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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAÇÃO DE ONÇA / Ofélia e Narbal Fontes
CORAÇÃO DE ONÇA / Ofélia e Narbal Fontes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

                                 A HISTÓRIA COMEÇOU ANTES...

De viagem para Sorocaba, antes de alcançar a vila de Parnaíba, frei Antônio da Luz topou com umas grandes árvores que se destacavam do matagal circundante! A sombra era convidativa. Apeou de seu burrinho branco e o deixou à vontade. O chão estava atapetado de frutos secos. O frade apanhou alguns e teve uma ex­clamação de agradável surpresa:

— Ó! São nozes de Portugal!

Só então examinou as belas árvores. Eram nogueiras maiores do que as que vira na Europa. Quebrou uma noz apertando-a de encontro a outra, e provou-lhe a amêndoa:

“É da melhor qualidade”, pensou.

Intrigado com tal descoberta, resolveu levar consigo uma boa colheita. E enquanto enchia, com nozes escolhidas, uma bruaca (um tipo de mala de couro), indagava a si mesmo:

— Quem teria plantado estas árvores? Pelo porte devem ter mais de cem anos!...

A curiosidade o levou a pesquisar as cercanias: verificou, então, que as nogueiras deviam pertencer ao pomar de uma velha fazenda abandonada... Um muro de taipa, recoberto de melão-de-são-caetano, separava-o das ruínas de um solar que o vento e a chuva haviam destelhado quase por completo, e que o mato acabaria por sepultar piedosamente...

As velhas nogueiras, testemunhas da passada grandeza daquele sítio, poderiam bem informar a frei Antônio da Luz a história de seu proprietário, o fidalgo Antônio Castanho da Silva, que ali es­tabelecera sua fazenda e as plantara, antes de partir em busca de prata para o reino do Peru, de onde nunca mais voltara... Pode­riam falar da malograda bandeira do filho — Luís Castanho de Al­meida, que lhe fora no encalço, cinqüenta anos depois... E final­mente descrever o drama de sacrifício, paixão e aventura do neto e xará que, em conseqüência de cruel enfermidade se vira alcunhado de “Papudo”...

Era o ano de 1735. A história, porém, começara mais de meio século antes, por volta de 1671, quando alguém descobria um segredo, oculto numa noz diferente das outras...

 

 

 

 

                                       A INESPERADA CONFIDÊNCIA

Luzia acabou de enrolar as tranças em espiral sobre as orelhas e sorriu para a sua imagem, refletida no espelho. Estava tão contente de sua formosura, de sua graça de mulherzinha em botão, que se mirava e remirava, perdendo a conta do tempo para pentear-se...

O sol entrava-lhe pela janela da camarinha e lhe avivava o brilho dos cabelos negros e dos olhos pestanudos. Amanhecera mais contente que nos outros dias. Sucedera-lhe qualquer coisa que dera um sentido diferente à sua vida de menina criada em família, cerca­da somente de pessoas íntimas. Quis ver seu corpo esbelto por in­teiro. Para isso, afastou-se um pouco do espelho e, após um ins­tante de silenciosa contemplação, pôs-se a cantar, de boca fechada, uma velha modinha. E então, num assomo de contentamento, dan­çou num Corrupio, à volta do quarto, erguendo graciosamente para os lados a comprida saia, que lhe tocava os pés...

Quem a surpreendesse naquela dança improvisada, desconhece­ria a menina tímida e pouco expansiva da véspera. Era, realmente, outra criatura, como se tivesse ficado moça da noite para o dia. Que lhe teria acontecido?

É que, na tarde anterior, sua cunhada Catarina, casada com Vi­cente, o mais velho de seus treze irmãos, tivera com ela uma con­versa aparentemente simples, mas que, para sua alma ingênua, assu­mira singular importância:

— Luzia, lhe dissera a cunhada, em tom de confidência. Faz tempo que estou para lhe contar uma coisa. Mas sempre achei que era cedo. Agora que você já fez quinze anos, está moça feita, vou contar-lhe. Mas não vá ficar vaidosa!

— Vaidosa de que, ora!? Conte logo!

— Eu sei de alguém que morre de amor por você...

Luzia sentiu um baque no coração, como se morrer de amor fosse morrer de verdade. Empalideceu e fitou a cunhada, sem articular palavra. Catarina sorriu de seu embaraço e perguntou-lhe:

— Não acredita?

— Só pode ser brincadeira... conseguiu responder Luzia, com voz sumida.

— Não estou brincando, não! continuou Catarina. Trata-se de alguém que acha você a maior galanteza de Parnaíba!

— Quem ia perder para eu achar?

— É sério! E olhe: é pessoa que você conhece muito bem...

— Pois então me diga quem é...

— Isso é que não! Conto o milagre mas não conto o santo. Você mesma deve descobrir o seu adorador! E quando souber me diga...

Com a aproximação do Vicente, que com certeza não aprovaria o assunto, as moças mudaram de conversa. Mudaram é modo de dizer, porque, para Luzia, a conversa continuou a mesma... Moía e remoía o curto diálogo, procurando adivinhar o mistério contido nas palavras da cunhada...

De noite, só pôde conciliar o sono muito tarde e o amanhecer encontrou-a de pé. Sentiu necessidade de se isolar do bulício da casa, onde a atividade começava cedo. Por isso é que se encontrava agora na camarinha assobradada.

A idéia de ter um apaixonado, embora desconhecido, lhe fizera bem. E enquanto dançava, perguntava a si mesma, pela centé­sima vez: Quem seria ele? Desconfiava de um dos irmãos da própria Catarina, que morava ao lado, na propriedade dos pais — Luís Cas­tanho e Isabel de Lara, e cujo pomar se estendia até bem próximo de sua janela. Embora pertencentes a fazendas diferentes, as duas casas haviam sido construídas muito perto uma da outra, a fim de aproveitar a planura do terreno e a vizinhança da estrada.

Assim pensando, Luzia parou de dançar e se aproximou da janela sem receio de ser vista, pois as copadas nogueiras poupavam aquele recanto à curiosidade alheia. Por esse motivo era a única da casa que se abria francamente e dispensava rótulo.

Se o seu pretendente, afinal, era um dos jovens Castanhos, qual deles seria? E se punha a passar em revista os concunhados: Luís, o mais velho, estava fora de cogitação, pois não era segredo que pretendia uma das primas, a Maria Pedroso. O segundo, Joaquim, também não podia ser, pois amava outra Maria, irmã da própria Luzia. Quanto ao Antônio, o mais moço, nem sequer pensaria nela: parecia acriançado, apesar de já haver completado dezessete anos. Só cuidava de tropelias, desafios, jogos de armas e cavalhadas. É verdade que lhe passava à porta todos os dias, sempre em galope doido sobre o Pajé, o seu cavalo malacara. Mas não a cumprimen­tava nem olhava tampouco, como se não fossem aparentados e não se conhecessem desde crianças... No entanto, há anos passados, ele fazia muitas brincadeiras com ela. De vez em quando, para cha­má-la, trepava no muro e assobiava, imitando o jaó. Ela vinha logo e ele lhe dava, então, nozes, uvaias e outras frutas de seu pomar. Entabulavam uma conversa cochichada, até que alguém da família a chamasse... Um dia, ele lhe pusera nas mãos um samburá con­tendo algum animal, pois bulia e piava lá dentro. E recomendara-lhe:

— Cuidado! é um filhote de cascavel...

Apavorada, ela deixara cair ao chão o samburá e ele soltara uma boa risada, dizendo:

— Boba! Medrosa! Essa cascavel não faz mal nenhum...

Embora ainda desconfiada, Luzia apanhara o samburá e abrira-o cautelosamente. Continha um ninho com três filhotes de tiziu piando assustados e famintos, de biquinhos escancarados.

Ela se mostrara encantada com o presente. Cuidara dos filho­tes com extremo carinho, até que se tornaram três tizius saltitantes e negros.

Outras vezes, o Antônio a via fiando na roca, no alpendre dos fundos. E invariavelmente lhe repetia uma parlenda portuguesa que a avó paterna lhe ensinara:

— Fia, fia, Maria fia

três maçarocas por dia!...

Luzia achava sempre graça nos seus brinquedos. Assim era o Antônio, quando menino. À medida que se fazia homem, porém, fora se tornando arredio e casmurro. Principiava a crescer-lhe um papo esquisito. E ele deixara de falar-lhe e até de cumprimentá-la. Quando comparecia a missas ou festas, usava um mantéu de gola alta apertada ao pescoço, no evidente desejo de disfarçar o triste defeito. Sem sombra de dúvida, pois, não podia ser o Antônio o seu pretendente.

Nesse caso, só restava o Diogo, o terceiro da irmandade. Sim, o Diogo não era um urso como o Antônio. Ao contrário, tinha a mes­ma cordialidade dos mais velhos e sabia conquistar a simpatia de todos. Cumprimentava-a respeitosamente. E se não se falavam era porque jovens de sua qualidade não tinham licença de conversar com rapazes. Nos raros encontros, por ocasião das festas de rua, procis­são, torneio ou entrudo, em que poderia comunicar-se com eles, estava sempre vigiada por sua mãe, suas três irmãs casadas e seus oito irmãos, inclusive o que se ordenara — frei Francisco do Rosá­rio. Eram duas dúzias de olhos zelosos que não a perdiam de vista...

Dois anos atrás as coisas eram diferentes. Seu pai, João Gon­çalves de Aguiar, capitão de ordenanças de Parnaíba, era vivo ain­da; e, carioca de nascimento, não achava mal nenhum em dar às filhas um pouco de liberdade. Por essa razão, a Jerônima, a Ana e a Isabel puderam conhecer bem os seus noivos antes de se casa­rem...

Agora, no entanto, estava tudo mudado. Só podia contar com a camaradagem da irmã solteira, a Maria. Quanto à caçulinha, a Esméria, que tinha apenas sete anos, todo cuidado era pouco, pois era um tanto linguaruda...

Maria, mais velha que ela um ano apenas, era a sua natural confidente. Por isso, Luzia estava a par de seu segredo com Joaquim. Que importava que os dois não se falassem? Conversavam com os olhos, sabiam que se amavam e pronto! Confiavam um no outro!

E ela? Ah! Jamais alguém a olhara de maneira especial! Escon­deria talvez o Diogo um sentimento que se tornaria escandaloso se fosse descoberto antes de haver um compromisso? As duas famílias já estavam entrelaçadas pelo casamento de Catarina com Vicente. Mas isso, naquela época, não permitia maior intimidade.

Observara que, nos dias de cavalhada, Joaquim não perdia oca­sião de fitar Maria. No último jogo das canas, por exemplo, enquanto os olhares da assistência estavam presos nos cavalheiros, os dois namorados nada viam do torneio. Estavam perdidos e achados, entreolhando-se... Mas só Luzia percebera o namoro. E em casa, não se conteve; chamou a atenção da irmã:

— Você precisa ter mais tento, Maria! Olhe que Mãe acaba desconfiando...

— Desconfiando de quê? Ele hoje nem me cumprimentou...

— Mas eu escutei a conversa... insistira Luzia.

— Que conversa?!

— A conversa das meninas mexeriqueiras...

— Que meninas, Luzia? indagara Maria, sem compreender.

— As meninas dos olhos de vocês dois. Falaram o tempo inteirinho...

— Ah! Não seja exagerada!

— É exagero? Então me diga quem saiu vencedor: foi o primo Antônio Bicudo ou o capitão-mor Antônio Soares Pais?

— Foi... foi... foi... Ah! espere um pouco. É que eu não compreendo bem o jogo das canas...

— Sim, mas compreende outro jogo: jogar a sério, por exemplo... concluiu, com malícia, Luzia.

— Você tem cada uma, Luzia! respondeu, vencida, Maria, sol­tando uma risada feliz.

 

                                               O SEGREDO DA NOZ

Ao mesmo tempo que recordava esta conversa, Luzia estendia o olhar por sobre as árvores: lá longe, na colina, em direção à vila, tetos de sapé pontilhavam a paisagem. Era a rancharia dos carijós, os índios administrados de Luís Castanho.

Se Catarina falasse a verdade... Mentir, não; ela, por certo, não estaria mentindo, mas...

Essas idéias invadiam em tumulto o seu cérebro. Em meio a todas as recordações, porém, pairava aquela verdade estonteante: alguém a amava! Tinha um apaixonado! Era já moça como as outras moças. E em breve estaria casada, no seu lar...

Nisto, teve um grande susto, que lhe cortou o pensamento: Uma pedra passara zunindo por cima de sua cabeça e fora cair bem no meio do quarto! Volvendo a si da surpresa, abaixou-se e verificou que não era pedra e sim uma grande noz. Apanhou-a. Quem a teria arremessado do pomar de Luís Castanho? Provavelmente Pereá, o pajem de Antônio, que tomava conta dos cavalos... Mas também poderia ter sido Diogo...

Extraordinariamente agitada com esta hipótese, assomou de novo à janela e procurou descobrir, entre as copas folhudas, algum sinal da presença do autor daquele gesto ousado. Por mais que fi­zesse, porém, não conseguia descobrir nada. Esperou ainda algum tempo, respirando a custo, presa de forte emoção. Foi então que, bem à sua frente, após um bolir de folhas, descobriu um par de olhos ardentes, fixos nela.

A terrível decepção fê-la recuar indignada e bradar ainda, fora de si, enquanto fechava a janela: — Papudo!

Não pôde conter uma exclamação de contrariedade, ao reconhe­cer o atrevido:

— Antônio!

A terrível decepção fê-la recuar indignada e bradar ainda, fora de si, enquanto fechava a janela:

— Papudo!

E permaneceu algum tempo no escuro, escorando com as cos­tas a tábua da janela maciça, como se a grossa taramela não fosse suficiente para conter a impertinência daquele olhar...

— Ah! Então o tal apaixonado era ele?! pensou ofegante, com o coração a bater apressado, como o de um passarinho.

Uma grande fraqueza obrigou-a a sentar-se, depois, num tam­borete, tremendo da cabeça aos pés. E, apoiando o rosto à mão direita, rompeu num choro sacudido. Quando cessou de chorar é que reparou: apertava, com tanta força, a grande noz na mão esquerda que esta lhe doía. Mais se irritou com isso. Deveria tê-la arremessa­do logo pela janela, em vez de aceitar tamanha ofensa... Passan­do-a de uma à outra mão, percebeu o quanto era leve! Deveria estar chocha... Antônio nem sequer se dera ao trabalho de escolher uma noz boa! E era assim que esperava conquistar o seu amor... Ia arremessá-la ao chão, quando uma súbita desconfiança lhe reteve o gesto. Então, com mil cuidados, abriu uma fresta mínima da ja­nela e examinou-a na réstia de luz.

Percebeu, aí, que devia haver algum mistério! As metades da casca estavam solidamente coladas com cera! Que quereria dizer aqui­lo?... Com um alfinete de toucar conseguiu a custo separá-los. E qual não foi a sua surpresa quando viu, em vez da amêndoa, um peda­cinho de papel caprichosamente dobrado! Tirou-o e desdobrou-o de mãos trêmulas. Era uma mensagem escrita em letra miúda...

Contrariamente aos costumes da época, que só permitiam à mulher aprender a fiar, coser, lavrar e fazer rendas, o pai de Luzia mandara ensinar a ler a todas as filhas. Por isso ela não encontrou dificuldade em decifrar o minúsculo bilhete; enxugando as lágrimas na manga do vestido, leu, de coração aos pulos, estas estranhas pa­lavras:

“Andarei mil léguas no mundo com tua imagem no coração”.

A frase era simples, mas Luzia releu-a muitas vezes sem com­preender, como se houvesse sido escrita em língua estrangeira.

Quando, afinal, se compenetrou do profundo sentimento que aquelas palavras encerravam, sentiu um grande remorso por ter, com tanta violência, repelido a homenagem muda de seu admirador. E se enterneceu tanto com a maneira engenhosa e discreta que inven­tara para lhe enviar a mensagem de amor, que as lágrimas lhe corre­ram pelas faces...

Quis remediar a injúria com um gesto de compreensão e simpa­tia. Então, tomada de súbita coragem, abriu francamente a janela: mas não havia mais ninguém na nogueira do pomar...

E o remorso tomou conta de sua alma. Insultara Antônio como se fosse crime revelar um sentimento tão poderoso... Chamara-o de “Papudo”, como se ele tivesse culpa daquele defeito... Tinha sido injusta e pouco amável. Estava de coração aflito e não achava jeito de se perdoar... Por que dissera aquela palavra cruel?

Nisto, ouviu a voz da mãe, lá de baixo:

— Onde é que anda a Luzia?

Sem perda de tempo, dobrou a pequenina mensagem e encer­rou-a de novo, apertando as duas metades da casca, para que sol­dassem com segurança. Pensou, então, em escondê-la. Mas onde? Sua mãe lhe remexia os guardados e na certa daria com ela. De súbito, lampejou-lhe nos olhos uma idéia salvadora: num minuto desmanchou as longas tranças, puxou os cabelos para trás e enrolou-os sobre a nuca, ocultando a noz entre os fios.

— Luzia! chamava a mãe, lá de baixo, de novo.

— Já vou, mãe, respondeu Luzia, passando os dedos nos olhos para apagar os vestígios das lágrimas. Deu, ainda, um último reto­que aos cabelos e desceu correndo a escada.

A mãe, ao vê-la, estranhou o penteado, e perguntou:

— Gente! Que moda é essa? Pra que esse piricote de velha? Ao que ela respondeu, disfarçando:

— Promessa, mãe.

 

                                   A BODEGA DO TORQUATO

Antônio Castanho quase caiu da árvore no momento em que Luzia lhe atirou ao rosto aquela palavra de desprezo. Não havia para ele pior injúria que ser chamado de “Papudo”. E todos os conhecidos sabiam disso. Homem nenhum se atrevia a mencionar aquele defeito sem receber, em troca, um desafio para duelo. Seus irmãos não o faziam nem mesmo por brinquedo. Conheciam de sobra seu gênio arrebatado e violento.

Imagine-se, agora, o abalo profundo que sentiu ao ouvir a pa­lavra humilhante, justamente daquela que amava desde os tempos de menino!...

Quando lhe apareceu o papo, foi uma tristeza geral em sua casa. E cada qual lhe atribuía uma causa diversa: uns diziam que era da água, outros falavam em mau olhado, em vento virado e outras crendices populares. D. Isabel de Lara tudo fizera para curar o filho: dera-lhe remédios, mezinhas, infusões de erva do mato, apli­cações de bichas no inchaço, sangrias, fomentações e até rezas fortes de curador. Mas o mal foi crescendo e agora atingira um tamanho difícil de disfarçar. Por esse motivo, ele raramente ia a festas e, quando o fazia, usava sempre um mantéu de gola alta.

E fora exatamente nesse ponto sensível que Luzia o ferira! Antônio desceu da árvore em três saltos e se encaminhou para a cavalariça — Um carijó de ombros atléticos estava prendendo a alça de um embornal cheio de milho na cabeça do Pajé. O animal, de focinho mergulhado no samburá, mastigava gulosamente.

— Pereá! ordenou Antônio Castanho com a voz transtornada. Arreie o Pajé!

— Ele está comendo a ração. Depois Pereá arreia... explicou o índio, que não percebeu logo que seu patrão não estava disposto a esperar.

— Arreie já! gritou-lhe Antônio, imperiosamente.

Foi então que Pereá olhou para a cara do rapaz e viu o perigo que corria. Mais que depressa tirou os arreios de um cavalete e encilhou o malacara num abrir e fechar de olhos. Ao entregar as rédeas na mão do moço, mirou-o bem, apertando os olhos miúdos, e perguntou-lhe:

— Pai Tonico está com dor de cabeça?

Antônio, porém, não lhe respondeu. Montou de um salto e virou o animal para o lado da porteira. Vendo-o sair naquela pressa, Pereá exclamou:

— Espere, Pai Tonico! Pereá vai tirar o embornal...

Mas quem diz que ele dava ouvidos!? Parecia surdo e cego. E embora o pajem o houvesse alcançado, tocou-lhe o animal quase em cima. Pereá deu um pulo para o lado, mas não desistiu de seu in­tento. Conseguiu alcançar o cavaleiro junto à porteira, pois esta se achava fechada, e tirou então o embornal.

Antônio partiu a galope, sem dar palavra, pela estrada afora, rumo à Parnaíba. Pereá ficou olhando naquela direção até que cavalo e cavaleiro sumiram numa nuvem de pó. Ele abanou, então, a cabeça e murmurou, contristado:

— Saci de saia tirou juízo de Pai Tonico... fechou lentamente a porteira e voltou a seu trabalho nas cavalariças. Enquanto isso, Antônio prosseguia em sua corrida desabalada. A certa altura, alcançou um cavaleiro e passou-lhe à frente sem olhá-lo.

— Olá! Antônio Castanho! Não cumprimenta os amigos?! gritou o cavaleiro, reconhecendo-o. E, após um momento, percebendo que não fora ouvido, esporeou a montaria, na intenção de aproximar-se. Mas não conseguiu: o Pajé era novo e árdego e seu dono tinha a pressa de quem foge a uma terrível perseguição... Para onde iria?

Nem mesmo Antônio Castanho o saberia dizer... Na realidade fugia de si próprio, de seus pensamentos, de sua humilhação... Seu amor por Luzia crescera com ele. Quando percebeu que seu senti­mento era amor, lutou como um desesperado, tentando sufocar o coração. Mas um dia não se conteve e se abriu numa confidência com Catarina, sua irmã predileta. As palavras saíam-lhe do íntimo da alma, como a água jorra de um manancial...

Catarina ouviu-lhe a confissão sorrindo e lhe disse:

— Você não precisava contar nada porque eu já sabia de tudo há muito tempo...

— Não é possível, respondeu Antônio. Eu ainda não falei a ninguém!

— Não falou, mas eu descobri porque li nos seus olhos. Isso é que nem catapora: quem é que pode esconder?

O irmão riu e indagou ansioso:

— Catarina, você acha que Luzia pode me querer?

— Como não, Antônio!? Que moça em Parnaíba não receberia de braços abertos um marido como você? Depois, você sabe: isso depende de meu marido, pois o Vicente, depois da morte do pai, é quem resolve o casamento das irmãs. E posso lhe garantir que ele não porá dúvida.

— Mas não é pelo Vicente, Catarina. É por ela...

— Por amor de quê?

— Porque... porque...

Antônio hesitava. Seria possível que a irmã não compreendes­se seus motivos? Afinal, num esforço, continuou:

— Porque sou sem esperança de cura e ela não há de querer um homem assim, para marido...

— Ora, deixe de tontice! retrucou a irmã. Isso que você tem não é doença. E depois mulher não tem querer. O homem é que resolve...

— Não, assim não quero. Por nada deste mundo me casarei com Luzia, se ela não me quiser do jeito que sou...

Antônio falava com hesitação, escolhendo os termos, sempre alegando sua “doença”, sem usar a palavra “papo”, que evitava cui­dadosamente.

Catarina, porém, percebeu seu sofrimento e teve pena dele. Era tão forte, tão alto para sua idade, tão valente e hábil em inúmeros jogos e esportes. Por que havia de surgir aquela doença estra­nha para deformá-lo, deixando-lhe os olhos salientes e o gênio de­sigual, desconfiado e irascível? Então, concluiu, dizendo:

— Pois se assim é, deixe por minha conta que eu sondo os sentimentos de Luzia e depois lhe conto direitinho...

A fisionomia carrancuda do rapaz iluminou-se. E pediu:

— Você me promete dizer a verdade, Catarina?

— Prometo, respondeu ela categoricamente...

Separaram-se após esse diálogo. Antônio passou dois dias an­gustiado, esperando sua sentença. Afinal, na véspera à tarde, pouco depois de sua conversa com Luzia, Catarina chamou-o e lhe disse:

— Antônio, você está de parabéns...

— Não brinque, respondeu o irmão, sentindo o coração saltar no peito. Falou com ela?

— Falei.

— Mas tocou no meu nome? perguntou, empalidecendo ainda mais.

— Que é isso, Antônio? Calma! Roma não se fez num dia! Não falei no seu nome mas foi como se tivesse falado. Disse-lhe que conhecia alguém apaixonado por ela...

— Ora, Catarina. Isso não adianta. Muito rapaz em Parnaíba está nessas condições. O Timóteo Leme, por exemplo, me confessou a admiração que tem por ela...

— Mas você pensa que eu sou tola?! Encaminhei a conversa de maneira que ela pensasse que era um dos meus irmãos...

Antônio estalou os dedos, aflito. E insistiu:

— Isso é perigoso, Catarina. Ela pode pensar em Luís, em Joaquim, em Diogo...

— É nisso que você se engana! Ela sabe que o Luís e o Joaquim pretendem outras...

— E o Diogo?

— O Diogo também está voltado para outras bandas, que eu sei e você não ignora. Demais, tenho certeza que Luzia sabe que é você. Dei-lhe a entender perfeitamente...

— E ela?

— Ficou pálida como a morte, fingiu não acreditar, pediu-me que lhe dissesse de quem se tratava... Enfim, ficou doidinha com a novidade! concluiu Catarina, demonstrando grande alegria e confian­ça no resultado da missão de que se incumbira.

Uma dúvida, porém, sombreava o rosto do rapaz: se Luzia tivesse pensado no Diogo? Ele não podia comparar-se ao irmão em aparência, afabilidade, gentileza, encanto pessoal. Estava disso sin­ceramente convencido. E quis apresentar essa dúvida a Catarina. Esta, no entanto, não lhe deu tempo para isso, pois se despediu, di­zendo:

— Fique sossegado que tudo se arranjará. Em breve, voltarei a tocar no assunto.

Afastou-se após essas palavras, enquanto Antônio ficava às voltas com sua dúvida amargurada. E aquela noite passara-a em claro. Enquanto Luzia perdia o sono na casa vizinha, separada dele por duas paredes apenas, de luz acesa procurava, febrilmente, es­crever a frase que melhor exprimisse seu amor longamente inconfessado. Enchera folhas de papel e rasgara-as insatisfeito. Diogo, que era justamente o seu companheiro de quarto, reclamara várias vezes:

— Que é que tanto escreve, Antônio? Será que deu para poeta?

Antônio grunhia uma desculpa qualquer e continuava em suas tentativas, quase alheio.

— Deixe o resto da trova para amanhã, insistia Diogo ironicamente, e apague a luz...

Até que se cansou de reclamar e dormiu.

Alta noite, Antônio deu a busca por terminada. Era como se o seu coração de neto e filho de bandeirante houvesse topado com rica mina de ouro... Achara, afinal, a frase que o satisfazia inteiramente! Começou, então, o trabalho de copiá-la com a letra mais miúda e nítida que pudesse numa estreita tirinha de papel para fe­chá-la depois dentro da noz. Essa parte da tarefa ainda foi demo­rada e precisou ser refeita mais de uma vez. Quando acabou de realizar seu exaustivo projeto, amanhecia.

Diogo ressonava. Antônio guardou a noz no bolso e saiu do quarto pé ante pé. Saiu para o pomar e dirigiu-se para a nogueira amiga, seu velho posto de observação. Era escondido entre a folha­gem que surpreendera vezes sem conta Luzia, costurando, penteando-se ou conversando com a mãe ou as irmãs. Ali ficava horas per­didas aguardando-a para mirá-la, um minuto que fosse, sem ser visto.

Mas naquela manhã estava decidido: declarar-se-ia! E assim o fizera para sofrer aquela decepção sem remédio! Se o chão lhe fal­tasse aos pés, não teria sido abalado por emoção mais violenta. Sentia um travo na boca como se tivesse mordido gravatá... E chicoteava o cavalo para fugir de sua vergonha. Mas esta seguia com ele, escanchada na garupa...

Ao atingir o bairro de Jundiuvira, sofreou bruscamente as ré­deas. Pajé estacou à frente de uma taberna. Sobre a porta, do braço de um lampião enferrujado, pendia uma tabuleta vermelha, na qual se lia:

 

                                     Bodega do Torquato

                                 Vinho do Reino-Cana de

  1. Vicente e Pernambuco

 

Antônio Castanho apeou com destreza, amarrou o animal à ar­gola incrustada na pedra da calçada e entrou.

 

                                               MAFALDO, O MESTIÇO

Àquela hora da manhã, a bodega parecia deserta. Por trás do balcão manchado de vinho, o taberneiro adaptava um batoque a um barril vazio. Era um homem gordo, de largos bigodes caí­dos. Ao ver entrar o rapaz, sem chapéu e de fisionomia alterada, estranhou:

— Vosmecê por aqui, senhor Antônio Castanho?

Antônio não respondeu. Encaminhou-se para o canto mais escondido da sórdida taberna, abancou-se a um tamborete de couro trançado, bateu com a chibata na mesa e rosnou:

— Cana de S. Vicente!

De outro canto da tasca, alguém bateu palmas e aplaudiu com voz arrastada:

— Bravo! Cana de S. Vicente!

Antônio olhou. Era um homem inteiramente desconhecido em Parnaíba. Vestia-se como um mendigo, tinha a tez bronzeada, os cabelos corridos, as maçãs do rosto salientes, o queixo quadrado. Era, sem dúvida, um mameluco e aparentava a idade de cinqüenta anos.

Enquanto servia a aguardente, o taberneiro tentava adivinhar o que se passava na alma do rapaz, fitando-lhe o rosto com insistên­cia. E se admirou quando viu que Antônio tomara a dose de um trago e batia o copo vazio na mesa, exigindo:

— Dobre!

Então, o taberneiro não se conteve:

— Inda que mal pergunte, senhor Antônio Castanho, por que bebe tão cedo?

— Não é da sua conta! respondeu ele com rispidez.

— Desculpe. Sei que não é da minha conta, sim senhor. Mas é que esta cana é forte demais para ser tomada antes de se comer alguma coisa... Quer um pedaço de paio para forrar o estômago?

— Quero que sirva outra dose e deixe-se de histórias, respondeu Antônio, no mesmo tom irritado.

— Já não está aqui o Torquato para falar... respondeu o taberneiro, dando de ombros. Agarrando o copo do moço, encheu-o e o depôs novamente na mesa. Ia encaminhar-se para o seu posto no balcão, quando o desconhecido, levantando-se, o pegou pelo braço e indagou, com língua pastosa e acentuado sotaque espanhol:

— E para Mafaldo, o mestiço, não serve nada?

Torquato deu um repelão a fim de se desvencilhar do importuno e enxotou-o, exclamando:

— Põe-te a andar, borracho de má sorte! Levaste a noite a beber, espantaste-me a freguesia, não pagas e ainda queres mais? Vai-te para o diabo, antes que chegue o senhor sargento de milícias a que já mandei queixa.

— Ó senhor Torquato! Não me denuncie à polícia... Eu sou um pobre trovador, que não faz mal, retrucou ele, sempre misturando o espanhol e o português.

Mal acabou de falar, Mafaldo recuou até seu canto, sentando-se pesadamente. Depois, apanhando uma velha guitarra que se acha­va ao seu lado, dedilhou-a e cantou com voz roufenha:

 

Saqué mucha plata

De Potosí...

Y por mala suerte

Todo perdí... *

* Tirei muita prata / De Potosi... / Mas, por pouca sorte / Tudo perdi...

 

Mafaldo apanhou uma velha guitarra, dedilhou-a e cantou com voz

roufenha: Saqué mucha plata de Potosí...

 

Quando acabou de cantar, pôs a guitarra no chão, encostada à parede, debruçou-se sobre a mesa e repetiu três vezes:

 

Saqué mucha plata

De Potosí...

 

Antônio Castanho, que parecia estranho à cena, devorado pelo seu íntimo desespero, ao ouvir quatro vezes o estribilho, despertou.

Potosi era a montanha famosa do Peru. A montanha que, há mais de cem anos, atraía aventureiros de todo o mundo e abarrotava de prata o tesouro da Espanha. Desde menino essa palavra mágica era familiar a Antônio, porque o avô, que ele não chegara a conhecer, mas de quem herdara o nome e o espírito de aventura, também fora ter àquele reino e pagara com a vida a sua audácia nas cercanias das minas fabulosas... A história daquele “caçador de prata” que fora Antônio Castanho empolgara o seu coração de menino como a mais bela das histórias maravilhosas. Para ele, o avô era o perfeito modelo do gentil-homem. Ninguém o excedia em garbo, intrepidez e cava­lheirismo. Também admirava muito o pai, bandeirante com várias entradas no sertão, mas o avô é que enchia a sua imaginação ardente. Postava-se diante do grande retrato que havia na sala, pintado na vila de Tomar, em Portugal, examinando-lhe a expressão de altivez e domínio, a luxuosa veste de fidalgo qualificado, a espada de Toledo que empunhava com mão vigorosa...

Ah! Aquela espada de concha e punhos lavrados que seu pai herdara! Quantas vezes a tirara do estojo, às escondidas, para exibi-la aos meninos de Parnaíba! Quantas vezes com ela pusera em deban­dada garotos mais velhos que pretendiam prendê-lo como “corsário”!

Foi graças a essa arma que começara a ter consciência de sua força. Quando tinha catorze anos e o pai e os irmãos andavam por S. Paulo, saía com ela à cinta e comparecia aos torneios onde se exer­citava. O capitão-mor Antônio Soares Pais, amigo de sua família, dera-lhe as primeiras lições de esgrima. Em breve, porém, verificando a superioridade do aluno, dissera-lhe:

— Nada mais sei para ensinar-lhe, meu xará...

E assim, aos quinze anos, Antônio Castanho se tornara o mais temível espadachim de Parnaíba. Ao próprio irmão Luís, que tinha quase o dobro de sua idade, ele arrancava a espada da mão a um só golpe, sucessivo a uma finta de mestre...

Antônio Castanho sonhava ser como o avô: varar os sertões do Brasil, combater índios e espanhóis e atingir as minas de prata do Peru. E sua maior alegria foi quando a mãe, no salão de visitas, cha­mou, um dia, a atenção do marido:

— Repare como o Antônio está parecido com o senhor seu pai.

Luís Castanho olhou o retrato do pai, depois olhou o filho e concordou:

— Pois não é que vosmecê tem razão, senhora dona Isabel? Está muito parecido. Eu estava adivinhando quando lhe dei o mesmo nome...

Ao ouvir isso, Antônio ficou que não cabia em si, de tanto orgulho. E nesse dia, chegou diante do espelho, e cumprimentou a pró­pria imagem:

— Bons olhos o vejam, senhor Antônio Castanho da Silva!

Agora, porém, ali na bodega do Torquato, ele não era mais o gentil-homem parecido com o seu glorioso antepassado... Naquela manhã, todo seu orgulho de cavalheiro havia sido esmagado por uma palavra cruel, proferida justamente pela jovem por amor de quem sonhara enfrentar feras, conquistar índios, vencer castelhanos e des­cobrir prata!... Cabelos em desalinho, olhos a saltar das órbitas, meio alcoolizado já, num estado de fúria mal contida, mais parecia um vagabundo freqüentador de tabernas que propriamente um des­cendente de fidalgos...

Só mesmo outra palavra poderosa teria força para amainar a tempestade que ia naquela alma... E essa palavra salvadora ele acabara de ouvir na canção do mendigo: Potosi!... Então, em vez de beber a segunda dose, pegou do copo, ergueu-se e levou-o à mesa de Mafaldo, dizendo-lhe:

— Beba a minha dose.

Surpreendido com o gesto, o homem mirou-o com os olhos mortiços e recusou:

— Não me atrevo, senhor!

— Beba! ordenou Antônio secamente.

