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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAÇÕES DE GELO / Juliana Dantas
CORAÇÕES DE GELO / Juliana Dantas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

“Querido Nick”
Reconheço a letra cursiva, perfeitamente arredondada assim que o envelope cai do meio do livro, pousando sobre meus pés.
Por um momento, não sou capaz de nada a não ser tentar fazer o ar voltar aos meus pulmões.
E quando finalmente abaixo e o apanho, segurando o envelope já um tanto amarelado pelo tempo entre os dedos, acaricio meu próprio nome, escrito com um leve relevo trêmulo, sentindo meu peito se apertando de uma dor que julguei amortecida.
Um misto de saudade, revolta e pesar, me faz hesitar, antes de abri-lo e retirar de lá a carta escrita com a mesma letra do envelope.
Querido Nick
Se estiver lendo esta carta, é porque já não estou mais aqui...

 


 


Capítulo 1

O mundo a minha volta desaparece lentamente. Os gritos entusiasmados nas arquibancadas. A voz da minha mãe, estridente e autoritária, que sempre se sobressai a tudo mais, até mesmo a da minha técnica, que nunca erguia o tom, nem quando estava brava comigo, sempre mantendo o timbre controlado com o sotaque russo que ela nunca perdeu, mesmo depois de estar há trinta anos no Canadá.

E no vácuo que se segue, escuto apenas o som dos meus patins deslizando pelo gelo, como música para meus ouvidos. Quando era criança, costumava achar que eram notas musicais e até cantarolava enquanto patinava no lago congelado atrás da nossa casa, compondo minhas próprias canções.

Eu ainda acho que o som do aço contra o gelo é como música, mas não há mais a satisfação pueril de apenas deslizar pelo espaço gelado. Patinar agora é minha profissão.

Um conjunto de técnicas, ordem e estratégia.

Um meio para um fim.

E o objetivo é sempre o mesmo: vencer.

Mesmo numa apresentação como a de hoje, apenas um espetáculo recreativo em Vancouver, nunca perco o foco. Pode não estar valendo uma medalha olímpica, mas mesmo assim tenho que ser a melhor.

Ou vou querer perder a posição de patinadora artística mais talentosa do Canadá e uma das melhores do mundo?

E mesmo que eu me esqueça disso de vez em quando, minha mãe está sempre ali para me lembrar, nem que tenha que usar meios não muito amorosos.

Os sacrifícios que fiz.

Os obstáculos que venci.

Tudo o que perdi para conquistar aquela posição.

E são esses pensamentos que sempre passam pela minha cabeça, como um mantra quando fecho os olhos, o público silencia e a música — desta vez, de verdade — começa e abro os olhos, sorrio e estendo a mão para a única pessoa cujo toque ainda é bem-vindo.

Christian Jackson, meu parceiro há quase cinco anos, sorri de volta, com seus olhos azuis e covinhas irresistíveis e cabelos castanhos perfeitamente arrumados.

E o show começa.

Por aqueles três minutos que dançamos e completamos saltos, giros e levantamentos e arremessos, tudo com a graça, a unidade e a química que sempre esperam de nós, o mundo é um lugar perfeito.

Quero viver naquele mundo pra sempre.

Mas a vida real sempre volta, quando a música termina e os aplausos explodem na arena.

Christian me abraça.

—Tudo bem?

Sacudo a cabeça em afirmativa, enquanto nos viramos para o público agradecendo, alguém joga um buquê de flores e eu o pego, sorrindo, enquanto deslizamos para fora da pista.

Christian ainda segura minha mão e sinto seus dedos me apertando, descanso os olhos no rosto bonito e noto preocupação em sua expressão.

Chris me conhece mais do que qualquer pessoa e sabe que por baixo do sorriso radiante que todos querem ver da fantástica medalhista de ouro Kiara Willians, estou gritando.

É um grito silencioso que começou baixinho como o rosnado de um filhote com frio e foi aumentando com o passar dos anos, transformando-se em um ressoar agudo e alto o suficiente para ameaçar quebrar o gelo que revestia minhas emoções. Emoções essas que eu mantinha bem escondidas no fundo da minha mente.

Ninguém queria ver aquelas emoções.

Eles queriam a perfeição.

O salto perfeito. O sorriso perfeito.

A garota de ouro da patinação artística canadense.

— Seu triple salchow estava horrível.

A voz de gelo chega até mim, assim que alcançamos a mureta que circunda a pista e o sorriso desaparece do meu rosto enquanto pego o protetor de lâminas da mão de unhas bem-feitas.

Essa é Maude Willians, minha mãe, com suas roupas finas, postura altiva e olhar afiado no rosto tão parecido com o meu. Não há nenhum calor em seus olhos claros, assim como não me lembro de escutar alguma palavra calorosa vinda dos lábios bem maquiados. Ela ajeita os cabelos loiros, num tom bem mais claro que os meus, agora fruto de tintura, com impaciência.

— Mãe, era só uma apresentação boba!

— Há dois meses das Olimpíadas, não podemos admitir erros, Kiara!

— A culpa foi minha, estava distraído — Chris vem ao meu socorro e eu lhe lanço um olhar agradecido. Chris conhece a ira interminável da minha mãe.

Para Maude, eu deveria ser sempre nada menos que impecável.

— As pessoas esperam muito de você! Por isso pagaram ingresso, por isso estão aqui!

Reviro os olhos saindo da pista e tentando não ficar irritada com aquela ladainha que escuto há anos.

Há quase vinte anos para ser mais exata, quando minha mãe me viu deslizando pelo lago no fundo da nossa casa e fazendo piruetas que ninguém tinha me ensinado, mas que eu já fazia com graça, e decidiu que eu ia ser uma patinadora profissional.

Meu pai achou um absurdo levar uma menina que tinha menos de quatro anos para treinar, mas mamãe estava convencida de que eu seria uma futura medalhista e este foi o estopim para que ela fizesse nossas malas e nos mudássemos da cidade pequena que vivíamos, e onde papai era professor, para Vancouver. Com aquela idade, não entendi que nossa pequena aventura era, na verdade, o divórcio dos meus pais. Na semana seguinte que chegamos a Vancouver, eu estava matriculada em uma aula de patinação.

— Não se preocupe, Maude.

Uma patinadora usando rosa pink que ofusca meus olhos passa por nós retirando a proteção de plástico de suas lâminas.

— Se a princesinha de gelo não for perfeita, eu serei no seu lugar.

— Bem que você queria, Alana — Christian desdenha.

Alana Percy é minha concorrente desde que tínhamos 12 anos e competimos pela primeira vez.

— Não seja cretina, Alana. — Seu parceiro, Tyler, a puxa pela mão e pisca para nós.

Tyler é um cara tão legal, não sei como ele pode suportar Alana Percy.

— Vai deixar essa garota te ultrapassar? — Mamãe continua. — Alana e Tyler estão loucos pelo ouro também.

— Mas eles têm o bronze no campeonato canadense, não vão chegar nem perto de nós, mesmo que Alana queira — Chris argumenta.

A apresentação de Alana e Tyler começa e giro para sair dali.

— Pra mim já deu.

— Não pode ir! — Maude me censura.

— Eu nem queria vir hoje e você insistiu!

— Você precisa de visibilidade agora, mais do que nunca. E patrocínio.

— Eu já tenho patrocínios...

— Não o suficiente! Não o que alguém como você merece. Tenho que falar com você sobre uma proposta de publicidade com a De Santi.

— Hoje não, mãe...

Continuo meu caminho e Christian vem atrás de mim.

— O que você tem?

— Nada...

— Eu te conheço, tem alguma coisa te incomodando...

Suspiro pesado.

— Só... Toda essa pressão, os treinos pesados para as Olimpíadas, todo mundo esperando que sejamos perfeitos e ainda tenho que ser simpática e encarnar a queridinha da patinação. Estou de saco cheio.

Ele toca meu braço.

— Eu sei que é pressão demais, mas... Não parece só isso.

Desvio o olhar, odiando que Christian seja tão sensitivo.

— Eu não sei o que está acontecendo. É como se, de uns dias para cá, tudo fosse demais. Como se eu fosse uma impostora. Não sou essa pessoa que todos acham que sou, Chris. E você sabe por que... — Minha voz sai cheia de uma angústia antiga e que quase sempre consigo manter sob controle.

E é este o problema.

A cada dia que passa, sinto o controle escapando das minhas mãos.

Isso tem me desconcentrado, me deixado angustiada e ansiosa.

Christian aperta meu braço.

Ele sabe.

— Precisa relaxar. Talvez sair da cidade por alguns dias.

— Está bem — ironizo. — Temos treino e minha mãe está me torrando a paciência para conseguir mais trabalhos de publicidade.

— Foda-se a Maude. Sua saúde emocional é mais importante, embora ela não entenda isso. Tire uns dias de folga. Já sei, meu irmão tem uma casa em Whistler. Ele pode te emprestar.

— Então vem comigo.

— Não posso. É aniversário do meu sobrinho, você sabe.

— O futuro patinador.

— Não fale isso para Trevor, ele ia odiar. — Chris faz uma careta.

A família de Chris é superconservadora e ele teve que lutar para convencê-los para praticar um esporte “de menina ou bichas” como ouvi seu pai falar uma vez, com um desdém preconceituoso.

— Mas você deveria ir, de verdade. Sinto que vai explodir a qualquer momento e não quero ver isso.

Eu assinto. Ele tem razão.

Antes que entre no vestiário uma horda de adolescentes aparece segurando câmeras e pedindo fotos.

Forço um sorriso enquanto os atendo.

— Quero ser como você, Kiara — uma menina que não deve ter mais do que 12 anos diz animada.

— Tem certeza, é muito trabalho.

Ela não faz ideia, penso.

Dietas, treinos, dores, críticas.

A pressão interminável para ir além dos limites.

As pessoas viam a perfeição exterior sem saber todos os sacríficos que fazíamos.

— Vocês são namorados? — outra menina pergunta e Christian pisca para mim, me puxando para beijar meu rosto.

— Claro que não. — Sua negativa não convence as meninas que suspiram quando nos afastamos, ainda mais que Chris está me abraçando.

Não adianta dizer que não estamos romanticamente envolvidos, que a química que demonstramos na pista de gelo é fruto de uma amizade e unidade que conquistamos através dos anos com muito treino e confiança mútua.

As pessoas querem ver romance e eu e Christian começamos a usar aquele anseio a nosso favor. Negamos com um sorriso malicioso de quem guarda um segredo.

E eles não imaginam que temos mesmo um segredo. Mas não o que esperam.

— Vou pedir a chave para meu irmão, ok? — ele comenta quando me deixa na porta do vestiário.

— Obrigada.

— Por que não vai hoje jantar comigo e assistir Ame-a ou Deixe-a enquanto todo mundo imagina que estamos trepando?

— Eu preciso dormir, garanhão. — Reviro os olhos, mas estou rindo, quando ele me beija e se afasta.

— Olha só se não é o casalzinho de ouro do gelo.

Eu me viro ao ouvir a voz rouca e máscula que um dia tinha me feito suspirar e me deparo com Dimitri Ivanov se aproximando, com seus patins pendurados no ombro.

Sim, ele ainda é lindo como um modelo, com seus cabelos escuros e pele clara de vampiro de filme adolescente.

Mas hoje, Dimitri não causa nada em mim a não ser repulsa.

Eu me viro, com o intuito de ignorá-lo e entrar no vestiário, mas Dimitri se aproxima e segura a porta.

— Me deixa passar — sibilo, tentando não me irritar com sua arrogância de macho escroto. Ou não ficar nervosa com o fato de ele estar muito perto e se inclinando para mim.

— Você está bonita, Kiara. Os anos te fizeram bem.

— Sai da minha frente.

Ele sorri.

— O que foi? A gente costumava se dar bem, lembra? Acho até que era meio apaixonada por mim quando éramos dupla.

— Isso foi há muito anos e eu era uma idiota.

— Eu gostava... Devia ter te chamado pra sair... — ele se inclina — Ainda lembro daquele beijo...

Meu coração dispara de horror e levanto a mão num instinto, para afastá-lo.

— Não toque em mim!

Ele ri, meio irritado e motivado a me dobrar.

— Ei, o que foi? Vai dizer que é verdade que tem um romance secreto com o Jackson? Só um beijinho pelos velhos tempos...

E para meu horror, passa os braços à minha volta me prensando contra a porta.

O ar é retirado do meu peito e vejo tudo escuro quando me debato e grito, em pânico.

Dimitri se afasta, erguendo as mãos no ar com um olhar entre incrédulo e assustado.

— Ei, estava brincando. Calma!

Luto para respirar, meu olhar aterrorizado começando a enxergá-lo novamente.

— Não toque em mim de novo, nunca mais! — consigo dizer, antes de empurrar a porta e entrar.

Tropeço até a pia e ainda respiro por arquejo, meu coração dói ao bater.

Tudo dói.

Uma lágrima escorrega e eu a enxugo com a mão trêmula.

Obrigo-me a me acalmar enquanto me arrasto até o banco e retiro meus patins. Eu me odeio agora. Tenho raiva de mim mesma por ser assim.

O olhar confuso de Dimitri volta à minha mente. Ele não faz ideia. Ninguém sabe que tenho pavor de qualquer aproximação masculina, o gelo pelo qual deslizo todos os dias está nas minhas veias agora. Congelou minha pele e meu coração para sempre.

De repente escuto um som vindo de um dos banheiros. Apuro os ouvidos. Uma tosse e o inconfundível engasgar de vômito.

Tem alguém passando mal.

Então uma descarga é dada e a porta se abre e eu vejo Diana Colombo, a dupla de Dimitri saindo.

Ela está pálida, mas fica sem graça ao me ver.

— Tudo bem? — pergunto com cuidado.

— Sim, apenas... alguma coisa que comi, acho.

Ela passa por mim, lava as mãos e a boca. Tenta limpar o rosto sem tirar a maquiagem. Eles se apresentarão depois de Alana e Tyler.

— Eu costumava vomitar quando comecei. Ficava nervosa.

Ela sorri através do espelho. Ainda não parece bem.

— Nunca fiquei nervosa. Com certeza não é isso.

Claro, Diana tem muitos anos de carreira assim como eu. Recordo-me de quando senti raiva dela por ter me substituído com Dimitri.

Parece em outra vida agora.

— Dimitri está lá fora te esperando.

— Ele gosta de você.

— Claro que não — nego rápido, mas desvio o olhar, vermelha, ao me lembrar da brincadeira boba lá fora. — Dimitri gosta de qualquer mulher que lhe dá atenção.

— Isso é verdade — concorda e eu me pergunto se eles são algo mais do que parceiros. — Você foi ótima hoje.

— Não fui não.

— Você é o tipo de patinadora que mesmo quando é ruim é boa. Com certeza o ouro já é seu.

— Vocês esperam demais de mim. — Solto meu cabelo loiro-escuro que cai em ondas até minhas costas, e começo a tirar a maquiagem.

— Não entendo porque você e Dimitri se separaram, eram perfeitos juntos.

Desvio o olhar, não querendo me recordar de quase seis anos atrás, quando eu e Dimitri éramos a dupla queridinha da patinação, a promessa de ouro olímpico e glória.

Isso nunca aconteceu. Não com nós dois juntos pelo menos.

E tento evitar a devastação que a lembrança me causa.

— Vocês são ótimos juntos — elogio, ignorando seu comentário.

E vejo uma sombra nos olhos de Alicia.

— Talvez não por muito tempo.

E ela se afasta antes que eu possa perguntar o que quis dizer.

Mas não me interessa.

Eu me apresso em me arrumar e sair antes que outras patinadoras apareçam. Não estou com humor para fingir ser legal hoje.

Está anoitecendo quando chego ao meu apartamento.

Tomo um longo banho e ligo a TV, só querendo esquecer. Pego meu celular e espio minhas redes sociais. A assessoria que minha mãe contratou já atualizou minhas fotos com imagens da apresentação de hoje. Rolo os comentários, onde vários fãs especulam se eu e Chris somos um casal e abro um sorriso irônico.

É cômodo para mim que pensem dessa maneira. Assim, não preciso ter que responder por que não tenho um namorado.

Nunca tive nos últimos seis anos.

Quando acordo na manhã seguinte, o tempo está horrível. Há previsão de neve e como prometido, Chris deixou as chaves da casa de seu irmão na portaria do meu prédio, mas ainda hesito em seguir seu conselho.

Enquanto tomo um café preto e espio meu celular, cheio de recados da minha mãe.

“Você tem um ensaio fotográfico hoje à tarde, para uma matéria na Revista Vogue. Não esqueça. E uma reunião amanhã com a diretoria da De Santi. Eles querem você para uma campanha publicitária, enorme. Vai ser um patrocínio incrível. Você sabe de quem estou falando? Da marca de motos. E acho que deveria treinar mais horas hoje, seus giros não estão corretos e...”

Aperto para parar o áudio.

Sem pensar muito no que estou fazendo, coloco algumas roupas na mochila e pego as chaves da casa do irmão de Chris.

Apenas alguns dias, digo a mim mesma.

Porém, enquanto a tarde cai nas montanhas, sinto que ficar sozinha não está funcionando.

Observo a neve cair quando pego meus patins e jogo sobre os ombros, ainda sentindo a mesma angústia que me acompanhava há algum tempo, enquanto deixo meus pés avançarem pela neve, os flocos frios beijando meu rosto.

Se eu fosse sincera comigo mesma, poderia admitir que ela estava ali há anos, escondida do resto do mundo e até de mim mesma.

Eu não preciso ficar sozinha e longe da pressão de ser quem querem que eu seja apenas por um tempo.

Desejo ficar longe para sempre.

Não da patinação, que eu amo, concluo, quando chego perto do lago congelado e ponho meus patins, meus pés deslizando pelo gelo quase como se tivesse vontade própria. Mas queria que a patinação tivesse o mesmo gosto de quando eu patinava no lago congelado atrás de casa.

Como patino agora, apenas sentindo o vento nos meus cabelos, o frio cortar meu rosto e o barulho da lâmina sobre o gelo compondo a mais linda canção que aquece meu coração.

E não para a glória, dinheiro e fama.

Um dia, eu concordei com a minha mãe. Era tudo o que eu queria.

Ser a número um. A patinadora perfeita. Ganhar medalhas e aclamação.

Mas isso foi antes.

As lembranças ruins invadem minha mente antes que eu nem sequer tenha tempo de afastá-las. De repente, o grito que eu vinha tentando manter preso escapa da minha garganta num som dolorido que faz tudo se estilhaçar dentro de mim e romper em soluços doloridos que sacodem meu corpo.

Não sei o que é pior.

Se é isso ou o nada.

Ajoelho no gelo, deixando a dor fluir.

A neve se misturando as minhas lágrimas.

Sinto-me devastada.

Cansada de ser assim. Do que me transformou nisso.

Neste ser frio como o gelo.

Talvez eu devesse ficar ali. Para sempre.

Deixar a neve se fundir com o gelo do meu coração. Tornarmo-nos um só ser glacial.

Não sei quanto tempo passo ali, o frio tomando meu corpo e congelando minhas emoções, até que escuto, como se vindo de muito longe, uma voz.

Abro os olhos. A neve está mais forte agora quando a figura se aproxima. Ele veste um casaco com capuz que mal dá pra ver seu rosto.

Acho que seus lábios se movem.

Ele está gritando comigo?

Não consigo ouvir.

Não consigo me mexer, me dou conta.

Congelei.

De repente, a figura está mais próxima, mãos estão me tocando. Puxando-me.

Meu cérebro acorda parcialmente.

Não.

Não toque em mim.

Não suporto que toque em mim. Dói.

Talvez eu tenha me debatido, mas os braços agora estão me prendendo com força, e me vejo sendo erguida, a neve ficando para trás, quando sou carregada através dos flocos caindo.

E sem forças, me deixo levar, me aconchegando ao calor que vem do homem que me carrega através dos pinheiros. Meu cérebro ainda está lutando, em pânico, mas meu corpo não tem força para reagir.

Fecho os olhos e deixo de lutar.

Quando abro os olhos de novo, estamos em um quarto. E minhas roupas estão sendo tiradas do meu corpo.

Eu me debato fracamente, com medo.

Não.

Não tire minha roupa, por favor...

— Ei, eu preciso livrar você da roupa molhada.

Escuto a voz rouca e profunda.

— Não... — Começo a chorar, porque percebo que não consigo me mover.

Estou à mercê dele.

Não. Não. Não.

Começo a tremer. Meus dentes batem um no outro.

Parte das minhas roupas desaparece.

Minha pele formiga.

O homem se afasta e quase respiro aliviada, mas ele volta.

Uma coberta pesada é posta em cima de mim. Eu continuo a tremer.

Nunca senti tanto frio na minha vida e de repente meu corpo começa a reagir, a lutar pela vida.

— Estou congelando...

Escuto minha própria voz trêmula balbuciar.

E percebo que estou pedindo socorro.

O homem está me carregando de novo e me vejo sentada em uma poltrona em frente à lareira no colo do homem.

Sei que em algum lugar do meu cérebro está cogitando a inadequação daquela situação.

Enquanto outra está em total estado de horror.

Mas também há outra parte, a que se aconchega ao calor do seu peito desnudo e morno, buscando calor.

Escuto o som do seu coração retumbando em meu ouvido, o cheiro de pinheiro e neve. Seus braços me apertam forte e eu deixo.

Aprecio as mãos deslizando por minhas costas, protetoras, levando o frio embora.

E trazendo o calor.

Fecho os olhos, suspirando quando o tremor vai se acalmando.

Meu próprio coração, que estava congelado, começa a derreter.

E deslizo para o sono.


Capítulo 2

Acordo desorientada e me espreguiço naquele instante cheio de névoa entre o acordar e o despertar total, onde a consciência ainda está confusa. Pouco a pouco, começo a emergir e perceber a realidade à minha volta. Estou muito confortável embaixo do que acredito ser o edredom mais macio que já vi na vida. Aqui é quente e aconchegante e não contenho um gemido de satisfação me virando e aspirando o cheiro bom do travesseiro. Não consigo definir o que é, mas é gostoso e bem-vindo. E definitivamente não é meu travesseiro. Este pensamento me faz despertar totalmente, e me viro de barriga para cima, ainda confusa, e abro os olhos, piscando algumas vezes até focalizar o teto alto de madeira que nunca vi. Sento-me e meu olhar varre o ambiente estranho e se arregala ao vislumbrar a paisagem deslumbrante através de grandes janelas de vidro que tomam toda a parede em frente à cama. Pinheiros, neve e as montanhas ao fundo. É de tirar o fôlego. Viro a cabeça e o quarto tem detalhes de madeira por toda parte com troncos que acredito serem de verdade fazendo as vezes de colunas, sobre a janela, sobre a cama e as paredes cinzas. Mas é quando avisto a poltrona de couro marrom em frente à lareira que meu cérebro clareia.

Recordo-me de mim mesma deslizando sobre o lago, com pensamentos ruins enchendo minha cabeça de angústia. Depois a neve sobre meu corpo. E a sensação entorpecente bem-vinda.

Então, o homem estranho com capuz se aproximou e me tirou de lá.

Minha nossa, aquilo aconteceu mesmo ou delirei?

Toco meu próprio peito, amedrontada e confusa, enquanto me lembro de como cheguei ali. Da sensação de frio supremo e de como o homem havia me aconchegado em frente à lareira até que o calor voltasse ao meu corpo. E eu estava tão desesperada por calor, que deixei que ele tirasse minha roupa, recordo-me agora, abaixando o olhar para constatar que estou vestindo apenas calcinha e sutiã. Levo a mão à boca, ainda meio em choque e vários pensamentos passam por minha mente como uma avalanche.

Em sã consciência, eu jamais teria deixado aquele homem pôr as mãos em mim, muito menos me carregar como um fardo de lenha congelado para sua cama, deduzindo que estou na cama dele, claro, e muito menos que tirasse quase todas as minhas roupas e ainda por cima — estremeço de horror — me abraçasse junto ao seu corpo. Também desnudo, evoco agora, chocada.

Porém, não só permiti como apreciei. Ainda mais: ansiei por aquele calor como se daquilo dependesse minha vida.

E dependia mesmo. Eu teria morrido de hipotermia se aquele homem não tivesse me achado.

Me salvado.

E onde ele estará agora, ou melhor, onde estou?

Jogo as cobertas para o lado e me levanto. Minhas roupas não estão em lugar algum, mas noto uma camiseta em cima de uma cadeira e a visto. O chão é quentinho, provavelmente tem aquecimento, assim como toda a casa. Então, arrisco a sair do quarto, sentindo certo receio por toda aquela situação atípica.

Um instinto de proteção grita que eu tenho que achar minhas roupas e dar o fora dali o mais rápido possível. Embora não faça ideia de onde esteja, não deve ser longe do lago e longe da casa do irmão de Chris.

Só que também estou cheia de curiosidade. Quem é aquele cara?

“Vai querer mesmo ficar e se arriscar a descobrir? Corra!”.

De novo, uma voz amedrontada sussurra dentro de mim. Porém, minha razão diz que se aquele cara quisesse fazer algum mal pra mim, ele já teria feito quando eu não tinha a menor condição de impedir.

“Talvez ele estivesse esperando você descongelar, assim como o peru de Natal e te devorar no jantar.”

Solto uma risada nervosa agora, cogitando se devo correr e fugir. Só que está nevando forte lá fora e nem sei onde diabos estão minhas roupas.

Certo. Primeiro, achar minhas roupas. E também achar o homem e agradecer por sua ajuda e dar o fora dali. Com neve ou sem neve, decido. Não querendo admitir que no fundo, estou mesmo morrendo de curiosidade de saber mais daquele cara.

Eu só não sei por quê.

Não tenho este tipo de interesse em ninguém desde que tinha 17 anos. Então, talvez por isso, sinta certa empolgação por aquela sensação de curiosidade.

Percorro um curto corredor e me deparo com um conceito aberto com uma sala, cozinha e sala de jantar. Ali também é cheio de troncos de madeira, dando uma impressão rústica e luxuosa ao mesmo tempo. Avanço, ainda meio confusa em direção às grandes janelas da sala e abro uma porta e estou em um deque fechado. Há vidro por todo lado e mais à frente, envolta em vapor, noto uma hidromassagem. Ou um ofurô, não sei bem ao certo. Mas há água e vapor.

E um homem emergindo dela de costas.

Nu.

Puta. Que. Pariu.

Permaneço paralisada, em choque, uma parte do meu cérebro ordenando as minhas pernas que deem meia-volta. Fuja.

Mas aquela outra parte curiosa. Nova. Está sussurrando para que eu fique, mesmo sem saber o porquê.

Acredito que tudo dure apenas alguns segundos, enquanto a parte curiosa vence e fico ali, observando o homem que sai da banheira através da névoa de vapor, despido e molhado.

Então ele se vira e me vê.

Por um instante, seus olhos estão chocados, como se tivesse esquecido da minha presença — ou somente não esperava me ver ali, na verdade.

Mas ele não se move e percebo que não estou respirando enquanto o analiso. Cabelos escuros, barba por fazer em um rosto másculo que aparenta já ter passado dos trinta. Ele é bonito, admiro, talvez não de um jeito convencional, mas tem uma beleza rústica. E num misto de medo e audácia, não consigo evitar meus olhos deslizarem pelo corpo molhado.

Em todos aqueles anos, o corpo masculino não me despertou nenhuma curiosidade ou interesse. Muito pelo contrário.

Porém, me pego admirando o corpo moreno. Tatuagens percorrem parte dos braços e há alguns outros desenhos espalhados pela pele com uma penugem de pelos que cobre o peito e desce pela barriga de tanquinho e mais abaixo.

Oh droga, levanto o olhar rápido, corando como uma menina de 14 anos ao ver um cara despido pela primeira vez.

E foi realmente a idade que vi um cara nu pela primeira vez.

Eu me recordo de como fiquei curiosa, e interessada em espiar Dimitri no vestiário, e de como desenvolvi uma paixonite por ele desde então. Ele foi o primeiro cara que me fez sentir desejo, algo tão abstrato até aquele momento. Eu o seguia, curiosa e inquieta, e ao mesmo tempo que queria esconder aquela excitação também desejava que ele me notasse.

Com o tempo, aquele entusiasmo foi diminuindo, mesmo porque Dimitri não era qualquer cara, e sim o meu parceiro. E eu achava que minha mãe me mataria se deixasse que ele colocasse a mão em mim sem ser para patinar.

Bem, eu tinha me enganado com o senso de proteção da minha mãe, porque quando eu precisei, ele não existiu, penso com aquela velha dor no peito sombreando meus sentidos, o que faz eu voltar ao presente.

Sim, definitivamente, Dimitri não tinha nada a ver com este cara na minha frente.

Quando peguei Dimitri pelado no vestiário, ele tinha 16 anos, e, embora fosse bonito, ainda era um menino.

Este cara na minha frente é um homem. Um homem muito atraente, devo admitir.

Um homem que, percebo agora, está me estudando com a mesma curiosidade com que eu o estudei.

Essa constatação causa sentimentos conflitantes. O velho temor que me faz repelir qualquer tipo de olhar de interesse surge de imediato. Porém, junto à ideia de fuga ainda há aquela curiosidade nova que está espiando por uma fresta que eu julgava cimentada dentro de mim.

— Vejo que ainda está viva.

Escuto a voz do homem pela primeira vez e estremeço, voltando à realidade.

Droga.

Enrubesço, dando-me conta da situação insólita.

Que diabos ainda estou fazendo ali, examinando um homem estranho pelado?

Dou um passo atrás, horrorizada comigo mesma.

— Oh, me desculpe, eu... — balbucio, saindo quase correndo da varanda e voltando ao quarto. Sento-me na cama, levando a mão ao peito.

Meu coração está disparado.

Estou com vergonha.

Estou surpresa comigo mesma, por meu comportamento até ali.

Estou perturbada por ter um pequeno pensamento dentro de mim que está tomando força sem que eu consiga evitar.

Eu não estou correndo.

Sim, meu coração está disparado, mas é de constrangimento, não é repulsa.

Não consigo evitar uma sensação que se parece com alívio.

É perturbador e inebriante ao mesmo tempo.

Quando escuto passos se aproximando, me levanto rápido, sem saber o que fazer.

O mesmo homem surge, agora vestindo um roupão.

— Me desculpe se te assustei — ele diz e reparo que sua voz é rouca e áspera.

Não há calor em seu timbre. Apenas certa frieza que me desconcerta.

— Eu que tenho que pedir desculpa — consigo dizer. — Na verdade, acho que primeiro tenho que agradecê-lo por ter...

— Evitado que morresse congelada?

Agora há rispidez em sua voz.

— O que diabos estava pensando?

Enrubesço de novo, como uma menina pega fazendo uma malcriação e sendo repreendida pelo pai.

Só que aquele cara não é meu pai, ele deve ser uns dez anos mais velho do que eu, ou mais, mas não acredito que tenha idade para ser meu pai.

— Eu estava apenas patinando no lago... — Eu me recordo de toda angústia que me fez ficar lá, prostrada, mas jogo para o fundo da mente.

Eu nem sei quem é aquele cara, não preciso lhe dar explicação.

— Imprudente — ele praticamente rosna. — Poderia ter morrido.

