significar uma coisacontinuou. Parou e olhou para Daniel.Está a planear apresentar o seu pedido de demissão, e já fundou ou está prestes a fundar uma empresa.

 

Declaro-me culpado afirmou Daniel. Não conseguiu evitar que o seu ligeiro sorriso se transformasse num sorriso aberto. O rosto de Wortheim ficara profundamente ruborizado. Indubitavelmente, Wortheim comparou a situação com o comportamento traiçoeiro de Benedict Arnold durante a Guerra Revolucionária Americana.

 

Comprometi-me publicamente quando o senhor foi contratado lançou-lhe Wortheim. Até mandámos construir o laboratório que exigiu.

 

Eu não vou levar o laboratório comigo retorquiu Daniel. Não podia acreditar que Wortheim estava a tentar fazê-lo sentir-se culpado.

 

A sua falta de respeito é de bradar aos céus.

 

Eu podia pedir desculpa, mas não estaria a ser sincero. Wortheim voltou para a secretária.

 

A sua saída vai deixar-me numa posição difícil perante o presidente da universidade.

 

Lamento que isso aconteça disse Daniel. E digo isto com toda a sinceridade. Mas este género de mistificação burocrática faz parte do motivo por que não vou sentir a falta da vida académica.

 

Que mais?

 

Estou cansado de sacrificar o meu tempo de investigação a ensinar.

 

O seu número de horas lectivas é um dos menos onerosos do departamento. Negociámos isso quando entrou para os quadros da universidade.

 

Mesmo assim, afasta-me da minha investigação. Mas esse também não é o problema principal. Eu quero colher os benefícios do que a minha criatividade produziu. Ganhar prémios e publicar artigos em revistas científicas não basta.

 

O doutor quer ser uma celebridade.

 

Suponho que é uma forma de ver a coisa. E o dinheiro também vai ser agradável. Por que não? Pessoas com metade da minha capacidade conseguiram-no.

 

Já leu Arrowsmith, de Sinclair Lewis?

 

Não tenho muito tempo para ler romances.

 

Talvez devesse arranjar tempo sugeriu Wortheim. É possível que o fizesse repensar esta decisão antes que ela seja irreversível.

 

Já pensei muito no assunto declarou Daniel. Acho que é a opção certa para mim.

 

Gostaria de conhecer a minha opinião?

 

Acho que sei qual é a sua opinião.

 

Penso que vai ser um desastre para nós dois, mas principalmente para si.

 

Obrigado pelo encorajamento disse Daniel. Levantou-se. Vemo-nos no campus depois saiu.

 

17.17

Washington D. C.

Obrigado a todos por terem vindodeclarou o senador Ashley Butler com o seu cordial e habitual sotaque sulista. Com um sorriso estampado no rosto pastoso, estendeu a mão a um grupo de homens e mulheres de expressões ansiosas que se levantaram de um salto no momento em que ele entrou na pequena sala de conferências do seu gabinete do Senado, juntamente com o seu assessor. Os visitantes estavam agrupados à volta da mesa central em carvalho. Eram representantes de uma pequena organização empresarial da capital do Estado que o senador representava, e tinham-se juntado para que houvesse uma diminuição dos impostos, ou talvez fosse por causa da redução dos seguros. O senador não se lembrava ao certo do que era, e não constava do seu plano como deveria constar. Tomou nota mentalmente para falar sobre o lapso com a sua chefe de gabinete.

 

Peço imensa desculpa pelo atraso continuou ele, depois de apertar energicamente a mão da última pessoa. Tenho aguardado este encontro com expectativa, e queria chegar mais cedo, mas tem sido um dia complicadíssimo - revirou os olhos para dar ênfase às palavras. Infelizmente, devido à hora e a outra reunião urgente, não posso ficar. Tenho imensa pena, mas aqui o Mike é óptimo.

 

O senador deu ao assessor encarregue de se encontrar com o grupo uma palmada no ombro, impelindo o jovem para a frente até as coxas deste estarem encostadas à mesa.


Mike é o melhor que tenho, e vai escutar os vossos problemas e depois informa-me de tudo. Tenho a certeza de que poderemos ajudar, e queremos ajudar.

 

O senador deu mais uma série de pequenas palmadas no ombro de Mike, ao mesmo tempo que lhe dirigia um sorriso de admiração, como um pai orgulhoso na licenciatura do filho.

 

Em coro, os visitantes agradeceram ao senador por tê-los recebido, especialmente tendo em conta o seu horário exigente. Sorrisos zelosos definiam cada um e todos os rostos. Se as pessoas ficaram desapontadas com a brevidade do encontro e com o facto de terem tido de esperar quase meia hora, não o mostraram de forma alguma.

 

O prazer foi meu declarou Ashley, efusivamente. Nós estamos aqui para vos servir.

 

Ashley voltou-se e preparou-se para sair. Ao chegar à porta, acenou. Os visitantes do seu Estado natal responderam da mesma forma.

 

Foi fácil murmurou Ashley para Carol Manning, a sua chefe de gabinete, que seguira o patrão desde a sala de conferências. Estava com receio de que eles me moessem o juízo com uma litania de histórias tristes e exigências absurdas.

 

Pareciam boas pessoas disse Carol vagamente.

 

Achas que Mike consegue tratar do assunto?

 

Não sei disse Carol. Não está aqui à tempo suficiente para eu ter uma ideia formada sobre ele.

 

Seguindo em frente, o senador percorreu o comprido corredor para o seu gabinete particular. Olhou rapidamente para o relógio. Eram cinco e vinte da tarde.

 

Presumo que te lembras onde é que me vais levar agora.

 

Claro declarou Carol. Vamos voltar ao gabinete do Dr. Whitman.

 

O senador lançou um olhar de censura na direcção de Carol enquanto levava o dedo indicador aos lábios.

 

Isso não é suposto ser do conhecimento público sussurrou ele, irritado.

 

Ao passar pela sua secretária, Dawn Shackelton, e sem lhe prestar a menor atenção, Ashley agarrou nos papéis que ela tinha na mão e entrou no seu gabinete particular. Os papéis incluíam uma agenda preliminar para o dia seguinte, juntamente com uma lista dos telefonemas recebidos durante o tempo que ele estivera no Capitólio para uma votação, e também a transcrição de uma entrevista de improviso com alguém da CNN, que o encurralara no átrio.

 

É melhor ir buscar o meu carro disse Carol, depois de olhar para o relógio.Temos de estar no consultório do médico às seis e meia, e não faço ideia de como estará o trânsito.

 

Boa ideia disse Ashley, passando para o outro lado da sua secretária, enquanto dava uma vista de olhos à lista de telefonemas.

 

Quer que o apanhe na esquina da C com a Second?

 

Ashley limitou-se a resmungar uma resposta afirmativa. Havia uma série de telefonemas importantes, provenientes dos directores de várias das suas muitas comissões de acção política. Na sua opinião, a angariação de fundos era a parte mais importante do seu trabalho, especialmente porque teria de financiar uma campanha de reeleição de Novembro a um ano. Ouviu a porta fechar-se atrás de Carol. Pela primeira vez em todo o dia, o silêncio desceu sobre ele. Ergueu os olhos. Igualmente pela primeira vez em todo o dia, estava sozinho.

 

Instantaneamente, a ansiedade que sentira ao acordar naquela manhã espalhou-se como um incêndio incontrolável. Sentiu-a desde a boca do estômago até às pontas dos dedos. Nunca gostara de ir ao médico. Em criança, era o simples medo de uma injecção ou de alguma outra experiência dolorosa ou embaraçosa. Mas à medida que fora ficando mais velho, o medo mudara e tornara-se mais poderoso e perturbador. Ir ao médico tornara-se um aviso nada bem-vindo da sua mortalidade e do facto de que já não era uma criança. Agora, era como se o simples acto de ir ao médico aumentasse as suas hipóteses de ter de enfrentar um diagnóstico terrível como cancro ou, pior ainda, ALS também conhecida por Doença de Lou Gherig.

 

Alguns anos antes, fora diagnosticada ALS a um dos irmãos de Ashley depois de este ter revelado alguns sintomas neurológicos vagos. Após o diagnóstico, o homem que possuía um corpo forte e atlético e uma figura muito mais saudável do que Ashley ficara rapidamente entrevado, e morrera passados poucos meses. Os médicos não tinham podido fazer nada.

 

Ashley pousou distraidamente os papéis em cima da secretária e olhou para o ar. Também ele começara a sentir alguns sintomas neurológicos vagos um mês antes. A princípio, limitara-se a menosprezá-los, atribuindo o seu aparecimento à tensão do trabalho, ou ao hábito de beber demasiado café, ou a não ter tido uma boa noite de sono. Os sintomas intensificavam-se e enfraqueciam, mas nunca desapareceram completamente. Na verdade, lentamente, pareceram piorar. O mais perturbador era o tremor intermitente da mão esquerda. Em algumas ocasiões, até precisara de a segurar com a mão direita para evitar que as pessoas reparassem. E depois era a sensação de areia nos olhos, que os fazia encherem-se de lágrimas de uma forma embaraçosa. E, por fim, uma sensação ocasional de rigidez que podia tornar o acto de se levantar e começar a andar, um esforço mental e físico.

 

Uma semana atrás, o problema levara-o finalmente a ir ao médico, apesar da relutância supersticiosa que sentia em relação a esta classe. Não foi a Walter Reed nem ao Centro Médico Naval Nacional em Bethesda. Tinha demasiado receio de que os órgãos de informação descobrissem que havia algum problema. Ashley não precisava desse género de publicidade. Após quase trinta anos no Senado, tornara-se muito poderoso e uma força a ter em conta, apesar da reputação de obstrucionista que contrariava regularmente os ditames do seu partido. Na verdade, com a sua militância e consistência em diversos assuntos fundamentalistas e populistas como o direito dos Estados e a oração nas escolas, e a sua acção de oposição ao aborto, conseguira gorar directivas partidárias enquanto desenvolvia um eleitorado nacional cada vez maior. A reeleição para o Senado não constituiria um problema com aquela máquina política bem oleada. O objectivo de Ashley era candidatar-se à Casa Branca em 2004. A última coisa que desejava era alguém a especular ou a lançar rumores sobre a sua saúde.

 

Depois de ter ultrapassado a relutância em procurar uma opinião médica, Ashley consultou um clínico geral particular na Virgínia, o qual já consultara no passado e em cuja discrição podia confiar. O clínico geral, por sua vez, recomendou-lhe de imediato o Dr. Whitman, um neurologista.

 

O Dr. Whitman fora reservado, embora ao ouvir os receios específicos de Ashley tivesse dito que duvidava que o problema estivesse relacionado com a ALS. Depois de o examinar minuciosamente e de o mandar fazer alguns exames, incluindo uma ressonância magnética, o Dr. Whitman não fizera um diagnóstico mas dera-lhe uma receita, para ver se lhe minorava os sintomas. De seguida, marcara uma consulta a Ashley para dali a uma semana, quando já teria os resultados de todos os exames. Dissera que pensava poder fazer um diagnóstico nessa altura. Era esta consulta que Ashley ia ter agora.

 

Ashley passou uma mão pela testa. Formara-se aí algum suor, apesar de a sala estar fresca. Sentia a pulsação acelerada. E se, afinal de contas, tivesse ALS? E se tivesse um tumor cerebral? Quando era senador estadual no começo da década de 1970, um dos seus colegas tivera um tumor cerebral. Ashley tentou em vão recordar quais tinham sido os sintomas do homem, mas não conseguiu. Só conseguia lembrar-se de ver o homem a tornar-se uma sombra do que fora, antes de morrer.

 

A porta da antessala chiou ao ser aberta. A cabeça cuidadosamente penteada de Dawn espreitou.

 

Carol acabou de ligar pelo telemóvel. Vai estar no lugar que combinaram dentro de cinco minutos.

 

Ashley acenou afirmativamente e levantou-se. Felizmente, não sentiu qualquer dificuldade. O facto de a medicação que o Dr. Whitman lhe dera ter, aparentemente, operado milagres era a única coisa boa em tudo aquilo. Os sintomas preocupantes tinham desaparecido por completo, com excepção de um pequeno tremor nas mãos, pouco antes da hora da dose seguinte. Se o problema podia tratar-se tão facilmente, talvez não devesse preocupar-se demasiado. Pelo menos, foi disso que tentou convencer-se.

 

Carol chegou precisamente à hora combinada, como Ashley esperava. Trabalhava com ele há dezasseis dos dezanove anos da sua carreira senatorial e demonstrara a sua confiança, a sua dedicação e lealdade vezes sem conta. Enquanto se dirigiam para Virgínia, ela tentou aproveitar o tempo para falar sobre os acontecimentos do dia e sobre o que deviam esperar no dia seguinte, mas depressa percebeu o nível da preocupação de Ashley e calou-se. Em vez de falar, concentrou-se no tráfego infernal.

 

A ansiedade de Ashley cresceu à medida que se aproximavam do consultório do médico. Quando saiu do carro, a transpiração tinha reaparecido. Ao longo dos anos, Ashley aprendera a escutar a sua intuição, e esta estava a disparar campainhas de alarme. Havia alguma coisa errada no seu cérebro, e ele sabia-o, e sabia que estava a tentar negá-lo.

 

A consulta fora marcada segundo a conveniência de Ashley para depois das consultas regulares do médico, e na sala de espera vazia pairava uma imobilidade sepulcral. A única luz provinha de um pequeno candeeiro de secretária que criava uma mancha difusa de iluminação na secretária vazia da recepcionista. Ashley e Carol pararam por momentos, sem saberem muito bem o que fazer. Depois, uma porta interior abriu-se, inundando o espaço com uma forte luz fluorescente. Na soleira da porta, delineava-se a silhueta sem forma do Dr. Whitman, iluminada a contraluz.

 

Peço desculpa por este acolhimento inospitaleiro disse o Dr Whitman, mas já foram todos para casa; premiu um interruptor de parede. Tinha uma bata branca vestida. O seu comportamento era muito profissional.

 

Não precisa de se desculpar replicou Ashley. Nós apreciamos a sua discrição; observou o rosto do médico, com esperança de ver a sua expressão a suavizar-se em algo que pudesse interpretar como um sinal auspicioso. Não viu nenhuma.

 

Por favor, venha para o meu consultório, Senador. O Dr. Whitman apontou para o interior. Sr.a Manning, agradeço que espere aqui fora.

 

O consultório do médico era um exemplo de limpeza compulsiva. O mobiliário consistia numa secretária com duas cadeiras para os pacientes. Os objectos em cima da secretária estavam todos cuidadosamente alinhados, enquanto os livros na estante estavam organizados de acordo com o tamanho.

 

O Dr. Whitman apontou para uma das cadeiras antes de se sentar atrás da secretária. Com os cotovelos no tampo, tamborilou com os dedos. Depois de Ashley estar sentado, olhou para ele. Seguiu-se uma pausa plena de significado.

 

Ashley nunca se sentira tão desconfortável. A ansiedade atingira a intensidade máxima. Ashley passara a maior parte da sua vida em busca de poder, e obtivera-o para além dos seus sonhos mais desmedidos. No entanto, naquele momento, estava totalmente indefeso.

 

Ao telefone, disse-me que a medicação que lhe dei ajudou começou o Dr. Whitman.

 

Maravilhosamente exclamou Ashley, subitamente animado por o Dr. Whitman ter começado pela positiva. Quase todos os meus sintomas desapareceram.

 

O Dr. Whitman anuiu conhecedoramente. A sua expressão manteve-se inescrutável.

 

Eu teria presumido que isso é uma boa notícia.

 

Ajuda-nos a fazer o diagnóstico declarou o Dr. Whitman.

 

Bem... o que é? perguntou Ashley, após uma pausa desconfortável. Qual é o diagnóstico?

 

A medicação era uma forma de levodopa começou o Dr. Whitman num tom doutoral. O organismo pode convertê-la em dopamina, que é uma substância envolvida em algumas transmissões dos neurónios.

 

O senador respirou fundo. Uma onda súbita de raiva ameaçava vir à superfície. Não queria uma prelecção, como se fosse um aluno. Queria o diagnóstico. Sentiu que estava a ser gozado como um gato goza com um rato encurralado.

 

O senhor perdeu algumas células que estão envolvidas na produção de dopamina continuou o Dr. Whitman. Essas células estão numa parte do seu cérebro chamada substantia nigra.

 

Ashley ergueu as mãos, como se estivesse a render-se. Suprimiu a vontade de o atacar verbalmente, engolindo em seco com alguma dificuldade.

 

Vamos direitos ao assunto, Doutor. Que é que eu tenho?

 

Tenho noventa e cinco por cento de certeza de que o senhor sofre da doença de Parkinson declarou o Dr. Whitman. Recostou-se. A cadeira da secretária chiou.

 

Por instantes, Ashley não falou. Não sabia muito sobre a doença de Parkinson, mas não lhe parecia nada boa, e vieram-lhe à lembrança algumas imagens de celebridades a lutar contra aquele mal. Ao mesmo tempo, sentiu-se aliviado por o médico não lhe ter dito que ele tinha um tumor cerebral ou ALS. Aclarou a garganta.

 

Tem cura? permitiu-se perguntar.

 

Actualmente, não disse Whitman. Mas como já sentiu com a medicação que lhe dei, pode ser controlada durante algum tempo.

 

Que é que isso significa?

 

Podemos mantê-lo relativamente sem sintomas durante algum tempo, talvez um ano, talvez mais. Infelizmente, devido ao seu historial de sintomas que se desenvolveram relativamente depressa, na minha experiência os medicamentos perderão a eficácia mais rapidamente do que com muitos outros doentes. Nessa altura, a doença será progressivamente debilitante. Teremos de lidar com cada situação à medida que ela surgir.

 

Isto é um desastre murmurou Ashley. Estava arrasado com as implicações. Os seus piores receios tinham-se tornado realidade.

 

 

18.30, quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2002 Um ano depois

Daniel teve a impressão de que o táxi parara sem motivo no meio de um quarteirão no centro da Rua M, em Georgetown, Washington D. C., uma movimentada avenida de quatro faixas. Daniel nunca gostara de andar de táxi. Parecia o cúmulo do ridículo confiar a vida a um completo desconhecido que a maioria das vezes era oriundo de um distante país do terceiro mundo e, frequentemente, estava mais interessado em falar ao telemóvel do que em prestar atenção à condução. Sentado no meio da Rua M, mergulhado na escuridão e com o tráfego da hora de ponta a sibilar dos dois lados e o motorista a reagir emocionalmente numa língua desconhecida, era uma situação exasperante. Daniel olhou de relance para Stephanie. Ela parecia descontraída e sorriu-lhe à média luz. Ela apertou-lhe a mão afectuosamente.

 

Só ao inclinar-se para a frente é que Daniel viu que havia um semáforo suspenso para facilitar uma curva bastante esquisita para a esquerda a meio do quarteirão. Olhou para o outro lado da rua e viu uma entrada que dava acesso a um edifício em tijolo que parecia um caixote.

 

Aquilo é o hotel? perguntou Daniel. Se for, não se parece muito com um hotel.

 

Vamos suspender a avaliação até termos mais algumas informações replicou Stephanie, num tom brincalhão.

 

O semáforo mudou e o táxi deu um salto em frente, como um cavalo de corrida a sair da linha de partida. O motorista só tinha uma mão no volante enquanto acelerava na curva. Daniel segurou-se para não ser atirado contra a porta do carro. Depois de um grande salto na junta entre a estrada e o acesso ao hotel, e de mais uma curva brusca para a esquerda junto à porta de entrada, o motorista travou com força suficiente para provocar uma tensão considerável no cinto de segurança de Daniel. Momentos depois, a porta de Daniel foi aberta.

 

Bem-vindos ao Four Seasons disse, alegremente, um porteiro de libré. Vão ficar aqui hospedados?

 

Daniel e Stephanie deixaram a bagagem com o porteiro, entraram no átrio do hotel e dirigiram-se para o balcão de recepção. Passaram por um grupo de estátuas que podiam estar num museu de arte moderna. A carpete era espessa e luxuosa. Pessoas muito bem vestidas estavam sentadas em cadeiras de veludo confortáveis.

 

Como é que me convenceste a ficar aqui? perguntou Daniel retoricamente. O exterior pode ser simples, mas o interior sugere que vai ser caro.

 

Stephanie obrigou Daniel a parar.

 

Estás a tentar sugerir que te esqueceste da conversa que tivemos ontem?

 

Ontem conversámos muito balbuciou Daniel. Reparou que a mulher que acabara de entrar com um poodle francês tinha um anel de noivado com um diamante do tamanho de uma bola de pingue-pongue.

 

Sabes do que estou a falar! declarou Stephanie. Levantou a mão e puxou o rosto de Daniel na direcção do seu. Decidimos que íamos aproveitar esta viagem ao máximo. Vamos ficar duas noites neste hotel, e vamos satisfazermo-nos bem como, espero, um ao outro.

 

Daniel percebeu a indirecta lasciva de Stephanie e, embora contra vontade, não pôde deixar de rir.

 

O teu depoimento de amanhã perante a Subcomissão de Política de Saúde do senador Butler não vai ser uma tarefa fácilcontinuou Stephanie. Isso é um facto. Mas, apesar do que acontecer por lá, pelo menos vamos levar a recordação de uma experiência agradável quando voltarmos para Cambridge.

 

Não podíamos ter tido uma experiência agradável num hotel menos caro?

 

Eu não declarou Stephanie. Eles têm um ginásio, massagista e serviço de quartos do mais alto nível, e nós vamos aproveitar tudo. Por isso, começa a relaxar e a soltar-te. Para além do mais, eu é que vou pagar a conta.

 

A sério?

 

Claro! Com o salário que tenho estado a receber, bem posso devolver algum à empresa.

 

Oh, isso é um golpe baixo! comentou Daniel, brincalhão, enquanto fingia endireitar-se de uma bofetada a fingir.

 

Escuta disse Stephanie, eu sei que já há algum tempo que a empresa não pode pagar os nossos ordenados, mas eu vou pagar esta viagem com o cartão de crédito da empresa. Se amanhã as coisas correrem verdadeiramente mal, o que é uma possibilidade, o tribunal de falências pode decidir quanto é que será pago ao Four Seasons pelo nosso prazer.

 

O sorriso de Daniel abriu-se numa forte gargalhada.

 

Tu nunca deixas de me surpreender, Stephanie!

 

E ainda não viste nada declarou Stephanie com um sorriso. A questão é: vais descontrair-te ou não? Até no táxi se percebia que estavas tenso como uma corda de piano.

 

Isso foi porque estava preocupado e sem saber se íamos chegar aqui inteiros, não como íamos pagar.

 

Vá lá, esbanjador disse Stephanie, empurrando Daniel para a frente. Vamos para a nossa suite.

 

Suite? perguntou Daniel, enquanto se deixava empurrar para o balcão de recepção.

 

Stephanie não exagerara. A suite estava voltada para uma parte do Canal Chesapeake e Ohio com o Rio Potomac, em pano de fundo. Na mesa de apoio na sala de estar havia umfrappé com uma garrafa de champanhe a gelar. Jarras com flores acabadas de apanhar alegravam o toucador do quarto e a grande bancada da enorme casa de banho de mármore.

 

Logo que o paquete desapareceu, Stephanie abraçou Daniel. Os olhos escuros dela fitaram as órbitas azuis dele. Um ligeiro sorriso bailou nos seus lábios cheios.

 

Sei que estás muito tenso por causa de amanhã começou ela, por isso, que tal deixares-me ser eu a guia turística? Ambos sabemos que a legislação proposta pelo senador Butler tornaria ilegal o teu trabalho patenteado e brilhante. E implicaria um cancelamento da segunda parte do financiamento da empresa, com consequências obviamente desastrosas. Com isto dito e compreendido, vamos esquecer os nossos problemas por esta noite. Consegues fazer isso?

 

Posso tentar disse Daniel, embora soubesse que seria impossível, o fracasso era um dos seus maiores medos.

 

É tudo o que te peço disse Stephanie. Deu-lhe um beijo rápido antes de se afastar para abrir o champanhe. O plano é o seguinte: bebemos uma taça de bolhas e depois tomamos um duche refrescante. Em seguida, temos uma reserva num restaurante aqui perto chamado Citronelle, que ouvi dizer que é fantástico. Depois de uma refeição maravilhosa, voltamos para aqui e fazemos amor louca e apaixonadamente. Que dizes?

 

Seria doido se oferecesse alguma resistência afirmou Daniel, levantando as mãos numa rendição trocista.

 

Stephanie e Daniel já viviam juntos há mais de dois anos e tinham criado uma confortável intimidade. Tinham reparado um no outro em meados da década de 1980, quando Daniel regressara à vida académica e Stephanie era aluna finalista de química em Harvard. Nenhum deles tinha aprofundado a atracção mútua, já que esse tipo de ligações não era visto com bons olhos pela política da universidade. Para além disso, nenhum deles tinha a mais pequena noção de que o seu sentimento era recíproco, pelo menos não antes de Stephanie terminar a licenciatura e começar a fazer parte do corpo docente, o que lhes deu a oportunidade de interagirem num plano mais igual. Até as suas áreas de especialização científica se complementavam. Quando Daniel abandonou a universidade para criar a sua empresa, foi natural que Stephanie o acompanhasse.

 

Nada mal disse Stephanie, depois de esvaziar a sua taça e pousá-la na mesa de apoio. Muito bem! Vamos atirar uma moeda ao ar para ver quem toma duche primeiro.

 

Não é preciso atirar uma moeda ao ar disse Daniel, pousando a taça vazia ao lado da de Stephanie. Eu cedo. Vai tu primeiro. Enquanto tomas duche, eu faço a barba.

 

Combinado disse Stephanie.

 

Daniel não sabia se era do champanhe ou da animação contagiosa de Stephanie, mas sentia-se muito menos tenso, embora não menos preocupado, quando colocou espuma nas faces e começou a barbear-se. Como só bebera uma taça, suspeitava de que era a segunda hipótese. Tal como Stephanie insinuara, o dia seguinte podia trazer um desastre, um medo que lhe recordava de forma perturbadora a profecia de Heinrich Wortheim no dia em que descobrira que Daniel ia voltar para o sector privado. Mas Daniel ia tentar não deixar que esses pensamentos dominassem a visita, pelo menos, nessa noite. Tentaria seguir o conselho de Stephanie e divertir-se.

 

Daniel olhou para lá da sua imagem cheia de espuma e viu a figura indistinta de Stephanie do outro lado do vidro embaciado da cabina de duche. A sua voz a cantar ouvia-se acima do ruído da água. Tinha trinta e seis anos, mas parecia ter vinte e seis. Como já lhe dissera mais do que uma vez, fora muito beneficiada na lotaria genética. A sua figura alta e com curvas era magra e firme como se ela fizesse ginástica regularmente, o que não acontecia, e a pele escura, cor de azeitona, estava praticamente desprovida de manchas. Uma melena de cabelos espessos e escuros com olhos negros a condizer completavam o retrato.

 

A porta do chuveiro abriu-se e Stephanie saiu. Secou rapidamente os cabelos com a toalha, completamente despreocupada com a nudez. Por instantes, curvou-se pela cintura, deixando os cabelos caírem livremente quantos os esfregava freneticamente com a toalha. Depois, endireitou-se, atirando os cabelos para trás como um cavalo a redireccionar a crina. Quando começou a limpar as costas com um movimento provocante das ancas, a sua linha de visão apanhou o olhar de Daniel no espelho. Parou.

 

Hei! interrogou Stephanie. Para onde é que estás a olhar? É suposto estares a fazer a barba. De repente incomodada, enrolou-se na toalha como se fosse um vestido curto sem alças.

 

Inicialmente embaraçado por ser apanhado a espiar, Daniel recompôs-se rapidamente. Pousou a lâmina de barbear e aproximou-se de Stephanie. Agarrou-a pelos ombros e olhou para os seus olhos de ónix líquido.

 

Não consegui deixar de reparar como estás sensual e absolutamente arrasadora.

 

Stephanie inclinou a cabeça para o lado para observar Daniel de uma perspectiva ligeiramente diferente.

 

Estás bem? Daniel riu-se.

 

Estou bem.

 

Voltaste para a sala de estar e deste cabo da garrafa de champanhe?

 

Estou a falar a sério.

 

Não dizes nada do género há meses.

 

Dizer que tenho andado preocupado seria pouco. Quando tive a ideia de formar a empresa, não fazia a menor ideia de que a angariação de fundos ia ocupar cento e dez por cento dos meus esforços. E agora, para cúmulo, aparece este perigo político, que ameaça destruir toda a operação.

 

Compreendo disse Stephanie. A sério que acredito, e não levei a mal.

 

De verdade que já passaram meses?

 

Confia em mim disse Stephanie, a abanar a cabeça para dar mais ênfase às palavras.

 

Desculpa disse Daniel. E para mostrar os meus remorsos, gostava de apresentar uma moção para alterar os planos da noite. Proponho que passemos à fase de fazer amor e deixemos os planos para o jantar em suspenso. Alguém tem alguma objecção?

 

Quando Daniel tentou inclinar-se para dar um beijo brincalhão a Stephanie, ela empurrou-lhe o rosto ainda cheio de espuma para trás apenas com a ponta do dedo indicador no nariz dele. A sua expressão sugeria que estava a tocar em alguma coisa extremamente desagradável, especialmente enquanto limpava o bocado de espuma que tinha no dedo no ombro dele.

 

As regras parlamentares não vão desviar esta senhora de um bom jantar declarou ela. Deu-me algum trabalho conseguir esta marcação, por isso os planos para a noite mantêm-se conforme a votação e aprovação prévias. Agora, toca a fazer a barba! Brincalhona, empurrou-o para o lavatório e depois aproximou-se do outro lavatório para secar os cabelos.

 

Falando a sério gritou Daniel por cima do barulho do secador, quando acabou de fazer a barba. Estás fantástica. Por vezes, pergunto a mim próprio o que vês num velho como eu; bateu nas faces com aftershave.

 

Aos cinquenta e dois anos não podes dizer que és velho - gritou Stephanie por sua vez. Especialmente, sendo tão activo como és. Na verdade, tu também és bastante sensual.

 

Daniel observou-se ao espelho. Achou que não estava nada mal, embora não estivesse disposto a enganar-se imaginando que era de alguma forma sensual. Há muito tempo que se reconciliara com o facto de estar do lado aberrante da equação da vida, depois de ter crescido como um prodígio da ciência desde o sexto ano. Stephanie estava apenas a tentar ser simpática. Ele sempre tivera um rosto magro, por isso, pelo menos, não tinha o problema de desenvolver bochechas ou até rugas, com excepção de alguns ténues pés de galinha no canto dos olhos quando sorria. Mantivera-se fisicamente activo, embora não muito durante os últimos meses, devido aos constrangimentos de tempo ditados pela angariação de fundos. Enquanto fizera parte da faculdade de Harvard, aproveitara plenamente as instalações desportivas, usando com regularidade os campos de squash e andebol, bem como as oportunidades de remar no Rio Charles. O único verdadeiro problema de aparência que via era a linha do cabelo a recuar nos cantos superiores da testa e a área da coroa a ficar mais rala, para além de os cabelos castanhos estarem a ficar grisalhos nas zonas laterais da cabeça, mas não podia fazer grande coisa para remediar isso.

 

Depois de ambos terem acabado de se arranjar e vestir, pegaram nos casacos e saíram do hotel armados, com indicações simples para o restaurante, dadas pelo porteiro. De braço dado, percorreram diversos quarteirões para ocidente ao longo da Rua M, passando por inúmeras galerias de arte, livrarias e lojas de antiguidades. A noite estava fresca mas não demasiado fria, com uma abóbada de estrelas visíveis apesar das luzes da cidade.

 

No restaurante, o maítre d’ conduziu-os até uma mesa lateral que proporcionava alguma privacidade no movimentado estabelecimento. Escolheram a comida, pediram uma garrafa de vinho e prepararam-se para um jantar romântico. Quando as entradas foram servidas já se tinham divertido a recordar a atracção que tinham sentido um pelo outro antes de sequer se conhecerem mais intimamente, e mergulharam num silêncio satisfeito. Infelizmente, Daniel quebrou-o.

 

Provavelmente, não devia mencionar isto... começou ele.

 

Então não menciones interrompeu Stephanie, percebendo imediatamente o rumo que Daniel pretendia dar à conversa.

 

Mas devo declarou Daniel. Na verdade, tenho de mencionar, e é melhor agora do que mais tarde. Há vários dias, disseste que ias investigar o nosso carrasco, o senador Ashley Butler, com a ideia de, possivelmente, me ser útil para a audição de amanhã. Sei que investigaste o assunto, mas não me disseste nada. Porquê?

 

Se bem me lembro, tu concordaste que esta noite íamos esquecer a audição.

 

Concordei que ia tentar esquecer a audição corrigiu Daniel. Não fui totalmente bem sucedido. Não falaste sobre o que descobriste porque não descobriste nada útil ou por outro motivo? Esclarece-me sobre isto e depois podemos esquecer tudo o resto da noite.

 

Stephanie desviou o olhar durante alguns segundos para organizar os pensamentos.

 

Que é que queres saber?

 

Daniel soltou uma gargalhada curta e exasperada.

 

Estás a dificultar mais as coisas do que é necessário. Para falar com franqueza, não sei o que quero saber, porque nem sequer sei o suficiente para fazer perguntas.

 

Ele não vai ser fácil.

 

Já tínhamos essa impressão.

 

Está no Senado desde 1972, e a sua antiguidade dá-lhe um poder significativo.

 

Já tinha calculado isso, uma vez que ele é o presidente da subcomissão disse Daniel. Preciso de saber qual é a sua principal motivação.

 

A minha impressão é que ele é um demagogo sulista, bastante típico e antiquado.

 

Um demagogo? perguntou Daniel. Por instantes, mastigou a região interna da face. Suponho que tenho de admitir a minha estupidez neste caso. Já ouvi a palavra demagogo anteriormente mas, para dizer a verdade, não sei exactamente o que significa para além do seu sentido pejorativo.

 

Refere-se a um político que usa os preconceitos e receios populares, para conseguir e manter o poder.

 

Neste caso, estás a referir-te à preocupação do público com a biotecnologia em geral.

 

Isso mesmo admitiu Stephanie. Especialmente quando a biotecnologia envolve palavras como embrião e clonagem.

 

Com o sentido de quintas de embriões e cenários de filme de terror.

 

Precisamente concordou Stephanie. Ele joga com a ignorância e com os piores medos das pessoas. E, no Senado, é um obstrucionista. É sempre mais fácil ser contra as coisas do que a favor delas. Ele fez a sua carreira à custa disso, mesmo contrariando o seu próprio partido em inúmeras ocasiões.

 

Não parece nada promissor para nós gemeu Daniel. Exclui a hipótese de tentar convencê-lo com qualquer tipo de argumento racional.

 

Infelizmente, sou da mesma opinião. Foi por isso que não te contei o que descobri sobre ele. É deprimente que alguém como Butler esteja no Senado, e muito pior ainda que tenha toda a importância e poder que ele tem. É suposto que os senadores sejam líderes, não pessoas que ocupam o cargo para obter poder.

 

O que é deprimente é que este imbecil tem poder para bloquear a minha ciência criativa e prometedora.

 

Não me parece que ele seja um imbecil corrigiu Stephanie.

 

Muito pelo contrário. Ele tem sido muito criativo por mérito próprio. Até deveria dizer maquiavélico.

 

Diz-me alguns dos seus outros cavalos de batalha?

 

Os fundamentalistas e conservadores do costume. Direitos estaduais, claro. Esse é um dos grandes. Mas ele também é contra coisas como a pornografia, a homossexualidade, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e esse género de coisas. E, oh, sim, é contra o aborto.

 

Aborto? perguntou Daniel, surpreendido. Ele é um Democrata e é contra o aborto? Está a começar a parecer um membro da Extrema Direita Republicana.

 

Já te disse que ele não tem medo de ir contra o Partido, quando isso lhe convém. É definitivamente contra o aborto, embora, ocasionalmente, a sua posição tenha requerido algumas manobras e recuos. Da mesma forma, tem andado a fazer sapateado à volta das questões dos direitos humanos. É um conservador inteligente, conivente, burocrata e populista que, ao contrário de Strom Thurmond e Jessie Helms, não saiu do Partido Democrático.

 

Surpreendente! comentou Daniel. Seria de esperar que as pessoas o vissem como ele realmente é, um oportunista, sedento de poder pessoal, e o excluíssem. Por que é que achas que o Partido não se aliou contra ele, se os contrariou em tantas questões?

 

Ele é demasiado poderoso disse Stephanie. É uma verdadeira máquina de angariação de fundos interligados com comissões de acção política, fundações e até empresas geridas em nome dos seus diversos assuntos populistas. Os outros senadores têm indubitavelmente medo dele, com o tipo de dinheiro de relações públicas que ele pode arranjar. Não tem medo nem pejo de usar os seus bolsos fundos contra qualquer pessoa que se atravesse no seu caminho, quando há alguma reeleição.

 

Isto está a ficar cada vez pior murmurou Daniel.

 

No entanto, descobri uma coisa curiosa acrescentou Stephanie. Não passa de uma coincidência, mas tu e ele têm algumas coisas em comum.

 

Oh, por favor! queixou-se Daniel.

 

Em primeiro lugar, têm ambos famílias grandes disse Stephanie.

 

Na verdade, pertencem a famílias com nove filhos, e são ambos os terceiros, com dois irmãos mais velhos. Isso é realmente uma coincidência! Quais são as probabilidades de uma coisa dessas acontecer? Bastante reduzidas. Poder-se-ia presumir que vocês são mais parecidos do que pensam. O rosto de Daniel desanuviou-se. Estás a falar a sério? Stephanie riu-se. Não, claro que não! Estou a brincar! Acalma-te! Ela esticou-se, pegou no vinho de Daniel e entregou-lho. Depois, ergueu o seu copo. Basta de falar no senador Butler! Vamos brindar à nossa saúde e ao nosso relacionamento porque, aconteça o que acontecer amanhã, pelo menos temos isso, é o que é mais importante? Tens razão disse Daniel. A nós! Sorriu, mas intimamente sentiu o estômago a embrulhar-se num nó. Por muito que tentasse, não conseguia esquecer o espectro de fracasso que pairava sobre ele como uma nuvem negra.

 

Brindaram e beberam, a olhar um para o outro por cima dos copos. Tu és verdadeiramente linda disse Daniel, a tentar recuperar o momento da casa de banho do hotel, quando Stephanie saíra do duche. | Linda, inteligente e muito sensual.

 

Assim gosto mais replicou Stephanie. Tu também és. E também és brincalhona acrescentou Daniel. Mas mesmo assim amo-te. Eu também te amo disse Stephanie. ] Terminado o jantar, Stephanie estava ansiosa por voltar para o hotel. Caminharam com passos rápidos. Depois do calor do restaurante, o frio nocturno penetrou através dos casacos. No elevador vazio do hotel. Stephanie beijou Daniel apaixonadamente, empurrou-o para um canto e encostou-se eroticamente a ele.

 

Calma! disse Daniel, com uma gargalhada nervosa. Provavelmente, há uma câmara de vídeo de segurança aqui dentro.

 

Oh, céus! murmurou Stephanie, enquanto se endireitava rapidamente e endireitava o casaco. Os seus olhos perscrutaram o tecto do elevador. Nunca tinha pensado nisso.

 

Quando o elevador abriu no andar deles, Stephanie pegou na mão de Daniel e encorajou-o a andar rapidamente pelo corredor até à porta do quarto. Sorriu, enquanto a abria com o cartão. No interior, fez um grande teatro para encontrar o cartão de NÃO INCOMODAR e pendurá-lo do lado de fora da porta. Feito isto, pegou na mão de Daniel e puxou-o da pequena entrada até ao quarto.

 

Despir os casacos! ordenou, atirando o dela para uma cadeira.

 

Depois, empurrou-o de costas para cima da cama. Subiu para cima dele com um joelho de cada lado do seu peito e começou a desapertar-lhe a gravata. De repente, parou. Reparou que ele tinha a testa brilhante de transpiração.

 

Sentes-te bem? perguntou, preocupada.

 

Estou a ter um acesso de calor confessou Daniel.

 

Stephanie deslizou para o lado e puxou Daniel para a posição de sentado. Ele limpou a testa e olhou para a humidade na mão.

 

Também estás pálido.

 

Posso imaginar disse Daniel. Acho que estou a ter uma mmi-crise autónoma do sistema nervoso.

 

Parece-me conversa de médico. Não te importas de explicar isso em inglês corrente?

 

Estou apenas exausto. Infelizmente, devo ter tido uma espécie de subida de adrenalina. Lamento, mas acho que o sexo está fora de questão.

 

Não tens de pedir desculpa.

 

Eu acho que sim disse Daniel. Sei que estás à espera, mas enquanto vínhamos para o hotel eu tive a sensação de que não estava escrito.

 

Não faz mal insistiu Stephanie. Não vai fazer nem estragar a noite. Estou mais interessada em certificar-me de que vais ficar bem.

 

Daniel suspirou.

 

Vou ficar bem depois de amanhã, quando souber o que vai acontecer. A incerteza e eu nunca nos demos particularmente bem, especialmente quando envolve alguma coisa má.

 

Stephanie colocou os braços à volta dele e abraçou-o. Sentiu o coração dele a bater no peito.

 

Mais tarde, depois de Stephanie se encontrar imóvel há tempo suficiente para a sua respiração se regularizar nas profundezas do sono, Daniel afastou os cobertores e saiu da cama. Não conseguira adormecer com a mente e a pulsação a mil. Vestiu um roupão do hotel e foi para a sala de estar. À janela, contemplou a vista.

 

Não conseguia parar de pensar na profecia de desastre de Heinrich Wortheim e no facto de parecer que se ia realizar. O problema era que Daniel fechara portas quando saíra de Harvard. Wortheim nunca mais o aceitaria e talvez até tentasse vedar-lhe o acesso a outras instituições. Para cúmulo, Daniel também fechara algumas portas quando saíra da Merck em 1985 para regressar à vida académica na altura em que aceitara o cargo em Harvard.

 

A garrafa de champanhe aninhada no frappé chamou a atenção de Daniel. Tirou-a da água; o gelo já derretera há muito. Ergueu-a para a luz que vinha do lado de fora da janela. Ainda restava quase meia garrafa. Encheu uma taça e provou. Estava um pouco murcho, mas ainda razoavelmente frio. Bebeu alguns pequenos goles e olhou novamente pela janela.

 

Sabia que o medo de ter de voltar para Revere Beach, Massachusetts, era irracional, mas não o tornava menos real. Revere Beach era a cidade onde ele crescera, numa família dirigida por um comerciante insignificante que culpava pela sua série de fracassos a mulher e os filhos, especialmente aqueles que os embaraçavam. Infelizmente, era acima de tudo Daniel, o qual tivera o azar de vir a seguir a dois irmãos mais velhos que tinham sido grandes atletas no liceu, um facto que causara um considerável alívio ao frágil ego do pai. Em contraste, Daniel fora um miúdo magro e frágil, mais interessado em jogar xadrez e em produzir hidrogénio a partir de água, Drano e folha de alumínio na cave. O facto de Daniel ter entrado no Boston Latin, onde foi academicamente excelente, não teve qualquer efeito no pai, que continuou a usá-lo impiedosamente como bode expiatório. Até as bolsas de Daniel para a Universidade de Wesleyan e depois para a Faculdade de Medicina de Columbia tinham mudado pouco, a não ser afastá-lo dos irmãos durante algum tempo.

 

Daniel acabou o champanhe da taça e serviu-se de mais. Enquanto continuava a beber, a sua mente vagueou para o senador Butler, a sua obsessão do momento. Stephanie dissera que estava a brincar quando sugerira que ele e o senador eram mais parecidos do que ele poderia pensar. Perguntou a si mesmo se ela pensaria realmente assim, já que era sem dúvida uma coincidência que ele e o senador tivessem tipos de família semelhantes. Muito no fundo da mente de Daniel, instalou-se o pensamento de que talvez houvesse alguma verdade na ideia. Afinal de contas, Daniel tinha de admitir que invejava o poder que o homem ostentava ao colocar a sua carreira em perigo.

 

Daniel pousou a taça na mesa de apoio e voltou-se na direcção do quarto. Caminhou lentamente na escuridão do ambiente desconhecido. Não estava nada confiante de conseguir dormir enquanto a sua intuição lhe dizia tão activamente que se aproximava o desastre, e no entanto não queria passar a noite inteira levantado. Pensou deitar-se e tentar descontrair-se, e se não conseguisse dormir, pelo menos, descansaria.

 

 

9.51, terça-feira, 21 de Fevereiro de 2002

A porta do gabinete do senador Ashley Butler abriu-se de rompante, e o senador saiu com a chefe de gabinete atrás. Puxou bruscamente o papel que Dawn, a sua secretária, que estava sentada à secretária, lhe estendeu.!

 

É o seu discurso de abertura para a audição da subcomissão disse ela para o senador, que já ia a virar a esquina do corredor principal e a dirigir-se para a porta principal do seu escritório no Senado. Ela estava acostumada a ser ignorada e não levou a mal. Como era ela que fazia a agenda diária do senador, sabia que ele estava atrasado. Já devia estar na audição, para que esta pudesse ter início às dez horas em ponto. Ashley limitou-se a resmungar depois de ler as primeiras linhas do papel e entregou a folha a Carol, que vinha atrás de si, para que esta lhe pudesse dar uma vista de olhos. Carol era mais do que a chefe de gabinete de Ashley, que contratava e despedia funcionários. Quando os dois chegaram à sala de espera do complexo de que fazia parte o seu gabinete, e ele parou para cumprimentar a cerca de meia dúzia de pessoas que esperavam para falar com diversos chefes de gabinete, Carol teve de o empurrar para a porta, para não se atrasarem mais do que já estavam.

 

Já no átrio de mármore do Edifício do Gabinete do Senado, aceleraram o passo. Era difícil para Ashley, cuja rigidez voltara apesar da medicação receitada pelo Dr. Whitman. Ashley descrevera a rigidez como uma sensação semelhante a tentar andar em cima de melaço.

 

Que te parece esse discurso de abertura? perguntou Ashley.

 

Até onde li, parece-me bom respondeu Carol. Acha que Rob mandou Phil dar uma vista de olhos?


Espero bem que sim atirou Ashley. Percorreram uma distância curta em silêncio antes de Ashley acrescentar, Quem diabo é Rob?

 

É o nosso relativamente novo director da Subcomissão de Política de Saúde explicou Carol. Tenho a certeza de que se lembra dele. Ele sobressai, literalmente, numa multidão. É o ruivo alto que veio da equipa do Kennedy.

 

Ashley limitou-se a acenar afirmativamente. Embora se orgulhasse da facilidade que tinha para se recordar de nomes, já não conseguia reter todos os nomes das pessoas que trabalhavam para ele, pois os seus funcionários tinham crescido para mais de setenta pessoas, e havia as inevitáveis mudanças. Porém, Phil era um nome que conhecia, já que estava com ele há quase tanto tempo como Carol. Na qualidade de principal analista político de Ashley, Phil era um elemento chave, e era importante que tudo o que ia fazer parte da transcrição de uma audição ou do Registo do Congresso fosse feito por ele.

 

E a sua medicação? perguntou Carol. Os seus saltos pareciam tiros de espingarda quando batiam no chão de mármore.

 

Tomei os comprimidos disse Ashley, irritado. Para ter a certeza a cem por cento, a mão deslizou sub-repticiamente para o bolso lateral do casaco e procurou. Como suspeitava, o comprimido que aí tinha colocado já desaparecera, o que significava que o tomara antes de sair do seu gabinete particular. Tinha de ter um nível elevado da droga no sangue, durante a audição. A última coisa que queria era que algum jornalista reparasse num sintoma, como a mão a tremer durante os trabalhos, especialmente agora que tinha um plano para prevenir o problema.

 

Ao fazerem uma curva no corredor, chocaram contra diversos colegas senadores particularmente liberais, que se dirigiam para o lado oposto. Ashley parou e passou facilmente para o tom de voz sulista, lento, indolente e meloso que lhe era característico, enquanto elogiava os cortes de cabelo, os fatos de linha moderna e as gravatas berrantes dos seus colegas políticos. Numa autocensura bem humorada, comparou os trajes deles com o seu próprio fato escuro, com a gravata discreta e a simples camisa branca. Era o mesmo estilo de roupas que usava quando chegara ao Senado em 1972. Ashley era um homem de hábitos. Não só ainda usava o mesmo género de roupas como ainda comprava todo o seu guarda-roupa na mesma loja conservadora, na sua terra natal.

 

Novamente a caminho, Carol comentou o grau da cordialidade de Ashley.

 

Estou apenas a dar-lhes graxa troçou Ashley. Preciso dos votos deles para o meu projecto de lei, que vai ser votado na próxima semana. Sabes que não posso concordar com esse tipo de disparates, especialmente com transplantes capilares.

 

É claro que sei disse Carol. Foi por isso que fiquei surpreendida. Ao aproximarem-se da entrada lateral da sala de audições, Ashley abrandou.

 

Diz-me rapidamente o que tu e o resto da equipa descobriram sobre a primeira testemunha desta manhã. Tenho um plano especial em banho-maria e quero que seja bem sucedido.

 

Conheço o currículo profissional dele de cordisse Carol. Fechou os olhos por instantes para ajudar a mobilizar a memória. É um prodígio da ciência desde o liceu e destacou-se na faculdade de medicina e nos estudos de doutoramento. É, no mínimo, impressionante! Para além disso, depressa se tornou um dos mais jovens cientistas chefes do departamento de investigação da Merck antes de ter sido activamente recrutado para um posto de prestígio em Harvard. O homem deve ter um QI na estratosfera.

 

Lembro-me do currículo dele. Mas não é isso que me interessa agora. Fala-me sobre o que Phil descobriu sobre a personalidade do homem!

 

Lembro-me que Phil achou que ele era egoísta e vaidoso pela forma como desvaloriza o trabalho dos colegas cientistas. Quero dizer, a maior parte das pessoas, mesmo que sejam dessa opinião, guardam-na para si mesmas. Ele não pode deixar de ser arrogante.

 

Que mais?

 

Chegaram à porta da sala lateral e hesitaram. Ao fundo do corredor, à entrada da porta principal da sala de audições, amontoava-se uma pequena multidão, e o ruído de vozes chegava até eles.

 

Carol encolheu os ombros.

 

Não me lembro de muito mais coisas, mas tenho comigo o dossier que a equipa elaborou e que, certamente, englobará as impressões de Phil. Quer perder algum tempo a lê-lo novamente antes de iniciarmos a audição?

 

Estava à espera que me falasses sobre o receio que o homem tem do fracasso disse Ashley. Lembras-te de alguma coisa sobre isso?

 

Agora que o menciona, sim, creio que era um dos pontos que Phil referia.

 

Muito bem!disse Ashley, com os olhos fixos num ponto distante. E combinando isso com um ego aparentemente do tamanho de uma pista de corridas de cavalos, tenho a oportunidade de exercer uma influência significativa, não te parece?

 

Suponho que sim, mas não estou a perceber muito bem onde quer chegar. Lembro-me que Dan pensou que ele tinha um muito desproporcionado medo de fracassar, apesar das suas capacidades e da sua óbvia inteligência. Afinal de contas, provavelmente ele poderia ter sucesso em tudo o que quisesse, desde que se empenhasse. Como é que o medo que ele tem do fracasso lhe permite ter influência sobre ele, e influência para quê?

 

Ele pode fazer tudo o que quiser mas, aparentemente, neste momento, quer ser um empresário famoso, um facto que, ao que parece, admitiu sem a menor vergonha numa das entrevistas. E para isto fez uma grande jogada em termos de carreira e em termos financeiros. Quer que a empresa que acabou de criar com base na sua técnica patenteada seja um sucesso por motivos muito pessoais e talvez até superficiais.

 

Então, que é que quer fazer? perguntou Carol. Rob quer que apoie formalmente o fim deste procedimento. É tão simples como isso.

 

As circunstâncias tornaram as coisas um pouco mais complicadas do que isso. Eu quero obrigar o bom do médico a fazer uma coisa que tenho quase a certeza que ele não estaria disposto a fazer.

 

Uma expressão de preocupação estampou-se no rosto largo de Carol.

 

Rob sabe disto?

 

Ashley abanou a cabeça. Fez sinal a Carol para que lhe devolvesse o discurso de abertura já preparado e pegou-lhe, quando ela lho estendeu.

 

Que é que quer que o médico faça?

 

Tu e ele vão saber esta noite declarou Ashley quando os seus olhos começaram a observar o discurso de abertura. Seria demasiado demorado explicar-te agora.

 

Isto está a assustar-me admitiu Carol em voz alta. Olhou para um lado e para o outro do corredor, enquanto Ashley lia o discurso. Mexeu-se, inquieta. O objectivo principal de Carol e o motivo por que sacrificava tanto da sua vida em prol do cargo actual, era que queria candidatar-se ao lugar de Ashley quando este se retirasse, uma situação que prometia acontecer mais cedo do que mais tarde, devido ao diagnóstico da doença de Parkinson. Possuía habilitações mais do que suficientes, pois já fora senadora estadual antes de ir para Washington para orientar o espectáculo de Ashley, e nesta altura, com o seu objectivo à vista, não queria que ele fizesse uma manobra para fazer o que Bill Clinton fizera a Al Gore. Desde aquela visita fatídica ao Dr. Whitman, Ashley andava preocupado e imprevisível. Ela aclarou a garganta para chamar a atenção do seu chefe.Exactamente, como é que pensa conseguir que o Dr. Lowell faça uma coisa que não quer fazer?

 

Montando-lhe uma armadilha e puxando-lhe o tapete de debaixo dos pés replicou Ashley, e levantou os olhos do papel para fitar os de Carol. Sorriu-lhe, conspirador. Estou a travar uma batalha, e pretendo vencer. Para conseguir, vou seguir uma deixa antiquíssima de A Arte da Guerra. Descubro os pontos de combate necessários, e depois chego lá com uma força avassaladora! Deixa-me ver o relatório financeiro da empresa dele!

 

Carol procurou na pilha de papéis que trazia até encontrar o papel que Ashley queria. Entregou-lho, e ele observou-o rapidamente. Ela observou o rosto dele à procura de pistas. Perguntou a si mesma se devia ligar para Phil do seu telemóvel logo que pudesse, para avisá-lo que se preparasse para o inesperado.

 

Isto é bom murmurou Ashley. Isto é muito bom. É uma sorte eu ter estes contactos no Departamento. Sozinhos, não teríamos conseguido a maior parte destes documentos.

 

Talvez devesse falar com Phil sobre o que está a planear fazer sugeriu Carol.

 

Não há tempo respondeu Ashley. Na verdade, que horas são agora?

 

Carol olhou para o relógio.

 

São dez e dez.

 

Ashley levantou a mão esquerda apoiada na direita para verificar se havia algum tremor. A mão tremia ligeiramente, mas mal se notava.

 

É o melhor que poderia esperar. Vamos trabalhar!

 

Ashley entrou na sala de audições pela porta lateral, à direita do estrado elevado em forma de ferradura. A sala estava cheia, e de uma multidão de pessoas amontoadas e aos encontrões umas às outras, emergia um zumbido de conversa incoerente. Ashley teve de abrir caminho entre colegas e funcionários até chegar ao seu lugar. O ruivo Rob apareceu imediatamente com uma segunda cópia do discurso de abertura que Ashley iria fazer. Ashley acenou-lhe para que se afastasse, sacudindo o exemplar que já tinha na mão. Sentou-se e ajustou o microfone articulado.

 

Depois de os seus olhos fazerem um circuito rápido pela decoração confortavelmente familiar de estilo grego revivalista da sala de audições, pousaram nas duas figuras sentadas no banco de testemunhas abaixo dele. Em primeiro lugar, a sua atenção foi magneticamente atraída para a jovem atraente com os cabelos brilhantes e sedosos a emoldurarem-lhe o rosto. Ashley sentia uma afinidade por mulheres bonitas, e esta mulher à sua frente tinha todos os requisitos. Usava um fato discreto, azul escuro, com uma gola branca que contrastava profundamente com a sua compleição bronzeada, cor de azeitona. Apesar do traje recatado, exsudava uma sensualidade saudável. Os seus olhos escuros estavam presos em Ashley, e ele ficou com a impressão de estar a olhar para dois canos de espingarda. Não fazia a menor ideia de quem ela era nem por que estava ali, mas pensou que a sua presença prometia tornar a audição um pouco mais agradável.

 

Relutantemente, Ashley desviou a atenção daquela mulher agradável para o Dr. Daniel Lowell. Os olhos do médico eram mais claros que os da companheira, e no entanto reflectiam um nível igual de atrevimento com o seu olhar firme. Ashley adivinhou que o médico era razoavelmente alto, apesar de estar recostado na cadeira. Tinha uma constituição magra, e um rosto estreito e angular emoldurado por uma melena de rebeldes cabelos grisalhos. Até as roupas sugeriam um nível de insolência comparável à que se reflectia nos seus olhos e postura. Em contraste com o traje formal e apropriado da companheira, ele vestira um casaco informal de tweed com cotoveleiras de couro, uma camisa aberta sem gravata e, nas pernas visíveis por baixo da mesa, calças de ganga e ténis.

 

Ashley sorriu intimamente enquanto pegava no martelo. Pensou que a aparente atitude de Daniel e a sua forma de vestir eram uma fraca tentativa de provar que não se sentia ameaçado por ter sido chamado a testemunhar perante uma subcomissão do Senado. Talvez Daniel pensasse que podia exibir a sua pessoa académica da Ivy League, como forma de intimidação contra a experiência académica baptista de cidade pequena de Ashley. Mas não ia funcionar. Ashley sabia que tinha Daniel no seu campo, com a habitual vantagem de estar a jogar em casa.

 

A Subcomissão de Política de Saúde, da Comissão de Educação, Trabalho e Pensões vai iniciar os trabalhos anunciou Ashley com uma entoação sulista muito vincada, enquanto batia com o martelo. Esperou alguns momentos, enquanto o grupo anteriormente desordeiro de assistentes ocupava os seus lugares. Atrás dele, ouviu diversos funcionários a fazer o mesmo. Baixou os olhos para Daniel Lowell, mas o médico não se mexera. Ashley olhou rapidamente para a direita e para a esquerda. A maior parte dos membros da sua subcomissão não estavam presentes, embora quatro estivessem ali. Os que estavam presentes estavam a ler memorandos ou a falar em sussurros com os seus assessores. Não havia quorum, mas não importava. Não fora agendada uma votação e Ashley não ia pedir nenhuma.

 

Esta audição vai analisar a S. 1103 continuou Ashley, enquanto pousava as notas para o discurso de abertura na mesa à sua frente. Cruzou os braços e encaixou os cotovelos nas palmas das mãos, para impedir qualquer potencial tremor. Inclinou ligeiramente a cabeça para trás, para ver melhor através dos bifocais. Este projecto de lei é um complemento da lei já aprovada no Senado, para banir a técnica de clonagem chamada...

 

Ashley hesitou e inclinou-se para a frente, a olhar para a folha.

 

Tenham paciência comigo disse ele, obviamente a afastar-se do texto preparado. Esta técnica é não só assustadora, como é difícil, e talvez o senhor doutor possa ajudar-me se eu me atrapalhar. Chama-se Recombinação Segmentar Transgénica Homóloga, ou RSTH. Uau! Disse bem, Doutor?

 

Daniel endireitou-se na cadeira e inclinou-se para a frente.

 

Sim respondeu sucintamente, e recostou-se de novo. Também ele tinha os braços cruzados.

 

Por que é que os médicos não falam inglês? perguntou Ashley, enquanto espreitava para Daniel por cima dos óculos.

 

Alguns espectadores riram-se à socapa, para alegria de Ashley. Adorava manipular as multidões.

 

Daniel inclinou-se para a frente para responder, mas Ashley levantou a mão.

 

Essa questão não é oficial, e não precisa de responder. A escrivã fez o ajustamento na sua máquina.

 

Depois, Ashley olhou para a esquerda.

 

Isto também não é oficial, mas gostaria de saber se o distinto senador de Montana concorda comigo que os médicos desenvolveram propositadamente uma linguagem própria apenas para que metade do tempo nós, comuns mortais, não façamos a menor ideia das coisas que eles estão a dizer.

 

Ouviram-se mais risadas entre os espectadores, quando o senador de Montana ergueu os olhos da sua leitura e acenou um sim entusiástico.

 

Muito bem, onde é que eu ia? perguntou Ashley, enquanto olhava novamente para o seu discurso de abertura. A necessidade desta legislação reside no problema de que, neste país, a biotecnologia em geral e a ciência médica em particular perderam as bases protectoras morais e éticas. Nós, os elementos da Subcomissão de Política de Saúde do Senado, sentimos que é nosso dever, na qualidade de americanos preocupados e morais, inverter esta tendência seguindo a linha dos nossos colegas na Câmara. Os fins não justificam os meios, especialmente no campo da investigação médica, como foi inequivocamente declarado há muito tempo nos Julgamentos de Nuremberga. Esta RSTH é um caso semelhante. Esta técnica ameaça uma vez mais criar embriões pobres e indefesos e depois desmembrá-los com a justificação dúbia de que as células derivadas desses humanos minúsculos, acabados de gerar, serão utilizados para tratar uma vasta gama de pacientes. Mas isto não é tudo. Como ouviremos no depoimento do seu investigador, que temos a honra de ter aqui como testemunha, esta não é uma técnica de clonagem normal, e eu, na qualidade de autor do princípio do projecto de lei, estou chocado por esta técnica estar destinada a tornar-se uma prática corrente. Bem, deixem-me dizer-vos que só por cima do meu cadáver!

 

Ouviram-se aplausos discretos de um pequeno grupo de assistentes. Ashley reforçou as suas palavras com um aceno de cabeça e com uma breve pausa. Depois, respirou fundo.

 

Ora, eu podia falar sobre esta técnica nova, mas não sou médico, e vou deixar isso a cargo do perito, que teve a bondade de se apresentar perante esta subcomissão. Gostaria de começar a interrogar a testemunha, a menos que o meu eminente colega da outra ala, queira proferir algumas palavras.

 

Ashley olhou para o senador sentado à sua direita, o qual abanou a cabeça, tapou o microfone com a mão e inclinou-se para o presidente.

 

Ashley sussurrou ele. Espero que sejas rápido com isto. Eu tenho de sair daqui às dez e meia.

 

Não te preocupes sussurrou Ashley em resposta. Vou directamente à jugular.

 

Ashley bebeu um gole do copo de água que tinha à sua frente e espreitou para Daniel.

 

A nossa primeira testemunha é o brilhante Dr. Daniel Lowell, que, como já referi, é o investigador da RSTH. O Dr. Lowell tem credenciais impressionantes, incluindo mestrados e doutoramentos de algumas das instituições mais prestigiadas do nosso país. Surpreendentemente, até conseguiu arranjar tempo para fazer o internato de clínica geral. Recebeu inúmeros prémios pelo seu trabalho e ocupou cargos de prestígio na empresa farmacêutica Merck e na Universidade de Harvard. Bem-vindo, Dr. Lowell.

 

Muito obrigado, Senador disse Daniel. Endireitou-se na cadeira. Agradeço os seus comentários sobre o meu currículo mas, se me é permitido, gostaria de avançar imediatamente para um ponto específico do seu discurso de abertura.

 

Faça o favor respondeu Ashley.

 

A RSTH e a clonagem terapêutica não envolvem, repito, não envolvem o desmembramento de embriões. Daniel falou lentamente, realçando cada palavra. As células terapêuticas são retiradas antes de cada embrião ter começado a formar-se. São retiradas de uma estrutura chamada blastocisto.

 

Nega que esses blastocistos são vida humana incipiente?

 

São vida humana mas, quando desagregadas, as suas células são semelhantes às células que o senhor perde das gengivas quando lava os dentes vigorosamente.

 

Não me parece que os lave com tanto vigor retorquiu Ashley, com uma breve gargalhada. Alguns espectadores imitaram-no.

 

Todos nós libertamos células epiteliais vivas.

 

Talvez assim seja, mas essas células epiteliais não vão formar embriões como um blastocisto.

 

Poderiam formar declarou Daniel. Esse é o ponto fulcral da questão. Se as células epiteliais forem fundidas com a célula de um ovócito cujo núcleo tenha sido extraído, e depois a combinação for activada, poderiam formar um embrião.

 

Que é o que é feito na clonagem.

 

Precisamente disse Daniel. Os blastocistos têm potencial para formar um embrião viável, mas só se forem implantados num útero. Na clonagem terapêutica, nunca lhes é permitido formarem embriões.

 

Acho que estamos a atolar-nos em semântica declarou Ashley, impaciente.

 

É semântica concordou Daniel. Mas é semântica importante.

 

As pessoas têm de compreender que os embriões não estão envolvidos na clonagem terapêutica nem na RSTH.

 

A sua opinião em relação ao meu discurso de abertura está devidamente registada disse Ashley. Agora, gostaria de passar à técnica propriamente dita. Não se importa de a descrever aqui na audição para a transcrição oficial?

 

Com todo o prazer declarou Daniel. A Recombinação Segmentar Transgénica Homóloga é o nome que demos a uma técnica que envolve a substituição da parte do ADN de um indivíduo responsável por uma doença particular por ADN homólogo e livre dessa mesma doença. Isto é feito no núcleo de uma das células do paciente, que é depois usada para clonagem terapêutica.

 

Pare aíinterrompeu Ashley. Já estou confuso, e tenho a certeza de que a maior parte dos presentes também. Deixe-me ver se percebi bem. O doutor está a falar em pegar na célula de uma pessoa doente e mudar o seu ADN, antes de fazer a clonagem terapêutica.

 

Correcto disse Daniel. Substituir a pequena porção do material genético da célula que é responsável pela doença do indivíduo.

 

E a clonagem terapêutica é depois feita para fabricar um monte destas células para curar o paciente.

 

Novamente correcto! Com diversas hormonas de crescimento, as células são encorajadas a tornarem-se o tipo de células de que o paciente necessita. E, graças à RSTH, essas células não terão a predisposição genética para voltarem a formar a doença que está a ser tratada. Quando essas células são implantadas num paciente, não só o paciente será curado, como não terá tendência genética para voltar a ter a mesma doença.

 

Talvez pudéssemos falar sobre uma doença em particular sugeriu Ashley. Talvez fosse mais fácil para nós, não cientistas, compreendermos. Depreendi por alguns artigos que o doutor publicou que a doença de Parkinson é um dos males que acredita que serão receptivos a este tipo de tratamento.

 

Correcto disse Daniel. Assim como muitas outras doenças, desde a de Alzheimer e da diabetes a certas formas de artrite. É uma lista de doenças impressionante, muitas das quais não tem sido receptivas a um tratamento, e muito menos a uma cura.

 

Por enquanto, vamos concentrar-nos na doença de Parkinson disse Ashley. Por que é que pensa que a RSTH funcionará nestes casos?

 

Porque com a Parkinson temos a sorte de ter um modelo de ratos para testar declarou Daniel. Esses ratos têm a doença de Parkinson, o que quer dizer que nos seus cérebros faltam células nervosas que produzem um composto chamado dopamina, que funciona como neurotransmissor, e a doença deles é uma imagem reflectida da forma humana. Pegámos nestes animais, efectuámos a RSTH e curámo-los permanentemente.

 

Isso é impressionante comentou Ashley.

 

É ainda mais impressionante quando vemos isso acontecer diante dos nossos próprios olhos.

 

As células são injectadas?

 

Sim.

 

E isso não apresenta problemas?

 

Não, absolutamente nenhum esclareceu Daniel. Já há uma experiência considerável na utilização destas técnicas em humanos para outras terapias. A injecção tem de ser aplicada com cuidado, sob condições controladas, mas geralmente não há problema nenhum. Na nossa experiência, os ratos não tiveram quaisquer efeitos nefastos.

 

Os ratos ficam curados pouco depois da injecção?

 

Na nossa experiência, os sintomas de Parkinson começam a desaparecer imediatamente disse Daniel. E continuam rapidamente. Com os ratos que tratámos, foi absolutamente notável. No espaço de uma semana, os animais tratados não se distinguem dos animais saudáveis nos controlos.

 

Suponho que está ansioso por testar isto em humanos sugeriu Ashley.

 

Extremamente admitiu Daniel, com uma série de acenos para dar ênfase às palavras. Depois de completarmos os estudos em animais, que estão a avançar rapidamente, esperamos que a FDA nos dê rapidamente autorização para iniciarmos experiências em humanos num ambiente controlado.

 

Ashley viu Daniel a olhar para a companheira e até a apertar-lhe momentaneamente a mão. Ashley sorriu intimamente, pressentindo que Daniel estava convencido de que o seu depoimento estava a correr bem. Chegara o momento de esclarecer o equívoco.

 

Diga-me, Dr. Lowell - começou Ashley. Alguma vez ouviu o ditado: Se uma coisa parecer boa de mais para ser verdadeira, provavelmente não é?

 

Claro que sim.

 

Bem, eu acho que a RSTH é um exemplo perfeito. Deixando momentaneamente de lado o argumento semântico sobe se os embriões são ou não desmembrados, a RSTH tem outro grande problema ético.

 

Ashley calou-se para conseguir o efeito desejado. As pessoas presentes estavam completamente imóveis.

 

Doutor disse Ashley, num tom condescendente. Alguma vez leu aquele romance clássico de Mary Shelley chamado Frankenstein?

 

A RSTH não tem nada a ver com o mito de Frankenstein disse Daniel indignado, a insinuar que sabia perfeitamente bem onde é que Ashley queria chegar. Insinuar uma coisa dessas é uma tentativa irresponsável de aproveitamento dos medos e ideias erradas do público.

 

Lamento, mas sou obrigado a discordar disse Ashley. Na verdade, estou convencido de que Mary Shelley deve ter tido o pressentimento de que a RSTH ia surgir, e foi por isso que escreveu o seu romance.

 

Os espectadores começaram a rir. Tornou-se aparente que estavam suspensos de cada palavra e que estavam a divertir-se.

 

Ora, eu sei que não tive a vantagem de uma educação na Ivy League, mas li Frankenstein, cujo título inteiro inclui O Prometeu Moderno, e penso que os paralelismos são notáveis. Segundo compreendo, a palavra transgénico, que faz parte do nome confuso da sua técnica, significa tirar partes e pedaços dos genomas de diversas pessoas e misturá-los como se estivesse a fazer um bolo. A este rapaz da província, isso parece muito semelhante ao que Victor Frankenstein fez quando criou o seu monstro, tirando partes de um cadáver e outras partes de outro, e cosendo-as umas às outras. Ele até usou um pouco de electricidade, exactamente como vocês fazem com a vossa clonagem.

 

Com a RSTH estamos a acrescentar extensões relativamente curtas de ADN, não órgãos inteiros retorquiu Daniel, acaloradamente.

 

Acalme-se, Doutor! disse Ashley. Estamos a efectuar uma audição para apurar factos, não uma luta. Onde eu quero chegar é que, com a sua técnica, está a tirar partes de uma pessoa e a colocá-las noutra. Não é verdade?

 

A um nível molecular.

 

Não me interessa a que nível é replicou Ashley. Só quero estabelecer os factos.

 

A ciência médica já efectua transplantes de órgãos há algum tempo

 

disse Daniel, rispidamente. A generalidade do público não vê um problema moral nisso, muito pelo contrário, e o transplante de órgãos é certamente um paralelo conceptual melhor para a RSTH do que o romance do século XIX da Mary Shelley.

 

No exemplo que deu, relacionado com a doença de Parkinson, admitiu que está a pensar injectar esses pequenos Frankensteins moleculares, que está a planear misturá-los para que estes acabem nos cérebros das pessoas. Lamento, Doutor, mas não tem havido muitos transplantes de cérebros no nosso programa actual de transplante de órgãos, por isso não me parece que o paralelismo seja válido. Injectar partes de outra pessoa e colocá-las no cérebro de alguém vai um passo para além do âmbito do meu livro, e acredito que do Livro do Bom Deus.

 

As células terapêuticas que criamos não são Frankensteins moleculares

 

disse Daniel, zangado.

 

A sua opinião foi devidamente registada cortou Ashley. Vamos continuar.

 

Isto é uma farsa! comentou Daniel. Levantou os braços para dar ênfase às suas palavras.

 

Devo recordar-lhe, Doutor, que está a ser ouvido por uma subcomissão do Senado, e espera-se que o senhor se comporte com o devido decoro. Somos todos pessoas razoáveis, e devemos mostrar respeito uns pelos outros, enquanto tentamos fazer todos os possíveis para reunir informações.

 

Está a ficar cada vez mais óbvio que esta audição foi montada sob falsos pretextos. O senhor não veio aqui para obter informações sobre a RSTH com a mente aberta, como sugere com magnanimidade. Está apenas a usar esta audição para se evidenciar com retórica emotiva bem preparada.

 

Eu gostaria que soubesse disse Ashley, condescendente que fazer esse tipo de declarações e acusações inflamadas é especificamente mal visto no Congresso. Isto não é o Crossfire, nem outro circo qualquer dos órgãos de comunicação social. No entanto, recuso-me a ficar ofendido. Em vez disso, vou garantir-lhe uma vez mais que a sua opinião foi devidamente registada, e, como já disse, gostaria de continuar. Na qualidade de investigador da RSTH, dificilmente se pode esperar que seja inteiramente objectivo em relação aos méritos morais da técnica, mas gostaria de o questionar sobre este assunto. Porém, em primeiro lugar, gostaria de dizer que tem sido difícil não reparar na senhora extremamente atraente que se encontra sentada ao seu lado na mesa das testemunhas. Ela está aqui para ajudá-lo a testemunhar? Se for esse o caso, talvez seja boa ideia apresentá-la para ficar registada.

 

É a Dr.a Stephanie D’Agostino disse Daniel, furioso. É a minha colaboradora científica.

 

Outra mestrada e doutorada? perguntou Ashley

 

Tenho um mestrado, mas não um doutoramento disse Stephanie para o seu microfone. E, Sr. Presidente, gostaria de corroborar a opinião do Dr. Lowell sobre a parcialidade com que esta audição tem evoluído, mas sem as suas palavras inflamadas. Acredito fortemente que as alusões ao mito de Frankenstein em relação à RSTH são inadequadas, uma vez que jogam com os medos fundamentais das pessoas.

 

Estou mortificado disse Ashley. Sempre pensei que as pessoas da Ivy League eram viciadas em alusões a muitas e variadas obras-primas da literatura, mas aqui, a única vez que recorro a uma, dizem-me que é inadequado. Ora, isso é justo, especialmente uma vez que me recordo distintamente de me ter sido ensinado na minha pequena faculdade baptista que Frankenstein era, entre outras coisas, um aviso sobre as consequências morais do materialismo científico não controlado? Na minha opinião, isso torna o livro extremamente apropriado. Mas basta deste assunto! Estamos numa audição, não num debate literário.

 

Antes de Ashley poder continuar, Dan aproximou-se por detrás dele e tocou-lhe no ombro. Ashley tapou o microfone com a mão para impedir que os comentários do assessor fossem ouvidos.

 

Senador sussurrou Dan ao ouvido de Ashley.Esta manhã, assim que o pedido para que a Dr.a D’Agostino se pudesse apresentar com o Dr. Lowell na mesa de testemunhas deu entrada, fizemos uma investigação rápida sobre ela. Estudou em Harvard. Cresceu no North End de Boston.

 

E isso tem alguma importância? Dan encolheu os ombros.

 

Pode ser coincidência, mas eu duvido. O investidor da empresa de Lowell que está indiciado e de que o Departamento nos falou também é um D’Agostino, que cresceu no North End. Provavelmente, são parentes.

 

Ora, ora comentou Ashley. Isso é curioso. Pegou na folha de papel que Dan trazia e pousou-a ao lado da declaração financeira da empresa de Daniel. Teve dificuldade em suprimir o sorriso depois de tanta sorte inesperada.

 

Dr.a D’Agostino disse Ashley para o microfone, depois de retirar a mão. Por acaso está relacionada com Anthony D’Agostino, residente no número catorze da Rua Acorn em Medford, Massachusetts?

 

É meu irmão.

 

E trata-se do mesmo Anthony D’Agostino que foi indiciado por extorsão?

 

Infelizmente, sim disse Stephanie. Olhou de relance para Daniel, que a fitou com uma expressão de descrença.

 

Dr. Lowell continuou Ashley. Estava consciente de que um dos seus primeiros e maiores investidores foi indiciado por esse crime?

 

Não, não estava declarou Daniel. Mas ele não é de maneira nenhuma um grande investidor.

 

Hmmm disse Ashley Na minha perspectiva, várias centenas de milhares de dólares é muito dinheiro. Mas não vamos discutir por causa disso. Suponho que ele não é um dos directores?

 

Não, não é.

 

Que alívio. E suponho que podemos presumir que o criminoso indiciado Anthony D’Agostino não faz parte do vosso conselho de ética, que sei que têm.

 

Um riso abafado soou na audição.

 

Ele não faz parte do nosso conselho de ética esclareceu Daniel.

 

Isso também é um alívio. Agora vamos falar por momentos sobre a sua empresa disse Ashley. O nome é CURA, uma palavra muito optimista.

 

É verdade disse Daniel com um suspiro, como se estivesse farto da audição.

 

Lamento se está cansado com os rigores desta audição, Doutor disse Ashley.Vamos tentar despachar as coisas o mais depressa possível. Mas sei que a sua empresa está a tentar obter a segunda fase de financiamento por meio de capitalistas especuladores, com a RSTH como a sua maior propriedade intelectual. O vosso objectivo principal é abrir a empresa ao público através de uma Oferta Pública de Venda?

 

Sim respondeu Daniel simplesmente. Recostou-se para trás na cadeira.

 

Agora, isto não é oficial disse Ashley. Olhou para a sua esquerda. Gostaria de perguntar ao distinto senador do grande Estado de Montana se ele pensa que a Comissão de Valores Mobiliários acharia interessante o facto de um dos investidores iniciais de uma empresa que está a planear abrir o seu capital ao público, estar indiciado por extorsão. Quero dizer, há aqui uma questão de integridade moral. Dinheiro proveniente de extorsão e talvez até de prostituição, tanto quanto sabemos, a ser lavado graças a uma empresa de biotecnologia.

 

Acho que eles ficariam muito interessados respondeu o senador de Montana.

 

Também é essa a minha opinião declarou Ashley. Olhou de novo para os seus apontamentos e depois para Daniel. Segundo sei, a sua segunda fase de financiamento foi retida pelo S. 1103 e pelo facto de a Câmara já ter dado o seu parecer. Estou correcto?

 

Daniel acenou afirmativamente.

 

Tem de falar para a transcrição disse Ashley.

 

Correcto afirmou Daniel.

 

E sei que a sua taxa de consumo, isto é, o dinheiro que está a usar para se manter à tona actualmente, é muito elevada e que se não receber a segunda fase do financiamento vai à falência.

 

Correcto.

 

É uma pena afirmou Ashley, aparentemente solidário. Todavia, para os nossos objectivos aqui nesta audição terei de presumir que a sua objectividade em relação aos aspectos morais da RSTH apresenta sérias dúvidas. Quero dizer, o próprio futuro da sua empresa depende de o S. 1103 não ser aprovado. Não é verdade, Doutor?

 

A minha opinião tem sido e continuará a ser que é moralmente errado não continuar a investigar e usar posteriormente a RSTH para curar inúmeros seres humanos que sofrem.

 

A sua opinião foi registada declarou Ashley. Mas, para que conste do registo, eu gostaria de referir que o Dr. Daniel Lowell optou por não responder à pergunta que lhe foi feita.

 

Ashley recostou-se para trás e olhou para a sua direita.

 

Não tenho mais perguntas para fazer a esta testemunha. Algum dos meus estimados colegas quer apresentar alguma questão?

 

Os olhos de Ashley percorreram os rostos dos senadores sentados no estrado.

 

Muito bem disse Ashley. A Subcomissão de Política de Saúde gostaria de agradecer aos doutores Lowell e D’Agostino a sua simpática participação. E gostaríamos de chamar a próxima testemunha: o Sr. Harold Mendes, da organização Direito à Vida.

 

 

11.05, quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2002

Stephanie viu o táxi no meio da fila compacta de carros, que se aproximavam, e levantou a mão na expectativa. Ela e Daniel tinham seguido uma sugestão que lhes fora dada por um guarda de segurança do Edifício do Senado e tinham ido a pé até à Avenida Constitution na esperança de apanhar um táxi, mas não tinham tido muita sorte. O que começara nessa manhã como um dia razoável, bonito, alterara-se para pior. Nuvens escuras e pesadas tinham vindo de este, e com a temperatura ligeiramente negativa havia uma muito real possibilidade de neve. Aparentemente, nessas condições a procura de táxis excedia largamente a oferta.

 

Lá vem um disse Daniel bruscamente, como se Stephanie tivesse alguma coisa a ver com a falta de táxis. Não o deixes fugir!

 

Estou a vê-lo respondeu Stephanie num tom igualmente crispado. Depois de saírem da audição no Senado, nenhum deles falara muito mais do que o mínimo necessário para decidirem aceitar a sugestão de ir a pé até à Avenida Constitution. Semelhantes às nuvens que se amontoavam, as suas disposições tinham escurecido à medida que a audição matinal avançava.

 

Raios! balbuciou Stephanie quando o táxi passou por eles sem parar. Era como se o motorista usasse uma venda. Stephanie fizera tudo, menos atirar-se para a frente dos carros.

 

Deixaste-o ir queixou-se Daniel.

 

Deixei-o ir? gritou Stephanie. Eu acenei. Eu assobiei. Até saltei para cima e para baixo. Não te vi fazer qualquer esforço.

 

Que diabo vamos fazer? perguntou Daniel. Aqui fora está mais frio do que a mama de uma bruxa.

 

Bem, se tiveres alguma ideia brilhante, diz-me, Einstein.

 

O quê? A culpa de não haver táxis é minha?

 

. Também não é minha retorquiu Stephanie.

 

Abraçaram-se a si próprios numa tentativa vã de se manterem quentes, mas fizeram questão de se manter afastados um do outro. Naquela viagem, nenhum deles trouxera um verdadeiro casaco de Inverno. Tinham pensado que não seriam necessários, pois tinham ido setecentos quilómetros para sul.

 

Lá vem outro disse Daniel.

 

É a tua vez.

 

Com a mão levantada, Daniel aventurou-se até à estrada que pensava ser segura. Quase imediatamente, teve de recuar quando avistou um todo-o-terreno a vir direito a ele pela faixa de emergência. Daniel acenou e gritou, mas o táxi passou na corrente de veículos, sem abrandar.

 

Bom trabalho comentou Stephanie.

 

Cala-te!

 

Precisamente quando estavam prestes a desistir e a começar a caminhar ao longo da Avenida Constitution, um motorista de táxi buzinou. Estivera parado no semáforo da Rua First com a Constitution, e observara os esforços de Daniel. Quando o semáforo mudou, ele voltou para a esquerda e parou junto ao passeio.

 

Stephanie e Daniel instalaram-se no banco de trás e colocaram os cintos de segurança.

 

Para onde? perguntou o motorista, enquanto os observava pelo espelho retrovisor. Usava um turbante e era tão escuro como se tivesse acabado de passar uma semana no Deserto do Sara.

 

Para o Four Seasons disse Stephanie.

 

Stephanie e Daniel mantiveram-se em silêncio, enquanto olhavam pelas respectivas janelas.

 

Eu diria que a audição não podia ter corrido pior queixou-se Daniel por fim.

 

Foi pior do que isso respondeu Stephanie.

 

Não tenho a menor dúvida de que o filho da mãe do Butler vai votar este projecto de lei, e quando isso acontecer já me garantiram na Organização da Indústria Biotecnológica que será aprovado na comissão e no próprio Senado.

 

Então, adeus à CURA, Inc.

 

É uma pena que neste país a investigação médica seja refém de
políticas demagógicas disse Daniel asperamente. Eu nem sequer devia ter sido obrigado a vir a Washington.

 

Bem, talvez não. Talvez tivesse sido preferível teres vindo sozinho. Não há dúvida de que não ajudaste nada quando disseste ao Ashley que ele estava a evidenciar-se e que não tinha uma mente aberta.

 

Daniel virou-se e olhou para a nuca de Stephanie.

 

Que é que disseste? sibilou.

 

Não devias ter perdido o controlo.

 

Não acredito nisto exclamou Daniel. Estás a tentar insinuar que este resultado desastroso é culpa minha?

 

Stephanie virou-se para olhar para Daniel.

 

Ser sensível em relação aos sentimentos das outras pessoas não é um dos teus pontos fortes. E esta audição é a prova disso. Quem sabe o que teria acontecido se não tivesses perdido a calma. Atacá-lo como tu fizeste foi inadequado, porque pôs fim a qualquer diálogo que pudessem ter. É a única coisa que estou a dizer.

 

O rosto pálido de Daniel ficou muito encarnado.

 

Aquela audição foi uma maldita farsa!

 

Talvez tenha sido, mas isso não justifica que o digas na cara de Butler, porque isso deitou por terra qualquer hipótese de sucesso que pudéssemos ter, por muito pequena que fosse. Eu penso que o objectivo dele era enfurecer-te para que a tua imagem ficasse prejudicada, e resultou. Foi a sua forma de te desacreditar como testemunha.

 

Estás a irritar-me.

 

Daniel, eu estou tão irritada com este resultado como tu.

 

Sim, mas estás a dizer que a culpa é minha.

 

Não, estou a dizer que o teu comportamento não ajudou em nada. Há uma diferença.

 

Bem, o teu comportamento também não foi muito útil. Por que é que nunca me disseste que o teu irmão tinha sido indiciado por extorsão? A única coisa que me disseste foi que ele era um investidor qualificado. Que grandes qualificações! Foi o momento perfeito para eu ficar a conhecer esse pequeno pormenor sórdido.

 

Foi depois de ele ter investido, e a notícia saiu nos jornais de Boston. Por isso, não é um segredo, mas foi uma coisa sobre a qual não me apeteceu falar, pelo menos, naquela altura. Pensei que tu não tinhas mencionado o assunto por consideração. Mas devia ter percebido.

 

Não te apeteceu falar no assunto? perguntou Daniel, com uma surpresa exagerada. Tu sabes que eu não me dou ao trabalho de ler os estúpidos pasquins de Boston. Por isso, como é que poderia saber? E acabaria por ter de saber, porque Butler teve razão. Se tivéssemos feito uma OPV, teria de vir a público que tínhamos um criminoso como investidor, e isso teria parado o processo.

 

Ele foi indiciado declarou Stephanie. Não foi condenado. Não te esqueças de que no nosso sistema judiciário, a pessoa é inocente até prova em contrário.

 

Essa é uma desculpa muito esfarrapada para não me teres contado disse Daniel bruscamente. Ele vai ser condenado?

 

Não sei; a voz de Stephanie perdera a irritação, enquanto lutava com alguma dose de culpa por não ter sido mais franca com Daniel em relação ao irmão. De vez em quando pensava falar-lhe sobre o assunto, mas adiava sempre para um amanhã que nunca chegara.

 

Não fazes a menor ideia? Tenho alguma dificuldade em acreditar nisso.

 

Já tinha tido vagas suspeitasadmitiu Stephanie.Tive as mesmas suspeitas em relação ao meu pai, e foi Tony que continuou os negócios dele.

 

De que negócios é que estás a falar?

 

Imobiliários e alguns restaurantes, e também um café em Hanover Street.

 

Só isso?

 

Isso é que não sei. Como disse, tinha suspeitas vagas devido a coisas como pessoas a entrar e a sair da nossa casa a todas as horas do dia e da noite, e das mulheres e crianças a serem mandadas sair da sala no fim de prolongadas refeições de família, para os homens poderem conversar. De muitas maneiras, em retrospectiva, parecia-me que éramos o cliché de uma família italo-americana da Mafia. Certamente não à escala que vemos nos filmes de gangsters, mas modestamente semelhante. Esperava-se que nós, mulheres, nos ocupássemos dos assuntos mundanos, da casa e da igreja, e que não tivéssemos qualquer interesse pelos negócios. Para te dizer a verdade, era embaraçoso para mim, porque nós, miúdos, éramos tratados de forma diferente pela vizinhança. Eu estava morta por sair dali, e era suficientemente inteligente para reconhecer que a melhor maneira era sendo boa aluna.

 

Eu compreendo isso disse Daniel. A rispidez da sua voz também se derreteu. O meu pai também se metia em todos os tipos de negócios, alguns dos quais estavam perto de ser vigarices. O problema é que fracassavam todos, o que quer dizer que, subsequentemente, ele, os meus irmãos e eu tornámo-nos o alvo de piadas na cidade de Revere, especialmente na escola, pelo menos aqueles de nós que não faziam parte do grupo in, o que era seguramente o meu caso. A alcunha do meu pai era «Lowell Falhado», e infelizmente o epíteto tinha tendência para se espalhar.

 

Em relação a mim, foi o oposto disse Stephanie. Éramos tratados com uma espécie de deferência, que não era agradável. Tu sabes como os adolescentes gostam de passar despercebidos. Bem, para mim isso era impossível, e eu nem sabia porquê. Odiava.

 

Por que é que nunca me contaste nada disto?

 

Por que é que nunca me contaste nada sobre a tua família a não ser que tinhas oito irmãos, nenhum dos quais, devo acrescentar, conheço? Pelo menos, eu fiz-te perguntas sobre a tua família em várias ocasiões.

 

Bom argumento disse Daniel vagamente. Os seus olhos deambularam para o exterior, onde se viam alguns flocos de neve solitários a dançar ao sabor das rajadas de vento. Sabia que a verdadeira resposta à pergunta de Stephanie era que nunca se interessara pela família dela, da mesma forma que não se interessava pela sua. Aclarou a garganta e voltou-se novamente para Stephanie.Talvez não tenhamos falado sobre as nossas famílias, porque ambos nos sentimos embaraçados com as nossas infâncias. Ou talvez tenha sido uma combinação disso e da nossa preocupação com a ciência e com a criação da empresa.

 

Talvez concordou Stephanie sem muita convicção. Olhou pelo vidro da frente. É verdade que a vida académica foi sempre o meu escape. Claro que o meu pai nunca aprovou, mas isso só aumentou a minha determinação. Raios, ele achava que eu não devia ir para a universidade. Pensava que era uma perda de tempo e de dinheiro, e dizia que eu ia casar-me e ter filhos como acontecia há cinquenta anos.

 

O meu pai ficou literalmente embaraçado por eu ser bom em ciências. Disse a toda a gente que eu tinha de sair ao lado da minha mãe, como se fosse uma doença genética.

 

E os teus irmãos e irmãs? Foi assim para eles?

 

Até certo ponto, porque o meu pai era uma pessoa suficientemente mesquinha para nos culpar pelos seus fracassos. Sabes, arranjar o capital de que necessitava para concretizar a ideia brilhante para o negócio do momento. Mas os meus irmãos, que eram bons no desporto, tinham mais sorte, pelo menos quando estavam na escola, porque o meu pai era doido por desportos. Mas voltemos ao teu irmão Tony. De quem foi a ideia de ele investir na CURA, tua ou dele? A voz de Daniel recuperou alguma da brusquidão anterior.

 

Isto vai transformar-se novamente numa discussão?

 

Responde à minha pergunta!

 

Que diferença faz?

 

Foi um erro de julgamento monumental permitir que um possível mafioso... ou provável, como pode ser o caso... investisse na nossa empresa.

 

Foi uma combinação dos dois declarou Stephanie. Em contraste com o meu pai, ele interessa-se pelo que eu tenho feito ultimamente, e eu disse-lhe que a biotecnologia era um bom ramo para ele investir algum do dinheiro dos restaurantes.

 

Maravilhoso! exclamou Daniel, sarcasticamente. Espero que percebas que, regra geral, os investidores não gostam de perder dinheiro, apesar de terem sido adequadamente avisados dos riscos das novas empresas. Eu diria que esse tipo de atitude seria aviso suficiente para afastar um mafioso. Alguma vez ouviste falar em inconveniências como patelas esmagadas?

 

Por amor de Deus, ele é meu irmão! Ninguém vai esmagar as rótulas dos joelhos a ninguém.

 

Sim, mas eu não sou irmão dele.

 

É insultuoso sugerires uma coisa dessas declarou Stephanie, furiosa. Virou a cabeça para olhar pela janela. Geralmente, tinha um reservatório de paciência para aturar o sarcasmo, o ego e a negatividade anti-social de Daniel, graças à reverência que sentia pelo seu brilhantismo científico, mas no momento, e devido aos acontecimentos daquela manhã, estava a ficar impaciente.

 

Dadas as circunstâncias, não me apetece muito ficar mais uma noite em Washington declarou Daniel. Acho que devíamos fazer as malas, sair do hotel e voltar para Boston no próximo voo.

 

Por mim, tudo bem retorquiu Stephanie.

 

Stephanie saiu do táxi, enquanto Daniel pagava. Dirigiu-se imediatamente para o átrio do hotel, apenas vagamente consciente de que ele não vinha muito longe dela. Estava suficientemente perturbada para perguntar a si mesma o que faria quando chegassem a Boston. No seu estado de espírito actual, a ideia de voltar para o apartamento de Daniel em Cambridge, onde estava a viver, não era agradável. A sugestão de Daniel de que a sua família era vil o bastante para ser capaz de violência física, era de bradar aos céus. Não sabia ao certo se alguém na sua família estava envolvido em agiotagem ou outras actividades questionáveis, mas tinha a certeza absoluta que nunca ninguém se magoara.

 

Dr.a D’Agostino, por favor! disse um dos recepcionistas em voz bastante alta.

 

Ouvir o seu nome ser chamado inesperadamente no meio do átrio do hotel surpreendeu Stephanie, a ponto de a fazer parar. Daniel colidiu com ela e deixou cair a pasta que trazia na mão.

 

Santo Deus! exclamou Daniel, enquanto se baixava para apanhar os papéis que tinham caído. Um paquete deu uma ajuda. Os papéis eram esquemas muito técnicos da RSTH. Levara-os para a audição para o caso de se justificar a sua apresentação, para que as pessoas compreendessem a técnica. Infelizmente, não tivera a oportunidade de o fazer.

 

Quando Daniel se levantou, Stephanie já voltara do balcão da recepção e estava novamente a seu lado.

 

Podias ter-me dito que ias parar queixou-se Daniel.

 

Quem é Carol Manning? perguntou Stephanie.

 

Não faço a menor ideia. Por que é que perguntas?

 

Tens uma mensagem urgente dela. Stephanie entregou-lhe o papel. Daniel leu-o rapidamente.

 

É suposto eu telefonar-lhe. Diz que é uma emergência. Como é que pode ser uma emergência, se não sei quem ela é?

 

Qual é o código de área? perguntou Stephanie, enquanto espreitava por cima do ombro de Daniel.

 

Dois-zero-dois! disse Daniel. Sabes onde é?

 

Claro que sei! É aqui mesmo em D. C.

 

Washington! exclamou Daniel. Bem, isso resolve a questão amachucou a folha, aproximou-se da recepção e pediu a um dos recepcionistas que a destruísse.

 

Stephanie estava pregada ao sítio onde entregara o bilhete a Daniel. Pensou rapidamente, enquanto observava Daniel a dirigir-se para os elevadores. Tomando uma decisão súbita, correu para a recepção, tirou o bilhete que ainda estava amachucado na mão do recepcionista enquanto este falava com outro hóspede, e correu atrás de Daniel.

 

Acho que devias telefonar disse Stephanie, ligeiramente ofegante, quando chegou junto de Daniel.

 

Oh, a sério? perguntou Daniel desdenhosamente. Não me parece.

 

O elevador chegou e Daniel entrou. Stephanie seguiu-o.

 

Não, eu acho que devias telefonar. Quero dizer, que é que tens a perder?

 

Um pouco mais da minha auto-estima disse Daniel.

 

O elevador subiu. Os olhos de Daniel estavam colados ao botão do andar. Os de Stephanie estavam colados a Daniel. As portas abriram-se. Começaram a percorrer o corredor.

 

Acho que reconheci o prefixo do número por ter ligado para o gabinete do senador Ashley Butler a semana passada. Creio que o prefixo era 224, e se era, então é um número do Edifício de Gabinetes do Senado.

 

Uma razão ainda maior para eu não telefonar declarou Daniel. Abriu a porta do quarto com o cartão e entraram. Stephanie estava mesmo atrás dele.

 

Enquanto Daniel tirava o casaco, Stephanie entrou na sala de estar. Junto à secretária, endireitou o bilhete.

 

É 224 disse para Daniel. ^emergência está sublinhada. Talvez o tipo tenha mudado de ideias!

 

Isso é tão provável como a lua sair da sua órbita disse Daniel, aproximando-se de Stephanie. Baixou os olhos para a mensagem. É esquisito. Que tipo de emergência poderá ser? Originalmente, pensei que era de algum jornalista, mas se é um número do Senado não é possível. Sabes uma coisa, não me interessa. Colaborar com uma pessoa que está relacionada com o Senado dos Estados Unidos não está na minha lista de prioridades neste momento.

 

Telefona! Podes estar a fazer uma asneira enorme. Se não telefonares, telefono eu. Vou fingir que sou a tua secretária.

 

Tu, secretária? Que divertido! Está bem, por amor de Deus, telefona!

 

Vou usar o sistema de alta-voz para poderes ouvir.

 

Maravilhoso disse Daniel, sarcasticamente. Estendeu-se no sofá, com a cabeça num dos braços e os pés no outro.

 

Stephanie marcou o número. Só se ouviu um toque electrónico antes de a chamada ser atendida. Uma voz decididamente feminina lançou um «estou», como se a pessoa estivesse ansiosamente à espera do outro lado.

 

Estou a telefonar em nome do Dr. Daniel Lowell disse Stephanie. Fitou Daniel nos olhos. Fala Carol Manning?

 

Sim. Obrigada por ter telefonado. É extremamente importante que eu fale com o doutor, antes de ele sair do hotel. Ele está disponível?

 

Posso perguntar qual é o assunto?

 

Eu sou a chefe de gabinete do senador Ashley Butler começou Carol.Talvez me tenha visto esta manhã. Estava sentada atrás do senador.

 

Daniel passou rapidamente o dedo indicador pela garganta para que Stephanie desligasse. Ela ignorou-o.

 

Preciso de falar com o doutor continuou Carol. Como disse, é extremamente importante.

 

Acrescentando um esgar zangado, Daniel gesticulou de novo com o dedo, como se estivesse a cortar a garganta. Fê-lo de novo quando Stephanie hesitou.

 

Ela fez-lhe sinal para que parasse com aquilo. Era evidente que ele não estava disposto a falar com Carol Manning, mas ela não pretendia desligar.

 

O doutor está aí? perguntou Carol.

 

Ele está aqui, mas momentaneamente indisposto. Daniel revirou os olhos.

 

Posso saber com quem estou a falar? perguntou Carol. Stephanie hesitou uma vez mais enquanto pensava no que dizer, tendo em conta que dissera a Daniel que ia fingir que era a sua secretária. Pensando que era ridículo, agora que estava ao telefone, disse por fim o seu nome.

 

Oh, óptimo! replicou Carol. Pelo depoimento do Dr. Lowell, depreendo que é colaboradora dele. Posso perguntar se a sua colaboração é íntima e talvez até pessoal?

 

Um sorriso forçado estampou-se no rosto de Stephanie. Olhou para o telefone por um segundo, como se o aparelho pudesse dizer-lhe por que é que Carol Manning estava disposta a quebrar a etiqueta formal e fazer uma pergunta daquelas. Em circunstâncias mais normais, teria irritado Stephanie. Agora, só aumentou a sua curiosidade.

 

Não é minha intenção ser inconveniente acrescentou Carol,. Como se tivesse pressentido a reacção de Stephanie. Esta é uma situação bastante peculiar, mas disseram-me que estava registada na mesma suite. Espero que compreenda que o meu objectivo não é invadir a sua privacidade, mas ser o mais discreta possível. É que o senador gostaria de marcar um encontro secreto com o Dr. Lowell, e nesta cidade não é fácil, tendo em conta a proeminência e notoriedade do senador.

 

A boca de Stephanie abrira-se lentamente, enquanto escutava aquele pedido surpreendente. Até Daniel pousara os pés no chão e estava agora sentado muito direito.

 

Eu esperava continuou Carol, poder comunicar esta mensagem directamente ao Dr. Lowell, para que apenas o senador, o doutor e eu própria soubéssemos do encontro. Obviamente, isso já não é possível. Espero que possamos contar com a sua discrição, Dr.a D’Agostino.

 

O Dr. Lowell e eu trabalhamos muito intimamente disse Stephanie. É claro que pode contar com a minha discrição gesticulou freneticamente para saber se Daniel queria participar na conversa, agora que esta tinha seguido um rumo tão inesperado. Daniel abanou a cabeça, mas fez-lhe sinal para que continuasse.

 

Esperamos que o encontro possa decorrer esta noite disse Carol.

 

Posso dizer ao Dr. Lowell que o encontro é sobre o quê?

 

Não posso dizer-lhe.

 

Não me dizer vai causar um problema declarou Stephanie. Eu sei que o Dr. Lowell não ficou satisfeito com o que se passou na audição desta manhã. Não sei se estará receptivo a um encontro com o senador, a menos que tenha alguma ideia de que será vantajoso para ele. Stephanie olhou para Daniel. Ele ergueu o polegar num sinal de que aprovava a forma como ela estava a tratar do assunto.

 

Isto também é bastante estranho disse Carol. Embora eu seja a chefe de gabinete do senador e normalmente saiba tudo o que se passa, não faço a menor ideia por que é que o senador quer reunir-se com o doutor. A única coisa que o senador disse foi que, embora o Dr. Lowell possa estar irritado com os acontecimentos de hoje, devia abster-se de tirar quaisquer conclusões sobre o S.1103, até se encontrarem.

 

Isso é bastante vago disse Stephanie.

 

É o melhor que posso fazer com as informações de que disponho. No entanto, sugiro veementemente que o doutor se encontre com o senador. Sinto que vai ser vantajoso para ele. Não posso imaginar nenhum outro motivo para este encontro. É bastante invulgar, e eu sei do que estou a falar. Já trabalho com o senador há dezasseis anos.


Onde é que este encontro decorreria? O lugar mais seguro seria um carro em movimento. Isto está a parecer-me exageradamente melodramático. O senador insistiu que o segredo fosse absoluto, e, como eu disse, nesta cidade isso não é fácil.

 

Quem estaria a conduzir o carro?

 

Eu própria.

 

Se este encontro se concretizar, eu tenho de insistir em estar também presente.

 

Daniel revirou novamente os olhos.

 

Como já a pus a par da reunião, presumo que seria aceitável, mas para ter a certeza absoluta terei de perguntar ao senador.

 

Posso presumir que passariam pelo hotel para nos vir buscar? Infelizmente, isso não seria aconselhável. O plano mais seguro seria a doutora e o Dr. Lowell apanharem um táxi para Union Station. Às vinte e uma horas em ponto, eu passo num Chevrolet Suburban preto com vidros foscos e a matrícula GDF471. Paro junto ao passeio directamente em frente da estação. Para o caso de haver algum problema, vou dar-lhe o número do meu telemóvel.

 

Stephanie anotou o número que Carol lhe deu.

 

O senador pode contar com a presença do Dr. Lowell?

 

Eu vou transmitir-lhe as informações exactamente como mas apresentou.

 

Não posso pedir mais nada disse Carol. No entanto, gostaria de realçar uma vez mais a extrema importância deste encontro para o senador e para o Dr. Lowell. O senador usou precisamente estas palavras.

 

Stephanie agradeceu à mulher, disse que voltaria a telefonar dentro de quinze minutos e desligou. Olhou para Daniel.

 

Este é sem dúvida um dos episódios mais bizarros em que já estive envolvida disse ela, quebrando um breve silêncio. Que é que achas? Que diabo pode aquele velho manhoso ter em mente? Infelizmente, só existe uma maneira de sabermos. Achas mesmo que devíamos ir? Vamos colocar as coisas da seguinte forma disse Stephanie. Acho que serias parvo se não fosses. Uma vez que o encontro é secreto, nem sequer tens de te preocupar com a hipótese de perderes mais auto-estima, a menos que te importes com o que o senador Ashley Butler pensa sobre ti, e, sabendo o que pensas dele, não me parece que seja esse o caso.

 

Acreditaste na Carol quando ela disse que não sabia qual era o objectivo da reunião?

 

Sim, acreditei. Detectei alguma mágoa quando falou. O meu palpite é que o senador tem alguma coisa na manga, que nem sequer quis partilhar com a sua chefe de gabinete.

 

Está bem disse Daniel com alguma relutância. Telefona-lhe e diz que estarei em Union Station às nove da noite.

 

Estaremos em Union Station, queres tu dizer replicou Stephanie. Eu não estava a brincar quando falei com a Sr.a Manning. Insisto em ir.

 

Por que não? disse Daniel. Até podíamos fazer uma festa.

 

 

20.15, quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2002

Quando virou para o caminho de acesso e parou, Carol ficou com a impressão de que todas as luzes estavam acesas na modesta casa do senador em Arlington, Virgínia. Olhou para o relógio. Com os caprichos do trânsito de Washington, conseguir chegar a Union Station às nove da noite em ponto, não era a coisa mais fácil do mundo. Esperava ter calculado bem, embora as coisas não estivessem a começar de forma auspiciosa. Demorara mais dez minutos do que pensara a vir do seu apartamento em Foggy Bottom até à casa de Ashley. Felizmente, com o seu plano precavido, dera a si mesma uma margem de mais quinze minutos.

 

Carol deixou o motor ligado, puxou o travão de mão e preparou-se para sair do carro. Mas afinal não foi necessário expor-se ao frio cortante. A porta principal da casa de Ashley abriu-se, e o senador apareceu. Atrás dele estava a sua enorme mulher de quarenta anos, que parecia o epitome da sólida domesticidade, com um avental com franjas de renda sobre um vestido estampado de trazer por casa. Sob a protecção do alpendre e seguindo ordens aparentes, ele lutou para abrir o chapéu de chuva. O que começara nesse dia como alguns flocos de neve, mudara para chuva intensa.

 

Com o rosto escondido por baixo da curva invertida do chapéu de chuva preto, Ashley começou a descer os degraus. Caminhou lenta e deliberadamente, dando a Carol um momento para estudar o homem entroncado, ligeiramente curvado e pesado que noutra vida poderia ter sido um agricultor ou até um metalúrgico. Para Carol, ver o patrão a aproximar-se não foi uma visão particularmente agradável. Havia algo distintamente deprimente e patético naquela cena. O ar nublado e a coloração de sépia ajudavam, assim como o monótono clique-claque dos limpa pára-brisas, enquanto percorriam implacavelmente os seus arcos no vidro molhado. Mas, para Carol, era mais o que sabia do que o que via. Ali estava um homem que ela tinha respeitado quase ao ponto da reverência, por quem fizera inúmeros sacrifícios ao longo de mais de uma década, mas que era agora imprevisível e, ocasionalmente, até mau. Apesar de todos os seus esforços com o senador durante o dia, continuava sem fazer a mínima ideia por que é que ele insistia em manter o encontro clandestino e politicamente arriscado com o Dr. Lowell, e devido à sua insistência em manter segredo absoluto não podera perguntar a mais ninguém. Para piorar as coisas, não conseguia apagar a sensação de que Ashley lhe escondera o motivo do encontro por rancor, apenas porque sabia instintivamente o quão desesperadamente ela o queria saber. Ao longo do último ano, graças a uma série de comentários sarcásticos imerecidos, ela sentia que ele invejava a sua relativa juventude e boa saúde.

 

Carol observou Ashley a parar ao fundo das escadas para se ajustar ao piso plano. Por instantes, pareceu paralisado, uma metáfora da sua teimosia de touro, uma qualidade que Carol em tempos admirara quando envolvia as crenças políticas populistas dele, mas que agora a irritava. No passado, ele lutara pelo poder apenas pelo próprio poder, como se fosse viciado nele. Ela considerara-o sempre um homem grandioso que saberia quando retirar-se, mas agora já não tinha tanta certeza.

 

Ashley começou a caminhar lentamente, e com o seu casaco preto, os ombros arredondados e passinhos curtos e arrastados, fez lembrar a Carol um grande pinguim. O senador foi ganhando velocidade à medida que avançava. Carol esperava que ele desse a volta para se sentar no assento a seu lado. mas ele abriu a porta de trás directamente atrás dela. Ela sentiu o carro a abanar ligeiramente, quando ele entrou. A porta fechou-se com estrondo. Ouviu o chapéu de chuva a cair no chão.

 

Carol virou-se. Ashley recostou-se no assento. À luz fraca, castanho-acinzentada do interior do carro, o rosto dele parecia pálido, quase fantasmagórico, e as suas feições rudes encovaram-se como se tivessem sido comprimidas numa bola de pão cru. Os cabelos grisalhos que, tipicamente, se mantinham no seu lugar, estavam caídos como um monte de lã de aço. As lentes dos óculos de aros grossos reflectiam estranhamente as luzes da casa.

 

Estás atrasada queixou-se Ashley, sem nenhum vestígio de sotaque sulista.

 

Desculpe respondeu Carol por reflexo. Estava sempre a pedir desculpa. Mas acho que vamos chegar a horas. Devemos falar antes de voltarmos para a cidade?

 

Conduz! ordenou Ashley.

 

Carol foi invadida por uma onda de raiva. No entanto conteve-se, sabendo muito bem quais seriam as consequências se expressasse os seus sentimentos. Ashley tinha memória de elefante para quaisquer desrespeitos recebidos, e a maldade da sua vingança era lendária. Carol engrenou a marcha-atrás no grande Suburban e recuou do caminho de acesso.

 

O percurso era simples, com estradas de acesso limitado a maior parte do caminho. Carol percorreu a via rápida 395, agora mais tranquila ao apanhar todos os semáforos verdes. Na artéria principal, ficou satisfeita ao constatar que havia menos tráfego do que quinze minutos antes, e acelerou sem obstáculos para a velocidade máxima permitida. Pressentindo que ia conseguir chegar a horas, descontraiu-se ligeiramente, mas ao aproximarem-se do Rio Potomac, um avião comercial acabado de sair do Aeroporto Nacional Reagan trovejou por cima deles. Carol teve a sensação de que este se encontrava a uns meros dois metros acima deles. Tensa como estava, o ruído inesperado e reverberante assustou-a o suficiente para provocar uma ligeira guinada do carro.

 

Se não soubesse disse Ashley, voltando ao seu característico sotaque sulista arrastado e falando pela primeira vez desde a ordem grosseira, teria jurado pela alma da minha mãe que a turbulência daquele avião se estendeu desde o ar até esta auto-estrada. Tens o domínio completo deste veículo, minha querida?

 

Está tudo bem disse Carol sem mais explicações. Naquele momento, até achava o sotaque teatral de Ashley insuportável, sabendo que ele podia ligá-lo e desligá-lo com a maior das facilidades.

 

Tenho andado a analisar o dossier que tu e o resto do pessoal organizaram sobre o bom doutor disse Ashley após uma breve pausa. Na verdade, já o decorei quase todo. Tenho de te felicitar e a todos os outros. Todos vocês fizeram um belo trabalho. Estou convicto de que sei tanto sobre aquele rapaz como ele próprio.

 

Carol acenou afirmativamente, mas não respondeu. O silêncio voltou a instalar-se até entrarem no túnel que passava por baixo da extensão relvada | de Washington Mail. Sei que estás descontente e zangada comigo disse Ashley, subitamente. E também sei porquê.;

 

Carol olhou de relance para o senador pelo espelho retrovisor. Clarões de luz dos azulejos de cerâmica do túnel reflectiam-se no rosto dele de uma forma trémula, fazendo-o parecer mais fantasmagórico do que antes.

 

Estás zangada comigo, porque eu não te confidenciei os meus motivos para este encontro iminente.

 

Carol voltou a olhar para ele. Estava embasbacada. Uma admissão daquele tipo era totalmente contrária à personalidade dele. Ele nunca sugerira que sabia ou se importava com o que Carol estava a sentir. Assim sendo, era mais uma prova da sua imprevisibilidade actual, e ela não sabia como reagir.

 

Recorda-me uma altura em que a minha mãe estava zangada comigo disse Ashley, acrescentando agora ao sotaque a sua maneira cómica de falar. Carol resmungou no seu íntimo. Era um maneirismo que achava igualmente cansativo. Isto passou-se quando eu era pequeno. Decidi ir pescar sozinho num rio a mais de um quilómetro e meio de distância da nossa casa, onde se dizia que havia peixes-gato do tamanho de tatus. Saí antes de o dia nascer, antes de mais alguém se levantar, e causei uma preocupação tremenda à minha mãe. Quando voltei para casa, ela estava quase doida e agarrou-me pela nuca e exigiu saber por que é que eu não lhe pedira autorização para fazer uma viagem tão arriscada com a minha tenra idade. Eu disse-lhe que não lha pedira porque sabia que ela ia dizer que não. Bem, minha querida Carol, a situação repete-se com o iminente encontro com o médico. Conheço-te bastante bem para saber que farias tudo para me dissuadir, e eu estou empenhado em levar a minha decisão até ao fim.

