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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COROA DE ERVA - P.4 / Colleen McCullough
COROA DE ERVA - P.4 / Colleen McCullough

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Em fins de Setembro, Sila pôde finalmente deixar Roma e juntar-se às suas legiões em Cápua. Antes, falara com o seu devotado tribuno militar, Lúcio Licínio Lúculo, e perguntara-lhe se concordaria em candidatar-se ao cargo de questor, para o caso de Sila precisar dos seus serviços. Encantado, Lúculo respondeu-lhe que sim. Sila mandou-o então imediatamente para Cápua, como seu representante. Durante todo o mês de Setembro, Sila teve de resolver duas difíceis questões: o leilão das propriedades do Estado e a organização das suas seis colónias de soldados. Nem mesmo os mais optimistas acreditavam que se desenvencilhasse tão rapidamente de tais problemas. Mas Sila conseguiu-o, graças à sua força de vontade e a um comportamento implacável em relação aos seus colegas senadores, todos eles fascinados com a determinação daquele novo chefe; na realidade, nunca ninguém vira em Sila um grande dirigente. Mas Sila era-o, sem dúvida.

 

 

 

 

- O problema é que ele foi sempre ofuscado por Mário e Escauro

- disse António Orador.

- Não, nada disso. O problema de Sila é que nunca tinha conseguido firmar a sua reputação - retorquiu Lúcio César.

- E de quem foi a culpa? - perguntou Catulo César.

- A culpa foi de Caio Mário, basicamente - retorquiu o irmão.

- Não há dúvida que ele sabe o que quer - disse António Orador.

- Lá isso sabe! - comentou Cévola, com um estremecimento. Não gostaria nada de o ver do avesso!

Era precisamente isso o que o jovem César estava a pensar enquanto escutava a conversa entre a mãe e Lúcio Cornélio, bem escondido no seu esconderijo.

- Vou partir amanhã, Aurélia, e não gosto de deixar Roma sem me despedir de ti - disse Sila.

- Também não gosto que te vás embora sem que te despeças de mim - respondeu ela.

- Caio Júlio?

- Está com Lúcio Cina em terras dos Marsos.

- Nos escombros - disse Sila.

- Estás com muito bom aspecto, Lúcio Cornélio, apesar de todos os problemas que tens sido obrigado a enfrentar. Pelos vistos, fizeste um casamento feliz.

- Ou é o casamento que é feliz, ou então sou eu que me tornei mais carinhoso com as mulheres. Com a minha mulher. Talvez me tenha transformado num marido babado.

- Ah, não me venhas com essa! Tu nunca serás um marido babado!

- Que tal reagiu Caio Mário à sua derrota?

Aurélia franziu os lábios.

- A família é que tem sofrido - retorquiu ela. - De facto, ele não gosta nada de ti.

- Não esperava que gostasse. Mas estou certo de que ele admite que agi de forma moderada, que não usei de lisonjas nem movi influências para obter o comando nesta guerra.

- Não precisavas - disse Aurélia. - E é precisamente por isso que ele está preocupado. Caio Mário não está habituado ao facto de Roma ter um dirigente alternativo em caso de guerra. Antes de tu ganhares a Coroa de Erva, ele era o único chefe guerreiro. Sim, os seus inimigos do Senado eram muito poderosos e frustravam os seus planos sempre que podiam. Mas ele sabia que era o número um de Roma em caso de guerra. Sabia que acabavam sempre por recorrer aos seus serviços. Agora, está velho e doente. E além disso existes tu. Ele está com medo de que o apoio que conta entre os cavaleiros vá todo para ti.

- Mas ele está acabado. Por que razão ele não vê isso?

- Suponho que veria se fosse mais novo e estivesse em melhores condições mentais. O problema é que as tromboses lhe afectaram o cérebro. Pelo menos é o que Júlia acha.

- Se ela o diz... - retorquiu Sila, levantando-se. - Que tal está a tua família?

- Muito bem.

- E o teu filho?

- Indomável. Intratável. Impossível. Bem tento que ele tenha os pés bem assentes na terra, mas é muito difícil - respondeu Aurélia.

Mas eu tenho os pés bem assentes na terra, mamã!, pensou o jovem César, escapulindo-se do seu ninho logo que Sila e Aurélia se separaram. Por que carga de água me vês sempre como uma frágil pena levada pelo vento, como uma semente de dente-de-leão flutuando ao sabor da mais ténue brisa?

Crendo que Sila não demoraria muito tempo a atravessar o Adriático, pois convinha-lhe evitar os ventos desfavoráveis do Inverno, Públio Sulpício lançou o seu primeiro ataque contra a ordem estabelecida em meados de Outubro. Poucas armas tinha para tal, a não ser a sua própria cabeça; Públio Sulpício detestava demagogos e por isso não iria servir-se da arma da demagogia. Tinha, no entanto, tomado a precaução de procurar Caio Mário, a fim de lhe pedir o seu apoio.

Sim, porque Caio Mário não gostava do Senado! Aliás, Sulpício não ficou nada decepcionado com a reação de Mário. O Grande Homem concordara com as suas propostas.

- Podes estar certo de que te darei todo o meu apoio, Públio Sulpício - respondeu-lhe Mário. Por um instante nada mais disse, após o que acrescentou, aparentemente em resultado de uma reflexão de momento: - No entanto, vou pedir-te um favor. Vou pedir-te que faças aprovar uma lei que me dê o comando na guerra contra Mitridates.

Parecia um pequeno preço a pagar; Sulpício sorriu.

- De acordo, Caio Mário. O comando será teu - retorquiu. Sulpício convocou a Assembleia da Plebe, e pôs à sua apreciação

duas leis: a primeira previa a expulsão do Senado de todos os membros que tivessem dívidas superiores a oito mil sestércios; a segunda previa o regresso de todos os homens condenados ao exílio pela Comissão Vária na época em que o próprio Quinto Vário processara todos os que alegadamente haviam defendido o alargamento da cidadania a toda a Itália. Eloquente, expressivo, Sulpício encontrou a nota exacta para aquele discurso.

- Quem pensam eles que são para se sentarem no Senado e tomarem as decisões que esta assembleia deveria tomar, quando nenhum deles é pobre, quando nenhum deles está desesperado com as suas dívidas?

- perguntou Sulpício. - Pelo contrário, os membros desta assembleia que contraíram dívidas são perseguidos. E são perseguidos porque não podem esconder-se atrás dos privilégios senatoriais, porque não têm meios para convencer os agiotas a moderar os seus apetites! No entanto, aqueles que se reúnem na Cúria Hostília são poupados! Os seus credores não se importam de esperar! Eu sei que assim é porque sou senador, e oiço o que eles dizem uns aos outros, e vejo os favores que eles prestam aos agiotas! Sei mesmo quem é que no senado empresta dinheiro! Pois bem, temos de acabar com esse estado de coisas! Quem deve dinheiro não poderá continuar no Senado! Um homem que não está em melhores condições do que o resto de Roma não poderá continuar a ser membro desse arrogante e privilegiado clube que se chama Senado!

Os senadores ficaram obviamente chocados e estupefactos porque Sulpício agia como um demagogo. Sulpício] O mais conservador, o mais valoroso dos homens! Ele, que vetara o regresso dos exilados no princípio do ano, defendia agora isso mesmo! Que lhe teria acontecido para mudar tão radicalmente?

Dois dias depois, Sulpício voltou a convocar a Assembleia da Plebe e promulgou uma terceira lei. Todos os novos cidadãos italianos e muitos milhares de cidadãos libertos de Roma seriam distribuídos uniformemente pelas trinta e cinco tribos. As duas novas tribos de Pisão Frugi desapareceriam, pura e simplesmente.

- Trinta e cinco é o número certo para as tribos! Não poderá haver mais tribos! - gritou Sulpício. - E não está certo que algumas tribos tenham apenas três mil ou quatro mil cidadãos e disponham do mesmo poder de voto que tribos como a Esquilina e a Suburana, cada uma das quais tem mais de cem mil membros! Tudo no governo romano está feito de molde a proteger o todo-poderoso Senado e a Primeira Classe! E agora digam-me: os senadores ou os cavaleiros pertencem à tribo Esquilina ou à tribo Suburana? Claro que não! Pertencem à tribo Fábia, à tribo Cornélia, à tribo Romília! Pois eles que partilhem as suas tribos com homens de Priferno, Buca, Bibínio! E com homens das tribos Esquilina e Suburana!

Este discurso foi histericamente ovacionado. As palavras de Sulpício contavam com aprovação de todos os estratos presentes na Assembleia, excepto os mais altos e os mais baixos; os mais altos, porque perderiam poder, e os mais baixos porque a sua situação não sofreria qualquer mudança.

- Não compreendo! - disse António Orador a Tito Pompónio, com uma voz entrecortada, enquanto à sua volta os adeptos de Sulpício não paravam de berrar. - Ele é um nobre! Ele não teve tempo de juntar tantos adeptos! Ele não é um Saturnino! Francamente! Não compreendo!

- Mas compreendo eu - retorquiu com amargura Tito Pompónio.

- Ele atacou o Senado por causa das dívidas. E o que esta multidão que aqui vês espera dele é muito simples. Todos eles julgam que se aprovarem as leis que Sulpício propuser todas as leis, como recompensa ele promulgará o cancelamento das dívidas.

- Mas ele não pode fazer isso e ao mesmo tempo expulsar homens do Senado só porque devem oito mil sestércios! Oito mil sestérciosl Oito mil sestércios não é nada! Não há por certo nenhum homem em Roma que não deva pelo menos um tal montante!

- Estás com problemas, Marco António? - perguntou Tito Pompónio.

- Não, claro que não! Mas são poucos os homens nesta cidade sem problemas de dinheiro! Até mesmo homens como Quinto Ancário, Públio Cornélio Lêntulo, Caio Bébio ou Caio Atílio Serrano, os melhores homens que há no mundo, Tito Pompónio!, até mesmo eles têm problemas de dinheiro neste momento! Mas quem é que não os teve nestes últimos dois anos? Pensa no caso dos Pórcios Catões, que possuem tanta terra na Lucânia: devido à guerra, não tiveram qualquer lucro. E os Lucílios? Também são proprietários de terras no Sul e ficaram numa situação aflitiva. - Marco António parou para respirar, e depois perguntou: - Por que carga de água há-de ele legislar o cancelamento das dívidas, se resolveu expulsar homens do Senado precisamente porque têm dívidas?

- Ele não tem a mínima intenção de cancelar as dívidas - retorquiu Pompónio. - A Segunda e a Terceira Classes é que esperam que ele as cancele.

- Ele prometeu-lhes alguma coisa?

- Não precisa de prometer nada. A esperança é a única coisa que lhes resta, Marco António, a questão é essa. Eles vêem um homem que odeia o Senado e a Primeira Classe tanto como Saturnino os odiou. Esperam por isso que ele seja outro Saturnino. Mas Sulpício é muito, muito diferente de Saturnino.

- Porquê! - perguntou António Orador, quase que num pranto.

- Não faço a mínima ideia do que se está a passar naquela cabeça

- retorquiu Tito Pompónio. - Olha, vamos mas é livrar-nos desta multidão, antes que se atirem a nós e nos reduzam a pó.

Nos degraus do Senado, encontraram o cônsul júnior, que estava acompanhado pelo filho, muito excitado, pois acabava de regressar da Lucânia, onde cumprira os seus deveres militares, e apresentava ainda uma disposição marcial.

- E Saturnino que está de volta! - esclamou o jovem Pompeu Rufo com voz bem sonora. - Bom, só que desta vez estamos preparados para o enfrentar! Não vamos permitir que ele manobre as multidões como Saturnino fez! Agora que quase toda a gente voltou da guerra, é fácil arranjar um grupo de confiança e detê-lo de uma vez por todas, e é isso que eu vou fazer! A próxima contio que ele convocar vai correr de maneira completamente diferente, ai isso é que vai!

Tito Pompónio ignorou o filho a fim de se concentrar no pai e nos senadores que estavam por perto.

- Sulpício não é outro Saturnino. Nem pensar - disse ele, tenazmente.

- Os tempos agora são outros e os motivos de Sulpício são diferentes.

No tempo de Saturnino, havia escassez de comida. Agora o que há é dívidas. Mas Sulpício não quer ser o rei de Roma. O que Sulpício quer é que eles governem Roma - acrescentou, apontando para as Segunda e Terceira Classes, aglomeradas no anfiteatro dos Comitia.

- O que é muito diferente do que Saturnino pretendia. Completamente diferente.

- Mandei uma mensagem a Lúcio Cornélio para que regressasse a Roma - disse o cônsul júnior a Tito Pompónio, António Orador e Catulo César.

- Achas que não consegues controlar sozinho os acontecimentos?

- perguntou Pompónio, que adorava pôr questões embaraçosas.

- Acho que não, Tito Pompónio - retorquiu Pompeu Rufo, com toda a franqueza.

- E Caio Mário? - perguntou António Orador. - Ele consegue controlar toda e qualquer multidão.

- Desta vez não o faria - disse Catulo César com desdém. - É que, desta vez, Caio Mário apoia o tribuno da plebe rebelde. Sim, Marco António, foi Caio Mário quem levou Públio Sulpício a fazer isto!

- Não acredito - retorquiu António Orador.

- Garanto-te que Caio Mário está por detrás disto tudo!

- Se isso é realmente verdade - disse Tito Pompónio -, então é muito provável que Sulpício tenha já uma quarta lei na forja.

- Uma quarta lei? - perguntou Catulo César, intrigado.

- Uma quarta lei prevendo a substituição de Lúcio Sila por Caio Mário no comando da guerra contra Mitridates do Ponto.

- Sulpício não se atreveria a uma dessas! - exclamou Pompeu Rufo.

- Porque não? - Tito Pompónio fitou o cônsul júnior. - Ainda bem que mandaste chamar o cônsul sénior. Quando está prevista a sua chegada?

- Amanhã ou depois de amanhã.

Sila chegou na manhã seguinte, antes ainda do alvorecer; com efeito, pusera-se a caminho de Roma, mal recebera a carta de Pompeu Rufo. Teria havido na história de Roma algum cônsul confrontado com situações tão terríveis?, perguntou Sila para si mesmo. Primeiro, fora o massacre na Província da Ásia. Agora, deparava com outro Saturnino. O meu país está na bancarrota, acabo de sufocar uma revolução, e contra o meu nome nos fasti terei de contar com o ódio gerado por ter vendido propriedades do Estado. Problemas que pouco peso terão se eu souber lidar com eles. E eu sei lidar com eles, sei como enfrentá-los, como resolvê-los.

- Hoje há alguma contio? - perguntou ele a Pompeu Rufo, para cuja casa se dirigira de imediato.

- Sim. Tito Pompónio diz que Sulpício vai apresentar uma lei que te substituirá por Caio Mário no comando da guerra contra Mitridates.

Nada mexia em Sila, nem mesmo os olhos.

- Eu sou o cônsul, e o comando da guerra foi-me dado legalmente

- disse ele. - Se Caio Mário estivesse bem de saúde, poderia perfeitamente assumir o comando das operações. Mas ele não está bem. E não pode ficar com o comando. Bom, imagino que Caio Mário tem apoiado Sulpício.

- É o que toda a gente pensa. Mário não apareceu ainda em nenhuma das contiones, mas vi alguns dos seus agentes entre a multidão. Como aquele tipo horrível que dirige um bando de desordeiros do bairro de Subura - informou Pompeu Rufo.

- Lúcio Decúmio?

- Sim, esse mesmo.

- Sim senhor! - disse Sila. - Aí está uma nova face de Caio Mário, Quinto Pompeu! Nunca pensei que ele viesse a recorrer a indivíduos como Lúcio Decúmio. Mas temo que o facto de o Senado lhe ter dito na cara que estava velho e doente o levou a compreender que estava acabado. Só que ele não se quer dar por vencido. Quer ir para a guerra. Para a guerra contra Mitridates. E se para tal precisar de se transformar num novo Saturnino, Caio Mário não hesitará: será um novo Saturnino.

- Vamos ter problemas. Lúcio Cornélio.

- Eu sei que vamos ter problemas!

- Não estou a falar desses problemas. Estou a falar doutros. É que o meu filho e uma série de filhos de outros senadores e cavaleiros estão a formar um grupo com o objectivo de expulsar Sulpício do Fórum - disse Pompeu Rufo.

- Então será melhor que estejamos os dois no Fórum quando Sulpício reunir a Assembleia da Plebe.

- Armados?

- De maneira nenhuma. Temos de acabar com isto legalmente.

Quando Sulpício chegou ao Fórum, pouco depois do alvorecer, era evidente que tinha já ouvido os boatos relativos ao grupo dirigido pelo filho do cônsul júnior, pois apareceu rodeado por uma vasta escolta de jovens das Segunda e Terceira Classes, todos eles armados de bastões e pequenos escudos de madeira; e, para proteger esta escolta, tinha-a rodeado de um sem-número de homens que pareciam ser da Quinta Classe e proletários - ex-gladiadores e membros das congregações das encruzilhadas. Perante tais guarda-costas, o pequeno grupo do jovem Quinto Pompeu Rufo só pôde comprovar a sua impotência.

- O Povo - gritou Sulpício para um Comitia meio cheio pelos seus guarda-costas - é soberano! Ou melhor, diz-se que o povo é soberano! Essa é uma frase que os membros do Senado e os cavaleiros mais poderosos nunca deixam de usar sempre que precisam dos vossos votos. Mas é uma frase que não significa rigorosamente nada! É uma frase vazia! No fundo, troçam do povo! Porque vejamos: que responsabilidades têm vocês no governo? Estão todos à mercê dos homens que vos convocam, os tribunos da plebe! E, com muito poucas excepções, quem comanda os tribunos da plebe? Ora! O Senado e a Ordo Equester! E que acontece aos tribunos da plebe que se declaram servidores do povo soberano? Vou-lhes dizer o que acontece a esses homens! São encurralados na Cúria Hostília e mortos com telhas do telhado da Cúria Hostília!

- É uma declaração de guerra, não é? - comentou Sila. - Ele quer fazer de Saturnino um herói.

- Ele quer fazer de si mesmo um herói - emendou Catulo César.

- Oiçam! - pediu Mérula flamen Dialis.

- É tempo - dizia Sulpício - de mostrarmos ao Senado e à Ordo Equester, de uma vez por todas, quem é o soberano de Roma! É por isso que estou aqui! Porque sou o vosso defensor, o vosso protector, o vosso servidorí Acabamos de sair de três anos horríveis, três anos durante os quais vocês tiveram de aguentar com toda a carga dos impostos e de privações. Vocês deram a Roma a maior parte do dinheiro com que Roma financiou uma guerra civil. Mas alguém no Senado vos perguntou o que vocês sentiam acerca dos vossos irmãos, os Aliados Italianos?

- É evidente que perguntámos! - exclamou Cévola Pontifex Maximus. - O povo estava mais a favor da guerra do que o Senado!

- Sim, mas o povo já se esqueceu disso - retorquiu Sila.

- Não, ninguém vos perguntou! - gritou Sulpício. - Eles recusaram aos vossos irmãos italianos a cidadania deles e não a vossa! A vossa cidadania não passa de uma sombra. A cidadania deles é a matéria com que se tem feito o governo de Roma! Eles não podiam permitir que entrassem milhares de novos membros para as suas privilegiadas tribozinhas rurais, porque, dessa forma, os seus inferiores ficariam com demasiado poder! Por isso, mesmo depois de aprovada a cidadania para os Italianos, eles fizeram com que os novos cidadãos ficassem limitados a um número reduzido de tribos! E tudo isso porquê? Porque era preciso influenciar os resultados eleitorais! Mas tudo isso acaba, soberano Povo, a partir do momento em que é ratificada a minha lei que distribui os novos cidadãos e os libertos de Roma pelas trinta e cinco tribos!

Os aplausos e vivas soaram tão vibrantes que Sulpício teve de se calar; esperou que a multidão sossegasse, com um sorriso largo, um belo homem de trinta e alguns anos, com um ar patrício apesar do cargo plebeu - uma ossatura imponente, a tez clara.

- Mas o povo, graças ao Senado e à Ordo Equester, foi enganado de outras maneiras! - prosseguiu Sulpício. - É mais do que tempo de acabarmos com a prerrogativa (e é apenas uma prerrogativa, nunca foi uma lei!) que o Senado e os senhores da Ordo Equester, que secretamente controlam o Senado, têm de distribuir todos os comandos militares e de dirigir todas as guerras! É tempo de vocês, a espinha dorsal, a base de tudo o que é verdadeiramente romano!, assumirem as missões que deveriam assumir de acordo com a lei. E entre essas missões conta-se a decisão quanto à declaração ou não de guerra! E, se Roma for para a guerra, trata-se também de escolher quem deve comandar! Essa decisão também terá de ser vossa!

- Ora bem - disse Catulo César. - Chegámos ao ponto principal. Sulpício virou-se para apontar para Sila, que se encontrava à frente da multidão, no alto dos degraus do Senado.

- Ali está o cônsul sénior! Eleito cônsul sénior pelos seus pares, e não pelos vossos pares! Há quanto tempo a Terceira Classe, por exemplo, não vota nas eleições consulares?

Apercebendo-se que corria o risco de se afastar do tema básico do seu discurso, Sulpício fez uma pausa e regressou ao que lhe interessava.

- Foi dado ao cônsul sénior o comando de uma guerra que é tão vital para o futuro de Roma que Roma poderá deixar de existir se essa guerra não for conduzida pelo melhor dos nossos concidadãos. E quem deu o comando da guerra contra o rei Mitridates do Ponto ao cônsul sénior? Quem decidiu que era ele o homem mais indicado para cumprir tal missão? O Senado, claro, e os senhores da Ordo Equester que secretamente controlam o Senado! Como sempre acontece, escolhem os homens que mais lhes convêm! E não se importam de pôr em perigo a pátria só porque querem um patrício vestido de general! Porque, digam-me: quem é este Lúcio Cornélio Sila? Que guerras ganhou ele? Soberano Povo, alguém de entre vós o conhece? Pois eu posso dizer-vos quem ele é! Lúcio Cornélio Sila chegou onde chegou graças a Caio Mário! Tudo o que realizou deve-o a Caio Mário! Diz-se que venceu a guerra contra os Italianos! Mas a verdade é que foi Caio Mário quem enfrentou os primeiros e mais terríveis ataques. Se Caio Mário não o tivesse feito, este Sila nunca teria alcançado a vitória!

- Como é que ele se atreve a dizer uma coisa destas?! - exclamou Crasso Censor, com a voz entrecortada. - A vitória de Roma deve-se unicamente a ti, Lúcio Cornélio! Foste tu quem ganhou a Coroa de Erva! Foste tu quem dominou os Italianos! - Respirou fundo para gritar o que acabara de dizer, mas Sila, dobrando-lhe o braço, obrigou-o a fechar a boca.

- Pouco barulho, Públio Licínio! Se desatamos a gritar, eles lincham-nos. Quero isto resolvido de uma maneira legal e pacífica disse Sila.

Sulpício prosseguia o seu discurso, não se afastando do assunto que pretendia ver resolvido.

- Poderá este Lúcio Cornélio Sila dirigir-vos a palavra, soberano Povo? Claro que não pode! Ele é um patrício! E um patrício é uma criatura demasiado importante para falar com gente como vós! Ao dar a este consumado patrício o comando da guerra contra Mitridates, o Senado e a Ordo Equester ignoraram por completo um homem muito mais qualificado e capaz! Ignoraram um homem como Caio Mário! Dizendo que ele estava doente, que ele estava velho! Mas eu pergunto, soberano Povo: nestes últimos dois anos, quem foi que, fazendo um esforço terrível, deambulou pelas ruas de Roma todos os dias, lutando por recuperar a saúde, fazendo exercício incansavelmente, melhorando de dia para dia? Caio Mário! E Caio Mário pode estar velho, mas já não está doente! Caio Mário! E Caio Mário pode estar velho, mas continua a ser o melhor homem de Roma, o maior, o número um!

De novo explodiram os aplausos e os vivas, só que desta feita não premiavam Sulpício, mas sim Caio Mário, que nesse momento se encaminhava para o local da reunião, sozinho e cheio de energia; Caio Mário já não precisava da companhia do rapaz para se deslocar onde quer que fosse.

- Soberano Povo de Roma, proponho a aprovação de uma quarta lei, no âmbito do meu programa legislativo! - gritou Sulpício, sorrindo para Caio Mário. - Proponho que o comando da guerra contra o rei Mitridates do Ponto seja retirado a esse altivo patrício que dá pelo nome de Lúcio Cornélio Sila, e seja entregue ao vosso Caio Mário!

Sila não quis ouvir mais. Pedindo a Cévola Pontifex Maximus e a Mérula flamen Dialis que o acompanhassem, dirigiu-se para casa. Sentado à secretária do escritório, Sila fitou os dois amigos.

- Bom, que vamos fazer? - perguntou.

- Porque me fazes essa pergunta a mim e a Lúcio Mérula? - foi a resposta de Cévola.

- Porque vocês são os chefes da nossa religião - disse Sila. - E além disso conhecem bem a lei. Arranjem-me uma maneira de prolongar a campanha de Sulpício até que a multidão fique farta da campanha, e dele.

- Algo de suave - disse Mérula, com um ar pensativo.

- Tão suave como o pêlo de um gato - disse Sila, bebendo uma taça de vinho sem água. - Se travássemos uma batalha renhida no Fórum, seria ele o vencedor. Sulpício não é nenhum Saturnino! Sulpício é muito mais inteligente. No que toca às alternativas violentas, não temos hipótese: ele já nos bateu. Pelo que pude ver, tinha à volta de quatro mil guarda-costas armados. Viam-se os bastões mas imagino que tinham espadas escondidas. Nós não conseguimos reunir uma força civil capaz de lhes dar uma lição num espaço tão limitado como o Fórum Romano. - Sila parou de falar e fez uma careta, como se tivesse provado algo amargo; os seus olhos claros e frios fitavam o vazio. - Se for preciso, Pontifex Maximus, flamen Dialis, moverei o monte Pélio e pô-lo-ei em cima do monte Ossa para que os nossos justos privilégios não sejam violados! Os nossos privilégios, todos eles, incluindo a minha posição! Mas vejamos primeiro se podemos derrotar Sulpício com a sua própria arma: o Povo.

- Nesse caso - disse Cévola -, a única coisa a fazer é declarar todos os dias de Comitia a partir de agora e até quando tu quiseres!

- É uma óptima ideia! - disse Mérula, com um ar mais alegre. Sila franziu o sobrolho.

- Mas isso é legal?

- Perfeitamente legal. Os cônsules, o Pontifex Maximus e os Colégios de Pontífices têm toda a liberdade para decretar os dias de descanso e feriados e, nesses dias, as Assembleias não poderão reunir.

- Nesse caso, afixem a declaração de feriae esta tarde nos rostra e na Régia, e mandem os arautos proclamar dias de descanso e feriados todos os dias a partir de hoje e até aos Idos de Dezembro. - Sila pôs um sorriso perverso. - Sulpício deixará de ser tribuno da plebe três dias antes desse prazo terminar. E quando ele deixar de ser tribuno da plebe, processá-lo-ei por traição e incitamento à violência.

- Esse julgamento não poderá provocar grande alvoroço - disse Cévola, temendo as consequências de uma tal medida.

- Por amor de Júpiter, Quinto Múcio! Mas terá de haver alvoroço, forçosamente! - disse Sila. - Limitar-me-ei a julgá-lo, nada mais! Se ele não conseguir persuadir as multidões com bonitas palavras, estará perdido. Eu drogá-lo-ei.

Dois pares de olhos espantados fitaram Sila; era quando dizia coisas daquelas que Sila ficava mais estranho: era outro Sila, alguém que os outros não poderiam entender.

Sila reuniu o Senado na manhã seguinte e anunciou que os cônsules e os pontífices tinham aprovado um período de feriae durante o qual não poderiam realizar-se assembleias no anfiteatro dos Comitia. A notícia foi saudada com aplausos moderados, já que Caio Mário não estava presente para manifestar a sua oposição.

Terminada a reunião, Catulo César abandonou a câmara com Sila.

- Como pôde Caio Mário pôr em perigo o Estado unicamente para obter um comando que não está em condições de assumir? perguntou Catulo César.

- Ora, porque está velho, porque tem medo, porque a sua cabeça já não é o que era, e porque quer ser cônsul de Roma sete vezes retorquiu Sila, cansado.

Cévola Pontifex Maximus, que abandonara o Senado antes de Sila e Catulo César, apareceu-lhes de repente. Voltara para trás, quase que a correr.

- Sulpício! - exclamou.

- Sulpício decidiu ignorar a proclamação de feriae, diz que é uma conspiração tramada pelo Senado e que vai convocar uma nova contio!

Sila não parecia surpreendido.

- Tal como eu esperava - disse.

- Mas então qual era o teu objectivo? - perguntou Cévola, indignado.

- O meu objectivo era poder declarar inválidas todas as leis que ele discuta ou aprove durante o período de feriae - disse Sila. - É para isso que as feriae servem. Não servem rigorosamente para mais nada.

- Mas se ele aprovar a lei que prevê a expulsão do Senado de todos os senadores com dívidas - contestou Catulo César -, nunca poderemos declarar inválidas as suas leis. Não haverá senadores que cheguem para termos quoro. E isso implica que o Senado deixe de existir enquanto força política.

- Nesse caso, sugiro que reunamos com Tito Pompónio, Caio Ópio e outros banqueiros e que cheguemos a um acordo no sentido do cancelamento de todas as dívidas dos senadores. Um cancelamento não oficial, evidentemente.

- Não podemos fazer isso! - exclamou Cévola, desesperado. - Os credores dos membros do Senado insistem em cobrar as suas dívidas, e não há dinheiro para lhes pagar! Nenhum senador pede emprestado a banqueiros respeitáveis como Pompónio e Ópio! Pompónio e Ópio são demasiado conhecidos! Os censores acabariam por saber!

- Então acusarei Caio Mário de traição e irei buscar dinheiro às suas propriedades - retorquiu Sila, furioso.

- Não podes fazer uma coisa dessas, Lúcio Cornélio! - replicou Cévola num tom lamurioso. - O ”Povo soberano” daria cabo de nós!

- Sendo assim, recorrerei aos fundos de guerra e pagarei as dívidas do Senado com esse dinheiro! - disse Sila.

- Não podes!

- Estou a ficar muito farto dos vossos ”não podes”! - retorquiu Sila. - Acham que me vou deixar derrotar por Sulpício e por um bando de idiotas que pensam que ele vai cancelar as dívidas deles! Não, é evidente que não vou permitir que tal coisa aconteça! O monte Pélio em cima do monte Ossa, Quinto Múcio! Farei seja o que for que tenha de fazer! Nada me deterá!

- Um fundo - disse Catulo César. - Um fundo reunido por aqueles que não têm dívidas para salvar todos os que correm risco de expulsão.

- Isso demora o seu tempo - disse Cévola, com uma expressão dramática. - Demora pelo menos um mês. Eu não tenho dívidas, Quinto Lutácio. Nem tu, ao que creio. Nem Lúcio Cornélio. Mas algum de nós terá dinheiro que chegue para investir imediatamente nesse fundo de auxílio? Eu não tenho! E vocês? Serão capazes de juntar mais de mil sestércios sem terem de vender propriedades?

- Eu posso juntar essa soma, mas não mais do que isso - retorquiu Catulo César.

- Eu não - disse Sila.

- Acho que devíamos ir para a frente com a ideia do fundo - disse Cévola. - No entanto, teremos de vender alguns dos nossos bens. E isso demorará o seu tempo. Quando tivermos dinheiro, já os senadores com dívidas terão sido expulsos. Porém, logo que paguem essas dívidas, os censores poderão reconduzi-los.

- Não creio que Sulpício permita uma coisa dessas - disse Sila.

- Acabará por apresentar novas leis capazes de contrariar os nossos objectivos.

- Ah, quem me dera apanhá-lo sozinho numa rua escura! - exclamou Catulo César, louco de raiva. - Como pode ele fazer uma coisa destas numa altura em que nem sequer temos dinheiro para financiar uma guerra que precisamos de vencer?

- Porque Públio Sulpício é esperto e determinado - disse Sila. E suspeito que por detrás dele está um homem chamado Caio Mário.

- Eles hão-de pagar - disse Catulo César.

- Vai devagar, Quinto Lutácio. Porque pode acontecer que sejas tu a pagar, e não eles - disse Sila. - De qualquer modo, eles temem-nos. E têm boas razões para nos temerem.

Previa a lei que mediassem dezassete dias entre a primeira contio em que uma lei era discutida e a reunião em que essa mesma lei era votada; Públio Sulpício Rufo continuou a realizar as suas contiones. E à medida que os dias passavam, a ratificação das suas leis parecia inevitável.

Na véspera do dia em que o primeiro par de leis de Sulpício seriam votadas, o jovem Quinto Pompeu Rufo e os seus amigos, todos eles filhos de senadores e cavaleiros, decidiram pôr termo às acções de Sulpício da única maneira que agora era possível - pela força. Sem que os seus pais ou os magistrados curuis soubessem, o jovem Pompeu Rufo e alguns outros reuniram mais de mil homens com idades compreendidas entre os dezassete e os trinta anos. Todos eles possuíam armaduras e armas, todos eles tinham estado, até há pouco tempo, na guerra contra os Italianos. E assim, enquanto Sulpício dirigia a contio que daria os retoques finais no seu primeiro par de leis, cerca de mil jovens da Primeira Classe, fortemente armados, avançaram sobre o Fórum Romano e atacaram imediatamente os homens que participavam na assembleia.

Um tal ataque apanhou Sila completamente desprevenido; ele e o seu colega Quinto Pompeu Rufo, rodeados por outros senadores, assistiam à reunião do alto dos degraus do Senado, e foi com estupefacção que viram o baixo Fórum transformar-se de repente num campo de batalha. A certa altura, conseguiu ver o jovem Quinto Pompeu Rufo fazendo grandes danos nas hostes adversárias; o pai, o cônsul júnior, que se encontrava ao lado de Sila, chamou pelo filho, angustiado; Sila agarrou-o com tanta força pelo braço que Pompeu Rufo não conseguiu mover-se.

- Quieto, Quinto Pompeu. Não há nada que possas fazer - disse Sila, sem mais. - Nem conseguirias chegar ao pé dele.

Infortunadamente, era tanta a gente que a batalha se estendia muito para lá do anfiteatro dos Comitia. O jovem Pompeu Rufo, que não era nenhum general, espalhara pouco os seus homens. Se os tivesse disposto em cunha, talvez conseguisse avançar no meio da multidão; mas não foi isso o que fez, e a guarda de Sulpício não teve qualquer dificuldade em recuperar as suas posições iniciais.

Lutando corajosamente, o jovem Pompeu Rufo conseguiu avançar pela orla do poço dos Comitia, de forma a aproximar-se dos rostra. Decidido a atacar Sulpício mal subiu à tribuna, o filho de Pompeu Rufo não viu sequer um corpulento indivíduo de meia-idade que por certo só deixara de ser gladiador depois de lhe terem retirado a espada. O antigo gladiador não teve grande dificuldade em atirar o jovem da tribuna abaixo. O filho de Pompeu Rufo caiu no meio da guarda de Sulpício e foi espancado até à morte.

Sila ouviu os gritos do pai, sentiu, mais do que viu, que vários senadores puxavam Pompeu Rufo para longe dali, e apercebeu-se de que a guarda, agora claramente vitoriosa, não tardaria a correr para os degraus do Senado. Como uma enguia, abriu caminho entre os senadores, dominados já pelo pânico, e, já sem a toga praetexta, lançou-se para o meio do pandemónio. Com um gesto rápido, apanhou uma chlamys de algum liberto grego que, durante a luta, perdera o manto; pôs o manto sobre a cabeça e fingiu ser um liberto grego que não pretendia outra coisa senão fugir daquela confusão. Num ápice, correu para trás da colunata da Basílica Pórcia, onde os comerciantes, acometidos de um verdadeiro frenesim, tentavam desmontar as tendas e fugir na direcção da Clivus Argentarius. A multidão foi-se desfazendo, entretanto, e a batalha acabou; Sila subiu a colina e atravessou a Porta Fontinalis.

Sabia muito bem para onde ia. Ia ver o grande responsável por tudo aquilo. Ia ver Caio Mário, o homem que queria chefiar uma guerra e ser eleito cônsul uma sétima vez.

Deitou fora o manto e bateu à porta de Mário, vestido unicamente com a túnica.

- Quero falar com Caio Mário - disse ele ao porteiro, no tom de quem vinha vestido com o seu traje de cônsul.

Incapaz de negar a entrada a um homem que conhecia tão bem, o porteiro abriu a porta e deixou-o entrar.

Mas foi Júlia quem apareceu, e não Caio Mário.

- Oh, Lúcio Cornélio, que coisa horrível! - disse ela. Virando-se para um criado, pediu que trouxessem imediatamente um jarro de vinho.

- Quero falar com Caio Mário - disse Sila, furioso.

- Não podes, Lúcio Cornélio. Ele está a dormir.

- Então acorda-o, Júlia. Se não o acordares, podes crer que eu tratarei do caso!

Júlia chamou outro criado.

- Pede a Estrofantes que acorde Caio Mário e lhe diga que Lúcio Cornélio Sila quer falar-lhe com urgência.

- O teu marido enlouqueceu? - perguntou Sila, pegando no jarro da água, pois estava com demasiada sede para beber vinho.

- Que queres dizer com isso, Lúcio Cornélio? - perguntou Júlia, com um ar defensivo.

- Ora, Júlia! Francamente! És a esposa do Grande Homem! Se tu não o conheces, quem o conhecerá? - atirou-lhe Sila. - O teu marido congeminou uma série de acontecimentos que, ao que ele crê, o levarão a ficar com o comando da guerra contra Mitridates. Promoveu um homem que está decidido a acabar com a mós maiorum, transformou o Fórum num campo de batalha e causou a morte do filho do cônsul Pompeu Rufo. Isto para não falar da morte de mais umas quantas centenas!

Júlia cerrou os olhos.

- Eu não posso controlá-lo - retorquiu ela.

- Ele enlouqueceu! - repetiu Sila.

- Não, Lúcio Cornélio! Ele está são!

- Então Caio Mário não é o homem que eu pensava que era.

- O que se passa é muito simples: ele quer combater contra Mitridates!

- E tu aprovas?

Júlia cerrou de novo os olhos.

- O que eu penso é que ele devia ficar em casa e deixar a questão da guerra nas tuas mãos.

Nesse momento, ouviram passos. Era Caio Mário que se aproximava. Calaram-se.

- O que é que se passa? - perguntou Mário ao entrar na sala. Que te traz aqui, Lúcio Cornélio?

- Uma batalha no Fórum - respondeu Sila.

- Isso foi imprudente - disse Mário.

- Sulpício é imprudente. A única alternativa que ele deixou ao Senado foi lutar pela sua existência com a espada. O jovem Quinto Pompeu está morto. Mário sorriu.

- Isso é de facto horrível! Nesse caso, as forças dirigidas pelo filho do cônsul júnior perderam a batalha, não é verdade?

- Precisamente. Após uma longa e terrível guerra, e prestes a enfrentar uma outra guerra que vai ser igualmente longa e terrível, Roma acaba de perder pelo menos uma centena dos seus melhores jovens! - atirou-lhe Sila, rispidamente.

- Outra guerra longa e terrível? Ora, Lúcio Cornélio, nunca ouvi maior disparate! Eu derrotaria Mitridates numa estação - disse Mário, complacentemente.

Sila insistiu.

- Caio Mário, porque não consegues meter na tua cabeça que Roma está sem dinheiro? Roma está falida! Roma não tem dinheiro para pagar a vinte legiões! A guerra contra os Italianos deixou Roma completamente endividada! O Tesouro está vazio! E nem mesmo o grande Caio Mário conseguiria vencer forças tão poderosas como as do Ponto numa única estação, se dispusesse apenas de cinco legiões!

- Eu posso pagar do meu bolso a várias legiões - disse Mário.

Sila fitou-o com uma expressão severa.

- Como Pompeu Estrabão? Mas se lhes pagas com o teu dinheiro, elas pertencem-te a ti e não a Roma, Caio Mário.

- De modo nenhum! Trata-se apenas de colocar os meus recursos à disposição de Roma.

- Pelo contrário! Trata-se de colocar os recursos de Roma à tua disposição! - contestou rispidamente Sila. - Tu irás comandar as tuas legiões!

- Vai para casa e acalma-te, Lúcio Cornélio. A perda do comando deixou-te transtornado.

- Eu ainda não perdi o meu comando! - ripostou Sila. Olhou para Júlia. - Sabes qual é o teu dever, Júlia dos Júlios Césares! Cumpre-o! Roma está primeiro que Caio Mário!

Júlia acompanhou-o até à porta com uma expressão impassível.

- Não digas mais nada, Lúcio Cornélio, peço-te. O meu marido não pode ter preocupações.

- Deves obediência a Roma, mais do que a Caio Mário, Júlia! Essa é que é a verdade!

- Eu sou a mulher de Caio Mário - disse ela, abrindo a porta. Tenho de lhe obedecer.

Bom, Lúcio Cornélio, desta vez perdeste!, disse Sila para si mesmo enquanto se encaminhava na direcção do Campo de Marte. Caio Mário está louco, tão louco como um vidente pisídio num transe profético, mas ninguém admitirá isso, e ninguém o deterá. A menos que eu o faça.

Lúcio Cornélio seguiu, não para sua casa, mas para a casa do cônsul júnior. A sua filha era agora uma viúva com um rapaz recém-nascido e uma menina de um ano.

- Pedi ao meu filho mais novo que ficasse com o nome de Quinto

- disse o cônsul júnior, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. - E é claro que temos o filhinho do meu querido Quinto, que perpetuará o ramo mais velho.

De Cornélia Sila não havia sinal.

- Como está a minha filha? - perguntou Sila.

- Destroçada, Lúcio Cornélio! Mas ela tem os filhos, sempre é algum consolo.

- Bom, Quinto Pompeu, por muito triste que tudo isto seja, e é-o de facto, eu não vim aqui para chorar - disse Sila, energicamente.

- Temos de convocar uma conferência. Eu sei que nesta altura tudo o que tu queres é ignorar o mundo exterior: falo por experiência própria, pois também perdi um filho. Mas o mundo exterior não desaparece como que por encanto. Peço-te, por isso, que estejas em minha casa amanhã ao alvorecer.

Exausto, Lúcio Cornélio Sila avançou lentamente pelo alto do Palatino, na direcção da sua nova casa e da esposa que, ansiosa, desatou a chorar de alegria ao vê-lo são e salvo.

- Não te preocupes comigo, Dalmática - disse ele. - A minha hora ainda está longe porque ainda falta muito para que o meu destino se cumpra.

- O nosso mundo está a chegar ao fim! - disse ela, angustiada.

- Não enquanto eu for vivo - retorquiu Sila.

Lúcio Cornélio Sila dormiu um longo sono sem sonhos, um sono de um homem muito mais novo que ele, e acordou antes do alvorecer sem saber bem o que havia de fazer. Mas isso não o inquietava; as coisas corriam-lhe melhor sempre que agia de acordo com o que a deusa Fortuna lhe ditava no momento, pensava Sila. Esperou ansioso pelo nascer do dia.

- De acordo com as minhas estimativas, a partir do momento em que a lei das dívidas senatoriais for aprovada, ou seja, esta manhã, o número de membros do Senado descerá para quarenta. Não chega para termos quoro - disse Catulo César com uma expressão acabrunhada.

- Ainda temos censores, não temos? - perguntou Sila.

- Sim - respondeu Cévola Pontifex Maximus. - Nem Lúcio Júlio nem Públio Licínio têm dívidas.

- Nesse caso, temos de partir do princípio de que Públio Sulpício ainda não se lembrou de que os censores podem ser integrados no Senado - disse Sila. - Quando se lembrar desse pormenor, virá com outra lei, é mais que certo. Entretanto, podemos tentar acabar com as dívidas dos nossos colegas expulsos.

- Concordo, Lúcio Cornélio - disse Metelo Pio, que abandonara Esérnia logo que soubera do que se passava em Roma e que, a caminho da casa de Sila, se informara de tudo junto de Catulo César e Cévola.

- Se ao menos esses loucos tivessem pedido dinheiro emprestado a homens da sua estirpe! É que se assim fosse, as suas dívidas poderiam ser canceladas, pelo menos provisoriamente! Mas caímos na nossa própria armadilha. Um senador que precisa de dinheiro emprestado tem de se mostrar muito discreto, caso não consiga obter um empréstimo junto de outro senador. E é por isso que acaba por cair nas mãos dos piores usurários.

- Ainda não entendo por que razão Sulpício decidiu atacar-nos desta maneira! - exclamou António Orador com uma expressão furiosa.

- Tacel - disseram todos os outros, irritados.

- Marco António, é possível que nunca cheguemos a conhecer os motivos que o levaram a fazer isto - disse Sila, com uma paciência que nele era invulgar. - Neste momento, de nada nos serve saber os motivos. O que ele vai fazer e o que nós vamos fazer é muito mais importante.

- Sendo assim, como é que vamos fazer em relação às dívidas dos senadores expulsos? - perguntou o Bacorinho.

- Já concordámos quanto à ideia do fundo. Terá de haver uma comissão para tratar do caso. Tu poderás ser o presidente da comissão, Quinto Lutácio. Nenhum senador com dívidas será capaz de te ocultar a sua verdadeira situação - disse Sila.

Mérula flamen Dialis soltou um risinho, mas tapou logo a boca com a mão.

- Peço desculpa pela minha leviandade - disse ele, culpabilizado, os lábios tremendo. - É que acaba de me ocorrer que seria uma decisão sensata se evitássemos salvar Lúcio Márcio Filipe! Por um lado, as suas dívidas são superiores ao total de todas as outras dívidas. E por outro, era uma maneira de nos vermos livres dele. No fim de contas, é apenas um entre muitos senadores. A sua expulsão do Senado não fará grande diferença. Bom, pelo menos trará alguma paz e tranquilidade ao Senado.

- Acho que é uma ideia óptima - disse Sila, num tom particularmente brando.

- O teu problema, Lúcio Cornélio, é que, politicamente, não tens uma posição coerente - disse Catulo César, escandalizado. - Pouco interessa o que nós pensamos de Lúcio Márcio. O importante é que ele pertence a uma velha e muito ilustre família. Uma família que deve manter o seu lugar no Senado. O filho de Lúcio Márcio, por exemplo, já é muito diferente dele.

- É claro que tens razão - suspirou Mérula.

- Muito bem, está decidido - disse Sila, com um sorriso pouco convicto. - Quanto ao resto, não podemos fazer outra coisa senão esperar pelos acontecimentos. Excepto uma coisa: acho que é tempo de acabarmos com o período de feriae. De acordo com as normas religiosas, as leis de Sulpício estão mais do que anuladas. Além disso, creio que seria bom levarmos Caio Mário e Sulpício a pensar que venceram e que nós não temos a mínima força.

- Mas nós não temos força nenhuma, de facto - disse António Orador.

- Não estou assim tão certo disso - retorquiu Sila. Virou-se para o cônsul júnior, até então silencioso e taciturno. - Quinto Pompeu, tu tens todos os motivos para deixar Roma. Sugiro-te que leves toda a tua família para as tuas terras do litoral. E não escondas a tua partida.

- E nós? Que vamos fazer? - perguntou Mérula, temeroso.

- Vocês não correm perigo. Se Sulpício quisesse matar os membros do Senado, tê-lo-ia feito ontem. Felizmente para nós, resolveu recorrer a processos mais constitucionais. O nosso pretor urbano está livre de dívidas? Não que isso conte, suponho. Um magistrado curul não pode ser expulso do seu cargo, mesmo que seja expulso do Senado - disse Sila.

- Marco Júnio não tem dívidas - disse Mérula.

- Óptimo. Assim não há lugar para equívocos. É que ele vai ter de governar Roma na ausência dos cônsules.

- De ambos os cônsules? Não me digas que também tencionas deixar Roma, Lúcio Cornélio! - disse Catulo César, estupefacto.

- Tenho cinco legiões de infantaria e dois mil homens de cavalaria à minha espera em Cápua - disse Sila. - Depois da minha partida precipitada, os boatos não devem ter parado. Tenho de acalmar os meus soldados.

- Não há dúvida, Lúcio Cornélio! Politicamente, és de uma incoerência total. Numa situação tão séria como esta, um dos cônsules tem de permanecer em Roma!

- Porquê? - perguntou Sila, erguendo uma sobrancelha. - Roma, neste momento, não se encontra sob a administração dos cônsules, Roma pertence a Sulpício. E eu quero que ele se convença de que Roma lhe pertence.

Sila recusou-se a alterar a sua posição, pelo que a reunião se desfez pouco depois. Terminada a reunião, Sila partiu para a Campânia.

Sila não foi a correr para a Campânia. Bem pelo contrário. Fez uma viagem lenta, montado numa mula, sem qualquer escolta, o chapéu tapando-lhe a cabeça, a cabeça sempre baixa. Ouvia o que as pessoas diziam; as notícias sobre as acções de Sulpício e a possível extinção do Senado tinham-se espalhado quase tão depressa como as notícias do massacre da Província da Ásia. Tendo escolhido a Via Latina, Sila passou por regiões inteiramente leais a Roma, e ficou a saber que muitos dos locais consideravam Sulpício um agente italiano, que alguns achavam mesmo que ele era um agente de Mitridates, e que ninguém aprovava uma Roma sem Senado. E embora referissem o nome mágico de Caio Mário, o conservadorismo inato das gentes do campo levava-as a sentir algum cepticismo quanto às capacidades do velho general para comandar aquela nova guerra. Sem que ninguém o reconhecesse, Sila participou de bom grado em muitas conversas, nas diversas estalagens onde ficou. Ninguém diria que ele era o cônsul sénior de Roma, pois vestia como qualquer outro viajante e deixara os lictores em Cápua.

E enquanto fazia o seu caminho, avançando ao ritmo lento da mula, deixava que os seus pensamentos se fossem desenhando, lentos também, incipientes quase, mas não totalmente incipientes. De uma coisa estava certo. Tinha tomado a decisão correcta ao voltar para as suas legiões. Porque aquelas eram as suas legiões - ou melhor, quatro delas eram-no. Tinha-as conduzido durante quase dois anos, àquelas legiões que lhe tinham dado a Coroa de Erva. A quinta legião era também da Campânia: fora chefiada primeiro por Lúcio César e depois por Tito Dídio e por Metelo Pio. Quando tivera de seleccionar uma quinta legião, Sila pensara em chamar uma legião treinada por Mário e que se encontrava ao serviço de Cina e Comuto. Mas ainda bem que não fiquei com essa legião!, pensou Lúcio Cornélio Sila.

- Esse é precisamente o problema que afecta todos os senadores

- disse Lúculo, o leal assistente de Sila. - Manda o costume que todo o dinheiro de um senador seja investido em terras e bens, e, como é natural, ninguém se preocupa em deixar algum dinheiro de reserva. Por isso, quando precisam de dinheiro com urgência, os senadores nunca têm dinheiro que chegue. Habituaram-se a pedir emprestado.

- Tu tens dívidas? - perguntou Sila, que nunca pensara no caso de Lúculo; tal como Caio Aurélio Cota, também Lúcio Licínio Lúculo fora integrado no Senado depois de Sila ter criticado publicamente os censores. Lúculo tinha apenas vinte e oito anos.

- Tenho dívidas no valor de dez mil sestércios, Lúcio Cornélio disse calmamente Lúculo. - Mas julgo que o meu irmão Varrão resolverá o problema. Actualmente quem tem dinheiro é ele, não eu. Eu tenho lutado pela vida. E graças ao meu tio Metelo Numídico e ao meu primo Pio, consegui entrar para o Senado.

- Pois anima-te, Lúcio Licínio! Quando estivermos no Oriente, teremos o ouro de Mitridates!

- Que tencionas fazer? - perguntou Lúculo. - Se andarmos depressa, talvez consigamos fazer-nos ao mar antes que as leis de Sulpício entrem em vigor.

- Não. Acho que devemos ficar para ver o que acontece - disse Sila. - Seria um disparate fazer-me ao mar com o meu comando em dúvida - suspirou. - Acho que é tempo de escrever a Pompeu Estrabão.

Os olhos cinzentos claros de Lúculo fitaram o general: no fundo daqueles olhos havia uma questão importante, uma pergunta que o seu possuidor não se atreve a fazer. Sila parecia controlar perfeitamente a situação.

Seis dias depois, Sila recebeu uma carta de Flaco Princeps Senatus, trazida por um correio não oficial; Sila abriu-a rapidamente e, com toda a atenção, leu-a. Era uma carta breve.

- Muito bem - disse ele para Lúculo, que trouxera a carta. Parece que restam apenas cerca de quarenta senadores no Senado. Os senadores exilados pela Comissão Vária estão a voltar para Roma mas como têm dívidas, não podem ser membros do Senado. Os cidadãos italianos e os cidadãos libertos vão ser distribuídos pelas trinta e cinco tribos. E a última notícia, última mas muito mais importante que as outras, é esta: Lúcio Cornélio Sila foi substituído por Caio Mário no comando das operações de guerra contra Mitridates, de acordo com uma lei especial aprovada pelo Povo soberano.

- Ah! - exclamou Lúculo, desanimado.

Sila deitou fora a carta e chamou um criado.

- A minha armadura e a espada - disse ele para o criado. Depois, virando-se para Lúculo, pediu-lhe: - Convoca todo o exército para uma assembleia.

Uma hora depois, subia à tribuna do fórum do acampamento; vestia uniforme militar, exceptuando o facto de trazer o seu chapéu de palha em vez do capacete. Põe a cara que eles estão habituados a ver, disse Sila para si mesmo - tens de parecer o Sila deles.

- Muito bem, soldados, parece que afinal não vamos combater Mitridates! - disse ele numa voz clara, firme, mas sem gritar. - Estiveram vocês aqui a perder tempo e afinal aqueles que detêm o poder em Roma, e que nem sequer são cônsules!, mudaram de ideias. Tomaram a seguinte decisão: por ordem da Assembleia da Plebe, o comando na guerra contra o rei Mitridates do Ponto irá para Caio Mário. O Senado de Roma já não conta, pois não tem senadores que cheguem para reunir quoro. Por isso, todas as decisões relacionadas com assuntos marciais e militares passaram a ser tomadas pela Plebe sob a chefia do seu tribuno, Públio Sulpício Rufo.

Fez uma pausa para que os soldados pudessem trocar observações em voz baixa e transmitir as suas palavras aos que estavam demasiado longe da tribuna e que, por isso, tinham dificuldade em ouvir o discurso. Depois, reatou a prelecção no mesmo tom de voz normal (Metróbio tinha-o ensinado a projectar a voz alguns anos antes).

- Como é evidente - disse -, o que conta neste caso é que eu sou o cônsul sénior legalmente eleito, aquele que, por lei, escolhe seja que comando for, e que o Senado de Roma me conferiu um poder proconsular enquanto durar a guerra contra Mitridates do Ponto. E, como é meu direito!, sou eu que escolho as legiões que vão comigo. E escolho-vos a vós. Escolho aqueles que me são fiéis em qualquer ocasião, em qualquer campanha, por muito extenuante que ela seja. Porque não haveria de vos escolher a vós? Vocês conhecem-me e eu conheço-vos. Eu não vos amo, embora acredite que Caio Mário ama os seus homens. Espero que vocês não me amem, embora acredite que os homens de Caio Mário o amam. Acontece que nunca achei que fosse necessário que os homens se amassem para realizarem uma missão colectiva, seja ela qual for. Sim, por que razão havia eu de vos amar? Vocês não passam de um bando de malandros mal cheirosos vindos directamente dos esgotos de Roma! Mas, se não vos amo, a verdade é que, e os deuses são testemunhas, vos respeito muitíssimo! Sempre lhes pedi que dessem o melhor de vocês mesmos e a verdade é que vocês nunca me decepcionaram! Nunca, por todos os deuses!

Um soldado desatou a aplaudir e, num instante, todos aplaudiam e davam vivas. Excepto o pequeno grupo que se encontrava mesmo em frente da tribuna. Os tribunos dos soldados, magistrados eleitos que comandavam as legiões do cônsul. Os homens do ano anterior, entre os quais se contavam Lúculo e Hortênsio, tinham gostado de trabalhar sob as ordens de Sila. Mas os homens daquele ano detestavam Sila, achavam-no um chefe demasiado ríspido e rigoroso. Sempre de olho neles, Sila deixou que os seus soldados o aplaudissem à vontade.

- Portanto, aqui temos estado nós preparando-nos para partir para a guerra contra Mitridates! Rumo à Grécia e à Ásia Menor! Não íamos devastar as colheitas da nossa querida Itália, não íamos violar mulheres italianas. Ah, teria sido uma campanha magnífica! Sabem por acaso quanto ouro tem Mitridates? Montanhas! Montanhas de ouro! Só na Arménia Menor tem mais de setenta fortalezas cheiinhas de ouro! Ouro que podia ser nosso. Claro, claro que Roma ficaria com a sua parte, com mais do que a sua parte! Há tanto ouro que até podíamos banhar-nos nele! Roma e nós! Isto para não falar das belíssimas mulheres da Ásia. Escravas não faltariam. E muitas, muitas coisas que os soldados apreciam.