— Mas não morri — rebato com certa impaciência.

Quem diabos aquele cara pensa que é para falar daquele jeito comigo? Começo a me irritar.

— Não, não morreu. — Ele passa por mim e abre um closet do outro lado da cama.

Caramba, ele não vai se trocar na minha frente, né?

— Se me disser onde estão minhas roupas, eu preciso ir embora. — Abaixo o olhar para mim mesma usando apenas aquela camiseta que deve ser dele e me sinto muito inapropriada.

— Suas roupas ainda estão úmidas, mas pode vestir isso. — Ele se vira e joga algumas peças em cima da cama. — E não vai conseguir ir a lugar nenhum agora, está caindo uma nevasca.

— Oh... Mas a casa onde estou hospedada deve ser perto.

— Escuta aqui, moça...

— Kiara — eu o corrijo. — Meu nome é Kiara.

Espero que diga o seu nome, mas ele não diz quando continua.

— Não quero ter que resgatá-la de novo na neve.

— Eu não acho que vá precisar...

— Se pretende ser imprudente, escolha outro dia. Não vou permitir que se arrisque lá fora novamente.

Desta vez levanto a sobrancelha, irritada com o tom autoritário dele.

— Não pode me impedir se eu quiser sair.

— Não, não posso. Mas espero que seja um pouco mais responsável com a própria segurança. E a minha. Se você sair, me verei obrigado a acompanhá-la para que não se machuque.

— Eu agradeço por ser tão... — Prepotente, quero dizer, mas me controlo — protetor, mas certamente, eu posso muito bem caminhar, com todo cuidado, até a casa de Trevor.

— Oh, seu namorado está esperando?

Detecto curiosidade em sua pergunta, ou é impressão minha.

— Não, estou sozinha. — Não respondo se tenho namorado ou não. Não é da conta dele.

— Mais um motivo para permanecer aqui até que a nevasca acabe.

— Mas já vai anoitecer. — Espio lá fora e o crepúsculo já está caindo.

— Talvez passar a noite aqui — diz tranquilamente pegando algumas roupas ao sair do quarto.

O quê?

Não!

Respiro fundo e me aproximo da cama. Pego as roupas que ele me ofertou.

É um pijama masculino de flanela xadrez, que vai ficar enorme em mim, mas é melhor que continuar desfilando só de camiseta.

Então, eu me visto e dobro a manga e a barra da calça. Avisto a porta entreaberta de um banheiro e vou até lá. Estudo minha imagem no espelho. Meu rosto está pálido e há olheiras embaixo dos meus olhos acinzentados. Meus cabelos naturalmente ondulados estão parecendo um ninho de passarinho e passo os dedos entre eles para parecer menos tenebrosos.

Quando saio do banheiro noto que a noite já caiu por completo e lá fora está tudo tomado pela neve.

O estranho tem razão, não posso sair daquele jeito, mas passar a noite ali?

Meus olhos se arrastam até a cama e me pergunto se o estranho deitou ali comigo depois de ficarmos em frente à lareira.

E me surpreendo por não sentir a repulsa que deveria sentir.

Isso me perturba.

Passo algum tempo no quarto, esperando que a neve pare de cair, mas isso não acontece e começo a temer que teria mesmo que passar a noite ali.

Caminho para fora do quarto, ainda um tanto constrangida e a sala está numa suave penumbra, o fogo arde na lareira e ao lado o homem está sentado numa poltrona escura. Em uma das mãos ele segura um livro, que lê compenetrado e em outra tem uma caneca, pela garrafa com líquido âmbar que está pousada na mesa ao lado desconfio do teor daquela caneca.

Desta vez, ele veste uma calça jeans, camisa branca e uma blusa de lã e está usando óculos de leitura de aro escuro.

— Olha, tem razão, vou ficar aqui até passar a nevasca e depois vou embora.

Ele levanta o olhar e por um momento tenho a impressão de que está com o pensamento muito longe. Em algum lugar ruim se levar em conta sua expressão.

— Você está aí.

Não entendo suas palavras.

— Você disse que eu devia ficar — respondo na defensiva.

Seus dedos passam pelos cabelos, agora secos e ele retira os óculos.

— Sim, e parece que vai ficar por um longo tempo... — Aponta para a outra poltrona ao seu lado.

Ainda meio constrangida, eu me sento.

— Quer beber?

— Não bebo nada alcoólico. — Há certa censura em minha voz.

— Se está preocupada de eu ser um alcoólatra inconveniente não fique. É apenas o bom e velho chocolate quente. Com conhaque.

— Ah... Talvez eu aceite.

Ele se levanta e, mordendo os lábios, eu me inclino e espio para ver qual é o livro que ele deixou na mesinha da poltrona.

On the Road.

— Conhece Jack Kerouac?

Ele retorna antes do esperado e eu largo o livro, vermelha.

— Não, não conheço.

Pego a caneca que me estendeu enquanto ele senta novamente.

Eu me viro para frente, levando a caneca à boca. Não tem conhaque.

— Você parece amedrontada.

Eu o encaro.

— Não deveria estar?

— É uma garota bonita sozinha em meio a uma nevasca com um homem estranho. Entendo que esteja.

Tento não me ater ao calor ridículo que cobriu minhas bochechas por ele se referir a mim como uma garota bonita.

Minha nossa, que diabos está acontecendo comigo?

Assopro o chocolate, apreensiva.

Eu devia mesmo estar com medo dele.

Mas estou com medo de mim.

— Não precisa ter medo. — Sua sentença sai de forma ríspida e talvez perceba que não combina com o que quer transparecer. — Está segura aqui — continua de forma mais suave, ou ao menos parece uma tentativa.

Tenho a impressão que aquele homem nunca foi suave em sua vida.

Ele é como um pedaço de lenha bem cortado, rústico e belo ao mesmo tempo.

— Talvez se me dissesse seu nome, eu ficaria mais tranquila.

Quando ele hesita, franzo a testa.

— Ou devo deduzir que é um fugitivo da polícia escondido aqui?

Nossa, será que ele é? Meu cérebro grita, o que é ridículo claro.

Não é?

Eu o estudo novamente, me recordando das tatuagens. Há algo perigoso nele, como se estivesse se esforçando para ser polido.

— Nick — responde por fim. — E não sou um fugitivo fora da lei.

Eu escondo o sorriso na caneca.

— Talvez você seja — completa.

Eu o encaro.

— Por que acha isso?

— Apenas especulando, Kiara... — ele diz meu nome devagar e um arrepio transpassa minha espinha.

Só porque ele disse meu nome?

Viro-me para frente de novo, assustada.

— Não sou uma fugitiva.

— Nada na sua ficha policial então?

— Nadinha. E na sua?

— Então é mesmo uma boa menina?

Não gosto muito quando ele me chama de menina. Fica parecendo que ele quer parecer muito mais maduro do que eu.

Ok, talvez ele seja.

Em resposta, dou de ombros, sem querer responder.

Eu posso ser considerada uma boa menina em muitos aspectos.

Mas lá no fundo, sou uma impostora.

Aquele cara não tem ideia do que eu fiz. Do que fui capaz.

Do que me traz pesadelos toda noite, e que, por mais que tente, não consigo esquecer. A culpa e o vazio que vão sempre existir.

Ninguém sabe.

— Mas aposto que deve ter uma ficha criminal. — Decido virar os holofotes para ele.

— Por que acha?

— Suas tatuagens.

Ele ri. Não é um riso bem-humorado.

Mas mesmo assim, o mesmo arrepio me surpreende de novo e agora ele vem acompanhado de um frio na barriga.

— Desculpa, foi algo ridículo de se dizer — eu me corrijo, me sentindo uma provinciana boba. — Hoje em dia todo mundo tem tatuagem.

— Você não tem.

— Eu tenho.

Ah merda. Por que fui abrir a boca?

Ele levanta a sobrancelha.

— Eu não vi.

Aí eu enrubesço porque me lembro que ele me viu de calcinha e sutiã.

Mordendo os lábios, eu me viro e coloco o cabelo de lado, mostrando o pequeno escrito na minha nuca.

E para minha surpresa, ele se inclina para olhar de perto.

Sinto seu hálito perto. Morno.

Então, o toque quase sutil do seu dedo.

Quase dou um pulo, me afastando, o coração disparado.

— Não põe a mão em mim!

— Me desculpe. — Ele volta ao lugar. — Apenas fiquei curioso.

Estou constrangida por ter agido daquele jeito.

— Tudo bem. Apenas não gosto que toquem em mim... sem permissão — corrijo para não parecer tão esquiva.

Ele parece intrigado.

— Eu toquei em você.

Certamente ele está falando de quando me tirou da neve e depois me despindo e me abraçando.

— Você pediu para não te tocar — parece se recordando agora —, mas se eu não te tocasse, congelaria e morreria.

— Eu sei, claro — digo rápido porque é verdade e não quero continuar com aquela conversa. — Esquece.

Ele fica me encarando e me pergunto o que se passa na sua mente.

Ele parece querer perguntar: por quê?

Mas eu morreria antes de contar.

— O que significa a tatuagem?

Ele me surpreende ao perguntar, mas eu não respondo.

— Acho que aceito um pouco do seu conhaque. — Estendo a minha caneca e ele levanta a sobrancelha, mas coloca um gole da bebida no meu copo.

Eu tomo e acho gostoso.

Ficamos em silêncio então enquanto observamos a neve cair lá fora.

Sinto-me como se estivesse em outra dimensão.

Ali, não sou a medalhista da patinação artística Kiara Willians. Não há glória ou cobranças.

Não há nada lá fora, além da neve que nos mantém longe do mundo real.

Será que é por isso que estou me sentindo daquele jeito? Uma estranha para mim mesma?

A patinadora Kiara Willians tinha o coração de gelo. Mas hoje, eu apenas sinto um calor morno no peito que desconfio que não tenha muito a ver com as brasas da lareira ou do aquecedor que mantém o frio lá fora.

Sem querer, acabo cochilando, pois acordo com uma coberta sobre meu colo e um cheiro de tomate e manjericão rescende o ambiente.

— Com fome?

A voz de Nick vem da cozinha e eu me levanto, me espreguiçando.

Acho que nunca dormi tão fácil em toda minha vida, penso enquanto avanço até a grande ilha que separa os ambientes.

— Não achei que estivesse, mas o cheiro é bom.

— Sente-se. — Aponta para uma banqueta e coloca um prato de talharim na minha frente. E uma taça de vinho, que sei que não devo tomar, mas não recuso.

Só uns golinhos não vão fazer mal nenhum.

Nossa, há quanto tempo que não como massa? Nádia e minha mãe me chicoteariam se me vissem enrolando o macarrão no garfo e levando à boca com gosto.

Só hoje, digo a mim mesma.

Aqui, no mundo paralelo, posso esquecer minhas obrigações e aparentemente estou esquecendo minhas encanações também, concluo ao observar Nick, sentado à minha frente. Ele não está usando mais os óculos e a cozinha está mais iluminada e noto que seus olhos são de um castanho-claro lindo. Como um felino.

De repente ele levanta o olhar e me pega o encarando.

— Minha boca está suja?

Eu enfio a cara no prato, sem graça.

— Nem perguntei se come massa, mas parece que sim — comenta quando devoro todo o macarrão.

— Não lembro quando comi massa pela última vez — confesso.

— Por que não come?

Hesito em dizer o motivo. Não quero que ele saiba quem eu sou.

Não ainda.

Ou talvez ele nunca saiba, provavelmente em breve eu sairei daquele refúgio e nunca mais o verei novamente.

Este pensamento me enche de desolação que não estou preparada pra sentir. É ridículo.

Talvez não seja por ele, afinal, eu mal o conheço.

Mas por mim, pelo que estou sentindo, embora ainda não queira nomear o sentimento.

— Você mora aqui? — Evito responder sua pergunta.

— Não. — Nick não parece disposto a falar de si, enquanto eu estou muito curiosa sobre ele.

— É uma casa bonita. — “E tem cara de ser muito cara”, penso, mas mantenho o pensamento pra mim.

Nick também não responde se aquela casa é dele ou não. Talvez esteja ali como eu estava na casa de Trevor, como um empréstimo.

— Posso... Posso perguntar o que você faz pra viver? — arrisco.

— Eu lido com motos.

Só isso, bem vago.

O que quis dizer? Que é um mecânico?

Vendedor de motos?

Corredor de motos? Ou mesmo um membro de uma gangue como aquele seriado?

Eu me pergunto se ele não está curioso sobre mim, aparentemente não, concluo com certo desapontamento.

Pego a taça de vinho e tomo um gole, meu olhar vagando pela cozinha e encontrando meus patins jogados num canto com minhas botas de neve.

Será que ele sabe quem eu sou? Aqui no Canadá as pessoas adoram patinação e eu definitivamente sou a queridinha do momento, sempre nas redes sociais, em peças publicitárias e até programas de TV. Mas Nick não parece o tipo de cara que liga pra essas coisas.

De repente ele levanta a cabeça e seu olhar captura o meu.

Perco o ar com toda a intensidade que emana da íris castanha e uma lufada de calor atravessa minha pele, chega a meu sangue, que pulsa mais rápido, meu coração batendo de um jeito desconhecido até então, enquanto aquele calor envolve meu íntimo, pesa em meu estômago, aperta meu ventre e explode entre minhas pernas de forma inesperada e chocante.

“Estou atraída por este cara.”

Finalmente confesso a mim mesma, dando nome ao que estou sentindo.

É assombroso.

É fascinante.

E tão “não eu” que me deixa tonta.

Nick se levanta de repente.

— Fique à vontade.

Ele não diz aonde vai, mas noto que se fecha em uma sala que parece um escritório.

Eu me levanto e pego os pratos, levando-os à pia e os lavando. É o mínimo que posso fazer já que ele me fez um jantar.

Depois, eu volto a me sentar e apanho o livro que ele largou ali e o abro, começando a ler.

É uma leitura interessante, sobre amigos que caem na estrada na geração pós Segunda Guerra.

E não sei quanto tempo estou lendo quando a luz se apaga de repente.

Assustada, fecho o livro, sem saber o que fazer.

— Kiara?

Escuto a voz de Nick e me viro, ele está se aproximando segurando o celular.

— O que aconteceu?

— Algo aconteceu com a luz.

Ele senta ao meu lado e digita rápido e então suspira.

— Parece que é algum problema com todas as casas, possivelmente por causa da nevasca.

Estremeço, preocupada.

— Bem, melhor irmos dormir. — Ele se levanta e eu fico no mesmo lugar.

— Você tem um quarto de hóspedes? — balbucio, incerta.

— Só há lareira no meu quarto. A casa estará gelada em pouco tempo se a eletricidade não voltar.

Hesito, incerta. O velho medo me domina, esmagando a recém-descoberta atração.

Nick estende a mão.

— Vamos apenas dormir, Kiara. Só não quero que congele de novo. — Há certa impaciência em sua voz.

Mas alguma coisa em seu olhar me fez pegar sua mão e me deixar guiar para o quarto escuro, onde somente as chamas da lareira crepitam quebrando o silêncio.

Nunca dividi a cama com um homem e estou prestes a fazer com um estranho.


Capítulo 3

Quando chegamos ao quarto, corro até o banheiro e lavo meu rosto e tento escovar meus dentes com os dedos. Minhas bochechas estão coradas e meu coração disparado. Sinto um misto de expectativa e receio na boca do estômago quando volto ao quarto.

Quando meus olhos rastejam até a cama, e observo Nick afastar as cobertas, agora usando só uma calça de pijama, dou um passo atrás, minha coragem vacilando.

— Não posso fazer isso.

Ele me encara e não consigo ler sua expressão.

— Nem te conheço, não vou... — Minha voz se alquebra e pisco notando que estou prestes a chorar e me sinto ridícula. — Deve me achar uma idiota. — Suspiro.

Ele larga as cobertas.

— Não está sendo idiota. Eu vou ficar na poltrona. Você fica com a cama.

— Não, não faça isso por mim. A casa é sua e eu sou a intrusa. Fique com a cama. — Antes que ele possa insistir, já avanço até a poltrona e pego a coberta que ainda está lá e me sento. — Eu fico com a poltrona.

Não consigo ver Nick daquela posição, mas ele não se mexe por alguns instantes.

— Pode ser desconfortável passar a noite aí, mas fique à vontade para fazer o que te deixa segura, Kiara — diz por fim.

Não há entonação em sua voz. Talvez certo cansaço. Mas respiro aliviada quando escuto o colchão se mover denunciando que ele se deitou e me forço a respirar normalmente.

Enxugo as lágrimas que escaparam dos meus olhos e cerro as pálpebras, tentando ignorar que há um homem deitado em uma cama há alguns passos de mim.

E quando estou quase deslizando para o sono, ainda escuto.

— Será bem-vinda aqui.

Acordo confusa e gelada.

Vasculho em volta do quarto escuro, sem saber onde estou por alguns segundos até que minha mente clareia.

Estou na casa de Nick.

O cara misterioso que me tirou da neve.

E a lareira agora está apagada, por isso está tão frio. A eletricidade ainda não voltou.

E Nick tem razão, é mesmo desconfortável dormir ali, admito, mexendo meu pescoço dolorido e tremendo gelada.

Eu me viro e espio a cama. Nick está debaixo das cobertas, de costas para mim.

— Nick? — chamo baixinho, mas ele não responde. Está adormecido.

Hesito por alguns instantes, mas o frio é maior e então me levanto e caminho até a cama, quase na ponta dos pés.

Meu coração disparado quando seguro a ponta do cobertor e mergulho embaixo dele com o mesmo receio de uma criança entrando pela primeira vez no mar. Quase nem respiro quando deito a cabeça no travesseiro, os dedos segurando o tecido com força, o corpo tenso, duro como uma taboa, que ainda treme de frio, assim como meus dentes.

Arrisco olhar para o lado e Nick não se mexeu. Ainda meio receosa eu me viro, observando suas costas e sem pensar muito no que estou fazendo, me aconchego mais perto, o calor que irradia do seu corpo atraindo o meu, até que esteja grudada nele.

Suspirando, me rendo, assim como naquela tarde, deixo que o calor de sua pele abrace o gelo da minha com um bem-vindo choque térmico que arrepia os pelos do meu corpo, mas de forma boa.

E pouco a pouco, o frio vai dando lugar à calidez e fecho os olhos, relaxando como se estivesse em contato com o próprio sol. Quando percebo que a respiração de Nick mudou, denunciando que ele acordou e constrangida, faço um movimento para me afastar, sou surpreendida quando sua mão surge puxando a minha, para que eu continue perto, e me vejo agora abraçada a seu corpo, com a mão dele sobre minha, em sua barriga.

Meu coração voltou a disparar, num misto de medo e expectativa.

— Está tudo bem. Apenas se aqueça. — A voz de Nick está rouca de sono e eu nem ouso me mexer, meio em choque.

Meio apreciando estar ali, grudada em sua pele morna, com minha mão presa na dele, com a palma na sua barriga.

Uma parte da minha consciência murmura confusa que não é nada adequado estar ali, mas há outra parte, talvez mais ligada ao instinto, que está gostando mais do que deveria.

Relaxo o corpo, assim como meu coração que vai se acalmando e batendo devagar. A sonolência aquieta meus pensamentos. E deslizo para uma bem-vinda inconsciência.

Quando acordo novamente, a claridade do dia cinza atravessa o quarto e abro os olhos para constatar que ainda estou grudada em Nick, só que agora estou com a cabeça deitada em seu peito.

Caramba, como aquilo aconteceu?

Eu nem ouso me mexer, escutando seu coração batendo num ritmo compassado embaixo do meu ouvido.

Os braços dele estão à minha volta, me mantendo perto.

Nossas pernas estão entrelaçadas e nossos quadris encaixados.

Minha nossa.

De novo sou acometida por sentimentos conflitantes.

Algo em mim quer se afastar, rejeitando aquela intimidade forçada.

Mas também há uma vontade de ficar ali, confortavelmente aninhada ao homem que ainda é um estranho.

Mas um estranho que me salvou de morrer congelada na neve. Que me aqueceu, duas vezes, e que em nenhum momento se aproveitou disso.

E me surpreendo com o sentimento de segurança que percebo que acalma meu coração.

E então, meus sentidos se atêm em outros detalhes.

Aspiro o cheiro bom que irradia dele. Não sei o que é, mas é gostoso e bem-vindo. Talvez algum perfume masculino que nunca senti antes.

Levanto a cabeça devagar e descanso o olhar em seu rosto adormecido. Corajosa, ergo a mão e toco a barba e como ele nem se mexeu, prossigo com minha inspeção. Deslizo os dedos pelo peito com uma penugem suave sob os músculos bem-feitos.

Ele tem a pele bronzeada de quem passa bastante tempo ao sol e há pequenas coisas escritas numa tatuagem em sua costela. Sem me conter eu me inclino para ler e me surpreendo que está escrito em francês. Reconheço a frase.

Porque é a mesma que tem na minha nuca.

Plus que ma propre vie.

Mais que a própria vida.

Só que a minha tem uma data embaixo e a dele tem um monograma.

Com a letra N e C entrelaçados.

N de Nick? E C de quem?

Antes que consiga prosseguir, uma mão surge debaixo da coberta e segura meu pulso.

Levanto a cabeça, assustada, para me deparar com Nick de olhos abertos olhando pra mim.

Nem um de nós diz nada, e sustento seu olhar sonolento e confuso. E por um momento tenho a impressão de que ele não sabe quem eu sou.

Bem, ele não sabe mesmo.

E nem eu sei quem ele é.

Mesmo assim, permaneço ali, presa a ele.

De repente, algo muda. De forma sutil e quase imperceptível. Mas eu sinto.

Sinto na boca do meu estômago.

No arrepio que percorre minha espinha.

No ar a minha volta que se torna rarefeito, dificultando minha respiração e me deixando fraca.

No calor que irradia do toque dos dedos dele em meu pulso e que se espalha como brasa em minha pele, causando um alvoroço dentro de mim.

E de súbito, estou muito consciente do meu corpo.

Do corpo dele embaixo do meu.

Das nossas pélvis em contato.

E do calor que se concentra exatamente ali, onde começo a pulsar e desejar e sem nem mesmo pensar no que estou fazendo, me movo para mais perto e no instante seguinte, o aperto no meu pulso se torna firme e outra mão desce para meu quadril, me segurando.

— Não faça isso — ele me repreende e eu me arrepio com o tom rouco de sua voz.

Que acaricia meus ouvidos.

E percebo que ele está começando a ficar excitado embaixo de mim.

Por um momento suspenso no tempo, luto entre o instinto de me afastar e outro mais primitivo de me apertar mais contra sua ereção.

Porém, um barulho de carro estacionando seguido de uma buzina quebra seja lá o que estava rolando entre nós e Nick me solta, me afastando e saindo da cama.

Ele vai até a janela e espia lá fora.

Eu fico ali, sentada, mordendo os lábios e tentando entender o que diabos tinha acontecido.

Aliviada que não tenha prosseguido.

Lamentando que tenha acabado.

Quão paradoxal é isso?

Devia estar enlouquecendo.

Ele se vira pra mim, e sua expressão é tão fria como o gelo lá fora.

— Vista-se. Precisa ir embora.

E sem mais, ele sai do quarto.

O quê?

Atordoada, saio da cama, e reparo que a eletricidade voltou em algum momento. O fogo está crepitando na lareira e minhas roupas estão cuidadosamente dobradas em uma cadeira.

Nick havia se levantado em algum momento antes de mim, concluo.

E mesmo assim, ele me deixou na mesma cama que ele.

Por quê?

De repente, escuto vozes.

Droga, tem gente ali e ruborizo ao pensar em ser pega em flagrante.

Flagrante do quê? Eu nem faço ideia de quem está na casa, mas apresso-me em me vestir. Entro no banheiro, lavo o rosto e a boca rápido, ajeitando o cabelo de qualquer jeito e saio do quarto, querendo pegar meus patins e vestir minhas botas para dar o fora dali.

Quando chego à sala, olho pela janela e Nick está em frente a um carro conversando com uma mulher loira elegante que aparenta ter a mesma idade que ele.

A mulher se vira e dou um passo atrás, não querendo ser vista.

Quem é ela?

A namorada dele, talvez? Uma voz sussurra desconfiada dentro de mim.

Será?

O que eu sei sobre aquele cara? Nada.

Suas palavras quando avistou o carro e a mulher voltam até mim.

“Você precisa ir embora.”

Meu estômago vai ao chão e eu me sinto uma idiota.

Corro para a cozinha e apanho minhas botas as calçando, mas quando procuro meus patins não os encontro.

Percorro a sala e chego até o cômodo que Nick entrou ontem.

É uma biblioteca e tem uma escrivaninha de mogno escuro em um canto e meu olhar é atraído para os porta-retratos em cima dela.

Eu me aproximo e observo que no primeiro tem um casal de idosos. O homem parece uma versão mais velha de Nick.

Seus pais?

Mas é o próximo porta-retratos que me surpreende.

Um Nick bem mais novo está abraçado a uma mulher loira jovem. Ela está vestida de noiva. É a foto de um casamento. O casamento de Nick.

E quando pego o porta-retratos, perco o fôlego por ver que a mulher é aquela lá fora, conversando com ele.

A esposa dele.

Com a mão trêmula, coloco no lugar, mas uma curiosidade mórbida me faz ir em frente e me sentir ainda pior pela próxima foto.

A versão bem mais jovem da mulher está sorrindo para a câmera com uma proeminente barriga de grávida.

E na próxima, Nick segura um bebê.

— Estes patins são seus?

Eu me viro ao ouvir a voz infantil e o retrato cai da minha mão.

Uma menina está olhando pra mim, segurando meus patins.

Ela está com os cabelos escondidos em uma touca e veste um grande casaco de inverno branco.

Minha nossa. Aquela deve ser filha do Nick?

Nick não só era casado como tinha uma filhinha?

“Mas por que está espantada? Você não sabia nada dele. Nick apenas foi cordial com você. Convidou-a para sua cama apenas porque estava frio. Você que foi uma boba por se sentir atraída por um cara por quem não sabia nada.”

Minha consciência está me esmurrando agora e me sinto uma idiota.

— O gato comeu sua língua? — A menina sorri.

— É, sim, são meus. — Estendo as mãos e os apanho das pequenas mãos, mais do que nunca querendo sumir dali.

— Quem é você? — a menina indaga curiosa.

— Eu não sou ninguém — respondo dando meia-volta e saindo do cômodo, avisto uma porta da cozinha que dá para os fundos da casa e estou quase a alcançando quando escuto passos atrás de mim.

— Olá.

Merda.

Eu me viro e a mulher de Nick está me encarando.


Capítulo 4

A mulher tem um olhar frio como gelo que beira a repulsa.

Ela sabe?

“Sabe o quê? Não tem nada pra saber!", me defendo mentalmente.

Se bem que, qual esposa ficaria feliz em saber que uma desconhecida dividiu a cama com seu marido? Mesmo inocentemente?

Bem, não tão inocente assim, eu me recordo do que aconteceu ao acordarmos, e o pensamento me faz corar e querer me enfiar no buraco mais fundo do mundo e nunca mais sair.

— Meu nome é Cláudia — ela diz.

Cláudia.

Como o monograma. N & C.

— Nick me contou o que aconteceu. Ele é mesmo um bom samaritano, não? — Sua voz está cheia de ironia e ela me mede com censura.

— Desculpe, eu preciso ir... — E me viro abrindo a porta e saindo para o dia claro.

Quase corro pela neve que agora derrete, me distanciando de Nick e de sua família. E respiro aliviada quando avisto a casa de Trevor. Ela fica a uns cinco minutos da casa de Nick.

Talvez eu até pudesse ter arriscado ir andando até ali, mesmo com a nevasca. E aí nada do que aconteceu naquela última noite teria acontecido.

Seria melhor?

Entro na casa e a primeira coisa que vejo é meu celular esquecido sobre a bancada da cozinha, com um monte de mensagens de texto e de voz da minha mãe.

Claro que ela está desesperada atrás de mim. Eu nem me dei ao trabalho de avisar que estava saindo da cidade, justamente para que ela não me impedisse. Também há mensagens de Christian. Começo com as dele, perguntando se cheguei bem e depois de algumas horas dizendo que minha mãe o está perturbando querendo saber onde estou. Ele ainda tentou ligar algumas vezes e na última mensagem demonstrou preocupação por eu não responder.

Decido ligar primeiro para ele.

— Oi, estou viva — digo assim que ele atende.

Escuto sua risada do outro lado da linha.

— Imagino que tenha desligado o celular para não atender a louca da Maude?

— Não, isso sempre me passa pela cabeça, mas já entendi que é melhor atender Maude, porque as consequências de ignorá-la são bem piores.

— Ela está atrás de você, já me ligou várias vezes. Tive que dizer que você saiu da cidade, que tirou uns dias de folga, mas que não sabia onde estaria.

— E ela aceitou isso?

— Claro que não. E ainda te chamou de irresponsável porque tem uma certa reunião em uma tal De Santi.

Fecho os olhos soltando um palavrão.

— É, acho que ela comentou alguma coisa sobre um patrocínio, publicidade, ou sei lá.

— Olha, melhor ligar pra ela. Porque já estou temendo que venha até aqui usando uma arma para me ameaçar.

— Tudo bem, me desculpe por isso.

— Mas se sabe que não pode ignorá-la, por que não atendeu?

Solto um suspiro profundo, decidindo o que vou contar a Christian.

— Olha, longa história.

— Opa, o que rolou? Você está bem?

— Agora estou.

— Como assim? O que aconteceu?

— Eu te conto hoje à noite, pode ser?

— Hoje?

— Sim, eu vou voltar. Não está adiantando ficar aqui.

“E quero esquecer que Nick e sua família de comercial de margarina estão há cinco minutos de distância, Deus me livre cruzar com ele de novo nessa vida.”

— Tá certo então. Festa do pijama?

Não consigo conter um sorriso.

— Combinado.

Assim que desligo, o celular toca e eu nem preciso olhar para saber quem é.

— Onde diabos se meteu?

— Estou em Whistler.

— Fazendo o que aí?

— Precisava tirar uns dias de descanso...

— Descanso? Você tem muitos compromissos, onde está a sua responsabilidade?

— São só alguns dias, mãe...

— Não pode simplesmente sumir e não dizer onde está, Kiara! Estou atrás de você desde ontem.

Respiro fundo, para não me estressar. Não vai adiantar brigar com Maude, porque ela sempre vence.

— Eu não sumi. Estou na casa do irmão do Chris em Whistler...

— Ele está com você? Aquele garoto podia ter me dito que...

— Ele não está comigo, estou sozinha.

— Não estou entendendo porque viajou sozinha para Whistler, tendo tantos compromissos...

— Precisava espairecer.

— Espairecer do quê? Está de brincadeira? Há pouco tempo das Olimpíadas, você começa com essas palhaçadas, Kiara?

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra...

— Tem tudo a ver! Você é a número um e vai continuar assim, pelo menos se depender de mim, porque se depender de você...

— Mãe, para, sério.

— Você tem que ouvir!

— Talvez por você não me deixar em paz que eu precisava sumir! — estouro.