 

Eu só tentaria demovê-lo se fosse do seu interesse replicou Carol.

 

Há alturas em que a transparência da tua competitividade é flagrante, minha querida. A maior parte das pessoas talvez não acreditassem nas tuas verdadeiras motivações, tendo em conta a tua devoção aparentemente altruísta, mas eu conheço-te melhor.

 

Carol engoliu em seco, enervada. Não sabia ao certo como reagir ao comentário pomposo de Ashley, mas sabia que não queria ir na direcção que ele insinuara, mostrando que conhecia as suas ambições nunca expressas. Em vez disso, perguntou:

 

Pelo menos, discutiu este encontro com Phil para se certificar das suas potenciais ramificações políticas?

 

Céus, não! Não discuti o encontro com ninguém, nem sequer com a minha mulher, abençoada seja ela. Tu, os doutores e eu próprio somos as únicas pessoas que sabem que ele vai acontecer daqui a alguns minutos.

 

Carol saiu da auto-estrada e dirigiu-se para a Avenida Massachusetts. Ficou aliviada por estarem a aproximar-se de Union Station e isso inviabilizar a possibilidade de a conversa voltar ao tópico dos seus objectivos tácitos. Olhou para o relógio. Faltava um quarto para as nove.

 

Vamos chegar um pouco antes da hora disse ela.

 

Então abranda um bocado sugeriu Ashley. Eu preferia chegar exactamente à hora combinada. Vai dar o tom certo ao encontro.

 

Carol voltou à direita na North Capital e depois à esquerda na D. Era uma zona conhecida, devido à sua proximidade com o Edifício do Senado. Faltavam três minutos para as nove, quando se aproximou de Union Station. Quando parou directamente em frente da estação, eram nove horas em ponto.

 

Ali estão eles disse Ashley, apontando sobre o ombro de Carol. Daniel e Stephanie estavam abrigados sob um chapéu de chuva do Four Seasons. Sobressaíam da multidão pela sua imobilidade. Todas as outras pessoas nas redondezas procuravam abrigo, ou na estação ou num dos táxis parados.

 

Carol fez sinal de luzes para chamar a atenção dos dois doutores.

 

Não há motivo para fazer um alarde desses resmungou Ashley Eles já nos viram.

 

Daniel olhou para o relógio antes de se dirigir para o Suburban. Stephanie apoiava-se no seu braço esquerdo.

 

Stephanie e Daniel aproximaram-se da janela de Carol. Ela baixou o vidro.

 

Sr.a Manning? perguntou Daniel, desenvoltamente.

 

Estou no banco de trás, Doutor! disse Ashley antes de Carol poder responder. Que tal sentar-se aqui ao pé de mim e a sua lindíssima colaboradora ir para junto da Carol à frente?

 

Daniel encolheu os ombros antes de ele e Stephanie darem a volta ao carro. Segurou o chapéu de chuva para Stephanie entrar, e depois entrou também.

 

Bem-vindo! disse Ashley, encantado, enquanto estendia uma das mãos grandes e com dedos grossos. Obrigado por ter vindo encontrar-se comigo numa noite tão terrivelmente chuvosa.

 

Daniel olhou para a mão de Ashley mas não fez qualquer movimento para apertá-la.

 

Que é que tem em mente, Senador?

 

Ora aqui temos um verdadeiro yankee disse Ashley alegremente. Baixou a mão e, aparentemente, não se ofendeu com a grosseria de Daniel. Sempre prontos a irem directos ao assunto, sem perder tempo com os refinamentos da vida. Bem, como queira. Mais tarde teremos tempo para apertos de mão. Entretanto, o que eu pretendo é que nos conheçamos melhor. Estou muito interessado nos seus talentos esculapianos.

 

Para onde, Senador? perguntou Carol, enquanto espreitava para Ashley pelo espelho retrovisor.

 

Que tal levarmos os nossos bons doutores a dar uma volta pela nossa bela cidade? sugeriu Ashley. Vai para o Tidal Basin, para que eles possam apreciar o memorial mais elegante da nossa cidade!

 

Carol engrenou o carro e dirigiu-se para sul na Rua First. Carol e Stephanie trocaram um olhar rápido e avaliador.

 

Aqui está o Capitólio à direita disse Ashley, a apontar. E à nossa esquerda situa-se o Supremo Tribunal, cuja arquitectura eu adoro, e a Biblioteca do Congresso.

 

Senador declarou Daniel. Com o devido respeito, que receio não ser muito, não estou interessado em que nos mostre a cidade, nem estou interessado em conhecê-lo melhor, especialmente depois da audição ridícula por que nos fez passar esta manhã.

 

Meu caro, caro amigo... começou Ashley após um breve silêncio.

 

Que tal se parasse com o estilo bombástico sulista! atirou Daniel, desdenhosamente. E, para que fique bem claro, eu não sou seu caro amigo. Nem sequer sou seu amigo.

 

Com o devido respeito, Doutor, e estou a falar com sinceridade, o senhor prejudica-se muito ao ser tão malcriado. Se me permite um conselho: prejudica a sua causa quando permite que as suas emoções se sobreponham ao seu intelecto considerável, como aconteceu esta manhã. Apesar da animosidade adequadamente expressa que sente por mim, quero negociar consigo de homem para homem e, de preferência, de cavalheiro para cavalheiro, um assunto extremamente importante mas sensível. Ambos temos uma coisa que o outro deseja, e para realizar esses desejos cada um tem de fazer algo que preferia não fazer.

 

Está a falar com charadas resmungou Daniel.

 

Talvez esteja admitiu Ashley.Já consegui atrair o seu interesse? Não vou continuar, a menos que esteja convencido do seu interesse. Ashley ouviu Daniel a exalar impacientemente e, pela linguagem corporal, imaginou que o médico revirara os olhos, mas não pôde ter a certeza devido à escuridão em que o carro estava mergulhado. Ashley esperou enquanto Daniel espreitava rapidamente pela janela para os edifícios smithsonianos que iam ficando para trás.

 

A simples admissão do seu interesse não o obriga a nada nem o coloca em qualquer espécie de perigo disse Ashley. Mais ninguém, com excepção das pessoas que se encontram neste carro, sabe que estamos a falar esta noite, desde que, evidentemente, não tenha informado ninguém.

 

Teria sido embaraçoso contar a quem quer que fosse.

 

Eu decidi ser imune à sua grosseria, Doutor, como fui imune esta manhã à falta de cortesia que evidenciou com as suas roupas, com a sua linguagem corporal desdenhosa e com os seus ataques verbais à minha pessoa. Como sou um cavalheiro, podia ter-me sentido insultado, mas não senti. Por isso, não se canse! O que quero saber é se estaria interessado em negociar.

 

Concretamente, que é que eu estaria a negociar?

 

A viabilidade da sua empresa recém formada, a sua carreira actual, a sua hipótese de ser célebre e, talvez mais importante, uma oportunidade para evitar o fracasso. Tenho razões para acreditar que o fracasso é um anátema especial para si.

 

Daniel olhou para Ashley à média luz. Ashley sentiu a intensidade do olhar do médico, apesar de ser incapaz de ver os pormenores. O senador ficou confiante de que estava de facto a tocar de perto no íntimo do homem.

 

O senhor acredita que eu sou particularmente adverso ao fracasso? perguntou Daniel, num tom de voz menos sardónico do que o anterior.

 

Absolutamente retorquiu Ashley. O doutor é uma pessoa poderosamente competitiva, o que, combinado com o seu intelecto, tem sido a força motora do seu sucesso. Mas as pessoas poderosamente competitivas não gostam de falhar, especialmente quando parte da sua motivação é escapar ao passado. O senhor portou-se bem e já percorreu um longo caminho desde Revere, Massachusetts, e no entanto o seu pior pesadelo envolve uma queda que o obrigaria a voltar às raízes da sua infância. Não é uma preocupação racional, tendo em conta as suas credenciais, mas no entanto persegue-o.

 

Daniel soltou uma gargalhada curta e triste.

 

Como é que lhe ocorreu essa teoria ridiculamente bizarra? perguntou.

 

Eu sei muito sobre si, meu amigo. O meu pai dizia-me sempre que conhecimento era poder. E, como íamos negociar, tive o cuidado de aproveitar os meus recursos consideráveis, incluindo contactos no FBI, para saber o mais possível sobre si e sobre a sua nova empresa. Na verdade, não só sei coisas sobre si, como sobre várias gerações da sua família.

 

Mandou o FBI investigar-me? inquiriu Daniel. Não sei bem se acredito em si.

 

Mas devia acreditar! Deixe-me transmitir-lhe alguns pontos altos do que se revelou uma história extremamente interessante. Em primeiro lugar, está directamente relacionado com a famosa família Lowell da Nova Inglaterra, referida na famosa descrição da sociedade de Boston, onde os Lowell só falam com os Cabot e os Cabot só falam com Deus. Ou será ao contrário? Podes ajudar-me nisto, Carol?

 

O senhor explicou-o correctamente, Senador disse Carol.

 

Estou aliviado declarou Ashley. Não quero prejudicar a minha credibilidade tão cedo no meu discurso. Infelizmente, Doutor, estar relacionado com os famosos Lowell não o ajudou. Parece que o seu avô alcoólico foi renegado e, mais importante, deserdado após desafiar os desejos da família saindo do liceu para se alistar no exército como soldado de infantaria durante a primeira guerra mundial, e casando com uma plebeia de Medford, depois de ser desmobilizado. Parece que teve uma experiência tão devastadora na Europa durante o serviço militar que ficou psicologicamente incapaz de se reintegrar na sociedade privilegiada. Isto em claro contraste, é claro, com os irmãos e irmãs, que não tinham estado na guerra e que estavam a aproveitar os excessos dos alegres anos vinte e que, mesmo que tivessem corrido o risco de se tornarem alcoólicos, estavam pelo menos a concluir os estudos e a casar com pessoas socialmente aceitáveis.

 

Não estou a achar isto divertido, Senador. Podemos ir directamente ao assunto?

 

Paciência, meu amigo disse Ashley. Deixe-me trazer a história para o presente. Parece que o seu avô paterno alcoólico também não foi um pai especialmente bom, nem um bom modelo de comportamento para os seus dez filhos, um dos quais era o seu pai. Tal pai tal filho é certamente aplicável ao seu pai, que sofreu durante o serviço militar na segunda guerra mundial. Embora conseguisse quase sempre evitar o alcoolismo, dificilmente poderá ser considerado um bom pai ou um modelo para os seus nove filhos, como tenho a certeza que concordará. Felizmente, com a sua competitividade, intelecto e oportunidade para evitar uma experiência na guerra do Vietname, quebrou esta espiral descendente de gerações, mas não sem algumas cicatrizes.

 

Pela última vez, Senador, a menos que me diga o que pretende em inglês simples, insisto que nos leve novamente para o nosso hotel.

 

Mas já lhe disse declarou Ashley. No momento em que entrou no carro.

 

Então, é melhor dizê-lo novamente disse Daniel, irritado. Aparentemente, foi tão subtil que não percebi.

 

Eu disse-lhe que estava interessado nos seus talentos esculapianos.

 

Evocar o deus grego da cura continua a fazer disto uma charada para a qual eu não estou com paciência. Sejamos específicos, especialmente porque estava a falar disto como tratando-se de uma negociação.

 

Especificamente, quero trocar os seus poderes de médico pelos meus poderes de político.

 

Eu sou um investigador, não um médico no activo.

 

No entanto, não deixa de ser médico, e a investigação que faz é para curar pessoas. Continue a falar. O que estou prestes a dizer-lhe é fulcral para o motivo por que estamos aqui a falar os dois. Mas tenho de ter a sua palavra de honra da que o que lhe vou dizer ficará confidencial, independentemente do desfecha deste encontro.

 

Se for puramente pessoal, não tenho o menor problema em guardar segredo. Excelente! E Dr.a D’Agostino! Dá-me a sua palavra de honra? Claro que sim gaguejou Stephanie, surpreendida por se dirigirem inesperadamente a ela. Estava torcida no banco, a olhar para trás, para os dois homens. Estava naquela posição desde que o senador começara a falar sobre o medo que Daniel tinha de fracassar. Carol esforçava-se para se concentrar na condução e reduzira consideravelmente a velocidade. Embasbacada com a conversa que se desenrolava no banco de trás, os seus olhos estavam mais na imagem de Ashley no retrovisor do que na estrada. Tinha a certeza de que sabia o que Ashley se preparava para dizer, e percebera agora qual o seu plano. Estava estarrecida.

 

Ashley aclarou a garganta.

 

Infelizmente, foi-me diagnosticada a doença de Parkinson. Para piorar as coisas, o meu neurologista acredita que eu tenho uma variante que progride rapidamente, e parece ser esse o caso. Na última consulta, ele até levantou o espectro de a doença poder começar a afectar as minhas capacidades cognitivas muito em breve.

 

Durante alguns momentos, o silêncio no carro foi absoluto. Há quanto tempo sabe?perguntou Daniel.Eu não notei nenhum tremor.

 

Há cerca de um ano. A medicação tem ajudado, mas como o meu neurologista tinha previsto está a perder a eficácia com muita rapidez. Assim, a minha enfermidade será do conhecimento público em breve, a menos que alguma coisa seja feita, e depressa. E receio que a minha carreira política esteja em causa.

 

Espero que toda esta charada não esteja a levar-nos onde eu penso declarou Daniel.

 

Imagino que está admitiu Ashley. Doutor, eu quero ser a sua cobaia ou, mais precisamente, o seu rato substituto. O senhor tem tido imensa sorte com os seus ratos, como declarou orgulhosamente esta manhã.

 

Daniel abanou a cabeça.

 

Isto é absurdo! Quer que eu o trate como tenho tratado os nossos ratos!

 

Precisamente, Doutor. Muito bem, eu sabia que não quereria por uma série de razões, e é por isso que esta discussão é uma negociação.

 

Seria contra a lei interrompeu Stephanie. A FDA nunca o permitiria.

 

Não estava nos meus planos informar a FDA declarou Ashley, calmamente. Eu sei como eles podem ser complicados de vez em quando.

 

Teria de ser feito num hospital disse Stephanie. E, sem a aprovação da FDA, nenhum hospital daria autorização.

 

Nenhum hospital neste país acrescentou Ashley. Na verdade, eu estava a pensar nas Bahamas. É uma época do ano bastante agradável para ir para as Bahamas. Para além do mais, há lá uma clínica que serviria lindamente para os nossos objectivos. Há seis meses, a minha Subcomissão de Política de Saúde teve uma série de audições sobre a perigosa falta de regulamentação de clínicas de tratamento da infertilidade neste país. Uma clínica chamada Wingate foi apresentada na audição como um exemplo de como algumas dessas clínicas estão a ignorar até os padrões mínimos para terem um lucro enorme. A Clínica Wingate tinha-se mudado recentemente para a Ilha de New Providence para evitar as poucas leis aplicáveis à sua prática, que incluíam algumas actividades muito questionáveis. Mas o que me chamou especialmente a atenção foi que estavam a construir um centro de investigação e um hospital completamente novos e com equipamento sofisticadíssimo.

 

Senador, há motivos para que a investigação médica comece com animais antes de passar para os humanos. Fazer o contrário não é ético, na melhor das hipóteses, e uma loucura na pior. Eu não posso fazer parte de uma coisa dessas.

 

Eu sabia que no começo não ia ficar entusiasmado com a ideia disse Ashley.Uma vez mais, é por isso que este encontro é uma negociação. Sabe, eu estou disposto a prometer-lhe sob a minha palavra de honra que o meu projecto de lei, S. 1103 nunca sairá da subcomissão se o doutor aceitar tratar-me com a sua RSTH em segredo absoluto. Isso significa que a segunda fase de financiamento será paga e a sua empresa poderá continuar em exercício, e o doutor tornar-se-á o empresário famoso do ramo da biotecnologia que aspira ser. Quanto a mim, o meu poder político ainda é ascendente e vai manter-se com essa tendência, desde que esta ameaça da Parkinson seja retirada. Assim... em consequência de cada um fazer o que preferiria não fazer, ambos ganhamos.

 

Que é que está a fazer que preferiria não fazer? perguntou Daniel.

 

Estou a aceitar o risco de ser cobaia declarou Ashley. Sou o primeiro a admitir que gostava que os nossos papéis estivessem invertidos, mas a vida é assim. Também estou a arriscar consequências políticas dos meus constituintes conservadores, que esperam que o S.1103 seja votado fora da subcomissão.

 

Daniel abanou a cabeça, espantado.

 

Isto é absurdo comentou ele.

 

Mas há mais disse Ashley. Consciente do risco que estou a correr com esta nova terapia, não me parece que a nossa troca de serviços seja igual. Para rectificar esse desequilíbrio e para ajudar o risco, exijo alguma intervenção divina.

 

Tenho medo de lhe perguntar o que quer dizer com intervenção divina.

 

Segundo percebi, se me fosse tratar com a sua RSTH precisaria de um segmento de ADN que não tenha a doença de Parkinson.

 

Exactamente, mas não importa quem é a pessoa. Não há mistura de tecidos, como acontece com os transplantes de órgãos.

 

Para mim, a pessoa é importante disse Ashley. Também compreendi que o senhor poderia tirar esse pequeno segmento de ADN de uma amostra de sangue?

 

Não seria possível retirá-lo de glóbulos vermelhos, que não têm núcleo disse Daniel. Mas podia retirá-lo de glóbulos brancos, que se podem encontrar sempre no sangue. Por isso, sim, podia retirá-lo do sangue.

 

Deus seja louvado pelos glóbulos brancos exclamou Ashley. Ora, o que me interessa é a fonte do sangue. O meu pai era um ministro baptista, mas a minha mãe, que Deus tenha a sua alma em descanso, era uma católica irlandesa. Ensinou-me algumas coisas que ficaram comigo a vida inteira. Deixe-me fazer-lhe uma pergunta: sabe o que é o Sudário de Turim?

 

Daniel olhou de relance para Stephanie. Um sorriso forçado de descrença estampara-se-lhe no rosto.

 

Eu fui educada na fé católica disse Stephanie. Sei o que é o Sudário de Turim.

 

Eu também sei o que é disse Daniel. É uma relíquia religiosa que, alegadamente, foi a mortalha com que Jesus Cristo foi enterrado, e que se provou ser falsa há cerca de cinco anos.

 

Verdade disse Stephanie. Mas foi há mais de dez anos. A datação por carbono provou que era de meados do século XIII.

 

O relatório da datação por carbono não me interessa declarou Ashley. Especialmente porque foi contestado por vários cientistas eminentes. Mesmo que o relatório não tivesse sido contestado, o meu interesse seria o mesmo. O sudário tinha um lugar muito especial no coração da minha mãe, e alguma dessa devoção passou para mim, quando ela me levou a mim e aos meus dois irmãos mais velhos a Turim para o ver quando eu não passava de um fedelho nada impressionável. Esquecendo as preocupações sobre a autenticidade, o que é incontestável é que há manchas de sangue no tecido. Quase toda a gente concorda com isso. Eu quero que a pequena secção de ADN necessária para a RSTH venha do Sudário de Turim. É essa a minha exigência e a minha oferta.

 

Daniel riu com ironia.

 

Isto é mais do que absurdo. É uma loucura. Para além do mais, como é que eu conseguiria obter uma amostra de sangue do Sudário de Turim?

 

Isso é da sua responsabilidade, Doutor replicou Ashley. Mas estou disposto a ajudá-lo e tenho meios para o fazer. Tenho a certeza de que posso obter pormenores sobre o acesso ao sudário através de um dos conhecidos do meu arcebispo, que estão sempre dispostos a trocar favores para terem uma consideração política especial. Por acaso, sei que há amostras do sudário que foram tiradas, oferecidas, e depois recuperadas pela igreja. Talvez fosse possível arranjar uma dessas, mas o doutor teria de ir buscá-la.

 

Estou sem palavras admitiu Daniel, tentando esconder o seu divertimento.

 

Isso é inteiramente compreensível disse Ashley. Tenho a certeza de que esta oportunidade que lhe propus o apanhou desprevenido. Não estou à espera que me responda imediatamente. Como homem ponderado que é, tinha a certeza de que gostaria de reflectir sobre o assunto. A minha sugestão é que me telefone, e vou dar-lhe um número especial para o fazer. Mas gostaria de dizer que, se não tiver notícias suas até amanhã às dez horas da manhã, presumirei que resolveu não aproveitar a minha oferta. Às dez horas, mandarei os meus funcionários agendarem uma votação do S. 1103 pela subcomissão o mais depressa possível para que possa passar à comissão e depois ao Senado. E já sei que o lobby BIO o. informou que o S. 1103 será aprovado sem problemas.

 

22.05, quinta-feira, 21 de Fevereiro de 2002

As luzes traseiras do Suburban de Carol Manning esbateram-se à medida que o veículo descia a Avenida Louisiana, misturando-se de seguida com o tráfego antes de desaparecer na escuridão geral da noite. Stephanie e Daniel observaram-nas até elas deixarem de se ver, e depois olharam um para o outro. Os seus narizes estavam a poucos centímetros de distância, já que os corpos estavam encostados sob o chapéu de chuva. Estavam uma vez mais imóveis no passeio diante de Union Station, como acontecera uma hora antes quando estavam à espera de que os fossem buscar. Nessa altura, estavam curiosos por antecipação. Agora, estavam perplexos.

 

Amanhã de manhã, vou jurar que tudo isto não passou de uma alucinação disse Stephanie, a abanar a cabeça.

 

Definitivamente, há uma irrealidade de sonho em tudo o que nos aconteceu admitiu Daniel.

 

Bizarro é um adjectivo melhor.

 

Daniel baixou os olhos para o cartão profissional do senador, que este colocara na sua mão livre. Virou-o. Escrevinhado com a caligrafia incerta do senador, via-se um número de telemóvel que devia ser usado para contactá-lo directamente nas próximas doze horas. Daniel olhou para o número como se estivesse a memorizá-lo.

 

De repente, levantou-se uma rajada de vento que mudou momentaneamente a chuva fina da vertical para a horizontal. Stephanie estremeceu quando a humidade lhe salpicou o rosto.

 

Está frio. Vamos voltar para o hotel! Não faz sentido estarmos aqui parados para ficarmos encharcados.

 

Como se estivesse a despertar de um transe, Daniel pediu desculpa e olhou para a praça, em frente da estação. Havia uma paragem de táxis de um lado, com diversos táxis convenientemente parados. Daniel virou o chapéu de chuva contra o vento e puxou Stephanie para a frente. Chegou junto ao primeiro táxi da fila e segurou o chapéu para Stephanie antes de ele próprio entrar. Hotel Four Seasons disse Daniel para o motorista, que estava a observá-los pelo espelho retrovisor.

 

Esta noite foi irónica e bizarra disse Stephanie inesperadamente, quando o táxi arrancou. No mesmo dia em que me falas um pouco sobre a tua família, oiço a história toda pela boca do senador Butler.

 

Eu acho isso mais irritante do que irónico afirmou Daniel. Raios, é uma violação infame da minha privacidade ele ter-me mandado investigar pelo FBI. Também é aviltante que o FBI o fizesse. Quero dizer, eu sou um cidadão privado e não sou suspeito de qualquer crime. Um abuso destes parece dos tempos de J. Edgar Hoover.

 

Então, tudo o que Butler disse sobre ti é verdade?

 

Basicamente, penso que sim respondeu Daniel vagamente. Escuta, vamos falar sobre a oferta do senador.

 

Posso dizer-te desde já qual é a minha reacção. Acho que é uma porcaria!

 

Não vês nenhum aspecto positivo?

 

O único aspecto positivo é que isto confirmou as nossas impressões do homem como um demagogo de quinta-essência. Também é um hipócrita detestável. É contra a RSTH por razões puramente políticas, e está disposto a banir esta técnica e a sua investigação apesar do seu potencial para salvar vidas e aliviar sofrimento. Ao mesmo tempo, quer beneficiar dela. É obsceno e indesculpável, e certamente não vamos fazer-lhe a vontade. Stephanie soltou uma pequena gargalhada irónica. Lamento ter dado a minha palavra de honra em como manteria a doença dele em segredo. Os órgãos de comunicação social morreriam por uma história destas, e eu adoraria que eles a tivessem.

 

É claro que não podemos falar com os órgãos de comunicação social declarou Daniel categoricamente. E acho que não devíamos ser precipitados. Penso que a oferta do senador Butler merece alguma reflexão.

 

Surpreendida, Stephanie virou-se para olhar para Daniel. Tentou observar o rosto dele à luz fraca.

 

Não estás a falar a sério, pois não?

 

Vamos listar os factos conhecidos. Dominamos bem a técnica dos neurónios de dopamina que crescem a partir de células estaminais, por isso não estamos propriamente às apalpadelas na escuridão em relação a esse aspecto.

 

Fizemos experiências com células estaminais de murinos, não com células humanas.

 

O processo é o mesmo. Colegas já o fizeram com células estaminais humanas recorrendo à mesma metodologia. Fazer as células não vai ser um problema. Depois de termos as células, podemos seguir o mesmo protocolo que utilizámos para os ratos. Não há motivo para que não resulte com um humano. Afinal de contas, cada rato que tratámos teve um comportamento notavelmente bom.

 

Excepto os que morreram.

 

Sabemos porque motivo os que não conseguiram, morreram. Foi antes de aperfeiçoarmos a técnica da injecção. Todos os ratos que foram bem injectados sobreviveram e ficaram curados. Com um voluntário humano, teríamos disponível um dispositivo estereotáxico, que não existe para os roedores. Isso tornará a injecção mais exacta, infinitamente mais fácil, e, consequentemente, mais segura. Para além disso, não seríamos nós próprios a administrar a injecção. Procuraríamos um neurocirurgião que estivesse disposto a dar uma ajuda.

 

Não posso acreditar que estou a ouvir isto exclamou Stephanie. Parece que já te convenceste a fazer esta experiência doida e nada ética, e é isso mesmo que vai ser: uma experiência descontrolada e arriscada, com uma única cobaia humana. Seja qual for o resultado, não terá qualquer valor excepto, possivelmente, para Butler.

 

Eu não sou da tua opinião. Ao concordarmos em utilizar esta técnica, estamos a salvar a CURA e a RSTH, o que significa que milhões de pessoas poderão beneficiar. Parece-me que um compromisso insignificante como a ética é um preço baixo a pagar por um retorno enorme do outro lado.

 

Mas estaremos a fazer precisamente o que, no seu discurso de abertura esta manhã, o senador Butler acusou a indústria biotécnica de fazer: usar os fins para justificar os meios. Pura e simplesmente, não seria ético fazer a experiência com o senador Butler.

 

Sim, bem, talvez até certo ponto, mas quem é que estamos a colocar em risco? Ele é o vilão! É ele que está a pedir. Pior ainda, é conivente com isso ao fazer chantagem connosco com as informações que obteve ao coagir, não sei como, o FBI a fazer uma investigação ilegal.

 

Tudo isso pode ser verdade, mas dois males não fazem um bem, e não nos absolve da cumplicidade.

 

Eu acho que sim. Vamos obrigar Butler a assinar uma declaração, e pomos tudo nessa declaração, incluindo o facto de estarmos plenamente conscientes de que aplicar a técnica seria considerado contrário à ética por qualquer comissão consultiva de investigação neste país, porque está a ser efectuada sem um protocolo adequado. Na declaração constará inequivocamente que foi ideia de Butler aplicar esta técnica, e aplicá-la fora do país. Também constará que recorreu à chantagem para nos convencer a participar.

 

Achas que ele vai assinar uma declaração dessas?

 

Não lhe vamos dar escolha. Ou assina ou não tem o benefício da RSTH. Ele está confiante com a ideia de que vamos aplicar a técnica nas Bahamas, por isso não estaremos a violar qualquer regra da FDA, e nós teremos uma declaração sólida como uma rocha no caso de precisarmos. O ónus ficará totalmente nos ombros do Butler.

 

Deixa-me pensar nisso durante alguns minutos.

 

Pensa o tempo que quiseres, mas eu estou plenamente convencido de que o peso moral favorece a concretização. Seria diferente se estivéssemos a obrigá-lo de qualquer maneira. Mas não estamos. É precisamente o contrário.

 

Mas pode argumentar-se que ele não está informado. Ele é um político, não um médico. Não está verdadeiramente a par dos riscos. Pode morrer.

 

Ele não vai morrer disse Daniel enfaticamente. Vamos pecar por conservadorismo excessivo, o que quer dizer que o pior cenário é não lhe aplicarmos células suficientes para elevar a concentração de dopamina o bastante para ele se livrar de todos os sintomas. Se isso acontecer, vai implorar-nos para que o tratemos novamente, o que será fácil, já que manteremos as células de tratamento em cultura.

 

Deixa-me pensar no assunto.

 

Claro disse Daniel.

 

Seguiram o resto do caminho em silêncio. Só quando estavam no elevador do hotel é que Stephanie falou:

 

Achas mesmo que conseguiríamos encontrar um local apropriado para aplicar a técnica?

 

Butler já se dedicou bastante a tudo isso declarou Daniel. Ele não queria deixar nada ao acaso. Francamente, eu ficaria chocado se ele não tivesse mandado investigar a Clínica Wingate para se certificar de que é apropriada, ao mesmo tempo que me mandou investigar a mim.

 

Suponho que isso é possível. Na verdade, recordo-me de ler sobre a Clínica Wingate há cerca de um ano. Era uma clínica de tratamento de infertilidade popular e não filiada em Bookford, Massachusetts, antes de se mudar, à pressa, para as Bahamas. Foi um escândalo bastante grande.

 

Eu também me recordo. Era dirigida por dois tarados. O departamento de investigação deles estava a fazer experiências de clonagem nada éticas.

 

Pouco escrupulosas é uma descrição melhor, como tentar que fetos humanos fizessem a gestação em porcas. Recordo-me de que estiveram igualmente implicados no desaparecimento de duas dadoras de óvulos de Harvard. Os directores tiveram de fugir do país e evitaram por pouco serem extraditados para os Estados Unidos. Bem vistas as coisas, parece o oposto absoluto do género de lugar e de pessoas com quem deveríamos envolver-nos.

 

Nós não estaríamos a envolver-nos com eles. Fazemos o nosso trabalho, lavamos as mãos e saímos.

 

As portas do elevador abriram-se. Começaram a percorrer o corredor até à suite.

 

E a questão do neurocirurgião? perguntou Stephanie. Achas sinceramente que vamos conseguir encontrar alguém disposto a participar neste esquema? Ele ou ela saberá que há algo suspeito.

 

Com o incentivo adequado, isso não deverá constituir um problema. O mesmo acontece com a clínica.

 

Estás a referir-te a dinheiro.

 

Claro! O motivador universal.

 

E quanto ao pedido de segredo feito por Butler? Como é que lidaríamos com isso?

 

O segredo é mais um problema dele do que nosso. Nós não vamos usar o seu nome verdadeiro. Sem aqueles óculos e o fato escuro, acho que ele é um tipo de homem bastante indefinido e insignificante. Com uma camisa berrante de mangas curtas e óculos escuros, talvez ninguém o reconheça.

 

Stephanie usou o seu cartão para abrir a porta. Despiram os casacos e foram para a sala de estar.

 

Queres alguma coisa do minibar? sugeriu Daniel.Apetece-me comemorar. Há duas horas, pensei que estávamos presos debaixo de uma nuvem negra. Agora, há um raio de sol.

 

Apetece-me beber um pouco de vinho respondeu Stephanie. Esfregou as mãos uma na outra para aquecê-las, antes de se enroscar na ponta do sofá.

 

Daniel tirou a rolha de garrafa pequena de cabernet e deitou uma quantidade generosa num balão. Estendeu-o a Stephanie antes de se servir de um uísque escocês puro. Sentou-se na outra ponta do sofá. Brindaram e beberam.

 

Então, queres avançar com este plano doido? perguntou Stephanie.

 

Quero, a menos que consigas dar-me uma razão que me obrigue a não o fazer.

 

Que tal este disparate do Sudário de Turim? Quero dizer, intervenção divina! Que ideia tão absurda e presunçosa!

 

Discordo. Acho que é um golpe de génio.

 

Só podes estar a brincar!

 

De maneira nenhuma! Seria o derradeiro placebo, e sabemos até que ponto os placebos podem ser poderosos. Se ele quer acreditar que vai ficar com um pouco do ADN de Jesus Cristo, eu não tenho nada a objectar. Dar-lhe-á um incentivo poderoso para acreditar na cura. Acho que é uma ideia brilhante. Não estou a sugerir que temos de tirar o ADN do Sudário. Podemos simplesmente dizer-lhe que o tirámos, e daria o mesmo resultado. Mas podemos pensar melhor no assunto. Se existir sangue no sudário como ele afirma, e conseguirmos ter acesso a ele como ele sugere, funcionaria.

 

Mesmo que a mancha de sangue seja do século XIII?

 

A idade não deverá fazer qualquer diferença. O ADN estaria em fragmentos, mas isso não constituiria um problema. Usaríamos a mesma sonda que utilizaríamos numa amostra fresca de ADN para formar o segmento de que precisamos, e depois aumentá-la-íamos por PCR. Em muitos sentidos, acrescentaria um pouco de desafio e excitação. A parte mais difícil seria resistir à tentação de descrever o procedimento para a| Nature ou para a Science depois do facto consumado. Podes imaginar o método para se obter grandes quantidades de um fragmento específico de ADN. O PCR amplifica rapidamente uma molécula de ADN em biliões de moléculas. (N. da T.)

 

Nós não vamos poder publicar este caso disse Stephanie.

 

Eu sei! Mas é engraçado pensar em ser precursor de coisas futuras. O próximo passo será uma experiência controlada, e certamente poderemos publicar isso. Nesse ponto, a CURA estará na ribalta, e as nossas desgraças de financiamento serão coisa do passado.

 

Quem me dera poder partilhar do teu entusiasmo.

 

Acho que vais partilhar, quando as coisas começarem a encaixar-se no seu lugar. Embora o tempo não tivesse sido mencionado esta noite, presumo que o senador estará ansioso para despachar o assunto o mais depressa possível. Isso significa que devíamos dar início aos preliminares amanhã, quando voltarmos para Boston. Eu vou tratar de tudo para fazer as reservas na Clínica Wingate e para arranjar um neurocirurgião. Que tal se te ocupasses tu do pedaço do Sudário de Turim?

 

Pelo menos, isso será interessante disse Stephanie, a tentar demonstrar algum entusiasmo com a ideia de tratar Butler, apesar do que a sua intuição lhe dizia. Gostarei muito de saber por que é que a Igreja ainda considera que é uma relíquia depois de ter sido provado que é falso.

 

Obviamente, o senador pensa que é real.

 

Se bem me lembro, a datação por carbono foi confirmada por três laboratórios independentes. Seria difícil contradizer uma coisa dessas.

 

Bem, vejamos o que consegues descobrir disse Daniel. Entretanto, é melhor começarmos a planear algumas viagens concretas.

 

Estás a referir-te a Nassau?

 

Nassau e, provavelmente, Turim, dependendo do que descobrires.

 

Onde é que vais desencantar dinheiro para essas viagens?

 

Do Ashley Butler.

 

As sobrancelhas de Stephanie ergueram-se.

 

Afinal de contas, talvez esta brincadeira não seja má de todo.

 

Então, alinhas nisto comigo? perguntou Daniel.

 

Sim, acho que sim.

 

Não estás muito convencida.

 

Neste momento, é a melhor resposta que posso dar-te. Mas imagino que vou ficar mais entusiasmada à medida que as coisas forem evoluindo, como tu sugeriste.

 

Eu vou aceitar tudo o que conseguiranunciou Daniel. Levantou-se do sofá e, ao passar por Stephanie, apertou-lhe o ombro. Vou beber mais um uísque. Deixa-me encher o teu copo.

 

Daniel serviu as bebidas e voltou a sentar-se. Depois de olhar rapidamente para o relógio, colocou o cartão de Butler à sua frente e pôs o telefone na mesa de apoio.

 

Vamos contar a novidade ao senador. Tenho a certeza de que ele vai ficar irritantemente presunçoso mas, para usar a frase dele, a vida é assim. Daniel usou o botão do auscultador para obter linha. Marcou o número e o telefone foi atendido rapidamente. O tom de barítono de Butler, arrastado e sulista, inundou a sala.

 

Senador disse Daniel, interrompendo o cumprimento verboso de Ashley. Não é minha intenção ser grosseiro, mas é tarde e só quero dizer-lhe que decidimos aceitar a sua oferta.

 

Maravilhoso! entoou Ashley. E tão depressa! Eu estava com medo de que deixassem esta decisão tão simples arruinar o vosso sono e que só telefonassem amanhã de manhã. Bem, estou muito satisfeito! Posso presumir que a Dr.a D’Agostino concordou em participar também?

 

Concordei disse Stephanie, a tentar parecer optimista.

 

Excelente, excelente! ecoou Ashley. Não que esteja surpreendido, já que este assunto é para benefício de todos nós. Mas acredito muito sinceramente que ter a mesma opinião e unanimidade de propósito é essencial para o sucesso, e sem dúvida que queremos o sucesso deste empreendimento.

 

Presumimos que gostaria de fazer isto imediatamente disse Daniel.

 

Sem dúvida, meus queridos amigos. Sem dúvida. Estou com o tempo contado para esconder a minha enfermidade explicou Ashley. Não há tempo a perder. Convenientemente para os nossos objectivos, vai haver uma interrupção nos trabalhos do Senado em breve. Começa dentro de aproximadamente um mês, a 22 de Março, e estende-se até ao dia 8 de Abril. Normalmente, eu vou para casa para fazer contactos políticos, mas em vez disso é o período de tempo que tenho em mente para o meu tratamento. Um mês é um período de tempo suficiente para vocês, cientistas, fazerem as células curativas adequadas?

 

Daniel olhou de relance para Stephanie e falou em voz baixa, pouco acima de um sussurro:

 

É menos do que eu pensava que ele queria. Que é que pensas? Achas que conseguimos?

 

É arriscado sussurrou Stephanie com um encolher de ombros. Primeiro, precisaríamos de alguns dias para fazer a cultura dos fibroblastos dele. Depois, presumindo uma transferência nuclear bem sucedida que criasse um pré-embrião viável, precisaríamos de cinco ou seis dias para que o blastocisto se formasse. Depois disso, são necessárias duas semanas de cultura com células alimentadoras depois de colhermos as células estaminais.

 

Há algum problema? perguntou Ashley. Não consigo ouvir o que vocês estão a dizer. Só um segundo, Senador! disse Daniel para o auscultador. Estou a falar com a Dr.a D’Agostino sobre o tempo. Ela vai ter de fazer a maior parte do trabalho de laboratório.

 

Nessa altura teremos de fazê-las diferenciarem-se em células nervosas perfeitas acrescentou Stephanie. Isso leva mais duas semanas, ou talvez um pouco menos. As células de rato ficavam boas ao fim de apenas dez dias.

 

Então qual é o teu palpite, se correr tudo bem? perguntou Daniel. Um mês seria suficiente?

 

Teoricamente, é possível disse Stephanie. Poderia ser feito, mas teríamos de começar quase imediatamente o trabalho celular, no máximo amanhã! O problema com essa ideia é que teríamos de ter ovócitos humanos disponíveis, e não temos.

 

Oh, céus! balbuciou Daniel. Mordeu o lábio inferior e franziu a testa. Estou tão acostumado a trabalhar com um fornecimento de óvulos de vaca que me esqueci da dificuldade de obtenção de óvulos humanos.

 

É um entrave importante admitiu Stephanie. Mesmo na melhor das hipóteses em que já tivéssemos uma dadora disponível, necessitaríamos de cerca de um mês para estimulá-la e retirá-los.

 

Bem, talvez os nossos amigos da clínica de tratamento de infertilidade possam ajudar-nos também em relação a este assunto. Como têm um centro de infertilidade em funcionamento, seguramente terão alguns óvulos extra disponíveis. Tendo em conta a reputação de pouco éticos, aposto que com o incentivo certo conseguiremos convencê-los a fornecerem-nos o que precisamos.

 

Suponho que é possível, mas nesse caso ficaríamos ainda mais ligados a eles. Quanto mais fizerem por nós, menos fácil será lavarmos as mãos e sairmos como tu tão jovialmente, sugeriste há alguns momentos.

 

Mas não temos muitas opções. A alternativa é desistir da CURA, da RSTH e de todo o nosso sangue, suor e lágrimas.

 

A decisão tem de ser tua. Mas, para que fique registado, sinto-me mal em ficar a dever qualquer tipo de favores àquela gente da Wingate, tendo em conta a história deles.

 

Daniel acenou algumas vezes enquanto reflectia sobre as implicações, suspirou e depois virou-se para o telefone.

 

Senador, talvez seja possível termos algumas células de tratamento dentro de um mês. Mas tenho de avisá-lo de que vai ser preciso esforço e alguma sorte, e temos de começar imediatamente. O senhor vai ter de colaborar.

 

Serei obediente como um cordeiro. Já iniciei o processo há um mês, ao fazer planos para chegar a Nassau no dia 23 de Março e para ficar na ilha todo o tempo que for necessário, durante o período de encerramento do Senado. Até fiz uma reserva para o doutor. É para que veja como eu estava confiante da sua participação. É importante ter tratado do assunto atempadamente, porque nesta altura do ano é época alta nas Bahamas. Vamos ficar no complexo turístico Atlantis, onde tive o prazer de me hospedar o ano passado, já com este plano em mente. É um complexo hoteleiro com tamanho suficiente para proporcionar um anonimato adequado de idas e vindas, sem levantar suspeitas. Também têm um casino, e como deve imaginar eu gosto de jogar quando tenho a sorte de ter alguns dólares a mais no bolso.

 

Daniel trocou olhares com Stephanie. Por um lado, estava contente por Ashley ter feito reservas com tempo para ajudar o projecto, mas por outro lado ficou irritado por o senador ter presumido que ele não recusaria.

 

O senhor vai ficar registado com o seu nome? perguntou Stephanie.

 

Claro que sim declarou Ashley. Mas usarei um nome falso para a minha viagem à Clínica Wingate.

 

E quanto a esta clínica? perguntou Daniel. Espero que a tenha investigado tão minuciosamente como investigou o meu passado.

 

Pode acreditar que sim. Acho que vai descobrir que a clínica é perfeitamente adequada para os seus objectivos, embora o pessoal possa não estar à altura. O suposto director da clínica é o Dr. Spencer Wingate, que é um gabarola, embora aparentemente bem qualificado no campo da infertilidade. Parece mais interessado na vida social da ilha e o seu maior desejo é ir para o continente para animar os negócios na sociedade europeia.

 

O homem que o secunda no poder é o Dr. Paul Saunders, e é ele que dirige o dia-a-dia da clínica. É um indivíduo mais complicado, que se vê como um investigador de nível mundial apesar da falta de especialização apropriada, para além da infertilidade clínica. Estou confiante de que os dois indivíduos estarão dispostos a colaborar se apelar às suas vaidades pessoais. Para eles, a perspectiva de trabalharem com alguém com as suas credenciais e estatuto é uma oportunidade que só aparece uma vez na vida.

 

Lisonjeia-me, Senador.

 

Stephanie sorriu com o sarcasmo de Daniel.

 

Só porque é bem merecido replicou Ashley. Para além disso, uma pessoa tem de ter fé no seu médico.

 

Não sei porquê, mas acho que os doutores Wingate e Saunders estarão mais interessados em dinheiro do que no meu currículo disse Daniel.

 

Eu estou convencido de que eles estarão interessados no seu currículo para obterem reconhecimento e para os ajudar a ganhar dinheiro comentou Ashley. Mas a sua natureza venal e a falta de preparação para a investigação não nos diz respeito, para além de estarmos conscientes dela e podermos aproveitá-la. Nós só estamos interessados nas suas instalações e equipamento.

 

Espero que perceba que efectuar esta técnica, sob estas circunstâncias, não vai ser nada barato.

 

Eu também não gostaria que fosse barato retorquiu Ashley. Quero a versão cara, de alta qualidade e de primeira classe. Fique tranquilo que eu tenho acesso a fundos mais do que suficientes para cobrir quaisquer despesas que sejam necessárias para salvar a minha carreira política. Mas espero que os seus serviços pessoais sejam gratuitos. Afinal de contas, estamos a trocar serviços.

 

De acordo disse Daniel. Mas, antes de prestarmos quaisquer serviços, a Dr.a D’Agostino e eu queremos que assine uma declaração especial que vamos elaborar. Esta declaração vai descrever a forma exacta como este assunto começou bem como todos os riscos envolvidos, incluindo o facto de que nunca aplicámos esta técnica num ser humano.

 

Desde que me garantam a confidencialidade dessa declaração, não tenho qualquer problema em assiná-la. Compreendo que a queiram para se protegerem. Estou absolutamente certo de que quereria a mesma coisa se estivesse no vosso lugar, por isso não haverá problema nenhum, desde que não inclua qualquer coisa disparatada ou desapropriada.

 

Posso garantir-lhe que será razoável disse Daniel. A seguir, gostaria de o encorajar a usar os seus recursos, como sugeriu, para descobrir como poderemos aceder ao Sudário de Turim para obtermos uma amostra.

 

Já dei instruções à Sr.a Manning para iniciar as devidas reuniões com os diversos prelados com quem tenho um relacionamento profissional. Suponho que acontecerão nos próximos dias. Seria precisa uma amostra muito grande?

 

Pode ser extremamente pequenadisse Daniel. Algumas fibras seriam suficientes, mas teriam de ser fibras provenientes de uma parte do sudário que contivesse uma mancha de sangue.

 

Ashley riu-se.

 

Até um não cientista ignorante como eu presumiria isso. O facto de necessitar apenas de uma pequena amostra vai ajudar incomensuravelmente. Como mencionei a noite passada, sei que algumas amostras foram levadas e depois recolhidas pela igreja.

 

Precisaríamos delas o mais depressa possível acrescentou Daniel.

 

Compreendo inteiramente a necessidade de celeridade replicou Ashley. Precisam de mais alguma coisa de mim?

 

Sim disse Stephanie. Precisamos que faça uma biópsia à pele, amanhã de manhã. Se quisermos ter hipótese de produzir as células curativas num mês, temos de levar a sua biópsia connosco, quando voltarmos amanhã para Boston. O seu médico particular pode marcar uma biópsia num dermatologista, que poderá mandar um correio entregá-la no hotel. Servirá como fonte de fibroblastos que crescerão numa cultura de tecidos.

 

Vou tratar disso logo de manhã.

 

Creio que por agora é tudo disse Daniel. Olhou para Stephanie, e ela acenou em sinal de concordância.

 

Tenho um pedido pessoal, vitalmente importante, a fazer-vos disse Ashley.Acho que devíamos trocar endereços electrónicos especiais e usar a Internet para todas as nossas comunicações, que seriam genéricas e curtas. A próxima vez que falarmos directamente deveria ser na Clínica Wingate, na Ilha de New Providence. Estou empenhado em que este assunto seja um segredo bem guardado, e quanto menos contacto directo tivermos, melhor. É aceitável?

 

Absolutamente concordou Daniel.

 

Quanto a dinheiro para despesas disse Ashley, mandar-vos-ei por correio electrónico o número de uma conta confidencial num banco offshore em Nassau, aberta por uma das minhas comissões de acção política, de onde poderão retirar fundos. Claro que vou querer um relatório de despesas no futuro. É aceitável?

 

Desde que haja dinheiro suficiente disse Daniel. Uma das maiores despesas será obter os óvulos humanos necessários.

 

Reitero disse Ashley que haverá fundos mais do que adequados à vossa disposição. Fiquem tranquilos!

 

Alguns minutos depois, após despedidas prolongadas de Ashley, Daniel inclinou-se para a frente e desligou o sistema de alta-voz. Levou o telefone para a mesa do fundo. Depois, virou-se para olhar para Stephanie.

 

Tive de me rir quando ele chamou gabarola ao director da Clínica Wingate. Diz o roto ao nu, «que vestes tu?».

 

Estavas certo quando disseste que ele tinha pensado muito neste assunto. Fiquei chocada quando ele disse que fizera as reservas para a viagem, há um mês. Não tenho a menor dúvida de que ele mandou investigar a Clínica Wingate.

 

Já te sentes melhor quanto a estares envolvida na cura dele?

 

Até certo ponto admitiu Stephanie. Especialmente desde que ele disse que não se oporá a assinar uma declaração elaborada por nós. Pelo menos, ficarei com a sensação de que ele teve em conta a natureza experimental do que está a fazer e dos riscos inerentes. Eu não estava nada segura disso anteriormente.

 

Daniel deslizou pelo sofá, pôs os braços à volta de Stephanie e puxou-a contra o seu corpo. Sentiu o coração dela a bater no peito. Afastou-se para a observar e mergulhou nas profundezas escuras dos seus olhos.

 

Agora que, aparentemente, temos as coisas sob controlo na arena política-empresarial-de investigação, que tal começarmos onde parámos a noite passada?

 

Stephanie retribuiu o olhar de Daniel.

 

É uma proposta?

 

Claro que sim.

 

O teu sistema nervoso autónomo vai colaborar?

 

Muito mais do que a noite passada, posso garantir-te. Daniel levantou-se e ajudou Stephanie a levantar-se também.

 

Esquecemo-nos do cartão de não incomodar disse Stephanie, enquanto Daniel a puxava ansiosamente para o quarto.

 

Vamos viver perigosamente disse ele, com um piscar de olhos.

 

 

14.35, sexta-feira, 22 de Fevereiro de 2002

Stephanie acordou cedo na manhã seguinte e ficou a pensar nos pormenores do projecto Butler. A sua intuição negativa em relação ao tratamento da doença de Parkinson do senador não se alterara, mas havia demasiadas coisas para fazer e não podia ficar obcecada com essas sensações. Antes mesmo de tomar um duche, usou o seu computador portátil para mandar uma série de mensagens ao senador sobre a maneira de fazer a biópsia.

 

Em primeiro lugar, queria a biópsia o mais cedo possível nessa manhã. Em segundo lugar, queria ter a certeza absoluta de que era uma amostra de pele com espessura completa, porque precisaria de células da parte mais profunda da derme. E em terceiro lugar queria que a amostra fosse simplesmente colocada num recipiente com fluido de cultura de tecido e não congelada ou sequer gelada. Estava confiante de que o tecido se manteria em perfeitas condições à temperatura ambiente até voltar para o laboratório em Cambridge, onde o trataria adequadamente. O seu objectivo era fazer uma cultura dos fibroblastos do senador, cujos núcleos usaria para criar as células que o tratariam. Tivera sempre mais sorte com células frescas do que congeladas quando fazia RSTH seguida de transferência nuclear, ou clonagem terapêutica, como algumas pessoas insistiam em chamar ao processo.

 

Para surpresa de Stephanie, e apesar de ser tão cedo, o senador respondeu-lhe quase imediatamente, sugerindo não só que se levantava sempre cedo como estava empenhado no projecto, como, aliás, já o declarara na noite anterior. Na sua mensagem, ele garantia-lhe que já mandara telefonar para o seu médico e quando ele telefonasse comunicar-lhe-ia os pedidos dela e insistiria para que fossem concretizados o mais depressa possível.

 

Daniel estava eléctrico desde que atirara os cobertores para trás. Também ele estava ao seu computador portátil, a enviar mensagens por correio electrónico. Vestido apenas com o roupão turco do hotel, escreveu uma mensagem para o grupo de capital de risco da Costa Oeste que expressara interesse em investir na CURA, mas mostrara relutância em libertar quaisquer fundos até a questão do projecto de lei do senador Butler estar resolvida. Daniel queria informá-los de que o projecto de lei estava destinado a ficar permanentemente na subcomissão e que já não representava uma ameaça. Daniel teria gostado de explicar como tivera acesso a esta informação, mas sabia que não podia. Daniel não esperava uma mensagem dos possíveis investidores nas próximas horas, uma vez que eram apenas quatro horas da madrugada na Costa Oeste quando a sua mensagem entrara na World Wide Web. No entanto, estava confiante de que responderiam.

 

Num impulso extravagante, pediram o pequeno-almoço no quarto. Por insistência de Daniel, incluía mimosas. Na brincadeira, ele dissera a Stephanie que era bom que ela se fosse acostumando àquela vida, porque seria a ordem do dia quando a CURA se tornasse pública.

 

Já estou farto da pobreza académica declarou ele. Vamos estar na lista A, e vamos viver à grande!

 

Às nove e um quarto, ficaram ambos surpreendidos com um telefonema do recepcionista a dizer que um correio deixara uma encomenda de uma Dr.a Claire Schneider marcada URGENTE. Perguntaram se desejavam que fosse entregue directamente no quarto, e eles responderam que sim. Como pensavam, o pacote continha a biópsia de pele de Butler, e ficaram profundamente impressionados com a eficiência do senador. A amostra chegara várias horas mais cedo do que eles tinham previsto.

 

Com a biópsia em mãos, tinham conseguido apanhar o avião das dez e meia para Boston, e chegaram ao Aeroporto Logan, pouco depois do meio-dia. Na sequência de uma experiência de táxi ainda mais arrepiante do que as de Washington, pelo menos para Daniel, com um motorista paquistanês num veículo a cair aos bocados, foram deixados no apartamento de Daniel, num condomínio na Rua Appleton. Uma mudança de roupa e um almoço rápido seguidos de uma viagem curta no Ford Focus de Daniel e chegaram às instalações actuais da CURA a este de Cambridge, na Rua Athenaeum. Entraram pela porta principal. A empresa ocupava o apartamento do rés-do-chão imediatamente à direita da entrada.

 

Quando Daniel fundara a CURA, a empresa ocupava a maior parte do rés-do-chão do edifício de escritórios do século XIX, recentemente renovado. Mas à medida que o buraco orçamental aumentava, o espaço foi a primeira coisa a desaparecer. Actualmente, tinha um décimo do tamanho original, com um único laboratório, dois gabinetes pequenos e uma zona de recepção. A segunda coisa a ir foi o pessoal não essencial. Os funcionários incluíam Daniel e Stephanie, que já não recebiam ordenados há quatro meses, outro cientista principal chamado Peter Conway, Vicky McGowan e três técnicos de laboratório que em breve seriam reduzidos para dois, ou talvez até para um. Daniel ainda não decidira. O que Daniel não mudara fora o conselho de administração, o conselho consultivo científico e o conselho de ética, que pretendia manter no escuro em relação ao caso Butler.

 

Só são duas e trinta e cinco anunciou Stephanie, depois de fechar a porta. Eu diria que é uma boa hora, tendo em conta que acordámos em Washington D. C.

 

Daniel limitou-se a resmungar. A sua atenção estava concentrada em Vicky, a secretária telefonista-recepcionista, que estava a entregar-lhe um monte de mensagens telefónicas, algumas das quais precisavam de explicação. Em particular, as pessoas do grupo de capital de risco da Costa Oeste tinham telefonado ao invés de responder à mensagem de correio electrónico que Daniel lhes enviara. Segundo Vicky, tinham ficado pouco satisfeitos com a informação recebida e queriam saber mais pormenores.

 

Stephanie deixou Daniel a tratar dos assuntos empresariais e foi para o laboratório. Cumprimentou Peter, que estava sentado à frente de um dos microscópios de dissecação. Enquanto Stephanie e Daniel tinham ido para Washington, ele ficara para continuar todas as experiências da empresa.

 

Stephanie colocou o seu computador portátil na superfície de pedra da bancada do laboratório, que usava como secretária; o seu gabinete particular tinha sido sacrificado na redução do espaço inicial. Com a biópsia de pele de Butler na mão, dirigiu-se para uma área de trabalho do laboratório. Retirou o pedaço de pele assepticamente, moeu-a e depois colocou o material moído num meio de cultura novo, juntamente com antibiótico. Depois de a amostra estar armazenada em segurança numa incubadora dentro do tubo de ensaio, voltou para a área que usava como secretária.

 

Como é que correram as coisas em Washington?perguntou Peter.

 

Era um homem de constituição magra que parecia um adolescente, apesar de ser mais velho do que Stephanie. As suas características mais distintivas eram as roupas maltrapilhas e os cabelos louros que usava apanhados num rabo-de-cavalo. Stephanie pensara sempre que ele podia ser um cartaz para os anos sessenta, dominados pelos hippies.

 

Em Washington correu tudo bem respondeu Stephanie vagamente. Ela e Daniel tinham decidido não contar aos outros sobre o senador Butler até o facto estar consumado.

 

Então, continuamos operacionais? perguntou Peter.

 

Parece que sim respondeu Stephanie. Ligou o computador à corrente e ligou-o. Pouco tempo depois, estava na Internet.

 

O dinheiro de São Francisco vem? insistiu Peter.

 

Vais ter de perguntar a Daniel replicou Stephanie. Eu tento manter-me longe do lado empresarial das coisas.

 

Peter percebeu a mensagem implícita e voltou ao seu trabalho.

 

Stephanie estava ansiosa para começar a investigar o assunto do Sudário de Turim, desde o momento em que Daniel sugerira que se encarregasse disso como contributo inicial para o projecto Butler. Pensara em começar nessa manhã depois de tomar duche e antes de a biópsia da pele de Butler ter chegado, mas decidira não o fazer porque ligar-se à Internet com um modem era agonizantemente lento agora que estava mimada com a ligação de banda larga da CURA. Para além do mais, pensou que pouco depois de começar a trabalhar teria de desligar. Agora, tinha o resto da tarde à sua frente.

 

Seleccionou o motor de busca Google, digitou SUDÁRIO DE TURIM e clicou no botão de PESQUISA. Não fazia ideia do que podia esperar. Embora se lembrasse de referências imprecisas ao sudário quando era criança e ainda católica praticante, bem como algo sobre ter sido declarado falso após datação por carbono quando estava no primeiro ano da faculdade, não pensava na relíquia há anos e presumira que as outras pessoas faziam o mesmo. Afinal de contas, que relevância podia ter uma falsificação do século XIII? Mas um piscar de olhos depois, quando a pesquisa do Google ficou completa, soube que estava enganada. Surpreendida, viu-se a olhar para o número de resultados: mais de vinte e oito mil e trezentos!

 

Stephanie clicou no primeiro resultado, chamado Página Oficial do Sudário de Turim, e na hora seguinte, esteve completamente absorta na quantidade de informações disponíveis. Na página de introdução, leu que o sudário era o artefacto mais estudado na História da Humanidade! Devido ao seu relativo desconhecimento na matéria, achou que era uma afirmação surpreendente, especialmente tendo em conta o seu interesse genérico pela História; a sua cadeira nuclear fora química, embora tivesse História como cadeira opcional. Também leu que uma série de especialistas eram da opinião de que a questão da autenticidade do sudário como um artefacto do século I não ficara resolvida com os resultados da datação por carbono. Como mulher de ciência, e conhecendo a precisão da datação por carbono, não conseguia compreender como é que alguém podia ter tal opinião e estava ansiosa para descobrir. Mas antes de o fazer usou a página para observar fotografias do sudário, que estavam apresentadas em formato positivo e negativo.

 

Stephanie soube que a primeira pessoa a fotografar o sudário em 1898 ficara surpreendida por a imagem ser significativamente mais óbvia no negativo, e ela achou o mesmo. Na revelação, a imagem era ténue, e olhar para ela e tentar ver a figura fez-lhe lembrar um dos seus passatempos de Verão na infância: tentar ver rostos, pessoas ou animais nas variações infinitas das nuvens. Mas, no negativo, a imagem era impressionante! Era claramente a de um homem que fora espancado, torturado e crucificado, o que levantava a questão de como é que um falsificador medieval podia ter antecipado o desenvolvimento da fotografia. O que surgira na revelação como simples manchas eram agora regatos de sangue agonizantemente reais. Olhando de novo para a imagem revelada, ficou surpreendida por o sangue ter mantido a sua cor encarnada.

 

No menu principal da Página Oficial do Sudário de Turim, Stephanie clicou num botão denominado PERGUNTAS MAIS FREQUENTES. Uma das perguntas mais frequentes era se alguma vez se tinha efectuado um teste de ADN ao sudário. Empolgada, Stephanie clicou na pergunta. Na resposta dada, ficou a saber que investigadores do Texas tinham encontrado ADN nas manchas de sangue, embora houvesse algumas dúvidas em relação à proveniência da amostra testada. Havia também questões sobre quanta contaminação do ADN poderia ter sido deixada por todas as pessoas que tinham tocado no sudário ao longo dos séculos.

 

A Página Oficial do Sudário de Turim também continha uma bibliografia extensa, e Stephanie observou-a atentamente. Uma vez mais, ficou surpreendida com a sua extensão. Com a curiosidade agora aguçada e sendo amante de livros, procurou uma série de títulos. Saiu da página do sudário e procurou a página oficial de uma livraria, que apresentou uma centena de títulos, muitos dos quais eram os mesmos que constavam da página oficial do sudário. Depois de ler algumas críticas, seleccionou alguns dos livros que queria ter imediatamente. Estava especialmente interessada nos de Ian Wilson, um professor muito erudito de Oxford, que era citado como apresentando os dois lados da controvérsia em relação à autenticidade do sudário, embora estivesse convencido de que era verdadeiro, significando não só que era um artefacto do século I como que era a mortalha de Jesus Cristo!

 

Stephanie pegou no telefone e ligou para a livraria mais próxima. Foi recompensada ao saber que a loja tinha um dos títulos em que ela estava interessada. Era O Sudário de Turim: A Prova Ilustrada, de Ian Wilson e Barrie Schwortz, um fotógrafo profissional que fizera parte de uma equipa americana, que estudara minuciosamente o sudário, em 1978. Stephanie pediu que reservassem o livro em seu nome.

 

Voltou à página oficial da livraria e encomendou mais alguns livros sobre o sudário para serem entregues no dia seguinte. Depois disso, levantou-se e tirou o casaco das costas da cadeira.

 

Vou à livraria disse a Peter.

 

»Vou buscar um livro sobre o Sudário de Turim. Só por curiosidade, que é que sabes sobre o assunto?

 

Hmmm disse Peter, enquanto coçava o rosto como se estivesse mergulhado nos seus pensamentos. Sei o nome da cidade onde ele é guardado.

 

Estou a falar a sério queixou-se Stephanie.

 

Bem, digamos que já ouvi falar nele, mas não é um tema de conversa muito frequente entre mim e os meus amigos disse Peter. Se fosse pressionado, diria que é um dos objectos que a igreja medieval usou para acalmar os fogos religiosos e para manter as caixas de esmolas cheias, como bocados da verdadeira cruz e unhas de santos.

 

Achas que é verdadeiro?

 

Queres dizer, a mortalha de Jesus Cristo?

 

Sim.

 

Raios, não! Provou-se que era falso há dez anos.

 

E se eu te dissesse que é o artefacto mais investigado na História da Humanidade?

 

Eu perguntava-te se ultimamente tens andado a fumar erva.

 

Stephanie riu-se.

 

Obrigada, Peter.

 

Estás a agradecer-me o quê?perguntou ele, obviamente confuso.

 

Estava preocupada com a hipótese de o meu desconhecimento do Sudário de Turim ser de alguma forma único. É reconfortante saber que não é. Stephanie vestiu o casaco e dirigiu-se para a porta.

 

A que é que se deve esse interesse súbito pelo Sudário de Turim? perguntou Peter.

 

Em breve, vais saber gritou Stephanie por cima do ombro. Atravessou a recepção na diagonal e espreitou para o gabinete de Daniel. Ficou surpreendida ao vê-lo debruçado sobre a secretária com a cabeça nas mãos.

 

Hei chamou Stephanie. Estás bem?

 

Daniel levantou os olhos e pestanejou. Tinha os olhos encarnados, como se tivesse estado a esfregá-los, e o seu rosto estava mais pálido do que era habitual.

 

Sim, estou bem disse, como se estivesse exausto. A sua energia anterior desvanecera-se.

 

Que é que se passa?

 

Daniel abanou a cabeça e procurou na secretária cheia de coisas. Suspirou.

 

Dirigir esta empresa é como manter um barco cheio de fissuras a flutuar, apenas com um dedal para tirar a água. O grupo de capital de risco recusa-se a disponibilizar a segunda fase de financiamento até eu lhes dizer por que é que tenho tanta certeza de que o projecto de lei de Butler não vai sair da subcomissão. Mas eu não posso dizer-lhes, porque se o fizer o barco vai certamente ao fundo e o mais provável seria Butler negar que ia manter o projecto de lei encalhado. Nesse caso, estaria tudo perdido.

 

Quanto dinheiro é que nos resta?

 

Quase nada gemeu Daniel. No próximo mês, por esta altura, vamos estar a mexer na nossa linha de crédito para pagar os ordenados.

 

Isso dá-nos o mês de que precisamos para tratar Butler disse Stephanie.

 

Que sorte disse Daniel sarcasticamente. Irrita-me de morte termos de interromper as nossas investigações e termos de lidar com Butler e, possivelmente, com aqueles palhaços da infertilidade em Nassau. É um maldito crime que a investigação médica se tenha politizado neste país. Os antepassados que nos fundaram e insistiram na separação da Igreja e do Estado estão provavelmente a dar voltas nas sepulturas por causa destes relativamente poucos políticos, que usam as suas supostas crenças religiosas para deter o que será indubitavelmente o maior avanço no tratamento médico.

 

Bem, todos sabemos o que está verdadeiramente por detrás deste movimento Luddite da biociência disse Stephanie.

 

De que é que estás a falar?

 

Na verdade, são políticas de aborto disfarçadas declarou Stephanie. A grande questão é que esses demagogos querem que um zigoto seja declarado um ser humano com plenos direitos constitucionais, independentemente de como o zigoto foi formado e independentemente do que o futuro reserva a esse mesmo zigoto. É uma posição ridícula, mas no entanto, se acontecesse, Roe versus Wade teria de ser tido em conta.

 

Provavelmente, tens razão admitiu Daniel. Expirou como se o ar estivesse a sair de um pneu.Que situação absurda. A história vai interrogar-se que tipo de pessoas éramos nós que deixámos que uma questão pessoal como o aborto prejudicasse uma sociedade durante anos sem fim. Copiámos muitas das nossas ideias sobre direitos do indivíduo, Governo e certamente o nosso direito comum da Inglaterra. Por que é que não seguimos a orientação da Inglaterra sobre como melhor lidar com a ética da biociência reprodutiva?

 

É uma boa pergunta, mas neste momento não vai servir-nos de nada preocuparmo-nos com a resposta. Que aconteceu ao entusiasmo que sentias com o tratamento de Butler? Vamos ao trabalho! Depois de ele estar curado, não vai renegar o nosso acordo mesmo que haja uma fuga para os órgãos de comunicação social, porque teremos a declaração assinada por ele. Quero dizer, depois de estar curado ele pode lidar com os órgãos de comunicação social negando quaisquer acusações de estar politicamente motivado. O que ele não poderia negar é uma declaração assinada.

 

Tens uma certa razão admitiu Daniel.

 

E quanto ao dinheiro de Butler? perguntou Stephanie. Parece-me que neste momento é a questão chave. Já houve alguma comunicação sobre esse assunto?

 

Membro de um grupo de operários que, entre 1811 e 1816, armavam motins com o objectivo de serem destruídas as máquinas. (N. da T.)

 

Ainda nem me lembrei de verificar. Daniel voltou-se para o computador e, após alguns toques no teclado, olhou para a sua caixa de correio especial. Está aqui uma mensagem que deve ser de Butler. Tem um anexo, o que é encorajador.

 

Daniel abriu o anexo. Stephanie deu a volta à secretária para olhar por cima do ombro dele.

 

Eu diria que parece muito encorajador disse Stephanie. Ele deu-nos o número de uma conta bancária, e parece que podemos movimentá-la os dois.

 

Tem uma ligação à página oficial do banco disse Daniel. Vejamos se conseguimos saber o saldo da conta. Isso vai dizer-nos até que ponto Butler está a levar o assunto a sério.

 

Alguns cliques depois, Daniel afundou-se na cadeira. Ergueu os olhos para Stephanie, e ela não desviou o olhar. Estavam ambos abalados.

 

Eu diria que ele está a levar isto muito a sério! comentou Stephanie. E que está ansioso!

 

Estou estupefacto! disse Daniel. Esperava dez ou vinte mil, no máximo. Nunca me passou pela cabeça que pudessem ser cem mil. Onde é que ele arranjou tanto dinheiro e tão depressa?

 

Já te disse que ele tem uma teia de comissões de acção política que são verdadeiras máquinas de angariação de fundos. O que pergunto a mim mesma é se alguma das pessoas que doou o seu dinheiro poderia imaginar como é que esse dinheiro ia ser gasto. Há uma grande dose de ironia nisto, se são tão conservadores como imagino que são.

 

Esse não é um problema nosso disse Daniel. Para além do mais, nunca vamos gastar cem mil dólares. Ao mesmo tempo, é bom saber que estão lá, para o caso de serem precisos. Vamos trabalhar!

 

Eu já dei início à cultura de fibroblastos com a biópsia de pele.

 

Excelente disse Daniel, com a exuberância daquela manhã a voltar. Até a sua cor de pele estava melhor. Vou começar por descobrir tudo o que for possível sobre a Clínica Wingate.

 

Parece-me bom! disse Stephanie. Começou a dirigir-se para a porta. Volto dentro de uma hora.

 

Onde é que vais?

 

À livraria do centro da cidade disse Stephanie por cima do ombro. À porta, hesitou. Mandei reservar um livro. Depois de iniciar a cultura de tecido, comecei à procura de coisas sobre o Sudário de Turim. Devo dizer que tive sorte na divisão do trabalho. O sudário está a revelar-se muito mais interessante do que eu pensava.

 

Que é que descobriste?

 

O suficiente para me prender, mas dentro de vinte e quatro horas apresento-te um relatório completo.

 

Daniel sorriu, levantou o polegar a Stephanie e voltou-se novamente para o ecrã do computador. Usou um motor de busca para pesquisar uma lista de clínicas de tratamento de infertilidade e encontrou a página oficial da Clínica Wingate. Alguns cliques depois, estava conectado.

 

Passou rapidamente as primeiras páginas. Como esperava, eram compostas por material laudatório para atrair os possíveis clientes. Numa secção intitulada CONHEÇA A NOSSA EQUIPA, fez uma breve viagem paralela para ler os currículos profissionais dos directores que incluía o fundador e administrador executivo, o Dr. Spencer Wingate; o director de Investigação e dos Serviços de Laboratório, o Dr. Paul Saunders; e a chefe dos Serviços Clínicos, a Dr.a Sheila Donaldson. Os currículos eram tão brilhantes como as descrições da própria clínica, embora na opinião de Daniel as três pessoas tivessem frequentado faculdades e programas de treino de segunda ou até de terceira categoria.

 

No fundo da página, encontrou o que queria: um número de telefone. Havia também um endereço de correio electrónico, mas Daniel pretendia falar directamente com um dos directores, ou Wingate ou Saunders. Pegou no telefone e marcou o número. A chamada foi atendida rapidamente por uma telefonista simpática que fez um elogio breve e mecânico da clínica, antes de perguntar com quem é que Daniel queria falar.

 

Dr. Wingate disse Daniel. Decidiu que o melhor era começar pelo topo.

 

Seguiu-se mais uma breve pausa antes de Daniel ser passado para uma mulher, com uma voz igualmente agradável. Perguntou educadamente o nome de Daniel antes de dizer se o Dr. Wingate estava disponível. Quando Daniel mencionou o seu nome, a reacção foi imediata.

 

É o Dr. Daniel Lowell, da Universidade de Harvard?

 

Daniel calou-se momentaneamente, enquanto tentava decidir como responder.

 

Já estive em Harvard, embora de momento tenha a minha própria empresa.

 

Vou pô-lo em contacto com o Dr. Wingate disse a secretária. Sei que ele tem estado à espera do seu telefonema.

 

Após um piscar de olhos de descrença, Daniel afastou o telefone do ouvido e olhou para o aparelho durante alguns instantes, como se este pudesse explicar a resposta inesperada da secretária. Como podia Spencer Wingate estar à espera do seu telefonema? Daniel abanou a cabeça.

 

Boa tarde, Dr. Lowell! respondeu uma voz com um marcado sotaque da Nova Inglaterra e uma oitava mais alta do que Daniel teria esperado. Fala Spencer Wingate, e tenho muito prazer em ouvi-lo. Esperávamos o seu telefonema a semana passada, mas não interessa. Não se importa de aguardar alguns momentos enquanto ponho o Dr. Saunders em linha? Vai demorar um minuto, mas o melhor é fazermos uma chamada em conferência, pois sei que o Dr. Saunders está tão ansioso como eu para falar com o senhor.

 

Tudo bem disse Daniel num tom agradável, embora o seu espanto não parasse de aumentar. Recostou-se para trás na cadeira, pousou os pés em cima da secretária e passou o telefone para a mão esquerda, para poder usar a direita para tamborilar com um lápis na secretária. Fora apanhado completamente desprevenido pela reacção de Spencer Wingate ao seu telefonema e sentiu uma ponta de ansiedade. Não parava de ouvir os avisos de Stephanie em relação a envolver-se com aqueles vigaristas infames da infertilidade.

 

O minuto arrastou-se para cinco. Quando Daniel recuperou suficientemente o equilíbrio para perguntar a si mesmo se teria sido inadvertidamente desligado, Spencer voltou à linha. Estava ligeiramente ofegante.

 

Muito bem, estou de volta! E tu, Paul? Estás em linha?

 

Estou aqui disse Paul, aparentemente a usar uma extensão noutra sala. Em contraste com a voz de Spencer, a de Paul era bastante grossa, com um toque nasalado característico do Midwest. É um prazer falar consigo, Daniel, se é que posso tratá-lo assim.

 

Se quiser disse Daniel. Como achar melhor.

 

Obrigado. E, por favor, chame-me Paul. Não há necessidade de formalidades entre amigos e colegas. Deixe-me dizer-lhe desde já que estou ansioso para trabalhar consigo.

 

Também é o meu sentimento declarou Spencer. Raios! Toda a clínica está ansiosa. Quando é que podemos esperá-lo?

 

Bem, essa é uma das razões por que estou a telefonar disse Daniel vagamente, a esforçar-se para ser diplomata, mas intensamente curioso.

 

Mas primeiro gostaria de saber por que é que estavam à espera do meu telefonema.

 

Soubemos pelo seu observador, ou seja qual for o título que lhe dá

 

respondeu Spencer. Como é que ele se chamava, Paul?

 

Marlowe disse Paul.

 

Certo! Bob Marlowe disse Spencer. Depois de terminar a inspecção das nossas instalações, disse que o senhor entraria em contacto connosco na semana seguinte. Escusado será dizer que ficámos desapontados quando não tivemos notícias suas. Mas isso são águas passadas, agora que telefonou.

 

Estamos encantados por querer usar as nossas instalações disse Paul. Será uma honra trabalhar consigo. Agora, espero que não se importe que eu especule sobre o que tem em mente, porque Bob Marlowe foi vago, mas presumo que quer experimentar a sua engenhosa RSTH num paciente. Quero dizer, por que outro motivo quereria abandonar o seu laboratório e esses hospitais fantásticos que tem em Boston? A minha suspeita está correcta?

 

Como é que conhece a RSTH? perguntou Daniel. Não sabia ao certo se queria admitir as suas motivações numa fase tão inicial da conversa.

 

Lemos a sua brilhante comunicação científica na Nature disse Paul. Estava brilhante, simplesmente brilhante. A sua importância global para a biociência lembrou-me a minha própria comunicação, Maturação In Vitro de ovócitos humanos. Leu?

 

Ainda nãorespondeu Daniel, obrigando-se a continuar a ser subtil. Em que revista foi publicado?

 

Na Revista de Tecnologia Reprodutiva do Século XXI disse Spencer.

 

Não conheço essa revista declarou Daniel. Quem é que a publica?

 

Nós disse Paul, orgulhosamente. Aqui mesmo na Clínica Wingate. Estamos tão empenhados na investigação, como nos serviços clínicos.

 

Daniel revirou os olhos. Sem a crítica dos seus pares, a auto publicação científica era um oxímoro, e ficou impressionado com a precisão da breve descrição que Butler fizera daqueles dois homens.

 

A RSTH nunca foi aplicada num ser humano disse Daniel, evitando responder à pergunta de Paul.

 

Nós estamos conscientes disso interrompeu Spencer. E é uma das muitas razões por que gostaríamos muito que fosse aplicada aqui pela primeira vez. A Clínica Wingate está precisamente a lutar para ter a reputação de estar sempre na linha da frente.

 

A FDA não veria com bons olhos a execução de um procedimento experimental sem um protocolo aprovado disse Daniel.Nunca dariam a sua aprovação.

 

É evidente que não aprovariam concordou Spencer. E nós sabemo-lo bem; riu-se, e Paul imitou-o. Mas aqui nas Bahamas, a FDA não precisa de saber, já que não têm jurisdição.

 

Se fôssemos aplicar a RSTH num humano, o procedimento teria de decorrer no mais absoluto segredo disse Daniel, admitindo por fim indirectamente quais eram os seus planos. Não pode ser divulgado e, obviamente, não poderia ser usado com objectivos promocionais.

 

Estamos plenamente conscientes disso declarou Paul. Spencer não estava a insinuar que usaríamos isso imediatamente.

 

Céus, não! guinchou Spencer. Só estava a pensar aproveitar esse facto depois de ele ser do conhecimento público.

 

Eu teria de conservar o direito de determinar o momento certo disse Daniel. Nem sequer vou usar o episódio para promover a RSTH.

 

Não? perguntou Paul. Então por que é que quer fazer isto?

 

Por motivos puramente pessoais declarou Daniel. Estou confiante de que a RSTH funcionará tão bem em humanos como nos ratos. Mas preciso de o provar a mim mesmo com um paciente para ter força para lidar com o revés que estou a sofrer da direita política. Não sei se sabem, mas estou a lutar contra uma proibição da minha técnica pelo Congresso.

 

Seguiu-se uma pausa desagradável na conversa. Ao exigir segredo e afastar as mais-valias publicitárias num futuro próximo, Daniel estava certo de ter anulado uma das razões para a Clínica Wingate colaborar. Freneticamente, tentou pensar numa forma de minorar o desapontamento deles, e instantes antes de falar, possivelmente, para piorar as coisas, Spencer quebrou o silêncio:

 

Suponho que podemos respeitar a sua necessidade de segredo. Mas se não vamos obter qualquer valor promocional a curto prazo com a sua colaboração connosco, que tipo de compensação tem em mente para utilizar as nossas instalações e serviços?

 

Nós pretendemos pagar afirmou Daniel.

 

Seguiu-se novo silêncio. Daniel sentiu uma ponta de pânico ao perceber que as negociações não estavam a correr bem, erguendo o espectro de perder a oportunidade de utilizar a Clínica Wingate para o tratamento de Butler. Tendo em conta as limitações de tempo, uma perda dessas podia ser um golpe fatal para o projecto. Daniel pressentiu que teria de oferecer mais. Lembrando-se do que o senador dissera sobre a vaidade de Spencer e Paul, cerrou os dentes e disse:

 

Depois, mais adiante, quando a FDA aprovar a RSTH para uso geral, podíamos escrever uma comunicação científica em co-autoria sobre o caso.

 

Daniel estremeceu. A ideia de fazer uma comunicação científica em co-autoria com aqueles palhaços era um pensamento doloroso, embora racionalizasse que poderia adiar o projecto infinitamente. Mas, apesar da oferta, o silêncio persistiu, e o pânico de Daniel cresceu. Lembrou-se da sua própria reacção à exigência feita por Butler para que usasse sangue do Sudário de Turim e atirou também esse engodo, explicando que o paciente insistira nisso. Daniel até propôs o mesmo título que, na brincadeira, sugerira a Stephanie.

 

Ora, parece-me uma comunicação científica dos diabos! replicou Paul de repente. Adoro! Onde é que a publicaríamos?

 

Em qualquer revista disse Daniel vagamente. Na Science ou na Nature. Onde quiserem. Não me parece que seja difícil de editar.

 

A RSTH funcionaria com sangue do Sudário de Turim? perguntou Spencer. - Se bem me lembro, essa coisa tem cerca de quinhentos anos.

 

E que tal cerca de dois mil anos? disse Paul.

 

Não se provou ser uma falsificação medieval?questionou Spencer.

 

O ADN estaria fragmentado, quer tenha quinhentos ou dois mil anos disse Daniel. Mas isso não deverá constituir um problema. Nós só precisamos de fragmentos, que as nossas sondas de RSTH procurarão após a amplificação por meio de um PCR. Vamos juntar enzimaticamente o que precisamos para genes inteiros. Vai funcionar lindamente.

 

Que tal o The New England Journal of Medicine? sugeriu Paul. Isso seria um golpe para a clínica! Adoraria ter alguma coisa naquela publicação pomposa.

 

Claro disse Daniel, arrepiado com a ideia. Por que não?

 

Também estou a começar a gostar disse Spencer. É o tipo de artigo que seria apanhado pelos órgãos de informação como se fosse ouro puro! Apareceria em todos os jornais. Raios, até já consigo ver todos os apresentadores de televisão a falarem sobre o assunto nos noticiários da noite.

 

Tenho a certeza de que tem razão disse Daniel. Mas não se esqueça de que, até o artigo sair, tudo isto tem de ser mantido no mais absoluto sigilo.

 

Nós compreendemos disse Spencer.

 

Como é que vai conseguir obter uma amostra do Sudário de Turim?

 

perguntou Paul. Sei que a Igreja Católica o tem trancado em Itália, numa espécie de cofre da era espacial.

 

Estamos a tratar do assunto neste preciso momento explicou Daniel. Prometeram-nos assistência clerical ao mais alto nível.

 

Eu diria que teriam de conhecer o Papa! comentou Paul.

 

Talvez devêssemos falar sobre custos disse Daniel, ansioso para mudar de assunto agora que a crise fora evitada.Não queremos quaisquer mal-entendidos.

 

De que género de serviços estamos a falar? perguntou Paul.

 

O paciente que vamos tratar sofre da doença de Parkinson esclareceu Daniel. Vamos necessitar de uma unidade de investigação operacional e de equipamento estereotáxico para a implantação.

 

Temos a unidade de investigação operacional disse Paul. Mas não equipamento estereotáxico.

 

Isso não representa um problema disse Spencer. Podemos pedi-lo emprestado ao Hospital Princesa Margarida. O Governo das Bahamas e a comunidade médica da ilha apoiaram muito activamente a nossa mudança para cá. Tenho a certeza de que terão todo o prazer em ajudar. Só não lhes diremos o que vamos fazer com ele.

 

Vamos precisar dos serviços de um neurocirurgião disse Daniel.

 

Um que seja capaz de ser discreto.

 

Também não me parece que isso constitua um problema disse Spencer. Há vários na ilha que, na minha opinião, estão a ser utilizados abaixo das suas capacidades. Tenho a certeza de que poderemos contratar um deles. Não sei ao certo quanto é que ele cobrará, mas posso garantir-lhe que será muito menos do que nos Estados Unidos. Calculo que rondará os duzentos ou trezentos dólares.

 

Não lhe parece que a questão da confidencialidade será problemática?

 

perguntou Daniel.

 

Não respondeu Spencer. Todos andam à procura de trabalho.

 

Com menos turistas a alugar motorizadas, os traumatismos cranianos caíram a pique. Eu sei, porque dois deles vieram à clínica e deixaram os seus cartões profissionais.

 

Parece fantástico disse Daniel. Para além disso, todos precisamos de espaço no vosso laboratório. Presumo que têm um laboratório para fazer o vosso trabalho de reprodução.

 

Vai ficar surpreendido com o nosso laboratório disse Paul com orgulho. É do mais moderno que há, e muito mais do que um simples laboratório de tratamento de infertilidade! E, para além de mim, temos diversos técnicos talentosos à sua disposição que são experientes em transferência nuclear e que estão ansiosos para aprender a RSTH.

 

Não vamos precisar da assistência de qualquer pessoal de laboratório declarou Daniel. Nós faremos o nosso trabalho celular. Do que necessitamos é de ovócitos humanos. Será possível vocês fornecerem-nos?

 

Claro! disse Paul. Os ovócitos são a nossa especialidade, e em breve serão o nosso pão com manteiga. No futuro, pretendemos fornecê-los a toda a América do Norte. Para quando é que precisa deles?

 

O mais brevemente possível disse Daniel. Isto pode parecer demasiado optimista, mas gostaríamos de estar prontos para implantar dentro de um mês. Temos um prazo apertado, com uma pequena janela de oportunidade imposta pelo paciente voluntário.

 

Deste lado, não há problema declarou Paul. Podemos fornecer-vos os ovócitos amanhã!

 

A sério?perguntou Daniel. Parecia bom de mais para ser verdade.

 

Podemos arranjar-lhe ovócitos sempre que precisar disse Paul. Depois, acrescentou com uma gargalhada, Até nas férias!

 

Estou impressionado declarou Daniel com sinceridade. E aliviado. Estava preocupado com a perspectiva de a procura de ovócitos nos atrasar. Mas isso leva-nos, novamente, aos custos.

 

Com excepção dos ovócitos, não sabemos quanto cobrar confessou Spencer. Para lhe dizer a verdade, nunca antecipámos que alguém usasse a nossa clínica. Vamos simplificar as coisas: que tal vinte mil para usar a sala de operações, incluindo o seu pessoal, e vinte mil para a taxa simples de utilização do laboratório?

 

Muito bem disse Daniel. E quanto aos ovócitos?

 

Cinco mil por unidade disse Paul. E garantimos, pelo menos, cinco divisões em cada, se não substituímo-lo.

 

Parece-me justo disse Daniel. Mas terão de ser frescos!

 

Serão tão frescos como uma margarida afirmou Paul. Quando é que podemos esperá-lo?

 

Volto a telefonar-vos ao fim do dia ou esta noite disse Daniel. Ou, o mais tardar, amanhã. Temos de começar a tratar disto.

 

Nós estaremos aqui declarou Spencer.

 

Daniel pousou o auscultador do telefone lentamente. Depois de o pousar devidamente no descanso, deu um grito de alegria. Apesar dos revezes recentes, tinha uma forte sensação de que a CURA, a RSTH e o seu próprio destino estavam novamente nos eixos!

 

O Dr. Spencer Wingate deixara a sua mão bronzeada pousada no auscultador do telefone depois de desligar, enquanto pensava na conversa que acabara de ter com o Dr. Daniel Lowell. Não tinha corrido como ele imaginara e esperara, e estava desapontado. Quando a questão de o famoso investigador querer usar a Clínica Wingate fora inesperadamente levantada duas semanas atrás, ele considerara-a providencial uma vez que tinham acabado de abrir as portas após oito meses de construção e confusão. Na sua mente, uma associação profissional a um homem que Paul dizia que poderia ganhar um Prémio Nobel teria sido uma forma soberba de anunciar ao mundo que a Wingate estava novamente em funcionamento após a lamentável confusão no Massachusetts, no último mês de Maio. Mas no pé em que as coisas estavam, não podia haver anúncio. Vinte mil dólares podia ser bom, mas era uma mera migalha em comparação com o dinheiro que tinham acabado de gastar para construir e equipar a clínica.

 

A porta do gabinete de Spencer, que estava ligeiramente entreaberta desde que voltara precipitadamente há pouco, depois de localizar o seu colega, foi aberta de par em par. A figura baixa e quadrada do Dr. Paul Saunders enchia a soleira. Um sorriso aberto mostrava os seus dentes quadrados e bastante espaçados. Ele não partilhava, obviamente, a desilusão de Spencer.

 

Consegues imaginar? disse Paul, precipitadamente.Nós vamos ter uma comunicação científica no New England Journal of Medicine! Atirou-se para uma cadeira à frente da secretária de Spencer e esmurrou o ar com os punhos erguidos como se tivesse vencido uma etapa da Volta à França em Bicicleta.E que comunicação: «A Clínica Wingate, o Sudário de Turim e a RSTH Juntam-se para a Primeira Cura da Doença de Parkinson.» Vai ser fantástico! As pessoas vão fazer fila à nossa porta!

 

Spencer recostou-se e pôs as mãos com os dedos entrelaçados atrás da cabeça. Olhou para o director de investigação, um título em que Paul insistira, com alguma condescendência. Paul era um trabalhador esforçado e com visão, mas podia ser excessivamente entusiasta e faltava-lhe o espírito prático necessário para dirigir um negócio convenientemente. Na encarnação anterior da clínica, no Massachusetts, ele quase a arruinara financeiramente. Se Spencer não tivesse hipotecado a clínica e transferido a maior parte dos bens para o exterior, não teriam sobrevivido.

 

Que é que te leva a ter tanta certeza de que haverá uma comunicação científica? perguntou Spencer.

 

O rosto de Paul toldou-se.

 

Que é que estás a dizer? Acabámos de falar no assunto ao telefone, título e tudo, com o Daniel. Foi ele quem sugeriu.

 

Ele sugeriu, mas como é que podemos ter a certeza de que acontecerá? Concordo que seria óptimo se acontecesse, mas ele pode adiar indefinidamente.

 

Por que diabo faria uma coisa dessas?

 

Não sei, mas por algum motivo o segredo é um ponto alto na lista, e uma comunicação científica destruiria isso. Ele não vai querer escrever uma comunicação, pelo menos, não com a brevidade de que necessitamos, e se nos adiantássemos e o fizéssemos sem ele, provavelmente ele limitar-se-ia a negar qualquer envolvimento no caso. Se isso acontecesse, ninguém a publicaria.

 

Tens uma certa razão concordou Paul.

 

Os dois homens olharam um para o outro à distância da secretária de Spencer. Um avião a jacto, na aproximação final ao Aeroporto Internacional de Nassau, troou por cima das suas cabeças. A clínica situava-se a oeste do aeroporto, em terra seca e árida. Fora o único local onde tinham conseguido comprar a extensão de terreno que queriam a um preço razoável e vedá-la adequadamente.

 

Achas que ele estava a falar verdade em relação à utilização do Sudário de Turim? perguntou Paul.

 

Também não sei disse Spencer. Parece-me um bocado rebuscado, se é que me entendes.

 

Pelo contrário, o conceito pareceu-me intrigante.

 

Não me interpretes mal disse Spencer. A ideia é interessante e certamente daria uma comunicação científica extremamente boa e seria uma história noticiada a nível internacional, mas quando somamos tudo, incluindo a questão do secretismo, há sem dúvida alguma coisa dúbia envolvida. Quero dizer, acreditaste na explicação que ele deu quando lhe perguntei por que é que ia dar-se a todo este trabalho?

 

Aquilo de ele querer provar a RSTH a si próprio?

 

Precisamente.

 

Não completamente, embora seja verdade que o Congresso dos Estados Unidos está a considerar a hipótese de banir a RSTH. E agora que me puseste a pensar, ele aceitou os teus preços um pouco depressa de mais, como se o preço não importasse.

 

Não podia estar mais de acordo declarou Spencer. Eu não fazia a menor ideia de quanto pedir pela utilização das nossas instalações, e atirei alguns números para o ar à espera de que ele fizesse uma contraproposta. Raios, ele concordou tão depressa que devia ter pedido o dobro.

 

Então, que é que te parece?

 

Acho que a questão é a identidade do paciente declarou Spencer. É a única coisa que penso que faz sentido.

 

Quem, por exemplo?

 

Não sei declarou Spencer. Mas, se fôssemos obrigados a adivinhar, eu diria que é um membro da família. O meu segundo palpite seria uma pessoa rica, uma pessoa muito rica, e possivelmente famosa e rica, e é nessa hipótese que apostaria o meu dinheiro!

 

Rica! repetiu Paul. Um leve sorriso apareceu no seu rosto. Uma cura poderia valer milhões.

 

Exactamente, e é por isso que acho que devíamos optar pela hipótese da pessoa rica e famosa. Afinal de contas, por que é que o Daniel Lowell vai receber potencialmente milhões, enquanto nós temos de nos contentar com uns míseros vinte mil!

 

Isso quer dizer que temos de descobrir a identidade do paciente voluntário.

 

Eu esperava que visses a questão da minha perspectiva. Estava com medo de que sentisses que valia a pena apenas para trabalhar com este investigador conhecido.

 

Raios, não! disse Paul, bruscamente. Não, quando não poderemos ter os benefícios promocionais que esperávamos. Ele até insinuou que não vamos ter treino prático na técnica de RSTH quando disse que vai ser ele a efectuar o trabalho celular. Originalmente, pensei que era um facto consumado. No entanto, ainda quero aprender a técnica, por isso quando ele telefonar novamente diz-lhe que isso tem de fazer parte do acordo.

 

Vou dizer-lhe com o maior prazer disse Spencer. E também vou dizer-lhe que queremos metade do dinheiro antecipadamente.

 

Diz-lhe que também queremos uma consideração especial no futuro, em relação ao licenciamento da RSTH.

 

Boa ideia disse Spencer. Vou ver o que posso fazer na renegociação do nosso acordo, sem subir o dinheiro. Não quero assustá-lo. Entretanto, que tal assumires a responsabilidade de tentar descobrir a identidade do paciente? É um género de actividade em que és melhor do que eu.

 

Vou aceitar isso como um elogio.

 

Eu pretendia que fosse um elogio. Paul levantou-se.

 

Vou pôr imediatamente o Kurt Hermann, o nosso chefe de segurança, a tratar do assunto. Ele adora esse tipo de trabalhos.

 

Diz ao infame Green Beret, ou quem diabo ele era, para matar o menor número possível de pessoas. Depois de todo este investimento e esforço, não vamos estragar as boas-vindas que tivemos nesta ilha.

 

Paul riu-se.

 

Na verdade, ele é muito cuidadoso e conservador.

 

Ele não é responsabilidade minha afirmou Spencer. Ergueu as mãos para acabar com qualquer discussão. Não me parece que as putas que ele matou em Okinawa lhe chamassem conservador, e teve a mão um bocado pesada no Massachusetts, ao nosso serviço, mas já falámos sobre esse assunto. Admito que é bom no que faz, caso contrário não faria parte da nossa equipa. Faz-me a vontade e diz-lhe para ser discreto! É tudo o que peço.

 

Vou dizer-lhe com o maior prazer. Paul levantou-se. Mas não te esqueças de que, como nenhum de nós, incluindo o Kurt, pode voltar aos Estados Unidos, provavelmente ele não conseguirá muito até o Daniel, a sua equipa e o paciente chegarem cá.

 

Eu não espero milagres declarou Spencer.

 

 

16.45, 22 de Fevereiro de 2002

As espirais denteadas da linha do horizonte de Manhattan delineavam-se contra o céu de fim de tarde de meados de Inverno, quando o avião de Washington-Nova Iorque deu a volta na aproximação final ao Aeroporto LaGuardia. As luzes da grande e pulsante cidade brilhavam, como jóias na escuridão que se adensava. As muitas pontes suspensas pareciam colares de pérolas iluminadas, pendurados nos pilares elevados. As filas ondulantes de faróis na FDR Drive assemelhavam-se a fios de diamantes, enquanto as luzes traseiras sugeriam rubis. Um navio de cruzeiros alegremente enfeitado parecia uma pregadeira, enquanto deslizava em silêncio para uma doca no Rio Hudson.

 

Carol Manning desviou os olhos da janela e daquela paisagem inspiradora para observar o interior do avião. Não havia conversa. Alheados da paisagem majestosa, os passageiros estavam absortos nos seus jornais, documentos de trabalho ou computadores portáteis. Os seus olhos deambularam para o senador sentado na sua fila, na coxia, com um banco de intervalo. Como os outros passageiros, ele estava a ler. As suas mãos grandes apertavam a pilha de memorandos referentes aos compromissos do dia seguinte que arrancara das mãos de Dawn Shackelton quando ele e Carol tinham saído do escritório com esperança de apanhar o voo das três e meia. Tinham conseguido por pouco.

 

Por insistência de Ashley, nessa mesma manhã, Carol telefonara a um dos secretários particulares do cardeal e marcara uma reunião de emergência para essa tarde. Recebeu instruções para dizer que era um assunto urgente, mas que demoraria quinze minutos, no máximo. O padre Maloney respondera que veria o que podia fazer, uma vez que a agenda do cardeal estava cheia, mas telefonara uma hora depois para dizer que o cardeal poderia receber o senador algures entre as dezassete e trinta e as dezoito e trinta, a seguir a uma recepção formal a um cardeal italiano que estava de visita e antes de um jantar com o mayor. Carol dissera que estariam lá.

 

Dadas as circunstâncias de ter de correr para o avião e de se preocupar com o tráfego potencial da cidade de Nova Iorque, Carol não pôde deixar de se impressionar com a equanimidade aparente de Ashley. Claro que ele a tinha a ela para se preocupar por ele, mas se os seus papéis estivessem invertidos e ela estivesse a viver o que ele estava a encarar potencialmente, teria ficado desmesuradamente ansiosa a ponto de ter dificuldade de concentração. Mas certamente não Ashley! Apesar de um ligeiro tremor, as páginas dos memorandos estavam a ser estudadas e passadas para trás numa sucessão célere, sugerindo que a sua lendária velocidade de leitura não sofrera com a doença, nem com os acontecimentos das últimas vinte e quatro horas.

 

Carol aclarou a garganta.

 

Senador, quanto mais penso neste assunto, mais surpreendida fico por não ter pedido a minha opinião. Consulta-me para quase tudo.

 

Ashley virou a cabeça e observou Carol por cima dos óculos de aros grossos, que tinham deslizado e estavam pendurados na ponta do nariz. A sua testa alta estava franzida com condescendência.

 

Minha querida Carol começou ele. Tu não tens de me dar a tua opinião. Como eu disse a noite passada, já a conheço muito bem.

 

Então, espero que esteja consciente de que penso que vai correr um risco demasiado grande com este suposto tratamento.

 

Aprecio a tua preocupação, independentemente da motivação, mas estou decidido.

 

Está a permitir que façam uma experiência em si. Não faz ideia de qual será o resultado.

 

Pode ser verdade que não tenho a certeza do resultado, mas também é verdade que se não fizesse nada face à minha doença neurológica degenerativa, incurável e progressiva, sei exactamente qual seria o resultado. O meu pai pregava que Deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos. Toda a minha vida fui um lutador, e seguramente não vou parar agora. Não vou entregar-me com um choramingo. Vou dar pontapés e gritar como uma doninha fedorenta, presa num saco.

 

E se o cardeal lhe dissesse que o que pensa fazer não é aconselhável?

 

Essa resposta é altamente improvável, uma vez que não tenho a menor intenção de informar o cardeal das minhas intenções.

 

Então, por que estamos a vir para cá? perguntou Carol num tom que tocava a raiva. Eu estava com a esperança de que Sua Eminência poderia apelar ao seu bom senso durante a vossa conversa.

 

Nós não estamos a fazer esta peregrinação ao trono do poder da Igreja Católica continental na América do Norte para pedir conselhos, mas simplesmente para arranjar um pedaço do Sudário de Turim, como uma protecção de esperança contra as incertezas da minha terapia.

 

Mas como é que pretende ter acesso ao sudário sem explicar porquê? Ashley levantou uma mão como um orador a acalmar uma multidão em desordem.

 

Chega, minha querida Carol, se não a tua presença será mais um fardo do que uma ajuda. Voltou a concentrar-se nos seus papéis, enquanto o avião se dirigia para a pista.

 

Uma onda de calor espalhou-se pelo rosto de Carol por ter sido sumariamente dispensada. Aquele tratamento degradante estava a tornar-se demasiado comum, assim como a irritação associada a ele. Preocupada com a eventualidade de os seus sentimentos serem aparentes, virou-se novamente para a janela.

 

Enquanto o avião se dirigia para a manga de desembarque, Carol manteve-se concentrada no exterior do aparelho. De perto, Nova Iorque já não parecia uma jóia, graças ao lixo e a montículos de neve suja, que se espalhavam e alinhavam junto à praça de táxis. Ajudada pelo cenário escuro e ermo, pensou nas suas emoções contraditórias e na culpa que sentia em relação ao plano de Ashley para tratar a sua enfermidade. Por um lado, estava legitimamente receosa da sua natureza experimental, enquanto por outro achava que a terapia poderia funcionar. Embora a sua reacção inicial ao diagnóstico de Ashley tivesse sido de pena, ao longo do ano começara a encará-lo também como a sua oportunidade. Agora, o medo de um mau resultado competia em pé de igualdade com o medo de um bom resultado, embora tivesse dificuldades em admitir isso a si própria. Num certo sentido, sentia-se como um Brutus para o César que era Ashley.

 

A transição do avião para a limusina, que Carol tinha alugado, fez-se sem problemas. Quarenta e cinco minutos depois estavam mergulhados num mar de carros na FDR Drive, cujo fluxo de tráfego parara desde que a tinham sobrevoado de avião.

 

Preocupado com o atraso, Ashley pousou as páginas que estivera a analisar e apagou a luz de leitura. O interior da viatura ficou escuro.

 

Vamos perder a nossa janela de oportunidade gemeu numa voz desprovida de sotaque.

 

Lamento disse Carol, como se a culpa fosse sua. Milagrosamente, passados cinco minutos de uma paragem completa e de várias pragas de Ashley, o tráfego começou a mover-se novamente.

 

O Senhor seja louvado por estes pequenos favores entoou Ashley. Ao sair na Rua 96, o motorista usou habilidosamente um caminho secundário para o centro da cidade e conseguiu deixar o senador e a sua assessora na residência do arcebispo, na esquina da Madison com a Rua

50, quatro minutos antes do intervalo entre compromissos. O motorista recebeu instruções para dar a volta ao quarteirão, pois eles planeavam estar de volta ao aeroporto dentro de uma hora.

 

Carol nunca estivera na residência. Observou a casa simples de três andares, em pedra cinzenta e telhas de lousa, que se aninhava na sombra dos arranha-céus da cidade. Erguia-se a partir da ponta do passeio, sem uma tira de relva para suavizar a sua severidade. Alguns prosaicos aparelhos de ar condicionado de janela manchavam a fachada, assim como as pesadas grades de ferro no rés-do-chão. As grades davam ao edifício a aparência de uma pequena prisão e não de uma residência. Um vislumbre de renda belga por baixo de uma das janelas era o único toque de suavidade.

 

Ashley subiu os degraus de pedra e puxou a campainha de latão muito brilhante. Não tiveram de esperar muito tempo. A pesada porta foi aberta por um padre alto e elegante, com um nariz notavelmente romano, e cabelos ruivos cortados curtos. Usava uma sotaina preta com um colarinho clerical branco.

 

Boa tarde, Senador.

 

Para o senhor também, padre Maloney disse Ashley enquanto entrava. Espero ter chegado na altura certa.

 

Sem dúvida respondeu o padre Maloney. Vou deixá-lo e à sua assistente no estúdio privado de Sua Eminência. Ele irá ter convosco dentro de alguns momentos.

 

O estúdio era uma sala no primeiro andar, mobilada de forma espartana. Como objectos de decoração, uma fotografia formal e emoldurada do Papa João Paulo II e uma pequena estátua da Virgem Maria esculpida em mármore branco de Carrara. O chão de madeira não tinha carpete, e os sapatos de Carol ecoaram ruidosamente na superfície envernizada. O padre Maloney retirou-se em silêncio e fechou a porta atrás de si.

 

Bastante austero comentou Carol. A única mobília era um sofá de couro pequeno e velho, uma cadeira de couro a condizer, um genuflexório e uma pequena secretária com uma cadeira de madeira de costas direitas.

 

O cardeal gostaria que as suas visitas acreditassem que ele não está interessado no mundo material comentou Ashley, enquanto se baixava para a gasta cadeira de couro. Mas eu sei que não é assim.

 

Carol sentou-se rigidamente na ponta do sofá, com as pernas de lado. Ashley recostou-se como se estivesse a visitar um familiar. Cruzou as pernas, revelando uma meia preta e um bocado de perna branca e pastosa.

 

Instantes depois, a porta voltou a abrir-se e entrou o Reverendo James Cardinal O’Rourke seguido pelo padre Maloney, que fechou a porta atrás deles. O cardeal estava vestido a rigor. Sobre calças pretas e camisa branca de colarinho eclesiástico, usava uma sotaina preta engrandecida com vivos e botões encarnados de cardeal. Por cima da sotaina, havia uma capa escarlate curta e sem mangas. Cingida à cintura, tinha uma larga faixa encarnada. Na cabeça, via-se um solidéu encarnado de cardeal. À volta do pescoço, trazia uma cruz de prata coberta de jóias.

 

Carol e Ashley levantaram-se. Carol ficou abalada com o espectáculo do traje sumptuoso do cardeal, acentuado pela aspereza da sala. Mas depois de se ter levantado, constatou que o poderoso prelado era mais baixo do que ela, e ao lado de Ashley, que não era de modo nenhum alto, parecia decididamente baixo e gordo. Apesar das suas roupas reais, o rosto bondoso e sorridente sugeria um padre humilde com pele macia e imaculada, faces coradas e brilhantes, e agradáveis feições arredondadas. Porém, os seus olhos astutos contavam uma história diferente e mais consistente com o que Carol sabia sobre o poderoso prelado. Reflectiam uma inteligência formidável e prudente.

 

Senador disse o cardeal num tom de voz que condizia com o comportamento gentil que projectava. Estendeu a mão com um pulso mole.

 

Sua Eminência disse Ashley, recorrendo ao seu sotaque sulista mais cordial. Deu à mão do cardeal mais uma pressão do que um aperto, evitando deliberadamente beijar o anel do prelado. É um grande prazer. Sabendo muito bem a pressão dos seus compromissos, agradeço-lhe profundamente ter arranjado tempo para falar com este rapaz do campo tão em cima da hora.

 

Oh, deixe-se disso, Senador afirmou o cardeal. Como sempre, é um prazer vê-lo. Sente-se, por favor.

 

Ashley sentou-se na cadeira de couro e assumiu a postura anterior.

 

Carol corou novamente. Ser ignorada era tão embaraçoso como ser dispensada. Esperara ser apresentada, especialmente quando os olhos do cardeal fitaram o seu rosto com um erguer ligeiro, curioso, das sobrancelhas. Sentou-se novamente quando o cardeal puxou a cadeira de madeira da pequena secretária. O padre Maloney estava à porta, em silêncio.

 

Por deferência com as nossas agendas começou Ashley, acho que deveria ir direito ao assunto.

 

Sentindo-se estranhamente invisível, Carol observou os dois homens sentados ao seu lado. Reconheceu de imediato as suas semelhanças de carácter, apesar das diferenças de aparência e para além das suas naturezas trabalhadoras e exigentes. Ambos achavam que era vantajoso esbater as fronteiras entre a Igreja e o Estado; eram ambos adeptos da lisonja e de cultivar relacionamentos pessoais com quem podiam trocar favores nos respectivos campos; ambos escondiam personalidades que eram duras, calculistas e com uma vontade de ferro atrás da sua pessoa exterior (o humilde padre para o cardeal e o rapaz do campo cordial e ingénuo para o senador); e ambos guardavam a sua autoridade zelosamente e amavam o exercício do poder.

 

É sempre melhor ser directo disse James. Sentou-se direito, com as mãos papudas a segurar no solidéu, que tirara da cabeça quase careca.

 

Carol teve a imagem de dois espadachins a medirem-se cautelosamente.

 

Perturbou-me incomensuravelmente ver a Igreja Católica tão pressionada continuou Ashley. Este escândalo sexual foi muito prejudicial, especialmente com a divisão que gerou no seu seio e com um líder idoso e doente em Roma. Tenho ficado acordado à noite a tentar encontrar uma forma de poder ser útil.

 

Carol teve de se conter para não revirar os olhos. Conhecia bem de mais os verdadeiros sentimentos do senador em relação à Igreja Católica. Enquanto congregacionista e fundamentalista, tinha pouca consideração por qualquer religião hierárquica, e na sua opinião a Igreja Católica era a mais hierárquica.

 

Aprecio a sua empatia disse James, e sinto uma preocupação semelhante em relação ao Congresso dos Estados Unidos na sequência da tragédia de 11 de Setembro. Também eu me interroguei sobre o que poderia fazer para ajudar.

 

A sua liderança moral é uma ajuda constante disse Ashley.

 

Gostaria de fazer mais declarou James.

 

A minha preocupação com a igreja é que um número relativamente pequeno de padres com desenvolvimento psicossexual suspenso conseguiram colocar toda a organização filantrópica em perigo financeiro. O que eu gostaria sinceramente de propor em troca de um pequeno favor é introduzir legislação para limitar a responsabilidade civil de organizações de caridade reconhecidas, das quais a Igreja Católica é um grande exemplo.

 

Durante alguns minutos, o silêncio reinou na sala. Pela primeira vez, Carol apercebeu-se do tiquetaque de um pequeno relógio em cima da secretária e também dos sons abafados do trânsito na Avenida Madison. Observou o rosto do cardeal. A expressão dele não se tinha alterado.

 

Essa legislação seria uma grande ajuda nesta crise actual disse James por fim.

 

Por muito egrégio que cada episódio individual de abuso sexual seja para a vítima, não devemos vitimizar todas as almas que dependem da igreja para as suas necessidades de saúde, educação e espírito. Como a minha mãe costumava dizer: Não podemos deitar fora o bebé com a água suja do banho.

 

Qual é a probabilidade de essa legislação ser aprovada?

 

Com o meu apoio total, o qual eu certamente daria, calculo que será de mais de cinquenta por cento. Quanto ao presidente, acho que gostaria muito de promulgar a lei. Ele é um homem de muita fé, com uma forte crença na necessidade de instituições de caridade religiosas.

 

Tenho a certeza de que o Santo Padre ficaria grato pelo seu apoio.

 

Eu sou um servidor do povo disse Ashley. De todas as raças e religiões.

 

Mencionou um pequeno favor disse James. É algo que eu deva saber?

 

Oh, é uma pequena coisa declarou Ashley. Uma coisa em memória da minha mãe. A minha mãe era católica. Alguma vez mencionei isso?

 

Creio que não disse James.

 

Carol vislumbrou de novo a imagem de dois espadachins a defender e a atacar.

 

Profundamente católica afirmou Ashley. Era do velho país, perto de Dublin, e era uma mulher muito religiosa.

 

Presumo pela sua sintaxe que já foi para junto do Criador.

 

Infelizmente, sim disse Ashley. Hesitou por instantes, como se estivesse engasgado. Há alguns anos, Deus tenha a sua alma em descanso, quando eu era uma criança.

 

Era uma história que Carol conhecia. Uma noite, após uma sessão prolongada no Senado, fora a um bar em Capitol Hill com o senador. Depois de alguns uísques, o senador ficara especialmente falador e contara a triste história da mãe. Esta morrera quando Ashley tinha nove anos em consequência de um aborto clandestino, que preferira fazer a ter um décimo filho. A ironia é que receava morrer durante o parto porque tivera complicações durante o nascimento do nono filho. O intransigente pai de Ashley ficara ultrajado e dissera à família e à sua congregação que a mulher estava condenada a arder no inferno para toda a eternidade.

 

Quer que reze uma missa pela alma dela? perguntou James.

 

Isso seria muito generoso replicou Ashley, mas não é bem o que eu tinha em mente. Até hoje, recordo-me de me sentar nos seus joelhos e escutar todas as coisas maravilhosas que ela me contava sobre a Igreja Católica. E lembro-me especialmente do que ela me contou sobre o milagroso Sudário de Turim, que adorava.

 

Pela primeira vez, a expressão do cardeal mudou. Foi uma mudança subtil, mas Carol percebeu que era definitivamente de surpresa.

 

O sudário é considerado uma relíquia extremamente sagrada disse James.

 

Eu nunca diria que não retorquiu Ashley.

 

O próprio Santo Padre disse informalmente que acredita que é a mortalha de Jesus Cristo.

 

Fico contente por as crenças da minha mãe serem confirmadas disse Ashley. Em pleno reconhecimento do papel primordial da minha mãe, tenho sido um estudioso do sudário ao longo de todos estes anos. Por acaso, sei que foram tiradas algumas amostras, umas usadas para testes e outras não. Por acaso, também sei que essas amostras não usadas foram reclamadas pela Igreja depois dos resultados da datação por carbono. O que eu gostaria de ter era uma amostra minúsculaAshley juntou o polegar e o dedo indicador para dar mais ênfase às suas palavras, minúscula, de fibra com sangue, das que foram recuperadas.

 

O cardeal recostou-se na cadeira. Trocou um olhar rápido com o padre Maloney.

 

É um pedido muito invulgar disse ele. Porém, a Igreja tem sido muito clara em relação a este assunto. Não vai haver mais testes científicos ao sudário, para além dos necessários para garantir a sua conservação.

 

Eu não tenho qualquer interesse na datação por carbono declarou Ashley categoricamente.

 

Então, para que é que quer esta amostra minúscula, minúscula?

 

Para a minha mãe disse Ashley simplesmente. Gostaria sinceramente de a colocar dentro da urna que contém as cinzas dela da próxima vez que for a casa, para que os seus restos mortais possam misturar-se com O Hospedeiro Sagrado. A urna dela está ao lado da do meu pai, na lareira da velha casa de família.

 

Carol teve de suprimir uma gargalhada trocista ao constatar como o senador conseguia mentir de forma tão convincente. Na mesma noite em que lhe contara a história da pobre mãe, ele dissera que o pai não permitira que ela fosse enterrada no cemitério da igreja, e ela fora enterrada no cemitério dos indigentes da cidade.