Encolheu os ombros, ergueu-os muito direitos, mostrou as mãos abertas, vazias.

- Mas não pode ser, soldados. A nossa comissão foi-nos retirada pela Assembleia da Plebe. Que nunca disse quem devia ir combater ou quem devia comandar. Mas é legal. Pelo menos é o que me dizem. Embora eu não possa deixar de perguntar a mim mesmo se será legal derrubar o cônsul sénior no ano do seu consulado! Eu sou um servidor de Roma. Como todos vocês. Mas será melhor dizerem desde já adeus aos vossos sonhos de ouro e mulheres estrangeiras. Porque quando Caio Mário for para o Oriente combater o rei Mitridates do Ponto, levará as suas legiões e não as minhas. Ele não quer as minhas legiões.

Sila desceu então da tribuna, passou pelos seus vinte e quatro tribunos dos soldados sem olhar para nenhum deles e desapareceu na sua tenda, deixando a Lúculo a missão de dispersar os soldados.

- Foi uma obra-prima - disse Lúculo, de regresso à tenda do general. - Tu não tens reputação de orador, e aliás não segues sequer as normas da retórica. Mas uma coisa é certa: a tua mensagem não se perde!

- Obrigado, Lúcio Licínio - disse Sila, com uma expressão alegre, enquanto despia a armadura e a pteryges. - Sou da mesma opinião que tu.

- E que acontece agora?

- Espero que me libertem formalmente do meu comando.

- E vais mesmo fazer aquilo em que estás a pensar?

- Fazer o quê, Lúcio Licínio?

- Marchar sobre Roma.

Sila abriu muito os olhos.

- Meu caro Lúcio Licínio! Como podes sequer pensar uma coisa dessas?

- Isso não responde à minha pergunta - retorquiu Lúculo.

- Mas é a única resposta que te posso dar - disse Sila.

Dois dias depois era desferido o golpe. Os ex-pretores Quinto Calídio e Públio Cláudio chegavam a Cápua com uma carta oficialmente selada, enviada por Públio Sulpício Rufo, o novo senhor de Roma.

- Não podem entregar-me essa carta em privado - contestou Sila.

- Têm que ma dar na presença do exército.

Uma vez mais Lúculo ordenou às legiões que formassem em parada. Uma vez mais Sila subiu à tribuna - mas desta feita não estava sozinho. Com ele encontravam-se os dois ex-pretores.

- Soldados, apresento-vos Quinto Calídio e Públio Cláudio, que vêm de Roma - disse Sila, com um ar despreocupado. - Ao que parece, trazem-me um documento oficial. Chamei-vos a fim de que possam ser testemunhas do conteúdo desse documento.

Como levava muito a sério tudo o que fazia, Calídio tratou de deixar bem claro que era necessário que Sila verificasse e confirmasse o selo antes de abrir a carta. Sila fez exactamente como lhe era pedido. Depois de abrir a carta, Cálido deu início à leitura.

- Do concilium plebis do Povo de Roma para Lúcio Cornélio Sila. Por ordem desta assembleia, considere-se o destinatário afastado do posto de comando das operações de guerra contra o rei Mitridates do Ponto. Deverá mandar dispersar o seu exército e regressar a...

Calídio não pôde prosseguir. Uma pedra soberbamente atirada atingiu-o em cheio na testa e fê-lo cair por terra. Quase ao mesmo tempo, uma segunda pedra atingiu Cláudio, que vacilou, estonteado; outras pedras voaram então, até que Cláudio caiu também por terra, sob o olhar de um Sila absolutamente despreocupado.

As pedras pararam então, Sila baixou-se para ver os dois homens, depois levantou-se.

- Estão mortos - anunciou, e suspirou profundamente. - Bom, não há dúvida que o fogo está definitivamente atiçado! Suponho que, aos olhos da Assembleia da Plebe, a partir de agora seremos todos considerados personae non gratae. Matámos os enviados oficiais da Plebe. E isso disse ele, mantendo ainda um tom informal - deixa-nos apenas duas alternativas. Podemos permanecer aqui e esperar que nos levem a tribunal por traição. Ou então, vamos para Roma e mostramos à Plebe o que pensam os leais soldados do Povo de Roma acerca de uma lei e de uma directiva que consideram tão intoleráveis quanto inconstitucionais. Seja como for, eu terei de ir para Roma e levarei comigo estes dois homens mortos. E vou entregá-los pessoalmente à Plebe. No Fórum Romano. Perante aquele severo guardião dos direitos do Povo, Públio Sulpício Rufo. Porque tudo isto é obra dele. Obra dele e não de Roma! Fez uma pausa, respirou fundo.

- Para ir ao Fórum Romano, não preciso de companhia. No entanto, se houver aqui algum homem que esteja com vontade de ir dar um passeio até Roma, ficarei muito contente com a sua companhia! Dessa forma, poderei sentir-me mais tranquilo, pois saberei que no Campus Martius haverá gente decidida a velar pela minha segurança. Caso contrário, é muito possível que venha a ter o mesmo destino que o filho do meu colega cônsul, Quinto Pompeu Rufo.

Os soldados estavam todos com ele, naturalmente.

- Mas os tribunos dos soldados não marcharão contigo - disse Lúculo a Sila na tenda de comando. - Como não foram capazes de vir falar contigo pessoalmente, pediram-me que fosse o seu porta-voz. Dizem que não podem apoiar a marcha de um exército sobre Roma, que Roma é uma cidade sem protecção militar porque todos os exércitos de Roma se encontram dispersos por Itália. E acrescentam que em Roma, ou nos arredores de Roma, nunca há nenhum exército estacionado, a não ser quando se festeja um triunfo. Portanto, dizem eles ainda, ao marchares com um exército sobre Roma, sabes perfeitamente que Roma não possui nenhum exército capaz de te repelir. Por isso condenam a tua acção e vão tentar convencer os soldados a mudar de ideias.

- Desejo-lhes sorte - disse Sila, preparando-se para abandonar o acampamento. - Eles que fiquem aqui a chorar pelo facto de Roma não poder defender-se do meu exército. Sim, eles que fiquem por cá. Aliás, o melhor será fechá-los bem fechados num sítio qualquer. Unicamente para garantir a sua segurança. - Os olhos claros e frios fixaram Lúculo. - E tu, Lúcio Licínio? Estás comigo?

- Claro que estou, Lúcio Cornélio. Até à morte. O Povo usurpou os direitos e os deveres do Senado. Portanto, a Roma dos nossos antepassados deixou de existir. Não considero por isso que seja um crime marchar sobre uma Roma que não quero deixar aos meus filhos.

- Muito bem dito! - disse Sila, embainhando a espada e colocando o chapéu na cabeça. - Comecemos então a fazer História.

Lúculo parou.

- Tens razão! - exclamou, excitado. - Estamos a fazer História! Nunca um exército romano marchou alguma vez sobre Roma!

- Também nunca houve um exército romano que fosse vítima de tantas e tão profundas provocações - retorquiu Lúcio Cornélio Sila.

Cinco legiões de soldados romanos, seguindo pela Via Latina, puseram-se, algum tempo depois, a caminho de Roma, com Sila e o seu lugar-tenente à frente e um carro puxado por mulas, transportando os corpos de Calídio e Cláudio, na retaguarda. Antes de deixar Cápua, Sila enviara um correio a Cumas, com uma mensagem destinada a Quinto Pompeu Rufo; por isso, quando Sila chegou a Teano dos Sidicinos, Pompeu Rufo estava lá à sua espera.

- Eu não gosto disto! - exclamou o cônsul júnior com um ar profundamente infeliz. - Não posso gostar disto, Lúcio Cornélio! Porque vais atacar Roma! E Roma é uma cidade sem defesas!

- Nós vamos marchar sobre Roma - retorquiu calmamente Sila.

- Não te preocupes, Quinto Pompeu. Sabes, é que não será preciso invadir a indefesa Roma. O meu exército veio comigo unicamente para me fazer companhia. A disciplina nas minhas hostes nunca foi tão rigorosa. Os meus mais de duzentos e cinquenta centuriões têm ordens para não permitir sequer o roubo de um nabo. Os meus homens têm rações para um mês e compreendem perfeitamente as minhas ordens.

- Nós não precisamos da companhia do teu exército.

- O quê? Dois cônsules sem uma escolta adequada?

- Temos os lictores.

- Ora aí está um pormenor interessante. Os lictores decidiram acompanhar-nos, ao passo que os tribunos dos soldados optaram pelo contrário - disse Sila. - É óbvio que a atitude destes homens em relação ao que se passa em Roma é determinada pelo facto de terem ou não sido eleitos para os seus cargos.

- Porque estás tão feliz! - perguntou Pompeu Rufo, desesperado.

- Não sei ao certo - retorquiu Sila, escondendo a sua irritação atrás de uma expressão surpreendida. Era altura de tentar seduzir o seu sentimental e desconfiado colega. - Se estou realmente feliz, talvez seja pelo facto de estar farto das imbecilidades do Fórum, dos homens que pensam que sabem mais do que manda a mós maiorum, dos homens que querem destruir aquilo que os nossos antepassados construíram com tanto cuidado e paciência. Tudo o que quero é uma Roma digna dos seus antepassados. Uma Roma dirigida pelo Senado, por um Senado mais forte que todas as outras instituições. Uma Roma onde aqueles que pretendem instalar-se como tribunos da plebe sejam detidos, controlados; uma Roma em que esses tribunos da plebe não tenham inteira liberdade para fazer o que lhes passa pela cabeça. Há momentos, Quinto Pompeu, em que não podemos ficar parados, em que não podemos permitir que outros homens dêem cabo de Roma. Homens como Saturnino e Sulpício. Mas, em primeiro lugar, homens como Caio Mário.

- Caio Mário combaterá - disse Pompeu Rufo com um ar pesaroso.

- Combaterá com quê? A legião mais próxima de Roma encontra-se em Alba. Sim, imagino que Caio Mário tentará atrair Cina e as suas tropas. Cina está nas mãos dele, disso estou eu certo. Mas duas coisas impedi-lo-ão de fazer isso, Quinto Pompeu. A primeira é a tendência natural de todos os outros homens em Roma para duvidar dos meus apetites bélicos. Dirão que se tratará apenas de uma manobra para frustar os planos adversários, ninguém acreditará que eu possa nutrir amargos intentos bélicos. A segunda é o facto de Caio Mário ser um privatus. Ele não tem nenhum cargo, não lhe foi atribuído qualquer poder. Se pedir o auxílio de Cina, terá de o fazer na sua qualidade de amigo de Cina, e não na qualidade de cônsul ou procônsul. E duvido muito que Sulpício apoie uma tal acção. Porque Sulpício será um daqueles que pensarão que o meu gesto não passará de uma manobra, de um estratagema destinado a frustrar, a abafar os seus objectivos.

O cônsul júnior fitava agora o seu colega com verdadeiro terror: que belas palavras! Sim, de facto, nunca ouvira tão belas, tão correctas palavras. Sim, por aquelas palavras Quinto Pompeu Rufo podia concluir que Lúcio Cornélio Sila tencionava de facto invadir Roma.

Por duas vezes - a primeira em Aquino, a segunda em Ferentino - o exército de Sila foi contactado por enviados. A notícia de que Sila marchava sobre Roma devia ter voado como uma águia. Por duas vezes, os enviados ordenaram a Sila que desistisse do comando em nome do Povo e que mandasse o seu exército regressar a Cápua; por duas vezes Sila recusou, embora da segunda tivesse acrescentado:

- Diz a Caio Mário, a Públio Sulpício e aos senadores que restam que me encontrarei com eles no Campo de Marte.

Uma proposta em que os enviados de Roma não acreditaram; uma proposta que, aliás, não era séria. Sila não tinha a mínima intenção de se encontrar com eles no Campo de Marte.

Em Túsculo, Sila deparou com o praetor urbanus, Marco Júnio Bruto, esperando no meio da Via Latina, com outro pretor para lhe dar apoio moral. Os seus doze lictores - seis de cada um - encontravam-se reunidos na berma da estrada, tentando esconder as machadas dos fasces.

- Lúcio Cornélio Sila, o Senado e o Povo de Roma enviaram-me para te comunicar que o teu exército não poderá passar daqui - disse Bruto. - As tuas legiões estão armadas, não se deslocam a Roma para celebrar um triunfo. Proíbo-as, pois, de avançar mais um metro que seja.

Sila nada disse: limitou-se a ficar onde estava, com um ar perfeitamente impassível. Num ápice, os dois pretores foram brutalmente atirados para o meio dos aterrados lictores, e a marcha logo prosseguiu. Quando a Via Latina encontrou a primeira das estradas diverticulum que rodeavam Roma, Sila parou e dividiu as suas forças; quem acreditasse ainda na sua história de que o exército permaneceria no Campo de Marte, concluiria agora, sem sombra de dúvida, que Sila optara pela invasão.

- Quinto Pompeu, vai com a Quarta Legião para a Porta Colina

- disse Sila, sem saber, no fundo, se o seu colega teria coragem para levar tal tarefa até ao fim. - Não entrarás na cidade - acrescentou, afavelmente. - Por isso, não te preocupes. A tua missão consistirá em impedir a entrada de outras legiões. Instala os teus homens num acampamento e aguarda as minhas ordens. Se vires que há tropas avançando pela Via Valéria, manda chamar-me. Eu estarei na Porta Esquilina.

Virou-se então para Lúculo.

- Lúcio Licínio, chefiarás a Primeira e a Terceira. Tens um longo caminho a percorrer. Atravessarás o Tibre pela ponte Múlvia, após o que, seguindo pelo Campo Vaticano, te dirigirás para Transtiberim, onde pararás. Ocuparás toda essa zona, e defenderás todas as pontes: as pontes da Ilha do Tibre, a ponte Emílio e a velha ponte de madeira.

- E a ponte Múlvia? Não deixo lá soldados?

Sila fitou-o com um sorriso triunfante.

- Não virão legiões pela Via Flamínia, Lúcio Licínio. Recebi uma carta de Pompeu Estrabão. Ele deplora as acções inconstitucionais de Públio Sulpício, e ficará muito contente se Caio Mário não assumir o comando da guerra contra Mitridates.

Sila aguardou na encruzilhada que Pompeu Rufo e Lúculo se afastassem o suficiente, e ordenou depois às suas duas legiões - a Segunda e uma outra sem qualquer denominação, pois não era uma legião do cônsul - que avançassem na direcção da Porta Esquilina. Na junção da Via Latina com a Via Ápia e com a estrada que circundava Roma, não era ainda possível ver se havia gente nas Muralhas Servias; porém, passado algum tempo, todos os soldados puderam verificar que as muralhas estavam cheias de gente que, espantada, incrédula, assistia ao avanço das duas legiões.

Ao chegar à Porta Esquilina, Sila não revelou a mínima hesitação: mandou os homens da sua legião sem designação subir às Muralhas Servias e ocupar a parte destas que era conhecida pelo nome de Agger; esta zona das muralhas ia desde a Porta Colina até à Porta Esquilina, o que significava que os homens de Sila ficariam em contacto com os homens de Pompeu Rufo. Com uma legião espalhada ao longo da Agger, Sila avançou com as primeiras duas coortes da Segunda Legião para a grande praça situada imediatamente a seguir à Porta Esquilina. As outras coortes, deixou-as estacionadas à entrada daquela Porta. Roma encontrava-se cercada. O que a seguir acontecesse dependia exclusivamente de Públio Sulpício e Caio Mário.

O monte Esquilino não era um local próprio para manobras militares. As ruas que conduziam ao Fórum Esquilino eram estreitas, estavam permanentemente congestionadas e sempre cheias de tendas, barracas de vendedores e carros; e a grande praça do mercado era normalmente ocupada por mercadores, vagabundos, lavadeiras, escravos que iam buscar água, gente que comia e bebia, carros de bois, burros cheios de sacas, vendedores ambulantes, escolas baratas e uma floresta de tendas. Havia muitos caminhos e ruelas que conduziam ao Fórum Esquilino, mas havia também duas grandes ruas que terminavam aí a Clivus Suburanus, que vinha do alto do bairro de Subura, e a Vicus Sabuci, que descia da zona das oficinas e manufacturas situada a sul e a leste do pântano denominado Palus Ceroliae. E seria precisamente no Fórum Esquilino, um local nada apropriado para se travar uma batalha, que se desenrolaria a batalha pelo domínio de Roma, cerca de uma hora depois de Sila ter entrado na cidade.

O Fórum Esquilino, naturalmente, foi impiedosamente limpo de gente e tendas: ocupavam-no agora os soldados de Sila, atentos, vigilantes. De armadura completa, Sila conduziu a sua mula para junto do vexillum do seu exército e dos estandartes da Segunda Legião do cônsul. Ao fim de uma hora, começaram a ouvir-se gritos e outros ruídos vindos das ruas que conduziam à praça, gritos e ruídos que se foram tornando cada vez mais fortes à medida que as tropas adversárias de Sila se aproximavam da praça.

Essas tropas irromperam pelo Fórum Esquilino vindas de todos os caminhos e ruelas que a ele conduziam; constituíam-nas a vanguarda dos ”guarda-costas” de Sulpício e todos os escravos e libertos que Caio Mário e o filho tinham conseguido reunir, em grande parte graças aos esforços de Lúcio Decúmio e dos outros dirigentes das congregações das encruzilhadas. E pararam de repente ao verem as hostes de legionários romanos, os estandartes prateados brilhando, os tambores e os trombeteiros concentrados ao lado do general, aguardando - calmamente, ao que parecia - as suas ordens.

- Trombeteiro, toca: espadas e escudos preparados - disse Sila com uma voz calma e clara.

Ouviu-se uma única trombeta; logo de seguida, ouviu-se o ruído penetrante de mil espadas retiradas ao mesmo tempo das suas bainhas, e o ruído seco de mil escudos preparados para aguentar os golpes inimigos.

- Tambores, toquem: cerrar fileiras e aguardar ataque - disse Sila, a sua voz chegando facilmente à indisciplinada multidão inimiga.

Os tambores fizeram-se ouvir: um rufar profundo e prolongado, muito mais perturbador para o inimigo do que os eventuais gritos de guerra.

Nesse momento, a multidão avançou. À sua frente encontrava-se Caio Mário, de espada na mão e o manto escarlate de general flutuando-lhe nas costas; atrás dele, estavam Sulpício e o jovem Mário.

- Atacar! - bradou Mário, com uma voz esganiçada.

Os seus homens procuraram obedecer mas, naquele espaço restrito, não conseguiram ganhar o ímpeto necessário para fazer recuar a linha da frente de Sila, a qual, com nítido desdém, se limitou a aguentar a carga com os escudos.

- Trombeteiros, toquem: combater o inimigo! - disse Sila que, nesse momento, agarrou no estandarte com a águia prateada da Segunda Legião.

Fazendo um esforço terrível, unicamente para agradar ao seu general (pois agora que tinha chegado o momento da verdade, ninguém queria que houvesse derramamento de sangue), os soldados de Sila ergueram as espadas e ripostaram às forças de Mário e Sulpício.

Naquelas circunstâncias, não seria possível pôr em prática nenhuma táctica. O Fórum Esquilino transformou-se numa massa confusa de guerreiros que desferiam golpes sem qualquer direcção ou controlo. Ao fim de alguns minutos, já a Primeira Coorte tinha avançado pelas Clivus Suburanus e pela Vicus Sabuci, logo seguida pela Segunda Coorte; ao mesmo tempo, várias coortes penetravam, em disciplinadas filas, pela Porta Esquilina, repelindo facilmente os civis que lutavam pela causa de Mário e Sulpício. Sila, que continuava montado na sua mula, avançou um pouco para ver se poderia fazer alguma coisa, já que, no meio daquela confusão, ele era o único que, por estar mais alto, conseguia ter uma ideia do que se passava. E descobriu que, em todas as ruas e ruelas, os habitantes dos edifícios mais altos atiravam todo o tipo de objectos - vasos de barro, achas, tijolos - aos seus soldados. Alguns, pensou Sila, que em tempos vivera numa ínsula idêntica àquela, estavam furiosos com a invasão da cidade; mas outros atiravam tais objectos unicamente porque não conseguiam resistir à tentação de interferir naquela rixa generalizada sem que ninguém os visse.

- Arranjem-me archotes - disse ele ao aquilifer que devia empunhar o estandarte com a águia prateada da sua legião.

Os archotes não tardaram a aparecer.

- Quero ouvir todos os tambores e trombetas, no máximo do seu volume - disse Sila.

Naquele espaço limitado, rodeado de ínsulas, o barulho era de enlouquecer; tudo parou por segundos, os preciosos segundos de que Sila precisava.

- Se algum habitante destes prédios atira outro objecto que seja, pego fogo à cidade! - gritou ele a plenos pulmões, após o que pegou num archote e o arremessou com tal perícia que o archote foi direito a uma janela que estava aberta. Sila atirou ainda mais alguns archotes e, num instante, todas as cabeças desapareceram e mais nenhum objecto foi arremessado contra os soldados invasores.

Satisfeito, Sila voltou a concentrar-se na batalha, seguro de que não haveria mais bombardeamentos. Os habitantes da ínsula compreendiam agora que aquilo não era nenhum circo, que era de facto algo de sério. Uma batalha era uma coisa - um fogo era outra coisa, completamente diferente. Toda a gente temia mais o fogo do que a guerra.

Chamou então uma coorte que não participara ainda na batalha e mandou-a avançar pela Vicus Sabuci; depois, viraria à direita para a Vicus Sobrius e de novo à direita para a Clivus Suburanus, onde atacaria as forças de Mário e Sulpício pela retaguarda.

Esse ataque revelou-se o momento decisivo; a indisciplinada turba afrouxou o seu ímpeto, depois parou e, por fim, entrou em pânico, deixando Mário a gritar que todos os escravos que continuassem a lutar seriam libertos, e Sulpício (que não era nenhum cobarde) a combater com o jovem Mário ainda no Fórum Esquilino. Mas não demorou muito para que também Mário, Sulpício e o jovem Mário fugissem, descendo a toda a pressa a Vicus Sabuci, com as tropas inimigas perseguindo-os desenfreadamente, comandadas por Sila, que empunhava ainda o estandarte da águia prateada.

No templo de Tellus, no bairro das Carinas, onde havia algum espaço, Mário tentou convencer o seu poliglota exército a regressar ao combate. Mas os seus homens recusaram-se a comportar-se profissionalmente. Chorando, largaram espadas e bastões e desataram a fugir na direcção do Capitólio. Mesmo dentro das ruas de uma cidade, os soldados eram melhores que os civis.

Quando Mário, o filho e Sulpício desapareceram subitamente, a batalha parou por completo. Sila desceu a Vicus Sandalarius até às terras comunitárias dos pântanos, situadas aos pés do bairro das Carinas, e onde se encontravam a Via Sacra e a Via Triumphalis. Ordenou então aos tambores e aos trombeteiros que chamassem a Segunda Legião. Esta não tardou. Alguns centuriões comunicaram então a Sila que uns quantos soldados tinham sido apanhados a pilhar.

- Avisei-os de que não permitiria pilhagens! - disse Sila. - Um legionário de Roma não saqueia Roma.

Os culpados foram imediatamente executados: uma lição salutar para todos os soldados.

- Mandem chamar Quinto Pompeu e Lúcio Lúculo - ordenou Sila, depois de mandar dispersar ordenadamente.

Pompeu Rufo e Lúculo não tinham tido sequer necessidade de lutar.

- Ainda bem - comentou Sila. - Eu sou o cônsul sénior, a responsabilidade é toda minha. As tropas eram minhas e, se vos acontecesse alguma coisa, eu é que seria alvo de todas as censuras.

Sim, pensou Lúculo, fitando maravilhado o general: aqui está um homem correcto e justo e que, de repente, muda de ideias e invade Roma. Um homem complexo. Não, essa não era a palavra exacta. Sila era um homem com alterações de humor tão radicais, tão profundas, que ninguém poderia saber como seriam as suas reacções fosse em que situação fosse. Tal como ninguém poderia saber que factores desencadeariam tais reacções. Ninguém, excepto Sila, suspeitava Lúculo.

- Lúcio Licínio, deixa sete coortes da Primeira junto ao rio a fim de manter a calma no Transtiberim. Manda três coortes da Primeira guardar os celeiros do Aventino e da Vicus Tuscus: é preciso prevenir eventuais pilhagens. A Terceira Legião defenderá os pontos mais sensíveis ao longo do rio. Manda uma coorte para os seguintes locais: o porto de Roma, o Campus Lanatarius, as Piscinae Publicae, a Porta Capena, o Circus Maximus, o Fórum Boarium, o Fórum Holitorium, o Velabrum, o Circo Flamínio e o Campo de Marte. Sim, isso dá dez coortes para dez locais diferentes.

Virou-se então para o cônsul júnior.

- Quinto Pompeu, mantém a Quarta Legião junto à Porta Colina. É preciso que essa legião continue vigilante, para o caso de aparecerem tropas inimigas na Via Valéria. Quanto à outra legião, dispersa as suas coortes pelas colinas da zona norte e da zona leste: Quirinal, Viminal, Esquilina. E põe duas coortes na Subura.

- E não mandamos tropas para o Fórum Romano e para o Capitólio? Sila abanou a cabeça enfaticamente.

- De maneira nenhuma, Lúcio Licínio. Não vou imitar Saturnino nem Sulpício. A Segunda Legião pode permanecer ao fundo das encostas do Capitólio e à volta do Fórum, mas não poderá penetrar nesses locais. Quero que o Povo se sinta seguro quando eu convocar uma assembleia.

- Tu ficas aqui? - perguntou pompeu Rufo.

- Sim, Lúcio Licínio, tenho outra missão para ti. Manda alguns arautos anunciar pela cidade que o arremesso de objectos de uma ínsula contra os nossos soldados será considerado um acto de guerra contra os cônsules legalmente eleitos e que a ínsula em questão será imediatamente incendiada. Depois, manda outros arautos proclamar que, à segunda hora do dia, decorrerá no Fórum uma Assembleia de Todo o Povo. - Sila fez uma pausa para ver se se teria esquecido de alguma coisa. Depois, acrescentou: - Logo que tenham realizado essas tarefas, voltem para aqui.

O centurião primus pilus da Segunda Legião, Marco Canuleio, apareceu nesse momento, com um ar perfeitamente satisfeito; esplêndido sinal, pensou Sila, aliviado. Significa que os meus soldados continuam a ser os meus soldados.

- Há sinais deles, Marco Canuleio? - perguntou. O centurião abanou a cabeça.

- Não, Lúcio Cornélio, Públio Sulpício foi visto a atravessar o Tibre num barco, o que pode querer dizer que se dirige para um porto algures na Etrúria. Crê-se que Caio Mário e o filho fugiram para Óstia. O pretor urbano, Marco Júnio Bruto, também fugiu.

- Idiotas! - exclamou Lúculo, surpreendido. - Se realmente sentissem que a lei estava do lado deles, teriam ficado em Roma. Com certeza que sabem que teriam mais hipóteses se discutissem contigo no Fórum!

- Tens toda a razão, Lúcio Licínio - disse Sila, satisfeito com a interpretação do seu lugar-tenente. - Julgo que entraram em pânico disse. - Se tivessem parado para reflectir, por certo teriam concluído que era mais acertado ficarem em Roma. Mas eu tenho sempre sorte, Lúcio Licínio. Felizmente para mim optaram por deixar a cidade.

Sorte? Ora, ora!, pensou Sila. Mário e Sulpício sabiam perfeitamente que se tivessem ficado, eu acabaria por mandá-los matar. Secretamente, claro. Se há coisa que não me interessa, é discutir com eles no Fórum. Eles é que são os heróis populares, não eu. Mesmo assim, a sua fuga é uma espada de dois gumes. Não terei de arranjar maneira de os matar sem dar nas vistas - mas ao mesmo tempo terei de aguentar o ódio do povo, pois estou decidido a condená-los ao exílio.

Durante toda a noite, os soldados patrulharam as ruas e as praças de Roma. Fogueiras ardiam em todos os locais onde era possível acendê-las. Nas ruas só se ouvia o ruído das caligae ferradas dos soldados, um ruído que os Romanos nunca tinham ouvido sob as suas janelas. A cidade fingia que dormia e levantou-se a tremer, numa madrugada gelada, quando ouviu os arautos proclamando que Roma se encontrava em paz, sob a protecção dos cônsules legalmente eleitos, e que à segunda hora do dia decorreria uma assembleia no Fórum.

Surpreendentemente, muita gente acorreu à assembleia. Nem mesmo os apoiantes de Mário e Sulpício das Segunda, Terceira e Quarta Classes, faltaram. A Primeira Classe comparecera em massa; quanto à Quinta Classe e aos proletários, tinham-se abstido de assistir à reunião.

- Dez mil, quinze mil - disse Sila a Lúculo e Pompeu Rufo, enquanto desciam a Clivus Sacer. Sila trazia a sua toga debruada a púrpura, tal como Pompeu Rufo, e Lúculo vestira a toga branca, com a faixa larga de senador caindo do ombro direito da túnica; não poderia haver nenhum soldado por perto, nem qualquer sinal de poder armado.

- É absolutamente vital que todas as palavras que vou dizer sejam ouvidas por todos os homens presentes. Por isso, distribuam adequadamente todos os arautos, de modo a que estes façam chegar o meu discurso a toda a multidão.

Precedidos pelos lictores, os cônsules avançaram por entre a turba e subiram aos rostra, onde Flaco Princeps Senatus e Cévola Pontifex Maximus os aguardavam. Para Sila, aquele confronto assumia uma importância enorme, pois não tinha ainda estado com nenhum membro do agora reduzido Senado, nem fazia a mínima ideia se homens como Catulo César, os censores, oflamen Dialis ou os dois que o esperavam nos rostra, estariam ao seu lado depois de ter imposto o poder do exército sobre as pacíficas instituições governamentais.

Era visível que Flaco e Cévola não estavam felizes. Ambos estavam de alguma forma ligados a Mário; Cévola, porque a sua filha estava prometida em casamento ao jovem Mário; Flaco, porque conseguira chegar a cônsul e a censor unicamente graças ao apoio de Mário. Sila não tinha agora tempo para ter uma conversa demorada com eles, mas isso não significava que não trocasse com eles algumas palavras.

- Estão comigo? - perguntou. Cévola respirou fundo, nervosamente.

- Sim, Lúcio Cornélio.

- Então oiçam o que eu tenho a dizer a esta multidão. O meu discurso responderá a todas as vossas questões e dúvidas. - Olhou para os degraus do Senado e para o pódio, onde se encontrava Catulo César, ao lado dos censores, de António Orador e de Mérula flamen Dialis. Catulo César fez-lhe um breve aceno.

- Oiçam com atenção! - pediu Sila.

Virou-se então para o baixo Fórum - o que significava que estava de costas para o Senado - e começou a falar. O seu aparecimento não fora saudado com aplausos nem vivas, mas também não suscitara vaias ou assobios. O que significava que aquela audiência estava preparada para escutar, e não apenas porque a cidade estava cheia de soldados.

- Povo de Roma! Ninguém está mais consciente do que eu da gravidade das minhas acções! - disse ele na sua voz clara e sonora.

- A presença de um exército nas ruas de Roma deve-se única e exclusivamente à minha pessoa. Eu sou o cônsul sénior, legalmente eleito e legalmente nomeado para o comando do meu exército. Fui eu quem trouxe este exército para Roma, eu e mais ninguém. Os meus colegas agiram de acordo com as minhas ordens, pois a isso são obrigados, incluindo o meu cônsul júnior, Quinto Pompeu Rufo, embora eu deva lembrar que o filho de Pompeu Rufo foi assasssinado aqui, no nosso sagrado Fórum Romano, pela ralé de Sulpício.

Sila falava lentamente, a fim de que os arautos pudessem repetir as suas palavras. Fez uma pausa precisamente para que os arautos pudessem parar e ouvir o seu discurso.

- Há já demasiado tempo, Povo de Roma, que o direito do Senado e dos cônsules a organizar a administração e as leis de Roma vem sendo ignorado. Em tempos mais recentes, esse direito chegou mesmo a ser esmagado por um reduzido número de demagogos que se intitulam tribunos do povo mas que não passam de homens egoístas, loucos pelo poder. Estes indivíduos sem escrúpulos, depois de se verem eleitos como guardiões dos direitos do Povo, abusam da confiança neles depositada de uma forma totalmente irresponsável. A desculpa que apresentam é sempre a mesma: dizem que agem em nome do ”Povo soberano”! Mas a verdade é outra, Povo de Roma: eles agem unicamente para defender os seus interesses! O povo é traído e enganado pelas promessas de liberalidade e de privilégios, promessas que este Estado não pode de maneira nenhuma cumprir. Não esqueçamos que estes homens costumam subir precisamente nos momentos em que o Estado menos condições tem para cumprir tais promessas. E é por isso mesmo que eles têm êxito! Eles jogam com os vossos desejos e medos! Mas eles não pretendem o vosso bem: o que prometem, não podem cumprir. Por exemplo: alguma vez Saturnino vos deu cereais grátis? Claro que não! Porque não havia cereais disponíveis nos nossos celeiros. Se houvesse cereais em quantidade, os cônsules e o Senado tê-los-iam distribuído pelo povo. Quando os cereais finalmente chegaram a Roma, foi o vosso cônsul, Caio Mário, quem o distribuiu, e é claro que não o deu de graça, mas vendeu-o a um preço muito razoável

Sila fez uma nova pausa a fim de que os arautos pudessem acompanhar o seu discurso.

- Acreditam realmente que Sulpício teria aprovado uma lei tendo em vista o cancelamento das vossas dívidas? Claro que ele não faria uma coisa dessas! Mesmo que eu e o meu exército não tivéssemos entrado em Roma, Sulpício não teria poder para fazer uma coisa dessas. Nenhum homem pode afastar toda uma classe do lugar a que tem direito, como Sulpício fez com o Senado!, pelo facto de alguns membros dessa classe terem dívidas, e depois mudar de ideias e cancelar todas as dívidas! Se examinarem atentamente o comportamento de Sulpício, chegarão facilmente a estas conclusões: Sulpício queria destruir o Senado, encontrou uma maneira de o fazer, e levou o povo a pensar que o trataria de um modo completamente diferente. Depois, claro, de ter convencido o povo que os senadores eram seus inimigos. Sempre com o isco no anzol! E o isco era a eventualidade de um cancelamento geral das dívidas. Mas ele abusou de vós, Povo de Roma. Porque Sulpício nunca disse, em nenhuma assembleia pública, que pretendia um cancelamento geral das dívidas! Em vez disso, mandou os seus agentes para o meio de vós, espalhando boatos sobre uma tal medida. Não vêem agora como ele era falso? Se tencionasse realmente cancelar as dívidas, tê-lo-ia anunciado da tribuna. Nunca o fez. Abusou de vós, mostrando a maior indiferença pela vossa difícil situação. Ao passo que eu, na minha qualidade de cônsul, garanti uma diminuição da carga representada pelas dívidas, sem minar a estrutura financeira, e fi-lo para todos os Romanos, desde os mais ricos aos mais pobres. Fi-lo até para aqueles que não são Romanos! Promulguei uma lei geral limitando o pagamento dos juros ao juro sobre o capital, apenas, e à taxa original. Por isso, fui eu, e não Sulpício, quem contribuiu para diminuir o peso das dívidas!

Sila parou de falar e, lentamente, fez um círculo completo, mirando a multidão à volta da tribuna, fingindo que procurava algo ou alguém no meio daquele mar de gente. Repetiu o mesmo movimento várias vezes, após o que encolheu os ombros, erguendo as mãos num gesto de fútil busca.

- Onde está Públio Sulpício? - perguntou, com um ar surpreendido.

- Quem matei eu desde que trouxe o meu exército para Roma? Uns quantos escravos e libertos, uns quantos ex-gladiadores. Ralé. Não matei nenhum respeitável Romano. Nesse caso, por que razão Públio Sulpício não se encontra presente, por que razão não está aqui para vos falar, para refutar aquilo que eu digo? Peço a Públio Sulpício que venha até à tribuna e que conteste as minhas palavras, que tenha comigo uma discussão decente e honrada. Não na Cúria Hostília, mas aqui, à frente do seu ”Povo soberano”! - Pôs as duas mãos juntas à volta da boca e gritou: - Públio Sulpício, tribuno da plebe, peço-te que venhas à tribuna e que repliques ao meu discurso!

Mas a única resposta que obteve foi o silêncio da multidão.

- Ele não está aqui para responder, Povo de Roma, porque quando eu, o cônsul legalmente eleito!, entrei nesta cidade, acompanhado pelos meus únicos amigos, os meus soldados, reivindicando justiça para mim e para eles, Públio Sulpício fugiu. Mas porque fugiu ele? Temia que o matassem? Porque haveria de nutrir tal receio? Tentei eu porventura matar algum magistrado eleito, ou mesmo um qualquer respeitável habitante de Roma? Vim para esta tribuna vestido de armadura e empunhando uma espada escorrendo sangue? Não! Vim para esta tribuna com a toga debruada a púrpura, com a toga que simboliza o meu alto cargo, e os meus únicos amigos, os meus soldados, não estão aqui para ouvir o que vos estou a dizer. Eles não precisam de estar aqui! Eu sou o representante deles, legalmente eleito, tal como sou o vosso representante, legalmente eleito. No entanto, Sulpício não está cá! Por que razão? Acreditam realmente que ele temia que o matassem? Se temia que o matassem, então é porque sabia que o que tinha feito era ilegal e traiçoeiro. Quanto a mim, francamente, preferiria conceder-lhe o benefício da dúvida e desejaria de todo o coração que ele estivesse aqui hoje!

Era altura de parar de novo, de perscrutar por entre a multidão, de fingir que desejava que Sulpício estivesse presente. Sila voltou a pôr as mãos em taça à volta da boca, e gritou:

- Públio Sulpício, tribuno da plebe, peço-te que subas a esta tribuna! Vem contestar as minhas afirmações!

Ninguém subiu à tribuna.

- Desapareceu. Públio Sulpício desapareceu, Povo de Roma. Fugiu na companhia do homem que o enganou, da mesma forma que vos enganou a vós: Caio Mário! - gritou Sila.

Nesse instante a multidão começou a agitar-se, a murmurar; nenhum elemento do Povo de Roma gostava que se referissem àquele homem num tom condenatório.

- Sim, eu sei - disse Sila muito lenta e cuidadosamente, certificando-se de que os arautos transmitiam com exactidão as suas palavras. - Caio Mário é o herói de toda a gente. Salvou Roma de Jugurta da Numídia. Salvou Roma e o mundo romano dos Germanos. Foi à Capadócia e, sozinho, ordenou ao rei Mitridates que voltasse para casa. Não sabiam disso, pois não? Mas eu estou aqui para vos falar de outros grandes feitos de Caio Mário! Muitos dos seus maiores feitos são desconhecidos. Eu conheço-os porque fui o seu leal lugar-tenente nas campanhas contra Jugurta e os Germanos. Fui o seu braço direito. E o destino dos homens que são braços direitos de outros homens é não serem conhecidos, não serem famosos. Eu não contesto minimamente a gloriosa reputação de Caio Mário: essa reputação é inteiramente merecida. Mas eu também tenho sido um leal servidor de Roma. Também eu fui para o Oriente e, sozinho, ordenei ao rei Mitridates que fosse para casa. Fui eu quem conduziu o primeiro exército romano que atravessou o rio Eufrates, penetrando em terras desconhecidas.

Sila voltou a fazer uma pausa, verificando com prazer que a multidão estava agora mais sossegada, que pelo menos tinha conseguido convencê-la da sua total seriedade.

- Para além de braço direito de Caio Mário, fui também seu amigo. Durante muitos anos, fui seu cunhado, até que a minha mulher, irmã da mulher dele, morreu. Não me divorciei dela. Não havia nenhuma animosidade entre nós. O filho de Caio Mário e a minha filha são primos direitos. Há alguns dias atrás, quando os homens de mão de Públio Sulpício mataram muitos jovens de boas famílias e com grandes carreiras à sua frente, incluindo o filho do meu colega Quinto Pompeu, um jovem que era meu genro, o marido da sobrinha de Caio Mário, vi-me obrigado a fugir do Fórum para que não me matassem. E para onde fugi, seguro de que, nesse local, ninguém atentaria contra a minha vida? Pois fugi para casa de Caio Mário, e Caio Mário deu-me abrigo na sua casa.

Não havia dúvida, a multidão estava definitivamente tranquilizada, Sila tinha atacado a questão ”Caio Mário” da forma certa.

- Quando Caio Mário obteve a sua grande vitória contra os Marsos, eu fui uma vez mais o seu braço direito. E quando o meu exército, o exército que trouxe para Roma, me concedeu a Coroa de erva, por tê-lo salvo de morte certa às mãos dos samnitas, Caio Mário ficou contente por eu, o seu desconhecido número dois, ter finalmente firmado a minha reputação no campo de batalha. Em termos de importância e de baixas inimigas, a minha vitória foi superior à dele, mas será que isso o afectou? Claro que não! Ele ficou contente com o meu feito! E para reaparecer no Senado não escolheu ele precisamente o dia da minha tomada de posse como cônsul? A sua presença não terá realçado o meu prestígio?

A audiência estava agora completamente absorvida: ninguém falava; Sila prosseguiu.

- No entanto, Povo de Roma, todos nós somos obrigados, de quando em quando, a enfrentar e a lidar com factos muito desagradáveis. Um desses factos diz respeito a Caio Mário. Caio Mário está demasiado velho e doente para conduzir uma guerra difícil num país estrangeiro. O seu cérebro está afectado. O cérebro, como sabem, parece não recuperar tão bem como o corpo. O homem que viram nos últimos dois anos, caminhando, nadando, praticando exercício, curando o seu corpo daquela terrível doença, não pode curar o seu cérebro. É a essa doença mental que atribuo as suas recentes acções. Desculpo-lhe os excessos porque lhe tenho amor. Vocês também devem desculpá-lo. Roma enfrenta agora uma guerra muito mais terrível do que aquela de que acaba de sair. Uma força muito mais vasta e perigosa do que a dos Germanos, personificada por um rei oriental que tem centenas de milhar de soldados bem treinados e adequadamente equipados. Um homem com esquadras de centenas de galeras. Um homem que conseguiu a colaboração de povos estrangeiros que Roma defendeu e protegeu, e que agora nos viram as costas. Como poderia eu, Povo de Roma, ficar parado, se vocês, na vossa ignorância, me tiraram o comando desta guerra, a mim, que me encontro em pleno apogeu, e o foram dar a um homem cujo apogeu já passou há muito, cujas capacidades definharam irremediavelmente?

Como não gostava nada de falar em público, Sila estava já cansado: a tensão fora excessiva. Porém, quando parou uma vez mais para que os arautos pudessem acompanhá-lo, conseguiu comportar-se como se não tivesse sede, como se os seus joelhos não estivessem a tremer, como se não estivesse nada preocupado com a eventual reacção daquela gente.

- Ainda que eu quisesse dar a Caio Mário o comando que legalmente me foi conferido, as cinco legiões que formam o meu exército não mo permitiriam. Eu encontro-me aqui nesta tribuna não apenas na minha qualidade de cônsul sénior legalmente eleito, mas também na qualidade de representante legal dos soldados de Roma. Foram eles que decidiram marchar sobre Roma!! Não para conquistar Roma, não para tratar os Romanos como inimigos, mas sim para mostrar ao Povo de Roma o que sentem em relação a uma lei ilegal arrancada a uma assembleia de civis por língua muito mais talentosa do que a minha, e por instigação de um velho doente que, por acaso, também é um herói. Contudo, antes de terem uma oportunidade de falar com vocês, os meus soldados foram obrigados a lutar com bandos de rufiões armados, que lhes recusavam uma entrada pacífica em Roma. Bandos de rufiões armados, de escravos e libertos recrutados por Caio Mário e Públio Sulpício. Não foram os respeitáveis cidadãos de Roma que recusaram a entrada dos meus soldados. Os respeitáveis cidadãos de Roma estão hoje aqui porque quiseram ouvir-me, porque eu me propus expor-lhes as minhas razões e as razões dos meus soldados. Eu e eles pedimos apenas uma coisa. Que nos permitam fazer aquilo para que fomos legal e validamente nomeados. Que nos permitam combater o rei Mitridates!

Sila respirou fundo e quando falou de novo a sua voz soou tão sonora e vibrante como um toque de clarim.

- Eu vou para o Oriente sabendo que gozo de óptima saúde, de que não tenho qualquer problema cerebral, de que estou em condições de dar a Roma aquilo que Roma deve ter: a vitória sobre um terrível rei estrangeiro que quer ser coroado rei de Roma, que matou oitenta mil romanos, homens, mulheres e crianças, que não se compadeceu perante as súplicas das suas vítimas nos altares dos nossos templos! O meu comando respeita integralmente a lei. Por outras palavras, os deuses de Roma deram-me essa missão a mim. Os deuses de Roma têm confiança em mim.

Sila tinha vencido. Ao dar a palavra a um orador muito mais dotado do que ele, Quinto Múcio Cévola Pontifex Maximus, Sila sabia que tinha vencido. Porque, embora se deixassem seduzir pelos homens eloquentes e engenhosos, os homens de Roma eram sãos e sensatos, e eram capazes de entender as coisas do senso comum quando tudo lhes era explicado de uma forma razoável e eficaz.

- Preferia que tivesses feito valer os teus direitos de outro modo, mas não posso deixar de te apoiar, Lúcio Cornélio - disse-lhe Catulo César quando a assembleia terminou.

- De outro modo? Como? - perguntou António Orador. - Vá, Quinto Lutácio, explica-me de que outro modo Lúcio Cornélio poderia ter afirmado os seus direitos!

Foi o irmão de Catulo César, Lúcio César, quem respondeu.

- Lúcio Cornélio podia ter ficado na Campânia com as suas legiões. Permanecia na Campânia e recusava-se a entregar o comando da guerra.

Crasso, o Censor, resmungou imediatamente.

- Essa é boa! E quando Sulpício e Mário tivessem reunido todas as outras legiões que se encontram dispersas pela Itália, que achas que teria acontecido? Se nenhum dos lados cedesse, então é que teríamos uma guerra civil a sério, Lúcio Júlio! Marchando sobre Roma, Lúcio Cornélio fez a única coisa que poderia ter evitado uma confrontação armada entre Romanos. É precisamente o facto de não haver legiões em Roma constituiu a principal garantia do seu êxito!

- Tens toda a razão, Públio Licínio - disse António Orador.

E assim terminou a conversa; todos lamentavam a táctica seguida por Sila, mas ninguém conseguia encontrar outra alternativa.

Durante mais dez dias, Sila e os dirigentes do Senado continuaram a falar diariamente no Fórum Romano, atraindo gradualmente o Povo com uma campanha implacável, com uma campanha que tinha por objectivo desacreditar Sulpício e apresentar Caio Mário como um velho doente que deveria limitar-se a descansar sobre os louros conquistados.

Depois das execuções sumárias por pilhagem, as legiões de Sila comportaram-se impecavelmente, e muitos foram os habitantes de Roma que acabaram por tratar aqueles soldados com carinho - sobretudo depois de se ter espalhado a notícia de que aquele era o famoso exército de Nola, de que fora aquele exército que realmente vencera a guerra contra os Italianos. Sila teve o cuidado de não recorrer aos abastecimentos da cidade para dar de comer aos seus soldados - se os habitantes de Roma lhes queriam dar a provar os seus petiscos, isso já era outra história. Mas havia também gente que encarava os soldados com cepticismo, gente que lembrava que eles tinham marchado sobre Roma por sua livre e espontânea vontade; por isso, se por acaso os soldados de Sila fossem desafiados ou importunados, poderia dar-se uma carnificina - e não seriam as belas palavras do general que impediriam que um tal desastre acontecesse. No fim de contas, Sila não os mandara ainda regressar à Campânia. Mantinha-os em Roma. O que fazia pensar que não se coibiria de recorrer a esses soldados caso fosse necessário.

- Não confio no Povo - disse Sila aos dirigentes do Senado, aliás os únicos membros do Senado que restavam. - Pode muito bem aparecer um novo Sulpício quando eu estiver longe daqui. Tenciono por isso aprovar legislação que impeça essa eventualidade.

Sila tinha entrado em Roma nos Idos de Novembro, muito tarde para a aprovação de um desenvolvido programa de novas leis. Como a lex Caecilia Didia estipulava que deviam mediar três dias de mercado entre a primeira contio para a apresentação de uma nova lei e a ratificação desta lei, Sila tinha poucas hipóteses de alcançar os seus objectivos antes de terminado o seu consulado. Para piorar as coisas, a outra lex Caecilia Didia proibia que questões sem qualquer relação entre si fossem integradas numa mesma lei. E a única maneira legal de ver o seu programa concluído a tempo era talvez a mais perigosa de todas: apresentar todas as suas novas leis numa única contio, e fazê-las discutir em conjunto. Dessa forma, toda a gente entenderia desde logo qual era o objectivo final daquela sua iniciativa.

Foi César Estrabão quem resolveu o dilema de Sila.

- É fácil - disse o vesgo, que dava o seu melhor quando lhe pediam opinião. - Acrescenta mais uma lei à tua lista, e promulga-a antes de todas as outras. Uma lei que suspenda o que está estipulado na lex Caecilia Didia prima unicamente para as tuas leis.

- O Comitia nunca aprovaria essa lei - retorquiu Sila.

- Aprova, sim. Basta que vejam bastantes soldados por perto! replicou César Estrabão, num tom divertido.

E tinha toda a razão. Quando convocou a Assembleia de Todo o Povo - que incluía tanto patrícios como plebeus -, Sila descobriu que não teria a mínima dificuldade em fazer aprovar as suas leis. Assim, a primeira lei que apresentou suspendia precisamente a aplicação da lex Caecilia Didia prima unicamente no caso das suas leis; e a primeira lex Cornelia do programa de Sila acabou por ser promulgada e ratificada nesse mesmo dia. Aproximava-se o fim de Novembro.

Uma a uma, Sila apresentou mais seis leis. Teve o maior cuidado com a ordem de apresentação dessas leis, pois era vital que o Povo não entendesse a tempo qual era o seu objectivo final. E durante todo esse tempo, mostrou-se extremamente vigilante a fim de evitar todo e qualquer confronto entre o seu exército e os habitantes de Roma, pois compreendia perfeitamente que o Povo desconfiava dele por causa dos soldados. Contudo, como não estava nada preocupado com o amor ou ódio que o Povo sentia por ele, decidiu que não faria mal nenhum lançar uma campanha de boatos em Roma - boatos que se resumiam ao seguinte: se as suas leis não fossem aprovadas, a cidade sofreria um banho de sangue de proporções terríveis. De facto, quando era a sua própria cabeça que estava em jogo, não havia nada que fosse capaz de deter Sila. Desde que cumprisse tudo o que lhe era ordenado, o Povo tinha inteira liberdade para odiar Sila tanto como ele odiava o Povo. O que Sila não poderia permitir que acontecesse era, naturalmente, esse banho de sangue; a haver um banho de sangue, a sua carreira ficaria pura e simplesmente destruída. Mas Sila entendia os mecanismos do medo e, por isso, não previa que houvesse qualquer banho de sangue. E tinha razão.

A segunda lex Cornelia parecia inócua. Ordenava que entrassem para o Senado trezentos novos membros (o Senado tinha então apenas quarenta membros). O seu texto evitava deliberadamente o estigma do cancelamento de leis, pois os novos senadores deveriam ser nomeados pelos censores da forma usual; os censores não tinham qualquer indicação para reinstalar no Senado os senadores expulsos por dívidas. Como o fundo para obviar às dívidas dos senadores expulsos estava a funcionar eficazmente, sob a direcção de Catulo César, os censores não teriam o mínimo problema em chamar de novo ao Senado os membros expulsos por dívidas. Por outro lado, os danos causados ao Senado pelas mortes de tantos dos seus membros seriam finalmente reparados. De forma não oficial, Catulo César ficara com a missão de pressionar os censores, o que significava que, muito em breve, o Senado voltaria a funcionar a cem por cento. Sila pelo menos estava certo disso. E começava a achar que Catulo César era um homem formidável.

A terceira lex Cornelia revelava já o punho ameaçador de Sila. Revogava a lex Hortênsia, uma lei que existia há duzentos anos. De acordo com a nova lei de Sila, nada poderia ser levado à apreciação das assembleias tribais sem a aprovação do Senado. Esta lei limitava não só os poderes dos tribunos da plebe, como também os poderes dos cônsules e dos pretores; se o Senado não aprovasse um senatus consultam, nem a Assembleia da Plebe nem a Assembleia de Todo o Povo poderiam legislar. Por outro lado, as assembleias tribais também não poderiam alterar o texto de um senatus consultum.

A quarta lex Cornelia seguiu do Senado para a Assembleia de Todo o Povo sob a forma de um senatus consultum. Reforçava o poder das camadas dirigentes nas Centúrias, ao anular as alterações impostas a esse corpo durante os primeiros tempos da República. A comitia centuriata regressava agora à forma que assumira durante o reinado do rei Servo Túlio, quando os seus votos eram canalizados de forma a darem à Primeira Classe cerca de metade do poder. Graças à nova lei de Sila, o Senado e os cavaleiros voltavam a ter uma força idêntica à que tinham tido no tempo dos Reis.

A quinta lex Cornelia revelava já a espada de Sila pronta a desferir o golpe. Era a última do seu programa promulgada e ratificada pela Assembleia de Todo o Povo. De futuro, nenhuma discussão ou votação de leis poderia ter lugar nas assembleias tribais. Toda a legislação teria de ser discutida e aprovada pela nova Assembleia das Centúrias, onde o Senado e a Ordo Equester poderiam controlar tudo, em particular quando se uniam - o que sucedia sempre que havia perspectivas de uma mudança radical ou de concessão de privilégios às classes mais baixas. As tribos deixavam praticamente de ter acesso ao poder, tanto na Assembleia de Todo o Povo como na Assembleia da Plebe. E a Assembleia de Todo o Povo ratificou esta quinta lex Cornelia sabendo que estava a decretar a sua própria extinção; poderia eleger determinados magistrados, mas nada mais podia fazer. A realização de um julgamento numa assembleia tribal dependia da aprovação prévia de uma lei.

Todas as leis de Sulpício encontravam-se ainda nas tábuas, eram ainda teoricamente válidas. Mas, na prática, para que serviam? Que importância tinha que os novos cidadãos de Itália e da Gália Italiana e os cidadãos libertos das duas tribos urbanas fossem distribuídos pelas trinta e cinco tribos? As assembleias tribais não podiam aprovar leis, não podiam realizar julgamentos.

Havia uma fraqueza no seu projecto, e Sila estava consciente dela. Se não estivesse tão ansioso por partir para o Oriente, talvez tivesse tratado desse problema. Mas era algo que não podia resolver no pouco tempo de que dispunha. O problema eram os tribunos da plebe. Conseguira reduzi-los ao silêncio; não podiam legislar, não podiam levar ninguém a tribunal. Mas não conseguira fazê-los encolher as garras - e que garras! Eles tinham ainda os poderes que a Plebe lhes conferira originalmente. E entre esses poderes contava-se o poder de veto. Em toda a sua legislação, Sila tivera o cuidado de não atacar directamente os magistrados - limitara-se a atacar as instituições em que esses magistrados se encontravam integrados. Tecnicamente, não fizera nada que pudesse ser assimilado a traição. Mas se retirasse o poder de veto aos tribunos da plebe, poderiam acusá-lo de traição. Poderiam acusá-lo de atentar contra a mós maiorum. Os poderes tribunícios eram quase tão velhos como a República. Eram sagrados.

Entretanto, o programa de leis foi avançando. Não no Fórum Romano, onde o Povo tinha o hábito de acorrer e onde acompanhava o que se passava. A sexta e a sétima leges Corneliae foram apresentadas na Assembleia das Centúrias, reunida no Campo de Marte - cercado pelo exército de Sila, que agora acampava nessa zona.

A sexta lei, caso fosse discutida no Fórum, traria por certo problemas a Sila; essa lei, com efeito, anulava toda a legislação de Sulpício, baseando-se nos argumentos de que os textos legais de Sulpício tinham sido aprovados per vim - com violência - e durante feriae, ou feriados religiosos, legalmente declarados.

A última lei equivalia de facto a um julgamento. Considerava vinte homens culpados de traição. Não as novas traições da quaestio de maiestate de Saturnino, mas a muito mais antiga e inflexível traição das Centúrias, a perduellio. Caio Mário, o jovem Mário, Públio Sulpício Rufo, Marco Júnior Bruto (o pretor urbano), Públio Cornélio Cetego, os irmãos Grânios, Públio Albinovano, Marco Letório eram alguns dos indiciados. A Assembleia das Centúrias condenava-os a todos. A perduellio significava a pena capital; o exílio não chegava para as Centúrias. Pior ainda: a condenação podia ser aplicada no momento da detenção, pois não era necessário o cumprimento de qualquer formalidade.

