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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAÇÃO TRAIÇOEIRO / Margo Maguire
CORAÇÃO TRAIÇOEIRO / Margo Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CORAÇÃO TRAIÇOEIRO 

 

             Castelo de Alderton, primavera de 1429.

Ria refugiou-se na despensa para admirar a túnica que haviam lhe dado e que nem era tão nova, pois pertencera a Cecília Morley, sua jovem e sofisticada prima em primeiro grau. Embora estivesse um pouco grande, a herança, que já fizera parte de um precioso traje de seda, estava em muito melhor estado que sua velha e única túnica já bastante puída. Por um instante ela se permitiu curtir a deliciosa sensação da fina seda sobre a pele. Cecília havia tirado o forro de pele por não precisar mais dele. Também não havia mais o rico bordado em pedrarias que um dia adornara o decote. Melhor assim, uma vez que o trabalho pesado não lhe permitiria usar um traje tão delicado.

Mas Ria também possuía uma jóia, um lindo medalhão de ouro em cujo interior havia um cacho dourado dos cabelos de sua mãe. Jamais se separava dele; trazia-o amarrado num lenço de algodão para impedir que alguém o visse ou o tirassem dela.

Dando uma volta, imaginou a túnica em sua versão original, com o forro de pele e o peitilho de pedrarias. Chegou a perceber o peso do bordado e sentir-se linda, altiva e elegante como Cecília, para quem todos os olhares se voltavam. Mais uma vez ela estava fantasiando, mas era graças a essas fantasias que conseguia suportar a dura vida no castelo de Alderton e que parecia piorar a cada dia. Sua tia Olívia já dissera com todas as letras que ela não era reconhecida como um membro da família. Os Morley lhe davam um teto, comida e, de vez em quando, algumas roupas. Mas Ria trabalhava muito por isso. A filha bastarda de lady Sarah Morley não tinha direito a absolutamente nada.

— Ria! — o grito estridente da cozinheira a trouxe de volta à realidade. Imediatamente ela jogou o xale de lã sobre os ombros e voltou para a cozinha.

— Onde você estava, menina? — a mulher perguntou. — Eu... estava...

— Tire a panela do fogo e não pare de mexer.

Ria ergueu o pesado caldeirão do fogão esfumaçado e levou-o para a mesa de madeira, no centro da cozinha.

— Está derramando o caldo pelas bordas, sua desastrada! — disse a cozinheira, dando-lhe um tapa na cabeça que quase a jogou no chão. — Trate de limpar o que sujou.

— Eu não teria derrubado se estivesse em dois caldeirões menores, como lhe falei — ela retrucou, para levar outro tapa.

Ria foi buscar um pano para limpar a sopa espalhada pelo chão.

— Quando terminar, leve a bandeja para o solário. Lady Olívia está com visitas! E veja se não vai derramar nada lá dentro.

A bandeja com as cervejas e os refrescos não estava pesada. Ria serviu tia Olívia e aguardou as próximas ordens. Essa era a sua vida.

No aconchegante e confortável solário, de paredes grossas, janelas pequenas, uma grande lareira e tapeçarias coloridas, Olívia Morley recebia um visitante que viera de Londres e tentava disfarçar sua agitação. Viúva de Jerrold Morley, Olívia ainda era uma mulher bonita. Não havia um único fio branco em seus longos e sedosos cabelos castanhos, ao menos nenhum que tivesse crescido antes de ser arrancado. Os olhos, também castanhos, exibiam uma suavidade enganadora, pois seu interesse estava mais aguçado que nunca.

— Não, milorde — dizia Olívia Morley ao visitante. — Nunca existiu criança alguma. E mesmo que o bebê de Sarah tivesse sobrevivido, não poderia herdar Rockbury. — Ela falava com firmeza e segurança com lorde Roland, o cavalheiro mais nobre e distinto em que Ria já pusera os olhos. Ninguém diria que Olívia podia estar mentindo.

— Minha senhora, a propriedade está vin...

— Pouco importa que esteja vinculada ou o que Sarah Morley tenha escrito em seu testamento — Olívia retrucou num tom áspero.

— Sarah Burton.

Ela ergueu os ombros.

— Não vou permitir que uma propriedade de meu marido seja dada à filha de uma rameira.

— Mas Rockbury nunca pertenceu a seu marido...

— E claro que pertenceu! — Olívia ergueu-se, furiosa, e começou a andar pela sala esfregando as mãos. Era difícil vê-la perder o controle. — E onde está esse testamento, se é que ele existe mesmo? É um absurdo uma bastarda herdar aquela propriedade. E ridículo! Um despropósito! Como o parente mais próximo de Sarah, meu marido...

— Pois eu lhe asseguro, lady Olívia, que Staffordshire foi legalmente doada a lady Sarah pelo rei Henrique IV. E ela poderia dá-la a quem quisesse. Quanto à condição de bastarda de...

— Isso é bobagem! — Olívia interrompeu-o. — Qualquer testamento pode ser contestado. O rei não recompensaria o comportamento devasso da irmã de meu marido.

— Milady, a senhora está se referindo à última duquesa de Sterlyng — sir Roland advertiu-a num tom severo. — Ela tem o direito de fazer o que quiser com Rockbury. A assinatura do rei garante que Rockbury seja de sua cunhada, em recompensa pela sua lealdade, apesar da omissão da família. E segundo as últimas vontades de lady Sarah, expressas em testamento, a propriedade deve ser legalmente transmitida a sua descendente, uma menina chamada... Maria Elizabeth.

— Para nós, essa menina está morta — Olívia retrucou secamente.

— Mas dizem que...

— É mentira, eu lhe asseguro.

— Então Rockbury voltará para a Coroa — decretou sir Roland, levantando-se da poltrona que ocupava ao lado do fogo.

— Isso não, senhor — Olívia decretou, as mãos crispadas sobre o corpete dourado. — Rockbury faz parte do patrimônio de meu filho. Pertence a ele!

— Não, senhora — Roland insistiu, sem perder a calma —, a Coroa a quer de volta.

Como uma leve batida na porta não conseguiu arrancar lady Olívia de sua irritação, o próprio lorde Roland foi abrir. Era a jovem criada, uma linda moça de cabelos dourados que se soltaram do coque e caíam sobre os ombros. Ela mantinha os olhos baixo mas lorde Roland não pôde deixar de notar os traços delicados, a pele clara e macia como uma pétala de flor. Qualquer um diria que ela havia nascido em berço de ouro, não fosse pela atitude humilde e as mãos maltratadas pelo trabalho duro.

Ele voltou-se novamente para lady Olívia, que ainda tentava se controlar:

— Pensei que fosse encontrar lady Maria aqui, cumprir minha missão e tomar o caminho de volta para Chester antes do anoitecer — disse com calma, ignorando de propósito a irritação de lady Olívia.

— Pois eu sinto muito. Já disse que não há nenhuma fi... — ela parou quando viu Ria na porta. — Saia! O que está fazendo aqui?

Ria saiu e fechou a porta com delicadeza.

— Não quero atrasá-lo para o seu compromisso em Chester... — Olívia começou, mas logo lhe ocorreu que, se conseguisse mantê-lo em Morley, talvez pudesse convencê-lo de que Rockbury pertencia por direito a Geoffrey. Era a única maneira de o Conselho Real em Londres garantir o título de propriedade a seu filho. — Por favor, coma alguma coisa antes de retomar a viagem — ela mostrou a bandeja que Ria deixara sobre a mesa.

— Chester não fica distante de Morley e o tempo está bom para viajar.

Ria tremia atrás da porta. Não sabia o que eles haviam conversado e nem o que fazer com o pouco que ouvira. Talvez tivesse entendido mal. Só por isso preferiu não se manifestar. Sabia que seria severamente castigada se dirigisse a palavra a um hóspede de lady Olívia, ainda mais se estivesse enganada.

Mas, se tinha mesmo uma herança para receber de sua mãe, esse era o momento de saber. Dentro de uma ou duas horas talvez toda a sua vida mudasse. E que mudança! Teria um lar, pertenceria a algum lugar. Ria desceu flutuando para a cozinha, onde uma cesta repleta de roupas sujas foi posta em suas mãos. Ela riu e foi para o quintal.

 

Primeiro, Nicholas Hawken, o marquês de Kirkham, enfileirou algumas pedras sobre o muro, depois afastou-se uns vinte passos e ergueu o chicote. Estalando a tira de couro em rápida sucessão, as pedras foram arrancadas do muro e jogadas ao chão, uma após a outra, sem esbarrar na do lado. O marquês, que um dia já se orgulhara muito dessa habilidade, hoje fazia isso apenas como passatempo.

Nicholas estava preocupado. No ritmo em que ele e seus companheiros viajavam, levariam ainda mais dois dias para chegar a Kirkham. Isso, se os homens não quisessem parar em Tusk, mais especificamente na Pousada Ale, onde as serviçais, jovens e bonitas, eram bastante receptivas. Talvez também aceitasse os favores de alguma delas mais tarde, mas no momento somente esse exercício de concentração era capaz de distraí-lo da imensa saudade, que lhe causava uma profunda melancolia. E que fora nesse mesmo dia, doze anos antes, que vira seu irmão Edmund ser abatido numa batalha sanguinária nos campos da França. Ambos lutavam ao lado do próprio rei Henrique pela conquista da França. Tanto um quanto o outro queriam distinguir-se no campo de batalha e cobrir de glórias o nome dos Hawken.

Nick colocou de novo as pedras em linha e, mais uma vez, derrubou-as com a tira do chicote, perícia que aprendera com um nobre italiano. Tantos anos haviam se passado desde então, tanta coisa pára lamentar. Havia sido por culpa dele que Edmund morrera, antes de completar vinte anos de idade. Se não o tivesse convencido a ir para a França, seu irmão teria se sagrado marquês de Kirkham e casado com lady Alyce Palton.

Alyce chorava até hoje a morte prematura de um valoroso e nobre soldado, e Nicholas herdara Kirkham sem nada ter feito para merecer tal honraria. Num movimento rápido de seu punho, a longa e estreita tira de couro enrolou-se no tronco de uma árvore. Provavelmente ele jamais se livraria da culpa que tanto o torturava.

— Ah, você está aí! — disse alguém se aproximando. Eram dois de seus companheiros.

— Lofton mandou chamá-lo, Kirkham — disse um deles.

— Há alguém à sua espera — completou o outro.

— Quem? — Nick perguntou, enrolando o chicote.

— Uma loirinha — respondeu o primeiro, batendo carinhosamente em seu ombro. — Lofton sabe da sua preferência por loiras.

Loira ou morena, tanto fazia. No coração de Nicholas só havia lugar para a saudade.

Intrigada, Ria perguntava-se por que, depois de tanto anos, alguém se lembrava da filha de Sarah Morley... ou de Sarah Burton. Fazia 22 anos que ninguém se lembrava dela. O que poderiam querer agora? Ela própria raramente se lembrava de que era filha de Sarah ou mesmo sobrinha de Olívia. Não se via nem como uma nem como outra. Isso, desde que Tilda, sua ama-seca, a levara de Alderton, após a morte de sua mãe.

Fora Tilda quem passara a chamá-la de Ria, apelido que, sem ela, não significava mais nada. Deixara de ser um nome para se tornar um mero som que as pessoas gritavam quando queriam alguma coisa. Mas talvez isso fosse mudar. Talvez deixasse de ser a garota de Alderton para ser Maria Elizabeth Burton, o nome legítimo de alguém com um lugar na sociedade. E, se era legítimo, ela devia ter um pai. De onde se concluía que, pelo que ouvira daquele homem no solário de Olívia, se sua mãe era Sarah Burton, a duquesa de Sterlyng, seu pai só podia ser o duque de Sterlyng.

Enquanto esfregava os panos manchados, torcia e distribuía as peças de roupa nos varais, Ria deixava a imaginação voar. Mas sem jamais se esquecer de que poderia estar totalmente enganada. Afinal, nunca ouvira falar do duque de Sterlyng. Seus tios não lhe disseram que Sarah se casara com ele. Também nunca lhe falaram numa herança. E muito menos de seu pai.

Ria ergueu a cesta vazia do chão e voltou para a cozinha. Em seguida pegou um saco de lona e saiu para buscar mais lenha, antes que a cozinheira começasse a gritar outra vez. E outra vez começou a pensar: se fosse reconhecida como filha de um duque, essa história iria muito mais longe do que um dia seria capaz de imaginar.

Só depois que empilhou toda a madeira ao lado da porta da cozinha, Ria começou a ficar preocupada. A tarde mal começara e era bem provável que logo voltariam a chamá-la no solário. Não era possível que estivesse tão enganada em relação ao que ouvira. Certamente que não. Era a filha de Sarah, e nunca alguém lhe dissera o contrário. Sua mãe havia sido renegada pelos Morley quando acompanhara o rei Henrique. Por serem eles fiéis servidores do rei Ricardo, a traição de Sarah provocara uma grande cisão na família.

Mas ela havia se casado com um duque. Era duquesa e tinha posses: uma propriedade chamada Rockbury. Quanto a isso, Ria não se enganara, pois ouvira muito bem esse nome. Cheia de esperanças, foi andando em direção ao pequeno quarto que ficava sob a escada, para fazer as malas. Possuía poucas coisas mas todas muito preciosas, sendo a mais valiosa o medalhão de sua mãe, do qual nunca se separava.

Mal contendo a excitação com a possibilidade de se ver longe dos Morley, começou a sonhar com a viagem. A que distância ficaria Rockbury? Ouvira falar em Staffordshire, mas onde ficava isso? Seria uma viagem de muitos dias ou de apenas algumas horas? E como seria recebida quando lá chegasse? Seu pai estaria lá para recebê-la ou já teria morrido, assim como sua mãe? Seria maravilhoso ter um pai. Ria nunca tivera ninguém para amá-la, defendê-la ou protegê-la dos perigos. Quanto à viagem propriamente dita, preferia chegar a Rockbury com seus trajes rústicos e modestos a usar a túnica que Cecília lhe dera, que, além de estar comprida, não lhe caía nada bem. Deixava-a mais baixa e mais gordinha do que realmente era.

Ria entrou em seu quarto sem janelas e acendeu um toco de vela. Além de muito pequeno o quarto só tinha uma cama estreita e uma prateleira onde ela expunha sua coleção de pedras que encontrava pelos campos. Sobre a cama estavam dobrados uma saia surrada e um saiote desbotado. Ria tirou o xale de lã, despiu a blusa e em seguida despejou água num bacia trincada para lavar-se. Estava quase terminando quando ouviu um barulho.

Em geral ela não se importava com os movimentos do castelo, mas dessa vez ocorreu-lhe que a visita de tia Olívia poderia estar partindo. Sem ela!

Vestiu-se rapidamente, jogou o xale nos ombros e saiu correndo pelo corredor que ia dar numa porta lateral do castelo. Precisava chegar aos estábulos antes dele. Com muito esforço, abriu a porta pesada, mas acabou tropeçando num engradado de galinhas que alguém deixara ali e caiu de quatro no chão. As mãos e os joelhos doíam, porém não a detiveram. Novamente em pé, ela saltou por cima do engradado e correu para interceptar o visitante.

— Ria!

Alguém a chamava do alto da torre. Era tia Olívia, debruçada na janela do solário.

— Pare imediatamente, sua desajeitada!

Ria ignorou-a, deu meia-volta e atravessou o pátio correndo. Seu primo Geoffrey Morley e o jovem Thomas Newson, filho de um barão que morava nas redondezas, estavam na porta do estábulo. Nenhum dos dois lhe deu atenção.

— Onde está ele? — gritou ela. O visitante não podia ter partido tão rápido.

— Quem? — Geoffrey perguntou, desinteressado.

— Você sabe... o cavalheiro que veio visitar sua mãe! Ele já foi? — ela insistiu, ofegante.

— E o que você tem com isso? — Thomas indagou, e os dois foram se aproximando, ameaçadores, obrigando-a a entrar no estábulo. Ria olhou em volta. Não havia ninguém por perto; e, mesmo que houvesse, não iriam ajudá-la.

— Isso não é da sua conta, Thomas Newson — ela reagiu, o dedo apontado para o peito do rapaz. Ela não gostava de Thomas desde o dia em que, quando eram crianças, ele a perseguira com brincadeiras de mau gosto. Desde então, nunca baixava a guarda quando ele se encontrava por perto. — Onde está o homem? — Ria insistiu, ignorando a intimidação. — Vocês o devem ter visto! — Eles podiam ser superiores em força bruta, mas juntos não tinham a metade da sua inteligência.

— Já que quer tanto saber, por que não vê se ele está aí? — Thomas agarrou-a pelo braço e empurrou-a para dentro do estábulo.

Na primeira cocheira só havia um velho pangaré, e a segunda estava aberta e vazia.

— Não era aqui que estava aquele cavalo, Geoff? — Thomas ria.

Nesse instante, Ria conseguiu se soltar e tentou sair, porém Geoffrey a impediu. Thomas puxou-a pelo xale e empurrou-a para dentro da cocheira vazia. Geoff jogou-a no chão.

— Afastem-se de mim, seus brutos! — Ria gritava, esperneando. O cotovelo machucado pelo tombo que levara ao sair do castelo doía e sangrava muito.

— Segure-a! — Thomas gritou.

Ela estava morrendo de medo, mas não se entregou. Livrar-se daquela situação dependeria da sua capacidade de manter a presença de espírito. Com um braço imobilizado, não poderia escapar das mãos masculinas que a mantinham no chão, com Thomas segurando-lhe os pés, enquanto Geoffrey prendia os ombros. Para se livrar, Ria virava a cabeça de um lado e do outro, tanto que ficou atordoada. Quando se recuperou, continuou resistindo. Então sentiu um puxão e algo se rasgar. Precisava fazer alguma coisa, pensou, e instintivamente começou a chutar. Ao ver-se com uma das mãos livres, agarrou um punhado de cabelos de Geoffrey. Puxou com tanta força que os arrancou pela raiz. Ele soltou um uivo e recuou, o suficiente para que Thomas se desequilibrasse e permitisse que ela rolasse para longe. Quando conseguiu se levantar, viu Geoffrey caído no chão, com a cabeça entre as mãos, gemendo de dor.

Thomas, contudo, ainda era uma séria ameaça. Havia nele uma maldade intrínseca que não apenas Ria, mas todos os servos dos Morley conheciam muito bem e queriam ficar longe dele. Ria só se salvaria por um milagre. Queria chorar quando pensava que estivera tão perto de livrar-se dos Morley, mas devia saber que era impossível. Thomas começou a andar em círculos ao redor dela.

— Você não vai a lugar nenhum, Ria. Você já me provocou muito para querer se livrar de mim agora.

Ria também andava em círculos junto com ele, sem nunca perdê-lo de vista. Provocá-lo? Ela, que fazia de tudo para ficar o mais longe possível de Thomas Newson, por que iria querer atrair a atenção de alguém tão desprezível?

Thomas avançou de repente, agarrou-a pelo xale e abraçou-a. Ria ergueu o joelho com toda a força entre as pernas dele que o rapaz deu um berro, dobrou-se em dois e caiu no chão.

Mas não ficaria ali para sempre. Mesmo dolorida e machucada, ela tratou de sair da cocheira o mais rápido possível. Não podia mais ficar em Morley. Chegara a hora de partir, mesmo que só.

E tinha que agir rápido. A pena por roubar um cavalo era a forca, mas era exatamente isso mesmo que Ria pretendia fazer. Sem pensar duas vezes, saiu da cocheira onde Thomas e Geoffrey gemiam no chão e foi para a seguinte. Lá dentro estava uma égua preta, que Ria não titubeou em montar. Sem olhar para trás, saiu do estábulo e em seguida atravessou o pátio. Seguindo para o sul, ela só tinha um pensamento, um único destino: Rockbury.

 

Lorde Kirkham deu uma risada maliciosa em resposta ao gracejo de seu companheiro. A comitiva de nobres finalmente se aproximava do castelo de Kirkham, disposta a passar um mês inteiro de muita festa, bem longe do tédio londrino. E não havia anfitrião mais criativo para isso do que Kirkham. Muitas lendas se criaram em torno de sua perícia como caçador, sua predileção pela cerveja e seus talentos na cama. Essas decantadas qualidades eram celebradas em todo o reino, bem como sua incomparável habilidade com o chicote.

— Passe-me o cantil, Lofton, o meu já está vazio. — Nicholas jogou o recipiente vazio no mato que ladeava a trilha dos cavalos.

— Vamos apostar uma corrida até os portões de Kirkham? — propôs o visconde de Sheffield. — Quem perder paga a conta da taberna.

Nicholas ajeitou-se na sela.

— Vai aceitar, companheiro? — desafiou-o lorde Lofton.

— Vou. Mas só se o prêmio para o vencedor for a moça mais bonita do castelo — declarou Nicholas, jogando a cabeça para trás numa estrondosa gargalhada.

— De acordo! — disse Lofton. O humor inconstante de Kirkham, bem como sua predileção pelo álcool, eram motivos de piada entre amigos e conhecidos. — Vamos lá.

Os homens arrancaram como se uma bandeira tivesse sido abaixada em um torneio. Nicholas golpeou seu cavalo com os calcanhares, e os animais partiram lado a lado num vigoroso galope. Apenas três deles disputavam; os demais seguiam atrás, rindo e fazendo piadas, bêbados demais para se manterem sobre um cavalo veloz.

A trilha estreita quase não dava espaço para os três animais emparelhados. Nicholas ia por fora e Lofton seguia no meio. Por mais que tivessem bebido, todos eles conheciam o gosto de Nick pela vitória e certamente o deixariam vencer. Ainda faltava uma boa distância para o castelo de Kirkham. Pouco mais adiante havia uma curva e em seguida uma bifurcação...

Foi quando um cavalo surgiu do nada. Diante do inesperado, o animal empinou, jogando ao chão o cavaleiro que o conduzia. Nick não titubeou e puxou as rédeas de sua montaria, enquanto os outros se atrapalhavam, sem saber o que fazer. Ele saltou ainda em movimento e correu até a mulher que estava caída na estrada, inconsciente.

Era jovem. E a julgar pelas roupas, de origem nobre.

A cabeça estava descoberta. Os cabelos espalhados sobre a terra tinham a cor do mais puro mel, como se fossem desenhados pelos delicados pincéis de um monge. Em outras épocas, Nicholas a teria achado linda. Hoje sabia que havia pouca beleza autêntica no mundo. Mesmo assim, seus atributos eram sem dúvida apreciáveis.

Cílios longos e curvos contornavam os olhos emoldurados pelos arcos perfeitos das sobrancelhas. Um nariz pequeno e delicado, e a boca, ah, que lábios cheios e convidativos!

Nick chamou:

— Senhora...

Um suave gemido despertou-lhe a memória de outros tempos, outros lugares. Um gemido que podia muito bem ser de prazer e que imediatamente o fez imaginar aqueles fantásticos cabelos espalhados em sua cama. Por outro lado, havia nela alguma coisa de inocente e sincera. Talvez fosse uma necessidade de proteção, e não de...

Nick tratou de afastar esses pensamentos e voltou-se para seus companheiros, que já tinham desmontado e vinham em sua direção. Eles riam e faziam piadas a respeito das moças de Kirkham e sobretudo da recém-chegada. Eram brincadeiras grosseiras que estavam deixando Nick aborrecido.

— Vão indo para Kirkham — ele ordenou secamente. — Eu vou cuidar da moça e logo me juntarei a vocês.

— Moça, é? — provocou um dos homens.

— Ou seria uma dama do castelo? — caçoou o outro.

— Vão! — Nick decretou aos amigos que o rodeavam. Mas rapidamente se recompôs e acrescentou num tom mais amigável: — Mandei preparar acomodações para todos vocês, e dentro de uma hora estaremos juntos nas festividades noturnas. Por favor, me deixem agora. Quero cuidar disto sozinho.

Relutantes, os homens começaram a se afastar. Então a jovem caída gemeu de novo e fez um pequeno movimento. Nicholas, que observava a veia pulsar no delicado pescoço, imaginou seus lábios encostando exatamente naquele ponto.

— Senhora — ele repetiu, erguendo-lhe a cabeça.

Ela abriu os olhos. E, de repente, desferiu um soco no queixo de Nicholas. Nem foi tanto o ataque, e sim a surpresa que o jogou no chão. Ela então aproveitou para se levantar, porém, ao fazê-lo, caiu outra vez no chão, gemendo.

Nicholas ficou aliviado que seus amigos não estivessem por perto para presenciar o humilhante tombo provocado por tão delicada criatura. Pelo jeito, ela não sentia nenhum remorso pelo que acabara de fazer, uma vez que só fazia praguejar e amaldiçoar até a última geração dos filhos de Eva. Apoiada nas mãos e nos joelhos, Ria saiu engatinhando. À visão agradabilíssima que ela lhe proporcionava, Nick disfarçou um sorriso e disse:

— Costuma atacar todo homem que encontra ou apenas eu fui agraciado com tanta honra?

— Somente os imbecis que costumam aterrorizar o campo com suas cavalgadas irresponsáveis! — ela contra-atacou.

Nicholas franziu o cenho e cerrou os dentes. Sua reputação não era das melhores, mas ninguém falava com ele nesse tom. Imbecil?

— Vá embora! — Ria ordenou, lançando-lhe o olhar mais incrível que ele já vira.

Nick lembrou-se vagamente de já ter visto em algum lugar aqueles olhos cor de âmbar, mas não sabia onde nem quando. Mas isso pouco importava. A cor incomum e sedutora não o intrigava tanto quanto aquele ar de desprezo.

Assim como veio, sua cólera desapareceu. A única coisa que lhe interessava no momento era saber se todo aquele desprezo poderia se transformar em paixão ardente quando ele lhe proporcionasse — e sentisse — o supremo prazer entre suas pernas. Mas talvez fosse necessário um certo empenho para conseguir seduzi-la. Ela não parecia ser uma das garotas das tavernas, sempre tão experientes e disponíveis.

Não, era uma linda e misteriosa mulher. Delicada como uma donzela ingênua e singela, e ao mesmo tempo geniosa e determinada como a mais experiente das cortesãs. Era preciso descobrir de quem se tratava e de onde vinha. Um desafio que deixava Nick muito mais estimulado.

— Você está bem? — ele perguntou, aproximando-se. Dessa vez, não seria pego de surpresa por outro soco.

Ria virou-se, desconfiada. Sim, estava machucada e talvez nem pudesse andar. Só não sabia se poderia confiar naquele homem.

Ele era forte, um corpo muito bem-feito. Tinha a postura de um guerreiro, mas cheirava a cerveja e parecia indiferente a tudo e a todos. Era um beberrão. Um devasso. Nada nele lhe desagradava, mas via-se logo que, bêbado ou sóbrio, não era um sujeito qualquer do qual era possível se livrar com um golpe inesperado em suas partes baixas. Apesar da aparente insensibilidade, ele não escondia muito mais do que aquilo que todos podiam ver.

Tinha cabelos escuros, quase negros, e o fato de serem longos emprestava-lhe uma sensualidade inesperada. Cílios negros contornavam seus olhos cinzentos como as tempestades. O nariz afilado era quase perfeito, não fosse um pequeno caroço perto dos olhos — onde devia ter sido quebrado alguma vez. O maxilar anguloso dava ao rosto uma aparência severa que se tornava mais humana próximo da boca. Os lábios traíam uma sensibilidade que permanecia oculta na expressão séria e quase sempre desagradável.

Ria umedeceu os lábios, pensando se deveria desculpar-se pela colisão. Por fim concluiu que quanto menos falasse, melhor. Tinha de sair dali o mais depressa possível e retomar seu caminho para Rockbury. Alguém lhe informara, numa pequena aldeia próxima, que não era tão longe.

— Eu torci o tornozelo — ela disse, colocando-se a uma distância segura. — Se puder me...

— Deixe-me ver.

— Não, senhor.

Não iria permitir que aquele ou qualquer outro homem a tocasse. Já se livrara deles em Alderton e agora só queria chegar a Rockbury. E nada poderia detê-la. Nem seu primo chorão, Geoffrey Morley, nem seu amigo malvado e muito menos esse nobre descaradamente devasso. Seu único interesse agora era conhecer a verdade a respeito de sua origem, mesmo que o que ouvira no solário da tia não passasse de um grande mal-entendido.

Ria recolheu a saia e preparou-se para correr. Mas antes disso, Nick segurou sua perna pouco abaixo do joelho.

— Por que tanta pressa? — perguntou. Palavras inócuas, mas que escondiam um grande perigo. Mudando de posição, Nick obrigou-a a deitar-se de costas sobre a grama úmida.

Ele não cheirava só a cerveja. Cheirava a cavalo, a couro e a homem. A barba escura que cobria o maxilar só fazia destacar as rugas perigosamente atraentes que marcavam suas feições. Ele era muito maior do que Ria; seu corpo forte e musculoso provocou nela uma reação física até então desconhecida.

Ao senti-la estremecer, os olhos dele se acenderam.

Ria não podia se mexer. Tinha a respiração presa na garganta e os braços imóveis sob as mãos dele. As pernas também estavam impossibilitadas de qualquer movimento.

Eles respiravam juntos. O peito dele sobre os seios dela. Ria sentia-se flutuar. Era como se seu corpo fosse feito de plumas, que faziam cócegas desde os seios até os quadris.

Apoiando-se na cintura dela, ele mudou as pernas de posição. Ria gemeu. Nick respondeu com um som gutural que saiu das profundezas. Erguendo o peito, ele apoiou os braços musculosos ao redor de seus ombros e passou a pernas por entre as dela. Mantendo os olhos nos olhos, a perna se moveu e pressionou as partes íntimas de Ria. Quando a pressão aumentou, provocou uma forte onda de calor por todo o seu corpo.

Chocada com esse toque ofensivo, Ria empurrou-o com toda a força. Rapidamente, ela se sentou sobre as pernas dobradas e só então teve fôlego suficiente para falar.

— Meu cavalo, senhor — disse num tom ríspido, fitando-o diretamente nos olhos. — Se puder fazer a gentileza de me ajudar a. montar, gostaria de seguir viagem.

Nicholas não se mexeu. Era a primeira vez que ele se impunha a uma mulher, mas essa era muito diferente das outras. Certamente apreciara ser tocada. Notava-se isso em sua voz, ainda rouca e ofegante. Havia confusão em seu olhar.

Pedacinhos de grama ficaram presos no cabelo e a túnica de seda azul estava úmida em alguns pontos. Como se ela tivesse acabado de atingir o auge do prazer, embora não tivessem chegado nem perto disso.

Nick queria e precisava senti-la sob seu corpo novamente. E logo.

Suas formas agradáveis e as curvas suaves se ajustaram a ele com perfeição antes que sua consciência a obrigasse a afastá-lo. Gostaria de ter visto o que o feio xale enrolado em seus ombros escondia por baixo, mas não houvera tempo. Ao contrário do que estava acostumado a fazer, Nickolas queria saber mais sobre ela. Saber o que a trouxera até suas terras, montando uma égua velha, em pêlo, e sem nenhuma bagagem. Pelo visto, a jovem tinha apenas as roupas do corpo e um pingente de ouro numa corrente delicada, pendurado no pescoço. Talvez fosse a amante abandonada de um nobre, ou uma inocente donzela perdida de seu guardião.

Ele sorriu consigo mesmo. Essa moça não tinha para onde ir. Poderia mantê-la a seu lado.

— Não — Nick respondeu depois de algum tempo.

Os olhos de Ria se abriram e as sobrancelhas se cerraram.

— Senhor... Meu senhor — ela pediu, ajoelhando-se.

— Venha comigo para Kirkham. Vamos cuidar desse torno­zelo machucado.

— Mas...

— Eu insisto. Foi por minha culpa que você caiu do cavalo. O mínimo que posso fazer é oferecer-lhe hospitalidade em minha casa.

Nicholas ajudou-a a ficar em pé e notou sua surpresa. Ela não se dera conta de que estava diante do senhor de Kirkham. Amparando-a, ele a ajudou a subir numa pedra e montar no cavalo.

— Não tem sela? — ele perguntou, já montando seu garanhão cinzento. Ria balançou a cabeça e ao mesmo tempo avaliava a possibilidade de fugir. Infelizmente, estava perdida e precisava de orientação para encontrar Rockbury. Havia dois dias que viajava... Dois longos dias sem comer e sem dormir. Dois dias fugindo de Geoffrey Morley, para que ele nunca mais a encontrasse.

Ela não sabia se devia contar a lorde Kirkham quem era e para onde estava indo.

— Venha comigo — disse ele, num tom acolhedor. — Já está escurecendo e o castelo de Kirkham fica logo adiante. Vou providenciar uma faixa para esse tornozelo e uma comida quente para que você possa prosseguir viagem.

Ria aprendera que quanto menos dissesse, melhor. Não tinha nenhuma objeção ao fato de comer alguma coisa em Kirkham, e talvez até conseguisse descobrir onde ficava Rockbury com algum servo do castelo.

Ela aprumou-se na sela e assumiu um ar altivo, para que Kirkham não a visse como uma pobre inocente, fácil de ser enganada e seduzida. Era melhor fazer-se passar por uma sofisticada dama e evitar que o nobre senhor, tão bonito e tão experiente, tentasse se aproveitar de sua inocência.

Nicholas não se forçou a olhar para a estrada. Na verdade, seus olhos não conseguiram se afastar da jovem que viajava ao seu lado, ao mesmo tempo fascinado pelo mistério que ela representava e por suas formas graciosas. Falava de maneira tão refinada quanto qualquer dama da nobreza, mas tinha a coragem e a ousadia de encará-lo e desafiá-lo, algo que não se via nas jovens de sua classe. Usava roupas puídas e malfeitas, porém confeccionadas com o mais fino tecido. Seus cabelos eram magníficos e as feições, delicadas. Mas as mãos estavam grossas e calejadas.

Ela não cavalgava bem, porém montava em pêlo. A égua que a conduzia também o intrigava. Estava longe de ser um animal de raça, mas as pessoas do povo não tinham condição de possuir o mais pobre dos pangarés.

Teria ela roubado o animal?

— Sou Nicholas Hawken, marquês de Kirkham.

A jovem manteve os olhos fixos na estrada. Nicholas não conseguia afastar os olhos de seu perfil.

— Muito prazer, senhor.

Nicholas sorriu. Ela não iria dizer seu nome.

Você estava cavalgando dentro da minha propriedade.

Eu lhe peço perdão, meu senhor. Não pretendia invadir uma propriedade particular.

Certamente que não. — Ele observou, fascinado, ela prender o feio xale de lã na base do pescoço. Era um crime cobrir uma pele tão suave e sedutora com um tecido tão rústico. — Ainda não me disse seu nome, linda senhorita.

Novamente ela ficou em silêncio, os olhos fixos na paisagem. Nicholas percebeu que estava adiando responder, mas por que faria isso? Estaria fugindo da família? Ou sendo procurada pelo xerife de algum lugar?

Meu nome é... Maria. De Staffordshire.

Ah... — isso já era alguma coisa, embora ainda não estivesse convencido. — E o sobrenome?

Não tenho, senhor — ela respondeu, como se a coisa mais comum do mundo fosse uma jovem viajar em pêlo numa velha égua, desacompanhada, com as roupas rasgadas e sem outro nome além de "Maria de Staffordshire".

Nicholas mandaria averiguar nas propriedades vizinhas, depois que ela estivesse bem instalada em Kirkham.

 

Se até lorde Kirkham havia notado o estado lamentável de suas mãos, Ria trataria de mantê-las escondidas enquanto o secretário dele enfaixava seu tornozelo na privacidade de um aposento localizado próximo à capela. Era um salão confortável com amplas janelas voltadas para um gracioso pátio com muitas estátuas e belos canteiros.

O secretário, Henric Tournay, era um jovem pouco mais velho que Ria, de cabelos claros e pele mais clara ainda. Seus profundos olhos castanhos se destacavam no rosto pálido. O conjunto de suas feições dava a ele a aparência de quem acabara de levar um susto.

As mãos eram brancas e escorregadias como a barriga de um peixe, e seu toque, quase repulsivo. Mas como ele só estava tentando ajudar, Ria tratou de se controlar.

— Feriu-se mais do que imaginávamos, senhora — disse Tournay, enrolando a faixa no pé e no tornozelo de Ria. — Não vai poder caminhar por alguns dias.

— Isso é impossível. — Ela olhou pela janela e viu que era quase noite. — Preciso seguir viagem. No máximo amanhã pela manhã.

Tournay arqueou as sobrancelhas quase inexistentes e ergueu os ombros.

— A senhora é quem sabe, milady. Mas lorde Kirkham...

Uma gargalhada vinda de um local distante do castelo interrompeu o que ele dizia. Outras vozes masculinas se seguiram e também acordes musicais. Os instrumentos começaram a tocar e as vozes se juntaram numa canção, e logo em seguida se transformaram em estridentes gargalhadas.

Ria prendeu o lábio entre os dentes. Como iria sair do castelo de Kirkham sem encontrar os convidados do lorde? Sentia-se como um peixe fora d'água naquele lugar. Razão a mais para pôr de lado esses pensamentos e tomar as rédeas da situação. Se era mesmo uma dama, ou melhor, se fosse realmente a filha de Burton, teria de agir como tal, e não se intimidar diante de cada um que encontrava. Passara muito tempo de sua vida imitando Cecília e sabia falar e se comportar exatamente como sua nobre prima. Além disso, era uma aia experiente que servira a tia e a prima em várias ocasiões. Não teria nenhuma dificuldade de se fazer passar por uma dama da nobreza.

Mas por que estremeceu ao pensar que estaria enganando lorde Kirkham?

Uma batida na porta, e o secretário foi imediatamente atender. Ele abriu para um cavalheiro corpulento, que entrou e olhou timidamente para Ria.

Lorde Kirkham mandou que eu carregasse a dama até os seus aposentos.

Está bem, sir Gyles — disse Tournay. — Eu ilumino o caminho.

Ria ouviu isso aliviada. Se fossem pelo salão onde os convidados de Kirkham estavam reunidos, não precisariam de luz. Sír Gyles ergueu Ria nos braços e seguiu por um corredor escuro até uma escada de pedra, circular e estreita. Subiram os degraus, sempre atrás de Tournay, e em seguida entraram em outro corredor escuro.

Tournay parou diante de uma pesada porta de carvalho e a abriu. Lá dentro, Gyles gentilmente pôs Ria sentada na poltrona ao lado da lareira, enquanto Tournay acendia o candelabro sobre a mesa.

Onde estaria o dono da casa? Não que Ria estivesse ansiosa para vê-lo, mas a curiosidade era quase inevitável.

— Em seguida trarão uma bandeja de comida para a senhora, milady — informou o secretário, quando sir Gyles já se virava para sair. — Lorde Kirkham mandou dizer que as roupas que se encontram nessas arcas estão todas à sua disposição. — Ele mostrou duas grandes arcas de madeira ao lado do lavatório. — Elas não pertencem a ninguém; como lorde Kirkham notou que a senhora não tinha... bem... que sua bagagem tinha se perdido, ele achou que... Enfim, fique à vontade.

Quando eles saíram, Ria pôs o pé no chão. Tentou se levantar e apoiar-se no tornozelo machucado. Uma dor lancinante deixou-a zonza e nauseada. Rapidamente, voltou a se sentar. Isso não iria dar certo, ela pensou. Precisava deixar Kirkham logo. Tinha de haver um meio de se apoiar naquele tornozelo infernal.

Outra vez se levantou e foi pulando num pé só até uma cadeira de madeira que estava ao lado do aquecedor, na qual ela se apoiou como se fosse uma muleta. Era só disso que precisava: ter alguém ou uma muleta para apoiar-se até poder se movimentar sozinha. Nada a impediria de cavalgar até Rockbury, onde teria as condições e todo o tempo do mundo para se recuperar.

Arrastando-se pelo quarto com a ajuda da cadeira, Ria aproximou-se da bacia com água e começou a se lavar. Sentia-se imunda depois do confronto com Morley, e aquele quarto aquecido e confortável estava lhe fazendo muito bem. Mas não podia se esquecer de que se encontrava apenas de passagem. Em Rockbury, quando recebesse a herança deixada por sua mãe, teria seu próprio quarto... e um lugar que poderia finalmente sentir que lhe pertencia.

Ao menos era o que ela esperava que acontecesse.

No mesmo instante, Ria pôs de lado essa preocupação. Certamente entendera muito bem a conversa que ouvira no solário de tia Olívia. Ela precisava ser Maria Burton. Lembrou-se vagamente de ouvir Tilda chamá-la de Maria e também do diminutivo carinhoso que usava até então.

Quando Ria tirou o xale de lã, a túnica de seda escorregou pelos ombros. Então ela se viu claramente pela primeira vez na vida. Em que estado estava! Iria precisar de muito mais seda para ter a aparência refinada de uma nobre.

Um ruído na porta interrompeu seus pensamentos. Duas mulheres entraram no quarto, uma delas trazendo uma bandeja com comida e bebida, a outra tinha os braços cheios de objetos como escova de cabelo e vários outros itens usados na toalete de uma dama.

Incomodada com a intrusão, Ria perguntou-se se ninguém naquele castelo pedia licença para entrar nos lugares, mas os sorrisos gentis e os modos delicados das duas mulheres logo a conquistaram. Foi só uma irritação passageira.

Lorde Kirkham achou que a senhora poderia ter alguma dificuldade em se locomover — disse uma delas.

Por isso nos mandou para ajudá-la — a outra acrescentou.

Nicholas Hawken andava pelo quarto com um papel na mão. Tournay lhe entregara uma carta que havia chegado a Kirkham poucas horas antes e que continha sérias acusações.

Se ao menos a verdadeira prova da traição, a carta do duque de Alenon, não tivesse se perdido...

Havia muitos anos que Nick era reconhecido como um nobre devasso, um beberrão superficial cujo único interesse era se divertir. Sua irresponsabilidade e libertinagem eram famosas e entendidas como uma reação à morte de seu irmão na França. Nem mesmo seu secretário suspeitava da verdade.

Era o disfarce perfeito para obter informações que pudessem ser usadas para promover a causa inglesa na França e pôr definitivamente um fim àquela guerra interminável. Mais do que qualquer outra razão, Nick tinha como firme propósito reduzir o número de ingleses mortos em guerras na França, a cada ano. Ninguém mais precisava morrer como Edmund.

Embora ainda se sentisse realmente culpado pela morte do irmão, o fato é que essa péssima reputação era cultivada nos mínimos detalhes para afastar de si toda e qualquer suspeita. Enquanto se entregava a farras homéricas ao lado de seus companheiros de copo, ia recolhendo as informações que julgasse necessárias para o duque de Bedford, Regente da França. Em resumo, era espião de Bedford, e suas missões, ao mesmo tempo que eram perigosas, eram também muito divertidas.

Nos últimos meses, entretanto, informações importantes eram repetidamente desviadas para o delfim francês, em Chinon, informações essas que já haviam causado efeitos danosos em algumas pequenas escaramuças. Quem as estava canalizando tinha de ser detido, ou os interesses da Inglaterra na França seriam seriamente prejudicados.

Nick olhou demoradamente para o pergaminho em sua mão.

Difícil acreditar, mas a carta acusava John Burton, o duque de Sterlyng, de traição por passar informações secretas a Jean, duque de Alenon, sobre os números e o armamento das tropas inglesas em Orléans.

Como isso era possível? Sterlyng tinha uma reputação irrepreensível. Sua linhagem familiar remontava ao Conquistador! Fora fiel conselheiro do rei Henrique V e também do pai deste. O duque ainda fazia parte do conselho que governaria a Inglaterra até Henrique VI alcançar a maioridade.

Como se não bastasse, era o melhor amigo e conselheiro do duque de Bedford. Com a situação desintegradora da França, a traição de Sterlyng seria um duro golpe para Bedford e todos os nobres que lutavam pela causa inglesa.

Nicholas jogou a carta no fogo e cruzou as mãos nas costas. Tinha convidado uns doze nobres de Londres para tentar arrancar deles alguns segredos. Quando o vinho começasse a fazer efeito e as meretrizes entrassem em ação, Nick ficaria sabendo tudo do que precisava, sempre bancando o simplório, jamais o sábio.

Agora já não tinha mais tanta certeza se a festa deveria continuar.

Sim, ele pensou. Iria fazer o possível para saber se o que acabara de ler era verdade. Uma carta interceptada com um fragmento do selo ducal de Sterlyng não era prova suficiente de traição. Antes de acusar John Burton de um crime tão hediondo, precisava ter certeza do que fazia.

A festa continuaria como fora planejada. A maioria dos convidados pertencia aos círculos de Sterlyng e alguém devia saber alguma coisa. Nick deu um gole de vinho e bochechou por algum tempo. Em seguida cuspiu o líquido na bacia ao lado da cama. Tinha que parecer que estava bêbado.

Ele saiu do quarto e seguiu para a festa, que acontecia no grande salão. Então se lembrou da mulher que levara para casa. Queria saber como ela estava e até pensou em chamar Tournay para um relatório. Mas então resolveu ir ver por si mesmo. Aquele par de olhos gloriosos por si só justificava um pequeno adiamento da missão que o esperava.

Além disso, o quarto dela era ao lado do seu. Não precisaria dar muitas voltas para vê-la.

Ria achava estranho ver seus cabelos tomando forma em um penteado estilizado. Ela, que nunca tinha se visto por inteiro em um espelho, observava com atenção a criada prender as elaboradas trancas, cada uma em seu exato lugar. Difícil acreditar que era a sua própria imagem refletida no espelho.

Enquanto uma das criadas a ajudara a tirar a túnica que pertencera a Cecília, a outra encontrara nos baús uma delicada chemise de cambraia fina e duas túnicas belíssimas, que ela estendeu sobre a cama.

Ria sabia que não estava se vestindo para nenhuma ocasião especial, porque lorde Kirkham nada lhe dissera sobre a festa que acontecia no grande salão. Ainda bem. No momento, não tinha o menor interesse de testar seu traquejo social com tanta gente. Impressionar duas jovens criadas era uma coisa. Fingir ser o que não era para lorde Kirkham e seus amigos era outra muito diferente.

— Aqui estão, senhora — disse uma das moças, mostrando- lhe as túnicas. — Pode escolher a verde ou a laranja. As duas combinam muito bem com seu tom de pele.

Mas nem uma nem outra podiam ser descritas com tanta simplicidade. Uma era de veludo muito fino, de um verde profundo como a floresta ao cair da tarde, ornada com um linda pele branca ao redor do pescoço e nos quadris. A outra tinha o tom de uma flecha enferrujada. O decote era um quadrado, bordado com bolinhas e guirlandas douradas em toda a volta. As mangas largas eram adornadas com seda amarela.

— Prefiro a laranja — disse uma voz masculina e profunda. Ria virou-se e deu de cara com Kirkham, já dentro do quarto, a poucos passos dela.

— Deixem-nos a sós — ele ordenou às criadas.

Ria abriu a boca para protestar, mas as moças já tinham se retirado. Kirkham olhava fixamente para ela, que estava se sentindo nua só com a fina chemise de cambraia. O pescoço e os ombros ficavam à mostra, bem como uma boa parte do busto, muito mais do que era apropriado ou confortável diante de um homem... estranho.

Ele se aproximou e Ria, instintivamente, ergueu as mãos para esconder a pele exposta. Teria recuado um passo, mas seu tornozelo não lhe permitiria.

— Você já era linda caída naquela estrada, com os cabelos despenteados e as roupas molhadas. Mas agora, minha bela dama, está de tirar o fôlego.

 

Nick não devia ficar tão espantado com a transformação de Ria. Era a mesma donzela que ele abordara na estrada, só que, agora, com os cabelos artisticamente penteados e os ombros expostos, ele podia apreciar por inteiro a linda conformação do rosto e do pescoço, e a brancura e maciez de sua pele.

Lady Maria era belíssima.

— Milorde. — Ela ergueu o queixo e encarou-o com firmeza, mas não pôde esconder um leve tremor em sua voz. Nick a deixava nervosa.

Ele inclinou a cabeça sorrindo quando Ria tentou sutilmente esconder o decote. Para sua imensa satisfação, ela só conseguiu fazê-lo em parte.

— Por mim, prefiro a... verde — Ria continuou, fitando-o com seus lindos olhos. — Mas se o senhor prefere a laranja... — ela ergueu a túnica e segurou-a na frente do corpo.

Nicholas não respondeu imediatamente. Lady Maria era uma estranha mistura de sofisticação com simplicidade. Se por um lado parecia flertar com ele e mostrar-se coquete, por outro percebia-se uma certa timidez em seu comportamento. Pela primeira vez em muito tempo Nick não sabia como proceder.