Mafaldo não mais se fez de rogado: agarrou o copo e, voltando-se para o taberneiro, disse-lhe, soltando uma risada escarninha:

— Veja, senhor Torquato, como se bebe por conta de amigo! E, voltando-se para Antônio, ergueu o copo numa saudação:

— À sua saúde, cavalheiro! E à de sua dama... E emborcou a dose. Depois limpou a boca com a manga do casaco e estalou os beiços, aprovando:

— Boa cana!

— De onde vem? indagou Antônio.

— De onde venho?

— Sim, confirmou o moço.

— De São Paulo, senhor.

— Não é isso. Quero saber de onde veio para o Brasil.

— Do Peru. Sou “cholo”, mestiço de quíchua e espanhol...

Antônio, que era descendente de espanhóis por parte de seu avô materno, D. Diogo de Lara, não tinha dificuldade de entender o homem e sabia que mestiço quer dizer — mameluco. E continuou a indagar:

— Mas como veio?

— Por terra, pelos campos de Vacaria, na bandeira de Manuel Dias da Silva, chamado Bixira.

— Com o Bixira? perguntou interessado Antônio, lembrando­-se de que esse famoso bandeirante regressara há pouco tempo do Peru.

— Sim, afirmou Mafaldo. Voltou trazendo quarenta arrobas de pura prata, tirada das minas de Potosi...

— E que faz por aqui?

— O capataz do Bixira lhe dirá...

— Por quê?

— Porque não nasci para ser escravo! Sou um soldado da aventura, um trovador...

Torquato escutava este diálogo de braços cruzados, abanando a cabeça. Por fim, não se contendo, falou:

— Não escute esse mandrião, senhor Antônio. Há três dias que vagueia por Parnaíba e não faz senão beber e promover desordens. É um adventício que vai ser posto fora do termo da vila...

Mal acabava de pronunciar estas palavras, entrou na taberna o cavalheiro que cruzara na estrada com Antônio Castanho. Esten­deu-lhe a mão, cumprimentando-o:

— Ó homem, que bicho o mordeu?!

— Por que diz isso? perguntou Antônio sem compreender.

— Ora! Você passou ao meu lado parecendo o pai do ven­to!... Não me viu nem me ouviu...

Só então reparou que Antônio estava conversando com Mafaldo e indagou, olhando-o com desconfiança:

— Quem é esse?

— Mafaldo, o mestiço, para servi-lo, senhor, respondeu o men­digo, apresentando-se; e continuou: um amigo de seu distinto amigo, senhor Castanho... Qual é seu nome?

— Timóteo Leme, respondeu sorrindo o rapaz. E, voltando-se para Antônio, indagou:

— Onde você achou este “novo” amigo?

— Aqui mesmo, respondeu Antônio. Conheci-o agora. Mas vamos sentar para tomar um copo de vinho.

Isto dizendo, pegou Timóteo pelo braço para fazê-lo, sentar-se, e gritou:

— Torquato! Vinho do reino para dois!

— Para três! emendou Mafaldo de seu canto, com a língua mais pastosa do que antes.

 

                               A GUITARRA ESQUECIDA

Timóteo Leme sentou-se, tirou o chapéu de abas largas, botou-o no banco e passou a mão sobre a testa suada. Teria uns vinte e quatro anos mas era menos alto e menos espadaúdo que Antônio.

— Arre! exclamou ele. O seu malacara corre de fato! A princípio, tentei alcançá-lo, mas depois desisti... Por que é que você corria tanto?

— Para torná-lo esperto, respondeu Antônio, como evasiva. Ele ainda está meio chucro. Estou dando um acerto nele...

— Bravos! Eu ignorava que você também sabia domar, além de saber jogar espadas...

— Faz-se o que se pode... respondeu Antônio, com certa jactância na voz.

Torquato colocou dois copos de vinho na mesa. Antônio voltando-se para ele, disse-lhe:

— Sirva outro ali para o Mafaldo...

— Outro para o Mafaldo? perguntou espantado o taberneiro. O senhor não sabe o que está fazendo! Olhe que esse homem embriagado é uma fera!

— Deixe a fera por minha conta! Estou precisando de feras... E sirva-lhe o vinho, que quem paga sou eu! retrucou Antônio.

— Bravos! Muito bem, senhor Castanho! aplaudiu Mafaldo batendo palmas. Que venha o vinho!

Torquato sacudiu os ombros e serviu outro copo ao mestiço, dizendo:

— Sua alma, sua palma! E afastou-se para o balcão.

Timóteo, então, ergueu o copo e brindou:

— À saúde do amor, Antônio Castanho!

Antônio tocou-lhe o copo, dizendo sem entusiasmo:

— Saúde!

— À saúde do amor! brindou por sua vez Mafaldo.

E os três beberam. Depois, Timóteo, abaixando a voz a um tom de confidência, disse:

— Ah! Castanho, estou amando! Estou apaixonado!...

Uma sombra passou pelo rosto do rapaz. Mas Timóteo, na ân­sia de confiar a alguém seus sentimentos de homem, nem suspeitava que fazia de um rival seu confidente... Estou amando e, se não me engano, já lhe disse de quem se trata. Lembra-se?

Num supremo esforço, Antônio aparentou indiferença:

— Não...

— Pois então vou dizer-lhe de novo: é sua encantadora vizinha, Luzia Mendonça. Ah! Castanho! Vi-a na missa de domingo passado! Você nem pode calcular como estava linda rezando, ajoelha­da ao pé da cunhada, a sua irmã D. Catarina. Vestia um saio azul céu de tafetá da China com mantéu de renda branca. E as mãozi­nhas, saindo das mangas perdidas, estavam postas, parecendo um anjo...

Antônio lutava para conter-se. As mãos lhe tremiam mais do que de costume. Agarrou a custo o copo e tomou o resto do vinho de um só trago. Timóteo bebeu também mais um gole e prosseguiu:

— Ah! Castanho! Você é um felizardo! Sabe por quê?

Antônio não deu palavra, mas Timóteo, sem perceber sua emo­ção, continuou a explicar:

— Porque mora ao lado desse anjo... É por isso que o invejo! Nem quero imaginar a ventura que eu sentiria de vizinhar com ela e ter tantas oportunidades para vê-la! Nem sei se me con­teria e não me tornaria ousado ou inconveniente!... Mas que fazer? Se não sou seu vizinho, você o é e poderá dar-me notícias dela. Tem-na visto?

— Não... respondeu Antônio secamente.

— Estou, porém, decidido, continuou Timóteo. Sabe por que venho hoje a Parnaíba?

— Não...

— Venho especialmente para falar com meu irmão...

— Que irmão? indagou Antônio.

— Meu irmão, o vigário. Onde é que você está com a cabeça?! Então esqueceu que o padre Pedro Leme é meu irmão?

— Ah! Sim...

— Pois é, vou pedir-lhe, justamente, que me recomende ao irmão dela — frei Francisco do Rosário. Você sabe, os religiosos se entendem com facilidade e, com isso, conto ser bem aceito pela família... Ah! Castanho! Se tudo correr como espero, não terei inveja de mais ninguém... E em breve estarei casado com a mais bela jovem parnaibana! E aí, tenho certeza, serei eu que causarei inveja a todo o mundo!

À medida que Timóteo falava, a fúria íntima de Antônio crescera, de maneira violenta, até que, não a podendo mais conter, o moço explodiu, com grande espanto de todos. E, dando um murro na mesa a ponto de entornar o copo de Timóteo, berrou com voz rouca:

— Basta!

Só então o amigo se deu conta de seu estado de espírito e atentou-lhe no rosto congestionado. Mas, atribuindo exclusivamente ao efeito do álcool aquela atitude insólita, tratou de acalmá-lo, explicando:

— O vinho fez-lhe mal. Vamos sair um pouco que isso passará. E, erguendo-se, insistiu: Venha comigo!

Antônio, porém, em lugar de atender a seu convite, gritou para o taberneiro:

— Encha de novo estes copos...

— Bravos! aplaudiu, de seu canto, Mafaldo.

— Isso não, aconselhou Timóteo a Antônio. Você não deve beber mais. Eu também não quero... Olhe: Vinho entornado, jú­bilo dobrado...

Quando acabava de dizer essas palavras, entraram na taberna um sargento e dois soldados da milícia de Parnaíba. Dirigindo-se ao taberneiro, o sargento foi logo perguntando:

— Qual é o homem?

— É aquele, respondeu Torquato, apontando Mafaldo.

Imediatamente o miliciano avançou para o mestiço e ordenou:

— Siga à nossa frente!

Mafaldo encarou-o sem se mexer, e fez-se de desentendido:

— Estou esperando outro copo de vinho!

— Não espere mais nada: venha!

— Calma, senhor Sargento. Onde quer que eu vá? indagou ele, ainda sem se levantar do banco.

Mas o sargento, perdendo a paciência, exclamou:

— Está se fazendo de tolo, não é? Você está preso! E, dizendo isto, agarrou o forasteiro por um braço e tentou arrastá-lo para fora. Mafaldo, porém, deu-lhe um empurrão que o atirou sobre o tam­borete. Vendo tal injúria, os dois soldados lançaram-se sobre ele tentando dominá-lo, enquanto o sargento, que se levantara de um salto, tratava de ajudá-los. Mafaldo, no entanto, erguendo-se como fera despertada, a socos e pontapés desvencilhou-se dos atacantes, arrojando-os para longe, de costas... Mas foi questão de um mi­nuto: os milicianos se levantaram, sacaram as espadas da cinta e avançaram de novo rodeando a mesa atrás da qual ele se entrin­cheirara.

— Maldito forasteiro! Vai levar uma lição! gritou-lhe o sargento, brandindo a espada no ar.

Antes, porém, que qualquer um dos três lhe desse uma catanada, Mafaldo virou a pesada mesa sobre eles e abriu caminho, correndo para a porta.

— Pega! bradou o sargento, que havia tropeçado no tamborete e se erguia a custo.

Os outros milicianos precipitaram-se no encalço do maroto e eis que Antônio Castanho lhes barra a passagem, dizendo:

— Alto! Deixem o homem seguir em paz!

— Prendam-no!... berrou o sargento, fora de si.

Com a rapidez do raio, Antônio tomou a arma da mão de um soldado e, com ela, enfrentou o outro e o sargento, repetindo:

— Já disse que deixem o homem seguir em paz...

Os soldados, reconhecendo quem tinham pela frente, recuaram. Mas o sargento, encarando com firmeza o moço, que tinha um brilho feroz nos olhos saltados, advertiu-o:

— O senhor está desrespeitando a autoridade!

Timóteo, que até ali assistira à cena assombrado, resolveu intervir:

— O senhor Sargento tem razão, Castanho. Você não tem o direito de favorecer a fuga de um preso...

— Faça-me o favor de não se meter nisso, Timóteo, pois o assunto é da minha alçada exclusiva.

Durante esse último diálogo, Mafaldo, a curta distância, acari­ciava o Pajé, como se aquele barulho todo não se tivesse armado por causa dele. Então Antônio ordenou-lhe:

— Mafaldo! Monte nesse animal e me espere lá adiante, na estrada.

Enquanto falava com o mendigo, mantinha à distância respei­tável os três milicianos.

Mafaldo não esperou segunda ordem: desatou a rédea da argola de ferro, montou e partiu a galope, na direção indicada. Em silêncio, o grupo de homens viu-o desaparecer no caminho.

— O senhor vai responder por essa fuga! vociferou, por fim, o sargento, trêmulo de cólera. Vou representar ao senhor Luís Castanho!

— Meu pai terá muito prazer em recebê-lo, respondeu o moço. E, como se tivesse passado toda a sua fúria, devolveu a arma ao soldado, entrou de novo na taberna, tirou do bolso do gibão umas moedas e atirou-as ao balcão, ordenando:

— Torquato, sirva ao senhor Sargento e a seus comandados um copo de vinho, que fica pago. Depois, voltando-se para Timóteo, estendeu-lhe a mão, despedindo-se:

— Adeus, Timóteo! Mil venturas!

— Adeus, Castanho! respondeu o amigo, atônito, sem saber o que pensar ou o que dizer.

E Antônio saiu a passos firmes, batendo a chibata na bota de cordovão e caminhando ao encontro de Mafaldo, o mestiço.

Timóteo cumprimentou o sargento com um aceno de cabeça, saiu da taberna, desatou a rédea de seu cavalo, montou e se encaminhou para a igreja que, do alto de uma colina, dominava todo o povoado de Parnaíba.

No balcão, Torquato serviu três copos de vinho para os milicianos. O sargento, porém, continuava ofendido e quis recusar. Mas o taberneiro ponderou:

— Agora não há remédio senão beber: o vinho está pago... E já ia voltar ao balcão, quando resolveu acrescentar: Não se ofenda com o rapaz. É que ele não está acostumado a beber... Misturou cana com vinho... Subiu-lhe tudo à cabeça...

Os milicianos caíram das nuvens; e o sargento perguntou:

— Então o senhor estava bêbado?

— Como uma verdadeira cabra, concluiu Torquato, rindo.

Os soldados deram também uma boa risada e tomaram, sem mais cerimônia, o capitoso vinho do Reino.

Mal se haviam retirado, Mafaldo entrou na taberna, entregou ao Torquato uma moeda e disse:

— Cobre o devido e mais um copo de vinho...

Torquato olhou o homem, olhou a moeda e serviu o vinho em silêncio. Mafaldo bebeu, depois apanhou a guitarra caída ao canto da parede e exclamou, com ternura:

— Minha guitarrinha esquecida! Vamos cantar em honra de meu novo amo — senhor Antônio Castanho!

E saiu, tocando e cantando com a voz roufenha:

 

Saqué mucha plata

De Potosí...

Y por mala suerte

Todo perdi...

 

                                         O TESTAMENTO

Sabina! Ó Sabina! chamava Antônio Castanho, entrando pelo corredor em direção à cozinha, acompanhado de Mafaldo, com a sua viola a tiracolo.

Sem demora, veio-lhe ao encontro uma velha negra, muito gorda, com um pano branco amarrado à cabeça:

— Que quer de Sabina, Sinhozinho?

— Sabina, respondeu Antônio, indicando Mafaldo, este homem vai ficar a meu serviço. Entregue-lhe meu gibão de baeta que você consertou, dê-lhe de comer e mande preparar-lhe, no paiol, um canto para dormir.

Sabina arregalou os olhos desconfiada para Mafaldo. E indagou:

— Onde meu sinhô foi arranjar esse... como é o nome dele... mesmo?

— Mafaldo, senhora Sabina... Mafaldo! informou prontamente o próprio dono do nome.

Sabina cerrou o sobrecenho e acrescentou:

— Mau fado?!... Que nome mais agourento! Cruzes! E se benzeu três vezes.

Nisto um tropel de cavalos ferrados atraiu a atenção de Antônio. Olhou para o pomar e viu Pereá puxando, pela rédea, quatro ani­mais ao mesmo tempo na direção da cavalariça.

— De quem são esses cavalos? indagou de Sabina.

— Um é do sinhô Vigário, padre Pedro Leme, respondeu a preta; os outros são do juiz de “orfos”, e do escrivão de Parnaíba, e do sinhô capitão-mor Antônio Soares Pais...

— Mas por que estão todos aqui? que vieram fazer? perguntou o moço, intrigado.

Sabina olhou para Mafaldo com maior desconfiança, puxou Antônio para o lado e cochichou-lhe:

— Vieram fazer testamento do senhor seu pai...

— Testamento? interrogou o rapaz ainda mais espantado. O senhor meu pai ficou doente esta noite?

Sabina tomava conta de Mafaldo com os olhos espertos, enquanto explicava:

— Não ficou doente, não sinhô. Está cheio de saúde, graças a Deus. Mas é que ele vai partir para o sertão outra vez...

— Isso é história, Sabina! Como é que eu não soube de nada?!

Sabina deu uma risadinha significativa e explicou:

— Ué! Era para sinhozinho não saber mesmo...

— Mentira! bradou Antônio, agastando-se.

— Calma, sinhozinho! não fique brabo com sua negra. Vou lhe contar: era segredo até ontem, mas hoje posso dizer; é que sinhá sua mãe pediu segredo para vosmecê não se embandeirar à toa... Eu bem que disse para ela: Sinhá Isabel, não adianta segredo, sinhozinho há de querer ir de qualquer jeito... Eu conheço o coração dele!

— Mas por causa de que a senhora minha mãe fez isso? Então ela não queria que eu fosse?

— Não queria não sinhô.

— E por quê? insistiu, enervado, o rapaz.

— Sei lá! Coisas de mãe! respondeu a preta, fazendo um muxoxo de grande inocência.

— Então ela não acha que sou homem para acompanhar meus irmãos na bandeira de meu pai?

— Não diga isso! Ela acha sim, e ninguém negará que sinhô é homem desde menino!...

— Mas então por que, Sabina?

— Não sei... mas acho que é por causa dessa “infalência” que sinhozinho tem no pescoço...

Antônio empalideceu; os olhos pareciam saltar-lhe das órbitas e o tremor de suas mãos aumentou visivelmente. Teve, afinal, um gesto de exasperação, e exclamou:

— Sou um desgraçado!

— Bata na boca, sinhozinho! Bata na boca, que está dizendo um pecado! ralhou Sabina, com voz enérgica.

Mas, vendo que aquele valente rapaz estava chorando, abran­dou a voz e censurou-o maternalmente:

— Que feiúra, sinhozinho! Nunca vi tamanho homem chorar! Vosmecê não vai na bandeira se não quiser... Olhe aqui: chegue à porta da sala que está trancada, bata, peça licença e diga ao sinhô seu pai que quer ir também, porque é homem tão bom como outro qualquer... E, após pequena pausa, ainda acrescentou: Ou melhor!...

— Você acha que ele vai concordar?

— Que remédio!? Não há pai carrança que não goste de filho resolvido. Ele queria levar vosmecê; foi Sinhá que pediu que não levasse... Vá, enquanto é tempo...

— Então eu vou! concordou Antônio, subitamente animado. E embarafustou pelo corredor afora, na direção da sala de visitas.

Foi quando Sabina, voltando-se para Mafaldo com voz autori­tária, ordenou-lhe:

— Seu Maufado, me acompanhe:

E, à medida que Mafaldo a seguia, manso como um cordeiro, ela caminhava solene em direção à cozinha, resmungando:

— Está tonto que nem peru, antes de levar faca no gasnete....

Ao defrontar a porta da sala de visitas, Antônio deu com os irmãos menores — José, Madalena, Inácio, Antônia e Joãozinho, disputando-se o direito de espiar pelo buraco da fechadura:

— Agora sou eu, dizia o Inácio, empurrando o José.

— Espere um pouco, retrucava este, que era o mais velho do grupo. Fiquem quietos que o escrivão vai começar a ler agora...

À chegada de Antônio, Madalena deu o alarma:

— Olhe o mano Tonico!

Foi um susto enorme e uma debandada geral. Só o Joãozinho, de três anos apenas, ficou e, erguendo os braços para Antônio, pediu-lhe:

— Mano Tonico, me carregue...

— Para quê? indagou o moço, sem compreender...

— “Quelo” espiar pelo “bulaco”... respondeu o garotinho prontamente.

— Agora não, Joãozinho. Vá brincar com os outros, senão o senhor nosso pai vai ralhar...

Joãozinho afastou-se a contragosto, murmurando:

— Ora!

Por um momento, Antônio estacou indeciso. E ia bater à porta, quando ouviu nitidamente a voz do pai que dizia:

— Pode ler, senhor Manuel Franco de Brito.

Antônio ouviu um pigarro do escrivão de órfãos e, logo depois, a sua voz arrastada e fanhosa, lendo o seguinte:

TESTAMENTO

“Em nome de Deus, amém.

Saibam quantos esta cédula de testamento virem, que, no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil Seiscentos e setenta e um, aos cinco dias do mês de outubro, por ter de partir para o sertão e por não saber o que Deus fará de mim, determinei fazer este meu testamento, estando eu em meu perfeito juízo, da maneira seguinte:

Primeiramente encomendo minha alma à Santíssima Trindade que a criou e à Virgem Nossa Senhora peço que seja minha advoga­da e intercessora para com seu Bento Filho, que me perdoe minhas culpas e pecados bem como ao anjo da guarda e ao santo do meu nome. A todos me encomendo.

Declaro que, sendo vontade de Deus levar-me desta vida presente, peço a meus filhos — Luís, Joaquim e Diogo que comigo partem, nesta bandeira, façam todo o possível para trazer meus ossos a esta vila de Parnaíba, para que sejam sepultados no jazigo próprio que tenho na matriz, ao pé do altar de Nossa Senhora do Rosário, de minha particular devoção...”

Altamente emocionado, Antônio não se conteve: bateu violen­tamente na porta. A leitura foi interrompida. Houve um rumor de passos e a porta abriu-se.

— Ah! É você?! perguntou Diogo, surpreendido com a presença de Antônio, e mais surpreendido com a expressão de angústia estampada na fisionomia do irmão.

Este não respondeu. Entrou resolutamente e dirigiu-se à mesa redonda de jacarandá, em torno à qual estavam sentados — Luís Castanho, Isabel de Lara, o juiz de órfãos Manuel Nogueira, padre Pedro Leme, capitão Antônio Soares Pais, Luís e Joaquim, além do escrivão Franco de Brito. Todos notaram a profunda alteração do rosto de Antônio. Mas não disseram palavra.

— Senhor meu pai! falou ele então com voz poderosa, sem sequer cumprimentar os presentes. Falta o meu nome no seu testa­mento! Luís Castanho encarou o filho com certo orgulho e explicou:

— Sim, meu filho, falta o seu nome porque a senhora sua mãe precisa de um homem ao pé dela.

— Para quê? Pode-se saber? interrogou Antônio.

— Pois pode, como não? Para ajudá-la a tomar conta das nossas terras e fazendas... Não é, senhora dona Isabel? perguntou Luís Castanho, dirigindo-se à esposa.

— Pois que dúvida! concordou ela, disfarçando a emoção.

— Vosmecês me perdoem! mas, senhor meu pai, se meninos de doze anos acompanham os pais ao sertão, por que ficaria eu em casa que já vou para dezoito? A senhora minha mãe ainda terá sete filhos para lhe fazerem companhia...

— Mas é que você é o único em que se pode confiar para tomar conta de tudo... É um homem feito... concluiu o pai, julgando convencê-lo.

— Se sou um homem feito, só tenho um dever: é acompanhar meu pai e meus irmãos, retorquiu o rapaz, obstinado.

— Seu dever de filho é obedecer à determinação do senhor seu pai, observou-lhe a mãe, angustiada. Não é, padre Leme?

— Se sou um homem jeito, só tenho um dever: é acompanhar meu pai e meus irmãos, retorquiu o rapaz, obstinado.

— Pois não, senhora dona Isabel, concordou prontamente o vigário. E acrescentou: E não há virtude mais cristã que a obediência filial...

Antônio olhou para o vigário com um estranho olhar, como se no íntimo quisesse dizer: Além de ajudar a roubar o meu amor, ainda quer que eu fique, para assistir a felicidade de meu rival!...

O sacerdote, que desconhecia os sentimentos de Antônio por Luzia Mendonça, não pôde interpretar a atitude evidentemente hostil do moço. Fez-se um silêncio embaraçoso, até que o rapaz, conse­guindo abrandar o seu ímpeto, falou:

— Senhora minha mãe, eu já sei por que vosmecê não quer que eu vá: considera-me doente e receia que eu não suporte o esforço e as privações da viagem... Mas eu lhe garanto que a verdade é outra: o sacrifício para mim será ficar. Não sinto nada, nada temo, gozo de saúde como o Luís, o Joaquim e o Diogo, sei portar-me como homem em qualquer situação e, no manejo das armas, ninguém me faz sombra... Que é preciso mais para seguir na bandeira?

Nesse momento, Sabina assomou à porta que ficara entreaberta e falou:

— Licença, sinhô Castanho!

— Que é, Sabina? perguntou Luís Castanho.

— Está aí o sinhô sargento de milícia que qué dar uma palavrinha em particular.

— Mande-o entrar para a saleta, que eu já o atenderei...

— Ele diz que não quer entrar, não sinhô; que é uma palavrinha só...

Diante da insistência, Luís Castanho desculpou-se com os pre­sentes e saiu ao encontro do sargento.

 

                                                   PLENILÚNIO

Nenhum dos presentes, à exceção de Antônio, fazia idéia do que pretendia o policial com o dono da casa. Antônio imaginou logo que se tratava da queixa contra ele. Estava, porém, de coração preparado para enfrentar o pior. Nada mais lhe importava, agora que perdera toda a esperança de sua vida. Foi quando Isabel de Lara o chamou carinhosamente:

— Meu filho, sente-se aqui, no lugar de seu pai, e escute o que lhe vou dizer.

Antônio sentou-se, um tanto constrangido. Houve um movimento geral de atenção e a nobre senhora, com a voz comovida, falou ao filho:

— Antônio, não foi por mal que pedi a seu pai que o não levasse ao sertão. Bem sei o quanto você é forte, corajoso e afoito. Mas de todos os seus irmãos, é o único que parece não ter a saúde perfeita. E, como dizem que sua doença foi causada por uma água que bebeu nas suas Correrias pelos campos, comecei a imaginar que, no sertão, você teria que beber muita água salobra e malsã, não é verdade, capitão Soares Pais?

— É verdade, sim, senhora D. Isabel, concordou o capitão­-mor, torcendo o bigode. Mas esse perigo é dos menores que podem acontecer a quem se aventura pelo sertão, pois pior que a água malsã é a falta da água... Antes que se apanhe alguma doença, morre-se de sede! E, se me permite discordar de um presságio de mãe, aconselho-a a que deixe o rapaz seguir o pendor de seu coração. Conheço de sobra a sua têmpera, e creio que ele vai fazer falta na bandeira.

— Pois bem, Antônio, não me oponho mais. Só depende, agora, do senhor seu pai...

Acabava de dizer isto, quando o marido entrou de novo na sala. Vinha de rosto risonho, cofiando a bela barba em ponta. Antônio ia erguer-se para ceder-lhe o lugar. Mas o pai descansou a mão pesada sobre o ombro do filho, dizendo-lhe:

— Fique onde está.

Arrastou, então, uma cadeira e, sentando-se ao seu lado, voltou-se para o escrivão e perguntou:

— Em que ponto paramos, senhor Franco de Brito? Ah! Já me lembro: foi no ponto em que me referia aos filhos que seguiam comigo na bandeira...

— Exatamente, senhor Castanho, informou o escrivão.

— Pois então, faça o favor de continuar a leitura.

O escrivão pigarreou duas vezes e continuou a ler o testamento, sob um inquietante silêncio. Antônio fremia de impaciência, e a custo se conservava calado.

Quando a leitura terminou, Luís Castanho deu a sua necessária aprovação:

— Está conforme. Só falta uma ressalva final... concluiu com um ar misterioso.

— Que ressalva, senhor? indagou o escrivão, intrigado, mas dispondo-se a escrever.

— Uma ressalva, acrescentando aos nomes de Luís, Joaquim e Diogo, o nome de Antônio.

Houve um oh! geral de surpresa. Antônio, mal acreditando no que ouvira, levantou-se e, voltando-se para o pai, disse-lhe com a voz repassada de profunda emoção:

— Obrigado, senhor meu pai!

Ato em seguida, beijou a mão de D. Isabel, que tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Obrigado, senhora minha mãe.

O escrivão escreveu e leu então a ressalva final:

“Declaro que onde foi dito meus filhos Luís, Joaquim e Diogo, digo meus filhos Luís, Joaquim, Diogo e Antônio. Perante o senhor juiz ordinário e dos órfãos Manuel de Brito Nogueira e as teste­munhas aqui firmadas, fiz este termo de ressalva. Manuel Franco de Brito tabelião e escrivão dos órfãos o escrevi”.

Luís Castanho assinou em primeiro lugar e, depois dele, assi­naram o juiz e as testemunhas padre Leme e capitão Soares Pais.

Terminada a cerimônia, todos se levantaram. Luís, Joaquim e Diogo precipitaram-se para abraçar o irmão:

— Parabéns, Antônio! disse o Luís.

— Você lavrou um tento! acrescentou Joaquim.

— Eu tinha certeza que você havia de ir, confiava em você, pois sei o quanto é cabeçudo! Nada como uma boa teimosia! concluiu Diogo.

Antônio retribuía os abraços dos irmãos, com os olhos molhados, mas sorrindo.

Enquanto a conversa se generalizava, o capitão Soares Pais aproximou-se do grupo formado pelos irmãos. Antônio aproveitou a ocasião para demonstrar-lhe seu reconhecimento e, estendendo-lhe a mão, disse:

— Muito agradecido, senhor capitão, pelas suas palavras à minha mãe.

— Não tem que agradecer... Foram justas! Eu também, para o ano, vou me atirar para o sertão e pretendo encontrá-los por lá. Seria um desgosto saber que o meu discípulo de armas lá não se encontraria, praticando as artes que lhe ensinei...

Padre Leme chegou-se também e dirigiu-se a Antônio, explicando-se:

— Não me leve a mal, senhor Antônio, por ter falado em obediência filial a vosmecê, que sei tão bom filho como seus irmãos. Já agora, na qualidade de sacerdote, posso inverter os papéis e con­fessar-lhe: aquela palavra que eu disse foi só para contentar a se­nhora sua mãe. Há tempos ela me pediu que influísse em seu espírito para que seguisse a carreira eclesiástica, conforme o ardente desejo do senhor seu avô materno, D. Diogo de Lara, o santo varão que Deus haja!... Isto se passou há seis anos, quando ele foi chamado ao tribunal divino. Desde essa ocasião, eu o tenho observado, e acabei desenganando a senhora sua mãe. Vocação não se contraria e a de vosmecê é para a luta do mundo e não para a vida de recolhimento e religião... Isso mesmo disse eu à senhora sua mãe, mas, apa­nhado de surpresa com aquela pergunta, não tive outra resposta no momento... Então, não me leva a mal?

— Ó não, senhor Vigário! Seria absurdo levá-lo a mal por tão pouco... respondeu o rapaz, com um sorriso contrafeito.

Houve novamente um silêncio embaraçoso. Antônio, porém, como quem revolve a própria ferida, informou:

— Acabo de encontrar Timóteo, que ia à vila visitá-lo, senhor Vigário.

— Ah! Aquele é outro que nasceu para o mundo. Não me aparece senão por interesse. Está perdido de amores, pensando em casar-se. E é só para isso que o irmão padre presta...

Nesse momento, Sabina voltava à sala, trazendo uma grande salva de prata, com uma peroleira de vinho e copos. D. Isabel tratou de servir os presentes. O juiz Manuel Nogueira empunhou o seu copo e brindou:

— Feliz jornada, senhor Luís Castanho!

— Que a Senhora do Rosário o leve e o traga! acrescentou padre Leme.

— À saúde dos bons amigos! correspondeu Luís Castanho.

Todos beberam à exceção de Antônio, que se afastara para a janela pois estava de novo sombrio e inquieto. O pai percebeu, aproximou-se dele e, não atinando com a razão da amargura, que seu rosto não podia ocultar, animou-o com uma saudação:

— Bravos, meu filho! Gostei da pertinácia! E fico muito honrado em saber que se julga no dever de acompanhar-me... Não quer beber também?

— Ó senhor meu pai! Já andei bebendo hoje...

— Já soube disso. O senhor Sargento já me havia dito...

— Ah! Então ele apresentou-lhe queixa de mim? perguntou Antônio, embaraçado.

— Queixa? Não, ao contrário. Pediu-me que lhe agradecesse o bom vinho que lhe ofereceu, e elogiou-lhe a valentia e a gentileza...

— Mas não lhe falou no caso do mestiço que livrei das mãos dos milicianos? perguntou admirado o moço.

— Sim, falou-me sim: com os maiores elogios à sua atitude, que considerou de um cavalheiro. Enfim, disse-me tais coisas, que voltei atrás na resolução tomada com sua mãe e acabei consentindo que me acompanhe...

— Ó senhor meu pai! exclamou o filho, agradecido.

— E a propósito, continuou Luís Castanho: que tal o mestiço? prestará para alguma coisa?

— Trata-se de um cholo do Peru, que veio com a bandeira do Bixira. É muito prático dos caminhos, conhece Potosi como a palma da mão e já praticou a arte dos metais, tendo chegado a ficar rico como azougueiro...

— Azougueiro? Que é lá isso?

— Diz ele que é o amalgamador, isto é, o que depura a prata, por meio do azougue...

— Ah! sim, belo achado! Pois então vamos incorporá-lo à ban­deira, que ele poderá prestar-nos bons serviços.

Um lampejo de alegria brilhou nos olhos do moço: enfim iria realizar a jornada de seu sonho, para as minas de prata fabulosas. E indagou, exaltado:

— Vamos a Potosi?

— Não, meu filho. Por enquanto, não. Só dispomos de vinte e oito arcos para acompanhar-nos. Ao todo, pois, inclusive o homem que vosmecê arranjou e Pereá, somamos só trinta e cinco. É bem pouco para enfrentar os ferozes índios serranos do Peru.

Antônio, que não pôde reprimir sua decepção, exclamou:

— Ora, eu pensava...

— Espere, filho! Eu não quero fracassar desta vez como da última guerra, em que tive de bater em retirada por escassez de guerreiros. Meu plano é o seguinte: Vamos, primeiro, ao sertão de Mato Grosso dos goiás, à conquista de bons arcos para a nossa bandeira. Uma vez reforçados e municiados, partiremos para aqueles sítios onde descansam os restos mortais do senhor meu pai, seu xará...

Nesse instante, a voz de Catarina chamou do pomar:

— Antônio! ó Antônio!

Antônio aproximou-se do parapeito da janela. A irmã viu-o e continuou:

— Chegue aqui, Antônio.

— Com sua licença, senhor meu pai. Vou atender a Catarina.

Dizendo isto, o moço saiu da sala, e foi ao encontro da irmã, enquanto as visitas começavam a despedir-se:

— Que há de novo? perguntou com o coração a saltar do peito, ao defrontar-se com a irmã, debaixo de uma frondosa nogueira.

— Duas ótimas novidades!

— Não há novidade boa para mim!... respondeu o rapaz, já desanimado.

— Não seja pateta! Se eu lhe estou dizendo...

— Pois então diga!

— Primeiro: Luzia contou-me tudo, mostrou-me a noz com a sua declaração...

— E repeliu-me...

— Sim, mas está arrependida.

— Não é verdade.

— Está sim. E ela própria lhe teria demonstrado isso, hoje mesmo. Mas, ao abrir a janela de novo, um minuto depois, não viu mais sinal de você...

— Quer dizer que ela não me despreza?

— Está claro!

— Que me aceita?

— Claríssimo, homem! E outra novidade ainda mais importante: falei ao Vicente e ele não se opôs...

— Não se opôs, Catarina?

— Não, só achou que você está ainda muito moço. Eu lhe disse que você era maduro, mas poderia esperar um pouco. Concordou e até ficou satisfeito porque no dia anterior aprovara a pre­tensão de Joaquim e Maria. Assim serão três casamentos entre as duas famílias... Como é? Não está contente?

— Não muito porque tenho um rival poderoso...

— Quem?

— Timóteo Leme. Não lhe disse? Hoje ele a pedirá em casamento, por intermédio de padre Leme, a seu cunhado frei Francisco do Rosário. Ele próprio me anunciou isso...

— Mau, mau... Meu cunhado frade não nega nada a padre Leme e o Vicente não nega nada ao irmão, a não ser que se comprometa com o senhor nosso pai. Por que você não fala francamente a nosso pai, agora mesmo?