Sila não encontrou a mínima oposição junto dos seus amigos ou junto dos dirigentes do Senado - à excepção do cônsul júnior. Mostrando-se cada vez mais deprimido, Quinto Pompeu Rufo acabou por lhe dizer claramente que não podia aprovar a execução de homens como Caio Mário ou Públio Sulpício.

Como não tinha a intenção de executar Caio Mário (o mesmo não sucedia com Sulpício), Sila tentou de início arrancar Pompeu Rufo às suas tendências depressivas. Como isso não resultasse, insistiu na morte do jovem Quinto Pompeu às mãos dos homens de Sulpício. Mas quanto mais Sila falava, mais obstinado se mostrava Pompeu Rufo. Era vital para Sila que ninguém detectasse qualquer fractura no seio da equipa que estava no poder. Decidiu, por isso, que Pompeu Rufo teria de sair de Roma, teria de ir para bem longe daqueles soldados que tanto perturbavam a sua frágil sensibilidade.

Uma das mais fascinantes mudanças ocorridas em Sila tinha a ver com a sua recente ligação ao poder supremo; era uma mudança de que ele tinha plena consciência, uma mudança que o deixava deleitado, extasiado. Apercebia-se de que ficava mais satisfeito e mais liberto dos seus tormentos interiores ao aprovar leis que arruinavam, que degradavam as pessoas, do que ao matar quem lhe atravancava o caminho, como acontecera noutros tempos. Manipular o Estado para arruinar Caio Mário dava-lhe muito mais prazer do que se lhe administrasse uma dose do mais lento dos venenos, do que se pudesse segurar-lhe a mão no leito de morte; integrado no quadro do Estado, e dotado de um poder extraordinário, Sila sentia-se num plano diferente, fazia-o subir a céus tão rarefeitos e únicos que quase lhe parecia ver muito do alto a frenética actividade das suas marionetas; sentia-se um deus no Olimpo, livre de todas as grilhetas morais.

Decidiu assim dispor da vida de Quinto Pompeu Rufo de uma forma completamente diferente, de uma maneira subtil, de uma maneira que lhe poupava muita ansiedade. Para quê correr o risco de ser apanhado a cometer um crime quando era possível recorrer a outras pessoas para executarem esse mesmo crime?

- Meu caro Quinto Pompeu, não há dúvida que precisas de passar uns tempos no campo - disse Sila ao seu colega com grande seriedade e afeição. - Como é evidente, tenho-me apercebido de que, após a morte do teu querido filho, e meu genro, tens andado taciturno, inquieto, deprimido. Não consegues distanciar-te das coisas, não te dás conta da importância das tarefas a que o nosso governo se tem dedicado. As coisas mais insignificantes deixam-te deprimido! Mas não me parece que umas férias sejam a melhor solução. Pelo contrário, acho que precisas de uns meses de trabalho duro.

Os olhos mortiços de Pompeu Rufo fitaram Sila com um afecto sincero, ilimitado; sim, claro, ele não poderia deixar de estar contente pelo facto de ter a seu lado, no governo da nação, um dos homens mais notáveis de toda a história de Roma; quem haveria de dizer que Sila alcançaria tão ilustre posição? Nunca ele pensara que Sila conseguiria chegar onde efectivamente chegou.

- Eu sei que tens razão, Lúcio Cornélio - disse ele. - Provavelmente tens razão em relação a tudo. Mas custa-me muito aceitar o que aconteceu. E acontece ainda. Se achas que há alguma missão a que eu possa dedicar-me de uma forma útil, diz-mo. Terei todo o gosto em cumpri-la.

- Há de facto uma coisa extremamente importante que poderias fazer. Algo que só pode ser feito, com êxito, por um cônsul - retorquiu Sila imediatamente.

- O quê?

- Substituir Pompeu Estrabão no comando das suas tropas.

Um desagradável arrepio percorreu o corpo do cônsul júnior, que fitava Sila com apreensão.

- Mas não me parece que Pompeu Estrabão queira ser substituído! Ele está tão agarrado ao seu comando como tu estás agarrado ao teu!

- Pelo contrário, meu caro Quinto Pompeu. Recebi há dias uma carta dele. Nessa carta, Pompeu Estrabão perguntava-me se seria possível libertá-lo do seu comando. E pedia especificamente que fosses tu a substitui-lo. É que, além do mais, tu também és picentino! As tropas dele só gostam de generais picentinos - disse Sila, reparando que a alegria inundava já o rosto do cônsul júnior. - Na realidade, a tua principal tarefa consistirá em proceder à desmobilização desses soldados. A resistência no Norte acabou, já não precisamos de nenhum exército nessa região, e Roma não se pode dar ao luxo de continuar a ter essa despesa. - Sila pôs uma expressão séria. - Não é uma sinecura o que te estou a oferecer, Quinto Pompeu. Eu sei por que razão Pompeu Estrabão quer ser substituído repentinamente. É muito simples: ele não quer suscitar o ódio dos seus homens. Por isso não quer ser ele a desmobilizá-los. Por isso propõe que seja outro Pompeu a fazê-lo!

- Não me importo com isso, Lúcio Cornélio - retorquiu Pompeu Rufo, adoptando uma postura garbosa. - O que me interessa é o trabalho. Fico-te grato por me confiares essa missão.

No dia seguinte, o senado aprovou um senatus consultum que previa a substituição de Cneu Pompeu Estrabão por Quinto Pompeu Rufo no comando das tropas do Norte. Quinto Pompeu Rufo deixou Roma imediatamente, contente pelo facto de nenhum dos fugitivos condenados ter sido ainda detido: abandonando Roma, não se veria envolvido nessa infâmia.

- Tu próprio podes levar o documento do Senado - disse-lhe Sila, entregando-lhe o documento. - Mas queria pedir-te um favor, Quinto Pompeu: antes de lhe entregares o texto do senatus consultum, dá-lhe esta carta minha e pede-lhe que a leia primeiro.

Como Pompeu Estrabão se encontrava nessa altura na Úmbria, nos arredores de Arimino, acampado com as suas legiões, o cônsul júnior tomou a Via Flamínia, a grande estrada do Norte que atravessava os Apeninos entre Assíssio e Cales. Embora o Inverno não tivesse ainda chegado, o tempo estava já muito frio nessas terras altas. Por isso, Pompeu Rufo viajava num carpentum fechado, bem protegido do frio, e com bagagem suficiente para encher uma carroça puxada por mulas. Como ia ocupar um posto militar, a sua escolta era constituída unicamente pelos lictores e por alguns dos seus escravos. Como a Via Flamínia era uma das estradas que conduziam à sua terra, Pompeu Rufo não teve qualquer necessidade de recorrer a estalagens para pernoitar: de facto, conhecia todos os proprietários das grandes mansões que ficavam perto dessa estrada.

Em Assíssio, o seu anfitrião, um velho amigo seu, viu-se obrigado a pedir desculpa pelo mau estado do alojamento que oferecia ao cônsul.

- Os tempos mudaram, Quinto Pompeu! - queixou-se o homem.

- Tive de vender muita coisa! E como se já não tivesse problemas que chegassem, a minha casa foi invadida por uma praga de ratos!

O quarto oferecido a Quinto Pompeu Rufo já não tinha os luxuosos móveis de outrora e era muito frio pois ficara sem as janelas interiores: um exército passara por lá e, como tinha falta de madeira para as fogueiras, retirara da casa todas as janelas interiores. Durante muito tempo, Pompeu Rufo permaneceu acordado, escutando o barulho dos ratos, pensando no que se passaria em Roma nesse momento e cheio de medo porque sentia que Lúcio Cornélio tinha ido demasiado longe. Mais tarde ou mais cedo haveria um ajuste de contas. Demasiadas gerações de tribunos da plebe tinham passado já pelo Fórum Romano: a Plebe não suportaria durante muito tempo aquela situação insultuosa. Logo que o cônsul sénior estivesse longe de Roma, todas as suas leis cairiam por terra. E homens como ele, Quinto Pompeu Rufo, seriam objecto de todas as acusações e alvo de encarniçadas perseguições.

Levantou-se ao nascer do dia. Tremendo, com os dentes a bater, procurou as suas roupas. Uns calções que iam até aos joelhos, uma camisa quente, de mangas compridas, que podia meter debaixo dos calções, duas túnicas tão quentes como a camisa; e duas meias de lã que lhe chegavam aos joelhos.

Porém, quando se sentou na cama para calçar as meias, descobriu que, durante a noite, os ratos tinham roído as pontas das meias, deixando-as completamente esburacadas. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Segurou nas meias e examinou-as horrorizado à luz ténue da manhã. Pompeu Rufo era picentino, e supersticioso, e sabia perfeitamente o que aquilo significava: os ratos eram os arautos da morte, e os ratos tinham-lhe roído os pés. Cairia. Morreria. Estava perante uma profecia.

O criado apareceu nesse instante. Ajoelhou-se para lhe calçar as meias, alarmado com o aspecto do amo, com aquela figura silenciosa e parada. O homem entendeu perfeitamente o funesto presságio, e pediu a todos os deuses para que tal não acontecesse.

- Domine, não há razão para se preocupar - disse ele.

- Vou morrer! - retorquiu Pompeu Rufo.

- Ora! Que disparate! - replicou afectuosamente o escravo, ajudando o amo a levantar-se. - Eu sou grego! Sei mais do que qualquer romano acerca dos deuses do Além. Apolo Esminteu é um deus da vida, da luz, da saúde, e no entanto os ratos são sagrados para ele! Não. Parece-me que o presságio significa que irás resolver os problemas do Norte, que irás curar as suas feridas.

- Significa que vou morrer - retorquiu Pompeu Rufo. E ninguém conseguia fazê-lo mudar de opinião.

Três dias depois, chegou ao acampamento de Pompeu Estrabão, convencido de que ia morrer, resignado já com a sua sorte. Encontrou o seu remoto primo vivendo com algum luxo e ostentação numa mansão de uma quinta.

- Mas que surpresa! - disse Pompeu Estrabão, com uma expressão alegre, estendendo-lhe a mão direita. - Entra, entra, Quinto Pompeu!

- Tenho duas cartas para ti - disse Pompeu Rufo, sentando-se numa cadeira e bebendo do melhor vinho que provara desde que deixara Roma. - Lúcio Cornélio pediu-me que lesses primeiro a carta dele. A outra carta é do Senado.

A referência ao Senado perturbou a boa disposição de Pompeu Estrabão que, no entanto, teve o cuidado de não deixar transparecer os seus sentimentos. Abriu a carta de Sila.

Cneu Pompeu: Lamento que o Senado me tenha obrigado a enviar-te o teu primo Rufo nestas circunstâncias. Ninguém mais do que eu sente apreço pelos inúmeros serviços que tens prestado a Roma. E o meu apreço por ti aumentará consideravelmente se prestares a Roma mais um serviço - um serviço de importância considerável para as futuras carreiras de ambos.

O nosso colega Quinto Pompeu é agora um homem dilacerado. Desde que lhe morreu o filho (meu genro, e pai dos meus dois netos), Quinto Pompeu tem sofrido um declínio alarmante. Como a sua presença constituía um grave embaraço, vi-me obrigado a mandá-lo para fora de Roma. Tenta entender: é que ele não aprova, nem aprovará, as medidas que fui forçado a tomar - repito: que fui forçado a tomar para preservar a mós maiorum.

Eu sei, Cneu Pompeu, que aprovas inteiramente as minhas medidas, devido à correspondência regular que temos mantido. Creio sinceramente que o nosso bom amigo Quinto Pompeu precisa, urgente e desesperadamente, de um longo, de um muito longo descanso. Faço votos para que ele possa finalmente descansar contigo na Úmbria.

Espero que me perdoes o facto de ter dito a Quinto Pompeu que estavas ansioso por te veres livre do teu comando antes de as tuas tropas serem desmobilizadas. Ele ficou extraordinariamente aliviado por saber que o receberias de braços abertos.

Pompeu Estrabão arrumou a carta de Sila e começou a ler o documento do Senado. A sua expressão não traía o que lhe passava pela cabeça enquanto lia esse documento. Quando acabou de ler, arrumou o documento na sua secretária, fitou Pompeu Rufo e pôs um sorriso bem-disposto.

- Pois ainda bem que vieste, Quinto Pompeu! - disse ele. - Será um prazer ver-me livre dos meus deveres!

Pompeu Rufo, que estava à espera de uma reacção irada, indignada, ditada pela frustração, apesar das garantias que Sila lhe tinha dado, fitou boquiaberto o primo.

- Então Lúcio Cornélio falava mesmo a sério? Tu não te opões? Sinceramente?

- Opor-me? Porque haveria eu de me opor? Estou deliciado! disse Pompeu Estrabão. - A minha bolsa já não aguentava mais!

- A tua bolsa?

- Eu tenho dez legiões em campanha, Quinto Pompeu. E sou eu quem paga a mais de metade dessas legiões.

- Palavra?

- Claro, Roma não lhes pode pagar. - Pompeu Estrabão levantou-se.

- Chegou a hora de desmobilizar os homens que não me pertencem, e essa é uma tarefa que eu não quero. Gosto de batalhas, não gosto de escrever coisas. Em primeiro lugar, porque não tenho boa vista. Mas tive em tempos um cadete que era uma maravilha a escrever. O que ele gostava de escrever! Enfim, encontra-se de tudo! - Pompeu Estrabão pôs o braço sobre os ombros do primo. - Mas agora anda comigo. Quero apresentar-te aos meus lugares-tenentes e aos meus tribunos. Todos eles se encontram ao meu serviço há já muito tempo, por isso não ligues se eles te parecerem inquietos. Eu ainda não lhes comuniquei as minhas intenções.

O pesar e a surpresa que Pompeu Estrabão não tinha mostrado marcaram claramente os rostos de Bruto Damasipo e Gélio Poplicola quando Pompeu Estrabão lhes comunicou as novidades.

- Mas é uma notícia excelente! - exclamou Pompeu Estrabão. Além do mais, será bom para o meu filho servir outro homem que não o pai. Todos nós revelamos demasiada complacência quando não há mudanças. Esta mudança avivar-nos-á a todos.

Nessa tarde, Pompeu Estrabão mandou formar em parada e permitiu ao novo general que inspeccionasse o seu exército.

- Aqui só estão quatro legiões, mas são quatro legiões minhas disse Pompeu Estrabão, acompanhando Pompeu Rufo na inspecção. As outras seis estão espalhadas pela região, realizando operações de limpeza ou mandriando a maior parte. Há duas em Camerino, uma em Ancona, uma em Fano, uma em Igúvio, uma em Arécio, e uma em Cíngulo. Vais ter de viajar muito para procederes à sua desmobilização. Não vale a pena trazê-las todas para cá só para lhes dar os papéis.

- Eu não me importo de viajar - disse Pompeu Rufo, que já se sentia melhor. Talvez o seu criado tivesse razão, talvez o presságio não significasse a sua morte.

Nessa noite Pompeu Estrabão ofereceu um pequeno banquete na sua agradável e cómoda mansão. O seu atraente filho estava presente, tal como os outros cadetes, e os lugares-tenentes Lúcio Júnio Bruto Damasipo e Lúcio Gélio Poplicola, e quatro tribunos militares não eleitos.

- Ainda bem que já não sou cônsul para não ter de lidar com esses tipos! - disse Pompeu Estrabão, referindo-se aos tribunos dos soldados eleitos. - Ouvi dizer que eles se tinham recusado a ir para Roma com Lúcio Cornélio. É mesmo típico. Que grandes bestas! Julgam-se todos muito importantes!

- Aprovas realmente a marcha sobre Roma? - perguntou Pompeu Rufo um tanto incrédulo.

- Mas é claro que aprovo! Que outra hipótese tinha Lúcio Cornélio?

- Podia ter aceite a decisão do Povo.

- Uma decisão inconstitucional? Um ataque ao poder do cônsul? Francamente, Quinto Pompeu! Não foi Lúcio Cornélio quem agiu ilegalmente, mas sim a Assembleia da Plebe e esse cunnus traiçoeiro que dá pelo nome de Sulpício. E Caio Mário. Esse velho ganancioso. Ele está incapaz de fazer seja o que for, mas já nem se dá conta disso! Porque haveria ele de poder agir inconstitucionalmente e sem a mínima oposição, enquanto o pobre do Lúcio Cornélio defendia a constituição e era atacado de todos os lados?

- O Povo nunca gostou de Lúcio Cornélio. Agora então nem se fala.

- E isso preocupa-o? - perguntou Pompeu Estrabão.

- Não creio. E acho, francamente, que deveria estar preocupado.

- Ora, que disparate! Alegra-te, primo! Já não estás em Roma! Quando encontrarem Mário e Sulpício e todos os outros, tu não serás censurado pela sua execução - disse Pompeu Estrabão. - Bebe um pouco mais.

Na manhã seguinte, o cônsul júnior decidiu dar um passeio pelo acampamento, familiarizar-se com aquele cenário que desconhecia. Pompeu Estrabão tinha-lhe sugerido que fizesse isso mesmo. No entanto, dissera-lhe que preferia não o acompanhar.

- Será melhor que os homens te vejam sozinho - acrescentara. Ainda surpreendido com o calor daquela recepção, Pompeu Rufo deu um longo passeio, durante o qual pôde verificar que todos, desde os centuriões aos soldados, o saudavam de uma forma extremamente amistosa. Muitos perguntavam-lhe a sua opinião sobre este ou aquele assunto, outros lisonjeavam-no ou demoravam-no com inesgotáveis conversas. Contudo, Pompeu Rufo era suficientemente inteligente para guardar para si mesmo as opiniões desfavoráveis que tinha em relação àquele acampamento - só as expressaria depois de ter substituído Pompeu Estrabão no comando das tropas. Designadamente, ficara muito chocado com a falta de higiene nas instalações sanitárias do acampamento; não havia qualquer cuidado com as fossas e as latrinas que, aliás, se situavam demasiado perto do poço onde os homens iam buscar água. Aquilo era típico de verdadeiros nómadas, pensou Pompeu Rufo. Logo que achavam que o sítio onde viviam estava imundo, pegavam nas suas coisas e iam para outro lado.

Quando viu um vasto grupo de soldados encaminhar-se na sua direcção, o cônsul júnior não sentiu medo. Não adivinhou qualquer perigo, pois todos eles exibiam sorrisos sinceros e pareciam querer conferenciar com o seu novo comandante. Aquela aparição, aliás, alegrouo: talvez pudesse dizer-lhes o que realmente pensava acerca da higiene do acampamento. Por isso, quando os soldados se abeiraram dele, rodeando-o, Pompeu Rufo fitou-os com um sorriso feliz. Quase não sentiu o golpe da primeira espada, um golpe certeiro que lhe rasgou a roupa interior de couro e o feriu entre duas costelas. A esse golpe, seguiram-se outros, muitos e rápidos. Pompeu Rufo não teve sequer tempo para gritar, para pensar nos ratos e nas meias. Estava já morto antes de cair por terra. Os seus assassinos desapareceram num instante.

- Que história mais aborrecida! - exclamou Pompeu Estrabão para o seu filho, depois de examinar o cadáver. - Está morto e bem morto, o coitado! Deve ter sido atingido trinta vezes. Todos golpes mortais. Um bom trabalho. Só pode ter sido feito por homens com experiência.

- Mas quem? - perguntou outro cadete, pois o jovem Pompeu nada dizia.

- Soldados, obviamente - disse Pompeu Estrabão. - Os homens não queriam mudar de general, imagino eu. Damasipo deu-me a entender isso, mas eu não o levei a sério.

- Que vais fazer agora, pai? - perguntou o jovem Pompeu.

- Vou mandá-lo para Roma.

- E isso não é ilegal? Na guerra, as vítimas são enterradas no local onde morrem.

- A guerra acabou, e além disso este homem era cônsul - retorquiu Pompeu Estrabão. - Acho que o Senado tem de ver o cadáver. Cneu, meu filho, trata de tudo. Damasipo poderá escoltar o corpo.

Tudo foi feito como devia ser. Pompeu Estrabão enviou um correio pedindo a convocação de uma reunião do Senado, após o que mandou o cadáver de Quinto Pompeu Rufo para a Cúria Hostília. A única explicação para o sucedido foi dada por Damasipo em pessoa - e essa explicação era simples: o exército de Pompeu Estrabão recusava qualquer outro comandante. O Senado entendeu a mensagem. Pediu então humildemente a Cneu Pompeu Estrabão se se importava de manter o seu comando no Norte, já que o seu eventual sucessor estava morto.

Sila recebeu passado pouco tempo uma carta de Pompeu Estrabão. Leu-a, naturalmente, em privado.

Mas que história mais triste, Lúcio Cornélio! Claro que o meu exército não vai dizer quem foram os autores, e eu não posso castigar quatro boas legiões por um crime que foi cometido apenas por trinta ou quarenta dos seus homens. Os meus centuriões estão desconcertados. Tal como o meu filho, que mantém excelentes relações com os soldados e normalmente sabe de tudo o que se passa com eles. A culpa é minha, não há dúvida. Nunca me apercebi de que os meus homens me adoravam. É que, no fim de contas, Quinto Pompeu também era um picentino. Nunca me passou pela cabeça que os soldados pudessem ficar furiosos com a sua nomeação.

Seja como for, espero que o Senado esteja realmente decidido a manter-me como comandante-chefe no Norte. Se os homens não suportaram um picentino, por certo também não suportariam um forasteiro, não é verdade? Não há dúvida que é muito difícil lidar connosco, gente do Norte.

Quero desejar-te o maior êxito para as tuas iniciativas, Lúcio Cornélio. Tu és um paladino das velhas tradições, mas tens um estilo novo que é muito interessante. Aprende-se sempre contigo. Podes ter a certeza que o meu apoio às tuas iniciativas é total, e não hesites em entrar em contacto comigo sempre que precises da minha ajuda.

Sila desatou a rir. Depois, queimou a carta, uma das poucas cartas agradáveis que tinha recebido. Sabia já que Roma não estava contente com as alterações que introduzira na Constituição, pois a Assembleia da Plebe tinha reunido e eleito dez novos tribunos da plebe, todos eles adversários de Sila e apoiantes de Sulpício. Entre eles, contavam-se Caio Milónio, Caio Papírio Carbão Arvina, Públio Mágio, Marco Virgílio, Marco Mário Gratidiano (o sobrinho adoptado de Caio Mário), e nada mais nada menos do que Quinto Sertório. Quando soube que Quinto Sertório se ia apresentar como candidato, Sila mandou-lhe uma carta avisando-o de que seria melhor desistir dessa candidatura. Sertório preferiu ignorar tal aviso, retorquindo que a eleição dos tribunos da plebe perdera toda a importância que tivera noutros tempos.

Este desaire levou Sila a compreender que devia assegurar a eleição de magistrados curuis fortemente conservadores; tanto os cônsules como os seis pretores teriam de ser fiéis partidários das leges Corneliae. Quanto aos questores, era fácil. Todos eles eram senadores regressados ao Senado ou jovens de famílias senatoriais em quem podia confiar, pois lutariam por fortalecer o poder do Senado. Entre eles, contava-se Lúcio Licínio Lúculo, que fora lugar-tenente de Sila.

Claro que um dos candidatos consulares teria de ser o sobrinho de Sila, Lúcio Nónio, que fora pretor dois anos antes, e que não prejudicaria o tio caso fosse eleito cônsul. O problema é que Lúcio Nónio era um homem insípido, um homem que não fizera nada para se distinguir na cena política ou militar e que, portanto, dificilmente seduziria os eleitores. Mas a sua escolha como candidato agradaria à irmã de Sila, a irmã que Sila quase esquecera já, tão ténues eram as suas ligações familiares. Quando ela vinha a Roma (e fazia-o periodicamente), Sila nunca se dava ao trabalho de a visitar. Isso teria de mudar! Felizmente que Dalmática não desejava outra coisa senão ajudá-lo, e era uma esposa paciente e uma mulher hospitaleira; podia perfeitamente acolher a cunhada e o lamentável Lúcio Nónio que, assim esperava Sila, em breve seria cônsul.

Havia mais dois candidatos consulares que agradavam a Sila. O antigo lugar-tenente de Pompeu Estrabão, Cneu Octávio Rusão, era um fiel partidário de Sila e das velhas tradições; além disso, era muito possível que tivesse recebido ordens de Pompeu Estrabão. O outro era Públio Servílio Vátia - um Servílio plebeu, mas que vinha de uma velha e conceituada família e era muito popular entre a Primeira Classe. Além disso, tinha uma notável folha de serviços na guerra, o que era sempre um trunfo eleitoral.

No entanto, havia um candidato que inquietava Sila, sobretudo porque a Primeira Classe acharia que ele seria o homem certo para o cargo de cônsul, um homem capaz de defender intransigentemente os privilégios dos senadores e as prerrogativas dos cavaleiros. Lúcio Cornélio Cina era um patrício da gens a que Sila pertencia, estava casado com uma Annia, possuía uma folha de serviços militares formidável, e era famoso como orador e advogado. Mas Sila sabia que Cina estava de alguma forma dependente de Mário - provavelmente, Mário tinha-o comprado. Tal como sucedera com muitos senadores, alguns meses antes as finanças de Cina passavam por uma situação muito pouco brilhante - no entanto, quando os senadores foram expulsos por causa das dívidas, descobriu-se que Cina tinha os cofres bem cheios. Claro, claro que Caio Mário o comprou!, pensou Sila, com um ar triste. Uma atitude inteligente! Claro que, por detrás de tudo isso, estava o jovem Mário e a alegação de que assassinara o cônsul Catão. Em tempos normais, pensava Sila, Mário não teria conseguido comprar Cina; Cina não parecia ser um homem fácil de subornar - e essa era uma das razões que justificavam a atracção que a Primeira Classe sentia por ele. No entanto, quando os tempos se tornavam difíceis e a ruína ameaçava o futuro de um homem, bem como os seus próprios filhos, muitos eram os homens de elevados princípios que se deixavam subornar. Em particular se esses homens de elevados princípios acreditavam que o seu novo estatuto não os levaria a alterar os seus princípios.

Para além do problema das eleições curuis, Sila tinha ainda de contar com outra dificuldade: o seu exército estava farto de ocupar Roma. As legiões queriam ir para o Oriente, queriam ir combater Mitridates, e, como seria de esperar, não compreendiam por que razão o seu general as mantinha tanto tempo em Roma. Por outro lado, a animosidade de uma parte da população em relação aos soldados não parava de crescer; é certo que muitos militares continuavam a ter refeições, cama e mulheres de graça, mas os habitantes que nunca tinham suportado a sua presença não se inibiam agora de presentear as patrulhas nocturnas com o conteúdo dos seus bacios.

Se Sila estivesse disposto a pagar, não teria grande dificuldade em conduzir à vitória os seus candidatos, pois o clima era extremamente propício ao suborno. Mas Sila não seria capaz de partilhar o seu pequeno tesouro por nada deste mundo. Pompeu Estrabão que pagasse às legiões do seu próprio bolso, isso era com ele; Mário também dizia que faria o mesmo: o problema era dele, só dele; para Lúcio Cornélio Sila, quem tinha de pagar a conta era Roma. Se Pompeu Rufo ainda estivesse vivo, Sila poderia pedir-lhe dinheiro; mas a verdade é que só se lembrou dessa possibilidade depois de ter mandado o rico proprietáro picentino para o Norte e para a morte.

Os meus planos são bons mas a sua execução é difícil, pensou. Esta miserável cidade está cheia de homens decididos a obter aquilo que pretendem. Por que razão não entendem que os meus planos são sensatos e correctos? E como pode um homem concentrar em si o poder suficiente para garantir a execução integral dos seus planos? Os homens com ideais e princípios são a ruína do mundo!

E assim, em fins de Dezembro, Sila mandou o seu exército para Cápua, sob o comando do bom e fiel Lúculo, agora oficialmente seu questor. Tomada esta resolução, deixou-se de cautelas, pôs tudo nas mãos da deusa Fortuna, e convocou a realização de eleições.

Embora estivesse convencido de que não tinha subestimado o ressentimento que havia contra ele em todos os estratos da sociedade romana, a verdade é que Sila não se apercebia da violência e da extensão dessa animosidade. Ninguém dizia uma palavra menos própria, ninguém olhava para ele de esguelha; porém, sob esta aparência educada, Roma estava revoltada, Roma não conseguia esquecer ou perdoar a Sila o facto de ter invadido a cidade.

Este ressentimento afectava toda a sociedade, desde as camadas dominantes até ao povo miúdo. Mesmo homens profundamente comprometidos com ele e com a defesa da supremacia do Senado, como os irmãos César e os irmãos Cipião Nasica, teriam preferido que Sila não recorresse ao exército para resolver o problema do Senado. E entre os homens que não pertenciam à Primeira Classe havia ainda que contar com duas feridas que dificilmente poderiam ser curadas o facto de um tribuno da plebe ter sido condenado à morte durante o exercício do seu cargo, e o caso de Caio Mário, um antigo herói de Roma, agora velho e diminuído, que fora obrigado a deixar a casa e a família e perdera a sua posição na sociedade romana, além de ter sido, também ele, condenado à morte.

Esta insatisfação tornou-se mais clara com a eleição dos novos magistrados curuis. Cneu Octávio Rusão era o cônsul sénior, mas o cônsul júnior era Lúcio Cornélio Cina. Os pretores eram todos independentes: entre eles não havia nenhum em quem Sila pudesse realmente confiar.

Mas foi a eleição dos tribunos dos soldados pela Assembleia de Todo o Povo que mais perturbou Sila. Todos eles eram homens perigosos

- designadamente Caio Flávio Fímbria, Públio Ânio e Caio Márcio Censorino. Homens capazes de se virarem contra os seus generais, pensou Sila. Com aqueles tribunos dos soldados, nenhum general conseguiria marchar sobre Roma! Eles matá-lo-iam com o mesmo à vontade com que o jovem Mário matara o cônsul Catão. Ainda bem que o meu consulado vai acabar. Ainda bem que não os tenho nas minhas legiões. Porque todos eles, todos, são potenciais Saturninos.

Apesar dos resultados eleitorais negativos, Sila não se considerava um homem inteiramente infeliz agora que aquele ano chegava ao seu termo. A sua permanência em Roma, se não tinha tido qualquer efeito nas eleições, permitira pelo menos aos seus agentes na Província da Ásia, na Bitínia e na Grécia, disporem do tempo suficiente para se informarem, e para o informarem a ele, acerca da situação nessas paragens. Não havia dúvida que o mais acertado seria ir imediatamente para a Grécia e tratar da Ásia Menor mais tarde. Sila não tinha as tropas necessárias para tentar uma manobra de flanco; de facto, com aquelas tropas, a sua estratégia só poderia ser a mais vulgar. Não que a invasão da Macedónia tivesse corrido de feição para o rei do Ponto; Caio Sêncio e Quinto Brútio Sura tinham provado uma vez mais que, quando o inimigo era romano, a vitória não podia ser fácil. De facto, Sêncio e Sura, com exércitos minúsculos, tinham realizado grandes feitos. Mas não conseguiriam aguentar por muito mais tempo.

Sila tinha por isso de deixar a Itália o mais rapidamente possível. Só derrotando o rei Mitridates e pilhando as riquezas do Oriente, poderia herdar a reputação ímpar de Caio Mário. Só com o ouro de Mitridates poderia acabar com a crise financeira de Roma. Só se fizesse tudo isso é que Roma lhe perdoaria a invasão da cidade. Só então a Plebe lhe perdoaria o facto de ter transformado a sua preciosa assembleia num cenário vazio e inoperante.

No seu último dia como cônsul, Sila convocou uma reunião especial do Senado. Falou aos senadores com genuína sinceridade; acreditava ferreamente em si mesmo e nas suas novas medidas.

- Se não fosse eu, vocês não estariam agora aqui. Essa é a verdade, a irrecusável verdade. Se as leis de Públio Sulpício Rufo tivessem permanecido nas tábuas, a Plebe (e a Plebe não é o Povo!) mandaria agora em Roma sem qualquer oposição. O Senado não passaria de mais uma relíquia, uma relíquia sem homens que chegassem para formar quoro. Não poderia fazer qualquer recomendação à Plebe ou ao Povo, não poderia tomar nenhuma decisão acerca de assuntos que consideramos estritamente senatoriais. Portanto, antes de começarem a chorar a sorte da Plebe e do Povo, antes de começarem a chafurdar num excesso de imerecida compaixão pela Plebe e pelo Povo, lembrem-se do que sucederia a esta augusta instituição se eu não decidisse intervir.

- Presta atenção agora! - exclamou Catulo César, muito contente pelo facto de o seu filho, um dos novos senadores, ter regressado finalmente da guerra; Catulo ansiava pela chegada do filho, pois queria que ele visse ainda Sila actuando como cônsul.

- Lembrem-se também - disse Sila - de que se querem continuar a orientar o governo de Roma, terão de apoiar as minhas leis. Não se deixem seduzir por sublevações: pensem em Roma primeiro! Para o bem de Roma, é preciso que haja paz em Itália. Para o bem de Roma, terão todos de fazer um esforço enérgico para vencer os problemas financeiros de Roma, para devolver a Roma a sua antiga prosperidade. Não nos podemos dar ao luxo de permitir revoltas dos tribunos da plebe. O status quo que instaurei tem de ser mantido! Só assim Roma conseguirá recuperar! Não podemos permitir que outros imbecis como Sulpício decidam dos nossos destinos!

Fitou os cônsules eleitos.

- Cneu Octávio, Lúcio Cina; vocês herdarão amanhã o consulado que foi meu e do meu falecido colega Quinto Pompeu. Eu passarei a ser um consular. Cneu Octávio, dás-me a tua palavra de honra de que defenderás as minhas leis?

Octávio não hesitou.

- Tens a minha palavra de honra, Sila. Podes confiar em mim.

- Lúcio Cornélio, do ramo cognominado Cina, dás-me a tua palavra de honra de que defenderás as minhas leis?

Cina fitou Sila sem medo.

- Depende, Lúcio Cornélio, do ramo cognominado Sila. Defenderei as tuas leis se elas se revelarem eficazes do ponto de vista do governo de Roma. Por ora, não sei se serão realmente eficazes. Por um lado, há que contar com o facto de a máquina do Estado ser obsoleta, difícil de manejar; por outro lado, acontece que os direitos de uma grande parte da nossa comunidade foram - não encontro outra palavra -
anulados. Lamento imenso desapontar-te, mas, no actual estado de coisas, não posso prometer nada de concreto.

Nesse instante, operou-se no rosto de Sila uma mudança extraordinária; o Senado, tal como certas pessoas nesses últimos tempos, tinha agora o privilégio de conhecer, por breves momentos, essa criatura animalesca que habitava Lúcio Cornélio Sila. E tal como essas pessoas, também o Senado nunca esqueceria tal visão. Durante alguns anos, a memória dessa visão faria estremecer muitos dos membros do Senado.

Antes que Sila pudesse abrir a boca para responder a Cina, Cévola Pontifex Maximus interveio.

- Lúcio Cina, deixa-te disso! - exclamou; Cévola lembrava-se de que, pouco tempo depois de ter visto pela primeira vez aquele outro Sila, este marchara sobre Roma. - Imploro-te, Lúcio Cina, promete aquilo que o cônsul te pediu!

Nesse momento, ouviu-se a voz de António Orador.

- Se esse é o tipo de atitudes que tencionas tomar, então sugiro-te, Lúcio Cina, que tenhas cuidado! O nosso cônsul Lúcio Catão não se quis precaver, e morreu.

O Senado murmurava, todo o Senado, tanto os novos senadores como os antigos; as suas palavras, basicamente, exprimiam irritação e medo perante a posição de Cina. Não seriam capazes os cônsules de pôr de parte os seus interesses e ambições? Não entendiam que Roma precisava desesperadamente de paz e estabilidade interna?

- Ordem! - gritou Sila, o Sila a que estavam habituados, e não muito alto; como, porém, a sua expressão era ainda a mesma, uma terrível expressão animalesca, o silêncio no Senado foi imediato.

- Cônsul sénior, posso falar? - perguntou Catulo César, que se lembrava de que o seu primeiro contacto com aquele outro Sila fora seguido de uma retirada de Tridente.

- Fala, Quinto Lutácio.

- Em primeiro lugar, gostaria de comentar a atitude de Lúcio Cina - disse Catulo César, friamente. - Acho que ele precisa de ser vigiado. Lamento que tenha sido eleito para um cargo que, segundo creio, não desempenhará meritoriamente. Lúcio Cina tem, sem dúvida, magníficos antecedentes guerreiros, mas falta-lhe o entendimento político, a compreensão do que é melhor para o governo de Roma. Quando foi pretor urbano, não tomou nenhuma das medidas que deveria ter tomado. Os dois cônsules estavam longe, no campo de batalha, e Lúcio Cina, encarregado do governo de Roma, nada fez para combater os terríveis problemas económicos que então começavam a afligir-nos. Se tivesse feito alguma coisa nesse estádio inicial, talvez Roma possuísse agora uma melhor saúde económica. E agora, Lúcio Cina, recentemente eleito cônsul, confrontado com um pedido que lhe foi feito por um homem muito mais inteligente e capaz, recusa-se a aceder a esse pedido, recusa-se a fazer uma promessa que vai ao encontro do verdadeiro espírito do governo senatorial.

- Nada do que disseste contribuiu para influenciar a minha posição, Quinto Lutácio Servilis - retorquiu asperamente Cina, chamando servil a Catulo César.

- Eu sei, eu sei, Lúcio Cina - ripostou Catulo César, com um ar muito altivo. - De facto, quer-me parecer que nada do que nós possamos dizer-te te levará a mudar de atitude. O teu cérebro, tal como a tua bolsa, já foi demasiado influenciado pelo dinheiro que Caio Mário te deu para não prejudicares a reputação do filho dele!

Cina ficou vermelho; detestava ter aquela reacção, mas nada conseguia fazer para a vencer. Sempre que lhe faziam tal acusação, a sua angústia vinha ao de cima.

- Mas há uma maneira de assegurarmos a defesa por Lúcio Cina das medidas que o nosso cônsul sénior tão cuidadosamente decretou

- disse Catulo César. - Sugiro que exijamos a Cneu Octávio e Lúcio Cina um juramento solene. Ambos jurarão que defenderão o nosso actual sistema de governo, como é definido pelas leis de Lúcio Sila.

- Concordo - disse Cévola Pontifex Maximus.

- Também eu - disse Flaco Princeps Senatus.

- E eu - disse António Orador.

- E eu - disse Lúcio César, censor.

- E eu - disse Crasso, censor.

- E eu - disse Quinto Ancário.

- E eu - disse Públio Servílio Vátia.

- E eu - disse Lúcio Cornélio Sila, virando-se para Cévola. Sumo sacerdote, presidirás à cerimónia de juramento dos cônsules eleitos?

- Sim, Lúcio Sila, presidirei à cerimónia.

- E eu aceitarei o juramento - disse Cina, com voz bem sonora -, se o Senado votar claramente nesse sentido. Proponho que se proceda a uma divisão.

- De acordo - disse Sila imediatamente. - Aqueles que concordam com o juramento, vão para a minha direita. Aqueles que discordam, ficarão à minha esquerda.

Foram poucos os senadores que se concentraram à esquerda de Sila, mas o primeiro a lá chegar foi Quinto Sertório, furioso com o que se estava a passar.

- O Senado dividiu-se e mostrou de forma clara qual é a sua posição - disse Sila, agora com uma expressão absolutamente normal.

- Quinto Múcio, tu és o Pontifex Maximus. Como achas que deverá decorrer a cerimónia de juramento?

- Legalmente - retorquiu logo Cévola. - Na primeira parte da cerimónia, todo o Senado deverá ir comigo ao templo de Júpiter Optimus Maximus, onde o flamen Dialis e eu sacrificaremos uma vítima ao Grande Deus. Será um cabrito de dois anos, e os Padres dos Dois Dentes assistir-nos-ão na realização da cerimónia.

- Muito conveniente! - disse Sertório, bem alto. - Aposto que quando chegarmos ao cimo do Capitólio, todos os homens e animais necessários estarão já à nossa espera!

Cévola prosseguiu como se ninguém tivesse falado.

- Depois do sacrifício, pedirei a Lúcio Domício, que é filho do falecido Pontifex Maximus e não se encontra directamente envolvido neste assunto, que analise o fígado da vítima, a fim de sabermos quais são os auspícios. Se estes forem favoráveis, conduzirei o Senado ao templo de Semo Sancus Dius Fidius, o deus da Divina Boa Fé. Aí, a céu aberto, como é necessário em todos os juramentos, os cônsules eleitos jurarão defender as leges Corneliae.

Sila levantou-se da sua cadeira curul.

- Procedamos então às cerimónias necessárias, Pontifex Maximus. Os auspícios revelaram-se favoráveis; para mais, todo o Senado, enquanto se deslocava do Capitólio para o templo de Semo Sancusl Dius Fidius, pôde ver uma águia voando da esquerda para a direita,! para lá da Porta Sanqualis.

Mas Cina não tinha a mínima intenção de ficar preso toda a vida a um tal juramento, e sabia o que havia de fazer para invalidar desde logo o seu acto. Enquanto os senadores subiam a colina na direcção do templo do Grande Deus, situado no Capitólio, Cina, sem que ninguém se apercebesse disso, abeirou-se de Quinto Sertório e pediu-lhe que procurasse um certo tipo de pedra. Depois, no caminho para o outro templo, Quinto Sertório deixou cair a pedra nas dobras da toga de Cina, sem que ninguém desse por isso. Era uma pedra pequena, macia e oval; Cina agarrou-a com a mão esquerda e não mais a largou.

Desde tenra idade que Cina, tal como qualquer outro rapaz romano, sabia que só ao ar livre, nos campos, num local isolado, se poderia fazer juramentos, os juramentos de que os rapazes tanto gostavam juramentos de amizade ou inimizade, de medo e raiva, de ousadia e ilusão. Porque todos os juramentos tinham de ser testemunhados pelos deuses do céu; se isso não acontecesse, o juramento não tinha valor. Tal como todos os seus amigos de infância e juventude, Cina seguira o ritual com absoluta seriedade. No entanto, conhecera um jovem, o filho do cavaleiro Sexto Perquitienus, que abjurara de todos os juramentos que alguma vez fizera. Tinham ambos a mesma idade, embora o filho de Sexto Perquitienus não se desse habitualmente com os filhos dos senadores. Tinham-se conhecido de uma forma ocasional, a propósito, precisamente, de um juramento.

- Só precisas de te agarrar aos ossos da Mãe Terra - dissera-lhe o filho de Sexto Perquitienus. - E para isso tens de ter uma pedra na tua mão no momento do juramento. Dessa forma, entregas-te à protecção dos deuses do Além porque o Além é feito dos ossos da Mãe Terra. Pedra, Lúcio Cornélio, uma pedra. Porque pedra é osso!

Por isso, quando jurou que apoiaria as leis de Sila, Lúcio Cornélio Cina agarrou com força a pedra na sua mão esquerda. Concluído o juramento, baixou-se rapidamente (como o templo não tinha tecto, o chão estava cheio de folhas, pedras e galhos) e fingiu que estava a apanhar uma pedra, afinal a pedra que trazia escondida na toga.

- E se eu quebrar o meu juramento - disse ele numa voz bem audível -, que me atirem da rocha Tarpeia como eu atiro esta pedra neste instante!

A pedra voou pelo ar, chocalhou contra as paredes musguentas e carcomidas do templo e voltou ao seio da mãe, a Terra. Aparentemente, ninguém entendeu o significado daquele acto; lançada a pedra, Cina pôde respirar fundo. Obviamente, os senadores romanos não conheciam o segredo que partilhara apenas com o filho de Sexto Perquitienus. Assim, quando fosse acusado de romper o seu juramento, Cina podia explicar que, na realidade, nunca jurara nada. Todo o Senado o vira atirar aquela pedra: Cina rodeara-se, de facto, de uma centena de testemunhas impecáveis. Sim, aquele era um truque que nunca mais poderia utilizar mas imagine-se o que Metelo Numídico, o Suíno, não teria podido fazer, se o conhecesse!

Embora tivesse assistido à tomada de posse dos novos cônsules, Sila não ficou para o banquete, apresentando a desculpa de que no dia seguinte partiria para Cápua. No entanto, esteve presente na primeira reunião oficial do Senado do Ano Novo, realizada no templo de Júpiter Optimus Maximus, e pôde por isso ouvir o breve e ameaçador discurso de Cina.

- Honrarei o meu cargo, disso poderão estar certos - disse Cina aos senadores. - As minhas únicas apreensões são provocadas pelo facto de o cônsul sénior cessante ir chefiar um exército cujo comandante deveria ser Caio Mário. Mesmo não levando em linha de conta a condenação ilegal de Caio Mário, considero que o cônsul sénior cessante deveria permanecer em Roma, a fim de responder por diversas acusações.

Acusações? Que acusações? Ninguém sabia ao certo, embora a maior parte dos senadores pensasse em traição; e a razão para tais acusações residia unicamente no facto de Sila ter instalado o seu exército em roma. Ao ouvir aquilo, Sila soltou um suspiro e resignou-se perante o inevitável. Como era um homem sem escrúpulos, sabia perfeitamente que também ele não teria cumprido o juramento feito por Cina. Mas nunca pensara que Cina fosse capaz de fazer tal coisa. Enganara-se. Que chatice!, pensou.

Depois de deixar o Capitólio, encaminhou-se na direcção da ínsula de Aurélia em Subura; enquanto caminhava, pensava na melhor maneira de lidar com Cina. Quando chegou a casa de Aurélia, já tinha encontrado uma resposta. Por isso exibia um sorriso bem-disposto quando lhe abriram a porta.

No entanto, o sorriso morreu-lhe nos lábios mal viu a expressão de Aurélia; era uma expressão triste e, nos olhos dela, não se lia qualquer afeição.

- Tu também? - perguntou ele, instalando-se num divã.

- Eu também - retorquiu ela, sentando-se numa cadeira em frente dele. - Não devias estar aqui, Lúcio Cornélio.

- Ora! Não há o mínimo problema! - retorquiu ele, despreocupadamente. - Quando me vim embora, Caio Júlio estava entretidíssimo com o banquete.

- Aliás, pouco te ralavas se ele entrasse neste momento! - disse ela. - O melhor será termos companhia: para meu bem ou, quem sabe, para o teu. Lúcio Decúmio! Podes vir, por favor.

Lúcio Decúmio apareceu imediatamente, com uma expressão verdadeiramente pétrea.

- Ah, francamente! Tinhas de ser tu! - disse Sila, irritado. - Se não fossem tipos como tu, Lúcio Decúmio, eu não teria precisado de invadir Roma! Como pudeste acreditar em toda aquela conversa fiada sobre a pretensa recuperação de Caio Mário? Ele não está em condições de levar um exército até Veios, quanto mais até à Ásia Menor!

- Caio Mário está curado - retorquiu Lúcio Decúmio, rebelde, apesar de estar na defensiva. Sila era, não só o único amigo de Aurélia de quem não gostava, mas também o único homem seu conhecido de quem tinha medo. Sabia acerca de Sila muitas coisas que Aurélia ignorava; mas quanto mais sabia, menos vontade tinha de entrar em confidências com quem quer que fosse. Só um parecido com ele pode saber como ele é, dissera para si mesmo um sem-número de vezes, e juro que Lúcio Cornélio Sila é tão canalha quanto eu. Com a diferença de que tem possibilidade de fazer canalhices maiores, e eu sei que as faz.

- O culpado por toda esta confusão não é Lúcio Decúmio! És tu!

- atirou-lhe Aurélia.

- Nunca ouvi maior disparate! - retorquiu Sila. - Não fui eu quem começou com isto! Eu estava em Cápua a tratar dos meus assuntos e preparava-me para partir para a Grécia. Os culpados são os imbecis como Lúcio Decúmio. Os imbecis que se metem em coisas que não conhecem, que se iludem pensando que os seus heróis são feitos de matéria diferente da nossa, superior à nossa! O teu amigo Lúcio Decúmio, Aurélia, recrutou muitos dos homens de Sulpício, aqueles homens que enchiam o Fórum e que fizeram da minha filha uma viúva! E era ele quem conduzia alguns desses homens quando entrei no Fórum Esquilino com um único desejo, a paz! Não fui eu quem ateou o fogo! Pelo contrário: não só não o ateei, como ainda por cima me queimei!

Furioso, Lúcio Decúmio pôs-se muito direito e respondeu-lhe imediatamente.

- Eu acredito no Povo! - exclamou, desnorteado.

- Estás a ver? Lá estás tu a dizer imbecilidades tão vazias como a tua cabeça da Quarta Classe! - atirou-lhe Sila. - ”Eu acredito no Povo”, diz ele! Farias melhor se acreditasses nos teus superiores!

- Lúcio Cornélio, por favor! - pediu Aurélia, o coração batendo apressado, as pernas tremendo. - Se és superior a Lúcio Decúmio, então porta-te como tal!

- Sim! - exclamou Lúcio Decúmio, recompondo-se porque sentia o apoio de Aurélia, e porque, perante ela, queria mostrar-se corajoso, ousado. Mas Sila não era nenhum Mário. A natureza daquele homem deixava Lúcio Decúmio literalmente arrepiado. No entanto, tentou enfrentá-lo. Por Aurélia. - Tem cuidado, grande e importante consular Sila, tem cuidado, porque um dia ainda podes sentir uma faca a rasgar-te as costas!

Os olhos pálidos tornaram-se de repente vítreos, os lábios de Sila separaram-se, descobrindo os dentes; levantou-se do divã, envolvido por uma aura ameaçadora quase tangível, e avançou na direcção de Lúcio Decúmio.

Lúcio Decúmio recuou - não por cobardia, mas por superstição, porque receava o contacto com algo que era tão misterioso quanto terrível.

- Podia esmagar-te como um elefante esmaga um cão - disse Sila, divertido. - Só não o faço porque está aqui esta senhora. Ela aprecia-te, e tu serve-la bem. Podes ter espetado muitas facas em muitas costas, Lúcio Decúmio, mas não te iludas! Nem mesmo em sonhos conseguirás matar-me. Mantém-te longe da minha arena, limita-te a comandar a tua. Agora desaparece!

- Vai-te embora, Lúcio Decúmio! - disse Aurélia. - Por favor!

- Não te posso deixar sozinha! Ele é perigoso!

- Ficarei melhor sozinha. Vai-te embora, peço-te. Lúcio Decúmio obedeceu.

- Não precisavas de ser tão duro com ele - disse ela, ofegante. Ele não sabe lidar contigo e, além disso, por muitos defeitos que tenha, o certo é que é um homem leal e fiel. A devoção que Lúcio Decúmio mostra em relação a Caio Mário é apenas o resultado do amor que dedica ao meu filho.

Sila sentou-se na beira do divã, sem saber se havia de ficar ou partir.

- Não te zangues comigo, Aurélia. Se te zangas, sou eu quem fica zangado. Concordo, ele não presta, não merece tanto barulho. Mas Caio Mário também não presta, e ele ajudou Caio Mário a pôr-me numa situação que eu não queria, que eu não pedi, que eu não merecia!

Ela respirou fundo, exalou lentamente.

- Sim, eu posso entender o que sentes - disse. - Tens alguma razão, relativamente ao que se passou - acrescentou Aurélia, aquiescendo com a cabeça. - Sim, eu sei que tens alguma razão. Sei que tentaste tudo para deter o processo legalmente, pacificamente. Mas não censures Caio Mário. A culpa foi toda de Públio Sulpício.

- O teu raciocínio é especioso, Aurélia - disse Sila, começando a descontrair-se. - Tu és filha de um cônsul e mulher de um pretor. Sabes melhor do que a maior parte das pessoas que Sulpício nunca poderia ter lançado o seu programa se não contasse com o apoio de uma pessoa muito mais influente que ele. De uma pessoa como Caio Mário. Sulpício não era um homem influente.

- Era? - perguntou Aurélia rispidamente, de olhos dilatados.

- Sulpício está morto. Foi apanhado há dois dias. Aurélia levou as mãos à boca.

- E Caio Mário?

- Ah, Caio Mário, Caio Mário, sempre Caio Mário! Pensa um pouco, Aurélia, pensai Porque haveria eu de querer ver Caio Mário morto? Achas que ia matar o herói do Povo? Não sou assim tão louco, Aurélia! Esperemos que o susto que lhe preguei o mantenha fora de Itália enquanto eu estiver em Itália. E não só para meu bem, mulher. Para o bem de Roma, também. Não podemos permitir que ele combata Mitridates! - Sila ergueu as mãos, como se fosse um advogado tentando convencer um júri pouco receptivo. - Aurélia, com certeza que reparaste que Caio Mário, desde que regressou à vida pública, há exactamente um ano, se tem ligado a homens a quem, nos velhos tempos, nunca teria dito avé! Todos nós recorremos a agentes, a lacaios, a esbirros, que deveríamos desprezar. Mas desde que teve a segunda trombose, Caio Mário tem recorrido a gente e a artimanhas que, nos velhos tempos, teria pura e simplesmente abominado! Eu conheço-me. Sei o que sou capaz de fazer. E não minto se disser que sou muito mais desonesto e inescrupuloso que Caio Mário. Não só por causa da vida que tenho levado. Também por causa do tipo de homem que sou. Mas ele nunca foi assim! Ele nunca recorreu a homens como Lúcio Decúmio para se ver livre de um cadete que acusou o filho de assassínio! E nunca recorreu a gente como Lúcio Decúmio para contratar ralé! Pensa um pouco, Aurélia, por favor! A segunda trombose afectou-lhe gravemente o cérebro!

- Nunca devias ter marchado sobre Roma - disse Aurélia.

- Mas diz-me uma coisa: eu tinha outra alternativa? Se houvesse outra alternativa, podes estar certa de que eu não teria hesitado! A menos que preferisses que eu permanecesse em Cápua, à espera que deflagrasse uma segunda guerra civil em Roma: Sila contra Mário!

Aurélia empalideceu.

- Uma guerra civil?! Nunca teríamos chegado a esse ponto!

- Ah, eu tinha uma terceira alternativa, sim! Submetia-me às ordens de um tribuno da plebe maníaco e de um velho demente! Permitia que Caio Mário me fizessse aquilo que fez a Metelo Numídico, permitia-lhe que usasse a Plebe para me retirar o comando que me foi legalmente confiado! Quando ele fez isso a Metelo Numídico, Metelo Numídico já não era cônsul! Ao passo que eu era cônsul. Aurélia! E ninguém retira um comando a um cônsul em exercício. Ninguém!

- Sim, estou a entender a tua posição - disse ela, já com cores na cara. Os olhos estavam molhados de lágrimas. - Eles nunca te perdoarão, Lúcio Cornélio. Tu entraste em Roma com um exército.

Sila resmungou.

- Aurélia, por amor de todos os deuses, não chores! Nunca te vi chorar! Nem no funeral do meu filho! Se não choraste por ele, então não podes chorar por Roma!

Aurélia tinha a cabeça baixa; as lágrimas não lhe corriam pelas faces, caíam-lhe directamente no colo, e a luz fazia-lhe brilhar as negras pestanas molhadas.

- É quando estou mais emocionada que não consigo chorar disse ela, limpando o nariz com a mão.

- Não acredito nisso - retorquiu ele, de voz embargada.

Ela ergueu a cabeça. As lágrimas deslizavam-lhe agora pelas faces.

- Eu não estou a chorar por Roma - disse ela, com uma voz rouca, e limpou de novo o nariz. - É por ti que estou a chorar, Lúcio Cornélio.

Sila levantou-se do divã, deu-lhe o seu lenço e deixou-se estar ao lado dela, afagando-lhe o ombro. Era melhor que ela não visse a expressão dele.

- Por essas lágrimas, amar-te-ei eternamente - disse ele. Depois, levou a outra mão ao rosto dela, molhou os dedos nas lágrimas e lambeu-os. - É Fortuna quem manda - disse. - Calhou-me em sorte o mais terrível de todos os consulados. E a mais terrível de todas as vidas. E eu não sou homem para aceitar a rendição, tal como não sou homem para me preocupar com os meios que me podem levar à vitória, porque só a vitória me interessa e todos os meios são bons desde que me permitam vencer. Há muitos que gostariam de ser como eu, mas não o serão. A raça, esta raça, acabará quando eu morrer. - Sila apertou o ombro de Aurélia. - As tuas lágrimas tenho-as agora comigo. Em tempos, atirei uma esmeralda valiosíssima para uma sanita porque ela, para mim, não tinha nenhum valor. Mas as tuas lágrimas, as tuas lágrimas nunca as perderei.

Sila retirou a mão do ombro de Aurélia e encaminhou-se imediatamente para a porta. Orgulhoso, exaltado, sentindo-se mais rico. Todas as lágrimas que as outras mulheres tinham chorado por ele eram lágrimas egoístas. Tinham-nas chorado porque os seus corações haviam sofrido rudes golpes. Nenhuma tinha chorado por causa dele, por causa do seu coração dilacerado. E no entanto Aurélia, que nunca chorava, tinha chorado por ele.