Em lugar de tomar a iniciativa e talvez roubar-lhe um beijo para iniciar a sedução, ele assistia a seus movimentos sutis, tentando esconder a nudez com a preciosa túnica cor de ferrugem. Luz e sombras brincavam sobre a pele nua, deixando Nick tenso, o sangue pulsando nas veias. Era um mestre da sedução, porém sentia que, ali, era ele que estava sendo seduzido.

E não era de todo desagradável.

Ria não sabia mais o que fazer.

O marquês parecia devorá-la com os olhos, mas também não dava nenhuma indicação sobre o que esperava dela. Então pensou que talvez não devesse deixar passar essa oportunidade. Precisava tomar as rédeas da situação, se quisesse ficar um passo à frente dele.

Ria umedeceu os lábios e afastou-se ligeiramente de lorde Kirkham, para não se expor mais do que já fizera. Estava se sentindo muito mal assim despida na frente dele. Foi por puro instinto que ela ergueu a túnica na frente do corpo e interferiu naquela descarada perscrutação de suas formas.

Mas, e agora? Também não podia expulsar lorde Kirkham do quarto que lhe pertencia. Ou será que podia?

— Milorde — ela começou, inclinando levemente a cabeça. — Foi muito delicado de sua parte oferecer as criadas para ajudar a vestir-me. Poderia fazer a gentileza de chamá-las de volta?

Lorde Kirkham ergueu os ombros despreocupadamente.

— Não precisamos delas.

Ria até conseguiu disfarçar o choque. Com certeza não era para vesti-la que ele dissera aquilo.

— Ao contrário, milorde. Eu preciso muito — ela retrucou imediatamente, surpreendendo-se com a própria audácia.

Nick sorriu.

— Por favor, mande-as entrar quando sair — ela acrescentou, virando-o para a porta e em seguida dando a esta um leve empurrão.

Já do lado de fora, Nick virou-se para Ria com uma expressão sombria e assustadora. Ela sentiu uma palpitação e temeu ter cometido um perigoso erro. Mas ele voltou a sorrir e tomou seu caminho.

Ria fechou a porta e encostou-se, soltando todo ar que nem sequer percebera haver prendido.

Em seguida, antes que lorde Kirkham mudasse de idéia, correu até a cama para se vestir o mais rápido possível. Acabou se atrapalhando com as mangas e o decote, mas uma das criadas chegou para ajudá-la a tempo de impedir que seu penteado ficasse arruinado.

— Oh! milady, deixe-me ajudá-la — disse a jovem, entrando no quarto.

Ria deixou que ela puxasse a túnica pela cabeça e depois ajudasse com os botões e as fitas. Não via a hora de estar completamente vestida para o caso de receber outra visita inesperada.

Ela não sabia como se comportar diante do lorde. Num momento ele era rude e mal-humorado, no outro era sedutor e receptivo. Seria esse o comportamento que as mulheres da nobreza eram obrigadas a suportar em seus homens? Ria não sabia dizer, pois sua única experiência com os nobres eram as coisas que observava nos convidados de Alderton.

Só sabia dizer com certeza que as reações que Nick lhe provocava eram muito fortes e até então completamente desconhecidas. Sentia que ele era um homem perigoso. Não da mesma maneira que Geoffrey e Thomas... não, nada disso, era um perigo muito mais sutil, uma ameaça bastante séria para o seu bem-estar.

Nicholas não tinha nenhuma disposição para a festa daquela noite. Sentou-se em silêncio à grande mesa posta no meio do salão e observava seus convidados entregarem-se aos vícios.

Ele vigiava seus domínios. Domínios! Ah!

Kirkham. Um título e uma propriedade que Nick nunca havia pensado em possuir. Era uma situação das mais irônicas. Fora por sua própria culpa que Edmund morrera e só por isso ele se tornara marquês.

Mais uma vez se amaldiçoava pela sua inexperiência e pela crença infundada de que ele e o irmão eram invencíveis. Tinha sido pelo desejo de aventura e de fama que se engajara nas tropas do rei Henrique na França e convencera Edmund a acompanhá-lo em nome da glória. Mal sabia que deixaria seu irmão mais velho numa cova anônima aberta em solo francês.

Nicholas não tivera coragem de voltar para casa logo em seguida... para seu pai, que ficara arrasado com a morte do filho, ou para a noiva de Edmund, a filha de um nobre vizinho.

Não, ele ficara vagando pela Europa, punindo-se pela morte do irmão até não agüentar mais.

E, quando voltara a Kirkham, encontrara o pai morto. Era mais um remorso a acrescentar à sua lista.

Nada havia mudado desde que herdara a propriedade. O salão de Kirkham estava exatamente igual, com exceção das pessoas, é claro. O álcool circulava livremente. Os homens jogavam dados ou cartas. Canções obscenas eram executadas e às quais, esporadicamente, juntavam-se algumas vozes embriagadas. Havia uma profusão de mulheres disponíveis no salão e certamente muitas outras nos inúmeros cantos e corredores escondidos do castelo. Mas nenhuma tão interessante quanto àquela que habitava a torre sul.

Maria. De Staffordshire.

Maria de olhos fascinantes.

Agora que já tinha uma certa familiaridade com alguns outros dos dela, até se arrependia de havê-la deixado sozinha. Fora quase impossível afastar-se daquelas curvas sedutoras que a túnica laranja mal conseguia esconder, deixando de fora o suficiente para excitá-lo profundamente.

Nicholas bebeu um gole de vinho. Tomara uma decisão e a manteria até o fim. Não aborreceria mais lady Maria, ao menos por essa noite. Melhor esperar que seu tornozelo melhorasse um pouco, antes de partir para a conquista. Além de querê-la muito, também gostaria que ela o desejasse.

Harry, lorde Lofton, sentou-se ao lado de Nicholas, pegou a jarra de cerveja e encheu o copo que se encontrava à sua frente.

Não vem jogar dados, Kirkham?

Agora quero ouvir os menestréis — ele respondeu distraidamente, inclinando a cadeira para trás e esticando as pernas sobre a mesa.

Você não está pensando em visitar a dama misteriosa que se encontra lá em cima, está?

Nick arqueou uma sobrancelha e ergueu os ombros. Havia pensado nisso várias vezes, mas tratou de tirar essa idéia da cabeça. Não queria outra coisa senão vê-la usando aquela túnica cor de ferrugem... e em seguida sem ela.

— Tem ouvido alguma coisa sobre Carrington ultimamente?

— Nicholas mudou de assunto. O conde de Carrington era amigo íntimo do duque de Sterlyng e as notícias vindas dele poderiam esclarecer atividades deste último.

— Foi para o continente — respondeu Harry. — Bexhill disse que Carrington viajou com a mulher e a filha para a Itália por um ou dois meses.

Nicholas, que preferia não contar com a palavra do conde de Bexhill, que não passava de um bêbado empolado, achava difícil acreditar nisso. Apesar dos rumores em contrário, sabia-se que Carrington não vivia bem com sua mulher, que geralmente ficava no castelo da família, no campo, enquanto o conde preferia morar em Londres. Essa possível viagem com a família exigia um exame mais apurado, apesar do que dissera o tolo do Bexhill.

O que há na Itália? — Nick perguntou, e em seguida tomou outro gole de vinho, intencionalmente mais generoso.

O bom tempo. Bexhill disse que a condessa de Carrington sofre de... hã... mas estávamos falando de algo bem mais interessante. Da dama que você escondeu na sua torre.

Ela não é da sua conta.

Bem, Kirkham, se você não está interessado, que tal me deixar...

Nicholas retirou os pés de cima da mesa.

A dama está sob a minha proteção — ele avisou, escolhendo cuidadosamente cada palavra. — E enquanto for assim, eu...

Você a quer só para si, é isso? — Harry perguntou enrolando a língua.

Não há nenhuma outra mulher aqui que lhe interesse? — Nicholas se controlou. Lofton podia ser um cabeça-dura imprestável, mas tinha acesso a informações importantíssimas. — As jovens mais lindas e disponíveis de Staffordshire estão sob o teto de Kirkham esta noite.

Ah, mas aquela que você envolve em mistério não é...

Mistério? — Nicholas riu.

Não vai deixar que ninguém a veja, vai?

Claro que não — Nick decretou, indignado. — Acha que eu atiraria aos lobos uma donzela inocente? De jeito nenhum.

Harry riu.

Não me diga que passou a respeitar as donzelas, Kirkham. Ela é uma jogada e tanto.

Você não presta mesmo, Lofton.

Harry deu uma gargalhada e cerrou as sobrancelhas para seu anfitrião.

— Não mesmo, Kirkham. Não mesmo.

 

Ria acordou gelada e sentou-se na cama. Por um instante, ficou desorientada no quarto escuro, até se lembrar de onde se encontrava. Vestia uma túnica fina que não a protegia do frio, assim foi até um dos baús procurar uma roupa mais quente. Mas acabou encontrando, e se apaixonando, por uma linda chemise de seda branca, de mangas curtas e um delicado bordado ao redor do decote. Como não havia tiras no pescoço para amarrá-la, a roupa escorregava pelo ombro, deixando-a ainda mais desprotegida. Se uma manga ficava no lugar, a outra escorregava.

O castelo estava em silêncio. Não se ouviam mais os ruídos da festa que embalaram seu sono. Foi uma surpresa ter conseguido dormir com tanto barulho de vozes, música e risadas, até altas horas. Provavelmente a beberagem que a criada lhe fizera ingerir antes de se deitar a ajudara a relaxar. Pensando nisso, Ria pisou no chão com muito cuidado para não se apoiar no tornozelo e foi mancando na direção do fogo. Teria conseguido, se não tivesse encontrado um banco no meio do caminho, uma verdadeira armadilha escondida na escuridão. Ela deu um grito quando caiu no chão, levando junto uma cadeira.

Não foi nada muito grave, mas o suficiente para fazê-la gemer de dor, sentada no chão. O castelo inteiro devia ter acordado com tanto barulho, pois logo em seguida um burburinho de vozes se fez ouvir do outro lado da porta. Envergonhada por ser causadora de tamanho transtorno, Ria estava tentando se levantar quando a porta se abriu.

— Voltem para os seus quartos — ordenou lorde Kirkham ao grupo que espreitava do corredor. Ele estava de costas. Ria aguardou e preparou-se, ansiosa, para o encontro iminente, só não podia ter escolhido posição pior para ficar cara a cara com ele. Kirkham virou-se e ergueu a lâmpada que levava na mão. Ele estava seminu.

Ria aproveitou que Kirkham foi fechar a porta para se levantar com alguma dificuldade. Já havia preparado um pedido de desculpa pelo distúrbio que provocara, sempre se lembrando de que era uma nobre de nascimento e como tal deveria se comportar. Uma dama não hesitaria em mobilizar a casa inteira se precisasse de alguma coisa.

Além disso, não iria se intimidar diante de um homem seminu, se ele estivesse ali para ajudá-la. Afinal, era filha de uma duquesa. Estar diante de um peito vigoroso envolto por uma intrigante malha de pêlos escuros não lhe causava espanto algum. E muito menos as pernas musculosas cobertas por uma ceroula que as expunham de forma escandalosa.

De jeito nenhum.

Ria alisou a chemise e aprumou-se, determinada a portar-se como uma dama da nobreza.

— Tenha cuidado, lady Maria — disse Kirkham, aproximando-se. — Caiu outra vez? Está ferida?

— Não, milorde. Apenas o meu orgulho está ferido.

— Hum. — Kirkham deixou a lâmpada sobre a mesinha ao lado da cama. — Por que não esperou para ferir seu orgulho durante o dia?

Ria notou a ironia em seu tom de voz. Tudo à sua custa, justo com ela, que não estava nada disposta a ser motivo de zombaria.

— Deixe-me ajudá-la.

Antes que ela pudesse responder, Nick ergueu-a em seus braços musculosos e afastou-se do fogo. Sua forte presença invadia os sentidos de Ria. Não era um cheiro forte de bebida alcoólica, mas um odor envolvente, másculo e muito agradável. E de certa forma até excitante. Ela ainda não conhecia as sensações despertadas pelas mãos dele, porém lembrou-se mais uma vez de que Kirkham poderia ser perigoso. E o perigo a que ela se referia era exatamente esse. As sombras brincavam no rosto dele sob a luz bruxuleante das velas. Difícil interpretar sua expressão, mas seu olhar intenso e profundo não se afastou dos olhos dela quando ele a levou para a cama.

Mas em vez de deitá-la, Kirkham deixou-a no chão, fazendo com que ela escorregasse de encontro ao seu corpo, como uma carícia. Ria sentiu, através da fina seda da chemise, um calor escaldante emanar do peito másculo. Então a chemise escorregou por seu ombro, e, para não agir como uma tola ingênua, ela ergueu a cabeça.

Nicholas se surpreendeu. Imediatamente algo se avolumou entre suas pernas, a prova irrefutável de que ela sabia muito bem o que estava fazendo. O peito másculo queimava de encontro aos seios enrijecidos. A respiração contida provocava tremores do mais puro desejo. Ela também o queria. Ria jogou a cabeça para trás e abriu caminho para que os lábios de Nick explorassem a pele macia de seu pescoço. Suave, feminina, ela cheirava levemente a flores. A mão de Nick desceu por suas costas, pressionando-a para a frente. Ao mesmo tempo, a outra acariciava o ombro, em seguida subiu para o pescoço. Então, suavemente, as duas se juntaram nos seios e ali iniciaram deliciosas carícias.

Nick buscou sua boca com avidez e passou a explorá-la, arrancando de Ria gemidos que inflamaram ainda mais seu desejo. As mãos de Nick desceram para as nádegas e a trouxeram para junto dele, ao mesmo tempo que a língua e os lábios iniciavam na boca de Ria uma deliciosa brincadeira íntima que quase a fez perder os sentidos.

As respostas de Ria pareciam tímidas e inocentes, mas Nick não podia esquecer a expressão sedutora em seu olhar, os movimentos calculados dos ombros, a túnica que mal cobria seus deliciosos atributos. Ninguém assim podia .ser tão casta.

Tão logo o tornozelo estivesse curado...

Ora, a moça estava machucada por sua culpa e, ainda por cima, ele estava tentando seduzi-la. Mais do que isso, possivelmente ela havia se machucado na última queda.

— Maria... — Nick sussurrou, interrompendo o beijo.

Ela ergueu os olhos, aqueles fantásticos olhos cor de âmbar, brilhando de excitação. Ele poderia possuí-la ali mesmo, mas queria sua total participação. E isso não iria acontecer antes que ela estivesse totalmente recuperada, sem inchaços nem escoriações.

Haveria outras noites. Uma noite inteira, horas e horas seguidas, quando suas energias não estivessem mais sendo consumidas pela dor ou por uma inconveniente dose de valeriana. Nick a queria totalmente consciente quando ela se entregasse.

A manhã despontou, clara e ensolarada.

Maria continuou na cama, ouvindo o canto dos pássaros na janela. Tudo mais estava em silêncio em Kirkham.

Menos seu coração. O que dera nela ao permitir que lorde Kirkham a levasse para a cama? E por que ele desistira de seduzi-la? Por um lado, era um alívio que o assédio de Nicholas não tivesse ido mais longe, uma vez que ela estava sob o efeito da droga que havia tomado antes de se deitar. Por outro, Nick saíra de seu quarto deixando para trás um desejo terrivelmente insatisfeito, que invadira seus sonhos e que ainda a atormentava.

Ria jamais havia experimentado nada parecido com o que acontecera nessa noite. Não tinha a menor idéia do que o toque de um homem era capaz de fazer. Mas alguma coisa lhe dizia que não eram todos os homens, e sim os lábios e as mãos de Nicholas Hawken que possuíam o poder de deixá-la daquele jeito.

Numa tentativa desesperada de afastar lorde Nicholas Hawken da cabeça, Ria olhou ao redor. Era exatamente dessa maneira que pretendia despertar em seu quarto, em Rockbury: o sol batendo na janela, numa cama macia, com cobertas limpas e perfumadas, talvez até um cortinado, para proporcionar o aconchego que ela nunca conhecera. Isso era muito mais do que a vida lhe dera até então. Era paz, conforto, tranqüilidade. E um lugar para chamar de lar.

Ria virou-se de lado, puxou as cobertas até os ombros e pensou se não era hora de deixar o castelo de Kirkham. Sentia-se dividida entre a vontade de chegar o mais rápido possível a Rockbury e ficar e explorar todas as possibilidades com lorde Kirkham.

Quais seriam as intenções dele? Com certeza seriam honrosas, porque a considerava uma dama da nobreza. Ninguém na posição de Nicholas Hawken tentaria seduzir uma mulher bem-nascida. Lorde Kirkham pensava que ela fosse "lady Maria", como a própria Ria tentava se convencer. Talvez tivesse dificuldade de acostumar-se a ser chamada de Maria ou de lady Maria.

Primeiro ela pensou em falar com lorde Kirkham sobre Rockbury mas logo desistiu. Como não tinha certeza dessa possível herança, não se sentiria bem se estivesse errada. Melhor ainda não contar a Nicholas que era filha de duquesa e herdeira de Rockbury. E nesse meio-tempo, quanto menos falassem, melhor seria. Mas, por outro lado, existia aquela atração quase incontrolável. Como agiria uma jovem dama nessas condições?

Ria lembrou-se dos jovens que visitaram Alderton e de como sua prima se comportava na presença deles. Cecília passara algumas temporadas na corte de Londres e sabia lidar muito bem com seus jovens pretendentes. Saberia ser tão desembaraçada e insinuante, e ao mesmo tempo tão discreta e comportada quanto Cecília? Certamente esta saberia agir com lorde Kirkham se ele entrasse em seu quarto, como fizera na noite anterior.

— Oh! senhora — disse alguém em voz baixa —, ainda é cedo... Não pensei que estivesse acordada!

Era uma das jovens criadas que a serviram na noite anterior. A moça entrou com uma bacia de água fumegante e fechou a porta. Isso bastou para fazer que Ria afastasse as cobertas e se levantasse. Ainda não havia tomado nenhuma decisão sobre o que iria fazer, porque tudo dependia das condições de seu tornozelo. Se estivesse bom o suficiente para agüentar uma viagem, nada a impediria. Caso contrário, ficar mais um dia em Kirkham não iria fazer mal nenhum.

Estava tudo quieto nos estábulos de Kirkham. Os cavalariços ainda não haviam chegado e Nicholas aproveitou o sereno da manhã para caminhar. Logo seus hóspedes começariam a andar por ali, buscando diversões mais excitantes, ainda curtindo uma boa ressaca da noite anterior.

Nick atravessou o estábulo até chegar à última cocheira, onde a montaria de lady Maria passara a noite. Ele destravou o portão e se aproximou da égua velha para examiná-la, mas não conseguia se concentrar totalmente. O que estava acontecendo? O que havia de tão especial em lady Maria para torná-la tão sedutora? O que mais o surpreendia era que, pela primeira vez na vida, uma mulher o impressionava tanto. Difícil saber o que ela possuía de tão atraente. Talvez fosse o ferimento que o fazia sentir-se tão protetor, tão possessivo. Afinal, fora o único responsável pelo tombo que ela levara.

Nicholas desceu a mão pela cabeça da égua até o focinho, e então examinou os dentes. Até onde Maria pretendia viajar com um animal tão velho? E não só isso: como ele permitira que sua atenção desviasse tanto para ela a ponto de quase se esquecer da traição do duque de Sterlyng contra a Inglaterra.

Nicholas não conhecia muito John Burton. Era um homem da idade de seu pai, cujos amigos estavam entre os membros mais velhos da nobreza. Até onde ele sabia, Sterlyng nunca demonstrara essas tendências na juventude, como já tinham feito tantos de seus pares. O duque havia passado a servir Henry de Lancaster quando este tomara o trono do rei Richard, e desde então fora um súdito fiel. Pelo que se sabia, ele não tinha família e se dedicava inteiramente em servir à Inglaterra.

Por que teria se tornado traidor?

Se fosse mesmo, Nicholas iria provar. Em seguida assistiria pessoalmente à sua execução.

 

Henry Tournay encarregou-se de todos os detalhes da caçada matinal, de modo que Nicholas não teve que fazer nada além de pensar um pouco mais na carta que havia recebido sobre a suposta traição de Sterlyng. Foi por isso que decidiu voltar para o castelo pelo jardim em que ele e Edmund costumavam brincar quando crianças. Os jardineiros o mantinham muito bem cuidado. Alguns canteiros estavam preparados para receber novas sementes de flor, enquanto em outros os brotos já começavam a despontar na terra ressecada, depois de um longo e rigoroso inverno. Difícil acreditar que alguma coisa podia nascer ali, mas assim era a vida: sempre se renovando.

Seguindo pela trilha por entre as árvores frutíferas, cujos galhos também já estavam cobertos de brotos, Nick dirigiu-se a uma parte mais reservada do jardim, onde ele e seu irmão costumavam esconder-se do tutor. Não chegava a ser um labirinto, mas era um caminho tortuoso no qual, quanto mais se penetrava nele, mais o mundo ia ficando para trás. Ele já estava se aproximando do muro baixo onde cresciam frondosas parreiras, quando ouviu uma voz feminina dizer num tom grave:

— Venha cá, seu bichinho teimoso!

Nicholas se lembrava de um dia já ter ouvido alguém lhe dizendo essas mesmas palavras. Sorrindo, foi na direção da voz. Quando deu a volta num arbusto alto de sempre-verdes, ele parou. Lá estava lady Maria na ponta dos pés, tentando espantar com a muleta um gatinho que havia encarapitado no galho de uma árvore. Só que, dessa vez, para seu azar, ela estava adequadamente vestida, usando uma túnica de veludo azul-escuro, de mangas longas e uma gola tão alta quanto a de uma freira. Sua cabeça também estava coberta, embora alguns cachos dourados insistissem em escapar por baixo da touca e do véu. Nicholas estranhou que ela tivesse conseguido chegar até ali sem nenhuma ajuda.

— Venha, gatinho — ela dizia, sem perceber que Nick se aproximava por trás. Ria ergueu as mãos para alcançar o animal. — Não vá cair daí. Onde está sua mãe?

Por fim, o filhote cedeu e ensaiou alguns passos na sua direção. Ela ergueu mais os braços e esperou o gatinho chegar. Então o pegou gentilmente e o aninhou em seu colo.

Nicholas ficou assistindo, fascinado, aos sensuais movimentos das mãos de Maria alisando o pêlo do gato. Instantaneamente, uma pontada de desejo, a mais forte que já sentira na vida, atingiu-o como um punhal. Quando conseguiu se refazer, Nick se aproximou com todo o cuidado para não assustá-la.

— Com o seu perdão, linda senhora, ouso dizer que não me importaria de também ser acariciado por suas mãos. — Para o prazer e a surpresa de Nick, ela corou levemente e soltou o gatinho no chão para que fosse embora. Em seguida alcançou a muleta que estava encostada no tronco da árvore.

— O senhor não devia dizer uma coisa dessas, milorde.

— Por que não? — Ele chegou mais perto, encostou um dedo em seu queixo para fazê-la erguer o rosto e olhar em seus olhos. — Seu amiguinho deixou sua roupa cheia de pêlos.

Sem afastar os olhos dela, Nick limpava gentilmente os pêlos presos no peitilho de veludo. Sabendo que não deveria tocá-la dessa maneira, ele preferiu não continuar quando notou que ela tremeu. Na verdade, não quis continuar.

Tal como na noite anterior, também dessa vez ele não entendeu claramente qual foi a reação dela ao ser tocada, mas se lembrava muito bem de suas próprias sensações quando a tivera em seus braços por alguns instantes. Lady Maria era macia, quente, um convite ao prazer. As mãos dele ansiavam por tocar novamente sua pele nua, sentir os seios rijos sob suas carícias. Nick ardia de desejo. Nesse momento, ele a desejava como não se lembrava de haver desejado alguém na vida.

Ria moveu a muleta e afastou-se, interrompendo o contato físico com ele. Em seguida, virou-se na direção do muro.

— Pensei que ninguém viesse a esta parte do jardim — ela disse, quando se sentiu mais segura. Nunca imaginou que lorde Kirkham sairia para andar no jardim, com tantos hóspedes para atender. Porém mais uma vez ele conseguiu desconcertá-la com seu olhar e um simples toque de sua mão. — Nunca vi parreiras tão bonitas...

Nicholas limpou a garganta.

Eu e meu irmão vínhamos brincar aqui — ele disse, aproximando-se dela outra vez. Parecia triste, aborrecido e mais perigoso que nunca. Maria não pôde evitar de imaginar seu peito largo e musculoso, os pêlos encaracolados, os mamilos escuros. Esperava que ele não notasse a sua perturbação.

Nosso tutor era um verdadeiro carrasco — ele continuou num tom baixo, íntimo. — Não hesitava em nos espancar quando escapávamos das nossas lições.

E seus pais permitiam isso?

Ele ergueu os ombros.

E os seus, mimavam você?

Maria desviou os olhos para que não a denunciassem.

— É claro que sim.

Ela levou um susto quando Nick ergueu o medalhão que repousava sobre seus seios.

— É uma bonita peça — ele observou, fitando-a com intensidade nos olhos. Sua mão repousava no coração de Maria, que batia descontroladamente. — Que segredos ela guarda?

— Nenhum que lhe interesse, milorde. — Ria retirou a mão dele e se afastou. — Pertencia à minha mãe.

Ela sabia que não devia ficar sozinha com ele naquele jardim, um homem que não inspirava confiança em ninguém. Na verdade, era Maria que não confiava em si mesma quando se via sozinha com Nicholas.

— Onde conseguiu essa muleta? — ele perguntou em seguida.

— Aggie, sua criada, trouxe para mim. Ela tem um aleijado que não está usando mais esta muleta.

— Não gosto dela — disse Nicholas. — Apóie-se no meu braço.

— Prefiro usá-la, senhor. — Maria não queria encostar nele, e também não iria mais permitir que ele a tocasse. Era uma experiência por demais perturbadora. Agora precisava que seu tornozelo ficasse logo bom a fim de poder seguir para Rockbury. Quanto antes soubesse se era ou não Maria Burton, melhor.

— Você já fez o seu desjejum? — Nick tirou a muleta da mão dela e obrigou-a a apoiar-se em seu braço.

Maria não sabia mais o que fazer para protestar contra tanta intimidade e ao mesmo tempo manter o semblante sereno de uma jovem dama.

Não, milorde.

Então venha comer comigo.

Mas eu...

Ninguém pode ficar em jejum por tanto tempo. Além disso, teremos mais uma oportunidade de nos conhecermos melhor.

Acho que já nos conhecemos mais do que devíamos ontem à noite, milorde. — Maria quis morder a língua por ter dito isso. Por que era sempre tão atrevida?

— Não chegamos nem perto de quanto ainda vamos nos conhecer, milady — ele retrucou, divertindo-se com o seu desconforto.

O comentário provocou apenas uma pequena alteração no passo de Maria, mas ela não disse nada. Seguiu mancando ao lado dele em silêncio, sentindo o calor de sua pele ao lado do seio, por cima do veludo grosso.

Eles entraram no castelo pela pesada porta de madeira que se abria para os jardins e foram para uma sala de recepção, a mesma onde Henric Tournay havia enfaixado o tornozelo de Maria no dia anterior. Sir Gyles veio recebê-los. Era um homem grande e barrigudo que usava uma cota de malha e a espada embainhada na cintura.

— Bom dia, milorde — ele os cumprimentou com uma leve reverência. — Milady.

Quanta deferência! Ria... não, Maria, que era como ela chamaria a si mesma de agora em diante, não sabia se iria se acostumar com tudo isso.

Nicholas levou-a para uma poltrona confortável, ao lado de uma grande escrivaninha de carvalho, e ajudou-a a sentar-se. O fogo crepitava na lareira, criando um ambiente agradável e aconchegante.

— Vai repousar melhor aqui do que no salão. Lá é muito frio quando há pouca gente — disse ele.

— Obrigada, milorde. — Os olhos de lorde Kirkham a devassaram. Maria sentiu-se quase nua diante dele. Pelo menos sir Gyles também estava presente, mas sem conseguir disfarçar um ar de desaprovação. Não dava para saber se era por causa de Maria ou por alguma coisa que lorde Kirkham tivesse feito.

Incomodada por se ver sozinha com os dois homens, Maria afundou-se na poltrona e fechou a mão ao redor do medalhão que pendia de seu pescoço numa longa corrente.

Nicholas sentou-se à escrivaninha e pegou um pergaminho em branco, em seguida mergulhou a pena na tinta e começou a escrever em letras grossas e firmes. Maria seguia com os olhos as mãos de lorde Kirkham, fortes e poderosas, com uma leve camada de pêlos escuros nas costas. Aquelas mãos a tinham tocado com mais intimidade do que deveriam.

— Gyles, reúna alguns homens e leve esta mensagem a Londres. — Ele terminou de escrever em silêncio, secou a tinta, dobrou e lacrou o pergaminho. Então entregou-o a sir Gyles.

— Devo esperar pela resposta? — perguntou este.

— Não será necessário — Nicholas respondeu, quando o outro já se retirava. — E não se apresse em voltar a Kirkham. Aproveite para se divertir um pouco.

— Sim, milorde.

— A propósito, Gyles, milady ainda não fez seu desjejum. E nem eu. Antes de sair, mande um lacaio à cozinha para preparar alguma coisa... e servir aqui.

— Sim, milorde. — Gyles curvou-se novamente para Maria e saiu da sala.

Lorde Kirkham levantou-se da cadeira e rodeou a mesa para ficar ao lado dela.

— Seu tornozelo ainda dói? Maria assentiu com a cabeça.

— Pensei que já pudesse partir esta manhã. Nicholas encostou-se na mesa e cruzou as pernas.

— Para onde mesmo você está indo, minha linda dama? Ela hesitou por um instante.

— Pa-para casa. — E ficou esperando pela próxima e inevitável pergunta: onde é? Olhava o fogo, e não para ele.

Lorde Kirkham começou a rir. Maria se surpreendeu.

— Há muito tempo uma mulher não me intrigava tanto — disse ele, franzindo o cenho e inclinando levemente a cabeça.

— Se eu lhe perguntar onde é a sua casa, você responderá honestamente?

— Honestamente, milorde? Não.

Isso arrancou dele outra risada, e Maria mordeu o lábio, consternada. Não era assim que Cecília conduziria uma conversa com um cavalheiro em Alderton. Sua elegante prima teria se levantado imediatamente e dito que seu destino não era da conta dele. Em seguida, sustentaria seu olhar com tal petulância que qualquer outra pergunta imediatamente se esfacelaria na mente pequena e medíocre do cavalheiro, antes de ser formulada.

O problema era que em momento algum Maria acreditava que lorde Nicholas Hawken fosse pequeno ou medíocre. E muito menos que ela possuísse o fascínio natural de sua prima, uma mulher vistosa e atraente, de cabelos sedosos e lindos olhos castanhos.

— Vou deixá-la com os seus segredos, então — disse Nicholas, puxando um banquinho para perto dela. — Terei muito prazer de ter você em Kirkham por quanto tempo quiser.

Maria estranhou o que ele disse, mas não contestou. Estaria pensando que ela ficaria mais tempo que o necessário para curar seu tornozelo? Mas não disfarçou a surpresa quando lorde Kirkham ergueu sua perna machucada para apoiá-la sobre o banquinho. A mão dele continuou em sua perna, acariciando-a por cima da meia de lã.

Tanta atenção... esse toque tão especial... estava deixando-a nervosa.

Não devia estar sentindo o calor de suas mãos através das meias, e o calor não devia fazê-la se lembrar das sensações que essas mesmas mãos lhe despertaram, assim como seus lábios e todo o seu corpo, na noite anterior.

— Milorde — disse ela, quase sem voz.

— Não está mais inchado — Nicholas ignorou-a de propósito.

— Mas... está ferido?

Ela fez que sim com a cabeça.

A mão dele subiu para a panturrilha e os olhos encontraram os dela. Nicholas conseguia seduzi-la apenas tocando em sua perna!

— Não há mais nada ferido?

— N-não, milorde.

Maria já começava a recuar, quando Nicholas tirou a mão e se levantou.

— Chegou o lacaio com a nossa refeição.

Que alívio! O mais incrível fora ele haver percebido a presença do rapaz muito antes de ela ter se dado conta de quem quer que fosse.

A bandeja com pães, frutas e canecas de cidra quente foi deixada sobre a mesa baixa ao lado de sua poltrona.

Lorde Kirkham puxou uma cadeira e sentou-se perto dela.

Você deve estar com fome — ele disse, quando o rapaz já se retirava.

Estou mesmo. Morta de fome.

E pela cara que ele fez, Maria percebeu que o que dissera fora totalmente impróprio.

A caçada foi um sucesso, mas Nicholas não conseguiu saber nada que interessasse sobre o duque de Sterlyng. Soube, sim, que o duque tinha um herdeiro secreto em algum lugar, mas assuntos pessoais não lhe interessavam. Só os assuntos da Inglaterra.

Se Sterlyng mantinha negócios escusos com a França, de alguma forma estava conseguindo se livrar de qualquer suspeita. Os hóspedes de Nicholas nada tinham a dizer a respeito dele, além das especulações sobre esse herdeiro misterioso que aparecera depois de tanto tempo.

Por se tratar de um homem tão rico e tão influente, era certo que os impostores começariam a aparecer de toda parte para reclamar sua fortuna. A conversa seguiu nessa direção até que todos voltassem ao castelo e se recolhessem a seus aposentos para repousar antes de começarem as festividades noturnas.

Nicholas andava de um lado para outro em seu estúdio privado, que ficava no pavimento principal do castelo. Era o seu lugar favorito, o escritório, como dizia seu pai. Ali se encontrava a biblioteca de seu avô, à qual seu pai e ele haviam acrescentado obras importantes ao longo dos anos. Ali havia também as lembranças mais preciosas e os objetos de estimação dos Hawken, todos muito bem conservados. Ali também se discutiam os negócios e Nick decidia as questões importantes relacionadas ao povo da aldeia.

Na privacidade de seu escritório, Nick soltou as rédeas de seu desejo pela adorável lady Maria. Não queria mais pensar no duque de Sterlyng. Não estava mais interessado em arrancar informações de seus hóspedes enquanto bancava o nobre de­vasso. Apenas lady Maria concentrava toda a sua atenção.

De repente ele pensou nas roupas que lhe dera para vestir, roupas que seriam de Alyce, a esposa de Edmund, se eles tivessem se casado. Lady Alyce era uma jovem adorável, filha de um nobre local, mas Nicholas não se lembrava de tê-la visto tão linda quanto Maria naquela túnica azul. Ou que vestisse uma bata com tanta elegância. Para ele, Alyce ainda era uma criança, a jovem dama que Edmund tanto amara. Certamente não podia imaginá-la dentro daquela chemise transparente que escorregara pelos ombros de Maria quando a havia levado para a cama.

Que momento inesquecível!

Mas agora era preciso pensar numa maneira de mantê-la à distância.

 

Aggie fixou o último grampo de osso na touca de Maria e recuou um passo para admirar sua obra.

— Duvido que lorde Kirkham tenha conhecido alguma mulher mais linda que a senhora, milady. Não admira que ele queira jantar sozinho em sua companhia.

Maria suspirou, desanimada.

— Não tenho a intenção de me juntar a lorde Kirkham no solário, Aggie. — Sua presença era perturbadora demais para deixá-la à vontade. Melhor ficar longe dele enquanto estivesse em Kirkham, por mais um dia no máximo.

— Mas lady Maria — Aggie protestou —, meu senhor deixou bastante claro que...

— Ele tem hóspedes importantes no castelo — Maria argumentou. — Lorde Kirkham não precisa jantar comigo...

Aggie não disse mais nada, e Maria agradeceu. Melhor pensar mais em Rockbury e menos em Nicholas Hawken. O marquês a deixara aos cuidados de sir Roger, o administrador do castelo, e de sua esposa, Tessa Malloy. Talvez tivesse feito isso para mantê-la longe dos outros hóspedes. O que, na verdade, fora um alívio para Maria. Tessa Malloy era uma pessoa bastante amável e simpática, mas tão faladeira que nem houve tempo de Maria explicar-lhe por que se encontrava em Kirkham. Ela passou uma tarde agradabilíssima na companhia do casal, colhendo informações sobre Kirkham e o resto do distrito. E, o mais importante, ficou sabendo em que direção ficava Rockbury.

A propriedade de sua mãe foi mencionada apenas de passagem; com uma ou duas perguntas desinteressadas, Maria soube tudo do que precisava. Rockbury estava a apenas um dia de viagem de Kirkham. Ela só precisava conseguir chegar ao estábulo e pegar um cavalo. Seus únicos problemas seriam talvez montar e desmontar. Se pela manhã seu tornozelo estivesse melhor, tudo estaria resolvido.

Vou pedir a Cook que prepare uma bandeja e a traga aqui no quarto, milady — disse Aggie. — Se a senhora prefere assim...

— Prefiro, sim, obrigada.

Maria se levantou e, apoiando-se na muleta, aproximou-se da janela com vista para o jardim, onde ela e Nicholas estiveram pela manhã. Felizmente, ele a deixara logo após a refeição matinal. Nick não desistia nunca de tentar seduzi-la e estava ficando cada vez mais difícil resistir às suas delicadas investidas.

— Fale-me sobre Staffordshire, Aggie.

Maria fez algumas perguntas sobre a região e soube que para chegar a Rockbury teria de tomar a estrada que seguia para o leste. Não perguntou nada especificamente a respeito de Rockbury, para que seu interesse não despertasse curiosidade. E como não tinha a menor idéia do que a esperava lá, preferia não revelar seus planos... nem suas esperanças.

Finalmente Aggie deixou-a só.

A noite caiu. Maria acendeu as velas do quarto. Desacostumada a ficar tão ociosa, começava a se inquietar. Sentia-se como uma prisioneira naquele castelo, pois com a muleta não podia ir muito longe.

A música começou a tocar no grande salão, o que significava que lorde Kirkham estaria novamente ocupado, bebendo e se divertindo com seus hóspedes. Eles não se viram mais durante toda à tarde, enquanto Maria permanecera na casa do administrador e sua mulher, mas soubera que Nicholas saíra do castelo na companhia de seus convidados.

Da janela, ela viu dois homens e uma mulher andando pelo jardim. A risada da mulher era a que mais se ouvia; os homens falavam baixo e era impossível entender o que diziam. Um deles deu uma gargalhada e o grupo perdeu-se de vista. Maria então foi se sentar na poltrona ao lado da lareira, preparando-se para mais uma noite longa e tediosa.

Os jogos começaram. Lorde Lofton e o visconde de Sheffield, ambos embriagados, duelavam com as espadas no mezanino do salão. Outros dançavam com as raparigas que haviam sido contratadas para diverti-los. De um lado, alguns homens jogavam dados; do outro, um grupo, provavelmente embriagado, dava ruidosas gargalhadas.

Num canto mais tranqüilo do salão, a moça sentada no colo de Nicholas mexia-se de uma maneira bastante sugestiva e lançava-lhe olhares sedutores. Ela então se debruçou para alcançar uma caneca sobre a mesa e ostensivamente roçou os seios no braço dele. Depois de um longo gole de cerveja, ela passou a língua pelos lábios, numa clara insinuação do que poderia lhe oferecer... por um bom preço.

Nicholas estava surpreso com seu próprio desinteresse. Até que era uma moça bastante atraente e seria tolice não se aproveitar de seu entusiasmo. Talvez sua apatia se devesse à falta de notícias sobre Sterlyng. Nick tentara obter informações por todos os meios a seu alcance, questionando sutilmente seus convidados a respeito do duque e de seu amigo Carrington, que pareciam ter viajado para a Itália justo na melhor época do ano na Inglaterra. Também sondara seus convidados para saber quais eram os nobres que poderiam ter negócios com a facção orleanista, mas não obteve nenhuma outra informação além dos boatos sobre o tal herdeiro misterioso do duque.

Talvez estivesse exatamente aí a ligação. Primeiro, era preciso descobrir quem era a mãe desse tal herdeiro. Uma francesa, talvez? Se fosse o caso, e todos sabiam que Sterlyng passara um bom tempo na França com Bedford, era bem provável que tivesse arranjado uma amante francesa e tido um filho com ela. Dizia-se que o próprio delfim era ilegítimo...

E pelo fato de Sterlyng não ter nenhum outro herdeiro, talvez tivesse se apegado a esse rebento.

Esse era um caminho que valia a pena ser investigado. Mas o duque não se livraria da culpa se essa teoria provasse não ser verdadeira: a carta ao duque de Alenon, lacrada com o selo oficial de Sterlyng, era, por si só, suficientemente incriminadora. Mas Nicholas não podia fazer mais nada nessa noite. Poderia tentar passar o tempo, como estava procurando fazer, sem pensar mais na Inglaterra ou nos homens que serviam ao seu rei na França. Sendo assim, sua atenção voltou-se automaticamente para a bela prostituta que estava sentada em seu colo. Seus olhos eram expressivos, castanho-claros e... bastante sedutores. A blusa decotada exibia generosamente seus amplos dotes. Não teria que se esforçar muito para atraí-la aos seus aposentos na torre sul.

Bem ao lado do quarto ocupado por Maria.

Nicholas levantou-se, tirando a mulher do colo.

— Milorde? — ela perguntou.

Nick franziu o cenho quando se deu conta de que não tinha uma explicação para o que iria fazer nem por que o faria. Quando ele voltara da caçada, Maria mandara a criada lhe dizer que estava repousando e não queria ser perturbada. Depois havia recusado o convite para jantar no solário, deixando bem claro que o estava rejeitando. Não havia razão para que não a tirasse do pensamento.

Nicholas deu um sorriso forçado para a mulher. Sua beleza rústica não era de jogar fora e uma boa noite na cama lhe daria uma folga de suas preocupações políticas, talvez até ajudasse a diluir essa fixação em lady Maria. Ele pegou a mulher pelos ombros, puxou-a para si e beijou-a na boca. Em seguida puxou-a para uma cadeira vazia. Ela sentou-se no colo dele outra vez, mas agora de frente, abraçando-o com as pernas.

— Lorde Nick... — ela gemia, esfregando-se nele. Nick levou um susto quando ela pegou sua mão e a colocou no seio.

Ele se esforçava para seduzi-la, mesmo que não fosse necessário. Irritado consigo mesmo e também com ela, Nicholas procurou um seio, puxando a blusa para baixo a fim de facilitar o acesso. Mas nem assim sentiu alguma coisa por aquela mulher montada em suas partes mais sensíveis.

Nicholas começou a ficar enjoado. Ela cheirava a... cebola ou a qualquer outra coisa impossível de identificar. Certamente, não era o mais agradável dos perfumes.

A mulher gemia com sua boca colada na dele, sugerindo que fossem a um lugar mais reservado onde pudesse lhe mostrar alguns truques que fazia com a língua. De novo, Nicholas não se comoveu com a proposta. Na verdade, pensou que se ela continuasse se mexendo daquele jeito ou se tentasse enfiar a língua em sua boca outra vez, ele a derrubaria de seu colo sem nenhuma cerimônia.

Um barulho o fez levantar-se de um salto. Sem o menor cuidado, Nick tirou a mulher da frente e foi ver o que havia acontecido. Sheffield tinha perdido o equilíbrio no duelo com Lofton e rolara as escadas. Encontrava-se no chão, imóvel. Pelo menos estava vivo, a julgar por seus gemidos.

Nicholas abriu caminho por entre as pessoas que se juntaram ao redor de Sheffield e ajoelhou-se no chão ao lado dele. Não podia mostrar que estava sóbrio, porém precisava saber se seu amigo precisava de cuidados especiais. Felizmente, Henric Tournay chegou e começou a dar ordens. Logo depois chegaram os lacaios para carregar Sheffield ao seu quarto. Henric apalpou o homem da cabeça aos pés, procurando fraturas ou sangramentos internos. Ao constatar que não havia nada mais que uma costela quebrada e alguns calombos e poucas escoriações, obrigou-o a engolir uma beberagem para dormir e designou um lacaio para assistir o cavalheiro em seu sono.

Nicholas, que também já estava com sono, deixou as pessoas no salão, subiu uma escada nos fundos e tomou o corredor para a torre sul. Mas quando se encontrava perto de seu quarto, achou que, talvez, não quisesse tanto dormir quanto se ver livre de seus hóspedes e convidados.

Aquelas noitadas de bebedeiras estavam acabando com ele. Pela primeira vez, Nick se pegou perguntando se conseguiria cumprir sua missão, se as guerras na França um dia teriam fim. Ele agradeceu a Deus por Tournay, por todas as vezes que seu secretário agira rapidamente, com bom senso e competência. Embora fosse um homem jovem, se tornara indispensável nos últimos tempos.

Quando Nicholas chegou à galeria que antecedia seu quarto de dormir, ele parou. A sua frente uma figura curiosa mancava na direção da escada principal. Era uma mulher de camisola branca, que usava uma muleta. Intrigado, Nicholas seguiu-a em silêncio, sentindo o perfume suave e delicado que deixava atrás de si. Ela contornou a torre e chegou ao alto da escadaria, e lá ficou, oculta na escuridão, assistindo à festa que se desenrolava no andar de baixo.

Nicholas não conseguia tirar os olhos da delicada figura.

Ela vestia uma túnica bem mais simples do que a outra que estivera usando. Porém, embora fosse longa, não conseguia esconder o maravilhoso corpo que cobria. O tecido da túnica era uma trama diáfana que permitia à luz do candelabro atravessá-la, oferecendo uma visão tentadora das curvas por ela escondidas. A reação de Nicholas diante dessa visão foi imediata e deliciosa.

— Lady Maria — ele chamou em voz baixa.

Apesar do cuidado para não assustá-la, ela virou-se de repente e quase perdeu o equilíbrio.

— Milorde!

Ele não respondeu, mas seus olhos a examinaram minuciosamente, desde os gloriosos cachos dourados até seu ar desconfiado. Eles se demoraram nos ombros e na perfeita cavidade do pescoço. Em seguida desceram para a sedutora abundância dos seios e o fizeram tremer ao se revelar a proeminência dos bicos. Seus dedos tremeram de desejo de tocá-la.

Ouvi um barulho...

Tem razão — Nicholas disse quando conseguiu recuperar a voz. — Um convidado sofreu uma queda.

Maria se recompôs. De novo, a donzela se transformou numa mulher experiente. E Nick não saberia dizer qual das duas lhe agradava mais.

Pobre homem. Espero que não tenha se machucado muito.

Não — respondeu Nicholas, tirando a muleta da mão dela. — Ao menos foi o que disse o meu secretário.

Por favor, milorde, não vamos mais discutir por causa dessa muleta.

Você se lembra quem ganhou a discussão esta manhã?

E claro que sim, mas não precisa...

Ah, preciso sim — ele retrucou. Em seguida ergueu-a nos braços, pegou a muleta que estava encostada na parede e levou Maria com facilidade pelo corredor, até a porta do quarto dela.

Maria não iria permitir que acontecesse novamente o que havia acontecido na noite anterior. Mas não sabia o que fazer para impedir. Como agiria Cecília nessa situação? Provavelmente tentaria convencer lorde Kirkham a deixá-la, prometendo encontrá-lo mais tarde.

Forçando um sorriso sedutor, Maria tocou no queixo de Kirkham e em seguida passou a mão pelo peito dele. Tudo isso sem deixar de fitá-lo nos olhos. Mas Kirkham não demonstrou reação alguma.

Seu sorriso titubeou por um instante: teria escolhido o caminho errado? Rapidamente, ela conseguiu livrar-se dos braços dele, pegou a muleta de sua mão e gentilmente empurrou-o para fora do quarto.

— Até amanhã, milorde — disse num tom sedutor.

Em seguida fechou a porta.

 

Na manhã seguinte, ainda admirado com a habilidade de lady Maria para não permitir que entrasse em seu quarto, Nicholas tomou a decisão de não deixá-la mais escapar. Todos os hóspedes haviam saído para caçar — todos menos Sheffield, que continuava acamado. Como ele sofrerá um leve ferimento, nada sério, não haveria problema nenhum em deixá-lo aos cuidados dos servos de Kirkham.

Após reavaliar suas possibilidades com Maria, Nick mandou um lacaio e algumas criadas para a cabana de caça, um chalé escondido no meio da floresta, bem próximo aos limites da propriedade. Lugar que já fora palco de muitas seduções no passado.

Os criados receberam ordens de abrir o chalé para ventilar e voltar ao castelo depois de deixá-lo em boas condições. Nick planejava convidar Maria para um passeio pela propriedade e, no caminho, acidentalmente, chegar a esse local escondido no meio da floresta. Era um plano infalível.

Ele mandou o cocheiro selar dois cavalos e depois dirigiu-se para a torre sul.

Maria testava a resistência de seu tornozelo andando pelo quarto de um lado para outro. Ainda doía, mas já conseguia caminhar. Por ela, partiria daquele lugar imediatamente.