— Impossível, Catarina; ele acaba de conceder que eu o acom­panhe ao sertão! Não acho jeito de fazer-lhe este novo pedido.

— Ora, eu pensei que você ficaria... Mas se você não tem coragem de pedir-lhe, peço-lhe eu...

— Não, Catarina, não... rogou-lhe Antônio, na maior ansiedade, agarrando-lhe as mãos.

A esperta irmã, porém, desvencilhando-se dele, correu para o alpendre. Antônio viu-a entrar na sala à procura do pai e, de súbito, sentiu um medo inexplicável de enfrentar-se de novo com o velho Luís Castanho. Correu, então, para os fundos do pomar, onde per­maneceu algum tempo, até que recobrou ânimo, percebendo que Pereá ia buscar os cavalos dos visitantes que estavam de saída. Aí voltou e ajudou o bugre a levar os animais até o alpendre onde os donos os esperavam. Montaram o juiz, o escrivão e o capitão-mor. Por último, o padre Leme.

Enquanto Antônio lhe ajeitava os estribos, o vigário perguntou a Luís Castanho:

— Para quando quer a bênção da partida?

— Para o último dia da lua nova, respondeu o bandeirante.

Os cavaleiros partiram. Luís Castanho, D. Isabel, Luís, Joaquim e Diogo ficaram dando adeus, enquanto Catarina discretamente apertava a mão de Antônio, dizendo:

— Meus parabéns! Pai prometeu falar com Vicente e frei Fran­cisco... Fique descansado! Ele mesmo lhe dará a resposta.

E então, no coração tormentoso de Antônio, rasgou-se um luar, como se despontasse o plenilúnio...

 

                                         O DIÁRIO DA BANDEIRA

1671 — outubro, 10 — Hoje, último dia de lua nova, empreendeu-se a jornada para o sertão de Mato Grosso dos goiás. Ao romper da manhã, padre Pedro Leme rezou missa no altar da Senhora do Rosário da Matriz de Santa Ana de Parnaíba, a que assistiram amigos, parentes e demais moradores da vila.

Dada a bênção e feitas as despedidas, partiu a bandeira: iam à frente cinco cavaleiros — o capitão Luís Castanho de Almeida e seus quatro filhos; seguia-se a tropa de arcos, constituída de pilotos, proeiros, remeiros e práticos de navegação, todos de nação carijó, acompanhados de dois capatazes de nomes Pereá e Mafaldo que, montados a cavalo, tangiam as mulas cargueiras. Ao todo sete ca­valeiros e vinte e oito infantes, acompanhados por uma boa matilha de cães de caça.

Dia 14 — Chegamos a Porto Feliz de Araritaguaba, depois de quatro dias de marcha, com pousos forçados pelo caminho. O capitão Luís Castanho, após o repouso necessário, ordenou se ulti­massem os preparativos para a partida, antes do amanhecer. Até à noite foram carregadas nove canoas, sendo quatro com sete palmos de largura e sessenta de comprimento, e as restantes menores, com tudo que era preciso para longa permanência no sertão, como man­timentos de boca, arratéis de pólvora e chumbo, cobertores de baeta, varas de algodão para roupas, drogas, fumo, sal, cana do Engenho de Itanhaém, afora armas, machados de falquejar e instrumentos de trabalhar a terra e talhar a madeira.

Dia 15 — Às três horas da manhã, o capitão da bandeira deu às canoas ordem de largar. E imediatamente os remeiros a postos lançaram os remos na água e as canoas começaram a navegar pelo Tietê abaixo. A lua crescente clareava a noite. O capataz Mafaldo entoava cantigas ao som de sua guitarra. Os cães latiam. Reinava alegria geral. Ao amanhecer, transpusemos as barrancas do Capivari-Mirim e, durante o dia, os rios Sorocaba e Cacatu, afora outros pequenos ribeirões. Pousada no rancho do Baquari, que existe à margem oriental do rio.

Dia 16 — Continuação da viagem em meio a matas frondosas até um formoso ribeirão chamado Moquem. Aí foram soltos os cães de caça, que acuaram um suçuapara que eu, Diogo de Lara e Morais, escrivão da bandeira, tive o prazer de abater com a minha escopeta. Era um grande veado, tão grande como uma novilha, que nos serviu de banquete. Pousada junto à embocadura do rio Jatai.

Dia 17 — Aportamos à ilha Banharão-Mirim e uma canoa foi destacada para pescar. Recolhemos muitos peixes de grande porte, entre os quais cinco dourados, que nos serviram para o jantar e a ceia. À tarde franqueamos a barra do rio Piracicaba.

Dia 18 — O rio se alarga da barra para diante, tornando-se ma­jestoso. Logo abaixo de Banharão, surgiu uma cachoeira pequena que foi transposta sem dificuldade. Alcançamos, então, o estirão de Potonduba com a lua cheia e aí paramos.

Dia 19 — Saída do pouso ao romper do sol. Continuamos a navegar para a cachoeira Bauru, que foi transposta com as canoas a meia carga, sendo o restante passado por terra. Logo em seguida vencemos as cachoeiras Bariri-Mirim e Bariri-Guaçu, esta bem extensa e tortuosa. Pouso na cabeceira da cachoeira do Sapé. Das pró­prias canoas matamos jacutingas e patos silvestres que os cães foram buscar.

Dia 20 — Vencemos as cachoeiras do Sapé e Congonhas. Caça­da de uma anta e um quatimunde. Pousada na cabeceira da ca­choeira Itambé-Pirica.

Dia 21 — Quando o sol apontava, continuamos a atravessar a barra dos rios Jacaré-Pepira e Jacaré-Guaçu e alcançamos a cachoeira de Guainicanga, muito extensa e pedregosa, exigindo cuida­dos especiais, o que não impediu se avariasse um batelão que foi preciso varar em terra para o devido conserto.

Dia 22 — Manhã chuvosa. O capitão, entretanto, ordenou a largada sob o aguaceiro. Fizemos uma feliz passagem por Tambá-Piririca, Escaramuça do Gato, Tambaú e muitas ilhas. Numa delas, Pereá e alguns tripulantes, furando a areia com paus, descobriram ninhadas de ovos de tartarugas que toda a tripulação comeu e muito apreciou. Seguimos, então, pelo rio Morto que vai até o salto de Baiandaba. Pouso no Vara Velho.

Dia 23 — Passamos a manhã caçando e pescando. Apanhamos uma gorda anta, que assamos no espeto, num bom rancho impro­visado na ilha do Meio, onde se descobriu uma abelheira que nos forneceu copioso mel e excelente cera.

Dia 24 — Às nove horas passamos a barra do Ribeirão do Cam­po, em cujas cercanias foram armadas cabanas com teto de capim e jiraus altos para depositar os víveres. As canoas foram descarre­gadas para passarem as grandes e sucessivas cachoeiras que existem entre os imensos saltos de Baiandaba e Itapura. O primeiro se despenha por seis canais diferentes.

Dia 25 — Procedeu-se à varação de canoas por terra, num caminho de cerca de quinhentas braças. O rio corre meia légua apertado entre pedras.

Dia 26 — Travessia do Escaramuça Grande e do salto de Itupanema.

Dia 28 — Ontem e hoje transpusemos as cachoeiras da ilha do Mato Seco, das Ondas Grandes, das Ondas Pequenas, do Funil Pe­queno e do Funil Grande. Ao fim da tarde de hoje, tivemos um ataque à traição de índios que, ocultos na mata virgem, flecharam um proeiro que caiu na água. Socorrido o infeliz, foi levado para a margem. Mas ferido à altura do coração, morreu em poucos minutos. Preparou-se uma cruz e, ao anoitecer, essa primeira vítima foi sepultada. O capitão não permitiu que a tropa se embrenhasse na mata para perseguir os atacantes.

Dia 29 — Passagem de Guacurituba e Aracanguá-Mirim. Aqui foi necessário dobrar pilotos e proeiros em cada canoa. A fim de evitar nova surpresa dos selvagens, o capitão resolveu que a pousada fosse numa ilha.

Dia 30 — Logo pela manhã, foi procedida a varação para a passagem da cachoeira de Aracanguaçu e assim por diante por mais cinco quedas-d’água.

Dia 31 — Passamos a manhã e a tarde fazendo a varação por mais duas cachoeiras até Três Irmãos, que foi transposta à tardinha. As águas se dilataram e, com elas, multiplicaram-se os infernais mosquitos-pólvora.

Novembro 1 — Alcançamos afinal o grande salto Itapura que foi varado com felicidade. Em homenagem ao dia de Todos os Santos, o capitão concedeu descanso geral, depois de instalar a bandeira na ilha situada quase na confluência do Tietê com o Paraná. Houve pescaria muito proveitosa de jaús, dourados e piracambuçus. Caça­ram duas pacas, um veado-virá e muitas jacutingas. Ao cair da tarde, fizeram uma caçada melhor, surpreendendo três índios pes­cando e os capturaram. Com receio de que fugissem, quiseram bo­tar-lhes correntes. O capitão, porém, não permitiu. Ao contrário, ofereceu-lhes presentes de espelhos e colares de contas, deu-lhes de comer e recolheu-os à ilha onde ficaram livres mas sob vigilância.

Dia 2 — Com mudança da lua, o tempo transtornou-se. Sobreveio uma grande tempestade durante a noite, que zombou dos abrigos improvisados. Ninguém pôde dormir com a violência dos raios e trovões. Quando, pela manhã, a tormenta amainou, verifi­camos a extensão do prejuízo, em conseqüência do desabamento de um jirau. Perdemos, nesse acidente, boa parte de nossas provi­sões e lá se foi todo o nosso papel de escrever, arrastado pela en­xurrada. Salvaram-se, apenas, desse desastre as nozes contidas em cinco bruacas, porque não se deixam penetrar pela água. O restante da carga, inclusive a pólvora, ficou indene por ter sido recolhido a jiraus seguros e bem cobertos.

Em conseqüência da falta de papel, eu, Diogo de Lara e Morais, escrivão da bandeira, encerro aqui este diário sobre a jornada que o capitão Luís Castanho de Almeida empreendeu ao Mato Grosso dos goiás, no dia 10 de outubro do ano de 1671, e que Deus Nosso Senhor há de levar a bom termo.

 

                                                 NO SERTÃO DE ANICUNS

No dia 9 de novembro, a monção iniciou a penosa subida do rio Paraná. Ia fazer um mês que aquele punhado de aventurosos bandeirantes tinha saído de Parnaíba para “buscar o seu remé­dio”, eufemismo usado na época a fim de suavizar a dura expres­são da verdade, que consistia em prear índios e trazê-los acorrenta­dos para trabalhar nas lavouras da vila.

A captura dos três selvagens pareceu de bom augúrio a Luís Castanho que os examinou, admirou-lhes a compleição atlética e concluiu:

— Perdi um e ganhei três. Parece que são boas peças. Acamaradaram-se com a tropa facilmente, sinal de que se acostumarão depressa com a nova vida...

Apesar de sua prudência, o valoroso cabo enganou-se com a aparência dócil dos selvagens. Eram caiapós, os mais terríveis índios daquele sertão. Infestavam uma vasta área, vivendo de corso. Ele mesmo conhecia por fama e por experiência própria, o quanto era perigosa aquela nação de selvagens. Tanto que recomendou expres­samente aos capatazes que exercessem a maior vigilância na tropa, para não entrar em contato com as aldeias caiapós, cuja proximidade era denunciada de quando em vez por uma longa espiral de fumaça, perdendo-se no horizonte longínquo...

Mal sabia ele, porém, que acolhera inimigos dentro de casa! E que só muito tardiamente ia verificar isso.

Os três prisioneiros em poucos dias começaram a ter entendi­mentos secretos com os carijós e a despertar-lhes o instinto de rebe­lião e liberdade.

As canoas foram varadas por terra para a travessia da grande cachoeira de Urubupungá. O mesmo foi feito para muitas passagens perigosas até à confluência do rio Grande e do Paranaíba, geradores do rio Paraná. Subindo o Paranaíba, venceram a cachoeira de Santa Ana e assim sucessivamente a de S. Simão, Praião e Dourados, até o rio Meia Ponte que, devido à seca, só é navegável numa parte do ano. Mas, como já estavam naquele ponto no começo da estação das águas, o rio dava altura suficiente para os batelões mais pesados. E a monção rumou por ele acima, sofrendo os acidentes do costume, interrompendo a viagem para caçar, pescar e repousar, sempre cor­rendo o perigo de receber flechas disparadas da mata espessa por arqueiros invisíveis.

No entardecer do dia 3 de dezembro, subitamente uma nuvem de flechas caiu sobre a bandeira, ferindo seis carijós nas pernas e nos braços! Imediatamente Luís Castanho ordenou alto e mandou encostar as canoas a um elevado barranco da margem direita. Essa manobra, feita com rapidez, pôs momentaneamente a tripulação a salvo de novos flechaços, pois era da mata que perlonga a margem direita que partira o ataque. Foram disparados, em resposta, tiros de escopeta naquela direção e a perspectiva de um ataque em massa pareceu afastada.

Era evidente o grande número de selvagens que, de há muito, vinha perseguindo os bandeirantes. E Luís Castanho, receando a renovação do ataque, não quis prosseguir. Não havia vantagem em entrar em luta com índios emboscados. Ele pretendia aumentar o número de guerreiros conquistando índios goiás, levando-os por bem, à força de agrados e presentes. Já conhecidos de alguns sertanistas por sua cor clara e seu gênio dócil, os goiás viviam em ocaras, espa­lhadas ao norte das nascentes do Meia Ponte, do outro lado da serra de Santa Rita, sertão chamado de Anicuns.

Mandou, pois, improvisar um rancho fortificado no alto do barranco, da margem direita, para pousada naquela noite. E ordenou que se construísse uma estreita ponte sobre o rio, para, na ma­nhã seguinte, ser dada uma batida completa ao longo das duas mar­gens e assim poder prosseguir sem mais surpresas desagradáveis.

Os ferimentos produzidos pelas flechas eram de natureza leve. E uma vez pensados, os feridos foram recolhidos ao rancho para repouso.

— Amanhã tudo bom pra outra! afirmou Pereá, que, além de capataz, era o enfermeiro e curador da tropa.

Na manhã seguinte, Antônio, Pereá e Mafaldo pela margem esquerda, e Joaquim e Diogo pela direita, escoltados por alguns ca­rijós e cães, penetraram profundamente nos matagais, à cata de vestí­gios dos bárbaros.

Da tranqueira construída no barranco, o capitão Castanho e o filho mais velho ouviam, de vez em quando, tiros de escopeta e la­tidos de cães que partiam da margem esquerda e reboavam pela ma­ta. Ficaram apreensivos...

Por volta do meio-dia, Joaquim e Diogo estavam de volta ao rancho.

— Encontraram alguma coisa? indagou-lhes o capitão,

— Nada, responderam.

Meia hora depois, foi avistado, na outra margem, o grupo che­fiado por Antônio.

— Viram alguma novidade? perguntou o pai ansioso, antes mesmo que eles atravessassem a pinguela feita de um comprido tronco.

— Apenas uma fumaça para além da serra que fica ao norte, respondeu Antônio.

— E por que deram os tiros?

— Já explico a vosmecê.

Então, do alto do barranco, o capitão viu, atravessando a ponte nos ombros dos carijós — seis caitetus de munhecas atadas e pen­durados em varas.

Essa primeira caçada, dirigida por Antônio, foi festejada condignamente. O capitão mandou distribuir um pouco de aguardente a todos para regar o banquete de porcos do mato. Mafaldo ficou tão entusiasmado com a cana, que não podia estar bebendo todos os dias, que brindou:

— Vivam os porcos!

Todos concordaram com os vivas, e com certeza os cães também o fizeram, pois se regalaram com as sobras...

Após o jantar, enquanto o cholo divertia a tropa com seus can­tos ao som da guitarra, Antônio teve uma conversa particular com o pai e os irmãos:

— Senhor meu pai, observou ele, eu tenho posto reparo na tropa e acho-a desassossegada... Interroguei Pereá e Mafaldo e eles desconfiam de que há qualquer confabulação entre os carijós, pois deram de falar entre si com voz tão baixa que é difícil pegar uma palavra do que dizem...

O capitão Luís Castanho ouvia atento, sem dizer palavra. An­tônio continuou:

— Pereá, que lhes compreende bem a língua, interpelou-os a propósito desses mistérios e eles não responderam. Só se limitaram a sorrir... E cada vez se dão mais com os caiapós...

— Você tem razão, Antônio, concordou Joaquim. Já observei que cada vez se mostram mais lerdos para cumprir nossas ordens. Diogo teve de encostar a escopeta ao rim de Sariguê para obrigá-lo a acompanhar-nos esta manhã...

— Com o pretexto de haver cravado um espinho de juçara no pé, ia ficando para trás, explicou Diogo. Eu e Joaquim, porém, que andamos de olho nele, demos-lhe ordem de caminhar de qualquer jeito, nem que fosse num pé só... Pois não é que o desavergonhado se sentou no chão, negando-se a andar? Ah! Não tive dúvida: encos­tei-lhe a boca da arma nas costas. Então, ergueu-se muito lampeiro, e começou a correr à nossa frente, sem manquejar!...

— O que vosmecês me contam, meus filhos, é grave. É preciso ter mão neles, trazê-los de cabresto curto, e, ao primeiro que der um sinal de rebeldia, castigá-lo exemplarmente...

Luís, por sua vez, lembrou:

— Acho prudente acorrentar os caiapós e isolá-los do convívio geral. Escuto, seguidamente, pios de aves como jaós, macucos e urutaus, e tenho verificado que são eles que os imitam. Não me parece que essa imitação seja um mero divertimento... E a maioria de nossos administrados imitam esses pios também. Não lhe parece, senhor meu pai, que eles estão usando a linguagem dos avisos à dis­tância?!

— Nem há dúvida, Luís. Eu também tenho ouvido. Estão tramando alguma coisa, não direi uma revolta, mas provavelmente uma fuga. Mas não vamos dar mostra de desconfiança, para que eles possam ter uma lição definitiva... Cada um de vocês tome conta de um grupo de cinco. O mestiço e Pereá, por sua vez, vigiarão outros tantos. E a qualquer veleidade de traição castiguem para escarmento da tropa.

Antônio, porém, que era o mais pessimista dos irmãos, apresentou uma dúvida:

— Senhor meu pai, se continuamos em monção rio acima, cor­remos o risco de vê-los fugir sem poder fazer nada. Conhecemos bem os nossos carijós: todos eles nadam e mergulham melhor que uma lontra. No rio Tietê, em Parnaíba, apostei resistência de fô­lego com muitos deles, e só pude vencer alguns...

— Ah! Não pensemos nisso, ponderou Luís Castanho. Eles não se atrevem a tanto, pois temem os balaços de nossas armas em suas cabeças. Por melhor que nadem, de cima das canoas podere­mos caçá-los à vontade: a água, meu filho, não é esconderijo como o mato.

— Mas que são sete escopetas, insistiu Antônio, para trinta cabeças que mergulhem e se afastem?! E se a fuga se der à noite?! Quem poderá acertar neles em plena escuridão?

— Bem se vê, Antônio, que você é marinheiro de primeira viagem: eles não serão tolos de fugir à noite, sem armas e sem mantimentos, para enfrentar assim a mata desconhecida...

— Desconhecida para os carijós, mas não para os caiapós. E uma coisa me diz que estes três, com suas caras risonhas e sua apa­rência inocente, serão as almas danadas do que está para aconte­cer...

— Não vai acontecer nada se fizermos como aconselhei, concluiu o pai. Mas para contentar você, Antônio, vamos encerrar aqui a viagem por água. Deixaremos as canoas acorrentadas a um bom varadouro, ao pé deste rancho, e seguiremos por terra. Nosso obje­tivo não está longe. Em dois ou três dias estaremos no sopé da serra onde faremos nosso pouso definitivo até conseguir conquistar os goiás, que vivem do outro lado. Na volta apanharemos as canoas...

O espírito apreensivo de Antônio ficou mais satisfeito com essa solução. Sem perda de tempo, deu andamento ao trabalho. Sob seu olhar perscrutador e severo, os bugres limparam um trecho bai­xo da margem, onde fosse possível encalhar as embarcações. À noi­tinha o varadouro estava pronto e as canoas, postas no seco, pu­deram ser firmemente acorrentadas a grossos troncos de árvores.

No dia seguinte foi empreendida a marcha por terra. As cangas foram atravessadas pela ponte para a margem esquerda, nos om­bros dos carijós. Os próprios caiapós carregavam pesadas bruacas, sob a rigorosa fiscalização de Mafaldo, que não os deixava trocar palavra com os administrados. Quando toda a bandeira se encon­trava na margem oposta, foi feita uma refeição em conjunto, rápida mas reforçada, e então reorganizada a marcha: uma vez enquadra­dos os bugres, com um vigia a cavalo para cada grupo de cinco in­fantes, rumaram todos para a vertente sudeste da serra de Santa Rita, ora subindo rente ao rio, ora afastando-se e abrindo picadas na mata.

Depois de uma exaustiva caminhada de dois dias, atingiram, num fim de tarde, o local visado: era uma aprazível chapada coberta de um carandazal cerrado. Para o norte e para o oeste, avultava o perfil majestoso da serra.

Então o capitão deu alto à tropa e providenciou a construção de ranchos fortificados. Dali investiriam contra os goiás que, conforme tudo indicava, não seriam difíceis de vencer por bem.

Estavam a 15 de dezembro. Na noite desse dia, a bandeira, que se embrenhara na selva sob o comando de Luís Castanho, ia dormir, pela primeira vez, em pleno sertão de Anicuns.

O fato de haver alcançado seu primeiro objetivo, enchia de contentamento e esperança o coração do chefe que não suspeitava, sequer, a possibilidade de um malogro. No entanto, achava-se às vésperas de encerrar, da maneira mais trágica possível, sua temerosa aventura...

 

                                     A NOITE DE NATAL

Para construir o arranchamento, foi mister abrir um claro na mata de carandás, próximo às barrancas do rio. Foram derrubados mais de cem pés da preciosa palmeira e, de seus próprios espiques, rachados de meio a meio, foi feita a paliçada em torno do rancho central, com uma saída única para o lado do rio. Assim, no caso de um ataque de surpresa, teriam defesa sólida e poderiam manter-se ou retirar-se com segurança, segundo pensava Luís Casta­nho. Dentro dessa paliçada, foram construídos também uma cochei­ra para os animais e um depósito para os mantimentos, a pólvora, o chumbo e as armas, inclusive os arcos e as flechas da tropa, que dor­mia desarmada.

No lado de fora construiu-se um rancho com bastante espaço a fim de alojar os trinta bugres, afora os vigias Pereá e Mafaldo, que se revezariam à noite, em plantão permanente, à luz da candeia de cera.

Ao mesmo tempo em que se completava a construção sob o olhar intransigente dos capatazes, que não davam tréguas aos bugres e só os deixavam descansar em curtos intervalos, Luís Castanho orde­nou uma batida pela redondeza: Luís e Diogo foram explorar o carandazal e Joaquim e Antônio propuseram-se a escalar a serra e dar uma vista à vertente oposta.

Enquanto estes dois irmãos, seguidos pelos cachorros, escala­vam a montanha com incrível dificuldade, Joaquim expandia suas queixas de maneira jocosa:

— Ah! por que nasce tanto cipó para embaraçar-nos as pernas e tanto arranha-gato para ferir o rosto e as mãos da gente?

Antônio, sempre sombrio, metido com seus pensamentos, res­mungou:

— Ainda se queixa, você que é um felizardo?!...

— Felizardo, por quê?! indagou Joaquim.

— Porque falou à Maria, antes de partir, e tem a certeza de que ela o espera.

— E você, por acaso, não viu Luzia também?

— Sim, vi-a na igreja, mas não falei com ela.

— Então, mano, desculpe: você é um grande tolo...

— Não falei nem teria jeito para isso. Você bem sabe que nossos casos são diferentes: você é maior e conseguiu adiantar-se na sua pretensão... Assim despediu-se de Maria na qualidade de pro­metido. Eu, porém, tive de esperar a intervenção de nosso pai e es­sa...

— Falhou?

— Pelo menos parece: até à hora da partida não soube do resultado...

— E agora?

— Continuo na mesma... Pai prometeu a Catarina comunicar-me diretamente o resultado de sua conversa com o Vicente e, até hoje, não me deu palavra sobre o assunto.

— E você não perguntou nada?

— Não.

— Que é que espera?... Qual! Quando digo que você procedeu como um tonto, não exagero. Por que não o fez?... Oportuni­dades não lhe têm faltado...

— Não tive ânimo, Joaquim.

— E onde está a sua bela coragem?

— Não zombe, mano! Quem é feliz como você, não compreende a timidez de quem não tem sorte... Se pai nada me disse até agora, é porque nada de bom tem para me dizer!...

— Ora, não seja assim pessimista! Naturalmente o assunto pa­ra ele não tem a importância que tem para você... Na série de atribulações que a organização da bandeira lhe acarretou, não lhe sobrou vagar para tocar-lhe na questão... Você não ignora que antes de partir, ele esteve em S. Paulo e em Porto Feliz.

— Se ele não teve vagar para falar, muito menos para tratar do assunto, respondeu Antônio. E é isso que me atormenta... É por essa razão, com certeza, que nada me diz a respeito. Trata-me muito bem...

— Melhor que a mim, ao Diogo e ao Luís... Já percebemos.

— Sim, e é justamente essa diferença de tratamento que me convence de que não cumpriu a promessa feita a Catarina.

— Mas Catarina não lhe falou sobre o caso, antes de nossa partida?

— Falou as coisas de sempre: que eu ficasse tranqüilo, que o Vicente já fora avisado, que nosso pai ia procurá-lo, que confiasse no amor de Luzia...

— E então, homem? Que mais quer você?

— A certeza de que Timóteo não se casaria com ela na minha ausência. Se Pai não falou a tempo, está tudo perdido, concluiu ele, com os olhos brilhantes e salientes e o tremor das mãos acentuado, como de costume, na razão direta de sua emoção.

Joaquim teve pena dele e animou-o, dizendo:

— O que não tem remédio, remediado está... Você só tem a fazer uma coisa, para livrar-se dessa dúvida: é falar francamente a nosso pai. Fale hoje mesmo!

— Hoje, não!

— Hoje, não, por quê? Que é que você teme, rapaz?

Antônio não respondeu. Temia ser desenganado, de uma vez. para sempre, do seu grande amor. Temia a confirmação de uma ter­rível verdade, que suspeitava, angustiado.

Estavam chegando ao espigão da serra e, em breve, vislumbravam o panorama da vertente oposta: num socavão de morros, uma grande aldeia, rios correndo para o norte e para o oeste, entre paredões de cerrado fechado.

A temperatura agradável daquela altitude compensava o esfor­ço e as agruras da subida. Mas não a puderam ficar apreciando pois tinham pressa de voltar a fim de anunciar a Luís Castanho a feliz descoberta. Esta causou um alegrão geral na bandeira; confirmavam-se as informações obtidas com sertanistas experimentados: lá, do outro lado da serra de Santa Rita, havia uma grande aldeia, onde residiam os cobiçados goiás!

O contentamento do chefe foi tal, que pensou logo em entrar em negociações imediatas com aqueles selvagens, oferecendo-lhes presentes. Como, porém, no momento, se sentisse indisposto, resol­veu guardar-se para fazê-lo mais tarde.

Na véspera do Natal, a indisposição aumentou. Apesar de haver um sol de verão, sentia um frio de tremer. Para não alarmar os filhos, tentou aparentar boa saúde. Antônio, no entanto, vendo-o bater o queixo, disse-lhe:

— Senhor pai está com a febre!

— Não tem importância, filho. Isto passa!

Mas não passou. Pela tardinha, como a tremedeira lhe tomas­se conta de todo o corpo, o capitão Luís Castanho disfarçou e foi para a sua rede, onde se deitou, cobrindo-se o melhor que podia. O frio, porém, não passava.

Em meio à faina geral, Antônio deu por falta do pai. Procurou-o e foi encontrá-lo tiritando, com a testa a queimar de febre. Aproximou-se, então, e lhe falou com ternura:

— Senhor pai, que é que vosmecê sente?

— Hein?! Quem está falando aí? perguntou o velho bandeirante, já meio fora de si, quase sem ver, na penumbra do rancho.

— Sou eu, seu filho Antônio. Está doente?

— É a carneirada, meu filho. É a pior inimiga do sertanista...

— Vou buscar uma boa mezinha para vosmecê. Mafaldo me mostrou umas cascas de quina que trouxe do Peru. Disse-me que são um santo remédio para essa febre.

— Ah! meu filho! Ele tem quina do Peru! indagou o pai, segurando-se à borda da rede, num esforço visível para erguer-se, e enca­rando Antônio nos olhos.

— Tem, meu pai.

— Então estou salvo, meu filho! Mande aprontar um chá bem forte para mim...

Antônio afastou-se solícito. Àquela hora o fogo ardia sob os imensos caldeirões, preparando a comida do dia imediato, conforme o hábito. Foi fácil ao moço preparar a mezinha prometida, que produziu um violento e benéfico suadouro. E, na manhã seguinte, Luís Castanho era outro.

Antes de sair da rede, mandou chamar Mafaldo a fim de agra­decer-lhe. O mestiço veio sorrindo, com uma binga de chifre de boi pendurada a tiracolo. Ao entrar no rancho, fez profunda reve­rência e exclamou:

— Às suas ordens, senhor!

— Mafaldo! falou Luís Castanho. Abençoada seja a quina que vosmecê me deu. Sinto-me bem. Creio que estou curado. Poupe essa casca maravilhosa E agora vosmecê tem direito a um presen­te...

Assim falando, o bandeirante abriu uma frasqueira, retirou dela uma garrafa de aguardente e entregou-a ao mestiço. Este, arrega­lando os olhos, agradeceu com muitas mesuras, recuando sem dar as costas ao chefe:

— Obrigado, senhor! Muito obrigado!

Antônio, porém, que assistia à cena, cortou-lhe o entusiasmo, recomendando rispidamente:

— Não beba muito! Lembre-se de que hoje é seu dia de plantão no rancho e de sua vigilância depende a vida de todos nós! Se à manhã essa garrafa estiver vazia, dar-lhe-ei severo castigo!

— Um golinho só, senhor! explicava o matreiro cholo, antegozando o prazer que previa.

— Deixe-o beber por hoje, Antônio, disse compassivo, Luís Castanho.

— O senhor não sabe quanto esse homem bebe, meu pai. É capaz de emborcar essa aguardente toda e ainda achar pouco...

Afagando a enorme garrafa de aguardente, Mafaldo conseguiu, afinal, retirar-se. Mas não tardou que surtisse o efeito do precioso presente do chefe: a guitarra começava a vibrar, como a voz de um pássaro estranho, em plena solidão sertaneja...

Como era dia de Natal e os ranchos estavam prontos, foi dada relativa liberdade aos bugres. À noite acendeu-se uma boa fogueira em torno da qual administrados, capatazes e chefes se sentaram, ouvindo Mafaldo que, num crescendo de animação, cantou todas as cantigas que sabia, ao som da guitarra. Pereá serviu uma bebida feita de coco de carandá e aguardente, que foi muito bem recebida e apre­ciada. Luís, Diogo, e até o velho bandeirante aplaudiam o cholo com entusiasmo. A bugrada, que não entendia patavina do que ele can­tava, fazia coro, com as palmas, igualmente divertida...

Só Antônio, dentro do rancho, não participava da alegria cole­tiva. Joaquim, que se esforçava sempre por fazer-lhe companhia, o animava, dizendo:

— Fale com o pai agora. Não pode haver melhor oportunidade! Ele está camarada como nunca!

O moço fazia um gesto de desconsolo, dava alguns passos sem destino, de um jirau a outro, sentava-se no baú-de-boi e enclavinhava os dedos, demonstrando sempre aquela ansiedade sem remédio, enquanto lá de fora vinha a mesma voz roufenha, muito sua co­nhecida:

 

Hasta los paios del monte

Tienen su destinación:

Nascen unos para santos

otros para hacer carbón... *

 

* Até as madeiras do monte / Têm a sua vocação: / Umas nascem pra ser santos / Outras pra virar carvão...

 

Sim, ele não o ignorava: se até aos paus nascidos nos montes eram dados destinos diferentes, quanto mais às criaturas!... Nem todos tinham direito à felicidade, por certo... Para uns — o amor, o ideal, a glória sempre ao alcance da mão! Para outros — humi­lhações, deformidades, sacrifícios anônimos...

Fora, o movimento recrudescia, enchendo o ar da noite silenciosa de ritmos, gargalhadas, palmas... Luís Castanho contaminara-se da alegria geral e uma sensação de tranqüilidade e bem-estar invadiu seu coração...

Reanimado com a descoberta da aldeia goiá e com seu restabelecimento, que se confirmava, e, por outro lado, acostumado com o espetáculo de submissão permanente dos índios carijós, seus dóceis administrados de tantos anos, não acreditou mais na possibilidade de uma traição...

Seus homens se mostravam despreocupados e felizes e seria preciso, realmente, grande dose de má-fé para supor que algum sentimento de revolta se aninhasse em suas almas...

 

                                     TRÁGICA MADRUGADA

Naquela noite, recolheram-se tarde... Mas, em breve, reinava silêncio absoluto nos ranchos. Como lembrança do dia festivo, restava apenas uma tênue fumaça, desprendendo-se da fogueira recentemente apagada e perdendo-se na noite negra, crivada de es­trelas cintilantes. De vez em quando um vago murmúrio percorria a solidão. Era o vento fresco da serra agitando as palmas do caran­dazal. E era só. Até os cães, que haviam corrido muito durante o dia, estavam mudos.

Com exceção de Antônio, toda a bandeira dormia. Ele, porém, de olhos secos, ouvia o ressonar dos irmãos e do pai, virava para um lado da rede, virava para o outro, sem conseguir tirar uma idéia da cabeça: pensava em Luzia Mendonça. Via-a, vestida de noiva, caminhando de braço dado com Timóteo. Não podia suportar essa visão! Mas, por mais que fechasse os olhos ou os abrisse para o negrume do rancho, o quadro o perseguia...

Se lhe fosse possível odiar a quem amava, ele a odiaria... Perseguido por esses pensamentos, só alta noite conseguiu cair numa espécie de madorna. Mas, de repente, passou-lhe a sonolência em sobressalto: pareceu-lhe ouvir, próximo ao rancho, um restolhar de palmas secas... Idiota que sou! pensou ele. Estou com a cabeça cheia de visagens. Com certeza é o Pajé ou uma das mulas que está mastigando um resto de capim...

Mas logo o rosnar de um cão lhe avivou a suspeita. Ficou imóvel na rede, concentrando os sentidos num só. O rosnar, porém, cessou. Provavelmente o cão sentira a proximidade de um gato do mato ou de um guaxinim, explicou-se ele, consigo mesmo, fazendo o possível para relaxar os nervos. Mas não encontrou jeito de mi­norar a sua tensão de espírito. E nessa luta levou um tempo que lhe pareceu enorme. Afinal, vendo que não se continha, resolveu ir espairecer, olhando a noite. Com muita cautela, saltou da rede, aproximou-se da porta e abriu-a. Foi, então, que ouviu o pio plangente de urutau... Ah! o sinistro aviso selvagem! A mais impres­sionante voz da solidão noturna!... Tratar-se-ia mesmo de um urutau gemendo e contando, segundo a lenda, que o seu amor morreu?! Ou seria... Olhou para todos os lados e nada viu de suspeito: só viu a treva e estrelas muito altas!