Outro homem talvez se tivesse comovido, talvez tivesse reconsiderado. Mas nunca Sila. Quando chegou a casa, após um demorado passeio, essa exaltação íntima não aflorava já o pensamento consciente; depois de um jantar muito agradável com Dalmática, levou-a para a cama, fez amor com ela e dormiu as suas dez horas habituais - um sono sem sonhos, ou, se os tinha, não se lembrava deles. Uma hora antes do nascer do dia, levantou-se sem acordar a mulher, e foi para o escritório tomar o pequeno-almoço. Enquanto comia pão ainda quente com queijo, pôs-se a fitar com olhar ausente uma caixa que tinha sensivelmente o mesmo tamanho dos seus templos ancestrais. A caixa estava numa ponta da secretária e continha a cabeça de Públio Sulpício Rufo.

Os outros condenados tinham escapado: só Sila e alguns dos seus colegas sabiam que não tinham sido desenvolvidos grandes esforços para os capturar. Mas com Sulpício era diferente: Sulpício tinha de ser castigado. Era absolutamente necessário apanhá-lo.

A travessia do Tibre não passara de um ardil. Ao fim de algum tempo, Sulpício voltara para a margem de onde fugira; evitara então Ostia e dirigira-se para a pequena cidade portuária de Laurento, alguns quilómetros a sul de Óstia. Em Laurento, o fugitivo tentara contratar um navio. Não o chegou a fazer. Os mercenários de Sila mataram-no. Contudo, para receber o dinheiro que Sila lhes tinha prometido, esses mercenários teriam de levar-lhe uma prova de que Sulpício estava morto: e essa prova era a cabeça da vítima. Sila só lhes pagou depois de ver a cabeça.

Antes de deixar Roma no segundo dia de Janeiro, Sila chamou Cina ao Fórum. E aí, presa à parede dos rostra, Cina pôde ver uma lança com a cabeça de Sulpício espetada.

- Repara bem nisto, Lúcio Cina - disse. - Não te esqueças do que estás a ver. Lembra-te da expressão dele. Diz-se que quando se corta a cabeça a um homem, os olhos dele continuam a ver. Se nunca acreditaste nesse dito, julgo que passarás a acreditar. Aquele homem viu a sua própria cabeça cair na poeira do caminho. Lembra-te bem disto, Lúcio Cina. Eu não tenciono morrer no Oriente. E isso significa que voltarei a Roma. Se adulterares os meus remédios para curar as doenças de Roma, podes estar certo de que também tu verás a tua cabeça cair na poeira do caminho.

Cina respondeu-lhe com um olhar de desprezo. Uma resposta escusada, pois Sila nem reparou nele; mal acabou de falar, montou na sua mula e, num instante, desapareceu do Fórum, com o chapéu de palha na cabeça. Quem o visse, não diria que se tratava de um general. Para Cina, ele era Némesis.

Cina olhou para a cabeça de Sulpício, os olhos muito abertos, o maxilar pendente. O dia mal tinha nascido; se retirasse a cabeça naquele momento, ninguém a veria.

- Não - disse Cina em voz alta. - Será melhor que fique aqui. Que toda a Roma veja até onde pode ir o homem que invadiu Roma.

Em Cápua, Sila trancou-se no seu gabinete com Lúculo para estudar a transferência dos seus soldados para Brundísio. Inicialmente, tinha pensado em seguir de navio a partir de Tarento. Mas não possuía um número suficiente de navios de transporte. Teriam por isso de ir para Brundísio.

- Tu vais primeiro. Levas toda a cavalaria e duas das cinco legiões

- disse Sila a Lúculo. - Eu irei depois com as outras três. Mas não vais ficar à minha espera do outro lado do mar Jónio. Logo que desembarques em Elátria ou Buquétio, marchas na direcção de Dodona. Saqueia todos os templos em Epiro e Acarnânia. Não é grande a fortuna, mas já não é mau. É pena que os Escordiscos tenham pilhado Dodona há pouco tempo. Contudo, Lúcio Licínio, não nos podemos esquecer de que os sacerdotes gregos e epirenses são manhosos. É possível que Dodona tenha conseguido esconder uma boa parte da sua fortuna quando aqueles bárbaros saquearam o templo.

- De mim não vão conseguir esconder nada - disse Lúculo, sorridente.

- Óptimo! Continuas a tua marcha na direcção de Delfos, e fazes o que tens a fazer. Enquanto eu não me encontrar contigo, o teatro de guerra será só teu.

- E tu, Lúcio Cornélio? Que vais fazer até lá? - perguntou Lúculo.

- Terei de esperar pelo regresso dos teus navios de transporte em Brundísio, mas antes disso terei de esperar em Cápua até ter a certeza de que as coisas estão calmas em Roma. Não confio em Cina, e não confio em Sertório.

Como três mil cavalos e mil mulas não constituíam uma presença popular em Cápua, Lúculo marchou na direcção de Brundísio em meados de Janeiro, apesar de o Inverno estar a aproximar-se rapidamente e apesar de Lúculo e Sila duvidarem que o primeiro conseguisse fazer-se ao mar antes de Março ou Abril. Embora precisasse de deixar Cápua urgentemente, Sila ainda hesitava; as informações que vinham de Roma não eram agradáveis. Soube, em primeiro lugar, que o tribuno da plebe Marco Virgílio tinha feito um magnífico discurso nos rostra, para uma multidão concentrada no Fórum, mas evitara infringir as leis de Sila, recusando-se a considerar aquele acontecimento como um comício ou assembleia. Virgílio defendera que Sila, que já não era cônsul, fosse destituído do seu cargo e levado para Roma, pela força, se necessário, a fim de responder pela acusação de traição, devido ao assassínio de Sulpício e ao degredo ilegal de Caio Mário e mais dezoito homens, todos eles ainda fugidos.

O discurso não teve qualquer consequência imediata mas, pouco tempo depois, Sila ficou a saber que Cina estava a tentar obter o apoio de muitos dos senadores menos importantes e que Virgílio e outro tribuno da plebe, Públio Mágio, tinham apresentado uma moção no Senado, recomendando à Assembleia das Centúrias que retirasse todo o poder a Sila e o obrigasse a comparecer em tribunal, sob as acusações de traição e homicídio. O Senado recusou firmemente estas manobras, mas Sila sabia que elas não anunciavam nada de bom; todos sabiam que ele continuava em Cápua com três legiões, pelo que era óbvio que tinham concluído que ele não teria coragem para marchar sobre Roma uma segunda vez. Sentiam, enfim, que podiam desafiá-lo impunemente.

No final de Janeiro, Sila recebeu uma carta da filha, Cornélia.

Pai, encontro-me numa situação desesperada. Falecidos o meu marido e o meu sogro, o novo paterfamilias - o meu cunhado Quinto

- comporta-se comigo de uma forma abominável. A mulher dele odeia-me. Quando o meu marido e o meu sogro eram vivos, nada tinha a recear. Agora, porém, Quinto e a sua horrível mulher vivem comigo e com a minha sogra. De acordo com a lei, a casa pertence ao meu filho, mas eles parecem ter-se esquecido disso. A minha sogra, naturalmente, obedece ao seu único filho vivo. E todos se juntam para te acusar de seres o causador de todos os problemas, tanto os deles como os de Roma. Chegam a dizer que mandaste o meu sogro para Úmbria de propósito, porque sabias que iam matá-lo. Em consequência de tudo isto, eu e os meus filhos não dispomos de criados, dão-nos a mesma comida que dão aos criados, e reservaram-nos os piores quartos. Quando me queixo, respondem-me que me vá queixar a ti! Como se eu não tivesse um filho que é herdeiro da maior parte da fortuna do avô! Esta questão da herança, claro, também é causa de fortes ressentimentos. Entretanto, Dalmática propôs-me que fosse viver com ela na vossa casa, mas acho que não posso ir para lá enquanto não tiver a tua autorização.

O que eu te queria pedir, pai, mais do que alojamento na tua nova casa, era que me arranjasses outro marido. Se tiveres tempo para pensar no meu caso, claro, e imagino que não terás muito tempo. Para o meu luto terminar faltam ainda sete meses. Até lá, se concordares, ficarei na tua casa, sob a protecção da tua mulher. Mas não quero incomodar Dalmática mais do que esses sete meses. Porque preciso de ter a minha própria casa.

Eu não sou como Aurélia, não quero viver sozinha. Também não me atrai o tipo de vida que Élia tem agora e que lhe parece agradar, apesar das tiranias de Márcia. Por favor, pai, ficar-te-ia muito grata se me arranjasses marido! O casamento com o pior dos homens é preferível, de longe, a ter de invadir a casa de outra mulher. Sinceramente.

Tirando estes problemas, estou bem, ainda que a tosse não me largue, por causa da frialdade do meu quarto. Os meus filhos, como seria de esperar, também têm tosse. Mas nesta casa pouco se importariam se alguma coisa acontecesse ao meu filho.

Considerada desapaixonadamente, a queixa de Cornélia Sila pouco pesava no meio de tantos problemas; no entanto, pesava o suficiente para desequilibrar a perturbada mente de Sila. Antes de receber a carta, não sabia que caminho deveria seguir. Agora já sabia. Esse caminho, esse percurso, nada tinha a ver com Cornélia Sila. De qualquer modo, tinha já uma ideia do que havia de fazer a respeito dela. Com que então aquele novo-rico picentino atrevia-se a perturbar a saúde e a felicidade da sua filha! E do filho dela!

Sila enviou imediatamente duas cartas, uma para Metelo Pio, o Bacorinho, ordenando-lhe que se dirigisse a Cápua e que levasse Mamerco com ele, e a outra para Pompeu Estrabão. A carta para o Bacorinho resumia-se a duas frases. Pompeu Estrabão teve direito a mais texto.

Julgo, Cneu Pompeu, que estás perfeitamente a par do que se passa em Roma - das acções imprudentes de Lúcio Cina e do seu grupinho de tribunos da plebe. Creio, meu amigo e colega no Norte, que nos conhecemos suficientemente bem um ao outro (e só lamento que as nossas carreiras nos tenham impedido de manter uma relação de amizade mais próxima) para sabermos que os nossos objectivos e intenções são idênticos. Encontro em ti um conservadorismo e um respeito pelas velhas tradições em que me reconheço inteiramente. Além disso, sei que não nutres qualquer afeição por Caio Mário. Ou por Cina.

Se achas realmente que Roma ficaria muito melhor servida se enviasse Caio Mário e as suas legiões para combater o rei Mitridates, então rasga esta carta imediatamente. Mas se preferes ver-me a mim e às minhas legiões enfrentando Mitridates, então prossegue a leitura.

Perante a actual situação em Roma, não vejo como poderei lançar-me na aventura que deveria ter iniciado o ano passado, muito antes de o meu consulado ter expirado. Em vez de partir para o Oriente, vejo-me obrigado a permanecer em Cápua com três das minhas legiões para que não me retirem o meu poder, para que não me prendam, para que não me mandem a tribunal pelo crime de ter fortalecido a mós maiorum. Cina, Sertório, Virgílio, Mágio e os outros falam de traição e homicídio, claro.

Pondo de parte as minhas legiões em Cápua e as duas que se encontram em Esérnia mais a que está em Nola, as tuas legiões são as únicas que restam em Itália. Posso confiar em Quinto Cecília, que está em Esérnia, e em Ápio Cláudio, que está em Nola - eles apoiam-me, apoiaram o que eu fiz quando era cônsul. O que quero saber é se também posso confiar em ti e nas tuas legiões. Pode muito bem acontecer que, depois de eu deixar a Itália, Cina e os seus amigos se sintam livres para fazer o que muito bem entenderem. Gostaria de enfrentar as consequências dessa eventualidade no momento propício. Garanto-te que se regressar vitorioso do Oriente farei com que os meus inimigos paguem caro a afronta.

O que me preocupa é a minha actual posição. Preciso de ter tempo suficiente para deixar a Itália e (como tu muito bem sabes) isso pode significar mais quatro ou cinco meses. Os ventos do Adriático e do Jónio, nesta estação, são muito caprichosos, e as tempestades são frequentes. Não posso correr riscos com tropas de que Roma precisará desesperadamente.

Cneu Pompeu, serás capaz de cumprir, em meu nome, a tarefa de informar Cina e os seus correlegionários de que eu, Lúcio Cornélio Sila, fui legalmente nomeado para conduzir essa guerra? E que será melhor que não tentem protelar a minha partida? E que, pelo menos por ora, têm de desistir de me perseguir?

Peço-te que me consideres teu amigo e colega a todos os níveis, se achas que podes responder-me afirmativamente. Aguardo a tua resposta ansiosamente.

Sila recebeu a resposta de Pompeu Estrabão ainda antes de os seus lugares-tenentes terem chegado de Esérnia. A carta de Pompeu Estrabão, escrita numa inenarrável caligrafia, resumia-se a uma frase:

”Não te preocupes, eu trato de tudo.”

Por isso, quando chegaram a Cápua, o Bacorinho e Mamerco encontraram Sila muito mais descontraído e alegre do que alguma vez poderiam ter pensado.

- Não se preocupem. Está tudo tratado - disse Sila, com um sorriso de todo o tamanho.

- Tudo tratado? Como é isso possível? - retorquiu Metelo Pio, estupefacto. - Ouvi dizer que te querem acusar de traição e assassínio!

- Escrevi ao meu grande amigo Cneu Pompeu Estrabão e contei-lhe todos os meus problemas. Ele diz que trata de tudo.

- Tratará, sem dúvida - disse Mamerco, um sorriso lento a aparecer-lhe nos lábios.

- Ainda bem, Lúcio Cornélio! Que óptima notícia! - exclamou o Bacorinho. - Não é justo que te tratem assim! Foram muito mais simpáticos com Saturnino! Comportam-se de tal maneira que só lhes falta dizer que Sulpício era um semi-deus, e não um demagogo! - Fez uma pausa, surpreendido com a sua inesperada agilidade verbal. Falei bem, não falei?

- Guarda a tua eloquência para o Fórum quando te candidatares ao cargo de cônsul - disse Sila. - Eu gastei toda a que tinha, e não era muita. A minha instrução nunca passou do nível elementar.

Eram observações daquelas que confundiam Mamerco e que o levavam a insistir junto do Bacorinho para que lhe contasse tudo o que sabia ou suspeitava acerca da vida de Lúcio Cornélio Sila. Claro, o Fórum produzia sempre as suas histórias acerca de todos os indivíduos que se tornavam notáveis fosse por que razão fosse, mas Mamerco não confiava nessas histórias, considerando-as uma mera invenção de gente que nada tinha que fazer.

- Eles darão cabo das tuas leis logo que deixes a Itália. Que vais fazer quando regressares? - perguntou Mamerco.

- Enfrentar o problema no momento propício. Nunca antes, claro.

- E poderás enfrentá-lo, Lúcio Cornélio? Quer-me parecer que se trata de um beco sem saída.

- Há sempre maneiras de enfrentar os mais difíceis problemas, Mamerco. Mas para já posso dizer-te que não gastarei o meu tempo livre com vinho e mulheres durante esta campanha! - retorquiu Sila, sem revelar o mínimo sinal de ansiedade. - Sabes, eu sou um dos protegidos da deusa Fortuna. Ela nunca se esquece de mim.

Começaram então a discutir o rescaldo da guerra em Itália e a firmeza com que os Samnitas resistiam; controlavam ainda a maior parte do território entre Esérnia e Corfínio, bem como as cidades de Esérnia e Nola.

- Os Samnitas odiaram Roma durante séculos e não há como eles no que toca a ódios! - disse Sila, e soltou um suspiro. - Pensava que Esérnia e Nola teriam já capitulado quando eu deixasse a Itália. Enganei-me. Provavelmente, quando voltar, ainda estarão na posse dos Samnitas. À minha espera, quem sabe.

- Faremos tudo para que isso não aconteça - retorquiu o Bacorinho. Um criado surgiu nesse momento, anunciando que o jantar estava

pronto.

Lúcio Cornélio levantou-se e conduziu os amigos à sala de jantar. Enquanto comiam, Sila manteve uma conversa ligeira, despreocupada; desfrutavam de um luxo que só era permitido a velhos amigos: cada um tinha um divã seu.

- Nunca recebes a visita de mulheres, Lúcio Cornélio? - perguntou Mamerco, depois de os criados se terem ido embora.

Sila encolheu os ombros, fez uma careta.

- Em campanha, longe da mulher, é o que queres dizer?

- Sim, em campanha.

- As mulheres só trazem problemas, Mamerco. Por isso a resposta só pode ser negativa - disse Sila, rindo-se. - Se me perguntaste isso por causa dos teus deveres de custódia em relação a Dalmática, podes crer que te dei uma resposta sincera.

- Na realidade, fiz-te essa pergunta por mera curiosidade, apenas

- respondeu Mamerco, imperturbável.

Sila arrumou a taça para olhar atentamente para o divã defronte do seu, onde se encontrava Mamerco reclinado; examinou cuidadosamente o seu convidado - com muito mais cuidado do que no passado, pois nunca reparara muito nele. Não era nenhum Paris, nenhum Adónis, nenhum Mémio, isso era evidente. Cabelo escuro cortado muito rente, o que indicava que tinha pouco volume e deixava o barbeiro desesperado; um rosto de traços muito salientes, com um nariz achatado; olhos escuros muito fundos; uma bela pele morena, brilhante, e a pele era o que ele tinha de melhor. Um homem saudável. Mamerco Emílio Lépido Liviano. Capaz de matar Silão num combate corpo-a-corpo ganhara a carona cívica por esse feito. Portanto, um homem corajoso. Não era tão brilhante que pudesse transformar-se num perigo para o Senado, mas também não era nenhum idiota. De acordo com o Bacorinho, era um indivíduo em quem se podia confiar em qualquer emergência, ou em situações de comando. Escauro gostara muito dele e nomeara-o, por isso, executor do seu testamento.

Claro que Mamerco se apercebeu de que estava a ser submetido a um exame minucioso; mas, ao mesmo tempo, sentiu que aqueles olhos que percorriam tão atentamente o seu corpo eram como os olhos de um amante que desejava conquistá-lo.

- Mamerco, és casado, não és? - perguntou Sila. Tal pergunta surpreendeu-o, ao ponto de pestanejar.

- Sim, Lúcio Cornélio, sou casado.

- Tens filhos?

- Uma menina. Tem quatro anos.

- Gostas da tua mulher?

- Não. É uma criatura horrível.

- Já alguma vez pensaste na hipótese de te divorciares?

- Não penso noutra coisa sempre que estou em Roma. Fora de Roma, tento não pensar nela.

- Como se chama ela? De que família é?

- Cláudia. É uma das irmãs do Ápio Cláudio Pulcro que comanda actualmente o cerco a Nola.

- Ah, de facto não foi uma boa escolha, Mamerco! Essa família é muito estranha.

- Estranha? Estranhíssima!

Metelo Pio esquecera-se de se reclinar; estava sentado muito direito, os olhos muito abertos não largavam Sila.

- A minha filha é agora uma viúva. Ainda não fez vinte anos. Tem dois filhos, uma rapariga e um rapaz. Alguma vez a viste?

- Não - disse Mamerco, calmamente. - Creio que nunca a vi.

- Como sou pai dela, não posso ser um bom juiz. Mas toda a gente diz que é uma mulher encantadora - disse Sila, pegando na taça de vinho.

- Encantadora só, Lúcio Cornélio? Ela é absolutamente maravilhosa!

- disse Bácoro, todo ele sorrisos.

- Aí tens uma opinião de fora! - Sila olhou para a taça e depois, com um gesto hábil, derramou as borras para um prato vazio. - Cinco!

- exclamou, deliciado. - O número cinco é o meu número de sorte.

- Os seus olhos fixaram-se em Mamerco. - Ando à procura de um bom marido para a minha pobre filha. A família do seu falecido marido faz-lhe a vida negra. Ela tem um dote de quarenta talentos, ou seja, mais do que é costume; além disso, provou a sua fertilidade, tem um filho varão, ainda é jovem, é patrícia tanto da parte do pai como da parte da mãe, que era uma Júlia, e possui um temperamento muito agradável. Quer dizer, também não é o tipo de mulher que deixa que façam gato sapato de si. Mas dá-se bem com toda a gente. O seu falecido marido, o jovem Quinto Pompeu Rufo, parecia estar muito apaixonado por ela. Que achas? Estás interessado?

- Depende - retorquiu Mamerco, cauteloso. - De que cor são os olhos dela?

- Não sei - disse o pai.

- Azuis. Um azul muito belo, muito brilhante - disse o Bacorinho.

- E o cabelo?

- Ruivo? Castanho? Castanho-arruivado? Não sei - disse o pai.

- O cabelo dela é da cor do céu quando o Sol acaba de se pôr informou o Bacorinho.

- É alta?

- Não sei - retorquiu o pai.

- Chega-te ao nariz - disse o Bacorinho.

- Como é a pele dela?

- Não sei - disse o pai.

- A pele dela é como uma flor muito branca, com seis sardazinhas douradas no nariz - disse o Bacorinho.

Tanto Sila como Mamerco se viraram para o Bacorinho, de súbito ruborizado.

- Até parece que queres casar com ela, Quinto Cecílio - disse o pai.

- Não! Claro que não! - exclamou o Bacorinho. - Mas um homem tem olhos, não é verdade, Lúcio Cornélio? Sim, a tua filha é uma criatura absolutamente adorável.

- Então será boa ideia casar-me com ela - disse Mamerco, sorrindo para o seu bom amigo Bacorinho. - Admiro o teu gosto quanto às mulheres, Quinto Cecílio. Por isso agradeço-te, Lúcio Cornélio. Considera a tua filha minha futura esposa.

- O luto só termina daqui a sete meses, por isso não há pressas

- disse Sila. - Enquanto durar o luto, Cornélia viverá com Dalmática. Vai visitá-la, Mamerco. Eu escrevo a contar-lhe tudo.

Quatro dias depois, Sila partiu para Brundísio com três legiões particularmente satisfeitas. Encontraram Lúculo acampado ainda nos arredores da cidade, sem problema algum no que toca aos pastos para os cavalos e as mulas, pois muita daquela terra era italiana, e o Inverno mal tinha começado. O tempo estava húmido e algo tempestuoso, não apresentando portanto as condições ideais para uma viagem longa; os homens já estavam fartos de esperar: passavam a maior parte do tempo a jogar. No entanto, com a chegada de Sila, ficaram mais calmos. Era Lúculo que não suportavam, não Sila. Lúculo não conseguia entender os legionários e não estava interessado em fazer um esforço para compreender homens que se encontravam tão abaixo dele na escala social.

Em Março, Lúculo rumou a Corcira. As suas duas legiões e os dois mil cavaleiros encheram todos os navios que o porto de Brundísio possuía. O que significava que Sila não tinha outra alternativa senão esperar que os navios regressassem ao seu porto de origem. Porém, no princípio de Maio (nessa altura os seus duzentos talentos de ouro já tinham desaparecido quase por completo. Sila atravessou finalmente o Adriático com três legiões e mil mulas.

Sila, que era um bom marinheiro, deixou-se ficar debruçado sobre a amurada da popa do navio, fitando a ténue mancha que se ia esbatendo lentamente no horizonte. Essa mancha era a Itália. Uma mancha que finalmente desapareceu: e ele estava livre. Aos cinquenta e três anos, ia enfim para uma guerra que podia vencer honrosamente, contra um inimigo que de facto era estrangeiro. Glória, despojos de guerra, batalhas, sangue.

O que tu perdeste, Caio Mário!, pensou Sila, exultante. Esta guerra, não ma podes roubar. Esta guerra é minha.
Foram o jovem Mário e Lúcio Decúmio que levaram Caio Mário para longe do templo de Tellus e o esconderam na cella do templo de Júpiter Estator, situado na Vélia; foram o jovem Mário e Lúcio Decúmio que procuraram depois Públio Sulpício, Marco Letório e os outros nobres que tinham pegado numa espada para defender Roma; e foram o jovem Mário e Lúcio Decúmio que conduziram Sulpício e mais nove desses nobres ao templo de Júpiter Estator, pouco tempo depois.

- Estes foram os homens que consegui encontrar, pai - disse o jovem Mário, sentando-se no chão. - Ouvi dizer que Marco Letório, Públio Cetego e Públio Albinovano foram vistos a passar a Porta Capena há pouco tempo. Mas não há sinal dos irmãos Grânios. Espero que isso signifique que deixaram a cidade ainda antes dos outros.

- Que ironia ter de me refugiar num templo dedicado ao deus que detém a retirada dos soldados! - disse Mário, amargamente, para ninguém em particular. - Aos meus soldados, não houve nada que os detivesse. Fugiram todos, apesar de todas as minhas promessas.

- Não eram soldados romanos - salientou o jovem Mário.

- Eu sei que não eram!

- Nunca acreditei que Sila chegasse a este ponto - disse Sulpício, respirando como se tivesse corrido várias horas.

- Acreditei eu, desde o encontro que tive com ele em Túsculo, na Via Latina - disse o pretor urbano, Marco Júnio Bruto.

- Bom, Sila agora é o senhor de Roma - disse o jovem Mário. Que vamos fazer, pai?

Sulpício respondeu, pois detestava a deferência com que toda a gente tratava Caio Mário, o qual, naquele momento, não passava de um privatus, apesar de ter sido cônsul por seis vezes e de o ter ajudado muito a destruir o Senado.

- Vamos para as nossas casas e comportamo-nos como se nada tivesse acontecido - disse ele firmemente.

Mário virou a cabeça para olhar para Sulpício, incrédulo, mais cansado do que alguma vez estivera, e horrivelmente consciente de que tinha o braço, a mão e o maxilar esquerdos adormecidos, quase insensíveis.

- Podem ir para as vossas casas, se quiserem - disse ele. - Mas eu conheço Sila. E sei o que vou fazer. Vou pôr-me a salvo.

- Acho que estou de acordo contigo - disse Bruto, o tom azul dos seus lábios mais escuro que o habitual, o peito fazendo um esforço terrível para receber mais ar. - Se ficamos, ele mata-nos. Eu vi a cara dele, em Túsculo.

- Ele não nos pode matar! - disse Sulpício, categórico; Sulpício era muito mais novo que os outros: recuperara já do susto e da correria.

- Ninguém sabe melhor que Sila que ele é nefas. A partir de agora, terá todo o cuidado em só dar passos legais.

- Que disparate, Públio Sulpício! - disse Mário, desdenhosamente.

- Que achas que ele vai fazer? Achas que vai mandar os soldados para a Campânia? Claro que não vai! Vai manter Roma ocupada pelo seu exército e fazer tudo o que muito bem entender.

- Não ousará! - disse Sulpício, apercebendo-se de que, tal como muitos outros membros do Senado, também ele não conhecia bem Sila.

Mário encontrou forças para rir.

- Não ousará? Ah, Públio Sulpício, vê se cresces! Sila é capaz de tudo! Ele sempre foi assim. E o pior é que ousa depois de reflectir. Não, ele não nos julgará por traição num tribunal comprado! Sila não é nenhum idiota! Vou dizer-te o que ele fará: levar-nos-á para um local deserto, matar-nos-á e depois dirá que morremos em batalha!

- Estou de acordo contigo, Caio Mário - disse Lúcio Decúmio. Sila até a mãe era capaz de matar. - Estremeceu, ergueu o punho direito cerrado à excepção do indicador e do polegar, muito esticados, como dois cornos. Era esse o gesto que se fazia para afastar o mau-olhado.

- Sila não é como os outros homens.

Os nove fugitivos que menos peso tinham no grupo sentaram-se no chão do templo, assistindo à discussão dos dirigentes. Todos eles eram membros do Senado ou da Ordo Equester, mas nenhum alcançara ainda uma posição de relevo. Tinham considerado que valia a pena lutar por aquela causa; agora, porém, depois daquele terrível fracasso, todos se achavam uns loucos. No dia seguinte, todos voltariam a pôr um ar empertigado, pois todos acreditavam que valia a pena morrer por Roma; mas ali, no templo de Júpiter Estator, exaustos e desiludidos, todos esperavam que as teses de Mário vencessem as de Sulpício.

- Se te vais embora, Caio Mário, eu não poderei ficar - disse Sulpício.

- Crê no que te digo: será melhor que te vás embora. Eu, quanto a isso, não tenho dúvidas - disse Mário.

- E tu, Lúcio Decúmio? Que vais fazer? - perguntou o jovem Mário.

- Eu não posso sair de Roma - disse ele, abanando a cabeça. Mas não faz mal! Felizmente para mim, não sou uma pessoa importante! Tenho de cuidar de Aurélia e do jovem César. O marido de Aurélia está com Lúcio Cina, em Alba. E se quiseres, Caio Mário, poderei ajudar a tua mulher.

- Sila confiscar-me-á tudo o que puder - disse Mário, com um sorriso enfatuado. - Ainda bem que tenho dinheiro escondido por todo o lado!

Marco Júnio Bruto levantou-se imediatamente.

- Vou já a casa buscar tudo o que puder. - Olhou, não para Sulpício, mas para Mário. - E para onde iremos? Vai cada um para seu lado, ou será melhor fugirmos juntos?

- Teremos de deixar a Itália - disse Mário, dando a mão direita ao filho e a esquerda a Lúcio Decúmio; com facilidade, levantou-se.

- Creio que devíamos deixar Roma separadamente e manter-nos separados até estarmos bem longe de Roma. Depois, será melhor juntarmo-nos. Sugiro que nos encontremos na ilha de Enária dentro de um mês, nos Idos de Dezembro. Não me será difícil localizar Cneu e Quinto Grânio e informá-los acerca do local onde nos reuniremos. Só espero que eles saibam onde estão Cetego, Albinovano e Letório. Depois de chegarmos a Enária, deixem o caso nas minhas mãos. Arranjarei um navio. De Enária seguiremos para a Sicília, acho que será a melhor solução. O actual governador, Norbano, é meu cliente.

- Mas porquê Enária? - perguntou Sulpício, pouco contente com a decisão de deixarem Roma.

- Porque é uma ilha, porque é pouco procurada, e porque não fica muito longe de Putéolos. Tenho muitos familiares e muito dinheiro em Putéolos - disse Mário. - O meu segundo primo Marco Grânio, que é primo de Cneu e Quinto, por isso acho que eles irão para casa dele, é banqueiro. Depositei no seu banco uma grande parte da minha fortuna em dinheiro. Enquanto nos dirigimos, separadamente, para knária, Lúcio Decúmio irá a Putéolos com uma carta que vou escrever a Marco Grânio. De Putéolos, Grânio mandar-me-á para Enária dinheiro suficiente para que todos possamos viver decentemente enquanto estivermos longe de Roma. - Enfiou a mão esquerda na faixa de general, e prosseguiu: - Lúcio Decúmio procurará também os outros. Seremos vinte, posso garantir-vos. O exílio sai caro. Mas não se preocupem. Eu tenho dinheiro. Sila não ficará em Roma para sempre. Irá combater Mitridates. Maldito seja! E nós voltaremos para Roma quando ele estiver já demasiado envolvido nessa guerra para pôr a hipótese de um regresso a Itália. O meu cliente Lúcio Cina será cônsul no Ano Novo, e ele assegurará o nosso regresso. Sulpício fitou-o estupefacto.

- Cina é teu cliente?

- Eu tenho clientes por todo o lado, Públio Sulpício. Mesmo nas grandes famílias patrícias - retorquiu Caio Mário, complacentemente; começava a sentir-se melhor, ou antes, já não sentia o corpo tão adormecido. Antes de deixar o templo, virou-se para os outros e disse:

- Não percam a coragem! Profetizaram que eu havia de ser cônsul de Roma sete vezes. Por isso, a minha ausência será apenas temporária. E quando for cônsul pela sétima vez, todos vocês serão recompensados generosamente.

- Eu não preciso de recompensas, Caio Mário - retorquiu energicamente Sulpício. - Eu faço isto por Roma, apenas por Roma.

- O que acabas de dizer aplica-se a todos os presentes, Públio Sulpício. Entretanto, será melhor irmos andando. Sila terá soldados em todas as portas de Roma antes que a noite caia. A nossa melhor alternativa é a Porta Capena, mas tenham cuidado!

Sulpício e os outros nove desapareceram num ápice pela Clivus Palatinus acima, mas quando Mário começou a subir a Vélia na direcção do Fórum e da sua casa, Lúcio Decúmio deteve-o.

- Caio Mário, tu e eu vamos imediatamente para a Porta Capena

- disse o homem do bairro de Subura. - O jovem Mário pode ir a casa buscar dinheiro: ele é mais novo, tem mais pernas que nós. Se ele encontrar soldados na Porta Capena, tentará fugir por outra porta. Nem que tenha de subir as muralhas! O teu filho poderá escrever a tal carta para o teu primo, e a tua mulher poderá acrescentar qualquer coisa da lavra dela, para o convencer.

- Júlia! - exclamou Mário, desolado.

- Voltarás a vê-la, tal e qual como tu disseste. A profecia, ha?! Cônsul sete vezes. Voltarás a Roma. Ela ficará muito menos inquieta se souber que já vais a caminho. Jovem Mário, o teu tatá e eu esperaremos por ti entre os túmulos, logo a seguir à porta.

Enquanto o jovem Mário seguia na direcção da sua casa, o pai e Lúcio Decúmio subiram a Clivus Palatinus. Junto à Porta Mugiónia, meteram pela estreita rua que conduzia às velhas casas de culto por sobre a Via Triunfal; descendo uma escadaria, deixariam o monte Palatino. Um barulho distante indicou-lhes que Sila e as suas tropas desciam do Esquilino para o Palus Ceroliae, mas quando Mário e Decúmio atravessaram a enorme Porta Capena, não havia por perto nenhum soldado. Após uma breve caminhada, colocaram-se atrás de um túmulo: daí podiam ver a Porta Capena sem serem perturbados. Nas duas horas seguintes muita gente atravessou aquela porta: nem todos queriam permanecer numa Roma ocupada por um exército romano.

Finalmente, viram o jovem Mário. Trazia o burro que normalmente era usado para transportar pesadas cargas de alimentos do mercado ou de lenha do monte Janículo. Com ele, vinha uma mulher envolvida num manto escuro.

- Júlia! - exclamou Mário, pouco preocupado com a possibilidade de alguém o ver abandonando o esconderijo.

Mário apressou o passo e ela correu para ele, aconchegou-se a ele, cerrou os olhos quando os braços dele a apertaram.

-Ah, Caio Mário, eu pensava que te tinha perdido! - disse ela, e ergueu o rosto para receber os muitos beijos do marido.

Há quantos anos estavam casados? Há muitos. No entanto, continuavam a sentir o mesmo prazer em beijar-se, mesmo num momento daqueles, ensombrecido pela dor e pela ansiedade.

- Vou ter muitas saudades tuas! - disse ela, procurando não chorar.

- Não estarei fora assim tanto tempo, Júlia.

- Não posso crer que Lúcio Cornélio tenha feito o que fez!

- Se eu estivesse no lugar dele, Júlia, teria feito o mesmo.

- Nunca invadirias Roma com um exército!

- Não estou assim tão certo, Júlia. Para ser justo, tenho de reconhecer que foi um golpe de mestre. Se ele não tivesse feito isto, estaria acabado. E homens como eu e Lúcio Cornélio não podem aceitar tal sorte. Felizmente para ele, tinha o exército e a magistratura. Eu não tinha nada disso. Mas se eu estivesse no lugar dele, creio que teria feito exactamente o mesmo. Foi uma decisão brilhante. E em toda a história de Roma, só encontro dois homens com coragem para a tomar: eu e Lúcio Cornélio. - Mário voltou a beijá-la e depois afastou-se dela. - Agora vai para casa, Júlia. E espera pelo meu regresso. Se Lúcio Cornélio te tirar a casa, vai para casa da tua mãe em Cumas. Marco Grânio tem muito dinheiro meu, por isso pede-lho se tiveres necessidade disso. Em Roma, entrega-o aos cuidados de Tito Pompónio. Mas agora vai-te embora, Júlia! Vai-te embora, por favor!

Júlia foi-se embora nesse mesmo instante. Enquanto se afastava, olhou ainda para trás. Mas Mário tinha-se virado para falar com Lúcio Decúmio. Sentia-se tão orgulhosa! Era assim que um homem devia proceder! Quando era preciso fazer rapidamente coisas importantes, um homem não devia perder tempo com a esposa. Estrofantes e seis corpulentos criados esperavam-na junto à porta da cidade, a fim de a escoltarem até casa; Júlia apressou-se.

- Lúcio Decúmio, vais ter de arranjar cavalos para nós. Claro que para mim não é muito confortável, mas uma carruagem daria demasiado nas vistas - dizia Mário. Olhou para o filho. - Trouxeste a saca de ouro das emergências?

- Trouxe. E uma saca de denarii de ouro. Tenho aqui a carta para Marco Grânio, Lúcio Decúmio.

- Óptimo. Dá algumas moedas de prata a Lúcio Decúmio.

E foi assim que Caio Mário fugiu de Roma, a cavalo, e com um burro atrás.

- Porque não alugamos um barco para atravessar o rio? Podíamos depois procurar um porto na Etrúria - disse o jovem Mário.

- Não, nada disso. Creio que é isso o que Públio Sulpício vai fazer. O melhor será irmos para Óstia, fica mais perto - disse Mário, um pouco mais tranquilo porque já não sentia os membros tão adormecidos ou já se teria habituado a esse adormecimento?

Ainda não era noite quando chegaram aos arredores de Óstia. Viam-se já as muralhas da cidade.

- Não há guardas nas portas, pai - disse o jovem Mário.

- Nesse caso, vamos entrar na cidade rapidamente, antes que ponham lá os guardas. Vamos até à zona do cais ver como estão as coisas.

Mário escolheu uma taberna do cais que tinha um ar próspero; enquanto tratava de contratar um navio, o filho ficava a tomar conta dos cavalos e do burro.

Obviamente, Ostia não conhecia ainda as notícias de que Roma caíra, embora toda a gente falasse da histórica marcha de Sila; todos os frequentadores da taberna reconheceram Mário mal ele entrou, mas ninguém agiu como se estivesse perante um fugitivo.

- Tenho de viajar até à Sicília. E estou com alguma pressa - disse Mário, pagando vinho para todos. - Há por acaso algum navio pronto para partir? Um bom navio?

- Posso levar-te no meu. Depende do preço - retorquiu um homem que tinha um ar malicioso. - Públio Múrcio é o meu nome. Um criado teu, Caio Mário.

- Se pudermos partir esta noite, Públio Múrcio, fecho desde já o negócio.

- Posso partir pouco antes da meia-noite - disse Múcio.

- Excelente!

- Preciso que me pagues antecipadamente, Caio Mário.

O jovem Mário entrou pouco depois de o pai ter concluído o negócio com o proprietário do navio. Mário levantou-se, sorriu para os frequentadores da taberna, e apresentou-lhes o filho. Mas logo saiu com ele, encaminhando-se para o cais.

- Tu não vens comigo - disse ele, mal se viu a sós com o filho.

- Quero que vás sozinho para Esérnia. Corres um risco muito maior se vieres comigo. Pega no burro e nos cavalos e dirige-te para Tarracina.

- Pai, porque não vens comigo? Tarracina seria um local mais seguro.

- Estou demasiado doente para ir até tão longe. Embarcarei aqui. Só espero que os ventos ajudem. - Beijou o filho, um beijo breve. Leva o ouro. Deixa-me a prata.

- Metade para cada um, pai. Caso contrário, não levo nada. Mário suspirou.

- Caio Mário Júnior, por que razão não confessaste ao teu próprio pai que mataste Catão? Por que motivo o negaste?

O filho fitou-o, estupefacto.

- Perguntas-me isso agora? É assim tão importante?

- Para mim, é muito importante. Se Fortuna me abandonou, pode muito bem acontecer que nunca mais nos reencontremos. Diz-me, Porque me mentiste?

O jovem Mário pôs um sorriso triste.

- Ora, pai! Nunca se sabe o que tu queres ouvir! É tão simples como isso. As pessoas dizem-te aquilo que pensam que queres ouvir. É o preço que tens de pagar por seres um Grande Homem! Pareceu-me que seria mais sensato negar a autoria desse crime, porque pensei que me responderias com argumentos do domínio da ética. Se era essa a tua ideia, não quererias por certo que eu admitisse o crime. Se eu o admitisse, com certeza não te oporias ao meu julgamento. Se me enganei, peço desculpa. Mas tu não me ajudaste nada, porque te fechaste mais do que um caracol quando o tempo está seco!

- Pensei que te estavas a comportar como um menino mimado!

- Pai! Francamente! - O jovem abanou a cabeça; as lágrimas brilhavam-lhe nos olhos. - O filho de um homem como tu não pode ser nunca uma criança mimada. Repara que, quer queira quer não, tenho de estar à tua altura! E tu movimentas-te neste nosso mundo como um Titã e todos nós desatamos a correr entre os teus pés, preocupados em saber o que é que tu queres, preocupados em agradar-te. Ninguém te iguala em inteligência ou competência. O teu filho também não.

- Então dá-me outro beijo e vai-te embora. - O abraço desta feita foi mais demorado e sentido; Mário nunca se tinha apercebido de que o seu amor pelo filho pudesse ser tão grande. - Ah, a propósito, deixa-me dizer-te que fizeste muito bem.

- Fiz muito bem?

- Fizeste muito bem em matar Catão.

O jovem Mário fez um gesto de reprovação.

- Eu sei! Adeus! Vemo-nos em Enária, nos Idos de Dezembro.

- Caio Mário! Caio Mário! - chamou uma voz impaciente. Mário virou-se para a taberna.

- Se estás pronto, partiremos já - disse Públio Múrcio, denotando ainda impaciência.

Mário suspirou. Dizia-lhe o instinto que aquela viagem seria um fracasso; e com alguma razão, pois Públio Múrcio era um tolo, e não propriamente um robusto pirata.

No entanto, o navio era razoável: a construção era boa, a embarcação tinha condições para aguentar o mar, embora Mário não soubesse se aguentaria o mar alto entre a Sicília e a África, caso as coisas não corressem de feição e tivessem de desembarcar em terras mais longínquas. Mas o maior problema do navio era sem dúvida o capitão, Múrcio, que não fazia outra coisa senão queixar-se. No entanto, pouco antes da meia-noite, já estavam livres dos bancos de areia daquele perigoso porto de Óstia. Soprava uma brisa persistente de nordeste, que não lhes permitia afastarem-se da costa. O navio rangia e andava às voltas sem destino porque Múrcio não tinha carregado lastro suficiente. Até que acabou por se imobilizar a cerca de duas milhas da costa. Pelo menos a tripulação ficou contente: ninguém teria de remar mais.

Porém, ao nascer do dia, o vento começou a soprar forte, de sudoeste, empurrando o navio na direcção de Óstia.

- E esta? - disse Múrcio, irritado. - Com este vento, daqui a pouco estamos de novo em Óstia.

- Há ouro à tua espera se não voltares para Óstia, Públio Múrcio. E mais ouro ainda se rumares a Esérnia.

Múrcio nada disse. Limitou-se a olhar de soslaio para Caio Mário, como se suspeitasse de qualquer coisa. Mas Múrcio não podia resistir ao engodo; e por isso os marinheiros, de súbito tão perturbados quanto o seu capitão, desataram a remar com força logo que a enorme vela quadrada foi encurtada.

Sexto Lucílio, que era primo direito de Pompeu Estrabão, esperava ser eleito tribuno da plebe. Muito conservador (assim o exigiam as tradições familiares), era com prazer que se imaginava já a vetar todas as acções dos radicais que com ele seriam eleitos. Mas quando Sila invadiu Roma e se instalou perto do Palus Ceroliae, Sexto Lucílio, tal como muitos outros, pensou que talvez isso viesse alterar os seus planos. Não que estivesse contra a acção de Sila; pensava que Mário e Sulpício mereciam ser estrangulados numa cela do Tuliano - ou, melhor ainda, mereciam ser atirados da rocha Tarpeia. Ah, que cena maravilhosa! O corpo anafado de Caio Mário voando até cair com estrondo sobre as rochas pontiagudas do sopé do monte Tarpeio! Caio Mário só podia ser amado ou odiado, e Sexto Lucílio odiava-o. Se lhe tivessem alguma vez perguntado por que o odiava, teria respondido que sem Caio Mário não haveria Saturninos nem Sulpícios.

Como seria de esperar, Lucílio manifestou a Sila o seu entusiástico apoio, oferecendo-lhe mesmo os seus serviços como tribuno da plebe durante o ano que se avizinhava. Pouco tempo depois, Sila esvaziava de significado a Assembleia da Plebe; e as esperanças de Sexto Lucílio sofriam por isso um rude golpe. A condenação dos fugitivos fê-lo sentir-se um pouco melhor - até que descobriu que ninguém fazia nada para detê-los. Só Sulpício não era poupado. Sexto Lucílio não percebia como era aquilo possível, pois, em sua opinião, Caio Mário era muito pior que Sulpício. Quando se foi queixar a Cévola Pontifex Maximus, este lançou-lhe um olhar frio, agressivo.

- Faz um esforço para não seres estúpido, Sexto Lucílio! - retorquiu Cévola. - Claro que era necessário afastar Caio Mário de Roma. Mas és capaz de imaginar que Lúcio Cornélio pretenda matá-lo? Se todos lamentámos que ele tivesse invadido Roma, como achas que reagiria a maioria do povo de Roma se Sila matasse Caio Mário, com ou sem sentença de morte? A sentença de morte deve-se unicamente ao facto de Lúcio Cornélio não ter outra alternativa senão julgar os fugitivos por perduellio. E a condenação por perduellio significa a morte! Tudo o que Lúcio Cornélio quer é que Caio Mário não esteja em Roma! Caio Mário é uma instituição, e ninguém no seu juízo mata uma instituição. Agora desaparece, Sexto Lucílio, e não te atrevas a aborrecer o cônsul com as tuas imbecilidades!

Sexto Lucílio obedeceu. Não mais procurou Sila. Aliás, tinha compreendido perfeitamente o que Cévola lhe dissera: ninguém, na posição de Sila, desejaria ser considerado responsável pela morte de Caio Mário. Mas a verdade é que este fora dado como culpado de perduellio pelas Centúrias, e tinha fugido sem que ninguém o perseguisse. Ficara impune! Estava livre! Desde que não entrasse em Roma ou em qualquer cidade romana importante, podia fazer tudo o que quisesse. Porque sabia que ninguém se atreveria a executar uma instituição!

Bom, pensou Sexto Lucílio, o problema de Caio Mário é que não contou comigo! Sim, porque eu acabarei com a tua nefasta carreira! Que maravilha: ficarei na história como o homem que acabou com a nefasta carreira de Caio Mário!

Sexto Lucílio não perdeu tempo: contratou cinquenta antigos soldados de cavalaria que estavam com falta de dinheiro - não lhe foi difícil contratá-los pois gente com falta de dinheiro era o que mais havia em Roma. Depois, ordenou-lhes que procurassem Caio Mário. Executá-lo-iam mal o encontrassem. Perduellio.

Entretanto, a Assembleia da Plebe elegeu os seus tribunos. Sexto Lucílio apresentou-se como candidato e foi eleito, pois a Plebe gostava sempre de ter um ou dois tribunos mais conservadores.

Encorajado pela eleição, apesar de o cargo de tribuno ter perdido muita da sua força, Sexto Lucílio chamou o chefe das suas tropas e teve uma pequena conversa com ele.

- Eu sou um dos poucos homens desta cidade a quem não falta o dinheiro - disse ele. - Dar-vos-ei por isso mais mil dinheiros se me trouxerem a cabeça de Caio. A sua cabeça basta!

O chefe das tropas que, por mil dinheiros, teria decapitado toda a sua família, saudou com alegria aquela recompensa.

- Farei o meu melhor, Sexto Lucílio - retorquiu. - Sei que o velho não está a norte do Tibre. Por isso, vou começar a procurar no Sul.

Dezasseis dias após ter deixado Óstia, o navio capitaneado por Públio Múrcio cedeu à fúria dos elementos e aportou a Circeios, cinquenta milhas a sul de Óstia. Os marinheiros estavam exaustos e havia falta de água.

- Lamento imenso, Caio Mário, mas tem mesmo de ser - disse Públio Múrcio. - Nada podemos fazer contra um vento de sudoeste.

Não valia a pena protestar. Caio Mário aquiesceu.

- Se não há nada a fazer, paciência. Ficarei a bordo.

Públio Múrcio achou esta resposta muito estranha. Porém, mal desembarcou, compreendeu. Toda a cidade de Circeios falava dos acontecimentos em Roma e da condenação de Caio Mário por perduellio; fora de Roma, homens como Sulpício eram praticamente desconhecidos, mas Caio Mário era famoso em todo o lado. O capitão regressou rapidamente ao navio.

Com um ar abatido mas determinado, Múrcio resolveu-se a ter uma conversa com o seu passageiro.

- Lamento, Caio Mário, mas eu sou um homem honrado, tenho o meu negócio e o meu navio, não posso esquecer-me disso. Nunca fiz contrabando e também não era agora que ia começar. Pago os meus impostos, não há ninguém em Óstia ou em Putéolos que possa afirmar o contrário. E não consigo deixar de pensar que este vento desfavorável é uma mensagem dos deuses. Pega nas tuas coisas e mete-te no teu batel. Só tens de procurar outro navio, nada mais. Não disse a ninguém que estavas a bordo, mas mais tarde ou mais cedo os marinheiros acabam por falar. Se não quiseres procurar um navio aqui, poderás fazê-lo em Tarracina ou Caieta.

- Agradeço-te por não me teres traído, Públio Múrcio - disse Mário, afavelmente. - Quanto te devo pelo teu trabalho?

Múrcio recusou-se a receber mais dinheiro.

- O que me deste em Ostia chega - respondeu. - Mas agora vai-te embora, peço-te!

Com a ajuda de Múrcio e dos dois escravos que tinham ficado a bordo, Mário conseguiu descer ao batel. Tinha uma expressão derrotada, parecia ter envelhecido muitos anos num instante. Não trouxera com ele nenhum escravo ou ajudante e Públio Múrcio achava que, naqueles dezasseis dias, o seu estado de saúde piorara. O capitão não teve coragem de deixar Mário num local onde pudessem detê-lo e, por isso, conduziu o batel até uma praia a sul de Circeios, e esperou várias horas até que um dos dois escravos regressasse com um cavalo e alguma comida.

- Lamento imenso - disse Públio Múrcio, com um ar pesaroso, depois de ele e os dois escravos terem ajudado Mário a subir para a sela. - Gostaria de te ajudar, Caio Mário, mas não ouso - hesitou, hesitou, até que não aguentou mais. - Foste condenado por atentado contra o Estado. Matam-te logo que te apanharem.

Mário ficou surpeendido.

- Atentado contra o Estado? Perduellio.

- Tu e todos os teus amigos foram julgados nas Centúrias e as Centúrias condenaram-vos.

- As Centúrias! - Mário abanou a cabeça, espantado.

- É melhor ires andando - disse Múrcio. - Boa sorte.

- Terás tu melhor sorte agora que te vês livre da causa dos teus infortúnios! - retorquiu Mário, partindo logo de seguida na direcção de um bosque.

Fiz bem em deixar Roma, pensou. As Centúrias! Ele está decidido a ver-me morto. E eu que me censurava por ter deixado Roma. Já estava quase convencido de que Sulpício é que tinha razão. Agora já é demasiado tarde para voltar, dizia eu para mim mesmo. E afinal eu é que tinha razão! Nunca me passou pela cabeça que chegassem ao ponto de realizar julgamentos nas Centúrias! Como conheço Sila, pensava que ele utilizaria outros métodos para nos matar, que o faria secretamente.

Nunca o achei tão louco ao ponto de me levar a tribunal! Que sabe ele que eu não saiba?

Logo que se viu longe de locais povoados, Mário desceu do cavalo

e começou a andar a pé; com a sua doença, montar era uma verdadeira provação, mas o animal sempre servia para levar a sua pequena provisão de ouro e moedas. A que distância estaria de Minturnas? Cerca de quarenta quilómetros, se se mantivesse longe da Via Ápia. Aquela era uma região pantanosa, cheia de mosquitos, mas deserta de gente. Decidira evitar Tarracina pois sabia que o filho ia para lá. Minturnas servia perfeitamente - uma vasta cidade, calma, próspera, pouco ou nada afectada pela guerra italiana.

A viagem durou quatro dias, quatro dias durante os quais pouco comeu, pois a ração que trouxera acabara já: apenas uma tijela de papas de grão, que lhe oferecera uma velha que vivia sozinha naquele deserto, e algum pão e queijo duro que partilhou com um vagabundo samnita, o qual se ofereceu para os comprar desde que Mário desse o dinheiro. Nem a velha nem o vagabundo lamentaram os seus actos caritativos, pois a ambos Mário deu uma pequena porção de ouro.

O lado esquerdo parecia-lhe agora que pesava como chumbo, algo que tinha de arrastar consigo, esforçadamente, fosse para onde fosse. Mas Mário não parou enquanto não viu as muralhas de Minturnas. Porém, quando já estava muito próximo da cidade, viu um corpo de cinquenta homens armados que, montados nos seus cavalos, seguiam pela Via Ápia. Escondido atrás de uns pinheiros, viu-os entrar na cidade. Felizmente que o porto de Minturnas ficava fora das muralhas: por isso Mário pôde lá chegar sem que dessem pela sua presença.

Era tempo de se ver livre do cavalo; tirou a saca de ouro e dinheiro e bateu no cavalo para que se fosse embora. Depois, entrou numa pequena taberna.

- Eu sou Caio Mário, condenaram-me por atentado contra o Estado. Alta traição. Nunca me senti tão cansado em toda a minha vida. E preciso de vinho - disse Mário, com uma voz sonora.

Na taberna havia apenas seis ou sete homens. Todos se viraram para Mário, boquiabertos. E, num instante, Caio Mário viu-se rodeado de homens que queriam tocar nele, porque acreditavam que isso lhes traria sorte. Não, nenhum daqueles homens sentia ódio por ele. Bem Pelo contrário.

- Senta-te! Senta-te! - convidou o proprietário, radiante. - És mesmo Caio Mário?

- Não correspondo à descrição que dele fazem? Bom, de facto só metade do meu rosto está intacto e além disso sou mais velho que Cronos, mas mesmo assim não me digam que não me reconhecem!

- Eu conheço Caio Mário e tu és Caio Mário - disse um dos homens. - Vi-te no Fórum Romano quando defendeste Tito Titínio.

- Vinho. Preciso de vinho - disse Caio Mário.

Deram-lhe uma taça de vinho, e outra, mal ele acabou a primeira. Depois, ofereceram-lhe de comer; enquanto comia, Mário contou-lhes a história da invasão de Roma por Sila e da sua fuga. Não precisava de falar das implicações de uma condenação por perduellio; toda a gente - Romanos, Latinos, Italianos - sabia o que significava ser condenado por alta traição. Se cumprissem a lei, os homens da taberna deveriam tê-lo levado imediatamente aos magistrados da cidade, a fim de que estes ordenassem a sua execução. Aliás, de acordo com a lei, poderiam mesmo executá-lo, ali, na taberna. Em vez disso, ouviram tudo o que Mário, exausto, lhes quis contar, e depois ajudaram-no a subir por uma escada pouco segura até uma cama onde Mário pôde dormir um belo sono de dez horas.

Quando acordou, descobriu que alguém lhe tinha lavado a túnica e o manto e limpo as botas por dentro e por fora; desde que deixara o navio de Múrcio que Mário não se sentia tão bem.

Quando acabou de descer a escada, olhou à sua volta: a taberna estava cheia de gente.

- Todos te querem ver, Caio Mário - disse o proprietário, aproximando-se dele e pegando-lhe na mão. - A tua presença é uma honra para todos nós!

- Eu sou um homem condenado, taberneiro. Devo ser procurado por um sem-número de soldados. Ainda ontem vi um grupo de soldados entrar na vossa cidade.

- Sim, Caio Mário, neste preciso momento encontram-se no Fórum com os duumviri. Tal como tu, também eles dormiram um belo sono e agora saíram para a rua, todos muito arrogantes, todos com um ar muito importante. Meia cidade sabe que tu estás aqui. Mas não te inquietes. Nós não te entregamos. Nem vamos contar aos duumviri, porque os nossos duumviri são homens que têm a mania de cumprir escrupulosamente as leis. É preferível que eles não saibam nada. Se soubessem, era muito provável que mandassem executar-te, ainda que a tarefa não lhes agradasse nada.

- Obrigado - disse Mário afectuosamente.

Um homem baixo e gordo aproximou-se então de Mário, com a mão estendida.

- Eu chamo-me Aulo Belaeus, sou um mercador de Minturnas. Tenho alguns navios. Diz-me o que precisas, Caio Mário. Estou à tua inteira disposição.

- Preciso de um navio que me leve para fora de Itália, para um sítio onde possa refugiar-me - disse Mário.

- Isso é fácil de resolver - retorquiu prontamente Belaeus. - Tenho um navio óptimo ancorado na baía. Logo que acabares de comer, levo-te até ele.