Nicholas Hawken era uma ameaça muito grande para o que pretendia conseguir. Não iria arriscar sua herança demorando-se mais tempo em Kirkham, por mais que essa idéia pudesse atraí-la. Lorde Kirkham era um homem difícil de ser entendido. Às vezes comportava-se como um destemperado e irresponsável, um conquistador da pior espécie. Outras vezes era delicado e gentil, extremamente atencioso. Maria ainda não o vira tratar mal a criadagem do castelo, mesmo que tivessem cometido erros, e sempre se mostrava muito solícito com Tessa Malloy, a mulher de seu administrador.

Maria não sabia o que pensar sobre ele. Mas fosse o que fosse, tanto fazia. Na verdade, não podia ter nenhuma importância. Seu único interesse era chegar à sua casa. Primeiro, ela buscara informações sobre Rockbury com Tessa Malloy, Aggie e um outro criado. Todos lhe disseram que o local ficava bem próximo. Disseram-lhe até quantas horas de viagem levaria de Kirkham até lá e que estradas ela teria que pegar. Agora, bastava que seu tornozelo estivesse curado para agüentar o resto da viagem.

Assim que chegasse a Rockbury e confirmasse o seu direito à herança, as peças de sua vida se encaixariam. Maria gostaria, do fundo de seu coração, que Rockbury fosse o seu lugar de fato. Mais tarde se dedicaria a encontrar um marido e formar sua própria família. Com o que mais poderia sonhar? Aos 22 anos ela já estava um pouco velha para se casar, mais ainda não era um sonho impossível.

Era isso o que se esperava das mulheres da sua classe: que se casassem e tivessem herdeiros. Tessa Malloy lhe dissera havia pouco que o povo de Kirkham não via a hora que seu amo e senhor trouxesse uma noiva para o castelo. Ao lembrar-se disso, uma estranha pergunta lhe passou pela cabeça: seria ela a escolhida do marquês? Se ele lhe propusesse casamento, qual seria a sua resposta?

Maria tratou de afastar da cabeça esses pensamentos insanos. Logo de início Kirkham deixara bem claras as suas intenções. E não eram muito diferentes daquelas do abominável amigo de seu primo, de quem ela se livrara em Alderton.

Estava dando outra volta pelo quarto quando alguém bateu na porta.

— Entre — ela disse.

O marquês de Kirkham entrou.

— Você está sem muleta — ele constatou. Para Maria, pareceu-lhe um rematado canalha, de olhar malicioso e sorriso irreverente. Uma mecha de cabelos fora de lugar caía sobre sua testa, e, mesmo sem querer, seus dedos formigaram de vontade de ajeitá-la.

— Estou me sentindo muito melhor, obrigada.

— Preciso visitar minhas terras esta tarde e ficaria muito honrado de tê-la como companhia.

Surpresa, Maria foi até a janela para pensar melhor se devia ou não aceitar o convite. Pareceu-lhe incrível, mas não encontrou nada de errado nele, nada que indicasse alguma impropriedade. Sempre achara que Nicholas Hawken só queria seduzi-la e mais nada. Com certeza, deveria pensar melhor no que lhe dissera Tessa Malloy.

Apesar de inexperiente em assuntos de conquistas e seduções, ela não pretendia exibir sua ignorância. Talvez devesse acreditar que lorde Kirkham estava lhe fazendo um convite honroso. Mas estaria ele interessado em outra coisa além de levá-la para a cama? Entusiasmada com a idéia de ter a companhia de um homem bonito e experiente como o marquês, Maria sentiu o coração bater mais forte diante da perspectiva de se tornar esposa de um homem que conhecia e admirava. Seria Kirkham?

— A que horas vamos partir? — ela indagou.

 

A aldeia de Kirkham era bastante próspera. Os homens estavam fora, plantando sementes e mudas nos campos tratados, enquanto as mulheres cuidavam das tarefas domésticas.

Maria olhou ao redor. As galinhas ciscavam a terra em volta dos casebres, os porcos andavam por ali à vontade. As crianças brincavam tranqüilamente do lado de fora das casas. E quando ela e Nicholas entraram na rua central, foram imediatamente cercados por elas, que os acompanharam saltando ao redor dos cavalos e dando gritos de alegria. Na frente da estalagem, Maria ficou surpresa quando Nick apeou, afagou a cabeça de algumas crianças e ergueu uma delas nos braços. Em seguida abriu o embornal preso à sela e tirou um saco de pães de mel e os distribuiu a todas elas. O coração de Maria deu um salto ao ver o sorriso no rosto dele. Jamais se casaria com um homem que não fosse generoso, e Nicholas estava muito satisfeito com o que fazia.

Ele pôs a criança no chão, e logo depois as outras desapareceram com a mesma rapidez com que haviam se juntado para recebê-los. Em seguida Nicholas aproximou-se do cavalo de Maria para ajudá-la a descer.

Ela desceu bem devagar, seu corpo acariciado pelo dele, e Nicholas não a soltou quando seus pés tocaram o chão. As mãos continuaram ao redor da sua cintura, os polegares roçando o perigoso território logo abaixo de seus seios. Ele abaixou a cabeça e ia encostar os lábios nos dela, quando uma voz os interrompeu:

Lorde Kirkham! — um homem chamou-o, saindo da estalagem. — Sua visita é uma honra para o meu estabelecimento. Aceita beber alguma coisa?

Sr. Lucomb — disse Nicholas, abrindo um pequeno espaço entre ele e Maria. Passou uma mão pelos cabelos, enquanto a outra permaneceu na cintura dela. — Com todo o prazer.

Maria tomou a dianteira para entrar na taverna. Demorou um pouco para que seus olhos se acostumassem à penumbra do ambiente, mas ela seguiu à frente de Nicholas até a mesa oferecida pelo taberneiro.

— Dulcie! Mags! — o homem chamou. — Tragam bebida para os nossos convidados.

Duas mulheres de seios avantajados saíram de um aposento nos fundos e prontamente atenderam à ordem do patrão. Enquanto uma delas servia a bebida nas canecas, a outra fatiava o pão e cortava um pedaço de queijo sobre a tábua. As duas tentavam flertar com Nick, mas ele não corresponderia enquanto estivesse na companhia de uma dama.

Além disso, os dados estavam lançados. Ele não ganharia lady Maria trocando olhares lascivos com criadas. Pelo contrário, usaria todo o seu poder a fim de atrair sua dama para dentro de seus braços.

Maria conversava com Lucomb e ganhava toda a atenção do taverneiro com seus modos polidos, porém reservados. Seus cabelos, parcialmente cobertos, brilhavam contra a luz filtrada pelas janelas altas da taverna. Nicholas controlava-se para não começar a acariciá-los. Os olhos brilhavam como pedras preciosas quando ela tomara-lhe o braço, como se só a ele pertencesse.

Maria o queria... tanto quando Nicholas a desejava.

Eles beberam e comeram, ao mesmo tempo que Nicholas negociava alguns barris de cerveja para servir o castelo. Quando finalmente se levantou e ofereceu a mão para Maria também se levantar, o proprietário perguntou;

Sabia que Mattie Tailor está doente, senhor?

Não — respondeu Nicholas, surpreso. Mattie fora sua ama desde que sua mãe morrera ao dá-lo à luz. Cuidara do pequeno órfão e o amara como se fosse seu. — O que ela tem?

Gripe, senhor. Está com muita dificuldade para respirar. Mas Anna está cuidando bem dela.

Nicholas pensou em adiar aquela visita até o dia seguinte, mas depois achou melhor não.

Lady Maria, seu tornozelo lhe permitiria caminhar um pouco mais? — perguntou.

Sim, milorde, já não está me incomodando.

Eles seguiram pela mesma rua até um pequeno chalé, onde uma jovem veio recebê-los na porta.

Nick! — uma voz chamou-o do interior da casa.

Sou eu, mãe Mattie. — Ele entrou e foi direto para a cama encostada na parede dos fundos. Sentou-se na cama e segurou a mão da mulher deitada, que respirava com dificuldade.

— Ah, meu menino, que bom ver você. Desta vez voltou a Kirkham para ficar?

— Vamos ver, Mattie. Sabe que tenho minha vida em Londres... Não posso abandonar tudo de uma hora para a outra.

— Seu malvado! — disse a mulher, afagando o rosto dele.

— Mas é um homem muito valoroso. Quem veio com você? — Ela perguntou, voltando-se para Maria.

— Ah! Nick levantou-se e pediu a Maria que se aproximasse.

— É lady Maria. Senhora, apresento-lhe Mattie Tailor, que não é minha mãe biológica, mas me criou até eu poder cuidar de mim mesmo.

— É um prazer conhecê-la, milady. Desculpe não me levantar da cama. Estou doente...

— Não se incomode, senhora. — Maria aproximou-se e pegou na mão de Mattie. — Fique à vontade. Também tenho muito prazer em conhecer a senhora.

— Meu Nick e você...

— Está precisando de alguma coisa? — Nick interrompeu-a.

— A despensa está cheia? Tem bebida suficiente? Vou pedir que tragam trigo para vocês...

— Não, lorde Kirkham — disse a jovem que os recebera. — Não está faltando nada em casa, e, como sempre, graças ao senhor.

Apesar da luz difusa no interior do casebre, Maria notou um leve rubor nas faces de Nick, o que a deixou encantada. Ele era cheio de cuidados com a velha senhora e parecia estar sempre pronto para atender às suas necessidades. Elas ficaram conversando como se já fossem amigas de longa data.

— Mande me avisar se houver alguma mudança no estado dela — disse Nicholas à jovem, quando já se despediam à porta.

— Claro, milorde. Fique tranqüilo.

Após uma despedida que demorou alguns minutos, eles se foram.

— Vamos cavalgar mais um pouco? — Nicholas inspirou o ar fresco, agora bem mais tranqüilo e relaxado. Maria pensou por um instante e concluiu que não haveria nada de mal em aceitar um inocente passeio pela propriedade.

Eles montaram e em seguida tomaram a estrada que atravessava os ricos campos cultivados de Kirkham. O dia era lindo e Maria, mesmo desacostumada a ficar tanto tempo em cima de um cavalo, estava adorando o passeio.

Nicholas não era nenhum mau-caráter, apesar da fama. Ela tivera oportunidade de presenciar o carinho com que fora recebido pelos moradores da aldeia, aos quais ele cumprimentava todos pelo nome. Até as crianças o reconheciam.

Maria seguia-o pela floresta, quando Nicholas parou e mostrou um casebre à margem de um riacho. Era um lugar muito tranqüilo, muito mágico.

— Onde estamos? — ela perguntou, quando ele a ajudou a apear do cavalo.

Tratava-se de uma cabana diferente dos casebres da aldeia. O telhado era de sapé, mas as janelas tinham venezianas parecidas com as do escritório de lorde Kirkham no castelo, todas elas cercadas por lindas trepadeiras.

— É uma cabana de caça — ele explicou. — Vamos parar para comer... e descansar.

— Hummm... aí dentro tem comida?

— Sim, às vezes — respondeu Nicholas, passando a mão dela por seu braço.

Maria entrou ao lado dele naquela cabana como se tivesse feito isso a vida toda. Lembrou-se de Alderton, quando os convidados saíam em excursão ao lago. Os criados tinham uma trabalheira danada para providenciar todos os detalhes que faziam o passeio acontecer, mas nem por isso deixava de ser um sucesso. E pelo que se ouvia mais tarde, todos voltavam muito satisfeitos.

Na frente da grande lareira havia um banco de pedra com almofadas ao redor de uma mesa baixa de madeira. Nick ajoelhou-se para acender o fogo. Na sala havia também outras cadeiras confortáveis, além de um armário trancado onde ficavam os livros. Mais adiante, uma sólida mesa de madeira estava posta para uma refeição a dois.

Maria notou que a cesta no centro da mesa estava repleta de coisas para comer. Ela cruzou as mãos para evitar que ele as visse tremer, e lembrou-se mais uma vez de que Nicholas tinha as melhores intenções. Afinal, levara-a para conhecer a aldeia e a apresentara a Mattie Tailor, com quem tinha fortes laços emocionais. Isso não era o tipo de leviandade que um homem cometesse.

— Foi meu avô quem construiu esta cabana, há muitos anos — Nicholas disse, ainda voltado para a lareira. E concluiu com um sorriso matreiro: — Para que minha avó não o encontrasse.

Maria devolveu-lhe um sorriso tímido e foi para o outro lado da sala, o mais longe possível dele, mesmo vestindo uma recatadíssima túnica de veludo azul fechada até o pescoço, com mangas fechadas nos punhos. Nem um milímetro de pele ficava exposto a olhares de admiração. Ao menos por enquanto.

Quando o fogo pegou na madeira, Nicholas foi até a mesa para ver o que havia na cesta. Encontrou-a cheia e começou a tirar dela os embrulhos fechados. Então percebeu que Maria estava inquieta. Seus olhos brilhavam à luz do fogo e o lábio inferior estava preso entre os dentes. No mesmo instante, ele sentiu seus músculos tensos: queria ele estar fazendo aquilo com o lábio de Maria...

— Temos aqui um verdadeiro banquete, minha linda dama — ele disse, tirando a rolha de uma garrafa de vinho. Em seguida, despejou o líquido vermelho em duas taças, ofereceu uma delas a Maria e, fitando-a nos olhos, levou a sua aos lábios para o primeiro gole.

Um forte calor aquecia o ambiente. Nicholas queria jogá-la no ombro e carregá-la para o quarto, mas não era isso o que Maria esperava dele. Ela estava inquieta, talvez devido à longa viagem pela floresta ou por se encontrar num local tão isolado. Realmente, eles estavam longe de qualquer lugar. Mas isso não era problema. Nick a acalmaria, a cortejaria, até que a forte atração que sentiam um pelo outro a fizesse ir para a cama com ele. De sua parte, podia garantir que ela não iria se arrepender.

— Temos torta fria de carne, frango, queijos, pão fatiado, frutas secas...

Nick fez os dois pratos e levou-os para a mesa baixa, próxima ao fogo. Em seguida, sentou-se numa almofada e olhou para Maria.

— Venha, sente-se aqui.

Ele sorriu aliviado quando a viu pegar a taça e sentar-se ao seu lado. Primeiro, pareceu que ela iria se sentar do outro lado da mesa, mas mudou de idéia e veio mais para o meio. O convite não podia ter sido mais claro. Nicholas aproximou-se e estendeu a mão para cortar um pedaço de torta e oferecê-lo a Maria. Ela hesitou por um momento, mas logo abriu a boca para morder um pedaço, fechando os olhos em seguida a fim de apreciar o sabor. Nicholas quase gemeu de felicidade, porém ainda não era hora.

Sempre mastigando, Maria abriu os olhos, tirou um pedaço de torta do seu prato e levou-o à boca de Nick. Seus dedos ficaram presos entre os lábios dele. Ela não os tirou, mas os olhos cor de âmbar se abriram, as pupilas escureceram e os seios subiram e desceram sob a tensão do momento. Nada disso escapou aos olhos de Nicholas. Quando ela fechou os olhos novamente, ele pegou a mão dela e beijou a palma. Maria tinha a outra mão sobre o peito, como se quisesse conter as batidas do coração. Incentivado por seu silêncio, Nicholas se sentiu no direito de dar outro beijo no interior do pulso, dessa vez envolvendo também a ponta da língua.

— Milorde...

— Nicholas — ele a corrigiu, puxando-a para si.

— Ni-Nicholas — Maria repetiu.

Ele não a soltou, mas se curvou para beijar longamente a pele macia atrás da orelha. O véu que cobria os cabelos dela se soltou e caiu no chão. Então, quando ele aproximou os lábios para beijá-la na boca, ao mesmo tempo tirou o grampo que prendia os cabelos, e os cachos dourados se espalharam pelos ombros.

— Você é tão linda... — Nick a beijou nos olhos e sentiu-a respirar ao aproximar-se dos lábios.

Que delícia quando as bocas se encontraram! Naquele momento, todo o resto deixou de existir. Maria recendia a flores, um perfume suave, mas levemente ácido que imediatamente o envolveu. Seus lábios macios e úmidos ansiavam por serem beijados.

Os dedos dele se enroscaram nos cabelos cacheados e o beijo se tornou mais intenso. Os lábios de Maria se abriram, dando passagem para a língua de Nicholas entrar em sua boca e extrair as mais doces respostas. Ela o abraçou com força.

Então foi sua vez de enroscar os dedos nos cabelos de Nicholas e afagá-los, até que ele a deitasse sobre as almofadas. Seus corpos tinham um encaixe perfeito. Com uma das mãos, Nicholas soltava as fitas que amarravam o corpete de Maria, enquanto a outra se ocupava em descobrir o que havia por baixo dele. Quando a peça de roupa se soltou e seus dedos tocaram na pele nua, ele gemeu. Instintivamente, Maria abraçou-o na tentativa de aliviar a tensão crescente quando percebeu um volume rígido entre suas pernas. Bastou uma leve pressão para fazê-la sentir-se no céu. Mesmo assustada, ela queria mais. Não sabia o que estava acontecendo, mas sabia que ainda não tinha acabado. E estava disposta a descobrir o que mais ele poderia lhe ensinar, o que mais havia para aprender.

A língua de Nicholas explorava o interior de sua boca e os movimentos se tornavam mais e mais exigentes. Maria queria beijar e sugar o peito de Nicholas da mesma maneira que ele beijava e sugava seus seios.

— Meu amor... — Maria ergueu a única dele.

Nick sentou-se o tempo suficiente para tirar a túnica pela cabeça, então se levantou e estendeu a mão para levá-la até o quarto.

Uma grande cama ocupava todo o espaço. Ele a fez sentar-se e começou a lhe dizer as mais lindas palavras de amor. Queria que ela se sentisse bela, desejada, querida. Maria tinha diante de si um homem gentil e generoso, digno de seu amor e de sua devoção. Nada a impediria de ligar-se a ele pelo resto da vida.

Ela beijava o peito de Nicholas quando, de repente, ouviu um barulho. Preferiu ignorar e concentrar-se num mamilo firme e atrevido, exatamente como estava o seu. Com a língua, ela o envolvia, rodeava, sugava e o deixava cada vez mais endurecido.

Então Nicholas tirou bruscamente as mãos de seus ombros e virou a cabeça.

— O que é isso? — ele perguntou, preocupado.

Maria levou um susto, achando que fizera alguma coisa errada. Então ouviu as vozes. Algumas pessoas estavam se aproximando da cabana.

— Fique aqui — disse Nicholas, beijando-a rapidamente e afastando-se dela. — Vou ver o que está acontecendo.

Maria deitou-se de costas na cama e suspirou. Logo depois, a porta se abriu e ela ouviu vozes de homem e de mulher conversando com Nicholas. Seus seios continuavam sensíveis por causa das carícias de Nicholas. Ela os cobriu com as mãos e tratou de se recompor. Mas os recém-chegados não iam embora.

Logo depois os passos e as vozes estavam dentro da cabana. Fossem quem fossem, tinham chegado para ficar.

 

Nicholas não acreditou na sua falta de sorte. E sir Roger e sua esposa não podiam ter escolhido pior hora para chegar.

— Não sabia que estava aqui, milorde — disse Tessa, espiando para dentro do chalé. Mas tanto ela quanto sir Roger sabiam que ele se achava ali, como também esperavam encontrar Maria, pois tinham acabado de ver dois cavalos amarrados do lado de fora.

— O que a trouxe a esta cabana tão distante, Tessa? — Nicholas fingiu surpresa.

— Estamos acostumados a vir para cá de vez em quando, milorde, sobretudo quando você... quando os hóspedes do castelo ficam muito... animados.

Nicholas sentiu-se culpado. Certamente seus amigos estavam incomodados com as atividades no castelo de Kirkham, uma vez que os Malloy apreciavam a privacidade. Em geral, sir Roger fazia vistas grossas para seus excessos, embora sempre desaprovasse seu temperamento intempestivo.

Nicholas evitava olhar para ele, mesmo que seu velho administrador fosse incapaz de julgá-lo com muita severidade. Não lhe agradava enganar um velho amigo e sua esposa, que o conheciam desde criança. Não queria decepcioná-los, embora não pudesse evitar.

De repente a porta do quarto se abriu e Maria surgiu na sala vestida e relativamente bem penteada. Tinha as faces coradas e os lábios rubros, mas nada havia em sua aparência que merecesse desaprovação.

— Lady Malloy — ela cumprimentou, graciosamente. NichoIas disfarçou um sorriso quando ela se aproximou com a altivez de uma rainha. — Que surpresa! Vieram comer conosco? Temos muita comida...

Maria aproximou-se da mesa grande e tirou quatro pratos de dentro da cesta. Tessa Malloy tentou impedi-la, insistindo em que ela e seu marido não haviam tido a intenção de interromper o que estivessem fazendo.

— Nem pense nisso — disse Maria amavelmente. — A companhia de vocês só nos dá prazer.

Nicholas não pôde evitar um som rude pelo exagero, mas deu para disfarçar com uma tosse. Lady Malloy sentou-se à mesa com Maria e Roger. Nicholas relutou antes de sentar-se, por ainda sentir-se irritado. Como Maria era capaz de recebê-los com tanta tranqüilidade, como se nada tivesse acontecido? Sua frustração era tão grande que ele se encontrava a ponto de explodir.

E Maria o estava deixando ainda mais nervoso. Seus olhos brilhavam e um leve rubor brotava do pescoço e subia para as faces. Ela parecia interessada na conversa, mas na verdade estava tão excitada quanto ele. Nichólas não precisava mais imaginar qual seria a sensação de tocar em sua pele macia, pois vira com seus próprios olhos a pálida perfeição dos seios e sabia que os botões que os coroavam eram sedosos como as pétalas de uma rosa delicada. Eles endureceram quando estimulados por seu toque, pressagiando um clímax selvagem. Mas tudo isso aconteceria quando finalmente fizesse amor com sua linda Maria. Nessa mesma noite. Nick decidiu não esperar mais, desde que ela o queria tanto quanto ele a desejava e seu tornozelo não era mais nenhum impedimento.

Pequenas mechas de cabelos dourados escapavam da touca atrás das orelhas de Maria. Nichólas sentia o gosto da pele em sua língua, via o sangue correr por baixo da pele. Quando ela pôs um pedaço de queijo na boca e os lábios se abriram para recebê-lo, o sangue concentrou-se na parte de sua anatomia que permanecia em estado de alerta. Instintivamente, essa parte sabia que a boca servia para o prazer.

Nicholas não podia mais esperar. Tessa discorria interminavelmente sobre qualquer assunto e parecia que não pararia nunca mais. Quando Maria pôs a mão na perna dele por baixo da mesa, seus músculos retesaram. Foi a reação primitiva de um guerreiro bárbaro: jogar a mulher por cima dos ombros e levá-la para longe dali.

Vocês vão dormir aqui esta noite? — Maria perguntou a Tessa, que concordou com a cabeça.

Lorde Kirkham não vai precisar do meu marido, e nós queremos ficar mais tranqüilos aqui... isto é, se milorde não se importar.

Maria achou que Nicholas fosse sufocar com as próprias palavras, mas ele respondeu:

— De maneira alguma, Tessa. Vocês são sempre bem-vindos.

Já está ficando tarde, milorde — disse Maria, que não via a hora de voltar. Conseguira suportar o constrangimento de ser encontrada em circunstâncias tão delicadas, mas queria estar em outro lugar bem longe dali. E Nicholas também não estava ajudando em nada. O calor que irradiava de seus olhos quando se fixavam nela bastava para deixá-la em chamas. Isso sem mencionar o erro colossal de pensar que o toque disfarçado por baixo da mesa poderia acalmá-lo. Seu fogo acabaria por consumi-la.

Tem razão — ele disse. — E hora de irmos embora.

— Não, milorde — declarou Roger —, não queremos tirá-lo da sua própria...

Não se preocupe, Roger. — Nicholas pegou no braço de Maria e levou-a para a porta. — Nós nos encontraremos em Kirkham amanhã ou depois. Descansem bastante.

Maria e Nicholas trocaram poucas palavras na volta para casa, mas a tensão era alta. O dia estava terminando. Eles não encontraram ninguém quando chegaram ao castelo, e Maria se perguntou onde estariam todos, sobretudo as mulheres. Quando ia perguntar a Nicholas, um criado se aproximou para ajudá-la a desmontar e levar os cavalos à estrebaria.

Ah, milorde — disse o criado —, mestre Henric aguarda ansioso por sua volta.

Aconteceu alguma coisa?

É lorde Sheffield...

Onde está Tournay?

Deve estar no quarto de lorde Sheffield.

Maria não conhecia os hóspedes de Nicholas, mas presumiu que se tratasse de um deles.

O que houve? — Nicholas perguntou ao criado, seguindo-o pelo corredor.

Parece que lorde Sheffíeld piorou.

Maldição! — Ele deixou Maria numa entrada lateral do castelo, tomou a mão dela e a encostou nos lábios. — Jantamos juntos, minha linda dama?

Acho que não, milorde. — Maria foi se afastando até encostar numa parede. O que acontecera naquele dia era a prova de que ela perdia o domínio de suas faculdades mentais quando se encontrava ao lado de lorde Kirkham. Precisava estabelecer uma distância segura dele para preservar sua virtude. — Penso que será melhor se...

Não pense tanto — disse ele, encostando as mãos na parede, uma de cada lado da cabeça de Maria. Mas ela podia escapar se quisesse. Na verdade, devia fugir para seu quarto o mais rápido possível e trancar-se lá dentro.

Porém ele a beijou nos lábios e encaixou seu joelho perfeitamente entre suas pernas, exercendo a mesma pressão que despertara aquelas sensações selvagens provadas na cabana, quando eles se despiram ao lado do fogo.

Por favor...

Por favor, o quê, milady? — Nicholas respirou. — Quer que eu a tome aqui? Agora mesmo?

Não, Nicholas — Maria pediu debilmente. Era quase insuportável ficar na presença dele. Se por um lado queria que Nicholas continuasse, por outro sabia que devia impedi-lo... na verdade, impedir a si mesma de prosseguir.

Ela escapou por baixo do braço dele e afastou-se pelo corredor. Nicholas seguiu-a com o olhar até perdê-la de vista.

Ele continuou ali no escuro até se acalmar e voltar a respirar normalmente. Levou mais alguns minutos para estar em condições de procurar Tournay. Não seria adequado entrar no quarto de Sheffíeld naquele estado óbvio de excitação. Já fazia muito tempo que deixara de ser um jovem entusiasmado que saía correndo atrás do primeiro rabo-de-saia que aparecesse.

O que havia de especial em Maria que provocava nele reações tão espetaculares? Era apenas uma mulher. Muito bonita, é verdade, mas Nicholas conhecera outras tão belas ou até mais que ela, na Inglaterra e em outras partes do mundo. Por que Maria o fazia perder o juízo? Como conseguia deixá-lo tão excitado com um simples toque?

Foi com esses pensamentos que ele entrou no quarto de Sheffield.

— Milorde — Henric Tournay veio recebê-lo. O ferido estava acordado e gemia na cama. — Lorde Sheffield não conseguiu mais se levantar desde que caiu.

Nicholas viu que seu amigo ardia em febre, tinha o rosto molhado de suor.

O que ele tem?

Febre dos pulmões. A costela fraturada deve ter perfurado um pulmão.

Chamaram o médico? — Nicholas aproximou-se da cama.

Sim, mas o médico mais próximo está no castelo de Malvern.

É quase um dia de viagem.

Eu já mandei um mensageiro para lá; porém, se eles saírem pela manhã, só chegarão aqui por volta do meio-dia.

Não dá para ser mais rápido?

Duvido, mas pode ser. Enquanto isso, chamamos a curandeira da vila para dar uma olhada nele.

Nicholas pegou na mão do doente.

— William... pode me ouvir?

O homem murmurou algumas palavras e tentou erguer a mão.

— O médico está vindo — disse Nick.

Dói muito... cada vez que eu respiro. Nicholas voltou-se para Henric.

Tem alguma coisa que o faça dormir?

— Tem. Podemos também aplicar um cataplasma no peito para aliviar a dor. O efeito é quase imediato.

Sheffield fechou os olhos. Nick não podia fazer mais nada enquanto o médico não chegasse. Seu amigo estava em boas mãos e a curandeira da vila era competente: além de parteira, também exercia a arte da cura.

Nick apostava na juventude e na boa saúde de Sheffield para ajudá-lo a recuperar-se.

Avise-me se ele piorar.    

Claro, milorde. Ah... chamei também o padre.

Nick parou, embora Henric tivesse feito a coisa certa. Não se sabia o que poderia acontecer e Sheffield merecia se confessar. Nicholas assentiu, resignado, e saiu do quarto.

No caminho, encontrou seus hóspedes irritados com a situação criada por Sheffield. O jovem lorde Lofton estava inquieto no salão, andando de um lado para outro, ansioso para que os festejos noturnos começassem. Nicholas não quis falar com ninguém. Deu uma desculpa e desejou a todos um bom divertimento. Depois subiu para o seu quarto.

Maria decidiu que partiria pela manhã, antes que o sol despontasse.

Ao menos o passeio com Nicholas servira para saber onde era o estábulo e em qual cocheira estava seu cavalo. Conhecera também a estrada para o leste; não teria dificuldade para encontrá-la outra vez e tomar seu caminho para Rockbury.

Maria não via a hora de partir o mais rápido possível. Perdia completamente o bom senso quando Nicholas se aproximava e queria estar longe dele antes de perder totalmente o controle da situação. Agira como Cecília agiria, mas não sabia se ela se deixaria seduzir por um homem mais experiente. Era por causa de homens que existiam os guardiões. Ninguém estava a salvo desses mulherengos. Além de muito bonito, Nicholas era um homem envolvente, irresistível. Por essas e outras é que seria melhor se afastar logo dele.

Quando chegasse a Rockbury e tudo ficasse acertado, mandaria alguém a Kirkham para dizer a Nicholas onde se encontrava. Depois disso, ele chegaria a um acordo com seu pai ou seu guardião, se fosse o caso, e pediria sua mão.

Maria não tinha dúvida de que, se ficasse sozinha com Nick outra vez, acabaria perdendo a virgindade. Ele sabia como despertar suas sensibilidades. De repente ela se vira quase nua, com ele sussurrando palavras doces em seu ouvido, enquanto as mãos exploravam suas partes mais íntimas e sensíveis. Até então nenhum homem havia conseguido seduzi-la a ponto de fazê-la perder a cabeça.

Por sorte lady Malloy e seu marido chegaram à cabana naquela hora. Só de pensar no que teria acontecido lá fez o suor brotar dos lugares mais incômodos. No mesmo instante Maria se levantou e correu à janela para tomar um pouco de ar.

No salão havia música e pela janela ela podia ouvir claramente pessoas conversando no pátio. Eram homens e mulheres rindo, conversando, se divertindo. Mais tarde talvez descesse e se juntasse a eles. Se o disfarce de dama convencera Kirkham, convenceria também os outros.

— Milady — alguém chamou, e a porta se abriu antes que ela respondesse. Era Aggie, que chegava com uma bandeja de comida.

— Vou deixar sobre a mesa junto à lareira — disse ela. Maria lembrou-se da refeição na cabana e corou. Quanta sensualidade no ato de comer, de levar os dedos à boca... Naquele momento fora impossível resistir aos avanços de Nicholas. Na verdade, ela temia que talvez não quisesse resistir.

Obrigada, Aggie.

Precisa de mais alguma coisa, milady?

Não, está tudo bem. Não precisava ter tanto trabalho — ela acrescentou, mas logo se lembrou de que devia ser mais autoritária, como toda dama da nobreza. Só que, como partiria logo pela manhã, não importava o que os criados pudessem pensar.

Maria acendeu uma lamparina depois que Aggie saiu e se sentou para comer. Fora muito fácil apaixonar-se por Nicholas, sobretudo depois daquela visita à aldeia. Era um homem gentil e generoso, sempre distribuindo dádivas e presentes ao povo. Conhecia todo mundo pelo nome, até as crianças, e todos lhe tinham respeito e afeição.

Isso não era uma coisa fácil de acontecer. Bastava ver como o povo de Alderton se comportava com sua tia e seus primos: as pessoas os respeitavam, sim, mas à distância. Ninguém tinha interesse de se relacionar mais do que o estritamente necessário com os Morley.

Porém Nicholas era diferente. Ao pensar que nesse momento ele estaria ao lado de seu amigo enfermo deixou-a emocionada. Geoffrey Morley jamais faria isso por ninguém.

A porta do quarto se abriu e Maria se voltou para ver quem era. Nicholas entrou, fechou a porta e cruzou os braços no peito, esperando que ela dissesse alguma coisa. Maria não disse nada. Ele estava irresistivelmente bonito. Os cabelos estavam molhados e a barba recém-escanhoada. Seus olhos a percorreram com uma intensidade que a fez tremer, e ela sabia que não possuía mais vontade própria. Nicholas soltou os braços e se aproximou. Sem dizer nada, pegou em suas mãos, ajudou-a a levantar-se e colou o corpo rente ao dela.

— Seu lábios foram feitos para isto — ele suspirou. Então a beijou, apossando-se completamente de sua boca. Com a ponta da língua provocou-a, explorando cada canto, cada textura. Maria sentiu que ia desmanchar.

As mãos de Nicholas vagaram por suas costas até descerem para os quadris. Quando ele a puxou para si, Maria foi tomada pelo mesmo desejo que experimentara na cabana, só que agora era muito mais intenso, muito mais urgente. E ao sentir o rígido volume entre as pernas, cravou as unhas nos ombros dele, deixando sair um gemido quase inconsciente que veio do fundo da garganta, um som que Nicholas absorveu num hausto de ar.

Maria não viu quando as mãos dele se introduziram entre os dois, mas de repente os laços de sua bata foram desfeitos pela segunda vez naquele dia e Nicholas puxou as mangas pelos braços.

Entre beijos brincalhões, ele tirou a própria túnica. Em seguida curvou-se para capturar com os lábios um bico rosado, enquanto seus dedos ágeis buscavam o outro. Louca de prazer, Maria agarrou-se aos cabelos dele, jogando a cabeça para trás. Quando sentiu-o estremecer, teve certeza de que ele a queria com tal ferocidade que a estimulava tanto quanto suas mãos hábeis.

Nicholas não parou de beijá-la enquanto soltava as tiras da bata, que caiu aos seus pés. Em seguida levou-a para a cama e deitou-a sobre as almofadas e as cobertas macias. Ele a olhava com tanta admiração que Maria nem se intimidou com o fato de estar nua. E entregou-se totalmente à adorável exploração.

Os beijos desceram dos seios para o ventre.

Nicholas...

Você é deliciosa... — ele murmurou entre beijos. — Não consigo pensar em outra coisa desde que você cruzou meu caminho.

Quando suas bocas voltaram a se encontrar, as roupas tinham desaparecido e ele também estava nu. Maria sentiu o corpo vibrar quando os pêlos de Nicholas encostaram em sua pele. Ele tomava um cuidado infinito com ela, ao mesmo tempo cortejando e torturando, enquanto descobria as partes mais sensíveis ao seu toque.

— Nicholas... eu... por favor...

Ele a tocou intimamente, com muita experiência. E todo pensamento consciente se dissolveu numa lava incandescente. Maria foi consumida pelas sensações. Pele e ossos se fundiram. O sangue ferveu. E ela se abriu para o homem que amava.

— Isso, meu amor, agora...

O clímax de Maria por pouco não o levou também, mas Nicholas pretendia prolongar aquele encontro. Ela estava tão receptiva a seus toques que certamente gozaria outra vez. E sua intenção era levá-la consigo num único e inesquecível orgasmo. Os seios dela enchiam suas mãos. A boca tinha o sabor do mais fino vinho, a pele exalava aromas exóticos. Os cabelos anelados enroscavam-se em seus dedos, os olhos dourados ardiam de prazer. Nicholas não conhecera mulher tão desinibida e receptiva, e isso só fazia desejá-la ainda mais.

Ele se acomodou entre as pernas dela e inclinou-se para beijar gentilmente ao redor do ventre macio. Ela era macia, perfeita. Nicholas nunca fora tão longe, nunca se entregara tanto ao amor. Tinha que entrar dentro dela. Agora.

Posicionando-se na entrada de seu corpo, ele penetrou-a com um golpe poderoso. E parou.

Deus do céu! O sangue borbulhou em seus ouvidos. Essa sedução não era absolutamente o que ele planejara.

Havia se deitado com uma virgem!

 

Se lhe perguntassem uma hora antes, Nicholas juraria que ela perdera a inocência havia muito tempo. Sabia flertar e provocar como as cortesãs mais experientes. Pois conseguira enganá-lo muito bem. Inacreditável!

A atração que Maria exercia sobre ele começara desde o momento em que ela pusera os pés em Kirkham, e a frustração que sentira na cabana tinha sido a gota d'água. Depois de sair do quarto de Sheffield, ele tomara um banho demorado, caprichara mais na barba, tudo isso para estar com ela novamente.

Nicholas — Maria chamou-o, numa voz débil e insegura. O rosto dele estava molhado de suor e os músculos, doloridos.

Você devia ter me contado, meu amor...

Maria ia dizer qualquer coisa, mas se calou. Em vez disso, fechou os olhos e moveu-se ligeiramente, obrigando Nicholas a recuar e mergulhar dentro dela outra vez. Os movimentos ficaram mais acelerados. Ela o envolveu num casulo de pura sensação, movida pela vontade e pela necessidade, pela luxúria e pelo desejo, tudo de uma só vez. Maria estimulava-o como se dedilhasse um instrumento musical, intuitivamente, pois não tinha experiência no mais íntimo dos atos.

As unhas riscavam suas costas, e ao absorver cada investida da posse, era ela quem o possuía inteiramente. Seus gemidos o acariciavam. Seus dentes arranhavam o queixo e o pescoço. Suas lágrimas tocavam-lhe a alma.

Nicholas partiu-se em pedaços dentro dela.

E nesse momento, tudo o que pensou que soubesse sobre mulheres e o amor foi esquecido. A terra se abriu e, quando ele caiu ao lado dela, mal pôde acreditar que ainda estivesse naquela cama.

Nicholas abraçou Maria, beijando os cabelos molhados pelas lágrimas.

— Está chorando, meu amor? Eu machuquei você?

— N-não, milor... Nicholas. É que eu não sabia... nunca soube... Ele gostaria de lhe explicar esses sentimentos recém-descobertos, dizer que era sempre assim entre um homem e uma mulher. Mas não podia mentir. Em vez disso, começou a acariciá-la como deveria ter feito desde o início... gentilmente, pacientemente, ensinando-a e ao mesmo tempo enchendo-a de prazer.

Maria despertou com alguma coisa. Não foi só pela estranheza de ter Nicholas deitado a seu lado na cama, mas com um barulho que entrava pela janela aberta. Além das vozes lá embaixo, havia mais algo. Ela se levantou, ignorando um certo desconforto em suas partes íntimas, e foi olhar pela janela.

Havia um pequeno grupo iluminado pelas tochas acesas. As pessoas riam muito, andavam trançando as pernas e caíam na gargalhada outra vez. Difícil entender por que Nicholas se cercava daquele tipo de gente. Então começaram a atirar pedras na janela ao lado, provavelmente pensando em acordá-lo. Uma mulher o chamou:

Venha cá, lorde Nicky! Venha aqui ver o que é bom!

Ei, Nick! Esquece essa mulher que você prendeu na torre. Esta aqui vai dar o que você precisa sem ter tanto trabalho.

As risadas e as piadas continuaram enquanto Maria sentia que o mundo se abria aos seus pés. Humilhada, tapou os ouvidos para não ouvir, mas de nada adiantou. Ela era a mulher que ele prendera na torre. Enquanto se apaixonava por ele, Nicholas esperava para seduzi-la e tirar sua virgindade sem menor consideração.

As pedras voltaram a golpear a janela. A mulher falou novamente:

— Ei, lorde Nicky! Venha cá! Bem que você gostou ontem noite!

Cada vez mais chocada, Maria viu que chorar não a levaria lugar nenhum. Era inútil ficar magoada ou sentir-se ofendida.

Já tinha sido explorada antes, mas nunca com tanta frieza. Fora tolice sua acreditar que Nicholas era um homem digno.

Pois que Nicholas Hawken fosse para o inferno!

Ela se afastou da janela e olhou pelo quarto sob a luz tênue do fogo. As lágrimas turvavam sua visão, mas não importava. Não havia nada ali que lhe pertencesse, nada que precisasse recolher. Partiria imediatamente e não daria a ele a oportunidade de vangloriar-se com os amigos da conquista de seu maldito prêmio.

Pelo menos ainda lhe restava Rockbury, e Nicholas nada sabia sobre sua ligação com esse lugar. Assim que saísse de Kirkham, nunca mais o veria.

Na penumbra, ela encontrou sua túnica no chão e vestiu-a rapidamente. Em seguida calçou os sapatos, amarrou os cordões, e saiu.

O dia amanheceu, o médico chegou e Nicholas foi chamado ao quarto de Sheffield. Ao ver que Maria não se encontrava na cama, imaginou que estivesse visitando o guarda-roupa ou talvez se banhando. Apesar de terem feito amor várias vezes durante a noite, ela não se sentiria bem lavando-se na frente dele à luz do dia. Mas isso logo iria mudar, talvez nessa mesma noite.

Nicholas sentia um orgulho tipicamente masculino pelo privilégio de ter mostrado à sua adorada Maria os prazeres compartilhados entre um homem e uma mulher. E não um homem qualquer. Mas ele. O único da vida dela.

Mais tarde, quando a noite chegasse e a levasse para a sua cama, iria introduzi-la em outros prazeres ainda mais sensuais. Nicholas jamais conhecera uma mulher tão receptiva quanto Maria. Sua virgindade e inexperiência lhe permitiam uma grande sinceridade na hora do amor. E isso, para ele, era algo totalmente novo. Mas também muito perturbador. Suas amantes em geral apreciavam seu desempenho, tudo o que podia lhes oferecer, mas esse caso era muito diferente: Maria gostava dele.

E essa era uma idéia inquietante. E claro que Nicholas não gostava dela da mesma maneira e nem poderia. Não tinha a mesma ternura, a ternura que uma mulher esperava. Por outro lado, tinha uma tarefa muito importante para realizar. Fazia um trabalho perigoso para Bedford e não ter laços familiares ou outros envolvimentos livrava-o de preocupações. Não tendo nenhuma mulher que prendesse seu coração, não seria vulnerável ao inimigo que quisesse usar essa fraqueza contra ele. Por enquanto, desfrutaria da companhia dela, mas logo se cansaria. Depois bastaria compensá-la pela dedicação e...

Suas sobrancelhas se juntaram num esgar. Afinal, quem era lady Maria?, ele se perguntou enquanto se vestia para ir ver Sheffield. Essa pergunta, que já havia passado antes por sua mente, fazia-se agora mais insistente. Não era uma amante descartável, é claro, mas as outras possibilidades eram muito perturbadoras. Ela vestia-se bem e falava como uma pessoa educada. Por outro lado, uma jovem da sua classe não costumava viajar desacompanhada.

Pensando nisso, Nicholas terminou de se vestir e saiu do quarto. Mais tarde iria atrás de uma explicação, depois que visitasse o amigo.

Maria mal podia acreditar.

Se onde estava fosse mesmo Rockbury, ela era uma verdadeira princesa. E claro que faltava saber se era ou não a herdeira, mas, ao menos por um instante, permitiu-se sonhar. A casa era um solar de três andares, com torres e torreões, e uma estrada de cascalho circular na frente de uma entrada imponente. Maria não poderia imaginar nada mais majestoso.

Mas ela não precisava de um palácio. Queria apenas um lar, um lugar tranqüilo onde se recolher e reavaliar os últimos acontecimentos de sua vida. Um lugar em que pudesse recomeçar a vida e esquecer Nicholas Hawken.

Foi com grande expectativa que ela conduziu seu cavalo até a porta principal e desmontou. Então teve medo de ter se enganado redondamente: uma casa tão luxuosa jamais poderia ser sua.

A porta se abriu sem nenhum ruído e um homem idoso apareceu. Maria fechou a boca, ergueu a cabeça e fitou-o nos olhos, não de maneira insolente, mas com determinação. Afinal, chegara para tomar posse do que lhe pertencia por direito, e não para mendigar.

Mesmo que a expulsassem logo depois.

A expressão do velho se alterou quando ela se aproximou, e no mesmo instante ele convidou-a a entrar. Maria não ouviu exatamente o que ele disse, mas deu dois passos e uma senhora — a outra parte do casal, talvez — surgiu nos degraus de entrada.

Deus do céu! — a senhora exclamou.

Sim — respondeu o homem, sem afastar os olhos de Maria.

— Lady Sarah voltou para nós.

Maria estava tão surpresa que mal conseguia respirar. Ele a tinha chamado de Sarah. E não iria mandá-la embora!

— Está tudo bem, moça — disse o homem.

A mulher saiu e pôs o braço no ombro de Maria, como se a conhecesse e a esperasse a vida inteira.

— Não precisa chorar. Você está em casa agora.

Maria nem percebera que havia lágrimas escorrendo por seu rosto. Ela as enxugou e deixou a mulher levá-la para dentro.

Seu pai ficará louco de alegria — disse a senhora. — Ele não perdeu a esperança de encontrá-la, desde que a sua terrível madras... Desde que a duquesa lhe disse que você havia sobrevivido. Nossa pobre Sarah foi levada do berço quando nasceu.

Meu pa-pai? — Maria perguntou, tentando controlar a voz trêmula.

Sim — o homem confirmou. — O duque de Sterlyng. John Burton. Vamos mandar avisá-lo agora mesmo.

— Então... então vocês acreditam que sou Maria Burton? O velho casal começou a rir diante da sua incerteza.

Você é a cara da sua mãe — disse a mulher — e tem os olhos de seu pai. Eles são assim dourados, como o sol quente de uma manhã de verão.

Ora...

Você sabe que é verdade, Elhart Twickham. Peço licença para dizer que Sua Graça, o duque, ainda é um homem adorável. E veja só este medalhão. Você não pode negar que pertenceu à nossa lady Sarah.

Mandarei avisar o duque agora mesmo — mestre Twickham repetiu enquanto sua mulher entrava na casa com Maria.

— Ele não levará mais que um dia para voltar de Londres quando souber que você está aqui.

Maria sentiu os joelhos falsearem.

Tinha um pai! Alguém que, como dissera a criada, não caberia em si de alegria por havê-la encontrado. Jamais na vida precisara tanto dele quanto nesse momento! Aí estava uma coisa com que Maria nunca tinha contado: Rockbury. Pertencer a esse lugar. Então se deu conta de que não acreditava que isso poderia ser verdade. Mesmo assim, ali estava, a filha do duque de Sterlyng. E ainda por cima o deixaria feliz por isso.

Para onde teria ido Maria? E, mais importante que isso, por que o havia deixado? Os dias que passaram juntos — e a noite gloriosa — não foram...

Era só o que faltava: começar a pensar como um rematado idiota. Noites gloriosas, dias adoráveis...

Ela não era nem mais nem menos que qualquer outra mulher que passara pela sua vida. Pela sua intimidade. Na verdade, mostrara até mais entusiasmo que a maioria delas, talvez fosse um pouco mais instigante que qualquer outra. Mas o que importava tudo isso? Se era para ser tão misteriosa, melhor livrar-se dela logo. Ele tinha seus próprios segredos para cuidar e isso bastava!

Nicholas andava de um lado para outro diante da lareira do grande salão, ponderando incansavelmente essas questões e muitas outras que o atormentavam. Não sabia realmente quem ela era, ou de onde viera, então não tinha a menor idéia de onde procurá-la.

Sim, iria procurá-la.

Só muitas horas depois ele se deu conta de que Maria saira de Kirkham, de modo que já estaria muito à frente em alguma das inúmeras estradas do condado. Quando Nicholas, finalmente, conseguiu sair do quarto de Sheffield, tentou seguir a pista de Maria, porém uma chuva forte no final da tarde apagara seu rastro.

Mas iria encontrá-la e trazê-la de volta para a sua cama, antes que ela se desse conta do que estava acontecendo.

— Como vai Sheffield? — Lofton perguntou de repente, interrompendo seus pensamentos.

Nicholas estranhou o tom leviano da pergunta. Afinal, Lofton fora responsável pela queda de Sheffield. Podia ao menos mostrar um pouco de remorso.

— O pulmão foi perfurado. Ele tem poucas chances de sobreviver.

Lofton balançou a cabeça.

— Que pena. Bem, ao menos você teve uma boa noite de sono.

Nicholas lançou-lhe um olhar desdenhoso.

Por que isso?