 

Acredito acrescentou Ashley que se ela pudesse ter um desejo, seria este, para ajudar a sua alma imortal a obter entrada no paraíso eterno.

 

James ergueu os olhos para o padre Maloney.

 

Não sei nada sobre essas alegadas amostras. Sabe alguma coisa?

 

Não, Sua Eminência respondeu o padre Maloney. Mas posso tentar descobrir. O arcebispo Manfredi, que o senhor conhece bem, tem estado a viver em Turim. E monsenhor Garibaldi, que eu conheço bem, também está lá.

 

O cardeal olhou de novo para Ashley.

 

Contentar-se-ia apenas com algumas fibras?

 

É tudo o que peço disse Ashley. Embora deva acrescentar que gostaria de as ter o mais depressa possível, pois estou a planear uma viagem a casa num futuro muito próximo.

 

Se conseguíssemos arranjar esta fibra minúscula, como é que a faríamos chegar às suas mãos?

 

Eu mandaria imediatamente um agente a Turim disse Ashley. Não é o tipo de coisa que confie aos correios ou a qualquer transportadora comercial.

 

Veremos o que podemos fazer disse James e levantou-se. E presumo que, em breve, vai apresentar a legislação sugerida.

 

Ashley levantou-se igualmente.

 

Na segunda-feira de manhã, Sua Eminência, desde que tenha notícias suas nessa altura.

 

As escadas representavam um nítido esforço para o cardeal, e ele subiu-as lentamente, parando com frequência para recuperar o fôlego. O problema principal dos seus trajes formais é que lhe restringiam os movimentos com tantas camadas e frequentemente aqueciam de mais, especialmente quando subia as escadas para os seus aposentos privados. O padre Maloney ia imediatamente atrás dele e quando o cardeal parava, ele parava também.

 

A segurar o corrimão com uma mão, o cardeal pousou o outro braço no joelho levantado. Expirou com a face pálida e inchada e passou uma mão pela testa. Havia um elevador, mas ele evitava-o como uma espécie de penitência.

 

Posso fazer alguma coisa pelo senhor, Eminência? perguntou o padre Maloney. Eu podia trazê-lo para baixo, para evitar que subisse estas escadas íngremes. Tem sido uma tarde muito cansativa.

 

Obrigado, Michael disse James. Mas tenho de me refrescar, se quero sobreviver ao jantar com o presidente da câmara e com o cardeal que está de visita.

 

Quando quer que entre em contacto com Turim? perguntou o padre Maloney, para aproveitar o momento.

 

Esta noite, depois da meia-noite disse James entre respirações. Serão seis horas da manhã pela hora deles, e talvez consiga apanhá-los antes da missa.

 

Se me permite o comentário, sua Eminência, é um pedido surpreendente.

 

Sem dúvida! Surpreendente e curioso! Se a informação do senador sobre as amostras estiver correcta, e ficaria surpreendido se não estivesse, sabendo o que sei sobre o homem, deve ser um pedido fácil de satisfazer uma vez que obvia a necessidade de tocar no próprio sudário. Mas nas tuas conversas com Turim não te esqueças de realçar que o assunto deve ser completamente discreto. Eles terão de manter uma confidencialidade estrita e não haverá documento nenhum. Estou a ser claro?

 

Perfeitamente claro disse Michael. Está a questionar-se sobre a utilização que o senador pensa dar às amostras, Sua Eminência?

 

Essa é a minha única preocupação confirmou James, com uma última inspiração profunda. Recomeçou a subir as escadas lentamente. O senador é um mestre a fazer acordos. Tenho a certeza de que não quereria a amostra para fazer quaisquer testes não autorizados, mas pode estar a trocar favores com alguém que esteja interessado em analisá-lo. O Santo Padre decretou ex cathedra que o sudário não deveria ser submetido a mais indignidades científicas, e eu concordo plenamente. Mas, tirando isso, acredito que é uma causa nobre trocar algumas das fibras sagradas por uma hipótese de garantir a viabilidade económica da igreja. Concorda, padre?

 

Completamente.

 

Chegaram ao cimo das escadas e o cardeal parou uma vez mais para recuperar o fôlego.

 

Acredita que o senador vai fazer o que disse em relação à legislação, sua Eminência?

 

Sem dúvida afirmou James sem hesitar. O senador cumpre sempre a sua parte de um acordo. Como exemplo, foi fundamental no programa de certidões escolares que vai salvar as nossas escolas paroquiais. Em troca, eu garanti que ele tinha os votos católicos na última reeleição. Foi, como se diz, uma situação clara de vencedor-vencedor. Mas esta troca actual não é tão clara. Consequentemente, se for concretizada, como garantia suplementar quero que vá a Turim e veja quem recebe a amostra e depois siga a amostra para verificar a quem é entregue. Dessa forma, poderemos antecipar qualquer perigo potencialmente negativo.

 

Sua Eminência! Não me ocorre nenhuma missão mais agradável.

 

Padre Maloney! disse o cardeal rispidamente. Trata-se de uma missão séria e não de uma ocasião para se divertir. Espero discrição e empenho absolutos.

 

Claro, Sua Eminência! Não foi minha intenção insinuar outra coisa.

 

 

19.25, 22 de Fevereiro de 2002

Oh, céus! balbuciou Stephanie em voz alta, depois de olhar para o relógio. Eram quase sete e meia! Era surpreendente como o tempo podia voar quando ela estava absorta, e estivera absorta a tarde inteira. Primeiro, ficara cativada na livraria com os livros sobre o Sudário de Turim, e na última hora ficara estupefacta com o que estava a aprender, sentada diante do computador.

 

Voltara para o escritório pouco antes das seis e encontrara-o vazio. Presumindo que Daniel fora para casa, sentara-se à sua secretária improvisada no laboratório, e com a ajuda da Internet e de alguns arquivos de jornais envolvera-se na descoberta do que acontecera à Clínica Wingate pouco menos de um ano antes. Fora uma leitura absorvente e até perturbadora.

 

Stephanie colocou o computador portátil na sua pasta, pegou no saco plástico da livraria e vestiu o casaco. À porta do laboratório, apagou as luzes, o que a obrigou depois a atravessar a recepção às escuras. Uma vez na rua, virou para a Praça Kendall. Caminhou com a cabeça inclinada para se proteger do frio cortante. Típico do clima da Nova Inglaterra, verificara-se uma mudança vincada desde o princípio da tarde. Com o vento agora de norte ao invés de oeste, a temperatura caíra a pique e a tarde amena transformara-se numa noite fria. Juntamente com o vento norte, vieram tempestades de neve que cobriram a cidade, como se esta tivesse sido polvilhada com açúcar em pó.

 

Na Praça Kendall, Stephanie apanhou o metro da Linha Encarnada para a Praça Harvard, um território familiar dos seus tempos de faculdade. Como sempre e apesar do tempo, a praça estava a fervilhar de estudantes e da multidão que gravita nesses ambientes. Até alguns músicos ambulantes se tinham arriscado a sair, apesar do mau tempo. Com os dedos azuis, faziam serenatas aos transeuntes. Stephanie sentiu pena deles e foi deixando um comboio de notas de um dólar nos chapéus virados ao contrário, enquanto percorreu a Praça Harvard até à Praça Eliot.

 

As luzes e confusão ficaram rapidamente para trás quando Stephanie entrou na Rua Brattle. Passou por uma secção do Radcliff College e também pela famosa Casa Longfellow. Mas não se deixou arrebatar pelo que a rodeava. Em vez disso, reflectiu sobre o que descobrira nas últimas três horas e meia, e que estava ansiosa para partilhar com Daniel. Estava igualmente interessada em saber o que ele descobrira.

 

Já passava das oito quando subiu os degraus da frente para o edifício de apartamentos onde Daniel morava. Ele ocupava o apartamento do último andar de uma casa de três andares do final do período vitoriano com todas as ornamentações, incluindo beirais em madeira, que fora convertida em apartamentos. Ele comprara o apartamento em 1985, quando regressara à vida académica em Harvard. Fora um ano grandioso para Daniel. Não só deixara o emprego na empresa farmacêutica Merck como também deixara a mulher com quem estava casado há cinco anos. Explicara a Stephanie que se sentira sufocado por ambos. A mulher era uma enfermeira que ele tinha conhecido enquanto fazia o internato de medicina e o doutoramento ao mesmo tempo, um feito que Stephanie comparava a correr uma maratona de costas. Ele dissera a Stephanie que a ex-mulher era viciada em trabalho e que estar casado com ela o fizera sentir-se como Sísifo, a rolar constantemente uma rocha pela montanha acima. Também dissera que ela era demasiado bondosa e esperava que ele fosse igual a ela. Stephanie não sabia o que pensar de qualquer das explicações, mas não insistiu no assunto. Estava grata por eles não terem tido filhos o que, aparentemente, a ex-mulher queria desesperadamente.

 

Cheguei! gritou Stephanie, depois de fechar a porta do apartamento com o rabo. Equilibrando a pasta do computador e o saco dos livros na minúscula mesa da entrada, Stephanie despiu o casaco e abriu a porta do roupeiro para o pendurar.

 

Está alguém em casa? gritou ela, embora a sua voz tivesse soado abafada por estar direccionada para o interior do roupeiro. Quando acabou de arrumar o quarto, virou-se. Preparava-se para gritar novamente, mas a forma de Daniel encheu a entrada para o vestíbulo e assustou-a. Ele estava a apenas alguns centímetros de distância. O barulho que saiu dos lábios de Stephanie foi mais um pio do que outra coisa qualquer.

 

São quase oito horas conseguiu Stephanie dizer. Levou uma mão ao peito. Não me assustes dessa maneira!

 

Por que é que não telefonaste? Eu estava quase a chamar a polícia.

 

Oh, por favor! Tu sabes como eu sou nas livrarias. Fui a mais do que uma e esqueci-me do tempo. Nos dois sítios, acabei sentada num canto, a ler e a tentar decidir o que comprar. Depois, quando voltei ao escritório, quis aproveitar a banda larga.

 

Por que é que não tinhas o telemóvel ligado? Tentei ligar-te uma dúzia de vezes.

 

Porque estava numa livraria e quando cheguei ao escritório, nem me passou pela cabeça. Hei! Lamento se estavas preocupado comigo, está bem? Mas agora estou em casa, sã e salva. Que é que fizeste para o jantar?

 

Muito engraçadinha resmungou Daniel.

 

Relaxa! disse Stephanie, puxando a manga de Daniel, brincalhona. Aprecio a tua preocupação, a sério, mas estou esfomeada e tu também deves estar. E se fôssemos até à praça jantar? Podias telefonar para o Rialto, enquanto eu tomo um duche. É sexta-feira à noite, mas quando chegarmos lá não deve estar muito cheio.

 

Está bem disse Daniel com relutância, como se estivesse a concordar com um empreendimento de grande importância.

 

Só às nove e vinte é que entraram no restaurante Rialto e, tal como Stephanie previra, havia uma mesa preparada e à espera. Como estavam ambos famintos, analisaram imediatamente a ementa e fizeram o pedido sem demora. Pediram ao empregado de mesa que trouxesse logo o vinho, água com gás e pão para matarem a sede e começarem a saciar a fome.

 

Muito bem disse Stephanie, recostando-se na cadeira. Quem quer falar primeiro?

 

Posso começar eu declarou Daniel. Porque não tenho muito para dizer, mas o que tenho é encorajador. Telefonei para a Clínica Wingate, que me parece muito bem equipada para as nossas necessidades, e vão deixar-nos utilizar as suas instalações. Na verdade, já combinámos o preço: quarenta mil.

 

Uau! comentou Stephanie.

 

Sim, eu sei: é um bocado alto, mas tive relutância em regatear. Inicialmente, depois de os informar que não poderiam aproveitar o facto de utilizarmos as suas instalações para fins promocionais, tive receio de que as portas se tivessem fechado. Felizmente, eles reconsideraram.

 

Bem, o dinheiro não é nosso, e não há dúvida de que temos bastante. E quanto à questão dos ovócitos?

 

Essa é a parte melhor. Disseram-me que podem fornecer-nos ovócitos sem o menor problema.

 

Quando?

 

Dizem que quando quisermos.

 

Santo Deus exclamou Stephanie. Que intrigante.

 

A cavalo dado não se olha o dente.

 

E quanto a um neurocirurgião?

 

Também não há problema em relação a esse ponto. Há vários na ilha que estão desesperados para arranjar trabalho. O hospital local até tem equipamento estereotáxico.

 

Isso é encorajador.

 

Também me pareceu.

 

Eu tenho uma notícia boa e uma má. Qual é que queres ouvir primeiro?

 

Até que ponto é que a má é má?

 

Tudo é relativo. Não é suficientemente má para impossibilitar o que estamos a planear, mas é bastante má para nos preocuparmos.

 

Vamos ouvir a má e despachar o assunto.

 

Os directores da Clínica Wingate são piores do que eu me lembrava. A propósito, com quem é que falaste quando telefonaste para a clínica?

 

Com dois dos directores: Spencer Wingate em pessoa e o seu lugar-tenente, Paul Saunders. E devo dizer-te que são dois palhaços. Imagina isto: publicam a sua própria revista pseudocientífica, e o processo de escrever e editar só os envolve a eles!

 

Queres dizer que não há um conselho de crítica editorial?

 

Foi a impressão com que fiquei.

 

Isso é de morrer a rir, a menos que alguém assine a revista e aceite o que está escrito como um evangelho.

 

Foi exactamente o que pensei.

 

Bem, são muito piores do que palhaços declarou Stephanie. E piores do que dois simples perpetradores de experiências de clonagem reprodutiva contrárias à ética. Eu recorri a arquivos de jornais, especialmente do The Boston Globe, para saber o que aconteceu em Maio passado quando a clínica foi inesperadamente mudada para as Bahamas. Recordas-te de eu ter mencionado a noite passada em Washington em que eles tinham estado implicados no desaparecimento de duas alunas de Harvard? Bem, foi muito mais do que uma simples implicação, segundo duas denunciadoras extremamente credíveis que por acaso eram candidatas a um doutoramento em Harvard. Elas tinham conseguido arranjar emprego na clínica para descobrirem o destino dos óvulos que tinham doado. Durante a investigação descobriram muito mais do que tinham pensado. Numa audiência com um júri de acusação, afirmaram ter visto os ovários da mulher desaparecida no que chamaram a «sala de recuperação de óvulos» da clínica.

 

Santo Deus! exclamou Daniel. Por que é que as pessoas da Wingate não foram indiciadas, com esse tipo de testemunho?

 

Falta de provas e uma equipa de advogados de defesa caríssima! Aparentemente, os directores tinham um protocolo de evacuação previamente estudado que incluía a destruição imediata da clínica e do seu conteúdo, particularmente das instalações de investigação. Desintegrou-se tudo num inferno de chamas enquanto os directores partiam num helicóptero. Foi por isso que não receberam uma intimação. A ironia final é que, sem uma intimação, puderam receber o dinheiro do seguro de incêndio.

 

Então, que é que pensas de tudo isto?

 

Simplesmente que, definitivamente, essas pessoas não são simpáticas, e que devíamos limitar a nossa interacção com eles. E, depois do que li, gostaria de conhecer a origem dos óvulos que eles nos vão fornecer, só para ter a certeza de que não estamos a ser coniventes com alguma coisa pouco escrupulosa.

 

Não me parece que seja boa ideia. Já decidimos que seguir pela estrada da ética é um luxo que não podemos ter se queremos salvar a CURA e a RSTH. Questioná-los neste ponto pode causar problemas, e não queremos colocar em risco a utilização das instalações deles. Tal como eu disse, eles não ficaram excessivamente entusiasmados depois de eu ter inviabilizado qualquer utilização do nosso envolvimento para fins promocionais.

 

Stephanie brincou com o guardanapo enquanto reflectia sobre o que Daniel acabara de dizer. Não lhe agradava nada ter de trabalhar com a Clínica Wingate, mas era verdade que ela e Daniel não tinham muitas opções devido às limitações de tempo a que tinham de se sujeitar. Também era verdade que já estavam a violar a ética ao concordarem com o tratamento de Butler.

 

Bem, que é que dizes? perguntou Daniel. Podes viver com isto?

 

Suponho que simdisse Stephanie sem entusiasmo.Efectuamos o procedimento e pomo-nos a mexer.

 

É esse o plano disse Daniel. Agora, vamos continuar! Qual é a boa notícia que tens para me dar?

 

A boa notícia envolve o Sudário de Turim.

 

Sou todo ouvidos.

 

Esta tarde, antes de ir à livraria, disse-te que a história do sudário era mais interessante do que eu tinha imaginado. Bem, foi a exposição mais aquém dos factos que fiz este ano.

 

Porquê?

 

Agora, estou convencida de que afinal de contas, Butler é capaz de não ser assim tão doido, porque o sudário pode muito bem ser verdadeiro. É uma reviravolta surpreendente, já que sabes como eu sou céptica.

 

Daniel acenou afirmativamente.

 

Quase tanto como eu.

 

Stephanie olhou para o namorado depois deste último comentário, esperançada de que houvesse algum vestígio de humor como um sorriso matreiro, mas não havia. Sentiu uma ponta de irritação por Daniel ter de ser um pouco mais céptico, fosse qual fosse a questão. Bebeu um gole de vinho para voltar a concentrar-se no assunto que tinha em mãos.

 

De qualquer forma continuou, comecei a ler o material na livraria, e foi difícil parar. Quero dizer, mal posso esperar para voltar ao livro que comprei. Foi escrito por um professor de Oxford chamado Ian Wilson. Com sorte, amanhã vou receber mais livros que encomendei pela Internet.

 

Stephanie foi interrompida pela chegada da refeição. Ela e Daniel observaram com impaciência enquanto o empregado de mesa os servia. Daniel esperou que o homem se afastasse antes de falar.

 

Muito bem, aguçaste a minha curiosidade admitiu ele.Oiçamos a base desta surpreendente epifania.

 

Comecei a minha leitura com o conhecimento confortável de que o sudário tinha sido datado através de carbono por três laboratórios independentes como sendo do século XIII, o mesmo século em que apareceu historicamente. Conhecendo a precisão da tecnologia de datação por carbono, não esperava que a minha crença de que se tratava de uma falsificação fosse desafiada. Mas foi e quase imediatamente. A razão era simples. Se o sudário tivesse sido feito quando a datação por carbono sugeria, o falsificador teria de ser impossivelmente engenhoso e muitos anos-luz acima de Leonardo da Vinci.

 

Vais ter de explicar disse Daniel entre garfadas. Stephanie fizera uma pausa para começar a jantar.

 

Vamos começar com algumas razões subtis pelas quais o falsificador teria de ser sobre-humano para o seu tempo e depois passaremos a outras mais fortes. Em primeiro lugar, o falsificador teria de conhecer a perspectiva na arte, a qual ainda não fora descoberta. A imagem do homem no sudário tinha as pernas flectidas e a cabeça inclinada para a frente, provavelmente em rigor mortis.

 

Admito que não é terrivelmente forte comentou Daniel.

 

Que tal esta: o falsificador teria de conhecer o método exacto de crucificação usado pelos romanos, na era antiga. Era diferente de todas as descrições de crucificação do século XIII, e existem literalmente centenas de milhares. Na realidade, os pulsos do condenado estavam pregados à trave, não as palmas, que não teriam podido suportar o peso. Para além disso, a coroa de espinhos não era um anel pequeno, mas mais um boné que lhe revestia o crânio.

 

Daniel acenou algumas vezes, pensativo.

 

Experimenta esta: as manchas de sangue bloqueiam a imagem no tecido, o que significa que esse artista inteligente começou com as manchas de sangue e depois fez a imagem, o que é contrário à forma como todos os artistas trabalham. A imagem seria feita primeiro ou, pelo menos, o esboço. Depois, os pormenores como sangue seriam acrescentados para se ter a certeza de que ficariam nos lugares correctos.

 

Isso é interessante, mas teria de colocar essa na categoria da perspectiva.

 

Então, vamos continuar disse Stephanie. Em 1979, quando o sudário foi submetido a cinco dias de escrutínio científico por equipas de cientistas dos Estados Unidos, Itália e Suíça, ficou inequivocamente determinado que a imagem não fora pintada. Não havia pinceladas, havia uma gradação infinita de densidade e a imagem era um fenómeno de superfície, mas sem imbibição, o que significava que nenhum fluido de qualquer espécie estava envolvido. A única explicação que apresentaram em relação à origem da imagem foi uma espécie de processo de oxidação da superfície das fibras do tecido, como se tivessem sido expostas, na presença de oxigénio, a um clarão intenso de luz forte ou outra radiação electromagnética forte. Obviamente, isto foi vago e puramente especulativo.

 

Está bem disse Daniel. Sou obrigado a admitir que estamos a chegar a razões bastante fortes.

 

Há mais declarou Stephanie. Alguns dos cientistas que examinaram o sudário em 1979 eram da NASA e submeteram-no a análises com as tecnologias disponíveis mais sofisticadas, incluindo um aparelho conhecido como Analisador de Imagem VP-8. Tratava-se de um aparelho analógico que foi desenvolvido para converter imagens digitais especialmente gravadas da superfície da lua e de Marte, em imagens tridimensionais. Para surpresa de toda a gente, a imagem no sudário contém este tipo de informação, o que significa que a densidade da imagem do sudário num dado local é directamente proporcional à distância a que estava do indivíduo crucificado que cobriu. Bem vistas as coisas, teria de ter sido um falsificador dos diabos, se antecipou tudo isto no século XIII.

 

Credo! exclamou Daniel, enquanto abanava a cabeça, abismado.

 

Deixa-me acrescentar mais uma coisa disse Stephanie. Biólogos especializados em pólen determinaram que o sudário contém um tipo de pólen que só existe em Israel e na Turquia, o que significa que, a par de ser inteligente, o suposto falsificador teria de ser cheio de recursos.

 

Como podem os resultados da datação por carbono ter estado tão errados?

 

Uma pergunta interessante afirmou Stephanie, enquanto comia mais uma garfada do seu jantar. Mastigou rapidamente. Ninguém sabe ao certo. Houve sugestões de que o linho antigo tende a suportar o crescimento continuado de bactérias e a deixar uma biopelícula transparente, como uma camada de verniz, que distorceria os resultados. Aparentemente, tem havido um problema semelhante com a datação por carbono de alguns tecidos em múmias egípcias, cuja antiguidade é conhecida com bastante precisão por outros meios.

 

” Outra ideia sugerida por um cientista russo é que o fogo que chamuscou o sudário no século XVI podia ter alterado os resultados, embora eu tenha dificuldade em compreender como é que poderia tê-los alterado em mais de mil anos.

 

E quanto ao aspecto histórico?perguntou Daniel. Se o sudário é verdadeiro, como é que a sua história só remonta ao século XIII, quando apareceu em França?

 

Essa é outra pergunta pertinente disse Stephanie. Quando comecei a ler o material sobre o sudário, gravitei para os aspectos científicos e só comecei agora com os históricos. Ian Wilson relacionou muito inteligentemente o sudário com outra relíquia bizantina extremamente reverenciada chamada o Pano de Edessa, que esteve em Constantinopla mais de trezentos anos. O que é interessante é que este pano desapareceu quando a cidade foi saqueada por cruzados, em 1204.

 

Há alguma prova documental de que o sudário e o Pano de Edessa sejam um e o mesmo?

 

Foi precisamente aí que parei de ler disse Stephanie. Mas parece provável que essa prova exista. Wilson cita uma testemunha ocular francesa da relíquia bizantina antes do seu desaparecimento, que o descreveu nas suas memórias como uma mortalha com uma imagem mística e de corpo inteiro de Jesus, que seguramente parece o Sudário de Turim. Se as duas relíquias forem a mesma, então a história leva-a pelo menos até ao século IX.

 

Posso certamente compreender por que é que tudo isto te prendeu a atenção declarou Daniel. É fascinante. E, voltando à ciência, se a imagem não foi pintada, quais são as teorias actuais sobre a sua origem?

 

Essa pergunta é, provavelmente, a mais intrigante de todas. Na verdade, não existe nenhuma.

 

O sudário foi estudado cientificamente desde o episódio que mencionaste em 1979?

 

Muito disse Stephanie.

 

E não há teorias?

 

Nenhuma que tenha resistido a mais testes. Claro que continua a haver a vaga ideia de alguma espécie de clarão de radiação estranha... Stephanie deixou a voz arrastar-se como se quisesse deixar a ideia a pairar no ar.

 

Espera um segundo! disse Daniel. Não te preparas para me atirar com algum disparate divino ou sobrenatural, pois não?

 

Stephanie abriu as mãos com as palmas voltadas para cima, encolheu os ombros e sorriu ao mesmo tempo.

 

Agora, tenho a impressão de que estás a gozar comigo comentou Daniel com uma risada.

 

Estou a dar-te a oportunidade de apresentares uma teoria.

 

Eu? perguntou Daniel.

 

Stephanie acenou afirmativamente.

 

Eu não poderia apresentar uma hipótese sem ter acesso directo a todas as informações. Presumo que os cientistas que o examinaram usaram coisas como microscopia de electrões, espectroscopia, fluorescência ultra-violeta, bem como análises clínicas apropriadas.

 

Tudo o que mencionaste e mais disse Stephanie. Recostou-se na cadeira, com um sorriso provocante. E mesmo assim não existe uma teoria aceite de como a imagem foi produzida. Sem dúvida que é um enigma. Mas vá lá! Não sejas corte! Não podes pensar em alguma coisa com os pormenores que te relatei?

 

Tu é que tens andado a ler replicou Daniel. Acho que devias ter uma sugestão.

 

E tenho disse Stephanie.

 

Será que me atrevo a perguntar qual é?

 

Estou inclinada na direcção do divino. Eis o meu raciocínio: se o sudário é a mortalha de Jesus Cristo e se Jesus ressuscitou, o que significa que passou do material para o não material, presumivelmente num instante, então o sudário teria sido sujeito à energia da desmaterialização. Foi o clarão de luz que criou a imagem.

 

Que diabo é a energia da desmaterialização? perguntou Daniel, exasperado.

 

Não sei bem admitiu Stephanie com um sorriso. Mas teria de haver uma libertação de energia com uma desmaterialização. Olha para a energia libertada pelo declínio elementar rápido. Cria uma bomba atómica.

 

Suponho que não preciso de te lembrar que estás a usar um raciocínio muito pouco científico. Estás a usar a imagem do sudário para postular a desmaterialização para poderes usar a desmaterialização para explicar o sudário.

 

Não é científico, mas para mim faz sentido disse Stephanie com uma gargalhada. E também faz sentido para Ian Wilson, que descreveu a imagem do sudário como uma fotografia da Ressurreição.

 

Bem, pelo menos, convenceste-me a dar uma espreitadela ao livro que compraste.

 

Só quando eu acabar! brincou Stephanie.

 

Que efeito é que estas informações sobre o sudário tiveram na tua reacção sobre a utilização das suas manchas de sangue para tratar Butler?

 

Deu uma volta de cento e oitenta graus admitiu Stephanie.

 

Neste ponto, sou completamente a favor. Quero dizer, por que não recrutar o potencialmente divino para nosso benefício? E, como disseste em Washington, usar o sangue do sudário trará algum desafio e excitação, ao mesmo tempo que cria o derradeiro placebo.

 

Daniel levantou a mão, e ele e Stephanie bateram com as mãos uma na outra por cima da mesa.

 

E sobremesa? perguntou Daniel.

 

Eu não quero. Mas se tu comeres, eu tomo um café. Daniel abanou a cabeça.

 

Eu não quero sobremesa. Vamos para casa. Quero verificar se tenho alguma mensagem de correio electrónico dos tipos do grupo de capital de risco Daniel fez sinal ao empregado para pedir a conta.

 

E eu quero ver se há alguma mensagem do Butler. A outra coisa que aprendi sobre o sudário é que vamos precisar da ajuda dele para conseguir uma amostra. Sozinhos, seria impossível. A igreja selou-o com um nível muito sofisticado de segurança, dentro de uma caixa da era do espaço numa atmosfera de árgon. Também declararam categoricamente que não haveria mais testes. Após o fiasco da datação por carbono, eles estão com medo, o que é razoável.

 

Foi feita alguma análise ao sangue?

 

Claro que sim disse Stephanie. Constatou-se que é do tipo AB, que era muito mais comum no Próximo Oriente antigo do que é agora.

 

Algum trabalho sobre o ADN?

 

Também respondeu Stephanie. Foram isolados diversos fragmentos de genes específicos, incluindo uma beta globulina do cromossoma X e até um fragmento do cromossoma Y.

 

Bem, aí tens disse Daniel. Se conseguirmos obter uma amostra, será muito fácil tirar os segmentos de que precisamos com as nossas sondas da RSTH.

 

É bom que as coisas comecem a acontecer depressa avisou Stephanie. Se não, não vamos ter as células a tempo das férias que o Butler vai ter no Senado.

 

Eu estou plenamente consciente disso replicou Daniel. Pegou no cartão de crédito que o empregado lhe estendia e assinou o recibo. Se o sudário vai ser envolvido, temos de ir a Turim nos próximos dias. Por isso, é bom que Butler comece a mexer-se! Depois de termos a amostra, poderemos voar directamente para Nassau a partir de Londres, pela British Airways. Verifiquei isso ao princípio da noite.

 

Não vamos fazer o trabalho celular aqui no nosso laboratório?

 

Infelizmente, não. Os óvulos estão lá, não aqui, e não quero correr o risco de os mandar vir para cá, pois quero-os frescos. Esperemos que o laboratório da clínica esteja tão bem equipado como eles afirmam, porque vamos fazer tudo lá.

 

Isso quer dizer que vamos partir daqui a alguns dias e que estaremos fora um mês ou mais.

 

Isso mesmo. Há algum problema?

 

Suponho que não disse Stephanie. Não é má altura para passar um mês em Nassau. Peter pode tomar conta das coisas no laboratório. Mas amanhã ou no domingo vou ter de ir a casa para ver a minha mãe. Como sabes, ela tem andado adoentada.

 

É melhor ires o mais depressa possível disse Daniel. Se Butler der notícias sobre a amostra do sudário, vamos-nos embora.

 

 

14.45, sábado, 23 de Fevereiro de 2002

Daniel sentiu que estava a ficar com uma vaga ideia de como era ter uma perturbação maníaco-depressiva, quando desligou o telefone depois de mais uma conversa decepcionante com as pessoas da empresa de capital de risco de São Francisco. Antes do telefonema, sentia-se no topo do mundo depois de esboçar os planos para o próximo mês num bloco A4. Com Stephanie agora a apoiar entusiasticamente o plano para tratar Butler, incluindo a utilização de sangue do sudário, as coisas começavam a encaixar-se nos seus lugares. Nessa manhã, entre os dois, tinham elaborado uma declaração abrangente para Butler assinar e tinham-na enviado ao senador por correio electrónico. De acordo com as instruções que tinham enviado, deveria ser assinada na presença de Carol Manning e enviada por fax para o escritório deles.

 

Quando Stephanie voltou para o laboratório, para verificar a cultura de fibroblastos de Butler, Daniel convencera-se de que as coisas estavam a correr tão bem que era razoável telefonar aos homens do dinheiro na esperança de os fazer mudar de opinião, em relação a disponibilizarem a segunda fase do financiamento. Mas o telefonema não correra bem. A pessoa-chave terminara a conversa dizendo a Daniel para não voltar a telefonar, a menos que tivesse provas escritas de que a RSTH não seria proibida. O banqueiro acrescentara que, a menos que recebesse a documentação num futuro próximo, o dinheiro destinado à CURA seria transferido para outra prometedora empresa de biotecnologia cuja propriedade intelectual não corria perigo político.

 

Daniel afundou-se na cadeira, com as ancas precariamente apoiadas na ponta e com a cabeça pousada nas costas da cadeira. A ideia de voltar à vida académica estável mas com falta de dinheiro, com a sua previsibilidade de passo de caracol, parecia-lhe cada vez mais atraente. Estava a começar a abominar os grandes altos e baixos de tentar alcançar o estatuto de celebridade rica que merecia. Era de bradar aos céus que as estrelas de cinema só tivessem de decorar algumas deixas e os atletas famosos só tivessem de evidenciar uma destreza pouco inteligente com um taco ou uma bola para comandarem o lucro e a atenção com que eram bombardeados. Com as suas credenciais e uma descoberta brilhante a seu favor, era abominável ter de suportar tanto trabalho e a ansiedade associada. O rosto de Stephanie espreitou na esquina.

 

Adivinha? disse ela, entusiasmada. As coisas estão a correr extremamente bem com a cultura de fibroblastos de Butler. Graças à atmosfera de cinco por cento de C02 e ar, já está a começar a formar-se uma monocamada. As células vão ficar prontas mais cedo do que eu previ.

 

Maravilhoso disse Daniel num tom deprimido e monocórdico.

 

Qual é o problema agora? perguntou Stephanie. Entrou no gabinete e sentou-se. Parece que vais infiltrar-te no chão. Por que é que estás com essa cara?

 

Nem perguntes! É a mesma velha história do dinheiro, ou pelo menos da falta dele.

 

Suponho que isso significa que telefonaste novamente para os capitalistas da empresa de investimentos de risco.

 

Que clarividente! disse Daniel, sarcasticamente.

 

Santo Deus! Por que é que te estás a torturar?

 

- Então, agora achas que estou a fazer isto a mim próprio.

 

Estás, se continuares a telefonar-lhes. Segundo o que me disseste ontem, as intenções deles foram bastante claras.

 

Mas o plano Butler está a avançar. A situação está a evoluir. Stephanie fechou os olhos por instantes e respirou fundo.

 

Daniel começou ela, a tentar pensar na melhor maneira de formular o que queria dizer-lhe sem o irritar, não podes esperar que as outras pessoas vejam o mundo como tu. Tu és um homem brilhante, talvez inteligente de mais para o teu próprio bem. As outras pessoas não olham para o mundo como tu. Quero dizer, não podem pensar como tu.

 

Estás a ser condescendente? Daniel olhou para a namorada, colaboradora científica e sócia. Ultimamente, com a tensão dos acontecimentos recentes, era mais a última do que a primeira, e os negócios não estavam a correr bem.

 

Céus, não! declarou Stephanie enfaticamente. No entanto, antes de poder continuar, o telefone tocou. O ruído estridente no gabinete silencioso assustou-os.

 

Daniel estendeu a mão para o auscultador, mas não pegou nele. Olhou rapidamente para Stephanie.

 

Estás à espera de um telefonema? Stephanie abanou a cabeça.

 

Quem poderá estar a telefonar aqui para o escritório num sábado?

 

Talvez seja para o Petersugeriu Stephanie.Ele está novamente no laboratório.

 

Daniel levantou o auscultador e usou o nome todo da empresa, ao invés da sigla.

 

Clínica de Substituição Celular disse num tom oficial.

 

Fala o Dr. Spencer Wingate da Clínica Wingate. Estou a telefonar de Nassau para falar com o Dr. Daniel Lowell.

 

Daniel fez sinal a Stephanie para ela ir para a recepção e ouvir pela extensão de Vicky. Depois, identificou-se a Spencer.

 

Seguramente, não esperava falar directamente consigo, doutor disse Spencer.

 

A nossa recepcionista não trabalha aos sábados.

 

Santo Deus! exclamou Spencer. Riu-se. Não me apercebi de que era fim-de-semana. Como abrimos as novas instalações recentemente, temos estado todos a trabalhar vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, para engomar as rugas. Peço mil perdões se estou a incomodá-lo.

 

Não está a incomodar nada garantiu-lhe Daniel, e ouviu um clique suave quando Stephanie ficou em linha. Há algum problema relacionado com a nossa conversa de ontem?

 

Muito pelo contrário disse Spencer. Estava com receio de que tivesse havido uma mudança do seu lado. O doutor disse que telefonaria a noite passada ou hoje, o mais tardar.

 

Tem razão, eu disse isso replicou Daniel. Desculpe. Tenho estado à espera de notícias do sudário para pôr as coisas em movimento. Peço desculpa por não lhe ter telefonado.

 

Não é necessário pedir desculpa. Embora não tenha tido notícias suas, achei que devia telefonar-lhe para lhe dizer que já falei com um neurocirurgião chamado Dr. Rashid Nawaz, que tem consultório em Nassau. É um cirurgião paquistanês que estudou em Londres e me garantiram ser bastante talentoso. Até teve algumas experiências com implantes de células fetais, e está ansioso para ser útil. Também concordou em trazer o equipamento esterotáxico do Hospital Princesa Margarida.

 

Mencionou a necessidade de discrição?

 

Evidentemente e ele concordou.

 

Maravilhoso replicou Daniel. Discutiram os honorários dele?

 

Eu tratei disso. Parece que os serviços dele vão ser um pouco mais caros do que eu pensava, talvez devido à discrição que foi pedida. Ele está a pedir mil dólares.

 

Daniel questionou-se momentaneamente se devia fazer um esforço para negociar. Mil dólares era uma soma significativamente mais elevada do que o cálculo inicial de duzentos ou trezentos dólares. Mas o dinheiro não era dele, e acabou por dizer a Spencer para tratar de tudo.

 

Mais informações sobre quando podemos esperá-lo? perguntou Spencer.

 

Neste momento, nãodisse Daniel. Eu digo-lhe logo que souber.

 

Perfeito declarou Spencer. Enquanto o tenho ao telefone, há alguns pormenores que gostaria de abordar.

 

Faça o favor.

 

Em primeiro lugar, gostaria de pedir metade da quantia combinada antecipadamente disse Spencer. Podemos enviar-lhe instruções para o depósito.

 

Quer o dinheiro imediatamente?

 

Gostaríamos de recebê-lo logo que tivermos a data da sua chegada. Isso vai possibilitar a organização dos funcionários apropriados. Isso vai constituir um problema?

 

Suponho que não respondeu Daniel.

 

Bom disse Spencer. Em seguida, gostaríamos que os nossos funcionários fossem autorizados a aprender a técnica da RSTH, especialmente o Dr. Paul Saunders, bem como a oportunidade de debater consigo um futuro acordo de licenciamento da RSTH e taxas para as sondas e enzimas necessárias.

 

Daniel hesitou. A sua intuição dizia-lhe que estava a ser pressionado por ter concordado depressa de mais com o preço no dia anterior. Aclarou a garganta.

 

Não tenho qualquer objecção a que o Dr. Saunders observe mas, quanto à questão do licenciamento, infelizmente não tenho liberdade para tomar esse género de decisões. A CURA é uma empresa com um conselho de administração que teria de concordar com qualquer decisão, com o apoio pleno dos accionistas. Mas, na qualidade de administrador executivo, posso prometer-lhe que voltaremos a falar no assunto futuramente, e a vossa ajuda nesta situação será tida em consideração.

 

Talvez eu estivesse a pedir de mais admitiu Spencer amistosamente. Riu-se. Mas como diz o ditado, Não custa tentar.

 

Daniel revirou os olhos, a lamentar as indignidades que tinha de suportar.

 

Uma última coisa disse Spencer. Gostaríamos de saber o nome do paciente, para podermos dar início ao processo de admissão e para abrirmos uma ficha. Gostaríamos de nos preparar para a chegada dele ou dela.

 

Não vai haver registo disse Daniel. Ontem deixei bem claro que este tratamento vai ser efectuado no mais absoluto sigilo.

 

Mas teremos de identificar o paciente para os testes laboratoriais e afins disse Spencer.

 

Chame-lhe Paciente X ou John Smith disse Daniel. Não faz a menor diferença. Penso que ele só vai ficar na vossa clínica vinte e quatro horas, no máximo. Nós estaremos sempre com ele, e faremos todos os testes laboratoriais.

 

E se as autoridades das Bahamas questionarem a admissão dele?

 

Isso é provável?

 

Não, suponho que não. Mas, se acontecer, não sei bem o que poderíamos dizer.

 

Estou confiante de que com a sua experiência a lidar com as autoridades durante a construção da clínica, saberá ser criativo. É uma parte da razão por que lhe estamos a pagar quarenta mil dólares. Certifique-se de que eles não questionam.

 

Vamos precisar de um ou dois subornos. Talvez se subisse o preço mais cinco mil dólares, nós pudéssemos garantir que não haverá qualquer problema com as autoridades.

 

Daniel não respondeu imediatamente, enquanto controlava a raiva. Detestava ser manipulado, especialmente por um palhaço do calibre de Wingate.

 

Muito bem disse ele por fim, sem camuflar a irritação. Vamos depositar vinte e dois mil e quinhentos dólares. Porém, quero a sua garantia pessoal de que esta operação vai decorrer sem percalços daqui em diante, e que não haverá mais exigências.

 


Tem a minha garantia, como fundador da Clínica Wingate, de que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para que a sua associação connosco corresponda às suas expectativas e satisfação completa.

 

Vai ter notícias nossas muito em breve.

 

Nós estaremos aqui!

 

Os ruidosos motores do avião fizeram as paredes do gabinete de Spencer estremecer quando o Boeing 767 intercontinental passou pela Clínica Wingate a uma altitude de menos de cento e cinquenta metros, a preparar-se para aterrar. Com o forte isolamento acústico do edifício, a vibração era mais táctil do que audível, e suficientemente forte para agitar levemente a colecção de diplomas emoldurados de Spencer. Este já estava acostumado à perturbação diária intermitente e não prestava qualquer atenção, para além de endireitar os diplomas de vez em quando.

 

Como é que me portei? gritou Spencer pela porta aberta.

 

Paul Saunders apareceu à porta depois de ter escutado a conversa de Spencer com Daniel do seu gabinete contíguo.

 

Bem, vejamos o lado positivo das coisas. Não descobriste o nome do paciente, mas conseguiste eliminar quase metade dos ricos e famosos do mundo. Agora sabemos que é um homem.

 

Muito engraçado disse Spencer. Não esperávamos que ele nos desse o nome numa bandeja de prata. Mas consegui que ele subisse a oferta para quarenta e cinco mil e que te deixasse observar o trabalho celular. Não é mau.

 

Mas não insististe no assunto do licenciamento. Isso pode fazer-nos poupar muito dinheiro com a nossa terapia celular.

 

Sim, bem, ele tinha uma certa razão. Está a administrar uma empresa.

 

Pode ser uma empresa, mas é uma empresa privada e aposto o que quiseres como ele é de longe o maior accionista.

 

Bem, ganhamos umas e perdemos outras. De qualquer forma, não o espantei. Lembra-te de que essa era uma das nossas preocupações... que,

se o pressionássemos de mais, ele iria para outro sítio qualquer.

 

Reconsiderei essa preocupação, desde que ele estivesse a falar verdade em relação aos limites de tempo. Possivelmente, somos o único sítio que pode fornecer-lhe de um dia para o outro um laboratório de primeira classe, instalações hospitalares e ovócitos humanos sem perguntas.

 


Mas não importa. O nosso potencial pagamento milagroso vai ser garantido quando descobrirmos o nome do paciente. Estou convencido disso. E quanto mais depressa descobrirmos, melhor.

 

Eu não podia estar mais de acordo, e para esse fim, descobri que Lowell estava no seu escritório hoje, o que era o verdadeiro objectivo do telefonema.

 

Verdade! E tenho de reconhecer que conseguiste. Logo que desligaste, telefonei a Kurt Hermann para o avisar. Ele disse que ia transmitir imediatamente a informação ao seu compatriota que está posicionado em Boston, à espera de entrar no apartamento de Lowell.

 

Espero que este compatriota, como lhe chamaste, seja capaz de ser discreto. Se Lowell se assustar... ou, pior ainda, se se magoar... pode ficar tudo comprometido.

 

Eu transmiti especificamente os teus receios em relação à violência, a Kurt.

 

E que é que ele disse?

 

Tu sabes que Kurt não diz grande coisa. Mas compreende.

 

Espero que tenhas razão, porque nos dava muito jeito uma sorte financeira inesperada. Com o que gastámos a montar e a equipar esta clínica, o poço está praticamente seco, e para além do nosso trabalho celular, há muito pouco trabalho de fertilização no horizonte imediato.

 

O Dr. Spencer Wingate parece mesmo o bandido que eu receava disse Stephanie. Voltara para o gabinete de Daniel depois de escutar a conversa. Fala sobre subornos como se fosse uma ocorrência banal.

 

Talvez nas Bahamas seja declarou Daniel.

 

Espero que ele seja baixo, gordo e que tenha uma verruga no nariz. Daniel olhou para Stephanie, confuso.

 

Talvez fume imenso e tenha mau hálito.

 

De que diabo estás tu a falar?

 

Se Spencer Wingate parecer tão feio como soa, talvez eu não perca completamente a fé na profissão médica. Sei que é irracional, mas não quero que ele se pareça nada com a imagem mental de um médico. Assusta-me pensar que ele é um médico em exercício. E isso aplica-se igualmente aos seus sócios.

 

Oh, deixa-te disso, Stephanie! Não sejas tão ingénua. A profissão médica, como qualquer outra profissão, está longe de ser perfeita. Há bons e maus, e a maioria encontra-se algures no meio.

 

Achei que a auto-regulamentação fazia parte da definição desta profissão. De qualquer maneira, a verdadeira questão é que gostava que a minha intuição não estivesse a dizer-me que é má ideia trabalhar com estas pessoas.

 

Pela última vez disse Daniel, frustrado, nós não estamos a trabalhar com estes palhaços. Deus me livre! Vamos usar as instalações deles e mais nada. Fim da história.

 

Vamos esperar que seja assim tão simples disse Stephanie. Daniel retribuiu o olhar de Stephanie. Já estavam juntos há tempo suficiente para ele ter consciência de que ela não aceitava a sua justificação, e irritou-o que ela não estivesse a apoiá-lo mais. O problema é que as dúvidas dela chamavam a atenção para as suas próprias dúvidas, que ele estava a tentar ignorar activamente. Queria acreditar que todo aquele episódio ia correr bem e que acabaria em breve, mas a negatividade de Stephanie não parava de minar as suas esperanças. Na recepção, o fax ganhou vida.

 

Vou ver o que é disse Stephanie. Levantou-se e saiu da sala. Daniel observou-a a afastar-se. Foi um alívio escapar ao olhar dela. As pessoas tinham o dom de o irritar até Stephanie, de vez em quando. Perguntou a si mesmo se estaria melhor sozinho.

 

Já é a declaração de Butler gritou Stephanie.Assinada perante uma testemunha, juntamente com um bilhete a informar que o original já está no correio.

 

Óptimo! gritou Daniel por sua vez. Pelo menos, a colaboração de Butler era encorajadora.

 

Na primeira folha, o senador pergunta se verificámos o nosso correio electrónico esta tarde. Stephanie apareceu à porta com uma expressão interrogativa. Eu não, e tu?

 

Daniel abanou a cabeça e inclinou-se para a frente, ligando-se à Internet. No endereço novo e especial criado para o tratamento de Butler, havia uma mensagem do senador. Stephanie deu a volta à secretária de Daniel e olhou por cima do seu ombro, enquanto ele a abria.

 

Meus caros doutores,

 

Espero que esta mensagem os encontre ocupados com os preparativos para o meu tratamento iminente. Eu também tenho estado produtivamente ocupado, e congratulo-me por informar-vos de que os guardiões do Sudário de Turim têm sido muito úteis, graças à intervenção de um colega influente. Devem viajar para Turim logo que puderem. Ao chegarem, vão telefonar para a Chancelaria da Arquidiocese de Turim para falar com monsenhor Mansoni. Informarão o monsenhor de que são os meus representantes. Nessa altura, sei que o monsenhor vai marcar um encontro num local apropriado para vos entregar a amostra sagrada. Por favor, compreendam que isto tem de ser feito com a maior discrição e sigilo, para não pôr em perigo o meu estimado colega. Entretanto, continuo o vosso amigo sincero, A. B.

 

Daniel levou um momento a apagar a mensagem, tal como ele e Stephanie tinham decidido apagar todas as outras mensagens do senador. Tinham combinado entre todos que haveria o menor número de provas possível do caso. Quando acabou, levantou os olhos para ela.

 

Não há dúvida de que o senador está a cumprir a sua parte. Stephanie acenou afirmativamente.

 

Estou impressionada. E também estou a começar a ficar empolgada. O caso está definitivamente a ficar com um toque de intriga internacional.

 

Quando é que podes estar pronta para partir? A Alitalia tem voos diários para Roma que saem à noite com ligações a Turim. Lembra-te de que vais ter de levar coisas para um mês.

 

Fazer as malas não vai ser o problema disse Stephanie. Os meus dois problemas são a minha mãe e a cultura de tecidos de Butler. Preciso de passar algum tempo com a minha mãe, como te disse. E também quero deixar a cultura de tecidos de Butler num ponto em que Peter possa tomar conta.

 

De quanto tempo estás a falar em relação à cultura?

 

Não muito. Esta manhã está tão boa que, provavelmente, amanhã de manhã estarei satisfeita. Só quero ter a certeza de que está a formar-se uma verdadeira monocamada. Depois, Peter pode mantê-la, passá-la e conservá-la criogenicamente. O meu plano é que ele envie uma alíquota para Nassau num contentor de nitrogénio líquido, quando nós estivermos prontos para aplicar a técnica. Manteremos o resto da cultura aqui, para o caso de precisarmos dela no futuro.

 

Não sejamos pessimistas disse Daniel. E a tua mãe?

 

Amanhã posso vê-la algumas horas durante o dia. Ela está sempre em casa aos domingos, a cozinhar.

 

Então, teoricamente, poderias estar pronta para partir amanhã à noite?

 

Claro, se fizer as malas esta noite.

 

Então, vamos voltar imediatamente para o apartamento. Eu faço os telefonemas necessários de lá.

 

Stephanie entrou novamente no laboratório para ir buscar o computador portátil e o casaco. Depois de se certificar de que Peter estava a pensar ir para o laboratório na manhã seguinte para poderem conversar sobre a cultura de Butler, voltou para a recepção. Encontrou Daniel a segurar a porta da entrada aberta para ela com impaciência.

 

Credo, estás com pressa! comentou Stephanie. Era costume ela ter de esperar por Daniel. De cada vez que iam a algum lado, ele arranjava sempre mais uma coisa para fazer.

 

Já são quase quatro horas, e não quero que tenhas uma desculpa para não estares pronta para partir amanhã à noite. Lembro-me do tempo que demoraste a fazer a mala para passar duas noites em Washington, e isto é para um mês. Tenho a certeza de que vais demorar mais tempo do que pensas.

 

Stephanie sorriu. Era verdade porque, entre outras coisas, precisava de passar algumas peças a ferro. Também se lembrou de que tinha de passar pela farmácia para comprar alguns artigos de que necessitava para a viagem. O que não esperava foi a rapidez com que Daniel conduziu depois de entrarem no carro. Arriscou um olhar de relance para o velocímetro enquanto desciam o Memorial Drive a grande velocidade. Iam a quase oitenta numa zona de cinquenta.

 

Hei, abranda! conseguiu Stephanie dizer. Estás a conduzir como um daqueles motoristas de táxi de que te queixas.

 

Desculpa disse Daniel. Abrandou ligeiramente.

 

Prometo que vou ter tudo pronto, por isso não é necessário arriscares as nossas vidas. Stephanie olhou de lado para Daniel, para ver se ele percebia que ela estava a tentar ser engraçada, mas a sua expressão determinada não mudou.

 

Estou ansioso para despachar este famigerado assunto, agora que sinto que estamos verdadeiramente a começar disse ele, sem tirar os olhos da estrada.

 

Pensei numa coisa que devia fazer disse Stephanie. Vou colocar um alarme para que as futuras mensagens de correio electrónico de Butler também sejam enviadas para a caixa de mensagens do meu telemóvel. Assim, saberemos que chegou uma mensagem e poderemos lê-la imediatamente.

 

Boa ideia concordou Daniel.

 

Encostaram junto ao passeio diante da casa de Daniel. Ele desligou o motor e saltou do carro. Já ia a meio do passeio da frente quando Stephanie tirou o computador portátil do banco de trás. Ela encolheu os ombros. Ele podia ser um professor extremamente distraído quando se concentrava num único pensamento. Podia ignorá-la completamente, como estava a fazer agora. Mas ela não estava disposta a ficar ofendida com o comportamento dele. Conhecia-o bem de mais.

 

Daniel subiu as escadas duas a duas, enquanto decidia se telefonava primeiro para a companhia aérea para marcar as passagens e depois para as pessoas da Wingate. Pensou que marcar uma noite em Turim seria apropriado. Depois, lembrou-se de que teria de pedir as instruções para enviar o dinheiro a Spencer quando ligasse para Nassau, para poder resolver igualmente o problema do dinheiro.

 

Daniel chegou ao segundo andar e parou, enquanto procurava as chaves. Foi nesse momento que reparou que a porta do apartamento estava ligeiramente entreaberta. Por uma fracção de segundo, tentou lembrar-se de quem fora o último a sair nessa manhã: ele ou Stephanie. Depois lembrou-se de que fora ele, pois tivera de voltar para ir buscar a carteira. Recordava-se nitidamente de ter fechado a porta à chave, incluindo a fechadura de segurança.

 

O som da porta da frente do edifício a abrir e a fechar espalhou-se pelas escadas, juntamente com os passos de Stephanie nas escadas antigas e que chiavam. Para além disso, a casa estava em silêncio. Os inquilinos do rés-do-chão estavam de férias nas Caraíbas, e o inquilino do primeiro andar nunca estava em casa durante o dia. Era um matemático que não largava o centro de informática do MIT e só vinha a casa para dormir.

 

Cautelosamente, Daniel empurrou a porta para ter uma visão mais alargada da entrada. Agora, podia ver o corredor até à sala de estar. Com o sol a aproximar-se do horizonte distante a sudeste, o apartamento estava quase na penumbra. Viu, de imediato, o feixe de uma lanterna quando esta passou momentaneamente pela parede da sala de estar. Ao mesmo tempo, ouviu uma das gavetas do seu arquivo vertical a ser fechada.

 

Quem diabo está aí? gritou Daniel a plenos pulmões. Estava ultrajado por um intruso ter entrado no seu apartamento, mas não era imprudente. Embora o intruso tivesse obviamente entrado pela porta principal, Daniel estava confiante de que ele verificara o apartamento e sabia do acesso nas traseiras do estúdio para a escada de incêndio. Quando pegou no telemóvel para marcar o número de emergência, Daniel estava plenamente convencido de que o ladrão ia fugir por ali.

 

Para seu choque, o intruso apresentou-se imediatamente na sua linha de visão e cegou-o com a sua lanterna. Daniel tentou bloquear o feixe com a mão. Não foi inteiramente bem sucedido, mas foi o suficiente para ver que o homem vinha na sua direcção a toda a velocidade. Antes de poder reagir, foi bruscamente atirado para o lado por uma mão enluvada com força suficiente para o fazer chocar contra a parede. Os seus ouvidos apitaram com a pancada. Daniel recuperou o equilíbrio e avistou um homem grande vestido com um fato preto justo, incluindo uma máscara preta de esqui, a descer velozmente as escadas com passos silenciosos. Depois de um guincho de Stephanie, a porta lá em baixo abriu e fechou com estrondo.

 

Daniel correu para o corrimão e olhou para baixo. No patamar inferior, Stephanie estava encostada à porta fechada do matemático, apertando o computador contra o peito com ambas as mãos. O seu rosto estava lívido.

 

Estás bem? perguntou ele.

 

Quem diabo era aquele? perguntou ela.

 

Um maldito ladrão respondeu Daniel. Voltou-se para examinar a porta.

 

Stephanie subiu o último lance de escadas e espreitou por cima do ombro dele.

 

Pelo menos, não arrombou a porta disse Daniel. Devia ter uma chave.

 

Tens a certeza de que estava fechada à chave?

 

Absoluta! Recordo-me nitidamente de até trancar a fechadura de segurança.

 

Quem mais tem uma chave?

 

Ninguém declarou Daniel. Há apenas duas. Foram as que mandei fazer quando comprei este apartamento e mudei as fechaduras.

 

Ele deve ter arrombado a fechadura.

 

Se o fez, então era um profissional. Mas por que é que um profissional arrombaria o meu apartamento? Eu não tenho nada de valor.

 

Oh, não! exclamou Stephanie de repente. Deixei todas as minhas jóias em cima da cómoda, incluindo o relógio de ouro da minha avó. Passou intempestivamente por Daniel e dirigiu-se para o quarto.

 

Daniel seguiu-a pelo corredor.

 

Isso recorda-me. Fui suficientemente estúpido para deixar todo o dinheiro que levantei ontem à noite no ATM, em cima da secretária.

 

Daniel entrou no estúdio. Para sua surpresa, o dinheiro estava exactamente onde o tinha colocado, no centro do mata-borrão. Pegou nele, e ao fazê-lo reparou que tudo o resto que se encontrava sobre a secretária fora mexido. Daniel admitia que não era a mais arrumada das pessoas, mas era extremamente bem organizado. Podia haver pilhas de correspondência, contas e revistas científicas em cima da secretária, mas ele conhecia a sua localização exacta, e até a ordem de cada pilha.

 

Os seus olhos pousaram no arquivo vertical de quatro gavetas. Até os recortes de artigos de revistas amontoados no cimo e à espera de serem arquivados tinham sido mexidos. Não tinham sido muito mexidos, mas a sua posição fora alterada.

 

Stephanie apareceu à porta. Suspirou, aliviada.

 

Devemos ter vindo para casa no momento certo. Aparentemente, ele ainda não tinha tido tempo de chegar ao quarto. Todas as minhas coisas estavam onde as deixei ontem à noite.

 

Daniel levantou a pilha de notas.

 

Ele nem sequer levou o dinheiro, e esteve aqui de certeza. Stephanie riu sem vontade.

 

Que tipo de ladrão era ele?

 

Eu não acho isto nada engraçado disse Daniel. Começou a abrir gavetas individuais da secretária e do arquivo para verificar a aparência dos respectivos conteúdos.

 

Eu também não estou a sugerir que acho graça disse Stephanie. Estou a tentar usar o humor para expressar os meus verdadeiros sentimentos.

 

Daniel levantou os olhos.

 

De que é que estás a falar?

 

Stephanie abanou a cabeça e expirou com força. Conseguiu afastar as lágrimas. Estava a tremer.

 

Estou perturbada. Este género de acontecimentos inesperados perturbam-me profundamente. Sinto-me violada por alguém ter estado aqui, a invadir a nossa privacidade. Realça a realidade de que estamos sempre a viver no fio da navalha, mesmo quando não o sabemos.

 

Eu também estou perturbado disse Daniel. Mas não filosoficamente. Estou perturbado porque há aqui alguma coisa que não compreendo. Parece-me bastante óbvio que este intruso não era um ladrão vulgar. Andava à procura de alguma coisa específica, e eu não faço ideia do que poderia ser. Isso é perturbador.

 

Não achas que chegámos a casa antes de ele ter a oportunidade de levar alguma coisa?

 

Ele já cá estava há algum tempo, certamente o suficiente para levar algumas coisas de valor, se andasse à procura disso. Teve tempo para revistar a secretária e talvez o arquivo.

 

Como é que sabes?

 

Sei, por causa do meu grau de compulsividade. Este homem era um profissional, e andava à procura de alguma coisa especial.

 

Estás a pensar em propriedade intelectual talvez relacionada com a RSTH?

 

É possível, mas duvido. Tudo isso está protegido com as devidas patentes. Para além do mais, nesse caso o arrombamento teria sido no escritório.

 

Então que mais? Daniel encolheu os ombros.

 

Não sei.

 

Telefonaste para a polícia?

 

Comecei, mas depois ele saiu disparado. Agora, não sei se devemos.

 

Por que não? Stephanie estava surpreendida.

 

Que é que eles iam fazer? O homem já fugiu há muito tempo. Parece que não desapareceu nada, por isso não há o problema dos seguros, e para além disso não sei se quero que nos façam imensas perguntas sobre o que temos andado a fazer ultimamente, se fosse caso disso. E, acima de tudo, vamos partir amanhã à noite, e não quero que nada estrague isso.

 

Espera um segundo! exclamou Stephanie de repente. E se este episódio tiver alguma coisa a ver com Butler?

 

Daniel olhou para Stephanie, que estava do outro lado da secretária.

 

Como e por que é que envolveria Butler? perguntou Daniel. Stephanie olhou para ele. O som do compressor do frigorífico a ligar na cozinha quebrou o silêncio do princípio da noite.

 

Não sei disse ela, por fim. Estava apenas a pensar nas ligações dele ao FBI, e no facto de te ter mandado investigar de uma maneira ou de outra. Talvez eles ainda não tenham acabado.

 

Daniel acenou afirmativamente enquanto reflectia sobre a ideia de Stephanie, apercebendo-se de que não podia ser esquecida sem mais nem menos, apesar do seu carácter estranho. Afinal de contas, o encontro nocturno e clandestino com Butler há duas noites fora igualmente estranho.

 

Por enquanto, vamos tentar esquecer este incidente disse Daniel. Temos imensas coisas para preparar. Vamos começar!

 

Está bem disse Stephanie, a reunir toda a sua força de espírito. Talvez concentrar-me na arrumação das malas me faça descontrair. Mas primeiro acho que devíamos telefonar a Peter para o caso deste fulano estar a planear arrombar também o escritório.

 

Boa ideia disse Daniel. Mas não lhe vamos falar sobre Butler. Quero dizer, tu não lhe contaste, pois não?

 

Não. Eu não lhe contei nada.

 

Óptimo! disse Daniel, enquanto pegava no telefone.

 

 

11.45, 24 de Fevereiro de 2002

Por muito acostumada que estivesse ao clima caprichoso da Nova Inglaterra, Stephanie ainda estava surpreendida com o dia calmo e lindo em que aquele domingo se transformou. Embora o sol de Inverno fosse pálido, o ar estava quente e os pássaros eram ruidosos e omnipresentes como se a Primavera estivesse mesmo ao virar da esquina. Muito diferente do seu passeio a pé para casa na sexta-feira à noite, desde a praça Harvard com uma camada de neve no chão.

 

Stephanie estacionou o carro de Daniel no parque de estacionamento municipal em Government Center e dirigiu-se a pé para o North End, um dos bairros mais singulares de Boston. Era um viveiro de ruas estreitas, onde se alinhavam casas de tijolo de três andares. Os imigrantes do sul de Itália tinham adoptado a zona no século XIX e haviam-na transformado numa verdadeira Pequena Itália, à qual não faltavam as habituais vistas e cheiros. Havia sempre pessoas a conversar animadamente na rua, e o aroma de molho bolonhês a fervilhar permeava o ar. Quando a escola acabava, havia crianças por todo o lado.

 

Tudo pareceu familiar a Stephanie enquanto descia a Rua Hanover, a avenida comercial que dividia o bairro ao meio. Em geral, a comunidade onde ela crescera era simpática, sociável e calorosamente educada. Os únicos problemas eram as questões familiares que ela admitira recentemente a Daniel. Aquela conversa despertara sentimentos e pensamentos que ela suprimira há muito, como o caso da acusação de Anthony.

 

Stephanie parou do lado de fora da porta aberta do Café Cosenza. Era um dos estabelecimentos da família e oferecia pastelaria italiana e gelados, bem como os habituais expresso e cappuccino. Um murmúrio de conversas misturadas com risos, acompanhado pelo assobio e ruído da máquina de café vinha até à rua, bem como o cheiro de café acabado de moer. Passara muitas horas agradáveis a comer cannoli e gelados com as amigas naquele café, que tinha uma pirosa pintura de parede com o Monte Vesúvio e a Baía de Nápoles, e no entanto, da sua perspectiva actual, era como se tudo isso tivesse acontecido há cem anos.

 

Na rua e a olhar para dentro, Stephanie apercebeu-se de como se sentia distante da sua infância e da sua família excepto, talvez, da mãe, a quem telefonava com frequência. Excluindo o irmão mais novo, Cario, que abraçara a vida eclesiástica, um chamamento que ela não conseguia compreender, ela era a única pessoa na família que fora para a faculdade e que tirara um curso superior. E a maior parte das suas amigas da escola primária e do liceu, até mesmo as que tinham continuado a estudar, estavam actualmente a viver no North End ou nos subúrbios de Boston juntamente com casas, maridos, SUVs e filhos. Ao invés disso, ela vivia com um homem dezasseis anos mais velho do que ela, com quem estava a lutar para manter aberta uma empresa de tecnologia, tratando em segredo um senador dos Estados Unidos com uma terapia não aprovada, experimental e com boas perspectivas de sucesso.

 

Stephanie continuou a descer a Rua Hanover e ponderou sobre o corte com a vida antiga. Achou interessante que isso não a incomodasse. Em retrospectiva, tinha sido uma reacção natural ao seu desconforto em relação aos negócios do pai e ao papel da família na comunidade. No entanto, deu por si a pensar se a sua história de vida teria tido um rumo completamente diferente se o pai estivesse emocionalmente mais disponível. Quando era pequena, tentara quebrar a barreira do chauvinismo machista e egoísta do pai e da sua preocupação com o que quer que estivesse a fazer, mas nunca conseguira. O esforço em vão acabara por criar um carácter fortemente independente, que a levara até onde ela estava hoje.

 

Stephanie parou quando lhe ocorreu um pensamento curioso. O pai e Daniel tinham algumas coisas em comum, apesar das diferenças abissais e óbvias. Ambos eram igualmente egoístas, ambos podiam ser rudes de vez em quando a ponto de serem considerados associais, e ambos eram ferozmente competitivos dentro dos seus mundos. Para além disso, Daniel era igualmente chauvinista; a única diferença é que o chauvinismo dele envolvia o intelecto e não o sexo. Stephanie riu interiormente. Perguntou a si mesma por que é que aquele pensamento nunca lhe ocorrera, uma vez que, quando estava preocupado, Daniel podia estar também emocionalmente indisponível, especialmente nos últimos tempos, com o advento das dificuldades financeiras da CURA. Embora a psicologia não fosse nem de longe o seu forte, perguntou vagamente a si mesma se as semelhanças entre o pai e Daniel podiam ter alguma coisa a ver com a atracção que sentira por Daniel quando o conhecera.

 

Recomeçou a andar e prometeu a si mesma voltar ao assunto quando tivesse mais tempo. Agora, estava muito ocupada com a partida para Turim, agendada para aquela noite. Estivera a fazer as malas quase até ao nascer do dia. Depois, passara uma boa parte da manhã no laboratório com Peter, a descrever exactamente o que queria que ele fizesse com a cultura de Butler. Felizmente, as células estavam a progredir de modo louvável. Dera à cultura o nome de John Smith, aproveitando a dica da conversa de Daniel com o Dr. Wingate. Se Peter tinha algumas questões sobre o que estava a acontecer em relação à ida para NassAu, e por que é que ele ia enviar algumas das células do tal John Smith preservadas criogenicamente, não as fez.

 

Stephanie virou à esquerda na Rua Prince e acelerou o passo. Aquela zona era ainda mais familiar, especialmente quando passou pela velha escola. A casa da sua infância e onde os pais ainda viviam situava-se meio quarteirão depois da escola, à direita.

 

O North End era uma comunidade segura, graças a uma «vigilância do bairro» não oficial. Havia, pelo menos, meia dúzia de pessoas à vista que eram socialmente viciadas em saber o que toda a gente estava a fazer. O lado mau, enquanto criança, era que não podia fazer nada às escondidas, mas naquele momento saboreou a sensação de segurança. Embora, aparentemente, Daniel tivesse recuperado do susto que apanhara com o intruso na tarde anterior e tivesse desvalorizado o episódio considerando-o sem importância no grande esquema, Stephanie ainda não se recompusera, pelo menos, não completamente e voltar ao velho bairro era reconfortante. O que Stephanie continuava a considerar perturbador é que, sem uma explicação, o incidente tendia a exacerbar a desconfiança que sentia em relação ao caso Butler.

 

Stephanie parou defronte da antiga casa e observou a pedra cinzenta falsa que cobria os tijolos no rés-do-chão, o toldo de alumínio encarnado com a franja branca sobre a porta principal e a estátua de gesso pintada com cores berrantes que continuava no seu nicho. Sorriu por ter demorado tanto tempo a reconhecer como aqueles embelezamentos eram pirosos. Antes dessa revelação, nem sequer tinha reparado neles.

 

Embora tivesse chave, Stephanie bateu e esperou. Telefonara do escritório para dizer que ia passar por lá, para que não houvesse surpresa. Instantes depois, a porta foi aberta pela mãe, Thea, que a recebeu de braços abertos. O avô de Thea era grego e, subsequentemente, ao longo dos anos os nomes dados às mulheres tinham sido pensados com cuidado no lado materno da família, incluindo o de Stephanie.

 

Deves estar com fome disse Thea, recuando para observar a filha. Com a mãe, a comida era sempre tema de conversa.

 

Não digo que não a uma sanduíche disse Stephanie, sabendo que seria impossível recusar. Seguiu a figura magra da mãe para a cozinha, que estava inundada pelo aroma de comida a ferver. Há aqui alguma coisa que cheira bem.

 

Estou a fazer osso buco, o prato preferido do teu pai. Não queres ficar para o almoço? Vamos comer cerca das duas horas.

 

Não posso, mãe.

 

Cumprimenta o teu pai.

 

Obedientemente, Stephanie enfiou a cabeça na sala de estar adjacente à cozinha. A decoração não mudara um milímetro das primeiras memórias de Stephanie. Como sempre, antes de um almoço de domingo, o pai estava escondido atrás do jornal apertado nas suas mãos papudas. Um cinzeiro resplandecente em forma de saco de feijão estava pendurado num dos braços do sofá.

 

Olá, pai disse Stephanie alegremente.

 

Anthony D’Agostino Sénior baixou a parte de cima do jornal. Espreitou para Stephanie por cima dos óculos de leitura, com olhos ligeiramente remelosos. Um halo de fumo de cigarro pairava à volta dele como nevoeiro denso. Apesar de ter sido atlético na juventude, agora era a imagem da imobilidade corpulenta. Engordara consideravelmente ao longo da última década, apesar dos avisos sérios dos médicos, mesmo após o ataque cardíaco que sofrera há três anos. Enquanto a mãe emagrecia, ele engordava numa, pouco saudável, proporcionalidade inversa.

 

Não quero que perturbes a tua mãe, ouviste? Ultimamente, ela não tem andado a sentir-se bem.

 

Vou fazer todos os possíveis disse Stephanie.

 

Ele colocou o jornal na posição inicial. «Que conversador», pensou Stephanie, enquanto encolhia os ombros e revirava os olhos. Recuou para a cozinha. Thea tinha pegado em queijo, pão, presunto de Parma e fruta, e estava a pôr tudo em cima da mesa. Stephanie observou a mãe a trabalhar. Perdera mais peso desde que Stephanie a vira pela última vez, o que não era bom sinal. Os ossos das mãos e do rosto estavam salientes, com pouquíssima carne. Dois anos antes, fora diagnosticado a Thea um cancro da mama. Depois da cirurgia e da quimioterapia, ela estivera bem até há três meses, quando houvera uma recidiva. Tinha sido encontrado um tumor num dos pulmões. O prognóstico não era bom.

 

Stephanie sentou-se e preparou uma sanduíche. A mãe encheu uma caneca de chá e sentou-se à sua frente.

 

Por que é que não podes ficar para o almoço? perguntou Thea. O teu irmão mais velho vem.

 

Com ou sem a mulher e os filhos?

 

Sem respondeu Thea.Ele e o teu pai têm uns negócios para tratar.

 

Isso soa-me familiar.

 

Por que é que não ficas? Quase nunca te vemos.

 

Eu gostava, mas não posso. Esta noite vou para fora durante aproximadamente um mês, e foi por isso que quis vir cá hoje. Ainda tenho muitas coisas para preparar.

 

Vais com aquele homem?

 

Ele chama-se Daniel, e sim, vamos juntos.

 

Tu não devias estar a viver com ele. Não está certo. Para além do mais, ele é velho de mais. Tu devias estar casada com um homem simpático e jovem. Já não és assim tão nova.

 

Já falámos sobre esse assunto, mãe.

 

Escuta a tua mãe berrou Anthony Sénior da sala de estar. Ela sabe o que está a dizer.

 

Stephanie manteve a boca calada.

 

Para onde é que vais?

 

Principalmente, para Nassau, nas Bahamas. Primeiro vamos a outro lado, mas apenas por um dia ou dois.

 

Vão de férias?

 

Não respondeu Stephanie. Explicou à mãe que a viagem estava relacionada com trabalho. Não revelou pormenores, e a mãe também não perguntou, especialmente porque Stephanie mudou a conversa para as sobrinhas e sobrinhos. Os netos eram o assunto predilecto de Thea. Uma hora depois, quando Stephanie se preparava para sair, a porta abriu-se e Tony Júnior entrou.

 

” As maravilhas nunca acabam? disse Tony numa surpresa trocista quando avistou Stephanie. Tinha um sotaque forte e culto de executivo. A toda poderosa doutora de Harvard decidiu fazer uma visita a estes saloios pobres e trabalhadores.

 

Stephanie ergueu os olhos e sorriu para o irmão mais velho. Manteve-se calada tal como, anteriormente, com o pai. Há muito que aprendera a não cair nas armadilhas. Tony menosprezara sempre os estudos de Stephanie, tal como o pai, mas não inteiramente pelo mesmo motivo. Com Tony, Stephanie suspeitava de que era mais uma questão de ciúmes, já que ele quase não conseguira fazer o liceu. Quando era adolescente, o problema de Tony não era falta de inteligência, mas falta de motivação. Agora que era adulto, gostava de fingir que não se importava de não ter ido para a universidade, mas Stephanie sabia que não era bem assim.

 

A mãe disse-me que o teu filho está a revelar-se um grande jogador de hóquei disse Stephanie, para afastar a conversa do assunto melindroso da escolaridade. Tony tinha um filho com doze anos e uma filha com dez.

 

Sim, é um craque disse Tony. Partilhava a tonalidade de Stephanie e quase a mesma altura, mas era mais forte, com um pescoço grosso e mãos grandes como as do pai. E, também como o pai, Tony projectava na mente de Stephanie uma animosidade masculina pouco lisonjeira e chauvinista, que a fazia sentir pena da cunhada e preocupação pela sobrinha.

 

Tony beijou a mãe em ambas as faces antes de entrar na sala de estar.

 

Stephanie ouviu o ruído do jornal a ser pousado, mãos a bater que podia imaginar como sendo um aperto de mão, e uma troca de «Como vai isso? Óptimo! Como vão as coisas consigo? Óptimas.» Quando a conversa passou para o desporto que envolvia as diversas equipas profissionais de Boston, Stephanie esqueceu-os.

 

Tenho de ir andando, mãe disse ela.

 

Por que é que não ficas? Eu posso pôr o almoço na mesa daqui a nada.

 

Não posso, mãe.

 

O pai e o Tony vão sentir a tua falta!

 

Oh, sim, claro! disse Stephanie.

 

Eles amam-te à maneira deles.

 

Tenho a certeza de que amam replicou Stephanie com um sorriso. A ironia é que acreditava. Stephanie esticou-se e apertou o pulso de Thea. Sentiu-o frágil, como se, se apertasse com demasiada força, os ossos pudessem partir. Stephanie empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Thea imitou-a, e abraçaram-se.

 

Eu telefono das Bahamas logo que me instale e dou-lhe o nome e o número de telefone do hotel disse Stephanie. Deu um beijo na face da mãe antes de enfiar a cabeça na sala de estar. O manto de fumo era mais denso com os dois homens a fumar. Adeus aos dois. Vou-me embora.

 

Tony ergueu os olhos.

 

Que é isto? Já vais?

 

Ela vai viajar durante um mês disse Thea por cima do ombro de Stephanie. Tem de preparar as coisas.

 

Não! disse Tony. Não podes ir. Ainda não! Eu preciso de falar contigo. Ia telefonar-te, mas uma vez que estás aqui, é melhor falarmos pessoalmente.

 

Então é bom que te despaches disse Stephanie. Eu tenho mesmo de me ir embora.

 

Vais esperar até nós terminarmos disse Anthony. Tony e eu estamos a falar de negócios.

 

Não faz mal, pai disse Tony. Apertou o joelho do pai e levantou-se. O que tenho para dizer à Steph não vai demorar muito.

 

Anthony resmungou e pegou no jornal que pusera de lado.

 

Tony voltou para a cozinha. Sentou-se ao contrário numa das cadeiras e fez sinal a Stephanie para que se sentasse noutra. Ela hesitou ligeiramente. Tony tornara-se progressivamente mais peremptório desde que assumira os negócios do pai, e era irritante. Para evitar uma cena sentou-se, mas para se sentir melhor consigo mesma disse ao irmão que ele teria de ser rápido. Também lhe pediu para apagar o cigarro, o que ele fez de má vontade.

 

O motivo por que ia telefonar-te começou Tony é porque Mikey Gualario, o meu contabilista, me disse que a CURA está prestes a afundar. Eu disse que isso é impossível, porque a minha irmã mais nova ter-me-ia avisado. Mas ele diz que leu no Globe. Que é que se passa?

 

Estamos com alguns problemas financeiros admitiu Stephanie. É um problema político que está a reter a segunda fase de financiamento.

 

Então o Globe não estava a inventar isto tudo?

 

Eu não li o artigo, mas como disse estamos com alguns problemas. Tony franziu o sobrolho como se estivesse a pensar. Acenou algumas vezes.

 

Bem, não é uma grande notícia. Presumo que compreendes que eu possa estar preocupado com o meu empréstimo de duzentos mil dólares.

 

Correcção! Não foi um empréstimo. Foi um investimento.

 

Espera um minuto! Tu vieste ter comigo a chorar que precisavas de dinheiro.

 

Correcção de novo! Eu disse que precisávamos de angariar dinheiro, e certamente não estava a chorar.

 

Sim, bem, disseste que era uma coisa segura.

 

Disse que pensava que era um bom investimento, porque se baseava numa técnica recém descoberta, brilhante e totalmente patenteada, que promete ser uma bênção para a medicina. Mas avisei-te que não era isento de risco, e dei-te o prospecto. Leste-o?

 

Não, não li. Não percebo nada dessas porcarias. Mas se o investimento era tão bom, qual é o problema?

 

O que aconteceu, e que ninguém antecipou, é a possibilidade de o Congresso proibir a implementação da técnica. Mas posso garantir-te que estamos a resolver o assunto, e pensamos que o temos sob controlo. Foi tudo completamente inesperado para todos nós, e a prova disso é que Daniel e eu investimos todo o nosso dinheiro na empresa, incluindo uma hipoteca à casa de Daniel. Lamento que neste momento o investimento não pareça sólido. Poderia acrescentar que lamento termos aceite o teu dinheiro.

 

Vocês e eu!

 

Que é que vai acontecer com essa tua acusação? Tony sacudiu o ar como se estivesse a afastar uma mosca.

 

Nada. É um monte de disparates. O procurador do Ministério Público está apenas à procura de publicidade para ser reeleito. Mas não mudemos de assunto. Disseste que achas que têm este problema político sob controlo.

 

Acreditamos que sim.

 

Isto tem alguma coisa a ver com esta viagem de um mês que vão fazer?

 

Tem confirmou Stephanie. Mas não posso contar-te os pormenores.

 

Oh, a sério? perguntou Tony sarcasticamente. Eu tenho duzentos mil envolvidos nisto, e tu não me podes contar os pormenores. Há algo errado neste filme.

 

Se fôssemos divulgar o que estamos a fazer, poríamos em perigo a sua eficácia.

 

Divulgar, pôr em perigo, eficácia! imitou Tony depreciativamente. Não me lixes! Espero que não penses que vou ficar satisfeito com uma mão cheia de notas de dez dólares. Nem penses! Então para onde é que vais, Washington?

 

Ela vai para Nassau disse Thea, inesperadamente, do lugar onde se encontrava, junto ao fogão. E não sejas tão mau com a tua própria irmã. Estás a ouvir?

 

Tony sentou-se imediatamente muito direito, com as mãos caídas ao longo do corpo. O queixo caiu lentamente com uma surpresa profunda.

 

Nassau! gritou. Isto está a ficar cada vez mais doido. Se a CURA está prestes a falir por causa de uma bomba política, não te parece que devias ficar por cá e fazer alguma coisa?

 

É por isso que vamos para Nassau disse Stephanie.

 

Ha! gritou Tony. O que me parece é que esse teu pseudo namorado está a pensar dar um golpe.

 

Isso não podia estar mais longe da verdade. Quem me dera poder contar-te mais, Tony, mas não posso. Com sorte, daqui a um mês as coisas vão voltar ao normal, e nessa altura teremos todo o prazer em considerar o teu dinheiro um empréstimo, e pagar-te-emos com juros.

 

Vou esperar sentado troçou Tony. Dizes que não podes contar-me mais nada, mas eu posso contar-te uma coisa. Esses duzentos mil não eram todos meus.

 

Não? perguntou Stephanie. Pressentiu que a conversa desagradável estava prestes a piorar.

 

Tu pintaste as coisas tão cor-de-rosa que achei que tinha de partilhar o investimento. Metade do dinheiro veio dos irmãos Castigliano.

 

Nunca me disseste isso!

 

Estou a dizer-te agora.

 

Quem são os irmãos Castigliano?

 

Sócios. E posso dizer-te mais uma coisa. Eles não vão gostar de saber que o investimento que fizeram foi para o espaço. Não estão acostumados a isso. Na qualidade de teu irmão, acho que devia dizer-te que não é boa ideia irem para as Bahamas.

 

Mas temos de ir.

 

Já disseste isso, mas não me explicaste porquê. Obrigas-me a repetir-me: é melhor tu e aquele teu namorado de Harvard ficarem quietos e cuidarem da loja, porque parece que estão a planear divertir-se ao sol com o nosso dinheiro enquanto nós, os otários, gelamos o cu aqui em Boston.

 

Tony disse Stephanie no tom mais calmo e tranquilizador que conseguiu. Nós vamos para Nassau e vamos resolver este malfadado problema.

 

Tony levantou as mãos para o céu, com as palmas para cima.

 

Eu tentei! Deus sabe que tentei!

 

Graças à direcção assistida, Tony só precisou do dedo indicador da mão direita para virar o volante do seu Cadillac DeVille preto. Com uma noite tão agradável, tinha o vidro aberto e a mão esquerda pendurada do lado de fora, a segurar o cigarro. O som característico dos pneus a chiar na gravilha camuflou o rádio quando entrou no parque de estacionamento, defronte do edifício da Loja de Artigos para Canalização Irmãos Castigliano. Era uma estrutura cinzenta de um só piso, com o telhado plano de cimento. Nas traseiras, viam-se alguns barracões.

 

Tony parou ao lado de três veículos semelhantes ao seu: eram todos Cadillacs, e eram todos pretos. Atirou o cigarro para uma pilha de lava-loiças enferrujados e desligou o motor. Ao sair do carro, foi assaltado pelo odor do pântano. Não era agradável. Com a noite a aproximar-se rapidamente, o vento mudara para este.

 

A fachada do edifício precisava de ser pintada. Para além do nome da firma em letras maiúsculas, havia inúmeros graffitis nas paredes. A porta não estava fechada à chave e Tony entrou sem bater, como era seu hábito. No meio da sala, havia um balcão. Atrás do balcão, viam-se filas de prateleiras do chão ao tecto cheias de material de canalização. Não estava ninguém à vista. Um rádio em cima do balcão estava sintonizado numa estação que passava música dos anos cinquenta.

 

Tony passou para o outro lado do balcão e percorreu a ala central. Ao fundo, abriu uma segunda porta que dava acesso a um escritório. Em contraste com a zona de abastecimento, esta área era relativamente confortável, com um sofá de couro e duas secretárias sobre um tapete oriental. Janelas pequenas com vidraças davam para os barracões que estavam rodeados de pneus velhos e outros lixos. Havia três homens sentados na sala: um em cada secretária e um no sofá.

 

Tony entrou, apertou as mãos aos dois homens que estavam sentados às secretárias e depois ao homem que se encontrava no sofá antes de ele próprio se sentar. Os homens que estavam às secretárias eram os irmãos Castigliano. Eram gémeos e chamavam-se Sal e Louie. Tony conhecia-os desde o terceiro ano, mas apenas de nome e não como amigos. No liceu, tinham sido miúdos magros e cheios de borbulhas e eram gozados impiedosamente, e, adultos, continuavam a ser magros, com faces cadavéricas e olhos muito encovados.

 

O homem no sofá ao lado de Tony era Caetano Baresse, o qual crescera na cidade de Nova Iorque. Tinha uma constituição semelhante à de Tony, mas mais forte e com feições mais pesadas. Normalmente, era ele que trabalhava ao balcão da loja, na sala exterior. Como segundo emprego, era guarda-costas dos gémeos. A maior parte das pessoas pensavam que ele estava ali para compensar a troça de que os gémeos tinham sido alvo na escola, mas Tony sabia que não era nada disso. A contribuição dos braços fortes de Caetano era um requisito ocasional para as outras actividades empresariais dos gémeos: algumas legais, outras menos. Era devido a estas actividades empresariais que Tony e os gémeos se tinham aproximado.

 

Em primeiro lugar disse Tony, quero agradecer-vos por terem vindo aqui num domingo.

 

Não há problema disse Sal. Estava sentado à esquerda de Tony. Espero que não te importes por termos convidado o Caetano.

 

Quando telefonaste e disseste que havia um problema, achámos que ele devia acompanhar-nos acrescentou Louie.

 

Não há problema disse Tony. Só gostava que tivéssemos tido este encontro um pouco mais cedo, e vou explicar porquê.

 

Viemos logo que foi possível declarou Sal.

 

A bateria do meu telemóvel tinha acabado explicou Caetano. Eu estava em casa da minha cunhada, a jogar bilhar. Foi difícil encontrarem-me.

 

Tony acendeu um cigarro e ofereceu o maço. Cada um tirou um. Em breve, estavam todos a fumar.

 

Depois de dar algumas passas, Tony apagou o cigarro. Precisava das mãos para gesticular enquanto falava. Assim preparado, contou aos irmãos Castigliano palavra por palavra, segundo se lembrava, a conversa que tivera ao princípio da tarde com Stephanie. Não ocultou nada, nem embelezou as palavras. Disse que era sua opinião e do seu contabilista que a empresa de Stephanie ia falir.

 

Enquanto Tony falava, os gémeos foram ficando cada vez mais agitados. Sal, que estivera a brincar com um clipe dobrando-o para trás e para a frente, partiu-o em dois. Furioso, Louie apagou o cigarro meio fumado.

 

Não acredito nisto disse Sal quando Tony acabou.

 

A tua irmã é casada com este cretino? perguntou Louie.

 

Não, só vivem juntos.

 

Bem, devo dizer-te que não vamos ficar parados enquanto o filho da mãe se diverte ao sol disse Sal. Nem penses!

 

Temos de lhe mostrar que não estamos satisfeitos disse Louie. Ou ele vem para cá e endireita as coisas, ou está tramado. Percebeste, Caetano?

 

Sim, claro. Quando?

 

Louie olhou para Sal. Sal olhou para Tony.

 

Hoje é tarde de mais disse Tony. É por isso que eu teria gostado de vos ver mais cedo. Eles vão a caminho não sei de onde, antes de se dirigirem para Nassau. Mas a minha irmã vai telefonar à minha mãe quando chegar às Bahamas.

 

E tu dizes-nos? perguntou Sal.

 

Sim, claro. Mas na condição de deixarem a minha irmã fora disto.

 

O nosso problema não é com ela declarou Louie. Pelo menos, acho que não é.

 

Não é garantiu Tony. Confiem em mim! Não quero que haja sangue entre nós.

 

O nosso problema é com ele disse Sal. Louie olhou para Caetano.

 

Acho que vais para Nassau.

 

Caetano estalou os nós da mão direita com a esquerda.

 

Parece-me óptimo!

 

 

7.00, segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2002

Stephanie! chamou Daniel suavemente enquanto lhe abanava o ombro. Vão servir o pequeno-almoço. Queres tomá-lo ou devo deixar-te dormir até aterrarmos?

 

Stephanie abriu os olhos com dificuldade, esfregou-os e bocejou ao mesmo tempo. Depois, teve de piscar rapidamente algumas vezes antes de conseguir ver. Tinha os olhos secos da atmosfera ressequida do avião.

 

Onde estamos? perguntou, com voz rouca. Também tinha a garganta seca. Endireitou-se e espreguiçou-se. Depois, inclinou-se e espreitou pela janela. Embora houvesse um indício de amanhecer ao longo do horizonte, o chão lá em baixo ainda estava escuro. Via as luzes de vilas e cidades a salpicar a paisagem.

 

Acho que estamos algures sobre a França disse Daniel. Apesar de, nos planos que tinham feito, terem tentado evitar pressas de última hora, a noite anterior tinha sido uma luta ansiosa para sair do apartamento de Daniel, chegar ao Aeroporto Logan e passar pela segurança. Tinham entrado no avião menos de dez minutos antes da partida. Graças ao dinheiro de Butler, estavam a voar na Classe Magnifica da Alitalia e iam sentados nos dois primeiros bancos do lado esquerdo do Boeing 767. Stephanie endireitou as costas do banco da posição reclinada.

 

Como é que estás tão acordado? Dormiste?

 

Nem sequer fechei os olhos admitiu Daniel. Comecei a ler aqueles teus livros sobre o Sudário de Turim, especialmente o de Ian Wilson. Já percebo por que é que ficaste vidrada. É um material fascinante.

 

Deves estar exausto.

 

Não disse Daniel. Ler sobre o sudário parece que me deixou com mais energia. Até já estou mais encorajado para tratar Butler e usar os fragmentos de ADN do sudário. Na verdade, ocorreu-me que, depois de resolvermos o problema de Butler, talvez devêssemos tratar outra celebridade algures no estrangeiro com a mesma fonte de ADN, alguém que não se importe com a publicidade. Depois de a história da cura chegar aos órgãos de informação, nenhum político se atreveria a interferir e, melhor ainda, a FDA seria obrigada a alterar o protocolo para aprovação do tratamento.

 

Calma! avisou Stephanie. Não vamos dar um passo maior do que as pernas. Por enquanto, precisamos de nos concentrar em Butler. A cura dele não é, nem por sombras, um dado adquirido.

 

Não achas que é uma boa ideia tratar outra celebridade?

 

Preciso de reflectir um pouco para responder de forma inteligente disse Stephanie, a tentar ser diplomática. Neste momento, a minha mente está um pouco baralhada. Preciso de ir à casa de banho, e depois quero tomar o pequeno-almoço. Estou esfomeada. Quando o meu cérebro estiver a trabalhar com todos os cilindros, quero ouvir o que leste sobre o sudário, especialmente se tens uma teoria de como a imagem foi formada.

 

Menos de uma hora depois, aterraram no Aeroporto Fiumicino, em Roma. Juntamente com uma multidão de pessoas que chegaram ao mesmo tempo vindas de diversos destinos internacionais, passaram pelo controlo de passaportes e depois conseguiram encontrar o caminho para a porta de embarque do voo de ligação para Turim. Num bar próximo, Daniel aproveitou para se deliciar com um expresso italiano que emborcou como os patronos locais. Nesta parte da viagem não havia Classe Magnifica, e quando embarcaram no avião viram-se numa cabina apertada cheia de homens de negócios. Stephanie estava no assento do meio e Daniel na coxia, a meio da cabina do aparelho.

 

Isto é aconchegante comentou Daniel. Graças ao seu metro e noventa de altura, tinha os joelhos encostados ao assento da frente.

 

Como é que te sentes agora? Estás cansado?

 

Não, e especialmente não depois daquele café fortíssimo.

 

Então, fala-me sobre o sudário! Quero ouvir o que tens para me dizer devido à longa fila para a casa de banho no voo de Boston para Roma, não tinham tido oportunidade de abordar o assunto antes de aterrarem.

 

Bem, em primeiro lugar, não tenho nenhuma teoria sobre como a imagem foi formada. É sem dúvida um mistério intrigante, concordo, e fiquei especialmente cativado com a forma poética como Wilson o descreveu como «um negativo fotográfico à espera, entorpecido, como uma cápsula do tempo, do momento da invenção da fotografia». Mas não aceito a ideia de a imagem ser a prova da Ressurreição, como tu e ele sugeriram. É um raciocínio científico cheio de falhas. Não podes pressupor como um facto um processo desconhecido e intuitivo de desmaterialização para explicar um fenómeno desconhecido.

 

E os buracos negros?

 

De que é que estás a falar?

 

Os buracos negros foram pressupostos como factos para explicar fenómenos desconhecidos, e os buracos negros são sem dúvida contrários à nossa experiência científica directa.

 

Seguiu-se um período de silêncio, com excepção do ruído abafado dos motores do avião misturado com o ruído dos jornais da manhã e o matraquear de teclados de computador. Tens uma certa razão admitiu Daniel por fim.

 

Vamos continuar! Que mais captou o teu interesse?

 

Algumas coisas. Uma que me vem à ideia é o resultado de a espectroscopia do reflexo mostrar sujidade nas imagens dos pés. Pareceu-me uma descoberta extraordinária, até descobrir que alguns dos grânulos foram identificados através de cristalografia óptica como sendo aragonite travertina, a qual tinha uma assinatura espectral correspondente a amostras de pedra calcária tiradas de antigas sepulturas de Jerusalém.

 

Stephanie riu-se.

 

Só tu para ficares impressionado com um dos pormenores científicos mais misteriosos. Eu nem sequer me lembro dessa parte.

 

É impensável que um falsificador do século XIV se tenha dado a tanto trabalho para obter e espalhar esses detritos na sua suposta criação.

 

Eu não poderia estar mais de acordo.

 

Outro facto que me chamou a atenção foi que, quando se olha para a intercepção dos habitais das plantas do Médio Oriente, cujos pólens são mais predominantes no sudário, a aparente origem do sudário fica reduzida para trinta quilómetros entre Hebron e Jerusalém.

 

Curioso, não é?

 

É mais do que curioso disse Daniel. Se o sudário é ou não a mortalha de Jesus Cristo não está certamente provado... nem, na minha opinião, poderá jamais estar... mas na minha mente o artefacto veio de Jerusalém, e embrulhou um homem que foi açoitado ao antigo estilo romano, cujo nariz foi partido, que tinha feridas de espinhos na cabeça, e que foi crucificado e sofreu uma ferida de lança no peito.

 

Que é que te pareceu o aspecto histórico?

 

Está bem apresentado e é cativante reconheceu Daniel. Depois de o ler, estou disposto a aceitar a ideia de que o Sudário de Turim e o Pano de Edessa são um e o mesmo. Fiquei particularmente abalado com a forma como as marcas nas pregas foram usadas para explicar como podia ter sido exibido em Constantinopla como simplesmente a cabeça de Jesus, como o Pano de Edessa era geralmente descrito, ou o corpo inteiro de Jesus, frente e costas, como descrito pelo cruzado Robert de Clari. Foi ele que o viu pouco antes do seu desaparecimento durante o saque de Constantinopla, em 1204.

 

O que significa que os resultados da datação por carbono estão errados.

 

Por muito perturbador que me pareça enquanto cientista, é capaz de ser verdade.

 

Mal tinham recebido os sumos de laranja quando o sinal de aviso dos cintos se acendeu, e se ouviu o anúncio de que os pilotos estavam a fazer a aproximação ao Aeroporto Caselle em Turim. Quinze minutos depois, aterraram. Como o avião estava cheio, levaram quase tanto tempo como no voo de Roma para sair do aparelho, percorrer a manga e encontrar o carrossel das malas.

 

Enquanto Daniel esperava que a bagagem aparecesse, Stephanie reparou numa concessão de telemóveis e aproximou-se para alugar um. Antes de sair de Boston, ficara a saber que o seu telemóvel estadual não funcionaria na Europa, embora funcionasse em Nassau, e para ter a certeza de que não perderia nenhuma mensagem de correio electrónico de Butler enquanto estava em Turim precisava de um número europeu de telemóvel. Logo que tivesse oportunidade, pensava ligá-lo para que as mensagens de Butler fossem para os dois números.

 

Saíram do terminal a puxar as malas e com os casacos vestidos, e colocaram-se numa fila de táxis. Enquanto esperavam, avistaram pela primeira vez o Piedmont. A oeste e a norte, viram as montanhas com os cumes cobertos de neve. A sul, uma neblina cor de malva pairava sobre a zona industrial da cidade. O tempo estava quente e não muito diferente do que tinham deixado em Boston, o que fazia sentido, já que as duas cidades se situavam aproximadamente à mesma latitude.

 

Espero que não te arrependas de não alugar um carro disse Daniel, enquanto observava os táxis cheios a arrancar a toda a velocidade.

 

O roteiro dizia que é impossível estacionar nesta cidade lembrou-lhe Stephanie. O lado positivo é que dizem que os motoristas italianos são bons, embora conduzam depressa.

 

Já no táxi, Daniel segurou-se com toda a força enquanto o motorista correspondia à descrição de Stephanie. O táxi era um Fiat pós-moderno com um design compacto que o fazia parecer uma amálgama de um SUVe de um carro pequeno. Infelizmente para Daniel, respondia notavelmente bem ao acelerador.

 

Stephanie já estivera diversas vezes em Itália e tinha expectativas específicas em relação à cidade. Inicialmente, ficou desapontada. Turim não tinha nenhum do encanto medieval ou renascentista que associava a lugares como Florença ou Siena. Em vez disso, parecia uma cidade indeterminadamente moderna cheia de características suburbanas e, no momento, apanhada nas malhas da hora de ponta matinal. O tráfego era intenso, e todos os motoristas italianos pareciam igualmente agressivos, com montes de buzinadelas, acelerações rápidas e travagens igualmente rápidas. A viagem foi de esfrangalhar os nervos, especialmente para Daniel. Stephanie tentou conversar, mas ele estava demasiado absorto a observar as movimentações do motorista.

 

Daniel reservara apenas uma noite no que o seu roteiro descrevia como o melhor hotel da cidade, o Grand Belvedere. Situava-se no centro da cidade velha, e quando entraram nessa zona a impressão que Stephanie tinha de Turim começou a mudar. Ainda não via o estilo de arquitectura que esperava, mas a cidade começava a ter um encanto próprio, com alamedas largas, praças com arcadas e elegantes edifícios barrocos. Quando pararam diante do hotel, o desapontamento de Stephanie tinha-se metamorfoseado em apreciação.

 

O Grand Belvedere era a última palavra em luxo do século XIX. O átrio estava embelezado com mais anjos e querubins dourados do que Stephanie jamais vira num único sítio. Colunas de mármore erguiam-se para sustentar arcadas, enquanto pilastras estriadas se alinhavam nas paredes. Porteiros fardados apressaram-se a pegar na bagagem deles, que era uma colecção bastante extensa, uma vez que traziam coisas para uma estada de um mês em Nassau.

 

O quarto tinha o tecto alto, um grande candelabro Murano e menos ornamentações do que o átrio, mas era igualmente imponente. Querubins dourados com asas pairavam nos quatro cantos da pesada cornija. As janelas altas davam para a Piazza Carlo Alberto, onde se situava o hotel. Reposteiros pesados, de brocado vermelho escuro, com centenas de borlas vestiam as janelas. O mobiliário, incluindo a cama, era em madeira escura e fortemente esculpida. No chão, havia uma espessa carpete oriental.

 

Depois de dar uma gratificação ao paquete e ao recepcionista bem vestido que os tinham acompanhado ao quarto, Daniel olhou de relance para o aposento com uma expressão satisfeita no rosto.

 

Nada mau! Nada mau! comentou ele. Olhou de relance para a casa de banho de mármore antes de se voltar para Stephanie. Por fim, estou a viver como mereço.

 

Tu és de mais! troçou Stephanie. Abriu a mala para tirar os artigos de higiene.

 

A sério! riu-se Daniel. Não sei como é que suportei ser um académico pobre durante tanto tempo.

 

Vamos trabalhar, rei Midas! Como é que vamos descobrir o número de telefone da Chancelaria da Arquidiocese para falar com monsenhor Mansoni? Stephanie entrou na casa de banho. Acima de tudo, queria lavar os dentes.

 

Daniel dirigiu-se para a secretária e começou a abrir gavetas, à procura de uma lista telefónica da cidade. Quando não teve sucesso, espreitou nos armários.

 

Acho que devíamos ir lá abaixo e pedir ao recepcionista que faça a ligação disse Stephanie do quarto. Podemos pedir-lhe também que nos faça uma reserva para o jantar esta noite.

 

Boa ideia disse Daniel.

 

Como Stephanie previa, o recepcionista teve todo o prazer em ajudar. Desencantou uma lista telefónica, e segundos depois, monsenhor Mansoni estava em linha, antes mesmo de Stephanie e Daniel terem decidido quem devia falar com ele. Após um momento de confusão, Daniel pegou no telefone. De acordo com as instruções na mensagem de Butler, identificou-se como representante de Ashley Butler e disse que estava em Turim para levar uma amostra. Tentando ser discreto, não deu mais pormenores.

 

Tenho estado à espera do seu telefonema respondeu monsenhor Mansoni com um pesado sotaque italiano. Estou preparado para me encontrar consigo esta manhã, se for possível.

 

Por nós, quanto mais depressa, melhor replicou Daniel.

 

Nós? perguntou o monsenhor.

 

A minha sócia e eu estamos aqui juntos explicou Daniel. Achou que o termo sócia era suficientemente vago. Sentiu-se invulgarmente embaraçado ao falar com um padre católico romano que poderia ficar chocado com o estilo de vida que ele e Stephanie levavam.

 

Devo presumir que a sua sócia é uma mulher?

 

Exactamente respondeu Daniel. Olhou para Stephanie, para verificar se ela gostava do termo sócia. Nunca o usara para descrever o relacionamento de ambos, apesar de ser apropriado. Stephanie sorriu ao ver a atrapalhação dele.

 

Ela virá à nossa reunião?

 

Claro declarou Daniel. Onde é que seria conveniente para o senhor?

 

Talvez o Café Torino, na Piazza San Cario seja agradável. O senhor e a sua sócia estão num hotel da cidade?

 

Creio que fica mesmo no centro.

 

Excelente comentou o monsenhor. O café deve situar-se perto do vosso hotel. O recepcionista pode indicar-vos o caminho.

 

Óptimo disse Daniel. Quando é que nos encontramos?

 

Pode ser daqui a uma hora?

 

Lá estaremos confirmou Daniel. Como é que o reconheceremos?

 

Não deve haver muitos padres presentes, mas se houver eu serei seguramente o mais corpulento. Infelizmente, engordei imenso com a minha actual posição sedentária.

 

Daniel olhou de relance para Stephanie. Percebeu que ela estava a ouvir a conversa do padre.

 

Provavelmente, também seremos fáceis de reconhecer. Devo dizer que parecemos bastante americanos com as nossas roupas. Para além disso, a minha sócia é uma beldade de cabelos pretos.

 

Nesse caso, tenho a certeza de que nos reconheceremos mutuamente. Encontramo-nos cerca das onze e um quarto.

 

Ficamos à espera disse Daniel, antes de devolver o auscultador ao recepcionista.

 

Beldade de cabelos pretos? perguntou Stephanie num sussurro forçado, depois de lhes ter sido indicado o caminho e quando se afastavam do balcão da recepção. Estava embaraçada.Nunca me descreveste assim. É extremamente sexista.

 

Desculpa disse Daniel. Eu estava um bocado atrapalhado. Nunca marquei um encontro com um padre.

 

Luigi Mansoni abriu uma das gavetas da sua secretária. Enfiou a mão, tirou uma pequena caixa de prata e guardou-a no bolso. Depois, levantou a sotaina para não escorregar na bainha e saiu apressadamente do gabinete. Ao fundo do corredor, bateu à porta de monsenhor Valerio Garibaldi. Estava ofegante, o que era embaraçoso, uma vez que percorrera menos de trinta metros. Verificou as horas e perguntou a si mesmo se devia ter dito uma hora e meia a Daniel. Ouviu a voz de Valerio a mandá-lo entrar.

 

Mudando para italiano, que era a sua língua nativa, Luigi relatou ao amigo e superior a conversa telefónica que acabara de ter.

 

Santo Deus respondeu Valerio Garibaldi em italiano. Tenho a certeza de que é mais cedo do que o padre Maloney esperava. Esperemos que ele esteja no seu quarto Valerio pegou no telefone. Ficou aliviado quando o padre Maloney atendeu. Contou as novidades ao americano, e disse-lhe que ele e monsenhor Mansoni estavam à espera dele no gabinete.

 

Tudo isto é muito curioso disse Valerio para Luigi, enquanto esperavam.

 

De facto replicou Luigi. Faz-me pensar se não deveríamos alertar um dos secretários do arcebispo para que, se houver um problema, a culpa seja dele. Sua Reverência não foi notificado. Afinal de contas, Sua Reverência é o guardião oficial do sudário.

 

Tens muita razão disse Valerio. Acho que vou aceitar a tua sugestão.

 

Uma pancada na porta precedeu a chegada do padre Maloney. Valerio fez-lhe sinal para que se sentasse. Embora Valerio e Luigi ocupassem cargos mais elevados na hierarquia da igreja, o facto de Michael estar a representar oficialmente o cardeal O’Rourke, o prelado católico romano mais poderoso da América do Norte e amigo pessoal do arcebispo, o cardeal Manfredi, levou-os a tratarem-no com especial deferência.

 

Michael sentou-se. Em contraste com os monsenhores, estava vestido com o seu habitual fato preto simples com um colarinho clerical branco. Também em contraste com os outros, que eram ambos consideravelmente corpulentos, Michael era magro, e com o seu nariz aquilino as suas feições tinham um estereotipo mais italiano do que as dos seus anfitriões. Os cabelos ruivos também o diferenciavam, uma vez que os outros dois tinham cabelos grisalhos.

 

Luigi relatou uma vez mais a conversa tida com Daniel, realçando que havia duas pessoas envolvidas, e uma delas era uma mulher.

 

Isso é surpreendente comentou Michael. E eu não gosto de surpresas. Mas a vida é assim. Presumo que a amostra está pronta.

 

Claro disse Luigi. Para conveniência de Michael, estava a falar em inglês, embora Michael falasse um italiano razoável. No último ano do curso, Michael frequentara o seminário em Roma, onde fora obrigado a aprender italiano.

 

Luigi procurou nos bolsos da sua sotaina e mostrou a elegante caixa de prata, semelhante a uma cigarreira de meados do século XX.

 

Aqui está disse ele. O professor Ballasari fez a selecção das fibras pessoalmente para ter a certeza de que correspondiam ao pedido. Não restam dúvidas de que são provenientes de uma zona com sangue.

 

Posso? perguntou Michael. Estendeu a mão.

 

Claro disse Luigi. Entregou a caixa a Michael.

 

Michael segurou a caixa gravada em relevo com as duas mãos. Para ele, era uma experiência emocionante. Há muito tempo que estava convencido da autenticidade do sudário, e segurar uma caixa que continha o sangue verdadeiro do seu Salvador e não vinho transubstanciado era arrebatador.

 

Luigi esticou-se e pegou novamente na caixa, que guardou por baixo das grandes pregas da sotaina.

 

Há alguma instrução específica? perguntou.

 

Certamente que simrespondeu Michael. Preciso que descubra o máximo possível sobre essas pessoas a quem vai entregar a amostra: nomes, moradas, o que for. Na verdade, exija ver os passaportes e anote os números. Com essa informação e os vossos contactos com as autoridades civis, poderemos saber imenso sobre as identidades deles.

 

De que é que anda à procura? perguntou Valerio.

 

Não sei ao certo admitiu Michael. Sua Eminência, James Cardinal O’Rourke, está a trocar esta amostra minúscula por um grande benefício político para a Igreja. Ao mesmo tempo, quer estar cem por cento seguro de que os ditames do Santo Padre em relação à proibição de testes científicos do sudário não são violados.

 

Valerio acenou afirmativamente como se compreendesse, mas na verdade não compreendia. Trocar bocados de uma relíquia por favores políticos estava para além da sua experiência, especialmente com a exigência de não haver documentação oficial. Era preocupante. Ao mesmo tempo, sabia que as poucas fibras guardadas na caixa de prata tinham vindo de uma amostra do sudário tirada muitos anos antes, e que o sudário propriamente dito não fora perturbado recentemente. A preocupação principal do Santo Padre em relação ao sudário era a sua conservação.

 

Luigi levantou-se.

 

Se quero chegar ao encontro a tempo, devia ir-me embora. Michael levantou-se igualmente.

 

Vamos juntos, se não se importa. Eu vou observar a troca de longe. Depois de a amostra ser entregue, pretendo seguir essas pessoas. Quero saber onde estão hospedadas, para o caso de as suas identidades serem perturbadoras.

 

Valerio levantou-se com os outros. Tinha uma expressão confusa.

 

Que é que vai fazer se, como diz, as identidades deles forem perturbadoras?

 

Serei obrigado a improvisar disse Michael. Nesse ponto, as instruções do cardeal foram vagas.

 

Esta cidade é bastante bonita disse Daniel, quando ele e Stephanie se dirigiam para oeste pelas ruas alinhadas com residências apalaçadas. No começo não fiquei impressionado, mas agora estou.

 

Eu tive a mesma impressão disse Stephanie.

 

Depois de percorrerem alguns quarteirões, chegaram à Piazza San Carlo, e a paisagem abriu-se numa grande praça com o tamanho de um campo de futebol, rodeada por edifícios barrocos. As fachadas estavam ornamentadas com uma agradável profusão de formas decorativas. No centro da praça, erguia-se uma imponente estátua equestre de bronze. O Café Torino ficava a meio da praça, do lado ocidental. No interior do estabelecimento, viram-se envolvidos num aroma intenso de café acabado de moer. Vários candelabros de cristal pendurados num tecto cheio de frescos inundavam o interior com um brilho quente e incandescente.

 

Não tiveram de procurar muito pelo monsenhor Mansoni. O padre levantou-se no momento em que eles entraram e fez-lhes sinal para irem Para a sua mesa. Enquanto se dirigiam na direcção dele, Stephanie olhou em volta para os outros clientes. O estranho comentário de monsenhor Mansoni de que não haveria muitos padres no café estava correcto. Stephanie viu apenas mais um. Estava sentado sozinho e, por breves instantes, Stephanie teve a estranha sensação de que os olhos dele estavam presos nos seus.

 

Bem-vindos a Turimdisse Luigi. Apertou as mãos aos dois recém chegados e convidou-os a sentarem-se. Os seus olhos detiveram-se em Stephanie o suficiente para a fazer sentir-se levemente desconfortável, quando se lembrou da inadequada descrição de Daniel.

 

Um empregado de mesa apareceu em resposta ao estalar de dedos do monsenhor e anotou o pedido de Stephanie e Daniel. Daniel bebeu outro expresso, enquanto Stephanie se contentava com água mineral gaseificada.

 

Daniel olhou para o prelado. A descrição que ele fizera de si próprio como sendo corpulento não era exagerada. Um grande pescoço duplo quase escondia o colarinho branco. Como médico, perguntou a si mesmo qual seria o nível de colesterol do padre.

 

Suponho que para começar devíamos apresentar-nos. Eu sou Luigi Mansoni, de Verona, Itália, mas agora vivo aqui em Turim.

 

Daniel e Stephanie apresentaram-se à vez dizendo os seus nomes e que viviam em Cambridge, Massachusetts. Nesse ponto, chegaram o café e a água.

 

Daniel bebeu um gole e pousou a chávena no pires minúsculo.

 

Sem querer ser rude, gostaria de tratar do assunto que nos trouxe aqui. Presumo que trouxe a amostra.

 

Claro replicou Luigi.

 

Temos de ter a certeza de que a amostra vem de uma parte do sudário com uma mancha de sangue continuou Daniel.

 

Posso garantir-lhe que sim. Foi seleccionada pelo professor que o arcebispo Manfredi, o guardião actual, encarregou da conservação do sudário.

 

Então? perguntou Daniel. Pode entregar-nos a amostra?

 

Daqui a poucodisse Luigi. Procurou na sotaina e tirou um pequeno bloco e uma caneta. Antes de entregar a amostra, recebi instruções para tomar nota de alguns pormenores das vossas identidades. Com a controvérsia  e o frenesim da imprensa sobre o sudário, a Igreja insiste em saber quem está na posse de todas as amostras.

 

Quem vai recebê-la é o senador Ashley Butler disse Daniel.

 

Foi o que me disseram. Porém, até esse momento, precisamos de ter a prova das vossas identidades. Lamento, mas são as instruções que recebi.

 

Daniel olhou para Stephanie. Ela encolheu os ombros.

 

Que tipo de prova pretende?

 

Passaportes e moradas actuais será suficiente.

 

Eu não tenho qualquer problema em relação a isso declarou Stephanie. E a morada que consta do passaporte é a minha morada actual.

 

Acho que também não tenho qualquer problema disse Daniel. Os dois americanos pegaram nos documentos e passaram-nos para o outro lado da mesa. Luigi abriu um de cada vez e copiou as informações. Depois, devolveu-os. Guardou o bloco e a caneta e mostrou-lhes a caixa. Com óbvia deferência, fê-la deslizar na direcção de Daniel.

 

Posso? perguntou Daniel.

 

Claro replicou Luigi.

