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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORAÇÕES DESTROÇADOS / V. C. Andrews
CORAÇÕES DESTROÇADOS / V. C. Andrews

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CORAÇÕES DESTROÇADOS

 

"Querido papá,

Apesar de todas as tristezas e privações do passado, estou disposta a perdoar e a pedir perdão, papá. Já passaram quase dois anos desde que o tom morreu, dois anos em que não houve um único dia em que eu não sentisse a falta dele, e do avô também. Mas, agora, o meu tempo de luto acabou e o meu tempo de felicidade, amor e vida está a começar. Tenho óptimas notícias. vou casar. com o Logan Stonewall, que, como se deve lembrar, era o meu amor de infância. Tenho estado a viver em Winnerrow, onde realizei o meu sonho de ser professora, como Miss Marianne Deale, que me incentivou a ler e a aprender, a sonhar e a acreditar que eu podia vir a ser aquilo que quisesse. Parece que todos os meus sonhos de infância estão a tornar-se realidade... Todos, menos a minha relação consigo. Queria que o pai, o Drake e a Stacie viessem ao meu casamento, papá. Papá, gostaria que me acompanhasse como meu pai, e me desse ao meu marido. Estou tão feliz, papá, que queria esquecer toda a amargura do passado. Quero perdoar-lhe e quero que me perdoe. Talvez agora, depois de tantos anos, possamos ser uma família. A Fanny vai ser a minha dama de honor. Espero que, finalmente, o senhor seja o meu pai.

com muito amor Heaven"

 

PROMESSAS DE PRIMAVERA

Sentada na larga varanda da frente da casa, li e reli a carta para o meu pai. Estava uma manhã quente de Maio, e a Primavera já se transformava num Verão quente. Parecia que os Willies, os meus montes, tinham acordado comigo... do frio e sombrio Inverno de morte e de luto, aquecendo gradualmente com a promessa da Primavera, explodindo, finalmente, num Verão quente e cheio de vida. Os pardais e os tordos cantavam, saltitando de ramo em ramo, abanando suavemente as folhas. A luz do Sol avançava por um caminho através da floresta, espalhando fios de ouro pelos vidoeiros, pelas nogueiras e pelos áceres, tornando as folhas transparentes onde eram banhadas pela luz. O mundo parecia glorioso e vivo.

Respirei fundo, inalando o perfume doce e fresco das flores a desabrochar e das folhas verdes. Por cima de mim, o céu estava de um imenso azul-celeste e os tufos de algodão doce das nuvens estendiam-se e enrolavam-se em formas deliciosas, como bebés a dormir.

O Logan esteve lá desde o dia em que eu voltei para Winnerrow. Esteve lá nos dias terríveis depois da morte do tom, enquanto o meu pai se encontrava no hospital. Esteve lá depois de o pai ter voltado com a Stacie e o pequeno Drake para a sua casa, na Jórgia. Esteve lá quando o avô morreu, deixando-me sozinha na casa da minha infância, agora reconstruída e transformada num lar acolhedor. Esteve lá no primeiro dia em que comecei a dar aulas aos meus queridos alunos, na escola primária de Winnerrow. Agora, rio-me sozinha ao recordar esse primeiro dia, preparando-me para testar a minha competência, para ver se realmente podia ser a professora que sempre sonhara.

Tinha saído de casa, tal como esta manhã, com a intenção de, como quase todos os dias, repousar um bocadinho na cadeira de baloiço da avó e olhar através dos Willies antes de iniciar a minha caminhada para a escola. Só que, nessa manhã, quando abri a porta, lá estava o Logan ao pé das escadas, com um sorriso rasgado e feliz na cara, e os seus olhos de safira a brilhar com o sol da manhã.

- bom dia, Miss Casteel! - E fez uma grande vénia.

- Fui enviado para a acompanhar à sua classe. É um benefício adicional do sistema escolar de Winnerrow.

- Oh, Logan - exclamei. - Levantaste-te tão cedo para vir até cá.

- Não foi assim tão cedo. Eu levanto-me sempre a esta hora para abrir a loja. Está três vezes maior do que era quando andávamos no liceu - disse ele, orgulhosamente -, e exige muito mais trabalho, Miss Casteel - acrescentou, estendendo-me a mão. Desci as escadas para a agarrar, e começámos a descer pelo carreiro, como costumávamos fazer quando éramos namorados de liceu.

Parecia que voltara aos velhos tempos; quando eu e o Logan seguíamos atrás do tom, do Keith e da "Nossa" Jane, com a Fanny a zombar de nós, tentando provocar o Logan e afastá-lo de mim com o seu comportamento lúbrico e lascivo, desistindo, finalmente, e fugindo amuada, quando se apercebia de que ele não desviava a atenção de mim. Quase que conseguia ouvir as vozes dos meus irmãos e das minhas irmãs mais à frente. Apesar da dureza da nossa vida de então, as recordações trouxeram-me lágrimas aos olhos.

- Então, então - disse o Logan, ao ver os meus olhos encherem-se de lágrimas -, este é um dia feliz. Quero um grande sorriso e quero ouvir o teu riso a ecoar pelos Willies, como dantes.

- Oh, Logan, obrigada. Obrigada por estares aqui, por te interessares.

Parou e virou-me para ele; os seus olhos estavam sérios e cheios de amor.

- Não, Heaven. Sou eu quem deve agradecer por estares tão bonita e encantadora como eu me lembrava. É como se... - Olhou em volta, à procura das palavras. - É como se o tempo tivesse parado para nós, e tudo o que pensamos ter acontecido entretanto tivesse sido só um sonho. Agora estamos a acordar e tu estás aqui outra vez, eu estou aqui contigo e tenho a minha mão na tua. Nunca mais a largarei - jurou ele.

Um arrepio passou dos meus dedos para os dele, um arrepio de felicidade que chegou ao meu coração, fazendo-o disparar como no primeiro dia em que nos beijáramos, quando eu tinha apenas doze anos. Queria que ele me beijasse outra vez, queria voltar a ser aquela rapariguinha inocente, mas não era. E ele também não. Apenas há alguns meses atrás circulavam rumores de que ele pretendia casar com a Maisie Setterton. Porém, a Maisie parecia ter desaparecido da vida dele assim que eu voltei.

Caminhámos em silêncio ao longo do caminho cheio de árvores. Pardais encarnados e com manchas castanhas seguiam-nos, esvoaçando pelas sombras da floresta, com movimentos tão rápidos e graciosos que poucos ramos abanavam.

- Eu sei - disse o Logan, por fim - que as nossas vidas seguiram rumos diferentes, desde o tempo em que eu te acompanhava a casa depois da escola, e que as promessas que na altura fizemos um ao outro devem parecer sonhos tolos. Mas eu gostaria de pensar que o nosso amor era tão forte, que conseguiu sobreviver à tragédia e às privações que se seguiram.

Parámos e olhámos um para o outro. Eu sabia que ele conseguia ver as dúvidas nos meus olhos.

- Logan, eu também gostaria de acreditar nisso. Estou cansada de sonhos que morrem, sonhos que são demasiado etéreos e fracos para durarem ou crescerem à medida que envelhecemos. Eu quero acreditar em alguém, outra vez.

- Oh, Heaven, acredita em mim - suplicou ele, estreitando a minha mão nas suas. - Não te desiludirei. Nunca.

- Posso tentar - murmurei, e ele sorriu. E, então, beijou-me, um beijo para selar uma promessa. No entanto, durante toda a minha vida vira promessas a serem quebradas. O Logan sentiu a minha hesitação e o meu medo, e abraçou-me.

- vou fazer com que acredites em mim, Heaven. vou ser tudo o que sempre quiseste num homem - declarou ele, encostando o rosto ao meu cabelo. Senti a sua respiração no meu pescoço, o seu coração a bater loucamente como o meu. Naquela floresta, no velho caminho, dei por mim a querer desesperadamente ter esperança, a enternecer-me. A Heaven Leigh Casteel que tinha sido muito magoada em criança, atormentada e seduzida em rapariguinha, atraiçoada em mulherzinha, agarrou-se avidamente à promessa de felicidade.

- Acho que com o tempo vou acreditar em ti, Logan.

- Oh, Heaven, querida Heaven, voltaste mesmo para casa - exclamou ele e beijou-me repetidamente.

Então, porque é que, enquanto o Logan me beijava com todo o seu amor e a sua paixão por mim, eu só pensava no Troy, o meu noivo proibido, o meu amor sombrio e morto? Porque eram os lábios do Troy que eu sentia de encontro aos meus? Porque era pelo sabor do Troy que eu ansiava? Os

braços do Troy pressionando-me contra ele? Nesse momento, o Logan beijou-me os olhos e eu abri-os, para um rosto jovem, fresco, amoroso, um rosto que nunca conhecera a angústia e o desespero a que o meu triste e fadado Troy sucumbira. No fundo do meu coração, eu sabia que o Logan me daria o tipo de vida de que eu e a minha mãe tínhamos sido privadas... Uma vida serena, respeitável e honrada.

Eu e o Logan namorámos durante o ano escolar, e um dia ele bateu-me à porta.

- Tenho uma grande surpresa para ti, Heaven. - Parecia um rapazinho travesso com um sapo no bolso.

- Vais tapar-me os olhos? - perguntei, entrando na brincadeira.

O Logan veio para trás de mim e tapou-me os olhos cuidadosamente com as mãos.

- Conserva-os fechados, Heaven - ordenou ele e, em seguida, pegou na minha mão e conduziu-me, hesitantemente, atrás dele até ao carro, sentindo-me segura ao ser levada pelo seu entusiasmo infantil. Senti a brisa fresca na cara, assim que arrancámos, sem eu saber para onde. Depois, o carro parou, e o Logan abriu-me a porta e segurou-me pelo braço.

- Já podes sair, estamos quase lá - afirmou ele, enquanto me levava do carro para o que parecia ser um passeio.

Quando abriu a porta da loja, senti imediatamente o cheiro familiar a perfume e a artigos de toucador misturado com remédios e cheiros medicinais, mas não deixei perceber que já sabia onde estava. Não quis estragar o seu bom humor. Ele sentou-me numa cadeira e ouvi-o muito atarefado algures atrás do balcão. Parecia já ter passado meia hora, quando ouvi a sua voz.

- Já podes abrir os olhos, Heaven! - exclamou ele, quase a gritar.

À minha frente estava um castelo de arco-íris feito de gelado, cerejas, chantilly, e de tudo o que é doce e delicioso.

- Logan - disse eu -, está lindo. Mas se eu como isso, vou ficar com cem quilos numa hora. E depois será que continuas a amar-me?

- Heaven... - A sua voz tornou-se mais baixa e sibilante. - O meu amor por ti é superior à juventude e à beleza. Mas este castelo não é para comer. Eu queria construir-te o castelo mais bonito e mais doce que alguma vez viste. Eu sei que não posso competir com as riquezas dos Tatterton e com a grande Mansão Farthinggale. Mas aquela mansão é feita de pedra cinzenta e fria, e o meu amor por ti é tão quente como o primeiro dia de Primavera. O meu amor vai construir um castelo à tua volta, um castelo com o qual nenhuma mansão de pedra vai conseguir competir. Heaven... - Ajoelhou-se, perante os olhares atónitos dos clientes da loja. - Heaven, queres ser minha mulher?

Olhei por momentos para os seus olhos, e vi amor e ternura. Eu sabia que ele faria tudo para me ver feliz. O que era a paixão que eu desejava, a paixão que me tinha sido roubada com a morte do Troy, em comparação com uma vida de amor sereno, de interesse mútuo e de um compromisso imortal?

- Sim - disse eu, já com lágrimas nos olhos. - Sim, Logan, sim, serei tua mulher.

De repente, ouviram-se grandes aplausos à nossa volta, e todos os clientes sorriam perante os recentes noivos. O Logan corou imenso e largou a minha mão quando eu o ia abraçar.

- Toma, Heaven... - Meteu uma cereja na minha boca, tentando disfarçar o seu embaraço pelo espectáculo que tínhamos dado. E deu-me um beijinho na face.

- Amo-te para sempre - murmurou.

Um amor nascido há muitos anos atrás, como uma flor a desabrochar devagar, abriu por fim completamente. Eu tinha completado um círculo, apagando a dor do passado, enquanto percorria agora os mesmos caminhos que percorrera em criança, só que, neste momento, estava a abrir o meu próprio caminho, em vez de andar por um previamente marcado para mim. Agora podia escolher o meu próprio destino, assim como a floresta escolhe os seus caminhos naturais, feitos no terreno mais sólido, na terra mais firme. Era como se eu tivesse atingido, de repente, uma das clareiras mágicas da floresta, e soubesse o suficiente para construir lá o meu lar.

Agora o meu amor de infância ia tornar-se no amor da minha vida. Os sonhos realizam-se mesmo, e percebi que aquelas coisas que muitas vezes pensamos demasiado boas e perfeitas para serem realidade podem mesmo fazer parte do mundo real. Eu estava cheia de esperança e felicidade. Era outra vez uma rapariguinha disposta a acreditar, a ser vulnerável, a abrir-me com outra pessoa e a arriscar o frágil coração. Nesta clareira, onde o sol era forte e reconfortante, eu e o Logan íamos ser firmes árvores novas, crescendo cada vez mais fortes, até nos tornarmos carvalhos opulentos, resistentes a todas as tempestades de Inverno.

Passei as semanas seguintes a planear o casamento. Este casamento ia ser muito mais do que apenas uma mera união entre um homem e uma mulher de Winnerrow. Apesar de ter permanecido nos montes, na cabana do meu avô, continuei a guiar um carro caro, a vestir roupa elegante e a considerar-me uma mulher culta e sofisticada. Podia ter desistido de uma existência de riqueza como herdeira do império dos Brinquedos Taterton mas a população da cidade continuava a ver-me como escumalha, uma reles Casteel. Podiam aprovar a maneira como eu ensinava os seus filhos, mas continuavam a não gostar de me ver sentada nos bancos reservados da igreja. Quando eu e o Logan fomos à igreja juntos, no domingo seguinte à publicação da nossa fotografia de noivado em The Winnerrow Repórter, todos os olhares nos seguiram até ao banco da frente, reservado para a família do Logan, onde eu, até agora, nunca me atrevera a sentar.

- Bem-vinda, Heaven - saudou Mrs. Stonewall, um pouco nervosa, ao entregar-me o missal. O pai do Logan acenou simplesmente com a cabeça, mas quando nos levantámos para cantar, cantei cheia de orgulho e força, até a minha voz, uma voz dos montes apesar da sua patina de cultura, ecoar pela igreja toda. E quando a missa acabou, depois de eu ter cumprimentado o reverendo Wise com um sorriso, que lhe dizia que ia conseguir provar-lhe que as suas profecias estavam erradas, a mãe do Logan chamou-me.

- Heaven, nunca soube que tinha essa belíssima voz para cantar. Espero que se junte ao nosso coro de senhoras - sugeriu ela, e foi nesse momento que percebi que a Loretta Stonewall se tinha decidido a aceitar-me. Foi também aí que decidi fazer com o que os outros me aceitassem da mesma maneira, tentando abrir-lhes os olhos para verem o povo dos montes como os seres humanos honestos e trabalhadores que nós éramos.

Foi por isso que planeei o casamento daquela maneira. O Logan esforçou-se o mais possível para perceber os meus motivos e até me apoiou quando os pais se opuseram. Fiquei-lhe extremamente agradecida. Ficou mesmo contente e divertido com o meu plano para obrigar a população de Winnerrow a misturar-se com o povo dos montes. Estava determinada a ter um casamento muito elegante e, quando percorresse a nave da igreja, as pessoas da cidade não iam ver uma qualquer coitada da escumalha, que tinha conseguido ter dinheiro, mas sim uma pessoa tão importante e requintada como elas se consideravam. Lembrei-me de quando regressara a Winnerrow, alguns anos atrás, e atravessara a igreja, a perfeita imagem da moda, coberta de jóias. Apesar da minha elegante indumentária, as pessoas tinham-me olhado de lado. As pessoas dos montes deviam sentar-se nos bancos de trás, e as outras, que se julgavam dignas de Deus, nos bancos da frente.

O meu casamento ia ser diferente. Convidei algumas famílias dos montes. Convidei todas as crianças da minha aula. Quis que a minha irmã Fanny fosse a minha dama de honor. Não tinha visto a Fanny muitas vezes desde que voltara para Winnerrow, porque ela nunca fora capaz de ultrapassar a inveja e o ressentimento que tinha em relação a mim, apesar de eu ter tentado, como sempre, ajudá-la em tudo o que pudesse. O Logan mantinha-me a par dos problemas e da vida da Fanny. Aparentemente, ela era tema frequente da conversa dos rapazes e das raparigas de Winnerrow, e muitas vezes o Logan conseguia ouvir bocados de conversas na loja. Desde o seu divórcio do "velhote" do Mallory, os mexericos eram sobre o seu envolvimento amoroso com um homem muito mais novo, Randall Wilcox, o filho do advogado. Randall tinha apenas dezoito anos e andava no primeiro ano da universidade, e a Fanny era uma mulher divorciada, de vinte e dois anos.

Na semana seguinte ao anúncio do nosso noivado, fui até à casa que a Fanny tinha comprado com o dinheiro do velho Mallory; uma casa no alto de um monte, pintada de rosa berrante e com os remates das janelas a encarnado. Não falava com ela há já um ano, desde que me tinha acusado de lhe roubar tudo o que era dela, quando, na realidade, era ela que tentava apoderar-se de tudo o que me pertencia, especialmente o Logan.

- Bem, que grande surpresa - exclamou ela, num tom dramático, quando abriu a porta. - Miss Heaven em pessoa vem visitar a coitada da maninha.

- Não venho discutir contigo, Fanny. Estou demasiado feliz para me fazeres zangar.

- Ah, sim?

Sentou-se rapidamente no seu sofá, dominada pela curiosidade.

- Eu e o Logan vamos casar em Junho.

- Nã'me digas! - exclamou a Fanny, arrastadamente, deixando-se dominar pela desilusão.

Porque é que ela não podia, ao menos uma vez, ficar feliz por mim? Porque é que não podíamos ser irmãs a sério e gostarmos uma da outra?

- Já sabias que tínhamos voltado a namorar.

- Com'é qu'eu podia saber? Nunca cá vens e nunca nos falamos.

- Tu sabes muito bem o que se passa em Winnerrow, Fanny. bom, de qualquer maneira, gostava que fosses a minha dama de honor.

- A sério? - disse ela, com os olhos a brilhar. Depois, porém, vi de novo o seu olhar despeitado. - Ainda nã'posso dizer nada, querida Heaven. Tenh'um horário muito preenchido. Qual é a data exacta do té casamento?

Disse-lhe.

- Bem - hesitou ela, e fingiu estar a pensar -, eu já tinha planos p'ra esse fim-de-semana, sabes qu'o meu novo homem gosta muito de me levar a montes de sítios; a bailes da universidade e coisas do género. Mas talvez possa alterar as coisas. Vai ser um casamento elegante?

- O mais possível.

- E vais comprar à tua rica maninha um vestido superelegante e luxuoso? E levas-m'à cidade pro'ir buscar?

- Sim.

Ela pensou um pouco.

- Posso levar o Randall Wilcox? - perguntou. - Já deves saber qu'ele anda atrás de mim. E eu sei qu'ele ia ficar o máximo de smoking. Os homens vão de smoking, nã'vão?

- Sim, Fanny. Se quiseres, eu mando um convite em mão para casa dele.

- Sim, até queria. Porque não? - interrogou-se ela. E assim se passou.

O convite para o meu pai foi o último a ser enviado. Nessa manhã, desci o atalho do monte um pouco mais cedo do que o costume, para ir primeiro ao correio, antes de iniciar o meu último dia de aulas. Acho que estava tão excitada como no meu primeiro dia de aulas. Quando cheguei à escola, os meus alunos olharam para mim cheios de expectativa. Até as caras tristes e cansadas das crianças dos Willies estavam frescas e radiosas, naquela manhã. Sabia que eles tinham planeado alguma coisa especial.

A Patrícia Coons levantou a mão.

- Tenho uma coisa para si, Miss Casteel - disse ela, timidamente.

- Sim?!

Levantou-se devagar e veio para a frente, orgulhosa de ter sido escolhida como representante da turma. Arrastava os pés e roía uma das suas unhas já roídas.

- Nós queríamos dar-lhe isto, antes que recebesse todos os seus presentes de casamento - declarou ela. - Todos participaram - acrescentou, dando-me o presente, embrulhado em papel azul e com um laço cor-de-rosa. - Até comprámos o papel ao seu noivo Logan, quero dizer, na loja de Mister Stonewall - concluiu, e eu ri-me.

- Muito obrigada a todos.

Abri o embrulho. Lá dentro estava uma linda moldura de madeira, com um bordado extremamente bem feito representando a minha casa nos Willies, e em baixo lia-se: "Lar, doce lar, da sua turma."

Por momentos não consegui falar, e sabia que todos aqueles olhos radiantes e felizes estavam virados para mim.

- Muito obrigada, meus queridos - disse eu. - Nenhum outro presente vai ser mais precioso e importante para mim do que este.

E nenhum foi.

O tempo entre o último dia de escola e o meu casamento pareceu uma eternidade. Os minutos pareciam horas, e as horas pareciam dias, pois estava muito ansiosa. Nem os planos nem os preparativos fizeram com que o tempo passasse mais depressa, como eu gostaria. A expectativa fez a minha excitação aumentar, e o Logan estava comigo sempre que podia. Choveram respostas aos convites. Não falava com o Tony Tatterton desde o dia em que saíra da Mansão Farthinggale, no dia em que soubera da morte do Troy. Por um lado, porque nunca lhe perdoei o que acontecera ao Troy; por outro, porque tive medo da verdade de que tomara conhecimento, a verdade que levara o Troy à morte. Sabia que nunca mais seria capaz de ouvir a voz do Tony sem ouvir o timbre familiar da minha voz na dele. O que eu soubera sobre o Tony e a minha mãe, mesmo dois anos depois, ainda me provocava arrepios na espinha. Ter vivido, tanto tempo, na mentira, convencida de que o meu pai era da mesma carne e do mesmo sangue, o pai que sempre me tinha rejeitado e de cujo amor eu tanto precisara, para vir a descobrir que, quando ele olhava para mim, via o amante da minha mãe, o padrasto dela, o meu pai e avô, o Tony Tatterton.

Esta revelação assustou-me até ao âmago, não tanto pela sua falta de gosto e imoralidade, como pelo que me revelou da minha herança. Não me atrevi a contar ao Logan. A sua inocência podia ser devastada pelas atitudes dos ricos, que controlam o mundo. Mas havia mais. No último dia na praia, depois de o Tony me ter contado a morte horrível do Troy, algo tinha surgido nos olhos dele, algo que transgredia qualquer luto, um olhar de desejo, que me fez perceber que me tinha de manter afastada dele. Foi por isso que nunca atendi os seus telefonemas, que as suas cartas, amontoadas na minha secretária, ficaram sem resposta. Foi por isso que eu quis que fosse o meu pai Luke, e não o Tony, a fazer de meu verdadeiro pai no casamento. Porque, apesar de tudo, e apesar de saber que não era ele o meu pai, continuava a ansiar pelo amor desse mesmo pai; já tinha demasiado do Tony.

Como não queria que o Logan soubesse a verdade vergonhosa da minha herança, fui obrigada a enviar um convite ao Tony. E este, como raposa matreira que era, escreveu ao Logan, e não a mim, explicando que a avó Jillian estava tão doente que lhe era impossível deixá-la para ir ao casamento, mas insistindo que fôssemos à Mansão Farthinggale, onde ele nos organizaria o melhor copo-d'água que o Massachusetts alguma vez vira. O Logan ficou tão entusiasmado com o convite que eu acabei por aceitar passar quatro dias em Farthy, antes de irmos em lua-de-mel para as praias da Virgínia. Regressaríamos depois a Winnerrow e viveríamos na minha cabana, até conseguirmos construir uma casa nossa, nos arredores da cidade.

Contudo, nem todos os nossos projectos correriam como planeado. Na manhã do meu casamento, bateram-me à porta. Não tinha dormido quase nada durante a noite, por causa dos nervos e da excitação. Ainda de camisa de noite, fui à porta receber um correio especial

- bom dia - disse o carteiro, alegremente. - Entrega especial. É favor assinar aqui.

- bom dia.

Estava realmente um belo dia, e não era só por ser o dia do meu casamento. Não havia uma única nuvem no céu azul de Verão. Hoje era o meu dia, e Deus tinha sorrido e tinha feito esse dia bonito para mim, afastando todas as sombras e deixando-me apenas a luz do Sol. Estava tão cheia de alegria e satisfação que até me apeteceu abraçar o carteiro.

- Muito obrigado - retorquiu ele, quando lhe entreguei o papel assinado. E, depois, sorriu e tirou-me o chapéu. - Muito boa sorte. Já sei que é o dia do seu casamento.

- Muito obrigada - respondi. Observei-o a voltar para o jipe, e acenei-lhe, enquanto ele seguia pelo monte abaixo. Fechei a porta e dirigi-me para a mesa da cozinha, a fim de abrir o meu correio especial. De certeza que era uma carta de felicitações. Se calhar era do Tony, que talvez tivesse decidido, à última hora, assistir às duas festas.

Abri o sobrescrito e desdobrei o papel que lá vinha. O que li partiu-me o coração. Sentei-me devagar, com o coração a bater desordenadamente. O sorriso que estivera nos meus lábios desapareceu e os meus olhos encheram-se de lágrimas, distorcendo as palavras na página à minha frente.

"Querida Heaven,

Infelizmente, negócios relacionados com o circo tornam impossível a minha comparência ao teu casamento. Eu e a Stacie desejamos-te a ti e ao Logan muita sorte.

Beijos Teu pai"

Uma das minhas lágrimas caiu na carta, e começou uma viagem pelo papel, deformando as palavras do meu pai. Amarrotei a carta e encostei-me na cadeira, as lágrimas a correrem cara abaixo até aos cantos da minha boca, onde eu podia sentir o seu sabor salgado.

Estava a chorar por diversas razões, mas, acima de tudo, estava a chorar por ter acreditado que o meu casamento seria razão para eu e o meu pai nos reconciliarmos. Apesar de ter sido o Logan que me convencera a convidá-lo, isso já era o meu desejo mais secreto. Já tinha sonhado tê-lo ao meu lado, muito elegante no seu smoking, a segurar a minha mão e a dizer "Eu", quando o reverendo perguntasse: "Quem dá esta mulher?"

O meu casamento ia ser o ponto culminante do perdão: o seu perdão por eu ter causado a morte do seu anjo, a Leigh, ao ter nascido, e o meu perdão por ele nos ter vendido. Eu estava disposta a acreditar no tom, que dizia que o pai nos tinha vendido por não poder cuidar de nós, e por achar que era o melhor a fazer.

Agora, porém, nada disso ia acontecer.

Respirei fundo e limpei as lágrimas. Não havia nada a fazer, e por isso era melhor concentrar-me no Logan e no nosso casamento. Não havia tempo para sentir pena de mim nem para me enfurecer. Além disso, o pai já me tinha dado há muitos anos. No meu casamento, era eu quem me dava.

Uma hora antes do casamento, a minha irmã Fanny chegou com o Randall Wilcox, para me levar à igreja. O Randall era um rapaz educado e tímido, de cabelo vermelho e pele alva. A testa estava cheia de pequenas sardas, mas tinha uns olhos azuis que brilhavam como cristal. Tinha pensado que ele talvez parecesse mais velho do que era; porém, ele tinha um aspecto fresco e inocente e seguia Fanny como um cachorrinho.

- Heaven Leigh Casteel, hoje até pareces 'ma virgenzinha - exclamou ela, agarrando-se ao braço do Randall e encostando-se a ele, com ar possessivo. Tinha o seu cabelo preto-azeviche ondulado e solto, dando-lhe um ar descontraído e selvagem, como o de uma prostituta. Eu sugerira que ela apanhasse o cabelo, já a prever que ela o penteasse assim.

- Nã'parece, Randall? - continuou.

Ele olhou para mim e de novo para ela, sem esperar ter de corroborar o comentário sarcástico da Fanny.

- Está muito bonita - disse o Randall, suave e diplomaticamente.

- Muito obrigada, Randall.

A Fanny esboçou um sorriso afectado. Olhei-me no espelho, ajustei alguns fios de cabelo e agarrei com vivacidade o meu pequeno bouquet.

- Estou pronta - declarei.

- Claro que 'tás - respondeu a Fanny. - Sempre 'tiveste pronta p'ra este dia - acrescentou, tristemente. Por um instante, senti pena dela, apesar da sua inveja gritante. A Fanny sempre necessitara de muita atenção, sempre desejara ser amada, mas sempre procurara isso da maneira errada, e provavelmente sempre o faria.

- Fanny, o vestido fica-te mesmo bem - disse eu. Fôramos à cidade, e tínhamos escolhido uma crinolina azul-clara, para ela usar como dama de honor. A Fanny, porém, tinha feito algumas alterações. Tinha aberto o decote, até se ver o princípio do peito. Também o tinha ajustado de lado, de maneira a ficar colado ao corpo.

- Achas? 'tou mais elegante, nã'tou? - perguntou ela, passando as mãos pelas ancas e pelo corpo até aos seios, olhando sempre e lascivamente para o Randall. Ele corou.

- Até mesmo com o parto, nunca perdi a minha linha, como acontece com tantas mulheres. - Voltou-se para mim.

- O Randall sabe o nosso segredo em relação à Darcy. Toma cuidado, querida, ou um bando de pequenos Stonewall ainda testraga a linha.

- Não estou a planear ter já filhos, Fanny - proclamei eu.

- Ah, não? Talvez as ideias do Logan Stonewall não sejam as mesmas. A Maisie Setterton diz qu'ele sempre falou em ter uma família grande. Foi o que me disseste, não foi, Randall? - Eu sabia que a Fanny tinha falado na Maisie Setterton só para me fazer ciúmes.

- Bem, eu não disse exactamente isso... - gaguejou ele, muito atrapalhado.

- Não faz mal, Randall - retorqui, rapidamente. - A Fanny não disse isso para ser má, pois não, Fanny?

- Claro que não - queixou-se ela. - Eu só contei o qu'a Maisie disse.

- Vês? - O Randall começou a rir. A Fanny percebeu que era dela.

- bom, ela disse aquilo mesmo - insistiu ela. - Se nã'foste tu a dizer-me, foi outra pessoa. - O seu sorriso tornou-se sarcástico. - De qualquer maneira, nã'percebo porquê que deixas ser o Waysie a casar-te.

- Eu cá tenho as minhas razões.

Sorri para mim própria. Claro que tinha. E a Fanny bem as sabia. Tinha sido o reverendo Wise a comprá-la ao pai, a levá-la para casa dele, a engravidá-la e a ficar com o bebé para ele e para a mulher. Eu tinha tentado ajudar a Fanny a comprar a filha, para a ter de novo, mas sem sucesso, e ela ainda não me perdoara aquele falhanço. Nós partilhávamos o segredo sombrio acerca da menina, e eu queria olhar nos olhos do reverendo Wise quando eu e o Logan fizéssemos os nossos votos. Queria riscar as palavras que ele me dissera quando eu tinha ido reclamar a filha da Fanny. Discutíramos, e eu dissera-lhe que ele não me conhecia.

Os seus olhos semicerraram-se e brilharam através da abertura das pálpebras.

- Está enganada, Heaven Leigh Casteel - dissera ele.

- Eu conheço-a muito bem. A menina pertence ao tipo mais perigoso de mulher que o mundo jamais conheceu. Transporta consigo as sementes da sua própria destruição e de todos aqueles que a abracem. E muitos o farão pelo seu lindo rosto ou pelo corpo sedutor. Mas a Heaven traí-los-á a todos porque acredita que todos o fizeram primeiro em relação a si. É uma idealista do género mais horrivelmente trágico: a idealista romântica. Nascida para destruir e autodestruir-se!

Queria que ele visse uma Heaven Leigh Casteel diferente, queria que ele engolisse as suas previsões, a sua arrogância religiosa e a sua hipocrisia pecaminosa.

- Podes ter as tuas razões - escarneceu a Fanny -, mas podes ter a certeza qu'o Waysie vai ficar zangado, quando vos declarar marido e mulher. Mal posso esperar p'ra ver. Mal posso mesmo.

- Vamos? - perguntei eu.

A cerimónia foi ainda melhor do que eu sonhara. Apareceram quase todos os convidados. Quatro dos meus alunos indicavam os lugares na igreja. Eu tinha dado ordens para eles sentarem as pessoas de acordo com a ordem de chegada, destruindo, assim, a segregação tácita existente na congregação. As pessoas dos montes e dos vales sentaram-se nas mesmas filas do que as pessoas da cidade, tanto à frente como atrás.

Todas as pessoas dos montes e dos vales me sorriam, com as caras cheias de felicidade e orgulho. A maioria das pessoas da cidade pareciam majestosas, com olhares de aprovação. Afinal de contas, eu estava a casar-me com o Logan Stonewall, completando o que era, aos olhos delas, uma transição completa de rapariga dos montes para uma rapariga da cidade. Ia saír da minha cabana e mudar-me para uma casa em Winnerrow. Podia ver na cara delas que estavam convencidas de que eu, com o tempo, ia esquecer as pessoas dos montes. Tinha ganho o seu respeito, mas não a sua compreensão. Pensavam que eu tinha feito aquilo tudo só para me tornar uma delas.

O pai do Logan esteve sempre ao seu lado, tal como o meu querido irmão tom também deveria ter estado, como meu padrinho. O meu coração deu um salto e os meus olhos encheram-se de lágrimas quando pensei na sua trágica morte, nas garras de um monstro raivoso. À excepção da Fanny, que se pavoneava à minha frente, abanando o cabelo, fazendo gestos sugestivos com os ombros e deitando olhinhos a todos os homens disponíveis da congregação, não estava lá ninguém da minha família. O avô já tinha morrido. O Luke e a sua nova mulher estavam a trabalhar algures no seu circo novo. O tom tinha morrido. O Keith e a Jane estavam na faculdade, sem se darem tanto comigo quanto eu gostaria. A minha verdadeira avó estava em Farthy, perdida no passado, tagarelando coisas incoerentes consigo própria. O Tony estava na direcção da Companhia de Brinquedos Tatterton, de luto por este dia, em que eu ia pertencer a outro homem e nunca a ele.

O reverendo Wise, alto e impressionante como sempre atrás do seu altar, levantou os olhos da Bíblia e olhou directamente para mim. O seu traje elegante, preto, feito à medida, ficava-lhe tão bem como de costume e fazia-o parecer tão magro como da primeira vez que eu o vi.

Por um momento, ele assustou-me, como sempre acontecia; porém, quando fixei o meu olhar no Logan, todas as más recordações desapareceram. Era como um dia enevoado que, de repente, ficava cheio de luz. Este era o meu casamento, a minha altura, o meu momento ao sol, e o Logan, mais elegante do que eu alguma vez imaginara, esperava para tomar a minha mão na dele, a minha vida na dele.

"O casamento entre duas pessoas que se amam sinceramente pode ser, de facto, uma coisa maravilhosa", pensei eu. Era sagrado, era importante e fez o meu coração voar, e sentia-me como se estivesse a flutuar. Lembrei-me das noites em que olhava para as estrelas e desejava a altura em que eu e o Logan fôssemos príncipe e princesa. Ele tinha entrado na minha vida de uma forma determinante, como um cavaleiro dos contos de fadas, pronto a cumprir as minhas ordens, para me devotar a sua vida, e pensei que, de certeza, estávamos destinados a ser marido e mulher.

O meu coração alvoroçou-se no peito. Por baixo do meu véu, corei.

O reverendo Wise olhou-me fixamente e em silêncio. Depois, levantou os olhos para o tecto da igreja e começou:

- Oremos. Vamos agradecer ao Senhor, pois Ele tem sido generoso. Ele deu-nos a oportunidade de enchermos o nosso coração de alegria. Um casamento é um começo novo, o começo de uma vida nova e uma oportunidade de servir a Deus de novas maneiras. Esta é a verdade para o Logan Stonewall e para a Heaven Leigh Casteel. Voltou-se para o Logan. - Logan Stonewall - entoou ele -, aceitas esta mulher, Heaven Leigh Casteel, para tua legítima esposa, para amar e honrar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da vossa vida?

O Logan virou-se para mim, com o rosto e os olhos cheios de adoração.

- Sim, de todo o coração - respondeu ele.

- Heaven Leigh Casteel - continuou o reverendo, virando-se para mim -, aceitas este homem, Logan Grant Stonewall, para teu legítimo esposo, para amar e honrar, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da vossa vida?

Eu olhei para os olhos do Logan.

- Sim - murmurei.

- Quem tem as alianças? - perguntou o reverendo Wise. A Fanny caminhou afectadamente para a frente.

- Ora, reverendo, tenh'eu - disse ela com sarcasmo, enquanto estendia as mãos com as palmas viradas para cima, com uma aliança em cada uma. Depois, inclinou-se, expondo o seu colo aos olhos do reverendo, certificando-se de que ele estava a olhar, e entregou as alianças a mim e ao Logan.

O Logan sorriu-me, com o mais gentil dos sorrisos, enquanto enfiava a aliança, com um diamante incrustado, no meu dedo.

- Recebe esta aliança como sinal do meu amor e da minha fidelidade - declarou ele.

E, depois, foi a minha vez.

- com os poderes investidos em mim por Deus e por Jesus Cristo Salvador - entoou o reverendo Wise -, declaro-vos marido e mulher. Que aquilo que Deus uniu, nenhum homem separe. Pode beijar a noiva, Logan.

O Logan beijou-me com mais paixão do que nunca. Depois, caminhámos os dois de braço dado pela nave da igreja.

- Venham cumprimentar Mister e Mistress Stonewall exclamou o reverendo Wise, quando chegámos à porta.

Todos nos rodearam, especialmente as pessoas da cidade. Era como se a missa, a proclamação das palavras e as alianças me confirmassem como uma delas.

Fora da igreja, a orquestra dos Longchamps tinha começado a tocar uma valsa alegre. Depois de todos nos terem cumprimentado, eu e o Logan devíamos abrir o baile. Reparei nas pessoas dos montes, recuadas, inseguras e duvidosas. Senti o seu nervosismo, enquanto se punham na fila de entrada. Dei um beijo no rosto do Logan.

- Espera um momento, meu querido - pedi. Fui até ao pé do violinista, um dos maiores rabequistas dos montes. - Toque uma música popular ritmada.

Assim que ele começou a tocar, comecei a ouvir a população dos montes a bater as palmas e os pés. Peguei no meu marido, com as recordações dos montes a regressarem em catadupa, e comecei a dançar a dança dos Willies.

As pessoas da cidade começaram a ficar para trás, enquanto, uma a uma, as pessoas dos montes avançavam para se juntar à nossa dança. O Logan foi levado por uma das minhas bonitas alunas, e eu continuei a dançar com um antigo vizinho, o Race McGee. Então, as pessoas dos montes começaram a puxar as pessoas da cidade para dançar. Eu nunca tinha sido tão feliz. Todos riam, batiam palmas, dançavam. Finalmente, os Willies e Winnerrow eram um só.

De repente, vi a Fanny, no seu justíssimo vestido azul, atravessar sorrateiramente a pista de dança e bater no ombro do par do Logan.

- Abram alas prà cunhada, prà dama de honor! - gritou ela, para todos ouvirem. Pôs os braços à volta do pescoço do Logan e pressionou os seios contra o peito dele; pôs as mãos nas suas nádegas e começou a rodopiar com um Logan atónito, pela pista de dança.

- Acho que 'tá na hora de beijar o noivo - anunciou, quando a música parou, e, com isto, eu vi a sua língua deslizar entre os lábios e lançar-se para a boca do Logan.

Por fim, o Logan conseguiu livrar-se do seu abraço; o riso da Fanny, porém, ecoou por cima da música, como um alarme para me avisar. Ouvi e percebi. Mas este era o meu dia, e não iria deixar que ela, ou fosse quem fosse, o estragasse.

 

EM CASA DE MEU PAI

Eu e o Logan descemos a rampa do avião até ao aeroporto de Boston rindo como duas crianças. Estávamos os dois tão entusiasmados que as hospedeiras perceberam imediatamente que éramos recém-casados.

- Ah, sim? - disse o Logan, espicaçando-as. - E como é que devem ser os recém-casados?

- Cheios de esperança e de riso. O seu amor um pelo outro é tão óbvio que até a pessoa mais insensível olharia para eles e sorriria para si própria - recitou a hospedeira, como se fosse o sonho da vida dela.

- Ah, isso somos nós - respondeu o Logan. Tínhamos estado assim a viagem toda, aos abraços, aos beijos, rindo, e aos suspiros um pelo outro. Sempre que as hospedeiras passavam, riam ou sorriam.

Agora, apressávamo-nos pelo corredor abaixo, de mãos dadas, ansiosos por acabar com a nossa visita, a festa de casamento do Tony para nós, e irmos para a lua-de-mel. Ao passarmos uma esquina do corredor, vi o Tony à nossa espera na saída. Ele estava vestido com um dos seus elegantes fatos de seda azul-escura, um Wall Street Journal dobrado na mão. Levantou-o para me fazer sinal, assim que nos viu.

- Ali está ele - disse eu, acenando também. - Pensei que tivesse mandado só o Miles, o motorista, para nos vir buscar.

- Mas isso não seria maneira de receber recém-casados gracejou o Logan.

- Tens razão - concordei eu. Parei e apertei a mão do meu marido, sabendo aquilo que ele nunca viria a saber. Talvez fosse por não ver o Tony há muito tempo, ou talvez fosse a maneira de o coração lembrar à mente que os olhos revelam mais o nosso verdadeiro eu do que as palavras; fosse por que razão fosse, eu sentia o magnetismo dos olhos do Tony, fazendo-me recuar, como eu temera.

Os cabelos grisalhos tinham aumentado nas suas têmporas, mas isso só acrescentara mais dignidade ao seu porte. À medida que nos aproximávamos, o seu olhar intenso e penetrante transformou-se em choque.

- Leigh? - murmurou ele. Mas rapidamente se recompôs. - Heaven! - E deu um passo em frente para nos cumprimentar. - Heaven, bem-vinda a casa. Pintaste o cabelo da mesma cor que o da tua mãe. Louro... - A voz dele perdeu-se, como que levada pelo passado.

- Ah, pois, já me tinha esquecido, Tony - retorqui rapidamente.

- Eu já lhe disse que ela fica melhor com o seu castanho natural - acrescentou o Logan, rapidamente, estendendo a mão a um Tony surpreso.

- Tony, este é o meu marido, o Logan - apresentei eu, enquanto apertavam as mãos. Vi o Tony a medir o Logan, a perscrutar o seu rosto para detectar os sinais de fraqueza e os seus pontos vulneráveis, para ver quando e como poderia manipulá-lo à sua vontade.

- Bem-vindo, Logan - saudou o Tony, por fim. Depois, olhou para mim, e eu senti o seu olhar fixo absorvendo a minha visão.

- Estou tão contente por teres voltado, Heaven. Tive imensas saudades tuas... - continuou ele, fazendo uma pausa, e a sua voz tornou-se mais densa. - É extraordinário como estás tão parecida com ela. Pergunto-me se... - E, parecendo dominar-se, voltou-se para o Logan. - E também estou muito contente que estejas cá, filho.

- Muito obrigado, senhor.

- Chama-me Tony, por favor. - Os seus olhos azuis brilharam. - Já há muita gente a chamar-me senhor por estas bandas. Fizeram boa viagem?

- Óptima. Mas, claro que ir para qualquer lado, ou estar em qualquer lado com a Heaven é sempre maravilhoso - lisonjeou o Logan. E pôs o braço à volta dos meus ombros e abraçou-me, para dar mais ênfase. O Tony concordou com um aceno de cabeça, com um ar divertido.

- Isso é que é preciso. Comportarem-se como um casal recém-casado. Fico feliz por terem começado a vossa lua-de-mel em Farthy. O carro está à nossa espera. Não se preocupem com a bagagem. Já mandei tratar disso. Vamos para Farthy, onde podem descansar e conhecerem-se melhor.

Voltou-se outra vez para mim, os olhos azuis já calmos e indecifráveis. Tinha-se dominado como sempre e era outra vez o homem controlado.

- Como está a Jillian? - perguntei eu, delicadamente.

- Já vais ver - replicou. - Não vamos falar de coisas que possam entristecer a vossa chegada. Tenho uma bela festa à vossa espera, e o tempo promete estar perfeito - continuou o Tony enquanto atravessávamos o aeroporto. - Os meus empregados têm trabalhado que nem uns doidos para tratar dos jardins. Farthy nunca esteve com um ar tão orgulhoso e majestoso, mas, também, raramente tem razões para isso.

- Mal posso esperar para ver - declarou o Logan. O Tony sorriu-me com um ar satisfeito à saída do aeroporto. A sua grande limusina preta estava ali estacionada. O Miles, de pé ao seu lado, segurava a porta aberta para nós.

- Miles - disse eu, e corri para o abraçar.

- É bom vê-la de novo, Miss Heaven. Estão todos muito felizes com a sua visita.

- Obrigada, Miles. Este é o meu marido, o Logan Stonewall.

- Prazer em conhecê-lo, senhor.

- Obrigado - respondeu o Logan, e entrámos para a parte de trás da limusina. - Isto é que é viajar - continuou, estendendo as pernas e encostando-se no banco de pele. Depois, inclinou-se depressa para a frente. - Isto é um bar?

- É, sim. Queres beber alguma coisa? - ofereceu o Tony.

- Acho que sim - respondeu o Logan, o que me surpreendeu. Ele raramente tomava bebidas alcoólicas. O Tony puxou para fora os licores e o Logan pediu um highball.

- Heaven?

- Não, obrigada, Tony. Neste momento punha-me a dormir - disse eu. O Tony preparou a bebida do Logan, enquanto percorríamos a auto-estrada muito movimentada.

O Tony olhou para mim. Tinha um sorriso leve e afectuoso... divertido. Senti o meu coração acelerar. Lá fora, a paisagem sucedia-se rapidamente, mas tudo, sons, formas, cores, vibrava, era electrizante.

- O Curtis ainda é o mordomo e o Rye Whiskey o cozinheiro? - perguntei ao Tony.

- Claro. Farthy não seria a mesma coisa sem eles.

- O Rye Whiskey! - perguntou o Logan, a rir.

- O seu nome verdadeiro é Rye Williams, mas todos lhe chamam Rye Whiskey.

- Nem todos - contrapôs o Tony. - Ainda mantenho alguma dignidade quando toca aos meus empregados.

Olhei através da janela. Queria ver a Mansão Farthinggall como da primeira vez. Queria sentir a mesma excitação, a mesma sensação de novidade. Lembrava-me de ter ficado impressionada com o facto de a casa ter nome e, agora, pensava que tinha sido natural, pois Farthy, para mim, era uma coisa viva; tinha a sua personalidade, guardava as suas recordações e o seu passado como uma rainha viúva que conserva o seu título, sentada, reinando sozinha. Apesar da minha relutância em admiti-lo, eu estava a voltar para casa, para uma parte de mim que eu esperava ter ultrapassado ao casar-me com o Logan.

Dirigíamo-nos para norte, para longe da cidade. Rapidamente, a estrada ficou rodeada de grandes árvores e de relvados verdes. Estava um lindo dia de Verão e a folhagem era esplêndida. Um dia de esperança, um dia para começar uma nova vida.

- Sabes - disse o Logan, enquanto seguíamos -, nunca me tinha apercebido de que a Nova Inglaterra se parece muito com os Willies, só que sem os montes e as cabanas. Estas casas não se parecem nada com cabanas, pois não, Heaven?

- Não - respondi. - Mas os Willies não eram os Willies sem elas - acrescentei, suavemente.

- Vamos viver em Winnerrow - explicou o Logan, rapidamente. - Vamos viver na casa dela, por enquanto, mas estamos a pensar em construir, dentro em breve, alguma coisa mais substancial.

- Ah, sim? - perguntou o Tony, voltando-se para o Logan e semicerrando os olhos. Eu quase que conseguia ouvir os seus pensamentos. Ele estava a reconsiderar a sua opinião do Logan, apercebendo-se de algo inesperado. - Bem, estás quase a ver algo de muito substancial - acrescentou ele. - Farthy foi construída pelo pai do meu tetravô, e todos os filhos primogénitos que a herdam melhoram-na.

- A sério? - perguntou o Logan, com os olhos muito abertos. Olhou para mim, com uma cara tão entusiasmada que, por momentos, fez-me lembrar um rapazinho que está prestes a receber um fabuloso brinquedo novo.

- Já está mesmo a aparecer - anunciou o Tony. O Logan inclinou-se para a frente para ver através das árvores. O Miles fez a curva para entrar no longo e estreito caminho privativo marcado por grandes portões de ferro batido que, em cima, formavam um arco, onde podia ler-se: MANSÃO FARTHINGGALE.

- Passei por estes portões uma vez - afirmou o Logan, pensativamente -, tentando ter coragem suficiente para ir ver a Heaven.

- Sim? Parece que a tua paciência e a tua persistência foram recompensadas - comentou o Tony e piscou-me o olho.

Encostei o rosto à janela e observei os vários tipos de abetos e os pinheiros a sibilar, à medida que nos aproximávamos da casa. A grande casa de pedra cinzenta assomou à nossa frente. O telhado vermelho erguia-se, alto, no céu, uma silhueta magnífica de encontro ao azul-cobalto. Fiquei surpreendida por ainda me tirar a respiração. Quando olhei para o Logan, vi que ele estava impressionado.

- Parece mesmo um castelo - afirmou ele.

- E a princesa está a voltar para casa - acrescentou o Tony, pousando a sua mão na minha e sorrindo.

O Miles parou a limusina ao pé dos largos degraus, em frente à porta de entrada em arco e esculpida à mão.

- A visita começou - anunciou o Tony. Eu sentia o entusiasmo e a excitação do Logan enquanto engolia o resto da bebida e se apressava a sair do carro. Eu saí muito mais devagar, sentindo-me, de repente, um pouco aterrorizada. Olhei rapidamente para as sebes que formavam o labirinto. Na outra ponta dessas passagens estava a pequena casa de pedra do Troy. Apesar do sol radioso e do limpo céu azul, parecia-me que aquelas sebes estavam encimadas por uma neblina, conservando o seu mistério. O Logan não sabia onde levava o labirinto, mas sabia como eu tinha gostado do Troy. Até sabia do nosso noivado curto e trágico. Tinha sabido de tudo quando tomara conta de mim, quando eu estivera a delirar com muita febre e ele me havia devolvido à vida, na minha casa. Era pelo Troy que eu chamava, era o Troy que eu pensava ver quando abria os meus olhos febris e olhava para o rosto preocupado do Logan. Lembro-me como ele ficara magoado.

- Porque não consegues confiar em mim? - perguntou-me ao imaginar-me a dormir, com voz terna, afastando-me com meiguice o cabelo húmido da testa. - Vi-te com o Cal Dennison e tive vontade de o atirar contra a parede. Uma vez também te avistei ao lado desse tal Troy por quem chamas tanto, e odeio-o. Tenho sido um louco, Heaven, um perfeito louco, e agora perdi-te.

Mas afinal não me tinha perdido, e agora eu sentia-me culpada ao olhar para o labirinto e ao pensar no Troy e no amor que perdera quando ele se suicidara. Não conseguia evitar que essas recordações me apertassem o coração e me trouxessem lágrimas aos olhos. Escondi a cara do Logan, sabendo a injustiça que era estar a pensar noutro homem que eu amara, mesmo apenas por uns segundos.

- Incrível! - exclamou o Logan, com as mãos nas ancas. A sua cabeça abanava, enquanto ia observando terrenos à sua frente.

- Vamos entrar. Podem pôr-se à vontade, e depois faço uma visita guiada... Ou preferes ser tu a fazer, Heaven? perguntou o Tony, rapidamente.

- O quê? Não, não, está bem assim. Acho que devia ir ver a Jillian - decidi, olhando para as janelas grandes, altas e sombrias, atrás das quais a minha avó se tinha enclausurado.

- Está bem - concordou o Tony. Conduziu-nos à porta de entrada que o Curtis abriu no momento certo. Ele manteve-se de lado, a sorrir, e eu apressei-me a ir cumprimentá-lo.

- Bem-vinda a casa, miss - disse ele, e eu corei. Quando olhei para o Tony, vi uma expressão de satisfação no seu olhar. Suspeitei que ele tinha dito ao Curtis para me saudar daquela maneira. Apresentei o Logan, que o cumprimentou rápida e superficialmente e entrou logo em casa.

Uma vez lá dentro, voltou-se em pequenos círculos, parecendo uma das pessoas dos montes a vir pela primeira vez à cidade. Fez-me lembrar, com nostalgia, a minha estupefacção ao ver Farthy pela primeira vez. Parecia já há tanto tempo. Como eu me tinha rapidamente habituado às suas riquezas!

Perscrutei a enorme sala de estar e fixei o meu olhar no grande piano, em que o Troy costumava tocar sempre que vinha à casa grande. Por momentos, pareceu-me ouvir de novo a música de Chopin, o tipo de melodia romântica que me seduzia e me encantava. Imaginei o Troy ali sentado, com os seus dedos longos e esguios a percorrerem o teclado. Estremeci, sob a passagem em arco.

- Heaven?

- Sim? - Voltei-me lentamente para olhar para o Logan e para o Tony.

- Isso é que é deslumbramento - disse o Logan.

- Desculpa, o que é que disseste?

- Estava a dizer ao Logan que mandei preparar os teus aposentos antigos. Pensei que ficavam lá mais confortáveis informou o Tony.

- Sim, claro. Muito obrigada, Tony, nós vamos subir, então.

- As vossas malas já chegaram e já foram para cima acrescentou ele.

Começámos a subir a escadaria de mármore.

- Nunca tinha visto tantos murais num só aposento comentou o Logan, olhando para a sala de música. - É um museu autêntico.

O Tony riu-se.

- A minha mulher ilustrava livros para crianças. Isso foi antes de ela ter ficado louca... - O Tony atrapalhou-se, desejando poder retirar a palavra. Clareou a garganta. - Acho que a deixei exceder-se um pouco nesta sala.

O Logan esticou-se para poder ver o tecto abobadado com o seu céu, os seus pássaros a voar, um homem num tapete voador e um castelo misterioso meio escondido nas nuvens.

- As crianças devem adorar isto - afirmou o Logan.

- Concordo - anuiu o Tony, rapidamente. - Espero que algum dia haja algumas para o fazer... - E mais uma vez olhou directamente para mim. - Porque é que os dois pombinhos não vão para cima e não se põem à vontade? Tenho a certeza de que gostariam de estar um bocadinho sozinhos antes de jantar.

- O Logan, porém, continuou a inspeccionar o tecto, como se não tivesse ouvido o Tony.

- Logan - disse eu -, gostava de ir tomar um duche. E comecei a subir as escadas. - Logan?

- - Sim? Ah, sim, está bem.

O Logan veio atrás de mim e fomos para os meus antigos aposentos.

- Jesus, que suite - disse ele, quando atravessámos as largas portas duplas. Os empregados tinham trazido a bagagem e uma das empregadas já estava a pendurar a nossa roupa nos roupeiros.

A brilhante luz do Sol entrava através das cortinas cor de marfim, tornando a sala de estar ainda mais acolhedora do que habitualmente. O verde, o lilás e o azul do papel de parede de seda cor de marfim estavam ainda mais intensos. Era como se o quarto tivesse adquirido vida, usando todo o seu encanto e a sua beleza para me voltar a cortejar. O Logan tinha visto ainda muito pouco, mas já estava seduzido, embriagado pelo tamanho majestoso de Farthy e pela sua beleza. Deixou-se cair num dos dois sofás e esticou os braços.

- Viveste mesmo como uma princesa - comentou. - Nem acredito que desististe de tudo isto para viver numa cabana nos Willies.

- Pois, mas desisti - repliquei eu. - E devias estar contente por tê-lo feito. De contrário, poderíamos nunca nos ter voltado a encontrar um ao outro. - E a minha voz enterneceu-se. - Estou tão feliz por ser a sua noiva, Mister Stonewall.

Impetuosamente, inclinei-me para ele e beijei-o.

- Heaven, meu amor - murmurou -, não sei o que faria sem ti... Se não tivesses... - Agarrou-me pelos ombros.

- Tinha-te perdido para sempre.

Continuámos aos beijos até que eu reparei que a empregada estava de pé, à entrada do quarto.

- Precisa de mais alguma coisa, Mistress Stonewall? perguntou ela. Era ainda nova, uma mulher talvez nos quarenta. "Um bocado empertigada e correcta de mais para o meu gosto, mas de certeza uma boa empregada", pensei eu.

- Não, acho que não. Como se chama?

- Donna.

- Obrigada, Donna. Há quanto tempo está em Farthy?

- Só há uma semana, minha senhora.

- Contratada só por nossa causa - disse o Logan. Olhei para ele, pensando se isso não seria verdade.

- É tudo, Donna. Muito obrigada. - E fiquei a vê-la a ir-se embora, enquanto o Logan foi ao quarto e assobiou.

- A propósito de quartos para uma princesa... - começou ele de novo. Estava parado ao pé de uma cama enorme de quatro colunas e dossel rendilhado.

- É uma cama digna de reis - trocei eu, pegando-lhe na mão e puxando-o para junto de mim.

- É óptimo - declarou ele, experimentando o colchão. Levantou-se de imediato e dirigiu-se para a zona da casa de banho e do quarto de vestir, coscuvilhando todos os roupeiros, enquanto eu me despia para ir tomar um duche.

- Acho que não há nenhuma suite de lua-de-mel melhor do que esta, seja em que hotel for - disse ele.

- Olhe que não sei, Mister Stonewall. Vamos ter de descobrir, não acha? - E senti-me corar. Aquele era o meu marido. Estava ansiosa por consumar o nosso casamento. Apesar de já não ser virgem, era virgem para ele e ansiava tê-lo como primeiro amante, o que já tinha desejado há mais de dez anos. E aqui estávamos nós; ele parecia nervoso, sem saber como transformar o seu amor infantil por mim na paixão madura de um homem por uma mulher. Esperei que me tomasse nos braços, para provar no seu corpo o amor que lhe via nos olhos.

- Espero que o quarto do hotel para onde vamos seja tão espectacular - disse o Logan. Voltou-se e olhou para mim, que estava já só de cuecas e soutien, à sua frente.

- Vais tomar duche e mudar de roupa? - perguntou.

- Pensei em descansar um pouco, também. Não te sentes cansado, meu querido? - E olhei-o com ar doce e sonhador, querendo que me desejasse.

- Não, estou demasiado excitado para conseguir descansar. Acho que vou lá para baixo, conversar com o Tony informou ele.

- Se é o que te apetece - respondi eu, tentando esconder a minha desilusão.

Deu-me um beijo rápido e foi-se embora. Não era o que eu tinha planeado para a nossa tarde. Estava desejosa que ele me tomasse nos seus braços e afastasse todos os fantasmas do meu amor pelo Troy, que assombravam aquela casa. Precisava de estar com ele, só ele, o meu amor da Primavera, puro, verdadeiro e esplendoroso. Eu precisava do Logan para provar a mim própria que ainda havia paixão, eternamente nos braços do meu marido. Porque é que o meu marido estava mais interessado em explorar a casa do que em experimentar o amor ilimitado que sentíamos um pelo outro? Sentei-me em frente do toucador e olhei-me ao espelho. De repente, ri-me.

- Nem posso acreditar, Heaven Leigh Casteel. Estás mesmo com ciúmes de uma casa. E isso é uma parvoíce, não é?

A minha imagem no espelho não respondeu.

Depois do duche e de já estar vestida, atravessei o corredor até aos aposentos da Jillian. Já tinham passado mais de dois anos desde que a deixara naquele dia, emoldurada pelas suas janelas de sacada em arco, com o sol a dar-lhe no cabelo. Desprezava-a e tinha decidido nunca mais a ver.

A Martha Goodman cumprimentou-me, na sala de estar. Estava sentada na cadeira de espaldar, com o seu tricô, mesmo ao lado da porta do quarto da Jillian. Quando me viu entrar, sorriu e levantou-se para me saudar.

- Heaven! Que bom vê-la de novo - exclamou, estendendo-me a mão. - Parabéns pelo seu casamento. Mister Tatterton avisou-me da sua chegada iminente.

- Obrigada, Martha. Como está... a minha avó? - perguntei. - Ela sabe que eu voltei? Sabe que casei? - insisti, algo interessada.

- Não, não. Mister Tatterton não a preparou para esta visita? - perguntou ela. Eu abanei a cabeça. - Ela está diferente, Heaven, bastante diferente.

- Diferente, como? - quis saber.

- É melhor ver por si - retorquiu ela, quase num murmúrio. - Mistress Tatterton está no toucador, a arranjar-se para os convidados - acrescentou, apontando para a direita com a cabeça e abanando-a tristemente.

- Convidados?

- Pessoas que ela diz ter convidado para verem um filme antigo, no seu cinema privativo.

- Estou a ver. - E olhei na direcção do quarto. - É melhor acabar com isto de uma vez - decidi e bati suavemente à porta. Um bocadinho depois, ouvi a voz da Jillian. Parecia mais suave, mais nova, mais feliz.

- Sim?

Olhei para a Martha Goodman, que fechou os olhos e abanou a cabeça, antes de voltar para a sua cadeira e, então, eu entrei.

A Jillian estava sentada ao toucador de tampo de mármore, vestida com um dos seus vestidos cor de marfim, largo e esvoaçante, enfeitado com renda cor de pêssego. Parecia um palhaço. O cabelo estava pintado de amarelo-claro e apanhado em tufos pequenos e espetados. A cara parecia porcelana rachada, as maçãs do rosto borradas de blush encarnado. O lápis dos olhos estava espalhado pelas pálpebras, a linha descaída nos cantos enrugados dos seus olhos. O bâton era compacto, vivo, acumulando-se nos cantos da boca. Mas, quando olhei para além dela, para o espelho, vi, horrorizada, uma forma oval branca de parede nua. O vidro do espelho, que tinha estado pendurado por cima do toucador, tinha sido retirado. A Jillian estava sentada à frente de uma moldura vazia, olhando para uma recordação de si própria.

Virei-me para a cama e vi todos os vestidos espalhados pela colcha. Dúzias de pares de sapatos estavam ao lado da cama. As gavetas da cómoda encontravam-se abertas, com a roupa interior e as meias penduradas. As caixas de jóias também estavam abertas. Colares brilhantes, brincos trabalhados, pulseiras de esmeraldas e diamantes estavam espalhados na cómoda. O quarto parecia ter sido virado do avesso por uma mulher louca. Eu não sabia que fazer. A Jillian estava muito pior do que eu esperara.

Então, a Jillian viu-me e sorriu abertamente, um sorriso demoníaco, que tornou o seu ar de palhaço ainda mais assustador e patético.

- Leigh - disse ela, com uma alegria forçada. - Ainda bem que estás aqui. Estou a dar em doida, sem saber que vestir. Sabes quem vem cá hoje, não sabes? - acrescentou ela, num murmúrio sonoro. Olhou em volta, como se pudesse ser ouvida por outras pessoas. - Toda a gente que é alguém. E vêm todos para ver o meu cinema.

- Boa tarde, avó - disse eu, ignorando os seus ditos tresloucados. Achei que, se não entrasse no jogo, ela acordaria daquele estado. Em vez disso, ela encostou-se e olhou-me fixamente, como se tivesse ouvido outras palavras.

- O que queres dizer com não quereres assistir? Convidei as pessoas mais influentes para virem a Farthinggale, de propósito para elas e os seus filhos te conhecerem. Devias interessar-te por rapazes da tua idade. Não é saudável para ti... veres só o Tony.

- Avó, eu não sou a Leigh - declarei. - Sou a Heaven, a sua neta - acrescentei eu, avançando um bocadinho. - Casei-me, avó. O nome dele é Logan, Logan Stonewall, e voltámos a Farthy porque o Tony vai dar uma grande festa em nossa honra.

Ela abanou a cabeça, obviamente sem ter ouvido uma única palavra.

- Já te disse vezes sem conta, Leigh, para não vires para o meu quarto seminua. Já não és nenhuma criança. Não te podes pavonear assim, especialmente à frente do Tony. Devias ter mais respeito por ti própria, ser mais discreta. Uma senhora, uma verdadeira senhora, não faz esse tipo de coisas. Vá, vai acabar de te vestir.

- Jillian - pensei que se usasse o seu nome, ela me reconhecesse. Sabia que ela detestava ser vista como avó.

- A Leigh já cá não está. A Leigh morreu - disse eu, calmamente. - Eu sou a Heaven.

Ela pestanejou pesadamente e endireitou-se.

- É a última vez que aturo isto - avisou ela. - Estás a virar toda a gente contra mim. Mas todos sabem a verdade, Leigh, a verdade sobre o teu comportamento vil e sedutor. Ciúmes? Eu? - troçou ela. - Ciúmes da minha própria filha? Não sejas ridícula! - Ela voltou-se e olhou para o espelho imaginário e sorriu, um sorriso de autoconfiança. - Nunca conseguirás competir com a minha beleza, Leigh, a beleza de uma mulher madura. Tu ainda és uma criança.

Estudou o seu aspecto no espelho imaginário e, depois, continuou a escovar o cabelo.

- Sim, eu sei o que tu fazes - continuou ela. - O Tony já se queixou e já te vi a fazer isso. Portanto, escusas de o negar. O teu corpo está a desenvolver-se, isso não o nego. No fim de contas, és minha filha. Vais ser bonita, muito bonita, e se me ouvires e cuidares dos teus cabelos e da tua maquilhagem, se cuidares de ti própria como eu o faço, um dia vais ser tão bonita como eu. - De repente, parou de escovar o cabelo e pousou a escova no toucador. - O que é que estás à espera que o Tony faça? Claro que ele olha para ti, mas isso não significa o que tu pensas. Já te tenho visto a roçar, sedutoramente, o teu corpo no dele, oh, se tenho!

- Jillian... - Nem queria acreditar que ela continuava a culpar a minha mãe de tudo o que tinha acontecido. - Está louca e velha, completamente louca! A minha mãe nunca fez uma coisa dessas! A avó é que foi a culpada, a causadora de tudo. A minha mãe era pura e inocente! Eu sei que era! - Toda eu tremia de raiva. Não queria acreditar que tivesse sido a minha mãe a provocar o Tony. Não queria, nem podia! - Foram os seus ciúmes que mataram a minha mãe. Nem a sua loucura pode mudar isso.

Ela parou de falar e endireitou-se ainda mais.

- Porque estás a olhar para mim dessa maneira? Não sabias que eu te seguia, pois não? Nunca percebeste que eu estava lá, do lado de fora da porta, escondida, a ver. Mas eu estava... Eu estava... Não tive forças para entrar e acabar com aquilo mas eu estava lá. Eu estava lá... - murmurou.

Olhei para ela. Seria verdade, aquilo que ela estava a dizer? Teria a minha mãe seduzido o Tony? Recusei-me a acreditar. E, no entanto... no entanto... eu tinha seduzido o Troy. Eu conhecia a paixão que me corria no sangue; teria eu herdado a paixão da minha mãe? Talvez tivesse sido isso que o reverendo Wise vira em mim, quando previu que eu destruiria tudo o que amasse e que me amasse a mim.

Corri para a Martha Goodman, que estava calmamente a tricotar, sentada na sua cadeira.

- Tem de a fazer parar - exclamei eu. - Ela está a enlouquecer ali dentro, a maquilhar-se repetidamente com camadas e camadas de blush e bâton.

- Ela daqui a pouco cansa-se - disse a Martha, suavemente. - Convenço-a a tomar os medicamentos, dizendo-lhe que são vitaminas para ajudar a conservar a sua juventude, e depois limpo-lhe a cara e arrumo o quarto, e ela dorme uma grande sesta. Não se preocupe.

- Mas o Tony não vê o estado em que ela está? Não têm vindo cá médicos?

- Claro que sim, minha querida. Só que os médicos acham que ela deve ser internada, e Mister Tatterton nem quer ouvir falar disso. Não há problema. Na verdade, ela está feliz a maior parte do tempo.

- Então, ela não se lembra de mim, pois não? - E virei-me para o quarto dela.

- Neste momento, não. Ela fala muito sobre a sua mãe esclareceu a Martha e voltou a olhar para o seu tricô. Percebi que ela já tinha ouvido verdades sujas durante as conversas tresloucadas da minha avó.

Deixei os aposentos da Jillian, fugindo das imagens que ela fizera ressuscitar. Quando cheguei ao nosso quarto, fui à procura e encontrei o álbum grande de fotografias da minha mãe. Revi as suas fotografias da escola, desejosa de reafirmar a minha crença de que ela era linda mas inocente, selvagem mas pura. "Se, por um momento, um breve momento, eu pudesse olhar mesmo nos seus olhos azuis", pensei eu, "saberia a verdade." Mas será que eu queria mesmo sabê-la?

- Não me digas que ainda estás enclausurada aqui dentro - exclamou o Logan, assustando-me, ao entrar repentinamente no quarto. Não me tinha apercebido do tempo que estivera ali sentada, a pensar no passado. Fechei o álbum de fotografias, rapidamente.

- Não - gaguejei eu. - Estive um bocado com a minha avó. - Depois, olhei para o meu marido e fiz um sorriso radioso. - Então, o que é que o Tony te mostrou?

- Tudo - disse o Logan, abanando a cabeça com admiração. - Todo este paraíso que é a Mansão Farthinggale. Nem acredito que há uma piscina interior! O labirinto, o lago, as cavalariças, quilómetros e quilómetros de terreno lindo e uma praia privativa.

- O Tony fez-te uma visita completa.

- Pois foi. Claro que ele está muito orgulhoso de tudo, orgulhoso do que é, do que ele fez e do que pode continuar a ser - acrescentou o Logan. - Acho-o um homem fascinante, inteligente, muito esperto para o negócio e para a política. Nunca me tinha apercebido do que eram, na realidade, os Brinquedos Tatterton, até ele, ainda agora, me ter explicado.

- Ah, sim? - indaguei eu, encostando-me para trás, com um meio sorriso. O Logan estava a comportar-se como um rapazinho deslumbrado.

Sorriu e eu abracei-o e dei-lhe um beijo. Um beijo longo e apaixonado. O seu abraço estreitou-se e eu senti um arrepio, que me fez encostar ainda mais o meu corpo ao dele.

- Sempre que te beijo - murmurei-lhe, ao ouvido -, lembro-me do nosso primeiro beijo. Lembras-te?

- Lembro - sussurrou ele, mas tinha sido eu a dar o primeiro passo. Ele tinha-me levado a casa e estava parado no carreiro. Eu estava tão excitada com a maneira como ele tinha lutado por mim, naquele dia, que não consegui esperar que ele tivesse coragem para me tomar nos braços.

- Disseste: "Logan, não faria mal, nem pareceria muito a Fanny, se eu te desse um beijo, por seres exactamente o que eu quero?" E, então, beijaste-me, mas tão apaixonadamente...

Afastei-me dele.

- O que foi?

- Nada - disse eu. E fiz o meu sorriso mais sedutor.

- Ainda falta algum tempo para o jantar - acrescentei, amorosamente, querendo provocá-lo.

- Para começarmos a nossa lua-de-mel - completou ele, com um sorriso muito aberto, como que a pedir licença.

- Oh, Logan, eu...

Ele tomou-me nos seus braços e beijou-me. Depois, começou a despir-me. Fechei os olhos e deixei a sensualidade do seu toque apagar os meus pensamentos. Deixei-me ir, ao ritmo dos nossos corpos.

À medida que eu e o Logan nos movíamos um de encontro ao outro, os seus beijos e as suas carícias faziam-me afundar num mar de ternura. E, quando ele entrou em mim, a luz do seu amor afastou todas as sombras do meu amor sombrio e proibido. Assim iria ser, o Logan e a Heaven, o Logan tocando-me, o Logan beijando-me, o Logan acariciando-me, o Logan amando-me com imensa ternura. Não era a paixão selvagem e proibida que eu conhecera com o Troy, não era a paixão que tudo consome, que faz o mundo desaparecer, deixando-nos agarrados ao amor como a um salva-vidas num mar tempestuoso, mas as seguras, gentis e envolventes ondas do amor, que são tranquilas, suaves como um lago quente no Verão, como a minha vida com o Logan estava destinada a ser.

Em seguida, o Logan adormeceu aninhado nos meus braços. Na indistinta névoa da penumbra, olhei à minha volta. Aqui estava eu, de novo em Farthy, tendo acabado de fazer amor com o meu marido. Há muitos anos, dentro das mesmas paredes, teria a minha mãe pressionado o seu corpo jovem tão avidamente contra o corpo do marido da sua mãe, iniciando a minha enlouquecedora existência?

Fechei os olhos. Percebi como é que os fantasmas se mantêm vivos. Vivem dentro de nós, perseguem-nos, fazendo-nos ansiar pelas mesmas coisas. A minha mãe vivia nos meus desejos. Mas os meus desejos eram puros, sensatos, pois agora eu só desejava o meu marido e nunca desejaria outro homem. Enrosquei-me no corpo quente, pacífico e adormecido do Logan.

 

OFERTAS

Quando acordei, na manhã seguinte, o Logan tinha desaparecido. O sol através das cortinas transparentes das janelas acordou-me, e eu virei-me para o meu marido à espera de abraços e beijos matinais, mas só encontrando uma almofada vazia.

- Logan! - chamei eu. Saltei rapidamente da cama e corri para a casa de banho, batendo devagar à porta. - Logan?

Não ouvi barulho nenhum, nem a água a correr, nem doces canções matinais de um marido feliz nas suas lavagens da manhã. Quando era pequena, sonhava sempre com a cena matinal feliz do meu marido a barbear-se, enquanto eu observava os seus rituais masculinos, sentada na banheira. E já me tinham roubado essa manhã, e logo no primeiro dia da minha lua-de-mel! E eu sabia quem a tinha roubado, aquele que parecia estar sempre a querer roubar o meu amor e guardá-lo só para ele, o Tony.

Lembrava-me de que, na véspera, ao jantar, o Tony tinha insistido em mostrar ao Logan, no dia seguinte, a Fábrica de Brinquedos Tatterton.

- Ah, e tu também devias vir, Heaven. No fim de contas, um dia, vai ser tudo teu e do Logan - acrescentou ele, piscando o olho ao Logan. Eu não ia deixar o Tony seduzir-me com o seu velho plano de me meter outra vez no negócio.

- Não - insistira eu. - Eu e o Logan estávamos a pensar, amanhã, tomar o pequeno-almoço na cama e passar o dia, calmamente, a passear pelos jardins de Farthy, não era, meu querido?

O Logan, porém, já tinha sido apanhado na teia do Tony, intrigado pela promessa de atenção, hipnotizado pela maneira como o Tony já o tratava como membro da família e herdeiro.

Pus um vestido vistoso de voile às florezinhas, que fazia parte do meu enxoval, e comecei a descer as escadas, pensando que o Logan podia estar a tomar o pequeno-almoço com o Tony. Quando me aproximei do princípio das escadas, ouvi a voz acriançada e estridente da Jillian.

- Estou especialmente bonita, hoje? Este é um dia tão especial. Dize-me, sou a mais bonita de todas? Sou? Sou?

- É, querida, é a mais bonita de todas - ouvi a Martha Goodman dizer, para a sossegar.

Senti que, com o desaparecimento do meu marido, e com os sons estranhos vindos do quarto da Jillian, o mundo distorcido de Farthy estava, outra vez, a tentar apanhar-me nos seus braços retorcidos. Quase contra a minha vontade, fui arrastada para o quarto da minha avó. Onde é que estava o Logan e porque é que eu tinha acedido em vir aqui, antes da nossa lua-de-mel?

Devia ter previsto que nada melhorara, que só podia ter piorado.

- Martha! - chamei eu. A Martha Goodman apareceu à entrada da porta. - Martha, o que se passa? - perguntei.

- Mais ou menos o costume - respondeu ela, como se a voz da Jillian ressoasse sempre pela casa. - Mister Tatterton esteve aqui, ontem à noite, e fez Mistress Jillian ficar muito excitada com a festa. Não pensei que ela se lembrasse da visita dele, mas começou a arranjar-se logo de manhãzinha.

- Então, ela já sabe que eu estou cá e que me casei retorqui eu, apressadamente.

- Não, não - respondeu a Martha, abanando tristemente a cabeça. - Tenho muita pena mas não

- Bem... Então que explicação é que o Tony deu para a festa?

- Ele explicou como deve ser - disse a Martha. Ela sorriu e abanou de novo a cabeça. - Só que a Jillian ouviu de outra maneira.

- De outra maneira, como?

- Ela pensa que é a sua própria festa de casamento.

- O quê?! - exclamei eu, cruzando os braços no peito, abraçando-me a mim mesma, como se fosse uma criança que estava a proteger da realidade horrível que era a loucura e a inveja da Jillian. - Não percebo. Dela?

- A festa que foi dada em sua honra no dia em que se casou com o Tony e veio viver para a Mansão Farthinggale explicou a Martha.

- Ah, estou a ver.

- Não se preocupe. Vai correr tudo bem. A maior parte das pessoas que foram convidadas sabe o estado em que ela está - assegurou-me a Martha.

- Está bem. Se eu puder ajudar em alguma coisa, é só dizer - balbuciei, e corri escada abaixo, à procura do Logan, ansiando pelos seus braços reconfortantes, ansiando mais do que nunca pela confirmação de que a minha vida era com ele.

A mesa do pequeno-almoço já estava a ser levantada pelos empregados. Dirigi-me à cozinha à procura do Logan. De certeza que ele não se teria ido embora sem sequer se despedir, na manhã da nossa lua-de-mel. Contudo, na cozinha só encontrei o meu velho amigo Rye Whiskey.

- Miss Heaven! - exclamou ele.

O robusto cozinheiro negro estava feliz por me ver, mas lia-se medo nos seus olhos quando entrei na cozinha. Dirigiu-se rapidamente a um saleiro e deitou alguns grãos de sal em cima do ombro. Eu não me ri. O Rye era um homem supersticioso, tendo herdado uma série de presságios e rituais dos seus antepassados escravos.

- Que bom vê-la, Miss Heaven! - exclamou ele. - Por um momento pensei ter visto outro fantasma.

Sempre me dissera que eu era muito parecida com a minha mãe. Agora, com o cabelo da mesma cor, até ele estava espantado com a semelhança.

- Não me diga que continua a ver fantasmas em Farthy, Rye - disse eu, a brincar. Ele não sorriu. - Por acaso não viu o meu marido ou o Tony? De certeza que eles não se transformaram em fantasmas durante a noite.

- Bem, Miss Heaven, eles saíram há uma hora, todos excitados porque Mister Tony ia mostrar a fábrica a Mister Logan. Aquele seu marido sabe como animar Mister Tony... Não acha, Miss Heaven?

- Parece que sim - disse eu, calmamente, pensando para mim mesma que estava cada vez mais receosa. Contudo, não queria que o Rye percebesse a minha inquietação e, por isso, voltei ao seu assunto preferido. - Então, e que fantasmas é que tem visto ultimamente? O trisavô ou a trisavô de Mister Tony?

- Não fale sobre os mortos e enterrados, Miss Heaven. Se remexer nos seus passados problemáticos, vai perturbar-lhes o sono e eles começam a persegui-la. Eu já tenho o suficiente a perseguir-me, hoje em dia - acrescentou ele.

Eu não duvidava de que o Rye sabia onde é que os fantasmas e os esqueletos de Farthy estavam mas, tal como todos os criados antigos e dedicados, guardava esses segredos para si próprio. Era tão discreto como um retrato ancestral: vê e ouve tudo, mas não diz nada.

- Não está nada mal, apesar de tudo, Rye - disse eu. À excepção de uns quilos a mais, e do recuo da linha do cabelo grisalho, ele não estava muito diferente do dia em que eu me fora embora. Já tinha cinquenta e muitos anos, mas não parecia ter mais de quarenta e poucos.

- Muito obrigado, Miss Heaven. Claro que - continuou ele, piscando o olho - eu trato de me conservar.

- De vez em quando lá vai um trago, não, Rye?

- É só para evitar mordidelas de cobras, Miss Heaven. E sabe que mais?

- Ainda não fui mordido - recitei eu em simultâneo, e rimo-nos.

- Amanhã vai haver uma grande festa para si e para o seu marido, e eu estou muito contente. Farthy precisa novamente de alegria, de pessoas e de música. Estou feliz por estar cá, Miss Heaven. Estou mesmo.

- Obrigada, Rye.

Falámos mais um bocado sobre os preparativos, e depois deixei-o.

Comer sozinha à mesa, com o Curtis ao pé para satisfazer todas as minhas necessidades, trouxe-me certas recordações. Mesmo quando a Jillian estava boa, eu tomava o pequeno-almoço sempre sozinha. E aqui estava eu, agora uma mulher casada, tão diferente da rapariguinha assustada e vulnerável da primeira vez que chegara a Farthy, que tinha medo do Curtis e não sabia comer à frente de um criado. Tinha aprendido os modos da gente abastada, sim, mas aquela rapariguinha assustada persistia dentro de mim, ainda intimidada por Farthy e pelo seu poder.

No entanto, estava um belo dia de Verão, sem uma única nuvem no céu turquesa, e eu estava disposta a gozá-lo. Depois do pequeno-almoço, fui lá fora. Havia uma leve brisa oceânica, que era o suficiente para impedir calor a mais. Inalei o perfume salgado do mar e pus-me ao sol.

Os terrenos em volta da mansão estavam cheios de actividade. Os jardineiros davam os últimos retoques à relva viçosa e podavam as sebes em magníficos desenhos de topiaria de leões e zebras, animais de contos fantásticos. Uma tenda encarnada gigante, maior do que qualquer tenda de circo que o meu pai alguma vez pudesse vir a ter, estava a ser armada no relvado traseiro. Um estrado digno da Orquestra Sinfónica de Boston estava colocado em frente à funda piscina turquesa. Carregamentos de mesas e bancos brancos de ferro batido surgiam para serem colocados debaixo da tenda. Reparei que o Tony, não satisfeito com os coloridos leitos de rosas amarelas, encarnadas e brancas, de papoilas encarnadas, de elegantes delfínios azuis e de outros canteiros exóticos, tinha encomendado arranjos florais ovais e em forma de ferradura para serem pendurados em todos os pilares e ganchos possíveis. A palavra "Parabéns" tinha sido escrita com rosas encarnadas presas a uma treliça de marfim, e era para ser colocada mesmo por cima do palco.

Afastei-me da casa e do barulho de homens a gritar ordens uns aos outros enquanto descarregavam material dos camiões. Fui andando, sem pensar para onde ia, e dei por mim na praia. O Troy perseguia-me desde que eu chegara a Farthy. Talvez só desistisse depois de eu me despedir uma última vez do meu antigo amante, que se tinha afogado neste mesmo mar. Por um momento, a consciência de que este tinha sido o lugar onde ele falecera tirou-me a respiração. O rebentar das ondas cinzentas tornava-as mais proibidas do que nunca.

- Adeus, Troy - murmurei às ondas, que nunca me responderiam. - Adeus para sempre, Troy, para todo o sempre. - Sentei-me na areia, observando o horizonte sem fronteiras, onde o meu passado e o meu presente se dissolviam um no outro à medida que o céu se dissolvia no mar.

De repente, ouvi o meu nome e voltei-me, vendo o Logan a atravessar a areia quente com passadas largas, descalço e com as calças enroladas para cima. Parecia um dos Kennedy, tão confiante e encantador.

- Que estás a fazer, Heaven? Já há meia hora que te procuro - disse ele.

- Mas, Logan, eu é que andei à tua procura. Onde é que estiveste de manhã?

- Sentia-me demasiado excitado para dormir e não quis acordar-te. Isto não é um espanto? Todo este rebuliço, toda esta energia. Quando fui para baixo, o Tony já estava a pé e decidimos ir logo visitar a fábrica, para eu poder passar o dia contigo. Ah, Heaven, foi tão maravilhoso! E a fábrica... a loja principal da Companhia de Brinquedos Tatterton... é espectacular... A maneira como o Tony conseguiu arranjar um sistema para manter o estilo único de cada brinquedo Tatterton. Ele tem ideias tão boas. Gostava que as ouvisses e que pensasses nelas.

- Ouvi-las? Pensar nelas? O que queres dizer com isso, Logan?

- Vamos para dentro - respondeu ele. Estava tão excitado que não conseguia parar quieto. Dirigiu-se directamente ao escritório do Tony e escancarou a porta.

- Olha que o Tony é muito cioso do seu escritório avisei eu, rapidamente. - Ele não gosta que venha cá ninguém sem ele estar cá para receber a pessoa - avisei. Mas o Logan não se mexeu.

- Não faz mal. Ele disse para eu usar o escritório dele.

- Ele disse isso? - Eu estava boquiaberta. - Afinal, do que é que se trata, Logan? - perguntei eu. Fiquei ainda mais surpreendida quando deu a volta à cadeira preta de pele com espaldar do Tony e se sentou, como se fosse dele.

- O que é que estás a fazer? - inquiri eu.

Ele encostou-se para trás e pôs os pés em cima da secretária de carvalho antiga do Tony, sorrindo, como se de repente se visse como um executivo em ascensão.

- Não há problema. A sério. Senta-te.

Eu abanei a cabeça, espantada e confusa, e sentei-me no sofá mole, de pele cor de carvão.

- Agora, ouve bem o que eu tenho para dizer antes de falares - indicou ele, pondo os pés novamente para baixo, e inclinando-se sobre a secretária -, e promete manter-te receptiva. Prometes?

Sabia que estava prestes a ouvir algo de que não iria gostar, algum esquema do Tony para controlar a nossa vida. Mas não quis estragar o entusiasmo do Logan.

- Prometo - disse eu, a rir.

Ele inspirou fundo e começou a falar.

- O Tony fez-me uma proposta, e eu acho que devíamos aceitar - disse ele, rapidamente.

- Uma proposta? Que tipo de proposta? - perguntei eu, desconfiada.

- Ouviste-o ontem à noite... Todos aqueles planos para a empresa. bom, ele não consegue fazer tudo sozinho.

- O Tony tem pessoal muito competente a trabalhar para ele - retorqui eu. O meu coração estava a começar a bater com mais força. Já estava a prever o que se seguia.

- Sim, mas ele é muito virado para a família. Tal como ele diz: "De que vale ter tudo isto se não se tiver uma família com quem partilhar?" - respondeu o Logan, estendendo os braços para uma descendência imaginária.

- O que é que isso tem a ver contigo? Tu és um farmacêutico, trabalhas na loja da tua família. - Reparei que ele estava surpreendido com a frieza da minha voz; eu não conseguia encobrir o que sentia. Tinha sido neste escritório que o Tony me confessara que era meu pai; tinha sido pelo que se dissera neste escritório que o Troy se tornara um amor proibido. Era como se o Tony estivesse a elevar-se outra vez, interferindo, mudando tudo, tentando controlar a minha vida.

- Eu sei o que sou. A questão é... Será suficiente? Será que te chegará realmente, depois de toda esta riqueza e deste luxo, viveres em Winnerrow o resto da tua vida, eu trabalhando na loja dos meus pais, sendo o nosso único futuro herdar esse negócio? Claro que isso está assegurado, se não aspirarmos a mais do que Winnerrow, mas...

- Winnerrow era suficiente para nós antes de virmos para aqui, Logan. Não percebo essa mudança de opinião. Que tipo de proposta é que o Tony te fez exactamente? - perguntei eu.