— Não te deixar em paz? Eu cuido da sua carreira e faço tudo para que brilhe! Você é a melhor! Nas pistas de gelo e fora delas. Tem patrocínios que permitem que possa apenas treinar e se dedicar e não tem que trabalhar para pagar o próprio traje, como muitas atletas! Então para de reclamar e de ser ingrata! Me acha chata? Pois deve tudo a mim! Quando foi que tomei decisões erradas, Kiara?

— Quer mesmo que eu diga?

Eu me arrependo do que disse assim que as palavras saem da minha boca.

— Está sendo injusta.

— Certo, desculpa. Só estou nervosa e sob muita pressão.

— A pressão faz bem pra crescer. Você tem que se dedicar agora. Tem apenas mais alguns anos como patinadora competitiva. Não pode desperdiçar seus melhores anos com distrações!

Quantas vezes eu escutei aquela mesma frase?

Quando tinha 13 anos e queria ir a uma festinha do pijama com as amigas e ouvia um não.

Quando um garoto me convidou pra sair com 14 e não tive permissão.

Quando queria só dormir e descansar, mesmo estando com uma gripe forte e fui obrigada a treinar.

Ou tantas outras vezes. Coisas bobas sem importância, permitido a todos e que eu era impedida. Ou situações sérias às quais deixei a decisão nas mãos de Maude e agora era tarde.

O tempo não volta.

Convivemos com aquelas decisões e suas consequências eternamente.

Mesmo não sendo nossas.

— Eu sei — respondo por fim.

— É bom que eu sempre relembre! Agora volte para Vancouver e esteja na reunião às 17 horas na De Santi. A proposta deles é incrível, vai ver. Acho que com o dinheiro que vão lhe pagar pela campanha poderá comprar até uma casa para nós. Aí em Whistler até, se preferir. Não seria incrível, termos nossa própria casa de neve?

— Espera, campanha?

— Sim, eles querem que você seja o rosto da empresa na campanha para as Olimpíadas.

— Mãe, não vou ter tempo para essas coisas. Sabe que os treinos ficarão mais intensivos...

— Você vai conseguir. É só não se distrair.

— Daqui a pouco você diz que não preciso dormir!

— Não seja impertinente. Claro que precisa dormir. Mas não precisa ficar assistindo TV e burlando sua dieta comendo doces com Christian.

— Não fazemos isso.

— Eu sei que faz. Esse garoto, às vezes, acho que é um atraso pra você. Se ainda estivesse com Dimitri...

— Mas não estou e sabe por quê!

— Está bem, tem razão.

— Preciso desligar e pegar a estrada, está bem? Chego antes do almoço em Vancouver.

— Então podemos almoçar juntas e lhe conto sobre a proposta da De Santi.

— Não vai dar. Vou encontrar a Naomi.

— Tudo bem, mas não se atrase. E vista-se bem, por favor!

Reviro os olhos, Maude tem uma obsessão com a minha aparência que beira o ridículo. Mas me vi concordando porque aprendi através dos anos e inúmeras discussões infrutíferas que era o melhor a fazer.

— Tudo bem.

***

— Por que acho que quer me dizer alguma coisa que não está dizendo?

Suspiro, um tanto apreensiva ao encarar Naomi.

Eu havia chegado há mais de meia hora e lhe contado sobre a minha semana, como sempre, reclamado da minha mãe, de como vinha me sentindo sufocada ultimamente e o de sempre.

Naomi é minha terapeuta há uns três anos, desde que minha mãe decidiu que eu precisava de ajuda. Óbvio que não acreditei nem um momento que isso era uma preocupação genuína de Maude, com o fato de que eu não conseguia lidar sozinha com meus traumas. Ela tinha percebido que mesmo com todo seu esforço para me manter na linha, treinando e me tornando uma das atletas mais prestigiadas do país, havia uma parte das minhas emoções que estava fora de controle. E se elas explodissem, a Kiara Willians, seu projeto tão bem elaborado, corria o risco de não existir.

Assim, comecei a conversar com Naomi Harris uma vez por semana. E realmente tinha me ajudado muito poder me abrir com alguém que entendia e estava disposta a me ajudar. Porém, a terapia não era um anjo milagroso que conseguiria tirar as memórias ruins de dentro de mim. Elas ainda estavam ali. Estariam para sempre me fazendo companhia. Mas pelo menos Naomi me ajudava a lidar melhor com elas e seguir em frente. Fazia-me ter esperança de alguma espécie de cura um dia. Porque até agora, apenas consegui não enlouquecer, fazer bem o meu trabalho e ser a boa menina que todos esperavam que eu fosse. Obviamente, ainda há muito caminho pela frente. Como o fato de eu não conseguir lidar com as aproximações masculinas de forma saudável.

Bem, sim, eu tenho algo para contar a Naomi em relação a isso.

— Eu conheci alguém esses dias.

Hum, eu me arrependo da escolha de palavras.

Conheci alguém, dá a impressão de que eu me interessei por alguém em um encontro ou algo do tipo, o que definitivamente não aconteceu.

O suave levantar da sobrancelha escura de Naomi demonstra surpresa.

— Alguém, você quer dizer um homem?

— Sim, um cara — suspiro pesadamente, sem saber por onde começar.

— Então me conte como foi. — Naomi parece estar animada, afinal esse era um assunto no qual ela não tinha conseguido me ajudar.

Eu achava que não ia mudar nunca. Acho que até tinha aceitado que eu jamais teria algum interesse no sexo masculino de novo.

Ou interesse em sexo.

Mas um estranho que me tirou da neve mudou tudo.

Um estranho casado, penso, me sentindo idiota como eu sempre me sentia ao lembrar.

— Como te falei, não estava bem e depois da última apresentação, Chris me sugeriu passar uns dias em Whistler. Eu aceitei e praticamente fugi pra lá, sem avisar ninguém e mesmo tendo um monte de compromisso aqui. Só que chegando lá, ficar sozinha não estava ajudando e fui patinar em um lago próximo. Enfim, acho que o peso da angústia foi demais e eu caí e fiquei lá no frio.

— Kiara, que perigo, que tipo de pensamentos estavam passando por sua cabeça? Sabia que podia morrer de hipotermia?

Há preocupação na voz de Naomi.

— Sei o que está passando pela sua cabeça, mas não acho que estava com algum pensamento suicida nem nada.

— Você não é suicida. Teimosa e às vezes inconsequente, sim.

— Eu só queria... não pensar. Não pensei nas consequências. Mas quando me dei conta, tinha começado a nevar e eu não conseguia me mexer. E aí apareceu um cara estranho e me tirou de lá.

— E você permitiu?

— Eu estava morrendo congelada, não havia como afastá-lo, embora o tempo todo meu cérebro repudiasse aquele toque. Mesmo assim, ele me carregou para sua casa e tirou minha roupa. E me aqueceu com seu próprio corpo.

— Como se sentiu?

— Eu tentava afastá-lo, mas não tinha forças. Senti medo, porque se pudesse jamais ele teria me tocado e me abraçado.

— Mas não tinha como e foi obrigada a deixar.

— Sim, e eu ainda estava muito confusa e precisando de calor e em algum momento a repulsa virou necessidade e eu não só deixei que ele me embalasse como apreciei e relaxei, adormecendo, afinal.

— Ele salvou você.

— Sim, me salvou...

— E o que aconteceu depois?

Eu lhe contei sobre acordar praticamente nua e de encontrar o homem pelado.

— E você se sentiu atraída por ele?

— Talvez não naquele momento. Ele é um cara atraente e eu notei isso.

— Mas você não costuma notar. Não mais.

— Sim, por isso mesmo eu ainda estou meio perplexa com tudo.

— E em algum momento você se deu conta de que estava sentindo atração por ele.

— Sim, eu ainda estava meio confusa e com medo. Acho que nem precisa ter meu histórico para estar sozinha no meio de uma nevasca com um estranho e ficar receosa.

— Com certeza não, mas no seu caso, era uma bomba-relógio. Você surtou em algum momento?

— Aí que está. Não. Ainda havia certo medo, mas também eu estava cheia de curiosidade e em algum lugar dentro de mim, acho que me senti segura. Acha que sou louca?

— Não. Talvez você tenha deixado seus instintos dominarem. Sentiu que estava em segurança.

— Como eu podia saber, eu nem o conhecia. Me parece bem inconsequente, ainda mais pra mim.

— É possível. Acredita em energia? Se estamos abertos, receptivos, sentimos a energia à nossa volta. A energia das pessoas.

— Isso é muito sobrenatural para alguém da ciência não?

Ela ri.

— Isso é física.

— Se você diz.

— Embora no seu caso acho que podemos chamar de química.

— Eu só sei que fiquei presa lá, e um tanto atordoada, curiosa e era como se não fosse eu.

— Ou era você. A Kiara verdadeira. De antes.

— Você acha que é possível?

— Tudo é possível, Kiara. Eu sempre te disse. Está tudo na sua mente. Você libera seu medo e aprisiona suas emoções. Algo nesse cara, talvez uma química verdadeira, tenha feito você se permitir não sentir medo. E sentir emoção. Atração. E o que mais aconteceu?

Eu lhe conto até o momento em que fomos dormir e do meu medo de ficar na mesma cama que ele.

— É compreensível. Qualquer mulher ficaria receosa.

— Ele não fez absolutamente nada ou tentou me convencer, acho que nem havia nenhum interesse em mim, deste tipo.

— Sexual?

— Sim.

— Achou isso bom ou ruim?

— Naquele momento, eu não achei nada. Eu sabia que estava acontecendo alguma coisa, nem sabia direito o que era, mas eu estava gostando porque não me sentia assim há tanto tempo. E já tinha até perdido as esperanças. Então achar um cara atraente, sentir uma força magnética como se me puxasse em direção a ele e não sentir medo. Era quase extraordinário.

— Sim, extraordinário para você. Mas é natural. A atração entre duas pessoas é natural.

— Não pra mim.

— Temos conversado sobre isso há bastante tempo e você sempre reluta. Talvez seja a hora de começar a explorar. Agora você sabe que é possível. Não é preciso ter medo de entrar em contato com a sua sexualidade e suas emoções. É saudável. E talvez este homem seja alguém importante para você.

— Só que eu não te contei tudo.

— Hum, você disse que ele não estava interessado em você.

— Bem, houve um momento...

Eu lhe conto sobre voltar à cama e o que tinha rolado quando acordamos.

— Então a atração era mútua.

— Eu não sei. E nem tive como descobrir, porque chegou um carro. E era a mulher e filha dele.

Desta vez os olhos de Naomi se arregalam.

— Ele era casado?

— Pois é. Acho que por isso não tentou nada.

— Hum, isso é uma pena. Eu estava ficando animada por finalmente você conhecer um homem por quem se atrai e que poderia te ajudar a sair dessa concha que se escondeu.

— Enfim, eu me senti uma idiota e fiquei com raiva de mim mesma e dele também.

— Acha que ele era um canalha?

— Não sei dizer. Como eu falei, ele não tentou nada. Tirando aquele momento quando acordamos. — Eu não consigo evitar corar.

— Pode ser indício de que ele também sentia a mesma atração. Ou apenas um instinto físico natural.

— Eu sei. Mas acho que cheguei a pensar que havia algo rolando entre nós, sabe. Acho que me enganei.

— Bem, esses enganos acontecem.

— É uma merda. Estou tão... frustrada.

— Deveria ficar feliz.

— É mesmo?

— Olha quanto progrediu. Você se permitiu se atrair por alguém. É um despertar. Talvez este cara não seja pra você, mas ele te ajudou a ver que ainda é possível. Você é uma mulher jovem, bonita. Pode viver tantas experiências, se apaixonar tantas vezes.

— Não estou apaixonada, por favor!

— Não disse isso. Eu disse que pode se apaixonar. É só se permitir. Viver. Não foi bom o que sentiu?

Eu assinto.

Claro que foi bom. E é por isso que me sinto tão frustrada.

Passei anos em um limbo emocional e físico. E saí dele para quebrar a cara com um homem casado.

— É muito patético — suspiro —, mas pelo menos eu nunca mais vou ver esse cara de novo.

— Você está atrasada.

Maude caminha em minha direção com seus saltos batendo no chão no saguão do prédio elegante no centro da cidade que ela havia me informado o endereço.

Retiro os fones de ouvido dizendo a mim mesma para ser boazinha.

— Me desculpe. — Eu meço Maude. — Está bonita, mãe.

Maude está sempre linda. Seus cabelos claros estão escovados e brilhantes em um elegante corte até os ombros e hoje ela veste um terninho rosa-claro que combina com a maquiagem sutil.

Lembro que teve uma época que sentia inveja de sua beleza e almejava ser como ela.

Mas nunca vou ser. Nem física, nem emocionalmente. Quer dizer, talvez eu e Maude sejamos parecidas um pouco. Maude está sempre no controle de suas emoções, sempre calculando o próximo passo com maestria, nunca deixando nada ao acaso. Ela planejou cada etapa da minha carreira e veja aonde chegamos. Nada atrapalha a ambição de Maude Willians.

— Não posso dizer o mesmo de você, podia ter caprichado mais. — Ela segura meu braço e me encaminha para o elevador.

Eu contenho um sorriso. Depois da terapia, eu fui pra casa, tomei um banho e abri meu closet observando a infinidade de roupas bonitas e de grife, muitas delas presentes das marcas que adoravam que eu as vestisse para todos copiarem. Achei que estava bem, usando um conjunto de calça e blusa de lã preto, que eu julgava elegante e discreto.

— Eu caprichei — retruco.

— Tantas roupas bonitas que você tem! Hoje você tem que impressionar...

Antes que eu consiga responder, a porta do elevador se abre e uma moça oriental nos cumprimenta, pedindo que a acompanhe.

Nós chegamos até uma sala de reunião decorada em tons de cinza e preto com uma vista magnífica da cidade.

E um homem de terno escuro se aproxima com um sorriso educado.

— Olá, Kiara, que prazer finalmente conhecê-la. — Ele estende a mão de forma amigável.

Hesito como sempre faço, incerta do que fazer.

O homem parece desconsertado e minha mãe se adianta.

— Sim, e eu sou a mãe e empresária, Maude Willians, o senhor é Nick de Santi?

A menção do nome Nick me traz uma sensação de déjà-vu inesperado.

Que coincidência desagradável.

— Não, não sou o Nick. — O homem sorri apontando para a mesa e minha mãe me puxa para que nos sentemos e o homem faz o mesmo. — Eu sou o CEO da empresa, Matt Balvin.

— Achei que Nick de Santi fosse o dono da empresa.

— Sim, ele é o maior acionista, mas há dois anos, Nick deixou a direção da empresa. — A voz do homem adquire um tom grave.

— Eu entendi que a reunião seria com o próprio Senhor De Santi. — Maude não parece satisfeita e é a cara dela fazer isso. O cara é o maldito CEO e ela acha pouco.

— Mamãe, por favor... — sussurro constrangida, mas antes que eu continue, ouvimos a porta se abrir e Matt Balvin olha através de nós.

— Sim, aí está ele.

Eu me viro ao ouvir passos se aproximando e tomo o maior susto da minha vida ao ver que quem está entrando na sala é Nick.

O Nick que me tirou da neve em Whistler.

Ele é Nick de Santi?


Capítulo 5

Por um momento, acho que estou tendo algum tipo de alucinação enquanto Nick se aproxima com os olhos fixos em mim.

E senta do outro lado da mesa, perto de Matt Balvin.

— Desculpe a demora.

A voz grave e meio rouca é a mesma que eu me lembro. A mesma barba por fazer. Os mesmos olhos castanho-claros e os mesmos cabelos escuros.

— Espero que não tenham esperado muito. — Ele finalmente desvia os olhos de mim para minha mãe.

— Não, acabamos de entrar na sala — Matt explica.

— Então, é o Senhor De Santi. — Minha mãe se apruma, mais interessada agora que está falando com o dono da empresa.

Puta. Que. Pariu.

Não estou alucinando.

Nick de Santi é o cara que me tirou da neve. Com quem passei uma noite na mesma cama.

O cara por quem, contrariando todas as expectativas, eu tinha me sentido atraída.

O cara casado, que tem até uma filha e que eu achei que nunca mais iria ver na vida.

Está na minha frente, trocando palavras com minha mãe sobre negócios, campanhas de marketing e patrocínios, muito sério e compenetrado.

Ele é a porra de um empresário milionário. Ou algo assim.

— Kiara?... — minha mãe me chama e eu volto à realidade, percebendo que estava aérea, presa em meus pensamentos caóticos, enquanto os demais conduzem a reunião.

— Sim, me desculpe, estava distraída. — Cravo a atenção em Nick e ele sustenta meu olhar. E há certo divertimento no fundo da íris âmbar.

E me dou conta, mais confusa ainda, que estou perplexa ao vê-lo ali, mas ele não parece nem um pouco surpreso.

Que diabos está acontecendo?

— A senhorita está bem? — Ele levanta a sobrancelha, de forma irônica.

Coro, ao me recordar, mesmo sem querer, dele acordado grudado em mim. Meu rosto esquenta ainda mais, de vergonha, e desvio o olhar.

Ele não vai falar nada? Vai continuar fingindo que nunca nos vimos?

Começo a sentir raiva daquela situação bizarra. E percebo que não quero revelar a Matt e minha mãe que já conheço Nick de Santi de uma maneira muito inusitada.

Bem, eu já o vi nu.

Eu já o senti excitado, caramba!

E agora ele está aqui, como se nunca tivesse me visto antes.

— Sim, estou apenas... surpresa, Senhor De Santi. — Não consigo evitar o sarcasmo em minha voz.

Quero que ele me explique que diabos está acontecendo ali, e ao mesmo tempo desejo que ele não fale nada. Não na frente dos demais pelo menos.

Porém, estou indignada e confusa e quero respostas.

Teria sido apenas uma coincidência?

Ele sustenta meu olhar e por um momento espero que ele vá falar sobre já nos conhecermos, mas ele desvia a atenção para Matt, que está falando sobre a história da empresa, enquanto se levanta e abaixa a luz e uma tela desce e começa uma apresentação.

— Vamos mostrar a história da De Santi — Matt explica.

Minha mãe me cutuca enquanto imagens de corridas de motocicleta aparecem na tela.

— O que está acontecendo com você? — reclama baixinho e eu apenas dou de ombro.

— Nada.

E em vez de prestar atenção no que está sendo apresentado, me vejo desviando a atenção para o homem na minha frente e fico vermelha por ele estar me encarando também.

Desvio rápido o olhar para a tela, onde um homem que parece Nick, mas com o cabelo e bigode estilo anos setenta surge ao lado de várias motos sendo construídas.

Entendo que aquele é o pai de Nick, quem fundou a De Santi.

E depois surge uma versão mais jovem de Nick, provavelmente com uns vinte anos, participando de competições de motociclismo e então, Nick um pouco mais velho no mesmo lugar que o pai, em uma fábrica, agora mais moderna.

— Nick assumiu a De Santi há dez anos, depois de participar de competições de motociclismo pelo mundo — Matt explica. — E a transformou em uma marca mundial, expandindo os negócios não só para motores, mas transformando a De Santi em uma marca forte, desejada quase como as maiores marcas até então.

A luz se acende e eu pisco para me acostumar.

— E continuamos expandindo. Quando a De Santi surgiu em 1975, já existiam muitos fabricantes de motocicletas pelo mundo. O que motivou o nosso fundador, Hudson De Santi, a querer construir as melhores motos, com os preceitos de qualidade e inovação. Assim conquistamos posições de liderança em importantes competições de motociclismo e fomos aprimorando nossos negócios. Estamos presentes em cerca de cem países e fabricamos motos para neve, carros de golfe, bicicletas elétricas, geradores, helicóptero de controle remoto, e muito mais.

— É impressionante — mamãe comenta obviamente muito interessada agora. — Então você participava da competição? — questiona a Nick.

— Sim, participei, durante alguns anos.

— E largou tudo para assumir os negócios da família? Isso é louvável.

— Na verdade, Nick passou mais de um ano viajando pelo mundo antes disso.

— A De Santi parece mesmo muito próspera. E eu e Kiara estamos felizes que queira patrociná-la.

— Sim, mas queremos também contratá-la para uma campanha publicitária — Matt explica.

— Eu não sei por que iam querer investir em uma patinadora — eu me intrometo e minha mãe bufa ao meu lado.

— Kiara, cala a boca! — sibila.

— A De Santi vem diversificando seu meio de atuação — Matt continua. — E estamos investindo em uma linha de acessórios e roupas com nossa marca. Por isso a ideia de contratar alguém do esporte, mas que tenha um público maior e influência entre os jovens.

— Mas isso é maravilhoso! — Mamãe sorri. — Estamos abertos à proposta de vocês.

Matt começa a falar de números, dinheiro e minha mãe está quase salivando ao meu lado. É uma campanha que vai durar meses, e que tomará bastante tempo.

— É tudo maravilhoso...

— Não — interrompo e todos os olhos se voltam pra mim. — Estou há dois meses das Olimpíadas de inverno. Tenho que treinar e não acho que poderia dispor de tempo para tudo isso.

— Kiara, claro que vai haver tempo! Não pode desperdiçar essa oportunidade!

— Nós não desejamos de maneira alguma atrapalhar seus treinos, Senhorita Willians — Matt diz. — Na verdade, você está aqui hoje apenas para que façamos nossa proposta e decidir se está interessada.

— Claro que estamos interessadas...

— Mamãe.

— A ideia da coleção ainda está em desenvolvimento. Como expliquei, queremos que o público se identifique, e não só com a De Santi como marca de motos, mas queremos expandir nossa área de atuação, para atingir um público maior. E todo o desenvolvimento será feito inspirado na sua imagem.

— E o que isso quer dizer?

— Queremos acompanhá-la durante esses dois meses.

— Me acompanhar, como assim?

— Você seguirá com seus treinos e rotina, e nós a acompanhamos e desenvolvemos toda a concepção.

— E quem fará isso?

— O Nick está à frente de toda a concepção.

Eu arregalo meus olhos, incrédula.

Nick não esboçou qualquer reação.

Mas só pode ser uma brincadeira, não é?

Se eu aceitar, terei Nick de Santi na minha cola por dois meses?

— Não — eu me vejo dizendo.

— Kiara! — Minha mãe está branca feito papel enquanto eu me levanto.

— Desculpa, mas não estou interessada.

E ignorando os chamados da minha mãe, eu quase corro da sala, o elevador está no andar e eu entro, apertando o botão do térreo e encostando a cabeça no vidro atrás de mim.

Que diabos foi aquilo?

Ainda parece fruto de algum sonho bizarro.

Nick, o estranho de Whistler, era Nick de Santi e não só queria me contratar para uma campanha milionária, mas ainda queria ficar me acompanhando por dois meses. Mas nem pensar!

Saio do elevador e corro até onde estacionei meu carro, o celular está tocando e sei que é minha mãe, mas ignoro.

Entro no carro e dou partida, só voltando a respirar quando coloco uma boa distância entre mim e o prédio da De Santi.

Sei que não posso ir pra casa, porque minha mãe com certeza estará lá para gritar comigo e me obrigar a aceitar a proposta deles.

Tenho noção de que estou sendo irracional, mas como vou aguentar ter Nick de Santi acompanhando todos meus passos? E eu que achava que nunca mais iria vê-lo!

A verdade é que ainda me sinto humilhada por ter descoberto que ele é casado. E furiosa comigo mesma porque ainda me sentia atraída por ele.

Quão patética eu sou?

Por isso não posso aceitar aquela proposta.

Depois de cansar de dar volta, ligo para Chris, perguntando se posso ir pra sua casa em vez de ficarmos na minha como combinamos e ele diz que tem uma proposta melhor.

— A Everly e o Gabe nos convidaram para jantar, ia mesmo te ligar.

— Ótimo. Nos encontramos lá?

Everly e Gabe são ex-patinadores que se aposentaram há três anos e de quem eu e Chris somos bons amigos.

Eles são casados e Everly está grávida de seis meses.

— O que aconteceu, você parece tensa — Chris indaga quando nos encontramos em frente à casa de Everly e Gabe.

— Podemos não falar sobre isso? Só queria me distrair hoje, posso?

Ele aperta minha mão.

— Pode tudo!

Sorrio, aliviada.

Por isso que eu amo Chris.

Everly abre a porta, me abraçando animada.

— Você está enorme! — Chris brinca.

Everly revira os olhos puxados de ascendência chinesa.

— Nem me fale! Entrem logo, está congelando hoje!

Entramos, tirando o casaco e aspiro o cheiro bom de tempero que recende na casa.

— Gabe está cozinhando?

— Claro que sim, só por isso que me casei com ele! — Everly brinca quando vamos para a cozinha.

Gabe sorri entre as panelas.

— Olha que honra, a grande Kiara Willians na minha humilde residência!

— Para de ser bobo! — Eu me instalo na banqueta da ilha, enquanto Everly pergunta sobre as novidades do mundo da patinação.

— E nenhuma fofoca? — Gabe especula nos servindo yakissoba.

— Ah, eu tenho uma ótima. — Chris se inclina. — Estão dizendo que Diana Colombo está grávida.

— O quê?

— A garota do Dimitri? — Gabe indaga, chocado.

— Não é a garota do Dimitri! Pelo que sei, eles são só parceiros — Everly corrige.

— A gente também era. — Ele pisca.

— É sério isso, Chris?

Estou chocada também, mas imediatamente me vem a imagem de Diana vomitando no vestiário.

— Pelo menos é o que Alana está espalhando.

— Alana é uma grande fofoqueira! Deve ser invenção — Everly comenta.

— Ela continua encrenqueira? — Gabe questiona divertido.

— Aquela vai morrer encrenqueira — Chris ri —, mas vamos ver se é só uma fofoca, ou verdade.

— Há meses das Olimpíadas? Que confusão seria? — Everly especula.

— Seria o fim pra ela — Chris diz.

— Mas Alana ainda está dizendo pra todo mundo que o bebê é do Dimitri.

Everly me encara.

— Acha que pode ser verdade, Kiara?

— Como posso saber? Eu e o Dimitri mal nos falamos.

— Sempre achei uma lástima que se separassem.

— Você fala como se fôssemos um casal!

— Poderiam ter sido. Achei que acabariam como a gente.

— Ninguém é como vocês. — Sorrio com certa inveja quando o casal troca um selinho carinhoso e Gabe passa a mão na barriga da esposa.

Será que um dia eu poderia ter algo assim?

Engraçado que eu nunca parei para pensar nisso? Nunca me permiti ter este tipo de sonho. Apaixonar-me.

Ter uma família.

A comida desce como chumbo por minha garganta, pesando em meu estômago.

Óbvio que nada mudou. Este tipo de vida que Gabe e Everly têm nunca vai ser pra mim. Eu sempre soube.

E sempre disse a mim mesma que não importava.

Eu tinha a glória da patinação e só isso bastava.

Então por que agora sinto uma espécie de inveja do casal amoroso na minha frente?

Quando estamos indo embora, Chris pede carona, pois veio de táxi.

— Acha que um dia a gente vai ter algo assim? — questiona.

— Assim como?

— Everly e Gabe.

Eu suspiro. Acho que os pensamentos de Chris estão em sintonia com os meus.

— Ninguém é tão perfeito como Everly e Gabe. — Sorrio.

— Eu achava que você e Dimitri seriam como eles.

— Ah não, de novo esse papo?

— Acha mesmo que a Diana está grávida?

— Eu a vi vomitando esses dias.

— Hum, talvez não seja só fofoca da Alana. E acha que pode ser mesmo do Dimitri?

— Não é da nossa conta. — Estaciono em frente à casa de Chris.

— Isso te abala?

Eu mordo os lábios, tentando analisar o que sinto.

Abala?

Sim, mas acho que não do jeito que Chris está pensando. Eu já superei meus sentimentos por Dimitri há muito tempo.

Mas sempre haveria um lado meu que lamentaria por aquele futuro que um dia eu também achei que seria meu.

Não posso negar que um dia, sonhei que eu e Dimitri seríamos como Gabe e Everly.

Mas tudo isso se perdeu.

Assim como eu me perdi.

Meu celular começa a tocar e vejo que está cheio de mensagens da minha mãe.

— Droga.

— O que foi?

— Maude.

— O que rolou?

— Posso dormir aqui? Maude está no meu apartamento. Ela não vai me deixar em paz e não quero falar com ela hoje.

— Claro, mas só se me contar o que está rolando.

Quando entramos na casa de Chris, os pais dele, Ester e Roger, ainda estão na sala assistindo TV.

Eu sempre especulo quando Chris vai deixar a casa da família, mas ele não parece estar preocupado com isso.

Os Jackson, na verdade, são bem tradicionais e adoram ter os filhos por perto. Trevor, o irmão mais velho de Chris, que é jogador profissional de Hóquei, mora na mesma rua que os pais e só se mudou quando se casou há quatro anos.

— Kiara, que surpresa. — Ester sorri ao me ver. — Chris não me falou que viria.

— Ester, a Kiara é de casa, ela pode vir quando quiser. — Roger pisca com malícia.

— Foi uma decisão de última hora. — Sorrio de volta.

— A gente vai dormir. — Chris me puxa para seu quarto e reparo que ele está um pouco contrariado.

— O que foi?

— Meu pai fica todo feliz quando vem aqui.

— Eu sei, eles me amam. — Eu me jogo na sua cama e ele se joga ao meu lado.

— Você sabe por que eles ficam felizes. Amanhã vou ter que ouvir de novo a conversa “porque você e Kiara não assumem que estão juntos”.

— Antes você não se importava. Até gostava que eles pensassem assim.

— Estou começando a ficar de saco cheio de fingir.

— Acho que estamos em sintonia nisso também.

Ele me encara confuso.

— Vai me contar o que está rolando?

Eu conto a ele tudo o que rolou em Whistler e também sobre a reunião da De Santi.

— Minha nossa, que coincidência bizarra!

— Estou tão frustrada! Achei que nunca mais fosse ver este cara e agora isso!

— Você sempre pode dizer não.

— Sabe que não vou conseguir.

— Você é adulta. Maude não pode reger sua vida como a orquestra particular dela.

— É fácil falar. Mas no fim, vou acabar aceitando. Como não aceitar?

— E você está a fim deste cara?

— Não sei. Só quero ficar longe dele.

— Mas se está a fim dele...

— Não ouviu o que eu disse? Ele é casado! Além do mais... acha que ia dar certo? Você sabe... — Perco o ar por um instante e Chris segura minha mão.

— Ei, se acalma.

— É que... achei que isso nunca mais fosse mudar. E de repente, eu conheço este homem que coloca tudo em outra perspectiva. É assustador.

— Sei o que está dizendo.

— Vamos dormir. — Eu me levanto para preparar minha cama no sofá, como sempre. Bem diferente do que os pais de Chris imaginavam.

Na manhã seguinte, passo no meu apartamento para tomar banho, trocar de roupa e pegar minhas coisas e ir para o ginásio treinar.

Estamos aquecendo quando Nádia chega e me chama para uma conversa.

Nádia é uma mulher ruiva e magra de cinquenta e poucos anos que já teve sua era de ouro na patinação. Ela se casou com um canadense e se mudou para o país há trinta anos, tornando-se treinadora.

— Sua mãe me ligou.

— Ah, claro. Quando? O que ela te disse, que eu sumi?