 

Daniel pegou na caixa de prata. Havia um pequeno fecho de lado, que abriu. Cuidadosamente, levantou a tampa. Stephanie inclinou-se para poder espreitar por cima do ombro dele. No interior via-se um envelope pequeno, selado e semitransparente que continha um tapete de fibras minúsculo mas adequado, de uma cor indeterminada.

 

Parece boa disse Daniel. Fechou a tampa e prendeu o fecho. Entregou a caixa a Stephanie, que a guardou na bolsa juntamente com os passaportes.

 

Quinze minutos depois, Daniel e Stephanie saíram novamente para o pálido sol de Inverno. Atravessaram diagonalmente a Praça San Cario na direcção do hotel. Apesar do desconforto provocado pelo fuso horário, caminhavam rapidamente. Ambos se sentiam um pouco eufóricos.

 

Não podia ter sido mais fácil comentou Daniel.

 

Não posso deixar de concordar disse Stephanie.

 

Longe de mim recordar-te o teu pessimismo anterior troçou Daniel. Nunca faria uma coisa dessas.

 

Espera um segundo censurou Stephanie. Obtivemos a amostra facilmente, mas ainda estamos muito longe de tratar Butler. As minhas preocupações são em relação a todo este caso.

 

Creio que este pequeno episódio é apenas um prenúncio das coisas que estão para acontecer.

 

Espero que tenhas razão.

 

Que é que achas que devíamos fazer o resto do dia? perguntou Daniel. O nosso voo para Londres é só às sete e cinco da manhã de amanhã.

 

Eu preciso de dormir um pouco disse Stephanie. E tu também deves precisar. Que tal irmos para o hotel, comermos qualquer coisa ao almoço, em seguida fecharmos os olhos durante meia hora e depois sairmos? Há algumas coisas que gostaria de ver enquanto cá estamos, especialmente a igreja onde o sudário está guardado.

 

Parece-me um bom plano disse Daniel, satisfeito.

 

Michael Maloney manteve a maior distância a que se atreveu, sem perder Daniel e Stephanie de vista. Ficou surpreendido com a velocidade a que se deslocavam e teve de os acompanhar. Quando saíra do café, tivera sorte em avistá-los, pois já quase tinham saído da praça.

 

No momento em que os dois americanos saíram do café, Michael falara por alguns instantes com Luigi para o encorajar a verificar as identidades por intermédio das autoridades civis e para lhe ligar para o telemóvel logo que obtivesse alguma informação. Michael disse que pretendia manter os americanos debaixo de olho, ou pelo menos saber onde estavam hospedados, até ficar satisfeito com as informações.

 

Quando os americanos desapareceram numa esquina, Michael desatou a correr até os avistar novamente. Estava decidido a não os perder. Não esquecendo as palavras do seu mentor e chefe, o cardeal O’Rourke, Michael estava a tratar esta missão com grande seriedade. Aspirava fortemente a subir na hierarquia da Igreja, e até à data as coisas estavam a decorrer de acordo com os seus planos. Primeiro, tivera a oportunidade de estudar em Roma. A seguir, viera o reconhecimento dos seus talentos pelo então bispo

O’Rourke, o convite para fazer parte da sua equipa e a elevação do bispo a arcebispo. Neste ponto da carreira, Michael sabia que o seu sucesso dependia unicamente de agradar ao seu poderoso superior, e sabia intuitivamente que aquela missão relacionada com o sudário era uma oportunidade de ouro. Graças à importância que tinha para o cardeal, proporcionava-lhe uma circunstância única para demonstrar a sua lealdade inabalável, a sua dedicação e até a capacidade de improvisação, tendo em conta a falta de directivas específicas.

 

Quando entrou na Piazza Carlo Alberto, Michael supôs que o casal se dirigia para o Grand Belvedere. Acelerou o passo quase para a corrida, para estar mesmo atrás dos americanos quando eles entraram. No interior, parou enquanto eles se dirigiam para o elevador, e depois observou o indicador a subir até ao quarto andar. Satisfeito, Michael dirigiu-se para uma área de descanso no átrio do hotel. Sentou-se num sofá de veludo, pegou num exemplar do Corriere delia Sera, e começou a ler enquanto mantinha um olho na fila de elevadores. «Até agora, tudo bem», pensou.

 

Não teve de esperar muito tempo. O casal voltou a aparecer e foram para o restaurante. Michael reagiu mudando para outro sofá de onde se via melhor a entrada do restaurante. Estava confiante de que ninguém lhe prestara a menor atenção. Sabia que, em Itália, usar um fato de padre católico romano era sinónimo de acesso e anonimato.

 

Meia hora mais tarde, quando o casal saiu do restaurante, Michael não pôde deixar de sorrir. Meia hora para o almoço era tão americano. Sabia que os italianos que se encontravam no restaurante estavam aí instalados, pelo menos, por duas horas. Os americanos voltaram para o elevador e subiram de novo para o quarto andar.

 

Desta vez, Michael teve de esperar bastante mais. Terminou o jornal e olhou em volta, à procura de outra coisa para ler. Como não encontrou nada e não quis correr o risco de ir à livraria, começou a pensar no que faria se as informações que esperava receber de Luigi não fossem apropriadas. O que esperava saber é que, pelo menos, uma daquelas pessoas trabalhava de alguma forma para o senador Butler ou, possivelmente, para uma organização que estivesse ligada ao senador. Lembrava-se de ele ter dito especificamente que mandaria um agente buscar a amostra. Exactamente o que queria dizer com «agente» ainda estava para ser visto.

 

Michael esticou-se e olhou para o relógio. Eram quase três da tarde, e o seu estômago começou a fazer barulho. Não comera nada, a não ser um bolo no Café Torino. Enquanto a sua mente o atormentava com imagens das suas massas preferidas, o telemóvel vibrou no bolso. Tinha desligado deliberadamente o som. Em pânico de perder a chamada, pegou no telemóvel e atendeu. Era Luigi.

 

Acabei de receber as informações dos meus contactos no departamento de imigração disse Luigi. Não creio que vá gostar do que tenho para lhe dizer.

 

Oh! comentou Michael. Tentou manter-se calmo. Infelizmente, naquele momento, os americanos saíram do elevador com casacos vestidos e roteiros turísticos na mão, obviamente preparados para um passeio. Com receio de que apanhassem um táxi, que acrescentaria um elemento de dificuldade, Michael lutou para vestir o casaco enquanto mantinha o telefone encostado à orelha. Os americanos andavam depressa, como antes.

 

Espere um pouco, Luigi! disse Michael, interrompendo o monsenhor.

 

Eu vou sair daqui com um braço no casaco, Michael ficara com a outra manga presa na porta giratória. Teve de recuar para se soltar.

 

Prego! disse o porteiro, enquanto o ajudava.

 

Mi scusi respondeu Michael. Libertado da porta, correu para o exterior e foi recompensado ao ver os americanos a passarem pela fila de táxis e a dirigirem-se para a esquina nordeste da praça. Abrandou para uma passada rápida.

 

Desculpe, Luigi disse Michael para o telefone. O casal decidiu sair do hotel no momento em que me telefonou. Que é que estava a dizer?

 

Eu disse que são ambos cientistas replicou Luigi. Michael sentiu o coração a bater mais depressa.

 

Não é uma boa notícia!

 

Também não me pareceu. Aparentemente, os nomes surgiram logo quando as autoridades italianas contactaram os colegas americanos a pedir informações. São ambos licenciados na área biomolecular, Daniel Lowell na vertente química e Stephanie D’Agostino na vertente da biologia. Aparentemente, são bastante conhecidos nos seus ramos, ele mais do que ela. Como ambos têm o mesmo endereço, tudo indica que vivem juntos.

 

Santo Deus! comentou Michael.

 

Certamente, não parecem correios normais.

 

É o pior dos cenários.

 

Concordo. Com os antecedentes deles, devem estar a planear algum tipo de testes. Que é que vai fazer?

 

Ainda não sei disse Michael. Tenho de pensar.

 

Se eu puder ajudar, é só dizer.

 

Eu mantenho-me em contacto disse Michael, antes de desligar. Embora tivesse dito a Luigi que não sabia o que ia fazer, isso não era bem verdade. Já decidira que ia reaver a amostra do sudário; só ainda não sabia como. O que sabia era que queria ser ele próprio a fazê-lo para, quando contasse ao arcebispo, poder ter todos os louros por ter salvo o sangue do Salvador de mais uma indignidade científica.

 

Os americanos chegaram à grande Piazza Castello, mas não abrandaram. O primeiro pensamento de Michael foi que pensavam visitar o Palazzo Reale, a antiga residência da Casa de Sabóia, mas mudou de ideia quando os americanos circundaram a Piazzeta Reale para irem para a Piazza Giovani.

 

Claro! disse Michael em voz alta. Sabia que o Duomo di San Giovani ficava na esquina, e a igreja era a casa actual do sudário desde o incêndio de 1997 na capela onde este se encontrava anteriormente. Michael seguiu um pouco atrás, para se certificar do destino dos americanos. Logo que os viu a subir os degraus principais da catedral, virou-se e voltou para trás. Presumindo que os dois ficariam convenientemente ocupados fora do hotel nas horas mais próximas, pensou que seria bom aproveitar a oportunidade. Se queria recuperar a amostra do sudário, esta podia ser a melhor altura, se não a única, presumindo que eles iam partir de manhã.

 

Embora já estivesse ligeiramente ofegante, Michael obrigou-se a acelerar o passo. Queria voltar para o Grand Belvedere o mais depressa possível. Apesar da inexperiência com a intriga em geral e com o furto em particular, tinha de descobrir que quarto do hotel é que Daniel e Stephanie ocupavam, conseguir entrar nele e descobrir a caixa de prata, tudo isto em duas horas, no máximo.

 

Estamos a ver o sudário verdadeiro? perguntou Daniel num sussurro. Havia diversas outras pessoas na catedral, mas estavam ajoelhadas nos bancos a rezar ou a acender velas diante de imagens religiosas. Os únicos sons eram os ecos ocasionais de saltos no chão de mármore, quando as pessoas andavam de um lado para o outro.

 

Não, não é o sudário sussurrou Stephanie em resposta. É uma réplica fotográfica de tamanho real tinha o roteiro aberto na página certa. Ela e Daniel estavam diante de uma alcova cuja frente de vidro ocupava o rés-do-chão do transepto norte da igreja. Um andar acima, situava-se o nicho tapado com uma cortina de onde os antigos duque e duquesa de Sabóia assistiam à celebração da missa.

 

A fotografia estava exposta de forma panorâmica. As partes de cima da imagem frontal e traseira do homem crucificado quase se tocavam no centro, o que era explicado por o homem ter sido colocado com a face para cima no pano e depois este ter sido enrolado à volta dele. A imagem frontal estava voltada para o lado esquerdo. A fotografia estava exposta no que parecia ser uma mesa com quatro metros e meio de comprimento e um metro e vinte de largura, tapada até ao chão com tecido azul pregueado.

 

A fotografia está sobre a nova caixa de conservação onde o sudário foi guardado explicou Stephanie. Tem um sistema hidráulico, por isso quando o sudário é exibido a parte de cima pode rodar para cima, e a relíquia é vista através de vidro à prova de bala.

 

Recordo-me de ter lido sobre isso comentou Daniel. Parece um aparato imponente. Pela primeira vez na longa vida do sudário, a relíquia fica completamente horizontal numa atmosfera controlada.

 

É verdadeiramente espantoso que a imagem tenha durado tanto tempo como durou, tendo em conta tudo aquilo por que passou.

 

Ao olhar para esta fotografia de tamanho real, acho a imagem mais difícil de discernir do que tinha imaginado. Na verdade, se o sudário é assim, é de certa forma decepcionante. Pode ser visto e apreciado melhor no livro que tu compraste.

 

E ainda melhor no negativo acrescentou Stephanie.

 

Aparentemente, a imagem não se desvaneceu. O que aconteceu foi que o fundo amareleceu, por isso o contraste diminuiu.

 

Espero que a nova caixa de conservação impeça que isso volte a acontecer referiu Stephanie. Bem, já vimos onde está o sudário voltou-se e observou o interior da catedral. Pensei que talvez fosse interessante visitarmos o local, mas para uma igreja italiana da Renascença esta é bastante simples.

 

Eu estava a pensar a mesma coisadisse Daniel. Vamos embora. Que tal irmos dar uma espreitadela ao palácio real? Parece que o interior é a quinta-essência do rococó.

 

Stephanie olhou para Daniel, curiosa.

 

Quando é que te tornaste tão especialista em arquitectura e design de interiores?

 

Daniel riu-se.

 

Li no roteiro antes de sairmos.

 

Bem, eu adorava ver o palácio, mas tenho um problema.

 

Que género de problema?

 

Stephanie olhou para os pés.

 

Esqueci-me de calçar sapatos decentes para andar, em vez destes que calcei para ir almoçar. Acho que vou dar cabo dos pés, se andarmos a passear de um lado para o outro a tarde inteira. Desculpa, mas importavas-te muito se voltássemos rapidamente ao hotel?

 

Por mim, agora que temos a amostra do sudário estamos apenas a passar o tempo. Não me importa o que fizermos.

 

Obrigada disse Stephanie, aliviada. Daniel costumava ficar impaciente com aquele tipo de falhas. Lamento muito. Devia ter pensado nisso. E, uma vez que vamos lá, vou vestir outra camisola. Na rua está mais frio do que eu pensava.

 

Excepto quando em companhia de alguns brincalhões inofensivos quando andava no liceu, o padre Michael Maloney nunca infringira de forma consciente qualquer lei civil, e o facto de se preparar agora para o fazer estava a causar-lhe mais ansiedade do que ele previra. Não só estava trémulo e a transpirar, como tinha tanta azia que lamentou não ter um anti-ácido consigo. A aumentar o seu fardo estava a preocupação com o tempo. Certamente, não queria ser apanhado em flagrante delito pelos americanos. Embora estivesse seguro de que eles estariam fora durante duas horas ou mais a visitar a cidade, decidiu limitar-se apenas a uma hora, para não correr riscos. O simples pensamento de ser surpreendido fazia os seus joelhos ficarem fracos.

 

Ao aproximar-se do Grand Belvedere, não fazia ideia de como ia cumprir o seu objectivo, pelo menos, não até passar por uma florista na mesma praça do hotel. Entrou na loja e perguntou se um dos arranjos de flores já preparados podia ser, imediatamente, entregue no hotel. Depois de obter uma resposta positiva, escolheu um, endereçou um envelope com os nomes dos americanos e assinou o cartão: Bem-vindos ao Grand Belvedere, a gerência.

 

E nesse momento, cinco minutos depois, enquanto Michael estava sentado no mesmo sofá no átrio que ocupara antes, o arranjo de flores foi trazido para o hotel. Michael levantou o jornal para esconder o rosto e olhou sub-repticiamente enquanto a mesma mulher a quem comprara as flores entregava o arranjo na secretária dos porteiros. Um dos paquetes assinou o recibo e a mulher saiu.


Infelizmente, nos dez minutos que se seguiram não aconteceu nada. As flores permaneceram no balcão, enquanto os paquetes conversavam animadamente uns com os outros.

 

Vá lá! disse Michael em silêncio, enquanto rangia os dentes. Apetecia-lhe ir queixar-se à recepção, mas não se atreveu. Não queria chamar a atenção para a sua pessoa. O seu plano era aproveitar ao máximo o traje sacerdotal para parecer inofensivo, e até relativamente invisível.

 

Por fim, um dos paquetes verificou o envelope das flores e foi para o outro lado da secretária. Pelo reflexo de luz no rosto do homem, Michael viu que ele estava a consultar o computador. Instantes depois, deu a volta à secretária, pegou nas flores e dirigiu-se para o elevador. Michael pousou o jornal e foi atrás dele.

 

O paquete cumprimentou Michael com um aceno quando as portas se fecharam. Michael sorriu. No quarto andar, o paquete saiu e Michael fez o mesmo. Mantendo uma distância curta entre ele próprio e o paquete, Michael seguiu-o. Quando o homem parou diante do 408 e bateu à porta, Michael passou por ele. O paquete acenou e sorriu. Michael retribuiu.

 

Michael virou uma esquina e parou. Cuidadosamente, olhou para trás. Viu o paquete a bater de novo antes de empunhar um anel de chaves numa corrente. Abriu a porta e desapareceu por instantes. Quando reapareceu sem flores, vinha a assobiar baixinho. Fechou a porta e voltou para os elevadores.

 

Depois de o homem desaparecer, Michael voltou para o quarto 408. Não esperava que a porta estivesse destrancada, e não estava. Olhou para o corredor e viu um carrinho de limpeza. Michael respirou fundo e encheu as bochechas momentaneamente para ganhar coragem, e em seguida dirigiu-se para o carrinho que estava ao lado de uma porta que se mantinha aberta com um travão.

 

Hesitante, Michael bateu à porta aberta.

 

Sucsi! chamou. Ouviu uma televisão acesa ao longe. Entrou no quarto e viu duas mulheres de meia-idade com uniformes castanhos a fazer a cama. Sucsi! chamou Michael, consideravelmente mais alto.

 

As mulheres reagiram como se estivessem chocadas. Ambas perceptivelmente lívidas. Uma delas recuperou o suficiente para correr e desligar a televisão.

 

Recorrendo ao seu melhor italiano, Michael perguntou às mulheres se podiam ajudá-lo. Explicou que deixara a chave no quarto 408, e precisava de fazer um telefonema imediatamente. Queria saber se elas não se importavam de lhe abrir a porta, para ele não ter de descer até à recepção.

 

As mulheres trocaram um olhar confundido. Michael levou alguns momentos a perceber que elas falavam muito mal italiano. Explicou novamente o seu pretenso problema, falando lentamente e com clareza. Nessa ocasião, uma das mulheres percebeu a mensagem, e para alívio de Michael pegou nas suas chaves. Michael acenou afirmativamente.

 

Como se quisesse compensar as dificuldades de comunicação, a mulher passou por Michael e quase correu pelo corredor. Michael teve de correr para acompanhá-la. Ela abriu a porta do quarto 408 e segurou-a aberta. Michael agradeceu-lhe enquanto entrava. A porta fechou-se.

 

Michael expirou. Não se apercebera de que estivera a conter a respiração. Recuou para se encostar à porta enquanto observava o aposento. Os reposteiros estavam abertos, e entrava imensa luz. Havia mais bagagem do que ele esperara, embora todas as malas, com excepção de duas, estivessem fechadas como se ainda não tivessem sido abertas. Infelizmente, não havia nenhuma caixa de prata visível na cómoda, na secretária ou nas mesas-de-cabeceira.

 

Michael sentiu o coração a bater muito depressa. Também estava a transpirar copiosamente.

 

Eu não sou bom nisto sussurrou. Queria desesperadamente encontrar a caixa de prata e ir-se embora. Precisou de toda a sua força de vontade para permanecer no quarto.

 

Afastou-se da porta e dirigiu-se em primeiro lugar para a secretária. No meio do mata-borrão, entre duas malas para computadores portáteis, via-se uma chave do 408. Após um momento de hesitação, Michael pegou nela e guardou-a no bolso. Revistou, rapidamente as malas do computador: nenhuma caixa de prata. Só levou um momento a revistar as gavetas da secretária. Com excepção do papel de carta do hotel, estavam vazias. Seguiu-se a cómoda. Também ela estava vazia, com excepção de formulários de lavandaria e sacos de plástico para colocar a roupa. As pequenas gavetas das mesas-de-cabeceira também estavam vazias. Verificou a casa de banho, mas não encontrou a caixa de prata. Espreitou para dentro do roupeiro, viu um cofre e soltou um suspiro de alívio. A porta estava entreaberta e não havia nada lá dentro. Verificou os bolsos de um blusão de homem que estava pendurado num cabide: nada.

 

Voltou-se para o interior do quarto e aproximou-se das malas abertas.

 

Estavam em suportes de bagagem aos pés da cama. Aproximou-se de uma de cada vez, levantou as tampas e passou a mão pelos lados. Encontrou diversos objectos diferentes, mas nenhuma caixa de prata. Depois, levantou cuidadosamente as roupas para procurar com mais minúcia. De repente, ouviu vozes e, para seu horror, parecia inglês americano. Endireitou-se, paralisado. No instante seguinte, ouviu o pior som que podia ter imaginado. Era o som de uma chave a ser enfiada na fechadura da porta!

 

 

15.45, segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2002

Que diabo?perguntou Stephanie. Estava parada à porta do quarto. Daniel espreitou por cima do ombro dela.

 

Que é que se passa? perguntou Daniel.

 

Há flores na cómoda disse Stephanie. Quem é que nos mandaria flores?

 

Butler?

 

Ele não sabe que estamos em Turim, a menos que lhe tenhas mandado uma mensagem de correio electrónico.

 

Eu não lhe mandei mensagem nenhuma disse Daniel, como se fosse uma coisa completamente absurda. Mas, com os contactos que tem nos serviços secretos, talvez saiba. Depois de me mandar investigar, eu não excluiria essa possibilidade. Ou talvez, monsenhor Mansoni lhe tenha dito que a amostra foi entregue.

 

Stephanie dirigiu-se para o arranjo de flores e abriu o envelope.

 

Oh, por amor de Deus, é apenas da gerência do hotel.

 

Que simpático disse Daniel com indiferença. Entrou na casa de banho para usar a sanita.

 

Stephanie dirigiu-se para a sua mala de viagem que estava no suporte de bagagens. Tinha um par de sapatos para caminhada, entalados do lado esquerdo da mala. Levantou a tampa aberta da mala e hesitou. Uma blusa de linho que ela arrumara com todo o cuidado em Boston estava ligeiramente deslocada, e tinha a gola dobrada. Com o dedo, endireitou a dobra. Como temia, ficou um vinco, mesmo depois de ela ter tentado alisá-la com a palma da mão. A resmungar baixinho uma das suas ordinarices privadas, começou a estender a mão para os sapatos de caminhada quando os seus olhos pousaram numa peça de roupa interior, que também estava ligeiramente desarrumada e que ela guardara com igual cuidado. Stephanie endireitou-se e olhou para a mala aberta.

 

Daniel! Vem cá!

 

Com o som do autoclismo como pano de fundo, o rosto de Daniel apareceu à porta da casa de banho. Estava com uma toalha na mão.

 

Que é? perguntou com as sobrancelhas erguidas. Pelo tom da voz dela, percebera que estava ligeiramente perturbada.

 

Alguém esteve no nosso quarto!

 

Já sabíamos isso quando vimos as flores.

 

Vem cá!

 

Daniel colocou a toalha ao ombro e foi colocar-se ao lado de Stephanie. Seguiu o dedo dela, que apontava para a mala aberta.

 

Alguém esteve a mexer na minha mala disse Stephanie.

 

Como é que sabes? Stephanie explicou.

 

Isso são mudanças bastante subtis declarou Daniel. Deu-lhe uma palmada condescendente nas coisas.Tu própria estiveste a mexer na mala antes de sairmos. Tens a certeza de que não estás a ter um pequeno ataque de paranóia, devido ao assalto de Cambridge?

 

Alguém esteve a mexer na minha mala! repetiu Stephanie, irritada. Afastou a mão dele. Com o fuso horário e o cansaço demasiado grande, sentiu-se imediatamente frustrada por Daniel estar a ser tão desinteressado. Olha para a tua mala!

 

Daniel revirou os olhos e abriu a mala aberta que se encontrava no suporte ao lado da de Stephanie.

 

Muito bem, estou a olhar disse.

 

Alguma coisa diferente?

 

Daniel encolheu os ombros. Estava longe de ser o melhor fazedor de malas do mundo e vasculhara tudo quando andara à procura de roupa interior limpa. De repente, ficou paralisado e depois ergueu lentamente os olhos para os de Stephanie.

 

Meu Deus! Falta uma coisa!

 

O quê? Stephanie apertou a mão de Daniel, enquanto espreitava para a mala.

 

Alguém levou o meu frasco de plutónio!

 

Stephanie bateu no ombro de Daniel. Este reagiu protegendo-se de uma forma exagerada de mais golpes, que nunca vieram.

 

Estou a falar a sério queixou-se Stephanie estridentemente. Concentrou-se de novo na mala, pegou na escova de cabelo e brandiu-a. Aqui está mais uma coisa! Quando saímos para o nosso passeio, esta escova estava directamente em cima das minhas roupas, não enfiada num canto da mala. Lembro-me porque pensei levá-la para a casa de banho. Estou a dizer-te: alguém andou a mexer na minha mala!

 

Está bem! Está bem! exclamou Daniel. Tem calma! Stephanie abriu a bolsa lateral da mala e tirou um estojo de veludo com fecho. Abriu-o e espreitou para o interior.

 

Pelo menos, as minhas jóias estão aqui, incluindo o dinheiro que guardei. Foi bom não ter trazido nada verdadeiramente valioso.

 

Talvez as empregadas de limpeza tivessem precisado de desviar as malas? sugeriu Daniel.

 

Não me lixes! retorquiu Stephanie, como se a sugestão fosse ridícula. Os seus olhos deambularam pelo quarto até pousarem na secretária. A minha chave do quarto desapareceu! Deixei-a em cima do mata-borrão.

 

Tens a certeza?

 

Não te lembras de que falámos nisso antes de sair, se devíamos ou não levar duas chaves?

 

Vagamente.

 

Stephanie entrou na casa de banho. Os olhos de Daniel inspeccionaram o quarto. Não conseguia decidir se a paranóia de Stephanie era digna de crédito, uma vez que sabia que ela ainda estava perturbada com o intruso em Cambridge. Sabia que os funcionários de hotel como as empregadas de limpeza, os fornecedores dos minibares, o pessoal do serviço de quartos e os paquetes estavam sempre a entrar e a sair dos quartos. Talvez um deles tivesse enfiado as mãos na mala dela. Para algumas pessoas, podia ser uma tentação enorme.

 

Também mexeram na minha bolsa de cosméticos disse Stephanie da casa de banho.

 

Daniel dirigiu-se para a porta e parou na soleira.

 

Falta alguma coisa?

 

Não, não falta nada! respondeu Stephanie, irritada.

 

Hei, não te zangues comigo!

 

Stephanie endireitou-se, fechou os olhos e respirou fundo. Acenou algumas vezes.

 

Tens razão. Desculpa. Não estou zangada contigo, apenas frustrada por não estares tão preocupado com isto como eu.

 

Se nos faltasse alguma coisa, seria diferente.

 

Stephanie fechou a tampa da bolsa de maquilhagem. Aproximou-se de Daniel e abraçou-o. Ele apertou-a contra si.

 

Fico perturbada quando mexem nas minhas coisas, especialmente depois do que aconteceu antes de partirmos.

 

É inteiramente compreensível disse Daniel.

 

É curioso não faltar nada, nem o dinheiro. Isso torna este episódio precisamente igual ao de Cambridge, embora o facto de ter acontecido aqui seja mais confuso. Pelo menos, lá podíamos pensar em espionagem industrial, embora seja improvável. Que poderia alguém procurar aqui a não ser jóias e dinheiro?

 

A única coisa que me ocorre é a amostra do sudário. Stephanie afastou-se de Daniel para poder olhar para o rosto dele.

 

Por que é que alguém procuraria isso?

 

Não faço a menor ideia. É simplesmente a única coisa que temos que é única.

 

Mas, presumivelmente, a única pessoa que sabe que a temos é o homem que no-la deu. As sobrancelhas de Stephanie estavam juntas, como se ela estivesse novamente perturbada.

 

Tem calma! Não acredito que alguém andasse à procura da amostra do sudário. Estava apenas a falar em voz alta. Mas, já que estamos a falar no assunto, onde é que ela está?

 

Ainda está na minha bolsa disse Stephanie.

 

Vai buscá-la! Vamos vê-la mais uma vez! Daniel pensou que era melhor afastar o assunto de um possível intruso.

 

Recuaram para o centro do aposento. Stephanie pegou na bolsa que atirara para cima da cama. Tirou a caixa de prata e abriu-a. Daniel pegou cuidadosamente no envelope semi transparente e ergueu-o para a luz difusa que vinha das janelas. Iluminado por detrás, o entrelaçado de fibras de linho era distinto, embora a sua cor continuasse indeterminada.

 

Meu Deus! disse Daniel, a abanar a cabeça. É verdadeiramente surpreendente pensar que há uma ténue hipótese de isto conter o sangue da pessoa discutivelmente mais famosa que já andou sobre a terra, e nem sequer estou a pensar no aspecto divino.

 

Stephanie pousou a caixa de prata em cima da secretária e pegou no envelope. Aproximou-se da janela e levantou-o também para a luz. Protegendo os olhos dos fortes raios de sol com a mão livre, usou a luz pálida mas directa para examinar o envelope.

 

Parece sangue disse ela. Sabes, deve ser o meu passado católico a renascer misteriosamente, porque tenho uma forte intuição de que é o sangue de Jesus Cristo.

 

Embora o padre Michael Maloney não pudesse ver Stephanie D’Agostino, estava tão próximo que conseguia ouvi-la respirar. Ficou aterrorizado ao pensar que os batimentos do seu coração iriam denunciá-lo ou, se isso não acontecesse, o som das gotas de transpiração que lhe pingavam do rosto e caíam ruidosamente no chão. Ela estava a poucos centímetros de distância.

 

Em profundo desespero quando ouvira a chave a entrar na fechadura, escondera-se atrás dos reposteiros. Tinha sido um acto reflexo. Em retrospectiva, tinha sido embaraçoso esconder-se atrás dos reposteiros, como se fosse um vulgar ladrão. Devia ter ficado onde estava, devia ter aceite o seu destino de ser apanhado e assumido todas as responsabilidades pelos seus actos. Sabia que a melhor defesa era o ataque, e na situação actual para justificar as suas acções devia ter usado a sua indignação em relação às identidades verdadeiras daquelas pessoas e aos testes não autorizados que estavam obviamente a planear fazer ao sudário.

 

Infelizmente, a sua reacção de lutar ou fugir fora avassaladora, especialmente do lado da fuga, de tal maneira que quando se dera conta já estava escondido, e uma vez escondido era demasiado tarde para representar o papel de indignado. Agora, a única coisa que podia fazer era rezar para não ser descoberto.

 

A princípio pensara estar perdido com a exclamação de Stephanie quando a porta se abrira. Imaginou que tinha sido visto ou, no mínimo, que o movimento dos reposteiros tinha sido aparente. Quando percebeu que fora o arranjo de flores que chamara a atenção da mulher, sentiu um alívio que não podia ser descrito com palavras.

 

Depois, teve de suportar a descoberta de Stephanie da sua incompetência para revistar a mala e o facto de ter tirado a chave da secretária. Nesse momento, o coração começou novamente a bater mais depressa depois de ter abrandado um pouco do choque inicial. Receou que ela começasse a revistar o quarto, o que significava que seria descoberto imediatamente. O embaraço e consequências de uma coisa dessas eram demasiado horríveis para contemplar. O que começara como uma forma de garantir a sua carreira futura estava agora em risco de ter um efeito totalmente oposto.

 

O que pensamos sobre o sudário não é importante disse Michael. A única coisa que importa é o que Butler pensa.

 

Não sei bem se estou completamente de acordo contigo replicou Stephanie. Mas isso é uma discussão para outro dia.

 

Michael ficou tenso quando Stephanie roçou nos reposteiros. Felizmente, eram de pesado brocado italiano, e, aparentemente, ela não reparou que também lhe tocara no braço através do tecido. Outra onda de adrenalina percorreu o seu corpo, tendo como resultado mais transpiração. Para ele, o som de gotas intermitentes de suor a cair no chão era tão alto como o som de pedras a cair em cima de um tambor. Nunca imaginara que podia transpirar tão copiosamente, especialmente quando nem sequer estava muito calor.

 

Que é que faço com a amostra? perguntou Stephanie, enquanto se afastava.

 

Dá-ma respondeu Daniel, algures dentro do quarto. Michael concedeu a si mesmo o direito de respirar fundo, e

 

descontraiu-se ligeiramente. Estava o mais encostado possível à parede, para minimizar o alto que o seu corpo fazia no reposteiro. Ouviu mais alguns sons que não conseguiu identificar, juntamente com o que lhe pareceu a caixa de prata a ser fechada com força.

 

Sabes, podíamos mudar de quarto disse Michael. Ou até de hotel, se quiseres.

 

Que é que achas que devíamos fazer?

 

Acho que devíamos ficar onde estamos. Há muitas chaves para todos os quartos em todos os hotéis. Esta noite, quando formos dormir, não vamos esquecer-nos de correr o ferrolho.

 

Michael ouviu o forte clique da fechadura de segurança a ser activada na porta que dava para o corredor.

 

É uma volta e meia comentou Daniel. Que dizes? Não quero que estejas nervosa. Não há necessidade.

 

Michael ouviu a porta que dava para o corredor a abanar.

 

Acho que a fechadura é boa disse Stephanie. Parece segura.

 

Com a fechadura de segurança no lugar, ninguém conseguirá passar por aquela porta sem nós sabermos. Teriam de usar um aríete.

 

Está bem disse Stephanie. Vamos ficar aqui. É apenas uma noite, e curta, uma vez que vamos para Londres no avião das sete e cinco. Que hora tão esquisita. A propósito: por que é que vamos via Paris?

 

Não havia outra alternativa. Aparentemente, a British Airways não opera em Turim. Era a Air France ou a Lufthansa para Frankfurt. Achei que era preferível não voltar para trás.

 

Parece ridículo não haver um voo directo para Londres. Quero dizer, Turim é uma das maiores cidades industriais italianas.

 

Que é que posso dizer? perguntou Daniel com um encolher de ombros. Mas, por enquanto, que tal calçares os sapatos para andar e vestires as outras coisas que querias para podermos voltar ao nosso passeio?

 

«Oh, por favor despacha-te!», implorou Michael em silêncio.

 

Mudei de ideia disse Stephanie, para desgosto imediato de Michael. Que tal ficarmos no quarto até à hora do jantar? Já passa das quatro, e daqui a pouco vai escurecer. Tu dormiste tão pouco a noite passada que deves estar exausto.

 

Estou cansado admitiu Daniel.

 

Vamos despir-nos e meter-nos na cama. Até te faço uma massagem nas costas, e veremos o que acontece, dependendo do teu cansaço. Que dizes?

 

Daniel riu-se.

 

Nunca ouvi uma ideia melhor em toda a minha vida. Para ser franco, não estava nada interessado em conhecer a cidade. Ia mais para te fazer a vontade.

 

Bem, isso já não é necessário, meu querido!

 

Michael arrepiou-se quando ouviu sons de roupas a serem despidas, risadas e carinhos. Receou que um deles se aproximasse dos reposteiros, mas isso não aconteceu. Ouviu os sons que a cama fez quando os corpos se deitaram sobre ela. Ouviu o som de loção a ser espremida de uma embalagem e até o som de carne contra carne escorregadia. Ouviu um murmúrio de satisfação de Daniel, enquanto a massagem progredia.

 

Chega disse Daniel, por fim. Agora é a tua vez a cama queixou-se quando os corpos trocaram de posição.

 

O tempo arrastou-se. Os músculos de Michael começaram a doer, particularmente nas pernas. Com medo de ter uma cãibra, que seguramente o trairia, mudou de posição, e depois conteve a respiração para o caso de o seu movimento ter sido notado. Felizmente, não foi, mas a dor voltou passados alguns minutos. No entanto, pior do que o desconforto físico foi a tortura de ouvir os sons de intimidades entre um homem e uma mulher que conduziram ao ruído ritmado e inconfundível de fazer amor. Michael estava a ser forçado pelas circunstâncias a assistir, e embora tentasse recitar em silêncio partes do seu breviário, deu por si excitado apesar dos seus votos de celibato.

 

Após alguns gemidos de prazer, o quarto ficou em silêncio durante alguns minutos. Em seguida, ouviram-se sussurros que Michael não conseguiu perceber, seguidos de gargalhadas e risadas. Por fim, para alívio de Michael, o casal foi para a casa de banho. Percebeu-o pelo som abafado das vozes por cima do som do chuveiro.

 

Michael permitiu-se rodar a cabeça, flectir os ombros rígidos, levantar os braços e até andar brevemente sem sair do sítio. Passado menos de um minuto, regressou à sua posição completamente imóvel, sem saber se um deles resolveria voltar para o quarto. Não teve de esperar muito tempo, e pouco depois ouviu alguém a mexer nas malas.

 

Infelizmente para Michael, Stephanie e Daniel levaram mais três quartos de hora para se vestir, pegar nos casacos e encontrar a única chave que lhes restava antes de, por fim, saírem para jantar. De início, o silêncio parecia ensurdecedor, quando ele se esforçou para ouvir quaisquer ruídos que sugerissem que eles estavam a voltar para virem buscar alguma coisa de que se haviam esquecido. Passaram cinco minutos. Finalmente, Michael agarrou cautelosamente na ponta do reposteiro e afastou-a lentamente, revelando progressivamente mais do quarto agora às escuras. O casal deixara a luz da casa de banho acesa, e a luz espalhava-se pelo quarto e formava um charco ao longo da cama.

 

Michael olhou para a porta de saída e tentou calcular a rapidez com que conseguiria lá chegar, sair, e fechá-la atrás de si. Não demoraria muito, mas ficou nervoso ao pensar que estaria totalmente exposto antes de deixar alguma distância entre a sua pessoa e o quarto 408. Neste ponto, ser apanhado seria significativamente mais problemático do que quando Stephanie e Daniel tinham entrado no quarto.

 

Enquanto tentava ganhar coragem para abandonar a segurança relativa do reposteiro, os seus olhos vaguearam pelo aposento. O reflexo de um objecto brilhante em cima da cómoda ao lado do arranjo de flores chamou a sua atenção. Piscou os olhos, sem acreditar no que estava a ver.

 

Louvado seja Deus! sussurrou. Era a caixa de prata.

 

Maravilhando-se com a sua sorte apesar de tudo, Michael respirou fundo e saiu do esconderijo. Hesitou mais um segundo, escutou antes de se dirigir rapidamente para a cómoda, pegou na caixa de prata, enfiou-a no bolso e correu para a porta. Para seu alívio, o corredor estava vazio. Afastou-se rapidamente do quarto 408, com receio de olhar para trás e aterrorizado com a perspectiva de alguém o abordar. Só quando chegou aos elevadores é que permitiu a si mesmo olhar para o fundo do corredor. Continuava vazio.

 

Alguns minutos mais tarde, Michael passou pela porta giratória do hotel e saiu para a noite. Nunca o frio de uma noite de Inverno lhe soubera tão bem no rosto ruborizado. Afastou-se rapidamente da porta, cada passo um pouco mais vivo do que o anterior. Com a mão direita enfiada no bolso do casaco, a apertar a caixa de prata para se lembrar do que conseguira fazer, foi invadido por uma alegria não muito diferente da euforia da absolvição, que sentira anteriormente na sequência de visitas especialmente difíceis como suplicante ao confessionário. Era como se os difíceis sofrimentos e padecimentos por que passara para salvar a amostra de sangue do Salvador tivessem tornado a experiência muito mais pungente.

 

Michael apanhou um táxi da praça de táxis do hotel e deu a morada da Chancelaria da Arquidiocese ao motorista. Recostou-se no banco de trás e tentou descontrair. Olhou para o relógio. Eram quase seis e meia. Tinha ficado preso atrás do reposteiro do quarto do casal durante mais de duas horas! Mas fora um pesadelo com final feliz, como evidenciava o toque frio da caixa de prata no seu bolso.

 

Michael fechou os olhos e deleitou-se a pensar na melhor altura para telefonar ao cardeal James O’Rourke para explicar os infelizes desenvolvimentos em relação às identidades dos pseudo correios, seguido da resolução derradeira do problema. Agora que estava em segurança, deu por si a sorrir ao recordar tudo por que passara. Escondido atrás de um reposteiro num quarto de hotel enquanto o casal fazia amor era tão absurdo que desafiava qualquer crença. Em certa medida, gostaria de o contar ao cardeal, mas sabia que não podia. A única pessoa a quem acabaria por contar era ao seu confessor, e também não ia ser fácil.

 

Conhecendo a agenda do cardeal, Michael pensou que era melhor esperar até às dez e meia da noite, hora italiana, para fazer o telefonema. A hora antes do jantar era o momento em que o cardeal estava mais acessível. Durante o telefonema, o que Michael iria apreciar particularmente era insinuar ao invés de dizer directamente ao cardeal que fora ele que, com o seu engenho, salvara sozinho e pessoalmente o que podia ter sido um embaraço para a igreja em geral e para o cardeal em particular.

 

Quando o táxi parou diante da chancelaria, Michael sentiu-se quase no seu estado normal. Embora o coração ainda estivesse a bater depressa, já não transpirava e a respiração estava inteiramente normal. O único problema é que a camisa e a roupa interior estavam encharcados da provação, e ele estava gelado.

 

Michael foi imediatamente falar com Valerio Garibaldi, de quem ficara amigo quando frequentara o Colégio Norte Americano em Roma, mas foi informado de que o amigo tinha saído do edifício para tratar de um assunto oficial. Michael dirigiu-se então para o gabinete de Luigi Mansoni. Bateu na porta aberta, e o monsenhor fez-lhe sinal para que entrasse e se sentasse. O clérigo estava ao telefone. Concluiu rapidamente o telefonema e concentrou toda a sua atenção em Michael. Passando de italiano para inglês, perguntou como é que Michael se tinha arranjado. Pelo seu olhar fixo, tornou-se aparente que estava intensamente interessado.

 

Bastante bem, tendo em conta... disse Michael, evasivo.

 

Tendo em conta o quê?

 

Tendo em conta o que tive de suportar triunfalmente, levou a mão ao bolso e tirou a caixa de prata gravada. Cuidadosamente, colocou-a em cima da secretária de Luigi antes de a empurrar na direcção do monsenhor. Recostou-se com um sorriso satisfeito no rosto magro.

 

As sobrancelhas de Luigi arquearam-se. Estendeu a mão, levantou cuidadosamente a tampa e segurou-a entre as palmas das mãos.

 

Estou surpreendido por eles terem concordado em devolvê-la disse ele. Pareciam duas pessoas muito ardentes.

 

O seu julgamento é mais exacto do que pensa disse Michael. Mas eles ainda não sabem que devolveram a amostra à igreja. E, para ser franco, eu não esperei para falar com eles.

 

Um ligeiro sorriso iluminou o rosto rechonchudo de Luigi.

 

Estou a pensar que talvez seja melhor não lhe perguntar como conseguiu recuperá-la.

 

É melhor não.

 

Bem, então é assim que vamos fazer. Pela minha parte, vou simplesmente devolver a amostra ao professor Ballarasi, e o assunto fica arrumado Luigi soltou o fecho e abriu a tampa da caixa. Depois, ficou parado a olhar para o interior vazio. Após alguns olhares rápidos para a frente e para trás entre Michael e a caixa, disse, Estou confuso. A amostra não está aqui!

 

Não! Não diga uma coisa dessas!Michael sentou-se muito direito.

 

Infelizmente, não posso deixar de o dizer respondeu Luigi. Virou a pequena caixa ao contrário e levantou-a para que Michael pudesse ver.

 

Oh, não! exclamou ele. Agarrou a cabeça com as duas mãos e afundou-se até os cotovelos pousarem nos joelhos. Não acredito!

 

Devem ter tirado a amostra.

 

Obviamente replicou Michael, enquanto expirava. Parecia deprimido.

 

Está perturbado.

 

Mais do que imagina.

 

Certamente, nem tudo está perdido. Talvez agora devesse abordar os americanos directamente e pedir-lhes que devolvam a amostra.

 

Michael esfregou o rosto com força e depois expirou. Olhou para Luigi.

 

Não me parece que seja uma alternativa, não depois do que eu fiz para obter a caixa vazia. E, mesmo que fosse falar com eles, a avaliação que fez das suas personalidades está muito provavelmente correcta. Recusariam. A minha intuição é que eles têm um plano específico para a amostra, e estão decididos a levá-lo até ao fim.

 

Sabe quando é que eles se vão embora?

 

Amanhã de manhã, no voo das sete e cinco da Air France. Vão para Londres, via Paris.

 

Bem, existe uma outra opção disse Luigi, juntando os dedos. Existe uma maneira segura de recuperarmos a amostra. Por acaso, estou relacionado do lado da família da minha mãe com um senhor chamado Cario Ricciardi, que é meu primo direito. Acontece que ele é o Superintendente Arqueológico de Piedmont, ou seja, o director regional do NPPA, que significa Núcleo de Protecção do Património Artístico e Arqueológico.

 

Nunca ouvi falar.

 

Não é surpreendente, uma vez que as actividades deles são essencialmente não oficiais, mas trata-se de um corpo especial dos carabinieri responsável pelo vasto tesouro dos monumentos e objectos históricos italianos, que certamente incluem o Sudário de Turim, apesar de a Santa Sé ser a sua proprietária de direito. Se eu telefonasse ao Cario, ele não teria qualquer problema em recuperar a amostra.

 

Que é que acha? Quero dizer, foi o senhor que deu a amostra aos americanos; eles não a roubaram. Na verdade, como a entregou num lugar público, provavelmente um advogado empreendedor até conseguiria arranjar uma testemunha.

 

Eu não sugeriria que a amostra foi roubada. Diria simplesmente que a amostra foi obtida sob falsos pretextos, o que é, aparentemente, o caso. Mas, mais importante, declararia que não foi dada autorização para que a amostra fosse levada para fora de Itália. Na verdade, acrescentaria que a transferência da amostra para fora do país tinha sido estritamente proibida, e no entanto, tive a informação de que os americanos estavam a planear fazê-lo amanhã de manhã.

 

E essa polícia arqueológica teria autoridade para confiscá-la.

 

Sem dúvida! São uma agência muito poderosa e independente. Para lhe dar um exemplo, há alguns anos o vosso então presidente Ronald Reagan pediu ao então presidente italiano se os recém descobertos bronzes retirados do mar ao largo de Reggio di Calábria, podiam ser levados para os Jogos Olímpicos de Los Angeles como ícones dos jogos. O presidente italiano concordou, mas o Superintendente Arqueológico disse que não e as estátuas ficaram em Itália.

 

Está bem, estou impressionado disse Michael. A agência tem uma divisão uniformizada?

 

Têm os seus ispettori, ou inspectores, que se vestem discretamente, mas quando é preciso actuar oficialmente usam carabinieri uniformizados ou agentes da Guardiã di Finanza. No aeroporto, seria talvez a Guardiã di Finanza, embora se estivessem a agir sob as ordens específicas de Cario, muito provavelmente, os carabinieri também participassem.

 

Se fizer o telefonema, que é que vai acontecer aos americanos?

 

Amanhã de manhã, quando fizerem o check in para o voo internacional, vão ser presos, levados para a cadeia e, eventualmente, julgados. Em Itália, acusações desta natureza são consideradas muito sérias. Mas eles não seriam julgados imediatamente. Esse tipo de casos avançam com lentidão. No entanto, a amostra ser-nos-á devolvida sem demora, e o problema ficará resolvido.

 

Faça o telefonema!disse Michael simplesmente. Estava desapontado, mas nem tudo estava perdido. Obviamente, não poderia ficar com os louros por resolver sozinho o problema da amostra do sudário. Por outro lado, ainda podia certificar-se de que o cardeal saberia que ele tinha sido um interveniente indispensável.


Um arroto satisfeito rugiu desde a boca do estômago de Daniel e emergiu entre as suas faces infladas. Uma mão apertou o rosto numa tentativa fraca de esconder o sorriso endiabrado.

 

Stephanie lançou-lhe um dos que considerava os seus olhares de desprezo. Nunca achava graça quando ele dava livre curso ao seu endiabrado lado juvenil.

 

Daniel riu-se.

 

Hei, acalma-te. Tivemos um jantar bestial e uma óptima garrafa de Barolo. Não vamos arruinar tudo!

 

Só vou acalmar depois de sair daquele quarto disse Stephanie. Acho que tenho o direito de estar enervada depois de alguém ter andado a pôr as patas nas minhas coisas.

 

Daniel colocou a chave na porta e empurrou-a. Stephanie atravessou a soleira e deixou os olhos vaguear. Daniel começou a passar por ela para o interior do quarto. Ela deteve-o com o braço.

 

Preciso de ir à casa de banho queixou-se Daniel.

 

Tivemos visitas!

 

Oh! como é que sabes? Stephanie apontou para a cómoda.

 

A caixa de prata desapareceu.

 

É verdade disse Daniel. Acho que estiveste certa desde o princípio.

 

É claro que estive certa respondeu Stephanie. Avançou e pôs a mão na cómoda onde a caixa de prata estivera, como se não acreditasse que tinha desaparecido. Mas tu também. Deviam andar à procura da amostra do sudário.

 

Bem, tenho de te dar os parabéns pela ideia de tirar a amostra e deixar a caixa.

 

Obrigada disse Stephanie. Mas primeiro vamos certificar-nos de que não pensaram apenas que a caixa era valiosa aproximou-se uma vez mais da mala e verificou novamente o estojo das jóias. Ainda estava tudo no lugar, incluindo o dinheiro.

 

Daniel fez o mesmo. As jóias, dinheiro e cheques de viagem estavam intactos. Endireitou-se.

 

Que queres fazer? perguntou ele.

 

Sair de Itália. Nem num milhão de anos pensei sentir-me assim. Stephanie deixou-se cair em cima da cama, com o casaco vestido, e olhou para o candelabro de vidro multicolorido.

 

Estou a referir-me a esta noite.

 

Queres sabes se devemos mudar de hotel ou de quarto?

 

Exactamente.

 

Vamos ficar aqui e usar a fechadura de segurança.

 

Estava com esperança de que dissesses isso disse Daniel, enquanto despia as calças. Segurou-as pelas pernas e endireitou-as para manter os vincos. Mal posso esperar para me meter na cama acrescentou, enquanto olhava para Stephanie, deitada de costas. Depois, dirigiu-se para o roupeiro e pendurou as calças. Apoiado na ombreira da porta, descalçou os sapatos.

 

Seria um esforço sobre-humano mudarmos, e eu estou de rastos disse Stephanie. Com grande esforço, levantou-se novamente e despiu o casaco. Para além disso, não sei se a pessoa que tem andado a perseguir-nos não conseguiria encontrar-nos onde quer que estivéssemos. Vamos sair deste quarto apenas quando estivermos prontos para sair do hotel; passou por Daniel e pendurou o casaco.

 

Por mim, tudo bem disse Daniel, a desabotoar a camisa. De manhã, até podemos sair do hotel sem tomar o pequeno-almoço. Em vez disso, podemos comer qualquer coisa numa daquelas cafetarias no aeroporto. Têm todas uma grande variedade de bolos. O porteiro disse que devíamos estar no aeroporto por volta das seis horas, o que significa que vamos ter de nos levantar bastante cedo, mesmo se não comermos antes de sair.

 

Excelente ideia disse Stephanie. Não fazes ideia de como estou ansiosa para chegar ao aeroporto, fazer o check in e entrar naquele avião.

 

 

4.45, terça-feira, 26 de Fevereiro de 2002

Apesar da forte fechadura de segurança na porta, Stephanie dormiu muito pouco. Cada barulho dentro do hotel ou na rua provocava uma pequena reacção de pânico, e havia imensos barulhos. Em determinada altura, pouco depois da meia-noite, quando hóspedes tinham aberto a porta de um quarto próximo e entrado, Stephanie sentara-se na cama, pronta para a batalha, certa de que as pessoas estavam a entrar no seu quarto. Tinha-se sentado tão rapidamente que puxara as roupas de cama de Daniel, cuja reacção foi puxá-las para si, zangado.

 

Por fim, depois das duas da manhã, Stephanie conseguiu adormecer. Mas não foi de maneira nenhuma um sono tranquilo, e foi um alívio quando Daniel lhe abanou o ombro para acordá-la, depois do que lhe pareceu um sono de quinze minutos.

 

Que horas são? perguntou ela, ensonada. Apoiou-se num cotovelo.

 

São cinco da manhã. Toca a levantar! Temos de estar num táxi daqui a meia hora.

 

«Toca a levantar» era uma frase que a mãe tinha usado para acordar Stephanie quando esta era adolescente, e como Stephanie era uma dorminhoca de primeira e detestava acordar, a frase irritara-a sempre. Daniel conhecia a história e usava a expressão deliberadamente para provocá-la, o que, é claro, era uma maneira eficaz de a acordar.

 

Estou acordada disse ela, irritada, quando ele voltou a abaná-la. Olhou para o seu torturador, mas ele limitou-se a sorrir antes de lhe despentear fugazmente os cabelos com a palma da mão. Aquele gesto era outra coisa que Stephanie achava irritante, mesmo quando tinha os cabelos despenteados, como era seguramente o caso naquele momento; era aviltante, e dissera isso mesmo a Daniel em diversas ocasiões. Fazia-a sentir que ele a considerava uma criança ou, pior ainda, um animal de estimação.

 

Stephanie observou Daniel a ir para a casa de banho. Deitou-se de costas e piscou os olhos por causa da luz. O candelabro de vidros multicoloridos estava aceso por cima dela. Lá fora, ainda estava escuro como breu. Respirou fundo. Parecia que a única coisa que queria fazer era voltar a dormir. Mas depois as teias de aranha da sua mente começaram a desaparecer, e ela pensou no quanto queria entrar no avião com as fibras do sudário e sair de Itália.

 

Estás acordada? gritou Daniel da casa de banho.

 

Já estou levantada! gritou Stephanie em resposta. Não teve qualquer remorso em mentir, não quando ele fora tão impiedoso a acordá-la. Espreguiçou-se, bocejou e sentou-se na cama. Depois de afastar uma curta sensação semelhante a náuseas, levantou-se.

 

Um duche operou maravilhas nos dois. Apesar de fingir o contrário, Daniel estava longe de se sentir desperto inicialmente e, quando o despertador tocou, teve quase tanta dificuldade para sair da cama como Stephanie. No entanto, quando saíram da casa de banho, estavam ambos muito animados a pensar que iam para o aeroporto. Vestiram-se e arrumaram as coisas com grande eficiência. Às cinco e um quarto, Daniel telefonou para a recepção para lhe chamarem um táxi e para mandarem alguém vir buscar as malas.

 

É difícil acreditar que ao fim da tarde já estaremos em Nassau disse Daniel, enquanto fechava e trancava a sua mala de viagem. O itinerário do dia era voar para Londres na Air France via Paris, fazer a ligação para a British Airways, depois seguir directamente para a Ilha de New Providence nas Bahamas.

 

O que tenho dificuldade em compreender é que vamos do Inverno para o Verão num único dia. Há séculos que não visto uns calções e um top de Verão. Estou ansiosa.

 

O paquete chegou e levou a bagagem para o átrio num carrinho, com instruções para a colocar no táxi. Enquanto Stephanie secava o cabelo, Daniel ficou à porta da casa de banho.

 

Acho que devíamos falar ao gerente sobre o intruso disse Stephanie por cima do barulho do secador de cabelo.

 

Que é que isso adiantaria?

 

Não muito, suponho, mas acho que eles gostariam de saber. Daniel olhou para o relógio.

 

Acho que nem vale a pena pensar nisso. Não temos tempo. São quase cinco e meia. Precisamos de ir para o aeroporto.

 

Por que é que não vais pagar a conta? sugeriu Stephanie. Eu desço dentro de dois minutos.

 

Nassau, cá vamos nós disse Daniel ao sair.

 

O toque insistente do telefone arrancou Michael das profundezas do sono. Antes de estar completamente acordado, já tinha o telefone encostado à orelha. Era o padre Peter Fleck, o outro secretário particular do cardeal

O’Rourke.

 

Está acordado?perguntou Peter. Desculpe telefonar-lhe a esta hora.

 

Que horas são? perguntou Michael. Procurou o interruptor do candeeiro da mesa-de-cabeceira, e depois tentou ver as horas no relógio.

 

Faltam vinte e cinco minutos para a meia-noite aqui em Nova Iorque. Que horas são aí em Itália?

 

São cinco e trinta e cinco da manhã.

 

Desculpe, mas quando me telefonou esta tarde disse que era imperativo falar com o cardeal o mais depressa possível, e Sua Eminência acabou de chegar à residência. Deixe-me passar-lhe o telefone.

 

Michael esfregou o rosto e bateu na face para acordar. Instantes depois, a voz suave do cardeal James O’Rourke ouviu-se ao ouvido de Michael. Também ele pediu desculpa por ligar a uma hora tão inconveniente e explicou que fora obrigado a permanecer num compromisso interminável com o governador, que começara ao fim da tarde.

 

Lamento ter de aumentar os seus problemas disse Michael, com alguma trepidação. Não se deixava enganar pela humilde graciosidade daquele homem poderoso. Por detrás da aparente benevolência, Michael estava plenamente consciente de como ele podia ser impiedoso, especialmente com um subordinado que fosse suficientemente tolo ou azarado para lhe desagradar. Ao mesmo tempo, podia ser extraordinariamente generoso com aqueles que lhe agradavam.

 

Está a insinuar que houve um problema em Turim? perguntou o cardeal.

 

Infelizmente, simdisse Michael. As duas pessoas que o senador mandou para recolher a amostra do sudário são cientistas biomoleculares.

 

Compreendo comentou James.

 

São o Dr. Daniel Lowell e a Dr.a Stephanie D’Agostino.

 

Compreendo repetiu James.

 

Devido às suas instruções continuou Michael, percebi que ficaria perturbado com este desenvolvimento devido às implicações com os testes não autorizados. A boa notícia é que, em conjunto com monsenhor Mansoni, consegui que a amostra seja devolvida à Igreja.

 

Ohdisse James simplesmente. Seguiu-se uma pausa desagradável. Não era de maneira nenhuma a reacção que Michael esperava. Neste ponto da conversa, contava com uma reacção inquestionavelmente positiva do cardeal.

 

Obviamente, o objectivo é evitar mais indignidades científicas para o sudário acrescentou Michael rapidamente. Sentiu um arrepio a subir-lhe pela coluna. A sua intuição estava a dizer-lhe que a conversa ia tomar um rumo inesperado.

 

Os doutores Lowell e D’Agostino concordaram em entregar a amostra voluntariamente?

 

Não exactamente admitiu Michael. A amostra será confiscada pelas autoridades italianas quando fizerem o check in de um voo para Paris esta manhã.

 

E que é que vai acontecer aos cientistas?

 

Creio que serão detidos.

 

É verdade que não tiveram de tocar no sudário propriamente dito para arranjar esta amostra, como o senador Butler sugeriu?

 

É verdade. A amostra era um pedaço minúsculo de um bocado que foi cortado do sudário há vários anos.

 

Foi entregue aos cientistas em estrita confidencialidade, sem documentação oficial?

 

Que eu saiba, sim declarou Michael. Eu deixei claro que esse era o seu desejo específico Michael começou a transpirar, certamente não tão copiosamente como enquanto estivera escondido no quarto do hotel no dia anterior, mas com um estímulo semelhante: medo. Sentia um nó de ansiedade a crescer no estômago e a retesar-lhe os músculos. O tom das perguntas do cardeal tinha uma dureza quase imperceptível que a maior parte das pessoas não teria detectado, mas que Michael ouviu e reconheceu imediatamente. Sabia que Sua Eminência estava a ficar cada vez mais zangado.

 

Padre Maloney! Para sua informação, o senador já apresentou a legislação prometida que limita a responsabilidade civil da caridade, e acredita agora que com o seu apoio tem maiores perspectivas de ser aprovada do que quando propôs a ideia na sexta-feira. Não preciso de lhe explicar o valor desta legislação para a Igreja. No que diz respeito à amostra do sudário, sem documentação oficial, mesmo que sejam efectuados alguns testes prejudiciais, os resultados não podem ser autenticados e poderão ser simplesmente repudiados.

 

Desculpe disse Michael, num tom pouco convincente. Pensei que Sua Eminência quereria a amostra de volta.

 

Padre Maloney, as suas instruções eram claras. Não foi mandado a Turim para pensar. Foi aí para descobrir quem recebia a amostra e segui-la, se necessário, para ver a quem era entregue. Não tinha nada que arquitectar a devolução da amostra e colocar desse modo em perigo um processo legislativo de extrema importância.

 

Não sei o que dizer disse Michael com dificuldade.

 

Não diga nada. Em vez disso, aconselho-o vivamente a reverter o que colocou em movimento, se não for já um facto consumado; isto é, claro, a menos que o seu objectivo imediato em termos de carreira seja o ser nomeado para uma pequena paróquia, algures nas Montanhas Catskill. Eu não quero que a amostra do sudário seja confiscada, e também não quero que os cientistas americanos sejam presos, que é um termo mais correcto para o que os aguarda do que o eufemismo que usou. Mais importante, não quero que o senador Butler me telefone a dizer que retirou o projecto de lei, pois creio que será a reacção dele se o que me descreveu ocorrer. Estou a ser claro, padre?

 

Perfeitamente claro gaguejou Michael. Deu por si a falar para o boneco. O cardeal desligara abruptamente.

 

Michael engoliu em seco com alguma dificuldade, enquanto pousava o auscultador. Ser mandado para uma pequena paróquia nos confins do estado de Nova Iorque era o equivalente da Igreja a ser mandado para a Sibéria.

 

Michael pegou imediatamente no auscultador do telefone. O avião dos cientistas americanos só partia depois das sete. Isso significava que talvez ainda conseguisse evitar um desastre para a sua carreira. Primeiro, telefonou para o Grand Belvedere e ficou a saber que os americanos já tinham saído. A seguir, tentou falar com monsenhor Mansoni, mas o prelado saíra da sua residência há meia hora para tratar de um assunto da Igreja no aeroporto.

 

Galvanizado com estas revelações, Michael correu para as roupas que estavam cuidadosamente dobradas numa cadeira ao lado da cama. Sem fazer a barba ou tomar duche, ou sequer ir à casa de banho, saiu do quarto a correr. Como não estava disposto a esperar pelo elevador, desceu as escadas. Minutos depois, ofegante, teve uma certa dificuldade para abrir o Fiat alugado com a respectiva chave. Depois de ligar o motor, fez marcha-atrás e saiu a grande velocidade do parque de estacionamento.

 

Arriscando um olhar ao relógio, calculou que poderia chegar ao aeroporto pouco depois das seis. O problema principal é que não fazia a menor ideia do que ia fazer depois de lá chegar.

 

Vais dar-lhe uma gorjeta generosa? perguntou Stephanie, provocadora, quando o táxi subiu a rampa que conduzia à zona de partidas do aeroporto de Turim. A fobia que Daniel sentia por táxis estava a começar a irritá-la, embora o motorista tivesse ignorado por completo os seus pedidos insistentes para que abrandasse. De cada vez que Daniel falava, o homem limitava-se a encolher os ombros e dizia, «Não inglês!». Ao mesmo tempo, não tinha ido mais depressa do que os outros carros na auto-estrada.

 

Ele vai ter sorte se eu lhe pagar a viagem! retorquiu Daniel.

 

O táxi parou no mar de outros táxis e carros que estavam a descarregar passageiros. Em contraste com o centro da cidade, no aeroporto já havia uma grande azáfama. Stephanie e Daniel saíram, juntamente com o motorista. Entre os três, tiraram toda a bagagem do pequeno táxi e empilharam-na no passeio. A resmungar, Daniel pagou ao homem e ele foi-se embora.

 

Como é que vamos fazer isto? perguntou Stephanie. Tinham mais malas do que os dois podiam razoavelmente carregar. Ela olhou para a área imediata.

 

Não me agrada a ideia de deixar as coisas sem vigilância disse Daniel.

 

Concordo. Que tal um de nós ir buscar um carrinho, enquanto o outro fica a tomar conta?

 

Parece-me boa ideia. Qual é a tua preferência?

 

Como tu tens os bilhetes e os passaportes, por que é que não pegas neles e preparas tudo enquanto eu vou procurar o carrinho?

 

Stephanie internou-se no meio da multidão, mantendo os olhos atentos a um carrinho, mas estavam todos a ser usados. Teve mais sorte no interior do terminal, especialmente depois de passar para lá dos balcões de check in para a zona de segurança. Os viajantes que passavam pela segurança para as portas de embarque tinham de deixar os carrinhos no terminal. Stephanie pegou num que estava abandonado e voltou para trás. Encontrou Daniel sentado em cima da mala maior, a bater o pé com impaciência.

 

Demoraste imenso queixou-se.

 

Desculpa, mas fiz o melhor que pude. Este sítio está cheio de gente. Deve haver diversos voos a sair quase ao mesmo tempo.

 

Juntos, carregaram todas as malas com excepção das malas dos computadores portáteis no carrinho e fizeram uma pilha bastante precária. Puseram os computadores portáteis ao ombro. Enquanto Daniel empurrava, Stephanie caminhou ao lado para evitar que a pilha de malas se desmoronasse.

 

Reparei que há muitos polícias por aquidisse Stephanie, enquanto entravam no terminal. Nunca tinha visto tantos. Claro que os carabinieri italianos dão nas vistas com os seus fatos espalhafatosos.

 

Pararam a cerca de seis metros da entrada do terminal. A multidão redemoinhava à volta deles como um rio de pessoas. Parados onde estavam, formavam uma pequena ilha.

 

Para onde é que vamos? perguntou Daniel. Algumas pessoas empurraram-no. Não vejo nenhum cartaz da Air France.

 

Os voos estão listados nos ecrãs de plasma ao lado de cada balcão de check in disse Stephanie. Espera aqui! Eu vou procurar o nosso voo.

 

Stephanie levou apenas alguns minutos a encontrar o balcão certo. Quando voltou para junto de Daniel, descobriu que ele se desviara para um canto para fugir do fluxo de pessoas que entravam. Stephanie apontou na direcção que tinham de seguir, e começaram a dirigir-se para lá.

 

Percebo o que queres dizer em relação à políciacomentou Daniel. Meia dúzia de polícias passaram por mim quando tu não estavas. O que me chamou a atenção foram as metralhadoras.

 

Há um grupo atrás do balcão onde temos de fazer o check in disse Stephanie.

 

Puseram-se atrás da fila bastante comprida para fazer o check in do voo de Paris. Cinco minutos arrastaram-se, enquanto a fila avançava a passo de caracol.

 

Que diabo estão eles a fazer lá à frente? perguntou Daniel. Pôs-se em bicos de pés para tentar ver o que estava a atrasar as coisas. Não consigo imaginar o que é que demora tanto. Será que a polícia está a atrasar o processo?

 

Desde que não fiquemos engarrafados ao passar pela segurança, acho que não vai haver problema. Stephanie olhou de relance para o relógio. Eram seis e vinte.

 

Como este balcão é apenas para o nosso voo, estamos todos no mesmo barco. Daniel ainda estava a olhar para a frente da fila.

 

Não tinha pensado nisso, mas tens razão.

 

Meu Deus! exclamou Daniel.

 

Que é que foi agora? a exclamação de Daniel e a sua mudança de tom fizeram Stephanie perceber até que ponto ainda estava tensa. Tentou seguir a linha de visão de Daniel, mas não conseguiu ver por cima das pessoas que estavam à sua frente.

 

Monsenhor Mansoni, o padre que nos deu a amostra do sudário, está lá à frente com a polícia, atrás do balcão de check in.

 

Tens a certeza? perguntou Stephanie. Parecia uma coincidência demasiado grande. Tentou ver novamente, mas não conseguiu.

 

Daniel encolheu os ombros. Olhou mais uma vez para o balcão antes de se concentrar em Stephanie.

 

Não há dúvida de que parece ele, e não posso imaginar que existam muitos padres tão obesos.

 

Achas que isto tem alguma coisa a ver connosco?

 

Não posso imaginar, embora a combinação da presença dele com o facto de alguém ter tentado levar a amostra do sudário do nosso quarto de hotel me deixe inquieto.

 

Não estou a gostar disto disse Stephanie. Não estou a gostar nada disto.

 

A fila à frente deles avançou. Daniel hesitou, inseguro do que fazer até o homem imediatamente atrás o empurrar para a frente com impaciência. Daniel empurrou o carrinho cheio de malas, mas ficou deliberadamente escondido atrás dele. Ele e Stephanie estavam agora a quatro pessoas da frente da fila. Stephanie deu alguns passos para o lado e olhou sub-repticiamente em frente. Voltou de imediato para junto de Daniel, atrás do carrinho.

 

De certeza que é o monsenhor Mansoni disse ela. Ela e Daniel olharam um para o outro.

 

Que diabo vamos fazer? perguntou Daniel, aflito.

 

Não sei. É a polícia que me incomoda, não o padre.

 

Obviamente retorquiu Daniel, zangado.

 

Onde está a amostra do sudário?

 

Já te disse. Na mala do meu computador portátil.

 

Hei, não me grites.

 

A fila avançou. Com o homem atrás deles a respirar em cima do pescoço de Daniel, ele sentiu-se obrigado a empurrar o carrinho para a frente. O aproximarem-se mais do balcão exacerbou a ansiedade dos dois.

 

Talvez não passe de um caso de imaginações demasiado férteis sugeriu Stephanie, esperançada.

 

É uma coincidência grande de mais para explicar como simples paranóia respondeu Daniel. Se fosse apenas o padre ou apenas a polícia seria uma coisa, mas com os dois naquele balcão em particular, é outra coisa completamente diferente. O problema é que vamos ter de tomar uma decisão. Quero dizer, não fazer nada é uma espécie de decisão, porque dentro de alguns minutos estaremos à frente deles, e o que vai acontecer acontecerá.

 

Neste ponto, que é que podemos fazer? Estamos presos no meio de uma multidão de pessoas e carregados com um camião de bagagem. No pior dos casos, entregamos a amostra, se é que é isso que eles querem.

 

Não haveria tantos polícias uniformizados se eles estivessem simplesmente a planear confiscar a amostra.

 

Desculpem-me disse uma voz ofegante e em pânico atrás deles, num inglês americano irrefutável.

 

Stephanie e Daniel estavam tão tensos que as suas cabeças dispararam para trás em uníssono e confrontaram o clérigo obviamente perturbado com olhos raivosos e insistentes. O peito do homem estava a subir e a descer, presumivelmente do esgotamento da corrida, enquanto gotas de suor lhe salpicavam a testa. A aumentar a aparência enlouquecida tinha um rosto por barbear e uma melena de cabelos ruivos despenteados, ambos em forte contraste com as roupas de padre razoavelmente direitas. Aparentemente, ele chegara até junto de Stephanie e de Daniel abrindo caminho à força pelas filas de check in, a avaliar pelas expressões de irritação dos viajantes das redondezas.

 

Dr. Lowell e Dr.a D’Agostino! disse o padre Michael Maloney, a transpirar. É imperativo que fale convosco.

 

Scusi! disse o homem atrás de Daniel, irritado. Gesticulou para Daniel se mover. A fila avançara e, embora estivesse a observar Michael, Daniel teve de se mexer.

 

Daniel fez sinal ao homem para passar à frente, o que ele fez de boa vontade.

 

Michael olhou rapidamente por cima do carrinho de bagagem de Daniel e Stephanie. Ao avistar o monsenhor e a polícia, baixou-se e espremeu-se ao lado de Daniel.

 

Só temos alguns segundos disse num sussurro forçado. Vocês não podem fazer o check in no voo para Paris!

 

Como é que sabe os nossos nomes? perguntou Daniel.

 

Não há tempo para explicações.

 

Quem é o senhor? perguntou Stephanie. Havia alguma coisa no homem que não lhe era estranha, mas não conseguia lembrar-se de onde é que o conhecia.

 

Não importa quem sou. O que é importante é que vocês estão prestes a ser presos, e a amostra do sudário será confiscada.

 

Já me lembro de si disse Stephanie. O senhor estava no café ontem, quando nos entregaram a amostra.

 

Por favor! implorou Michael.Têm de sair daqui. Eu tenho um carro. Vou levar-vos para fora da Itália.

 

De carro? perguntou Daniel, como se a sugestão fosse ridícula.

 

É a única maneira. Aviões, comboios e todos os transportes de massas estarão vigiados, mas especialmente os aviões e em particular este voo para Paris. Estou a falar a sério; vocês estão prestes a ser detidos e metidos numa prisão. Acreditem em mim!

 

Daniel e Stephanie trocaram olhares. Estavam ambos a pensar a mesma coisa: a chegada repentina e o aviso daquele padre perturbado era inacreditavelmente inesperada, o que conferia uma credibilidade poderosa ao que tinha sido uma mera suposição temida alguns segundos antes. Não iam fazer o check in para o voo de Paris.

 

Daniel começou a virar o carrinho das bagagens. Michael agarrou-lhe no braço.

 

Não há tempo para toda essa bagagem.

 

Que é que está a dizer? perguntou Daniel.

 

Michael esticou o pescoço para olhar fugazmente para o balcão a uns meros seis metros de distância. Instantaneamente, baixou a cabeça como uma tartaruga, encolhendo os ombros.

 

Raios! Agora fui visto, o que significa que estamos todos a segundos do desastre. A menos que estejam interessados em passar algum tempo na prisão, temos de nos despachar. Vocês têm de deixar a maior parte da bagagem! Têm de tomar uma decisão em relação ao que é mais importante: a vossa liberdade ou a vossa bagagem.

 

Estão ali todas as minhas roupas de Verão disse Stephanie. Estava aterrada com a ideia.

 

Signore! disse o homem atrás de Daniel, com irritação óbvia, enquanto gesticulava para que Daniel avançasse. Vá! Vá via! Várias pessoas atrás dele também reclamaram. A fila avançara novamente, e ao bloquear a parte de trás, Daniel e Stephanie estavam a provocar uma cena.

 

Onde está a amostra? perguntou Michael. E os vossos passaportes?

 

Estão na mala que trago ao ombro respondeu Daniel.

 

Ainda bem! disse Michael. Mantenham as malas, mas deixem o resto! Mais tarde, eu mando o consulado americano tratar das vossas coisas e enviá-las para onde vocês irão, depois de Londres. Venham! Apertou o braço de Daniel enquanto apontava para longe do balcão.

 

Daniel olhou por cima do carrinho carregado mesmo a tempo de ver monsenhor Mansoni a agarrar o braço de um polícia uniformizado e a apontar na direcção deles. Com pressa crescente, Daniel concentrou-se em Stephanie.

 

Acho melhor fazermos o que ele diz.

 

Está bem! Deixamos as malas replicou Stephanie com resignação, erguendo os braços.

 

Sigam-me! disse Michael. Foi à frente o mais depressa possível, e afastou-os do carrinho das bagagens. Viajantes na área imediata, que estavam apertados nas suas filas, separaram-se com relutância e lentamente. Enquanto repetia «scusi» vezes sem conta, Michael foi obrigado a empurrar pessoas para o lado e a tropeçar em bagagens de mão que estavam no chão. Daniel e Stephanie seguiram os passos dele como se Michael estivesse a abrir um trilho numa floresta de seres humanos. Era frustrantemente difícil avançar, e o esforço recordou a Stephanie um pesadelo que estava a ter quando Daniel a acordara à uma hora e meia atrás.

 

Gritos de alto vindos de detrás deles obrigaram-nos a maiores esforços. Depois de se libertarem das multidões que rodeavam os balcões de check in, o avanço foi muito mais fácil, mas Michael absteve-se de correr.

 

Irmos a correr para o terminal seria uma coisa explicou ele. Correr no sentido contrário vai dar imenso nas vistas. Andem rapidamente!

 

De repente, imediatamente à frente, apareceram dois polícias jovens, a aproximarem-se rapidamente deles com as metralhadoras em punho.

 

Oh, não! gemeu Daniel. Abrandou.

 

Continuem a andar! disse Michael por entre dentes cerrados. Atrás deles, havia agora uma comoção audível com gritos ininteligíveis.

 

Em rota de colisão, os dois grupos aproximaram-se rapidamente um do outro. Tanto Daniel como Stephanie tinham a certeza de que os polícias se aproximavam para os deter, e só no último momento é que se aperceberam de que não era verdade. Ambos suspiraram de alívio quando os polícias passaram por eles sem sequer os olharem, presumivelmente com pressa de chegar ao furor na área de check in.

 

Outros viajantes começaram a parar para olhar para os polícias, com diversos graus de medo estampados no rosto. Depois do 11 de Setembro, perturbações em aeroportos de todo o mundo, fosse qual fosse a causa, punham as pessoas com os nervos em franja.

 

O meu carro está no último piso das chegadas explicou Michael, enquanto se dirigia para as escadas. Não consegui deixá-lo no piso das partidas.

 

Desceram as escadas o mais rapidamente possível. Lá em baixo, o terminal estava relativamente deserto, uma vez que os voos ainda não tinham começado a chegar. As únicas pessoas visíveis eram uma mão cheia de funcionários do aeroporto a prepararem-se para a invasão de passageiros e bagagens, e funcionários das agências de aluguer de automóveis a preparar os seus quiosques.

 

Agora é ainda mais importante não nos apressarmos disse Michael em voz baixa. Algumas pessoas olharam para eles, mas apenas por instantes, antes de voltarem ao trabalho. Michael levou Stephanie e Daniel para as portas principais, que abriram automaticamente. Saíram rapidamente, mas depois Michael parou. Esticou os braços de lado e fez os outros pararem também.

 

Isto não parece nada bomgemeu Michael. Infelizmente, aquele é o meu carro alugado.

 

Cerca de cinquenta metros adiante, uma carrinha Fiat castanha com os piscas ligados estava estacionada junto ao passeio. Imediatamente atrás, via-se um carro da polícia, azul e branco, com a luz azul a piscar. As cabeças dos dois agentes estavam delineadas no banco da frente.

 

Que é que vamos fazer? perguntou Daniel, ansioso. Que tal alugarmos outro?

 

Não me parece que as agências de aluguer de automóveis já estejam abertas retorquiu Michael. E podia demorar demasiado tempo.

 

Que tal um táxi? sugeriu Stephanie. Temos de nos afastar deste aeroporto. Podíamos alugar um carro na cidade.

 

É uma ideia disse Michael. Olhou para a praça de táxis vazia. O problema é que só haverá táxis aqui quando o primeiro voo chegar, e não sei quando é que isso vai acontecer. Para apanharmos um táxi, teríamos de voltar lá para cima, e não me parece uma boa ideia. Acho que devemos correr o risco de levar o meu carro. Estes são Vigli Urbani, ou Polícia Municipal. Duvido que andem especificamente à nossa procura, pelo menos ainda não. Provavelmente, estão à espera de um reboque.

 

Que é que vai dizer?

 

Não sei bem admitiu Michael. Não há tempo para ser especialmente criativo. Só vou tentar tirar proveito do meu estatuto de padre respirou fundo para se fortalecer. Vá lá! Quando chegarmos ao carro, entrem. Eu encarrego-me da conversa.

 

Não gosto disto disse Stephanie.

 

Eu também não admitiu Michael. Empurrou-os para a frente. Mas acho que é a nossa melhor hipótese. Dentro de alguns minutos, todos os funcionários da segurança do aeroporto vão andar à nossa procura. Monsenhor Mansoni viu-me.

 

Vocês os dois conhecem-se? perguntou Stephanie.

 

Digamos que temos interesses comuns respondeu Michael. Não falaram mais e caminharam rapidamente e com determinação para o Fiat Ulysse. Michael deu a volta por detrás do carro da polícia para passar para o banco do motorista. Quando chegou ao Fiat, abriu-o com a chave e sentou-se atrás do volante como se nem sequer tivesse reparado no carro da polícia. Stephanie e Daniel chegaram ao banco do passageiro e entraram imediatamente para o banco de trás.

 

Padre! gritou um dos polícias. Saíra do carro quando avistara Michael a entrar no Fiat. O segundo polícia permaneceu no interior da viatura.

 

Michael ainda não fechara a porta do carro quando o polícia o chamou. Saiu novamente do carro e ficou de pé.

 

Daniel e Stephanie observavam do interior. O polícia aproximou-se de Michael. Usava um uniforme em dois tons de azul, com um cinto e um coldre branco. Era um indivíduo franzino que falava de uma forma rápida e marcada, como Michael. A conversa foi acompanhada por imensos gestos e culminou com o polícia a apontar em frente e depois a fazer movimentos largos com a mão. Nesse ponto, Michael entrou novamente no carro e ligou o motor. Instantes depois, o Fiat emergiu por baixo da rampa de partida e dirigiu-se para a saída do aeroporto.

 

Que é que aconteceu? perguntou Stephanie, nervosa. Espreitou pelo vidro de trás para se certificar de que eles não os seguiam

 

Felizmente, ele ficou ligeiramente intimidado por eu ser um padre.

 

Que é que lhe disse? perguntou Daniel.

 

Limitei-me a pedir desculpa e disse que era uma emergência. Depois perguntei onde era o hospital mais próximo, e aparentemente ele acreditou. Depois disso, a única coisa que fez foi dar-me indicações.

 

O senhor fala italiano fluentemente? perguntou Stephanie.

 

Não sou mau de todo. Andei no seminário em Roma

 

Logo que pôde, Michael saiu da avenida principal e seguiu por uma pequena estrada secundária. Passado algum tempo, estavam num ambiente rural.

 

Onde é que vamos? perguntou Daniel. Olhou pela janela com preocupação óbvia.

 

Vamos manter-nos longe das auto-estradas. disse Michael.

 

Será mais seguro. Para vos dizer a verdade, não sei até que ponto vos procurarão. Mas não quero correr o risco de passar pelas cabinas de portagem.

 

Quando teve oportunidade, Michael encostou na berma e travou o carro. Com o motor a trabalhar, saiu e desapareceu durante alguns minutos na escuridão dos arbustos. O sol ainda não nascera, mas já havia claridade.

 

Que é que se passa? perguntou Stephanie.

 

Não faço a menor ideia disse Daniel. Mas se tivesse de adivinhar, diria que ele está a aliviar-se.

 

Michael reapareceu e entrou novamente no carro.

 

Desculpem disse, sem mais explicações. Esticou-se e tirou diversos mapas do porta-luvas.

 

Vou precisar de um co-piloto disse ele. Algum de vocês tem jeito para ler mapas?

 

Daniel e Stephanie trocaram olhares.

 

Provavelmente, ela é melhor do que eu admitiu Daniel. Michael desdobrou um dos mapas. Olhou para Stephanie por cima do ombro.

 

Que tal vir para o banco da frente? E vou precisar realmente de ajuda até passarmos Cuneo.

 

Stephanie encolheu os ombros, saiu do banco de trás e sentou-se à frente.

 

Nós estamos aqui disse Michael, depois de acender a luz interior e a apontar para um local no mapa a nordeste de Turim. E vamos para aqui moveu o dedo para o fundo do mapa e mergulhou-o na costa do Mediterrâneo.

 

Nice, França? perguntou Stephanie.

 

Sim. É o maior aeroporto mais próximo, fora de Itália; se formos para sul, o que eu recomendo, uma vez que podemos viajar por estradas secundárias. Podíamos ir para norte, para Genebra, mas teríamos de recorrer a estradas principais, incluindo uma fronteira importante. Eu acho que o sul é mais seguro e, portanto, melhor. Estão ambos de acordo?

 

Daniel e Stephanie encolheram os ombros.

 

Acho que sim concordou Daniel.

 

Muito bem disse Michael. A rota é esta usou o dedo enquanto falava. Atravessaremos Turim a caminho de Cuneo. Dali, vamos para o Colle di Tenda. Depois de atravessarmos a fronteira, que não tem vigilância, estaremos em França, embora a estrada principal para sul volte a entrar em Itália. Em Menton, na costa, poderemos entrar na auto-estrada, que nos levará mais directamente para Nice. Essa secção será a parte mais rápida. Em termos de tempo, eu diria que a viagem demorará cinco ou seis horas, mas é apenas um palpite. É aceitável?

 

Daniel e Stephanie encolheram novamente os ombros depois de olharem de relance um para o outro. Estavam ambos tão confusos com os acontecimentos que quase não sabiam o que dizer. Era difícil até pensar, quanto mais falar.

 

Michael olhou de um para o outro.

 

Vou aceitar o silêncio como uma resposta afirmativa. Posso compreender o vosso espanto; foi uma manhã, no mínimo, inesperada. Por isso, primeiro vamos atravessar Turim. Com sorte, poderemos escapar ao pior do tráfego abriu o segundo mapa, que era de Turim e arredores. Mostrou a Stephanie onde estavam e para onde queriam ir. Ela acenou afirmativamente.

 

Não deve ser difícil declarou Michael. Uma coisa em que os italianos são bons é na sinalização. Primeiro, seguimos as placas de Centro Citta, e depois os sinais de estrada S-20 em direcção a sul. Está bem?

 

Stephanie voltou a acenar afirmativamente.

 

Vamos a isto! disse Michael. Instalou-se novamente atrás do volante e engrenou uma mudança.

 

A início o tráfego não estava mau, mas à medida que se foram aproximando da cidade piorou, e quanto mais piorava mais tempo demoravam e quanto mais tempo demoravam pior o tráfego ficava, numa profecia que se cumpria. Pouco antes de chegarem ao centro da cidade, o dia amanheceu claro e limpo num pálido céu azul. Seguiram em silêncio, com excepção de algumas indicações ocasionais de Stephanie, que seguia atentamente o progresso no mapa e apontava para as placas apropriadas. Daniel não proferiu uma única palavra. Pelo menos, estava satisfeito por Michael ser um condutor prudente e defensivo.

 

Eram quase nove horas da manhã quando se libertaram e se dirigiram para sul na S20, deixando para trás o tráfego de hora de ponta de Turim. Nessa altura, Stephanie e Daniel tiveram tempo para descontrair um pouco e organizar os pensamentos, que se centravam essencialmente no condutor e na bagagem abandonada.

 

Stephanie dobrou cuidadosamente os dois mapas e guardou-os no porta-luvas. Dali em diante, o caminho era claro. Olhou para o perfil de faces encovadas e nariz aquilino de Michael, para a barba por fazer e para a melena de cabelos ruivos despenteados.

 

Talvez seja uma boa altura para perguntarmos quem é disse ela.

 

Sou apenas um simples padre disse Michael. Sorriu sem vontade. Sabia que as perguntas viriam, mas não sabia ao certo quanto é que queria dizer.

 

Acho que merecemos saber mais disse Stephanie.

 

Chamo-me Michael Maloney. Actualmente, estou ligado ao arcebispo de Nova Iorque, mas por acaso estou aqui em Itália a tratar de um assunto relacionado com a Igreja.

 

Como é que sabia os nossos nomes? perguntou Daniel do banco de trás.

 

Tenho a certeza de que estão os dois intensamente curiosos disse Michael. E com bons motivos. Mas acontece que eu preferia não entrar em pormenores sobre a minha participação. Seria melhor para todos os envolvidos. Será possível aceitarem que eu consegui salvar-vos do grande inconveniente de serem presos sem me interrogarem? Estou a pedir-vos esse favor. Talvez pudessem atribuir a minha ajuda a uma simples intervenção divina, na qual eu fui apenas um servo do Senhor.

 

Stephanie disparou um olhar para Daniel antes de voltar a fitar Michael.

 

É interessante que tenha utilizado a expressão intervenção divina. É uma coincidência, já que ouvimos essa frase específica associada ao que nos trouxe a Itália, nomeadamente para levar a amostra do Sudário de Turim.

 

Oh? inquiriu Michael vagamente. Tentou pensar numa maneira de afastar a conversa de áreas sensíveis, mas não lhe ocorreu nada.

 

Por que é que íamos ser presos? perguntou Daniel. Isso não deve ter nada a ver com a sua participação.

 

Porque se soube que vocês são biocientistas. Foi uma surpresa inesperada e nada bem-vinda. Actualmente, a Igreja não quer mais testes científicos para verificar a autenticidade do sudário, e devido aos vossos antecedentes, há a preocupação legítima de que é o que pretendem fazer. No começo, a Igreja só queria a devolução da amostra do sudário, mas quando isso não pareceu exequível, quiseram confiscá-la.

 

Isso explica algumas coisas disse Stephanie. Excepto por que é que decidiu ajudar-nos. Está confiante de que não vamos testar a amostra?

 

Preferia não falar nisso. Por favor!

 

Como é que sabia que íamos para Londres se estávamos a fazer o check in num voo para Paris? Daniel sentou-se para a frente para ouvir. A voz de Michael não chegava ao banco de trás com nitidez.

 

Essa é uma pergunta à qual seria demasiado embaraçoso responder o rosto de Michael ruborizou-se quando recordou que estivera escondido atrás de um reposteiro no quarto do hotel. Imploro-vos. Podem esquecer o assunto? Aceitar o que eu fiz como um favor: simplesmente um amigo a ajudar um casal de compatriotas em apuros.

 

Seguiram em silêncio durante alguns quilómetros. Por fím, Stephanie falou.

 

Bem, obrigada pela sua ajuda. E, se quer saber, não estamos nada interessados em verificar a autenticidade do sudário.

 

Vou transmitir isso às autoridades competentes da Igreja. Tenho a certeza de que vão ficar aliviados ao saber.

 

E a nossa bagagem?perguntou Stephanie. Há alguma hipótese de nos ajudar a recuperá-la?

 

Terei o maior prazer em fazer todos os possíveis, e estou optimista de que serei bem sucedido, especialmente tendo a certeza de que não têm o menor interesse em testar o sudário. Se tudo correr bem, mandarei tudo para a vossa casa em Massachusetts.

 

Nós não vamos estar em casa durante um mês declarou Daniel.

 

Eu dou-vos o meu cartão disse Michael. Logo que tiverem uma morada, poderão dizer-me.

 

Nós já temos uma morada disse Daniel.

 

Eu tenho uma pergunta a fazer disse Stephanie. Doravante, seremos personae non grata em Itália?

 

Quanto ao problema da bagagem, estou confiante de que poderei, como se diz, resolver o vosso problema. Não terão qualquer problema se visitarem a Itália no futuro, se é essa a vossa preocupação.

 

Stephanie virou-se e olhou para Daniel.

 

Suponho que poderei viver sem saber os pormenores sórdidos. E tu?

 

Acho que sim respondeu Daniel. Mas gostaria de saber quem é que conseguiu entrar no nosso quarto de hotel.

 

Certamente não quero falar sobre isso respondeu Michael rapidamente, o que não quer dizer que saiba alguma coisa em especial.

 

Então, diga-me apenas isto: ele ou ela era um membro da Igreja, um profissional contratado ou um funcionário do hotel?

 

Não posso dizer declarou Michael. Lamento.

 

Depois de Daniel e Stephanie se resignarem com o facto de que Michael não ia falar sobre os porquês e os pormenores da sua providencial intervenção, e quando se tornou aparente que as autoridades italianas tinham sido evitadas quando o Fiat passou para França, relaxaram e apreciaram a viagem. O cenário revelou-se espectacular quando subiram para os Alpes cobertos de neve e passaram pela aldeia de esqui de Limone Piemonte.

 

Do lado francês do desfiladeiro, desceram a rochosa Garganta de Saorge numa estrada literalmente cortada nas paredes rochosas do desfiladeiro. Na cidade francesa de Sospel, pararam para almoçar. Quando chegaram ao aeroporto de Nice, pouco passava das duas da tarde.

 

Michael deu-lhes o seu cartão e anotou o endereço do Ocean Club em Nassau, onde Daniel fizera uma reserva. Apertou a mão a cada um deles, prometeu ver o que acontecera à bagagem no momento em que chegasse a Turim, e depois foi-se embora.

 

Daniel e Stephanie observaram o Fiat até a viatura desaparecer, antes de se virarem um para o outro.

 

Stephanie abanou a cabeça, espantada.

 

Que experiência tão esquisita! Daniel acenou afirmativamente.

 

Para dizer o mínimo.

 

Uma gargalhada rápida e nervosa escapou dos lábios de Stephanie.

 

Não é minha intenção ser cruel, mas não posso deixar de me lembrar como te gabaste ontem de manhã, sobre como tinha sido fácil obter a amostra do sudário e como pensavas que era o prenúncio das coisas futuras relacionadas com o tratamento de Butler. Queres retirar o que disseste?

 

Talvez tivesse sido um pouco precipitado admitiu Daniel. No entanto, as coisas acabaram bem. Vamos certamente perder um dia, ou talvez dois, mas acho que a partir daqui vai correr tudo bem.

 

Espero que sim disse Stephanie. Pôs a pasta ao ombro. Vamos entrar e ver as ligações para Londres. Vai ser o primeiro teste.

 

Dirigiram-se para o terminal e olharam para os horários dos voos exibidos num quadro electrónico gigantesco. Quase simultaneamente, os olhos de ambos detectaram um voo directo da British Airways para Londres às 15.30.

 

Percebes o que quero dizer? declarou Daniel, feliz. Dificilmente poderíamos ter uma surpresa mais agradável.

 

 

15.55, quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2002

Raios partam! gritou Daniel. Que diabo está a fazer? Vai matar-nos a todos!

 

Daniel estava tenso atrás do cinto de segurança, com a mão no banco da frente do táxi, que era um Cadillac preto antigo. Daniel e Stephanie tinham acabado de chegar à Ilha de New Providence nas Bahamas. O controlo de passaportes e a alfândega tinham sido uma mera formalidade, já que não tinham bagagem. As poucas roupas e artigos de higiene de Stephanie e Daniel tinham sido comprados nas trinta e seis horas que haviam sido obrigados a ficar em Londres e estavam cuidadosamente arrumados numa terceira mala de mão.

 

Foram as primeiras pessoas do seu voo a sair do terminal e apanharam o primeiro táxi da fila.

 

Meu Deus! gemeu Daniel quando o carro que vinha em sentido contrário, quase os abalroou pela direita. A sua cabeça rodou para observar o veículo afastar-se rapidamente.

 

Alarmado com o grito, o motorista de táxi olhou para os passageiros pelo retrovisor.

 

Hei, meu! Qual é o problema? perguntou, ansioso.

 

Daniel voltou-se para olhar para a frente, com medo de mais carros vindos em sentido contrário. O seu rosto estava lívido. O carro por que tinham passado era o primeiro que encontravam na estreita estrada de duas faixas. Como sempre, Daniel estivera a observar nervosamente pelo vidro da frente e vira o carro a aproximar-se. Daniel ficara progressivamente tenso à medida que o motorista, que vinha a monologar alegremente como se fosse um membro da câmara de comércio da ilha, começou a desviar para a esquerda. Daniel presumira que o motorista repararia no seu erro e se desviaria para a direita. Mas isso não aconteceu. No momento em que Daniel calculou que seria demasiado tarde para eles se desviarem para a direita e evitarem um acidente, tinha gritado, desesperado.

 

Acalma-te, Daniel! disse Stephanie suavemente. Pousou uma mão na coxa tensa dele. Está tudo bem. Obviamente, aqui em Nassau, conduz-se pela esquerda.

 

Por que diabo é que não me disseste? perguntou Daniel.

 

Eu não sabia, pelo menos, não antes de passarmos pelo carro que vinha em sentido contrário. Mas faz sentido. Durante séculos, foi uma colónia britânica.

 

Então, como é que o volante está do lado esquerdo, como os carros normais?

 

Stephanie percebeu que Daniel não estava com disposição para ser acalmado. Por isso, mudou de assunto.

 

Não consigo esquecer a cor do oceano quando sobrevoámos as Bahamas. Deve ser por ser pouco profundo. Nunca vi um azul tão claro nem um safira tão profundo.

 

Daniel limitou-se a resmungar. Estava preocupado com a aproximação de outro veículo. Stephanie concentrou-se no exterior e abriu o vidro da janela, apesar do ar condicionado do carro. Vinda do pico do Inverno, o ar suave e tropical e o carácter luxuriante da flora eram surpreendentes, especialmente as buganvílias de um escarlate brilhante e roxo luminoso que pareciam trepar por todas as paredes. As cidades minúsculas e os edifícios por que passavam pareciam recordar a Nova Inglaterra, com excepção das vibrantes tonalidades tropicais realçadas pelo impiedoso sol das Bahamas. As pessoas por quem passavam, cujo tom de pele variava desde o branco pálido até ao castanho mogno escuro, pareciam descontraídas. Mesmo ao longe, os seus sorrisos e gargalhadas eram aparentes. Stephanie pressentiu que era um lugar feliz, e esperou que fosse um sinal auspicioso do que ela e Daniel vinham fazer.

 

Quanto ao alojamento, Stephanie não fazia ideia do que esperar, uma vez que o assunto não fora mencionado. Daniel tratara de todos os pormenores antes da partida para Itália, enquanto ela cuidara da cultura de fibroblastos de Butler e visitara a família. No dia 22 de Março, dali a exactamente três semanas, sabiam onde estariam. Nessa altura, Ashley Butler chegaria, e ela e Daniel mudar-se-iam com ele para o enorme Hotel Atlantis para aproveitar as reservas que já tinham sido feitas. Stephanie abanou imperceptivelmente a cabeça ao pensar em tudo o que tinham de fazer antes de o senador chegar. Esperava que a sua cultura de tecidos estivesse a evoluir bem em Cambridge. Se não estivesse, não havia forma de conseguirem cumprir o prazo de três semanas para o implante.

 

Após meia hora de viagem, começaram a ver alguns dos hotéis à sua esquerda, onde o motorista disse ser Cable Beach. A maior parte das estruturas eram edifícios altos e, como tal, não especialmente convidativos para Stephanie. A seguir, encontrava-se a cidade de Nassau, que era muito mais agitada do que Stephanie imaginara, com uma profusão de automóveis, camiões, autocarros, motorizadas, lambretas e transeuntes. No entanto, apesar de toda a azáfama, dos bancos imponentemente elegantes e dos edifícios coloniais coloridos mas com aspecto oficial, havia a mesma sensação de felicidade geral que Stephanie notara anteriormente. Até o facto de estarem presas num engarrafamento era não só tolerado pelas pessoas que ela via como, aparentemente, apreciado.

 

O táxi levou-os por uma ponte alta e arqueada para Paradise Island, que o motorista disse ter-se chamado Hog Island na época colonial. Disse que Huntington Hartford, o homem que desenvolvera a ilha, sentira que o nome não era atractivo. Stephanie e Daniel concordaram. Do lado da ilha encostado à ponte, o motorista apontou para uma moderna rua de lojas à direita e para o gigantesco Atlantis à esquerda.

 

Há lojas de roupa naquela rua? perguntou Stephanie, e virou-se para olhar para trás. As lojas pareciam inesperadamente caras.

 

Sim, minha senhora. Mas são caras. Se procura roupa para usar na ilha, recomendo na Rua Bay, na cidade.

 

Após uma curta viagem para este, o táxi virou para norte e entrou numa avenida comprida e sinuosa com vegetação particularmente luxuriante e densa. À entrada, via-se um cartaz que proclamava: PRIVADO, OCEAN CLUB, APENAS PARA HÓSPEDES. O que impressionou especialmente Stephanie foi que o hotel propriamente dito não se via do táxi, a não ser quando deram a curva final.

 

Isto parece um paraíso comentou ela, quando o táxi parou à entrada e as portas foram abertas por porteiros com camisas brancas e bermudas.


Acho que é um dos melhores hotéis anunciou Daniel.

 

Tem toda a razão, meu disse o motorista.

 

A estância turística revelou-se ainda melhor do que Stephanie podia ter esperado. Era composta por edifícios baixos, de dois andares, espalhados ao longo de uma extensão côncava de praia e quase escondidos por árvores em flor. Daniel conseguira reservar uma suite no rés-do-chão, e a praia de areia branca ficava apenas a um passo, a seguir a um grande relvado. Depois de terem arrumado as poucas roupas e colocado os artigos de higiene na casa de banho de mármore, Daniel voltou-se para Stephanie:

 

São cinco e meia. Que achas que devemos fazer?

 

Nada de mais respondeu Stephanie. Para nós, é quase meia-noite pela hora europeia, e estou exausta.

 

Devíamos telefonar para a Clínica Wingate para lhes dizer que chegámos?

 

Suponho que não faria mal nenhum, embora não perceba bem qual é a vantagem uma vez que, sem dúvida, iremos lá de manhã. Provavelmente, seria mais útil se fosses à recepção e alugasses um carro. O mais importante para mim é telefonar a Peter para saber se ele está pronto para enviar amanhã alguns dos fibroblastos de Butler. Não podemos fazer grande coisa antes de os recebermos. E depois de falar com Peter, preciso de ligar para a minha mãe. Prometi-lhe que lhe daria o nosso número de telefone logo que estivéssemos instalados em Nassau.

 

Vou precisar de mais algumas roupas disse Daniel. Que tal fazermos o seguinte? Vou alugar um carro, tu fazes os teus telefonemas e depois vamos àquela rua de lojas perto da ponte, para ver se encontramos alguma loja de roupas decente.

 

Por que é que não alugas só o carro? A única coisa que me apetece é tomar um duche, comer alguma coisa e ir para a cama. Amanhã, teremos tempo para ir comprar roupas.

 

Suponho que tens razão admitiu Daniel. A minha ansiedade por ter chegado finalmente a Nassau deu-me ânimo, mas na verdade também estou estourado.

 

Logo que Daniel saiu do quarto, Stephanie sentou-se à secretária. Ficou surpreendida e satisfeita ao ver que tinha um sinal razoável no telemóvel. Tal como sugerira a Daniel, fez o primeiro telefonema para Peter e, como suspeitava, ele ainda estava no laboratório.

 

A cultura do John Smith está a evoluir bem disse Peter, em resposta
à pergunta de Stephanie. Já estou preparado para enviar uma alíquota criopreservada há vários dias. Estava à espera que me ligasses na terça-feira.

 

Atrasámo-nos por um pequeno problema inesperado disse Stephanie vagamente. Sorriu ao pensar como era uma simplificação, tendo em conta que tinham fugido de Itália de carro para evitar serem presos, deixando a bagagem para trás.

 

Posso enviá-la?

 

Absolutamente disse Stephanie. Manda-a com os reagentes habituais da RSTH e com a colecção de sondas genéticas dopaminérgicas e os factores de crescimento que eu deixei separados. E acabo de me lembrar de outra coisa. Inclui a estrutura com o promotor de hidroxilase de tirosina que utilizámos nas experiências recentes com os ratos.

 

Meu Deus! exclamou Peter. Que diabo estão vocês a tramar aí?

 

É preferível não explicar disse Stephanie. Quais são as probabilidades de conseguires enviar tudo esta noite?

 

Não vejo por que não. No pior dos casos, terei de ir até ao aeroporto, mas isso não é problema. Para onde é que queres que mande?

 

Stephanie pensou durante alguns instantes. O seu primeiro pensamento foi receber a amostra no hotel, mas depois achou que seria sensato limitar as viagens e guardá-la o mais depressa possível numa arca de nitrogénio líquido, que presumiu que a Clínica Wingate teria. Pediu a Peter que esperasse e usou o telefone interno para falar para a recepção e pedir a morada da Wingate na ilha. Era Estrada Windsor Field, 1200. Em seguida, transmitiu-a a Peter, juntamente com o número de telefone da clínica.

 

Vou enviar por correio expresso esta noite prometeu Peter. Quando é que voltam?

 

Eu diria dentro de um mês, talvez um pouco antes.

 

Boa sorte com o que quer que estão a fazer!

 

Obrigada. Vamos precisar.

 

Stephanie olhou para o oceano raiado de cor-de-rosa e prateado com a sua ondulação suave. Uma linha de cúmulos alinhava-se ao longo do horizonte. Cada uma dessas nuvens estava salpicada com um toque de rosa-púrpura intenso por causa do pôr do Sol, à esquerda. A porta envidraçada estava aberta, e uma brisa suave aromatizada com algumas flores exóticas acariciou-lhe o rosto. A paisagem e o ambiente eram luxuriantes e calmantes depois dos dias frenéticos de viagem e intriga.

 

Sentiu que estava a começar a descontrair num ambiente tão sereno, ajudada pela notícia de que a cultura de fibroblastos de Butler tinha evoluído. Desde que tinham partido em viagem que estava preocupada com a hipótese de se ter estragado. Agora, começou a aceitar a ideia de que, afinal, talvez o optimismo de Daniel em relação ao projecto Butler fosse razoável, apesar da sua intuição do contrário e apesar da confusão que ela e Daniel tinham vivido em Turim.

 

Depois de o sol se pôr, a noite caiu rapidamente. Ao longo da praia foram acesos archotes, que tremeluziam com a brisa. Stephanie pegou novamente no telemóvel e telefonou para o número da casa dos pais. Queria que a mãe soubesse o nome do hotel, o número do quarto e o número do telefone, para o caso de piorar. Quando o telefone começou a tocar, Stephanie deu por si a rezar para que o pai não atendesse. Era sempre muito estranho tentar ter uma conversa com ele. Ficou contente quando ouviu a voz suave da mãe.

 

Embora Tony não tivesse motivos para pensar que a teimosa irmã não cumpriria a ameaça de ir para as Bahamas enquanto a empresa se afundava, estava com esperança de que, depois do que lhe dissera, ela cancelasse a viagem e fizesse o que tinha de ser feito para inverter a situação. Mas não fora esse o caso, como o telefonema para a mãe acabara de confirmar. A cabra e o maldito namorado estavam em Nassau, instalados, em nada menos, do que numa suite de uma exclusiva estância turística de primeira linha, com vista para a praia. Era de bradar aos céus.

 

Tony abanou a cabeça ao pensar no descaramento dela. Desde que fora para Harvard que o olhava de nariz empinado de cada vez que ele se voltava para ela, coisa que ele tolerara uma vez que era a sua irmã mais nova. Mas agora fora longe de mais, especialmente tendo em conta o académico imbecil a quem estava ligada. Cem mil era muito dinheiro, independentemente de como se visse a coisa, e nem sequer estava a pensar na parte dos Castigliano. A situação não estava correcta, isso era mais do que certo, e no entanto ela era a sua irmã mais nova, por isso as coisas não eram tão claras como deviam ser.

 

O grande Cadillac pisou a gravilha e parou diante da loja de Artigos de Canalização Irmãos Castigliano. Tony desligou os faróis e parou o motor. Mas não saiu imediatamente do carro. Em vez disso, ficou sentado durante alguns momentos para se acalmar. Podia ter-se limitado a telefonar e transmitir a informação a Sal ou Louie. Mas, como se tratava da irmã, precisava de saber o que tinham em mente. Sabia que estavam tão lixados como ele, mas sem o problema de terem um membro da família envolvido. Estava-se nas tintas para o que iam fazer com o namorado. Raios, não se importaria de lhe dar uma lição pessoalmente. Mas a irmã era uma coisa completamente diferente. Se estivessem a pensar fazer-lhe mal, queria ser Tony a encarregar-se da coisa.

 

Tony abriu a porta e foi agredido pelo cheiro pútrido do pântano. Não conseguia compreender como é que alguém podia estar num lugar onde, de cada vez que o vento mudava de direcção, cheirava a ovos podres. Estava uma noite sem lua e Tony caminhou cuidadosamente. Não queria tropeçar num lavatório velho ou em qualquer outra peça de sucata.

 

Como já era tarde, a loja estava fechada, como evidenciava um cartaz na montra. Mas a porta não estava fechada à chave. Caetano estava atrás da caixa registadora, a fazer as contas do dia. Tinha uma ponta de lápis amarelo enfiado atrás de uma orelha surpreendentemente pequena, ainda mais reduzida pela cabeça grande.

 

O Sal e o Louie? perguntou Tony.

 

Caetano apontou para as traseiras com a cabeça sem interromper o que estava a fazer. Tony encontrou os gémeos atrás das suas secretárias. Depois de um forte aperto de mão e do habitual breve cumprimento a cada um deles, Tony sentou-se no sofá. Os gémeos olharam-no na expectativa. A única luz no aposento provinha de um pequeno candeeiro em cada secretária, que realçava os rostos cadavéricos dos gémeos. Da perspectiva de Tony, as órbitas dos olhos eram meros buracos negros.

 

Bem, eles estão em Nassau começou Tony. Eu esperava poder vir aqui dizer-vos o contrário, mas não é esse o caso. Eles acabaram de chegar a uma estância toda finória chamada Ocean Club. Estão na suite

108. Até tenho o número do telefone.

 

Tony inclinou-se para a frente e pousou um pequeno pedaço de papel em cima da secretária de Louie, que estava mais próxima do sofá do que a de Sal.

 

A porta abriu-se e a cabeça de Caetano espreitou.

 

Querem-me aqui ou não?

 

Sim disse Louie, enquanto pegava no papel com o número de telefone e o olhava de relance.

 

Caetano entrou no aposento e fechou a porta. Alguma mudança nas perspectivas da empresa? perguntou Sal.

 

Que eu saiba, não disse Tony. Se houvesse, o meu contabilista ter-me-ia informado.

 

Parece que este filho da mãe está a passar-nos a perna disse Louie. Riu-se sem alegria. Nassau! Ainda nem acredito. Até parece que está a pedir-nos para darmos cabo dele.

 

É o que vão fazer? perguntou Tony. Louie olhou para o irmão gémeo.

 

Queremos que ele volte para cá e salve a empresa e o nosso investimento. Estou certo, irmão?

 

Completamente certo disse Sal. Temos de lhe dizer quem está envolvido e realçar que queremos o nosso dinheiro de volta, dê por onde der. Não só ele tem de voltar para cá, como tem de ter uma ideia clara de quais serão as consequências se nos ignorar ou pensar que pode esconder-se por detrás de um processo de falência ou qualquer outro esquema legal. Ele precisa de uma lição a sério!

 

E a minha irmã?perguntou Tony. Ela não está isenta de culpas nesta trapalhada, mas se quiserem dar-lhe uma lição quero ser eu a tratar disso pessoalmente.

 

Não há problema disse Louie. Atirou o papel com o número de telefone para cima da secretária. Como eu disse no domingo, o nosso problema não é com ela.

 

Estás pronto para ir para Nassau, Caetano? perguntou Sal.

 

Posso partir logo de manhã respondeu ele. Mas que é que devo fazer depois de transmitir a mensagem? Devo ficar por lá? Quero dizer, e se ele não perceber?

 

Acho bom que te certifiques de que ele percebe o que queremos dizer-lhe disse Sal. Não quero que fiques com a impressão errada de que são uma espécie de férias pagas. Para além do mais, precisamos de ti aqui. Depois de lhe dares o recado, voltas para Boston.

 

Caetano tem uma certa razão disse Tony. Que é que vão fazer se o cretino ignorar a mensagem?

 

Sal olhou para o irmão. Aparentemente, houve uma reunião imediata de mentes enquanto cada um acenava. Sal olhou de novo para Tony.

 

Se este palhaço não estivesse por cá a tua irmã conseguiria dirigir a empresa?

 

Tony encolheu os ombros.

 

Como é que querem que eu saiba?

 

Ela é tua irmã disse Sal. Não tem um curso superior?

 

Tem uma licenciatura de Harvard disse Tony. Grande coisa! A única coisa que fez foi com que fosse impossível lidar com ela, pois acha-se muito importante e poderosa. Tanto quanto sei, só significa que sabe imensas coisas sobre germes e genes e todas essas tretas, mas não sei se sabe alguma coisa sobre a administração de uma empresa.

 

Bem, o cretino também é licenciado disse Louie. Por isso parece-me que a empresa não estaria muito pior se fosse a tua irmã a gerir as coisas. E se fosse ela, teríamos muito mais influência em tudo.

 

Então, que é que estás a dizer? perguntou Tony.

 

Hei, não estou a falar inglês? perguntou Louie.

 

Claro que estás a falar inglês afirmou Sal.

 

Escuta disse Louie. Se o presidente da empresa não perceber a mensagem, que eu penso que o Caetano vai transmitir de uma forma muito clara, então damos cabo dele. Simples como isso, e fim da história para ele. No mínimo, isso deve transmitir uma mensagem muito específica à tua irmã de que é melhor portar-se como deve ser.

 

Tens razão disse Tony.

 

Concordas, Caetano? perguntou Sal.

 

Sim, claro replicou Caetano. Mas estou confuso. Querem ou não querem que eu fique lá até termos a certeza de que a resposta dele vai de encontro ao que queremos?

 

Pela última vez disse Sal, ameaçador. Tens de transmitir a mensagem e voltar para cá. Se correr bem e se o horário dos aviões for favorável, talvez consigas fazer o serviço num dia. Se não, dormes lá. Mas queremos que voltes o mais depressa possível, porque há muitas coisas a acontecer aqui. Se tivermos de o apagar, voltas lá. Percebido?

 

Caetano acenou afirmativamente, mas estava desapontado. Quando lhe tinham sugerido aquele trabalho na semana anterior, pensara que passaria uma semana ao sol.

 

Tenho uma sugestão disse Tony. Uma vez que não podemos excluir o facto do Caetano ter de voltar, então acho que ele não devia fazer o que tem de fazer no hotel deles. Se o professor não quiser colaborar, não queremos que fuja, coisa que poderá fazer se pensar que o hotel não é seguro. Nas Bahamas, existem literalmente centenas de ilhas.

 

Tens razão disse Sal. Não queremos que ele desapareça, não com o nosso dinheiro em risco.

 

Então, talvez eu devesse ficar lá para vigiá-lo sugeriu Caetano, esperançado.

 

Que mais tenho de te dizer, seu atrasado mental? disse Sal bruscamente, enquanto olhava com raiva para Caetano. Pela última vez, não vais para o sul de férias. Vais fazer o que tens a fazer e voltas para cá. Este problema com o professor não é o único que temos.

 

Está bem, está bem! disse Caetano, fazendo um movimento de rendição. Não vou dar uma lição ao tipo no hotel. Vou usar o hotel apenas para o detectar, o que quer dizer que vou precisar de algumas fotografias.