O Logan recostou-se na cadeira, com um sorriso de auto-satisfação na cara, uma cara que, de repente, se tornara desconhecida para mim, diferente da que eu conhecera durante tantos anos, uma cara cheia de ambição. Endireitou os ombros e olhou em sua volta, como se o escritório já fosse dele há muito tempo.

- A vice-presidência da parte de marketing - anunciou ele. - Fiz algumas sugestões e ele ficou muito impressionado. Foram simplesmente surgindo, Heaven - continuou ele, inclinando-se novamente para a frente. - Foi uma coisa natural. Pensei em diferentes tipos de mercado, merchandising, publicidade... Saiu tudo facilmente - acrescentou ele, com a cara iluminada, os olhos muito abertos. Eu observei-o por um momento.

- Isso quer dizer que desistirias de ser farmacêutico? perguntei eu, calmamente.

- Oh, Heaven, do que é que eu estou a desistir? Pensa nisso. Pensa no que podemos ter, no que podemos ser.

- Eu sei o que temos e o que podemos ser - respondi eu. Comecei a sentir lágrimas nos olhos; porém, lutei contra a minha vontade de chorar. - O que é que os teus pais vão dizer? Parte-se-lhes o coração.

- Estás a brincar? - Desatou a rir. - Quando eles souberem o que estou a ganhar! Eles não são parvos. Continuarão a trabalhar na loja até o meu pai se reformar, e depois vendem-na.

Endireitei-me no meu lugar. Senti o meu orgulho a vir em força ao de cima, substituindo a minha desilusão por chamas de fúria.

- Talvez não seja um problema para ti, Logan, mas eu sou professora - disse eu. - À minha maneira, estou a fazer muito pela população de Winnerrow. Sempre sonhei fazer algo importante por eles, continuar a fazer algo importante por eles.

Recostei-me no sofá e recordei a população citadina e a dos montes, na igreja, na cerimónia do meu casamento. Vi as expressões de orgulho nas suas caras, de esperança nos seus olhos. Tinham visto nobreza e interesse em mim e, agora, o Logan pedia-me que desistisse dos meus sonhos.

- Eu sei disso, Heaven - afirmou o Logan, levantando-se e contornando a secretária. - E eu expliquei isso mesmo ao Tony. E ele também compreende, mas fez uma proposta maravilhosa, que eu acho que te vai agradar.

- E o que é? - perguntei eu, com a voz gelada.

- Ele quer construir uma fábrica em Winnerrow, e quer que nós desenvolvamos alguns brinquedos Tatterton baseados em entalhes da população dos montes, o tipo de entalhadura que o teu avô costumava fazer. Pensa só no que isso significaria para Winnerrow e para a população dos montes. Seriam contratados para fazer o trabalho artesanal. Significaria emprego para pessoas que, hoje em dia, mal conseguem sobreviver. Poderiam ter casas decentes, e vestir os filhos com roupa melhor...

- Uma fábrica? Em Winnerrow?

- Sim. - O Logan começou a passear pelo escritório, recitando simultaneamente. - Uma das primeiras coisas que vamos criar é uma miniatura dos Willies, com a sua população, pequenas cadeiras de balouço, com velhotes tal como o teu avô e a tua avó, lá sentados, o primeiro a entalhar, a segunda a tricotar. Pequenos animais de quinta, crianças a andarem para a escola... Até pensámos em pôr um destilador clandestino...

- Então foi por isso que ele fez tantas perguntas sobre Winnerrow ontem à noite - disse eu, mais para mim própria do que para o Logan. Este assentiu com a cabeça. Tive de admitir para mim mesma que esta proposta deitava abaixo todos os meus argumentos. Recostei-me novamente, imersa nos meus pensamentos. O Logan sentiu-se encorajado e correu para mim.

- Não é uma ideia maravilhosa? Vamos chamar ao novo local "os Willies", e pensa só na ironia... Os ricos a comprar réplicas dos pobres, e o dinheiro a ir para os bolsos dos pobres, que trabalharão na Fábrica de Brinquedos Tatterton, Heaven - prosseguiu ele, já com uma certa frustração na voz. - Como é que consegues continuar sentada, só a olhar para mim? A ideia não te entusiasma?

- Entusiasma - admiti eu. - É que é tudo tão repentino. Tenho muito em que reflectir. Nunca esperei nada deste género. Parávamos aqui durante alguns dias e depois seguíamos para as praias da Virgínia, para continuarmos a nossa lua-de-mel. Nunca imaginei que esta paragem significasse uma mudança radical na nossa vida.

- Claro, claro, eu compreendo o que sentes - anuiu o Logan. - É muita coisa de uma só vez, mas as decisões grandes e importantes costumam ser assim.

- Isso parece mais do tipo do Tony.

- E é.

- Também me parecia - disse eu. - A propósito, onde é que ele está? - Olhei para a porta de entrada.

- - Acho que foi tratar de alguns assuntos da nossa festa.

- Que conveniente - respondi eu. - Ele sabe muito bem o que faz ao mandar-te para me convenceres.

- Ele não me mandou, Heaven. Eu é que insisti em ser o primeiro a falar contigo.

Abanei a cabeça, estonteada, sem saber se estava a ser manipulada ou se estava a ser-me apresentada uma oportunidade única. Sentia-me sempre assim, cada vez que o Tony me envolvia nos seus planos.

- Pessoas como o Tony conseguem sempre o que querem - murmurei eu.

- Meu Deus, Heaven - exclamou o Logan. - E qual é o mal?

Eu olhei para ele. Compreendia o entusiasmo e a ambição do Logan, mas não gostava da mudança que me fora imposta. Ele estava demasiado fascinado com o Tony e com o poder do dinheiro. O Logan nunca fora pessoa para se interessar por poder e riqueza. Estava espantada com o modo como uma pessoa como o Tony conseguia ser convincente e influente.

- Não tem mal nenhum conseguir-se o que se quer respondi eu -, desde que as outras pessoas não saiam magoadas no processo.

- Quem é que vai ficar magoado? Nós vamos ajudar pessoas, Heaven - retorquiu ele, num tom de voz mais calmo. - Mais cedo ou mais tarde haveria de surgir qualquer coisa do género. Quer gostes quer não gostes, tu és a herdeira da fortuna e do império Tatterton. Não há simplesmente mais ninguém. Eu compreendo os sentimentos do Tony, as razões para a sua determinação em nos envolver nisto. Como é que podes levar-lhe a mal?

- Eu sei - concordei, com a voz cansada. - Eu não lhe levo a mal.

- Então, que dizes?

O que é que eu podia dizer? "Se ao menos eu tivesse crescido como uma rapariga normal, com um pai e uma mãe a acompanharem-me ao longo da minha vida e da dos meus irmãos e irmãs, em vez de ser empurrada de uma família abusadora para outra, este tipo de problemas e decisões não me magoariam tanto", pensei eu. Serei a Tatterton que o Tony quer que eu seja, ou serei a Casteel que quase toda a minha vida pensei ser? Ainda estarei a fugir da minha verdadeira identidade? Ao tornar-me Mrs. Logan Stonewall, eu esperara conseguir superar esses problemas. Seria simplesmente a esposa do Logan, e criaríamos a nossa família sem quaisquer laços com o passado. Agora, olhando para o Logan, vendo a sua expressão de entusiasmo, percebi que tinha sido um sonho ridículo.

- Deixa-me pensar no assunto, Logan. Por favor.

- com certeza. - Ele bateu com as mãos uma na outra. - E para permitir que o faças calma e sossegadamente, sugiro mais uma coisa: sugiro que cancelemos as nossas reservas nos hotéis e que continuemos a nossa lua-de-mel aqui em Farthy.

- O quê? - Olhei para ele, rapidamente. Continuariam a ser surpresas atrás de surpresas?

- Claro. Pensa nisso. Temos tudo o que uma pessoa tem num hotel. Até temos mais. Temos uma praia privativa. Não temos de nos misturar com turistas. À noite, a limusina pode levar-nos a Boston para vermos alguns espectáculos, fazer compras e irmos a restaurantes bons. E durante o dia podemos montar a cavalo, estendermo-nos na praia ou fazer piqueniques. Ninguém nos incomoda. O Tony vai trabalhar e a tua avó está sempre no seu quarto. Temos tudo só para nós. O que é que achas?

- Não sei. Eu... - Olhei à minha volta. Estava tudo a acontecer tão depressa.

- No fim da semana regressamos a Winnerrow, e contamos aos meus pais a nossa decisão.

- A nossa decisão? Mas... Há tantas coisas para decidir. Por exemplo, onde é que vamos viver?

- Vão viver aqui, claro - respondeu o Tony. Ele materializou-se na entrada tão repentinamente como um espírito que adquirisse de repente uma forma. - Desculpem interromper, mas vim buscar uma coisa e não pude deixar de ouvir a última pergunta.

- Aqui? - Olhei para o Logan. Este sorria fixamente.

- O que é que ele quer dizer com isso?

- Nós estávamos a guardar isso para a surpresa final. - disse o Logan.

"Nós?", pensei eu. "Nós estávamos a guardar isso para a surpresa final..."? Estava já a pensar e a actuar como sócio do Tony.

- Que surpresa final? - perguntei eu.

Eles olharam um para o outro como dois conspiradores. "Teria o Tony aparecido casualmente no momento certo, ou teria estado sempre atrás da porta do escritório a ouvir a conversa, à espera daquele nós?", perguntei-me a mim própria.

- - Se quiserem seguir-me - disse o Tony -, eu mostro-vos.

O Logan aproximou-se e deu-me a mão.

- Anda, tontinha. Vamos ver o que ele tem para nos mostrar. Anda. - E sorriu-me.

Levantei-me devagar, com relutância, apercebendo-me de que estava a ser conduzida à visão do meu próprio futuro. "Todos nós ficaríamos perturbados, se de repente conseguíssemos ver o resto das nossas vidas", pensei eu. Naquele momento, eu estava a ser arrastada, levada por um ímpeto que não era o meu. Como uma marioneta, agarrei na mão do Logan e seguimos o Tony pela escadaria de mármore.

- Lembras-te destes aposentos, na ala sul? - perguntou o Tony, ao virar à direita, no cimo das escadas. - Nunca os abrimos para as visitas. Os meus avós viveram deste lado de Farthy. Eu sempre quis conservar estes aposentos especiais. - Virou-se e olhou para mim. - Espero que também penses da mesma maneira, Heaven.

- Não estou a compreender, Tony - murmurei.

Ele limitou-se a sorrir, e uma luz acendeu-se nos seus olhos azul-pálidos, uma luz brilhante como uma chama dourada de um candeeiro a óleo, ardendo com segurança no seu globo de vidro transparente. Então, o Tony dirigiu-se às grandes portas de mogno, que estavam geralmente fechadas, e abriu-as com um grande floreado, empurrando-as para trás, e afastando-se para eu conseguir ver.

- A suite de Mister e Mistress Logan Stonewall - anunciou ele.

- O quê? - exclamei eu, abraçando-me a mim própria protectoramente e olhando para o Logan. Este, de pé, continuava com o mesmo sorriso tolo. - O que é isto? - Dei alguns passos e entrei na suite.

A decoração era quase toda nova. A mobília de estilo francês rústico da sala de estar havia sido forrada com um tecido de seda às riscas da minha cor preferida: vermelho-escuro. No chão de madeira, fora colocado um grande tapete persa. As paredes tinham sido forradas com um papel florido, com as cores das pétalas a condizerem com o vermelho e o branco da mobília e do tapete. As duas janelas grandes tinham dois cortinados de seda antigos, que cobriam cortinas transparentes.

O Tony adiantou-se e abriu as portas do quarto. Até a cama gigantesca parecia perdida no quarto enorme, o chão coberto por uma alcatifa bege e espessa, tão suave que eu parecia estar a caminhar em cima de algodão doce. As janelas que ladeavam a cama tinham sido transformadas e estavam mais amplas, proporcionando ao quarto mais luz, tornando-o, assim, mais claro e vivo.

As colunas de carvalho da cama, com as suas espirais esculpidas à mão, erguiam-se para segurar um dossel branco e cor de pêssego. Este condizia com a colcha de franjas e com as almofadas alaranjadas, que tinham sido colocadas no meio da cama. À direita da porta, estava um toucador de mármore branco, colocado no meio de um balcão de mármore quase do comprimento do quarto. Por baixo do balcão, havia gavetas feitas de madeira com o mesmo tom do mármore. Por cima dele, estava uma parede de espelho, com os cantos enfeitados a ouro.

A entrada para a que passaria a ser a minha casa de banho começava no fim do balcão. Esta divisão extra tinha sido, evidentemente, acrescentada há pouco tempo. Os acessórios eram modernos e luxuosos, a banheira encaixada no chão, de azulejos cor de caramelo. Todas as maçanetas e torneiras eram douradas. Havia espelhos por todo o lado, o que tornava a casa de banho maior do que realmente era, apesar de já ser uma das maiores que eu alguma vez vira. Até a da Jillian parecia pequena em comparação com esta.

Voltei as costas à casa de banho e dirigi-me para o lado direito da porta do quarto, onde estava um roupeiro tão grande e tão fundo que pensei que devia ter tanto espaço como a nossa casa inteira nos Willies. Até havia roupa nova nos cabides, vestidos, saias e fatos da última moda. Voltei-me para o Tony, espantada.

- Fiz uma farra de compras um destes dias. O que não gostarem, devolvemos. Não se preocupem. - Sorriu.

- Eu não acredito nisto - disse eu. Até pares de sapatos a condizer havia, dispostos nas prateleiras de baixo. O Tony sempre gostara de controlar tudo, até a roupa que eu usava, como me arranjava e como me maquilhava.

No entanto, o que mais me chamou a atenção foi o quadro que estava pendurado por cima da cama, mesmo por baixo do dossel. Era uma cena a óleo representando os Willies, com uma cabana numa pequena colina. Duas figuras pequenas estavam sentadas em cadeiras de balouço, no alpendre da cabana, incrivelmente parecidos com os meus avós.

- Claro que alteras tudo o que quiseres - disse o Tony. Eu observei-o por um momento e depois abanei a cabeça.

Era óbvio que toda esta nova decoração e inovação tinha sido começada há já algum tempo. O Tony já tinha planeado isto, com a esperança de que eu e o Logan cá vivêssemos. Eu queria zangar-me, desprezá-lo por conseguir sempre o que queria, mas a luminosidade e a riqueza dos aposentos, aposentos que tinham sido claramente arranjados para satisfazer o meu gosto, aposentos para me fazerem sentir feliz e em casa, arrefeceram a minha indignação e suavizaram as faíscas da minha raiva.

Olhei para o Logan, que estava ao lado do Tony, radiante. Por um momento, ocorreu-me um outro pensamento muito mais aterrorizador. Seria que ele já sabia disto, mesmo antes de termos vindo para Farthy? Saberia ele que o Tony lhe ia propor a vice-presidência e estava apenas a fingir o seu espanto e entusiasmo? Seria capaz de tal traição? Eu achava que não mas, sob a orientação do Tony, tudo era possível.

- Como é que sabia se nós pensaríamos sequer no assunto?

O Tony encolheu os ombros.

- Não fazia diferença nenhuma. Mesmo que não vivessem na suite, continuaria a servir o meu objectivo. Seria a vossa suite privativa, à vossa disposição sempre que quisessem. Não consigo encarar isto como um jogo financeiro acrescentou ele, com um sorriso. O Logan riu-se.

- Eu não estava preocupada com o seu dinheiro - respondi eu. Os seus olhos azuis semicerraram-se; porém, manteve o seu sorriso apertado. Olhei novamente para o quadro.

- Quem é que pintou aquele quadro?

- Um dos meus artesãos da fábrica. Mandei-o aos Willies e ele voltou com aquilo. Achei-o bastante bom. O que é que vocês acham?

- É lindo - admiti eu. Abracei-me a mim própria outra vez. Era um quadro maravilhoso. Cada vez que olhasse para ele, aqueceria o meu coração e iria trazer-me muitas recordações. Quase que conseguia ouvir as cadeiras de balouço a gemer.

- Então? - perguntou o Tony.

Olhei de novo para ambos. O Logan já tinha começado a imitar a postura e o sorriso do Tony.

- Não sei. Sinto-me como se estivesse a ser arrastada. Tenho de pensar... em muitas coisas.

- Está bem - anuiu o Tony. - bom, é melhor ir ver o que se passa lá fora. - Olhou para o relógio. - Não temos muito tempo, a festa é já amanhã. - Começou a andar mas parou à porta do quarto, voltando-se para mim. - Não fiques zangada comigo, Heaven, por eu gostar de ti e querer ver-te feliz - declarou ele, e foi-se embora antes que eu conseguisse responder-lhe.

- Logan Stonewall - clamei, voltando-me rapidamente para ele. - Já sabias alguma coisa antes de virmos para Farthy? - Dize-me a verdade - exigi eu, decididamente.

- O quê... Claro que não... Como é que havia de saber? Levantou os braços ao afirmar a sua inocência. Observei-o

por um instante e cheguei à conclusão de que estava a dizer a verdade. - Mas porque é que estás tão chateada? Olha à tua volta. Isto é lindo.

- Eu sei, mas lembra-te do que eu te disse lá em baixo... sobre as pessoas como o Tony conseguirem sempre o que querem. Será que não percebes? Ele teve de começar isto há já algum tempo... Já devia ter a nossa vinda cá planeada e a tua proposta de trabalho.

- Eu não acredito nisso - replicou o Logan. - Como é que era possível?

- Eu acredito - respondi eu. - Mas, se calhar, também não importa. Talvez faça tudo parte do que está destinado a acontecer. - Olhei outra vez para os aposentos. - Vamos - prossegui. - Vamos preparar-nos para o jantar.

O Logan, a abanar a cabeça, confuso, seguiu-me. Como é que ele havia de compreender as forças em movimento em Farthy, o poder dos fantasmas e das sombras que o Rye Whiskey temia, o mistério e a magia da mansão e dos seus jardins, quando eu própria, uma descendente de sangue dos Tatterton, receptiva às vozes do passado, não compreendia completamente o poder que exerciam sobre mim?

"Devia fugir deste lugar", pensei. "Devia fugir daqui e voltar para os Willies, onde me sinto segura e protegida, na casa do meu avô." Contudo, o eco destes pensamentos desvaneceu-se rapidamente, sendo substituído pelo eco dos meus passos e dos do Logan a bater no chão do corredor.

Como uma folha ao vento, senti-me a ser arrastada, levada por forças mais poderosas do que eu.

 

A GRANDE FESTA

A estrada para a Mansão Farthinggale acolheu uma procissão de limusinas, Cadillacs e Lincolns, Rolls-Royces e Mercedes. O Tony tinha-se esforçado ao máximo; convidara todos os homens de negócios, políticos e a alta sociedade influentes no raio de muitos quilómetros. Eu sabia que tudo o que ele tinha feito até agora para me impressionar e ao Logan não era nada comparado com o que nos ia oferecer nesse momento.

Todas as raparigas sonham com um copo-d'água magnífico; porém, ver uma coisa daquelas, uma extravagância acima de tudo o que eu imaginara, fez desaparecer, repentinamente, todos os meus pensamentos sombrios sobre o Tony e as suas manipulações, e deu-me a perceber a sorte que tinha. Saber que todo aquele esplendor, todas aquelas pessoas bem vestidas nos seus automóveis caríssimos se tinham reunido por causa de mim e do Logan entusiasmou-me sobremaneira.

De repente, descobri a "Nossa" Jane e o Keith a saírem de uma das reluzentes limusinas pretas. Corri para eles de braços estendidos. A "Nossa" Jane tinha-se transformado numa espectacular rapariga de dezoito anos. Pouco mais baixa do que eu, a Jane tinha uma figura impecável. O cabelo arruivado e fogoso esvoaçava à volta do seu rosto pequeno e oval, avivado por dois olhos turquesa tão ternos e vulneráveis, que tornariam o homem mais duro e cínico num rapazinho chorão.

- Heaven! - gritou ela. - Oh, Heaven, estou tão contente por ti.

O Keith também estava muito bem. Tão alto como o meu pai, o cabelo castanho-avermelhado forte e abundante, os vivos olhos castanhos, parecia bronzeado, rico e tal e qual um homem de Harvard, com uma camisola de algodão às riscas azul e branca e umas calças azul-escuras.

- Parabéns, mana velha - disse ele com um sorriso, e voltou a pôr o cachimbo na boca. Que homem tão elegante e confiante que o Keith estava agora! Sabia que ele era um óptimo aluno, membro de uma prestigiada equipa de remo e do bem sucedido grupo de debate.

Ao olhar para eles agora, ninguém diria que alguma vez se tinham agarrado a mim como dois macaquinhos, as suas caras pálidas e cheias de olheiras. Era quase impossível ressuscitar as recordações das suas vozinhas esganiçadas, a chamar "Hev...lee, Hev...lee", quando queriam pedir mais qualquer coisa para comer, no tempo em que o pai nos abandonara, deixando-me a mim e ao tom a fazer de pais.

Talvez até fosse bom não conseguir recordar muito daqueles tempos, pensei eu. Talvez fosse o melhor. Era uma pena não acontecer o mesmo com outras recordações perturbadoras.

- Eu sabia que vocês acabariam por casar um dia - disse a Jane. - É tudo tão romântico. Vocês foram feitos um para o outro. Heaven, eu... eu estou tão feliz por ti. Aposto que a cidade de Winnerrow ficou louca quando soube a novidade.

- Como é que está Winnerrow? - perguntou o Keith, com um sorriso afectado. As suas recordações não eram muito agradáveis, por isso ele não sentia desejo nenhum de lá voltar, nem sequer para uma curta visita.

- Está na mesma - respondeu o Logan, aparecendo de repente ao meu lado. Estava muito elegante no seu smoking, o cabelo penteado para trás, um cravo branco na lapela.

- Logan Stonewall! - gritou a "Nossa" Jane. - Estás tão elegante!

- E tu estás tão crescida e bonita, "Nossa" Jane - retorquiu ele.

- Já ninguém me chama assim - disse ela, corando. O Logan virou-se para o Keith.

- Tu é que cresceste mesmo desde a última vez que te vi. A Heaven mantém-se a par dos teus êxitos escolares. Ela orgulha-se muito de ti. De vocês os dois, aliás. Vamos precisar de jovens como tu em Winnerrow, neste momento. Em breve vai haver grandes mudanças.

- Ah, sim? - disse o Keith.

- Depois falamos sobre isso - acrescentou o Logan.

- Agora, vou buscar champanhe e qualquer coisa para comer, está bem, Heaven?

Eu dei-lhe um beijo e ele foi-se embora, deixando-me a conversar com o Keith e a "Nossa" Jane.

- Vai ser uma festa maravilhosa! - exclamou a Jane. A música ao pé da piscina tinha iniciado e os convidados estavam a começar a dançar.

- Temos muito que falar, "Nossa" Jane... quero dizer, Jane. Vai ser muito difícil para mim não te chamar assim disse eu, abraçando-a de novo.

- Podes chamar-me "Nossa" Jane se quiseres, Heaven. Estou tão contente por te ver! - E bateu as palmas, como costumava fazer quando era pequena e estava excitada. - Oh, Heaven, mal consigo ficar quieta. Importas-te que eu vá dar uma volta? Não queria desaparecer tão depressa, mas olha só os arranjos florais, a piscina, e...

- Desapareçam os dois, e divirtam-se o mais que puderem. Nós falamos mais tarde - disse eu.

Foram-se embora de braço dado. Fiquei ali mais um bocadinho, a vê-los a rir um com o outro, a segredar coisas ao ouvido um do outro, brincando e dando risadas. Continuavam muito próximos, sensíveis aos sentimentos e aos humores um do outro. No fundo do meu coração, não conseguia deixar de ter inveja da relação deles. No passado, eu e o tom tínhamos tido laços tão fortes! Aquela visão fez-me sentir, de repente, pequena e só.

Continuaria a sentir-me uma órfã? Continuaria a sentir que não pertencia a lado nenhum? Tive de ralhar comigo mesma. Olhem só o que o Tony tinha feito para mim. Se calhar eu pertencia mesmo a Farthy.

Procurei o Logan com os olhos. Queria que ele estivesse ao meu lado, que me desse o braço, que fosse o meu marido durante todo o copo-d'água; porém, sempre que o descobria, lá estava o Tony, arrastando-o de homem de negócios para homem de negócios, apresentando elegantemente o Logan à nata da sociedade de Boston.

Um bocadinho triste, deixei o Logan com o Tony e dirigi-me para a zona da piscina. O Tony detestava rock and roll, por isso o grupo que ele tinha contratado só tocava música clássica e ligeira. Não tinha a alma dos Longchamps, mas as músicas eram alegres e ritmadas, criando uma atmosfera apropriada. Alguns convidados dançavam ao som de In the Mood. Outros estavam sentados às mesas pequenas, protegidos pelos chapéus-de-sol coloridos, a comer, e outros ainda vagueavam pelos grupos, trocando bisbilhotices.

O Tony tinha contratado mais de vinte empregados extras para a recepção. Criados e criadas de uniformes encarnados e brancos andavam pelos jardins, com tabuleiros com copos de pé alto com champanhe e tabuleiros de prata e de ouro com hors d'oeuvres. Já tinham chegado pelo menos quatrocentas pessoas, todas luxuosamente vestidas, com últimos modelos, originais de Saint Laurent e Chanel, Pierre Cardin e Adolfo. A brisa quente levava os seus risos e as suas conversas pelos jardins cuidados.

Algumas delas eu já conhecia, embora não me lembrasse de muitas. Apesar das suas tentativas de toque pessoal, havia uma grande parecença nos seus estilos de conversa, no modo como se cumprimentavam. Depois do meu segundo copo de champanhe, ri-me com a ideia de um pequeno exército de manequins, que tinham ganho vida e fugido das montras das lojas mais elegantes de Boston.

De repente, descobri o Tony a segredar qualquer coisa ao ouvido do chefe da orquestra.

- Minhas senhoras e meus senhores - exclamou aquele ao microfone -, antes de prosseguirmos com a nossa festa, recebi um pedido para uma música especial. Atenção por favor à bela noiva e ao vosso magnífico anfitrião. Mister Tony Tatterton.

O chefe da orquestra levantou a batuta e os músicos começaram a tocar uma versão de You Are the Sunshine of My Life. O Tony atravessou a pista de dança direito a mim e estendeu-me a mão.

- Esta dança, princesa.

Dei-lhe a mão e ele puxou-me suavemente.

- Feliz? - perguntou o Tony, com a cara encostada ao meu cabelo.

- Muito, muito. É uma festa linda.

E era. Eu agradecia o que o Tony estava a fazer para eu me sentir em casa.

- Espero que estejas mesmo feliz, Heaven - murmurou o Tony. - É a única coisa que eu quero, fazer-te feliz.

- Eu estou feliz, Tony. Obrigada.

- Ter tudo isto não significa nada a não ser que se tenha alguém que se ame para o partilhar. Queres partilhar comigo, Heaven?

Eu olhei para o Logan, a rir e a acenar-me enquanto fazia amigos atrás de amigos entre os ricos. Olhei para Farthy, a mansão assomando acima da festa, as janelas reflectindo o céu azul e as nuvens de algodão branco.

- Quero, Tony - disse eu.

Ele deu-me um beijo no rosto e estreitou-me nos seus braços, até de mais. Inalei o perfume forte e doce do seu aftershave, e senti a pressão dos seus dedos fortes nas costas. Os seus lábios roçaram de novo o meu rosto aproximando-se muito dos meus e, por um instante, um breve instante, senti um calafrio de medo no coração.

- Isto ainda mal começou - murmurou ele. - Ainda mal começou. Quero fazer tanto por ti, Heaven. Se me deixares...

Eu não respondi. Ele mantinha-me tão perto e tão agarrada que eu conseguia sentir a sua urgência em me ter sempre ao seu lado, uma urgência que me fez sentir claustrofobia, uma urgência tão grande que me assustou.

A meio da música, outros pares juntaram-se a nós. Quando a música acabou, o Tony afastou-se com a desculpa de ter de estar com os convidados. Fiquei a olhar para tudo, embasbacada. O meu coração batia com tanta força nos meus ouvidos que, por uns instantes, não conseguia ouvir mais nada. Não ouvia os risos, a música nem as conversas. Era como se estivesse sozinha nos vastos jardins, o céu azul por cima, uma brisa suave a murmurar à minha volta como um aviso. Levei alguns minutos até perceber que o Logan estava ao meu lado.

- Sentes-te bem? - perguntou ele.

- O quê?

- Pareces perdida.

- Não, não, estou bem. - E ri-me para disfarçar os meus calafrios, e a pressão dos braços do Tony que ainda persistia nas minhas costas. - Estava só deslumbrada. Isto é tudo tão esmagador.

Nesse momento, a Jane e o Keith apareceram e deram-me um beijo.

- Estavas simplesmente um espanto, há bocado - disse a Jane.

- Estavas mesmo bonita, mana - concordou o Keith. O Logan tomou-me nos seus braços.

- Realmente tu e o Tony fazem um par muito bonito a dançar. Ele é um óptimo dançarino, para um homem daquela idade.

- Talvez - disse eu, um bocado friamente, esperando que o Logan percebesse que alguma coisa não estava bem. Mas ele só via o que queria, a sua noiva, o começo de uma vida nova, a promessa de um futuro perfeito.

- Quase me esquecia. Pediram-me para te vir buscar e levar-te para o estrado ao pé da piscina - declarou o Logan.

- Vai haver uma apresentação.

- Uma apresentação? Ele encolheu os ombros.

- Sei tanto como tu - respondeu ele, a sorrir, mas com um sorriso tão confiante que eu desconfiei.

O Tony subiu para o estrado e dirigiu-se para o microfone- Os seus olhos percorreram a multidão até nos descobrir, a andar na sua direcção.

- Senhoras e senhores - começou ele -, um brinde muito especial aos noivos. - E levantou o copo. - A um futuro risonho e maravilhoso...

De repente, parou. A multidão começou a virar a cabeça, tentando seguir a sua linha de visão. A Jillian dirigia-se para a pista de dança. Uma onda de espanto percorreu o mar de convidados. A Jillian continuou a atravessar o palco, com a Martha Goodman a correr atrás dela como um cãozinho.

A Jillian estava com o seu vestido de noiva. Sempre tivera uma figura bonita, esguia e graciosa. Até naquele estado de loucura não tivera qualquer problema em vesti-lo, tal como no dia do seu casamento com o Tony. O cabelo dourado, tão descolorado que parecia um esfregão de palha, caía nos lados e na parte de trás da cabeça em fios rígidos que encaracolavam nas pontas. Nas faces tinha dois borrões de blush rosa-escuro, e o bâton, agora já com a cor de sangue seco, estava tão esborratado como no primeiro dia que eu a vira, nos seus aposentos.

Parou no último degrau do palco e virou-se para o grupo de embasbacados.

- Muito obrigada a todos por terem vindo. Muito obrigada! - exclamou ela. - Este é o dia mais feliz da minha vida, o dia em que vou casar com Mister Anthony Tatterton. Estou muito contente que tantos tenham decidido partilhá-lo comigo. Por favor, continuem a divertir-se.

Por um momento, ninguém se mexeu nem disse nada. Então, a Martha segredou qualquer coisa ao seu ouvido.

- Este é o meu casamento, é o meu dia especial - insistiu a Jillian, olhando furiosamente para a Martha. Penteou para trás um dos fios do seu cabelo revolto, semelhante a palha. - Estas pessoas vieram para me ver! Vieram para testemunhar o meu casamento, a minha devoção eterna pelo Tony Tatterton... E eu sei - continuou, a voz já só num sussurro -, eu sei que o seu amor por mim será sempre verdadeiro. - De repente toda a sua energia desapareceu, e teve de se apoiar na Martha.

- Miss Jillian - disse a Martha ternamente, levando-a para o seu lugar.

A multidão estava emudecida. O Tony recompôs-se e agarrou de novo no microfone, como se não tivesse acontecido nada de especial.

- Senhoras e senhores - recomeçou ele -, um brinde a Mister e Mistress Stonewall.

- Saúde - gritou toda a gente, tentando disfarçar a atrapalhação, e mais de quatrocentas pessoas brindaram à nossa felicidade e à nossa saúde.

- Heaven, Logan, desejo-vos uma longa vida e muita felicidade e, como prova disso, gostava de vos oferecer isto.

Levantou a mão que tinha livre para fazer um sinal e eu, o Logan e o público olhámos para onde ele estava a apontar: e apareceu um Rolls-Royce prateado, novinho em folha, com fitas a enfeitar. A multidão soltou um som único de apreciação, à medida que o carro se aproximava. Olhei para a cara do Tony e vi uma expressão de determinação.

Ele faria qualquer coisa para ganhar o meu coração e o meu afecto, pensei eu. O seu amor por mim era ao mesmo tempo desumano e esmagador. O calafrio de medo que eu sentira na pista de dança voltou de novo. Por momentos, o meu elegante pai secreto parecia ter encarnado o diabo. Senti-me indefesa perante tanto poder e riqueza, perante a firmeza do seu amor.

Voltei-me para o Logan, a fim de ver a sua reacção. O rosto irradiava felicidade, muito corado, os olhos brilhantes, a boca aberta em completa estupefacção. Apertou a minha mão, depois largou-a e avançou, para apreciar melhor o presente deslumbrante e magnífico do Tony. Eu segui-o. O Logan virou-se para mim, com uma cara tão feliz que quase me fez chorar.

- Oh, Heaven - disse ele -, acho que é impossível ser mais feliz do que eu sou neste momento.

- Ainda bem, Logan - respondi eu. - Ainda bem.

A cara dele estava tão radiante. "Ele é tão fácil de contentar e de fazer feliz", pensei eu. A sua felicidade nunca seria escurecida por suspeitas sombrias como a minha. Como eu precisava de um homem como ele. Queria aninhar-me nos seus braços para sempre.

- Oh, Logan, amo-te. Ama-me sempre como me amas agora - pedi eu, e caí nos seus braços.

- Sim, meu amor. Prometo - disse ele.

Quando nos beijámos, tudo e todos à nossa volta desapareceu. Depois, a multidão de convidados brindou outra vez, e a festa continuou. O Logan e os seus novos amigos inspeccionaram o Rolls-Royce, e eu voltei-me para agradecer ao Tony enquanto a música recomeçava. No entanto, antes de ele me alcançar, a Jillian levantou-se e correu para ele.

- Oh, Tony - gritou ela -, amas-me mesmo! Foi uma festa linda.

A multidão parou para ver e ouvir.

- Sim, Jillian. - Pôs o braço à volta dela, para a levar de novo para o lugar. Ela inclinou-se para trás e, olhando por cima do ombro, falou para as pessoas mais próximas.

- Divirtam-se - pediu ela. - Por favor, continuem a divertir-se.

Observei o Tony a sentar a Jillian e a pedir à Martha Goodman alguma coisa para ela comer. Então, dirigiu-se para mim. Eu não conseguia deixar de ter pena da Jillian, da maneira como as pessoas olhavam para ela e segredavam coisas.

- Porque é que deixou isto acontecer? - perguntei, quando ele já estava mais perto, e já não podíamos ser ouvidos. - Não acha embaraçoso?

- Embaraçoso? - Olhou para Jillian como se ele próprio estivesse no passado, e não se tivesse apercebido do que estava a acontecer no presente. - Sim, é embaraçoso, mas para mim é mais trágico do que embaraçoso.

- Então, porque é que a deixou vir cá para fora naquele estado? À frente de todas estas pessoas... A maioria está com certeza a rir-se dela.

- Ela não vê as coisas dessa maneira - replicou ele, quase com um sorriso. Não conseguia compreendê-lo. - Aos olhos dela, olhos loucos, ela vê pessoas muito divertidas na festa do seu casamento.

- Mas...

- Mas, o quê? - insistiu ele, os lábios comprimidos já só numa linha muito fina. - Estás preocupada com o embaraço de quem, teu ou dela? Devia fechá-la nos seus aposentos como um animal enlouquecido? Devia deixá-la definhar dentro de quatro paredes? Ou deixá-la cair progressivamente no seu fundo poço seco de recordações, até dar por si no fundo, sozinha, na escuridão, esquecida?...

"Não vês - continuou, olhando para a mansão - que eu não consigo pensar nela fechada num asilo qualquer. Ela já foi muito bonita e muito importante para mim - prosseguiu ele, voltando-se na direcção da Jillian. - Como uma peça de porcelana muito delicada, pintada à mão. Ah, como ela tinha pavor de envelhecer, de já não ser desejada e bonita, e eu tenho a certeza que o perceber que não o poderia evitar contribuiu para o estado actual dela... Mas não vês? - insistiu, agarrando-me os braços mesmo por baixo dos cotovelos.

- De uma maneira estranhamente bonita, ela tem-na... Juventude e beleza eternas. A loucura dela proporcionou-lhe isso.

"Por essa razão - continuou, largando-me e respirando fundo, endireitando-se -, eu acho que vamos aguentar o embaraço e os risinhos. Consegues fazer esse sacrifício, não consegues, Heaven? Tenho a certeza de que consegues fazer algo totalmente altruísta. Quando queres... - acrescentou, e começou a afastar-se.

- Tony...

- Sim? - E esperou. Olhei para a Jillian, sentada confortavelmente numa mesa, sorrindo e acenando para as pessoas, segurando no garfo como se fosse um palito e a picar a comida como um passarinho.

- E se ela me vê?

- O que é que tem? - Sorriu. - Ela vê-te como se fosse a Leigh, tão nova como no dia em que nos casámos. A Leigh tinha doze anos, usava um vestido comprido cor-de-rosa de dama de honor e levava um bouquet de rosas. Nunca me esquecerei de como ela estava bonita nesse dia. - Inclinou a cabeça, ao recordar, e então os seus olhos brilharam, e olhou para mim. - E tu, hoje, estás igualmente bonita, - disse ele. Foi-se embora, indo ter com a Jillian.

Pensei no que o Tony dissera e como o tinha dito. Era óbvio que o Tony ainda tinha um grande amor pela Jillian. Ou seria outra coisa?

A triste visão da Martha Goodman a levar o espectáculo forçado da Jillian de volta para o quarto, fez-me sentir triste e assustada.

- Está na hora de cortarmos o bolo. - O Logan apareceu e levou-me até junto do bolo, que estava numa mesa no meio do palco. Era um bolo de conto de fadas, com cinco andares, cobertura branca, enfeitado com grinaldas e flores. Era quase do meu tamanho. Radiante, o Logan pegou-me na mão e, os dois a segurar na faca, cortámos uma fatia da parte de baixo do bolo. Quando ele abriu a boca e eu lhe dei um bocadinho, não consegui deixar de me lembrar do gelado magnífico que ele fizera no dia em que me pedira em casamento. O nosso bolo era uma fantástica criação Tatterton, mas eu consideraria sempre o castelo de arco-íris mágico do Logan o meu verdadeiro bolo de casamento.

Depois de todos terem sido servidos de bolo e gelado, e de os empregados terem passado por todas as mesas com mais champanhe, conhaque, brande e licores, a festa começou a acabar. Quando já começava a sentir-me exausta com a excitação da festa, vi o Keith e a "Nossa" Jane a dirigirem-se para a minha mesa.

- Heaven - disse a "Nossa" Jane, inclinando-se e abraçando-me -, eu e o Keith temos de ir embora. vou ter imensas saudades tuas.

- Escrevem-me depressa? - perguntei eu.

- Todas as semanas.

Abracei o Keith e observei-os a afastarem-se, de braço dado. O Logan deu-me um beijo no pescoço.

- Gostas mesmo deles, não gostas?

- Vamos para o quarto, Logan, estou tão cansada - pedi eu, enquanto me aninhava nos seus braços.

- Mas já foi tudo mudado para a suite nova - disse ele.

- O quê? Quando?

- - Durante a festa. Resolvi fazer-te a surpresa. Está bem, não está?

Não gostei da ideia de ele ter feito tudo sem me consultar, mas percebi a importância que a surpresa tinha para ele.

- Está bem. Sim, está bem - suspirei eu.

- E em relação ao resto da nossa lua-de-mel, Heaven? Podemos passar cá? - Agarrou-me a mão e implorou-me com os seus olhos de safira.

- É mesmo isso que tu queres, Logan?

- É, muito.

- Então está bem - respondi, com relutância. - Podemos subir agora? Sinto-me prestes a sofrer um colapso devido a esta excitação toda.

- Já vou ter contigo num instante - prometeu. - Ainda quero despedir-me de algumas pessoas. - Deu-me um beijo e foi-se embora, para o meio da multidão cada vez mais pequena. Vi o Tony sentado como um rei numa cadeira de jardim, com alguns dos seus sócios à volta. Acenou-me e sorriu quando me viu a dirigir-me para a mansão.

Encontrei a Martha Goodman no corredor de cima, a sair dos aposentos da Jillian.

- Como é que ela está? - perguntei.

- Feliz que nem um passarinho - retorquiu ela. - Provavelmente tão feliz como a menina - acrescentou, abanando a cabeça.

"Provavelmente mais feliz", pensei eu, mas não disse nada. Em vez disso, continuei na direcção da nova suite.

O Tony cumpriu o que prometera durante o resto da nossa semana de lua-de-mel. Nunca discutiu negócios com o Logan e, na realidade, nem esteve em Farthy a maior parte do tempo. Passou dois ou três dias em Nova Iorque em negócios, e teve bastantes reuniões com os seus consultores financeiros, em Boston, para tratar, como descobri mais tarde, da instalação da Fábrica de Brinquedos Tatterton em Winnerrow. com a Jillian enclausurada nos seus aposentos, tivemos realmente Farthy só para nós.

Começávamos todas as manhãs com o pequeno-almoço na cama, depois praia ou uma ida de limusina a Boston, para fazer compras, comer em restaurantes luxuosos ou ver espectáculos. A meio da semana, o Logan conseguiu que fôssemos andar a cavalo.

Quando eu e o Logan nos dirigimos aos estábulos para buscar os cavalos, não consegui deixar de me lembrar daquele dia. Tinha sido o dia em que eu e o Troy tínhamos feito amor pela primeira vez. O Logan, porém, não se apercebeu do meu devaneio. Dirigimo-nos para a praia para cavalgarmos à beira-mar, o que era extremamente romântico. Levámos um cesto de piquenique, e estendemos um cobertor na praia, numa enseada privada, que o Logan descobrira durante as suas explorações. Fazer amor com ele ao som do oceano afastou as recordações românticas penosas e, naquele momento, senti-me outra, e cheia de esperança. Se calhar, a decisão de passarmos a lua-de-mel em Farthy até tinha sido boa, pensei eu.

O ritmo constante das actividades românticas e interessantes escolhidas pelo Logan durante a semana da nossa lua-de-mel, e a sua devoção e o seu amor, convenceram-me a fechar a mala de receios armazenada na minha consciência. Afastei todos os incómodos pensamentos de pavor que me atormentavam como uma persistente dor de dentes, as preocupações sobre a vice-presidência do Logan nos Brinquedos Tatterton e a nossa mudança para Farthy. No fim da semana, quando o Tony voltou dos seus afazeres de negócios e eu e o Logan nos preparávamos para regressar a Winnerrow, a fim de buscar o resto das nossas coisas e comunicar aos pais dele os novos planos, estávamos os dois muito bronzeados, descansados e felizes.

- Estão os dois com muito bom aspecto - comentou o Tony.

- Espero que seja sempre uma lua-de-mel aqui, em Farthy - respondeu o Logan, olhando-me tão romanticamente que eu corei.

O Tony fez um sorriso forçado.

- Lua-de-mel todos os dias, ha, Logan? É a melhor maneira de manter um casamento feliz. bom, mas agora temos de trabalhar um pouco. - Como o Tony estava desejoso de chamar a atenção do Logan para os negócios! - Heaven, eu e o Logan decidimos a semana passada que deves ser tu a escolher a localização da fábrica nova, em Winnerrow. O Logan tem autorização para fazer uma boa oferta pelo terreno.

- Oh, Tony - disse eu. - Não sei. É uma enorme responsabilidade. E se eu escolher mal?

- Não escolhes. Não consegues - disse ele. - Todos sabemos que agora está em ti fazer aquilo que é melhor para Winnerrow e para os Brinquedos Tatterton.

- Posso dar-te alguns conselhos sobre o que deves procurar - disse o Logan.

- Ah, sim? E desde quando é que tu sabes tanto sobre o assunto, Logan Stonewall? - perguntei eu. O Tony riu-se.

- Bem... - O Logan corou e olhou para o Tony. - O Tony já me informou do que pretende.

- Ah, isso é outra coisa - respondi eu,

- Nunca terei de me preocupar com um coup d'état neste negócio - declarou o Tony. - Logan, a Heaven vai manter-te sempre modesto e consciente das tuas limitações.

- Isso já eu sei - replicou o Logan, sorrindo como um rapazinho. Desta vez, eu e o Tony rimo-nos os dois.

Eu e o Logan pusemos na mala apenas o necessário para a pequena estada em Winnerrow e partimos no nosso Rolls-Royce novo. Enquanto seguíamos pelo caminho longo e sinuoso e ao passarmos a entrada da Mansão Farthinggale, o Logan olhou pelo espelho retrovisor e sorriu, como se estivesse a olhar para outra mulher que amasse, sabendo que voltaria em breve para a abraçar. Mais uma vez o coração se alvoroçou no meu peito, como se, lá dentro, uma borboleta tivesse saído do seu casulo. Não conseguia evitá-lo. Tive imensos ciúmes do poder e da beleza de Farthy.

- Ainda bem que passámos cá a nossa lua-de-mel - disse o Logan -, porque, para nós, Farthinggale será sempre um lugar de amor.

Olhou para mim e sorriu, tão cheio de optimismo que eu achei que talvez houvesse suficiente para os dois. Estendeu a mão para agarrar a minha, e segurou-a avidamente entre os seus dedos.

Eu agarrei-lhe a mão com mais força e ele olhou para mim amorosamente.

- És feliz, Heaven?

- Sou, Logan. Sou muito feliz.

- Ainda bem - respondeu ele -, porque a partir de agora, isso é a única coisa que me interessa.

Rezei para que ele sempre pensasse assim.

Foi estranho ir para Winnerrow, depois daquela semana em Farthy. Sentia-me como se tivesse passado de um sonho para outro e de novo para o primeiro. Tínhamos decidido ficar na minha cabana, e conservá-la para quando o Logan ou nós os dois tivéssemos de vir a Winnerrow em negócios. No entanto, quando entrámos em Winnerrow, dirigimo-nos primeiro a casa dos pais dele, para o Logan lhes poder contar os novos planos.

Chegámos à hora do jantar e, quando o Logan abriu a porta da casa dos pais, chamando: "Mãe, pai, eu e a Heaven chegámos!", a mãe correu para a porta para nos cumprimentar com um avental de florezinhas por cima do vestido, e as mãos ainda sujas de farinha.

- Mas, Logan, Heaven - exclamou ela -, vocês só deviam voltar para a semana. - Franziu as sobrancelhas. - Espero que esteja tudo bem?... - Olhou para o Logan, prevendo novidades.

- Tudo bem? Está muito melhor ainda, mãe! Está a olhar para o vice-presidente de marketíng e pesquisa da Companhia de Brinquedos Tatterton. E para a bela directora da futura Fábrica de Brinquedos Tatterton dos Willies. - Realmente, o Logan parecia outra vez um miúdo, brincando ao rei da montanha.

- Eu não acredito. - A cara da mãe entristeceu. Limpou as mãos ao avental, tentando esconder o choque e a desilusão. Depois, olhou-o novamente. - Tenho de reconhecer que estou perfeitamente siderada. Então, e a loja?

- Mãe! Isto é uma oportunidade única. Vá buscar o pai e eu explico-lhes melhor. Sei que vão ficar contentíssimos por nós, por Winnerrow.

Ao princípio, o pai do Logan ficou visivelmente perturbado.

- Filho, estava tão desejoso de estarmos os dois juntos no negócio - disse ele.

Quando o Logan descreveu o ordenado que ia ganhar e se referiu à futura Fábrica de Brinquedos Tatterton e ao seu potencial económico para Winnerrow, os pais mudaram de atitude. Na verdade, achei que a mãe dele até me olhava com outros olhos. De repente, apercebeu-se de que o filho estava a sair-se muito melhor do que se tivesse casado com uma das raparigas da cidade e estabelecido em Winnerrow.

No entanto, senti que os seus novos sentimentos para comigo eram carinhosos mas não muito profundos. Não estava impressionada comigo; estava impressionada com o poder e a riqueza que eu representava. Contudo, eu também não conseguia censurá-la por isso. Do que eu já vira do mundo durante a minha existência breve e problemática, as reacções dela eram iguais às da maioria das pessoas.

Antes de irmos para a minha casa, fui visitar Mr. Meeks, o director da escola, e contei-lhe a minha intenção de deixar o meu lugar como professora.

- As crianças vão sentir a sua falta - disse ele. - Especialmente as crianças dos montes. Mas talvez tenha razão. Talvez esteja a fazer mais por eles ao trazer a Fábrica de Brinquedos Tatterton para cá, proporcionando empregos e oportunidades. Deus sabe que não há muito disso por estas bandas. E claro que lhe desejo as maiores felicidades.

Agradeci-lhe e, então, eu e o Logan dirigimo-nos para casa. Estivesse onde estivesse e por quanto tempo, sabia que a minha casa estaria sempre na mesma quando eu voltasse. Mesmo tendo sido modernizada, a floresta à sua volta tinha a face eterna da Natureza que eu conhecera em criança. Ouvia os mesmos pássaros, via as mesmas árvores curvadas, caminhava pelas mesmas sombras profundas e frescas, ouvia os mesmos sons sibilantes do riacho errante. Tudo isso seria sempre sagrado para mim.

Preparei um óptimo jantar para o Logan, naquela primeira noite em casa. Sentámo-nos no alpendre, tal como a avó e o avô, e falámos sobre os nossos planos para o futuro até estarmos tão cansados que adormecemos nos braços um do outro. No dia seguinte, depois do pequeno-almoço, o Logan voltou a Winnerrow para resolver alguns assuntos, e eu percorri de carro as ruas secundárias à procura de uma boa localização para a Fábrica de Brinquedos Tatterton. O Logan tinha-me dito para procurar um sítio de acesso fácil a transportes, suficientemente perto da aldeia para os trabalhadores irem lá gastar o seu dinheiro. "Depois de os donos de negócios na cidade se aperceberem dos benéficos que a fábrica traz, não vão opôr-se", explicara ele. Eu sabia que ele estava apenas a repetir as instruções do Tony.

Encontrei o sítio perfeito com bastante rapidez. Era um terreno plano, com uma vista linda dos montes, mas apenas a um quilómetro da zona da baixa. Qualquer pessoa se sentiria inclinada a trabalhar ali, pensei eu. Fui rapidamente para Winnerrow, a fim de ir ter com o Logan para lhe contar; o pai dele, porém, disse que ele tinha voltado a casa, à procura de uns papéis que tinha deixado numa mala. Eu tinha desfeito as malas e tinha guardado tudo em prateleiras e gavetas. com medo de que ele não encontrasse o que procurava, decidi não esperar mais e dirigi-me para casa.

Quando dei a curva, já ao pé da casa, abrandei. O carro da Fanny estava estacionado ao lado do do Logan. Tinha decidido não lhe telefonar nem visitá-la até ter tratado de todos os assuntos, mas era óbvio que ela tinha ouvido dizer que já tínhamos chegado e viera à nossa procura.

Estacionei o carro e saí lentamente. Antes de ter chegado à porta da frente, ouvi os pedidos estranhos do Logan.

- Por favor, Fanny, não te podes exibir dessa maneira. Faze o que tens a fazer e vai-te embora. Peço-te, não nos arranjes problemas. Por favor.

Ouvi o riso atormentador e familiar da Fanny e abri a porta.

Encontrava-se ao pé da casa de banho, com uma toalha a tapar-lhe as ancas nuas, e os braços a envolver os seios nus. O cabelo estava desgrenhado. Parecia uma criatura sexual mítica, uma feiticeira provocando-o a ser infiel, enquanto o seu casamento ainda estava nos primeiros passos. Olhou-me por uns instantes com aqueles olhos escuros, o sorriso congelado nos lábios. Quando viu a minha cara, riu-se pura e simplesmente.

- Ora, Heaven, com essa cara até consegues afugentar o diabo d'um padre perdido e lascivo.

- Não te preocupes com a minha cara. O que é que estás a fazer aqui, seminua? - Olhei para o Logan.

- Ela apareceu a dizer que tinha a canalização estragada, e que vinha cá tomar banho. Diz que não sabia que estávamos cá.

- E nã'sabia, Heaven. Nem sequer tiveram a delicadeza de me telefonar a avisar qu'estavam cá. Com'é qu'eu havia de saber que tu e o Logan estavam a viver aqui?

- Não estamos a viver aqui; só cá vamos estar um dia ou dois, e depois voltamos para a Mansão Farthinggale, para viver lá. Mas isso não explica porque é que estás nesse estado à frente do meu marido.

- Eu só tinha vindo buscar 'ma toalha. Percebi que me tinha esquecido e nã'quis embaraçar o Logan ao pedir-lhe p'ra me trazer uma.

Não o querias embaraçar? O que é que achas que estás a fazer, neste momento?

- Ele nã'parece embaraçado - respondeu ela, sorrindo para o Logan.

- Fanny! - Avancei para ela. - Entra já para a casa de banho e toma um duche como deve ser.

- Claro, querida Heaven. Nã'demoro nada. E depois vamos todos ter uma bela conversa.

Dirigiu-se para a porta da casa de banho, mostrando toda a sua nudez enquanto o fazia. Depois de ter entrado, o Logan abanou a cabeça e sentou-se. Estava muito corado.

- Ainda bem que chegaste - murmurou ele. - Estava a ficar insuportável.

- Não a devias ter deixado entrar.

- Não podia impedi-la, Heaven. Como é que querias que eu o fizesse?

Ele tinha razão. Não estava certo culpá-lo. A Fanny era a Fanny. Estava sempre na mesma. Tinha sempre a necessidade de me tirar aquilo que eu quisesse muito. Exactamente como tinha acontecido há já muitos anos, quando o Logan estava à minha espera na margem do rio e a Fanny apareceu antes de mim, se despiu e o incitou a apanhá-la. Ele tinha ficado tão embaraçado e perturbado como hoje. Dissera-me que não queria uma rapariga tão libertina e desinibida como a Fanny. Dissera-me que eu era o tipo dele. As suas raparigas tinham de ser tímidas, bonitas e doces.

- Tens razão - disse eu. - Ninguém a não ser a Fanny pode ser culpada daquilo que ela própria faz. O teu pai disse-me que tinhas cá vindo à procura de alguns papéis.

- Sim, queria fechar aquela conta-corrente. Encontrei-os na gaveta da cómoda, onde os tinhas posto, e estava mesmo a sair quando ela apareceu.

- Encontrei um sítio óptimo para a fábrica, Logan. Gostava de te levar lá, hoje à tarde.

- Óptimo.

- Porque é que não levas os papéis ao banco, e encontramo-nos na loja daqui a uma hora. Eu fico a tomar conta da Fanny - disse eu. Ele olhou para a casa de banho e concordou com a cabeça.

- Está bem. - Deu-me um beijo e foi-se embora. Eu esperei pela Fanny no alpendre.

- O Logan? - perguntou ela, assim que apareceu. Estava com um vestido de camponesa encarnado-vivo, a parte superior puxada o mais possível para baixo nos ombros. Não me surpreendeu ela estar sem soutien e com metade dos seios à mostra. Tinha de reconhecer que a Fanny era bastante atraente. Apesar da sua vida desregrada, sempre tivera uma óptima figura, e o seu cabelo azeviche e os seus olhos azul-escuros tornavam a sua aparência assombrosa.

- Foi resolver uns assuntos na cidade. O que tu fizeste hoje foi lamentável, Fanny - ralhei eu. Não ia deixá-la desviar-me do meu objectivo. - Já não és nenhuma criança. Esse tipo de brincadeiras já não têm desculpa. O Logan é o meu marido e estás proibida de voltar a fazer uma coisa dessas à sua frente.

- Ora, ora - retorquiu ela, com as mãos nas ancas e a cabeça empertigada -, deves julgar qu'é só tirar o Logan dos Willies e transformá-lo num dos teus janotas da cidade.

- Ele não vai fazer nada que não queira.

Olhou para mim uns instantes, a raiva a transformar-se em tristeza. Só a Fanny conseguia mudar de humor tão rapidamente, como se abre e fecha uma torneira num lavatório.

- com certeza. Vã'viver os dois à grande e deixam-me no esterco, como sempre.

- Tu é que decidiste voltar a viver aqui, Fanny. compraste a tua casa com o dinheiro do teu ex-marido.

- Mas eu pensei qu'ia conseguir a minha filha de volta. Pensei qu'ias ajudar-m'a consegui-lo, Heaven. Em vez disso, aquele reverendo desprezível e a sua mulher ociosa ainda a têm. O qu'é qu'eu tenho? Nã'tenho 'ma família; ninguém me respeita. Vocês nem sequer me convidaram prà festa em Farthy, mas convidaram o Keith e a Jane, só porqu'eles andam numa universidade toda fina e parecem e vestem-se com'a vossa gente.

- Eles não são a minha gente - retorqui eu, mas percebi que ela tinha razão. Eu não a quisera na festa; não quisera arriscar o embaraço, sabendo o que ela poderia fazer ou dizer só para me humilhar.

- Tam'ém quer'ir viver p'ra Farthy - choramingou ela. - Porqu'é qu'eu nã'posso conhecer todos esses homens ricos e frustrados, e arranjar um velhote adulador como tu, Heaven?

- Eu não arranjei nenhum velho adulador, Fanny. Abanei a cabeça. Às vezes era mesmo frustrante falar com ela. - Eu não posso simplesmente convidar-te para viveres em Farthy, só para poderes caçar um homem rico para casar contigo.

- Sempre tentaste deixar-me p'ra trás. Ainda estás em dívida p'ra comigo, Heaven Leigh Casteel. Sim, Casteel. Na' m'importa o nome que tenhas, serás sempre a Heaven Leigh Casteel, uma rapariga dos Willies como eu, ouviste? Quand'a mãe morreu prometeste tomar conta de mim, mas na' impediste o pai de me vender àquele reverendo lascivo, e quando te pedi ajuda p'ra recuperar a minha filha não ajudaste. Só tinhas que lhe oferecer mais dinheiro, e nã'o fizeste. Não fizeste!

- Não és do tipo maternal, Fanny. Nem nunca serás.

- Ah, sim? Nã'tenhas tantas certezas, Heaven. Nã'tenhas tantas certezas acerca das outras pessoas, como tens de ti própria.

- Não tenho certezas sobre mim própria, Fanny. Nunca nos conseguimos ver tão bem como as outras pessoas nos vêem a nós, e tu simplesmente não te vês como és. Desculpa ter de dizer isto, mas é a verdade. bom, agora tenho alguns assuntos para tratar em Winnerrow e depois...

- Tu é que nã'me queres ao pé do Logan. É isso, nã'é? Nã'confias nele.

- Eu confio plenamente no meu marido, Fanny. Mas tens razão. Não gosto de te ver ao pé dele, precisamente pelo tipo de brincadeiras que fizeste hoje. Esperava que com tudo o que passaste na vida tivesses crescido um bocadinho, mas estou a ver que ainda tens um longo caminho a percorrer.

- Ah, sim? Então deixa-me dizer-tuma coisa, menina empertigada e perfeita. O Logan estava a gostar da minha brincadeira até tu chegares. Eu pedi-lh'uma toalha e ele disse-me p'ra ir eu buscá-la. Ele só mudou d'atitude porqu'ouviu o teu carro.

- Isso é mentira, é mentira! - gritei-lhe. A Fanny sabia muito bem como enfurecer-me. - Só estás a dizer isso para me magoares.

Ela encolheu os ombros.

- Acredita no que quiseres, mas s'acreditas nos homens, aind'és mais parva do qu'eu pensava, Heaven, e tu é que tens de crescer. - Apontou-me o dedo, e depois pôs as mãos nas ancas, com ar arrogante. Observei-a por um momento.

- Tenho de me ir embora - disse eu. - Não posso perder mais tempo.

- Ah, não? - riu-se ela. Dirigi-me para o carro. - Na' penses que te vais simplesmente embora, viver no teu castelo, e me deixas p'ra trás, Heaven. Nã'me vou ficar a perder nos Willies como tu queres. Ainda nã'te livraste de mim.

- Já disse que tenho de me ir embora. - Fui depressa para o carro e pus o motor a trabalhar.

- Ainda nã'te livraste de mim - gritou ela, dirigindo-se para o carro.

Fui-me embora, observando-a pelo espelho retrovisor.

Apesar das ameaças e das insinuações, não conseguia deixar de ter pena dela. A inveja para ela era uma doença. Devia sofrer muito. Desde o princípio, quando eu e o Logan éramos namorados, que ela tentava roubá-lo; porém, quando já não estávamos juntos, ela deixara-se disso. Ela não o queria desde o momento que ele não fosse meu.

"Como ela deve sofrer na minha sombra", pensei eu. "Será que alguma vez vai amar e querer um homem por ele próprio, não porque eu o queira ou pudesse querer, mas porque ele a ama e ela a ele com todo o coração e honestidade? Se calhar, a Fanny não é capaz de amar dessa maneira. Se calhar foi o que ela herdou da nossa vida dura nos Willies."

 

FANTASMAS

Encontrei o lugar perfeito para a Fábrica de Brinquedos Tatterton numa senda bonita da floresta, numa clareira onde cresciam luminosas flores silvestres. Tinha-me lembrado do sítio porque, quando eu e o tom éramos crianças, passávamos lá de vez em quando, depois da escola, estendíamo-nos ao sol e partilhávamos os nossos sonhos. Ele costumava dizer: "Heaven, se alguma vez tiver dinheiro, construo aqui uma casa para nós, com a maior janela panorâmica que alguma vez tenhas visto."

O Logan adorou o sítio.

- É perfeito para a fábrica nova - disse ele -, perto dos postes de electricidade da estrada.

Observei-o enquanto ele se afastava, e ri-me de ele enquadrar a fábrica na imaginação levantando as mãos e encostando os polegares um ao outro, para formar a base do edifício imaginário. Tinha-se transformado, de repente, num empresário em desenvolvimento, um executivo de um dia para o outro. Não mostrei que me estava a rir, pois sabia que ele estava a levar tudo muito a sério. Escreveu alguns números num bloco de apontamentos, fez um esboço de um mapa do lugar, e depois voltámos para Winnerrow, para irmos falar com o advogado da região, Mr. Barton Wilcox.

Não havia um meio melhor para espalhar a notícia do futuro investimento em Winnerrow do que iniciar as negociações para a compra do terreno. Antes de eu e o Logan sairmos do escritório de Mr. Wilcox, certifiquei-me de que tinha contado a umas quantas secretárias, e estas, por sua vez, contaram aos amigos e, em pouco tempo, os telefones não paravam de tocar com o interesse e o entusiasmo. O Logan telefonou ao Tony para lhe contar do terreno, e o Tony enviou uma grande quantia de dinheiro para o Winnerrow National Bank. Foi nesse momento que o Logan teve a verdadeira sensação de poder e de autoridade, ao controlar todo aquele dinheiro. O Tony não podia ter escolhido melhor maneira de lhe demonstrar a confiança que depositava nele e de conquistar a sua fidelidade eterna.

Foi marcada uma reunião no escritório de Mr. Barton Wilcox com o Logan e o proprietário do terreno, que quase desmaiou quando o Logan fez a sua oferta. Tais quantias raramente, ou nunca, eram discutidas em relação a fosse o que fosse em Winnerrow. Depois de uma pequena troca de palavras, o Logan acrescentou quinhentos dólares para adoçar o negócio, e este foi concluído. Já tínhamos o lugar para a fábrica.

- O Tony vai ficar muito contente comigo - exclamou o Logan, mais tarde. Endireitou-se, alto e orgulhoso e, com um floreado, compôs o lenço de monograma que tinha no bolso. - Acho que me encaixo bem em tudo isto, Heaven. Acho mesmo. Tenho um jeito especial para isto. - Voltou-se para mim e sorriu. - Vai ser tudo maravilhoso - acrescentou, dando-me a mão. - Juntos vamos construir o melhor sonho que esta cidade alguma vez teve. Vamos fazer as pessoas orgulharem-se de Winnerrow e pôr esta cidade no mapa. E pensa só nas pessoas que vamos ajudar, pessoas dos Willies, que até agora não tinham futuro nem esperanças.

Sorri-lhe. Ele estava tão excitado... Às vezes até achava que ele tinha entusiasmo suficiente para os dois.

- Fizeste uma óptima escolha, quando decidiste que devíamos ficar a viver em Farthy e concretizar isto, Heaven. A sério.

- Espero bem que sim, Logan.

Apesar do seu optimismo, eu não conseguia deixar de tremer cada vez que pensava em ficar a viver em Farthy. Os Willies continuavam a chamar-me. Eu já quase sentia pertencer ali, apesar da minha verdadeira herança, e que alguma coisa não estava bem em deixar o Tony alterar o meu sonho. Decidi não pensar mais nos meus medos. Ia tornar isto o meu sonho e não o do Tony.

- Ainda temos muito para fazer. E como é que vai ser a construção da fábrica?

- O Tony vai levar-nos a um arquitecto em Boston. Ele quer a nossa opinião. Diz que nós devemos saber melhor quais as necessidades e desejos da população de Winnerrow. Mas depois da fábrica desenhada, só vamos usar trabalhadores e matéria-prima da região. Sentido do bom negócio.

- E em relação aos artesãos? - perguntei eu.

Hei-de voltar cá algumas vezes para procurar nos montes pessoas com jeito natural. Claro que vai haver outros trabalhos relacionados com o empreendimento. Vai haver oportunidades para muita gente. Tal como tu previas, Heaven.

- Ainda bem, Logan - respondi eu.

Voltei para casa, para arrumar o que quisesse levar para Farthy, e o Logan foi a casa dos pais fazer o mesmo. Como os pais tinham pedido, jantámos e dormimos em casa deles. Na manhã seguinte, seguimos para Farthinggale, com a sensação de que a nossa visita a Winnerrow tinha sido coroada de êxito. A única coisa amarga fora o espectáculo obsceno da Fanny. Contudo, havia de me esquecer, e essa recordação seria colocada ao pé de outras recordações tristes e penosas. E deixá-la lá ficar, pensei eu, a ganhar pó para sempre.

O Tony estava à nossa espera, em Farthy, quando chegámos. Mandou os criados buscar as nossas coisas e fomos todos para o seu escritório falar sobre os nossos planos e sobre a fábrica.

- Eu e o Logan voamos depois de amanhã para Winnerrow com o arquitecto - disse ele, depois de ter ouvido todos os pormenores. - Em seguida, ao fim de mais ou menos uma semana, vamos analisar em conjunto as primeiras especulações económicas. Penso que a maior parte das pessoas da região já deve saber do nosso projecto.

- Sim, sim - respondeu o Logan. - As notícias espalham-se depressa em cidades pequenas como Winnerrow. E, provavelmente, os meus pais ajudaram a espalhar.

- Deduzo, então, que eles ficaram contentes por vires trabalhar para a Companhia de Brinquedos Tatterton.

- Muito contentes - disse o Logan.

O Tony voltou-se para mim, com uma expressão de satisfação. "Como é que os pais do Logan não haviam de estar contentes?", pensei eu. com o que o Tony já lhe oferecera!

- Saíste-te muito bem, Logan. Muito bem, mesmo. Acho que te vais dar extremamente bem - declarou o Tony. O Logan estava completamente extasiado. Encostou-se para trás, mantendo a cabeça direita, arrogantemente. - Amanhã vou levar-te a Boston, ao meu alfaiate, para mandarmos fazer alguns fatos adequados. Um homem com as tuas responsabilidades tem de ter um certo aspecto...

- Isso era óptimo, obrigado - retorquiu o Logan, e olhou para mim, à procura da minha aprovação. Eu não tinha bem a certeza de estar a gostar do que o Tony estava a fazer. De certa maneira, passara a moldar o Logan à sua imagem, e este, de tal modo enfeitiçado com o Tony e consigo próprio, era barro facilmente manejável e moldável.

- Como é que está a Jillian? - perguntei eu, desejosa de mudar de assunto.

- Na mesma - respondeu o Tony, rapidamente.

- vou vê-la. Vocês têm com certeza mais coisas para discutir, mas eu vou descansar um pouco.

- Estás bem, querida Heaven? - quis saber o Logan. Tinha-se apercebido da irritação na minha voz.

- Estou, Logan. Só estou cansada da viagem. Não te preocupes.

Deixei-o com o Tony e fui para cima, parando primeiro nos aposentos da Jillian. Percebi que a Martha Goodman não estava calma como sempre. Vi logo que estava perturbada e nervosa.

- Ainda bem que já voltou, Mistress Stonewall - disse ela rapidamente, quase em segredo.

- O que se passa, Martha?

A Martha olhou para a porta fechada do quarto da Jillian, como que para ter a certeza que esta não estava a ver nem a ouvir o que ela ia dizer.

- Ela tem estado muito perturbada, nestes últimos dias, completamente diferente.

- De que maneira? - Hesitei antes de abrir a porta do quarto da Jillian.

- Bem, a senhora sabe como ela vivia no passado, pensando que ainda era jovem e bonita, falando sobre pessoas do passado e referindo-se a situações muito antigas.

- Sim, e então?

- Ela não tem feito isso nestes últimos dias, nem sequer tentou maquilhar-se.

- Mas o Tony... Mister Tatterton acabou de me dizer que ela estava igual a quando eu fui para Winnerrow.

- Ele não tem estado cá muito desde que se foi embora, Mistress Stonewall. Esteve três dias fora e de resto não veio cá.

- Mas, então, o que é que ela faz, se não age como se estivesse no passado?

- É ainda mais assustador... ela diz que os mortos estão a voltar.

- Porque ela pensa que eu sou a minha mãe, Martha disse eu, sorrindo. - É da minha cor do cabelo. Estou a pensar voltar à minha cor natural e...

- Sim, Mistress Stonewall - interrompeu ela. - Mas antes disto, ela estava sempre no mesmo período de tempo. Ela olhava para si e via a sua mãe, mas também se via a si própria como era quando a sua mãe era viva. Ela estava no passado consigo. Agora está no presente, e jura que pessoas que já morreram estão a voltar. Eu sei que não consigo explicar muito bem, mas espere só até falar com ela. Está muito calma, sensata, mas aterrorizada, como se tivesse visto mesmo um fantasma. Na verdade, ela está num certo estado de choque. Tenho de reconhecer, Mistress Stonewall, que esta é a primeira vez que eu me lembro de estar enervada com tomar conta da sua avó.

- Mas, Martha...

- E Mister Rye Whiskey também não ajuda nada, está sempre a falar de fantasmas e espíritos o tempo todo. Todos os criados estão um bocadinho assustados. - Ela olhou para baixo, como se sentisse envergonhada.

- Estou a ver que há mais, Martha - acrescentei eu, rapidamente. - Vá lá, conte-me o resto.

- - É só uma parvoíce, Mistress Stonewall. Eu sei que é só por causa do que se tem passado.

- O que foi, Martha? Por favor, não tenha medo de me contar.

- bom, um dia destes acordei a meio da noite e...

- Sim?

- Ouvi música, música de piano.

Fiquei a olhar para ela, com o meu corpo repentinamente tão gelado que pensei ter perdido a sensibilidade toda. Por momentos, não consegui falar.

- Deve ter imaginado - afirmei eu, quase num murmúrio.

- Também acho, Mistress Stonewall. Eu nem tinha contado a ninguém até agora. Mas está a ver, tudo isto está relacionado com o que está a passar-se com a sua avó. Ela olha para mim de maneira diferente, e passa horas a observar através da janela, na direcção do labirinto.

- O labirinto!

A Martha acenou com a cabeça, lentamente.

- É o que ela está a fazer, neste momento - informou, e afastou-se. Olhei para a porta do quarto e novamente para ela. A mulher parecia mesmo perturbada. Como é que o Tony não se tinha apercebido do que estava a acontecer? Estava prestes a ficar sem os serviços da Martha Goodman.

- Talvez se eu falar com ela, Martha. Pode ser que ela caia em si.

- Espero que sim, Mistress Stonewall, porque, na minha opinião, talvez fosse melhor para ela ir para um sítio onde tivesse mais ajuda profissional.

Girei o puxador da porta lentamente, e depois entrei no quarto da Jillian. Encontrava-se exactamente onde a Martha dissera: sentada à janela, a olhar para o labirinto.

O cheiro forte do seu perfume de jasmim atingiu-me, e eu pensei que aquilo era exactamente o que estava diferente nela, na sua loucura. Passara horas em frente a uma moldura sem espelho exagerando a maquilhagem; contudo, nunca pusera o seu perfume preferido, aquele cheiro que eu conhecia tão bem. Agora tinha posto.

Ao contrário das outras vezes em que a tinha visto, não usava uma das suas elegantes camisas de noite. Estava calmamente sentada, com uma blusa preta de chiffon e uma saia preta. Quando me ouviu e se virou para mim, vi que estava sem maquilhagem, e o seu cabelo, embora continuasse demasiado descolorado, estava penteado para baixo, com os lados presos para trás com ganchos.

- Ah - disse ela. - Tu também voltaste. - E soltou uma pequena risada.

- Jillian...

- Daquela cidade dos montes... Eu sei que só uma coisa como esta te fazia voltar. Fugiste daqui, desististe de tudo, para te tornares uma professora numa escola retrógrada. E agora estás arrependida, arrependida de teres perdido tudo.

Ela sabia quem eu era! Não estava a olhar para mim e a pensar que era a minha mãe. Voltou-se outra vez para a janela, a olhar lá para fora.

A Martha tinha razão, ela estava muito diferente. O tom da voz dela era diferente, a expressão dos seus olhos estava diferente. Até o modo de se sentar e de se controlar era diferente. A frivolidade, o riso tresloucado, o modo estranho e etéreo como mexia as mãos e se movia pelo quarto tinham desaparecido. Era como se tivesse recebido um tratamento de choque e tivesse aterrado na realidade.

- O que é que procura, Jillian? Porque é que passa o dia aí sentada, a olhar para o labirinto?

Ela virou-se. Duas pequenas lágrimas apareceram nos cantos dos seus olhos azuis cor de centáurea, olhos tão parecidos com os meus, que até estremeci.

- Toda a gente me detesta - declarou. - Estão todos contra mim, culpando-me de tudo o que aconteceu de mau. Aproximou o seu lenço de renda da cara e tocou delicadamente nos olhos. Aquela era a Jillian que eu conhecia, actuando, desempenhando, representando as suas emoções, tal como um músico tocaria um instrumento. A canção dela era: "Tenham pena de mim, pobre de mim. Pobre Jillian." Suspirei.

- Porque é que todos a detestam, Jillian? O que é que fez? - perguntei eu, com voz cansada.

- Dizem que eu expulsei a tua mãe desta casa. Os criados costumavam segredar coisas. Ah, mas eu sabia o que diziam. Costumava ouvi-los. Diziam que eu era muito fria com o Tony, vivendo e dormindo sem ele, não o deixando amar-me tantas vezes como ele gostaria, só para preservar a minha juventude e beleza. Para não ficar desgastada e cansada, só para satisfazer a necessidade de satisfação sexual de um homem, de provar a sua masculinidade.

- Porque é que os criados haviam de preocupar-se com isso? - inquiri, pensando que seria melhor fazer-lhe a vontade. Ela sorriu, mas foi um sorriso tão gelado, que toda eu tremi.

- Porque seria? Todos eles adoravam o Tony. E ainda adoram. Acham que é uma espécie de deus que anda a vaguear por aqui. Ele não tem culpa de nada. Quando a tua mãe se atirou a ele e ele não a rejeitou, todos pensaram que tinha sido por causa da maneira como eu o tratava. Não vês? É tudo culpa minha. Tudo. Até a morte do Troy.

- A morte do Troy! - Cheguei-me mais a ela.

- Sim, a morte do Troy. Que cavalo é que ele escolheu para montar? Como se fosse culpa minha ele tê-lo escolhido.

- O Abdulla Bar - respondi eu, declamando frases decoradas há já muito tempo.

- O Abdulla Bar... - Ela confirmou com a cabeça.

- O meu cavalo, o cavalo que ninguém, a não ser eu, conseguia montar. E, por isso, a culpa foi minha. Não estás a ver? A culpa foi minha - repetiu ela, acenando-me com o lenço, e voltando-se novamente para a janela. - E agora, estão todos a voltar para me perseguir, para me castigar.

- Jillian - disse eu, percebendo finalmente o que ela queria dizer -, isso é um disparate, uma tolice. Os fantasmas e os espíritos não existem. São apenas invenções de mentes ignorantes e supersticiosas. Pessoas como o Rye Whiskey contam essas histórias disparatadas só para se entreterem. Não há nada lá fora, nada a não ser a realidade nua e crua. Por favor – insisti eu, indo para o pé dela e pegando-lhe na mão. Olhou para mim e eu ajoelhei-me ao seu lado, fixando os seus olhos azuis cheios de perturbação, desejando com todas as minhas forças que ela me visse e ouvisse e percebesse, desejando ser importante aos olhos dela, ser a sua neta, pelo menos uma vez, e conseguirmos partilhar os nossos pensamentos mais íntimos. - Por favor. Não se atormente. Já está a sofrer bastante...

De repente, ela sorriu e com a mão livre afagou-me o cabelo. Era a primeira vez que me tocava em sinal de afecto.

- Obrigada, Heaven. Obrigada por te preocupares. Mas - disse ela, voltando-se -, é tarde de mais, tarde de mais.

- Jillian! Jillian! - repeti eu. - Avó.

Ela não se voltou. Estava com o olhar fixo, fixo na sua louca observação. Levantei-me e também olhei pela janela, na direcção do labirinto.

Uma névoa aparecera vinda do mar. Era como se as nuvens tivessem descido do céu para engolir as passagens secretas e sombrias. O céu começava rapidamente a ficar nublado. Estávamos prestes a ter uma tempestade de Verão. A escuridão assim o fazia prever.

Fiquei ali, à janela, ao lado da minha avó de mente perturbada, a olhar lá para fora, para o mundo em evolução, como se, também eu, esperasse que os espíritos que a minha avó pensava estarem a persegui-la aparecessem. Só quando a Martha surgiu à porta, para ver o que tinha acontecido, é que eu me dei conta de há quanto tempo estava ali, a olhar lá para fora. Durante todo esse tempo estivera sempre a segurar a mão da Jillian. Quando a larguei, ela pousou a mão no colo, e eu fui ter com a Martha.

- Tem razão - concordei, em voz baixa. - Ela está bastante diferente.

A Martha anuiu com a cabeça e olhou para ela, com os olhos cheios de tristeza.

- Eu acho que ela pode acabar por ficar catatónica, Mistress Stonewall.

- Também acho, Martha. vou pedir a Mister Tatterton para mandar chamar o médico.

- Ainda bem que também acha, Mistress Stonewall - respondeu a Martha. - Eu mencionei estas mudanças a Mister Tatterton há umas horas atrás e ele disse que passava por cá, mas ainda não apareceu.

- Ele há-de vir. Eu trato disso - assegurei-lhe eu.

- Muito obrigada.

Olhámos as duas mais uma vez para a Jillian. Ela nem sequer tinha pestanejado.

- O sentimento de culpa é dos pesos mais difíceis para a mente aguentar - afirmei, quase num murmúrio, mais para mim própria do que para a Martha, mas esta ouviu e concordou rapidamente.

Deixei aqueles aposentos e corri para os nossos. Não queria que os criados vissem as lágrimas de terror que me tinham vindo aos olhos. Sabia que as coisas que a Jillian dissera, o facto de ela sentir que as pessoas a culpavam, acabando por atribuir a si própria essa culpa, tinham permanecido sempre no fundo dos seus pensamentos, aparentemente adormecidas, só à espera de uma oportunidade de virem ao de cima para exercer o seu poder destruidor no resto da sua mente.

O mesmo acontecia comigo. Até agora tinha conseguido, com algum êxito, esconder esses pensamentos; porém, depois de ter visto e ouvido a Jillian, não conseguia deixar de pensar no momento em que eles viriam ao de cima para me perseguir, o momento em que eu também veria, como a Jillian, um fantasma... o fantasma do Troy. Devia ter-me esforçado mais para evitar que ele entrasse em desespero... Não devia ter deixado o Troy sozinho e ido viajar, enquanto ele definhava em Farthy, a viver na casa de pedra que fora o nosso ninho de amor, o lugar de tantas horas de felicidade.

Quantas noites teria ele passado em branco, a pensar em mim, na sua casa, convencido de que eu o abandonara, e de que tinha aceitado o nosso destino? Eu sabia como ele era sensível e propenso ao desespero. Como ele sofria facilmente e, mesmo assim, eu deixara-o a sofrer a pior dor de todas... a de um coração despedaçado. Deixara-o sem esperança, convencido de que todos os pesadelos que sempre tivera estavam destinados a acontecer.

Ao fixar os olhos da Jillian, ao ver o medo instalado naqueles olhos, senti a angústia que ela estava a sentir. Fugi dessas recordações como fugia da sua loucura. Seria que o sentimento de culpa me iria transtornar e atormentar como fizera com ela, até eu ficar louca, e viver isolada com os meus pensamentos agitados?

Oh, Troy, Troy, de certeza que sabias que eras a última pessoa do mundo que eu alguma vez quereria magoar.

Tive de afastar aqueles pensamentos sombrios sobre o Troy da minha cabeça. Agora era a mulher do Logan, e eu ia fazer tudo para nunca o fazer sofrer como o Troy sofrera.

Tomei banho e vesti-me, e voltei para baixo à procura do Tony, para o mandar falar com a Martha Goodman.

O Tony e o Logan não estavam no escritório. O Curtis viu-me à procura deles e disse-me que tinham deixado recado que iam a Boston.

- Qualquer coisa relacionada com planos para a fábrica de Winnerrow - informou o Curtis, preocupado por não se lembrar do recado todo.

- Não se preocupe, Curtis. Obrigada. - Não sabia se havia de rir ou chorar com a dedicação monomaníaca do Logan à Companhia de Brinquedos Tatterton. Sabia que ele devia estar cansado da viagem, mas isso não o tinha impedido de mostrar a sua determinação e o seu esforço ao Tony. O Tony também devia ter-se preocupado, pensei eu. Porque é que ele estava a aliciar tanto o Logan com o negócio? Já tinha o que dissera querer: já nos tinha a viver ali, a partilhar a riqueza dele, e já tinha o Logan a trabalhar para ele. Devia dar mais atenção à Jillian e às suas necessidades.

- bom, mas eles disseram para não se preocupar. Que voltavam bem a tempo do jantar.

Ah, como eu queria sentir-me feliz e bem-disposta neste momento, em vez de me sentir agitada e melancólica. Decidi ir dar um passeio, para espairecer os meus pensamentos sufocantes e sombrios.

Estava com uma blusa azul leve e fresca e uma saia, e estive mesmo para ir buscar uma camisola de algodão, pois o ar tinha refrescado e a brisa marítima estava mais forte. Porém, acabei por não ir. Fui andando, abraçando-me, tão distraída com os meus problemas, que não me apercebi da rapidez e do muito que andei. Parei ao pé da entrada do labirinto e olhei para trás.

Ao fundo, emoldurada pela janela, estava a Jillian. Parecia um manequim, tão quieta, tão gélida no seu lugar. Era difícil distinguir os pormenores da sua cara, claro, mas pareceu-me que estava com uma expressão de medo. De repente, o medo dela passou para mim e fui arrastada para o labirinto, como uma criança que quer saber o fim de uma história de terror. Quando entrei no labirinto, lembrei-me da primeira vez que o fizera, no primeiro dia que estivera em Farthy, quando ainda nem sequer sabia o que era o labirinto. Tinha ficado entusiasmada com o desafio de encontrar o caminho através do puzzle. Tinha seguido arrogantemente em frente, virando primeiro à direita e depois à esquerda. Quando a quente luz do Sol fora absorvida pelas sebes altas, tinha ficado sem esperança. Já não me lembrava do caminho de regresso. Entrara em pânico, apressara o passo, e quase correra.

Por fim, parara para me dominar e acalmar, esforçando-me por ouvir a rebentação das ondas, com a esperança de poder usá-la como ponto de referência. Contudo, em vez disso, ouvira o som de alguém a martelar nas imediações. Tinha seguido o som até ouvir uma janela a fechar-se e o suspender do martelar. Seguira exactamente na mesma direcção que estava a andar hoje, com os meus braços a envolver protectoramente o meu peito, como a minha avó fazia. Tinha dobrado esquina após esquina, até ter saído do labirinto e deparar-se-me a casa de pedra do Troy.

Tal como acontecera agora.

E continuava como sempre fora, uma casa de um conto de fadas que surgia no fim do nevoeiro, instalada comodamente no colo dos pinheiros. Claro que agora não havia o som do martelo a construir os preciosos brinquedos Tatterton; não havia a luz de uma lareira. Não havia nada a não ser as sombras frias e as janelas escurecidas, que pareciam os olhos de um homem cego, baços, cinzentos, sem vida, sem sequer o reflexo da cerca torta que a rodeava no vidro.

No entanto, a sua visão despedaçou o meu coração frágil.

"Oh, Troy", pensei eu. "Como gostaria de estar a aproximar-me da tua casa de pedra como naquele primeiro dia, e depois de te conhecer, tentar de novo convencer-te a falar comigo. Como gostaria que lá estivesses de novo a olhar para mim como já olhaste: ver os teus olhos escuros a percorrer-me lentamente, primeiro o meu rosto, o meu pescoço, depois os meus seios, a minha cintura, ancas e pernas, como se te regalasses comigo visualmente. Como observaste atentamente o meu rosto. Senti o teu olhar nos meus lábios. Senti como te afectara, e isso satisfez a minha forte feminilidade. Sim, Troy, fizeste-me sentir mulher mais do que qualquer outro homem."

Apercebi-me de que estava a abraçar-me com mais força enquanto perdida nestes sonhos. "O que é que está a passar-se comigo?", perguntei a mim própria. "Eu não devia estar a pensar nestas coisas, pois estou ao pé do meu verdadeiro amor, e o Troy desapareceu para sempre. Não devia deixar os sonhos loucos da Jillian com os seus fantasmas afectarem-me e perseguirem-me também."

Controlei-me rapidamente e deixei as mãos caídas ao lado do corpo, avançando até chegar à porta da casa de pedra. Estava surpreendida por o terreno à volta da casa ter sido tão bem tratado depois da morte do Troy. A relva estava cortada, os canteiros de rosas podados. Até as janelas apaineladas parecia terem sido limpas.

Depois de um momento de hesitação, em que todas as vozes de precaução soaram os seus alarmes, girei o trinco e entrei, com o coração a bater como se fosse um pássaro prestes a levantar voo. Assim que entrei, sufoquei um grito. A cadeira do Troy estava no sítio do costume, de frente para a lareira. Naquele momento, esperei vê-lo lá sentado, e ele virar-se-ia para mim, como fizera naquele primeiro dia... Mas, é claro que não havia ninguém e aquele silêncio e o vazio foram mais devastadores do que eu imaginara. Respirei fundo e contive a respiração, enquanto olhei para os instrumentos especiais que ele usava para construir criações especiais para a Tatterton, cada uma no seu nicho na parede.

A tábua do soalho à minha esquerda rangeu como se um fantasma tivesse dado um passo, e eu soltei um grito. Sem hesitar, voltei-me e saí a correr da casa, com a tristeza e o medo misturados nas lágrimas que corriam cara abaixo. Fugi para o labirinto e corri desnorteadamente pelos corredores, virando sucessivamente ao calhar. Tropecei uma vez, mas consegui equilibrar-me antes de cair por cima das sebes. Por fim, já sem fôlego e exausta, parei no meio de uma passagem, para conseguir controlar-me.