— Ela disse que estava preocupada e perguntou se eu sabia onde tinha se metido.

— Eu estava em Whistler. Apenas tirei um tempo.

— Eu sei. Chris me disse e pediu para não contar a sua mãe.

— Sabe como ela é. — Aparentemente Nádia ainda não sabia sobre o aconteceu na De Santi ontem.

— E você está bem? Maude comentou algo sobre não estar bem ultimamente. Segundo as palavras dela, você anda um tanto rebelde.

Eu reviro os olhos.

— Não sou rebelde.

— Mas Chris disse que era pra cancelar os treinos até que voltasse.

— Era só alguns dias, pra que tanto barulho! E eu voltei, não?

— Sua mãe apenas se preocupa. Assim como eu. Não podia cancelar os treinos.

— Certo, eu voltei, e tudo voltou ao normal. Satisfeita?

— Sim, agora vá para o gelo. Não temos tempo a perder.

Porém, assim que eu me sento para tirar os protetores dos meus patins, tomo um susto ao ver minha mãe se aproximando e ao seu lado está Nick de Santi.

Por um momento, penso em correr e fugir, mas claro que não posso agir como uma criança rebelde que Maude me acusa de ser.

Então respiro fundo e me aprumo.

Eu devia saber que Maude não deixaria eu me safar.

— Aí está você! — Ela me encara com um aviso claro no olhar.

“Me obedeça.”

Eu nem ouso olhar para Nick, mas sua presença é bem difícil de ignorar, a alguns passos atrás da minha mãe.

— Mãe, o que faz aqui?...

— Eu estive em seu apartamento ontem e te esperei, onde se meteu?

— Eu dormi no Chris. — Sei que Nick está ouvindo e espero mesmo que ele deduza que estou transando com Christian.

Talvez assim eu me sinta menos humilhada pelo episódio de Whistler.

Ela se vira para Nick.

— O Senhor De Santi está aqui para ver o seu treino.

Arrisco levantar o olhar e Nick está com as mãos no bolso. Ele está todo de preto, usando uma camiseta e calça preta e uma jaqueta de couro.

Parece perigoso e fora do lugar ali.

E sua expressão é indecifrável e me deixa inquieta.

— Por quê? — Há contrariedade na minha voz e não finjo o contrário.

Minha mãe dá um passo na minha direção e segura meu braço com força, abaixando o tom.

— Pare de ser mal-educada, agora! Não estou nada contente com seu comportamento! Me envergonhou na frente do Senhor Balvin e do Senhor De Santi. Tem sorte de que ele não ficou bravo e foi compreensivo! Mas vamos conversar depois.

— Algum problema aqui? — Nádia se aproxima notando a tensão.

Mamãe sorri.

— Nenhum. Nádia, este é Nick de Santi, eles vão patrocinar a Kiara.

— Que ótimo. A Kiara e o Chris, acredito. São uma dupla.

Minha mãe faz uma expressão de pouco caso.

Em alguns momentos, eu e Chris temos a mesma atenção como uma dupla, mas mamãe adora deixá-lo de fora para que eu receba toda a glória, e dinheiro, certamente, ela preferia que eu patinasse sozinha em vez de em dupla.

Mas eu tentei por um ano inteiro, depois de deixar Dimitri, e foi um fracasso, até encontrar Chris.

E ela teve que engoli-lo.

— Sim, o patrocínio se estende a Christian Jackson, porém estamos contratando a Senhorita Willlians para uma grande campanha publicitária — Nick responde.

Quero gritar que ainda não assinei nenhum contrato, mas sei que não vai adiantar nada.

Quero mesmo aturar a ira da minha mãe caso insista em dizer não?

Quero tirar aquela oportunidade de Chris? Só porque estou com medo de ficar perto de Nick de Santi?

Meus ombros caem, em derrota.

Sei que sou voto vencido.

Não é sempre assim?

— Vá para o gelo, Kiara — Nádia ordena.

Relanceio o olhar para a pista e Chris está lá, o olhar curioso sobre o que está rolando.

Eu me viro, tiro os protetores dos patins e sigo para perto de Chris.

— Quem é aquele?

— Nick de Santi.

Os olhos dele se arregalam.

— Minha nossa, isso é uma intervenção?

— Com certeza.

— Ei, atenção os dois, quero que se concentrem numa sequência de twist lift — Nádia pede.

Twist lift é um elemento onde a parceira é lançada no ar e executa rotações antes de ser pega novamente pela cintura, por seu parceiro, e então é colocada no gelo sobre um pé. Twist é um elemento de alto valor de pontuação e por isso Nádia exige que sejamos perfeitos.

Então, empurro as emoções para o fundo da mente e ergo os ombros, começando a treinar com Chris.

Equilibrar-se sobre as lâminas é algo natural pra mim, porém, não é fácil ignorar que em algum lugar Nick de Santi está me observando e mais distraída do que normal, acabo indo ao chão depois de alguns saltos.

— Kiara, concentre-se! — Nádia grita e Chris estende a mão para me puxar de volta com um olhar divertido.

— A culpa não foi minha.

— Eu sei — bufo limpando o gelo que ficou nas minhas laterais depois da queda.

Ouso girar o olhar para fora da pista e lá está ele. Sentado na arquibancada com o olhar indecifrável fixo em mim e em Chris.

— Merda — sussurro voltando a atenção para meu parceiro. — Vamos logo com isso.

— Machucou, princesinha de gelo? — A voz debochada vem de trás de mim e me viro para ver Alana rindo enquanto gira.

Sinceramente eu não preciso das provocações de Alana hoje.

— Deve saber como é — retruco e ela faz uma careta.

— O que quer dizer?

— Se passasse mais tempo treinando em vez de ficar inventando fofoca, talvez chegasse a algum lugar e não precisaria ficar soltando ironias de pura inveja pra cima de mim.

— Uou! — Chris exclama admirado. Eu não sou de responder às provocações de Alana.

— Alana, pare com isso. — Tyler a puxa e nos lança um olhar de desculpa.

— Como o Tyler aguenta essa nojenta? — indago, me afastando, mas percebo que os dois estão discutindo.

— Esqueça eles e se concentre — Nádia grita.

Não sei quanto tempo ficamos no gelo, até que Nádia diz que por hoje basta.

— Já? — indago patinando até a mureta que circunda a pista.

— Você não está nem um pouco concentrada hoje. Amanhã, vamos compensar.

— Tudo bem. — Não nego que estou aliviada quando saio da pista e pego os pedaços de plástico, deslizando pelas lâminas de quatro milímetros de largura.

Vou para o vestiário e me visto rápido, pensando se conseguirei desviar de Nick de Santi, porém, quando estou saindo do centro, na companhia de Chris, dou de cara justamente com quem não gostaria de encontrar.

Ele está ali, claramente me esperando, encostado em uma moto e por um momento, eu paro sem saber como agir.

Ainda parece incrível que aquele cara de Whistler e este são a mesma pessoa.

Chris nota meu nervosismo e segura minha mão que eu aperto de volta.

— Você deve ser Christian Jackson — Nick indaga e percebo que seu olhar desviou rápido para a mão de Chris segurando a minha.

— Sim, e você é Nick de Santi. Estou sabendo sobre o interesse de patrocínio para a Kiara.

— Se estende para você também, vamos entrar em contato com seu pessoal — Nick responde friamente, mas se vira pra mim. — Só que primeiro precisamos acertar com Kiara. Podemos conversar?

De novo, não há muita entonação em sua voz grave e não sei o que se passa em sua mente.

Quero responder que não desejo ter nenhuma conversa com ele, mas sei que seria imaturo e mal-educado.

Eu me viro para Chris, que solta minha mão.

— Nos vemos amanhã?

— Sim... — E sem pensar, eu me inclino e o abraço, antes que se afaste.

Nick não fala nada quando pega um capacete e estende pra mim.

Ele quer que eu suba na moto com ele?

Dou um passo atrás.

— Quer que eu suba nessa moto com você?

Em resposta, ele pega outro capacete e coloca em si mesmo, subindo na moto e me encara em desafio.

— Você vem?


Capítulo 6

Fico ali, segurando o capacete. Eu devia jogar na calçada e dar meia-volta, o deixando falando sozinho, mas também estou curiosa para saber o que quer falar comigo.

Aquele convite para termos uma conversa em particular é infinitamente melhor do que ter que conversar com ele junto a Maude.

— Aonde vamos? — indago meio ríspida.

— Tomar um café.

Mordo os lábios ainda hesitando. Os sentimentos duelando dentro de mim, quase numa guerra. O instinto de fugir e a necessidade de saciar aquela curiosidade estranha que me domina quando estou na presença dele.

É como se existissem duas Kiaras.

A Kiara amedrontada e a Kiara atraída.

Para minha surpresa, a segunda vence.

— Ok — concordo e levanto o braço para colocar o capacete, mas me atrapalho ao fechá-lo e Nick se inclina de forma impaciente tirando minha mão do caminho e ele mesmo fechando no meu queixo.

Não consigo evitar sentir arrepios onde seus dedos tocam, o que é absolutamente ridículo.

E volto a sentir certo medo quando ele dá partida.

— Sobe.

Ai meu Deus.

Vou mesmo fazer isso?

Com o coração saltando no peito, eu me vejo passando a perna pela moto e me sentando atrás de Nick. A moto treme embaixo de mim e eu quase me desequilibro, sem alternativa colocando as mãos em sua cintura de forma hesitante.

— Segura direito, se não quiser cair. — A voz está impaciente quando, sem aviso, suas mãos tocam as minhas, puxando-as até que elas estejam firmes em sua barriga e assim estou abraçada a Nick de Santi quando a moto arranca pela rua.

Meu estômago se aperta de medo e adrenalina quando seguimos em alta velocidade, tudo à minha volta se transforma num borrão barulhento. De repente a moto faz uma curva e prendo a respiração, jurando que vamos cair, quando me vejo inclinada para a direita e me agarro mais a Nick, sem pensar no que estou fazendo enquanto enterro a cabeça em seu ombro e fecho os olhos.

E como se vindo de muito longe escuto uma risada e quando o corpo de Nick treme sob meus braços, percebo que é ele que está rindo.

— Está com medo? — grita por cima do barulho da moto e do vento.

Eu me sinto meio boba e me dou conta de como estou tão prensada nele que nem sei como não o estou sufocando.

Forço meus braços a relaxarem e levanto a cabeça, abrindo os olhos ao notar que ele está estacionando.

Ainda estou meio anestesiada quando salto e ele faz o mesmo, retirando o capacete e passando os dedos pelo cabelo em desalinho.

E então se vira pra mim e sem avisar estende as mãos para retirar o capacete da minha cabeça. Respiro fundo quando me vejo livre e ele permanece perto, inclinando-se ligeiramente em minha direção, me estudando.

— Tudo bem?

Consigo sacudir a cabeça em afirmativa, corando, enquanto dou um passo atrás e tento ajeitar meu cabelo que deve estar terrível.

— Vai vomitar? — Nick ainda parece incerto sobre minha sobriedade.

— Não, só estou um pouco em choque.

— Nunca andou de moto? — Ele pendura os capacetes no guidão.

— Parece idiota, mas nunca.

— Nunca? — Ele está mesmo surpreso.

— Por que o espanto? — Fico na defensiva.

— E o que achou da experiência? — ele questiona colocando as mãos no bolso da calça e seu olhar parece um tanto divertido.

— Assustadora. Desculpa por ter te agarrado daquele jeito. — No mesmo instante percebo que usei palavras erradas.

Não gosto de colocar a palavra “agarrar” e Nick de Santi na mesma sentença.

Parece meio... pervertido.

Desvio o olhar à nossa volta e estamos no estacionamento de um... parque?

— Onde estamos?

— No Jardim Botânico.

Ele caminha na minha frente e não resta alternativa a não ser segui-lo enquanto ele para em frente ao que parece ser uma bilheteria e compra nossas entradas.

Eu ainda o sigo quando entramos.

— Nunca veio aqui?

— Nunca tive a oportunidade. Achei que íamos tomar um café ou algo assim?

— Ainda vamos.

Ele se dirige a um prédio à direita e abre as portas de vidro fazendo sinal para eu passar primeiro e percebo que estamos em um café.

Ele vai até a atendente e pede dois cafés, e tento não ficar brava por não ter perguntado o que eu ia querer.

— Quer açúcar? — indaga quando a moça lhe passa dois copos descartáveis.

— Que bom que perguntou. — Não escondo o sarcasmo.

Ele levanta a sobrancelha enquanto adoça os dois copos.

— Não quer café?

— Poderia só ter perguntado.

Ele não se dá ao trabalho de se defender, apenas me passa o copo.

— Vamos caminhar. — De novo segue na frente e sai do café e faço uma careta.

Choveu e está frio.

— Não acho que hoje seja um dia perfeito para caminhar em um parque — reclamo, mas o sigo pela alameda.

— O dia perfeito somos nós que fazemos — responde tomando seu café e não consigo evitar meu olhar ficar preso em seu perfil bonito.

Ele se vira de súbito me flagrando o encarando e desvio o rosto, meio sem fôlego e envergonhada.

— Vai continuar fingindo que não nos conhecemos? — Aproveito logo para entrar no assunto espinhoso.

— Fiquei com a impressão de que não gostaria que eu citasse esse fato.

— Eu ainda não entendo... Como pode... é muito bizarro.

— Foi uma coincidência eu encontrá-la no lago.

— Mas então sabia o tempo todo quem eu era?

Ele assente e não parece sentir a menor culpa.

Isso me irrita e paro, encarando-o.

— Podia ter me dito, me senti uma idiota quando o encontrei naquela sala de reunião. Em vez disso, mentiu pra mim.

— Eu não menti para você, Kiara.

Sua voz é firme e agora ele parece meio contrariado.

— Fiquei muito surpreso quando me dei conta de quem você era.

— Mas já sabia quem eu era, é esquisito. Não entendo porque não disse nada.

— Não pareceu importante.

— Desculpa, mas continua confuso.

— Eu pretendia lhe dizer, mas você fugiu correndo.

Abaixo o olhar, contrariada ao me lembrar porque fugi, mas não quero dizer isso a ele.

Ou talvez ele saiba.

Porém não insiste quando dou de ombros e volto a andar.

— Acho que isso não tem mais importância agora.

Espero que com isso entenda que pretendo esconder o pequeno detalhe de que ele me tirou do lago congelada e esquentou meu corpo com o seu, não só uma, mas duas vezes e que virou meu mundo frio e cinzento de ponta-cabeça desde então.

— Foi por isso que saiu daquele jeito da reunião da De Santi?

— Sim, eu estava chocada por ver você.

— Sinto muito, não era minha intenção assustá-la. E nem há motivos para não aceitar a nossa proposta.

Ele tem razão em partes.

— Não deveria ter saído correndo daquele jeito. Foi imaturo, mas estava confusa.

— Há mais algum motivo para não querer aceitar?

Mordo os lábios, indecisa.

Óbvio que não lhe direi que ainda estou atraída por ele e que este é o motivo.

— Estou me preparando para as Olimpíadas de inverno. Eu e Chris estaremos muito ocupados e...

— O motivo é o Christian?

— Como assim?

— Vocês parecem bastante íntimos. Quando pesquisamos sobre vocês, acreditei que era apenas especulação de fãs, mas hoje percebi que não.

Desvio o olhar, posso dizer que tinha razão. Eu e Chris não somos um casal, mas percebo que será mais seguro que continue pensando que estamos juntos.

Então só dou de ombros.

— Isso não é da sua conta e de ninguém.

— Realmente não é, mas se não aceitar a nossa proposta, preciso de um motivo.

— Não disse que não...

Volto a caminhar.

Nick não diz nada enquanto caminhamos lado a lado e de repente me deparo com uma escultura peculiar que chama minha atenção. É um casal sentado em um banco. O homem tem uma bolsa grande que parece uma mala, o que implica que ele está prestes a fazer uma viagem. A mulher está enrolada em seu corpo como se o amasse profundamente. Seus braços estão cruzados sobre o peito e uma mão está agarrando a jaqueta do homem. Sua cabeça está inclinada para ela e um de seus braços está envolto em suas costas.

Eu me abaixo para ler o título Desparture – Partida.

Não sei o que há na escultura, mas algo nela me comove.

— É linda — murmuro ainda presa aos detalhes e à emoção que ela transmite.

— Minha esposa adorava essa obra.

Eu me viro, quase esquecido que Nick está ali.

Primeiro um tanto chocada por ele ter citado a esposa, o que me causa um mal-estar ao lembrar da mulher. Claudia. E o jeito que ela me olhou como se soubesse que eu tinha dormido abraçada ao marido dela.

Eu me viro para olhá-lo, mas ele está com a atenção na escultura, porém, seus pensamentos parecem estar longe.

— Sempre que vínhamos aqui, ela fazia questão de visitá-la. Acho que se identificava com o... tema.

— Tema?

— A obra remete a uma despedida. George Lundeen, o escultor mora no Colorado, ele diz que a escultura foi baseada em um esboço de 1973 que ele fez quando viu um casal em uma estação ferroviária italiana. Nós sempre discutimos se a palavra "partida" significa que o casal na escultura está prestes a fazer uma viagem juntos ou a se separar. Suspeito que a última ideia seja verdadeira porque apenas o homem tem uma mala e a mulher o agarra com o punho cerrado como se não quisesse perdê-lo. — Ele sorri nostálgico. — Ela gostava de pensar em possíveis histórias de fundo quando via estátuas. E se identificava com a mulher que ficava para trás.

— O que quer dizer? — Eu me vejo fascinada pela história.

— Quando nos conhecemos, eu tinha vinte anos e estava partindo para competir na Europa. Houve muitas partidas. E ela sempre dizia que de alguma maneira sentia que um dia eu partiria de vez, a deixando para trás. É irônico pensar que foi justamente o contrário.

— Como assim?

Seu olhar descansa no meu e não estou preparada para a tristeza que enxergo no fundo da íris âmbar.

— Ela morreu há dois anos.

Perco o ar por um instante.

— O quê? Eu vi sua esposa lá em Whistler. Ela se apresentou pra mim. Claudia.

— Claudia? Claudia era irmã da minha esposa, Claire.

— Oh — sussurro ainda confusa e chocada me dando conta da confusão que fiz.

Eu me recordo do pequeno diálogo que tivemos. Eu e a mulher que acreditei ser esposa de Nick.

Ela me tratou com rispidez. Até certo ciúme. Ou acreditei ser isso. Mas em nenhum momento ela disse que era esposa de Nick.

Eu deduzi porque ela era uma versão mais velha da mulher do retrato.

Minha nossa, então Nick não é casado?

— Você não é casado — repito apalermada e não conseguindo esconder o alívio vergonhoso que sinto.

E enrubesço em seguida, mas Nick não parece ter percebido.

— Sou viúvo há dois anos.

Há certa rudeza em seu tom.

— Por isso foi embora?

Enrubesço ainda mais, querendo mentir, mas acho que é tarde.

— Sim, fiquei envergonhada.

— Por quê?

Ele vai mesmo me fazer falar?

— Claudia não pareceu ficar feliz em me ver com você. E como deduzi que era sua esposa...

— Ainda não entendi porque achou que ela era minha esposa.

— Eu vi o retrato no escritório. Desculpe, não me ache enxerida, apenas fui atrás das minhas botas e vi as fotos. E como não tinha dito nada sobre ser casado, me senti... meio enganada.

— Por que diabos eu ia te enganar?

— Para me levar pra cama?

Ah merda, eu quero tomar as palavras de volta assim que elas sobrevoam entre nós.

Acho que nunca estive tão constrangida na vida.

— Achou que eu queria trepar com você?

Perco o ar com a escolha de palavras cruas.

E tento conter minha imaginação que por alguns instantes visualizou exatamente o que Nick estava sugerindo.

Meu rosto cora agora e não é mais de vergonha.

Provavelmente meu corpo inteiro está corado.

Mas não consigo esquecer como acordamos grudados naquela manhã.

Da sensação de tê-lo tão perto.

De tê-lo excitado tão perto.

O que teria acontecido se Claudia e a filha dele não tivessem aparecido?

— Responde — ele exige ante meu silêncio.

— Você quem está dizendo — murmuro.

— Eu não sou um aproveitador de meninas indefesas, Kiara.

— Não sou uma menina — rebato quase por instinto.

Não me agrada que Nick me veja como uma menina.

Obviamente sou mais nova que ele. Talvez uns dez anos ou 12, não mais do que isso, acredito. Ele não tem idade pra ser meu pai, por exemplo.

Não gosto que ele interprete qualquer coisa que pudesse acontecer entre nós dois como algo pervertido.

— Não tinha nenhuma intenção sexual com você naquela noite. Eu apenas a tirei do lago e a mantive aquecida.

— Você fica de pau duro toda vez que faz uma boa ação?

Levo a mão à boca, horrorizada quando retruco Nick.

Minha nossa, eu disse mesmo isso?

Que diabo estou fazendo?

Nick parece ter perdido a fala, chocado com o que eu disse e eu quero que um buraco se abra no chão e eu enfie a cabeça lá pra sempre.

— Oh meu Deus, esquece o que eu disse, eu não... — Cubro o rosto com as mãos, me sentando ao lado da escultura.

Por um momento, acho que Nick vai me deixar ali, sozinha com meu constrangimento, mas ele senta ao meu lado.

— Kiara, olhe pra mim.

Há certa suavidade em sua voz firme e obedeço.

— Eu preciso te pedir desculpas por aquilo. Realmente não faria sentido eu te dizer que não havia nenhuma intenção, quando... Enfim, me desculpe. Foi algo... instintivo. Acredite em mim quando digo que não iria nunca me aproveitar de você.

De repente um déjà-vu me faz sentir falta de ar.

Aquelas palavras. Ditas por outra boca.

A boca de alguém que, diferentemente de Nick, era de confiança.

Que eu nunca imaginaria...

— Os homens dizem isso quando lhes convém.

Desvio o olhar limpando as lágrimas que nem senti estar vertendo.

Ele se levanta.

— Não eu, mas se acha que sou capaz de me aproveitar de você, talvez devamos parar por aqui. — Parece realmente ofendido e eu não sei o que pensar.

Eu tenho um histórico.

Eu deveria nunca mais acreditar nesse tipo de promessa.

Mas a Kiara que me torno perto de Nick é desconhecida pra mim, e é ela quem se levanta e segura seu braço, o impedindo de se afastar.

— Fica.

Seu olhar desce para onde meus dedos o tocam e eu o solto.

— Me desculpe, eu não lido bem com... — não consigo continuar.

Mas percebo que subitamente, Nick compreende.

Há entendimento em seu olhar.

Ele não sabe de tudo, mas pode imaginar.

— Não peça desculpas.

— Olha, acho que você sabe que vou aceitar a proposta da De Santi.

— Não quero que aceite apenas porque sua mãe a está coagindo.

— Ela não está me coagindo.

O que é uma tremenda mentira, e talvez Nick já tenha percebido que Maude tem muita influência sobre minhas escolhas.

— É uma proposta praticamente irrecusável. Muitos atletas morreriam por algo assim. E ajudaria Chris também.

— Chris é importante pra você.

— Claro que sim, somos parceiros. E acho que não entendo porque ele não está incluso na campanha que querem fazer.

— Nós temos um interesse em atingir um público feminino, por isso a escolhemos.

— E eu não entendo ainda por que quer ficar... atrás de mim.

— Faz parte do processo criativo. Você será o rosto que representará a marca. Precisamos conhecê-la. Quero conhecer sobre patinação artística e sua relação com o esporte. Sobre o que a motiva. Suas ideologias, paixões, o que a move.

— Isso parece bem profundo.

Ele sorri.

E eu sinto meu pulso acelerar.

Inferno.

— Quero conhecer você. Quem é Kiara Willians, a pessoa por trás do ídolo da patinação.

— E eu vou descobrir quem é você também? — arrisco de forma desafiadora.

— Sei que não me conhece. E não fingirei ser um santo. Sou humano, cheio de falhas e se me permitir ficar por perto, talvez não goste de mim. Mas eu garanto, que jamais, nunca, me aproveitaria de você, como acho que já fizeram. Não sou este homem, Kiara.

— Por que acha que não vou gostar de você?

— Um dia talvez descubra.

— Talvez não goste de quem eu sou também.

Ele estende a mão.

— Temos um acordo?

Eu confio em sua palavra?

Deveria estar com medo do fato de ele dizer que eu podia ter motivos para não gostar dele.

Mas em vez disso, me vejo segurando sua mão e sacudindo a cabeça em afirmativa.

Ignorando que gosto do calor que a palma áspera transmite a minha.


Capítulo 7

Quando chego em casa, não me surpreendo ao encontrar minha mãe. O que faz a animação que eu estava sentindo desde que disse a Nick que concordava em assinar com a De Santi arrefecer.

Eu sei que é um tanto paradoxal estar animada com aquela perspectiva sendo que há algumas horas eu estava relutante.

Porém, não posso mentir a mim mesma que tinha muito a ver com o fato de eu não querer ficar perto de Nick, depois do que aconteceu em Whistler, afinal, não é nada saudável se atrair por um homem comprometido. No entanto, desde que Nick desfez a minha confusão, sinto uma certa empolgação com o que estaria por vir.

Nem sei se é seguro me sentir assim. A verdade é que não consigo me lembrar do tempo em que a perspectiva de ter a companhia de um homem era atraente pra mim. Por muito tempo achei que nunca mais ia sentir aquela empolgação. Aquele frio na barriga num misto de medo e ansiedade.

Claro que Nick explicou que não tinha interesse em mim, e isso devia ter me feito cair na real, mas de certa forma, ele garantir aquilo me deixou segura. Eu tinha medo dos homens que se interessavam por mim, tinha me transformado numa mulher de gelo, afastando qualquer aproximação, como forma de me proteger de algo que eu sabia que podia sair do controle.

O único que me deixava segura era Chris, porque nossa relação era totalmente platônica.

Só que não dá para comparar Nick e Chris.

Eu não me sinto atraída por Chris.

Então o que acontecerá com aquela atração enquanto Nick me acompanhar naquelas semanas? Ela se extinguirá como uma chama sem ser alimentada pelo fogo? Talvez o fato de ele me garantir que eu estava segura tenha me dado coragem de pagar pra ver.

Assim, depois de concordar em ir até a De Santi na manhã seguinte para finalmente assinar o contrato, Nick havia informado que precisava ir embora, mas que chamaria um táxi para me levar até o centro de treinamento.

Agora, avanço até a minha cozinha onde mamãe está arrumando alguns mantimentos em meu armário.

— Oi mãe, o que está fazendo aqui?

Ela me lança um olhar irado.

— Jogando fora essas porcarias que encontrei.

Droga, Chris deixou algumas barras de chocolate da última vez que me visitou.

— Quantas vezes terei que dizer que não é pra comer açúcar?

Respiro fundo, tentando não ficar contrariada. Não vai adiantar.

— Não tem nada tão calórico assim...

Ela fecha o armário me encarando com censura.

— Deveria ser mais responsável. Acha que vai conseguir fazer seus saltos estando gorda?

— Mãe...

— Nunca deveria ter concordado que morasse sozinha.

— Eu sou adulta, já falamos sobre isso...

— Adulta? Agindo do jeito que age? Como sair daquele jeito ontem na reunião da De Santi?

— Eu sei que foi horrível, desculpa.

— Tem muita sorte de Nick de Santi concordar em te dar uma chance... ele pediu para conversar com você, eu insisti para estar junto, mas ele afirmou que seria melhor conversar com você a sós.

— Sim, nós conversamos e concordei em voltar lá e assinar o contrato, satisfeita?

— Mas não havia a menor chance de você discordar! Eu não ia permitir que fizesse algo deste tipo!

— Sei muito bem. Agora já que resolvemos isso, vou tomar um banho.

Eu torço para que Maude já tenha ido embora quando saio do chuveiro, mas ela está ali no quarto mexendo no meu closet.

— Estou escolhendo uma roupa decente para você ir até a De Santi amanhã.

— Mãe, sério, eu posso fazer isso. Será que pode ir embora? Quero descansar.

— Descansar coisa nenhuma, tem aula de pilates hoje! Já que cancelou ontem.

— Certo, eu me esqueci — resmungo colocando um moletom em vez do pijama que planejei.

— E consegui inventar uma desculpa para as fotos que ia fazer e fugiu! A Vogue lembra?

— Sim, eu me lembro.

— Foi remarcada para depois de amanhã, espero que não invente nada dessa vez.

— Mais alguma coisa? — Eu me sento na penteadeira, pegando minha escova.

— Seu pai.

— O que tem meu pai?

— Ele quer que vá visitá-lo no aniversário dele, mas eu já disse que estará ocupada.

— Mãe, claro que eu vou!

— Não deveria. Para George ficar torrando sua cabeça com asneiras, como sempre? Sabe que ele odeia o jeito que cuidamos da sua carreira.

— Ele apenas se preocupa...

— E eu não? Ninguém se preocupa mais com você do que eu! — Ela arranca a escova da minha mão e começa a desfazer os nós, assim como fazia quando eu era pequena.

Não posso deixar de olhar para a imagem de nós duas e sentir que de alguma forma nada mudou.

***

Na manhã seguinte, encontramos Matt Balvin na mesma sala de reunião nos escritórios da De Santi para assinar o contrato e não posso negar que fico decepcionada quando Nick não está presente.

— Achei que Nick de Santi estaria aqui — minha mãe comenta o que eu estava louca pra fazer, porém sem coragem, quando terminamos de assinar todos os papéis.

— Nick teve que comparecer a uma atividade na escola da Mackenzie.

— Mackenzie?

— A filha dele.

— Mas ele é um homem de negócios e a contratação da Kiara deveria ser algo importante para ele dar atenção.

— Mãe...

— Sabe que eu tenho razão. Me parece meio descaso do Senhor de Santi com você! Tenho certeza de que essa menina deve ter uma mãe para cuidar dela.

— A esposa do Nick morreu, Senhora Willians — Matt esclarece. — Nick é viúvo há dois anos e desde então decidiu deixar a direção da empresa para se dedicar melhor à filha.

Minha mãe recua, embora não pareça abalada pelo mau julgamento que fez.

— Mas neste projeto, achei que ele estaria à frente, tanto que insistiu em acompanhar Kiara...

— Sim, Nick está à frente deste novo empreendimento, porque é muito pessoal pra ele.

— Pessoal? — indago, muito curiosa.

— Sim. Claire estava bastante envolvida com a empresa. Ela e Nick trabalhavam juntos em várias ideias. E a ideia de estender a marca da De Santi a vestuários e investir em um público mais feminino e diversificado foi dela. Infelizmente ela faleceu e o projeto foi arquivado. Porém, Nick o retomou agora e por isso ele está dando uma atenção especial a isso. É uma homenagem a Claire — Matt fala com carinho.

— Compreendo — minha mãe anui. — Muito triste um homem jovem como ele ser viúvo.

— Sim, todos nós sentimos a partida de Claire.

— O senhor a conhecia?

— Sim, eu e Nick somos amigos de adolescência.

Hum, de repente encaro Matt Balvin com olhos mais atentos.

Até ali, ele era apenas um executivo da De Santi, não imaginei que fosse amigo de longa data de Nick.