 

Pensei nisso disse Tony. Levou a mão ao bolso do casaco e tirou diversas fotografias.Estas foram tiradas aos pombinhos no último Natal entregou-as a Caetano, que ainda estava parado à porta.

 

Caetano olhou para as fotografias.

 

Estão boas? perguntou Louie.

 

Não estão nada más respondeu Caetano. Depois, a olhar para Tony, acrescentou, Não posso deixar de dizer que a tua irmã é uma brasa.

 

Sim, mas podes esquecer isso disse Tony. Ela não é para os teus dentes.

 

É uma pena disse Caetano com um sorriso torcido.

 

Mais uma coisa disse Tony. Com todo este disparate da segurança nos aeroportos, acho que não é aconselhável levar uma arma na mala. Se Caetano precisar de uma, seria melhor tratar das coisas para receber uma na ilha através de contactos em Miami. Vocês têm contactos em Miami, não têm?

 

Claro disse Sal, Também é uma boa ideia. Mais alguma coisa?

 

Acho que é tudo disse Tony. Apagou o cigarro e levantou-se.

 

 

9.15, quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2002

Tinha sido uma manhã comprida, encantadora e rejuvenescedora. Com os ciclos de sono completamente trocados devido à breve viagem à Europa, Stephanie e Daniel tinham acordado muito antes de o sol aparecer no horizonte. Incapazes de voltar a adormecer, levantaram-se, tomaram duche e foram dar um passeio pelo recinto do hotel e ao longo da praia deserta. O dia nasceu sem nuvens e tropical. De novo no hotel, foram os primeiros hóspedes a tomar o pequeno-almoço e ficaram sentados à mesa a beber café enquanto estabeleciam o plano para criar as células de tratamento de Butler. Com apenas três semanas até à chegada do senador, sabiam que estavam bastante limitados no tempo, e mal podiam esperar para começar, embora reconhecessem que podiam fazer muito pouco antes de a encomenda de Peter chegar. Às oito horas, telefonaram para a Clínica Wingate para dizer à recepcionista que se encontravam em Nassau e chegariam à clínica cerca das nove e quinze. Ela disse que informaria os directores.

 

Esta parte ocidental da ilha é diferente da parte oriental observou Daniel, enquanto seguiam pela Estrada Windsor Field. É muito mais plana.

 

E também muito menos desenvolvida e muito mais seca comentou Stephanie. Estavam a passar por extensões compridas e baixas de pinhais semi-áridos, infiltrados com palmetos. O céu era de um azul profundo, salpicado com algumas nuvens brancas.

 

Daniel insistira em conduzir e Stephanie não se importou até ele ter sugerido que talvez ela tivesse mais dificuldade do que ele em guiar pela esquerda. A sua reacção inicial foi desafiar o que lhe pareceu uma afirmação injusta e chauvinista, mas depois esqueceu o assunto. Não valia a pena discutir por causa daquilo. Em vez disso, sentou-se no banco do passageiro e contentou-se em abrir o mapa. Tal como quando tinham fugido de Itália, era a navegadora.

 

Daniel conduzia devagar, o que era óptimo para Stephanie, tendo em conta o reflexo de encostar à direita nas curvas e nas rotundas. Seguiram ao longo da costa norte da ilha, reparando uma vez mais nos hotéis altos alinhados como soldados em sentido ao longo de Cable Beach. Depois de passarem por uma série de grutas de pedra calcária esculpidas por mares pré-históricos, viraram para o interior da ilha. No cruzamento seguinte da Estrada Windsor Field viraram à direita e avistaram o aeroporto ao longe.

 

Continuaram para oeste e não tiveram qualquer dificuldade em encontrar o desvio para a Clínica Wingate. Era do lado esquerdo da estrada e estava assinalado com uma placa enorme.

 

Stephanie inclinou-se para a frente, para observar melhor pelo vidro da frente enquanto se aproximavam.

 

Santo Deus! Estás a ver a placa?

 

Seria difícil não ver. É do tamanho de um cartaz de cinema. Daniel virou para a alameda recém pavimentada e ladeada por árvores.

 

Eles devem ter um terreno enorme disse Stephanie. Recostou-se para trás. Não consigo ver o edifício.

 

Depois de várias curvas sob uma copa densa de plantas de folha persistente, a alameda sinuosa ficou abruptamente bloqueada por um portão. Uma vedação encimada por arame-farpado desaparecia no pinhal, nas duas direcções. Do lado de Stephanie, havia uma pequena cabina. Um guarda uniformizado, com uma pistola num coldre e um chapéu com viseira ao estilo militar e óculos de sol de aviador, saiu. Trazia um bloco na mão. Daniel parou enquanto Stephanie baixava o vidro.

 

O guarda inclinou-se para olhar para Daniel.

 

Posso ajudá-lo, senhor? A sua voz era definitivamente profissional e desprovida de emoção.

 

Dr.a D’Agostino e Dr. Lowell disse Stephanie. Viemos encontrar-nos com o Dr. Wingate.

 

O guarda verificou a folha e depois tocou na aba do chapéu antes de voltar para a cabina. Momentos depois, o portão abriu-se. Daniel acelerou e entrou.

 

Só dois minutos depois é que viram a clínica. Aninhada no meio de arbustos e árvores floridos e cuidadosamente plantados, via-se um complexo pós-moderno de dois andares em forma de U. Era composto por três edifícios distintos, ligados por corredores com arcadas cobertas. Cada edifício estava forrado com pedra calcária branca e telhado de telhas brancas, e os frontões das fachadas principais estavam forrados com acrotérios bonitos e com temas de conchas, fazendo lembrar um templo grego antigo. Havia entrançados espalhados entre as janelas de vidraças ao longo das partes laterais de cada estrutura. Na base de cada gelosia, buganvílias novas e profusamente coloridas começavam a trepar em direcção ao céu.

 

Santo Deus exclamou Stephanie. Eu não estava preparada para isto. É lindo. Parece mais uma estância turística do que uma clínica de tratamento de fertilização.

 

A alameda conduzia a uma zona de estacionamento diante de um edifício central, cuja entrada era adornada por um pórtico com colunas. As colunas eram largas, com curvas exageradas e encimadas por simples capitéis dóricos.

 

Espero que tenham poupado algum dinheiro para o equipamento de laboratório comentou Daniel. Estacionou o Mercury Marquis alugado no meio de vários BMW descapotáveis novos. Mais ao longe, viam-se duas limusinas com os respectivos motoristas fardados a fumar e a conversar encostados à parte da frente dos veículos.

 

Daniel e Stephanie saíram do carro e pararam para contemplar o complexo, que era arrebatador à luz do sol forte das Bahamas.

 

Já tinha ouvido dizer que o tratamento da fertilização era lucrativo

 

comentou Daniel, mas nunca me passou pela cabeça que fosse tão lucrativo.

 

Eu também não fazia a menor ideia disse Stephanie. Mas não posso deixar de perguntar a mim mesma, quanto disto resulta de terem conseguido receber o dinheiro do seguro depois da fuga de Massachusetts

 

abanou a cabeça. Independentemente de onde veio o dinheiro, com o custo dos cuidados de saúde, a opulência e a medicina não são bons companheiros de cama. Há algo errado nesta imagem, e as minhas reservas em relação a envolvermo-nos com estas pessoas estão a voltar em grande.

 

Não vamos dar livre curso aos nossos preconceitos e rectidão avisou Daniel. Não estamos aqui numa cruzada social. Estamos aqui para tratar Butler e nada mais.

 

A grande porta principal de bronze abriu-se e apareceu um homem alto, de cabelos grisalhos e profundamente bronzeado. Usava uma bata de médico comprida. Acenou e disse «Bem-vindos!», num tom de voz estridente e melodioso.

 

Pelo menos, estamos a receber saudações personalizadas disse Daniel. Vamos! E guarda as tuas opiniões para ti.

 

Daniel e Stephanie encontraram-se à frente do carro e começaram a dirigir-se para a entrada.

 

Espero que não seja o Spencer Wingate sussurrou Stephanie.

 

Por que não? sussurrou Daniel por sua vez.

 

Porque é suficientemente bonito para ser médico de telenovelas.

 

Oh, tinha-me esquecido! Querias que ele fosse baixo, gordo e que tivesse uma verruga no nariz.

 

Precisamente.

 

Bem, ainda podes esperar que ele seja um fumador inveterado e que tenha mau hálito.

 

Oh, cala-te!

 

Daniel e Stephanie subiram os três degraus para o pórtico. Quando se aproximaram, Spencer estendeu a mão enquanto mantinha a porta aberta com o pé. Apresentou-se com um grande floreado de sorrisos e apertos de mão. Depois, fez-lhes um sinal exagerado para que entrassem à sua frente no edifício.

 

Em harmonia com o exterior, o interior tinha um ambiente clássico simples, com pilastras lisas, ornamentos salientes e colunas dóricas. O chão era de pedra calcária polida, suavizado por alguns tapetes orientais. As paredes estavam pintadas num tom de lavanda muito leve, que à primeira vista parecia cinzento-pálido. Até o mobiliário de madeira maciça envernizada tinha uma aura clássica, com forros de couro verde-escuro. Um leve cheiro a tinta fresca permeava o ar condicionado, recordando a construção recente da clínica. Para Daniel e Stephanie, a frescura seca representou um contraste bem-vindo com o exterior de calor tropical húmido, que aumentara gradualmente desde o nascer do Sol.

 

Esta é a nossa sala de espera principal disse Spencer, enquanto apontava para a grande sala. Dois casais já com alguma idade e bem vestidos estavam sentados em sofás separados. Nervosos, folheavam revistas e ergueram os olhos por breves instantes. A única outra ocupante era uma recepcionista com as unhas pintadas de cor-de-rosa claro e que dominava uma secretária em semicírculo junto à porta.

 

Este edifício é o local de entrada inicial dos novos pacientes explicou Spencer. Também alberga os gabinetes da administração. Orgulhamo-nos muito da clínica, e estamos ansiosos para mostrar-vos todo o complexo, embora suspeitemos que estão essencialmente interessados nos nossos laboratórios.

 

E na sala de operações disse Daniel.

 

Sim, claro, na sala de operações. Mas, antes de mais, venham ao meu gabinete para tomarmos um café e conhecerem os outros.

 

Spencer foi à frente para um elevador espaçoso, embora só fossem subir um andar. Durante a curta subida, Spencer, como um anfitrião preocupado, perguntou se o voo fora agradável. Stephanie garantiu-lhe que fora óptimo. No segundo piso, passaram por uma secretária que interrompeu o trabalho para sorrir alegremente.

 

O vasto gabinete de Spencer situava-se no canto norte do edifício. Via-se o aeroporto a este e uma linha azul de oceano a norte.

 

Sirvam-se disse Spencer, indicando um serviço de café disposto numa mesa baixa de mármore diante de um sofá com o formato de um L. Eu vou chamar os dois chefes de departamento.

 

Por instantes, Daniel e Stephanie ficaram sozinhos.

 

Parece o gabinete de um administrador executivo de uma empresa da Fortune 500disse Stephanie. Não posso deixar de dizer que acho toda esta opulência obscena.

 

Vamos deixar os julgamentos de valores para depois de vermos o laboratório.

 

Achas que aqueles dois casais que estavam lá em baixo a ler revistas são pacientes?

 

Não faço a menor ideia, nem me interessa.

 

Pareciam um pouco velhos de mais para tratamento de fertilização.

 

Não nos diz respeito.

 

Achas que a Clínica Wingate está a engravidar mulheres idosas como aquele especialista de tratamento de fertilização, completamente doido em Itália?

 

Daniel lançou um olhar exasperado e irritado a Stephanie, quando Spencer reapareceu. O fundador da clínica era seguido por um homem e uma mulher, ambos vestidos com batas de médico brancas e muito bem passadas a ferro. Primeiro, apresentou Paul Saunders, que era baixo e atarracado, e cuja silhueta larga lembrou a Stephanie as colunas que suportavam o pórtico de entrada do edifício. Em consonância com o corpo, o rosto de Paul era redondo, com pele balofa, pastosa e pálida, tudo em profundo contraste com a forma alta e elegante e com as feições marcadamente angulosas e compleição bronzeada de Spencer. Uma melena de cabelos escuros e rebeldes com uma madeixa completamente branca completavam a imagem excêntrica de Paul e acentuavam a sua palidez.

 

Enquanto apertava vigorosamente a mão a Daniel, Paul sorriu abertamente, revelando dentes quadrados, muito espaçados e amarelados.

 

Bem-vindos a Wingate, doutores disse ele. Temos muita honra em receber-vos aqui. Não fazem ideia de como estou empolgado com a nossa colaboração.

 

Stephanie sorriu debilmente quando ele se aproximou e lhe apertou a mão. Estava embasbacada com os olhos do homem. Devido ao nariz achatado, os olhos pareciam mais próximos do que era normal. Para além do mais, nunca vira uma pessoa com duas íris de cores diferentes.

 

Paul é o nosso investigador chefe anunciou Spencer dando uma palmada nas costas de Paul. Ele está ansioso para vos ter no seu laboratório e ansioso para poder ser útil e aprender algumas coisas, devo acrescentar Spencer passou então um braço sobre os ombros da mulher, que era quase tão alta como ele. E esta é a Dr.a Sheila Donaldson, a directora dos serviços clínicos. Ela vai tratar de tudo para que possam usar uma das nossas duas salas de operações, bem como as nossas instalações de internamento, que presumo que irão aproveitar.

 

Não sabia que tinham condições para internamento disse Daniel.

 

Somos uma clínica com todos os serviços incluídos declarou Spencer com orgulho. Embora para cuidados de internamento prolongados, para os quais não estamos vocacionados, enviemos os pacientes para o Doctor’s Hospital na cidade. A nossa unidade de internamento é limitada e mais adequada para um internamento ocasional de um dia, que serve admiravelmente as nossas necessidades.

 

Stephanie desviou a atenção de Paul Saunders e olhou para Sheila Donaldson. Tinha um rosto estreito emoldurado por cabelos castanhos lisos. Em comparação com os homens exuberantes, parecia deslocada, quase tímida. Stephanie teve a impressão de que a mulher sentia relutância em olhá-la nos olhos quando apertaram as mãos.

 

Não querem café, amigos? perguntou Spencer. Stephanie e Daniel abanaram a cabeça.

 

Acho que já bebemos a nossa dose de café explicou Daniel. Ainda estamos no horário europeu, e estamos acordados desde o amanhecer.

 

Europa? perguntou Paul, entusiasmado. A vossa viagem à Europa teve alguma coisa a ver com o Sudário de Turim?

 

Na verdade, sim respondeu Daniel.

 

Espero que tenha sido uma viagem bem sucedida disse Paul, com um piscar de olhos conspirador.

 

Cansativa, mas um sucesso respondeu Daniel. Nós... fez uma pausa, como se estivesse a tentar decidir o que queria dizer.

 

Stephanie conteve a respiração. Esperava que Daniel não descrevesse a experiência que tinham tido em Turim. Queria muito manter alguma distância destas pessoas. Se Daniel partilhasse a odisseia recente tornar-se-ia demasiado íntimo e atravessaria uma fronteira que ela não queria atravessar.

 

Conseguimos obter uma amostra do sudário com uma mancha de sangue disse Daniel. Na verdade, tenho-a comigo neste momento. Agora, gostava de a colocar numa solução salina para estabilizar os fragmentos de ADN, e gostava de fazer isso o mais depressa possível.

 

Parece-me bem disse Paul. Vamos directamente para o laboratório.

 

Não há nenhum motivo para que a volta de reconhecimento não comece por lá declarou Spencer, agradavelmente.

 

Com uma sensação de alívio por ter sido mantida uma distância pessoal adequada, Stephanie expirou e relaxou um pouco enquanto o grupo saía do gabinete de Spencer.

 

Junto ao elevador, Sheila pediu licença dizendo que tinha doentes marcados, e queria ter a certeza de que corria tudo bem. Depois, afastou-se do grupo e dirigiu-se para as escadas.

 

O laboratório localizava-se no lado esquerdo do edifício central, ao fundo de um dos corredores cobertos, graciosamente curvos.

 

Planeámos a clínica como edifícios separados para nos obrigar a sair, mesmo que estejamos sempre a trabalhar explicou Paul. É bom para a alma.

 

Eu saio um pouco mais do que o Paul acrescentou Spencer, com uma gargalhada. Como se pode ver pelo meu bronze. Não sou tão viciado em trabalho como ele.

 

Todo este edifício é laboratório? perguntou Daniel, quando atravessou a soleira da porta mantida aberta por Spencer.

 

Não inteiramente explicou Paul, enquanto seguia à frente e parava junto de uma estante de jornais e revistas, onde se curvou para pegar numa revista de capa brilhante no cimo de uma pilha. O grupo entrara numa sala que parecia a combinação de uma sala de estar com uma biblioteca. As paredes estavam forradas com estantes. Esta é a nossa sala da revistas, e tenho aqui um exemplar do último número da Revista de Tecnologia Reprodutiva do Século Vinte e Um para vos oferecer entregou, orgulhosamente, a publicação a Daniel. Há alguns artigos que deverá achar interessantes.

 

É muito simpático da sua parte conseguiu Daniel dizer. Observou o conteúdo impresso na capa antes de a entregar a Stephanie.

 

Para além do laboratório, este edifício tem acomodações para viver disse Paul. Isso inclui alguns apartamentos para hóspedes, que não são muito luxuosos mas certamente adequados. Gostaríamos de os colocar à vossa disposição, se quiserem ficar próximos do vosso trabalho. Até temos uma cafetaria, que serve três refeições por dia, no edifício do outro lado do jardim, por isso não teriam de sair do complexo, a menos que desejassem. Muitos dos nossos funcionários vivem aqui no complexo, e os seus apartamentos também se situam neste edifício.

 

Obrigada pela oferta respondeu Stephanie rapidamente. É muito hospitaleiro da vossa parte, mas nós temos acomodações muito confortáveis na cidade.

 

Posso perguntar onde é que estão hospedados? perguntou Paul.

 

No Ocean Club disse Stephanie.

 

Uma escolha muito boa declarou Paul. Bem, a oferta mantém-se, se resolverem mudar de ideias.

 

Não me parece disse Stephanie.

 

Vamos voltar à visita guiada sugeriu Spencer.

 

Por favor disse Paul. Fez sinal ao grupo para se dirigirem para um par de portas duplas que levavam às profundezas do edifício. Para além do laboratório e dos apartamentos, este edifício também alberga algum equipamento de diagnóstico que inclui tomografia com emissão de positrões. Mandámos instalar o aparelho porque achámos que iríamos utilizá-lo mais para investigação do que para trabalho clínico.

 

Eu não sabia que vocês têm um aparelho de tomografia por emissão de positrões exclamou Daniel. Olhou de relance para Stephanie com as sobrancelhas levantadas para comunicar a sua agradável surpresa como contraponto da negatividade palpável dela. Sabia que um aparelho de tomografia por emissão de positrões, que usa raios gama para estudar a função fisiológica, poderia ser útil se surgisse algum problema com Butler após o tratamento.

 

Nós planeámos a Wingate para ser um complexo com serviço completo de investigação e clínico declarou Paul com orgulho. Como íamos instalar um aparelho de TAC e um aparelho de ressonância magnética, decidimos que não perdíamos nada em instalar também um aparelho de tomografia por emissão de positrões.

 

Estou impressionado admitiu Daniel.

 

Também achei que ficaria disse Paul. E como descobridor da RSTH, ficará seguramente interessado em saber que estamos a planear desempenhar um papel importante na terapia de células indiferenciadas a par da terapia de fertilização.

 

É uma combinação interessante disse Daniel vagamente, inseguro da sua reacção a esta notícia inesperada. Como tantas coisas sobre a Clínica Wingate, a ideia de que estavam a pensar fazer terapia de células estaminais foi uma surpresa.

 

Achámos que é uma extensão natural do nosso trabalho explicou Paul, tendo em conta o nosso acesso a ovócitos humanos e a nossa grande experiência em transferência nuclear. A ironia é que pensámos que ia ser uma ocupação secundária, mas desde que abrimos as portas temos feito mais tratamentos com células estaminais do que de infertilidade.

 

É verdade corroborou Spencer. Na verdade, os pacientes que viram há pouco na sala de espera principal estão aqui para fazer terapia de células estaminais. A novidade dos nossos serviços parece estar a espalhar-se rapidamente. Não tivemos de fazer publicidade nenhuma.

 

Os rostos de Daniel e Stephanie reflectiram a surpresa consternada que sentiram.

 

Que género de doenças é que estão a tratar? perguntou Daniel. Paul riu-se.

 

Praticamente tudo! Muitas pessoas sabem que as células estaminais podem prometer a cura de uma série de enfermidades, desde cancro em fase terminal e doenças degenerativas aos problemas do envelhecimento. Como não podem fazer tratamentos com células estaminais nos Estados Unidos, vêm ter connosco.

 

Mas isso é absurdo! exclamou Stephanie. Estava revoltada.

 

Não existem protocolos estabelecidos para tratar seja o que for com células estaminais.

 

Nós somos os primeiros a admitir que estamos a desbravar terreno retorquiu Spencer. É um trabalho experimental, como o que vocês estão a pensar fazer ao vosso paciente.

 

Essencialmente, estamos a usar a procura do público para financiar a investigação necessária explicou Paul. Raios, é razoável, uma vez que o Governo dos Estados Unidos é tão prudente em financiar o trabalho e está a dificultar imenso a tarefa aos investigadores no continente.

 

Que tipo de células estão a usar? perguntou Daniel.

 

Células estaminais multipotentes respondeu Paul.

 

Não estão a diferenciar as células? perguntou Daniel, cada vez mais descrente, uma vez que as células estaminais indiferenciadas não tratariam coisa alguma.

 

Não, de todo disse Paul. É claro que no futuro tentaremos isso, mas por enquanto fazemos a transferência nuclear, cultivamos as células estaminais e infundimo-las. Deixamos o corpo do paciente usá-las como achar melhor. Tivemos alguns resultados interessantes, embora não com toda a gente, mas assim é a natureza da investigação.

 

Como é que podem chamar investigação ao que estão a fazer? inquiriu Stephanie ardorosamente. E tenho de discordar: não existe paralelo entre o que nós estamos a pensar fazer e o que os senhores estão a fazer.

 

Daniel apertou o braço de Stephanie e puxou-a para longe de Paul.

 

O que a Dr.a D’Agostino quer dizer é que nós vamos fazer o tratamento com células diferenciadas.

 

Stephanie tentou soltar o braço do aperto de Daniel.

 

O que eu quero dizer é muito mais do que isso retorquiu ela. O que vocês estão a dizer que fazem com células estaminais não passa de vigarice pura!

 

Daniel intensificou o aperto no braço de Stephanie.

 

Dão-nos licença por alguns instantes? disse para Paul e Spencer, cujas expressões se tinham toldado. À força, puxou Stephanie para um canto e falou-lhe num sussurro irado. Que diabo estás a fazer, a tentar sabotar o nosso projecto e a fazer com que sejamos expulsos daqui?

 

Tu sabes muito bem o que eu estou a fazer sussurrou Stephanie em resposta, com igual veemência. Como é que podes não ficar ultrajado? Acima de tudo o mais, estes tipos são vendedores de banha da cobra.

 

Cala-te! atirou Daniel. Abanou Stephanie rapidamente. Tenho de continuar a lembrar-te que estamos aqui por uma coisa e nada mais: para tratar Butler! Não podes conter-te, por amor de Deus? O futuro da CURA e da RSTH estão em causa. Estas pessoas estão longe de ser santas. Nós sabíamos isso desde o começo. É por isso que estão aqui nas Bahamas e não no Massachusetts. Por isso, não vamos estragar tudo com uma indignação justa!

 

Por instantes, Daniel e Stephanie olharam um para o outro com olhos ardentes. Por fim, Stephanie afastou-se e deixou cair a cabeça.

 

Estás a magoar-me o braço disse ela.

 

Desculpa! respondeu Daniel. Soltou-lhe o braço, que Stephanie começou imediatamente a esfregar. Daniel respirou fundo para controlar a raiva. Olhou para Spencer e Paul, que estavam a observá-los com expressões intrigadas. Virou-se novamente para Stephanie e disse, Podemos concentrar-nos na nossa missão? Podemos aceitar o facto de que estes tipos não são éticos, que são uns grandes imbecis e deixar as coisas como estão?

 

Suponho que o aforismo «Pessoas com telhados de vidro não devem atirar pedras» se encaixa na situação, tendo em conta o que estamos a pensar fazer. Talvez seja essa a razão por que tudo isto me perturba tanto.

 

E és capaz de ter razão disse Daniel. Mas não te esqueças de que estamos a ser forçados a ultrapassar barreiras éticas. Aceite isto, posso contar contigo para manteres as tuas opiniões sobre a Clínica Wingate e as suas missões só para ti, pelo menos até sairmos daqui?

 

Vou fazer todos os possíveis.

 

Muito bem disse Daniel. Respirou fundo mais uma vez para se fortalecer antes de ir novamente para junto dos outros. Stephanie seguiu alguns passos atrás.

 

Acho que estamos a ser afectados pelo fuso horário explicou Daniel aos anfitriões. Tivemos ambos alguns problemas emocionais. Para além do mais, a Dr.a D’Agostino tem tendência para exagerar quando quer realçar uma ideia. Intelectualmente, sente que as células diferenciadas seriam uma forma muito mais eficaz de aproveitar a promessa das células estaminais.

 

i Temos tido alguns resultados extremamente bons disse Paul.

 

Talvez gostasse de os analisar, Dr.a D’Agostino, antes de fazer um julgamento precipitado. Vai ser muito esclarecedor conseguiu Stephanie dizer.

 

Vamos continuar sugeriu Spencer. Queremos que vejam o resto da clínica antes do almoço, e ainda há muito para ver.

 

Num silêncio embasbacado, Daniel e Stephanie atravessaram as portas duplas para um vasto laboratório. Uma vez mais, ficaram assombrados. O simples tamanho das instalações combinado com a parafernália de equipamento, desde sequenciadores de ADN até incubadoras de cultura de tecidos, era muito maior do que eles tinham imaginado ou esperado. A única coisa que faltava era pessoal. Via-se uma única técnica a trabalhar ao longe, num microscópio electrónico de dissecação.

 

Neste momento, temos muito poucos funcionários disse Spencer, como se estivesse a ler os pensamentos dos convidados. Mas isso vai ser remediado muito brevemente, à medida que a procura por parte dos pacientes aumentar.

 

Vou chamar a supervisora do laboratório disse Paul, antes de desaparecer por breves instantes num gabinete lateral não muito afastado.

 

Prevemos estar a trabalhar nas nossas capacidades plenas dentro de aproximadamente seis meses disse Spencer.

 

Quantos técnicos pensam ter? perguntou Stephanie.

 

Cerca de trinta respondeu Spencer. Pelo menos, é o que as nossas projecções actuais sugerem. Mas se a procura de tratamentos com células estaminais continuar a este ritmo, teremos de ajustar o número para cima.

 

Paul reapareceu, a segurar a mão de uma mulher franzina que parecia praticamente emaciada, com todas as proeminências ósseas espetadas na pele, especialmente os malares. Tinha cabelos salpicados por um cinzento cor de rato e um nariz estreito e aguçado, que se salientava como um ponto de exclamação por cima de uma boca pequena e de lábios finos. Usava uma bata curta de laboratório com as mangas arregaçadas por cima de um fato de calças e casaco. Paul trouxe-a para junto do grupo e apresentou-a, chamava-se Megan Finnigan, como se lia no dístico de supervisor do laboratório preso ao bolso da bata.

 

Estamos prontos para vos receber disse Megan, depois das apresentações. Falou suavemente, com um sotaque de Boston. Apontou para uma bancada próxima. Preparámos esta área com tudo o que pensámos que precisariam. Se quiserem mais alguma coisa, só precisam de pedir. A porta do meu gabinete está sempre aberta.

 

O Dr. Lowell precisa de um pequeno frasco de solução salina disse Paul. Tem uma amostra de tecido com sangue cujo ADN quer preservar.

 

Não há problema disse Megan. Chamou a única técnica que se encontrava no laboratório e pediu-lhe para trazer o que lhe fora pedido. Ao longe, a mulher afastou-se do microscópio.

 

Quando gostariam de começar a trabalhar? perguntou Megan, enquanto Daniel e Stephanie inspeccionavam a área do laboratório que lhes tinha sido atribuída.

 

Logo que seja possível disse Daniel. E os ovócitos humanos? Vão estar disponíveis quando necessitarmos deles?

 

Absolutamente disse Paul. Só precisamos de um pré-aviso de doze horas.

 

Espantoso afirmou Daniel. Como é que é possível? Paul sorriu.

 

Segredos do negócio. Talvez depois de termos trabalhado juntos, possamos partilhar esses segredos. Eu estou igualmente interessado na vossa técnica de RSTH.

 

Isso significa que querem começar hoje? perguntou Megan.

 

Infelizmente, não podemos disse Daniel. Temos de esperar por uma encomenda que foi enviada por correio expresso antes de podermos começar. A única coisa que podemos fazer é colocar a amostra de tecido numa solução salina apropriada. Voltou-se para Spencer. Suponho que esta manhã não chegou nada para nós.

 

Quando é que foi enviado? perguntou Spencer.

 

A noite passada, de Boston respondeu Stephanie.

 

Quanto é que pesava? perguntou Spencer. Quando chegar, vai fazer diferença. Afinal de contas, Nassau é um destino internacional para um envio de Boston. Se for um envelope ou um pacote muito pequeno, talvez chegue de um dia para o outro e seja entregue durante esta tarde.

 

Não era um envelope disse Stephanie. Será suficientemente grande para incluir um embrulho insulado com uma cultura de tecidos preservada criogenicamente e também um fornecimento de reagentes.

 

Então, o mais cedo que podem esperar a encomenda é amanhã disse Spencer. Tem de passar pela alfândega, o que demorará mais um dia, pelo menos.

 

É importante guardarmos a cultura de tecido no congelador antes que descongele disse Stephanie.

 

Eu posso telefonar para a alfândega, para eles se apressarem com a encomenda disse Spencer. No ano passado, durante a nossa construção, falávamos com eles quase diariamente.

 

A técnica de laboratório chegou com um frasco com uma solução salina. Era uma afro-americana de pele clara com vinte e poucos anos e usava os cabelos curtos. Algumas sardas davam graça à cana do nariz, e uma colecção impressionante de piercings com jóias associadas circundavam-lhe as orelhas.

 

Esta é a Maureen Jefferson disse Paul, apresentando-a. O seu diminutivo é Maré. Não é minha intenção embaraçá-la, mas ela tem o toque de Midas para as micropipetas e para a transferência nuclear. Por isso, se precisarem de alguma ajuda, ela estará aqui. Não é verdade, Maré?

 

Maré sorriu reservadamente enquanto entregava o contentor com a solução salina a Daniel.

 

É muito generoso disse Stephanie, mas creio que não vamos precisar de ajuda para a manipulação celular.

 

Enquanto os outros observavam, Daniel tirou o envelope selado do bolso. Com uma tesoura apresentada por Megan, cortou uma extremidade. Comprimindo o envelope nas pontas, conseguiu abri-lo. Depois, deitou cuidadosamente a pequena amostra encarniçada de linho antigo na solução sem lhe tocar. O pano flutuou à superfície do fluido. Ele fechou o frasco com a tampa de plástico e enroscou-a com firmeza. Com um marcador, também fornecido por Meagan, marcou o exterior do frasco com as iniciais ST.

 

Há algum sítio para armazenar isto enquanto os componentes do sangue se libertam? perguntou Daniel.

 

Posso guardar o frasco no meu gabinete sugeriu Megan. Até posso guardá-lo num pequeno cofre que tenho.

 

Agradecia disse Daniel. É insubstituível.

 

Não tenha medo disse Paul. Vai ficar seguro. Acredite em mim! Não se importa que o segure por alguns momentos?

 

Claro que não disse Daniel. Estendeu o frasco a Paul.

 

Paul ergueu o frasco para o iluminar com uma das lâmpadas de tecto.

 

Não é fantástico?perguntou ele, a olhar atentamente para o pedaço minúsculo de tecido encarniçado a flutuar à superfície do fluido.Temos um pouco do ADN de Cristo! Pensar nisso provoca-me arrepios.

 

Não vamos ser demasiadamente dramáticos disse Spencer.

 

Como é que conseguiu obtê-lo? perguntou Paul, ignorando o comentário de Spencer.

 

Tivemos ajuda clerical de alto nível disse Daniel vagamente.

 

E como é que conseguiram isso? perguntou Paul, enquanto continuava a olhar para o frasco cheio de fluído e a rodá-lo lentamente.

 

Na verdade, não conseguimos admitiu Daniel. Foi o nosso paciente.

 

Ah, sim? disse Paul. Baixou o frasco e olhou de relance para Spencer. O vosso paciente está associado à Igreja Católica?

 

Que nós saibamos, não disse Daniel.

 

No mínimo dos mínimos, deve ter uma grande influência sugeriu Spencer.

 

Talvez disse Daniel. Não sabemos.

 

Agora que estiveram em Itália disse Spencer, qual é a vossa opinião sobre a questão da autenticidade do Sudário de Turim?

 

Como lhe disse ao telefone declarou Daniel, com exasperação mal disfarçada, não vamos envolver-nos na controvérsia do sudário. Estamos apenas a usá-lo por insistência do paciente como a fonte de ADN de que necessitamos para a RSTH a última coisa que Daniel queria fazer era envolver-se numa discussão intelectual com aqueles palhaços.

 

Bem, estou ansioso para conhecer o seu paciente disse Paul. Ele e eu temos uma coisa em comum: ambos acreditamos que o Sudário de Turim é verdadeiro. Entregou o frasco a Megan. Agora vamos ser duplamente cuidadosos! Estou convencido de que este pequeno pedaço de tecido vai fazer história.

 

Megan pegou no frasco e segurou-o com as duas mãos. Voltou-se para Daniel.

 

Quais são os seus planos para esta suspensão? perguntou ela. Não espera que o linho antigo se dissolva, pois não?

 

Claro que não disse Daniel. Só quero deixar a amostra na solução salina para que o ADN linfocítico presente, se misture com a solução. Dentro de aproximadamente vinte e quatro horas, vou passar uma alíquota pelo PCR. A electroforese com alguns controlos deverá dar-nos uma ideia do que temos. Se constatarmos que temos fragmentos de ADN suficientes, e estou razoavelmente certo de que vamos ter, vamos amplificá-lo e ver se as nossas sondas conseguem apanhar o que precisamos para a RSTH. Claro que podemos ter de repetir o exercício algumas vezes e sequenciar as falhas. De qualquer maneira, a amostra ficará na solução salina até termos o que precisamos.

 

Muito bem disse Megan. Vou guardar o frasco no meu cofre como sugeri. Amanhã, quando o quiser, basta pedir-me.

 

Perfeito disse Daniel.

 

Se já estamos despachados aqui, que tal irmos até ao edifício da clínica? sugeriu Spencer. Olhou para o relógio. Quero que vejam as nossas salas de cirurgia e também a nossa unidade de internamento. Podem conhecer os funcionários daqueles sectores, e depois vamos mostrar-vos a nossa cafetaria. Até planeámos um almoço em vossa honra, para o qual convidámos o Dr. Rashid Nawaz, o neurocirurgião. Pensámos que gostariam de o conhecer.

 

Sem dúvida declarou Daniel.

 

Pareceu demorar uma eternidade mas, por fim, Caetano ficou em segundo lugar na fila de um concessionário de aluguer de automóveis no Aeroporto Internacional de Nassau. Perguntou a si mesmo por que é que as pessoas que estavam à sua frente tinham demorado tanto tempo a alugar uma porcaria de um carro, uma vez que só tinham de assinar o raio do formulário. Olhou para o relógio. Era meio dia e meia hora. Chegara apenas há vinte minutos, embora tivesse saído do Aeroporto Logan às seis da manhã, antes do dia nascer. O problema fora a falta de voos directos ou sem ligação, e tinha sido obrigado a mudar de avião em Orlando.

 

Caetano mudou o peso musculoso nervosamente. Sal e Lou tinham deixado perfeitamente claro que queriam que ele cumprisse a missão num único dia e voltasse para Boston. Tinham-no avisado especificamente de que não iam aceitar desculpas esfarrapadas, embora ao mesmo tempo tivessem admitido que o sucesso dependia de Caetano entrar rapidamente em contacto com o Dr. Lowell, o que não era um dado adquirido, uma vez que tinham admitido graciosamente que havia algumas variáveis. Caetano prometera que faria tudo o que estivesse ao seu alcance, e no entanto não haveria qualquer possibilidade de fazer o serviço, se não fosse imediatamente para o Ocean Club.

 

O plano era simples. Caetano iria para o hotel, localizaria o alvo, que Lou e Sal tinham a certeza que estaria a descansar na praia, tendo em conta o tempo, atraí-lo-ia para fora do hotel através de um esquema inteligente, e faria o que tinha de fazer, isto é, transmitiria a mensagem dos patrões e dar-lhe-ia uma tareia monumental para ter a certeza de que a mensagem era tomada a sério. Em seguida, Caetano teria de voltar o mais depressa possível para o aeroporto, para apanhar um dos aviões para Miami a tempo de apanhar o último voo para Boston. Se, por alguma razão, isso não acontecesse, então Caetano cumpriria a sua missão nessa noite, desde que o professor saísse do hotel, e depois passaria a noite numa espelunca qualquer e regressaria no dia seguinte. O único problema com este último plano é que não havia forma alguma de garantir que o alvo sairia do hotel, o que significava adiar tudo para o dia seguinte. Se isso acontecesse, Lou e Sal ficariam furiosos, independentemente do que Caetano dissesse, por isso sentiu que estava encurralado entre a espada e a parede. O problema era agravado pelo facto de Caetano ser necessário em Boston. Como os patrões lhe tinham lembrado, estavam a acontecer muitas coisas naquele momento, com a economia num estado caótico e pessoas a queixarem-se de que eles não tinham dinheiro para cumprir as suas obrigações de agiotagem e jogo.

 

Caetano limpou o suor que se formara junto aos cabelos escuros e encaracolados, e lhe escorria pela testa alta. Usava calças castanhas que tinham sido cuidadosamente passadas a ferro, uma camisa de mangas curtas às flores e um blusão desportivo azul. A ideia era parecer rico para não dar nas vistas como um pobre desgraçado a rondar o Ocean Club. Naquele momento, tinha o blusão pendurado por cima do ombro e as calças tinham manchas de humidade enormes atrás de cada joelho. Com o seu corpo compacto, era sensível ao calor tropical e húmido.

 

Quinze minutos depois, Caetano estava num parque de estacionamento que era tão quente como Hades, à procura de um Jeep Cherokee branco. Se antes já tinha calor, agora estava a ferver, com triângulos de suor na camisa encharcada debaixo de cada braço. Segurava o saco de fim-de-semana na mão direita enquanto a esquerda apertava os papéis do aluguer do carro e um mapa, que pedira ao agente. A ideia de conduzir pela esquerda, como lhe tinham dito na agência de aluguer de automóveis, começou por assustá-lo, mas depois pensou que não haveria problema, desde que estivesse sempre a recordar-se disso. Para ele, o facto de os habitantes das Bahamas conduzirem do lado errado era o cúmulo do ridículo.

 

Encontrou o carro. Sem demora, entrou e ligou o motor. A primeira coisa a fazer era ligar o ar condicionado no máximo e virar todas as saídas na sua direcção. Depois de verificar o mapa e de o abrir no banco ao lado, começou a sair do parque de estacionamento.

 

Falara-se em arranjar uma pistola, mas a conversa tinha sido esquecida. Em primeiro lugar, demoraria tempo, e em segundo lugar não precisava de uma arma para lidar com um reles professor. Olhou de novo para o mapa. O caminho era bastante simples, uma vez que a maioria das estradas iam dar à cidade de Nassau. Dali, atravessaria a ponte para Paradise Island, onde presumiu que o Ocean Club seria fácil de encontrar.

 

Caetano sorriu para o destino. Alguns anos antes, quem teria adivinhado que estaria a conduzir nas Bahamas, vestido para arrasar, e a sentir-se bem com a antecipação de um pouco de acção? Um arrepio de excitação fez os cabelos da nuca levantarem-se momentaneamente. Caetano gostava de violência em todas as suas formas. Era uma espécie de vício que o tinha metido em sarilhos no passado desde a escola primária mas, especialmente, no liceu. Adorava filmes de acção violentos e jogos de computador violentos, mas, acima de tudo, gostava da violência a sério. Graças ao seu tamanho, que tinha desde muito novo, e à sua capacidade atlética, conseguia sair vencedor em quase todas as contendas.

 

O maior problema acontecera em 2000. Ele e o irmão mais velho estavam contratados, como ele estava agora, como guarda-costas ou músculos, mas nessa época estavam nas grandes confederações em Queens, Nova Iorque, a trabalhar para uma das maiores famílias do crime. Surgiu um trabalho que foi atribuído a ele e ao irmão, Vito. Tinham de dar uma lição a um polícia que estava a receber, mas não cumpria o seu lado do acordo. Era suposto ser coisa rápida, mas correu mal. O polícia empunhou uma arma escondida e conseguiu ferir Vito com gravidade antes de Caetano o desarmar.

 

Infelizmente, Caetano tinha-se passado. Quando acabou, não só tinha morto o polícia, como a mulher do tipo e o filho adolescente do tipo, que tentara estupidamente intervir, a mulher com outra pistola e o miúdo com um taco de basebol. Ficaram todos furiosos. Nada daquilo devia ter acontecido, e provocou uma reacção terrível por parte da Polícia de Nova Iorque, como se o polícia morto fosse uma espécie de herói. No começo, Caetano pensou que ia ser sacrificado, que o iam despachar ou entregá-lo à polícia numa bandeja de prata. Mas depois, inesperadamente, surgiu a oportunidade de desaparecer indo para Boston trabalhar com os irmãos Castigliano, que tinham ligações de parentesco distantes com a família para que os Barrese tinham trabalhado.

 

Inicialmente, Caetano detestara a mudança. Odiava Boston, que considerava uma cidade insignificante, comparada com Nova Iorque, e detestava ser empregado de balcão na loja de artigos de canalização, um cargo que considerava humilhante. Mas foi-se acostumando lentamente.

 

Raios partam! exclamou Caetano, quando viu o oceano das Bahamas pela primeira vez. Nunca tinha visto um azul e um verde-azulado tão intensos. À medida que o tráfego foi ficando mais intenso, Caetano abrandou e apreciou a paisagem. Adaptara-se mais facilmente do que pensara a conduzir pela esquerda, o que lhe deixava os seus olhos livres para deambular, e havia muito para ver. Começou a ficar optimista em relação à tarde até chegar à cidade de Nassau, propriamente dita. Na cidade, deu por si no meio de um engarrafamento infernal e entalado atrás de um autocarro que estava completamente parado.

 

Olhou para o relógio. Já passava da uma da tarde. Abanou a cabeça enquanto o seu optimismo se escoava rapidamente. Não conseguiu deixar de pensar que as probabilidades de conseguir fazer o que precisava e estar novamente no aeroporto às quatro e meia, que era o que teria de acontecer se queria apanhar o voo Miami-Boston, estavam a diminuir a cada minuto que passava.

 

Que se lixe! exclamou Caetano com veemência. Decidiu imediatamente que não ia deixar que o factor tempo arruinasse o seu dia. Respirou fundo e espreitou pela janela lateral. Até sorriu para uma bonita mulher negra que lhe retribuiu o sorriso, fazendo-o sentir que talvez fosse bastante interessante passar a noite na ilha. Baixou o vidro, mas a mulher já tinha desaparecido. Instantes depois, o autocarro à sua frente começou a avançar.

 

Por fim, Caetano atravessou a bonita faixa que ligava New Providence Island a Paradise Island, e pouco depois estava parado no parque de estacionamento do Ocean Club, que, a avaliar pelo aspecto dos veículos, era mais para os empregados do que para os hóspedes.

 

Caetano deixou o saco e o blusão na parte de trás do Cherokee e dirigiu-se para oeste por um carreiro circundado por árvores e flores, antes de virar para norte entre dois dos edifícios do hotel. Isso levou-o ao relvado que separava o hotel da praia. Virou para este e voltou para os edifícios centrais, onde se situavam os espaços públicos e os restaurantes. Ficou impressionado com tudo o que viu. Era um sítio fantástico.

 

Um restaurante ao ar livre com um bar central e telhado de colmo erguia-se muito acima da beira muito inclinada da praia, com uma vista muito agradável para um lado e para o outro. À uma e meia, o restaurante ainda estava completamente cheio e havia uma fila de pessoas pacientemente à espera de mesas ou bancos ao balcão. Caetano parou e pegou nas fotografias para rever as imagens do professor e da irmã de Tony. Os seus olhos detiveram-se na irmã, a desejar que ela fosse o alvo. Pensar nas diversas maneiras de lhe transmitir uma mensagem violenta, fê-lo sorrir.

 

Armado com uma imagem mental renovada das pessoas que procurava, Caetano deu uma volta demorada pelo bar/restaurante. As mesas estavam dispostas ao longo da periferia, com o bar no centro. Todas as mesas e todos os bancos ao balcão estavam ocupados com pessoas pouco vestidas de todas as formas, tamanhos e idades em fato de banho e páreos.

 

Caetano voltou ao ponto de partida sem ver ninguém que se assemelhasse ao tipo ou à rapariga. Saiu do restaurante e desceu um lance de escadas que davam acesso a um terraço com diversos chuveiros ao ar livre, antes de descer mais um lance até à praia. À direita, ao fundo das escadas, situava-se a praia concessionada pelo hotel, com toalhas, chapéus de sol e cadeiras de descanso para os hóspedes. Caetano descalçou os sapatos e as meias e arregaçou as calças antes de caminhar até à beira da água, onde ondas suaves varriam a margem. Quando enfiou os dedos dos pés na água, desejou ter trazido um fato de banho. A água era transparente, baixa e deliciosamente quente.

 

Enquanto caminhava pela areia muito molhada, Caetano dirigiu-se em primeiro lugar para este, enquanto perscrutava os rostos de todas as pessoas que se encontravam na praia. Não estava especialmente cheia, pois a maior parte das pessoas estavam a almoçar. Quando ficou sem pessoas, voltou-se e dirigiu-se para oeste. Quando ficou sem pessoas nessa direcção, chegou à conclusão de que o professor e a irmã não estavam na praia. «Lá se vai essa ideia», pensou, taciturnamente.

 

Caetano voltou para trás e foi buscar os sapatos. Pegou numa toalha e dirigiu-se para o terraço, onde limpou os pés. Com os sapatos novamente calçados, subiu as restantes escadas e percorreu o carreiro que atravessava o bonito relvado diante do edifício principal do hotel de estilo colonial. No interior, viu-se no que parecia a sala de estar de uma casa grande e luxuosa. Num canto, um pequeno bar com seis bancos altos recordou-lhe que, afinal, era um hotel. Sem clientes, o empregado do bar estava ocupado a limpar copos.

 

Usando um telefone interno numa secretária cheia de papel do hotel, Caetano ligou para a telefonista. Perguntou como podia ligar para um dos quartos e disseram-lhe que teriam todo o prazer em fazer a ligação. Caetano disse que queria falar para o quarto 108.

 

Enquanto o telefone tocava, Caetano serviu-se de uma taça de fruta que estava em cima da secretária. Deixou tocar dez vezes antes de a telefonista entrar em linha para perguntar se ele queria deixar mensagem. Caetano disse que tentaria mais tarde e desligou.

 

Nesse ponto, perguntou a si mesmo se o hotel tinha piscina. Não tinha visto nenhuma onde esperava, nomeadamente no meio do enorme relvado, mas como o recinto do hotel era obviamente grande, Caetano pensou que podia haver uma. Assim sendo, percorreu o átrio que parecia uma sala de estar e entrou na área da recepção do hotel. Ali perguntou e deram-lhe indicações.

 

Afinal, a piscina situava-se a este, longe do oceano e ao fundo de um jardim formal que se erguia em plataformas sucessivas, encimadas por um claustro medieval. Caetano ficou impressionado com a paisagem, mas desapontado por ter a mesma sorte que tinha tido na praia. O professor e a irmã de Tony não estavam na piscina nem na cafetaria ao lado da piscina. Também não estavam num ginásio próximo, nem num dos muitos campos de ténis.

 

Porra! murmurou Caetano. Tornou-se claro que os seus alvos não se encontravam no hotel. Olhou para o relógio. Já passava das duas horas. Abanou a cabeça. Ao invés de perguntar a si mesmo se teria de passar a noite, começou a interrogar-se sobre quantas noites poderia demorar, ao ritmo a que estava a progredir.

 

Caetano voltou para a recepção e encontrou outro sofá confortável que tinha outra taça com frutas e também uma pilha de revistas finas e que lhe permitia uma visão clara através de uma arcada diante da entrada do hotel. Resignado a esperar, sentou-se e instalou-se confortavelmente.

 

 

14.07, quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2002

Paul deixou Spencer subir para o seu gabinete espaçoso e desceu para a cave do edifício principal, depois de os dois se terem despedido dos seus convidados. Paul perguntava muitas vezes a si mesmo o que é que Spencer fazia o dia inteiro, a andar de um lado para o outro naquela sala enorme, que era quatro vezes maior do que o gabinete adjacente de Paul e dez vezes mais sumptuoso. No entanto, Paul não se ressentia com a situação. Tinha sido a única exigência de Spencer durante a construção da nova clínica. Para além de insistir num espaço pessoal ridiculamente grande, Spencer dera a Paul uma liberdade razoável mais importante, em relação ao laboratório e respectivo equipamento. Para além do mais, Paul tinha um segundo gabinete, embora minúsculo, no laboratório, que usava muito mais do que o do edifício da administração.

 

Paul estava a assobiar quando abriu a porta de emergência, nas escadas da cave. Tinha motivos para estar de bom humor. Não só estava a antecipar um aumento sério da sua legitimidade como investigador de células estaminais ao colaborar com um potencial laureado com o prémio Nobel mas, mais importante, estava a ver a perspectiva de um salto financeiro importante e necessário para a clínica. Tal como a fénix mitológica, Paul erguera-se novamente das cinzas, e desta vez as cinzas tinham sido literais. Menos de um ano antes, ele e os outros sócios da clínica tinham sido obrigados a fugir de Massachusetts como bárbaros, sob a forma de polícias federais à porta da antiga clínica. Felizmente, Paul previra problemas relacionados com o seu arrojo no campo científico, embora tivesse pensado que os problemas viriam via FDA, não directamente do Departamento de Justiça e faria planos pormenorizados para mudar a clínica para o estrangeiro, onde ficaria protegido. Durante quase um ano, desviara fundos debaixo do nariz de Spencer, o que tinha sido fácil, uma vez que Spencer praticamente se retirara para a Florida. Paul usara o dinheiro para comprar a terra nas Bahamas, para projectar uma clínica nova e para iniciar a construção. O raide inesperado dos agentes da lei devido à queixa de um casal só significou que a partida do grupo teve de ser precipitada e antes da nova clínica estar concluída. Também significara que tinham necessitado de activar um protocolo préestabelecido do dia do juízo final, incendiando as antigas instalações para eliminar todas as provas.

 

Para Paul, a ironia é que esta recente ascensão das cinzas tinha sido a segunda recuperação milagrosa. Apenas sete anos antes, as suas perspectivas tinham parecido sombrias. Tinha perdido os privilégios no hospital e estava condenado a perder a licença médica no estado do Illinois apenas dois dias depois de ter concluído a especialização em ginecologia/obstectrícia. Foi por causa de uma vigarice estúpida com facturas da Medicald/Medicare que ele copiara de alguns colegas locais e depois refinara. O problema obrigara-o a fugir do estado. Pura sorte tinha-o levado até Massachusetts, onde fez uma especialização em tratamento de fertilização para evitar que a Ordem dos Médicos de Massachusetts descobrisse os seus problemas no Illinois. A sua sorte continuou quando um dos instrutores era Spencer Wingate, que estava a pensar reformar-se. O resto era história.

 

Se, ao menos, os meus amigos me pudessem ver agora! murmurou Paul alegremente, enquanto percorria o corredor central da cave. Esses pensamentos eram um dos seus passatempos preferidos. É claro que usava o termo amigos num sentido vago, uma vez que não tinha muitos, pois fora forçado a ser um solitário a maior parte da sua vida depois de ser o alvo de piadas durante a infância e a adolescência. Fora sempre um trabalhador incansável, e no entanto estava destinado a ser diminuído pelos critérios usuais da sociedade, excepto quanto a tirar um curso de medicina. Mas agora, com um laboratório soberbamente equipado à sua disposição e sem a ameaça da FDA à vista, sabia que tinha tudo para se tornar o investigador biomédico do ano, talvez da década... talvez até do século, tendo em conta o potencial da Wingate para ter o monopólio virtual da clonagem reprodutiva e terapêutica. Claro que para Paul, a ideia de que ia ser um investigador famoso era a maior de todas as ironias. Nunca pensara nisso, não tinha treino adequado, e até tinha a honra dúbia de ser o pior da sua turma na faculdade de medicina. Paul riu em silêncio sabendo que, na verdade, devia a sua situação actual não só à sorte mas também à preocupação constante dos políticos americanos com a questão do aborto, que tinha desviado eficazmente a vigilância do campo da fertilização bem como da investigação de células estaminais. Se não tivesse sido assim, os investigadores do continente estariam onde ele se encontrava agora.

 

Paul bateu à porta de Kurt Hermann. Kurt era o chefe de segurança da clínica e um dos primeiros mercenários de Paul. Pouco depois da sua chegada à Clínica Wingate, Paul pressentira o enorme potencial do tratamento da fertilização, especialmente se a pessoa estivesse disposta a ultrapassar as fronteiras e a aproveitar ao máximo a falta de fiscalização no sector. Com isso em mente, Paul presumira que a segurança seria uma questão essencial. De acordo com essa perspectiva, quisera encontrar a pessoa certa para o trabalho, alguém sem muitos escrúpulos, para o caso de serem necessários métodos draconianos, alguém altamente chauvinista no sentido não sexista da palavra e com uma experiência séria. Paul encontrara todas essas características em Kurt Hermann. O facto de o homem ter sido expulso das Forças Especiais do exército dos Estados Unidos em circunstâncias nada honrosas na sequência de uma série de assassinatos de prostitutas na ilha de Okinawa não perturbou Paul minimamente. Na verdade, considerara que era um facto a seu favor.

 

Depois de ouvir «Entre», Paul abriu a porta. Kurt concebera o seu complexo de escritórios na cave. A sala principal era uma combinação de escritório com duas secretárias e duas cadeiras, para além de um pequeno ginásio com meia dúzia de máquinas. Havia também um tapete para tae kwon do estendido no chão. Para além disso, tinha uma sala de vídeo com uma parede cheia de monitores que mostravam imagens de câmaras espalhadas por todo o complexo. Ao fundo de um pequeno corredor interior, situava-se um quarto e uma casa de banho. Kurt tinha um apartamento maior no edifício do laboratório, mas de vez em quando ficava ali no escritório vários dias seguidos. Do outro lado do quarto situava-se uma cela de detenção, completa com um lavatório, uma sanita e um catre de ferro.

 

O forte barulho metálico de pesos chamou a atenção de Paul e direccionou-o para a zona da sala que fora transformada em ginásio. Kurt Hermann estava sentado a fazer exercício. Estava vestido como sempre, com uma t-shirt preta justa, calças pretas e ténis pretos, que contrastavam fortemente com os cabelos louros, curtos e sujos. Em determinada altura, Paul perguntara casualmente por que é que Kurt insistia em usar preto, tendo em conta a força intensa do sol das Bahamas. A resposta de Kurt foi um leve encolher de ombros e um arquear das sobrancelhas. A maior parte das vezes, era um homem de poucas palavras.

 

Precisamos de falar disse Paul.

 

Kurt não respondeu. Soltou as tiras de velcro dos pulsos, passou uma toalha pela testa e sentou-se atrás da secretária. O seu músculo peitoral saliente e os trícepes esticaram o tecido da t-shirt, quando ele pousou os antebraços no tampo da secretária. Uma vez sentado, não se mexeu. Paul comparou-o com um gato pronto a atacar.

 

Paul agarrou numa das cadeiras laterais, colocou-a em frente da secretária e sentou-se também.

 

O médico e a namorada chegaram à ilha disse Paul.

 

Eu sei respondeu Kurt num tom monocórdico. Virou o monitor que estava em cima da secretária. A imagem era de Daniel e Stephanie, parados junto à entrada principal do edifício da administração. Os rostos de ambos estavam claramente visíveis quando piscaram os olhos para o sol matinal.

 

Uma boa fotografia comentou Paul. Certamente, mostra bem que a mulher é muito atraente.

 

Kurt virou novamente o monitor para si, mas não respondeu. Alguma informação sobre a identidade do paciente desde a última vez que falámos? perguntou Paul. Kurt abanou a cabeça.

 

Então, uma nova visita ao apartamento em Cambridge e outra ao escritório não revelaram nada?

 

Kurt abanou a cabeça.

 

Nada!

 

Detesto bater num cavalo morto disse Paul, mas precisamos de saber quem é esta pessoa o mais depressa possível. Quanto mais tivermos de esperar, menos hipóteses teremos de maximizar a nossa compensação. E nós precisamos realmente do dinheiro.

 

Agora que eles estão em Nassau, as coisas vão ser mais fáceis.

 

Qual é a tua estratégia?

 

Quando é que eles vão começar o trabalho na clínica?

 

Amanhã, desde que recebam uma encomenda de correio expresso de que estão à espera.

 

Preciso de ter acesso aos computadores portáteis e aos telemóveis deles durante alguns minutos disse Kurt. Para isso, posso precisar da ajuda dos funcionários do laboratório.

 

Oh? perguntou Paul. Era raro Kurt pedir a ajuda de alguém. Claro! Eu peço a ajuda da Sr.a Finnigan. Que é que queres que ela faça?

 

Depois de eles estarem a trabalhar aqui, preciso de saber onde é que deixam os computadores, e com sorte os telefones, quando forem à cafetaria.

 

Bem, isso deve ser fácil disse Paul. Seguramente, Megan vai dar-lhes um compartimento com chave para eles poderem guardar os seus objectos pessoais. Para que é que queres os telemóveis? Quero dizer, compreendo por que é que queres os computadores portáteis, mas porquê os telemóveis?

 

Para verificar os números das chamadas recebidas disse Kurt. Não que espere saber alguma coisa, a avaliar pelo cuidado que eles têm tido até agora. E também não espero nada dos computadores. Seria demasiado fácil. Estes professores não são nada estúpidos. O que eu quero fazer é inserir um alerta em cada um dos telefones para monitorizar as chamadas deles. É isso que vai dar-nos o que queremos. O problema é que a monitorização tem de ser feita de perto, no máximo três metros, devido às limitações de potência. Depois de os alarmes terem sido colocados, Bruno ou eu próprio teremos de ficar dentro do alcance.

 

Isso não vai ser nada fácil! exclamou Paul. Espero que não te esqueças de que a discrição é a chave deste assunto. Não podemos arranjar complicações; se isso acontecer, o Dr. Wingate vai ter um ataque de nervos.

 

Kurt encolheu os ombros num gesto que lhe era característico.

 

Descobrimos que eles estão no Ocean Club, em Paradise Island. Kurt acenou com a cabeça quase imperceptivelmente.

 

No entanto, hoje soubemos uma coisa que talvez seja útildisse Paul. Este paciente mistério pode ser alguém no topo da hierarquia da Igreja Católica, o que poderia funcionar muito bem a nosso favor, tendo em conta a posição da Igreja em relação às células estaminais. Manter o segredo pode valer muito dinheiro.

 

Kurt não reagiu.

 

Bem, é isso disse Paul. Bateu nos joelhos antes de se levantar. Deixa-me dizer novamente que precisamos do nome.

 

Vou consegui-lo disse Kurt. Confia em mim!

 

Que é que se passa? perguntou Daniel, com alguma tensão na voz. Vais ficar muda e calada ou quê? Não disseste nada desde que saímos da clínica há vinte minutos.

 

Tu também não disseste grande coisa respondeu Stephanie. Estava a olhar pensativamente pelo vidro da frente, e não se deu ao trabalho de virar a cabeça na direcção de Daniel.

 

Eu disse que estava um dia lindo quando entrámos no carro.

 

Oh, uau! comentou Stephanie com troça não disfarçada. É um início de conversa estimulante, tendo em conta o que vivemos esta manhã.

 

Daniel lançou-lhe um olhar rápido e irritado antes de se concentrar, novamente, na estrada. Seguiam ao longo da margem norte da ilha, em direcção ao hotel.

 

Acho que não estás a ser justa. À frente dos nossos anfitriões, comportas-te como uma megera, coisa que não quero que voltes a fazer, e agora que estamos sozinhos estás calada que nem um rato. Estás a comportar-te como se eu tivesse feito alguma coisa mal.

 

Sim, bem, não consigo compreender por que é que não estás ultrajado com o que se passa na Clínica Wingate.

 

Estás a referir-te à suposta terapia com células estaminais?

 

Chamar-lhe terapia é um erro grosseiro. É uma vigarice médica pura e terrível. Não só estão a extorquir dinheiro e tratamento apropriado a pessoas desesperadas, como dará mau nome às células estaminais, porque não vão curar nada, excepto como placebo sofisticado.

 

Estou ultrajado disse Daniel. Qualquer pessoa ficaria, mas também estou ultrajado com os políticos que estão a possibilitar tudo isto e ao mesmo tempo a obrigar-nos a lidar com este tipo de gente.

 

E quanto ao segredo profissional putativo que lhes permite fornecer óvulos humanos a pedido com um pré-aviso de doze horas?

 

Tenho de admitir que é igualmente preocupante em termos éticos.

 

Preocupante! repetiu Stephanie desdenhosamente. É muito mais do que preocupante. Por acaso reparaste que há um artigo sobre ovócitos na revista que eles nos ofereceram? Desenrolou a revista, que tinha apertada na mão. Apontou. O título do artigo número três é «A Nossa Vasta Experiência Com Maturação In Vitro de Ovócitos Fetais Humanos». Que é que isso sugere?

 

Achas que eles obtêm os ovócitos de fetos abortados?

 

Com o que sabemos, não seria uma suposição descabida. E reparaste em todas as mulheres jovens nativas grávidas que trabalham na cafetaria, nenhuma das quais, devo acrescentar, tinha qualquer um dos sinais normais de quem está casado? E quanto ao Paul a gabar-se da experiência que têm em transferência nuclear? Provavelmente, estas pessoas estão a oferecer, acima de tudo, clonagem reprodutiva.

 

Stephanie expirou com força enquanto abanava a cabeça. Ao invés de olhar para Daniel, voltou-se e olhou pela janela do banco do passageiro. Tinha os braços fortemente apertados contra o peito.

 

O facto de estar lá e de falar com essas pessoas, e ainda mais de lá trabalhar, faz-me sentir-me cúmplice.

 

Seguiram em silêncio durante alguns minutos. Daniel falou quando chegaram aos arredores de Nassau e tiveram de abrandar por causa do trânsito.

 

Tudo o que estás a dizer é verdade. Mas também é verdade que ficámos com uma ideia bastante aproximada de como estas pessoas eram antes de chegarmos às Bahamas. Foste tu que os investigaste na Internet e, para te citar, disseste, «Estas pessoas não são nada simpáticas, e devemos limitar a nossa interacção com eles». Recordas-te de ter dito isso?

 

Claro que simdisse Stephanie rispidamente. Foi no restaurante Rialto, em Cambridge, há menos de uma semana suspirou. Santo Deus! Aconteceram tantas coisas nos últimos dias que parece que passou um ano.

 

Mas estás a perceber o que quero dizer insistiu Daniel.

 

Suponho que sim, mas também disse que queria ter a certeza de que ao trabalharmos na clínica deles não estaríamos a apoiar alguma coisa pouco escrupulosa.

 

Correndo o risco de ser ridiculamente redundante, estamos aqui para tratar Butler e nada mais. Concordámos com isso e é o que vamos fazer. Não estamos numa cruzada social para expor a Clínica Wingate, nem agora nem depois de tratarmos Butler, porque se a FDA descobrir o que fizemos podemos ter problemas sérios.

 

Stephanie voltou-se para encarar Daniel.

 

Inicialmente, quando concordei tratar Butler, pensei que o único compromisso que estaríamos a fazer seria em relação à ética experimental. Infelizmente, parece que nos encontramos na proverbial encosta escorregadia. Estou preocupada, porque não sei onde é que isto vai levar-nos em termos de consciência.

 

Podes sempre ir para casa disse Daniel. És melhor no trabalho celular, mas acho que posso arranjar-me sozinho.

 

Estás a falar a sério?

 

Estou. Tu tens uma técnica de transferência nuclear muito melhor do que eu.

 

Não, estou a perguntar se te importas que eu me vá embora.

 

Se os compromissos éticos que temos de fazer te vão deixar infeliz, rabugenta e insuportável então não, não me importo que te vás embora.

 

Ias sentir a minha falta?

 

É uma pergunta com armadilha? Já insinuei que preferia de longe que ficasses. Comparado contigo, sou um nabo quando estou a trabalhar com ovócitos e blastocistos, num microscópio de dissecação.

 

Quero saber se ias sentir a minha falta emocionalmente.

 

Claro que sim! Isso é um facto adquirido.

 

Nunca é um facto adquirido, especialmente porque nunca reconheceste. Mas não me interpretes mal; aprecio que o digas agora, e aprecio a tua disposição de me deixares ir embora. Significa muito para mim. Stephanie suspirou. Mas por muitos problemas que tenha em trabalhar com estes imbecis, acho que não conseguiria deixar-te aqui sozinho. No entanto, vou pensar no assunto. Faz-me sentir melhor saber que é uma opção, e essas sensações são bem-vindas. Afinal de contas, desde o primeiro dia que todo este caso tem sido contra a minha intuição e opinião, e a experiência desta manhã não ajudou.

 

Estou ciente das tuas desconfianças disse Daniel. E como as conheço fico ainda mais reconhecido pelo teu apoio. Mas basta! Nós sabemos que eles não são boas peças, e o que vimos esta manhã foi a confirmação. Vamos falar de outra coisa! Que é que achaste do neurocirurgião paquistanês?

 

Que posso dizer? Gostei do sotaque inglês, mas é um bocado baixo. Por outro lado, é engraçado.

 

Estou a tentar falar a sério disse Daniel, e notou-se novamente alguma tensão no seu tom de voz.

 

Bem, eu estou a tentar ser bem humorada. Quero dizer, como é que podes avaliar um profissional depois de o teres conhecido durante um almoço? Pelo menos, teve bons estágios em centros académicos reconhecidos em Londres, mas não podemos saber se é um bom cirurgião. Pelo menos, é bem-parecido. Stephanie encolheu os ombros. Que é que achas?

 

Acho que ele é o máximo, e que temos sorte em tê-lo a trabalhar connosco. O facto de ter trabalhado em implantes fetais para a doença de Parkinson durante o estágio é uma mais-valia extraordinária. Quero dizer, ele vai fazer o mesmo procedimento para nós. Implantar os nossos neurónios dopaminérgicos clonados será simplesmente uma repetição, com a excepção de que vai resultar. Senti uma verdadeira frustração da parte dele por os resultados do estudo de células fetais em que ele esteve envolvido terem sido tão fracos.

 

Ele está entusiasmado concordou Stephanie. Tenho de lhe reconhecer esse mérito, mas eu não fiquei totalmente convencida porque ele precisa do trabalho. Uma coisa que me surpreendeu foi ele pensar que só demoraria cerca de uma hora.

 

Amim não disse Daniel. Colocar o dispositivo estereotáxico no lugar é o único passo que demora tempo. O furo e a injecção serão rápidos.

 

Suponho que devíamos dar graças por tê-lo encontrado com tanta facilidade.

 

Daniel acenou afirmativamente.

 

Sei de outra razão para estares perturbada esta manhãdisse Daniel de repente, após uma breve pausa na conversa.

 

Oh? inquiriu Stephanie, sentindo-se novamente tensa depois de se ter conseguido descontrair ligeiramente. A última coisa que queria ouvir era outro pormenor perturbador.

 

A tua fé na profissão médica deve estar agora num novo nadir.

 

De que é que estás a falar?

 

Spencer Wingate dificilmente poderá ser visto como o indivíduo baixo, gordo e cheio de verrugas que tu esperavas, embora, como eu já disse, ainda possa ser um fumador inveterado com mau hálito.

 

Stephanie deu várias palmadas brincalhonas no ombro de Daniel.

 

Depois de todas as coisas que eu disse ultimamente, só tu para te lembrares disso.

 

De uma forma igualmente brincalhona, Daniel fingiu estar aterrorizado e encostou-se à janela para fugir do alcance dela. Nesse momento, pararam num sinal vermelho à entrada da ponte para Paradise Island.

 

Agora, Paul Saunders é outra história disse Daniel, endireitando-se. Por isso, talvez a tua fé não tenha sofrido um golpe irreversível, já que o seu aparecimento compensou seguramente a aparência de galã de telenovelas do Spencer.

 

Paul não é assim tão feio disse Stephanie. Certamente tem um cabelo interessante, com aquela madeixa branca tão marcante.

 

Eu sei que tens sempre imensos problemas para dizer mal de ninguém declarou Daniel. Não que eu compreenda, particularmente neste caso, tendo em conta o que sentes por estas pessoas, mas vamos pelo menos admitir que o homem é bastante esquisito?

 

As pessoas nascem com os seus rostos e os seus corpos; não os escolhem. Eu direi que Paul Saunders é único. Nunca vi ninguém com duas íris de cores diferentes.

 

Ele tem uma síndroma genética epónima explicou Daniel. É bastante rara, se bem me lembro, mas não me recordo do nome. Era uma daquelas doenças arcanas que eram referidas ocasionalmente durante as rondas de medicina interna.

 

Uma doença hereditária! comentou Stephanie. Bem, é exactamente por isso que não gosto de criticar a aparência básica das pessoas. Esta síndroma tem alguma consequência grave de saúde?

 

Não me lembro admitiu Daniel.

 

O semáforo mudou e atravessaram a ponte. A vista do porto de Nassau era arrebatadora, e nenhum deles falou até chegarem ao outro lado.

 

Hei! disse Daniel. Passou para uma faixa para virar à direita e parou. Que tal irmos àquela rua de lojas para comprarmos mais algumas roupas? No mínimo, precisamos de fatos de banho para ir à praia. Depois de a encomenda chegar, não vamos ter muitas oportunidades para aproveitar os prazeres de Nassau.

 

Vamos primeiro ao hotel. São horas de telefonar ao padre Maloney. Neste momento, ele já deve ter voltado para Nova Iorque e talvez tenha alguma informação sobre a nossa bagagem. As roupas que vamos comprar dependem de recebermos ou não as nossas malas.

 

Tens razão! disse Daniel. Mudou o pisca e olhou por cima do ombro, enquanto voltava para a fila de trânsito que se dirigia para este.

 

Alguns minutos depois, Daniel passou pelo parque de estacionamento do hotel e parou à entrada. Porteiros de libré pararam dos dois lados do carro e abriram as portas simultaneamente.

 

Não vais estacionar o carro no parque? perguntou Stephanie.

 

Vamos deixá-lo aqui com os porteiros disse Daniel. Vamos tentar falar com o padre Maloney, mas quer o apanhemos quer não eu quero voltar para ir comprar fatos de banho.

 

Por mim, tudo bem disse Stephanie, enquanto saía do carro. Depois da tensão da manhã, algumas compras e uma visita relaxante à praia pareciam ideias maravilhosas.

 

Como se tivesse tido uma descarga de adrenalina, Caetano sentiu o pulso acelerar e os cabelos arrepiarem-se na nuca. Por fim, após imensos falsos alarmes, as duas pessoas que atravessaram as portas principais do hotel pareciam o par que ele procurava. Pegou rapidamente na fotografia que tinha no bolso da camisa com motivos florais. Enquanto o casal ainda estava à vista, comparou os rostos com os da fotografia.

 

Bingo disse em voz baixa. Guardou a fotografia no bolso e olhou de relance para o relógio. Era um quarto para as três. Encolheu os ombros. Se o professor colaborasse indo dar um passeio demorado ou, melhor ainda, voltando para a cidade, onde os dois deviam ter estado, Caetano ainda poderia apanhar o avião da noite para Boston.

 

O casal desapareceu à direita de Caetano, e aparentemente atravessaram o átrio para lá dos balcões da recepção. Sem fazer uma cena precipitando-se atrás deles, Caetano arrumou a revista que estivera a folhear, pegou no blusão que colocara dobrado nas costas do sofá, sorriu para o empregado de bar que tinha sido simpático e conversara com ele, o que evitara que a segurança do hotel desconfiasse, e foi atrás do casal. Quando saiu, eles tinham desaparecido.

 

Caetano percorreu o carreiro sinuoso que se estendia no meio de árvores floridas e arbustos altos. Não estava preocupado por não poder ver o casal, pois presumia que se tinham dirigido para o quarto, e sabia exactamente onde se situava a suite 108. Enquanto andava, lamentou as instruções para não confrontar o professor no hotel. Teria sido muito mais fácil do que ter de esperar que o homem saísse do local.

 

Caetano avistou os seus alvos no momento em que estes entravam no edifício. Caminhou para o lado do oceano e encontrou uma rede estrategicamente situada esticada entre duas palmeiras. Depois de pendurar o blusão numa das cordas, subiu cautelosamente. Daquele ponto privilegiado, podia ver se eles fossem para a praia, para a piscina ou para qualquer outra das atracções do hotel. Não podia fazer muito mais a não ser esperar e rezar para que os planos deles os afastassem do hotel.

 

À medida que os minutos passavam, a pulsação de Caetano voltou ao normal, embora ainda estivesse empolgado com a antecipação de acção física iminente. Estava tão confortável como podia imaginar, com a cabeça encostada a uma pequena almofada de lona presa à rede e um pé no chão para se baloiçar suavemente. Apenas um pouco de sol passava pelas copas das palmeiras por cima da sua cabeça, o que era uma dádiva dos deuses. Se estivesse a apanhar sol directamente, teria assado.

 

Uma mulher com um biquini reduzido e um páreo transparente passou por ele e sorriu. Caetano acenou-lhe e quase caiu. Que se lembrasse, nunca estivera anteriormente numa rede, e como estava esticada entre as árvores não era tão firme como ele imaginara. Achou melhor agarrar-se aos dois lados.

 

Estava prestes a correr o risco de ver as horas quando avistou o casal. Em vez de se dirigirem para a praia, seguiam pelo carreiro na direcção do átrio. Mais importante, estavam vestidos como antes. Caetano não quis agoirar, mas vestidos como estavam de certeza que não iam para a piscina, e talvez se preparassem para sair novamente do hotel.

 

Ao tentar sair rapidamente da rede, Caetano fê-la virar ao contrário e estatelou-se ignominiosamente de cara para baixo, no meio do chão. Levantou-se e ficou ainda mais embaraçado quando descobriu que diversos miúdos pequenos e a mãe tinham assistido à queda.

 

Sacudiu as folhas de relva que se tinham agarrado à parte da frente das calças e apanhou os óculos de sol. Ficou irritado ao ver que os miúdos tinham sorrisos nos rostos à sua custa, e por um segundo pensou dar-lhes uma lição sobre respeito. Felizmente, a família afastou-se, embora um dos fedelhos tivesse olhado por cima do ombro com um sorriso trocista ainda colado no rosto. Caetano fez-lhe um gesto feio com o dedo. Depois, pegou no blusão e foi atrás do casal.

 

Desta vez, Caetano correu pois agora era importante mantê-los debaixo de olho. Apanhou-os antes de chegarem ao edifício central e abrandou para marcha. Estava a respirar pesadamente. Quando eles entraram no átrio, Caetano ia mesmo atrás deles. Estava suficientemente perto para ouvi-los falar. Também estava suficientemente perto para apreciar que Stephanie era ainda mais atraente do que a fotografia sugeria.

 

Podes mandar trazer o carro estava Stephanie a dizer. Eu saio já. Quero perguntar na recepção se precisamos de fazer uma reserva para jantar, esta noite, na esplanada.

 

Está bem disse Daniel agradavelmente.

 

Suprimindo um sorriso para esconder o deleite, Caetano mudou de direcção e saiu do átrio pela porta por onde acabara de entrar. A andar depressa, dirigiu-se para o parque de estacionamento e entrou no Cherokee. Depois de ligar o motor, voltou para a frente do hotel e posicionou o carro de forma a poder ver a rotunda e a porta principal. Directamente à frente da entrada do hotel encontrava-se um Mercury Marquis, azul, com o motor ligado. Stephanie apareceu vinda do interior e entrou para o banco da frente.

 

Boa! disse Caetano alegremente, em voz alta. Olhou para o relógio. Eram três e um quarto. De repente, as coisas pareciam começar a encaixar-se.

 

O Mercury Marquis arrancou e passou directamente à frente de Caetano. Caetano arrancou atrás, a princípio suficientemente próximo para decorar a matrícula. Depois aumentou a distância.

 

Que é que achaste da minha conversa com o padre Maloney? perguntou Stephanie.

 

Estou tão confuso em relação a ele como estava no dia em que saímos de Turim.

 

Eu também concordou Stephanie. Esperava que ele fosse um pouco mais falador do que em Itália em relação à intervenção divina e a ele ser simplesmente um servo de Nosso Senhor. Mas, hei, pelo menos, supostamente ele tratou de tudo para que a nossa bagagem seja enviada para cá. Sendo nós fugitivos e com o que sei sobre bagagens perdidas, só pode ter havido intervenção divina.

 

Talvez, mas como não temos a menor ideia de quando é que as malas vão chegar, não nos adianta muito a curto prazo.

 

Bem, eu vou pensar positivamente que vai ser rápido, por isso as minhas compras vão restringir-se a um fato de banho e algumas peças básicas.

 

Daniel entrou na zona de estacionamento da rua de lojas e conduziu ao longo das montras, parando diante de uma loja de roupas femininas imediatamente adjacente a uma loja de roupas de homem. As duas montras estavam muito bem feitas. As roupas pareciam europeias.

 

Que conveniente comentou Daniel enquanto estacionava o carro. Olhou para o relógio. Encontramo-nos no carro daqui a meia hora.

 

Parece-me bem disse Stephanie, e saiu do veículo.

 

Com os batimentos cardíacos novamente acelerados como quando vira o casal a entrar no hotel, Caetano enfiou o jipe num lugar de estacionamento que proporcionava uma saída directa para a rua e, portanto, directamente para a ponte que dava acesso a Nassau. No seu tipo de trabalho, era sempre importante ter uma saída rápida. Desligou o motor e olhou para trás por cima do ombro. Observou o casal a separar-se. O professor entrou num pronto-a-vestir de homem, enquanto a irmã de Tony se dirigiu para uma loja de roupas de mulher mesmo ao lado.

 

Caetano nem queria acreditar na sua sorte. A questão de como lidar com a mulher enquanto transmitia a mensagem ao professor preocupara-o, uma vez que fora expressamente avisado para a deixar fora da acção. Agora, ela não seria um problema, desde que o professor lhe proporcionasse uma oportunidade adequada, enquanto estivesse sozinho. Sem saber ao certo quanto tempo é que ele ia estar sozinho, Caetano saltou para fora do Cherokee. Enquanto acelerava o passo para uma corrida ligeira, o seu fervor de antecipação aumentou. Para ele, as manobras necessárias enquanto encurralava um alvo eram como os preliminares num ciclo de excitação, e a violência dali resultante aproximava-se muito de um orgasmo. Na verdade, para ele a experiência era semelhante ao sexo, mas melhor.

 

Daniel sentiu um alívio enorme ao ficar sozinho, mesmo que fosse apenas por trinta minutos. As choraminguices de Stephanie por causa da sua consciência estavam a dar-lhe cabo dos nervos. Descobrir que Spencer Wingate e companhia estavam metidos em actividades questionáveis não fora uma surpresa, especialmente depois do que ela lhe dissera que soubera sobre eles na pesquisa que fizera na Internet. Esperava que a rectidão actual e aborrecida dela, não a fizesse perder a noção dos seus objectivos e os atrapalhasse. Podia passar sem ela, mas falara a verdade quando admitira que ela era melhor do que ele na manipulação celular.

 

Daniel não gostava de fazer compras e quando entrou na loja, pensou que ia despachar-se rapidamente para poder voltar para o carro e ficar sentado a descansar. Só queria comprar alguma roupa interior, um fato de banho e algumas roupas apropriadas para trabalhar, como calças de caqui e camisas de meia manga. Em Londres, Stephanie convencera-o a comprar calças formais, duas camisas de cerimónia e um casaco de tweed, por isso nesse departamento estava bem.

 

O interior da loja era surpreendentemente grande, apesar da montra modesta, pois era funda. Logo à entrada havia uma grande secção de golfe e uma mais pequena de ténis, e as roupas para o dia-a-dia estavam ao fundo. A temperatura era agradavelmente fresca. O ar estava perfumado de colónia com o odor de tecidos novos. Música clássica fluía de uma imensidão de colunas de parede. A decoração era decididamente sofisticada, com muito mogno escuro, gravuras de cavalos e carpetes verde-escuras. Havia uma meia dúzia de clientes, todos na zona dos artigos de golfe. Cada um deles estava a ser auxiliado por um empregado.

 

Ninguém veio cumprimentar Daniel, e ele preferia assim. Empregados de balcão intrometidos irritavam-no sempre com os seus modos condescendentes, como se fossem parangonas do bom gosto. Em questões de roupa, Daniel era extremamente conservador. Essencialmente, usava o que usara durante os anos de faculdade. Sozinho, passou pela secção de desporto e dirigiu-se para o fundo da loja.

 

Como sabia que ia ser fácil, começou a procurar o fato de banho. Encontrou a secção certa e o seu número. Depois de ver alguns no expositor onde se encontravam dúzias, escolheu uns calções lisos, azul-escuros, de tamanho médio. Achou que iam servir na perfeição. Imediatamente adjacente aos fatos de banho era a secção de roupa interior. Ele era um homem clássico, e encontrou o seu tamanho sem qualquer dificuldade.

 

Com apenas alguns dos seus trinta minutos de descanso gastos, Daniel dirigiu-se para a secção das camisas. Passou pela maioria, que tinham motivos florais de cores fortes e tropicais, e parou junto às clássicas de meia manga. Encontrou o seu tamanho e pegou em duas azuis. Com o fato de banho, a roupa interior e as camisas na mão, encaminhou-se para a secção das calças. Foi igualmente difícil encontrar caquis simples, mas conseguiu, embora em relação às calças não tivesse a certeza do número. Com relutância, pegou em diversas de números diferentes e procurou os provadores. Encontrou-os mesmo ao fundo da loja, depois da secção deserta de fatos e blusões.

 

Havia quatro cubículos dispostos ao longo da parede do fundo de uma sala de provas, com painéis de mogno. Entrava-se na sala de provas empurrando um par de portas de vaivém. As paredes do fundo estavam forradas com espelhos. Cada cubículo tinha uma porta almofadada que estava aberta. O primeiro provador à direita tinha o dobro do tamanho dos outros três, e Daniel dirigiu-se para lá.

 

No interior, encontrou uma cadeira de costas altas, diversos cabides para pendurar roupas e um espelho do chão ao tecto. Daniel fechou e trancou a porta, pousou as coisas que queria comprar na cadeira e pendurou as calças nos ganchos. Depois de descalçar os sapatos, desapertou o cinto e despiu as calças. Pegou no primeiro par de calças e preparava-se para as experimentar quando um forte estrondo precedeu a rude abertura a pontapé da porta do cubículo, com tanta força que esta se esmagou contra a parede e o puxador perfurou a placa de estuque. O coração de Daniel saltou para a garganta e um fraco gemido escapou-lhe dos lábios.

 

Literalmente apanhado com as calças em baixo, limitou-se a olhar para o enorme intruso, que fechou a porta, apesar de a fechadura estar desfeita. O homem aproximou-se então do sobressaltado Daniel, que olhou para um par de olhos escuros e metálicos que saíam de uma cabeça grande de mais, emoldurada com cabelos pretos cortados curtos. Antes de Daniel poder reagir, as calças que estava a segurar foram-lhe arrancadas e atiradas para o lado.

 

No preciso momento em que Daniel conseguiu voz para iniciar um protesto, um punho surgiu do nada e esmagou-se na sua face, rompendo capilares no nariz e esmagando outros na pálpebra inferior direita. Atirado para trás, Daniel chocou contra o espelho antes de cair, sentado, com as pernas amontoadas por baixo do corpo. A imagem do atacante nadava diante dele. Apenas parcialmente consciente do que estava a acontecer e sem oferecer resistência, Daniel foi erguido antes de ser atirado para a cadeira de costas altas em cima das roupas que pretendera comprar. Sentia o sangue a escorrer do nariz, e mal via com o olho direito.

 

Escuta, cretino rugiu Caetano. Aproximou a cabeça do rosto de Daniel. Vou abreviar. Os meus patrões, os irmãos Castigliano, em nome de todos os accionistas da merda da tua empresa, querem que voltes para o norte e ponhas a empresa novamente nos eixos. Estás a ouvir?

 

Daniel tentou falar, mas as suas cordas vocais não reagiram. Em vez disso, acenou com a cabeça.

 

Não é uma mensagem complicada continuou Caetano. Eles sentem que é um desrespeito tu andares a pavonear-te aqui ao sol, enquanto os cem mil que eles investiram se estão a evaporar.

 

Nós estamos a tentar... conseguiu Daniel dizer, mas a voz não passou de um guincho estridente.

 

Sim, tenho a certeza de que estão a tentar troçou Caetano. Tu e a tua namorada boazona. Mas os meus patrões não acham isso, e preferiam de longe que tentasses em Boston. E, quer a empresa vá à falência quer não, os meus patrões querem o seu dinheiro de volta, independentemente dos advogados finórios que arranjares. Compreendes?

 

Sim, mas...

 

Não há mas, nem meio mas interrompeu Caetano. Eu estou a deixar isto perfeitamente claro. Tens de me dizer que compreendes! Sim ou não?

 

Sim guinchou Daniel.

 

Muito bem disse Caetano. Só para ter a certeza, quero que penses em mais uma coisa.

 

Sem aviso, bateu novamente em Daniel. Desta vez, foi do lado esquerdo da cabeça deste mas, em contraste com o primeiro golpe, Caetano usou a mão aberta. Não obstante, foi uma pancada poderosa, com força suficiente para arrancar Daniel da cadeira, como um boneco de trapos, e atirá-lo ao chão.

 

A face de Daniel estava a latejar, e uma campainha estridente apitava-lhe no ouvido. Sentiu Caetano empurrá-lo com o pé antes de lhe puxar uma mão cheia de cabelos e levantar-lhe a cabeça da carpete. Daniel abriu os olhos. Espreitou para a imagem do atacante a pairar sobre ele.

 

Posso ter a certeza de que compreendeste a mensagem?perguntou Caetano. Porque quero que saibas que podia ter-te magoado muito. Espero que compreendas isso. Mas neste momento, não te queremos tão magoado que não possas levantar a empresa. Claro que isso poderá mudar se tiver de sair novamente de Boston para voltar aqui. Estás a perceber onde quero chegar?

 

Já percebi a mensagem guinchou Daniel.

 

Caetano soltou-lhe os cabelos e a cabeça caiu para a carpete. Daniel manteve os olhos fechados.

 

Por enquanto, é tudo disse Caetano. Espero não ter de te fazer mais nenhuma visita.

 

Instantes depois, Daniel ouviu a porta da sala de provas a chiar, enquanto abria e fechava. Ficou tudo em silêncio.

 

 

15,20, quinta-feira, 28 de Fevereiro de 2002

Daniel abriu os olhos depois de ficar completamente imóvel, durante alguns minutos. Estava sozinho no provador, mas ouviu vozes abafadas do outro lado da porta. Aparentemente, um vendedor estava a indicar um dos outros cubículos a um cliente. Daniel conseguiu sentar-se e olhou-se ao espelho. O lado esquerdo do rosto estava muito encarnado e um fio de sangue escorria do nariz para o canto da boca, antes de correr para o queixo. O olho direito estava a começar a inchar e a ficar fechado e tinha uma tonalidade arroxeada.

 

Cautelosamente, Daniel apalpou o nariz e a face direita com a ponta do dedo indicador. Estava tudo mole, mas não havia uma dor lancinante nem saliências ósseas suspeitas que sugerissem que sofrera uma fractura. Levantou-se e, depois de um momento de tontura, sentiu-se razoavelmente bem, exceptuando uma forte dor de cabeça, pernas bambas e uma sensação de nervosismo palpitante, como se tivesse acabado de beber cinco chávenas de café. Levantou a mão, que tremia terrivelmente. O episódio aterrorizara-o; nunca se sentira tão vulnerável em toda a sua vida.

 

Apesar do equilíbrio instável, Daniel conseguiu vestir as calças. Limpou o sangue do rosto com as costas da mão. Durante o processo, reparou que sofrera um corte na face interna da bochecha. Com cuidado, explorou a zona com a língua. Felizmente, achou que não era suficientemente grande para precisar de pontos. Depois, alisou os cabelos ralos no cimo da cabeça penteando-os com os dedos. Abriu a porta e saiu para a sala de provas.

 

Boa tarde disse um vendedor nativo, muito bem vestido e com um forte sotaque inglês. Usava um fato às riscas, alegrado com um lenço de bolso de seda colorida, que parecia ter explodido do bolso do peito.

 

Estava encostado à parede com os braços cruzados à espera de que o cliente saísse do provador. Olhou para Daniel com as sobrancelhas arqueadas, intrigado, mas não disse mais nada.

 

Com receio do som da sua voz, Daniel limitou-se a acenar enquanto tentava esboçar um sorriso. Começou a avançar sobre pernas inseguras, extremamente consciente do seu tremor. Estava com receio de parecer embriagado. Mas quanto mais caminhava, mais fácil se tornou. Ficou aliviado quando o vendedor não o confrontou. Daniel queria evitar qualquer conversa. A única coisa que queria era sair da loja.

 

Quando chegou à porta que dava para a rua, estava confiante de que estava a andar normalmente. Abriu a porta e enfiou a cabeça no calor da tarde soalheira. Um olhar rápido para o parque de estacionamento convenceu-o de que o seu atacante musculoso já se tinha ido embora há muito tempo. Espreitou pela montra da loja de roupas de senhora e viu Stephanie a fazer compras alegremente. Com a certeza de que ela estava bem, Daniel dirigiu-se em linha recta para o Mercury Marquis.

 

Uma vez dentro do carro, Daniel baixou os vidros para permitir que a brisa refrescasse o calor infernal que se concentrara durante o curto espaço de tempo em que estivera na loja. Suspirou; sabia bem estar sentado no ambiente familiar do seu carro alugado. Virou o espelho retrovisor na sua direcção e examinou-se com mais atenção. Estava especialmente preocupado com o olho direito, que estava agora quase fechado. No entanto, viu que a córnea estava limpa e que não havia sangue na câmara anterior, embora houvesse algumas hemorragias na esclerótica. Como passara algum tempo na sala de emergências durante o internato, sabia algumas coisas sobre traumatismos faciais em especial, sobre um problema chamado fractura difusa da órbita. Para se certificar de que isso não acontecera, verificou para ver se via a dobrar, especialmente quando olhava para cima e para baixo. Felizmente, não via. Por isso, reposicionou o espelho retrovisor e sentou-se confortavelmente para esperar Stephanie.

 

Cerca de um quarto de hora mais tarde, Stephanie emergiu da loja de roupas femininas com diversos sacos na mão. Protegendo os olhos do sol, olhou na direcção de Daniel. Daniel reagiu, esticando a mão pela janela aberta e acenando. Ela acenou também e aproximou-se a correr. Agora que tivera alguns minutos para pensar na agressão de que fora vítima e na sua possível origem, o seu estado mental alterara-se da ansiedade para a raiva, e uma porção significativa dessa raiva dirigia-se contra Stephanie e a sua família de mafiosos. Embora não lhe tivessem esmagado os joelhos, o modus operandi assemelhava-se terrivelmente à Mafia, o que lhe trouxe imediatamente ao pensamento o irmão acusado de Stephanie. Não fazia a menor ideia de quem eram os irmãos Castigliano, mas ia descobrir.

 

Stephanie parou primeiro à porta de trás do lado do passageiro, abriu-a e atirou os sacos para o banco de trás.

 

Como é que te saíste? perguntou ela, alegremente. Devo dizer que me correu melhor do que esperava bateu com a porta de trás e sentou-se no lugar da frente, sem parar de falar sobre as suas compras. Fechou a porta e pegou no cinto de segurança antes de olhar para Daniel. Quando o fez, parou a conversa a meio de uma frase. Meu Deus! Que é que aconteceu ao teu olho? perguntou.

 

É muito simpático da tua parte reparares disse Daniel, trocista. Obviamente, levei uma tareia. Mas, antes de entrarmos nos pormenores pouco atraentes, tenho uma pergunta para te fazer. Quem são os irmãos Castigliano?

 

Stephanie olhou para Daniel, reparando não só no olho inchado como também no inchaço encarnado na face e no sangue seco, ao longo do rebordo das narinas. Quis esticar a mão e tocar-lhe, mas conteve-se. Viu a raiva reflectida no único olho que podia ver e ouviu-a no tom de voz dele. Para além do mais, o nome Castigliano e o significado que implicava paralisou-a momentaneamente. Baixou os olhos para as mãos, que estavam pousadas no colo.

 

Há mais alguma coisa importante que não te apeteceu contar-me? continuou Daniel, com igual sarcasmo. Quero dizer, para além do teu irmão ter sido acusado de extorsão depois de se tornar investidor. Repito, quem diabo são os Castigliano?

 

A mente de Stephanie estava a raciocinar rapidamente. Era verdade que não lhe contara que o irmão canalizara metade do investimento através de outras fontes. Não tinha desculpa para não ter sido mais franca, especialmente porque a notícia a perturbara, e este segundo lapso, relacionado com o primeiro, fê-la sentir-se como uma ladra apanhada duas vezes no mesmo acto criminoso.

 

Pensei que, pelo menos, podíamos ter uma conversa disse Daniel, quando Stephanie não respondeu.

 

Podemos, e vamos ter disse Stephanie inesperadamente. Olhou para Daniel. Nunca se sentira tão culpada em toda a sua vida. Ele tinha-se magoado, e ela não podia deixar de aceitar que uma parte importante da responsabilidade era sua.

 

Mas primeiro diz-me se estás bem.

 

Tão bem como se pode esperar, dadas as circunstâncias. Daniel ligou o carro e recuou para sair do lugar de estacionamento.

 

Achas melhor ir ao hospital para seres visto por um médico? perguntou Stephanie.

 

Não! Não é necessário. Vou sobreviver.

 

E à polícia?

 

Um não ainda mais categórico! Ir à polícia, que poderia investigar, poria em risco os nossos planos para tratar Butler. Daniel seguiu para a saída do parque de estacionamento.

 

Talvez seja mais um presságio em relação a todo este caso. Tens a certeza de que não queres desistir desta cruzada arriscada?

 

Daniel lançou-lhe um olhar zangado e trocista.

 

Não posso acreditar que sugeriste uma coisa dessas. De maneira nenhuma! Não estou disposto a virar-me para o outro lado e desistir de tudo aquilo para que trabalhámos só porque um par de mafiosos mandaram o capanga brutamontes para me transmitir uma mensagem.

 

Ele falou contigo?

 

Entre golpes.

 

Qual foi a mensagem ao certo?

 

Para citar o senhor músculos, querem que eu volte para Boston e ponha novamente a empresa nos eixos. Daniel entrou na estrada e acelerou. Alguns dos nossos accionistas souberam que estamos em Nassau e pensam que estamos aqui de férias.

 

Vamos voltar para o hotel?

 

Uma vez que perdi o entusiasmo pelas compras, quero pôr um pouco de gelo neste meu olho.

 

Tens a certeza de que não precisas de ir ao médico? O teu olho parece bastante mal.

 

Provavelmente vai ser uma surpresa para ti, mas devo lembrar-te que sou médico.

 

Estou a referir-me a um médico a sério, que exerça.

 

Muito engraçado, e peço desculpa por não me rir!

 

Percorreram em silêncio a curta distância que os separava do hotel. Daniel estacionou o carro no parque. Saíram. Stephanie tirou os sacos do banco de trás. Não sabia bem o que dizer.

 

Os irmãos Castigliano são conhecidos do meu irmão Tonyadmitiu por fim, quando se dirigiam para o edifício onde se situava o quarto.

 

Por que será que não estou surpreendido?

 

Para além disso, não sei quem são e nunca os conheci. Abriram a porta da suite. Stephanie atirou os sacos de compras para um canto. Embora se sentisse culpada, não sabia como lidar com a ira justificada de Daniel.

 

Por que é que não entras e te sentas? propôs solicitamente. Eu vou buscar o gelo.

 

Daniel estendeu-se no sofá da sala de estar, mas sentou-se quase de imediato. Estar deitado fazia a cabeça latejar. Stephanie entrou com uma toalha, que enrolara sobre uma mão cheia de cubos de gelo que tirara do balde que se encontrava na bancada por cima do mini-bar. Entregou o saco de gelo improvisado a Daniel, que o pousou cuidadosamente sobre o olho inchado.

 

Queres um analgésico? perguntou Stephanie.

 

Daniel acenou afirmativamente e ela trouxe vários comprimidos e um copo de água.

 

Enquanto Daniel tomava o analgésico, Stephanie sentou-se no sofá e aconchegou os pés debaixo do corpo. Depois, contou-lhe os pormenores da conversa que tivera com Tony na tarde do dia em que tinham partido para Turim. Concluiu, pedindo-lhe desculpas sentidas por não lhe ter contado. Explicou que, com tudo o que estava a acontecer naquela altura, lhe parecera coisa de pouca importância.

 

Ia contar-te quando voltássemos de Nassau e quando recebêssemos a segunda fase do financiamento, porque quero tratar os duzentos mil do meu irmão como um empréstimo e devolvê-los com juros. No futuro, não o quero nem a nenhum dos seus sócios envolvidos com a CURA.

 

Bem, pelo menos concordamos com alguma coisa.

 

Vais aceitar o meu pedido de desculpas?

 

Acho que sim disse Daniel, sem grande entusiasmo. Então, o teu irmão avisou-te contra vires para cá?

 

Avisou admitiu Stephanie, porque eu não pude dizer-lhe porquê. Mas não passou de um aviso genérico, e certamente sem ameaças. Devo dizer que ainda é difícil para mim acreditar que ele está envolvido na tua agressão.

 

Oh, a sério? disse Daniel sarcasticamente. Começa a acreditar, porque ele tem de estar envolvido! Quero dizer, se não foi o teu irmão a dizer a esses Castigliano, como é que eles saberiam que estamos em Nassau? Não pode ser coincidência este gorila ter aparecido aqui um dia depois de chegarmos. Obviamente, depois de telefonares à tua mãe a noite passada, ela telefonou para o teu irmão e ele telefonou para os amiguinhos. E acho que não preciso de te lembrar como ficaste furiosa quando eu falei no assunto de possível violência, quando se lida com pessoas envolvidas em banditismo?

 

Stephanie corou ao recordar-se. Era verdade; ficara furiosa. Com súbita determinação, pegou no telemóvel, abriu-o e começou a marcar um número. Daniel agarrou-lhe no braço.

 

Para quem é que vais telefonar?

 

Para o meu irmão disse Stephanie, irada. Sentou-se para trás com o telefone colado à orelha. Tinha os lábios apertados em furiosa determinação.

 

Daniel inclinou-se na direcção de Stephanie e tirou-lhe o telefone. Apesar do ataque de raiva e da aparente determinação, ela não ofereceu resistência. Daniel fechou o telefone e atirou-o para a mesa de apoio.

 

Neste momento, a última coisa que devemos fazer é telefonar para o teu irmão recostou-se muito direito, mantendo o gelo encostado ao olho.

 

Mas eu quero confrontá-lo. Se ele esteve verdadeiramente envolvido, não vou deixá-lo ficar a rir-se. Sinto-me traída pela minha própria família.

 

Estás zangada?

 

É claro que estou zangada retorquiu Stephanie.

 

Eu também disse Daniel bruscamente. Mas fui eu que levei uma tareia, não tu.

 

Ela baixou os olhos.

 

Tens razão. Tu mereces estar muito mais perturbado do que eu.

 

Preciso de te fazer uma pergunta disse Daniel. Ajustou o gelo. Há cerca de uma hora, disseste que ias pensar na possibilidade de voltares para casa para apaziguar a tua consciência em relação a trabalhar com pessoas como o Paul Saunders e o Spencer Wingate. Com este novo desenvolvimento, tenho de saber agora se pretendes ir ou não.

 

Stephanie olhou fugazmente para Daniel. Abanou a cabeça e soltou uma gargalhada breve e embaraçada.

 

Depois do que aconteceu, e embora me sinta muito culpada, não me poderia ir embora de forma alguma.

 

Bem, isso é um alívio declarou Daniel. Talvez exista um lado bom em todas as coisas, mesmo em levar uma tareia de um gorila.


Lamento profundamente que estejas magoado disse Stephanie. A sério. Mais do que tu pensas.

 

Está bem, está bem repetiu Daniel. Apertou o joelho de Stephanie num gesto tranquilizador. Agora que sei que vais ficar, eis o que acho que devíamos fazer. Acho que devíamos fingir que este pequeno episódio da minha tareia nunca aconteceu, o que significa que não haverá nenhum telefonema furioso para o teu irmão e nem sequer para a tua mãe. Os futuros telefonemas para a tua mãe vão realçar que tu e eu não estamos aqui de férias, mas a trabalhar duramente para salvar a CURA. Diz-lhe que vamos demorar três semanas e depois voltamos para casa.

 

E quanto ao bandido que te atacou? Não temos de nos preocupar com a volta dele?

 

É uma preocupação, mas aparentemente é um risco que temos de correr. Ele não é das Bahamas, e calculo que já está novamente a caminho de Boston. Disse que se tivesse de sair de Boston para vir cá novamente, e passo a citar, me magoaria a sério o que me leva a crer que a Nova Inglaterra é o seu paradeiro habitual. Ao mesmo tempo, disse-me que não me queria ferido a ponto de não poder voltar a levantar a empresa, o que quer dizer que eles têm algum interesse no meu bem-estar, apesar do estado em que me encontro neste momento. Mas, mais importante, espero que as tuas conversas telefónicas com a tua mãe, que serão sem dúvida comunicadas ao teu irmão, convençam os Castigliano de que vale a pena esperar três semanas.

 

Devemos mudar de hotel, uma vez que eu disse à minha mãe que estamos aqui?

 

Pensei nisso enquanto estava sentado no carro, à espera que tu saísses da loja. Até pensei em aceitar a oferta do Paul para ficarmos na Clínica Wingate.

 

Oh, céus! Isso seria como saltar da frigideira para o lume.

 

Eu também não gostaria de ficar lá. Já vai ser suficientemente mau ter de aturar aqueles charlatães durante o dia. Por isso acho que devíamos ficar aqui, a menos que isso vá deixar-te doida. Não quero repetir a experiência da última noite que passámos em Turim. Eu acho que devíamos ficar atentos mas sem sairmos do hotel, a não ser para ir para a Clínica Wingate, que, a partir de amanhã, é onde vamos passar a maior parte do tempo. Concordas?

 

Stephanie acenou afirmativamente algumas vezes enquanto interiorizava tudo o que Daniel dissera.

 

Concordas ou não? perguntou Daniel. Não estás a dizer nada. De repente, Stephanie levantou as mãos para o céu num acesso de frustração emocional.

 

Credo, não sei o que pensar. O facto de tu seres atacado só contribuiu para aumentar a minha inquietação em relação a todo este caso do Butler. Desde o primeiro dia que temos sido obrigados a julgar pessoas sobre as quais pouco ou nada sabemos.

 

Espera um segundo! resmungou Daniel. O seu rosto, já encarnado, ficou ainda mais ruborizado, e a sua voz, que tinha começado baixa, começou a subir progressivamente. Não estamos a debater novamente se vamos ou não tratar Butler. Isso já foi decidido. A nossa conversa actual é sobre a logística a partir de agora, e ponto final!

 

Está bem, está bem! exclamou Stephanie. Esticou-se e pousou uma mão no braço dele. Acalma-te! Está bem! Vamos ficar aqui e esperar que as coisas se resolvam pelo melhor.

 

Daniel respirou fundo algumas vezes antes de dizer:

 

Também acho que devíamos tomar providências para estarmos sempre juntos.

 

De que é que estás a falar?

 

Acho que não foi por acaso que o gorila me atacou, quando eu estava sozinho. Obviamente, o teu irmão não quer que te magoem; se não, ambos teríamos levado uma tareia, ou quando muito eu é que seria agredido, mas tu terias de assistir a tudo. Acho que o homem esperou até eu estar sozinho; assim sendo, estou comvencido de que se ficarmos sempre juntos quando estivermos fora do quarto teremos alguma segurança.

 

Talvez tenhas razão resmungou Stephanie. A sua cabeça estava confusa. Por um lado, sentia-se aliviada por Daniel não ter feito uma referência negativa ao relacionamento de ambos quando mencionara que ficariam juntos enquanto, por outro lado, ainda lhe era difícil admitir que o irmão podia ter alguma coisa a ver com a violência que Daniel sofrera.

 

Podes ir buscar mais gelo? pediu Daniel. Este já está quase derretido.

 

Claro disse Stephanie. Ficou aliviada por ter alguma coisa para fazer. Levou a toalha encharcada e substituiu-a por uma limpa que foi buscar à casa de banho. Depois, voltou ao balde de gelo do bar. Quando entregou o embrulho de gelo novo a Daniel, o telefone que estava na mesa de apoio começou a tocar. Durante alguns instantes, o som repetitivo inundou a sala silenciosa. Nem Daniel nem Stephanie se mexeram. Ficaram ambos a olhar para o telefone?

 

Quem diabo poderá ser? perguntou Daniel, depois do quarto toque. Colocou o gelo no olho.

 

Não há muitas pessoas que saibam que estamos aquidisse Stephanie. Atendo?

 

É melhor disse Daniel. Se for a tua mãe ou o teu irmão, lembra-te do que te disse há pouco.

 

E se for a pessoa que te atacou?

 

Isso é altamente improvável. Atende, mas descontraída! Se for o bandido, desliga. Não tentes falar com ele.

 

Stephanie dirigiu-se para o telefone, levantou o auscultador e tentou falar normalmente enquanto fitava Daniel. Este observou as sobrancelhas dela erguerem-se ligeiramente enquanto escutava. Passados alguns instantes, Daniel balbuciou, «Quem é?». Stephanie levantou a mão e fez-lhe sinal para esperar. Por fim, disse:

 

Maravilhoso! E obrigada depois, escutou novamente. Distraída, enrolou o fio no dedo. Após uma pausa, disse, É muito simpático da sua parte, mas esta noite não é possível. Na verdade, não será possível em noite nenhuma a seguir despediu-se num tom distante e desligou o telefone. Fitou Daniel novamente, mas durante alguns instantes, não falou.

 

Bem? Quem era? perguntou Daniel. Estava a deixar-se levar pela curiosidade.

 

Era Spencer Wingate. Stephanie abanou a cabeça, espantada.

 

Que é que ele queria?

 

Queria dizer-nos que localizou a nossa encomenda e que tratou de tudo para que seja entregue, amanhã de manhã, cedo.

 

Vivam os pequenos favores. Isso significa que podemos começar a criar as células de tratamento de Butler. Mas foi uma conversa grande de mais para um recado tão curto. Que mais é que ele queria?

 

Stephanie soltou uma gargalhada triste.

 

Queria saber se eu gostaria de ir jantar à casa dele em Lyford Cay. Por muito estranho que possa parecer, deixou claro que o convite era apenas para mim e não para o casal. Não posso acreditar. Foi como se ele estivesse a tentar engatar-me.

 

Bem, vejamos as coisas pelo lado bom; pelo menos, tem bom gosto.

 

Não estou a achar graça disse Stephanie.

 

Vê-sedisse Daniel.Mas não esqueçamos os nossos objectivos.

 

 

11.30, segunda-feira, 11 de Março de 2002

Ocasionalmente, Daniel tinha de reconhecer o mérito onde ele existia. Sem dúvida que Stephanie era muito melhor do que ele na manipulação celular, e essa realidade foi realçada pelo que estava agora a observar num microscópio electrónico de dissecação com duas cabeças. Ele e Stephanie tinham colocado o aparelho na esquina da bancada de trabalho que lhes fora atribuída na Clínica Wingate para Daniel poder observar, enquanto Stephanie trabalhava. Stephanie estava prestes a iniciar o processo de transferência nuclear, também conhecido como clonagem terapêutica, extraindo o núcleo de um ovócito maduro cujo ADN fora manchado com um corante fluorescente. Já tinha a célula do óvulo humano fixada por sucção e presa com uma pipeta tensora com as pontas embotadas.

 

Tu fazes isto parecer tão fácil comentou Daniel.

 

É fácil respondeu Stephanie, enquanto guiava uma segunda pipeta para o campo microscópico com um micromanipulador. Em contraste com a pipeta tensora, a extremidade daquela pipeta era tão aguçada como a agulha mais fina, e a pipeta em si tinha apenas vinte e cinco milionésimos de metro de diâmetro.

 

Talvez seja fácil para ti, mas não é para mim.

 

O truque é não apressar as coisas. Tudo tem de ser lento e sem variações, e nada brusco.

 

Para atestar as suas palavras, a pipeta aguçada moveu-se suavemente e no entanto, com determinação para o ovócito fixado e foi encostada à camada exterior da célula sem a penetrar.

 

Esta é a parte em que eu faço invariavelmente asneira declarou Daniel. Metade das vezes, perfuro a célula e passo para o outro lado.

 

Talvez seja porque estás ansioso de mais. E, portanto, tens a mão um pouco pesada sugeriu Stephanie. Depois de a célula estar devidamente recortada, basta um ligeiro toque com o dedo indicador no cimo do micromanipulador.

 

Tu não usas o micromanipulador para fazer a punção?

 

Nunca.

 

Stephanie efectuou a manobra com o dedo indicador, e no campo microscópico a pipeta foi vista a entrar sem problemas no citoplasma da célula do óvulo.

 

Bem, vivendo e aprendendo disse Daniel. Só prova que eu não passo de um amador nesta área.

 

Stephanie desviou os olhos dos oculares para olhar para Daniel. Não era nada característico dele menosprezar-se.

 

Não sejas tão duro contigo. Isto é trabalho técnico, e tiveste sempre técnicos especializados para o fazer. Eu aprendi a fazer isto quando estava no último ano da faculdade.

 

Pois disse Daniel sem olhar para cima.

 

Stephanie encolheu os ombros e voltou a olhar para o microscópio.

 

Agora, uso o micromanipulador para aproximar o ADN fluorescente disse ela. A ponta da pipeta aproximou-se do alvo, e quando Stephanie aplicou uma quantidade mínima de sucção, o ADN desapareceu no tubo da pipeta como se esta fosse um aspirador em miniatura.

 

Também não sou bom nessa parte disse Daniel. Acho que sugo demasiado citoplasma.

 

É importante apanhar apenas o ADN disse Stephanie.

 

De cada vez que observo esta técnica, fico mais surpreendido por funcionar comentou Daniel. A minha imagem mental da estrutura interna submicroscópica de uma célula viva é semelhante a uma casa de vidro em miniatura. Como é que conseguimos rasgar o núcleo pela raiz e fazer tudo funcionar? É difícil imaginar uma coisa assim.

 

Não apenas funcionar, mas levar o núcleo adulto que colocamos lá dentro a tornar-se novamente jovem.

 

Isso também concordou Daniel. Deixa-me dizer-te que o processo de transferência nuclear desafia a crença.

 

Não podia estar mais de acordo disse Stephanie. Para mim, a improbabilidade do seu funcionamento é a prova do envolvimento de Deus no processo, o que abala ainda mais o meu agnosticismo do que quando soubemos do Sudário de Turim. Enquanto falava, conduziu uma terceira pipeta para o campo do microscópio. A pipeta tinha no tubo uma única célula de fíbroblasto da cultura de fibroblastos de Butler: uma célula cujo núcleo ancestral Daniel manipulara a duras penas, primeiro através da RSTH, para substituir os genes responsáveis pela doença de Parkinson do senador, e depois com um gene acrescentado por sugestão de Stephanie para um antigénio de superfície especial. O ADN nuclear desse fibroblasto ia substituir o ADN que ela removera da célula do óvulo.

 

Enquanto observava as manipulações habilidosas de Stephanie, Daniel maravilhou-se com o que ele e ela tinham conseguido fazer na semana e meia, desde o ataque do bandido de Boston. Felizmente, os ferimentos físicos tinham sarado e quase não passavam de uma recordação, com excepção de um hematoma residual na face direita e da lembrança agora amarela e verde do seu olho pisado. Infelizmente, Daniel ainda sofria dos danos psicológicos. Queimada na retina da sua mente, pairava uma imagem da cabeça gigante do atacante com as suas orelhas minúsculas e feições bolbosas. Mais perturbador era o sorriso perverso do bandido e os seus olhos cruéis e salientes. Mesmo ao fim de onze dias, Daniel ainda tinha pesadelos recorrentes com aquele rosto horrível e a sensação de profunda vulnerabilidade desprotegida que ele provocava.