- Tens a certeza de que é assim tão fácil, Aulo Belaeus? Repara que andam atrás de mim. Se me ajudares, porás em perigo a tua vida.

- Estou disposto a correr esse risco - disse Belaeus tranquilamente. Uma hora depois era conduzido num batel até um possante navio

de transporte de cereais, muito mais habituado aos ventos adversos do que o pequeno navio costeiro de Públio Múrcio.

- O meu navio acabou de ser reparado, depois de ter desembarcado em Putéolos a sua carga de cereais africanos. Tinha pensado regressar nele a África logo que os ventos estivessem de feição - disse Belaeus, ajudando o seu convidado a subir uma escada de madeira que conduzia a bordo. - Tem os porões cheios de vinho de Falerno destinado ao mercado africano. Quer dizer, ao mercado africano que pode pagá-lo. Além disso, tem lastro que chegue e está bem abastecido. Os meus navios estão sempre prontos para partir, porque de um momento para o outro podem surgir ventos favoráveis. - Aulo Balaeus disse tudo isto com um sorriso que revelava uma grande afeição por Caio Mário.

- Não sei como te agradecer. A única coisa que posso fazer é pagar-te bem.

- Levar-te no meu navio é para mim uma honra, Caio Mário. Por favor, não me roubes essa honra tentando pagar-me. Toda a minha vida me lembrarei com orgulho deste episódio: como eu, um mercador de Minturnas, ajudei o grande Caio Mário a fugir aos seus perseguidores.

- E eu ficar-te-ei grato por toda a minha vida, Aulo Belaeus. Belaeus desceu para o seu batel, disse adeus a Mário e regressou à praia.

No momento em que pisava terra, chegavam ao cais os cinquenta soldados que, no dia anterior, tinham entrado na cidade. Ignorando Belaeus (não sabiam que ele era o proprietário do navio que, nesse instante, levantava âncora), os mercenários de Sexto Cecílio olharam para os homens que se encontravam na amurada do navio e identificaram o rosto inconfundível de Caio Mário.

O chefe dos soldados esporeou o cavalo, avançou o mais que pôde e gritou:

- Caio Mário, estás preso! Capitão, não podes dar abrigo a um fugitivo da justiça romana! Em nome do Senado e do Povo de Roma, ordeno-te que voltes para trás e que me entregues Caio Mário!

No navio, ninguém ligou àquela gritaria; o capitão continuou calmamente a preparar a partida. Mas Mário reparou que os soldados levavam Belaeus.

- Capitão, temos de voltar para trás! - gritou Mário. - O teu patrão foi preso pelos homens que me perseguem.

- Não, Caio Mário, não voltaremos para terra - disse o capitão.

- Aulo Belaeus pode tratar facilmente do seu problema. Além disso, ele deixou-te à minha responsabilidade e deu-me ordens para te levar para onde quisesses. E eu obedeço às ordens dele.

- Vais obedecer às minhas ordens, capitão! Volta para trás!

- Se eu fizesse isso, Caio Mário, nunca mais voltaria a ser capitão de um navio. Aulo Belaeus esventrava-me e das minhas tripas fazia cordame.

- Volta para trás e põe-me num batel! Ouviste? É uma ordem! Já que não me queres levar para o cais da cidade, então leva-me para outro sítio qualquer onde eu tenha possibilidades de prosseguir a minha fuga! - Mário fitou-o com determinação. - Faz o que te mando, capitão!

Apesar de ter uma opinião contrária, e mais correcta dadas as circunstâncias, o capitão obedeceu; havia na obstinação de Mário algo que indicava de forma clara que ele era um general habituado a ser obedecido. E todos os homens eram sensíveis a isso.

- Nesse caso, levo-te para as terras pantanosas - disse o infeliz capitão. - Conheço bem a região. Há um caminho seguro até Minturnas. Sugiro que te escondas na cidade até que os soldados se vão embora. Voltarei depois para te levar.

Mário desceu do navio e instalou-se no batel - uma cena que se repetia; desta feita, porém, o batel encontrava-se oculto pelo navio: os soldados continuavam na praia, gritando que Caio Mário tinha de lhes ser entregue.

Infelizmente para Mário, o chefe dos soldados tinha óptima vista; mal viu o batel rumar a sul, reconheceu a cabeça de Mário entre os seis marinheiros que remavam.

- Depressa! - gritou. - Montem os vossos cavalos! Deixem esse imbecil, ele não é importante! Vamos seguir aquele barco por terra.

A tarefa não era difícil, pois havia um caminho paralelo à baía e que atravessava os pântanos salgados da foz do ribeiro Líris; os soldados ganharam rapidamente terreno ao batel.

- Continuem! Temos de apanhar o velho patife!

Os homens de Sexto Lucílio apanharam-no de facto passadas duas horas, e mesmo a tempo. Mário tinha despido a roupa e flutuava num mar de lama escura que lhe dava pela cintura. Estava exausto e corria o risco de se afogar naquele pântano. Retirá-lo não foi tarefa fácil, mas havia muitas mãos desejosas de ajudar e as terras lamacentas acabaram por perder aquela vítima. Um dos soldados tirou o manto e fez tenção de cobrir Mário, mas o chefe deteve-o.

- O velho aleijado que vá nu! Que Minturnas veja esta beleza de homem! Toda a cidade sabia que ele estava cá. Vão pagar por lhe terem dado abrigo.

E assim o velho aleijado seguiu para Minturnas, nu, no meio dos soldados, tropeçando, coxeando, caindo; e os soldados pouco se preocuparam com o facto de aquela ser uma longa caminhada. Quando já estavam perto da cidade, o chefe começou a chamar pelos seus habitantes, para que viessem ver o fugitivo que tinham capturado: Caio Mário! Sim, Caio Mário, que muito em breve ficaria sem cabeça no Fórum de Minturnas.

- Venham todos! Venham todos! - gritava o chefe.

A meio da tarde, os soldados encaminharam-se para o Fórum, acompanhados por quase todos os habitantes de Minturnas, demasiado espantados, demasiado pasmados para protestarem contra a forma como Caio Mário estava a ser tratado, e sabedores de que ele fora condenado por alta traição. No entanto, lentamente, uma raiva surda foi crescendo naquela gente - Caio Mário condenado por alta traição? Mas isso era impossível! Caio Mário nunca poderia ter cometido um tal crime!

Os dois magistrados supremos da cidade aguardavam ao fundo da escadaria do edifício do governo da cidade, rodeados por um grupo de guardas, chamados à pressa para que aqueles arrogantes romanos vissem que Minturnas não era uma presa assim tão fácil, que Minturnas era capaz de combater, caso fosse necessário.

- Apanhámos Caio Mário quando ele se preparava para fugir num navio de Minturnas - disse o chefe das tropas. - Minturnas sabia que ele estava cá e Minturnas ajudou-o.

- Minturnas não pode ser responsabilizada pelos actos de alguns dos seus habitantes - respondeu firmemente o magistrado mais velho.

- No entanto, agora já têm o vosso prisioneiro. Sugiro que se vão embora e que o levem com vocês.

- Ah, mas eu não quero levá-lo todo! - disse o chefe, com um sorriso de todo o tamanho. - Só quero a cabeça dele! Vocês podem ficar com o resto. Há ali uma pedra que serve perfeitamente. Basta colocar lá a cabeça dele e num segundo está tudo feito.

A multidão ficou espantada com aquelas palavras; ouviam-se já murmúrios de descontentamento. Quanto aos dois magistrados, a sua expressão era severa; e os guardas, não paravam quietos.

- Com que autoridade vão executar no Fórum de Minturnas um homem que foi cônsul de Roma por seis vezes, um herói? - perguntou o duumvir mais velho. Fitou o chefe e os soldados de alto a baixo, decidido a retribuir-lhes a arrogância com que o tinham tratado. Vocês não parecem pertencer à cavalaria romana. Como posso saber que são soldados da cavalaria romana, conforme dizem?

- Fomos contratados especificamente para esta missão - disse o chefe, cada vez mais inquieto com as expressões dos populares e com os guardas, que não largavam as espadas.

- Contratados por quem? Pelo Senado e pelo Povo de Roma? perguntou o duumvir, no tom de um advogado.

- Precisamente.

- Não acredito. Quero provas.

- Este homem foi condenado por perduellio! Sabes perfeitamente o que isso significa, duumvir. Significa a sua execução em qualquer comunidade romana ou latina. Não estou autorizado a levá-lo vivo para Roma. As minhas ordens são para levar para Roma apenas a sua cabeça.

- Nesse caso - ripostou calmamente o magistrado mais velho terão de combater contra Minturnas. Nós não somos bárbaros. Um cidadão romano com o valor que tem Caio Mário nunca será decapitado em Minturnas como se fosse um escravo ou um peregrinus.

- Se quisermos ser rigorosos, ele não pode ser considerado um cidadão romano! - replicou, furioso, o chefe. - Mas, muito bem! Se querem o trabalho bem feito, então sugiro que o façam vocês mesmos! Eu irei a Roma buscar todas as provas de que precisas, duumvir! Estarei de volta dentro de três dias. Espero que entretanto executem Caio Mário, pois caso contrário toda a cidade terá de responder perante o Senado e o Povo de Roma. E dentro de três dias levarei a cabeça de Caio Mário, conforme me ordenaram.

Enquanto o duumvir e o chefe dos soldados discutiam, Caio Mário permaneceu quieto e calado no meio dos mercenários de Lucílio, o corpo trôpego, exausto, uma aparição medonha que comovera muita daquela gente. Furioso por não poder acabar com aquela história imediatamente, um dos soldados pegou na espada e fez tenção de desferir um golpe mortal no velho general. Mas a multidão foi mais rápida do que ele e, num instante, rodeou o fugitivo, pronta a defendê-lo e a lutar. Tal como os guardas dos magistrados.

- Minturnas há-de pagar por isto! - rosnou o chefe.

- Minturnas executará o prisioneiro de acordo com a sua dignitas e auctoritas. - ripostou o magistrado mais velho. - Agora desapareçam!

- Um momento! - gritou uma voz rouca. Caio Mário avançou do meio dos seus defensores minturnenses. - Vocês podem enganar esta boa gente, mas a mim não me enganam! Roma não tem cavalaria para perseguir homens condenados, e o Senado e o Povo nunca contrataram cavaleiros para tais missões. Isso só pode ter sido obra de um indivíduo. Quem vos contratou?

A voz de Caio Mário evocava de tal forma as batalhas de outros tempos, a sua longa carreira de general, que a língua do chefe foi mais rápida do que a sua prudência.

- Sexto Lucílio - respondeu ele imediatamente.

- Obrigado! - disse Mário. - Não me esquecerei.

- Vai-te lixar, velho de uma figa! - retorquiu com desprezo o chefe, obrigando o cavalo a dar meia volta. - Deste-me a tua palavra, magistrado! Quando voltar, quero ver Caio Mário morto e a sua cabeça pronta para ser espetada numa lança!

Logo que os soldados desapareceram, o duumvir chamou os guardas.

- Prendam Caio Mário - disse-lhes.

Os guardas foram então buscar Mário e conduziram-no gentilmente para uma cela que ficava sob o pódio do templo de Júpiter Optimus Maximus, uma cela que normalmente era usada para algum bêbedo mais violento ou algum louco até ser levado para algum hospício.

Logo que Mário foi preso, os populares, subitamente, desataram a falar entre si; ninguém arredava pé: quando muito, enfiavam-se nas tabernas da praça. E Aulo Belaeus, que assistira a toda a cena, começou a andar de grupo em grupo, falando com todos, e com alguma urgência.

Minturnas possuía vários escravos públicos, mas entre eles havia um que se revelara de uma utilidade extrema. A cidade tinha-o comprado, dois anos antes, a um mercador itinerante, e não estava nada arrependida de ter pago por ele a elevada maquia de cinco mil denarii. Agora com vinte anos, esse escravo era um germano da nação címbrica, um verdadeiro gigante que dava pelo nome de Burgundo. Os homens mais altos de Minturnas davam-lhe pelo pescoço e, além disso, possuía uns músculos poderosos e uma força que não era minimamente suavizada pelo engenho intelectual ou pela sensibilidade - o que não admirava, pois Burgundo tinha seis anos quando fora capturado logo a seguir à batalha de Vercelas e vivera desde então a mesma vida de qualquer escravo bárbaro. Não lhe estavam destinados os ganhos e os privilégios do grego instruído que se vendia a si mesmo como escravo porque a escravatura acrescia as suas possibilidades de prosperidade; Burgundo recebia uma miséria, vivia numa barraca de madeira num extremo da cidade, e acreditava que tinha sido visitado pelo carro mágico da deusa Nerto quando uma desconhecida se meteu na sua pobre casa, movida unicamente pelo desejo de saber que espécie de amante era o gigante bárbaro. Burgundo nunca pensara fugir, nem lamentava a sua sorte; pelo contrário, gostava da vida que levava em Minturnas, onde se sentia importante e apreciado. Tinham-lhe dado a entender que na devida altura seria aumentado e que o autorizariam a casar e a ter filhos. E se continuasse a trabalhar bem, os seus filhos já não seriam escravos.

Os outros escravos públicos trabalhavam nos jardins e na limpeza das ruas, pintavam, ou dedicavam-se à limpeza dos edifícios ou a outras tarefas de manutenção. Burgundo executava todos os trabalhos pesados ou aquelas tarefas que exigiam uma força maior que o normal. Era Burgundo que desobstruía os esgotos da cidade quando eles ficavam bloqueados devido às cheias, era Burgundo que retirava as carcaças de cavalos, burros ou outros grandes animais de locais onde não convinha que estivessem, era Burgundo que abatia árvores consideradas perigosas, que perseguia um cão selvagem ou cavava valas sozinho. Como todas as criaturas de estatura invulgarmente grande, o germano era um homem afável e dócil, consciente da sua força e, por isso, sem necessidade de prová-la; consciente também de que se batesse em alguém, mesmo que numa brincadeira, arriscava-se a matar essa pessoa. Desenvolvera por isso uma técnica que o ajudava a lidar com marinheiros bêbedos ou outros homens mais agressivos, e exibia algumas cicatrizes por causa da sua paciência - mas a verdade é que, com tudo isso, conquistara uma invejável reputação na cidade.

Obrigados pelas circunstâncias a executar a detestável tarefa de decapitar Caio Mário e decididos a cumprir o seu dever o mais escrupulosamente possível (e também conscientes de que, ao cumprirem o seu dever, ganhariam a inimizade da população), os magistrados mandaram imediatamente chamar Burgundo, o escravo para todo o serviço.

Burgundo não assistira aos acontecimentos ocorridos nesse dia, pois tinha estado a reunir umas pedras enormes junto às muralhas que davam para a Via Ápia; essas pedras destinavam-se à reparação da estrada. Um outro escravo foi chamá-lo e Burgundo, com a sua passada larga e lenta, encaminhou-se na direcção do Fórum; para o acompanharem, os outros escravos públicos quase tinham de correr.

O magistrado mais velho estava à espera dele numa ruela que conduzia ao edifício do governo da cidade e ao templo de Júpiter Optimus Maximus; se queria evitar a revolta do povo, teria de executar Caio Mário rapidamente e longe dos olhos da multidão reunida no Fórum.

- Ah, Burgundo, és mesmo o homem de que preciso! - disse o duumvir (cujo colega, um homem menos corajoso, desaparecera misteriosamente). - Na cella sob o nosso Capitólio está um prisioneiro.

- Virou-lhe as costas e acrescentou, num tom despreocupado: - Vais estrangulá-lo. Ele é um traidor e foi condenado à morte.

O germano ficou muito quieto e depois ergueu as mãos e olhou para elas, para aquelas mãos enormes, com assombro; era a primeira vez que o mandavam matar um homem. Matar um homem com aquelas mãos. Para ele, seria tão fácil como torcer um pescoço a uma galinha. Evidentemente, Burgundo tinha de fazer o que lhe ordenavam; mas nem por isso deixava de sentir que as perspectivas de uma vida agradável como a que, até então, tinha levado em Minturnas, poderiam esfumar-se por completo. Sim, porque ele passaria a ser o carrasco da cidade; e, sendo o carrasco da cidade, acabaria por ter de executar todas as tarefas mais abomináveis. Horrorizado, deixou que os seus olhos azuis, habitualmente plácidos, atentassem na cella. Sim, era ali que se encontrava o prisioneiro que tinha de estrangular. Pelos vistos, um prisioneiro muito importante. Seria um dos dirigentes italianos durante a guerra?

Burgundo respirou fundo e encaminhou-se para o pódio do templo, onde ficava a porta para o pequeno labirinto subterrâneo. Para entrar, teve de se dobrar todo. Deu consigo num corredor de pedra muito estreito, ao longo do qual se viam várias portas; ao fundo desse corredor, havia uma grad de ferro que tapava uma abertura por onde entrava alguma luz. Neste local sombrio, eram guardados os arquivos da cidade, as leis e os estatutos locais, o tesouro; a primeira porta à esquerda era a da cela onde ficavam os raros homens ou mulheres que os duumviri mandavam prender.

Feita de carvalho, e com três dedos de espessura, esta porta era ainda mais pequena que a da entrada; Burgundo abriu a porta, agachou-se e, com muita dificuldade, introduziu-se na cela. Tal como o corredor, também a cela tinha uma pequena abertura com uma grade, por onde entrava escassa luz. Burgundo quase não via nada: os seus olhos não estavam habituados a ambientes tão sombrios.

Endireitando-se o mais que podia, o gigante germano distinguiu uma massa negro-acinzentada, com a vaga forma de um homem; um homem que logo se levantou e enfrentou o seu carrasco.

- Que pretendes, homem? - perguntou o prisioneiro bem alto, com uma voz cheia de autoridade.

- Mandaram-me estrangular-te - retorquiu simplesmente Burgundo.

- Tu és um germano! - atirou-lhe o prisioneiro. - De que tribo? Vá, responde-me, meu grande idiota!

Burgundo hesitou em responder porque conseguia ver já os olhos do prisioneiro: e que olhar aquele - um olhar feroz, faiscante, um olhar como ele nunca vira!

- Eu pertenço à tribo dos Cimbros, domine.

Ao ouvir aquilo, o prisioneiro, com o seu corpo nu, pareceu agigantar-se.

- O quê? Um escravo, de uma nação que eu derrotei, ousa imaginar que pode matar Caio Mário!

Burgundo recuou imediatamente, choramingando, tapando a cara com as mãos.

- Sai já daqui! - atroou a voz do prisioneiro. - Não é numa cela miserável e às mãos de um germano que vou morrer!

Choroso, Burgundo fugiu a toda a pressa, deixando a porta da cela e a porta da entrada entreabertas. Confuso, desatou a correr na direcção do Fórum.

- Não! Não! - gritava para a multidão que se encontrava na praça, o rosto molhado das lágrimas. - Eu não posso matar Caio Mário! Eu não posso matar Caio Mário! Eu não posso matar Caio Mário!

Aulo Belaeus correu ao encontro dele, agarrou-lhe gentilmente nas mãos que, nervosamente, se contorciam.

- Mas o que é isso, Burgundo, ninguém te vai exigir que mates Caio Mário! Vá, pára de chorar! Isso! Já chega de lágrimas...

- Eu não posso matar Caio Mário! - repetiu Burgundo, limpando o nariz com o braço, pois Belaeus ainda lhe segurava nas mãos. - Eu não posso matá-lo e não vou deixar que o matem!

- Ninguém vai matar Caio Mário - retorquiu firmemente Belaeus.

- Foi tudo um mal-entendido. Agora acalma-te e faz alguma coisa de útil. Vai ter com Marco Fúrio e pede-lhe vinho e a roupa que ele traz vestida. Depois, leva esse vinho e a roupa a Caio Mário. Finalmente, leva Caio Mário para a minha casa e espera por mim.

Como uma criança, o gigante acalmou-se, sorriu muito alegre para Aulo Belaeus e correu a fazer o que lhe mandavam.

Belaeus virou-se então para a multidão. Os seus olhos não largavam os duumviri, que vinham a correr na direcção do Fórum.

- Muito bem, cidadãos de Minturnas, vão permitir que a nossa querida cidade cumpra a detestável missão de executar Caio Mário?

- Aulo Belaeus, temos de executá-lo! - disse o magistrado mais velho, ofegante. - É alta traição!

- Pouco me importa que ele tenha cometido todos os crimes previstos pela lei! - replicou Aulo Belaeus. - O que eu sei é que Minturnas não pode executar Caio Mário!

A multidão manifestava-se claramente a favor de Aulo Belaeus e, por isso, os magistrados resolveram realizar ali mesmo uma assembleia para discutir a questão. O resultado foi o que se esperava: Caio Mário devia ser libertado. Minturnas não podia ser responsável pela morte de um homem que fora cônsul de Roma seis vezes e que salvara a Itália dos Germanos.

- É com todo o prazer que te anuncio que te conduzirei de novo ao meu navio, e que a cidade de Minturnas, incluindo os seus tacanhos magistrados, te deseja os melhores votos de êxito - disse Aulo Belaeus, algum tempo depois, a Caio Mário. - E desta vez o navio seguirá o seu rumo e tu não voltarás à praia.

Depois de ter tomado um banho e comido, Mário sentia-se muito melhor.

- Tenho sido muito bem tratado desde que fugi de Roma, mas nenhuma gente me tratou melhor que a de Minturnas, Aulo Belaeus. Nunca esquecerei esta cidade. - Virou-se para Burgundo e esboçou um sorriso, o melhor sorriso que o seu rosto paralisado podia produzir.

- Tal como nunca esquecerei que foi um germano que me poupou a vida. Obrigado, Burgundo.

Belaeus levantou-se.

- Gostaria muito que me concedesses a honra de permanecer mais tempo em minha casa, mas não ficarei descansado enquanto não vir o navio longe da nossa baía. Deixa-me levar-te ao cais imediatamente, Caio Mário. Podes dormir a bordo.

A maior parte dos habitantes da cidade estava à espera deles na rua, para os acompanhar ao porto. Mal viram Caio Mário, desataram aos vivas. Caio Mário agradeceu-lhes com régia dignidade. Depois, todos se dirigiram para o porto, com os corações mais leves e sentindo-se as pessoas mais importantes do mundo. No cais, Mário abraçou Aulo Belaeus à frente de toda aquela gente.

- O teu dinheiro continua a bordo - disse Belaeus, de lágrimas nos olhos. - Mandei algumas peças de roupa para tu vestires. Ah, e um vinho muito melhor do que o meu capitão costuma beber! Contigo irá também o escravo Burgundo, já que não tens ninguém ao teu serviço. A cidade está com receio de que ele permaneça cá, pois se os soldados voltarem há sempre a possibilidade de algum imbecil dar com a língua nos dentes. Burgundo não merece morrer. Por isso, comprei-o para ti.

- É com muito prazer que aceito Burgundo, Aulo Belaeus. E quanto aos soldados, não te preocupes. Eu sei quem os contratou: um homem sem autoridade nem influência, um homem cujo único objectivo é conquistar alguma reputação seja de que maneira for. De início, suspeitei de Lúcio Sila. E se isso fosse verdade, o caso seria muito mais grave. Mas se o cônsul mandou tropas atrás de mim, a verdade é que elas ainda não chegaram a Minturnas. Aqueles tipos foram contratados por um privatus que quer alcançar a glória mesmo que isso signifique a minha morte. Mas Sexto Lucílio há-de pagá-las!

- O meu navio é teu até que possas voltar para Roma - disse Belaeus. - O capitão sabe disso. Felizmente que a sua carga é vinho de Falerno: quanto mais tempo demorar a descarregá-lo melhor ficará o vinho. Que tudo corra bem, Caio Mário!

- Que tudo te corra bem também a ti, Aulo Belaeus. Nunca te esquecerei! - disse Caio Mário.

E finalmente a excitação e o frenesim daquele dia chegavam ao seu termo; os homens e as mulheres de Minturnas deixaram-se ficar no cais até que o navio desapareceu no horizonte; depois, regressaram às suas casas com o sentimento de que tinham ganho uma grande guerra. Aulo Belaeus foi o último a ir para casa. Sozinho, sorria para si mesmo: tinha tido uma ideia maravilhosa. Contrataria o maior pintor de murais de toda a península e pedir-lhe-ia que retratasse o episódio vivido por Caio Mário em Minturnas. Essas pinturas adornariam o novo templo de Maricá. No fim de contas, Maricá era a deusa do mar que dera à luz Latino - cuja filha, Lavínia, tinha casado com Eneias, tendo desta união nascido Júlio: por isso Maricá tinha um significado muito especial para Caio Mário, pois estava casado com uma Júlia. Maricá era também a deusa protectora da cidade. Minturnas nunca tinha realizado um feito tão importante como aquele: recusara-se a matar Caio Mário! E, no futuro, toda a Itália ficaria a saber do sucedido, graças aos frescos do templo de Maricá.

A partir daí, Caio Mário não mais voltou a correr perigo de vida, por muito longas e cansativas que fossem as suas viagens. Em Enária, reuniram-se dezanove fugitivos. Esperaram em vão por Públio Sulpício. Ao fim de oito dias, chegaram à triste conclusão de que o tribuno da plebe não viria, e fizeram-se ao mar sem ele. Enfrentaram então o mar Toscano e só viram terra quando chegaram à ponta noroeste da Sicília, mais exactamente ao porto piscatório de Ericina.

Mário tinha a esperança de poder ficar na Sicília, pois não queria afastar-se da Itália mais do que precisava; embora, tendo em conta todas as provações por que passara, estivesse fisicamente bem, mesmo ele tinha consciência de que o seu cérebro já não funcionava com a perfeição de outros tempos. Esquecia-se de coisas e, por vezes, as palavras que lhe diziam soavam-lhe como a estranha algaraviada dos Citas ou Sármatas; dava por cheiros inidentificáveis mas repulsivos, e a sua visão era por vezes perturbada por algo que se assemelhava a redes de pesca; outras vezes, acontecia-lhe ficar insuportavelmente quente, ou dava consigo a perguntar onde estava; perdia facilmente a paciência, andava ansioso, imaginava desfeitas e insultos.

- Não se sabe ao certo qual o órgão que nos permite pensar. Dizem alguns que é no peito que ele se encontra, mas Hipócrates afirma que é a cabeça a sede do pensamento. E eu acredito que seja a cabeça, pois penso com os meus olhos e ouvidos e nariz; por isso é natural que os olhos, os ouvidos, o nariz, se encontrem perto da sede do pensamento, ou seja da cabeça - discorria Mário certo dia perante o filho, enquanto aguardavam em Ericina uma resposta do governador. De súbito, a sua voz esbatera-se. Franziu muito as sobrancelhas, e, com um esgar, prosseguiu: - Deixa-me voltar ao princípio... Há qualquer coisa que me vem afectando lentamente a cabeça, meu filho. Lembro-me ainda de livros inteiros, e quando faço um esforço, consigo conduzir correctamente o meu pensamento: presido a assembleias, enfim, posso fazer tudo o que fazia noutros tempos. Mas nem sempre. E a coisa está a mudar de uma forma que não entendo. Às vezes, nem me dou conta dessas mudanças... Desculpa-me estas expressões vagas, estes parênteses. Preciso de conservar a minha força mental porque um dia voltarei a ser cônsul. Pela sétima vez. Marta disse que eu seria cônsul sete vezes, e Marta nunca se enganou. Nunca se enganou... Já te tinha dito isto, não tinha?

O jovem Mário engoliu em seco. Fez um esforço para responder ao pai.

- Sim, já mo tinhas dito. Muitas vezes.

- E alguma vez te disse que ela profetizou algo mais?

Os olhos cinzentos do jovem fixaram o rosto marcado e contorcido do pai. Suspirou brandamente, perguntando-se se a mente de Mário caíra de novo nalguma fantasia, ou se aquele era ainda um período de lucidez.

- Não, pai, nunca me disseste.

- Pois profetizou. Marta disse-me que eu não seria o maior homem que Roma alguma vez teve. Sabes quem é que será esse homem, de acordo com a profecia de Marta?

- Não, pai. Mas gostaria de saber. - O filho de Mário sabia que esse homem não seria ele: não nutria a mínima esperança quanto a isso. O filho de um Grande Homem teria forçosamente de ter uma consciência exagerada das suas fraquezas.

- Marta disse-me que esse homem seria o jovem César.

- Edepoll

Mário meneou-se, soltou um risinho nervoso.

- Ah, não te preocupes, meu filho! Isso não acontecerá! Eu não deixarei que ninguém me supere! É por isso que vou atirar a estrela do jovem César para o fundo do mais fundo dos mares!

O jovem Mário levantou-se.

- Estás cansado, pai. Já me apercebi de que os teus problemas pioram muito quando estás cansado. Anda, vamos para casa. Precisas de dormir, de descansar.

O governador da Sicília era Caio Norbano, um cliente de Caio Mário. Nessa altura, encontrava-se em Messina, enfrentando uma invasão conduzida por Marco Lampónio e uma força de rebeldes da Lucânia e do Brútio. O mensageiro de Mário deslocou-se tão rapidamente quanto possível a Messina e, passados treze dias, regressava com a resposta do governador.

Embora tenha plena consciência das minhas obrigações como teu cliente, devo acentuar, Caio Mário, que também sou governador propraetore de uma província romana. Manda a honra que ponha as minhas obrigações perante Roma à frente das obrigações que devo ao meu patrono. A tua carta chegou depois de ter recebido uma directiva oficial do Senado, informando-me de que não posso oferecer qualquer género de ajuda aos fugitivos. Tenho, aliás, instruções no sentido de vos perseguir e, se possível, de vos matar. Claro que não poderei cumprir essas instruções; o que posso fazer é ordenar ao teu navio que abandone as águas sicilianas.

Em privado, só posso desejar que tudo te corra bem, e esperar que encontres refúgio e segurança, embora duvide que consigas encontrá-los em território romano. Devo ainda informar-te de que Públio Sulpício foi detido em Laurento. A cabeça dele adorna agora os rostra de Roma. Uma acção miserável, sem dúvida. Mas compreenderás melhor a minha posição quando te disser que foi o próprio Lúcio Cornélio Sila quem espetou a cabeça de Sulpício numa lança e a levou, como um troféu, para os rostra. Sim, foi ele próprio que levou a lança com a cabeça. Não mandou ninguém fazer isso por ele.

- Pobre Sulpício! - disse Mário, reprimindo as lágrimas. Mas logo a seguir pôs-se muito direito e disse: - Muito bem! Vamos em frente! Veremos como nos recebe a Província africana.

Mas em África também não puderam desembarcar; o governador Públio Sextílio recebera também ordens, e não podia fazer outra coisa senão ordenar-lhes que procurassem outras terras antes que se visse obrigado a cumprir o seu dever.

Da província de África seguiram para Rusicade, o porto que servia Cirta, capital da Numídia. Era o rei Hiempsal quem governava agora a Numídia; era um homem muito mais afável e generoso que o pai, Gauda. Quando recebeu a carta de Mário, o rei encontrava-se na sua corte de Cirta, não muito longe de Rusicade. Confrontado com o maior dilema que o seu reinado alguma vez tivera de resolver, Hiempsal hesitou durante algum tempo - Caio Mário tinha sentado o seu pai no trono, mas, se desse guarida a Caio Mário, podia muito bem acontecer que ele, Hiempsal, não voltasse a sentar-se no trono da Numídia.

Ao fim de alguns dias de reflexão, mudou-se, com parte da sua corte, para Icósio, cidade já bastante longe da província romana, e mandou dizer a Caio Mário e aos seus colegas que se dirigissem para lá. Mal desembarcaram, os fugitivos tinham já à sua disposição várias residências particularmente confortáveis. Por outro lado, Hiempsal decidiu convidá-los frequentemente para o seu pequeno palácio. De facto, aquele era um pequeno palácio: o de Cirta era muito maior e muito mais cómodo. Devido ao pouco espaço, o rei deixara em Cirta algumas das suas esposas e todas as concubinas, levando para Icósio apenas a rainha, Sofonisba, e duas esposas de menor importância, Salambo e Ano. Educado nas melhores tradições dos monarcas helenísticos, Hiempsal permitia que os seus convidados se dessem livremente com todos os membros da sua extensa família - filhos, filhas, esposas. O que, infortunadamente, não deixou de causar complicações.

O filho de Caio Mário tinha agora vinte e um anos. Estava um homem feito. Dotado de um rosto de traços perfeitos, possuía, além disso, uma bela constituição física; demasiado mexido para se dedicar a tarefas intelectuais, procurava entreter-se com a caça, actividade de que o rei Hiempsal não gostava. Não gostava o rei, mas gostava a sua esposa mais nova, Salambo. Nas planícies africanas, abundavam os animais selvagens: elefantes, leões, avestruzes, gazelas, antílopes, ursos, panteras, gnus. E o jovem Mário passava os dias aprendendo a caçar animais que nunca vira antes. A princesa Salambo era a sua guia e professora.

Pensando talvez no carácter público destas expedições e no número de pessoas envolvidas, o rei Hiempsal não viu qualquer problema no facto de Salambo acompanhar o filho de Caio Mário; por outro lado, talvez ficasse contente por se ver livre durante algum tempo daquela criatura superactiva. Fechado no gabinete real com Mário (cujas faculdades mentais tinham melhorado muito desde que se encontrava em Icósio), falando dos velhos tempos, ouvindo as histórias das campanhas da Numídia e de África contra Jugurta, Hiempsal foi tirando uma imensidão de notas para os arquivos da sua família, e permitiu-se sonhar com uma era em que um dos seus filhos ou netos fosse considerado suficientemente importante para poder casar com uma aristocrata romana. No entanto, Hiempsal não tinha ilusões; embora fosse rei de vastas e ricas terras, ele e os seus, aos olhos da aristocracia romana, pouco valiam.

Como seria de esperar, o segredo acabou por ser divulgado. Um dos lacaios do rei informou-o com efeito, de que, durante o dia, as relações entre Salambo e o jovem Mário eram perfeitamente inocentes; mas as noites, bom, as noites eram completamente diferentes. Esta revelação deixou o rei em pânico; por um lado, não podia ignorar a imprudência da esposa, mas, por outro lado, não podia fazer aquilo que seria normal: executar o amante. Tratou por isso de salvar a sua dignidade tanto quanto podia, informando Caio Mário de que a situação era demasiado delicada para que os fugitivos pudessem permanecer um dia mais que fosse; agradecia-lhe, por isso, que partisse logo que o seu navio se encontrasse convenientemente abastecido.

- Imbecil! Rapazola! - disse Mário para o filho enquanto se dirigiam para o porto. - Não havia mulheres que chegassem? Tinhas mesmo que te meter com uma das mulheres de Hiempsal.

O jovem Mário sorriu, tentou pôr um ar arrependido, mas não conseguiu.

- Desculpa, pai, mas ela era uma maravilha. Além disso, não fui eu que a seduzi. Pelo contrário: ela é que me seduziu.

- Podias ter recusado.

- Podia, mas não recusei - retorquiu o jovem Mário, impenitente.

- Como havia eu de recusar? Ela era simplesmente deliciosa.

- Estás a usar o temo verbal correcto, meu filho. Ela era. Porque aquela estúpida, por tua causa, vai dizer adeus à cabeça.

Sabendo perfeitamente que o pai estava aborrecido unicamente porque tinham de procurar outro local de abrigo, que, se não fosse isso, teria ficado contente com o feito do filho, o jovem Mário continuou a sorrir. A sorte de Salambo não preocupava nenhum deles; ela sabia que o castigo por ter sido descoberto o adultério a atingiria apenas a ela.

- É pena - disse o filho de Mário. - É pena, de facto. Porque ela era realmente...

- Cala-te já! - interrompeu, furioso, o pai. - Se fosses mais pequeno e eu me aguentasse numa perna só, podes crer que te dava tantos pontapés nesse cu que nem os dentes se te aproveitavam! Nós estávamos tão bem aqui!

- Dá-me os pontapés que quiseres - disse o jovem Mário. Rindo, pôs-se em posição de receber o castigo: curvou-se, as pernas muito afastadas, a cabeça entre os joelhos. Porque haveria de ter medo de se pôr assim? O pai nunca o castigaria: o seu crime era daqueles que um pai perdoava com prazer ao filho; e, além disso, Caio Mário nunca lhe tocara com uma mão, quanto mais com um pé.

Ao ver o filho fazer aquilo, Mário chamou o fiel Burgundo, que imediatamente pôs o braço à volta da cintura de Mário, aguentando com todo o seu peso. Mário levantou a perna direita e desferiu um valente e certeiro pontapé na sensível região anal do filho. O jovem Mário não desmaiou unicamente por uma questão de orgulho; de facto, sentira uma dor terrível. Teve dores ainda durante vários dias e fez o possível por se convencer de que o pai não fizera aquilo por pura maldade e de que ele se tinha enganado quanto à intensidade dos sentimentos do pai em relação ao incidente com Salambo.

De Icósio, rumaram a leste, ao longo da costa norte-africana. Não se aproximaram de terra entre Icósio e o novo destino de Caio Mário

- a ilha de Cercina, na Sirte Menor. Pelo menos em Cercina estariam em segurança, pois havia na ilha alguns milhares de legionários veteranos de Mário, dedicando-se agora a trabalhos que nada tinham a ver com a guerra. Um pouco fartos já de cultivarem trigo nos seus lotes de cem iugera, os veteranos receberam de braços abertos o velho general, trataram-no a ele e ao filho como reis, e fizeram votos para que nem todos os exércitos de Sila juntos conseguissem deter Caio Mário e sufocar a liberdade.

Mais preocupado com o pai desde que este lhe dera o célebre pontapé, o jovem Mário vigiava-o agora atentamente; e era com pesar que se dava conta de inúmeras provas da degradação mental do pai; e era com espanto e admiração que verificava que aqueles homens perdoavam tudo ao pai porque ele era quem era, ou que notava que o velho general, graças a um esforço tremendo, conseguia parecer inteiramente normal. Para aqueles que não o conheciam intimamente ou que pouco o viam, não parecia haver nada de errado em Caio Mário - um lapso de memória ocasional, um ar confuso, por vezes, uma tendência para mudar de assunto a meio de uma conversa. Mas poderia um homem naquele estado assumir pela sétima vez o cargo de cônsul? O filho tinha sérias dúvidas quanto a isso.

O convívio entre os novos cônsules, Cneu Octávio Rusão e Lúcio Cornélio Cina, não era fácil. A certa altura, caíram em discussões constantes em público, tanto no Senado como no Fórum, de tal modo que toda a cidade de Roma fazia já apostas quanto a quem iria vencer tal confrontação. O impulso inicial para contestar e julgar Sila sofreu um súbito golpe quando Pompeu Estrabão enviou uma breve carta a Cina, informando-o de que deveria deixar partir Sila para o Oriente, caso quisesse continuar a ocupar o cargo de cônsul (e os tribunos da plebe seus partidários quisessem continuar vivos). Sabendo que Octávio era amigo de Pompeu Estrabão e que as outras legiões armadas presentes em Itália pertenciam a dois dos mais encarniçados defensores de Sila, Cina tentou demover os tribunos da plebe Virgílio e Mágio dos seus intuitos perseguidores; para os convencer, teve de lhes dizer que, se não recuassem, acabaria por se aliar a Octávio e por aprovar a expulsão dos dois do Fórum e de Roma.

Durante os primeiros oito meses do seu consulado, Octávio e Cina tiveram de enfrentar um sem-número de problemas, tanto em Roma como em Itália; de facto, para além de o Tesouro continuar vazio e de o dinheiro continuar a circular com notória dificuldade, havia que contar com uma outra realidade: a Sicília e África sofriam uma seca que já ia no seu segundo ano. Os governadores, Norbano e Sextílio, respectivamente, tinham ido para aquelas províncias com a missão de aumentarem as cargas de cereais para a capital, mesmo que isso significasse terem de comprar trigo com notas promissórias (e se os vendedores levantassem problemas, poderiam sempre recorrer ao exército). Os cônsules e o Senado não poderiam permitir a repetição dos acontecimentos que tinham conduzido à breve glória de Saturnino (unicamente porque a ralé tinha fome); era preciso que os proletarii não voltassem a passar fome. Confrontado com as terríveis dificuldades que Sila conhecera durante o seu mandado, Cina aproveitou todas as fontes de rendimentos possíveis, e escreveu aos dois governadores das Hispânias, ordenando-lhes que extraíssem das províncias todas as riquezas possíveis. O governador das Gálias, Públio Servílio Vátia, recebeu instruções para que juntasse todo o dinheiro possível, ainda que isso significasse que tinha de andar na corda bamba na Gália Transalpina e que tinha de enfrentar os credores da Gália Italiana. Quando recebeu as respostas dos governadores, ofendidos com tais exigências, Cina ficou tão furioso que queimou as cartas. Já não sabia o que fazer e ansiava agora que acontecessem duas coisas que sabia impossíveis: em primeiro lugar, que Octávio se preocupasse mais com as difíceis tarefas da governação; e em segundo, que Roma continuasse a receber os dinheiros da Província da Ásia.

Roma sofria também as pressões dos italianos recentemente elevados ao estatuto de cidadão, os quais contestavam fortemente o seu estatuto tribal, ainda que, segundo as leges Corneliae, os votos tribais não servissem para nada. As leis de Públio Sulpício tinham-lhes aberto o apetite, e agora reagiam com indignação à anulação dessas leis. Apesar dos dois anos de guerra, restavam ainda importantes dirigentes entre os Italianos; dirigentes que inundavam o Senado com cartas em que se queixavam da sua sorte e da dos seus irmãos italianos menos privilegiados. Cina teria de bom grado distribuído equitativamente os novos cidadãos pelas trinta e cinco tribos, mas o problema é que nem o Senado nem a facção chefiada pelo cônsul sénior Octávio cooperariam com ele. E a constituição que Sila fizera aprovar limitava severamente Cina.

Contudo, durante o mês de Agosto, Cina descortinou o primeiro raio de esperança; de facto, chegara a Roma a notícia de que Sila tinha muito que fazer na Grécia e não poderia de modo nenhum regressar a Roma para defender a sua Constituição ou apoiar os seus apaniguados. Era tempo, pensou Cina, de resolver as suas divergências com Pompeu Estrabão, que continuava na Úmbria e no Piceno com quatro legiões. Sem dizer a ninguém para onde ia (nem mesmo à mulher), Cina foi ter com Pompeu Estrabão. Queria saber o que lhe diria Estrabão agora que Sila se encontrava totalmente envolvido na guerra contra Mitridates.

- Estou disposto a fazer contigo o mesmo acordo que fiz com o outro Lúcio Cornélio - disse o vesgo Pompeu, senhor do Piceno, que, apesar de uma recepção fria, não se recusara a ouvir o cônsul. Deixas-me a mim e aos meus em paz no meu cantinho do grande mundo romano, e eu não te vou chatear lá na grande cidade.

- Então sempre havia um acordo! - exclamou Lúcio Cornélio Cina.

- Pois havia.

- Preciso de rectificar muitas das alterações que Sila introduziu no nosso sistema de governo - disse Cina, num tom desapaixonado.

- Quero também distribuir os novos cidadãos equitativamente pelas trinta e cinco tribos, e agrada-me a ideia de distribuir igualmente os libertos romanos pelas tribos. - Disfarçou o furor que sentia pelo facto de ter de pedir autorização ao carniceiro picentino para fazer o que tinha de ser feito, e prosseguiu, num tom afável. - Que achas de tudo isto, Cneu Pompeu?

- Faz o que quiseres - replicou, indiferente, Pompeu Estrabão. Desde que me deixes em paz...

- Dou-te a minha palavra de honra de que não te incomodarei.

- A tua palavra de honra vale tanto como os teus juramentos, Lúcio Cina?

Cina ficou vermelho.

- Eu não prestei esse juramento - disse ele, com grande dignidade.

- A pedra que eu tinha na mão invalidou-o.

Pompeu Estrabão desatou a rir, e tanto ria que até relinchava.

- Ah, que belo advogado do Fórum que tu me saíste! - disse ele, logo que pôde.

- Aquele juramento não me obriga a nada! - insistiu Cina, ainda vermelho.

- Então ainda és mais idiota que o outro Lúcio Cornélio. Logo que ele volte, não durarás mais do que um floco de neve numa fogueira.

- Se acreditas nisso, por que razão me deixas fazer o que quero?

- Eu e o outro Lúcio Cornélio entendemo-nos. Essa é a razão retorquiu Pompeu Estrabão. - Ele não me criticará pelo que possa acontecer. Pelo contrário: é a ti que ele criticará.

- Talvez o outro Lúcio Cornélio não regresse. Pompeu Estrabão desatou de novo a rir, e a relinchar.

- Não contes com isso, Lúcio Cina! O outro Lúcio Cornélio, disso não tenho dúvidas, é o homem mais amado pela deusa Fortuna. Que maravilha, a vida que ele leva!

Cina regressou a Roma, mal terminou aquela entrevista; preferia dormir numa casa cujo dono fosse menos irritante. Por isso, e como ficou em Assíssio, acabou por ouvir a história das meias de Quinto Pompeu Rufo, roídas pelos ratos. O seu anfitrião, o mesmo de Pompeu Rufo, não deixou de referir que meias roídas por ratos anunciavam a morte de quem as calçava. Francamente, pensou Cina já em Roma, nunca gostarei desta gente do Norte! São demasiado primitivos, veneram ainda demasiado os velhos deuses.

No início de Setembro, decorriam em Roma os mais importantes jogos do ano, os ludi Romani. Durante três anos, esses jogos tinham sido uma sombra de si mesmos, devido à guerra em Itália e à ausência das avultadas somas que os edis curuis normalmente retiravam dos seus próprios cofres. O edil do ano anterior, Metelo Célere, suscitara grandes expectativas, inteiramente frustradas. Mas os edis daquele ano eram ambos extremamente ricos, e, em Agosto, havia já sinais concretos de que cumpririam o prometido, proporcionando uns jogos magníficos. Começou por isso a correr o boato, em toda a península, de que os jogos seriam espectaculares! Em consequência disso, todos os que tinham direito para fazer a viagem, decidiram subitamente que a melhor cura para as maleitas da guerra era ir a Roma ver os ludi Romani. Milhares de italianos, cidadãos recentes, ainda com as cicatrizes do miserável tratamento a que tinham sido sujeitos, começaram a chegar a Roma em fins de Agosto. Amantes de teatro, de corridas de carros, de caça a animais selvagens, do espectáculo - todos os que podiam fazer a viagem se encaminhavam na direcção de Roma. Para os amantes do teatro, havia uma atracção suplementar: os edis tinham conseguido convencer o velho Átio a deixar a sua casa na Úmbria para vir dirigir a sua nova peça.

E Cina decidiu que era chegada a hora de actuar. O seu aliado, o tribuno da plebe Marco Virgílio, convocou uma reunião ”não-oficial” da Assembleia da Plebe, e anunciou à multidão (entre a qual se encontravam muitos visitantes italianos) que tencionava pressionar o Senado para que distribuísse adequadamente os novos cidadãos. O único objectivo desta reunião era atrair as atenções das pessoas interessadas no assunto, já que Marco Virgílio não podia promulgar legislação numa Assembleia que, segundo as novas leis, não tinha qualquer poder para legislar.

Virgílio apresentou depois a sua proposta ao Senado; foi-lhe dito que os veneráveis senadores não debateriam o problema. Virgílio encolheu os ombros e sentou-se no banco tribunício, ao lado de Sertório e dos outros. Tinha feito o que Cina lhe pedira: sondara o Senado e o Senado pronunciara-se. O resto era com Cina.

- Muito bem - disse Cina aos seus apoiantes. - Agora, mãos ao trabalho. Vamos prometer que se as nossas leis visando reinstaurar a anterior Constituição e distribuir adequadamente os novos cidadãos forem aprovadas pela Assembleia das Centúrias, legislaremos no sentido de um cancelamento geral das leis. As promessas de Sulpício eram suspeitas, porque Sulpício legislou a favor dos credores no que toca ao Senado. Mas nós não temos esse problema. Toda a gente acreditará em nós.

A actividade que se seguiu não primou propriamente pelo secretismo, mas a verdade é que também não chegou ao conhecimento daqueles que, em princípio, seriam contra um cancelamento das dívidas. E a posição da maioria (mesmo ao nível da Primeira Classe) era tão desesperada que, de repente, Cina pôde verificar que tinha tudo a seu favor; de facto, para cada cavaleiro e senador que não devia dinheiro ou que tinha emprestado dinheiro, havia seis ou sete cavaleiros e senadores que tinham dívidas, algumas das quais astronómicas.

- Estamos com problemas - disse o cônsul sénior Cneu Octávio Rusão a António Orador e aos irmãos César. - Acenar com o cancelamento geral das dívidas numa altura em que a ganância e a indigência tudo dominam, permitirá a Cina obter o que pretende, mesmo junto da Primeira Classe e das Centúrias.

- Façamos-lhe justiça: ele é suficientemente esperto para não tentar impor as suas medidas através da Assembleia da Plebe ou da Assembleia de Todo o Povo - disse Lúcio César, irritado. - Se as suas leis forem aprovadas nas Centúrias, não haverá nada a fazer: Cina terá obedecido aos trâmites previstos pela actual Constituição de Lúcio Cornélio. E com ofiscus no estado em que está, ofiscus e o dinheiro privado, que ainda está pior, as Centúrias, de alto a baixo, votarão no sentido que Lúcio Cina pretende.

- E os proletarii revoltar-se-ão - disse António Orador.

Mas Octávio abanou a cabeça; naquele grupo, era ele, sem dúvida, o mais arguto para os negócios.

- Não, Marco António, os capite censi não se revoltarão! - disse ele, impacientemente. - Os mais pobres nunca têm dívidas. E nunca têm dívidas porque nunca têm dinheiro. Quem pede emprestado são as classes médias e altas. Na maior parte dos casos, têm de pedir emprestado para continuarem a subir ou para manterem o seu estatuto. Os agiotas só emprestam dinheiro a quem lhes apresenta garantias. Por isso, quanto mais alto subirmos na escala social, tanto mais dívidas encontraremos.

- Posso concluir, portanto, que estás convencido de que as Centúrias aprovarão as disparatadas leis de Cina - disse Catulo César.

- E tu não estás, Quinto Lutácio?

- Sim, temo que sim.

- Nesse caso, que podemos nós fazer? - perguntou Lúcio César.

- Ah, eu sei o que vou fazer - disse Octávio com uma expressão severa. - No entanto, não o direi a ninguém, nem mesmo a vocês.

- Que achas que ele vai fazer? - perguntou António Orador, depois de Octávio os ter deixado.

Catulo César abanou a cabeça.

- Não faço a menor ideia - respondeu, franzindo o sobrolho Ah, quem me dera que ele tivesse um décimo da inteligência e da habilidade de Lúcio Sila! Mas não tem, Octávio é um homem de Pompeu Estrabão.

Lúcio César, de repente, estremeceu.

- Tenho um pressentimento muito pouco agradável - disse. - O que ele pretende fazer é, com toda a certeza, um disparate: algo que não deve, de modo nenhum, ser feito. Por todos os deuses!

António Orador ficou de súbito agitado.

- Acho que vou passar os próximos dez dias fora de Roma disse.

Todos acabaram por concordar que essa era a decisão mais sábia que, nesse momento, podiam tomar.

Seguro de si mesmo, Cina marcou a data da sua contio na Assembleia das Centúrias: o sexto dia antes dos Idos de Setembro, ou seja, dois dias depois de os ludi Romani terem começado. Às primeiras horas desse dia, reuniram-se no Campo de Marte, para assistir à reunião convocada por Cina, cerca de vinte mil homens: quem ainda tivesse dúvidas quanto à importância que o problema da dívida assumia na sociedade romana ou quanto à ansiedade com que essa sociedade desejava ver-se livre de tal carga, perdê-las-ia por certo ao deparar com tão imensa multidão. Todos aqueles homens queriam votar nesse mesmo dia. Cina explicou-lhes que isso era impossível porque implicava que a sua primeira lei revogasse a lex Caecilia Didia prima (tal como Sila fizera). Não, disse Cina, inflexível, teriam de respeitar o habitual período de espera de três nundinae. No entanto, prometeu que apresentaria mais leis noutras contiones muito antes de terminado o prazo para a votação dessa primeira lei. Esta promessa acalmou todos aqueles homens: era quase certo que o cancelamento geral das dívidas seria aprovado muito antes de Cina deixar o seu cargo.

Havia duas leis que Cina tencionava discutir nesse primeiro dia: a distribuição dos novos cidadãos pelas tribos, e o perdão e o regresso dos dezanove fugitivos. Todos eles, desde Caio Mário ao mais humilde dos cavaleiros, continuavam na posse de todos os seus bens; Sila nada fizera para confiscar esses bens durante os últimos dias do seu consulado, e os novos tribunos da plebe - que continuavam a ter poder de veto no Senado - tinham deixado claro que se oporiam a toda e qualquer tentativa de confiscação.

Assim, quando os vinte mil membros das Classes se reuniram no vasto espaço relvado que era o Campo de Marte, ansiavam que houvesse uma lei que pudessem aprovar, e essa lei só poderia ser a que previa o regresso dos fugitivos; ninguém desejava a distribuição dos novos cidadãos pelas tribos, porque tal lei diluiria o poder de cada um nas assembleias tribais, e toda a gente sabia que ela constituía muito simplesmente um prelúdio à devolução dos poderes legislativos às assembleias tribais. Cina e os seus tribunos da plebe procuravam responder às questões que lhes eram postas pela multidão e sossegar aqueles que ainda tinham dúvidas muito fortes acerca dos Italianos. Mas o factor que mais contribuía para sossegar aquele mar de gente era, naturalmente, a promessa de um cancelamento geral das dívidas.

Tão ocupados estavam os membros daquela vasta assembleia, conversando entre si, bocejando, aguardando apaticamente o discurso de Cina, porque ele e os seus tribunos da plebe tinham acabado de subir à tribuna, que ninguém reparou no súbito aparecimento de mais uns quantos milhares de homens. Vinham vestidos de toga, a sua aparência era calma; seriam talvez membros das Terceira e Quarta Classes.

Cneu Octávio Rusão aprendera alguma coisa enquanto fora lugar-tenente de Pompeu Estrabão; o remédio que prescreveu para as doenças que afectavam o Estado foi soberbamente preparado e adequadamente administrado. Os milhares de veteranos do exército que contratara (com dinheiro de Pompeu Estrabão e António Orador) tinham cercado a multidão; de repente, as suas togas caíram, revelando as armaduras: nesse instante, ouviu-se um silvo estridente, e os mercenários investiram contra a multidão, brandindo as suas espadas. Centenas, milhares de homens foram trespassados pelas espadas, mas muitos mais morreram esmagados sob os pés dos eleitores em pânico. Obrigados a recuar pelo anel de mercenários que os cercava, só ao fim de algum tempo os participantes na reunião conseguiram escapar às violentas espadeiradas e fugir para longe.

Cina e os seis tribunos da plebe não ficaram presos na armadilha; desceram da tribuna e fugiram a sete pés. Da multidão que estava em baixo, apenas cerca de dois terços tiveram a mesma sorte. Quando Octávio apareceu para apreciar a sua obra, vários milhares de membros das classes superiores da Assembleia das Centúrias jaziam mortos no Campo de Marte. Octávio ficou furioso, pois Cina e os tribunos da plebe não tinham sido mortos; mas mesmo os homens contratados para matar vítimas indefesas tinham o seu código, e, segundo esse, assassinar magistrados em funções era um acto demasiado perigoso.

Quinto Lutácio Catulo César e o seu irmão Lúcio Júlio César encontravam-se em Lanúvio. Souberam do massacre ocorrido no dia a que toda a Roma chamava já o Dia de Octávio, e não esperaram um segundo: puseram-se imediatamente a caminho de Roma, a fim de exprimirem claramente o seu protesto.

- Como pudeste fazer uma coisa destas? - perguntou Lúcio César, chorando.

- Não me venham com essa conversa hipócrita! Sabiam perfeitamente o que é que eu ia fazer! - retorquiu Cneu Octávio, com desprezo.

- Concordaram até que era necessário! E, além disso, deram-me o vosso consentimento tácito, desde que não tivessem de participar no barulho, claro. Por isso, não me venham agora com queixas e lamentações! Eu dei-lhes o que vocês queriam: Centúrias domadas, quietinhas, sossegadas. Por muito que Cina se esforce, os sobreviventes já não aprovarão as suas leis.

Profundamente chocado, Catulo César lançou-lhe um olhar feroz.

- Nunca, em toda a minha vida, defendi a violência como técnica política, Cneu Octávio! Nem admito que tenha dado o meu consentimento, tácito ou não tácito! Se imaginaste que eu e o meu irmão apoiávamos este género de acção, enganaste-te redondamente. A violência, por si só, já é algo de horrível! Mas isto... isto é demais! Um massacre] A única reacção possível é de repúdio, o mais absoluto repúdio!

- O meu irmão tem razão - disse Lúcio César, limpando as lágrimas.

- Depois disto, Cneu Octávio, ficaremos para sempre marcados. A partir de agora, os homens mais conservadores serão considerados ao mesmo nível de um Saturnino ou de um Sulpício.