De repente sou acometida por uma onda de curiosidade inadequada e tenho que me conter para não me inclinar e sabatinar Matt sobre a vida de Nick.

Como seria o Nick jovem? O que o levou a competir no motociclismo?

E principalmente quem era Claire, a mulher que o conquistou e partiu tão cedo?

— E o Senhor De Santi nunca quis se casar novamente? — minha mãe questiona.

— Mãe, não seja inconveniente! — murmuro, mortificada.

— Não, Nick era muito apaixonado por Claire — Matt responde. — Eles foram muito felizes, nos oito anos em que foram casados, e estiveram juntos por cinco anos antes. Ainda está sendo muito difícil para ele.

— Uma pena, um homem atraente como ele, deveria se casar novamente. O senhor é casado?

— Mãe! — sibilo, constrangida.

Mas Matt Balvin deve ser um homem paciente, pois não parece incomodado com as perguntas inconvenientes da minha mãe.

— Não, eu sou solteiro.

— Mãe, podemos ir? — eu peço, querendo parar de passar vergonha. — Tenho treino ainda.

— Sim, vamos indo.

Nós nos despedimos de Matt Balvin e reclamo com a minha mãe no elevador por ter sido invasiva.

— Invasiva? Perguntei apenas coisas que ninguém tem problema de responder!

***

Estou no gelo há duas horas quando sinto uma comichão na nuca, como se alguém estivesse me observando e, ao me virar para as arquibancadas, avisto Nick de Santi.

Meu coração salta no peito, ansioso, sem que eu consiga evitar.

— Kiara, concentra neste death spiral!

Escuto a voz de Nádia gritando e volto a atenção para Chris que está me encarando com um olhar divertido.

— Seu chefe chegou.

— Cala a boca! — Fico na posição para fazermos o elemento, que consiste no patinador segurar a parceira por uma das mãos enquanto ela gira em volta dele, horizontalmente, rente ao gelo.

Death spirals tem alto grau de dificuldade e pontuam. Nádia insiste que treinemos com afinco, horas seguidas, todos os elementos, para depois passarmos a coreografia e ao programa que apresentaremos propriamente dito. Patinação é sobretudo fazer seu corpo memorizar todos os movimentos e isso se consegue com repetição, quantas vezes for preciso.

Geralmente, sou muito concentrada e, por mais que eu possa não ter dias bons — emocionalmente falando — sempre esqueço de tudo no gelo.

Porém, estou muito consciente de Nick me observando. O que será que se passa em sua mente?

Acredito que ele não tenha conhecimento sobre patinação no gelo, provavelmente está assistindo como qualquer leigo, admirando a beleza dos movimentos, e não a minha técnica. E ainda assim, fico nervosa, como se algum juiz de prova importante estivesse me analisando. Mesmo tentando manter o olhar em Chris, a toda hora desvio a atenção para onde Nick está e franzo o olhar ao vê-lo com uma mulher sentada ao seu lado parecendo entretidos em uma conversa.

— Aquela não é a Peyton conversando com o De Santi? — Chris indaga, percebendo meu olhar.

Sim, reconheço agora, Peyton Percy, irmã mais velha de Alana, foi uma lenda durante os anos em que patinou. Ela se aposentou há seis anos, dona de dois mundiais e uma medalha olímpica. Pelo que eu sabia, ela se casou e tem um filho. Mesmo assim, houve uma época em que ela era sempre vista nos treinos e nas competições com Alana. Mas há algum tempo eu não a vejo por ali.

E não posso deixar de me questionar o que ela está conversando com Nick. Assim como Alana, Peyton não gosta de mim.

Quando Nádia dá o treino por encerrado, Tyler e Alana também terminam e claro que ela não poderia deixar de vir me atormentar.

— Fiquei sabendo que assinou com a De Santi, um contrato milionário?

— Sim, está bem informada. — Coloco os protetores de patins, louca para ir me vestir.

— A bruxa da sua mãe deve estar bem feliz. Vai poder pagar mais uma plástica naquela cara amassada dela.

— Segura a inveja, Tonya! — Chris a provoca.

— Do que me chamou? — Alana se irrita por Chris a chamar de Tonya, fazendo uma alusão a Tonya Harding, a famosa patinadora americana problemática que foi acusada de ter planejado um ataque a uma patinadora concorrente na década de noventa.

— Alana, pare com isso. — Tyler se aproxima, e em seus olhos orientais, vejo um pedido de desculpas pelos comentários maldosos de sua parceira. — Parabéns, Kiara. Realmente incrível. — E ele se vira para Chris, estendendo a mão.

— Parabéns para você também, cara.

Chris sorri e aperta a mão de Tyler, que o puxa para um abraço e noto, divertida, que Chris ficou vermelho.

— Ele é um gato. — Alana continua olhando em direção a Nick, que agora se aproxima com Peyton. E correndo na frente vem um garotinho.

— Oi tia Alana! — Ele pula na garota que sorri e acho que é a primeira vez que Alana Percy exibe um sorriso genuíno.

E fico me perguntando se Alana é desagradável só comigo. Mas aí me lembro das fofocas que ela supostamente espalhou sobre Diana e Dimitri. Que, aliás, não apareciam há dois dias para treinar.

— Ei, eu conheço você! — O menininho aponta pra mim. — Eu vi você dançando no gelo, igual a tia Alana! Seus giros são maneiros! Pode me ensinar?

E sem aviso, ele abraça minha cintura assim como fez com a tia, me deixando sem ação. Levanto a mão, não sabendo o que fazer.

Eu me sinto constrangida, ainda mais quando Alana e Peyton bufam, contrariadas.

— A mamãe pode te ensinar ou a tia Alana! — Peyton puxa o filho, para meu alívio.

— Mamãe disse que hoje é seu aniversário! — o garotinho diz à tia, animado.

— Sim, é aniversário da tia Alana — é Peyton quem confirma. — Convidou seus amigos para a festa hoje?

Alana faz uma careta, obviamente ela não ia me convidar para comemorar seu aniversário, já que não somos amigas.

— Duvido que a princesinha do gelo vai se dignar a aparecer em uma festa de quem não tem medalha de ouro.

— Bem, algumas pessoas têm medalhas, mas não tem caráter — Peyton dardeja e quase perco o fôlego ao perceber a alfinetada.

— Oi, Kiara.

Meu olhar desvia para Nick, que está um pouco afastado do grupo. Certamente ele ouviu Peyton.

— Oi.

— Já está pronta?

Alana desvia o olhar de mim para Nick, com a sobrancelha levantada, com certeza pronta a fazer algum comentário maldoso.

— Eu vou só trocar de roupa.

E me afasto rápido.

— Continua metida.

Ainda escuto Peyton.

— Ei, espera. — Chris me alcança.

Eu paro, irritada.

— Por que elas me odeiam, sério?

— Não se deixe abalar por elas.

— Mas Alana está sempre pronta a me provocar. É ridículo! E agora Peyton, caramba! Sinceramente eu não preciso disso para me tirar a concentração!

— Olha, vou falar com o Tyler, ok? Ele parece ser o único que tem algum controle com a Alana.

— Seria bom que ela parasse de ser infantil — resmungo entrando no vestiário e me apressando em me trocar.

Quando saio do prédio, Nick de Santi está me aguardando como ontem e eu mordo os lábios, meio hesitando ao me aproximar de onde ele está, encostado na moto.

Hoje ele veste uma camisa branca e a mesma jaqueta de couro.

— Achei que estaria hoje na assinatura do contrato.

— Eu tinha um compromisso.

— Sim, com sua filha — murmuro.

Ele não responde, como se não quisesse falar sobre sua filha comigo. E sinceramente, não sei se é um assunto que eu queira falar com ele.

Mas é meio surreal pensar que Nick é um homem vivido. Que já teve uma longa história com uma mulher. Uma mulher que o deixou há dois anos com uma filha pequena.

— O que fará agora?

— Eu vou pra casa. Hoje por um milagre não há nenhuma programação. Eu costumo fazer aulas de balé e pilates. E vira e mexe tenho algum compromisso como entrevista, fotos, essas coisas chatas. Amanhã tenho treino de manhã e à tarde tenho uma sessão de fotos.

— Certo, então acho que a deixarei descansar.

— Por que não vem comigo? — eu me vejo dizendo.

Minha nossa, de onde saiu aquilo?

— Achei que fosse para sua casa.

— Sim, isso. Podemos jantar e conversar. — Meu coração está disparado enquanto prossigo.

Eu nunca fiz algo assim.

Nunca tomei a iniciativa de convidar um cara para ir até meu apartamento, para jantar comigo.

A não ser Chris.

Como Nick não responde de pronto, sua expressão é aquela que não consigo definir, eu tento corrigir meu convite.

— Você disse que queria me conhecer. Acho que seria interessante conhecer onde eu vivo, e podemos conversar sobre... patinação artística. Ou sei lá o que precisa para o seu projeto.

Meu rosto está corado de mil tons de vermelho de constrangimento, mas, ao mesmo tempo, há algo novo em meu íntimo.

Uma alegria pela coragem de arriscar a fazer algo que nunca fiz.

— Tudo bem — Nick concorda por fim e eu quase respiro aliviada.

— Você me segue?

Sigo para meu carro e estou quase tão ansiosa como quando vou participar de alguma competição valendo medalha.

Meu apartamento fica em Downtown Vancouver, não longe de onde treinamos e quando estaciono e saio do carro, Nick salta da moto e vem em minha direção. A tarde está caindo dando lugar ao crepúsculo, o céu tingido de vários tons de laranja e espero que isso disfarce o rubor no meu rosto que parece ser um elemento constante toda vez que Nick está por perto.

Nós seguimos para o elevador e quando as portas se fecham começo a sentir uma certa inquietação que vai aumentando conforme abro a porta do apartamento para que Nick entre comigo.

Meu apartamento é bastante espaçoso e tem uma bela vista dos prédios do centro e do mar.

Maude fez questão de escolher a decoração, porque na época eu estava ocupada treinando dia e noite para o mundial. Eu fiquei um pouco decepcionada por não poder cuidar daquele detalhe pessoalmente, mas pelo menos Maude tinha bom gosto e eu apreciei o trabalho.

— Aqui é muito bonito. Mora sozinha? — Nick indaga andando pela sala.

— Sim, eu me mudei há pouco mais de um ano.

— Você tem 23 anos. Morou sempre com sua mãe antes?

— Morei. Aliás, foi muito difícil convencer Maude de que eu poderia morar sozinha.

— É o que os adultos deveriam fazer.

Noto uma certa acidez em sua voz que me deixa contrariada.

— Minha vida... Não é como a das outras pessoas da minha idade.

Eu me dirijo para a cozinha abrindo a geladeira.

— Queria te oferecer algo para beber, mas só tem leite e chá gelado — digo com uma careta.

— Imagino que uma atleta não deva passar as noites tomando vinho — Nick rebate divertido, com um arremedo de sorriso que me faz sentir borboletas na barriga.

— Não, realmente.

— Você me convidou para jantar. Você cozinha?

Eu coro, constrangida.

— Na verdade, não sou boa com isso. Minha mãe controla o que eu como e, geralmente, me alimento do que a nutricionista orienta.

— Nunca sai da linha?

— Tento não sair, mas escorrego quando Chris está aqui e...

Eu paro ao me lembrar que deixei Nick imaginar que eu e Chris tínhamos um envolvimento romântico.

— Chris dorme muito aqui com você?

— Às vezes... — respondo evasiva. — Olha, acho que não foi uma boa ideia te convidar. Talvez devêssemos sair para jantar ou algo assim. Profissionalmente, não estou querendo dizer um encontro, claro.

Meu Deus, que diabos estou fazendo?

Óbvio que Nick tinha entendido que não íamos a um encontro.

— Você costuma sair para encontros?

— Que pergunta é essa? — balbucio confusa.

— Apenas uma pergunta. Não é o que combinamos, que eu precisaria te conhecer? — Ele parece achar nada demais.

— É, claro.

— E qual a resposta?

— Eu não tenho tempo para isso. — Aplico a resposta que uso sempre e que parece satisfazer a todos os curiosos com minha vida amorosa.

— Por isso fica com Chris?

— Olha... Não há nada entre mim e Chris — confesso.

— Você deu a entender que tinha.

Eu coro.

— Eu sempre faço isso. Evita perguntas embaraçosas.

— Que tipo de perguntas embaraçosas?

— As pessoas costumam ficar curiosas sobre o que faço na minha vida privada. Por que não tenho um namorado é a pergunta mais frequente.

— E por que não tem um namorado?

Eu hesito.

Tenho a impressão de que Nick está me desafiando a dizer a verdade.

Mas recuo.

— Minha carreira na patinação é minha prioridade.

— Sempre foi assim?

— Sim, patino desde os três anos. Comecei a patinar em dupla com 14 e ganhei um nacional, foi aí que minha mãe percebeu que eu deveria ser medalhista olímpica.

— Sua mãe?

— Nós duas — corrijo. — Amo patinar. É minha vida. Acho que sempre vai ser. Sou grata a minha mãe por ter percebido que eu tinha esse talento e me incentivado. Ela abriu mão de muitas coisas para me trazer pra cá e para que eu pudesse ter o melhor treino e preparo.

— E você abriu mão de muitas coisas?

Desvio o olhar para a janela, meus pensamentos vagando para outro lugar, outro tempo. Decisões que não poderiam nunca serem mudadas e que moldavam toda a nossa vida.

O tempo não volta.

E certas escolhas são irreversíveis, por mais que elas permaneçam nos assombrando para sempre.

Uma escolha sempre implica uma renúncia.

Aprendi isso muito cedo e nunca vou esquecer.

— Todos nós abrimos mão de alguma coisa, não? — respondo por fim com um sorriso triste. — Minha mãe, por exemplo, abriu mão do meu pai.

— O que aconteceu?

— Papai foi contra que mamãe me colocasse na patinação sendo tão nova. Ele achava que eu nem tinha idade pra escolher e para saber de tudo o que teria que renunciar por este esporte. Então, quando ela me trouxe para Vancouver, o casamento acabou.

— O que seu pai faz?

— Ele é professor, em uma pequena cidade há duas horas daqui. Ele faz aniversário em breve, devo visitá-lo.

— Acha que a culpa do fim do casamento dos seus pais é sua?

Aquela pergunta coloca o dedo em uma ferida que ainda é dolorida.

— Como não achar?

— Não acho que a culpa seja sua. Eles eram os adultos. As crianças nunca têm culpa de nada.

— Você faria algo assim, pela sua filha? Abrir mão de um amor, como a minha mãe fez por mim?

— Minha filha é e sempre será prioridade. Meu maior amor. Eu abriria mão de qualquer coisa por ela. Seria capaz de qualquer coisa por ela.

Há voracidade em sua voz e dá pra perceber o quanto ele ama a filha.

Como deve ser pra ele, cuidar de uma criança sozinho, sem a mãe?

Isso não deveria importar pra mim, afinal Nick só estará ali por alguns meses, me cercando com sua presença magnética e revirando meus sentidos do avesso sem nem perceber.

— Acho que os pais devem mesmo colocar os filhos e a felicidade deles como prioridade — eu concordo.

— Acha que é isso que sua mãe faz?

Noto uma certa ironia em sua voz que me intriga.

— O que você quer dizer?

— Peyton Percy não parece nutrir muita simpatia por sua mãe.

— Ah, claro. Peyton e Alana me odeiam. Imagino que ela deve ter destilado muito veneno contra mim.

— Ela disse que você é metida e arrogante.

— Eu posso imaginar... O que mais ela disse? — indago com curiosidade mórbida.

— Que todos dizem que é feita de gelo, que não é amiga de ninguém, a não ser de Chris.

— Bem, eu sou apenas reservada — tento me explicar. — As pessoas não entendem muito bem este conceito.

O que Nick não sabe é que nem sempre eu fui assim.

— Ela disse que abandonou Dimitri Ivanov dias antes de um mundial importante.

Ah merda, respiro fundo, sentindo dor de estômago por ter que voltar aqueles dias sombrios.

— Ela não sabe dos verdadeiros motivos.

— Então tem um motivo?

Mordo os lábios, hesitando.

— Não tem mais importância — desconverso. — Isso foi há muito tempo. Seguimos em frente.

— Ela também disse que sua mãe apavora as outras participantes.

— O quê? Isso é absurdo. — Solto uma risada incrédula.

Maude não é simpática com ninguém, mas dizer que ela apavora minhas concorrentes já é demais.

— E ela disse que tem certeza que sua mãe é responsável pela intoxicação de Alana no mundial do ano passado, que a deixou fora das finais.

Arregalo a boca, horrorizada.

— O quê?

Alana tinha mesmo passado mal e ficado fora das finais do último mundial por uma intoxicação alimentar, mas suspeitar que minha mãe tinha algo a ver com isso era uma acusação ridícula.

— Isso é mentira!

— Apenas repetindo o que ela disse.

— É tudo absurdo. Nem ela e nem Alana vão com a minha cara, por isso inventam essas bobagens sem sentido!

— Ela disse que tinha outras histórias pra contar, mas que teria que marcar um jantar.

— Ah meu Deus, ela deu em cima de você?

Nick dá de ombros.

— Eu não sei. Talvez só quisesse me alertar sobre você e sua mãe.

— Alertar? Você acreditou em algo do que ela disse?

— Não costumo acreditar em nada que não tenha provas.

Há certa dureza em sua voz que me deixa com um aperto no estômago.

— É isso que está fazendo aqui? Coletando provas para me incriminar ou algo assim?

— A não ser que tenha algo que te incrimine.

Ele está falando sério?

— Isso é ridículo. Não sou mau-caráter, nem minha mãe. Se você prefere acreditar em fofocas das irmãs Percy, o problema é seu!

Eu passo por ele, disposta a abrir a porta e mandá-lo embora, mas ele segura meu braço.

— Ei, calma.

Respiro fundo, lutando para me acalmar.

— O que está fazendo aqui, Nick?

— Você sabe, estou conhecendo você. Temos um contrato e um projeto a desenvolver.

— E se descobrir que sou uma pessoa horrível? — murmuro.

— Você é?

— Às vezes, sim.

— Às vezes eu também acho que sou.

Sua voz parece cansada e ele me solta, passando os dedos pelo cabelo.

Ele está próximo e volto a sentir aquela eletricidade fluindo de sua pele pra minha.

É assustador. É maravilhoso.

É como se estivesse o tempo todo à beira de um precipício, sabendo que se pular, não haverá volta.

De repente meu celular toca e aproveito para pegá-lo no bolso, atendendo ao ver que é Chris.

— Ei, tudo bem?

— Sim, o que está fazendo?

Relanceio um olhar para Nick.

— Nada.

— Que tal se divertir um pouco? Estou indo para a festa da Alana.

— Ir a uma festa de Alana Percy não é o que eu chamo de divertimento.

— Por que não? Estará todo mundo lá. Você nem vai ter que conversar com ela.

— Ela não me convidou.

— Ela convidou sim.

— Mentira.

— É sério. Tyler pediu que fôssemos, disse que ia conversar com a Alana e que devíamos nos aproximar dela porque no fundo, ela é uma pessoa legal por baixo dos chifres do diabo e tal.

Eu rio.

— Eu não sei...

— Vou te mandar o endereço por mensagem, nos encontramos lá umas dez horas, ok? — E ele desliga sem me dar chance de dizer não.

Eu encaro Nick.

— Chris está indo à festa de Alana hoje e quer que eu vá também.

— Por que não vai?

— Pelo fato óbvio que Alana me odeia, mas eu também não frequento muitas festas.

— Deveria ir.

— Quer ir também? — Pela segunda vez no dia me surpreendo comigo mesma.

— Sim, eu vou com você.


Capítulo 8

Ainda me pergunto que diabos estou fazendo quando caminho pelo saguão do meu prédio horas depois.

Estou usando um vestido preto de mangas compridas. Justo e curto. E saltos. Maude teria orgulho de mim, pois me esmerei na maquiagem e até escovei meus cabelos.

Não quero confessar a mim mesma que me esforcei para ficar bonita porque Nick de Santi vai me acompanhar.

Depois que aceitou o meu convite, ele foi embora e disse que passaria em algumas horas para me buscar.

Agora saio do meu prédio e me deparo com Nick dentro de um carro preto, seus olhos me seguem enquanto eu me aproximo e faço um sinal para ele não sair do carro, enquanto me apresso em abrir a porta do passageiro e entrar.

Estou um pouco ofegante quando pouso meus olhos em sua figura toda vestida de preto. Ele nunca me pareceu tão atraente. Há algo de perigoso em Nick, talvez pela aparência morena, a barba quase rústica, ou as tatuagens que sobem por seus bíceps, desaparecendo dentro da camiseta escura.

— Você é pontual. — É seu comentário jocoso.

Sorrio nervosa.

— Tento ser.

— Pronta?

Faço uma careta.

— Não sei ainda o que vou fazer lá.

— Se divertir? — Ele levanta uma sobrancelha com um olhar divertido e tenho a impressão de ver certo desafio ali.

Não sei se uma festa de Alana Percy pode ser divertida, mas a perspectiva de ter uma noite ao lado de Nick me deixa quase eufórica.

Ele dá a partida, o carro deslizando quase silenciosamente pela rua.

— Nada de moto?

— A noite está fria e imaginei que usaria um vestido ou algo assim. — Ele vagueia o olhar para mim por alguns segundos, mas é o suficiente para eu enrubescer.

Será que ele está me achando atraente?

Isso não deveria ser importante, mas é.

Quero que Nick me ache bonita.

— Você costuma... sair assim? — Arrisco uma conversa.

— Assim como?

— Baladas, festas, bares, essas coisas.

— Quando eu era jovem, sim.

— Nossa, você fala como se fosse um velho.

Ele ri, uma risada rouca e deliciosa que faz minha barriga tremer.

— Eu tenho uma filha, as prioridades mudam.

Não faço nenhum comentário depois disso.

Não me sinto à vontade para falar sobre a filha dele. Isso me lembra que ele é tão diferente de mim e dos caras com que convivo.

A maioria dos caras na patinação são garotos.

Nick é um homem.

Um homem que já amou e perdeu. Um homem que aparentemente vive para criar a filha pequena.

E pensar nisso me deixa desapontada, porque sei que ele deve estar ali comigo apenas para desenvolver uma campanha para sua empresa.

Enquanto não consigo evitar aquela ebulição de sentimentos dentro de mim. Sentimentos que antes estavam congelados, encontraram em Nick uma faísca que ateou fogo em todos eles, e agora eles queimam lentamente, se transformando em um incêndio dentro de mim, que temo uma hora não conseguir conter.

Desvio o olhar para as luzes da cidade, permanecendo em silêncio, já não vendo tanta graça na noite que antes parecia promissora.

Sinto-me meio boba agora por, sem nem mesmo perceber, estar nutrindo ideias românticas em relação a Nick de Santi.

Justo eu, a garota de coração de gelo.

Chegamos ao bar, onde está rolando a festa de Alana, e saio do carro, antes que Nick abra a porta pra mim.

— Tudo bem? — Ele me estuda quando entramos e a música alta nos engolfa.

— Não sei se é uma boa ideia — murmuro um pouco arrependida.

— Se não quiser ficar pode ir embora.

— Agora já estou aqui. Chris está me esperando. E eu fiz você vir até aqui.

— Não tem que fazer nada para agradar ninguém. Nem Chris. Muito menos eu, Kiara.

Antes que eu consiga responder, Chris aparece.

— Olha só quem veio! — Ele me abraça e se vira para Nick. — Ei, Nick De Santi está aqui! — Ele olha pra mim, curioso.

— Nick está me acompanhando para fazer uma pesquisa, sabe, para a campanha da De Santi. — Enrubesço porque sei que Nick estar ali comigo parece algo mais do que uma simples relação comercial.

— Ah, entendi... E aí, pronta pra diversão?

Ele segura minha mão e me puxa em direção ao amontoado de pessoas no bar, banda tocando, gente dançando e muita bebida.

Olho para trás, e Nick está nos seguindo. No ambiente semiescuro não consigo ver sua expressão.

Nós nos aproximamos de uma roda de pessoas e eu reconheço, Alana e Tyler, entre alguns outros conhecidos da patinação.

— Ora, ora, se não é a princesinha de gelo! Desceu do olimpo para confraternizar com os pobres mortais? — Alana dardeja.

— Oi Alana, feliz aniversário. — Ignoro seu comentário mordaz e aceno para os outros. — Oi para todo mundo.

Mas Alana já está com sua atenção atrás de mim.

— Uau, Nick de Santi.

— Olá, Alana — Nick a cumprimenta.

— O que é isso? — Ela aponta para nós dois. Sei que sua pergunta está cheia de malícia e não gosto disso.

— Nick estará acompanhando a Kiara por algumas semanas, ele está desenvolvendo uma linha de roupas para a De Santi, e terá a Kiara como inspiração — Christian responde apertando meus ombros. — Que orgulho, hein garota.

Posso ver os olhos de Alana brilhando de raiva.

— Hum, se acha um cubo de gelo interessante!

— Alana, menos. — Tyler toca seu braço — Que tal irmos buscar mais bebida? — E ele a puxa em direção ao bar.

— Ei, Christian, vamos dançar? — Molly, uma garota que compete solo na patinação, sorri para Christian.

— Claro! — Ele se vira pra mim. — Vamos?

— Não, acho que vou apenas observar por enquanto.

Ele aperta meu braço.

— Por favor, se divirta hoje.

— Vou me divertir — garanto.

Ele se vira para Nick.

— Ei, Nick, que tal convencer a nossa patinadora a beber uma cerveja para relaxar?

— Eu não bebo cerveja, Chris...

— Acho uma boa ideia. — E ele se afasta até o bar.

— Estou mesmo surpreso de ver você com ele aqui, o que está rolando?

— Nada, não põe ideias na cabeça.

— E você está até sexy hoje. Não sou eu que tenho ideias.

— Chris, pare!

— Se eu fosse você, mandava ver.

— Não seja ridículo. Nick não tem nenhum interesse em mim...

— Não? O que ele está fazendo aqui?

— Ei, Chris, vamos! — Molly insiste e Chris pisca pra mim se afastando para a pista.

Sorrio meio sem graça para os outros me sentindo deslocada e me sento em uma mesa próxima.

Nick se aproxima com duas cervejas.

— Acho que nunca tomei cerveja na vida.

Ele se senta ao meu lado e bate a garrafa na minha.

— Para tudo tem uma primeira vez.

— Minha mãe me mataria — resmungo tomando um gole.

Hum, não é ruim.

Talvez beber um pouquinho não tenha problema algum. Todos os outros estão bebendo.

Nick me observa com um olhar curioso.

— Você parece meio deslocada.

— Eu não costumo... confraternizar desse jeito — confesso.

— Por que é uma patinadora e não tem tempo para se divertir?

— Também por isso.

— Você é tão jovem. — Ele parece estar falando para si mesmo. — Devia estar aproveitando sua vida.

— Mas eu aproveito. Ganhando medalhas — digo com falsa altivez.

— Sim, você é mesmo incrível patinando.

Esquento por dentro com o elogio. Claro que recebo muitos elogios sobre minhas habilidades, mas vindos de Nick tem um gosto diferente.

— O que estou querendo dizer é que só se é jovem uma vez.

— Como você era... jovem?

— Na sua idade eu estava viajando o mundo, competindo também. Mas eu me divertia, ia conhecer os bares da cidade e encher a cara.

— Se eu bebesse toda noite, nem conseguiria acordar no dia seguinte.

— Não precisa ser toda a noite. Todo mundo deveria fazer alguma loucura de vez em quando. É muito chato seguir todas as regras.

— Acha que eu sou chata?

— Você que está dizendo.

Eu me sinto contrariada.

Não quero que Nick me ache uma chata que não sabe se divertir.

“Mas é o que você é, não?”

Uma voz zombeteira sussurra dentro de mim, me irritando.

— Certo. Vou seguir seu conselho. — E eu me levanto, sentindo-me desafiada e ao chegar no balcão, peço algumas garrafas de cerveja.

Volto à mesa carregando todas as garrafas e Nick ri.

— O que é isso?

— Apenas mostrando a você que sou capaz de me divertir.

— Sabe que não estou dizendo que tem que ficar bêbada, não é?

— E se eu ficar? Nunca fiquei bêbada antes. É horrível?

— Depende.

— Minha mãe diz que não é seguro para uma mulher ficar bêbada.

— Talvez ela tenha razão. Mas se ficar bêbada hoje, eu prometo que cuido para que fique segura.

Ele bate a cerveja na minha de novo e bebemos em silêncio.

Facilmente eu percebo que bebi mais uma garrafa e me sinto bem.

— Imagino que deve ter tido muitas aventuras no motociclismo — indago, curiosa, querendo que ele me fale mais dele.

Que me fale tudo sobre ele.

— Sim, foi. Mas depois ainda viajei por um ano pela Europa de moto.

— Apenas por viajar?

— Sim, um dos períodos mais incríveis da minha vida.

— Sozinho?

Uma sombra tolda seu olhar.

— Não.

— Você viajou com a... Claire?

— Sim, nós viajamos juntos, antes de nos casarmos.

Encosto a cabeça no sofá atrás de mim, sentindo que minha cabeça começa a rodar, assim como meus pensamentos.

Fico imaginando um Nick mais jovem, com a aparência ainda mais perigosa que agora, em cima de uma moto com uma garota loira colada nele.

Claire.

Como será que era Nick como namorado?

Como marido?

Amante?

— Você já ficou com Dimitri Ivanov? — Nick me surpreende com a pergunta.

Sigo seu olhar e percebo que Dimitri entrou no bar com Diana.

Ele está se aproximando da roda de amigos de Alana.

Mordo os lábios pensando no passado, sentindo como nunca ele pesar em meu estômago.

— Não posso dizer que tivemos um relacionamento... — sussurro.

— Já esteve em um relacionamento?

Sacudo a cabeça em negativa.

Nick está me encarando agora, me avaliando.

Sustento seu olhar, porque não quero me virar para nenhum outro lugar.

— Kiara, não vai ficar aí a noite inteira.

Somos surpreendidos por Tyler que avança em nossa direção.

— Vem dançar.

Sorrio sem graça, segurando minha cerveja.

Já tomei quantas?

— Estou bem.

— Traz a cerveja. — E ele me puxa pela mão, me fazendo levantar e me puxando para a pista.

Por alguns instantes, não consigo reagir, talvez pelo fato de sentir que estou um pouco tonta e com passos incertos.

— Acho que estou um pouco bêbada. — Solto uma risada, dando-me conta de que não achei ruim Tyler ter me tocado. Mesmo porque agora, ele já me soltou e está dançando na minha frente.

— Eu também. — Ele ri e não consigo evitar acompanhá-lo.

Chris se aproxima, e me abraça, dançando.

— Tudo bem? — Sua voz está um pouco preocupada.

— Sim, estou ótima.

Ele me encara.

— Está meio bêbada?

— Acho que sim.

— Minha nossa, vivi pra ver isso.

— Não sabia que beber podia nos deixar assim. — Sorrio languidamente acompanhando seus passos na pista. — Eu acho que gosto de estar bêbada.

E fecho os olhos, deixando a música dominar meus sentidos, ditando os movimentos, sentindo-me livre.