Tal como da primeira vez que entrara naquele labirinto há muitos anos atrás, estava outra vez perdida. Tinha corrido em pânico, desrespeitando os caminhos e as orientações que já soubera tão bem. Naquele momento, ainda esgotada emocionalmente, não conseguia raciocinar. Todas as aberturas e entradas pareciam iguais. Eu nem sequer tinha bem a certeza de como voltar para a casa de pedra.

Ri-me de mim própria, mais para me acalmar do que por outra razão. "Que tonta e estúpida és, Heaven Leigh", pensei eu. "Depois de todos estes anos e de todas as vezes que atravessaste o labirinto, estás aqui parada, toda confusa. Leva o tempo que precisares, pensa, controla-te. Pensa só no que seria se ainda estivesses a vaguear por aqui quando o Tony e o Logan voltassem, e eles tivessem de te vir socorrer. Como é que explicavas uma parvoíce dessas?"

Continuei a percorrer os corredores, amaldiçoando o mistério.

Tinha a certeza de estar a andar em círculos. De qualquer maneira, qual era a lógica daquilo? Que sentido de humor distorcido tinha inventado aquilo? Controlei a respiração e estudei as diversas opções. Quanto mais hipóteses tinha, mais confusa ficava. Estava a começar a escurecer. Há quanto tempo é que andaria a vaguear pelo labirinto? De repente, perdi a noção de tempo e de lugar. Não conseguia acalmar o meu coração. A minha boca soltava pequenos gritos quase espontaneamente. Tentei com desespero acalmar-me, mas estava a tornar-se cada vez mais difícil.

Fui por um corredor, virei à direita e depois à esquerda. Continuava tudo igual; porém, depois de ter voltado nos sítios que pensava estarem certos, encontrei-me ainda mais embrenhada no labirinto, mas mais longe para a direita tanto da saída para a casa do Troy como para a mansão. Aqui, as sombras pareciam mais escuras e maiores. Era tudo hostil para mim. Na minha imaginação, as sebes estavam a vingar-se de mim, por ter resolvido o seu mistério há muitos anos e por passar de um mundo para o outro.

Por fim, decidi que a única solução era virar sucessivamente uma vez à esquerda e outra vez à direita. Acabaria por chegar ao fim do labirinto, embora levasse dez vezes mais tempo a atingi-lo do que se me lembrasse das soluções. De cabeça baixa, prossegui. Passados uns minutos, chamou-me a atenção o som de alguém a cortar. Parei e escutei. Sim, era de certeza um dos jardineiros a trabalhar. Andei na direcção do som e depois de meia dúzia de voltas dei de caras com um senhor idoso a podar as sebes. Como não queria assustá-lo resolvi parar, esperando que ele me visse rapidamente. Mesmo assim, quando se virou, percebi que apanhara um susto. Quase que fugiu.

- Espere. Não tenha medo - disse eu. - Sou só eu, Mistress Stonewall. A Heaven.

Como não o conhecia, calculei que fosse um dos empregados que tinham sido contratados depois de eu ter voltado para Winnerrow.

- Oh, miss - exclamou ele. - Oh, meu Deus. - Ele estava de pé, com a mão direita em cima do coração. - Pregou-me um susto enorme. Ainda bem que a senhora é quem é. Ainda bem que é um dos vivos.

- Sou, graças a Deus. Mas tenho que confessar que andei a vaguear pelo labirinto e que perdi o meu sentido de orientação.

- Ah, sim, isso acontece facilmente. Até a mim já me aconteceu algumas vezes.

- Já trabalha cá há muito tempo? - perguntei eu. Pensei que uns minutos de conversa ajudariam a acalmar os ânimos, e que assim ele não sentiria necessidade de exagerar o caso, quando o contasse aos outros empregados.

- Só há alguns meses, minha senhora.

- Está a gostar?

- A maior parte do tempo, sim. Não gostei há bocadinho - afirmou ele, e riu-se. - Por momentos, pensei que um dos espíritos do Rye Whiskey me queria.

- Ah, o Rye Whiskey. Sim, sim - respondi eu, sorrindo. - Ele consegue assustar toda a gente com as suas histórias.

- Foi o que me aconteceu, minha senhora. No outro dia, tive a certeza de ter ouvido passos do outro lado de uma destas sebes. Segui o som e apareci na junção onde quem fosse tinha de aparecer, só que...

- Só que?

- Não apareceu ninguém. E eu juraria sobre um monte de Bíblias que estava lá alguém.

Observei-o por um momento.

- Bem, quando alguém nos põe ideias na cabeça como o Rye faz, a nossa imaginação prega-nos partidas - disse eu. Ele concordou com a cabeça.

- É o que eu também acho, minha senhora. bom, mas então, se quiser o caminho mais rápido para chegar a casa, vire ali à direita, depois duas vezes à esquerda e novamente à direita. E já está.

- Muito obrigada. Sinto-me um bocadinho envergonhada por ter ficado confusa.

- Não há razão para isso, minha senhora. Tenha uma boa noite. - Ele olhou para cima. - Já está quase demasiado escuro para eu continuar a trabalhar. vou só acabar este bocado e também me vou embora.

- Sim - respondi eu. - Outra vez obrigada.

Segui as orientações dele e saí para o jardim, a poucos metros de onde tinha entrado. Enquanto estugava o passo para chegar a casa, olhei para cima e vi que a Jillian ainda estava à janela.

Só que, agora, ela estava a acenar lentamente com a cabeça, como se o facto de eu me ter perdido e de ter aparecido naquele sítio tivesse confirmado algo na sua mente louca, como se eu tivesse dado corpo aos seus sonhos. Sorriu-me e depois afastou-se da janela, satisfeita.

Despachei-me a entrar em casa e a expor-me à segurança que as luzes, o barulho e as outras pessoas representavam. Felizmente, o Logan e o Tony ainda não tinham chegado. Fui rapidamente para os meus aposentos, e molhei a cara com água fria, acalmando-me, finalmente, e adquirindo a cor normal. O Logan chegou pouco depois.

- Onde é que foram? - perguntei, enquanto ele se despia para ir tomar banho e arranjar-se para o jantar.

- Ah, o Tony queria que eu conhecesse uma pessoa envolvida na exportação dos brinquedos. Um homem interessante. Explicou tudo com grandes pormenores e, quando contei do nosso investimento em Winnerrow, mostrou-se muito interessado. Disse que os Europeus têm imensa curiosidade sobre as regiões remotas e bravias da América. Vamos ter êxito com toda a certeza. O Tony ficou muito entusiasmado com o assunto.

- Ah, ficou?

- Ficou - disse o Logan, e fez uma pausa enquanto me observava. - Porque é que estás com esse ar infeliz?

- Fui lá abaixo para falar com ele sobre a Jillian, mas vocês tinham acabado de sair. Ela não está nada bem, e o Tony tem ignorado o problema. A Martha Goodman está tão perturbada que até se quer ir embora.

- A sério? Òh, meu Deus.

- Sim, oh, meu Deus - repeti eu. - vou lá para baixo, para a sala de estar. Tenho de falar com o Tony.

- Está bem. Eu já lá vou ter.

O Tony também estava a tomar banho e a arranjar-se para o jantar; desceu, porém, antes do Logan, bastante garboso no seu casaco de smoking em veludo azul. Os seus olhos brilhavam, resplandecentes. Parecia mais feliz do que nunca.

- Heaven, queres acompanhar-me numa bebida antes de jantar? - perguntou ele.

Eu estava em pé, ao lado do piano, com a minha mão direita apoiada na madeira polida.

- Não, Tony, neste momento não. Precisava de falar consigo antes do jantar.

- Ah, sim?

- Foi ver a Jillian e a Martha Goodman?

- Não, eu...

- Porque anda a evitá-lo? - interroguei, avançando para ele. Olhou para mim uns instantes. Antes que pudesse responder, o Curtis apareceu e o Tony pediu um highball.

- com certeza, sir - respondeu o Curtis, olhando em seguida para mim.

- Nada, obrigada, Curtis - declarei. - Então? - prossegui eu, assim que o Curtis se foi embora.

- Eu não tenho andado a evitá-la. Tenho é andado muito ocupado. Porque é que estás tão preocupada com o assunto?

- Estou preocupada com isso porque ela não está na mesma, está bastante diferente. A Martha Goodman disse-me que já lhe pediu para ir lá ver o que se passa. Ela está muito perturbada com tudo e acho que quer ir-se embora.

- A Martha?

- Sim, Tony. Se desse mais importância às coisas que o rodeiam, teria reparado nisso. Tem de ir lá imediatamente falar com ela e chamar um médico para ver a Jillian.

- O que é que se passa com ela?

- Está diferente. - Fiz deslizar a mão pelo piano. - Já não vive no passado. Trouxe o passado para o presente.

- Como?

- Julga ver fantasmas e descarrega tudo no seu sentimento de culpa.

- Oh! Estou a ver. - Virou a cabeça de um modo que me impediu de observar os seus olhos, mas calculei qual o motivo.

- É algo que não lhe importa que ela deixe de fazer, suportar toda a culpa em relação à minha mãe e até... ao Troy.

- O quê? - Virou-se de repente, os olhos azuis fazendo lembrar o azul de uma chama de gás. Senti o calor entre nós os dois.

- Eu sei o que está a fazer. Já eu própria o fiz, não apenas em relação a ela, mas também ao Luke. E quando eles ficam com um sentimento de culpa, sentimos o nosso fardo mais leve. Mas não é justo, Tony, nem está certo. A Martha Goodman tem razão. A Jillian está a ficar cada vez pior a cada dia que passa. Em breve ficará catatónica, um vegetal. Não pode continuar a ignorar a sua responsabilidade.

- Isso é ridículo! - exclamou ele. - Não a culpo pela morte do Troy, nem me culpo a mim. Fiz tudo o que pude por ele, atendendo às circunstâncias. Mas sabes bem como ele se sentia infeliz e deprimido, como estava convencido de que iria morrer por causa daqueles pesadelos constantes em que via a sua própria morte, e até o seu túmulo. Sabia o que estava a fazer quando escolheu o cavalo selvagem da Jillian. Em minha opinião, ele suicidou-se - declarou o Tony, com um suspiro.

Calámo-nos ambos quando o Curtis trouxe a bebida. O Tony foi até a um sofá e sentou-se, mas eu permaneci junto ao piano.

- Agora, no que diz respeito à Jillian - continuou ele -, fiz também tudo aquilo que um homem nas minhas circunstâncias pode fazer. Mantive-a em segurança, agasalhada, satisfeita, mesmo na sua loucura. Mas isso não significa que eu tenha de sacrificar a minha própria sanidade, pois não? Ela tem uma enfermeira profissional vinte e quatro horas por dia. Não estou a negligenciá-la devido a um ridículo sentimento de culpa. Estou simplesmente ocupado.

- Tão ocupado que nem repara no que está a acontecer aqui, em Farthy. Todos os empregados andam perturbados por causa da Jillian - disse eu. O Tony sorriu com frieza e cruzou as pernas. com os dedos, percorreu meticulosamente o vinco das calças azul-escuras e olhou para mim.

- Tens a certeza de que não és tu que estás perturbada por causa da Jillian? Será que a presença dela aqui te atormenta?

- É claro que não - disse eu. - Estou apenas a pensar no bem-estar dela.

- Estou a ver. - Recostou-se para beberricar a sua bebida. - Muito bem - prosseguiu -, amanhã mando vir o médico. O que farei se ele achar melhor interná-la num hospício? Mandá-la-ei embora para evitar que os empregados contem histórias ridículas?

- Temos de fazer o que for melhor para ela - retorqui eu. Nada podia fazer para evitar o tremor que me assaltava.

- Claro.

- Tony - comecei eu, sentando-me ao piano -, a casa do Troy...

- O que tem a casa do Troy? - Ele inclinou-se para a frente.

- É que... O Tony conservou-a tal qual como ela era... Como um monumento vivo.

- Estiveste lá? - Um fugaz brilho de medo iluminou-lhe o olhar, mas logo desapareceu. - Estou a ver - prosseguiu, voltando a recostar-se. - E o que querias que eu tivesse feito? Pegar-lhe fogo?

- Não, mas...

- Tinhas razão numa coisa, Heaven - comentou ele, já sem quaisquer vestígios de ira e frustração. - Todos nós temos de encarar a nossa própria culpa... Os nossos próprios fantasmas. Eu fiz aquilo que pude por ele. Fiquei furioso por ele ter desperdiçado assim a sua vida, mas isso não quer dizer que... Que eu não tenha saudades dele.

Mordi o lábio inferior para obrigar o nó que se formava na minha garganta a descer. Senti as lágrimas a surgir.

- De certo modo - continuou ele -, somos todos um pouco arrogantes com a nossa dor. Julgamos que mais ninguém sofre tanto como nós. Não foste a única a ficar com o coração despedaçado.

O longo silêncio entre nós foi quebrado pela chegada do Logan.

- Estou esfomeado - afirmou ele. Olhou para o Tony, depois para mim, e em seguida de novo para o Tony. - Passa-se alguma coisa?

- Não - respondeu o Tony rapidamente. - Nada que não vá ser rapidamente resolvido. - Virou-se para mim.

- Não é verdade, Heaven?

- É - respondi eu. Levantei-me do piano, passei com os dedos pelos olhos e segui o Tony e o Logan para fora da sala, com a memória da música do Troy a esmorecer, à medida que nos aproximávamos da sala de jantar.

 

UM ROSTO NA ESCURIDÃO

No dia seguinte, o médico da Jillian foi a Farthy e observou-a, a fim de tornar a avaliar qual o seu estado. Concluiu que ela estava em excelente forma física, mas que passara de um estado confuso e desorientado para outro hipertenso e volátil. Receitou-lhe alguns calmantes. A Martha Goodman sentiu-se satisfeita e concordou em continuar como enfermeira particular da Jillian.

No dia seguinte à visita do médico, o Tony e o Logan foram a Winnerrow com o Paul Grant, o arquitecto, para verem o terreno onde a fábrica iria ser construída. Acompanhei-os para, uma semana mais tarde, me encontrar com ele, a fim de discutir os seus planos preliminares para a estrutura e terrenos circundantes. Fiquei logo impressionada com o Paul e gostei de todas as suas sugestões. Fizera uma maqueta da fábrica, que também incluía o terreno em volta. Fazia lembrar um intrincado brinquedo Tatterton.

- Gostaria de manter aqui o bosque - afirmou ele, apontando para o lado direito da maqueta -, e construir um simples caminho circular de acesso para os carros, que aqui se bifurca para as entregas. É claro que o edifício deveria ser todo em madeira. Um edifício de metal ou pedra neste local ficaria... - Olhou para mim. - Ficaria um pouco deslocado, não lhe parece?

Não respondi; no entanto, ele sabia que eu aprovava a sua sugestão. Assemelhara a estrutura da fábrica à de uma cabana, e assim ela integrava-se perfeitamente nos arrabaldes de Winnerrow. Havia uma cafetaria onde os operários poderiam almoçar; grandes áreas de trabalho; bastante espaço para armazenamento e uma sala para entregas e embalagem. Havia também um escritório para o Logan ou o Tony utilizarem quando lá fossem. O arquitecto até planeara uma zona de repouso para os executivos.

- Gostaria de ficar com a maqueta quando já não precisasse dela - pedi eu.

- com certeza, Mistress Stonewall. Entregar-lha-ei pessoalmente - disse ele.

Eu sabia que ele estava a namoriscar-me; contudo, nem Logan nem o Tony parecia terem percebido.

O Logan começou a ter de ir e vir muitas vezes a Winnerrow. O Tony acompanhava-o de vez em quando, mas a maior parte das vezes o Logan ia sozinho. Estava mesmo encarregue de tudo. Achei que não valia a pena voltar a Winnerrow antes de a fábrica estar pronta.

Cerca de um mês depois do início da construção da fábrica, o Logan começou as jornadas através dos Willies, à procura de artesãos da região, que seriam mais tarde chamados para trabalhar. Sempre que ele voltava de uma dessas viagens e descrevia algumas das pessoas que tinha conhecido, eu lembrava-me sempre do meu avô. Alguns dos nomes que o Logan mencionava ainda me eram familiares. Ele queria que eu fosse com ele à procura; eu achei, porém, que ia ser demasiado penoso, que me avivaria demasiadas recordações de tudo o que eu tinha perdido.

Entrementes, adaptei-me a uma vida calma em Farthy. Quando o Logan estava fora, jantava com o Tony, que passava a maior parte do tempo a falar da cena teatral de Boston. Estava sempre a oferecer-se para comprar bilhetes para este ou aquele espectáculo.

- No fim de contas, nós é que muitas vezes decidimos se eles levam o espectáculo para Nova Iorque ou não. Somos muito importantes no mundo do teatro - declarou. Tentava tudo para conseguir levar-me com ele a um dos espectáculos novos. Eu estava feliz com a minha leitura, andava de vez em quando a cavalo, para fazer exercício, e ajudava a Martha Goodman com a Jillian, a qual, com a ajuda dos calmantes, se tinha submetido completamente, tornando-se uma rapariguinha doce. Raramente falava de fantasmas.

Por fim, por um lado devido ao tédio, por outro, ao interesse genuíno num espectáculo que ia estrear em Boston, concordei em acompanhar o Tony num sábado à noite. O Logan estava em Winnerrow e só regressava na quarta-feira seguinte. Fui ao roupeiro para escolher o que ia levar vestido, e examinei minuciosamente os vestidos que o Tony tinha comprado para encher o armário dos meus novos aposentos. Tinha feito parte da surpresa, mas até agora ainda não examinara tudo como devia ser.

Quase no fim do armário, descobri um vestido de cetim preto de saia plissada e top de renda. Este deixava os ombros nus. O decote era em forma de coração, revelando bastante. O Tony sempre tivera jeito para modelos e tamanhos, algo que eu tinha descoberto quando me levara às compras, para adquirir um guarda-roupa, depois de me ter matriculado em Winterhaven, aquela escola particular para raparigas bastante ricas. Quando pus o vestido e me vi ao espelho, senti um formigueiro no estômago, típico de quando nos apercebemos do nosso fascínio sexual. O meu peito estava levantado, acentuando a sua separação. Sentia-me extremamente fascinante. Sabia que este vestido revelava a minha feminilidade madura. Já não tinha o olhar doce e inocente de antigamente.

Apanhei o cabelo, descobrindo a linha comprida do meu pescoço. A minha pele era suave e macia ao juntar-se aos ombros. Tinha uma écharpe leve de algodão, feita à mão, para pôr nos ombros, que chegava perfeitamente naquela noite quente de Verão. Pus muito pouca maquilhagem, um bocadinho de sombra nos olhos e um bâton rosa muito leve.

Depois de pronta, voltei a ver-me ao espelho. Sabia-me bem arranjar-me melhor, ir sair a qualquer lado. Desde a nossa lua-de-mel que o Logan estava tão embrenhado em trabalho que raramente fazíamos alguma coisa juntos. Sentia-me contente por finalmente ter cedido aos pedidos insistentes do Tony para ir com ele a um espectáculo. Só a ideia de me mover na alta sociedade de Boston e de me divertir era animadora.

Uma pancada leve na minha porta arrancou-me do meu devaneio. Era o Tony, num smoking preto, camisa branca e colarinhos de ponta virada, com um laço preto. Por uns instantes, parou simplesmente a olhar para mim, observando-me, com uns olhos estranhamente perturbados.

- Que se passa? - perguntei eu.

- O quê? Ah! Nada, nada - balbuciou ele. Depois controlou-se, suspirou e mostrou-me o seu sorriso mais caloroso.

- Eu acho... O preto é a cor que te fica melhor. O mesmo acontece com a tua avó. Meu Deus, Heaven, estás de cortar a respiração. A tua avó era bonita. A tua mãe era linda. Mas tu és absolutamente espantosa.

- Obrigada - disse eu -, mas...

- Tinha esperança que pusesses esse vestido. Acima de tudo, gostava que usasses isto. - Mostrou-me um dos colares de diamantes mais caros da Jillian, e os brincos a condizer.

- Oh, Tony, não posso. Não devo. - Abanei a cabeça e recuei.

- Que disparate. Eu insisto. Eles estão simplesmente a desperdiçar-se numa gaveta.

Veio por trás de mim e colocou o colar no meu pescoço, fechando-o com rapidez. Depois, segurou-me nos ombros e virou-me para o espelho.

- Vê como favoreces os diamantes e não o contrário disse ele. As pedras brilhantes aqueciam a minha pele e avivaram o formigueiro no meu estômago. Sustive a respiração enquanto o Tony percorria os diamantes com os dedos, os seus olhos quase tão brilhantes como as pedras preciosas.

- Obrigada - balbuciei eu, com um aperto na garganta. Ele tinha pressionado os lábios contra a minha testa e fechado os olhos.

- Puseste jasmim, o jasmim da Jillian. A Leigh também costumava pô-lo - sussurrou ele.

- Bem, eu... Estava ali e eu...

- Ainda bem - afirmou. - O perfume só traz boas recordações. Não te esqueças dos brincos - acrescentou. Depositou-os na minha mão, segurando-a mais uns instantes. - Não te demores muito. Quero chegar um bocado mais cedo ao teatro para te mostrar a toda a gente.

- Oh, Tony, por favor...

- Estou lá em baixo. A limusina já está à espera - declarou, e foi-se embora. Estava tão excitado que parecia vinte anos mais novo.

Pus os brincos rapidamente e vi-me mais uma vez ao espelho. Senti-me como uma mulher a brincar com o fogo, ao fazer ressuscitar as recordações que o Tony tinha da minha mãe, uma rapariguinha que, se eu acreditasse nos ditos loucos da Jillian, o tinha seduzido e o descobrira como uma vítima interessada.

"Mas eu não sou tão nova nem tão inexperiente em relação aos homens como a minha mãe era", pensei eu. Não ia acontecer comigo o que tinha acontecido com ela. Eu tinha o controlo; sabia o que estava a fazer. Ia sair e divertir-me. Sabia bem sentir-me bonita e apreciada. O que é que isso tinha de mal? Não era o que todas as mulheres desejavam? Ansiavam? Não sonhavam ser o centro das atenções?

No entanto, não seria pecado pensar assim, apaixonarmo-nos pela nossa própria imagem? Tinha sido esse o pecado da Jillian, não tinha? Apaixonar-se por si própria, querer ser nova e bela eternamente? Seria loucura o seu castigo? Iria ser também o meu?

Peguei na minha écharpe e pu-la à volta dos ombros, dando uma última olhadela ao espelho. Por um instante, um instante apenas, vi uma das fotografias da minha mãe do álbum dela. O seu pai, o Cleave Van Voreen, havia desaparecido. A Jillian tinha-se divorciado dele e começado a andar com o Tony. Via-se a mãe com um novo homem, um homem muito mais jovem e elegante, o Tony Tatterton com vinte anos. E, estranhamente, nessa fotografia, a rapariga bonita que antes sorrira com sinceridade para a câmara não conseguia esboçar nem fingir um leve sorriso. Os seus olhos estavam sombrios assim como os da imagem que o meu espelho reflectia.

Estaria a olhar para ela ou para mim? A fotografia tinha sido tão profética. O que é que aquela imagem profetizaria para mim?

Recusando tudo o que interferisse com os meus sentimentos calorosos, vibrantes e excitados, ri-me do que considerei ser a minha tola imaginação, e fugi do quarto, com o meu riso a ressoar atrás de mim, fechado, por fim, atrás da porta do quarto, para sobreviver nas sombras com todos os outros sons fantasmas que assombravam a Mansão Farthinggale.

A peça foi magnífica, uma comédia doméstica hilariante sem nada a apontar. Era a história de uma rapariga que tinha sido prometida a um milionário velho e senil. Na realidade, ela estava apaixonada pelo filho dele, mas o contrato de casamento estipulava que, se ela não casasse com o velho senhor, o filho não herdaria nem um tostão. O velho senhor morrera antes do fim do primeiro acto, mas o filho e a bonita rapariga mantiveram a aparência de que ele ainda estava vivo. Estava sempre a dormir ou a fazer uma sesta na cadeira. Havia imensas oportunidades para situações cómicas. Claro que acabou tudo bem, com os dois pombinhos casados e felizes para sempre.

- Não gostavas que a vida fosse como uma peça ou um filme? - perguntou o Tony, no regresso a Farthy. - Que acabasse sempre tudo bem?

- Claro - concordei eu.

- Sabes, às vezes sinto que o meu dinheiro é um tipo de fortaleza. É verdade, não compra a felicidade, mas pode afastar a infelicidade, facilitar a vida, torná-la mais cómoda.

- Como fez com a Jillian?

- Sim - respondeu ele. Voltou-se para mim, na escuridão do banco traseiro da limusina. Não conseguia ver os seus olhos, naquela escuridão; de vez em quando, um automóvel passava ou um candeeiro brilhava, revelando a tristeza no seu olhar.

- Tal como fiz com a Jillian.

- E como fez comigo - acrescentei eu.

- O que queres dizer com isso?

- Comprou o Logan - disse eu. Disse-o simplesmente, objectivamente, como se fosse algo tão óbvio que era impossível negar.

- Ora, Heaven, não estás a querer dizer...

- Não tem importância - sosseguei-o eu. - Deixei que acontecesse. Por isso, eu também o devo querer... esta vida rica, Farthy, rodeada de imensas coisas boas, mas sentindo, ao mesmo tempo, que estou a fazer algo louvável ao mandar o Logan construir a fábrica em Winnerrow. Só espero que também acabe tudo bem - acrescentei.

- Vai acabar - prometeu o Tony, e apertou-me a mão, para me dar confiança. - Mas não vamos ficar piegas - prosseguiu ele, afastando o tom sombrio da sua voz. - A noite tem sido boa de mais. Reparaste nos olhares que te deitavam? A inveja de alguns dos meus amigos? Ao princípio, não sabiam quem tu eras. - Riu-se, satisfeito. Havia qualquer coisa nele que o fazia parecer outra vez um rapazinho. Estava a divertir-se, a gozar. O Tony mostrava-se quase sempre tão sério, tão absorto nos seus esquemas e nos seus negócios. Raramente se conseguia ver aquele lado divertido e alegre da sua personalidade.

Pela primeira vez, pensei nele como homem, e perguntei-me como é que seria para ele o facto de estar casado com a Jillian, ter uma mulher com uma doença mental. Nunca ter uma companheira, nunca ter alguém para levar a jantar ou a um espectáculo. Resumindo, não ter ninguém para amar.

Lembrava-me de como ele e a Jillian eram alegres e activos, da primeira vez que estivera em Farthy. Todas aquelas viagens espectaculares que eles faziam, à Califórnia, à Europa, iam a todas as festas, aos jantares elegantes... De repente, tudo isso tinha terminado para ele. Tudo o que lhe restava era o seu trabalho... E eu.

A solidão era a pior estação que havia, pensei eu. Mais devastadora do que todas as geadas do Inverno, mandando o coração hibernar. Não tinha ninguém por quem viver, por quem estar acordado, por quem lutar furiosamente. O solitário só tinha recordações e esperanças, sonhos e ilusões. Por baixo da sua árvore de Natal só há caixas vazias lindamente embrulhadas.

Era uma crueldade da minha parte ficar ressentida com ele pelo facto de usar o seu dinheiro para me conservar a mim e ao Logan em Farthy, pensei eu. com o Troy morto e a Jillian louca, só nos tinha a nós. Conseguia perceber os seus ciúmes do que quer que fosse que desviasse a minha atenção de Farthinggale. Ele não era como o Luke. O meu pai perdera a sua jovem e bela mulher num parto, e depois casara com outra, que lhe dera filhos. Quando ela o abandonara, ele desistira e vendera a família, mas rapidamente encontrara outra mulher e uma vida nova. O Tony era diferente. Mesmo com todo o seu dinheiro e poder, não conseguia libertar-se do passado, afastar as recordações e começar de novo. Causava admiração, a sua devoção e lealdade constantes, embora houvesse quem achasse que o meu pai mais pobre, que ficara preso ao circo que agora possuía, estava muito melhor.

- Que tal um brande antes de ir para a cama? - perguntou o Tony, ao aproximarmo-nos de Farthy. - Demoro sempre um bocado a descontrair-me e gostava de me aquecer um pouco.

Concordei e fomos directamente para a sala de estar, onde o Curtis já tinha acendido a lareira. Trouxe-nos as bebidas, e eu e o Tony conversámos mais um bocado sobre a peça, sobre as pessoas que ele me tinha apresentado e sobre os seus planos para a futura expansão da Companhia de Brinquedos Tatterton. Por fim, já muito cansada, despedi-me e fui para os meus aposentos. Ele continuou sentado, beberricando o brande e fixando a lareira.

No patamar, olhei para o quarto da Jillian, e vi a Martha Goodman a acenar-me. Estava de roupão e chinelos, e parecia bastante agitada.

- Ela está a passar mal a noite - sussurrou, saindo do quarto, no momento em que eu me aproximei. - Quando o tempo fica assim, acontece-lhe sempre isto.

- Deu-lhe os medicamentos?

- Dei, mas hoje não estão a fazer muito efeito. - Franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça.

- Está irrequieta?

O vento que soprava do mar tinha aumentado, e até nos cantos mais recônditos da mansão se conseguia ouvi-lo a varrer o telhado e as janelas, parecendo mais o mar do que o vento.

- Sim. Tem murmurado coisas sobre o Abdulla Bar. Diz que ouve o cavalo a galopar à volta da mansão, a relinchar. Ela estava tão convencida, tão certa de que o tinha ouvido, que tenho de admitir que me assustou. Cheguei a mandar o Curtis lá fora ver se algum dos cavalos se tinha soltado. Mas claro que não.

- Oh, Deus. Acha que devo avisar Mister Tatterton? Talvez nós...

- Não, não. Eu só queria conversar um bocadinho com alguém, sem ser com os criados. Às vezes, eles põem-me mais nervosa do que Mistress Tatterton. - Apertou a minha mão. - Está tudo bem. Vai ficar tudo bem. Agora vamos todos dormir. Não se preocupe.

- Se houver algum problema, chame-me. Não hesite.

- Obrigada, Mistress Stonewall. Estou tão contente que tenha decidido ficar a viver cá. É reconfortante saber que está mesmo ali, ao fundo do corredor - disse ela, com um certo alívio na voz.

- Boa noite, Martha. - Dei-lhe uma pancadinha na mão e fui para o meu quarto.

Enquanto me arranjava para ir para a cama, começou a chover pesada e torrencialmente, batendo nas janelas e fazendo-as ranger. Para mim, soava como um grupo de pequenas criaturas a correr para cima e para baixo no vidro. Quando olhei lá para fora, foi como se estivesse a olhar para uma cortina de veludo preto. Só a luz ocasional de um relâmpago permitia alguma visibilidade e, quando aquele choque de electricidade celestial atravessava o céu frio e escuro como breu, distorcia tudo: árvores, terraços, o que estava no relvado. Tudo parecia líquido, esvaindo-se do meu campo de visão, mudando de formas, alongando-se, tornando-se mais pesado. Era um mundo de pesadelos. Uma noite em que facilmente se veriam fantasmas. Fechei as cortinas completamente e puxei para trás a colcha da minha cama, desejosa de adormecer e de acordar com o sol quente da manhã.

Apaguei as luzes e tapei-me até aos ombros com a colcha, enroscando-me no quentinho, e fechei as minhas pálpebras pesadas. Felizmente, adormeci quase de imediato.

No entanto, pouco tempo depois houve algo que me acordou. O quarto estava muito escuro, mas senti outra presença. Apercebi-me de que o que me havia acordado tinha sido o som de uma porta a abrir, o clique da maçaneta. Olhei para a escuridão por uns instantes, apercebendo-me vagamente de uma forma.

- Quem está aí? - perguntei, num murmúrio rouco. O meu coração começou a bater com mais força. Senti um terror gelado a subir-me pelo corpo. - Está aí alguém? Tony?

Ouvi passos, e depois vi a porta a abrir e a fechar, vendo só de relance a figura que entrara e saíra. Estava demasiado escuro para conseguir perceber a identidade daquela misteriosa pessoa.

Saltei da cama e acendi o candeeiro pequeno da mesa-de-cabeceira. Vesti o roupão e fui até à porta. As luzes do corredor tinham sido parcialmente escurecidas, tornando as sombras maiores e mais compridas. Pareceu-me ouvir uma porta a fechar-se e avancei mais um pouco, para ouvir e olhar; porém, ninguém estava à vista. "Poderá ter sido a Jillian?", pensei para comigo. Teria conseguido passar pela Martha Goodman, adormecida, e vir ao meu quarto? Ou teria sido o Tony, para me dizer qualquer coisa, e que tivesse mudado de ideias? Escutei mais um bocado e depois voltei-me, para regressar aos meus aposentos, quando senti a humidade debaixo dos meus pés. Ajoelhei-me e toquei na alcatifa. Fosse quem fosse, tinha trazido a chuva para dentro consigo.

Voltei para a cama, preocupada e confusa. Nunca me tinha ocorrido fechar a porta do quarto à chave, mas desta vez foi o que fiz. Mesmo assim, fiquei acordada ainda durante muito tempo e quando, finalmente, consegui adormecer, foi um alívio. Acordei com os sons da casa a ganhar vida: os criados a- andar de um lado para o outro, a abrir janelas e cortinados, a preparar o pequeno-almoço. Escutei durante um bocadinho e depois sentei-me rapidamente na cama.

Teria imaginado o visitante nocturno dessa noite? Teria sonhado? Ou teria havido realmente alguém? Pus o roupão e os chinelos e fui até à porta do quarto. Estava trancada. Se não tinha sonhado isso, então também não tinha sonhado o resto. Abri a porta dos meus aposentos e olhei para a alcatifa do patamar. A humidade tinha desaparecido; porém, havia outros sinais. Alguém tinha deixado um bocado de lama. Quem teria sido?

Vesti-me rapidamente, decidida a resolver o mistério, mas não consegui perguntar nada ao Tony. Ele já tinha tomado o pequeno-almoço e saído para trabalhar. Por isso, encurralei o Curtis na sala de jantar e perguntei-lhe se sabia alguma coisa do assunto. Foi óbvio não ter sido uma decisão muito acertada. O senhor ficou completamente apavorado. De certeza que pensou que eu estava a confirmar uma das histórias sobrenaturais do Rye Whiskey.

- Não, Mistress Stonewall - respondeu ele. - Não andei por aí a passear e também não vi ninguém. Mas não é a primeira vez que se ouve alguém a vaguear pela casa durante a noite. O Rye Whiskey diz que só pode ser um dos antepassados de Mister Tatterton. Diz que algum pode ter sido assassinado e que a sua alma anda perdida.

- Que parvoíce. Diga ao Rye Whiskey que quero falar com ele.

- com certeza, minha senhora - anuiu o Curtis, e desapareceu para a cozinha. Alguns minutos mais tarde apareceu o Rye. O robusto negro de cabelo grisalho parecia não ter pregado olho nessa noite.

- O que é isso de um antepassado assassinado a vaguear pela casa à noite? Não lhe parece que anda a exagerar um bocadinho nessas histórias, Rye? O Curtis já acredita nisso, e a Martha Goodman diz que muitos dos criados andam apavorados.

Ele sorriu para mim e abanou a cabeça.

- Ouviu-o ontem à noite, não foi, Miss Heaven? - Acenou com a cabeça como que a incitar-me a responder.

- Ouvi qualquer coisa e vi alguém de relance, mas não era um fantasma - respondi eu, olhando para outro lado.

- Eu também o ouvi - disse o Rye.

- E bebeu até espantar os seus modos, até adormecer? perguntei eu, olhando para ele novamente. - Foi isso? - Ele não precisava de confessar. Conseguia ler isso mesmo na sua cara. - Os criados estão cada vez mais assustados, Rye. Quer que eu conte a Mister Tatterton o que está a acontecer?

- Ele já sabe, Miss Heaven - respondeu o Rye, inclinando-se para mim. - Já o vi a vaguear pela casa à noite, escutando, procurando. Quem sabe? - prosseguiu, endireitando-se. - Talvez Mister Tatterton já tenha encontrado o seu antepassado morto.

Por um momento, limitei-me a olhar para ele.

- Isso é ridículo. Que coisa tão ridícula, Rye. Já estou arrependida de lhe ter deixado contar-me as suas histórias de superstição e de tudo o resto.

- Desculpe, Miss, Tenho de voltar para a cozinha, para preparar o pequeno-almoço de Mister Tatterton.

- Vá lá. Não ajudou nada. - Observei-o a afastar-se e, depois, olhei para o Curtis, que estava sempre perto, parecendo um indiano de uma loja de charutos. - Não compreendo como é que dá ouvidos a tanto disparate - protestei eu; a minha voz, porém, não soou tão segura como devia. Deixei o pequeno-almoço e fui lá para fora.

Evitava o labirinto desde aquele dia em que me perdera ao fugir da casa do Troy. Contudo, naquela manhã, talvez por causa dos estranhos acontecimentos da noite anterior, senti-me inexplicavelmente arrastada para ele. Quando saí de casa, senti-me como se tivesse entrado num sonho. O céu azul da manhã escureceu quando uma nuvem grande tapou a luz do Sol. A maior parte do nevoeiro e do orvalho já tinha desaparecido, mas uma névoa permanente envolvia o labirinto. Entrei tão depressa como quando o Troy era vivo, e eu costumava correr da casa de pedra para a mansão e vice-versa. Fechei os olhos e inalei o perfume forte das sebes esplendorosas que inundava os corredores. Então, entrei no labirinto e percorri o caminho batido, que sabia que me levaria até à casa do Troy. Andei tão depressa quanto pude e, quando finalmente cheguei ao outro lado e se me deparou a casa, estava ofegante. A nuvem grande saiu da frente do Sol e o mundo à minha volta voltou a brilhar.

Olhei para os corredores escuros do labirinto, sentindo-me como se tivesse passado da escuridão para a luz, da tristeza para a alegria, do desespero para o optimismo. Sim, o labirinto impedia as pessoas de passear nele, pois estas tinham medo do seu mistério, mas eu já tinha percebido há muito tempo que é preciso arriscar para se conseguir encontrar uma alegria mais profunda e mais verdadeira. Arranjar coragem fazia parte disso, mas no fim valia a pena. A casa estava como da última vez que a vira, parada no tempo, bem tratada, mas sempre vazia e silenciosa. Pus os braços à volta do peito e dirigi-me lentamente para a porta. Hesitei um bocadinho. Porque voltara ali? Porque estava a atormentar-me daquela maneira? Porque concordara em viver na Mansão Farthinggale, onde sabia que estas recordações permaneceriam vivas e verdadeiras? Andava a atormentar-me com os sons, as paisagens e os cheiros. Andava a castigar-me por pecados que não tinha cometido.

Ou tinha? Não teria pecado ao amar o Troy sendo ele meu tio? Não teria pecado ao encher o seu coração de esperanças, e ao permitir que ele mais tarde fosse despedaçado, deixando-o a sofrer sozinho? Não teria pecado ao não estar presente no dia em que ele mais precisara de mim, no dia em que ele cavalgara para o mar a fim de afogar o seu desespero? Tinha dedilhado as cordas do seu coração e, depois, deixara-o tão inutilizado e silencioso como o piano da sala de música. A sua música permanecia apenas na memória; a sua utilidade tinha desaparecido.

Sim, ir àquela casa era outra forma de continuar o tormento; contudo, sentia-me como que conduzida por um fantasma apaixonado. Abri de novo a porta e entrei na casa que um dia fora o cenário acolhedor e confortável do nosso amor e das nossas promessas.

Na última vez que entrara naquela casa, ficara tão chocada com o seu realismo que fugira. Esperava que tivesse acumulado pó, que parecesse perdida no passado; o Tony, porém, tinha-a conservado bem e estava igual a quando o Troy ainda era vivo. Continuava igual à última vez em que eu lá estivera. Como permanecera na minha memória, como a fechara no meu coração. Só que, agora, que não fugira e começara a pesquisar, sentia qualquer coisa diferente. Não estava apenas parada no tempo; estava também viva no presente. Reparei que todos os relógios antigos estavam certos. E como que para confirmar esse pormenor, o relógio do avô tocou a nora, e a sua caixa de música azul-clara com o formato da casa abriu a porta, e uma família minúscula apareceu e desapareceu ao som da melodia doce e persistente.

Passei pela mesa de trabalho, onde o Troy costumava fabricar as suas criações Tatterton. Em cima dela, estava mais ou menos meia dúzia de armaduras minúsculas e bocadinhos de prata em forma de S, com buracos nas pontas. Ao lado, encontravam-se pequenos parafusos, prontos a serem introduzidos. Quando as ligações de prata estivessem encaixadas, a carapaça articulada conseguiria mexer-se livremente. Eram tão pequeninas e graciosas. O que me pareceu estranho foi o facto de todas as peças estarem bem limpas e sem pó. Algumas das ferramentas que o Troy costumava usar estavam colocadas ao lado delas. Claro que não tinha a certeza por ter fugido tão depressa, mas parecia-me que, da outra vez, essas ferramentas estavam bem arrumadas nos nichos da parede. Não me lembrava de ter visto tudo aquilo em cima da mesa. Seria que o Tony tinha posto outro artesão a morar e a trabalhar na casa de pedra do Troy?

Decidi continuar a investigar. Para minha grande surpresa, vi que a cozinha estava cheia de comida, comida recente. Quando toquei na chaleira que estava no fogão, reparei que estava quente. Alguém tinha feito chá há muito pouco tempo. Por que razão o Tony deixara alguém servir-se daquela casa? Seria por isso que ele ficara tão na defensiva, quando eu lho perguntara, falando da tristeza que sentira com a morte do Troy? Para acabar rapidamente com a conversa?

Ao andar pela casa, reparei que havia mais peças novas, além da pequena armadura em cima da mesa. Vi populações medievais minúsculas que povoavam os pequenos castelos e as choupanas alinhadas nas prateleiras. Vi uma réplica de uma catedral anglo-saxónica pintada apenas parcialmente, com alguns vitrais ainda por colocar, e vi os rudimentos da cena de uma batalha feudal, com cavaleiros montados em cavalos e a segurar as suas lanças, enfrentando archeiros vestidos de verde.

No cimo de uma colina estava uma bela donzela, sem dúvida muito preocupada com o seu jovem cavaleiro. Duas aias estavam ao seu lado, a limpar os olhos com dois lenços de renda minúsculos.

Percebi finalmente o que o Tony estava a fazer, e isso gelou-me o coração. Levara-me a acreditar que conservara aquela casa como um santuário para o seu falecido irmão por sentimento de culpa, quando, na realidade, ele só pensava nos seus negócios, nos seus brinquedos preciosos. Havia descoberto alguém tão dotado como o Troy, e tinha-o instalado na casa deste! Estava apenas com medo que eu descobrisse e percebesse o que era mais importante para ele: fazer dinheiro e mais dinheiro. Coisas que eu pensara serem tão sagradas e importantes para ele como para mim, afinal não o eram. Senti-me como uma esposa que descobriu que o seu pai deu a roupa e as jóias todas do seu falecido marido.

Furiosa, virei-me para correr dali para fora. Tencionava voltar para Farthy e esperar pelo Tony, e confrontá-lo com a minha descoberta. Porém, houve outra coisa que me chamou a atenção: a porta da cave estava semiaberta. Olhei para ela por um momento e depois sorri. Claro, pensei eu. Quem quer que fosse que o Tony tivesse contratado e autorizado a usar a casa do Troy devia ter-me ouvido chegar, e tinha-se escondido na cave. Se calhar, o Tony tinha-o avisado acerca de mim, depois de termos conversado sobre a casa, e tinha-lhe dito para evitar enfrentar-me. No entanto, decidi confrontar-me com essa pessoa, para que as provas não pudessem ser negadas.

Fui até à porta e comecei a descer as escadas; já me tinha esquecido de como aquele quarto grande e sem janelas e os túneis que ligavam à casa principal eram escuros; por isso, voltei para cima e fui buscar uma vela, ao sítio onde sempre tinham estado, só regressando à cave nessa altura, decidida a expor aquilo que eu considerava uma violação ultrajante.

O clarão da pequena chama amarela tremia nas paredes da cave. Quando me voltei da esquerda para a direita, a iluminação fraca espalhou-se pela escuridão, mostrando o chão e as paredes do quarto escuro e vazio. "Deve ter-se refugiado nos túneis", pensei eu, e prossegui. Fui andando lentamente, lembrando-me de como costumava ficar impaciente com o ritmo lento que mantinha a vela acesa. A primeira vez que o Troy me mostrara os túneis, contara-me que quando era pequeno tinha medo de os percorrer. Cada vez que havia uma curva, ele esperava ver monstros ou fantasmas saídos dos bolsos da escuridão.

Todavia, naquele momento, eu não esperava monstros nem fantasmas; esperava, sim, um homenzinho assustado, com medo de perder o emprego, com medo de que, se eu o apanhasse, o Tony ficasse zangado e o despedisse. Eu sabia que não era justo descarregar a minha fúria no homenzinho, mas não conseguia controlar-me. Aquela casa e todo o seu recheio faziam parte do Troy. Era extremamente penoso pensar num estranho a dormir na sua cama e a mexer nas suas coisas.

Ouvi, com bastante clareza, o som de passos um pouco mais à frente. Quem quer que fosse estava a andar muito depressa, fugindo ao alcance da luz da minha vela. Baixei a vela quase até ao chão e vi marcas de pegadas. Algumas pareciam recentes, outras podiam ser da noite anterior.

Quando olhei à minha volta, reparei que já tinha percorrido quase metade do caminho dos túneis. Quanto tempo mais iria aquilo durar ainda? Seria que o fugitivo não sabia que não podia evitar ser descoberto? E não tinha medo de andar assim na escuridão dos túneis? Ou, se calhar, desde que eu voltara para Farthy, o Tony e o seu empregado novo se encontravam às escondidas aqui, nos túneis.

- Quem quer que você seja - chamei eu -, é melhor aparecer. vou persegui-lo até Farthy e isso é pior para si. Apareça. Eu sei que esteve na casa de pedra, eu sei que trabalha para o Tony.

Esperei e escutei. Estava tudo muito silencioso.

- Está a ser parvo - insisti. - Eu vi o trabalho que fez, eu sei o que está a fazer. Já não se justifica continuar a fugir.

Esperei mais um bocado. Ainda não.

- Está bem, seja como você quiser - gritei eu. Continuei para a frente.

Tapei a chama com a mão esquerda para a proteger do aumento de vento provocado pelo estugar dos meus passos, dobrando as esquinas sem hesitar. Sabia onde estava e sabia a distância que ainda tinha de percorrer até chegar a Farthy. Chegaria ao degrau inferior de uma escada íngreme e estreita, que levava às traseiras da entrada da cozinha. O pequeno-almoço já tinha terminado. Se já estivesse tudo arrumado, podia já não estar ninguém na cozinha, pensei eu. O empregado secreto do Tony podia escapulir-se para dentro de casa e sair por uma das entradas laterais, antes de o conseguir apanhar. Decidi rapidamente não me importar com a vela e apressei-me ainda mais, lembrando-me com exactidão das curvas dos túneis. Estava escuro como breu mas, com as paredes como guia, segui com grande rapidez. Quando me aproximei da última curva, parei. Alguém estava a poucos metros de mim, na escuridão, perto de uma das portas que não levavam a lado nenhum.

Ele não se movia e eu nem sequer consegui ouvi-lo respirar. Parei e escutei. Ele parecia ser apenas mais uma sombra no meio da escuridão, quase imperceptível. No entanto, os meus olhos, que já se tinham habituado à falta de luz, aperceberam-se claramente da silhueta negra à minha frente. Parecia estar a pressionar-se contra a parede, com a esperança de que eu passasse simplesmente por ele. A forma era-me vagamente familiar. Fez-me recordar a figura escura que estivera no meu quarto, na noite anterior.

- Quem é? - murmurei eu. - Quem é você? Vive na casa do Troy?

Houve um longo silêncio, e depois ouvi-o responder, também num murmúrio. - Sim - afirmou.

O som era-me tão familiar que o meu coração começou a bater com mais força. Mexi nos fósforos com a mão esquerda, com os dedos a tremer tanto que não consegui acender sequer um para o chegar ao pavio da vela.

- Vá-se embora - murmurou ele arrastadamente, com a intenção óbvia de disfarçar a voz. - Não acenda a vela. Vá-se embora.

Vi-o a levantar os braços como que a bloquear-me a visão. Então, voltou-se e entrou num túnel, que eu sabia não ter saída. Hesitei. Uma parte de mim dizia-me para fazer o que ele tinha pedido, voltar-me e ir-me embora. Às vezes, não devemos desafiar o fado e o destino, dizia-me essa voz interior. Somos, por vezes, demasiado orgulhosos e decididos para o nosso bem. Não seria a primeira vez que eu chegava a uma encruzilhada, e escolhia o caminho mais perigoso.

Porém, foi mais do que simples teimosia o que me fez avançar. Foi mais do que raiva em relação ao Tony. Não, havia outra parte de mim que agora não queria saber de prudência. Uma parte que tinha estado adormecida, arrumada numa prateleira do meu coração. Senti esse alter ego abrir os olhos e mexer-se. Senti o seu coração a bater novamente com o meu. Senti-o a surgir e a fundir-se comigo e, sem mais hesitações, tirei um fósforo e acendi a vela que iria guiar-me através da escuridão da minha própria mente e conduzir-me a uma resposta.

Avancei para o fim escuro do túnel. A vela levantava a cortina de escuridão à minha volta deixando-me passar, mas sabendo que esta voltava a descer como uma porta de ferro atrás de mim. Não consegui deixar de pensar nas histórias de fantasmas e de antepassados perturbados do Rye Whiskey. Não havia maneira melhor de eles saírem das suas sepulturas agitadas do que através dos túneis secretos. Todos os meus medos de infância vieram ao de cima. Teria o espírito perturbado do tom encontrado o caminho para aquelas veias escuras da terra? Iria eu entrar no bolso da escuridão que também abrigava o espírito jovem da minha mãe? Olhei para trás, para a parede do escuro. Seria já demasiado tarde para mudar de opinião? Teria passado já a fronteira?

Fiz a primeira curva. O túnel continuou mais um bocado, e depois apareceu à minha frente a parede que o Tony mandara construir para impedir a entrada de estranhos. Onde é que estava a figura de silhueta escura que eu tinha abordado há momentos atrás? Seria que já passara por ele? Abrandei o ritmo e levantei a vela mais alto, mantendo-a afastada, mais ou menos à distância de um braço.

De repente, senti uma brisa à minha direita, e voltei-me no momento exacto em que ele saiu das sombras escuras. Puxei a vela para baixo, e ele fechou o punho à volta da pequena chama para apagar a luz.

Chegou, porém, tarde de mais. O clarão iluminara-lhe o rosto. O calor no meu próprio rosto também deve tê-lo feito brilhar. Os seus olhos permaneceram na escuridão mesmo depois de a vela ter sido apagada, olhos que eu reconheceria imediata e eternamente.

- Troy! - gritei eu.

- Heaven - sussurrou ele.

E, por um momento, fiquei sem saber se se me tinha deparado um fantasma ou uma ilusão da minha imaginação assustada e perturbada.

Acendi a vela novamente para descobrir a verdade.

 

TROY

- Não és um dos fantasmas do Rye Whiskey - sussurrei eu. Estendi a mão lentamente e toquei-lhe no braço. Uma brisa suave e leve atravessou os túneis, fazendo a pequena chama dançar num palco de escuridão. A luz da vela estremeceu no seu rosto. Os seus olhos escuros normalmente profundos como a lagoa de uma floresta estavam ainda mais escuros e profundos.

- Não - respondeu ele -, embora haja alturas em que me sinto como um fantasma. - Um leve sorriso brincou nos seus lábios perfeitamente desenhados. Estava com uma camisa de seda branca e calças pretas justas, mas na escuridão, com o estremecimento da chama pequena, a camisa branca adquiria uma tonalidade amarelada.

- Não compreendo. O que é que aconteceu? O que é que está a acontecer? - Apercebi-me do tom histérico da minha voz. Ele também se apercebeu, pois deu-me a mão gentilmente.

- Vamos voltar para a minha casa - disse ele, suavemente -, e eu conto-te tudo.

Segui-o através das passagens escuras, sentindo-me como se tivesse descido a alguma terra dos mortos, e o tivesse salvo das garras do sono eterno. Juntos, estávamos a subir, a regressar à terra da luz e da vida. Enquanto caminhávamos em silêncio, os nossos passos ecoavam atrás de nós e caíam na escuridão esponjosa, que absorvia o som todo e rapidamente o abafava. O meu coração batia com tanta força que eu tinha a certeza de que ele sentia as vibrações nos meus dedos. Para mim, era como se estivesse a bombear vida para dentro dele, ressuscitando-o a cada momento que passava. Chegámos rapidamente à cave da casa do Troy. Ele recuou, para me deixar subir as escadas primeiro. Olhei para trás e hesitei, com medo de o perder, com medo de que os poderes da escuridão, quando eu largasse a mão dele, o puxassem para os túneis e para o passado. Porém, ele permaneceu mesmo atrás de mim, e fechou a porta depois de termos entrado em casa.

- Antes de chegares estava a pensar beber um chá - disse ele, num tom de voz casual. Era como se os últimos dois anos tivessem desaparecido, e esta fosse apenas mais uma das minhas visitas amorosas. - Também queres um?

- Sim, se fazes favor - respondi eu. Sentei-me à mesa rapidamente, sentindo as minhas pernas a vacilar. Ele foi até ao fogão e acendeu o lume da chaleira. Observei-o a ir buscar as chávenas e os pires e os saquinhos de chá, sem olhar para mim, até trazer tudo para a mesa. Estremeci, e a minha expressão de dor e confusão deve tê-lo perturbado.

- Pobre Heaven - murmurou ele, abanando a cabeça -, como eu esperava evitar este momento e como ansiava por ele, ao mesmo tempo.

- Oh, Troy! - exclamei eu. - Porquê?

- Tu sabes porquê, Heaven - respondeu ele, roucamente. - No teu coração sempre soubeste. Mas eu digo-te de qualquer maneira.

Suspirou e sentou-se na mesa, à minha frente. A gola da camisa de seda branca estava tão aberta que eu conseguia ver umas sombras de pêlos escuros no peito. Durante um longo momento, limitou-se a olhar para a mesa, de cabeça baixa. Então, suspirou profundamente, passou os dedos compridos pelo seu cabelo ondulado e volumoso, e levantou os olhos agitados para mim. Apesar de não parecer adoentado, encontrava-se mais magro e mais pálido do que eu me lembrava. O cabelo estava ligeiramente mais comprido, com as pontas de trás encaracoladas, como sempre. Parecia ter estado afastado da luz do Sol e da vida durante anos. O meu coração gritava por ele, e eu tinha vontade de me aproximar para o reconfortar e abraçar.

- Foi aqui mesmo, aqui nesta mesa que eu te escrevi aquela última carta - começou ele -, contando-te como a Jillian tinha cá vindo dizer-me que eras filha do Tony e minha sobrinha, contando-te como nessa altura me apercebera que o nosso amor não tinha futuro. Disse-te que me ia embora, para aprender a viver sem ti. Pensei que o conseguia fazer e que, eventualmente, acabaria por voltar para Farthinggale, para continuar a minha vida como ela era antes de teres chegado, por muito monótona que fosse.

A chaleira apitou como que para confirmar a sua primeira frase. Ficámos calados enquanto ele a foi buscar e serviu a água quente. Mergulhei nela o meu saquinho de chá, desejosa de deitar o líquido quente no meu interior, para combater o gelo que se tinha acumulado. Em seguida, o Troy sentou-se e continuou.

- Como provavelmente te disseram, voltei para Farthinggale enquanto te encontravas naquela viagem ao Maine, logo depois de teres acabado a universidade. Pensei que já tinha chegado a altura de voltar a Farthy e de me enfiar, outra vez, no trabalho, esperando pacientemente pelo meu vigésimo nono aniversário e pelo que eu pensava ser a minha morte inevitável antes de atingir os trinta anos. Uma morte - declarou ele, levantando os seus olhos cansados e atormentados para mim -, confesso, que desejava. Para mim, a morte representava uma porta para um outro mundo, a fuga da tristeza de viver sem ti. Pois, quando te perdi, uma grande parte de mim morreu. Já não vivia com receio da morte, mas sim calmamente à espera.

Parou para beber o chá, e olhou lá para fora uns instantes, com um sorriso terno e sereno no rosto.

- Como sempre, o Tony pensou que conseguia comprar o desaparecer da minha depressão. Não o recrimino por isso. Na verdade, até sinto pena dele, pensando na frustração que ele deve ter sentido sempre. Organizou uma festa enorme, só para me animar e para afastar o meu pensamento do aniversário cada vez mais próximo. Garantiu-me que ia arranjar maneira de eu não ficar sozinho nem um minuto. - Riu-se.

- Tenho de reconhecer que ele encontrou cá uma rapariga... Ela parecia quase uma sanguessuga. Tive de me esquivar para conseguir ir à casa de banho.

"bom, de qualquer maneira - continuou ele -, ela não aguentou a minha indiferença. Aparentemente, estava habituada a ter sempre êxito com os homens, e eu estava a mostrar-me uma frustração muito incómoda. Tornou-se até bastante insultuosa. Não interessa o que ela disse. Eu também já não estava a ouvi-la, e só queria ver-me livre de tudo e de todos. Percebera que tinha sido um erro voltar para Farthy, não conseguia viver aqui, ao pé de ti, sem te ter. Já estava a ser perseguido pelas recordações da tua voz. Via-te sempre ao pé de mim. Era como se nenhuma das raparigas da festa valesse nada, porque não eras tu. Era enlouquecedor, e a Jillian sabia disso. Todas as vezes que olhava para ela, tinha um sorriso sádico de satisfação na cara.

"Eu não tinha planos, nunca tive a intenção de fazer o que fiz. Acho que me dirigi para os cavalos levado pelas boas recordações dos nossos passeios mas, quando cheguei às cavalariças, lá estava o cavalo da Jillian, a olhar para mim com o mesmo ar atormentador e de desafio da Jillian. Impulsivamente, decidi montar o Abdulla Bar e mostrar ao cavalo que podia ser dominado por outra pessoa que não a Jillian.

"Eu sei que foi parvoíce e muito imaturo da minha parte, mas estava zangado, furioso com o meu destino, com raiva de um mundo que deixava estas coisas acontecerem. Porque me estava destinada tanta tristeza?, pensava eu. Por que razão, depois de ter finalmente descoberto o amor e a felicidade, estes me eram tirados? E porque é que o destino tinha dado à Jillian o poder de o fazer? A injustiça de tudo aquilo era demasiado devastadora. Já não me importava com nada, muito menos com o meu bem-estar.

"Selei o cavalo e irrompemos das cavalariças em direcção à praia. A minha raiva encontrou o seu par no cavalo. Este galopava como se, também ele, estivesse a fugir da vida, como se fosse o veículo escolhido para me transportar desta vida para a outra. Não vês... - prosseguiu ele, com algum entusiasmo nos olhos, quando se inclinou para mim. - Enquanto andava a cavalo, sentindo o vento nos cabelos, o terror nos seus olhos grandes e selvagens, convenci-me de que o cavalo estava destinado a levar-me deste mundo para o outro, desta vida de desespero. Por isso, virei deliberadamente o cavalo na direcção do mar, e o cavalo avançou desafiadoramente, como se também ele se quisesse suicidar.

"Entrámos pelo oceano até as ondas nos levantarem e atirarem, cavalo e cavaleiro, para as profundezas. Vi o animal a lutar um pouco mais atrás, ainda de olhar zangado e desafiador, acusando-me, desta vez, de o ter induzido para aquela morte horrível, e, por momentos, cheguei a ter pena dele, e a odiar-me. Não conseguia tocar em nada sem o destruir ou fazer-lhe mal, pensei eu. Estava destinado a ser varrido pelo oceano.

"Fechei os olhos - continuou, encostando-se na cadeira e fechando os olhos, enquanto falava -, desejoso e pronto para aceitar a morte inevitável.

Abriu os olhos, enevoados com presságios.

- Mas o oceano não pode ser controlado nem obrigado a realizar os desejos do homem. Não é escravo de ninguém, nem de alguém tão desesperado e decidido a usá-lo como instrumento de morte. Sempre que me afundava, as ondas levantavam-me. Resignei-me e flutuei. Fui atirado e levado.

Perdi as minhas botas. Vi o Abdulla Bar ser levantado e atirado para a margem, até conseguir tocar no fundo e arrastar-se para a praia.

"Fechei os olhos e esperei que o oceano poderoso, as ondas grandes que tantas vezes ouvira e observara sozinho, à noite, fascinado com a sua beleza e força, me levassem para a sua fria escuridão.

"Mas em vez disso fui arremessado para todo o lado, até perder a consciência. Quando acordei, estava um bocado longe, estendido na praia, vivo, tendo sido rejeitado o meu pedido de uma morte rápida e indolor. Enquanto permanecia deitado com pena de mim próprio, apercebi-me, de repente, de que o oceano me havia proporcionado, ao menos, algum alívio. Tinha-me dado a oportunidade de ser dado como morto. Podia deixar a minha identidade e a minha vida em Farthy para trás. Tinha conseguido, de certa maneira, fugir de parte do meu desespero.

"Então, reuni o que restava de mim e, sem contar a ninguém o que me tinha acontecido, nem sequer ao Tony, principalmente a ele, voltei às escondidas à minha casa pela última vez, assim pensava eu... Agarrei em algumas coisas que queria e precisava, e desapareci na noite.

O Troy encostou-se para trás, como se já tivesse explicado tudo. Os meus sentimentos de choque e espanto foram rapidamente substituídos por sentimentos de raiva. Oh, meu Deus! A dor que ele me causara ao deixar-me acreditar que estava morto. E agora era tarde de mais. Tarde de mais para ficarmos juntos! Como é que me deixara sofrer tanto se estava vivo? Vivo, o tempo todo!

- Então... e a dor que provocaste ao fazer-nos acreditar que estavas morto? Não sabes o que me fizeste?!

- Acreditava que não era nada comparada com a dor que sentirias toda a tua vida, sabendo que eu estava perto, sabendo que nunca poderíamos ser amantes. Nada comparado com a dor de saberes que eu estaria a passar pelo mesmo. Percebi que estava a ser um pouco egoísta, mas por outro lado era melhor assim.

"Era melhor assim - repetiu ele, abanando a cabeça.

- Não vês, Heaven, que assim refizeste a tua vida e conseguiste coisas importantes? Se calhar, se pensasses que eu ainda estava vivo, se eu tivesse continuado a viver aqui na casa de pedra, nunca terias deixado Farthy. Se calhar estarias como a Jillian. Não sei. Pensei que estava a fazer o que era melhor para nós. Espero que também venhas a achar o mesmo. Seria demasiado penoso que agora me odiasses - afirmou ele. Os seus olhos escuros estavam cheios de medo que isso acontecesse.

- Eu não te odeio, Troy - repliquei. - Não consigo odiar-te. Só odeio o que aconteceu. O que é que fizeste depois de teres abandonado a praia?

- Andei a viajar. - Recostou-se e pôs as mãos por trás da cabeça enquanto falava, recordando e contando a sua existência secreta. - Fui a Itália e estudei os grandes mestres da arte e da arquitectura. Depois fui a Espanha e a França. Procurei alívio nas viagens e em distrair-me. Durante uns tempos ainda resultou. Procurei cansar-me andando de um lado para o outro até que... - Fez uma pausa e endireitou-se outra vez na cadeira, inclinando-se de novo para mim. - De repente, uma certa noite, em Inglaterra, acordei. Estava hospedado numa estalagem perto de Dover Beach. Tinha lá ido porque não conseguia deixar de pensar naquele poema do Matthew Arnold, lembras-te? Li-o uma vez para ti. Alguns versos perseguiam-me.

"Ah, amor, vamos ser verdadeiros

Um com o outro! Pois o mundo, que parece

Estender-se à nossa frente como uma terra de sonhos,

Tão variada, tão bonita, tão nova,

Não tem, na realidade, nem alegria, nem amor, nem luz,

Nem certezas, nem paz, nem consolo para a dor..."

"Parecia tão verdadeiro, especialmente para nós. Permaneci deitado na minha cama sem colcha, ouvindo o barulho do mar, e pareceu-me ouvir a tua voz. Pareceu-me ouvir-te chamar do outro lado do oceano, e pensei que já não se justificava continuar a fugir. Já não conseguia fugir. De ti, da recordação do teu rosto, da tua voz e do teu toque.

"Decidi nessa noite voltar para desafiar a natureza e os deuses, se fosse preciso. Estava a voltar para ti, para te implorar que voltasses para mim. Estava disposto a viver exilado, a desistir de tudo só para estarmos juntos, mesmo que fosse apenas para te sentir nos meus braços, enquanto os ventos do Inverno sopravam à volta da minha casa. Até isso seria suficiente, pensei eu, porque se estava destinado a morrer antes do trigésimo aniversário, como sempre receara, morreria nos teus braços. Onde pertencia.

- Oh, Troy, querido e amado Troy. Porque não escreveste? Porque não tentaste entrar em contacto comigo? - exclamei eu.

- Já não interessava. Quando finalmente me decidi a fazer isso, já tu estavas noiva do Logan.

- Mas como é que sabias? - perguntei. Ele sorriu e acabou de beber o chá.

- Estive em Winnerrow pouco antes do teu casamento. Vim disfarçado e cheguei a estar na loja dos pais do Logan. Ouvi as conversas e soube do vosso noivado. Por isso, dei meia volta e fui-me embora. Mas em vez de voltar para uma vida incógnita, sempre a viajar, decidi regressar à minha casa até ao fim dos meus dias e, a partir daí, estive sempre aqui.

"Assisti ao teu copo-d'água em Farthy por trás de uma das sebes do labirinto. Estavas tão bonita e o Tony estava tão feliz. Até te segui a ti e ao Logan pelos jardins durante a vossa lua-de-mel, observei-vos de longe, sonhando que era eu que te tinha nos braços, que era a mim que beijavas. Por uns instantes, a minha imaginação trabalhou tão bem que cheguei a sentir-te mesmo ao meu lado.

"Eu sei que não o devia ter feito - concluiu ele, rapidamente. - Perdoa-me. Mas não o consegui evitar.

- Claro que te perdoo. Imagino como deve ter sido difícil ver-me sem eu te ver.

Oh, o meu Troy a ter de aguentar ver-me casar com o Logan! Não conseguia sequer pensar nisso. Porque é que ele não aparecera, porquê?

- Foi difícil, penoso e difícil. - Os seus olhos brilharam de vida e luz pela primeira vez. - Queria que me visses. Estava a ganhar coragem para isso - disse ele. - Ontem à noite, como sabia que o Logan não estava, fui ao teu quarto depois de teres voltado de onde tinhas ido com o Tony.

- Eu apercebi-me de qualquer coisa, ontem à noite, embora não soubesse que eras tu. Acordei e perguntei quem era, porque vi a silhueta de um corpo na escuridão.

Observou-me por uns minutos.

- Porque é que vieste aqui hoje? - perguntou ele, suavemente. - Pensaste que podia ser eu?

- Não. Senti-me como se estivesse hipnotizada, e não sabia que ia encontrar-te. Quando percebi que estava cá alguém, pensei que fosse alguém que Tony tivesse contratado para trabalhar aqui. Pensei que ele me tinha mentido, e quis enfrentar essa pessoa, e então, de repente, tive a sensação de estar na presença de algo espiritual, talvez na presença de um fantasma.

- Não sou um fantasma, Heaven. Já não. - Recostou-se e observou-me. - Mudaste, estás mais crescida e sensata.

A tua beleza amadureceu. Tremo todo só de estar tão perto de ti, de ouvir mesmo a tua voz.

Inclinou-se para a frente e estendeu a mão, para tocar no meu rosto. Eu não me afastei, mas não senti os seus dedos na minha pele. Voltou a recostar-se lentamente.

- Sinto-me como um rapazinho fascinado com o fogo, querendo tocar-lhe, mesmo sabendo que isso só vai magoar-me.

- Oh, Troy! - exclamei. Lágrimas quentes saltaram-me dos olhos e escorreram em ziguezague pela cara. Ele estendeu a mão de novo, e desta vez senti a ponta dos seus dedos a acariciarem-me a pele. Fechei os olhos.

- Quantas vezes é que tenho de te perder, Heaven? Será isto mais uma maneira de o destino me atormentar?

Encostei-me à cadeira, sem conseguir falar. Ele deu-me um lenço e eu limpei a cara. O meu fungar trouxe-lhe um sorriso aos lábios e, depois, uma risada curta e suave. Abanei a cabeça, apercebendo-me do que tudo isto significava.

- Vamos para a sala - disse ele -, ficamos mais confortáveis.

Concordei com a cabeça e fui para o sofá. Tal como nos velhos tempos, ele estendeu-se no chão e olhou para mim, com as mãos debaixo da cabeça.

- Troy - disse eu, abanando a cabeça -, nem consigo acreditar que isto não é um sonho, que estás mesmo aí, a olhar para mim como costumavas fazer.

- Eu sei.

- Quando é que o Tony soube que estavas vivo? - perguntei.

- Na realidade, só muito recentemente. Quando voltei, fiquei muito surpreendido por encontrar a casa de pedra tal como estava quando me fora embora. Compreendi que o Tony se recusava a aceitar a minha morte. Que ironia, pensei eu, e claro que me apercebi da dor que lhe causara. O que só tornou mais difícil ir ter com ele e contar-lhe o meu estratagema. Tentei imensas vezes mas sem sucesso.

- Andaste a vaguear pela casa - afirmei eu, percebendo agora o que os criados queriam dizer, que o Rye Whiskey não tinha imaginado quando pensou que havia espíritos dos mortos a assombrar os patamares escuros de Farthy.

- Andei. Até me sentei ao piano, com a esperança de que ele me encontrasse lá, mas quando não me descobriu rapidamente, perdi a coragem. Calculei que tivesse sido reconhecido pelos criados, mas achei que a visão do meu rosto e do meu corpo escurecidos a flutuar pelos corredores mal iluminados os assustaria.

- Nem imaginas quanto - comentei eu, abanando a cabeça.

- Até que, uma noite, quando estavas em Winnerrow, deparou-se-me a Jillian mesmo à porta dos seus aposentos. Pelos vistos, a enfermeira tinha adormecido e ela estava à vontade para passear. Nunca esquecerei o olhar dela. - Sentou-se, recordando aquele momento. - A cara dela pareceu envelhecer perante os meus olhos. Perdeu qualquer juventude que a sua loucura tivesse conservado. "Não", disse ela, "não foi culpa minha. Não me podes acusar de nada. Eu fiz o que tinha de fazer."

O Troy olhou para mim com uns olhos cheios de dor e tristeza. Era piedoso e sensível no que dizia respeito a magoar as outras pessoas, mesmo aquelas que o magoavam deliberadamente. "Oh, Troy", pensei eu, "és demasiado bom para este mundo. Não admira que tenhas sido sempre perseguido por receios da morte."

- Eu estendi-lhe a mão e chamei-a - continuou. - "Jillian, está tudo bem", disse eu, mas ela estava aterrorizada e fugiu de mim. Depois disso penso que ela me viu uma vez da janela a passar pelo labirinto.

- Mas o Tony continuava sem saber?

- Pouco tempo depois, ele veio à casa de pedra. Penso que a Jillian lhe deve ter dito qualquer coisa ou à enfermeira, e fê-lo pensar em mim e em vir aqui. Mesmo tendo mandado conservar a casa, pelos vistos não conseguia vir até aqui.

- Ele considerava-a um santuário - murmurei eu, e ele concordou com a cabeça.

- Mas nesse dia veio. Ouvi-o aproximar-se. Não consegui ir recebê-lo à porta. Escondí-me naquele armário, como um cobarde. Observei-o a entrar e a olhar em volta, a sua cara forte e altiva a perder as forças. Foi até à cadeira de balouço que está ao pé da lareira, e parou lá, com a mão apoiada no encosto, balouçando-a suavemente e olhando para ela, imaginando-me lá, com certeza. Depois virou-se e dirigiu-se para a porta.

"Mas, sabes, desde que chegara, não conseguira evitar... Tinha começado trabalho novo. Parecia ser o mais natural para fazer. Eu estava na minha casa. As ferramentas estavam cá, os materiais também. Tinha algumas ideias, por isso pus-me a trabalhar. Ele viu as coisas novas e foi para o pé delas. Por uns instantes, agarrou nelas, como se fosse um garimpeiro que tivesse finalmente descoberto pepitas. Depois, levantou a cabeça e olhou em volta. "Troy", chamou ele, "Troy".

"Todos os receios que tinha desapareceram. Vi a felicidade estampada na cara dele e não lhe consegui negar a verdade por mais tempo. Conheces a minha relação com o Tony, desde que a minha mãe morreu antes de eu completar um ano, e o meu pai, antes de eu completar dois. Desde que me lembro, o Tony foi o meu único pai. Era o meu mundo. Eu adorava-o e ele a mim, protegia-me, preocupava-se com as minhas doenças. As coisas só mudaram entre nós depois de ele ter casado com a Jillian. Eu tinha ciúmes dela e ela de mim.

"Mas, ao vê-lo ali, com a perspectiva de eu estar vivo estampada na cara, não consegui deixar de me arrepender de me ter contido tanto tempo. Saí do armário.

- E o que é que ele fez? - perguntei eu, quase sem respirar.

- Desatou a chorar e abraçou-me. Ficámos assim durante muito tempo e, depois de nos acalmarmos, sentámo-nos e eu contei-lhe a mesma história que te contei a ti.

- E qual foi a reacção dele?

- Ao princípio, ficou zangado, como tu ficaste. Fartei-me de pedir desculpa e de tentar fazer com que ele compreendesse as minhas razões. Acabou por compreender.

- Mas ele não te levou a casa nem me disse que estavas vivo.

- Pois não. Nós fizemos algumas promessas um ao outro.

- Promessas?

- Claro que ele me contou tudo sobre ti, contou-me do teu casamento e como o Logan estava a começar a fazer parte da Companhia de Brinquedos Tatterton, e como te tinha convencido a voltar para Farthy e fazer novamente parte da família. Ele está apavorado com a ideia de tu o abandonares. E eu até percebo. Se o abandonares, com o que é que ele fica? A Jillian está louca de todo e eu, eu estou cada vez mais convencido de que não vou conseguir ficar aqui muito mais tempo.

- Então, o que é que prometeste? - perguntei eu.

- Manter-me longe de ti, para não estragar o teu casamento e a tua vida em Farthy. E, na realidade, Heaven, por muito que te desejasse, que quisesse falar contigo, que te quisesse ver outra vez, também achei que era o melhor. O Tony prometeu não contar a ninguém que eu estava vivo, não foi só a ti, para eu conseguir continuar com a minha vida nova.

"Fizemos planos para eu me estabelecer noutro sítio qualquer, e trabalhar com um nome diferente. É penoso para ambos, mas também sabemos porque é que os sacrifícios têm de ser feitos.

Olhou para mim, os olhos implorando compreensão. Acenei lentamente com a cabeça, apercebendo-me de inúmeras coisas ao mesmo tempo.

- Estou a ver - declarei eu. - Então, ele já percebeu que quando a Jillian descrevia os fantasmas isso não era fruto da sua loucura.

- Sim.

- Por isso é que ele não estava muito preocupado com a mudança dela. Não entrou em pânico porque sabia que ela, na realidade, não estava pior. E, realmente, a receita dos calmantes, nessas circunstâncias, até foi o melhor. Impede-a de continuar a falar de ti, aprisiona-a na sua própria loucura.

- Não me importo nada! - exclamou ele, num tom invulgar de desprezo. - A Jillian nunca gostou de mim. Estava desejosa de fazer alguma coisa que me magoasse profundamente. O que lhe aconteceu foi justiça perfeita. Não quero causar-lhe mais dor, mas também não quero ter pena dela. E acho que o Tony pensa da mesma maneira.

- Talvez - respondi eu. Olhámos um para o outro. Eu tinha sido mais uma vez impelida para o mundo do Troy, com a realidade muito para lá da porta. Ali, na sua casa segura, aconchegada e acolhedora, para mim só havia beleza e carinho. Os seus olhos escuros e suaves acariciaram-me e inundaram o meu rosto de calor. Senti os meus lábios a serem atraídos para os dele, mas resisti. A imagem do Logan dançava à frente dos meus olhos. Logan! O meu marido, o meu amor verdadeiro e eterno.

- Oh, Heaven! - exclamou o Troy, como se tivesse lido os meus pensamentos e tivesse compreendido. - Porque é que para nós sermos felizes, tantos outros têm de ser infelizes?

- Não sei. É como se o destino estivesse a brincar com os nossos corações e com as nossas vidas. - Levantei-me rapidamente e fui até à janela que dava para o labirinto, com o coração atormentado pelo meu amor por dois homens. Permanecemos durante muito tempo em silêncio. - O Logan está tão entusiasmado com a vida nova - continuei eu. - Está em Winnerrow a supervisionar a construção da fábrica nova.

- O Tony contou-me tudo sobre isso. Parece um projecto esplêndido. Até já pensei em contribuir com um ou dois brinquedos novos.

- A sério? - Voltei-me para ele. As fibras do meu coração estremeceram. Contive as lágrimas e engoli os gritos que ameaçavam subir pela minha garganta latejante. - O Logan adora-me - disse eu. - Apercebe-se da minha disposição e dos meus sentimentos. Ele encontrava-se junto de mim quando eu mais precisei de amor e carinho. Ele esteve sempre presente.

- Eu sei - respondeu o Troy. - Heaven, sabes que eu não queria fazer nada que te trouxesse mais dor e sofrimento. Se não tivesse sido tão fraco, tinha-me ido embora antes de me descobrires e seguido o plano delineado pelo Tony. Como sempre, ele tinha razão. E a única coisa que consegui foi causar-te um tumulto emocional. Parece que não consigo deixar de magoar as pessoas de quem gosto.

- Oh, não, Troy. Não deves pensar assim - repliquei, indo para o pé dele. - Eu não estou a sofrer. Não vou sofrer. Prometo.

Acenou com a cabeça, embora ambos soubéssemos que o que eu dissera não era verdade. "Porque é que a vida exige que tenhamos de mentir tantas vezes a nós próprios?", interroguei-me. Não é irónico que, para ser feliz, tenhamos de nos enganar a nós próprios e viver numa ilusão?

- De qualquer maneira, vou partir em breve.

- Quando?

Levantou-se e caminhou lentamente até à porta da frente.

- Não vou dizer-te quando nem para onde vou. Não me obrigues a fazê-lo - pediu ele, e sorriu com doçura. - Vamos pensar nisto como um interregno, uma dádiva dos deuses, uns instantes em que enganámos a morte, e mais nada. Não contes ao Tony o que descobriste. Ele não precisa de saber que eu quebrei a minha promessa.

- Claro que não vou contar-lhe. Mas, Troy, estás mesmo à espera que me vá simplesmente embora e te esqueça?

- Não, não estou à espera que me esqueças, mas é melhor que penses em mim como dantes... desaparecido. É engraçado - prosseguiu ele, sorrindo abertamente -, o meu trigésimo aniversário já passou, e eu continuo cá. Afinal sempre tiveste razão ao ser optimista.

Olhámos um para o outro.

- Troy...

- Se te beijar nunca mais te deixo ir embora, e só vamos provocar mais tristeza e tragédia, pois vais desperdiçar uma vida e um casamento que prometem serem bons, substituindo-os por um amor proibido e pecaminoso, que só satisfaz os nossos prazeres egoístas. Sabes isso tão bem quanto eu - disse ele. Eu acenei com a cabeça e baixei-a. Ele esticou o braço e levantou-me o queixo. - Deixa-me recordar o teu sorriso acrescentou.

Sorri através das lágrimas e da dor, como um raio de luz quando está a chover. Ele abriu a porta da casa e eu saí. Permaneceu lá por uns instantes a olhar para mim, e depois fechou a porta. Senti o meu coração a despedaçar-se. As lágrimas saltaram em força. Cerrei os punhos e voltei-me, para correr pela entrada até ao labirinto, avançando para este e através dos seus corredores como um animal selvagem e louco, tal como o Abdulla Bar, com os olhos encarnados e enlouquecidos, avançara para o mar. Os meus gritos eram como longos e finos lenços a soar atrás de mim. Não parei até sair do labirinto e deparar-se-me Farthy.

Limpei as lágrimas com os punhos e prossegui, parando uma vez para olhar para a janela da Jillian. Ela lá estava, mais uma vez, a olhar para fora. Desta vez tinha um sorriso de satisfação estampado na cara. Na sua loucura, conhecia as verdades dolorosas, verdades que tinham começado há muitos anos, quando a minha mãe pressionara o seu corpo contra o do Tony, dando início a um amor pecaminoso, cujos tentáculos traiçoeiros, tal como as videiras ao longo das paredes de Farhty, rastejavam pelas vidas de todos nós e continuariam a fazê-lo até aos nossos últimos dias.

Pretendia ir direita aos meus aposentos e deitar-me; porém, o Curtis saudou-me com a notícia de que o Logan já tinha telefonado. Sempre emproado como um indiano de uma loja de charutos, o mordomo do Tony esperava na entrada, com o recado do Logan numa folha de papel. Tive a sensação de que ele estava ali desde que o Logan telefonara, à espera que eu voltasse.

- Mister Stonewall já telefonou duas vezes, Mistress Stonewall. A última vez foi há poucos minutos. Deu-me este número para a senhora lhe ligar.

- Obrigada, Curtis - respondi. Fui até à sala de estar, para usar o telefone antigo dourado e disquei o número. As minhas mãos tremiam. Atendeu um homem.

- Mister Stonewall? Sim, minha senhora. É só um momento - disse ele, com uma voz muito excitada. Ouvi um zumbido de actividade ao fundo: pessoas a falar alto umas com as outras, o bater de uma máquina de escrever, outro telefone a tocar e o barulho de bulldozers e de outros equipamentos de construção ao pé de uma janela próxima.

- Heaven, por onde é que andaste? - perguntou o Logan, assim que pegou no telefone.

- A passear pelos jardins - respondi eu, ansiosa por vê-lo, por senti-lo junto a mim, o meu marido, o meu porto seguro. - O que é todo esse barulho?

- Oh, este é o meu quartel-general - disse ele, com tanto orgulho na voz que consegui vê-lo a endireitar os ombros e a cabeça e a sorrir. - Coloquei uma pequena roulotte no terreno da fábrica. Tenho um assistente. Talvez te lembres dele, o Frank Stratton, o filho mais novo do Steve Stratton, da Companhia de Madeiras Stratton - acrescentou ele, ao não ouvir resposta.

- Pelos vistos, tens andado muito ocupado - disse eu.

- Está a ir tudo bem, Heaven. Gostava que tivesses vindo também, só para veres o progresso. Já estamos a bem mais de metade, e descobri dois artesãos nos Willies que conseguem esculpir a Nossa Senhora num ramo de vidoeiro.

- Que maravilha - comentei eu, tentando parecer entusiasmada, mas ainda estava em estado de choque. Só conseguia pensar no Troy. No Troy, vivo!

- bom, de qualquer maneira, telefonei só para te avisar de que não vou poder regressar hoje. Tenho de ficar até ao fim-de-semana. Temos demasiados problemas para resolver aqui.

- Oh, Logan!

- Eu sei. Nunca pensei deixar-te tanto tempo sozinha, mas toda a gente tem medo de tomar uma decisão sem o meu consentimento - disse ele, - Se calhar podias vir cá tu.

Reflecti sobre aquela sugestão. Se calhar, devia partir já, correr para o porto dos braços do Logan, onde o Troy seria apenas uma recordação difusa. No entanto... no entanto... eu queria estar em Farthy agora mais do que nunca.

- Não, é só mais um dia e meio - respondi eu, tentando parecer alegre e controlada.

- Estás aborrecida. Desculpa. Também é muito difícil para mim ficar longe de ti, mas estou sempre a repetir para mim próprio que isto tudo, na realidade, é para a Heaven.

- Estás a aprender a ter falinhas mansas, Logan Stonewall - disse eu. Ele riu-se.

- Falei com o Tony hoje de manhã. Ele contou-me que ontem à noite foram ver uma peça muito boa.

- Fomos.

Tenho pena de não ter estado aí para também ir, mas

prometo que assim que isto estiver pronto...

- Não prometas nada, Logan. Vamos viver um dia de cada vez - recomendei eu. Houve um momento de silêncio.

- Pareces tão triste, Heaven. Passa-se alguma coisa? Quero dizer, além do facto de eu ter de ficar mais uns dias?

- Não - respondi eu, rapidamente. - Eu é que não quero ter mais desilusões.

- Claro. Eu entendo - retorquiu ele. - A mãe e o pai mandam cumprimentos.

- Agradece-lhes. Tens visto a Fanny?

- A Fanny? Não. Ela... Acho que ela foi para qualquer lado com o Randall Wilcox esta semana.

- Ela ainda anda com ele?

- De vez em quando - respondeu rapidamente. - Telefono-te hoje à noite - continuou. - E lembra-te de que te amo muito.

- Está bem - prometi eu. Depois de termos acabado a conversa, sentei-me um bocadinho a olhar para o piano.

Perseguida pelo amor e pela perturbação, levantei-me e fui para os meus aposentos. Devo ter adormecido profundamente de imediato, pois quando acordei estava quase escuro, e ouvi bater levemente à porta. Era o Tony.

- Os criados disseram-me que passaste o dia todo nos teus aposentos. Nem sequer saíste para almoçar. Passa-se alguma coisa? - perguntou ele, semicerrando os olhos. Não olhei para ele, com medo que o Tony, com os seus olhos penetrantes, conseguisse ler o meu coração e descobrir a imagem do Troy, vibrante e viva. Será que ia ser capaz de cumprir o que prometera ao Troy, de não deixar o Tony perceber que eu o tinha visto? Como conseguiria lidar com o Tony da mesma maneira, sabendo eu que ele sabia que o Troy estava vivo e não me dissera nada? Detestava-o por não me ter dito a verdade, embora percebesse que estava a tentar proteger-me.

- É só uma dor de cabeça estival - disse eu. - Tomei uma Aspirina e adormeci.

- Deves ter-te constipado ontem à noite, depois de termos saído do teatro. Já te sentes melhor?

- Um bocadinho.

- O quarto está quente o suficiente? - Olhou em volta, para a sala de estar.

- Está, está

- bom - continuou. Parecia sentir-se desconfortável, de pé na entrada, mas eu não o tinha convidado a entrar. Só pensava em fechar a porta e voltar para a cama. - Presumo que tenhas falado com o Logan.

- Sim. Parece que está tudo a correr bem. O Tony encolheu os ombros.

- Parece que há algumas falhas. Provavelmente, vou lá amanhã durante o dia. Queres vir também?

- Não, acho que não. Se estiver bom tempo, prefiro apanhar sol aqui.

- Está bem. Vemo-nos ao jantar?

- Se não se importar - disse eu -, peça para trazerem qualquer coisa ao quarto. Hoje prefiro jantar aqui. Ainda não estou completamente boa.

Ele ergueu uma sobrancelha, e observou-me mais atentamente. "Agora é que ele vai perceber de certeza o que eu descobri", pensei. Eu não tinha uma cara inescrutável como ele. Era parecida com a Jillian. Raramente conseguia esconder as emoções que pairavam nos meus olhos, nos meus lábios, sempre pronta a denunciar todos os sentimentos que me iam no coração.