Quando ia fechar a porta, reparou que a luz do rancho dos bugres estava apagada, contra a expressa ordem do pai. Imediatamente voltou, buscou a roupa às apalpadelas, vestiu-se, calçou as botas, agarrou na escopeta e acordou Luís, dizendo:

— Luís, aconteceu alguma novidade!

O irmão mais velho despertou a custo e indagou:

— Que é que há?

— A candeia do rancho está apagada...

— Com certeza o Mafaldo não agüentou a bebedeira e dormiu. Mas não tem importância. Vamos lá acordá-lo para reacender a candeia.

— Acho melhor levarmos conosco o Joaquim e o Diogo.

— Sim, mas tenha cuidado para não acordar nosso pai que não dormiu direito ontem, recomendou Luís.

Diogo e Joaquim foram despertados e se aprontaram num abrir e fechar de olhos, munindo-se também de suas escopetas. E assim saíram os quatro ao terreiro. Iam, no entanto, transpor o portão da paliçada, quando Antônio, olhando na direção do depósito de armas, percebeu um vulto que dele ia saindo. E deu alarma:

— Estão assaltando o depósito!

Com a rapidez do raio, levou a arma à altura do rosto e atirou naquela direção. O tiro reboou com um eco longínquo. Incontinenti, a cachorrada se pôs a latir em coro, enquanto os cavalos, na co­cheira, relinchavam assustados.

O vulto cambaleou, caiu e foi se arrastando pelo chão, ao mesmo tempo em que outros vultos saíam do depósito carregando alguma coisa e correndo na direção do rio.

— Vamos a eles! bradou Antônio.

Os quatro irmãos se lançaram em perseguição dos traidores. Três novos tiros estrondaram. Os vultos alcançaram a barranca do rio, caíram de bruços, e atiraram-se à água. Os irmãos tentaram vislumbrar as cabeças dos fugitivos. Elas, porém, já se haviam fun­dido na treva...

Enquanto isso se passava, Luís Castanho, tendo despertado com o primeiro tiro, acendera a candeia de cera e, com ela, imprudente­mente, saiu ao terreiro. Ao vê-lo, o vulto que rastejava pôs-se de pé, retesou o arco que acabara de roubar ao depósito, e disparou-o. Atingido pela flecha no ventre, o velho bandeirante soltou um grito:

— Acudam aqui, meus filhos!

E deixou a candeia cair no chão e apagar-se. Os moços correram para acudi-lo. O vulto caminhou, cambaleante, até o portão da paliçada e tentou pular por cima dele. Mas Antônio conseguiu alcançá-lo, deu-lhe uma forte coronhada na cabeça e derrubou-o de uma vez, enquanto os irmãos carregavam o pai para dentro do rancho.

Empurrando o vulto com a bota, Antônio perguntou:

— Quem é você, cão traidor?

E, como não obtivesse resposta, calcando-o com o pé, insistiu:

— Vamos, fale!

Então, uma voz estrangulada respondeu-lhe:

— Sariguê!

Nesse momento, Joaquim, saindo do rancho, foi ao encontro do irmão e chamou-o:

— Depressa, Antônio! O pai está chamando!

Os dois entraram no rancho, já iluminado, e cerraram a porta. Sariguê ficou estendido no chão, a gemer surdamente, rodeado pelos cães, que o farejavam. Agora, estava explicada a razão por que estes não haviam latido para os assaltantes: era Sariguê, em Par­naíba, quem lhes dava de comer...

— Antônio, meu filho... disse arquejante Luís Castanho ao ver entrar o filho mais moço. Mandei chamá-lo porque preciso falar a todos e pouco tempo me resta de vida...

Enquanto ele falava, Luís e Diogo, que já lhe haviam arrancado a flecha do ferimento, tiravam-lhe a camisa empapada de sangue.

— Enfaixem-me o ventre e deitem-me no chão, que não me agüento mais nas pernas...

Mais que depressa, Joaquim apanhou um cobertor e estendeu-o no chão. Improvisou um travesseiro com um lençol dobrado. E foi nesse leito que deitaram o pai, acabando aí de enfaixá-lo com tiras de outro lençol que rasgaram.

Acabada a triste cerimônia, os quatro filhos, examinaram, à luz da candeia, a fisionomia do bandeirante: já tinha a lividez da morte...

— Ah! Agora sinto-me melhor, suspirou ele.

— Logo estará melhor ainda, asseverou o filho mais velho.

— Não, Luís, o fim está próximo. Fui flechado no vazio...

— Mas não perdeu muito sangue, disse Joaquim, querendo animá-lo.

— Continuo a perder por dentro: a ferida é profunda...

— Logo estará melhor, asseverou o filho mais velho. — Não, Luís, o fim está próximo. Fui flechado no vazio...

Ao dizer isto, Luís Castanho olhou em silêncio, um a um, o rosto dos filhos, que disfarçavam a emoção como podiam. Por fim, teve uma lembrança:

— Onde estão os capatazes? Por que não apareceram?!

Antônio, sorrindo amargamente, esclareceu:

— Mafaldo deve ter abusado do presente de vosmecê e agora será difícil saber o que foi feito dele e de Pereá...

— Você tinha razão, meu filho. Eu não lhe devia ter dado a garrafa toda... Quem me teria flechado?

— Foi Sariguê, meu pai. Mas já lhe dei o castigo que merecia. Levou um tiro e uma coronhada na cabeça. Está estendido lá fora...

— Eu sempre achei que esse bugre era o mais sonso de todos, comentou o pai, soltando um gemido. Com certeza chefiou o assalto, industriado pelos caiapós... É preciso tomar uma providência quan­to antes: trazer para aqui tudo que resta no depósito, antes que eles voltem.

— Acha que eles voltarão, senhor meu pai? perguntou Luís, um tanto incrédulo.

— É claro, meu filho. Virão buscar o chefe e vingá-lo. Corram ao depósito, antes que seja tarde, mas não acendam luz, senão lá dentro... E antes de saírem apaguem a daqui também...

Os filhos apagaram a luz e se encaminharam para a porta.

— Antônio, chamou o agonizante.

Antônio parou e, voltando-se, respondeu:

— Que é, senhor meu pai?

— Fique comigo.

— Sim, senhor pai.

E, dizendo isto, o rapaz retrocedeu, enquanto seus três irmãos, um atrás do outro, com a máxima cautela, saíam.

— Chegue aqui perto, Antônio!

O moço ajoelhou-se comovido e inclinou-se sobre o pai.

— Onde está você? perguntou o velho bandeirante, apalpando a escuridão em torno.

— Aqui, respondeu Antônio, tomando nas suas as mãos calosas do moribundo.

— Meu filho, preciso falar-lhe a sós...

— Fale, senhor pai...

— Você me perdoa, filho?

— Perdoar o que, senhor pai? Não me diga nada, descanse, respondeu Antônio, apavorado de ouvir nesse momento a verdade que tanto temia, a respeito de seu amor por Luzia.

— Perdoar-me o não ter cumprido a promessa que fiz a Catarina...

Antônio estremeceu. Toda a sua fortaleza, diante daquela imensa tragédia, pareceu desabar... As lágrimas saltaram-lhe dos olhos. E mal pôde perguntar, aparentando quase indiferença:

— O senhor pai não falou com o Vicente?

— Não, Antônio. Você me perdoe...

— Não há de que, senhor pai: tudo que vosmecê faz está bem...

— Obrigado, meu filho. Parece incrível! Eu não conhecia você direito! Julguei-o ainda muito jovem para pensar em casamento e cometi a leviandade de faltar à promessa! E no entanto agora vejo que é talvez o mais maduro de meus filhos, é um homem completo!

Antônio tremia e chorava em silêncio. Após curta pausa, o velho continuou com a voz mais abafada que antes:

— Mas não faz mal. Vocês hão de sair vitoriosos desta emboscada e, ao chegar a Parnaíba, você mesmo pedirá Luzia em casa­mento. Já é maior para todos os efeitos...

Antônio quis dizer-lhe que já seria tarde, que Timóteo àquela hora já teria conseguido sua pretensão, mas emudeceu por um mo­mento e, só a custo de um grande esforço, pôde depois perguntar, mudando de assunto:

— Não iremos daqui ao Peru, senhor pai?

— Não, meu filho. Esta empresa está malograda. Daqui, vocês deverão voltar primeiro a S. Paulo.

— Acha que devemos buscar mais gente, não é?

— Não, Antônio: para cumprir meu testamento...

— Ora, senhor pai! Não pense nisso! Em poucos dias vosmecê estará bom e marchará à nossa frente, para conquistar os goiás...

— Não, Antônio. Eu sei o que estou dizendo... respondeu o velho, com a voz cada vez mais sumida. E acrescentou: Acenda a luz.

Antônio bateu o fuzil na pederneira e acendeu a candeia de novo. O pai pediu-lhe então:

— Traga-me aqui o adereço de adaga e espada, que está pendurado ao punho de minha rede.

O filho levantou-se e trouxe o jogo de armas brancas. Luís Castanho reuniu forças para falar e ordenou-lhe:

— Ponha-o na cintura. Essa espada que pertenceu a seu avô deixo-a para você. Saiba ser digno dela, empunhá-la com justiça e bravura, para honrar a memória dele e a de seu pai...

Antônio, de pé, envergou, em silêncio, o cinturão com a espada e a adaga. Era uma cena impressionante aquela: num mísero rancho do sertão desolado, um moribundo armava cavaleiro o seu filho mais moço!

Nesse instante, os irmãos voltavam ao rancho, carregados dos materiais do depósito. Luís Castanho cerrou os olhos, parecendo dormitar. Antônio impôs-lhes silêncio, com o indicador sobre os lábios. Os moços fecharam a porta e Luís, chamando Antônio para um lado, avisou-o:

— Pai adivinhou! Eles estão de volta!

— Como assim?

— Sariguê, que você julgou ferido de morte, desapareceu.

— Não é possível! Então eles o levaram!

— É o que pensamos. O ataque não tarda, porque eles conseguiram roubar todos os arcos, provisão de flechas, alguns macha­dos, grande parte dos mantimentos secos. E teriam levado tudo, se você não tivesse dado o alarma.

Luís Castanho entrou a gemer de novo.

— Que devemos fazer agora? perguntou Antônio.

— Carregar, de novo, nossas escopetas, e preparar-nos para uma longa resistência, respondeu o Luís.

Enquanto os moços se preparavam febrilmente para a luta prolongada, o velho respirava naquela ansiedade que antecede a agonia. De repente, pediu:

— Água!...

Luís apressou-se em levar-lhe aos lábios uma cuia cheia, que ele, soerguido e apoiado nos cotovelos, bebeu com uma sede insa­ciável...

— Mais! pediu ainda.

O moço trouxe-lhe mais. Ele, porém, não pôde beber. Deixou-se cair pesadamente, respirando a custo, e um momento depois pareceu adormecido.

 

                               CUMPRINDO O TESTAMENTO

Meus filhos! exclamou Luís Castanho, abrindo os olhos de novo.

Os quatro rapazes acorreram e ajoelharam-se em volta.

— Meus filhos! Chegou a hora de pedir-lhes que cumpram o meu testamento!

— Ó senhor pai! Que idéia mais absurda! exclamou Luís.

— Escutem e não me interrompam... Não verei a luz do amanhecer...

— Senhor pai! exclamou Antônio, quase sem poder dominar sua emoção.

— Preciso ensinar-lhes o que devem fazer, depois...

Calou-se, então, economizando alento, enquanto os filhos, de alma suspensa, aguardavam, com um nó na garganta, sua última recomendação...

— Depois, continuou ele, falando lentamente: rezem pelo meu descanso eterno, e encomendem meu corpo... Quando, na clarida­de do dia, os atacantes derem uma trégua, me sepultem no terreiro, numa sepultura bem rasa... e então...

Aí interrompeu sua explicação, deu um grande suspiro, e con­tinuou:

— Cubram minha sepultura com brasas... O fogo contínuo, aplicado em cima, é necessário para consumir minhas carnes...

— Senhor pai! protestou Antônio, na maior emoção.

— De outra forma vocês não poderiam levar-me... Prometem?

Os quatro irmãos choravam como crianças. Mas, juntando for­ças, responderam:

— Sim, senhor pai...

— Depois de vinte dias... desenterrem... limpem e lavem meus ossos... embrulhem num lençol... e levem para Parnaíba para serem enterrados... no jazigo... ao pé... do altar da Senhora... do Rosário... Prometem?

— Prometemos, senhor pai, responderam os rapazes, com voz comovida.

— Obrigado... meus filhos... Agora posso... morrer... tranqüilo... Deus guarde... minh’alma... e abençoe... vocês...

Estendeu, então, a mão pesada, num gesto de bênção. Os ra­pazes curvaram-se e beijaram-na, umedecendo-a, com suas lágri­mas. E pela primeira vez aquele rude herói obscuro passou a mão sobre a cabeça de seus filhos homens, afagando-os como só o fizera quando eram pequeninos... Por fim, o braço inerte caiu-lhe ao longo do corpo, cerrou os olhos e sua respiração entrou em ritmo de agonia.

Absorvidos pelas palavras do pai, os filhos não perceberam que alguém se aproximara do rancho, e foi com insólita surpresa que ouviram bater à porta. Como um gato, Antônio saltou sobre a es­copeta e apontou na direção da porta enquanto os irmãos se apres­savam a fazer o mesmo.

— Quem está aí? perguntou Antônio.

— Pereá, pai Tonico... É Pereá...

Abriram a porta. Ouviu-se imediatamente o pio do urutau e uma flecha veio cravar-se no estipe do batente, pouco acima da ca­beça de Pereá. O capataz entrou e, dando com Luís Castanho esti­rado no cobertor, indagou:

— Pai Castanho está com a febre?

— Não, Pereá, explicou Antônio. Levou uma flechada de Sariguê, que apanhamos assaltando o depósito, com outros carijós, por­que você e Mafaldo dormiram na vigilância... Que castigo vocês merecem?

— Castigo não, pai Tonico. Pereá não tem culpa. Era noite de Pereá dormir...

— E que fim levou Mafaldo?

— Pereá não sabe. Acordou com o tiro. Acendeu luz, viu rancho vazio. Bugrada fugiu. Mafaldo caído no chão. Sacudiu ele, não mexeu...

— Estava morto? inquiriu Antônio.

— Morto não. Estava com a cana na cabeça...

— Miserável!... E que mais?

— Pereá pensou: estão atacando rancho de Pai Castanho! Pe­reá vai acudir. Apagou luz. Ouviu três tiros, saiu de barriga arras­tando, como urutu, não? Por isso, Pereá demorou. Pereá chegou na cerca, viu gente abrindo o portão. Pereá fingiu morto. Então gente carregou outro para mato. Aí Pereá entrou e bateu, com flecha zu­nindo na cacunda...

— E sua arma?

— Bugrada levou.

— Pois fique com esta, disse-lhe Luís, entregando-lhe a escopeta já carregada, do pai.

O bugre, tomando a arma, fez menção de sair com ela.

— Que vai fazer? perguntou-lhe Antônio.

— Pereá vai buscar companheiro...

— Deixe aquele borracho estourar!... exclamou Antônio, cheio de cólera contra a desobediência de Mafaldo.

— Pereá não deixa companheiro morrer... Pereá vai.

Mas o moço insistiu em sua proibição:

— Vai socorrer o bêbado para morrer também por lá e fazer falta aqui, não é? Já lhe disse que não quero!

— Pereá não vai morrer, teimou o bugre. Vai buscar companheiro para brigar também...

Então Luís, compreendendo que o capataz tinha razão, interveio:

— Deixe, Antônio. Ele tem razão. Mafaldo merece castigo, mas, por enquanto, a nossa obrigação é socorrê-lo.

— Pois então que vá: se ele vier, ajustará contas comigo depois, concordou Antônio, por fim.

Pereá teve um sorrisinho satisfeito, abriu a porta e saiu, agachando-se. Luís cerrou a porta incontinenti.

Diogo, que se postara ao pé do pai, reparou que sua respiração ia tendo pausas cada vez maiores, para recomeçar, com tremendo esforço, e enfraquecer de súbito, a seguir. De repente, pareceu pa­rar. Alarmado, bradou:

— Depressa, Joaquim, acenda uma vela que pai está morrendo!

Antônio e Luís acorreram para junto do moribundo, enquanto Joaquim acendia uma vela de cera e a punha na mão dele. A mão, porém, se mantinha aberta, com os músculos inertes. E foi preciso que Joaquim a fechasse na sua própria mão para que a vela se man­tivesse... Era o terrível sinal!

— Está morto, murmurou ele.

Então; como se estivessem combinados, os quatro começaram a rezar o De Profundis... Ajoelhando-se em volta daquele corpo, que um golpe de traição derrubara, os quatro filhos ergueram as vozes másculas e soturnas em coro, na madrugada indiferente, como lamentos saídos das entranhas da terra... “Dos abismos em que es­tamos, clamamos a vós, Senhor! Senhor escutai a nossa voz!...”

Quando acabaram de rezar, Joaquim botou a vela à cabeceira do morto. Luís cruzou-lhe as mãos sobre o peito e depois, retirando o lençol dobrado de sob a cabeça, estendeu-o sobre o corpo de mo­do a cobrir-lhe até o rosto.

Luís Castanho não viu a luz daquele dia... Quando esta come­çou a insinuar-se pelas frinchas do rancho, a chama da vela proje­tava, na parede de paus unidos, quatro sombras mudas e petrificadas.

Foi nessa hora que Pereá voltou, anunciando:

— Pereá não achou companheiro. Bugrada levou ele. Caiapó vai comer...

Os quatro homens entreolharam-se em silêncio, pensando no tremendo castigo que esperava o pobre mestiço, responsável por toda a tragédia... Mas não fizeram comentários. Continuaram a velar o pai a manhã inteira, acabrunhados com a própria desgraça, pen­sando na mãe distante e nos irmãos pequeninos...

Pereá saiu para descobrir vestígios dos atacantes e, passado algum tempo, voltou dizendo:

— Bugrada escondida no mato. Volta de noite...

Então os irmãos, sem dizer palavra, saíram ao terreiro e abri­ram uma cova rasa para a qual trasladaram o cadáver do pai. E enquanto murmuravam a última oração, encomendando aquele corpo apenas enfaixado na cintura, e jogavam-lhe punhados de terra em cima, lá longe, muito longe, em Parnaíba, repicavam festivos os sinos da matriz: junto ao altar da Senhora do Rosário, padre Leme dirigia a uma jovem noiva, muito branca em suas vestes de virgem, a per­gunta do ritual:

— Senhora Luzia de Mendonça: é de sua livre e espontânea vontade que aceita o senhor Timóteo Leme do Prado para seu legítimo esposo?

Com um fio de voz repassado de intraduzível sentimento, e cur­vando um pouco a cabeça, onde negras tranças se enrolavam, em espiral, sobre as orelhas, a moça aceitou o grave compromisso:

— Sim...

Para dar cumprimento à última vontade paterna, os moços acen­deram-lhe um braseiro sobre a sepultura. Esse braseiro seria man­tido aceso dia e noite, a despeito de qualquer contratempo, chuva ou ataque dos bugres. Improvisaram uma alta cobertura, à feição de um telheiro de palmas, a fim de evitar a chuva; e, para fazer frente aos ataques dos índios, abriram seteiras na paliçada com quatro bocas de escopetas vigilantes. Um só dos defensores, sem ser visto de fora, poderia atirar sucessivamente por elas.

Teriam o dia inteiro para esperar o ataque. Ao anoitecer, Pereá encheu o bolso de nozes, emborcou, de um gole, uma cuia de água, muniu-se da sua escopeta, de pólvora e chumbo, e subiu ao teto do depósito, onde se pôs, pacientemente, à espera...

 

                                             O CÍRCULO DE FOGO

A noite estava negra. A baixada era um imenso caldeirão de treva, tapado em cima por uma urupema, com mil orifícios de luz. O braseiro ardia à porta do rancho, sob o olhar dos vigias, que se revezavam. Nisto, o misterioso urutau começou a gemer na mata próxima. E, sem demora, um cão se pôs a latir.

— Quieto! ordenou uma voz.

Era Antônio. O animal calou-se. Um tiro estrondou. Pereá, do alto do depósito, tinha visto alguma coisa suspeita. Então muitos vultos se ergueram próximo à paliçada e desandaram a fugir em várias direções. Os vigias ocuparam seus postos nas seteiras e dis­pararam também suas armas. Os fugitivos afundaram na treva...

Descendo do depósito, Pereá veio ter com os moços:

— Hoje eles não voltam. Pereá sabe. Algum tiro pegou neles...

Realmente, até ao amanhecer, não houve mais tentativa de ata­ques. Logo pela manhã Pereá deu com um rastro de sangue na dire­ção da mata...

Durante o dia, os rapazes puderam andar à vontade por perto da paliçada, juntar lenha para alimentar o braseiro, buscar água no rio, e até apanhar uma grande quantidade de cocos.

A noite veio mais negra, sem uma estrela sequer...

— Será que eles virão hoje? perguntavam, entre si, os jovens Castanho.

— Que é que você acha: eles vêm ou não vêm, Pereá? perguntou-lhe Antônio.

O esperto capataz, com seu instinto de filho de selvagens, que não perdera, embora criado desde menino em casa de Luís Casta­nho, sorriu, como sempre, e disse:

— Se não vêm, vão dar sinal...

Esta resposta, algo misteriosa, foi compreendida mais tarde, devido a um acontecimento inesperado... De um ponto do carandazal, não muito longe, rompeu um fogaréu que logo se propagou por uma área considerável. Os moços se ergueram, tomados de sur­presa. Imediatamente, outro fogo estalou num ponto próximo e, com pouco intervalo, mais três focos de incêndio irromperam no vasto palmar.

— Querem fechar-nos num círculo de fogo! exclamou Luís.

— Querem assar-nos vivos! acrescentou Joaquim, contemplan­do, impressionado, o soberbo e terrorífico espetáculo.

— Isso vai ser difícil, ponderou Antônio. A derrubada que eles mesmos, em boa hora, fizeram nos carandás, ainda por ordem de nosso pai, será a nossa garantia. As chamas da mata não nos atingirão, e ainda teríamos o recurso da retirada pelo rio...

— Em todo o caso, alvitrou o Luís, será bom ficarmos de alcatéia: não vão as chamas, na hora de vento, atingir a paliçada! Vamos aumentar o aceiro?

— Vamos! concordaram os três.

E inteiramente despreocupados de algum flechaço que pudes­se ser disparado das cercanias, saíram seguidos de Pereá, e à luz das chamas distantes mas tão altas que clareavam, de certo modo, as redondezas, fizeram uma limpeza geral em todo terreno à volta do rancho. E tudo que foi combustível, trouxeram para alimentar o braseiro.

Apesar do incêndio, que não dava mostras de ceder tão cedo, os moços tiveram uma noite tranqüila. Dois ficaram junto ao fogo, enquanto os outros dois iam dormir dentro do rancho. Pereá enrodilhou-se junto à porta e dormiu como um cão fiel, pronto a levan­tar-se ao primeiro alarma.

E até amanhecer não houve novidade.

Muitos dias e muitas noites passaram aqueles cinco seres huma­nos, fechados no seu reduto, obstinados no seu tremendo dever, pron­tos para venderem caro a vida. O círculo de fogo da mata quase se fechara sobre eles. Em certas ocasiões, o calor e fumaça que provinham do incêndio eram mais sufocantes que do braseiro próximo. Os alimentos escasseavam e os rapazes estavam, além de famintos, maltrapilhos e exaustos. A tensão nervosa que se vinha prolongan­do, agravada pelos problemas que cresciam de hora a hora, como o da alimentação dos animais, principalmente dos cães, que não co­mem coco nem palmito de carandá, dava àqueles rostos barbudos uma expressão asselvajada. Olhando os cinco de conjunto, Pereá não pareceria o menos civilizado.

Na tarde de 15 de janeiro, por fim, o céu escureceu, um vento agreste começou a soprar e uma grossa chuva desabou.

— Abençoada chuva: bradou Antônio, levantando as mãos para o céu.

— Abençoada mesmo! concordaram Diogo e Joaquim.

Luís, que fazia qualquer conta nos dedos, tomou então a pala­vra e disse:

— Manos, faz hoje vinte dias que nosso pai faleceu. É tempo de cumprir o que nos recomendou, não acham?

— Achamos, sim.

Sem esperar mais nada, Luís saltou da rede, foi apanhar uma enxada no depósito e se pôs a afastar as brasas que cobriam a se­pultura. Os irmãos aproximaram-se e assistiram, em silêncio, a exu­mação dos restos mortais do velho bandeirante. Então procederam todos quatro à limpeza dos ossos do querido pai, lavando-os na própria água da chuva, e envolvendo-os a seguir no lençol de algodãozinho.

Essa cerimônia, inédita e pavorosa, durou até à noite, e foi assistida, em respeitoso silêncio, por Pereá, que não ousou tocar nos sagrados despojos. Estes foram, por fim, colocados num caixote de mantimentos vazio, que, a seguir, fecharam solidamente.

Ao concluir a fúnebre tarefa, estavam tão fatigados pela terrível emoção, que tiveram de buscar alento na bebida. Por isso, tomaram todos uma forte dose de aguardente que ainda restava na frasqueira. Os bugres, não compreendendo a prolongada permanência dos chefes da bandeira naquele rancho, davam-lhes, de quando em vez, alguma trégua. Lembrando-se disso e vendo, por outro lado, que a chuva torrencial prometia varar a noite, resolveram todos dormir sem pre­cauções, decididos a romper o cerco e a partir, após o necessário re­pouso, visto que nada mais os prendia àquele deserto.

E pela primeira vez, em vinte dias, tiveram um sono reparador.

 

                                                     O CORTEJO FÚNEBRE

Quando rompeu a manhã a chuva havia cessado. O incêndio do palmar parecia extinto. Os cinco heróis, então, se levantaram e deram com uma cerração espessa, que lhes estreitava o ho­rizonte ao limite da paliçada.

— Viva Deus! exclamou Antônio. Agora poderemos tentar a sortida sem sermos vistos. Não percamos tempo!

— Não percamos tempo, concordou Luís, animado.

— Viva Deus! exclamaram também Joaquim e Diogo, contagiados do entusiasmo dos irmãos.

E sem perda de tempo, agarraram todas as coisas que preten­diam levar de torna viagem, e foram carregar as mulas. Encilharam os cavalos, inclusive o de Luís Castanho, sobre cuja sela amarraram o caixote dentro do qual, despojado do peso das carnes, ia o dono e cavaleiro...

Meia hora depois, partia o cortejo: o estranho féretro seguia la­deado pelos quatro rapazes brancos, e um tanto distanciado, Pereá, no cavalo de Mafaldo, tangendo as mulas e puxando seu pangaré; à vontade, espalhada pelo cortejo, a matilha emagrecida e faminta...

Foi quando alguma coisa silvou no ar! O moço deu um grito rouco e caiu na água, sem soltar sua escopeta.

A fim de não se perderem na cerração, tomaram como referência as barrancas do rio e esporearam as alimárias que, tropeçando em galhos queimados ou pisando em cinzas quentes e brasas dor­midas, correram tanto que, em menos de uma hora, haviam atingido a mata verde, poupada ao incêndio e livre da cerração. Tendo sido, sem dificuldade, identificada a trilha aberta na vinda, enveredaram por ela. A marcha foi tão proveitosa que, ao cair da tarde, Antônio, que se havia adiantado ao cortejo, ficou admirado de avistar, no alto do barranco da margem oposta, o rancho e o varadouro das canoas, ali deixadas para o regresso. Ao aproximar-se da pinguela rústica, improvisada para a travessia do Meia Ponte, Antônio viu um pe­queno bando de mutuns à beira da água, no lado fronteiro. Era o bando constituído de um magnífico mutum-cavalo, acompanhado de seis ou oito fêmeas. Acossado pela fome, que era o tormento de to­dos, pensou logo em caçar um daqueles perus selvagens. Então apeou de um salto, e avançou pela tosca ponte, o dedo no gatilho da esco­peta. Foi quando alguma coisa silvou no ar! O moço deu um grito rouco e caiu na água, mas, com tanta presença de espírito, que, vol­tando à superfície, apontou a arma na direção de onde proviera a flecha.

Os rebeldes emboscados, que ali se haviam postado à espera dos bandeirantes, puseram-se em fuga, mal sabendo que a escopeta, uma vez molhada, se tornava inofensiva...

Os mutuns levantaram vôo e foram pousar em árvores distan­tes. Quase no mesmo instante em que ocorrera o novo ataque, Luís, Joaquim e Diogo chegaram aflitos e, lançando-se à água, socorreram Antônio e levaram-no para o rancho.

Ao sair da corrente, o moço parecia um touro farpeado: trazia uma flecha mergulhada no papo, gotejando sangue... Fazendo es­gares de dor, ele mesmo tentava arrancá-la do ferimento. Mas não o conseguiu: a farpa penetrara profundamente. Quebrou-a, então, a três dedos do pescoço. E, como os irmãos quisessem carregá-lo, ele se opôs, endireitou-se e caminhou sozinho, dizendo:

— O que eu lamento é ter perdido os mutuns! Estou com uma fome danada!... Ao menos, morreria de barriga cheia...

— Mas você não vai morrer! atalhou Luís, observando-lhe o rosto, sem poder ocultar a sua ansiedade.

— É o mais certo!

— Não diga isso! retrucou Diogo. Seu ferimento foi superficial... Em poucos dias estará curado!

— Não faço questão de viver, acrescentou Antônio, com profunda expressão de tristeza na voz. Que vou eu fazer em Parnaíba? perguntou, encarando Joaquim.

Joaquim compreendeu o sentido de suas palavras e ia respon­der, tentando reanimá-lo, quando Pereá entrou no rancho e, vendo Antônio, deitado de costas com a cabeça apoiada sobre o seu gibão de armas, pôs-se a dar mostras da maior consternação! Ele se atrasa­ra, fazendo as mulas e os cavalos, que haviam ficado na margem es­querda, atravessarem o rio, e só depois passara a pinguela transpor­tando o féretro à cabeça. E agora, nem sequer pensava em pousar a triste carga que lhe acurvava os ombros: com os braços erguidos e as mãos apoiadas ao caixote, o olhar esgazeado, não podia conter as exclamações de piedade:

— Coitado de Pai Tonico! Por que bugre fez maldade pra ele? Pereá vinga! Pereá vinga!

Antônio, pálido de dor e com um filete de sangue a escorrer continuamente da ferida, olhou-o, a princípio com um certo enternecimento, depois, com um sorriso desdenhoso, disse:

— Em vez de estar aí lamentando, como um bobo, por que não vai caçar alguma coisa, nem que seja mesmo um desses bugres trai­çoeiros, para saciar a fome da gente?

Os irmãos riram-se, reanimados com a fortaleza de espírito de Antônio. O capataz, então, riu também e informou alegre:

— Pereá já caçou!

— Caçou o quê? perguntou Antônio.

— Pereá caçou aí-pixuna!

— Não sei o que é isso, mas seja o que for, vá assar depressa e traga, que estamos famintos!

— Já assou! respondeu o bugre com seu costumeiro jeito misterioso.

— Já assou? Como assim? indagaram os moços, espantados, enquanto Antônio acrescentava, com ar incrédulo:

— Pois então por que não traz?

Pereá não se fez de rogado. Colocou o caixote que não abandonara, a um cantinho do rancho, saiu e voltou, pouco depois so­braçando uma bruaca. Abriu-a e, diante do espanto de todos, ti­rou, de dentro dela, um animal assado, de compridíssimas unhas recurvas. Luís reconheceu nela uma preguiça preta. E indagou, in­trigado:

— Como você teve tempo para assá-la?

— Pereá assou não. Bugrada assou para Pai Tonico...

E só então, para assombro dos moços, explicou:

— Pereá achou na embaúba queimada...

Antônio pôs-se a rir, mas interrompeu o riso com uma careta de dor. Os irmãos também acharam graça na imprevista explicação do índio.

Meia hora depois, a aí-pixuna, ou preguiça preta, fora aberta, limpa, salgada e repassada no fogo, e estava sendo servida aos rapa­zes, que assim tiraram o ventre da miséria...

Antônio foi quem mais apreciou a iguaria, apesar de sofrer as maiores agruras para comê-la, pois a dor muito se agravava a qual­quer movimento da garganta. Consolou-se, por fim, com um bom gole de aguardente.

Fora do rancho, a cachorrada disputava os ossos da aí-pixuna, que certamente por sua preguiça não tivera tempo de fugir da em­baúba e se deixara ficar agarrada ao tronco até ser alcançada pelas chamas. Caíra, provavelmente, depois, e acabara de assar no borra-lho quente.

A exaustão, o sofrimento e a bebida acabaram adormentando Antônio. Os irmãos ultimaram os preparativos para continuar a viagem na manhã seguinte e cuidaram de repousar também. Pereá amarrou cavalos, mulas e cachorros junto ao rancho, enrodilhou-se à entrada, abraçado à escopeta, e entrou no seu cochilo costumeiro.

O sol já ia alto quando o capataz foi despertar os rapazes, com gritos de alegria:

— Vem vindo monção por aí!

Luís, Diogo e Joaquim se levantaram e correram para fora. An­tônio também se ergueu e chegou-se à porta, amparando com a pal­ma da mão o papo que inchara horrivelmente mas não sangrava mais. Subindo o rio, em marcha majestosa, vinha uma enfiada de canoas, apinhadas de gente, animais e cargas.

— Aposto que é a bandeira do capitão Soares Pais! aventurou Antônio, de coração a palpitar com a venturosa perspectiva.

— Deve ser! Deve ser! confirmaram os irmãos, não menos esperançados...

 

                                               ESPANTOSO MISTÉRIO

A canoa capitânea ainda estava à distância de um tiro de escopeta, quando Pereá reconheceu o proeiro:

— É do capitão mesmo. Olhem lá Carachué, o capataz de confiança.

Os três irmãos mais velhos, então, tomando as escopetas, fes­tejaram a chegada da monção com três salvas para o ar.

A embarcação capitânea aproou no barranco e, de baixo do toldo, surgiu a figura imponente do capitão Antônio Soares Pais, acompanhado de um filho de vinte anos, chamado José.

Luís, Diogo e Joaquim correram ao encontro deles e receberam-nos com efusivos abraços. Antônio aguardou os recém-vindos junto à porta, com um sentimento mesclado de alegria e inquietação, puxando quanto podia a gola do casaco a fim de ocultar o papo.

— Eu não disse que vinha? exclamou o capitão, com ar triun­fante. Mas pensava encontrá-los mais adiante...

Os moços se olharam em silêncio. E Luís explicou, com tristeza:

— Estamos de volta.

— De volta?! Mas houve alguma coisa?

E, reparando na fisionomia curtida de sofrimento dos rapazes, inquiriu:

— O meu amigo Castanho como vai?

Luís, passando o braço sobre o largo ombro de seu amigo e parente, foi se encaminhando com ele para o rancho e, como quem tem uma confidência a fazer, longamente guardada, contou-lhe a terrível desgraça.

O capitão acompanhou a narrativa, profundamente consterna­do, e só a interrompeu para lamentar:

— Oh! Coitado de meu amigo Castanho! Estava tão animado!... Como vosmecês têm sofrido...

Quando, por fim, Luís narrou o desfecho da épica retirada, o capitão adiantou-se e estendendo os braços para Antônio, que con­tinuava a esperá-lo imóvel, abraçou-o sentidamente, dizendo:

— Ó meu valente discípulo de armas! Eu imagino o seu sofrimento... É muito doloroso?