Não resisto ao impulso de arrastar meu olhar de volta a Nick, um arrepio transpassa meu corpo ao vê-lo me observando.

Sinto a pele vibrar, como se uma onda magnética nos conectasse de uma forma estranha e irresistível. Minha mente esvazia de qualquer pensamento e, naquele momento, eu vivo e respiro para o que ele me faz sentir, apenas com um olhar, porque é tão novo e eletrizante e não posso evitar querer mais.

Estou ficando facilmente viciada no olhar de Nick de Santi.

Então, de repente, ele desvia o olhar me privando de sua atenção e sinto como se toda a energia fosse drenada do meu corpo, esfriando meus sentidos.

— Então, está transando com Nick de Santi.

A voz irritante de Alana, sussurrada quase no meu ouvido, atrás de mim, me faz virar e ela está sorrindo com ironia pra mim.

— O que disse?

— Você ouviu. Assim é fácil conseguir bons patrocínios! O Chris sabe que tem que te dividir? Se bem que pelo que ando desconfiando, o Chris deve querer pegar o De Santi junto com você...

— Que merda está falando? Por que é uma pessoa tão ruim?

— Eu sou ruim? Tem certeza?

— O que essa idiota está te falando, Kiara? — Dimitri surge do meu lado.

— Lá vem o imbecil que depois de anos ainda continua louco pra tirar seu collant! Parece que perdeu o posto, Dimitri, e faz tempo. Agora a Kiara pega um milionário! Coração de gelo, mas boceta interesseira...

— Por que não cala sua boca ridícula? — Dimitri avança para cima de Alana que levanta o queixo, não parecendo intimidada.

— Gente, que isso? — É a voz de Chris que está do meu lado e vejo que está todo mundo prestando atenção em nós.

— O que foi? Vai mesmo defender essa garota que te largou antes de um mundial? — Alana prossegue com o ataque.

— O que você tem a ver com isso? Por que não cuida da própria vida em vez de inventar merda sobre os outros? Você não passa de um monte de lixo, invejoso e mentiroso! Sei muito bem que foi você quem inventou essas merdas sobre a Diana.

— Dimitri, pare. — Diana aparece, mas ele continua.

— Estou de saco cheio de você!

— Não foi mentira! Diana está grávida, e por que não assume que está comendo sua parceira? Vai continuar se fazendo de santinha, Diana? Depois eu que sou a mentirosa e ruim! Todos vocês me dão nojo, um pior que o outro e posando de bonzinhos! Não tenho culpa que Diana não conseguiu manter as pernas fechadas pra você, que, aliás, paga de perfeitinho, mas todos sabemos que só te levam a sério por causa do seu pai, o grande Andrey Ivanov! E essa metida a besta da Kiara consegue patrocínio trepando com donos de empresa!

Perco o ar com suas acusações que chegaram a um nível execrável.

— Por que não enfia suas mentiras sujas em seu rabo virgem, sua filha da puta escrota e sem talento algum que ninguém quer? É este seu problema, não é? — Dimitri grita.

— Você que é um babaca escroto... — Alana empurra Dimitri que num instinto a empurra também.

Alana não parece intimidada, começando a esmurrá-lo e no momento em que Dimitri levanta a mão, não sei se para se defender ou agredir Alana, Tyler se põe na frente e empurra Dimitri, que revida, dando um soco em seu estômago. Tyler embaralha as pernas nos degraus da pista e cai para trás.

Chris e outros caras seguram Dimitri que está furioso.

Alana corre para Tyler, gritando coisas que nem entendo, enquanto aponta para Dimitri.

— Você machucou o Tyler!

Então eu noto que Tyler virou o pé e está urrando de dor.

— Minha nossa, ele se machucou de verdade? — Chris ajoelha ao seu lado.

— Pelo amor de Deus, pra que isso? — Diana sussurra. — Você bateu no Tyler, está maluco?

— Eu não quis machucar ele — Dimitri balbucia passando a mão pelos cabelos. — Queria calar a boca fofoqueira dessa filha da puta que inventou mentiras sobre você.

— Não são mentiras! — Diana confessa por fim, começando a chorar. — Sinto muito.

Dimitri agora está encarando Diana, embasbacado. Tyler está gemendo no chão e Alana parece histérica.

Seguranças da boate aparecem ao mesmo tempo que sinto alguém segurando meu braço.

Olho para trás para ver Nick me puxando para longe da confusão.

Mas ainda escuto Alana gritando.

— Nada disso teria acontecido se Dimitri não viesse defender a Kiara! Tudo culpa dela...

— Não fui eu — murmuro, ainda meio em choque com aquela confusão toda.

— Vamos embora daqui. — Nick me guia para fora do bar até que estejamos na rua e respiro fundo quando ele me solta para pegar a chave do carro.

Tropeço nos meus próprios pés, percebendo que estou mais tonta do que imaginava.

Nick abre a porta e praticamente me empurra para dentro, dando a volta e se sentando ao volante.

Levo a mão à testa, fechando os olhos, mas só me sinto mais tonta.

— Não me sinto bem... — Solto uma risada nervosa. — Minha cabeça está rodando...

— Você bebeu mais do que devia. — Há reprimenda em sua voz enquanto dá partida.

Abro os olhos, confusa.

— Você disse que eu era chata...

— Não disse para ficar bêbada.

— Não acredito que toda aquela confusão aconteceu. — Gemo desalentada. — Alana me odeia.

— Alana parece ter muitos problemas internos para ser daquele jeito.

— E todos nós não temos?

O carro para em um sinal vermelho e o olhar de Nick recai sobre mim na semiescuridão do carro.

— Você tem?

Apenas aceno com a cabeça, minha garganta fechando.

— Estou tão cansada... — Solto um murmúrio dolorido sentindo lágrimas quentes se formando em meus olhos. — Alana tem razão, eu sou uma farsa. Todos acham que sou perfeita, mas não sou... — Sinto aquela velha dor inundando meu peito de desolação. — Eu sou oca por dentro. Não tem nada aqui. Arrancaram de mim... — Meus soluços cortam o ar, sem que eu consiga evitar enquanto desabo em lágrimas.

Estou tão perdida em minha dor, que só reparo que o carro parou quando Nick abre a porta do passageiro e me puxa para fora.

Meu olhar vagueia em volta e estamos em um jardim estranho.

— Não é meu prédio...

— Acho que não está em condições de ficar sozinha hoje.

Nick me puxa para uma alameda e percebo que estamos em frente uma casa branca. Ele abre a porta e acende a luz.

Vislumbro um hall elegante e uma escada de madeira escura.

— Aqui é sua casa? — murmuro confusa.

— Sim.

Minha nossa, Nick me trouxe para a casa dele?

Subitamente me sinto um pouco alerta. As lágrimas já se foram, embora ainda esteja meio extenuada e perdida.

Porém, agora também sinto aquela expectativa ansiosa que me acomete toda vez que Nick está perto. Como se algo fosse acontecer.

Como se algo tivesse que acontecer.

Meu coração dá um pulo quando ele segue em frente, ainda com minha mão entre a sua. Eu o sigo, meu olhar recaindo sobre nossos dedos entrelaçados.

Um sorriso se distende em meus lábios, porque percebo que não estou com medo, contrariando todas as expectativas.

Muito pelo contrário.

Talvez seja a embriaguez que me deixa corajosa e inconsequente.

Ou talvez seja só ele.

Nick de Santi.

Chegamos a uma sala e ele me faz sentar no sofá escuro.

Agradeço por isso porque ainda estou tonta, mas deixo meus olhos curiosos varrerem o ambiente. É moderna em tons de branco, preto e cinza. Com fotos de motos em uma parede toda preta.

Muito masculino.

Muito Nick.

Vagamente me dou conta que Nick se afastou e há uma cozinha à frente, separada por uma grande ilha.

Nick retorna e estende um copo de água.

— Não estou com sede. — Minha língua dá uma enrolada, mas Nick insiste.

— Beba. Pode ficar desidratada.

Eu o obedeço, ingerindo pequenos goles.

Nick ainda está parado na minha frente, me observando com um olhar crítico. Isso me desconcerta.

— Você pode sentar? Está me deixando mais tonta me olhando assim.

Ele senta ao meu lado.

— Assim como?

— Como se fosse me dar uma bronca e me pôr de castigo.

— Talvez mereça. — Agora há certo divertimento em sua voz.

— Não sou uma criança.

— Eu sei, Kiara. — Ele recosta a cabeça no sofá soltando um suspiro profundo, os dedos bonitos castigando os cabelos.

Acompanho aquele movimento como se estivesse hipnotizada.

É esse efeito que ele tem sobre mim.

Ele me hipnotiza. Poderia passar anos apenas apreciando Nick de Santi.

Eu me viro, sentando de lado, encolhendo as pernas no sofá, para vê-lo melhor.

Sua beleza rústica é inquietante, deixa meus sentidos em alerta.

Como se algo nele tivesse o poder de despertar todas as minhas células que estavam adormecidas até então, criando uma necessidade inédita dentro de mim.

E sinto aquela necessidade na boca do estômago, no meu coração acelerado, no calor que aquece minha pele e se espalha como fogo em brasa e se transforma em um pulsar proibido e ansioso entre minhas coxas.

— Está melhor?

Eu me surpreendo com sua pergunta, quando ele abre os olhos e os prende em mim.

Sacudo a cabeça em afirmativa e ele pega o copo da minha mão. Nossos dedos se tocam por segundos e estremeço, puxando-os num reflexo, surpresa com os arrepios que transbordam com aquele simples toque.

Nick confunde meu gesto e se afasta imediatamente enquanto coloca o copo na mesa de centro.

— Me desculpe.

— Por quê?

— Você não gosta de ser tocada.

— Bem, você já pegou na minha mão hoje. E eu sobrevivi. — Estendo a mão, sem pensar no que estou fazendo e seguro a dele.

Sua pele é quente e levemente áspera e passo meus dedos pelo dorso.

— Por que não gosta que te toquem?

Arrasto o olhar de volta para seu rosto.

— Não te contaram? Eu tenho um coração de gelo — sussurro com um sorriso triste, abaixando o rosto, quando ele vira a mão e agora estou tocando sua palma.

— Então temos algo em comum. Também já me acusaram de ter um coração gelado.

Sem pensar, ergo a mão e toco seu peito, onde o coração bate rápido.

— Parece quente. — Levanto a cabeça e seu olhar captura o meu.

Perco o ar.

A energia vibrando em meu íntimo, vinda diretamente dele.

— Seria possível dois corações congelados se aquecerem em contato um com o outro? — Minha pergunta sai num sussurro e tudo o que eu sinto é aquele desejo quase compulsório de estar mais perto dele.

E é o que eu faço.

Avanço sem desviar o olhar e mergulho meus lábios nos de Nick de Santi.


Capítulo 9

No instante em que minha boca toca a dele é como se uma lufada quente de vida fosse injetada em meu coração, acendendo luzes piscantes que brilham por trás das minhas pálpebras fechadas e faz meu corpo inteiro vibrar.

Vivo. Quente.

Pulsante.

Com um gemido me deixo levar pelas sensações, projetando a língua para sentir seu gosto, meus lábios devorando a boca masculina como se fosse o último alimento do mundo.

E eu estou faminta.

Estou com fome de Nick de Santi.

Com um gemido, minhas mãos seguram seu rosto, a barba contra meus dedos é áspera e macia ao mesmo tempo e intensifica os arrepios que descem por minha espinha e faz tudo tremer dentro de mim.

Então, Nick deixa escapar um ruído rouco e grave do fundo da garganta que faz uma explosão de prazer atingir meu ventre, mas em seguida, sinto seus dedos em meus braços, não me puxando para perto como desejo mais que tudo naquele momento, mas para me afastar.

Abro os olhos, ofegante e perdida, ainda sentindo as vibrações do beijo em toda minha pele e Nick está se afastando, levantando do sofá.

— O quê?... — balbucio, confusa.

— Isso não pode acontecer, Kiara. — Suas palavras soam bruscas e por um momento apenas o encaro atordoada, meu cérebro levando alguns segundos para compreender toda a situação.

E, então, é como se eu caísse em mim.

Minha nossa, eu beijei Nick de Santi!

Eu, Kiara Willians, que não podia nem conceber aceitar uma aproximação masculina, tinha tomado a iniciativa de ir pra cima de um cara.

E eu ainda quero ir pra cima dele.

Engulo em seco, minha mente rodando, talvez ainda do álcool ingerido ou pela avalanche de acontecimentos inéditos dos últimos minutos.

Ainda sinto um resquício de desejo. Porém, Nick está olhando pra mim como se tivéssemos cometido o maior erro do mundo.

Ele se afastou.

Ele me afastou.

A verdade atinge meu estômago e uma dorzinha incômoda começa a se alastrar por meu peito.

— Eu achei, eu... — “Eu achei que você estivesse atraído por mim também”, é o que eu quero dizer, mas não consigo.

— Sinto muito, mas está confusa. Deve ser a bebida.

Sacudo a cabeça, aturdida.

Um misto de vergonha, pesar e raiva domina minhas emoções.

Fixo meu olhar em Nick, em pé ali na minha frente. Sua expressão é fria como gelo e eu quase rio da ironia.

— Por que estou aqui, Nick? Que diabos quer de mim? — O questionamento escapuliu da minha boca sem que eu conseguisse me conter.

Nick está me confundindo e estou mais tonta do que nunca.

Ou será que confundi tudo em meio a minha inexperiência e empolgação pelo que ele me fazia sentir?

— Quero que vá dormir. O quarto de hóspede é a segunda porta à direita no segundo andar. Você não está bem. Vai esquecer de tudo isso amanhã.

Porra, ele está sendo condescendente?

Eu o observo se afastar, subindo as escadas.

Quero gritar. Quero chorar.

Ou talvez apenas me levantar e ir embora, e colocar a maior distância possível entre Nick de Santi e o meu inconveniente desejo por ele.

Não sei quanto tempo ainda permaneço ali, abraçando meus joelhos e lutando contra meus próprios demônios, que hoje estão todos acordados e brigando entre si.

Desperto de repente, assustada e no mesmo instante sei que tem algo errado. Sento-me na cama e deixo meu olhar vagar a minha volta.

Estou em um quarto estranho. Numa cama estranha.

Meu cérebro demora alguns instantes para rebobinar a fita dos últimos acontecimentos e quando finalmente começo a me lembrar, solto um gemido desalentado e me jogo na cama de novo, cobrindo o rosto com as mãos.

A festa de Alana. Nick.

A briga.

E depois eu e Nick em seu sofá.

E o beijo.

Puta que pariu, aquilo aconteceu mesmo?

Sinto uma espécie de contentamento proibido e secreto ao me recordar.

Toco meus lábios, rememorando a sensação.

Quero guardá-la para sempre, mas quero esquecer que pra Nick foi um erro.

Lembrar-me disso faz um pouco do meu contentamento esvair, mas o que posso fazer?

Talvez eu só seja mais uma garota tola, como muitas outras. Isso me dá um certo alento. Naomi me falava sobre isso, sobre eu me permitir ser normal. Viver, sentir, cair e sofrer e me levantar de novo.

Eu posso fazer isso?

Como? Não tenho ideia.

Tudo o que tenho feito nos últimos anos é me arrastar sozinha pelo chão gelado, tentando respirar. E Nick chegou ateando fogo em tudo, porém, ele também esconde um coração de gelo sob a pele quente.

Como posso sair desse quarto, encarar Nick e perdoar que ele não me deseje? Porque tudo o que eu quero é fazê-lo voltar atrás. Quero que ele segure minha mão e me puxe para perto, onde anseio estar.

Nick me deu um fora, não tem como colocar de outra maneira.

Provavelmente não faz ideia de que para ele, foi só um momento, mas pra mim, mudou tudo.

Com um suspiro, jogo as cobertas para o lado e me dou conta de que estou com o mesmo vestido.

E como foi que eu cheguei até o quarto? Não me recordo. Nick me trouxe até ali? Pensar nisso me deixa um pouco perturbada.

Minha bolsa está sob uma cadeira e pego meu celular, verificando a hora.

Ainda é cedo.

Talvez eu consiga chamar um táxi e dar o fora dali, sem ter que encarar Nick. Com este pensamento, pego meus sapatos e minha bolsa, saindo do quarto, e caminho tentando não fazer barulho, meus pés afundando no tapete escuro no corredor e eu me pergunto qual porta será o quarto de Nick.

Ainda há uma certa vontade de ficar e...

E o quê?

Confrontá-lo?

Dizer que precisamos falar sobre o beijo?

Eu preciso ter o mínimo de orgulho e discernimento para aceitar que nada do que secretamente desejei desde que acordei em sua casa em Whistler e me atraí por ele, vai acontecer, concluo, descendo as escadas.

Mas sei que permanecer na companhia de Nick só vai fazer eu me afundar mais naqueles sentimentos proibidos e não correspondidos.

E eu temo não ter condições de lidar com aquilo.

No fundo, eu sei que não posso.

Ainda sou frágil demais. Quebradiça demais. Se Nick me segurar e me soltar, eu vou me espatifar no chão e quebrar em mil pedaços que nunca mais poderão ser juntados.

— Oi, eu te conheço.

Dou um pulo de susto ao me virar quando chego ao térreo e escuto a voz infantil as minhas costas.

E lá está a garotinha.

É a filha de Nick.

Enrubesço por ter sido pega em flagrante.

E me dou conta que em nenhum momento ontem, eu tinha atinado que a filha de Nick provavelmente deveria estar na casa. Todavia, como no outro dia em Whistler, ela veste um casaco rosa e uma touca, como se estivesse acabando de chegar da rua.

— Mackenzie, tire o casaco e venha comer.

A voz nos interrompe e eu me viro para ver a mulher entrando na sala.

Ela arregala os olhos surpresa ao me ver.

É Cláudia. A cunhada de Nick que eu achei que fosse a esposa dele.

— Olha tia, a moça do gelo! — Mackenzie exclama, animada. — Lembra dela? A gente viu ela patinando na TV! E ela estava lá na nossa casa na neve. Eu segurei os patins dela. — Ela me encara com os olhinhos curiosos. — Cadê seus patins?

Eu não sei o que dizer. Estou petrificada.

Claudia se aproxima. Ainda tem sobre mim aquele olhar de censura e desconfiança.

— Mackenzie, faça o que eu pedi. Vai se atrasar para a escola.

A criança faz cara de quem vai retrucar, mas algo na expressão da tia deve tê-la alertado que é melhor obedecer.

— Está bem. Você vai tomar café com a gente, patinadora?

— Kiara, meu nome é Kiara — eu a corrijo e sinto certo divertimento.

— O meu é Mackenzie. — A menina sorri.

— Mackenzie, vá comer seu cereal — Claudia insiste quase ríspida agora e a menina corre para a cozinha.

Então a mulher fixa o olhar frio em mim.

— Não sabia que Nick estava com... visitas.

Eu coro de constrangimento.

O que está se passando na mente dela?

— Eu não sou uma visita, quer dizer... — eu me atrapalho, piorando a situação.

— Acho que não fomos apresentadas corretamente? — Claudia olha pra mim como se eu fosse um inseto pronto a ser esmagado. — Quando me deparei com você lá em Whistler fugiu correndo. — Eu sou Cláudia Fisher, cunhada de Nick. Ele me disse que a De Santi a contratou para uma campanha. Não sabia que pra isso tinha que dormir com Nick.

— Oh, eu apenas não estava bem ontem, depois de um... evento. E Nick foi gentil me deixando dormir em seu quarto de hóspede — explico vermelha.

— Devo acreditar nisso?

Minha nossa, qual o problema daquela mulher?

— Eu não estou entendendo...

Ela solta um risinho maldoso.

— Você é uma jovenzinha bonita e Nick é um homem atraente e rico.

— Oh, não, eu... — balbucio sem saber como parar aquele ataque.

— Deve estar cheia de ideias na cabeça, mas devo alertá-la para não nutrir esperanças. Nick ainda ama Claire.

— Claire... morreu — eu me vejo dizendo e sei que foi a coisa errada quando os olhos de Claudia escurecem.

— Nick sofreu e ainda sofre muito com a perda de Claire. Você chegou há cinco minutos e não faz ideia de nada do que eles viveram. Foram 13 anos juntos. Eles eram extremamente apaixonados e devotados um ao outro. E a filhinha deles. Nick ficou devastado quando ela se foi. Ele ainda está devastado.

— Me desculpe, mas está confundindo tudo...

— Estou mesmo? Por acaso é coincidência eu chegar à casa de Nick em duas manhãs e encontrá-la com ele? Eu não sou idiota. Nick pediu que Mackenzie dormisse na minha casa ontem porque tinha um compromisso de trabalho, mas vejo agora que não é bem assim. Nick me surpreende porque ele jamais se envolveu com ninguém depois da partida de Claire, mesmo apenas por sexo fácil.

Eu ruborizo de constrangimento.

— Não estou transando com Nick.

— Poupe dos detalhes. Minha irmã deve estar se revirando no túmulo por Nick trazer uma mulher na casa dela.

— Ei, patinadora, quer dizer, Kiara.

Eu me surpreendo quando Mackenzie se aproxima e me puxa pela mão.

— Vem ver o desenho que eu fiz.

Eu a acompanho, um tanto aliviada de ser poupada de mais acusações de Claudia.

Ela senta na mesa e aponta para a folha sulfite, pegando um giz de cera.

Espio o desenho que mais parece um monte de rabisco, mas sorrio para a menina.

— É muito bonito.

— Vou desenhar você patinando!

— Mackenzie, já comeu? — Claudia se aproxima, irritada.

Eu me afasto da menina enquanto Claudia se mexe pela cozinha.

E avisto em cima de um aparador alguns porta-retratos, como aqueles que vi em Whistler.

E todos têm Claire De Santi em algum momento de sua vida. Ela sorrindo em uma praia, usando um biquíni vermelho. Depois ela grávida em diferentes estágios. Segurando a bebê Mackenzie em várias fotos enquanto ela crescia. Até uma última, onde a menina deveria ter uns três anos.

Sinto um aperto no peito ao vislumbrar aquelas fotos. Claire parecia cheia de vida e beleza.

E ela tinha o amor de Nick.

E uma linda filha.

Parecia uma vida perfeita.

Uma vida que eu nem conseguia imaginar ter, mas que contemplando aquelas fotos agora me deixa com uma sensação de vazio inexorável.

Então, pego um porta-retratos onde Claire está abraçada com outra mulher muito parecida com ela em seu casamento. Claudia.

— Vocês eram muito parecidas.

— Éramos gêmeas.

— Oh... deve ser bom, ter um irmão. Eu sou filha única — não sei por que estou dizendo aquilo. Talvez para tentar ter uma conversa civilizada com a mulher que escolheu me detestar.

— Sim, foi bom ter alguém, quando não se conhece os próprios pais.

— Como assim?

— Eu e Claire fomos abandonadas ainda bebês. Nunca conhecemos nossos pais de verdade. Vivemos boa parte da vida em um orfanato.

— Sinto muito.

— Claire sempre sofreu muito por isso. Por essa falta de raiz. Acho que por isso ela sempre quis ter uma família, filhos... Foi injusto ela ir tão cedo. Mas nunca vamos esquecê-la.

Somos interrompidas pelo barulho de passos se aproximando Nick surge descendo as escadas. Sua expressão é uma máscara de contrariedade, enquanto olha de mim para Cláudia.

— O que faz aqui, Cláudia?

— Mackenzie precisava de uns materiais para a escola, por isso passamos aqui antes e ela está tomando café. — Sua voz é acusadora quando se vira mim. — Podia ter avisado que tinha... uma amiga aqui.

Ai merda. Aquele “amiga” parecia mais um “vadia”.

— Oi papai, olha o desenho que eu fiz! — Mackenzie se aproxima do pai.

Ele pega o sulfite, sorrindo com orgulho.

— É lindo.

— Eu vou desenhar a Kiara agora.

— Não, você vai escovar os dentes para eu te levar à escola — Claudia retruca.

— Sim, escute a tia Claudia.

— Papai, vamos ver a Kiara patinando de perto?

Nick parece contrariado, mas sorri para a menina.

— Vá escovar os dentes, depois conversamos.

E quando a menina se afasta junto com a tia, ele olha pra mim de forma estranha e percebo que ainda seguro o porta-retratos com a foto de sua esposa.

Ele se aproxima e o tira das minhas mãos, como se eu o estivesse maculando.

— Ela era muito bonita — sussurro enquanto os olhos dele continuam nas fotos.

— Ela era meu sol. — Uma dor antiga rasteja por sua voz e faz algo doer em mim também.

Seus dedos tocam a foto. E percebo, perdendo o ar, que ele está usando uma aliança. Ela não estava ali ontem.

Por que ele a recolocou?

Para lembrar a si mesmo que não deveria beijar garotas iludidas?

Garotas que sentem inveja de uma mulher morta?

— Você ainda a ama. — Não é uma pergunta.

— Amar alguém que não podemos ver é o maior suplício de todos.

Fecho os olhos, algo no que ele disse atingiu o fundo do meu peito. Um lugar onde eu nunca me permiti ir.

— Talvez eu saiba o que é isso — sussurro e quando ele me encara, eu desvio o olhar.

Às vezes, tenho a impressão de que Nick quer algo de mim que não consigo entender.

Mas o que ele pode querer de mim quando ama outra mulher?

Talvez eu tenha mesmo confundido tudo em minha ilusão.

— Eu vou te levar embora — ele diz por fim.

— Tudo bem.

Eu me apresso em colocar meus sapatos que havia largado no chão e acompanho Nick para fora da casa.

Entramos em seu carro em silêncio e mordo os lábios incerta do que dizer.

Quando chegamos em frente ao meu prédio, eu salto e me surpreendo quando Nick faz o mesmo.

Nós nos encaramos na rua, o vento frio me fazendo estremecer.

— Sinto muito por ontem — Nick diz me surpreendendo.

— Eu não. — Que se dane. Provavelmente Nick não vai querer olhar na minha cara nunca mais. — Eu queria te beijar.

E sem me conter, eu me aproximo, sentindo a conhecida onda magnética que me faz querer me fundir a ele.

— Eu lamento que você não queira o mesmo.

— Às vezes o que queremos é a única coisa que não devemos ter.

— E o que você quer de mim, Nick? De verdade?

Eu espero com o coração em suspenso.

Ainda com esperanças tolas que não deveria ter.

— E o que você quer, Kiara?

Ah, Nick.

Se eu te contar, você vai me dar?

— Queria ser uma pessoa diferente. Queria não me sentir vazia e fria o tempo todo. Queria ser a pessoa que um dia eu fui, mas que ficou perdida em algum lugar do caminho. Queria não estar querendo coisas de alguém que parece ser mais gelado do que eu.

Eu sei que não preciso dizer com todas as letras o que quero para ele entender.

Porém, Nick dá um passo atrás, recuando.

Mantendo-me longe.

— Eu não tenho nada a dar a ninguém, Kiara. O que eu tinha, morreu com Claire.

— Então o que estamos fazendo aqui?

— Mantendo as coisas como devem ser.

Eu assinto, engolindo a decepção e sorrio do mesmo jeito que sorri todos aqueles anos. Com uma falsa alegria que escondia a devastação que me abalava por dentro.

— Obrigada pela carona. — Eu o dispenso, dando meia-volta e entrando no prédio e o sorriso morre antes mesmo que eu entre no elevador.

E quando chego no meu andar, surpreendo-me ao ver Dimitri sentado em frente a minha porta.


Capítulo 10

— Dimitri?

Ele levanta a cabeça e seus olhos estão vermelhos, como se tivesse passado a noite inteira acordado. Ainda está com as mesmas roupas que usava ontem na festa de Alana, então provavelmente ainda não dormiu.

— Oi, Kiara. — Ele se levanta. Sua voz está cheia de angústia cansada.

— Você dormiu? Está com as mesmas roupas de ontem.

— Você também. — Seu olhar me mede e quando descansa em meu rosto há uma pergunta muda ali.

Eu coro, porém levanto a cabeça.

— Não te devo satisfação.

Ele sacode a cabeça em afirmativa, passando os dedos pelos cabelos.

— O que está fazendo aqui Dimitri, na minha porta a essa hora da manhã?

— Eu queria conversar com alguém.

— Comigo? — questiono surpresa.

Eu não tenho uma conversa de verdade com Dimitri há muito tempo.

— Está tudo desabando e eu só conseguia pensar que queria falar com você.

— Não temos nada pra falar. A gente mal trocou duas palavras nesses últimos anos.

— Nós éramos melhores amigos. Você esqueceu?

— Nós éramos até você mostrar um lado assustador que eu nunca vi. — Minha voz sai engasgada com todo o horror que presenciei naquela noite longínqua.

— Você me cortou da sua vida depois daquela noite. Nunca me contou de verdade o que aconteceu.

— Porque eu desejo esquecer.

— Queria tanto ter conversado com você naquela época, tentado explicar...

— Acha que tem explicação?

— Meu pai pediu que eu ficasse longe de você.

A menção ao pai de Dimitri, que era nosso técnico na época, faz meu estômago revirar.

— E você sempre faz tudo o que o grande Andrey Ivanov manda — dardejo com ironia ao me lembrar daquela época horrível que preferia esquecer. — Sinceramente, Dimitri, não deveria ter vindo aqui.

— Eu não posso entrar? Conversarmos?

— Não vai entrar na minha casa.

— Você tem medo de mim.

— Você machuca as pessoas, Dimitri. Ontem mesmo achei que ia agredir Alana, e mesmo ela sendo daquele jeito...

— Eu não consigo... evitar. É como se houvesse dois de mim. Ontem quando Alana me provocou, era como se eu saísse do meu corpo e ficasse só um monstro.

— Acho que devia ir embora. — Dou um passo atrás.

— Tudo bem, eu não deveria mesmo estar aqui. Mas tive uma discussão horrível com Diana. Ela está mesmo grávida.

— Você é o pai do bebê?

Ele ri sem humor.

— Por que todo mundo acha isso?

— Acho que é o óbvio.

— Eu me lembraria se tivesse engravidado minha parceira.

Eu me viro, disposta a acabar com aquela conversa que já está me desestabilizando.

— Vá embora, Dimitri.

Ele assente e aperta o botão do elevador.

Seu olhar captura o meu. Há tanta desolação ali que, de certa forma, eu me reconheço nele.

Um dia, Dimitri e eu fomos tão próximos que um sabia o que o outro estava pensando, mas quando seus pensamentos se tornaram tão turvos quanto um oceano tempestuoso, me levando junto para suas profundezas, eu consegui sair de lá para cair em outra tempestade ainda mais perigosa.

E desde então eu vinha tentando apagar os resquícios que deixou em mim.

— Você me odeia?

Eu não respondo.

— Eu senti sua falta, Kiara.

Ele se vira e entra no elevador.

***

Naquela manhã, Diana e Dimitri e toda a confusão da festa de Alana são o assunto do momento. Não se fala em outra coisa entre os patinadores.

Assim que cheguei ao ringue, Christian perguntou se eu estava bem, disse que ficou muito preocupado comigo, que me ligou depois, mas não atendi. Decido não contar que passei a noite na casa de Nick, mesmo porque é um assunto espinhoso e se fosse contar a Chris, teria que levar algum tempo e Nádia estava furiosa com toda a falta de concentração. Ela ordenou que parássemos de prestar atenção nas fofocas e fôssemos trabalhar em nossos edge jumps, que são os saltos sem a ajuda dos toepicks, como axel, loop e salchow.