- Se calhar devia chamar o doutor Mallen - sugeriu ele.

- Não, não.

- Mas...

- Garanto-lhe que se amanhã não me sentir melhor, peço-lhe para o chamar - disse eu, rapidamente.

- Está bem. vou dizer ao Curtis para te trazer o jantar ao quarto. Mas vou sentir-me sozinho - acrescentou, a sorrir. - Sabes como é comer sozinho naquela sala enorme, com o Curtis muito direito atrás de mim, à espera que eu deixe cair uma colher.

Eu ri-me. Como sabia!

- Assim está melhor - disse ele. - Mais logo venho ver-te outra vez - prometeu, e saiu.

"Oh, Tony", pensei eu depois de ele ter fechado a porta, "não sei se hei-de ter pena de si ou se o odeie." Sentia-me como que a andar num carrocel, com os cavalos a andarem constantemente para cima e para baixo, sem nada suficientemente parado para fornecer um ponto de referência, para mostrar com exactidão onde é que havia terreno sólido. Todos os meus sentimentos, tal como aqueles póneis irreais, estavam a ser puxados em várias direcções, para cima e para baixo e à volta, até eu me sentir estonteada inteiramente.

Queria estar sozinha para tentar ordená-los; no entanto, por outro lado, tinha medo de ficar sozinha. Deitada no si-lêncio do meu quarto, lutei contra recordações do Troy, recordações agora mais proibidas do que nunca. Tinha sido naquela cama, envolta nos braços do Logan, sentindo os seus beijos nos meus lábios e no rosto, que trocara promessas de amor e devoção com ele. Parecia-me uma traição horrível encostar a cabeça na almofada e visualizar os olhos do Troy, os lábios do Troy, os beijos do Troy, enquanto o perfume do Logan esmorecia nos lençóis.

Tentando lutar contra esta invasão de imagens do Troy, esforcei-me por recordar o Logan tal como ele era da primeira vez que chegara a Winnerrow, pois uma mulher nunca esquece o primeiro amor, a primeira paixão. Eu sabia que, mesmo quando já fosse uma senhora idosa, mais velha até do que a Jillian e do que a minha avó dos montes, eu, tal como todas as mulheres, sentada na minha cadeira de balouço, senil ou não, recordaria a excitação especial que sentira quando o meu coração batera com o primeiro olhar, o primeiro toque de um rapaz. Essas recordações conseguem aquecer até o coração mais solitário e transformar os olhos mais tristes em olhos alegres. Eram como frutos perenes, maçãs, pêssegos, ameixas, que floriam nas árvores ano após ano. Fosse qual fosse a idade das árvores, havia sempre fruta, alguma coisa fresca e saborosa. As recordações boas e felizes, especialmente aquelas que nos tornam mais sensíveis aos momentos mais maravilhosos, são fruto do trabalho da vida.

E tinha sido assim comigo e com o Logan, quando ambos éramos jovens e inocentes, nos Willies. Eu conseguia tirar as imagens do meu baú de recordações e ver o Logan, novamente, como da primeira vez que o vira na escola. Ele destacava-se na escola preparatória, com as suas calças de flanela cinzenta muito bem vincadas, a sua camisola verde-vivo por cima de uma camisa branca e uma gravata às riscas cinzentas e verdes. Nunca ninguém fora para a escola tão bem arranjado como o Logan Stonewall.

Ainda ouvia o meu irmão tom quando nos apresentou pela primeira vez.

- E esta é a minha irmã, Heaven Leigh. - Havia tanto orgulho na voz do tom.

- Que nome tão bonito - dissera o Logan. - Fica-te muito bem. Acho que nunca vi olhos azuis tão celestiais.

Depois de ele ter dito aquilo, os nossos olhos pareciam soar como gongos, que iriam ressoar por toda a nossa vida.

O Logan Stonewall, o meu belo primeiro e eterno namorado, bonito da maneira como eu tinha visto em livros e revistas, como uma pessoa com anos e anos de património cultural, que lhe dera o que ninguém nos montes possuía: educação...

Encarando-as como uma capa protectora, embrulhei-me nessas recordações dos primeiros tempos, para evitar que os sentimentos e as tentações me batessem à porta, e por um momento, um longo momento, isso resultou. O Curtis trouxe-me o jantar e comi quase tudo. Mais tarde, apareceu o Tony, como tinha prometido, para ver como é que eu me sentia. Satisfeito com o facto de eu estar apenas a sarar de uma leve constipação, foi-se embora, dizendo-me que ia apanhar logo de manhã o avião para Winnerrow.

- Não venho cá antes de me ir embora, mas telefono-te durante o dia - disse ele -, para ver se estás mesmo bem.

Calou-se antes de desejar as boas-noites, como se tivesse mais qualquer coisa para dizer ou perguntar; porém, havia um nevoeiro de silêncio entre nós que era melhor não tentar penetrar. E acho que ele sentiu isso.

- Boa noite - disse ele.

Fechei a porta depois de ele sair e envolvi-me novamente nos meus próprios pensamentos, voltando atrás no tempo para me distrair com recordações felizes.

Só que, desta vez, a minha mente traiu-me. Em vez de me lembrar dos esplêndidos primeiros tempos com o Logan, recordei o Troy a assistir à entrega de diplomas de final de curso em Winterhaven. Tinha ficado extremamente desiludida quando soubera que a Jillian e o Tony iam estar naquele dia em Londres. Não ia ter ninguém para me ver atingir um feito que um dia me tinha parecido tão distante e impossível, quando vivia nos Willies.

Numa única fila indiana, os finalistas desfilaram para ocuparem os seus lugares. Eu era a oitava a contar da frente e, ao princípio, vi apenas uma mancha de caras desconhecidas. Então, descobri o Troy, sentado, a olhar para mim com uma expressão de imenso orgulho e prazer. Eu tinha corado de felicidade como nunca acontecera antes, porque o Troy viera e pedira a vários empregados da Companhia de Brinquedos Tatterton e às suas famílias para virem, como se fossem meus familiares.

"Pensaste mesmo que eu não vinha?", troçara ele, quando voltámos para casa, à noite, depois do baile de finalistas. "Nunca conheci uma rapariga que precisasse tanto de uma família como tu. Por isso, quis dar-te uma enorme."

Como eu quis abraçá-lo e beijá-lo nessa altura! Acho que foi aí que me apercebi, pela primeira vez, de que estava a apaixonar-me por ele, entrando e escorregando por um túnel de afeição, cujas paredes estavam lubrificadas com palavras consoladoras, expressões e toques amorosos, olhos suaves e compassivos e promessas auspiciosas.

Recordei como passeámos calmamente no jardim e falámos até começar a chover, e de como ele fugira de mim nessa noite. Quando lhe perguntara porque é que ele estava a deixar-me tão cedo, respondera-me que eu ainda era muito nova, saudável, e cheia de sonhos que ele nunca poderia compartilhar.

Como ele tinha sido profético!

"Oh, Troy!" Enterrei a almofada na cara, abafando os meus soluços. "Conseguirei deixar-te morrer uma segunda vez?"

 

PAIXÕES PROIBIDAS

Já passava das duas da manhã. Senti-me como se me encontrasse num sonho. Estivera durante horas intermitentemente à beira do sono, dando voltas e mais voltas, lamentando-me e chorando baixinho. Por fim, caí mais numa inconsciência agitada do que no esquecimento calmo que desejava desesperadamente. Vi-me a mim própria pendurada no topo de um penhasco escarpado, balouçando em cima da escuridão. As pontas salientes da rocha onde estava agarrada cortavam dolorosamente os meus dedos até eu me soltar. Senti-me a cair e acordei em sobressalto.

Sentei-me rapidamente. A sensação de estar pendurada naquele penhasco fora tão real que eu tinha mesmo dores nos dedos. Abri e fechei as mãos e olhei à volta do quarto. Um raio fino e branco de luar passava através das cortinas. Senti-me como se estivesse a ver através de uma névoa fina.

De repente, o silêncio que me rodeava foi trespassado por suaves notas do piano lá de baixo. Seria a minha imaginação activa a trabalhar, ou teria o Troy vindo dar um dos seus passeios nocturnos e fantasmagóricos, abrindo caminho até ao passado? Seria essa a sua maneira de chorar o nosso amor perdido, carpindo através da música, ou seria a sua maneira de me chamar? Se ele estava a chamar por mim, para que me perseguia com promessas impossíveis?

Saí da cama, calcei os meus chinelos de veludo e fui até à porta dos meus aposentos. Os dedos tremiam-me enquanto rodava a maçaneta de bronze. Quando abri a porta e olhei para o corredor, estava tudo silencioso e escuro. A música de piano devia ter sido uma partida da minha imaginação, pensei eu. Mais ninguém tinha sido acordado por ela. No entanto, não fechei a porta nem voltei para a cama. Avancei, como uma sonâmbula, sentindo-me a flutuar por cima da alcatifa e continuei a descer os patamares mal iluminados.

Parei um instante no cimo das escadas e olhei para as salas vazias em baixo. A mansão parecia estar a suster a respiração. Dei um passo, e depois outro e outro, sentindo-me como se, na realidade, não tivesse acordado, como se tudo aquilo fizesse parte do pesadelo agitado que se apoderara de mim. Parei à porta da sala de estar e olhei para o piano. Não havia lá ninguém. O teclado encontrava-se fechado. Estava tudo calmo, tudo tranquilo e, no entanto, senti-me corar, como se tivesse descoberto o Troy à minha espera, implorando-me que fosse ter com ele. Eu queria-o tanto que não conseguia admitir a mim mesma que ele não estava a chamar por mim.

Não voltei para os meus aposentos. A minha parte secreta, que tinha despertado, comandava agora. Continuei pela sala de jantar e pela cozinha até à copa, que levava à porta que abria para uma escada direita aos túneis. Tirei uma vela e o seu castiçal da prateleira ao pé da porta e acendi a chama que, como uma mão gentil, afastava a escuridão lá em baixo, descobrindo uma passagem amarela tremeluzente para eu passar.

Cada passo que dava era acompanhado por vozes imaginárias, algumas murmurando avisos, outras chamando-me suavemente. À medida que a luz apagava a escuridão das paredes do túnel, vi uma galeria de imagens do passado e do presente, todas vivas, todas dando conselhos ou condenando. Lá estava a avó a dizer-me para ter cuidado, avisando-me sobre espíritos maus invisíveis. Lá estava o Luke, franzindo as sobrancelhas e abanando a cabeça, como se dissesse que eu estava a fazer exactamente o que ele esperava que eu fizesse. Lá estava o tom, o lindo e encantador tom, insistindo para que eu pensasse no Logan; a Fanny, rindo obscenamente. insistindo para que eu avançasse e me satisfizesse. E lá estava a Jillian, muito maquilhada, avisando-me de que eu só iria envelhecer antes do tempo. Por fim, o Tony, com um ar assustado e ciumento, implorando-me que voltasse para trás.

Dei uma curva, e todas as caras desapareceram na escuridão atrás de mim. Estava novamente sozinha, rodeada por um silêncio tão profundo que conseguia ouvir o bater do meu próprio coração. Passado um bocado, esse som foi substituído pelo tinido melodioso do piano. Será que ainda estava a sonhar? Estaria mesmo ali?

Parei quando cheguei à cave da casa de pedra. Ainda estava a tempo de voltar para trás, pensei eu. e hesitei antes de prosseguir. Porém, uma brisa vinda por trás de mim fez a vela vacilar e, antes que eu pudesse protegê-la com as mãos, a luz apagou-se, deixando-me na escuridão. Vi um raio desmaiado emanando da porta ao cimo das escadas. Quando examinei a escada, reparei que o Troy tinha deixado a porta aberta.

Será que estava à minha espera ou apenas com esperanças de que eu viesse ter com ele? Ou teria mesmo acabado de voltar de tocar piano em Farthy e deixado a porta aberta, consciente do que a magia das nossas recordações passadas podia fazer? Olhei para a escuridão atrás de mim e então, com o coração a bater com mais força do que nunca, comecei a subir as escadas. Mesmo antes de chegar à porta, a sua silhueta surgiu na luz de um pequeno candeeiro atrás dele. O seu rosto estava coberto de sombras, mas vi as suas mãos estendidas para mim.

- Oh, Heaven! - exclamou ele. - Não devias ter vindo.

- Eu sei - murmurei eu. Enquanto os meus olhos bebiam avidamente a sua beleza, eu dei-lhe a mão.

- Devias voltar para trás antes que seja tarde de mais sussurrou ele, mas os seus olhos desmentiam as suas palavras.

- Já é tarde de mais - insisti, transmitindo todo o meu amor e a minha paixão na minha voz baixa e rouca.

- Não devíamos fazer isto - repetiu ele, mas puxou-me para mais perto e abraçou-me, pressionando-me contra ele.

- Oh, Heaven, como é que eu te posso recusar? - Arrebatou-me nos seus braços e levou-me para a cama.

Muitas vezes, desde aquele dia fatal em que encontrara o Tony na praia, e ele me tinha descrito a morte do Troy, eu fizera amor com o Troy na minha imaginação faminta. Era a minha maneira de o trazer de volta à vida. Tinha ansiado tanto por aquele momento, até mesmo na altura em que o Logan recomeçara a cortejar-me. E agora, nos braços do Troy, com os seus olhos a observarem-me carinhosamente, tudo isso parecia ter sido imaginado, sonhado.

Ele continuou com os seus protestos fracos, mesmo quando nos agarrámos um ao outro; eu, porém, defendia os momentos de paixão e alegria que nos tinham sido roubados, e silenciei-o repetidamente com beijos até desaparecerem nele todas as hesitações.

Uma parte de mim ainda queria resistir, uma parte de mim que se lembrava de que no melhor e no pior eu estava casada com outro homem. Contudo, nos braços do Troy, com os lábios dele colados aos meus, provando a sua paixão, qualquer resistência que ainda existisse rapidamente desapareceu.

Não queria saber. Eu amava-o, sempre o amaria. Queria que ele me consumisse como uma chama consome as aparas que a alimentam. Parecia apropriado morrermos nos braços um do outro e evaporarmo-nos no fumo da nossa exigente paixão. Eu nunca sentira tanta paixão por um homem. Nunca tínhamos feito amor tão intensa e entusiasticamente, talvez por ser tão proibido. Rendi-me completamente ao nosso amor.

- Oh, Troy - murmurei eu -, sonhei tanto contigo, ansiei tanto por este momento.

Ele beijou-me longamente.

- Ainda te amo tanto, Heaven. Ainda e sempre, minha Heaven celestial.

Fazer amor com ele foi tão maravilhoso, que me trouxe lágrimas de felicidade aos olhos, lágrimas que ele beijou avidamente. Atingimos o êxtase uma e outra vez com a paixão mais verdadeira, mais profunda, uma paixão que não conhecia o certo ou o errado.

Depois, permanecemos nos braços um do outro, satisfeitos, exaustos, como dois pequenos barcos apanhados num furacão quando voltavam para casa, para atracar.

- Heaven - disse o Troy, acariciando-me o cabelo -, como é que uma coisa tão maravilhosa e boa pode ser pecado? Fizeram-nos uma brincadeira muito cruel.

- Não quero saber - disse eu, em tom de desafio. - Só quero estar nos teus braços e que me abraces com força contra ti. Vamos ficar assim até morrermos.

Ele riu-se e beijou primeiro o meu olho direito e depois o esquerdo.

- Pareces mesmo a Heaven que eu conheci no princípio exclamou ele -, espontaneamente esperançada e disposta a desafiar todos os obstáculos ao nosso amor. Mas agora é tudo diferente. Tudo mudou - acrescentou, com tristeza. - Não devia ter deixado isto acontecer. Tenho a certeza de que te vais arrepender, quando pensares mais tarde no assunto. Desculpa.

- Não, não, Troy! - gritei eu, e agarrei-o com mais força. - Nunca. Nunca me arrependerei de te amar, de te querer, de me dar totalmente a ti.

Ele sentou-se ao luar e passou os dedos pelo cabelo comprido, com o seu rosto bonito e sensível escondido pela luz prateada que entrava pela janela. Então, voltou-se para mim.

- Se calhar não te conheces tão bem como eu te conheço, Heaven. - A voz dele estava baixa e grave, mais triste, e o seu tom era trágico. - Pensa no Logan, e naquilo que começaram juntos. Consegues desistir disso tudo por uns momentos de prazer comigo?

- Não quero saber - insisti eu. - vou recordar carinhosamente este momento toda a minha vida.

- Sim, mas, e o Tony? Ele pode descobrir, e ia ficar furioso e podia acabar com a construção da fábrica em Winnerrow. E se a população de Winnerrow descobrir porquê, nunca, mas nunca mais poderias voltar aos Willies, Heaven. Tu própria sabes o que as pessoas pensam do incesto nos montes. Condenavam-te e consideravam-te escumalha de novo. E a população dos Willies ficava melindrada contigo por teres destruído a sua nova esperança, a sua única hipótese de uma vida melhor. Ias ficar mais sozinha do que nunca.

- Não ia estar sozinha, se estivesse contigo - implorei eu, agarrando-me a ele como que a uma vida muito prezada.

- Conseguirias viver contigo própria, sabendo a dor que tinhas causado ao Logan? Ele não tem culpa de nada. Tu própria reconheces que ele te adora, que te ama loucamente. É assim que lhe retribuis?

- Oh, Troy. - Os seus argumentos acabaram com a minha alegria, já frágil. Senti-me esmagada, o meu mundo de felicidade esmagado pela verdade e pela realidade, e eu odiei-as. Procurei nos meus pensamentos uma maneira de vencer o fim inevitável.

Ele levantou-se da cama e foi até à janela. Observei-o a olhar para o mundo escuro em silêncio, com lágrimas quentes a deslizarem pela cara.

- Não penses que uma parte de mim não está a incitar-me para que te encoraje a fazê-lo. Eu disse-te que voltei com a esperança de poder passar o resto da minha vida contigo, fossem quais fossem as consequências, mas isso foi antes de tudo o que aconteceu. Agora, implicaria magoar muitas pessoas. Claro que íamos ser felizes durante uns tempos, Heaven - disse ele, suspirando e voltando-se para mim -, mas nenhum de nós é suficientemente insensível para conseguir viver com a dor que iria causar. Sabes que tenho razão, não sabes? - perguntou suavemente. Eu acenei com a cabeça e ele veio ter comigo. Beijou as minhas lágrimas quentes e afagou o meu cabelo.

- Não posso desistir de ti. Não posso! - gritei eu.

- Minha pobre e adorada Heaven - murmurou o Troy, tentando acalmar-me.

- Troy - disse eu, endireitando-me rapidamente, com a voz excitada como uma criança -, porque é que não podemos ter as duas coisas? Não deixes a tua casa. Não deixes Farthinggale. Eu venho ter contigo sempre que puder. Ninguém precisa de saber. Os túneis que os nossos antepassados construíram serão uma bênção, a maneira de nos unir para todo o sempre.

- Oh, meu amor! - exclamou ele. - Não percebes que isso ainda ia ser pior para nós? Sempre que me deixasses para voltar para o Logan, sempre que ouvíssemos barulho ao pé desta casa e nos assustássemos, iríamos sofrer ainda mais. E quanto tempo levaria o Logan a perceber que os teus beijos eram controlados? Que te estavas a reprimir para outro homem?

"Um homem consegue pressentir isso, sabes. Mesmo que ele esteja muito ocupado, quando voltar à noite para casa e procurar carinho e amor, irá sentir que o teu coração está noutro lado. Depois, vais ter de negar as suas acusações, encobrindo tudo, vivendo como um criminoso ou um espião. Se calhar, ele contratava um dos criados para te vigiar enquanto estivesse fora. Se calhar queixava-se ao Tony, que rapidamente perceberia o que estava a acontecer.

"E depois de a verdade ter sido exposta, o que é que sentirias sobre ti própria? Como é que conseguirias enfrentar o Logan? Não, querida Heaven. Seria muito pior para nós continuarmos a encontrar-nos às escondidas, andando pelos túneis subterrâneos, encontrando-nos quando o Logan estivesse fora ou quando conseguisses arranjar um momento.

"O nosso amor, o nosso amor precioso e lindo tornar-se-ia algo sórdido, furtivo, até feio.

"E sabes o que é que acabaria por acontecer? Acabarias por me detestar por isso - disse ele. E passou suavemente a mão pelo meu rosto. Fechei os olhos com o toque.

- O que é que te torna tão ajuizado? - perguntei eu.

- Preferia não o ser, acredita. Sabes que o que eu te disse é verdade, não sabes? Entendes como é e vai ser penoso para mim recusar-te?

- Sim - respondi eu. - Entendo, porque também é muito penoso para mim.

Olhámos um para o outro na escuridão, com os olhos iluminados pela lua. Éramos como duas estrelas a piscar uma para a outra no céu nocturno, tão brilhantes, tão ansiosas por se tocarem e se tornarem numa só e, no entanto, tão distantes.

- Vai-te embora, Heaven - murmurou ele, com tristeza.

Eu estendi a mão e toquei nos seus lábios com a ponta dos dedos para o silenciar.

- Ainda não - respondi eu. - Se conseguimos roubar um momento precioso, mais uma noite juntos, vamos gozá-la juntos até ao fim. Quero ficar ao teu lado até aos primeiros raios da manhã. Então, sim, levanto-me calmamente e deixo a tua cama para sempre.

Ele não disse nada. Não resistiu. Beijou-me o pescoço e puxou-me para o pé dele. Adormecemos nos braços um do outro, mas eu acordei ao raiar do dia, como tinha prometido. Estava de frente para a janela, e assisti à luz da manhã a afastar o véu da escuridão. Tinha esperança de que a noite continuasse para sempre; porém, a manhã chegou, tal como a verdade e a realidade, tal como tudo o que o Troy dissera que aconteceria. Não havia tempo para recuar. O nosso amor era demasiado frágil, demasiado íntimo para conter o fluir dos minutos e das horas, dos dias e dos meses, todos os anos que íamos estar um sem o outro.

O meu coração pesava-me no peito. com suavidade desembaracei-me do seu abraço. O Troy dormia profundamente. Parecia um rapazinho, sonhando com a felicidade, talvez com algum novo brinquedo Tatterton. Se calhar só num mundo de fantasia é que duas pessoas como nós poderiam partilhar o seu amor sem restrições.

Saí silenciosamente da cama e vesti a minha camisa de noite e o meu roupão. Calcei as chinelas e fui até à cozinha, para arranjar um fósforo a fim de acender a vela que segurava. Quando olhei para o Troy, ele continuava a dormir, os olhos bem cerrados, os lábios fechados suavemente. Pensei em ir ao pé dele e beijá-lo mais uma vez; porém, tive medo de o acordar. Era melhor para ele e para mim que eu me fosse simplesmente embora. Talvez, quando acordasse, pensasse que tudo havia sido um sonho. Talvez, depois de ter voltado para os meus aposentos e para a minha cama, eu pensasse também que havia sido tudo um sonho. Se calhar... havia sido tudo um sonho.

Fechei a porta atrás de mim e desci as escadas até à cave, começando o caminho pelos túneis. Estava tudo silencioso. As vozes que me tinham escoltado durante a noite tinham sido caladas por termos feito amor. Não havia rostos nas paredes. Atravessei a escuridão rapidamente e subi as escadas, passei pela cozinha e cheguei a casa. Ainda era suficientemente cedo para haver movimento. Ainda ninguém se tinha mexido.

Fui para cima e parei no corredor. A luz forte da manhã começava a levantar a obscuridade e o frio que a acompanhava. Sem mais hesitações, dirigi-me para o quarto. Mas mesmo antes de chegar à porta, ouvi um grito horrível ecoar no corredor. Voltei-me no momento em que a Martha Goodman saía a correr dos aposentos da Jillian, com as mãos na cara. Ela deu uma volta até me ver ali parada.

- Heaven! - gritou ela. - Venha depressa! Depressa! Apressei-me pelo corredor ao mesmo tempo que o Tony,

com o seu roupão de seda azul, emergia dos seus aposentos. Olhou para mim e eu levantei os braços, para indicar que não sabia nada. Seguimos a Martha até ao quarto da Jillian e descobrimos o que lhe tinha provocado a histeria.

A Jillian estava caída na sua cadeira de veludo, de frente para a moldura sem espelho. Os braços pendiam para os lados. Vestia o seu fato de saia e casaco em crepe de lã preto enfeitado com gola e punhos de vison. Debaixo do casaco, espreitava uma blusa de chiffon preto brilhante. Eu lembrava-me dela com aquele fato. Lembrava-me de como ela estava bonita, estonteante, como um diamante posto sobre veludo negro.

O quarto encontrava-se impregnado do seu perfume de jasmim, sugerindo que ela se tinha perfumado com ele. O cabelo estava apanhado para cima com travessas de pérola, e ela tinha-se dedicado outra vez à cara, mascarrando-a de maquilhagem, a olhar para uma miragem dela própria e observando os rituais de beleza longos e complicados, que lhe costumavam ocupar tanto tempo.

Só que, desta vez, tinha estado a preparar-se para a sua gala final. Sufoquei um grito e agarrei o braço do Tony, enquanto olhávamos os dois para uma Jillian claramente morta. No chão, quase ao alcance dos seus dedos pendentes, estava o frasco dos calmantes.

A Martha Goodman chorava, histérica. Fui tentar consolá-la.

- O que aconteceu? - perguntou o Tony, como se a única maneira de registar aquilo na sua mente como verdadeiro fosse ouvi-lo de outra pessoa. Lentamente, dirigiu-se para a Jillian e ajoelhou-se a seu lado. A morte tornava o seu sorriso debaixo daquela camada de maquilhagem ainda mais grotesco. Ele voltou-se para mim e para a Martha Goodman. - O que aconteceu?

- Oh, Mister Tatterton, eu não sabia que ela percebia o que eram os comprimidos que eu lhe dava. Disse-lhe que eram vitaminas, só para que ela os tomasse de vontade. Ela sorria sempre e acenava, e parecia ansiosa por os tomar.

- Sim? - murmurou ele. A Martha olhou para mim. Como é que ele não estava a perceber? Ela voltou-se novamente para o Tony.

- Bem, ela deve ter sabido sempre o que eram. Durante a noite deve ter entrado furtivamente no meu quarto e roubado o frasco. Depois, voltou para aqui, vestiu-se daquela maneira, maquilhou-se daquela maneira e... e tomou o frasco inteiro de calmantes. Eu não a ouvi; não me apercebi do que tinha acontecido até vir ver como ela estava e encontrá-la desta maneira. Mas era tarde de mais. Oh, meu Deus, era tarde de mais - lamentou-se a Martha, recomeçando a chorar.

Tentei consolá-la.

- Martha, a culpa não foi sua. Não se pode culpar por isto - afirmei eu.

- Minha querida - pronunciou o Tony ternamente, limpando a maquilhagem da Jillian. - Agora já podes descansar. Não te vai perseguir mais nenhum fantasma.

Caiu de joelhos e pressionou a mão e o pulso flácidos da Jillian contra a testa. O seu corpo era sacudido por soluços silenciosos. A Martha parou de chorar, e ficámos as duas a olhar para ele. Não sei porquê, nunca imaginara o Tony capaz de mostrar tanta emoção. Acima de tudo, achava que ele perdera todo o amor pela Jillian quando ela tinha ficado mentalmente doente; agora, porém, ele estava a chorar por ela como se ela tivesse morrido no auge do amor deles. Compreendi, de repente, que, de uma maneira estranha e misteriosa, ele se recusara a vê-la de outro modo que não fosse a beldade que tinha sido. Talvez por isso ele tivesse resolvido mantê-la em Farthy, com a esperança de que, mesmo que só com um milagre, a mulher que ele uma vez amara voltasse para ele.

- Não posso acreditar que ela tenha morrido - repetia inúmeras vezes. - Não posso acreditar que tenha morrido.

Olhou para ela como costumava olhar, da primeira vez que eu viera a Farthy, encontrando-os activos, enérgicos e vivos, quando a Jillian era uma das mulheres mais bonitas que eu alguma vez vira e o Tony o homem mais elegante que eu alguma vez conhecera. Formavam uma espécie de casal de sonho, o marido mais novo e a sua princesa a viverem num castelo construído de sonhos e de fantasias ricas.

- Jillian - gemeu ele. - A minha Jillian.

Ele virou-se para mim, com os olhos marejados implorando por ouvir: "Isto não é verdade."

Oh, Tony! - exclamei eu. - Talvez fosse isto o que ela mais queria. Talvez já não conseguisse viver mais como vivia. Pelo menos, pôs-se a si própria a dormir, vendo-se como realmente era: eternamente jovem e bela. Tenho a certeza de que ela foi feliz até ao fim.

Ele acenou com a cabeça e olhou novamente para ela.

- Sim - disse ele. - Claro, tens razão. Beijou-lhe a mão e depois levantou-se, pressionando as mãos contra os olhos, passando as mãos pelo cabelo enquanto se endireitava.

- Bem - disse ele, com uma voz mais normal, mais dura. - De qualquer modo, temos de chamar o médico. Há sempre uma investigação quando se trata de uma morte sem acompanhamento.

- Oh, meu Deus, meu Deus! - exclamou Martha. - Pobre mulher.

- Vá, agora acabou - disse o Tony, rapidamente. - Vamos tratar do que é preciso. Há assuntos a tratar. Pessoas a quem comunicar. - Voltou-se para mim. - Estás bem? Consegues...

- Sim - respondi eu. - Eu e a Martha consolamo-nos uma à outra. Aqui, vai ficar tudo bem, Tony. Vá tratar do que tem a tratar. Eu ajudo no que for preciso.

- Obrigado. bom - murmurou ele, olhando mais uma vez para a Jillian -, é melhor ir dizer ao pessoal e chamar o médico.

Os soluços da Martha tornaram-se mais fortes e mais sonoros, depois de ele sair do quarto. Acompanhei-a até ao quarto dela e aconselhei-a a vestir-se.

- Eu vou fazer o mesmo - disse eu.

- Sim, com certeza. Tem razão. Tenho de me dominar. Obrigada, Heaven. É tão forte.

Deixei-a e voltei para os meus aposentos, atordoada com a morte da Jillian, tão próxima da ressurreição do Troy, e da ressurreição do meu amor por ele. Eu não era uma estranha para a morte.

Pensei na Jillian, a passar deste mundo para o outro; não tinha tanta pena dela como tinha do Tony. Ele tentara agarrar-se a uma parte da vida dele, que tinha sido feliz e maravilhosa, e que agora desaparecera irrevogavelmente. Nunca estivera tão sozinho como ia ficar agora.

Depois de vestida, telefonei ao Logan para Winnerrow, a fim de lhe contar as notícias. Ele prometeu meter-se no primeiro avião para Boston.

- Como é que o Tony está a reagir? - perguntou o Logan.

- Neste momento, mantém-se ocupado com todos os preparativos. O pior vai ser depois - disse eu, falando por experiência própria.

- E tu, como é que estás? - indagou o Logan.

- vou andando.

- vou para aí o mais depressa que puder - prometeu ele. - Sempre que precisares de mim, estarei sempre contigo - acrescentou, antes de desligar.

Talvez tivesse sido a promessa do Logan que abriu as comportas das minhas lágrimas. Eu sabia que ele sentia o que dizia, e a ternura na sua voz fez-me lembrar o quanto eu precisava e desejava uma família. Há muito tempo, esperara que a Jillian fosse mais uma mãe do que uma avó para mim. Acabara por não ser nem uma coisa nem outra e eu detestava-a por isso, mas nunca tinha deixado de desejar que ela me amasse e precisasse de mim.

Pensei na família que perdera: a mãe que nunca chegara a conhecer, porque morrera a dar-me à luz; o pai que eu pensara ter, mas que me detestava por o meu nascimento lhe ter tirado a jovem mulher que ele adorava; a minha avó, que envelhecera muito antes de tempo, gasta e abatida por uma vida dura nos Willies; o meu avô, que acabara por me amar e depender de mim, mas que se perdera no seu mundo imaginário até morrer; e o meu querido e adorado irmão tom, vítima de um acidente cruel e monstruoso, um acidente provocado pela minha necessidade de amor e retribuição.

Para mim, o amor sempre fora uma pequena nuvem de fumo a vaguear pela minha vida. Eu tentara tocar-lhe, as minhas mãos afundaram-se nela, e esta continuou à deriva, cada vez para mais longe até desaparecer. Só o Logan permanecera constante como o Sol. E o Troy... Quando pensei nele, só consegui chorar. Chorei por mim assim como pelo Troy e pela Jillian. Chorei pela avó e pelo avô, pelo tom e pela mãe que nunca conhecera. Por fim, chorei só pela Jillian. Talvez, enquanto estava sentada à frente do espelho falso e se maquilhava pela última vez, ela se tivesse apercebido da verdade. Se calhar, voltara-se para um canto escuro do seu quarto e vira a morte ali parada, pacientemente à espera, sorrindo com a mesma suavidade da minha avó, quando morrera. Quase a conseguia ouvir a falar com a morte, como se esta fosse alguém que a tivesse vindo escoltar à melhor gala da sua vida.

"Oh, meu Deus", diria ela. "Já aí está? Tem de ter paciência, tem de me dar tempo para me arranjar como deve ser. vou conhecer pessoas muito distintas. Não posso aceitar ir a qualquer lado antes de estar pronta", insistiria ela. Depois, devia ter ido ao roupeiro e examinado todas as vestimentas, até ter optado pelo fato preto, achando-o perfeito para aquela ocasião especial.

"E, além disso, o Tony sempre me disse que o preto é a cor que me fica melhor. O que é que acha?", perguntaria ela, voltando-se para a morte e mostrando-lhe o fato. A morte concordaria com a cabeça e sorriria, e ela vesti-lo-ia, salpicando primeiro o peito e os braços com o seu perfume de jasmim. Depois, trataria do cabelo, escolhendo aquelas travessas de pérolas lindas. "Estas, foi o Tony que me deu há muitos anos. Uma surpresa, percebe. Ele está constantemente a chegar a casa com surpresas. Ele ama-me. Idolatra-me, sabe."

Sim, a morte sabia.

Ela fê-la esperar enquanto retocava a maquilhagem, talvez durante horas, até ficar satisfeita. Depois, levantou-se da cadeira, e viu-se ao espelho de todos os ângulos. Por fim, foi até ao quarto da Martha Goodman e encontrou o frasco de calmantes.

De novo no seu quarto, engolira comprimido atrás de comprimido, conversando sobre este ou aquele amigo, sobre uma coisa que alguém usara que estava na moda, sobre uma coisa que alguém usara e que estava fora de moda. A morte era paciente e uma boa ouvinte. Como a tinha feito feliz até ao fim.

"Estou muito cansada", devia ter dito ela, por fim, e a morte devia ter saído finalmente do seu canto. Talvez levantasse a mão à medida que ela se aproximava, e quando a morte a agarrou, deve ter fechado os olhos. A sua espera estava quase no fim.

Na sua mente, devia ter ouvido música e diversos risos. Havia imensa gente à sua volta, convidados importantes, com roupas elegantes, e o Tony de lado, com os seus sócios, a observá-la cheio de orgulho, pois ela era a sua esposa eternamente jovem e bela, até mesmo nesse momento, nessa festa maravilhosa de despedida, onde ela era a convidada de honra.

Como devia ser, como sempre seria.

Suspirei e limpei as lágrimas com as mãos, e levanteime para ir à casa de banho lavar os vestígios do meu pranto. Tinha de ser forte pelo Tony e pelo Logan e pelos criados. Agora era eu que tinha a responsabilidade. Não podia ser a rapariguinha dos Willies.

O médico já tinha chegado, examinado a Jillian e declarado a sua morte, na altura em que eu me juntei às outras pessoas lá em baixo. Já tinham chamado uma ambulância para levarem o corpo para o hospital mais próximo, onde iria ser imediatamente efectuada uma autópsia. Dado que fora suicídio, teve de se chamar a Polícia. O Tony dedicou-se ansiosamente a tudo isso, grato pela distracção.

Claro que os criados estavam deprimidos. Havia uma nuvem pesada de tristeza a vaguear pela casa, apesar do dia bonito e quente que estava. O Curtis manteve as cortinas fechadas, todos falavam baixinho e olhavam uns para os outros com olhos tristes e abatidos. A Martha Goodman esteve no seu quarto a maior parte do dia. Fui visitá-la duas vezes. A sua ideia era permanecer em Farthy até ao funeral e depois ir-se embora.

A Jillian ainda tinha duas irmãs e um irmão vivos. A sua mãe, a Jana Jankins, que eu conhecera já com oitenta e seis anos, estava completamente senil e num asilo. O Tony telefonou às irmãs, que viviam juntas, e elas disseram que telefonavam ao irmão e iam todos ao funeral. Informou-me que, pelo tom das suas vozes, elas estavam à espera de herdar qualquer coisa.

- Vão ficar muito desiludidas - comentou ele. - A Jillian nunca se deu muito com elas. Pelo contrário, até as desprezava. No testamento não lhes deixou nada. Mas há uma coisa para ti - acrescentou.

- Por favor, não quero falar agora sobre isso - insisti eu.

- Mas temos de falar, Heaven. Foi uma coisa que ela decidiu fazer pouco tempo depois do incidente com o Troy, quando ela lhe contou sobre a Leigh e eu e quem tu realmente eras. Ela fez-me prometer nunca te dizer nada. Queria ter a certeza de que não ias pensar que estava a tentar comprar o teu amor e a tua afeição por ela. Claro que quando ela ficou neste estado, nunca pensei mais no assunto e, até agora, havia-me esquecido.

- Estou a ver que ela era mais complicada do que eu pensava - afirmei eu. Ele acenou com a cabeça. - Parece que todos nós ficámos arrasados entre os nossos amores e os nossos ódios, puxados em direcções diferentes a maior parte do tempo, atormentados pelos nossos sentimentos. É quase melhor estar... estar...

Estar como ela acabou por ficar - sugeriu ele. - Perdida numa ilusão. - Olhou para mim. - Estás tão parecida com ela agora, quando era jovem e muito, muito bonita -

disse ele.

Já nem me lembrava há quanto tempo ele não olhava para mim tão atentamente. Fez-me sentir desconfortável.

- Posso ajudar em mais alguma coisa? - indaguei eu, rapidamente.

- O quê? Ah, não, não. - O telefone tocou. - Eu fico bem. O Logan deve estar mesmo a chegar - disse ele, levantando o auscultador.

O Tony passou quase todo o dia no escritório, recusando-se a tomar outra coisa que não fosse chá. À medida que a notícia se ia espalhando, choveram telefonemas dos seus sócios, conhecidos e amigos. Deixei-o sozinho quando percebi que ainda faltava uma hora para o Logan chegar, e tinha tempo para ir ter com o Troy e contar-lhe a notícia. Achava que o Tony nem se tinha lembrado de o avisar.

-Desta vez, atravessei o labirinto com rapidez, escolhendo o caminho automaticamente, sem sequer pensar no assunto. Como de costume, a esta hora do dia, a parte da frente da casa de pedra estava banhada de sol e a sua aparência de conto de fadas era uma pausa convidativa em relação ao desgosto e à tristeza. Mais uma vez pensei nela como uma fuga à realidade, desta vez uma realidade muito triste e trágica.

Bati suavemente à porta e girei a maçaneta, ficando surpreendida ao perceber que a porta estava fechada à chave. Bati com mais força. Não era normal o Troy trancar a porta da casa. Nunca se preocupara com ladrões ou intrusos, mesmo quando deixava a sua casa por bastante tempo. Como não ouvi os passos dele, espreitei por uma das janelas. A casa parecia vazia, silenciosa. Não havia sinais dele.

- Troy! - chamei eu. - Estás aí?

Só me respondeu o silêncio. Dei a volta à casa e espreitei por outra janela, uma janela da cozinha. Não o vi, mas houve outra coisa que me chamou a atenção. Estava um sobrescrito encostado ao saleiro no meio da mesa, e conseguia ver que tinha escrito "Heaven" na parte da frente. Também consegui ver que a porta da cave tinha sido deixada aberta. O Troy achara que eu só viria à sua casa através dos túneis, pensei eu. Experimentei a janela, para ver se a conseguia abrir, mas estava trancada. As janelas estavam todas trancadas.

Sentindo-me frustrada e cada vez mais receosa do que iria ler na carta, voltei pelo labirinto para Farthy e escapuli-me para a cozinha e pela porta do túnel. Avancei muito depressa até chegar à cave da casa e subi pelas escadas até à cozinha. Ofegante, agarrei no sobrescrito.

O meu coração batia com tanta força que tive de me sentar antes de abrir o sobrescrito. Tirei o papel de carta que lá estava dentro e comecei a ler.

"Meu amor adorado e proibido,

Agora, mais do que nunca, a noite de ontem parece um sonho. Tive tantas vezes nestes últimos anos essa fantasia, e agora, agora que finalmente se realizou, mal consigo acreditar que tenha mesmo acontecido.

Fiquei para aqui sentado, a pensar em ti, recordando os nossos momentos tão preciosos, o teu abraço carinhoso, a ternura dos teus olhos e do teu toque, e acabei por ter de me levantar e ir até à cama procurar fios do teu cabelo, que, graças a Deus, encontrei. vou mandar fazer um medalhão para eles, e usá-los junto ao coração. Conforta-me saber que vou ter uma coisa tua sempre comigo.

Tinha esperanças de poder ficar mais um tempo, embora reconhecesse que seria uma tortura, e de vez em quando observar-te às escondidas em Farthy. Dar-me-ia prazer e alguma dor ver-te a passear pelos jardins ou sentada a ler. Estaria a comportar-me como um rapazinho tonto. Eu sei.

Esta manhã, pouco depois de te teres ido embora, o Tony veio até aqui contar-me o que tinha acontecido, o que penso que também vais fazer. Só que, quanto tu chegares, já eu me terei ido embora. Eu sei que parece cruel da minha parte abandonar o Tony numa altura destas, mas consolei-o o melhor que pude enquanto cá esteve, e tivemos oportunidade de ter uma conversa.

Não lhe contei de nós, da tua visita de ontem à noite. Ele não sabe que tu estás a par da minha existência. Não quis acrescentar isso aos problemas que ele já tem. Talvez no futuro aches que ele deva saber. Isso é contigo.

Estás provavelmente a perguntar a ti própria por que razão senti necessidade de me ir embora logo a seguir à morte da Jillian.

Minha querida Heaven, por muito difícil que seja de compreender, eu sinto-me um pouco responsável.

A verdade é que eu gostava de a atormentar com a minha presença. Podia ter-lhe dito a verdade, mas preferi deixá-la acreditar que estava a ver um espírito. Queria que ela sentisse remorsos, pois, apesar de ela não ter culpa de tu seres filha do Tony, sempre a detestei por me ter contado, por ter posto aquela verdade horrível entre nós. Ela sempre foi muito ciumenta, tinha inveja da minha relação com o Tony, mesmo quando eu ainda era pequeno.

Agora, tenho imensos remorsos. Não tinha o direito de a castigar. Devia ter percebido que isso ia causar dor ao Tony e até mesmo a ti. Parece que só consigo causar tristeza e tragédia às pessoas que me rodeiam. Claro que o Tony não pensa assim. Ele não queria que me fosse embora, mas acabei por o convencer de que era o melhor.

Peço-te que o apoies neste momento de grande necessidade, e que o consoles o melhor que puderes. Vais estar a fazê-lo por nós os dois.

Penso que nunca mais nos veremos ou tocaremos como nos tocámos ontem à noite. Mas a tua imagem está de tal maneira gravada no meu coração, que te levarei sempre comigo seja para onde for.

Para todo o sempre, Troy"

Dobrei muito bem a carta e guardei-a outra vez no sobrescrito. Depois, levantei-me e fui até à porta da frente. Destranquei-a, voltei-me para olhar em volta uma última vez, e saí, fechando a porta atrás de mim. Sem me voltar mais nenhuma vez, corri para o labirinto, pelos corredores de sebes, perseguida pelo som dos meus soluços, correndo cada vez mais depressa, tentando fugir daquela parte de mim que vivera no sonho e que agora estava destinada a vaguear eternamente, perdida no labirinto.

 

VIDAS VELHAS E NOVAS

Eu estava no nosso quarto, estendida na cama, quando o Logan finalmente chegou. Tinha chorado até adormecer e acordara com a garganta arranhada, e o meu coração era uma pedra no peito. Estava para ali estendida, a olhar para o tecto. Tinha sido dominada pelo desgosto, tornando-me a sua criatura silenciosa. Nem me mexi para cumprimentar o Logan quando ele entrou no quarto.

- Heaven!

Correu para mim e abraçou-me. Embora me sentisse mole nos seus braços, agradeci o seu abraço forte e carinhoso e o perfume forte da sua água-de-colónia masculina.

- Pobre Heaven - murmurou ele, acariciando-me o pescoço.

Encostei a cabeça ao ombro dele. Senti-me falsa, traidora, sabendo que ele pensava estar a acalmar uma tristeza provocada apenas pela morte da Jillian, mas deixei-o continuar. Ele encostou a cara à minha e beijou-me.

- Deve ter sido horrível para ti - disse ele. - Desculpa não ter estado cá quando a encontraste. O Tony está bastante abatido - acrescentou. - Parei primeiro no escritório dele antes de vir para cima, e ele quase não falou. Ainda falta fazer alguma coisa? Posso ajudar em alguma coisa? Não consegui que ele me dissesse nada.

- Acho que não - retorqui eu, abanando a cabeça. Olhei para ele, o meu fiel e devotado Logan, enérgico, optimista e decidido. Era saudável, forte e vivo. Parecia incapaz de se sentir deprimido ou diminuído. Os seus olhos de safira estavam cheios de esperança e vida. Até mesmo agora, durante aqueles momentos problemáticos, mantinha o porte de autoconfiança que tinha da primeira vez que o vira.

Como ele tinha um temperamento diferente do do Troy, que vivera sempre sob uma ameaçadora nuvem de sofrimento.

Também é verdade que o Logan não era tão sensível nem poético, mas nesse momento agradeci os seus raios de sol, tal como a relva e as flores silvestres dos Willies agradeciam os raios de sol que se infiltravam na obscuridade da floresta. Eu sabia que ele estaria sempre presente para eu me apoiar, sempre que precisasse ou quisesse. Ele era a minha fonte de força, o meu rochedo de Gibraltar.

Durante os dias de luto, o Logan manteve-se constantemente em contacto com o escritório de Winnerrow, mas teve a sensatez de continuar com os seus negócios longe da vista e dos ouvidos dos outros, e muito raramente falava no assunto. O Tony não queria falar de mais nada a não ser da Jillian.

Começaram a chegar visitas no dia a seguir à morte da Jillian. Tive de ser eu a fazer o papel de anfitriã, a cumprimentá-los e a agradecer-lhes. No dia anterior ao funeral, havia mais de cem pessoas em Farthy. O Rye Whiskey preparou inúmeras travessas de comida e bebidas. Todos os criados apoiaram e se preocuparam imenso com o Tony. Vi como eles o respeitavam e até adoravam.

O Logan esteve sempre ao lado do Tony, parecendo cada vez mais como se ele, e não o Troy, fosse o seu irmão mais novo. Eu estava muito orgulhosa dele, orgulhosa da maneira como ele conversava com as pessoas, e orgulhosa da afeição e do consolo que ele conseguia transmitir ao Tony.

As duas irmãs e o irmão da Jillian só apareceram na manhã do funeral. Assim que chegaram a Farthy, o Tony levantou-se da cadeira e conduziu-os ao seu escritório, para lhes mostrar o testamento da Jillian e esclarecer que eles não iam herdar nada. Destruiu-lhes toda a sua ganância, tendo até um certo gozo com as suas expressões de desapontamento. Mais tarde, disse-me que tinha sido algo que a Jillian teria adorado ver.

- Eles tiveram sempre imensa inveja dela - explicou ele -, especialmente as irmãs. Eram tão desinteressantes e caseiras que não admira que não conseguissem atrair homem nenhum. Tornaram-se amargas e desagradáveis, e a Jillian detestava estar ao pé delas. Nem sequer a informaram que tinham internado a mãe num asilo senão muitos meses depois.

A bonita igreja de Boston estava a abarrotar para o funeral. Havia até pessoas de pé junto à porta. Depois, a procissão de elegantes automóveis e da alta sociedade que avançava lentamente pela estrada até ao cemitério, fez-me lembrar da procissão de pessoas que tinham ido à minha festa de casamento.

Ao observar a maneira como aquelas pessoas se cumprimentavam, os homens com fatos caríssimos, as mulheres com vestidos dispendiosos, cobertas de jóias luxuosíssimas, não consegui deixar de as comparar com a população dos Willies no enterro dos seus próprios pobres e loucos, com os rostos cobertos de tristeza, enquanto assistiam a um dos jovens ou dos seus idosos a ser enterrado.

À maneira simples e nada sofisticada da população dos Willies, ficavam tristes uns pelos outros de um modo que sugeria serem todos uma grande família. Talvez fossem as dificuldades e a luta pela sobrevivência que os unia tanto uns aos outros, tornando impossível ir ao funeral de um dos vizinhos, fosse novo ou velho, sem sentir como se tivesse sido um dos seus a morrer.

Depois, regressariam às suas próprias cabanas para reflectir sobre as suas existências frágeis e vulneráveis. A morte tinha uma mão esfomeada nos Willies, havia menos resistência. Serem pobres tornava-os mais fracos. E, no entanto, pensei eu, que idiotas eram estes ricos a andarem por ali com aquela arrogância. Não tinham sentimentos, nenhuma empatia? A morte da Jillian devia ter-lhes trazido ao coração o mesmo tipo de medo gelado que surgia no coração da população dos Willies, ao ver um deles, uma mulher tão rica e tão protegida como a Jillian, chamada tão facilmente pela morte.

Mantive-me ao lado do Tony e agarrei-lhe a mão quando o caixão da Jillian foi baixado na sepultura, e pensei no pedido do Troy na sua última carta, para consolar o Tony pelos dois. A sua mão apertou a minha, mas ele não chorou abertamente. Senti-o estremecer, e, depois, saímos todos do cemitério.

- Bem - disse ele -, agora está finalmente em paz. A luta dela acabou.

Nem eu nem o Logan dissemos nada. Entrámos na limusina e o Miles conduziu-nos até Farthy. O Rye Whiskey tinha preparado comida quente, mas o Tony comeu muito pouco. Deixou as pessoas e foi para os seus aposentos dormir, cabendo-me a mim e ao Logan cumprimentar, entreter e por fim agradecer às pessoas.

Uma dessas pessoas que vieram dar as condolências era uma amiga minha de Winterhaven, a Amy Luckett, que tinha sido a mais simpática para mim de todas aquelas raparigas ricas, arrogantes e mal-educadas, que me tinham feito a vida num inferno. A Amy não era casada. Tinha viajado imenso pela Europa, e regressara há pouco tempo. Prometeu voltar a Farthy para me visitar um ou dois dias depois. Agradeci-lhe imenso; ela foi uma das últimas pessoas a ir-se embora.

Cansada? - perguntou o Logan, quando ficámos finalmente sozinhos.

- Sim.

- Eu também. - Pôs o braço à volta dos meus ombros.

- Vai andando para cima - disse eu. - Eu vou já lá ter.

- Não te demores - pediu ele, e deixou-me.

Fui lá para fora apanhar um bocadinho de ar antes de ir para o quarto. Estava naquela altura do dia a que a avó costumava chamar o lusco-fusco. A escuridão já caíra. A maior parte do mundo natural estava a preparar-se para dormir. Olhei para o labirinto e pensei no Troy, para onde teria ido e no que ele estaria a pensar nesse momento. De alguma maneira, tinha a certeza que ele estava a pensar em mim. Os meus pensamentos foram interrompidos quando o Miles trouxe o carro até à porta de casa. O Curtis apareceu com duas malas, e a Martha Goodman seguiu-o para fora de casa.

- Oh, Martha - chamei eu, avançando até ela. - Tinha-me esquecido que se ia hoje embora. - Peguei-lhe na mão e depois abraçámo-nos. - Para onde é que vai agora?

- A agência de empregos já me ofereceu outro lugar em Boston. Eu escrevo-lhe a dizer onde estou e, talvez, algum dia, quando for à cidade...

- Ora, claro. Convido-a para almoçar - declarei eu. Ela acenou com a cabeça, sorriu e depois o seu rosto entristeceu.

- Eu bati à porta de Mister Tatterton para me despedir, mas ele não respondeu. Se não se importar, depois diz-lhe.

- com certeza. Cuide bem de si, Martha. - Demos um beijo, e ela começou a dirigir-se para o carro. Então, parou e virou-se para mim.

- A música do piano... - começou ela. - Não era fruto da imaginação de Mistress Tatterton nem da minha, pois não? - Ficámos a olhar um bom bocado uma para a outra.

- Não, Martha - disse eu, por fim. - Era real.

Ela acenou com a cabeça e foi para o carro. Vi-a a desaparecer, e depois fui para dentro ter com o Logan.

Foi nessa noite que aprendi que, por vezes, um homem e uma mulher fazem amor por necessidade de consolo, e não só por paixão e desejo sexuais. O Logan já estava na cama quando eu cheguei. Preparei-me para ir para a cama e vesti a minha diáfana camisa de noite. Assim que me deitei ao lado dele, o Logan pôs o braço à minha volta e beijou-me. Eu encostei o rosto ao seu ombro e comecei a chorar. Era verdade que estava a chorar pela Jillian e pelo tom e pelo Troy, e por todas as pessoas que amara e perdera, mas acho que, acima de tudo, estava a chorar por mim e até pelo Logan.

Estava a chorar por aquela rapariguinha dos Willies, aquela rapariga de olhos grandes e azuis, que fora obrigada a crescer depressa de mais, que fora obrigada a ser mãe e pai dos seus irmãos mais novos e que até vira essa vida dura e esmagadora a ser despedaçada pela venda dos seus irmãos a outras famílias. Estava a chorar por aquela criança ainda inocente, vítima da loucamente ciumenta Kitty Dennison, e depois amparada e seduzida pelo seu marido Cal. Pensara que esse era todo o amor e carinho que havia para mim, e ficara tão confusa que até lamentava a sua perda, ao princípio. Acima de tudo, estava a chorar pelo Troy, pelo amor que eu devia ter podido reclamar como meu para sempre.

O Logan beijou-me as lágrimas da mesma maneira que o Troy, e eu dei por mim a retribuir-lhe. Precisava de ser amada. Precisava de ser reconfortada, saber que estava viva e que era apreciada. Cada beijo, cada carícia, construía a minha fortaleza de fé no futuro. Não queria solidão e sofrimento. Queria acabar com as lágrimas. Queria sentir outra coisa que não fosse tristeza, e eu sabia que fazendo amor o conseguiria.

Conseguia sentir o meu corpo vivo, fazê-lo arrepiar-se e enviar choques eléctricos pela minha espinha até as pontas dos dedos cantarem. Queria que o Logan me beijasse por todo o corpo, que me tocasse por todo o corpo. Nenhuma parte devia ser esquecida; tinha de ser uma rendição total ao êxtase do nosso amor. As minhas exigências excitaram-no e tornaram-no mais apaixonado do que nunca. Sabia que a intensidade dos meus beijos o surpreendia, assim como o tempo e a força com que me agarrava a ele.

No entanto, eu não conseguia controlar a minha necessidade urgente. Fizemos amor com tanta intensidade que, depois, nenhum de nós conseguiu falar.

- Heaven - disse o Logan, por fim, pondo a mão no meu ombro -, há qualquer coisa...

- Chiu - respondi-lhe eu. - Não quebres o feitiço - continuei. Só queria voltar-me para o lado e deslizar para um sono profundo e pacífico. E foi o que aconteceu. Mal o ouvi a dar-me as boas-noites. As minhas pálpebras fecharam-se, e a escuridão caiu como uma cortina preta e pesada, com o peso de pedras a marcar o fim de uma actuação.

No entanto, eu sabia que no dia seguinte começava tudo de novo.

A partir da manhã seguinte ao funeral da Jillian, o Tony sofreu uma mudança drástica. De repente, parecia muito mais velho, apesar de ser vinte anos mais novo do que a Jillian e não dever mostrar tantos sinais de envelhecimento. O cabelo parecia mais grisalho, os olhos pareciam mais escuros, as rugas da testa pareciam mais profundas, e ele parecia mover-se mais lentamente. A postura aristocrática que sempre tivera parecia de alguma maneira desaparecida.

Também já não se vestia no seu estilo impecável. Antigamente, era raro descer sem casaco ou gravata. Agora, usava uma camisa aberta e calças que precisavam de ser passadas a ferro. Não penteava o cabelo nem se barbeava, e estava dominado pelo desejo de inspeccionar documentos antigos, fotografias antigas, todo o tipo de recordações. Logo a seguir ao pequeno-almoço, que para ele agora consistia em pouco mais do que café, enclausurava-se no escritório e passava horas e horas a remexer em caixas de papelão e ficheiros antigos. Não tolerava ser interrompido por nada nem ninguém, e mal falava comigo e com o Logan.

Chegavam inúmeros telefonemas das lojas e dos escritórios da Companhia Tatterton, mas ele não os atendia. O Logan fazia o que podia; porém, sabia pouco sobre o negócio e tinha as suas próprias responsabilidades em Winnerrow. Eu sabia que ele estava desejoso de voltar para o seu projecto. Por fim, disse-lhe para se ir embora.

- Mas não te quero deixar aqui da maneira como as coisas estão - declarou ele. - Não queres vir comigo por uns dias? Quero que estejas comigo. É importante para mim e...

- Acho que ainda não devo sair daqui, Logan. Não te preocupes comigo. vou ficar bem. O Tony é que está a atravessar momentos difíceis.

O Logan concordou com a cabeça, silenciosamente.

- E eu que o diga. Ontem fui falar com ele sobre algumas decisões que têm de ser tomadas em Winnerrow, e sabes o que é que ele me respondeu? - Eu abanei a cabeça.

- Agiu como se nunca tivesse ouvido falar do projecto.

"Que projecto é esse?", disse ele. Nem sabia que fazer. No minuto a seguir, já tinha voltado para as suas caixas de papelão. Nunca imaginei que o Tony conseguisse viver feliz numa ilusão - continuou. - Ele é demasiado realista, demasiado pragmático.

- Talvez só quando dizia respeito a outras pessoas, e não a ele próprio. Todos nós temos ilusões privadas, Logan.

Os seus olhos abriram-se.

- Ah, sim? - Ele olhou para mim fixamente por um bocado, com uma expressão bastante estranha. Depois, encolheu os ombros. - Parece que vou ter de tomar todas as decisões necessárias sozinho.

- De qualquer maneira, isso era o que o Tony esperava - lembrei eu. - Ele não te teria dado responsabilidades se não confiasse em ti.

- És capaz de ter razão. Sim. Está bem, volto no fim-de-semana - disse ele. - Telefono-te todas as noites e não hesites em telefonar-me se houver algum problema.

- Está bem. Não te preocupes - respondi eu. Preparou tudo para ir para Winnerrow e, depois, foi para cima fazer a mala. Eu estava sentada na sala de estar quando ele voltou para se despedir. Beijámo-nos, e ele foi-se embora. Não conseguia recriminá-lo por querer deixar aquela casa sombria o mais depressa possível.

Fui ver o Tony várias vezes, encontrando-o sempre absorvido com um documento ou um álbum de fotografias.

- Tem de começar a comer outra vez regularmente e voltar à vida normal o mais depressa possível, Tony - disse-lhe eu, a última vez que lá fui. - É a única maneira de ultrapassar o desgosto.

Ele parou de ler e olhou para mim, como se só naquela altura se tivesse apercebido do que estava a acontecer. Todas as cortinas estavam bem fechadas, impedindo que o sol brilhante da tarde aquecesse o quarto monótono, escuro e melancólico. A única luz era a do candeeiro da secretária, que deitava um clarão pálido e amarelo sobre ele. Olhou à volta pelo escritório, para os documentos e fotografias, e novamente para mim. Depois, endireitou-se na cadeira e puxou os óculos de ler para a testa.

- bom - murmurou. - Que horas são? - Olhou para o canto, para o relógio antigo, a fim de responder à própria pergunta. - Parece que já estou aqui há bastante tempo.

- Sim, está. E não comeu nada de substancial.

- Gosto quando te preocupas comigo - afirmou ele, sorrindo, repentinamente animado. - A tua mãe nunca se preocupou a sério comigo - acrescentou ele.

A minha mãe? - Porque estava ele a mexer naquele assunto? A minha mãe era demasiado nova para se preocupar com isso. Havia fugido ainda mal tinha idade para aguentar responsabilidades maduras. - A minha mãe? - repeti eu.

O meio sorriso na sua cara esmoreceu lentamente, e ele inclinou-se, sacudindo a cabeça ao mesmo tempo. Depois, esfregou a cara com as mãos e os olhos com os pulsos como se quisesse fazer desaparecer vestígios de sono. Inspirou fundo e olhou para mim.

- Desculpa - disse ele, por fim. - Perdi-me momentaneamente no tempo. Estavas na sombra, e eu revivi uma vez que a Leigh entrou por essa porta. Acho que estou a concentrar-me de mais no passado. Tens razão. Eu devia tomar um banho, vestir-me como deve ser e comer uma refeição decente. Não sei o que faço nem por que razão o faço, Heaven, sinto-me tão culpado do que aconteceu com a Jillian - acrescentou ele, em tom de confissão.

- Mas, Tony - disse eu -, não deve responsabilizar-se por isso. Deu-lhe tudo o que ela precisava... A Martha Goodman, médicos, medicamentos... Deu-lhe comodidade...

- E mantive-a num mundo de loucura - comentou ele.

- Para benefício próprio, com a esperança, sempre com a esperança de que ela acordasse de alguma maneira e voltasse para mim. Foi errado. Se calhar, se eu tivesse cedido e a tivesse internado num asilo...

- Tony, ela não teria sido mais feliz. Talvez não tivesse tomado os comprimidos, mas teria morrido de tantas outras maneiras.

Olhou para mim, a reflectir nas minhas palavras. Então, concordou com a cabeça.

- Tornaste-te uma mulher notável, Heaven. Ao olhar para ti, não consigo deixar de me lembrar da nossa primeira discussão neste escritório, quando me contaste a verdade acerca do teu passado e da morte da Leigh, e eu te recitei todas aquelas regras e ordens. Pensava que eras selvagem, indisciplinada, avessa. Queria dobrar-te e moldar-te numa pessoa do meu tipo.

"Como depois percebi, tu tinhas uma posição firme e uma vontade própria muito forte. Ias ser aquilo que estavas destinada a ser, e nada que eu desse ou fizesse mudaria isso. Julguei-te mal. - Ele riu-se. - Devia ter mais confiança nos meus próprios genes, ha? Eu devia ter-te dito a verdade sobre a tua ascendência logo nessa altura.

- Talvez - respondi eu.

E, então, pensei que, naquela casa, a verdade estava muitas vezes deslocada. Senti-me tentada a contar-lhe que sabia que o Troy estava vivo, mas contive-me. Era uma altura ainda demasiado tensa e emotiva. As feridas ainda eram muito recentes. De qualquer maneira, não conseguia deixar de estar zangada com ele por me ter escondido esse facto, fossem quais fossem as suas razões, porém, achei que era injusto acusá-lo e mostrar a minha fúria nessa altura.

- Onde está o Logan?

- Mandei-o para Winnerrow - informei eu. - Telefonava para lá de cinco em cinco minutos.

- Exacto, Winnerrow. Está tudo tão vago na minha cabeça. Sinto-me como se tivesse levado uma pancada na cabeça e ficado entorpecido.

- Foi como se tivesse levado, de uma certa maneira.

- Sim. bom, é melhor tentar recompor-me. vou para cima tomar banho e vestir-me, e depois venho para baixo comer. Avisa o Rye por mim, está bem?

- Claro, mas tenho a certeza de que ele tem qualquer coisa pronta. Tem tido o dia todo.

O Tony acenou com a cabeça.

- Queria agradecer-te por me teres dado tanta força e consolo, Heaven - declarou ele. - Mostraste que eras eficiente e digna de confiança. Fico contente por saber que, quando chegar a altura, vais conseguir tomar o meu lugar e gerir o nosso império financeiro.

- Ainda falta muito tempo para isso - repliquei eu. Ele não disse nada. Limitou-se a olhar para mim e, depois, saiu de trás da secretária. De repente, abraçou-me e apertou-me com força contra ele.

- Graças a Deus que estás cá - murmurou ele. - Graças a Deus que voltaste.

Beijou-me na testa, abraçou-me mais um bocadinho e, em seguida, foi-se embora. Por momentos, fiquei ali, de pé, no seu escritório, a pensar como os homens são tão complicados. Quando já pensamos que eles são insensíveis e duros, friamente pragmáticos e impiedosos, revelam os seus sentimentos mais profundos, mais íntimos, trazendo-nos lágrimas aos olhos. Nenhum dos homens da minha vida era fácil de entender, pensei eu, e perguntei a mim mesma se aconteceria o mesmo com todas as mulheres.

Deixei o escritório do Tony para dar instruções aos criados, indo depois para cima, descansar. O Logan telefonou-me nessa noite, muito excitado com algumas coisas que tinham acontecido enquanto estivera fora. Fartou-se de falar do projecto de Winnerrow, lembrando-se, por fim, de perguntar pelo Tony. Disse-lhe que achava que ele estava a começar a voltar ao normal, mas que ainda não tinha a certeza. O Logan aproveitou-se das minhas palavras para dizer que provavelmente teria de ficar até sábado. Tinha convencido os electricistas a trabalhar no sábado de manhã, e queria estar presente quando eles começassem, explicou.

- E dado que parece estar tudo a compor-se por aí...

- Faze o que tiveres de fazer, Logan - incitei eu. Como todos os homens, ele só ouvia aquilo que queria. Quase não falei com ele. Mas ele preferiu ignorar o facto.

- Está bem, e depois vou logo para casa - afirmou. A Amy Luckett telefonou na manhã seguinte, para saber se podia ir visitar-me. Fiquei contente pela distracção e convidei-a para almoçar. O Tony levantou-se mesmo para ir trabalhar; algumas horas depois de ter saído, telefonaram do escritório para lhe fazerem algumas perguntas. Disse à secretária dele que achava que ele tinha ido para lá. Não fazia a menor ideia onde estaria. Ela prometeu telefonar-me quando ele chegasse. Sentia-me preocupada com ele; porém, depois de a Amy ter chegado, embrenhei-me de tal maneira na conversa que nunca mais pensei no facto de a secretária de Tony não ter telefonado, até ao momento de a Amy se ir embora.

A Amy tinha aumentado consideravelmente de peso desde a altura em que éramos alunas em Winterhaven, uma escola privada para raparigas ricas. Agora, estava uma mulher de cara redonda, peito pequeno e ancas largas. Continuava a ter um sorriso meigo e calmo, olhos castanhos amigáveis e continuava a prender o cabelo no alto da cabeça. Tinha nuvens de sardas cor de pêssego por baixo dos olhos e por cima das sobrancelhas. Lembrava-me dela como uma rapariguinha baixa, atarracada, tímida, sempre na sombra das outras. Mas, ao contrário das outras, ela não parecia dominada pela sua riqueza e posição.

Estava um dia claro e cheio de sol, com uma leve brisa fresca vinda do mar. Pedi que me servissem o almoço no pátio voltado para a piscina e para o terraço. O Curtis abriu alguns chapéus-de-sol e nós sentámo-nos a mastigar pequenas sanduíches de fiambre e atum que o Rye tinha preparado. Ouvi as descrições das suas viagens, das paisagens que vira, das pessoas que conhecera. Depois, mudou de assunto.

- Recebi há algum tempo uma carta da Faith Morgan tile - informou ela -, enquanto estava a visitar Londres. A carta só falava de ti.

- A sério? A Faith Morgantile? Na escola, ela tratava-me como uma leprosa.

- Bem, a verdade é que ela sempre teve inveja de ti. Contava-me que te tinhas casado e voltado para Farthinggale. Até se conseguia ver as linhas da carta a escorrer de inveja. Se ela pudesse, tinha-a escrito com sangue.

Rimo-nos as duas.

- Hoje em dia, tento não pensar muito nessas raparigas - afirmei eu. - Fico tão irritada quando penso. Nunca me esquecerei das coisas que me fizeram. - Abracei-me a mim própria à medida que recordava a vergonha e a dor. As raparigas novas conseguem ser muito cruéis umas para as outras, pensei eu, especialmente raparigas mimadas e ricas.

- Foi cruel, mas elas tinham inveja! - repetiu a Amy, com os olhos muito abertos.

Eu sabia que ela havia sido obrigada a participar no que elas faziam. Se não o tivesse feito, elas ter-se-iam vingado. Desprezavam toda a gente que fosse diferente. Eu ficara imediatamente em desvantagem porque não tinha viajado como elas e porque o Tony me comprara o guarda-roupa errado: roupa rica e conservadora.

- Talvez. Embora não perceba porque é que tinham tanta inveja. Eram todas ricas e de boas famílias.

- Não conseguiam evitá-lo - afirmou a Amy. - Especialmente quando te viram com o Troy Tatterton, e tu lhes disseste que ele era demasiado sofisticado para sair com qualquer delas.

Afastei a pontada de dor ao ouvir o nome do Troy, e forcei-me a estar alegre e bem-disposta.

- Eu lembro-me. E também me lembro que foi pouco depois disso que estragaram toda a minha roupa boa e rasgaram todas as minhas camisolas. Como foram arrogantes quando disse que ia contar a Mistress Mallory. Sabiam que ela nunca faria nada que arriscasse perder o dinheiro das suas mensalidades.

- Pois sabiam - concordou a Amy, mordendo a sua terceira sanduíche.

- E quando eu fui ao baile e elas me pregaram aquela partida horrível, enchendo o chá e o ponche com uma substância laxante. - Agarrei o estômago, lembrando-me da dor, da agonia e da vergonha, sabendo que toda a gente no baile tinha conhecimento do facto.

A Amy parou de mastigar.

- Eu tentei avisar-te, eu disse-te para não ires ao baile quando te vi a pôr aquele vestido encarnado provocante.

- Eu sei, eu lembro-me.

A Amy abanou a cabeça, tristemente. Depois sorriu.

- Mas tu vingaste-te delas, quando empurraste a Pru pela conduta da roupa suja.

- Uma maneira estranha de ganhar o respeito delas. Nunca me tornei uma delas, mas deixaram-me em paz.

A Amy acenou com a cabeça, ansiosa por continuar com o seu tópico.

- Hoje em dia, pelas cartas que recebo e pelas coisas que ouço quando vejo alguma delas, têm mais inveja de ti do que nunca. Acham que és a mulher mais feliz e com mais sorte deste mundo.

- Acham?

- A viver aqui em Farthy, casada com um homem tão elegante, herdeira de uma fortuna tão grande...

Olhei para ela. Era mais do que óbvio que quem tinha inveja era ela. Apesar da sua riqueza e boa educação, dos colégios e das universidades da moda, da roupa e das viagens, ela estava sozinha, ainda à procura de alguma coisa romântica na sua vida. A frustração levava-a a comer de mais e o peso a mais tornava-a pouco atraente.

- Aumentaste bastante de peso, Amy - disse eu, quando a vi agarrar na quinta sanduíche. - Não te devias preocupar com isso?

- Oh, eu preocupo-me. Eu tento, mas às vezes sinto-me tão... esfomeada - disse ela e riu-se. - Mas tens imensa razão - continuou, e pousou a sanduíche. Encostou-se para trás e sorriu. - Está um dia lindo, não está?

- Está, lindo.

- Costumas ir ao labirinto inglês? - perguntou ela. - Eu teria medo.

- Às vezes.

Fez uma pausa e depois inclinou-se para a frente. Era óbvio que o que ela estava prestes a perguntar correspondia à verdadeira razão da sua visita. Tinha apenas levado tempo a arranjar coragem para tal. Sabia que ela estava à procura de informações íntimas, que a tornariam novamente valiosa para as raparigas de Winterhaven. Passariam a telefonar-lhe e a convidá-la para as suas casas, e ela sentir-se-ia importante e desejada. A mim, entristecia-me e aborrecia-me.

- Dize-me - pediu ela -, agora que já passou tanto tempo. Por que razão é que o Troy Tatterton se suicidou?

- Em primeiro lugar - respondi eu, num tom de voz formal e correcto -, não foi suicídio. Foi um acidente trágico. Ele perdeu o controlo do cavalo. E, em segundo lugar, eu não estava em Farthinggale para me armar em psiquiatra amadora, analisando toda a gente como algumas daquelas raparigas horríveis de Winterhaven faziam e muito provavelmente fazem, só porque tiraram um curso de introdução à psicologia.

- Bem, claro, eu...

- De qualquer maneira, não estou interessada em contribuir para esse tipo de mexericos, Amy. E também não é nada digno da tua parte. Já devias estar acima disso tudo...

- Claro que estou, claro que estou - declarou ela, abrindo mais os olhos para dar ênfase. - Foi só uma... uma curiosidade pessoal.

- Não devíamos depender das tragédias das outras pessoas para nos entretermos! - exclamei eu, com brusquidão, e olhei para o relógio. - Infelizmente, vais ter de me desculpar - prossegui -, mas ainda tenho imensas coisas para fazer. De certeza que compreendes.

- Claro, claro. Talvez nos possamos voltar a encontrar brevemente. Só devo partir para Paris no Outono. vou estudar arte - disse ela, cheia de orgulho.

- Que maravilha. Sim, eu telefono-te assim que puder menti eu. Estava contente por me ver livre dela. Apesar de não ser tão cruel como as outras, a sua chegada e a nossa conversa tinham-me trazido demasiadas recordações desagradáveis do meu tempo em Winterhaven. Tinha conseguido enterrar a maior parte na minha arca de tristezas, e não estava feliz por ver algumas a serem puxadas para fora apenas por ostentação, mesmo que só por uns minutos.

Depois de ela ter saído, perguntei ao Curtis se o Tony já tinha voltado ou telefonado. Quando ele disse que não, telefonei para o escritório, e a secretária disse-me que ainda não tinham tido nenhum contacto com ele. Nesse momento, mais preocupada do que nunca, pensei no que devia fazer. Ele andava tão estranho desde a morte da Jillian!

Como é que finalmente me lembrei, não faço ideia. Estava sentada na sala de estar a pensar nele quando me ocorreu aquela possibilidade. Levantei-me rapidamente, saí a correr de Farthy e atravessei os jardins até ao labirinto. Andei com rapidez pelos corredores de sebes até chegar à casa do Troy. Um arrepio gelado apertou-me o coração quando vi o carro do Tony estacionado em frente. Lentamente, aproximei-me da casa e espreitei pela pequena janela por trás da roseira.

Lá dentro, o Tony estava sentado na cadeira de balouço do Troy, em frente da lareira. Mal se mexia. Tinha passado provavelmente a maior parte do dia ali, continuando a lamentar-se em privado. Apesar de o Troy já lá não estar, para o Tony, estar na casinha do irmão no meio das suas coisas, sentado na sua cadeira, era suficiente para lhe dar conforto fraternal. Pensei em ir ter com ele, mas mudei de ideias. Às vezes, a privacidade é muito importante e muito preciosa, pensei eu. Tinha a certeza de que o Tony não queria ser encontrado ali naquela altura. Havia muita coisa que teria de ser dita e confessada, não só por ele mas também por mim. Voltei-me e regressei a Farthy.

Mesmo antes do jantar, o Tony apareceu. Fingiu ter trabalhado imenso. Não tive coragem de lhe dizer que o escritório tinha passado o dia a telefonar para lá. O Curtis deu-lhe alguns recados que ele ouviu sem dizer nada. Depois, foi directamente para os seus aposentos. Como disse que estava esfomeado e que ia descer para jantar, fui para cima, a fim de tomar banho e arranjar-me.

Depois de ter acabado o banho, o meu telefone tocou. Levantei o auscultador à espera que fosse o Logan. Não era. Era a Fanny. Não voltara a falar com ela desde a nossa discussão na minha casa, e eu sabia que ela me ia acusar de a evitar; no entanto, parecia que ela tinha outras coisas na cabeça, coisas muito piores. Conseguira finalmente descobrir a maneira de me atormentar o coração.

- Tive pena da tua avozinha - disse ela. - Ou não lhe chamavas avozinha? Se calhar tinhas uma maneira mais chique de chamar, agora que és uma senhora toda importante e rica.

- Eu tratava-a pelo nome próprio - disse eu. - Ou então por avó. Como é que tens passado, Fanny?

- Levaste muito tempo a perguntar! - exclamou ela. Houve uma pequena pausa. - Então, dize-me, Heaven Leigh, já estás grávida? Se ainda estivesses nos Willies já estarias comentou ela, com uma certa entoação na voz. Reparei que começara a falar melhor, embora a linguagem continuasse grosseira.

- Não, não estou, Fanny. Ainda não estou pronta para começar uma família.

- Ah... bem, tenho novidades para ti. Eu estou - afirmou ela, alegremente.

- A sério? - Sentei-me. Sabia que no instante seguinte ela me iria contar tudo sobre o Randall. de como tinha continuado a sair com ele, e de como ele a tinha engravidado; contudo, ela tinha outras surpresas em mente.

- E não foi culpa minha, Heaven. A culpa foi tua.

- Minha? - Já me estava a preparar para ouvir como a tinha deixado sozinha em Winnerrow, depois de ter prometido em pequena tomar conta dela. Sempre me acusara de deixar o pai vendê-la ao reverendo e à mulher, e dissera-me que eu devia ter feito mais para a impedir de lhe vender o seu bebé. O que ela era agora, o que lhe acontecia agora, era culpa minha porque era o resultado de tudo aquilo.

- Devias estar cá; devias ter mostrado mais interesse entoou ela. Não gostei do seu tom de voz alegre. Havia qualquer coisa nele, qualquer coisa de inesperado.

- Interesse? Interesse por quê? Do que é que estás a falar, Fanny? - perguntei eu, tentando mostrar-me o mais aborrecida e desdenhosa possível com os seus joguinhos.

- Interesse pelo teu próprio homem, pelo Logan - declarou ela.

- O Logan? Mas o que é que o Logan tem a ver com isso? - perguntei eu, com o coração a bater com mais força.

- Foi o Logan que me engravidou, é isso - disse ela.

- Eu é que vou ter um filho do teu marido, não és tu.

 

O JOGO DA FANNY

Os meus braços e as minhas pernas arrepiaram-se todos. Senti-me como se dois braços de gelo me tivessem abraçado. O riso curto da Fanny soou estático ao telefone. O som aguilhoava, no entanto. Mesmo querendo, não consegui afastar o auscultador do meu ouvido. Estava pegado, como o xarope de bordo congelado numa árvore de Inverno nos Willies. O"meu silêncio encorajou-a. Conseguia ver o ar odioso e perverso, os olhos incandescentes, os seus pequenos dentes a chispar. A Fanny sempre fora capaz de ligar e desligar as suas emoções como queria, mudar de uma para outra tão facilmente como mudava os canais da televisão.

- Se for um rapaz, vou chamar-lhe Logan - disse ela.

- E se for uma rapariga, acho que lhe vou chamar Heaven.

Não lhe respondi durante uns longos minutos; não conseguia responder-lhe. Os meus lábios estavam colados, os meus dentes tão cerrados, que até tive medo de os partir. Sentia as veias do meu pescoço a retesarem-se enquanto fazia um esforço tremendo para engolir. Como a minha garganta doía!

Os pensamentos passaram pela mente a uma velocidade tremenda. Talvez a Fanny estivesse a mentir por causa da inveja que tinha de mim. Não que não acreditasse que ela estivesse grávida. Nisso acreditava, mas eu acreditava que a criança tinha de ser de outra pessoa e não do Logan. Provavelmente era do Randall; porém, assim que a Fanny descobrira que estava grávida, tinha arquitectado aquele plano, aproveitando-se do facto de o Logan estar em Winnerrow tantas vezes, e de nós ficarmos separados muito tempo.

- Não acredito em ti - retorqui eu, por fim, com uma voz tão aguda e cortante que mal a reconheci. - Estás a mentir e isso é uma coisa horrível e má de se fazer! Mas não fico nada surpreendida, Fanny - continuei, recuperando o autocontrole. - Não me surpreende que ainda tentes meter-te entre mim e o Logan. É o que tens feito desde o primeiro dia em que o conheci - acusei eu -, e ele mostrou-te que me queria a mim e não a ti.

Ela riu-se de novo, como se fosse eu que vivesse num mundo de "faz de conta" e não ela. Pela primeira vez, parecia estar por cima, com um tom de voz condescendente. Era eu que tinha de ser acarinhada, era eu que tinha de ser tratada como uma criança. Isso fez-me ficar tão furiosa que desejei que ela estivesse à minha frente para lhe poder puxar o cabelo ou tirar a arrogância da cara dela à bofetada.

- Vá, ri-te, ri-te. Queres que te refresque a memória? Queres que te lembre daquela vez em que o Logan estava à minha espera ao pé do rio e tu tiraste o vestido e te puseste a correr para cima e para baixo completamente nua, tentando que ele fosse atrás de ti antes de eu chegar? Ele não foi atrás de ti, pois não?

- Só porque te ouviu chegar, Heaven. Foi ele que me pediu para eu tirar o vestido. Eu disse que talvez, ele disse "vá lá, desafio-te", e foi o que fiz, e depois ele ficou acagaçado porque te ouviu chegar.

- Mais uma das tuas mentiras - retorqui eu. - E daquela primeira vez que ele foi para a nossa casa, que tu andaste a pavonear-te em cuecas e sem nada a cobrir-te os seios a não ser uns xailes velhos da avó... Também foi ele que te pediu, foi?

- Não, mas olha que ele bem olhou, não foi? Estava sempre a olhar para mim, à espera de uma oportunidade.

- Isso é ridículo. É a coisa mais ridícula... Então... porque é que escolheu a Maisie Setterton em vez de ti quando teve a oportunidade, ha? - perguntei eu. Detestava o tom queixoso da minha voz e detestava entrar naquele jogo infantil da Fanny; porém, ela tinha-me posto tão furiosa que não conseguia evitá-lo.

- Ele só estava a tentar fazer-te ciúmes por andar com a irmã da Kitty Dennison, por achar que tu ainda gostavas do Cal Dennison. Foi ele que me disse - insistiu ela. - Pronto. Fizeste-me contar a verdade feia sobre ele, mas não vou continuar a escondê-la. Só estou a pensar em mim.

- Estás a mentir - foi apenas o que consegui dizer. Como é que a Fanny era sempre capaz de descobrir os meus pontos fracos nas minhas muralhas de defesa? Durante toda a nossa vida, desde que me lembro, ela brincara com os meus medos ou com a minha consciência.

Não estou a mentir. Vais ver quando perguntares ao Logan e o fizeres contar a verdade. Até te digo o que lhe deves perguntar. Pergunta-lhe porque é que foi tão simpático comigo sempre que eu ia ao terreno da fábrica. Pergunta-lhe porque é que ele não disse que não quando eu me ofereci para lhe levar comida nessa noite. Depois pergunta-lhe porque é que ele não me mandou embora para casa.

"Nem tens de lhe perguntar - acrescentou ela, rapidamente. - Eu digo-te. Ele sempre me quis, mas pensava que eu não era tão boa como tu. Bem, tu és boa, esperta e toda fina, mas não estás com ele quando ele quer. Não sabes que um homem gosta de ter a sua mulher ao pé dele? O mais engraçado é que tu pareces mais esperta do que eu e não sabes nem metade do que eu sei no que toca aos homens.

- Não acredito em ti - repeti, com voz fraca.

- Não? Ele falou-me dos vossos belos aposentos em Farthy, sobre o quadro dos Willies que têm por cima da cama, sobre...

- Cala-te - ordenei. - Não quero ouvir mais disparates.

- Está bem, eu calo-me, mas só por agora. vou ter um bebé do Logan e ele vai assumir a responsabilidade, ouviste? Quero que ele tome conta de mim para sempre. - Fez uma pausa. Eu mal respirava. - Nem sequer me perguntou se eu tinha alguma protecção nessa noite. Tomou-me simplesmente nos seus braços e...

Bati com o telefone; calculei que em vez de ter ficado aborrecida, a Fanny estaria provavelmente a rir-se. Por uns instantes permaneci ali sentada, a olhar para o quadro dos Willies pendurado por cima da cama. Depois, enrosquei-me na cama e desatei a chorar. O meu corpo estremecia tanto com os espasmos de dor e desgosto que o quarto todo parecia vibrar.

Traída novamente, pelo único homem em que eu pensava poder acreditar para sempre. Pelo único homem que estava sempre presente. Era igual aos outros! Não era justo. Porque é que eu estava destinada a confiar e a acreditar nos homens de cujo amor eu precisava, quando eles acabavam sempre por me trair? A Fanny tinha razão: eu era mais ignorante do que ela no que tocava aos homens. "Oh, Logan, como é que foste capaz! Como é que foste capaz!"

Lentamente, as minhas lágrimas abrandaram até eu me sentar, fungando e esfregando os olhos até ficarem vermelhos, até chegarem a arder. Respirei fundo várias vezes; senti o coração a abrandar. Depois, tentando dominar-me, repreendi-me a mim própria por ter deixado a Fanny atingir-me. Ainda havia uma boa hipótese de ela ter inventado tudo. Tinha de me agarrar a isso e ter esperança.

com os dedos a tremer, marquei o número de telefone da minha casa dos Willies. O telefone tocou, tocou e continuou a tocar, mas o Logan não respondeu. Talvez estivesse nos pais, pensei eu, e telefonei para lá. Atendeu a mãe dele.

- Não, querida - disse ela -, ele não está cá de momento. Convidámo-lo para jantar, mas ele está no refeitório a jantar com o capataz e um dos empreiteiros. Passa-se alguma coisa? Podemos ajudar nalguma coisa?

- Diga-lhe para me telefonar assim que voltar - pedi eu. - A qualquer hora.

- Digo, sim. Já, já, querida.

Menos de cinco minutos depois o telefone tocou. Era o Logan, a telefonar do refeitório em Winnerrow.

- O que é que se passa, Heaven? É alguma coisa com o Tony?

- Não, Logan. É com a Fanny - disse eu, friamente.

- A Fanny? - Ouvi-o a engolir em seco do outro lado do telefone, ouvi a hesitação na voz dele. O meu coração endureceu como uma pedra. - Mas... mas... De que é que estás a falar?

- Sabes muito bem de que é que eu estou a falar. Houve um silêncio do outro lado do telefone.

- Heaven, não sei. O que é que se passa com a Fanny?

- É melhor voltares já para casa, Logan - disse eu. Outra pausa longa.

- Heaven, o que é que a Fanny andou a contar-te? Tu sabes bem que ela quer estragar tudo entre nós.

- Ela está grávida - respondi eu. Não ia acrescentar mais nada.

- Grávida? Mas...

- Não vou discutir mais isto pelo telefone, Logan - repliquei eu.

- Está bem - retorquiu ele, e suspirou. - vou já para aí.

Era o mesmo que uma confissão. Pousei o auscultador suavemente, como se fosse um passarinho jovem muito frágil... Em seguida, voltei-me e vi-me na parede de espelhos. O meu pescoço e o peito estavam cobertos de manchas vermelhas, uma erupção que tinha aparecido por causa dos nervos. A minha cara estava tão corada que até parecia sofrer de uma febre altíssima. Os meus olhos estavam raiados de sangue e o meu cabelo, ainda molhado do duche, pendia para os lados e para trás da cabeça. Parecia a Jillian num dos seus ataques de loucura.