— Um pouco, respondeu Antônio, mas não tem importância, capitão. E vosmecê, fez boa viagem?

— Não digo boa, porque a subida do Paraná, com a enchente, foi dura. Mas felizmente não tivemos maior novidade... E foi aliás, relativamente rápida, pois passamos o Natal em Parnaíba. Só partimos a 27. Mas, deixe-me ver o ferimento...

Antônio abaixou a gola do casaco e mostrou-o. A ponta da flecha estava fincada da direita para a esquerda e do alto para baixo, e inclinada de trás para diante. Da ferida dessorava um líquido san­guinolento. Antônio tocou-a levemente.

— Ó! Não mexa! recomendou o capitão penalizado. Espere que daqui a algum tempo a própria carne bota para fora essa flecha. Com certeza ela não foi ervada, senão você já teria sentido o efeito do curare.

— Quanto a isso, creio que não há dúvida, esclareceu Luís. Essa flecha foi preparada em Parnaíba. Pereá, que ajudou a fazer as que trouxemos, reconheceu-a.

A essa altura da conversa, entraram todos no rancho. Luís, apontando o pequeno caixote, colocado a um canto, murmurou:

— Eis aí, capitão, onde repousam os restos mortais de seu amigo, nosso pobre pai...

O capitão contemplou, em comovido silêncio, o volume indica­do, em cujo tampo estava escrito em grossos caracteres a carvão, o nome — Luís Castanho de Almeida... Então era ali que se con­tinha tudo que outrora completava a figura física e moral de um valoroso sertanista, que se embrenhava, pelo Mato Grosso dos goiás, à cata de braços para suas lavouras, guerreiros para suas entradas, companheiros para inenarráveis aventuras?!... Então aquele caixo­te encerrava uma vontade férrea, um chefe de numerosa família, um pai extremoso, um explorador de selvas, sucumbido em pleno com­bate, e cujos filhos, por força de seu exemplo e do destino, seriam outros tantos bandeirantes, que dilatariam as fronteiras da Pátria?!

Antônio, chamando José de parte, indagou ansiosamente:

— Quais são as novidades da vila?

— Novidades? Nenhuma... Continua tudo naquele ramerrão de sempre...

Antônio disfarçou sua intenção:

— Eu perguntei sobre alguma festa...

— Ah! sim! Na véspera de partirmos assisti a um casamento de arromba. Você conhece os noivos: Timóteo Leme e Luzia Mendon­ça... Ela estava uma formosura!

Se o chão tremesse aos pés de Antônio, ele não sentiria tão forte abalo. Ficou ainda mais pálido do que estava, e pareceu cambalear. José segurou-o pelo braço e indagou:

— Sente alguma coisa?

— Nada, murmurou ele, procurando refazer-se. É que estou me lembrando que, então, foi no dia em que enterramos nosso pai...

José, compungido, só achou de dizer:

— Ah! sim!

E ficou sem saber a verdadeira causa da emoção do amigo. Fez-se um breve silêncio, após o qual, o capitão Soares Pais, abanan­do a cabeça, falou:

— Que traição horrível! Seus próprios administrados! Mas isso não deve ficar impune!...

Luís aventurou-se a dizer, justificando-se:

— Ficamos sem recursos... Só nós cinco!

O capitão prosseguiu:

— Não podemos deixar de vingar a morte de meu amigo Castanho: proponho a vosmecês irmos imediatamente no encalço dos inimigos. Carachué tem faro de cão e dará com a trilha deles: que me dizem a isto?

— Vamos! exclamaram os rapazes, inclusive Antônio que achou oportunidade de extravasar a sua exasperação pelo cruel desengano que acabara de sofrer.

Soares Pais, porém, discordou:

— Não, vosmecê não, meu caro Antônio. Proíbo-o!

— Por que, capitão? indagou Antônio, com um tremor, quase convulso, nas mãos.

— Porque vai agravar seu ferimento e vai dar-nos trabalho. E nós precisamos nos dedicar à tarefa única de dar cabo dos traidores. Fique aí que seus irmãos não tardarão a voltar para seguirem viagem juntos para Parnaíba...

Antônio calou-se a custo. Sentou, então, num baú-de-boi, ex­tremamente fatigado.

O capitão, que primava pelas prontas decisões, disse:

— Vou prevenir o pessoal para partirmos imediatamente! E encaminhou-se para a porta, acompanhado de José e dos rapazes, com exceção de Antônio que permaneceu sentado, de olhos em alvo, como se estivesse alheio ao que se passava. Quando, afinal, perce­beu que estava só, não pôde conter uma praga:

— Maldito papo!

— Não podemos deixar de vingar a morte de meu amigo Castanho. Mas vosmecê, meu caro Antônio, não pode ir.

E como fera acuada, com a mão direita foi acalcando a ponta da flecha pela ferida adentro, urrando surdamente à medida que empurrava, até que a extremidade em farpa rompeu a pele do lado oposto. Agarrando, então, com a mão esquerda, retirou o pedaço de flecha e arremessou-o ao chão, soltando um urro final. O sangue brotou pelas duas extremidades da ferida. Sentiu a cabeça rodar, inclinou-se para trás e apoiou as costas à parede, comprimindo os ferimentos com ambas as mãos.

Joaquim entrou no rancho e deu com ele naquela situação: o peito lavado em sangue e, no rosto, a palidez da morte...

— Que tem você, mano?

Antônio não respondeu. Limitou-se a apontar, com o queixo, o pedaço de flecha caído no chão.

— Arrancou-a? perguntou Joaquim, admirado.

Ele fez que sim com a cabeça.

— Doido! Você quis matar-se?

Ele não respondeu. Então Joaquim correu para fora a avisar os irmãos, e voltou com eles, seguido também de Pereá. Assim que viu Antônio, Luís exclamou, penalizado:

— Que loucura!

— Que foi isso? Queria nos abandonar, mano ingrato? pergun­tou Diogo, de lágrimas nos olhos.

Mas Antônio parecia não ouvir. Continuava na mesma posição, comprimindo as feridas com as extremidades dos dedos. Não obs­tante, o sangue ainda escorria em dois filetes, pelo pescoço abaixo. Devia estar sofrendo muito. Foi quando Pereá achou de dar sua opinião:

— Pai Tonico fez bem. Agora Pereá vai curar ferida.

Dizendo isto, foi a um canto do rancho e retirou, de um patuá de couro, um cachimbo, um toquinho de fumo, um frasquinho de mel e algodão em rama. Logo em seguida, cortou, com a faquinha que trazia à cintura, um pouco do fumo que esfarelou nas mãos e botou no cachimbo. Sobre isso, verteu algumas gotas de mel e mexeu bem a mistura com a faca. Preparou a seguir duas mechas de algo­dão que, após haverem sido bem embebidas na pasta, foram colo­cadas num prato de estanho que Joaquim ficou segurando.

— Agora, disse o índio, Pereá vai tapar ferida, Pai Tonico...

Pegando, então, uma das mechas, deu início ao curativo. Antô­nio submeteu-se docilmente, com a expressão de dor estampada no rosto. Pereá introduziu a ponta da mecha num dos orifícios que sangravam abundantemente e, com o canudo do cachimbo, empur­rou-a quanto foi possível até vedar o sangue. Depois repetiu, no ou­tro ferimento, o mesmo curativo. O capitão Soares Pais entrou nesse momento e, vendo aquela cena chocante, perguntou:

— Que houve?

— Ele próprio arrancou a flecha! informou Luís.

— Bravos, meu valente discípulo! aplaudiu o capitão animando Antônio. Vendo-o, porém, inerte como se estivesse desmaiado, tirou a “borracha” que tinha ao cinturão, abriu-a e chegou o bocal aos lábios de Antônio, fazendo-o beber, lentamente, uns goles. O moço reanimou-se e falou, num sussurro:

— Obrigado, capitão.

— Ah! Esta cana ergue um defunto! disse o capitão. E, tapando a “borracha”, colocou-a sobre o baú, dizendo:

— Fica aí, para acabar de curá-lo. Dou-lhe os parabéns pela sua coragem! Agora não será difícil curar-se. Mas é preciso proteger esse curativo...

Tirou, então, o belo lenço que trazia ao pescoço e atou-o no de Antônio. Este fitou-o com um olhar de profundo reconhecimento e disse:

— Deus lhe pague, senhor capitão!

Soares Pais voltou-se para os outros e convidou-os:

— Creio que já podemos partir, meus amigos!

— Estamos prontos, respondeu Luís.

— Então vamos!

Estendeu a mão a Antônio, despedindo-se:

— A trilha seguida pelos traidores está no rumo da minha entra­da. Por isso, depois de ajudar a castigá-los devidamente, continuarei a viagem. Penso que só nos veremos, agora, em Parnaíba. Quer que lhe deixe alguns homens para fazer-lhe companhia?... Seria pru­dente...

Antônio endireitou o corpo e levantou-se, apertando-lhe a mão:

— Muito agradecido, mas não será preciso. Basta-me Pereá, com duas escopetas e suficiente munição...

— E munição de boca também, não é? Vou deixar-lhe o bastante. Até lá, portanto... Fique com Deus!

— Até um dia, capitão! Deus o acompanhe!

Chegou a vez dos irmãos se despedirem de Antônio! Abraçaram-no em silêncio. Antônio reteve-os, o mais que pôde, de encontro ao peito, como se aquela despedida fosse para sempre... Os três se mostraram também profundamente emocionados. O capitão, po­rém, abreviou a cena, dizendo:

— Que despedida tão comprida é essa!? Hoje mesmo à noite vocês estarão de volta...

Antônio sorriu, enxugando os olhos, e concordou:

— É verdade, manos. Até à noite! Felicidades!

— Até à noite, responderam um por um, prontificando-se a sair.

À entrada do rancho, porém, o capitão, voltando-se para trás, encarou o pequeno caixão mortuário e disse:

— Ah! Não podemos deixar de levar conosco o meu amigo! É preciso que ele assista à vingança que tiraremos de seus assassinos!

Joaquim, Diogo e Luís, sem dizer palavra, ergueram o caixote e levaram-no para fora. Antônio assomou à porta por fim e assistiu, de coração alanceado, a partida da expedição punitiva, composta, ao todo, dos seus três irmãos, do capitão e seu filho e de sessenta e três índios da nação temiminós. As canoas ficaram no varadouro, junto às da bandeira de Luís Castanho, para serem usadas somente no regresso do capitão.

Na outra margem, uma vez feita a travessia dos animais e car­gas, os chefes montaram, depois de haverem reposto o cavaleiro morto sobre o seu cavalo...

De lá deram adeuses a Antônio e, em pouco, sumiam na vereda. Então Pereá foi fazer fogo e preparar o almoço com os mantimentos que o capitão oferecera. Antônio quedou-se à porta, longo tempo. Seu pensamento ia no encalço dos vingadores.

Ao pôr do sol os irmãos regressaram, acompanhados dos cães, puxando o cavalo que pertencera ao pai e trazendo a carga sagrada. Joaquim adiantou-se, apeou e encaminhou-se para o rancho, bra­dando, antes mesmo de acabar de passar a pinguela:

— Antônio! Nosso pai está vingado! Foram todos surpreendidos e atacados no rancho!

Mas ao pisar a soleira da porta, calou-se porque não viu ninguém lá dentro. Voltou-se para os irmãos que desencilhavam os animais e disse-lhes apreensivo:

— Antônio não está lá dentro.

— Com certeza sentiu-se melhor e foi caçar com Pereá, explicou Diogo.

— Acho muito esquisito...

— Pelo contrário, parece-me bom sinal! opinou Luís. Olhe aí os três cavalos: o Pajé, o baio do Mafaldo e o pangaré do Pereá.

Diogo, vendo os magros cães farejando um caldeirão ao fogo, disse-lhes:

— Pereá aprontou-nos uma boa caldeirada! E estou louco de fome. Vamos a ela?

— Sem esperar que Antônio volte? perguntou Joaquim, indeciso.

— Ora, tolo! A esta hora ele já comeu. Olhe um prato com restos de comida... acrescentou Diogo, apontando um prato, ao lado do caldeirão...

À vista disso, Joaquim se calou e os três não perderam mais tempo: encheram seus pratos de caldeirada e foram matar a fome velha, sentados numa canoa. Os cães também receberam o seu quinhão.

Enquanto comiam, perscrutavam o horizonte, em todos os sen­tidos, mas a noite veio sem que Antônio e Pereá voltassem... A apreensão dos rapazes crescia a cada momento e desandaram a pro­curar pelos dois e a chamá-los:

— Antônio! Ó Antônio! Pereá! Pereá!...

Em resposta, no entanto, só recebiam o grito lamuriento de um curiango ou o pio soturno de um murucututu... Passaram a noite sem dormir. Pela manhã, Joaquim percebeu que tudo no rancho estava em ordem mas faltavam os pertences de Antônio e de Pereá. E disse, tristemente, aos irmãos:

— Eles se foram...

— Mas foram como, homem?! perguntou Luís, na maior inquietação. Os três cavalos estão aí.

— E quanto às canoas, acrescentou Diogo, além das nossas, acabo de contar as doze do capitão Soares.

— Eram doze ou treze? indagou Joaquim, teimando.

— Você tem certeza que eram treze? interrogou Luís.

— Não, respondeu Joaquim. Certeza não tenho, mas creio...

— Se não tem certeza, não fale...

— Então não sei... Só se eles foram caçar e foram apanha­dos pelos caiapós...

— Ora, Joaquim! Então para caçar eles precisavam levar rou­pas, redes, mosquiteiros, mantimentos, objetos de uso pessoal? res­pondeu Luís.

Mas Diogo, que dava uma busca pelo rancho, surgiu logo depois, para comunicar aos irmãos:

— O mistério é espantoso... Olhe aqui a binga que pertenceu ao Mafaldo! Está ainda cheia de fumo. Como terá vindo parar aqui?!... Algum de vocês viu Pereá trazê-la?

— Eu não, respondeu Luís.

— Nem eu, informou Joaquim.

Dedicaram ainda o dia inteiro a batidas minuciosas pelo mato adentro, mas não viram sequer sinal da passagem do irmão e do capataz... À noite recolheram-se, perdidas todas as esperanças de encontrá-los, e resolvidos a reencetar a viagem na manhã seguinte. Prepararam, então, tudo que pretendiam levar na menor das canoas que haviam trazido, e foram dormir... Joaquim, porém, apesar de exausto, não conseguiu conciliar o sono...

De madrugada, soltaram os animais que não poderiam levar e embarcaram, com o caixão dos ossos paternos, três cães e pequena carga, em demanda de Parnaíba. Iam profundamente sentidos, sem conversa. A canoa se afastava rápida, descendo a corrente, mas o olhar dos três moços continuava preso àquelas selvas fatídicas, onde tinham uma última esperança de vislumbrar o vulto do irmão querido ou de Pereá... Quantos deles conseguiriam chegar ao fim da via­gem?!...

Afinal, sem maiores surpresas, cinqüenta e três dias depois, realizavam, na Matriz da vila, com a presença de amigos, de paren­tes, dos irmãos e da mãe desolada, as últimas recomendações do testamento paterno...

 

                                           OS PEREGRINOS

Alta noite, alguém bateu repetidamente a aldraba da porta do convento de S. Francisco, em Potosi. Como não fosse atendido no mesmo instante, bateu de novo com mais força, suplicando:

— Abram a porta, por amor de Deus!

Não demorou um minuto e a viseira da porta abriu-se, surgin­do no quadro a cabeça de um frade que uma luz bruxuleante ilumi­nava:

— Quem são os senhores?

— Três peregrinos que pedem pousada, bom padre!

A viseira fechou-se sem ruído ao mesmo tempo em que a porta se escancarava, deixando ver o religioso em sua alta estatura. Enca­rou então os recém-vindos, com seus olhos perscrutadores nas órbi­tas cavadas, levantando a vela de cera, que trazia à mão esquerda, à altura da testa. Foi aí que deu com um mestiço embrulhado em pele de lhama, magro e curtido de fadigas e misérias. A seu lado, um índio segurava pelo cabresto uma lhama sobre a qual estava escanchado, de bruços, braços pendentes, sombreiro atirado para a nuca, espada inútil presa à cinta, um homem branco, imóvel como um cadáver.

O religioso ajeitou com a mão direita o capuz do hábito sobre a calota raspada e, amparando com a mão em concha a chama da vela, desceu da soleira e foi examinar a fisionomia do cavaleiro, erguendo-lhe com cautela a aba do chapéu.

— Morto?! indagou, surpreendido.

— Não, doente de impaludismo, respondeu o mestiço.

— Impaludismo?! Que é isso?

— Febre do pântano, tremedeira... explicou o adventício.

— Levem-no ao hospital de São João de Deus, recomendou o frade.

— Não, meu senhor não é um índio sem recursos! É um fidalgo, não pode ser tratado como um mendigo...

— Quem é ele? indagou, interessado, o frade, voltando à porta do convento.

— Senhor Antônio Castanho da Silva, cavalheiro de São Paulo do Brasil, respondeu o mestiço, acrescentando com imponência e eu sou seu criado, Mafaldo.

Sem dar maior importância a esta declaração, o frade repetiu assombrado:

— De São Paulo? E como vieram até aqui?

— Por terras e por águas, cavalgando e cavalgados, sabe Deus como!

— Mas... que havemos de fazer? Não temos alojamentos para hóspedes, lamentou o religioso.

— Por caridade, bom frade! Dá-nos abrigo! Estamos morrendo de fome e frio. Meu senhor só precisa de uma cama e um chá forte, de quinino...

O frade teve um momento de hesitação, depois acenou a mão espalmada, em sinal de promessa e, entrando, fechou a porta do mosteiro.

Os peregrinos quedaram-se, tiritando, ao vento golpeante da cor­dilheira. O mestiço encostou-se ao corpo da lhama, em busca de anteparo contra o vento e, batendo o queixo, apontou para o vulto nevado da serrania, dizendo ao companheiro:

— Olha, Pereá! É a Serra dos Frades. Se os frades deste convento não nos socorrerem a tempo, o sopro daqueles Frades nos matará esta noite...

Pereá não respondeu. Continuava a segurar o cabresto da lhama, silencioso, inteiriçado pelo frio, imóvel. Antônio Castanho não dava acordo de si, consumido pela febre. Só o animal não demons­trava ressentir-se com a invernia. Ruminava pacientemente, alteando de vez em quando a cabeça, ao ouvir algum ruído à distância.

Decorreram minutos de angustiosa espera. Por fim a porta tor­nou a ranger nos gonzos e abriu-se. O mesmo frade reapareceu e convidou-os:

— O prior lhes concede abrigo por esta noite.

— Bendito seja o prior e sua caridade, salvando a vida de três cristãos! exclamou o mestiço, recobrando o ânimo.

Mal acabou de falar, sem esperar nova ordem, tirou o amo de cima do animal e carregou-o para dentro, fungando e gemendo de esforço. Deu uns passos irregulares pelo corredor, mas não agüen­tando mais, alijou-o no chão, como um fardo... Então suspirou profundamente e lastimou:

— Arre! Por caridade! Está muito magro mas pesa como morto!

Pereá pareceu despertar. Largou o cabresto na mão do frade e entrou para ajudar a carregar o amo. Por um instante o religioso ficou indeciso, sem saber o que fazer com a lhama. E se quedou com a vela na mão esquerda e o cabresto na direita. Por fim depôs o castiçal no chão, com risco de apagar-se a vela, e retirou uma pequena bruaca da garupa do animal. Logo em seguida amarrou o cabresto na aldraba, retomou o castiçal e, sobraçando a bruaca, entrou e bateu a porta.

Pereá e Mafaldo haviam levantado, a custo, o corpo inerte de Antônio Castanho. O frade tomou-lhes a frente e enveredou pelo corredor. Chegaram a um quarto estreito, mobilado com um catre, um tamborete de couro e uma cômoda negra, sobre a qual se via um crucifixo de prata.

— É a cela de um irmão da Ordem, que morreu há dias, achou de explicar o franciscano.

— Meus sentimentos, sussurrou Mafaldo, fazendo cara compungida, enquanto depunha, auxiliado por Pereá, o doente no leito. Ambos trataram, então, de aliviá-lo, tirando-lhe as botas, o sombreiro e a espada, afrouxando-lhe o cinturão e a gola do casaco de couro. O frade botou o castiçal sobre a cômoda e, retirando de uma gaveta uma grossa manta de vicunha, cobriu o enfermo. Só então examinou as feições de Antônio. A pele cor de cera contrastava com o negror da barba. Passou-lhe a mão na testa suada e depois no pescoço tentando adivinhar-lhe a febre. Ergueu-lhe o queixo e exclamou, pe­nalizado:

— Está ferido no pescoço!

— Flecha de um índio. Já faz onze meses e a ferida ainda sangra, explicou Mafaldo.

— Meu Deus! Como deve sofrer! murmurou o frade compungido.

E ia dizer mais qualquer coisa, quando a porta se abriu suave­mente e entrou um frade mais jovem trazendo uma bandeja com três tigelas fumegantes e, sobre dois grandes pães, dois bons peda­ços de queijo.

— Frei Leon, disse este ao outro, trago-lhe a tintura de quinino, vinho quente, pão e queijo.

— Está muito mal, frei Vicente. Vou untar a ferida com um remédio que temos. Traga o ungüento de nossa farmácia e mais dois cobertores.

Frei Vicente passou um olhar sobre o rosto de Antônio, meneou a cabeça em sinal de comiseração, entregou a bandeja a frei Leon e saiu.

— Sirvam-se, senhores, disse frei Leon a Mafaldo e Pereá: pão, queijo e vinho quente para matar a fome e o frio...

Mafaldo, sem cerimônia, agarrou uma das tigelas e um pão, sentou-se no tamborete e se pôs a comer e a beber sofregamente.

O frade, vendo que Pereá não se atrevia a servir-se, entregou-lhe o seu quinhão. O índio agradeceu com a cabeça e foi acocorar-se a um canto da cela, onde tratou de reconfortar-se com aquela dádiva generosa. Apoiando a cabeça de Antônio com a mão esquerda, frei Leon se pôs a ministrar-lhe a tintura de quina, a princípio com mui­ta dificuldade, pois o enfermo se mantinha de dentes cerrados, mas depois mais facilmente: ao contato da colher os maxilares se entreabriram, e a tisana era absorvida aos poucos.

Quando concluía esta tarefa, frei Vicente estava de volta com o ungüento, uma tira de Unho e mais duas cobertas. Ajudado por ele, frei Leon procedeu ao curativo da ferida e terminou atando ao pescoço a faixa de Unho.

Mafaldo e Pereá haviam acabado a refeição e estavam como dois redivivos. O primeiro, devolvendo a tigela à bandeja, não pôde deixar de dizer:

— Benditos sejam o vinho e o pão, sangue e corpo de Cristo!

Os frades sorriram. E frei Leon entregou uma coberta a cada um, dizendo:

— Recostem-se onde queiram e boa noite, em nome de Deus!

— Boa noite, santos frades! respondeu Mafaldo, numa reverência.

Os dois franciscanos saíram, cerrando a porta ao passar. O mestiço e o índio encolheram-se dentro da espessa manta a um canto do quarto. Cobriram-se até a cabeça e adormeceram imediatamente.

Antônio arquejava. O acesso de maleita estava em pleno apogeu. Vagas de calafrio sacudiam-lhe o corpo e seu cérebro, como a vela de cera sob o Cristo de prata, permanecia em vigília bruxu­leante...

 

                                     O PESADELO

A imaginação desapoderada do pobre febrento, ativada pela tintura alcoólica, fazia-o reviver, em tumulto, lances passados de sua recente aventura. Cuidava estar ainda à porta do rancho, à margem do Meia Ponte, enquanto Pereá, de cócoras, soprava fogo para esquentar a comida. Os irmãos haviam sumido na vereda da margem oposta, depois de lhe terem dado um último adeus. E agora? Seguiam sem deixar rastro!... Não os veria mais! Chamava-os em gritos que eram grunhidos. E sentia-se sufocar em tristeza. Mas ei-los que voltam, e, por um momento, sossega... Não, não eram os irmãos... Quem vinha era Mafaldo, eram três Mafaldos, rotos e imundos, com a binga a tiracolo: perdoem vocês seu pobre mas fiel amigo! balbuciam, atirando-se aos pés de Antônio. Parecem cães acovardados pela vista do chicote. E Antônio tira o rebenque, há de exemplá-los, mas a qual? O mestiço o engana depois do que houve, ainda manga com ele... Desgraçado!

— Ainda estás vivo, demônio maldito, depois de tudo que fizeste?

Agora é um só Mafaldo, humilhado e humilde, que, em estado de visível penúria física, procura explicar-se, num gemido:

— Não tive culpa, senhor! Levei uma paulada na cabeça, por detrás, quando estava de vigia...

— Vai para o inferno com tuas mentiras! Vai, antes que te quebre a cabeça de uma vez, a coice de arma! diz Antônio num esforço doloroso para que a voz lhe saia da garganta.

— Creia que é a pura verdade! Sirva-me o Cristo de testemunha. Eu estava de vigia, quando...

— Eu estava de vigia... Eu estava de vigia... repete Antô­nio, arremedando em tom escarninho, o mestiço. Estavas mas é cozinhando a bebedeira de aguardente que meu pai te deu! És o culpado da morte dele... Some-te da minha vista!

— Não diga essa barbaridade, sinhorzinho; eu não estava bêbedo. Bebi muito pouco. Deixei na garrafa mais da metade...

— Ah! É?! E onde está a garrafa?

— Roubaram, assim como a guitarra, senhor, depois que me bateram com a borduna na cabeça! Só me deixaram este depósito de tabaco. Depois arrastaram-me para o mato e me deram por mor­to. Passei a noite toda desacordado. Olhe a ferida... disse levando as mãos à cabeça para mostrar o cabelo empastado de sangue e terra.

— É pena que ela não tivesse rachado de uma vez! respondeu Antônio, curvando-se para ver o ferimento, enquanto acrescenta­va: Por que não morreste logo, dize?!

Mas, ao encarar os cabelos engomados e avermelhados, pelos coágulos de sangue, Antônio não vê a brecha aberta produzida pela pretensa paulada: o que ele via eram brasas esparsas em pastosa lama e, ao centro, numa escavação alongada, os ossos do velho ban­deirante... Uma contorção dolorosa toma-lhe o corpo, quando a voz de Mafaldo se faz ouvir novamente:

— Se eu tivesse morrido, quem levaria meu senhor a Potosi?

O mestiço tinha um sorriso amargo mas enternecido e piscava um olho, inclinando-se até quase tocar os pés de Antônio.

Irritado com essa atitude, que lhe parecia de cínico atrevimento, o moço toca com a bota o ombro de Mafaldo e, empurrando-o com violência, exclama:

— Já te disse que vás para o inferno, traidor!

Espantado com tal reação, o mestiço recua, tropeça e quase cai de costas, mas logo se empertiga, olha o rapaz de esguelha e, como se proferisse uma praga, lança uma palavra, entre dentes:

— Pumasonco!

Nesse momento, como por encanto, o rebenque que Antônio tinha nas mãos não é mais um rebenque: transformara-se numa es­copeta, que ele aponta, decidido, para o cholo, perguntando:

— Que é que estás dizendo?

— Um elogio a meu senhor... “Pumasonco” quer dizer “coração de onça”... Era o nome de um cacique quíchua muito valente e generoso...

Mafaldo fala com uma expressão matreira que exaspera Antônio; este deseja exemplá-lo, castigá-lo, humilhá-lo, mas não pode, é uma angústia de que ninguém mais conseguirá tirá-lo, e o mestiço se apro­veita para vencê-lo e dobrar-lhe o orgulho... E vem-lhe à mente a doce figura de Luzia Mendonça pelo braço de Timóteo Leme. Qualquer coisa então aperta-lhe a garganta a ponto de sufocá-lo e reúne forças para gritar sem conseguir sequer ouvir os seus gritos... Mas Pereá aparece trazendo um prato de lata:

— Almoço pra Pai Tonico...

Meio faminto, o moço apressa-se para receber o prato, que está vazio; não, encheu-se de nozes, e são tantas que se derramam conti­nuamente sem que ele possa provar alguma... Faz tentativas, mas dores atrozes no queixo e no pescoço o impedem de satisfazer a fome. Vê que Pereá o observa com um misto de ternura e dó... Atira o prato à distância, as nozes se espalham, o mestiço as apanha sofregamente e se põe a devorá-las...

— Mafaldo está muito com fome morendo... Pai Tonico dei­xa Pereá dá comida Mafaldo?

Antônio examina o mestiço que é agora um cão farejando o solo, e indaga do índio:

— Quando um cão está faminto, que é que se faz?

— Dá osso pro ele, sim sinhô...

— Pois então! Dê um osso a esse cão miserável...

— Pereá vai dá osso, Pai Tonico. E, num sorriso de compreen­são, o selvagem exibe a dupla fileira de alvos dentes.

Os dentes são copos. Antônio Castanho tem uma sede mortal. E agora se vê diante da bodega do Torquato. O lampião enferruja­do que pende sobre a porta, está cheio de vinho, mas ele não con­segue alcançá-lo: a porta é alta, cada vez mais alta e o lampião não é lampião, é uma guitarra. E a porta não é porta, é o vulto de Mafaldo, que, numa voz enrouquecida, cantarola:

 

Saqué mucha plata

De Potosi

Y por mala suerte

Todo perdi...

Saquê mucha plata...

 

Violenta mola impele o corpo de Antônio, que se sente de pé, enrijado como num colete de aço. Certamente aquele estribilho tem o dom de galvanizá-lo...

— Chame esse demônio aí, ordena a Pereá, que se apressa a obedecer-lhe.

Está no rancho, de novo. Mafaldo se aproxima e entra de cabeça baixa, mas logo readquire o cinismo costumeiro:

— Que ordena “Coração de Onça” a este mestiço trovador, gui­tarrista, curandeiro e soldado da aventura, que está morrendo de fome?

— Já sei que és isso e aquilo e que és capaz de devorar um ho­mem. Já dei ordem para te matar a fome. Não quererás também um gole de aguardente?

— Não me atrevo a pedir, mas, se “Coração de Onça” ordena que eu beba, obedeço, responde Mafaldo, simulando acanhamento en­quanto olha a borracha sobre o baú e lambe os beiços.

— Está bem. Tem tempo. Mas vamos ao mais importante: És capaz de guiar-me a Potosi?

— Guiarei a bandeira com toda a segurança.

— A bandeira não: eu sozinho!

— O senhor sozinho?

— Sim, só eu!

— Com o senhor sozinho irei até o fim do mundo, quanto mais a Potosi!

— Pois vamos embora!

— Pereá vai, Pai Tonico! exclama o índio, entrando no assunto.

— Não, você volta a Parnaíba, com meus manos...

— Pereá vai, Pai Tonico!

Antônio reúne seus pertences às pressas. Precisam partir antes que os irmãos estejam de volta. Pereá arranja uma canoa do ca­pitão Antônio Pais, arruma as roupas, os mosquiteiros, armas, pól­vora, mantimentos que possam atender às necessidades de uma longa viagem. Mas a angústia recomeça. Antônio chama os companheiros, que entraram na barraca para ir buscar-lhe a rede e lá se deixaram ficar. Grita por eles. Os irmãos estão para chegar. Ouve-lhes os passos. Precisa partir! Precisa partir correndo!... Os ossos de Luís Castanho vêm atrás dele. Não querem deixá-lo seguir para o Pe­ru...

E Antônio Castanho rola na cama, mergulhado num suor viscoso, presa do intermitente pesadelo, ora revivendo o alvoroço da partida, ora os transes da luta com os bugres, ora a precipitada fuga que o trouxe com aqueles dois fiéis companheiros, para as altas regiões nevadas, no vice-reino do Peru.

 

                           ANDAREI MIL LÉGUAS...

Na cama da humilde cela, o jovem bandeirante paulista continua seu delírio. Aquela partida desesperada fora realmente uma fuga. Ele fugia, fugia do seu mundo e atirava-se ao mundo desco­nhecido de sua imaginação. Iria palmilhar centenas de léguas por ásperas regiões a fim de cumprir o próprio vaticínio, confiado à casca de noz, em Parnaíba... E, como sempre, a imagem de Luzia caminhava com ele. No seu coração tempestuoso, os sentimentos se alternavam, instantâneos e freqüentes como relâmpagos. Por isso sorria, chamava, ordenava, imprecava, ameaçava, chorava, lastima­va-se, sacudia a cabeça, bracejava, estremecia... De vez em quando seus gritos eram tão violentos que, com certeza, transpunham as paredes espessas; mas não conseguiam atravessar as mantas em que o cholo e o índio estavam embrulhados, como pedras...

O suor continuava a alagá-lo; o acesso da maleita atingia o fim. E ele remava entre as quatro paredes do quarto com a fúria com que o fizera para fugir a uma tempestade armada sobre o Para­naíba.

— Lá vem chuva grossa! Caíram dois pingos pesados na minha cabeça! Não! Nada de abrigo, não temos tempo para parar! A canoa está fazendo água! Depressa, Pereá! É preciso esgotá-la antes que vá ao fundo!... Quê?! Ah! Não há outro remédio?! Então vamos para a margem! Outra cachoeira!... Sustente o remo, que aí tem corre­deira! Vamos varar a canoa por terra... Oh! Como está pesada! Segura aqui, Mafaldo! Meu pescoço está sangrando!... Ah! Agora sim, passamos a embocadura do Tietê, eles não nos alcançarão mais... Vocês estão ouvindo o tantã?... Vai ver que são os caia­pós que vivem de corso por estas bandas. Toda cautela é pouca! Este rio Paraná é um colosso. Estou cansado de ver tanta água! Olhem para a esquerda: aquela é a Serra do Diabo... Agora va­mos descansar nesta ilha. Não, não! Olhem o que nos espera! Desembarque quem for comida de onça!... Não, Mafaldo, não atires! Tem mão na pólvora, senão ficamos no caminho... Temos muito perigo pela frente... Bravos, Pereá! Então vamos subir pelo rio Pardo. Agora é preciso força no remo! Vamos, canoa amiga! Depois é que vou sentir falta do Pajé. Meu pobre cavalo! Não pudemos trazer-te! Nunca mais te montarei!... Meus irmãos cuidarão de ti... Mas estou com uma fome! Sou capaz de devorar um boi! Será que na Vacaria não há nenhuma novilha para se comer?!... Gente! Quem é que deixou cavalo pastando naquela margem? Cor­ra, Pereá! Pegue-o para nós! Para comê-lo, não! Para montá-lo! Sabe o que quer dizer esse cavalo? Quer dizer que estamos no cami­nho dos guaicurus. Esses índios cavaleiros são terríveis. Vamos espe­rar a noite e o animal será nosso. Perdemos a canoa mas ganharemos um cavalo. De cima desta árvore podemos ver tudo! Psiu! Olha lá a bugrada! Vai tudo dormir com os passarinhos. Mas a sentinela está alerta. Deixe-a por minha conta e vá pegar o cavalo... Upa! Este cavalo parece o Pajé! Bota a bruaca na garupa que eu monto em pêlo mesmo! E toca a fugir, porque os guaicurus vão ser aler­tados pela sentinela dormindo e vão querer conversa conosco. Na volta, se não chover, nós lhe diremos adeus... Como é o nome desta serra que estamos subindo? Amambaí?! Ah! Sim, já tinha ouvido falar... Este maldito papo está desinchado mas a ferida não há meio de fechar... Se não fosse este papo... Ah! Se não fosse esse papo talvez eu não estivesse no sertão!...