 

Durante o dia, Daniel passava melhor do que durante o sono. Como ele e Stephanie tinham combinado imediatamente depois do episódio, faziam questão de andar juntos, quase como se fossem gémeos siameses, e não saíam do recinto do hotel a não ser para ir para a Clínica Wingate. Afinal, o plano dificilmente foi uma imposição, já que passavam todos os dias, desde o nascer ao pôr do Sol, no laboratório. Ali, Megan Finnigan tinha sido extremamente atenciosa, proporcionando-lhes um pequeno gabinete para além da bancada no laboratório. Ter espaço para espalhar a papelada e as folhas de registo foi uma dádiva dos deuses e uma bênção para a sua eficiência. Até Paul Saunders ajudara, cumprindo a sua palavra e fornecendo os ovócitos humanos, doze horas depois de estes terem sido pedidos.

 

No começo, houvera uma divisão conveniente de trabalho entre Daniel e Stephanie. Inicialmente, ela trabalhou com a cultura de fibroblastos enviada por Peter. Descongelou-a e colocou-a a crescer sem grandes percalços. Concorrentemente, Daniel atacou a solução salina que continha a amostra do sudário. Após uma única passagem pelo PCR para aumentar o ADN presente no fluido, Daniel determinou que o ADN existente era de um primata e provavelmente humano, embora decididamente fragmentado, como ele esperava.

 

Depois de um processo de purificação através da utilização de contas de vidro microscópicas, Daniel passou os fragmentos isolados de ADN do sudário pelo PCR mais algumas vezes antes de utilizar as suas sondas de genes dopaminérgicos. Teve sucesso imediato, mas apenas com partes dos genes necessários, uma situação que requeria a sequenciação das falhas. Após vários dias de dezasseis horas, Daniel conseguiu ligar os fragmentos apropriados com ligases nucleotídicos para formar os genes. Nesse ponto, estava pronto para os fibroblastos de Ashley Butler, que Stephanie já tinha devidamente disponíveis.

 

A RSTH foi o passo seguinte, e decorreu praticamente sem nenhuma dificuldade. Como tinha desenvolvido o procedimento, Daniel estava intimamente consciente das suas subtilezas e armadilhas, mas sob a sua mão segura, as enzimas e vectores virais funcionaram perfeitamente, e em breve tinha diversos fibroblastos prontos. O único problema fora Paul Saunders, que insistira em observar cada movimento seu e, muitas vezes, só atrapalhava. Paul admitiu descaradamente que pretendia acrescentar a técnica ao regime de terapia de células estaminais da Wingate, com a ideia de cobrar muito mais dinheiro aos pacientes. Teimosamente, Daniel tentou ignorá-lo e mordia a língua para se impedir de mandar o imbecil para fora do laboratório, mas era difícil.

 

Depois de a RSTH estar concluída, Daniel achou que estavam prontos para fazer a transferência nuclear, mas Stephanie surpreendeu-o com a sugestão de transferirem igualmente para célula alterada pela RSTH um construtor edicsone, isto é, diversos genes combinados, capazes de criar um antigénio de superfície não humana, único nas células de tratamento. Stephanie explicou que se alguma vez houvesse necessidade ou interesse de visualizar as células de tratamento no interior do cérebro de Butler após o implante, isso poderia ser feito facilmente, uma vez que as células de tratamento teriam um antigénio que nenhum dos outros triliões de células de Butler tinha. Daniel ficara impressionado com a ideia e concordara com o passo adicional, especialmente depois de Stephanie lhe ter dito que tivera a ideia de pedir a Peter para mandar o construtor e o seu vector viral do laboratório de Cambridge juntamente com a cultura de tecido de Butler. Daniel e Stephanie tinham usado a mesma técnica no tratamento bem sucedido com os ratos afectados com Parkinson, e fora uma adição valiosa para o protocolo.

 

Eu utilizo sempre o micromanipulador para este passo disse Stephanie, arrancando Daniel das suas reflexões. A pipeta que continha o fibroblasto alterado de Butler perfurou o invólucro do ovócito sem furar a membrana celular subjacente.

 

Eu também tenho dificuldades com esta parte admitiu Daniel. Observou Stephanie a injectar o fibroblasto relativamente minúsculo no espaço entre a membrana celular do óvulo e a sua cobertura exterior comparativamente grossa. Depois, a pipeta desapareceu do ângulo de visão.

 

O truque aqui é aproximar do invólucro do ovócito tangencialmente disse Stephanie. Se não, pode entrar inadvertidamente na célula.

 

Isso faz sentido.

 

Bem, eu diria que está muito bem disse Stephanie, depois de observar o seu trabalho. A célula granular do óvulo adequadamente enucleada e o fibroblasto comparativamente minúsculo estavam presos num abraço íntimo dentro do invólucro do ovócito. Chegou o momento do processo de fusão e depois da activação.

 

Stephanie afastou-se dos oculares do microscópio e extraiu a lamela de debaixo da objectiva do microscópio. Desceu do banco e dirigiu-se para a câmara de fusão, onde submeteria as células unidas a um breve choque eléctrico para as fundir.

 

Daniel ficou a observá-la. Para além dos pesadelos recorrentes desde a tareia que levara do capanga dos Castigliano, Daniel debatia-se com outras sequelas psicológicas da experiência. Durante os primeiros dias, sentira ansiedade contínua e medo de que o homem reaparecesse, apesar do que

dissera com toda a segurança a Stephanie, imediatamente a seguir ao acontecimento. O que o hotel fez depois de Daniel ter informado a administração do que lhe tinha acontecido, também não ajudou. O gerente do hotel ofereceu-se para colocar um segurança no edifício de Daniel e Stephanie, durante uma semana. Todas as noites, o homem acompanhava

Daniel e Stephanie até ao quarto depois de eles acabarem de jantar na

esplanada, e o indivíduo intimidantemente grande ficava a vigiar no corredor até Daniel e Stephanie saírem para a Clínica Wingate de manhã.

À medida que os dias foram passando e o medo de Daniel foi

diminuindo, a sua raiva em relação ao acontecimento desvaneceu-se e uma quantidade significativa dessa raiva foi canalizada para Stephanie. Embora ela tivesse pedido desculpa e tivesse sido sinceramente solidária no começo,

 

Daniel exasperava-se com a dúvida que ela não deixava de ter em relação ao papel da família no acontecimento. Não tinha expressado as suas dúvidas directamente, mas Daniel ficara com essa sensação devido a comentários indirectos. Com uma família tão estranha e com falta de senso para lidar com eles, Daniel não podia deixar de se questionar se Stephanie seria uma responsabilidade demasiado grande no futuro.

 

A rectidão de Stephanie também era um problema. Embora tivesse prometido não fazer ondas com as pessoas da Wingate, estava a fazê-lo constantemente com comentários inconvenientes sobre a suposta terapia de células estaminais deles e até com perguntas inconvenientes sobre as jovens mulheres nativas grávidas que trabalhavam na clínica, que era um assunto extremamente melindroso para Paul Saunders. Ainda por cima, tratava Spencer Wingate com um desprezo enorme. Daniel reconhecia que o homem estava a ser cada vez mais audacioso a expressar o seu interesse social por Stephanie, um facto que talvez tivesse sido influenciado pela passividade de Daniel perante os comentários de Spencer e, no entanto, havia formas menos rudes de lidar com a situação do que a que ela estava a escolher. Daniel estava profundamente irritado porque Stephanie não parecia conseguir compreender que o seu comportamento estava potencialmente a colocar tudo em perigo. Se ela e Daniel fossem corridos dali, estava tudo acabado.

 

Daniel suspirou enquanto observava Stephanie a trabalhar. Embora estivesse com dúvidas quanto à sua colaboração a longo prazo, não tinha qualquer dúvida de que era necessária a curto prazo. Só faltavam onze dias para a chegada de Ashley Butler à ilha, e nesse tempo tinham de desenvolver neurónios produtores de dopamina a partir dos fíbroblastos do senador para tratar o homem. Estavam a fazer progressos com a RSTH e com a transferência nuclear já efectuada, mas ainda tinham um longo caminho para percorrer. A perícia de Stephanie com a manipulação celular era extremamente necessária, e não havia tempo para substituí-la.

 

Stephanie sentiu os olhos de Daniel nas suas costas. Reconheceu que o seu sentimento de culpa e a sua confusão em relação ao papel da família no ataque a Daniel a tornavam extremamente sensível mas, no entanto, ele não estava a comportar-se como sempre. Só podia adivinhar o que ele devia ter sentido ao ser espancado, mas esperara que se recompusesse mais depressa. Pelo contrário, ele ainda agia friamente com ela de muitas maneiras subtis, e embora continuassem a dormir na mesma cama não tinham qualquer tipo de intimidade. Aquele comportamento fez ressurgir a antiga preocupação de que Daniel era incapaz ou não estava motivado para oferecer o tipo de apoio emocional que ela sentia necessitar, particularmente em períodos de tensão, independentemente de qual fosse a causa ou de quem fosse a culpa.

 

Stephanie seguira as instruções de Daniel à risca, por isso não podia haver explicação para o comportamento dele. Apesar de uma vontade pungente de telefonar para o irmão, não o fez. E nas conversas relativamente frequentes que tinha com a mãe, fez questão de realçar que ela e Daniel estavam em Nassau a trabalhar, e que estavam a trabalhar muito, o que era certamente verdade. Para dar mais força às suas palavras, disse que não tinham ido à praia uma única vez, o que também era verdade. Para além do mais, em múltiplas ocasiões, referira que acabariam em breve e que voltariam para casa por volta do dia 25 de Março para uma empresa financeiramente estável. Evitara cuidadosamente abordar o assunto do irmão com a mãe, embora num telefonema no dia anterior tivesse finalmente cedido à tentação.

 

Tony perguntou por mim? perguntara no tom mais descontraído que conseguiu.

 

É claro, querida respondera Thea. O teu irmão preocupa-se contigo e está sempre a perguntar por ti.

 

Quais são as palavras exactas que ele usa?

 

Não me recordo das palavras exactas. Ele sente saudades tuas. Só quer saber quando é que vais voltar para casa.

 

E que é que a mãe lhe diz?

 

Digo-lhe o que tu me contas. Porquê? Devia dizer alguma coisa diferente?

 

Claro que nãocomentara Stephanie. Diga-lhe que vamos voltar para casa daqui a menos de duas semanas, e que estou cheia de saudades dele. E diga-lhe que o nosso trabalho está a correr extremamente bem.

 

Em muitos aspectos, Stephanie estava agradecida por ela e Daniel estarem a trabalhar tanto. Reduzia a oportunidade de se angustiar com problemas emocionais e também diminuía a hipótese de questionar a validade de tratarem Butler. Os pressentimentos em relação ao caso tinham aumentado, graças à agressão a Daniel e à sua necessidade de fechar os olhos à depravação dos directores da Wingate. Paul Saunders era de longe o pior. Ela sentia que ele não tinha consciência, nem a ética mais rudimentar, e era burro. Os resultados compilados do programa de terapia com células estaminais, que ele criara, eram uma piada de mau gosto. Não passavam de uma colecção de descrições de casos individuais e dos resultados subjectivos. Não havia um mínimo de método científico envolvido, e a parte mais perturbadora era que Paul não parecia aperceber-se ou importar-se.

 

Spencer Wingate era outra história, mas era mais chato do que assustador, como o pretenso cientista Paul. Stephanie não teria gostado de ser apanhada sem companhia em casa de Spencer, como os seus convites insistentes propunham. O problema era que a sua devassidão era sustentada por um ego que não podia conceber que os seus avanços fossem rejeitados. No começo, Stephanie tentara ser razoavelmente delicada com as desculpas, mas acabou por ter de ser franca nas recusas, especialmente depois de se tornar aparente que era indiferente para Daniel. Alguns dos convites mais escandalosamente atrevidos tinham sido feitos na presença de Daniel, sem reacção dele.

 

Como se as personalidades e comportamento daqueles médicos charlatães especialistas no tratamento da infertilidade não bastassem para fazer Stephanie questionar-se quanto à conveniência de trabalhar na clínica, havia a questão da origem dos ovócitos humanos. Procurou fazer investigações discretas mas foi repelida por toda a gente, excepto pela técnica de laboratório, Maré. Maré também não foi muito eloquente, mas pelo menos disse que os gamelas vinham da sala de óvulos dirigida por Cindy Drexler, que se localizava na cave. Quando Stephanie pediu explicações sobre o que era a sala de óvulos, Maré não adiantou mais nada e disse-lhe para perguntar a Megan Finnigan, a supervisora do laboratório. Infelizmente, Megan já fizera eco das palavras de Paul dizendo que a proveniência dos óvulos era um segredo do negócio. Quando Stephanie abordou Cindy Drexler, esta disse-lhe educadamente que todas as questões sobre os óvulos tinham de ser dirigidas ao Dr. Saunders.

 

Stephanie mudou de táctica e tentou falar com várias das mulheres jovens que trabalhavam na cafetaria. Elas foram simpáticas e conversadoras até Stephanie tentar levar a conversa para o seu estado civil, e nesse ponto tornaram-se tímidas e evasivas. Quando Stephanie tentou falar sobre as suas gravidezes, ficaram caladas e reticentes, o que só contribuiu para aguçar ainda mais a curiosidade de Stephanie. Segundo a opinião de Stephanie, não era preciso ser um cientista espacial para adivinhar o que estava a acontecer, e, apesar das ordens de Daniel em contrário, pretendia provar tudo para si mesma. A sua ideia era que, armada com essas informações, poderia alertar anonimamente as autoridades das Bahamas depois de ela, Daniel e Butler terem partido há algum tempo.

 

Stephanie precisava de entrar na sala dos óvulos. Infelizmente, ainda não tivera oportunidade, pois ela e Daniel tinham estado muito ocupados, mas nas horas seguintes, isso ia mudar. O óvulo que estava a fundir actualmente com um dos fibroblastos de Butler alterados pela RSTH tinha sido uma substituição de um dos dez óvulos originais que Paul Saunders fornecera. O óvulo de substituição não se dividira após a transferência celular. Honrando a garantia dada, Paul providenciara um décimo primeiro óvulo. Os outros nove óvulos originais estavam a dividir-se bem, depois de terem recebido os novos núcleos. Alguns já estavam no quinto dia e começavam a formar blastocistos.

 

O plano que Stephanie e Daniel tinham delineado era criar dez linhas de células estaminais separadas, cada uma englobando clones celulares de Ashley Butler. Os dez contribuiriam com células que seriam diferenciadas em neurónios produtores de dopamina. A redundância décupla destinava-se a servir de rede de segurança, uma vez que só uma das linhas celulares seria utilizada para tratar o senador.

 

Talvez ao fim da tarde, ou mais provavelmente na manhã seguinte, Stephanie daria início ao processo de colher as células estaminais multipotenciais dos blastocistos em formação, mas até lá teria algum tempo livre. O único problema seria afastar-se de Daniel mas permanecer no interior da segurança da Clínica Wingate, e graças ao afastamento emocional dele achou que não seria um problema inultrapassável, embora fora da clínica, ele se recusasse a estar longe dela.

 

Como é que correu a fusão? perguntou Daniel de onde estava sentado.

 

Parece-me bem respondeu Stephanie, a espreitar para a estrutura pela lente do microscópio. O ovócito tinha agora um núcleo novo com um complemento completo de cromossomas. Seguindo um processo místico, que ninguém compreendia ainda, o óvulo começaria agora a reprogramar misteriosamente o núcleo para os seus deveres de controlador de uma célula de pele adulta para um estado primordial. No espaço de horas, a estrutura imitaria um óvulo recentemente fertilizado. Para iniciar a conversão, Stephanie transferiu com cautela o ovócito artificialmente alterado para o primeiro de diversos meios de activação.

 

Tens tanta fome como eu? perguntou Daniel.

 

Provavelmente respondeu Stephanie. Olhou para o relógio. Não admirava. Era quase meio-dia. A última vez que comera alguma coisa eram seis horas da manhã, e apenas um pequeno-almoço continental de torradas e café.Podemos ir à cafetaria quando eu colocar este óvulo na incubadora. Só precisa de mais quatro minutos neste meio.

 

Parece-me bem disse Daniel. Deslizou do banco alto e desapareceu no gabinete para despir a bata de laboratório.

 

Quando Stephanie preparava o meio de activação seguinte para o óvulo reconstruído, tentou arranjar uma desculpa para voltar sozinha para o laboratório durante o almoço. Seria uma boa altura para um pouco de investigação, já que quase toda a gente almoçava entre o meio-dia e a uma hora, incluindo a técnica da sala dos óvulos, Cindy Drexler. A hora do almoço era um momento importante de socialização para os funcionários da clínica. O primeiro pensamento de Stephanie foi dizer que precisava de verificar o processo de activação do décimo primeiro óvulo, mas descartou rapidamente a ideia; Daniel ficaria desconfiado. Sabia que depois de o óvulo estar no segundo meio de activação ficava seis horas na incubadora, sem ser mexido.

 

Stephanie precisava de outra desculpa e não lhe estava a ocorrer nada até que se lembrou do telemóvel. Especialmente depois da agressão de que Daniel fora vítima, ela era compulsiva em relação a tê-lo consigo, e Daniel sabia-o. Havia diversos motivos para aquela compulsão, e um deles era que dissera à mãe para lhe ligar para o telemóvel e não para o hotel. Mas como falara com a mãe nessa manhã e estava, portanto, tranquila por não haver uma emergência iminente com o seu estado de saúde, Stephanie não estava preocupada por perder um telefonema na próxima meia hora. Depois de olhar para o gabinete minúsculo para se certificar de que Daniel não estava a olhar, tirou o minúsculo Motorola do bolso, desligou-o e pousou-o na prateleira dos reagentes por cima da bancada do laboratório.

 

Satisfeita com o seu plano, Stephanie concentrou-se novamente no processo de activação. Dali a trinta segundos, chegaria o momento de mudar o óvulo do primeiro meio para o seguinte.

 

Então? perguntou Daniel, reaparecendo sem a bata. Estás pronta?

 

Dá-me mais dois minutos. Vou transferir o óvulo e colocá-lo na incubadora, e depois podemos ir.

 

Parece-me bem replicou Daniel. Enquanto esperava, aproximou-se da incubadora e olhou para os outros contentores, alguns dos quais estavam ali há cinco dias. Alguns destes já devem estar prontos para se fazer a colheita de células estaminais esta tarde.

 

Eu estava a pensar no mesmo respondeu Stephanie. Cautelosamente, transportou o óvulo recém-reconstruído para a incubadora, para o colocar junto dos outros.

 

Kurt Hermann deixou os pés cair ao chão, num movimento incaracteristicamente brusco e não controlado. Tinham estado pendurados no tampo da bancada da sala de vídeo. Ao mesmo tempo, sentou-se muito direito, fazendo a cadeira da secretária recuar um pouco. Recuperando a serenidade desenvolvida em muitos anos de treino de artes marciais, puxou-se para a frente de uma forma lenta e deliberada para se aproximar mais do ecrã que estivera a observar na última hora. Nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Tinha acontecido tão depressa, mas parecia que Stephanie D’Agostino tirara o telemóvel a que Kurt andava a tentar deitar a mão há uma semana e o colocara deliberadamente atrás de alguns frascos de reagentes na prateleira por cima da bancada do laboratório. Era como se estivesse a escondê-lo.

 

Com o botão de cima do joy stick ligado à minicâmara que ele estava a observar, Kurt aproximou a imagem. Usando o próprio joystick, manteve a câmara direccionada para o que esperava que fosse o telefone. Era! A sua ponta de plástico preta e saliente era visível atrás de um frasco de ácido clorídrico.

 

Confuso com aquele desenvolvimento inesperado mas prometedor, Kurt recuou a imagem e percebeu que Stephanie desaparecera do ângulo da câmara. Usando novamente o joystick, inspeccionou o aposento e descobriu rapidamente Stephanie e Daniel diante de uma das incubadoras. Aumentou o volume de som e esforçou-se para ouvir, não fosse ela mencionar o telefone, coisa que não aconteceu. Estavam a falar sobre ir almoçar, e alguns minutos depois saíram do laboratório.

 

Os olhos de Kurt ergueram-se para o ecrã por cima daquele para o qual ele estivera a olhar. Viu o casal a sair do edifício número um e começar a atravessar o pátio principal, em direcção ao edifício número três.

 

Durante a construção da clínica, Paul Saunders dera carta branca ao chefe de segurança para a tornar segura, na esperança de evitar uma catástrofe semelhante à que ocorrera na clínica em Massachusetts, em que um par de delatoras tinham acedido sem autorização à base de dados da clínica. Como tinham conseguido obter acesso não autorizado à sala do servidor do computador e tinham fugido sem ser apanhadas depois da invasão, Kurt certificara-se de que todo o complexo novo estava abrangido por um sistema de vídeo e audio. As câmaras e os microfones eram de tecnologia de ponta, integrados num sistema computadorizado e totalmente discretos. Sem o conhecimento de Paul, Kurt mandara incluí-los nos lavabos, nos apartamentos de hóspedes e na maioria dos apartamentos dos funcionários, onde estavam escondidos em variadas instalações eléctricas. Tudo podia ser visto nos monitores da sala de vídeo do gabinete de Kurt, e à noite, ele divertia-se a ver alguns, mesmo quando não estava necessariamente em causa a segurança. Claro que Kurt poderia argumentar o contrário, pois numa organização como a Clínica Wingate era importante saber quem andava a dormir com quem.

 

Kurt continuou a observar Daniel e Stephanie até eles entrarem no edifício número três, embora os seus olhos estivessem pousados essencialmente em Stephanie. Ao longo da última semana e meia viciara-se em observá-la, apesar da ambivalência que ela evocava. Ele sentia-se simultaneamente atraído e repelido pela sua sensualidade inata. Tal como acontecia com as mulheres em geral, apreciava a beleza dela e no entanto, ao mesmo tempo, reconhecia as qualidades de Eva. Kurt observara-a a fazer e a receber telefonemas no laboratório, e embora ouvisse frequentemente o lado dela da conversa era incapaz de ouvir a pessoa que estava do outro lado da linha. Consequentemente, não conseguira dar a Paul Saunders o nome do paciente, como tinha prometido, e Kurt gostava de cumprir as suas promessas.

 

A atitude de Kurt em relação às mulheres tinha sido adulterada pela maior traidora, a mãe. Ela e ele tinham tido um relacionamento íntimo, encorajado pelas longas ausências do seu pai frio e disciplinador, que exigia perfeição da mulher e do filho, mas só reconhecia o fracasso. O pai precedera Kurt nas Forças Especiais do exército, e como Kurt, que tinha acabado por seguir os seus passos, fora treinado para ser um assassino em operações clandestinas. Mas, quando Kurt tinha treze anos, o pai tinha sido morto numa operação secreta no Cambodja, durante as últimas semanas da Guerra do Vietname. A reacção de mãe tinha sido como a de um pássaro libertado de uma gaiola. Ignorando a confusão emocional de desgosto e alívio de Kurt, entregou-se a uma profusão de casos, cujas intimidades Kurt tinha de aguentar audivelmente através da parede fina da casa na base do exército. No espaço de meses, a mãe de Kurt consumou os seus encontros fanáticos casando com um vendedor de seguros muito imbecil, que o rapaz desprezava. Kurt sentiu que todas as mulheres, especialmente as atraentes, eram como a mãe mitologizada da sua juventude, a conspirar para o enganar através da sedução, para lhe tirar a força e depois abandoná-lo.

 

Logo que Daniel e Stephanie desapareceram no interior do edifício número três, os olhos de Kurt moveram-se automaticamente para o monitor doze e esperaram que eles aparecessem na cafetaria. Quando eles foram para a fila da comida, Kurt levantou-se e entrou no seu gabinete. Tirou o blusão fino de seda preta das costas da cadeira e vestiu-o sobre a T-shirt preta. Vestiu o blusão para esconder o coldre da pistola que usava sempre ao fundo das costas. Arregaçou as mangas acima dos cotovelos. Do canto da secretária, pegou na caixa que continha o minúsculo alarme para o telemóvel que estava ansioso para implantar no telefone de Stephanie, e no aparelho de monitorização. Também pegou no conjunto de ferramentas de joalheiro, que incluía um delicado ferro de soldar e uma lupa de relojoeiro.

 

Movendo-se como um felino, saiu de uma porta da cave do edifício dois com o equipamento e as ferramentas na mão e encaminhou-se para o edifício um. Minutos depois, estava junto à bancada do laboratório que fora emprestada a Daniel e Stephanie. Após um olhar rápido em todas as direcções, para ter a certeza de que estava sozinho no laboratório, pegou no telefone, colocou a lupa e começou a trabalhar.

 

Em menos de cinco minutos, o alarme estava colocado e testado. Kurt estava a colocar a capa de plástico do telemóvel quando ouviu a porta distante do laboratório a abrir com força. Esperando ver um dos funcionários do laboratório ou, possivelmente, Paul Saunders, inclinou-se e espreitou por baixo da prateleira dos reagentes para a entrada que ficava a uns vinte e cinco metros de distância. Para sua profunda surpresa, foi Stephanie quem chegou e estava a aproximar-se com passos rápidos e determinados.

 

Por um breve segundo de pânico, Kurt pensou no que devia fazer. Mas o treino prevaleceu, e ele recuperou rapidamente a compostura de sempre.

 

Acabou de arranjar o telefone encaixando a tampa no lugar e depois colocou-o na sua posição original atrás do frasco de ácido clorídrico. Em seguida, concentrou-se nas ferramentas de joalheiro, no dispositivo de monitorização e na lupa. O mais silenciosamente possível, guardou tudo numa gaveta e fechou-a com a anca. Stephanie D’Agostino estava agora a menos de seis metros e a aproximar-se rapidamente. Kurt recuou, a pensar deixar a bancada do laboratório e a prateleira que a encimava entre ele e a investigadora. Não era grande protecção, e ela vê-lo-ia seguramente, mas não havia mais opções.

 

Na verdade, Tony estava muito aborrecido por ter de faltar a um bom almoço, que era um dos pontos altos do seu dia, quando foi fazer mais uma visita à suja loja de artigos de canalização dos irmãos Castigliano. O cheiro a ovos podres do pântano também não ajudava nada, embora com a temperatura mais baixa constituísse um problema menor do que na sua última visita, uma semana e meia antes. Pelo menos, era mais fácil visitar aquele pardieiro a meio do dia do que à noite, uma vez que não tinha de se preocupar com a possibilidade de tropeçar em algum pedaço de sucata espalhado pela parte da frente da loja. A parte boa era que tinha motivos para pensar que esta seria a sua última visita, pelo menos, relacionada com o problema da CURA.

 

Tony atravessou a porta da entrada e dirigiu-se para o escritório das traseiras. Caetano desviou os olhos de um par de clientes que estava a atender no balcão da frente e acenou um cumprimento. Tony ignorou-o. Se Caetano tivesse feito bem o seu trabalho, ele não estaria a caminhar naquele momento entre prateleiras cheias de canos, com o cheiro de ovos podres a infiltrar-se no seu nariz. Em vez disso, estaria sentado à sua mesa preferida no restaurante Blue Grotto na Rua Hanover, a beberricar um copo de Chianti de 97, enquanto escolhia a massa que iria comer. Quando os capangas lixavam tudo, ele ficava profundamente irritado, porque acabava sempre por ficar com a vida lixada. À medida que ia ficando mais velho, tinha ficado progressivamente mais crente no velho ditado, «Se queres alguma coisa bem feita, tens de ser tu a fazê-la».

 

Tony abriu a porta do gabinete das traseiras, entrou e fechou a porta com força. Lou e Sal estavam sentados às suas secretárias, a comer pizza. Um forte arrepio de náusea desceu pela coluna de Tony. Odiava o cheiro de anchovas, especialmente quando combinado com o aroma residual de ovos podres.

 

Vocês têm um problema anunciou Tony. Apertou os lábios numa expressão retorcida de descontentamento e abanou a cabeça como um daqueles bonecos com a forma de cão que alguns automobilistas colocam junto aos vidros de trás dos carros. Mas para garantir que não estava a insinuar qualquer desrespeito aos gémeos, aproximou-se de cada um deles para um aperto de mão rápido e forte antes de recuar para o sofá e sentar-se. Desabotoou o casaco, mas deixou-o vestido. Só pretendia ficar por alguns minutos. O que ia dizer não era nada complicado.

 

Qual é o problema? perguntou Lou com a boca cheia de pizza.

 

Caetano fez asneira. O que fez em Nassau não teve qualquer efeito. Zero!

 

Estás a gozar.

 

Estou com cara de quem está a gozar? Tony franziu a testa e abriu muito as mãos.

 

Estás a dizer-nos que o professor e a tua irmã não voltaram?

 

É mais do que isso disse Tony, trocista. Não só não voltaram, como as medidas de Caetano, fossem elas quais fossem, nem sequer foram dignas de uma única palavra da minha irmã para a minha mãe, e elas falam quase todos os dias.

 

Espera um segundo! exclamou Sal. Estás a dizer que a tua irmã não disse que tinham tido um pequeno problema nem que o namorado se magoou? Nada de nada?

 

Absolutamente nada! Nicles! A única coisa que sei é que está tudo a correr às mil maravilhas no paraíso.

 

Isso não condiz com o que Caetano disse declarou Lou, e acho difícil acreditar, uma vez que normalmente ele exagera na parte física.

 

Bem, neste caso, seguramente não exagerou nada disse Tony. Os pombinhos ainda estão lá, a descansar ao sol e a insistir, segundo a minha mãe, que vão ficar as três semanas ou o mês que tinham planeado originalmente. Entretanto, o meu contabilista diz que nada mudou em relação à espiral descendente da empresa. Ele insiste que dentro de um mês estarão falidos, por isso, adeus aos nossos duzentos mil.

 

Sal e Lou trocaram olhares de descrença, confusão e irritação crescente. Que é que Caetano disse que fez? perguntou Tony. Que deu umas palmadas nos pulsos do professor e lhe disse que ele estava a ser mau? Ou nem sequer foi a Nassau e disse que tinha ido? Tony cruzou os braços e as pernas e recostou-se no sofá.

 

Há alguma coisa esquisita em tudo isto! declarou Lou. Nada bate certo emborcou a fatia de pizza de anchovas e salsichas italianas, passou a língua pelo interior dos lábios para soltar os restos dos dentes, engoliu e inclinou-se para a frente para carregar num botão saliente no tampo da secretária. Uma campainha abafada soou do outro lado da porta que ligava o escritório à loja propriamente dita.

 

Caetano foi a Nassau! disse Sal. Nós temos a certeza. Tony acenou afirmativamente, com um esgar de descrença no rosto. Sabia que estava a enervar os gémeos, uma vez que eles acreditavam que dirigiam um navio estanque. A ideia era inflamar as suas paixões, e resultou. Quando Caetano enfiou a cabeça pela porta, os gémeos estavam com vontade de a arrancar.

 

Vem para dentro e fecha a porta disse Sal com brusquidão.

 

Tenho clientes no balcão queixou-se Caetano. Apontou por cima do ombro.

 

Não me interessa se é o presidente dos Estados Unidos que está lá fora, seu imbecil gritou Sal. Entra imediatamente! Para reforçar as suas palavras, Sal abriu a gaveta central da secretária, agarrou numa pistola.38 de cano curto e atirou-a para cima do mata-borrão.

 

A testa alta de Caetano franziu-se, enquanto ele obedecia. Tinha visto a pistola em diversas ocasiões e não estava nada preocupado, porque mostrar a arma era uma das subtilezas de Sal. Ao mesmo tempo, sabia que Sal estava lixado com alguma coisa, e Lou não parecia muito mais feliz. Caetano olhou para o sofá mas, com Tony a ocupar o meio, decidiu ficar de pé.

 

Que é que se passa? perguntou.

 

Queremos saber exactamente que raio fizeste em Nassau! disse Sal raivosamente.

 

Já vos disse afirmou Caetano. Fiz exactamente o que me disseram para fazer. Até consegui despachar o assunto num dia, que foi difícil, para ser franco.

 

Bem, talvez devesses ter ficado mais um dia disse Sal com desprezo. Aparentemente, o professor não percebeu a mensagem como nós queríamos.

 

Que é que disseste ao certo ao filho da mãe?perguntou Lou com igual veneno.

 

Para vir para cá e salvar a empresa disse Caetano. Raios, não foi complicado. Não é uma coisa que eu pudesse ter confundido, nem nada.

 

Deste-lhe umas sacudidelas? perguntou Sal.

 

Fiz muito mais do que dar-lhe umas sacudidelas. Espetei-lhe um bom murro para começar, que o deixou como um boneco de trapos, de tal maneira que tive de o levantar do chão. Sou capaz de lhe ter partido o nariz, mas não tenho a certeza. Sei que lhe deixei um olho negro. E, no fim, atirei-o da cadeira, depois da nossa pequena conversa.

 

E avisaste-o? perguntou Sal. Disseste-lhe que voltarias, se ele não regressasse a Boston para livrar a empresa da falência?

 

Sim! Disse-lhe que o magoaria a sério se tivesse de voltar, e não tenho qualquer dúvida de que ele percebeu a mensagem.

 

Sal e Lou olharam para Tony. Encolheram os ombros em uníssono.

 

Caetano não mente sobre este tipo de coisas disse Sal. Lou acenou afirmativamente, de acordo.

 

Bem, então o professor está a passar-nos a perna mais uma vez disse Tony. Certamente, não levou Caetano a sério e é óbvio que se está nas tintas para os nossos duzentos mil.

 

Durante alguns minutos, o silêncio reinou no escritório. Os quatro homens observaram-se uns aos outros. Era óbvio que todos estavam a pensar na mesma coisa. Tony estava à espera que outro abordasse o assunto, e por fim, Sal fez-lhe a vontade:

 

Ele está mesmo a pedi-las. Quero dizer, já tínhamos decidido que se ele não entrasse na linha, nós apagávamo-lo e deixávamos a irmã de Tony assumir a direcção da empresa.

 

Caetano disse Lou. Parece que vais voltar às Bahamas.

 

Quando? perguntou Caetano. Não se esqueçam de que vou ter de dar uma lição àquele oftalmologista imbecil de Newton, amanhã à noite.

 

Eu não me esqueci disse Lou. Olhou para o relógio. É apenas meio-dia e meia. Podes ir esta tarde via Miami, livrar-te do professor e voltar amanhã.

 

Caetano revirou os olhos.

 

Qual é o problema? perguntou Lou, trocista.Tens outras coisas para fazer?

 

Às vezes não é assim tão fácil apagar uma pessoa disse Caetano. Raios, primeiro tenho de encontrar o tipo.

 

Lou olhou para Tony.

 

Sabes onde é que a tua irmã e o namorado estão agora?

 

Sim, estão no mesmo hotel declarou Tony, com uma gargalhada de desprezo. É para verem como eles levaram a ameaça frouxa do Caetano a sério.

 

Já te disse que não foi frouxa insistiu Caetano. Dei uns bons murros no gajo.

 

Como é que sabes que eles estão no mesmo hotel? perguntou Lou.

 

Pela minha mãe disse Tony. Ela tem telefonado quase sempre à minha irmã para o telemóvel, mas disse-me que também ligou para o hotel uma vez que não conseguiu falar para o telemóvel. Os pombinhos não só estão no mesmo hotel, como continuam no mesmo quarto.

 

Muito bem, aí tens disse Lou para Caetano.

 

Posso fazer o serviço no hotel? perguntou Caetano. Isso vai facilitar muito as coisas.

 

Lou olhou para Sal. Sal olhou para Tony.

 

Não vejo por que não disse Tony com um encolher de ombros. Quero dizer, desde que a minha irmã não seja envolvida e desde que o serviço seja feito discretamente, sem espectáculo.

 

Nem é preciso dizer isso comentou Caetano. Estava a começar a gostar da ideia. Voltar para Nassau apenas por um dia podia envolver muitas horas de viagem, e dificilmente seriam umas férias ao sol, mas era capaz de ser engraçado. E quanto a uma pistola? Tem de ter silenciador.

 

Tenho a certeza de que os nossos amigos colombianos de Miami poderão providenciar uma disse Lou. Com tanta droga deles que passamos aqui em Miami, devem-nos esse favor.

 

Como é que a vou receber? perguntou Caetano.

 

Imagino que alguém irá ter contigo quando desembarcares em Nassau disse Lou. Vou tratar disso. Logo que saibas o número do voo que vais apanhar para a ilha, diz-me.

 

E se houver algum problema, e eu não conseguir uma pistola? perguntou Caetano. Se me querem de volta amanhã à noite, tem de correr tudo bem.

 

Se chegares e ninguém for ter contigo, telefona-me disse Lou.

 

Está bem disse Caetano, satisfeito. É melhor pôr-me a mexer.

 

 

12.11, segunda-feira, 11 de Março de 2002

A mensagem do cartaz era clara. Dizia: ACESSO RESTRITO, APENAS PESSOAL AUTORIZADO, A PROIBIÇÃO SERÁ ESTRITAMENTE CUMPRIDA. Stephanie parou por alguns instantes, a olhar para o aviso emoldurado e protegido com um vidro. Estava preso a uma porta ao lado de um elevador de carga. Era desta porta que Cindy Drexler saía sempre, e curiosamente, quando trazia os ovócitos para Stephanie e Daniel. Stephanie vira, obliquamente, o cartaz ao longe mas nunca se aproximara para o ler. Agora que o fizera, hesitou. Perguntou a si mesma o que significava a proibição ser estritamente cumprida, tendo em conta a tendência que os directores da Wingate tinham para o exagero no sector da segurança. Mas tinha vindo até ali e não estava disposta a voltar para trás e desistir apenas por causa de um aviso genérico impresso. Empurrou a porta. Esta abriu-se. Do outro lado, havia uma escada para o andar de baixo. Ocorreu-lhe o pensamento tranquilizador de que se estivessem tão preocupados com intrusos na sala dos óvulos, teriam fechado a porta das escadas à chave.

 

Com um último olhar rápido por cima do ombro para se certificar de que estava sozinha no laboratório, Stephanie atravessou a soleira da porta, que se fechou atrás de si. Sentiu de imediato um contraste com a frescura seca do ar condicionado do laboratório. No poço das escadas, o ar era consideravelmente mais quente e mais húmido. Começou a descer as escadas, movendo-se rapidamente, ajudada pelos sapatos baixos.

 

Stephanie estava a despachar-se o mais possível porque planeara conceder a si própria uns meros quinze minutos vinte, no máximo, para estar longe de Daniel. Olhou para o relógio enquanto descia; já tinham passado cinco minutos, apenas da cafetaria até ao local onde se encontrava naquele momento. O único desvio tinha sido para ir buscar o telemóvel. Não queria esquecer-se e voltar para a cafetaria sem ele, uma vez que tinha sido a desculpa para se ausentar. Daniel olhara-a de uma maneira esquisita quando ela se levantara de um salto a dizer que se tinha esquecido dele, pouco depois de se sentar com a refeição. Sabia que ele ficaria irritado se soubesse o que ela estava a planear.

 

Ao fundo das escadas, Stephanie parou. Encontrava-se num corredor curto e mal iluminado, com o elevador de carga numa parede e uma porta de aço inoxidável brilhante totalmente desprovida de qualquer dispositivo ao fundo. A porta não tinha puxador nem sequer fechadura. Stephanie aproximou-se e encostou a mão para empurrar. Sentiu-a quente ao toque, mas manteve-se completamente imóvel. Encostou a orelha à porta. Pareceu-lhe detectar um ligeiro ruído do outro lado.

 

Stephanie inclinou-se para trás e olhou para a periferia da porta lisa. A porta estava selada numa ombreira metálica com extrema precisão. Pôs-se de gatas e constatou que acontecia o mesmo na base. O cuidado com que a porta tinha sido colocada instigou a sua curiosidade já considerável. Levantou-se de novo, e com a parte lateral do punho bateu cuidadosamente na porta. Estava a tentar avaliar a espessura, que lhe pareceu considerável, uma vez que era sólida como uma rocha.

 

Bem, lá se vai a minha pequena investigação sussurrou Stephanie em voz alta. Abanou a cabeça, frustrada, enquanto deixava os olhos perscrutarem uma vez mais a periferia. Ficou surpreendida por não haver campainha nem sistema de intercomunicador, nem qualquer forma óbvia de abrir a porta ou comunicar com alguém no interior.

 

Com um último suspiro de exasperação acompanhado por uma expressão de descontentamento, virou-se para as escadas, reconhecendo que teria de engendrar outra estratégia se pretendia continuar a investigação clandestina. Mas só dera um passo quando os seus olhos captaram alguma coisa que lhe passara despercebida. Mal se vendo na parede oposta ao elevador de carga e bastante discreto naquela luz fraca, via-se um leitor de cartões minúsculo, com dez centímetros de comprimento por um centímetro e meio de largura. Stephanie não o vira antes, porque a sua atenção centrara-se na porta brilhante. Para além disso, o leitor de cartões era da mesma cor neutra da parede e estava a mais de um metro e meio da porta.

 

Megan Finnigan tinha pedido para Stephanie e Daniel terem cartões de identificação da Clínica Wingate. Cada um deles tinha uma Polaroid horrível e parecida com as que se estampam nas canecas, com uma banda magnética na parte de trás. Megan tinha-lhe dito que os cartões seriam mais importantes por questões de segurança quando a clínica estivesse com o número máximo de funcionários, altura em que seriam codificados para as necessidades individuais do portador. Entretanto, disse-lhes, os cartões eram necessários para entrar no armazém do laboratório se precisassem de produtos básicos.

 

Com a esperança remota de que o cartão de identificação pudesse funcionar para a sala dos óvulos nesta primeira fase de existência da clínica, Stephanie experimentou. Foi imediatamente recompensada pela abertura desta com um som abafado de ar comprimido. Ao mesmo tempo, Stephanie reparou que estava envolvida num brilho estranho que emanava da sala do outro lado, que calculou que seria uma mistura de luz incandescente e ultravioleta. Sentiu também um bafo de ar húmido e quente, e o ruído que tivera a sensação de ouvir antes quando encostara o ouvido à porta, era agora uma presença inequívoca.

 

Satisfeita com esta reviravolta inesperada mas bem-vinda da sorte, atravessou rapidamente a soleira da porta e encontrou-se no que parecia ser uma incubadora gigante. Com a temperatura aproximadamente nos trinta e sete graus, ou temperatura corporal, e a humidade a abeirar-se dos cem por cento, sentiu todo o seu corpo começar a transpirar. Embora usasse uma blusa sem mangas, tinha uma bata curta de laboratório sobre ela. Agora compreendia por que é que Cindy usava um fato-macaco especial de algodão leve.

 

Estantes semelhantes a prateleiras para livros, mas com pratos de cultura de tecidos formavam uma grelha semelhante às estantes de uma biblioteca. Cada uma tinha cerca de três metros de comprimento, eram feitas de alumínio com prateleiras ajustáveis e estendiam-se do chão de mosaico até ao tecto bastante baixo. Todos os pratos de cultura de tecidos mais próximos de Stephanie estavam vazios. À sua frente, via-se uma ala comprida, cujas prateleiras a faziam parecer um estúdio em perspectiva. Era tão comprida que uma neblina fina e húmida obscurecia o fundo distante. A avaliar pelo tamanho do local, era óbvio que a Wingate estava a preparar-se para uma capacidade de produção significativa.

 

Stephanie avançou em passos rápidos, olhando de um lado para o outro. Depois de dar trinta passos dentro da sala, parou quando encontrou uma prateleira que continha culturas de tecidos a crescer activamente, como era evidente pelos níveis de fluidos visíveis através dos contentores de vidros transparentes. Ergueu um. Escrito com um marcador na tampa lia-se Cultura de oogónia, acompanhado por uma data recente e um código alfanumérico.

 

Stephanie substituiu o prato e verificou outros na prateleira. Tinham datas diferentes e códigos diferentes. Saber que a Clínica Wingate estava a cultivar óvulos com aparente sucesso era simultaneamente interessante e perturbador por uma série de razões, mas não era o seu objectivo. O que ela queria era descobrir a origem das oogónias e dos ovócitos que eles estavam a cultivar e a amadurecer. Pensava que sabia, mas queria uma prova definitiva que pudesse transmitir a uma autoridade das Bahamas depois do tratamento de Butler e depois de ela, Daniel e Butler terem regressado ao continente. Olhou para o relógio. Já tinham passado oito minutos, que era metade do tempo que tinha previsto.

 

Com uma ansiedade crescente, Stephanie avançou, apressando o passo enquanto espreitava para os corredores laterais e olhava de relance para cada bloco de prateleiras por que passava. O problema era que não sabia o que procurava e a sala era enorme. Para piorar as coisas, começou a sentir uma leve sensação de falta de ar. Depois, ocorreu-lhe que a atmosfera na sala dos óvulos provavelmente tinha um nível elevado de dióxido de carbono para benefício das culturas de tecido.

 

Vinte passos depois, Stephanie parou de novo. Chegara a um conjunto de prateleiras com pratos de cultura únicos e aparentemente normalizados. Stephanie nunca tinha visto nada assim. Não só eram maiores e mais fundos do que era normal, como também tinham uma matriz interna embutida onde as células de cultura podiam crescer. Para além disso, estavam colocados em bases motorizadas para se manterem em movimento contínuo horizontal e circular, presumivelmente para circular o meio de cultura. Sem perder tempo, Stephanie aproximou-se e pegou num dos pratos. Na tampa lia-se OVÁRIO FETAL PICADO, VINTE E UMA SEMANAS DE GESTAÇÃO; OVÓCITOS PRESOS NUM ESTÁDIO DE PROFASE DIPLOTENE, novamente seguido de uma data e um código. Stephanie verificou os outros pratos da prateleira. Tal como as culturas de oogónias, tinham todos diferentes datas e códigos.

 

As prateleiras seguintes revelaram-se ainda mais interessantes. Albergavam pratos de culturas de tecidos ainda maiores e mais fundos, mas havia poucos em cada prateleira. A maior parte estavam vazios. Os que não estavam continham um fluido de crescimento médio que estava a ser circulado através de um complexo de tubos ligados a máquinas centrais, que pareciam unidades de diálise em miniatura e que, colectivamente, faziam o ruído de fundo que enchia a sala. Stephanie inclinou-se para a frente e espreitou para um dos pratos de cultura. Submerso no fluido estava um pedaço de tecido pequeno, ovóide e rasgado, com o tamanho e formato exactos de um bivalve. Vasos que saíam do órgão minúsculo estavam canalizados em tubos de plástico ínfimos que, por sua vez, estavam ligados a outra máquina ainda mais pequena. O órgão minúsculo estava a ser borrifado internamente ao mesmo tempo que estava submerso num meio de cultura continuamente a circular.

 

Stephanie espreitou para a prateleira para poder ver o topo do contentor sem o perturbar. Escrito com um marcador preto via-se OVÁRIO FETAL, VINTE SEMANAS DE GESTAÇÃO juntamente com uma data e um código. Apesar das implicações, não pôde deixar de ficar impressionada. Parecia que Saunders e a sua equipa estavam a manter ovários fetais intactos, pelo menos, durante alguns dias.

 

Stephanie endireitou-se novamente. Embora dificilmente constituísse uma prova definitiva, o que estava a descobrir na sala dos óvulos era certamente consistente com as suas suspeitas de que Paul Saunders e companhia, pagavam a jovens das Bahamas para estas serem fecundadas e depois abortarem aproximadamente às vinte semanas, para os ovários fetais serem colhidos. Com a sua experiência em embriologia, sabia uma coisa que a maioria dos leigos não sabiam, nomeadamente que o ovário minúsculo de um feto com vinte e uma semanas contém cerca de sete milhões de óvulos capazes de se tornarem ovócitos maduros. A maior parte desses óvulos estão destinados a desaparecer misteriosamente após o nascimento e durante a infância, de tal maneira que quando uma jovem começa os seus anos reprodutivos a população de óvulos foi reduzida para aproximadamente trezentos mil. Se o objectivo for obter ovócitos humanos, o ovário fetal é a maior fonte. Infelizmente, Paul Saunders parecia saber isso também.

 

Com os seus receios pelo menos parcialmente substanciados, Stephanie abanou a cabeça, espantada com a profunda imoralidade envolvida no abortamento de fetos humanos para óvulos. Para ela, era pior do que fazer clonagem reprodutiva, que suspeitava fazer também parte do plano de jogo de Paul Saunders. Stephanie reconhecia que eram organizações pouco escrupulosas de tratamento da infertilidade como a Clínica Wingate que tinham o poder de lançar um manto de desconfiança sobre a biotecnologia e a sua promessa ao enredarem-se em actividades tão pouco éticas. Também lhe passou pela cabeça que a capacidade de Daniel para fechar os olhos a uma realidade daquelas naquele caso dizia algo sobre ele que ela preferia não ter sabido, e esse conhecimento, combinado com o distanciamento emocional que ele estava a demonstrar ultimamente, fizeram-na questionar o futuro do relacionamento de ambos mais do que alguma vez no passado. Impulsivamente, decidiu que no mínimo, quando voltassem para Cambridge, ia viver sozinha.

 

Mas até lá havia muito para fazer. Stephanie olhou novamente para o relógio. Já tinham passado onze minutos. Estava a ficar sem tempo, uma vez que só teria mais quatro minutos, no máximo, para aquela visita. Precisava de encontrar uma verdadeira prova de peso para que Saunders não pudesse alegar que os abortos eram terapêuticos. Embora, teoricamente, pudesse voltar à sala dos óvulos noutro dia, soube intuitivamente que seria difícil, especialmente lembrar-se de outra desculpa credível para se afastar de Daniel. Ele podia não estar emocionalmente receptivo, mas não restavam dúvidas de que se mantinha fisicamente próximo.

 

Quatro minutos não eram muito tempo. Desesperada, Stephanie decidiu correr o resto do caminho até ao fundo da sala, ir lateralmente e depois voltar para a porta aberta por outra das alas compridas. Mas depois de percorrer apenas seis metros, parou de repente. Ao olhar de relance para a esquerda viu o que parecia ser um laboratório ou um escritório separado da sala principal por janelas do chão ao tecto. Situava-se a cerca de seis metros do local onde ela se encontrava. Luz fluorescente forte emanava do interior e inundava a área imediata. Stephanie mudou de direcção e aproximou-se em passos rápidos.

 

Ao aproximar-se, constatou que a sua impressão inicial estava correcta. Muito provavelmente, era o escritório/laboratório de Cindy colocado convenientemente a meio da sala dos óvulos e encaixado na fundação do edifício. O aposento tinha uma forma baixa e rectangular com não mais de três metros de largura mas com uns sete metros e meio de comprimento. Ao longo da parede do fundo, havia um balcão laminado com gavetas por baixo. A forte luz fluorescente vinha de sancas escondidas debaixo do armário e inundava o tampo do balcão com uma luz azul esbranquiçada.

 

O balcão em si estava cheio de pratos de cultura de tecidos, centrifugadoras, e todo o tipo de outra parafernália de laboratório, mas nada disso interessou Stephanie. A sua atenção tinha sido imediatamente atraída para o que parecia um grande livro de registo aberto na zona da secretária e que estava parcialmente obscurecido pelas costas altas da cadeira do escritório.

 

Sabendo que o tempo estava a esgotar-se depressa, os olhos de Stephanie observaram rapidamente todo o escritório envidraçado, à procura de uma porta. Para sua surpresa, estava mesmo à frente dela, e com excepção do manipulo recuado parecia igual a todos os outros painéis de vidro. As dobradiças estavam do lado de dentro.

 

Com um buraco de fechadura a sugerir que a porta podia ser fechada à chave, Stephanie rezou para que não estivesse. Levantou o manipulo da porta do seu encaixe e rodou-o. Para seu alívio, este girou e a porta abriu para dentro sem qualquer esforço. Enquanto entrava na sala estreita e comprida, sentiu que uma brisa da sala dos óvulos entrava consigo, sugerindo que a sala dos óvulos estava altamente pressurizada, provavelmente para evitar a entrada de micróbios transportados pelo ar. O ar condicionado no interior do escritório estreito estava regulado para uma temperatura e humidade normais. Stephanie largou a porta, deixando-a entreaberta, dirigiu-se para o livro de registo e ficou imediatamente absorta; pressentiu que encontrara o que procurava.

 

Desviou a cadeira do escritório para se inclinar e poder ver melhor as entradas manuscritas. Era de facto um livro de registo, mas não de finanças. Em vez disso, tinha uma lista de todas as mulheres que tinham sido fecundadas e abortado, incluindo as datas dos dois procedimentos, juntamente com outras informações. Recuou algumas páginas, e viu que o programa começara muito antes de a clínica abrir as portas. Paul Saunders tinha planeado o seu fornecimento de óvulos com muita antecedência.

 

Stephanie escolheu alguns casos individuais e, passando o dedo pelos respectivos registos, ficou a saber que as mulheres tinham sido fecundadas na sequência de fertilização in vitro. A fertilização in vitro fazia sentido, uma vez que só se queriam fetos do sexo feminino, e essa técnica era a única forma de garantir esse resultado. Reparou que o esperma de cromossoma X envolvido nos casos que observou era proveniente de Paul Saunders, o que comprovava uma megalomania terrível e sem consciência.

 

Stephanie ficou completamente cativada. Estava tudo devidamente registado em letra maiúscula. Até podia dizer que tipo de cultura de tecido era feita a partir de cada caso, bem como o estado actual das respectivas culturas na sala dos óvulos. Enquanto alguns fetos contribuíam com preparações de ovário inteiro, outros tinham os ovários picados e cultivados, e outros estavam reduzidos a fornecer linhas de óvulos desagregados.

 

Stephanie voltou à página inicial aberta quando entrara na sala e começou a contar quantas mulheres estavam actualmente grávidas. Não pôde deixar de abanar a cabeça por Saunders e companhia não só terem a temeridade de levar a cabo um programa daqueles como também a audácia de registar todos os pormenores sórdidos, preto no branco. Com aquela descoberta, a única coisa que Stephanie teria de fazer seria informar as autoridades das Bahamas sobre a existência do livro de registo e deixar que eles o confiscassem.

 

De repente, ficou paralisada quando um arrepio de medo lhe desceu pela coluna. Ainda não acabara de contar as mulheres grávidas quando o seu coração deu um pulo no peito. Sem qualquer som ou aviso, um círculo de aço frio tinha-se insinuado no meio dos seus cabelos e estava encostado à sua nuca transpirada. Instantaneamente, soube sem qualquer sombra de dúvida que se tratava do cano de uma pistola!

 

Não se mexa, e pouse as palmas das mãos em cima da secretária ameaçou uma voz sinistra.

 

Stephanie sentiu os joelhos a ficarem fracos. Por momentos, ficou paralisada. Todas as ansiedades inerentes à investigação clandestina e agravadas pela pressão do tempo tinham coalescido num turbilhão de puro terror. Ficou curvada pela cintura sobre o livro de registo, com uma mão pousada na secretária e a outra no ar. Estivera a usar o dedo indicador para ajudar na contagem.

 

Pouse as palmas das mãos em cima da secretária! repetiu Kurt com raiva não disfarçada. A sua voz tremeu. Teve de se conter para não dar uma coronhada com o revólver àquela fêmea provocadora, que tivera a coragem de entrar na sala dos óvulos.

 

O cano do revólver encostado ao pescoço de Stephanie provocou-lhe alguma dor. Conseguiu reunir forças para se mexer e fez o que ele tinha ordenado, pousando a palma direita no tampo. O facto de ter as duas mãos em cima da secretária impediu-a de cair. Estava a tremer de medo a ponto de os músculos das pernas parecerem geleia.

 

Felizmente, o cano do revólver foi retirado. Stephanie respirou. Vagamente, teve consciência de mãos a revistarem-lhe os bolsos da bata. Sentiu que o telemóvel e o molho de lápis e papéis eram retirados e depois novamente colocados no sítio. Estava a começar a acalmar um pouco quando sentiu mãos a subirem por baixo da bata e começarem a acariciar-lhe os seios.

 

Que diabo está a fazer? conseguiu perguntar.

 

Cale-se!disse Kurt. As mãos caíram e bateram nas partes laterais do tórax. Depois baixaram mais até às ancas, onde pararam momentaneamente.

 

Stephanie susteve a respiração. Estava mortificada e humilhada. A seguir, as mãos estavam a apertar as suas nádegas.

 

Isto é ultrajante! disse ela, furiosa. A ira começou a afastar o medo. Começou a endireitar-se, com a intenção de confrontar o homem que a atormentava.

 

Cale-se! gritou Kurt de novo. Uma mão empurrou-lhe as costas com força suficiente para ela cair em cima do livro de registo com os braços esticados para os lados. A arma foi de novo encostada à sua nuca, desta vez dolorosamente. Não duvide nem por um segundo de que eu não a mataria aqui e agora.

 

Sou a Dr.a D’Agostino conseguiu Stephanie dizer, apesar do peso esmagador nas suas costas. Estou a trabalhar aqui,

 

Eu sei quem a senhora é disse Kurt entredentes. E sei que não está a trabalhar na sala dos óvulos. Esta é uma área restrita.

 

Stephanie sentia a respiração quente de Kurt. Ele estava inclinado em cima dela, a empurrá-la contra a secretária. Era difícil respirar.

 

Se se mexer novamente, mato-a.

 

Está bem guinchou Stephanie. Para seu alívio, o peso sufocante foi aliviado. Respirou fundo, e depois sentiu uma mão a ser enfiada entre as suas pernas para a acariciar mais. Cerrou os dentes, ultrajada. Depois, duas mãos percorreram-lhe uma perna e depois a outra, mas não antes de a vagina ser novamente sondada. Em seguida, o peso do homem abateu-se sobre ela, mas não com tanta força como antes. Ao mesmo tempo, sentiu a respiração quente dele no seu pescoço enquanto ele se esfregava libidinosamente nela e lhe sussurrava ao ouvido:

 

Mulheres como tu merecem o que lhes acontece.

 

Stephanie resistiu à vontade de tentar debater-se ou até gritar. O homem que estava em cima dela tinha de ser doente, e a sua intuição gritou-lhe em silêncio para ser passiva naquele momento. Afinal de contas, estava numa clínica médica e não num local isolado. Cindy Drexler e talvez outras pessoas apareceriam em breve.

 

Estás a ver, puta continuou Kurt, eu tive de me certificar de que não tinhas uma câmara nem uma arma. Os intrusos têm tendência para isso, e não sei onde as poderias ter escondido na tua pessoa.

 

Stephanie permaneceu calada e imóvel. Sentiu o homem a endireitar-se novamente.

 

Põe as mãos atrás das costas!

 

Stephanie obedeceu. Depois, antes de ter consciência do que lhe estava a acontecer, sentiu que estava a ser algemada. Aconteceu tudo tão depressa que ela não compreendeu até ouvir o segundo clique metálico. Uma situação má estava a deteriorar-se. Ela nunca tinha estado algemada, e as algemas magoavam-lhe os pulsos. Pior ainda, sentiu-se muito mais vulnerável do que antes.

 

Stephanie foi então puxada para cima pelo pescoço e virada. Olhou para o agressor, observando quando os lábios finos do homem se retorceram num sorriso cruel e ofensivo, como se estivesse a exibir o facto de estar a dominá-la.

 

Stephanie reconheceu-o imediatamente. Embora nunca tivesse ouvido a sua voz até agora, tinha-o visto no recinto da clínica e na cafetaria. Até sabia o nome dele e que ele era o chefe da segurança. Tinha sido no gabinete dele que ela e Daniel tinham sido fotografados e obtido os cartões de identificação. Na altura, ele estava sentado à secretária, mas não tinha dito uma única palavra. Stephanie evitara deliberadamente o seu olhar silencioso e intenso.

 

Kurt saiu da frente e apontou-lhe a porta aberta do escritório. O revólver tinha desaparecido. Stephanie ficou imensamente feliz por sair dali, mas quando começou a caminhar na direcção de onde tinha vindo, Kurt agarrou-lhe o braço.

 

Caminho errado disse ele bruscamente. Quando ela se voltou para o olhar, ele apontou na direcção oposta.

 

Eu quero voltar para o laboratório disse Stephanie. Tentou transmitir autoridade no tom de voz mas, dadas as circunstâncias, era difícil.

 

Estou-me nas tintas para o que queres. Mexe-te! Kurt empurrou-a com força. Sem os braços para a ajudar a equilibrar-se, Stephanie quase caiu. Felizmente, manteve-se de pé depois de tocar numa prateleira de cultura de tecidos com o ombro. Kurt deu-lhe outro encontrão, e ela cambaleou na direcção que ele tinha indicado.

 

Não sei por que é que está a fazer um drama tão grande por causa disto disse Stephanie, depois de recuperar um pouco de compostura.

 

Eu só andava a ver isto. Estava simplesmente curiosa quanto à origem dos ovócitos que o Dr. Saunders nos forneceu estava agora a debater-se sobre se devia seguir as ordens de Kurt ou atirar-se, simplesmente, para o chão e recusar-se a sair dali. Se não iam voltar para o laboratório, queria ficar no gabinete de Cindy Drexler, onde havia o consolo de saber que a mulher voltaria. Não fazer a menor ideia para onde estava a ser levada aterrorizava-a, mas não parou. O que a manteve em movimento foi a ameaça de Kurt de que a mataria. Louco e histérico como ele parecia, achou melhor levá-lo a sério.

 

Entrar sem autorização na sala dos óvulos é uma coisa séria replicou Kurt, trocista, como se estivesse a ler-lhe os pensamentos.

 

Ao fundo da sala, deram uma volta de noventa graus e continuaram para uma porta semelhante àquela por onde Stephanie tinha entrado, mas na extremidade oposta da sala. Kurt carregou num botão na ombreira e a pesada porta de segurança abriu-se rapidamente. Kurt deu um forte encontrão a Stephanie. Nada acostumada a ter os braços presos atrás das costas, ela quase não conseguiu manter-se de pé. Cambaleou em frente, e encontrou-se num corredor de estuque comprido e estreito, que curvava para a esquerda. Estava parcamente iluminado com poucas lâmpadas fluorescentes montadas na parede exterior. Também era um espaço abafado e sem ar condicionado.

 

Stephanie parou. Tentou virar-se, mas Kurt empurrou-a para a frente com tanta força que ela caiu. Incapaz de levar as mãos à frente para amparar a queda, aterrou sobre o ombro, arranhando a face no chão de cimento. Momentos depois, ele levantou-a como se ela fosse uma boneca de trapos, puxando-a pela bata e pela blusa a meio das costas. Depois de estar levantada, empurrou-a para a frente. Stephanie resignou-se a andar. Reconheceu que resistir ia ser um convite ao desastre imediato.

 

Exijo falar com o Dr. Wingate e com o Dr. Saunders disse Stephanie, numa segunda tentativa para ser autoritária. Os seus temores cresceram, enquanto perguntava a si mesma para onde é que aquele homem estava a levá-la. O calor húmido do corredor sugeria que se encontravam num subterrâneo.

 

A seu tempo disse Kurt, com uma gargalhada devassa que fez Stephanie estremecer.

 

Stephanie não levou muito tempo a perceber que estavam a caminhar na mesma direcção do corredor com arcadas que ligava o edifício do laboratório ao edifício da administração. Só que estavam debaixo do chão.

 

Alguns minutos depois, chegaram a uma porta normal, corta-fogo. Quando Kurt a abriu, viu que os seus cálculos estavam correctos. Estavam na cave do edifício da administração. Stephanie lembrou-se de quando ela e Daniel tinham ido fazer os cartões de identificação. Com algum alívio, calculou que estavam a dirigir-se para o gabinete da segurança, o que também foi confirmado pouco depois.

 

Ao fundo do corredor! ordenou Kurt quando entraram no seu gabinete. Manteve-se atrás dela, longe do seu campo de visão.

 

Stephanie atravessou uma porta parcialmente aberta e avistou uma parede de monitores de televisão. Kurt empurrou-a para a frente. Ao fundo do corredor, ela parou.

 

Vais reparar que temos uma cela à esquerda e um quarto à direita disse Kurt, trocista. A escolha é tua.

 

Stephanie não respondeu. Em vez disso, entrou na cela aberta. Kurt fechou a porta de grades. Esta trancou com um dique que ecoou nas paredes de cimento.

 

E as algemas? perguntou Stephanie.

 

É melhor ficarem postas disse Kurt. O sorriso cruel voltara aos seus lábios finos. Por motivos de segurança. A gerência não gosta que os presos façam asneiras Kurt riu-se uma vez mais. Era óbvio que estava a divertir-se. Começou a afastar-se no corredor, mas hesitou. Voltou e ficou a olhar para Stephanie.

 

Há aí uma retrete, por isso podes usá-la à vontade. Não deixes que eu te incomode.

 

Stephanie voltou-se para olhar para a sanita. Não só estava completamente exposta, como nem sequer tinha tampo. Ela olhou para Kurt com raiva.

 

Quero ver o Dr. Wingate e o Dr. Saunders imediatamente.

 

Infelizmente, não estás em posição de dar ordens disse Kurt, trocista. Olhou para Stephanie antes de se afastar e desaparecer ao fundo do corredor.

 

Stephanie expirou e descontraiu um pouco com Kurt longe. Só via um pouco do corredor. Incapaz de olhar para o relógio, perguntou a si mesma que horas seriam. Daniel teria de começar a interrogar-se sobre onde ela estaria e de começar a procurá-la. Na verdade, talvez isso já estivesse a acontecer. Mas depois teve outro medo. E se ele ficasse tão zangado com o que ela fizera que não se importasse que ela tivesse sido presa?

 

Kurt Hermann sentou-se à secretária e esticou os antebraços. Estava a tremer de desejo não consumado. Stephanie D’Agostino tinha-o excitado excruciantemente. Infelizmente, o prazer de ter as mãos na sua feminilidade firme, e ao mesmo tempo macia, tinha sido demasiado fugaz, e queria repetir. Ela comportava-se como se não tivesse gostado, mas ele sabia que não era verdade. As mulheres eram assim: um minuto eram provocadoras e no minuto seguinte, fingiam não gostar das consequências. Era tudo uma representação, um fingimento, uma piada.

 

Durante alguns minutos, Kurt tentou pensar em formas de adiar o telefonema para Saunders. O que teria gostado mais de fazer era nem sequer lhe telefonar. A Dr.a D’Agostino podia simplesmente desaparecer. Raios, era o que ela merecia. Mas sabia que não resultaria. Saunders saberia, porque Saunders tinha consciência de que Kurt vigiava toda a gente que entrava e saía do complexo. Se a doutora desaparecesse, Saunders saberia que Kurt era responsável ou que, pelo menos, sabia o que lhe acontecera.

 

Recorrendo à disciplina do treino de artes marciais, Kurt acalmou-se. Passados alguns minutos, os músculos começaram a descontrair e os tremores pararam. Até o ritmo cardíaco diminuiu para menos de cinquenta batidas por minuto. Ele sabia, porque verificava frequentemente. Quando estava completamente controlado, levantou-se e foi para a sala de vídeo.

 

O relógio na parede indicava meio-dia e quarenta e um. Isso significava que Spencer Wingate e Paul Saunders estariam na cafetaria. Kurt sentou-se e ergueu os olhos para a fila de monitores. Os seus olhos dirigiram-se para o número doze. Usando o teclado à sua frente, ligou o joystick à minicâmara doze e começou a observar a sala. Antes de encontrar os patrões, descobriu Daniel Lowell. Kurt aproximou a imagem. O homem estava a ler uma revista científica enquanto comia, completamente alheado do que o rodeava. À frente dele, estava o tabuleiro intocado de Stephanie. Um ligeiro sorriso bailou no rosto de Kurt. Tinha a namorada do homem trancada na sua cela privada depois de a ter apalpado toda, e o homem não fazia a menor ideia. Que cretino pomposo!

 

Kurt recuou a imagem e continuou à procura de Spencer e Paul. Encontrou-os à mesa do costume com a corte habitual de empregadas. Eles também eram uns cretinos, pois Kurt sabia com quem é que a maior parte delas andava a dormir, embora mais Paul do que Spencer, uma vez que Paul vivia no complexo. Para Kurt, a maior parte dos homens do mundo eram cretinos, incluindo a maioria dos seus oficiais superiores quando estivera no serviço militar. Era um fardo que ele tinha de suportar.

 

Kurt pegou no telefone e fez uma ligação para a supervisora da cafetaria. Quando ela atendeu, disse-lhe para dizer a Spencer e a Paul que havia uma emergência de segurança que necessitava da presença imediata deles no seu escritório. Ordenou-lhe que dissesse especificamente, «É um problema importante». Segundos depois de pousar o auscultador, Kurt viu a mulher a aparecer no monitor. Estava frenética. Bateu à vez no ombro de Spencer e de Paul e falou ao ouvido de cada um. Ambos se levantaram de um salto e, com expressões preocupadas, dirigiram-se em linha recta para a saída. Spencer vinha ligeiramente à frente, pois era o que recebera a notícia da supervisora em primeiro lugar.

 

Com alguns cliques no teclado, Kurt viu a imagem da cela no monitor directamente à frente dos seus olhos e concentrou-se nele. Stephanie andava de um lado para o outro, como uma gata enjaulada. Era como se estivesse a insultá-lo de propósito com o seu corpo.

 

Incapaz de observar por mais um segundo sequer, Kurt levantou-se abruptamente. Voltou para a secretária e concentrou-se novamente no seu treino para se acalmar. Quando Spencer Wingate e Paul Saunders chegaram esbaforidos, Kurt já se recompusera. Quando os dois médicos especialistas no tratamento da infertilidade se aproximaram apressadamente da secretária, a única coisa que moveu foram os olhos.

 

Qual é o problema importante? perguntou Spencer. Como director titular da clínica, Paul deixou-o tratar do assunto. A compleição de Spencer estava ligeiramente ruborizada, assim como a de Paul. Os dois homens tinham corrido desde o edifício três, o que representava mais exercício do que estavam acostumados a fazer. Estavam ambos em pânico, porque a mensagem de Kurt fora a mesma que ele comunicara quando os agentes da Polícia Federal tinham cercado a Clínica Wingate na sua encarnação do Massachusetts.

 

Kurt divertiu-se com a ansiedade deles como vingança pelo pouco reconhecimento de todos os seus esforços para implementar a segurança da clínica nova. Gesticulou para que os patrões se calassem, e depois fez-lhes sinal para que o seguissem enquanto avançava à frente para a sala de vídeo. Depois de entrarem, fechou a porta. Apontou-lhes as duas cadeiras existentes e permaneceu de pé. Observou-os, enquanto a atenção ansiosa e tensa deles aumentava.

 

Onde raio é a emergência?perguntou Spencer, a perder a paciência.

 

Desembucha!

 

Tivemos uma entrada clandestina na sala dos óvulos disse Kurt.

 

Uma situação óbvia de espionagem que comprometeu o programa de obtenção de óvulos.

 

Não!exclamou Paul. Sentou-se muito direito na cadeira. O programa de óvulos era crucial nos seus planos para o futuro da clínica e para a sua reputação.

 

Kurt acenou afirmativamente, a gostar de adiar o momento.

 

Quem? inquiriu Paul. Foi um trabalho interno?

 

Sim e não respondeu Kurt ambiguamente, sem aprofundar.

 

Vá lá! queixou-se Spencer. Isto não é um maldito jogo de adivinhas.

 

A perpetradora foi apanhada a meter o nariz no registo de ovócitos e apreendida.

 

Santo Deus! disse Paul. Esta pessoa estava mesmo à procura do registo?

 

Kurt apontou para o monitor central mesmo por cima da bancada. Stephanie recuara para se sentar no catre de ferro. Sem ter consciência disso, estava a olhar quase directamente para a mini-câmara. Era notório que estava transtornada.

 

Durante alguns minutos, reinou o silêncio na sala de vídeo. Todos os olhos fitavam Stephanie.

 

Por que é que ela não se mexe? perguntou Spencer. Ela está bem, não está?

 

Está óptima garantiu-lhe Kurt.

 

Por que é que tem a face a sangrar?

 

Caiu a caminho da cela.

Que é que lhe fizeste? perguntou Spencer.

 

Ela não queria colaborar. Precisou de algum encorajamento.

 

Santo Deus! exclamou Spencer. Afinal de contas, era uma emergência menor do que ele tinha temido, mas ainda assim bastante má.

 

Por que é que ela tem os braços atrás das costas? perguntou Spencer.

 

Está algemada respondeu Kurt.

 

Algemada? perguntou Spencer. Não é um bocadinho duro de mais? Embora, com a tua história, devamos estar gratos por não a teres abatido no local.

 

Spencer disse Paul. Devemos estar agradecidos pela vigilância de Kurt e não ser críticos.

 

É um procedimento de segurança padrão algemar um indivíduo que é detido disse Kurt com rispidez.

 

Sim, mas ela está trancada na cela, por amor de Deus declarou Spencer. Podias ter-lhe tirado as algemas.

 

Esquece as algemas por enquanto sugeriu Paul. Vamos preocupar-nos com as implicações do comportamento dela. Não gosto do facto de ela ter estado na sala dos óvulos, e muito menos que tenha visto o livro de registo. Ela não tem elogiado o nosso trabalho, especialmente no campo da terapia de células estaminais.

 

Ela é um bocado empertigada e arrogante admitiu Spencer.

 

Não quero que ela estrague o nosso programa de ovócitos, embora não possa fazer grande coisa nas Bahamas disse Paul. Não é como quando estávamos nos Estados Unidos. Mas mesmo assim podia fazer ondas e criar má publicidade para nós, o que poderia prejudicar os nossos esforços de recrutamento de aluguer uterino e, consequentemente, o nosso programa. Temos de nos certificar de que isso não acontece.

 

Talvez seja por isso que Lowell e ela estão cá sugeriu Spencer.

 

Talvez esta conversa fiada do tratamento que eles estão a fazer não passe de uma farsa sofisticada. Eles podem ser espiões industriais, com a intenção de roubar a nossa técnica.

 

Eles são verdadeiros disse Paul.

 

Como é que podes ter tanta certeza?perguntou Spencer, desviando a atenção da imagem de Stephanie no monitor e olhando directamente para Paul. Tu és bastante crédulo quando lidas com investigadores a sério.

 

Como? exclamou Paul.

 

Oh, não sejas tão sensível retorquiu Spencer. Tu sabes o que eu quero dizer. Essas pessoas são doutoradas a sério.

 

O que pode explicar a sua falta de criatividade respondeu Paul.

 

Não é preciso um doutoramento para fazer ciência inovadora. Mas, seja como for, posso garantir-te que estas pessoas não estão a fingir o que estão a fazer. Eu vi com os meus próprios olhos que esta RSTH é impressionante.

 

Mesmo assim, eles podiam estar a enganar-te. É a minha opinião. Eles são investigadores profissionais, e tu não.

 

Paul desviou os olhos por instantes para não enlouquecer. Spencer era a última pessoa no mundo que devia estar a sugerir que era uma autoridade em quem era e quem não era investigador. Spencer não sabia nada sobre investigação. Era um simples empresário com uma bata de médico... e nem sequer era muito bom empresário.

 

Depois de respirar fundo para se acalmar, Paul olhou para o seu patrão titular e disse:

 

Eu sei que eles estão a fazer manipulações reais, extremamente boas e com um objectivo definido, porque tirei algumas células em que colocaram algum do ADN de Cristo. As células são surpreendentes e extremamente visíveis. Eu próprio as usei para ver se funcionam, e funcionam.

 

Espera um segundo disse Spencer. Não vais ficar aí sentado e dizer-me que provaste que essas células têm o ADN de Cristo.

 

Claro que não Paul lutou para manter a compostura. Por vezes, discutir ciência biomolecular com Spencer era como falar com um miúdo de cinco anos. Não existe nenhum teste para saber se é de Cristo. O que estou a tentar dizer-te é que eles trouxeram com eles uma cultura de fibroblastos da pessoa com a doença de Parkinson que estão a planear tratar. Dentro dessas células, substituíram os genes defeituosos por genes que conseguiram construir a partir do ADN que extraíram da amostra do Sudário de Turim. Já fizeram isto, e agora estão a fazer as células de tratamento. É verdade. Não tenho a menor dúvida de que estão a fazer isto. Estou cem por cento certo. Confia em mim!

 

Está bem, está bem repetiu Spencer. Como tens estado no laboratório com eles, suponho que terei de acreditar na tua palavra em como estão aqui para uma missão terapêutica legítima. Mas aceite isso, coloca-se a questão da identidade do paciente, sobre a qual também aceitei a tua palavra. Disseste que ias descobrir quem é o paciente. Aqui estamos nós a pouco mais de uma semana do dia D do tratamento dos nossos visitantes, e continuamos às escuras.

 

Bem, esse é outro problema.

 

Sim, mas está associado. Se não tivermos um nome rapidamente, não vamos ter um retorno financeiro neste caso, podes ter a certeza. Qual é o problema de descobrir a identidade? Não é pedir muito.

 

Paul olhou para Kurt.

 

Diz-lhe!


Kurt aclarou a garganta.

 

Tem sido uma missão mais complicada do que eu tinha previsto. Revistámos o apartamento e o local de trabalho deles antes de eles chegarem a Nassau. Desde que aqui estão, apoderámo-nos dos computadores portáteis deles e pusemos o nosso mago dos computadores a verificar os discos rígidos: nada. O lado positivo é que hoje consegui colocar um alarme no telemóvel da mulher. Tenho andado a tentar apanhá-lo desde o primeiro dia, mas ela não tem colaborado. Nunca o deixou longe da vista.

 

Colocaste o alarme enquanto ela esteve sob a tua custódia? perguntou Spencer. Não tens receio de que ela tenha ficado desconfiada?

 

Não respondeu Kurt. Coloquei o alarme antes de a apanhar. Hoje, pela primeira vez, ela deixou o telemóvel no laboratório quando foi para a cafetaria. Eu tinha acabado quando ela regressou inesperadamente para entrar na sala dos óvulos. Eu ia mesmo atrás dela quando ela entrou.

 

Por que é que não a mandaste parar antes de ela entrar?perguntou Spencer.

 

Queria apanhá-la em flagrante delito disse Kurt, enquanto um sorriso lascivo se formava nos cantos da sua boca.

 

Suponho que eu próprio não me importaria de a apanhar em flagrante delito disse Spencer, com um sorriso semelhante.

 

Com o alarme no telemóvel, devemos ter sorte disse Paul. Desde o começo que Kurt achou que a monitorização do telemóvel ia dar-nos a identidade do paciente.

 

Isso é verdade? perguntou Spencer.

 

Sim disse Kurt simplesmente. Mas temos outra opção. Com ela nas nossas mãos, podemos exigir que nos diga o nome como condição para ser libertada.

 

Os dois directores da Clínica Wingate olharam-se enquanto ponderavam a sugestão de Kurt. Foi Spencer quem respondeu primeiro, a abanar a cabeça:

 

Não gosto da ideia.

 

Porquê? perguntou Paul.

 

Principalmente porque acho que não nos diriam, e que isso denunciaria o quanto queremos saber o nome disse Spencer. Obviamente, manter a identidade do paciente em segredo é extremamente importante para eles; se não, já a conheceríamos. Neste ponto, com todos os progressos que disseste que eles fizeram no laboratório, podiam fazer as malas e ir para outro lado qualquer para o tratamento final. Não quero colocar em risco o segundo pagamento de vinte e cinco mil. Dificilmente é uma quantia avultada, mas é alguma coisa. Para além do mais, vão saber que estamos a enganá-los. Não podemos mantê-la presa a não ser que o prendamos também, coisa que não podemos fazer, e ele vai-se fartar de bramar logo que descobrir onde ela está e como está a ser tratada.

 

Tens razão naquilo que disseste replicou Paul. Concordo contigo, e preferia que a condição de ela ser libertada se centrasse simplesmente numa promessa de confidencialidade que, dadas as circunstâncias, é razoável. Ela pode ter as suas opiniões, mas deve mantê-las para si. Estou convencido de que o Dr. Lowell nos vai apoiar nesta pretensão. Eu senti que ele está sempre a tentar diminuir a arrogância dela.

 

Spencer ergueu os olhos para Kurt.

 

Então, estás optimista em relação a descobrir a identidade do paciente com o dispositivo que colocaste no telefone?

 

Kurt acenou afirmativamente.

 

Acho que devemos cingir-nos a isso disse Spencer. E vamos insistir na questão da confidencialidade.

 

De acordo disse Paul. E, por falar no Dr. Lowell, onde é que ele está?

 

Está na cafetaria disse Kurt. Os seus olhos ergueram-se para o monitor doze. Pelo menos, era onde estava há alguns minutos.

 

Acho que é significativo a Dr.a D’Agostino estar sozinha quando foi para a sala dos óvulos disse Paul.

 

Porquê? perguntou Spencer.

 

Eu acho que o Dr. Lowell não tinha a menor ideia do que ela estava a fazer.

 

És capaz de ter razão disse Spencer.

 

O Dr. Lowell está a caminho do laboratório disse Kurt. Apontou para o monitor apropriado, e todos os olhares se voltaram para lá. Daniel caminhava com passos rápidos e determinados do edifício três para o edifício um, com uma mão apertada na colecção de canetas e lápis no bolso do peito. Chegou ao edifício um e desapareceu pela porta.

 

Onde está o monitor do laboratório? perguntou Paul. Kurt apontou. Observaram Daniel a aparecer do lado esquerdo. Spencer comentou que ele parecia andar à procura de Stephanie. Kurt usou o joystick para o seguir. Depois de verificar a zona da bancada do laboratório que ele e Stephanie usavam, Daniel olhou para o gabinete que lhes fora atribuído. Até enfiou a cabeça na casa de banho das senhoras. Depois, dirigiu-se em linha recta para o gabinete de Megan Finnigan.

 

Creio que ele teria ido para a sala dos óvulos se soubesse que ela tinha ido lá disse Paul.

 

Bem visto disse Spencer. Aposto que tens razão.

 

Paul pegou no telefone que se encontrava em cima da bancada e marcou a extensão de Megan.

 

Vou dizer à supervisora do laboratório onde é que o Dr. Lowell poderá encontrar a sua colaboradora.

 

Ou seja qual for o raio da relação deles disse Spencer, trocista.

 

Não consigo perceber. A propósito, Kurt, como é que ela conseguiu entrar na sala dos óvulos?

 

Usou o cartão de identificação da Wingate disse Kurt. O acesso ainda não foi restringido, embora faça parte da lista de segurança que eu apresentei à administração há um mês.

 

A culpa é minha declarou Paul, depois de desligar da conversa rápida com Megan Finnigan. Esqueci-me completamente, com a pressão de pôr a clínica a funcionar. Para além disso, nunca previmos que pessoas de fora usassem o laboratório, e não me passou pela cabeça quando o Dr. Lowell e a Dr.a D’Agostino vieram para cá.

 

Spencer levantou-se da cadeira.

 

Vamos ter uma conversa com a encantadora Dr.a D’Agostino antes de o Dr. Lowell chegar. Talvez ajude a facilitar a negociação. Kurt, por enquanto, quero-te longe de nós.

 

Os dois médicos entraram no corredor e começaram a percorrê-lo em direcção à cela.

 

Que viragem tão esquisita nos acontecimentos sussurrou Spencer.

 

Mas é certamente muito melhor do que eu temi quando vínhamos a correr para cá.

 

 

19.56, segunda-feira, 11 de Março de 2002

Quando um trabalho tinha de ser finalizado, Caetano era um realista. Por muito que quisesse chegar a Nassau na sua segunda visita para completar o que tinha começado na primeira, estava nervoso. O motivo principal de nervosismo era ter de arranjar uma pistola, e tinha de ser uma pistola decente, porque sem uma pistola decente não teria grandes hipóteses. Não ia espancar o homem até à morte, nem afogá-lo na banheira, nem estrangulá-lo como faziam ocasionalmente nos filmes. Dar cabo de um tipo não era tão fácil como parecia no cinema. Requeria planeamento. O método tinha de ser decisivo e rápido, e o local moderadamente remoto para proporcionar uma fuga rápida, e para isso não havia nada melhor do que uma pistola. Uma pistola boa e silenciosa.

 

Para Caetano, o problema na situação actual era estar dependente de pessoas que não conhecia e que não o conheciam. Era suposto alguém ir esperá-lo quando ele aterrasse na ilha, mas não havia garantia de que aconteceria. Como a viagem fora planeada tão rapidamente, não havia um plano B nem contactos a quem telefonar, excepto Lou em Boston, e podia ser muito difícil encontrá-lo depois do expediente. Mesmo que o homem mistério aparecesse no aeroporto, havia sempre a probabilidade de ele e Caetano não se encontrarem na inevitável confusão, já que nenhum deles sabia como era o outro. Para piorar as coisas, Caetano tinha de voltar para Boston no dia seguinte, por isso nem sequer tinha o benefício de muito tempo.

 

A outra razão por que Caetano estava nervoso era porque não gostava de aviões pequenos. Os grandes eram bons, porque podia convencer-se de que não estava no céu. Os pequenos eram uma história completamente diferente, e aquele em que se encontrava naquele momento era o mais pequeno em que já tinha viajado. Para piorar as coisas, o avião estava a vibrar como uma escova de dentes eléctrica e a baloiçar como uma bola de bilhar. Caetano não tinha nada a que se agarrar, a não ser as costas do assento à frente do seu nariz. Não havia muito espaço na cabina. Com o seu volume, estava literalmente entalado contra a janela.

 

Caetano apanhara um voo americano para Miami, onde fora transferido para o avião onde se encontrava naquele momento. O sol estava a pôr-se quando se iniciara a segunda etapa da viagem, e agora estava completamente escuro do lado de fora da janela. Tentou não pensar no que havia por baixo da instável aeronave, embora de cada vez que os motores pareciam abrandar a imagem mental de um oceano vasto e preto lhe inundasse involuntariamente o olho da mente para aumentar as suas ansiedades. Caetano tinha um segredo: não sabia nadar, e afogar-se era um pesadelo recorrente.

 

Olhou de relance para os outros passageiros. Não havia conversas, como se todos estivessem tão aterrorizados quanto ele. A maioria das pessoas estavam a olhar apaticamente em frente. Alguns passageiros liam, com feixes de luz estreitos e individuais, vindos de cima das suas cabeças para formar poças isoladas de iluminação na penumbra geral. A assistente de bordo estava sentada de frente para os passageiros, em resposta a uma directiva dos pilotos por causa da turbulência. A sua expressão de tédio proporcionava alguma tranquilidade, embora fosse parcialmente desculpada pelo cinto de segurança consideravelmente mais substancial que usava, com tiras nos ombros, como se esperasse o pior.

 

Um solavanco particularmente forte seguido do estremecimento do avião fez Caetano tremer. Era como se tivessem batido num objecto transportado pelo ar. Durante um minuto nem sequer respirou, mas não aconteceu nada. Engoliu em seco para aliviar a garganta subitamente seca. Resignando-se ao seu destino, fechou os olhos e encostou-se no assento. Nesse instante, ouviu-se a voz do piloto no intercomunicador a anunciar que aterrariam dali a pouco.

 

Com um rompante de optimismo, Caetano encostou o nariz à janela e olhou para fora. Ao invés de um vazio preto, viu luzes a piscar mais à frente. Expirou de alívio. Parecia que, afinal de contas, ia conseguir.

 

O avião aterrou com uma pancada característica e bem-vinda. Momentos depois, o ruído dos motores intensificou-se, e seguiu-se uma sensação de travagem rápida. Caetano apoiou-se às costas do assento da frente. Sentiu-se tão bem por o avião estar no chão que sorriu para o passageiro que estava sentado à sua direita. O homem retribuiu o sorriso. Caetano olhou novamente pela janela e concentrou-se então nas suas preocupações em relação à pistola.

 

Com relativamente poucos passageiros no avião, o desembarque foi rápido, e Caetano foi dos primeiros a sair para a pista. Absorveu o ar tropical quente enquanto desfrutava da sensação de estar em terra firme. Quando todos saíram da cabina, ele e o resto dos passageiros foram levados para o terminal.

 

Agarrado à pequena mala de mão, Caetano parou do lado de dentro da porta. Não sabia bem o que fazer. Pensou que o seu tamanho o fazia sobressair, mas ninguém se aproximou. Usava as mesmas roupas com classe que usara aquando da última visita, que incluíam a camisa de meia manga com padrão havaiano, calças castanho-claro e blusão azul-escuro. A pressão das pessoas que se encontravam atrás de si obrigou-o a avançar. Foi como estar a ser levado num rio para o controlo de passaportes. Quando chegou a sua vez, entregou o passaporte. O agente preparava-se para colocar o carimbo quando reparou no registo da visita recente de Caetano. Não só fora há pouco tempo, como apenas um dia. Olhou para Caetano, curioso.

 

Vim só cá ver o sítio da primeira vez explicou Caetano. Gostei, por isso agora voltei para passar férias.

 

O homem não disse nada. Carimbou o passaporte, empurrou-o para Caetano e pegou no da pessoa seguinte.

 

Caetano continuou, passou pelas multidões nos carrosséis da bagagem e depois aproximou-se da alfândega. Com o passaporte americano e a pequena mala nas mãos, os agentes acenaram-lhe para que passasse. Saiu por um par de portas duplas que estavam abertas. Atrás de um frágil corrimão de metal amovível havia uma multidão atenta de pessoas. Estavam todos ansiosos, a tentar ver família e amigos a sair pelas portas abertas. Ninguém expressou o menor interesse por Caetano.

 

Sem saber o que fazer, ele continuou a andar. Inicialmente, teve de se mover de lado para passar pelo corrimão antes de se misturar com a multidão ruidosa. Depois de percorrer uma curta distância, parou e perscrutou o terminal, na esperança de estabelecer contacto visual com alguém. Ninguém lhe prestou qualquer atenção. Coçou a cabeça, a perguntar a si mesmo o que devia fazer. Por falta de um plano melhor, dirigiu-se para a zona de aluguer de automóveis e esperou na fila.

 

Quinze minutos depois, tinha as chaves de outro Cherokee, embora desta vez, supostamente, fosse verde. Voltou para a zona das chegadas internacionais e estava prestes a telefonar para Lou, quando alguém lhe tocou no ombro.

 

Por reflexo, Caetano girou, pronto para a luta. Encontrou-se a olhar para os olhos escuros do homem mais preto e mais careca que já tinha visto. O homem tinha tantas correntes ao pescoço que o facto de se curvar era um exercício de resistência, e reflectia-se luz suficiente do seu escalpe para fazer Caetano franzir os olhos. O homem respondeu à reacção exagerada de Caetano recuando e levantando as duas mãos, como se quisesse aparar um golpe.

 

Calma, meu!disse o indivíduo. Falou com o mesmo sotaque colorido dos habitantes das Bahamas de que Caetano se recordava da primeira visita.

 

Não quero fazer-lhe mal.

 

Caetano ficou embaraçado com a agressividade e tentou desculpar-se.

 

Não há problema, meu a voz tinha uma melodia marcada. É o Caetano Baresse, de Boston?

 

O próprio!disse Caetano, com um sorriso de alívio. Por um segundo, sentiu vontade de abraçar o desconhecido, como se fosse um familiar perdido.

 

Tem alguma coisa para mim?

 

Se for o Caetano Baresse, tenho. Chamo-me Robert. Deixe-me mostrar-lhe o que tenhoditas estas palavras, o homem desenrolou a abertura do saco de papel e enfiou a mão lá dentro com a intenção de tirar o conteúdo.

 

Hei, não desembrulhe essa coisa aqui! sussurrou Caetano, aflito. Estava horrorizado. Está doido? Os seus olhos varreram nervosamente o terminal. Havia diversos polícias armados, mas entediados nas redondezas. Felizmente, nenhum deles estava a prestar atenção.

 

Quer ver, não quer? perguntou o homem.

 

Sim, mas não no meio de toda esta gente. Veio de carro?

 

Claro que vim de carro.

 

Vamos.

 

Com um encolher de ombros, o homem seguiu à frente para fora do terminal. Minutos depois, entraram num Cadillac bege antigo com enormes barbatanas traseiras. O homem acendeu a luz interior e entregou o saco a Caetano. Este estava à espera de uma pistola banal, mas o que tirou surpreendeu-o consideravelmente. Era uma SW99 de nove milímetros equipada com um LaserMax e um silenciador Bowers CAC9.

 

Está bem? perguntou Robert. Está contente?

 

Mais do que contente declarou Caetano. Admirou o acabamento preto e sem falhas, que sugeria que a arma era completamente nova. Era uma arma imponente. Embora tivesse apenas um cano de dez centímetros, o silenciador acoplado fazia que parecesse ter vinte e cinco centímetros.

 

Depois de se certificar de que não havia ninguém nas proximidades, Caetano apontou a pistola para a frente, para um carro próximo, e activou rapidamente o laser. A cento e cinquenta metros de distância, viu o ponto encarnado no pára-choques traseiro de um carro. Ficou encantado com a arma até reparar que faltava o carregador na coronha.

 

Onde é que está o carregador?perguntou Caetano. Sem carregador e munições, a arma era inútil.

 

Robert sorriu na penumbra do carro. Por contraste com a pele escura e brilhante, os dentes eram verdadeiramente brancos. Bateu no bolso esquerdo das calças.

 

Está muito bem guardado aqui, meu, carregado e pronto para funcionar. Até há mais um extra para o que der e vier.

 

Muito bem disse Caetano. Esticou a mão. Estava aliviado.

 

Não tão depressa disse Robert. Parece-me que mereço alguma coisa por isto. Quero dizer, vim até aqui em vez de ficar confortavelmente sentado em casa a beber uma cerveja gelada. Percebe o que quero dizer?

 

Por instantes, Caetano limitou-se a fitar os olhos do homem, que na escuridão se assemelhavam surpreendentemente a dois buracos de bala num cobertor branco sujo. Sabia que era uma espécie de improviso, e provavelmente ideia do homem. O primeiro pensamento foi agarrar na cabeça do tipo e atirá-la contra o volante para que ele soubesse exactamente com quem estava a lidar, mas pensamentos mais sensatos prevaleceram. O tipo podia ter outra pistola, o que tornaria as coisas perigosas e certamente não era assim que aquela viagem devia começar. Mais importante, Caetano não fazia ideia de qual era o relacionamento daquele tipo com os colombianos de Miami que Lou contactara para tratarem de tudo. A última coisa de que precisava ou queria era ter um grupo de tipos atrás dele, especialmente os colombianos, enquanto estava em Nassau em serviço.

 

Caetano aclarou a garganta. Trazia uma quantia significativa de dinheiro, uma vez que num trabalho daqueles tudo se pagava à vista.

 

Suponho que merece um pequeno presente em sinal de reconhecimento, Robert. Que é que tem em mente?

 

Uma de cem seria simpático disse Robert.

 

Sem mais uma palavra, Caetano inclinou-se para a frente para enfiar a mão livre no bolso direito das calças. Enquanto o fazia, não tirou os olhos de Robert. Soltou uma nota de um rolo, puxou-a e entregou-lha. Robert deu-lhe os carregadores. Caetano enfiou um na coronha da pistola. O carregador fez clique ao encaixar-se. Esquecendo a fantasia fugaz de experimentar a arma em Robert, saiu do carro. Guardou o segundo carregador no bolso lateral do blusão.

 

Hei, meu! chamou Robert. Precisa de boleia para a cidade? Caetano inclinou-se para dentro do veículo.

 

Obrigado, mas tenho carro endireitou-se de novo e guardou a pistola no bolso esquerdo das calças, que tinha uma abertura no fundo para acomodar o silenciador da automática. O buraco era um truque que aprendera com um mentor quando começara a trabalhar para a família de Nova Iorque. O único problema do buraco era que tinha de se lembrar que nunca podia pôr nada no bolso, como moedas ou chaves. Enquanto se dirigia para o parque de estacionamento da agência de aluguer de automóveis, sentiu o aço frio do silenciador a roçar contra a coxa nua. Para ele, era como uma carícia.

 

Vinte minutos depois, entrou com o Cherokee alugado no parque de estacionamento do Hotel Ocean Club. A viagem dera-lhe tempo para se acalmar após o episódio de mini-extorsão de Robert. O ruído dos pneus na gravilha soou particularmente audível com todas as janelas do veículo abertas. Para desfrutar do ar de Verão, Caetano optara por manter o ar condicionado desligado. Depois de entrar no parque de estacionamento, olhou em volta. Queria um lugar não só próximo do hotel, mas que também permitisse a saída directa para a alameda. Depois de apagar o professor, queria poder sair dali rapidamente.

 

Antes de sair do carro, acendeu a luz interior e olhou-se ao espelho retrovisor. Queria ter a certeza de que estava apresentável naquele hotel finório. Alisou as sobrancelhas bastante hirsutas e endireitou as lapelas do blusão. Quando lhe pareceu que estava o melhor possível, saiu do carro. As chaves foram para o bolso direito das calças, e bateu-lhes sobre o tecido para ter a certeza de que não tinham caído. A última coisa que queria era ter de procurar as chaves. Assim preparado, começou a andar.

 

Seguindo a mesma táctica que usara aquando da primeira visita ao hotel, Caetano dirigiu-se para o edifício onde se situava a suite 108. Eram oito e meia da noite, por isso esperava que o professor e a namorada estivessem a jantar, mas mesmo assim queria verificar primeiro o quarto. Caminhou descontraidamente e passou por diversos hóspedes bem vestidos que iam na direcção oposta.

 

No local apropriado, Caetano cortou caminho entre dois edifícios para alcançar o relvado do lado do oceano. Continuou quase até ao aglomerado de plantas que cobriam a encosta íngreme que ia dar à praia. Ali, voltou-se para caminhar paralelamente à frente do edifício que pretendia. Estava suficientemente próximo da água para ouvir o bater suave das ondas na praia à sua direita. O tempo estava glorioso, com nuvens leves a serem rapidamente arrastadas pelo vento, sob uma abóbada de estrelas parcialmente obscurecidas por uma brilhante lua convexa. Brisas suaves vindas do oceano acariciavam as palmeiras. Não foi difícil Caetano perceber por que é que as pessoas gostavam do Ocean Club.

 

Quando se aproximou da suite 108, conseguindo espreitar para o interior, sentiu um arrepio de excitação levantar-lhe os pêlos da nuca e percorrer-lhe a coluna. Não só as luzes estavam acesas e as cortinas completamente abertas, como o professor e a namorada estavam à vista! Nem podia acreditar que teria a sorte de a missão chegar ao clímax tão fácil e rapidamente, e por instantes ficou apenas a olhar enquanto os batimentos cardíacos aceleravam em antecipação da violência iminente. Mas depois a excitação diminuiu, enquanto se interrogou sobre o que estava a ver. Piscou os olhos algumas vezes para se certificar de que não havia problema nenhum com a sua visão. Passava-se alguma coisa esquisita com o professor e a irmã de Tony, a mexerem-se como um par de galinhas e depois a abanarem um cobertor no ar. Ao fundo, a porta do quarto que dava para o corredor estava escancarada, e uma televisão estava acesa.

 

Irresistivelmente atraído pelo espectáculo confuso, Caetano avançou pelo relvado às escuras. Levou instintivamente a mão ao bolso esquerdo para segurar na coronha da pistola. De repente parou, com uma constatação que foi uma desilusão. As pessoas que ele estava a observar não eram os seus alvos, mas duas criadas a abrir a cama.

 

Porra!resmungou ele. Depois suspirou e abanou a cabeça, abatido.

 

Durante alguns minutos, ficou no escuro e pensou que era melhor assim. Se tivesse conseguido chegar ao terraço, dar um tiro rápido para apanhar o professor, e depois pirar-se, não teria sido nada satisfatório. Teria sido demasiado fácil e demasiado rápido. Muito melhor era uma caça mais elaborada, envolvendo um pouco de perigo que exigisse a sua experiência e habilidade. Era quando o processo se revelava verdadeiramente satisfatório.

 

Caetano soltou a pistola, abanou a perna para que o silenciador encaixasse devidamente no bolso das calças, e endireitou o blusão. Depois virou-se e dirigiu-se para as áreas comuns do hotel: se o professor e a rapariga não tinham ido jantar fora do hotel, era onde estariam.

 

O primeiro restaurante situava-se consideravelmente mais perto da praia do que os edifícios dos quartos e Caetano teve de caminhar ao longo da sebe, com a praia agora à sua esquerda. Portas envidraçadas abriam-se directamente para o oceano, e Caetano estava bastante perto para ouvir o som das conversas. Acelerou o passo para se afastar rapidamente do ângulo de visão dos comensais. Estava preocupado com a possibilidade de o professor o reconhecer. O maior perigo era esse, porque se o professor o visse a segurança seria alertada e, provavelmente, a polícia.

 

Depois de passar as portas envidraçadas, Caetano entrou no restaurante pela porta principal, enquanto procurava atentamente o professor. Passou pela mesa da recepcionista, onde diversos casais aguardavam mesa, e parou à entrada da sala de jantar, de onde pesquisou a sala de forma metódica e rápida. Quando teve a certeza de que o professor não estava ali, saiu tão depressa como tinha chegado.

 

Seguiu-se o restaurante mais descontraído com um bar no centro onde Caetano entrara aquando da primeira visita. Situava-se mesmo à beira da praia, com um telhado de colmo que fazia lembrar uma grande cabana tiki. Estava cheio de hóspedes, especialmente o bar. Uma vez mais, com extremo cuidado, olhou em volta, a caminhar entre o bar central e as mesas periféricas. O professor não estava ali.

 

Caetano resignou-se à ideia de que, provavelmente, o seu alvo saíra do hotel para jantar e seguiu pelo carreiro que atravessava o relvado até ao edifício principal. A sua intenção era ocupar novamente o mesmo sofá que usara na visita anterior, que permitia observar a entrada principal do hotel. Esperava que as taças de fruta ainda estivessem lá. Depois de andar pelos dois restaurantes e sentir os aromas saborosos, o seu estômago estava a queixar-se audivelmente.

 

Havia algumas pessoas no átrio principal. Infelizmente, o sofá de Caetano estava ocupado por um casal que conversava com outros dois sentados em cadeiras. Caetano dirigiu-se para o pequeno bar e para a taça de amendoins. Por coincidência, o empregado era o mesmo com quem conversara da outra vez. Caetano podia ver a entrada do hotel, embora não tão bem como a partir do sofá.

 

Hei! disse o empregado do bar. Estendeu a mão. Há muito tempo que não o via!

 

Caetano ficou levemente perturbado por o homem tê-lo reconhecido, com tantas pessoas que via todos os dias. Sorriu sem vontade, apertou a mão do homem e tirou uma mão cheia de amendoins. O empregado do bar era um nova-iorquino transplantado para a ilha, e esse tinha sido o tópico de conversa uma semana e meia antes.

 

Posso arranjar-lhe alguma coisa? perguntou ele.

 

Caetano viu um dos homens fortes da segurança do hotel a aparecer na arcada que dava acesso à zona da recepção. Com os braços na cintura, perscrutou casualmente a sala. Vestia um discreto fato escuro. Era óbvio que era segurança, porque usava um auricular na orelha esquerda, com o fio esticado por baixo do casaco.

 

Uma Coca-Cola, por favor disse Caetano. Era preferível estar descontraído para não parecer que não pertencia ali. Sentou-se na ponta de um dos bancos altos com a perna esquerda esticada, para não perturbar a pistola escondida e o respectivo silenciador. Gelo e uma rodela de limão deixá-la-iam perfeita.

 

É para já, amigo disse o empregado. Começou a trabalhar, abrindo a Coca-Cola e enchendo um copo com gelo. Torceu a casca do limão, passou-a pela borda do copo e pousou a bebida diante de Caetano. Os seus amigos ainda estão aqui no hotel?

 

Caetano acenou afirmativamente.

 

Eu vinha encontrar-me com eles aqui esta noite, mas eles não estão no quarto nem nos dois restaurantes.

 

Foi espreitar o pátio?

 

Que é isso? perguntou Caetano. Pelo canto do olho, viu o segurança desaparecer para a zona da recepção.

 

Na verdade, é o nosso melhor restaurante explicou o empregado do bar. Só está aberto ao jantar.

 

Onde é?

 

Vá até à recepção e vire à esquerda. Atravesse as portas e está lá. É literalmente no pátio da parte mais antiga do hotel.

 

Vou experimentar disse Caetano. Bebeu a Coca-Cola e fez uma careta por causa da efervescência. Pôs uma gorjeta no balcão e bateu nela.


Obrigado, amigo!

 

De nada disse o empregado, guardando a nota no bolso. Caetano subiu os dois degraus para a recepção, mantendo um olho no segurança. Viu-o imediatamente embrenhado numa conversa com o chefe dos porteiros. Seguindo as indicações do empregado do bar, virou à esquerda, atravessou as portas que separavam o espaço com ar condicionado do que não tinha, e encontrou-se num pátio com um restaurante. Era um espaço comprido e rectangular cheio de palmeiras, flores exóticas e até uma fonte central ao lado de mesas e cadeiras. A rodear a área, havia um edifício de dois andares. Uma varanda estendia-se ao longo do primeiro andar, com um gradeamento de ferro forjado. Música ao vivo flutuava pelo local vinda de cima e fora da vista de Caetano.

 

Posso ajudá-lo? perguntou uma mulher de cabelos escuros atrás do pódio da recepção. Usava um vestido justo e estreito pelos tornozelos com padrão tropical que fez Caetano perguntar a si mesmo se ela conseguiria andar sem o fazer subir até à cintura.

 

Estou apenas a ver disse Caetano. Sorriu. É um lugar lindo embora houvesse alguma luz suave vinda dos corredores abertos do hotel, a maior parte da iluminação na zona de refeições provinha de uma combinação de velas altas em cada mesa e da luz no céu.

 

Se quiser jantar aqui uma noite, precisará de fazer uma reserva disse a recepcionista. Esta noite estamos completamente cheios.

 

Vou ter isso em mente. Há algum problema se eu der uma vista de olhos?

 

Certamente que nãodisse a recepcionista, fazendo sinal a Caetano para que prosseguisse.

 

Caetano viu umas escadas para o primeiro andar e, acreditando que poderia ver melhor de lá, subiu-as. Ao chegar ao primeiro andar, viu os músicos. Estavam numa pequena área de repouso directamente por cima do pódio da recepcionista. Para ganhar espaço, tinham desviado o mobiliário do hotel.

 

Caetano percorreu o corredor aberto à direita, com a mão pousada no corrimão. Tinha uma boa perspectiva dos comensais lá em baixo, pelo menos, nas mesas que não estavam escondidas pela vegetação. As velas iluminavam convenientemente os rostos das pessoas. Com a intenção de fazer o circuito completo, Caetano estava confiante de que conseguiria ver toda a gente discretamente.

 

De repente, parou, e os mesmos cabelos que se tinham levantado antes retesaram-se uma vez mais. A não mais de cinquenta metros, sentado a uma mesa a seguir a um loendro florido, estava o professor, embrenhado no que parecia uma conversa animada. A sua cabeça abanava enquanto falava, e ele estava a esticar um dedo indicador no ar como se quisesse realçar uma ideia. Caetano não conseguiu ver o rosto de Stephanie, pois ela estava voltada para o outro lado. Rapidamente, recuou para colocar o loendro entre ele próprio e o professor. Agora vinha a parte divertida. Se tivesse uma espingarda com mira, poderia atingir o professor de onde estava, mas não tinha espingarda e, para além disso, um tiro desses dificilmente seria divertido. Sabia demasiado bem que com uma pistola, mesmo com mira de laser, tinha de estar praticamente em cima do alvo para ter a certeza de que o matava. Com isso em mente, sabia que tinha de esperar pelo momento certo.

 

Olhou em volta. Agora que encontrara os pombinhos, perguntou a si mesmo onde poderia esperar que eles terminassem o jantar romântico. Logo que isso acontecesse, voltariam indubitavelmente para o quarto por um dos muitos carreiros escuros e isolados, que seriam um local perfeito para o homicídio. No pior dos casos, iam dar um passeio pela praia, o que seria igualmente bom para Caetano. Com a excitação a crescer, Caetano sorriu satisfeito. Por fim, estava tudo a encaixar-se no devido lugar.

 

À sua frente, não havia grande coisa a não ser umas escadas que conduziam a um ginásio, pelo menos de acordo com um letreiro que Caetano leu de onde estava. Olhou para a área de descanso onde os músicos estavam a tocar e decidiu que seria um local perfeito para esperar. Embora, provavelmente, não conseguisse ver o professor nem a irmã de Tony devido ao loendro junto à mesa deles, veria quando se levantassem para sair, que era o importante. Igualmente importante era parecer estar sentado a ouvir o grupo enquanto esperava, não fosse um dos seguranças passar por ali.

 

Daniel esfregou os olhos para ter paciência. Piscou algumas vezes antes de olhar para Stephanie, cuja expressão era de fúria exasperada e espelhava a sua na perfeição.

 

A única coisa que estou a dizer é que o homem da segurança, sei lá qual é o nome dele, me agarrou de uma forma nojenta. Eu fiquei humilhada e aterrorizada, e não sei bem qual foi a sensação pior.

 

Muito bem, então ele apalpou-te enquanto te revistava. Não sei bem onde é que acaba uma coisa e começa a outra. Mas, seja como for, para começo de conversa tu não devias ter ido à sala dos óvulos. Foi como se estivesses a pedi-las!

 

A boca de Stephanie descaiu lentamente. Estava chocada por Daniel conseguir dizer uma coisa daquelas. Era a coisa mais insensível que ele alguma vez dissera, e já dissera coisas bastante insensíveis. Abruptamente, Stephanie afastou a cadeira de ferro forjado, que fez um ruído considerável contra o chão de cimento, e levantou-se. Daniel reagiu quase tão depressa inclinando-se para a frente e agarrando-lhe o antebraço.

 

Onde é que pensas que vais? perguntou.

 

Não sei bem disse Stephanie bruscamente. Neste momento, só quero sair daqui.

 

Durante alguns instantes, observaram-se com a mesa de permeio. Daniel não a soltou, mas Stephanie também não tentou debater-se. Perceberam que as pessoas nas mesas em redor tinham ficado em silêncio. Quando Daniel e Stephanie olharam em volta, viram que todos os olhares estavam pousados neles. Até vários empregados de mesa tinham parado a meio caminho para olhar.

 

Apesar do seu estado de espírito, Stephanie sentou-se novamente. Daniel continuou a segurar-lhe o braço, embora o aperto tivesse diminuído significativamente.

 

Não estava a falar a sério na última coisa que disse declarou Daniel. Estou zangado e perturbado, e saiu. Sei que não estavas a provocar para seres molestada.

 

Os olhos de Stephanie chispavam.

 

Pareces uma daquelas pessoas que acham que as vítimas de violação se colocam propositadamente em risco com o que vestem ou pela forma como agem.

 

De maneira nenhuma disse Daniel. Saiu-me sem querer. Estou apenas muito zangado contigo por teres ido para aquela sala de óvulos e provocado este grande problema. Prometeste que não ias fazer ondas.

 

Eu não prometi retorquiu Stephanie. A sua voz perdera um pouco da irritação. Disse que faria todos os possíveis. Mas a minha consciência está a pressionar-me. Eu fui àquela sala de óvulos para tentar provar o que temia, e provei. Entre as outras coisas que já sabíamos, eles estão mesmo a engravidar mulheres e depois a fazer-lhes abortos para obterem ovários fetais.

 

Como é que podes ter tanta certeza?

 

Vi a prova definitiva.

 

Está bem, podemos falar sobre isso sem gritar um com o outro? Os olhos de Daniel observaram as mesas próximas. As pessoas tinham voltado para as suas conversas, e os empregados de mesa haviam retomado as suas tarefas.

 

Não, a menos que evites dizer coisas como as que disseste há um segundo.

 

Vou fazer todos os possíveis.

 

Stephanie olhou para Daniel, a tentar decidir se a última afirmação fora deliberadamente passiva-agressiva ou se ele estava a gozar com ela repetindo as suas palavras. Da sua perspectiva, tinha de ser uma ou outra hipótese, e juntamente com tudo o resto não era um bom sinal.

 

Vá lá! disse Daniel. Conta-me qual é essa prova definitiva! Stephanie continuou a olhar para Daniel. Agora estava a tentar decidir

 

se ele mudara durante os últimos seis meses ou se fora sempre tão desligado de tudo, a não ser do seu trabalho. Desviou os olhos por instantes para reprogramar as suas emoções e para se controlar o mais possível. Ir-se embora ou ficarem ali os dois sentados a picarem-se um ao outro, não ia resolver nada. Voltou-se para Daniel, respirou fundo e descreveu tudo o que vira, particularmente os pormenores sobre o livro de registos que continha todos os pormenores, preto no branco. Quando acabou, olharam um para o outro por cima dos jantares por terminar. Foi Daniel quem, por fim, quebrou o silêncio.

 

Bem, tinhas razão. Estares certa dá-te, pelo menos, alguma satisfação?