Trendall e eu procuramos acordar você de madrugada. Levamos uma prostituta até a sua janela e tentamos despertá-lo, mas...

O quê? Quando? — Nick deu um pulo na cadeira.

Não sei... mais ou menos uma hora antes do amanhecer... a gritaria podia ter acordado um defunto — ele riu. — Mas não Kirkham. Ah, não. Dorme mais pesado que um morto.

Nicholas segurou-se para não voar no pescoço dele. Podia imaginar o que acontecera naquele pátio sob a janela de Maria. Sem dúvida deviam tê-la acordado.

Ele ergueu-se de um salto e saiu do saguão. O que será que ela teria ouvido? Algo ofensivo, com certeza, mas seria motivo suficiente para fugir no meio da noite? Nicholas bateu com o punho na parede. Evidentemente, fora.

Dois dias depois, no início da noite, Maria sentou-se à beira de um pequeno lago que ficava no fundo do jardim. Era um lugar tranqüilo, onde os pássaros faziam seus ninhos, os insetos se alimentavam e pequenos animais corriam um atrás do outro e atrás da própria cauda numa tarde primaveril. Ela batia os pés na água, espantando os curiosos peixinhos dourados que pareciam não temê-la.

Ali, naquele lugar, quase esquecia do rosto de Nicholas Hawken e do toque sedutor de seus lábios em sua pele. Sentada naquele jardim, chegou bem próximo de negar que ele tivesse sentido qualquer coisa por ela algum dia.

Maria tirou os pés da água e cruzou os braços. Não podia pensar em Nicholas agora, não enquanto esperava pela chegada de seu pai...

— Milady?

A voz da esposa do administrador interrompeu seus pensamentos. Maria virou-se para olhar e encontrou um homem de cabelos brancos ao lado da mulher. Ele pisou em falso quando a viu, mas continuou andando, ansioso, embora estranhamente hesitante.

Ainda era um homem bonito para a idade. Maria reconheceu a si mesma quando se viu diante dele. Seus olhos arderam e a garganta ficou tão seca que ela não pôde dizer nada.

— Maria... — ele disse, aproximando-se. Sua voz era grave e profunda, porém um tanto ofegante. O homem estendeu a mão trêmula. Seus olhos cor de âmbar brilhavam.

Maria engoliu em seco e esforçou-se para falar.

— Pai? — ela sussurrou com voz indecisa.

Ele nada disse por um momento, mas segurou suas mãos com força. Só então a abraçou.

— Ah, minha criança!

 

Nem em suas mais loucas fantasias Maria poderia sonhar com um lugar mais estranho e maravilhoso que Londres. Havia gente por toda parte. O colorido dominava as feiras, além de um barulho que ela jamais ouvira antes. Havia no ar um cheiro de fumaça, de comida e de lixo, tudo misturado, isso sem falar no cheiro do Tâmisa, que era quase insuportável.

A casa de seu pai ficava na Bridewell Lane, não muito longe do rio, ao norte de Westminster. Costureiras, sapateiros e professores particulares entraram e saíram da casa na última semana, tudo numa velocidade tão grande que fazia a cabeça de Maria girar. Ela ganhou túnicas e véus novos, jóias, sapatos e botas. Ganhara também uma égua de passeio que ficava agora no estábulo de seu pai, além de uma sela ornamentada que era só sua.

Maria passara tanto tempo de sua vida imitando a prima Cecília que sua maneira de falar era quase perfeita e os modos, impecáveis. Mesmo assim, um professor particular foi contratado para ensinar o que faltava: como montar adequadamente, rudimentos de leitura e as habilidades de uma dona de casa.

Afinal, o duque queria ver sua filha casada sem demora.

Maria suspirou. Tinha acordado mais cedo e estava se vestindo, lembrando-se dos festejos da noite anterior. Seu pai convidara amigos e conhecidos para conhecer sua filha e alguns pediram o seu consentimento para cortejá-la. Ela devia estar feliz. Mais que isso, devia estar extasiada com as mudanças que haviam acontecido em sua vida. Tinha um pai gentil e amoroso, e tão feliz por ter a filha de volta que não media esforços nem despesas para agradá-la. Era protetor, mas não sufocante, dando-lhe muito mais liberdade do que usufruíam as outras filhas de nobres.

Os jovens que haviam comparecido à festa eram bonitos, ricos e realizados. Alguns deles tinham cadeira na Câmara dos Lordes. Outros eram fiéis cavaleiros do duque de Bedford na França. Mas nenhum deles era Nicholas Hawken.

Maria queria tirar definitivamente Nicholas da cabeça, porém descobriu que não era uma tarefa fácil. A cada sorriso masculino que se apresentava na sua frente, ela se lembrava da boca brincalhona de Nicholas e de seus beijos que a levavam à loucura. Cada um que tentava pegar em sua mão provocava uma dolorida pontada em seu coração.

Mas todo esse devaneio com Nicholas Hawken era absurdo. Sabia que tipo de homem ele era, e certamente não merecia nenhuma devoção ou fidelidade de sua parte! Ele era um canalha da pior espécie, um homem sem o menor escrúpulo de seduzir uma mulher atrás da outra.

Maria saiu do quarto e desceu para o andar social da casa, onde encontrou lady Alísia Preston, que cuidava da casa de seu pai, entrando com dois ramos de flores secas.

Alísia era uma prima de Sterlyng que se casara com um mercador contra a vontade de seu pai. Ficara viúva muito jovem e precisara trabalhar para manter a si e a um filho pequeno. Sterlyng oferecera-lhe não só um emprego, como também casa e comida para ela e o menino, que agora já tinha idade para ser escudeiro de um tio em Surrey.

Alísia recebera sua jovem prima de braços abertos, como se fosse uma irmã mais moça. E Maria aceitara sua amizade com imenso prazer.

Bom dia, querida — disse Alísia para Maria. — Chegaram mais flores para você.

Mais... — Maria olhou em volta e viu vários vasos e potes com flores secas sobre a mesa. Levou um susto. Jamais em sua vida pensara em viver uma coisa dessas. — Mas o que significa tudo isso?

Alísia riu.

— São presentes, minha doce menina. Mimos enviados por seus jovens admiradores.

Que admiradores?

Os jovens que aqui vieram ontem à noite... e anteontem também.

Mas eu...

-— Vieram outros presentes também — disse Alísia. — Roupas, tecidos, pura lã, eu acho, e até uma perna de carneiro.

Uma perna de carneiro?! — Maria estava incrédula. — Por que tudo isso?

Seu pai está lhe procurando um noivo. Mas já deixou bem claro que é você quem vai escolher. Por isso nos últimos dias temos recebidos a visita de tantos cavalheiros. Eles sabem que apenas um será o vencedor.

Ignorando a cara de espanto de Maria, Alísia foi buscar outra porção de flores na mesa ao lado das escadas.

Alguém bateu na porta e Alísia foi atender com as mãos ocupadas.

— Eu atendo — disse Maria.

Ainda tentado assimilar o que a prima lhe dissera, ela soltou a tranca e puxou a porta. Mas não teria ficado mais surpresa se alguém lhe tivesse dado um tapa na cara.

Era Nicholas!

Nesses longos e intermináveis dias desde que a vira pela última vez, Maria se tornara ainda mais bonita. Nick não sabia se a estrangulava por tê-lo abandonado ou se a beijava até fazê-la perder os sentidos. Deixaria que seus instintos masculinos ditassem as regras.

Ela ainda tentava recuperar-se do choque quando foi envolvida por seus braços e beijada com avidez. Nick sorveu seu gosto pungente, inspirou o perfume e sentiu a textura dos cabelos e as curvas deliciosas do corpo ao se encostar nela.

Nada mais tinha importância.

Se pudesse, a devoraria ali mesmo, mas os protestos indignados de Maria e a presença da outra mulher o fizeram cair em si. Ao mesmo tempo, sentiu as mãos dela em seu peito, tentando, na verdade, empurrá-lo.

— Milorde! — a mulher gritou. — Solte lady Maria imediatamente!

Nick não conseguia afastar os olhos dos dela. Mas não via neles nenhuma paixão e muito menos excitação. Apenas o pânico. Os lábios estavam vermelhos por causa de seus beijos, porém trêmulos. Ela deu um passo para trás. E um tapa no rosto dele.

Nicholas levou a mão à face agredida e enrubesceu. Talvez não fosse apenas pânico, mas também... raiva.

Devo pedir ajuda, lady Maria? Nicholas esfregava o rosto sem sair do lugar.

Pensei que ficasse feliz em me ver, Maria — disse.

Ela olhou para Nicholas como um cervo sob a mira de um arqueiro pronto para disparar. Ele lhe estendeu a mão. Os olhos dela estavam marejados de lágrimas e o lábio inferior tremia.

— Não sou nenhuma vadia, Nicholas. Se veio aqui para...

Alísia levou um susto com a resposta inesperada, e Nicholas se afastou. De maneira alguma a tratara como uma prostituta. Era verdade que a seduzira e tirara a sua inocência, e por isso já sentia muito remorso. Enganara-se redondamente com ela, assim como falhara em reconhecer sua verdadeira condição quando a levara para Kirkham.

Nicholas não pretendia levá-la para a cama nesse momento... especialmente enquanto Maria estivesse morando na casa do pai. Não, ele tinha intenção de cortejá-la tanto quanto seus demais pretendentes estariam dispostos a fazer. Não podia ter planejado estratégia melhor para expor a traição de Sterlyng contra a Inglaterra.

— É claro que não, minha linda dama — ele pegou a mão dela e levou-a aos lábios. Então deu um sorriso sincero. — Eu vim prestar-lhe os meus respeitos... e solicitar uma audiência com a senhora e o senhor seu pai quando for mais conveniente.

Maria pensou que fosse desmaiar quando Nicholas partiu. Felizmente Alísia estava perto para segurá-la e ajudá-la a sentar-se numa cadeira.

Não é da minha conta, Maria, mas ele deve ter magoado muito você...

Não, não, ele não me magoou, Alísia. Só me aborreceu. Nicholas Hawken não tem o poder de me magoar.

Maria nem percebeu que Alísia ergueu levemente uma sobrancelha.

— Se quiser, posso falar com seu pai... Ela balançou a cabeça.

— Prefiro que meu pai não saiba desse incidente. Por favor — pediu, pegando na mão de Alísia —, não conte a ele. Não quero causar-lhe preocupações.

Da mesma maneira que não queria que o pai soubesse da tolice que cometera em Kirkham, para não pôr em risco o bom conceito que ele tinha dela. Para seu pai, Maria nunca fazia coisas erradas, e assim deveria continuar.

— Acho que ele não vai mais se aproximar de você, não depois... da sua reação — Alísia comentou, desconfiada.

Maria esfregou as mãos. Quase duas semanas longe daquele homem, e parecia que fazia pouco que ele havia espalhado uma doce destruição em seu corpo, invadido seu coração e seus sentidos. Maria nunca mais se esqueceria daqueles olhos cinzentos devassando sua pessoa nem das mãos poderosas que operaram maravilhas em seu corpo, em sua alma.

Já havia se passado uma semana quando Nicholas soubera que Maria andara fazendo perguntas sobre Rockbury, e então deduzira seu provável destino. Nem é preciso dizer que ele levou o maior susto quando soube que ela era filha de Sterlyng. Só então se lembrou onde vira aqueles olhos dourados. O duque de Sterlyng tinha os mesmos olhos leoninos, bem como a farta cabeleira, que nele já estava branca.

Justo ele, o traidor da Inglaterra.

Nicholas passara dias recolhendo informações a respeito do reencontro de Sterlyng com a filha desaparecida. Ouviu dizer muita coisa sobre ela e os anos de desolação que vivera em Alderton, e comprovou pessoalmente a veracidade dessas histórias. Vira sinais de sua vida dura, mas nunca juntou as evidências^

Em Londres, soubera que Maria saía todas as manhãs na companhia de um criado, e decidiu abordá-la. Pela reação que ela tivera pela manhã, viu-se que não era imune ao seus toques e beijos. E ele também não era imune a ela. Impossível não se lembrar de Maria o tempo todo, desde o primeiro momento em que fora atingido por seu punho na estrada perto de Kirkham, até as intimidades trocadas na última noite que estiveram juntos. Nicholas não tinha intenção de armar uma cilada para ela na casa de seu pai. Mas para sua decepção, descobriu que não podia manter as mãos afastadas ou impedir que seus lábios a desejassem.

Nick sorriu. Maria valia todo e qualquer esforço. Ele já devia esperar pela sua reação arredia. Aquela mulher tinha muito mais paixão do que dezenas de outras conhecidas dele. Nicholas mal podia esperar pelo próximo encontro de amor que fatalmente teriam.

Ele a levaria para a cama outra vez. E não demoraria muito. Mas, por enquanto, teria de esperar.

Não podia haver melhor desculpa que Maria Burton para aproximar-se de Sterlyng e provar que era ele quem passava informações ao duque de Alenon. Mesmo que tivesse que controlar seu apetite cada vez que ela chegasse perto, não estava além de sua capacidade. Era difícil, mas não impossível. E ele iria conseguir.

Nicholas concentrou-se no assunto em questão. Maria tinha o hábito de cavalgar em Westminster todas as manhãs com o criado. Em geral pegava as estradas próximas e encontrava seu pai num determinado ponto para beber um drinque e fazer uma refeição leve.

Nicholas pretendia interceptá-la antes que se encontrasse com Sterlyng. Queria se desculpar por seu comportamento anterior e fazer que ela o aceitasse como pretendente. Para isso, ele se escondeu numa clareira nas cercanias de Westminster e ficou esperando por ela. Se suas fontes estavam corretas e Maria não mudasse de caminho, logo estaria chegando.

Nick continuou montado, mas encontrou um ponto que não era visível da estrada. Queria pegá-la de surpresa, assim como o fizera pela manhã. Sua reação fora puramente instintiva e verdadeira.

É claro que ela não lhe era indiferente. A prova disso é que ainda sentia no rosto o tapa que levara. Nick sorriu ao sentir o corpo tenso só de pensar em estar com Maria na cama outra vez. A noite que passaram juntos tinha sido extraordinária. Mesmo com sua inocência, a maneira como ela respondera às suas carícias fôra mais fogosa e intensa que qualquer outra que ele conhecera. Só de pensar em tê-la nua ao seu lado na cama, com seus longos cabelos espalhados sobre os lençóis, os olhos fixos uns nos outros e os corpos colados, bastava para enlouquecê-lo.

A aproximação de um cavaleiro interrompeu os pensamentos de Nick. A julgar pela velocidade das patas do cavalo, era um cavaleiro lento. Razão a mais para acreditar que Maria logo estaria passando pela estrada.

Ele enxugou nas pernas as mãos suadas quando a viu e soltou o ar dos pulmões. Maria estava magnífica como as mulheres sabem ser, vestindo fina seda e veludo, capa combinando e um véu nos cabelos. Nicholas notou que ela montava corretamente, muito melhor do que antes, quando cavalgara a seu lado nas terras de Kirkham.

Ele posicionou seu cavalo para interceptar o dela.

Oh! — Maria gritou, levando a mão ao peito.

Minha linda dama — Nick puxou a rédea para acalmar sua montaria. — Que coincidência!

— Milady? — perguntou o criado, aproximando-se. Maria não disse nada, mas provavelmente estava avaliando a situação.

Está tudo bem, Cole — disse por fim, virando-se na sela para falar com o criado. — É lorde Kirkham. Nós já nos conhecemos.

Milady... Sua Graça disse que...

Encontre-nos naquele bosque à beira do caminho, Cole — Nicholas sugeriu. — Não me demorarei muito com lady Maria.

Maria não gostava da maneira como Nicholas ditava as ordens. Ele achou que ela fosse chamar Cole de volta, mas talvez não quisesse demonstrar seu nervosismo. Agora que já a conhecia melhor, sabia que seu jeito de lidar com determinadas situações era enfrentando-as. Maria empinou o nariz e continuou seu caminho.

Maria...

Não temos nada a nos dizer, milorde.

Nicholas — ele a corrigiu, tentando atrair seu olhar. Maria virou a cabeça e ergueu os ombros.

Você está brava comigo.

Ela não disse nada e continuou seu caminho.

— Não posso acreditar que tenha deixado Kirkham por causa das besteiras que alguns palhaços disseram embaixo da janela.

Maria o olhou com desprezo e em seguida voltou-se para a estrada, como se ali estivesse a paisagem mais linda de toda Londres.

Nicholas resolveu mudar de estratégia.

Cavalgando em silêncio, ele estudou seu perfil, o véu transparente que mal cobria os cabelos dourados, o elegante colar que enfeitava seu lindo pescoço, a maneira que as mãos enluvadas seguravam as rédeas...

Nicholas resolveu tirar da cabeça os pensamentos inúteis que não serviam de nada à sua missão. Havia muitos meses ele vinha recebendo informações da França. Buscava num palheiro alguma prova que o ajudasse a descobrir quem era o traidor.

Um rosto bonito e um corpo sedutor não o desviariam de seu propósito.

Ele puxou as rédeas e diminuiu o ritmo do cavalo para emparelhar com ela.

— Maria — ele disse suavemente —, não me torture com a sua indiferença. Eu peço desculpas pela maneira pouco nobre com que me comportei com você em Kirkham. Não imaginei... nunca pensei...

Se ela não parasse de olhar para a sua boca enquanto falava, iria acabar se esquecendo de que prometera agir como um cavalheiro.

— Por favor, vá embora, Nicholas. Não sou mais uma órfã desprotegida e sem recursos. Meu pai quer me dar um casamento honroso. Ele nada sabe do que aconteceu em Kirkham... — Ela abaixou os olhos, envergonhada — e quero que continue assim.

Nicholas viu-a puxar uma rédea e virar o cavalo. Enquanto olhava Maria se afastar, ele esfregou o peito com a mão. Por mais que tentasse, não conseguia ignorar o fato de que cometera um grave erro com ela.

Era assustador. Se a culpa que sentia fosse indicação de al­guma coisa, significaria que não era o canalha que pensava ser.

 

Não levou muito tempo para que Maria e seu pai se tornassem muito próximos. Nunca se criou entre eles alguma situação embaraçosa tão comum entre pessoas que ainda não se conhecem; pelo contrário, eles se sentiram imediatamente ligados um ao outro.

Nos primeiros dias passavam juntos a maior parte do tempo, como se quisessem recuperar os anos perdidos. Maria pouco falava de como era sua vida em Alderton, mas Sterlyng imaginava como seria. Ele tinha muita vontade de viajar para o norte e fazer uma visita à sua cunhada.

Por favor, pai — Maria protestou. — Essa parte da minha vida é página virada. Quero seguir em frente agora. Não há nada que tenha importância no meu passado. Agora que encontrei você e tenho toda a vida pela frente...

Mas não está certo, Maria — retrucou Sterlyng. — Me faria muito bem ver Olívia Morley pagar pelo modo como a tratou todos esses anos. E por não ter me procurado, mesmo sabendo que...

Eu acho que ela não sabia, pai. Os Morley nunca mais quiseram ouvir falar de minha mãe depois que a rejeitaram por ter ingressado na corte do rei Henrique.

Mesmo assim...

Mas eu sobrevivi — disse Maria, abraçando-o. — E encontrei você.

Mas não graças a Olívia — Sterlyng contestou. — Sabe que enviei um emissário a Alderton? Ele conversou pessoalmente com Olívia e ela negou a sua existência. Ela mentiu.

— Eu sei — Maria sussurrou. — Foi como eu fiquei sabendo sobre Rockbury. Mas eu me mudaria, pai...

De Alderton. E de Kirkham...

Maria não mencionou o período que passara em Kirkham. Tinha certeza de que seu pai teria expulsado Nicholas se soubesse o que acontecera entre eles. E não queria que isso ocorresse.

Depois de terem trocado aquelas poucas palavras na estrada de Westminster, ela queria apenas que ele ficasse fora de seu caminho. Sua presença só fazia machucar ainda mais seu coração dolorido. Era difícil vê-lo, estar com ele, quando sabia que seus sentimentos não eram retribuídos.

Não, ele estava em Londres não porque se importasse com ela, mas porque ela ofendera seu orgulho saindo de Kirkham como saíra. Dificilmente suas amantes abandonariam sua cama no meio da noite.

De repente a sala ficou fria e Maria enrolou seu velho xale de lã ao redor dos ombros. Era um frio que penetrava nos ossos, apesar da tarde ensolarada e de primavera. Ela tratou de afastar os pensamentos que a incomodavam e enxugar as lágrimas tolas de seus olhos. Sua vida mudara completamente. Não tinha apenas um pai que a amava, mas a segurança de um nome e um lar.

Seu pai deixara bem claro que a queria honradamente casada e bem depressa. Ela já estava numa idade avançada para um primeiro casamento e Sterlyng achou que já era hora de insistir nessa questão antes que a idade se tornasse um empecilho. Não pretendia apressá-la nem faria um contrato de noivado sem o seu consentimento. Na verdade, dissera a Maria que, como ela tivera poucas escolhas até os 22 anos de idade, permitiria que escolhesse o marido que quisesse, desde que fosse adequado.

Porém Maria não tinha ilusões sobre o casamento que iria escolher. Seu pai lhe apresentara vários nobres disponíveis, a maioria deles bem atraente. Mas nenhum fizera seu sangue borbulhar.

Nicholas não precisou fazer muito esforço para melhorar sua reputação na Câmara dos Lordes. Bastou comparecer a todas as sessões na semana seguinte, comportar-se com responsabilidade e evitar as más companhias. Chegou até a enfrentar o arrogante conde de Bexhill, um sujeito bobalhão com opiniões obtusas. Nick sabia que seria impossível privar da intimidade de Sterlyng, mas faria o que fosse possível para que o duque o aceitasse em sua casa. E cortejar sua filha.

Ele não pretendia casar-se com ela, apenas cortejá-la como qualquer outro pretendente e assim ter acesso à casa do duque, bem como ao próprio duque. O gabinete de Sterlyng em Westminster passara por uma revista rigorosa, mas sua casa ainda não fora vasculhada devido às sólidas trancas em janelas e portas, e também à lealdade dos criados. Dependia de Nicholas ter acesso à privacidade de Sterlyng em sua própria residência.

Ouvira falar que ele andava oferecendo umas reuniões em Bridewell Lane e que o propósito dessas soirées era apresentar Maria aos pretendentes. Mas se recusava a pensar na possibilidade de Sterlyng arranjar um casamento para ela. Embora não soubesse muito bem o porquê dessa recusa, estava decidido a cair nas boas graças do duque assim que fosse possível.

A oportunidade apresentou-se numa tarde chuvosa, quando o tio do rei, o duque de Gloucester, adentrou sua sala em West-minster.

— Kirkham — ele disse. Nitidamente doente e febril, Gloucester tossia dentro de um lenço de linho. Ele entregou uma carta a Nicholas. — Isto acaba de chegar da França. Bedford pediu que a entregasse a Sterlyng imediatamente. E também quer que você leia.

Nick tirou o lacre e leu em francês:

O rei da Inglaterra tem contas a prestar ao Rei do Céu por seu sangue real. Devolva à Donzela as chaves das cidades confiscadas. Ela é a enviada de Deus para reclamar o sangue real, e está preparada para restabelecer a. paz quando satisfeita; isto é, faça justiça e pague por tudo o que tirou.

Nesse ponto da leitura, Nicholas ergueu os olhos, franziu as sobrancelhas e perguntou:

— O que é isto? Quem escreveu? Gloucester assoou o nariz e respondeu:

— A donzela. Uma jovem a serviço do delfim. Ela diz que o poder de Deus está com ela e quer que a Inglaterra devolva tudo o que conquistou na França.

Nicholas leu a carta até o final, onde a "donzela" sugeria que os exércitos de Bedford fossem destruídos se ele não se retirasse da França.

E o que mais sabemos?

Bedford não sabe nada... só que ela esteve recentemente em Chiens com o delfim.

— Isso foi confirmado? Gloucester assentiu.

Não seria só mais uma vivandeira? — Nicholas sugeriu, na esperança de que a carta tivesse menos valor que a tinta e o pergaminho usado para escrevê-la. O moral das tropas inglesas estava baixo. Uma prostituta com uma missão divina, seguindo os soldados nos campos de batalha, provavelmente teria o poder de dizimá-los.

Não. É muito mais sério do que isso.

Nicholas notou a preocupação de Gloucester. Embora não fosse um político astuto, era um homem de intelecto refinado e não se deixava enganar com facilidade. Da mesma maneira que seu irmão, o duque de Bedford, Regente da França. Se os dois levavam a carta tão a sério, Nicholas também deveria levar.

Posso mostrar esta carta a Sterlyng? — ele perguntou. Seria uma ótima oportunidade para ver pessoalmente a reação do duque e talvez descobrir mais alguma coisa sobre a sua traição.

Esperava que você fizesse isso — Gloucester respondeu no exato momento em que um trovão chacoalhou as janelas. — Esse tempo é terrível para mim.

Um criado da casa da Bridewell Lane veio atender à porta e o fez entrar. Nicholas ouviu vozes no interior da casa enquanto esperava pela autorização de Sterlyng. O criado não demorou a voltar, apanhou sua capa e conduziu-o até um grupo de pessoas reunidas na principal sala da moradia, um espaço amplo com pé-direito muito alto e aquecido por uma grande lareira e um fogo de chão. Havia várias pessoas ali reunidas.

Nicholas não acreditou quando viu que Bexhill se encontrava entre elas. Maria estava sentada ao lado dele... e a seu ver, perto demais.

Já fazia uma semana que ele não a via. Ela estava linda, usando uma túnica parecida com a que lhe pedira para usar em Kirkham. O castanho avermelhado deixava seus cabelos cor de mel ainda mais lindos. O modelo favorecia suas formas, e o decote do corpete exibia seus atributos talvez um pouco mais do que deveria, pensou Nick. Seus dedos doíam de vontade de tocá-la.

— Kirkham — Sterlyng recebeu-o cordialmente quando se aproximou. — A que devemos tanta honra?

Nick afastou os olhos de Maria e voltou-se para o pai.

— Infelizmente, negócios, Sua Graça. Sterlyng assentiu.

— Todos conhecem Kirkham? Maria? Você contou que fez uma rápida visita à propriedade do marquês.

— Sim, pai — ela respondeu em voz baixa. Um leve rubor tocou suas faces. — Já nos conhecemos.

— Muito bem, se nos dão licença... — disse Sterlyng, conduzindo Nicholas para outro aposento.

Não devia estar usando essa túnica.

Quando os criados vieram avisar que a mesa estava posta para o jantar, Maria aproveitou para jogar um xale de seda preto sobre os ombros. Cuidou para que ficasse tudo coberto do pescoço para baixo. Sua prima Cecília certamente usaria uma túnica como a sua, mas ela se sentira quase nua enquanto Alísia amarrava o corpete do modelo arrojado.

Era muito desconfortável ficar exposta aos olhares discretos e indiscretos dos cavalheiros presentes. Pior foi a reação de Nicholas. Quando ele chegou, pareceu que a despisse na frente de todos. Foi um alívio seu pai tê-lo levado para o estúdio. Não era nada fácil dividir o mesmo espaço com ele e não sentir sua poderosa presença. Se já era trabalhoso afastá-lo da mente quando não estava por perto, imagine tendo-o ao alcance da vista.

Maria levou os convidados para a sala de jantar, onde uma grande mesa fora preparada para acomodar a todos os presente. Os menestréis estavam a postos com seus instrumentos e os criados entravam e saíam com bandejas de comida e garrafas de vinho. Maria cumpriu seu papel de anfitriã distribuindo os lugares à mesa, e só então se sentou.

A conversa girou em torno do torneio real pela paz que aconteceria no final de semana e também sobre a Feira de Londres, inaugurada naquela mesma manhã. A chuva atrapalhara um pouco as festividades, mas os quiosques não chegaram a fechar. Muitas brincadeiras foram feitas em torno dos mercadores londrinos, que não abriam mão de ganhar dinheiro com chuva ou com sol.

Quando seu pai retornou ao lado de Nicholas e pediu mais um lugar à mesa, ela colou os olhos no conde de Bexhill e fingiu ser toda ouvidos à sua tola conversa de lanças e arremessos, justas e outros torneios.

Nicholas sorriu. A reação de Sterlyng à carta não lhe dissera nada, mas a noite não estava perdida. Causara uma boa impressão ao duque e agora iria jantar ao lado dele e de sua filha, juntamente com os demais convidados.

Maria estava de novo ao lado de Bexhill. Nick viu o rosto dela empalidecer quando ficou claro que ele permaneceria para jantar e chegou até a ouvir uma áspera inspiração ao ocupar a cadeira vazia ao lado dela. Maria esperava que seu pai se sentasse ali.

— Quero lhe agradecer por permitir que eu participe de sua festa — ele disse, em seguida inclinou-se levemente e falou num tom que só ela podia ouvir. — Você está linda esta noite, meu amor.

Maria ergueu o copo e tomou um longo gole. Depois voltou-se para Bexhill, que contava em alto e bom som suas proezas nos campos de batalha na Aquitânia. Ela colou os olhos no idiota e não virou um centímetro sequer para os lados.

— Minha linda dama — Nicholas sussurrou, puxando seu xale furtivamente. — Se deixar este pedaço de seda escorregar apenas um pouquinho, eu ficaria um pouco mais perto do céu só por vislumbrar sua pele perolada.

Nicholas viu o delicado pescoço engolindo em seco. Maria se afastou dele o máximo que pôde, quase se sentando no colo de Bexhill. Mas para seu imenso deleite, algo se descontrolou e o xale caiu. Nick abaixou-se para pegá-lo, e ela também.

— Seu decote é irresistível, meu amor — ele disse quando os rostos se aproximaram. — Se eu pudesse tocar em...

Maria ergueu-se de imediato e passou a se dedicar exclusivamente à comida que havia em seu prato, ignorando-o enquanto enrolava o xale ao redor dos ombros.

Seu rosto corou à luz das velas, mas isso só Nicholas percebeu. E também estava trêmula, porém tanto podia ser de raiva quanto de excitação. Mas ele não tinha dúvidas: era de excitação.

 

Dois dias se passaram sem que Nicholas voltasse a vê-la. Tinha ido à casa da Bridewell Lane no dia anterior, mas disseram-lhe que ela não se encontrava. Mentira! A casa era vigiada e ele estava a par de todos os movimentos de seus moradores. A verdade era que Maria não queria vê-lo.

— Milorde — Henric Tournay entrou no escritório de Nicholas, em Westminster, trazendo um maço de cartas —, sir Roger manda avisar de Kirkham que lorde Sheffield já se recuperou e vai voltar para as suas terras em York.

— Que bom. — Nicholas relutara a sair do castelo de Kirkham, temendo pela saúde do amigo. Mas, para vigiar Sterlyng mais de perto e, se possível, encontrar Maria, não lhe restara outra escolha.

— Estas cartas chegaram para o senhor, milorde. Preciso também da sua assinatura nesta outra.

Nick jogou os pergaminhos na mesa e foi para a janela. Era uma linda manhã de sol e Maria não lhe saía da cabeça. Precisava encontrar uma maneira de vê-la. Essa necessidade de procurá-la o deixava confuso. Tentava convencer a si mesmo de que seu interesse era um só: ter acesso ao pai dela.

— Milorde?

Ele virou-se para Tournay, que permanecia no mesmo lugar, esperando.

— Hummm?

— Sua assinatura.

— Ah, sim... — Nick voltou para a mesa. Mergulhou a pena na tinta enquanto folheava os pergaminhos que devia assinar. Correu os olhos por eles, assinou-os e devolveu ao secretário.

Localize sir Gyles e diga que preciso falar com ele.

Acredito que ele esteja aqui mesmo em Westminster, milorde — respondeu o secretário.

Excelente! Quero vê-lo o mais rápido possível.

Tournay saiu e Nicholas sentou-se para examinar a correspondência. A maioria era o de sempre: relatórios sobre suas terras, o convite para uma festa no Castelo de Fleet e... Nicholas inspirou e acomodou-se na cadeira antes de examinar esse último pergaminho. A carta estava dobrada dentro de uma pasta com seu nome. Nela estava escrito o nome de Sterlyng e uma mensagem concisa: "Seus números estavam corretos. Já sabemos onde a donzela será mais útil". E vinha assinada com um floreado "J".

Havia pedacinhos de cera dentro do envelope — partes do selo, sem dúvida. Mas era impossível determinar sua origem. Ele se levantou e correu para a porta.

— Tournay!

O imperturbável secretário já se encontrava longe do escritório, mas retornou imediatamente.

— Sim, milorde?

Nick entrou e fechou a porta.

— Quem mandou isto? — perguntou.

Tournay balançou a cabeça diante do pergaminho que Nicholas tinha na mão.

— Não sei, milorde. Estava embaixo da porta quando cheguei esta manhã.

— Não achou estranho encontrar isto lá? Tournay deu de ombros.

— Não, milorde. E comum encontrar correspondência embaixo da porta, sobretudo de manhã.

Nicholas acreditou, embora esperasse uma resposta mais convincente para aquele misterioso "J". Quem era "J" e quem interceptara aquela mensagem para fazê-la chegar às suas mãos? Ele não pôs em dúvida a autenticidade da carta por causa da referência à "donzela". Alguém sabia sobre a desleal troca de informações de Sterlyng com a França e estava tentando incriminá-lo como traidor. Mas o que importava saber quem era essa pessoa? Se a acusação fosse comprovada, que diferença faria saber de onde viera a carta?

O fato é que parecia muito fácil.

Sterlyng mostrara-se verdadeiramente surpreso quando lera a carta da "donzela" para o rei. Se a conhecesse, e se o delfim estivesse usando a tal donzela para elevar o moral de seus exércitos, ele saberia.

Milorde — sir Gyles bateu e abriu a porta — mandou me chamar?

Mandei. Tournay, veja se descobre quem foi que entregou esta mensagem.

O secretário assentiu e deixou Nicholas a sós com Gyles.

Notou algum movimento estranho em Bridewell Lane? — Nicholas perguntou, ainda perturbado com o que lera na carta interceptada. Alguém estava muito interessado em que ele condenasse Sterlyng. Mais intrigante era o fato de o informante não querer aparecer.

Não, milorde. Só o movimento normal dos criados. Ontem, lady Maria não saiu o dia inteiro; choveu quase o dia todo, lembra-se? Mas hoje pela manhã ela foi com Bexhill à Feira de Dunstan.

Nick abriu a boca num ar de espanto:

Bexhill!

Sim, milorde! O conde chegou cedo para levar a senhora e sua acompanhante, lady Alísia Preston, à feira.

Difícil para Nick entender por que Maria saía com aquele imbecil. Era apenas um fanfarrão que vivia se gabando de suas proezas nos campos de França. Bexhill considerava-se invencível nos torneios e, pelo jeito, queria convencer também Maria de que era o melhor. Afinal, no momento ela era o que havia de melhor. Casar-se com a filha de um duque muito rico, um dos mais respeitados de todo o reino, seria uma conquista e tanto para qualquer um. Mas antes teriam de passar sobre o cadáver de Nick.

A Feira de Londres era muito diferente das outras que Maria conhecera no interior. Havia um mundo de coisas para comprar, tantos tipos diferentes de alimentos, tantas diversões. Além do dinheiro que levara para seus gastos pessoais, seu acompanhante estava disposto a gastar uma fortuna, se fosse preciso, para agradá-la.

Maria não dava atenção às fanfarronices de Bexhill. Este era apenas uma companhia decente. Ela estava se sentindo uma princesa, vestida com o que havia de mais fino e tendo ao lado um conde tão bem-apessoado. Alísia Preston se encontrava a seu lado e não demorou para que vários de seus novos conhecidos também se juntassem ao grupo. Bexhill não parecia se importar de dividir a atenção de Maria com tanta gente simplesmente porque confiava em sua inigualável superioridade como pretendente.

Alísia pegou Maria pelo braço e puxou-a para uma barraca onde estavam expostos artigos de vestuário.

Se quer um conselho, Maria, "manipule" um pouco mais Bexhill — disse, quando elas estavam fora do alcance do conde.

O que quer dizer?

Na cabeça dele, vocês dois já estão comprometidos em casamento — Alísia explicou, alisando disfarçadamente uma peça de linho.

Maria arregalou os olhos e abriu a boca.

Não é possível... eu não dei nenhum motivo para que ele...

Oh! Maria... você é tão jovem...

Não sou, não — ela protestou. — Já completei vinte...

Estou falando de experiência, querida.

Maria corou. Na verdade, era bem mais experiente do que Alísia poderia imaginar, mas no fundo a outra tinha razão. Fôra absurdamente ingênua por permitir que aquele desclassificado do Nicholas Hawken a seduzisse e enganasse como fizera.

O que devo fazer?

Apenas dê atenção também aos outros. E ao conde só dê o que for estritamente necessário.

Maria franziu levemente a testa enquanto pensava no conselho da amiga.

Acho que entendi.

Deixe-o sofrer um pouco. É bom para um homem lutar pelo amor de sua bem-amada.

Maria ponderou as palavras de Alísia. Fora exatamente esse o seu erro com Nicholas: não havia parado para pensar um pouco mais antes de se entregar a ele. Sucumbira ao seu charme sedutor sem nunca ter questionado suas intenções. Que arrependimento!

E, ainda por cima, sentia a falta dele. Estava pronta para aceitar outros pretendentes, mas nenhum a atraía tanto quanto o insolente Nicholas Hawken. Reconhecia-o como um rematado canalha, um libertino, porém, infelizmente, gostava dele e nada podia fazer.

— Embrulhe esta peça de seda — disse uma voz familiar. — E mande entregar na casa de lady Maria.

Ela se virou e deu de cara com Nicholas olhando-a com aquele apetite que ele não fazia a menor questão de disfarçar. Logo atrás estava sir Gyles, pagando pela peça da seda mais linda e mais fina que já se vira.

— Milorde — Alísia tentou protestar. — Não é próprio de sua parte comprar essa seda para lady Maria. Alguém pode interpretar mal seu...

— O que foi? — Bexhill aproximou-se. — Ah, Kirkham...

— Em carne e osso — Nicholas curvou-se com um floreio, mas que não era, absolutamente, um gesto amigável.

— Procurando uma nova conquista para se divertir? — Bexhill rosnou,ignorando o susto que Maria levou.

— É claro que não, Bexhill, mas me parece que você já se cansou da sua própria vaidade e está em busca de novas platéias.

Maria estava consternada diante daqueles dois homens feitos que se comportavam mais como touros bravos do que como nobres cavalheiros passeando pela feira numa manhã agradável. Saiu indignada e deixou os dois se enfrentando. Pegou no braço de outro pretendente e seguiu para as demais barracas, mas de longe podia ouvir Nicholas e Bexhill provocando um ao outro.

— Um doce para tão doce dama? — seu companheiro perguntou ao passarem pela barraca de doces.

— Não, obrigada. — ela seguiu direto. Estava com o estômago revirado. O enjôo piorou ainda mais quando ouviu conde Bexhill discutir com Nicholas suas proezas em duelos. Que coisa mais ridícula! Por fim Bexhill o desafiou a enfrentá-lo no próximo torneio.

— Terei o maior prazer em vencê-lo num torneio, Bexhill.

— Nicholas não estava mais se comportando como um nobre indolente. Parecia furioso, e Maria o via assim pela primeira vez.

— Vãs ameaças de um tolo imprestável — Bexhill enfrentou-o com o olhar.

Começou a juntar gente ao redor dos nobres cavalheiros. Alísia tratou de afastar Maria da confusão no momento em que sir Gyles finalmente resolveu intervir e apartá-los.

Maria se sentiu muito mal com aquela discussão. Nicholas era de longe o mais forte, mas talvez estivesse sendo parcial, uma vez que o conhecia intimamente — cada músculo, cada nervo, cada pedacinho dele.

Mesmo assim, temia por sua integridade física se enfrentasse lorde Bexhill num torneio, cujas proezas nos campos de batalha eram bem conhecidas. Ela nada sabia sobre as habilidades militares de Nicholas. Só lhe conhecia a fama de devasso que desperdiçava sua vida e seu dinheiro na busca incessante do prazer.

E se Nicholas não soubesse empunhar uma espada ou uma lança? O que poderia acontecer?

— É hora de voltar para casa, lady Maria. — Alísia já estava preocupada com Maria, que a cada minuto parecia mais pálida e perturbada. Ela obedeceu sem titubear.

Ao chegarem a Bridewell Lane, Sterlyng ainda não regressara de Westminster. Maria tinha conhecimento de fatos horríveis que andavam acontecendo, mas seu pai não dividia com ela suas preocupações. Não queria perturbá-la com os assuntos da Inglaterra.

— Vá se deitar. Você precisa estar bem-disposta esta noite — disse Alísia. — Todos os jovens da nobreza que moram nas redondezas estarão no Castelo de Fleet. Será uma ótima oportunidade para escolher seu futuro marido.

Maria não se entusiasmou com a idéia, porém não disse nada. Apenas subiu os degraus para seu quarto e se deitou na cama, adormecendo logo em seguida.

Nicholas estava indignado com seu próprio comportamento. Brigar em público, e justo com Bexhill! Isso era o pior de tudo. Ele era apenas um almofadinha estúpido, com um ego altamente inflado.

Mas discutir com ele na frente de uma barraca de roupas em plena Feira de Dunstan... isso sim é que era tolice. E o pior era que se comprometera com ele num duelo, não só diante do próprio rei e seus conselheiros, mas de metade da população de Londres, nobres e plebeus, que não perdiam um torneio por nada no mundo.

E ainda por cima precisava encontrar e desmascarar um traidor.

Henric Tournay não conseguira encontrar nenhuma pista de quem deixara a carta incriminadora sob a porta de Nicholas, que por sua vez estava cada vez mais confuso em relação à fonte daquela informação.

Quando ele recebera o convite para o evento que teria lugar no Castelo de Fleet, havia decidido recusar. Agora, porém, achou que seria mais prudente comparecer. Talvez pudesse descobrir alguma coisa sobre a suposta viagem de Carrington à Itália ou sobre as atividades de alguns nobres que tinham acesso ao seu escritório em Westminster.

Provavelmente Maria também estaria lã e seria muito bom revê-la. Essa era uma boa razão para enfrentar uma viagem ao castelo, apesar da chuva que ameaçava cair.

Nicholas não tinha se aproximado dela na feira devido à interferência de sua dama de companhia, que imediatamente a afastara da discussão, mas conseguira enviar o lote de seda para a sua casa. Ele imaginou a cara que ela faria quando recebesse a encomenda. Verdade que não era um presente apropriado para uma mulher solteira, pois o tecido só podia ser usado para roupas íntimas, mas sua reputação permaneceria intocada... e Maria se lembraria de como eles já eram íntimos.

 

As nuvens carregadas passaram sem derramar uma gota de chuva, e a noite no Castelo de Fleet seguia grandiosa. A comida era excelente; a música, esplêndida; o baile, animadíssimo. Havia um grande número de jovens presentes e todos eles tiveram ao menos uma oportunidade de pegar nas mãos de Maria... no mínimo quando trocavam de par no minueto.

Era a experiência mais incrível de toda a sua vida. Sob os olhos cuidadosos de seu pai, ela se divertiu e flertou durante toda a noite. Até ver Nicholas no meio da multidão. Além de perder toda a espontaneidade quando ele se encontrava por perto, Maria chegara à festa decidida a pôr em prática as estratégias que havia aprendido com lorde Bexhill.

A mulher que tivesse Bexhill como pretendente podia dar-se por satisfeita. Ele era loiro, muito bonito, interessante e inteligente. Nunca tomara liberdades com Maria e sempre a tratara com respeito e consideração. E jamais despertara o fogo que havia dentro dela.

Mas isso era discutível, Maria pensou, erguendo levemente os ombros. Talvez ninguém mais conseguisse fazê-la viver de novo aquelas sensações que Nicholas despertara, e nem ela esperava por isso. Seu pai queria que escolhesse logo um marido, e era isso que ela iria fazer. Bastava comparecer a algumas festas, conhecer rapazes aceitáveis do círculo de relações de seu pai e escolher um deles.

Bexhill tinha a mesma probabilidade de ser o escolhido como qualquer outro. Corria o boato de que ele estava decidido a arranjar uma esposa, por isso vivia rodeado de jovens damas, muitas delas forçadas por suas mães. Maria prometera a si mesma que jamais ficaria tão desesperada por um homem. Alísia era boa conselheira, e Maria não aceitaria facilmente casar-se com Bexhill, mesmo que fosse o candidato mais provável.

Quando a música começava e um cortejo de jovens desfilava na sua frente, havia muitos para escolher. Ou simplesmente nenhum. Talvez devesse esperar um pouco mais para comprometer-se. Ainda era jovem e tinha algum tempo pela frente antes que fosse tarde. Afinal, acabara de encontrar seu pai e ainda tinham muito que se conhecer. Por que tanta pressa para casar?

A seu lado estava um rapaz muito agradável, lorde Westby, herdeiro de um condado em Kent. Era bonito, gentil, mas um pouco ansioso. Não possuía nenhum encanto especial, nenhuma fineza de espírito. Talvez adquirisse isso com a idade, mas não se comparava a...

Pronto. Outra vez. Não tinha sentido ficar comparando todo mundo com Nicholas Hawken. Ele não era homem para ser seu marido. Todos referiam-se a ele em termos negativos. Era um patife, um devasso, um...

O coração de Maria deu um salto e ela sentiu a pele arder quando uma profunda voz masculina sussurrou em seu ouvido:

— Um dia alguém vai compor uma música que permita a um homem e à sua linda dama dançarem juntos até o fim.

Não precisou olhar para saber que era Nicholas que estava ao seu lado, provocando-a com seu hálito quente. Foi com profundo desânimo que ela constatou que seu cheiro, o som da sua voz, o toque de suas mãos, estavam gravados a fogo em sua alma.

Mas não iria permitir que o passado determinasse o seu futuro.

Ignorando-o acintosamente, ela pegou no braço de Westby.

— Está muito quente aqui, milorde — comentou com doçura, olhando nos olhos de seu parceiro. — Vamos andar um pouco pelo jardim?

Nicholas os viu sair, lamentando não ter à mão um lenço para limpar a sujeira grudada no queixo de Westby. Por que Maria fazia isso? Estava tão interessada naquele paspalho quanto pela tapeçaria pendurada sobre a lareira. Nick foi até a mesa mais próxima e virou uma caneca de cerveja de uma só vez. Não era de sua conta com quem Maria se envolvia, e nunca mais se esqueceria disso. Seu objetivo era o pai dela; Maria era apenas um meio para chegar a ele.

Mas em vez de localizar Sterlyng, Nick terminou de beber a cerveja e foi para o jardim. Já era noite, porém o caminho estava iluminado por tochas acesas. Vários casais e alguns grupos aproveitaram a estiagem para respirar um pouco de ar.

Levou um certo tempo para localizar Maria. Ela e Westby não se encontravam muito longe; tinham parado no meio do caminho e olhavam para o norte, onde a tempestade iluminava o céu. Os relâmpagos estavam distantes e o cheiro de terra molhada ainda pairava no ar. Quando Westby enlaçou a cintura dela, Nicholas não agüentou: desceu os degraus de dois em dois e ultrapassou a todos que se encontravam no caminho.

Westby — disse, quando os alcançou. — Que sorte a minha encontrá-lo aqui. O duque de Gloucester está procurando por você.

Glo-Gloucester? — o jovem gaguejou. — Procurando por mim?

— Ele não disse por que, mas quer vê-lo pessoalmente. Westby ficou claramente dividido entre seu dever com lady Maria e o desejo de saber o que o tio do rei poderia querer com ele.

— E melhor ir lá ver, Westby — disse Nicholas. — Deixe que eu levo a moça para dentro em segurança.

— Obrigado, Kirkham — respondeu o jovem lorde, já voltando para o castelo. — Fico lhe devendo essa.

— Isso não foi bonito de sua parte — disse Maria, quando o rapaz se afastou.

— Não, mas ele nunca vai saber.

— Como assim?

— Gloucester e lady Eleanor deixaram Fleet há alguns minutos. Westby vai pensar que o duque estava com pressa e não pôde esperar. — Pelo menos estava quente e Maria havia deixado o maldito xale lá dentro. Seus ombros e o pescoço estavam expostos, bem como uma boa parte dos seios sob o decote quadrado. Ela estava belíssima, e a vontade de tocá-la era quase incontrolável.

— Acha que a tempestade virá do sul, milorde? — Maria perguntou, olhando para o céu.

Nesse momento, o que menos importava é se iria ou não chover.

— Talvez — ele respondeu mesmo assim. — Vocês vieram a Fleet em carruagem fechada?

— É claro que sim. Meu pai é um homem cuidadoso.

— Só que perdeu a própria filha recém-nascida — ele disse, e imediatamente se arrependeu.