Vendo que nada do que pudesse dizer convenceria aquele discípulo de Pompeu Estrabão de que tinha procedido mal, Catulo César acalmou-se e, com a dignidade que lhe era possível exibir naquele momento, acrescentou:

- Ouvi dizer que o Campo de Marte foi, durante dois dias, um palco de horrores, cônsul sénior. Familiares tentando identificar os corpos, levando-os consigo a fim de procederem às exéquias... e os teus mercenários antecipando-se a algumas famílias, pois ainda levaram muitos cadáveres para uma vala situada entre as plantações de alho-porro e alface da Via Recta... ah, francamente! Transformaste-nos numa raça de homens pior que os bárbaros, porque, ao contrário dos bárbaros, nós sabemos que há determinadas coisas que não se fazem! Para ser sincero, Cneu Octávio, tudo isto me deixa sem vontade de viver.

- Nesse caso, Quinto Lutácio, porque não abres as veias? Esta não é a Roma dos teus augustos antepassados! Esta é a Roma dos irmãos Gracos, de Caio Mário, Saturnino, Sulpício, Lúcio Sila e Lúcio Cina! Caímos numa situação tão caótica que já nada funciona. Se funcionasse, não haveria necessidade de organizar massacres como o do Dia de Octávio.

Estupefactos, os irmãos César aperceberam-se de que Cneu Octávio Rusão se sentia orgulhoso pelo facto de o dia do massacre ter ficado conhecido como o Dia de Octávio.

- Quem te deu o dinheiro para contratar os assassinos, Cneu Octávio? Marco António? - perguntou Lúcio César.

- Sim, ele contribuiu com muito dinheiro. E não lamenta nada.

- Era de admirar se lamentasse! Ele é um António, no fim de contas! - atirou-lhe Catulo César. Levantou-se, batendo com as mãos nas coxas. - Bom, o mal está feito, e nós nunca nos redimiremos. Mas não me envolvas nos teus actos, Cneu Octávio. Não quero partilhar os louros que te atribuis. Sabes, é que me sinto como Pandora depois de ter aberto a boceta.

Lúcio César fez ainda uma pergunta ao cônsul.

- Que aconteceu a Lúcio Cina e aos tribunos da plebe?

- Desapareceram - retorquiu, laconicamente, Octávio. - Serão proscritos, claro. Espero que muito em breve.

Catulo César parou à porta do escritório de Octávio e virou-se para ele com um olhar grave.

- Não podes privar um cônsul em exercício da sua autoridade consular, Cneu Octávio. Tudo isto começou quando a oposição contestou o direito consular de Sila a comandar exércitos romanos. Isso era ilegal! Mas ninguém tentou privá-lo do cargo de cônsul. Porque ninguém pode reduzir a pó a autoridade de um cônsul. Não há nada nas leis romanas que dê a um magistrado, a uma instituição, ou a uma assembleia, poderes para perseguir ou destituir um magistrado curul durante o seu mandato. Podes afastar um tribuno da plebe se fizeres as coisas da forma correcta, podes afastar um questor se ele cometer infracções, podes afastá-los do Senado ou privá-los dos seus poderes. Mas não podes afastar um cônsul ou qualquer outro magistrado curul enquanto durar o ano do seu mandato, Cneu Octávio.

Cneu Octávio pôs um ar presunçoso.

- Agora que encontrei o segredo do êxito, posso fazer tudo o que quero, Quinto Lutácio. - Vendo que os dois irmãos iam já a sair, Octávio gritou-lhes: - Há uma reunião no Senado amanhã! Sugiro-lhes que vão.

Ao contrário de Jerusalém ou Antioquia, Roma pouca importância dava a profetas e adivinhos; os augures conduziam os rituais dos auspícios segundo o verdadeiro espírito romano, sabendo perfeitamente que não possuíam qualquer dom que lhes permitisse adivinhar o futuro curso dos acontecimentos.

Havia, no entanto, um profeta genuinamente romano, um patrício da gens Cornélia, de seu nome Públio Cornélio Culéolo. Ninguém se lembrava por que motivo ficara com alcunha tão desagradável, pois Culéolo era um ancião que parecia nunca ter sido jovem. Vivia pobremente: o pouco dinheiro que tinha era-lhe dado pelos Cipiões, a cuja família pertencia. Era costume frequentar o Fórum: aí passava muito tempo, sentado no alto das escadarias que conduziam ao pequeno templo de Vénus Cloacina, mais antigo que a Basílica Emília, e incorporado nesta. Culéolo não era uma Cassandra, nem um fanático religioso: limitava as suas previsões aos negócios da política e do Estado; nunca previra o fim do mundo, nem o aparecimento de um deus novo, muito mais poderoso que os deuses romanos. Mas vaticinara a guerra contra Jugurta, a invasão germânica, Saturnino, a guerra italiana, e a guerra no Oriente contra Mitridates - a qual, segundo dizia, duraria toda uma geração. Por causa destes êxitos, gozava agora de uma reputação que quase fazia esquecer a sua ridícula alcunha: Culéolo significava testículo pequeno.

Um dia depois de os irmãos César terem regressado a Roma, o Senado reuniu pela primeira vez desde o massacre do Dia de Octávio. Nunca os seus membros tinham temido tanto uma reunião. Até então, os piores ultrajes perpetrados em nome de Roma haviam sido obra de indivíduos ou de multidões reunidas no Fórum; mas o massacre do Dia de Octávio poderia facilmente vir a ser considerado como obra do Senado.

Sentado no alto da escadaria do templo de Vénus Cloacina, Públio Cornélio Culéolo era uma presença tão habitual por aquelas bandas que já nenhum senador dava por ele - Culéolo, em contrapartida, deu por eles, e esfregou as mãos de contente. Se fizesse devidamente o seu trabalho (pelo qual Cneu Octávio Rusão lhe tinha pago uma bela soma), nunca mais teria de voltar a sentar-se naqueles degraus: poderia retirar-se para sempre do negócio das profecias.

Os senadores espalharam-se junto à entrada da Cúria Hostília; formaram-se pequenos grupos que discutiam o massacre e que se interrogavam como poderiam debatê-lo na reunião. Um guincho penetrante atraiu as atenções de todos eles; todos os olhos se fixaram em Culéolo, que se tinha levantado na ponta dos pés, as costas arqueadas, os braços esticados, os dedos retorcidos, espuma escorrendo dos seus lábios contorcidos. Como Culéolo não costumava fazer profecias em estado de transe, toda a gente pensou que lhe estava a dar um ataque. Alguns senadores e a maior parte dos frequentadores do Fórum continuaram a observá-lo, fascinados, enquanto outros acorriam ao adivinho na intenção de o ajudarem. Tentaram sentá-lo, mas Culéolo desatou a atacá-los como um louco, à unhada e à dentada, a boca cada vez mais escancarada. Foi nesse instante que voltou a gritar. Já não era um guincho. Eram palavras.

- Cina! Cina! Cina! Cina! Cina! - berrou.

De súbito, Culéolo tinha à sua volta um público muito atento.

- Se Cina e os seus seis tribunos da plebe não forem mandados para o exílio, Roma cairá! - gritou ele, contorcendo-se, vacilante. E muito mais gritou, até que caiu, inanimado, e o levaram dali.

Os estupefactos senadores descobriram então que o cônsul Octávio tentava haja algum tempo dar início à assembleia. Num ápice, correram para a Cúria Hostília.

Ninguém viria a saber se alguma vez o cônsul sénior tivera a intenção de explicar os terríveis acontecimentos do Campo de Marte; de facto, após aquele episódio, Cneu Octávio Rusão optara por focar a sua atenção (e a atenção do Senado) no possesso e no que ele tinha dito, ou melhor, gritado, na presença de todos os frequentadores do Fórum.

- Se o cônsul júnior e seis dos tribunos da plebe não forem mandados para o exílio, Roma cairá - disse Octávio, com um ar pensativo. Pontifex Maximus, flamen Dialis, que me têm a dizer acerca deste assombroso caso?

Cévola Pontifex Maximus abanou a cabeça.

- Penso que devo abster-me de todo e qualquer comentário, Cneu Octávio.

Octávio, que se preparava para insistir, viu algo nos olhos de Cévola que o fez mudar de ideias; Cévola era um homem cujo conservadorismo inato o levava a fechar os olhos a muita coisa, mas, ao mesmo tempo, não era pessoa que se deixasse intimidar ou ludibriar facilmente. No Senado, Cévola protestara, mais de uma vez, contra a condenação de Caio Mário, Públio Sulpício e os outros, defendendo o regresso dos exilados. Não, o melhor era não se meter com o Pontifex Maximus; Octávio sabia que o flamen Dialis era um homem muito mais ingénuo que Cévola. Além disso, providenciara para que o inocente testemunhasse, no dia anterior, um augúrio particularmente assustador.

- Flamen Dialis! - perguntou Octávio com um ar solene. Extremamente perturbado, Lúcio Cornélio Mérula, oflamen Dialis, levantou-se.

- Lúcio Valério Flaco, Princeps Senatus, Cneu Octávio, magistrados curuis, consulares, veneráveis Senadores. Antes de comentar as palavras do adivinho Culéolo, gostaria de vos contar o que sucedeu ontem no templo do Grande Deus. Estava eu a cumprir os rituais de limpeza da cella do Grande Deus quando, de repente, deparei com uma pequena poça de sangue no chão, atrás do plinto da estátua do Grande Deus. Ao lado da poça de sangue, estava a cabeça de um pássaro - a cabeça de um merula, de um melro! O pássaro que é meu homónimo! E eu que, de acordo com as nossas mais antigas e veneradas leis, estou proibido de qualquer contacto com a morte, fiquei sem saber o que aquilo significaria... A minha morte? A morte do Grande Deus? Não sabia como interpretar o augúrio, por isso consultei o Pontifex Maximus. Ele também não sabia. Convocámos portanto os decemviri sacris faciundis e pedimos-lhes que consultassem os Livros Sibilinos. Mas os Livros Sibilinos em nada nos ajudaram.

Envolto no manto circular que era atributo do seu cargo, não era ilógico que se visse Mérula suar - só que, normalmente, ele não era homem que suasse; mas o seu rosto redondo, sob o elmo de marfim, brilhava de suor. Engoliu em seco, e logo prosseguiu.

- Mas eu fiz algo mais. Quando encontrei a cabeça do melro, procurei o resto do corpo, e descobri que o pássaro tinha feito ninho numa fenda sob o manto dourado da estátua do Grande Deus. E no ninho havia seis melros pequenos, todos eles mortos. Imagino que um gato deve ter entrado na cella e comido a mãe dos passaritos, deixando apenas a cabeça. No entanto, o gato não conseguiu chegar ao ninho: por isso não comeu os passarinhos, os quais acabaram por morrer de fome.

O flamen Dialis tremia.

- Eu estou conspurcado. Depois desta sessão do Senado, terei de prosseguir com as cerimónias destinadas a purificar-me e a purificar o templo de Júpiter Optimus Maximus. Estou aqui em consequência das minhas cogitações acerca do augúrio, não apenas a morte do melro, mas todo o fenómeno. No entanto, só quando ouvi Públio Cornélio Culéolo é que entendi o verdadeiro significado do augúrio.

Um silêncio absoluto dominava o Senado: todos os olhos se fixavam no padre de Júpiter, tão conhecido pela sua honestidade (uma honestidade que quase reiava a ingenuidade) que tudo o que dizia teria de ser levado muito a sério.

- Cina - prosseguiu o flamen Dialis - não significa melro. Mas significa cinzas, e foi a cinzas que reduzi a cabeça do pássaro morto e os seis pequenos melros. Queimei-os de acordo com o ritual da purificação. Por muito amador que eu seja no campo das interpretações, uma coisa me parece evidente: este augúrio aponta claramente para uma personificação de Lúcio Cornélio Cina e dos seus seis tribunos da plebe. Eles desrespeitaram o Grande Deus de Roma, que corre grande perigo por causa deles. O sangue significa que haverá mais contendas e tumultos por causa do cônsul Lúcio Cina e desses seis tribunos da plebe. Não tinha a mínima dúvida quanto a isso.

O Senado começou a murmurar, pensando que Mérula tinha acabado, mas logo se calou, porque o flamen Dialis ia prosseguir a sua intervenção.

- Só mais uma coisa, veneráveis Senadores. Enquanto esperava no templo pelo Pontifex Maximus, procurei algum consolo no rosto sorridente da estátua do Grande Deus. Mas o Grande Deus não sorria! O Grande Deus fitava-me com um semblante severo! - Mérula tremia, estava pálido. - Corri para a rua. Não aguentava continuar lá dentro!

Um estremecimento percorreu toda a sala. E depois, de novo, uma conversa murmurada.

Cneu Octávio Rusão levantou-se, fitando os irmãos César e Cévola Pontifex Maximus com um olhar que não devia ser muito diferente do do gato do templo, depois de ter devorado o melro.

- Quer-me parecer, membros do Senado, que devemos deslocar-nos até ao Fórum, subir aos rostra e daí anunciar a toda a gente o que aconteceu. E pedir opiniões. Depois, regressaremos à nossa reunião.

E assim, a profecia de Culéolo e o episódio do melro foram contados a toda a gente reunida no Fórum; via-se o medo e o assombro nas caras das pessoas, sobretudo depois de Mérula ter feito a sua interpretação dos acontecimentos e Octávio ter anunciado que iria defender o afastamento de Cina e dos seis tribunos da plebe. Ninguém se opôs a tal ideia.

De regresso ao Senado, Cneu Octávio Rusão repetiu que Cina e os tribunos da plebe teriam de ser afastados dos seus cargos.

Cévola Pontifex Maximus levantou-se então para falar.

- Princeps Senatus, Cneu Octávio, veneráveis Senadores. Como todos sabem, eu sou um dos maiores expoentes do Direito Romano, um dos maiores especialistas no que toca à Constituição e às leis que a compõem. Em minha opinião, não dispomos de qualquer meio legal que nos permita afastar um cônsul em exercício. No entanto, na prática, poderemos obter esse afastamento seguindo uma via estritamente religiosa. É indubitável que Júpiter Optimus Maximus revelou as suas preocupações de duas formas diferentes: por intermédio do seu próprio flamen, e por intermédio de um velho que, sabemo-lo todos, é um adivinho conceituado. Tendo em conta estes dois acontecimentos convergentes, sugiro que o cônsul Lúcio Cornélio Cina seja declarado nefas. Uma tal decisão não lhe retirará formalmente o cargo de cônsul, mas, dado que o condena à execração, do ponto de vista religioso, impede-o, na prática, de cumprir as suas obrigações consulares. O que acabei de dizer em relação ao cônsul aplica-se na íntegra aos tribunos da plebe.

Octávio fitava o Pontifex Maximus com um ar mal-humurado, mas achou preferível não interromper. Cévola tinha ainda algo a propor. Algo que, no entanto, ia contrariar os objectivos de Octávio - a condenação à morte de Cina. Cina tinha de desaparecer!

- Foi o flamen Dialis que testemunhou os acontecimentos no templo de Júpiter Optimus Maximus. Ele é também o sacerdote pessoal do Grande Deus, um cargo mais antigo que os Reis. O flamen Dialis não pode conduzir guerras, não pode ter qualquer contacto com a morte, não pode tocar nos materiais de que são feitas as armas de guerra. Sugiro, portanto, que nomeemos o flamen Dialis Lúcio Cornélio Mérula cônsul suffectus - ou seja, ele não ocupará o cargo de Lúcio Cina, mas zelará por esse cargo. Desta forma, o cônsul sénior Cneu Octávio não governará sozinho. Salvo em casos excepcionais, como na guerra contra os italianos, em que não era possível aos cônsules exercer uma actividade normal, nenhum homem pode ser autorizado a governar como único cônsul. Terá sempre de ter um colega.

Tendo decidido aceitar com um sorriso a intervenção de Cévola, Octávio aquiesceu.

- Concordo com o que acabaste de propor, Quinto Múcio. O flamen Dialis que se sente na cadeira curul de Lúcio Cina como seu zelador! Proponho agora que o Senado se divida relativamente a duas questões intimamente relacionadas entre si. Aqueles que apoiam que recomendemos à Assembleia das Centúrias que, número um, o cônsul Lúcio Cina e os seis tribunos da plebe sejam declaradas nefas e banidos de Roma e de todas as terras romanas e que, número dois, o flamen Dialis seja nomeado cônsul suffectus, reúnam-se, por favor, à minha direita. Aqueles que se opõem ficarão à minha esquerda.

O Senado aprovou as duas recomendações sem um único voto negativo, e a Assembleia das Centúrias, formada quase unicamente por senadores, reuniu no Aventino, fora do pomerium, mas dentro das muralhas - ninguém se atreveria a fazer uma reunião no chão molhado de sangue da Saepta. As recomendações foram transformadas em lei.

O cônsul sénior Octávio declarou-se satisfeito, e a governação de Roma prosseguiu sem Cina. Mas Cneu Octávio nada fez para firmar a sua posição, nem para proteger Roma dos fugitivos oficialmente considerados sacrílegos. Não chamou legiões, nem escreveu ao seu senhor, Pompeu Estrabão. De facto, Octávio pensou que Cina e os seis tribunos da plebe fugiriam tão depressa quanto possível e ir-se-iam juntar a Caio Mário e aos restantes dezanove fugitivos na ilha africana de Cercina.

Mas Cina não tinha a mínima intenção de deixar a Itália. Nem ele, nem os seis tribunos da plebe. Depois de terem fugido ao massacre do Campo de Marte, reuniram dinheiro e alguns bens e encontraram-se junto ao marco miliário da Via Ápia à saída de Bovilas. E foi aí que decidiram o que haviam de fazer.

- Eu seguirei para Nola, com Quinto Sertório e Marco Gratidiano

- disse Cina, enérgico, decidido. - Há uma legião em Nola, e os soldados detestam o comandante, Ápio Cláudio Pulcro. Tenciono roubar essa legião a Ápio Cláudio e seguir o exemplo de Sila: conduzi-la-ei até Roma. Mas antes disso, teremos de juntar muito mais apoiantes. Virgílio, Milénio, Arvinha, Mágio, vocês irão ter com os italianos e tentarão obter todo o apoio possível. Dirão a todos o mesmo: que o Senado de Roma expulsou o cônsul legalmente eleito por ele ter tentado distribuir adequadamente os novos cidadãos pelas tribos, e porque Cneu Octávio massacrou milhares de bons romanos que assistiam a uma assembleia legalmente convocada. - Um sorriso estranho desenhou-se-lhe na boca. - Ainda bem que tivemos uma guerra tão encarniçada na península italiana! Comuto e eu ficámos com milhares de armas e armaduras dos Marsos e dos outros. Essas armas e armaduras encontram-se armazenadas em Alba. Milénio, tu irás buscá-las e depois distribui-las-ás. Logo que o comando da legião de Ápio Cláudio passe para as minhas mãos, saquearei todos os depósitos de armas de Cápua.

Deste modo, quatro dos seis tribunos da plebe seguiram imediatamente para cidades como Preneste, Tíbur, Reate, Corfínio, Venafro, Interamna e Sora. As autoridades locais receberam-nos de braços abertos e deram-lhes todo o dinheiro que lhes era possível dar para esta nova campanha. Lentamente, as forças que se opunham a Octávio foram crescendo e a rede em torno de Roma foi-se apertando cada vez mais.

Cina não teve qualquer dificuldade em afastar Ápio Cláudio Pulcro do comando da legião de Nola. Ápio Cláudio, um homem arredio e melancólico que, secretamente, continuava a chorar a morte da mulher e a sorte dos seus seis filhos, entregou-lhe o comando das tropas sem tentar sequer obter o apoio dos seus soldados. Subiu para o seu cavalo e foi ao encontro de Metelo Pio, que se encontrava em Esérnia.

Depois de chegar a Nola, Cina compreendeu que tinha sido uma boa ideia levar consigo Quinto Sertório. Militar nato, Sertório gozava de óptima reputação entre os soldados, uma reputação que se vinha firmando há vinte anos; ganhara a Coroa de Erva na Hispânia, uma dúzia de coroas menos importantes em campanhas contra Numídios e Germanos, era primo de Caio Mário, e aquela legião havia sido recrutada por ele na Gália Italiana, três anos antes. Aqueles homens conheciam-no bem e gostavam muito dele. Em contrapartida, não suportavam Ápio Cláudio.

Cina, Sertório, Marco Mário Gratidiano e a legião puseram-se a caminho de Roma. No momento em que deram início à sua marcha, as portas da cidade de Nola abriram-se, deixando sair um exército samnita fortemente armado. Este exército foi então ao encontro dos romanos não para os atacar, mas para se juntar a eles. E na junção desta estrada com a Via Ápia, em Cápua, todos os recrutas, gladiadores e centuriões que se encontravam nesta última cidade uniram-se também ao já numeroso exército de Cina que, assim, passava a contar com vinte mil homens. E entre Cápua e a pequena cidade de Labico, na Via Latina, os quatro tribunos da plebe que haviam viajado por Itália, encontraram-se com Cina, e ofereceram-lhe mais dez mil homens.

Corria o mês de Outubro e Roma já não estava longe. Os informadores de Cina indicaram-lhe que a cidade estava em pânico, que Octávio escrevera a Pompeu Estrabão pedindo-lhe apoio, e que,’ maravilha das maravilhas, Caio Mário desembarcara na costa etrusca, na cidade de Telamão, perto das suas extensas propriedades. Esta última notícia deixou Cina absolutamente deliciado, tanto mais que, passado pouco tempo, os seus agentes confirmaram que Mário tinha agrupado, sob o seu comando, combatentes da Etrúria e da Úmbria, e marchava agora pela Via Aurélia Vetus em direcção a Roma.

- Essa é a melhor de todas as notícias! - disse Cina a Quinto Sertório. - Agora que Caio Mário regressou, isto resolve-se num instante. Como tu o conheces melhor do que nós, vai ter com ele e informa-o das nossas intenções. E informa-te dos planos dele. Pergunta-lhe se pensa ocupar Óstia ou se só parará em Roma? Diz-lhe que, se puder, manterei os nossos exércitos no Vaticano e limitarei as hostilidades a essa zona. Odeio a ideia de ter de levar tropas para perto do pomerium, e não nutro a mínima intenção de imitar Lúcio Sila. Vai ter com Caio Mário, Quinto Sertório, e diz-lhe que estou muito feliz por ele ter regressado! - Nesse momento, Cina lembrou-se de outra coisa. - Ah, e diz-lhe que lhe mandarei todas as armaduras de que não precise antes de ele chegar a Óstia.

Sertório encontrou-se com Mário perto da pequena cidade de Fregenas, alguns quilómetros a norte de Óstia; se a sua corrida até Fregenas fora rápida, o regresso a Labico constituiu por certo um verdadeiro recorde de velocidade. Irrompeu pela pequena casa onde Cina instalara o seu quartel-general temporário, e desatou a falar antes que o estupefacto Cina pudesse abrir a boca.

- Lúcio Cina, peço-te por tudo, escreve imediatamente a Caio Mário, ordenando-lhe que disperse os seus homens ou que os ponha ao teu serviço! - exclamou Sertório, com uma expressão grave. Ordena-lhe que se comporte como o privatus que realmente é. Manda-o dispersar os seus homens. Ordena-lhe que regresse às suas terras e espere aí, como qualquer privatus, pelo desfecho da contenda.

- Mas o que é que te deu? - perguntou Cina, que nem queria acreditar no que ouvia. - Como podes dizer tais coisas? Caio Mário é essencial para a nossa causa! Se ele nos apoiar, a nossa vitória é certa.

- Lúcio Cina, o vencedor será Mário. - exclamou Sertório. - Vou dizer-te o que penso com toda a franqueza: se permites que Caio Mário participe neste confronto, vais arrepender-te e muito. Porque não serás tu o vencedor, não serás tu quem ficará à frente do governo de Roma. Será Caio Mário! Eu acabo de falar com ele! É um homem velho, amargo, destrambelhado. Ordena-lhe que regresse às suas propriedades, como um privatus que é! Por favor, Lúcio Cina!

- Destrambelhado?

- Precisamente. Louco. Caio Mário está louco.

- Bom, não foi isso o que os meus agentes me contaram, Quinto Sertório. Segundo eles, Caio Mário revela uma capacidade de organização soberba, igual à de outros tempos, e neste momento marcha sobre Óstia com um plano o mais sensato possível. Por isso, que te leva a dizer que ele enlouqueceu? Diz coisas incoerentes? Coisas bombásticas? Delira? Os meus agentes não o conhecem tão bem como tu, mas sabem ver quando um homem está louco - disse Cina, visivelmente céptico.

- Não, ele não diz disparates, nem delira. Nem se esqueceu tão pouco de como se controla e orienta um exército. Mas eu conheço Caio Mário desde os dezassete anos, e digo-te, com toda a sinceridade, que este não é o Caio Mário que eu conheci! É um homem velho e profundamente ressentido. Clamando por vingança. Obcecado consigo mesmo e com o destino que lhe foi profetizado. Não podes confiar nele, Lúcio Cina! Ele acabará por te roubar Roma e, depois, governará a nação de acordo com os seus intentos. - Sertório respirou fundo, e voltou à carga. - O filho dele manda-te exactamente a mesma mensagem, Lúcio Cina! Aconselha-te a que não dês ao pai nenhum poder! Porque Caio Mário está louco.

- Acho as vossas reacções exageradas - disse Cina.

- A minha não é, Lúcio Cina. E a do jovem Mário também não. Cina abanou a cabeça. Pegando numa folha, retorquiu:

- Quinto Sertório, eu preciso de Caio Mário! Se ele está velho e mentalmente perturbado, então nunca poderá ser uma ameaça para mim ou para Roma! Vou dar-lhe autoridade proconsular. O Senado poderá ratificar mais tarde a minha decisão, e usá-lo para me dar cobertura a oeste.

- Vais arrepender-te!

- De modo nenhum - retorquiu Cina, começando a escrever. Sertório deixou-se estar por um momento a olhar para a cabeça baixa do cônsul, até que, erguendo os braços num gesto de desespero, virou costas e saiu com o mesmo passo apressado com que entrara.

Tendo recebido de Mário a garantia de que este se ocuparia de Óstia e seguiria depois o curso do Tibre na direcção do Vaticano, Cina distribuiu as suas forças por três divisões de dez mil homens cada, e deixou Labico.

A primeira divisão - que deveria ocupar a planície vaticana - era chefiada por Cneu Papírio Carbão, primo do tribuno da plebe Carbão Arvina, e vencedor das campanhas da Lucânia; a segunda divisão que ocuparia o Campo de Marte (seria a única secção do exército de Cina a instalar-se na margem citadina do rio) - tinha a comandá-la Quinto Sertório; e a terceira divisão, chefiada pelo próprio Cina, ficaria no flanco norte do monte Janículo. Mário deveria ficar no flanco sul dessa mesma colina.

Havia no entanto um obstáculo: no monte Janículo havia uma fortaleza e Cneu Octávio tivera o bom senso de mandar para lá todos os voluntários que conseguira reunir. Por isso, entre o exército de Cina (que atravessara o rio pela ponte Múlvia) e a força que Mário traria de Óstia, haveria aquela formidável fortaleza, defendida por milhares de homens e quase inexpugnável graças às obras nela efectuadas desde os tempos da ameaça germânica.

Como se não bastasse este problema, Cina teve de repente de contar com outro: inesperadamente, Pompeu Estrabão apareceu com as suas quatro legiões de soldados picentinos e ocupou uma posição mesmo à saída da Porta Colina. Para além da legião de Nola (comandada por Sertório), o exército de Pompeu Estrabão era o único com experiência de guerra, constituindo, portanto, uma força poderosíssima. Apenas o monte Pinciano, com os seus jardins e pomares, separava Pompeu Estrabão de Sertório.

Durante dezasseis dias, Cina permaneceu atrás das paliçadas fortificadas de três acampamentos separados, esperando pelo ataque de Pompeu Estrabão; Cina partira do princípio que Pompeu Estrabão atacaria antes que Caio Mário chegasse. Quinto Sertório, que suportaria o choque inicial, encontrava-se fortemente entrincheirado no Campo de Marte. Mas ninguém se mexia. Nada acontecia.

Entretanto, Mário avançava facilmente pois não encontrava qualquer oposição. Por instigação do seu questor, Óstia abriu as portas logo que Mário e o seu exército apareceram. A cidade estava louca de alegria: iria receber o seu herói de braços abertos. Mas o seu herói comportou-se com brutal indiferença e autorizou o seu exército composto, na sua maior parte, por escravos e ex-escravos, um dos factores que mais perturbara Sertório - a saquear a cidade, a qual sofreu terrivelmente. Como que cego e surdo, Mário não fez nenhuma tentativa para refrear as acções insanas e cruéis dos seus homens; adivinhavam tempos de horror e perguntavam-se quanto tempo aguentariam se Pompeu Estrabão continuasse a recusar combater.

Finalmente, Octávio e Mérula decidiram recrutar soldados entre os italianos, e levaram o senado a recomendar às Centúrias que concedessem o estatuto integral de cidadão a todos aqueles que apoiassem o ”verdadeiro” governo de Roma. Aprovada a lei, foram enviados arautos para toda a Itália, divulgando a notícia e pedindo voluntários.

Mas poucos foram os voluntários, em especial porque os tribunos da plebe de Cina, dois meses antes, tinham roubado todos os homens disponíveis ao ”verdadeiro” governo de Roma.

Então, Pompeu Estrabão sugeriu que mandassem vir Metelo Pio de Esérnia; com as duas legiões de Metelo Pio, seria fácil derrotar Cina e Mário. Octávio e Mérula enviaram uma delegação ao acampamento de Metelo Pio, pedindo-lhe que concluísse um tratado de paz com os Samnitas e que regressasse a Roma o mais depressa possível.

Dividido entre o seu dever de subjugar Esérnia e a necessidade de acudir à crítica situação de Roma, Metelo Pio, o Bacorinho, decidiu-se a conferenciar com um Caio Pápio Mutilo paralisado; Mutilo, naturalmente, já estava a par do que se passava em Roma.

- Concordo em firmar um tratado de paz, Quinto Cecílio - disse Mutilo, deitado na liteira. - Mas nos seguintes termos: Roma devolverá ao Sâmnio tudo o que lhe tirou, os desertores e prisioneiros de guerra samnitas regressarão à sua terra sem sofrerem qualquer tipo de represálias, Roma renunciará ao que os Samnitas lhe pilharam e concederá a cida-dania integral a todos os homens livres do Sâmnio.

Metelo Pio recuou, ofendido.

- Ah, mas claro, Caio Pápio! - exclamou, sarcasticamente. Porque não exiges que passemos todos debaixo do jugo, como os Samnitas fizeram depois da batalha das Forcas Caudinas, há duzentos anos? - perguntou. - Os termos que propões são absolutamente inaceitáveis! Muito bom dia!

De cabeça erguida e as costas muito direitas, Metelo Pio regressou ao seu acampamento e informou a delegação de Octávio e Mérula de que não haveria tratado de paz, pelo que não poderia oferecer-lhes qualquer tipo de auxílio.

Mutilo regressou na sua liteira a Esérnia, muito mais feliz que o Bacorinho; tinha tido uma ideia brilhante. Mal a noite caiu, o seu correio rodeou as linhas romanas e foi ter com Caio Mário: levava uma carta de Mutilo, perguntando a Mário se estava interessado em concluir um tratado de paz com o Sâmnio. Embora estivesse perfeitamente consciente de que Cina é que era o cônsul rebelde e Mário não passava de um privatus rebelde, Mutilo nunca pôs a hipótese de enviar a carta a Cina. Porque sabia que, em qualquer empresa em que Caio Mário estivesse envolvido, o chefe só poderia ser ele, só ele ficaria, no fim, com o poder.

Com Mário, agora já muito perto de Roma, encontrava-se o tribuno dos soldados Caio Flávio Fímbria; tinha pertencido à legião de Nola, e, tal como os seus colegas Públio Ânio e Caio Márcio Censorino, decidira seguir Cina. Porém, logo que soube que Mário desembarcara na Etrúria, Fímbria decidiu integrar-se nas forças de Mário, que ficou extremamente satisfeito com isso.

- Não faz sentido haver tribunos da plebe no meu exército - disse Mário. - Não são soldados romanos, a maior parte são escravos. De modo que vou dar-te o comando da cavalaria númida: trouxe-os de África comigo.

Depois de ter lido a carta de Mutilo, Mário mandou chamar Fímbria.

- Vai ter com Mutilo ao desfiladeiro de Melfa. Foi esse o local de encontro que ele escolheu - disse Mário, com um risinho desdenhoso.

- É evidente que ele nos quer fazer lembrar que fomos derrotados inúmeras vezes nesse local. Mas ignoremos o seu atrevimento. Por ora. Concorda com tudo o que ele pedir, Caio Flávio. Ainda que ele peça o governo de toda a Itália ou uma viagem às terras dos Hiperbóreos. Trataremos de Mutilo e dos Samnitas mais tarde.

Entretanto, uma segunda delegação de Roma encontrava-se com Metelo Pio nas proximidades de Esérnia. Incluía homens com muito mais peso nos assuntos da governação: Catulo César e o seu filho Catulo, o censor Públio Crasso e o seu filho Lúcio.

- Por favor, Quinto Cecílio! - disse Catulo César ao Bacorinho e ao seu lugar-tenente, Mamerco. - Deixa aqui uma pequena força e vem para Roma! Caso contrário, não fará sentido manter o cerco a Esérnia. Porque Roma e tudo o que Roma representa está por um fio e muito em breve poderá ruir!

Metelo Pio acabou por concordar. Deixou Marco Pláucio Silvano com uma insignificante força de cinco coortes, cujos soldados se sentiram de repente muito temerosos. E com razão, pois mal Metelo Pio virou costas, os Samnitas deixaram a cidade, esmagaram o frágil exército de Silvano e invadiram todo o Sâmnio que os romanos haviam entretanto reconquistado. Os samnitas que não tinham ido para Roma com Cina espalhavam-se agora por todo o sudoeste da Campânia, chegando às proximidades de Cápua; a pequena cidade de Abela foi saqueada e incendiada, após o que um segundo exército samnita se foi juntar aos insurrectos. Estes italianos não admitiam nunca a hipótese de se aliar a Cina - iam ter directamente com Caio Mário e ofereciam-lhe os seus serviços.

Com Metelo Pio encontravam-se Mamerco e Ápio Cláudio Pulcro. As quinze coortes que trouxeram de Esérnia foram para a fortaleza do monte Janículo; Ápio Cláudio foi nomeado comandante da fortaleza. Infortunadamente, Octávio insistiu em ficar com o título de comandante-chefe da guarnição. Ápio Cláudio achou que isso era um monumental insulto à sua pessoa. Por que haveria ele de ter todo o trabalho e nenhuma glória? Furioso, Ápio Cláudio começou a pôr a hipótese de mudar de partido.

O Senado enviara também uma mensagem a Públio Servílio Vátia, que se encontrava na Gália Italiana com duas legiões de recrutas; uma estava em Placência, com o lugar-tenente de Vátia, Caio Célio, e a outra em Aquileia, com Vátia. Com estas duas forças, Vátia pretendia apenas intimidar a Gália Italiana, pois temia o ressentimento dos Gauleses perante o não pagamento das dívidas de guerra romanas, ressentimento especialmente forte nas cidades ligadas à indústria da fundição, perto de Aquileia. Quando recebeu a carta do Senado, Vátia ordenou a Célio que seguisse com a sua legião para o leste (a região de Aquileia), enquanto ele partiria para Roma.

Infelizmente para o ”verdadeiro” governo de Roma, quando Vátia chegou a Arimino, deparou com o tribuno da plebe Marco Mário Gratidiano, que fora enviado para norte com todas as coortes que Cina conseguira juntar, para o caso de o governador da Gália Italiana tentar apoiar os sitiados. Perante a fraca figura que os seus recrutas fizeram na batalha, Vátia voltou para a sua província e desistiu de toda e qualquer ideia de contribuir para a libertação de Roma. Quanto a Caio Célio, um homem muito depressivo, depois de ter ouvido uma versão muito deturpada do que acontecera em Arimino, concluiu que o ”verdadeiro” governo de Roma estava condenado, e matou-se.

Octávio, Mérula e os restantes membros do ”verdadeiro” governo de Roma viam a sua posição piorar a todo o momento. Caio Mário avançou pela Via Campânia e instalou as suas tropas no flanco sul do monte Janículo; então, Ápio Cláudio, profundamente ressentido com Octávio, decidiu-se a colaborar secretamente com Mário, permitindo-lhe que penetrasse nas linhas de defesa exteriores à fortaleza. Esta não caiu unicamente graças a Pompeu Estrabão, que obrigou Cina a abandonar Mário, atacando a legião de Sertório. Ao mesmo tempo, Octávio e o censor Públio Crasso, conduzindo uma força de voluntários recentemente formada, atravessaram a ponte de madeira sobre o Tibre e foram reforçar o exército que defendia a fortaleza no preciso momento em que esta ameaçava ceder. Tolhido pela falta de disciplina dos seus soldados escravos, Mário viu-se obrigado a retirar; o tribuno da plebe Caio Milénio foi morto quanto tentava ajudá-lo. Públio Crasso e o seu filho Lúcio ficaram então no interior da fortaleza, a fim de vigiarem Ápio Cláudio, o qual mudara de ideias novamente, sentindo agora que o governo ”legítimo” ia vencer. E Pompeu Estrabão, informado de que a fortaleza estava salva, deu por findos os combates contra a legião de Sertório e retirou para o seu acampamento junto à Porta Colina.

Mas faça-se justiça: Pompeu Estrabão retirara também porque estava mal de saúde. Logo que chegaram ao acampamento, o filho ordenou-lhe que se metesse na cama. Durante a batalha, Pompeu Estrabão fora acometido de febre e disenteria e, embora nunca tivesse largado o comando, era visível que não estava em condições de dar continuidade ao seu êxito parcial na batalha do Campo de Marte. Demasiado jovem para gozar de uma confiança ilimitada junto das tropas picentinas, o filho de Pompeu nem tentou assumir o comando, tanto mais que tinha pela frente uma grave situação de guerra.

Durante três dias, o senhor do Norte do Piceno e das regiões próximas da Umbria sofreu os horrores da febre entérica, enquanto o jovem Pompeu e o seu amigo Marco Túlio Cícero lhe proporcionavam todos os cuidados possíveis e as tropas aguardavam para ver o que aconteceria. Às primeiras horas do quarto dia, aquele homem tão forte e vigoroso morria de desidratação e exaustão física.

Acompanhado por Cícero, o jovem Pompeu, inconsolável com a morte do pai, dirigiu-se então ao templo de Vénus Libitina, a fim de tratar das exéquias do pai. Se o funeral se realizasse no Piceno, assemelhar-se-ia, por certo, a uma parada de um general triunfante. Mas o filho compreendeu que, naquelas circunstâncias, o funeral teria de ser o mais simples possível. Os soldados estavam inquietos e, além disso, os habitantes do Quirinal, do Viminal e do alto Esquilino tinham ganho um ódio feroz ao falecido, pois o seu acampamento trouxera a doença à cidade.

- Que vais fazer? - perguntou Cícero, já perto do bosque de ciprestes onde estavam instalados os agentes funerários.

- Regresso ao Piceno - disse Pompeu, chorando e soluçando ainda.

- O meu pai fez mal em vir! Eu tinha-lhe dito para não vir! Que Roma pereça, disse-lhe eu! Mas ele não me quis ouvir. Respondeu que tinha de defender os meus direitos, que Roma teria de continuar a ser Roma no dia em que eu me tornasse cônsul.

- Vem para minha casa. Podias lá ficar algum tempo - disse Cícero, que também chorava; embora detestasse e temesse Pompeu Estrabão, não era imune à desolação do filho. - Cneu Pompeu, eu tenho estado com Átio! Ele veio a Roma dirigir a sua nova peça para os ludi Romani e quando começaram os problemas entre Lúcio Cina e Cneu Octávio, ele achou que estava demasiado velho para fazer a viagem de regresso à Úmbria no meio de tanta confusão. Quer-me parecer que ele gosta desta atmosfera, porque é extremamente dramática e, portanto, está mais próxima da verdade! Vem, ficas uns dias em minha casa. O grande Lucílio pertenceu à tua família. Estou certo de que gostarias imenso de Átio. Distrair-te-ias. Esquecerias este caos horrível.

- Não - replicou Pompeu, chorando ainda. - Vou para minha casa.

- Com o teu exército?

- Aquele era o exército do meu pai. Roma pode ficar com ele.

Os dois jovens demoraram ainda algumas horas a tratar do funeral; por isso, quando regressaram à villa onde Pompeu Estrabão instalara a sua residência temporária, já passava muito do meio-dia. Ninguém - e muito menos o pesaroso Pompeu - tivera a ideia de colocar guardas na residência; o general estava morto, não havia nada de valor lá dentro. Os criados já eram poucos, pois a epidemia já dizimara uns quantos. Porém, quando o jovem Pompeu e Cícero abandonaram o local, já tinham deitado Pompeu Estrabão na sua cama, ficando duas escravas a velar o morto.

No regresso, porém, Pompeu e Cícero encontraram a residência e a zona vizinha completamente desertas - o silêncio era total, parecia não haver vivalma nem na casa nem nas redondezas. E quando entraram na sala onde tinham deixado Pompeu Estrabão, descobriram que este já lá não estava.

Pompeu gritou de júbilo

- O meu pai está vivo! O meu pai está vivo!

- Cneu Pompeu, o teu pai está morto! - retorquiu Cícero, o qual não perdera o bom senso, pois as suas emoções nada tinham a ver com a morte do general. - Acalma-te, por favor! Sabes perfeitamente que ele estava morto quando o deixámos. Lavámo-lo, vestimo-lo. O teu pai está morto!

O júbilo de Pompeu esbateu-se, mas não para dar lugar às lágrimas: pelo contrário, o rosto do jovem parecia agora de pedra.

- Que aconteceu então? Onde está o meu pai?

- Os criados desapareceram, mesmo aqueles que estavam doentes, parece-me - disse Cícero. - O melhor será revistarmos a casa.

A busca nada revelou quanto ao que teria sucedido ao cadáver de Cneu Pompeu Estrabão. Pompeu e Cícero, o primeiro com uma expressão cada vez mais pétrea, o segundo cada vez mais confuso, deixaram a villa e dirigiram-se para a Via Nomentana. Olharam para os dois lados: nada.

- Vamos até ao acampamento ou à Porta Colina? - perguntou Cícero.

Tanto o acampamento como a Porta Colina ficavam perto dali. Pompeu reflectiu por um momento, até que tomou uma decisão.

- Vamos à tenda do general. Talvez os soldados o tenham levado para lá - disse.

Tinham começado a andar na direcção do acampamento quando ouviram alguém gritar!

- Cneu Pompeu! Cneu Pompeu!

Era Bruto Damasipo, com um ar completamente transtornado, que corria para eles.

- O teu pai! - exclamou Bruto, ofegante, já perto deles.

- Que aconteceu ao meu pai? - perguntou Pompeu, muito calmo e frio.

- O povo de Roma roubou o cadáver, dizendo que iam arrastá-lo pelas ruas da cidade, preso a um burro! - disse Bruto Damasipo. Uma das escravas que estava a velar o corpo veio-me dizer o que sucedera e eu tenho andado como um louco à tua procura! - Damasipo fitou Pompeu com o mesmo respeito com que olhava para o pai. Que queres que eu faça? - perguntou.

- Traz-me duas coortes de soldados imediatamente - disse Pompeu.

- Depois, iremos à procura do corpo do meu pai.

Cícero não lhe fez nenhuma pergunta e Pompeu também nada lhe disse enquanto esperavam. Não havia a mínima dúvida quanto às razões que tinham levado os habitantes da zona nordeste da cidade a cometer tão grave afronta - aquela era a única maneira que tinham de manifestar o seu desprezo e raiva em relação àquele que responsabilizavam por todos os seus males. As zonas mais povoadas de Roma recebiam todas água dos aquedutos, mas o alto Esquilino, o Viminal e o Quirinal, menos populosas, dependiam quase exclusivamente das nascentes locais.

Quando Pompeu atravessou a Porta Colina à frente das suas coortes e penetrou na vasta praça do mercado, deparou com toda a zona deserta. Não se via vivalma, nem mesmo na mais insignificante ruela conduzindo ao baixo Esquilino. Uma a uma, todas as ruas foram passadas a pente fino. Três horas depois, Pompeu encontrou o cadáver do pai na Alta Semita, perto do templo de Salus.

Bom, pensou Cícero, o local onde o deixaram diz tudo: junto ao templo da Boa Saúde.

- Não me vou esquecer disto - disse Pompeu, fitando o cadáver nu e lacerado do pai. - Quando for cônsul e lançar o meu programa de construções, não darei nada ao Quirinal!

Quando soube da morte de Pompeu Estrabão, Cina suspirou de alívio. Depois, quando soube que o cadáver de Pompeu Estrabão tinha sido arrastado pelas ruas da cidade, pôs-se a assobiar de contente. Uma coisa era certa: nem tudo corria bem dentro de Roma! E, ao que parecia, o povo não gostava dos seus defensores. Com um ar feliz, resolveu aguardar a rendição: acreditava que só teria de esperar umas horas.

Estava redondamente enganado. Aparentemente, Octávio decidira que só se renderia se o povo se revoltasse abertamente. E até então, o povo limitara-se a arrastar o cadáver de um general pelas ruas de Roma.

Quinto Sertório foi ter com Cina nesse mesmo dia. Tinha o olho esquerdo tapado com um pano empapado em sangue.

- Que te aconteceu? - perguntou Cina, consternado.

- Fiquei sem o olho esquerdo - retorquiu Sertório.

- Por todos os deuses!

- Felizmente que foi o olho esquerdo - disse Sertório, estoicamente.

- Preciso mais do direito, por causa da espada. Se tivesse perdido o direito, não sei se poderia continuar a combater.

- Senta-te - disse Cina, servindo-lhe vinho. Por momentos, fitou atentamente o seu lugar-tenente, perguntando-se se haveria alguma coisa na vida capaz de deitar abaixo Quinto Sertório. Depois, sentou-se, suspirando.

- Sabes, Quinto Sertório, tinhas toda a razão - disse ele lentamente.

- Acerca de Caio Mário?

- Sim. - Cina passava a sua taça de uma mão para a outra, devagar.

- O comando já não me pertence por completo. Claro, claro que os militares com postos superiores me respeitam! Mas não é nesses que eu estou a pensar. É nos outros: nos soldados, nos voluntários italianos. Esses homens não me seguem a mim, seguem Caio Mário.

- Era forçoso que isso acontecesse. Nos velhos tempos não haveria qualquer problema. Porque Caio Mário era o homem mais justo e prudente do mundo. Era! Esse Caio Mário já não existe - disse Sertório. Uma lágrima de sangue desceu-lhe pelo rosto: limpou-a rapidamente.

- Na sua idade, e com a doença que tem, o exílio foi a pior coisa que lhe podia ter acontecido. Conheço-o o bastante para saber que o interesse de Mário pelo que actualmente se passa é inteiramente falso. No fundo, só uma coisa lhe interessa: vingar-se daqueles que o condenaram ao exílio. Rodeou-se dos piores homens! Fímbria, imagina só! E no que toca à sua legião - ele chama-lhe guarda pessoal e recusa-se a admitir que ela pertence oficialmente ao seu exército -, é formada por escravos e ex-escravos, gente selvagem e rapace, gente que faria as delícias de qualquer dirigente rebelde siciliano. Mas, se do ponto vista moral, Mário representa agora a negação de todos os princípios, do ponto de vista mental, ele não está tão mal quanto isso: ele sabe que os teus exércitos estão nas mãos dele! E temo que tencione usá-los para seu proveito, e não para defender o bem-estar de Roma. Eu estou contigo e com as tuas forças, Lúcio Cina, por uma razão extremamente importante: não posso tolerar o afastamento ilegal de um cônsul. Mas também não posso tolerar aquilo que, suspeito eu, Caio Mário pensa fazer. Por isso, é muito possível que tu e eu acabemos por nos separar.

Cina estava a ficar exasperado; os seus olhos, pelos quais perpassava um sentimento de horror, não largavam Sertório.

- Queres dizer com isso que ele está decidido a provocar um banho de sangue?

- Sim, é isso mesmo que eu quero dizer. E não me parece que haja alguém capaz de detê-lo.

- Mas ele não pode fazer uma coisa dessas! É absolutamente essencial que eu entre em Roma como legítimo cônsul, que restaure a paz, que impeça novos derramamentos de sangue, que faça com que a nossa pobre Roma volte a ser o que era.

- Desejo-te a maior sorte - disse Sertório, secamente, e levantou-se.

- Estarei no Campo de Marte, Lúcio Cina. Tenciono permanecer lá. Pelo menos com uma coisa podes contar: os meus homens seguir-me-ão. E eu apoio o teu regresso ao cargo de cônsul, porque foste legalmente eleito! Não apoio nenhuma facção conduzida por Caio Mário.

- Permanece no Campo de Marte, custe o que custar, Sertório. Mas peço-te uma coisa: se houver negociações, sejam elas quais forem, comparece!

- Não te preocupes, Lúcio Cina. Não perderei um tal fiasco por nada deste mundo - retorquiu Sertório, e logo se foi embora, a mão limpando ainda a face esquerda.

No entanto, no dia seguinte, Mário levantou o seu acampamento e conduziu as legiões para as planícies latinas. A morte de Pompeu Estrabão chamara a atenção para um facto conhecido: um número tão elevado de homens temporariamente concentrados em volta de uma cidade tão vasta conduzia normalmente ao aparecimento de epidemias terríveis. Mário decidiu que seria melhor levar os seus homens para o ar puro e a água imaculada do campo; para mais, poderiam facilmente pilhar os diversos celeiros e outros depósitos espalhados pelas planícies latinas, abastecendo-se assim dos cereais e outros alimentos de que precisavam. Arícia, Bovilas, Lanúvio, Ântio, Ficana e Laurento não ofereceram, aliás, a mínima resistência.

Ao saber da partida de Mário, Quinto Sertório interrogou-se sobre se a verdadeira razão para aquela retirada não seria o desejo de Mário se salvaguardar a si mesmo e aos seus homens face a uma eventual ameaça de Cina. Mário podia estar louco, mas não era nenhum imbecil, pensava Sertório.

Aproximava-se o fim de Novembro. Nos dois campos adversos (ou nos três, para se ser mais preciso), toda a gente sabia que o governo ”legítimo” de Cneu Octávio Rusão estava condenado. O exército do falecido Pompeu Estrabão recusara Metelo Pio como seu novo comandante, após o que fora oferecer os seus serviços a Caio Mário. E não a Lúcio Cina.

O total de mortos causados pela epidemia era já superior a dezoito mil, e muitas das vítimas eram homens de Pompeu Estrabão. E os celeiros de Roma encontravam-se agora completamente vazios. Sentindo que o fim estava próximo, Mário regressou ao flanco sul do Janículo, com os seus cinco mil escravos e ex-escravos. Significativamente, não levou consigo o resto do seu exército, nem os samnitas, nem os outros italianos, nem o que restava do exército de Pompeu Estrabão. Pretenderia assim garantir a sua própria segurança?, perguntou-se Quinto Sertório. Era muito provável. De facto, dava a impressão que Mário estava a guardar a maior parte dos seus homens para acções posteriores. Esses homens ficariam de reserva, à espera que ele os chamasse.

No terceiro dia de Dezembro, quatro homens atravessaram o Tibre com a intenção de firmarem um tratado: eram eles Metelo Pio, o Bacorinho (oficialmente, o chefe da representação), o censor Públio Crasso e os irmãos César. Do outro lado do rio, esperavam-nos Lúco Cina e Caio Mário.

- As minhas saudações, Lúcio Cina - disse Metelo Pio, revoltado por ver Mário presente, especialmente porque o velho general tinha a seu lado Fímbria, um homem que o Bacorinho considerava um miserável biltre, e um germano, de estatura gigantesca, com uma pomposa armadura dourada.

- Diriges-te a mim na minha qualidade de cônsul ou de cidadão, Quinto Cecílio? - perguntou Cina, friamente.

Ao ouvir Cina dizer isto, Mário abeirou-se dele e rosnou-lhe:

- Poltrão! Imbecil!

Metelo Pio engoliu em seco.

- Dirijo-me a ti na tua qualidade de cônsul, Lúcio Cina - retorquiu. Ao ouvir isto, Catulo César abeirou-se, furioso, do Bacorinho, e rosnou-lhe:

- Traidor!

- Aquele homem não é cônsul! É culpado de sacrilégio! - exclamou o censor Crasso.

- Ele não precisa de ser cônsul, porque é vencedor! - gritou Mário. Tapando os ouvidos com as mãos para não ouvir aquela acalorada discussão em que só não intervinham ele próprio e Lúcio Cina, Metelo Pio, furioso com o malogro das conversações, deu meia volta e foi-se embora. Os restantes membros do seu grupo de paz seguiram-no imediatamente.

Quando contou o que sucedera a Octávio, este não poupou o infortunado Bacorinho.

- Como te atreveste a admitir que ele é cônsul? Ele não é cônsul! Cina é nefas. - atirou-lhe Octávio.

- O homem é cônsul, Cneu Octávio. E continuará a sê-lo até ao fim deste mês - retorquiu friamente Metelo Pio.

- Mas que belo negociador que tu me saíste! Não compreendes que a pior coisa que podemos fazer é precisamente reconhecer Lúcio Cina como legítimo cônsul? - perguntou Octávio, fazendo um gesto de advertência com o indicador apontado, como se ele fosse um professor ameaçando um estudante.

Ao ouvir aquilo, Metelo Pio perdeu a paciência.

- Nesse caso vai tu e vê se consegues fazer melhor! - exclamou, com uma expressão severa. - E não me apontes com o dedo! Porque tu pouco melhor és que um arrivista! Eu sou um Cecílio Metelo, e nem Rómulo se atreveria a apontar-me o dedo! Quer te agrade, quer não te agrade, a verdade é que Lúcio Cina é cônsul. Se eu lá voltar e ele me fizer a mesma pergunta, a minha resposta será a mesma!

O seu mal-estar, a sua infelicidade, visíveis desde que se sentara na cadeira curul, tornavam-se agora intoleráveis; o flamen Dialis e cônsul substituto, Mérula, pôs um ar empertigado, e, com a dignidade que lhe era possível reunir naquele momento, decidiu-se a enfrentar o seu colega Octávio e o furibundo Metelo Pio.

- Cneu Octávio, é meu dever resignar ao cargo de cônsul suffectus

- disse ele calmamente. - Não é correcto que o sacerdote de Júpiter seja um magistrado curul. Está certo que eu participe na actividade do Senado. Mas não está certo que eu partilhe o poder supremo.

O resto do grupo ficou sem fala. Mérula abandonou então o baixo Fórum - local onde decorrera aquela reunião - e subiu a Via Sacra, na direcção do seu domus publicas.

Catulo César olhou para Metelo Pio.

- Quinto Cecílio, concordas em assumir o supremo comando militar?

- perguntou. - Se oficializássemos a tua nomeação, talvez os nossos homens, e a nossa cidade, ganhassem um novo alento.

Mas Metelo Pio abanou a cabeça.

- Não, Quinto Lutácio, não concordo. Os nossos homens e a nossa cidade, vítimas da doença e da fome, já não sentem qualquer afecto por essa causa. E além disso, e é com tristeza que o digo, já não sabem quem é que tem razão. Espero que nenhum de nós queira travar mais batalhas nas ruas de Roma - a de Lúcio Sila já nos chegou. Nós temos de alcançar a paz! Mas com Lúcio Cina. Nunca com Caio Mário.

Octávio fitou os rostos dos outros, ergueu os ombos, encolheu-os, suspirou derrotado.

- Muito bem, Quinto Lutácio. Muito bem. Vai ter com Lúcio Cina.

E Metelo Pio voltou a atravessar o rio, desta feita acompanhado apenas por Catulo César e pelo seu filho, Catulo. Era o quinto dia de Dezembro.

Foram recebidos com muito maior pompa do que da primeira vez. Cina montara um tribunal, onde se sentara na sua cadeira curul: os três negociadores tinham de olhar para cima se queriam falar com ele. No estrado (embora não estivesse sentado), encontrava-se também Caio Mário.

- Em primeiro lugar, Quinto Cecílio - disse Cina com voz sonora -, deixa-me dar-te as boas-vindas. Em segundo lugar, garanto-te que o estatuto de Caio Mário é unicamente de observador. Ele compreende que é um privatus e que não pode falar no decurso de negociações formais.

- Obrigado, Lúcio Cina - retorquiu Bacorinho com a mesma formalidade rígida. - Informo-te, aliás, que estou autorizado a conferenciar unicamente contigo, e não com Caio Mário. Quais são as tuas condições?

- Que eu possa entrar em Roma na qualidade de cônsul de Roma.

- De acordo. O flamen Dialis abandonou já o seu cargo de cônsul substituto.