E já estamos no gelo por algumas horas quando noto a presença de Nick nas arquibancadas.

Meu coração dá um salto, maior que aqueles que estou treinando com Chris, mas desvio o olhar, sentindo um misto de sensações desencontradas.

Toda vez que vejo Nick é como se uma chavinha fosse acionada dentro de mim, ligando um interruptor e iluminando tudo. Esquentando tudo.

Mas não consigo me esquecer do beijo e de como ele me afastou.

E do olhar de dor enquanto contemplava a foto da esposa morta.

Nick de Santi é apaixonado por outra mulher e as palavras cheias de maldade de Claudia fizeram sentido pra mim. Nick não está interessado em mim, ele ainda sofre pela perda da esposa. E se eu continuar me deixando levar pelo que ele me faz sentir, vou cair e quebrar a cara no chão.

E não sei se terei forças para me reerguer.

Sou como uma escultura de gelo, frágil e delicada, suscetível à ruptura ao menor descuido de manuseio.

Só que Nick não faz ideia.

Para ele, é apenas uma transação comercial, pra mim, o despertar de um longo sono que dura anos.

— Por hoje é só! — Nádia dá o treino por encerrado.

Eu e Chris seguimos para o vestiário.

— Nick de Santi está aí — ele diz estudando minha reação.

Eu me viro pra ele.

— Chris, será que pode me fazer um grande favor?

— O quê?

— Nick tem esse projeto que precisa ficar na minha cola por um tempo, para elaborar a campanha, mas não quero ficar sozinha com ele.

Os olhos de Chris se apertam em alerta.

— O que ele fez?

— Nada.

— Está com medo de ficar com ele? Se esse cara fez alguma coisa...

— Na verdade, a questão é justamente o contrário disso.

— Como assim?

— Podemos conversar depois? Eu vou me vestir, tenho uma sessão de fotos, acho que Nick virá junto e quero saber se pode vir também.

— Claro, tinha musculação, mas cancelo.

— Você pode ficar com a gente o tempo todo?

— Se isso te deixa segura, sim.

Eu sorrio, agradecida.

— Obrigada. Vou me trocar e nos encontramos lá fora.

Estou mais tranquila quando entro no vestiário, com essa solução.

Não quero mais ficar sozinha com Nick, não por medo dele, mas por medo de mim mesma. Com Chris por perto, não ficarei o tempo todo vulnerável.

Estou acabando de me vestir quando Diana entra no vestiário.

Ela parece pálida e descomposta, enquanto abre um dos armários e começa a tirar suas coisas.

— Oi, Diana, tudo bem?

Ela força um sorriso, sentando no banco e começando a arrumar a bolsa.

— Vai demorar um pouco pra eu ficar bem.

Eu me sento à sua frente.

— Eu sinto muito...

Mordo os lábios, hesitando em entrar no assunto delicado.

— Você vai... fazer um aborto?

Ela me encara e sacode a cabeça em negativa.

E isso me surpreende.

— Estamos chegando às Olimpíadas de Inverno. Se você mantiver a gravidez...

— Eu sei, mas não vou fazer isso. Não posso.

Ela se levanta, levando sua mochila.

— Vai desistir?

— Devia ficar feliz. Uma a menos para concorrer contigo.

— Então estão mesmo fora?

— Sim.

— E Dimitri, o que acha disso?

— Dimitri está puto comigo. Talvez ele me odeie tanto quanto odeia você agora. Talvez tenha alguma maldição sobre ele que faz suas parceiras o abandonarem.

— Como pode desistir de uma Olimpíada? — enquanto questiono aquilo, escuto a voz da minha mãe na minha cabeça, me questionando algo parecido.

— Como pode alguém se livrar de um bebê? — Diana devolve se levantando e saindo do vestiário.

Deixando-me sozinha com meus fantasmas.

Quando saio do centro, Chris está conversando com Nick.

— Olá, Nick, tudo bem? — Eu me aproximo, tentando demonstrar uma descontração blasé.

— Sim, tudo bem.

Não consigo decifrar sua expressão.

Nick é mestre em esconder o que realmente está pensando e sentindo.

— Contei a Nick que você tem uma sessão de fotos e que vou acompanhá-la.

— Sim, isso mesmo. Você vem? — indago a Nick.

Quero que ele diga que não, mesmo sabendo que ficarei decepcionada.

Mas ele assente.

— Certo.

Eu lhe falo o local das fotos, um estúdio não longe dali e me afasto com Chris.

— Senti certa tensão no ar, ou foi impressão minha? — Chris indaga quando entramos no meu carro. — Vai me contar o que rolou ontem?

Suspiro, dando partida.

— Eu o beijei.

— O quê?

— Foi... um erro.

— Como assim? Como foi isso?

— Depois daquela confusão, ele me levou embora e eu estava meio bêbada. Então ele me levou para a casa dele.

— Não me parece algo legal de se fazer.

— Não foi assim. Eu estava chorosa e me sentindo péssima com tudo. E quando estávamos lá, acho que justamente por eu estar bêbada, me deixei levar e o beijei.

— Ele te beijou de volta?

— Por um momento.

— E foi legal?

— Foi... incrível.

— Isso devia ser algo bom.

— Não quando ele me afastou e disse que não devia ter acontecido. Então ele foi para o quarto dele e disse para eu ficar à vontade para ir para o quarto de hóspede.

— Nossa, que banho de água fria.

— E hoje para completar, quando acordei a cunhada estava lá e a filha dele.

— Nossa, ele tem uma filha?!

— Sim, ela estava na casa da tia, mas elas apareceram lá de manhã. Eu me senti muito constrangida.

— Me deixa adivinhar, a filha dele te odiou porque tem ciúme das namoradas do pai.

— Primeiro que não sou a namorada do Nick e nem sei se ele tem namoradas. E a menina foi legal comigo. Ficou me chamando de patinadora.

Chris ri.

— Mas quem me tratou muito mal foi a tal de Claudia, a irmã da esposa do Nick.

— Sério?

— Sim, ela foi horrível, me destratou e fez com que eu me sentisse uma vadia, que estava ali para dormir com o Nick.

— Bem que você queria.

— Para, Chris.

— Desculpa. — Ele ri.

Estaciono em frente ao estúdio e damos a conversa por encerrada.

Quando entramos, noto que Nick já está ali, provavelmente veio mais rápido porque está de moto e para minha consternação, ele está conversando com a minha mãe.

— Aí está ela. — Mamãe me mede de forma crítica como sempre e não gosta nada quando vê Chris ao meu lado. — E você está fazendo o que aqui?

— Eu vim com a Kiara, queria ver como seriam as fotos. — Chris sorri descontraído.

— Kiara, vá se vestir. Eu trouxe alguns collants, como pediram, não sei qual vão escolher.

Eu me afasto, a produtora me acompanha para o camarim, onde experimento alguns trajes que usei nas últimas apresentações, até que ela escolhe um branco com prateado.

Fazem minha maquiagem e cabelo e quando saio todo o cenário está montado para as fotos e o fotógrafo se apresenta pedindo que eu fique à vontade e faça algumas poses típicas dos passos de patinação.

Com minha visão periférica, noto que Nick está ali, ao lado de Chris e da minha mãe, e me sinto constrangida em estar usando aquele collant. O que é ridículo, já que eu uso aquele traje o tempo todo. Porém, saber que Nick está de olho em mim, me deixa inquieta e muito consciente dos meus movimentos.

A sessão dura algumas horas e quando termina eu me apresso em me vestir e mamãe me acompanha enquanto me troco.

— Não entendi porque trouxe o Chris.

— Por que não?

— Você precisa dar atenção a Nick de Santi.

— Mas ele está aqui, não?

— Ele comentou que gostaria de conversar com você depois da sessão, sugeriu te levar até a fábrica de motos, para que conhecesse, mas Chris disse que você já se comprometeu em ir com ele até o hospital visitar Tyler Chan.

Hum, eu não sabia de nada daquilo, mas acredito que Chris deduziu que eu não queria mais estar com Nick hoje e avisou que iríamos ao hospital visitar Tyler.

— Sim, não sei se ficou sabendo da confusão ontem.

— Sim, Nádia me contou.

Minha mãe falava com Nádia todo dia, para perguntar como estavam indo meus treinos, quando ela mesma não aparecia no centro para me acompanhar.

— Foi horrível.

— E eu não gostei nada de saber que estava lá. Quem te deu permissão para ir a uma festa no meio da semana?

— Era aniversário da Alana.

— Aquela menina malcriada e invejosa! Vocês nem são amigas.

— Eu sei, mas...

— E já sei que foi ela quem começou a confusão.

— Na verdade, foi Dimitri.

— Ah, tinha que ser. Não deve se envolver com essa gente, Kiara. Quantas vezes tenho que dizer? Você não tem amigos, tem concorrentes!

— Mãe...

Ela arruma meus trajes no cabide, colocando-os nas bolsas.

— E agora veja só! Tyler provavelmente não vai mais competir.

— Não deve ter sido tão sério assim. — Eu me sento em frente ao espelho para tirar o penteado elaborado do meu cabelo.

— E aquela menina, Diana Colombo, parece que também não.

— Ela vai ter o bebê. — Eu fixo o olhar na figura da minha mãe atrás de mim. Ela se vira devagar me encarando com seus olhos frios.

— Ela é uma tola.

— Ela é corajosa...

— Corajosa? Acabar com a carreira assim?

— Ela ainda pode voltar depois que tiver o bebê.

— Não seja ingênua! Diana tem 28 anos. Acabou para ela. Ainda mais agora que abandonou o parceiro há pouco tempo das competições olímpicas.

— Eu também abandonei meu parceiro.

— Vai mesmo comparar? São situações diferentes...

Não tão diferentes assim...

— Mas você se refez — minha mãe continua —, era jovem e continuou competindo, voltou melhor do que nunca e embora eu tenha minhas restrições quanto ao Christian Jackson, não posso negar que vocês têm uma ótima conexão e a dupla funciona. Você foi medalhista mundial e agora será olímpica! E o que Diana vai ter? Um bebê chorão que lhe dará trabalho pelo resto da vida.

— Você se arrepende?

— O quê?

— De ter ficado comigo? — indago baixinho.

Ela desvia o olhar, as mãos ocupadas em ajeitar os cabides.

— Algumas vezes eu me arrependi sim.

Ouvir aquilo dói.

Eu sabia que minha mãe era modelo antes de engravidar de mim. Que ela e meu pai não esperavam que eu aparecesse. E que foi papai quem insistiu para que eles se casassem. Logo depois, os dois se mudaram para o interior, onde papai dava aulas e minha mãe virou dona de casa, cuidando de mim.

Até que ela me viu patinando e decidiu que eu seria uma estrela do gelo.

E a partir daí, nada tinha mais importância para Maude Willians do que este sonho.

— Mas olhe pra você. É uma estrela. — Ela sorri. — Tenho orgulho de você, Kiara. E vai continuar me dando orgulho.

Eu me pergunto, quando desvio o olhar, pegando minha bolsa para ir embora, se ela sentiria orgulho de mim se eu tivesse virado as costas para a patinação.

Quando saímos, Nick não está mais ali e sinto certa decepção.

— Onde está Nick? — indago a Christian.

— Ele teve que ir, já que vamos ao hospital.

Minha mãe se despede e eu e Chris vamos para o carro.

— Como Tyler está? — questiono a caminho do hospital.

— Não sei direito, mas Alana está muito nervosa.

— Alana, falou com ela?

— Sim, eu liguei pra ela pra saber sobre Tyler. Ela está enlouquecida com a possibilidade de ele não ficar bom a tempo de competir.

— Nossa.

Nós chegamos ao hospital e Tyler parece pálido sobre os lençóis, com o pé engessado.

— E aí, como você está? — Chris pergunta.

— Não muito bem, como pode ver.

— E já tem uma ideia de quando voltará a treinar?

Ele sorri tristemente.

— Provavelmente daqui a uns seis meses.

— O quê? — eu e Chris indagamos ao mesmo tempo.

— Sim, estou fora dos jogos olímpicos.

— Nossa, sinto muito... — murmuro, chocada.

Eu gosto muito de Tyler e é uma pena que isso tenha acontecido com ele.

De repente, meu celular toca e eu vejo o nome de Nick piscando.

Eu peço licença para atender e saio do quarto, tentando conter as batidas bobas do meu coração.

— Alô?

— Oi, Kiara, é o Nick.

— Oi...

— Amanhã agendei uma visita à fábrica De Santi para você, tudo bem?

— Sim, claro.

— Você está bem? — Sua voz é hesitante e parece preocupada.

— Sim, estou ótima. — Imprimo uma animação que estou longe de sentir.

Ainda mais quando me viro e vejo Alana se aproximando com cara de poucos amigos.

— Então, nos vemos amanhã? — Dou a chamada por encerrada.

— Sim, até amanhã.

Eu desligo e Alana está na minha frente.

— Que porra está fazendo aqui? Veio rir da nossa cara?

— Claro que não! Viemos ver como Tyler está. Estou muito triste por ele não poder mais competir.

— Eu duvido. Você e a bruxa da sua mãe devem estar rindo! Mas pelo menos o idiota do Dimitri também não vai mais, já que a Diana vai ter o bebê, pelo que fiquei sabendo.

— Sim, fiquei sabendo também. É tudo muito triste.

— Triste para uns, felicidade para outros!

Ela entra no quarto e Christian aparece.

— Vamos?

— Que triste, não é? — comento quando entramos no carro.

— Tyler está arrasado.

— Eu imagino.

— E Alana está puta e nem dá pra não concordar com ela. Também ficaríamos se algo nos impedisse de competir agora.

— Sim. Amanhã à tarde vamos à fábrica De Santi. Nem ouse marcar outro compromisso. Vai comigo!

— Claro que sim. Parece que agora seremos irmãos siameses. — Ele sorri. — E que tal ir jantar lá em casa hoje?

— Amo a comida da sua mãe, aceito o convite.

Ficar com a família de Christian seria bom para me distrair dos meus problemas.

Quando chegamos à casa dele, Trevor está lá com o pai de Chris.

Trevor é um cara bonito, alto e forte, com cabelos escuros e sorriso largo.

— Olha só se não é o casalzinho de ouro — ele nos cumprimenta.

— Oi, Trevor.

— Cadê a Fiona e o Asher? — Chris pergunta sobre a cunhada e o sobrinho.

— Asher está tirando uma soneca. Fiona está na cozinha ajudando a mamãe com a comida. Sabe como é, coisa de mulheres.

— Cozinhar não é só coisa de mulheres. — Não consigo evitar comentar. O machismo do irmão de Chris me irrita muito.

— Claro, patinar no gelo também, é o que vocês dizem... — ele continua rindo e joga uma almofada em Chris, que está fazendo cara feia, embora nunca tenha coragem de parar as brincadeiras idiotas de Trevor. — Ei, não te chamei de bichinha!

— Filho, pare de brincadeira boba — Roger o interrompe. — Christian não é gay e nem patinação artística é esporte só de mulheres, não é filho?

— Claro que não, já disse muitas vezes para esse cretino — Chris comenta ignorando o papo sobre sexualidade.

Isso me deixa muito irritada, como sempre.

A família de Christian é conservadora e preconceituosa. Eles jamais o aceitariam se ele contasse a verdade a eles. Por isso adoram acreditar que nós dois estamos juntos.

— Aposto que o Chris só patina pra poder pegar nas patinadoras gostosas — Trevor comenta e ele e o pai riem.

Chris se joga em cima do irmão, os dois começando uma luta boba de macho.

Até que o pai os manda pararem.

— Pare de pegar no pé do seu irmão — pede a Trevor. — Veja Andrey Ivanov. Foi uma lenda. Christian será como ele, não é filho?

— Se eu chegar a um décimo do que foi Andrey, estarei feliz.

Mas eu disfarço uma careta quando citam Andrey, o pai de Dimitri.

— Vamos comer? — A mãe de Chris entra na sala interrompendo a conversa e todos seguimos para a cozinha.

***

Na manhã seguinte, nós treinamos ainda com a fofoca sobre Dimitri e Diana correndo solta. Só que agora se somou a isso o acidente de Tyler, que o impedirá de competir.

E quando terminam os treinos, eu não me surpreendo ao ver Nick de Santi.

Chris confirmou que vai nos acompanhar e eu agradeço muito por isso.

Preciso me livrar do que sinto por Nick urgentemente e é só no que penso quando saímos do complexo esportivo e ele está lá nos esperando.

— Vou adorar conhecer a fábrica De Santi — Chris diz animado.

Nick parece confuso por um instante, mas não diz nada quando eu comento que chamei Chris para ir conosco.

E quando seu olhar se fixa no meu, percebo que ele entendeu minha jogada.

Nick sabe que estou evitando ficar sozinha com ele depois do que aconteceu em sua casa naquela noite.

Por um momento eu aguardo sua reação. Acho que uma parte de mim deseja que exija que Chris se afaste, mas em vez disso ele apenas concorda.

— Tudo bem. Será bom ter Christian conosco. Acredito que ele estará sempre a partir de agora, não é?

Eu aceno com a cabeça, meio decepcionada por Nick concordar tão facilmente. Mas o que eu queria?

Nick devia estar aliviado por não ter que lidar comigo sozinho.

Assim, seguimos para a fábrica e é incrível conhecer como são fabricadas motos como a de Nick. Ele parece orgulhoso enquanto nos conduz pela linha de montagem e até Chris parece animado, e no fim diz que quer aprender a andar de moto.

— Parece irado.

— Kiara morreu de medo — Nick comenta divertido.

E isso me deixa constrangida e surpresa, por ele lembrar e por comentar com Chris sobre isso, em forma de brincadeira.

Nick é um cara sério e raramente eu o vejo sorrir, ou ser descontraído.

Vê-lo assim só junta mais alguns arrepios aos outros que ele me faz sentir.

Não quero que Nick seja um cara legal, porque já basta eu me sentir atraída por sua beleza rústica. Não quero ficar derretida porque ele é bonito por dentro também.

Assim, passam os dias.

Nick comparece a alguns treinos, fica me observando de longe e tirando minha concentração.

Um dia, cheguei e ele estava conversando com Nádia.

Eu indaguei o que ele queria, e ela disse que Nick estava perguntando sobre mim.

Eu fiquei surpresa, mas se pensar que ele estava “me estudando” para fazer seu projeto, então não era tão surpreendente assim.

Eu comparecia à sessão de fotos, entrevistas e vários compromissos relacionados às competições, como ir escolher como seria meu traje.

E Nick, como prometido, estava em alguns desses compromissos. Só que agora, eu não desgrudava de Chris, e com a aproximação dos jogos, ele realmente deveria estar comigo na maioria dos compromissos, que englobavam nossa dupla. Mas algumas vezes, ele não precisava estar junto, como quando minha mãe e minha equipe de assessoria de comunicação marcavam algo para as redes sociais. Mesmo assim, eu fazia questão de mantê-lo junto.

E Nick não parecia se importar. Ele parecia circunspecto e interessado, mas de forma quase analítica. Como se eu fosse uma nova moto que ele estava construindo e não uma pessoa.

Isso me irritava porque enquanto os dias se transformavam em semanas, eu acordava todos os dias pensando em que momento eu iria vislumbrar sua figura atraente nas arquibancadas, tirando um pouco do meu sossego e fazendo meu ventre se apertar numa expectativa proibida. E ia dormir fantasiando com o único momento em que seus lábios estariam sobre os meus.

E comecei a achar que aquela atração em vez de se esvair estava crescendo como um incêndio numa floresta seca.

Sem controle e sem que eu soubesse como apagar.

Eu e Christian intensificamos os treinos, começando a ensaiar nosso programa e as fofocas sobre Dimitri, Diana, Tyler e Alana diminuíram. Mas fomos surpreendidos numa tarde quando ficamos sabendo que Dimitri e Alana estavam treinando juntos.

— O quê? — Eu encaro Molly, a portadora da notícia bizarra.

— Pois é, está todo mundo passado!

— Mas eles se odeiam! — balbucio.

Nem consigo imaginar Dimitri e Alana juntos sem se matarem.

— Sim, concordo com você, mas parece que foi a única maneira que acharam de tentar competir agora.

— Isso é loucura, não dá tempo de se entrosar — Chriz diz e tenho que concordar com ele.

Molly se afasta e eu e Chris nos encaramos chocados.

— Acha que é sério isso?

— Alana e Dimitri são as pessoas mais difíceis que conheço, mas também são as mais obcecadas. Se eles não se matarem, antes, talvez dê certo — ele diz. — Acabamos por hoje? — indaga a Nádia.

— Sim, terão o fim de semana de folga, mas segunda-feira aqui, sem falta. Aí, chega de folga. Vamos direto até estar tudo perfeito. Não temos tempo a perder.

— Hoje seu chefe Nick de Santi não veio te vigiar? — Christian brinca quando estamos indo para o vestiário.

Mordo os lábios, contrariada. Por mais que eu tente, não consigo ficar aliviada quando Nick não aparece.

Muito pelo contrário.

— Hoje eu tenho que ir até a De Santi. Recebi uma mensagem de uma pessoa chamada Jade Harry, diretora de Marketing, marcando uma reunião com eles. Daqui a uma hora.

Não quero pensar que aquela reunião será pra dizer que o projeto entrou em outra fase e agora Nick não terá mais que ficar na minha cola.

Deveria ficar feliz, mas só sinto decepção.

— Você vem, né?

— Desculpa, mas hoje não vai dar. Tenho uma consulta no fisioterapeuta, sobre aquela dor na panturrilha.

— Tudo bem... Acho que Nick nem estará lá.

— Olha, Kiara, Nick parece ser um cara legal.

— Nunca disse que ele não era.

— Conversamos muito sobre você.

— Como é que é?

— Oras, acho que sabia. Ele não quer saber tudo sobre você?

— E o que ele pergunta?

— Sobre nossa história juntos, como eu a vejo.

— E o que diz?

— Que você é a pessoa mais maravilhosa do mundo.

Eu rolo os olhos.

— Bobo!

Quando eu chego a De Santi, sou recebida por uma equipe dirigida por Jade, uma mulher de trinta e poucos anos muito simpática e direta.

Ela mostra alguns modelos desenhados, croquis de roupas esportivas e parece tudo muito bonito.

— Lembram muito as roupas que eu uso para treinar.

— Sim, Nick as desenhou baseando-se em você.

— Ah... Não sabia que Nick desenhava.

— Ele desenha tudo o que quiser. Inclusive alguns modelos de motos. É um cara talentoso. Peça qualquer coisa para ele, que ele aprende e faz. Enfim, até as cores são baseadas nos collants que usa para apresentações. A linha ficará incrível.

— Então... Acabou a minha parte, digamos assim?

— Agora estamos na fase de criação, mas ainda temos um longo caminho. Mas Nick te manterá informada.

— Claro.

Quando saio da reunião, já anoiteceu.

Olho para o céu escuro e sinto-me triste.

Entro no carro e dou partida.

Será que Nick estava na De Santi e não quis me encontrar deliberadamente?

Em vez de dirigir de volta para casa volto ao centro esportivo.

Não quero ir pra casa ficar sozinha.

Hoje, preciso fazer a única coisa que parece que eu nasci pra fazer.

Patinar.

Eu me aproximo do ringue e sento, calçando meus patins.

Olho para o local vazio. Gelado.

Pego o celular e sem pensar muito no que estou fazendo eu me vejo ligando para Nick.

A chamada demora alguns instantes, até que escuto a voz máscula.

— Kiara?

— Oi... — Agora que ele atendeu não sei o que dizer.

— Tudo bem? Algum problema?

— Problema? Diga-me você.

— O que quer dizer?

— Você não estava na reunião na De Santi hoje. — Há queixa na minha voz e eu odeio, mas não consigo evitar.

Quem sou eu para cobrar qualquer coisa de Nick?

— Não precisam de mim lá.

Mas eu preciso, isso conta? — Quero sussurrar, mas me calo.

— Está tudo bem? — ele insiste. — Onde você está?

— No centro.

— A essa hora?

— É bom patinar sozinha, à noite. Me ajuda a me livrar dos meus demônios.

— Que demônios, Kiara?

— Queria te mostrar alguns deles...

— Não deveria ficar aí sozinha. Eu vou te buscar, ok?

E sem mais, ele desliga.

Fico ali olhando para o aparelho, ele disse mesmo que ia vir me buscar?

Talvez eu tenha ouvido direito. Talvez eu já esteja delirando.

Tiro as proteções de plástico e entro no gelo, começando a deslizar.

Não sei quanto tempo se passa, talvez apenas alguns minutos quando escuto passos se aproximando e vejo Nick.

Todo vestido de preto, como um anjo caído.

— Você está aqui...

— Eu disse que estava vindo te buscar.

— Não quero ir agora, quero patinar. Eu preciso me lembrar porque estou aqui.

— Eu não vou embora.

— Então talvez deva patinar comigo? Tem coragem?

Aponto para uma caixa cheia de patins ao lado do ringue.

Ele parece que vai declinar, eu me viro e deslizo no gelo até escutar o barulho de outros patins atrás de mim e me viro para ver Nick patinando na minha direção.


Capítulo 11

Eu o observo, surpresa.

— Sabe patinar?

— Não como você.

Ele desliza facilmente pelo gelo à minha volta.

Tenho a impressão que Nick é um desses caras capazes de fazer qualquer coisa.

— Acho que ninguém patina como você.

— Como sabe? Não entende nada de patinação.

— Como sabe que não entendo?

— Entende?

— Tem razão, não faço ideia do porque de todos os movimentos e saltos. Apenas admiro como são belos.

— Bem, talvez eu possa te explicar alguns, vamos ver. Isso é um camel spin. — Eu giro com meu torso e a perna livre, perpendiculares formando um T.

Volto em posição normal.

— Existem muitos tipos de spin. Camel, layback, sit...

Faço outro elemento girando em um pé só, com minhas costas arqueadas para trás.

— Isso é um layback spin.

E deslizo pelo gelo, fazendo um double axel perfeito.

— E isso é um double axel. O axel é considerado o salto com maior dificuldade técnica entre os seis tipos de salto da patinação artística.

— Você faz parecer muito fácil.

— É fácil pra mim. — Sorrio.

— Você é mesmo incrível, Kiara.

Meu peito expande com um elogio que já ouvi tantas vezes, mas vindo dele tem um sabor diferente.

— Muitos patinadores são incríveis.

— Imagino que sim, mas eu tenho observado você. A maneira que se move com Christian, a conexão e a confiança que tem um no outro é surreal. Não havia essa conexão com Diana e Dimitri, por exemplo.

Não gosto quando ele cita Dimitri.

— Você tinha essa conexão com Dimitri?

— Eu acreditava que sim...

— Por que parou de patinar com ele?

Eu não respondo.

Deslizo para longe, girando, saltando e realizando vários elementos até ficar cansada. Sei que Nick está ali me observando e toda vez que nossos olhares se encontram, ele parece estar esperando que eu exploda a qualquer momento.

Não sei quantas vezes circulei, perdendo o fôlego e já sentindo meus músculos sem aquecimento adequado reclamando.

— Você deveria parar agora.

Escuto sua voz mais perto do que imaginava quando caio pela primeira vez. Abro os olhos para ver Nick pairando sobre mim, com a mão estendida.

Eu a seguro, sentindo sua palma quente contra a minha, fria, e ele me puxa me erguendo e me tirando do chão. Nossos olhares se encontram e respiro com dificuldade, não por causa do exercício, mas pela intensidade do olhar dele.

Nick não faz nenhum movimento para sua mão soltar a minha e me surpreendo quando o sinto segurando minha outra mão, nossos dedos se entrelaçando devagar.

A energia que sempre sinto quando ele está perto me envolve como um choque elétrico, me aquecendo de fora para dentro, derrubando minhas defesas. Ainda estamos deslizando devagar, ele me empurrando delicadamente pelo gelo, nossos olhares presos um no outro.

— Você disse que não gosta que te toquem, mas confia em Chris.

— Eu demorei um pouco para confiar nele.

— Por quê?

— Porque tinha medo que me machucasse... — sussurro.

— Não tem medo de mim? — Sua voz sai baixa e rouca e arranha meu ventre.

Sem resistir, dou um passo à frente, nos forçando em direção contrária, mas não sem antes nossos corpos estarem roçando. O calor que emana do corpo dele derrete o meu.

— Eu tenho medo que nunca mais me toque... — confesso fechando os olhos e encostando a testa em seu queixo.

Seus dedos acariciam os meus, enviando arrepios para todas as minhas terminações nervosas. Sinto seus lábios em minha têmpora e suspiro me deixando levar ainda mais para perto dele, nosso ritmo aumentando.

Levanto a cabeça, mergulhando em seu olhar âmbar que me tira o fôlego.

— Acabou? — indago baixinho.

— Acabou o quê?

— Sua pesquisa sobre mim.

Ele acena positivamente confirmando o que eu já desconfiava.

— E acha que agora sabe tudo sobre mim?

— Não.

— E ainda quer saber?

— Você disse que ia me mostrar seus demônios.

— Eles estão aqui... — sussurro.

— Aqui?...

Aceno positivamente, incapaz de falar. Fragmentos de lembranças ruins escapando daquele lugar escondido onde as mantenho trancadas, e me deixando fraca e indefesa.

— Kiara?...

Escuto a voz de Nick como se vinda de muito longe e percebo que cruzei aquela linha tênue entre a realidade presente e o horror do passado, sendo tragada para um lugar onde só havia medo e desolação.

Meus olhos turvos demoram um instante para focalizar o rosto bonito de Nick.

— O que aconteceu com você?...

Sua pergunta me faz recuar, soltando nossos dedos entrelaçados.

Sacudo a cabeça em negativa, lutando para respirar.

Dou-lhe as costas e saio da pista, nem paro para colocar as proteções da lâmina, fujo para o vestiário e quando chego lá, sento no banco de madeira e escondo o rosto entre as mãos, os soluços rompendo meu peito.

Sinto raiva por ainda deixar aquilo me afetar tanto.

Sinto medo de nunca mais conseguir ser eu mesma.

— Kiara?

A voz de Nick interrompe meu choro e eu me levanto, enxugando as lágrimas com raiva, enquanto fico de costas pra ele, como se ainda fosse possível esconder minha dor.

— Devia ir embora.

— Eu não vou a lugar nenhum.

— Por favor, Nick...

— Eu não vou sair daqui sem você — insiste com uma voz firme.

Eu me seguro na pia, voltando a chorar.

Imagino que Nick vai cansar do meu surto e vai dar o fora.

Mas quando levanto o olhar para o espelho, ele ainda está ali.

— Não vou deixá-la sozinha assim — afirma cruzando os braços enquanto se senta no banco.

Reparo que ele tirou os patins.

— Não vou pôr a mão em você. Não vou fazer nada que não queira. Vou apenas esperar que se recomponha e venha comigo.

— Ir com você?

— Eu a levarei para casa.

— Acha que valeu a pena?

— O quê?

— Acho que já percebeu que não tenho nada inspirador. É apenas ilusão e gelo.

— Está enganada.