Sentada ali a olhar para aquela estranha imagem de mim própria, os meus sentimentos foram da fúria à raiva até à autopiedade. O meu marido tinha dormido com a minha irmã. A Fanny tinha finalmente encontrado uma vingança satisfatória e dado voz à sua inveja gritante. Eu estava magoada, mortalmente ferida. Quanto é que o amor aguentava? Quanto? As pessoas que viessem a Farthy olhariam uma vez para mim e saberiam que eu era uma mulher traída pelo marido. O que este tipo de informação seria nas mãos da Amy Luckett! Imaginei as raparigas perversas e arrogantes de Winterhaven a juntarem-se à minha volta e a entoar: "A Heaven foi traída! A Heaven foi traída!"

Então, tão depressa quanto viera, a autopiedade desapareceu da imagem como um embrulho de celofane num chocolate proibido, e foi substituído por um embrulho de culpa muito mais pesado e sombrio. O Troy. O meu amado, lindo e apaixonado Troy. Eu tinha traído o Logan com o Troy. Contudo, não era o mesmo, não, de maneira nenhuma. Porque eu amava-o, amava-o verdadeiramente de alma e coração, embora fosse mais um espectro do que propriamente de carne e osso. Como é que eu o podia recusar, agora? E não era errado, não era a mesma coisa, não era, porque ele era apenas um fantasma do meu amor regressado por um precioso momento fugidio. O meu amor era a sua força vital, e tê-lo negado teria sido negar o que eu era, o espírito mais puro e nobre em mim. Ele tinha voltado e depois regressado ao desconhecido, obscuro, misterioso mundo do esquecimento, para nunca mais ser visto ou ouvido. com certeza que isso era diferente daquilo que o Logan fizera. Não acreditava que o Logan sentisse algo de profundo pela Fanny. Tinha sido luxúria, simples luxúria que o tinha levado a ela, e não tinha sido amor, mas sim vingança e ódio que a tinham levado a ele. Ela era um mero objecto de prazer, uma distracção sexual, uma feiticeira. Naquele momento, odiava-a por tornar a minha vida uma coisa de mau gosto, por transformar uma coisa pura em algo sujo e desprezível, e o meu ódio por ela deu-me forças para enfrentar a crise.

"Não", decidi eu, "eu não vou comparar o meu amor com o Troy com o acto carnal do Logan." O Logan era um homem de carne e osso, o Troy era um homem de alma e sonhos. A Fanny tinha razão: ela sabia mais sobre os homens do que eu. Mas eu sabia mais sobre sobrevivência.

Nessa noite, ao jantar, não contei nada sobre o problema com a Fanny ao Tony. Tinha decidido deixar o Logan explicar por ele próprio o seu súbito regresso a Farthy. De qualquer maneira, não queria que o Tony alguma vez soubesse. Naquela noite, ao jantar, enquanto tentava permanecer composta e serena, reparei que o Tony parecia de alguma maneira reanimado, com um dos seus fatos azul-claros de Verão, o cabelo bem penteado; porém, pouco falou, e de vez em quando olhava para mim, com um olhar turvo e distante como alguém cujos olhos se tivessem virado para dentro e estivesse a olhar para alguma imagem ou recordação do passado. Entre os pratos, sentou-se com o queixo apoiado nas suas mãos elegantes e bem arranjadas, sem dizer nada, e depois baixou os dedos e tamborilou uma batida indiferente na toalha de renda... e nos meus nervos.

O pouco que comi, fi-lo porque não queria chamar a atenção para o meu estado. A nossa conversa mais comprida surgiu quando eu sugeri ao Tony que tirasse umas curtas férias.

- Uma mudança de ambiente fazia-lhe muito bem - insisti eu.

- Também virias? - perguntou ele, rapidamente.

- Não posso - respondi eu. - Não posso ir... com o Logan tão envolvido na fábrica nova em Winnerrow... Tenho de passar mais tempo com ele. Tal como todos os homens, ele não sabe quando é que está a trabalhar de mais ou há demasiado tempo.

O Tony sorriu e acenou com a cabeça.

- A Jillian costumava queixar-se disso. Andava sempre atrás de mim para a levar numa lua-de-mel especial e, se eu argumentasse com o trabalho que tinha, dizia-me para o deixar ao Troy. O Troy era criativo. Era um génio criativo mas não era administrador nem gestor.

"Mesmo assim, se não tivesse sido pela Jillian, nunca teria tirado férias para viajar, como fiz, ou ido a festas, ou dado recepções aqui. Ela conseguia ser tão luminosa, uma jóia, tão cheia de energia, a passear-se pela casa com um rasto de riso atrás dela, e com o seu perfume de jasmim a pairar no ar.

"Eu sei que ela se dedicava de mais a si própria, mas era agradável ter algo suave e bonito, e mesmo que apenas numa ilusão, alguém eternamente jovem. É engraçado - prosseguiu ele, sentando-se para trás e sorrindo para si mesmo -, mas mesmo quando ela estava nos seus aposentos, mascarrando-se com maquilhagem e inundando-se de perfume, era-me agradável saber que ela estava lá. Podia passar à porta dela e inalar o perfume, e recordar.

Nesse momento, a sua voz tornou-se um queixume, e o seu olhar distante focou-se em mim, com a dor a voltar-lhe aos olhos, viva e aguda.

- Agora as portas estão fechadas, o patamar cheira como os outros patamares desta casa enorme, e só há silêncio. Abanou a cabeça e olhou para baixo.

- Tony, por isso é que acho que precisa de mudar de ares, mesmo que por pouco tempo. Diga-me o que tem de ser feito durante esse tempo, e eu trato do assunto. Sou capaz disso - assegurei-lhe eu.

Olhou para mim, a sorrir.

- Eu sei que és. Já não me preocupo com isso. - Inspirou profundamente e suspirou. - Logo vejo - disse. - Talvez.

Depois do jantar, retirou-se para o escritório a fim de trabalhar. Tentei distrair-me a ler; o riso da Fanny, porém, ecoava na minha cabeça, tirando-me os olhos do livro. Por fim, fui para cima, para esperar o Logan nos nossos aposentos.

Já era muito tarde quando ele finalmente chegou. Tinha adormecido vestida, e os meus olhos abriram-se instantaneamente no momento em que ele entrou no quarto.

Ficou ali a olhar para mim. Parecia que tinha vindo a correr o caminho todo. Tinha os olhos raiados de sangue, os ombros curvados, e o cabelo desgrenhado. Era como se tivesse passado por um misturador eléctrico. Não se tinha barbeado, e a sua barba era irregular. O fato estava amachucado e a gravata larga, o colarinho desabotoado. Era como se a mão da Fanny ainda estivesse visível.

Por um momento limitámo-nos a olhar um para o outro. Então, sentei-me, penteei o cabelo com as mãos e inspirei fundo.

- Quero que me digas a verdade, Logan - pedi eu, com a voz despida de emoções. - Fizeste amor com a minha irmã?

- Fazer amor - repetiu ele, sarcasticamente. Tirou o casaco e pô-lo numa cadeira ao pé do seu roupeiro. - Eu não chamaria fazer amor ao que aconteceu entre nós.

- Não pretendo fazer jogos de palavras contigo, Logan. A Fanny telefonou-me a dizer que está grávida e que a criança é tua. É mesmo tua?

- Como é que eu hei-de saber? Como é que alguém pode ter certezas quando se trata da Fanny?

- Conta-me o que aconteceu, Logan - insisti, voltando-me para o lado. Olhei para o chão. Sentia-me desorientada. O meu corpo ficou entorpecido como se eu tivesse escorregado e caído num dos lagos da floresta dos Willies, na altura em que eles tinham apenas uma superfície muito fina de gelo: Quanto é que eu e o Logan nos íamos afundar agora?, pensei eu.

- Aconteceu quando começámos a trabalhar na fábrica começou ele. - Eu estava tão embrenhado em tudo aquilo que nem pensava claramente. Ela apareceu algumas vezes e andava por lá, a ver-me trabalhar, a falar com os trabalhadores. Nem pensei muito no assunto. Não ia enxotá-la com certeza, embora lhe tivesse pedido uma ou duas vezes para não distrair os homens, quando eles estavam muito ocupados.

- Continua - disse eu. Ele atravessou o quarto e parou ao pé do espelho, de costas para mim.

- Um dia ela disse-me que ia aparecer em minha casa com uma refeição caseira. Disse que só queria compensar pelos problemas que nos tinha causado. Que só queria ser novamente considerada como irmã, como parte da família. - O Logan voltou-se. - Eu acreditei nela, Heaven. Foi muito convincente e parecia muito comovida.

- A Fanny é uma óptima actriz - comentei.

- Contou-me da criança que tinha perdido, de como era difícil viver na mesma comunidade que ela, vendo-a de vez em quando, mas sem poder ser uma mãe para ela. Depois falou sobre a Jane e o Keith e de como eles não querem ter nada a ver com ela. Contou-me do casamento de conveniência dela com o velho Mallory, como tinha conseguido uma boa casa e algum dinheiro com isso, mas como se sentia sozinha, como se sentia sem uma família. Parecia tão sincera que eu pensei que ela tivesse mesmo mudado. Talvez o tempo e a maturidade a tivessem feito ver as coisas.

- Por isso fizeste amor com ela? - perguntei eu, acusando-o. Ele abanou a cabeça.

- Não por causa disso. Não foi isso que aconteceu. Ela apareceu mesmo com a refeição caseira e estávamos a jantar muito bem juntos. Fez-me rir com histórias sobre os velhos tempos, com algumas das coisas marotas que tinha feito na escola. - Olhou para mim por um momento, como que a decidir se continuava ou não. Não queria que ele me poupasse os detalhes mais sujos, pensei eu.

- E...?

- Bem, ela tinha trazido algumas garrafas de vinho. Não achei nada de mais. Bebemo-las ao jantar e continuámos a falar, e a beber e a falar. Acho que fiquei um bocado bêbedo. E também tinha tantas saudades tuas. Mas não vou usar isso como desculpa - acrescentou ele, rapidamente. - Eu sei que não é desculpa suficiente... Só quero que entendas o que aconteceu e como aconteceu.

- Estou a ouvir - afirmei. Tinha uns olhos frios, inflexíveis e decididos. Ele teve de desviar o olhar.

- bom, para começar estava uma noite quente e, como de costume, a Fanny estava com um daqueles vestidos de algodão dela, muito soltos e sem ombros. Não me apercebi disso ao princípio, mas à medida que falávamos e bebíamos o vestido foi descendo, descendo até... - Abanou a cabeça.

- Nem sei como é que aconteceu exactamente. Num momento estávamos sentados à mesa e no outro ela tinha os braços à minha volta e estava seminua.

"Continuou a falar sobre como se sentia sozinha e como eu me devia sentir sozinho e de como ela precisava de ser amada e de como uma noite não ia fazer diferença. O vinho tinha-me posto tonto. Antes que me apercebesse, estávamos na cama.

"A sério, pareceu-me mais ter sido violado do que ter feito amor com ela... - Acredita-me - implorou ele.

- Oh, como deves ter sofrido - retorqui eu, sarcasticamente. Ele deixou cair os braços e abanou a cabeça lentamente.

- Eu sei. Tens razão. Não consigo inventar nenhuma desculpa que justifique o que aconteceu mas, acredita-me, foi só daquela vez. Quando me apercebi do que estava a acontecer e do que tínhamos feito, senti-me muito mal e exigi que ela saísse da minha casa e que nunca mais voltasse à fábrica.

"Pensei que já tinha acabado... Uma imprudência de uma noite. Tentei pô-la para trás das costas, tentando convencer-me de que tinha sido um pesadelo. Achei que se pensasse assim conseguiria viver com aquilo e acabar por esquecê-lo.

"Por favor, Heaven, acredita em mim. Não houve mais nada. Eu nem sequer gosto dela. Mas... sou apenas um homem, e ela soube aproveitar-se do facto, tal como o diabo teria feito - acrescentou, rapidamente. - Tenho-a evitado desde aí. Ela voltou à fábrica algumas vezes, mas eu nem olhei para ela. - Ele sentou-se ao meu lado. - Eu sei que é exigir muito pedir-te que me perdoes, mas estou a implorar-te que o faças - disse ele. Estendeu o braço para a minha mão. Deixei-o agarrá-la, mas não olhei para ele. - Não sei o que posso fazer para tentar endireitar as coisas. Só posso dizer-te que tu és a minha vida, e que se me virares as costas e decidires deixar-me, nem sei o que farei. A sério.

Não respondi. Ele baixou a cabeça. Não podia saber; estava a decorrer uma batalha dentro de mim. Era como se houvesse duas de mim. Uma queria ser dura e má, queria dizer todo o tipo de coisas malévolas e zangadas e expulsá-lo do quarto. "Homens!", pensei eu. Como conseguiam ser tão falsos. Nunca deixavam de ser rapazotes, rapazotes egoístas. Essa parte de mim sabia que o Logan estava a tentar dar a volta e influenciar os acontecimentos, a fim de parecer a verdadeira vítima. Como se pudesse ser tudo culpa da Fanny.

Depois, a segunda parte de mim, a parte mais branda e mais magnânima via a agonia nos olhos do Logan, o tormento no seu rosto. Ele tinha medo de me perder. Se calhar, estava a dizer a verdade; se calhar, era culpado apenas de uma simples imprudência. Talvez se sentisse sozinho e eu tivesse feito mal em não o acompanhar a Winnerrow.

E o que é que me tinha impedido de ir, perguntava o meu segundo eu. Não tinha sido o meu desejo pelo Troy, a minha paixão pelo passado, o meu esforço para tornar possível o impossível? Eu também tinha alguma culpa em relação ao que acontecera. Era apenas justo que eu perdoasse.

- Heaven - chamou ele novamente, pressionando a minha mão na sua cara. - Por favor, acredita em mim. Foi um erro e eu estou arrependido. Não queria fazer nada que te magoasse.

- Ela diz que o bebé é teu - repeti eu.

- O que é que queres que eu faça? Dize-me o que devo fazer. Eu faço aquilo que achares certo.

- Quando toca à Fanny, não podemos estar preocupados com o que é certo ou errado. A Fanny vai conseguir o que quer. O que ela vai fazer é espalhar que vocês dormiram juntos.

- Mas toda a gente em Winnerrow sabe como ela é comentou ele. - com certeza que por causa disso...

- Por causa disso, vão acreditar nela - respondi eu. - Se qualquer pobretanas dorme com ela, porque não também o Logan Stonewall? Muitas daquelas pessoas estão ansiosas e dispostas a acreditar em coisas más de nós, ou porque têm inveja ou porque simplesmente não têm estômago para aguentar uma Casteel tão rica e poderosa na sua cidade.

- Queres dizer que devemos deixar a Fanny fazer chantagem connosco?

- De qualquer maneira, pode ser teu o filho, não pode? - perguntei eu. Ele fechou os olhos e apertou os lábios. - Eu trato da Fanny - decidi eu. - Ela fica satisfeita quando souber que vamos tratar dela, quando souber que me magoou profundamente.

- Oh, meu Deus, Heaven. Estou tão arrependido. Tão arrependido - lamentou-se ele, tapando a cara com as mãos. Uma parte de mim queria consolá-lo, mas uma parte mais forte, mais dura, não me deixava fazê-lo.

- Pensa numa desculpa para o teu regresso repentino disse eu. - Não quero que o Tony saiba disto.

- Está bem. Digo-lhe só que tinha saudades tuas e...

- Voltei-me tão depressa que ele engoliu o resto da frase.

- Não quero ouvir nada disso neste momento, Logan. Só quero ir dormir e ver como é que amanhã consigo recuperar o respeito por mim própria. Percebes?

Ele acenou com a cabeça, com um ar tão frágil, inseguro e arrependido que eu mal consegui manter o meu comportamento duro.

- Ainda bem - concluí, e arranjei-me para ir para a cama.

Mais tarde, deitou-se a meu lado, tendo muito cuidado em não me tocar. Enroscou-se o mais longe possível, no seu lado da cama. Quando olhei para ele, parecia um rapazinho, um rapazinho que tinha sido maroto e mandado para a cama sem jantar. Tentava não respirar muito alto, com medo de levar mais castigos.

Não pude deixar de me interrrogar sobre como teria sido em circunstâncias contrárias. Qual teria sido a sua reacção se eu tivesse confessado o meu encontro com o Troy e o facto de termos feito amor? Ter-me-ia perdoado ou odiado? Teria compreendido? Ter-me-ia obrigado a dormir longe dele na cama sem me tocar, sem me dar qualquer esperança de me redimir?

Chorei silenciosamente nessa noite por nós todos, até pela Fanny, que estava tão cheia de inveja e ódio que era capaz de se destruir só para se vingar de mim. Eu sabia que nos próximos anos ela usaria aquela criança como um chicote, atingindo-me sempre que pudesse, recordando-me de quem era a criança. A minha única esperança era que ela se parecesse tanto com o Randall Wilcox que a questão da paternidade ficasse claramente respondida. Contudo, no meu coração, sabia que na verdade isso não serviria de nada. Assim que mandasse o primeiro cheque à Fanny, ela tinha controlo sobre nós.

Enfim, pensei eu, racionalmente: pelo menos ia tudo para a família.

Família. Tão estranha e feia que essa palavra era agora. E talvez fosse isso o mais triste de tudo.

O Tony ainda estava tão aturdido no dia seguinte que nem pensou muito no regresso repentino do Logan. O Logan contara-me que ele ouvira apenas metade do que ele dissera. De certa maneira até foi bom ter vindo a casa, pois assim acompanhou o Tony aos escritórios e às lojas da Tatterton, e conseguiu assumir alguns deveres que o Tony ainda não estava capaz nem disposto a assumir para já.

Todos os restantes dias da semana, o Logan trouxe-me um presente antes de jantar. Sabia que ele estava a tentar reconquistar o meu coração. Trouxe-me flores e roupa, chocolates e jóias. Não me pressionava em relação ao meu perdão. Limitava-se a dar-me os presentes e esperar um sinal ou uma palavra mais doce.

Por fim, uma noite, quando chegou ao quarto depois de ter passado o dia com o Tony, encontrou-me a chorar. Deixei-o abraçar-me e beijar-me e acariciar-me o cabelo. Ouvi as suas súplicas e as suas palavras de amor. Deixei-o fazer promessas eternas e implorar o meu perdão e o meu amor. E, depois, deixei-o beijar-me sofregamente nos lábios.

Eu própria tinha medo que nunca mais fizéssemos amor ou que, quando fizéssemos, fosse tão mecânico e impessoal que não significasse nada. Porém, a minha necessidade de ser amada e de afastar todas as dificuldades e tristezas por que eu tinha passado foi maior do que eu pensava, e a necessidade do Logan em ser perdoado consumia tudo. Fizemos amor apaixonadamente e, antes de acabarmos, chorávamos os dois nos braços um do outro.

- Oh, Heaven - murmurou. - Desculpa ter-te magoado, ter sido a causa de tanta dor. Preferia atravessar uma parede de chamas do que ter feito isto contigo.

- Beija-me e ama-me e nunca mais me tires da tua cabeça - sussurrei eu, sem fôlego.

Nunca. Vais fazer tanto parte de mim que quando estiveres doente, eu estarei doente, quando estiveres cansada, eu estarei cansado. Quando rires, eu rio. Vamos ser como gémeos siameses, ligados por um amor tão forte que até o Cupido vai ficar espantado. Juro! - prometeu ele. Beijou-me tantas vezes que fez o meu corpo tinir e cantar. Estava tão grato pelo meu amor e pelo meu perdão que me fez sentir novamente uma princesa, concedendo-me a dádiva da vida e da felicidade.

Naquela noite, ambos dormimos melhor do que em toda a semana. De manhã, quando fomos tomar o pequeno-almoço, era como se o manto de luto tivesse sido levantado na casa. Até o Tony parecia mais vivo e ansioso por começar o dia. Ele e o Logan voltaram a falar de Winnerrow. A velha energia e o velho entusiasmo voltou. Decidimos todos partir naquela tarde para Winnerrow e ir visitar a fábrica. E enquanto lá estivéssemos, eu iria visitar a minha irmã Fanny.

O Logan sabia que era isso que eu ia fazer quando o deixei-a ele e ao Tony na fábrica. A Fanny tinha uma casa de estilo moderno no alto de uma encosta, do outro lado directamente em frente dos montes onde estava a minha casa de madeira. Tinha-a construído com o dinheiro do Mallory, o homem idoso com quem havia casado e depois divorciado. Ele tinha-lhe dado uma pensão de alimentos durante aquele tempo todo. Dois cães dinamarqueses vieram a ladrar até ao meu carro, enquanto eu estacionava. A Fanny teve de vir cá fora pô-los na ordem, para eu conseguir sair do carro. Achou o facto muito engraçado.

- São bons cães de guarda - exclamou ela. - Nunca se sabe quem cá vem, não é, Heaven?

- Afasta-os apenas de mim - pedi eu, franzindo as sobrancelhas. Tinham um aspecto macilento e mal tratado. A Fanny nunca gostara de animais. Dizia que os tinha apenas para protecção, mas até os cães de guarda precisam de amor e afecto.

- Ora que bela surpresa! - declarou ela quando eu finalmente saí do carro.

- Não é surpresa nenhuma, Fanny. Não para ti. Atirou a cabeça para trás e riu-se.

- Não devia haver ressentimentos entre nós, Heaven. As irmãs deviam manter-se unidas, não deviam?

- Pois deviam. E as irmãs também não devem tentar roubar os maridos das irmãs.

Riu-se outra vez.

- Vais entrar, ou a minha casa não é suficientemente boa para ti?

Sem lhe responder, entrei na casa. Não havia grandes alterações desde a última vez que lá estivera. Os olhos dela não me largaram enquanto eu olhava em volta.

- Não é de luxo, mas é confortável - disse ela. - Talvez agora consiga o teu dinheiro para comprar coisas finas e caras.

- O que aconteceu à tua pensão de alimentos?

- Não soubeste? O velho Mallory bateu a bota e o ingrato deixou tudo aos filhos. Eles nem queriam saber dele, mas ele estava cego, tal como quase todos os homens.

- Estou a ver.

- Não te vou oferecer nada para comer ou beber. Muito provavelmente achas que eu não sou suficientemente limpa, agora que moras num palácio e comes em pratos de prata e também em travessas de prata.

- Não estou a fazer uma visita de cortesia, Fanny. Sabes muito bem. Sabes muito bem porque estou aqui. - Sentei-me no sofá e olhei para ela. Sentisse o que sentisse pela minha irmã, tinha de reconhecer que era uma mulher muito atraente. Usava o seu cabelo preto cortado curto por cima do pescoço, à moda, e os seus olhos azuis estavam mais vivos e brilhantes do que nunca. A sua figura era tão rica e perfeita como nunca vira. Ela reparou na maneira como eu olhava para ela e pôs as mãos nas ancas. A sua gravidez ainda não era visível, por isso ainda exibia uma silhueta perfeita.

- Dizem que a gravidez dá à mulher um ar saudável declarou ela. - O que é que achas?

- Acho que estás bem, Fanny. Presumo que tenhas ido ao médico.

- Presumes bem. vou ao médico que está mais na berra, o mais caro que há. Este bebé só vai ter do melhor. E já lhe disse para onde deve mandar as contas. bom... - Sorriu e sentou-se à minha frente. - Deduzo que já tiveste uma conversinha com o Logan.

- Não vim discutir contigo, Fanny. O que aconteceu, aconteceu. Ainda é muito cedo para saber se o bebé é mesmo do Logan, mas...

- Armada em superior, ha? Ainda é muito cedo para saber... Isso quer dizer que eu ando a dormir com toda a gente, ha? Bem, eu não quero saber das tuas conversas e não consegues fugir da verdade. Eu não estou com o Randall há quase um mês e não estive com mais ninguém além do Logan.

O médico sabe dizer quando é que um bebé é feito, Heaven. E o Logan Stonewall fez este - troçou ela, batendo na barriga. Eu estremeci.

Tinha ido ali com a esperança de ser dura e decidida, apresentar-lhe uma proposta e sair com alguma dignidade; como de costume, a Fanny estava acima de qualquer vergonha e receio. Os seus olhos faiscavam com uma satisfação teimosa e arrogante.

Não vou propor fazer testes para saber o que é verdade e o que não é, Fanny. Só ia magoar toda a gente.

- Não propões... - Ela recostou-se, sorrindo como um gato selvagem louco. - Bem, então o que é que propões, Heaven Leigh? - Semicerrou os olhos até só se vislumbrar o branco por entre as suas pálpebras carregadas de pestanas.

- Claro que nos responsabilizamos pelas contas do médico.

- Claro. E...?

- E daremos uma quantia para sustentar a criança e as suas necessidades...

- E as suas necessidades incluem-me a mim?! - gritou ela. - Eu não sou nenhum alfinete para espetar e se esquecerem dele, sabes. Quero ser tratada como uma mulher com classe, tal como tu - continuou, pondo os punhos nas ancas e estendendo as pernas. - E também que julgas tu que és... Vir aqui e ofereceres-te para satisfazer as necessidades do bebé? O teu marido veio ter comigo porque tu não estás lá quando ele precisa de amor e carinho e agora tens de pagar o inferno. Tenho de viver com a criança, não tenho? Tenho de estar amarrada, não tenho? Não vou poder andar à procura de um novo homem.

- Fanny - disse eu, sorrindo -, tens a certeza que queres conservar essa criança?

- Ah, estou a ver onde queres chegar. Pensas que podes chegar aqui e fazer-me uma única oferta, ha? Ficar com o bebé e, se calhar, fingires que é teu, ha? E depois não tenho direito a mais nada, pois não? Espertalhona... Só que eu já não sou estúpida, estúpida como fui quando o reverendo levou a minha Darcy.

- Mas acabaste de dizer que ia ser muito difícil para ti teres uma criança, e tens razão. Isso vai restringir-te.

Ela sorriu, e quando a Fanny sorria, mesmo com um sorriso diabólico e odioso, os seus dentes brancos brilhavam intensamente contrastando com a sua cor indiana.

- vou arriscar - disse ela.

- Mas que tipo de mãe é que vais ser para essa criança? - perguntei eu, com o tom de voz mais sensato que consegui, apesar do esforço que estava a fazer para controlar a minha fúria.

Os seus olhos escuros semicerraram-se novamente.

- Vá, não comeces outra vez com essa história, Heaven Leigh. Essa foi a tua desculpa para quando não conseguiste recuperar a minha Darcy do reverendo Wise.

- Não é uma desculpa, Fanny - respondi eu, ainda calmamente. Ela recostou-se e olhou para mim. Depois, abanou a cabeça.

- És mesmo igual ao pai, não és? Pronta a comprar e a vender crianças... Fazes qualquer coisa para te facilitar a vida!...

- Não é nada disso, nada disso! - repliquei eu. Como é que ela podia dizer uma coisa daquelas? Eu não estava a cuidar dos meus interesses, mas sim preocupada com o que ela podia fazer à criança.

- Claro que é. Pagas-me uma quantia pela criança e depois vais vendê-la para outro lado, não é? Não é? - exigiu ela.

- Não. Essa não era a minha intenção.

- Mas eu também não quero saber das tuas intenções. A resposta é não. vou ficar com o bebé, e tu e o Logan vão-me pagar pró tratar bem. Vai valer tanto quanto os teus filhos, e vai às melhores escolas e vestir a melhor roupa, percebeste, Heaven?

- Percebi - afirmei eu. - Então o que propões? perguntei.

A pergunta, exigindo algo específico da parte dela, apanhou-a de surpresa. Por um momento, limitou-se a pestanejar. - Quanto é que achas que devemos dar-te por mês, Fanny?

- Não sei. Acho que... Mil e quinhentos. Não, dois mil.

- Dois mil dólares por mês?

Observou-me para ver se eu estava feliz ou aborrecida com a quantia; eu conservei uma cara sem expressão.

- Bem, o velho Mallory mandava-me mil e quinhentos, mas isso era sem a criança. É melhor dois mil e quinhentos - concluiu ela. - E quero a massa no princípio do mês, sem falta. Não deve ser muito difícil para ti, Heaven. Não deve ser... A construírem aquela fábrica grande em Winnerrow e tudo...

Levantei-me bruscamente.

Vais receber os teus dois mil e quinhentos por mês

sem falta, Fanny. Vamos abrir uma conta para ti e para a criança no banco de Winnerrow. Mas, aviso-te desde já, se alguma vez tentares fazer chantagem connosco com a ameaça de contares à população de Winnerrow histórias sobre ti e o Logan... corto-te o dinheiro até ao último tostão e tens de te valer a ti mesma.

"E não te quero a conversar com o Logan ou a tentar vê-lo ou contactá-lo seja de que maneira for. Se tiveres algum problema, telefonas-me directamente, percebido?

Ela olhou para mim, com os olhos escuros muito brilhantes, a chisparem ódio e inveja. Então, a sua expressão mudou para dor. Ninguém conseguia mudar assim de emoção e substituí-la por outra como a Fanny.

- Estou tão desiludida contigo, Heaven. Pensava que ias ter pena de mim. Aproveitaram-se de mim, sabes? Os homens só sabem fazer isso, aproveitarem-se.

"Vens à minha casa, onde eu vivo sozinha, só com dois cães de guarda, vens da tua casa onde tens todos aqueles criados e alguma família e um marido e todas aquelas coisas modernas, e que é que tu fazes? Tratas-me como uma ladra, em vez da irmã que sofreu contigo nos Willies. Devias vir oferecer-te para fazer muito mais por mim.

- A vida não tem sido tão meiga comigo como tu pensas, Fanny. Não foste a única pessoa que sofreu, e quando eu sofri tu nunca estiveste perto para me ajudares. Não tive mais ninguém a não ser eu própria.

- Tinhas o tom. Sempre tiveste o tom. Ele adorava-te e nunca gostou de mim, nunca se preocupou comigo. E o Keith e a Jane também nunca se preocuparam comigo.

- Vais receber o teu dinheiro - disse eu. Dirigi-me para a porta. Ela levantou-se para me seguir.

- Eles gostam de ti porque és rica e moderna. Mesmo quando eras pobre e só tinhas farrapos, fingias que eras rica e tratavas-me como um parente pobre. Nunca me quiseste como irmã! Nunca gostaste de mim! - gritou ela.

Saí da casa e apressei-me até ao carro. Ela seguiu-me pelo passeio.

- Sempre desejaste não ter uma irmã como eu. Nunca querias estar comigo na escola ou depois ou nunca. Heaven! - guinchou ela.

Voltei-me para trás. Olhámos durante um momento uma para a outra. Eu não conseguia esconder a verdade. Ela tinha razão.

- A verdade é que tinhas inveja de mim, Heaven, porque o pai gostava de mim, abraçava-me, beijava-me. Não era? Não era? - exigiu ela. - Porque o teu nascimento matou o anjo dele e nunca vais conseguir fugir disso, Heaven. Nunca, nem vivendo num palácio ou construindo fábricas, nem nada.

Cruzou os braços mesmo por baixo do peito e sorriu.

- Tenho pena de ti, Fanny - disse eu. - És como uma flor plantada em estrume.

Voltei-me e entrei no carro; porém, foi o riso dela que me seguiu estrada abaixo e me impulsionou a sair dali o mais depressa possível.

 

VIDA E MORTE

Nessa noite, contei ao Logan todos os pormenores do meu encontro com a Fanny, e o que tinha ficado combinado. Ele sentou-se na mesa da cozinha a ouvir, com os olhos fixos num copo que virava e revirava nas mãos. Eu falei depressa e sucintamente, percebendo que o assunto era penoso para ambos. Não discordou de nada nem fez nenhuma pergunta. Quando acabei de falar, suspirou profundamente e encostou-se para trás.

- Heaven - começou ele -, não quero voltar a vir a Winnerrow sozinho. Sinto demasiado a tua falta. O que achas de comprarmos uma casa aqui? Uma casa tão magnífica que seria motivo de conversa na cidade. Preciso de ti, Heaven.

- Qual é o mal da nossa cabana? - perguntei eu.

- Sempre foi o meu lar. Porque é que precisamos de uma casa?

- Não achas que os proprietários e os gerentes do que vai ser o maior empreendimento da comunidade deviam ter a sua própria casa, o tipo de casa onde possam receber visitas importantes, organizar jantares e festas? Podemos manter esta cabana como refúgio de fim-de-semana. - E levantou-se.

- Acho que precisamos de um começo novo aqui, Heaven, para os dois.

Pensei no assunto. A cabana estava contaminada pelo que a Fanny fizera. Viver noutro lado ajudaria a esquecer esse incidente. Além disso, eu sabia que a mãe dele, desde o nosso casamento, o andava a pressionar para comprar uma casa vistosa. Nenhuma quantidade de dinheiro ou de poder importava enquanto continuássemos a passar o tempo nos Willies. Ficar na cabana nas montanhas, rodeada de gente pobre, era muito degradante aos olhos da mãe dele e das outras pessoas da cidade. Fazia as pessoas pensarem que eu o tinha conquistado para o meu mundo, em vez de ele me ter conquistado a mim.

O poder e o dinheiro estavam a mudar o Logan. Nunca ia a lado nenhum sem vestir um fato e uma gravata. Comprou um relógio muito caro e um anel com um diamante para o dedo mínimo, ia aparar a barba recém-formada de dois em dois dias e até arranjava as mãos.

- Um homem que sai de um Rolls-Royce tem de parecer que pertence a ele - explicou-me o Logan quando lhe perguntei o porquê de tudo aquilo.

Eu sabia que o verdadeiro motivo do que sentia era o que tinha acontecido entre ele e a Fanny. Não gostava da ideia de ele ficar naquela casa isolada, que tinha sido o cenário do acto deles, ou fosse o que fosse que o Logan lhe chamasse. E achei que a Fanny talvez tivesse razão quando me acusara de não passar o tempo suficiente com o Logan, em Winnerrow. Se tivéssemos a nossa casa ali, seria mais uma razão para eu também vir.

- És capaz de ter razão - concordei eu. - Em que é que tinhas pensado, em construir ou em comprar uma?

- Comprar. - Inclinou-se para a frente, pondo as mãos na mesa e sorrindo fixamente.

- Já andaste a informar-te, não é?

- Já, já. - Havia um fascínio traquina nos seus olhos azuis, e o seu sorriso alargou-se.

- Então? Que casa?

- A casa dos Hasbrouck - anunciou ele.

- O quê? Estás a brincar? Abanou a cabeça.

- Está à venda - disse ele.

A casa dos Hasbrouck era uma casa linda, de estilo colonial, a poucos quilómetros a leste da fábrica. Pertencia a Anthony Hasbrouck, que era considerado "dinheiro antigo"; a família vinha dos tempos anteriores à guerra civil.

- Não acredito que o Anthony Hasbrouck venda aquela casa.

- Os investimentos dele não têm estado muito bem, e está a precisar desesperadamente de dinheiro. - O Logan parecia saber muito sobre o Anthony Hasbrouck.

- Estou a perceber. - Calculei que o Logan, que agora se dava muito com todos os corretores influentes de Winnerrow e da região, tivesse descoberto aquilo. Pela maneira como sorria, achei que já devia ter proposto uma boa quantia ao Hasbrouck pela casa.

Não conseguia esconder o meu entusiasmo. Conhecia a casa. Eu e o tom tínhamos passado muitas vezes por ela, quando éramos crianças. Para nós, sempre nos tinha parecido uma daquelas mansões descritas nos romances, com os seus jardins espalhados e a sua linda paisagem, e com pilares altos na entrada. Tinha uma enorme porta dupla de carvalho, que parecia precisar de um mordomo gigante para a abrir. Era muito fácil imaginar festas e jantares magníficos naquela mansão. De certeza que se passavam todo o tipo de aventuras românticas por trás daquelas portas de carvalho enormes.

Costumávamos sonhar vivermos nela. Toda a família teria o seu próprio quarto. Como filha mais velha, eu teria um vestido à moda sulista, e levaria as visitas até ao jardim para beberem juleps1 de hortelã-pimenta... O tom fingia ter o seu próprio grupo de cavalos de corrida. Sorri, lembrando-me dos nossos sonhos tontos e infantis, que, de repente, parecia terem sido uma espécie de profecia. Oh, tom, tom, ainda sinto tanto a tua falta. O meu querido irmão sonhador. E, agora, todos os sonhos, um a seguir ao outro, estavam a realizar-se, mas nunca da maneira como tínhamos imaginado, nunca tão bom e alegre e dourado como o sonho o fazia prever. O Logan viu o meu sorriso ansioso e animou-se.

- Tinha esperança que concordasses com a ideia - comunicou-me ele, passando ao plano -, por isso antecipei-me e marquei um encontro para vermos a casa amanhã de manhã. Está bem para ti?

- Está - respondi eu, um bocado desiludida por ele não ter falado comigo primeiro. Lembrava-me demasiado a maneira como o Tony fazia as coisas. O Logan estava demasiado influenciado pelo Tony, demasiado ansioso por lhe seguir o exemplo. E apesar de estar muito impressionada com a rapidez com que o Logan se tinha tornado um homem de negócios a sério, sentia falta do rapaz calmo, doce e carinhoso por quem me tinha apaixonado.

Na manhã seguinte, o Anthony Hasbrouck, um homem que nem olhara para mim duas vezes quando eu era uma miúda dos Willies, que uma vez me tinha enxotado e ao tom do seu portão principal, estendera agora o tapete vermelho para mim enquanto nos fazia uma visita guiada pela mansão.

1 Julep: bebida feita de uísque americano servida com folhas de hortelã-pimenta. (N. da T.)

Vestia um casaco de veludo preto, calças pretas e chinelos de veludo e falou com um forte sotaque sulista adocicado, chamando-me "Heavenly", em vez de "Heaven".

- Muito obrigada por nos mostrar a sua casa, Mister Hasbrouck - disse eu.

- Podem chamar-me Sonny, todos os meus amigos o fazem.

- Seja Sonny, então - anuí eu, voltando-me para o Logan. - Se ficarmos com esta casa - sussurrei-lhe eu suficientemente alto para Mister Hasbrouck ouvir -, vamos ter de mandar decorar tudo de novo. Deixaram-na ficar a cair aos bocados.

Deu-me imenso gozo continuar a falar de como a casa ficaria magnífica sob os meus cuidados, quantos tapetes a mais precisaria, como a velha cozinha já não servia. Raramente gostava de exibir a minha riqueza; porém, com pessoas como Mr. Hasbrouck, pessoas que tinham olhado de modo superior para nós, os Casteel, que tinha expulsado o meu querido tom dos seus sonhos, dava-me imenso prazer.

- E acima de tudo - continuei, dando o braço ao Logan, enquanto passeávamos pelo jardim -, vamos ter de contratar muito mais criados e jardineiros. Nem consigo acreditar no que aconteceu a esta velha propriedade...

Mr. Hasbrouck corou imenso. Continuou a enrolar o bigode, de dentes cerrados. Sabia que ele não suportava o facto de ter de vender a sua casa a uma Casteel mas, como o Logan me tinha dito, precisava de dinheiro.

- Sonny - chamei eu, sorrindo encantadoramente e tentando ser o mais simpática possível -, gosto realmente da sua casa, mas receio que o preço seja demasiado alto para aquilo que recebemos. - E obriguei-me a franzir as sobrancelhas.

O Logan estava boquiaberto.

- Mas, Heaven, querida... - balbuciou, voltando-se para mim.

- A sua linda esposa é capaz de ter razão - disse Mr. Hasbrouck. A cara dele estava agora vermelha que nem um tomate. - Heavenly, não há dúvida que sabe chegar a um bom acordo.

Assim que chegámos ao carro, o Logan arrebatou-me nos braços.

- Não só tenho a mulher mais linda da cidade como tenho a mais esperta. Mal consigo esperar para chegarmos a Farthy e contar ao Tony como tu resolveste a situação.

Foi três dias mais tarde, quando o Tony nos chamou ao seu escritório para uma bebida de boas-vindas, que o Logan lhe contou as novidades.

Tony - começou ele, com os olhos a brilhar de orgulho e entusiasmo -, eu e a Heaven demos o primeiro grande passo do nosso casamento. Comprámos uma casa para nós.

Ao princípio, mal consegui perceber a resposta do Tony, tal a mistura de surpresa, tristeza e solidão mudas. Depois, ficou simplesmente desolado.

Não disse nada sobre o facto, mas eu senti que não estava feliz por termos comprado a mansão do Hasbrouck. Era demasiado longe do seu lar, e a ideia de que tínhamos outra vida, separada de Farthy, não era algo que ele gostasse. Tive pena dele, sabendo que receava estar sozinho, especialmente agora, depois da morte da Jillian.

À medida que as semanas iam passando, enquanto estava absorvida em encomendar papel de parede e pano para cortinas, tapetes e móveis, e informando-me sobre a ajuda doméstica, dei por mim a mal conseguir sair da cama. O cansaço nunca me abandonava, e eu sentia-me algo distante de mim própria, como se não soubesse quem era ou o que queria. Teria sido um erro comprar a casa? Porque é que me estava a sentir tão confusa, tão apática? Fazia diversas viagens a Boston, às lojas mais chiques, para encomendar material para a casa nova, apenas para regressar a Farthy completamente esgotada e exausta.

- Heaven - disse o Logan, uma noite depois de jantar, quando lhe comuniquei que ia deitar-me cedo -, pareces demasiado cansada nestes últimos dias. Está tudo bem? Espero que esta mudança não seja demasiado pesada para ti.

- Estou bem, querido.

- Quero que amanhã vás ao médico, Heaven. Isto não é normal em ti.

A conclusão do médico deixou-me quase sem fala.

- Grávida?

- Não há qualquer dúvida - disse ele, sorrindo.

Era maravilhoso! Como é que eu nunca suspeitara disso? Tive de me rir de mim própria. Claro, isso explicava tudo! Um bebé! Sempre sonhara em ter a minha própria família, e agora esse sonho estava a realizar-se. Oh, como estava feliz! Como eu ia apreciar, amar e proteger o meu pequenino! Nunca passaria a dor e o desespero por que eu e os meus irmãos havíamos passado. Embora nem eu nem o Logan o tivéssemos planeado, parecia ser mesmo a altura perfeita para nascer o nosso primeiro filho. Tínhamos a fábrica nova, tínhamos a casa nova em Winnerrow e teríamos um bebé novo. O facto de ser pai, pensei eu, iria devolver-me o Logan brincalhão e alegre com quem tinha casado, iria trazê-lo de regresso à terra, fazê-lo descer do seu pedestal de negócios.

- Mistress Stonewall - disse o médico, chamando-me de novo à terra -, vou examiná-la para determinar exactamente há quanto tempo está grávida.

O meu coração parou por um instante.

- É importante sabermos, para que nos possamos preparar como deve ser para a chegada do pequenino.

O médico examinou-me cuidadosa e detalhadamente.

- Pode vestir-se e depois voltar à minha sala - afirmou o médico, quando terminou -, para podermos falar sobre o que falta.

Toda eu tremia.

- Por favor, doutor Grossman, pode dizer-me quanto tempo tem o bebé?

Ele disse-me.

Senti o sangue a fugir. Parecia que o bebé já tinha dois meses. Dois meses. Tinha sido há dois meses que eu visitara o Troy na sua casa de pedra. Oh, meu Deus! De quem era aquele bebé? Eu não sabia. De quem era o bebé? Do Logan... ou do Troy?

- Mistress Stonewall, Mistress Stonewall. - A voz do médico trouxe-me de volta ao consultório. - Sente-se bem?

- Oh, desculpe, senhor doutor - disse eu, tentando dominar-me. - Estou só um bocadinho tonta. As notícias são tão boas, tão inesperadas. Nem percebo como é que eu não suspeitei. Como é que não dei por isso. Tem havido tanta...

Andei à deriva depois de sair do consultório. Estava contente por ir sozinha na parte de trás da limusina, enquanto o mesmo receio me martelava constantemente a cabeça. De quem era o bebé que eu tinha dentro de mim? Do Logan ou do Troy? E pior ainda, embora Deus me pudesse atravessar com um raio, eu não sabia de quem desejava que fosse.

Quando chegámos ao portão de Farthy, já não queria saber, amava os dois. E sabia no fundo do coração que o Logan ia adorar o nosso filho e ser o melhor pai do mundo. Eu podia não ter sabido quem era o meu verdadeiro pai, mas o pai que me criara, o Luke, não me tinha amado como eu precisara de ser amada. Deveria confessar ao Logan a verdade, e dizer-lhe que o filho podia ser do Troy, e correr o risco de que ele ficasse tão furioso e amargo como o Luke, e tratasse do bebé como eu tinha sido tratada? Não, eu não podia deixar isso acontecer, não podia fazer isso ao meu bebé. Se lhe contasse a verdade, e não fôssemos capazes de determinar quem era o pai depois de o bebé nascer, ele teria sempre dúvidas e não amaria a criança como faria se tivesse a certeza. Não era justo fazer isso ao Logan. Além disso, podia ser dele, podia muito bem ser dele! Não, decidi no meu coração, aquele segredo ficaria ao pé dos outros que permaneciam fechados por lábios selados.

O Logan encontrava-se no escritório do Tony, a falar ao telefone, quando cheguei do médico.

- Podes chegar ao nosso quarto, Logan, por favor? Tenho uma coisa para te dizer.

Tapou o bocal com a mão.

- Não pode esperar pelo menos meia hora? Estou a tratar de uma transacção muito importante.

- Logan Stonewall! Quero-te em dois minutos no nosso quarto! - ordenei eu. - Estás prestes a conseguir a melhor aquisição da tua vida!

Voltei-me e subi a correr para o nosso quarto, sem querer que ele adivinhasse a verdade nos meus olhos excitados.

Alguns minutos mais tarde, o Logan pôs-se à porta do nosso quarto, de braços cruzados, parecendo um pouco zangado com a minha interrupção.

- É bom que seja importante, Heaven - avisou-me ele. Fui até ao pé dele, pus os braços à volta do seu pescoço e fixei directamente os seus olhos.

- Vais ser pai - anunciei.

A cara dele corou de entusiasmo, os olhos de safira brilharam como o céu da manhã num lindo dia de Verão, e sorriu de orelha a orelha.

- Heaven - disse ele -, como é que consegues estar assim tão calma a dizeres isso? - Segurou-me afastada dele e os seus olhos examinaram-me de cima a baixo, à procura de alguma diferença. Então riu-se, deu um salto acriançado e abraçou-me outra vez. - Que óptima notícia! Espera só até contar ao Tony! Espera só até contar aos meus pais! Temos de celebrar! Vamos sair hoje à noite e jantar o melhor possível! vou contar ao Tony e dizer ao Rye para cancelar a refeição que está a preparar. Estou tão contente por termos comprado aquela casa. vou pedir aos empreiteiros para prepararem imediatamente um quarto de criança, e vamos contratar uma ama para te ajudar quando estiveres em Winnerrow e também para quando estiveres aqui.

Juntou as mãos e levantou-as acima da cabeça. Parecia estar prestes a rebentar numa das danças ritmadas dos Willies.

- Quando o bebé nascer, vamos dar duas festas enormes, uma aqui em Farthy, para todos os nossos amigos de Boston, e uma em Winnerrow. Vais ser mãe e eu vou ser pai! - exclamou ele. - Heaven, estás linda, com um ar radiante. Que surpresa maravilhosa! Obrigado, obrigado! - exclamou ele, e abraçou-me novamente, caindo de joelhos e encostando a cabeça ao meu ventre. De repente, desatou a chorar. Não conseguia deixar de chorar enquanto lhe acariciava a cabeça.

- Heaven - soluçou ele -, sou o homem mais feliz do mundo... A sério... - Olhou para cima, com os olhos azuis marejados e as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. - Não mereço esta felicidade - disse ele -, perdoa-me.

Queria estar tão feliz como ele, e juntar-me a ele no seu entusiasmo. Contudo, quanto mais ele extravasava a sua alegria, mais me interrogava se lhe ia apresentar o filho de outro homem. Parecia-me uma fraude terrível, mas não consegui dizer nada. Já estava na altura de voltarmos a ter felicidade naquela casa, pensei eu. Estava na altura de começar tudo de novo. Não ia ser eu a desmancha-prazeres, quando precisávamos todos tanto daquilo.

O Logan estava tão eufórico que saiu do quarto meio despido. Ri-me dele e afastei as minhas preocupações e os meus pressentimentos sombrios. Decidi ficar igualmente excitada e feliz. Momentos mais tarde, o Tony apareceu à porta, ao pé de mim.

- O que é que o Logan anda para aí a balbuciar? vou ser bisavô? - perguntou o Tony, com os olhos a brilhar de orgulho e felicidade.

- Parece que sim - retorqui eu.

- Parabéns, Heaven - disse ele, e avançou para me abraçar. - A tua pontaria não podia ser melhor. É como que um choque de energia e esperança novas. É uma verdadeira dádiva espiritual.

- Vamos ao Restaurante Cape Cod - anunciou o Logan. - Acabei de marcar mesa. Champanhe, lagosta, o melhor! Ha, Tony?

- Claro. - Ele sorriu como se o Logan tivesse tido a ideia mais espantosa. - Temos de comemorar. É bom ter boas notícias para variar. E vai ser maravilhoso ouvir um bebé a chorar e a rir em Farthy outra vez! Os Tatterton vão mesmo continuar.

Sim - murmurei eu, e o medo apertou-me o coração.

"Se calhar, os Tattertons vão continuar ainda mais puros do que o Tony imagina", pensei eu. Mas afastei esse pensamento. Em vez disso, deixei-me levar pela alegria e pela energia do Logan. Vestimo-nos a preceito, entrámos na limusina e partimos, para irmos comemorar a chegada do novo bebé, já todos embriagados de felicidade antes mesmo de levantarmos os primeiros copos de champanhe para brindar ao futuro.

Tínhamo-nos divertido imenso no restaurante. O Tony e o Logan haviam bebido uma garrafa e meia de champanhe. Cada vez que eu pegava no meu copo, um ou outro dizia: "Vá, vá, tens de ter cuidado com o que comes e com o que bebes... mamã." Por qualquer razão, ao dizerem aquilo desatavam os dois a rir histericamente. Pouco demorou para que toda a gente no restaurante ficasse a olhar para nós.

Aquele abandono leve e despreocupado acompanhou-nos toda a noite e no caminho para casa. Tínhamos aproveitado a oportunidade de sermos felizes e utilizáramos essa oportunidade como um bálsamo para cobrir e curar as cicatrizes da tristeza e da perda. Começámos a discutir nomes para o bebé, e o Tony queixou-se que os pais de hoje em dia já não procuravam nomes dignos para dar às crianças.

- Hoje em dia, chamam-lhes de tudo, desde personagens de telenovelas a cavalos de corrida. Se for um rapaz, gostava que lhe pusessem o nome de Wilfred ou Horace, como o meu trisavô e o meu bisavô. Devia ter um segundo nome igualmente digno... Por exemplo, Theodore ou...

- Ou Anthony - disse eu.

- Não era assim tão mau - concordou o Tony, arqueando uma sobrancelha e sorrindo. O Logan riu-se nervosamente.

- Se for uma rapariga, gostava de lhe por o nome da minha avó... Annie - declarei eu.

- Annie? Não devia ser Ann? - perguntou o Tony. O Logan concordou com a cabeça. Nessa altura já concordava com tudo, pensei eu. O champanhe tinha-lhe subido à cabeça.

- Não, Annie é perfeito - insisti eu, com ênfase.

- Está bem, desde que não lhe chames "Atrasada para jantar" - disse o Tony, e ele e o Logan desataram outra vez em grandes gargalhadas.

Ainda estávamos extremamente bem-dispostos quando entrámos na Mansão Farthinggale. No entanto, a cara do Curtis pôs-nos logo sóbrios. Cumprimentou-nos com um aceno formal, abanando tristemente a cabeça.

- O que se passa, Curtis? - perguntou o Tony, franzindo preocupado o sobrolho, apagando-se-lhe o sorriso.

- Chegou um telegrama para o senhor, e pouco tempo depois, telefonou um doutor... - Olhou para o papel do recado. - O doutor J. Arthur Steine, um advogado que representa Mister Luke Casteel.

- Luke Casteel! - Olhei para o Tony, perplexa. A cara dele empalideceu quando avançou para receber o telegrama do Curtis. O que se passava? A minha mente errava como um animal selvagem, tentando encontrar um ponto de referência familiar. Porque é que o advogado do meu pai teria enviado um telegrama ao Tony? O Logan agarrou-me a mão e eu esperei ao seu lado, enquanto o Tony abria o sobrescrito e lia o conteúdo. A sua cara ficou branca até parecer a máscara pálida de um fantasma

- Meu Deus - disse ele, com suavidade, e passou-me simplesmente o telegrama. Estava dirigido a Anthony Tatterton. Dizia o seguinte:

TERRÍVEL ACIDENTE CARRO STOP LUKE E STACIE CASTEEL FERIDOS MORTALMENTE STOP SEGUEM DETALHES STOP J. ARTHUR STEINE

- O que se passa? - perguntou o Logan. Sem falar, entreguei-lhe o telegrama.

- Oh, meu Deus - disse ele. Pôs o braço à minha volta.

- Heaven.

Levantei a mão para dizer que ia ficar bem e corri para a sala de estar. Parecia que o meu coração tinha parado de bater e que o meu sangue tinha congelado nas veias. Já nem sentia o chão por baixo dos meus pés.

- Curtis, traga um copo de água a Mistress Stonewall ordenou o Logan. Seguiu-me e o Tony foi para o escritório telefonar a esse tal J. Arthur Steine. Sentei-me no sofá e inclinei-me para trás, fechando os olhos. O Logan sentou-se ao meu lado, segurando-me na mão.

- Eu sei que são notícias horríveis - declarou ele -, mas tens de pensar na tua saúde e na do bebé.

- Já me passa, Logan - murmurei eu. - Já me passa. O pai... Luke Casteel. O homem cujo amor eu desejara e nunca conquistara. Agora, porém, só me vinham à memória cenas boas e felizes. Via-o à frente da nossa cabana lançando a bola de basebol ao tom e o tom a balançar-se com o taco, o único brinquedo que restara da infância do Luke. Via-o no pátio num quente dia de Verão, com o seu cabelo cor de ébano a brilhar. Era suficientemente bem-parecido para ser uma estrela de cinema, quando estava limpo, barbeado e bem vestido. Como as mulheres olhavam para ele! Lembrava-me como ansiava que ele olhasse para mim com tanta ternura e amor, e quando tinha a sorte de o apanhar a olhar para mim, vendo provavelmente na minha cara a Leigh, o seu anjo adorado, lembro-me como isso enchia o meu coração de excitação e alegria.

Pai... O belo e inatingível homem que eu amara e odiara, agora desaparecido e perdido para sempre, sem qualquer hipótese de nos encontrarmos num dia calmo, e perdoarmos os nossos amores e os nossos ódios, sem qualquer hipótese de explicar ou entender, sem qualquer hipótese de remediar as coisas ou sarar feridas, sem qualquer hipótese de palavras doces.

Quantas vezes eu ensaiara essa cena nos meus pensamentos!

O Luke olharia para mim e eu para ele, e saberíamos que tinha chegado a altura de fazermos as pazes. Sairíamos juntos, eu e o pai que nunca tive, e caminharíamos, de início silenciosamente. Então, o Luke começaria. Reconheceria como tinha sido mau quando vivíamos nos Willies. Confessaria os seus pecados e pediria desculpa pela sua negligência. Falaria honestamente comigo, e acabaria por me dizer que tinha sido injusto ao não gostar de mim simplesmente por ter nascido. Imploraria o meu perdão e, depois, eu imploraria o dele.

Pediria que me perdoasse pela minha louca tentativa de vingança, por tentar parecer o seu anjo Leigh e por tê-lo perseguido no circo. E dir-lhe-ia de uma vez por todas que a morte do tom não tinha sido culpa minha.

E, depois, consolávamo-nos um ao outro e abraçávamo-nos até o Sol começar a descer no horizonte e afundar-se no mar, e o meu coração ia estar tão cheio de alegria que até parecia ir rebentar.

Caminharíamos de volta de mão dada, renovados, renascidos.

Agora, eu caminharia sozinha e as palavras que deviam ter sido ditas nunca seriam proferidas.

As lágrimas assomaram-me silenciosamente aos olhos e iniciaram a sua descida pelo meu rosto. O Logan apertou-me contra ele e ficámos ali sentados, em silêncio. O Curtis trouxe-me água e então o Tony apareceu. Limpei a cara e olhei para ele. Abanou a cabeça e sentou-se na cadeira de espaldar em frente de nós.

- Foi um choque de frente. Um condutor embriagado atravessou a estrada e chocou contra eles. Estavam a voltar para casa vindos do circo, mesmo nos arredores de Atlanta, quando isso aconteceu. O advogado diz que pelo relatório da Polícia, eles nem sequer perceberam o que lhes aconteceu. O outro condutor devia ir a mais de cento e vinte.

- Oh, Deus - disse eu. O meu estômago vacilou um bocado. Era como se dúzias de borboletas tivessem repentinamente saído do casulo e batessem as asas dentro de mim.

- E o Drake? - perguntei eu.

- Graças a Deus não estava com eles naquela altura. Tinham uma criada interna e uma ama, Mistress Cotton. É ela que está agora com a criança. A mulher do Luke não tinha irmãos e só a mãe é viva, mas está a viver num lar.

- Tenho de ir imediatamente a Atlanta - decidi eu.

- Tratar do funeral e buscar o Drake. Vai passar a viver connosco - declarei, voltando-me para o Logan. Este não mostrou qualquer oposição.

- Claro - anuiu ele. - Eu vou contigo.

- Eu já tratei do necessário para o funeral - disse o Tony. - com o advogado.

Olhei para ele por um momento. Tinha inúmeras perguntas na minha cabeça, principalmente porque é que o telegrama tinha sido endereçado a ele e não a mim. Porém, naquele momento, não estava com vontade de as fazer. Queria partir imediatamente para Atlanta e ir buscar o Drake.

- vou ter de contactar com o Keith e a Jane e... e a Fanny - disse eu. - Quando é que vai ser o funeral?

- Nestas circunstâncias, achei melhor ser o mais depressa possível - respondeu o Tony. - Depois de amanhã. Deve dar-nos tempo suficiente para resolvermos quaisquer problemas...

- Eu falo com o advogado amanhã - retorqui eu.

- E farei o que for necessário.

O Tony observou-me por uns instantes e depois olhou rapidamente para o Logan.

- Não achas, considerando o teu estado, que devias deixar essas coisas para nós? Eu voarei até Atlanta e...

Tony, eu estou grávida - interrompi eu -, não estou doente nem inválida. É a minha obrigação, a minha responsabilidade - insisti eu. - Quero fazer tudo o que puder pelo Drake e... pelo Luke. Quero fazê-lo - repeti eu, com os olhos a flamejar.

O Tony limitou-se a acenar com a cabeça.

Como queiras. vou estar aqui, se precisares de ajuda.

É só telefonar.

- Obrigada - agradeci. - É melhor começar a telefonar aos meus irmãos. Logan, não te importas de tratar dos pormenores da viagem?

- com certeza - respondeu ele.

- Usa o meu escritório, se quiseres - ofereceu o Tony. Agradeci com a cabeça e fui para lá fazer os meus telefonemas.

O Keith e a Jane receberam a notícia tão calmamente como eu esperava. No fim de contas, eles nem sequer conheciam bem o Luke. Ambos quiseram saber se eu achava que eles deviam ir a Atlanta, para o funeral, mas eu achei que não era necessário. Também, o que é que o Luke era para eles, a não ser o homem que os tinha vendido quando crianças? Era mais importante continuarem a trabalhar para atingir os seus objectivos, prosseguirem nas suas novas vidas, que eram melhores do que qualquer coisa que o Luke tivesse pensado em lhes dar. Ficaram aliviados ao ouvirem-me dizer aquilo.

com a Fanny já foi outra história.

- O papá morto? - perguntou ela, depois de lhe ter contado os pormenores. Parecia chocada, como se precisasse de ouvir novamente a história toda para acreditar que era verdade. - Como é que sabes que ele está mesmo morto? Talvez não esteja morto, Heaven - insistiu ela. - Talvez esteja só muito ferido. Talvez...

- Não, Fanny. Foi um acidente fatal. Não vale a pena criares falsas esperanças.

- Papá... Oh, meu Deus. - Ouvi-a soluçar. - Eu ia visitá-lo em breve, para ele saber como eu estava a ir bem.

- O funeral é depois de amanhã - informei eu. - vou para lá hoje para ver o Drake.

- O Drake... - disse ela. - Coitado do Drake. Ele agora vai precisar de uma nova mamã.

- vou tratar disso tudo, Fanny - respondi eu.

- Claro que vais - retorquiu ela, voltando repentinamente a ser azeda comigo. - És a Heaven Leigh Stonewall, a rainha da Companhia de Brinquedos Tatterton. Podes tratar de tudo.

- Fanny...

- Vemo-nos no funeral, Heaven.

Encontrava-me sentada com o auscultador na mão quando o Logan apareceu à porta.

- Se nos despacharmos, ainda conseguimos apanhar o próximo avião que sai de Boston para Atlanta - disse ele.

- Já disse ao Miles para ir buscar o carro.

Corri escada acima para os nossos aposentos, a fim de ir buscar aquilo de que precisaria para o funeral. O Logan fez o mesmo, e em menos de vinte minutos já estávamos na limusina a caminho de Boston.

"Como a vida pode ser tão frágil, rápida e imprevisível", pensei eu. Num momento estávamos todos felizes e quase loucos, e no momento seguinte estávamos a lamentar-nos, tristes e atormentados. "A vida é como as estações, filha", dissera-me uma vez a avó. "Tem as suas Primaveras e os seus Verões, e tens de apreciar todos os momentos da Primavera quando ela te aparece, pois nada se conserva fresco e jovem e bonito para sempre, filha, nada. O gelo entra nas pessoas, tal como entra no solo."

O gelo tinha entrado em mim. Sentia frio e um vazio, mesmo agora que tinha uma vida nova dentro de mim! Estremeci, enrosquei-me de encontro ao Logan e dormi a maior parte do caminho até ao aeroporto e no avião. Quando chegámos a Atlanta e à casa do Luke, já era de madrugada. Mesmo assim, Mrs. Cotton estava a pé, à nossa espera.

Era uma mulher alta e robusta, com traços largos, quase masculinos. Parecia alguém que tinha feito trabalho manual muito pesado durante a maior parte da vida, uma mulher envelhecida pelos anos de dificuldades. Tinha olhos castanhos sem brilho e lábios grosseiros, rosa-escuros e cheios. Usava uma coberta velha por cima dos ombros quando abriu a porta.

- Sou a Heaven Stonewall, e este é o meu marido, o Logan - disse eu. Ela acenou com a cabeça e deu um passo atrás. - Viemos assim que pudemos. Mister Casteel era meu... meu pai. - disse eu, pensando que era a melhor maneira de explicar as coisas.

- Eu sei - respondeu ela. - O doutor Steine telefonou-me a dizer dos senhores. Há um quarto de hóspedes que podem utilizar. É logo a seguir à cozinha, do lado direito.

- Como é que está o Drake? - perguntei eu.

- Está a dormir. Ainda não sabe de nada - informou ela.- Achei que não era necessário acordá-lo para lhe contar notícias tão desagradáveis. De qualquer maneira, ele estaria demasiado cansado para entender.

- Fez bem - disse eu. Mas ela não parecia precisar da minha aprovação. Encolheu os ombros e começou a afastar-se.

- Também tenho de ver se durmo - declarou ela. O menino acorda muito cedo.

- Ah, eu posso tomar conta dele - disse eu.

- Como queira.

- Na verdade - continuei, gostando cada vez menos dela -, pode ir-se embora amanhã, à hora que quiser. Diga-me só quanto é que o Luke lhe deve e...

- Isso já foi tudo tratado.

- Ah, sim?

- Pelo doutor Steine - disse ela. - Vou-me embora durante a tarde. Vem uma pessoa buscar-me.

- Está bem. - Não perdia tempo, pensei eu.

- Logo a seguir à cozinha - repetiu ela, mais uma vez, e foi para o seu próprio quarto.

- Que criatura tão amorosa - comentou o Logan, abanando a cabeça.

- Imagina aquilo como ama - disse eu. O Logan levou as nossas coisas para o quarto de hóspedes e eu fui espreitar o Drake. Já não o via há muitos anos, mas mesmo quando ele ainda era muito pequeno, achara-o muito parecido com o Luke, com os seus enormes olhos castanhos rodeados de longas pestanas pretas.

Fui em bicos dos pés até junto da cama de pinho escurecido e olhei para a sua carinha ternurenta. com pouco mais de cinco anos, tinha o cabelo preto e a pele bronzeada do Luke, pele que revelava os antepassados índios daquele. Afastei alguns cabelos do seu rosto. Estalou ao de leve os lábios e gemeu suavemente, mas não acordou. O meu coração compadeceu-se dele, quando pensei no desgosto que lhe tinha de dar no dia seguinte. Perder a mãe e o pai num só dia era com certeza um choque emocional devastador, do qual nunca se recupera totalmente. Eu sabia. Porque apesar de nunca ter conhecido a minha verdadeira mãe, sempre ansiara por ela, sempre sentira a sua falta. E o meu pai, o meu pai, o único que eu conhecera, tinha sido um verdadeiro pai para o pequeno Drake. De amanhã em diante, nunca mais ia ser o mesmo... No entanto, eu estava decidida a usar toda a minha riqueza e poder para tornar a sua vida o mais confortável e feliz possível.

Eu e o Logan conseguimos dormir algumas horas, antes de o Drake acordar de manhã. Ouvi-o a andar pelo corredor, e depois ouvi Mrs. Cotton a preparar-lhe o pequeno-almoço. Ela não lhe tinha dito que nós estávamos lá.

- A mamã? - ouvi-o a perguntar.

- A mamã não está cá - disse ela. Vesti o meu roupão o mais depressa que pude. Não queria que fosse aquela mulher a dar-lhe as más notícias.

- Onde é que ela está? - perguntou o Drake. - Está a dormir?

- Ah, sim, está a dormir. Ela está...

- bom dia - interrompi eu, rapidamente. O Drake voltou-se abruptamente para mim, com um ar inquisidor nos olhos castanhos. Pensei que iria decerto crescer encantador e com uma figura masculina igual à do pai. Já tinha ombros fortes para um rapazinho, e o seu rosto tinha as mesmas linhas bem delineadas do Luke. - Eu sou a Heaven - disse eu. - A tua meia-irmã mais velha. Não te lembras de mim, mas eu estive cá há uns anos, quando ainda eras muito pequenino. Dei-te alguns brinquedos.

Ele ficou a olhar para mim. Mrs. Cotton encolheu os ombros e continuou a preparar o pequeno-almoço.

- Eu não tenho nenhuns brinquedos novos! - exclamou ele, levantando os braços. Era tão amoroso que não resisti a ajoelhar-me e a abraçá-lo.

- Oh, Drake, Drake, meu pobre Drake. Vais ter imensos brinquedos, brinquedos grandes e brinquedos pequenos, brinquedos a motor, brinquedos em que possas andar, e vais ter um sítio enorme onde possas andar com eles.

A minha explosão emocional assustou-o. Inclinou-se para trás e olhou através de mim para o corredor.

- A mamã? - perguntou, já preocupado. - E o papá? O Logan apareceu à porta e os olhos do Drake abriram-se de espanto.

- Aquele é o Logan - disse eu. - É o meu marido.

- Eu quero a mamã - gritou ele, levantando-se da cadeira e passando a correr por mim. Não consegui impedi-lo. Olhei para o Logan e abanei a cabeça. Quando se tratava de crianças, a tristeza era um grande pássaro selvagem engaiolado. Era demasiado grande para viver dentro delas.

O Drake abriu a porta do quarto dos pais e parou a olhar para a cama vazia e feita. Eu apareci ao lado dele. Voltou-se e olhou para mim, com os olhos cheios de medo. Naquele momento, lembrou-me o Keith, quando o Keith tinha a mesma idade. O Keith também tinha uns olhos muito expressivos. Abracei-o e conservei-o perto de mim outra vez, beijando-lhe as faces, da mesma maneira que costumava beijar as lágrimas do rosto suave e pequeno do Keith.

- Tenho de te dizer uma coisa, Drake - comecei eu. Mas tens de ser um rapaz forte e ouvir, está bem?

Levou o punho pequeno e fechado aos olhos e limpou as lágrimas que tinham espreitado. Eu tinha a certeza de que ele herdara a força interior do Luke. Tinha apenas cinco anos e já não queria mostrar o seu medo e a sua tristeza. Sentei-me na cama, com ele nos braços.

- Sabes o que significa quando as pessoas morrem e vão para o céu? - perguntei eu. Ele olhou de uma maneira estranha para mim e eu percebi a confusão. - Sim, o meu nome é Heaven1, mas também há um sítio chamado céu, um sítio onde as pessoas vão para sempre. Já alguma vez ouviste falar desse sítio? - Ele abanou a cabeça. - bom, há um sítio assim, e às vezes as pessoas vão para lá mais cedo do que esperavam - concluí.

O Logan apareceu à porta e olhou para nós. O Drake observou-o cuidadosamente e o Logan sorriu-lhe o mais calorosamente possível. Depois, o Drake voltou-se outra vez para mim, ansioso por ouvir o fim da história. Reparei que estava a considerá-la uma história, e calculei que a Stacie o tivesse segurado assim várias vezes para lhe ler uma história ou para lhe contar contos de fadas. Só que ele não podia pensar naquilo como um conto de fadas, pensei eu. Tinha de o fazer entender de alguma maneira.

- Bem, ontem à noite, Deus chamou a mamã e o papá para o céu e eles tiveram de ir. Eles não te queriam deixar murmurei eu, rapidamente -, mas não tiveram outra possibilidade. Tiveram de ir.

- E quando é que eles voltam? - perguntou o Drake, pressentindo algo perturbador.

- Eles nunca mais vão voltar, Drake. Não podem voltar mesmo que queiram. Quando Deus nos chama, já não podemos voltar.

- Eu também quero ir - pediu ele. Começou a lutar para se desembaraçar dos meus braços.

Heaven céu. (N. da T.)

- Não, Drake querido. Não podes ir porque Deus não te chamou. Tens de ficar na Terra. Vens comigo e vais viver numa casa grande e ter tantas coisas bonitas que nem vais saber com qual brincar primeiro nem o que fazer primeiro.

- Não! - gritou ele. - Eu quero ir com a mamã e o papá.

- Não podes, querido, mas eles haviam de querer que fosses feliz e que fosses bem tratado, e que te tornasses um belo rapaz, e tu vais-lhes fazer isso, não vais?

Os seus olhos semicerraram-se. Senti os seus braços duros e a sua raiva a aumentar à medida que a cara ficava mais vermelha. Possuía o mesmo temperamento do Luke, não havia dúvida, pensei eu. Ao olhar nos olhos dele, pensei que conseguia olhar atrás no tempo, para além da própria morte, e ver o Luke a olhar para mim.

- Não me odeies por te dizer estas coisas, Drake. Quero gostar de ti e que tu gostes de mim.

- Eu quero o papá! - berrou ele. - Quero ir para o circo! Larga-me! Larga-me! - Lutou contra o meu abraço até eu o libertar. Imediatamente, saiu a correr do quarto.

- Vai levar o seu tempo, Heaven - consolou-me o Logan. - Mesmo com um rapazinho daquela idade.

- Eu sei - respondi eu, abanando a cabeça, e olhei pelo quarto. Na pequena mesa-de-cabeceira estava uma fotografia do Luke e da Stacie à porta da casa, abraçados um ao outro. Como o Luke estava rejuvenescido e feliz. Como estava diferente do homem que eu conhecera como meu pai, nos Willies. Se a vida tivesse sido boa para ele naquela altura, também teria sido boa para todos nós.

- É melhor tomarmos o pequeno-almoço e vestirmo-nos, querida - disse o Logan. - Ainda queres falar com o advogado, e depois temos de ir para o local do funeral.

Acenei com a cabeça e levantei-me lentamente da cama onde o Luke e a sua noiva tinham feito amor e promessas um ao outro para todo o sempre. Agora, iam ficar lado a lado na terra fria e escura.

Esperava ter razão; esperava ter dito a verdade ao pequeno Drake. Esperava que tivessem sido chamados para um sítio mais feliz, para um verdadeiro paraíso.

 

ADEUS, PAI

O Drake mostrou-se teimoso e mal-humorado. Recusou-se a comer o pequeno-almoço e não me deixou vesti-lo. Mrs. Cotton teve de o fazer. Foi o último dever que ela executou para o Luke e para o Stacie Casteel. Embora ele estivesse relutante em ir, levámo-lo connosco ao escritório do advogado J. Arthur Steine, que estava situado no centro de Atlanta. As vistas e a actividade rapidamente atraíram a atenção do pequeno Drake e, pouco tempo depois, deixou-me sentá-lo ao colo, enquanto olhava pela janela. Penteei o seu cabelo preto para trás com os dedos e observei a cara dele. A Stacie tinha-lhe conservado o cabelo comprido, o que eu não lhe censurava. Era tão forte e brilhante. Dei-lhe um beijo ao de leve na face e mantive-o aconchegado a mim, mas ele estava demasiado embrenhado nas coisas que via para dar por isso ou importar-se.

O escritório do Dr. J. Arthur Steine era num edifício moderno e fino. Fiquei surpreendida por o Luke ter escolhido aquela firma, porque parecia estar ligada a grandes empresas e a pessoas ricas. O seu circo não era uma companhia insignificante, mas estava longe de ser o Circo Barnum. Tinha passado a maior parte do tempo a andar de terreola em terreola, e com o tipo de despesas que um circo deve ter, tinha a certeza de que ele mal ganhava para viver.

O Drake ficou fascinado com o elevador de vidro, que nos levou até ao décimo segundo andar, onde era o escritório do Dr. Steine. A entrada do escritório de advocacia era muito luxuosa, com duas secretárias atrás de duas grandes mesas a atender o telefone e a escrever à máquina. Havia três empregados de escritório a correr de um lado para o outro, a dar papéis às secretárias para dactilografar ou para juntar a documentos. A primeira secretária da direita era também a recepcionista. Pediu para nos sentarmos no sofá de couro enquanto ela nos anunciava ao Dr. Steine. Eu tinha acabado de arranjar uma revista para o Drake quando o Dr. Steine em pessoa apareceu para nos cumprimentar.

Era um homem alto e bem-parecido, já um pouco grisalho nas têmporas. Os seus óculos de armação preta realçavam os seus olhos cor de avelã. Assim que o vi, não consegui deixar de sentir que ele tinha algo de familiar. Claro, com o seu fato cinzento de três peças, a corrente de ouro do seu relógio de bolso a pender da algibeira do seu colete, parecia um dos inúmeros parceiros de negócios do Tony.

- Os meus pêsames - disse ele, estendendo-me a mão e ao Logan. Deixou descair os óculos até à ponta do nariz e espreitou por cima deles para o Drake, que estava a olhar para ele com uma curiosidade quase furiosa. Não se tratava de facto de um rapazinho tímido, pensei eu. - Este deve ser o Drake.

- Sim. Dize olá, Drake - insisti eu. O Drake olhou para mim e depois para o Dr. Arthur Steine, com uma arrogância que eu considerei bastante desproporcionada para a idade dele.

- Quero ir para casa - afirmou ele.

- Claro que queres - disse o Dr. Steine, e depois voltou-se para a secretária. - Não temos um delicioso chupa-chupa encarnado para este jovem rapaz, Colleen?

- Somos capazes de ter - respondeu ela, sorrindo para o Drake. Este olhou cautelosamente, com a promessa do chupa-chupa a suavizar a sua resistência.

- Bem. então porque não descobre um para que ele possa ficar aqui sentado a chupá-lo, enquanto eu falo com Mister e Mistress Stonewall - disse o Dr. Steine.

A secretária abriu uma das gavetas de baixo e fez aparecer um chupa-chupa. O Drake pegou nele e começou a voltar-se.

- Deves dizer obrigado quando as pessoas te oferecem coisas. Drake - declarei eu, calmamente. Olhou para mim, reflectindo no que eu dissera, e depois virou-se lentamente.

- Obrigado - disse ele, e correu para o sofá, para tirar o papel do chupa-chupa. Não pareceu importar-se em ser deixado sozinho.

- Nós voltamos já, Drake. Fica aqui - disse eu. Olhou para mim sem responder e regressou ao seu doce.

- Por aqui - indicou o Dr. Steine, e guiou-nos por um corredor alcatifado, através de uma sala de reuniões magnífica, de uma enorme biblioteca jurídica, dois outros escritórios de advogados, até ao dele, que ficava no fim do corredor. As suas janelas davam para a cidade, que naquele dia, por causa do céu azul, quase sem nuvens, proporcionava uma vista fantástica.

Sentem-se, por favor. - Indicou as cadeiras de couro mole e cinzento à frente da sua mesa. - Provavelmente não se lembram de mim - continuou ele -, mas eu estive na vossa festa de casamento, na Mansão Farthinggale. Que grande festa que foi.

- Eu bem sabia que já o tinha visto nalgum lado - meditei eu. - Mas, receio não estar a compreender... Foi como advogado do Luke Casteel?

- bom, na verdade, eu representava Mister Tatterton.

- Mister Tatterton? - Olhei para o Logan, mas este apenas encolheu os ombros.

- Sim. Não sabiam? - perguntou o Dr. Steine.

- Não. Vai ter de explicar.

- Ah, desculpem. Eu deduzi que... - Inclinou-se para a frente. - Bem, há algum tempo atrás negociei a compra de um circo pertencente a um... Mister Windenbarron para Mister Tatterton. - Observou os papéis em cima da mesa.

- Exactamente, Windenbarron.

- O Tony comprou o circo a Windenbarron? Mas... Eu pensava que o circo era do Luke. - Olhei novamente para o Logan, e ele abanou novamente a cabeça, indicando que não sabia de nada.

- Oh, e era - assegurou-me o Dr. Steine.

- Não estou a perceber.

- bom, depois de Mister Tatterton ter comprado o circo, pediu-me para chegar a um acordo com o Luke Casteel, entregando-lhe o circo, por uma quantia perfeitamente irrisória. - Ele sorriu. - Um dólar, para ser exacto.

- O quê?

- Temos de lhe chamar um presente. De qualquer maneira, com a morte dele e de Mistress Casteel, a propriedade reverte para Mister Tatterton. Quando falámos ontem à noite, ele pediu-me para pôr o circo à venda e para depositar a receita num fundo para o Drake. Pediu-me também para ver quais os bens de Mister Casteel, tratar da venda da sua casa, e depositar todas as receitas e heranças no mesmo fundo. Espero que isso esteja de acordo com o que a senhora pretendia, Mistress Stonewall - disse ele.

Eu estava boquiaberta.

- Na realidade - continuou o Dr. Steine -, o assunto normalmente não teria importância suficiente para o nosso escritório, mas como tratamos de muitos assuntos de Mister Tatterton aqui no Sul, quando ele telefonou... Claro que tratamos de tudo.

Encostei-me para trás, atordoada. Porque é que o Tony tinha feito tudo aquilo? Porque é que o tinha mantido em segredo?

- Todos os documentos necessários estão aqui - prosseguiu o advogado. - Não há assim nada que seja preciso assinar... Ainda vai levar o seu tempo até termos tudo em ordem, mas se quiser dar uma vista de olhos em alguma coisa...

- Ele deu o circo ao Luke? - perguntei eu. Imaginei que devia estar com ar de tonta, com a boca aberta e uma expressão desconcertada.

- Sim, Mistress Stonewall. - Fez uma pausa e depois inclinou-se para a frente. - Agora, em relação ao funeral. Os corpos estão neste momento na Agência Funerária Eddington. O funeral será amanhã, às onze da manhã.

- O Tony fez tudo isto só com um telefonema? - perguntei eu. Não soei tão sarcástica como espantada. O Tony tinha tirado completamente o Luke e a minha despedida das minhas mãos. Tinham-me roubado até o Luke. O Dr. J. Arthur Steine sorriu orgulhosamente.

- Como já disse, Mistress Stonewall, Mister Tatterton é um cliente nosso muito importante. Ficamos felizes por podermos fazer tudo para vos simplificar a vida.

- Isto é o que o Tony faz por ti - disse o Logan. Olhei para ele. O Logan não se apercebia do que tudo aquilo significava. Continuava sem saber que o Tony era o meu verdadeiro pai, que tinha sido por inveja e posse que ele fizera aquilo e não por amabilidade. No entanto, pensei, isto era entre mim e o Tony e entre mim e o Luke, algo que o Logan nunca precisaria de saber.

- Mas, se calhar, o Luke devia ser enterrado nos Willies - sugeri eu. Pensei na sepultura da minha mãe e naquela simples pedra tumular que dizia apenas:

ANGEL

ESPOSA ADORADA DE THOMAS LUKE CASTEEL

- Olha que não sei - replicou o Logan. - Atlanta e os seus arredores tornaram-se mesmo no lar do Luke. Achas mesmo que ele gostaria de ser levado de novo para os Willies?

A maneira como o Logan pronunciou "levado de novo" soou como se eu o estivesse a devolver a uma altura mais pobre e mais feia da sua vida, de onde ele escapara ao vir para ali e ao tornar-se dono de um circo.

- Talvez não - disse eu.

- E tens de pensar na Stacie - lembrou-me o Logan.

- E o Drake? - perguntei eu, voltando-me para o Dr. Steine.

- Bem, que nós saibamos, não há parentes do lado de Mister Casteel interessados em ficar com a criança. Mister Casteel tinha alguns irmãos?

- Esses nem sequer quiseram tomar conta deles próprios - disse eu. - Foram os cinco parar à prisão.

- bom - prosseguiu ele, encostando-se para trás -, a senhora é meia-irmã dele. O que pretende fazer em relação à criança? com certeza já discutiu isso com Mister Tatterton, e ele disse-me para seguir as suas instruções. Se quiser, tenho a certeza de que não haverá problema em conseguir-lhe a tutela do rapaz. A senhora pode dar-lhe um bom lar.

- É claro que quero a tutela - insisti eu. - No entanto, já que vou ficar com a tutela do Drake, a partir de agora todos os assuntos que lhe digam respeito devem ser dirigidos directamente a mim, e não a Mister Tatterton.

Ele ouviu a frieza da minha voz e endireitou-se na cadeira.

- com certeza. É a mesma morada, não é assim?

- Também temos uma morada em Winnerrow - esclareci eu. - É a que lhe vamos dar. É para aí que quero que me envie tudo.

Ele olhou-me por um momento e depois acenou com a cabeça. Eu tinha a certeza de que ele telefonaria ao Tony assim que saíssemos do escritório. Escrevi a morada da casa de Hasbrouck e dei-lha.

- Por acaso sabe - perguntei eu -, se será possível ver o corpo do Luke?

- Pelo que ouvi, Mistress Stonewall, não é uma visão muito agradável. Está num caixão fechado, e é melhor deixá-lo assim.

Eu fechei os olhos e inspirei fundo.

- Heaven? - perguntou o Logan. Ele pousou a mão no meu braço.

- Estou bem - disse eu. Levantei-me. - Obrigada, doutor Steine - continuei eu. Ele deu a volta à mesa.

- Lamento que a segunda vez que nos encontramos tenha sido nesta situação. Felicidades especialmente para o pequenino. Voltarei a contactar por causa dos outros assuntos.

Agradeci-lhe outra vez e saímos. Toda eu tremia, à medida que avançávamos pelo corredor luxuoso até à entrada. O Drake tinha manchas encarnadas do chupa-chupa na boca, no queixo e nas bochechas. Olhou para cima, ansiosamente.

- Quando ele come um chupa-chupa, come-o mesmo comentou o Logan, maravilhado.

- Há aqui alguma casa de banho? - perguntei eu à secretária.

- com certeza. Mesmo à sua esquerda, primeira porta. Peguei no Drake e levei-o até à casa de banho, para lhe lavar a cara. Ele ficou a olhar para mim, a olhar atentamente para os meus olhos e para a minha cara. Esperei que ele visse o amor que eu sentia por ele.

- Já podemos ir para casa? - perguntou.

- Já, sim, querido Drake. Para casa e depois para uma casa nova, onde nunca te irá acontecer nada de mal outra vez.

Continuou a olhar para mim. Então, levantou a mão direita, com o dedo indicador estendido, e tocou na única lágrima que escapara do meu olho direito e que ziguezagueara cara abaixo. De repente, embora não o aceitasse, pareceu ter compreendido tudo o que acontecera.

Assim que chegámos a casa do Luke e eu abri a porta do carro, o Drake saltou para fora e correu para a porta da frente. Antes de termos saído para o escritório do Dr. J. Arthur Steine, Mrs. Cotton tinha-me dado as chaves da casa, porque ela já não ia estar quando nós voltássemos. O Drake ficou surpreendido ao girar a maçaneta e encontrar a porta trancada. Olhou para nós, com uma expressão de enorme desespero na carita.

- A mamã? - perguntou ele. - E o papá?

Pus a chave na fechadura sem lhe responder. A minha garganta estava a ficar cada vez mais apertada, quase sem conseguir falar. Quando abri a porta, ele entrou a correr em casa, a chamar.

- Mamã! Mamã! Mamã!

Os seus pezinhos soavam no chão enquanto espreitava em todos os quartos.

- Papá! Mamã!

O lamento na sua voz partiu-me o coração e encheu-me os olhos de lágrimas.

Talvez não seja boa ideia ficarmos cá hoje à noite,

Heaven - sugeriu o Logan, aparecendo ao meu lado e pondo o braço por cima dos meus ombros. - Se calhar, devíamos voltar para Atlanta e ficar num hotel. Damos uma vista de olhos e levamos aquilo que achares conveniente.

- És capaz de ter razão - retorqui eu, com a voz a tremer - Mas tenho medo de o arrancar assim do que lhe é familiar. Talvez consigamos tornar tudo uma aventura divertida e excitante para ele.

Respirei fundo, para me controlar. Havia coisas a fazer, não havia tempo para lamentos, e eu tinha de pensar no pequeno Drake. Tinha de ser forte por ele.

- Vai ver se encontras alguma mala de viagem, e eu vou começar a ver as coisas dele, e tirar só o que for necessário. Quero comprar-lhe um guarda-roupa completamente novo.

O Logan foi à procura, e eu segui o Drake até aos quartos. Encontrava-se mais uma vez à porta do quarto dos pais, a olhar para a cama vazia. Quando o levantei nos meus braços", não esboçou a mínima resistência. Encostou a cabeça ao meu ombro, com o dedo na boca e os olhos vítreos.

- O que vamos fazer, Drake - disse eu -, é ir ao teu quarto e escolher o que quiseres levar contigo. Depois, eu e o Logan fazemos a mala, e vamos todos para um belo hotel em Atlanta. Já alguma vez estiveste num hotel?

Ele abanou a cabeça, suavemente.

- Vais ver que vais gostar. E vamos a um bom restaurante. Amanhã, vamos andar de avião - continuei, e isso pareceu animá-lo. Levantou a cabeça e olhou para mim com novo interesse. - Nunca andaste de avião? - Abanou a cabeça, desta vez com mais força. - Bem - disse eu, seguindo para o quarto dele -, vamos andar de avião e depois entrar num carro grande, e vamos para a maior casa que alguma vez viste.

- A mamã vai lá estar?

- Não, querido.

- E o papá? - O tom esperançado da sua voz quase me partiu o coração.

- Não, Drake. Não te lembras do que eu te contei sobre Deus os ter chamado para o céu? - Ele disse que sim com a cabeça. - É aí que eles estão, mas eles vão estar sempre a olhar para ti e a sorrir, porque sabem que estás a ser bem tratado. Está bem?