Nicholas conhecia a incrível história da filha perdida de Sterlyng. O duque se encontrava em Londres quando Maria nasceu. Então recebeu uma carta de sua madrasta, avisando que a mãe e o bebê tinham morrido. Diziam que Sterlyng ficou tão triste que só voltou para o castelo semanas depois, mas uma enfermeira demente já havia levado a menina para Alderton.

Nicholas não podia imaginar o que essa perda significara para Sterlyng. Por 22 anos ele acreditara que sua filha estivesse morta, e só recentemente sua madrasta confessara, em seu leito de morte, que mentira sobre a criança.

Maria afastou-se, mas Nicholas segurou-a pelo braço.

— Sinto muito, Maria. Eu nunca devia ter dito uma coisa dessas.

Ela ergueu a cabeça para olhar o céu. Seu perfil era perfeito.

— É lindo, não é?

— É — ele suspirou, sem afastar os olhos dela.

— Você não entende o que foi para ele... para meu pai — Maria começou em voz baixa. — Todos esses anos lamentando a minha morte e de minha mãe... tantos anos sozinho.

Nicholas não estava entendendo. Ela falava do sofrimento de seu pai, mas e o dela? Não vivera com sua tia nas condições mais adversas, mais maltratada que a mais humilde das criadas? Era admirável Maria não considerar suas próprias perdas.

— Vamos caminhar um pouco, milady.

Ela parou e olhou para Nicholas, desconfiada. Por fim, pôs a mão sobre a dele e concordou em acompanhá-lo.

— Mas não para muito longe, Nicholas.

Nick não sabia o que estava fazendo ali fora, quando devia estar no castelo interrogando amigos da condessa de Carrington, que fora para a Itália com o marido a fim de tratar da saúde. Queria descobrir se era verdadeira essa enfermidade que a levara ao continente. Podia também usar seu charme para extrair informação das mulheres, mas estava sem vontade. Queria passar alguns minutos a sós com Maria, sem ser interrompido.

Como era linda! Impossível não se lembrar da maneira como ela reagia às suas carícias, da intensidade da paixão quando ele se perdeu dentro dela. Nicholas sentia o corpo doer de desejo. Então percebeu que Maria também tremia. E não era de frio. Seria de medo ou devido à sua presença?

— Maria — Nicholas ficou de frente para ela. Desconfiada, ela deu um passo para trás.

Nicholas a impediu de se afastar. Ele foi chegando mais perto, e Maria recuando até encostar numa cerca viva. Por fim não dava para recuar mais sem se arranhar nos galhos. Nicholas segurou seus ombros e ficou olhando para ela.

— Isso não está certo, Nicholas. Você não quer...

Ele abaixou a cabeça e rapidamente cobriu os lábios relutantes com sua boca faminta. Maria não o rejeitou. Com imensa satisfação, ele se apossou de sua boca para sorver tudo o que desejava. Nicholas sentia o sangue borbulhar. Ele a abraçou, pressionou o sexo firmemente em suas curvas suaves, até ouvir um gemido vindo de algum lugar. E quando ela passou os braços ao redor de seu pescoço, ele não pensou em mais nada.

As unhas de Maria provocavam arrepios de prazer ao se enroscarem nos pêlos de seu peito. Nicholas perdeu a noção de espaço e de tempo. Era um escravo de suas carícias e assim ficaria pelo resto de seus dias. De repente, ele interrompeu os beijos, pegou na mão dela e os dois desapareceram na escuridão do jardim. Os trovões ribombavam à distância, mas eles nem ouviam. Maria tinha de correr para acompanhar os passos largos de Nicholas.

Ele a levou para trás da cabana do jardineiro e novamente a beijou, dessa vez com muito mais paixão.

— Eu penso em você nua, usando apenas aquela seda que lhe dei — ele disse, beijando-lhe a orelha, o queixo. — Tão fina... revelando seu corpo e ao mesmo tempo escondendo você de mim.

Sua mão explorava o volume dos seios sob o decote do vestido, enquanto a outra pressionava os quadris de Maria de encontro aos dele. E ela continuou colada ao seu corpo mesmo quando Nick tentou aliviar a intensidade das sensações.

— Quero beijar os seus seios...

De repente Nicholas sentiu Maria enrijecer e estremecer. Ele se deu conta de que ela alcançara seu pico. Era uma mulher incrível. Abraçado ao seu corpo trêmulo, ele a beijou no pescoço, no colo, nos seios.

E então olhou ao redor. Devia haver um lugar onde pudessem se amar sem ser incomodados. Não gostaria de expô-la a ninguém que por acaso passasse por ali.

Maria estava exausta. Não conseguia pensar nem respirar, apenas sentir. O poder que Nicholas exercia sobre ela não fora subestimado. E ele só queria alguns momentos de prazer com ela, atrás de uma cabana no jardim de um castelo.

Isso não podia continuar.

Afastando-se dele, ela ergueu a saia e saiu correndo pelo caminho, ofegante e com as pernas bambas. Encontraria seu pai e pediria para ir embora imediatamente. Não ficaria mais nem um segundo ali, na presença de Nicholas.

— Você está quieta, querida — Sterlyng comentou quando seguiam pela estrada escura em direção a Londres. Relâmpagos esporádicos e trovões à distância perturbavam a tranqüilidade da noite. — Não gostou da festa?

— Eu adorei, pai, estava muito bonita. E que fiquei cansada... e prefiro voltar para casa.

O duque assentiu, aceitando a explicação. Foram muitos os jantares e os programas noturnos aos quais Sterlyng quisera que sua filha participasse. Era como se quisesse compensar, em poucas semanas, os 22 anos de privação, quando Maria ficaria mais feliz se pudesse passar mais tempo sozinha com ele.

Mas ela não podia decepcionar seu pai. Ele conseguira convencê-la de que seria melhor casar-se logo e estava fazendo de tudo para apresentá-la ao maior número possível de rapazes solteiros. Mal sabia ele que esses jovens pouco lhe interessavam. Maria nunca lhe dera motivos para ficar a par da turbulência que Nicholas provocava nela nem a profundidade de seus sentimentos por aquele devasso.

Se ao menos não o tivesse visto tratar as pessoas com generosidade e gentileza quando estiveram em Kirkham. Ou se pudesse se convencer de que ele era mesmo um velhaco da pior espécie. Mas não era. Ela sabia disso, porém não queria reconhecer.

A carruagem fez uma parada brusca, jogando Maria do banco para o chão. Quando o pai foi ajudá-la a levantar-se, o veículo voltou a andar rápido, sacolejando erraticamente pela estrada. Vozes masculinas cruzaram o silêncio da noite. Vozes desconhecidas, rudes, de homens que não faziam parte da guarda.

Maria ficou assustada. Quem além de bandidos os abordaria na estrada daquela maneira? O que os impediria de matar seu pai depois que conseguissem o que quisessem?

Segure-se na alça — Sterlyng disse, aproximando-se da janela. Ele abriu a cortina e olhou para fora. Maria não conseguia ver muita coisa com as fracas luzes externas do veículo.

Maldição!

As vozes lá fora tornaram-se mais fortes quando a carruagem parou.

O que é, pai?

Ladrões — ele respondeu, checando suas armas. A espada estava embainhada na cintura, e ele trazia uma pequena faca dentro da túnica. — Os guardas darão conta deles.

Maria esfregava as mãos enquanto do lado de fora grassavam os ruídos da batalha. Ela estava morrendo de medo. Quantos guardas havia com eles? E se não pudessem manter os vilões à distância? E se os ladrões conseguissem passar pelos guardas e atacassem seu pai? O que...

De repente, a porta da carruagem se abriu e um homem agarrou Maria, tirando-a à força para fora. Seu pai tentou impedir, mas o ladrão usou-a como escudo. Sterlyng não podia alcançá-lo sem ferir a filha. Lá fora, havia homens caídos no chão e vários ladrões mascarados lutando no lombo dos cavalos.

Sterlyng sacou a espada e juntou-se aos guardas para lutar. Aterrorizada, Maria rezava em silêncio. Temia que seu pai se ferisse ou mesmo morresse por causa de alguns valores que para ela nada significavam.

O ladrão tentou arrancar a corrente de ouro que prendia seu medalhão e acabou ferindo-lhe a pele do pescoço. Depois tirou os anéis de seus dedos e as pedras do cabelo. Ao mesmo tempo,

Maria tentava ela mesma tirar as jóias para dar a ele, mas o homem parecia ter dez mãos. Impossível fazê-lo entender que não tentaria fugir, mas que estava disposta a lhe dar tudo que possuía, até o medalhão de sua mãe, para salvar a vida do pai.

No meio da confusão, ela ouviu o ruído de cascos de cavalo se aproximando e ficou desesperada. Os ladrões estavam recebendo reforços e a situação iria piorar ainda mais para eles.

De repente um estranho barulho de algo estalando rasgou a noite.

— Aaiiiü! — o homem que a segurava deu um grito e levou a mão ao pescoço.

Em pânico, Maria fugiu para longe dele. Graças a uma pequena lanterna que ainda continuava acesa, ela conseguia ver alguma coisa do que estava acontecendo, mas o ruído de lâminas se cruzando era ouvido à sua volta. Ela não podia se mover de onde se encontrava, porém torcia para que os guardas de seu pai estivessem vencendo.

A voz de Nicholas Hawken cortou a escuridão.

Nicholas Hawken? Maria achou que estava ficando louca. Tinha rezado para que acontecesse um milagre, mas era impossível que Nicholas estivesse atrás deles na estrada. Depois que fugira dele no jardim, logo em seguida saíra com seu pai do Castelo de Fleet. Nicholas ainda estaria... Maria balançou a cabeça. Não o vira mais desde que o deixara no jardim. Talvez ele tivesse feito suas despedidas logo depois que eles saíram.

Maria deu um grito quando um ladrão agarrou-a pelo pulso e começou a arrastá-la de seu lugar relativamente seguro. Ela lutou e resistiu até ouvir novamente o mesmo barulho estranho antes de o homem gritar e cair.

Nicholas aproximou-se, ergueu-a no colo levou-a para a carruagem. Seu pai não se encontrava ali.

— Fique aqui — ele ordenou, e voltou a campo.

Maria esperou por um tempo interminável, ouvindo os sons da batalha. Temia muito por seu pai, por Nicholas, até mesmo pelos guardas de Sterlyng, que arriscavam a vida pela sua segurança.

De repente tudo ficou em silêncio.

Nervosa, ela ergueu a cortina da janela e estreitou os olhos para enxergar na escuridão. Seu pai estava parado perto da carruagem, ao lado de Nicholas, enquanto os guardas dominavam o último dos bandidos.

Não dava para ouvir o que os dois estavam conversando, apenas um murmúrio de vozes. Então Nicholas desapareceu na escuridão e Sterlyng voltou para a carruagem.     '

Você está bem, Maria? — ele perguntou, erguendo a lâmpada para enxergá-la melhor.

Estou, pai. — Ela tremia muito, estava toda arranhada e com a roupa rasgada. — Não estou ferida.

Graças a Kirkham — disse Sterlyng. — Eu julguei mal esse homem.

Como assim?

Sterlyng balançou a cabeça e olhou distraído pela janela.

Pensei que ele tivesse se tornado um irresponsável depois que o irmão morreu. Nunca achei que pudesse se comportar com responsabilidade... e muito menos com heroísmo.

Foi ele quem nos salvou, pai?

Sem dúvida. Nunca vi ninguém usar o chicote como Kirkham usou.

Um chicote?

Sterlyng tirou os olhos da estrada e fixou-os em Maria.

— Pois é. Um chicote. Pergunte isso a ele amanhã. Maria lançou um olhar interrogativo para o pai.

— Isso mesmo. Kirkham pediu permissão para visitá-la. Eu dei meu consentimento. Ele chegará no final da tarde.

 

Maria ficou acamada na manhã seguinte devido às tumultuadas emoções da noite anterior.

Se estivesse se sentindo um pouco melhor, teria mandado alguém procurar Nicholas para cancelar a visita. Mas ela só melhorou mais tarde, depois de tomar seu café da manhã com Alísia Preston, como sempre fazia. Preferiu ignorar os olhares curiosos da amiga enquanto escolhia o que comer com muito cuidado para não perturbar seu estômago delicado.

Depois de seu habitual passeio matinal por Westminster, sentia-se melhor e mais otimista, desde que não se lembrasse de que logo mais iria ver Nicholas. Com que cara olharia para ele depois de praticamente derreter em seus braços no jardim do Castelo de Fleet? Estava morta de vergonha. Nicholas tinha de saber o que fazia com ela. Não podia ignorar o seu poder de sedução. Ele sabia muito bem que Maria não confiava em si mesma quando estava ao lado dele.

O fato é que o patife talvez contasse exatamente com isso.

Pelo menos seu pai estaria em casa quando Nicholas chegasse. Ele estava tão agradecido por sua intervenção no ataque que até cancelara alguns compromissos em Westminster a fim de voltar mais cedo para casa. Estando o duque presente, Maria não ficaria a sós com Nicholas, Com o pai a seu lado, ela poderia conduzir a conversa, concentrando-se em suas novas experiências em Londres e no ataque na estrada.

E, obviamente, evitaria mencionar o Castelo de Fleet e tudo o que lá acontecera.

O ataque à carruagem de Sterlyng fora providencial para Nicholas. Ele havia deixado o castelo num terrível estado de frustração, tudo por causa de Maria Burton. Estava ansioso para chegar logo à sua casa em Londres, quando vira a carruagem de Sterlyng. O resultado do incidente havia sido ganhar a confiança e o respeito do duque — pelo menos por ora. Por isso fora convidado para ir à sua casa e tinha certeza de que faria Sterlyng mudar de opinião a seu respeito.

Ele nem queria pensar na possibilidade de Maria ter se ferido durante o ataque, embora tivesse pensado nela a noite toda. Pior que isso, ansiava por tê-la ao seu lado na cama, por abraçá-la, envolvê-la e ter certeza de que ela estava bem.

O que era um absurdo. Ele só levava mulheres para a cama por uma única razão, e que nada tinha a ver com segurança.

Mesmo assim, não podia esquecer que Maria vivera uma situação muito perigosa. Aqueles ladrões vinham aterrorizando os viajantes das estradas do norte nas últimas semanas e duas pessoas já tinham sido mortas nesses ataques. Fora pura sorte Nicholas e sua escolta estarem perto do caminho de Sterlyng quando os patifes atacaram.

Ele tranqüilizou-se pensando que os gritos apavorados de Maria teriam comovido qualquer um, não só a ele. Ela não tinha nenhum poder especial sobre sua pessoa, além do fato de ser a única mulher capaz de se desmanchar em seus braços ao simples toque de suas mãos. Nicholas não se esqueceria nunca do gosto de sua boca, dos sons que ela emitia quando ele beijava seu pescoço ou tocava nos bicos dos seios. Só o perfume de sua pele já o enlouquecia de desejo.

Mas como pretendente, não teria mais permissão de ficar a sós com ela. Nunca mais a beijaria nem sentiria seu cheiro, nunca mais faria amor com ela. Isso porque não pretendia se casar com Maria que, provavelmente, casaria com Bexhill. Esse pensamento provocou uma tensão tão forte que seu maxilar chegou a doer.

Maria lhe pertencia. Tinha lhe dado a sua inocência, confiado nele... Não, Nicholas preferia não seguir por esse caminho. Sua intenção era cortejá-la apenas para ter acesso à casa de Sterlyng. A prova da traição do duque devia estar trancada em algum lugar e seu dever era encontrá-la.

A tarde Nicholas parou o cavalo na frente da casa de Sterlyng, desmontou e entregou as rédeas para o criado que o recebeu. A porta da frente foi aberta pela senhora que cuidava da casa, a qual o recebeu com polidez, mas com muita frieza.

— Sua Graça ainda não retornou de Westminster, milorde — disse Alísia, afastando-se para lhe dar passagem. — Lady Maria lhe fará companhia enquanto o duque não chega.

Levou uma eternidade para Maria aparecer. Quando, finalmente, ela entrou na sala, estava usando uma túnica justa, com mangas largas e bufantes presas no punho. A roupa tinha a cor de vinho tinto e era contornada por um rico bordado.

Maria estava muito pálida. Ele devia ter se certificado de que ela se encontrava bem na noite anterior, mas ficara tão satisfeito com a permissão do duque para cortejá-la que nem se lembrara de fazer isso. Teria dormido melhor se soubesse como ela estava. Talvez os sonhos não o perturbassem tanto durante a noite.

Nicholas se levantou, curvou-se, pegou na mão dela e só então notou que as faces coraram levemente. Melhor assim.

Bom dia, milorde — disse Maria, quando ele encostou os lábios em sua mão. Rapidamente tentou recolhê-la. Mas foi rápido demais. Desconfiado, Nicholas ergueu um pouco a manga e notou que o punho estava machucado e a pele, roxa.

Você se feriu ontem à noite — Nick comentou, examinando-a. — Os punhos... — Ele afastou o véu. — e o pescoço! Milady, seu pai me garantiu que você estava bem...

E estou mesmo, milorde. — Ela retirou a mão e foi se sentar ao lado do fogo. — Isso não é nada. Eu...

Esses ferimentos são, sim, alguma coisa — Nicholas ajoelhou-se ao lado dela, pegou em sua mão, esfregou o polegar sobre a pele fina do punho e sentiu a pulsação. — Eu nunca a teria deixado se soubesse que estava ferida.

A emoção acendeu um brilho nos olhos de Maria.

— Nicholas, não foi nada, por favor...

Um discreto limpar de garganta os fez lembrar que lady Alísia ainda se encontrava na sala, já que nenhum dos dois se lembrava mais. Nicholas queria enforcar a mulher. Por que não ia arrumar o que fazer em qualquer outro lugar?

Ele cerrou os dentes. E claro que essa visita deveria ser conduzida da maneira mais formal possível, mesmo que a tensão o estivesse sufocando. Ele queria Maria. Se houvesse uma maneira de sair daquele lugar, a pegaria pela mão e a levaria para um local discreto onde pudesse beijá-la inteirinha, fazê-la gemer de prazer com suas carícias.

— Espero que tenha dormido bem depois do que aconteceu ontem à noite — ele continuou em voz baixa.

Maria sorriu discretamente e deu uma resposta formal:

Sim, milorde, obrigada por perguntar.

Sua Graça deve estar chegando — disse lady Alísia. — Por favor, milorde, sente-se e termine seu vinho. Comeremos assim que o duque chegar.

Nick pegou sua taça e aproximou-se da lareira. Havia círculos escuros ao redor dos olhos de Maria. Ela mentira. Não dormira bem, apesar de insistir no contrário. E como seria possível depois do que ela havia passado?

— Essas olheiras estão aí por causa dos ferimentos, milady? — ele perguntou, estranhando não conseguir mudar de assunto. Novamente pensou que queria ter passado a noite toda ao lado dela, para proteger seu sono e cuidar das feridas que a perturbavam. Se estivessem juntos, seu próprio sono teria sido embalado pelo perfume suave dos cabelos de Maria, e muito mais tranqüilo.

E sua presença faria o mesmo por ela.

— Sim, milorde. São apenas alguns arranhões causados pelas unhas do ladrão nos meus braços, e quando ele arrancou a corrente do pescoço... — Então ela mudou de assunto. — Soube que você e seus homens ajudaram a nossa escolta a cercar os ladrões e trazê-los a Londres...

Ele deu de ombros. Alguns fios de cabelo escapavam por baixo do véu, importunando a pele fina da nuca de Maria. Se pudesse, Nicholas os enrolaria em seus dedos. Encostaria o rosto nos cabelos, sentiria o perfume suave, beijaria sua pele, e depois se concentraria em outro lugar...

...e recuperou o que nos foi roubado.

Isso não foi nada — disse ele.

Mas a minha vida, milorde... Eu temi por ela, e você chegou na hora h. Agradeço-lhe agora, pois não pude fazê-lo ontem à noite.

Maria era graciosa e calculadamente distante... a não ser na única vez que o chamara pelo nome e ele reconhecera aquele brilho repentino em seus olhos. Ela se tornara a filha de um duque, mas Nicholas sabia o que havia por trás de todo aquele controle.

Ele enfiou a mão dentro da túnica e tirou o medalhão.

Milorde! — ela exclamou ao ver a peça preciosa. — Você recuperou o meu medalhão!

Isso foi fácil.

É tudo o que me resta de minha mãe e fiquei muito triste por perdê-lo.

Nicholas sabia quanto o medalhão era importante para ela e fora por isso que o levara ao joalheiro pela manhã para consertar os elos que se haviam partido. Ele sentiu a garganta apertada quando ela levou a jóia aos seios: queria que suas mãos estivessem no lugar do medalhão.

Por sorte, nesse momento um criado abriu a porta e o duque entrou. Nicholas foi obrigado a se concentrar no que estava acontecendo no momento, o que só fez melhorar a opinião do duque a seu respeito e começar a ganhar a sua confiança.

E nada tinha a ver com medalhões ou correntes quebradas.

Kirkham — disse Sterlyng, estendendo-lhe a mão. — Peço desculpas por fazê-lo esperar.

Eu acabei de chegar, Sua Graça.

Lorde Kirkham estava aqui lamentando os ferimentos de Maria — murmurou lady Alísia.

Ah — disse o duque, inclinando-se para beijar a filha na testa. — Ela me garantiu que não era nada. Vamos comer agora?

Nicholas voltou para a sua casa já à noite, num estado de total frustração. Não conseguira ficar sozinho nem por um momento na casa de Sterlyng, portanto não tivera chance de vasculhar entre suas coisas. E agora tinha um motivo a mais para fazer isso: não acreditava que Sterlyng fosse um traidor.

Uma única tarde na companhia do duque bastara para ter certeza de que ele era um homem íntegro e honrado. Dificilmente Sua Graça seria um mestre na arte do subterfúgio. Impossível imaginá-lo agindo contra os interesses da Inglaterra na França. E nem que fosse capaz de trair seus grandes amigos, os duques de Gloucester e de Bedford.

Mesmo assim, seu selo fora encontrado na carta incriminadora, além da carta assinada pelo misterioso "J" e que estava endereçada a ele. Devia existir alguma conexão entre Sterlyng e o traidor, isso se eles não fossem a mesma pessoa.

Havia ainda outra questão que atormentava Nicholas. Quem saberia de seu interesse na correspondência do duque? Por que alguém se preocuparia em enfiar a carta de "J" por baixo de sua porta?

Ele entrou no estúdio e se sentou. Suspeitas terríveis passavam por sua cabeça quando jogou as luvas sobre a mesa e passou os olhos na correspondência do dia, sem se deter em nenhuma. Pela primeira vez, sua vida dupla o aborrecia. Não gostava de mentir para Maria sobre as razões de querer ficar com ela. Depois de mentir por tantos anos, depois de tanto tempo nessa vida, tudo o que se relacionava a esse assunto deixava em sua boca um sabor amargo.

Maria nunca mais falaria com ele se soubesse disso e da maneira vergonhosa como a usara para se aproximar de seu pai. Certamente iria questionar se o que acontecera entre eles tinha sido motivado pelo amor. Mas por que ele se preocupava com isso?

— Deus do céu! — Nicholas exclamou, esfregando a mão na nuca. Tinha se metido numa bela enrascada e agora não dava mais para voltar atrás.

— Tournay! — chamou.

— Sim, milorde — o secretário atendeu prontamente.

— Vá até as docas e veja se encontra alguma carga de flores. Quero enviar uma braçada de rosas amarelas a lady Maria Burton.

— Rosas, milorde? Devem custar muito caro, isso se eu conseguir encontrar.

— Não importa o preço. — Tournay já ia se recolher, mas Nicholas nem se importou em mantê-lo acordado por mais tempo do que o usual. Afinal, pagava-lhe bem para ser atendido à hora que precisasse. — Gaste o que for necessário. E, no caminho, encontre sir Gyles. Precisamos definir algumas estratégias de trabalho.

Maria cavalgava pelo parque de Westminster na manhã seguinte, seguida discretamente por um criado, como era de hábito. Era a primeira vez que gozava de tanta liberdade em sua vida. Apreciava cada vez mais esses passeios depois que tivera algumas aulas de equitação e aprendera a técnica apropriada de montar de lado. Sentiu-se orgulhosa quando o criado observou que ela possuía uma habilidade natural para essa prática.

O céu estava azul e a temperatura bem fresca em Westminster, a terra exalava um perfume delicioso depois da leve chuva que caíra pela manhã. Os primeiros botões de flores já despontavam, mas nada se comparava à braçada de rosas amarelas que recebera de Nicholas.

Maria não entendera muito bem esse gesto, mesmo porque fora logo depois de receber a seda, deixada pessoalmente por seu secretário, e do comportamento indecente de Nicholas no jardim do Castelo de Fleet. Alísia ficara escandalizada com um presente tão pessoal... ou tão íntimo. Nenhum homem bem-intencionado daria um presente desses a uma dama, Alísia fizera questão de deixar bem claro.

Maria nem precisava que ela lhe dissesse isso. Sabia que tipo de homem era Nicholas Hawken e o que ele esperava de uma mulher. Certamente nada tinha a ver com casamento, mesmo que ela reconhecesse que suas intenções nada tinham de insultuosas. Desagradáveis, talvez, mas jamais rudes.

Se ele pudesse, faria qualquer coisa para arrancar suas roupas e amá-la até ela não ter mais vontade própria. Só o que Nicholas queria era um encontro apaixonado e passageiro. Haja vista as rosas que ele lhe mandara. As mais bonitas e delicadas que Maria vira em toda a sua vida. O fato de serem amarelas a encantaram ainda mais, pois só as conhecia vermelhas ou cor-de-rosa, como as que havia em Alderton. Isso sem falar em quanto ele devia ter se empenhado, e gastado, para encontrar um presente tão exótico.

Ainda sem entender muito bem a generosidade desse gesto, Maria seguia a trilha da campina na extremidade leste de Westminster. Já não esperava mais entender Nicholas. Uma hora ele agia com heroísmo e nobreza, e logo depois como um canalha cínico, falso e sem princípios.

Seu coração nem se agitou quando o viu montado em seu cavalo na entrada do bosque. Altivo e elegante, os ombros largos, os cabelos brilhando ao sol da manhã. Maria não alterou o trote, mas seguiu confiante na direção dele, como se sua presença ali nada significasse. Novamente, espelhou-se no exemplo de Cecília e também se lembrou do conselho de Alísia. Estava pronta para enfrentá-lo. Nunca mais ele a pegaria desprevenida como no Castelo de Fleet.

— Bom dia, minha linda dama — disse Nicholas quando Maria se aproximou. Em seguida, emparelhou seu cavalo no mesmo trote.

Ela o cumprimentou com um gesto de cabeça e continuou seu caminho.

— Linda manhã para cavalgar — Nicholas comentou inocentemente — ou para caminhar de mãos dadas à beira do riacho... — Ele alcançou as rédeas do cavalo de Maria e puxou-as, obrigando-a a parar. — Quero roubar seus beijos sobre esta grama, minha linda dama. — Então pegou em sua mão e tirou a luva para beijar a palma, tudo sem afastar os olhos dos dela.

Maria não se alterou. Sabia o que ele queria e não permitiria que a fizesse de tola outra vez. Para livrar-se de seu olhar penetrante, fingiu considerar o convite olhando na direção do riacho.

— Não, acho que não, lorde Kirkham. — Ela retirou a mão e fechou-a sobre o medalhão. — O chão está molhado da chuva que caiu há pouco.

— Já nos conhecemos bem demais para nos importarmos com essas formalidades, Maria. Vamos...

— Eu lhe agradeço pelas rosas, Nicholas — ela disse de passagem, mas com o coração disparado... — são lindas. — Tentava manter uma distância respeitosa, como da última vez em que estiveram juntos. Já conhecia muito bem esse tratante para saber o que ele era capaz de fazer se não ficasse bem longe dele.

Maria retomou o trote.

— Elas me fazem lembrar de você... os cabelos dourados, esses olhos lindos — disse Nicholas, emparelhando outra vez o seu cavalo.

Maria riu.

— Você é um canalha adorável, Nicholas, e as rosas tocaram meu coração.

Dito isso, cravou o salto das botas na barriga de sua montaria e afastou-se a galope, arrependida de ter exposto seus sentimentos e com medo de dizer mais se continuasse ali. Nicholas não podia jamais conhecer seus sentimentos. Para poupar seu coração, precisava ficar longe dele.

Nick ficou olhando-a se afastar e não a seguiu como gostaria. Poderia até insistir e se tornar uma presença constante na casa do pai de Maria, assim como Henric Tournay, que já era conhecido de todos ali de tantos presentes que já entregara.

Mas as coisas que ouvira de Maria o fizeram pensar.

Não, não foram apenas as palavras, porém algo que vira em seus olhos expressivos quando ela falara das rosas, a maneira como segurara o medalhão sobre o peito. Ele já não se importava mais com o que tudo isso o fazia sentir.

Ele não gostava de mentir para Maria, de usá-la para chegar a seu pai. Mas tinha uma missão a cumprir, uma importante tarefa para a Inglaterra. Se abandonasse tudo, estaria pondo em risco muitos soldados ingleses que ainda lutavam em solo francês. Mas era obrigado a confessar que não pensava em nenhuma estratégia quando sugerira o passeio à beira do rio. Só queria tê-la junto de si. Fazia algum tempo que a beijara pela última vez, e ela certamente também estaria sentindo falta de seus beijos. Tanto que não havia o desprezo em seu olhar quando a tocara, mas a paixão e o desejo que ele conhecia tão bem.

Maria desapareceu na estrada enquanto Nick ainda a observava. Um criado fiel a acompanhava, um homem cuja tarefa era cuidar para que nenhum mal lhe acontecesse.

Nick estava pronto para fazer o mesmo.

 

Dormiu bem, milady? — lorde Bexhill perguntou a Maria enquanto caminhavam pelo jardim de Sterlyng. Os jardineiros trabalhavam nos canteiros de flores e cestos coloridos adornavam as arcadas dos muros.

Muito bem, obrigada. — Com a mão sobre a dele, Maria buscava desesperadamente extrair alguma sensação. Para seu desgosto, não havia nada. Bexhill era um homem bonito e sofisticado, mas não a excitava como Nicholas Hawken era capaz apenas com o olhar.

Vai assistir ao torneio amanhã pela manhã?

Maria engoliu em seco. Temia que esse dia chegasse e queria evitá-lo a todo custo, mas ela e seu pai tinham sido convidados para dividir o camarote com Gloucester e não puderam recusar.

— Sim, eu estarei lá.

Bexhill sorriu. Embora não houvesse nada que desagradasse nas feições dele, seu sorriso só envolvia a boca e os dentes. Não alcançava os olhos nem o rosto, como um sorriso de Nicholas. Neste, quando ele sorria, todo o corpo se iluminava. A cabeça inclinava-se para um lado e os cantos dos olhos se enrugavam de felicidade. Era o sorriso de um velhaco que Maria queria esquecer para sempre.

Eles deram uma volta pelo jardim e se sentaram a uma mesa de madeira que logo estaria rodeada pelas flores. Uma criada trouxe a bandeja com sidra e bolos, mas quando a pôs sobre a mesa, uma taça caiu e se quebrou.

— Sua desastrada! — gritou Bexhill, afastando Maria para que ela não se ferisse. E segurou com tanta força em seu braço que chegou a machucar.

— Está tudo bem, Lizzie — Maria se interpôs, livrando seu braço das garras de Bexhill. Então ajudou a recolher os cacos. — Não aconteceu nada.

— Me desculpe, milady, eu sinto muito...

— Espero que sinta mesmo...

Maria pôs a mão sobre a luva de Bexhill.

— Venha, milorde, vamos encontrar meu pai no estúdio. Ela servira durante tanto tempo sua tia e sua prima que compreendia perfeitamente o nervosismo da criada. A grosseria de Bexhill com a moça deixou-a irritada e agora queria tirá-lo dali o mais rápido possível. Entretanto, não podia mandá-lo embora sem parecer rude, então decidiu dividi-lo com seu pai.

— Pai — disse quando chegou à porta do estúdio —, eu trouxe...

As palavras desapareceram de sua boca quando viu Nicholas diante da janela e o pai sentado à sua mesa. A julgar pela expressão de ambos, deviam estar no meio de uma discussão quando foram interrompidos.

Oh! queiram me desculpar — falou Maria, porém Bexhill passou por ela e entrou.

Sua Graça — disse polidamente, mas ao voltar-se para Nicholas, fez uma expressão de desprezo.

Nicholas não mordeu a isca. Cumprimentou-o com um gesto de cabeça e voltou-se novamente para Sterlyng. Uma comunicação muda foi trocada entre eles, e Nicholas afastou-se da janela e se aproximou de Maria, tomou a mão dela e a beijou.

— Está muito bonita esta manhã, minha linda dama. A cavalgada matinal lhe fez muito bem.

Ela corou com a referência ao encontro, porém não disse nada.

Pai, peço desculpas por interromper. Não sabia que tinha um convidado — acrescentou, fixando os olhos em Nicholas.

Ah, sim, Kirkham e eu estávamos trabalhando — disse o duque, levantando-se de sua cadeira. — Bedford precisa de um novo imposto per capita e os lordes estão discutindo como apresentá-lo.

Devemos deixá-los então...

— Não, juntem-se a nós — disse Sterlyng. — Fiquei tão ocupado nesses últimos dias que nem tive tempo de estar com você como gostaria.

Só então Nicholas soltou a mão de Maria e foi buscar uma cadeira para ela. Bexhill sentou-se na cadeira ao lado, e Nick voltou ao seu lugar perto da janela. Nicholas estava muito diferente do que costumava ser e Maria presumiu que a discussão envolvera muito mais do que uma conversa sobre o novo imposto.

Ela sentiu o coração disparar quando os olhos de Nick encontraram os seus. Gostaria que ele não estivesse presente quando era cortejada por outro homem, o que era exatamente o que Bexhill estava fazendo. Ele daria um bom marido e Nicholas nada podia fazer senão reconhecer esse fato.

Maria sentia-se tão vulnerável e sujeita à crítica, como se ele tivesse alguma coisa a ver com as escolhas que ela fazia. Nicholas era a pessoa mais inadequada para isso, pois não perdia a oportunidade de lembrá-la de sua insensata, mas nem por isso menos empolgante, ligação com ele.

Nick amaldiçoava em silêncio. Bexhill agia como se já fosse dono de Maria. Se aquele gigante loiro encostasse suas patas nela mais uma vez, ele faria o nariz do conde sair pelo outro lado da cabeça. E nunca mais pensaria sobre isso.

Sterlyng não podia querer que sua filha se casasse com um homem como Bexhill. Impossível imaginar alguém mais inadequado. Se pudesse, Nick faria o que fosse preciso para impedir. Mas como ele próprio não era candidato a marido, não tinha o direito de se interpor entre Maria e o homem que ela escolhesse, mesmo que fosse um idiota como Bexhill.

Nick tinha deixado bem claro que, embora estivesse disposto a retomar o relacionamento com ela a qualquer momento, não estava procurando uma esposa. Se estivesse procurando alguém, certamente ela seria a escolhida entre todas as mulheres do mundo. Mas o trabalho que fazia pela Inglaterra era perigoso. Muita coisa já acontecera para impedir que fosse descoberto, isso sem falar no perigo que corria o tempo todo. E não tinha a intenção de mudar de vida. Construíra uma reputação de patife, infame e mulherengo, de alguém que se arriscava inutilmente e se dava com gente de todo tipo — tudo para arrancar segredos de homens insuspeitos de sua classe.

Portanto, seu trabalho era dos mais perigosos. A qualquer momento um francês ou um traidor inglês podia desmascará-lo, e tudo estaria perdido. E Nicholas não queria deixar uma viúva... ou filhos órfãos. Raramente ele pensava nisso, pois vivia preocupado com os assuntos de Bedford. Mas, de repente, achou que ter filhos não era má idéia. E ter Maria como a mãe deles era mais atraente ainda.

Pensando bem, alguma coisa parecia ter mudado só pelo fato de permitir que essa idéia lhe passasse pela cabeça. Ter filhos com ela era um pensamento sedutor. Assim como também o era a perspectiva de levar uma vida tranqüila em Kikrham, de visitar Mattie Tailor na aldeia quando lhe desse vontade, de saber que sir Roger e lady Malloy não o consideravam um mau-caráter, como foram levados a acreditar.

Nicholas passou a mão pelos cabelos enquanto olhava para Maria. Ela era linda, adorável. Ele a deixava nervosa. Sem dúvida sua presença a perturbava. Mas ela também o perturbava, e muito. Apesar dos pensamentos muitos confusos no que se referia a lady Maria Burton, uma coisa estava bastante clara: a idéia de vê-la casada com outro homem era simplesmente insuportável.

Na tarde do dia seguinte, Maria sentou-se ao lado de seu pai, dividindo um camarote privado na galeria que dominava a arena do torneio. Com eles estavam Humphrey, o duque de Gloucester, e sua mulher, lady Eleanor.

Eleanor era uma mulher cheia de vida, muito diferente das outras nobres — e também bastante impopular entre elas. Mas Maria gostou dela. Era amável e animada, pegava no marido o tempo todo, o que parecia dar grande prazer a ele. Tinha a cabeça praticamente descoberta e usava roupas de um colorido vibrante que a favoreciam. O corte ousado da túnica de Eleanor fez Maria invejar a sua audácia.

Os servos entravam e saíam do camarote, trazendo almofadas para o conforto de seus amos, comida e bebida para refrescá-los.

Maria estava nervosa, sabendo que Bexhill e Nicholas iriam se enfrentar na arena. Procurava se lembrar de que esse era um "torneio de paz" e que Nicholas não seria mortalmente ferido. Já ouvira muita coisa sobre as habilidades de Bexhill nos campos de batalha, porém quase nada a respeito das de Nicholas. Conhecia apenas as suas habilidades como conquistador. E também como amante. Mas essas não serviam para nada agora.

Ao menos ele era bom de briga, o que ficara provado naquela estrada próxima ao Castelo de Fleet. Só esperava que fosse igualmente hábil numa batalha formal, sem o seu chicote.

A competição constará de três partes — Gloucester começou a explicar. — Os combatentes usarão armas cegas por ser um torneio de paz.

Na primeira parte, eles lutarão com lanças, depois com espadas e por fim com machados — completou Sterlyng.

Mas essas armas não podem ferir, pai? — ela perguntou, preocupada.

Não, filha.

Um cavaleiro numa armadura de couro preto entrou na arena montando um garanhão cinza. Estava escondido atrás do capacete negro, e suas cores eram vermelho e branco. O público nas arquibancadas saudou sua entrada e viu-o ir até a galeria onde se encontrava Maria.

Isso era comum, desde que Gloucester, o tio do rei, o nobre da mais alta estirpe presente no torneio, dividia o mesmo camarote com Maria e seu pai. Sterlyng explicou-lhe que os combatentes prestavam homenagem ao rei antes de começar a competição. Como o rei Henrique não estava presente, o duque de Gloucester o representava.

O cavaleiro sentava-se com muita elegância em sua sela, a espada na cinta, o machado preso à sela e a lança na sua frente. Seus ombros eram largos e a cintura, fina, e ele se exibia com a segurança de um campeão. Maria logo reconheceu Nicholas Hawken.

Ele parou na frente dela e curvou-se para Gloucester e Sterlyng. Por fim, ergueu o elmo e permitiu uma visão de seu rosto.

A platéia ficou em silêncio. O coração de Maria deu um salto quando ela olhou nos olhos dele, cinzentos como a tempestade, e Nicholas disse:

— Milady, dê-me a honra de um pequeno talismã de sua confiança e estima.

Sorridente, lady Eleanor aproximou-se de Maria e sussurrou:

— Dê a ele o seu véu.

O fino véu que cobria sua cabeça era feito com a seda que Nick lhe dera. Não escondia seus cabelos, mas era um lindo tecido... e um presente de Nicholas. Não se podia negar que o véu fora feito com pressa, bem como a chemise que nesse momento ela usava sobre a pele. Tão macia quanto as mãos acariciando-a. Ele parecia adivinhar o que ela usava por baixo de sua túnica, tal era a intensidade de seu olhar.

Nesse instante Maria tirou o véu e curvou-se para lhe entregar. Sem luvas, Nick o pegou e segurou sua mão por um longo e emocionante momento. Então guardou o pano dentro de sua armadura, sobre o coração.

A esse gesto, Maria sentiu uma ardência estranha no fundo da garganta, mas antes que pudesse pensar qualquer coisa, Nicholas virou o cavalo e se afastou.

— Juro que nunca vi nada tão galante — comentou lady Eleanor. — Um belo campeão... — e acrescentou no ouvido de Maria — e que amante soberbo deve ser...

Estupefata com o comentário, Maria livrou-se de responder porque lorde Bexhill estava se aproximando. Ela se perguntou se lady Eleanor saberia alguma coisa de sua vida, mas logo viu que o comentário se devia ao próprio Nicholas, pela beleza de suas feições e pela figura vistosa. É verdade que quando ele se aproximou seu coração bateu um pouco mais rápido e suas mãos ficaram úmidas, mas não era assim com todas as mulheres?

Tal como Nicholas, Bexhill cumpriu todas as formalidades. A única diferença foi que ele se dirigiu a outra galeria e pediu um talismã a outra mulher. Em seguida o torneio começou.

Bexhill está usando armadura completa — Gloucester notou, franzindo as sobrancelhas.

É estranho — Sterlyng concordou.

— O que é estranho? — Maria perguntou, ansiosa.

A de Kirkham é de cuir-bouüli.

E de couro — ela constatou e olhou assustada para os combatentes. — Mas a de Bexhill é de metal. Isso não...

Não, filha. A de Kirkham é tratada e curada, é bastante resistente. É comum usar proteção mais leve num torneio de paz.

Então por que Bexhill usa de metal?

Sterlyng franziu a testa e balançou a cabeça. Não sabia o que responder.

— Vejam, começou! — exclamou lady Eleanor, excitada.

Maria cruzou os braços sobre o peito quando os dois cavaleiros avançaram um na direção do outro. Cada homem portava uma lança que se estendia além da cabeça do cavalo, apontada para seu oponente. Inconscientemente, Maria prendeu a respiração e agarrou-se ao braço do pai.

Qual é o objetivo dessa competição? — ela perguntou, preocupada.

Apenas derrubar o oponente da sela — Sterlyng explicou.

— Numa batalha de verdade seria matar.

O primeiro confronto quase derrubou Bexhill do cavalo. Maria soltou o ar que estava segurando desde que os cavaleiros se separaram a galope após o primeiro confronto e fizeram a volta nas extremidades do campo.

Novamente, eles avançaram um na direção do outro, só que, dessa vez, nada aconteceu. A terceira investida foi diferente.

Bexhill abaixou um pouco a lança e os cavalos colidiram. O de Nicholas foi ao chão. Maria ergueu-se de um salto quando ele desapareceu entre as patas do animal, que relinchava.

Pai! — ela gritou. Sterlyng levantou-se também, assim como Gloucester.

O que foi? — perguntou o tio do rei.

— Houve alguma coisa com o cavalo de Kirkham. É difícil o animal se machucar num torneio de paz. — Ele chamou um pajem, deu algumas instruções e o jovem saiu rapidamente da galeria.

Alguns homens correram para o campo a fim de ajudar Kirkham, enquanto Bexhill dava a volta completa na arena. Maria não prestava atenção à sua pose arrogante, mas desconfiava que o conde tinha feito alguma coisa para ferir o cavalo de Nicholas. Ela não vira nada e parecia que ninguém tinha visto.

Mas Sterlyng e Gloucester trocaram olhares.

O que foi? — Maria perguntou.

Nada, querida — respondeu Gloucester, prudentemente.

— Mas acho estranho que Kirkham esteja usando cuir-builli enquanto Bexhill usa metal... com pontas de ferro. E que depois de três rodadas, só o cavalo de Kirkham tenha caído.

Maria olhou para seu pai em busca de explicação.

— Pode ser um tipo de fraude — ele afirmou sem muita certeza. Seu pai gostava de Bexhill e tinha dificuldade em pensar mal dele.

— Mas, pai...

— Quieta, filha — Sterlyng passou o braço pelos ombros de Maria como para acalmá-la. Mas ela estava muito preocupada com o que acontecia. — Os escudeiros cuidarão de tudo.

Maria respirou mais aliviada ao observar que Nicholas se afastava sem nenhum ferimento, porém voltou a ficar ansiosa quando os cavaleiros desembainharam as espadas.

Ela deu um pulo no instante em que as lâminas se chocaram. Sterlyng a acalmou.

— Elas são feitas de osso de baleia e dificilmente podem ferir.

Maria tinha dúvidas. Do jeito que aqueles dois se golpeavam, um deles acabaria se ferindo. Quase a ponto de chorar, ela sabia que mesmo que Nicholas não estivesse usando seu véu perto do coração, ele seria o seu campeão.

Estremecia a cada golpe desferido contra ele e reprimia a vontade de gritar para que parassem com aquela competição insana. Homens! Nada daquilo fazia sentido, sem dizer dos ferimentos que poderiam sofrer, mesmo sem golpes mortais.

— Sua Graça... — o pajem disse alguma coisa em voz baixa para Sterlyng. Maria não conseguiu ouvir o que era, mas Gloucester virou-se e falou com o cavaleiro que estava a seu lado.

— O que foi, pai? Sterlyng ergueu os ombros.

— O pajem deve ter percebido alguma irregularidade e... Veja! — Ele apontou na direção dos combatentes. — Kirkham deu o golpe fatal.

Maria viu que Nicholas tinha, de fato, levado vantagem sobre Bexhill, que agora estava caído no chão com a espada apontada para seu peito.

— E agora?

Dois cavaleiros entraram a pé na arena. Um ajudou Bexhill a se levantar, enquanto o outro foi para o lado de Kirkham. Em seguida, eles retiraram os combatentes da arena.

Está terminado — disse Gloucester, aborrecido. — Não permitirei que esse tipo de truque seja usado em torneios reais.

Truque?

Meu pajem suspeita de que o cavalo de Kirkham foi ferido pela armadura de Bexhill... talvez pela sua lança. Ele não tem certeza e Bexhill nega a irregularidade. Diz que o que aconteceu foi um acidente.

Maria ficou tão nauseada que precisou se sentar.

 

Você está bem, Maria? — Eleanor perguntou. — Quer um gole de... Maria reconheceu que estava com uma aparência péssima, pois até Eleanor tinha notado. Balançou a cabeça e levou o dedo aos lábios.

— Não — sussurrou. — Dê-me apenas alguns momentos.

— Declaro o marquês de Kirkham vencedor do torneio — Gloucester anunciou. — A batalha com machado foi suspensa e Kirkham receberá o prêmio.

Ele ergueu o medalhão dourado que seria entregue ao vencedor, porém Maria nem prestou atenção. Sentia apenas um grande alívio porque Nicholas continuava inteiro e não estava ferido.

— Podemos ir para casa agora, pai?

Quando Nicholas conseguiu admitir para si mesmo que só lutara por Maria, ficou profundamente desapontado ao perceber que ela já não se encontrava ali para vê-lo receber o prêmio das mãos de Gloucester. Ele o daria de presente para a dama mais linda do torneio.

Mas por que faria isso? Nick meneou a cabeça, desanimado. Nunca tinha as repostas certas quando se tratava de lady Maria Burton.

Tudo bem, não importava que ela tivesse saído antes de o torneio terminar, ele pensou, entrando na banheira de água quente. Era convidado de Sterlyng para jantar e sentariam juntos à mesa, quando teria oportunidade de oferecer-lhe o prêmio que recebera de Gloucester, o medalhão de ouro incrustado com rubis. Então saberia se ela lhe era indiferente ou não.

Sorriu enquanto se ensaboava. Pelo menos o dia servira para uma coisa: desmascarar Bexhill. Apesar de ele ter negado, o golpe fora intencional, pois todo mundo vira seu cavalo ser ferido pelas pontas de ferro — fato inaceitável num torneio de paz, que era uma exibição de habilidades, e não uma batalha sangrenta.

E Maria ficou sabendo que tipo de homem Bexhill era.

Nicholas pegou o véu de seda branca que deixara sobre a mesa ao lado da banheira. Fora cortado da peça de seda que ele lhe dera e transformado em véu um ou dois dias depois de ela receber o presente. Levou o véu ao nariz e cheirou. Era apenas um tecido, mas estava impregnado do perfume de Maria. Jamais iria devolvê-lo. Nicholas concluiu que eles tinham passado pouco tempo juntos, por isso não parava de pensar nela e na intensidade dos raros encontros que tiveram. Mais uma noite juntos... não, bastariam algumas horas...