Eu me viro, com raiva no olhar.

— Quer mesmo saber o que me deixou assim? — As palavras saem estranguladas da minha garganta. — Eu fui violentada. Aqui... — Engasgo com a dor. A lembrança. A raiva. — Neste mesmo lugar e tudo o que eu queria era esquecer que aquilo aconteceu, mas as lembranças nunca vão embora. Nem terapia, nem voltar a patinar, nem lutar com todas as minhas forças faz eu esquecer que algo precioso foi tirado de mim. E então, você me tirou do gelo, me tocou e eu senti, por um ínfimo segundo, que eu ainda estava viva. Que eu ainda podia sentir e desejar o toque de alguém.

Deslizo para o banco e me deixo cair ao seu lado, respirando com dificuldade.

— Sinto muito. — A voz de Nick chega junto com a sua mão, que segura a minha sobre o banco.

Eu não a afasto. Como afastar o único toque que eu desejei em muito tempo?

E é isso que mais dói.

Olho para sua mão morena sobre a minha e levanto o olhar para seu rosto. Por um momento apenas respiramos. E então ele levanta a outra mão e toca minha bochecha, enxuga minhas lágrimas.

Suspiro com seu toque, porque não consigo evitar.

Estou quebrada em mil pedaços e quando Nick me toca é como se fosse capaz de juntar todos os pedaços no lugar. Tenho certeza que meus anseios estão claros como água cristalina em meu olhar.

E escuto um som vindo do fundo de sua garganta quando ele se inclina e me beija, os lábios deslizando com avidez sobre os meus.

Solto um gemido confuso, ansioso e deslumbrado, mas Nick se afasta do mesmo jeito que se aproximou. Abro os olhos, resfolegando e ele está me encarando com um olhar intenso que é um espelho do meu e faz tudo estremecer em mim.

— Me desculpe — diz, mas os dedos ainda estão no meu rosto e ele ofega como eu.

— Não, não peça desculpas. Tudo o que tenho são lembranças ruins deste lugar. Por favor, quero apagá-las da minha cabeça. Quero substituir todas as memórias de algo que não escolhi, por isso... por você me tocando, porque eu quero. Porque é tudo o que eu quero...

Com um gemido rouco, ele captura meus lábios de novo. Desta vez, sem freios, sem amarras. Apenas o desejo nos consumindo e nos guiando.

Meu corpo inteiro se eletriza e derrete ao mesmo tempo. As sensações explodem em minha pele com uma força assustadora. E de repente sou puro instinto. Eu me ergo. Nick abre os olhos, brilhando de um desejo feroz.

E eu perco o ar por um instante, apenas apreciando aquele homem maravilhoso sentado à minha espera. E eu vou a seu encontro, deslizando para o colo dele, ainda de patins, e nós dois gememos quando nossos quadris colapsam. Meu ventre é sugado por um prazer agudo e avassalador e segurando sua cabeça, abaixo meus lábios para os dele de novo, devorando-os com vontade, nossas línguas se encontrando e se entrelaçando numa dança selvagem enquanto esfrego meus quadris nos dele, ansiando por aplacar aquela dor que pulsa em meio às minhas coxas. E meu interior derrete quando sinto sua ereção ali roçando em mim através das camadas de roupas. E mordo seus lábios, enfio os dedos em seus cabelos escuros e me deixo levar por aquele desejo alucinante e inédito.

É isso.

Isso que eu quero.

Que eu preciso.

Não há nada mais na minha mente. Nem passado, nem presente, nem futuro.

Estou flutuando em uma onda de calor incandescente, deixando-me guiar por meus mais profundos desejos que voltam à vida depois de um longo inverno.

E tem tudo a ver com este homem. Este cara que me beija de volta com urgência, mas não está me tocando.

Levanto a cabeça, encarando-o ofegante e confusa, para me dar conta de que suas mãos estão longe de mim.

E então eu entendo.

E acho que me apaixono por Nick naquele momento. Quando ele não faz um movimento para não me amedrontar, mesmo quando ele está tão excitado quanto eu.

— Não quero assustá-la.

— Não está me assustando.

— Você já esteve com um homem assim? — Sua voz baixa e ríspida de desejo faz meu estômago palpitar.

Sacudo a cabeça em negativa. Rubor aquece minhas bochechas.

— O que você quer de mim, Kiara?

— Ponha suas mãos em mim — exijo baixinho. — Eu preciso sentir suas mãos em mim.

E sem desviar o olhar do meu, ele levanta uma mão e seus dedos tocam meu rosto, meus lábios entreabertos e ainda úmidos dos seus beijos, e sem pensar no que estou fazendo obedeço meu desejo e os capturo para dentro da minha boca, sentindo o gosto salgado da sua pele. Os olhos de Nick escurecem de desejo.

E sua outra mão encontra meu quadril me apertando contra sua ereção ainda maior agora.

Mas isso não me assusta. Muito pelo contrário, faz meus músculos internos se contraírem de vontade de saber como seria senti-lo dentro de mim.

— Onde você quer que eu a toque? — indaga roucamente.

Eu pego sua mão e a levo até o cós da minha calça, respirando com dificuldade em expectativa.

E sem precisar pedir mais, Nick infiltra a mão na minha calça e na minha calcinha.

Solto um gritinho de susto e prazer, perdendo o ar.

Ele segura meu olhar.

— É isso que você quer?

Seus dedos encontram meu clitóris que pulsa com mais intensidade.

— Sim... — Exalo o ar com força.

— Você quer que eu te dê um orgasmo?

Oh Deus... A voz dele é como açoite em meu íntimo.

Fecho os olhos e minha cabeça cai para trás, meus olhos revirando quando Nick me acaricia lentamente, perversamente, dois dedos deslizando para dentro de mim.

— Ah sim... — Ofego movendo meus quadris, buscando atrito e gemendo alto quando consigo todo meu corpo concentrado naquele ponto onde Nick acaricia.

Sinto seus lábios quentes em meu queixo, em meu pescoço, a barba roçando em minha garganta e elevando os arrepios em minha pele e eu só consigo gemer e me mover, perdida nas sensações mais incríveis do mundo. Respirando Nick de Santi.

Até que as sensações explodem em meu ventre e eu me desmancho contra seus dedos, gemendo alto e me segurando nele na queda infinita que é meu orgasmo.

Volto à Terra ainda sem ar, ainda perdida e confusa com o que acabou de rolar ali.

Abro os olhos e Nick está me encarando com aquele seu olhar intenso, que está se transformando em minha kriptonita.

— Tudo bem?

Sacudo a cabeça em afirmativa, porque não confio na minha voz.

Estou desnorteada.

Fraca e feliz.

Acho que é assim que as pessoas se sentem quando quebram uma maldição. Porque é como eu me sinto agora. Livre.

Muito vagamente, sinto que Nick está me colocando sentada no banco e está se afastando.

— Posso te levar pra casa agora?

Sua voz um tanto distante esfria um pouco meu ânimo, mas não o suficiente, quando ainda quase posso sentir sua mão em mim.

Sacudo a cabeça em afirmativa.

Ele se afasta do vestiário e eu respiro fundo me levantando. Lavo meu rosto e olho minha imagem no espelho. Ainda estou vermelha e um pouco ofegante.

Ainda pareço a mesma, mas sei que no fundo está tudo diferente.

Volto ao ringue, pego meus patins e calço meus tênis.

Nick está na porta do centro me esperando.

Sinto-me meio sem graça agora sem saber como agir.

O que vai acontecer agora?

— Você está com seu carro? — ele indaga.

— Sim, estou.

— Eu vou te acompanhar até sua casa.

Assinto e entro no meu carro.

Nick entra no carro dele, não está de moto hoje, e sim dirigindo o mesmo carro que foi me buscar no dia da festa de Alana.

Ainda estou meio flutuando em ondas de contentamento e expectativa quando estaciono em frente a minha casa e Nick salta comigo.

Quero convidá-lo para subir. Mas não sei se devo.

— O que vai acontecer agora? — sussurro, incerta.

Nick passa os dedos pelos cabelos, parece tão incerto como eu.

— Quero conversar com você, mas acho que hoje aconteceram coisas demais...

Eu tenho que concordar.

— Amanhã eu vou à casa do meu pai — eu me vejo dizendo. — Fica perto de Whistler. Você quer vir comigo?

Talvez levar Nick para conhecer meu pai, não seja o mais apropriado agora, mas eu simplesmente obedeço a vontade que eu tenho de trazê-lo comigo.

— Amanhã estarei com minha filha.

Mordo os lábios, decepcionada.

Eu tinha esquecido completamente que Nick tem uma vida.

Uma filha.

Uma mulher morta.

Que ele ainda ama.

Jogo aqueles pensamentos que ameaçam me deprimir para o fundo da mente.

— Você pode trazê-la. — Não sei de onde sai aquele convite, mas se eu quero de alguma maneira manter Nick ali, preciso aceitar sua vida além de mim. E isso inclui sua filha.

Isso é assustador pra mim. Mas mais assustador ainda é ver Nick se afastar de vez.

— Tudo bem. — Nick concorda e eu abro um sorriso. — Amanhã eu passo as 11 para te pegar?

— Sim, perfeito.

Ele se vira para entrar no carro, mas eu toco seu braço.

— Nick, nós... vamos falar sobre o que aconteceu, não é?

Ele hesita.

E então toca meu rosto. Seu toque é como injeção de vida em minhas veias.

Está se tornando vital.

— Sim, nós vamos conversar, Kiara.

— Se eu pedisse para me beijar, você me beijaria?

Ele se inclina e beija minha testa.

Não é o beijo que eu esperava, mas não posso reclamar, pois ele já se afasta e entra no carro.

Nick não pode voltar atrás.

Agora eu sei que ele me deseja também.

Não vou deixar aquilo escapar. Não agora que eu encontrei.

Eu já me escondi e fugi das minhas emoções por tempo demais.


Capítulo 12

Estou um tanto nervosa quando recebo a mensagem de Nick avisando que está chegando na manhã seguinte.

Confiro minha imagem no espelho e pego meu casaco, pois a temperatura já caiu bastante e na cidade onde meu pai mora, Squamish, é ainda mais frio, sendo nas montanhas.

Assim que chego à calçada, o carro de Nick está estacionando e eu entro, sentando no banco de passageiro.

Como sempre, sua imagem causa um impacto em mim e eu me pergunto se um dia me sentirei diferente, mas por enquanto só consigo admirar como ele parece maravilhoso vestindo uma camiseta branca e um cardigã de lã creme.

— Oi. — Sorrio, animada.

— Oi, Kiara.

A voz infantil vem do banco de trás e eu me viro para ver a filha de Nick. Ela veste o mesmo casaco rosa que vestia outro dia e os cabelos estão soltos emoldurando o rosto delicado.

— Olá... Mackenzie — eu a cumprimento, muito sem saber como agir.

— A gente vai ver a neve hoje, não é papai? — ela comemora quando Nick dá a partida.

— Sim, querida, nós vamos.

Reparo que a voz de Nick muda totalmente quando ele se dirige à filha. Ele usa um tom doce e amoroso, que é inédito pra mim.

Eu me pergunto se ele usava o mesmo tom para falar com Claire.

Pensar em Claire tira um pouco do brilho de expectativa do dia, mas eu tento não pensar nisso.

Não é como se Nick fosse casado e eu a outra.

“Ele disse que ainda a ama.”, uma voz intrometida desdenha dentro de mim, mas tento ignorá-la.

Pegamos a estrada Highway 99. O caminho é lindo, margeado por mar e montanha e Mackenzie enche o pai de indagações infantis que Nick responde com toda paciência. Essa interação me faz lembrar minha infância com meu pai e me deixa nostálgica.

— Está quieta — Nick comenta em certa parte do caminho e eu reparo que Mackenzie parou de tagarelar, pois adormeceu.

— Você parecia bem ocupado respondendo qual a profundidade do mar para sua filha — comento divertida.

— Crianças são assim, e ela está naquela idade curiosa em que acha que os pais sabem tudo.

— E você não sabe tudo?

— Eu gostaria, mas na maior parte do tempo tenho que inventar ou recorrer ao Google.

— Você parece fazer o tipo pai legal.

— O que é um pai legal?

— É diferente dos pais autoritários, que estão sempre dando bronca e mandando o filho manter a linha.

— E que tipo de pai foi o seu?

— Acho que ele foi como você. — Eu suspiro. — Sinto falta dele.

— Você o visita bastante? Squamish não é longe de Vancouver.

— Não tanto quanto gostaria, mas os treinos e tudo o mais me mantêm ocupada.

— Você sempre parece muito ocupada.

— Sim, eu sempre estou ocupada.

— E você é feliz assim?

— O que quer dizer?

— Você é incrível na patinação, mas ela toma muito tempo da sua vida.

— Se eu não me dedicasse como me dedico não seria tão incrível assim.

— Você já abriu mão de muitas coisas por isso?

— E não é assim a vida? Uma sucessão de escolhas e renúncias?

— Você está feliz com suas escolhas?

— Você está? — Eu viro a pergunta para ele e percebo que Nick se surpreendeu, o perfil bonito ficando tenso.

— Sim, a maior parte do tempo.

— Você escolheu Claire em detrimento do motociclismo?

— Não foi assim. Eu comecei a competir muito jovem, nem tinha 18 anos, e Claire surgiu na minha vida quando eu tinha 20. Ela sabia que eu teria que partir constantemente. Mas também sabia que eu sempre ia voltar. Por isso, nunca pediu que eu escolhesse entre ela e as competições.

Eu me pergunto se agiria do mesmo jeito se estivesse no lugar de Claire. Se teria a confiança de deixar um homem como Nick ir.

E se fosse o contrário? Se eu me apaixonasse e tivesse que escolher entre a patinação e este amor?

Em todas as vezes em que a patinação esteve de um lado da balança contra qualquer outra coisa, eu escolhi a patinação.

Mas não sem arrependimentos que me marcariam para sempre.

— E um dia, eu senti que era hora de parar, que eu tinha conquistado tudo o que queria conquistar e podia voltar para ter o meu "pra sempre".

Mas o "pra sempre" nunca veio, concluo com tristeza.

Sinto meus olhos marejados, por pensar na dor de Nick.

A dor de amar alguém que não existe mais.

Chegamos a Squamish na hora do almoço e está nevando, Mackenzie está acordada e animada quando saltamos do carro em frente à casa do meu pai.

E eu também me animo ao ver meu pai saindo da casa com um sorriso largo.

— Finalmente lembrou que tem pai! — Ele me abraça forte e eu aspiro seu cheiro único.

Papai é um homem alto e forte, na casa dos cinquenta anos com fartos cabelos ainda pretos.

— Feliz aniversário, pai.

Ele se vira para Nick que segura a mão de Mackenzie.

— E este é seu convidado, suponho, Nick de Santi.

Eu havia ligado para meu pai ontem e avisado que traria Nick. Não dei muitos detalhes, apenas contei a história sobre o patrocínio e que ele estava me acompanhando em alguns lugares naquele mês. O que não deixa de ser verdade.

Papai estende a mão e Nick o cumprimenta.

— Muito prazer, Ben Willians, pai dessa beldade olímpica e quem é essa pequena? — Ele sorri para Mackenzie.

— Essa é minha filha Mackenzie — Nick responde e Mackenzie acena um pouco tímida.

Mas papai, sendo um professor do ensino fundamental, adora crianças.

— Olá, Mackenzie, que lindo nome!

Vamos entrar, antes que congelem.

Entramos na casa tirando nossos casacos e os pendurando no hall de entrada.

Entrar na casa da minha infância sempre me deixa nostálgica e com saudade de um tempo que não existe mais.

— Hoje nós comeremos um assado de carneiro — papai diz orgulhoso —, mas ainda precisamos de alguns minutos de cozimento.

Ele se vira para Mackenzie, que parece um tanto entediada no meio dos adultos agora.

— E a senhorita gosta de livros?

— Eu gosto, sim. Ainda estou aprendendo a ler, mas meu pai lê pra mim toda noite.

— E que tal conhecer uma biblioteca cheia de livros?

— O que é uma biblioteca, papai? — Ela se vira para o pai, confusa.

— É tipo uma livraria — Nick responde divertido.

— Ah, eu sei o que é biblioteca.

— Então, eu tenho uma biblioteca, cheinha de livros, quer ir ver?

— Eu quero! — Os olhos da menina se iluminam.

— Sim, venha comigo, senhorita.

Mackenzie acompanha meu pai para o andar de cima.

— Meu pai ama livros e como dá aula para crianças, tem muitos livros infantis em sua biblioteca.

— Mackenzie vai amar. Ela adora que eu leia pra ela.

— Meu pai lia muito pra mim também.

— Imagino que ele foi um bom pai.

— Sim, o melhor.

— Ele sabe... O que aconteceu com você? — Nick indaga com cuidado e eu me surpreendo por ele voltar a minha confissão de ontem.

Sacudo a cabeça em negativa.

— Não. Só a minha mãe... Será que podemos não falar sobre isso?

— Achei que íamos falar sobre...

— Eu quis dizer sobre o que aconteceu entre nós dois e não sobre o meu passado que eu desejo esquecer — eu o corto.

Antes que Nick possa falar qualquer coisa, Mackenzie volta correndo e se joga em seu colo.

— Olha o que eu ganhei!

Ela mostra a Nick um livro infantil com uma grande lagarta verde na capa. Eu o reconheço. Porque era um dos meus preferidos quando tinha a idade de Mackenzie.

— Não é legal? O papai da Kiara disse que era o preferido dela. Vai ler pra mim?

— Claro que sim, querida. — Ele sorri para a menina.

Meu pai volta à cozinha e diz que o carneiro está pronto.

Nós nos sentamos pra comer e ele sabatina Nick sobre seu trabalho, a De Santi e sua época como motociclista.

— Eu tive uma moto, Maude me fez vender.

— Sério, pai? Nem sabia disso.

— Faz muito tempo, antes de você nascer.

— Papai, posso patinar lá fora? O Ben disse que tem um lago lá fora congelado!

— Você não tem patins, Mackenzie.

— Ainda temos vários patins de quando a Kiara era pequena por aqui — papai responde.

Mackenzie pula de alegria enquanto meu pai vai buscar os patins.

Nick me encara.

— Você patinaria com ela?

— Eu? — Sinto-me assustada.

— Acredito que é a pessoa mais indicada e Mackenzie está pedindo por isso há um tempo.

Eu quero dizer não, mas Nick acharia que não quero ficar perto da filha dele.

— Tudo bem.

Eu me levanto e vou até a lavanderia onde papai está com Mackenzie. Ele calça na menina patins que lhe servem direitinho.

Pego um par pra mim e o calço.

E encaro Mackenzie apreensiva, mas sorrio para a menina.

— Vamos? — Estendo a mão e ela segura.

Saímos para a neve e eu a seguro firme para não se desequilibrar até que chegamos ao lago e começamos a deslizar.

— Olha, estou conseguindo. — Ela sorri pra mim.

— Sim, muito bem!

Olho para trás, e Nick e meu pai estão juntos na varanda nos observando.

— Me ensina a fazer aqueles giros, Kiara... — Mackenzie pede e eu a atendo, começando a lhe explicar movimentos simples e a segurando para que ela consiga fazer.

Mackenzie ri, mesmo quando cai e parece estar se divertindo muito.

Em dado momento eu a solto, e ela desliza sozinha pelo gelo se virando e acenando pra mim e sinto um vazio antigo se remexer em meu peito, deixando-me triste.

— Acho que já chega. — eu a interrompo.

— Já? Vamos ficar mais!

— Eu acho que seu pai talvez já queira ir embora.

— Está bem.

Ela me dá a mão de novo e voltamos para a casa.

Assim que chegamos à varanda, solto sua mão e me afasto.

Entro na casa e me sento para tirar meus patins.

Meu pai se aproxima e senta ao meu lado.

Nick continua na varanda com Mackenzie.

— Está tudo bem?

— Sim está.

— Eu gostei do seu Nick.

— Pai, não é meu Nick. — Enrubesço.

— Mas tenho a impressão que você quer que seja.

Eu não consigo negar.

— É complicado.

— Ele me contou que é viúvo.

— Sim, ele é. — Não conto ao meu pai que Nick ainda não superou a esposa.

— Querida, eu estou feliz por você. Sabe que nunca achei saudável viver apenas para a patinação. Embora tenha orgulho de você e do que conquistou. A vida é muito mais. E ela está passando.

— Eu sei...

Meu pai não faz ideia do que aconteceu comigo há seis anos.

Minha mãe e eu concordamos que deveríamos manter apenas entre nós. E eu não gostaria mesmo que alguém soubesse. Meu pai ficaria arrasado e não tinha nada que ele pudesse fazer. Além do mais, eu não queria que isso fosse motivo para mais uma desavença entre Maude e ele.

— Então, se gosta deste homem, viva isso. Há muito mais na vida do que competir.

Ele beija meus cabelos e Nick entra com a filha.

— Está pronta para ir, Kiara?

— Sim.

Eu me despeço do meu pai e entramos no carro.

Começa a nevar forte assim que entramos na estrada e Nick se preocupa.

— Acho que devíamos ir para Whistler, é mais próximo. Tudo bem?

— Sim, está ficando ruim a estrada mesmo...

— Talvez tenhamos que passar a noite lá. Você se importa?

Eu sinto arrepios na espinha de imaginar que estarei com Nick na mesma casa em que nos conhecemos.

— Não, não me importo.

Chegamos a Whistler ainda com o dia claro e Mackenzie continua dormindo. Nick a tira do carro e a leva para o quarto. Eu fico esperando na sala até que ele volta.

— Ela brincou muito hoje, está cansada.

— Eu imagino.

— Você quer... beber um café, um chocolate? O que quer fazer?

Mordo os lábios, hesitante.

Agora que estamos ali, praticamente sozinhos, já que Mackenzie adormeceu, sinto-me ansiosa e inquieta.

Lembro das palavras do meu pai.

Viva isso.

Respiro, reunindo toda a coragem que disponho.

— Será que podemos... Usar a hidro?

Os olhos de Nick se franzem levemente em surpresa, mas em seguida brilham de algo perigoso que devasta meu ventre.

— Acho que não há problema.

Ele caminha para a área do deque e eu o sigo com o coração batendo forte em expectativa.

Medo e ansiedade criando um coquetel explosivo dentro de mim.

Observo a neve cair pela parede de vidro enquanto Nick liga a hidro e escuto a água começa a encher.

Minha coragem desvanece um pouco quando penso em ficar nua na frente de Nick.

— Claudia deixou algumas roupas de banho no quarto de hóspede. É o segundo no corredor.

Eu me viro para Nick me perguntando se ele leu meu pensamento.

— Você pode usá-las — ele continua.

— Você vai usar?

— Acho que seria apropriado.

— Não faça isso por mim. Eu já te vi nu mesmo. — Sorrio e me afasto.

Caminho até o tal quarto e quando chego lá, retiro minhas roupas, mas hesito.

Não quero usar roupas que pertencem à cunhada de Nick que claramente me detesta.

Olho minha imagem no espelho e percebo que tampouco quero recuar.

Eu quero viver aquilo.

Agora. Aqui.

Com Nick.

Pego uma toalha e enrolo no meu corpo caminhando até a hidro.

O vapor tomou conta do ambiente quando eu me aproximo e Nick já está lá dentro.

Eu avanço sem desviar o olhar e antes que me falte coragem, deixo a toalha cair.

O olhar de Nick varre meu corpo como labareda, e me sinto linda.

Isso me dá coragem de continuar e entro na hidro, a água quente me envolvendo até os seios e me recosto encarando Nick.

— Acho que agora estamos quites.

— Não deveria fazer isso, Kiara. — Sua voz é rouca e ríspida.

Reconheço ali o desejo que faz minhas coxas tremerem.

— Não fazer o quê? Não desejar você? Tarde demais... — Sussurro e obedecendo ao anseio mais profundo do meu corpo e do meu coração, eu me aproximo dele até que estejamos frente a frente.

— Posso tocar em você? — imploro e não espero resposta.

Sua respiração sai pesada enquanto toco as tatuagens em seu peito, a fina penugem de pelo ouriçando meus mamilos que ficam duros de vontade de se esfregarem ali. E é o que eu faço, me aproximo mais, meus seios roçando na rocha que é seu peito. Nick solta um gemido que é um misto de protesto e prazer que excita todas as minhas terminações nervosas, meu sangue se eletriza nas veias e aquele leve contato serve para fazer uma lança de prazer pulsar em meio as minhas coxas. Minhas mãos seguem por seus braços, os bíceps se contraindo ao meu toque, e deixo os dedos deslizarem pelas tatuagens ali. Abaixo meu olhar, inspecionando-as. Toco uma tatuagem que é o desenho do rosto de uma mulher. Claire.

— É por isso que não quer me tocar. Porque ela ainda está aqui. — Toco seu peito onde o coração bate com força.

— Eu queria ao menos que me desejasse...

Quando capturo seu olhar, vejo fúria e fogo, e ele segura minha mão e a abaixa sob a água, levando-a até sua ereção.

Perco o ar.

— Isso é suficiente para você?

Sua outra mão se infiltra em meu cabelo me puxando para perto, respiro seu hálito quente, me embebedando nele.

— Sabe o quanto eu venho lutando contra isso? — Ele inclina a cabeça e desliza os lábios por meu pescoço até chegar ao meu ouvido enquanto sua mão faz meus dedos o acariciarem. — Quantas vezes eu pensei em você exatamente assim, com a mão em meu pau?

Minha nossa, começo a respirar por arquejo, minha mente rodando e meu corpo em ebulição com suas palavras cruas.

Então ele larga minha mão e seus dedos se enfiam em meus quadris, me levando para perto até que eu esteja em seu colo e nossos lábios se encontrem num beijo profundo e urgente.

E derreto inteira com seu gosto em minha língua, suas mãos subindo por minhas costas e seu pau entre minhas pernas.

Eu me esfrego nele, gemendo do prazer puro e delicioso que o atrito me causa, mas não é suficiente.

Levanto a cabeça e mergulho meu olhar no seu.

— Eu quero você... dentro de mim... agora, por favor...

Não me importo de estar implorando. A necessidade que eu tenho é fremente.

Mas uma sombra tolda seu olhar.

— Kiara, você torna tudo muito difícil para mim quando me implora assim...

— Por favor... Eu preciso saber como é... querer alguém e ter.

Uma lágrima desliza por meu rosto e Nick se inclina e a toma em seus lábios.

E no segundo seguinte, ele está se erguendo e me puxando para fora da hidro. Apenas vejo tudo como um borrão, quando ele me pega no colo e me leva até o quarto.

Sinto os lençóis mornos embaixo de mim e depois Nick se ajoelha na minha frente. Nu e lindo.

Ele coloca um preservativo, sem desviar os olhos dos meus.

Eu respiro pesado, sentindo meu interior pulsando de necessidade dele.

E o puxo pra mim, nossos lábios se encontrando enquanto ele afasta meus joelhos. Eu o sinto ali, hesitando e pedindo licença quando levanta a cabeça e me encara com uma pergunta muda no olhar.

— Sim...

Ele segura minhas mãos acima da cabeça e mergulha em mim, quase gentilmente.

Eu arqueio o corpo, querendo-o sentir inteiro e ele vem. Profundo e me preenchendo totalmente.

Ficamos assim, alinhados e sem nos mexer, por um instante. Seu olhar está em mim, estudando minha reação.

— Tudo bem?

Sacudo a cabeça em afirmativa.

— É a primeira vez que estou assim com um homem, de verdade... — sussurro com um sorriso trêmulo — não me deixa fazer nada errado...

— É a primeira vez que estou com uma mulher em dois anos — Nick rebate com sua voz rouca e deliciosa começando a se mover devagar dentro de mim. — Não me deixe fazer nada errado.

Um sorriso curva o canto da sua boca e ele me beija. E quando me encara de novo, sinto-me tonta com a intensidade do seu olhar.

— Eu vou foder você agora, Kiara Willians.

Ah, meu Deus, sim!

Fecho os olhos e solto um grito quando ele empurra entre minhas coxas vezes sem fim, cada vez mais rápido e profundo, nossas respirações se misturando assim como nossos gemidos, e não demora para eu sentir um orgasmo intenso explodindo em meu ventre e Nick engole meus gemidos com seus lábios, segurando meus tremores, até que ele mesmo afunde o rosto em meu ombro e solte um longo gemido de libertação que é como música para meus ouvidos.

E decido, ali, suada e ofegante, com o peso do corpo de Nick de Santi sobre mim, que quero ouvir aquele som até o fim dos meus dias.

Ah Deus, em que enrascada eu me meti.

Abro os olhos quando Nick se afasta e sai da cama, pelo canto do olho, o vejo ir até o banheiro e se livrar do preservativo no vaso, dando descarga.

Ele volta pra cama e deita ao meu lado, puxando as cobertas sobre nós.

Eu me deito de lado, me sentindo vazia e cheia ao mesmo tempo.

Aquele homem mudou tudo. E agora tudo o que eu quero é que ele deixe que eu entre em seu coração.

Porque ele já entrou no meu.

A neve cai lá fora, quando eu me esgueiro para perto dele, como fiz naquela noite e sem conseguir me conter, começo a chorar.

— Kiara? — ele me chama e abro os olhos quando toca meu cabelo. — Tudo bem?

Não consigo falar. Nick me puxa para perto e me abraça.

O choro vai acalmando e sinto o coração de Nick em meu ouvido.

— Por que está chorando?

— Eu não te contei tudo... sobre o que aconteceu comigo.

Minha voz é só um sussurro quando finalmente revelo a Nick o meu maior segredo. O meu maior erro.

— Eu engravidei. — Um soluço corta meu peito de novo. — E desisti de um bebê. Eu desisti da minha filha...


Epílogo

Querido Nick

Se está lendo essa carta, é porque já não estou mais aqui.

Espero que me perdoe por eu ter te deixado sozinho com nossa menina.

Você lembra o quanto a desejamos, o quanto esperamos por ela?

Infelizmente a minha doença não permitiu que ela nascesse do meu corpo. Todos nossos bebês se foram, mas pelo menos agora terei a esperança de encontrá-los no paraíso.

E você ficará com a nossa Mackenzie.

E se há uma dor que levo em meu peito é o medo que ela cresça sem saber sobre suas raízes. Sei que conversamos sobre isso, sobre lhe contar que ela tem uma outra mãe biológica quando crescer e puder entender. Mas se eu morrer, por favor, faça isso agora. Não deixei Mackenzie crescer como eu e Claudia, sem saber quem são seus pais verdadeiros.

Sei que você a amará e a protegerá para sempre, porque em seu coração, ela lhe pertence. Mas ela tem uma mãe também.

Quando adoeci e descobri que poderia não sobreviver ao tratamento, tomei a liberdade de descobrir o nome da mãe biológica de Mackenzie.

O nome dela é Kiara Willians.

Quero que a encontre.

Convença essa moça de que não há dom maior no mundo do que ser mãe. Mackenzie precisa de amor materno e eu acredito que apesar de ter tido motivos para dá-la em adoção, essa garota não deixou de amar a filha.

Por favor, atenda este último desejo do meu coração.

Para sempre sua.

Mais que a própria vida.

Claire.

 

 

                                                                  Juliana Dantas

 

 

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