Pu-lo no chão e comecei a mexer nas gavetas da sua cómoda. O Logan encontrou algumas malas, mas eu só escolhi roupa suficiente para encher uma. Disse ao Drake para escolher o seu brinquedo preferido para levar. Uns minutos mais tarde, estava à minha frente com um carro de bombeiros meu conhecido. Era um brinquedo da Tatterton, uma réplica de um dos primeiros carros de bombeiros que existiram, e feito de um metal pesado. A bomba ainda funcionava. Tinha pequenos pneus de borracha verdadeiros, e um volante que virava mesmo as rodas da frente. Era o tipo de brinquedo de qualidade que já não era vendido nas lojas. Os pequenos bombeiros, com os rostos muito bem detalhados, alguns com expressões intensas, outros a sorrir, estavam intactos. O brinquedo tinha sido bem estimado todos aqueles anos. Era o brinquedo que eu lhe mandara depois da primeira visita que lhe fizera.

- Mas que brinquedo tão giro, Drake. Sabes quem é que te deu esse brinquedo? - Ele sacudiu a cabeça. - Fui eu que te mandei há uns anos. Fico muito contente por o teres tratado tão bem e por ser esse que queres levar. Mas sabes uma coisa? - prossegui eu, puxando-o para o pé de mim, e afastando-lhe os cabelos da testa. - Vais ter imensos brinquedos como este, brinquedos bons, brinquedos verdadeiros. - Os olhos dele abriram-se, interessados. - Sabes porquê? - Sacudiu a cabeça. - Porque eu e o Logan somos donos de uma fábrica de brinquedos. - Pareceu ficar extasiado, e eu sorri-lhe para o assegurar da verdade. - Exactamente, uma fábrica de brinquedos. Muito bem - continuei. - Levas isso ao Logan e dizes-lhe que o queres levar.

Olhei em volta e depois fui até ao quarto do Luke e da Stacie.

Tinha decidido ficar com a fotografia deles, a que fora tirada à frente da casa. Queria-a para o Drake, mas também a queria quase tanto para mim.

- Estou a fazer chá. Queres uma chávena? - perguntou o Logan, da cozinha.

- Não, obrigada. Mas, já agora, vê se o Drake come alguma coisa, está bem?

- Claro. Drake - ouvi o Logan chamar -, vamos ver o que há para comer?

Enquanto estavam na cozinha, comecei a investigar as gavetas da cómoda, para ver se havia alguma coisa de valor que devesse levar para o Drake. Encontrei as jóias todas da Stacie, que eram basicamente jóias do espectáculo, um relógio que parecia valioso, e mais algumas fotografias dela e do Luke. Na cómoda dele, na primeira gaveta por baixo das meias, encontrei um dos coelhos esculpidos pelo avô. Os meus olhos encheram-se de lágrimas enquanto me lembrava dele, sentado na sua cadeira de balouço, trabalhando e falando com a sua Annie imaginária.

Então, encontrei algo que me espantou: um recorte do jornal Boston Globe a anunciar o meu casamento com o Logan. Vi onde o Luke tinha sublinhado a parte que dizia que eu era professora em Winnerrow. Sentei-me na cama, com o recorte no colo. Afinal, ele tinha-se interessado por mim e sentido orgulho de mim, pensei eu. Mas, porque é que ele não tinha ido ao meu casamento, e porque é que nunca mais me contactara ou escrevera desde então? Agora, fora-se embora, a Stacie fora-se embora, Mrs. Cotton fora-se embora, e, de qualquer maneira, ela não era o tipo de pessoa que quisesse responder a perguntas, e o advogado era demasiado profissional e indiferente para saber mais do que os assuntos legais.

Contudo, o Tony sabia, pensei eu. Tinha a certeza disso. Por alguma razão ele sabia e estava envolvido em tantos assuntos relacionados com a vida do Luke. Mal podia esperar por regressar e descobrir porque é que ele tinha mantido aquilo em segredo. Pensaria estar de alguma maneira a proteger-me? Eu já não era uma criança, ele não tinha o direito de esconder fosse o que fosse de mim.

Guardei o recorte junto das fotografias e do coelho com outras coisas que queria levar, e começara a investigar o armário, quando ouvi a campainha da porta. Parei, enquanto ouvia o Logan atender. Logo em seguida ouvi uma voz familiar. A Fanny! Mas havia uma segunda voz, também muito familiar. Ela tinha vindo com o Randall Wilcox. Quando saí do quarto, já eles estavam na cozinha.

- Drake, querido - disse a Fanny, arrastando as palavras -, eu sou a tua mana, a Fanny, aquela de quem o teu papá gostava mais.

Antes que o Drake pudesse responder, ela arrancou-o da cadeira e abraçou-o, cobrindo-lhe o rosto de beijos, deixando-lhe bâton pelas bochechas e pela testa.

- És a cara chapada dele, tão bonito como ele.

- Olá, Fanny - saudei eu, calmamente. Ela trazia um vestido de renda preta, sem mangas, com folhos em baixo e um decote grande. Estava-lhe apertado nas ancas e no peito, mas ainda mal se notava a gravidez, talvez um leve aumento no meio. Tinha um chapéu de palha preto de aba larga, e o cabelo apanhado na parte de trás da cabeça. Como sempre, a maquilhagem dela era demasiado carregada, a sombra azul, o blush e o bâton vermelho-vivo.

- Olá, olá. Dize olá ao Randall - exigiu ela, voltando-se para ele. Este continuava de pé, à porta da cozinha de chapéu na mão. Trazia um fato simples castanho-escuro e parecia muito mais velho do que eu me lembrava. "A vida com a Fanny deve estar a envelhecê-lo rapidamente", pensei eu. Sorriu timidamente e acenou com a cabeça.

- Olá, Heaven - olhou para o Logan. - Logan. O Logan limitou-se a acenar com a cabeça.

- Podiam ser mais cordiais - declarou a Fanny, rapidamente. - O Randall foi simpático em acompanhar-me nesta viagem triste - prosseguiu ela, dando-lhe o braço direito e segurando o Drake com o esquerdo -, especialmente no estado em que estou - acrescentou com um ar matreiro.

- Foi muito simpático da parte dele - repeti eu, sem responder à insinuação dela. Queria salvar o Drake das garras da Fanny. - Logan, não estavas a dar de comer ao Drake?

- Estava, estava. A sanduíche dele está pronta. O Logan recuperou de repente a compostura que tinha perdido ao ver a Fanny e pôs o prato na mesa. - Também lhe preparei um leite com chocolate. Era o que querias, não era, Drake?

O Drake acenou com a cabeça, e a Fanny levou-o outra vez para a cadeira, com relutância.

- Então - disse ela, olhando em volta -, já revistaram isto de cima a baixo?

- Não havia nada para revistar, Fanny - retorqui eu, friamente. - Há pouca coisa de valor. Tudo o que pertencia ao Luke e à Stacie vai ser depositado num fundo para o Drake. O advogado está a tratar disso.

- Aposto que sim - escarneceu a Fanny. - Não te disse que ela arranjava tudo antes de a gente chegar - disse ela ao Randall.

- Eu não tive de arranjar nada, Fanny. Na verdade, começou tudo a ser resolvido antes de eu chegar. Havia instruções - declarei, omitindo que fora o Tony a dá-las. Eu própria ainda não tinha percebido bem o papel dele nisto tudo.

- E como é que é com o funeral e isso?

- O funeral é amanhã, às onze, na Catedral de Kingsington, em Atlanta, e o enterro no cemitério da igreja.

- És tu que pagas?

- Já foi tudo tratado, Fanny - reafirmei eu.

Vão ficar cá a dormir? - perguntou ela, e olhou para o Logan. Este recusou-se a olhá-la nos olhos, e continuou a guardar o leite e a manteiga de amendoim.

- Não, vamos ficar num hotel em Atlanta - informei

eu. Queria mantê-la a conversar comigo e não com o Logan.

Mas podes ficar cá e revistar a casa para ver se há alguma coisa que queiras.

Ele era o meu papá. Era de mim que ele mais gostava.

Tenho esse direito - declarou ela, teimosamente.

- Suponho que sim - retorqui, tranquila. - Estão aqui as chaves da casa. Só tens de as levar contigo amanhã, para as darmos ao advogado encarregue do imobiliário. Deixei cair as chaves na mão dela e ela olhou para mim, surpreendida.

- E o Drake? - disse ela, voltando-se para ele.

- Queres ficar cá comigo e com o Randall, querido Drake? Depois podes ir connosco ao funeral amanhã.

Por uns longos instantes, o Drake limitou-se a olhar para ela. Depois olhou para mim e novamente para ela.

- Eu vou para um hotel - afirmou ele -, depois vou andar de avião. E depois vou a uma fábrica de brinquedos!

- Ah, vais? - Ela olhou para mim. - Vais levá-lo pró teu castelo?

- Ele vai ficar connosco, vai. Vamos dar-lhe um lar. Fixou-me por um instante, com um vazio estranho nos olhos. Era um vazio despido de qualquer emoção, o que nunca tinha visto nela. Então, voltou-se novamente para o Drake.

- Bem, querido, não preferias dormir na tua própria cama, hoje à noite?

- Estás a confundi-lo, Fanny - interrompi eu. - Ele já está confuso o suficiente. É melhor ter a mente ocupada.

Ela voltou-se para mim, com uma fúria, mais característica dela nos olhos.

- Não estou nada a confundi-lo.

- Ela tem razão - disse o Randall, calmamente. Parecia meio surpreendido por ter falado, mas o que viu obrigou-o a fazê-lo. No entanto, quase imediatamente, percebeu que chamara a fúria da Fanny para si próprio.

- Ah, claro que dizes que ela tem razão - respondeu a Fanny, asperamente. - Provavelmente vais ficar sempre do lado dela contra mim, não vais?

- Vá lá - pediu ele -, vamos comer qualquer coisa num restaurante. Depois voltamos cá.

Ela olhou para mim cheia de ódio e, depois, a expressão suavizou-se, e fez um dos seus sorrisos.

- O Randall tem razão. Tenho estado tão transtornada por causa do papá, que nem pensei em comida. E agora estou a comer por dois, não estou, Heaven? - disse ela, olhando directamente para o Logan. - Não comemos nada desde que saímos de Winnerrow, pois não, Randall?

- Não - respondeu o Randall, obviamente confuso com a tensão entre a Fanny e o Logan.

- Queres ir a um restaurante, querido Drake? - perguntou ela.

- Fanny, não vês que ele está a comer uma sanduíche?

- Uma sanduíche! - Pousou a mão na cabeça dele e afagou-lhe o cabelo. - Preferes ir a um restaurante, não preferes, pequenino?

- Eu não sou pequenino - disse o Drake, empurrando-a.

- Bem, eu não quis dizer que eras pequenino, querido.

- Fanny, vamos comer - implorou o Randall. - Voltamos depois.

- Está bem - respondeu ela, bruscamente. Depois, fez um sorriso. - A gente vê-se depois. - Ajoelhou-se ao lado do Drake e deu-lhe um beijo na cara. - Tão bonito como o papá - disse ela. O Drake olhou para ela enquanto esta ia ter com o Randall.

- Vemo-nos amanhã, na igreja - disse eu, friamente.

- Oh, Deus, tinha-me esquecido - replicou a Fanny.

- Pobre Luke. - Deu o braço ao Randall. - Detesto pensar no assunto. Empresta-me lá o teu lenço, Randall, querido - disse ela, e limpou os olhos suavemente. Baixou a cabeça.

- Até logo - disse o Randall.

No momento em que ele e a Fanny deixaram a casa, respirei fundo e tentei acalmar o turbilhão de fúria que a Fanny tinha provocado. Olhei para o Logan, que tinha uma expressão de culpa e tristeza no rosto.

- vou levar as coisas do Drake para o carro - disse ele -, para irmos embora assim que ele acabar.

Concordei com a cabeça e depois sentei-me na mesa e comecei a limpar o bâton da cara do Drake.

No dia seguinte bem cedo, com o Drake entre nós e as suas mãozinhas pequeninas nas nossas, entrámos na igreja, como uma família. Os trabalhadores do circo do Luke enchiam os bancos e as naves laterais da pequena igreja. Havia gigantes e anões, uma mulher barbuda com um vestido preto comprido, treinadores de animais com o cabelo tão comprido que pareciam musculados cantores de rock, grupos de acrobatas, que estavam tão sintonizados com os movimentos uns dos outros, que pareciam colados, algumas mulheres muito vistosas, que ajudavam mágicos e o animador do circo, alguns com ar de gestores com fatos completos, e homens que faziam de palhaços, com o rosto tão dominado por um desgosto verdadeiro que até parecia estarem com a maquilhagem triste dos palhaços.

Todos eles conheciam o Drake e, quando o viram, parecia que todo o grupo suspirara e desatara a chorar ao mesmo tempo. Descemos a nave da igreja até ao banco da frente e sentámo-nos diante dos caixões dos pais do Drake.

- O papá e a mamã vêm cá ter? - perguntou o Drake, olhando ansiosamente à sua volta com os seus grandes olhos castanhos.

Senti o meu coração prestes a despedaçar-se.

- Estás num sítio especial para dizeres adeus ao papá e à mamã... - Abracei-o com força.

Ele olhou para a janela de vitral, para as velas, para os dois caixões ao lado um do outro. A mulher barbuda tinha acabado de chegar ao pé do caixão do Luke e, chorando copiosamente, inclinou-se para ele e colocou uma rosa em cima.

- Ele foi tão gentil comigo - murmurou ela para si própria.

- Porque é que a tia Martha está a falar com a caixa? perguntou o Drake. - Quem é que lá está dentro? O Melin, o mágico, pôs lá alguém dentro?

- Não, querido - disse eu. Dei-lhe um beijo terno na testa.

- Eu quero olhar lá para dentro! Não acredito em ti! Não acredito em ti! Eu sei que o meu papá está lá dentro! gritou ele, tentando libertar-se. - Larga-me! Eu quero o meu papá!

Desatou a correr para o caixão. De repente, parou. Encostou a orelha pequenina ao caixão e bateu na madeira.

- Estás aí, papá? - perguntou ele.

Tentei correr para ele, abraçá-lo, protegê-lo, mas a mulher barbuda segurou-me suavemente no cotovelo.

- Por favor - disse ela, gentilmente -, acho que consigo falar com ele. Eu e o Drake sempre fomos bons amigos.

O Drake abraçou a mulher barbuda.

- Tia Martha, tia Martha! O meu papá está ali dentro?

- Meu querido, adorado Drake. O teu papá está no céu ali só está o corpo. Mas não te preocupes, porque o céu é como um circo maravilhoso. O maior circo que o papá e a mamã alguma vez viram. Eles vão ser muito felizes lá. Mas o mais importante, é que eles querem que tu sejas feliz aqui na Terra. Querem que vás à escola e que te portes bem, que te mantenhas saudável, e quando cresceres podes ser um animador de circo como o teu papá. - E começou a chorar.

- Eu quero ser animador de circo - disse o Drake.

- E um domador de leões, também.

- Agora quero que te vás sentar ao pé da tua irmã. Ela gosta muito, muito de ti.

Então, a mulher barbuda tomou o Drake nos seus braços e deu-lhe um beijo de despedida.

- vou ser um domador de leões - disse-me o Drake, todo orgulhoso.

- Claro que vais, querido, vais ser tudo o que quiseres e eu vou ajudar-te - assegurei-lhe eu. - Agora, Drake prossegui, enquanto o afastava do caixão -, vamo-nos sentar e ouvir a missa, está bem?

Ele acenou vigorosamente com a cabeça, agarrando-me a mão com tanta força que parecia ter receio de que também eu desaparecesse. Enquanto nos dirigíamos para o banco, reparei que o Drake ficara mais descansado ao ver tantas caras conhecidas. Ao observar a congregação, fiquei surpreendida pelo facto de a Fanny e o Randall ainda não terem chegado. Mas não pensei muito no assunto. Sentámo-nos e o Logan pôs o braço à minha volta. Não consegui deixar de olhar para o caixão e pensar no Luke.

A música do órgão começou. Nesse momento, ouvi barulho à porta e voltei-me para ver. A Fanny e o Randall estavam a caminhar apressadamente pela nave da igreja. A Fanny estava com o mesmo vestido preto e com a cara tão maquilhada como no dia anterior. Quando entrou para o banco atrás de nós, viu, repentinamente, o caixão. Agarrou a minha mão enquanto as lágrimas começaram a jorrar cara abaixo, com fios lamacentos pretos e azuis por causa da maquilhagem. Nesse momento, quase me senti perto daquela irmã que parecia querer sempre magoar-me.

O padre apareceu. Fez um elogio fúnebre muito bom para quem nem sequer conhecia o Luke e a Stacie. Era óbvio que Mr. Steine lhe tinha dado algum material biográfico. O padre falou no desejo do Luke em entreter e dar prazer às pessoas. Disse que algumas pessoas acreditavam que a própria vida era como um circo, e que Deus era igual a um animador de circo. Disse que o Luke tinha um espectáculo lindo, à espera dele no céu, que Deus o tinha chamado para uma responsabilidade maior. Fiquei contente que o padre tivesse usado a expressão "Deus tinha-o chamado". O pequeno Drake, que estava a olhar para os caixões fechados à sua frente, olhou para cima quando ele pronunciou estas palavras. Lembrou-se do que eu lhe tinha dito.

Depois, o padre falou da Stacie, que tinha sido uma boa mãe e uma boa esposa, e de como o amor deles devia ter sido forte, para Deus decidir levá-los ao mesmo tempo para poderem estar juntos.

A Fanny começou a soluçar mesmo, chorando alto para que todos na igreja a ouvissem. O Randall tentou consolá-la, esperando que ela baixasse a voz, pensei eu. Por um momento, depois de o padre ter acabado, eu e a Fanny olhámos uma para a outra e eu vi a minha dor e o meu desgosto sinceros reflectidos nos seus olhos, o Luke tinha sido muitas vezes afectuoso com ela quando era mais nova, e a Fanny nunca tinha conhecido uma afeição verdadeira durante a sua vida. Estava a sofrer uma verdadeira perda com a morte do Luke.

Os caixões foram tirados da igreja e levados até ao seu lugar no cemitério. Já tinha sido preparada e gravada uma pedra tumular. Tinha Castell escrito em cima e os nomes próprios em baixo, com as datas de nascimento e a data da morte. Por baixo disso estava simplesmente escrito "Descansem em paz". Depois de terem sido pronunciadas as últimas palavras e de os caixões terem sido baixados, as pessoas começaram a ir-se embora.

Em frente à igreja, a Fanny tomou o Drake novamente nos seus braços, a chorar muito.

- Oh, Drake, querido, agora és um órfão, és como nós. - Cobriu-lhe a cara de beijos. Ele não resistiu. Estava atordoado e espantado com a missa e com a visão dos caixões. No entanto, eu achei que ela estava a exagerar e tirei-o dos seus braços.

- Ele não é um órfão - disse eu, com a cara vermelha de fúria. - Vai ter um lar e uma família.

A Fanny recuou, atingida pela frieza da minha voz. Limpou as lágrimas com o lenço do Randall e olhou para mim.

- Ele devia ficar nos Willies - disse ela. - com os da classe do pai.

- Isso nunca vai acontecer - afirmei eu, com um forte arrepio de orgulho a subir-me pela espinha. - O Luke deixou os Willies para ter uma vida melhor e havia de querer o mesmo para o filho.

- Vamos, Fanny - chamou o Randall, com gentileza. Algumas das pessoas do circo tinham parado para nos observar. - Este não é o sítio mais indicado para discutir.

A Fanny olhou em volta por um momento e depois sorriu.

- Tens razão - concordou ela. - Adeus por agora, Heaven Leigh. Adeus, Drake, querido. - Atirou-lhe um beijo, voltou-se e foi-se embora com o Randall.

Fomos directamente para o aeroporto. O Drake esteve como um boneco de trapos no meu colo durante todo o caminho, sentado, mole, quieto, com a cabeça encostada ao meu peito. No entanto, quando chegámos ao aeroporto, o rebuliço à volta dos aviões e a viagem reanimaram-no. Almoçou e entrámos no avião. Sentei-o à janela e ele ficou muito animado.

- Estamos acima dos pássaros? - perguntou. - Vamos aterrar na Lua?

O Logan explicou-lhe como é que os aviões voavam, como as nuvens nos impediam de ver o solo quando voávamos acima delas, e como é que o avião não desaparecia nas nuvens. O Drake estava excitadíssimo com esta aventura nova, tinha o rosto tão animado que eu tive a certeza de que íamos conseguir fazê-lo feliz no seio da sua nova família. O Logan ia ser um pai maravilhoso. Já tinha aceite o Drake como se fosse dele.

O Logan e o Drake rapidamente adormeceram, o Drake com a sua cabecinha escura no colo do Logan. Como pareciam estar em paz... Desejei poder sentir-me assim, mas a minha mente estava cheia de ansiedade. Queria saber porque é que o Tony tinha dado o circo ao Luke, porque é que o Luke tinha aquele recorte de jornal com o meu casamento na gaveta. Queria começar a minha nova vida com o Drake, o Logan e o nosso bebé livre das teias do passado, e eu estava decidida a obrigar o Tony a explicar-me todas elas.

O Tony não estava em Farthy quando chegámos. O Curtis disse que ele tinha ido para fora em negócios e não voltaria até bastante tarde no dia seguinte.

Havia todo o tipo de recados telefónicos para o Logan, e ele pôs-se a telefonar para essas pessoas assim que nos instalámos.

Eu e o Drake fomos dar uma volta pela casa. Sentia-se encantado com as pinturas da parede da sala de desenho e ainda mais impressionado com o tamanho da casa.

Isto é um castelo, Heaven? - perguntou ele. - vou passar a ser um príncipe?

Os seus olhos estavam arregalados de admiração.

Vais, meu querido - disse eu, abraçando-o. - Vais ser o príncipe do castelo e vais ter tudo o que quiseres.

Mandei preparar o quarto ao lado dos nossos aposentos, e o Logan trouxe-lhe alguns dos brinquedos-amostras que havia lá em casa. O Drake estava exausto com o dia e a viagem, e adormeceu logo a seguir ao jantar.

Depois de o ter aconchegado na cama, fiquei parada a olhar para ele. Era tão doce, tão bonito e inocente. Prometi a mim mesma ser uma boa mãe para ele, e nunca fazê-lo sentir-se um estranho ou indesejado. Sim, eu podia tentar desfazer o passado. Iria provar com o meu amor que a raiva, a amargura e o ressentimento podiam ser postos de parte de uma vez por todas. Iria amá-lo o suficiente para apagar toda a dor- e o desespero que tinha sentido por odiar o Luke.

A Fanny tinha razão. Todos nós éramos órfãos de alguma maneira, mas eu ia conseguir tornar-nos uma família. O bebé que crescia dentro de mim seria um irmão ou uma irmã como qualquer bebé que a Stacie tivesse tido. E eu gostaria do Drake como nunca o Luke tinha gostado de mim.

Aconcheguei o cobertor por baixo do seu queixo, ajoelhei-me e dei-lhe um beijo na carinha fofa, e fui-me embora. O Logan estava a acabar de desligar o telefone quando eu cheguei ao quarto.

- Heaven - disse ele, com uma expressão de frustração -, detesto ter de te fazer isto assim de repente, mas vou ter de ir a Winnerrow amanhã. Os trabalhadores abandonaram a obra por causa de uma discussão com o meu capataz. Está tudo num impasse. Assim que resolver isto...

- Não faz mal, Logan. Vai para lá de manhã. Eu vou estar ocupada a conhecer melhor o Drake e a fazê-lo conhecer-me melhor a mim e a Farthy. E eu quero estar cá quando o Tony chegar. Temos algumas coisas para conversar - disse eu. O Logan apercebeu-se da determinação na minha voz.

- De certeza que ele tem uma boa explicação para dar e que tudo o que ele fez e tem feito foi por uma boa razão, Heaven. O Tony gosta de ti. Nunca faria nada para te magoar, especialmente agora que estás grávida.

- Espero que não - respondi eu, mas claro que havia muita coisa que o Logan não sabia sobre o meu passado em Farthinggale. O seu optimismo era compreensível.

O Logan dormiu que nem um bebé nessa noite, enquanto eu dava voltas e mais voltas na cama, com a mente assaltada por segredos e sombras. Fartei-me de pensar e reflectir. A vida era mesmo estranha. Como a vida do Drake se tornara tão parecida com a minha. E quão parecida com a minha era a vida do meu filho, que talvez nem sequer viesse a saber quem era o seu verdadeiro pai. A minha mente revolvia-se, tentando desenredar o novelo que a minha vida era. Muitos dos nós estavam concentrados à volta do Tony, o Tony, que tinha violado a minha mãe, que tinha levado a Jillian à loucura, que tinha tornado impossível o meu amor com o Troy, e que, agora, ao que parecia, tinha tentado controlar a vida do Luke como tinha tentado controlar a minha. Porquê? Que eu soubesse, o Luke só tinha tido algum contacto com o Tony quando lhe telefonara a dizer que me comprara um bilhete de avião, para eu o ir visitar e à Jillian, a fim de saber da minha mãe. O Tony raramente falara do Luke depois disso. Para que é que o faria? Provinham de mundos tão diferentes que mais valia estarem em planetas diferentes.

No entanto, o telegrama com a morte do Luke e da Stacie viera endereçado ao Tony, e tinha sido o Tony a tratar de tudo. Por que razão o Tony havia comprado o circo para o Luke e nunca me dissera nada?

Não valia a pena, não ia conseguir dormir, pensei eu. Olhei para o Logan. Estava morto para os outros, cansado da viagem e dos acontecimentos. A sua respiração era profunda e regular. Levantei-me da cama, pus o roupão e os chinelos e fui silenciosamente pelo corredor mal iluminado. Primeiro, espreitei o Drake, que estava a dormir profundamente. Arranjei-lhe o cobertor, que ele tinha afastado durante o sono, e depois deixei-o. Porém, em vez de voltar para o meu quarto, fui lá abaixo.

Como a casa estava sossegada. Como estavam quietas as sombras nos cantos. A minha própria sombra, dez vezes maior do que eu, seguia-me pelas paredes como um anjo negro flutuante enquanto eu descia as escadas, e parei, a pensar no que ia fazer. Nunca antes me interessara ou sentira curiosidade, mas hoje... hoje precisava de respostas.

Dirigi-me ao escritório do Tony e acendi a luz. A grande secretária estava cheia de papéis amontoados. Sabia o quanto Tony detestava que lhe mexessem nas coisas. Até detestava que as criadas fizessem a limpeza. O escritório tinha sempre um aspecto empoeirado e pouco arrumado; o Tony, porém, dava tanto valor à sua privacidade e ao seu próprio sistema de guardar e procurar coisas que não admitia interferências.

O meu olhar parou nos ficheiros. Fiquei contente por saber que ele guardava as coisas por ordem alfabética. Primeiro procurei e não encontrei nada. Estava a ver no C, em Casteel. Parei a pensar, bastante confusa e frustrada. Então, puxei os ficheiros com H, à procura de um denominado HEAVEN. O meu coração enviou uma corrente eléctrica para as minhas veias em vez de sangue, quando o encontrei.

Sentei-me à secretária e examinei-o. Primeiro, só encontrei papéis referentes à minha educação escolar. Depois, encontrei um único documento, um documento que me gelou mais do que o gélido vento que passava pelas frestas do soalho e das paredes da minha cabana nos Willies.

Era um contrato entre Anthony Townsend Tatterton e Luke Casteel, entregando o circo de Windenbarron ao Luke pelo preço simbólico de um dólar e as seguintes condições: que ele nunca mais tente entrar em contacto de qualquer forma e maneira com Heaven Leigh Casteel." Estabelecia o acordo que, se o fizesse, perderia o direito ao circo.

Encostei-me para trás, demasiado espantada para me enfurecer, chorar ou gritar. Demasiado espantada para saber como reagir. Só era capaz de perceber uma coisa.

O Luke tinha-me vendido mais uma vez.

 

OS PECADOS DO MEU PAI

Pouco depois do romper da manhã, fui acordada pelos passos de uns pezinhos. Abri os olhos e vi o Drake à porta, desgrenhado pela noite de sono, a olhar timidamente para mim. Tinha deixado a porta aberta para o ouvir no caso de ele acordar durante a noite e chamar pelos pais. Sorri e sentei-me na cama. O Logan acordou também logo a seguir.

- bom dia, Drake - disse eu. - Estás com fome? Continuou a olhar para mim, com os olhos a pestanejar

muito depressa.

- bom dia, Drake - disse o Logan, levantando-se da cama. - Eu, pelo menos, estou cheio de fome.

- Quero ir para casa - declarou o Drake. Não choramingou, apenas fez uma exigência.

Levantei-me e fui ter com ele, baixando-me e pegando-lhe nas mãos. Mantinha-se firme, com um brilho intenso nos seus lindos olhos castanhos e os lábios fechados.

- Já estás em casa. Drake. A partir de agora a tua casa vai ser onde eu e o Logan estivermos. Não te lembras do que falámos e vimos ontem?

Acenou com a cabeça lentamente. Puxei-o para mim e abracei-o, dando-lhe um beijo na cara.

- Então, vamos lá - incentivei eu, com a voz mais animada que consegui. - Vamo-nos lavar e vestir e tomar o pequeno-almoço, e depois eu e tu vamos explorar Farthy. É esse o nome que chamamos a esta casa e aos jardins, Farthy, que é o diminutivo de Mansão Farthinggale. Vais ver uma piscina, um mirante, jardins e campos de ténis.

- Posso ir nadar? - perguntou o Drake, com os olhos iluminados.

- Claro, querido, mas não agora que está muito frio. Podemos também explorar o labirinto, embora nunca devas ir para lá sozinho, pois podes perder-te para sempre. Depois de termos passeado, podemos voltar para aqui e brincar com alguns dos brinquedos que o Logan encontrou ontem à noite. Depois do almoço, o Miles pode levar-nos de limusina até Boston, e vamos comprar-te todo o tipo de roupa. Que tal? Olhou para mim e depois para o Logan, que já estava a fazer a barba.

- Primeiro devíamos começar por um bom banho propus eu, pondo-me de pé e dando-lhe a mão para o levar para a casa de banho do quarto dele.

- Não quero.

- Claro que queres - disse eu, olhando em volta. Reparei na réplica do Queen Mary numa cadeira ao pé da cómoda cor de amêndoa, e lembrei-me de que aquilo flutuava mesmo. - Podes levar o teu barco contigo para a água e vais ver que os pequenos salva-vidas flutuam.

Isto interessou-o, e a partir daí foi fácil. Até me deixou lavar-lhe a cabeça. Depois, sequei-o e vesti-o com um dos seus fatos e, por cima, uma camisola, porque estávamos nos primeiros dias de Outono, e o vento já começava a fazer lembrar que o Inverno não tardava.

Ficou a brincar sossegadamente no seu quarto enquanto eu tomava banho e me vestia; em seguida, fomos ter com o Logan, para tomar o pequeno-almoço. Este estava a dar uma vista de olhos por The Wall Street Journal, tal como o Tony fazia ao pequeno-almoço. Observei o seu rosto atento, e estive quase a contar-lhe o que tinha descoberto na noite anterior, e tudo o que lhe escondera até então. De repente, ele olhou para mim.

- Um tostão pelos teus pensamentos, querida - declarou, sorrindo.

Será que os meus pensamentos se liam tão facilmente no meu rosto? Tentei disfarçar a vergonha com um sorriso.

- Deves-me um tostão - continuou o Logan, antes que eu tivesse tempo para falar. - Já sei no que estás a pensar. O meu coração quase que parou. Pousou o jornal e fez-me um grande sorriso. - No bebé, estás a pensar no bebé novo, não estás?

Só consegui retribuir-lhe o sorriso.

- Estou a pensar em todos os meus novos filhos, especialmente neste rapazinho - disse eu, fazendo uma festa no cabelo do Drake.

Os criados esforçaram-se imenso para que o Drake se sentisse em casa. O Rye Whiskey até criou uma travessa de fruta com a forma de um elefante, que ele próprio trouxe para a mesa. O Drake fez o seu primeiro sorriso autêntico. Vi que ele tinha herdado o sorriso do Luke, um sorriso que começava à volta dos olhos e continuava pelo rosto, repuxando gentilmente os cantos da boca.

O Logan teve de se ir embora logo a seguir ao pequeno-almoço, a fim de conseguir apanhar o avião. Deu-me um beijo de despedida e depois beijou o Drake, que ficou a olhar para ele muito surpreendido. Comecei a pensar se o Luke alguma vez lhe dera um beijo de olá ou de despedida. Talvez o Luke continuasse a sentir a resistência a quaisquer demonstrações de sentimentos que os homens dos Willies sentiam. Os sentimentos eram coisas de mulheres.

Depois do pequeno-almoço, eu e o Drake fomos dar o tal passeio pela Mansão Farthinggale que eu tinha prometido. As árvores nos jardins e nos bosques à volta estavam a começar a ficar com as cores vivas do Outono. Era como se Deus tivesse aparecido com um grande pincel de tinta e começasse a fazer riscas amarelas e laranjas, encarnadas e salmão. A visão era esmagadora, pois as árvores ainda estavam cheias de folhas. O ar da manhã, embora um pouco fresco, era revigorante. A natureza enchia-nos de um sentimento forte pela vida, mesmo antes de se retirar para hibernar durante o Inverno, altura em que os dias eram frios, escuros e sombrios, fazendo-nos ansiar pelos primeiros raios de sol da Primavera. Lembrava-me de como os primeiros sons das águas da Primavera libertando-se do gelo eram bem-vindos nos Willies.

Os jardineiros encontravam-se a trabalhar nos jardins e alguns homens estavam a preparar a piscina para o Inverno. Percebi que o pequeno Drake estava fascinado com tanta actividade. Os seus olhos examinavam tudo, absorvendo a visão dos homens a podar as árvores e os arbustos, os homens a pintar as paredes da piscina e a reparar as falhas.

Quando chegámos a uma das entradas do labirinto, expliquei-lhe o que aquilo era e a razão por que era perigoso entrar lá sozinho.

- Depois de entrares e virares uma vez e outra, podes esquecer-te de como é que se volta para trás, porque todas as voltas e todos os corredores parecem iguais.

- Porque é que alguém o construiu? - perguntou ele, semicerrando os olhos. Era um rapazinho que pensava, um rapazinho curioso. Ao fim de um ano a leccionar, eu conseguia reconhecer aquele desejo de aprender nos olhos de uma criança. Sabia que, assim que ele se sentisse mais à vontade comigo e naquele ambiente, passaria a fazer muitas perguntas.

Pensei para mim mesma se o Luke e a Stacie tinham tido paciência para ele e se haviam alimentado a sua fome de conhecimento. Decidi arranjar-lhe um bom professor e dar-lhe alguma educação pré-escolar.

- Era princípio, e divertido - respondi eu. - Como um puzzle, mas um puzzle para pessoas crescidas, percebes?

Ele fez que sim com a cabeça.

- Tens de me prometer nunca entrares aqui sozinho.

- Prometo - afirmou ele, e eu abracei-o. Olhou-me nos olhos, com um ar caloroso pela primeira vez.

- Será que o meu papá está a olhar para mim neste momento e a sorrir? - perguntou.

- Eu acho que sim, Drake, acho mesmo - respondi eu, levantando-me. - Anda, vamos ver o que é que os homens estão a fazer na piscina - continuei eu, e afastei-o do labirinto.

Logo depois de almoço, pedi ao Miles para trazer a limusina e- nos levar a Boston às compras. Lembrei-me da vez que o Tony me levara a Boston para comprar o meu guarda-roupa para a escola de Winterhaven. "Desprezo a maneira como as raparigas hoje se vestem, dando cabo da melhor parte da sua vida com roupa vulgar e espalhafatosa", dissera ele. "Vestir-te-ás como as meninas o faziam no tempo em que eu andava em Yale." E levara-me às lojas pequenas onde a roupa e os sapatos custavam uma fortuna. Não perguntara uma única vez o preço das camisolas, das saias, dos vestidos, dos casacos, das botas... de nada. Nem uma única rapariga em Winterhaven usava saias. Vestiam-se como qualquer outra adolescente: calças jeans e tops desleixados, blusas demasiado largas ou camisolas justas.

Estava decidida a não cometer o mesmo erro com o Drake. Ia comprar-lhe coisas bonitas, mas não roupa formal, que o distinguiria e o afastaria das outras crianças da sua idade. Não ia transformá-lo em algo que ele não era, aquilo que o Tony tinha tentado fazer comigo. Tentei perceber os gostos do Drake tendo também em atenção que a roupa lhe ficasse bem. Comprei-lhe alguma roupa boa, mas também roupa para ele brincar: jeans, camisas de flanela e ténis.

O Miles seguia-nos com o carro e tirava-me os embrulhos das mãos sempre que eu saía de uma loja. Por fim, tanto eu como o Drake já estávamos exaustos com as nossas compras. Entrámos na limusina e voltámos para Farthy. Os criados ajudaram a trazer os embrulhos para o quarto do Drake, mas eu rapidamente os dispensei e arrumei tudo sozinha. Queria que o Drake sentisse a ligação forte que eu tinha com ele com tudo o que o rodeava. Seria para ele uma madrasta, uma meia-irmã ou uma ama? Parecia já mais à vontade comigo, mas ainda se retraía, racionando as palavras, o riso e até as lágrimas. Sabia que ia levar o seu tempo e que era apenas um problema de confiança, e eu, assim como toda a gente, sabia também o que era começar tudo de novo, com uma nova família e um novo lar.

O Drake falou muito mais ao jantar, contando-me acerca das vezes que tinha ido com o Luke ao circo, e de todos os animais e artistas.

- Heaven, havia uma mulher que conseguia pendurar-se pelos cabelos e rodopiar, e às vezes o papá deixava-me dar de comer aos elefantes. O que eu gostava mais, mas gostava mesmo, era quando o papá me deixava vestir o meu fato de palhaço e o meu nariz e o meu cabelo de palhaço, e me punha na bossa mais alta do camelo. Ele chamava-se Ishtar. Não é um nome giro, Heaven?

Perguntou quando é que poderia voltar ao circo, e eu disse-lhe que um dia, em breve, eu o levaria ao circo, a um circo talvez maior. Porém, falar do circo lembrou-lhe o Luke e a Stacie, e rapidamente ficou melancólico. O Rye Whiskey salvou-me outra vez ao aparecer com um bolo de chocolate de três camadas, com uma cara de palhaço feita de morangos.

- Uau, o que é isso?! - perguntou o Drake, com uma expressão entusiasmada.

- Este bolo chama-se bolo Drake - respondeu o Rye Whiskey, a sorrir. - Diga-me se gosta.

E colocou o bolo à frente do Drake.

- Posso ficar com o bocado que tem o nariz? - perguntou.

- Claro, rapazinho - disse o- Rye Whiskey, fingindo roubar o nariz do Drake, pondo o polegar entre os dedos enquanto ria. - Dado que eu tenho o seu, pode ficar com o do bolo.

Pouco depois levei o Drake para o quarto, lavei-o e preparei-o para dormir. Tinha tido outro dia em cheio. Deixei-o brincar mais um bocadinho, até começar a ficar rabugento. Em seguida, aconcheguei-o no seu cobertor fofinho, dei-lhe um beijo e deixei-o a dormir a sua segunda noite em Farthy.

Fui para a sala de estar, decidida a esperar pelo Tony e confrontá-lo com o que descobrira, assim que chegasse.

O mundo exterior ao mundo de Farthinggale parecia antecipar a minha raiva e as minhas acusações. O céu estava lugubremente escuro e encoberto, com o brilho de relâmpagos furiosos a atravessar o céu. Nem uma estrela se atrevia a aparecer numa noite daquelas. Então, surgiram as chuvas, pesadas e fortes, parecendo frias, como lágrimas de gelo. De repente, ouvi o som de pneus a passar nas poças de água; lá fora uma porta bateu, e depois a porta da frente abriu-se. Ouvi o Curtis a cumprimentar o Tony. Depois, ouvi-o a transmitir todos os recados que havia e a contar-lhe tudo o que se tinha passado enquanto ele estivera fora. O Tony veio até à sala de estar, como sempre fazia, e sorriu quando me viu.

- Desculpa não ter estado cá quando tu e o Logan chegaram - disse ele, aproximando-se. - Foi muito difícil?

- Foi - disse eu, rispidamente. - Por várias razões até. Houve surpresas assim como tristeza, mistério e confusão.

- E o Logan? - perguntou ele, como que à procura de um aliado.

- Foi chamado a Winnerrow por causa de uma crise laboral na fábrica. Talvez fosse melhor irmos até ao seu escritório para conversarmos, Tony - disse eu, rapidamente.

Ele observou-me por um momento, semicerrando os seus olhos azuis, com uma certa suspeita e alguma compreensão.

- Ia mesmo agora para lá - disse ele. E indicou o caminho com a mão. Eu segui-o, acendendo a luz e dirigindo-me imediatamente para a sua secretária. Sentei-me na cadeira de couro à frente dela e esperei que ele desse a volta à secretária. Pousou alguns papéis e sentou-se.

- Encontraram-se com o doutor Arthur Steine - disse ele, como se essa conclusão explicasse tudo.

- Sim. E agora quero ouvi-lo de si, Tony. Porque é que comprou o circo e depois o deu ao Luke por apenas um dólar?

Encolheu os ombros e recostou-se para trás, juntando as pontas dos dedos e, em seguida, as palmas das mãos. Levou os dedos até aos lábios antes de falar. Parecia que estava a fazer alguma prece.

- Eu andava à procura da maneira de fazer com que voltasses para Farthy - começou ele. - Não queria acreditar que ias continuar a desistir de tudo isto por um lugar de professora naquela pequena cidade, onde as pessoas nem sequer gostavam de ti.

- Eu não estava lá pelas pessoas, estava pelas crianças corrigi eu.

Ele acenou com a cabeça.

- Eu sei. De qualquer modo, não sabia que fazer para ganhar o teu afecto e a tua lealdade, e ocorreu-me que, se ajudasse de algum modo o Luke, tu começarias a apreciar as coisas que eu podia fazer pelas pessoas de quem tu... de quem tu gostavas... e que voltarias.

- Mas se nem sequer me disse o que tinha feito - salientei, atirando-me praticamente às suas palavras. - Explique-me que lógica é essa? E o Tony costuma ser um homem muito lógico...

- Eu sei - admitiu ele. - Mas, depois de ter comprado o circo e de o ter dado ao Luke, fiquei cheio de medo. Pensei que talvez achasses que eu estava a tentar comprar o teu afecto e a tua lealdade, e que acabaria por fazer pior em contar-te. Por isso achei melhor esquecê-lo. Nem foi uma despesa assim tão grande para mim. Não fazia mal, e depois... depois chegou o telegrama, e o resto já sabes. Então - prosseguiu ele, desejoso de mudar de assunto -, como é que está o pequenino? Tenho a certeza de que...

- Eu quero saber tudo, Tony. Quero ouvir a história toda da sua boca e quero saber porque é que o fez - repeti eu, olhando-o friamente. Eu sabia que, quando queria, conseguia afectar o seu olhar penetrante. Não tinha herdado apenas alguns dos seus traços, tinha herdado a sua frieza. Estávamos a enfrentar-nos, de Tatterton para Tatterton. Ele continuou sentado, com os olhos calmos e indecifráveis durante o que pareceu uma eternidade.

- O que é que queres dizer? - indagou ele, por fim.

- Já te disse porque é que o fiz.

- Não me disse a verdade, Tony - insisti, perguntando a mim mesma se ele, na sua mente, achava que sim. Há tanto tempo que os habitantes da mansão Farthinggale viviam de ilusões... Talvez ele já não conseguisse lembrar-se do que era verdade e do que não era. Por vezes, pensei eu, sonhávamos tanto, que já não éramos capazes de distinguir uma recordação fantasiosa de uma verdadeira.

- O que é que não é verdade? - perguntou ele.

- A razão pela qual comprou o circo e o deu ao Luke.

- O que te disse é a verdade - insistiu ele. - Fi-lo por ti.

- Não é isso que eu quero dizer, Tony. Acho que, de uma maneira distorcida, pensou que o que fez era para me reconquistar. Mas eu quero ouvir a história toda. Qual foi a reacção do Luke quando lhe deu o circo?

- Qual é que havia de ser? Ficou agradecido - afirmou o Tony, encolhendo os ombros. - Ao princípio pensou que era obra tua. Tive de lhe explicar que não tinhas nada a ver com aquilo, e tive de lhe pedir para não te perguntar nem te contar nada sobre o assunto. Ficou confuso, mas acabou por aceitar. E, depois, como já disse, acabei por esquecer tudo.

Bem...

- E o que é que lhe pediu mais? - exigi eu. Parecia que o tinha baleado no coração com as minhas palavras ásperas. Ele empalideceu.

- Como é que sabes se eu lhe pedi mais alguma coisa? O J. Arthur Steine contou-te alguma coisa?

- Não, Tony. O doutor Steine é um dos seus homens, da ponta dos cabelos à ponta dos pés. Mas depois de ter ouvido o que tinha feito, e de como estava envolvido nos assuntos do Luke, não pude deixar de reflectir nisso. Quando eu e o Logan voltámos, tinha esperança de que me dissesse a razão para o que tinha feito, mas o Tony não se encontrava cá. Como não conseguia dormir a pensar no assunto, vim até ao seu escritório e procurei eu mesma as respostas.

- Fizeste o quê? - exclamou ele, com uma expressão de alarme. Vi os olhos dele desviarem-se para os ficheiros e voltaram para mim.

- Isso mesmo, Tony, mexi nos seus ficheiros e encontrei o acordo que estabeleceu entre si e o Luke, e o que eu quero saber, o que eu exijo saber, é porque é que fez uma coisa tão horrível - declarei. Toda eu tremia com o esforço para me manter forte e decidida. Sentia o meu coração a bater desordenadamente e as lágrimas a subirem-me aos olhos.

Momentaneamente espantado, o Tony não conseguia falar. Olhou para mim e depois recostou-se na cadeira. Baixou os olhos, incapaz de me enfrentar, de enfrentar o meu olhar penetrante, os meus olhos azuis gelados.

- É realmente uma coisa horrível - admitiu ele, falando lentamente, como um homem perdido nos seus próprios anseios. - Vivi com isso este tempo todo, prometendo a mim próprio acabar com isso depressa, e depois, quando chegou o telegrama, e eu percebi que era tarde de mais, que já não poderia corrigir o erro... - Olhou para cima. - Eu não tive de sair em negócios. Fugi simplesmente por alguns dias. Queria evitar-te quando voltasses do funeral e do encontro com o J. Arthur Steine. Tinha esperança que não pensasses muito no assunto... Mas claro que era uma esperança idiota. Porque tu procuras saber sempre tudo, a verdade toda, mesmo que essa verdade te traga o maior desgosto...

"Algumas das coisas que disseste sobre a maneira como eu tratava a Jillian eram verdade. Eu deixava-me mesmo viver na ilusão... E estava a tentar fazer o mesmo contigo. Devia ter percebido que tinhas muito dos Tatterton, dos primeiros Tatterton para não veres o que eu estava a fazer.

- Porque é que o fez? - insisti eu. - Porque é que insistiu com o Luke para que ele não voltasse a estar comigo?

Olhou para outro lado por uns instantes, claramente a arranjar coragem para dizer o que tinha para dizer.

- Tu não sabes como foi quando partiste depois da morte do Troy. Não sabes as saudades que eu tive. Nunca te disse o que significavas para mim, como era importante para mim ter-te cá, poder ver-te, falar-te... Aquela noite em que te levei ao teatro foi uma das noites mais felizes da minha vida... Eu... eu já tinha perdido a Jillian de certa maneira, e parecia que também te perdera.

"De repente, havia alguma esperança que voltasses, esperança de que eu conseguisse arranjar as coisas de maneira a passares grande parte do teu tempo aqui, e então... quando soube que tinhas convidado o Luke para o teu casamento...

- Como é que o soube, Tony? Não ia ao casamento em Winnerrow... Não esteve envolvido na despesa. Fui eu que paguei - prossegui, com o orgulho tão forte e direito como uma bandeira ao vento.

- O Logan disse-me - respondeu ele.

- O Logan? - E encostei-me para trás. - O Logan? Ele acenou com a cabeça. - Mas o Tony mal conhecia o Logan nessa altura. Não estou a perceber.

- Eu telefonei-lhe assim que soube que iam casar e conversámos. Telefonei-lhe algumas vezes. Pedi-lhe para não te dizer que eu lhe telefonava e que lhe fazia perguntas. Não queria que pensasses que estava a tentar interferir. Ele compreendeu. Achei que era um homem inteligente e sensível.

- E interrogou-o sobre a minha relação com o Luke?

- Interroguei.

- E assim soube que eu o tinha convidado para o casamento - prossegui, desejosa que ele continuasse.

- Exactamente. Tive medo - disse ele. - Tive medo de que fizesses as pazes com o Luke e que ficassem tão íntimos que quisesses continuar no mundo dele e que eu fosse afastado da tua vida.

- E então comprou o circo e deu-lho mesmo antes do meu casamento para que ele não fosse. Foi capaz de fazer isso! - exclamei eu, apercebendo-me do significado do que ele tinha feito. - Foi tudo planeado dessa maneira! Afastado do meu casamento e depois de mim!

- Sim.

- E fica aí sentado, perfeitamente calmo, enquanto me conta como usou a sua riqueza para tentar comprar o meu afecto, não só o meu afecto por si mas também o meu afecto pelo Luke.

- Sim - anuiu ele, novamente. - Confesso-te tudo,

mas tens de compreender as minhas razões. Tens de...

- Não tenho nada!

Levantei-me. Toda a minha raiva e a minha fúria explodiram como uma corrente contida à muito tempo, e eu gritei, gritei mesmo com ele.

- Toda a minha vida fui passada de uns braços para os outros, comprada e vendida, como se fosse um escravo antes da guerra civil. O meu afecto tem sido tratado como se fosse uma mercadoria, um produto, um dos seus preciosos brinquedos Tatterton, algo para possuir, armazenar e manipular e deitar fora, e ainda quer que eu compreenda?

- Heaven...

- Porque é que eu tenho de compreender os seus sentimentos? Quando é que algum de vocês, os homens, compreendeu os meus? Quando é que pensaram em mim em vez de em vocês mesmos? O Tony e o Luke... eram iguais. É a mesma coisa comprar ou vender o afecto de uma pessoa... São ambas coisas horríveis...

"Sim, o Luke foi horrível e culpado por ter concordado com o contrato, mas ele queria tanto o seu precioso circo que estava disposto a vender qualquer réstia de afecto que tivesse por mim. Ele não era o meu verdadeiro pai e sabia-o.

"Mas o Tony... - prossegui, apontando para ele. - Fazer uma proposta dessas, apelar à ganância dele, às suas paixões... E como... é como se fosse o próprio diabo.

- Não, Heaven. Por favor. - Começou a vir na minha direcção, parecendo um homem desesperado.

- Sim - insisti, recuando. - É como o diabo. Jogou com os desejos dele, com a sua paixão pelo circo e, tal como o diabo, obrigou-o a vender uma parte da alma.

- Mas só por causa do meu amor por ti! - protestou ele.

- Eu não quero esse tipo de amor. Isso não é amor verdadeiro e puro. Isso é um amor parasita, um amor que se alimenta dos outros. Viveu uma vida de mentiras, Tony. E ainda vive... E isso tornou-o um homem muito egoísta.

- Não é bem assim - insistiu ele. - Tudo o que tenho, tudo o que fiz é tudo para ti.

- Será mesmo? Qual era a única coisa que o Tony sabia que eu procurava na vida? Qual era a única coisa que completaria a minha vida, que me dava esperança e felicidade? A única coisa que nunca me deu?

Ele olhou para mim, confuso.

- Não percebo, O que é que eu te neguei? O que é que pediste que eu recusei?

- Deixou-me viver sempre debaixo de nuvens, para que, em seguida, pudesse fingir ser o sol e dar-me raios de esperança e de felicidade sempre que lhe aprouvesse. Tinha medo de que, se eu não fosse infeliz, se eu não vivesse debaixo de um céu escuro e sombrio, nunca se tornasse algo luminoso e vivo para mim.

"Por isso deixou-me pensar que o Luke não se importava comigo, quando, na realidade, o encurralou na sua própria prisão de ganância.

- Mas... - Avançou, tentando abraçar-me. Eu continuei a afastar-me da sua secretária.

- E deixou-me acreditar que o Troy estava morto... pronunciei eu. As palavras soaram como um trovão, ecoando na sala. Empalidecera tanto que parecia ter-se transformado numa estátua de sal. Eu não quisera denunciar o meu segredo e o do Troy. Era a única coisa que restava, importante e especial. Mas percebi, repentinamente, que se o Tony fosse honesto e se quisesse que eu voltasse mesmo para Farthy, ter-me-ia contado que o Troy não estava morto, e eu teria voltado para o ajudar a retomar a vida normal.

No entanto, ele não queria que eu voltasse para o Troy, ele queria que eu voltasse para ele e só para ele.

- Tu sabes? - murmurou ele.

- Sei. Encontrei-o mesmo antes de ele se ir embora.

- Foi ele que não quis que tu soubesses, não eu - implorou ele, rapidamente. Naquele momento, o Anthony Townsend Tatterton afigurou-se-me tão vulgar, tão baixo como um ladrão insignificante, um ladrão insignificante que tinha tentado com uma mentira safar-se da culpa e, quando uma mentira não funcionava, tentava outra até acabar por trair as pessoas mais próximas só para se salvar.

- Sabia perfeitamente que ele disse essas coisas por estar desanimado, porque acreditava que nunca poderíamos ser nada um para o outro. Podia ter feito mais. Se me tivesse dito e se eu o tivesse visto... Quando o descobri já era tarde de mais.

"E, assim, ele foi-se embora - acrescentei, calmamente e perdeu-se um amor que era verdadeiramente desinteressado.

Olhei para ele, com as lágrimas a rolarem-me cara abaixo.

Pelo que sei, levou a Jillian à loucura - prossegui.

ajudou o Troy a entrar no esquecimento. Agora - concluí eu, muito direita -, conseguiu afastar-me.

- Heaven - gritou ele, quando eu me voltei e saí do escritório. Não olhei para trás. Corri escada acima até ao meu quarto e comecei a fazer as malas.

Na manhã seguinte, pegaria no Drake e deixaria Farthy. Desta vez para sempre.

Fui espreitar o Drake e vi que ele tinha puxado o cobertor para cima, cobrindo a cabeça quase toda, como que para afastar o mundo à sua volta. Eu sentia-me da mesma maneira; sabia, porém que, por muito que me escondesse, nunca conseguiria escapar à verdade. A verdade arranjava sempre maneira de encontrar as frechas e as aberturas em todas as paredes imaginárias que erguêssemos à nossa volta, mesmo que fôssemos ricos. Sentia-me como se tudo em meu redor fosse feito de papel de seda e celofane. Era bonito, luminoso e colorido, mas um vento forte podia fazer desaparecer tudo e deixar-nos nus e a tremer sob nuvens magoadas e furiosas.

Puxei-lhe o cobertor para baixo do pescoço, afastei algumas mechas de cabelo dos olhos e dei-lhe um beijo ao de leve na cara. No dia seguinte, ia levá-lo para Winnerrow. Tão repentinamente como tinha sido trazido para este mundo luxuoso, rico e elegante seria levado dele. Sabia que o ia confundir, mas agora também sabia que não era sítio para ele crescer. A minha linha de sangue podia ter começado ali, mas a minha linha do coração estava ligada a Winnerrow, ligada àquele mundo mais simples, onde eu podia olhar pelas janelas da minha casa e ver os Willies.

Era melhor para o Drake crescer à luz daquele Sol, rodeado daqueles sons, do que ali, nos corredores compridos e vazios de Farthinggale, rodeado pelos lamentosos fantasmas que perseguiam os Tatterton.

Emalei algumas coisas para nós os dois até estar cansada o suficiente para ir para a cama. Embora estivesse exausta física e emocionalmente, fiquei a olhar para a escuridão, com os olhos muito abertos. Pensei no Logan e na vida que teríamos de fazer agora, em Winnerrow. Tinha esperança de o conseguir fazer compreender porque é que não queria ter mais nada a ver com a mansão Farthinggale nem com o Tony. Claro que não lhe ia contar do Troy, mas ele ia saber o que Tony fizera para afastar o Luke de mim, e esperava que ele ficasse tão incomodado com o assunto como eu. Acima de tudo, esperava que me mantivesse junto dele, e que, com o tempo, voltássemos a ter aquele sentimento maravilhoso e excitante que já sentíramos um pelo outro, quando éramos estudantes.

Não consegui deixar de pensar no Troy. Onde é que ele estaria e quanto saberia da minha vida, do que acontecera e do que ia acontecer? Estaria perto a observar-me, tal como fizera na minha festa de casamento? Ou ter-se-ia afastado definitivamente de tudo o que me dizia respeito e a Farthy?

com o passar do tempo, estava a tornar-se cada vez mais numa ilusão, na personificação do amor ideal, do amor perfeito mas inatingível, do amor que forma os sonhos, do amor que destruímos por simplesmente lhe tocarmos, tal como destruímos uma bolha perfeita de sabão no momento em que as pontas dos nossos dedos roçam a sua superfície fina e frágil. Tal como a bolha de sabão, esse tipo de amor era para ser observado ou desejado, e nunca para se possuir.

Agora já o sabia. Sabia que o amor que eu sentia pelo Logan era um amor com base na realidade e que eu devia cultivar esse amor, alimentá-lo e ajudá-lo a transformar-se num carvalho robusto, indestrutível por qualquer vento ou tempestade que ocorresse. Ia construir uma vida, uma família, um futuro com o Logan. Tinha perdido tanto, mas ainda tinha muito para acarinhar.

Pensar em tudo isso trouxe-me lágrimas aos olhos; contudo, não chorei. Fechei simplesmente os olhos e senti-me a afundar-me na almofada, caindo, à deriva, deixando-me levar, até que o som da porta do meu quarto a ser aberta de súbito me devolveu abruptamente a consciência. Sentei-me de imediato e vi a silhueta de um homem à entrada. Por um momento pensei que fosse o Troy. O meu coração saltou e depois contraiu-se quando ouvi a voz.

- Leigh - disse ele -, estás acordada?

Era o Tony. Mesmo àquela distância, conseguia cheirar-lhe o bafo a álcool.

- O que quer, Tony? - perguntei eu, no tom de voz mais gelado e duro que consegui.

- Primeiro, respondeu com uma pequena gargalhada, e depois procurou o interruptor na parede e acendeu a luz. O quarto explodiu de luminosidade. Tapei os olhos com as mãos e, quando as retirei, vi-o a aproximar-se, só de calças e camisa, esta aberta até ao ventre. Trazia nos braços uma das camisas de noite transparentes da Jillian.

- Trouxe-te isto - disse ele. Os seus olhos estavam vítreos, o cabelo desgrenhado, como se tivesse passado os dedos por ele. - Gosto imenso de te ver com ela. Não a queres vestir outra vez para mim? Por favor.

- Eu nunca a vesti para si, Tony. Está bêbado! Faça o favor de sair do meu quarto.

- Mas claro que já vestiste para mim. E, olha - disse ele, estendendo a mão -, trouxe-te um bocado do perfume da Jillian. Sei que gostas imenso. Estás sempre a tentar que ela te dê um bocado. Deixa-me pôr-te um bocadinho - continuou, sentando-se na cama.

Encostei-me o mais possível à cabeceira da cama; ele esticou-se, pressionando o frasco de encontro aos dedos e passando-os no meu pescoço. O cheiro forte do jasmim inundou-me as narinas. Comecei a afastar-me mais quando ele desceu os dedos para o vale entre os meus seios.

- Não, Tony, pare. Eu não quero pôr o perfume da Jillian. Eu disse para parar. Está bêbado! Saia daqui! - exigi eu.

Olhou para mim e sorriu, como se não tivesse ouvido o que eu dissera. Então, lembrando-se da camisa de noite que trazia, levantou-se e estendeu-a na cama ao meu lado, acariciando-a ao mesmo tempo.

- Vá lá, veste-a - insistiu -, e depois eu deito-me ao teu lado, como fiz da outra vez que a vestiste.

- Saia imediatamente do meu quarto, Tony Eu chamo os criados se não sair...

- Leigh - sussurrou ele.

- Eu não sou a Leigh! - gritei eu. - Sou a Heaven! Tony, saia daqui! Está a assustar-me!

Ignorando-me novamente, levantou o cobertor e deitou-se ao meu lado. Tentei fugir; porém, ele agarrou-me pela cintura e puxou-me para o pé dele.

- Não me deixes, Leigh. Por favor. Não ouças o que a Jillian diz. Ela é louca, tem ciúmes de ti, tem ciúmes de todas as mulheres. Ela até tem ciúmes das criadas porque uma tem umas mãos bonitas, ou porque outra tem um queixo agradável.

Encostou os lábios ao meu ombro, empurrando-me a camisa de noite para baixo com a cara, para poder encostar a boca à minha pele.

- Tony, pare! - gritei eu.

Pus a mão na testa dele e empurrei-o com quanta força tinha, para o afastar de mim. Quando a mão dele tocou no meu seio, gritei e arranhei-lhe a cara com as unhas.

- Saia daqui! Saia daqui! Não sabe quem eu sou? Não se lembra de que eu sou a sua filha e que estou grávida?!

Dei-lhe um estalo com força.

Ficou a olhar para mim, piscando os olhos muito depressa. Apercebia-me da realidade a afastar as recordações, trazendo-o do passado para o presente. O entendimento de onde estava e do que estava a fazer surgiu de choque. Engoliu em seco e olhou em volta.

- Meu Deus - disse ele. - Pensei...

- Pensou...? Está bêbado e é um homem nojento! Quero que saia imediatamente daqui. Saia daqui! - Gritei eu, saltando da cama. Ele olhou para mim.

- Oh, Heaven, perdoa-me. Eu só... - Olhou para a camisa de dormir e depois para mim, com a mão na face encarnada. - Estou apenas muito confuso. Eu...

- Confuso?

Os pensamentos perturbadores que se tinham acumulado nos cantos mais escuros da minha mente surgiram em catadupa. Lembrei-me de outras vezes em que ele me tocara e beijara, e de repente tudo me pareceu sujo, lascivo, incestuoso. Apareceram todos os medos, todas as recordações más e penosas. Mal conseguia pensar, a minha mente era uma câmara de eco de gritos e berros. Tapei os ouvidos com as mãos.

- Não é melhor do que os meus parentes dos montes, os meus parentes camponeses, como o Tony lhes costumava chamar! - gritei eu tão alto que a minha voz enrouqueceu.

- O seu dinheiro não fez a mínima diferença. Não é melhor do que aqueles camponeses ignorantes de Winnerrow que violavam as filhas!

- Heaven, não...

- Saia daqui! Saia daqui! - gritei eu, novamente.

Levantou-se da cama, apanhando a camisa de noite transparente da Jillian ao mesmo tempo, e começou a recuar para a porta, sacudindo a cabeça.

- Por favor, por favor, perdoa-me. Eu estava bêbado... Não sabia o que estava a fazer. Por favor - disse ele, estendendo-me a mão.

Abanei a cabeça, com as lágrimas a escorrer cara abaixo e com o corpo a tremer.

- Saia daqui - sibilei, com a voz já num murmúrio ríspido.

- Eu... Perdoa-me - implorou, e saiu a correr do quarto. No instante em que ele saiu, eu caí para cima da cama e desatei num pranto. Chorei histericamente, incapaz de impedir que uma onda de fúria e desespero tomasse conta de mim. Todas as coisas tristes que me tinham acontecido surgiam em catadupa exigindo serem lamentadas com igual intensidade. Chorava pela mãe que nunca vira ou conhecera, chorava pelo tom, chorava pelo Troy, chorava pela infidelidade do Logan com a Fanny, chorava pelo Luke e pela Stacie e chorava pela Heaven, pela pobre pequena Heaven Leigh Casteel.

A minha explosão de lágrimas parou por fim quando senti uma mão fria e suave no meu ombro. Respirei fundo e virei a cabeça. O pequeno Drake estava ali a olhar para mim, com uma expressão confusa mas cheia de compaixão.

- Não chores - disse ele. - Eu não me vou embora.

- Oh, Drake, Drake! - solucei, e puxei-o para o pé de mim, mantendo o corpinho dele o mais perto e apertado possível. - Eu não te deixo ir embora. Precisamos um do outro. Como dois órfãos - disse eu, beijando-lhe a testa.

- vou estar sempre contigo. Sempre.

Olhou para mim, ainda com o reflexo da minha tristeza no seu rosto.

- Eu vou parar de chorar - prometi. - Agora vou parar de chorar.

Puxei-o para dentro da cama e adormecemos enroscados um no outro, como dois gatinhos que tivessem perdido a mãe.

Acordei com o Drake nos meus braços, com a cabeça suavemente encostada ao meu peito. Muito devagar, para não o acordar, deslizei para fora da cama, lavei-me e vesti-me. Ainda era cedo e a casa estava sossegada. Os criados ainda não tinham aberto as cortinas. As luzes permaneciam acesas. Desci a escadaria de mármore, rápida mas silenciosamente, e encontrei o Curtis a preparar-se para mais um dia.

- Levantou-se cedo, Mistress Stonewall - disse ele.

- Tenho muito que fazer, Curtis, e depressa. Em primeiro lugar, quero que telefone para todas as companhias aéreas e marque bilhete para mim e para o Drake. Vamos voltar para Winnerrow ainda esta manhã. Diga ao Miles. Mande as criadas ao quarto do Drake. Já arrumei alguma roupa mas ainda há outras que quero que arrumem. Há algumas malas de viagem no meu quarto já prontas. Peça por favor ao Rye para preparar um pequeno-almoço rápido para mim e para o Drake. Dentro de um ou dois dias, hei-de mandar pedir outras coisas para serem entregues na minha casa de Winnerrow.

- Vai deixar Farthinggale? - perguntou o Curtis. Eu não respondi. Ele olhou para a minha expressão austera e foi, imediatamente, mandar cumprir as ordens. Quando voltei para cima, vi que o Drake estava a acordar. Tirei-o da cama, lavei-o e vesti-o rapidamente. Estava impressionado com o meu vigor e quase não falou. As criadas apareceram e eu distribuí as tarefas. O Drake observou-as enquanto elas emalavam as coisas dele, mas não perguntou nada, mesmo quando o Miles começou a levá-las para a limusina.

- Vamos viajar para Winnerrow e para a minha própria casa - disse-lhe eu, quando lhe peguei na mão para irmos tomar o pequeno-almoço.

- Esta não é a tua casa? - perguntou ele, com uma voz surpresa e desapontada.

- Não, é de Mister Tatterton - disse eu. Não conseguia dizer "do meu pai". - Mas não te preocupes. Vais continuar a ter um quarto teu, e sabes que mais? O Logan está a construir lá uma fábrica de brinquedos. Vais vê-la.

Aquilo encheu-o de excitação e curiosidade. Percebi que o Curtis tinha comentado a minha disposição aos outros criados. Todos eles trabalharam com rapidez, eficiência, silenciosamente, comunicando entre eles com gestos e olhares e não com palavras. Eu estava à espera a qualquer momento que o Tony descesse, arranjado para trabalhar, tentando de novo convencer-me a não ir. No entanto, eu e o Drake terminámos o pequeno-almoço antes de ele aparecer. Até o Curtis estava surpreendido.

- Mister Tatterton está atrasado - disse ele, como se tivesse de arranjar desculpas pelo patrão. Eu não respondi. Levei o Drake para cima comigo e telefonei para o Logan.

- Nós vamos para casa - disse eu, assim que ele atendeu.

- Vêm para casa?

- Eu e o Drake. Explico-te tudo quando chegar - respondi.

Dei-lhe as informações sobre o nosso voo e ele disse que ia estar no aeroporto. Depois de desligar, olhei em volta, a ver se tinha tudo o que queria. O Curtis apareceu à porta para me avisar de que o Miles já tinha tudo no carro.

- Muito bem, Curtis. Vamos embora, Drake - ordenei, dando-lhe a mão, e começámos a andar.

- Mistress Stonewall - disse o Curtis, quando já estávamos no corredor -, se me pudesse dar um minuto da sua atenção.

- O que é que se passa, Curtis?

- bom, quando Mister Tatterton não apareceu, achei melhor ir ver se se passava alguma coisa. Bati à porta para saber se queria que lhe levassem alguma coisa ao quarto, mas não houve resposta. E então...

- Sim? - perguntei eu, vendo que o Curtis estava atrapalhado como nunca o vira antes. Estava muito corado e a puxar constantemente o colarinho da camisa como se ela estivesse apertada.

- Reparei que a porta do quarto de Mistress Tatterton estava aberta e fui lá espreitar, para ver se havia algum problema. Oh, meu Deus - disse ele, abanando a cabeça.

Eu já estava a ficar impaciente.

- O que se passa, Curtis? Sabe muito bem que eu tenho de me ir embora rapidamente.

- Eu sei, mas... Gostaria que a senhora fosse ver por si própria. Só espero que Mister Tatterton esteja bem.

Observei-o por um momento. Pensei que o Tony estaria com uma grande ressaca da noite anterior, uma ressaca bem merecida.

- Drake, vai para baixo com o Curtis. Eu vou já - disse eu.

- Muito obrigado, Mistress Stonewall - agradeceu o Curtis. Pegou na mão do Drake e começaram a descer as escadas. Eu continuei pelo corredor até ao quarto que fora da Jillian, e espreitei, tal como o Curtis tinha feito.

O Tony jazia na cama da Jillian, ainda inconsciente da bebedeira. Porém, não fora isso que assustara o Curtis. E que até me assustou a mim. O Tony tinha vestido a camisa de noite que me levara e o quarto tresandava a jasmim. Como se poderia saber que tipo de delírios ele tivera, pensei eu, ou quanto ainda bebera para chegar àquele estado. Mas não tive pena dele, tive apenas nojo.

Deixei-o para ali a ressonar e fechei a porta atrás de mim.

- Ele vai ficar bom - disse eu ao Curtis. - Apenas não o incomode.

- Muito bem, Mistress Stonewall - respondeu ele.

- Muito obrigado.

Parei à porta da rua e olhei para os jardins da mansão Farthinggale. Os ventos de Outono estavam cada vez mais fortes e gelados. Abanavam as árvores e arrancavam as folhas coloridas dos ramos. O aguaceiro de folhas encarnadas, amarelas e castanhas espalhava-se num frenesim pela estrada longa e pelo relvado verde. Era como se a Natureza estivesse a baixar uma cortina de cores. Os ramos já despojados dos seus ornamentos pendiam despidos de encontro às nuvens tão prateados como moedas. Tive um arrepio e abracei-me a mim mesma. Então, corri para a limusina.

O Drake estava sentado à espera, com o carro de bombeiros de brincar no colo. Mesmo depois de lhe termos dado brinquedos novos, continuava a preferir aquele. Parecia tão pequeno e tão perdido no carro grande, como um passarinho-bebé deixado no ninho. Pus o braço nos seus ombros e puxei-o para mim, quando o Miles arrancou.

E nunca olhei para trás.

 

NÃO HÁ NADA COMO A NOSSA CASA

Casa. Casa. A palavra repetia-se na minha cabeça enquanto eu embarcava para Atlanta, com a mão do Drake na minha, este com os olhos muito abertos a olhar para o rebuliço do aeroporto.

- Dize-me lá outra vez para onde vamos, Heaven perguntou ele, enquanto nos acomodávamos nos bancos do avião.

- Vamos para casa. Para Winnerrow, foi onde eu cresci. Onde o teu pai cresceu. E, agora, tu também vais crescer lá - declarei eu, com um tom de voz muito animado e com um olhar excitado. - E vais ser feliz, tão feliz!

- Mas, Heaven, eu pensei que ia viver naquele castelo! Eu gostava daquilo - protestou ele, com voz desapontada.

- Garanto-te que ainda vais gostar mais de Winnerrow, Drake. Até podemos ir visitar a casa onde o teu papá viveu. E há muitos montes e florestas chamados Willies, onde tu podes brincar, e há flautistas e uma escola óptima e parques infantis e muitas crianças com quem podes brincar. Oh, Drake, é um sítio óptimo para crescer. Garanto-te.

Chegámos rapidamente às nuvens e o Drake adormeceu imediatamente, dando oportunidade à minha mente perturbada de ver e rever o que se tinha passado na noite anterior, e o círculo de traições que era como um nó corredio, que se ia apertando cada vez mais à volta da minha vida até parecer que quase me estrangulava. Contudo, estava decidida a ver-me livre do controlo do Tony de uma vez por todas. Porque, agora, já era completa e inequivocamente claro para mim. Todos os meus problemas, desde o início da minha vida, podiam ser atribuídos ao Tony.

Fomos recebidos no aeroporto pela cara alegre do Logan. Pegou num Drake sonolento e beijou-lhe a cara, e depois olhou para mim com uma expressão interrogadora.

- Quando chegarmos a casa, conto-te tudo, Logan, está bem? Agora não.

Ele concordou com a cabeça e fizemos a longa viagem até Winnerrow em silêncio. Quase conseguia ouvir o cérebro do Logan a trabalhar, como os mecanismos complicados de um intrincado brinquedo Tatterton.

Embora o Drake estivesse cansado da nossa viagem rápida e intensa, manteve-se sentado e muito atento, observando a paisagem ao entrarmos em Winnerrow. Os estorninhos pousados nos fios do telefone pareciam miniaturas escuras de soldados; eram pássaros balofos, adormecidos, com os olhos fechados, antevendo o frio vindouro e à espera do sol quente. Alguns abriram os olhos e esvoaçaram até nós à medida que descíamos a rua principal.

- Eu lembro-me desta rua - gritou o Drake, pressionando a cara no vidro. - O circo do papá esteve aqui!

- És um rapazinho muito esperto, Drake - respondi eu, abraçando-o. - Não devias ter mais de quatro anos.

- Eu era uma criança, nessa altura. Mas o tom disse... hesitou o Drake, saindo do meu abraço e olhando ansiosamente pela janela. - O tom vai cá estar? Vai? Vai?

- Meu rapazinho querido - disse eu, com os olhos cheios de lágrimas -, o tom está no céu com a mamã e o papá, Drake.

Depois, chamei-lhe a atenção para algumas das vistas de Winnerrow. Queria que o Drake começasse a olhar para o futuro, que eu esperava de todo o coração que fosse apenas brilhante e alegre para ele, em contraste com o seu passado sombrio e trágico. Winnerrow só tinha uma rua principal, e todas as outras partiam dela. A escola situava-se no centro da cidade, enquadrada nos montes azuis e enevoados.

- Aquela vai ser a tua escola - indiquei, apontando para o sítio. - Eu fui lá professora.

- Vais ser a minha professora? É que eu nunca fui à escola - murmurou o Drake, com os olhos cheios de excitação e medo.

- Não, querido, mas vais ter uma professora óptima. Acho que vais gostar muito - disse eu. - E vês aqueles grandes montes?

O Drake acenou com a cabeça.

- O teu pai era dali, Drake - continuei, apontando para os montes. - Consegues vê-los muito bem da porta da nossa casa nova.

Ele ficou a olhar para os montes, com um olhar intenso, como se tivesse esperado toda a sua curta vida para os ver.

O pai foi à minha escola?

-Foi o pai, e eu e o Logan também, querido.

- Talvez consigamos inscrevê-lo este ano, apesar de ainda não ter idade - sugeriu o Logan. Fora a primeira coisa que dissera desde há muito tempo. - Às vezes fazem concessões, quando se conhece alguém ou quando a criança é muito esperta - acrescentou ele. Olhou para mim mas eu não respondi. Um sulco profundo vincou-lhe a testa, sinal ultimamente de que o Logan estava em reflexão. Sabia que ele estava ansioso para saber porque é que eu tinha fugido de Farthinggale. Eu não tinha tido oportunidade de lhe contar o que se tinha passado entre mim e o Tony, porque o Drake estivera sempre atento a tudo o que eu dizia. Fiz-lhe sinal de que não queria falar à frente do meu pequeno meio-irmão.

- Os pequeninos também têm orelhas grandes - disse eu. Era uma coisa que a minha avó costumava dizer.

O Logan, claramente frustrado e impaciente por ouvir as novidades, tentou energicamente pôr-nos à vontade, contando-nos todas as novidades de Winnerrow e da Casa Hasbrouck. Eu sabia que ele conseguia perceber a minha perturbação. Como era doce e enternecedor ao tentar animar-me.

- Infelizmente ainda não contratei todos os criados avisou ele.

- Acho que vou conseguir safar-me bem por uns dias sem um exército de criados, Logan - disse eu.

- Eu sei. Mas a casa é grande. Precisa de cuidados, especialmente agora, que temos uma criança a viver lá.

- Não vamos ter problemas - assegurei eu. - Amanhã começamos à procura de uma empregada.

- E de uma cozinheira. Acho que precisamos de uma cozinheira - disse ele. - Não é que não saibas cozinhar. É só que...

- Tu achas que devemos ter uma. Eu sei - comentei eu, baixando exageradamente a voz. - Todos os proprietários de fábricas têm cozinheiras.

Até ele se riu de si próprio.

- Contratei um jardineiro, o que já era do Anthony Hasbrouck - disse ele, rapidamente. - Mantive-o. Havia um mordomo, mas esse já se foi embora há muito tempo. Se quiseres, posso pedir à empregada do Anthony Hasbrouck que passe por lá, e podes entrevistá-la.

- Óptimo. Tenho a certeza de que se o Anthony Hasbrouck estava satisfeito, eu também vou ficar - zombei eu. Ele concordou com a cabeça e depois sorriu.

- Tenho uma surpresa para ti. Queria manter segredo por mais uns dias, mas dado que as coisas sofreram uma reviravolta estranha - declarou ele -, por razões que em breve vou saber, conto-te agora.

- O que é? - perguntei eu, endireitando-me. Estávamos quase na Casa Hasbrouck. Apesar de agora ser nossa, na minha cabeça seria sempre a Casa Hasbrouck.

- A fábrica vai estar pronta para a festa de inauguração daqui a um mês.

- A sério? Que maravilha, Logan. Mal posso esperar para ver a produção de brinquedos dos Willies.

- Estou a planear uma festa de gala. Já tinha falado sobre isso com o Tony...

Senti o coração na garganta à mera menção do seu nome.

- Já está a tratar-se de alguns preparativos. Todas as pessoas que foram alguém no raio de bastantes quilómetros vão cá estar.

- Estou a ver - disse eu. Embora quisesse estar feliz pelo Logan, havia uma coisa que eu queria mesmo saber.

- O Tony vem à festa? - perguntei eu, tentando controlar o tremor da minha voz.

- Eu sei que ele tencionava vir. Achas que isso vai mudar agora, Heaven? - perguntou ele, com um tom claramente preocupado.

- Falamos sobre isso em casa, Logan - insisti eu. Depois, aconcheguei o Drake nos meus braços. - Estou demasiado cansada para falar agora no assunto - acrescentou.

- Claro, querida - concordou o Logan, olhando rapidamente para mim, quando parámos num semáforo. - Mas espero que não estejas demasiado cansada para ouvir os meus planos para a festa. Vai exigir traje escuro, embora a festa seja no exterior. Contratei uma orquestra de doze elementos, e o melhor fornecedor de comida de Atlanta. Vai ser tão elegante como as festas dadas em Farthy, Heaven. Vais ter de que te orgulhar!

Até o nome Farthy me fazia tremer.

- Logan, se queres que eu me sinta orgulhosa, vamos dar uma verdadeira festa dos Willies. Uma enxada para outras enxadas. Uma festa onde os artesãos que vão fazer os brinquedos se sintam à vontade. Isto não é Farthy, e nós não somos os Tatterton. Eu nem quero que esse nome apareça na nossa fábrica. Quero que isto seja Willies puro, a Fábrica de Brinquedos dos Willies.

- Mas, Heaven... - exclamou o Logan, que parecia ter levado um soco. - Não podemos tomar essas decisões unilaterais. Quaisquer que tenham sido os problemas que tiveste com o Tony, ainda somos sócios e é o dinheiro dele que paga isto tudo.

- Acredita, Logan. O Tony vai concordar com tudo o que eu quiser - disse eu, com uma voz dura como pedra e fria como gelo.

O Logan continuou a guiar em silêncio. Endireitei-me e endureci a minha resolução. O ambiente estava tão carregado que eu sentia-me a sufocar, ansiosa por chegar a casa, ansiosa por acabar de vez com aquilo.

A Casa Hasbrouck rapidamente apareceu no fim do quarteirão.

- Ali está ela - disse o Logan, voltando-se para o Drake, num tom falsamente alegre. - A tua nova casa.

Continuámos pelo longo caminho que levava à grande casa colonial. Os ramos dos salgueiros altos e cheios de folhagem pendiam para a estrada, formando um túnel verde.

- Não é tão grande como Farthy - disse o Drake, quando parámos.

O Logan franziu a testa.

- Pois não, Drake. Também há poucas coisas que o sejam, mas esta ainda é grande. Vais ver.

Quando chegámos, Mr. Appleberry, o jardineiro que o Logan tinha mantido, apareceu para nos cumprimentar e ajudar com a bagagem. Era um homem baixo mas robusto, com cabelo grisalho, que crescia em pequenos tufos numa cabeça parcialmente careca, e que estava coberta das mesmas sardas que lhe apareciam na testa e nas têmporas. Tinha uma cara acolhedora e olhos sorridentes. Olhos de Pai Natal, pensei eu. Se ele tivesse barba e muito cabelo, podia muito bem passar pelo Pai Natal. Desde que o fato encarnado fosse enchido, claro.

O Drake gostou dele e ele gostou do Drake quase instantaneamente.

- Eu levo isso tudo, Mistress Stonewall - disse ele.

- Quero dizer, eu e este pequeno rapaz. Chamo-me Appleberry - continuou, estendendo uma mão comprida, a mão de um homem que trabalhava com plantas, árvores e flores. - Como é que se chama?

O Drake quase desatou a rir, coisa que ele não fizera muitas vezes desde que eu o levara de Atlanta.

- Chamo-me Drake - respondeu ele. Appleberry deu-lhe a mão e sacudiu-a vigorosamente.

- Muito prazer, Mister Drake. Não se importa de levar esta? - perguntou ele, dando um pequeno saco de pano ao Drake; e este pegou-lhe, segurando-o contra o corpo com as duas mãos e olhando para mim cheio de orgulho.

- Muito bem. Rapazinho forte! - exclamou Mr. Appleberry, piscando-me o olho.

- Muito obrigada, Mister Appleberry - disse eu, e dirigimo-nos para casa, com o Logan e o Appleberry a transportarem a nossa bagagem quase toda. Levei o Drake e uma das suas malas directamente para o seu quarto.

- Amanhã, podes investigar a casa, Drake - disse eu.

- Já é muito tarde e deves estar cansado da viagem, está bem?

- Uma estratégia muito inteligente, Mister Drake - comentou o Appleberry, aparecendo com o resto da bagagem do Drake. - Um bom descanso faz-nos começar bem o dia seguinte. Desejo-lhe uma boa noite, e amanhã aparecerei por aí depois do seu pequeno-almoço. Temos algumas folhas para apanhar, se estiver com vontade.

O Drake olhou para mim e depois para o Appleberry. Percebi, pelo seu olhar, que se estava a interrogar se eu o deixaria trabalhar a sério. Eu sorri. Então, ele acenou com a cabeça rapidamente.

- Muito bem - disse o Appleberry, e foi-se embora. Levei o Drake até à casa de banho, lavei-o e preparei-o para ir para a cama. Ouvi o Logan no corredor a trazer para cima a minha bagagem e algumas das coisas dele, que eu tinha trazido de Farthy.

A cama do Drake era grande, com uma cabeceira de carvalho claro. O colchão era duro e novo e a colcha era nova e alegre. Do que eu pude ver da minha breve vistoria pela casa, esta tinha sido deixada em óptimo estado.

Depois de ter dado um beijo de boas-noites ao Drake, senti pena dele, de ter sido arrancado de uma família e de uma casa para outra, e depois afastado também desta. Mais uma vez tinha ido para a cama num sítio desconhecido, com o carro de bombeiros ao seu lado, o seu único laço ao seu passado imediato.

- Este é o fim da tua jornada confusa, querido e adorado Drake - murmurei eu. - Prometo que este vai ser o teu lar. É apenas justo que estejas próximo das raízes do teu pai, mesmo que tenhas uma vida muito melhor do que ele ou os seus parentes tiveram.

Lembrei-me de que um dia o podia levar aos Willies, e mostrar-lhe as campas dos seus avós. Veria a cabana, mesmo ela sendo neste momento uma casa moderna, e poderia brincar no jardim onde o tom e o Keith tinham brincado. O Luke, provavelmente, nunca o teria trazido até ali, pensei eu. Que eu soubesse, devia ter inventado histórias para esconder o seu passado ao filho.

Saí do quarto do Drake e dirigi-me directamente para o quarto principal, a fim de contar tudo ao Logan. O meu coração estava a bater com imensa força, pois havia muita coisa que eu lhe escondera e que, agora, teria de ser explicada. Vergonha atrás de vergonha... Como eu odiava o Tony Tatterton por me estar a fazer passar por isso.

O Logan andava nervosamente pelo quarto e parou quando eu entrei.

- Bem - disse ele -, vamos lá ouvir. Tudo.

Respirei fundo e comecei a contar o que o Tony tinha feito para afastar o Luke de mim, o acordo que eu tinha descoberto no seu ficheiro e o que ele tinha respondido quando eu o confrontara com essa informação. O Logan estava sentado numa cadeira ao pé do toucador, ouvindo enquanto eu andava pelo quarto e falava. A sua expressão era de intensa preocupação; todavia não disse nada até eu me calar e sentar na cama.

- bom - disse ele -, foi realmente uma coisa errada e horrível de se fazer. Percebo perfeitamente a tua fúria, mas acredito que o que o Tony te disse era verdade. Acredito que ele se sentia sozinho e que tinha medo de te perder. Percebo perfeitamente os receios dele.

Eu nem queria acreditar que a primeira reacção do Logan fosse ter pena e compaixão do Tony. Aqui estava eu, à espera que ele se levantasse da cadeira e me abraçasse, que me apertasse de encontro a ele e me consolasse pela dor que eu sentira quando soubera que o Tony tinha comprado o homem por cujo amor paterno eu ansiara tanto. Queria que ele me beijasse e acariciasse o meu cabelo, queria que mostrasse a sua fúria contra o Tony por ele me ter feito aquilo. Desejava que o Logan me amasse como me amara quando eu não era ninguém, um nada que vivia numa cabana nos Willies. Procurara algo que o fizesse recordar como a nossa juventude fora doce por nos termos um ao outro.

Em vez disso, ele estava ali sentado, tentando ser calmo e frio e compreender o comportamento cruel e egoísta de um homem. Como eu estava furiosa! O meu rosto corou tanto que até o Logan ficou assustado.

Claro que eu tinha conhecimento de que ele desenvolvera uma relação de quase idolatria pelo Tony. O Tony tinha-o feito sentir-se importante e rico e poderoso. Ele achava que o Tony e o seu sentido para o negócio eram o máximo, e era-lhe difícil ver o Tony, de repente, como uma pessoa fraca e egoísta. Eu também sabia que ainda não tinha contado ao Logan toda a verdade, a verdade assustadora e vergonhosa.

- Ainda não te contei tudo - declarei. - E, quando contar, quero ver se vais ser tão compreensivo.

- Ainda há mais?

- Há, há mais... - disse eu, respirando fundo. - Uma razão ainda mais forte para eu deixar Farthy. Ontem à noite, depois da minha discussão com o Tony e de lhe ter dito que me ia embora, ele veio ao meu quarto. Estava bêbado e meio despido.

- O que é que ele queria? - perguntou o Logan, quase encolhido com o que previa.