Seu corpo ficou em estado de alerta quando a imaginou ali, junto com ele, dentro da banheira. Talvez estivesse sentada no seu colo, com seus lindos cabelos caídos nos ombros, provocando-o com os seios firmes, os lábios úmidos e macios. Impossível esquecer aquele encontro no Castelo de Fleet. Nicholas não conhecia ninguém que fosse tão sensível aos seus toques, tão receptiva aos seus estímulos. E ela dizia que aquela noite fora um engano e que não o queria.

Pois Maria estava muito enganada. Ele a queria tal como um homem faminto precisa comer.

Nicholas saiu da banheira e começou a se enxugar. Não era hora de ficar fantasiando com Maria Burton. Tinha um importante trabalho a realizar.

As tropas francesas estavam se aproximando de Orléans. Agora elas tinham um vencedor, uma donzela chamada Jehann. E por mais incrível que pudesse parecer, essa "soldado-donzela" representava uma ameaça real para as tropas inglesas ali posicionadas.

Nicholas precisava descobrir a identidade desse traidor bem-posto e barrar as informações que iam para a França. Se não fizesse isso, não poderia impedir que mais ingleses morressem em batalha.

Pensou em conversar com Sterlyng, mas achou melhor continuar com a possibilidade de ele ser um dos suspeitos. Dessa maneira, o verdadeiro culpado continuaria agindo e teria mais cnance de ser apanhado. Então cessariam as mensagens às forças do delfim, revelando os dados a respeito das tropas, dos suprimentos e da disposição para o combate. Não haveria mais ninguém para revelar os sentimentos do povo inglês ou do Parlamento em relação às guerras na França, ou de onde viriam os recursos financeiros para Bedford.

Enquanto se vestia, Nicholas pensava em como fazer o informante cair na armadilha. E foi assim que conseguiu parar de pensar um pouco na doce Maria.

Maria dormiu quase toda a tarde, um sono tenso, agitado. Sonhou com todo tipo de horrores, a maior parte envolvendo Nicholas, espadas e lanças. Acordou inquieta, física e mentalmente desorientada.

Além disso, o cheiro de frango e peixe que saía da cozinha e se espalhava por toda casa era repugnante. Para se afastar disso, ela saiu de casa com Alísia e foram andar na beira do rio, onde havia barcos para alugar e jovens apaixonados remavam para suas damas por entre os salgueiros debruçados sobre as margens.

E lindo aqui — disse Maria.

Seu pai me contou que você não gostou do torneio. Maria ergueu os ombros.

Não gosto de ver homens adultos se enfrentando com armas.

Soube que lorde Kirkham venceu.

  1. Lorde Bexhill não era páreo para ele.

Interessante — Alísia observou. — Nunca ouvi dizer que lorde Kirkham fosse hábil em torneios, mas sim que serviu na França sob o comando do rei Henrique, muitos anos atrás.

É mesmo?

O irmão de Kirkham morreu ao seu lado numa batalha. Dizem que ele nunca se recuperou dessa perda.

Posso imaginar — Maria comentou.

O rei liberou-o do serviço, mas parece que Kirkham não voltou para a Inglaterra. — Alísia continuou, lembrando-se das coisas que ouvira. — Parece que ele se culpou pela morte do irmão e não teve coragem de enfrentar o pai depois. Maria sentia muito pelo sofrimento de Nick.

— No fim, ele só voltou depois da morte do pai e se tornou marquês.

Elas continuaram andando em silêncio ao lado-da água.

— Por que será que Ni... lorde Kirkham é tão...

— Malfalado?

— Sim.

— Não acredito que ele seja tão mau quanto quer que todos pensem — Alísia disse em voz baixa.

— Não?

Ela balançou a cabeça.

— Não. Sinto que ele tem princípios, tem muita honra por trás daquela fachada. Veja com que respeito trata seu pai, Maria. Isso não pode ser fingimento.

— É verdade — Maria concordou, entusiasmada. — E em Kirkham, ele adora a senhora que cuidou dele quando criança. E é muito amado por um casal que administra a propriedade. Minha tia e meus primos em Alderton nunca tiveram consideração pelas pessoas que moram no castelo.

— Acredito que Kirkham tem muito mais do que aparenta — Ao dizer isso, Alísia observou atentamente a reação de Maria.

Ela olhava para os pés enquanto andava e avaliava o que ouvia. Sua vida era tão simples antes de tudo que acontecera. Nunca tivera que esmiuçar os motivos ocultos de ninguém, mesmo que, com Nicholas, só pudesse concluir que sua intenção era levá-la para a cama outra vez. Conhecia sua reputação. Embora em Londres não tivesse sabido de nada, em Kirkham vira com seus próprios olhos que tipo de anfitrião ele costumava ser.

Ainda assim, Alísia podia estar certa. Talvez entre eles houvesse mesmo algo mais que pura luxúria. Mas ela preferia não nutrir falsas esperanças.

— Meu pai disse que os navios chegam ao porto de Londres trazendo mercadorias de todo o mundo.

Alísia aceitou a mudança de assunto com um leve sorriso. O tema Nicholas Hawken certamente renderia muito mais, mas podia ficar para depois.

— É verdade. E é melhor você ficar longe dessa parte do rio. Não há pior lugar nesta terra que o porto.

Maria franziu as sobrancelhas.

Por quê? É tão perigoso assim?

Lá estão concentrados os homens das piores espécies. Tavernas e... mulheres de vida fácil. Prostitutas. Eles se entregam a todo tipo de vício. Muito álcool, muita briga... De vez em quando se ouve falar de coisas horríveis que acontecem por lá. Alguém que foi espancado, que foi esfaqueado...

Bem, acho que nunca vou precisar ir ao porto.

E bom mesmo.

O dia estava surpreendentemente limpo, e ela sentia a agradável sensação do sol da tarde aquecendo sua pele.

— Olhe! — Maria apontou para a água. Dois barcos passaram rápido, cada um com dois jovens remando. — Eles estão apostando corrida!

— É, estão. — Mais uma vez Alísia não fez a pergunta que havia poucos minutos estava na ponta de sua língua.

Os preparativos para o convidado de logo mais à noite estavam a todo vapor quando elas voltaram para casa. Maria foi para o quarto vestir-se para a soirée.

Quando se viu sozinha, de novo as terríveis imagens de seus sonhos voltaram a atormentá-la. Viu Nicholas ferido e sangrando e o rosto de lorde Bexhill contorcendo-se num esgar diabólico. Como era possível alguém ter a consciência tranqüila depois do que fizera no torneio? Que espécie de cavaleiro era Bexhill para ferir o cavalo de seu oponente? Como conseguia conviver com isso? Esse Bexhill não tinha a menor integridade.

O dia chegava ao fim e Maria acendeu a vela. Tirou a túnica que estava usando e se sentou no banco, apenas de chemise, na frente do toucador. Tirou os grampos de osso dos cabelos e começou a escová-los. A conversa com Alísia a respeito de Nicholas a deixara mais confusa. Ela fechou os olhos, suspirou, vendo nitidamente o rosto dele na sua frente.

Não precisou se esforçar para sentir as mãos de Nick em seus ombros, os lábios sobre os seus. Lembrou-se até do cheiro do sabão que ele usava e...

Um barulho na janela afastou-a de seus devaneios. Virou-se para olhar e viu o homem de seus sonhos saltando pelo batente da janela.

— Nicholas!

— Psiu! — ele fez, aproximando-se rapidamente e cobrindo sua boca com a mão. — Não grite.

Ela sacudiu a cabeça e afastou a mão dele. — Você não devia estar aqui! Por quê... Ele a interrompeu com um beijo, um longo e doce beijo que fez os joelhos de Maria se dobrarem como se fossem de manteiga.

— Eu precisava vê-la a sós, minha linda — ele sussurrou —, e não iria conseguir, a menos que... — Seus olhos mergulharam nos dela e então saíram a passear pelo rosto. — Você é tão linda, tão adorável. A seda se transforma em você. Foi assim que eu imaginei. — Sua boca a buscou novamente e as mãos escorregaram para as alças da chemise, empurrando-as para baixo.

Maria não resistiu. Por pior que fosse, não podia evitar de amá-lo, de derreter de prazer às suas carícias. Ela tremeu quando as mãos desceram por seu corpo, brincando com as partes sensíveis, envolvendo os seios por inteiro.

— Nicholas... você está bem? Bexhill não o feriu...

— Não, minha linda. Pode me olhar inteirinho, se quiser. Curvou para lamber um bico de seio e enfiou todo o botão dentro da boca. Maria agarrou-se nos cabelos dele, deleitando-se com as maravilhosas sensações que Nick lhe proporcionava.

No centro de seu corpo, o calor a inundou. A pressão aumentava na sua parte mais íntima. De repente, as mesmas sensações intensas que conhecera no jardim de Fleet estavam presentes. A euforia tomou conta de cada ponto desperto e úmido de prazer.

Maria teria desabado no chão se Nicholas não a erguesse no colo e a levasse para a cama.

A roupa havia escorregado de seu corpo, e ela ficou totalmente nua sobre o cobertor, com Nicholas por cima, suas mãos e lábios talentosos ainda promovendo devastações em seu corpo. Não podia permitir uma coisa dessas. Devia mandá-lo embora.

Nicholas... — ela murmurou, sem conseguir juntar as palavras.

— Não diga nada, meu amor. — Ele beijou os seios, depois a pele macia da cintura. As mãos escorregaram para as pernas e, logo atrás, a boca seguiu o mesmo caminho. O hálito quente fez cócegas em seu umbigo, em seguida Nick beijava a parte mais sensível de seu corpo.

Maria puxou-o pelos cabelos.

— Nicholas... não faça isso!

— Ah, faço sim... — Ele a beijou suavemente. — Não tenho outra coisa senão sonhar com isto... Fazer amor com você... desde que fugiu de mim em Kirkham.

—    E vou fugir outra vez — Maria murmurou entre gemidos de prazer. — Você não serve para mim, Nicholas. Preciso encontrar um bom marido... Oh! — Ela estremeceu.

— Não fale mais em maridos. Apenas sinta o que acontece quando toco em você.

Ela não fazia outra coisa. Transformara-se numa fonte de prazer que só queria ser tocada por ele. Impossível pensar qualquer coisa racional quando Nicholas a seduzia dessa maneira, como só ele sabia fazer.

O quarto escureceu. Maria mal conseguia Ver as feições de Nicholas enquanto se contorcia embaixo dele, inteiramente entregue à sua vontade. Não era direito lhe permitir tais liberdades. Logo precisaria descer para entreter os convidados de seu pai, alguns deles possíveis maridos respeitáveis.

Nicholas também estaria lá. Como poderia olhar para ele depois... disso?

Alguém bateu na porta.

Milady?

— Um momento... por favor! — ela disse assustada.

— Vim ajudá-la a se vestir e a se pentear — falou a criada.

— Ainda não estou pronta. Volte dentro de alguns minutos.

— Sim, senhora. Quando precisar de mim, toque o sininho.

Maria tirou as pernas da cama e cobriu o corpo com a chemise, que se encontrava no chão.

Nick olhava-a como se quisesse devorá-la, mas também se levantou.

— Não queira esconder nada de mim, minha linda.

Ele estava dizendo a mais pura verdade.

— Ah, Nicholas!

Como ela permitira que acontecesse aquilo? Deveria tê-lo empurrado pela janela, antes que ele conseguisse entrar.

— Vou embora agora — Nicholas beijou-a rapidamente — mas voltarei.

— Não! — Maria implorou em voz baixa — Não faça isso.

Ele deu uma piscadela e pulou a janela.

 

O jantar teria sido muito aborrecido se Nicholas não estivesse presente. Tudo ficava mais animado com a sua personalidade e seu bom humor, com seu conhecimento sobre o que se fazia em Westminster ou sobre qualquer assunto levantado. Todos se encantavam com ele, sobretudo as mulheres, como Maria pôde constatar.

Isso bastaria para estragar seu bom humor, não fossem as lembranças dos momentos que passara com Nick em seu quarto. Com que direito ele invadia sua privacidade e a tratava como uma qualquer? Não era uma dessas mulheres que se usavam e logo eram descartadas.

Na verdade, ele não tinha alcançado o clímax, e isso só podia ser castigo por tê-la tratado tão mal. Se estivesse se sentindo frustrado, seria bem feito.

— ...uma prova de minha estima pela linda lady Maria — ele dizia. Ela não prestou atenção às palavras, mas Nicholas estava lhe dando alguma coisa. Era um medalhão de ouro entalhado com o selo de Lancaster e incrustado com pedras vermelhas.

Ah, milady, você nem estava ouvindo — repreendeu-a Nicholas.

Maria corou. Mas adoravelmente, do ponto de vista dele. Ela estava irritada, sem poder se concentrar durante o jantar, porém esforçava-se para ser agradável e simpática com os convidados de seu pai. Talvez Nicholas fosse o único a quem ela não dava atenção, porque ele merecia.

Nicholas não planejara invadir o quarto dela. Chegara cedo a Bridewell Lane, e enquanto fazia hora para entrar, viu Maria pela janela do quarto. Foi impossível resistir à chance de passar alguns momentos a sós com ela, apenas não imaginou que um simples beijo pudesse chegar tão longe. Maria estava usando uma chemise feita com a seda que ele lhe dera de presente, tal como na imagem que povoava suas fantasias. Daquele momento em diante, toda vez que olhasse para Maria se lembraria da seda acariciando-lhe as curvas. Ao mesmo tempo que lhe caía muito bem, era incrivelmente sedutora.

Outra vez o corpo de Nicholas deu sinal de alerta quando ele se lembrou de Maria nos estertores da paixão. Era a mulher mais linda do mundo quando se abria para ele. Mais tarde voltaria a procurá-la. Mas não agora, ainda não. Ele já rompera suas defesas uma vez, depois que ela saíra do torneio antes do fim. Talvez até o desprezasse.

O duque também se mostrava mais receptivo nessa noite, fato que só agia em seu favor. Quando Sterlyng prendeu o medalhão na túnica de Maria, Nicholas sorriu satisfeito. Depois saiu da festa e entrou ostensivamente no banheiro.

Nicholas já estava fora havia muito tempo e Maria foi ver onde ele se encontrava. Considerando-se a hipótese de que era isso mesmo o que ele queria, ela subiu para seu quarto, mas o encontrou vazio. Olhou também no quarto do pai, porém Nicholas não estava lá.

Maria parou para pensar aonde ele poderia ter ido. Desceu a escada dos fundos e procurou na cozinha, depois no quintal. Nada. Ao voltar para dentro, olhou em todos os quartos, em seguida tomou o corredor estreito que levava ao estúdio de seu pai. Quando ela enfiou a cabeça pela porta, Nicholas segurou-a pelo braço, puxou-a para dentro e começou a beijá-la, sem dar-lhe tempo de respirar.

Você não vai encontrar um marido no meio desses nobres maricas — ele a desafiou.

Ah, vou, sim! — Maria empurrou-o. Nicholas não precisava saber que ela havia pensado em adiar a escolha. — Vou encontrar alguém que me respeite e que não fique escondido atrás de portas e pulando a janela do meu quarto.

Nicholas riu e balançou a cabeça.

Maria, por sua vez, franziu a testa e olhou ao redor.

— O que está fazendo aqui? — disse Maria. — Você se aproximou, fingindo amizade por meu pai e... e interesse por mim, mas o tempo todo você...

— Maria! — Nicholas protestou. — Eu não sabia que você era filha de Burton quando estava em Kirkham! Quando eu... quando nós... — Ele se deu conta de que seria pior mencionar as mudanças na relação acontecidas em Kirkham. — Maria, você tem que acreditar que isso não é verdade. Você é uma mulher maravilhosa... e muito especial para mim.

Ela o fitou com os olhos brilhando, depois virou-se e saiu do estúdio.

Nicholas teria chutado qualquer coisa que visse na frente, se não fizesse barulho. Pela primeira vez em sua vida se dava tão mal com uma mulher. Devia saber desde o primeiro momento que a vira... quando se encontraram naquela estrada de Kirkham, que nada seria tão simples e tão fácil com essa linda mulher.

Sabendo que Nicholas não voltaria para a festa, Maria desculpou-se por ele, dizendo que havia sido chamado com urgência. No fundo, ainda esperava que ele entrasse pela janela de seu quarto mais tarde, quando os convidados tivessem ido embora, mas Nick não apareceu.

E ela não sabia se ficava aliviada ou triste por isso.

Não, era um alívio. De verdade. Maria não tinha vontade de ver Nicholas outra vez. Ele era um canalha, dissimulado e mentiroso, que não respeitava a honestidade e a virtude.

Deitada na cama, olhando as sombras que dançavam na parede, relembrou a perturbadora conversa que tivera com o inescrupuloso marquês. Ele admitira que estava vasculhando o escritório de seu pai e que sua intenção era provar a inocência dele. Maria não sabia se acreditava ou não nessa história. Pensando bem, Nicholas não se arriscaria a mexer nas coisas de seu pai se não acreditasse que o duque de Sterlyng era culpado de traição.

O pouco tempo de convivência fora suficiente para que Maria ficasse muito ligada a seu pai; não iria permitir que o tirassem dela, agora que havia acabado de encontrá-lo. Gostaria de entender mais de política e conhecer melhor os poderosos membros do Parlamento. Conversando com eles talvez pudesse juntar as peças e entender qual seria o envolvimento de seu pai, ou quem estava querendo implicá-lo nessa trama.

Nicholas dissera que trabalhava para o duque de Bedford, Regente da França e irmão do duque de Gloucester. Também era tio do rei e o responsável por conduzir a guerra na França. Alísia lhe contara que fora Bedford quem dispensara Nicholas do serviço militar anos antes. Seria ele que acusava seu pai de traição?

Mas Sterlyng considerava Bedford um amigo. Que prova teria Bedford contra ele? E por que pensaria tão mal de seu pai? Devia existir alguma prova, algum documento, ou Nicholas não se arriscaria a vasculhar o escritório e ser encontrado lá dentro.

Mas ela podia apostar que Sterlyng não tinha nada a ver com isso. Seu pai jamais trairia um amigo ou seu país.

Alguém, o verdadeiro canalha, conseguira convencer Nicholas de que o culpado era Sterlyng. E só por isso Nicholas a assediava com tanta insistência. Ele fizera o possível para ter acesso à sua casa. Tratava-se mesmo do grande patife que todos diziam que era.

Maria sentiu uma dor no coração.

Agora sabia, e não tinha mais dúvida, de que Nicholas não se importava com ela. Não gostava dela. Só queria deixá-la tão enfraquecida na sua presença que nem seria capaz de questionar seus atos. E nisso ele fora muitíssimo bem-sucedido.

Beijara-a de propósito até fazê-la perder os sentidos, iludira-a a ponto do descontrole para deixá-la tão inebriada, tão completamente dominada que nem notaria sua intromissão.

Isso ele quase conseguira. Mesmo agora, quando não queria nem pensar na maneira como Nicholas a influenciava, Maria podia sentir o calor dos lábios dele em sua boca, o cheiro dele em seu corpo.

Ela virou-se para dormir, mas seu olhos pararam na janela. Estava aberta.

Por mais que quisesse convencer a si mesma de que abrira a janela devido ao calor, no fundo sabia que era por causa de Nicholas. Queria apenas conversar, dizer a ele que estava disposta a fazer suas próprias investigações para eliminar qualquer suspeita sobre seu pai.

Sentou-se na cama de um salto, mas logo deitou de novo e cobriu a cabeça com o travesseiro. Em vez de ficar pensando em Nicholas, precisava se concentrar nessa questão da traição e tentar encontrar um meio de inocentar seu pai.

Primeiro pensou em falar com ele, mas logo desistiu. Isso só o aborreceria, o que não devia acontecer. Não, teria que fazer tudo sozinha e provar que Nicholas estava errado. Depois daria adeus ao marquês e escolheria um marido entre os pretendentes que já haviam pedido sua mão.

Enquanto afofava o travesseio para dormir, Maria pensou que o duque poderia escolher de uma vez esse marido e tornar as coisas mais fáceis para ela.

Nicholas andava pelo quarto, inquieto. Pensou em voltar a Bridewell Lane e saltar a janela do aposento de Maria, mas temia que ela o expulsasse. Estava preocupado. Maria ganhara uma importância enorme para ele. A idéia de que ela resolvesse se envolver nesse assunto o preocupava. E se ela conseguisse encontrar o traidor e o enfrentasse? Estaria correndo um enorme perigo.

Nick deu um soco na mesa ao lado da cama. Sua preocupação aumentava a cada minuto. Nunca se envolvera tanto com uma mulher a ponto de seu trabalho ficar em segundo plano. Talvez fosse hora de se juntar aos amigos para uma noitada. Uma boa farra ajudaria a tirar a loira briguenta de seus pensamentos. Estava cheio de mulheres que adorariam levar um marquês para a cama. Mas nenhuma o satisfazia tanto quanto Maria.

Diversões à parte, Nick teria de redobrar seus esforços para pegar o responsável pela armação contra Sterlyng. Se soubesse por que essa pessoa tentava implicar o duque, teria mais chance de chegar ao verdadeiro inimigo. Infelizmente, não conseguia pensar em nenhuma explicação razoável, além da intenção de afastá-lo da pista certa. Enquanto ele procurava no lugar errado, o responsável talvez estivesse vazando informações importantes para a França.

De qualquer maneira, Nicholas queria que Maria ficasse fora disso. Ela não tinha nada a ver com essa intriga. Gostaria de poder procurar o pai dela com as poucas informações que possuía, mas por enquanto apenas suspeitava de que o duque fosse inocente e não podia divulgar o que sabia.

Nicholas via as velas queimando lentamente enquanto pensava em Maria e amaldiçoava os últimos acontecimentos. Mais do que nunca precisava estar perto dela, porém duvidava de que o recebesse, não depois do que acontecera naquele escritório. Tinha que encontrar um jeito de convencê-la de que não era seu inimigo. Pelo contrário, preocupava-se mais com ela do que com a própria vida.

Quase uma semana se passou sem que Nicholas conseguisse se aproximar de Maria. Quando ela cavalgava por Westminster, ia sempre acompanhada por um de seus muitos pretendentes. Os passeios à beira do rio nunca eram solitários. Estava sempre acompanhada de um ou mais cavalheiros, além de lady Alísia. Nick comparecera a inúmeras festas e soirées na esperança de encontrá-la, mas nunca conseguira.

Finalmente surgiu uma esperança, ao ser convidado para uma festa, oferecida pela mulher de Gloucester.

Lady Eleanor era uma mulher moderna e animada, com poucas inibições em relação aos homens e mulheres de seu círculo. Não seria difícil convencê-la a dar-lhe uma mãozinha com Maria.

Um grupo grande de homens e mulheres muito bem vestidos aguardava a beira do Tâmisa, não muito longe do palácio de Westminster. Ali, eles embarcariam em pequenos botes que os levariam ao lugar preferido de lady Eleanor, um parque na margem oposta. Lá, jogariam algumas partidas de paille-maille ou se envolveriam em quaisquer outras das muitas atrações oferecidas, depois se sentariam nas esteiras espalhadas pelo gramado e fariam uma lauta refeição servida por um exército de criados.

Nicholas localizou Maria na margem do rio, conversando com algumas senhoras. Ela ainda não o vira. Estava linda de morrer. Usava uma túnica verde bordada de branco, com um decote baixo que expunha um bom volume de seios. Um volume muito grande de seios, no parecer de Nicholas. Não lhe agradou nem um pouco notar que os homens não tiravam os olhos dela.

Maria ainda não o vira, e Nicholas pretendia que continuasse assim por enquanto. Como com certeza tentaria evitá-lo, ele planejou confiscar o barco que ela tomasse, enquanto lady Eleanor tratava de cuidar de seus acompanhantes.

Nicholas sorriu pela primeira vez em muitos dias.

O plano tinha de dar certo. Maria embarcou e seu acompanhante veio logo atrás. Quando Eleanor atraiu a atenção do jovem, Nicholas abriu caminho entre as pessoas, tomou o lugar dele e soltou a corda que prendia o barco, antes que Maria tivesse chance de protestar.

— Nicholas Hawken! — Ela cruzou os braços sobre o peito. — Se não tiver uma boa explicação para me dar, eu mato vocêl

 

Nicholas deu aquele sorriso que tinha o poder de transformar os joelhos de Maria em cera quente e seu corpo em manteiga derretida. Mas ela se recusou a ser reduzida a mingau. Aquele homem acusara seu pai de traição. Por mais que ele negasse isso, Maria tinha razões de sobra para duvidar... além de tê-la usado para entrar na sua casa. Só por isso não estava disposta a perdoá-lo. Além de ter desrespeitado seus sentimentos.

E então? — ela perguntou. Ele estava incrivelmente bonito. Os braços musculosos podiam ser vistos sob as mangas da túnica, as coxas poderosas sob a calça justa. Maria achou melhor olhar para o outro lado.

O dia está lindo, não é, amor? Eu só quero passá-lo com a mais linda de todas as mulheres, lady Maria Burton.

Essa delicadeza não combina com você, lorde Kirkham.

Não? E o que é que combina?

Sua indiferença, milorde.

Ah, Maria, assim você me ofende. — Ele levou a mão ao peito.

— Como se isso fosse possível — ela murmurou. Nicholas sorriu e continuou remando; com remadas suaves e constantes, logo eles ultrapassaram os outros barcos. Mas ele continuou perto da margem, enquanto os outros cruzavam o rio.

Você não está acompanhando os demais — disse Maria.

Pelo contrário, estamos à frente deles.

— Nicholas, mude o curso — ela exigiu, começando a ficar enjoada. — Vamos nos juntar aos outros.

— Pensei em levar você... — Ele parou quando viu que Maria não estava bem.

O mal-estar veio tão rápido que a pegou de surpresa. Ela ficou gelada. Tentou engolir para evitar o pior, mas viu que não iria conseguir. Então fechou os olhos e cobriu a boca com a mão.

— Nicholas, acho que vou vomitar.

Ela tentou conter o vômito enquanto ele manobrava o barco. Quando encostaram na margem, Nicholas ergueu-a nos braços para tirá-la do barco. E com toda a delicadeza a pôs sentada na grama. Então sentou-se a seu lado e a abraçou. Maria apertou a mão sobre o estômago e esperou passar a ânsia. Nicholas desamarrou seu chapéu, tirou o véu e a trouxe para mais perto. Ela o ouviu murmurar e pousar os lábios na sua testa e nas têmporas, mas estava se sentindo tão mal que nem deu atenção.

Por fim, já se sentindo melhor, afastou-se dele.

— Melhorou?

Maria assentiu em silêncio. O que ela mais tinha vontade era de buscar conforto nos braços dele, porém achou melhor manter distância de maiores entusiasmos.

— Você ficou tão pálida — Nicholas disse gentilmente, como se falasse com uma criança doente. — Tem certeza de que está bem?

— Tenho, Nicholas. Não estou acostumada a andar de barco. Uma ruga de preocupação marcava a testa dele, e Maria não pôde evitar de desfazê-la com os dedos.

— Vamos esperar que o seu estômago se acalme antes de voltar.

-— Voltar?

Ele deu de ombros.

Ou para a festa de lady Eleanor, ou para casa. Você decide.

Não quero mais entrar naquele barco. — Maria olhou para a água, enjoada.

Nicholas sorriu de um jeito que poderia tê-la incomodado, porém ela deixou passar. Estava sem energia para discussões.

Está certo. Mas tem certeza de que se sente bem?

Muito bem.

Então podemos voltar andando para Westminster. Não é longe. — Ele se inclinou para beijar-lhe os cabelos.

Maria não podia permitir que os arrepios de prazer influenciassem o que pensava a respeito de Nicholas, mesmo que seus lábios tivessem o poder de minar suas forças. Sabia muito bem o que ele queria dela e afastou a cabeça para evitá-lo.

— Já descobriu mais alguma coisa sobre o... o traidor? — Maria abriu uma distância maior entre eles.

Nicholas suspirou.

Não. Gostaria muito que você ficasse fora disso. Tive pesadelos só em pensar no perigo que você estaria correndo se...

Nicholas, é a reputação de meu pai e talvez a sua própria vida que estão em jogo. Não vou ficar parada esperando que você plante uma prova contra ele.

Eu não vou fazer...

Ela se levantou bruscamente.

Isso é o que você diz, mas eu... — Uma tontura a fez oscilar, mas imediatamente Nicholas se levantou para ajudá-la.

Maria, você não está bem?

Estou. — Ela tentou se desvencilhar, porém ele a segurou outra vez. — Se você não tirar as mãos de mim, lorde Kirkham, vou começar a gritar.

Só isso? E não vai me bater?

Irritada, Maria se soltou e saiu andando. Não se deixaria vencer nem ser outra vez seduzida. Tinha aprendido a lição. Nunca mais iria permitir que ele a usasse.

Por fim, ela achou melhor voltar para a festa de lady Eleanor, nem que para isso tivesse de cruzar o Tâmisa num barco a remo. E ao lado de Nicholas. Seria mais fácil suportar essa pequena distância de barco do que de ficar muito tempo sozinha com lorde Kirkham. Na festa havia muitos rapazes e moças da sua idade, e desde que chegara o convite ela esperava por esse dia. A tarde estava linda e Nicholas Hawken não iria estragar sua festa.

Maria foi para a margem, onde o barco estava atracado. Só esperava que Nicholas não dissesse mais nada. Ela nada tinha a dizer a ele, e até que Nicholas tivesse certeza da inocência de seu pai, ele também não.

— Não vamos andar até Westminster? — Nicholas perguntou atrás dela. Nenhuma mulher andava com tanta elegância, ele pensou, sentindo as reações de seu corpo ao movimento dos quadris de Maria, como se estivesse nua.

Ele a desejava ardentemente, mas não era hora para isso. Maria corria um grande perigo se saísse fazendo perguntas a pessoas erradas. Ela precisava lhe prometer que ficaria fora ffessa história.

Pois é, mudei de idéia — disse Maria, sem olhar. — Quero voltar para a festa.

Maria, nós precisamos conversar. — Ele apressou o passo para ficar ao lado dela. — Só por isso estou aqui hoje. — Ao menos, era o que ele pensava.

Não tenho nada a lhe dizer, lorde Kirkham.

Nicholas.

Ela deu de ombros e não respondeu.

Você fez alguma coisa, conversou com alguém sobre...

Não, ainda não. Não pretendo causar aborrecimentos a meu pai com essas... essas rudes acusações.

Maria, eu não acusei Sua Graça de nada.

Ainda não, mas você é um homem persistente, lorde Kirkham. Não tenho dúvidas de que vai encontrar o que está procurando, e então meu pai terá de provar que é inocente.

Eu não tenho nenhuma intenção... Quer parar um instante e conversar comigo?

Não tenho mais nada a lhe dizer, milorde.

Ah, eu acho que tem, sim. — Ele passou na frente dela e segurou-a pelos ombros. Iria fazer que ela o ouvisse, nem que tivesse de amarrá-la numa árvore.

Mas em vez disso a beijou.

Nicholas sentiu um momento de resistência, porém logo os lábios dela relaxaram e as mãos pararam de empurrá-lo.

— Maria — ele sussurrou, afastando-se por um instante. Sua língua brincou sobre a boca de Maria até obrigá-la a separar os lábios e permitir-lhe a entrada. Nicholas beijou-a apaixonadamente, sentindo sua virilidade se afirmar com um vigor até então desconhecido. Ela envolveu seu pescoço e colou-se a ele em retribuição.

Ah, que saudade ele sentia disso! Tocá-la, aspirar tão de perto seu perfume. As mãos reencontravam a maciez de sua pele, a boca reaprendia seu sabor. Nick sentia a pele queimar sob as mãos dela. E exprimia seu prazer com melodiosas exclamações e murmúrios. Desejava-a ardentemente, mas não podia amá-la num lugar público. Em vez de levá-la de volta à festa, iriam para a sua casa e fariam amor pelo resto da tarde. Nicholas a consumiria com sua paixão e a faria esquecer todo e qualquer problema para se concentrar somente nele.

E nunca mais eles iriam se esquecer desse dia.

Porém, de repente, Maria o empurrou.

Não, Nicholas! Não faça isso comigo.

Fazer o quê?

Que eu perca completamente a cabeça. — Ela deu-lhe as costas e seguiu em direção ao rio com as pernas trêmulas.

Nick também estava tremendo. Mas gostou de saber que a fazia perder a cabeça. Era bom ouvir isso de sua própria boca. Ele tentou detê-la mais uma vez.

— Por favor, não toque em mim, lorde Kirkham. Ele sorriu.

Estou falando sério, Nicholas. Até que esse assunto se resolva, acho melhor não nos vermos mais.

Eu discordo.

Pouco me importa se você discorda — ela decretou com frieza. — Não estarei em casa se me procurar.

Mas você não precisa estar em casa para ficarmos juntos, minha linda. — Nicholas adorava deixá-la desconcertada. Maria estaria na sua cama na hora certa, nem um minuto a mais nem a menos. Ela não tinha condições de resistir.

Vou evitá-lo em público como se você fosse um leproso.

E eu a levarei para a cama outra vez. Não importa se na minha ou na sua. Mas fique tranqüila, vai acontecer. E logo.

Não, Nicholas, não vai. E desejo de meu pai que eu escolha um marido e...

Escolher um marido? — Ele sabia disso, porém era a última coisa que queria ouvir depois de trocar o beijo mais apaixonado de sua vida.

Isso mesmo. Meu pai me disse que eu não tive chances de escolher as coisas na minha vida e quer remediar isso. — Na beira do rio, ela parou ao lado do barco. Não queria nem pensar que entraria nele outra vez, mas não tinha outra saída.

Só esperava que a travessia fosse rápida. — Ele também quer que eu mesma escolha, mesmo não sendo esse o costume...

— Não entre no barco sozinha, Maria.

Nicholas estava exasperado. Ótimo. Ele apenas a ajudou a embarcar, para em seguida empurrar o barco na água e saltar dentro dele.

 

Maria procurou não olhar para Nicholas enquanto ele remava, mas descobriu que ficava menos enjoada se fixasse os olhos nele, e não na margem do rio. Sentiu-se um pouco mal durante a travessia, porém não quis aceitar sua ajuda. E Nicholas, por sua vez, ignorou o pedido que ela lhe fez para que não ficasse na festa. Parou o barco na outra margem, ajudou-a a saltar e acompanhou-a até um grupo de jovens. Maria preferiu ignorar quando algumas convidadas de lady Eleanor correram para Nicholas e lhe imploraram para que ficasse. E ele não se fez de rogado.

Sem dúvida, um mestre da sedução, Maria pensou.

Tinha pena dessas mulheres, e de si mesma, por se deixarem apanhar na armadilha de um galanteador como Nicholas. Ele flertava descaradamente e ganhava a atenção de todas as jovens que encontrava. Seu sorriso era encantador. Suas palavras, adoráveis. E ele se mostrava obviamente agradecido pelos atributos que as mulheres exibiam para seu deleite.

Maria não conseguia olhar. Obrigando-se a prestar atenção em outra coisa, misturou-se entre os convidados, conversando com o máximo possível de gente e mantendo distância de Nicholas. Ela pretendia se divertir. Além do que, seu futuro noivo poderia estar presente na festa de lady Eleanor. Mas enquanto não o encontrava, tencionava aproveitar cada minuto.

Ela ignorava de propósito as risadas das mulheres ao redor de Nicholas. Nem queria pensar na probabilidade de que algumas delas podiam ter sido agraciadas com uma noite de amor em sua cama. E muito menos dar atenção à pontada de ciúme que se seguiu a esse pensamento.

Não tinha nada a ver com isso. Nicholas era um mulherengo incorrigível. Nunca mais cairia de joelhos por ele. Estava ali para encontrar seus novos amigos e conhecer pessoas, e não para lamentar o que nunca poderia ter com lorde Kirkham. Seu pai queria vê-la casada e lhe dera a chance raríssima de fazer sua própria escolha.

Era isso que ela pretendia fazer.

Depois de algumas partidas de paille-mailee, os convidados foram se espalhando pelo gramado enquanto os acrobatas se apresentavam no meio deles. Uns faziam malabarismo com bolas coloridas, e os músicos, vestidos com roupas coloridas, tocavam harpa e tambor, trompete e violino. Tudo era muito parecido com a feira de Dunstan, mas sem os quiosques que expunham as mercadorias à venda.

Depois que a refeição foi servida, e para a qual Maria não teve o menor apetite depois do ataque de náusea, lady Eleanor pediu a todos que se preparassem para participar de uma demonstração de habilidades. Cada convidado devia escolher alguma coisa que soubesse fazer e se apresentar diante de todos.

Isso provocou uma onda de comentários animados entre as mulheres, mas um frisson de pavor em Maria. Não tinha nenhuma habilidade em particular além de servir refrescos em bandejas que pesavam quase tanto quanto ela. Dificilmente alguém se interessaria por isso.

— Há vários alvos distribuídos por aí e também uma arena para esgrima — anunciou lady Eleanor. Temos também instrumentos musicais, e quem quiser nos regalar com uma canção, nossos músicos estão aqui para acompanhar.

Nicholas sentou-se na grama atrás de Maria. Debruçou-se sobre ela e disse em seu ouvido:

— E uma pena que a sua melhor habilidade só possa ser mostrada na cama.

Maria nada respondeu, mas essa referência a seus encontros íntimos foi como um soco em seu estômago. Imediatamente ela olhou para os lados, a fim de ver se alguém tinha ouvido. Por sorte, ninguém ouvira.

— Arqueiros! — lady Eleanor convocou. Não podia ter sido em melhor hora. — Os alvos estão prontos!

Todos se levantaram, ajeitaram as roupas e se dirigiram para um arvoredo onde grandes fardos de trigo tinham sido pendurados. Presos a eles, pedaços de tecido colorido faziam as vezes de alvos. Os pajens seguravam os arcos e as flechas para os concorrentes.

Alguma vez já atirou uma flecha, minha linda? — Nicholas aproximou-se dela e perguntou em seu ouvido.

Não, lorde Kirkham — Maria respondeu, sem se deixar perturbar.

Posso lhe mostrar como é? — ele ofereceu, passando o braço dela pelo seu. — Digamos que é uma aula particular.

Maria retirou o braço da mão dele e apertou o passo. Não cederia outra vez a seus avanços, por mais que seu coração o desejasse. Nicholas não servia para ela, não com esse jeito sedutor e suas desagradáveis atividades clandestinas. Pretendia ficar longe dele a qualquer custo.

Os arqueiros-tomaram seus lugares e atiraram nos alvos em meio à torcida e aos aplausos de pajens e convidados.

Lorde Kirkham, não quer atirar? — lady Eleanor o desafiou. Nicholas sorriu e balançou a cabeça negativamente.

Não, o arco não é a minha arma preferida, milady.

A espada, então?

Por que não? — ele respondeu, bem-humorado. Despiu a túnica e enrolou as mangas da camisa na altura do cotovelo. Maria conhecia muito bem a força daquelas mãos, assim como conhecia a capacidade delas para as carícias. Apreensiva, fechou os olhos quando o viu pegar a espada.

— Isso é como um torneio de paz, lady Maria — disse Eleanor, notando sua ansiedade. — As espadas não têm corte. Os oponentes apenas duelam.

Mas pouco adiantou para aliviar a tensão de Maria, que ainda não se esquecera do que havia acontecido no torneio. Um adversário inescrupuloso seria capaz de causar sérios danos antes de ser desmascarado.

Não que a integridade física de Nicholas fizesse alguma diferença para ela, mas a idéia de ver os concorrentes feridos não lhe agradava nem um pouco.

— Lorde Mydelton — lady Eleanor dirigiu-se a um jovem muito bonito e lhe entregou um instrumento. — Você toca violino, não é?

— Sim, milady. — O rapaz começou a tocar uma melodia animada quando os espadachins começaram a disputa. Outros músicos o acompanharam, criando um alegre fundo musical para o duelo.

Para o alívio de Maria, a divertida competição se desenrolou em meio a muitas risadas e brincadeiras. Nem Nicholas nem seu adversário levaram a disputa a sério e terminaram empatados.

— Muito bem, milordes. — Lady Eleanor os premiou com uma medalha pendurada numa fita. — Tenho a impressão de que a arma de sua preferência é menos convencional, lorde Kirkham.

— E qual seria ela, milady? — Nicholas pegou um pano seco para enxugar as gotas de suor de seu rosto. Maria não conseguia afastar os olhos dele, por mais que sua presença a perturbasse.

Eleanor fez um sinal para um dos pajens, que desapareceu no meio dos outros.

— O chicote, milorde, como você bem sabe. Nicholas abriu os braços vazios.

— Ah, mas como não há nenhum chicote aqui...

— Há, sim. Tomei a liberdade de mandar buscar o seu. Aqui está.

Maria viu que ninguém notou a irritação de Nicholas, porém ela percebeu seus lábios se curvando de um certo jeito e as sobrancelhas se encontrando.

Uma coisa a deixava intrigada. Antes daquele incidente, quando Nicholas os salvara na estrada do Castelo de Fleet, ela nunca ouvira dizer que o chicote fosse usado como arma.

Todos aplaudiram quando Nicholas pegou o chicote da mão do pajem e seguiu lady Eleanor até a margem do rio, onde os alvos estavam instalados.

— Não fique tão zangado, Kirkham. Todo mundo vai gostar de ver você usar o chicote.

Maria ficou afastada quando Nicholas desenrolou o chicote e mirou os alvos. Garrafas coloridas estavam dispostas sobre uma mesa baixa, formando pequenas torres.

— O objetivo é tirar a garrafa de cima sem derrubar as outras. Maria achou que Nicholas não estava disposto a dar uma demonstração de sua habilidade, enquanto a platéia nem sequer respirava. Com suprema elegância, ele segurou o cabo do chicote numa das mãos, enquanto a outra deslizava por toda a extensão da tira de couro.

O movimento foi rápido e ágil. Um snap, e a garrafa de cima foi ao chão. Maria não estava acreditando no que via.

Em rápida sucessão, Nicholas bateu o chicote uma e outra vez até que todas as garrafas fossem arrancadas do alto das torres sem derrubar as outras. Não era à toa que os ladrões naquela estrada haviam sido postos fora de combate. Foram pegos totalmente de surpresa pela tática de Nicholas.

Os aplausos explodiram. Ele entregou o chicote ao ajudante e se retirou do centro das atenções.

Isso não foi difícil, pois lady Eleanor já anunciava a próxima atração. Nicholas dirigiu-se ao lugar onde deixara sua túnica. Maria foi atrás dele, mesmo sem querer, fascinada por sua destreza.

— Foi assim que você nos livrou daqueles ladrões na estrada de Fleet? — Ela perguntou. Seu pai lhe tinha dito para perguntar a Nicholas a respeito do chicote, mas ela se esquecera completamente.

Ele fez que sim com a cabeça e vestiu a túnica.

Que arma estranha, não é? — Maria parou a seu lado enquanto ele vestia a roupa.

Mais ou menos.

Onde aprendeu a usar o chicote?

Na Itália.

Depois de servir na França?

Nicholas olhou rapidamente para Maria e então pôs a mão dela em seu braço, como se ali fosse o seu lugar.

O que você sabe sobre o tempo que servi na França?

Quase nada. — Alísia lhe contara rapidamente, bem como sobre a morte de seu irmão, porém Maria não quis falar disso. Não queria saber mais nada sobre ele, ou compadecer-se por suas perdas, suas dores. — Lady Alísia me contou que você serviu ao rei Henrique na França. Quando ela viu que fiquei preocupada...

Nicholas ficou curioso quando a viu enrubescer.

E o que foi que a preocupou, minha linda?

Aquele torneio, você bem sabe. — Ela retirou a mão. — Não vi a menor graça naquela competição contra lorde Bexhill.

Nicholas riu.

— E eu que pensei que você adorasse um banho de sangue!

— De onde foi que tirou essa idéia, Nicholas? — Maria perguntou, irritada. — Eu nunca...

Ele pegou novamente em seu braço e reprimiu um sorriso.

— Não, você é apenas a mulher mais linda que já conheci.

Quando eles voltaram para a festa de lady Eleanor, havia uma carruagem esperando. Um dos criados aproximou-se.

— Milorde, a carruagem que o senhor pediu já chegou.

— Obrigado — ele agradeceu, enquanto a música e as festividades continuavam ao redor.

— Lady Maria — disse Eleanor —, deve ter muito orgulho de seu campeão.

— Meu cam...

— De lorde Kirkham, claro! — Ela riu. — Você passou tão mal no barco que ele pediu a carruagem para levá-la a Londres.

Maria virou-se para Nicholas sem entender.

— Na verdade, você pode voltar a Westminster de barco, se quiser — disse ele. — Mas se estiver disposta a suportar a minha presença por mais tempo, posso levá-la a Southwark, de lá cruzar a Ponte de Londres e chegar a Bridewell Lane — Nicholas concluiu deliciosamente.

 

Lorde Bexhill foi absolvido de qualquer responsabilidade no torneio, com os ferimentos sofridos pelo cavalo de Kirkham tendo sido considerados acidentais. Mesmo assim, teve de desculpar-se publicamente pelo acontecido e foi eliminado da lista de pretendentes de Maria. Ficara evidente que ele usara golpes baixos no torneio, apesar da conclusão oficial.

Quase todos os outros pretendentes eram jovens, bonitos e bem relacionados. E não pareciam desanimar com o fato de ela já ser mais velha.

Nicholas não apareceu mais na casa de Maria desde o dia da festa e nem ela esperava que aparecesse. Talvez ele estivesse muito ocupado esquivando-se por cantos escuros, procurando inimigos onde não havia nenhum.

Maria resolveu não contar a ninguém sobre as suspeitas de Nicholas. Porque se seu pai soubesse que o duque de Bedford não confiava nele, sofreria um duro golpe, e ela queria poupá-lo. Maria tinha certeza absoluta de que as acusações de Nick eram infundadas, e apesar de ele ter lhe pedido para ficar fora disso, ela estava disposta a descobrir a verdade de qualquer maneira.

O pior era saber que Nicholas pensava tão mal de seu pai.

Mas por que ela dava tanta importância a isso ainda era um mistério. As coisas que Nick fazia e falava deveriam destruir de uma vez por todas seus sentimentos por ele, mas, infelizmente, não conseguiam. Ele se mostrara tão solícito quando ela se sentira mal no barco, e o que era pior, nunca o vira tão atraente e fascinante. Por pouco não conseguira seduzi-la outra vez.

Mas logo depois encheu de atenções todas as mulheres disponíveis que se encontravam na festa de lady Eleanor, flertando descaradamente e brincando de cabra-cega.

Maria não entendia por que seu corpo sempre a traía quando estava ao lado dele. Nicholas tinha sobre ela um poder misterioso, impossível de ser combatido. Pior que isso, talvez ela não quisesse combater. Nenhum de seus pretendentes despertava suas paixões como Nicholas. Nem a faziam tremer com um simples toque de sua mão. Nenhum deles lhe roubava beijos de tirar o fôlego.

Três dias depois da festa, quando Maria sentiu de novo o mesmo mal-estar, dessa vez sem nenhuma razão, começou a desconfiar dessas náuseas freqüentes.

Ela trazia um filho de Nicholas. Haviam se passado várias semanas desde que se deitara com ele em Kirkham e ainda levaria algum tempo para que sua gravidez aparecesse. Mas, para seu desespero, estava esperando o filho bastardo de um lorde, como se fosse uma criada qualquer.

Transtornada, sentou-se em sua cama e cobriu a cabeça com as mãos. Não queria chorar, porque de nada adiantaria. Em vez disso, precisava fazer alguma coisa para não desonrar o bom nome de seu pai. Primeiro, respirou fundo para se acalmar. Mesmo sendo um problema, a gravidez não era nenhuma catástrofe. Pelo menos não precisaria ser. Quando ela se acalmou, conseguiu examinar melhor que caminhos teria pela frente.

Era quase certo que um convento não a aceitaria, ao menos enquanto estivesse com a criança. Também não podia fugir quando acabara de encontrar seu pai, e muito menos continuar solteira e criar seu filho fora do casamento. Considerou esta última opção. Pretendentes não faltavam, mas a maioria eram jovens que não a viam como uma caipira provinciana. Qualquer um deles serviria.

Bastava escolher um e se casar.

— Milorde. — Sir Giles entrou no escritório de Nicholas em Westminster com um homem que trajava uma capa. — Era ele que levava a mensagem.

Ao lado da janela, Nick observava o dia escuro, a chuva que caía torrencialmente. Voltou para a mesa e cruzou os braços.

— Para onde estava levando esta carta? — ele perguntou ao homem molhado da cabeça aos pés.

— Para o navio que está no porto — o sujeito respondeu num tom agressivo. Era um homem magro, miúdo, de cabelos e dentes igualmente marrons. Também estava sujo. Ele não encarava Nicholas e tamborilava com os dedos sobre a aba do chapéu. Era evidente que não daria mais informações.