- Não serão toleradas retaliações.

- Não haverá retaliações - disse Metelo Pio.

- Será concedido o estatuto tribal aos novos cidadãos da Itália e da Gália Italiana, os quais serão normalmente distribuídos pelas trinta e cinco tribos.

- Completamente de acordo.

- Será concedida a liberdade e a cidadania integral a todos os escravos que abandonaram os seus proprietários romanos para se alistarem nos meus exércitos - disse Cina.

O Bacorinho fitou-o com uma expressão carrancuda.

- Impossível! - atirou-lhe. - Impossível.

- É uma condição, Quinto Cecílio. Tens de dar o teu acordo a esta, tal como a todas as outras - manteve Cina.

- Nunca concordarei em dar a liberdade e a cidadania integral a escravos que abandonaram os seus proprietários legais!

Catulo César avançou.

- Posso falar contigo em particular, Quinto Cecílio? - propôs ele, delicadamente.

Catulo César e o filho demoraram ainda bastante tempo a tentar convencer o Bacorinho a aceitar aquela condição; e Metelo Pio só acabou por ceder porque Cina se mostrava inflexível. Mas por que razão?, perguntava-se Metelo Pio. Por sua causa ou por causa de Mário? É que, na realidade, havia poucos escravos nas forças de Cina, ao passo que o exército de Mário estava cheio deles.

- Muito bem. Concordo com essa idiotice acerca dos escravos disse o Bacorinho, indelicadamente. - Há, no entanto, uma condição que tenho de pôr.

- Ah, sim? - disse Cina.

- Não poderá haver nenhum banho de sangue - disse Metelo Pio com uma voz firme. - Não será retirada a cidadania a ninguém, ninguém será banido, exilado, julgado por traição, executado. Neste conflito, todos agimos de acordo com os nossos princípios e convicções. E nenhum homem pode ser castigado por obedecer aos seus princípios e convicções, por muito repugnantes que eles nos pareçam. Isto aplica-se tanto aos homens que te seguiram, Lúcio Cina, como àqueles que apoiaram Cneu Octávio.

Cina aquiesceu.

- Concordo inteiramente contigo, Quinto Cecílio. O máximo que posso garantir é que, pessoalmente, farei o possível para que não haja julgamentos por traição, nem banhos de sangue, nem confiscações de propriedades.

Metelo Pio virou ligeiramente a cabeça, a fim de olhar directamente para o silencioso Caio Mário.

- Queres com isso dizer, Lúcio Cina, que tu, o cônsul!, não consegues controlar a tua própria facção?

Cina vacilou um instante, mas depois respondeu com firmeza:

- Claro que consigo controlar a minha facção.

- Então jurarás?

- Não, Quinto Cecílio, não jurarei - disse Cina com grande dignidade, ainda que o rosto vermelho traísse o seu mal-estar. Levantou-se da cadeira, o que significava que a reunião tinha acabado, e acompanhou Metelo Pio até à ponte da ilha do Tibre. Por um momento, um momento precioso, Cina e Metelo Pio ficaram sós. - Quinto Cecílio!

- disse ele, com urgência. - Eu consigo controlar a minha facção! Mesmo assim, ficaria mais descansado se Cneu Octávio se mantivesse afastado do Fórum, longe, muito longe da vista de quem quer que seja! Só por precaução. Eu consigo controlar a minha facção! Mas preferia que Cneu Octávio não se mostrasse. Diz-lhe isto!

- Dir-lhe-ei - retorquiu Metelo Pio.

Mário correu para eles coxeando, ansioso por impedir que aquela conversa continuasse. Tinha um ar perfeitamente grotesco, pensou o Bacorinho. Havia algo de diferente nele, algo de horrivelmente simiesco. Já não tinha aquele ar espantosamente poderoso de outros tempos, já não era aquele homem que impressionava toda a gente, e que o impressionara a ele, Metelo Pio, quando servira na Numídia como cadete.

- Quando pensam entrar na cidade, tu e Caio Mário? - perguntou Catulo César a Cina, antes de se despedirem.

Antes que Cina pudesse responder, Mário rompeu o seu silêncio com um riso desdenhoso.

- Lúcio Cina pode entrar em Roma como cônsul legítimo em qualquer altura - disse Mário. - Quanto a mim, esperarei aqui com o meu exército até que sejam anuladas as condenações de que eu e os meus amigos fomos vítimas.

Mal Metelo Pio e a sua escolta avançaram para a ponte da ilha do Tibre, Cina perguntou rispidamente a Mário:

- Que queres dizer com essa história de ficares aqui com o exército até ser anulada a tua condenação?

O velho tinha um ar mais inumano que humano; fazia pensar em Lâmia ou Mormolice, um ser monstruoso, de uma inteligência maligna, vindo do Além para atormentar toda a gente. E sorria, e os seus olhos brilhavam sob a espessa e emaranhada cortina das sobrancelhas.

- Meu caro Lúcio Cina, o exército não te segue a ti! O exército segue Caio Mário! Se não fosse eu, todos teriam passado para o inimigo, e Octávio teria vencido! Pensa nisso! Se eu entrar na cidade antes da anulação da sentença de morte, quem me garante que tu e Octávio não chegarão a um acordo para esquecer as vossas divergências e aplicar essa sentença? Seria para mim uma situação extremamente embaraçosa! Eu, um privatus, com o meu barrete frígio na mão, aguardando que os cônsules e o Senado, uma instituição a que eu já não pertenço!, me absolvam de crimes que nunca cometi! Por isso pergunto-te: será essa uma situação digna para um homem como eu? - Num gesto paternalista, pôs-se a dar pancadinhas no ombro de Cina. - Não, Lúcio Cina, tu tens direito ao teu momento de glória! Entra em Roma sozinho. Eu ficarei onde estou com o meu exército. Meu, e não teu. Cina contorceu-se, furioso.

- Queres tu dizer que eras capaz de usar o exército, o meu exército, contra mim? Contra o legítimo cônsul?

- Anima-te, Lúcio Cina, porque não irei tão longe - disse Mário, rindo - Digamos antes que o exército está muitíssimo interessado em que seja feita justiça a Caio Mário.

- E que significa exactamente essa expressão, ”fazer justiça” a Caio Mário?

- Significa que nas Calendas de Janeiro eu serei o novo cônsul sénior. Tu serás o cônsul júnior, evidentemente.

- Mas eu não posso voltar a ser cônsul - exclamou Cina, horrorizado com o que acabava de ouvir.

- Claro que podes! Agora vai-te embora! Vá! - disse Mário, como se estivesse a falar com uma criança impertinente.

Cina foi ter com Sertório e Carbão, que tinham estado presentes nas negociações, e contou-lhes o que Mário lhe tinha dito.

- Não digas que não te avisei - retorquiu Sertório, severamente.

- Que podemos fazer? - lamentou-se Cina, desesperado. - Ele tem razão, o exército pertence-lhe!

- As minhas duas legiões, não! - replicou Sertório.

- Duas legiões é pouca coisa - comentou Carbão.

- Que podemos fazer? - repetiu Cina.

- Por ora, nada. Deixemos o velho gozar a sua fama, e o seu precioso sétimo consulado - disse Carbão. - Trata-se dele depois de Roma ser nossa.

Sertório não fez mais comentários; estava demasiado ocupado a tentar decidir como seria o seu comportamento futuro. De certo modo, todos os outros lhe pareciam agora mais mesquinhos, gananciosos, perversos e egoístas. Tinham sido contaminados por Caio Mário e tratavam de pegar a doença uns aos outros. Quanto a mim, pensou, não tenho a certeza se quero participar nesta sórdida e inqualificável luta pelo poder. Roma é soberana. Mas graças a Lúcio Cornélio Sila, os homens têm agora a ideia de que podem ser eles os soberanos, de que podem fazer de Roma o que muito bem entenderem.

Quando Metelo Pio contou aos seus aliados que Cina aconselhara Octávio a afastar-se das lides da governação, todos eles compreenderam o que os esperava. Esta foi uma das poucas reuniões a que Cévola Pontifex Maximus assistiu; todos tinham percebido já que Cévola pretendia retirar-se daquela contenda sem dar muito nas vistas. Provavelmente, pensou Metelo Pio, porque adivinhou que o único vencedor será Caio Mário, e porque a sua filha está noiva do jovem Mário.

Catulo César suspirou.

- Bom, sugiro que todos os homens mais jovens deixem a cidade antes que Lúcio Cina entre nela. Vamos precisar no futuro de todos os nossos boni mais jovens. Essas criaturas horríveis que dão pelo nome de Cina e de Mário não durarão para sempre. E um dia Lúcio Sila voltará. - Fez uma pausa, e acrescentou: - Creio que nós, os mais velhos, só ganharemos se ficarmos em Roma, se nos arriscarmos um pouco. No que me toca, não tenho o mínimo desejo de repetir a odisseia de Caio Mário. Nem mesmo que me garantissem que não ia parar aos pântanos do Líris.

O Bacorinho olhou para Mamerco.

- Que achas?

Mamerco reflectiu por um momento e depois respondeu.

- Acho que é absolutamente necessário que saias de Roma, Quinto Cecílio. Esta é a minha opinião sincera. Quanto a mim, ficarei em Roma, por ora. Não passo de um peixe insignificante neste grande mar que é Roma.

- Muito bem. Partirei - disse Metelo Pio, com determinação.

- E eu irei também - disse o cônsul sénior Octávio, em voz bem alta.

Todos se viraram para ele, surpreendidos.

- Irei para o monte Janículo. Montarei uma plataforma na fortaleza e aí, sentado na minha cadeira curul, aguardarei os acontecimentos disse Octávio. - Desse modo, o meu sangue não sujará nem as pedras nem os ares de Roma, caso eles estejam decididos a matar-me.

Ninguém se deu ao trabalho de contrariá-lo. O massacre do Dia de Octávio tornava aquele desfecho inevitável.

As primeiras horas do dia seguinte, Lúcio Cornélio Cina, vestido com a sua toga praetexta e precedido pelos doze lictores, entrou na cidade de Roma a pé, atravessando as pontes que ligavam a ilha do Tibre às duas margens.

No entanto, Caio Márcio Censorino, que sabia onde Cneu Octávio Rusão se encontrava graças a um amigo que tinha a confiança daquele cônsul e dos seus aliados, juntou alguns cavaleiros númidas e seguiu com eles para a fortaleza do Janículo. Ninguém autorizara esta acção - e muito menos Cina. Mas Cina era culpado por Censorino ter tomado tal iniciativa; de facto, os oficiais de Cina que nutriam sentimentos mais vingativos tinham concluído que, logo que entrasse em Roma, Cina cederia a homens como Catulo César e Cévola Pontifex Maximus. Que toda a campanha para devolver o poder a Cina redundaria num mero exercício sem efusão de sangue. Mas Octávio, pelo menos, não escaparia, jurava Censorino.

À frente dos seus quinhentos cavaleiros, Censorino verificou com surpresa que podia entrar na fortaleza sem a mínima oposição. De facto, Octávio mandara os seus homens dispersar. E lá estava ele, na tribuna do Fórum da fortaleza, abanando a cabeça, em resposta às súplicas do chefe dos lictores para que se fosse embora. Ao ouvir o ruído de tantos cascos, Octávio sentou-se com toda a dignidade na sua cadeira curul. Quanto aos lictores, estavam pálidos de medo.

Caio Márcio Censorino ignorou os lictores. Empunhando a espada, desceu do cavalo, subiu os degraus da plataforma, encaminhou-se na direcção de Octávio e, com a mão esquerda, agarrou no cabelo deste. Puxou-lhe o cabelo com toda a força, e o cônsul sénior caiu de joelhos. Perante o olhar impotente dos aterrorizados lictores, Censorino ergueu a espada com ambas as mãos e desferiu um golpe certeiro e portentoso no pescoço nu de Octávio.

Dois dos cavaleiros pegaram na cabeça ensanguentada (que exibia uma expressão curiosamente pacífica) e espetaram-na numa lança. Censorino pegou então na lança e ordenou aos seus homens que regressassem ao acampamento, na planície do Vaticano; Cina ordenara que nenhum soldado podia entrar no pomerium e Censorino não queria desobedecer-lhe relativamente a esse ponto concreto. Atirando a espada, o capacete e a armadura para o seu criado, Censorino subiu para o cavalo vestido apenas com a roupa interior de cabedal e dirigiu-se imediatamente para o Fórum Romano. Quando lá chegou, foi ter imediatamente com Cina e ofereceu-lhe a cabeça de Octávio.

A primeira reacção do cônsul foi de horror, de repugnância; ergueu as mãos, num gesto de recusa daquela assustadora oferta. Depois, porém, pensou que Mário estava à espera do outro lado do rio e que havia inúmeros olhos seguindo aquela cena. Respirou fundo, cerrou os olhos de dor, e enfrentou as nefastas consequências da sua marcha sobre Roma.

- Põe a lança com a cabeça nos rostra - disse ele a Censorino. Virando-se para a multidão silenciosa, gritou: - Este é o único acto de violência com que posso pactuar! Jurei que Cneu Octávio Rusão não viveria para me ver retomar o cargo de cônsul. Foi ele, juntamente com Lúcio Sila!, quem fez uma acção destas pela primeira vez! Cneu Octávio Rusão e Lúcio Cornélio Sila puseram a cabeça do meu amigo Públio Sulpício no local onde está agora a cabeça do primeiro! O que é perfeitamente justo! E o mesmo acontecerá a Lúcio Sila quando voltar a Roma! Olhem bem para Cneu Octávio, cidadãos de Roma! Olhem bem para a cabeça do homem que provocou tanta dor, tanta fome, tanto sofrimento, porque foi ele quem massacrou mais de seis mil homens no Campo de Marte! Roma está vingada! Não haverá mais derramamento de sangue! E tomem bem atenção: o sangue de Cneu Octávio não foi derramado dentro do pomerium!

O que não correspondia inteiramente à verdade. Mas servia, naquelas circunstâncias.

Em sete dias, a estrutura legal montada por Lúcio Cornélio Sila ruiu por completo. A Assembleia das Centúrias, agora uma pálida sombra de si mesma, fez o mesmo que fizera com Sila: aprovou todas as medidas mais depressa do que a lex Caecilia Didia prima permitia. Restaurados os seus antigos poderes, a Assembleia da Plebe reuniu para eleger os novos tribunos. Depois, foram aprovadas inúmeras leis: os cidadãos da Itália e da Gália Italiana (mas não os libertos de Roma: Cina não quisera correr esse risco) foram distribuídos pelas trinta e cinco tribos sem quaisquer obstáculos ou condições especiais; Caio Mário e os outros fugitivos retomaram as posições e os cargos a que tinham direito; Caio Mário foi oficialmente investido de autoridade proconsular; as duas novas tribos de Pisão Frugi foram abolidas; todos os homens exilados por ordem da Comissão Vária podiam voltar a Roma. A última lei, mas talvez a mais importante de todas, previa que o comando da guerra contra o rei Mitridates do Ponto fosse formalmente entregue a Caio Mário.

A Assembeia da Plebe procedeu depois às eleições dos edis plebeus e, por fim, a Assembleia de Todo o Povo foi convocada para eleger edis curuis, questores, tribunos dos soldados. Embora não tivessem ainda trinta anos, Caio Flávio Fímbria, Públio Ânio e Caio Márcio Censorino foram eleitos questores e entraram imediatamente para o Senado. Nenhum censor se opôs: não teria sido sensato.

Cina ordenou então às Centúrias que reunissem, a fim de elegerem os magistrados curuis; convocou tal reunião para o Aventino, fora do pomerium, pois Sertório continuava no Campo de Marte com as suas duas legiões. Uma triste assembleia, constituída por apenas seis mil representantes das Classes, a maior parte dos quais senadores e cavaleiros idosos, aceitou como cônsules os dois únicos candidatos: Lúcio Cornélio Cina e, in absentia, Caio Mário. Formalmente estava tudo correcto, a eleição era legal. Caio Mário era agora cônsul de Roma pela sétima vez, e pela quarta vez in absentia. A profecia cumpria-se.

No entanto, Cina teve direito à sua vingançazinha: era ele o cônsul sénior e Caio Mário o cônsul júnior. Vieram depois as eleições dos pretores. Surgiram apenas seis candidatos. Mas de novo tudo se passou correctamente de um ponto de vista formal. A votação podia ser considerada legal. Embora os candidatos tivessem sido escassos, a verdade é que Roma dispunha já de todos os seus magistrados. Cina podia agora concentrar-se no combate aos danos causados pelo conflito que dilacerara Roma - danos que, depois da longa guerra contra os Italianos e da perda do Oriente, era difícil combater.

Como um animal encurralado, a cidade permaneceu quieta e vigilante durante os dias que faltavam para o ano acabar, enquanto os exércitos acampados à sua volta regressavam aos seus locais de origem. Os contingentes samnitas regressaram a Esérnia e a Nola. O último fechou-se de novo dentro da cidade. É que Caio Mário autorizara Ápio Cláudio Pulcro a montar de novo o cerco a Nola. Sertório convenceu uma das suas legiões a integrar-se no seu antigo exército, apesar de os soldados detestarem Pulcro. Muitos dos veteranos que se tinham oferecido para ajudar Caio Mário regressaram também às suas terras, incluindo as duas coortes que tinham vindo de Cercina.

Reduzido a uma legião, Sertório permaneceu no Campo de Marte como um gato fingindo dormir profundamente. Manteve-se distante de Caio Mário, que decidira ficar com os seus cinco mil escravos e ex-escravos. Qual é a tua ideia, qual é o teu objectivo, velho detestável?, perguntava Sertório a si mesmo. Mandaste embora todos os homens decentes e ficaste apenas com aqueles que são capazes de cometer todas as atrocidades! Que estarás tu a congeminar, velho horrível?

Caio Mário entrou finalmente em Roma no primeiro dia do ano, já depois de ter sido eleito cônsul, montando um cavalo muito branco, vestido com a toga debruada a púrpura, e com uma coroa de folhas de carvalho na cabeça. A seu lado vinha Burgundo, o gigantesco escravo eimbro, com uma belíssima armadura dourada, e montando um enorme cavalo bastarno. E, atrás de Mário, vinham cinco mil escravos e ex-escravos, todos vestidos de ouro, e todos com espadas - não eram propriamente soldados, mas também não eram civis.

Sete vezes cônsul! A profecia cumpria-se. Só estas palavras ecoavam no cérebro de Caio Mário enquanto avançava por entre uma multidão que o saudava vibrantemente, que chorava; que importância tinha que ele fosse o cônsul júnior, se o povo recebia o seu herói de forma tão apaixonada, tão cega? Sim, que importância tinha isso? Que importância tinha que ele viesse a cavalo, em vez de vir a pé? Que importância tinha que ele viesse do outro lado do Tibre, em vez de vir de sua casa? Que importância tinha que ele não tivesse estado no templo de Júpiter Optimus Maximus, na noite anterior, assistindo à cerimónia dos auspícios? Importância nenhuma! Porque ele era Caio Mário! O que o povo exigia aos outros, não o exigia a ele, Caio Mário! Porque Caio Mário era um homem superior!

Caminhando inexoravelmente para o seu destino, Mário chegou ao Fórum Romano, onde o esperava Lúcio Cornélio Cina, à frente de uma procissão que incluía senadores e muito poucos cavaleiros. Burgundo fez descer Mário do cavalo branco sem grande esforço, ajustou as dobras da toga do seu senhor e, quando Mário se postou defronte de Cina, colocou-se ao lado dele.

- Ora, Lúcio Cina, vamos acabar com isto! - atirou-lhe Mário bem alto para que todos pudessem ouvir. Começando a andar, acrescentou: - Já fiz isto seis vezes, e para ti também não é novidade! Por isso, não transformemos a nossa tomada de posse numa parada triunfal!

- Um momento! - gritou o ex-pretor Quinto Ancário, saindo do meio dos homens de togas debruadas a púrpura que acompanhavam Cina, e colocando-se em frente de Caio Mário. - Vocês não podem ir assim! Caio Mário, tu és cônsul júnior! Portanto, vais atrás de Lúcio Cina, e não à frente dele. Por outro lado, este brutamontes bárbaro não deverá participar no nosso solene desfile ao templo do Grande Deus. Finalmente, é imperioso que ordenes à tua guarda pessoal que deixe a cidade ou largue as espadas que traz.

Por um momento, os presentes tiveram a sensação de que Mário ia bater em Ancário, ou ordenar talvez ao gigante germânico que afastasse o ex-pretor do seu caminho; mas depois o velho encolheu os ombros e voltou a colocar-se atrás de Cina. Mas o escravo Burgundo continuava com ele e a sua guarda pessoal não recebeu qualquer ordem para se ir embora.

- Quanto à primeira questão, Quinto Ancário, tens a lei pelo teu lado - retorquiu Mário num tom ameaçador. - Mas em relação à segunda e à terceira questões, devo dizer-te que não cederei. Nos últimos anos, a minha vida já correu perigos que cheguem. Além disso, estou doente. Por isso, o meu escravo terá de permanecer ao meu lado. Quanto à minha guarda pessoal, permanecerá no Fórum e esperará que eu regresse a fim de me escoltar depois de concluídas as cerimónias.

Quinto Ancário fitou-o com uma expressão de revolta, mas acabou por aquiescer e regressar ao seu lugar; pretor no mesmo ano em que Sila fora cônsul, Ancário nutria por Mário um ódio antigo, um ódio de que se orgulhava. Por nada deste mundo poderia permitir que Mário fosse à frente de Cina, tanto mais que tudo indicava que Cina acabaria por admitir aquele terrível insulto. E só regressara ao seu lugar por causa do olhar suplicante de Cina. Que raiva! Por que carga de água teria de ser ele a travar as batalhas de um homem fraco? Ah, rogava Quinto Ancário, quem me dera que aquela guerra acabasse já e que Lúcio Sila voltasse depressa!

Os cerca de cem cavaleiros que comandavam o desfile tinham seguido em frente quando Mário dissera a Cina para andar; por isso, só quando chegaram ao templo se aperceberam de que os dois cônsules e os senadores continuavam parados, aparentemente devido a uma discussão. Por isso, o início daquela peregrinação ao templo do Grande Deus, no Capitólio, além de desconcertado, revelou-se ainda mal agourado. Ninguém, incluindo Cina, tinha tido a coragem de chamar a atenção para o facto de Mário não ter ficado de guarda durante a noite, como todos os novos cônsules deveriam fazer; e Cina não dissera a ninguém que, durante a sua vigília, vira uma forma densa e escura, uma criatura dotada de teia e garras, voando no céu pálido da madrugada.

Nunca uma cerimónia de tomada de posse dos cônsules foi tão rápida como aquela. Nem mesmo a célebre cerimónia a que Mário quisera comparecer vestido com o traje de general triunfante. Passadas menos de quatro horas, tudo estava acabado - sacrifícios, a reunião do Senado dentro do templo do Grande Deus, o banquete que se seguiu. Nunca os participantes em tais cerimónias se tinham mostrado tão ansiosos em regressar a suas casas. Quando o desfile desceu o Capitólio, todos puderam ver a cabeça de Cneu Octávio Rusão apodrecendo na sua lança, um rosto esburacado pelos pássaros, as órbitas vazias viradas para o templo de Júpiter Optimus Maximus. Um terrível agouro! Terrível!

À saída do caminho que separava o templo de Saturno da encosta do Capitólio, Caio Mário viu Quinto Ancário: o ex-pretor seguia mesmo à sua frente. Apressou o passo e, num instante, abeirou-se de Ancário. Ao sentir uma mão apertando-lhe o braço, olhou à sua volta e o espanto que sentiu de início transformou-se em repulsa quando se apercebeu de quem se tratava.

- Burgundo, a espada - disse Mário, calmamente.

A espada estava na sua mão direita ainda não tinha acabado de falar; a mão ergueu-se e, rápida, desceu. Quinto Ancário caiu morto, o rosto fendido pelo golpe, desde o alto da testa ao queixo.

Ninguém tentou protestar. Dissipado o choque, senadores e cavaleiros dispersaram a toda a pressa. A legião de escravos e ex-escravos desatou a persegui-los mal o velho deu o sinal por que esperavam.

- Façam o que quiserem com estes cunni, rapazes! - gritou Mário, radiante de alegria. - Mas façam o possível por distinguir os meus amigos dos meus inimigos!

Horrorizado, sem qualquer possibilidade de intervir, Cina assistia à desintegração do seu mundo. Os seus soldados ou estavam ainda acampados na planície do Vaticano, ou encontravam-se de regresso a casa; os ”Bardeus” de Mário - era assim que ele chamava aos seus soldados-escravos porque muitos deles pertenciam a esse povo ilírio

- eram quem dominava agora a cidade de Roma. E tratavam-na muito pior do que um bêbedo enlouquecido trata a mulher que odeia. Homens eram abatidos por razão nenhuma, as casas eram invadidas e roubadas, mulheres eram violadas, crianças assassinadas. Muitos desses actos não faziam sentido, não tinham qualquer justificação. Mas havia certos casos - homens que Mário desejava ver mortos, ou que talvez fantasiasse apenas que desejava ver mortos - em que os Bardeus tinham dificuldade em distinguir os mutáveis humores de Mário.

Durante o resto do dia e até altas horas da noite, Roma gritou e chorou de dor, e muitos foram os que morreram ou que desejaram a morte. Nalguns locais, as chamas elevaram-se para os céus e os gritos transformavam-se em guinchos estridentes, desvairados.

Públio Ânio, que odiava António Orador mais do que todos os outros adversários, conduziu um contingente de cavalaria até Túsculo, onde os Antónios tinham uma propriedade, e, mostrando um enorme prazer, perseguiu e matou António Orador. A cabeça foi levada para Roma, no meio de grande júbilo, e colocada nos rostra, espetada numa seta, como já se estava a tornar habitual.

Quanto a Fímbria, levou o seu esquadrão de cavaleiros para o Palatino: procurava, antes de mais, o censor Públio Licínio Crasso e o seu filho Lúcio, Foi este último que Fímbria viu, correndo para casa, subindo a toda a pressa a estreita rua onde morava; esporeando o cavalo, Fímbria aproximou-se do jovem e, debruçando-se da sela, espetou a espada nas costas dele. O pai, que assistira à morte do filho e não podia impedir que o mesmo lhe acontecesse a ele, tirou um punhal da toga e matou-se. Felizmente, Fímbria não sabia em que casa moravam os Licínios Crassos, pelo que o terceiro filho, Marco, que ainda não tinha idade para ser senador, acabou por ser poupado.

Incumbindo alguns homens da tarefa de decapitar Públio e Lúcio Crasso, Fímbria foi então à procura dos irmãos César. Dois deles, encontrou-os em casa: Lúcio Júlio, e o irmão mais novo, César Estrabão. As cabeças, como seria de esperar, foram levadas para os rostra’, mas Fímbria resolveu arrastar o tronco e os membros de César Estrabão até ao túmulo de Quinto Vário; aí, ”matou-o” de novo: tal acto seria uma oferta em intenção do homem que César Estrabão tinha perseguido e que tão lenta e dolorosamente morrera depois de ter ingerido veneno. Depois, Fímbria tratou de procurar o irmão mais velho, Catulo César, mas, a meio da sua perseguição, encontrou um mensageiro de Mário: este ordenava-lhe que poupasse Catulo César, a fim de que este fosse julgado.

Na manhã seguinte, os rostra estavam cheios de cabeças espetadas em lanças - Ancário, António Orador, Públio e Lúcio Crasso, Lúcio César, César Estrabão, o velho Cévola Augure, Caio Atílio Serrano, Públio Cornélio Lêntulo, Caio Nemetório, Caio Bébio e Octávio. Havia um sem-número de cadáveres espalhados pelas ruas, cabeças de gente menos importante amontoavam-se na esquina entre o pequeno templo de Vénus Cloacina e a Basílica Emília, e Roma tresandava a sangue coagulado. Indiferente a tudo, excepto à execução da sua vingança, Mário dirigiu-se ao anfiteatro dos Comitia, a fim de ouvir o seu tribuno da plebe, Públio Popílio Lenate, convocar a Assembleia da Plebe. Como seria de esperar, ninguém compareceu à reunião. Esta, no entanto, acabou por realizar-se, depois de os Bardeus terem escolhido as tribos rurais em que queriam integrar-se: essa era uma das prerrogativas da sua recente condição de cidadãos. Quinto Lutácio, Catulo César e Lúcio Cornélio Mérula flamen Dialis foram imediatamente indiciados por traição.

- Mas eu não esperarei pelo veredicto - disse Catulo César, os olhos vermelhos de tanto chorar a morte dos irmãos e de muitos dos seus amigos.

Catulo César falava com Mamerco, a quem chamara urgentemente a sua casa.

- Leva a mulher e a filha de Lúcio Cornélio Sila e foge imediatamente, Mamerco! Por favor, faz o que te peço! A seguir, eles indiciarão Lúcio Sila, e todos os seus familiares, mesmo os mais remotos, morrerão! Dalmática não escapará, Cornélia Sila não escapará, Mamerco!

- Tinha pensado ficar - disse Mamerco, exausto. - Roma vai precisar dos homens que não estiveram envolvidos neste horror, Quinto Lutácio.

- Sim, Roma vai precisar desses homens. Mas Roma não os encontrará entre aqueles que ficam, Mamerco! Quanto a mim, não tenciono viver muito mais tempo. Promete-me que irás com Dalmática, Cornélia Sila e as crianças para a Grécia, onde estarão em segurança. Só depois de ouvir da tua boca tal promessa, poderei fazer aquilo que tenho de fazer.

De semblante triste, Mamerco acedeu às súplicas de Catulo César. E cumpriu o que prometera. Durante esse dia, fez tudo o que lhe foi possível para salvaguardar os seus bens e também os bens de Sila, Escauro, Druso, dos Servílios Cepiões, de Dalmática e Cornélia Sila. Ao cair da noite, ele, as mulheres e as crianças atravessavam a Porta Sanqualis, a porta menos concorrida de Roma. Seguiriam pela Via Salária: parecia uma opção mais segura do que ir para sul, na direcção de Brundísio.

Quanto a Catulo César, enviou breves mensagens a Mérula, o flamen Dialis, e a Cévola Pontifex Maximus. Depois, pediu aos escravos que acendessem todos os braseiros que havia em casa e que os pusessem na sua maior sala de estar, caiada há tão pouco tempo que as paredes libertavam ainda o acre odor da cal fresca. Depois de ter vedado com trapos todas as aberturas da sala, Catulo César sentou-se numa confortável cadeira e desdobrou um rolo de pergaminho onde estavam escritos os últimos poemas da Ilíada, a sua obra favorita. Quando os homens de Mário arrombaram a porta, deram com ele sentado na cadeira, com um ar muito natural, o rolo de pergaminho descansado no seu colo; a sala estava cheia de fumos letais e o cadáver de Catulo César encontrava-se já frio.

Lúcio Cornélio Mérula não chegou a ler a mensagem de Catulo César, pois matou-se antes de lha trazerem. Depois de ter colocado reverentemente o seu apex e a sua laena debaixo da estátua do Grande Deus, Mérula foi para casa, mandou que lhe preparassem um banho quente, meteu-se na banheira e cortou os pulsos com uma faca de osso.

Cévola Pontifex Maximus, porém, pôde ler a mensagem de Catulo César.

Quinto Múcio: sei que optaste por te juntar a Lúcio Cina e Caio Mário. Posso até perceber porquê. A tua filha está prometida ao jovem Mário e esse casamento significa uma fortuna que não pode ser desperdiçada. Mas enganas-te, Quinto Múcio. Caio Mário está louco, e os homens que o seguem são pouco melhores que bárbaros. Não me estou a referir aos escravos. É a homens como Fímbria, Ânio e Censorino que me refiro. Cina é, sob muitos pontos de vista, um indivíduo bom, mas é-lhe de todo impossível controlar Caio Mário. E tu também não conseguirás controlá-lo.

Quando receberes esta mensagem, já eu estarei morto. Parece-me infinitamente preferível morrer a ter de viver o resto da vida no exílio

- ou, muito simplesmente, como uma das muitas vítimas de Caio Mário. Meus pobres irmãos! Agrada-me ser eu a escolher a hora, o local e o processo da minha morte. Se esperasse até amanhã, não teria essa possibilidade.

Terminei as minhas memórias e admito, com toda a franqueza, que lamento não poder estar presente quando elas forem publicadas: é que gostaria muito de ouvir os comentários... No entanto, a verdade é que as minhas memórias viverão, sobreviverão à minha morte. Para que nada lhes acontecesse (não são nada simpáticas para Caio Mário!), pedi a Mamerco que as levasse para a Grécia e as deixasse ao cuidado de Lúcio Cornélio Sila. Quando a atmosfera melhorar em Roma, Mamerco voltará e tratará de publicá-las. E mandará um exemplar para Públio Rutílio Rufo, em Esmirna: retribuir-lhe-ei assim todas as coisas venenosas que escreveu sobre mim.

Cuida de ti, Quinto Múcio. Seria muitíssimo interessante ver como conseguirás conciliar os teus princípios com as necessidades. Eu não o poderei fazer. Mas não faz mal. Haverá quem veja: os meus filhos fizeram casamentos seguros.

De lágrimas nos olhos, Cévola reduziu a pequena folha a uma bola e atirou-a para um braseiro. Estava frio e, na sua idade, o frio não era fácil de suportar. Imagine-se só que tinham morto o seu velho tio, o Augure! Uma criatura absolutamente inofensiva! Todos diriam, e rediriam, e repetiriam, que tinha sido um engano, um terrível engano. Ora! Nada do que sucedera em Roma desde o primeiro dia do ano era um engano. Fungando, e aquecendo as mãos, Cévola pôs-se a olhar para o carvão que ardia no braseiro de bronze, desconhecendo que as últimas sensações de vida de Catulo César eram idênticas às que ele tinha naquele momento.

As cabeças de Catulo César e Mérulaflamen Dialis foram juntar-se à colecção exibida nos rastro antes do alvorecer do terceiro dia do sétimo consulado de Caio Mário; o próprio Mário passou longos momentos a contemplar a cabeça de Catulo César - ainda bela e altiva -, antes de autorizar Popílio Lenate a convocar outra Assembleia da Plebe.

Esta assembleia tratou apenas do caso de Sila, que foi condenado e declarado inimigo público; todas as suas propriedades foram confiscadas, mas não foi o Grande Deus de Roma quem beneficiou com isso. Mário deixou que os seus Bardeus saqueassem a magnífica residência de Sila e, depois, permitiu que eles a incendiassem. Os bens de António Orador tiveram um destino idêntico. No entanto, nem Lúcio Sila nem António Orador tinham deixado a mínima indicação quanto ao local onde guardavam o seu dinheiro (e nos bancos de Roma, ao que parece, não tinham depositado um sestércio que fosse). Por isso, só a legião de escravos acabou por beneficiar com os saques: Roma nunca chegou a ver as fortunas de Orador e de Sila. Popílio Lenate ficou tão furioso que mandou um grupo de escravos públicos esquadrinhar nas cinzas da casa de Sila, à procura do tesouro escondido. Os armários contendo as máscaras de Sila e dos seus antepassados não se encontravam na residência quando os Bardeus a saquearam; não estava lá também a valiosa mesa de madeira de limoeiro. Mamerco era muito eficiente. Tal como o novo mordomo de Sila, Crisógono. Os dois, e um pequeno exército de escravos, que recebera rigorosas instruções para evitar um ar furtivo ou culpado, tiraram tudo o que havia de melhor em meia dúzia das mais belas casas de Roma em menos de um dia, e esconderam os mais valiosos desses objectos em locais que ninguém pensaria inspeccionar.

Durante os primeiros dias do seu sétimo consulado, Mário não foi a casa, nem viu Júlia; quanto ao filho, mandara-o para fora da cidade antes do Ano Novo, com a tarefa de desmobilizar os homens de que já não precisava. De início, Mário parecia temer que Júlia o procurasse; escondia-se atrás dos Bardeus, a quem dera ordens rigorosas para que a escoltassem a casa, caso ela aparecesse no Fórum. Porém, depois de terem passado três dias sem que Júlia desse sinal de si, Mário sentiu-se mais tranquilo. A única prova da sua perturbação mental eram as longas cartas que escrevia a todo o momento ao filho, ordenando-lhe que ficasse onde estava e não regressasse tão cedo a Roma.

- Ele está completamente louco, mas, ao mesmo tempo, está completamente são, porque ele sabe que não conseguirá enfrentar Júlia depois deste banho de sangue - disse Cina ao seu amigo Caio Júlio César, acabado de regressar a Roma, vindo de Arimino, onde estivera a ajudar Mário Gratidiano, que fora para a Gália Italiana com a missão de defender Servílio Vátia.

- Onde é que ele vive agora? - perguntou o cunhado de Mário, de rosto lívido, mantendo uma voz firme graças a um poderoso autocontrole.

- Numa tenda, imagina só! Aquela, ali, estás a ver? Junto ao lago Cúrcio, que é onde ele toma os seus banhos. Dá impressão que nunca dorme. Quando não se embebeda com os piores dos seus escravos e com aquele monstro que dá pelo nome de Fímbria, caminha, passeia de um lado para o outro, anda, anda, anda, metendo o nariz em tudo por dá cá aquela palha, tal e qual como aquelas avozinhas que não resistem em enfiar a bengala em tudo o que vêem. Não respeita rigorosamente nada! - Cina estremeceu. - Não consigo controlá-lo! Não faço ideia do que se passa naquela cabeça. Não faço ideia do que ele tenciona fazer, seja agora, seja mais tarde. Duvido até que ele tenha noção de si mesmo.

César tinha começado a ouvir os boatos sobre as loucuras que se passavam em Roma mal chegara a Veios. No entanto, as histórias que ouvira eram tão estranhas e confusas que decidiu não lhes dar crédito. O que não o impediu, contudo, de alterar o seu percurso. Em vez de passar pelo Campus Martius e cumprimentar Sertório, seu primo por casamento, César, após ter atravessado a Ponte Múlvia, tomou um atalho e seguiu na direcção da Porta Colina; dispunha de informações suficientes sobre os acontecimentos em Roma para saber que o exército de Pompeu Estrabão já não estava acampado junto à Porta Colina, e que Pompeu Estrabão tinha morrido. Em Veios, ficara a saber que Mário e Cina eram cônsules, uma razão mais para não ligar aos boatos sobre inacreditáveis violências cometidas na cidade. Porém, quando chegou à Porta Colina, encontrou-a ocupada por uma centúria de soldados.

- Caio Júlio César? - perguntou o centurião, que conhecia bem os lugares-tenentes de Caio Mário.

- Sim - respondeu César, cada vez mais ansioso.

- O cônsul Lúcio Cina pede que te dirijas imediatamente à suas instalações no templo de Castor.

César pôs uma expressão intrigada.

- Farei isso com todo o gosto, centurião, mas preferia passar por minha casa primeiro.

- A mensagem diz que vás imediatamente, Lúcio Júlio - afirmou o centurião, num tom que era um misto de cortesia e de ordem.

Sufocando a sua ansiedade, César encaminhou-se de imediato para o Fórum, através da Vicus Longus.

O fumo que desfigurara o belíssimo azul de um céu completamente limpo era agora um nevoeiro, e no ar flutuavam cinzas; cada vez mais horrorizado, César começou a ver os cadáveres - de homens, de mulheres, de crianças - espalhados pelas bermas daquela larga rua. Quando chegou à Fauces Suburae o seu coração batia apressado, incontrolável, e todo o seu corpo não desejava outra coisa senão voltar para trás, correr disparado para casa, para se certificar de que a sua família nada sofrera. Mas dizia-lhe o instinto que a sua família só teria a beneficiar se ele cumprisse as ordens de Cina. Era evidente que tinha havido uma guerra nas ruas de Roma. Ao longe, para os lados das ínsulas do Esquilino, ouviam-se ainda berros e gemidos. No Argileto não se via vivalma; preferiu não descer por esse bairro, metendo antes pela Vicus Sandalarius, que conduzia ao centro do Fórum; aí, avançando rente às paredes dos edifícios, César tomou o caminho do templo de Castor e Pólux sem passar pelo baixo Fórum.

Encontrou Cina ao fundo da escadaria do templo e por ele soube o que sucedera.

- Que queres de mim, Lúcio Cina? - perguntou, depois de ter visto a enorme tenda montada junto ao lago Cúrcio.

- Não quero nada de ti, Caio Júlio - disse Cina.

- Então deixa-me ir para casa! Há incêndios por todo o lado! Preciso de saber se a minha família está bem!

- Não fui eu quem te mandou chamar, Caio Júlio: foi Caio Mário! Eu limitei-me a dizer aos guardas que te mandassem vir ter comigo primeiro, porque sabia que tu desconhecias por completo o que se passava.

- E que quer Caio Mário de mim? - perguntou César, tremendo.

- Vamos perguntar-lhe - disse Cina, começando a andar.

Os cadáveres, agora, não tinham cabeça; quase desmaiando, César olhou para os rostra e viu as cabeças espetadas nas lanças.

- Ah, os meus amigos! - gritou, as lágrimas inundando-lhe os olhos. - Os meus primos! Os meus colegas!

- Mantêm-te calmo, Lúcio Júlio - disse Cina, num tom frio. - Se dás valor à tua vida, não chores, não desmaies. Podes ser cunhado dele, mas desde o Ano Novo que acredito que Caio Mário era capaz de ordenar a execução da própria esposa ou mesmo do filho.

E lá estava ele, Caio Mário, a meio caminho entre a tenda e os rostra, falando com o seu gigante germânico, Burgundo. E com o filho de César, então com treze anos.

- Caio Júlio, que bom ver-te! - exclamou Mário com uma voz retumbante, abraçando César e beijando-o com exagerada afeição; o rapaz, como Cina não deixou de reparar, estremeceu ao ver aquela cena.

- Caio Mário - disse César, num tom lúgubre.

- Sempre eficiente, Caio Júlio! A tua carta dizia que chegarias hoje, e chegaste mesmo hoje! De novo em Roma! - disse Mário, acenando para Burgundo, que, num instante, desapareceu.

Mas os olhos de César não largavam o filho, que nem parecia dar por toda aquela sangrenta carnificina que o rodeava. Tinha uma cor normal, uma expressão tranquila, as pálpebras baixadas.

- A tua mãe sabe que estás aqui? - perguntou-lhe abruptamente César, procurando por Lúcio Decúmio e encontrando-o escondido a um canto da tenda.

- Sim, pai, a mãe sabe que eu estou aqui - respondeu o jovem César, com uma voz grave.

- O teu rapaz está mesmo crescido, não está? - observou Mário.

- Sim - disse César, tentando dar uma aparência de serenidade.

- Sim, de facto está crescido.

- Está a ficar com os tomates pesados, não é?

César corou. O filho, no entanto, não mostrou o mínimo embaraço: limitou-se a olhar de soslaio para Mário, como que deplorando a sua grosseria. Não havia nele vestígio de medo, reparou César, orgulhoso apesar do medo que ele próprio sentia.

- Bom, tenho algumas coisas para discutir com vocês dois - disse Mário afavelmente, referindo-se a César e a Cina. - Jovem César, espera com Burgundo e Lúcio Decúmio enquanto falo com o teu tatá.

- Aguardou que o rapaz se afastasse o suficiente para não ouvir a conversa e virou-se depois para Cina e César com uma expressão radiante. - Suponho que estão intrigados e impacientes por saber que raio de assunto quererei eu discutir com os dois?

- Sim, de facto... - disse César.

- Ora bem - começou Mário. - Eu creio que conheço o jovem César melhor do que tu, Caio Júlio. Por certo que nestes últimos anos tenho estado com ele mais tempo do que tu. É um rapaz notável - disse Mário, num tom amável, uma expressão maliciosa nos olhos. - Sim, de facto é um rapaz verdadeiramente extraordinário! Brilhante! Mais inteligente do que todos os homens que já conheci. E escreve poesia e peças, ha? Mas é igualmente brilhante em Matemática. Absolutamente brilhante. E possui um carácter fortíssimo. Fica furioso quando é provocado. E não tem medo nenhum de brigas, nem mesmo de as provocar!

A expressão maliciosa dos olhos tornava-se mais evidente agora e o canto direito da boca subia um pouco.

- Ora bem - prosseguiu Mário, que agora repetia a todo o instante essa expressão. - Depois de me ter tornado cônsul pela sétima vez, realizando assim a profecia que a velha fez a meu respeito, dei comigo a pensar e, a certa altura, disse para mim mesmo: eu gosto muito deste rapaz! Gosto dele o bastante para querer que leve uma vida mais tranquila e equilibrada do que a que eu levei. Ele é um estudante notável, não sei se sabem. De maneira que perguntei a mim mesmo: porque não hei-de garantir-lhe a posição que lhe vai permitir precisamente desenvolver ao máximo essas capacidades? Porque hei-de deixar que este meu querido amigo conheça as provações, as provações da guerra... do Fórum... da política...?

Sentindo-se como se caminhassem sobre um vulcão prestes a entrar em erupção, Cina e César escutavam-no atentamente, sem fazerem a mínima ideia onde Caio Mário queria chegar.

- Ora bem - prosseguiu Caio Mário. - O nosso flamen Dialis está morto. Mas Roma não pode viver sem o sacerdote do Grande Deus, não é verdade? Não pode passar sem esse sacerdote, não é? Agora, reparem: Caio Júlio César Júnior é uma criança perfeita. Tudo nele é perfeito. É patrício. Os pais estão vivos. É portanto o candidato ideal para o cargo de flamen Dialis. Só que não é casado, claro. No entanto, Lúcio Cina, tu tens uma filha, ainda sem noivo, que é patrícia e cujos pais estão vivos. Se a casares com o jovem César, todas as exigências serão cumpridas. Reparem: seria um par maravilhoso, ideal: o jovem César flamen Dialis e a tua filha, Lúcio Cina, flaminica Dialisl Não precisas de te procupar com o dinheiro necessário para que o teu filho faça o seu cursus honorum, Caio Júlio. E tu, Lúcio Cina, não te preocupes com o dote da tua filha. Os rendimentos do casal serão assegurados pelo Estado que, aliás, também custeará o seu alojamento. Enfim, o futuro do flamen Dialis e da esposa será seguramente grandioso.

- Fez uma pausa, sorriu exultantemente para aqueles dois homens que pareciam paralisados, estendeu a mão direita. - Então, que me dizem?

- Mas a minha filha só tem sete anos! - exclamou Cina, horrorizado.

- Isso não é obstáculo - disse Mário. - Ela há-de crescer. Os dois poderão continuar a viver em casa dos pais até terem idade suficiente para viver juntos na sua domus publicus. Naturalmente, o casamento só poderá ser consumado quando a pequena Cornélia Cina Menor atingir a idade própria. Mas olhem que não há nada na lei que impeça que eles se casem já. - Deu um risinho, e perguntou de novo: - Então, que me dizem?

- Bom, por mim estou de acordo - respondeu Cina, tremendamente aliviado pelo facto de Mário não o ter chamado com outro objectivo senão aquele. - Admito que seria difícil arranjar um dote para uma segunda filha, depois de a minha filha mais velha me ter levado tanto dinheiro.

- E tu, Caio Júlio, que achas?

César olhou de esguelha para Cina, entendendo imediatamente a mensagem do cônsul sénior: concorda, ou as coisas correrão mal para ti e para os teus.

- Está bem, Caio Mário, concordo.

- Esplêndido! - exclamou Mário, dando uns passos de dança, tal era a sua alegria. Virou-se depois para o jovem César e fez um estalido com os dedos, outro hábito recente. - Rapaz, vem cá!

Que belo rapaz!, pensou Cina, que se lembrava muito bem dele, do tempo em que o jovem Mário fora acusado de assassinar o cônsul Catão. Que bem parecido! Mas por que razão não me agradam os seus olhos? Perturbam-me aqueles olhos, fazem-me lembrar alguém... E Cina lembrou-se: sim, aqueles eram os olhos de Sila!

- Sim, Caio Mário? - perguntou o rapaz, fitando algo desconfiado o cônsul júnior; o jovem César percebera, naturalmente, que era ele o motivo da conversa que não fora autorizado a ouvir.

- O teu futuro acaba de ser traçado - disse Mário, contente, afável.

- Vais casar imediatamente com a filha mais nova de Lúcio Cina e passarás a ser o nosso flamen Dialis.

O jovem nada respondeu. No seu rosto, nem um músculo se mexeu. No entanto, as palavras de Mário tinham provocado nele uma mudança profunda. Que mudança, nenhum dos presentes conseguiria adivinhar.

- Ora bem, jovem César. Que me dizes? - perguntou Mário. Mas o jovem continuava a responder com o silêncio. E os seus olhos miravam agora o chão.

- Que me dizes, jovem César? - repetiu Mário, começando a ficar impaciente.

Os olhos claros, inexpressivos, ergueram-se para fitar o rosto de César.

- Pensava que o meu casamento com a filha do rico Caio Cossúcio já estava decidido. Ou estou enganado, pai?

César ficou vermelho, os seus lábios contraíram-se.

- Bom, de facto foi discutido esse casamento com a filha de Cossúcio. Mas não chegámos a nenhum compromisso e, francamente, prefiro este casamento. E este futuro.

- Deixa-me ver - disse o jovem César com uma expressão pensativa.

- Como flamen Dialis não poderei ver nenhum cadáver humano. Não poderei tocar em nada que seja feito de ferro ou aço: tesouras, navalhas, espadas, lanças... Não poderá haver laços ou nós no meu vestuário.

Não poderei tocar em cabras, cavalos e cães e a hera também me será proibida. Não poderei comer carne em sangue, trigo, pão levedado, feijões. Não poderei tocar no couro extraído a um animal morto especificamente para esse efeito. Terei muitas obrigações, todas elas interessantes e importantes. Por exemplo, anunciarei a safra de vinho nas Vinalia. Conduzirei as ovelhas na procissão suoevetaurilia. Varrerei o templo do Grande Deus Júpiter. Tratarei da purificação de uma casa depois de alguém ter morrido nela. Sim, muitas coisas interessantes, de facto, interessantes e importantes!

Os três homens escutavam-no, incapazes de dizer se o tom do rapaz era sarcástico ou ingénuo.

- Então, jovem César, que me dizes? - perguntou Mário pela terceira vez.

Os olhos azuis fitaram o rosto de Mário, uns olhos tão parecidos com os de Sila que, por breves momentos, Mário chegou a imaginar que era Sila quem ali estava, de tal modo que, instintivamente, as suas mãos começaram a tactear, a tactear, como que à procura da espada.

- Que digo eu?... Ora, que digo eu! Obrigado, Caio Mário! Acho muito simpático da tua parte perderes tempo a tratar tão cuidadosamente do meu futuro. Isso só revela a consideração e estima que tens por mim - disse o rapaz, num tom que não traía qualquer sentimento, ainda que não fosse insultuoso. - Compreendo perfeitamente, tio Caio Mário, por que razão tiveste tanto cuidado na determinação do meu humilde destino: é que, ao flamen Dialis, nada pode ser escondido! Mas digo-te também, tio Caio Mário, que nada pode alterar o destino seja de quem for, ou impedir alguém de ser aquilo que o destino manda.

- Ah, mas tu tens de cumprir aquilo que o cargo de sacerdote de Júpiter exige de ti! - exclamou Mário, cada vez mais furioso; desejara desesperadamente que o rapaz tivesse tido outra reacção: que tivesse vacilado, suplicado, chorado, que se tivesse atirado para o chão num acesso de raiva.

- É evidente que tenho, tio! - disse o jovem, chocado. - Não percebeste bem o que eu quis dizer. Agradeço-te muito sinceramente teres pensado em mim para esta missão, para este trabalho de Hércules que me espera em breve. - Olhou para o pai e disse-lhe: - Vou para casa, pai. Queres vir comigo? Ou tens mais assuntos a tratar?

- Não, vou contigo - disse César, espantado com tudo aquilo. Não precisas mais de mim, cônsul?

- Não - disse Mário, acompanhando o pai e o filho por breves momentos.

- Lúcio Cina, vemo-nos mais logo - disse César, erguendo a mão em sinal de despedida. - Obrigado por tudo. Quanto ao cavalo, pertence à legião de Gratidiano, e eu não tenho estábulo para ele.

- Não te preocupes, Caio Júlio, mandarei um dos meus homens tratar do cavalo - disse Cina, encaminhando-se para o templo de Castor e Pólux muito mais bem-disposto do que quando fora ter com Mário.

- Creio que será melhor casarmos as crianças amanhã - disse Mário. - O casamento pode ser celebrado em casa de Lúcio Cina, ao nascer do dia. O Pontifex Maximus, o Colégio dos Pontífices, o Colégio dos Augures e todos os outros colégios de sacerdotes reunir-se-ão depois no templo do Grande Deus para assistirem à tomada de posse dos nossos novos flamen e flaminica Dialis. A consagração terá de esperar até tu usares a toga de homem adulto, jovem César. Mas a tomada de posse não levanta qualquer problema, pois não infringe nenhuma lei.

- Agradeço-te uma vez mais, tio Caio Mário - disse o rapaz. Estavam a chegar aos rostra. Mário parou e apontou para os medonhos troféus que rodeavam a tribuna.

- Olhem-me só para aquilo! - exclamou, feliz. - Que visão medonha, não é?

- Sim - retorquiu César. - De facto é.

Depois de se despedirem de Mário, o rapaz começou a andar a toda a pressa; nem reparava, pensou o pai, que ia alguém ao lado dele. Virando a cabeça ligeiramente para trás, o pai apercebeu-se de que Lúcio Decúmio os seguia a uma distância razoável. Afinal, o filho não tinha ido sozinho para aquele local horrível; por muito que detestasse Lúcio Decúmio, César tinha de reconhecer que era reconfortante saber que ele os acompanhava.

- Há quantos dias é ele cônsul? - perguntou de súbito o rapaz. Há quatro dias? Quatro dias que parecem uma eternidade! Nunca tinha visto a minha mãe chorar. Cadáveres por todo o lado. Crianças chorando pelas ruas. Metade do Esquilino a arder. Cabeças espetadas em setas à volta dos rostra. Sangue, sangue por todo o lado. Os Bardeus, é assim que ele chama àquela gente, quando não estão a molestar as mulheres, estão a emborcar vinho! Sim, o sétimo consulado de Caio Mário é verdadeiramente glorioso! Homero não deve parar quieto nos Campos Elíseos, ansioso por beber uma boa taça de sangue para assim poder contar os feitos do sétimo consulado de Caio Mário! E sangue não falta em Roma! Bem podem dar um bocadinho a Homero!

Como responder a uma diatribe daquelas? César pouco privara com o filho. Por isso não o entendia. Por isso não sabia como lhe responder.

O rapaz irrompeu casa dentro, com o pai atrás, tentando acompanhar o seu passo. Só parou a meio da sala de estar, para gritar:

- Mãe! Mãe!

César ouviu o barulho de uma pena caindo no chão. Um segundo depois, Aurélia saía a correr do seu escritório, o terror estampado no rosto. Da sua antiga beleza, não sobrava um vestígio; estava magra, sob os olhos viam-se meias-luas negras, o rosto estava inchado, balofo, os lábios feridos.

Toda a sua atenção se concentrava no filho; logo que o viu, ileso, sem uma beliscadura, todo o seu corpo pareceu ceder, vacilar. Só então viu quem estava com ele. Nesse momento, os seus joelhos cederam.

- Caio Júlio!

O marido agarrou-a antes que ela caísse, abraçando-a com força.

- Ah, ainda bem que estás de volta! - disse ela, a cara colada à capa do marido. - Isto é um pesadelo, Caio Júlio!

- Já estás melhor? Posso falar? - atirou-lhe o filho. Os pais viraram-se para ele.

- Mãe, tenho uma notícia a dar-te - disse ele, preocupado unicamente com o monumental sarilho em que estava metido.

- Que notícia? - perguntou ela, casualmente, recuperando ainda do choque de ver o filho são e salvo e o marido de volta a casa.

- Sabes o que é que ele me fez?

- Quem? O teu pai?

- Não, o pai não me fez nada! - retorquiu o jovem. - Não! O pai limitou-se a dizer que sim, e disso já eu estava à espera. Refiro-me ao meu querido tio Caio Mário, tão simpático, tão amável sempre!

- Que fez Caio Mário? - perguntou Aurélia calmamente, embora tremendo por dentro.

- Nomeou-me flamen Dialis! Terei de casar amanhã, ao nascer do dia, com a filha de Lúcio Cina, que tem apenas sete anos, e logo a seguir tomarei posse como flamen Dialis! - retorquiu o rapaz, furioso, os dentes cerrados.

Aurélia arfava, não sabia o que dizer; a sua primeira reacção era de alívio profundo, pois ficara terrivelmente angustiada mal o filho recebera a ordem para ir ter com Caio Mário. Enquanto o filho estivera fora, não conseguira sequer fazer uma soma. Pela sua mente, passavam visões daquilo de que apenas ouvira falar, daquilo que o seu filho iria ver, a caminho do baixo Fórum - as cabeças nos rostra, os cadáveres. Ah, aquele velho louco.