— Por que, senhor? Pode-se saber? indagou Mafaldo.

— Cala-te, não há tempo para explicações...

Mas o mestiço é teimoso e insiste:

— Por que o senhor não voltou com eles?

— Apressa-te, homem! brada o moço com voz imperiosa. E consola-te com isto!

Com a destreza de um malabarista, Mafaldo se volta e apanha, no ar, a borracha de aguardente. Então beija-a, esticando os beiços e aplaude:

— Bravos, Coração de Onça! O senhor é valente por fora e generoso por dentro!

— Sim, mas não bebas toda, estás ouvindo?

— Só um traguinho, só um traguinho!

Mas destampou o bocal e emborcou mais da metade do conteúdo... Depois deu estalos de franca aprovação, devolveu a bor­racha a Antônio e ofereceu-lhe a binga de tabaco:

— Ofereço-a ao senhor... É a única coisa que tenho!

Mas a viagem continua...

— Olhem lá que rio tão bonito! Sim, é o Aquidauana! Mafaldo e Pereá, acudam aqui! O cavalo foi flechado na perna! Está man­cando... O mato está bulindo de bugres! Cada orelha de pau nos escuta, cada folha nos espreita!... Vamos arranchar para nos de­fendermos; não há outro remédio senão comer o cavalo. E agora! Graças a Deus! Olhem ali uma piroga. Vamos tomá-la e descer o Aquidauana até o Paraguai. Meu Deus! Quanta água! Isto é rio ou não é? Parece mar! Logo vi, ora, é o pantanal do rio Negro! Ufa! Chegamos afinal ao rio Paraguai. Olha para trás, Mafaldo! Mete o remo na cabeça desse paiaguá! Afunda de uma vez, índio de má morte! Não é que ele ia virando a piroga?! Raça maldita! Bravos, Pereá! Você é providencial! Se você não queimasse esse cupim na proa, a nuvem de mosquitos nos devoraria! Não há mosquiteiro que nos livre dessa praga! Cruzes! Prefiro dormir na toca de um jaguar do que ser perseguido por esses infernais sugadores! Ora graças! Vamos deixar-te, piroga valente! Devemos-te a vida! Mas, nem por isso, poderemos carregar-te! Precisamos as mãos livres para fazer fronte aos índios serranos! Que animal é aquele? Lhama?! Ótimo! O dono está dormindo. Desculpe, meu bom pastor! Não fui eu que lhe roubei este simpático animal, foi o Mafaldo, que é mestiço, da mesma raça quíchua que vosmecê... Portanto, entendam-se! Mas que frio medonho! Será que nunca mais acabaremos de subir esta serra? Meu Deus! Os picos vão além das nuvens! Que noite tenebrosa! Nem uma estrela... Mas olhem lá aquela montanha! Que fogos se­rão aqueles?! Ah! Sim, devem ser as tais guaíras, os fornos de barro onde se funde a prata... Que é que você está dizendo?!... Então aquele monte é Potosi?! Não é possível! Estamos chegando, estamos chegando!... Mas que adianta? Não posso mais andar! Potosi!... Pereá, bote-me no lombo da lhama... assim... assim... Potosi! Viva Deus! Viva! Ai! Meu braço está doendo... Não posso!...

Nisto, Antônio Castanho abriu os olhos à claridade da manhã, e viu, a seu lado, frei Leon segurando-lhe o braço enquanto, sentado na beira da cama, um homem pálido, de rosto comprido e bigodes frisados, lancetava-o, na altura do antebraço.

— Que é isso? perguntou, ainda meio fora de si, olhando espan­tado a navalha recurva e pontiaguda.

— Aquiete-se, recomendou-lhe o frade. É uma língua de vaca...

— Língua de vaca?! insistiu, sem compreender.

— Sim, cavalheiro. É uma navalha sangradeira, disse o homem pálido. Não se mexa vosmecê, que lhe estou fazendo uma pequena sangria para abaixar-lhe a febre.

— Mas onde estou eu?

— No convento de S. Francisco, da vila imperial de Potosi, respondeu solenemente o homem, enquanto lhe colhia o sangue numa pequena bacia de barbeiro, que apresentava uma reentrância circular na borda.

— E onde estão meus companheiros?

— Olhe para aquele lado, respondeu o frade, sorrindo e apontando para o canto do quarto onde o mestiço e o índio ainda ressonavam.

— Vosmecê é doutor? perguntou Antônio desconfiado, vendo a bacia encher-se de sangue.

— Sou Gregório Viegas, barbeiro cirurgião de toga longa, do convento de S. Francisco de Assis.

— Creio que pode dar por terminada a operação, senhor Gregório. Já não tem muito sangue nas veias...

— Não se mexa vosmecê, que lhe estou fazendo uma pequena sangria para abaixar-lhe a febre.

— Já o sei, frei Leon... V. Rev.ma não é lá muito amante de sangrias! concluiu o barbeiro, vedando o corte com uma tira de pano e entregando a bacia ao frade, com a navalha ensangüentada.

— A Igreja tem horror a sangue, confirmou este, tomando, com certa aversão, a vasilha, e levando-a para fora.

Gregório Viegas amarrou o braço de Antônio e manteve-o, algum tempo, em flexão, enquanto lhe examinava a fisionomia e lhe falava:

— O cavalheiro é muito jovem. Pelo que vejo, sua barba começou a apontar há uns dois anos... E custa a crer que tivesse vindo do Brasil... Que idade então teria quando partiu?! Olhe que é muito caminhar... É português?

Antônio concentrou suas forças para poder responder:

— Não, sou nascido em S. Paulo. E venho de lá...

— Cáspite! Não é à toa que a gente de S. Paulo tem fama! Eu, por mim, prefiro, mil vezes, arrostar os perigos do mar a meter-me em selvas desconhecidas!...

— Não sou o primeiro que vem de S. Paulo para cá. Meu defunto avô também aqui veio, e por sinal aqui faleceu.

— Como se chamava ele? Se morreu aqui, devo tê-lo conhecido...

— Talvez não. Faz cerca de cinqüenta anos já. Seu nome é o meu...

— E qual é esse nome?

— Antônio Castanho da Silva. Era um fidalgo português, da vila de Tomar.

— Pela data, realmente, não poderia lembrar-me. Mas esse nome não me é estranho. A vila de Tomar conheço-a muito bem. Em meus tempos de rapaz ia lá passear freqüentemente, pois sou natural da Vila Nova de Ourém. Saía a pé, após o jantar, com estudantes, tunantes e futricas, chegávamos com as primeiras estrelas, bailávamos a noite toda e regressávamos com o sol nado... Ah! encantadoras horas passei eu entre pomares, vinhas e olivedos de Tomar! E pensar que vim parar neste deserto, onde se não vê uma folha verde sequer! Como poderei esquecer-me, por exemplo, do pi­toresco rio Nabão, onde pesquei deliciosos salmões e onde naveguei, à tuna, em noites de um luar indescritível?

Gregório Viegas silenciou um momento, o olhar parado em alvo. Antônio cerrou as pálpebras, como se estivesse dormitando...

— Mas, espere! continuou o barbeiro. Antônio Castanho da Silva!? Esse nome não me é estranho... Contudo não me recordo de tê-lo ouvido aqui ou na vila de Tomar! Mas que o ouvi, ouvi!... E, após pequena pausa, continuou, vitorioso: Ó Gregório, mas onde é que tens a cabeça?!... Ainda ontem levei a enterrar um cliente que sofria de ar de estupor. Sangrei-o dez vezes, mas foi baldado o recurso. O mal já não tinha remédio... E foi quando procurei o licenciado do assento das minas para registrar-lhe o óbito que li esse nome no livro dos defuntos aberto em qualquer página à mesa da Sacristia... Agora tenho a certeza. Estava escrito esse nome: Antônio Castanho. Eu o li, por acaso, de passagem, mas posso garantir que o li. Ai se o li!... E seria o mesmo?

A esta pergunta, Antônio espertou, como se lhe tivesse passado toda a sonolência:

— Não pode ser outro, respondeu com vivacidade. Onde se deu isso? Vosmecê poderá mostrar-me onde leu o assentamento?

— Com muita honra, senhor Castanho, respondeu o barbeiro. Antes, porém, há que fazer esta barba, que não fica bem à sua ju­ventude, e depois, pôr-se em pé!

— Fazer a barba é fácil, pois só depende da sua boa vontade...

— Quer que a faça já?

— Como vosmecê achar melhor, respondeu Antônio sem muita convicção.

Nesse momento, frei Leon voltava com a bacia cheia de água e a navalha. Gregório tomou desta, enxugou-a, fechou-a e guardou-a num bolso da toga, do qual tirou outra diferente.

— Vai barbeá-lo? indagou o frade.

— Sim, reverendo.

— E a ferida?

— Cura-se melhor sem a barba.

Isto dizendo, afiou a lâmina na palma da mão, agitou o sabão dentro da água enquanto o frade desatava a faixa do pescoço ao paciente. E o barbeiro deu início à nova operação, um pouco menos cruenta que a anterior... Mergulhava a mão esquerda na água en­saboada da bacia, passava-a, em seguida, no rosto do jovem e, com a direita, ia manobrando a navalha. De vez em quando, Antônio fazia esgares e ele o censurava com bom humor:

— Nada de caretas, senhor cavalheiro! A navalha está tão afiada que até canta!

O frade assistia a cerimônia em silêncio, mantendo a bacia adaptada sob o queixo do rapaz. Terminada a tarefa, Gregório enxugou-lhe o rosto, recuou um passo, para ter uma visão de conjunto, e exclamou:

— Ah! Agora sim, está garrido! Antes até parecia um mísero pedinchão ou algum trovador errante... Agora, acrescentou voltando-se para frei Leon, resta dar-lhe mais quina e muito de comer, que seu grande mal é fome...

 

                                                   DUAS HISTÓRIAS

Na manhã seguinte, era um domingo, Gregório foi encontrar Antônio Castanho de pé, olhando através da pequena janela, o lento desfile dos frades, que rezavam sob as arcadas do pátio.

— Está casquilho, com essa cabeleira bem penteada! Que milagre foi esse?! perguntou ele, com familiaridade, ao moço.

— O da bondade desses religiosos e o da perícia do cirurgião, informou Antônio.

— Não fiz nada de mais, afirmou o barbeiro, com refalsada modéstia. Atribua antes à sua juventude... Com a mudança de clima e a milagrosa quina do Peru, sua febre está batendo em retira­da. Vamos, agora, é tratar de cicatrizar essa ferida. Mas para isso os bálsamos não são suficientes. Precisaremos recorrer às águas de Tarapaiá.

— Tarapaiá?!

— Sim, refiro-me a uma laguna de águas virtuosas, a meia légua daqui. É, sem dúvida, o segundo prodígio de Potosi.

— O segundo? Qual é o primeiro?

— Ainda pergunta? O que foi que o trouxe para estas alturas, fazendo-o palmilhar centenas de léguas, a despeito de todos os peri­gos?! Não vá me dizer que foi só o desejo de visitar o túmulo do fidalgo senhor seu avô...

Antônio não encontrou resposta pronta e o barbeiro prosseguiu, em tom declamatório, como num discurso decorado:

— Que há de ser esse primeiro prodígio, senão a famosa, a má­xima, riquíssima, inesgotável montanha de Potosi, singular obra do poder de Deus, único milagre da natureza perfeita e permanente ma­ravilha do mundo, alegria dos mortais, imperador dos montes, prínci­pe de todos os minerais, clarim que ressoa em todo o orbe, atrativo dos homens dos quatro cantos do mundo, ímã de suas vontades, monstro de riquezas, corpo de terra e alma de prata... Potosi!... Ah! Potosi! Para alcançar-te me fiz barbeiro-cirurgião desta Ordem, por cobiçar-te deixei Pátria, família e amigos e, no entanto, por fraqueza e covardia, ainda não saquei, de tuas entranhas, uma oitava de prata sequer!

Antônio Castanho escutava o inesperado discurso, de olhos arregalados. Nessa altura, indagou:

— E por que, senhor Gregório?

— Porque, continuou ele, com acento lamentoso na voz, para fazê-lo, são necessárias três virtudes que me faltam: sangue de jovem, audácia de salteador e pulso de ferro... E ai de mim! Com ambição somente nada pude fazer até agora!

— Tenha esperança num golpe da sorte. Pode topar com um veio inexplorado e então estará rico da noite para o dia, disse Antônio, tentando animá-lo.

— Ora, um golpe de sorte dessa espécie pouco me adiantaria pois, ainda por cima, me falecem forças para sacar-lhe todo o proveito... O amigo já ouviu contar a história do índio Gualca, que descobriu esta mina fabulosa?

— Não.

— Pois não me custa contá-la a vosmecê. Sente-se, disse, apon­tando o catre, enquanto se abancava, por sua vez, no tamborete. Mas, olhando em torno, interrompeu seu pensamento, e indagou:

— Onde estão seus companheiros?

— Saíram a passeio, ontem, e ainda não voltaram...

— Estão se divertindo, com certeza, na rancharia dos mitaios,* lá para os bairros de Guachacala ou Cantumarca... E, se gostam da chicha, só aparecerão amanhã, que é dia de sanlunes...

 

* Índios peruanos que se empregam em trabalhos avulsos.

 

— Sanlunes?!

Gregório esclareceu-o:

— Há mineiros nativos que bebem tanto durante o domingo que ainda se acham embriagados no dia seguinte. São, por chiste, cha­mados então de sanlunes, santa segunda-feira, pois transformam a segunda-feira em dia santo, negando-se ao trabalho.

— Ah! E é isso mesmo, sanlunes...

— Mas vamos à história de que lhe falei. Dizem que se passou há bem mais de cem anos, com Gualca, um índio pastor, per­tencente à nação chumbivilca, que ainda tem seus remanescentes nesta província. Servia ele ao capitão João de Villaroel, um dos primeiros conquistadores do Peru. Pois certo dia do mês de janeiro, apascentava Gualca o seu rebanho de lhamas nas cercanias do cerro de Potosi, quando percebeu que se fizera tarde e que se tornara as­sim impossível, antes da noite fechada, regressar às choças dos pas­tores de Canteria, onde costumava pernoitar. Resolveu, por isso, pousar ao relento, na encosta de Potosi... Aconteceu, porém, que um vento gelado começou a soprar das alturas do Ilimani e precisou aquecer-se a uma fogueira para não morrer de frio. Como os arredo­res eram desnudos e estéreis, passou ele parte da noite catando palha e ramos secos de uma árvore chamada cenhua e ateando-lhe fogo. Só alta madrugada, vencido pelo cansaço, conseguiu dormir, entre o braseiro e os corpos dos animais.

Despertou com o sol da montanha a queimar-lhe o rosto e teve uma espantosa surpresa: de sob a brasa, que ainda fumegava, des­ciam, pela encosta, ricos filetes de pura prata! Não acha que é um prodígio, senhor Castanho?

Antônio meneava a cabeça interessado, achando que sim.

— E no entanto foi a pura verdade, segundo narra a crônica, continuou Gregório. Fizera fogo para não morrer de fome e eis que descobriu a mais portentosa mina de prata de todos os tempos! A beta do minério argentífero, situada à flor do solo, sob a ação do calor revelara-se e o metal liquefeito escorrera como fonte que mais de um século de cobiça e exploração não conseguiram esgotar...

Gualca não ignorava o valor da prata e resolveu explorar a mina em segredo, a fim de evitar que caísse em poder de Villaroel, que, com armas e tretas, ia fazendo mão baixa às terras que lhe pertenciam...

Ora, a boa sorte é mais difícil de ocultar que a má fortuna... Bruscamente, de miserável que era, Gualca passou a grão-senhor, promovendo bailes e festas ruidosas que atraíam os naturais de toda a redondeza. Seus conhecidos viviam intrigados com o trem de vida que levava aquele que, até há pouco, era um humilde pastor de lhamas... Mas não tardou que uma dose maior de chicha aca­basse com sua discrição, pois fez uma confidência a um seu amigo íntimo, chamado Guanca.

Como é de praxe em casos semelhantes, o fiel amigo transplan­tou, com terra e tudo, para ouvidos espanhóis, a mágica flor daquele segredo. E houve o que se poderia esperar: Villaroel e demais aven­tureiros espanhóis apossaram-se do precioso achado e Gualca, por não saber aproveitar-se de sua fortuna, caiu em desgraça... E os índios ainda pretenderam matá-lo por haver revelado tão importante segredo ao inimigo de sua raça!...

— Se acontecesse a vosmecê um achado desse, interrompeu o moço, que o escutara atento e interessado, seria diferente. Vosmecê é um letrado, não é um índio bronco... Tem boas manhas de branco...

— Muito obrigado pelo elogio. Mas não me convence. Eu não sou nenhum capitão Sapata...

— Quem é capitão Sapata?

— Também não sabe?! Pois o capitão Sapata foi um aventureiro que deixou nome por estas plagas, um homem que, por sua astúcia e coragem, saiu carregado de prata e ouro deste reino do Peru. É outra história, das mil que se contam sobre esta terra fabu­losa... Quer que lhe conte mais essa?

O moço assentiu, meneando a cabeça. E o barbeiro começou:

— Desde a descoberta de Gualca, foram se abrindo, na montanha, inumeráveis bocas de mina, que se tornaram fontes de riquezas inauditas e, ao mesmo tempo, túmulos imensos de milhares de escravos, índios e de homens brancos também, homens de todas as proveniências, que, muitas vezes, se exterminavam mutuamente, na disputa dos veios.

De cerca de cinco mil bocas de mina, uma se tornou especial­mente célebre devido à estranha história de seu descobridor, o capi­tão Sapata, ao qual até deve o nome de Sapateira.

Foi por volta de 1561, quase dezesseis anos após a descoberta de Gualca, que surgiu, em Potosi, um cavalheiro chamado Jorge Sa­pata, exibindo, em língua italiana, documentos em que se mencio­navam seus títulos de alferes e capitão e suas façanhas de armas a serviço do vice-rei de Sicília, duque de Medina Celli. Conquistou, em breve, as simpatias gerais e não teve dificuldade de obter tra­balho: um rico alemão, Gaspar Boti, empenhado na exploração da mina de Centeno, uma das mais ricas de Potosi, tomou-o sob sua proteção, dando-lhe, por companheiro de pouso e de trabalho, a Rodrigo Peláez, bom espanhol que também estava a seu serviço.

O capitão Sapata afeiçoou-se a Rodrigo, ajudando-o, com dili­gente esforço, no pesado labor da mineração e percebendo o salário de vinte pesos por semana. A extraordinária abundância de prata encarecera a vida, nessa vila, a tal ponto, que esse salário mal dava para o capitão Sapata não morrer de fome. Ele, porém, era de ânimo forte e tinha uma boa estrela... Em pouco tempo estava perito no ofício e se tornara mestre na arte dos metais da época, que consistia em conhecer os minérios e separar-lhes a prata por meio do calor sem guaíras, isto é, em formas de barro redondas e cheias de agulheiros por onde entra o ar do vento ou dos foles, a fim de manter aceso o carvão misturado ao minério, vosmecê sabia?

— Não, mas compreendi, respondeu Antônio com vivacidade. A prata assim apurada escorre, derretida, para algum recipiente próprio, que há de haver no fundo da vasilha, não é?

— Parabéns, senhor Castanho! Daqui a pouco conhecerá o assunto melhor do que eu...

— Aprendi alguma coisa com o meu guia de viagem, um mes­tiço de nome Mafaldo, que se diz muito prático em azougagem...

— A quem se refere? A Mafaldo, o mestiço?! perguntou espantado o barbeiro.

— Isso mesmo.

— Pois conheço essa bisca... Mas há muitos anos não o via. Era então um daqueles que estavam encolhidos aqui no canto da cela?

— Era.

— Pensei que tivesse rebentado algures de tanto beber... É realmente entendido. Mas não se pode contar com ele. É um sanlunes incorrigível...

...Voltemos, porém, ao nosso capitão Sapata. Um dia, separando-se ele, por acaso, de seu companheiro, topou com um veio ignorado de que extraiu algumas amostras de minério que lhe parecia dotado de altíssimo teor de prata. Sem perda de tempo deu parte a Rodrigo que exultou com o achado. Por dever de lealdade, parti­ciparam também ao patrão, que os tratava com bondosa cama­radagem. O exame do minério confirmou a bela impressão de Jorge Sapata. Com isso, de serviçais que eram, passaram a sócios de Gas­par Boti, ficando os três em pé de igualdade. A nova mina ficou, desde aí, se chamando Sapateira, e, em dez anos, extraíram dela muitos milhões de pesos de prata!

Por morte de Gaspar Boti continuaram ambos na rendosa explo­ração e se tornaram pessoas principais, pela sua riqueza, na já opu­lenta vila real de Potosi.

— É extraordinário! exclamou Antônio. Uma bela história.

— Espere pelo resto, meu amigo. Ainda não sabe o melhor... O capitão Sapata ficou especialmente famoso pela sua liberalidade com os amigos e necessitados. Não sabiam que mais admirar nele: se as virtudes, a destreza no manejo das armas, a gentileza de trato e até a bela figura de capitão e fidalgo. Passados cinco anos nessa boa fortuna, resolveu ele volver à sua pátria, que todos julgavam ser a Espanha...

— E não era? indagou Antônio Castanho, com crescente inte­resse pela narrativa.

— Não. E sabe o que fez ele? Adquiriu, na cidade de La Paz, doze arrobas de ouro, despediu-se de Rodrigo Peláez e de numerosos amigos e, com todo esse ouro e mais dois milhões de pesos de prata, partiu.

Rodrigo Peláez nunca mais teve, em Potosi, notícias dele e, passados muitos anos, resolveu também deixar o Peru e regressar à Espanha. Foi. Após curta estada em Oviedo, sua terra natal, onde não teve tempo de gozar as riquezas que, por sua vez, levava, mu­dou-se para Cádiz. Certo dia, porém, uma poderosa armada inglesa, composta de duas a três dezenas de galeras e naves e vinte mil com­batentes, desfechou um ataque de surpresa a essa cidade, que não teve recursos para se defender. O desembarque da tropa foi seguido de horrorosa pilhagem e devastação... Nessa ocasião, além de per­der seu rico tesouro, Rodrigo Peláez perdeu também a liberdade. E só conservou a vida na condição de escravo. Começou, então, sua via dolorosa: levado para Londres, de Londres para a França, acabou sendo oferecido, de presente, a um italiano chamado Marieneto que, fartando-se de maltratá-lo, o vendeu a dois mouros. Estes o carre­garam para a África, a fim de revendê-lo no mercado de Argel.

Sucedeu que o irmão mais moço do rei de Argel, que se chamava Cara Sigala, comprou Rodrigo, levando-o assim para o palácio real. E estava aí o desgraçado exercendo seu labor de cativo quando, certo dia, o rei, ao passar por ele, se deteve e o encarou demorada­mente...

Fatigado de sua vida humilhante, Rodrigo baixou a cabeça. Mas o rei, passando-lhe a mão sob o queixo, ergueu-lhe o rosto e, pro­curando olhá-lo bem nos olhos, disse-lhe em perfeito espanhol:

— Vosmecê não se lembra de mim, Rodrigo?

Cheio de espanto, o escravo respondeu:

— Não, majestade.

— Então será que vinte anos de separação o fizeram esquecer um velho amigo?! Fui seu companheiro de quarto e sócio de mine­ração tantos anos, em Potosi! Não se lembra?

O escravo devia ter um ar imbecilizado; e o rei explicou:

— Eu sou o capitão Sapata...

Chorando de alegria, Rodrigo curvou-se e tentou beijar os pés do rei. Este, porém, abraçou-o carinhosamente, fê-lo sentar-se ao seu lado e conversou com ele de igual para igual, como nos tempos em que lutavam juntos aqui...

— É uma história quase incrível! comentou Antônio Castanho.

— Sem dúvida, concordou Gregório Viegas, e prosseguiu: Os amigos contaram-se, então, as respectivas histórias... Ao deixar o Peru, o capitão Sapata não se dirigiu à Espanha, conforme todos ha­viam imaginado. Fora para a Turquia, pois era natural de Constantinopla, filho de uma grega e de um turco de sangue nobre. Seu verdadeiro nome, que então começou a usar, era emir Sigala. Afigu­rava-se inacreditável a Rodrigo Peláez que, tendo sido seu compa­nheiro e amigo pelo espaço de quinze anos, nunca tivesse tido razões para suspeitar que o capitão Sapata não fosse cristão e, muito menos, não fosse espanhol de nascimento...

O falso capitão apresentou-se ao sultão Amurartes que era, na época, o soberano dos turcos, e, narrando-lhe suas aventuras no reino do Peru, ofereceu-lhe grande parte do ouro e da prata que levava. O sultão acolheu-o com magnificência e, para retribuir-lhe o valioso presente, nomeou-o General das Galeras Turcas.

Por morte de Amurartes, sucedeu-lhe no trono o sultão Moamed, que nomeou emir Sigala seu vice-rei. Neste novo cargo, o afortu­nado aventureiro empreendeu novas façanhas que muito o elevaram no conceito geral, a ponto de merecer o título de rei de Argel, onde o fora encontrar, por um feliz e incrível acaso, seu velho companhei­ro de mineração.

Por magnanimidade de emir Sigala, Rodrigo deixou imediatamente a condição de escravo, sentou-se à mesa real e, após uma temporada de inesquecível passadio, regressou à Espanha, levando consigo muito ouro, ricas roupagens e mais presentes de seu sempre encantador amigo — o rei de Argel, antigo capitão Sapata!

— É uma bela e estranha história! disse Antônio, acrescentando: E a Sapateira, ainda fornece prata?

— Não, está em abandono há muitos anos, como centenas de outras... Mas ainda pode ser explorada. A questão é querer! Que­rer é poder, concluiu Gregório Viegas, cofiando os bigodes petu­lantes.

Mal acabara sua narrativa, entrou Pereá um tanto afobado, avisando:

— Pai Tonico, Mafaldo vendeu lama (ele queria dizer — lhama) pa compá chicha, bebeu noite inteira, não queria voltar. Pereá carregou ele, brigou com Pereá, tá caído na rua...

Gregório soltou uma risada:

— Não lhe disse, senhor Castanho?!... O mestiço é um sanlunes desavergonhado!

 

                                               O PADRE BARBA

Quase refeito da terrível caminhada através dos infindáveis sertões e, segundo todas as aparências, livre da febre, na manhã de segunda-feira Antônio Castanho prontificou-se a acompanhar Gregório que desejava mostrar-lhe a cidade e levá-lo ao curato da igreja onde jaziam os restos mortais do velho Castanho.

Ao transporem a porta do convento, toparam com Pereá sentado à soleira, na atitude do costume, sempre à espera de ordens de Pai Tonico.

— Vá buscar o Mafaldo, ordenou-lhe Antônio. Se ele não quiser vir, volte imediatamente e me espere aqui.

— Pereá vai, assentiu o bugre, erguendo-se com presteza.

E, num instante, deu volta à igreja de S. Francisco e desapare­ceu.

Enchendo os pulmões com o ar frio e leve da rua, Antônio sentiu-se estimulado. A manhã estava límpida e os ruídos da cidade, que despertava para a faina febricitante, o encheram de estranha alegria. Seus ouvidos nunca haviam escutado a pulsação de vida de uma cidade como aquela. Os raros pregões das vilas de Parnaí­ba e S. Paulo não se comparavam àquela procela de vozes humanas, gerada ao sopro da paixão e da cobiça. Seu coração lhe segredava que, ali, sobre o chão pedregoso, brotaria a flor da aventura de seu sonho de menino...

Ao desembocarem na praça do Gato, não se conteve e perguntou:

— Hoje é dia de festa?!

— Não, é um dia comum, respondeu Gregório, com simplicidade. Por que pergunta?

— Então todos os dias vemos isso por aqui? insistiu o moço, apontando a praça coalhada de vistosos pára-sóis, como um campo de cogumelos.

Debaixo dos toldos coloridos, mercadores apregoavam, com es­palhafato, mercadorias as mais variadas. Alguns, afoitos, tomavam fregueses e curiosos pelo braço, a fim de convencê-los a fazer o melhor negócio do mundo. Vozes de todos os timbres e origens cru­zavam-se. Mitaios, cegos e mutilados por acidentes nas minas, dis­putavam esmolas, questionando-se, entre si, em dialetos quíchuas e aimarás.

— Sim, todos os dias é esse movimento que vosmecê está vendo, respondeu-lhe o barbeiro.

Mergulharam, afinal, naquela agitação de seres humanos de to­dos os matizes, amarelos e brancos da Ásia e da Europa, negros de Cabo Verde e de Benguela, índios e mestiços do Novo Mundo. E foram arrastados ao sabor do povaréu, como despojos à flor da vaga...

Antônio Castanho estava aturdido com os pregões e deslumbra­do com o esplendor oriental daquela feira. Eram odres de azeite, surrões de mel, fangas de trigo, cabaças de chicha, botijas de vinho, peles de alpaca, vicunha, chinchila, gaiolas com pássaros de vistosas plumagens, galinhas, cordeiros, falcões de caça, ovos de tartaruga, pães-de-açúcar, potes de melaço, xarque, erva-mate, cascas de quina, folhas de coca, bálsamos do Peru e de copaíba, doirados do Mamoré, frutas européias, ervas medicinais e especiarias, doces em pro­fusão, fumo de Cartagena, amêndoas, anis, mostarda e nozes do Chile, leques e estojos de Madri, mantilhas, xales e sombreiros de Sevilha, tafetás de Granada, meias e espadas de Toledo, panos colo­ridos de Segóvia, tapetes e gravuras de Flandres, lenços de Holanda, tecidos de Florença, papéis de Gênova, espelhos e cristais de Vene­za, marfins e ébanos da Índia, pau-brasil, cabaias da China, aromas da Arábia, alfombras da Pérsia e da Turquia, aljôfares da ilha Mar­garida, baetas, lençóis de algodão e chapéus de Quito e Cusco, ca­nastras e resinas de Santa Fé, rendas e bordados de Chanchapóias, cruzes, medalhas e rosários de prata e ouro, jacintos, turquesas, calcedônias, ímãs, ágatas, venturinas, corais, pedras de bezoar, e, o que era ainda mais espantoso naquelas alturas pétreas e áridas, vasos de meimendro em flor, malvas, trevos vermelhos, gencianas azuis e amarelas, milamores purpúreos e brancos...

Foi tão absorvente o interesse do recém-vindo que, debalde, Gregório o puxava pelo braço, cada vez que ele parava:

— O amigo terá tempo de sobra para ver tudo isso... Vamos!

Mas o aviso era inútil! Antônio Castanho estava enfeitiçado! Ia o barbeiro já a impacientar-se quando, voltando, por acaso, os olhos para a direção do sul, teve uma inspiração:

— Olhe para aquela banda, disse apontando um monte que se destacava à pequena distância do povoado. Sabe o que é aquilo?

Antônio ergueu o olhar para a direção indicada e respondeu sem pretender adivinhar:

— Não.

— Pois saiba, continuou Gregório com ênfase, que é o imperador dos montes, o sempre incomparável cerro de Potosi!

— Aquele?! indagou o moço, subitamente interessado.

— Nada mais, nada menos... E isso tudo que vosmecê está admirando, saiu das entranhas dele!

— Saiu?! perguntou ainda Antônio, sem atinar no sentido figurado da expressão.

— Pois então?! Não foi atrás da prata de suas minas que estes mercadores vieram cá ter?... E agora, venha daí, vamos a ele!

— Vontade não falta, senhor Gregório. Antes, porém, peço que me leve à paróquia onde viu o nome de meu avô.

— Pois vamos lá.

Antônio deixou-se arrastar. Saiu, afinal, da praça, esbarrando numa índia de chapéu alto que sobraçava um cântaro de azeitonas, tropeçando em bruacas de mantimentos, espalhando moedas que um pastor empilhava no chão, sobre seu xale multicolorido, escorregando nas pedras ovóides do calçamento cheio de altos e baixos, tirando-lhes faíscas com suas esporas de cavaleiro. O jovem bandeirante seguia para a frente, olhos pregados no cerro de Potosi...

Era este um monte de avantajado porte, desnudo, assemelhando­-se a um pão-de-açúcar dos engenhes da época, de colorido entre pardo e vermelho-escuro, abrangendo um circuito de cerca de duas léguas com suas fraldas, e destacando-se de um recorte alteroso de azul carregado sobre o claro azul do céu matutino.

Atravessaram uma ponte sobre a famosa ribeira que era o desaguadouro geral das lagunas represadas nas montanhas, a meia lé­gua do povoado. Defrontaram, afinal, uma igreja de aparência mo­desta, de torre lateral. Gregório entrou pela porta da Sacristia, se­guido de Antônio. Veio recebê-los um mestiço mesureiro, ajudante do sacristão:

— Bartolomé, foi-lhe dizendo o barbeiro, onde está frei Prudêncio?

— Foi confessar um penitente.

— Pode mostrar-nos o Livro dos defuntos?

— De que ano?

— De 1622, precisou Antônio.

Sem demora, o homem abriu uma arca e tirou de lá um grande livro manuscrito, em cuja capa se lia: Libro de los defuntos — dé­cada de 1620 a 1629.

Gregório tomou-o, folheou-o como bom cirurgião familiarizado com aquela espécie de literatura, e vangloriou-se:

— Ah! Gregório Viegas, tens memória de ouro! Cá está!

Antônio precipitou-se, para ler o documento.

— Espere! disse o barbeiro, espalmando a mão sobre o peito do moço para retê-lo. Na linguagem em que está, vosmecê não vai entender... Deixe-me que o leia.

E em voz pausada e solene, leu o seguinte: “Certifico, eu, licenciado Lorenzo de Mendoza, cura beneficia­do desta paróquia das Minas de Potosi e seus anexos, nesta província do Peru, que é verdade que, nesta dita paróquia, aos nove dias de setembro deste ano de 1622, morreu e enterrei na igreja desta dita paróquia das Minas, a Antônio Castanho, português, segundo e co­mo fica lavrado neste Livro dos defuntos desta dita igreja, o qual Antônio Castanho eu, o licenciado Lorenzo de Mendoza, conheci e tratei familiarmente nesta dita província e dele soube ser natural da vila de Tomar, no reino de Portugal, e casado no Brasil, na loca­lidade de S. Paulo e, por ser verdade, firmo este com o meu nome, o que é feito nesta dita paróquia das Minas de Potosi no dia dez de setembro deste ano de 1622”.

Quando Gregório acabou de ler, Antônio tinha os olhos mare­jados de lágrimas. Tomou do livro e deletreou, com dificuldade, aquela algaravia tabelioa, escrita em castelhano de meio século atrás.

Não podia haver dúvida: era o seu avô! E perguntou a Bartolo­mé:

— Onde estará ele enterrado?

— Não se pode saber se não há indicação. O chão da igreja é todo um só túmulo, de tantos jazigos...

Antônio, em silêncio, se dirigiu para o corpo da igreja. Gregório, discretamente, deixou-se ficar na Sacristia, conversando com Bartolomé.