- O que ele queria - esclareci eu, lentamente, de propósito - era fazer amor comigo. Tive de lutar com ele e dar-lhe um estalo para ele voltar à realidade.

O Logan não disse nada durante um longo momento. Era como se não tivesse ouvido o que eu dissera. Então, recostou-se para trás como um homem cansado e derrotado, com o queixo quase a tocar no peito, e abanou lentamente a cabeça.

- Oh, meu Deus, oh, meu Deus - murmurou ele.

- Eu... Eu devia ter... Devia ter suspeitado disso...

- Suspeitado? O que é que queres dizer? Sabias de alguma coisa e não me disseste?

- Não era uma coisa que eu sabia; era uma coisa que achava ter sentido. O que é que podia dizer? Tem cuidado com o teu avô...?

- Logan! - exclamei eu, com as lágrimas a correrem cara abaixo -, o Tony é meu... meu pai.

- Ele é o quê?

- Meu pai, Logan. Descobri há alguns anos, mas não te disse porque tive imensa vergonha - continuei eu, as palavras a saírem em catadupa. Tinha tanto para lhe contar, era-me indiferente que ele compreendesse ou não. - Ele violou a minha mãe. Por isso é que ela fugiu. Não vês? Ele é o diabo, Logan. O Tony é o diabo. Tentou fazer o mesmo comigo.

Comecei a soluçar e os soluços abafaram a minha voz.

- Oh, minha pobre Heaven - lamentou o Logan, levantando-se e aproximando-se de mim para me abraçar. - Como deves ter sofrido.

Apertou-me contra ele e beijou-me repetidamente.

- Oh, Heaven, tenho tanta pena. Tanta pena. Abanou a cabeça e olhou para baixo.

- É só isso que tens para dizer? Que tens pena? Ele olhou para mim intensamente.

- Não. Mete-me nojo. A minha vontade é meter-me num avião e ir até Farthy. Esclarecer tudo com o Tony e fazê-lo perceber o que ele é e o que fez. Mesmo que para isso tenha de lhe torcer o pescoço - acrescentou ele, com os olhos a faiscar.

Aquilo era mais do que eu esperara e desejara, mesmo não querendo que ele levasse avante as suas ameaças. Pelo menos tinha a certeza de que o Logan gostaria mais de mim do que dos seus negócios, da sua riqueza e do seu poder recentemente adquiridos.

- Não - protestei. - Não quero que faças isso. Já não é preciso. Eu deixei-o destroçado e abatido, rodeado da sua culpa e das suas recordações tristes. Vamos afastá-lo da nossa vida. Ele vai passar a ser exactamente aquilo que é... Um sócio e mais nada. Nunca mais vou pensar nele como meu pai nem tu como sogro. vou deixar essa parte da minha vida, fechar a cortina desse drama.

O Logan continuou a abraçar-me, a acariciar o meu cabelo e a olhar-me com ternura.

- Logan, nós podemos construir a nossa vida aqui, longe de Farthy e do passado. Esquece a fábrica, esquece tudo o que tenha a ver com o Tony Tatterton. Podemos transformar sozinhos os drugstores Stonewall num império maravilhoso. Vamos ter o nosso bebé e o Drake é como se fosse nosso filho.

- Heaven - disse o Logan, largando-me e sentando-se.

- Eu desprezo o Tony muito mais do que imaginas pelo que tentou fazer contigo, mas... mas é essencial que os meus sentimentos pessoais sejam postos de lado durante uns tempos.

- Logan, não estou a perceber. Não podemos continuar a ter esse homem na nossa vida!

- Nós podemos não querer o Tony na nossa vida... Mas, e as pessoas de Winnerrow, e as pessoas dos Willies? Heaven, sem a fábrica, as suas esperanças morrem. E... - prosseguiu, levantando-se e andando para a frente e para trás. - E sem o dinheiro do Tony a fábrica morre.

- O que estás a querer dizer, Logan?

- Quero dizer, Heaven, que sem o capital do Tony é o fim dos nossos sonhos. É o fim dos sonhos de todos.

- Logan, eu pensei que ias proteger-me...

- Eu trato de tudo, Heaven. O Tony não é o único que consegue manipular.

Sentou-se e pousou as mãos nos meus ombros.

- Eu sei - disse ele - que não tenho sido aquilo que esperavas que eu fosse. Eu sei que já te desiludi de muitas maneiras, principalmente ao não dar atenção nem a ti nem ao nosso casamento. Mas isso a partir de agora vai mudar. Prometo. vou trabalhar muito, mas o trabalho vai sempre estar em segundo lugar, depois do nosso amor, do nosso casamento e da nossa família - declarou ele, dando-me uma palmadinha no ventre. - A nossa família em crescimento... - Sorriu. - Vamos estar sempre juntos. Acabaram as separações, Heaven. vou fazer-te feliz para sempre, querida. Prometo.

- E tens de amar e tratar bem do Drake - acrescentei eu, receosa pelo facto de o Logan não o ter mencionado. - Ele não pode sofrer pelos pecados do pai e pelos pecados dos outros adultos.

- Ele vai ser como se fosse meu filho. Prometo - respondeu ele, levantando a mão como se estivesse a fazer um juramento.

- Oh, Logan - exclamei, abraçando-o com força e encostando a cara ao seu ombro. Ele beijou-me repetidamente e acariciou o meu cabelo com ternura. As minhas lágrimas eram como pingos de chuva quentes. Pegou-me ao colo e levou-me para a cama, onde me beijou e consolou até estarmos tão cansados que adormecemos. Eu adormeci aninhada nos seus braços, sentindo-me segura e protegida, e já não tive medo da manhã e da vida nova que ia começar.

Os dias seguintes foram mesmo dias de início de uma nova vida. Estive quase sempre ocupada, aliviada por o tempo passar tão depressa, por as horas serem preenchidas por coisas importantes e não ter de arranjar coisas supérfluas para ocupar o tempo. Dois dias depois de termos chegado, levei o Drake à escola. Teoricamente, ele estava a uma semana e meia do limite mínimo de idade para começar a primeira classe; no entanto, Mr. Meeks foi muito mais do que atencioso em abrir uma excepção. Como ele era diferente do director que eu conhecera nos meus tempos de estudante e no meu primeiro ano como professora. Era quase como se ainda não me conhecesse.

Em dez minutos, o Drake estava inscrito na primeira classe.

- Não há nenhum problema. Nenhum mesmo, Mistress Stonewall - repetiu Mr. Meeks, quando lhe disse porque é que ali estava. - Quando a criança é precoce, abrimos sempre uma excepção e, do que percebo do Drake, vejo imediatamente que ele é um rapazinho precoce. Eu trato disso.

Não consegui deixar de me sentir divertida com a mudança de Mr. Meeks. Era verdade que se abriam excepções, mas eram baseadas em testes e não apenas na observação visual do director. Mr. Meeks chamou a secretária e mandou-a tratar dos papéis. Depois, acompanhou-me pela escola para eu poder cumprimentar alguns dos meus antigos colegas. Em seguida, levou-me até ao parque de estacionamento e abriu-me a porta do carro.

- E diga a Mister Stonewall - disse ele -, que eu e Mistress Meeks teremos o maior prazer em comparecer à inauguração da fábrica.

- Muito obrigada - respondi eu, maravilhando-me todo o caminho até casa. O Logan estava um belo manipulador.

Voltei para a Casa Hasbrouck para receber Mrs. Avery, a senhora de cinquenta anos que tinha sido empregada do Anthony Hasbrouck durante mais de vinte anos. Achei que tinha uma cara simpática e calma e não vi razão para não a manter. O Logan pediu a uma agência para enviarem um candidato a mordomo, Mr. Gerald Wilson. Era um homem alto, grisalho, de quase sessenta anos, um pouco empertigado e formal, o que me fazia lembrar o Curtis, mas não vi impedimento para o contratar. O nosso cozinheiro chegou no dia seguinte. Não pude deixar de pensar que o Logan estava a modelar os nossos empregados segundo os empregados do Tony, pois o cozinheiro era um senhor negro, que eu tinha a certeza ser mais velho do que dizia. Chamava-se Roland Star e tinha os dentes tão brancos como teclas de piano, e um riso que era musical.

Depois de a casa já ter criados, fui a um decorador de interiores e comecei a planear algumas alterações para a sala de jantar, sala de estar, quarto de hóspedes e para o nosso quarto. O quarto das crianças estava quase acabado, e não havia nada que eu quisesse modificar na cozinha. Já tinha chegado tudo o que eu comprara em Boston, e em duas semanas a minha casa nova, a minha primeira verdadeira casa estava pronta.

À medida que passava de um aposento para outro, observando tudo o que criara, sentindo que tinha obtido tudo com o meu sofrimento, apercebi-me de que ainda havia algo do passado para mudar. Depois de ter deixado o Drake na escola, dirigi-me directamente para o salão de beleza da cidade, que era dirigido nem mais nem menos do que pela Maisie Setterton.

Pareceu chocada por me ver, mas rapidamente mudou a sua atitude para uma atenção bajuladora.

- Ora viva, Heaven - disse ela, arrastadamente. - Sinto-me tão lisonjeada por teres vindo ao meu salão de beleza, agora com tanta riqueza. Deixas mesmo que seja uma rapariga do campo a arranjar-te o cabelo?

- Quero voltar à minha cor natural. - disse eu, cortando-lhe a palavra. - E este é o único salão de beleza da cidade.

Aquilo silenciou-a, e não voltou a falar enquanto misturava e lavava e pintava o meu cabelo. Saí duas horas depois, muito parecida com a antiga Heaven Leigh Castell, agora Heaven Leigh Stonewall. Sim, agora quando as pessoas da cidade me vissem, tinham mesmo de se lembrar da pobre rapariga dos montes que tinham desprezado, e aperceberem-se de que era ela que estava a reavivar a cidade. Já não queria parecer uma Tatterton. O anjo do Luke. A Leigh do Tony, O homem errado tinha-a visto em mim. Não tinha ganho o amor do meu pai ao pintar o cabelo para me parecer com ela, mas sim a lascívia do Tony. E agora, também isso eu ia pôr para trás das costas. Iria ser apenas aquilo que era, e nunca mais teria vergonha disso. O orgulho ergueu-me a cabeça enquanto tratava dos meus assuntos em Winnerrow e sentia os olhares à minha passagem.

Fui até à fábrica para ver os retoques que estavam a ser dados. O Logan apanhou um choque quando me viu.

- Heaven - exclamou ele -, voltaste à tua cor natural.

- Voltei, Logan - disse eu, sorrindo. - Agora todos os vestígios dos Tatterton desapareceram, e eu sou cem por cento pura uma Stonewall para sempre.

- E mais bela do que nunca - acrescentou ele, beijando-me apaixonadamente. - Esta é a mulher que eu senpre amei. Obrigado, Heaven.

Levou-me numa visita guiada pela fábrica, explicando-me e mostrando-me os mínimos pormenores. Fez-me sentir uma rainha a visitar uma das suas colónias. À medida que caminhávamos pelos corredores e passávamos de sala para sala, os vários trabalhadores interrompiam o que estavam a fazer para me cumprimentar. O Logan mostrou-me tudo, até a casa de banho dos homens. O seu entusiasmo era contagioso, e eu dei por mim muito excitada com tudo aquilo. A única coisa que me entristeceu foi quando ele me apresentou aos dez artesãos que contratara para fazer os brinquedos dos Willies. Dois deles eram pelo menos tão idosos como o meu avô, quando este morrera.

Mais para o fim do mês, começaram a chegar documentos e informações relacionados com os bens do Luke enviados por Mr. J. Arthur Steine. Pelos vistos ele tinha conferenciado com o Tony, e este dissera-lhe para fazer como eu quisesse. O circo e a casa tinham sido vendidos rapidamente, facto de que Mr. J. Arthur Steine se fartou de gabar.

Na primeira noite em que o Roland Star ficou na Casa Hasbrouck para preparar uma refeição, o Logan convidou os pais. Eu diverti-me imenso com a mudança da Loretta Stonewall, especialmente na maneira como agora me tratava. Tinha-se arranjado para esse jantar como se fosse um jantar na mansão do governador. Tinha feito permanente, arranjado as unhas e comprado um vestido caro. Trazia o seu casaco de peles e o colar e brincos de diamantes mais caros. O pai do Logan parecia atrapalhado e envergonhado com a extravagância da esposa. Eu quase podia ouvir a discussão deles sobre o assunto; afinal de contas, só iam jantar a casa do filho. Sim, mas que casa e que jantar!

Eu estava bastante menos bem arranjada em comparação com ela, mas a mãe do Logan não pareceu reparar nem se importar. Estava intimidada ao ponto de nem comentar a minha nova cor de cabelo; exagerava, porém, nos seus elogios sobre as alterações que eu fizera na casa. Repentinamente, quase de um dia para o outro, tinha-se tornado minha sogra em mais do que o mero nome.

- Não deve hesitar em chamar-me, mesmo pela mínima das coisas, quando a sua gravidez se desenvolver, Heaven. Quando eu estava de quatro meses, já estava enorme. Mas a Heaven está aí toda esbelta e bonita como sempre. Como é que consegue? Sente-se cansada? Sabe que eu não me importaria nada de ajudar com o pequeno Drake. Que rapazinho tão querido... - E estendeu o braço para lhe dar uma palmadinha na cabeça, mas o Drake não estava pelos ajustes. Pôs-se fora do alcance dela. - De qualquer modo, insisto que venham jantar lá a casa na noite a seguir à inauguração da fábrica. Sei que vão estar cansadíssimos.

- Obrigada, Loretta - disse eu.

- Oh, por favor, por favor, Heaven, querida - disse ela, pousando a mão dela na minha por cima da mesa -, chame-me mãe.

Observei-a por um instante. A quantas mulheres tinha eu chamado mãe durante toda a minha vida? A uma que eu nunca conhecera, a uma que tinha sido uma trabalhadora sobrecarregada, a uma que me detestara, e agora uma que estava tão orgulhosa da sua nova posição na comunidade que me queria da mesma maneira que alguém quereria uma jóia cara e impressionante. Ela queria usar-me para impressionar as amigas. Mas eu estava demasiado cansada para a desprezar. Até conseguia entender a excitação dela, e se dinheiro e poder me haviam tornado bem-vinda na sua casa, porquê detestá-la por isso? O meu marido era feliz, os meus filhos seriam amados, e eu teria finalmente uma verdadeira família.

O jantar correu bem; porém, depois de eles se terem ido embora, fui novamente assaltada por recordações da minha própria família. Vi e revi na minha cabeça a cena com o Tony. Continuava sem saber se ele viria ou não à inauguração da fábrica, e sentia-me como um pássaro fechado numa gaiola com um gato a rondar lá fora.

Decidi acalmar os nervos atirando-me aos preparativos da festa, para estar tão ocupada que não teria tempo para pensar em coisas tristes. Ajudei a organizar um verdadeiro baile dos Willies. A ementa seria constituída por galinha frita, couves, pão de milho e feijão. Contratei mulheres dos Willies, famosas pelas suas receitas vindas de há seis ou sete gerações. Comprei tartes de cereja e de ruibarbo, maças e batata-doce, assadas em fornos artesanais. Contratei os Longchamps, o grupo de rabequistas que tocara no meu casamento, e alguns dos rapazes e das raparigas do liceu local para fazerem de criados e criadas. Os únicos profissionais que contratei foram os empregados do bar da cidade, que me prometeram fazer um ponche que, como um deles me garantiu, "até faria os brinquedos de madeira começarem a dançar". A festa ia ter lugar no terreno à frente da fábrica. Chamei a florista e disse-lhe que só queria arranjos com flores silvestres locais. Todas as noites, eu e o Logan conversávamos até muito tarde sobre a fábrica, os empregados e os preparativos para a festa. De vez em quando saltava da cama e anotava qualquer coisa de que nos tivéssemos esquecido. Éramos como duas crianças a planear a nossa primeira festa.

Tivemos um belo dia de Outono para ela. Não havia uma nuvem no céu; apenas uma brisa que mal se sentia. Tinha encomendado a uma das costureiras da região um típico vestido riscado dos Willies, completado com folhos e renda irlandesa. Teve de o fazer de uma maneira especial, para acomodar o meu ventre em crescimento. Fiz tranças no meu cabelo negro e apanhei-as para cima com fitas, como fazia quando era uma criança dos Willies. Era o dia em que os Willies iam ser festejados. Era o dia em que as pessoas dos montes seriam as mais importantes na cidade. Já se começava a notar a minha gravidez. Quando olhei para a minha imagem no espelho, achei que até a cara estava mais cheia. Lembrava-me de como a Sara, a segunda mulher do meu pai, ficara inchada quando estivera grávida. Todos os dias o corpo dela, especialmente a cara, parecia inchar mais um bocadinho. Eu até tivera a impressão estranha que o bebé dela devia estar a soprar ar e que ela estava a encher como um pneu. Lembrava-me do que o tom se rira quando eu lhe dissera isso.

Pus um bocadinho de blush e de bâton.

- Como é que estou? - perguntei ao Logan.

O Logan escolhera usar um fato conservador, mas pusera um laço da região no pescoço. Parou de arranjar o laço e sorriu.

- Estás mais bonita do que nunca. O bebé dentro de ti faz-te florir como uma rosa linda.

- Oh, Logan. Estás a tornar-te um óptimo vendedor disse eu, para brincar com ele.

Pareceu magoado.

- Não estou a mentir, Heaven. Nunca te mentirei. Estás mesmo bonita - insistiu ele, e atravessou o quarto para me beijar. Abraçou-me com força e soube-me mesmo bem estar nos seus braços, em segurança. - Oh, Heaven - continuou ele -, lembras-te quando o Tony nos ofereceu o Rolls-Royce na nossa festa de casamento, e eu disse que estava o mais feliz possível? Pois, sou muito mais feliz agora.

"Não temos Farthy, não temos um castelo e um exército de criados, e não estamos a dar-nos com os de sangue azul, mas temos esta casa maravilhosa e a oportunidade de progredir de acordo com as nossas próprias energias e desejos, e eu acho que isso nos torna mais ricos do que nunca.

"Principalmente - continuou ele, afastando-me um pouco -, porque nos temos um ao outro e a bênção de um filho para breve. Vamos esquecer toda a infelicidade. Só nos esperam coisas boas.

- Oh, Logan, espero que tenhas razão - retorqui eu, quase a chorar com as expressões dele de felicidade e satisfação.

Beijámo-nos mais uma vez e fomos interrompidos pela entrada do Drake.

- Estou pronto - disse ele. Tinha-o deixado na sua casa de banho para se pentear. Ele estava à porta a olhar para nós. Tinha umas calças cinzento-claras, uma camisa cinzento-escura com um laço azul-escuro e um casaco desportivo azul-escuro. Nunca pensei que um rapazinho da idade dele pudesse estar tão orgulhoso da sua roupa e da sua aparência.

O Drake tinha o cabelo muito bem penteado para trás com uma ondinha à frente.

- Pois estás - respondeu o Logan. - Quem é este senhor tão elegante, Heaven?

- Não sei - disse eu. - Há bocado estava aqui um colegial, todo sujo do jardim. Acho que tinha areia no cabelo, e pequenos montes de relva a crescerem-lhe nas orelhas. Será possível ser o mesmo rapaz? - perguntei eu, sorrindo para o Drake; porém, era uma criança muito séria e profunda e semicerrou os olhos.

- Eu sou o Drake - afirmou ele. Eu podia ver a zanga a aparecer-lhe nos cantos da boca.

- Claro que és, meu querido - concordei eu. - Eu e o Logan só estávamos a brincar contigo. Vamos, vamos juntos lá para baixo. Não queremos chegar atrasados.

O Logan estendeu-me a mão.

- Pronto para o teu dia, Heaven - disse ele, com um sorriso radiante. O Drake correu para nós.

O Drake tinha-nos ajudado a preparar actividades especiais para as crianças: corridas de gatas, lançamentos de saquinhos de feijão e maçãs penduradas, para eles tentarem agarrar com a boca. Mal conseguia dominar a excitação enquanto seguíamos para o recinto da fábrica.

Tínhamos posto um bar em cada ponta do terreno e uma tenda enorme entre eles, com mesas e cadeiras na parte de trás. Quando o Drake viu aquilo, pensou que o circo do pai tinha chegado a Winnerrow. O estrado para a banda estava decorado com fitas encarnadas, brancas e azuis.

Por cima da entrada da fábrica tínhamos mandado colocar um cartaz dourado a desejar as boas-vindas à inauguração da FÁBRICA DE BRINQUEDOS DOS WILLIES. Era a minha ideia para deixar de fora o nome Tatterton.

As pessoas já estavam a dançar e a beber, a rir e a conversar. De repente, saída do meio do rebuliço de camiões e carrinhas antigas a estacionar, apareceu uma limusina preta e brilhante com vidros fumados pretos. Deixei de respirar por um momento. Só podia ser uma pessoa. A porta abriu-se, e emergiu um sapato de pele brilhante, seguido de um Tony Tatterton elegante, de smoking. Olhei desesperadamente à minha volta à procura do Logan, mas não o consegui encontrar. Respirei fundo para me preparar para o que ia acontecer, ergui a cabeça e avancei para cumprimentar o Tony Tatterton.

- Mister Tatterton - disse eu, friamente, enquanto avançava para ele. - Não esperávamos que conseguisse comparecer.

Os olhos dele devoraram-me.

- Heaven - gaguejou ele -, o teu cabelo!

- Não gosta? Fui eu que o arranjei. É o máximo da moda aqui nos Willies.

- A cor - balbuciou ele.

- É a minha cor natural, como bem sabe, Mister Tatterton.

Por uns instantes, não conseguiu desviar os olhos do meu cabelo, como se estivesse a olhar para um abismo negro de memórias perdidas e não para uma cabeça de cabelos negros. Eu sabia que ele estava a perceber o simbolismo do meu gesto. Já não queria ser associada aos Tatterton. Tudo o que ele via agora era uma Casteel autêntica de Winnerrow. Então, recompôs-se lentamente e olhou em volta com desaprovação.

- Tu e o teu marido rústico montaram um belo bailarico - disse ele.

Por um momento, a rapariguinha insegura que existia dentro de mim sentiu-se punida com o julgamento e o escárnio que viu nos seus olhos. Porém, rapidamente a afastei, endireitei-me com orgulho e olhei directamente para ele, sorrindo como se o mundo me pertencesse.

- Reparei que deram um nome novo à fábrica - continuou ele, depois de um silêncio incómodo, que pareceu estender-se durante horas.

- Eu e o Logan decidimos que o nome Tatterton não era apropriado para esta fábrica em particular. Posso oferecer-lhe algo de beber, Mister Tatterton?

- Não, acho que não vou ficar muito tempo. Não me encaixo muito bem - disse ele, passando a mão pela gravata de seda -, pois não? A não ser que o teu marido tenha um macacão que me empreste.

Sorriu e eu percebi que estava a tentar dizer uma piada, mas mantive a minha frieza.

- Por favor, Tony, não faça isso. Apesar de tudo o que aconteceu entre nós, o Logan já gostou muito de si e já teve uma grande admiração por si. Mostre-lhe algum respeito.

O Tony baixou os olhos, abanando tristemente a cabeça de vez em quando. Depois, olhou outra vez para os meus olhos, com os dele cheios de lágrimas.

- Por favor, Heaven, não podemos ficar sozinhos por uns instantes? Preciso tanto de falar contigo.

- Eu nunca, nunca mais ficarei sozinha consigo - respondi eu, friamente.

- Tu não percebes, Heaven. Eu estava bêbado. Eu estava fora de mim com o desgosto da morte da Jillian. Eu estava...

- O seu comportamento tomou uma forma muito estranha de desgosto.

- Heaven, volta para Farthy. Eu, tu e o Logan podemos começar tudo de novo - implorou ele, como se fosse um rapazinho. - Tenho a certeza que ia resultar! Tenho a certeza!

Senti uma onda de pena a apoderar-se de mim. Ele, de repente, parecia tão velho, grisalho e indefeso.

- Eu sei que íamos todos ser felizes - continuou ele.

- Além disso, Heaven, acho que exageraste o meu comportamento naquela noite. Eu só estava a tentar abraçar-te. Eu só te queria amar como um pai!

- Saia imediatamente daqui - ordenei eu, calmamente mas num tom gelado. - Neste instante.

O Tony fez uma expressão completamente derrotada.

- Calculo que tenhas contado ao Logan.

- Ele é o meu marido. Claro que lhe contei tudo - respondi eu, com frieza. Acenou com a cabeça, e os seus olhos azuis fixaram-se no cartaz por cima do local da festa.

- Não vou pedir-te para me perdoares. Isso é algo que farás ou não por ti própria. Só te peço para levares em conta as minhas razões - pediu ele. - De qualquer maneira continuou, antes que eu pudesse responder - não voltarei cá durante bastante tempo. Tenho muita coisa para tratar em Boston. Por isso, vais ter mais do que tempo para reconsiderares tudo na sua devida perspectiva. E... - prosseguiu olhando para mim, com uns olhos azuis ternurentos pela primeira vez desde que chegara. - O tempo é mágico. Cura todas as feridas.

- Mas deixa marcas - respondi. Ele abanou a cabeça, claramente desapontado.

- Adeus, Heaven. Tenho a certeza de que tu e o Logan vão sair-se muito bem por aqui - disse ele, e voltou-se rapidamente para ir até à limusina, onde o Miles esperava como uma sentinela. Observei-o enquanto entrava no carro. O Miles fechou a porta, olhou para mim durante um segundo, depois entrou no carro e partiram. Esperei até o ver desaparecer, desvanecendo-se como uma recordação cada vez mais pequena com o passar do tempo até estar completamente esquecida, movida pelo bater de cem mil relógios.

Voltei-me e o som vivo das rabecas, o barulho das vozes e dos risos envolveram-me.

Decidi que a única coisa a fazer era integrar-me na festa. O Logan e o capataz estavam a fazer visitas guiadas à fábrica. Tinham sido expostas amostras de brinquedos dos Willies, bonecos e animais esculpidos que nós estávamos a planear fabricar. Porém, as suas caras de madeira começaram a rodopiar à minha volta, os animais pareciam vivos. Senti-me tão tonta e estranha, de pé junto dos brinquedos, com os quais eu tinha crescido, de riscas e tranças, depois de tudo por que passara. Encostei-me a uma das montras.

A mãe do Logan aproximou-se, insistindo em apresentar-me às esposas de homens de negócios e profissionais influentes, que viviam em Winnerrow e nos arredores. Eu mal conseguia reconhecer as caras delas, todas me parecendo bonecos.

- Mãe - disse eu, estou a sentir-me um bocadinho tonta.

- Realmente está um bocadinho pálida - disse ela. - Se calhar é melhor ir estender-se um bocadinho. Eu sei que o Logan tem uma cama de lona no escritório. Vá para lá deitar-se.

- E o Drake? Onde é que ele está? - perguntei eu, sentindo as minhas pernas quase a darem de si. - Prometi levá-lo ao jogo da maçã, prometi...

- Heaven, veja você mesma - disse ela, apontando para o pátio.

Vi que o Drake já tinha feito amizade com algumas crianças da idade dele e estava entretido.

- Há montes de crianças, e já conhece as pessoas dos montes. Tomam conta uns dos outros. Agora, vá deitar-se. O Drake não é o seu único filho, lembra-se?

Quando acordei, já estava a escurecer. Estava espantada por ter dormido durante toda a festa. Fui até lá fora. A multidão tinha diminuído consideravelmente. Só restavam o Logan, os pais e alguns beberrões resistentes.

- Olha, vejam quem voltou ao mundo dos vivos - exclamou o Logan, sorrindo.

- Não me apercebi que tinha dormido tanto - disse eu, quando ele pôs o seu braço protector à minha volta.

- As grávidas precisam de muito descanso - acrescentou a Loretta Stonewall.

- Bem, correu tudo bem? - perguntei, olhando para o que restava da festa. As mesas de comida estavam vazias, a banda estava a começar a arrumar os instrumentos. Todos os carros, excepto o nosso e o dos Stonewall tinham desaparecido. De repente, apercebi-me de que o Drake não estava ali.

- Onde está o Drake? - indaguei com um arrepio de medo.

- O Drake? Pensava que estava a descansar ao pé de ti - respondeu o Logan, com um ar alarmado.

- Ele disse-me que ia à sua procura, há uma hora atrás - disse a Loretta, cheia de preocupações. - Deduzi que estava consigo.

- Drake! - gritei eu.

- Não te preocupes, Heaven - disse Logan, mas apercebi-me da intranquilidade na sua voz. - Deve estar a brincar com uma das amostras dos brinquedos. Deve estar perdido no seu próprio mundo.

- Onde? - perguntei eu. - Temos de encontrá-lo!

- Vamos encontrá-lo, não te preocupes - assegurou-me o Logan.

Separámo-nos e começámos à procura pela fábrica e pelo recinto circundante, chamando pelo Drake.

- Drake! Drake - gritava eu.

A luz amarela por cima do portão da fábrica estava acesa, mandando um clarão sinistro para o parque de estacionamento. Num pequeno monte de relva, tínhamos colocado uns balouços para as crianças. Corri até lá. O Drake não estava à vista, mas um dos balouços ainda estava a balouçar para trás e para a frente, para trás e para a frente, como se um fantasma estivesse lá sentado. Olhei para a escuridão por um momento.

Por trás da fábrica havia metros e metros de floresta cerrada.

- Drake - gritei com toda a força. - Drake, onde é que estás?

O único som era o barulho metálico e distante de um comboio abrindo caminho na escuridão ao longe. Esperei um momento e depois chamei outra vez.

Começou a instalar-se um pânico intenso, fazendo os meus ossos estremecer. As minhas pernas pareciam que iam dar de si de tanto medo.

- Drake!

Havia qualquer coisa naquele silêncio e na escuridão que me dizia que ele não tinha simplesmente desaparecido nas suas explorações, como era normal nos rapazes da sua idade. Os meus gritos trouxeram por fim o Logan até mim.

- Não o encontraste? Não o encontraste! - gritei eu.

- Não, não - disse ele. - Os meus pais ainda estão à procura. vou chamar a Polícia. É só como precaução. Tenho a certeza, Heaven, tenho a certeza de que ele vai aparecer a qualquer instante.

Eu, sabia, pelo tom de voz do Logan, que ele estava tão preocupado como eu.

- Chama - disse eu. - Eu vou continuar à procura. Drake - gritei, mais uma vez.

- Vais apanhar uma constipação. Eu peço a alguns homens para procurarem. Anda para o escritório e esperamos lá pela polícia.

- vou ficar aqui, Logan Stonewall. vou procurar o Drake.

- Heaven, já está muito escuro. Não consegues ver nada. Por favor.

- vou ficar por baixo da luz, para o Drake me conseguir ver. Despacha-te e chama a Polícia.

O Logan correu para o escritório. Eu fiquei a olhar para a noite, para a linha escura de árvores, o pequeno fio de lua. Algures, ao longe, um mocho piou. E então, como se a mão do destino me tivesse batido no ombro, soube onde o meu Drake estava, tão bem como conhecia o meu passado. Só podia estar num lugar. Só havia uma pessoa que saberia onde ele estava. E eu estava tão certa disso como do meu próprio nome. Fanny!

 

O AMOR COMO REFÉM

O meu coração estava envolto numa nuvem carregada de desespero. Esperei silenciosamente com o Logan, enquanto o carro da Polícia de Winnerrow procurava pelos arredores da fábrica. Tínhamos pedido aos pais do Logan para irem para a Casa Hasbrouck, no caso de o Drake lá aparecer, ou de alguém o ter encontrado e telefonar.

- Talvez tenha ido para casa de alguém - sugeriu o JinV my Otis, um dos polícias, quando parou o carro em frente da fábrica.

Eu olhei para o Logan, que acenou pensativamente com a cabeça.

- Talvez tenha razão, Jimmy - disse ele. - O rapaz não tem medo das pessoas e é muito curioso.

- vou continuar à procura dele - assegurou o Jimmy.

- Se o encontrarem, telefonem para a esquadra, que eles depois avisam-me pelo rádio.

- Obrigado, Jimmy - disse o Logan.

- Se não tiver sido encontrado dentro de mais ou menos uma hora, peço à Mary Lou para telefonar para casa do chefe. Gostaríamos de ter a lista dos convidados para podermos verificar se alguém o viu em algum sítio.

- Está bem - respondeu o Logan. Assim que a Polícia continuou a procurar, contei ao Logan o que temia.

- A Fanny podia ter feito isso - disse eu. - Não a convidámos para a festa.

Nem eu nem o Logan mencionáramos a Fanny quando fizéramos a lista dos convidados. As razões dele eram óbvias, e eu simplesmente não queria outro confronto com ela.

- Achas mesmo que sim? - perguntou ele, com cepticismo.

- Ela só tinha de ir a passar e vê-lo. Parava para falar com ele e convencê-lo a entrar no carro dela, dizendo-lhe que o traria num instante de volta. Eu sei que ele é esperto para a idade, mas é apenas um miúdo, Logan, e sabe que a Fanny é irmã dele.

- Suponho que ela possa tê-lo feito - anuiu o Logan, pensativamente. Olhei para a lua meio escondida por nuvens escuras, o prenúncio de algo terrível, pensei eu.

- vou até à casa dela - decidi, e dirigi-me rapidamente para o carro.

- Eu não devia ir também? - perguntou ele, ternamente.

- Não. É melhor ficares aqui, no caso de o Jimmy ter razão e ele ter ido a casa de alguém. Eu volto já - respondi. O Logan ficou na fábrica e eu entrei no carro e dirigi-me para casa da Fanny.

Assim que estacionei, os seus cães esquálidos apareceram a correr, andando à volta do carro e ladrando tão furiosamente como cães de caça quando conseguem encurralar uma raposa num buraco. A casa da Fanny estava bem iluminada e eu percebi que ela tinha uma visita. Estava lá outro carro. A minha raiva e a minha preocupação com o Drake sobrepuseram-se ao medo dos cães.

Fechei a porta do carro com força e mantive-me direita enquanto os cães me rodeavam para me morder, mas não recuei e eles mantiveram-se à distância, ladrando mais histericamente à medida que eu me aproximava da porta da casa da Fanny. Quando toquei à campainha, eles ladraram mais alto; porém, mantiveram-se afastados. Tive de tocar outra vez antes de a Fanny vir abrir a porta. Ficou ali, com os braços cruzados como a avó, com a cara fechada, os lábios comprimidos numa linha fina e com os olhos azuis a faiscar.

- O que é que quer, sua alteza? - perguntou ela, sem se afastar para eu entrar. Os cães continuavam a ladrar.

Embora a Fanny tivesse posto a sua cara de indignação, eu conseguia ver através da máscara e percebi que estava certa.

- Deixa-me entrar, Fanny - ordenei eu. - Não vou ficar aqui fora com os cães a ladrar e a falar contigo.

- Oh, então a minha casinha é boa o suficiente para ti, mas eu não sou boa o suficiente para ir ao teu baile, ha?

- Deixa-me entrar, Fanny - repeti eu, asperamente. Ela olhou-me por um instante e depois recuou, e eu pude entrar e fechar a porta aos cães atrás de mim. Assim que o fiz, voltei-me para a esquerda e vi o Randall em pé junto à porta da sala de estar. Parecia tão perturbado como um homem perseguido por uma consciência implacável. As suas sobrancelhas franziram-se. Estava cabisbaixo e com os ombros descaídos.

- Que é que queres? - atirou a Fanny. Percebi pela olhadela que ela mandou ao Randall que estava a representar para ele.

- Fanny, o Drake desapareceu - disse eu, no tom de voz mais controlado que consegui. Sabia que era essencial não mostrar sinais de fraqueza. Ela agarrar-se-ia a isso como um gato se agarra a um rato indefeso. - Está aqui contigo?

A Fanny não respondeu logo. Sorriu abertamente, os dentes brancos a brilhar. Era um sorriso malévolo, odioso, mas um sorriso que respirava confiança, certeza. Houve qualquer coisa na expressão do Randall que me fez perceber que ela o tinha convencido a ajudá-la. Ela sabia que eu havia de aparecer e tinha-lho dito.

- E se estiver? Ele também é meu irmão. Tenho direito a tê-lo na minha casa. Pertence tanto aqui como te pertence, a ti e ao teu homem delambido.

- Fanny, foste tu que o levaste? - exigi eu saber, já sem quaisquer pruridos e com um leve tom histérico na voz.

- Ele está onde pertence - disse ela, admitindo-o. Avancei para ela, com a minha raiva, o meu medo e o meu ódio torcidos e enrolados uns nos outros, como uma bola de arame farpado. Os olhos dela abriram-se de surpresa quando eu avancei e lhe agarrei nos colarinhos da sua frívola blusa de algodão e a puxei bruscamente para mim.

- Onde é que ele está? Como é que pudeste fazer uma coisa dessas? Maldita sejas!

A Fanny juntou toda a sua coragem e agarrou-me o cabelo, espetando-me as unhas no couro cabeludo. Lutámos por uns instantes até o Randall se meter entre nós e nos separar.

- Acabem com isso! Parem! Acabem com isso! - gritou ele. - Heaven, por favor. Fanny. Parem!

Separadas, olhámos uma para a outra, ofegantes.

- Tira as tuas mãos de cima de mim, Heaven. Não estamos na tua cabana dos Willies e não me podes dar ordens disse ela, compondo a blusa.

Controlei a respiração e voltei-me para o Randall.

- Onde é que está o Drake?

- Ele não te vai dizer nada. Ele também sabe o que tu és.

- Randall!

- Têm de resolver isso entre vocês - disse ele, num tom de voz cansado e derrotado. - Ela tinha tanto direito como a Heaven - acrescentou ele, voltando-me as costas e dirigindo-se para a entrada da sala.

- Exactamente, Heaven. Pois tenho. Tenho até mais direito. O papá gostava mais de mim do que de ti, e havia de querer que eu fosse a mãe do Drake e não tu. Tu odiavas ele e o Drake agora sabe disso.

- O quê?

- Contei-lhe tudo - escarneceu ela, com as mãos nas ancas. - Como foste ao circo naquele dia vestida como a tua mãe, só para o poderes castigar e de como causaste aquele acidente que matou o pobre do tom e quase matou o Luke. O Drake sabe o que tu és. Ele sabe - insistiu ela, sorrindo de novo. - Ele acha que foste tu quem mandou o papá e a mamã dele prò'céu.

- Onde é que ele está? - perguntei eu, novamente, com pânico na voz. - Não podes mantê-lo longe de mim!

Avancei pela casa, mas a Fanny bloqueou-me a passagem.

- Não? Bem, eu fui a um advogado, o Wendell Burton, e ele diz que eu tenho tanto direito a ser a mãe do pobre Drake como tu. Especialmente - acrescentou ela, voltando-se para o Randall -, por que eu e o Randall vamos casar e podemos dar um lar ao Drake.

- O quê? - exclamei eu, e desta vez, quando olhei para o Randall, este devolveu-me o olhar, e eu percebi que ele estava tão fascinado pela Fanny que faria tudo o que ela quisesse. A Fanny parecia muito segura dele.

- Ela tem razão, Heaven. Não tinha o direito de assumir que podia levar o Drake para sua casa. A Fanny também tem direitos. Ela também é família.

Olhei para ele durante um bocado e depois para a Fanny, que já se tinha dominado e estava com um ar mais confiante e satisfeito do que um gato com um peixe nas garras.

- Não podes fazer isto... Raptar o Drake e encher-lhe a cabeça de histórias para o virares contra mim. Não podes.

- Posso, posso. Tenho direitos. Ouviste o Randall e nós falámos com um advogado - repetiu ela, como se fosse uma cantilena.

- Fanny, não queres fazer isso - disse eu, tentando dar um tom mais suave, mais sensato à voz. - Não queres levar isto para tribunal, onde tudo sobre nós vai ser exposto como manequins numa montra, para todos verem e rirem. Gostavas disso?

- E tu? Tu és aquela que tem de parecer melhor e mais superior. Será que a tua nova família Stonewall ia gostar? Achas que a mãe do Logan ia gostar? - gritou ela, voltando-se de lado para mim. - Achas que o Logan quer que certas coisas venham a público?

- Estás a tentar fazer chantagem comigo para eu te entregar o Drake - disse eu. Olhei para o Randall, mas a expressão dele não se modificou. - Bem, eu não vou deixar. vou lutar contra ti, e vais-te arrepender. Prometo.

Ela limitou-se a sorrir.

- Maldita sejas - declarei eu. O sorriso dela esmoreceu rapidamente e foi substituído por uma expressão faiscante. Os olhos dela deitaram chamas na minha direcção.

- Sai da minha casa - ordenou. - O Drake nem te quer ver desde que eu lhe contei a verdade.

- Meu Deus, o que é que lhe fizeste?

- Só o trouxe pró pé dos seus - respondeu ela, orgulhosamente. - E é onde ele vai ficar.

Olhei novamente para o Randall. O meu corpo estava a tremer. A Fanny nunca teria conseguido manter-se tão firme e orgulhosa contra mim se o Randall não estivesse presente, pensei eu. Estava a representar para ele tanto quanto estava a representar para mim. Tinha-se tornado uma questão de ego e orgulho próprios, e quando o ego e o orgulho estão em jogo, até cobardes e pedintes se tornam heróis e reis.

- Estou muito desiludida consigo, Randall - disse eu, suavemente, tentando apelar à sua natureza boa e sensível.

- Parecia um rapaz sensível e inteligente. Não sabe no que se está a meter.

- Ah, sabe, sabe. Ele é um estudante universitário, sabes. Não és a única com miolos, Heaven.

Senti a minha garganta a apertar-se, as lágrimas a subirem-me aos olhos, mas eu sabia que não podia mostrar sinais de fraqueza. Mordi o lábio inferior e olhei para o Randall. Depois voltei-me para a Fanny e, agarrando-me ao mais profundo da minha ascendência Tatterton, a firmeza e a força que os tornava executivos implacáveis e de sucesso, atirei-lhe as minhas palavras com o tom mais ameaçador e assustador que consegui.

- A partir de agora vou andar atrás de ti - ameacei.

- com todo o poder e a fúria que o meu dinheiro puder comprar e, quando isto acabar, vais perceber verdadeiramente o significado da vingança.

Ela não conseguiu aguentar o meu olhar e teve de desviar o dela. Olhei mais uma vez para o Randall e depois abri a porta e saí, batendo com a porta e assustando aqueles cães estúpidos. Desta vez, quase nem ouvi o seu ladrar, enquanto voltava para o carro.

Não me lembro de me ter afastado da casa. Não me lembro de fazer curvas e de parar nos semáforos. Não me lembro como é que voltei para a fábrica, mas de repente estava lá.

O Logan, que me ouviu estacionar, correu para fora.

- Então? - perguntou ele. Eu continuei sentada ao volante, a olhar em frente. - Heaven?

- Ela tem-no - murmurei eu, como se estivesse em transe. - E ela quer ficar com ele.

- O quê? Estás a brincar?

- Não - disse eu, voltando-me para ele. - Temos de ir a tribunal para obter a sua custódia.

- bom, isso não vai ser difícil. Só temos de...

- Vai ser horrível, Logan - interrompi, rapidamente. Vai vir tudo ao de cima. Tudo - acrescentei, para o fazer perceber. Ele compreendeu e virou-se instintivamente para olhar para o seu novo império.

- Estou a ver - disse ele.

- Mas eu não quero saber - acrescentei eu, com firmeza. Ele acenou com a cabeça; senti o seu medo e relutância. - Não há nada mais importante para mim do que recuperar o Drake, Logan. Percebes? - continuei, quase histericamente.

- Sim, sim, claro. Vamos para casa e dizer à Polícia que encontrámos o Drake, contar à mãe e ao pai o que aconteceu, e depois logo pensamos no próximo passo a dar.

À medida que seguíamos para a Casa Hasbrouck, as últimas semanas foram passando pela minha mente: como eu conseguira ganhar lentamente o amor e a confiança do Drake. Por causa do seu desgosto e de tudo o que lhe acontecera, ele tinha construído um muro alto à sua volta, tal como o Luke fizera depois de a minha mãe, a Leigh, ter morrido ao dar-me à luz. Contudo, eu tinha começado a penetrar no muro que rodeava o Drake e sentira que estava a fazer progressos. Agora, a Fanny iria destruir tudo. Recordei como o Drake estava elegante no seu fato na festa, e, mesmo antes de virarmos para o caminho para a Casa Hasbrouck, o dique cedeu e uma torrente de lágrimas emergiu.

Estaria eu destinada a atravessar a vida sempre com o desespero e a tristeza junto de mim, como irmãos gémeos instalados confortavelmente no meu lar? Ou talvez a felicidade, a felicidade que eu insistia em considerar ao meu alcance, fosse como um pássaro muito bonito. Se nos agarrarmos muito a ele, partimos-lhe as asas e sufocamo-lo até à morte, e se o agarrarmos ao de leve, ele foge.

Teria fugido?

Estive bem até entrar dentro de casa, subir as escadas e parar no quarto do Drake. Aí, desatei outra vez a chorar e corri para o meu quarto, onde me atirei para cima da cama e chorei. Pouco depois, o Logan veio para cima e fechou a porta suavemente atrás dele. Eu não conseguia reter as lágrimas nem parar os soluços. Senti a mão dele no meu ombro e voltei-me para fixar o seu rosto.

- Vá, vá - animou-me ele. - Não vale a pena ficares tão transtornada. Sabes como é a Fanny.

- O que queres dizer, Logan? - perguntei eu, limpando as lágrimas com as mãos.

- Ela gosta de fazer coisas maldosas e depois, quando já está satisfeita ou acha que está, pára. Durante quanto tempo é que achas que ela vai querer a responsabilidade de um rapazinho? - perguntou ele, rindo-se. - A Fanny? Nem consigo imaginar.

- O Randall Wilcox vai casar com ela, Logan.

- O Randall Wilcox? Não acredito. O pai dele renegava-o. Isso foi uma história que ela arquitectou para fazer as coisas parecerem piores.

- Não, é verdade. Ele estava lá em casa. Ela tem-no pelo beicinho. Até conseguiu que ele não gostasse de mim. Mas o mais importante é que a Fanny vai ter um marido e pode reclamar que tem o lar apropriado para o Drake.

- Continuo a não acreditar que ela queira cuidar de...

- Logan! O que é que esperas que eu faça, que fique à espera que ela se canse do Drake? Ela já está a encher-lhe a cabeça de histórias horríveis, contra mim. Cada dia que passa será pior.

Ele concordou pensativamente com a cabeça.

- bom, vou pedir a um dos meus advogados que trate da papelada e a assuste com uma acção no tribunal. Ela nem vai saber o que há-de fazer e...

- Ela já tem um advogado! - exclamei eu, rapidamente. - O Wendell Burton.

- O Wendell Burton? Acenei com a cabeça.

- Ele já lhe deu alguns pareceres jurídicos.

- O Wendell Burton... Ele é um perseguidor de ambulâncias da pior espécie, do tipo parasita e carunchoso. Sempre, que alguém morre de acidente, ele vai para o velório distribuir cartões de visita, na esperança de que o contratem para processar alguém.

- Não interessa que tipo de advogado ele é ou se é bom ou não. O que interessa é que ela já foi tão longe. Não é tão simples como tu pensas. Vamos ter de ir a tribunal.

Observou-me por uns instantes.

- Não acredito nisto... Quando finalmente pomos a fábrica a trabalhar e estamos a marcar posição nesta comunidade, temos uma querela familiar resolvida em público.

- É mais do que uma querela familiar, Logan. Muito mais. A vida de uma criança está em jogo.

- Eu sei, eu sei - repetiu ele. Levantou-se para andar pelo quarto. - Talvez consigamos chegar a algum acordo à porta fechada.

- Não conseguimos. É melhor encarares isso.

- Jesus, Heaven, não posso ao menos tentar arranjar uma solução mais fácil? vou fazer alguns telefonemas e ver o que se pode fazer.

Abanei a cabeça e sentei-me.

- És igual ao Tony. Achas que podes resolver tudo com um telefonema ou com advogados a encontrarem-se em privado.

- vou tentar - repetiu ele, estendendo os braços.

- Tenta - disse eu. - Mas eu só espero um dia.

- Eles não vão tratá-lo mal - disse ele, tentando aligeirar as coisas.

- Logan - insisti eu, semicerrando os olhos. - Tu prometeste pensar no Drake como se ele fosse teu filho.

- Eu sei e é o que vou fazer - ripostou ele.

- Bem, deixarias alguém fazer uma coisa destas a um filho teu? Levá-lo e encher-lhe a cabeça de coisas horríveis sobre ti?

Não respondeu.

- Deixavas?

- Claro que não.

- Então... Amanhã telefono ao doutor J. Arthur Steine a pedir-lhe conselho e o nome de um advogado na Virgínia. vou arranjar a melhor ajuda legal possível e usar todo o dinheiro que for preciso nisto.

- Claro, eu compreendo - murmurou ele, suavemente.

- E se for necessário lavar a roupa suja em público, também o farei para conseguir o Drake de volta. Não me importo com o que as pessoas vão pensar de nós!

- Bem, acho que disseste a palavra mágica, Heaven retorquiu o Logan. - Nós. Temos de pensar nas outras pessoas... Nos meus pais, por exemplo.

Fiquei com o meu peito tão quente que pensei que o meu coração tinha pegado fogo. O calor subiu pela garganta e pelo pescoço acima até à cara. Senti o meu rosto a queimar.

- Não pensaste neles quando fizeste amor com a Fanny na cabana, pois não, Logan? - perguntei, rapidamente. Ele empalideceu. - Então?

- Já te contei como é que aconteceu. Será que vou ter de passar a minha vida a pagar por isso? - lamentou-se.

- Não sei - respondi. Limpei o resto das lágrimas.

- Talvez seja altura de confessarmos francamente o nosso passado e as nossas acções. Talvez isto tenha acontecido para nos podermos expurgar - continuei eu. - Seja por que razão for... estou decidida a fazer o que está certo e é necessário com ou sem o teu apoio.

Logan olhou-me por um momento e depois sacudiu a cabeça.

- Desculpa. Não queria parecer egoísta. Claro que tens o meu apoio, e vou estar sempre ao teu lado. Amo-te de mais para te deixar sofrer sozinha - protestou ele. - Amanhã vou fazer o que puder para parar com isto e, se não conseguir, vou onde for preciso, faço o que tu quiseres para trazer o Drake para onde ele pertence.

- Obrigada, Logan - murmurei, com os olhos novamente cheios de lágrimas.

- Não me agradeças por te amar como te amo, Heaven. É o que faz a minha vida valer a pena.

Ele aproximou-se e abraçámo-nos.

- Vai correr tudo bem - insistiu ele, e deu-me um beijo na testa. - Vais ver.

- Espero que sim - respondi eu.

Na manhã seguinte, logo a seguir ao pequeno-almoço, o Logan saiu para se encontrar com os advogados e fazer os seus telefonemas. Eu não desci para tomar o pequeno-almoço. Mrs. Avery trouxe-me um tabuleiro com café e uma torrada, que foi tudo o que consegui comer. Não disse nada, mas percebi que sabia que tinha acontecido alguma coisa de mau. Devia ter perguntado pelo Drake e o Logan devia ter-lhe respondido qualquer coisa. Era demasiado discreta para fazer perguntas; contudo, por um momento desejei alguém da idade dela para conversar, uma verdadeira mãe, a quem pudesse confiar os meus receios e problemas. Que sorte tinham as raparigas com mães e irmãs de quem gostavam e em quem confiavam, pensei eu.

Depois do café, tentei controlar-me o mais possível, e fiz o que tinha dito ao Logan que ia fazer: telefonei ao J. Arthur Steine. Ele atendeu imediatamente, interrompendo uma reunião com os seus sócios. Ouviu com compreensão.

- Ela pode fazer o que fez? - perguntei eu, assim que acabei de explicar o que acontecera.

- Bem, pelo que me contou, ela é uma pessoa adulta e também um familiar. Quando nos encontrámos aqui no meu escritório, não me ocorreu perguntar sobre irmãos e irmãs, parecia que a senhora estava a tomar conta de tudo.

- Mas a Fanny não tem experiência, estabilidade, sentido de responsabilidade - contestei eu, e contei-lhe alguns aspectos da vida dela.

- Estou a ver - afirmou ele. - E diz que ela agora vai casar?

- Sim.

- bom, acho que vai ter de haver uma audiência para regulação do poder paternal, Mistress Stonewall, e esses pormenores vão ter de ser relatados para o juiz decidir. Mas, com o tipo de lar que lhe pode proporcionar e com os seus antecedentes, penso que a decisão será em seu benefício.

- Gostava de ter a certeza - insisti eu. - Gostaria que me recomendasse um advogado da Virgínia, que seja perito nesta matéria. Tenho a sua opinião em grande conta acrescentei.

- Muito obrigado. Sim, conheço uma pessoa. Chama-se Camden Lakewood. A senhora fique por aí que eu peço-lhe para ele lhe telefonar o mais depressa possível.

- Muito obrigada, doutor Steine.

- Ora essa, Mistress Stonewall. Não hesite em telefonar-me sempre que necessitar. Mais uma vez, lamento que esteja com problemas e vou pedir ao Camden para lhe telefonar imediatamente. Os meus cumprimentos a Mister Stonewall.

Agradeci-lhe de novo. Pouco depois, o Logan telefonou com a mesma opinião jurídica: a Fanny tinha os seus direitos e teria de haver uma audiência para regulação do poder paternal. Queria que eu falasse com o advogado dele.

- Já tratei de tudo, Logan - anunciei. - Falei com o doutor Steine e ele vai pedir a um advogado especializado neste assunto para me telefonar.

- Ah. Bem, se tu achas que é assim que se deve fazer...

- Eu telefono-te assim que tiver falado com ele - acrescentei eu.

Sabia que o Logan estava a tentar assumir o controlo dos acontecimentos. Provavelmente achava que era o que o homem devia fazer; porém, a única maneira de eu não desesperar e só chorar era manter-me ocupada com o que fosse preciso fazer para recuperar o Drake.

O Dr. Camden Lakewood telefonou pouco tempo depois. Não perdi tempo com ele ao telefone.

- O doutor Steine tem-no em alta consideração, doutor Lakewood - disse eu. - O dinheiro não é problema. Quando pode vir a minha casa?

- Mistress Stonewall - pronunciou ele, com um sotaque que eu considerei tipicamente de Harvard. - Acabei agora de falar com o Arthur Steine e ele elucidou-me sobre a sua família e o seu problema. Estarei aí em menos de duas horas.

Pela primeira vez desde que fora a Farthy e reivindicara a família da minha mãe com a sua riqueza e o seu poder, agradeci tudo o que podia fazer. Aumentou a minha confiança e reforçou a minha determinação. As palavras que atirara à Fanny tornar-se-iam verdade, pensei eu. Nada do que ela fizera quando éramos crianças, incluindo todas as coisas egoístas que dissera, e nada do que ela dissera ou fizera a partir de então, incluindo ter seduzido o Logan, me viraram com tanta veemência contra ela como ter raptado o Drake e tê-lo envenenado contra mim. Tinha sempre conseguido, de alguma maneira, acalmar a minha fúria e aumentar a pena que sentia dela; isso não ia acontecer agora. Pela primeira vez, eu queria magoá-la também. Queria vingança, a vingança dos Willies.

Queria tanto... que o meu sangue até fervia. Observei-me no espelho e vi como a minha cara tinha ficado encarnada. Raiva e dor, ódio e desespero eram os ingredientes que tinha misturado na mente como a poção de uma bruxa. Quase sentia o sabor da mistura na minha boca.

Engoli em seco para me preparar para o que estava para vir.

Tal como o Logan previra, a notícia da audiência para regulação do poder paternal espalhou-se rapidamente por Winnerrow e seus arredores. Devido à fábrica e à sensação que tínhamos causado com a sua inauguração, tudo o que fazíamos e nos dissesse respeito era notícia importante. Permaneci fechada na Casa Hasbrouck, reanimando-me apenas aquando das visitas do Dr. Camden Lakewood, para preparar a audiência. Ele trouxe uma secretária para tomar notas. Sentámo-nos no escritório do Logan, e eu descrevi tudo o que achava que funcionaria contra a Fanny. Foi feita uma lista de testemunhas e o Dr. Camden contratou um investigador para arranjar provas.

Tal como o J. Arthur Steine, o Camden Lakewood era um homem que parecia ter êxito. Era alto, dos seus cinquenta anos, magro e bem constituído, com olhos azuis perspicazes, fixando-se tão intensamente na pessoa com quem estava a falar que quase se conseguia ver o seu cérebro a funcionar, perscrutando, analisando factos e dados, tirando conclusões.

Possuía aquilo a que os executivos relacionados com a publicidade chamavam aparência distinta, um homem para ser visto num anúncio de uma revista a promover a venda de um carro dispendioso ou de roupa. A sua postura tinha uma firmeza enorme, dando-lhe um certo ar de autoridade. Senti-me muito confiante por ele estar a defender o meu caso.

Apesar de algumas das coisas que eu lhe contei serem feias e desagradáveis, nunca demonstrou qualquer desagrado. Era como se já o tivesse ouvido antes. À sua atitude ajudou-me a descontrair e, pouco tempo depois, fui capaz de lhe contar o mais difícil.

- A Fanny está grávida - elucidei-o. - E parece virtualmente certo que o meu marido é o pai da criança.

A minha garganta apertou-se assim que pronunciei as palavras e os meus olhos encheram-se de lágrimas. Tive de desviar o olhar para normalizar a respiração. A secretária do Dr. Lakewood levantou os olhos do seu bloco de notas e rapidamente voltou a olhar para baixo. O Dr. Camden levantou-se, chamou Mrs. Avery e pediu que me trouxesse um copo de água, o que ela fez imediatamente.

- Que gravidade é que isto tem? - perguntei eu.

- Quando diz "virtualmente certo", o que quer dizer com isso? - indagou ele, fazendo-me aperceber das palavras que escolhera.

- O Logan admitiu ter dormido com ela - respondi eu, e relatei o incidente tal como o Logan mo tinha descrito. A expressão do Dr. Lakewood manteve-se inalterável.

- Na pior das hipóteses - começou ele -, é um negócio. Ela foi ter com ele à cabana e, tanto quanto sabemos, ela dorme com todos. Em primeiro lugar, pare com os pagamentos. Deixamos de estar de acordo em que Mister Logan seja o responsável pela gravidez dela. Insistiremos em análises ao sangue depois do bebé nascer. Pelo que me contou, não vai ficar pior em termos financeiros se as análises provarem a paternidade de Mister Logan.

"Dado que ela agora vai casar com o Randall Wilcox, e que é do conhecimento geral que anda com ele há já algum tempo, embora de um modo irregular, levantaremos a possibilidade de o filho ser dele. De qualquer maneira, vamos pintar a Fanny como uma mulher libertina e isso deve funcionar contra ela,

"O desvio de Mister Logan não ajuda nada, mas os homens às vezes cometem erros. O juiz, o doutor Bryon McKensie, é um homem, e não vai decidir contra nós simplesmente com base na única noite em que Mister Logan passou com a Fanny. Infelizmente, o adultério é muito mais comum hoje em dia ou, pelo menos, muito mais divulgado.

"À parte esse incidente, parece-me bastante claro que o ambiente do vosso lar tem uma atmosfera muito mais moral. No entanto, Mistress Stonewall, seria uma negligência não a avisar de que isto vai ser muito desagradável. Fiz algumas investigações sobre este outro advogado, o Wendell Burton. e os seus métodos e estilo são... como direi, um tanto ou quanto questionáveis. A senhora vai depor e ele vai ter oportunidade de a interrogar. vou lá estar para levantar objecções claro, mas tem de estar preparada para as coisas mais absurdas e para o pior tipo de tratamento.

- Estarei preparada - declarei.

- E o seu marido? - perguntou ele, semicerrando os olhos pela primeira vez. Ele já tinha conhecido o Logan e pressentido os seus receios.

- Ele também estará preparado - assegurei eu, com maior determinação.

Eu sabia que era só uma esperança, pois, à medida que o dia da audiência se foi aproximando, o Logan foi ficando cada vez mais nervoso e, embora eu tivesse falado muito pouco com a mãe dele sobre a situação desde que a Fanny levara o Drake, sabia que eles discutiam muito o assunto. Na tarde anterior à audiência, a Loretta Stonewall veio à Casa Hasbrouck. Eu estava a rever as minhas recordações dos acontecimentos que contara ao Camden Lakewood, para que o meu depoimento fosse consistente.

Mrs. Avery veio à porta do escritório anunciar a chegada da Loretta.

- Peça para ela entrar, por favor, Mistress Avery, e faça-nos chá.

Estava um dia bastante frio. As temperaturas tinham baixado drasticamente na noite anterior, tornando-o num daqueles dias em que a avó costumava dizer "demasiado frio até para a neve". A Loretta trazia o casaco comprido de raposa prateada que o Logan lhe oferecera no aniversário. Entrou rapidamente no escritório, muito corada e excitada, como se tivesse corrido desde casa até ali.

- Oh, está tanto frio - comentou. - Como está, minha querida? Como é que se vai aguentando?

Deixou-se cair na cadeira grande e almofadada em frente da secretária e tentou controlar a respiração, encostando a mão à garganta como alguém a tentar sentir uma pulsação.

- Estou bem - respondi eu. - Mistress Avery já vai trazer-nos chá.

- Que amável. É tão simpática e esperta. Foi uma das primeiras coisas que disse ao Logan, quando ele me contou que estava interessado em si. Ela é uma rapariga muito esperta, disse eu, para ter conseguido subir tanto e tão depressa na vida.

- Obrigada, mãe Loretta.

- Oh, por favor, chame-me só mãe. Mãe Loretta faz-me parecer uma bisavó qualquer - acrescentou ela, dando uma pequena risada.

Normalmente, eu talvez me tivesse rido com o que ela dissera; porém, fez-me lembrar a primeira vez que conhecera a Jillian, quando esta me pedira para não a tratar por avó, pois tinha conseguido esconder a sua verdadeira idade dos amigos. Chegaria a ser tão fútil quando fosse da idade delas?, perguntei a mim própria. Esperava que não. A vaidade era um fardo pesado, acorrentando-nos a um mundo baseado em falsidades, onde as pessoas trocavam mentiras.

Recostei-me sem responder.

- Então, essa coisa vai começar amanhã? - perguntou ela.

- Vai. Tenho estado a preparar-me para isso.

- Oh, meu Deus, que situação tão horrível para si e para o Logan. Não há maneira de a evitar? - perguntou ela, inclinando-se para a frente.

- Só se a Fanny entregasse o Drake e desistisse de quaisquer pretensões - disse eu. - Mas, se ela ainda não o fez, pode ter a certeza que está preparada para prosseguir. Ela acha que tem menos a perder, e foi a maneira que arranjou para se vingar de mim. Não posso fazer mais nada a não ser avançar.

A Loretta esperou que Mrs. Avery servisse o chá, antes de continuar.

- As pessoas daqui só falam nisto - comentou, assim que Mrs. Avery saiu.

- Eu sei.

- Heaven - disse ela, depois de uma longa pausa.

- O Logan contou-me tudo. Ele esteve a preparar-me, dado que viria ao de cima no tribunal. Sei que o que ele fez foi errado, extremamente errado, e acho que é maravilhoso que lhe perdoe, mas deixar que isto venha a saber-se nesta comunidade, especialmente nesta comunidade, seria um erro terrível. Winnerrow é terrivelmente conservadora e religiosa. Irá ser tão difícil para ambos depois disto, por muito êxito que a fábrica tenha. As pessoas irão coscuvilhar e falar...

- Não quero saber - retorqui eu, rapidamente. O Drake é mais importante para mim do que a preocupação com coscuvilhices de alguns hipócritas religiosos.

- Mas, minha querida, também tem de pensar no seu próprio filho. Ele ou ela irão para a escola daqui e terão de conviver com outras crianças, cujos pais lhes encherão a cabeça de histórias. Seria muito difícil.

- O que está a sugerir, mãe? - perguntei eu, farta das lamentações dela.

- Não consegue arranjar maneira de resolver isto discretamente? E se deixasse a Fanny ficar com o rapaz metade do ano e a Heaven ficasse com ele a outra metade? - perguntou ela, sorrindo, como se tivesse encontrado uma solução óptima.

- Em primeiro lugar, ela nunca concordaria com uma coisa dessas. Está decidida a magoar-me de alguma maneira e escolheu este método. Já lhe disse... Ela sempre teve inveja de mim. Em segundo lugar, eu não conseguiria viver comigo mesma, sabendo que o Drake estaria sob a influência da Fannyi seis meses por ano. Levaria os outros seis meses a corrigir os estragos que ela teria feito. A Fanny até já o envenenou contra mim.

- Mas, tal como o Logan diz, ela provavelmente vai cansar-se de tomar conta dele, especialmente vindo uma criança dela a caminho. E se não houver promessas de muito dinheiro...

- Está fora de questão, Loretta - disse eu. Não queria chamar "mãe" a alguém que fizera uma sugestão daquelas. O sorriso desapareceu da cara dela como se eu lhe tivesse batido.

- Não está a pensar na sua própria família, no Logan e no seu próprio filho - advertiu ela, asperamente.

- O Drake é da minha família - respondi eu.

- Mas, minha querida - insistiu ela, inclinando-se para trás -, eu e a Heaven sabemos que não é.

Olhei para ela. Aparentemente, não havia nada que o Logan não lhe tivesse contado. Interroguei-me sobre se ele teria contado o que se passara entre mim e o Tony.

- O Drake também é da minha família - declarei, lentamente, com os olhos semicerrados, e o olhar directo e afiado como facas de aço. - Ofende-me que diga o contrário.

- Só estou a tentar ajudar - retorquiu ela. - Só estou a pensar no seu bem-estar.

- Muito obrigada, mãe - disse eu, sorrindo, com uma expressão cordial igualmente falsa. - Foi tão simpático da sua parte ter aparecido com este frio.

A falsa amabilidade rapidamente desapareceu dos seus olhos. A mão tremeu e ela quase deixou cair a chávena.

- Bem, acho que está a cometer um erro terrível ao avançar com isto, mas, se está decidida a fazê-lo, não há mais nada a dizer - concluiu ela, pousando a chávena com tanta força que quase a partiu. - Por favor - acrescentou, levantando-se. - Não diga ao Logan que vim cá aconselhá-la. Ele pediu-me que não o fizesse.

- Então porque é que veio? - indaguei eu, rapidamente.

- Às vezes uma mãe sabe o que é melhor para o filho... instintivamente - respondeu ela.

- É exactamente o que eu sinto, mãe - afirmei.

- Apesar de não ser a mãe do Drake, sei instintivamente o que é melhor para ele e, tal como a mãe dele, fazendo de certeza o que a mãe quereria, pretendo recuperá-lo. Espero que nos apoie durante este tempo de provação.

- Ah, claro, claro - retorquiu ela, rapidamente. - Meus pobres filhos... Claro.

Deu a volta à secretária para me beijar. Os lábios dela eram frios contra a minha pele.

- É só chamarem-me em qualquer altura, e eu vou logo ter convosco - prometeu ela.

Abanou a cabeça, suspirou e depois saiu.

Encostei-me e olhei pela janela. Devia estar mais quente, pensei, pois tinha começado a nevar; o meu coração, porém, continuava como se estivesse apanhado numa garra de gelo. Claro que me sentia assustada com o dia seguinte. Claro que estava preocupada com o futuro do meu próprio filho; contudo, não aguentava pensar no Drake a crescer e um dia a olhar para mim com os olhos do Luke, cheios de ressentimento semelhante. Queria tanto ganhar o amor dele e saber que ele gostava de mim como irmã. A Fanny pressentira o quanto eu o queria, e por isso tinha decidido tirar-mo.

Eu estava cansada de perder as pessoas de quem gostava.

- Não, Loretta - murmurei eu -, não há outra maneira. Este caminho cheio de dor e sofrimento terminou onde tudo começou... Nos Willies. E é assim que tinha de ser. De certeza, é assim que teria de ser.

Voltei-me para os papéis na secretária, decidida a estar preparada.

 

O JULGAMENTO

O tribunal estava tão recheado como o peru do dia de Acção de Graças, com tanta gente amontoada que parecia prestes a rebentar. Quase a chorar, a mãe do Logan contou-me que algumas pessoas de Winnerrow tinham chegado a planear fechar as lojas e a não trabalhar só para ir à audiência.

Esse-dia de Novembro trouxe-nos o primeiro dia de verdadeiro Inverno. Tinha nevado muito durante a manhã; um vento forte e cortante transformava os flocos de neve em dervixes selvagens. com aquele tempo agreste e forte, não pensei que muita gente se aventurasse a sair; contudo, parecia que a maior parte da cidade tinha vindo assistir ao espectáculo. Quando eu e o Logan entrámos com o Dr. Camden Lakewood, as pessoas puseram-se a olhar e a sussurrar umas para as outras, com vozes que pareciam folhas secas arrastadas pelo primeiro vento de Inverno. Tudo o que tivesse a ver connosco era alimento para as suas mandíbulas afiadas: a roupa que usávamos, as expressões faciais, e a nossa postura, à medida que avançávamos pelo corredor até aos nossos lugares em frente à secretária do juiz.

Tinha sido ideia do Dr. Camden Lakewood que criássemos imediatamente um contraste grande entre nós e a Fanny e o Randall; por isso, o Logan trazia um dos seus caros fatos azul-escuros e o sobretudo de lã. Eu trazia um vestido de lã azul-escuro, o meu conjunto de pulseira, colar e brincos de diamantes e o meu casaco de raposa prateada. Tinha o cabelo caído mas preso dos lados.

Os pais do Logan sentaram-se logo atrás de nós, a mãe dele com ar de quem está a conter a respiração. A cara já estava corada e tinha uma expressão inquieta. O pai sorria com afecto, e acenou-nos a dar coragem.

Os murmúrios da multidão aumentaram no momento em

que a Fanny, o Randall e o advogado, o Wendell Burton, entraram. Tinham-se casado duas semanas antes, numa cerimónia civil rápida. A Fanny entrou um pouco à frente deles, Trazia o seu belo cabelo negro apanhado num carrapito e usava brincos de prata compridos, que oscilavam dos seus lóbulos como pingentes de gelo. Fiquei surpreendida com a sua aparência elegante, com um casaco comprido de lã verde-escuro. Tinha uma capa separável, que abriu assim que entrou. Por baixo do casaco, trazia um vestido preto de lã de gola alta com mangas a três quartos. Não tinha mais jóias para além dos brincos.

O Randall trazia um sobretudo leve. O cabelo estava brilhante e molhado da neve e, apesar de parecer assustado e tenso, estava elegante e distinto no seu fato castanho-escuro. A Fanny olhou directamente para a multidão e sorriu. Acenou para algumas pessoas, que eu reconheci serem os Willies. Algumas sorriram e acenaram também; a maioria, porém, limitou-se a olhar com temor. O Randall puxou uma cadeira para a Fanny. Sentaram-se no lado oposto do tribunal. Senti os olhos da Fanny postos em mim, mas não olhei. Queria fazê-la desaparecer, que deixasse de existir. Seria esta a maneira de ela finalmente me baixar ao seu nível, espalhar as nossas vergonhas perante a cidade inteira? A Fanny tinha tanta inveja de mim, invejava-me e desprezava-me ainda e sempre e agora chegara o dia de ser ouvida, e eu sabia que ela não ia mostrar piedade. Eu nunca lhe tinha feito nada! Nada! Ela não queria que o Drake fosse filho dela, só me queria humilhar.

Quando o juiz, o Meritíssimo Bryon MacKensie, entrou no tribunal, todos se levantaram e calaram, com os homens dos Willies a segurar os chapéus nas mãos. O juiz espalhou as suas vestes pretas quando se sentou, com imensa elegância, e observou o vasto público. Pareceu ligeiramente surpreendido com o tamanho da multidão. Era um juiz altamente respeitado na zona, presidindo a muitos casos da sociedade e dando-se com senadores e políticos. Tratava-se de um homem alto e magro, com cabelo e olhos castanho-escuros.

Remexeu em alguns papéis que estavam na secretária durante um momento; depois pegou no martelo e bateu com ele sonoramente.

- Está aberta a sessão - proclamou.

Algumas pessoas tossiram nervosamente, mas, para além disso, ficou tudo silencioso como num velório.

- Espero que esta audiência corra de uma forma ordenada - começou ele. - O público não pode, repito, não pode fazer comentários, bater palmas, nem perturbar de qualquer outra maneira a apresentação dos factos e o interrogatório das testemunhas. Quem o fizer será obrigado a sair e correrá o risco de ser considerado desrespeitador do tribunal.

Olhou de novo para os papéis.

- Esta audiência destina-se à regulação do poder paternal de Drake Casteel. Mister e Mistress Logan Stonewall interpuseram uma acção para o tribunal lhes atribuir o poder paternal de Drake Casteel, que, segundo sabemos, está presentemente a cargo de Mister e Mistress Randall Wilcox.

"Doutor Lakewood, dado que foram os seus clientes que interpuseram a acção, peço-lhe para começar.

- Obrigado, Excelência - disse o Dr. Camden, levantando-se. - Nós acreditamos, Excelência, que os meus clientes, Mister e Mistress Stonewall, não só estão em melhores condições de oferecer a Drake Casteel um ambiente familiar adequado como, no caso de Mister e Mistress Randall Wilcox, o oposto também é verdade. Vamos provar que o ambiente em casa dos Wilcox é prejudicial em termos morais, e que os motivos de Mistress Wilcox para querer o poder paternal da criança não são no melhor interesse desta.

"Para isso, Excelência, gostaria de apresentar algumas testemunhas, que podem não só comprovar os nossos argumentos mas também provar a este venerando tribunal a superioridade das intenções e do ambiente familiar da minha cliente.

- Muito bem, doutor Lakewood - disse o juiz, mecanicamente -, pode chamar a sua primeira testemunha.

- Chamo Mister Peter Meeks, director da escola de Winnerrow.

Tal como focas treinadas, todas as cabeças do povo de Winnerrow se voltaram para Mr. Meeks, que se levantou rapidamente e avançou até ao banco das testemunhas, onde prestou juramento. Ele trazia uma pasta. O Dr. Camden Lakewood apoiou um cotovelo no banco quando Mr. Meeks se sentou.

- Diga, por favor, o seu nome e profissão para que conste da acta.

- Chamo-me Peter Meeks. Sou o director da escola de Winnerrow.

- E há quanto tempo ocupa esse cargo, Mister Meeks?

- Há quase vinte e oito anos - respondeu ele, com orgulho.

- Então era director da escola de Winnerrow quando Fanny e Heaven Casteel lá estudaram?

- Sim, era.

- Peço-lhe, Mister Meeks, para recordar esses anos e dar a sua avaliação das duas raparigas.

- bom - começou Mr. Meeks, acomodando-se mais confortavelmente na cadeira de madeira dura -, eu recordo-me muito bem delas, pois a família era uma das mais pobres dos montes e, infelizmente - disse ele, baixando a voz, como se estivesse a sussurrar um segredo ao juiz, como um rapazinho que quer que todos ouçam o seu segredo -, são estas famílias e os seus filhos que nos dão mais problemas de disciplina. Vêm para a escola mal alimentados, mal vestidos e não estão nada motivados para aprender.

- Por favor, vá directamente ao assunto, doutor Lakewood - disse o juiz.

- Sim, Excelência. Mister Meeks, como é que caracterizaria Fanny Casteel em comparação com o tipo de aluno que acabou de descrever?

- Oh, típica. Um problema constante de disciplina. As notas.

- Diz "típica", mas os problemas disciplinares dela eram típicos? - perguntou rapidamente o Dr. Camden.

- Bem, na verdade, não. Ela era o que nós chamamos uma rapariga promíscua.

- Continue, por favor.

- Ela era... constantemente repreendida por conduta imprópria para uma rapariguinha, especialmente com apenas doze, treze, catorze anos.

- Mister Meeks, não se importa de dar um exemplo da sua conduta a este venerando tribunal.

- Excelência - disse o Dr. Wendell Burton, levantando-se. - Oponho-me a esta linha de interrogatório. O que Mistress Wilcox foi quando era uma miúda não tem importância para este tribunal. Quase toda a gente nesta sala fez coisas más quando eram mais novos. Mas todos crescemos, modificámo-nos e amadurecemos, e estamos hoje aqui a falar de uma Mistress Wilcox madura e de uma Mistress Stonewall madura.

- Doutor Lakewood?

- Excelência, achamos que Fanny Wilcox não cresceu nem amadureceu, como o doutor Burton diz, e que, na verdade, ela é uma história contínua de promiscuidade.

- vou deixar a testemunha prosseguir - salientou o juiz -, mas previno-o, doutor Lakewood, que pretendo o desenvolvimento de uma história factual e não cheia de alusões.

- Compreendo, Excelência. Mister Meeks, um exemplo?

- bom... - Hesitou ele, e abriu a pasta. - Num dado dia de Março, no segundo ano do liceu, Fanny Casteel foi descoberta nos vestiários masculinos com dois rapazes. Ela estava seminua. Foi repreendida e mandada para casa mais cedo. Numa outra ocasião, mais para o fim do mesmo mês, foi descoberta com um rapaz mais velho no espaço por baixo do palco. A professora que os encontrou escreveu no seu relatório que eles estavam abraçados de uma maneira devassa. Foi mandada, mais uma vez, para casa.

- Que idade tinha ela nessa altura?

- Treze anos.

- Estou a ver. E tem outros exemplos?

- Pelo menos meia dúzia.

- Excelência, não desejo ser redundante nem fazer perder o tempo do venerando tribunal com a descrição de mais exemplos, mas gostaria de apresentar o dossier escolar de Fanny Casteel como prova, para o Meritíssimo Juiz examinar quando estiver a tomar a decisão.

- Aceite.

- Não tenho mais perguntas para Mister Meeks.

- Doutor Burton? - perguntou o juiz.

O Dr. Wendell Burton sorriu. Tinha uma cara melada, com grandes olhos azuis e lábios que se moviam como duas fitas de alcaçuz encarnado. Tinha um sinal protuberante mesmo por cima da sobrancelha direita. O cabelo estava penteado para trás, com a parte de cima lisa e dividida a poucos milímetros do meio. Media pouco mais de metro e meio e os ombros eram ligeiramente curvados. Reparei que tinha o hábito de esfregar as mãos uma na outra antes de falar.

- Mister Meeks - começou ele, sem sair da sua secretária -, presumo que também tenha trazido o dossier de Heaven Casteel.

- Não.

- Oh! E então porquê?

- Pediram-me apenas para trazer o de Fanny Casteel.

- Estou a ver. Mas, sabendo do que esta audiência ia tratar, presumo que tenha olhado para o dossier de Heaven Casteel.

Mr. Meeks mexeu-se na cadeira, olhou na minha direcção e novamente para o Dr. Wendell Burton.

- Realmente dei uma vista de olhos rápida para o caso de me fazerem perguntas relativas a esse dossier.

- Ah. Muito bem, muito bem - disse o Dr. Burton, dirigindo-se para ele. - Agora, não se importa de dizer ao tribunal o que descobriu quando olhava para esse dossier.

- Não estou a entender - respondeu Mr. Meeks, olhando para o juiz.

- Especialmente durante o último ano em Winnerrow. Como era a assiduidade dela, por exemplo?

- Sim?

- Não é verdade que ela esteve ausente a maior parte do tempo?

- Ausente?

- Mister Meeks - disse o juiz. - Por favor, responda à pergunta.

- Sim, suponho que sim.

- Ah, supõe que sim? - disse o Dr. Wendell, sorrindo abertamente para o público e voltando a olhar para Mr. Meeks. - É esse o comportamento de uma boa aluna?

- Não, mas...

- Não é a falta de assiduidade considerada um grave problema disciplinar?,

- com certeza.

- Apesar do seu comportamento imaturo na escóla, Fanny Casteel ao menos foi à escola mais vezes esse ano, se verificarmos os registos, não foi, Mister Meeks?

- À primeira vista, suponho que sim.

- Mister Meeks - insistiu o Dr. Wendell, subitamente com ar compreensivo. - Percebo como se deve sentir. Decidir se uma mulher adulta vai ser uma melhor mãe do que outra mulher adulta com base no liceu é tão válido como olhar para a bola de cristal de um adivinho, não é?

- Protesto, Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden.

- Está a pedir à testemunha que julgue o valor do seu próprio testemunho.

- Mas, Senhor Juiz, o doutor Lakewood tem passado o tempo a pedir para dar valor aos julgamentos de Mister Meeks.

- Não o vejo dessa forma, doutor Burton - disse o juiz.

- O doutor Lakewood apresentou factos. Não se preocupe, que eu sou a única pessoa aqui a julgar o valor das informações. Objecção aceite. Tem mais perguntas para esta testemunha, doutor Burton?

- Não, Senhor Juiz. Ah, sim... Mais uma - disse ele voltando-se subitamente. - Mister Meeks, recentemente Mistress Stonewall levou Drake Casteel à sua escola para o inscrever como aluno, não foi?

- Sim - respondeu Mr. Meeks, encostando-se, juntando as mãos como se estivesse a rezar.

- E o senhor inscreveu-o apesar de ele ainda não ter idade, não foi?

- Sim, mas...

- Por outras palavras, abriu uma excepção para agradar a Mister e a Mistress Stonewall?

- Não, não foi para lhes agradar. Podemos abrir excepções quando um futuro aluno parece excepcionalmente promissor.

- Estou a ver. Então, a posição e a influência de Mister e Mistress Stonewall na comunidade não tiveram nada a ver com a sua decisão?

- Protesto, Meritísimo Juiz!

- Nem o seu testemunho aqui hoje? - acrescentou o Dr. Wendell Burton, rapidamente.

- Excelência? - insistiu o Dr. Camden. Fiquei contente por verificar que ele conseguia ser tão agressivo quanto o Dr. Wendell Burton.

- Senhor Juiz, estou a tentar demonstrar que esta testemunha é uma testemunha preconceituosa - disse o Dr. Burton.

- Doutor Burton, já lhe expliquei que estou apenas interessado nos dados que Mister Meeks apresentou neste tribunal, e não com a sua avaliação subjectiva. Consequentemente, é inútil tentar provar os seus preconceitos relativamente a este assunto. bom, há mais alguma pergunta?

- Não, Excelência.

- Eu tenho mais uma pergunta, Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden.

- Continue.

- Mister Meeks, recentemente Mistress Stonewall voltou à escola de Winnerrow e trabalhou lá como professora. com base na sua avaliação objectiva como director dela, como é que classificaria o seu trabalho?

- Ela portou-se muito bem. Os alunos gostavam dela, conhecia bem a disciplina que leccionava e o pessoal aceitava-a bem.

- Então ela mantinha uma boa relação com as crianças?

- Ah, sim. Eles sentiram imenso a falta dela quando se foi embora e eu fiquei desapontado quando decidiu não voltar - disse Mr. Meeks.

Ouvir aquilo fez-me vir as lágrimas aos olhos e levou-me a recordar a tristeza que sentira ao desistir de leccionar para viver em Farthy. O Logan percebeu a minha tristeza e deu-me a mão por baixo da mesa.

- Obrigado. Não tenho mais perguntas, Excelência.

- Pode levantar-se, Mister Meeks.

- Excelência - disse o Dr. Camden -, chamamos o reverendo Wayland Wise.

Desta vez ouviu-se um ligeiro barulho no público, como se tivessem inspirado todos ao mesmo tempo. O reverendo Wise, que estava sentado nas últimas cadeiras do tribunal, começou a dirigir-se lentamente mas com firmeza para o banco das testemunhas. Nunca tivera uma expressão tão feroz e distinta. As pessoas sentadas ao pé do corredor inclinavam-se para trás como se ele estivesse a dividir o ar à medida que avançava, tal como Moisés dividiu o mar Vermelho. Até o juiz pareceu ficar impressionado. A voz do reverendo soou alta e firme quando prestou juramento. Não se limitou a pousar a mão na Bíblia. Ele agarrou-a. A sua cara estava séria, com um olhar tão intenso como quando estava na igreja, onde parecia olhar directamente para a cara do diabo e desafiá-lo com as suas palavras bíblicas.

Antevendo o testemunho dele, o meu coração começou a bater desordenadamente; porém, quando olhei para a cara da Fanny, esta parecia descontraída e à vontade. Murmurou qualquer coisa ao ouvido do advogado, e este sorriu e acenou com a cabeça, dando-lhe umas pancadinhas na mão. O Randall olhava em frente, quase sem expressão, até olhar para mim. Parecia um homem apanhado numa armadilha, pouco seguro do que estava a fazer ou porque estava ali sentado. Parecia que me queria pedir desculpa. A Fanny deu-lhe uma cotovelada e ele voltou-se rapidamente.

- Reverendo Wise, pode explicar ao tribunal em que circunstâncias acolheu Fanny Casteel na sua casa e a tratou como se fosse sua filha?

- O Senhor dá-nos a oportunidade de nos ajudarmos uns aos outros de muitas maneiras se os nossos corações assim nos encorajarem - começou o reverendo Wise. - Soube da situação difícil em que estava a família Casteel, crianças sem mãe e, por muito tempo, sem pai, a viverem numa cabana nos Willies, esfomeadas, geladas e sem cuidados de ninguém. Eu e a minha esposa discutimos a situação e decidimos levar pelo menos uma das crianças para nossa casa e cuidar dela como o Senhor tinha cuidado de nós - disse ele. Alguns dos paroquianos acenaram com a cabeça e sorriram com ar de aprovação.

- E assim levou Fanny Casteel para sua casa para ser sua filha. Até lhe deu o seu apelido e mudou o nome próprio, não foi?

- Foi sim, com satisfação.

- Por favor, descreva como era Fanny Casteel quando a levaram para a vossa casa.

- Ela estava muito grata, feliz por ali estar. Obviamente, comecei a ensinar-lhe os princípios da rectidão. Conhecia as condições em que ela vivera e como isso teria afectado a sua evolução moral.

- Registou progressos satisfatórios com Fanny? - perguntou o Dr. Camden. Os olhos negros e pequenos do reverendo Wise fixaram-se na Fanny e depois vaguearam pelo público.

- Ela era uma criança muito difícil, muito promíscua, como já foi mencionado. Senti que o diabo se tinha mesmo apoderado dela.

- Estou a ver. Então a conduta mencionada por Mister Meeks continuou, mesmo quando ela já estava numa boa casa, amada e estimada? Não é assim?

- O diabo é realmente um inimigo inteligente.

- Por favor, reverendo, responda à pergunta apenas com sim ou não.

- Sim.

- E, nessa altura, Fanny estava a tornar-se já uma mulher - disse o Dr. Camden. Fez uma pausa teatral. Podia ouvir-se uma mosca, tal a ansiedade de ouvir a verdade escandalosa. - Reverendo Wise, Fanny Casteel engravidou enquanto estava a morar na vossa casa?

Por um longo momento, o reverendo não falou. Inclinou a cabeça como que numa oração silenciosa. Então, muito lentamente, levantou os olhos, fixando-os no Dr. Camden Lakewood.

- Sim, engravidou.

- E o que é que resolveram fazer?

- Eu e a minha esposa, que não tínhamos filhos na altura, decidimos ficar com a criança, tal como tínhamos ficado com Fanny, e criá-la como nossa filha. Achámos que o Senhor nos tinha dado uma outra oportunidade e temo-nos sentido abençoados desde então - continuou ele. Houve um burburinho na sala, mas, quando o juiz bateu com o martelo, cessou imediatamente. Ninguém queria ser expulso e ter de perder o drama. - Fingimos que a criança era da minha esposa, mas foi apenas por boa intenção, para facilitar a vida à criança inocente. Queríamos que ela fosse aceite pela comunidade. Era a intenção do Senhor.