O jovem César cansou-se de esperar por uma resposta. Resolveu então fazer os seus próprios comentários.

- Nunca poderei participar em guerras: portanto, nunca poderei rivalizar com ele. Nunca poderei disputar o cargo de cônsul: neste particular, também não poderei rivalizar com ele. Nunca terei a possibilidade de ser chamado o Quarto Fundador de Roma. Em vez disso, terei de passar o resto dos meus dias murmurando orações numa linguagem que já ninguém entende, varrendo o templo, pondo-me à disposição de qualquer um que precise da casa purificada, vestindo trajes ridículos! - O filho de Aurélia ergueu as mãos, umas mãos belas, masculinas, de dedos longos, como se quisesse tactear o ar, mas logo as cerrou, num gesto de raiva e impotência. - Aquele velho privou-me dos meus direitos inatos, unicamente para fazer sobressair o seu miserável nome nos livros de História.

Nem Aurélia nem César conheciam profundamente a personalidade do filho. Por outro lado, o jovem não contara nunca a nenhum deles que projectos tinha para o seu futuro. Enquanto ouviam aquele discurso apaixonado, ambos procuravam uma maneira de levar o filho a compreender que aquilo que acontecera, aquilo que fora decidido, era agora inevitável. Precisavam de levá-lo a entender que, naquelas circunstâncias, o melhor que tinha a fazer era aceitar o seu destino com um sorriso.

O pai optou por se mostrar severo, reprovador.

- Não sejas ridículo! - disse.

A mãe seguiu-lhe o exemplo. Sempre educara o filho no respeito às virtudes romanas que ele não possuía: cumprimento do dever, obediência, humildade, discrição. Por isso, repetiu:

- Não sejas ridículo, meu filho! - No entanto, acrescentou: - Diz-me com toda a franqueza: alguma vez pensaste que poderias igualar Caio Mário? Nenhum homem poderá igualá-lo!

- Igualar Caio Mário? - perguntou o filho, recuando. - Igualá-lo é fácil! Não, eu brilharei muito mais do que ele! Eu serei o Sol, enquanto ele é a Lua!

- Se é assim que encaras este grande privilégio, Caio Júnior disse Aurélia -, então Caio Mário teve toda a razão em dar-te o cargo de flamen Dialis. É uma base, uma base de que precisavas. A tua posição em Roma está garantida.

- Eu não quero uma posição garantida! - gritou o rapaz. - Eu quero lutar pela minha posição! Quero que a minha posição seja consequência dos meus próprios esforços! Que satisfação me pode dar um cargo que é mais velho que a própria Roma, um cargo que me foi atribuído por um homem que, dessa forma, apenas pretende salvar a sua reputação?

César pôs um ar ameaçador.

- Estás a ser ingrato, Caio César Júnior! - disse.

- Ora, pai. Como podes ser tão obtuso? Não sou eu quem está em falta, mas sim Caio Mário! Eu sou o que sempre fui! Não sou ingrato! Ao dar-me esta carga de que terei de me libertar, dê lá por onde der, Caio Mário nada fez que mereça gratidão! Os seus motivos são tão impuros como egoístas.

- E se deixasses de exagerar a tua importância, o teu valor? exclamou Aurélia, num tom desesperado. - Meu filho, desde pequeno que te digo que as tuas ideias são demasiado grandiosas, que as tuas ambições só denotam arrogância e presunção!

- E que importância tem isso? - perguntou o rapaz, mais desesperado ainda que a mãe. - Mãe, só eu é que poderei julgar as minhas ideias e ambições! E só poderei julgá-las no fim da minha vida, e não antes de a minha vida começar! Porque agora é que ela não vai começar de modo nenhum.

César achou que era tempo de experimentar outra táctica.

- Caio Júnior, não temos outra alternativa - disse. - Estiveste no Fórum, sabes o que se passou. Se Lúcio Cina, que é o cônsul sénior, considera prudente concordar com tudo o que Caio Mário diz, não sou eu quem se vai opor a ele! Tenho de pensar, não só em ti, mas também na tua mãe e nas tuas irmãs. Caio Mário já não é o mesmo homem. A sua mente está doente. Mas é ele quem detém o poder.

- Sim, isso sei eu - disse o jovem, acalmando-se um pouco. Quanto a esse aspecto, não tenho o mínimo desejo de o ultrapassar, tão pouco de o igualar. Nunca permitirei que, por minha causa, corra sangue nas ruas de Roma.

Tão insensível quanto era prática, Aurélia considerou que a crise tinha sido vencida. Aquiesceu.

- Muito bem, meu filho, muito bem dito. Bom, a verdade é só uma: gostes ou não, vais ser o flamen Dialis

De lábios cerrados e franzidos, de olhos gélidos e tristes, o rapaz fitou o rosto desfigurado, apesar de belo, da mãe, o rosto cansado, apesar de belo, do pai, e não encontrou em nenhum deles a compreensão de que precisava; pior ainda, não detectou neles a mínima compreensão. Mas o jovem César não se apercebia de que, também ele, não compreendia a difícil situação em que os pais se encontravam.

- Posso ir? - perguntou.

- Desde que evites os Bardeus e não vás mais longe que a casa de Lúcio Decúmio - retorquiu Aurélia.

- Vou só ter com Caio Márcio.

Encaminhou-se para a porta que dava para o jardim. Estava mais alto que a mãe, e não era magro, mas sim elegante, com ombros talvez demasiado largos.

- Pobre rapaz - disse César, que não era tão obtuso quanto o filho pensava.

- A partir de agora, ficará preso ao cargo para que foi nomeado

- disse Aurélia, com um ar tenso. - Tenho muito medo, Caio Júlio, tenho muito medo do que lhe possa vir a acontecer, das suas reacções. Ele é incapaz de se controlar, a ele nada o faz parar.

Caio Márcio era o filho do cavaleiro Caio Márcio, e tinha exactamente a mesma idade do jovem César; tinham nascido quase no mesmo dia, eram vizinhos, tinham crescido juntos. Os seus projectos para o futuro, as suas esperanças de criança, eram diferentes, mas conheciam-se tão bem como irmãos e gostavam um do outro muito mais do que se fossem irmãos.

Mais pequeno que o jovem César, Caio Márcio possuía no entanto uma tez mais clara e era mais louro, um louro com olhos cor de avelã; o rosto era bonito, a boca suave; enfim, em tudo se parecia com o pai

- sentia-se já atraído pelo comércio e pelo direito comercial, e sentia-se muito feliz por saber que, quando fosse homem, se dedicaria a essas actividades; gostava também de jardinagem, e tinha sempre os dedos sujos de terra de tanto jardinar.

Caio Márcio estava precisamente a tratar do ”seu” jardim, a um canto do pátio, quando viu o amigo aproximar-se. Percebeu logo que havia problemas. Largou de imediato a sua colher de jardineiro e levantou-se, limpando a terra que se agarrara à túnica porque a mãe não queria que ele sujasse a casa, mas estragando tudo logo de seguida pois, sem dar por isso, acabou por limpar as mãos às suas vestes.

- Que se passa contigo? - perguntou, placidamente.

- Dá-me os parabéns, Pústula] - disse o jovem César, num tom festivo. - Eu sou o novo flamen Dialis.

- Ah, não me digas! - retorquiu Márcio, a quem o jovem César chamava ”Borbulha” desde que se conheciam, pois Márcio era muito mais pequeno que ele. Márcio agachou-se de novo e recomeçou a escavar. - Que pena, Pavão - disse, num tom compreensivo. Chamava ”Pavão” ao jovem César há tanto tempo quanto este lhe chamava ”Borbulha” as suas mães tinham-nos levado, certo dia, a um piquenique no monte Pinciano, onde havia muitos pavões, abrindo as suas caudas como leques: uma outra maravilha no meio de coisas tão belas como as amendoeiras em flor ou os tapetes de narcisos. Também a criança que César era andava com aquele ar empertigado, importante, de pavão. E desde então ficou ”o Pavão”, pelo menos para o seu amigo.

O filho de Aurélia agachou-se ao lado de Caio Márcio e fez o possível por dominar as lágrimas, pois a raiva que sentira estava a dar lugar à tristeza, a uma profunda tristeza.

- Eu ia ganhar a Coroa de Erva com menos idade que Quinto Sertório! - disse. - Eu ia ser o maior general da história do mundo. Maior ainda que Alexandre. Eu ia ser cônsul mais vezes que Caio Mário. A minha dignitas seria impressionante!

- Terás uma grande dignitas na qualidade de flamen Dialis.

- Não, não terei. As pessoas respeitam o cargo, não o homem que assume o cargo.

Márcio suspirou, arrumou de novo a colher.

- Vamos falar com Lúcio Decúmio - disse.

Essa era de facto a sugestão certa. César levantou-se, alegre.

- Sim, vamos falar com ele - disse.

Atravessaram o apartamento de Márcio, que dava para a Subura Menor; saíram, e caminharam junto ao edifício até ao grande cruzamento entre a Subura Menor e a Vicus Patricius. Aí, no vértice da ínsula triangular de Aurélia, ficavam as instalações da congregação local das encruzilhadas, onde Lúcio Decúmio reinava há mais de vinte anos.

Lúcio Decúmio estava lá, como seria de esperar. Desde o Ano Novo que não fazia outra coisa senão tratar da protecção de Aurélia e dos seus filhos.

- Olha quem eles são! O Pavão e a Borbulha! - disse ele, todo satisfeito, sentado à sua mesa. - Um pouco de vinho na água?

Mas nem o jovem César nem Márcio gostavam de vinho, pelo que ambos abanaram a cabeça e sentaram-se no banco em frente de Lúcio Decúmio enquanto este enchia de água duas taças.

- Estás com um ar abatido. Tenho estado a pensar no encontro com Caio Mário. Intrigou-me. O que é que se passa, meu rapaz? perguntou Lúcio Decúmio ao filho de Aurélia, os olhos argutos cheios de amor.

- Caio Mário nomeou-me flamen Dialis.

E finalmente o rapaz encontrou alguém que reagia àquela notícia da forma que ele desejava: Lúcio Decúmio ficou, primeiro, estupefacto, e depois, profundamente irado.

- Velho miserável! Velho vingativo!

- É isso mesmo, Lúcio Decúmio, é isso mesmo.

- Tu trataste dele durante tanto tempo que ele ficou a conhecer-te bem... Uma coisa é certa: ele não é nenhum parvo. Pode estar maluco, mas lá parvo é que ele não é!

- Que vou eu fazer, Lúcio Decúmio?

Durante um longo momento, Lúcio Decúmio nada disse. Com um ar pensativo, mordiscava o lábio. Depois, com um sorriso, com olhos brilhantes, fitou o jovem.

- Agora não sabes o que vais fazer, Pavão, mas dá tempo ao tempo porque em breve saberás! - disse ele, jovial. - Para quê esse ar triste? Ninguém saberá melhor do que tu o que hás-de fazer quando chegar o momento de fazer alguma coisa. Tu és previdente em relação ao teu futuro, mas isso não quer dizer que tenhas medo do teu futuro! Por isso, para quê esse ar assustado? Isso é só o choque, meu rapaz. Eu conheço-te melhor do que Caio Mário. E acho que vais acabar por arranjar uma maneira de dar a volta às coisas. No fim de contas, jovem César, estamos em Roma, não estamos em Alexandria. E em Roma há sempre saídas legais.

Caio Márcio Borbulha escutava, mas nada dizia. Sabia que aquela última frase de Lúcio Decúmio estava correcta, porque o pai trabalhava precisamente na redacção de contratos e escrituras. E no entanto... a verdade é que aquilo estava certo para contratos e leis, mas o sacerdote de Júpiter era um cargo que não admitia qualquer saída legal, estava acima de contratos e leis, no fundo não tinha nada a ver com questões tão prosaicas: porque, afinal, o cargo deflamen Dialis era antiquíssimo, mais antigo mesmo que as Doze Tábuas, e Pavão César tinha instrução e inteligência suficientes para saber isso.

E Lúcio Decúmio também o sabia. Porém, porque era mais sensível que os pais do jovem César, Lúcio Decúmio compreendeu que era vital incutir alguma esperança no rapaz. E a razão era muito simples: sem essa esperança, o filho de Aurélia poderia sentir-se tentado pelo suicídio, pela espada em que, agora, estava proibido de tocar. Como Caio Mário sabia, o jovem César não tinha uma personalidade adequada àquele cargo. Era um rapaz muito supersticioso, mas a religião aborrecia-o. Sentir-se preso, sentir-se limitado por normas e regulamentos, equivalia, para ele, à morte. E era muito capaz de matar-se para fugir a essa prisão e a essa morte em vida.

- Terei de casar amanhã de manhã, antes da cerimónia de tomada de posse - disse o jovem César, fazendo uma carantonha.

- Com quem? Com Cossúcia?

- Não. Ela não tem as qualidades necessárias para ser flaminica Dialis. Com ela casar-me-ia unicamente por uma questão de dinheiro. Sendo flamen Dialis, tenho de me casar com uma patrícia. Por isso, Caio Mário decidiu que eu me casaria com a filha de Lúcio Cina. Que tem sete anos.

- Oh, e que importância tem isso, ha? Antes sete que dezoito, pavãozinho!

- Acho que tens razão. - O rapaz dobrou os lábios, aquiesceu. Sim, Lúcio Decúmio, tens razão. Eu hei-de encontrar uma maneira de sair disto!

Mas os acontecimentos do dia seguinte chegariam para desencorajar o jovem: de facto, pôde aperceber-se de que a armadilha que Caio Mário lhe montara era realmente brilhante. Todos temiam a caminhada desde o bairro de Subura até ao Palatino, mas, durante as anteriores dezoito horas, realizara-se uma limpeza geral da zona: foi Lúcio Decúmio quem deu essa informação a César que, ansioso, pretendia evitar que a mulher e as filhas vissem todo aquele terrível espectáculo da morte.

- O casamento do teu filho não vai ser o único esta manhã, disseram-me os Bardeus - acrescentou Lúcio Decúmio. - Caio Mário mandou chamar o filho, porque quer casá-lo também. E foi por isso que ele mandou limpar as ruas: não queria que o filho visse! Agora já se pode atravessar o Fórum. As cabeças já lá não estão. O sangue também não. E os corpos, desfizeram-se deles, devem tê-los enterrado. Como se o pobre rapaz não soubesse o que o pai fez! César olhou com espanto para Lúcio Decúmio.

- Mas tu dás-te com esses homens horríveis? Falas com eles? perguntou.

- Claro que falo! - retorquiu Lúcio Decúmio, num tom desdenhoso.

- Seis deles eram, quer dizer, acho que ainda são, membros da minha congregação.

- Estou a ver - disse César, secamente. - Bom, vamos andando. A cerimónia de casamento em casa de Lúcio Cornélio Cina foi

confarreatio, o que implicava uma união para toda a vida. A pequena noiva - pequena mesmo para a idade - nada tinha de notável ou precoce. Disparatadamente coberta de atavios cor de fogo ou açafrão, de lãs e de talismãs, a menina participou nas cerimónias com a animação e o entusiasmo de uma boneca. Quando ergueram o véu que lhe cobria o rosto, o jovem César pôde ver que tinha uns olhos negros enormes, covinhas nas faces, e a fragilidade de uma flor. Sentiu pena dela e sorriu-lhe, um sorriso encantador, embora constrangido, como era habitual nele em assuntos de sedução; ela retribuiu-lhe com um sorriso que fez ressaltar as covinhas do rosto e com um olhar cheio de adoração.

Casados numa idade em que normalmente nem sequer se sabia quem seria o futuro cônjuge, César e Cinila foram depois escoltados pelas famílias até ao templo de Júpiter Optimus Maximus, cuja estátua sorria estupidamente para eles.

No templo, havia outros recém-casados. A irmã mais velha de Cinila, Cornélia Cina, fora casada à pressa, no dia anterior, com Cneu Domício Aenobarbo. A pressa não se ficara a dever à razão habitual, mas sim ao facto de Cneu Domício Aenobarbo ter achado prudente salvaguardar a cabeça, casando com a filha do colega de Caio Mário, a quem, aliás, estava prometido. O jovem Mário, que chegara na noite anterior, casara ao princípio da manhã com a filha de Cévola Pontifex Maximus, a quem chamavam Múcia Tércia para a distinguir das duas primas mais velhas. Nenhum dos casais tinha um ar minimamente feliz, mas isso era mais evidente no caso do jovem Mário e de Múcia Tércia, que nunca se tinham visto antes e que não teriam oportunidade de consumar a união, já que Caio Mário ordenara ao filho que partisse mal fossem cumpridas as formalidades matrimoniais.

Como era evidente, o jovem Mário sabia das atrocidades do pai, mas esperava ficar a conhecer mais pormenores durante a sua breve estada em Roma. Mário teve com ele uma breve conversa no Fórum.

- Ao princípio da manhã, deverás estar em casa de Quinto Múcio Cévola, a fim de te casares - disse-lhe o pai. - Lamento não poder estar presente, mas ando muito ocupado. Tu e a tua mulher assistirão à tomada de posse do novo flamen Dialis e depois participarão no banquete em casa dele. Terminado o banquete, voltarás para a Etrúria, onde tens deveres a cumprir.

- O quê? Nem posso consumar o meu casamento? - perguntou o jovem Mário, procurando aligeirar a conversa.

- Lamento imenso, meu filho, mas terás de esperar até que tudo esteja em ordem - retorquiu Mário. - Terminada a festa, regressas logo ao trabalho!

Havia algo na expressão do velho que o fazia hesitar relativamente a uma questão que lhe queria pôr; respirou fundo e decidiu-se.

- Pai, agora posso ir ver a mãe? Posso dormir lá em casa? Mágoa, aflição, angústia; esses três sentimentos tornaram-se visíveis

na expressão, no olhar de Mário. Os lábios tremiam-lhe. Até que conseguiu emitir um surdo ”sim”, e logo desapareceu.

O momento em que o jovem Mário viu a mãe foi o mais horrível de toda a sua vida. Os olhos dela! E que velha estava! Velha, abatida, triste. Não queria falar, não queria discutir o que acontecera, não queria sair da sua dolorosa prisão.

- Eu quero saber, mãe! O que é que ele fez?

- O que nenhum homem faz no seu juízo perfeito, meu querido Caio.

- Desde África que eu sabia que ele estava louco. Mas nunca imaginei que pudesse estar tão afectado. Como poderemos reparar o mal, mãe? Como?

- Não podemos - Júlia levou a mão à cabeça, franziu o sobrolho.

- Meu filho, não falemos disso! - Molhou os lábios, e perguntou: Como está ele?

- Então sempre é verdade?

- O quê?

- Que nunca mais o viste?

- É verdade, sim, meu Caio. Nunca mais o verei.

Pela forma como a mãe dizia aquilo, o jovem Mário ficou sem saber se era ela que não queria ver o pai, ou se era este que não a queria ver, ou se a mãe tinha um pressentimento de que nunca mais o veria, fosse por que razão fosse.

- Ele não está bem. Não parece ele. Diz que não assistirá ao meu casamento. E tu, mãe, tu vais?

- Sim, meu menino, eu vou.

Depois do casamento - que bela rapariga, Múcia Tércia! -, Júlia integrou-se no grupo que ia assistir à cerimónia da posse do flamen Dialis, porque Caio Mário não estaria presente. As ruas da cidade tinham sido lavadas e, por isso, o filho de Caio Mário continuava a não saber até que ponto tinham ido as atrocidades do pai. E como era o filho do Grande Homem, não podia perguntar a ninguém.

Os rituais no templo foram extremamente demorados e aborrecidos. Depois de ter despido a túnica, o jovem César vestiu os trajes de flamen Dialis - o manto circular, feito de duas camadas de pesada lã, às riscas vermelhas e cor de púrpura, um manto horrivelmente desconfortável; o capacete de marfim, muito apertado, com o disco de lã fixo ao espigão; os sapatos especiais, sem atacadores nem fivela. Como poderia ele aguentar aquilo toda a vida, todos os dias da sua vida? Habituado a usar o belo cinto de cabedal que Lúcio Decúmio lhe dera (um cinto com uma pequena bolsa, que continha um punhal muito bem feito, oferta também de Decúmio), o filho de Aurélia sentia-se estranho sem ele; além disso, o capacete de marfim - feito para um homem com uma cabeça muito mais pequena - nem sequer lhe chegava às orelhas: ficava ridiculamente empoleirado em cima do cabelo. Cévola Pontifex Maximus disse-lhe que não se preocupasse, pois Caio Mário ia dar-lhe um apex novo: no dia seguinte, tirar-lhe-iam as medidas à cabeça, a fim de fazerem um capacete mais próprio.

Quando o rapaz viu Júlia, a tia Júlia, o seu coração começou a bater desalmadamente. Os outros sacerdotes não o largavam, mas os olhos dele estavam fixos na tia. Queria que ela olhasse para ele. Ela sentia o olhar do sobrinho, o desejo do sobrinho, mas não olharia para ele. Subitamente ficara velha, ela que tinha apenas quarenta anos; toda a sua beleza definhara por causa de tormentos que não conseguia vencer ou contornar. Porém, no final das cerimónias, quando toda a gente se juntou para saudar o novo flamen Dialis e a bonequita que era a sua flaminica, o filho de Aurélia e César conseguiu ver os olhos da tia Júlia. Quem lhe dera que não os tivesse visto! Júlia beijou-o na boca, como sempre fazia, e encostou a cabeça ao ombro dele para chorar um pouco.

- Tenho muita pena, meu sobrinho - murmurou ela. - Ele não podia ter feito pior. Ele quer magoar toda a gente, mesmo aqueles a quem não devia magoar. Mas, peço-te que compreendas: ele já não é o mesmo homem!

- Eu compreendo, tia Júlia - disse o rapaz, muito baixo para que ninguém mais ouvisse. - Não te preocupes comigo. Eu tratarei de tudo.

Finalmente, e como o Sol estava já a pôr-se, os participantes na cerimónia podiam ir-se embora para suas casas. O novoflamen Dialis

- com o capacete demasiado pequeno, metido no manto sufocante, os sapatos dançando porque não tinham atacadores nem correias - foi a pé para casa com os pais, com as irmãs (sempre com um ar muito solene), a tia, e o primo Mário e a sua noiva. Cinila, a novaflaminica Dialis (vestindo também um sufocante manto de lã, sem laços nem fivelas), foi também para sua casa, com os pais, o irmão, a irmã, Cornélia Cina, e Cneu Aenobarbo.

- De modo que Cinila ficará com a sua família até fazer dezoito anos - disse Aurélia a Júlia com um ar animado, metendo conversa com a cunhada enquanto todos se instalavam na sala de jantar para uma última refeição festiva. - Faltam onze anos! Na idade dela, parece muito tempo. Na minha, não é nada.

- Sim, é verdade - disse Júlia, num tom indiferente, sentando-se entre Múcia Tércia e Aurélia.

- Quantos casamentos! - comentou César alegremente, uma alegria falsa, pois há muito que reparara no rosto definhado da irmã. Estava reclinado no lectus medius, o divã do anfitrião, e dera o lugar de honra, ao lado dele, ao novoflamen Dialis, que nunca fora autorizado a reclinar-se num divã e que agora achava essa postura tão estranha e desconfortável como tudo o mais que lhe acontecera naquele tumultuoso dia.

- Por que motivo não veio Caio Mário? - perguntou Aurélia, sem o mínimo tacto.

Júlia enrubesceu, encolheu os ombros.

- Anda demasiado ocupado.

Furiosa consigo mesma, Aurélia não fez mais comentários: fitou o marido, à procura de uma tábua de salvação, de uma palavra, de uma frase que acabasse com aquele mal-estar. Mas a salvação não veio; bem pelo contrário: quem falou foi o jovem César, e as suas palavras ainda pioraram a situação.

- Nada disso! Caio Mário não veio porque não se atreveu a vir!

- disse o novoflamen Dialis, sentando-se muito direito no divã, despindo o manto e atirando-o sem qualquer cerimónia para o chão. - Ah, assim já me sinto melhor. Maldito manto! Odeio-o!

Aproveitando as imprecações do filho para sair do seu dilema, Aurélia fitou o jovem César com uma expressão grave.

- Não sejas ímpio - disse.

- Por que não hei-de dizer a verdade? - perguntou o jovem César, com uma expressão de desafio.

Nesse momento, os criados trouxeram o primeiro prato - pão branco, azeitonas, ovos, aipo, várias saladas de alface.

O novoflamen Dialis tinha tanta fome - durante os rituais, era-lhe interdito comer fosse o que fosse - que se atirou logo ao pão.

- Não! Não faças isso! - gritou Aurélia, empalidecendo de repente. O rapaz fitou-a, de sobrolho franzido.

- Porque não? - perguntou.

- O flamen Dialis não pode tocar em trigo nem em pão levedado

- respondeu a mãe. - Aqui está o teu pão.

O pão do jovem César era um pão sem altura, praticamente só côdea, cinzento, algo que não despertaria o apetite de ninguém.

- O que é isto? - perguntou o rapaz, com ódio nos olhos. - Mola salsa!

- Mola salsa é feita de espelta, que também é trigo - disse Aurélia, sabendo perfeitamente que não dava nenhuma novidade ao filho. Este pão é de cevada.

- Pão de cevada não levedado - disse o jovem. - Até mesmo os camponeses egípcios comem melhor que eu! Acho que vou comer pão normal. Esta coisa só me fará mal.

- Jovem César, este é o dia da tua tomada de posse como flamen Dialis - disse o pai. - Os auspícios são favoráveis. Neste dia, mais do que em qualquer outro, tudo deve ser escrupulosamente observado. Tu és o elo que liga Roma ao Grande Deus. Tudo o que tu fizeres afectará as relações de Roma com o Grande Deus. Sim, eu sei que estás com fome. E concordo que o pão de cevada tem muito mau aspecto. Mas, a partir de hoje, terás de pôr Roma à frente dos teus interesses e desejos. Vá, come o teu pão.

Os olhos do rapaz viajaram de rosto em rosto. Depois, respirou fundo e disse o que tinha de ser dito. Nenhum adulto poderia dizê-lo: os adultos tinham demasiados anos e demasiados medos em cima para se permitirem fazer muita coisa, para se permitirem fazer fosse o que fosse.

- Este não é um tempo para alegrias. Como poderá algum de nós sentir-se alegre? Como poderei eu sentir-me alegre? - Pegou no pão branco, quente e estaladiço, tirou um naco, molhou-o no azeite e levou um pouco à boca. - Ninguém se deu ao trabalho de me perguntar, com seriedade, se eu queria este cargo tão pouco próprio para um verdadeiro homem - disse, mastigando com prazer. - Sim, sim, eu sei que Caio Mário me perguntou por três vezes! Mas será que tive alguma possibilidade de escolha? A resposta é não, evidentemente. Caio Mário está louco. Todos sabemos isso, embora não o digamos abertamente nas nossas conversas à hora do jantar. Ele fez-me isto deliberadamente, e as suas razões não são puras, não têm nada a ver com o bem-estar de Roma, religioso ou outro. - Engoliu o pão, e prosseguiu: - Eu não sou ainda um homem. E enquanto não for um homem, não usarei este traje horroroso. Porei o meu cinto e vestirei a minha toga praetexta e sapatos confortáveis. Comerei o que me apetecer. Irei para o Campo de Marte fazer exercício físico, praticar esgrima, cavalgar, treinar o uso do escudo, lançar o meu pilum. Quando eu for um homem e a minha noiva uma mulher, então veremos. Até lá, não agirei como flamen Dialis no seio da minha família ou quando isso interferir com as obrigações normais de um rapaz romano nobre.

A esta declaração de independência seguiu-se um silêncio absoluto. Os membros mais velhos da família tentavam encontrar a resposta certa, sentindo pela primeira vez alguma da impotência que Caio Mário, o doente, o diminuído Caio Mário, sentira perante aquela força de aço. Que poderei eu dizer, que poderei eu fazer?, perguntava-se o pai, que não queria fechar o rapaz num cubículo até que mudasse de ideias, pois sabia que um tal tratamento não daria o mínimo resultado. Muito mais determinada, Aurélia pensava seriamente em tal castigo, mas sabia muito melhor que o marido que teria um efeito contraproducente. A mulher e o filho do homem que tinha provocado toda aquela infelicidade, estavam demasiado conscientes da verdade para ficarem zangados, demasiado conscientes da sua incapacidade para mudar as coisas. Múcia Tércia, ainda surpeendida com a beleza do homem com quem acabara de casar, e pouco habituada a um círculo familiar onde se falava sem rodeios, fixava os joelhos. E as irmãs do jovem César, mais velhas do que ele e, por isso, conhecedoras da sua personalidade desde a infância, olhavam uma para a outra pesarosamente. Júlia rompeu o silêncio, dizendo, com um ar tranquilo:

- Penso que tens toda a razão, jovem César. Com treze anos e meio, as coisas mais sensatas que podes fazer são comer bem e fazer exercício. No fim de contas, Roma pode vir a precisar um dia da tua saúde e das tuas capacidades físicas, mesmo que continues a ser o flamen Dialis. Pensem no pobre Lúcio Mérula. Estou certa de que ele nunca esperou ter de ocupar o cargo de cônsul. Mas de facto ocupou-o, quando a isso foi chamado. E ninguém o considerou ímpio. Ele continuou a ser o sacerdote de Júpiter, como sempre fora.

Sendo a mais velha das mulheres presentes, Júlia tinha toda a autoridade para dizer aquilo que pensava - nem que fosse pelo facto de a sua intervenção evitar uma ruptura definitiva entre os pais e o obstinado filho.

O jovem César comeu pão de trigo levedado e ovos e azeitonas e frango até ficar completamente saciado. No fim de tudo, afagou a barriga, que estava bem cheia. Não comia mal habitualmente, mas a comida não lhe despertava muito interesse; aliás, sabia perfeitamente que podia ter passado sem o pão branco, que em circunstâncias normais o outro pão o teria deixado satisfeito. Mas era melhor que a sua família compreendesse, desde o princípio, o que ele sentia em relação à sua nova carreira, e como tencionava encará-la. Se a tia Júlia e o jovem Mário se tinham sentido infelizes e culpados com as suas palavras, tanto pior. Ainda que o sacerdote de Júpiter fosse vital para o bem-estar de Roma, a verdade é que ele nada fizera para ter esse cargo, e, por outro lado, sabia, no mais fundo do seu ser, que o Grande Deus lhe destinara tarefas mais empolgantes do que varrer o templo.

Ainda que não tivesse havido a declaração de independência do jovem flamen Dialis, ou a crise provocada pelo seu regime alimentar, aquela refeição seria sempre uma refeição amarga. Muita coisa não foi dita, muita coisa não podia ser dita. Para o bem de todos. Talvez a candura do jovem César tivesse salvo o jantar; no fundo, a sua intervenção permitiu a todos os presentes distraírem-se um pouco das atrocidades de Caio Mário, da loucura de Caio Mário.

- Estou contente por este dia ter finalmente acabado - disse Aurélia para César, preparando-se para se deitarem.

- Não quero outro dia igual a este em toda a minha vida - disse César, gravemente.

Antes de se despir, Aurélia sentou-se na beira da cama e olhou para o marido. Parecia fatigado. Parecia sempre fatigado. Que idade tinha ele? Estava a fazer quarenta e cinco. O consulado estava praticamente perdido, e ele não era nenhum Mário, não era nenhum Sila. De repente, enquanto o fitava, Aurélia apercebeu-se de que ele nunca seria cônsul. Em grande parte, pensou, a culpa é minha. Se ele tivesse uma mulher menos independente e menos ocupada com os negócios, teria por certo ficado mais tempo em Roma durante os últimos dez anos, teria, muito provavelmente, firmado a sua reputação no Fórum. Mas o meu marido não é um lutador. E não é agora que ele vai ter com aquele louco para lhe pedir dinheiro para lançar uma candidatura séria ao cargo de cônsul. Nunca o faria. Não por medo. Por orgulho. O dinheiro, agora, está sujo, sujo de sangue. Nenhum homem honesto quereria esse dinheiro. E o meu marido é o mais honesto de todos os homens.

- Caio Júlio - disse ela -, que poderemos nós fazer em relação ao nosso filho? Ele odeia tanto o cargo para que Caio Mário o nomeou!

- E tem razão para isso. No entanto - disse ele com um suspiro -, uma coisa é certa: eu nunca serei cônsul. E isso significa que o nosso filho terá muita dificuldade em vir a ser cônsul. Com esta guerra contra a Itália, o nosso dinheiro encolheu. E, na prática, perdi os mil iugera de terra que tinha comprado na Lucânia por ser tão barata. É uma terra que fica demasiado longe de qualquer cidade: nunca estará em segurança. Depois de Caio Norbano ter expulso os Lucanianos da Sicília, o ano passado, os insurrectos foram instalar-se em terras como a minha. E Roma não terá tempo, nem homens, nem dinheiro, para os expulsar de lá. Talvez no tempo dos nossos netos, talvez. Por isso, da minha riqueza inicial, só restam os seiscentos iugera perto de Bovilas que Caio Mário me ofereceu. E isso só dá para eu me sentar nos bancos de trás do Senado. Não chega para o cursas honorum. Além do que, de certo modo, Caio Mário tirou-me a terra que me tinha oferecido. As tropas dele deram cabo da propriedade de Bovilas enquanto vagueavam pelo Lácio.

- Eu sei - disse Aurélia, num tom triste. - O nosso pobre filho terá de se contentar com o que tem!

- Assim parece.

- Ele está convencido de que Caio Mário fez de propósito!

- E creio que tem razão, uma vez mais - retorquiu César. - Eu falei com Caio Mário, no Fórum. E era nítido que ele estava satisfeito, indecentemente satisfeito.

- É assim que ele agradece todo o apoio que o nosso filho lhe deu durante a doença.

- Caio Mário já não sabe o que é gratidão. O que mais me assustou foi o medo de Lúcio Cina. Ele disse-me que ninguém estava seguro, nem mesmo Júlia, nem mesmo o jovem Mário. Depois de ter visto Caio Mário, acreditei nele.

César despiu-se e Aurélia reparou, com algum alarme, que ele emagrecera; tinha as costelas e os ossos das ancas salientes, as coxas magras.

- Caio Júlio, estás bem de saúde? - perguntou ela, abruptamente. Ele pôs um ar surpreendido.

- Acho que sim! Um pouco cansado, talvez, mas não doente. Deve ter sido por causa da estada em Arimino. Depois de as legiões de Pompeu Estrabão terem ocupado durante três anos a Úmbria e o Piceno, pouca comida ficou para alimentar as nossas legiões. Por isso, eu e Marco Gratidiano tínhamos rações reduzidas. Não podemos comer bem, quando não temos comida que chegue para os nossos soldados. Tenho a impressão de que passei a maior parte do tempo à procura de abastecimentos.

- Bom, mas agora vais comer bem: eu trato disso - disse ela, com um sorriso, um dos seus raros sorrisos, alegrando-lhe o rosto abatido.

- Ah, gostava muito de não estar pessimista, de pensar que as coisas vão melhorar! Mas tenho um pressentimento horrível, um pressentimento de que tudo vai piorar. - Aurélia levantou-se e despiu a camisa de dormir.

- Sinto o mesmo que tu, meum mel - disse ele, sentando-se no seu lado da cama. Com um suspiro de prazer, pôs as mãos para trás, na almofada, sob a cabeça, e sorriu. - Bom, mas enquanto formos vivos, este é um prazer que ninguém nos pode tirar.

Ela deslizou para junto do marido, encostou o seu rosto ao ombro dele; César abraçou-a então com o braço esquerdo.

- Um prazer muito bom - disse ela, com uma voz rouca, profunda.

- Amo-te, Caio Júlio.

Às primeiras horas do sexto dia do seu consulado, Caio Mário ordenou ao seu tribuno da plebe Públio Popílio Lenate que convocasse outra Assembleia da Plebe. Só os Bardeus de Mário se deslocaram ao anfiteatro dos Comitia para assistir à reunião. Durante quase quarenta e oito horas, tinham obedecido às ordens de Mário para se comportarem bem, para limparem a cidade e para desaparecerem depois das ruas de Roma. Mas o jovem Mário regressara já à Etrúria e, nos rostra, viam-se de novo as cabeças espetadas nas lanças. Na tribuna, havia apenas três pessoas - Mário, Popílio Lenate e um prisioneiro com grilhetas nas mãos e nos pés.

- Este homem - berrou Mário - tentou matar-me! Quando eu, velho e doente!, fugia de Itália, a cidade de Minturnas acolheu-me de braços abertos. Até que um exército de assassinos contratados obrigou os magistrados de Minturnas a ordenar a minha execução. Estão a ver o meu bom amigo Burgundo? Pois foi Burgundo o escolhido para me estrangular numa cela, sob o Capitólio de Minturnas! Sim, ali estava eu naquela cela, sozinho, e todo sujo de lama! E nu! Eu, Caio Mário! O maior homem da história de Roma! O maior homem que Roma alguma vez teve e terá! Maior que Alexandre da Macedónia! Um grande homem! Um grande homem! - Parou, ficou com um ar confuso, atrapalhado, tentou lembrar-se do que havia dito, lembrou-se, pôs um sorriso satisfeito.

- Pois Burgundo recusou-se a estrangular-me. E, seguindo o exemplo de um simples escravo germano, toda a cidade de Minturnas se recusou a ver-me morto. Mas antes de os assassinos contratados, uma gente miserável!, nem sequer eram capazes de me matar com as suas próprias mãos!, antes de eles deixarem Minturnas, eu perguntei ao chefe quem é que os tinha contratado. ”Sexto Lucílio”, respondeu-me ele.

Mário voltou a sorrir, afastou as pernas e pôs-se a bater com os pés no chão, executando o que parecia ser uma pequena dança.

- Quando me tornei cônsul pela sétima vez - e há algum homem na história de Roma que tenha sido cônsul sete vezes? -, quis que Sexto Lucílio pensasse que ninguém sabia que fora ele quem contratara aqueles assassinos. E o idiota ficou em Roma! Julgava-se seguro! Mas esta manhã, mandei os meus lictores prendê-lo. É acusado de traição. Sim, porque ele tentou matar Caio Mário!

Nunca houve por certo julgamento mais breve ou votação mais descuidada; sem discussão prévia, sem testemunhas, sem qualquer respeito pelos procedimentos legais, os Bardeus declararam Sexto Lucílio culpado de traição. E, por fim, aprovaram que fosse atirado da Rocha Tarpeia.

- Burgundo, incumbo-te da tarefa de atirar este homem da Rocha Tarpeia - disse Mário para o criado.

- Assim farei, Caio Mário. Com todo o gosto - retorquiu Burgundo, com a sua voz grossa, retumbante.

A assembleia deslocou-se então para um local onde pudesse assistir comodamente à execução; Mário, contudo, permaneceu nos rostra com Popílio Lenate; da tribuna, tinha uma vista soberba para o Velabro. Sexto Lucílio, que nada dissera em sua defesa nem se permitira outra expressão que não fosse a de desprezo, caminhou corajosamente para a sua morte. Quando Burgundo, um enorme brilho dourado ao longe, conduziu Lucílio até à ponta do rochedo, este não esperou que o empurrassem; atirou-se sozinho, quase levando o germano atrás, pois Burgundo ainda estava a agarrar-lhe nas correntes.

Este acto de desafio e independência e o risco que Burgundo correra deixaram Mário terrivelmente furioso; pôs-se muito vermelho, sentia-se sufocar, falava atabalhoadamente. Popílio Lenate, com um ar descoroçoado, ouvia os piores insultos.

Até que a escassa luz que iluminava o cérebro de Mário foi de súbito apagada por uma torrente de sangue. Caio Mário caiu então no chão dos rostra, como um animal que alguém tivesse acabado de abater. Os lictores rodearam-no, Popílio Lenate desatou a pedir freneticamente que lhe trouxessem uma padiola ou uma liteira. E todas aquelas cabeças de velhos rivais, de velhos inimigos, rodeavam o corpo inerte de Mário, cabeças já quase só caveiras porque os pássaros as tinham comido.

Cina, Carbão, Marco Gratidiano, Mágio e Virgílio desceram a correr os degraus do Senado e, num instante, cercavam o corpo inanimado de Caio Mário.

- Ainda respira - disse o sobrinho adoptivo de Mário, Gratidiano.

- Infelizmente - disse Carbão entre dentes.

- Levem-no para casa - ordenou Cina.

Os Bardeus, mal souberam do sucedido, correram também para o local. Todos choravam, alguns davam estranhos gritos. Cina virou-se para o chefe dos seus lictores.

- Vai ao Campo de Marte e diz a Quinto Sertório que venha imediatamente aqui - disse. - Conta-lhe o que aconteceu.

Enquanto os lictores de Mário o levavam numa padiola, seguidos pelos Bardeus, chorando e gritando sem cessar, Cina, Carbão, Mário Gratidiano, Mágio, Virgílio e Popílio Lenate desceram dos rostra e esperaram por Quinto Sertório; sentaram-se na primeira fila do anfiteatro dos Comitia, tentando ordenar os pensamentos.

- Não posso crer que ainda esteja vivo! - exclamou Cina, admirado.

- Acho que ele era capaz de se levantar e caminhar se alguém lhe enfiasse uma boa espada romana nas costelas - disse Virgílio, com uma expressão severa.

- Que tencionas fazer, Lúcio Cina? - perguntou o sobrinho adoptivo de Mário, que concordava com a atitude dos outros, mas não o podia admitir, preferindo por isso mudar de assunto.

- Ainda não sei bem ao certo - disse Cina, pensativo. - É por isso que estou à espera de Quinto Sertório. Gosto dos conselhos dele.

Sertório chegou uma hora depois.

- É o melhor que podia ter acontecido - disse Sertório para todos os presentes, mas em especial para Mário Gratidiano. - Não te sintas desleal por causa dos teus sentimentos, Marco Mário. Tu foste adoptado, tens menos sangue dos Mários do que eu. Mas, embora a minha mãe pertença aos Mários, eu digo o que penso sem medo nem culpa. O exílio deixou Caio Mário completamente louco. Este não era o Caio Mário que eu conheci.

- Que vamos fazer agora, Quinto Sertório? - perguntou Cina. Sertório fitou-o espantado.

- Mas o cônsul és tu, Lúcio Cina! Tu é que deves saber, não eu. Cina enrubesceu.

- Quanto aos deveres do cônsul, Quinto Sertório, não tenho a mínima dúvida! - atirou-lhe. - Eu chamei-te aqui unicamente para pedir conselho sobre a melhor maneira de nos livrarmos dos Bardeus.

- Ah, estou a ver - retorquiu Sertório, lentamente. Usava ainda uma venda sobre o olho esquerdo, mas o sangue parecia ter já estancado por completo.

- Enquanto não nos virmos livres dos Bardeus, Roma continuará a pertencer a Mário - disse Cina. - O problema é que duvido que eles se queiram ir embora. Tanto aterrorizaram Roma que agora ganharam-lhe o gosto. Irão parar só porque Caio Mário está incapacitado?

- Podemos detê-los - disse Sertório, com um sorriso perverso. Eu posso matá-los.

Carbão rejubilou.

- Óptimo! - disse. - Eu vou reunir todos os homens que estiverem acampados do outro lado do rio.

- Não! De modo nenhum! - exclamou Cina, horrorizado. - Outra batalha nas ruas de Roma? Depois do que sucedeu nos últimos seis dias? Nem pensar!

- Eu sei o que se há-de fazer! - exclamou Sertório, impaciente com tanta interrupção, e tanta estupidez. - Lúcio Cina, reunir-te-ás aqui, nos rostra, amanhã de manhã, com os chefes dos Bardeus. Diz-lhes que, no último momento, Caio Mário pensou neles e te deu o dinheiro para lhes pagares. Isso significa que terás de ir hoje a casa de Caio Mário e permanecer lá algum tempo, enfim, o tempo suficiente para que se fique a pensar que falaste com ele.

- Preciso mesmo de ir a casa dele? - perguntou Cina, que não gostava nada da ideia.

- Precisas, porque os Bardeus vão passar todo o dia e toda a noite na rua onde vive Caio Mário, à espera de notícias.

- Sim, claro - disse Cina. - Desculpa, Quinto Sertório, mas estou um pouco confuso. E que faço mais?

- Dizes aos chefes que os Bardeus poderão ir receber o seu dinheiro à segunda hora do dia, na Villa Publica, no Campo de Marte - disse Sertório, com um sorriso franco. - Eu estarei à espera deles com os meus homens. E só assim acabará realmente o reinado do terror de Caio Mário.

Ao ver o marido, Júlia sentiu uma dor lancinante, uma compaixão infinita. Mário tinha os olhos fechados, a respiração era estertorosa,

- É o fim - disse ela para os lictores. - Vão para casa, bons servos do Povo. Eu tratarei dele a partir de agora.

Júlia lavou-o, barbeou-o (a barba durava-lhe há seis dias), vestiu-o com uma túnica branca lavada de fresco. Depois, pediu aos criados que o levassem para a cama. Não chorava.

- Manda chamar o meu filho, bem como toda a família - disse ela a Estrofantes, o chefe dos criados, logo que Mário ficou pronto. - Ele vai morrer. Não será para já, mas vai morrer. - Sentada numa cadeira ao lado da cama do Grande Homem, Júlia deu mais algumas instruções a Estrofantes, enquanto o moribundo roncava horrivelmente, procurando o ar que cada vez mais lhe faltava: os quartos dos hóspedes tinham de ser arranjados, era preciso preparar comida que chegasse, a casa devia estar impecável. E Estrofantes devia mandar vir o melhor agente funerário. - Desde que casei com Caio Mário, a única morte que houve nesta casa foi a do nosso segundo filho, que era ainda bebé, e quem tratou de tudo foi o avô César.

- Talvez ele recupere, domina - disse o criado, choroso. Júlia abanou a cabeça.

- Não, Estrofantes, ele não recuperará.

O irmão de Júlia, Caio Júlio César, chegou ao meio-dia, com a esposa, Aurélia, o filho, o jovem César, e as filhas, Lia e Ju-Ju; o filho de Mário só chegou à noite. Cláudia, a viúva do outro irmão de Júlia, não foi, mas mandou o filho mais novo - outro Sexto César para representar o seu ramo da família. O irmão de Mário, Marco, morrera haja alguns anos, mas o seu filho adoptivo, Gratidiano, estava presente. Tal como Quinto Múcio Cévola Pontifex Maximus e a sua segunda esposa, uma segunda Licínia; a filha de Cévola, Múcia Tércia, já se encontrava, naturalmente, em casa de Mário.

Foram muitas as pessoas que se deslocaram a casa de Caio Mário, mas muito menos do que as que teriam lá ido um mês antes. Catulo César, Lúcio César, António Orador, César Estrabão, o censor Crasso

- as suas línguas já não podiam falar, os seus olhos já não podiam ver. Lúcio Cina apareceu várias vezes. Da primeira vez, sob o pretexto de apresentar as desculpas de Quinto Sertório.

- Quinto Sertório não pode deixar a sua legião neste momento. Júlia olhou para ele de soslaio, com uma expressão arguta, e limitou-se a responder:

- Diz a Quinto Sertório que compreendo perfeitamente, e que concordo com ele.

Esta mulher entende tudo!, pensou Cina, sentindo a pele arrepiar-se. Foi-se embora tão depressa quanto pôde, tendo em conta que tinha de ficar tempo suficiente para dar a impressão de que falara com Caio Mário.

A vigília era constante: os membros da família revezavam-se para acompanhar os últimos momentos de Caio Mário, e para acompanhar Júlia, que não se levantava da sua cadeira. O jovem César, porém, quando veio a sua vez, recusou-se a entrar no quarto.

- Eu não posso ter nenhum contacto com a morte - disse ele, com uma expressão branda, um olhar inocente.

- Mas Caio Mário não está morto - disse Aurélia, olhando de relance para Cévola e a sua mulher.

- Mas pode morrer enquanto eu lá estiver. E eu não posso permitir que uma coisa dessas aconteça - retorquiu firmemente o rapaz. - Depois de Caio Mário morrer e de o seu corpo ser retirado, então sim, entrarei no seu quarto para executar os ritos da purificação.

Havia nos seus olhos azuis uma sugestão de escárnio, uma sugestão tão velada que só a mãe se apercebia dela. E, nessa sugestão de escárnio, Aurélia reconheceu um ódio absoluto - um ódio não demasiado violento, não demasiado frio, um ódio que não o impedia de pensar.

Quando Júlia finalmente saiu do quarto para descansar (graças aos esforços do jovem Mário), o filho de Aurélia foi ter com a tia e levou-a para a sala de estar. Aurélia, que se preparava para se levantar, leu nos olhos do filho uma ordem para que o deixasse sozinho com a tia. E Aurélia obedeceu. Já não era ela quem mandava. Ele estava livre.

- Tens de comer, tia - disse o rapaz, conduzindo-a para o divã dela. - Estrofantes vem aí.

- Mas eu não tenho fome, de verdade que não tenho! - disse ela num murmúrio, o rosto tão branco como a coberta de linho que o criado tinha colocado sobre o divã para ela se deitar; a sua cama era aquela que partilhava com Caio Mário: não tinha outra.

- Com fome ou sem fome, vais ter de comer uma sopa quente disse o jovem César naquele tom de voz que conseguia convencer toda a gente, incluindo Mário. - É preciso, tia Júlia. Isto pode continuar por muitos dias. Será uma longa despedida.

O criado trouxe então a sopa, acompanhada por alguns cubos de pão duro; o jovem César ajudou-a a comer a sopa e os pedacinhos de pão, sentado na beira do divã; com palavras meigas, afáveis, conseguiu que ela comesse a sopa toda. Depois, tirou a maior parte das almofadas do divã, tapou-a e, num gesto terno, afastou-lhe o cabelo da testa.

- Que bom que és para mim, Caio Júlio Júnior! - disse ela, os olhos fechando-se de sono.

- Eu sou bom para aqueles a quem amo. Apenas para esses - disse ele. Fez uma pausa, e acrescentou: - Apenas para esses. Para ti. Para a minha mãe. Para mais ninguém. - Baixou-se e deu-lhe um beijo nos lábios.

Enquanto ela dormia - e ainda dormiu umas boas horas -, o jovem César sentou-se numa cadeira ao lado, observando-a, as pálpebras pesadas, mas resistindo ao sono. Observava-a deleitado, não se cansava de a olhar, de convocar inúmeras recordações; Júlia nunca mais lhe pertenceria como naquele momento, como naquelas horas em que esteve a dormir ao pé dele, sob o seu olhar atento.

Quando ela acordou, o jovem acordou também da sua contemplação, daquele estado magnífico. Ao ver que tinha dormido, Júlia ficou em pânico: e só se acalmou quando ele lhe garantiu que Caio Mário continuava vivo.

- Vai tomar um banho, por favor - disse-lhe a enfermeira. - E quando voltares, comerás pão com mel. Caio Mário não sabe se estás ou não com ele.

Depois de dormir e tomar banho, Júlia apercebeu-se da fome que tinha: comeu todo o pão com mel que lhe trouxeram. O jovem César permaneceu na sua cadeira, enroscado, com um olhar atento, até que ela se levantou.

- Eu acompanho-te até ao quarto - disse ele. - Mas não entro. Não posso entrar.

- Claro, claro. Claro que não podes. Agora és o flamen Dialis. Lamento tanto o que aconteceu! Porque tu odeias esse cargo!

- Não te preocupes comigo, tia Júlia. Eu resolverei o caso. Ela afagou-lhe o rosto e beijou-o.

- Obrigada por toda a tua ajuda, meu sobrinho. Tens-me ajudado muito.

- Faço-o apenas por ti, tia Júlia. Por ti, daria a minha vida. Sorriu, e acrescentou: - Talvez não me afaste muito da verdade se disser que já a dei.

Caio Mário morreu na hora que antecede o nascer do dia, a hora em que a vida se anuncia, por entre o silêncio que só cães e galos perturbam. Há sete dias que estava de coma, há treze dias que era cônsul pela sétima vez.

- Um número aziago - comentou Cévola Pontifex Maximus, tremendo, esfregando as mãos de frio.

Aziago para ele, mas não para Roma, foi o que pensou a maior parte dos presentes quando ouviu tal comentário.

- Caio Mário tem de ter um funeral público - disse Cina mal chegou a casa do defunto, desta feita acompanhado pela esposa, Ânia, e pela filha mais nova, Cinila, mulher do flamen Dialis.

Mas Júlia, sem lágrimas nos olhos e uma calma imensa, abanou a cabeça.

- Não, Lúcio Cina, Caio Mário não terá um funeral do Estado disse. - Caio Mário tem dinheiro suficiente para pagar as suas exéquias.

Roma não está em condições de suportar tais despesas. Além disso, quero uma cerimónia discreta. Apenas a família. E isso significa que só quero que se saiba da morte de Caio Mário depois do funeral. Um arrepio percorreu-lhe o corpo; fez um esgar, e acrescentou: Haverá alguma maneira de nos vermos livres desses horríveis escravos que ele contratou?

- Esse caso foi resolvido vai para seis dias - disse Cina, corando; não seria capaz de esconder o seu mal-estar. - Quinto Sertório saldou as contas com eles no Campo de Marte e ordenou-lhes que deixassem Roma.

- Ah, sim, claro! Tinha-me esquecido... - disse a viúva. - Quinto Sertório foi muito simpático em ter resolvido os nossos problemas! Ninguém saberia dizer se Júlia estava ou não a ser irónica. Mas a viúva de Mário mudou imediatamente de assunto. Virou-se para o irmão, César, e perguntou-lhe: - Foste buscar o testamento de Caio Mário às Vestais, Caio Júlio?

- Tenho-o aqui - respondeu ele.

- Quinto Múcio, importas-te de ler o testamento? - pediu ele a Cévola.

Era um testamento breve, e muito recente; ao que parecia, Mário tinha-o redigido na altura em que se encontrava no flanco sul do monte Janículo, acampado com o seu exército. A maior parte da fortuna ia para o filho: Júlia ficaria com o máximo que lhe era permitido por lei. Por outro lado, legava um décimo dessa fortuna ao sobrinho adoptivo, Marco Mário Gratidiano, o que significava que, de um momento para o outro, Gratidiano passava a ser um homem muito rico; de facto, a fortuna de Caio Mário era colossal. Quanto ao jovem César, deixava-lhe o escravo germano, Burgundo, em sinal de reconhecimento pelo precioso tempo que o rapaz perdera a ajudá-lo na convalescença.

Por que razão me deixaste o escravo, Caio Mário?, perguntou o jovem para si mesmo. Não foi pela razão que invocas! Talvez para acabares com a minha carreira, caso eu tente abandonar o cargo para que me nomeaste... Talvez tenhas dado ordens a Burgundo para me matar caso eu enverede pela carreira pública... Pois bem, meu velho, dentro de dois dias não serás mais que cinzas. Mas eu não vou fazer aquilo que um homem prudente deveria fazer - matar o gigante cimbro. Ele adorava-te, tal como em tempos eu te adorei. E a morte é uma triste recompensa para tanto amor - seja ela a morte do corpo, ou a morte do espírito. Ficarei, pois, com Burgundo. E conseguirei que ele goste de mim, que ele me adore como te adorou.

O flamen Dialis virou-se para Lúcio Decúmio.

- Estou a mais aqui. Só atrapalho - disse ele. - Acompanhas-me até casa?

- Vão-se embora? Óptimo! - disse Cina. - Importam-se de levar Cinila, já agora? Coitada, está farta disto.

O flamen Dialis olhou para a suaflaminica, para aquela bonequita de sete anos.

- Anda, Cinila - disse ele, pondo o sorriso que deixava as mulheres encantadas (e ele tinha consciência disso). - Os bolos do teu cozinheiro são bons?

Acompanhadas por Lúcio Decúmio, as duas crianças avançaram pela Clivus Argentarius e desceram a colina na direcção do Fórum Romano. O Sol estava a nascer, mas os seus raios não tinham ainda a altura suficiente para iluminar o fundo da ravina que encerrava a razão, a justificação da existência de Roma.

- Ora bem! Olhem-se só para aquilo! As cabeças já lá não estão outra vez! - disse o flamen Dialis ao pisar a primeira laje do anfiteatro dos Comitia. - Tenho estado a pensar numa coisa, Lúcio Decúmio. Para varrer o espírito de um morto do local onde morreu, poderei usar uma vassoura normal, ou terei de usar uma vassoura especial? - Deu um salto e pegou na mão da esposa. - Creio que não está nada previsto para tal varredura! Tenho de consultar os livros. Sim, porque seria horrível se eu cometesse algum erro no ritual destinado ao meu benfeitor Caio Mário! Posso não fazer mais nada em toda a minha vida, mas pelo menos uma coisa quero fazer bem feita: quero libertar-nos a todos da presença de Caio Mário!

Lúcio Decúmio sentia-se tentado pela profecia, não porque possuísse poderes proféticos, mas muito simplesmente porque amava.

- Tu vais ser um homem muito superior a Caio Mário! - disse.

- Eu sei! - retorquiu o jovem. - Eu sei, Lúcio Decúmio, eu sei!

 

 

                                                                                                    Colleen McCullough

 

 

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