À luz colorida que entrava pelos vitrais, examinou os altares. O primeiro em que pôs os olhos foi o de N. S. do Rosário. Sua emoção aumentou. Quem sabe se não seria sob aquele altar?... Seu pai deveria estar, àquela hora, sepultado sob o altar da Senhora do Rosário, em Parnaíba, segundo estipulara em seu testamento. Com certeza seu avô teria idêntica devoção e ali estaria enterrado... Então dobrou os joelhos quase involuntariamente e rezou em memó­ria de ambos. Pela primeira vez, em um ano, assaltaram-no saudades de casa. Não se arrependeu de ter vindo, nem de haver, necessa­riamente, causado profundo desgosto aos irmãos com o seu desapare­cimento súbito... Mas pensou em regressar o mais breve possível, a fim de reparar o mal que lhes causara.

Nisto a lembrança de Luzia o tomou de assalto. Para vê-la de novo, todos os dias?! Não, isso nunca!

Benzeu-se e levantou-se. À saída, Gregório juntou-se a ele. Lutando contra a imagem de Luzia, que teimava inutilmente arran­car do coração, tomou uma iniciativa desusada em vista de seu tem­peramento bisonho, nada amigo de confidências. Segurou o barbeiro pelo braço, com inesperada familiaridade, e perguntou-lhe:

— O amigo que me sangrou acha que ainda tenho sangue de jovem?

— Ora que pergunta! E então não havia de ter?

— E acha que tenho o pulso forte?

— Não precisa dizer o restante que eu já sei... E audácia de salteador, não é isso? perguntou o Gregório, com uma expressão gaiata.

Antônio concordou. E o barbeiro prosseguiu:

— Pois pode ficar certo que tem tudo isso. Conheço os homens como o fio de minhas navalhas. E quando falei nessas qualidades é que o tinha para modelo à minha frente... E, cofiando o bigo­de, acrescentou ainda: Fora o salteador, salvo seja!

Riram ambos. E Antônio concluiu:

— Então, se é assim, essas qualidades estão ao dispor de sua ambição...

— Ora, dê-me cá um abraço, meu caro, exclamou Gregório comovido, sustendo o passo.

Antônio abraçou-o, um tanto confuso. O outro, porém, apertou-o estreitamente contra o peito, dizendo:

— Bravos! Seremos sócios e havemos de ser donos de cata!

— Como os dois aventureiros da história que me contou ontem? indagou Antônio, num alvoroço pueril.

— Exatamente. Eu serei o Rodrigo e vosmecê o capitão Sapata.

— Quando começaremos?

— Na semana que vem. Antes precisamos acabar de fechar essa fístula, respondeu Gregório, apontando o pescoço de Antônio.

— Ah! Quanto a isso não tem importância. Não me embaraça.

— Mas embaraça-me a mim, que não me fica bem deixar a cura incompleta... Amanhã iremos a Tarapaiá. O pouco que fal­ta para a cura total, as águas termais o farão... Vamos agora dar um pulo até à minha loja que eu quero apresentá-lo a um mestre de mineração que muito nos há de valer...

Estugaram os passos e, em breve, chegavam à portentosa praça do Regozijo, em cujo centro D. Francisco de Toledo, vice-rei do Peru, mandara construir a nova catedral. Antônio Castanho admi­rou o belo templo e, a um canto da praça, a Casa da Moeda, com seu artístico portal de granito, colunas, arcos e balcões rendilhados. Ao poente, o palácio do Pretório, com imponente escadaria, o conselho dos edis, o cárcere e, na esquina ao sul, a Caixa e o Banco Real.

Transpuseram a praça e, após alguns quarteirões, chegaram a outra menor, a praça do Pichincha, com a sua preciosa galeria de colunas nas quatro frentes. Ao longo desta, havia lojas, bazares, oficinas de sapateiro, alfaiates, modistas e ourives. E, através de suas portas, um entrar e sair de gente de toda a categoria, desde o escravo negro, de camisa de algodão cru, até à dama, vestida e pen­teada a rigor.

Gregório parou diante de uma loja cuja porta estava aberta, mas vedada por um pára-vento.

— É aqui o cochicholo onde exerço a minha arte.

Antônio leu a tabuleta que encimava a porta:

 

                           Barbeiro — Cirurgião Viegas

                               Cabeleireiro — Dentista

                               Aplica-se sanguessugas

 

Entraram. Era um salão estreito e comprido, esquisitamente mobilado, com gravuras flamengas pelas paredes. A luz do dia coa­va-se através de uma clarabóia feita de pedras transparentes de berenguela. Diante de um espelho veneziano, um jovem mestiço fazia a barba a um freguês irreconhecível, de tão ensaboado, enquanto este, sentado numa cadeira de braços, sustinha a pequena bacia encaixada sob o queixo. Sobre um consolo, pentes, navalhas, um boticão, tesouras, boiões de cosméticos. Ao fundo, um rebolo de afiar, rente a uma porta vedada por espessa cortina verde.

— Este é o Ramón, disse Gregório, apresentando o rapazinho a Antônio. Começou como meu aprendiz e hoje é o melhor dentista de Potosi.

Ramón agradeceu com um sorriso, mostrando todos os dentes:

— Obrigado, senhor.

Gregório conduziu Antônio para o quarto dos fundos. Era uma peça clara e alegre, com duas enxergas. Através da janela que dava para um pequeno quintal, Antônio admirou, como num quadro sem­pre sonhado, o recorte impressionante de Potosi.

— Meu companheiro de quarto, até ontem, era Ramón. De hoje em diante será vosmecê, participou-lhe Gregório.

Antônio demonstrou certo escrúpulo:

— E Ramón?

— Ele se arranjará na alcova ao lado, com o seu índio...

— Mas é que não posso abandonar o Mafaldo. Devo a ele o ter vindo até aqui...

— Isso de canto para dormir não é problema para os três. Venha. Quero mostrar-lhe agora o mestre prateiro, de que lhe falei.

Assim dizendo, Gregório tirou, de uma prateleira pendurada à parede do quarto, um velho livro que entregou a Antônio:

— Ei-lo! Apresento-lhe o nosso guia. Antônio tomou do livro e leu o título:

 

Padre Barba

A arte dos metais

 

Enquanto o bandeirante examinava, interessado, a obra, Gre­gório explicou:

— É uma preciosidade que ninguém possui em Potosi. Foi frei Leon que mo trouxe de Barcelona. Qualquer azougueiro me daria muita prata por ele. Mas não quis vendê-lo. Guardei-o à espera de uma oportunidade... E eis que a providência me envia um sócio como eu sonhava! Meu amigo: Com este padre Barba, não morreremos pagãos! concluiu exaltado. Seremos azougueiros diplomados! E para isso não nos falta o principal: veja só que beleza!

E abrindo uma enorme arca de madeira que, encostada sob a janela, separava as camas, mostrou quatro cubas cheias de mercúrio.

Antônio, que só conhecia o azougue de nome, acariciou a superfície líquida e brilhante e indagou, maravilhado:

— É prata derretida?

Gregório soltou uma gargalhada.

— É azougue, ó homem! Não sabia que este metal é líquido?

— Não sabia! respondeu Antônio, sem se cansar de dar palmadas no mercúrio.

— Pois é. Aí temos, para começar, alguns quintais de azougue. Já é um bom princípio. Isso tudo que vosmecê está vendo, obtive-o a troco de um — muito obrigado. Enviou-me um cliente de Guancavelica, a quem curei de alporcas no ano passado. Sabe de que distância veio isto?! Duzentas léguas! O homem é dono de uma rica mina de azougue e essa quantidade, para ele, é uma gota no oceano. Mas para nós, mestres prateiros, vale um potosi. E mor­dam-se de inveja os que nos virem com milhões de pesos, concluiu Gregório, com acento jactancioso na voz, como se já fosse dono de cata rendosa.

 

                                             ZOROCHE

Naquela mesma tarde, Antônio cuidou de transferir-se, com sua bruaca, para a nova moradia. Agradeceu a frei Leon a caridosa acolhida no convento e, ao despedir-se, beijou-lhe humilde­mente a mão. O frade fez um gesto de bênção sobre a sua cabeça e disse-lhe:

— Siga sua estrela, mas nunca se esqueça que é filho de Deus e que os mitaios são seres humanos como nós.

Antônio acenou com a cabeça e saiu acompanhado de Gregório e Pereá.

O barbeiro resolveu explicar os motivos da recomendação do frade, e disse a Antônio:

— Participei a frei Leon o nosso projeto. Com certeza o san­to varão julgou vosmecê pelos seus patrícios, os espanhóis, para quem o índio é um ser sem alma, que se pode carnear para alimentar cães de caça. Por esse motivo, a montanha de Potosi não é só fonte de prata. Suas galerias e labirintos são catacumbas de milhares de índios...

Ao passarem por trás da igreja de S. Francisco, esbarraram com Mafaldo, que vinha cambaleando.

— Caramba! Desde de manhã que os procuro, senhor Dom Castanho! Onde se escondeu? perguntou o mestiço, com a cara mais séria do mundo.

— No cântaro de chicha, respondeu, com bom humor, o rapaz. Não me viste no fundo, quando bebias?

— Eu? não! redargüiu ele, abanando a cabeça e fazendo um muxoxo.

Gregório e Antônio não contiveram o riso diante de tamanha inocência. Até Pereá soltou uma risadinha.

— Não bebi nada, senhor! Isso é invenção de Pereá, afirmou ele, fingindo que não via o índio.

— Então por que estás cambaleando dessa forma? perguntou-lhe o barbeiro.

— Quem me fala? Será porventura o grande cirurgião Dom Viegas? inquiriu Mafaldo, encarando seu interlocutor de tão perto que este lhe sentia o bafo saturado de chicha.

— Sim, eu mesmo.

— Então um cirurgião não sabe que, se estou cambaleando, não é por causa da chicha?

— E por que é então?

— É porque estou doente de tonteiras... Sinto coisas na cabeça, zumbidos nos ouvidos, dor de estômago... Ando sem rumo...

— Ah! sim, desculpa, não tinha reparado. É zoroche e é grave, doutrinou Gregório sufocando novo riso para não perturbar aquela dignidade de ébrio...

— Que é afinal zoroche? indagou Antônio, curioso.

Gregório esclareceu-o:

— É o mal da montanha que costuma atacar por aqui os foras­teiros da planície... Quer dizer, então, Mafaldo, que sentes muita fadiga e sonolência?

— Ah! muita sonolência, Dom Viegas, e um cansaço de morte... confirmou o mestiço.

— Mas eu tenho um remédio para essa espécie de zoroche. Sabes o que é?

— Não.

— É uma cabaça de chicha!

Mafaldo, que já começara a dormitar em pé, espertou subitamente, erguendo a cabeça e aprumando-se:

— Onde está esse santo remédio? perguntou agarrando o braço de Antônio.

Foi uma risada geral.

— Venha conosco, que lá em casa te darei, prometeu Gregório.

Puseram-se a caminho e Mafaldo acompanhou-os como pôde, trocando as pernas. Entretanto, uma decepção o esperava. Assim que entrou na loja, o barbeiro gritou para os fundos:

— Ramón!

— Senhor! respondeu, da cozinha, o aprendiz.

— Um amargo bem forte para um!

— Já!

Não tardou que Ramón aparecesse com uma chaleira e uma cuia de mate. Mafaldo grunhiu um protesto, sentindo-se traído. Mas Gregório aprontou-lhe o chimarrão e pôs-lhe na mão a cuia.

— Bebe esta tisana primeiro. Depois virá a chicha...

— Bebe, Mafaldo, por favor! ordenou-lhe Antônio com brandura.

Mafaldo estranhou a mudança de tom de seu amo. Esperava um acesso de fúria e, em vez disso, eis que lhe vinha uma palavra tão amável que era mais um pedido que uma ordem. E sem jeito para recusar, sorveu, chuchurreando, toda a beberagem... Em pou­co, a embriaguez havia passado.

Só então Mafaldo pôde tomar conhecimento da nova situação criada com a sociedade de Antônio Castanho e Gregório Viegas. Este mostrou-lhe as cubas de mercúrio e seu interesse crescente pe­las novidades chegou ao auge do entusiasmo. E entrando de corpo inteiro no “arreglo”, sem convite, garantiu, com autoridade:

— Com este mercúrio, calçarei com ladrilhos de prata todas as ruas de Potosi!

— Mas ainda não descobrimos nenhuma mina, observou Antônio.

— Não é necessário. Separaremos o metal das escórias.

— Escórias?

Mafaldo espantou-se da ignorância do amo:

— Oh! não sabe o que são escórias, senhor?

— Não, respondeu Antônio, com modéstia.

— Nem eu tampouco, acrescentou Gregório.

— Caramba! Como pode um cirurgião viver sem saber o que são escórias?

— Pois é, Mafaldo, não sei mesmo como tenho vivido até aqui nesta ignorância. Mas desembucha logo o que é escória, homem! disse Gregório, com impaciência.

— Escórias, distintos senhores, começou Mafaldo, após um pi­garro doutorai, são aquelas terras barrentas que sobram depois do primeiro tratamento feito com o mercúrio. Os especialistas as des­prezam. Poucos se ocupam em aproveitá-las.

— E que nos adiantam essas escórias desprezadas?

— Grandes quantidades de prata se têm perdido com esse des­perdício, porque o mercúrio só incorpora a prata em que toca dire­tamente, o que não acontece com a que se encontra no interior das escórias.

— Quer dizer que é preciso moer as escórias para que se apro­veite toda a prata?

— Isso. Nada como tratar com um cirurgião como o senhor. Há muitos que nada compreendem, sentenciou Mafaldo, com profundo orgulho de técnico.

Antônio sorria divertido. Mas Gregório continuava a recorrer às luzes do mestiço:

— Achas então que basta beneficiar as escórias para obter prata que compense o trabalho?

— É preciso ver e experimentar. Cada caixote de escórias deve render dez marcos para ser lucrativo.

Gregório mostrou-lhe o livro do padre Barba:

— Conheces isto?

Mafaldo, que não sabia ler, disfarçou:

— De que trata?

— É a “Arte dos metais”, o famoso livro do padre Barba.

O mestiço teve um muxoxo de desprezo.

— Que pode um padre entender de metais? Metais são metais, não são orações...

— Mas aqui está toda a teoria da mineração, insistiu Gregório.

Mafaldo, porém, não se dava por vencido:

— A teoria, na prática, é muito diferente. Uma pessoa escreve livro porque não sabe extrair prata...

Antônio e Gregório riram gostosamente.

— Muito bem, aplaudiu Gregório. E onde obteremos as escórias?

— Por toda parte, nas minas abandonadas, compradas em tro­ca de sorrisos. Há montes de escórias junto aos moinhos e a outros engenhos de moer.

— E basta azougue para beneficiá-las perfeitamente?

— Não. É preciso, em primeiro lugar, tirar a cal e o sal.

— Bravos, Mafaldo! exclamou Gregório Viegas, dando-se por satisfeito. Poderemos contar contigo?

— Até depois da morte... ou então não me chamarei Mafal­do, o mestiço...

— Pois eu não me chamarei Gregório Viegas, barbeiro cirurgião de toga longa, se, dentro de um ano ou dois, não enchermos de prata essa arca, em substituição ao azougue que será gasto!

 

                                     OS LAÇOS DA AVENTURA

Gregório Viegas continuou a chamar-se Gregório Viegas... Entretanto, não encheram a arca num ano, nem em dois, como não a encheriam nem mesmo em quinze anos de ininterrupto labor... Não faltaram, ao jovem sócio, nem audácia, nem pulso forte, nem tampouco saúde pois esta se restabelecera em curto prazo, graças às prescrições do cirurgião. Fosse pela mudança radical de clima e altitude, fosse pela casca de quina, fossem pelas águas ter­mais de Tarapaiá, já ao começar o ano de 1673 Antônio Castanho havia readquirido todo vigor de sua exuberante juventude.

Ao barbear-se, no dia de Ano-Bom, a fim de comparecer às festas populares, não sentiu dor alguma no momento em que Ra­món lhe passou a navalha junto à fístula. Estranhou e levantou-se para examiná-la ao espelho. Oh! Como não reparara antes? Estava inteiramente cicatrizada! A grata surpresa exprimiu-se por uma ex­clamação que Ramón não compreendeu:

— Adeus, papo! Bendita flechada!

Passava e repassava a mão pelo pescoço, certificando-se da au­sência total do inchaço. E dizer que padecera tanta humilhação por causa daquilo! Oh! ‘maravilha! Nascia agora um outro homem, um outro Antônio Castanho!... Aquele papo havia sido, para ele, o espinho na pata do leão: uma vez extirpado, seu coração bravio amansara sem que ele mesmo o percebesse... As crises de desconfiança e fúria haviam cessado. A intolerância cedera lugar à com­preensão. Já não tinha os olhos à flor do rosto, o que, nos momen­tos de cólera, mais se acentuava, emprestando-lhe uma expressão de loucura... Com certeza fora essa mudança que o finório do Mafaldo, apesar de borracho, observara na hora do chimarrão. Por favor, lhe pedira o amo, em vez de ordenar-lhe com aspereza. Era uma transformação prodigiosa!

Antônio Castanho exultava! Naquele ano completaria dezenove anos! Estava em plena forma para deitar ombros à empresa da mi­neração, ser capataz de mitaios, corresponder à confiança e realizar a profecia de seu sócio, enchendo de barras de prata o depósito de mercúrio...

Pura miragem! Gregório Viegas dera mostras de bom cirurgião mas falhara como profeta. Era-lhes, de todo, impossível enriquecer de um ano para outro: os caixões de relaves, obtidos a custo, davam rendimento medíocre. Na maioria das vezes, mal chegavam a dez marcos! E as despesas, incluindo o salário dos mitaios, o custo da vida e o quinto real, cobrado pelos oficiais da Casa da Moeda, ab­sorviam quase todo o lucro. Isso sem mencionar a imprevidência e a prodigalidade de ambos, que consumiam o restante em roupagens de luxo, armas e objetos de adorno.

Com o correr dos anos, Gregório Viegas murchou na sua pre­tensão de enriquecer. Ele bem que se conhecia... Faltava-lhe a pinta do aventureiro. Mas não deixou a sociedade, ao contrário: sempre que era preciso, acorria com os pesos ganhos na loja de barbeiro, para alguma iniciativa mais dispendiosa. Financiou a mon­tagem da casa das máquinas, onde se destacava o grande monjolo de pilões de ferro que Antônio Castanho fabricou ao pé da ribeira, sob o modelo do que o pai construíra em Parnaíba. A princípio, assistia os trabalhos ao lado do jovem capataz, fazendo os cálculos do ren­dimento de cada caixão de minério. Diante, porém, do resultado pouco satisfatório, começou a rarear sua presença ao pé das minas, pretextando aumento de clientela na loja. Não podia deixar Ramón sozinho, com toda a responsabilidade...

Antônio Castanho, porém, não desmentiu, nem um só momento, sua fibra de bandeirante que não media tempo nem espaço nem sacrifício em sua empreitada. Anos a fio, era de vê-lo, às pri­meiras horas da manhã, assistindo à faina de seus mitaios, que iam e vinham da boca das minas ou dos desmontes ao monjolo, derreados ao peso dos baquités cheios de minério... Ao anoitecer, quando o vento rijo soprava dos altos do colosso Caricari ou do Ilimani, subia com eles a encosta do cerro para acender as guaíras. E noite fechada mandava-os dormir e ficava sozinho com Pereá, vigiando a queima da prata, daqui para ali, como duendes da montanha, errando entre boitatás...

Para conhecer os trabalhadores e evitar que mandriassem e abusassem da chicha, dormia a semana inteira no rancho comum, comia de suas refeições frugais e, nos poucos minutos de descanso, até entrava em seus folguedos e danças. Os mitaios obedeciam-lhe num misto de temor e estima, chamando-o pelo apelido que Mafaldo lhe pusera — Pumasonco, que significa “coração de onça”. Mas, apesar de toda a sua vigilância, era rara a semana em que algum sanlunes não faltasse ao trabalho. O próprio mestiço, de vez em quando, quebrava as promessas e sumia com um velho mitaio cha­mado Aunxauxa. Pacientemente, Antônio, acompanhado de Pereá, percorria a sórdida rua chamada das “Sete Voltas”, valhacouto de bêbedos, ladrões e assassinos, por onde os próprios alabardeiros ra­ramente ousavam passar. Sentados à mesa de um boteco ou esti­rados no meio da rua, lá encontrava os dois sanlunes... Então Pe­reá se incumbia de Aunxauxa; Antônio, de Mafaldo, e, com heróicos esforços, os recambiavam para o rancho. Mafaldo, assim que se apercebia da presença do amo, fazia prodígios para se pôr de pé, dizendo:

— Estou firme, Coração de Onça!

— Está-se vendo... respondia o moço.

É que ele já considerava o vício do mestiço coisa inevitável, como o granizo e a ventania dos Andes... Aprendera a arte dificílima de encarar os fatos como são realmente. O remédio seria des­fazer-se de Mafaldo, como de um trambolho. Já aprendera tudo que o mestiço sabia sobre mineração, e mais o que o padre Barba ensinava. Não precisava mais dele. Como, porém, poderia esquecer que a ele devia a sua arremetida de pioneiro pelo sertão adentro, até aqueles confins montanhosos, sem outra arma que a espada, pois as escopetas se perderam em naufrágio no rio Aquidauana?! Im­possível! Estavam presos um ao outro por laços que só o perigo, a aventura e o sacrifício sabem tramar.

 

                                             UM VESTIDO AO VENTO

Decorreram, assim, vários anos e Antônio Castanho, na sua inabalável determinação, nem se dava conta de que enterrava a mocidade naquela serrania.

Certo dia, porém, voltou a si. Era 25 de julho de 1688. A cidade estava em festa, em honra de São Tiago Maior, padroeiro das minas. Como de costume, Antônio Castanho dispensou seus mi­taios para que pudessem participar da maior festa do ano, envergou seu traje de cavalheiro com mantéu e punhos bordados, e foi à Igre­ja de S. Francisco assistir à missa solene.

À hora do Evangelho, pregou frei Leon. Antônio conservara, através dos anos, gratidão e afeto ao bondoso frade e sempre o ouvia com profunda atenção. No momento em que frei Leon mencionou a idade de Tiago, o pescador, doze anos mais velho que Jesus, Antônio sentiu uma estranha emoção. Pois não é que, naquele dia, também ele completava trinta e três anos? Andava tão absorvido na labuta da mineração que seus aniversários passavam sem registro apesar de coincidirem com a maior festa da cidade... Atingira a idade de Cristo tão longe de sua família sem pensar constituir uma nova! Por que seria? A lembrança de Luzia Mendonça ainda seria bastan­te para afastar de seu coração qualquer outra imagem?! Mas, por que, se fora o mais longe possível simplesmente para não tornar a vê-la nem ouvir falar dela?... O fato é que sua família eram os mitaios, seu lar um rancho de selvagens... Não freqüentava o Grêmio dos donos de minas e mal conhecia a sociedade de Potosi, composta de poucas famílias de funcionários e mineiros. Que seria feito de sua mãe e de suas irmãs, que há mais de dezesseis anos não via?!... A graciosa silhueta de Luzia tornava a ocupar-lhe a mente... Mas que lhe importava Luzia?! Com mais esses anos também teria perdi­do aquela cintura fina e porte airoso. Estaria gorda, naturalmente cheia de filhos, avelhentada! Ao passo que ele se sentia jovem, na plenitude de sua vida! Agora, sim, poderia voltar, sem receio de encarar a ingrata e o rival, sem resquícios de despeito. Mas não vol­taria com as mãos abanando, isso não! Levaria prata e muita prata! Que migalha de esperança, porém, lhe restava se, naqueles longos anos de duro sacrifício, a montanha mágica se mostrara tão pouco generosa para com ele?

Antônio saiu da igreja perturbado com aqueles pensamentos. Urgia fazer alguma coisa, “extrair prata” de maneira compensadora. Precisava voltar. As saudades de Parnaíba, que pareciam mortas, de repente haviam crescido e tomado conta de todo o seu ser... Esperara sempre um golpe da fortuna e este não viera nunca! Ah! Como ele se parecia com o avô! O mesmo físico, a mesma ambição, a mesma teimosia, o mesmo nome, a mesma pouca sorte! Será que teria também o mesmo destino obscuro?

Cruzou com um cego que entoava uma canção aimará ao som da guitarra. Atirou-lhe um marco de prata no sombreiro e se enca­minhou para a praça do Gato.

A feira, nesse dia, estava mais movimentada do que nunca, pois a festa atraíra forasteiros de muitas léguas em redor. De súbito estacou diante da barraca de um adelo. Este, ao reconhecer o exce­lente freguês, veio atendê-lo pressuroso, falando um castelhano de poliglota, cheio de erres guturais:

— Senhor Dom Castanho, quer um vestuário de luto, recém-chegado da França?

— Não, senhor Davi, hoje não.

— Venha vê-lo sem compromisso... insistiu o homem, segurando-lhe o braço e tentando arrastá-lo para o interior da barraca.

Antônio não se mexeu. Seus olhos estavam perdidos na contemplação de um soberbo vestido de veludo carmesim, cuja gola alta se ocultava sob uma gargantilha de aljôfares, com seis folhazinhas de ouro a modo de coração. Vestido de missa, para grande dama... A figurinha de Luzia Mendonça aparecia-lhe novamente, vestida nele, sem que pudesse se explicar por quê...

O mercador tentou ler-lhe o pensamento:

— Ah, sim, está olhando o vestido, um belo presente para sua noiva... Vendo-o por cinco mil pesos, uma ninharia... Só o colar vale um “potosi”! Creia, senhor!

— Não tenho noiva, senhor Davi!

— Compre-me o vestido que a noiva se arranja! Belas moças não faltam em Potosi... Não conhece a Encarnação?

— Não.

— É a filha do corregedor, explicou Davi, abaixando a voz.

— Que tal? É formosa? indagou Antônio, com expressão gaiata.

— Formosa e graciosa! Vendi-lhe uns brincos ontem, em sua casa.

— Muito bem, senhor Davi. Então, arranje-me a noiva primeiro, depois comprarei o vestido. Combinado?

— Combinado! Reservá-lo-ei para o senhor.

— Terá que ter paciência para esperar... Até logo!

— Paciência não me falta! Adeus, senhor Dom Castanho, res­pondeu o esperto mercador, sem se dar por achado.

Antônio afastou-se, com um sorriso fino e malicioso. Nessa manhã, almoçou com Gregório Viegas na praça do Pichincha. E como se tornara íntimo amigo do sócio, malgrado o seu temperamento retraído, contou-lhe que completava trinta e três anos na­quele dia.

— Ah! ingrato! Por que não me falaste ontem que eu teria mandado preparar bródio de festa?

— Nunca dei importância a meus aniversários. Não sei por que estou te falando neste... Bobagem!

— Mas ainda há tempo de bebermos à tua saúde... Ó Ramón, traze daquele famoso Xerez!

Solícito como sempre, Ramón trouxe sem demora uma garra­fa de generoso vinho e beberam. Lá pelo terceiro cálice, Antônio perguntou:

— Ó Gregório, conheces a Encarnação?

— Falas da filha de Dom Francisco de Aguilar, o corregedor?

— Dessa mesma!

— Como não hei de conhecê-la, se sou eu que lhe faço o toucado para as festas?!

— É bonita?

— É a flor mais gentil destes penhascos! respondeu o barbeiro, que não perdia o gosto da frase preciosa. Nunca a viste à missa, com a aia, Dona Aldonza? Ela costuma ir a S. Francisco...

— Se vi, não pus reparo...

— Então é que não a viste, pois é das que se fazem notar. Mas, por que estás tão interessado em saber?

— Por nada... É que o Davi me falou nela com tanto entusiasmo...

— E a propósito, Castanho, bem que podias casar-te com ela. O pai é o atual dono da inesgotável mina de Centeno, de onde extrai chumbo às arrobas... Estás aí, estás dono da mina! E se não abandonas teu fiel sócio, olha o Gregório, dentro em pouco, volvendo à terrinha e embasbacando Lisboa, vestido de ouro. e prata...

— Ah! O dono de Centeno é o corregedor? sempre pensei que fosse Dom Alonso Toro...

— Não, esse emproado capitão general da Mita não passa de um preposto. E por sinal que é um verdadeiro carrasco... Com partes de protetor oficial dos mitaios, trata-os a chicotaços!

— Sempre o considerei um aproveitador, e dos mais ordinários...

— Mas não me fujas do assunto: Teremos ou não sociedade em Centeno?

— Nem me fales nisso! Como pode um minador sem sorte pretender a filha de um corregedor? Demais não se trata disso. Fora de brincadeira, eu bem que necessitava de umas arrobas de prata para voltar a Parnaíba... Não sei se é porque estou bem cura­do... o que sei é que as saudades começaram a apertar de repente...

— Pois então? Casa-te com ela e leva-a contigo, em viagem de núpcias, pelo rio da Prata...

— Não, voltarei só, Gregório. A travessia do sertão é para homens e não para meninas afidalgadas...

— Tanto pior para ti, que ficarás solteirão como eu, e a Encarnação é de encher os olhos...

— Conheço essas prendas: encarnações do demo é que elas são...

Gregório soltou uma gargalhada.

— Ó homem! Teus olhos fuzilaram! Dize-me cá: qual foi a saia de Parnaíba que te inspirou esse trocadilho tão cruel?

E o barbeiro encheu, mais uma vez, o cálice de Antônio, guloso de confidências. O moço, porém, não pegou na isca:

— Basta de vinho, obrigado. Tenho que procurar o Mafaldo e não desejo dar-lhe mau exemplo.

E assim dizendo, Antônio se levantou, saiu e se encaminhou, entre os romeiros endomingados, para as bandas do cerro.

Ia remoendo as diversidades da fortuna em Potosi: para uns, posse de mina, chumbo abundante, com rico teor de prata; para outros, míseras escórias, minérios de baixo teor, quando muito!

Chegou à ribeira sem reparar que o tempo mudara. Um capuz negro tapou o cabeço do Ilimani e em breve o céu escurecia. Entrou na casa das máquinas e trancou a porta. O recinto estava deserto. De longe lhe vinha a cantoria e o bate-pé dos mitaios, dançando ao som das aiarichas — gaitas de cana de sete sopros. Mafaldo e Pereá, com certeza, divertiam-se também... Felizar­dos! pensou. Beber e dançar eis toda a sua ambição... Sentou-se a um pilão de pederneira, junto a um grande forno, e quedou ab­sorto, sombreiro erguido na testa. Não saberia dizer há quanto tempo se achava ali, quando lhe pareceu ouvir, de envolta com o zangarreio dos mitaios, uma zoada imensa que vinha de Munaipata, da parte alta da vila. Em pouco, a porta começou a ser sacudida como se alguém pretendesse arrombá-la. Precipitou-se para ela e abriu-a. Uma lufada violenta fê-lo recuar atirando-lhe o chapéu para o teto. Forcejou para fechá-la e, só a custo, o conseguiu... Era a ventania, a famosa ventania de Potosi!

— Arre! É um fim de mundo! exclamou Antônio, apanhando o sombreiro que fora cair sobre o grande fole.

Toda a casa de máquinas estremecia, como se fosse desprender-se do chão e voar. Antônio não se lembrava de um tornado as­sim, em anos anteriores. E pensou: Será que estas paredes de tá­buas e este teto de telha-vã suportarão tanta violência?! E os mer­cadores da feira, com seus pára-sóis? E Davi, com a sua mostra de trajes galantes?! E a procissão de S. Tiago, que devia estar saindo àquela hora?! Que seria dos pálios, andores, estandartes das irmandades religiosas e de todas as associações civis, coroas e mantos de penas, das diversas tribos quíchuas e aimarás, que nunca faltavam ao desfile em louvor do padroeiro?!... Ah! Se essa violência não passa logo, não ficará um telhado em Potosi!

De repente, porém, o vento deixou de soprar pelas frinchas e tudo cessou. A festança dos mitaios prosseguia no grande rancho. Antônio abriu a porta e se espantou com a paz em redor: não havia sinal de estrago na terra e o céu continuava azul e limpo. Nisto, viu Pereá, de olhos erguidos para o telhado da casa.

— Que é que está vendo, Pereá?

— Pano vermeio no chaminé, Pai Tonico.

Antônio saiu e olhou na direção indicada.

— Será possível!? exclamou, sem crer no que via. Sobe depressa, Pereá e tira-o de lá. É um vestido!

Pereá correu para trás da casa e voltou com uma escada que encostou ao beirai. O rapaz ainda não volvera a si do assombro, mas, quando o índio, ágil como um macaco, trepou, gritou-lhe:

— Não, não, Pereá! Desce!

Pereá desceu apalermado. Sem explicar o motivo da contraordem, Antônio subiu a escada de dois em dois degraus e, quebran­do telhas, galgou a cumieira até à chaminé. Estendeu o braço e apanhou o vestido de veludo carmesim que ainda trazia, pregado à gola, a gargantilha de aljôfares, com suas seis folhas de ouro, a modo de coração.

De pé na cumieira, esticou o vestido no ar. Ó maravilha! Nada sofrera com o vôo improvisado! Ao contrário, exposto agora ao sol, lhe parecia mais fascinante ainda! Se estivesse vestindo a criatura amada, o contato daquela obra-prima não lhe teria causado maior abalo que daquela maneira inédita! Quase caiu do te­lhado abaixo! Então dobrou o vestido com mil cuidados e desceu, apertando-o contra o peito, como se levasse um tesouro...

 

                                                     O CÍRIO DE SÃO TIAGO

Meia hora depois, Antônio Castanho topou o Davi na es­quina do Contraste. O homenzinho estava a ponto de perder a cabeça. Antônio trazia o vestido escondido sob a capa. Ao dar com ele, o coitado expandiu sua aflição:

— Uma desgraça, senhor! O vestido de sua noiva foi pelos ares! O furacão (seu desespero promovia a ventania a furacão) carregou-o...

— Não se aflija, senhor Davi. Alguém há de apanhá-lo e devolver-lho...

— Qual! Nunca mais! Os outros já recuperei. Mas aquele foi para muito longe... E valia mais que todos!

— Quanto me daria para achá-lo?

— Não é caso para brincadeiras, Dom Castanho...

— Não é brincadeira. Falo sério. Estou perguntando quanto me daria pela volta dele...

O judeu coçou a cabeça e arriscou:

— Mil pesos, senhor!

— Então, passe-me esses mil pesos, disse Antonio, desdobrando a capa e depondo-lhe nas mãos trêmulas o magnífico achado.

Mesmo vendo, Davi não queria acreditar. E foi depois de examinar o vestido e a gargantilha tão demoradamente como se contas­se uma a uma as pérolas, que exclamou, apertando as mãos de An­tônio e quase beijando-as:

— Caramba! Onde o encontrou?

— Na chaminé de minha fábrica, informou o rapaz, tranqüila­mente.

— Incrível! Na chaminé?

— Sim...

— A sorte estava lançada. Estava escrito que o vestido seria de sua noiva. E como o prometido é devido, agora só lhe custará quatro mil pesos!

— Ora, senhor Davi! Ainda não houve tempo de arranjar a noiva nem os quatro mil pesos!

— Já lhe disse que a noiva se arranja. E quanto ao dinheiro, que são quatro mil pesos para um mineiro? O vestido continua reservado para o senhor... E muito obrigado!

— É um bom negócio para mim, não acha? Em vez das alvíssaras de mil pesos, arranjo uma dívida de quatro mil!

— E a noiva não pagará em amor tão belo presente?

— Se é assim, está bem, concordou Antônio, dando-se por ven­cido. Continue a esperar... Adeus!

— Adeus... correspondeu Davi, com a fisionomia resplandecente. E em passos miúdos e rápidos, afastou-se, levando o vestido dobrado sob o braço.