— Qual é o nome do navio?

— Ei! — o homem exclamou. — Eu não tava fazendo nada errado. Só levando essa mensagem.

— Qual é o nome do navio? — Nick insistiu. Apesar do tom civilizado, o mensageiro não poderia se enganar sobre a seriedade da pergunta. Estava sendo questionado por um lorde do reino e sabia muito bem quais as conseqüências que havia por trás disso.

— Santa Clara — respondeu por fim. Nicholas olhou para sir Gyles interrogativamente.

— Já mandei checar — este informou.

Quem mandou a carta? — Nicholas mostrou o pergaminho dobrado.

Um homem... que encontrei na rua. Ele me deu dois pence para alcançar o Santa Clara.

Como era esse homem? Como ele estava vestido?

Chovia, milorde — disse o homem. — E ele usava capa com o capuz erguido. Eu não o vi direito.

Nick trocou olhares com Gyles.

— Era alto ou baixo? Gordo ou magro? O homem balançou a cabeça.

— Normal. Nem grande nem pequeno. Nick suspirou, passando a mão pelos cabelos.

— Como ele falava? — tentou mais uma vez. — Notou alguma coisa diferente no jeito de ele falar?

O mensageiro deu de ombros e balançou a cabeça.

Não, milorde, não tinha nada diferente. Falava como o senhor.

Mas ele lhe deu esta carta lá fora... à vista de todos.

É, milorde, ele deu — respondeu o homem.

Então Nicholas se lembrou de um homem que vira várias vezes do lado de fora do prédio, mas que não levantara nenhuma suspeita. Ao menos até agora. Teria sido mandado para vigiar Westminster e causar os danos que pudesse? Era provável.

Nicholas não tinha mais dúvidas de que a intenção desse homem era que o mensageiro e a carta fossem interceptados. E o responsável pela farsa conseguira distraí-lo enquanto algo muito mais sério acontecia. Mas quem e o que seria?

Quem você iria encontrar no Santa Clara?

Não sei, milorde. Eu só tinha que ir até o navio, e alguém viria pegar a carta comigo.

Nicholas duvidava de que encontraria um navio com esse nome no porto, mas não impediu sir Gyles de mandar investigar. Pôs uma moeda na mão do sujeito, que a guardou imediatamente.

— Se vir o homem que lhe entregou esta carta, se puder reconhecê-lo... venha me avisar.

Os olhos do mensageiro se acenderam à vista de moeda tão valiosa.

— Claro, milorde, claro.

Gyles acompanhou o sujeito enquanto Nicholas examinava mais uma vez a carta interceptada.

Embora a cera fosse mais grossa do que o normal, o lacre podia ser ou não de Sterlyng. Havia um "J" desenhado do outro lado do lacre. O texto da mensagem era curto: "Como previsto, os Comuns são contra. A Inglaterra tem dificuldade para levantar os recursos que Bedford precisa para pagar os soldados". Não havia assinatura.

Quem teria enviado essa carta? E como conseguira o lacre de Sterlyng? Seria o lacre falso ou verdadeiro? Nicholas examinou a cera mais atentamente. Se o lacre fosse uma réplica do que era usado por Sterlyng, o falsário fizera um excelente trabalho.

A mensagem não era importante nem tão secreta. Qualquer um que tivesse ligação com o Parlamento saberia que os dirigentes da Inglaterra se opunham ao aumento de impostos para subvencionar os gastos de Bedford. Só esse fato reforçava o argumento de Nick de que tudo não passava de uma artimanha para deixá-lo longe do verdadeiro vilão e manter suas suspeitas sobre o duque de Sterlyng.

Ele colocara um homem para observar a casa de Sterlyng e sabia que o duque não saía de sua residência desde o dia anterior, quando retornara de Westminster. Mas os criados entravam e saíam o tempo todo. Qualquer um podia estar levando uma carta. Porém Nicholas não acreditava nisso. Andando pelo escritório enquanto aguardava a volta de sir Gyles, concluiu que não valia mais a pena vigiar a casa de Sterlyng, a menos que os criados fossem revistados.

Infelizmente, também não havia razão para vigiar Westminster, desde que, ali, o movimento era sempre muito intenso. Jamais conseguiria alguma informação vigiando quem entrava ou saía do prédio. Seus homens também vigiavam os navios no porto, o que também não resolvia muita coisa. Os navios atracavam e os marinheiros saíam para as tavernas e os bordéis das ruas próximas às docas e também da Cock Lane. Uma carta podia mudar de mãos várias vezes antes de chegar ao seu destino.

Mas se tirasse os homens de sir Gyles de seus pontos de observação, deixaria claro que estava ciente dos truques do inimigo. Assim como o traidor também devia saber que ele tinha seus próprios meios de conseguir informações com sua fama de devasso e libertino.

De repente Nicholas sentou-se. Se soubessem que ele não era o canalha devasso que todos pensavam que fosse, então não seria mais útil como espião. Cerrou as sobrancelhas; isso deveria tê-lo perturbado, mas não aconteceu.

Ele ficou surpreso com a própria reação.

Na verdade, foi até um alívio pensar que finalmente poderia se livrar desse papel. Em geral, não o atrapalhava em nada, salvo quando, em Kirkham, era obrigado a envolver sir Roger e sua esposa em suas farras, ou quando Mattie Tailor ouvia coisas horríveis sobre o seu comportamento...

E Maria Burton. Ela pensava o pior a seu respeito. Ou que era um vilão que a usava para desmascarar seu pai, ou que era um mulherengo sem remédio. Nicholas sorriu. Talvez agora ela considerasse... E parou: o que mesmo ele gostaria que Maria considerasse?

A idéia de cortejá-la seriamente já lhe passava pela cabeça havia algum tempo. Talvez desde que se encontraram no Castelo de Fleet. Ela era bonita, sensual, receptiva. Desmanchava em suas mãos a cada vez que ele a tocava. Encantava-o com sua presença de espírito e com a doçura de seu coração.

Não conseguia ficar longe de Maria por muito tempo, mesmo que ela quisesse.

A chuva que batia na janela não conseguia afastar a lembrança de Maria em seus braços. Não existia nenhuma outra mulher que, ao mesmo tempo, lhe agradasse e o irritasse tanto. E Maria Burton iria escolher um marido.

Mas ele não permitiria. Uma coisa era certa: Maria lhe pertencia. E Nicholas estava disposto a fazer o que fosse necessário para impedir que ela escolhesse qualquer outro além dele.

 

Choveu durante todo o dia, o que deixou Maria ainda mais pensativa e inquieta. Uma hora se sentia feliz por estar grávida de um filho de Nicholas, outra hora caía no mais profundo desespero. Pensou na possibilidade de abrir-se com Alísia, mas preferiu não fazê-lo. Alísia era leal a seu pai e se sentiria na obrigação de contar a ele, o que ainda não era hora de fazer.

Melhor escolher um marido e casar o mais rápido possível do que dar um aborrecimento desses a seu pai. Com o tempo contaria a ele que estava esperando um filho e...

Ela suspirou. Era o filho de Nicholas. Ele não teria o direito de saber quando seu filho nascesse? Poderia ela, em sã consciência, esconder-lhe isso?

Maria parou para pensar e concluiu que poderia, sim. Nicholas não tinha o menor interesse em ter uma esposa ou uma família. Suas conquistas eram bem conhecidas entre a nobreza de Londres, e provavelmente esse fato seria um estorvo em sua vida.

Ao contrário do que pensava Alísia, o único aspecto de Nicholas Hawken que não saltava à vista era o fato de ser mentiroso e desleal. Ele estava envolvido em atividades clandestinas que só serviam para importunar e acusar nobres inocentes como seu pai.

O que levantava outro problema: como poderia provar que o duque era inocente, se Nicholas a proibira de tentar fazer qualquer coisa? Porém Maria não desistira de saber o que pudesse a esse respeito. Até agora não tinha chegado a lugar algum com perguntas sutis, e já não sabia mais o que fazer. Talvez lorde Bexhill tivesse alguma informação, ou ao menos conexões, mas não tivera nenhum outro contato com ele depois daquele torneio desastrado. Agora isso poderia mudar.

Bexhill era muito bem relacionado com a alta nobreza. Devia ter acesso a informações importantes, além de saber tudo o que acontecia em Westmínster. Por que não? Podia lhe perguntar, por exemplo, se alguém estava seguindo seu pai ou quem tinha acesso às salas dele em Westminster. Por isso foi procurar seu pai para conseguir sua permissão para o conde voltar a freqüentar a casa. Ao abrir a porta do escritório, encontrou Henric Tournay.

— Oh! — Maria se assustou.

Tournay também ficou assustado, mas logo se recompôs e se levantou para recebê-la.

Bom dia, milady. Es-estou esperando por seu pai.

Pensei que ele estivesse aqui.

A-acho que alguém foi chamá-lo. — Ele olhou para a porta atrás dela.

— Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudá-lo? — Maria entrou no escritório.

Tournay balançou a cabeça negativamente.

— E-eu trouxe um recado de lorde Kirkham... e-e preciso levar a resposta.

— Ah... Não vemos lorde Kirkham há alguns dias.

— Acho que seu pai se encontra com ele na Câmara dos Lordes, milady.

— Certamente — disse Maria, sentando-se. Tournay estava mais vermelho que o habitual; talvez estivesse febril. E transpirava muito, embora não estivesse especialmente quente no escritório de seu pai. Maria ficou preocupada, pois nunca o vira desse jeito.

— Está se sentindo bem, Sr. Tournay?

— Não... quer dizer, estou. Mas está um pouco quente aqui dentro. — Ele parecia nervoso.

Nesse momento, o duque entrou no escritório, mas ela não ouviu a conversa. Viu Tournay entregar uma carta a seu pai, este ler, rabiscar uma resposta, lacrar e devolvê-la ao secretário de Nicholas, sem que nenhuma palavra fosse trocada entre eles.

Então Tournay se despediu e foi embora.

— Pai — disse Maria, retomando o assunto que a levara ali. — Podemos convidar Bexhill e mais algumas pessoas para jantar conosco amanhã?

— Sabe como é difícil para mim lhe dizer não, porém Bexhill perdeu a minha confiança com as barbaridades que praticou no torneio.

Maria engoliu em seco.

— Mas, pai, ele...

— Ele não agiu como um cavalheiro. E mesmo que tenha sido isentado de culpa, nunca mais confiarei nesse homem. Não na minha casa e muito menos com minha filha.

— Oh!

— Deixe-o para lá, Maria. Não precisamos de Bexhill aqui.

Não havia nada que ela pudesse argumentar. Ouvira dizer que o conde fora perdoado só porque Gloucester precisava de seu apoio na Câmara dos Lordes. O duque não podia prescindir dele, mesmo sendo responsável pela mais grosseira das agressões.

Seu pai estava certo em banir Bexhill de sua casa. O conde era um mau-caráter.

Porém Maria precisava de uma fonte de informações. Não queria contar ao pai as suspeitas e acusações de Nicholas. Ele sofreria muito se soubesse da desconfiança de Bedford, depois de ter dedicado tanto anos de sua vida a ele e à pátria.

Não podia obrigar seu pai a convidar Bexhill. Na verdade, talvez ela também não suportasse tê-lo por perto. Não, teria que obter informações de outros lordes igualmente poderosos e que fossem bem-vindos na sua casa.

Sterlyng inclinou-se sobre a mesa e cruzou as mãos.

— Você tem... algum interesse especial em Bexhill?

— Não, pai! — Maria respondeu, espantada. Era a última coisa que esperava ouvir. — É que... lorde Bexhill foi sempre tão divertido, sua presença alegra qualquer festa.

Sterlyng concordou.

-- É verdade, mas prefiro abrir mão da companhia dele por enquanto. Talvez com o tempo ele possa se redimir com atos mais louváveis. Mas serei sincero com você: não gostaria de tê-lo como genro.

Como quiser, pai.

Diga-me, filha, algum rapaz já atraiu o seu interesse?

Me-meu interesse?

— Como futuro marido — completou Sterlyng. — Sabe que quero vê-la casada, filha, mas só com alguém que a faça feliz, e certamente só quando você quiser se casar.

Pai... eu...

Não estou apressando nada. Quero que você escolha quando estiver pronta para casar.

Sim, pai.

Sterlyng passou a mão pelo queixo.

Sua mãe e eu nos casamos sem o consentimento da família. Eu a amava mais do que tudo nesta vida, e ela também gostava muito de mim. Nossa ligação nada tinha a ver com propriedades ou dinastias. Nós escolhemos um ao outro, Maria. E o que eu espero que aconteça com você.

Eu sei, meu pai — ela disse em voz baixa. O costume era que as jovens de sua classe tivessem um marido escolhido pelos pais, e os sentimentos não contavam na decisão. Seu pai só queria que ela amasse o homem com quem fosse se casar, que tivesse o afeto e o carinho que ele e sua mãe haviam partilhado.

Não há nenhum... — Sterlyng encostou-se na cadeira e franziu a testa. — Ainda não conheceu nenhum rapaz aqui em Londres que despertasse as suas fantasias?

Maria sentiu o rosto corar. Não queria tocar no nome de Nícholas Hawken. O marquês não era um candidato a casamento, mesmo que estivesse carregando um filho seu. Não, esse homem acusava seu pai de traição e naquele exato momento devia estar trabalhando para encontrar alguma prova contra ele.

Não devia amá-lo. Não podia amá-lo. Havia muitos outros rapazes que não pensavam coisas horríveis de seu pai. Homens confiáveis e verdadeiros.

N-não, pai — ela gaguejou, balançando a cabeça levemente.

Bem, talvez com o tempo você encontre. — Ele se levantou. — Também acho que devemos nos divertir amanhã à noite.

Pedirei a Alísia que prepare uma reunião para... quinze, vinte pessoas?

— Como quiser, pai. — Maria tentou se entusiasmar com a idéia, porém teve uma certa dificuldade. Estava dividida entre encontrar um marido e o inimigo de seu pai. Agora que Bexhill fora banido de sua casa, teria de procurar informações em outro lugar. Talvez um dos cavalheiros que freqüentavam suas soirées a ajudasse a provar de uma vez por todas que Nicholas Hawken estava redondamente enganado.

— Existe alguém em particular que você queira convidar? — Sterlyng provocou-a. — Alguém que aguce o seu interesse?

— Não, pai — Maria apressou-se em responder, ajoelhando-se ao lado dele e pegando em sua mão. — Não é que eu não esteja interessada, mas a minha vida mudou muito rápido. Acabo de encontrá-lo... e não tenho a menor pressa de me casar e me afastar do senhor.

Sterlyng abraçou a filha e sorriu.

— Faz bem ao meu velho coração ouvir isso, Maria. Mas não espere muito. — Ele se levantou, passou o braço dela pelo seu para sair. — Os anos passam rápido e de repente nós nos descobrimos velhos e sozinhos. Não quero esse futuro para você.

— Não, pai. — Maria sentiu um aperto no coração ao pensar nas terríveis perdas que ele sofrerá. — Eu vou me casar.

— Aí estão vocês! — Alísia os encontrou quando saíam do escritório.

— Ah, e aí está a senhora que queríamos encontrar — disse Sterlyng.

Maria teve dificuldade para dormir nessa noite. A voz emocionada de seu pai falando de sua mãe não lhe saía da cabeça. Ele já sofrera muito com o que perdera na vida, primeiro a esposa, depois a filha ainda pequena. Amara Sarah Morley apaixonadamente e a morte dela quase acabara com a vida dele. Na verdade, ele só se recuperara muitos anos depois, mas a tristeza nunca havia passado. É claro que Sterlyng também lamentava a perda da filha, mas muito mais a do seu grande amor, Sarah. Devia ser terrível viver sem a pessoa que faz o sol brilhar e a lua surgir no coração da gente.

Por sorte Maria não amava Nicholas tanto assim. Ele nada tinha de especial, nem aquele meio sorriso encantador quando achava graça nas coisas que ela dizia, nem o carinho com que suas mãos a tocavam. Porém era um homem da pior espécie, um namorador que levava para a cama a primeira tola que se dispusesse a acompanhá-lo. Amor, compromisso, responsabilidade, nada disso fazia parte da vida de Nicholas Hawken.

A noite estava quente e Maria saiu da cama. Foi descalça até a janela, cruzou os braços sobre o parapeito e ficou olhando as estrelas.

Envergonhava-se de ter sido tão tola e ingênua quando conhecera Nicholas. De imaginar que ele quisesse tomá-la como esposa, quando nada conhecia a respeito dela além de um apelido. Maria reprimiu uma risada amarga ao pensar nisso. Não passava de uma criadinha chamada Ria quando o conhecera, ninguém com boa educação, uma esposa em potencial.

Engoliu um nó na garganta e enxugou as ridículas lágrimas em seus olhos. Não tinha nada que chorar agora. Seu pai a amava e lhe dera um lar e a segurança de um nome. Tinha também Alísia, que ela amava como a uma irmã. E pretendentes? Eram muitos, e logo um deles se tornaria seu marido.

Maria não precisava de Nicholas Hawken.

Os preparativos para a festa continuaram durante todo o dia. Como o tempo havia melhorado, Alísia decidira receber ao ar livre. As mesas foram postas no jardim de Sterlyng e a iluminação seria feita com lanternas instaladas ao longo da cerca. Haveria músicos, que tocariam para os convidados, além de danças, jogos e várias outras diversões.

Maria achou um tanto exagerado, pois sua idéia era chamar alguns poucos convidados aos quais pudesse sutilmente questionar sobre o que lhe interessava. Agora se via diante da perspectiva de entreter cinqüenta. Sua atenção estaria dividida e só por um milagre conseguiria saber alguma coisa de útil. Mas talvez encontrasse seu futuro marido.

Isso era algo que não podia adiar por muito mais tempo. Logo a gravidez começaria a aparecer e ela deveria estar casada antes disso.

— Vá repousar um pouco, Maria — disse Alísia. — A noite promete ser longa e você vai ter de agüentar até o fim.

Maria não discutiu. Depois da dificuldade para dormir na noite anterior, foi ótimo deixar que Alísia tirasse os grampos e escovasse seus cabelos. A delicadeza com que ela fazia isso ajudava muito a acalmar seus nervos.

— Aconteceram muitas coisas para você nestas últimas semanas, menina. É natural que esteja intranqüila... inquieta...

— Não, Maria, nunca estive tão tranqüila na minha vida. Aqui, com você e meu pai, finalmente encontrei um lar, meu lugar no mundo.

— E bom ouvir isso — Alísia murmurou, passando gentilmente o pente pelos cabelos dourados. — Foi uma bênção para seu pai tê-la de volta. Mas eu quero que saiba...

— O quê? — Maria ergueu a cabeça e encontrou os olhos de Alísia no espelho.

— ...que se houver alguma coisa que a perturbe, quero que fale comigo, para que as duas juntas possamos resolver.

Maria engoliu em seco. Alísia sabia! Podia ler em seus olhos. Era uma pessoa muito discreta para chegar e dizer, mas certamente já notara suas freqüentes ânsias de vômito... e a falta de menstruação. Que tolice pensar que seu estado pudesse ser escondido de todos. Talvez todo mundo na casa já suspeitasse. Esperava que ao menos seu pai ainda não tivesse desconfiado de nada.

— Obrigada, Alísia — Maria sussurrou. Não tinha certeza se Alísia sabia que o pai da criança era Nicholas Hawken, porém não quis falar nisso nesse momento. — Ficarei bem melhor se descansar um pouco.

Maria ainda não o vira.

Nicholas estava encostado num arco e a observava ir de um convidado a outro de braço dado com seu pai. Queria ver qual seria a sua reação quando o visse. Podia se considerar um sujeito de sorte se conseguisse sair da festa com o queixo no lugar.

Ela brilhava. Não, estava resplandecente. Nick sentiu a boca seca quando a viu sorrir, depois rir, depois inclinar um pouquinho a cabeça. Suas mãos eram delicadas, expressivas. E ele se lembrou de como elas o tocavam, com tanta intimidade, com tanto amor.

Nicholas a vira na noite anterior debruçada na janela de seu quarto, olhando a lua. Maria não o vira, porque ele se escondera nas sombras, pensando se subia ou não até seu quarto outra vez. Quando decidira não ir, vira que ela chorava. E por sua causa: suas suspeitas contra a integridade de seu pai a entristeciam. Nicholas entendia que ela não quisesse vê-lo.

Por isso prometeu a si mesmo ficar longe de Maria até cumprir sua tarefa e isentar o pai dela de toda culpa. Mas quando Sterlyng o convidara para a festa em sua casa, não conseguira recusar. Nicholas precisava vê-la. Se tivesse uma chance, por mínima que fosse, queria beijá-la mais uma vez. Queria mostrar a quem ela pertencia.

— Kirkham! — Uma voz conhecida veio acompanhada de um tapa de boas-vindas em suas costas. — Por que está tão desanimado? Vamos beber, homem!

— Obrigado — Nick respondeu secamente. O visconde de Wardale pôs uma caneca de cerveja em sua mão e enfiou o cotovelo em seu fígado. Nicholas não gostava de Wardale, embora ambos freqüentassem o mesmo círculo. Mas o visconde não participava do grupo em que Nicholas exercitava seu disfarce porque era a pessoa mais irritante da face da Terra.

— Dizem que o duque permitiu que a filha escolhesse o marido — falou Wardale. — Ah, o que eu não daria para pôr as mãos nela! Mesmo sem a propriedade e sem o dote. — Quando ele fez um som rude com a língua no céu da boca, Nicholas teve vontade de levar o sujeito até o rio e afundá-lo na água.

— Eu não recomendaria isso, Wardale — ele o ameaçou. — Encoste nela e vai me encontrar na St. James com uma espada, ao amanhecer. — Sem pensar na reação de Wardale, Nicholas jogou a caneca no chão e foi se encostar em outro arco, de onde assistiu ao fascínio que Maria exercia em todos os jovens pretendentes interessados em seu dinheiro... e em seu corpo.

Por que Sterlyng fazia isso? Nick perguntou-se, passando a mão pelos cabelos. Por que permitia que Maria se tornasse um prêmio disputado por aqueles palhaços?

Era insuportável a idéia de que Wardale, ou qualquer outro, pusesse as mãos nela. Ele varreu todo o espaço com os olhos, localizando os solteiros presentes. Nenhum deles a merecia.

O visconde de Rudney estava recebendo as atenções de Maria nessa noite. Era um homem honrado, um tipo bem-humorado, sem nenhum vício aparente, ao menos de que se tivesse notícia. Podia ser que Maria o escolhesse. Embora Rudney fosse um pouco pálido e de gostos um tanto delicados, talvez desse um bom marido, na sua opinião. Não podia imaginá-la sendo despida por aquelas mãos finas e delicadas. O visconde a levaria para a sua propriedade em Wessex e...

Nicholas bateu a palma da mão no poste da arcada e virou-se de costas. Não podia continuar ali, vendo-a ir de um pretendente a outro. Considerou que não fazia sentido prolongar sua agonia e, assim, resolveu ir embora. Ao se aproximar de um dos portões para sair, virou-se para olhar pela última vez, quando viu lady Alísia vindo em sua direção.

— Milorde, que prazer em vê-lo. Já comeu alguma coisa?

Nicholas olhou para as travessas de iguarias que se encontravam sobre as mesas. Ele não tinha fome alguma. Só apetite por sua dama de cabelos dourados que certamente o magoaria ainda mais se o visse por ali.

— Não, lady Alísia. Só passei para cumprimentar o duque e sua filha.

— Mas ainda não fez isso, milorde.

Nicholas ficou sério e não disse nada. Permaneceu em silêncio ao lado de lady Alísia por mais alguns minutos, ouvindo a música e as pessoas conversando, enquanto se sentia cada vez mais frustrado.

— Gosta dela, não gosta, milorde? — Alísia perguntou de repente.

Nicholas sentiu a garganta secar. Que importavam seus sentimentos por Maria Burton, se ela estava fora de seu alcance? Nunca iria aceitá-lo, não enquanto pensasse que ele se aproximara dela apenas para chegar até seu pai. Ou enquanto o visse como um sujeito rude e mau-caráter que acusava injustamente seu pai de traição.

Nick sabia que não podia cortejá-la até esse assunto terminar e o vilão ser desmascarado. Até lá, teria de continuar no papel do depravado marquês de Kirkham. E Maria, enquanto isso, escolheria outro homem.

— É claro que gosto, milady — ele respondeu, num tom forçado. — Ela é adorável... um presente que o pai dela...

— E ainda não pensou em...

Nicholas riu e se afastou, bem ao estilo de um solteirão inveterado.

— Nem pense em me enredar numa armadilha feminina, lady Alísia. Mães mais determinadas já tentaram... e não conseguiram.

Ele não percebeu a expressão de Alísia quando se virou para destravar o portão.

— Milorde.

Nicholas quase gemeu em voz alta: não saíra rápido o suficiente.

— Maria gosta de você. Ele cruzou os braços.

— Está enganada, milady. Ela não quer nada comigo.

— Talvez ela pense isso agora, lorde Kirkham — Alísia retrucou —, mas há muito mais ali do que se possa imaginar.

— Eu conheço um pouco lady Maria — Nick respondeu com determinação. Conhecia-a bem mais do que Alísia suspeitava, e isso só fazia atormentá-lo ainda mais.

— Lorde Nicholas, não sei o que foi que separou vocês dois... mas acho que posso ajudar a reparar esse erro.

Nicholas prendeu a respiração.

— Como?

— Apenas diga a ela o que sente.

— Lady Alísia, Maria não permitirá que eu me aproxime dela. Como quer que...

— Espere até que os convidados de Sua Graça saiam. Eu cuidarei para que o portão lateral da casa não seja trancado. Os aposentos de Sua Graça ficam do lado oposto do quarto de Maria, e ele tem sono pesado... sobretudo depois de algumas canecas de vinho. Venha vê-la esta noite.

Nicholas sabia que seria um tolo se não aproveitasse a oportunidade, porém sua natureza desconfiada não lhe permitiu aceitar o convite sem questionar.

— Por que está me dando essa chance, lady Alísia? Não lhe parece um tanto imprópria?

— Você precisa entender... Eu amo Maria como se fosse uma irmã. E sofro muito por vê-la tão infeliz. Ela gosta de você, mas.... não quer admitir.

— E se eu for ao quarto dela...

— Suas intenções são boas, não são? Ele assentiu.

— Então é só não machucá-la. Nick decidiu rapidamente.

— Eu lhe dou minha palavra.

 

A lua cheia iluminava o quarto de Maria. Vestindo apenas a chemise longa feita com a seda que viera de Nicholas, ela sentou-se no banco sob a janela e suspirou. Os cabelos estavam soltos sobre os ombros e ela, distraída, enrolava uma mecha nos dedos.

Tinha que escolher um marido entre os pretendentes que estiveram na festa. Lorde Singleton era um provável eleito. Já a visitara várias vezes nas últimas semanas e fora muito atencioso na festa de lady Eleanor. Era inteligente, bastante divertido, mas seus olhinhos pequenos lembravam um falcão à caça de sua presa.

Maria mordeu o lábio. Talvez lorde Frompton fosse melhor. Era bonito e bem simpático. Ah, mas quando comia, sempre ficava alguma coisa presa entre os dentes da frente, o que já era intolerável por um mês, imagine pelo resto da vida. Maria repassou mentalmente um por um os jovens que conhecera e cada um tinha um defeito imperdoável. Talvez fosse melhor criar seu filho longe de Londres. Em Rockbury? Não era má idéia. Seu pai iria sempre visitá-la e ela não precisaria se ligar a alguém que não pudesse suportar.

Outro suspiro profundo cortou o silêncio.

Nicholas estava na festa, pois o vira atravessando o jardim. Estava andando por entre os convidados, bebendo numa caneca, conversando com quem se aproximava dele.

Uma lágrima rolou de seus olhos quando se lembrou de Nick parado nas sombras, sem chegar perto dela. É claro que não se aproximaria. Ela pedira que ficasse longe, e Nicholas não quisera causar problemas.

Mas por que teria comparecido?

Certamente tinha mais o que fazer, como procurar provas incriminadoras contra seu pai. Ou encontrar alguma jovem dis posta a esquentar sua cama.

Maria secou as lágrimas com a mao e decidiu escolher um dos pretendentes. Lorde Rudney era um possível candidato, o menos repugnante de todos. Não era feio nem muito alto, tinha um olhar gentil e sua aparência em nada lembrava...

Não isso não podia dar certo. Ela pensou outra vez no visconde de Rudnev. Era bem-humorado, jovial, bastante animado... _ Nicholas — ela sussurrou, afastando-se da janela. Ele quase não fez barulho, porém Maria deu de cara com o belo marquês parado à sua porta. Ele a fechou silenciosamente. Com o que ela estaria tão preocupada que nem o ouvira entrar? — Eu não pude ficar longe.

Maria levou a mão ao pescoço quando olhou para a porta, depois para ele, temendo que sua presença despertasse as pessoas da casa Ela estava sem voz para dizer qualquer coisa.

E quase podia sentir a criança que trazia consigo reconhecendo seu pai. Resistiu de levar a mão ao ventre para nao chamar a atenção para seu estado, mesmo sabendo que ainda não se notava nada.

Nicholas veio na sua direção. Maria nao saiu do lugar, mas estava trêmula. Não queria que ele a tocasse, agora que se decidira a aceitar Rudney como marido. Lorde Rudney era um homem honrado, e nunca pensaria em fazer as ultrajantes acusações que Nicholas fizera contra seu pai.

E nem a teria usado para entrar em sua casa. Agora que havia conseguido se decidir por um marido, tinha sérias intenções de manter sua fidelidade. Não permitiria que Nicholas a tocasse. Porque sabia que, se ele o fizesse, ela não resistiria. Não seria a primeira nem a última vez que nao encontraria forças para rejeitá-lo.

— Vo-você não devia estar aqui — Maria gaguejou.

— Parece que é o único lugar em que consigo encontrá-la sozinha.

— Mas meu pai... ele pode acordar...

— Ele dorme como um anjo.

— Eu... eu lhe disse que não queria mais vê-lo — ela deu um passo para trás e suas pernas encostaram no banco da janela.

— Você já devia saber que algumas coisas eu não ouço.

Nicholas continuou se aproximando, dando pouco espaço para Maria escapar. Ela se lembrou do que ele era capaz de fazer. Não tinha o direito de invadir a privacidade de seu quarto, ou qualquer outro direito naquela casa.

— Por favor, Nicholas, não temos nada a dizer um ao outro.

— Ah, mas eu tenho muita coisa para dizer a você, minha linda.

— Por favor, não brinque comigo — ela baixou os olhos para o chão.

Nicholas ergueu-lhe o queixo.

— Isso não é brincadeira, Maria. Você é a única para mim. Ela reprimiu as lágrimas. Amava-o e não podia negar isso.

Queria acreditar no que ele dizia, mas não podia. Nicholas mentira para ela, a usara. Achava que seu pai fosse capaz de trair a Inglaterra, trair seu velho amigo.

— Sa-saia daqui.

— Não, Maria, não posso. — Ele pegou na mão dela e a fez sentar-se a seu lado sob a janela. — Eu não sou o vilão que você imagina.

— Não? — ela perguntou, desconfiada. Era melhor ficar longe dele. Sabia que perderia a cabeça se Nick a tocasse, mesmo que no fundo quisesse que isso acontecesse.

Nicholas balançou a cabeça em resposta.

— Já falamos um pouco do meu serviço militar na França.

— Sim... — Maria sussurrou. Ele precisava ir embora. Já, antes que fosse tarde demais. Antes que seu coração ficasse ainda mais ligado a ele do que já estava.

Mas suas mãos estavam em volta dela e Maria não tinha força de vontade suficiente para afastá-lo.

— Eu convenci Edmund, meu irmão mais velho, a ir para a França com o rei Henrique. Isso foi há muitos anos... eu era jovem. Louco por conquistar um nome glorioso, tal como meu pai tinha feito. Edmund foi morto do meu lado num ataque de surpresa.

— Oh! Nicholas — Maria lamentou, emocionada e comovida com as marcas da dor no rosto dele.

— Nós dávamos cobertura um ao outro. E quando veio o ataque, eu falhei.

Eram palavras duras, e Maria nada pôde dizer para contestar.

— Sinto muito, Nicholas — disse em voz baixa, passando a mão no rosto dele.

— Eu me culpei pela morte de meu irmão — Nick disse devagar. — Se eu não tivesse insistido tanto para meu irmão ir comigo, hoje ele seria o marquês. Estaria casado com a sua querida Alyce Palton, a quem amou desde menino, e eu teria um bando de sobrinhos e sobrinhas morando em Kirkham.

Nicholas esfregou as mãos no rosto.

— Meu pai ficou arrasado com a morte de Edmund. Eu me sentia covarde por não conseguir olhar para ele, por isso fui passar um tempo na Itália.

— Oh! Nicholas...

— Estou lhe contando tudo isso, não para que você tenha pena de mim, mas para que me compreenda.

— Não é pena que eu sinto. — Maria não sabia bem o que sentia, porém já estava vulnerável demais.

— Enquanto fiquei na Itália com a minha dor, descobri que podia fazer alguma coisa para impedir que outros ingleses encontrassem a morte nos campos de batalha da França. Fui trabalhar para Bedford. O que eu faço é... descobrir segredos de homens poderosos. As informações que obtenho sempre determinam o curso da guerra. Em geral elas têm pouco a ver com batalhas específicas, mas espero que os meus esforços ajudem Bedford a pôr uma fim a esse conflito que já dura muito tempo.

Maria concordou. Eles já tinham falado disso antes, mas só agora ela entendia melhor. Por isso Nicholas agia como um libertino e se ligara aos piores homens de sua classe.

— O trabalho que faço é perigoso. Eu não gostaria de envolvê-la de maneira nenhuma, mas parece que alguém está tendo muito trabalho para incriminar seu pai como traidor.

— Ele jamais...

— Eu sei, Maria — ele encostou um dedo nos lábios dela. — Não estou acusando seu pai de nada.

Talvez não.

— Você me usou, Nicholas. Usou-me para se aproximar de meu pai.

— Não nego que fiz isso, porém...

Ela se levantou de repente e nem se lembrou de que estava quase nua.

— Você foi desonesto e desleal comigo.

— Eu sei, Maria, também admito isso. — Nicholas falava em voz baixa, resignado.

— Vá embora, Nicholas. — Maria reuniu toda a coragem que lhe restava para pedir-lhe isso. — Sua presença aqui é inútil.

— Maria, alguém está fazendo de tudo para me convencer de que seu pai é um traidor. — Ele se levantou para ficar cara a cara com ela. — Eu não posso...

— Vá, Nicholas. — Maria tentou evitar que sua voz saísse trêmula, mas não teve jeito. Não dava mais para agüentar tanta mentira. — Eu já escolhi um marido e vou me casar assim que meu pai acertar tudo.

Nicholas nada disse, porém Maria notou a tensão em seu rosto.

— Rudney — ela revelou finalmente, sem nenhuma emoção. — É um bom homem. Honesto e sincero.

Nicholas ia dizer alguma coisa, mas mudou de idéia.

— Vá agora — Maria sussurrou.

Ele deu um profundo suspiro e passou a mão outra vez pelo rosto. Depois acariciou gentilmente o lábio dela com o polegar e tomou-lhe o queixo em sua mão. Então deu-lhe um beijo de leve, com muita tristeza.

— Adeus, meu amor — disse, num tom profundo e magoado. Em seguida se virou e saiu. Maria permaneceu imóvel, a mão onde ele acabara de tocar. Seu beijo tocara fundo, mas não a fizera perder a cabeça.

Finalmente ela deixou as lágrimas rolarem enquanto tentava afastar os pensamentos e as perguntas que a atormentavam. Procurou se acalmar lembrando-se de lorde Rudney, porém não conseguia visualizar o rosto dele.

Era a imagem de Nicholas e tudo o que ele dissera que dominavam seus pensamentos. Nick não discutira o fato de que a usara e que fora desonesto com ela. E explicara em detalhes o que fora que o levara às suas atividades clandestinas. Maria concordava que suas razões eram justas. Mas assim mesmo ele não fora sincero com ela. Como poderia confiar em alguém assim?

Por outro lado, uma voz interior insistia em lhe perguntar por que se casar com lorde Rudney se amava tanto o patife do Nicholas Hawken e iria ter um filho dele. Maria se jogou na cama e chorou por tudo o que havia perdido e pelo que não poderia ter.

Era tarde, porém ela não podia dormir, não no estado altamente emocional em que se encontrava. Pegou o xale, enrolou-o nos ombros e saiu do quarto. Passou pelo quarto de seu pai em direção à escadaria, ouvindo-o roncar. Ela sorriu com ternura. Não era à toa que ele não acordara com a visita de Nicholas.

Com os pés descalços, desceu os degraus sem fazer barulho. Sabia que seu pai guardava uma garrafa de vinho no escritório, e uma taça certamente a ajudaria a relaxar. Só para tentar dormir e não sonhar com Nicholas.

Os criados já tinham se retirado havia algum tempo e a casa se encontrava em completo silêncio. Mas quando Maria chegou ao escritório, encontrou a porta levemente aberta e uma luz vindo lá de dentro. Era Nicholas, pensou, com o coração apertado. Ele estava outra vez revistando as coisas de seu pai.

Mas não foi Nicholas que ela viu pelo vão da porta. Foi Henric Tournay. E ele estava debruçado sobre a gaveta que seu pai mantinha trancada.

Sem pensar duas vezes, Maria deu meia-volta e saiu correndo. Subiu de novo as escadas sem fazer barulho e entrou no quarto. Jogou uma túnica por cima da chemise de seda, amarrou rapidamente as tiras e calçou um par de sapatos. Estava disposta a seguir o secretário de Nicholas aonde quer que a levasse, e enfrentar o marquês de Kirkham, de uma vez por todas, com sua maldita descoberta.

Havia muito Nicholas não se sentia tão mal. Só por considerar-se civilizado não jogara Maria no ombro e a levara embora como um víquingue dos velhos tempos. Por ela se negar a ouvir a voz da razão, o único jeito era raptá-la e levá-la para um lugar distante no mar do Norte, onde passariam os dias fazendo amor.

Como isso estava fora de questão, Nicholas resolveu beber até cair. Pegou uma carruagem de aluguel, reuniu alguns imprestáveis como ele e deu início a uma corajosa tentativa de entorpecer a cabeça e o corpo. Insatisfeito com as primeiras duas adegas que escolheram, o grupo de Nicholas foi para a beira do cais em busca do estabelecimento mais mal-afamado, dirigido por um sujeito truculento, careca e com apenas um dente na boca.

Quando entraram no bar encardido, Nicholas decidiu topar uma boa briga nessa noite. Era o lugar perfeito para isso.

Viva Kirkham! — lorde Lofton saudou-o com voz pastosa. — O melhor companheiro de farras desta cidade!

Saúde! Saúde! — juntaram-se os outros, num estado de embriaguez já bem avançado.

Uma garçonete de seios grandes colocou a segunda caneca na frente de Nick. Ele ainda não conseguira se embebedar, mas iria se esforçar para isso. Tudo ali cheirava a peixe, cidra fermentada e corpos que não viam água havia muito tempo. Tudo isso misturado a outros cheiros repugnantes. Vidraças quebradas, paredes escurecidas e mesas capengas completavam o cenário.

Um flautista solitário — um irlandês, pela aparência — tocava uma melodia monótona. Alguns marinheiros jogavam dados num canto e duas prostitutas incrivelmente feias andavam para lá e para cá. O resto dos homens se debruçava sobre pratos de comida e canecas de cerveja, enquanto um grupo de marinheiros se juntava no bar improvisado. Nick tomou nota de como as pessoas se olhavam ali dentro, avaliando cada uma, no caso de acontecer algum incidente. Essa era precisamente a idéia: provocar um incidente desagradável.

Ele jogou três moedas na mesa e ofereceu bebida a todos.

Armou-se uma tremenda confusão quando todo mundo voou para pegar as moedas, bem como a cerveja prometida. As prostitutas protestavam aos gritos, uma passou por cima da outra, depois por cima dos homens, para se apossar do dinheiro.

Não demorou muito para que o primeiro soco fosse desferido.

Nicholas pulou no meio da briga sem pensar duas vezes. Seus amigos ainda não tinham caído de bêbados e todos gostavam de uma boa confusão. Nick, também, lutava com raiva, jogando em seus oponentes toda a sua frustração. Enquanto lutava com um, dois o atacaram por trás. Ele se abaixou, livrando-se dos dois às suas costas e desviando-se do soco do que estava na sua frente. Com um movimento rápido, encostou-se na parede e lutou com os três de uma vez.

Precisa de ajuda, Nick? — Lofton gritou bem alto. Nicholas jogou o primeiro homem no chão.

Ah! — ele berrou. — Esses palermas não são de nada. Incitados pelo insulto, os dois atacantes partiram para cima dele com mais gana ainda, mas sem resultado. Nicholas deu um chute em um deles e o jogou do outro lado. O homem voou sobre uma mesa e caiu em cima de outra dupla de brigões.

Nick nem teve tempo de apreciar seu trabalho, pois outro atacante se preparou para lhe desferir um soco. Ele se abaixou. O amigo do sujeito recebeu o golpe, que o jogou contra a parede e o derrubou no chão sem sentidos.

Foi só então que Nicholas usou os punhos. Sentia imensa satisfação a cada soco, tanto os que dava quanto os que recebia. Ele ria com prazer quando alguém veio ajudar um amigo e levou o que merecia.

Durante uns bons quinze minutos a batalha prosseguiu. Só depois que os lutadores ganharam alguns cortes e hematomas foi que as coisas se acalmaram. As duas mulheres desapareceram. O marinheiro enfiou os dados no bolso e saiu com seus companheiros. O lábio do irlandês estava inchado demais para voltar a tocar a flauta, então ele se sentou num canto para cuidar dos dedos machucados.

Nicholas e seus amigos viraram uma mesa que estava de pernas para o ar. Encontraram algumas cadeiras quebradas e se sentaram, cumprimentando-se por terem encontrado um esporte tão animado. Nicholas enrolou o chicote e colocou-o sobre a mesa.

— Você ganhou um belo olho preto, Kirkham — disse Lofton. Ele riu e limpou o olho com a luva. Estava sangrando um pouco e a cada minuto inchava mais. Enfim ele tinha algo mais em que pensar além de Maria e da inútil visita que fizera ao seu quarto.

— Eu acho que vocês me devem algum dinheiro por toda essa confusão. — O taberneiro corpulento apoiou os punhos sólidos no tampo da mesa, bem ao lado de Nicholas.

É lógico que Nick pretendia pagar pelo estrago, porém a atitude agressiva do homem o irritou. Até toparia mais um ou dois rounds com ele.

— Aqui está a minha parte — disse Lofton, jogando algumas moedas na mesa. Os outros amigos também pagaram, assim como Nick, mas só depois de avaliar se valia a pena ou não retomar a briga.

Depois de apenas conseguir adiar temporariamente seus tristes pensamentos, sabia que outra briga não o ajudaria a curar suas feridas.

Rudney. Maria iria se casar com Rudney.

Nicholas tomou um longo gole de sua caneca. Por que saíra daquele quarto sem dizer que a amava? Que se importava com ela?

Que tolo ele era. Teria sido tão simples. Devia ter-lhe dito que o seu trabalho para Bedford estava encerrado porque um informante francês já sabia da sua existência. O que significava que Nick estava livre para agir como quisesse, sem precisar mais bancar o imprestável em benefício de qualquer um que o subestimasse.

Ou seja, estava livre para se casar.

Ele passou a mão pelos cabelos e fez uma careta quando tocou num ponto machucado. Que diabo ainda estava fazendo naquele lugar? Por que não voltava correndo para a Bridewell Lane e caía de joelhos aos pés de Maria, implorando que o aceitasse?

Como tinha sido cego! Ela importava-se com ele, ou não teria visto lágrimas em seus olhos quando entrara em seu quarto. Precisava lhe dizer que não queria mais saber de intrigas e imposturas.

Voltaria agora mesmo para ela e exigiria que levasse a sério sua proposta. Não iria permitir que se casasse com Rudney... Não, esse nome estava definitivamente proibido. .

Determinado a fazer o que pretendia, Nicholas ia se despedir dos amigos, quando um homem de aparência levemente familiar entrou na taverna. Nick parou por um momento, tentando se lembrar de onde o conhecia, e então se lembrou de que era o mesmo que andava rondando por Westminster nas últimas semanas.

Havia uma grande possibilidade de ele estar envolvido na trama das cartas!

Quando o sujeito ergueu o copo para beber, viu Nicholas olhando para ele... e fugiu. Nick não pensou duas vezes. Agarrou o chicote e foi atrás dele.

 

A raiva de Maria a impulsionava. . Era só se lembrar do estado em que Nicholas ficara ao contar a história de seu irmão e de seu trabalho para o duque de Bedford, enquanto o secretário roubava o escritório de seu pai, para ficar com mais raiva ainda. Pela primeira vez ela agradecia por não ter sido educada como uma criança da nobreza. Vivia correndo livremente pelos campos, atracando-se com os filhos dos criados, e, mais tarde, fugindo de Geoffrey e seus amigos.

Era tarde e as ruas estavam escuras. Sorrateiramente, Maria perseguia Tournay pelas ruas calçadas. Não o perdeu de vista quando ele entrou na Strand e seguiu para leste, em direção ao centro de Londres.

Ela pensou que Tournay estivesse indo para a casa de Nicholas. Aonde mais iria com o que roubara do escritório de seu pai? Não para Westminster, porque ficava na direção oposta, então só podia ser para a casa dele.

Tournay continuou, mais relaxado agora, na certeza de que não corria perigo de ser flagrado. Maria o seguiu quando ele entrou na Strand e passou pela Temple Church e a catedral de St. Paul. Com todo o cuidado para não ser vista, mantinha uma distância segura e protegia-se nas sombras dos prédios. Ele nem imaginava que estava sendo seguido.

O cheiro do rio ficou bem mais forte, e Maria já não sabia qual seria o destino de Tournay. Nicholas não morava num lugar como aquele. As casas eram pequenas e feias, algumas com galinheiros na frente. Outras tinham criação de porcos. As calçadas estavam quebradas e era preciso ter cuidado para não cair.

Tournay entrou numa travessa estreita e seguiu em direção ao rio. O cheiro já insuportável obrigou-a a parar por um momento e encostar-se numa parede para não desmaiar. Encontrava-se no bairro proibido, a região do porto de que Alísia lhe falara.

Ouviam-se vozes ao longe e o ruídos surdos e constantes dos cascos dos navios batendo nos mourões do cais. Maria tapou a boca para não vomitar. Precisava controlar seu mal-estar. Não iria permitir que Tournay escapasse agora, não quando se encontrava tão próxima de descobrir o que estava acontecendo, quem estava por trás das suspeitas que caíam sobre seu pai.

Tournay continuou na direção do cais, e Maria afastou-se da parede para ir atrás dele. Havia alguns homens rondando por ali, apesar da hora, e ela cuidou para ficar nas sombras e fora da vista. Por sorte, também usava uma túnica escura.

Dois homens saíram por uma porta e ficaram conversando em voz alta. Tournay parou e entrou por essa porta. Maria agachou-se atrás de um barril a fim de esperar que ele saísse, torcendo para que fosse pela mesma. Gostaria de entrar também, mas não sabia como fazer. Lá dentro, com certeza seria notada, e Tournay não podia saber que fora seguido.

Então, como descobrir o que estava acontecendo lá? A parede da loja voltada para a rua tinha duas janelas. Era só subir numa delas, limpar um pouco a fuligem grudada no vidro e tentar localizar Tournay... e com quem ele se encontrara.

Ela saiu de trás do barril, sempre agachada, e correu para a parede da taberna. Ali, esfregou a janela com a luva, mas não adiantou muito. Não podia ver quase nada, além de túnicas escuras debruçadas sobre canecas de cerveja.

Não viu mais Tournay até mais tarde, quando ele saiu de novo. Maria afastou-se da janela sem fazer nenhum ruído e voltou a segui-lo com todo o cuidado. Eles foram em direção à zona portuária. Não demoraria e chegariam à Torre. Passaram por Dowgate, e já próximos de Ebbgate, Tournay parou em outra taberna. Maria procurou uma janela quando ele entrou. Dali podia ver o que acontecia lá dentro.

O lugar era uma bagunça. Havia mesas de pernas para o ar, cadeiras jogadas pelo chão. Alguns homens bebiam no balcão enquanto outros estavam sentados à única mesa em pé.

Maria viu Tournay entrar, olhar ao redor e sair. Ela já estava se cansando com aquela perseguição.