- Não estou aqui para julgar as suas razões, reverendo, mas ofereceu ou não ofereceu a Fanny Casteel dez mil dólares para ela assinar a desistência de todos os direitos à sua própria filha?

- Ofereci, mas a minha intenção não era comprar a criança. Eu e a minha esposa achámos que ela precisaria de dinheiro quando saiu da nossa casa para tratar do futuro dela.

- Mas nos documentos existe uma declaração ajuramentada de que a paternidade da criança seria escondida para sempre pela quantia de dez mil dólares, não é assim?

- Exacto.

- E Fanny Casteel vendeu a sua própria filha de vontade própria?

O reverendo limitou-se a acenar com a cabeça.

- Que fique registado que a resposta da testemunha foi afirmativa - disse o Dr. Camden. - Não tenho mais perguntas, Excelência.

O Dr. Camden tinha-me dito que a sua estratégia seria evitar embaraçar o reverendo, com a esperança de que o seu testemunho devastador implicaria que a Fanny dormia com todos, engravidara e vendera a sua criança. Ele esperava que a Fanny e o seu advogado não quisessem publicitar as verdadeiras circunstâncias, enquanto a sua moral estivesse a ser estabelecida. Mas eles estavam dispostos a correr riscos.

- Reverendo Wise - começou o Dr. Wendell Burton, levantando-se desta vez da cadeira como uma bala de canhão. - O seu único motivo para dar dez mil dólares a Fanny Casteel pela criança foi apenas o seu bem-estar?

- Não tenho a certeza de...

- Não foi e é, na verdade, o pai do primeiro filho de Fanny Casteel?

O silêncio caiu tão rapidamente na sala que parecia que o ar tinha sido retirado para criar um vácuo. Ninguém sequer se atreveu a tossir.

- Fui e sou - confessou ele, com a voz firme. Houve um bjarulho geral no público, mas desta vez o juiz não teve de bater com o martelo. Ninguém mais fez um som. Estavam todos muito atentos para não perderem uma palavra.

- Engravidou uma adolescente na sua própria casa, uma criança rural, confiante, que lhe tinha sido entregue para guardar moralmente? - continuou o Dr. Burton, inclinando-se para o reverendo.

- Doutor Burton, eu nunca fingi ser mais do que um homem comum, que o Senhor escolhera para divulgar a Sua palavra aos outros homens comuns. Fiz o melhor que sabia para mudar Fanny Casteel, mas não estava nas minhas mãos consegui-lo.

- Por isso seduziu uma rapariga de catorze anos? - atacou o Dr. Burton.

- Acredite-me, nenhum homem precisava de se dar ao trabalho de seduzir aquela rapariga promíscua. Aquela rapariga embruxada, pecadora... - prosseguiu ele, apontando para a Fanny, com o braço esticado como o braço de um profeta prestes a pronunciar as palavras de Deus. - Meteu-se na minha cama e, com o seu corpo nu e lascivo pressionado contra o meu, seduziu-me, pois, tal como lhe disse, sou apenas um homem de carne e osso - continuou ele, baixando o braço e depois a cabeça, abanando-a lentamente. - Infelizmente, vergonhosamente humano.

- Mas o facto é que o senhor era adulto e não a recusou! - insistiu Burton.

- Não, não a recusei - disse o reverendo, com o olhar novamente aguçado. - Mas nunca duvidei que o diabo estava nela e que através dela tinha encontrado uma maneira de penetrar na armadura da minha fé, pois a minha fé era ferir mortalmente o diabo em Winnerrow, como os meus paroquianos podem confirmar. Fiquei contente por a poder pôr fora da minha casa - disse ele. - E percebo porque é que o Senhor me instruiu para comprar a criança. Ele não queria esta criança educada na casa de tal mulher, uma mulher mantida firmemente nas garras do diabo.

- Por isso tentou uma rapariga com dez mil dólares para lhe vender a criança. E o que é que ela podia fazer além disso? Ela só tinha catorze anos - disse o Dr. Burton.

- Protesto, Excelência. O meu colega está a perguntar e a responder à sua própria pergunta.

- Aceite. Doutor Burton... Está a fazer a pergunta ao reverendo Wise?

- Não - disse o Dr. Burton, rapidamente. - Não tenho mais perguntas.

- Reverendo Wise, deixe-me pôr-lhe uma questão atacou o Dr. Camden imediatamente. - Havia outra opção para Fanny Casteel além de vender a criança?

- Claro. Ela podia tê-la conservado. Há a assistência social, há a caridade - respondeu ele, olhando para o público.

- Ela podia ter insistido para que eu a mantivesse a ela e à criança.

- A verdade é que ela não queria a criança, não é assim?

- Sim. Ela só queria o prazer, o prazer pecaminoso e não as responsabilidades.

- Não tenho mais perguntas, Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden.

O reverendo levantou-se. À medida que voltava para o fim da sala, manteve a cabeça bem erguida, com um olhar tão intenso como quando se aproximara do banco das testemunhas; pareceu-me, no entanto, ter visto uma expressão de alívio na sua cara, o começo de um sorriso. Ele tinha feito aquilo que desejara ao longo de todos aqueles anos, confessara o seu pecado e fê-lo de uma maneira que a sua congregação não hesitaria em perdoá-lo. Eu tinha a certeza de que a sua próxima homilia seria construída à volta da afirmação: "Eu vi o diabo e conheço o seu poder maléfico, mas vi o perdão do Senhor e sei que Ele é mais poderoso."

Quando me voltei para a Fanny, vi que ela já não estava a sorrir da mesma maneira como quando o reverendo se apresentara, O seu advogado estava inclinado para ela a murmurar-lhe ao ouvido, mas o que ele lhe dizia não a estava a fazer feliz. O Randall tinha a cabeça baixa e estava a brincar com um lápis. Apesar de tudo, não consegui deixar de ter pena daqueles dois. Ainda não sabiam, mas aquilo era apenas o começo. Fanny nunca devia ter duvidado do poder do dinheiro e da influência, pensei eu.

- Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden -, chamamos Mistress Peggy Sue Martin.

A Fanny olhou para cima penetrantemente e o seu advogado ficou com uma expressão confusa. Vi transparecer uma extrema preocupação na cara da Fanny. Tanto o Randall como o Dr. Wendell Burton estavam a perguntar-lhe quem era Mrs. Peggy Sue Martin, tal como a maior parte das pessoas no público perguntava entre si. O juiz bateu com o martelo e o público acalmou, enquanto Mrs. Peggy Sue Martin, uma mulher de quase sessenta anos, se sentou no banco das testemunhas.

Trazia uma imitação barata de estola de raposa, e tinha a cara muito maquilhada, quase tão maquilhada como a Jillian na sua loucura... com blush espalhado pela cara, bâton muito carregado e esborratado, e as pestanas com uma quantidade enorme de rimel azul-claro. O cabelo, pintado de amarelo-vivo, parecia ter-se transformado em palha. Apesar de ela o pentear para a frente e o enrolar, via-se que estava a perder cabelo. O vestido fino e cor de alfazema agarrava-se às ancas largas e a saia ficava entre os joelhos e os tornozelos. Tínhamos-lhe pago dois mil dólares mais as despesas de viagem para a trazer de Nashville.

Prestou rapidamente juramento e sentou-se, cruzando as pernas e sorrindo para o Dr, Camden quando ele se aproximou.

- Mistress Martin - começou ele -, diga por favor onde mora e o que faz.

- Moro em Nashville, onde tenho e dirijo uma meia dúzia de casas como senhoria.

- Mistress Martin, conhece Fanny Casteel?

- Sim, conheço. A Fanny veio para uma das minhas casas há alguns anos. Tinha vindo para Nashville tentar ser cantora, tal como centenas de outras raparigas - declarou ela, sorrindo para o juiz, mas este continuou sem qualquer expressão.

- Quando diz que ela veio para uma das suas casas, quer dizer arrendar um quarto?

- Exactamente.

- Ela tinha dinheiro para a renda?

- No princípio tinha. Depois começou a ter falta dele de vez em quando. Eu não sou impiedosa, mas só posso manter alguém por um determinado tempo. Tenho de ter rendimento. Tenho de me manter.

- Fanny Casteel não estava a ganhar dinheiro suficiente como cantora? - perguntou o Dr. Camden.

- Oh, Deus, não - respondeu ela, a rir. - Ela não cantava melhor do que eu.

- Então, a senhora despejou-a.

- Não.

- bom, então - disse o Dr. Camden, voltando-se lentamente para a Fanny e de novo para Mrs. Peggy Sue Martin -, o que é que ela fazia para arranjar o dinheiro que precisava para pagar a renda?

Mrs. Peggy Sue Martin mexeu-se na cadeira e puxou um bocadinho a sua imitação de raposa.

- Bem, eu não me meto no que se passa nas minhas casas. Não é da minha conta, desde que os inquilinos não partam nada e paguem a renda a horas.

- Sim?

- Bem, algumas mulheres entretém homens de vez em quando.

- E são pagas por isso? - perguntou o Dr. Camden.

- Sim. Eu não as encorajo - protestou ela, rapidamente, olhando para o juiz, mas ele continuou na mesma.

- Mistress Martin, será que não estamos a falar de prostituição?

- Estamos - respondeu ela, em voz baixa.

- Mistress Martin, não se importa de falar mais alto? pediu o juiz.

- Estamos - repetiu ela, mais alto.

- E sabe que, na verdade, Fanny Casteel ganhava ocasionalmente o dinheiro da renda dessa maneira?

- Sim - respondeu Mrs. Peggy Sue Martin. Recordei a viagem que fizera a Nashville, àquela casa em mau estado, com a pintura e as persianas a cair. Como tinha sido ingénua ao não perceber as coisas que ali se passavam. Devia ter percebido quando vi aquela bonita rapariga loira de calções e de top curto, com um cigarro no canto da boca, que aquelas coisas aconteciam.

A Fanny só tinha dezasseis anos na altura e estava completamente sozinha, quase sem dinheiro para comer. Eu estava tão preocupada com a Jillian e com o Tony e com a reacção deles se a Fanny aparecesse em Farthy que nem me apercebi do estado em que ela estava. Levei-a a comer e prometi mandar-lhe dinheiro; no entanto, não me apercebera do que lhe acontecera até então.

bom, agora estava tudo a vir ao de cima, a ser espalhado em cima da mesa como o conteúdo particular de uma gaveta privada, para todos verem, e era culpa dela. Eu tinha-a avisado, pensei eu, endurecendo-me contra ela. Não devia ter-me tirado o Drake.

- Não tenho mais perguntas, Excelência - disse o Dr. Camdert. Olhei para a Fanny. Ela tinha uma expressão de ódio, fitando-me como se me quisesse matar. Voltei a cara.

- Doutor Burton? - perguntou o juiz. O Dr. Wendell Burton trocou umas palavras com a Fanny e depois voltou-se para o juiz.

- Não tenho perguntas para esta testemunha, Excelência.

- Eu diria que o primeiro assalto terminou - disse o Dr. Camden Lakewood, sentando-se ao meu lado -, e que foi quase K. O.

- A sessão está suspensa - declarou o juiz, e bateu três vezes com o martelo.

 

MALDADE NO SOPÉ DOS MONTES

A informação mais escandalosa, o facto de o Logan ter engravidado a Fanny, ainda estava por mencionar, e o Dr. Camden Lakewood achava melhor, quando chamasse a Fanny para testemunhar, não o referir, mais uma vez com a esperança de ela e o advogado decidirem não ser vantajoso mencionar essa informação em tribunal.

Fiquei surpreendida com o ar fresco da Fanny, quando voltámos. Apesar do que só podia ter sido um momento degradante e desagradável para ela, parecia tão descontraído e confiante como um gato estendido ao pé de um buraco de rato. O Randall continuava silencioso e com um ar desconfortável; a Fanny, porém, ia ter com as pessoas, ria muito alto, distribuía apertos de mão e acenava. Claro que eu sabia que ela estava a representar para mim e para o Logan, olhando de vez em quando na nossa direcção para ver se estávamos a observá-la. Como ela continuava uma criança, pensei eu. Pura e simplesmente não percebia no que se metera quando levara o Drake.

A mãe do Logan parecia mais feliz. As amigas dela tinham-se juntado à sua volta, cacarejando como galinhas. Até agora, toda a informação dada era prejudicial para a Fanny e boa para nós. A Loretta também tinha esperanças de que agora a Fanny não quisesse revelar o seu incidente com o Logan. com as coisas a correrem-lhe tão mal, porque é que haveria de querer revelar mais situações desagradáveis?

E, claro, ela também tinha de pensar no Randall. O meu advogado referiu que, se ela o tivesse convencido a casar com ela, dizendo-lhe que estava à espera de um bebé dele, correria o risco de o perder ao afirmar que era do Logan. No entanto, o que eu temia era que o Randall não fosse tão importante para ela como o facto de me magoar e de me tirar o Drake.

Durante o intervalo, os pais de muitos dos meus antigos alunos e muitos membros da comunidade de negócios de Winnerrow vieram ter connosco para nos desejar boa sorte. Tal como eu esperava, a maioria das pessoas achava que o reverendo Wise tinha sido muito corajoso ao confessar o seu pecado numa reunião pública. Desafiara o diabo cara a cara, e o diabo tinha recuado. Durante o intervalo, ele tinha ficado a um canto, rodeado pelos seus paroquianos devotos a ouvi-lo recitar passagens da Bíblia que ele achava ajustarem-se à situação.

Quando voltámos para os nossos lugares, apanhei-o a olhar para mim. Estava com uma expressão de auto-satisfação. Ao ir ter com ele há muitos anos para discutir o regresso da filha da Fanny, ameaçara expor o facto na sua própria igreja. Na altura, avisara-me de que os seus seguidores nunca se voltariam contra ele.

Depois do resumo da audiência, o Dr. Camden Lakewood apresentou alguns documentos financeiros como prova, documentos declarando-me a mim e ao Logan testamenteiros dos bens do Drake. Depois chamou a Fanny para depôr.

Levantou-se da cadeira e arranjou o cabelo, sorriu para lo Randall e avançou até ao banco das testemunhas como se estivesse a entrar em palco. Mantinha um sorriso na cara, parecia que estava a usar uma máscara. Então, parou deliberàdamente ao pé da nossa mesa e olhou para mim.

- Imagino como deves estar satisfeita, Heaven - lançou ela. - Mas não vai ser por muito tempo.

Eu abanei a cabeça e olhei para outro lado.

Quando lhe perguntaram se ela ia dizer toda a verdade e só a verdade, respondeu "claro que vou". Ouviram-se algumas risadas no público.

- Mistress Wilcox - começou o Dr. Camden -, segundo sei, tornou-se apenas recentemente Mistress Wilcox. Há quanto tempo foi isso?

- Eu e o Randall amarrámo-nos há dois dias. Fomos a Hadleyville e um padre casou-nos como deve ser.

- Estou a perceber. Há quanto tempo conhece Mister Wilcox?

- Já há bastante tempo - respondeu ela, sorrindo-me.

- Ora bem, Mistress Wilcox, isto não foi apenas um casamento de conveniência, pois não? - perguntou o Dr. Camden.

- Há?

- Protesto, Excelência - disse o Dr. Wendell. - Oponho-me a essa sugestão. Não há provas...

- É isso que queremos determinar, Meritíssimo Juiz disse o Dr. Camden, calmamente. O juiz pensou por um bocado e depois acenou com a cabeça.

- Rejeitado. Acho que a pergunta é legítima e gostaria de ouvir a resposta de Mistress Wilcox. Mister Wilcox?

- Sim, Senhor Juiz?

- Pode responder à pergunta.

- Qual pergunta?

- Eu repito a pergunta - disse o Dr. Camden. - Casou-se com Mister Randall Wilcox só para fingir ter um bom lar para o Drake?

- Bem... - hesitou ela, olhando para o Dr. Wendell, que abanou a cabeça rapidamente. O Dr. Camden Lakewood percebeu o olhar e o movimento, e pôs-se entre a Fanny e o advogado, bloqueando a visão deste. - Está a perguntar-me se este casamento é a fingir só para conseguir que o juiz me dê o Drake - repetiu ela, obviamente recordando-se do que o Dr. Wendell Burton lhe tinha dito que lhe podiam perguntar. - Bem, não é. O Randall gosta de mim e eu gosto dele, e achámos que estava na altura de dar o nó. E temos um bom lar. Pode-se ter um bom lar sem ser rico como a Heaven, não pode?

Algumas pessoas do público concordaram silenciosamente com a cabeça.

- Já foi casada, não foi, Mistress Wilcox? - perguntou o Dr. Camden, ignorando friamente a sua explosão.

- Hum, hum. Casei com o velho Mallory.

- Velho Mallory! Deduzo que o seu primeiro marido fosse bastante mais velho do que a senhora?

- Ah, sim, cerca de quarenta anos.

- Era quarenta anos mais velho do que a senhora?

- Hum, hum...

- Também estava apaixonada por ele?

- Ele gostava de mim e queria tomar conta de mim, e por isso casei com ele. Não era tão velha como sou agora nem tão sensata, nem tinha uma data de peritos a dizer-me o que fazer, como algumas pessoas - acrescentou ela, olhando para mim.

- Porque é que se divorciou?

Olhou mais uma vez na direcção do advogado, mas o Dr. Camden continuou a tapá-lo.

- Já não nos dávamos bem - respondeu ela.

- Não é verdade que se divorciou porque ele queria filhos e a senhora não? - perguntou o Dr. Camden, rapidamente. Ela teve um sobressalto.

- Não - disse ela.

- Não foi o que disse às pessoas, pessoas que podemos chamar a depor se for preciso?

Ela olhou para baixo e depois para cima, fixando os olhos em mim. Eu não mudei de expressão. Tinha-lhe dito que usaria tudo contra ela.

- Eu não quis ter filhos com ele porque ele era muito velho. Quer dizer, o que é que acontecia se ele morresse, ha? - comentou ela, voltando-se para o juiz. - Ficava com filhos, sem marido e depois quem quer casar comigo com crianças atrás. Por isso, disse-lhe que não e tivemos uma discussão. Depois divorciámo-nos e depois ele morreu e não me deixou nada. Eu tinha razão.

- Mas já tem antecedentes de não querer filhos, Mistress Wilcox. Não é verdade?

- Não, não é - disse ela. - Olhe, não vou ter agora o meu próprio filho? - acrescentou ela, espetando o polegar na barriga.

- E só se casou há dois dias? - perguntou o Dr. Camden calmamente e olhando para o juiz.

- Já lhe disse isso - respondeu ela. - Não se lembra? perguntou, e o público riu-se. O juiz bateu com o martelo.

- bom, Mistress Wilcox, pode explicar ao tribunal como é que passou a ter o Drake Casteel na sua casa?

- O que é que é dizer, passei a ter? Apanhei-o e levei-o para lá.

- Apanhou-o? Apanhou-o onde?

- No exterior da fábrica dos Willies, na festa. Vi-o ali sozinho enquanto a Heaven e o Logan se divertiam e mostravam a fábrica nova. Por isso, fui até lá e disse-lhe que devia vir comigo. Ele entrou no meu carro e eu levei-o para onde ele pertence.

- Apanhou-o simplesmente na rua sem dizer nada a ninguém?

- Não tinha que dizer. Ele é meu irmão.

- Mas não pensou que alguém, especialmente Mister e Mistress Stonewall, ficariam preocupados com o desaparecimento do rapazinho?

- Bem, eles não estavam preocupados com o que eu pensava - respondeu ela, voltando-se para o Logan e para mim, com os olhos a faiscar. - Nunca pediram a minha autorização nem nada, levaram ele para aquele castelo perto de Boston e depois para a casa grande deles aqui em Winnerrow. Bem, o papá havia de querer que eu fosse a mãe dele e não a Heaven. Ele não gostava tanto da Heaven como gostava de mim, e ela sabe isso. Ela sabe que ele havia de querer o Drake comigo. Tu sabes que eu estou a dizer a verdade, Heaven - acrescentou ela, olhando para mim.

Eu sempre acreditara que o meu pai gostava mais dela, pensei eu, mas, de alguma maneira, sempre soube que ele tinha mais confiança em mim. Sabia que eu tinha o sentido das responsabilidades e sabia que a Fanny era mimada e egoísta. Não, pensei eu, se o Luke pudesse cá estar, voltado do túmulo para testemunhar, acho que diria que queria o Drake comigo. No fim de contas, ele é que me tinha nomeado testamenteira do seu espólio. Tinha a certeza de que ele quereria que fosse eu a deter o poder paternal do Drake.

- Mas a senhora ao menos sabia onde ele estava, Mistress Wilcox. Não terá sido muito irresponsável o que fez? Levar uma criança sem dizer nada a ninguém? Chegaram a pôr a Polícia à procura dele. E, dado que tinha o rapaz na sua casa, porque é que não lhes telefonou a avisar?

- Já lhe disse - insistiu ela. - Eles nunca me telefonaram a dizer nada. Nem sequer me telefonaram a dizer que estavam em Winnerrow.

- Mesmo assim, Mistress Wilcox...

- Era a coisa certa a fazer - repetiu ela, acenando com a cabeça. - A Heaven acha que pode fazer tudo só porque é tão rica. Pois eu não quero saber da riqueza dela. O Drake pertence-me.

O ódio que a Fanny tinha por mim era suficientemente claro para todos perceberem. Senti-me envergonhada e magoada.

- Não tenho mais perguntas, Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden.

O Dr. Wendell Burton levantou-se, mas, desta vez, quando se aproximou do banco, ia de mãos atrás das costas. Parou a meio do caminho entre a Fanny e a nossa mesa e voltou-se, para conseguir ver ambas. Então rodou uma vez nos calcanhares e eu percebi o que ia acontecer. O meu coração parou de bater por um segundo e depois começou a bater desordenadamente.

- Mistress Wilcox, o bebé que carrega. De quem é?

- É dele - respondeu ela, apontando para o Logan.

- Ele engravidou-me!

Ouvi o grito sufocado da mãe do Logan. A multidão explodiu numa exclamação. Olhei rapidamente para o Randall e vi a expressão de espanto na sua cara. O que eu suspeitara era verdade. Ele começou a levantar-se, mas o Dr. Wendell Burton, que tinha voltado rapidamente para o seu lugar, agarrou-lhe o braço e disse-lhe qualquer coisa que o fez voltar a sentar. Talvez lhe tivesse dito que a Fanny estava a mentir só para conseguir o Drake. O juiz bateu repetidamente com o martelo, com o rosto encarnado de fúria.

- Eu já avisei! - exclamou. - Se ocorrer outra situação destas, mando evacuar a sala. Continue, doutor Burton disse ele. O Dr. Wendell disse qualquer coisa ao Randall e depois voltou-se para a Fanny.

- Mistress Wilcox, apontou para Mister Stonewall, o marido da sua irmã?

- Sim, apontei. E não podes negá-lo, Logan Stonewall! - exclamou ela. - Tens-me andado a pagar para tomar conta dele e o teu último pagamento está atrasado.

O Logan olhou para mim; eu, porém, não mudei de expressão, embora estivesse a chorar por dentro. Senti como se a Fanny tivesse espetado o seu dedo no meu coração, quando apontara para o Logan. Eu não desviei o olhar nem olhei para baixo. Sabia que todas as pessoas no tribunal estavam a olhar para mim, observando a minha reacção. A maior parte delas devia julgar que era a primeira vez que eu ouvia esta informação. Aparentemente, tal como o Dr. Camden Lakewood receara, o Dr. Wendell Burton achara que a credibilidade moral da sua cliente tinha ficado tão destruída que tinha de fazer alguma coisa para nos destruir a nós.

- Mistress Wilcox, foi aqui referido que a senhora se casou há dois dias. Por acaso, o seu marido, Mister Randall Wilcox, sabia que Mister Logan Stonewall a tinha engravidado e que estava a mandar dinheiro para ajudar a pagar as despesas?

- Sim, sabia. O Randall é um verdadeiro cavalheiro. Ele ama-me e está farto de ver os ricos e poderosos abusarem de mim - respondeu ela, recitando de uma forma tão mecânica que era perfeitamente claro para mim que o advogado dela a tinha feito decorar a deixa. Parecia tão orgulhosa como uma rapariguinha numa peça da escola.

No entanto, era óbvio que eles tinham deixado o inocente e ingénuo Randall Wilcox de fora. Parecia completamente perplexo.

- Portanto, ele queria que o seu bebé tivesse um pai e que todos tivessem um lar como deve ser? - perguntou o Dr. Wendell, fazendo a pergunta mais como uma conclusão.

- Hum, hum.

O Dr. Camden Lakewood inclinou-se para nós.

- vou ter de chamar Mister Logan para depor - murmurou ele -, e pô-lo a contar a sua versão da história.

- Eu compreendo - disse o Logan. - Tenho muita pena, Heaven. Tenho mesmo.

- Eu sei. Vamos fazer apenas aquilo que tem de ser feito e acabar com isto depressa - retorqui eu, rapidamente.

- bom, Mistress Wilcox - continuou o Dr. Wendell, com o seu sorriso melado cada vez mais aberto -, ouviu algumas acusações muito más sobre o seu carácter moral. Acho que é apenas justo e correcto ouvir o seu lado. Como é que foi viver com o reverendo Wise?

- O meu papá vendeu-nos a todos, quinhentos dólares cada um. O reverendo Wise comprou-me.

- Como um escravo ou assim, o reverendo comprou-a por quinhentos dólares? - perguntou o Dr. Wendell Burton, abrindo os olhos e fixando o público. - O homem que a acusou de ser um peão do diabo?

- Sim, senhor, comprou.

- E pode descrever brevemente ao tribunal como era viver em casa do reverendo?

- No princípio era bom. Eles compravam-me coisas e o reverendo falava da Bíblia e dessas coisas, mas depois começou a ficar estranho.

- Começou a ficar estranho? O que é que quer dizer com isso, Mistress Wilcox?

- Ele vinha ao meu quarto depois da mulher estar a dormir, sentava-se na minha cama e falava comigo e acariciava o meu cabelo, e depois começou a acariciar outras coisas.

- Estou a ver. E que idade tinha na altura?

- Cerca de catorze.

- Cerca de catorze. E depois, sem entrar em pormenores escabrosos, ficou grávida dele, não é verdade?

- É, sim. Mas eu não fui ao quarto como ele diz e meti-me ao lado dele nua. Ele veio ao meu quarto. Eu não queria ter uma criança. Eu era muito nova e tinha medo, mas não tinha família, ninguém que me ajudasse. Ninguém com quem falar. Por isso, quando ele me ofereceu dez mil dólares pela criança, eu concordei. Mas depois quis o meu bebé de volta.

- Ah, sim? Diz que quis o seu bebé de volta? Conte-nos isso - pediu o Dr. Wendell Burton, mais uma vez a balançar-se nos calcanhares e voltando-se para o público.

- A minha irmã rica veio ver-me a Nashville e eu implorei-lhe que me comprasse o bebé de volta, para dar ao reverendo o dobro do dinheiro. Não teria feito problema para ela oferecer-lhe dinheiro. Haviam de ver quanto trazia na carteira.

- E ela fez isso?

- Não, não fez. Ela não queria que eu fosse mãe e que tivesse uma criança. Ela não queria ter nada a ver comigo. Mandava-me dinheiro de vez em quando, mas eu não podia ir viver com ela porque os seus familiares ricos ficariam enojados por ver uma pessoa tão pobre como eu - declarou a Fanny, e tirou um lenço da manga para limpar os olhos.

- Estou a ver. E então casou com Mister Mallory, que queria tomar conta de si, mas não via futuro nesse casamento.

- Pois não, ele era demasiado velho, como já disse.

- Por isso divorciou-se e veio viver aqui, onde estabeleceu a sua casa e se casou?

- Sim, foi isso.

- Obrigado, Mistress Wilcox. É muito diferente da versão que ouvimos há bocado. Não tenho mais perguntas, Excelência.

- Pode voltar para o lugar, Mistress Wilcox - disse o juiz, quando ela não se mexeu.

Ela olhou para cima, com lágrimas a correrem-lhe cara abaixo, parecendo uma vítima. Por momentos, até eu pensei que ela talvez fosse. Tal como nós, crianças Casteel, ela passara a vergonha de ser vendida. A Fanny agira como se estivesse muito contente com aquilo na altura, mas era provavelmente por pensar que seria amada e apreciada como ela sempre esperara ser. Depois, o reverendo tinha-a violado. Eu nunca duvidara disso. Ela tivera realmente uma vida difícil. Eu conseguia compreender as coisas que tinha feito em Nashville, e porque é que ela casara com o velho Mallory e depois se divorciara. Talvez tivesse sido demasiado egoísta, pensei eu. Talvez devesse ter conseguido recuperar a filha dela. Talvez a responsabilidade de uma criança a tivesse mudado.

Contudo, ela tinha-me atacado da maneira mais dolorosa que conseguira. Havia seduzido o meu marido e agora estava a tentar tirar-me o Drake, não porque o quisesse mas para me castigar. Tinha de afastar os meus sentimentos de culpa e tornei-me novamente mais dura em relação a ela. O futuro do Drake dependia disso.

- Chamo Mister Logan Stonewall como testemunha disse o Dr. Camden. O Logan levantou-se. Ouviu-se um burburinho na assistência, mas os olhos do juiz MacKensie foram suficientes para acabar com as conversas. A mãe do Logan soluçou uma vez atrás de nós, mas ambos a ignorámos. Apertei-lhe a mão por um instante e, então, ele dirigiu-se para o banco.

O Logan parecia tão nervoso como um rapazinho. Vi o tremor da mão dele quando a pousou na Bíblia, e a voz dele vacilou quando disse: "Juro!" Olhou novamente para mim enquanto se sentava, e eu sorri-lhe, para o encorajar e apoiar.

- Mister Stonewall - começou o Dr. Camden Lakewood -, acabou de ouvir o depoimento de Mistress Wilcox, em que ela o acusa de ser o pai da criança que ela carrega. É mesmo o pai desta criança?

- Não sei. Talvez - respondeu o Logan.

- Então admite ter tido relações íntimas com Mistress Wilcox?

- Sim - disse o Logan.

Mais uma vez ouviu-se uma exclamação do público, mas o martelo rápido do juiz depressa acabou com aquilo.

- Pode descrever as circunstâncias em que isso ocorreu?

- Sim, posso - afirmou o Logan, endireitando-se na cadeira e assumindo uma posição de controlo. A sua voz ficou mais forte e ele falou mais alto e com maior autoridade.

- A minha cunhada costumava aparecer muitas vezes na fábrica, em Winnerrow. Parecia não ter mais nada que fazer nem ninguém com quem conversar. Sempre que lá ia, trazia-me coisas para comer ou contava-me como era difícil viver sozinha, sem família perto. Eu estava na nossa cabana nos Willies, e comecei a ter pena dela. Uma noite, apareceu com vinho e comida. Preparou-me o jantar. Bebemos muito e ela fartou-se de chorar. Quando dei por mim, ela estava a despir-se e agarrou-se a mim. Nós... Acabámos na cama juntos. Eu estava bêbado e arrependi-me imediatamente.

- Esteve com ela em termos íntimos mais alguma vez?

- Não, nunca mais.

- Só aquela noite? - Sim.

- E depois o senhor e a sua esposa foram informados de que ela estava grávida de si?

- Sim. E eu expliquei tudo à minha esposa - disse o Logan, olhando para mim. - Ela compreendeu e perdoou-me, e eu amo-a ainda mais por isso - acrescentou.

As lágrimas vieram-me aos olhos, mas eu nem as limpei.

Não ia dar a ninguém a satisfação de me ver desfeita em lágrimas por causa das acções da Fanny. Sentei-me ainda mais direita.

A Fanny estava a olhar para mim. O leve sorriso que ostentava desapareceu e foi substituído por uma expressão de surpresa e estupefacção. Como ela gostaria de me ver desfeita, pensei eu. Tudo isto, tudo o que ela fizera era simplesmente para que isso acontecesse. A inveja vivera dentro dela como um parasita durante todos aqueles anos, alimentando-se e crescendo cada vez mais, mais desprezível, mais forte, até a encher por completo. Será que algum dia a Fanny acordaria e se arrependeria do que fizera?, pensei eu.

- Então, Mister Stonewall, nunca pôs em causa ser ou não o pai da criança - continuou o Dr. Camden -, apesar de saber que Fanny Casteel tinha outros namorados?

- Protesto, Excelência. O doutor Lakewood está a fazer uma insinuação óbvia sobre o carácter de Mistress Wilcox.

- Acho que vou deferir o protesto, doutor Lakewood Ainda não foi estabelecido se Mistress Wilcox tinha outros namorados na altura, com quem mantivesse relações íntimas.

- Muito bem, Meritíssimo Juiz. Eu reformulo a pergunta. Mister Stonewall, sabia se na realidade Mistress Wilcox tinha outros namorados na altura em que o ia visitar à fábrica?

- Eu sabia que ela andava com Mister Wilcox regularmente.

- Estou a ver. Sabendo isso, mesmo assim, começou a enviar-lhe dinheiro para cobrir as despesas médicas e para o nascimento da criança?

- Sim, começámos.

- E, mesmo sem ter a certeza da sua responsabilidade, fez o que era melhor para Mistress Fanny Wilcox e para a criança que vai nascer?

- Sim.

- Não tenho mais perguntas, Senhor Juiz.

- Doutor Burton?

- Mister Stonewall - começou ele, mesmo antes de se levantar. - Diz que tinha a certeza que Mistress Wilcox andava com Mister Wilcox na altura que fez amor com ela na cabana?

- Sim.

- Tem a certeza que Mistress Wilcox dormia com Mistress.

Wilcox na altura?

- Sim.

- Bom, não andava a espiar Mistress Wilcox. Ou andava?

Ouviram-se algumas risadas na assistência. A cara do Logan ficou encarnada como um tomate.

- Claro que não.

- Mistress Wilcox disse-lhe que tinha dormido com Mister Wilcox?

- Não.

- Mister Wilcox disse-lhe que dormira com Mistress Wilcox na altura?

- Não.

- Portanto, não tem informação factual que o leve a assumir que a criança que Mistress Wilcox carrega não é sua, pois não?

- Suponho que não.

- Então não está a mandar dinheiro a Mistress Wilcox para o bebé apenas por caridade ou sentido de responsabilidade cívica, pois não, Mister Stonewall?

- Protesto, Meritíssimo Juiz - disse o Dr. Camden.

- Mister Stonewall já testemunhou a razão pela qual ele e Mistress Stonewall enviaram dinheiro a Mistress Wilcox.

- Não acho que tenha sido estabelecido o pleno sentido de culpa, Excelência - protestou o Dr. Wendell.

- Acho que já percebemos, doutor Burton - respondeu o juiz. - Vamos avançar com as perguntas. Deferido.

- Não são necessárias mais perguntas, Senhor Juiz - retorquiu o Dr. Burton, sorrindo abertamente.

O Logan olhou em volta como alguém que tivesse sido atingido na cabeça com força. Depois, fixou-me e eu sorri-lhe e acenei-lhe com a cabeça. Levantou-se do banco e voltou para o pé de mim. Estiquei-me para ele e ele deu-me um beijo na cara. Não olhei para a Fanny, mas sabia que ela devia estar a ferver por dentro.

- Chamamos Mister Randall Wilcox como testemunha declarou o Dr. Camden rapidamente.

O Randall olhou para cima bruscamente, voltou-se para mim e depois levantou-se com lentidão. A Fanny disse-lhe qualquer coisa, mas ele não pareceu ter ouvido. Parecia perturbado e mal se ouviu o seu juramento.

- Mister Wilcox - começou o Dr. Camden, depois de ele ter prestado juramento -, quando é que soube que a sua esposa estava grávida?

- Há alguns meses - respondeu o Randall, em voz baixa. O juiz pediu-lhe para repetir e ele falou mais alto.

- Foi nessa altura que a pediu em casamento?

O Randall não respondeu. Olhou para a Fanny e depois novamente para baixo.

- Mister Wilcox?

- Por favor, responda à pergunta - ordenou o juiz.

- Sim.

- Só depois de lhe terem dito que ela estava grávida - repetiu o Dr. Camden, enfatizando o pormenor. O Randall confirmou com a cabeça. - Quis casar com ela nessa altura porque acreditava que o bebé era seu?

O Randall olhou para cima bruscamente.

- Sentiu que tinha de fazer a coisa certa para ela, não foi, Mister Wilcox? - insistiu o Dr. Camden, parecendo que só nessa altura se tinha apercebido daquilo.

- Eu...

- Mentiram-lhe, não foi? - continuou o Dr. Camden.

- E não teria casado com ela de outra maneira, pois não? Pois não?

- Não é isso. A Fanny já passou por muito na vida - respondeu ele, olhando para ela. Compreendia pela exprersão dele que sentia aquilo que dizia, que tinha mesmo pena dela. - Muito do que ela fez é compreensível.

- Mas ela disse-lhe que era o pai da criança, não disse?

- Sim.

- E agora está a dizer que Mister Stonewall é que é o pai. Está a mentir agora ou mentiu-lhe a si?

O Randall não respondeu.

- Eu sei que não pode responder a isto, Mister Wilcox. Mister Wilcox, porque é que não casou com ela antes de ela lhe dizer que estava grávida?

- Porque não estava preparado para casar.

- E há dois dias já estava?

- Sim.

- E em que é que as circunstâncias mudaram, Mister Wilcox?

- Eu desisti da universidade e arranjei um emprego em Winnerrow.

- Trabalhando como cozinheiro de comida rápida?

- Sim.

- Os seus pais estão preocupados, não estão?

- Protesto, Senhor Juiz. Mister Wilcox não está em julgamento. As suas relações familiares são...

- Meritíssimo Juiz, estou a tentar estabelecer o ambiente caseiro dos Wilcox, um ambiente onde o Drake Casteel poderá vir a viver.

- Rejeitado.

- Deixou uma educação universitária dispendiosa com a perspectiva de uma carreira promissora no futuro para se casar, não foi, Mister Wilcox?

Os olhos do Randall encheram-se de lágrimas, olhou para a assistência na direcção dos pais.

- Sim.

- Mister Wilcox, pergunto-lhe se não será possível que a Fanny Casteel o tenha usado e lhe tenha mentido sobre a gravidez, só para conseguir que casasse com ela e vir para esta audiência como uma mulher casada?

O Randall limitou-se a olhar em frente.

- Por favor, responda à pergunta, Mister Wilcox. O Randall sacudiu a cabeça.

- Mister Wilcox?

- Talvez - respondeu ele, e o público desatou novamente a conversar em voz alta. O juiz bateu com o martelo.

- Não tenho mais perguntas, Senhor Juiz - disse o Dr. Camden, e voltou para a nossa mesa sorrindo abertamente.

- Doutor Burton? - perguntou o juiz. O Dr. Wendell Burton sorriu afectadamente.

- Não tenho perguntas, Senhor Juiz - disse ele.

O Randall levantou-se e começou a andar para a mesa da Fanny, mas então voltou-se e saiu da sala do tribunal.

- A sessão fica encerrada por hoje - disse o juiz MacKensie -, e recomeçaremos amanhã, às nove e trinta.

Bateu com o martelo e levantou-se. No momento em que o fez, a multidão desatou num alvoroço. As bisbilhoteiras da cidade tinham tantas novidades para comentar pelo telefone e nas casas umas das outras! Nem queriam acreditar na sorte que tinham tido.

- Amanhã a esta hora já o Drake estará na vossa casa - garantiu o Dr. Camden Lakewood. Olhei para o outro lado da sala e vi a Fanny e o Dr. Wendell Burton a sair a correr por uma porta lateral. Quando olhei para a multidão, vi muitas pessoas a sorrirem para nós. Até a Loretta Stonewall parecia ter ultrapassado a sua crise e aceitava alegremente a compaixão das amigas.

- Telefono-lhe mais logo para combinarmos uma hora para revermos o seu depoimento de amanhã - declarou o Dr. Camden. - Isso deve mesmo arrumar o assunto acrescentou.

- Fez um óptimo trabalho - comentou o Logan e apertaram as mãos antes de sairmos.

O nevão tinha acalmado consideravelmente durante a audiência. O Sol até espreitava por entre algumas nuvens, tornando o mundo estonteante, pela maneira como se reflectia na neve. O Logan abraçou-me enquanto nos dirigíamos para o carro.

- Bem - disse ele -, o pior já passou.

- Espero bem que sim - respondi eu. - Mais pelo Drake do que por mim.

- Parece que tinhas razão em contratar o doutor Lakewood. Nota-se a qualidade e a experiência.

Entrámos no carro e arrancámos. Enquanto nos afastávamos, olhei para trás e vi a Fanny a falar com o Randall. Ela gesticulava imenso, com pequenas nuvens de respiração a saírem-lhe da boca como o fumo da chaminé do Velho Fumegante, o fogão a carvão da nossa cabana dos Willies.

"Quando algo malévolo começa a rolar, é difícil fazê-lo abrandar", costumava dizer a minha avó. O mal é como uma pedra grande a rolar colina abaixo, ganhando velocidade e força em cada volta. Se não o pararmos de início, só nos podemos afastar e esperar que lhe acabe a energia. Teria o mal que atirara as crianças Casteel por este mundo ficado sem energia? Eu só podia ter esperança de que o que fizéramos hoje em tribunal ajudasse a abrandá-lo.

Naquela noite, quando eu e o Logan fomos para a cama, ele tomou-me nos seus braços e beijou-me.

- Estava tão preocupado contigo hoje - afirmou. Acariciou-me suavemente o cabelo e beijou-me novamemte.

- Vamos sair disto mais fortes do que nunca. Vais ver. Estás nervosa por amanhã?

- Estaria a mentir se dissesse que não.

- vou estar sempre do teu lado como tu estiveste do meu. Se te sentires perturbada, só tens de olhar para mim.

- Oh, Logan, amas-me mesmo como me amavas quando éramos novos, em Winnerrow, não amas?

O sorriso desapareceu-lhe da cara e ele ficou com um ar muito sério.

- Mais, porque aprendi como és importante para mim. Na altura era apenas um amor de criança. Agora é o amor maduro de um homem. Preciso de ti, Heaven, não sou nada sem ti.

- Oh, Logan! - exclamei eu.

Ele beijou a primeira lágrima assim que esta aflorou à minha face e depois abraçou-me e beijou-me mais apaixonadamente até nos desejarmos um ao outro. Por estar grávida, fizemos amor gentilmente mas cheios de fulgor. O nosso êxtase sexual levou-nos para longe da dor e da angústia do momento. Passámos para um mundo sem lágrimas onde nos podíamos amar com pureza e totalmente, sem medo da escuridão ou da luz. Os seus lábios nos meus seios, a sua boca contra a minha, o seu corpo encostado ao meu afastou as recordações de infelicidade. Corri para ele ansiosamente, como uma pessoa no deserto desejosa de um oásis.

- Heaven, minha Heaven - murmurou ele. - Vai haver muitos momentos como este. vou estar cá sempre para ti, sempre.

As minhas lágrimas eram agora de felicidade e esperança. Éramos como dois miúdos a descobrirem-se um ao outro e a descobrirem como o amor entre um homem e uma mulher podia ser maravilhoso. Depois, adormecemos nos braços um do outro, deslizando suavemente para o calor que se seguiu.

Quando o telefone tocou, arrancou-me do sono. Mesmo assim, eu estava relutante em acordar enquanto ele continuava a tocar uma e outra vez. Por fim, o Logan também acordou. Estendeu o braço para o auscultador e levou-o até ao ouvido.

- Estou - disse ele, com a voz a falhar do esforço. Por um longo momento, limitou-se a ouvir. - Compreendo. Venha imediatamente - pediu ele por fim, e desligou.

- O que foi? Quem era? - perguntei eu rapidamente. Percebi pela sua expressão que tinha ouvido más notícias.

- Era o doutor Lakewood - disse ele. - Vem a caminho para falar connosco. Diz que tem uma informação que dará... - interrompeu-se, engolindo, como se as palavras se tivessem engasgado na garganta.

- Que dará o quê? O quê, Logan?

Voltou-se lentamente para mim com uma expressão de schoque e desespero.

- Que dará de certeza a tutela completa do Drake à Fanny.

 

O QUE O DINHEIRO CONSEGUE COMPRAR

O Gerald, o nosso mordomo, anunciou o Dr. Camden Lakewood. Eu e o Logan tínhamos ido para a sala de estar esperar por ele. Apesar de os três candelabros de cristal estarem acesos como diamantes a brilhar à luz do Sol, senti uma escuridão sombria a dominar-me. As janelas da sala abriam para o lado norte, por isso a sala não apanhava tanta luz durante o dia como eu gostaria. Quando tratara da nova decoração, acrescentara o máximo de cores claras. Agora estava sentada na minha própria escuridão, rodeada pelos cambian tes azuis que eu esperara que enchessem os nossos dias, à espera das notícias que arrancariam o Drake da minha vida e deixariam um vazio que até o arco-íris não preencheria.

O Dr. Lakewood apareceu à porta da sala com a pasta na mão. O Logan, que estivera a preparar um gim tónico para si, avançou para o cumprimentar. Continuei sentada no sofá demasiado tensa e assustada para me mexer.

- Doutor Lakewood - saudou o Logan -, faça o favor de entrar. Gostaria de beber alguma coisa?

- Não, obrigado - retorquiu o Dr. Camden, e sentou-se no sofá à nossa frente. - Peço desculpa por pedir um encontro imediato depois de um dia de provação, mas...

- Por favor, doutor Lakewood - interrompi eu, incapaz de me conter por mais tempo. - Diga-nos o que soube que o fez ficar tão pessimista acerca do resultado da audiência.

Eu nem queria acreditar no tom nervoso da minha voz. O Logan veio para junto de mim. Estendi o braço para lhe dar a mão e ele apertou-ma para me tranquilizar.

- bom, isto tem sido uma surpresa permanente para mim, Mistress Stonewall. Devo dizer-lhe que esta história fica de dia para dia mais complicada - começou o Dr. Camden Lakewood.

- Continue, por favor - insisti eu.

- Recebi um telefonema do doutor Wendell Burton pouco depois de termos saído do tribunal e em seguida, com base nas informações que ele me deu, fiz alguns telefonemas e algumas investigações. Como sabem, o advogado de Mister Anthony Tatterton, o doutor J. Arthur Steine, tem algum interesse neste caso e foi ele que...

- Diga-nos apenas do que se trata, doutor Lakewood interrompi eu, já sem conseguir dominar a impaciência.

- Sim, Mistress Stonewall. vou já directo ao assunto respondeu ele, respirando fundo e encostando-se para trás.

- Parece que o doutor Burton teve uma reunião com Mistress Wilcox, logo a seguir à audiência, principalmente para lhe explicar porque é que achava que ela ia perder a tutela do Drake. Durante esta reunião, Mistress Wilcox revelou, de uma maneira que mostrava que não percebia a importância da informação, que Mister Luke Casteel não era, na realidade, seu pai. Ela disse-lhe que o seu verdadeiro pai era Mister Anthony Tatterton - concluiu o Dr. Camden Lakewood e abanou a cabeça.

Larguei a mão do Logan e encostei-me para trás. O Logan sentou-se no braço do sofá. Senti o sangue a subir-me pelo pescoço e a encher a minha cara de calor.

- O que é que isto significa? - perguntei eu, quase num murmúrio.

- Significa, Mistress Stonewall, que não tem laços de sangue com Drake Casteel, enquanto que Mistress Wilcox tem. Obviamente, o caso muda de figura.

- Nós podemos lutar contra isso - gritou o Logan. - É a palavra da Fanny contra...

- Temo que não, Mister Stonewall. Parece que o doutor Burton já tratou de intimar Mister Anthony Tatterton. Falei com o doutor Steine, que falou imediatamente com Mister Tatterton. É escusado dizer que isto traz grandes complicações - comentou, abanando a cabeça. Ele já estava a suar e teve de limpar a testa com o lenço. Percebi pela sua expressão que o Dr. Steine o tinha pressionado de alguma maneira.

- Então o Tony admitiu... - balbuciou o Logan.

- Sim, admitiu-o ao doutor Steine, e a implicação era óbvia de que se fosse levado a tribunal sob juramento... Bem, pela maneira como o doutor Steine falou, parece que Mister Tatterton tem andado sob grande tensão emocional ultimamente e...

- Ele admiti-lo-ia? - perguntou o Logan, incrédulo.

- É a maneira dele de se vingar de mim - afirmei eu, calmamente, sacudindo a cabeça. - Mas o que não entendo.

disse eu, de repente, levantando a cabeça -, é como é que a Fanny descobriu. Eu nunca lhe contei nada sobre a minha relação com o Tony e...

O Dr. Camden Lakewood clareou a garganta cuidadosamente.

- Ela diz ter uma carta escrita pelo irmão, tom...

- O tom? - repeti eu, atordoada.

- Evidentemente. Mister Luke Casteel contou a verdade sobre o vosso parentesco ao filho e, desesperado por a senhora não ter laços de sangue com ele, confiou a sua tristeza a Fanny Casteel - concluiu ele, olhando-me tristemente. - Tenho muita pena, Mistress Stonewall.

Oh, meu Deus. O tom! O meu tom tinha sabido a verdade. E tinha contado à Fanny. Ah, como ele devia ter ficado transtornado! O meu tom, o meu apoio forte e inabalável tinha-me feito perder o Drake. O tom, que nunca faria nada que me magoasse. O tom, que fora o único a ajudar-me a acreditar em mim própria. Como devia ter ficado magoado. Isso explicava porque é que ele tinha desistido dos seus sonhos, porque é que seguira a vontade do pai, nunca acreditando ser inteligente ou talentoso o suficiente para ir para a universidade e trabalhar para o seu sonho de ser presidente dos Estados Unidos. Oh, como nos tínhamos ajudado um ao outro nos nossos ideais impossíveis. Como nos tínhamos magoado um ao outro! Oh, tom, tom, porque é que a vida tinha de ser tão cruel?

- Essa carta pode ser usada como prova? - perguntou o Logan ao Dr. Camden.

- Temo bem que sim - respondeu este. Depois voltou-se para mim. - E sabe que Mister Anthony Tatterton irá corroborar o que é afirmado nessa carta - avisou-me ele.

- Mas... - balbuciou o Logan -, mas com certeza que depois do que foi mostrado hoje, o juiz...

- Mistress Fanny Wilcox é um parente de sangue. O rapaz é meio-irmão dela e nós assumimos que também o era de Mistress Stonewall. Demonstrámos pontos importantes, mas só se Mistress Stonewall e Mistress Wilcox estivessem em pé de igualdade, percebem? Pondo de lado o seu passado. Mister Stonewall, porque é que o tribunal haveria de conceder a tutela a Mistres Stonewall, que não é parente de sangue, em vez de a conceder a Mistress Wilcox, que o é? Ela não é uma criminosa. Na verdade, nunca foi presa por coisa nenhuma.

- Mas o Randall Wilcox disse... - continuou o Logan.

- Nada disso é importante agora.

O Dr. Lakewood inclinou-se para a frente e baixou a voz como se estivesse prestes a dizer-nos algo de confidencial.

- O Burton já me fez perceber que a sua linha de ataque vai ser o facto de Luke Casteel não ser o verdadeiro pai de Mistress Stonewall. Nas suas palavras, temos uma situação em que alguém com muito dinheiro está a tentar usar esse poder para negar a Fanny Wilcox os seus direitos de família.

"Devo dizer-lhes que isto não está nada bom e, com base nisso, o doutor Steine pediu-me, como favor profissional, para fazer tudo o que pudesse para impedir que Mister Tatterton fosse intimado. O meu conselho nesta altura é simplesmente desistirem da acção.

- O raio é que o fazemos! - gritou o Logan. - Se o Tony é louco suficiente para se deixar interrogar por aquele advogado espalhafatoso à frente de toda a gente e fazer uma confissão dessas...

- A questão é que ele o fará - disse o Dr. Camden Lakewood, fria e realisticamente. - A questão é que Mister Anthony Tatterton se ofereceu para testemunhar. Obviamente que os seus advogados o estão a aconselhar a não o fazer.

- Eu continuo sem perceber porque é que qualquer juiz... Eu não podia deixar o Tony depor. Acabaria apenas por magoar o Drake.

- Logan - chamei eu, meio entorpecida.

- bom, eu não consigo, e nós estamos dispostos...

- Logan! - insisti, levantando-me. Ele olhou para mim por um momento e depois desviou o olhar. - Muito obrigada por tudo que fez até agora, doutor Lakewood - continuei, firme e com as minhas intenções bem definidas.

- Tenho muita pena, Mistress Stonewall. Se eu estivesse ao corrente de todos os factos antes de começarmos...

- Compreendo. Peço que me desculpe - acrescentei, e saí da sala. Corri escada acima e, quando entrei no quarto, parei e respirei fundo diversas vezes.

Não era o facto de a Fanny estar a vencer-me ou o eco da infidelidade do Logan que ainda perdurava, nem mesmo o Tony estar disposto a revelar o seu envolvimento sexual com a minha mãe que me despedaçava o coração. Era o facto de estar a perder o Drake, e através dessa perda estar a perder o Luke novamente.

De repente, aqueles tempos em que, no meu coração secreto e posto de lado, eu desejava que o Luke me fizesse uma festa, me abraçasse ou me acariciasse o cabelo com ternura, voltaram. Lembrei-me de como era quando o via com ar solitário e perdido, a olhar para o espaço, como se a vida o tivesse enganado. Havia sempre uma necessidade tão grande em mim de o amar e de ser amada por ele. Durante todo o tempo em que vivemos nos Willies, aquela necessidade dolorosa estivera sempre presente, à espera de ser desencadeada e rebentar numa explosão de amor e afecto, se ele ao menos tivesse agido como se me visse ou me tivesse encorajado a acreditar que me amava, nem que fosse um bocadinho.

No entanto, nunca o fizera e o destino tinha-me tirado qualquer esperança de isso algum dia acontecer quando aquele condutor embriagado o levara a ele e à Stacie para o esquecimento. Tinha esperanças de o encontrar através do Drake e encontrar o amor que perdera. Havia planeado uma vida a amar o Drake e a ser amada por ele. Tinha até sonhado com ele a tornar-se um belo rapaz, a imagem fiel do Luke, e esse rapaz elegante a olhar para mim com amor e afecto.

Não era assim tão acidental nem tão irónico que o Tony, com a sua horrível confissão, me conseguisse negar segunda vez o amor do Luke. Quem é que sabia o que se estava a passar na sua mente retorcida e despedaçada desde que eu deixara Farthy e me recusara na festa a voltar a encontrar-me com ele sozinha? De uma maneira estranha e distorcida, ele tinha, provavelmente, inveja de eu gostar do Drake ou de este gostar de mim.

Senti-me dominada, derrotada, envolta numa onda de inveja e ódio, apanhada no vento de um tufão distorcido de emoções. Havia a Fanny de um lado e o Tony do outro, ambos puxando e empurrando, picando-me com alfinetes e agulhas. Duas pessoas que deviam ter gostado de mim e de quem eu devia ter gostado estavam a fazer-me ainda mais infeliz do que quando vivia nos Willies.

Nesse momento, quase desejava viver de novo naquela pobreza, mas pelo menos rodeada de pessoas que gostavam de mim. Desejei que eu e o tom estivéssemos algures nos Willies, a falar dos nossos sonhos, acreditando que éramos do mesmo sangue, irmãos para sempre.

Sentei-me na cama, demasiado cansada e demasiado derrotada para chorar. Uns minutos mais tarde, o Logan apareceu à porta. Nenhum de nós falou durante um bocado.

- Quem me dera ter ido a Farthy naquela noite e esganado o Tony Tatterton - começou o Logan. - Devia ter acreditado em ti quando me avisaste sobre ele. Devia ter acabado com o controlo dele sobre nós. Que tipo de marido sou eu, Heaven, para te ter desiludido desta maneira?

- És um bom marido. O único que eu quero - consolei-o eu. - Vá, agora não fales mais de vingança e ódio, por favor. Já não aguento mais.

Começava a formar um plano na minha cabeça, um plano que teria de ser eu a pôr em prática. Estava farta de odiar pessoas, cansada até de odiar a Fanny.

- vou falar com a Fanny - declarei.

- Não vais implorar. Não conseguiria sequer pensar nisso. Deixa-me ir, se é isso mesmo que queres. Devo tomar alguma da responsabilidade.

- Não, não é isso que a Fanny quer. Ela ver-te-ia ir lá como um dos meus criados a fazer um dos meus recados.

Compreendeu que eu tinha razão no que dizia.

- Mas o que é que lhe vais dizer? O que é que vais fazer?

- Não tenho a certeza - respondi eu, embora o que ia fazer já estivesse a tomar forma na minha mente. Só não me apetecia dizer já. O Logan pareceu compreender isso. Acenou com a cabeça.

- Eu apoio-te em tudo o que fizeres!

- Obrigada, Logan - respondi eu. Olhámos um para o outro por um longo momento; depois, ele correu para mim e ajoelhou-se, enterrando a cabeça no meu colo e começando a soluçar. Acariciei-lhe a cabeça ternamente.

- Oh, Heaven, Heaven, como estou a pagar por não ter sido mais forte, por ter sido cego em relação ao Tony. Estou tão arrependido e amo-te tanto. Perdoa-me.

- Não tenho nada a perdoar-te, Logan. Por favor - murmurei eu, levantando-lhe a cabeça até ficarmos a olhar um para o outro. - Fiquei tão deslumbrada com o que ele nos ofereceu como tu. Eu também não sou perfeita.

- Ah, isso é que és. Não é por acaso que te chamas Heaven. És um pedaço de céu na terra e eu abençoo o dia em que percebemos que nos amávamos um ao outro.

Beijei-o carinhosamente e abraçámo-nos com força. Depois, levantei-me da cama e tirei o roupão. O Logan observou-me enquanto me vestia, arranjava o cabelo e me maquilhava. Não iria parecer derrotada quando enfrentasse a Fanny.

- Vou-me embora, Logan - anunciei, quando fiquei pronta.

- Eu não devia ir contigo?

- Não. Isto é entre mim e a Fanny. É mais do que apenas tu e o Drake.

- Mas eu sinto-me tão impotente aqui - pediu ele. - Talvez possa ir também e ficar no carro.

- Não é preciso e eu não gostaria que ela olhasse pela janela e te visse.

- Heaven - chamou ele, quando me dirigi para a porta. Voltei-me. - Amo-te! - disse ele.

- Também te amo - respondi eu, e desci as escadas, saindo de casa e fechando a porta suavemente atrás de mim. Olhei para os Willies. O céu estava limpo e as estrelas brilhavam como pequenas jóias no veludo da noite. O Appleberry, que estava a escavar um dos caminhos, parou quando me dirigi para o carro.

- Vai a algum lado, Mistress Stonewall?

- vou, Appleberry.

- Bem, está uma noite fria, mas o ar está fresco e limpo como uma leva nova de relva. No entanto, faz a pele picar de uma maneira agradável.

- Pois faz - respondi eu, sorrindo.

Parei ao pé do carro antes de abrir a porta e olhei de novo para os Willies. As colunas e os montes apareciam à minha frente, esperando triunfantes, como eu sempre soubera no meu coração que aconteceria.

A casa da Fanny estava tão escura que tive receio que ela não estivesse. Pareceu-me que só havia luz na sala de estar. Desta vez ela tinha os cães presos. Ladraram furiosamente quando estacionei o carro e saí. Então, vi outra luz acender-se na sala de estar. O coração batia-me no peito como um pequeno martelo de metal. Respirei fundo e avancei para a porta. Ela abriu-a antes de eu chegar.

- Que é que queres, Heaven? - perguntou ela, ficando à porta, com os braços cruzados. Tinha o cabelo solto à volta da cara e parecia ter estado a chorar. Os olhos mostravam-se muito encarnados, e o rimel estava borrado, e reparei em linhas que sabia serem de lágrimas na sua cara.

- Quero falar contigo, Fanny.

- O meu advogado não quer que eu fale contigo sem ele estar presente.

- Fanny, acho que eu e tu podemos falar uma com a outra sem advogados. Eu não trouxe o meu advogado. Nem sequer trouxe o Logan - declarei eu apontando para trás de mim.

Olhou para o meu carro mas não se mexeu.

- Está frio cá fora, Fanny.

- Está bem, então, podes entrar, mas não vou dizer nada que possa ser usado contra mim amanhã em tribunal. Podes contar com isso.

- Não vamos estar em tribunal amanhã, Fanny. Não vale a pena.

Sorriu abertamente e desviou-se.

- Então podes entrar, Heaven Leigh.

- Onde está o Drake? - perguntei eu, depois de ter entrado.

- Está no seu quarto. Ele também tem um quarto dele aqui, sabes - disse ela, com os olhos a brilhar, como se o orgulho lhe percorresse o corpo em forma de electricidade para os iluminar. Apesar de não haver nenhum laço de sangue entre nós, eu continuava a achar que nisto éramos muito parecidas.

- Ele está bem?

- Só cansado - respondeu ela, mas eu achei que ela estava a mentir.

- O Randall está cá? - perguntei eu, olhando em volta e interrogando-me porque é que ela tinha a casa tão escura.

- Ah, então é isso, Vieste para pedir que ele te ajudasse mais, não foi? - exclamou ela, acenando com a cabeça, achando que tinha descoberto o motivo da minha visita.

- Não, Fanny, não foi por isso.

- Bem, também não interessa. Ele não está cá. Foi-se embora.

- Embora?

- Para pensar nas coisas. Disse a ele para decidir se me ama ou não e para não voltar se não amar.

- Estou a ver.

Deduzi que ela devia ter acabado de discutir com ele e que o pequeno Drake talvez tivesse assistido a tudo.

- Mas não comeces a pensar que isso te pode ajudar com o juiz. O meu advogado diz que não interessa se eu sou casada ou não, dado que tu não és mesmo irmã do Drake.

- Ele provavelmente tem razão, Fanny.

Fixou-me, surpreendida com o tom sensato da minha voz. Mas isso só a pôs mais confusa e a sua expectativa aumentou.

- Que é que queres agora, Heaven? Tens alguma preparada... ou então não tinhas vindo cá. Desembucha.

- Não nos podemos sentar?

- Vá, senta-te se quiseres. Eu fico de pé - respondeu ela, endireitando os ombros para dar mais força à sua atitude.

Avancei até à sala de estar e sentei-me numa cadeira ao pé da mesa de canto. A Fanny veio atrás, mantendo os braços cruzados e observando-me nervosamente.

- Pois é, Fanny - comecei eu -, vais ganhar a tutela do Drake, o que quer dizer que passas a ter duas crianças a teu cargo.

- E depois? - indagou ela, com os olhos novamente a brilhar. - Não achas que eu consigo tratar deles como deve ser?

- Eu não disse isso, mas se o Randall sempre te deixar, esse facto só vai piorar as coisas. Como é que está a tua situação financeira? Não pode estar muito bem.

- O meu advogado diz que tens de continuar a mandar dinheiro para sustentar o bebé que está para nascer. Ele diz que não importa que advogado fino tu contratas... Diz que não consegues safar-te.

- Talvez. Mesmo assim, não estamos a falar em muito dinheiro para ti, pois não, Fanny?

Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para mim, com os olhos semicerrados.

- O que é que vieste cá para me dizer, Heaven? Não era isso. O que é?

- Vim fazer-te uma proposta, Fanny.

- Que tipo de proposta?

- Ofereço-te um milhão de dólares em troca da tutela do Drake.

Vi nitidamente que decorreram longos momentos até o significado do que eu acabara de dizer ficar registado na cabeça da Fanny. Pestanejou e depois arrastou-se até ao sofá. Então, sorriu; percebi de imediato que aquele sorriso era diferente dos sorrisos normais da Fanny. Era um sorriso calculista, que me provocou um arrepio. Sentou-se, sem desviar os olhos de mim por um segundo.

- Ora, ora. Imaginem isto. Vieste aqui para comprar o Drake exactamente da mesma maneira que o reverendo me veio comprar. Da mesma maneira que o Cal e a Kitty te vieram comprar. Queres que eu faça o mesmo que o pai fez: vender uma criança. De facto, não és mesmo melhor que aquelas pessoas que vieram comprar os Casteels, e que tu disseste que odiavas. Odiavas o papá por o ter feito e fizeste-o sentir culpado até morrer, não foi? Não foi?! - gritou ela

Baixei os olhos. Não conseguia evitar que as lágrimas me corressem cara abaixo.

- Finalmente há uma coisa que queres tanto que até fazes aquilo que achavas tão terrível que até procuraste vingar-te e causaste a morte do tom.

- Fanny... - comecei eu, com o coração a bater com tanta força e tão depressa que nem conseguia respirar.

- Não digas nada - respondeu ela, voltando-se para o outro lado, E, de repente, começou a chorar, e eu tinha a certeza de serem lágrimas verdadeiras. Falou sem olhar para mim.

Claro que quero um milhão de dólares, para poder viver

bem como tu - disse ela, e voltou-se para mim, com os olhos cheios de raiva e dor. - Mas não achas que eu quero outra coisa que tu sempre tiveste e que agora também tens? Não achas que eu quero amor? - exclamou ela, abanando a cabeça. - Nunca tive como tu tiveste, nunca, Heaven. Eras tu que tinhas o belo namorado enquanto eu só tinha miúdos.

- Mas, Fanny, tu eras tão fácil que nenhum rapaz sério queria estar contigo - protestei eu.

- Eu só queria arranjar um que gostasse e cuidasse de mim. Eu pensava que era assim que conseguia. E depois fui viver com o reverendo e pensei que agora tinha alguém que gostava de mim. Por isso não me queixei quando ele começou a ir ao meu quarto e a tocar-me. Até pensei que ele passaria a gostar de mim por eu ir ter um bebé dele, mas ele só queria pagar-me e pôr-me a andar da casa dele.

"Depois fui para Nashville, mas foi sempre a mesma coisa. Os homens não queriam gostar de mim, não da maneira como gostam de ti, Heaven. Os meus irmãos nunca quiseram ter nada a ver comigo. Tu não quiseste. Não digas que quiseste só porque foste uma vez ter comigo e me mandaste dinheiro. Até telefonei ao Luke umas vezes, mas sabes que mais? - disse ela, com as lágrimas a correrem livremente. - Ele só perguntava por ti. Sim, por ti. Tinha esperança que ele quisesse que eu fosse viver com ele e com a nova mulher, mas ele nunca disse nada sobre isso.

"Por essa razão casei com o velho Mallory, mas ele era Bvelho de mais para me amar como um homem deve amar uma mulher. Depois, houve muitos homens atrás de mim, mas eu nunca tive nenhum namorado fixo de quem gostasse até aparecer o querido Randall. Agora ele está aí em qualquer lado a pensar nisso só porque eu lhe menti. Ninguém Igosta de mim como os homens gostam de ti. "Até o Drake, mesmo agora, gosta mais de ti do que gosta de mim, seja o que for que eu lhe diga. Eu vejo isso. Voltou-se outra vez para o lado e ficámos as duas em silêncio, à excepção do barulho dos nossos soluços.

- Não podes obrigar as pessoas a gostarem de ti, Fanny disse eu, por entre as lágrimas. - Tu tentas de mais, tu exiges isso antes de as pessoas terem oportunidade de o sentir. Tens de ter mais confiança e deixar que aconteça naturalmente.

Abanou a cabeça.

- Estás à espera de uma criança tal como eu - prossegui, engolindo o aperto na minha garganta. - E ninguém a vai tirar de ti. Vais ter oportunidade de amar o teu bebé e este vai amar-te. Vais aprender com isso, Fanny. Vais ver que o amor se desenvolve lentamente, e que o amor que se desenvolve lentamente é um amor forte.

"Mas ficares com o Drake e tentares obrigá-lo a amar-te, só para conseguires alguém que te ame mais a ti do que a mim, não te vai fazer mais feliz. Vais ver. Tenho imensa pena acrescentei eu, quase sem respirar. - Tenho imensa pena de muitas coisas. Tenho pena de não ter lutado mais pela Darcy, tenho pena de te ter deixado em Nashville e te ter ignorado durante tanto tempo, e tenho pena do que isso te fez e daquilo em que te tornaste.

Levantei-me, mas ela não olhou para mim.

- Adeus, Fanny - disse eu e dirigi-me para a porta.

- Heaven...

Voltei-me lentamente, limpando as lágrimas com um lenço.

- Eu aceito o milhão de dólares e tu ficas com o Drake afirmou ela.

O Drake estava sentado na sua cama em casa da Fanny, com as mãos cruzadas no colo. Olhou para cima quando apareci à porta, e vi que, apesar de estar com uma expressão confusa, ficou contente por me ver. Havia um calor nos seus olhos que traíam os seus sentimentos.

- Olá, Drake. Posso levar-te comigo para casa outra vez? - disse eu, sorrindo por entre as lágrimas. Ele não respondeu logo. Inclinou-se para ver se a Fanny estava atrás de mim. - Sei que passaste por um momento muito confuso, mas isso já acabou. Vais voltar para a Casa Hasbrouck, para o teu quarto e para os teus brinquedos. O Logan está à nossa espera - acrescentei eu, quando ele não se mexeu. - E todos os amigos novos que fizeste e Mister Appleberry...

- A Fanny disse que odiavas o meu pai - afirmou ele, com uma expressão de hesitação.

- Eu não o odiava, Drake. Eu gostava dele, só que eu nunca achei que ele gostasse de mim. Tivemos uma vida muito difícil quando éramos da tua idade. Ajoelhei-me ao seu lado e peguei-lhe nas mãos. Às vezes, não é fácil gostar de uma pessoa mesmo que se queira muito.

- Porquê? - perguntou ele, olhando-me com ar céptico; a sua curiosidade precoce fez-me sorrir. Pensei no Luke e pensei no Troy, e pensei no Tony e em como o amor deles por mim e o meu amor por eles tinha ficado distorcido e se perdera.

- Porque não te deixam gostar delas. Têm medo disso ou têm medo dos seus próprios sentimentos. Espero que venha a ser fácil para ti gostar das pessoas, Drake. Eu sei que vai ser fácil para mim gostar de ti.

Observou-me por um longo momento. Quase conseguia ouvir o cérebro dele a trabalhar.

- Porque é tão difícil? - insistiu, encolhendo os ombros. Eu ri-me e abracei-o.

- Pois é, não devia ser difícil. Tens razão, querido. Devia ser fácil gostar e difícil odiar. Vamos fazer isso entre nós para sempre, está bem?

Ele concordou com a cabeça e eu levantei-me, continuando a agarrar-lhe a mão.

- Vamos embora? - perguntou ele.

- Sim, meu querido.

Fomos até à sala de estar, onde a Fanny se encontrava, enrolada no sofá. O Drake olhou para ela em expectativa.

- Afinal sempre vais viver com a Heaven, querido Drake. Ela tem uma casa maior e criados e pode cuidar melhor de ti, mas eu vou continuar a ver-te de vez em quando. Porta-te bem e não esqueças a tua mana Fanny - acrescentou ela e estendeu os braços. O Drake olhou para mim antes de avançar e eu acenei com a cabeça. A Fanny abraçou-o e depois deu-lhe um beijo rápido e largou-o.

- Adeus, Fanny.

Ela olhou para mim e depois voltou-se para olhar para a janela. Mais uma vez ia ficar sozinha. Talvez o Randall voltasse, pensei eu, especialmente quando descobrisse o dinheiro que a Fanny ia receber. Só que isso não me fez sentir melhor em relação a ela.

- Não deixes o teu advogado abusar de ti, Fanny - avisei-a. Ela acenou com a cabeça sem olhar para mim. - Vamos, Drake - disse eu, e saímos. Olhei para trás depois de ter posto o Drake no carro e vi a cara dela encostada à janela, emoldurada pelo gelo, a imaIgem da solidão. Ela ia ser rica, rica o suficiente para achar que me tinha igualado, mas continuaria tão pobre...

O Drake permaneceu em silêncio durante o caminho até à Casa Hasbrouck; porém, quando estacionámos vi a carinha dele iluminar-se como uma árvore de Natal.

- O meu carro de bombeiros ainda cá está? - perguntou.

- Claro que está, querido. Todos os teus brinquedos ainda cá estão.

Abriu a porta e saiu a correr do carro. Segui-o até à porta. Assim que entrámos em casa, o Logan saiu do escritório e a sua cara iluminou-se imediatamente.

- Eh, campeão! - exclamou ele. - Bem-vindo a casa. Quase desatei outra vez a chorar quando o Logan correu para a frente, pegou no Drake e o cobriu de beijos.

- Ele ainda não jantou, Logan.

- Ah, não? Ainda bem porque o Roland fez uma carne assada. Uma bela e enorme carne assada. O que é que dizes a isso, campeão?

O Drake sorriu e depois pôs-se a pensar.

- Adoro carne assada, é o meu prato preferido. Era o que eu comia sempre nos meus anos. Hoje são os meus anos?

Tanto eu como o Logan rimos com imensa vontade. Sabia-me tão bem que nem queria parar. A nossa explosão de gargalhadas confundiu o Drake, que acabou por sorrir e começar a rir também.

Estava finalmente em casa, e naquele momento apercebi-me de que já éramos uma verdadeira família.

 

A CAIXA DE MÚSICA

Nesse ano, o dia de Acção de Graças foi mesmo uma festa de graças, com o Logan e o Drake, os pais do Logan e o bebé a crescer dentro de mim. Na altura do Natal, comecei a sentir os seus pontapés, como se a vida tanto dentro como fora de mim estivesse a dançar e a comemorar. O Drake adorava pousar as suas mãozinhas no ventre protuberante e sentir o bebé a mexer dentro de mim. Pela primeira vez na minha vida, tinha a minha própria casa, a minha própria família, a minha própria felicidade.

O Logan nunca me perguntou o que é que eu oferecera à Fanny para ela desistir da tutela do Drake. Eu nunca lhe contei que telefonara ao Dr. Steine para ele contactar com o Tony e pedir que transferisse um milhão de dólares para a Fanny. Eu sabia que o Tony o faria, sabia que ele continuava a ter esperanças de voltar a comprar o meu amor. Contudo, eu nem lhe agradecera nem reconhecera a sua cumplicidade. Isso seria noutra altura em que as feridas antigas estivessem mais bem curadas.

- O Drake é um rapazinho maravilhoso. Ainda bem que o temos de novo connosco - disse-me o Logan, sorrindo, uma noite, antes de irmos para a cama.

- Oh, Logan. Obrigada - agradeci eu, abraçando-o.

- Obrigada? Porquê?

- Por nos amares tanto como amas - solucei eu. Ele riu-se.

- Não conseguia evitá-lo mesmo que tentasse - respondeu-me beijando-me ternamente na testa.

Uns dias mais tarde, o Logan voltou da fábrica e contou-me que o Randall tinha deixado a Fanny e voltado para a universidade, mas que ela não parecia ter ficado muito aborrecida com isso.

- Alguns dos meus empregados estavam a falar sobre ela durante o almoço. Parece que o Randall contou a algumas pessoas o modo como ela o tratou. Ela disse... - continuou o Logan, imitando a Fanny. - Disse isto: "Agora que sou tão rica como a Heaven, não quero que voltes. Bem, tenho mais dinheiro do que consigo gastar e montes de homens elegantes hão-de vir bater à minha porta. Por isso não voltes depois com o rabo entre as pernas à espera que eu torne a correr para ti."

Fez uma pausa e olhou para mim em expectativa.

- Onde é que a Fanny arranjou aquele dinheiro todo, Heaven?

Contei-lhe a verdade e ele ouviu sem julgar. Não me disse que eu tinha feito o mesmo à Fanny que o Tony tinha feito ao Luke, não me condenou. Limitou-se a sorrir e a dizer: "Bem, só vou ter de trabalhar o suficiente para transformar a fábrica dos Willies num enorme sucesso, e poder pagar todo esse dinheiro ao Tony, para nunca mais lhe devermos nada."

Eu abracei-o e dei-lhe um milhão de beijos por ser o melhor marido do mundo.

Continuámos com a nossa vida, a ouvir de vez em quando histórias sobre a Fanny, as coisas que comprava, as pessoas com quem se dava. Ocasionalmente, aparecia para ver o Drake. Ele era sempre muito bem-educado para com ela, mas eu percebia que ele tinha medo de ela voltar a tentar levá-lo. Cada vez que ela vinha e se ia embora, eu assegurava-lhe de que isso nunca aconteceria.

O Inverno passou, e um dia de Primavera chegou em toda a sua glória. Era como se Deus tivesse desembrulhado um presente de flores e de relva verde e de dias de céu azul. O murmúrio das folhas, a música do vento na relva, as flores do campo que perfumavam o ar com o seu aroma doce enchiam-nos de esperança e fizeram os dias de tristeza recuar com o frio do Inverno. O sol estava por todo o lado.

O Appleberry podava e plantava, e a nossa casa floriu como uma enorme flor. Os gestos melancólicos do Drake foram desaparecendo até quase não existirem, embora de vez em quando se tornasse pensativo e se interrogasse sobre a mãe e o pai.

A fábrica começou muito bem. O Logan surpreendeu-me com a sua visão para o negócio. Viajou por todo o país, arranjou compradores, descobriu mercados. Não demorou muito a ter de expandir a força laboral da fábrica, e a população de Winnerrow estava cada vez mais orgulhosa do empreendimento.

Uma manhã, logo depois do pequeno-almoço, o telefone tocou e eu fui atender.

- É melhor mandares cá o teu marido - disse a Fanny.

- As minhas águas rebentaram.

- Quem é? - perguntou o Logan.

- É a Fanny - respondi eu. - É melhor pores o carro a trabalhar. As águas acabaram de rebentar e ela precisa de alguém que a leve ao hospital.

- Heaven, eu não te posso deixar. Tu também estás à espera a qualquer momento - protestou ele. Tentou tirar o auscultador da minha mão mas eu tapei-o.

- Querido, apesar de tudo o que a Fanny fez, ela é minha irmã e não tem mais ninguém.

- Está bem - acabou o Logan por concordar -, mas tu também vens. Eu não te quero deixar sozinha, só com os criados para te levarem ao hospital. Além disso - prosseguiu sorrindo -, todas aquelas horas nas aulas de preparação para o parto iriam ser desperdiçadas. vou buscar a tua mala. Dize a Mister Appleberry para tomar conta do Drake. Fica feliz sempre que o Appleberry brinca com ele.

- Nós vamos já - disse eu à Fanny.

- Acho bem, pois está prestes a sair. E eu não vou ter o meu bebé no caminho. Dize ao Logan para se despachar, estás a ouvir?

A Fanny estava à nossa espera no alpendre com duas malas enormes.

- Põe estas no porta-bagagens, Logan - disse a Fanny espreitando-me através da janela. - Olá, Heaven, vieste para ver como é que isto se faz?

- Fanny, o que é que puseste aqui dentro? - perguntou o Logan ao carregar as pesadas malas.

- Todas as minhas roupas e os meus chinelos novos... Estão à espera que eu me vista com qualquer coisa, agora que tenho este dinheiro todo? - exclamou a Fanny. Depois encolheu-se e agarrou-se ao braço de Logan. - É melhor a gente despachar-se - balbuciou.

O Logan foi rapidamente para o hospital e parou onde as ambulâncias costumam parar. A Fanny estava histérica e aos berros no banco detrás.

- vou morrer de dor! - gritava ela. - vou morrer! Dêem-me uma dessas drogas rápidas depressa! Quero ser posta a dormir!

Dois enfermeiros trouxeram uma maca, ajudaram a Fanny a deitar-se nela e taparam-na com um lençol branco. Ela ainda estava a berrar quando as portas automáticas se abriram e eles a empurraram pelo corredor.

- Dêem-me alguma coisa para me pôr a dormir

O Logan voltou-se para mim, pondo-me o braço por cima dos ombros.

- Como é que te sentes, querida?

- Acho que a minha vinda com vocês não foi em vão respondi eu, sorrindo.

- O quê?! - balbuciou o Logan.

- O bebé vem a caminho - disse eu.

- Oh, meu Deus, eu vou a correr buscar uma maca. Eu...

- Acho que não é necessário - protestei, a rir. - Eu consigo andar bem.

O Logan caminhava para a frente e para trás, para a frente e para trás, enquanto esperávamos por uma sala de parto. As contracções já tinham começado, mas a dor ainda não era muito forte, nada forte mesmo. Muitas horas depois, com o meu doce Logan ao lado, a contar a minha respiração e os minutos entre as contracções agora dolorosas, a enfermeira apareceu para nos dizer que a Fanny tinha dado à luz um rapaz. Ao princípio da noite, o meu próprio bebé veio ao mundo, a berrar com os seus dois saudáveis pulmões.

- É uma rapariga! - disse o médico.

Uma enfermeira rapidamente a limpou, embrulhou-a e colocou-a cuidadosamente no meu peito. Baixei o cobertor.

Tinha os meus olhos azuis... Mas o cabelo era castanho-escuro, o cabelo do Troy, cabelo que até encaracolava nas pontas como o dele. Contei gentilmente os seus dedinhos das mãos e dos pés e vi que tinham a forma dos do Troy, dedos dos Tatterton, dedos que um dia podiam vir a esculpir miniaturas de pessoas e casas. O Logan não pareceu reparar em nada. Estava tão excitado e enfeitiçado pela nossa filha!

- Queres pegar-lhe, Logan? - perguntei eu.

- Tenho medo de a partir, ela é tão pequena - respondeu.

- Querido, tu és o homem mais cuidadoso que conheço. Toma a tua filha - disse eu, levantando-a.

Segurou cuidadosamente na cabeça do bebé e encostou o embrulho ao peito.

- Heaven - murmurou, olhando fixamente para a cara da criança -, toda a minha vida pensei que eras a rapariga mais bonita à face da Terra, mas agora sei que o nosso amor criou uma criança ainda mais bonita.

- Logan, gostava de lhe chamar Annie, como a minha avó.

- Annie - murmurou o Logan à filha. Ela desatou a berrar furiosamente.

Começámos os dois a rir.

- Parece que ela sabe o seu nome - disse o Logan, passando-me o meu lindo bebé.

Pouco depois, a enfermeira veio insistir para que o Logan fosse para casa descansar e para me deixar repousar também. Levou o bebé para o berçário e eu dormi umas horas. Sonhei com a minha filha, com o Logan e com o Troy, e acordei com o nome de Annie nos lábios. Oh, eu tinha a certeza, eu sabia que ela era do Troy, e jurei que o Logan nunca saberia, O amor dela por ele e o meu amor por ele compensariam tudo.

Levantei-me penosamente da cama e avancei com lentidão pelo corredor até à janela do berçário. Uma voz estridente cumprimentou-me do fundo do corredor.

- Olha, olha quem finalmente apareceu.

A Fanny estava sentada numa cadeira de rodas a ser empurrada por uma enfermeira particular.

- Qual deles é o teu rapazinho? - perguntei eu.

- O Luke? Dei-lhe o nome do papá. O Luke está ali, o mais bonito da fila - indicou ela. Eu via-a cheia de amor e orgulho verdadeiros.

- É um lindo bebé - concordei eu.

- Sabia que havias de achar, Heaven. Estás casada com o pai dele e ele é muito parecido. Onde está a tua rapariga?

Apontou para Annie. Ela estava a chorar.

- Tens a certeza, Heaven? Ela não se parece com ninguém aqui.

Aquelas palavras deram-me um arrepio. A Fanny nunca podia saber ou suspeitar da verdade. Desenhei um sorriso na minha cara.

- Ora essa, Fanny - gozei eu com ela -, com aquela berraria toda ela se parece um bocadinho contigo ontem à noite.

Até a Fanny teve de se rir.

- Até à próxima, mana - disse ela. Depois pediu à enfermeira para a empurrar outra vez para o quarto. - E não vá depressa de mais! Quero espreitar em todos os quartos dizia a Fanny à enfermeira. - Isto parece o hospital de uma cidade grande!

Dez dias depois de trazermos a Annie para casa, estava eu lá em cima na minha cama a dar-lhe de mamar, quando o Logan chegou da fábrica. Andava tão entusiasmado com a nossa filha que deixava várias vezes a fábrica para fazer o que ele chamava "visitas de bebé". Entrava a correr, pegava na criança ou observava-a a dormir durante um bocado, e depois voltava para a fábrica.

Nessa tarde, quando subiu as escadas, trazia uma caixa. Estava marcada: FRÁGIL.

- O que é isto? - perguntei eu, encaixando o bebé no braço para me poder sentar mais direita.

- Não sei - respondeu o Logan. - Acabaram de a entregar.

Abriu-a e levantou cuidadosamente o seu conteúdo, colocando-o na cama ao meu lado.

Era uma miniatura perfeita da casa de pedra do Troy Estava tudo lá, até o labirinto por trás dela.

- Macacos me mordam - exclamou o Logan. - Olha para isto. O tecto sai.

Retirou-o e um carrilhão começou a tocar o prelúdio de Chopin preferido do Troy. Dentro da casa em miniatura, um homem parecidíssimo com o Troy descansava no chão, com as mãos por trás da cabeça. Ao seu lado, estava uma rapariga sentada, muito parecida comigo da primeira vez que fora a Farthy. Estava tudo como sempre estivera: a mobília minúscula, a loiça minúscula, até instrumentos minúsculos para fazer os brinquedos.

Só o Troy podia ter feito aquilo. Só o Troy. Ele sabia. Ele sabia que a minha filha era dele. E queria que eu soubesse que ele sabia. Esta era a sua maneira de mo dizer, a sua maneira de reclamar a sua filha. Oh, Troy, como eu desejava que as coisas tivessem sido diferentes. E ela era perfeita! Tão perfeita!

- Não vejo nenhum cartão - disse o Logan, interrompendo-me a divagação. - Não é uma parvoíce? Um dos nossos artesãos fez-te este presente espantoso e esqueceu-se de pôr um cartão. Como é que lhe podemos agradecer? Tenho de pedir a alguns dos meus homens para descobrir quem é que fez isto. É espectacular, não é, Heaven? Tanto pormenor. Aposto - declarou o Logan, de repente - que o Tony mandou alguém fazer isto. Se calhar é a sua maneira de pedir desculpa, ha?

- Sim - murmurei eu. Mal conseguia falar, tão deslumbrada estava com aquela demonstração do amor eterno do Troy. O Logan pensou que era por estar tão maravilhada com a beleza do presente. - Podes pôr a Annie no berço? pedi, com voz rouca.

Claro - respondeu ele.

Pegou na filha e colocou-a ternamente no berço.

vou levar isto para baixo - disse ele, aproximando-se da casa em miniatura.

Não, deixa estar, Logan. Não leves. Quero olhar para ela mais um bocadinho.

- Está bem. Tenho de voltar para a fábrica. Falamos depois, está bem?

- Está.

Deu-me um beijo na cara e saiu a correr.

Abri de novo o telhado, e o som mágico da música encheu o quarto. Uma nuvem que tinha estado a tapar o Sol desviou-se e a luz quente entrou a brilhar pela janela para acariciar a pequena casa em miniatura.

A porta de um dos armários da minha memória abriu-se e ouvi mais uma vez o som suave do piano. A melodia tornou-se cada vez mais forte e, depois, pareceu ter ficado presa na brisa que fazia as cortinas da janela do meu quarto dançarem contra o vidro. Olhei para o céu azul como se conseguisse ver a música a voltar para casa e, então, coloquei o telhado de novo na pequena casa.

Iria guardar o brinquedo numa prateleira do quarto da Annie até um dia, daqui a muitos anos, lhe contar qual o significado daquela casa. Tinha a certeza de que, quando o fizesse, ela iria compreender porque é que eu tivera de fazer o que fizera. Porque eu iria sempre dizer-lhe a verdade, a verdade que era eu. E a verdade cura sempre.

 

                                                                                            V. C. Andrews  

 

                      

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