 

Nenhuma! exclamou Stephanie, com uma gargalhada sarcástica. A questão é, podemos continuar neste ponto, sabendo o que sabemos?

 

Daniel baixou os olhos para a mesa e brincou distraidamente com os talheres de prata.

 

Eu acho que nós aceitámos os ovócitos antes de sabermos pormenores sobre a sua origem.

 

Ha! escarneceu Stephanie. É uma desculpa extremamente conveniente e um exemplo perfeito de ética de algibeira.

 

Daniel ergueu os olhos para fitar Stephanie.

 

Estamos tão perto disse ele, pronunciando cada palavra com solenidade. Amanhã, vamos começar a diferenciar as células. Não vou parar agora por causa do que está a acontecer na Clínica Wingate. Lamento que tenhas sido maltratada, abusada e molestada. Também lamento ter sido espancado. Isto não tem sido um piquenique, mas sabíamos que tratar Butler não ia ser fácil. Estávamos perfeitamente conscientes desde o início, que os directores da Wingate não eram éticos, que eram uns perfeitos idiotas e, no entanto, decidimos avançar apesar de tudo. A questão é, ainda estás comigo ou não?

 

Deixa-me fazer-te uma pergunta disse Stephanie, inclinando-se para Daniel e baixando a voz. Depois de Butler ser tratado, e de irmos para casa e a CURA ter sido salva, e tudo estar a correr na perfeição, temos alguma forma de alertar anonimamente as autoridades das Bahamas para o que está a acontecer na Wingate?

 

Isso podia ser problemático respondeu Daniel. Para te tirar da cela privada de Kurt Hermann imediatamente, o que pensei ser de importância primordial para todos os envolvidos, assinei um acordo de confidencialidade que previa a hipótese de fazermos o que acabaste de sugerir. Aquelas pessoas com quem estamos a lidar podem ser doidas, mas não são estúpidas. O acordo também especificava o que estamos a fazer na Wingate, o que significa que se o segredo deles for revelado eles revelam o nosso, o que pode inviabilizar tudo o que tentámos conseguir ao tratar Butler.

 

Stephanie rodou distraidamente o copo de vinho em que não tocara.

 

E que tal esta ideia? perguntou Stephanie, de repente. Talvez depois de estar curado, Butler não seja tão enfático em relação ao secretismo.

 

Suponho que é uma possibilidade reconheceu Daniel.

 

Podemos então dizer que, pelo menos, deixaremos este assunto em aberto para discussão posterior?

 

Suponho que sim repetiu Daniel. Quero dizer, quem sabe? Podem acontecer coisas que não previmos.

 

Parece-me uma descrição bastante boa de todo o caso, até à data.

 

Muito engraçado!

 

Bem, nada correu exactamente como planeámos!

 

Isso não é bem verdade. Graças a ti, o trabalho celular progrediu exactamente como planeámos. Quando Butler chegar cá, vamos ter dez linhas de células disponíveis, qualquer uma das quais poderá curá-lo. O que eu preciso de saber é se estás comigo, para podermos completar o que precisamos e sair de Nassau.

 

Tenho mais uma exigência disse Stephanie.

 

Oh?

 

Quero que deixes claro ao Spencer Wingate que não gostas que ele se atire descaradamente a mim. E, já que estamos a falar no assunto, por que é que tens de ser tão passivo em relação ao assunto? É humilhante. Nunca falaste sequer no assunto entre nós.

 

Só estou a tentar não fazer ondas.

 

Isso é fazer ondas! Não compreendo! Se a Sheila Donaldson estivesse a atirar-se a ti com a mesma insistência, eu apoiar-te-ia certamente da maneira que tu quisesses.

 

Spencer Wingate é um egoísta convencido que pensa que é um presente para o sexo feminino. Eu pensei que conseguias lidar com ele sem transformar a situação numa cena de mau gosto.

 

Já é uma cena de mau gosto. Ele tornou-se progressivamente e ofensivamente insistente, ao ponto de me tocar, embora depois do que aconteceu hoje talvez esfrie um pouco. De qualquer maneira, quero algum apoio teu em relação a isto. Está bem?

 

Tudo bem Está bem! disse Daniel. Mais nada? Podemos continuar e acabar este assunto do Butler?

 

Stephanie acenou afirmativamente.

 

Suponho que sim disse, sem grande entusiasmo.

 

Daniel passou os dedos pelos cabelos diversas vezes, encheu as bochechas de ar e depois, expirou como um balão a esvaziar. Sorriu debilmente.

 

Peço novamente desculpa pelo que disse há bocado. Tenho andado descontrolado desde que soube que estavas trancada naquela cela. Pensei que, com toda a certeza, íamos ser expulsos da Wingate por causa da tua bisbilhotice, logo quando tínhamos o sucesso à vista.

 

Stephanie perguntou a si mesma se Daniel faria alguma ideia de como ele próprio era egoísta.

 

Espero que não vás dizer que eu não devia ter entrado na sala dos óvulos.

 

Não, de maneira nenhuma admitiu Daniel. Compreendo que fizeste o que sentiste que tinhas de fazer. Só estou satisfeito por o nosso projecto não ter sido destruído. Mas este episódio fez-me perceber outra coisa. Temos estado tão ocupados e preocupados que não tirámos um momento para nós, a não ser para comer. Daniel atirou a cabeça para trás e, através das folhas das palmeiras, olhou para o céu salpicado de estrelas. Quero dizer, aqui estamos nós nas Bahamas, no meio do Inverno, e não aproveitámos esse facto de maneira nenhuma.

 

Estás a sugerir alguma coisa em especial? perguntou Stephanie. Ocasionalmente, Daniel surpreendia-a.

 

Estou respondeu ele. Tirou o guardanapo do colo e pousou-o em cima do prato. Nenhum de nós parece estar especialmente com fome, e estamos ambos tensos. Que tal irmos dar um passeio ao luar pelo jardim do hotel e visitar aquele claustro medieval que vimos ao longe no passeio que fizemos na primeira manhã que passámos aqui? Ficámos ambos com curiosidade, e seria terrivelmente apropriado. Na Idade Média, os claustros eram abrigos do turbilhão do mundo real.

 

Stephanie pegou no seu guardanapo e pousou-o sobre a mesa. Apesar de estar zangada com Daniel, e com as questões que essa zanga suscitava sobre o futuro relacionamento com ele, não pôde deixar de sorrir ao pensar na sua inteligência e no seu intelecto perfeitos, traços que tinham muito a ver com a atracção inicial que sentira por ele. Levantou-se.

 

Deve ser a melhor sugestão que fazes desde há seis meses.

 

«Isto parece prometedor!», pensou Caetano quando viu a cabeça de Stephanie e depois, Daniel a aparecer acima do loendro que bloqueava a visão da mesa. Vira Stephanie um momento antes mas, aparentemente, ela voltara a sentar-se. Caetano afundou-se na cadeira, não fosse Daniel olhar para cima, para o grupo que estava a tocar na varanda. Caetano esperava que o casal seguisse na sua direcção e passasse pela secretária da recepcionista directamente por baixo, a caminho da suite. Mas eles enganaram-no. Começaram a andar na direcção oposta e não olharam para trás.

 

Porra! murmurou ele. De cada vez que pensava ter tudo sob controlo, acontecia alguma coisa inesperada. Olhou para o músico principal, com quem estabelecera contacto visual durante o tempo que estivera à espera. O homem apreciara notoriamente a atenção de Caetano. Este sorriu e acenou ligeiramente quando se levantou.

 

No começo, caminhou numa passada normal ao longo da varanda para evitar dar a impressão de que estava com pressa. Mas, depois de estar suficientemente longe dos músicos, apressou o passo enquanto mantinha uma mão na pistola que tinha no bolso das calças, para impedir que ela batesse contra a perna. No pátio inferior, o professor e a rapariga já tinham desaparecido no interior do ginásio que ocupava o rés-do-chão do lado oriental do edifício.

 

Na extremidade oposta da varanda, Caetano parou ao cimo das escadas. Desceu rapidamente, ainda a segurar a arma através do tecido das calças. Quando chegou à porta do ginásio, parou, recompôs-se rapidamente, certificou-se de que não estava a ser observado por ninguém no restaurante, e depois abriu-a lentamente. Não fazia ideia do que podia esperar. Se o professor e a rapariga estivessem à vista, a inscreverem-se para um tratamento, recuaria e repensaria a sua acção. Mas o ginásio estava fechado, como evidenciava um letreiro sobre a secretária da recepção iluminado por uma única vela votiva. Caetano recordou-se imediatamente de ter passado pela mesma área aquando da primeira visita, quando andava à procura da piscina do hotel. Adivinhando que o destino do professor e da rapariga era a piscina, atravessou rapidamente a sala vazia e saiu pelo outro lado.

 

Caetano estava agora na zona do recinto do hotel composta por moradias individuais. Focos de luz fraca definiam cada entrada, mas a zona estava escura por baixo de uma abóbada de palmeiras. Caetano caminhou rapidamente, lembrando-se do caminho. Estava satisfeito. Adivinhando que a piscina e o seu bar também estariam fechados e desertos, teria a hipótese de escolher os locais apropriados para fazer o serviço.

 

Ao fazer uma curva apertada para a direita no carreiro, Caetano avistou o professor e a irmã de Tony antes de eles desaparecerem num pequeno lance de escadas a seguir a uma balaustrada barroca de pedra calcária. Acelerou novamente o passo. Ao chegar à balaustrada, olhou para a zona da piscina. Como esperava, estava fechada à noite e os edifícios circundantes encontravam-se às escuras. A piscina propriamente dita estava iluminada com luzes subaquáticas e parecia uma esmeralda enorme e lisa.

 

Não acredito nisto! sussurrou Caetano para si mesmo. É tão perfeito! A sua excitação era palpável. Daniel e Stephanie tinham caminhado ao longo da piscina e dirigiam-se agora para os enormes jardins, às escuras e desertos. Na escuridão, Caetano não conseguiu ver muitos pormenores para além de algumas sugestões isoladas de estátuas e sebes. Mas o que conseguia ver claramente era o claustro medieval. Brilhava sob o luar distante como uma coroa a encimar uma série de jardins em terraços ascendentes.

 

A sua mão deslizou para o bolso esquerdo das calças e enroscou-se à volta da coronha da automática com silenciador. Estremeceu com a sensação que o aço frio causava, e no seu olho da mente viu o ponto encarnado de laser na testa do professor, que precederia o momento de puxar o gatilho.

 

 

21.37, segunda-feira, 11 de Março de 2002

Reconheço esta estátua de algum lado disse Daniel. Sabes se é famosa?

 

Daniel e Stephanie estavam num canteiro de relva aparada, a olhar para um nu reclinado em mármore que parecia brilhar na semi-escuridão húmida e nublada do jardim do Ocean Club, o qual fora inspirado em Versalhes. Uma iluminação azul prateada varria a paisagem formal e contrastava agudamente com as sombras roxas, muito escuras.

 

Acho que é a reprodução de um Canova replicou Stephanie. Por isso, sim, é razoavelmente famosa. Se é a que estou a pensar, o original está no Museu Borghese, em Roma.

 

Daniel lançou um olhar de admiração na direcção dela, mas ela não percebeu. Estava absorvida a tocar ao de leve na coxa da mulher.

 

É surpreendente quanto o mármore se parece com pele ao luar.

 

Como raio é que sabias que é uma reprodução de um Canova, seja ele quem for?

 

António Canova foi um escultor neoclássico italiano do século XVIII e foi muito famoso.

 

Estou impressionado disse Daniel, com uma descrença cheia de admiração. Como é que tens factos tão improváveis nas pontas dos dedos? Ou estás a passar-me a perna, porque leste sobre este jardim na brochura que temos no quarto?

 

Não li a brochura, mas vi-te a lê-la. Talvez devesses fazer-me uma visita guiada.

 

Nem penses! A única parte que li cuidadosamente foi sobre o claustro no cimo da colina. A sério, como é que sabias sobre o Canova?

 

História foi a minha cadeira opcional na universidade disse Stephanie. Isso incluiu um curso de história de arte, de que me lembro melhor do que do resto das outras aulas.

 

Por vezes, surpreendes-me comentou Daniel. Seguindo o exemplo de Stephanie, estendeu a mão e tocou na almofada de mármore sobre a qual a mulher se reclinava. É curioso como esses tipos conseguiam fazer o mármore parecer tão macio. Olha para a forma como o corpo dela recorta o tecido.

 

Daniel! disse Stephanie com súbita insistência.

 

Daniel endireitou-se e tentou ler a expressão dela no escuro. Ela estava a olhar para a zona da piscina. Ele seguiu o olhar, mas não viu nada fora do vulgar na paisagem iluminada pelo luar.

 

Que é que se passa? Viste alguma coisa?

 

Vi disse Stephanie. Vi movimento pelo canto do olho. Acho que há alguém atrás daquela balaustrada.

 

E depois? É natural que haja pessoas a passear por aqui, pois este lugar é lindo. Não podemos esperar ter este jardim enorme apenas para nós.

 

É verdade concordou Stephanie. Mas pareceu-me que quem eu vi se baixou logo que eu virei a cabeça. Foi como se não quisesse ser visto.

 

Que é que estás a tentar sugerir? perguntou Daniel, com uma das suas gargalhadas trocistas. Que anda alguém a espiar-nos?

 

Bem, sim, uma coisa desse género.

 

Oh, vá lá, Stephanie! Eu não estava a falar a sério quando fiz a sugestão.

 

Bem, eu estou a falar a sério. Estou verdadeiramente convencida de que vi alguém. Ergueu-se nas pontas dos pés e concentrou-se para ver no escuro. E há mais alguém! disse ela, excitada.

 

Onde? Não vejo ninguém.

 

Junto à piscina. Uma pessoa acaba de desaparecer da luz para as sombras do bar.

 

Daniel esticou-se e agarrou nos ombros de Stephanie, obrigando-a a voltar-se para olhar para ele. Ela começou por resistir.

 

Hei! Vá lá! Estamos aqui para descontrair. Tivemos ambos um dia infernal, e tu em particular.

 

Talvez fosse melhor voltarmos e darmos um passeio na praia, onde há sempre pessoas. Este jardim parece grande de mais, escuro de mais e isolado de mais para o meu gosto actual.

 

-Vamos lá acima àquele claustro - disse Daniel autoritário, a apontar para o cimo da colina. - Ambos ficámos intrigados com ele, e como eu disse anteriormente, a nossa visita vai ser metafisicamente apropriada. Precisamos de um abrigo do turbilhão que estamos a viver. E a noite é a melhor altura para visitar ruínas. Por isso, acalma-te e vamos!

 

- E se eu vi realmente alguém a esconder-se atrás da balaustrada? Stephanie voltou a esticar o pescoço para olhar por cima das buganvílias.

 

-Queres que corra até lá para verificar? Se quiseres, eu não me importo de ir, só para ficares descansada. Estás a ser compreensivelmente paranóica, mas mesmo assim paranóica. Estamos no recinto do hotel, por amor de Deus. Há segurança por todo o lado, lembras-te?

 

- Deves ter razão - concordou Stephanie com relutância. Uma imagem fugaz de Kurt Hermann passou-lhe pela cabeça. Tinha muitos motivos para estar com os nervos em franja.

 

- Que dizes; queres que dê uma corrida até lá?

 

- Não. Quero que fiques aqui.

 

- Bem, então vamos! Vamos subir até ao claustro - Daniel deu-lhe a mão e guiou-a para o caminho principal que seguia ao longo de uma série de terraços com lances de degraus muito espaçados até ao cume da colina, onde se erguia o claustro. Em contraste com o jardim escuro, o claustro estava iluminado com luzes subtis ao nível do chão, para realçar os aros góticos e dar-lhe a aparência de uma jóia ao longe.

 

À medida que iam subindo cada terraço e passavam por uma fonte ou estátua central, reparavam noutras esculturas dos dois lados em nichos abrigados. Algumas dessas estátuas eram em mármore, enquanto outras eram em pedra ou bronze. Embora tentados a dar uma vista de olhos, evitaram mais desvios.

 

- Não fazia ideia de que havia tantas obras de arte aqui fora comentou Stephanie.

 

-Antes de ser um hotel, foi uma propriedade privada - disse Daniel.

- Pelo menos, segundo a brochura.

 

- O que é que dizia sobre o claustro?

 

-A única coisa de que me lembro é que é francês e que foi construído no século XII.

 

Stephanie assobiou, maravilhada.

 

Muito poucos claustros saíram de França. Na verdade, só conheço um outro, e não é tão antigo.

 

Subiram o último lance de escadas, e quando chegaram ao cimo, encontraram uma estrada pública pavimentada que atravessava o caminho e isolava o claustro dos jardins. Quando tinham visto o claustro de baixo, era impossível verem a estrada a menos que tivesse passado um veículo, o que não acontecera.

 

Isto é uma surpresa disse Daniel, a olhar para um lado e para o outro da estrada que ia de este para oeste ao longo da espinha de Paradise Is (and.

 

Acho que faz parte do progresso disse Stephanie. Aposto que vai para o campo de golfe.

 

Atravessaram a estrada, cujo asfalto negro ainda irradiava o calor do dia, e subiram mais alguns degraus para atingir o cume da colina dominado pelo claustro. A estrutura antiga era meramente um quadrado, sem tecto, com uma fila dupla de arcos com colunas góticas. A fila interior tinha um pouco de rendilhado sob a forma de uma folha única em cada arco.

 

Daniel e Stephanie aproximaram-se da construção. Tiveram de ter cuidado com o sítio onde punham os pés, porque em contraste com o jardim mais abaixo, o chão perto do claustro era irregular e estava cheio de pedaços de pedra e conchas esmagadas.

 

Tenho a impressão de que esta vai ser uma daquelas coisas que parecem melhores vistas ao longe do que ao perto disse Stephanie.

 

Em parte, é por isso que as ruínas são mais bonitas quando vistas à noite.

 

Chegaram à estrutura e dirigiram-se cuidadosamente para a ala que se estendia entre as duas filas de colunas. Os seus olhos, adaptados à escuridão, tiveram de se franzir com o brilho da iluminação exterior.

 

Esta parte teve um tecto numa vida anterior disse Stephanie. Daniel levantou os olhos e acenou afirmativamente.

 

Evitando os destroços debaixo dos pés, passaram para a balaustrada interior. Apoiaram-se ambos no antigo corrimão de pedra calcária e espreitaram para o pátio central. Tinha aproximadamente quinze metros quadrados e estava cheio de pequenos montes de pedra e fragmentos de conchas, para além de um efeito complicado de sombras, criado pelas luzes e pelos arcos. É triste comentou Stephanie. Abanou a cabeça. Quando isto era o centro de um claustro em funcionamento, este pátio devia ter tido um poço e até uma fonte, para além de um jardim. Os olhos de Daniel percorreram o pátio.

 

O que eu acho triste é que, depois de ter durado quase mil anos em França, não vai durar muito tempo aqui, exposto ao sol tropical e à brisa do mar.

 

Endireitaram-se e olharam um para o outro.

 

Isto é um pouco decepcionante disse Daniel.Vamos fazer aquele passeio na praia que tu sugeriste!

 

Boa ideia disse Stephanie. Mas primeiro vamos dar o benefício da dúvida a esta estrutura e respeitá-la um pouco. Vamos, pelo menos, dar um passeio pelo ambulatório.

 

De mãos dadas, ajudaram-se mutuamente a evitar os obstáculos no chão. Com o brilho das luzes exteriores, era difícil ver pormenores. Do lado oposto ao hotel, pararam durante alguns instantes para admirar a paisagem do porto de Nassau. As luzes de iluminação também dificultavam, e pouco depois foram-se embora.

 

Caetano estava extasiado. Não poderia ter planeado as coisas melhor. O professor e a irmã de Tony estavam agora parados num quadrado de luz que manteve Caetano invisível, enquanto ele se aproximava para uma distância de onde poderia disparar. Podia ter-se aproximado na escuridão do jardim, mas calculara correctamente o destino deles e sabia que seria perfeito.

 

Caetano decidira que era melhor a irmã de Tony saber, sem sombra de dúvida, de onde viera o tiro para não pensar que o professor fora vítima de um acto de violência gratuito. Caetano considerou que isso era significativo, uma vez que ela ia assumir o controlo da empresa. Pensou que era importante que ela soubesse exactamente como é que os irmãos Castigliano se sentiam em relação ao empréstimo e à forma como a empresa estava a ser gerida.

 

Naquele momento, o casal estava na extremidade mais afastada das ruínas, dando uma volta lenta ao edifício. Caetano posicionou-se no limite da poça de luz ao longo do lado ocidental. A sua intenção era esperar até eles estarem a não mais de seis metros de distância, antes de saltar para o caminho para os confrontar.

 

O seu coração disparou enquanto observava Daniel e Stephanie a darem a volta à última esquina e a começarem a dirigir-se para ele. Com excitação crescente, extraiu a pistola do coldre improvisado e certificou-se de que havia uma bala na câmara. Erguendo-a à altura da cabeça, preparou-se para aquilo de que mais gostava: acção!

 

Acho que não devíamos voltar a falar sobre este assunto disse Stephanie. Nem agora, e talvez nunca.

 

Peço desculpa pelo que disse no restaurante. A única coisa que estou a dizer agora é que preferia ser apalpado do que espancado. Não estou a dizer que ser apalpado não é desagradável; é apenas mais fácil de suportar do que ser espancado e magoado fisicamente.

 

Que é isto, um concurso? perguntou Stephanie ironicamente. Não respondas! Não quero falar mais no assunto.

 

Daniel preparava-se para responder quando se engasgou, parou onde estava e apertou a mão de Stephanie com mais força. Ela estava a olhar para o chão para poder caminhar sobre um grande monte de pedras quando a reacção de Daniel a chocou a ponto de levantar os olhos. Quando o fez, também se engasgou.

 

Uma figura forte saltara para o caminho deles, com uma pistola enorme na mão e a apontá-la para eles com um braço esticado. Daniel, mais do que Stephanie, estava consciente de um ponto encarnado imediatamente abaixo do cano da pistola.

 

Nem Daniel nem Stephanie conseguiram mexer-se, enquanto o homem se aproximava lentamente. Tinha uma expressão malévola no rosto grande e achatado, que Daniel reconheceu com um estremecimento. Caetano parou a um metro e meio do casal, espantado e imóvel. Nesse ponto, tornou-se perfeitamente claro que a pistola estava apontada directamente para a testa de Daniel.

 

Fizeste-me voltar, seu imbecil resmungou Caetano. Uma decisão errada! Os irmãos Castigliano estão muito desapontados por não teres voltado para Boston para proteger o empréstimo deles. Pensei que tinhas percebido a minha mensagem mas, aparentemente, não percebeste, e fizeste-me fazer má figura. Por isso, adeus.

 

O tiro soou alto na noite calma e húmida. O braço de Caetano que segurava a pistola caiu para o lado, enquanto Daniel cambaleava para trás, arrastando Stephanie consigo. Ela gritou quando o corpo caiu pesadamente, de rosto para baixo, com os braços estendidos a seu lado. Houve algumas contorções musculares, mas depois tudo ficou calmo. Uma grande ferida por onde a bala saíra surgiu na nuca dele, deitando sangue e massa cinzenta.

 

 

21.48, segunda-feira, 11 de Março de 2002

Durante vários momentos, Daniel e Stephanie não se mexeram. Quando o fizeram, foi apenas para permitir que os seus olhos se encontrassem, depois de terem ficado petrificados a fixar o corpo deitado de borco aos pés deles. Estavam tão confusos que nem sequer respiravam, cada um esperando em vão que o outro explicasse aquilo que acabavam de testemunhar. Com as bocas abertas, os rostos reflectiam uma mistura de medo, horror e confusão, mas o medo desapareceu rapidamente. Sem dizerem uma palavra e sem saberem quem estava a conduzir quem, fugiram, saltando o muro baixo à sua esquerda e correram temerariamente para o lugar de onde tinham vindo.

 

A início, a fuga foi relativamente controlada, graças à iluminação fornecida pelas luzes ao nível do chão, direccionadas para o claustro. Mas logo que passaram para a escuridão, correram às cegas. Com os olhos agora acostumados às luzes do claustro, eram como cegos a correr numa paisagem irregular e repleta de obstáculos. Daniel foi o primeiro a tropeçar num arbusto baixo e a cair. Stephanie ajudou-o a levantar-se, mas depois caiu. Ambos sofreram alguns arranhões que nem sequer sentiram.

 

Reunindo toda a sua força de vontade, obrigaram-se a andar às cegas para evitar novas quedas, embora os seus cérebros aterrorizados gritassem para eles correrem. Minutos depois, chegaram aos degraus que conduziam à estrada. Nessa altura, os seus olhos começavam já a distinguir pormenores ao luar, e como viam o terreno puderam acelerar o passo.

 

Para que lado? perguntou Stephanie num sussurro cansado, quando pisaram o pavimento da estrada.

 

Vamos limitar-nos ao caminho que conhecemos sussurrou Daniel apressadamente.

 

De mãos dadas, correram para o outro lado da estrada e desceram o primeiro de muitos lances de degraus de pedra, feitos à mão no jardim, o mais depressa que os seus sapatos de cerimónia o permitiam. A irregularidade dos degraus aumentava a dificuldade, embora nos rectângulos de relva intermédios corressem a toda a velocidade. Quanto mais se afastavam do claustro, mais escuro ficava, mas os seus olhos adaptaram-se progressivamente e o luar era mais do que suficiente para os ajudar a evitar chocarem com alguma estátua.

 

Depois do terceiro lance de escadas, a exaustão levou-os a abrandar o ritmo para uma corrida ligeira. Daniel estava mais esgotado do que Stephanie, e quando, por fim, entraram na esfera de iluminação vinda da piscina e sentiram uma segurança relativa, teve de parar. Inclinado para a frente, pôs as mãos nos joelhos e respirou com dificuldade. Por momentos, nem sequer conseguiu falar.

 

Com o peito a palpitar, Stephanie olhou relutantemente para o caminho por onde tinham vindo. Após o choque do que acontecera, na sua imaginação estavam a ser perseguidos por todos os géneros de demónios, mas a paisagem do jardim vista ao luar era tão idílica e tranquila como antes. Um pouco aliviada, concentrou-se em Daniel.

 

Sentes-te bem? conseguiu perguntar entre respirações. Daniel acenou afirmativamente. Ainda não conseguia falar.

 

Vamos para o hotel acrescentou ela.

 

Daniel acenou de novo. Endireitou-se e, após um olhar de relance para trás, pegou na mão estendida de Stephanie.

 

A andar, contornaram a piscina e começaram a subir as escadas de pedra calcária que davam acesso à balaustrada barroca.

 

Aquele era o mesmo homem que te atacou na loja de roupas? perguntou Stephanie. Ainda estava a respirar pesadamente.

 

Sim! conseguiu Daniel responder.

 

Passaram pelas moradias e entraram na área deserta do ginásio, iluminada por uma vela, que também funcionava como passagem do complexo da piscina para o hotel. Depois da carnificina chocante que tinham presenciado no claustro em ruínas, e do terror subsequente que tinham sentido, a aura asiática de simplicidade do ginásio, a sua limpeza e a profunda serenidade pareciam extraterrenas, quase esquizofrénicas. Quando entraram no restaurante Courtyard Terrace cheio de comensais elegantemente vestidos, música ao vivo e empregados de mesa de smoking.

 

sentiram-se ainda mais desconfortáveis. Sem falarem com ninguém, nem um com o outro, passaram para o hotel propriamente dito.

 

Na zona da recepção com arcos altos, Stephanie puxou Daniel para este parar. À direita deles ficava a sala de estar, onde hóspedes conversavam tranquilamente e riam baixinho. À esquerda, via-se a entrada aberta do hotel, que dava acesso à porta principal. Porteiros de libré estavam de prontidão. À frente, situavam-se os balcões individuais de recepção, mas apenas um estava ocupado. Por cima, ventoinhas tropicais rodavam preguiçosamente.

 

Com quem devemos falar? perguntou Stephanie.

 

Não sei. Deixa-me pensar!

 

Que tal com o gerente da noite?

 

Antes de Daniel poder responder, um dos porteiros aproximou-se.

 

Desculpe-me disse ele para Stephanie. Está bem?

 

Acho que sim respondeu Stephanie. O porteiro apontou.

 

Sabe que a sua perna esquerda está a sangrar?

 

Stephanie olhou rapidamente para baixo e, pela primeira vez, reparou como estava suja. O tombo que dera às escuras sujara-lhe o vestido e rasgara a bainha. As meias finas estavam ainda em pior estado, especialmente por baixo do joelho esquerdo, onde estavam rasgadas. As malhas estendiam-se até ao tornozelo, juntamente com um fio de sangue que escorria do joelho. Reparou então que a palma direita também estava magoada, com pedacinhos minúsculos de conchas partidas ainda agarrados.

 

Daniel não estava em muito melhor estado. Tinha um rasgão nas calças mesmo abaixo do joelho direito, com uma mancha de sangue associada, o casaco estava salpicado de fragmentos de conchas partidas e quase perdera o bolso do lado direito.

 

Não é nada garantiu Stephanie ao porteiro. Nem sequer tinha percebido que me tinha magoado. Tropeçámos ao pé da piscina.

 

Nós temos um carrinho de golfe lá fora disse o porteiro. Querem uma boleia até ao quarto?

 

Acho que não vai ser necessário disse Daniel. Mas obrigado pelo seu cuidado pegou no braço de Stephanie e recomeçaram a andar em direcção à porta que os levaria para o quarto.

 

No começo, Stephanie deixou-se levar, mas pouco antes de chegarem à porta soltou o braço.

 

Espera um segundo! Não vamos falar com alguém?

 

Baixa a voz! Vá lá! Vamos ao quarto para nos limparmos. Lá podemos falar melhor.

 

Confusa com o comportamento de Daniel, Stephanie deixou-se levar para o carreiro, mas parou depois de dar alguns passos. Soltou novamente o braço do aperto dele e abanou a cabeça.

 

Não compreendo. Vimos um homem ser alvejado, e ele ficou ferido com gravidade. É preciso chamar uma ambulância e a polícia.

 

Mantém a voz baixa! pediu Daniel. Olhou em volta, agradecido por não haver ninguém por perto. Aquele bandido está morto. Tu viste a nuca dele. As pessoas não recuperam daquele tipo de ferimento.

 

Razão ainda maior para chamar a polícia. Testemunhámos um homicídio, por amor de Deus, mesmo à nossa frente.

 

Verdade, mas não há dúvida de que não vimos quem o perpetrou, nem fazemos a menor ideia de quem poderá ter sido. Houve um tiro, e o tipo caiu. Não vimos nada a não ser a vítima a cair: nenhuma pessoa nem nenhum veículo! Fomos testemunhas oculares apenas do facto de que o homem foi abatido, e isso será certamente claro para a polícia sem a nossa ajuda.

 

Mas mesmo assim, testemunhámos um homicídio.

 

Mas não poderemos acrescentar nada por termos assistido ao que aconteceu. A verdade é essa. Pensa nisso!

 

Calma aí! disse Stephanie, a tentar organizar os seus pensamentos caóticos. O que tu estás a dizer pode ser verdade mas, segundo sei, é crime não comunicar a ocorrência de um crime, e não restam quaisquer dúvidas de que nós assistimos a um crime.

 

Não faço ideia se é ou não crime aqui nas Bahamas. Mas, mesmo que seja, acho que devíamos correr o risco de cometê-lo, porque neste momento não nos quero envolvidos com a polícia. Ainda por cima, não nutro qualquer simpatia pela vítima, e suspeito que o teu sentimento é igual ao meu. Não só foi ele que me espancou, como estava a ameaçar matar-me, por amor de Deus, e talvez também a ti. A minha preocupação é que se formos à polícia e nos envolvermos numa investigação de homicídio, que não poderemos ajudar de maneira nenhuma, corremos o risco de colocar o projecto Butler em perigo, agora que estamos tão perto de chegar ao fim. No fundo, estaríamos a arriscar tudo por nada. É tão simples como isso.

 

Stephanie acenou algumas vezes e passou uma mão nervosa pelos cabelos.

 

Acho que estou a perceber o que queres dizer disse ela com relutância. Mas deixa-me perguntar-te o seguinte. Achaste que o meu irmão estava envolvido no teu espancamento. Achas que está envolvido desta vez?

 

O teu irmão teve de estar envolvido desde o primeiro instante. Mas desta vez tenho as minhas dúvidas, uma vez que o bandido não te manteve de fora como fez, obviamente, da outra vez. No entanto, quem pode ter a certeza?

 

Stephanie olhou para longe. A sua mente e emoções estavam numa confusão. Uma vez mais, sentiu-se dividida em relação ao que fazer, devido a um forte sentimento de culpa. Em última análise, sentia-se responsável por envolver o irmão, que tinha envolvido os Castigliano, que certamente tinham demonstrado que eram mafiosos.

 

Vem! insistiu Daniel. Vamos para o quarto limpar-nos. Podemos falar mais, se quiseres, mas devo dizer-te que já decidi.

 

Stephanie deixou-se levar ao longo do carreiro para a suite. Sentia-se quase dormente. Embora dificilmente pudesse considerar-se santa, que o soubesse nunca infringira nenhuma lei. Era uma sensação estranha pensar em si mesma como uma espécie de herética porque deixara de comunicar um crime. Igualmente estranho era o pensamento de o irmão estar envolvido com pessoas capazes de matar, especialmente porque essa associação dava um sentido totalmente novo à acusação de que estava a ser alvo. A sua agitação era ainda aumentada pelos efeitos fisiológicos residuais de ter testemunhado um acto de violência. Sentia-se a tremer, e o estômago andava às voltas. Nunca vira uma pessoa morta, e muito menos assassinada diante dos seus olhos de uma forma tão gráfica.

 

Stephanie lutou contra uma onda de náusea quando a imagem horrenda ganhou vida na sua memória. Desejou estar em qualquer lado, menos ali. Quando Daniel sugerira sub-repticiamente tratarem Butler, ela pensara que era má ideia, mas nunca lhe passara pela cabeça que as coisas poderiam chegar ao ponto terrível a que tinham chegado. No entanto, estava apanhada nas teias de tudo aquilo como se fosse um pântano de areias movediças, a afundar-se cada vez mais, incapaz de sair.

 

Daniel sentiu-se progressivamente mais confiante em relação à sua decisão. No começo, não estivera tão seguro mas as coisas tinham mudado quando a recordação da profecia de desastre do Dr. Heinrich Wortheim veio assombrá-lo. Daniel jurara desde o início que não ia falhar, e para evitar o fracasso Butler tinha de ser tratado, o que significava que tinha de ser evitado qualquer envolvimento com a polícia. Como ele e Stephanie seriam a única pista associada ao homicídio, e talvez até suspeitos, qualquer investigação, por muito superficial que fosse, envolveria invariavelmente o que estavam a fazer em Nassau. Nesse ponto, Butler teria de ser posto ao corrente da situação, porque depois da sua chegada o seu envolvimento seria muito provavelmente descoberto no decurso do inquérito, o que criaria uma verdadeira tempestade na imprensa. Com a ameaça de um cenário daqueles, Daniel duvidava que Butler viesse.

 

Quando chegaram à suite, Daniel abriu a porta. Stephanie entrou à frente e acendeu as luzes. As empregadas tinham vindo abrir a cama e saído, e o quarto era a imagem da tranquilidade. Os reposteiros estavam fechados, música clássica ouvia-se suavemente do rádio da mesa de cabeceira e as camas estavam preparadas, com doces nas almofadas. Daniel fechou a porta, trancando todas as fechaduras.

 

Stephanie levantou o vestido para olhar para o joelho. Ficou aliviada por a ferida não ser tão grave como a grande quantidade de sangue, que já corria para o sapato, sugeria. Daniel verificou o seu próprio joelho, deixando cair as calças. Semelhante à ferida de Stephanie, tinha uma escoriação com o diâmetro de uma bola de golfe. As duas feridas tinham alguns fragmentos de conchas, que teriam de ser tiradas para não correrem o risco de uma infecção.

 

Sinto-me horrivelmente nervoso admitiu Daniel. Despiu as calças antes de estender a mão. Esta abanava como se ele estivesse a tremer. Deve ser da subida de adrenalina, devido à reacção de lutar-ou-fugir. Vamos abrir uma garrafa de vinho enquanto pomos um banho a correr. Devíamos lavar estas escoriações, e a combinação do vinho e do banho vai ajudar-nos a acalmar.

 

Está bem disse Stephanie. Um banho talvez a ajudasse a pensar com mais clareza. Vou abrir a torneira. Vai buscar o vinho! Abriu a torneira da água quente com a pressão máxima, depois de deitar alguns sais de banho na banheira. A casa de banho encheu-se rapidamente de vapor. Minutos depois, o aroma e o som tranquilizador da água a correr tiveram um efeito calmante sobre ela. Quando emergiu da casa de banho com um roupão do hotel para dizer a Daniel que o banho estava pronto, sentia-se significativamente recuperada. Daniel estava sentado no sofá com a lista telefónica aberta no colo. Havia dois copos de vinho tinto na mesa de apoio. Stephanie pegou num deles e bebeu um pequeno gole.

 

Tive outra ideia disse Daniel. Obviamente, esses irmãos Castigliano não ficaram tão impressionados como eu esperava com as conversas tranquilizadoras que tens tido com a tua mãe.

 

Não podemos saber ao certo se o meu irmão disse aos Castigliano o que nós queríamos que ele dissesse.

 

Não interessa disse Daniel, acenando com a mão.O que interessa é que eles mandaram aquele bandido até cá para me matar, a mim e talvez a ti. No mínimo, são pessoas descontentes. Não sabemos quanto tempo levarão a perceber que o seu capanga não vai voltar. Nem podemos adivinhar qual vai ser a reacção deles quando souberem. Provavelmente, vão pensar que o matámos.

 

Que é que estás a sugerir?

 

Vamos usar o dinheiro de Butler para contratar segurança armada permanente. Na minha opinião é uma despesa legítima, e é só por uma semana e meia, duas no máximo.

 

Stephanie suspirou, resignada.

 

Há alguma empresa de segurança na lista telefónica?

 

Sim, há algumas. Que é que pensas?

 

Não sei o que pensar admitiu Stephanie.

 

Penso que precisamos de protecção profissional.

 

Está bem, se achas que é melhor disse Stepanie.Mas talvez seja mais importante começarmos a ser ainda mais cuidadosos em geral do que temos sido. Acabaram-se os passeios no escuro. Afinal de contas, onde é que estávamos com a cabeça?

 

Pensando bem, foi um disparate, tendo em conta que eu fui espancado e avisado.

 

E agora? Queres ir para a banheira primeiro? O banho está pronto. Não, vai tu primeiro. Vou fazer alguns telefonemas para estas agências.

 

Quanto mais depressa tivermos alguém, melhor me vou sentir.

 

Dez minutos depois, Daniel entrou na casa de banho e sentou-se no rebordo da banheira. Ainda estava a beber vinho. Stephanie estava mergulhada até ao pescoço em água cheia de espuma, e tinha o copo de vinho vazio.

 

Sentes-te melhor? perguntou Daniel.

 

Muito. Como é que te saíste com o telefone?

 

Muito bem. Vem cá alguém daqui a meia hora para ser entrevistado. Pertence a uma empresa chamada First Security. Foram recomendados pelo hotel.

 

Tenho estado a pensar quem poderia ter morto aquele tipo. Não falámos sobre o assunto, mas ele foi uma espécie de nosso salvador. Stephanie levantou-se, enrolou-se numa toalha e saiu da banheira. Teve de ser alguém com uma pontaria excelente. E como é que estava lá quando precisámos dele?

 

Tens algumas ideias?

 

Apenas uma, mas é muito rebuscada.

 

Estou a ouvir Daniel experimentou a temperatura do banho e começou a acrescentar mais água quente.

 

Butler. Talvez ele tenha mandado o FBI vigiar-nos para nossa própria protecção.

 

Daniel riu-se enquanto entrava na banheira.

 

Isso seria irónico.

 

Tens algumas ideias melhores?

 

Nenhuma admitiu Daniel. A menos, que tenha tido alguma coisa a ver com o teu irmão. Talvez ele tenha mandado alguém para cá para te proteger.

 

Stephanie não pôde deixar de se rir, embora contra vontade.

 

Essa ideia ainda é mais rebuscada do que a minha!

 

Na qualidade de supervisor de segurança do turno da noite, Bruno Debianco estava habituado a receber telefonemas do chefe, Kurt Hermann. O homem não tinha vida para além da chefia da Clínica Wingate, e como vivia no local, estava sempre a chateá-lo com todos os tipos de pedidos e ordens insignificantes. Alguns eram inesperados e ridículos, mas o desta noite ultrapassava todas as marcas. Pouco depois das dez, Kurt telefonara para o seu telemóvel e dera instruções a Bruno para que levasse uma das carrinhas pretas da Wingate para Paradise Island. O destino era o claustro de Huntington Hartford. Bruno só devia parar se a estrada estivesse deserta, e se fosse esse o caso devia desligar os faróis antes de abrandar. Depois de parar, devia dirigir-se para o claustro evitando as zonas iluminadas. Nessa altura, Kurt iria ter com ele.

 

Bruno esperou que o semáforo ficasse verde antes de acelerar para a ponte que dava acesso a Paradise Island. Nunca o tinham mandado sair da Clínica Wingate numa missão misteriosa, e o que tornava a situação particularmente estranha era o pedido de levar um saco para colocar um cadáver. Bruno tentou pensar no que poderia ter acontecido, mas não lhe ocorreu nada para além do problema em que Kurt se tinha metido em Okinawa. Bruno tinha servido com Kurt nas Forças Especiais do exército e sabia que o homem tinha uma reacção de amor-ódio, em relação às prostitutas. Era uma obsessão que se transformara inesperadamente numa vingança pessoal na ilha japonesa. Bruno nunca compreendera bem, e esperava não estar a ser arrastado agora para uma recrudescência desse problema. Ele e Kurt tinham uma situação boa com Spencer Wingate e Paul Saunders, e Bruno não queria deitar isso a perder. Se Kurt tivesse iniciado a sua antiga cruzada, ia ser um problema.

 

A estrada principal este-oeste que se estendia ao longo de Paradise Island tinha um tráfego moderado, que diminuiu depois de Bruno passar as zonas comerciais. Diminuiu ainda mais depois dos primeiros hotéis, e a seguir ao desvio para o Ocean Club ficou deserta. Seguindo as ordens, Bruno desligou os faróis ao aproximar-se do claustro. Com o luar e a risca branca no meio da estrada, não teve dificuldade em conduzir às escuras.

 

Passou por um último aglomerado de árvores, e o claustro iluminado apareceu à sua direita. Encostou na berma da estrada, numa zona de estacionamento, e parou o carro. Desligou o motor e saiu. À sua esquerda, via a piscina iluminada do Ocean Club, ao fundo da colina.

 

Bruno deu a volta para as traseiras da carrinha e abriu a porta de trás. Tirou o saco para cadáveres dobrado, e com ele debaixo do braço subiu os degraus que levavam ao claustro. Antes de entrar no espaço iluminado, parou. À sua frente, o claustro estava deserto. Os seus olhos perscrutaram a área circundante, a tentar espreitar para a escuridão das árvores. Preparava-se para chamar Kurt quando o homem se materializou das sombras, à sua direita. Tal como Bruno, estava vestido de preto e quase invisível. Acenou para que ele o seguisse e disse:

 

Despacha-te!

 

Com o luar, foi fácil para Bruno caminhar, mas depois de estarem entre as árvores, a história foi bem diferente. Após alguns passos, parou.

 

Não vejo nada.

 

Não precisas de ver disse Kurt calmamente. Já chegámos. Trouxeste o saco para cadáveres?

 

Sim.

 

Abre o fecho e ajuda-me a enchê-lo!

 

Bruno obedeceu. Gradualmente, os seus olhos adaptaram-se e conseguiu vislumbrar a forma de Kurt. Também conseguiu ver o contorno vago do corpo que estava no chão. Bruno estendeu a ponta do saco na direcção de Kurt, que pegou nela e avançou para os pés do cadáver. Juntos, esticaram-no, pousaram-no no chão e enrolaram as pontas.

 

Ao dizer três disse Kurt. Mas tem cuidado com a cabeça. Está um bocado desfeita.

 

Bruno pôs as mãos por baixo das axilas do corpo, e no momento certo ergueu o torso enquanto Kurt levantava as pernas.

 

Santo Deus! gemeu Bruno. Quem é este tipo, um ex-atacante dos Chicago Bears?

 

Kurt não respondeu. Os dois enfiaram o cadáver no saco e Kurt puxou o fecho desde os pés.

 

Não me digas que vamos ter de carregar este tipo de duas toneladas até à carrinha disse Bruno. A ideia era aterradora.

 

Não vamos deixá-lo aqui. Corre e abre a porta das traseiras da carrinha. Depois vimos aqui, e não quero que haja qualquer atraso a pô-lo lá dentro.

 

Alguns minutos mais tarde, atiraram a parte superior do corpo de Caetano, enfiado no saco, para dentro da carrinha. Para colocar o resto lá dentro, Bruno teve de subir e puxar, enquanto Kurt empurrava. Quando acabaram, estavam ambos estafados.

 

Até aqui tudo bem comentou Kurt, enquanto fechava a porta. Vamos sair daqui antes que a nossa sorte acabe e alguém apareça.

 

Bruno deu a volta para o lugar do condutor e entrou. Kurt pôs a mochila preta no banco de trás antes de se sentar no banco da frente. Bruno ligou o motor.

 

Para onde? perguntou.

 

Para o parque de estacionamento do Ocean Club disse Kurt. O tipo tinha as chaves de um jipe alugado no bolso. Quero encontrá-lo.

 

Bruno fez rapidamente inversão de marcha, antes de acender os faróis. Seguiram em silêncio. Bruno estava doido para perguntar quem diabo era o cadáver na parte de trás da carrinha, mas sabia que o melhor que tinha a fazer era ficar calado. Kurt tinha o hábito de só lhe dizer o que pensava que ele precisava de saber e ficava furioso quando ele fazia perguntas. Desde que Bruno o conhecia, Kurt era um homem de poucas palavras. Estava sempre tenso e prestes a explodir, como se estivesse constantemente zangado com alguma coisa.

 

Só demoraram alguns minutos a chegar ao parque de estacionamento, e depois disso apenas precisaram de poucos minutos para encontrar o carro. Era o único jipe no parque de estacionamento, e estava estacionado perto da saída, sem nada a bloqueá-lo. Kurt saiu para verificar se as chaves abriam as portas. Serviram. Os documentos do carro estavam no porta-luvas, e a mala de mão de Caetano encontrava-se no banco de trás.

 

Quero que me sigas até ao aeroporto disse Kurt, quando voltou à janela de Bruno. Nem preciso de te dizer para conduzires com cuidado. Não queres ser mandado parar para o corpo ser descoberto.

 

Seria embaraçoso concordou Bruno. Especialmente porque não sei nada sobre o assunto.

 

Bruno teve a impressão de detectar um brilho de ira nos olhos de Kurt, antes de ele se afastar para o jipe alugado. Bruno encolheu os ombros e ligou a carrinha.

 

Kurt ligou o Cherokee. Detestava surpresas, e o dia não parara de ter surpresas. Com o seu treino nas Operações Especiais do exército, orgulhava-se de planear tudo cuidadosamente, como era necessário para qualquer missão militar. De acordo com isso, andara a observar os dois doutores durante mais de uma semana, e achava que compreendia os objectivos e a situação deles. Depois, a mulher entrara sem autorização na sala dos óvulos; aquilo fora totalmente inesperado e apanhara-o desprevenido. Pior ainda era o que tinha acontecido naquela noite.

 

Logo que atravessaram a cidade e começaram a percorrer uma estrada aberta, Kurt pegou no telemóvel e marcou o número programado de Paul Saunders. Embora Spencer Wingate fosse o director titular da clínica, Kurt preferia lidar com Paul. Fora Paul quem o contratara no Massachusetts. Para além do mais, Paul, tal como Kurt, estava sempre na clínica, em marcado contraste com Spencer que andava sempre à procura de mulheres disponíveis.

 

Como sempre, Paul atendeu ao fim de poucos toques.

 

Estou no telemóvel avisou Kurt, antes de dizer mais alguma coisa.

 

Oh? perguntou Paul. Não me digas que há outro problema.

 

Receio que sim.

 

Relacionado com os nossos convidados?

 

Muito.

 

Tem alguma coisa a ver com o que aconteceu hoje?


É pior.

 

Não estou a gostar nada disto. Podes dar-me alguma ideia do que se trata?

 

Acho que é melhor encontrarmo-nos.

 

Quando e onde?

 

Daqui a três quartos de hora no meu escritório. Digamos, às vinte e três horas por força do hábito, Kurt ainda usava as horas militares.

 

Devemos envolver o Spencer?

 

É consigo.

 

Vemo-nos daqui a pouco.

 

Kurt desligou e guardou o telefone na bolsa do cinto. Olhou de relance para o espelho retrovisor. Bruno seguia-o a uma distância confortável. Os acontecimentos pareciam estar de novo sob controlo.

 

O aeroporto estava praticamente deserto, com excepção das equipas de limpeza. Mais especificamente, todas as agências de aluguer de automóveis estavam fechadas. Kurt enfiou o Cherokee num dos lugares destinados aos carros alugados. Fechou o carro à chave e colocou as chaves e os documentos no cofre de depósito. Momentos depois, entrou novamente na carrinha de Bruno, o qual mantivera o motor ligado.

 

E agora? perguntou Bruno.

 

Vais levar-me ao Ocean Club para eu ir buscar a minha carrinha. Depois, vamos os dois para a marina de Lyford Cay. Tu vais fazer um cruzeiro ao luar, no iate da empresa.

 

Aha! Estou a começar a perceber. Estou mesmo a ver que daqui a pouco vamos precisar de comprar uma âncora nova. Estou certo?

 

Continua a guiar ordenou Kurt.

 

Cumpridor da sua palavra, Kurt abriu a porta do seu gabinete, quase no segundo final do seu compromisso das onze horas. Spencer e Paul já lá estavam, habituados à pontualidade irrepreensível do chefe de segurança. Kurt levou a mochila para a secretária e pousou-a. A mochila caiu com barulho na superfície metálica da secretária.

 

Spencer e Paul estavam sentados nas duas cadeiras, viradas para a secretária de Kurt. Os seus olhos tinham seguido Kurt, desde o momento em que o chefe de segurança atravessara a soleira da porta. Estavam à espera que ele dissesse alguma coisa, mas Kurt não lhes fez logo a vontade.

 

Despiu o blusão de seda preta e colocou-o cuidadosamente nas costas da cadeira. Depois, tirou a pistola do coldre ao fundo das costas e pousou-a com cuidado em cima da secretária.

 

Com exasperação óbvia, Spencer expirou ruidosamente e revirou os olhos.

 

Sr. Hermann, sou obrigado a lembrar-lhe que trabalha para nós e não o contrário. Que diabo está a acontecer? E é melhor que seja importante, para nos ter arrastado para aqui a meio da noite. Por acaso, eu estava agradavelmente ocupado.

 

Kurt tirou as luvas adaptadas às suas mãos e pousou-as ao lado da arma automática. Só então se sentou. Esticou a mão, levantou o monitor do computador e empurrou-o para o lado, para poder ver os dois visitantes sem interferências.

 

No cumprimento do dever, fui obrigado a matar uma pessoa esta noite.

 

As bocas de Spencer e de Paul abriram-se lentamente. Consternados, olharam para o supervisor de segurança, que os fitou calmamente. Por segundos, ninguém se mexeu e ninguém falou. Paul foi o primeiro a recuperar. Falou com hesitação, como se tivesse medo de ouvir a resposta:

 

Podes dizer-nos quem é que mataste?

 

Kurt usou uma mão para abrir a fivela da mochila e a outra para tirar uma carteira. Empurrou-a pela secretária na direcção dos patrões e depois sentou-se para trás.

 

Chama-se Caetano Baresse.

 

Paul estendeu a mão e pegou na carteira. Antes de poder abri-la, Spencer bateu com a palma da mão aberta na superfície da secretária de metal com força suficiente para a fazer parecer um timbale. Paul deu um salto e deixou cair a carteira. Kurt não pestanejou visivelmente, embora todos os seus músculos ficassem tensos.

 

Depois de bater na secretária, Spencer levantou-se de um salto e começou a andar de um lado para o outro com as duas mãos apertadas no cimo da cabeça.

 

Não acredito nisto berrou. Quando menos esperarmos, será o Massachusetts de novo, com as autoridades das Bahamas em vez dos polícias americanos a baterem ao nosso portão!

 

Não me parece disse Kurt simplesmente.

 

Oh, sim? perguntou Spencer sarcasticamente. Parou de andar. Como é que pode ter tanta certeza?

 

Não há corpo disse Kurt.

 

Como é que isso pode ser? perguntou Paul, enquanto se dobrava para pegar na carteira.

 

Neste preciso momento, Bruno está a deitar o corpo e os seus objectos pessoais nas profundezas do oceano. Devolvi o carro alugado do homem no aeroporto, como se ele tivesse saído da ilha. Ele vai simplesmente desaparecer. Ponto final! Fim da história.

 

Isso parece encorajador comentou Paul, enquanto abria a carteira e tirava a carta de condução de Caetano, a qual examinou.

 

Encorajador o caraças! gritou Spencer. Tu prometeste-me que este... Spencer apontou para Kurt enquanto procurava a palavra certa para o descrever,... este Boina Verde meio imbecil não mataria ninguém, e aqui estamos nós, com as portas abertas há pouco, e ele já despachou alguém. Isto é um verdadeiro desastre. Nós não podemos dar-nos ao luxo de nos mudarmos novamente.

 

Spencer! disse Paul rispidamente. Senta-te!

 

Eu sento-me quando me apetecer! Sou o director desta maldita clínica.

 

Como queiras disse Paul, a olhar para Spencer, mas vamos ouvir os pormenores antes de nos passarmos e imaginarmos cenários do dia do juízo final. Paul olhou para Kurt. Deves-nos uma explicação. Por que é que mataste este Caetano Baresse de Somerville, Massachusetts, no cumprimento do dever? Paul pousou a carteira e a carta de condução em cima da secretária.

 

Eu disse-vos que coloquei o alarme no telefone da Dr.a D’Agostino. Para o monitorizar, tinha de me manter próximo. Depois do jantar, eles foram dar um passeio no jardim do Ocean Club. Ao segui-los ao longe, apercebi-me de que esse Caetano Baresse também ia atrás deles, mas muito mais perto. Por isso, aproximei-me. Depressa se tornou aparente que Caetano Baresse era um assassino profissional, e que se preparava para dar cabo dos doutores. Tive de tomar uma decisão imediata. Pensei que os quereriam vivos.

 

Paul olhou de novo para Spencer com as sobrancelhas arqueadas, para saber qual era a reacção deste ao que acabara de ouvir. Spencer inclinou-se para a frente e pegou na carta de condução. Olhou para a fotografia durante um segundo antes de a atirar, de novo, para a secretária. Puxou a cadeira para o local onde estava e sentou-se, ligeiramente afastado dos outros.

 

Como é que tens tanta certeza de que este Baresse era um assassino profissional?perguntou Spencer. A sua voz perdera quase todo o ímpeto.

 

Usando a mão esquerda, Kurt abriu novamente a mochila. Enfiou a mão direita no interior e tirou a pistola de Caetano. Empurrou-a pela secretária como fizera com a carteira.

 

Isto não é nenhuma arma de brinquedo, especialmente com uma mira de laser incorporada e um silenciador.

 

Paul pegou cuidadosamente na arma, observou-a e estendeu-a a Spencer. Spencer fez sinal de que não queria tocar-lhe. Paul pousou-a em cima da secretária.

 

Com os contactos que tenho no continente, talvez consiga saber mais sobre este homem disse Kurt. Mas, até lá, não tenho a menor dúvida de que ele é um profissional e com uma arma destas, que deve ter obtido depois de chegar aqui às oito horas, tem conhecimentos.

 

Fala em inglês! ordenou Spencer.

 

Estou a falar em crime organizado disse Kurt. Ele estava indubitavelmente ligado ao crime organizado, provavelmente relacionado com drogas.

 

Estás a sugerir que os nossos convidados estão metidos em drogas? perguntou Spencer, descrente.

 

Nãodisse Kurt simplesmente. Olhou para os patrões, a desafiá-los para somarem dois mais dois como ele fizera, enquanto esperava que Bruno aparecesse no claustro.

 

Espera um minuto! disse Spencer. Por que é que um barão da droga mandaria um assassino profissional aqui às Bahamas para apagar um par de investigadores, se esses investigadores não estivessem metidos em drogas?

 

Kurt ficou calado. Olhou para Paul. De repente, Paul acenou algumas vezes.

 

Acho que estou a perceber onde é que Kurt quer chegar. Estás a sugerir que o paciente mistério pode não estar relacionado com a Igreja Católica?

 

Estou a pensar que ele pode ser um traficante rival disse Kurt. Ou, pelo menos, alguma espécie de patrão da Mafia. De qualquer maneira, os seus rivais não querem que ele fique melhor.

 

Raios partam! exclamou Paul.Faz sentido, sabes? Certamente, explicaria o secretismo.

 

Parece-me muito rebuscado disse Spencer, cepticamente. Por que é que um casal de investigadores de renome mundial estaria disposto a tratar um traficante de droga?

 

O crime organizado tem muitas formas de pressionar as pessoas disse Paul. Quem sabe? Talvez algum cartel de drogas tenha lavado dinheiro investindo na empresa de Lowell. Acho que Kurt tem alguma razão. Quero dizer, um senhor da droga da América do Sul ou um patrão da Mafia do nordeste seriam provavelmente católicos, o que poderia explicar a parte do Sudário de Turim.

 

Bem, posso dizer-te uma coisa declarou Spencer. Tudo isto está a preocupar-me ainda mais em relação à identidade do paciente, e não é apenas por causa desta morte. Não há maneira de tentarmos passar a perna a uma figura do crime organizado. Estaríamos a dar um tiro no nosso próprio pé.

 

E quanto ao nosso envolvimento em geral? perguntou Paul. Queremos reconsiderar a autorização para o tratamento avançar?

 

Eu quero aquele segundo pagamento declarou Spencer. Precisamos dele. Devíamos permanecer passivos, para não zangar ninguém.

 

Paul voltou-se para Kurt.

 

O Dr. Lowell teve consciência de que estava em perigo?

 

Claro que sim disse Kurt. Caetano confrontou-o e tinha a pistola apontada à testa dele. Eu arrumei-o no último segundo.

 

Por que é que perguntas isso? perguntou Spencer.

 

Espero que Lowell trate da sua segurança respondeu Paul. Quem mandou o Caetano pode mandar mais alguém, quando souberem que o Caetano falhou e que não vai regressar.

 

Isso vai demorar algum tempo disse Kurt. Eu tive um grande trabalho para fazer o tipo desaparecer precisamente por esse motivo. No que diz respeito ao Dr. Lowell, posso garantir-vos que ficou completamente aterrorizado. Ficaram os dois.

 

 

14.50, sábado, 23 de Março de 2002

O grupo de pessoas saiu do elevador do Hotel Atlantis Imperial Club no trigésimo andar da ala oeste das Royal Towers, e começou a percorrer o corredor alcatifado. À frente, ia o Sr. Grant Halpern, o gerente do hotel que estava de serviço, seguido pela Sr.a Connie Corey, a supervisora da recepção do turno diurno, e Harold Beardslee, o director do imperial Club. Ashley Butler e Carol Manning seguiam alguns passos atrás, mais devagar devido ao ritmo incerto de Ashley, que era mais notório agora do que há um mês atrás. A fechar o grupo, vinham dois paquetes; um empurrava um carrinho com uma pilha de malas de Ashley e Carol, e o outro trazia a bagagem de mão e as malas de fatos. Parecia um safari em miniatura.

 

Bem, bem, minha cara Carol disse Ashley, a arrastar as palavras no seu sotaque sulista, mas com um tom monocórdico recém adquirido. Qual é a tua primeira impressão sobre este modesto estabelecimento?

 

Modesto deve ser o último adjectivo que me vem à ideia respondeu Carol. Sabia que Ashley estava simplesmente a representar para a audiência formada pelos funcionários do hotel.

 

Então, qual é o adjectivo que te parece mais adequado?

 

Extravagante, mas impressionante disse Carol. Eu não estava preparada para uma grandiosidade tão teatral. O átrio lá em baixo é verdadeiramente criativo, particularmente com as suas colunas texturadas e a cúpula dourada e forrada com conchas. Eu não conseguiria calcular a altura que tem.

 

Chega aos vinte e um metros disse o Sr. Halpern por cima do ombro.

 

Obrigado, Sr. Halpern disse Ashley para a frente. É muito simpático e admiravelmente bem informado.

 

Ao seu serviço, Senador disse o Sr. Halpern sem abrandar. Agrada-me saber que estás impressionada com o alojamento disse Ashley, baixando a voz e inclinando-se para a sua chefe de gabinete. Tenho a certeza de que ficarás igualmente impressionada com o tempo quando comparado com Washington, no fim de Março. Espero que estejas contente por estar aqui. Verdade seja dita, senti-me culpado por não te ter trazido no ano passado, aquando da minha visita de reconhecimento, quando estava a planear toda esta aventura.

 

Carol lançou um olhar surpreendido ao chefe. Nunca esperara qualquer culpa em relação a ela sobre fosse o que fosse, e muito menos uma visita aos trópicos. Era outro exemplo pequeno, mas curioso da imprevisibilidade que ele evidenciara ao longo do último ano.

 

Não tem de se sentir culpado, Senador disse ela. Estou encantada por estar aqui em Nassau. E o senhor? Está contente por estar aqui?

 

Sem dúvida disse Ashley, sem qualquer vestígio de sotaque.

 

Não está nem um pouco assustado?

 

Eu, assustado? perguntou Ashley em voz alta, revertendo de repente para o seu tom espalhafatoso. O meu paizinho ensinou-me que a melhor maneira de encarar a adversidade é fazer os trabalhos de casa e tudo o mais que está ao nosso alcance, e depois colocarmo-nos nas mãos de Nosso Senhor. E foi o que eu fiz, pura e simplesmente. Estou aqui para me divertir!

 

Carol acenou afirmativamente, mas não disse nada. Arrependeu-se de ter feito a pergunta. Se alguém se sentia culpado, esse alguém era ela, uma vez que ainda tinha dúvidas em relação ao resultado da visita actual. Para bem de Ashley, tentou convencer-se de que queria uma cura milagrosa, mas no íntimo sabia que esperava algo menos.

 

O Sr. Halpern e os outros funcionários do hotel pararam junto a uma grande porta dupla de mogno, decorada com sereias esculpidas em baixo relevo. Enquanto o Sr. Halpern procurava uma chave mestra no bolso, Ashley e Carol chegaram.

 

Calma aí disse Ashley, com uma mão trémula esticada como se estivesse a falar no recinto do Senado. Este não é o quarto que eu ocupei na minha última estada aqui no Atlantis. Pedi especificamente as mesmas acomodações.

 

A expressão suave do Sr. Halpern esmoreceu.


Senador, talvez não me tenha ouvido anteriormente. Quando a Sr.a Corey o trouxe ao meu gabinete, eu mencionei que lhe tínhamos atribuído um quarto melhor. Esta é uma das nossas poucas suites temáticas. É a Suite Poseidon.

 

Ashley olhou para Carol.

 

Ele disse realmente que nos iam dar um quarto melhor disse Carol. Por instantes, Ashley pareceu confuso atrás dos óculos pesados, de aros grossos. Estava vestido como sempre, com um fato escuro, camisa branca simples e gravata conservadora. Uma linha de transpiração marcava-lhe a testa. A sua expressão emaciada parecia especialmente pálida, quando comparada com a dos funcionários do hotel.

 

Esta suite é maior, tem uma vista melhor e é muito mais elegante do que a que o Senador ocupou no ano passado disse o Sr. Halpern. É uma das melhores que temos. Talvez gostasse de vê-la?

 

Ashley encolheu os ombros.

 

Suponho que estou apenas a ser um rapaz do campo, nada acostumado a ser alvo de tantas mesuras. Muito bem! Vamos ver a Suite Poseidon.

 

A Sr.a Corey, que tinha passado para a frente do Sr. Halpern, estendeu um cartão e abriu a porta. Desviou-se. O Sr. Halpern fez sinal a Ashley para que este entrasse.

 

Faça o favor, Senador disse ele.

 

Ashley atravessou uma pequena entrada para uma grande sala, cujas paredes estavam cobertas por murais com uma paisagem subaquática surrealista de uma antiga cidade submersa, presumivelmente a mítica Atlântida. O mobiliário consistia numa mesa para seis pessoas, uma escrivaninha, uma consola de jogos, duas espreguiçadeiras e dois sofás enormes. Toda a madeira exposta estava esculpida com a forma de criaturas marinhas, incluindo os braços dos dois sofás que estavam voltados um para o outro e que tinham a forma de golfinhos. Os padrões e cores dos tecidos e o formato dos tapetes continuavam o tema pelágico.

 

Ora, ora disse Ashley enquanto observava tudo.

 

A Sr.a Corey deslocou-se para junto da consola de jogos para verificar o minibar. O Sr. Beardslee endireitou as almofadas nos sofás.

 

O quarto principal é à sua direita, Senador disse o Sr. Halpern, a apontar na direcção de uma porta aberta. E, Sr.a Manning, como foi pedido, há um óptimo quarto para a senhora à esquerda.

 

Os paquetes começaram imediatamente a distribuir a bagagem pelos respectivos quartos.

 

E agora o ponto alto declarou o Sr. Halpern. Rodeou o corpo forte e curvado de Ashley, dirigiu-se para uma série de interruptores de parede e carregou no primeiro. Com um zumbido eléctrico, as cortinas que cobriam toda a parede exterior da sala começaram a afastar-se, revelando progressivamente uma paisagem assombrosa de mar esmeralda e safira, do outro lado de uma varanda forrada a mosaicos.

 

Santo Deus! exclamou Carol com uma mão apertada no peito. Daquele ponto privilegiado de trinta e dois andares, a vista era arrebatadora.

 

O Sr. Halpern premiu outro botão e o conjunto de portas de vidro deslizou e amontoou-se de ambos os lados. Quando o zumbido parou, a varanda e a sala eram um único espaço aberto gigantesco. Ele apontou orgulhosamente para a varanda.

 

Se quiserem ir lá fora, posso orientar-vos para algumas das nossas muitas atracções exteriores.

 

Ashley e Carol seguiram a sugestão do gerente. Ashley dirigiu-se imediatamente para a balaustrada de pedra castanho-avermelhada que lhe dava pela cintura. Com um ligeiro receio de alturas, Carol aproximou-se mais lentamente. Com cautela, tocou no topo do corrimão antes de olhar para baixo. Era como se pensasse que a balaustrada podia cair. Lá em baixo, muito ao longe, via-se a vasta praia e o parque aquático do Atlantis, dominados pela Lagoa do Paraíso.

 

O Sr. Halpern parou ao lado de Carol. Começou a apontar para os diversos locais, incluindo a Piscina dos Banhos Reais que parecia uma pedra preciosa e se situava praticamente em frente do local onde se encontravam.

 

Que é aquilo à esquerda? perguntou Carol. Apontou. Parecia-lhe um monumento arqueológico muito deslocado.

 

É o nosso Templo Maia disse o Sr. Halpern. Se tiver coragem, há uma queda de água de cortar a respiração que a leva desde o cume com a altura de seis andares, através de um tubo de Plexigas submerso na Lagoa dos Predadores, que está cheia de tubarões.

 

Minha querida Carol troçou Ashley. Parece-me a actividade perfeita para uma pessoa como tu, que está a pensar seriamente em seguir uma carreira política em Washington.

 

Carol olhou de relance para o chefe, com receio de que o seu comentário contivesse algo mais do que humor, mas ele estava a olhar apaticamente

 

para a paisagem sobre o oceano, como se os seus pensamentos já estivessem noutro lado.

 

Sr. Halpern chamou a Sr.a Corey do interior da sala. Parece estar tudo em ordem, e os cartões de acesso do senador estão em cima da escrivaninha. Eu tenho de voltar para a recepção.

 

Eu também vou disse o Sr. Beardslee. Se precisar de alguma coisa, Senador, é só dizer aos meus funcionários.

 

Quero agradecer-vos a todos por serem tão simpáticos connosco declarou Ashley. Todos vocês são um contributo valioso para esta magnífica organização.

 

Eu também devia ir para os senhores poderem instalar-se disse o Sr. Halpern, e começou a seguir os outros.

 

Ashley segurou levemente o braço do gerente.

 

Gostava muito que ficasse mais um instante disse ele.

 

Com certeza replicou o Sr. Halpern.

 

Ashley acenou quando os outros partiram, e depois virou-se novamente para o vasto oceano.

 

Sr. Halpern, o facto de eu estar aqui em Nassau não é segredo, nem poderia ser, pois cheguei num transporte público. Mas isso não significa que eu não queira ver a minha privacidade respeitada. Preferia que o quarto ficasse registado unicamente no nome da Sr.a Manning.

 

Como queira, Senador.

 

Muito obrigado, Sr. Halpern. Contarei com a sua discrição para evitar publicidade. Quero sentir que posso desfrutar dos prazeres do vosso casino, sem receio de ofender os meus constituintes mais puritanos.

 

Tem a minha palavra de que faremos todos os esforços nesse sentido. Mas, tal como aconteceu no ano passado, não podemos impedir que o senhor seja abordado no casino por algum dos seus fãs.

 

O meu receio é ler sobre a minha presença nos jornais ou que alguém telefone para o hotel para confirmar que estou cá.

 

Garanto-lhe que faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para proteger a sua privacidade disse o Sr. Halpern. Agora, vou deixá-los a desfazer as malas e a descansar. Deve estar a chegar champanhe com os cumprimentos da gerência e com os nossos desejos de uma estada muito descontraída.

 

Mais uma pergunta disse Ashley. Foram feitas reservas para uns amigos juntamente com as nossas. O Dr. Lowell e a Dr.a D’Agostino já deram notícias?

 

De facto! Já cá estão. Chegaram há menos de uma hora. Estão na

3208, uma das nossas suites superiores, ao fundo do corredor.

 

Que conveniente! Parece que os senhores cuidaram extremamente bem de todas as nossas necessidades.

 

Esforçamo-nos ao máximo disse o Sr. Halpern, enquanto fazia uma ligeira vénia antes de recuar para a sala a caminho da porta.

 

Ashley voltou-se para a sua chefe de gabinete, que se habituara progressivamente à altura e estava estupefacta com a vista.

 

Carol, querida! Talvez possas fazer o favor de ver se os doutores estão no quarto e, se for esse o caso, se podem fazer o favor de vir ter connosco.

 

Carol virou-se e piscou os olhos como se estivesse a sair de um transe.

 

Certamente disse rapidamente, recordando-se das suas funções.

 

Talvez devesses ir sozinho sugeriu Stephanie. Ela e Daniel estavam junto à porta com sereias esculpidas da Suite Poseidon, e a mão de Daniel estava pousada sobre a campainha.

 

Daniel expirou, frustrado, deixando cair as mãos sem força para os lados.

 

Qual poderá ser o problema desta vez?

 

Não quero ver o Ashley. Não estou nada empolgada com este assunto desde o primeiro dia, e depois de tudo o que aconteceu ainda estou menos entusiasmada agora.

 

Mas estamos tão perto do fim. As células de tratamento estão prontas. A única coisa que falta é a implantação, que é a parte fácil.

 

É o que tu pensas, e com sorte terás razão. Mas eu não partilho do teu optimismo desde o começo, e não posso imaginar que a minha negatividade sirva agora para qualquer objectivo construtivo.

 

Não pensaste que poderíamos ter células de tratamento num mês, e conseguimos.

 

É verdade, mas o trabalho celular é a única parte que correu bem. Daniel abanou a cabeça e revirou os olhos para aliviar a tensão inesperada. Estava exasperado.

 

Por que é que estás a fazer isto agora? perguntou ele, retoricamente. Respirou fundo e olhou para Stephanie. Estás a tentar sabotar todo o projecto?

 

Stephanie soltou uma gargalhada curta e falsa, enquanto a cor lhe voltava às faces.

 

Muito pelo contrário! Depois de todo este esforço, não quero arruinar as coisas. A questão é essa! É por isso que estou a sugerir que vás sozinho.

 

Carol Manning disse especificamente que Ashley queria ver-nos a ambos, e eu disse que íamos já. Por amor de Deus, se não entrares, ele vai pensar que há algum problema. Por favor! Não tens de dizer nem de fazer nada. Limita-te a ser encantadora como sempre e sorri. Seguramente, não é pedir de mais!

 

Stephanie mexeu-se e baixou os olhos para os pés e depois para o guarda-costas, que estava encostado à parede do lado de fora do quarto deles, onde lhe tinham dito para ficar. Para Stephanie, a presença dele era uma recordação mordaz de tudo o que correra mal. Todo aquele assunto sinistro tinha dado para o torto e os seus pressentimentos intuitivos estavam de novo a deixá-la doida. Por outro lado, Daniel tinha razão em relação à implantação. Com as experiências que tinham efectuado em ratos, a fase do tratamento propriamente dito, depois de terem tudo certo, não tivera qualquer problema.

 

Está bem! disse Stephanie com resignação. Vamos acabar com isto, mas tu é que vais falar.

 

Menina bonita! disse Daniel, enquanto tocava à campainha. Foi a vez de Stephanie revirar os olhos. Em circunstâncias normais,

 

nunca toleraria uma expressão tão condescendente e sexista.

 

Carol Manning abriu a porta. Sorriu e foi superficialmente amistosa, e no entanto, Stephanie sentiu um nervosismo e distracção subjacentes, como se ela fosse um espírito familiar na situação que viviam actualmente.

 

Ashley estava sentado num dos sofás com braços de golfinhos, embora Daniel e Stephanie não o reconhecessem imediatamente. O fato escuro, a camisa branca e a gravata conservadora tinham desaparecido. Até os óculos de aros escuros que usava sempre, tinham sido abandonados. Vestia uma camisa de mangas curtas verde-clara, com motivos das Bahamas, calças amarelas e sapatos de ténis brancos de pele com um cinto a condizer. Com os braços moles, pálidos e peludos, que pareciam nunca ter visto a luz do dia, e muito menos do sol, era a caricatura de um turista. Os óculos de sol azuis curvavam-se dos lados do seu rosto como os de um ciclista profissional. Também única era a fixidez da expressão facial que Daniel e Stephanie nunca tinham visto antes.

 

Bem-vindos, meus queridos, queridos amigos declarou Ashley com o sotaque conhecido, mas com uma voz desconhecida e menos modulada. Vocês são um bálsamo para olhos cansados, como a carga de cavalaria no momento certo. Não posso descrever a alegria que sinto ao ver os vossos rostos bonitos e inteligentes. Desculpem-me por não me levantar de um salto para vos cumprimentar como merecem e as minhas emoções ditam. Infelizmente, o benefício clínico da minha medicação perde o efeito muito mais depressa do que a última vez que nos vimos.

 

Deixe-se estar onde está disse Daniel. Também estamos satisfeitos por vê-lo avançou para cumprimentar Ashley antes de se sentar no sofá à frente dele.

 

Após alguma indecisão, Stephanie sentou-se ao lado de Daniel e tentou sorrir. Carol Manning preferiu sentar-se à parte, e virou a cadeira da escrivaninha ao contrário para ficar voltada para o interior da sala.

 

Depois de uma comunicação tão limitada durante o último mês, a minha crença no vosso aparecimento aqui, baseou-se essencialmente na fé admitiu Ashley. A única pista encorajadora de que estavam a ser feitos progressos foi a retirada considerável e constante dos fundos que eu coloquei à vossa disposição.

 

Tem sido um esforço hercúleo em mais sentidos do que gostaríamos de explicar respondeu Daniel.

 

Espero que a implicação seja que estão preparados para prosseguir.

 

Sem dúvida disse Daniel. Na verdade, tratámos de tudo para que a implantação possa decorrer amanhã de manhã, às dez horas, na Clínica Wingate. Esperamos que esteja preparado para avançar tão depressa.

 

Não pode ser demasiado cedo, pelo menos, para este velho rapaz do campo disse Ashley, ficando mais sério, apenas com um vestígio do seu habitual sotaque sulista. Infelizmente, o meu tempo para esconder esta enfermidade degenerativa da imprensa está contado.

 

Então, é de interesse mútuo fazermos a implantação.

 

Devo presumir que conseguiram concluir o árduo processo de fazer as células de tratamento que descreveram há um mês.

 

Conseguimos disse Daniel. Principalmente, graças ao talento da Dr.a D’Agostino Daniel apertou o joelho de Stephanie.

 

Temporariamente, Stephanie conseguiu manter um sorriso mais aberto.

 

Na verdade continuou Daniel, ao longo da última semana, criámos quatro linhas celulares distintas de neurónios que são clones das suas células.

 

Quatro? perguntou Ashley, sem sotaque nenhum. Estava a olhar para Daniel sem pestanejar. Porquê tantas?

 

A redundância é, simplesmente, uma rede de segurança. Queríamos ter a certeza absoluta de que ficávamos, pelo menos, com uma. Agora podemos escolher, uma vez que todas seriam igualmente eficazes para o tratamento.

 

Eu tenho de fazer alguma coisa em relação a amanhã, para além de levar o meu triste corpo para a Clínica Wingate?

 

Apenas as restrições pré-operatórias habituais, como não comer alimentos sólidos depois da meia-noite. Também preferimos que não tome nenhum comprimido de manhã, se for possível. Nos nossos estudos com ratos, vimos efeitos terapêuticos rápidos após a implantação, e antecipamos o mesmo para o senhor. As suas drogas para a Parkinson esconderiam isso.

 

Por mim, tudo bem disse Ashley agradavelmente. A última coisa que quero é confundir a coisa. Claro que o fardo de me vestir e de me levar para a limusina terá de recair sobre a Carol.

 

Tenho a certeza de que poderemos pedir uma cadeira de rodas emprestada no hotel disse Carol.

 

Devo presumir pela proibição de comida depois da meia-noite que levarei anestesia? perguntou Ashley, ignorando Carol.

 

Foi-me dito que a anestesia será local, com forte sedação explicou Daniel. Um anestesista estará presente, com a opção de uma anestesia mais forte, se for necessário. Devo dizer-lhe que contratámos os serviços de um neurocirurgião local que tem experiência neste tipo de implantações, embora certamente não com células clonadas. Chama-se Dr. Rashid Nawaz. Ele conhece-o como John Smith, o mesmo nome por que é conhecido na Clínica Wingate, e todos foram avisados da necessidade de discrição, e concordaram.

 

Parece que o doutor tratou admiravelmente de todos os pormenores.

 

Foi essa a nossa intenção disse Daniel. A seguir ao procedimento, recomendamos que fique na unidade de internamento da Clínica Wingate para podermos monitorizá-lo melhor.

 

Oh? perguntou Ashley, como se estivesse surpreendido. Durante quanto tempo?

 

Pelo menos de um dia para o outro. Depois disso, a sua recuperação clínica ditará.

 

Eu estava a pensar voltar para aqui para o hotel Atlantis disse Ashley. Foi por isso que tratei de tudo para que vocês ficassem também aqui. Podem observar-me o quanto quiserem. Estão ao fundo do corredor.

 

Mas o hotel não tem equipamento de diagnóstico médico.

 

Como por exemplo?

 

O que uma unidade de internamento norma] tem, como serviços de laboratório e um aparelho de raios-X.

 

Raios-X? Porquê raios-X? Estão à espera de complicações?

 

De maneira nenhuma, mas é prudente sermos cautelosos. Lembrem-se, por falta de uma palavra melhor, o que vamos fazer amanhã é experimental.

 

Daniel lançou um olhar rápido a Stephanie para ver se ela queria acrescentar alguma coisa. Em vez de falar, ela revirou levemente os olhos.

 

Ashley que, dadas as circunstâncias estava extremamente sensível a quaisquer cambiantes, captou a reacção de Stephanie.

 

Tem um termo mais apropriado, Dr.a D’Agostino?perguntou-lhe.

 

Stephanie hesitou um instante.

 

Não. Acho que experimental é bastante correcto respondeu ela, embora, na verdade, pensasse que imprudente estaria mais perto da verdade.

 

Espero não estar a detectar uma subtil corrente negativa declarou Ashley, enquanto os seus olhos saltavam de Daniel para Stephanie. É importante para mim sentir que os investigadores estão tão positivos em relação a esta técnica como estiveram na minha sala de audiências.

 

Absolutamente declarou Daniel. A nossa experiência com modelos animais foi, no mínimo, surpreendente. Não podíamos estar mais empolgados e ansiosos por oferecer esta dádiva dos céus à humanidade. Estamos ansiosos para tratá-lo amanhã de manhã.

 

Muito bem disse Ashley, mas os seus olhos pousaram-se em Stephanie sem pestanejar. E a senhora, Dr.a D’Agostino? É da mesma opinião? Parece-me bastante calada.

 

Fez-se um breve silêncio na sala, quebrado unicamente pelos gritos distantes de deleite de crianças que se erguiam das piscinas e escorregas aquáticos cheios de gente, trinta e dois andares abaixo.

 

Sim disse Stephanie por fim. Depois respirou fundo para ter tempo para escolher as palavras com cuidado.

 

Desculpe se pareço calada. Suponho que estou um pouco cansada depois de tudo o que fizemos para criar as suas células de tratamento.

 

Mas, para responder à sua pergunta, sou da mesma opinião na medida em que posso dizer que estou empolgada para concluir o projecto.

 

Estou aliviado por ouvi-la dizer isso referiu Ashley. Isso significa que está satisfeita com essas quatro linhas celulares que clonou das minhas células da pele?

 

Estou disse Stephanie. São sem dúvida neurónios produtores de dopamina, e são... fez uma pausa como se estivesse à procura da palavra certa vigorosos.

 

Vigorosos? perguntou Ashley. Hmmm. Presumo que isso será vantajoso, embora pareça bastante vago a este leigo. Mas diga-me: todos contêm genes do Sudário de Turim?

 

Sem dúvida nenhuma! respondeu Daniel. Mas foi necessário um esforço considerável da nossa parte para obtermos a amostra do sudário, extrair o ADN e reconstruir os genes necessários a partir dos fragmentos. No entanto, conseguimos.

 

Quero ter a certeza disso disse Ashley. Sei que não tenho nenhuma forma de verificar, mas quero ter a certeza. É importante para mim.

 

Os genes que usámos para a RSTH são do sangue do Sudário de Turim disse Daniel. Juro-lhe solenemente.

 

Aceito a sua palavra de honra disse Ashley, com o sotaque inesperadamente de volta. Com grande esforço, levantou o corpo pesado e rígido do sofá e ficou de pé. Estendeu a mão para Daniel, que também se levantara. Uma vez mais, apertaram as mãos.

 

Ficarei grato pelos seus esforços e pela sua criatividade científica para o resto da minha vida disse Ashley.

 

Como eu ficarei pela sua liderança e génio político para não banir a RSTH replicou Daniel.

 

Um sorriso matreiro espalhou-se lentamente pelo rosto até ali inexpressivo de Ashley.

 

Gosto de um homem com sentido de humor soltou a mão de Daniel e depois, estendeu-a para Stephanie, a qual se levantara ao mesmo tempo que Daniel.

 

Stephanie olhou para a mão estendida por instantes, como se estivesse a debater-se sobre apertá-la ou não. Acabou por fazê-lo e sentiu a mão envolvida por Ashley num aperto, surpreendentemente, poderoso. Depois de um aperto rígido e demorado e um momento prolongado a olhar para os olhos imóveis do senador, ela tentou retirar a mão, sem sucesso. Ashley apertava com firmeza. Embora Stephanie pudesse ter adivinhado que o episódio era um reflexo da doença de Parkinson de que o senador sofria, a sua reacção imediata foi um medo súbito e irracional de ficar permanentemente presa ao homem como uma metáfora do seu envolvimento naquele caso desmiolado.

 

Toda a minha gratidão também pelos seus esforços, Dr.a D’Agostino disse Ashley. E, como homem, tenho de confessar que estou encantado com a sua beleza considerável desde o momento em que tive o prazer de a ver pela primeira vez. Só então os seus dedos com a forma de salsichas soltaram lentamente o aperto formidável à mão de Stephanie.

 

Ela encostou a mão agora fechada ao peito, não fosse Ashley tentar agarrá-la de novo. Sabia que estava a continuar a ser irracional, mas não conseguiu evitá-lo. Pelo menos, conseguiu acenar afirmativamente e esboçar um meio sorriso ao elogio e à professada gratidão do senador.

 

Agora declarou Ashley, peço aos dois que tenham uma boa noite de sono. Quero-vos bem descansados para o procedimento de amanhã, que me levaram a presumir que não será demorado. Estou certo?

 

Pelos meus cálculos demorará uma hora, talvez um pouco mais disse Daniel.

 

Caramba! Pouco mais de uma hora é tudo o que a biotecnologia moderna precisa para tirar este rapaz do precipício e do desastre profissional. Estou impressionado. Louvado seja Deus nas alturas!

 

A maior parte do tempo vai ser passado a equipá-lo com o quadro estereotáxico explicou Daniel. A implantação propriamente dita só demorará alguns minutos.

 

Lá está o senhor novamente queixou-se Ashley. Mais gíria médica incompreensível. Em nome de Deus, que é um quadro estereotáxico?

 

É um quadro calibrado que se encaixa na sua cabeça como uma coroa. Permitirá ao Dr. Nawaz injectar as células de tratamento no local exacto onde o senhor perdeu as suas células produtoras de dopamina.

 

Não sei se deveria perguntar isto disse Ashley, hesitante. Devo acreditar que vão injectar as células de tratamento directamente no meu cérebro e não numa veia?

 

Correcto começou Daniel a explicar.

 

Calma aí! interrompeu Ashley. Acho que em relação a esse ponto quanto menos souber, melhor. Eu sou um doente reconhecidamente melindroso, especialmente quando não sou posto a dormir. A dor e eu nunca fomos companheiros compatíveis.

 

Não haverá dor garantiu Daniel ao senador. O cérebro em si não tem sensação.

 

Mas uma agulha terá de perfurar o meu cérebro? perguntou Ashley, descrente.

 

Uma agulha romba, para evitar qualquer lesão.

 

Como é que é possível espetarem uma agulha no cérebro de uma pessoa?

 

Será feito um pequeno buraco no osso. No seu caso, a abordagem será pré-frontal.

 

Pré-frontal? Mais conversa fiada de médicos.

 

Quer dizer, através da testa explicou Daniel, a apontar para a sua própria testa logo acima da sobrancelha. Lembre-se de que não terá dores. Sentirá uma vibração quando o buraco for feito, mais ou menos como uma broca dentária antiga, se não estiver a dormir com os sedativos, o que me parece uma forte possibilidade.

 

Por que é que não vou estar completamente adormecido durante tudo isto?

 

O neurocirurgião quer que esteja acordado durante a implantação. Ashley suspirou.

 

Para mim, chega! afirmou, levantando protectoramente uma mão trémula. Sinto-me melhor com a ilusão de que as células de tratamento entraram numa veia como um implante de medula óssea.

 

Isso não resultaria com os neurónios.

 

É uma pena, mas vou aguentar. Entretanto, diga-me novamente o meu nome!

 

John Smith disse Daniel.

 

Claro! Como é que pude esquecer? E a senhora, Dr.a D’Agostino, será a minha Pocahontas.

 

Stephanie conseguiu esboçar mais um sorriso fraco.

 

Agora! disse Ashley, reunindo todo o seu entusiasmo. Chegou o momento de este velho rapaz do campo esquecer os problemas da sua enfermidade e ir até ao casino, tenho um encontro importante com um grupo de bandidas com um só braço.

 

Alguns minutos depois, Daniel e Stephanie percorriam o corredor a caminho do quarto. Stephanie cumprimentou o guarda-costas quando passaram, mas Daniel não. Daniel estava visivelmente irritado, como se notou pela forma como atirou com a porta quando entraram. A suite deles tinha metade do tamanho da de Ashley. Tinha a mesma vista, mas sem varanda.

 

Vigorosas! Que disparate! disse Daniel rispidamente. Tinha parado junto à porta com as mãos nas ancas. Não te ocorreu nenhuma descrição melhor para as nossas células de tratamento do que vigorosas? Que é que estiveste a fazer ali... a tentar fazê-lo desistir numa altura destas? Para cúmulo, comportaste-te como se nem sequer quisesses apertar-lhe a mão.

 

E não queria disse Stephanie. Dirigiu-se para o único sofá e sentou-se.

 

E por que raio não? Santo Deus!

 

Não o respeito, e como já disse até à exaustão, não tenho um bom pressentimento em relação a isto.

 

Foi como se estivesses a ser passiva-agressiva ali, a demorares antes de responderes a perguntas simples.

 

Escuta! Fiz o melhor possível. Não queria mentir. Lembra-te de que nem sequer queria ir lá. Tu é que insististe.

 

Daniel expirou ruidosamente. Olhou para Stephanie.

 

Às vezes consegues ser irritante.

 

Desculpa disse ela. É muito difícil para mim fingir. E quanto a ser irritante, tu também não te sais nada mal nesse campo. Da próxima vez que te sentires tentado a dizer-me «boa menina», contém-te.

 

 

10.22, domingo, 24 de Março de 2002

Se, ao longo dos anos, ir ao médico se tornara emocionalmente difícil para Ashley Butler devido à lembrança não desejada da sua mortalidade, ir a um hospital ainda era pior, e a sua chegada à Clínica Wingate não fora excepção. Por muito que brincasse com a banalidade do seu nome fictício com Carol na limusina enquanto iam a caminho, e usasse o seu encanto sulista com as enfermeiras e técnicos durante a admissão, estava aterrorizado. O fino verniz da sua aparente descontracção foi particularmente posto à prova quando conheceu o neurocirurgião, o Dr. Rashid Nawaz. Não era como Ashley imaginara, apesar de lhe terem dito o seu nome indubitavelmente étnico. O preconceito tinha desempenhado sempre um papel importante no pensamento de Ashley, e estava activo agora. Na sua mente, todos os cirurgiões cerebrais tinham de ser pessoas altas, sérias e autoritárias, de preferência de ascendência nórdica. Em vez disso, foi confrontado com um indivíduo baixo, franzino e de pele escura, com lábios e olhos ainda mais escuros. Do lado positivo, estava um cadenciado sotaque inglês que reflectia a sua aprendizagem em Oxford. Também do lado positivo estava uma aura de confiança e profissionalismo impregnada de compaixão. O homem reconhecia e estava solidário com a condição de Ashley como paciente perante um tratamento nada ortodoxo e foi suavemente tranquilizador, dizendo a Ashley que o procedimento que se avizinhava não era nada difícil.

 

O Dr. Carl Newhouse, o anestesista, correspondeu mais às expectativas de Ashley. Era um inglês com algum excesso de peso e faces coradas, e assemelhava-se aos médicos caucasianos que Ashley encontrara no passado.

 

Estava vestido com fato cirúrgico, sem esquecer o gorro e a máscara facial. A máscara facial estava presa ao pescoço mas pendurada ao peito. Tinha um estetoscópio em volta do pescoço, e uma colecção de canetas saía do seu bolso do peito. Um torniquete de tubo de borracha castanha estava enrolado à volta do atilho das calças.

 

Com exaustivo rigor, o Dr. Newhouse analisou o historial clínico de Ashley, especialmente em relação a alergias, reacções a medicamentos e episódios de anestesia. Enquanto o Dr. Newhouse auscultava e batia no peito de Ashley como parte de um exame físico rápido, também lhe colocou um cateter intravenoso com tanta prática que Ashley quase não o sentiu. Depois de estar a correr como o Dr. Newhouse queria, disse a Ashley que ia dar-lhe um poderoso cocktail intravenoso que o faria acalmar, ficar contente e talvez até eufórico, e definitivamente entorpecido.

 

«Quanto mais depressa, melhor», disse Ashley no seu íntimo. Estava mais do que pronto para se sentir calmo. Com receio do procedimento a que ia ser submetido, tivera dificuldade para adormecer na noite anterior. E, para além da tensão psicológica, não tinha sido uma manhã fácil. Seguindo o conselho de Daniel, não tomara a medicação para a Parkinson, com consequências mais severas do que antecipara. Não avaliara até que ponto os medicamentos estavam a controlar os seus sintomas. Não tinha conseguido parar um movimento ritmado e involuntário nos dedos, como se estivesse a tentar rolar objectos nas palmas das mãos. Pior ainda era a rigidez, que ele comparava a tentar mexer-se enquanto estava totalmente submerso em gelatina. Carol teve de pedir uma cadeira de rodas para o levar para a limusina que os aguardava, e foram necessários dois porteiros para o tirar da cadeira de rodas para o carro. A chegada à Wingate fora igualmente difícil, com equivalente indignidade. A única parte boa daquela provação é que ninguém parecia tê-lo reconhecido, graças ao disfarce de turista.

 

O cocktail intravenoso do Dr. Newhouse fora tudo o que ele prometera e ainda mais. Ashley sentiu-se consideravelmente mais satisfeito e calmo do que se tivesse bebido vários copos do seu uísque preferido, e isto apesar de estar sentado numa sala de operações forrada a azulejos, numa mesa de operações levantada para a posição de sentado com os dois braços pousados dos lados e presos aos apoios. Até o seu tremor estava melhor ou, se não o estava, pelo menos, não tinha consciência dele. Vestia uma pequena bata de hospital e tinha as pernas grossas e de um branco leitoso, estendidas à sua frente. Os pés descalços, secos e com joanetes, com unhas amarelas e encaracoladas, apontavam para o tecto. O cateter intravenoso estava num braço e no outro, fora colocada uma pulseira para medir a tensão arterial. Tinha as ventosas do electrocardiograma ligadas ao peito, e os bips da leitura ecoavam pela sala.

 

O Dr. Nawaz estava ocupado com uma fita métrica, um marcador e uma lâmina de barbear, enquanto preparava a cabeça de Ashley para o quadro estereotáxico, que Ashley viu ao lado de uma parafernália de instrumentos esterilizados numa mesa lateral. Apesar de o quadro parecer um instrumento de tortura, no seu estado drogado, Ashley não se preocupou. Nem se preocupou com o Dr. Lowell e com a Dr.a D’Agostino, que tinham aparecido com o Dr. Spencer Wingate e o Dr. Paul Saunders a uma janela que dava para o bloco operatório. Vestidos com fatos esterilizados, os quatro pareciam estar a observar os preparativos como se estivessem a assistir a um espectáculo. Ashley teria gostado de acenar, mas não conseguiu porque tinha as mãos presas. Para além disso, era difícil manter os olhos abertos, e muito mais levantar os braços.

 

Vou rapar e preparar pequenas áreas dos lados e na parte de trás da sua cabeça anunciou o Dr. Nawaz, enquanto entregava o marcador e a fita métrica a Marjorie Hickam, a enfermeira do bloco. São os sítios onde o quadro será preso à sua cabeça, como já lhe expliquei. Compreende, Sr. Smith?

 

Ashley levou um momento a recordar-se de que o seu nome fictício era Sr. Smith e que estavam a falar com ele.

 

Acho que sim respondeu num tom arrastado e monocórdico. Talvez possa fazer-me a barba, enquanto está com a mão na massa. Sem os medicamentos, acho que esta manhã fiz um trabalho que está longe de ser aceitável.

 

O Dr. Nawaz soltou uma gargalhada com aquele humor inesperado, e o mesmo aconteceu com os outros ocupantes da sala, onde se incluía uma enfermeira instrumentista chamada Constance Bartolo. Já estava vestida e enluvada, e encontrava-se ao lado da mesa com o quadro e os instrumentos, como se estivesse a guardá-la.

 

Alguns minutos depois, o Dr. Nawaz recuou e olhou para o seu trabalho.

 

Parece-me bastante bem. Vou sair para me desinfectar, depois colocamos os panos e podemos começar.

 

Apesar do que devia ter sido a circunstância aterradora de esperar para lhe furarem o crânio, Ashley mergulhou numa sonolência pacífica e sem sonhos. Pouco depois, foi parcialmente acordado pela sensação de estarem a colocar panos esterilizados sobre si, mas adormeceu rapidamente uma vez mais. O que o acordou alguns minutos depois foi uma dor súbita e excruciante do lado direito da cabeça. Com grande esforço, abriu parcialmente as pálpebras pesadas. Até tentou levantar o braço direito que estava preso.

 

Calma! disse o Dr. Newhouse. Estava atrás e ao lado de Ashley.

 

Está tudo bem! Pousou uma mão no braço do senador.

 

Estou apenas a injectar uma anestesia local explicou o Dr. Nawaz.

 

É capaz de sentir uma sensação de picada forte. Vou fazer o mesmo em quatro locais.

 

«Sensação de picada forte!», Ashley maravilhou-se em silêncio, no seu estupor. Era típico dos médicos menosprezarem o sintoma, porque a dor que ele sentia assemelhava-se mais a uma faca a escaldar a arrancar o seu escalpe do crânio. No entanto, estava estranhamente desligado, como se a dor envolvesse outra pessoa qualquer e ele fosse um mero observador. O facto de, em cada caso, a dor ser fugaz, sendo substituída por um entorpecimento absoluto na zona, também ajudou.

 

Ashley estava apenas vagamente consciente do processo de lhe estarem a colocar o quadro estereotáxico. Flutuou sem esforço da consciência para a inconsciência durante mais de meia hora de manipulações e ajustamentos, que demorou a prender a moldura com cavilhas presas, firmemente à parte exterior do seu crânio. Não tinha consciência do passado, do futuro, nem da passagem do tempo.

 

Isto deve resolver o assunto disse o Dr. Nawaz. Esticou-se e agarrou nos braços semicirculares calibrados que estavam arqueados sobre a cabeça de Ashley e testou cuidadosamente a estabilidade da moldura tentando mexê-la em todas as direcções. A estrutura aguentou-se solidamente, com os quatro parafusos presos ao crânio do senador. Satisfeito com o resultado, o Dr. Nawaz recuou, bateu com as mãos esterilizadas e enluvadas no peito, e aclarou a garganta.

 

Sr.a Hickman, se não se importa, por favor avise os técnicos de raios-X que estamos prontos para eles.

 

A enfermeira do bloco parou quando ia buscar outro frasco de soro para o Dr. Newhouse. Os seus olhos azuis-acinzentados fixaram-se em primeiro lugar na colega Constance em busca de apoio antes de olhar para o Dr. Nawaz. Naquele momento, Marjorie não encontrou palavras, uma vez que durante o estágio experimentara as explosões e os acessos de cólera dos neurocirurgiões nas salas de operações, e esperava o pior.

 

Minha senhora anunciou o Dr. Nawaz com irritação na voz, não vamos perder tempo. Chegou o momento das radiografias.

 

Mas nós não temos aparelho de raios-X disse Marjorie, hesitante. Olhou para o Dr. Newhouse para que este corroborasse as suas palavras, pois não queria toda a responsabilidade no problema com que se tinham deparado.

 

Que é que quer dizer com isso de não haver aparelho de raios-X? perguntou o Dr. Nawaz. Acho bem que tenham um aparelho de raios-X, se não acabamos com isto e vamos todos para casa! Eu não tenho maneira de fazer uma implantação intracraniana sem um aparelho de raios-X.

 

O que a Marjorie quer dizer é que estas duas salas de operações não foram concebidas para ter aparelhos de raios-X explicou o Dr. Newhouse. Foram concebidas essencialmente para tratamentos de infertilidade, por isso têm ultra-sons topo de gama. Servem?

 

De maneira nenhuma! atirou o Dr. Nawaz bruscamente. Ultra-sons não vão servir para nada. Preciso de um aparelho de raios-X de tamanho normal para fazer medições precisas. A grelha de referência tridimensional do quadro tem de ser relacionada com o cérebro do paciente. Se não, seria como dar tiros às escuras. Preciso de uma porcaria de um aparelho de raios-X! Está a dizer-me que nem sequer têm uma máquina portátil?

 

Infelizmente, não! declarou o Dr. Newhouse. Acenou para a janela na direcção de Paul Saunders, pedindo-lhe que entrasse na sala.

 

Paul enfiou a cabeça pela porta, enquanto segurava uma máscara junto ao rosto.

 

Há algum problema?

 

Pode crer que há uma porcaria de um problema queixou-se o Dr. Nawaz, zangado. Fui informado tarde de mais de que não existe um aparelho de raios-X.

 

Nós temos raios-X disse Paul. Até temos um aparelho de ressonância magnética.

 

Bem, então traga o maldito aparelho para aqui! ordenou o Dr. Newaz impacientemente.

 

Paul entrou na sala e olhou para os outros que se encontravam do lado de fora. Acenou para que entrassem, o que eles fizeram, com máscaras no rosto tal como ele.

 

Há um problema em que ninguém pensou disse Paul. Rashid precisa de fazer radiografias, mas a sala não está preparada para isso, e não temos uma unidade portátil.

 

Oh, por amor de Deus! Depois de todo este esforço, vamos ficar por aqui? perguntou Daniel retoricamente. Depois, olhando directamente para o neurocirurgião, perguntou, Por que é que não disse que precisava de um aparelho de raios-X?

 

Por que é que não me disseram que não havia um? retorquiu o Dr. Nawaz. Eu nunca tive a dúbia honra de trabalhar numa sala de operações moderna que não tivesse acesso a raios-X.

 

Vamos reflectir sobre isto durante alguns instantes e deixar que prevaleçam pensamentos mais calmos! sugeriu Paul. O problema tem de ter solução.

 

Não há nada para pensar exclamou o Dr. Nawaz. Eu não posso localizar uma injecção no cérebro sem radiografias. É tão simples quanto isso.

 

Com excepção dos bips metronómicos do monitor cardíaco, a sala mergulhou num silêncio tenso. Todos evitavam olhar uns para os outros. Ninguém se mexia.

 

Por que não levar o paciente para a sala de radiologia? sugeriu Spencer de repente. Não é muito longe daqui.

 

Os outros tinham pensado na ideia mas haviam-na posto de parte. Agora, reconsideraram a sugestão. Levar um paciente do bloco operatório para a sala de radiologia no meio de uma intervenção não era um procedimento rotineiro e, no entanto, naquelas circunstâncias, não estava fora de questão. As instalações eram novas e estavam praticamente vazias, por isso a contaminação era menos problemática do que seria normalmente, especialmente porque a craniotomia ainda não tinha sido efectuada.

 

Devo dizer que me parece razoável disse Daniel, optimista. Temos pessoas suficientes. Podemos ajudar todos.

 

Qual é a sua opinião, Rashid? perguntou Paul. O Dr. Nawaz encolheu os ombros.

 

Suponho que poderia funcionar, desde que possamos manter o paciente na mesa do bloco operatório. Com ele sentado e o quadro estereotáxico no lugar, seria má ideia pô-lo numa maca e depois retirá-lo.

 

A mesa do bloco tem rodas lembrou o Dr. Newhouse.

 

Vamos a isto! disse Paul. Marjorie, alerta a nossa técnica de radiologia de que vamos a caminho.

 

O Dr. Newhouse levou alguns minutos a desligar Ashley do monitor cardíaco e a desamarrar-lhe os braços dos apoios. Com eles esticados lateralmente, teria sido impossível passar pela porta. Quando tudo ficou pronto e as mãos de Ashley repousavam em segurança no seu colo, o Dr. Newhouse soltou o travão das rodas com o pé. Depois, com o Dr. Newhouse a empurrar e Marjorie e Paul a puxar, levaram a mesa de operações para o corredor. Com excepção da enfermeira instrumentista, que permaneceu no bloco, todos foram atrás. Ashley estava a dormir e completamente alheado do drama que estava a desenrolar-se, apesar de estar sentado e a ser empurrado. Com a cabeça presa no futurista quadro estereotáxico, podia ser um actor adormecido num filme de ficção científica.

 

Uma vez no corredor, todos com excepção do Dr. Nawaz deram uma ajuda a empurrar, embora quase não fosse necessário. A mesa de operações rolou com facilidade no chão de madeira, e apenas o peso considerável a fazia chiar. Quando o grupo chegou à radiologia, discutiu-se se deviam passar Ashley da mesa de operações para a mesa do aparelho de raios-X. Depois de se pesarem os prós e os contras, decidiu-se que era preferível deixá-lo na mesa do bloco.

 

O Dr. Nawaz vestiu um pesado avental de chumbo, uma vez que insistiu em alinhar e apoiar pessoalmente a cabeça de Ashley, enquanto as radiografias eram tiradas. Todos os outros saíram para o corredor. Ashley nunca acordou.

 

Quero as películas reveladas antes de o levarmos novamente para o bloco operatório disse o Dr. Nawaz à técnica, quando ela veio buscar as placas expostas. Quero ter a certeza absoluta de que são adequadas.

 

Vou revelá-las num instante disse a técnica jovialmente.

 

O Dr. Newhouse voltou à sala de radiologia para verificar os sinais vitais de Ashley. Paul e Spencer acompanharam a técnica de radiologia para aguardar a saída das películas da revelação. Daniel e Stephanie ficaram momentaneamente sozinhos.

 

Parece uma comédia de horrores que não é nada engraçada sussurrou Stephanie, abanando a cabeça desgostosamente.

 

Isso não é justo sussurrou Daniel por sua vez. O mal-entendido do aparelho de raios-X não foi culpa de ninguém. Eu posso ver os dois lados, e já são águas passadas. As radiografias foram feitas, por isso a implantação vai continuar a correr bem.

 

Não importa se é ou não culpa de alguém retorquiu Stephanie. Foi uma asneira, e tem sido uma coisa atrás da outra desde aquela noite fatídica e chuvosa em Washington até agora. Eu não paro de perguntar a mim mesma que mais poderá correr mal.

 

Tentemos ser um pouco mais optimistas disse Daniel rispidamente. O fim está à vista.

 

Paul e Spencer saíram da sala de processamento com a técnica, alguns passos atrás. Paul tinha as r biografias nas mãos.

 

Parecem-me boas comentou ele, enquanto passava por Daniel e Stephanie e entrava na sala de radiologia. Os outros seguiram-no. Paul colocou as películas no suporte de observação, acendeu a luz e desviou-se para o lado. As imagens eram do crânio de Ashley sobrepostas pela imagem opaca do quadro estereotáxico.

 

O Dr. Nawaz avançou e, com o nariz colado às películas, examinou cuidadosamente cada uma, orientando-se essencialmente pelas sombras indistintas dos ventrículos cheios de fluido do cérebro de Ashley. Por instantes, ninguém falou. O único som foi o da respiração funda de Ashley brevemente obscurecido pelo ruído do Dr. Newhouse a encher a pulseira de medição da tensão arterial no braço de Ashley.

 

Então? perguntou Paul.

 

O Dr. Nawaz acenou em sinal de relutante aprovação.

 

Parecem bem. Devem servir Pegou num marcador e numa régua de metal. Com grande cuidado, detectou a localização específica em cada película e marcou-a com um pequeno X. Este é o nosso alvo: a parte compacta da massa cinzenta do lado direito do meio do cérebro. Agora, tenho de encontrar as coordenadas x, y e z começou a trabalhar, desenhando linhas nas radiografias e medindo ângulos.

 

Vai fazer isso aqui? perguntou Paul.

 

É uma boa caixa de luz disse o Dr. Nawaz. Estava preocupado.

 

Devíamos levar o paciente para o bloco operatório disse o Dr. Newhouse.Vou sentir-me mais descansado quando ele estiver ligado ao monitor cardíaco.

 

Boa ideia disse Paul. Dirigiu-se de imediato para os pés da mesa de operações para dar uma ajuda. O Dr. Newhouse soltou o travão das rodas.

 

Daniel e Stephanie espreitaram por cima do ombro e observaram, fascinados, enquanto ele delineava as coordenadas para a agulha de implantação, cuja guia seria firmemente afixada à moldura.

 

Com Paul a puxar e o Dr. Newhouse a empurrar, manobraram a mesa para fora da sala de radiologia. O Dr. Newhouse manteve uma mão no ombro para ajudar a estabilizá-lo enquanto avançavam. Provavelmente não era necessário, uma vez que já prendera o peito de Ashley à parte levantada da mesa, mas queria ter a certeza.

 

No corredor, Paul voltou-se para olhar em frente enquanto segurava a parte inferior da mesa de operações atrás das costas. Era mais fácil do que tentar andar de costas. Continuou a puxar, mas a sua contribuição era mais para conduzir, uma vez que a mesa, com as quatro rodas, tinha tendência para desviar. Marjorie seguia ao lado, a segurar o frasco do soro mas também pronta para ajudar a segurar Ashley se fosse necessário. Spencer vinha atrás, a dar ordens ocasionais, que todos ignoravam.

 

A cor dele não é nada boa queixou-se o Dr. Newhouse ao olhar para o paciente à luz fluorescente do corredor. Vamos depressa!

 

Todos aceleraram o passo.

 

A cor dele é pastosa desde o momento em que entrou pela porta principal disse Spencer. Acho que não mudou.

 

Quero-o novamente no monitor disse o Dr. Newhouse.

 

Cá estamos! anunciou Paul, enquanto abria a porta do bloco operatório e entrava sem se virar para a mesa de operações. Com a pressa, não alinhou a mesa com a porta, fazendo com que esta entrasse de lado. O resultado foi que um dos cantos bateu na ombreira metálica com força suficiente para o corpo de Ashley saltar contra a tira que lhe amarrava o peito à mesa. A inércia do quadro estereotáxico provocou um ligeiro efeito de ricochete, atirando com a cabeça de Ashley para a frente obliquamente. O Dr. Newhouse e Constance reagiram prontamente e apanharam os braços de Ashley, que também se tinham erguido com o impacto.

 

Santo Deus! exclamou o Dr. Newhouse.

 

Desculpem disse Paul, sentindo-se culpado. Como era o principal responsável pela condução, a colisão era mais culpa sua do que de qualquer outro.

 

O quadro bateu na ombreira da porta?perguntou o Dr. Newhouse, enquanto pousava a mão de Ashley no colo deste.

 

Não, não bateu disse Marjorie, que estava do lado da colisão e poderia tê-la evitado se tivesse previsto o que ia acontecer. Mas tudo acontecera depressa de mais. Ela soltou o braço de Ashley para empurrar a frente da mesa de operações para longe da ombreira da porta.

 

Deus seja louvado por estes pequenos favores disse o Dr. Newhouse. Pelo menos, não a contaminámos. Se isso tivesse acontecido, teríamos de começar do princípio.

 

Constance correu de onde estava junto à mesa dos instrumentos. Como permanecera vestida e enluvada enquanto todos tinham ido para a sala de radiologia, pôde segurar o quadro sem ameaçar a sua esterilidade, endireitá-lo juntamente com a cabeça de Ashley, e suportá-lo.

 

Já acabei? perguntou Ashley, parecendo inebriado. A colisão despertara-o do seu repouso drogado. Tentou abrir os olhos, com pouco sucesso. As pálpebras só conseguiram chegar a meio. Sentindo um peso estranho na cabeça, tentou levantar uma mão para sentir o que era. O Dr. Newhouse agarrou no braço erguido; Marjorie prendeu o outro.

 

Coloquem a mesa em posição ordenou o Dr. Newhouse.

 

Paul empurrou a mesa para o centro da sala. Ajudou o Dr. Newhouse a colocar os apoios de braços no lugar. Instantes depois, os braços de Ashley estavam novamente amarrados. Ashley ajudou-os adormecendo imediatamente. O Dr. Newhouse entregou os condutores do electrocardiograma a Marjorie, que os ligou à unidade electrónica. Em breve, o bip regular e tranquilizador do monitor cardíaco substituiu o silêncio tenso que imperava na sala. O Dr. Newhouse tirou o estetoscópio dos ouvidos depois de medir a tensão arterial.

 

Está tudo bem anunciou.

 

Eu devia ter tido mais cuidado disse Paul.

 

Não aconteceu nada de mal replicou o Dr. Newhouse.O quadro não foi comprometido. Vamos dizer ao Dr. Nawaz para que ele possa verificar. Parece estável, Constance?

 

Sólido como uma rocha declarou Constance, que ainda estava a segurar no dispositivo.

 

Óptimo disse o Dr. Newhouse. Acho que agora podes soltar. Obrigado pela tua ajuda.

 

Constance soltou cuidadosamente o aperto. Aposição do quadro não se alterou. Ela voltou para junto da mesa de instrumentos.

 

Acho que estava certo em relação à cor do paciente disse o Dr. Newhouse para Spencer. Não houve alteração no estado cardiovascular. Mesmo assim, acho que vou ligar um medidor de batimentos cardíacos. Marjoríe, pode trazer-me um da sala de anestesia?

 

Com certeza disse Marjorie, antes de desaparecer pela porta para o espaço adjacente.

 

Uma figura apareceu à janela que dava para o corredor e fez sinal a Paul. Embora o homem estivesse com um fato esterilizado e usasse uma máscara, Paul reconheceu Kurt Hermann imediatamente. Os seus batimentos cardíacos dispararam novamente depois de ter recuperado da colisão com a mesa do bloco operatório, contra a ombreira da porta. Ficou nervoso, uma vez que era extremamente invulgar Kurt Hermann ser visto noutro edifício para além do da administração, onde se situava o seu gabinete, e particularmente invulgar na unidade do bloco operatório. Alguma coisa tinha de estar seriamente errada, especialmente com o tipicamente discreto Kurt a acenar a Paul para que saísse para o corredor.