Mas nunca lhe passou pela cabeça que ele pudesse estar procurando Nicholas. Apesar de todos os defeitos que possuía, Nick nunca lhe contara uma mentira; não podia imaginar que ele fosse ao seu quarto para não falar com sinceridade. Nicholas até admitira sua desonestidade. Por outro lado, ele fora até seu quarto para...

Por que teria ido? Não para seduzi-la, porque isso ele faria sem a menor dificuldade.

Maria pôs a mão na barriga. O filho de Nicholas dormia ali dentro e seria injusto de sua parte esconder isso dele. Nick era sincero, e Maria reconhecia. Dissera até que não suspeitava de seu pai, mas de outra pessoa. Tournay!

Maria arregalou os olhos. O secretário de Nicholas era o traidor! Fora ele que fizera Nicholas desconfiar de seu pai! A França devia ter descoberto a dupla personalidade de Nicholas e infiltrara Tournay em sua casa.

Excitada com sua descoberta, Maria viu Tournay voltar outra vez para a taberna. Ninguém notou nem que ele entrou nem que saiu. Ela esperou um pouco para dar uma distância e foi atrás dele, decidida a descobrir o que pudesse para Nicholas.

Nicholas já tinha visto esse homem. Ele andara rondando Westminster nas últimas semanas, porém sua presença não chamava a atenção nem tinha nada de estranho. Mas, agora, tudo e todos eram suspeitos. Alguém lhe dera sinais que implicavam o duque de Sterlyng. Essa mesma pessoa tentava afastar Nicholas do verdadeiro traidor.

Ele não estava disposto a abrir mão de Maria para Rudney, contudo, para merecê-la, teria de encontrar o canalha e provar que não estava "plantando" provas contra o pai dela; precisava provar que era um homem honrado.

Ou, no mínimo, que podia ser honrado.

Com certeza o homem que saíra da taberna tinha algum envolvimento, ou não teria fugido quando eles se viram. Nicholas saiu na rua, olhou de um lado e de outro, a visão um pouco prejudicada pelo inchaço nos olhos. Mas o sujeito não se encontrava em lugar algum. Desaparecera na escuridão.

Mas só havia um lugar para ir, se alguém quisesse se esconder: as docas, onde cordas e redes, barris e caixotes de carga forneceriam o abrigo necessário. Foi para lá que Nicholas se dirigiu, de olhos bem atentos a qualquer movimento. Os navios balançavam silenciosamente na água, os marinheiros dormiam ou tinham saído. Por uma escotilha, viu um homem e uma mulher dentro de um camarote numa posição bastante sugestiva. Um gato rajado passou por ele, mas não o assustou. Nicholas vigiava tudo em volta e não notava nenhum movimento, nenhum som além da água batendo na madeira do cais.

De repente, ouviu o barulho de alguma coisa se quebrando e uma súbita movimentação no ancoradouro. Quando se virou, viu sua presa saltar de um engradado e correr para as docas. Ele saiu em perseguição, os músculos e os hematomas doloridos protestando a cada passada.

O ancoradouro principal era largo, com grandes pilastras saindo da água por entre os navios. Algumas dessas pilastras sustentavam construções que se debruçavam sobre a água. Maria não sabia para que serviam, porém supunha que a carga ficasse armazenada lá dentro até ser levada ao seu destino ou carregada em navios para exportação. Ou talvez esses armazéns fossem usados pelos portuários.

Mas agora isso não importava. Ela viu Tournay ir para um determinado navio. Tentou ler o nome no casco, porém estava escuro: vinha uma luz muito fraca de dentro dele.

Maria não tinha medo. Podia estar enganada, mas Tournay não suspeitava de que estava sendo seguido. Se a descobrisse, com certeza ela não escaparia. Maria não era boba. Já localizara vários esconderijos pelo caminho e correria para um deles se fosse necessário.

Seu plano, contudo, não era esse. Queria saber aonde Tournay ia e voltar correndo para contar a Nicholas quem era o informante francês. Ele saberia o que fazer.

Agora que já sabia de tudo, Maria se arrependia de não haver percebido logo que Nicholas fora obrigado a pensar mal de seu pai. Tournay estava na melhor posição para inventar a história que quisesse e manter a atenção de Nicholas sobre o duque de Sterlyng. Muita esperteza da parte dele.

Ela gostaria de falar com Nicholas então, desculpar-se pelo que fizera. Diria a ele que entendia sua situação e que não o condenava mais por ter suspeitado de seu pai.

Mas se Nick não aceitasse suas desculpas, não poderia culpá-lo. Não confiara nele e não dera crédito às suas explicações a respeito do trabalho que realizava para Bedford. Deveria ter reconhecido que seus motivos eram justos e que ele estava fazendo o que era certo.

Fora tolice de sua parte não ter confiado. Tinha pensado mal de Nicholas por causa de sua reputação, que ele cultivara entre a nobreza.

Tournay parou de repente e encostou-se numa parede. Maria agachou-se atrás de um monte de lixo e esperou. Então ouviu passos na calçada. Alguém, talvez mais de uma pessoa, vinha na direção deles.

Ela olhou para a direita, de onde provinham os passos. De repente um homem correu para o navio. Tournay parou. Não era possível ver o que ele estava fazendo, porém não devia ser algo bom. Apareceu outro homem logo atrás do primeiro. Era alto, moreno, corpo bem-feito, camisa branca por baixo do gibão. Não dava para ver o rosto.

Ele também correu para o navio, aonde Tournay se dirigia antes de ser interrompido, e por pouco não alcançou o primeiro. Quando o perseguidor se virou, Maria o reconheceu: era Nicholas!

Tudo começou num piscar de olhos. Tournay surgiu atrás de Nicholas e segurou os braços dele. Maria moveu-se para interferir, mas o secretário não hesitou em dar um soco na cabeça de Nicholas e derrubá-lo no chão. Ela mordeu o punho para não gritar. Se Tournay a encontrasse ali, nada poderia fazer por Nick. Se os bandidos embarcassem no navio e zarpassem, estaria livre para ajudá-lo.

Mas não foi o que aconteceu.

De repente, alguns homens desceram gritando pela prancha. Nicholas estava desacordado e Tournay, ao lado dele, falou em voz baixa com os homens do navio. Quando pareceram tomar uma decisão, dois deles ergueram Nick nos braços e o arrastaram para um barracão no final do ancoradouro.

Pela primeira vez Maria sentiu medo. O que pretendiam fazer com ele? Ela se encheu de coragem e saiu de seu esconderijo. Não iria permitir que aqueles homens machucassem seu amor naquele lugar isolado. Não tinha a menor idéia de como os impediria, mas certamente alguma coisa poderia fazer.

Não seria fácil aproximar-se do barracão porque havia gente no convés do navio esperando pela volta de seus companheiros. De maneira nenhuma deixaria que percebessem sua presença. Ela olhou em volta e tomou um caminho mais seguro até onde se encontrava Nicholas, rezando o tempo todo para que ele não estivesse ferido.

Uma leve neblina baixou sobre o cais só para ajudá-la. Maria agachou-se atrás de uma pilha de barris por alguns momentos. O próximo passo seria pegar o chicote que caíra da mão de Nicholas e deixá-lo sobre um grande engradado que se encontrava perto do armazém. Por sorte o cais estava escuro. Ela deixou o esconderijo, arrastou-se para pegar o chicote no chão e voltou para trás dos barris. Então esperou. Tentou respirar devagar e se acalmar. Mais alguns passos e alcançaria o armazém.

De repente os homens que estavam com Nicholas gritaram para os do navio. Todos começaram a falar de uma só vez e não dava para entender o que diziam.

Então Maria sentiu cheiro de fumaça.

O barracão estava em chamas!

 

Nicholas entrou em pânico. Sua garganta queimava.

Queria se levantar e cair fora dali, mas suas pernas não ajudavam. Os ossos estavam moles. A cabeça doía e ele só enxergava com um olho. Não se lembrava de quem era nem o que havia acontecido.

Envolvido pela fumaça, viu que se queimaria se não se levantasse. Apoiou a mão no chão e obrigou-se a se erguer, fechando os olhos de dor de cabeça e tontura. Tinha de se mexer de alguma maneira!

— Nicholas!

Devia estar ouvindo coisas. Não podia ser a voz de Maria, por mais que tivesse vontade de vê-la uma última vez antes de morrer. Tentou ficar de joelhos, mas caiu no chão, tossindo.

— Nicholas!

Ele tentou se levantar outra vez. Ouvia o fogo crepitar, a madeira estalar a sua volta, e queria sair dali. Precisava encontrar uma saída daquele inferno antes de ser consumido. Conseguiu ficar em pé e olhar ao redor. O fogo tomara quase tudo. Não se viam mais nem portas nem janelas atrás da cortina de fumaça e de fogo, e Nicholas não sabia para onde ir. Qualquer engano, por menor que fosse, seria fatal.

— Nicholas!

De novo. Só que, dessa vez, ele não achou que fosse imaginação. Era Maria mesmo, e se encontrava dentro daquele inferno. Só podia ser isso, ou não a estaria ouvindo.

Mas onde estava ela?

O fogo rugia ao seu redor. Ele procurou alguma coisa para quebrar as paredes aparentemente frágeis, porém não encontrou nada.

De repente uma silhueta alta e escura ergueu-se na sua frente: era um guincho. As cordas passavam por buracos no chão e no teto. Se conseguisse descer, talvez lá embaixo o fogo não estivesse tão alto e fosse possível encontrar uma saída.

Mas antes tinha que encontrar Maria.

— Nicholas!

Graças a Deus a voz vinha de baixo. Ela também estava envolvida pela fumaça. Nicholas calculou a distância, porém era muito alto para pular sem se machucar ainda mais. Mas também não tinha escolha.

— Eu trouxe o seu chicote! — ela gritou. — Você pode usá-lo para descer.

Sem perder tempo, Maria segurou firme no cabo e estalou o chicote de modo que a tira de couro chegasse perto da passagem ao lado da qual Nicholas estava agachado. Não conseguiu, porém chegou perto.

— Tente de novo! — ele gritou. As chamas se aproximavam e a fumaça queimava seus olhos. Nicholas se deitou no chão ao lado do buraco e esticou o braço. Maria tentou mais uma vez, e também não conseguiu. Por fim, após mais algumas tentativas, Nicholas agarrou a ponta do chicote.

As chamas estavam mais perto. A fumaça dificultava a respiração.

Quase cego, ele amarrou a tira de couro na base do guincho e agarrou-se ao cabo. Enfiando-se pela pequena abertura no chão, conseguiu descer. Quando Nicholas já se encontrava próximo ao chão, mas ainda pendurado, o nó que prendia o chicote se soltou e ele caiu de uma altura considerável.

Maria correu na sua direção.

— Nicholas! Pensei que nunca mais fosse encontrá-lo!

Ele não perdeu tempo. Ergueu-se rapidamente, enrolou o chicote e pegou na mão dela.

Onde é a porta?

É lá! — Ela apontou para uma parede em chamas. — Não podemos ir por ali.

Maria tinha razão. O fogo havia tomado tudo e eles se queimariam se tentassem.

— O que há lá embaixo?

As cordas da roldana desciam por outro buraco no chão.

— O rio — ela respondeu. Ergueu a saia e cobriu a boca na vã tentativa de se proteger da fumaça.

— Existe uma plataforma lá embaixo?

— Não sei. Nicholas, você está sangrando!

— Isso é o que menos me preocupa — ele respondeu, ignorando o fio de sangue que escorria pelo rosto. — Venha, vamos sair daqui.

Nicholas amarrou o chicote outra vez e passou o cabo pela abertura no chão.

— Enrole isto em volta do pulso e se pendure. Vou descer você. É possível que haja uma plataforma para carregar e descarregar mercadoria.

Ela fez o que ele mandou.

— Nicholas — Maria chamou, quando passava pela abertu­ra. — Tournay está por trás de tudo isso.

— Tournay?

— Foi ele que atacou você e o arrastou para cá.

— Maldito! Mais tarde falaremos, amor. Agora vá!

Um pedaço de madeira incandescente caiu próximo à cabeça de Nicholas. Ele conseguiu se desviar e continuou descendo Maria. Então ouviu um barulho de água seguido de um grito, e o peso de Maria não estava mais na outra ponta do chicote. Com o coração saindo pela boca, Nicholas recolheu a tira de couro, amarrou-a em volta de um tronco grosso e escorregou pelo chicote.

Maria encontrava-se caída na plataforma, ao lado da água. Estava de costas, braços e pernas abertos, os olhos fechados. Morrendo de medo, Nicholas se ajoelhou ao lado dela.

— Maria! — ele chamou, tentando levantá-la.

Ela não se mexeu. Não se ouvia nem um gemido nem um suspiro, mas o barulho do fogo encobriria qualquer outro som ao redor.

Nick olhou em volta. As chamas haviam tomado as paredes externas e chegavam aos mourões que sustentavam a plataforma. Eles ficariam intoxicados pela fumaça se não saíssem dali imediatamente.

Tossindo, Nicholas passou o braço por baixo dos ombros de Maria, colocou-a por cima de seus ombros e se levantou. Cambaleando de tontura e dor de cabeça, causadas pelo golpe que recebera, ele a carregou até o final da plataforma.

Dali podia ouvir as vozes que vinham de todo lado: eram homens em pânico. Ouviu também as marteladas e concluiu que estavam destruindo a plataforma sobre a qual se erguia o armazém em chamas, na esperança de afundá-la no rio antes que mais danos fossem provocados.

Logo a estrutura em que eles se encontravam ruiria se Nicholas não agisse rápido.

Ele viu alguns vultos escuros na água. Rezou para que fossem barcos, porque nadar naquela correnteza, levando Maria inconsciente, seria impossível. Mais alguns passos e Nicholas chegou à beirada da plataforma. Ali deu para ver que eram dois barcos. Um deles estava bem perto.

Entrou com todo o cuidado em um deles, equilibrando Maria nos ombros. O barco balançou perigosamente, mas se estabilizou assim que ele a deitou no chão e se sentou. Encontrou os remos e começou a remar para longe do cais.

A visão do incêndio era apavorante. Se não conseguissem isolar o fogo, todo o cais seria destruído... e Londres inteira pegaria fogo. Nicholas sentiu-se mal de pensar que Tournay era capaz de queimar Londres para apoiar a França. Muita gente, inclusive mulheres e crianças, morreria junto.

Tirou o barco da correnteza e foi ver como estava Maria. Nicholas remava pela vida de ambos. Se Tournay e os homens que se encontravam naquele navio soubessem que ele sobrevivera ao fogo, viriam atrás. Ele continuou remando e o barco se aproximou da Temple Church. Bridewell Lane não ficava muito longe dali e o rio era bem mais raso.

Então tentaria despertar Maria e levá-la para casa.

— Meu Deus! — gritou lady Alísia, enrolando um cobertor em torno de Maria. Era quase dia, e ela chegou inconsciente, nos braços de Nicholas, à porta da casa da Bridewell Lane.

Nick imaginava que sua aparência também fosse assustadora. Estava ferido, imundo e todo rasgado. Maria se encontrava nas mesmas condições, por isso lady Alísia ficou tão assustada.

Ela abriu a porta, e Nicholas acompanhou um criado com uma lamparina que o guiou nas escadas até o quarto de Maria. Ali, com todo o cuidado, ele a deitou na cama.

— O que está havendo aqui? — perguntou Sterlyng, entrando no aposento. Ele estava todo despenteado, descalço e com a camisa longa toda amassada. — Maria?

— Sua Graça... — a voz de Nicholas quase não saiu. Um acesso de tosse impediu-o de continuar.

— Kirkham! O que aconteceu?

— E uma longa história, Sua Graça. Lady Alísia, mandou chamar o médico?

— Sim, milorde — ela respondeu, preocupada. — Sir John deve chegar logo.

Sem se importar com a sujeira e as roupas rasgadas, Nicholas sentou-se na beira da cama. Seus dedos imundos, porém muito delicados, afastaram os cabelos de Maria do rosto. Ela estava pálida, vulnerável, com as roupas cobertas de fuligem, a túnica rasgada, as mãos e o rosto também sujos.

Nicholas daria a própria vida para vê-la bem outra vez — consciente e cuspindo fogo, mandando-o para o quinto dos infernos.

Alísia entrou em silêncio trazendo roupas limpas e uma bacia de água, que levou para perto da cama.

— Kirkham? — Não era uma pergunta, mas uma exigência do pai de Maria.

Nicholas ergueu os olhos para Sterlyng, que segurava uma lamparina. A chama tremeluzia e as sombras brincavam no rosto dele. Nick ainda não tinha notado as rugas profundas. Ver a filha chegar em casa naquele estado devia tê-lo envelhecido alguns anos.

Nicholas ainda respirava com dificuldade, mas era só pela fumaça que havia inalado. O que o paralisava eram as emoções: medo e pânico, amor e ternura pela única mulher cuja vida significava tudo para ele.

— Sua Graça... — Nick começou outra vez, pegando na mão de Maria. Sua pele estava tão suave, tão delicada. Então se lembrou da primeira vez que a vira em Kirkham, com as mãos vermelhas e calejadas, e se perguntou por quê...

Devia explicar tudo para Sterlyng agora ou voltar imediatamente para as docas a fim de tentar encontrar Tournay? Não. Não deixaria Maria. De maneira nenhuma.

— Posso mandar uma mensagem? É urgente. Sterlyng pensou um momento, mas logo concordou.

— Vou explicar o que puder — disse Nicholas. — Maria... quando acordar... explicará o resto.

Sterlyng puxou uma cadeira para perto da cama e ouviu Nicholas contar que trabalhava para Bedford e por que havia suspeitado dele. Enquanto isso, alguém entrou com uma pena e um pergaminho. Ele interrompeu o que dizia para escrever um recado a sir Gyles, a ser levado pelo criado.

— Sua Graça, milorde... — disse Alísia —, por favor, queiram sair do quarto por alguns minutos. Vou tirar essas roupas sujas de Maria e dar um banho nela antes que o médico chegue.

Nicholas nem ouviu o que ela disse. Maria parecia tão pequena e frágil. Alísia tirara quase toda a sujeira do rosto, mas restava alguma coisa, ainda havia fuligem sob o queixo. Ele a amava demais. Ela arriscara a própria vida para que ele não morresse queimado naquele armazém.

Sua Graça? — lady Alísia insistiu.

Está bem, Alísia — Sterlyng concordou com relutância e pôs a mão no ombro de Nicholas. — Kirkham, venha comigo.

Os dois homens foram para o escritório, onde Nicholas retomou as explicações. Contou que Maria sabia de suas suspeitas e decidira provar que ele estava errado.

E você permitiu uma coisa dessas? — Sterlyng gritou, segurando com força na túnica de Nicholas.

Não, Sua Graça — Nicholas respondeu prontamente. Ele não reagiu, pois compreendeu o desespero de Sterlyng. — Eu avisei que seria muito perigoso. Mas ela estava ansiosa por provar a sua inocência.

Sterlyng suspirou e soltou Nick.

Ela tem o temperamento da mãe. Minha Sarah era uma mulher impulsiva. Primeiro fazia e depois pensava.

É, Maria é corajosa.

Foi muito difícil para ela viver em Alderton — o duque começou. — Foi tratada como a mais humilde das criadas. Quando sua velha babá morreu, Maria teve de batalhar por tudo o que recebia.

Nicholas já desconfiava disso, pois em Londres ouvira rumores sobre a sua chegada. Saber que ela havia sido maltratada pelos parentes de sua mãe o deixava furioso.

Sterlyng jogou-se na poltrona ao lado da escrivaninha.

— Sabia que recebi umas cartas de Olívia Morley, a tia dela, reclamando as propriedades de Maria para seu filho? Essa mulher não tem jeito mesmo.

— Ninguém vai tirar mais nada dela — Nicholas declarou com veemência. Ele andava de um lado para outro, inquieto, nervoso. Sua vontade era subir aquelas escadas e sacudir Maria para fazê-la acordar.

Ela não podia continuar inconsciente por mais tempo! Sterlyng encostou-se na cadeira e ficou assistindo à impaciência de Nicholas.

— Como foi que ela se machucou? — finalmente perguntou. Nicholas ergueu os ombros.

— Nem imagino como foi que Maria chegou àquele barracão, Sua Graça. — Ele parou por um momento. — Ou como soube que o meu secretário estava envolvido nessa conspiração. Só sei que ela salvou a minha vida. Se alguma coisa acontecer a Maria...

Diante disso, foi a vez de Sterlyng se levantar e começar a andar de um lado para outro.

— Não vai acontecer nada com minha filha — ele disse, com a voz embargada. — Não depois de eu tê-la encontrado.

Nicholas suspirou.

— Também rezo para isso.

Não, nada mais iria acontecer com Maria. Nicholas prometeu cuidar dela e protegê-la pelo resto da vida. Ao menos Sterlyng não parecia ter nada contra ele. Se alguém trouxesse sua filha para casa nas condições que Maria chegara, Nicholas certamente atiraria o responsável contra a parede.

Sterlyng parou na frente dele e passou a mão pelo rosto com a barba por fazer.

Seu olho... não me parece bem, Kirkham.

Não, Sua Graça, eu acho que não mesmo.

E suas mãos estão queimadas.

Pela primeira vez Nicholas viu as bolhas que começavam a surgir. Nem as tinha notado, e também não importava. Seus pensamentos eram só para Maria, para a sua coragem, para o fato de ela estar inconsciente na cama.

A chegada do médico afastou os pensamentos amargos e levou os dois homens para a porta.

— Alguém está doente, Sua Graça?

— Não, mas minha filha está ferida. Precisa da sua ajuda, sir John. — Sterlyng pegou no braço dele e começou a subir os degraus.

— Maria sofreu uma queda e está inconsciente — disse Nicholas, que vinha logo atrás. — Ela ainda não acordou, e já faz um bom tempo que aconteceu...

— Quanto?

— Há mais de uma hora — Nicholas respondeu. — Talvez duas, agora.

O médico balançou a cabeça.

— Onde ela está?

Ao chegarem diante do quarto, Sterlyng abriu a porta para que o médico entrasse. Nicholas entrou também.

Alísia já tinha limpado o rosto e as mãos de Maria. Ela estava coberta até o pescoço.

O médico abriu a maleta, tirou uma lâmpada e aproximou-a do rosto de Maria. Abriu uma pálpebra, depois a outra, pegou no pulso e no pescoço. Nicholas estremeceu. Podia sentir o gosto daquele punho. Havia pouco sua língua estivera naquele ponto sensível. Ele cerrou os dentes e jurou a si mesmo que faria isso outra vez.

Não iria perdê-la agora.

Então o médico se levantou.

— Cavalheiros, façam a gentileza de me deixarem um momento a sós com lady Maria.

Nicholas ficou olhando sem dizer nada, mas Sterlyng tomou a iniciativa. Pôs a mão no ombro de Nicholas, levando-o para fora do quarto. Nick ouviu o médico pedir a Alísia que ficasse.

A espera foi interminável. Nick e Sterlyng esperavam no corredor que o médico terminasse o exame. Não falavam nada, porém não passava um minuto sem que um deles suspirasse ou passasse a mão pela cabeça.

Por fim, a porta se abriu.

— Fique com ela, milady — disse sir John.

— E então? Ela vai se recuperar? — Sterlyng perguntou.

— Vamos para o seu escritório, Sua Graça — respondeu o médico. — Então voltou-se para Nicholas: — Lá poderemos conversar melhor.

 

Lady Maria tem um galo grande atrás da cabeça — disse sir John, bebendo um gole de vinho. — E apesar de vários hematomas e queimaduras, acho que vai se recuperar.

Nicholas só ouviu a última frase. Ela ficaria bem. Logo se recuperaria e iria com ele para Kirkham.

— Só temo pela criança. Fez-se um silêncio absoluto.

Foi como se arrancassem o ar de Nicholas com uma bomba. O coração, acostumado a bater dentro do peito, parou.

— Criança? — Sterlyng indagou finalmente. Sua voz soou estranha, e Nicholas continuou mudo.

Sir John assentiu.

— Ela está com um pequeno sangramento... são apenas umas gotas, mas já vi esse tipo de coisa progredir. — Ele pôs a taça na mesa e continuou: — Lady Maria precisa de cuidados. Se começar a perder mais sangue, me chamem imediatamente. Se conhecerem uma boa parteira...

Como nem Sterlyng nem Kirkham foram capazes de falar ou fazer qualquer movimento, o médico resolveu sair sem ser acompanhado. O primeiro a voltar a si foi Sterlyng, que se virou para Nicholas e perguntou:

— Você sabia disso?

Nick balançou a cabeça negativamente.

— Não — sussurrou, estupefato. — Ela nunca disse nada. Mas é meu. O bebê é meu.

No mesmo instante várias cenas recentes passaram diante de seus olhos. Maria passando mal no barco. Maria se afastando da barraca de frituras com a mão no estômago, na Feira de Dunstan. E outras tantas vezes em que se sentira indisposta sem nenhuma razão aparente.

— Eu cuidarei dela, Sua Graça, de todo o meu coração. — Nicholas deu as costas ao duque e correu para as escadas. Subiu os degraus de dois em dois e, chegando ao quarto de Maria, entrou sem bater.

Se sua entrada intempestiva assustou lady Alísia, esta não demonstrou. Continuou abrindo calmamente a cortina para deixar entrar a luz da manhã.

— Lorde Kirkham?

— Você sabia?

Alísia inclinou levemente a cabeça.

— Eu desconfiei.

— Ela será minha esposa — Nicholas declarou. Sentou-se na cama ao lado de Maria e tomou sua mão. — Assim que ela se levantar, chamaremos um padre para nos casar.

Alguém tossiu atrás dele.

— Eu não teria algo a dizer sobre isso?

Nicholas continuou onde estava. Apenas virou a cabeça para enfrentar o olhar sério do duque. Este tinha uma expressão grave, mas Nicholas decidira que não havia nada que ele pudesse fazer para dissuadi-lo de sua decisão.

— Não, Sua Graça. Maria é sua filha, porém já é minha desde que pisou em Kirkham.

— Minha filha teve muitas oportunidades de escolher o senhor como marido, Kirkham. Mas não o fez.

— O senhor sabe que ela estava zangada comigo.

— Minha filha vai escolher o marido que quiser — ele insistiu, dando a volta na cama. — Eu prometi isso a ela e vou cumprir.

— Eu sei que ela me escolherá — Nicholas declarou, esperando ter razão.

Alísia cuidou de Maria durante todo o dia, umedecendo seus lábios com um pano molhado, enxugando-lhe a testa quando ela suava.

Nicholas não saiu de perto. Mandara uma carta a sir Gyles explicando os últimos acontecimentos e ordenando que prendesse Henric Tournay. Depois não pensara mais nisso. Sua atenção estava totalmente voltada para Maria.

Não a deixaria nunca mais. Nicholas andava pelo quarto, sentava-se, cochilava de vez em quando. Um criado lhe trouxe roupas limpas de casa e seu banho foi muito rápido.

Ele não parava um só momento de pensar no futuro com Maria a seu lado. Kirkham teria que passar por algumas mudanças, como a construção de um quarto para a criança e a contratação de novos criados. A filha de Mattie Tailor era a parteira mais competente do distrito e se mudaria com sua mãe para o castelo até o bebê nascer. A criança nasceria no inverno e não havia tempo a perder...

— Não!

Nicholas assustou-se com o murmúrio angustiado de Maria, que ainda estava inconsciente. Ele pegou na mão dela e aproximou-se de seu rosto.

— Calma, amor. Você está segura agora. Abra os olhos.

Ela não abriu os olhos e murmurou algo que ele não entendeu. Agora, parecia se manifestar toda vez que alguém a tocava ou mexia nela, o que podia ser um bom sinal. Alísia disse que o sangramento havia parado, portanto o bebê dormia tranqüilo no útero de sua mãe.

Mas se ela acordasse...

No meio da tarde um criado bateu na porta do quarto.

— Lorde Kirkham, há um cavalheiro lá embaixo querendo falar com o senhor.

Nicholas beijou a testa de Maria e.saiu do quarto. Seguindo o criado, chegou ao escritório do duque, onde encontrou Sterlyng sentado à sua mesa e sir Gyles na frente dele.

— Milorde — disse Gyles, curvando-se respeitosamente. Nicholas esperou que a visita fosse rápida para poder voltar ao lado de Maria.

— Localizamos o navio e prendemos todos os que se encontravam a bordo.

— Ótimo. E Tournay?

— Ele acredita que você morreu no incêndio do armazém e deve estar tranqüilo porque sua traição não foi descoberta.

— Mas...

— Ele não estava a bordo.

— Não? E onde está ele?

Não sei, milorde. Levamos toda a tripulação à Torre de Londres para ser interrogada. Mas até o momento Tournay está desaparecido.

Tournay não vai querer entrar em Westminster — Sterlyng observou. — Lá, todos já sabem que ele é um traidor.

Mas onde estaria?

Os navios deixaram o porto durante o incêndio. Ainda não sabemos se todos voltaram. Talvez ele esteja num deles.

Investigue.

Sim, milorde.

Veja se ele deixou alguma coisa em seus aposentos — disse Nicholas. — Algo de valor que o obrigue a voltar para pegar.

Sim, milorde. A propósito... você nunca disse a Tournay, e nem deu motivos para que ele desconfiasse, que trabalhava para lorde Bedford?

Nicholas balançou a cabeça.

Não, nunca.

Então ele sabia antes de conseguir o emprego. A França já sabia dos seus truques há algum tempo.

Nicholas também havia pensado nisso. A França sabia a seu respeito antes de enviar Tournay. Por isso, seu trabalho de espionagem para Bedford estava terminado.

Nick não lamentava o fato. Prestara muitos anos de serviço ao duque e estava cansado de bancar o libertino. Era hora de mudar. Maria e seu filho precisavam dele.

Você está certo — disse Nicholas, respondendo à observação de Gyles. — Minha utilidade para lorde Bedford, pelo menos nessa função, terminou.

Devo me retirar agora. Sua Graça, milorde. Ainda há muito o que fazer.

Sterlyng acompanhou sir Gyles e Nicholas voltou para Maria. Ela ainda estava inconsciente, mas um pouco mais agitada agora.

— Ela falou? — ele perguntou a Alísia.

— Não, apenas alguns murmúrios, como antes. Nicholas ajoelhou-se ao lado da cama e aproximou o rosto do de Maria. Beijou-lhe os lábios e ajeitou delicadamente os cabelos.

— Nicholas... — ela sussurrou.

Maria sentia uma dor horrível na cabeça e também atrás dos olhos. Ela ouvia as vozes, porém eram como ecos..., distantes, difusas. Mexeu as pernas, tentou mover os braços, mas os ombros doíam e as pernas estavam completamente moles. Ainda não sabia o que havia de errado. Por que não conseguia abrir os olhos nem mexer o corpo?

Uma voz era particularmente reconfortante. Era a de Nicholas, Maria tinha certeza, mas por que não estava a seu lado na cama? Queria que ele a abraçasse para se sentir aquecida e segura.

Mas Nick só segurava em sua mão e encostava os lábios nos seus. Ela quis falar, pedir que chegasse mais perto, se deitasse com ela, porém as palavras não saíam.

Mas também não sabia se ele queria, depois de tratá-lo tão mal em seu quarto. Mandara-o embora, dizendo que escolhera Rudney para marido.

Não devia ter feito isso!

Agora sabia que Nicholas também havia sido enganado, que Tournay o fizera acreditar que seu pai era um traidor. Fora injusto de sua parte acusá-lo de tê-la usado. Não devia nunca ter acreditado nas coisas que diziam sobre ele, e sim confiado nele.

Maria tentou abrir os olhos, mas a luz era muito forte.

— Ela está acordando, Sua Graça — alguém falou. Era Alísia.

— Abra os olhos, meu amor — Nicholas pediu.

— Pode me ouvir, Maria? — perguntou seu pai.

Ela não entendeu. Todos falavam ao mesmo tempo. Ficaria apenas com a voz de Nick, que falava em seu ouvido. Era muito bom senti-lo a seu lado, saber que ele ainda estava ali, depois das coisas que ela lhe dissera.

De repente se lembrou de tudo: ela e Nicholas quase morreram, porém haviam saído com vida daquele incêndio. O que teria acontecido? Não conseguia se lembrar muito bem.

A luz machucava seus olhos, mas podia apertá-los quando Nicholas aproximou o rosto.

— Seu olho! — ela sussurrou.

Então percebeu um movimento do outro lado da cama e viu que seu pai tinha se sentado ao seu lado.

— Você voltou para nós — ele disse apenas, porém com muita emoção.

— Quer beber um gole de água, Maria? — Alísia perguntou, brincando um pouquinho com ela.

O duque acariciou sua mão, sua cabeça, e disse palavras muito suaves. Então, de repente, ela estava sozinha com Nicholas.

— Cuide bem dela, Nicholas — ouviu seu pai dizer e a porta se fechar.

Maria aconchegou-se ao corpo quente de Nicholas, que se deitou ao lado dela.

Seus olhos se ajustaram à luz e a dor de cabeça havia diminuído um pouco. Sentia-se muito melhor quando Nicholas a abraçava e colava o corpo no seu.

— Você salvou a minha vida — ele disse em voz baixa. Maria não falou. Havia muitas meias verdades, inverdades e verdades não ditas entre eles, e ela não sabia por onde começar.

Nicholas virou seu rosto e lhe deu um beijo na testa.

— Como você sabia que eu estava no porto? — ele perguntou.

Eu não sabia — Maria respondeu, aninhando-se nos braços de Nick. — Eu estava seguindo Tournay.

Tournay? Mas como?

Ele estava aqui, na minha casa.

O quê? — Nicholas se espantou.

Depois que você saiu... — ela sentiu seu rosto corar quando se lembrou daquele encontro. — Eu não conseguia dormir. Desci e vi Tournay mexendo nas gavetas de meu pai, no escritório. Quando ele saiu, eu o segui. Apesar do que você me disse, eu... eu pensei que ele estivesse a seu serviço, cumprindo suas ordens. Queria segui-lo para chegar até você, enfrentá-lo...

Nicholas não disse nada, mas suspirou. Ela o magoava com sua desconfiança.

— Você me disse que alguém queria incriminar meu pai como traidor, porém não acreditei. — Maria engoliu um nó na garganta. Estava envergonhada das coisas que pensara a respeito dele. — Mas, ao seguir Tournay, vi que você confiou em mim naquela noite. Eu... eu sinto muito, Nicholas, por ter desconfiado de você.

— Psiu — ele a tranqüilizou. — Está tudo terminado agora. É difícil saber o que pensar. Eu construí uma reputação. Eu quis que todos pensassem mal de mim. E, pelo que sei, funcionou muito bem.

— Eu fui uma tola.

— Não, foi cuidadosa.

— Oh, Nicholas! — ela suspirou. Uma mecha de cabelos caiu sobre a testa dele, e Maria ergueu a mão para ajeitá-la. — Isso é uma das coisas de que mais gosto em você: a sua compreensão.

— Não sou tão compreensivo assim.

— Não?

— O risco que você correu seguindo Tournay... Até agora fico apavorado quando penso. Tive tanto medo de perdê-la... — Nicholas apertou-a em seus braços. — Quando vi você lá embaixo naquele armazém em chamas, quase morri.

— Não deve ter sido pior do que quando vi Tournay golpear a sua cabeça pelas costas.

— Ah, Maria... — Ele a afastou um pouco para olhar o rosto dela. — Nós formamos um bonito casal, não acha?

— Eu acho — ela respondeu, reprimindo as lágrimas.

— Como está a sua cabeça? Ainda dói muito?

— Um pouco. Mas há uma coisa que você pode fazer para melhorar.

— E o que seria, minha linda?

— Me beijar.

Ele encostou os lábios de leve sobre os dela, porém Maria queria mais. Ela o segurou pela túnica e o puxou para si, encostando a língua no canto da boca de Nicholas.

Ele resmungou e a afastou.

— Prometi a seu pai que me comportaria.

— E está se comportando como eu quero.

— Mas não é exatamente como ele gostaria. Além disso, ainda não nos acertamos.

Maria se deitou no travesseiro. Era verdade. Nada estava acertado. Ela ainda não lhe contara da criança.

— Meu trabalho para Bedford terminou. Não preciso mais conviver com os libertinos e os velhacos como vim fazendo durante todos esse anos.

— E por que convivia com eles?

— Para conhecer os seus segredos. E os segredos de quem me subestimasse.

— Muito esperto, Nicholas. Só por isso não deixou que me aproximasse deles em Kirkham? Por que ninguém prestava?

— Isso mesmo.

— E aquelas mulheres que você tinha lá?

— Eu não tinha nenhuma... Você está se referindo àquela que me chamou da janela com Lofton e Trendall na manhã que você fugiu?

Maria deu um sorriso irônico.

— Sim, lorde Nicky. Aquela cujos favores você desfrutou pouco antes de me levar para a sua cama.

Nicholas alisou o braço de Maria.

— Não estive com mais ninguém desde que conheci você. Meu coração, meu corpo e minha cabeça ficaram presos a você desde o dia que bateu no meu cavalo em Kirkham. Livre-me desse tormento e se torne minha esposa, Maria.

Ela mordeu o lábio. Ainda não lhe contara da criança. Ele provavelmente ficaria muito zangado quando soubesse que, mesmo grávida, ela pensara em se casar com outro homem. Tinha chegado a hora de dizer.

— Nicholas... você precisa saber de uma coisa.

Ele ergueu a cabeça e apoiou o queixo na mão. Havia uma luz misteriosa nos olhos dela que o preocupou.

— Eu estava me perguntando quando é que você iria me contar.

— Contar? Você já sabe?

— Da gravidez? — Nicholas a abraçou outra vez. — Sim, eu sei.

Como?

Houve uma suspeita de aborto...

Oh, não! — Maria gritou, cobrindo a barriga com as mãos. — O nosso...

Ele ainda está aí. Mas quando eu a trouxe para casa, você estava sangrando um pouco. Alísia nos garantiu que está tudo bem.

Maria respirou aliviada.

— Meu pai também já sabe? Nicholas sorriu.

— Sabe. Só por isso ele nos deixou aqui sozinhos... no seu quarto.

— Nicholas...

— Você não está pensando em se casar com Rudney, está?

— Não, Nicholas — ela sussurrou em seu peito. — Só com você.

— Isso é muito bom, meu amor. Rudney não é mau sujeito, mas eu teria de matá-lo.

— Nicholas — Maria o repreendeu.

— Só estou brincando — ele riu, mas logo falou sério de novo. — Nunca gostei tanto de outra mulher, Maria. Por favor, me dê a honra de se casar comigo.

— Oh! Nicholas, com o maior prazer.

— Nunca mais haverá segredos entre nós. — Ele a abraçou com força.

— Não. Sinceridade absoluta — ela respondeu, sonolenta. Nicholas beijou-a ternamente e continuou abraçado até que Maria adormecesse naturalmente. Tanto ela quanto o bebê precisavam descansar.

Ele também pegou no sono, mas acordou no meio da noite com os músculos tensos e doloridos. Levantou-se da cama, espreguiçou-se e foi até a janela olhar as estrelas.

Um pequeno movimento na calçada atraiu seu olhar. Podia estar enganado, porém jurava que vira um homem de capa parado nas sombras.

Nick perguntou-se por que alguém estaria vigiando a casa de Sterlyng e resolveu ir até lá para ver quem era. Atravessou a casa escura e saiu sorrateiramente por uma das portas dos fundos, encostando-se nos muros para se proteger.

Quando chegou à esquina, olhou para o outro lado da travessa, onde se encontrava o homem.

Ele continuava lá. Nicholas voltou pelo mesmo caminho, mas em direção à casa vizinha. Se pudesse dar a volta nela, depois atravessar e aproximar-se do sujeito por trás, o elemento surpresa agiria a seu favor.

Movendo-se rapidamente, pôs seu plano em ação, torcendo para que o homem não agisse — nem atacasse — até conseguir pegá-lo. Era uma presença sinistra, mas difícil saber qual a sua intenção.

Ele foi pela lateral do vizinho até chegar à frente. Em silêncio, avançou para a rua sem chamar a atenção. O homem não saíra do lugar, porém dava a impressão de que estava se preparando para sair.

A distância mais curta para chegar a ele era um caminho que descia na direção do rio. Os arbustos e as cercas vivas o ajudaram a vencer a distância que os separava com mais facilidade. Já estava se aproximando, quando o homem saiu furtivamente em direção à casa de Maria.

Quando soltou a capa, Nicholas o reconheceu: era Tournay. Mas o que seu ex-secretário estava fazendo ali? Teria intenção de machucar Maria? Ou talvez Sterlyng? Ou teria vindo para terminar o que estava fazendo no escritório do duque?

Nicholas queria essas respostas. Ele se aproximou de Tournay pelas costas, passou o braço pelo seu pescoço e o jogou no chão.

Tournay sacou um punhal e rolou para longe de Nicholas. Com muita agilidade conseguiu ficar em pé e apontou a arma para seu oponente.

Nicholas riu da arma patética.

— Não vai continuar rindo quando esta lâmina entrar no seu pescoço, milorde — Tournay ameaçou-o.

— Terá que ser pelas costas, Tournay. Como você me atacou ontem à noite. Você não é homem para me enfrentar cara a cara.

Tournay apontou o punhal e avançou, mas Nicholas se esquivou sem dificuldade. Agarrou o braço de Tournay e o torceu, porém o outro soltou o corpo; Nicholas perdeu o equilíbrio e caiu no chão.

Então ele não era tão destreinado quando parecia. Mas não importava. Nick o subestimara uma vez e não cometeria o mesmo erro de novo.

— O que você estava fazendo no escritório de Sterlyng ontem à noite? — perguntou.

— Fazendo impressões do lacre dele — Tournay respondeu, voltando a atacar. — Prepare-se para morrer, Kirkham.

Nicholas desferiu um chute que o acertou na barriga, jogando-o no chão de joelhos. Na queda, Tournay perdeu o fôlego e Nick aproveitou para pôr-se em pé.

— Como o lacre de Sterlyng pode servir para você? — ele perguntou quando seu oponente já apontava o punhal outra vez. Nick movia-se devagar, com os braços abertos, para pegar o outro desprevenido.

— Posso pôr qualquer coisa numa carta — Tournay retomou o fôlego. — Quando a cera derrete, eu imprimo nele o selo de Sterlyng. Ninguém percebe que um está sobre o outro.

— E eu não sabia por que as cartas de Sterlyng tinham lacres tão grossos.

— Agora já sabe; pena que você vai morrer.

— Eu acho que não, baixinho.

Isso irritou Tournay, que avançou outra vez com seu punhal e por pouco não atingiu Nicholas no lado do corpo. Mas ele foi mais rápido, esquivando-se do golpe no último instante.

Eles se enfrentaram por alguns momentos, com Tournay ameaçando com o punhal e Nicholas se esquivando.

— O seu truque barato funcionou bem durante um tempo — Nicholas provocou-o. — Mas de quem você estava desviando a minha atenção? Esta é a pergunta mais importante.

Tournay golpeou de novo, cortando apenas o ar, porém o movimento foi vantajoso para Nicholas, que segurou o braço dele e o bateu sobre seu joelho dobrado, arrancando-lhe o punhal da mão. Em seguida empurrou-o contra a parede e fechou a mão ao redor de sua garganta.

A pressão foi demais e a voz de Tournay saiu estranha.

— Ninguém!

— Está mentindo, verme! Quem você está protegendo? Se quiser respirar mais uma vez, pode ir dizendo o nome.

Tournay sacudiu a cabeça negativamente. Nicholas apertou mais.

— Parece que não está acreditando em mim. Estou falando sério.

Tournay debateu-se e tentou resistir como podia, mas não podia vencer um rapaz mais jovem e muito mais forte. Por fim tentou mover a cabeça para baixo e para cima, e Nicholas re­laxou a pressão para deixá-lo falar.

— Bex...

— Repita!

— Bexhill...

 

                   Londres, outono de 1429

O criado tossiu discretamente quando se aproximou de seu lorde e de sua lady.

— Chegou visita, milorde.

Nicholas encontrava-se sentado junto ao fogo, com os pés de Maria em seu colo. Ele pegava pedacinhos de comida na bandeja e punha em sua boca. A gravidez não estava ainda tão avançada para tantos mimos, mas ela não os recusava.

Nicholas era um homem feliz ao lado de sua amada.

— É Sterlyng? — ele perguntou.

— Não, milorde — respondeu o criado. — Acho que são... parentes.

— Quem seria?

Maria nem tinha terminado de perguntar e uma senhora ainda muito bonita entrou na sala, passando pelo criado. Estava muito bem vestida, porém Nicholas não se lembrava de tê-la visto alguma vez.

— Ria! — ela exclamou.

Quando Maria recuou, Nicholas levantou-se imediatamente.

— Madame, a senhora está invadindo...

— Como é possível, milorde? Sou Olívia Morley, a tia de Ria.

Espantado com a coragem daquela mulher de aparecer daquele jeito em sua casa, Nicholas ficou sem saber o que dizer. E ela ainda trouxera seus dois filhos, que ficaram na porta, esperando pelo resultado da invasão.

— Minha esposa não tem nenhuma tia — Nicholas respondeu secamente. Não iria perdoar quem tratara tão mal Maria. E muito menos a aceitaria em sua casa.

— Ah, tem, sim — Olívia insistiu, sentando-se ao lado dela. — Há quanto tempo não nos vemos, Ria.

Maria não conseguia dizer nada e Nicholas viu-a empalidecer. Havia alguns meses Olívia tinha negado a existência dela ao emissário que tentara encontrá-la. E Olívia Morley também quisera tirar Rockbury dela, reclamando a propriedade como um direito de seu filho Geoffrey. Nicholas sabia de tudo isso.

Sterlyng estava certo sobre lady Olívia. Ela delirava.

— Adrick — ele chamou o criado, tirando gentilmente a tia de Maria da cadeira em que ela se sentara —, por favor, acompanhe lady Olívia e seus filhos.

Mas milorde — ela objetou.

Minha esposa não precisa de outros parentes além de mim e o pai dela.

Mas nós viemos a Londres só para visitá-la! — Olívia protestou quando Nicholas e o criado pegaram cada um em um braço e a tiraram da sala. — Ela tem o dever de nos apresentar à sociedade lond...

O dever dela para com vocês terminou faz muito tempo, lady Olívia — Nicholas disse já na porta. Ele a pôs para fora, depois deu um leve empurrão nas costas do rapaz. Sua irmã foi atrás.

Por favor, nunca mais apareçam aqui. Os Morley não são bem-vindos nesta casa.

Nicholas fechou a porta e voltou a se sentar ao lado de Maria, pondo os pés dela sobre o colo, como se nunca os tivesse tirado dali.

O choque da visita de Olívia ainda durou um certo tempo. Maria não estava mais pálida, porém ficou perturbada.

Ria? — Nicholas perguntou. Pelo jeito como a tia pronunciara esse nome, não devia ser um apelido.

Acho que ela nunca soube o meu nome verdadeiro. Eu era apenas a filha bastarda da sua cunhada.

Nick não acreditou. Mesmo que ela fosse uma filha bastarda, não havia razão para tratá-la tão mal. Não pôde evitar de pensar em seu próprio filho sendo tão maltratado.

Não. O filho que Maria esperava dele seria muito bem-amado. E legítimo, porque eles tinham se casado logo que ela se recuperara da queda.

Maria nunca perguntara, e Nicholas também não havia lhe contado, sobre a execução de Tournay. Na sua condição, não seria prudente aborrecê-la com esse tipo de história. E também nunca soubera que Bexhill tivera um fim parecido. Bedford e Gloucester cuidaram para que ele nunca mais pusesse em risco a vida dos ingleses.

Nick pegou um pedaço de torta na bandeja e deu na boca de Maria. Ela prendeu os dedos entre os lábios e lambeu ao redor. Nicholas gemeu.

— Faz questão de terminar de comer, moça? Ou prefere ir direto para o quarto?

Maria piscou sedutoramente.

— Ah, eu gostaria de terminar... lorde Nick.

De repente ficou muito quente lá dentro e Nicholas tirou a túnica pela cabeça.

— Assim é melhor — disse, enrolando as mangas de camisa de linho. — Faz calor perto do fogo.

Ele se ajeitou melhor, debruçou-se e beijou-a na boca.

— O que, exatamente, você pretende terminar, minha linda? — perguntou num tom baixo, sedutor, sem se afastar.

— De comer, é claro. — Um sorriso maroto curvou os lábios de Maria. Ela ofereceu a boca para um outro beijo e foi recompensada com um lascivo encontro de dentes e línguas que a fez perder o fôlego.

— Talvez mais tarde, minha linda, bem mais tarde.

 

                                                                                Margo Maguire  

 

                      

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