Antônio ficou parado, a olhá-lo, até que desaparecesse na esqui­na. Depois murmurou, entre dentes:

— Já é ser estúpido! Comprar com dinheiro que ainda não se ganhou, um presente para uma noiva que ainda se vai arranjar!

Que demônio o levara a embelezar-se por aquela prenda femi­nina e a escutar a cantilena do Davi? Não conhecia ninguém a quem pudesse oferecer o presente. É verdade que sua irmã caçula, a Antoninha, já devia ser casadoira. Deixara-a com dois anos e, por aquelas alturas, estaria já moça feita. Como se lembrava dela, no momento em que a surpreendera no corredor, de cambulhada com os irmãos menores, espiando pela fechadura o que se passava na sala de visitas, onde o pai ditava o testamento!... Bem que poderia oferecer-lhe o vestido. Mas isso dependia de sua volta a Parnaíba, sua volta dependia da prata, a prata dependia da sorte... Estava preso a uma engrenagem de circunstâncias... Se, ao menos, tives­se um pouco da sorte do tal capitão Sapata!

De repente, bateu na testa e prosseguiu no seu monólogo íntimo: não é que conhecia muitas minas, percorrera todos os pontos de Po­tosi, e não achara, em tantos anos, uma hora para visitar a Sapa­teira?! Gregório prometera levá-lo até lá desde que lhe contara a estória aventurosa do capitão. Mas a promessa tivera o destino da maioria das promessas: caíra no esquecimento. Sabia perfeitamente a localização da mina, na parte leste da montanha. Entretanto... Caminhou ensimesmado, debatendo-se com a idéia de apressar essa visita. Com que esperanças, porém? Era uma boca de mina abando­nada, como centenas de outras...

Mas estava escrito que aquele era o dia das surpresas... Eram cerca de cinco horas da tarde. Ao passar na praça do Regozijo, saía a procissão de S. Tiago. O povo, apinhado em frente à igreja, abria alas. Antônio descobriu-se e assistiu ao saimento. Que sorte tive­ram os crentes! pensou. Não foram apanhados pela ventania. A procissão saía bastante atrasada, certamente por graça do padroei­ro... Viu desfilar as irmandades: os mosqueteiros de Centeno, com seu rico estandarte, trazendo a imagem do apóstolo; os infantes de todos os ofícios mecânicos, vestidos de libré; cinqüenta índios músi­cos, com seus cintilantes enfeites de plumas, tocando flautas de cana, caracóis marinhos, trombetas de cabaça, tambores de troncos e as indefectíveis ariarichas de sete sopros. Em seguida, os cumuris, mitaios cavouqueiros, também coroados de plumas e levando bastões prateados nas mãos; logo após os espanhóis minadores, de traje branco com guarnições de ouro, levando na mão direita uma tocha de cera e, na esquerda, uma açucena de prata com o nome da Vir­gem. Cerrando a procissão, os sócios do Grêmio dos Donos de Mi­nas, luxuosamente trajados, com jóias e cadeias de ouro ao peito e grande tocha de cera nas mãos.

Antônio acompanhou a procissão que subiu até à altura de Munaipata e de lá regressou ao anoitecer, quando as luminárias tremeluziam nas ruas e as portas, arcos, balcões e janelas resplendiam com suas lanternas e morrões acesos.

Quando a procissão entrava na igreja, Antônio deu com Mafal­do e Aunxauxa, empunhando também grandes círios. Estavam tão contritos que pareciam dois santos penitentes... À pouca distância ia Pereá, com sua calma costumeira. Antônio puxou Mafaldo pelo braço e perguntou-lhe, em voz baixa:

— Quem te deu esse círio tão grande?

— O vigário da paróquia dos índios. É o círio bento de São Tiago Maior... faz milagres, sussurrou o mestiço.

Num dia santo daqueles, Mafaldo e Aunxauxa esquecerem a chicha pela procissão, devia ser já um milagre espantoso, pensou Antônio. E suspirou:

— Eu bem que precisava de um milagre também...

— Que milagre? indagou Mafaldo.

Antônio cochichou-lhe no ouvido:

— Achar um veio de prata...

— Pede-o ao santo...

— Então empresta-me o círio.

— Ofereço-o ao senhor.

E Mafaldo entregou ao amo, com um gesto de cortesia, o grande círio de quatro libras.

 

                                       A “CASTANHEIRA”

No lusco-fusco da madrugada, quatro homens deram volta ao flanco esquerdo do cerro, defronte a Guainacabra, subiram pela encosta e penetraram na mina Sapateira. Antônio caminhava à frente, empunhando o círio de Santiago; seguiam-no Mafaldo e Pereá, levando almocafres; cerrava a fila Aunxauxa, com sua tocha. A visita inesperada espantava cabritos monteses que ali tinham seu abrigo e, desalojados, rompiam em berros e pinotes pela encosta abaixo...

À medida que avançavam, a galeria ia se estreitando, fazendo curvas, baixando e subindo ao capricho do antigo veio argentífero. De repente, Antônio escorregou no minério solto à flor do solo e caiu estatelado. Fez prodígios para que o círio não se apagasse. Por instinto, agarrara-se a uma saliência da galeria e um pequeno bloco se desprendera em sua mão. Ia lançar uma praga e atirar fora o bloco, ao mesmo tempo, quando seus olhos espertos o adver­tiram de alguma coisa surpreendente. Examinou a pedra escura de minério de prata, conhecida pelo nome de tacana e, erguendo o braço, exclamou:

— Tacana! Tacana! Tacana!

Seus gritos reboaram pela galeria e foram se multiplicando em ecos soturnos. Os companheiros se precipitaram para examinar o achado. Exultando de alegria, Antônio, ainda sentado no chão, com o círio sempre na mão esquerda e a pedra na direita, disse a Mafaldo:

— Vê e dize se é ou não!

Mafaldo abaixou-se tanto para proceder ao exame que chamus­cou os cabelos na chama. Afastou a cabeça vivamente e bateu-a de encontro ao teto. Afinal, um tanto atordoado, tomou do minério e se pôs a examiná-lo à luz da tocha de Aunxauxa. Gravemente con­centrado não acabava de mirá-lo e remirá-lo, apalpá-lo, cheirá-lo, tentar meter-lhe a unha e até passar-lhe a língua na superfície rugosa, de brilho fosco. Antônio aguardava a sua palavra como sentença de vida ou morte. Por fim, Mafaldo, como se sua opinião não tivesse a menor importância, confirmou:

— Tacana, sem dúvida.

Não podia haver dúvida: tinham descoberto um filão novo, um esgalho despercebido da lendária mina Sapateira.

Antônio ergueu-se de um salto e abraçou-o:

— Milagre do círio bento, Mafaldo!

— Milagre de São Tiago Maior, concordava o mestiço todo confuso.

Pereá e Aunxauxa riam contagiados pela emoção de ambos. E as quatro cabeças se aproximaram iluminadas pelas chamas, enquan­to quatro pares de olhos curiosos e espantados examinavam o torrão prodigioso, nas mãos de Mafaldo. Antônio tinha o rosto molhado de lágrimas, mas foi o primeiro a dominar sua emoção. Entregando o círio a Pereá, tomou um dos almocafres e disse, indicando um recan­to da parede de onde se desprendera o bloco:

— Iluminem aqui!

A golpes do instrumento, em breve deslocava novos blocos ain­da maiores. Mafaldo os ia apanhando e aprovando:

— Tacana de rico teor!...

Não podia haver dúvida: tinham descoberto um filão novo, um esgalho despercebido da lendária mina Sapateira!...

O cholo, por sua vez, pegou de um almocafre e se pôs também a cavoucar a parede. E começou a tirar tantos blocos de tacana que já começavam a impedir a passagem. Pereá, que entregara o círio a Aunxauxa, metera também mãos à obra. Os três estavam possuí­dos da febre da mineração. O teto da galeria, muito baixo, obriga­va-os a trabalhar muito curvados, mas não davam conta da dificul­dade...

Os ecos do trabalho de outras minas, golpes de marretas, explo­sões de pólvora, vozes de mitaios, gritos de capatazes espanhóis e até gemidos de algum trabalhador acidentado chegavam até eles. Mas não escutavam nada, absorvidos na faina apaixonante... Foi o pró­prio vulto da escavação executada que advertiu Antônio da necessi­dade de suspendê-la. Não haviam levado caixotes, surrões ou baquités, de modo que não tinham meio de dar vazão ao minério ex­traído. Era forçoso sair, tomar a primeira refeição da manhã e vol­tar com os mitaios para arrancar enfim, daquele labirinto, sua pri­meira dádiva generosa!

Então saíram, levando abundantes amostras do minério. Pereá e Mafaldo moeram-nas no pilão de ferro e puseram-nas à prova ao fogo das guaíras, tocado a fole. Com esse tratamento rápido e fácil, apuraram grandes discos de prata branca luzentes como espelhos... Estava confirmada a previsão otimista. E se deram pressa o amo e o cholo de ir ao centro, a fim de comunicar a grande nova a Gre­gório Viegas.

Antônio andava a largas passadas e o cholo arquejava para não perdê-lo de vista. Ao chegarem à loja do largo do Pichincha, esbar­raram com o barbeiro que saía.

— Entra de novo, disse-lhe Antônio.

— Não posso. Vou a sangrar um estuporado.

— É só um momento, tenho uma novidade para ti...

— Agora não, estou com pressa. Voltarei em seguida...

Antônio agarrou-o pela toga e interpelou-o:

— Queres ou não ouvir a novidade?

— Quero sim, mas depois, respondeu ainda o barbeiro, force­jando por escapar. Também tenho uma novidade para contar-te.

Antônio, porém, reteve-o, desafiando-o:

— Duvido que a tua novidade seja melhor que a minha...

— Pode ser. Mas para ti, creio que não...

— Para mim e para ti, insistiu Antônio, tirando os discos de prata dos bolsos do gibão. Examina isto e dize-me que achas...

— Pura prata, dispensa exame...

— E sabes de onde acabamos de extraí-la?

— Não faço idéia...

— Da Sapateira... Achamos um veio ignorado...

— Deixa de fantasias comigo, ó rapaz! Estou velho e a Sapateira já pertence à lenda...

— Pois é a pura verdade! Descobrimos esta manhã um filão inexplorado na parte mais profunda da galeria. Olha aqui o minério que de lá trouxemos: é tacana e das melhores! explicou Antônio, depondo-lhe na mão uma pequena amostra.

— E haverá muito disto lá por dentro? perguntou Gregório, ainda bastante incrédulo.

— Hoje mesmo poderemos extrair algumas arrobas e, se conseguirmos dobrar o número de mitaios para o serviço do transporte e da moagem, em dois meses encheremos a tua arca da prata mais fina!

Ouvindo estas palavras, Gregório transformou-se como se des­pertasse de súbito. Soltou a sua famosa gargalhada e bradou:

— Cáspite! Que novidade assombrosa! Dá-me cá um abraço, meu capitão Sapata! Vês como sou bom profeta?!

— Dá-me outro, meu bom amigo Rodrigo Peláez, respondeu Antônio lembrando-se do sócio do afortunado capitão.

Abraçaram-se efusivamente aos olhos de Mafaldo e de Ramón que acorrera à porta, ao ouvir os berros jubilosos do patrão.

Gregório pedia pormenores sobre o feliz achado:

— Que santo milagreiro te inspirou e iluminou o caminho da mina?

— São Tiago Maior e o círio bento que lhe ofereci, adiantou Mafaldo, assinalando a sua contribuição decisiva para tão importante descoberta.

— Bravíssimo! Salve São Tiago Maior, com seu círio bento! aplaudiu Gregório. Mas vamos entrar. Precisamos brindar a nova com o bom vinho Xerez...

Antônio, não querendo perder Mafaldo para o resto do dia, recusou o convite:

— Não, ainda é cedo para comemorarmos. Vai sangrar o teu cliente, que está à tua espera!

— Mas quem te disse que sou cirurgião, homem?! Ora o clien­te que espere! Eu cá sou Dom Gregório Viegas, sócio da nova mina “Castanheira”, antigamente dita Sapateira... disse o barbeiro com entono de grão-senhor.

Castanho não pôde deixar de rir. E no intuito de pôr mesmo de lado a oferta do vinho, inquiriu:

— E afinal a tua novidade qual era?

Gregório se fez de rogado:

— Ah! Sabes? Depois que te foste, ontem, a aia da menina chamou-me para fazer-lhe um toucado de baile...

— Que menina?!

— A Encarnação, rapaz! Pois não me falaste nela?

— Ah! sim, e que mais?

— Desde o começo, tentei interessá-la na tua pessoa. Mas crês que o raio da Aldonza não arredava pé?! Quando, porém, a ventania começou, a aia teve que ir fechar os postigos e acender as luzes. Aproveitei a folga e encurtei a conversa... És um magano, meu felizardo! A menina te conhece da igreja e não dou muito tempo para que esteja caidinha por ti. Contou-me que há um rival em perspectiva... Ela contudo, não o traga, são meros cálculos do pai. Está em tuas mãos ganhar confiança com a aia e chegar-lhe à fala quanto antes, para salvá-la do ferrabraz...

— E quem é esse?

— Alonso Toro, capitão general da Mita. Até há pouco era forte concorrente, na qualidade de homem da confiança do correge­dor. Mas agora, que és dono de cata rica, não é rival para ti... Portanto, estás duplamente de parabéns! O próprio corregedor virá pedir-te a mão para a filha...

— Nesse caso, alvitrou Antônio retribuindo o exagero, não nos precipitemos, esperemos que ele tome essa iniciativa... Adeus, Gre­gório! Aparece para visitar a tua mina de prata...

Dizendo isto, Antônio empreendeu o caminho de volta, acom­panhado de Mafaldo, enquanto Gregório se dispunha a ir sangrar o seu cliente estuporado...

 

                                               ADEUS, CORAÇÃO DE ONÇA!

Mafaldo incumbiu-se de aliciar mitaios para dobrar o serviço e naquela mesma tarde compareceu com um punhado deles pe­rante o amo.

— Onde os arranjaste? perguntou-lhe Antônio.

— É segredo, respondeu o mestiço, numa evasiva.

— Vê lá que não sejam empregados de alguma mina...

— Contratei-os num povoado. Perguntei quem queria trabalhar na nova mina de Pumasonco. E todos queriam...

Antônio não cuidou de apurar mais nada. Distribuiu tarefa para todos.

Com o acréscimo desses braços, o rendimento da mina foi alta­mente compensador. Em dois meses apurou-se mais prata do que em quinze anos! E eis que, embora com atraso considerável, Gregó­rio Viegas via realizar-se a sua decantada profecia: a arca enchia-se de barras de prata! Podiam afirmar que estavam ricos!

A nova espalhou-se por toda Potosi. Antônio Castanho, que já era bem conhecido, ficou célebre. Há muito que não se registrava fortuna igual. Propuseram-no para sócio do Grêmio dos Donos de Minas. Davi procurou-o para entregar-lhe o vestido e dar-lhe notí­cias da noiva em perspectiva.

— A moça estava encantada com o vestido. Disse-lhe que já tinha dono. Perguntou-me quem era. Disse-lhe que era o rico mineiro Dom Castanho. Ficou muito curiosa: “Para oferecê-lo a quem?” Respondi que para quem o amasse. Não me fez mais perguntas, mas ficou vermelha como o vestido...

Antônio levou o caso em troça:

— Muito bem, senhor Davi. Se eu e ela não tomarmos cuidado, vosmecê e o Gregório nos casam sem nos conhecermos e sem o sabermos!

Davi não deu importância à ironia:

— Não lhe disse que a noiva se arranjaria depressa?

Diante dessa terrível tenacidade, Antônio encerrou o assunto. Pagou os quatro mil pesos e despediu o mesureiro mercador. Logo em seguida, guardou o vestido zelosamente e suspirou aliviado, como se daquela estranha transação dependesse a sua permanência em Potosi.

— Arre! Chegou afinal a hora de voltar para casa!

Quando a arca ficou inteiramente cheia, houve uma estrondosa festa na rancharia. Confraternizaram os donos e os mitaios, com largo consumo de excelente vinho.

No fim da festa, Antônio Castanho comunicou a Viegas o seu propósito de regressar a Parnaíba. Gregório empalideceu, ouvindo a comunicação.

— Agora, justamente quando a Castanheira está dando prata como água?!

— Por isso mesmo... Se ficar mais tempo não sairei mais de Potosi... A parte que me cabe do que já foi apurado, me contenta de sobra!

Gregório, no entanto, não se conformava:

— E que farei sem ti, ó homem?!

— Não te farei falta: deixar-te-ei Mafaldo em meu lugar, como sócio. Ele o merece. Sabes que, malgrado suas borracheiras, é um braço direito. O que é preciso é vigiá-lo, para mantê-lo em forma.

O cirurgião mudou de tática:

— Que me deixes a mim ó ingrato, compreende-se. Mas a Encarnação!... Que acontecerá à pobrezinha, entregue sem defesa a Alonso Toro?! A gentil menina está doidinha por ti...

— Deixemo-los em paz. Alonso anda me olhando com cara de poucos amigos, pois, segundo Mafaldo acabou confessando, nos­sos novos mitaios vieram da mina do corregedor. E o marrano está pensando que fui eu que os desviei. Teve o atrevimento de interpe­lar-me hoje. Disse-lhe que a culpa só a ele lhe cabia, em vista do horrível tratamento que lhes dava. Ficou furioso! Imagine agora se me atravesso no caminho de seus amores! Terei que furá-lo com a toledana para que não me devore vivo...

Gregório, porém, que não desanimava, tentou pôr o sócio em brio:

— Quer dizer que foges à luta? Não pareces neto de fidalgo português!

Mas Antônio não se abalou com a manobra:

— E que dirás de um cavaleiro cheio de pressa, que apeia de seu cavalo, para perseguir uma serpente que está à margem do ca­minho? Que interesse tenho eu de adiar minha volta para entrar numa luta que não está nos meus planos? Foi-se o tempo em que eu comprava brigas...

— Então a Encarnação não merece nada2

— Não sei se merece tudo ou nada. Só sei que não a conheço. E tu mesmo costumas dizer: a defunto que não conheço, não rezo nem ofereço...

— Nem mesmo a uma defuntinha tão bela e tão viva?

— Que é que hei de fazer? As saudades ainda são mais vivas...

— Ah! Então perdoa-me, Castanho! Esqueceu-me que deixas-te rabo de saia em Parnaíba... Estás agora cheio de prata, é justo que corras para os seus braços...

— É exatamente o contrário: o rabo de saia não me prende mais e é por isso que volto.

— És um original, meu bom amigo. Mas nessa não caio eu! Pensas que Potosi inteiro não sabe que adquiriste ao Davi um vestido de quatro mil pesos?

— Pois então fica sabendo também que vou levá-lo para a ca­çula da casa, minha mana e xará, Antoninha...

Gregório Viegas não teve outro remédio senão resignar-se com a perda do sócio.

— Pois vai, ingrato. E que Deus te acompanhe!

Antônio Castanho partiu com Pereá, dois cavalos e duas mulas cargueiras, no domingo seguinte, depois da primeira missa. Des­pediu-se de frei Leon, deixando preciosas dádivas para os pobres de S Francisco e a cera de São Tiago Maior.

Gregório Viegas e Mafaldo levaram-no até a saída da vila. O bandeirante reservou o momento final do adeus para comunicar ao cholo que lhe deixava o lugar na sociedade da “Castanheira”.

— Para quê? perguntou este sem compreender a razão do gesto generoso.

— Para pagar-lhe...

— Pagar-me? O senhor não me deve nada!

— Pagar-lhe, sim, o círio bento de Santiago, explicou Castanho, dando-lhe um comovido abraço e aprestando-se a montar no seu cavalo, um novo Pajé, importado do Chile.

Enquanto Gregório lhe segurava o estribo, recomendava-lhe:

— Se não voltas cá, vai ao menos visitar-me em Lisboa, que lá me encontrarás...

— Vestido de ouro e prata?... completou Antônio, disfarçando a emoção com um sorriso.

— Vestido de ouro e prata, repetiu Gregório com a voz embar­gada.

— Bem, adeus, meus bons amigos! Até um dia!

— Adeus, capitão Sapata! respondeu Gregório.

— Adeus, Coração de Onça, exclamou Mafaldo, chorando.

 

                                         O DESCONHECIDO

No último domingo de maio de 1689, por volta de onze horas da manhã, um cavaleiro vestido de veludo negro, mantéu e punhos de renda e um largo sombreiro espanhol, abriu a porteira da propriedade de D. Isabel de Lara e, sem se fazer anunciar, apeou e amarrou o cavalo a uma das nogueiras do pomar. Tirou o sombrei­ro, olhou em volta e suspirou... Era uma impressionante figura de homem, com uma bela cabeleira atirada para trás, pele queimada pelo vento e pelo sol. Na cinta, uma espada e uma pistola caste­lhanas. Vendo-o de dentro da cozinha grande, a velha Sabina, de carapinha inteiramente branca e já um tanto catacega, chegou-se ao alpendre e indagou:

— Que deseja, meu sinhô?

Tirou o sombreiro, olhou em volta e suspirou. Era uma impressionante figura de homem, pele queimada pelo vento e pelo sol.

O homem não a viu nem ouviu. Continuou a contemplar as árvores, o muro de tijolo cru e a casa vizinha, que parecia fechada àquela hora... Em seguida dirigiu-se às estrebarias desertas e ao paiol que ficava no fundo do pomar. Meneou, então, a cabeça e murmurou:

— Como tudo isto está abandonado!

Sabina estranhou a atitude do visitante e correu para dentro, chamando alguém:

— Nhanhãzinha! Está aí no pomar um homem galante, todo vestido de veludo...

— Já perguntou o que deseja?

— Perguntei. Mas acho que é estrangeiro, espanhol, porque não me respondeu...

Nhanhãzinha, que era uma jovem de uns dezessete anos, surgiu, então, no alpendre, acompanhada de Sabina. Nesse momento, o des­conhecido já havia dado volta ao pomar e se encaminhara para o alpendre. Ao dar, porém, com a moça, estacou, profundamente per­turbado. E se pôs a fitá-la em silencioso assombro, como alguém que defrontasse o fantasma de um passado longínquo... A moça, que viera perguntar-lhe o que desejava, não conseguiu articular pa­lavra, subitamente tomada de igual perturbação. Sabina olhava atô­nita, ora a moça ora o homem, sem atinar com a causa de tão inex­plicável silêncio. Por fim, ela mesma resolveu falar:

— Que deseja, sinhô?

O estranho homem pareceu acordar, mas em vez de responder a Sabina, perguntou à jovem:

— Como é o seu nome?

A moça volveu a si do assombro e respondeu, com voz trêmula:

— Luzia Mendonça.

— Luzia Mendonça? Mas não é possível! exclamou o cavaleiro, na maior confusão.

— Não é possível, por quê? indagou a jovem, cuidando que o desconhecido zombava dela. Sou Luzia Mendonça, sim, filha de Luzia Mendonça e Timóteo Leme...

— Ó céus! Então existe uma segunda Luzia?! A senhora é a segunda Luzia Mendonça?

— Não, sou a terceira, porque minha avó também era... Mas por que me pergunta isso? interpelou ela, um tanto ofendida.

— Ora, porque eu podia ser seu pai! exclamou ele. E, sem que a jovem tivesse tempo de esquivar-se, correu para ela, abraçou-a e beijou-lhe a testa.

Sabina, porém, interveio, com a máxima energia, empurrando o desconhecido:

— Que atrevimento é esse? Com que direito abraça a menina?

Assustadíssima, Luzia pôs-se a chorar. O homem, no entanto, soltando uma risada, voltou-se para a preta e abraçou-a também, in­dagando :

— Será que você não me reconhece, Sabina? Eu sou o Antônio, o Antônio Castanho, que você viu nascer...

A preta teve um lampejo de alegria no olhar apagado, mas de­pois olhou bem para ele e não acreditou:

— Não pode ser... Aquele, Deus Nosso Sinhô levô...

— Não levou, não, Sabina. Deixou na terra, para purgar seus pecados...

— Então me deixe ver... E dizendo isto, sem a menor cerimônia, pôs-se a apalpar-lhe o pescoço, através da gola de renda.

— E que é daquilo? perguntou.

— Aquilo?! Ah! sim, o papo? respondeu, dando uma risada. O papo, um bugre flechou e eu acabei a operação. Com esse tratamento violento, ele não teve outro remédio senão ir-se embora... Olhe aqui as cicatrizes... e, abrindo a gola, mostrou duas pequenas cicatrizes no pescoço.

Era tudo o que restava da antiga afecção, que fora a amargura de sua vida. Então a preta não se conteve e apertou-o nos braços, chorando:

— Ah! é o Sinhozinho! Benza-o Deus! Inda veio mais bonito do que era! Que milagre!...

Luzia também começou a sorrir, entre lágrimas, indagando:

— Então vosmecê é o senhor meu tio Antônio Castanho?

— Sim, Luzia, você ouviu falar de mim?

— Como não?! Desde que me conheço por gente, é o nome mais célebre das nossas famílias. Minha tia Catarina, meu pai e, principalmente, minha mãe, falavam muito no senhor...

— É mesmo? perguntou Antônio, com certo embaraço. E como vão eles?

— Meu pai, espero que esteja bem. Está para o sertão de Cataguazes. Minha mãe, coitada, faleceu quando eu tinha oito anos...

Uma sombra fechou o rosto de Antônio que só pôde dizer:

— Ah!

Depois, fitou-a dos pés à cabeça, fazendo-lhe um minucioso exa­me: aquele cabelo preto, repartido, aquelas tranças em espiral sobre as orelhas, aquelas mãos finas e longas, aqueles olhos escuros e pes­tanudos, aquele colo erguido, aquela graciosa cintura... sim, não havia dúvida, era a mesma Luzia que, do alto da nogueira, vira dan­çando no quarto, e que o chamara de Papudo, há dezoito anos atrás!...

Não pôde deixar de sorrir com esta lembrança: daria de bom grado o que lhe restava de vida para ouvi-la de novo pronunciando a palavra outrora tão injuriosa para ele! Como o tempo transforma o sentido dos vocábulos e o coração das criaturas!... Agora achava graça naquilo que fora o pesadelo de sua vida!...

A moça, que estava inteiramente confusa e fascinada pelo olhar de Antônio, estremeceu quando ele a segurou pelos ombros com a maior ternura e lhe disse:

— Luzia, você é linda como um anjo e imagem perfeita de sua mãe!

Luzia corou até à raiz dos cabelos e tratou de dar informações sem ser perguntada:

— Estamos sós em casa, eu e Sabina. Vovó Isabel e tia Catarina foram à missa em Parnaíba. Mas não tardam por aí. O senhor meu tio não quer entrar, para descansar um pouco?

— Agora não estou cansado, Luzia. Minha mãe vai bem?

— Vovó está velhinha, mas muito forte...

— E meus manos como vão?

— Creio que vão sem novidade. Seguiram, mês passado, numa bandeira para Cataguazes, com meu tio Vicente, casado com minha tia Catarina.

— Ainda estão solteiros?

— Casaram-se os três mais velhos. Tio Luís com Maria Pedroso, tio Diogo com Ana Maria Leme, irmã de meu pai, e tio Joaquim com minha tia Maria Mendonça, irmã de minha mãe...

Ela falava apressadamente, como se quisesse evitar que Antô­nio a interrompesse...

— Felizardos! exclamou ele, enquanto a moça continuava:

— Todos têm uma porção de filhos, alguns já moços. Agora falta casarem três dos seus irmãos: o José, o Inácio e o João. Mas já estão prometidos. Suas irmãs Madalena e Antoninha também estão casadas e com filhos crescidos.

Nesse instante, um carro de bois coberto de um toldo azul en­trou pela porteira, rangendo:

— Chegou Sinhá... informou Sabina.

Antônio precipitou-se ao encontro da mãe e da irmã. D. Isabel de Lara, quando reconheceu o filho, quase lhe desmaiou nos braços. Catarina não podia crer no milagre do reaparecimento do irmão e, após os primeiros momentos de indizível contentamento, perguntou-lhe:

— Mas por onde andou você perdido, durante esses dezoito anos?

— Por esses sertões de Deus e lá nos confins do Peru, nas mi­nas de Potosi, onde visitei a sepultura de meu glorioso avô e xará...

— Conte para a gente como você se salvou da flechada e como viajou sozinho até esse fim de mundo...

— Fica para mais tarde, mana. A história é muito comprida... E, abraçado à mãe que chorava, Antônio Castanho entrou no velho solar onde nascera e que deixara há tantos anos...

 

                                         A DEVOLUÇÃO DA NOZ

O serão daquele dia prolongou-se até tarde. A notícia da chegada de Antônio, que surgia como um redivivo, espalhara-se por toda a vila e até parentes afastados haviam aparecido, a fim de rever o aventureiro e ouvir-lhe a impressionante história. Esta, em minúcias, levaria dias para ser contada. Antônio, porém, resumiu-a aos principais episódios, pois não podia deixar de atender à curiosi­dade dos que se acercavam dele. E assim que silenciou na casa o alarido das crianças, de que se enriquecera a família durante tantos anos, principiou sua narrativa.

Contou o súbito aparecimento de Mafaldo no rancho, pouco após a partida dos irmãos que, em companhia do capitão Soares Pais, haviam ido tirar vingança contra os cruéis assassinos de seu saudoso pai. O mestiço, que só despertara ao ser arrastado para o mato pelos bugres em revolta, levara tamanha pancada na cabeça que fora tido como totalmente liquidado e abandonado na selva. Refi­zera-se a custo mas, cercado pelo incêndio que lavrava na mata cir­cundante, só conseguira aparecer no rancho àquele dia, embora já sem esperança de encontrar vivos os chefes da bandeira. Aceitou co­mo um cão submisso as censuras de Antônio, que acabou se como­vendo com o estado de penúria física em que ele se encontrava e perdoou-o. Seu reaparecimento, porém, acendera no jovem Castanho uma esperança! Poderia ir ao Peru! Ali estava o guia! Era, no en­tanto, preciso partir sem demora. Os irmãos deviam ignorar seu projeto temerário, ao qual se oporiam sem dúvida... E, em menos de meia hora, a decisão estava tomada e Pereá e Mafaldo prontos para acompanhá-lo. Então reuniram os poucos pertences de que ne­cessitavam e partiram numa das canoas da frota do capitão Soares Pais, rio abaixo até o Paraná, na confluência do rio Pardo. Subiram por este, atravessando a Vacaria até atingir o rio Paraguai. Levaram meses nessa travessia, emboscando-se no mato para evitar encontros com os selvagens, dormindo nas redes armadas no alto das árvores a fim de se prevenirem contra as feras, queimando cupins à popa da canoa para espantar as infernais muriçocas, tomando chá da casca milagrosa da quina, para cortar as febres, roubando cavalos e novilhos dos guaicurus e até canoa dos temidos paiaguás navegadores. E assim atravessaram o Paraguai, burlaram a ardilosa vigilância dos índios serranos, romperam pelo deserto alteroso do Peru e, cerca de onze meses depois, estavam percorrendo as ruas acidentadas de Potosi, como três mendigos, vestidos somente com peles de lhama. Contou como o frade franciscano lhe dera pousada, remédios e conselhos. Como se associara a um barbeiro português e se atirara ao trabalho das minas. E desse modo, tendo começado como capataz dos mitaios, sob regime de tarefas penosas, acabara descobrindo a “Castanheira”... e armazenando algumas arrobas do cobiçado metal — a famosa prata de Potosi!... Foi dessa maneira, enfim, que ele se tornou conhecido, invejado e hostilizado pelos espanhóis que o chamavam de “português de São Paulo”, e admirado e temido pelos mitaios que, à imitação de Mafaldo, o chamavam — Pumasonco.

A essa altura da conversa, alguém perguntou:

— E como conseguiu voltar de tão longe, sozinho?

— Não voltei sozinho... Vim muito bem acompanhado, na bandeira de Antônio Ferraz de Araújo, que topei no caminho. Mafaldo sucedeu-me na sociedade da mina. E em Sorocaba deixei mi­nhas cargas entregues a Pereá e adiantei-me porque as saudades estavam me matando.

Muitas outras perguntas lhe foram feitas. O recém-chegado respondeu a todos e por fim indagou também:

— E que notícias me dão de meu grande amigo capitão Soares Pais?

— Ah! esse, coitado! informou Catarina, faleceu de febre maligna, naquele mesmo ano em que socorreu vocês... Não voltou dessa última entrada.

O conhecimento do triste destino de seu mestre e amigo veio misturar no coração de Antônio mais uma grande dose de tristeza à alegria que nele reinava...

Durante a sua narrativa, todos o contemplavam com admiração, mas Antônio reparou que Luzia bebia suas palavras, toda voltada para ele como uma flor para a luz do dia...

No decorrer de um mês essa admiração crescera e dava origem a um sentimento novo, que não passou despercebido aos olhos da tia e da própria avó. Antônio, porém, também seduzido pelos en­cantos da jovem, fazia o possível para evitá-la, metia-se em seu quarto, chegava a esconder-se dela, com medo de ressuscitar o amor que jazia em seu peito, como brasa dormida.

Certa manhã, estava ele deitado a remexer na cabeça aquele novo problema sentimental, perguntando-se a si mesmo se era lícito aceitar da filha o amor que não pudera obter da mãe, quando lhe arremessaram bem em cima, através da janela, uma noz. Não era nada mais nada menos que a noz em que enviara a mensagem a Luzia. Abriu-a e releu a romântica frase que levara uma noite arquitetando: “Andarei mil léguas no mundo com lua imagem no coração”. Ergueu-se de um salto e chegou à janela. Não viu nin­guém. Nisso olhou para o pomar e vislumbrou a ponta de um vesti­do, por trás de uma nogueira. Pulou a janela e, pé ante pé, apa­nhou em flagrante a autora da brincadeira:

Luzia!

Ela levou um susto de morte. Deu um grito e quis fugir. Ele, porém, segurou-a pelo pulso ralhando com ela:

Por que quer fugir de mim?

Ela não respondeu mas Antônio sentiu que suas mãos tremiam.

— Quem lhe deu esta noz?

Foi a tia Catarina, a quem minha mãe confiara, respondeu ela de coração a saltar pela boca, como se confessasse um crime.

O tio encarou-a de sobrecenho cerrado e continuou ralhando:

— Não fica bem a uma jovem olhar um homem como você me olha...

Um relâmpago de indignação passou pelos olhos de Luzia. Forcejou por escapar, mas ele continuou retendo-a.

— Deixe-me!...

Não vê que eu podia ser seu pai?.

Não podia... retorquiu ela.

Mas sou seu tio...

Não é meu tio...

E o que sou então?

Coração de Onça! bradou ela, com a mesma veemência com que a mãe, outrora, o chamara de Papudo.

Antônio soltou uma risada feliz e puxou-a para si.

— Estou brincando com você, meu amor!

Confiante, Luzia aninhou-se, então, em seus braços vigorosos como num refúgio há longo tempo sonhado, enquanto Antônio, num transbordo de ternura, compreendia, pela primeira vez, o motivo por que acabara cedendo ao impulso de adquirir o vestido de veludo carmesim, com gargantilha de aljôfares e seis folhazinhas de ouro, a modo de coração...

Bem dissera Davi, o mercador, arrastando os erres: “Comprre-me o vestido que a noiva se arranja”...

Davi sempre foi profeta.

Confiante, Luzia aninhou-se, então, em seus braços vigorosos como num refúgio há longo tempo sonhado.

 

 

                                                                                Ofélia e Narbal Fontes 

 

 

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