 

Paul dirigiu-se para a porta em linha recta e saiu para o corredor.

 

Que é que se passa? perguntou, ansioso.

 

Preciso de falar consigo e com o Dr. Wingate em particular.

 

Sobre quê?

 

A identidade do paciente. Não está relacionado com a Mafia.

 

Oh, a sério? disse Paul, aliviado. A última coisa que esperava eram boas notícias. Quem é ele?

 

Por que é que não chama o Dr. Wingate?

 

Está bem! Espera um instante!

 

Paul regressou ao bloco operatório e falou ao ouvido de Spencer. As sobrancelhas deste arquearam-se. Fez questão de olhar para a janela, como se não acreditasse no que Paul acabara de lhe dizer. Com alacridade, seguiu Paul para o corredor. Kurt fez-lhes sinal para que o seguissem pelo corredor até ao armazém do bloco operatório. Uma vez ali, certificou-se de que a porta estava fechada antes de se voltar para olhar para os patrões. Não tinha nenhum deles em grande conta, especialmente porque nunca sabia bem quem é que mandava.

 

Então? interrogou Spencer. Não tinha com Kurt a mesma paciência que Paul. Vais dizer-nos ou não? Quem é ele?

 

Antes de mais, um pouco de informações preliminares disse Kurt no seu estilo militar rígido. Soube pelo motorista da limusina que ele tinha ido buscar o paciente e a acompanhante ao Atlantis. Através de contactos que tenho no hotel e que me foram dados pela polícia local, descobri que eles estão hospedados na Suite Poseidon, registada em nome de Carol Manning, de Washington, D. C.

 

Caroll Manning? perguntou Spencer. Nunca ouvi falar nele. Quem diabo é o homem?

 

Carol Manning é uma mulher disse Kurt. Pedi a um amigo do continente para saber quem ela era. É a chefe de gabinete do senador Ashley Butler. Verifiquei junto das autoridades da imigração das Bahamas; o Senador Butler chegou à ilha ontem. Acredito que o paciente é o senador.

 

O senador Butler! Claro! exclamou Spencer, enquanto batia na cabeça. Bem me pareceu reconhecê-lo esta manhã, mas não consegui ligar o rosto e o nome, pelo menos, não com ele vestido com aquela fatiota ridícula de turista.

 

Porra! praguejou Paul. Pousou as mãos nas ancas e andou de um lado para o outro no espaço reduzido do armazém. Todo este trabalho para descobrir quem ele é, e afinal não passa da porcaria de um político. Lá se vai o nosso grande pagamento.

 

Não sejamos tão precipitados declarou Spencer.

 

E por que diabo não? replicou Paul. Parou e olhou para Spencer. Estávamos a contar com o homem mistério para sermos ricos e famosos. Isso significava uma celebridade com o estatuto de uma estrela de cinema, de um cantor de rock ou de um atleta, ou, pelo menos, de um administrador executivo proeminente. Certamente não um político!

 

Há políticos e políticos disse Spencer. O que pode ser importante para nós é que se tem falado muito na possibilidade de Butler se candidatar à nomeação do Partido Democrata para a presidência.

 

Mas os políticos não têm dinheiro disse Paul. Pelo menos, não deles.

 

Mas têm acesso a pessoas com muito dinheiro disse Spencer. Isso é que importa, especialmente com os sérios adversários presidenciais que se vislumbram. Quando o campo de candidatos do Partido Democrata à presidência ficar reduzido, o que acontecerá indubitavelmente, haverá imenso dinheiro. Se Butler se candidatar, e se sair bem na primeira volta, ainda podemos ter aquele retorno financeiro.

 

É uma série de grandes ses disse Paul, com uma expressão desconfiada e descrente. Mas, independentemente disso, estou satisfeito com o que já temos. Retorno financeiro ou não, estive muito ligado à RSTH, de que tiraremos grande partido, e isso para além dos quarenta e cinco mil, que não é coisa pouca. Por isso estou satisfeito, especialmente por ter convencido o Dr. Lowell a assinar aquela declaração. Ele não vai poder negar o que aqui fez, e eu vou insistir naquele artigo sobre o Sudário de Turim na NEWS. A publicidade vai ser o nosso retorno financeiro a longo prazo, e para isso um político é tão bom ou melhor do que qualquer outra celebridade.

 

Vou voltar às minhas funções normais de segurança disse Kurt. Não ia ficar ali a ouvir as patetices daqueles dois palhaços. Chegou à porta e abriu-a.

 

Obrigado por conseguires o nome disse Paul.

 

Sim, obrigado disse Spencer. Vamos tentar esquecer que demoraste um mês e que, entretanto, tiveste de matar uma pessoa.

 

Por instantes, Kurt olhou para Spencer com raiva, e depois saiu. O fecho automático puxou a porta até esta se fechar.

 

Esse último comentário não foi justo queixou-se Paul.

 

Eu sei disse Spencer, com um aceno de despreocupação. Estou a tentar ser engraçado.

 

Tu não aprecias o trabalho dele aqui.

 

Acho que não concordou Spencer.

 

Quando estivermos a funcionar na capacidade máxima, vais apreciar. A segurança vai ser o ponto fulcral. Confia em mim!

 

Talvez tenhas razão mas, por enquanto, vamos voltar para a implantação, e esperemos que corra melhor do que até aqui. Spencer abriu a porta e começou a sair.

 

Espera um segundo disse Paul, agarrando no braço de Spencer. Acaba de me ocorrer uma coisa. O Ashley Butler é o senador que tem estado a liderar o movimento para banir a RSTH do Lowell. É irónico, uma vez que vai ser ele o beneficiário!

 

É mais hipócrita do que irónico, se queres saber a minha opinião disse Spencer. Ele e Lowell devem ter armado algum acordo clandestino.

 

Tem de ser isso, e se for é o ideal para o nosso retorno financeiro, uma vez que estaríamos ambos comprometidos a guardar um segredo grande e sombrio.

 

Acho que estamos sentados no banco do condutor disse Spencer com um aceno de cabeça. Agora, vamos voltar para aquele bloco operatório para nos certificarmos de que não há mais problemas, para que a implantação possa ocorrer. Foi muito bom estarmos por perto por causa daquela confusão das radiografias.

 

Vamos comprar um aparelho de raios-X portátil.

 

Se não te importas, vamos esperar até termos algum lucro. Spencer hesitou do lado de fora da porta do bloco operatório. Voltou-se para Paul.

 

Acho que é importante não darmos a entender que conhecemos a verdadeira identidade do senador.

 

Claro disse Paul. Nem é preciso dizeres.

 

 

11.45, domingo, 24 de Março de 2002

Para Tony D’Agostino, foi como estar preso num pesadelo, incapaz de acordar, quando se viu novamente a empurrar a porta da frente da loja de artigos de canalização dos irmãos Castigliano. Para piorar as coisas, era uma manhã de domingo fria e chuvosa, e havia um milhar de outras coisas que preferia estar a fazer, como tomar um cappuccino e cannoli no aconchegante Café Cosenza na Rua Hanover.

 

Depois de abrir a porta do carro, tirou o chapéu de chuva e abriu-o. Só depois é que saiu do carro. Mas os seus esforços foram em vão. Mesmo assim, molhou-se. O vento estava a fustigar a chuva, por isso ela caía para todos os lados. Foi uma luta segurar o chapéu de chuva para impedir que lhe fosse arrancado da mão.

 

Do lado de dentro da porta, Tony bateu com os pés para tirar a lama, limpou a testa com as costas da mão e encostou o chapéu de chuva à parede. Ao passar pelo balcão onde Caetano costumava trabalhar, praguejou baixinho. Não tinha dúvida de que fora Caetano quem lixara tudo mais uma vez, e esperava que o brutamontes estivesse ali para poder dizer-lhe das boas.

 

Como sempre, a porta do gabinete interior não estava fechada à chave, e Tony entrou depois de bater levemente e sem esperar por uma resposta. Os dois irmãos estavam sentados às suas secretárias, cujas superfícies desarrumadas estavam iluminadas pelos candeeiros de secretária iguais, com quebra-luz de vidro verde. Com o pesado manto de nuvens, entrava muito pouca luz pelas pequenas janelas sujas, viradas para o pântano.

 

Os Castigliano ergueram os olhos em uníssono. Sal estava ocupado a fazer registos num antiquado livro-mestre a partir de uma pilha de papéis amachucados. Lou estava a fazer uma paciência. Infelizmente, Caetano não se via em parte alguma.

 

Seguindo o ritual de sempre, Tony apertou vigorosamente a mão a cada um antes de se sentar no sofá. Não se recostou nem sequer desabotoou o casaco. Estava a pensar que a visita seria curta. Aclarou a garganta. Ninguém dissera nada, o que era um pouco estranho, especialmente porque era ele que planeava fazer o papel de irritado.

 

A minha mãe falou com a minha irmã a noite passada começou Tony. Quero que saibam que estou confuso.

 

Oh, a sério? perguntou Lou com um toque de troça. Bem-vindo ao clube!

 

Tony olhou para um e para o outro. De repente, tornou-se evidente que os dois Castigliano estavam tão mal humorados como ele, especialmente porque Lou mostrou o desrespeito de continuar imediatamente a sua paciência, batendo com as cartas no tampo da secretária enquanto jogava. Tony olhou para Sal, e este fitou-o furioso. Sal parecia mais sinistro do que de costume, com o rosto cadavérico iluminado de baixo, pela doentia luz verde. Podia ser um cadáver.

 

Por que é que não nos contas o motivo da tua confusão? sugeriu Sal desdenhosamente.

 

Sim, gostaríamos de ouvir acrescentou Lou, sem interromper o seu jogo de cartas. Especialmente, porque foste tu que nos torceste os braços para arranjarmos os cem mil para o esquema da tua irmã.

 

Levemente alarmado com aquela recepção inesperadamente fria, Tony recostou-se no sofá. De repente, sentiu-se muito quente e abriu o casaco.

 

Eu não torci o braço de ninguém disse ele, indignado, mas logo que as palavras lhe escaparam dos lábios sentiu uma desagradável sensação de vulnerabilidade. Tarde de mais, pôs em questão a sensatez de ir ao escritório isolado dos gémeos sem nenhuma protecção ou apoio. Não estava armado, mas isso não era invulgar. Quase nunca usava armas, e os gémeos sabiam-no. No entanto, tal como os Castigliano, sem dúvida que havia capangas na sua organização, e devia tê-los trazido.

 

Não nos estás a dizer o que é que te confunde disse Sal, ignorando a refutação de Tony.

 

Ele aclarou novamente a garganta. Cada vez mais inquieto, decidiu que seria melhor reduzir a raiva.

 

Estou um pouco confuso com o que Caetano fez nesta segunda viagem a Nassau. Há uma semana, a minha mãe disse-me que tinha tido dificuldade em entrar em contacto com a minha irmã. Disse que quando o conseguiu, a minha irmã estava estranha, como se tivesse acontecido alguma coisa grave de que ela não quisesse falar até chegar a casa, o que ia acontecer em breve. Obviamente, pensei que o Caetano tinha feito o seu trabalho e que o professor tinha passado à história. Bem, a noite passada a minha mãe conseguiu falar novamente com a minha irmã, uma vez que ela não tinha aparecido. Desta vez ela estava, nas palavras da minha mãe, «outra vez como sempre», e disse que ela e o professor ainda estavam em Nassau, mas que iam voltar para casa daqui a poucos dias. Quero dizer, em que é que ficamos?

 

Durante alguns minutos, ninguém disse nada. O único ruído que se ouvia na sala eram as cartas de Lou a bater intermitentemente no tampo da secretária, combinado com o som das gaivotas a piar no pântano.

 

Tony fez questão de olhar à volta da sala a qual, apesar da hora, estava quase toda às escuras.

 

Por falar no Caetano, onde é que ele está? A última coisa que Tony queria era uma surpresa vinda do capanga dos gémeos.

 

É uma pergunta que temos estado a fazer a nós mesmos disse Sal.

 

Que diabo queres dizer?

 

Caetano ainda não voltou de Nassau disse Sal. Está desaparecido. Não sabemos nada dele desde a última vez que vieste cá, e o irmão e a cunhada, com quem ele tem um relacionamento muito próximo, também não. Ninguém sabe de nada. Nem um ai.

 

Se Tony achava que estava confuso antes, nesse momento ficou estupefacto. Embora se tivesse queixado recentemente de Caetano, respeitava o homem como um profissional experiente e, como homem relacionado, Tony presumiu que Caetano seria inquestionavelmente leal. O facto de ter desaparecido não fazia sentido.

 

Nem é preciso dizer que nós próprios estamos um pouco surpreendidos acrescentou Sal.

 

Fizeram alguma investigação? perguntou Tony.

 

Investigação? perguntou Lou sarcasticamente, levantando, por fim, os olhos da paciência. Por que é que faríamos uma loucura dessas? Raios, não! Temos ficado aqui sentados dia após dia, a roer as unhas, à espera que o telefone toque.

 

Ligámos para a família Spriano em Nova Iorque disse Sal, ignorando o sarcasmo do irmão. Para o caso de não saberes, somos parentes afastados. Eles estão a verificar por nós. Entretanto, estão a tratar de tudo para nos mandarem um assistente novo, que deve chegar aqui dentro de um ou dois dias. Foram eles que nos mandaram Caetano.

 

Um arrepio de medo subiu pela coluna de Tony. Sabia que a organização Spriano era uma das famílias mais poderosas e impiedosas na Costa Este. Não fazia ideia de que os gémeos estavam associados a eles, o que colocava tudo numa categoria mais séria e preocupante.

 

E os colombianos de Miami que deviam fornecer a pistola? perguntou, para mudar de assunto.

 

Também lhes telefonámos disse Sal. Eles nunca foram muito cooperativos, como sabes, mas disseram que iam verificar. Por isso, temos pessoas à procura. Obviamente, queremos saber onde é que o imbecil está escondido e porquê.

 

Falta algum do vosso dinheiro? perguntou Tony.

 

Nada que Caetano pudesse ter levado respondeu Sal enigmaticamente.

 

Estranho comentou Tony, pois não lhe ocorreu mais nada. Não sabia o que Sal queria dizer, mas não ia perguntar. Lamento que tenham este problema endireitou-se no sofá, como se estivesse prestes a levantar-se.

 

É mais do que estranho declarou Lou. E lamentares não basta. Temos falado sobre tudo isto durante os últimos dias, e acho que devias saber o que pensamos. Em última análise, consideramos-te responsável por este fracasso do Caetano, independentemente do desfecho, e também pelos nossos cem mil, que vamos querer de volta com juros. Os juros serão à nossa taxa habitual desde o dia em que os entregámos e não são negociáveis, E uma última coisa. Consideramos que o empréstimo já está vencido.

 

Tony levantou-se abruptamente. A ansiedade crescente atingiu um ponto crítico depois de ouvir os comentários de Lou e a sua ameaça levemente velada.

 

Se souberem alguma coisa, digam-me disse ele, dirigindo-se para a porta. Entretanto, vou fazer umas investigações.

 

É melhor começares a investigar como é que vais arranjar os cem mil disse Sal, porque não vamos ter paciência nenhuma.

 

Tony saiu rapidamente da loja, esquecido da chuva. Estava a transpirar, apesar do frio. Só depois de entrar no carro é que se lembrou do chapéu de chuva.

 

Que se lixe! disse em voz alta. Ligou o Caddy e, com o braço preso atrás do banco da frente, olhou pelo vidro de trás e recuou. Com uma chuva de pedras, o carro entrou na estrada. Momentos depois, seguia a mais de oitenta quilómetros por hora, em direcção à cidade.

 

Tony descontraiu um pouco e secou as palmas das mãos à vez, nas pernas das calças. A ameaça imediata terminara, mas sabia intuitivamente que uma ameaça muito maior e a longo prazo pairava no horizonte, especialmente se os Sprianos se envolvessem, por muito tangencialmente que fosse. Era tudo muito desencorajador e até assustador. No momento em que estava a mobilizar os seus recursos para lutar contra a acusação, via-se agora perante uma possível guerra de bandos.

 

John. Está a ouvir-me?chamou o Dr. Nawaz. Inclinara-se enquanto segurava os panos esterilizados pendurados sobre o rosto de Ashley. A maior parte do quadro estereotáxico ancorado no crânio de Ashley, bem como o próprio Ashley, estava coberta de panos, expondo apenas uma porção do lado direito da testa do senador. Ali, o Dr. Nawaz tinha feito uma pequena incisão na pele, agora mantida aberta com um retractor.

 

Depois de expor o osso, o Dr. Nawaz usou uma broca especial para fazer um pequeno furo craniano para expor a cobertura cinzento esbranquiçada do cérebro. Directamente alinhada com o buraco e firmemente presa a um dos arcos do quadro estereotáxico, estava a agulha de implantação. Com a ajuda da radiografia, tinham sido determinados os ângulos correctos, e a agulha já fora inserida na cobertura do cérebro, para a parte exterior do cérebro propriamente dito. Nesse ponto, só era necessário avançar a agulha para a profundidade exacta e predeterminada para chegar à massa cinzenta alvo.

 

Dr. Newhouse, talvez possa despertar o paciente disse o Dr. Nawaz no seu melodioso sotaque com uma mistura de paquistanês e inglês. Neste ponto, preferia que o meu paciente estivesse acordado.

 

Claro disse o Dr. Newhouse, levantando-se e pousando a revista que estava a ler. Enfiou a mão por baixo dos panos e abanou o ombro de Ashley.

 

Os olhos pesados de Ashley lutaram para se abrir.

 

Consegue ouvir-me, John? perguntou o Dr. Nawaz, novamente. Precisamos da sua ajuda.

 

Claro que consigo ouvi-lo disse Ashley, com a voz entaramelada do sono.

 

Quero que me diga se tiver quaisquer sensações ao longo dos próximos minutos. Pode fazer isso?

 

Que é que quer dizer com «sensações»?

 

Imagens, pensamentos, sons, odores ou sensação de movimento. Qualquer coisa em que repare.

 

Estou com muito sono.

 

Eu sei, mas tente permanecer acordado apenas estes minutos. Como já disse, preciso da sua ajuda.

 

Vou tentar.

 

É tudo o que podemos pedir disse o Dr. Nawaz. Baixou o pano, obscurecendo o rosto de Ashley. Virou-se e levantou o polegar para o grupo que estava do outro lado da janela, no corredor. Depois, após flectir os dedos em luvas de látex, usou o volante do micromanipulador na guia que segurava a agulha de implantação. Lentamente, milímetro a milímetro, avançou a agulha romba de implantação para as profundezas do cérebro de Ashley. Quando a agulha estava a meio caminho, ergueu novamente a ponta do pano. Ficou satisfeito ao ver os olhos de Ashley ainda abertos, embora pouco. Está a sentir-se bem? perguntou ao senador.

 

Muito disse Ashley, com vestígios do seu sotaque sulista. Tão feliz como um porco num chiqueiro.

 

Está óptimo disse o Dr. Nawaz. Não vai demorar muito mais.

 

Demore o tempo que quiser. O importante é que a coisa seja bem feita.

 

Isso nunca está em causa respondeu o Dr. Nawaz. Sorriu por baixo da máscara cirúrgica, enquanto baixava o pano e continuava a descer a agulha. Estava impressionado com a coragem e o bom humor de Ashley. Minutos depois e com uma torção final do micromanipulador, parou na profundidade exacta. Após uma verificação final do estado de Ashley, disse a Marjorie que pedisse ao Dr. Lowell para entrar na sala. Entretanto, preparou a seringa que ia transportar as células de tratamento.

 

Está a correr tudo bem? perguntou Daniel. Colocando uma máscara facial ao entrar. Com as mãos atrás das costas, inclinou-se para olhar para o buraco da craniotomia com a agulha inserida.

 

Muito bem disse o Dr. Nawaz. Mas há um problema que admito que me escapou nas fases anteriores. Nesta fase, é costume fazer outra radiografia de confirmação para ter cem por cento de certeza da localização da ponta da agulha. Porém, sem aparelho de raios-X aqui no bloco operatório, isso não é possível. Com a craniotomia aberta e a agulha inserida, o paciente não pode ser removido em segurança.

 

Está a pedir a minha opinião para prosseguir?

 

Precisamente. Em última análise, ele é seu paciente. Nesta situação bastante única, eu sou, como vocês americanos dizem, um pistoleiro contratado.

 

Até que ponto é que tem confiança na posição da agulha?

 

Estou muito confiante. Em toda a minha experiência com o quadro estereotáxico, nunca falhei o alvo. Neste caso, há também outro factor tranquilizador. Estamos a acrescentar células, não a fazer uma cirurgia ablativa, que é o que eu faço normalmente com este procedimento e que provocaria muito mais problemas, se a agulha estivesse ligeiramente deslocada.

 

É difícil discutir com um recorde de cem por cento. Estou confiante de que estamos em boas mãos. Vamos a isto!

 

Tem razão! disse o Dr. Nawaz. Pegou na seringa, agora cheia da alíquota predeterminada de células de tratamento. Depois de remover o trocarte do tubo da agulha de implantação, encaixou a seringa. Dr. Newhouse, estou pronto para começar a implantação.

 

Obrigado disse o Dr. Newhouse. Gostava de ser informado nos estádios críticos do procedimento, e verificou rapidamente os sinais vitais. Depois de terminar, tirou o estetoscópio dos ouvidos e fez sinal ao Dr. Nawaz para continuar.

 

Depois de levantar o pano e de o Dr. Newhouse sacudir uma vez mais Ashley para o acordar, o Dr. Nawaz repetiu as mesmas instruções que lhe dera antes de inserir a agulha. Só depois deu início à implantação, utilizando outro dispositivo manual de auxílio mecânico para descer o êmbolo da seringa de uma forma lenta e regular.

 

Daniel sentiu um arrepio de excitação, enquanto observava o processo de implantação. À medida que os neurónios produtores de dopamina clonados aumentados com genes do sangue do Sudário de Turim eram depositados lentamente no cérebro de Ashley, estava confiante de que estava a fazer-se história. Numa descida, a promessa de células estaminais, clonagem terapêutica e RSTH estava a ser concretizada para curar uma importante doença degenerativa pela primeira vez. Com uma sensação de euforia crescente, virou-se e fez um sinal de vitória para Stephanie com os dedos indicador e médio. Constrangida, esta retribuiu o gesto, mas sem a mesma alacridade. Daniel presumiu que esse facto se devia a ela se sentir pouco à vontade por estar ao lado de Paul Saunders e Spencer Wingate, e ter de falar com eles.

 

A meio da implantação, o Dr. Nawaz parou como fizera durante a inserção da agulha. Quando levantou a ponta do pano, descobriu que Ashley voltara a adormecer.

 

Quer que o acorde? perguntou o Dr. Newhouse.

 

Por favor respondeu o Dr. Nawaz. E talvez pudesse tentar mantê-lo acordado, durante os próximos minutos.

 

Os olhos de Ashley lutaram para se abrir em resposta ao aperto. A mão do Dr. Newhouse estava a apertar-lhe o ombro.

 

Sente-se bem, Sr. Smith? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Encantado balbuciou Ashley. Acabámos?

 

Quase! Só mais um momento! disse o Dr. Nawaz. Depois de soltar o pano, olhou para o Dr. Newhouse. Está tudo estável?

 

Como uma rocha.

 

O Dr. Nawaz voltou a premir o êmbolo da seringa. Continuou no mesmo ritmo lento e controlado. No momento em que se preparava para dar o último toque ao mecanismo de assistência mecânica, que teria soltado a última porção de células de tratamento, Ashley balbuciou qualquer coisa ininteligível por debaixo dos panos. O Dr. Nawaz parou, olhou de relance para o Dr. Newhouse e perguntou se compreendera o que Ashley dissera.

 

Também não consegui perceber admitiu o Dr. Newhouse.

 

Continua tudo estável?

 

Não houve alteração disse o Dr. Newhouse. Colocou o estetoscópio nos ouvidos e verificou uma vez mais a tensão arterial. Entretanto, o Dr. Nawaz ergueu a ponta do pano e espreitou para Ashley. A aparência do rosto, que era visível apenas até ao nível das sobrancelhas por causa do quadro, tinha mudado de forma bastante dramática. Curiosamente, os cantos da boca estavam levantados, e o nariz torcido numa expressão que sugeria repulsa. Isso foi ainda mais surpreendente, porque anteriormente o rosto estava claramente apático, um sintoma da doença.

 

Há alguma coisa a incomodá-lo? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Que cheiro horrível é este? perguntou Ashley. Continuava a parecer embriagado, e as palavras atropelavam-se umas nas outras.

 

Diga-nos o senhor! disse o Dr. Nawaz, num tom preocupado. A que é que cheira?

 

Merda de porco, se tivesse de adivinhar. Que diabo estão vocês a fazer?

 

Uma intuição de potencial desastre invadiu o Dr. Nawaz como uma descarga eléctrica leve e desagradável que deixou uma sensação de fraqueza no estômago, que só os cirurgiões experientes conheciam. Olhou de relance para Daniel à procura de consolo, mas este limitou-se a encolher os ombros. Com experiência cirúrgica pessoal limitada, Daniel estava apenas confuso.

 

Excrementos de porco? Que é isto? perguntou.

 

Como não há aqui porcos, receio que ele esteja a ter uma alucinação olfactiva disse o Dr. Nawaz, como se estivesse zangado.

 

Isso é um problema?

 

Vamos pôr as coisas nos seguintes termos disse o Dr. Nawaz. Preocupa-me. Podemos todos esperar que não seja nada, mas recomendo que renunciemos à última parte da implantação de células. Concorda? Já lhe introduzimos mais de noventa por cento.

 

Se existe alguma dúvida, absolutamente disse Daniel. Não se importava com o resto das células de tratamento. A quantidade tinha sido decidida através de um cálculo simples, baseado nas experiências com os ratos. O que o perturbou foi a reacção do Dr. Nawaz. Notou que o homem estava preocupado, mas não fazia a menor ideia por que é que um cheiro desagradável podia ser tão preocupante. Mas a última coisa de que Daniel precisava era de qualquer tipo de complicação, especialmente quando estavam tão próximos do sucesso.

 

Vou retirar a agulha avisou o Dr. Nawaz para conhecimento do Dr. Newhouse, embora não houvesse anestesia de inalação para aligeirar. Com o mesmo cuidado que usara para a inserção, o Dr. Nawaz retirou lentamente a agulha de implantação. Depois de a ponta sair do cérebro, o Dr. Nawaz procurou vestígios de sangue na ponta. Felizmente, não havia nenhum.

 

Agulha retirada! anunciou o Dr. Nawaz e entregou-a a Constance. Respirou fundo e depois levantou a ponta do pano para olhar para Ashley. Sentiu que Daniel estava a espreitar por cima do seu ombro. A expressão de repulsa do senador mudara para irritação. Agora tinha a boca fechada, com os lábios cerrados numa linha fina. Os olhos estavam mais abertos e as narinas abertas.

 

Sente-se bem, Sr. Smith? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Quero pôr-me a andar daqui para fora disse Ashley com brusquidão.

 

Continua a sentir aquele cheiro?

 

Que cheiro?

 

Há pouco queixou-se de um cheiro desagradável.

 

Não sei de que raio está a falar. A única coisa que sei é que quero sair daqui! De repente decidido a levantar-se, Ashley fez força contra a tira que lhe prendia o torso à mesa de operações levantada e contra as tiras que lhe prendiam os pulsos. Ao mesmo tempo, levantou as pernas, levando os joelhos ao peito.

 

Segurem-no! gritou o Dr. Nawaz. Inclinou-se sobre o colo de Ashley, tentando obrigar as pernas deste a ficarem novamente esticadas, com o peso do seu próprio corpo. O Dr. Nawaz ainda estava a segurar a ponta do pano, a observar o rosto de Ashley a ficar vermelho do esforço.

 

Daniel correu para os pés da mesa de operações e enfiou as mãos por baixo do pano, para agarrar nos tornozelos de Ashley. Tentou puxá-los para baixo e ficou surpreendido com a força da resistência de Ashley. O Dr. Newhouse soltara o aperto no ombro do senador para lhe agarrar no pulso, que ele conseguira soltar da tira que o prendia. Marjorie deu a volta à mesa para agarrar no outro braço de Ashley, que também se estava a soltar.

 

Acalme-se, Sr. Smith! gritou o Dr. Nawaz. Está tudo bem!

 

Saiam de cima de mim, seus animais tarados gritou Ashley por sua vez. Parecia o protótipo do bêbado beligerante, a resistir a todos os esforços para ser controlado.

 

Stephanie, Paul e Spencer entraram a correr no bloco operatório enquanto tentavam pôr as máscaras faciais no lugar. Deram uma ajuda a segurar Ashley, dando uma oportunidade a Marjorie para reforçar as tiras dos braços e ajudando Daniel a esticar as pernas de Ashley. Com as mãos livres, o Dr. Newhouse verificou novamente a tensão arterial de Ashley. Os bips do monitor cardíaco tinham aumentado consideravelmente. Marjorie saiu temporariamente da sala para ir buscar um par de tiras para prender os tornozelos do senador.

 

Está tudo bem repetiu o Dr. Nawaz para Ashley depois de o terem controlado. Olhou para o rosto desafiador e enraivecido do homem, que estava roxo do esforço. Tem de se acalmar! Temos de fechar a pequena incisão e é o que vamos fazer. Depois, poderá levantar-se. Está a compreender?

 

Vocês são todos um bando de tarados. Tirem as patas de cima de mim!

 

O facto de Ashley estar a usar uma linguagem tão imprópria na sala de operações surpreendeu toda a gente, quase tanto como a luta física inesperada. Por instantes, ninguém se mexeu nem disse uma palavra.

 

O Dr. Nawaz foi o primeiro a recompor-se. Agora que tinha a certeza de que Ashley estava amarrado, ergueu-se de cima do colo dele. Ao fazê-lo, todos repararam que Ashley tinha uma enorme erecção que levantava os panos.

 

Por favor, soltem as minhas mãos e os meus pés! lamentou-se Ashley, e começou a chorar. Estão a sangrar.

 

Todos os olhos se fixaram imediatamente nas mãos e nos pés de Ashley, especialmente os de Daniel, que ainda estava a segurar nos tornozelos enquanto Marjorie tentava prender as tiras.

 

Não há sangue disse Paul, falando para o grupo. De que é que ele está a falar?

 

John, escute-me! disse o Dr. Nawaz. Continuava a levantar a tira de pano para expor o rosto de Ashley das sobrancelhas para baixo. As suas mãos e os seus pés não estão a sangrar. O senhor está bem. Só precisa de descansar mais alguns minutos para me deixar terminar.

 

Eu não me chamo John disse Ashley suavemente. As lágrimas desapareceram tão depressa como tinham aparecido. Embora ainda parecesse inebriado, de repente parecia em paz.

 

Se não é John, qual é? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Daniel lançou um olhar preocupado a Stephanie, que se desviara um pouco da mesa de operações depois de ajudar a prender uma das mãos de Ashley. Para além de toda a confusão que Daniel sentia, estava agora preocupado porque o senador estava prestes a revelar a sua verdadeira identidade no seu estado drogado. Não fazia ideia do que isso poderia fazer ao resultado final do projecto, mas não podia ser bom, não com todo o secretismo exigido até então.

 

Chamo-me Jesus disse Ashley suavemente, enquanto fechava beatificamente os olhos.

 

A maior parte das pessoas que se encontravam no bloco operatório ficaram novamente espantadas e trocaram olhares assombrados, mas não o Dr. Nawaz. A reacção dele foi perguntar ao Dr. Newhouse o que dera ao paciente como sedativo, antes de iniciarem o procedimento.

 

Diazepam e Fentanyl por via intravenosa respondeu o Dr. Newhouse.

 

Acha que não há problema em administrar-lhe outra dose imediatamente?

 

Claro que não disse o Dr. Newhouse. Quer que administre?

 

Por favor pediu o Dr. Nawaz.

 

O Dr. Newhouse abriu a gaveta do seu carro de anestesia, tirou uma seringa nova e rasgou a embalagem. Com mãos experientes, preparou a medicação e injectou-a na entrada do tubo intravenoso.

 

Perdoa-lhes, Pai disse Ashley sem abrir os olhos, pois não sabem o que fazem.

 

Que é que se passa aqui? perguntou Paul num sussurro forçado.

 

Este tipo pensa que é Jesus Cristo a ser crucificado?

 

É algum tipo de reacção esquisita aos medicamentos? perguntou Spencer.

 

Duvido respondeu o Dr. Nawaz. Mas, seja qual for a causa, é sem dúvida uma convulsão!

 

Convulsão? perguntou Paul, incrédulo. Eu nunca vi uma convulsão assim.

 

Chama-se convulsão parcial complexa disse o Dr. Nawaz. Mais conhecida por convulsão do lobo temporal.

 

Que é que o causou, se não foram os medicamentos? perguntou Paul. Enfiar a agulha no cérebro dele?

 

Se tivesse sido a agulha, creio que teria ocorrido mais cedo declarou o Dr. Nawaz. Como ocorreu perto do fim da implantação, acho que temos de presumir que foi aquilo olhou para o Dr. Newhouse.

 

Verifique se ele está a dormir.

 

O Dr. Newhouse enfiou a mão por baixo do pano e abanou o ombro de Ashley com suavidade.

 

Alguma reacção? perguntou o Dr. Nawaz.

 

O Dr. Nawaz abanou a cabeça e baixou o pano sobre o rosto de Ashley. Suspirou por baixo da máscara facial e virou-se para olhar para Daniel. Atravessou as mãos ainda esterilizadas e enluvadas sobre o peito.

 

Daniel sentiu as pernas ficarem como borracha, quando olhou para os olhos escuros e fixos do neurocirurgião. Daniel percebeu que ele estava perturbado, o que abalou a compostura que estava a manter com grande dificuldade. O receio de uma complicação, que não o abandonara desde que Ashley se queixara de um cheiro, voltou com a força de uma barragem rebentada.

 

Creio que pode soltar os tornozelos do paciente disse o Dr. Nawaz.

 

Daniel soltou o aperto, que tinha estado a manter distraidamente, mesmo depois de Marjorie ter prendido as tiras.

 

Esta convulsão preocupou-me disse o Dr. Nawaz. Não só acredito que não foi provocada pelos medicamentos, como o facto de ter ocorrido sob o efeito de medicamentos sugere que foi uma perturbação cerebral focal bastante violenta.

 

Por que é que não pode estar relacionado com os medicamentos? perguntou Daniel, com mais esperança do que razão. Não pode ser apenas uma espécie de sonho induzido pelos sedativos? Quero dizer, diazepam e fentanyl por via intravenosa são uma mistura potente. A combinação dessa mistura com o poder sugestivamente emotivo do Sudário de Turim pode provocar voos desenfreados de fantasia.

 

Que é que o Sudário de Turim tem a ver com isto? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Tem a ver com as células de tratamento disse Daniel. É uma longa história, mas antes do processo de clonagem alguns dos genes do paciente foram substituídos por genes obtidos a partir do sangue existente no Sudário de Turim. Foi um pedido específico dele, que acredita na autenticidade do sudário. Até disse que esperava ter intervenção divina.

 

Suponho que essa ideia poderia desempenhar um papel na ilusão do paciente disse o Dr. Nawaz. Mas o facto de que ocorreu uma convulsão aquando da implantação não pode ser negado.

 

Mas como é que pode ter tanta certeza? perguntou Daniel.

 

Por causa do momento e por causa da alucinação olfactiva declarou o Dr. Nawaz. O cheiro que ele relatou foi uma aura, e uma das características de uma convulsão do lobo temporal é que começa com uma aura. Outras características são hiper-religiosidade, profundas alterações de disposição, acessos de libido intensos e comportamento agressivo, e o paciente revelou-as todas durante o curto período de tempo em que esteve acordado. Foi um exemplo clássico.

 

Que é que devemos fazer? perguntou Daniel, embora tivesse medo da resposta.

 

Rezar para que tenha sido um fenómeno único disse o Dr. Nawaz. Infelizmente, com a intensidade que o foco sem dúvida teve, eu ficaria surpreendido se ele não desenvolver uma epilepsia completa do lobo temporal.

 

Não há nada que possa ser feito a nível profiláctico? perguntou Stephanie.

 

O que eu gostava de fazer, mas sei que não posso, é ver as células de tratamento disse o Dr. Nawaz. Gostaria de ver para onde é que foram. Talvez pudéssemos fazer alguma coisa.

 

Para onde é que elas foram? perguntou Daniel. O senhor disse-me que em toda a sua experiência a usar o quadro estereotáxico para injecções, nunca tinha tido um problema por não estar onde era suposto estar.

 

Verdade, mas também nunca um dos meus pacientes teve uma convulsão destas durante um procedimento deste tipo replicou o Dr. Nawaz. Há alguma coisa que não bate certo.

 

Está a sugerir que as células podem não estar na massa cinzenta? protestou Daniel. Se assim for, nem quero saber.

 

Escute! gritou o Dr. Nawaz. Foi o senhor que me encorajou a avançar com o procedimento sem a capacidade de radiologia adequada.

 

Não vamos discutir interrompeu Stephanie. As células de tratamento podem ser vistas.

 

Todos os olhares se voltaram para ela.

 

Nós incorporámos um gene receptor de superfície nas células de tratamentoexplicou Stephanie.Fizemos a mesma coisa nas experiências com os ratos, especificamente com o objectivo de podermos visualizá-las. Temos um anticorpo monoclonal que contém um metal pesado rádio-opaco criado por um radiologista que trabalhou connosco. Está esterilizado e pronto para ser utilizado. Só tem de ser injectado no fluido cerebrospinal no espaço intracraniano. Com os ratos, funcionou perfeitamente.

 

Onde é que está? perguntou o Dr. Nawaz.

 

No laboratório, no edifício um respondeu Stephanie. Está em cima da secretária no nosso gabinete.

 

Marjorie disse Paul. Liga para a Megan Finnigan no laboratório! Ela que vá buscar o anticorpo e o traga aqui imediatamente.

 

 

14.15, domingo, 24 de Março de 2002

O Dr. Jeffrey Marcus era um radiologista local da equipa do Doctors Hospital na Rua Shirley, no centro de Nassau. Spencer estabelecera um acordo com o médico, segundo o qual ele responderia às necessidades radiológicas da Clínica Wingate numa base eventual até se justificar terem um radiologista a tempo inteiro. Logo que se decidiu que era necessário fazer uma TAC ao paciente, Spencer mandou a enfermeira chamar Jeffrey. Como era sábado à tarde, ele pôde vir imediatamente. O Dr. Nawaz ficou satisfeito porque conhecia Jeffrey de Oxford e sabia que ele tinha grande experiência em radiologia.

 

Estas são secções transversais do cérebro, que começam no lado dorsal do mesocéfalo disse Jeffrey, a apontar para o monitor do computador com a ponta de borracha de um antiquado lápis Dixon número dois amarelo. Jeffrey Marcus era um expatriado inglês que fugira para as Bahamas para escapar ao clima de Inglaterra, exactamente como o Dr. Carl Smith. Vamos viajar em incrementos de um centímetro e devemos estar ao nível da massa cinzenta dentro de uma ou duas imagens, no máximo.

 

Jeffrey estava sentado diante do computador. De pé à sua direita e inclinado para ver melhor encontrava-se o Dr. Nawaz. Daniel estava imediatamente à esquerda de Jeffrey. À janela que dava para a sala de TAC, encontravam-se Paul, Spencer e Carl. Carl segurava uma seringa cheia com outra dose de sedativo, mas não tinha sido necessário. Ashley não tinha acordado desde a segunda dose e dormiu enquanto o buraco da craniotomia era cosido sobre um botão de metal, enquanto o quadro estereotáxico foi removido e enquanto foi transferido para a mesa de TAC. Nesse momento, estava deitado de costas com a cabeça dentro da abertura da máquina gigante e em forma de donut. Tinha as mãos cruzadas no peito com as tiras dos pulsos no lugar, mas desapertadas. O soro ainda corria. Ele parecia a imagem do sono tranquilo.

 

Stephanie estava ao fundo, longe dos outros e encostada a uma bancada, com os braços cruzados. Sem ninguém ver, estava a lutar para conter as lágrimas. Esperava que ninguém se dirigisse a ela, porque se isso acontecesse temia perder o controlo. Pensou em sair da sala mas depois preocupou-se com a eventualidade de atrair demasiadas atenções sobre si, por isso deixou-se ficar onde estava e sofreu em silêncio. Sem sequer olhar para as imagens da TAC, a sua intuição disse-lhe que houvera uma complicação séria com a implantação, e isso quebrou a base do seu controlo emocional, que estava no limite devido a tudo o que acontecera no último mês. Censurou-se por não ter dado ouvidos à sua intuição no início daquele assunto burlesco e potencialmente perigoso.

 

Muito bem, aqui vamos nós! disse Jeffrey, a apontar novamente para a imagem no monitor. Estamos no meio do cérebro, e esta é a área da massa cinzenta, e infelizmente não há a radioluminescência que se esperaria de um anticorpo monoclonal com uma substância de metal pesado.

 

Talvez o anticorpo ainda tenha de se difundir do fluido cerebrospinal para o cérebro sugeriu o Dr. Nawaz. Ou talvez não haja uma superfície antigénica única nas células de tratamento. Tem a certeza de que o gene que inseriram foi modificado?

 

Tenho a certeza disse Daniel. A Dr.a D’Agostino verificou.

 

Talvez seja melhor repetirmos isto dentro de algumas horas disse o Dr. Nawaz.

 

Com os nossos ratos, vimos passados trinta minutos e no máximo, passados quarenta e cinco minutos disse Daniel. Olhou para o relógio. O cérebro humano é maior, mas usámos mais anticorpo e já passou uma hora. Devíamos poder ver. Tem de estar aí.

 

Esperem! disse Jeffrey. Há alguma radioluminescência difusa lateralmente moveu a ponta da borracha um centímetro para a direita. Os pontos de luminosidade eram subtis, como flocos de neve minúsculos num chão de vidro.

 

Oh, meu Deus! exclamou o Dr. Nawaz. É a parte mesial do lobo temporal. Não admira que ele tenha tido uma convulsão.

 

Vamos ver a próxima secção disse Jeffrey, quando a imagem nova começou a tirar a antiga do topo, descendo pelo ecrã como se estivesse a desenrolar-se.

 

Agora é ainda mais aparente disse Jeffrey. Bateu no ecrã com a borracha.Eu diria que está na zona do hipotálamo, mas para localizarmos com precisão teríamos de colocar algum ar na cavidade temporal do ventrículo lateral. Quer fazer isso?

 

Não! declarou o Dr. Nawaz bruscamente. Endireitou-se, a apertar as mãos na cabeça. Como diabo é que a agulha pode ter-se desviado tanto? Não posso acreditar nisto. Eu até fui verificar novamente as radiografias, voltei a medir e depois verifiquei os pontos de colocação na guia. Estavam todos absolutamente correctos. Levantou as mãos da cabeça e abriu-as no ar como se estivesse a implorar que alguém lhe explicasse o que tinha acontecido.

 

Talvez o quadro se tenha mexido um pouco quando batemos na ombreira da porta com a mesa de operações? sugeriu o Dr. Carl Smith.

 

Que é que está a dizer? perguntou o Dr. Nawaz. Disseram-me que a mesa raspou na ombreira da porta. Que é que quer dizer exactamente com «batemos»?

 

Quando é que a mesa de operações tocou na ombreira da porta? perguntou Daniel. Era a primeira vez que o assunto era mencionado na sua frente. E de que porta estão a falar?

 

O Dr. Saunders disse que raspou declarou Cari, ignorando Daniel. Eu não.

 

O Dr. Nawaz olhou para Paul, curioso. Paul acenou relutantemente.

 

Suponho que foi mais uma pancada do que um raspão, mas não importa. Constance disse que o quadro estava solidamente ancorado quando o segurou.

 

Quando o segurou? gritou o Dr. Nawaz. Por que motivo é que ela teve de segurar o quadro?

 

Seguiu-se uma pausa desagradável enquanto Paul e Cari trocavam olhares.

 

Que é isto, uma conspiração? inquiriu o Dr. Nawaz. Alguém me responda!

 

Houve uma espécie de efeito de ricochete explicou Cari. Eu estava com pressa para ligar o paciente ao monitor, por isso íamos a empurrar a cama bastante depressa. Infelizmente, não estava alinhada com a porta do bloco operatório. Depois da pancada, Constance foi segurar o quadro. Ainda tinha a bata e as luvas esterilizadas. Nesse ponto, estávamos preocupados com a contaminação, uma vez que o paciente tinha acordado e as suas mãos não estavam amarradas. Mas não houve qualquer contaminação.

 

Por que é que não me contaram tudo isto quando aconteceu? exclamou o Dr. Nawaz.

 

Nós falámos nisso disse Paul.

 

Vocês disseram-me que a mesa tinha raspado na ombreira da porta. É bastante diferente de bater com força suficiente para provocar ricochete.

 

Bem, ricochete pode ser um exagero disse Cari, corrigindo-se. A cabeça do paciente caiu para a frente. Não bateu atrás nem nada do género.

 

Santo Deus! balbuciou o Dr. Nawaz, desencorajado. Sentou-se pesadamente numa cadeira. Tirou o gorro cirúrgico com uma mão e agarrou nos cabelos com a outra enquanto abanava a cabeça, frustrado. Não podia acreditar que se deixara apanhar num caso tão burlesco. Agora estava perfeitamente claro que o quadro estereotáxico rodara ligeiramente e também descaído, ou com o impacto ou quando a enfermeira instrumentista o agarrara.

 

Temos de fazer alguma coisa! disse Daniel. Tinha levado alguns momentos a recompor-se da revelação sobre a colisão da mesa de operações com a ombreira da porta e as suas possíveis consequências trágicas.

 

E que é que sugere? perguntou o Dr. Nawaz com ironia. Implantámos por engano uma série de células produtoras de dopamina invasoras no lobo temporal do homem. Não podemos ir lá e aspirá-las.

 

Não, mas podemos destruí-las antes de elas se ramificarem disse Daniel, com um laivo de esperança a começar a estalar como uma chama na sua imaginação. Temos o anticorpo monoclonal para o antigénio de superfície único das células. Ao invés de ligar o anticorpo a um metal pesado como fizemos para a visualização por raios-X, ligamo-lo a um agente citotóxico. Depois de injectarmos esta combinação no fluido cerebrospinal, bam! Os neurónios deslocados são aniquilados. A seguir, limitamo-nos a fazer outra implantação do lado esquerdo do paciente, e estamos despachados.

 

O Dr. Nawaz alisou os seus brilhantes cabelos pretos e pensou um pouco na ideia de Daniel. Por um lado, a perspectiva de rectificar potencialmente um desastre no qual ele tinha uma responsabilidade significativa era sedutora, mesmo que o método fosse pouco ortodoxo, mas por outro lado a sua intuição disse-lhe que não se devia deixar envolver mais ainda efectuando outra intervenção também altamente experimental.

 

Tem essa combinação de anticorpo citotóxico à mão? perguntou o Dr. Nawaz. Não fazia mal perguntar.

 

Não admitiu Daniel. Mas tenho a certeza de que poderíamos obter a mistura rapidamente na mesma firma que nos forneceu a combinação do anticorpo com o metal pesado, e depois estaria aqui de um dia para o outro.

 

Bem, diga-me se e quando a receber disse o Dr. Nawaz ao levantar-se. Há um segundo eu disse que não podemos voltar e aspirar as células de tratamento mal colocadas. A infeliz ironia é que se nada for feito e o paciente acabar com a epilepsia do lobo temporal, que é o mais certo, provavelmente terá de ser submetido a algo desse tipo no futuro. Mas terá de ser uma neurocirurgia séria e ablativa, com necessidade de remoção de muito tecido cerebral e o consequente risco inerente.

 

Isso reforça a ideia de fazermos o que eu propus disse Daniel, a gostar cada vez mais da ideia.

 

Abruptamente, Stephanie afastou-se da bancada e dirigiu-se para a porta. Apesar das suas emoções fragilizadas e do receio de chamar a atenção para si própria, não suportava ouvir mais uma palavra daquela conversa. Era como se estivessem a falar de um objecto inanimado e não de um ser humano a sofrer. Estava particularmente assombrada com Daniel porque percebia que, apesar da complicação terrível, ele continuava a comportar-se como um Maquiavel dos tempos modernos, numa busca cega dos seus próprios interesses empresariais apesar das consequências morais.

 

Stephanie! chamou Daniel, ao vê-la dirigir-se para a porta. Stephanie, faz-me o favor e telefona para o Peter em Cambridge e pede-lhe...

 

A porta fechou-se atrás dela, cortando a voz de Daniel. Começou a percorrer o corredor. Sabia onde era a casa de banho das mulheres, onde esperava poder chorar em paz. Estava perturbada com muitas coisas, mas essencialmente porque sabia que era tão responsável como todos os outros pelo que tinha acontecido.

 

 

19.42, domingo, 24 de Março de 2002

Longe de mim ir contra vocês, que são uns tipos talentosos disse Ashley, a arrastar as palavras no seu sotaque habitual. E não quero parecer que não aprecio todos os vossos esforços. Peço desculpa do fundo do coração se isso vos perturba, mas não posso ficar aqui esta noite de maneira nenhuma.

 

Ashley estava sentado numa cama de hospital com as costas o mais levantadas possível. Já despira a bata hospitalar e no seu lugar, vestia o berrante fato de turista. A única prova da cirurgia recente era uma ligadura dupla na testa.

 

Estava num dos quartos da unidade de internamentos da Wingate, que parecia mais um hotel do que um hospital. As cores eram todas alegres tons tropicais, particularmente as paredes, que eram cor de pêssego, e as cortinas, uma combinação de verde mar e cor-de-rosa forte. Daniel estava de pé à direita de Ashley, a tentar dissuadir o senador de deixar a clínica. Stephanie estava aos pés da cama. Carol Manning estava sentada numa poltrona roxa perto da janela, com os sapatos no chão e os pés enfiados por baixo do corpo.

 

Depois da TAG, Ashley fora levado para o quarto e deitado na cama até passar o efeito dos sedativos. O Dr. Nawaz e o Dr. Newhouse tinham saído depois de terem a certeza de que Ashley estava estável. Ambos tinham dado os números dos telemóveis a Daniel para serem chamados, se e quando houvesse um problema, particularmente uma repetição da convulsão. O Dr. Newhouse também deixara um pequeno frasco com a combinação de fentanyl e diazepam que tinha sido tão eficaz, com instruções para que fossem administrados 2cc por via intramuscular ou intravenosa.

 

Tecnicamente, Ashley estava sob os cuidados de uma enfermeira impecavelmente fardada chamada Myron Hanna, que já era enfermeira da sala de recobro da Clínica Wingate no Massachusetts. Mas Daniel e Stephanie tinham ficado à cabeceira dele, juntamente com Carol Manning, durante as quatro horas que ele demorara a acordar. Paul Saunders e Spencer Wingate também tinham ficado durante algum tempo, mas saíram passada uma hora com garantias de que também poderiam ser chamados se fosse necessário.

 

Senador, o senhor está a esquecer-se do que eu lhe disse declarou Daniel com toda a paciência que conseguiu reunir. De vez em quando, parecia que lidar com o senador era como lidar com um rapazinho de três anos.

 

Não, eu compreendo que houve um pequeno problema durante a intervenção disse Ashley, a acalmar Daniel pousando a mão nos seus braços cruzados. Mas agora sinto-me bem. Na verdade, sinto-me como o miúdo que sei que não sou, o que é um tributo aos seus poderes esculapianos. Disse-me antes da implantação que eu poderia não notar grandes mudanças durante alguns dias, e mesmo então essas mudanças poderiam ser graduais, mas claramente não é esse o caso. Em comparação com o estado em que estava esta manhã, já estou curado. O meu tremor quase desapareceu, e caminho com muito mais facilidade.

 

Ainda bem que se sente assim disse Daniel, a abanar a cabeça. Mas, provavelmente, deve-se mais à sua atitude positiva ou aos sedativos fortes que lhe foram administrados do que a outra coisa qualquer. Senador, nós acreditamos que o senhor necessita de mais tratamentos, como já lhe disse, e é mais seguro permanecermos aqui na clínica, com todos os recursos médicos ao nosso alcance. Lembre-se de que teve uma convulsão durante a intervenção, e enquanto estava a ter essa convulsão comportou-se como uma pessoa completamente diferente.

 

Como é que eu me posso ter comportado como outra pessoa? Já tenho bastante dificuldade em ser eu próprio. Ashley riu-se, embora mais ninguém o tenha acompanhado. Olhou para os outros. Que é que se passa com vocês? Estão todos a comportar-se como se isto fosse um funeral e não uma celebração. É assim tão difícil acreditarem que eu me sinto muito bem?

 

Daniel dissera a Carol que as células de tratamento tinham sido inadvertidamente colocadas numa zona ligeiramente afastada de onde se pretendia. Embora tivesse menosprezado a gravidade da complicação, falou-lhe sobre o episódio da convulsão e sobre a preocupação de que houvesse mais, e admitiu a necessidade de mais tratamento. Devido à presença das tiras nos pulsos e tornozelos de Ashley, até reconheceu a preocupação colectiva sobre o que poderia acontecer quando Ashley acordasse. Felizmente, essas preocupações tinham-se revelado infundadas, uma vez que o senador acordara com a sua personalidade normal e histriónica, como se nada tivesse acontecido. A primeira coisa que fez foi insistir para que o desamarrassem, para poder levantar-se da cama. Depois disso e passadas as tonturas, exigiu que lhe vestissem roupas de sair. Nesse momento, estava pronto para voltar para o hotel.

 

Pressentindo que estava a perder a discussão, Daniel olhou de relance para Stephanie e depois para Carol, mas nenhuma veio em seu auxílio. Daniel olhou de novo para Ashley.

 

Que tal negociarmos? disse ele. O senhor fica aqui na clínica durante vinte e quatro horas, e depois voltamos a falar.

 

Obviamente, tem pouca experiência negocial disse Ashley com outra gargalhada. Mas não vou culpá-lo por isso. O cerne da questão é que não pode manter-me aqui contra a minha vontade. Eu quero voltar para o hotel, como lhe disse ontem. Traga toda a medicação que pensa que eu poderei precisar, e podemos sempre voltar para cá se for preciso. Lembre-se de que o doutor e a lindíssima Dr.a D’Agostino vão estar convenientemente ao fundo do corredor.

 

Daniel ergueu os olhos para o tecto.

 

Tentei disse ele com um suspiro e um encolher de ombros.

 

Sem dúvida que tentou admitiu Ashley. Carol, querida, suponho que o motorista da nossa limusina ainda está lá fora, à nossa espera?

 

Tanto quanto sei disse Carol. Estava lá quando verifiquei há uma hora, e disse-lhe que ficasse até eu falar com ele.

 

Excelente disse Ashley. Passou as pernas para o lado da cama de uma maneira que surpreendeu toda a gente, incluindo ele próprio. Abençoado seja Deus! Acho que não teria conseguido fazer isto esta manhã levantou-se. Muito bem, este rapaz do campo está pronto para voltar aos prazeres do Atlantis e ao esplendor da Suite Poseidon.

 

Meia hora depois, no parque de estacionamento diante da Clínica Wingate, gerou-se uma pequena discussão sobre a forma como viajariam. Acabou por se decidir que Daniel iria com Ashley e Carol na limusina, enquanto Stephanie levava o carro alugado. Carol oferecera-se para acompanhar Stephanie, mas esta garantiu-lhe que ficaria bem e que até preferia estar sozinha. Daniel tinha o frasco com a combinação de sedativos, diversas seringas, uma mão cheia de algodões com álcool e um torniquete numa pequena bolsa preta com fecho, que fora oferecida por Myron. Armado com a medicação, sentiu que era imperativo ficar junto de Ashley para o caso de surgir um problema, pelo menos, até ele estar em segurança na sua suite.

 

Daniel sentou-se no banco voltado para trás directamente atrás da divisória de vidro que separava o compartimento do motorista da secção dos passageiros. Ashley e Carol estavam sentados atrás, e os seus rostos eram iluminados intermitentemente pelos faróis dos carros que se aproximavam na direcção oposta. Com o procedimento concretizado, Ashley estava ostensivamente eufórico e mantinha uma conversa animada com Carol, sobre a sua agenda política para depois da paragem do Congresso. Na realidade, o discurso era mais um monólogo, uma vez que Carol se limitava a acenar ou a dizer que sim a intervalos irregulares.

 

Enquanto Ashley falava, Daniel começou a descontrair da tensão criada pela preocupação de que o senador estava prestes a ter uma convulsão e pela preocupação associada de ter de lhe administrar uma dose do sedativo. Se a convulsão fosse parecida com a que ocorrera no bloco operatório, Daniel sabia que a via intravenosa seria praticamente impossível, e estaria condicionado a administrar os medicamentos por via intramuscular. O problema da via intramuscular era que demorava mais tempo a fazer efeito, e qualquer atraso poderia ser problemático se houvesse o perigo de agressão, como o Dr. Nawaz tinha avisado até à exaustão. Tendo em conta o tamanho e a força surpreendente de Ashley, Daniel sabia que seria um pesadelo lutar com ele dentro da limusina.

 

Quanto mais descontraído ficava, mais a sua mente pôde ultrapassar a preocupação da convulsão. Estava cada vez mais surpreendido com o grau de mobilidade que Ashley evidenciava nos gestos, e até nas suas expressões faciais e na modulação de voz mais normal. Era muito diferente do indivíduo semi-paralisado que vira naquela manhã. Daniel estava intrigado, uma vez que as células de tratamento não estavam no local certo, como ficara perfeitamente claro na TAC. Mas o efeito que estava a observar não podia ser o resultado dos sedativos nem do placebo, como tinha tão jovialmente sugerido anteriormente. Tinha de haver outra explicação.

 

Como todos os cientistas, Daniel estava consciente de que de vez em quando a ciência dava um salto em frente não apenas como resultado de trabalho duro como também por acaso. Começou a perguntar a si mesmo se o local errado que as células de tratamento ocupavam agora poderia revelar-se especialmente apropriado para células produtoras de dopamina. Não fazia sentido, porque Daniel sabia que a área do sistema límbico onde as células residiam agora não era um modulador de movimento, e estava relacionada com o olfacto e com os comportamentos autónomos como o sexo e a emoção. No entanto, havia muito sobre o cérebro humano e a sua função que ainda era um mistério, e naquele momento, Daniel estava a gostar de ver um resultado tão positivo dos seus esforços.

 

Quando chegaram ao Atlantis, Ashley fez questão de não precisar da ajuda dos porteiros quando saiu do automóvel. Embora tivesse outra tontura quando se levantou, necessitando de se apoiar em Carol por instantes, recompôs-se depressa e conseguiu caminhar de uma forma razoavelmente normal para o átrio e para os elevadores.

 

Onde está aquela maravilhosa Dr.a D’Agostino? perguntou Ashley, enquanto esperavam.

 

Daniel encolheu os ombros.

 

Ou chegou antes de nós ou deve estar a chegar. Não estou preocupado. Ela é uma menina crescida.

 

De facto! concordou Ashley. E muito esperta.

 

No corredor do trigésimo segundo andar, Ashley seguiu à frente como se estivesse a exibir as suas novas capacidades. Embora ainda estivesse um pouco curvado, movia-se muito mais normalmente, incluindo o rodar do braço, que fora quase imperceptível nessa manhã.

 

Carol usou o seu cartão quando chegou à porta com as sereias. Abriu-a e desviou-se para Ashley entrar. Ele entrou e acendeu as luzes.

 

De cada vez que arrumam o quarto fecham tudo, para fazer isto parecer uma cave queixou-se. Dirigiu-se para os interruptores de parede e activou as cortinas e os painéis de vidro ao mesmo tempo.

 

À noite, a vista do interior da suite não era de forma alguma tão dramática como de dia, uma vez que o oceano era escuro como petróleo em bruto. Mas não era assim na varanda, para onde Ashley se dirigiu imediatamente. Pousou as mãos na pedra fria da balaustrada, inclinou-se para a frente e observou o vasto parque aquático Atlantis, que se estendia à sua frente. Com a sua profusão de piscinas, quedas de água, passadiços e aquários, toda a criatividade iluminada, era um festim para os olhos após a tensão do dia.

 

Carol desapareceu no seu quarto enquanto Daniel avançava para o corrimão da varanda. Por instantes, observou Ashley enquanto o senador fechava os olhos e erguia a cabeça para a brisa tropical quente que vinha do oceano. O vento acariciou-lhe os cabelos e as mangas da camisa com padrão tropical, mas ele permaneceu imóvel. Daniel perguntou a si mesmo se Ashley estava a rezar ou a comunicar com o seu Deus de alguma maneira especial agora que pensava que tinha os genes de Jesus Cristo embebidos no cérebro.

 

Um sorriso ligeiro apareceu no rosto de Daniel. De repente, sentiu-se mais optimista em relação ao resultado do tratamento de Ashley do que se sentia desde a convulsão no bloco operatório e mais optimista do que pensara possível depois de ver a TAC. Começou a pensar que era uma espécie de milagre.

 

Senador! chamou Daniel depois de passarem cinco minutos sem que Ashley tivesse mexido um músculo. Não quero incomodá-lo, mas acho que agora vou para o meu quarto.

 

Ashley voltou-se e mostrou-se surpreendido ao ver Daniel ali.

 

Ora, Dr. Lowell! disse em voz muito alta. Que prazer em vê-lo! Afastou-se da balaustrada e caminhou directamente para Daniel. Antes de este saber o que estava a acontecer, foi envolvido num abraço de urso que lhe manteve os braços presos ao longo do corpo.

 

Contrafeito, deixou-se abraçar, embora perguntasse a si mesmo se tinha alguma opção de escolha. Era a prova de quão maior e mais pesado o entroncado Ashley era em comparação com o corpo, relativamente, magro e ossudo de Daniel. O abraço continuou para além do que Daniel considerou razoável, e no momento em que se preparava para esboçar impaciência, Ashley soltou-se e recuou, mas manteve uma mão no ombro de Daniel.

 

Meu querido, querido amigo disse Ashley. Quero agradecer-lhe do fundo do meu coração tudo o que fez. O doutor é um tributo para a sua profissão.

 

Bem, obrigado pelo reconhecimento murmurou Daniel. Sentiu-se corar e ficou embaraçado.

 

Carol reapareceu vinda do quarto e salvou Daniel.

 

Vou para o meu quarto disse-lhe Daniel.

 

Descanse bem! ordenou Ashley, como se fosse ele o médico.

 

Deu uma palmada nas costas de Daniel, com força suficiente para o obrigar a dar um passo em frente para não perder o equilíbrio. Ashley virou-se então para voltar para junto da balaustrada, onde assumiu a mesma pose de meditação de antes.

 

Carol acompanhou Daniel até à porta.

 

Há alguma coisa que eu deva saber ou fazer? perguntou ela.

 

Nada que eu não lhe tenha já dito respondeu Daniel. Ele parece estar bem, e certamente melhor do que eu esperava.

 

Deve estar muito orgulhoso.

 

Bem, sim, suponho que sim gaguejou Daniel. Não sabia ao certo se ela estava a referir-se a como Ashley estava a comportar-se naquele momento ou se estava a ser sarcástica em relação à complicação. O tom dela, tal como o rosto inexpressivo, eram difíceis de ler.

 

Que é que devo procurar ao certo? perguntou Carol.

 

Qualquer mudança no seu estado de saúde ou no seu comportamento. Eu sei que não tem experiência médica, por isso terá de fazer o melhor que puder. Eu preferia que ele tivesse ficado na clínica para que os sinais vitais fossem verificados ao longo da noite, mas isso não aconteceu. Ele é um indivíduo com uma personalidade forte.

 

Está a ser muito brando disse Carol. Eu vou vigiá-lo como de costume. Devo acordá-lo durante a noite? Alguma coisa do género?

 

Não, não me parece que seja necessário, pois ele está muito bem. Mas se houver algum problema ou tiver alguma dúvida, telefone-me, seja a que horas for.

 

Carol abriu a porta para Daniel sair e depois fechou-a sem dizer mais nada. Por instantes, Daniel olhou para a porta com sereias esculpidas. Treinado para ser cientista, sabia que a psicologia estava longe de ser o seu forte, e as pessoas como Carol Manning confirmavam isso mesmo. Ela confundia-o. Num minuto parecia a assistente perfeita e dedicada; no minuto seguinte, parecia estar enlouquecida com o seu papel subserviente. Daniel suspirou. O problema não era dele, desde que ela vigiasse o senador durante a noite.

 

No curto passeio até à suite que partilhava com Stephanie, a atenção de Daniel centrou-se na melhoria chocante na doença de Parkinson de que Ashley sofria. Estava estupefacto em muitos sentidos, mas extremamente satisfeito, e mal podia esperar para partilhar as novidades com ela. Abriu a porta e ficou surpreendido quando não a viu, especialmente quando constatou que também não se encontrava no quarto. Depois, ouviu o chuveiro a correr.

 

Quando entrou na casa de banho, viu-se envolvido num nevoeiro como se Stephanie estivesse ali há meia hora. Baixou o tampo da sanita e sentou-se. Com a linha de visão num plano mais baixo, conseguia agora ver os contornos de Stephanie atrás da porta fosca e cheia de vapor da cabina de duche. Aparentemente, ela não se mexia por baixo da intensidade máxima do chuveiro.

 

Estás bem aí dentro? gritou Daniel.

 

Estou melhor respondeu Stephanie.

 

«Melhor?», perguntou-se Daniel em silêncio. Não fazia ideia do que ela queria dizer, embora lhe ocorresse que ela tinha estado bastante calada a tarde inteira. Também lhe ocorreu a reacção bastante insensível que ela tivera à oferta de Carol para ir com ela, embora admitisse que se a situação tivesse sido inversa ele teria respondido de forma semelhante. A diferença era que, ao contrário dele, normalmente Stephanie preocupava-se com os sentimentos das outras pessoas. Daniel não se considerava antipático nem grosseiro, mas não suportava ser incomodado. As pessoas tinham de compreender que havia demasiadas coisas mais importantes para ele do que pensar em subtilezas sociais.

 

Daniel debateu-se sobre ir ou não ao minibar buscar alguma coisa para beber. De muitas maneiras, fora um dos dias mais tensos de toda a sua vida. Acabou por decidir ficar onde estava. Estava ansioso para contar a Stephanie o que acontecera com Ashley; a bebida podia esperar. Mas ela não se mexeu.

 

Hei, tu aí! gritou Daniel por fim. Vais sair ou não? Stephanie abriu a porta e saiu uma nuvem de vapor.

 

Desculpa. Estás à espera para vir tomar banho?

 

Daniel afastou o vapor do rosto com a mão. A casa de banho transformara-se num banho turco.

 

Não, estou à espera para falar contigo.

 

Bem, talvez não devesses esperar. Não sei bem se me apetece falar muito.

 

Daniel sentiu uma onda de irritação percorrê-lo. A resposta de Stephanie não era a que ele queria ouvir. Com os acontecimentos do dia, precisava e merecia um pouco de apoio, e certamente não lhe parecia que fosse pedir de mais. Abruptamente, levantou-se, saiu da casa de banho e bateu com a porta. Enquanto tirava uma cerveja fresca, reflectiu. Não precisava de mais conflitos. Sentou-se no sofá e concentrou-se na cerveja. Quando Stephanie apareceu, enrolada numa toalha, ele já se recompusera.

 

Pela maneira como atiraste com a porta, percebi que estás furioso disse Stephanie num tom de voz calmo. Estava à porta do quarto. Só quero que saibas que estou emocional e fisicamente exausta. Preciso de dormir. Acordámos às cinco horas da manhã para nos certificarmos de que estava tudo pronto.

 

Eu também estou cansado disse Daniel. Só queria dizer-te que Ashley está a reagir maravilhosamente bem. A maior parte dos seus sintomas da doença de Parkinson já melhoraram misteriosamente.

 

Isso é bom disse Stephanie. Infelizmente, não altera o facto de a implantação ter corrido mal.

 

Talvez não tenha corrido mal!retorquiu Daniel.Estou a dizer-te que vais ficar espantada. Ele é um homem diferente.

 

É certamente um homem diferente. Nós colocámos inadvertidamente uma horda de aberrantes células produtoras de dopamina, algures no seu lobo temporal. Um neurocirurgião experiente acredita fortemente que ele vai ser flagelado com o inferno da epilepsia do lobo temporal. Para Ashley, isso será ainda pior do que a doença de Parkinson.

 

Mas ele não tem uma convulsão desde a que ocorreu no bloco operatório. Estou a dizer-te que está óptimo.

 

Ele ainda não teve uma convulsão.

 

Se ele tiver um problema, poderemos resolvê-lo como eu sugeri ao Dr. Nawaz.

 

Estás a referir-te ao agente citotóxico ligado ao anticorpo monoclonal?

 

Exactamente.

 

Podes fazer isso se tens tanta vontade, e se conseguires convencer Ashley a submeter-se a uma experiência tão imprudente, mas não vai ser «nós». Eu não vou participar nisso. Nem sequer experimentámos em cultura de células, e muito menos em animais, e como tal é um salto monumental muito mais contrário à ética do que o que já demos.

 

Daniel olhou para Stephanie. Sentiu-se novamente inundado por uma irritação profunda.

 

Afinal de contas, de que lado é que estás? perguntou ele. Nós decidimos que o nosso objectivo era salvar a RSTH e a CURA e, por Deus, vamos conseguir.

 

Eu gostaria de pensar que estou a passar para o lado menos motivado pelo interesse pessoaldisse Stephanie.Hoje, quando nos apercebemos de que o bloco operatório não estava equipado com o aparelho de raios-X, devíamos ter interrompido a intervenção. Estivemos a jogar com a vida de uma pessoa para nosso benefício depois levantou as mãos quando o rosto de Daniel se ruborizou e a boca dele se abriu para reagir. Se não te importas, vamos acabar por aquiacrescentou. Lamento, mas tornou-se exactamente o género de discussão que eu não me sinto capaz de ter esta noite. Já te disse que estou exausta. Talvez me sinta diferente depois de uma boa noite de sono. Quem sabe?

 

Muito bem! disse Daniel sarcasticamente, e acenou com a mão. Vai para a cama!

 

Tu vens?

 

Sim, talvez disse Daniel, furioso. Levantou-se e dirigiu-se para o minibar. Precisava de outra cerveja.

 

Daniel não conseguiu perceber ao certo quantas vezes é que o telefone tocou desde que a sua mente exausta incorporou o barulho no pesadelo que estava a ter. No seu sonho, era novamente um estudante de medicina, e o telefone era uma coisa que receava. Nessa altura, era muitas vezes uma chamada para uma emergência que ele não estava treinado para resolver.

 

Quando os olhos de Daniel se abriram, os toques tinham parado. Sentou-se e olhou para o telefone agora silencioso na mesa-de-cabeceira a perguntar a si mesmo se tinha tocado ou se apenas o sonhara. Depois, os seus olhos percorreram o aposento para se orientar. Estava na sala de estar, ainda vestido, com todas as luzes acesas. Depois de beber duas cervejas, adormecera profundamente.

 

A porta do quarto abriu-se. Stephanie apareceu com o seu pijama curto de seda, a franzir os olhos e a piscá-los devido à luz.

 

Carol Manning está ao telefone disse ela, numa voz arrastada por causa do sono. Está preocupada e precisa de falar contigo.

 

Oh, não! disse Daniel, assustado. Tirou as pernas da mesa de apoio. Nem sequer descalçara os sapatos. Sem se levantar, inclinou-se em cima do sofá e pegou no telefone. Stephanie ficou à porta para escutar.

 

Ashley está a comportar-se de um modo estranho disse Carol ao telefone quando Daniel se identificou.

 

Que é que ele está a fazer? perguntou Daniel. O antigo receio dos tempos de faculdade de incompetência perante uma emergência voltou com toda a força. Com tantos anos que Daniel passara longe da prática da medicina, esquecera a maior parte do que aprendera.

 

Não é o que está a fazer, é do que está a queixar-se. Desculpe a minha linguagem, mas ele diz que lhe cheira a merda de porco. O doutor disse-me que se ele cheirasse alguma coisa esquisita, talvez fosse importante.

 

Daniel sentiu o coração parar de bater e todo o optimismo que sentira antes desvaneceu-se. De imediato, não teve a menor dúvida de que Ashley estava a ter uma aura que prenunciava o início de outra convulsão do lobo temporal. Ao mesmo tempo, os últimos vestígios de confiança clínica a que Daniel estava a agarrar-se desmoronaram-se quando se apercebeu de que estava prestes a ter de lidar com um episódio que o Dr. Nawaz previra que seria pior do que o primeiro.

 

Ele foi agressivo ou está a agir anormalmente de alguma maneira? perguntou Daniel, enervado. Freneticamente, olhou em volta da sala à procura da bolsa preta que continha o sedativo e as seringas. Felizmente, avistou-a na mesa da entrada.

 

Agir anormalmente é um pouco forte, mas tem estado irritável. No entanto, afinal de contas, ele tem andado irritável no último ano.

 

Está bem, acalme-se! disse Daniel, tanto para si como para Carol. Eu vou já para o vosso quarto olhou para o relógio. Eram duas e meia da manhã.

 

Nós não estamos no quarto informou Carol.

 

Onde diabo é que estão?

 

Estamos no casino admitiu Carol. Ashley insistiu. Eu não pude fazer nada, e tentei. Não lhe telefonei porque sabia que o doutor também não poderia fazer nada. Quando ele toma uma decisão, é escusado. Não se esqueça de que ele é um senador.

 

Santo Deus! queixou-se Daniel. Bateu com a mão na testa. Tentou trazê-lo para o quarto quando ele sentiu o cheiro da porcaria de porco?

 

Sugeri, mas ele disse-me para ir lá para fora e saltar para o tanque dos tubarões.

 

Está bem! Em que sítio do casino é que estão?

 

Estamos numa fila de máquinas do lado do oceano, a seguir às mesas de roleta.

 

Vou já para baixo. Temos de conseguir trazê-lo para o quarto!

 

Daniel levantou-se de um salto e olhou de relance para Stephanie, mas ela desaparecera no interior do quarto. Ele correu para lá e espreitou. Stephanie estava a despir o pijama e a vestir-se.

 

Espera! disse ela. Eu vou contigo. Se Ashley vai ter uma convulsão parecida com a que teve no bloco operatório, vais precisar de toda a ajuda possível.

 

Está bem disse Daniel. Onde é que está o telemóvel? Stephanie acenou na direcção da cómoda, enquanto se apressava a abotoar a blusa.

 

Trá-lo contigo! Onde é que estão os números do Newhouse e do Nawaz?

 

Já tenho os números disse Stephanie, a vestir as calças. Estão no meu bolso.

 

Daniel correu para a bolsa dos medicamentos. Só para ter a certeza, abriu o fecho. Sentiu-se um pouco mais tranquilo depois de ver o frasco e as seringas. O problema ia ser administrar o medicamento a Ashley, antes de o inferno se soltar.

 

Stephanie apareceu à porta do quarto, ainda a calçar os sapatos e a colocar a blusa dentro das calças. Quando chegou junto de Daniel, ele tinha a porta que dava para o corredor aberta. Juntos, correram para os elevadores.

 

Depois de premir o botão para descer, Daniel tirou o telemóvel da mão de Stephanie, entregou-lhe a bolsa dos medicamentos e marcou o número do Dr. Nawaz.

 

Vá lá! insistiu Daniel, enquanto o telefone tocava e tocava. No momento em que o elevador chegou, o Dr. Nawaz atendeu, ensonado.

 

Fala o Dr. Lowell disse Daniel. A ligação é capaz de cair. Estou a entrar num elevador Stephanie carregou no botão do átrio e as portas fecharam-se. Consegue ouvir-me?

 

Mal disse o Dr. Nawaz. Qual é o problema?

 

Ashley está a ter uma aura olfactivadisse Daniel. Estava a observar os indicadores dos andares. Era suposto ser um elevador super rápido, mas os números pareciam estar a decrescer agonizantemente devagar.

 

Quem é Ashley? perguntou o Dr. Nawaz.

 

Quero dizer, o Sr. Smith disse Daniel. Olhou de relance para Stephanie, que revirou os olhos. Para ela, era mais um pequeno episódio da comédia sem piada, que nunca mais acabava.

 

Vou demorar cerca de vinte minutos a chegar à clínica. Aconselho-o a telefonar para o Dr. Newhouse. Como eu disse antes, suspeito que esta convulsão poderá ser pior do que a outra, especialmente tendo em conta o lugar onde aquelas células se encontram. É melhor termos a mesma equipa.

 

Eu vou telefonar ao Dr. Newhouse, mas nós não estamos na clínica.

 

Onde é que estão?

 

Estamos no hotel Atlantis, em Paradise Island. Neste momento, o paciente está no casino, mas vamos tentar trazê-lo para o quarto, que está registado em nome de Carol Manning. É a Suite Poseidon.

 

Seguiu-se um silêncio que durou vários andares. Ainda está aí? disse Daniel para o telefone.

 

Não sei bem se acredito no que estou a ouvir. Este homem fez uma craniotomia há doze horas. Que diabo está ele a fazer no casino?

 

Demoraria demasiado tempo a explicar.

 

Que horas são?

 

São duas e trinta e cinco. Sei que parece uma desculpa esfarrapada, mas não fazíamos a menor ideia de que o Sr. Smith iria para o casino quando o trouxemos para cá, mas ele é extremamente teimoso e muito voluntarioso.

 

Houve alguma progressão para além da aura?

 

Ainda não o vi, mas acho que não.

 

É melhor tirá-lo daquele casino. Se não, pode haver uma cena dos diabos.

 

Estamos neste preciso momento a descer para o casino.

 

Eu vou para aí o mais depressa possível. Vou ver primeiro ao casino. Se não estiverem lá, presumirei que estão no quarto.

 

Daniel desligou e depois marcou o número de Newhouse. Como acontecera com o Dr. Nawaz, o telefone teve de tocar muitas vezes antes de ser atendido. Mas, ao contrário do Dr. Nawaz, o Dr. Newhouse estava desperto, como se estivesse acordado.

 

Desculpe estar a incomodá-lo disse Daniel, quando as portas do elevador se abriram no piso do átrio.

 

Não faz mal. Como anestesista frequentemente de prevenção, estou acostumado a telefonemas a meio da noite. Qual é o problema?

 

Daniel explicou a situação enquanto corria pelo átrio em direcção ao casino, que se situava no centro do complexo gigantesco. A reacção do Dr. Newhouse espelhou a do Dr. Nawaz em todos os aspectos, e também ele disse que estaria lá o mais depressa possível. Depois de desligar, Daniel trocou o telefone pela bolsa preta com os medicamentos.

 

Ao chegarem ao casino, Daniel e Stephanie abrandaram para uma marcha rápida. A sala estava em plena actividade e significativamente mais cheia do que qualquer deles tinha antecipado, apesar da hora. Era um local colorido, com a sua espessa alcatifa encarnada e preta, os enormes candelabros de cristal e os croupiers muito bem vestidos. Daniel e Stephanie atravessaram o centro de actividade em linha recta e passaram pelas mesas de roleta agrupadas no meio da sala espaçosa. Não levaram muito tempo a encontrar a fila de máquinas que Carol descrevera e, uma vez lá, ainda menos a encontrar Ashley. Carol estava parada mesmo atrás dele e ficou ostensivamente satisfeita ao ver chegar ajuda.

 

Ashley estava sentado diante de uma das máquinas, com uma pilha considerável de moedas no balcão. Ainda estava com o seu ridículo traje de turista. A ligadura continuava colocada na testa. A sua palidez não era tão aparente devido ao brilho encarnado que emanava da alcatifa. Não havia ninguém nas máquinas mais próximas.

 

Ashley estava a colocar moedas na máquina a um ritmo que não teria conseguido no dia anterior. No instante em que o mecanismo interno parava, outra moeda era enfiada na ranhura e a alavanca era puxada. Ashley parecia hipnotizado pelas imagens indistintas de frutas.

 

Sem um momento de hesitação, Daniel dirigiu-se directamente para ele e voltou-o com uma mão no ombro esquerdo.

 

Senador! Que bom vê-lo!

 

Ashley franziu os olhos ao olhar para o rosto de Daniel. Os olhos não piscavam e tinha as pupilas dilatadas. Os cabelos normalmente muito bem penteados estavam desgrenhados, como se alguém os tivesse despenteado deliberadamente, dando-lhes uma aparência selvagem.

 

Tire as patas de cima de mim, seu merdas resmungou Ashley, sem o menor vestígio do seu sotaque normal.

 

Daniel obedeceu instantaneamente, chocado e aterrorizado com a profanação incaracterística de Ashley, que lhe recordou um acesso semelhante na sala de operações. A última coisa que queria era provocar o homem e, com isso, incitar uma progressão mais rápida dos sintomas da convulsão. Olhou para os olhos de Ashley, que reflectiam uma espécie de alheamento, uma vez que o senador não evidenciava qualquer sinal de reconhecimento. Por instantes, nenhum se mexeu enquanto Daniel se debatia sobre se deveria tentar medicá-lo ali mesmo. Decidiu não o fazer, com receio de não ser bem sucedido e piorar ainda mais as coisas.

 

Carol disse-me que sentiu um cheiro desagradávelcomentou Daniel, inseguro do que dizer ou como prosseguir.

 

Ashley fez um aceno de rejeição antes de acenar com a cabeça.

 

Acho que era aquela puta com o vestido provocante encarnado, que está ali ao fundo. Foi por isso que passei para esta máquina.

 

Daniel olhou para o fundo da fila de máquinas. Havia uma jovem com um vestido muito decotado, especialmente quando puxava a alavanca da máquina. Daniel olhou de novo para Ashley, que recomeçara a colocar moedas na máquina à sua frente.

 

Então já não sente nenhum cheiro?

 

Só um pouco, agora que me afastei daquela cabra.

 

Muito bem disse Daniel, e teve alguma esperança de que a aura pudesse desaparecer sem mais consequências. Independentemente disso, queria Ashley novamente na Suite Poseidon. Se houvesse uma cena no casino, indubitavelmente toda aquela história transpiraria para os jornais.

 

Senador, preciso de lhe mostrar uma coisa no seu quarto.

 

Desapareça daqui, estou ocupado.

 

Daniel engoliu em seco, nervoso. O raio de esperança nascente começou a fenecer quando percebeu que a disposição e o comportamento de Ashley eram já significativamente anormais, embora ainda não fossem aberrantes. Freneticamente, tentou pensar numa maneira de convencê-lo a subir para a suite, mas não lhe ocorreu nada.

 

De imediato, Carol puxou a manga da camisa de Daniel e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Ele encolheu os ombros. Estava disposto a tentar qualquer coisa, por muito ridícula que fosse.

 

Senador. Há uma caixa de garrafas de uísque no seu quarto.

 

Com rapidez encorajadora, Ashley largou a alavanca da máquina, virou-se e olhou para Daniel.

 

Ora, Doutor, imaginem o senhor aqui disse ele, novamente com o sotaque.

 

É bom vê-lo também, Senador. Vim cá abaixo para lhe falar sobre a caixa de uísque que foi entregue no seu quarto. O senhor tem de subir para assinar o recibo.

 

Para alívio de Daniel, o senador deslizou imediatamente do banco alto preso ao chão à frente da máquina e ficou de pé. Devia ter tido uma tontura, porque cambaleou durante alguns instantes antes de se agarrar à ponta do balcão. Daniel segurou-lhe o braço por baixo do cotovelo para o apoiar. Ashley piscou os olhos, olhou para Daniel e sorriu pela primeira vez.

 

Vamos, meu jovem disse Ashley. Assinar o recibo de uma caixa de uísque parece-me uma causa meritória para este velho rapaz do campo. Carol, querida, trata dos meus ganhos, por favor!

 

Com a mão ainda a segurar o braço de Ashley, Daniel conduziu o homem para longe das máquinas. Agradecido pela sugestão de Carol, que nunca lhe teria passado pela cabeça, piscou-lhe o olho quando os seus olhares se cruzaram por breves instantes. Enquanto Carol juntava rapidamente as moedas de Ashley, Daniel e Stephanie acompanharam o senador pela sala cheia de jogadores.

 

A viagem correu bem até chegarem aos elevadores, onde tiveram de esperar alguns momentos. Como uma nuvem a passar à frente do sol, o sorriso de Ashley desapareceu subitamente e foi substituído por uma expressão carrancuda. Daniel, que estava a observá-lo, notou a transformação e sentiu-se tentado a perguntar-lhe em que é que ele estava a pensar. Mas não o fez, com medo de deteriorar o estado de coisas. A sua intuição disse-lhe que um simples fragmento de realidade estava a manter o controlo da mente de Ashley.

 

Infelizmente, dois casais que Ashley avistara por cima do ombro de Daniel entraram no mesmo elevador atrás deles. Um deles carregou no botão para o trigésimo andar. Daniel praguejou baixinho. Esperava que fossem sozinhos no elevador, e a tensão de se preocupar com uma explosão do comportamento de Ashley na presença de desconhecidos fez o seu pulso disparar e transpiração aparecer-lhe na testa. Por uma fracção de segundo, olhou para Stephanie, que parecia tão aterrorizada quanto ele. Concentrou-se novamente em Ashley e percebeu que o senador estava a olhar fixamente para os casais que estavam embriagados e a comportar-se de uma forma rude e provocadora.

 

Daniel abriu a bolsa médica. Espreitou para o frasco e para as seringas, e pensou se devia encher uma das seringas. O problema era que os desconhecidos veriam o que ele estava a fazer e poderiam ficar alarmados.

 

Qual é o problema, papá? perguntou uma das mulheres, brincalhona, depois de reparar no olhar truculento e fixo de Ashley. Está com ciúmes, velhote? Precisa de um pouco de acção?

 

Vai-te foder, puta! atirou Ashley bruscamente.

 

Hei, isso não é maneira de falar com uma senhora exclamou o companheiro da mulher. Empurrou-a para o lado e deu um passo em frente para confrontar Ashley.

 

Sem pensar nas consequências, Daniel colocou-se entre os dois. Sentiu o hálito a alho e álcool do homem e o olhar de Ashley na sua nuca.

 

Peço desculpa pelo meu paciente disse Daniel. Eu sou médico, e o cavalheiro está doente.

 

Vai ficar muito mais doente se não pedir desculpa à minha esposa ameaçou o homem. E está doente com quê, perda de miolos? O homem riu-se, trocista, enquanto tentava espreitar por cima de Daniel para ver melhor Ashley.

 

Uma coisa do género concordou Daniel.

 

Puta! gritou Ashley, enquanto fazia um gesto lascivo na direcção da mulher.

 

Oh, basta! exclamou o homem. Esticou-se e tentou afastar Daniel enquanto cerrava o punho.

 

Stephanie agarrou no braço do homem.

 

O doutor está a dizer a verdade garantiu. O senhor não está em si. Vamos levá-lo para o quarto para o medicarmos.

 

O elevador parou no trigésimo andar e as portas abriram-se.

 

Talvez seja melhor darem-lhe um cérebro novo disse o homem, enquanto os companheiros, a rir, o empurravam para fora do elevador. Ele deixou cair os braços e ficou a olhar fixamente para Ashley até as portas se fecharem à sua frente.

 

Daniel e Stephanie trocaram um olhar tenso. Fora evitado um potencial desastre. Daniel olhou para Ashley, que estava a estalar os lábios como se tivesse provado alguma coisa desagradável. As portas do elevador abriram-se no trigésimo segundo andar.

 

Com Carol num braço e Daniel no outro, conseguiram tirar Ashley do elevador e percorrer o corredor. Ele não resistiu, mas caminhou como um autómato. À porta das sereias, Carol soltou Ashley para tirar o cartão da chave e entregá-lo a Stephanie, que abriu a porta. Quando Daniel e Carol começaram a levar Ashley para dentro, ele sacudiu as mãos deles e entrou de livre vontade.

 

Graças a Deus disse Stephanie, quando fechou a porta atrás do grupo.

 

O candelabro da entrada estava aceso, assim como um candeeiro na escrivaninha da grande sala de estar. Para além disso, a suite estava mergulhada em sombras. Os cortinados estavam abertos, e os painéis de vidro também. Para lá da varanda, um céu salpicado de estrelas arqueava-se sobre um mar escuro. Flores acabadas de apanhar ondulavam suavemente na mesa de apoio ao sabor da brisa nocturna.

 

Ashley continuou a andar até chegar a poucos passos da mesa de apoio. Ali, parou e permaneceu imóvel enquanto olhava para a varanda. Carol acendeu mais luzes para iluminar o aposento, e depois aproximou-se de Ashley para ver se conseguia sentá-lo.

 

Daniel despejou o conteúdo da bolsa médica numa das pequenas consolas iguais da entrada. Tentou atabalhoadamente abrir o pacote de uma seringa, enquanto Stephanie removia a tampa que cobria a rolha de borracha do frasco parenteral de medicamento.

 

Como é que vais fazer isto se ele resistir? sussurrou Stephanie.

 

Não faço a menor ideia admitiu Daniel. Com sorte, o Dr. Nawaz e o Dr. Newhouse estarão cá para dar uma ajuda teve de usar os dentes para rasgar o celofane.

 

O senador está a fazer um esgar como quando sentiu o cheiro de excremento de porco disse Carol da outra sala.

 

Vou tentar convencê-lo a sentar-se gritou Daniel por sua vez. Por fim, tirou a seringa da embalagem e atirou o papel fora.

 

Já tentei disse Carol. Ele recusa-se.

 

Um forte estrondo de mobília na outra sala fez as cabeças de Daniel e Stephanie voltarem-se. Carol estava a levantar-se do chão depois de ter sido atirada contra uma das mesas de canto, cujo candeeiro caíra ao chão. O candeeiro de cerâmica espatifou-se em mil pedaços. Ashley estava a rasgar as roupas e a atirá-las pelo aposento.

 

Oh, Deus! exclamou Daniel. O senador está a passar-se pegou num dos algodões com álcool e abriu a embalagem, mas no momento em que o tirou, deixou-o cair. Agarrou noutro.

 

Posso ajudar? perguntou Stephanie.

 

Estou todo a tremer admitiu Daniel. Tirou outro algodão e desinfectou a rolha de borracha do frasco do medicamento. Mas antes de conseguir inserir a agulha, Ashley soltou um guincho. Em pânico, Daniel atirou o frasco e a seringa para as mãos de Stephanie antes de correr para a sala para ver o que estava a acontecer. Carol estava de pé atrás de um dos sofás com as mãos no rosto. Ashley ainda estava no mesmo lugar mas nu, com excepção das meias pretas pelo meio da perna. Estava ligeiramente curvado para a frente e a olhar para as mãos, que estavam abertas perto do rosto.

 

Qual é o problema? exclamou Daniel, quando se aproximou para olhar para Ashley.

 

As palmas das minhas mãos estão a sangrar disse Ashley, horrorizado. Estava a tremer. Lentamente, baixou as mãos trémulas com as palmas voltadas para cima e abriu muito os dedos.

 

Daniel olhou para as mãos de Ashley e para o rosto dele.

 

As suas mãos estão bem, Senador. Tem de se acalmar. Vai ficar tudo bem. Por que é que não se senta? Temos um medicamento para lhe dar, que vai fazê-lo sentir-se mais calmo.

 

Lamento que não consiga ver as feridas nas minhas mãos disse Ashley rispidamente. Talvez consiga vê-las nos meus pés.

 

Daniel olhou para baixo e depois novamente para o rosto de Ashley.

 

O senhor tem meias calçadas, mas os seus pés parecem-me bem. Vamos sentar-nos no sofá Daniel estendeu a mão para segurar no braço de Ashley, mas antes de conseguir ele atirou as mãos contra o seu peito e empurrou-o violentamente para longe. Apanhado de surpresa, Daniel cambaleou para a mesa de apoio, caiu de costas em cima dela e esmagou a jarra de flores. Água e flores cortadas espalharam-se em arco na carpete espessa. Daniel rolou para fora da mesa e caiu entre ela e um dos sofás. Carol gritou.

 

Indiferente ao pandemónio que causara, Ashley passou pelo outro lado da mesa de apoio e correu para a varanda. Parou abruptamente junto à balaustrada e ergueu as mãos horizontalmente com as palmas viradas para cima. A brisa nocturna vinda do oceano abanou os seus cabelos despenteados.

 

Santo Deus! Ele está lá fora na varanda! gritou Stephanie. Tinha a seringa, o algodão com álcool e o frasco encostados ao peito.

 

A estremecer com a dor nas costas provocada pela colisão com a jarra de flores, Daniel lutou para se levantar. Correu para a varanda e rodeou Ashley para se colocar entre ele e o parapeito.

 

Senador! gritou Daniel, a segurar-lhe as mãos. Volte para a sala!

 

Ashley não se mexeu. Tinha os olhos fechados e uma expressão de serenidade substituíra o horror anterior.

 

Daniel estalou os dedos para chamar a atenção de Stephanie. Ela parara junto às portas que davam para a varanda com uma expressão de consternação no rosto.

 

A seringa está cheia?perguntou ele, sem tirar os olhos de Ashley.

 

Não!

 

Enche-a depressa!

 

Com quanto?

 

Dois cc. Rápido!

 

Stephanie colocou o fluido, guardou o frasco no bolso e bateu na seringa com a unha do dedo indicador, para tirar quaisquer bolhas que pudessem ter-se formado. Correu para a varanda e entregou a seringa a Daniel. Olhou para o rosto plácido de Ashley. O homem parecia uma estátua. Nem sequer parecia estar a respirar.

 

É como se estivesse congelado disse Stephanie.

 

Não sei se devo tentar dar-lhe a injecção por via intravenosa ou apenas intramuscular disse Daniel. Deu um passo em frente, ainda sem decidir o que ia fazer, quando os olhos de Ashley se abriram. Sem o menor aviso, Ashley saltou para a frente. Daniel reagiu rodeando o peito de Ashley com os braços, enquanto tentava equilibrar-se no chão de mosaicos. Mas foi como tentar segurar um touro em fúria. Os sapatos de Daniel deslizaram com facilidade no chão de cerâmica, e quando os dois homens colidiram com a balaustrada o ímpeto de Ashley levou-os a passar por cima do rebordo e a mergulharem na noite.

 

Stephanie gritou:

 

Não!

 

Correu para o parapeito e olhou para baixo. Para seu profundo horror, Ashley e Daniel estavam presos num abraço lento e oscilante, como dois apaixonados a cair para o abismo. No instante seguinte, Stephanie desviou o olhar e, com uma sensação de náusea, deixou-se cair para o chão com as costas encostadas à balaustrada de pedra.

 

 

6.15, segunda-feira, 25 de Março de 2002

O ténue aclarar do céu, quase imperceptível meia hora antes, era agora nítido. O brilho das estrelas diminuíra, e no seu lugar via-se um brilho suave e rosado que prenunciava o nascer do Sol iminente. A brisa nocturna tinha abrandado.

 

Já se ouvia o chilrear incessante dos pássaros, mesmo trinta e dois andares acima do chão.

 

Stephanie e Carol estavam sentadas em sofás diferentes, de frente uma para a outra, na sala principal de uma suite semelhante em tamanho, mas não tão luxuosa como a Suite Poseidon. Estavam ali sentadas há horas sem se mexer nem falar, quase catatónicas, depois de terem ficado emocionalmente traumatizadas com o chocante salto mortal de Ashley e Daniel por cima da balaustrada. Carol fora a primeira a reagir depois do acontecimento. Correra para o telefone e dissera à telefonista que duas pessoas tinham caído da varanda da Suite Poseidon.

 

A voz aterrada de Carol mobilizara Stephanie para se levantar. Evitou olhar novamente para o parapeito, dirigiu-se rapidamente para a porta e correu pelo corredor. Enquanto esperava sem fôlego junto ao elevador, Carol foi ter com ela. No elevador, nenhuma delas falou, mas olharam uma para a outra, totalmente descrentes do que tinham testemunhado. Ambas tinham uma pequena esperança de um milagre. Acontecera tudo tão depressa que havia uma sensação de irrealidade.

 

As duas mulheres desceram para o nível do que era chamado A Escavação, e tiveram de passar por enormes aquários iluminados cheios de todos os tipos de criaturas marinhas e por bonitas ruínas da cidade mítica de Atlântida, para chegarem ao rés-do-chão diante do complexo do hotel.

 

Ambas calcularam que haveria um caminho mais curto, mas era a única maneira que Carol conhecia para chegar lá, e o tempo era essencial.

 

Ao saírem para a noite, viraram à esquerda, rodeando a Piscina dos Banhos Reais, iluminada pelas suas luzes subaquáticas. Ao chegarem a um caminho mais estreito e que não estava tão bem iluminado, tiveram de abrandar. Atravessaram uma ponte sobre a Lagoa Stingray para chegar à zona escurecida e cuidadosamente ajardinada junto à ala oeste das Torres Reais. As duas mulheres estavam sem fôlego.

 

Um contingente de seguranças do hotel reagira rapidamente ao alarme dado pelo telefonema de Carol e já se encontravam no local. Diversos homens estavam ocupados a vedar a área com fita amarela de aviso esticada entre palmeiras. Um grande segurança negro, vestido com um fato preto, saiu das sombras e interceptou as mulheres.

 

Lamento disse ele, a bloquear-lhes o caminho e a vista. Houve um acidente.

 

Nós estamos com as vítimas disse Stephanie com dificuldade. Tentou ver para lá do homem enorme.

 

Lamento, mas mesmo assim é melhor que fiquem aqui disse o homem. Já vêm aí ambulâncias.

 

Ambulâncias? perguntou Stephanie, a manter desesperadamente o raio de esperança.

 

E a polícia acrescentou o homem.

 

Eles estão bem? perguntou Stephanie, hesitante. Ainda estão vivos? Temos de os ver!

 

Minha senhora disse o homem suavemente. Eles caíram do trigésimo segundo andar. Não é uma visão muito agradável.

 

Vieram ambulâncias para remover os corpos. A polícia também chegou e efectuou uma investigação preliminar. Encontraram a seringa, que começou por causar grande excitação até que Stephanie explicou que era medicação receitada por um médico local. Isso foi confirmado pelo Dr. Newhouse e pelo Dr. Nawaz, que chegaram pouco depois da tragédia. A polícia acompanhou as mulheres e os médicos para a Suite Poseidon para verificar a varanda e a balaustrada. O inspector chefe confiscou então os passaportes delas e disse-lhes que teriam de permanecer nas Bahamas até se fazer um inquérito. Também mandou selar a Suite Poseidon e a suite de Stephanie para mais investigações.

 

O gerente do turno da noite foi um exemplo de compostura, eficiência e empatia. Imediatamente e sem hesitação, transferiu as duas mulheres para uma suite na ala oeste das Torres Reais, onde elas estavam agora sentadas. Também lhes arranjou todos os tipos de produtos de cuidados pessoais para facilitar a impossibilidade a curto prazo de usarem os seus. O Dr. Nawaz e o Dr. Newhouse ficaram durante algum tempo. O Dr. Newhouse arranjou um sedativo para as mulheres, que poderiam tomá-lo se sentissem necessidade. Nenhuma o tinha tomado. O pequeno contentor de plástico continuava intocado na mesa de apoio entre ambas.

 

Stephanie estivera a rever vezes sem conta todo o caso, desde a noite chuvosa em Washington até à tragédia daquela manhã. Após o acontecimento, tinha dificuldade em acreditar que ela e Daniel se tivessem deixado arrastar para aquela situação disparatada. Ainda mais estranha era a incapacidade que tinham tido para reconhecer a loucura, apesar de múltiplos revezes que deviam ter sido pistas de que a decisão que tinham tomado era terrivelmente imperfeita. Tinham confundido fins e meios. O facto de ela ter questionado de vez em quando o que estavam a fazer não era grande consolo, porque nunca agira de acordo com as suas intuições.

 

Por fim, Stephanie tirou os pés de cima da mesa de apoio e sentou-se direita. Já esgotara a capacidade de introspecção há muito tempo. Com os dedos entrelaçados, esticou os braços. Estavam rígidos de inacção. Depois de passar os dedos pelos cabelos e respirar fundo, para soltar o ar com força, olhou para Carol.

 

Deve estar exausta disse Stephanie. Pelo menos, eu dormi algumas horas.

 

Por muito estranho que possa parecer, não estou disse Carol. Seguindo o exemplo de Stephanie, também se esticou. Parece que bebi dez chávenas de café. Não consigo deixar de pensar em como tudo isto foi ridículo, desde a noite daquele fatídico encontro no meu carro até esta catástrofe.

 

Foi contra? perguntou Stephanie.

 

Claro! Tentei convencer Ashley a não fazer isto desde o princípio.

 

Estou surpreendida.

 

Porquê?

 

Stephanie encolheu os ombros.

 

Não sei ao certo, mas acho que deve ser porque pensamos as duas de forma semelhante. Eu também fui contra. Tentei convencer Daniel a não se meter nisto, mas infelizmente não fui bastante convincente.

 

Aparentemente, estávamos ambas destinadas a ser uma espécie de Cassandras disse Carol. Suponho que é metafisicamente apropriado, uma vez que tudo isto se transformou numa tragédia grega.

 

Como?

 

Carol soltou uma gargalhada curta e exausta.

 

Não ligue ao que eu digo. Fiz uma licenciatura em literatura, e por vezes deixo-me levar pelas minhas metáforas.

 

Estou interessada disse Stephanie. Como é que foi uma tragédia grega?

 

Carol ficou em silêncio durante alguns instantes, a organizar os pensamentos.

 

Por causa das personalidades dos protagonistas disse ela. Temos dois titãs, em campos separados e no entanto estranhamente semelhantes nos seus destinos, que alcançaram a grandeza mas tinham um defeito trágico. O do senador Butler era um amor pelo poder, que progrediu de um meio para um fim num fim em si. O do Dr. Lowell era, calculo, um desejo de reconhecimento financeiro e de um estatuto de celebridade à medida, na sua opinião, do seu intelecto e contribuição. Quando esses dois homens colidiram ao conspirar usarem-se um ao outro para os seus objectivos, os seus defeitos trágicos derrubaram-nos.

 

Stephanie olhou para Carol. Sempre achara que a mulher controlada era o protótipo da subordinada sem graça e bastante aborrecida. De repente, mudou de opinião e, por comparação, sentiu-se distintamente menos inteligente e menos culta do que se sentia antes.

 

Que é que significa ser uma Cassandra?

 

Na mitologia grega, Cassandra foi abençoada com o dom da profecia mas condenada a que ninguém acreditasse nela.

 

Interessante disse Stephanie, de modo pouco convincente. Em determinada altura, eu brinquei com o Daniel dizendo-lhe que ele era parecido com Ashley.

 

Em alguns aspectos, eram. Mas diga-me, qual foi a reacção do Dr. Lowell quando lhe disse isso?

 

Ficou zangado.

 

Não estou surpreendida. A reacção do senador Butler teria sido a mesma, se eu tivesse tido a coragem de dizer uma coisa semelhante. Na verdade, acredito que eles se admiravam, desprezavam e tinham ciúmes um do outro, tudo ao mesmo tempo. De uma forma masculina distorcida, eram adversários.

 

Talvez disse Stephanie, enquanto reflectia na ideia. Não ficou imediatamente convencida de que Daniel admirara grande coisa em Ashley Butler, mas reconheceu que as suas capacidades de contemplação não estavam no seu melhor. Está com fome? perguntou, para mudar de assunto.

 

Carol abanou a cabeça.

 

Nem um pouco.

 

Eu também não disse Stephanie. Estava exausta, mas sabia que não poderia dormir. O que queria era contacto humano e conversa para não estar sempre a pensar nas mesmas coisas. Que é que vai fazer quando pudermos, finalmente, sair das Bahamas depois do inquérito?

 

Não sei ao certo se haverá um inquérito, e se houver será rápido, pro forma, e atrás de portas fechadas.

 

Oh? Por que é que diz isso?

 

Ashley Butler era um senador importante dos Estados Unidos num Congresso, com uma maioria confortável. O Governo dos Estados Unidos vai-se envolver imediatamente e agressivamente, ao mais alto nível. Acho que tudo isto vai resolver-se muito, muito depressa, porque será do interesse de todos. Até acredito que haverá um grande movimento para manter o assunto longe da imprensa, se for possível.

 

Santo Deus! balbuciou Stephanie, enquanto pensava no que acabara de ouvir. Nunca pensara nisso. Na verdade, no seu íntimo já vira as parangonas no The Boston Globe como o golpe de misericórdia final para a CURA. No entanto, não pensara nas ramificações políticas devido à notoriedade de Ashley.

 

Quanto a mim disse Carol, vou voltar para casa e marcar um encontro com o governador. Ele vai fazer uma nomeação para o lugar do senador Butler, e eu vou dizer-lhe que sou a pessoa mais qualificada e que devia ser seleccionada. Se isso não acontecer, ou mesmo que aconteça, vou começar a fazer todos os preparativos para concorrer ao lugar nas próximas eleições.

 

Que é que acha que vai acontecer ao projecto de lei 1103 do Senado?

 

Sem o senador Butler, provavelmente não vai dar em nada disse Carol. A sua preocupação deve centrar-se na outra ala, onde os Republicanos de Extrema Direita podem pegar na bandeira.

 

Essa foi a nossa preocupação desde o início admitiu Stephanie. Ficámos surpreendidos quando fomos atacados pelo seu chefe.

 

Não deviam ter ficado. Era o género de assunto populista que ele agarrava sempre. Era assim que mantinha a sua base de poder. Suponho que não lhe escapou a hipocrisia dele em relação ao procedimento do Dr. Lowell.

 

Dificilmente poderia escapar.

 

E quanto a si? perguntou Carol. Que é que vai fazer quando sair de Nassau?

 

Stephanie pensou por instantes.

 

Primeiro, tenho de resolver um problema com o meu irmão. É uma história muito comprida, mas o nosso relacionamento é outra perda neste caso lamentável. Depois, acho que vou apanhar os pedaços da CURA. Não tinha pensado que fosse possível até você ter sugerido que a imprensa talvez não divulgue esta história lamentável e que o projecto de lei 1103 do Senado poderá ficar eternamente na subcomissão. Não sou grande empresária, mas acho que posso tentar. Penso que era o que Daniel gostaria, especialmente se isso levar a RSTH às pessoas.

 

Bem, tenho de dizer que comecei a acreditar na técnica do Dr. Lowell, bem como na clonagem terapêutica. Sei que houve uma complicação técnica com a implantação do senador Butler, mas não há dúvida de que a doença de Parkinson melhorou milagrosamente.

 

Um efeito positivo tão imediato surpreendeu-nos admitiu Stephanie. Nunca vimos uma resolução tão rápida dos sintomas com os nossos ratos. Não posso explicar o que aconteceu ao Ashley, mas não tenho qualquer dúvida de que se a implantação tivesse decorrido como planeado, num centro médico adequado nos Estados Unidos, o senador teria ficado curado, ou muito perto disso.

 

Eu fiquei impressionada disse Carol.

 

Apesar desta tragédia, ficou provado até que ponto esta tecnologia é prometedora. Estou convencida de que é o futuro da medicina para uma série de doenças, desde que uma mão cheia de políticos não consigam mantê-la longe do povo americano para os seus interesses pessoais e egoístas.

 

Bem, espero ter a oportunidade de impedir que isso aconteça disse Carol. Se ocupar o lugar de Butler, farei disso a minha cruzada.


Nota do autor

Penso nos meus romances como «facção», uma palavra inventada que significa que o facto e a ficção estão tão misturados que a linha divisória entre os dois é, frequentemente, difícil de discernir. Que é que isto significa em relação a Convulsão? Certamente, todos os personagens são ficcionais, bem como o fio condutor da história. Para além disso, infelizmente a técnica de RSTH ainda não faz parte das ferramentas biomédicas. Mas quase tudo o resto é factual, incluindo as partes sobre o Sudário de Turim, de onde foram isolados genes específicos a partir das manchas de sangue. Devo admitir, como Daniel e Stephanie, que fiquei fascinado com o sudário. A referência que Stephanie cita também é real, e para todos os que estiverem interessados em saber mais sobre o assunto, recomendo-o como começo.

É também um facto que uma série de políticos americanos se envolveram no debate sobre biociência, um campo cuja taxa de descoberta se tornou geométrica. Na verdade, parece que o século XXI vai pertencer à biologia, assim como o século XX pertenceu à física e o século XIX à química. Infelizmente, na minha opinião alguns dos políticos foram arrastados para o debate, como o meu ficcional senador Ashley Butler, com objectivos demagógicos e não como verdadeiros líderes com o bem do povo em mente. E mesmo esses políticos, que procuram banir a investigação dessas tecnologias terapêuticas do século XXI nos Estados Unidos, devido ao que acreditam serem razões morais legítimas, suspeito que não hesitariam em ir para outro país onde esses tratamentos tivessem tido autorização para se desenvolver se eles ou algum membro da sua família fossem acometidos de uma doença passível de ser curada.

Na cena da sala de audiências do Congresso em Convulsão (Capítulo 2), o senador Ashley Butler mostra as suas verdadeiras cores ao brincar com os medos do público sobre quintas de embriões e mitologias atávicas de Frankenstein. O senador também se recusa a separar a clonagem reprodutiva  (clonar uma pessoa, sobre a qual há uma repugnância quase universal) da clonagem terapêutica (clonar células de um indivíduo com o objectivo de tratar esse mesmo indivíduo). O senador Butler, como outros opositores da investigação de clonagem de células estaminais e terapêuticas, sugere que a técnica requer o desmembramento de embriões. Como Daniel realça sem grande sucesso, isso é falso. As células estaminais clonadas na clonagem terapêutica são colhidas no estádio de blastocisto, muito antes de se formar um embrião. O facto é que na clonagem terapêutica nunca se deixa um embrião formar-se e nada é jamais implantado num útero.

A maior parte dos meus leitores estão conscientes de que as minhas histórias médicas de mistério têm importantes temas sociológicos no seu âmago. Convulsão não é excepção, e neste caso o tema é a lamentável colisão da política com a biociência em rápido avanço. Mas uma coisa é usar uma história admonitória para delinear um problema e outra muito diferente é sugerir uma solução. Porém, Daniel faz alusão a uma, e é aquela que, pessoalmente, eu gostaria que o nosso país adoptasse. Como Daniel questiona no Capítulo Seis, «Nós [referindo-se aos Estados Unidos] copiámos muitas das nossas ideias sobre direitos individuais, Governo e certamente o nosso direito comum da Inglaterra. Por que é que não seguimos a liderança da Inglaterra na forma de lidar com a ética da biociência de reprodução?»

Em resposta às questões éticas muitas vezes difíceis e perturbadoras da genética humana reprodutiva e molecular sublinhadas pelo nascimento do primeiro bebé do mundo, através da técnica de fertilização in vitro em

1978, o Parlamento britânico, em toda a sua sabedoria, criou a Autoridade para a Fertilização Humana e Embriologia (HFEA), que funciona desde

1991. Esta organização, entre outras funções, licencia e monitoriza clínicas de infertilidade (uma coisa que não existe nos Estados Unidos) e também discute e recomenda políticas ao Parlamento, em relação a tecnologias de reprodução e investigação. Curiosamente, o presidente, o vice-presidente e pelo menos, metade dos membros gerais, de acordo com os estatutos, não são médicos nem cientistas envolvidos na tecnologia de reprodução. O que interessa é que os ingleses conseguiram formar um corpo verdadeiramente representativo, cujos membros reflectem uma grande variedade dos interesses do público em geral e podem debater as questões num ambiente apolítico. É de referir que a HFEA elaborou um relatório em 1998 que fazia a diferenciação clara entre clonagem reprodutiva, cuja proibição recomenda, e a clonagem terapêutica que aconselha como sendo uma promessa de terapia para doenças graves.

O facto de a biociência em geral e a biociência reprodutiva em particular estarem a avançar tão rapidamente levanta a questão de que o ramo precisa de uma forma qualquer de fiscalização. Não há dúvida de que a biociência completamente solta pode ser uma ameaça para a dignidade humana, e até para a nossa identidade, como o Dr. Leon Kass, o actual presidente do Conselho do Presidente para a Biotecnologia declarou. Mas as políticas partidárias não são uma arena apropriada para resolver este problema. Nesse ambiente, quaisquer comissões formadas ficariam invariavelmente cheias de membros de uma corrente polícia particular.

Estou convencido de que se o Congresso dos Estados Unidos criasse uma comissão permanente não partidária como a HFEA inglesa para recomendar orientações políticas, o público americano ficaria bem servido. Não só o debate actual sobre clonagem terapêutica ficaria resolvido de uma maneira inteligente e democrática (já existe consenso em relação à clonagem terapêutica), como as clínicas de infertilidade também seriam controladas de forma adequada. É mesmo concebível que a questão associada do aborto pudesse ser afastada da política, para nosso benefício colectivo.

 

                                                                                            Robin Cook

 

 

                      

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